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Este! arquivo! corresponde!à!parte!escrita!da!tese!de!doutorado!A"Estética"Funk"
Carioca:" criação"e" conectividade"em" Mr."Catra,!de!Mylene!Mizrahi,!apresentada!ao!
Programa! de! Pós‐Graduação! em! Sociologia! e! Antropologia! do! Instituto! de!
Filosofia!e!Ciências!Sociais!da!Universidade!Federal!do!Rio!de!Janeiro!–!PPGSA‐
IFCS‐UFRJ!–,!defendida!em!junho!de!2010.!!
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese de Doutorado
A Estética Funk carioca: criação e
conectividade em Mr. Catra
Mylene Mizrahi
2010
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A Estética Funk carioca: criação e
conectividade em Mr. Catra
Mylene Mizrahi
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
     
Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários a obtenção do título de Doutor
em Antropologia Cultural
Orientador: Profa. Dra. Elsje Maria Lagrou
Rio de Janeiro
Junho 2010
ii
iii
Mizrahi, Mylene
A Estética Funk Carioca: criação e conectividade em Mr. Catra /
Mylene Mizrahi. Rio de Janeiro:UFRJ/IFCS, 2010
iv, 270 f.; 29,5 cm.
Orientador: Elsje Maria Lagrou

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2010

1. Estética. 2. Funk. 3. Criatividade. 4. Objetos. 5. Gênero. I. Lagrou,
Elsje Maria. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia. III. A Estética Funk Carioca: criação e conectividade em
Mr. Catra.
iv
RESUMO
A Estética Funk Carioca: criação e conectividade
em Mr. Catra
Mylene Mizrahi
Orientador: Elsje Maria Lagrou
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutor em Antropologia Cultural.
           
do nexo entre estética, criação e conectividade, tendo como contexto a rede de

acompanhando o artista em suas turnês pela cidade do Rio de Janeiro, observando
o modo como os deslocamentos com sua trupe em um carro coletivo refazem
            
seguida, nos voltamos para o ambiente doméstico de Mr. Catra para a notar a
forma pela qual suas relações familiares o constituem bem como acompanharmos
os seus discursos em torno da religião. Logo entramos no estúdio de gravação
para seguir o processo criativo de diferentes artistas Funk, notando a articulação
que se dá entre criatividade, difusão e consumo e ainda o emergir de um sujeito
criativo que simultaneamente se apóia na individualidade e se afasta da noção de
“gênio. Nos voltamos então para a atividade artística de Mr. Catra com o intuito
de evidenciar de que modo ele se faz a uma vez exemplar e singular do ritmo
 
tendo como guia não o corpo mas os objetos materiais, escolha que produz a sua
dessubstancialização. Inicialmente nos detemos sobre a produção dos cabelos e
da beleza femininos e a manipulação das representações e símbolos que a envolve,
para então sermos conduzidos pelos adornos masculinos às relações de gênero e
notarmos a imprevisibilidade das ações dos objetos.
Palavras-chave: estética, criatividade, conectividade, objetos, relações de gênero.
v
ABSTRACT
Rio Funk Aesthetics: creation and connectivity in
Mr. Catra
Mylene Mizrahi
Orientador: Elsje Maria Lagrou
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutor em Antropologia Cultural.
This dissertation is an ethnography about Carioca Funk – a musical movement
born in Rio de Janeiro, Brazil. The ethnography is built upon the nexus between
aesthetics, creation and connectivity, having as its context the network of social
relations of Mr. Catra, a Funk singer. We start by accompanying him and his band
as they travel in the same vehicle through the city of Rio de Janeiro to make their
various performances, in order to see the way they reassemble the city through
the communication of its social and geographical parts. We then move to his
domestic environment in order to see how he is the product of his family relations
and to record his discourses on politics through religion. Subsequently we enter
his recording studio to follow the process of musical creation of different Funk
artists and the way creativity is articulated with diffusion and consumption,
noting as well the emergence of a creative subject that dwells on individuality
while departing from the notion of “genius”. Afterwards we return to Mr. Catra’s
artistic work with the aim of displaying how he is both singular and exemplar of
Funk Carioca. Finally, we turn our attention to the body aesthetics, centring our
analysis not on the body but rather on material objects, a choice that promotes
their desubstantialization. Firstly we examine the production of female hairstyles
and beauty and the manipulation of representation and symbols surrounding
it, and then we are lead by the male adornments to gender relations and to the
unpredictability of the actions of objects.
Key-words: aesthetics, creativity, connectivity, objects, gender relations.
vi
Agradecimentos
Gostaria de agradecer:
     
dezembro de 2009 e agosto de 2010 e dezembro de 2010;


em meu projeto; pela exigente e estimulante interlocução;
A Marco Antonio Gonçalves, pela interlocução, estímulo intelectual e incentivo;
Aos professores do PPGSA, em especial Beatriz Heredia, pela enriquecedora
parceria, e a Emerson Giumbelli, pelas sugestões de pesquisa;
Aos componentes da banca de doutorado Peter Fry, Marco Antonio Gonçalves,
Santuza Cambraia Naves, Sonia Maluf, Maria Laura Cavalcanti, Micael Herschmann;
Ao meu supervisor na University College London, Danny Miller; aos
professores do departamento de antropologia da UCL Susanne Kuechler, Allen
Abramson, Paolo Favero; à Roger Sansi, da Goldsmiths, University of London;
A Scott Head, do departamento de antropologia da UFSC, à Carla Barros, da
ESPM, à Fábio Koifman, do departamento de história da UFF;
Aos funcionários do PPGSA Claudia Jesus Vianna, Denise Alves da Silva e
Verônica Vasconcellos;
Aos meus colegas do PPGSA, Roberto Marques, Roberta Guimarães, Tatiana
Bacal, Julio Naves Ribeiro, Bruno Cardoso;
Aos meus colegas na UCL Diana Espírito Santo, Nico Tassi, Matan Shapiro,
Florencia Ferrari, Tom Rodgers, Piero DiGiminiani, Clarissa Rahmeyer;
A Mr. Catra, Sílvia, Cíntia, Thamyris, Sandrinho, Kapella, Rocha, Jota, Sanny,
Juninho, MCs Leonardo e Junior, Orlando Zaccone;
A Vera Lucia Dutra, Lilian Koifman, Ester e Nilton Bonder, Yara Hokerberg,
Eliane Mesquita;
Aos meus pais, Michel e Elza Mizrahi e às minhas irmãs Denise Mizrahi
Carrera e Mônica Mizrahi Rubens;
          
paciência, compreensão e curiosidade;
A Walter Goldfarb, pelo carinho, companheirismo e participação.
vii
Sumário
Resumo ................................................................................................................................................................... iv
Abstract ................................................................................................................................................................... v
Agradecimentos ................................................................................................................................................. vi
Introdução .........................................................................................................................................................1
CDs anexos ........................................................................................................................................11
Parte I ...................................................................................................................................................12
Capítulo 1 ...........................................................................................14
Os deslocamentos ................................................................................................................................ 22
Vem todo mundo .................................................................................................................................. 37
Capítulo 2: Escapando pela válvula ............................................................................................ 42
A herança familiar de Mr. Catra ..................................................................................................... 43
Replicação e individualidade ......................................................................................................... 47
O modelo reduzido de Regina ........................................................................................................ 50
A família hoje .........................................................................................................................................
Mr. Catra e a religião............................................................................................................................
Parte II ................................................................................................................................................ 74
Capítulo 3: Autonomia da arte, criatividade e difusão ......................................................
O estúdio de gravação ....................................................................................................................... 77
Ética e estética ...................................................................................................................................... 87
A lógica criativa e a não-proeminência da palavra ............................................................... 93
A liberalidade das apropriações ................................................................................................. 103
Capítulo 4: Englobamento e subversão ................................................................................. 117
As imagens e contra-imagens ..................................................................................................... 119
Mr. Catra e o Funk: alterando a cultura ................................................................................... 131
O hiper-realismo no Funk ............................................................................................................. 145
O duplo-sentido e as paródias musicais ................................................................................. 152
O riso conectivo e subversivo ...................................................................................................... 
Parte III ............................................................................................................................................
Capítulo 5: Os cabelos femininos e a confusão de símbolos ........................................ 
Objetos e sujeitos ............................................................................................................................. 
A pujança dos cabelos .................................................................................................................... 172
A confusão de símbolos ................................................................................................................. 178
O corpo como sujeito ...................................................................................................................... 
A produção dos cabelos e a noção de pessoa ....................................................................... 189
A lógica da prótese ........................................................................................................................... 198
Capítulo 6: Os adornos masculinos e as relações de gênero ........................................ 203
A festa e a desambiguizadora estética corporal .................................................................. 204
Cabelos como ornamentos ........................................................................................................... 209
Tiros que articulam o social ........................................................................................................ 
Outros adornos masculinos ......................................................................................................... 221
O “presepeiro” e “escandaloso” .................................................................................................. 228
As diferenças entre o homem e a mulher .............................................................................. 235
“Chapa quente é bico pro alto ................................................................................................... 242
Conclusão ....................................................................................................................................... 247
Bibliografia ................................................................................................................................... 255
Para André Michel Mizrahi
In memorian
Introdução
2
Estética Funk, construída
a partir do nexo entre estética, conectividade e criação que se estabelece por meio
da produção e circulação de imagens e objetos. O meu argumento deriva de dois
focos empíricos fundamentais: a criação musical e os investimentos corporais. O
termo estética, como o emprego, deve ser entendido por referência à forma, seja
ela demarcadora das imagens visuais, verbais ou artefatuais, encontradas na

perspectiva, a utilização que faço desta terminologia deriva do esforço de desfazer as

objeto, corpo, música, palavra e imagem. Em uma frase, a tese tem o propósito de
investigar de que modo a criação estética e artística está à serviço da conectividade.
O Funk Carioca é um ritmo musical derivado do soul norte-americano
(Vianna 1988), que chegou ao Rio de Janeiro na década de 1980. Seu lócus de
execução se deu inicialmente em bailes de dança que ocorriam na Zona Sul, área
privilegiada da cidade, que posteriormente migraram para suas áreas periféricas.
    
origem ao que hoje conhecemos como Funk Carioca, tornando-se manifestação
cultural fortemente associada aos jovens das classes populares da cidade. Mas é
possível dizer também que o ritmo, mesmo que majoritariamente consumido por
estes jovens, alcançou circulação tal que lhe permitiu tornar-se um dos símbolos
mais loquazes do Rio de Janeiro, tanto em âmbito nacional como em contexto
estrangeiro, especialmente na Europa. Do ponto de vista desta tese, o Funk nos
interessa como manifestação estético-cultural capaz de nos colocar em contato
com o universo imagético que ele produz e que o contém.
Esta tese se constrói em continuidade com minha dissertação de mestrado,
na qual discorri sobre as relações entre roupa, corpo e dança em um Baile Funk,
relacionando o Figurino Funk às outras manifestações artísticas presentes na


um local particular, um Baile Funk que acontecia em um clube na Zona Central da

com o mundo exterior, nesta nova fase de minha investigação do universo estético
Funk importou apreendê-lo tanto a partir de suas interfaces internas como através
daquelas estabelecidas com o restante da cidade. A pesquisa no Baile já havia me
3
dado mostras de que não seria possível seguir me aprofundando nesse universo

a um ampliar do escopo de minha pesquisa, o que poderia ser feito ao migrar da
esfera da festa para a cotidiana. Isto poderia me manter ainda encerrada em um
contexto fechado, já que os frequentadores da festa eram em sua maioria moradores
das favelas que circundavam o clube onde acontecia o baile em que investigara,
e partindo do pressuposto que grande parte dos consumidores e produtores do
ritmo moram ali, uma escolha fácil seria buscar o cotidiano em seus locais de

muito claro que o seu trânsito não se dava entre a festa, no asfalto, e a vida na
favela. Moravam na favela, mas estudavam, trabalhavam e faziam suas compras na
“pista. A própria sistematização da indumentária corporal e a análise do gosto já
haviam indicado que a estética corporal Funk resulta de uma síntese entre marcas
de localidade e elementos mais cosmopolitas, ponto ao qual retornarei ao longo da

de uma trend estrangeira.
Todos estes motivos me mostraram a necessidade de pensar o Funk a
      
próprio universo de investigação ou formatando a produção de conhecimento
antropológico. Foi nesse contexto que o encontro com Mr. Catra se mostrou tão
promissor. Eu o procurara para realizar uma entrevista de modo a obter subsídios
             
religião (Mizrahi 2007b). Nos diferentes shows que assistira de MCs de Funk
durante o trabalho de campo do mestrado, Catra era não apenas o que mais se
destacava nesse aspecto como era o artista Funk que de fato inseria o discurso
em torno do divino ativamente em suas performances. Considerei aquela uma boa
entrada no tema e o procurei. Da primeira entrevista surgiu o seu convite para
          
com o artista surgiu a minha proposta para que ele passasse ao centro de minha
investigação de doutorado. Acompanhá-lo, como mostrarei no primeiro capítulo
da tese, colocou-me a possibilidade concreta de realizar uma investigação como
me parecia conceitualmente relevante. Um estudo que escapasse não somente a
 
narrativas da Modernidade como às que descreviam o Funk como produção
circunscrita ao ambiente da favela e por oposição ao “asfalto.
A localização do Funk no ambiente da favela é muitas vezes acompanhada
de um discurso de denúncia da “criminalização” que o ritmo sofre, vinculando o
que se apreende como restrição em sua circulação ao histórico preconceito racial
e de classe de que são alvo os seus produtores e consumidores majoritários. Essa
4
mesma “criminalização, entretanto, produz simultaneamente uma “glamurização
           
         
“demonização” do processo de inserção do ritmo nos meios de comunicação e

1
Hoje, este mesmo viés informa

a ênfase no “preconceito” que o ritmo sofre pode oferecer.
2
O meu argumento,
diferentemente, procura desfazer a ideia de que o Funk Carioca é resultado de
uma cisão entre favela e asfalto, indivíduo versus sociedade, ou comunidade
versus sociedade, para mostrar o seu aspecto mediador, vendo-o como produto
do encontro entre diferentes esferas e classes sociais, inclusive aquelas que se
convencionou chamar de “favela” e “asfalto.
3
Venho me imbricando no universo estético Funk desde 2001, quando
iniciei uma pesquisa sobre a trajetória na mídia do estilo indumentário associado
às frequentadoras dos Bailes Funk, conhecido pela categoria midiática “Calça da

que foi adquirindo novos sentidos de acordo com os diferentes grupos sociais que
o consumia, iniciei minha investigação de mestrado com o intuito de arrolar os
discursos e práticas dos usuários do estilo no contexto que a pesquisa anterior
revelara como sendo o seu ambiente de criação, o Baile Funk. E a partir dos
resultados a que cheguei em minha dissertação de mestrado desenvolvi o estudo
que originou minha tese de doutorado. Desse modo, o evoluir de minha pesquisa
fez com que o foco de minha investigação fosse gradativamente migrando do Baile
Funk para o ritmo Funk, uma variação que me parece importante ser marcada.
Esta tese se faz mais propriamente em torno do ritmo Funk, no sentido que
foi acompanhando a circulação de sua música por diferentes espaços da cidade

localizadas na Zona Sul da cidade, como a Baronetti; em casas de shows frequen-
tadas pelas classes populares e média localizadas na Baixada Fluminense, como

Fundição Progresso na Lapa, na Zona Centro; em clubes periféricos e ociosos, como
o Clube do Boqueirão, também na Zona Centro; e em favelas. Considero que o que
se chama de Baile Funk acontece nestes dois últimos locais, os clubes periféricos e

Nos outros locais dança-se e escuta-se Funk, bem como outros ritmos, como o
1 Ver Yúdice (1997), Herschmann (1997b), Gomes (1997).
2 Favela on Blast (2008).
3 Ver Soares (2010), para um estudo que aborda o Funk para pensar a favela.
5
House, o Pop Rock, o Rock Nacional, o Hip-Hop, etc. Assim, mesmo em ocasiões
             
de MCs deste ritmo musical, este se constitui em “mais um set” do playlist da
noite, a programação musical a ser executada. Já em um Baile Funk dança-se e
             
preferencialmente o Pagode Romântico e uma variante melódica do Hip-Hop – isto
ocorre em momentos de baixa frequência de público ou são executados em outro

4
O estudo da Estética Funk, como proponho, envolve dois aspectos. Um

é tematizada por meio de uma abordagem antropológica, como defendida por
Alfred Gell (1998). Deste modo, o interesse recai sobre manifestações que
estejam imiscuídas na própria vida dos povos e grupos estudados e não como
apartadas da vida cotidiana, modo tradicional pelo qual são considerados os
  
manifestação artística, é, a partir desta ótica alternativa, menos a sua circulação em
contextos artísticos e extraordinários, e mais a sua agência e intencionalidade. É a
capacidade de transformação da arte que interessa, ao invés de suas propriedades
representacionais. O segundo aspecto envolvido consiste em tomar o estudo
da estética como relativo à forma, esteja ela no corpo, nas roupas, nos cabelos,
nas métricas e nos ritmos musicais. Este enfoque entende a estética como um
modo de expressão não-verbal de qualidade sintética e resultante do diálogo

de modo que a música será abordada como mais uma das vozes do diálogo.
As suas qualidades formais nos interessaram na medida em que nos ajudam a
elucidar a lógica estilística.
Dessa perspectiva, proponho um uso diferencial para o termo estética de
modo a escapar à associação costumeira que a designação estabelece com o
“julgamento da beleza e do gostoou com o “fenômeno do Modernismo europeu”,

cultural poderia acarretar (Weiner 1994). O debate de Manchester sobre a validade
do uso trans-cultural da categoria estética produziu como desdobramento o
         
artísticos. De um lado, se posicionaram antropólogos que expressaram uma
concepção universalista da percepção estética, ao defenderem que todos os
4 Em pesquisa sobre a cadeia produtiva do Funk, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (Simas

de todos os outros.
povos distinguiriam alguma classe de objetos como belos e artísticos. Do outro, se

que o mesmo carrega a própria noção ocidental do que pode ser arte, envolvendo
assim o julgamento de uma cultura em termos de sua capacidade de produzir o
belo, impedindo, dessa maneira, o estudo de objetos e imagens que contrariassem
tais pressupostos.
O sentido que sugiro para a estética procura recobrar o laço entre aparência
e função, forma e conteúdo, cujo rompimento Gell (1998) atribuiu ao Iluminismo.
Desse modo, o estudo da arte, como proponho, se faz em sintonia não apenas com
Gell mas também com Latour (1994), ao se utilizar da estética como recurso de
visualização e demonstração da imbricação de que é feita a vida social. Gell não
era contra a estética propriamente, mas contra a “atitude estética” que separava


do qual o antropólogo poderia deixar de lado as apreciações de julgamento de
valor ao estudar objetos de arte em contextos não-ocidentais, evitando informar
suas avaliações por meio de noções etnocêntricas e pré-concebidas. O poder do
objeto de arte deveria ser conceituado a partir de seus processos de fatura e do
encantamento que a destreza do artista poderia produzir sobre os espectadores de
sua criação bem como a partir de suas agências e intencionalidades, que colocam
em relação social o objeto e o espectador.
É interessante notar ainda, através do raciocínio que segue Gell para a
elaboração de uma antropologia da arte, como os conceitos podem se revelar
limitadores. Mesmo escrevendo após as discussões realizadas em Manchester, ao
usar a categoria “objeto de arte” o autor se viu obrigado a diferenciar o seu uso

não intenciona é tomar um objeto como “de arte” no sentido que a “teoria da arte”
lhe concede, ou no sentido próprio da concepção de arte em termos ocidentais:
algo extraído da esfera cotidiana e corriqueira e que não pode portanto ser outra
coisa que não um objeto extraordinário. Na teoria antropológica da arte de Gell,
não há lugar para uma “obra de arte” no sentido institucional do termo. Pois um
objeto que foi considerado como tal é retirado de todas as outras esferas da vida e
considerado exclusivamente como “de arte”.
Gell está essencialmente preocupado com os objetos materiais, enquanto
Lagrou (2007a) enriquece o estudo da estética ao propor que as imagens, sejam
elas em suas manifestações verbais, visuais e mesmo virtuais podem nos conduzir
            
quer evidenciar o caráter que as imagens possuem de nos levar às “experiências
às quais apenas se alude” e que são mantidas em condições “essencialmente
7
secretas”. Busca, desta forma, chamar atenção para um estudo das imagens que
leve em consideração a capacidade que as mesmas possuem de afetar os sujeitos
emocionalmente, sejam eles o pesquisador ou o pesquisado.
A investigação que origina a presente tese teve como contexto o universo

de amizade e familiares, e foi concretizada a partir de entrevistas em profundidade
e uma observação participante. Mas mais do que essas técnicas de pesquisa,
procurei fazer uma “antropologia da amizade”, como fez Jean Rouch ao realizar seus


discursividade construída a partir de uma relação” (Gonçalves 2008:194). Pois
mesmo concordando com Strathern (2004[1991]) que a questão levantada pela
pós-modernindade na antropologia coloca um “problema de escrita, penso que
o que antes é colocado, ou mais fundamentalmente é preciso renovar, é o modo
como nos posicionamos em campo. Em outros termos, não é possível renovar a
escrita sem igualmente revigorar o modo como nos relacionamos com os sujeitos
de nossa pesquisa, aspecto bastante elaborado pelos referidos antropólogos, ainda

A “crise da representação” gera desse modo novos modelos de autoridade
       
o relato e produz assim novos paradigmas para essa mesma autoridade, como o
dialógico e o polifônico, que “atribui aos colaboradores não apenas o status de
enunciadores independentes, mas de escritores” (Clifford 1988:55).

de minha pesquisa, em um modo “discursivo” preocupado principalmente com
a representação dos contextos de pesquisa e situação de interlocução (Clifford
           
        
Crapanzano (1980). Pensar o tipo de relação que com meus interlocutores
estabeleci passou também pelo modo como utilizei a mim mesma como dispositivo
de pesquisa, despertando neles interesses pelo diálogo que propunha e suscitando
conversas a partir da minha presença e da maneira como eu me apresentava, nisto
incluído o meu gosto pessoal ao me vestir. Assim, nunca pensei que o pesquisador

  
diferente, de seus gostos ou de suas expectativas de gosto, não os confundiria
com relação aos meus propósitos ali. Ao contrário, o modo como me apresentava
tornava mais instigante a relação, para mim e para eles, na medida em que abria
8

velha de Catra, quando em sua casa cheguei depois de algumas semanas ausente do
ambiente doméstico: “tanto tempo sem aparecer e nenhuma novidade?!”.
O trabalho de campo ocorreu entre o mês de maio de 2007 e trinta de
dezembro de 2009, data em que precisou ser interrompido para que no dia seguinte
eu me ausentasse do país de modo a realizar doutorado-sanduíche no exterior, e
foi complementado por incursões menos frequentes feitas após o meu retorno. A
pesquisa empírica foi recortada por três planos diferenciados. O primeiro deles
se conformou ao longo das turnês e performances do artista e de sua trupe, o que
me permitiu não apenas acompanhar as suas apresentações e seus deslocamentos
pela cidade e pelo estado do Rio de Janeiro como gerou a oportunidade para que
eu voltasse às festas onde antes investiguei. A segunda situação se formou na casa
 

e MCs. Muitos dos nomes originais foram embaralhados, de modo que mantive
apenas os dos artistas, homens ou mulheres.
Apesar de estar investigando em um mundo da arte, não estou interessada
nos aspectos econômicos de sua cadeia produtiva, como trabalhos que seguiram
pela esteira de Howard Becker (1982) buscam elucidar,
5
e tampouco possuo

e Fred Myers (1995). Ao optar pela realização de um estudo da estética Funk
“microscópico, como Clifford Geertz sugere para a pesquisa antropológica (1989),

o da festa ou aquele que viabiliza a sua música. O que intenciono é de fato estudar
a relação da arte e do mundo imaginário dos seus sujeitos criativos com a vida que
eles articulam, que por sua vez engendra a própria arte.
A tese está dividida em três partes, que se desdobram em dois capítulos cada,
e está assim organizada não apenas pelo encadeamento narrativo possibilitado
como a partir da discussão teórica suscitada. Além disso, privilegiei uma escrita e
narrativa tais que, ao mesmo tempo em que entremeadas pela discussão teórica,
mantivessem uma cadência que permitisse ao leitor me acompanhar no processo de
extração de sentido que realizo ao organizar, por meio da construção do texto e da
inserção de imagens, parte dos dados recolhidos em campo.
A primeira parte da tese tem como mote central teorias que de três diferentes
maneiras elaboram sobre a condição de partibilidade da pessoa individual. O

5 Ver Facina (2008).
9
e o modo pelo qual estas saídas me colocaram a necessidade de levar a sério a
hipótese de pesquisa que esmiucei na parte inicial desta introdução. Através de uma

social pelo qual circula o Funk no Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que vemos
o artista se deslocando pelo espaço urbano em um carro coletivo, distribuindo sua
agência nos moldes da “pessoa distribuída” de Gell (1998), “refazendo o social”
no sentido de Latour (2005) e exercendo sua “conectividade”, como em Strahern

cidade. A narrativa deste capítulo introduz ainda os temas a serem elaborados ao
longo da tese como um todo: criatividade, objetos, imagens, religião, ironia, raça,
relações de gênero.
           
estão presentes o artista e seus familiares. Aqui está em foco a “pessoa fractal”, como
em Wagner (1981[1975]), que nos permite evidenciar não apenas como muitos dos
             
uma noção de pessoa que não é apenas “dividual”, mas divisível onde se é um através
de muitos. Por meio dos discursos em torno da religião e de sua trajetória familiar,
contextualizaremos o posicionamento político peculiar e transgressor de Catra diante da

pelo que ele designa como “sociedade católica” e a “hipocrisia da sociedade”.
Na segunda parte estará em evidência a dinâmica criativa funkeira e seu
traço fortemente subversivo além de uma tensão entre parte e todo através da
qual vemos que ao mesmo tempo em que Catra é um artista singular do Funk,
é o próprio Funk que lhe oferece os instrumentos de viabilização dessa sua
singularidade. Assim, a discussão teórica a unir os dois capítulos desta unidade

que governa a vitalidade cultural. Além disso, veremos uma atuante lógica do
englobamento, como em Louis Dumont (1992) em que a noção de totalidade é
premente, ao mesmo tempo em que seremos conduzidos pelo próprio artista às
abordagens que buscam uma dissolução dos limites desta mesma totalidade.
         Sagrada
Família, onde Mr. Catra grava suas produções bem como as de outros artistas. A
narrativa será conduzida pelos parceiros de criação do cantor, que nos ajudarão
a elucidar a lógica criativa da música Funk. A discussão teórica versará em torno
da criatividade artística e da apropriação cultural. No capítulo quatro jogaremos
o foco mais propriamente sobre o artista Mr. Catra e no processo de tradução
de uma música veremos o constante papel mediador que ele exerce. Ao mesmo
tempo, destacaremos o lugar que possui a imagem no processo criativo funkeiro
e discorreremos por diferentes sub-gêneros da música Funk até chegarmos às
paródias musicais, que podem ser consideradas como a marca distintiva de Catra.
10
Na terceira parte da tese, a análise se centra na estética corporal feminina
e masculina e nos objetos materiais dos quais os sujeitos criativos se cercam para
elaborarem a sua aparência. A discussão teórica central recai sobre as distintas
teorias da materialidade, sobre as noções de agência e intencionalidade e sobre o
modo protético com que os objetos estendem as capacidades das pessoas. Como
desdobramento da problematização dos objetos materiais e da beleza emergirão
questões relativas às relações raciais e de gênero.
O capítulo cinco possui como discussão subjacente a criatividade, mesmo
quando não tratamos do artista em sentido estrito, e o modo como os símbolos
e a aparência podem ser manipulados de modo a equivocar o outro. O núcleo
            
manipulação resulta em uma estética duplamente ambígua. De um lado, ela
procura escapar a uma associação que vem se mostrando como estabelecida entre
cabelo e identidade negra ao mesmo tempo em que opta por um estilo que os
diferencia do cabelo associado ao branco. De outro, os cabelos femininos buscam
uma mobilidade na circulação social, uma certa invisibilidade, que não localize as

de calças femininas que estudei no mestrado. Desse modo, as elaborações sobre
os cabelos femininos nos permitirão ver o modo silencioso com que a estética nos
fala sobre os preconceitos sociais e raciais presentes em diferentes ambientes do
Rio de Janeiro.
             
o capítulo anterior. Se naquele vimos como os objetos podem ter seus sentidos
manipulados, neste o argumento versa sobre a imprevisibilidade dos eventos e
efeitos que eles podem produzir. A narrativa será conduzida pela trajetória dos
objetos mais propriamente masculinos mas, também diferentemente do capítulo
anterior, estes nos levarão forçosamente a considerar a presença do feminino e
por sua vez as relações entre os gêneros.
Parte I
Nós sofremos, como pacientes, de formas de
agência que são mediadas através de imagens
de nós mesmos, porque, como pessoas sociais,
nós estamos presentes não somente em nossos
corpos singulares, mas em tudo o mais em nossos
arredores que testemunhe nossa existência, nossos
atributos e nossa agência.
Alfred Gell 1998:103
Capítulo 1

15
Este capítulo de abertura é composto pelos deslocamentos realizados por Mr.



conjuntura social na qual se desenrola a tese como um todo. Tendo como principal

  
distantes, este capítulo anuncia igualmente alguns dos temas a serem elaborados
no decorrer da tese. Assim, ao mesmo tempo em que nos moveremos pelo Rio
de Janeiro, colocando em relação as suas partes, tangenciaremos tópicos como
criatividade, objetos, imagens, religião, ironia, raça, relações de gênero.
         
a três problemas teórico-conceituais que perpassam toda a tese, de modo que
a discussão que travo a seguir servirá de estofo a todo o corpus do trabalho.
  
social e a relação parte-todo. Todos eles se relacionam ao argumento principal
a amarrar a tese, a saber, a dimensão conectiva do fazer artístico, e estão todos
contidos na imagem utilizada por Marilyn Strathern (2004[1991]) para nos falar
da incomensurabilidade das partes de um todo.
Tomando de empréstimo ao matemático Gleick a imagem de uma louça
que é recomposta de seus cacos, Strathern (2004[1991]) defende que a descrição

parciais” estabelecidas entre partes que por sua natureza fractal, por sua
fractalidade, não podem engendrar um encaixe perfeito. Ainda assim, a imagem de
uma xícara refeita a partir de seus próprios cacos nos fala menos da impossibilidade
de se refazer um todo e mais de como esse refazer produz um encaixe imperfeito,
um todo não-coeso. Esta imagem me interessa especialmente na medida em que
contém o trabalho de re-feitura a que deverá se dedicar o antropólogo em sua
produção de conhecimento. Ao abrir mão da ideia de totalidade, Strathern não
a substitui por um mundo em fragmentação, mas considera a relevância de se
refazer um todo, que se caracteriza agora pela sua não-coesão. A noção de conjunto

Lévi-Strauss (1975), há agora espaço para as ambiguidades.
Cabe aqui um pequeno desvio para aprofundar melhor de que maneira o


de amizade, atende a questões teórico-analíticas que possuem especial relevância
para a minha produção de conhecimento. Realizei pesquisa de mestrado em
um determinado Baile Funk que deu origem à dissertação “Figurino Funk:

          

existente entre materialidade, corporalidade e noção de pessoa em um único e

a pesquisa de doutorado envolvia conectar a esfera da festa à vida cotidiana de
seus frequentadores. Uma possibilidade que imediatamente se apresentara foi a
de me concentrar em uma favela, ambiente em que residia a maioria dos jovens
que frequentavam a festa onde então investiguei. Entretanto, ao deixar o baile,
já se fazia claro que a ideia de um todo coeso, de uma realidade fechada em si
mesma, não poderia fornecer o lócus analítico nem o contexto de investigação
necessários às complexidades envolvidas no processo de “invenção da cultura
(Wagner 1981[1975]) estabelecido pela cena Funk. As nuances apresentadas por
      
(Miller 1987; Gell 1998), como igualmente imprimida na dissertação de mestrado,
mostraram-se de certo modo dissonantes com o sistema de oposições que construí
   
abrigar as ambiguidades que a materialidade dos objetos trouxe à tona.
Nesse sentido, Mr. Catra abre caminhos para a problematização de questões
que se colocaram pelo próprio universo Funk, ao mesmo tempo que a ideia de
algo que precisa ser refeito parece atender perfeitamente aos três problemas
             
noção de pessoa. Em todos estes conceitos e instâncias “as partes encontram-se
entrelaçadas, mas não completamente fundidas” (Strathern 1988:70).

         
presente no modo tanto como conduzo a investigação empírica como na maneira
com que me são suscitadas as elaborações sobre o meu material, mostra que as

   
toda a tese e não se restringe à escrita deste capítulo. A questão que me coloco,
inspirada por Wagner (1981[1975]), é a de como refazer, do ponto de vista do
antropólogo, a cultura estudada.
17
      
dentes dos materiais envolvidos. Elas são propriedades que
resultam como dependentes das qualidades fractais dos choques
sobre choques sobre choques. Uma simples mas poderosa
        
         
[bumpiness] em todas as escalas impede isso... É por isso que duas
peças de uma xícara quebrada não podem ser rejuntadas, mesmo
que elas pareçam se encaixar em alguma escala ampla. Em uma
escala reduzida, choques irregulares falham em coincidir.
1
(Gleick
apud Strathern 2004[1991]:xxiv)
       
contém a impossibilidade da fusão de suas partes. Ele é uma lembrança de que
as partes não estarão nunca em contato perfeito, de modo que uma conexão
necessariamente envolve a presença de um gap, um intervalo, uma interrupção.
Portanto, a noção de “conectividade” traz implícita a noção de “socialidade” na qual

de não haver nada de “inerentemente benigno no entrar em relações” (Strathern
           

do qual os antropólogos ocidentais puderam pensar o holismo dos outros” em um
mundo plural, um “mundo cheio de distintas, sociedades totais” (Strathern 1992:77).
Igualmente, o conceito se afasta da noção de “sociabilidade” de Georg Simmel (1983),
segundo a qual a vida social é movida pelo caráter voluntário das associações entre
os indivíduos e pela amabilidade e o prazer inerente às suas relações.
Uma segunda imagem, o ciborgue tomado de empréstimo a Donna Haraway,
permite a Strathern traçar uma espécie de terceira via para ilustrar o modo pelo


o trabalho do etnógrafo, mas também as relações parte-todo e as relações sujeito-
objeto. O caminho está novamente na parcialidade das conexões, que caracterizam
as relações entre corpo humano e máquina que formam o ciborgue. As partes
estabelecem conexões que são em si parciais, formando assim uma imagem toda,
mas nunca um todo coeso, pois as partes, por serem humanas e não-humanas não
possuem termos de equivalência ou comparação, portanto, não se encaixam nunca.
1 As traduções dos originais são de minha autoria.
18
Eu evoquei a imagem do ciborgue (...) de maneira a fazer um
ponto óbvio sobre a vida social. Não existe nada de inerentemente
benigno no entrar em relações, ou tornar todo mundo participante
na performance do outro. Nós não podemos usar a socialidade
como um tipo de campo que simplesmente realça a tomada de
consciência pessoal ou cultural. Nossos cosmopolitas acadêmicos
não podem simplesmente aderir às relações sociais por conta de

Strathern escreve no início dos anos 1990, reconhecendo que o modo

Partial
Connections formam uma narrativa “em resposta a um problema de narrativa”
(Strathern 2004[1991]: xiii), problema este suscitado pela crítica à representação
. Mas a autora (Strathern 1992;
1999; 2004[1991]) não se mostra satisfeita com as imagens de fragmentação,
colagens e suturas a que os antropólogos pós-modernos frequentemente recorrem

descrever em que consiste a criatividade cultural nesse mundo pós-plural. Strathern
pressente em autores como James Clifford e Ulf Hannerz a “nostalgia de um holismo
não problemático” (Strathern 1992:98), no qual o mundo, como o texto, resultaria
em um conjunto compósito, feito a partir de fragmentos tomados de empréstimo
a outras realidades. Mesmo que os elementos deslocados de outras realidades não
pudessem ser encaixados perfeitamente, ainda assim mundos totais deveriam existir
em algum lugar de modo a fornecer as partes a serem recombinadas criativamente.
           
híbridos particulares resultantes da recombinação de elementos pré-existentes.
          
para chegar a um novo modelo para o texto antropológico, compatível com uma
Modernidade que ela diagnostica como “pós-plural”, na qual não há mais lugar
para uma “cultura ocidental pluralista que vê o mundo como constituído em
entidades – uma multiplicidade de indivíduos ou classes ou relações” (Strahern
2004[1991]:xiv). Ela nota que a ressonância cultural alcançada por estas “imagens

uma nova forma de escrita do texto antropológico, e oferece a sua sugestão ao
mesmo tempo em que critica a oferecida pelos antropólogos pós-modernos. Se a
metáfora apresentada pelos últimos é a da viagem (Strahern 2004[1991]), a que
ela fornece produz “contra-imagens às recebidas metáforas antropológicas de

19
          
tomada de empréstimo ao matemático Gleick. A imagem tem como ponto de
partida um grande traço horizontal, do qual é retirado um terço de sua extensão,
resultando em dois traços idênticos e separados por um intervalo de tamanho
idêntico a cada um deles. Esta operação é repetida, de modo que dos dois novos
traços são retirados outro terço e se produzem assim quatro novos traços, e dessa

dinâmica de constituição da imagem contém a lembrança, o resíduo [remainder]
de que a fractalidade das partes obriga o reconhecimento da impossibilidade de

há lá algo a ser explicado” (Strathern 2004[1991]: xxiv)
         
do modelo de escrita que a antropóloga sugere. Um refere-se ao fato de que a
mudança de escala de análise ou da perspectiva tomada sobre o objeto de estudo
adiciona tanta informação quanto é perdida nessas passagens, de modo que uma
discussão contém em si mesma o universo de ideias que lhes é relevante. As
bifurcações a que as ideias e conceitos remetem não derivam de ideias e conceitos

2004 [1991]:xvii). O que ocorre é a replicação da complexidade em cada nível
     
fractal evidencia que as análises dos antropólogos são feitas de irrupções de ideias
e pensamentos que são apenas parcialmente relacionadas mas que ainda assim
organizam as suas narrativas [accounts]. Elas sempre produzirão espaços [gaps].
Bruno Latour (1994), por sua vez, entende que nós, modernos, jamais
isolamos efetivamente o público e o privado, o doméstico e o político, o corpo e
a mente, a ciência e a magia em domínios estanques. As imagens de separação
oferecidas por nossa ontologia ocidental servem-nos igualmente para falar da
         

(1994) expõe seu argumento ao dissecar a rede articulada pelos distintos domínios
que precisa percorrer um jornalista para escrever uma reportagem corriqueira e

caráter processual do social, aspecto que é posteriormente enfatizado pelo autor
através da teoria do ator-rede (2005). A rede de que nos fala Latour, entretanto, não
é uma coisa mas um conceito, um recurso. A rede é uma ferramenta para ajudar a
descrever algo, e não aquilo que deve ser descrito. Para apreendermos o social, segue
o autor, devemos fazê-lo através da análise dos “matters of concern” e não através
 

20
Latour, como Strathern, ao reconceitualizar o social, propõe igualmente um
novo modo para a sua representação. E como aquele é para o autor uma questão
de movimento e circulação, são necessários recursos analíticos que permitam
ao leitor visualizar o social novamente como uma entidade circulante (Latour
2005:128). Desse modo, os atores, ao invés de tratados como “intermediários”
– onde somente alguns são causadores das ações desempenhadas por muitos
(Latour 2005:130) – serão tomados como “mediadores”, todos capazes de fazer
os outros realizarem ações inesperadas (Latour 2005:128). A tarefa é descrever
os atores como redes de mediações, daí o termo compósito actor-network que
dá origem à actor-network-theory
     

feitas por meio da passagem de um novo veículo (Latour 2005:132).
Latour propõe que investiguemos não uma realidade única estática e
         
social em sua sociologia das associações refere-se a
um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma
tradução, um recrutamento [enrollment]. É uma associação entre
entidades que não são de maneira nenhuma reconhecíveis como
sendo sociais da maneira usual, exceto durante o breve momento
em que elas são novamente embaralhadas. Persistindo na
metáfora do supermercado, nós chamaríamos “social” não uma

na organização dos bens por todo o local – seu empacotamento,
a marcação de preços, etiquetação – porque essas mudanças de
minuto revelam ao observador quais são as novas combinações
exploradas e quais atalhos serão tomados (o que será

é o nome de uma associação momentânea que é caracterizada
pela forma através da qual ela se constitui em novas formas.

   
        
deslocarmos com o artista pelo Rio de Janeiro, veremos como a cidade é refeita nos

e nos mostrando a impossibilidade de um encaixe perfeito, ao mesmo tempo em
que se conectando ele mesmo de modo parcial às partes da cidade. Igualmente,
ao circularmos com Mr. Catra pelo Rio de Janeiro, podemos observar o social
no sentido dado por Latour, sendo permanentemente re-unido através de seus
deslocamentos entre uma e outra casa de espetáculo, tornando visível o seu
caráter processual. Através de suas viagens, de suas falas e de suas performances,
Mr. Catra tece a teia e re-arma [reassembles] o social.
21
Os deslocamentos de Mr. Catra nos falam ainda de uma dimensão outra, a do
modo como o artista distribui a sua agência, permitindo-nos apreender os efeitos
de sua “pessoa distribuída. O conceito elaborado por Alfred Gell (1998) se baseia
na exúvia e na fractalidade, duas noções fundamentais e complementares entre
si e que enfatizam o caráter essencialmente partível da pessoa que ultrapassa os
limites do seu corpo individual. Gell recupera a noção de “divíduo, de Marriot,
utilizada tanto por Strathern (1988) para falar da pessoa dividual melanésia,

contém tanto a dimensão relacional e representacional do “divíduo” e da “pessoa

capítulo darei destaque a este último aspecto da pessoa de Mr. Catra, deixando a
discussão sobre a sua fractalidade para ser aprofundada no próximo capítulo.
Não se trata de dizer que Mr. Catra não é moderno. Ao contrário, a sua
modernidade permite coadunar partibilidade e replicação com traços mais
comumente tidos como ‘ocidentais’. Dessa perspectiva, defendo que a manifestação
de sua individualidade não é incompatível com tomá-lo em seus traços de “pessoa

a partir da discussão em torno da criatividade estabelecida nos capítulos três
           
parte dois desta tese, deixará ver como, em um contexto urbano carioca, propor
a perspectiva melanésia sobre a pessoa não exclui a possibilidade de abordá-la
em suas feições modernas. Permitirá ainda notar que a individualidade, para se
manifestar, não precisa corresponder ao individualismo que, como descreveu

1992:53). Diferentemente, tratamos de uma modernidade que permite escapar ao
pensamento maniqueísta e na qual a pessoa individual manifesta a todo momento
a sua dependência em relação aos outros. A partibilidade de Catra permite-lhe
           
ideal funkeiro de estar em muitos lugares simultaneamente.
Analisando a volt sorcery
de seu poder de ação residir na similitude que o objeto construído tem com o seu
protótipo, a pessoa a quem será impingido o dano. É esse ato de representar a

é também o protótipo da representação visual, é a responsável pela aparência do
índice, transferindo para este sua agência. Entretanto, a representação, o índice,
           

Essa associação entre magia simpática e magia por contato, notada por Frazer, é
incorporada por Gell em sua teoria do índice. Pois as exuviae, as partes do todo, se
22
se desejar, não simbolizam metonimicamente o corpo da pessoa, mas são agentes.
Partes destacadas da “pessoa distribuída” que agem sobre o mundo e sobre aqueles
com quem estabelecem contato, ao mesmo tempo em que sofrem como pacientes
com as ações dos outros índices.
Nós sofremos, como pacientes, de formas de agência que são
mediadas através de imagens de nós mesmos, porque, como
pessoas sociais, nós estamos presentes não somente em nossos
corpos singulares, mas em tudo o mais em nossos arredores que
testemunhe nossa existência, nossos atributos e nossa agência.
(Gell 1998:103)
É a própria condição de pessoa social que nos faz “partível”. Através das
exuviae             
distribui sua agência, deixando traços e produzindo efeitos, ao mesmo tempo em
que ele se alimenta das partes dos mundos pelos quais passa.
Os deslocamentos
Estamos no carro, prontos para iniciar os deslocamentos que nos levarão
para as muitas performances que o artista Funk executará em sua jornada
de trabalho. As noites começam em torno das vinte e uma horas e terminam
aproximadamente às sete horas da manhã seguinte.
2
Como ocorre com frequência,
nos encontramos na Praça da Bandeira, Zona Norte da cidade, e a van pode chegar
já trazendo Mr. Catra de sua casa, em Vargem Grande, Zona Oeste da cidade.
3
2 A realização de muitos shows, em uma única noite, com curto intervalo de tempo entre um

é característica do artista de Funk Carioca, como mostra o especial para o canal de televisão
MTV Brasil (Funk Carioca 2005). Este traço gera uma pequena competição entre os artistas
que disputam para ver aquele que mais apresentações consegue realizar em um único turno.
Tati Quebra-Barraco diz que fez dez shows seguidos, enquanto o DJ Marlboro conta doze
apresentações consecutivas, como declaram no referido documentário. A equipe deste, por sua
vez, acompanhou a turnê do Bonde dos Magrinhos, que resultou em quatro shows. Nas noites
em que acompanhei Mr. Catra contei um número máximo de sete apresentações em uma única
jornada.
3 Ao longo deste capítulo, apresento diferentes mapas onde estão marcados os percursos feitos
durante a noite, onde A refere-se a Vargem Grande, B a Praça da Bandeira, C ao Jardim Ideal, D a
Rocha Miranda, E a Vila da Penha, F a Bangu, G a Lapa, H a Nova Iguaçu, e I a Gavea.
23
Rumamos em direção ao primeiro show da noite, que acontecerá na periferia
da cidade, em Jardim Ideal. Mr. Catra conversa com um de seus seguranças sobre as

de drogas o controle de diversas favelas. Fred diz que só falta eles, os milicianos,

outro, o que, acredita o artista, em breve acontecerá, pois “são muito vaidosos”.
Eu interrompo a conversa de Catra e Fred e pergunto ao primeiro se ele acha que
os milicianos são mais vaidosos do que os bandidos. Ele responde, com sua voz
rouca e a jocosidade que lhe são peculiares dizendo que “o Rio de Janeiro é uma
terra de homens vaidosos. É quase veado. Sabe como é?”.
Aqui abro um parêntese: a lógica que rege as relações entre as facções
criminosas do Rio de Janeiro é a de uma “invadir” a outra, “tomando” o controle
de uma favela à outra facção. Assume assim o seu controle ao “invadir” os seus
territórios. Essa lógica governa as relações entre as três facções que comandam

polícia. Por sua vez, os milicianos não se diferenciam em facções, mas agem como

notar que o verbo invadir é utilizado para designar a invasão de um território

do seu proprietário, de maneira que o corpo biológico e as terras de um indivíduo
ou grupo se equivalem.
4
4 Veremos ainda que o mesmo tropo, invadir, é utilizado para designar o ato literal de penetração
Bum bum não se pede, transcrita no capítulo
quatro.
24

dirige então à sua produtora, com lugar cativo na cabine do motorista, no assento
próximo à janela: “Sabrina, cadê os meus cordões?”. Ela estica as mãos para trás
e os passa para Fred, que os entrega a Mr. Catra. A mesma operação é feita para
entregar ao artista os seus anéis. Tanto anéis quanto cordões são dourados e
vistosos. Os cordões são três, pelo menos. Deles pendem berloques, que podem
ser as duas grandes letras C, uma estrela de seis pontas, ou a face de um leão, todos
dourados. Preso ao fecho de um dos cordões, portanto visível para quem olha o
artista pelas costas, está um pequeno “olho turco, adereço originalmente usado
pelos povos do Oriente Médio de modo a se protegerem contra o “mau olhado”, o
olhar dos invejosos. No pulso direito, o artista traz um relógio e muitas pulseiras.
Algumas em metal dourado e outras formadas por contas que, como pequenos
terços, reproduzem o mesmo olho protetor.
É uma noite fria. Mr. Catra veste uma larga calça jeans e uma blusa de
mangas longas em meia-malha branca, estampada com dizeres em preto. Traja
ainda o que chama de seu “casaco de escocês”, capaz de, como ele diz, protegê-
lo das mais baixas temperaturas: uma japona na cor cáqui, de capuz com pêlo à
sua volta. As roupas usadas por Mr. Catra em suas turnês são fornecidas por uma
confecção paulista, que reproduz a estética do vestuário masculino Hip-Hop.
A Manos tradicionalmente patrocina artistas de Hip-Hop, e Mr. Catra e seu grupo são
os únicos funkeiros apoiados pela griffe, o que me é revelado com um certo orgulho.
Continuamos nos deslocando a caminho do show. Passamos por uma área de
casas simples, casebres, e muitas biroscas, bares pequenos. Com frequência vemos
templos evangélicos e eventualmente igrejas católicas. Mr. Catra avisa que “é aqui
que o couro come”. Mais adiante nos mostra a casa em que morou, contando que era
“responsável” por toda aquela área, acrescentando que cumpria a função montado
a cavalo. Nós estamos passando por Duque de Caxias, município da Baixada
Fluminense, mencionada na canção “Minha Facção”, que logo reproduzirei. Foi ali
que Mr. Catra se tornou conhecido como “sinistro da Baixada, como diz a música.
Deixou o lugar depois que o prefeito lhe deu um prazo de setenta e duas horas para
que dali se retirasse. Alguém lhe pergunta se ele não negociou: “Negociei, ué. Saí”.
E ele ri.
25
Chegamos ao local onde acontecerá a apresentação, anunciada em uma faixa
à entrada da casa de show, ao lado do nome de um dos patrocinadores do evento, o
que faz um dos membros da equipe reclamar: “FM O Dia, o caralho”. Acrescenta que
está “cheio desse negócio de FM O Dia, que os dois telões anunciados deveriam ser
“mínimos” e que o raio laser seria certamente “daqueles de canetinha. Entramos no
baile. O espaço é amplo e parece recém-construído. Todo o ambiente tem aspecto
novo e limpo. Os dois telões são de grandes dimensões, e estão posicionados em
cada uma das extremidades do espaçoso palco. O raio laser desce do centro do teto
e reproduz sobre o piso e as paredes bonitas e coloridas mandalas de luz.
Mr. Catra sobe ao palco, mas logo o microfone apresenta defeito. Ele aguarda
por um momento para que o problema seja solucionado, o que não ocorre. Ele se
dirige então à mesa de som montada sobre um pequeno tablado no centro do salão,
posicionada de frente para o palco. Dali ele canta entre o DJ Edgar, o técnico de som
e um funcionário da casa. Inicia a sua apresentação como sempre faz, cantando
o refrão de um louvor, seguido de batidas Funk, realizadas pelo DJ em seu MPC,
a bateria eletrônica.
O senhor é meu pastor
E nada me faltará!
O cantor profere a primeira frase, enquanto a audiência, em resposta, repete
a segunda. Ele canta então Minha Facção.

Minha facção
É o bonde de Deus
Já fui ladrão
E conheço o breu
Se liga rapaziada
Essa que é a parada
Catra, O Fiel
Sinistro da Baixada
Catra, O Fiel
Maluco pode crê
Minha facção
Fortalece você
Só não vale corrê
Vem representá
Se ajoelhou, mano
Vai ter que orá
Humilde e sinistro
Representação
Minha facção
Fortalece você
Eu estô ligeiro
Sempre atento e esperto
Se ajoelhou
Tem que fechar com o certo
5
Terminado o show, voltamos para o carro. Deixamos a Baixada Fluminense
em direção ao próximo baile, na Zona Norte da área metropolitana da cidade. Mr.
Catra comenta como gostou da festa que acabaram de fazer: “baile gostosinho,
microfone maneiro. Mas ninguém emite qualquer opinião. Fez-se silêncio. Eu
mesma não entendo até que ponto ele era sincero e até onde criara um pretexto
para implicar com a implicância alheia, mandando uma mensagem àqueles que
reclamaram ao entrar na festa.
Mr. Catra volta a falar da época em que vivia na área. Diz que precisa
“entrar para a política”, pois assim dará “um jeito rápido” nos problemas da cidade.
Em seguida reclama “dessa sociedade católica, que “ferra” com tudo e todos.
Continuamos a nos deslocar de carro, em direção à Rodovia Washington Luiz,
principal via de acesso à Baixada Fluminense. Passamos por um entroncamento
de vielas. Mr. Catra avisa que ali tem uma “boca, um ponto de venda de drogas
ilícitas, e que a área é cheia delas. Fred, com gaiatice, completa: “tem mais boca
do que dente”, e ambos riem. Mr. Catra emenda, e avisa: “Rio de Janeiro! A chapa
está quente! Tem mais boca do que dente”. Já na Rio-Petrópolis, as reclamações
5 Minha facção, Mr. Catra. Faixa n°1 do CD 1 anexo.
27
se fazem mais uma vez presentes: “Tem que pensar duas vezes antes de ir a São
Gonçalo e Caxias”. São Gonçalo, como Duque de Caxias, é um município associado
à violência cotidiana.
Em Rocha Miranda, bairro da Zona Norte carioca, Mr. Catra realiza o segundo
show da noite, que ocorre de modo usual. Depois de cantar as canções religiosas,
Catra se dirige à platéia, elevando o tom de sua voz e dizendo que quer ouvir “o
grito dos maconheiros”. O público grita de volta ao MC, lhe respondendo. Ele então
canta um trecho de uma canção reggae e diz “Viva Bob Marley… Viva Marcelo D2”,
ambos os artistas associados ao consumo de maconha. Ele canta então uma parte
da música “Bonde dos Maconheiros”, de sua autoria. Cria assim a oportunidade
para expressar seu desprezo pela “sociedade escrota”.
Ô, ô, ô, ô, ô
Cadê o isqueiro?
Demorô, formá
O bonde dos maconheiros
Não fume cigarro...
Não beba uísque...
Ao descer do palco Mr. Catra passa ao lado de uma bela morena, que vem em
sua direção. A moça está vestida e adornada de modo bastante provocador. Traja
calça jeans clara, justa e de cumprimento acima do tornozelo, e em seus pés traz
Isqueiro, Mr. Catra. Faixa nº2 do CD 1 anexo.
28
tamancos de salto alto. Usa blusa preta bem curta, que permite entrever através
de seu generoso decote o sutiã usado sob a mesma e na cor branca, fazendo assim
um bonito contraste com a blusa e a pele do colo de seu seio. O seu abdômen
está todo exposto, tornando-se possível ver o umbigo de sua “barriga saradinha”
  
Tenta encontrar um modo de falar com a moça, que ignora-o, ou parece fazê-lo.
Nem o olha. Já no carro, Mr. Catra fala: “mulher..., gostosa..., não necessariamente
nesta ordem. O tom de sua voz é como o de alguém que sente dor.
O motorista ainda manobra e uma motocicleta vem em direção à van, pela
contra-mão da via. Fred se levanta e vai até a janela, com a pistola na mão e à
mostra. A preocupação com motociclistas que se aproximam do carro é constante,
pois temem o ataque de bandidos.
Partimos para o Olimpo, casa de shows na Penha Circular, outro bairro da Zona
Norte da cidade. No caminho Mr. Catra e Fred conversam sobre um amigo comum
que recentemente passou a fazer parte do Movimento Hare Krishna. Mr. Catra diz
que ele, o amigo, é excelente pessoa, “bom até demais”. Mas é também “doido,
pois só pode ser “doido” alguém que acredita em um deus “com cara de elefante”.
Comentam sobre um amigo policial, que deixou o bairro da Tijuca, na Zona Norte da
cidade, pra trabalhar em Nova Iguaçu. Fred diz que em Nova Iguaçu a polícia é mais

e antes de Mr. Catra subir ao palco podemos ouvir uma música Funk que tem por
tema central o “Caveirão”, veículo blindado da polícia, utilizado nos confrontos que

os bailes Funk patrocinados por estes. De acordo com Mr. Catra, o Caveirão é um
“artefato de guerra de uma das facções cariocas”.
7
Caveirão brotô no morro
Querendo terrorizá
Mand’o Caveirão embora
Que a galera qué dançá
Se o Caveirão não fô
O bicho vai pegá
Se mexê com os carinha
Vai tomá só de AK
Tô de olho no Caveirão
Tô de olho no Caveirão
7 A ideia de que a polícia forma uma quinta facção a disputar com os bandidos o controle das
ações ilícitas no Rio de Janeiro surge igualmente nas falas dos informantes de Alvito (2001).
29
Mexeu com o Comando
Comando se bola
Quê que ele fala?
Manda bala
8
Faz muito calor, e a casa está decorada como se para um baile de carnaval, e
dos bastidores podemos ver pessoas fantasiadas na platéia.
Após o show, deixamos a Baixada Fluminense, com destino à Zona Oeste da
cidade. O grupo, de modo geral, parece preocupado. Comentam que será preciso
passar por “trás do presídio” e Mr. Catra comenta que não está “muito amigo do
pessoal da Vila Kennedy”, favela por cujas imediações forçosamente passaremos
para chegar ao local do próximo show. Situada entre Bangu e Campo Grande, a

a gestão do governador Carlos Lacerda, com o objetivo de absorver os moradores
removidos de extintas favelas de outras áreas da cidade, habitadas pelas classes
alta e média.
Mr. Catra e Fred voltam a falar sobre as milícias. Comentam que o sargento de
uma determinada área já colocou “gato-net”, acesso ilegal às redes de televisão de
sinal fechado, provido e cobrado através de uma taxa de serviço pelos milicianos
aos moradores das comunidades que controlam. Concluem, então, que a área já
está sob o domínio dos milicianos: “se botô gato-net, tá tomado. Para se deslocar
8 Caveirão. Faixa nº3 do CD 1 anexo.
30
pelo Rio de Janeiro e arredores, é preciso saber o que está “tomado, controlado

Estamos na Avenida Brasil, entre a Vila Kennedy e a Penitenciária de Bangu, e
o motorista do carro, a quem chamam de Ultraman – personagem futurista de uma

por onde seguir. Decide-se que ele deve atravessar um posto de gasolina, e sair por
trás do mesmo. Trafegamos ao longo do muro do presídio e Mr. Catra comenta como
está “bonitinha” uma de suas entradas. Alguém reage, argumentando lhe parecer
um despropósito encontrar harmonia estética na entrada de um presídio. Sabrina
fala ao rádio, mas precisa interromper sua conversação pois o sinal é intermitente.

este problema. A facilidade com que os prisioneiros das penitenciárias do Rio de
Janeiro acessam o mundo de fora é um recorrente e não resolvido problema para
as autoridades estaduais.
Ao chegarmos ao Clube Bangu Campestre, local onde ocorrerá a quarta
apresentação da noite, vemos um simpático gramado à sua frente, separado da
via de carros por paralelepípedos pintados de branco. A área está mobiliada
por bancos igualmente pintados de branco e decorada por “anões de jardim”.
Um ambiente leve e kitsch, tomado pelos jovens que por ali circulam. Novas
apreciações pejorativas são realizadas. “Esculacham” as meninas, xingando-as e
dizendo que elas são “baixo-nível”. Alguém fala, levando as mãos como se aos céus:
“Pra recordar, Jesus”. E outro completa: “É pra tu não esquecer que é funkeiro.
31

porquê: se ela achou que correria perigo na festa, se foi orientada no sentido de

Fico então na dúvida se eu estou autorizada ou não a descer do carro. Pergunto
           
momento Juan, amigo de Mr. Catra e morador de uma favela na Zona Norte da
cidade, se aproxima de mim perguntando-me o que eu gostaria de fazer. Digo
a ele que gostaria de ir junto, “se puder”. Ele diz “então vamos”, acrescentando
que me dará “cobertura” ao seguir atrás de mim, me protegendo. Fred já partira,
acompanhando Mr. Catra, Edgar e Sabrina.
No local do baile não há palco montado e Mr. Catra canta novamente da mesa
de som. Ele inicia a última parte do show, ao se dirigir ao DJ, em tom solene e jocoso,
gradualmente assumindo um caráter imperativo: “DJ Edgar… por favor… Que soem
as trombetas da PU-TA-RI-A!”. Um som de trombetas invade o espaço, acompanhado
do ruído do galope de cavalos, produzidos eletronicamente pelo sampler do DJ. O MC
então, usando toda a potência de sua voz, anuncia: “Vai começar a Putariaaaaa…!”,

do sexo oral e a troca sexual com diversas e simultâneas parceiras. Até o ano de

do público subissem ao palco e assim participassem da performance do artista,
encorajadas pelo MC e por canções como “Vem todo mundo”.
Ah…
Vem! Mariana, Juliana, Marieta, Julieta
Vem Aline, Yasmine, Jaqueline
Vem Andréia, vem Nilcéia
Vem Iara, vem Jussara
Vem a Claudia, vem Amana, vem Amanda
Vem todo mundo!
Oh, vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Oh, vem, vem, vem
Pára!
Só não vem aquela que fala demais
Tá ligado?


Saia da janela
Vê se tu se toca
Mulher de verdade
Gosta mesmo é de piroca
32
Então…
Oh, vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha
Oh, vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha
Ela foi na minha casa
Tirar o meu sossego
Chegou cheia de márra
Depois pediu arrêgo
Tremeu de pernas bambas
Quando sentiu meu instrumento…
Quero ver tu rebolar
Ha, ha! Com tudo dentro
Quero ver tu rebolar
Ha, ha! Com tudo dentro
Então...
Ha ha ha! Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Com tudo dentro, hein?
Ha! vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Ha! Vem, vem, vem
Ah ...
Ha! vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Ha! Vem, vem, vem
Ahhhhh.....
Ai eu quero namoro
Quero compromisso
Quero casamento…
Só se você rebolá
Ha ha! Com tudo dentro
Então...
Ha ha ha! Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Pode vir...
9
O show decorreu de modo usual, ao qual assistimos do chão. Quanto a Juan,
este esteve ao meu lado todo o tempo, parecendo zelar por meu bem-estar. Na
saída do salão há um grupo de moças aguardando por Catra para tirar fotos com o
artista. Ele pára e tira foto com cada uma delas, abraçando-as e sem sorrir.
9 Vem todo mundo, de Mr. Catra, faixa nº4 do CD 1 anexo.
33
De volta ao carro, surgem novos desentendimentos. Discussões que
resultam da tensão gerada pelas diversas apresentações programadas para a
noite, o que torna reduzido o intervalo de tempo destinado aos deslocamentos
feitos entre uma e outra casa de espetáculo. O debate agora gira em torno do rumo
a ser tomado. Para qual casa de show seguiremos? Para a Rio Sampa, em Nova
Iguaçu, a maior cidade da Baixada Fluminense, ou para a Fundição Progresso, na
Lapa, bairro da Zona Central da cidade do Rio de Janeiro? Decide-se pela primeira
opção, mas ao motorista, que dirige em altíssima velocidade pela Via Dutra, já
nas imediações de Nova Iguaçu, escapa a entrada para a pista de serviço que nos
conduziria ao destino determinado. Mr. Catra diz a ele que continue, com sua voz

e ele repete: “vai que Deus já deu a direção. Seguimos então para a Fundição
Progresso, na Lapa, o bairro mais boêmio do Rio e ponto de encontro de jovens de

bancos da van, conversa discretamente ao telefone e, ao encerrar a ligação, eleva o
tom de sua voz e fala para o grupo: “A piranha tá me esperando com um monte de
veado! Por que eu tenho esses problemas, Senhor?”.
Chegamos ao acesso do estacionamento da casa de espetáculos, tomado por
jovens que ali se aglomeram. A noiva do DJ, sentada em seu lugar distante da janela,
se dirige a uma das moças que obstrui a passagem do carro, sem que esta a escute:
“Sai! Piranha! Vagabunda!”. Em seguida é a vez de um dos seguranças reclamar de
34
um rapaz de faixa vermelha na cabeça, duvidando de sua masculinidade. Nessas
horas as expressões preferenciais são “veado, “veadinho” e “arrombado. Alguém
comenta que aquela “gente da Fundição é muito estranha, e Mr. Catra complementa
dizendo que o local é um “puteiro moderno.
Adentramos o estacionamento da Fundição Progresso, onde Mariana e seus
amigos esperam. Subimos todos para os camarins, e aguardamos um pouco. Já no

da apresentação de um grupo de pagode. O som está péssimo, tornando quase
impossível se escutar as vozes dos cantores, o que o produtor do grupo de pagode
nota, comentando comigo. Os sambistas encerram a sua apresentação e o palco
agora é de Mr. Catra. Usando o microfone, portanto se dirigindo simultaneamente
ao público e à direção da casa, ele avisa que não começará o show enquanto o som
não for ajustado, argumentando que a “rapaziada merece” e que “o bagulho tem
que ser do jeito que tem que ser”. Ele canta o refrão de uma música Funk que diz:
Aumenta, aumenta o som. Aumenta, aumenta o som. Escute o barulhão. Realiza
o seu tradicional louvor e reclama, novamente ao microfone: “Tão economizando
o som?”. Chama então Anderson, o técnico de som de sua equipe, para que este
resolva o problema, pedindo-lhe que vá até a mesa de som central localizada
no meio do imenso salão que abriga a audiência. Finalmente o show foi de fato
iniciado, seguindo seu andamento costumeiro.
Catra se prepara para introduzir as canções eróticas, dando início à série
de paródias musicais que tão bem distinguem o seu modo de fazer Funk, como
esmiuçarei no capítulo 4. Executa agora a sua versão da idílica “Tarde em Itapoã,
de Toquinho e do poeta Vinícius de Moraes. Postada ao fundo do palco, assistindo
a apresentação, Mariana leva seus braços ao alto, movimentando suavemente seu
corpo jovem e de formas arredondadas ao ritmo da música, agora com o conteúdo
de sua letra subvertido pela composição de Mr. Catra.
Tirou meu calção de banho
Fez biquinho pra mamar

Não dava pra’creditá
E a gata mamava sorrindo, que lindo
E eu pedi mais um pouco
E o bagulho explodindo
É uma coisa de louco
É bom…
35
Uma mamada de manhã
Halls com sabor de hortelã
Pra relaxar dá dois no can
10
Um natural de Amsterdam
11
Da Lapa nos dirigimos para a Rio Sampa, em Nova Iguaçu, com o carro
agora lotado graças aos convidados recém-chegados de Mr. Catra. A entrada pelos
bastidores desta casa é sempre triunfal, com Catra e sua trupe cumprimentando e
sendo cumprimentados efusivamente pelo pessoal da casa, mas um modo efusivo
particular, de poucas palavras e muitos gestos: apertos de mãos estalados, feitos
  
também particular.
Ao chegarmos, aguardamos no corredor dos bastidores da Rio Sampa, que
conduz aos camarins. Mr. Catra, Sabrina e Pigmeu, o empresário do cantor, estão
reunidos a portas fechadas em uma tensa e privada discussão. Chegamos tarde
demais, e não há mais tempo para a apresentação de Catra. Mariana e seus amigos
relaxam em um dos camarins, com as portas abertas. Juan está de pé ao meu lado.
Até então ele esteve bastante calado, mas estimulado pelo acúmulo de uísque e

frente, me fala: “Isso é uma verdadeira caôzada. Ao que eu lhe pergunto: “como
assim, caôzada?”. E ele continua:

11 Uma mamada de manhã, Mr. Catra. Faixa nº5 do CD 1 anexo.

Caôzada que quero dizer é mutretagem. Eu sou homem, tu é
mulher. A gente é o que a natureza deu pra gente. Eu não posso
ser você, nem você quer ser eu. Caôzada porque se eu encontro
um à noite, de maquiagem, enchimento no peito...

          
arranjo não muito bem feito.
Partimos para a Zona Sul, área privilegiada da cidade, para realizar o último
show da noite, que ocorrerá no Jockey Club da Gávea, reduto da elite carioca. A
abertura do concerto me parece incomum. Edgar, o DJ, reproduz extensamente
através de seu MPC o altíssimo som de uma rajada de metralhadoras. Mr. Catra
está no alto do caminhão que foi convertido em uma espécie de trio elétrico e que
faz as vezes do palco. Ele olha pra o público no chão e fala, tranquilamente e em
tom grave:
O bagulho é desse jeito. Você tem que respeitar pra ser respeitado.
Porque ninguém é melhor do que ninguém. E a humildade é a
essência da vida, tá ligado? Quem é humilde aí?
O público, humildemente, permaneceu em silêncio.
Antes de encerrar sua apresentação, Mr. Catra retorna às odes religiosas, e
grita: “Pra terminar do jeito certo. Acredite!”, e então canta: “O senhor é meu pastor
e nada me faltará. Ele poderá ainda pedir “palmas pra quem verdadeiramente
merece” e encerra sua participação dizendo: “Que Deus ilumine vocês”.
37
“Vem todo mundo!”
Mr. Catra é o nome artístico de Wagner Domingues da Costa, e é por seu
primeiro nome que o artista é tratado no ambiente doméstico. Ele é igualmente

ou simplesmente de Catra. O artista, um homem de 40 anos e dono de uma voz
           


músicas que narram as ações dos bandidos e as interações cotidianas na favela, e
posteriormente se especializou na chamada “Putaria, canções que se centram nas
relações entre os gêneros e possuem muitas vezes conteúdo erótico.
Mr. Catra foi criado em domicílio onde sua mãe trabalhou como empregada
doméstica, em uma área de moradia de classe média próxima à Favela do Borel,
no bairro da Tijuca, cujos negócios ilícitos já foram controlados por um de seus
irmãos. Ter sido adotado por Edward, o patrão de sua mãe, permitiu a ele estudar
no Colégio Pedro II, uma escola tradicional carioca conhecida por seu alto nível
educacional. Estes traços, associados ao estilo de vida singular de Mr. Catra, lhe
   
cultural. Por essas razões é sempre a ele que se recorre quando é preciso decidir
sobre que caminho tomar para se chegar a uma localidade desconhecida, que deve
ser não apenas o mais curto como o mais seguro. As peculiaridades de sua pessoa
igualmente lhe possibilitaram uma relação diferenciada com os consumidores de
Funk. As apreciações pejorativas sobre a população de áreas pobres da cidade que
ouvimos ao longo da noite reproduzida acima jamais foram feitas por ele.
A riqueza de Mr. Catra reside, a meu ver, precisamente em sua complexidade.
Através das ambiguidades que ele parece mesmo cultivar, ele desobriga o

as oposições entre favela e asfalto, a cidade ilegal e a cidade formal, não possuem
            
       
ainda parecem fora do lugar. Foi ao seguir Mr. Catra que tornou-se possível a mim
evitar o uso de termos como centro, periferia e margem, frequentemente utilizadas
nas descrições do mundo Funk.
Catra age como um “mediador cultural” (Velho 2003[1994]:81) mesmo
sem oferecer um “oposto sociológico do homem marginal esmagado entre dois
mundos” (Velho 2003[1994]:81). Pois em sua retórica e produção artística, como
nas de outros artistas Funk, o estar à margem da sociedade, do sistema, surge
reiteradamente. Ainda assim Catra fará uma síntese própria desses mundos pelos
38
quais transita, produzindo a sua colagem pessoal e idiossincrática ao mesmo

das elaborações do capítulo a seguir.
Teorizando sobre o indivíduo contemporâneo e as sociedades complexas
 
cruciais para a compreensão do sujeito em ambiente urbano (Velho 2003[1994]:25).
O “bilinguismo, a capacidade de trânsito entre dois ou mais mundos, seria
hoje “uma característica generalizada da sociabilidade contemporânea” (Velho
2003[1994]:23), tendo sido antes traços característicos das elites na Idade Média.
Entretanto, pretendo evidenciar ao longo da tese que o sujeito criativo Funk se
utiliza de sua grande habilidade na manipulação de símbolos desses diferentes
mundos, aliada à sua concomitante percepção de um conhecimento restrito que
as classes médias e altas possuiriam desses mesmos universos, de modo a facilitar
o seu trânsito pelos espaços da cidade. A perspectiva Funk é a de que no Rio de
Janeiro contemporâneo ocorreu uma inversão do fenômeno como descrito por
Velho, e a maleabilidade que era privilégio das elites e que teria se democratizado
na Modernidade, se localizaria de fato nos extratos sociais mais baixos. Seus
membros é que teriam efetivas liberdades e habilidades para circulação pela
cidade, conformando mediadores e pontos de vista privilegiados.
Mr. Catra é esse ponto de interseção entre mundos de que nos fala Velho
   
“papéis sociais”, ou que possua uma essência residual na qual ancora a sua
identidade individual (Velho 2003[1994]:29) e mais por ser essencialmente uma
pessoa compósita. Estes diferentes mundos pelos quais transita e as relações que
trava com estes e aqueles que os habitam compõem o seu self. Mr. Catra é um feixe
de relações, que catalisa caminhos e dá acesso a um mundo que mistura Funk,

a partir do próximo capítulo, ele agencia esses mundos de maneira particular, a
partir de suas criatividade pessoal e individualidade, nos revelando o modo como
entende que estas relações se dão.
Os caminhos que traça Catra não são aleatórios e nesse sentido se
assemelham àqueles que formam o “trajeto, como em José Guilherme Magnani
    
           
           

da circulação e disseminação do Funk, da arte, da “cultura. Dessa perspectiva a

à sua residência, ir a alguma favela para “curtir” e se apresentar informalmente,
39
amanhecer em uma rave, dormir em companhia feminina. Catra usa a cidade toda,
ela constitui o seu trajeto, mas é também o seu “pedaço” bem como a “mancha”
que atravessa pra chegar a um “ponto. Poderia ainda se considerar que Catra
acompanha um “circuito, mas ainda assim um “circuito” que não é exclusivamente
Funk, pois como aconteceu em algumas das apresentações da sequência que expus
acima, Catra realiza performances em eventos que não são apenas dedicados ao
Funk Carioca. Este traço, ainda que especialmente acentuado em Catra graças
à sua plasticidade artística, como será aprofundado nos capítulos dedicados à
criação artística, não é exclusivo do MC. O Funk Carioca, como Catra, circula por
toda a cidade e não traça um circuito excludente. Ao contrário, a sua tendência é
englobadora, como sugere o nome da canção que dá origem ao título desta sessão.
Desta perspectiva, “o pressuposto da totalidade” (Magnani 2002:18) não se
revela como “imprescindível” para que apreendamos a cidade e suas dinâmicas. E as
conexões parciais estabelecidas pelo artista e sua trupe tampouco promovem uma
mirada pelo “prisma da fragmentação”, com atores “individualizados e atomizados
no cenário impessoal da metrópole” (Magnani 2002:18). O pensamento dualista
coloca armadilhas e ao organizar em pólos esferas da vida social, faz com que ao
escaparmos de um, a “fragmentação, por exemplo, sejamos argolados pelo seu
oposto complementar. De outro modo, a noção de social que propomos segue pelos
caminhos da desconstrução que questionaram a validade do uso teórico-analítico
  
possível abandonar a dicotomia inerente a conceitos como “totalidade”. A noção de

artista Funk para o “social”, permanentemente re-armado [reassembled] (Latour
2005). Seguimos, desta maneira, pelo caminho apontado por Gell (1998) e Lagrou
(2007a) onde a arte não se encontra apartada da vida cotidiana de modo que a
      
quando não tomada no sentido estrito do termo.
A metáfora da “cidade partida, imagem bastante utilizada para representar
o Rio de Janeiro e a relação entre os seus mundos sociais, foi especialmente
empregada pela imprensa nos anos 1990, dando, inclusive, origem ao título do livro
do jornalista Zuenir Ventura (1994). Esta lógica oposicional continua a informar
estudos acadêmicos sobre a dinâmica das cidades brasileiras. O economista Luiz
Cesar de Queiroz Ribeiro toma como ponto de partida a referida metáfora para
falar de uma certa homologia entre a “concentração social e espacial de renda

e uma “relação praticamente inexistente” (Ribeiro 2008:13) entre a população
pobre da Cruzada, um cortiço localizado no valorizado Leblon, bairro da Zona Sul
carioca, área privilegiada do Rio de Janeiro, e os moradores mais abastados do
40
referido bairro (Ribeiro 2008). A antropóloga Tereza Caldeira (1999), por sua vez,


sociais, materializando-as, como tendem a restringir os encontros sociais àqueles
estabelecidos “dentro de grupos relativamente protegidos e homogêneos”.
Mr. Catra, por sua vez, não apenas mostra o quão tênues podem ser as
fronteiras da dita “cidade partida, como igualmente as costura, ao distribuir
sua agência através dos caminhos que traça. Por meio da conectividade revelada
e produzida pelo artista, podemos ver como esses mundos não são estanques,
mesmo que encontrem-se separados. Ao percorrer o Rio com Mr. Catra, torna-se
visível que as oposições que alimentam a criatividade funkeira e através das quais
o imaginário carioca e a própria noção de urbano muitas vezes se constroem, são
colocadas em cheque.
Já foi dito que o Funk é a cola da “cidade partida. Essa imagem pode ser
   
formada pela substância estética que preenche com maleabilidade os vãos que
separam as partes da cidade, do ciborgue, de modo que as partes se tocam mas
não se fundem [merge]; menos por causas sócio-econômicos e mais por razões
que governam os gostos, em suma, por motivos de preferências e escolhas. O
Funk, por meio da arte e de um senso estético próprio, promove essa aproximação
de estéticas. Com essa ideia não pretendemos descrever um Rio de Janeiro
‘democrático, onde haveria uma convivência em que classe e cor não seriam
empecilhos para as relações sociais. Ao contrário, trata-se de reconhecer o modo
pelo qual as diferenças que estas categorias subsumem são centrais para as
interações sociais na cidade e como é através da aparência que elas podem ser
melhor acessadas. Contudo, parece haver no Rio espaço para a suavização dessas

criação e manipulação.
Dessa perspectiva, falar em estética não torna menos relevante a sua ação
sobre o social, pois a primeira não é entendida por oposição ao segundo, mas o
compõe (Latour 1994; Gell 1998; Lagrou 2007a). O Funk se mostra assim como
uma das possibilidades de preenchimento dos intervalos criados por áreas

este ponto que pretendo aprofundar nos próximos capítulos: o modo pelo qual a
criação e a criatividade estão colocadas a serviço da produção de uma estética que
busca acima de tudo comunicar.
   
Mr. Catra, de modo a apresentar um relato o mais idiossincrático possível sobre
o artista e oferecer elementos para a discussão posterior sobre criatividade, por
41
meio da qual mostrarei como a singularidade de Catra é viabilizada através de
seu encontro com o Funk. O próximo capítulo nos mostra ainda um ambiente
doméstico que muitas vezes se afasta da noção de privado e de privacidade.
Ao contrário, o ir e vir de artistas, parceiros de criação, amigos e familiares é a
constante, e excepcional são os momentos de pouco movimento.
Capítulo 2
Escapando pela válvula
43
A herança familiar de Mr. Catra
Wagner Domingues da Costa é o nome de batismo de Mr. Catra. Sua mãe,
“Dona Elza, veio aos treze anos da pequena cidade de Carangola, no interior de
Minas Gerais, trazida pela família de um ainda solteiro Edward. Logo Edward se

que aqui chamarei de Tábata, hoje com dezoito anos e que à época dos relatos
passava dos quinze para os dezesseis anos, Edward, muito mais velho do que Elza,

continuasse a realizar os serviços da casa, comandando os outros empregados.
Elza se apaixona então por Raul, “homem branco, motorista da casa. Mas a família
de Raul, continua Tábata, não gosta de “pretos”, e para não “contrariar” a eles, Elza
deixa o rapaz e se envolve posteriormente com Miguel. Desta vez Elza enfrenta a
resistência de sua família de adoção. A falecida esposa de Edward, a quem Catra
chamava de “tia”, diferenciando-a assim de sua mãe, não gosta que Elza namore
“pretos”. Eu acho o fato curioso e digo a Tábata como podem gostar de Elza, uma

que já foi casada com um irmão de Regina, a esposa de Mr. Catra, acha graça em
meu comentário. Tábata, igualmente “da cor”, explica que é por causa da “pobreza,
e continua me contando a saga de sua família. Com Miguel, Elza traz à luz Catra e
a família de Edward o “pegapara criar. Elza volta então para os braços de Raul,
com quem vive o resto de sua vida, até falecer aos cinquenta e dois anos de idade.
        

como alguém que é “mais preto do que muito preto. Catra cresce na casa de
Edward, ainda que Tábata diga que “não tem muito isso de quem morou com
quem, pois a casa de Edward, uma casa “dessas de família”, de três andares, era
em frente a em que viviam Elza e Raul. É Edward quem dá a Catra grande parte

único pai que conheci”. Pergunto-lhe se ele foi então “criado” por Edward, e Catra
enfatiza: “criado não, amado. Edward possibilita a Catra uma educação formal de
qualidade, que estuda latim, teoria musical e clássico italiano, dentre outros. Catra
gosta de enfatizar como o ensino era duro e exigia disciplina, se orgulhando de ter
assim adquirido interesse pela música e respectivo conhecimento teórico.
44
Mas se Edward possibilita uma formação pautada por regras inerentes
ao sistema educacional, ele mesmo trata, com seu estilo de vida, de desfazê-las,
relativizá-las. Foi com o pai que Catra primeiro deu-se conta de como podem ser
maleáveis as fronteiras, no Rio de Janeiro e no Brasil, que separam as esferas
formais e informais da vida social, o lícito do ilícito. Foi “seu Edward” ainda quem

Dart, carro da empresa automobilística Chrysler muito apreciado pela classe média
alta na década de 1980. Diante da irregularidade, a professora da escola quis punir
           
manipulação das representações que raça e “cor” podem adquirir em diferentes
contextos, acusa-a de racismo, o que faz com que o entrevero seja resolvido ao
largo da lei e no abrigo das relações pessoais (Da Matta 1997).
É no Pedro II que Catra forma seu primeiro grupo musical, de Rock,
participando dos saraus da escola. Terminado o segundo grau, Catra presta
vestibular para direito, mas não segue a carreira. Prefere se aproximar da vida à
margem da sociedade formal: “se vira para o lado do Borel”, indo atrás “de safadeza,
como diz sua esposa. Catra, por sua vez, é menos ambíguo. Diz que passou a “roubar
bancos”: “Eu era um artista. Eram vinte: dez dentro e dez fora. Posteriormente ele
passa a trabalhar como “matuto”: “eu pegava com os colombiano, os boliviano. Eu

1

como muitos dos homens que com ele trabalham ou trabalharam, possuíram uma
vez com a marginalidade, dando visibilidade a esses traços de suas vidas.
Catra conta-me essas passagens sentado à mesa de jantar da sala de sua
casa, voltado para a televisão que, malgrado o fato de “odiá-la, está invariavelmente
ligada no ambiente doméstico. Do CD player, acomodado no mesmo móvel em que
se encontra a TV, saem palavras em hebraico de uma série de orações chamada
Tikun Klali, e por perto está Tábata e o Funk que sai de seu laptop. Regina se
aproxima, coloca um cigarro artesanal nas mãos do marido e se retira novamente.
Era mais uma tarde despendida no núcleo doméstico de Catra. A grande diferença,
entretanto, era dada pelo fato de que em dois dias eu partiria para Londres, onde

trabalho de campo. Catra, por sua vez, tratou de aproveitar essas últimas conversas
 
passados de modo mais indireto e que informam o todo desta narrativa. Diz que
me fala “essas coisas todas” porque eu tenho “uma noção muito clara do que é
1 Mr. Catra declara no documentário Mr. Catra o Fiel (2007) que passou a “roubar banco e a


casaco “da Disney”.
45
certo e do que é errado”. O que ele queria, como assegurou nesta mesma tarde,
era “expor” suas “ideias”, porém, como já dissera em outra ocasião, “a sociedade
não está preparada”. Vai se expondo com emoção, a ponto de em determinado
momento me parecer ver seus olhos cheios de lágrimas.
Nesse meio tempo, Dona Elza se aprimorava até tornar-se uma “cozinheira
         


da família Catra, é quem chamarei de Julio, um menino branco que Elza encontra
desprotegido nas ruas da Favela do Borel, nas imediações da Usina, bairro em que
residia Edward e seu núcleo familiar. Julio, como Catra, foi criado por Elza e Edward,


mares da Barra da Tijuca, como qualquer “playboy” carioca. Catra, inclusive, como
conta-me Tábata em tom de escárnio, passa a alisar seu cabelo para “tirar onda” e

Ao mesmo tempo em que se aproxima da ilegalidade, Catra passa a dar
andamento à sua carreira artística, e é ao cantar os “Proibidos”, as músicas que

A emocionante composição em homenagem a JM, chefe do Morro da Formiga e
líder do Bonde da Parma, que agregava não apenas a Formiga, como o Borel, a Grota
e o Morro da Fé, cantada por um Catra ainda com voz jovem, marca, segundo o
próprio artista, esse momento de transição, que ocorre acompanhada de decepção,
amargor e enlutamento, como podemos pressentir por meio de sua letra.
Foi num Sábado de baile
Que a Formiga entristeceu
Completou sua missão
JM está com Deus
Abalou nosso sistema
A Parma toda chorou
Com a partida d’um irmão
Que a jornada terminou
É, com saudade agora eu sei
Que você está com o Justo
O mestre que ampara o bonde
E nos protege contra tudo
Irmão. Fique com Deus
O justo juiz do céu
É a humilde homenagem
Da Formiga que é Fiel

Para sempre na memória
Nós iremos te guardar
Seus amigos de verdade
Sofrem por você não estar
Mas eu sei que o criador
Que ao seu lado está
Ele ilumina o bonde
E sempre vem nos consolar
Irmão. Fique com Deus
O justo juiz do céu
É a humilde homenagem
Do Catra que é Fiel
Irmão JM
Eu canto de coração
Pra você, pro mano Charle
Pro Sapula e pro Torrão
Irmãos e o JM
Eu não canso de cantar
JM de processo
De Fé, de fechar
Irmão! Fique com Deus
O justo juiz do céu
É a humilde homenagem

Da Formiga que é cruel

JM de processo
Fique com o justo juiz do céu
[Irmão. A Parma, o Catra e todos os seus irmãos nunca irão te esquecer. Que Deus te
ampare e nos ilumine. Que o certo prevaleça em nossas vidas e que você ajude ao criador
a nos indicar o caminho certo. Glória Senhor.]
2

  
parecendo mesmo viabilizá-la. Catra não dá qualquer indício de ter sido “salvo” da

no mundo da música e da criação artística. Segundo Catra, foi ao re-começar a

3
Entretanto, esta
passagem não se dá como uma ruptura, uma conversão que o afasta do “mal”, como
2 Rap do JM
3 Como em declaração feita no documentário Mr. Catra, o Fiel.
47

“justo, “humilde” e “certo” estão presentes tanto em um momento como em outro.
4
A mudança se faz através de um continuum, e é ao elaborar com proximidade e
inventivamente sobre esse universo marginal que ele efetivamente se consagrará
como artista, trajetória que será esmiuçada no quarto capítulo.
De acordo com algumas narrativas familiares, Catra jamais morou na favela,
mas passava suas noites ali para retornar pela manhã e dormir na casa de sua
mãe, a essa altura vivendo em residência própria. Orlando Zaconne, atual chefe
das carceragens do Rio de Janeiro e anteriormente delegado na Tijuca, disse-me
em uma conversa informal que não acredita nem que Catra tenha “vivido aquela
situação, mas entende que a sua convivência estreita com a mesma fez com que
ele absorvesse a “cultura do Comando [Vermelho]”, a facção que controla o Morro
do Borel.
Em depoimento ao documentário  (2005), Zaconne nos faz
ver melhor o que lhe parece ser esta “cultura do Comando. Em uma blitz que fazia

um negro forte, com muitas tatuagens e colares de ouro, acompanhados de algumas

Ao se aproximar do veículo ele conversa com o motorista e percebe que se trata
de Mr. Catra. Entre surpreso e contente com a descoberta, o delegado lhe pergunta
porque ele não anunciou antes quem era e disse-lhe que seguisse em frente,
brincando com o artista e usando expressões funkeiras, dizendo-lhe que tivesse
cuidado porque “a chapa tá quente”. Este incidente condensa alguns dos aspectos
relativos à conexão entre circulação e estética que serão trabalhados ao longo da

quais Catra se fazia acompanhar, como será aprofundado no capítulo seis. Mas além
dos objetos, foi explicitada a cor de Catra, reforçando o modo como a aparência


não será apenas a aparência a contar nessa circulação, mas o poder transformador
da arte, como surgirá das falas de Dr. Rocha, no capítulo quatro.


brasileira, o “medo realista do crime” e suas taxas ascendentes propiciaram “a volta de uma
dicotomia nítida e absoluta entre o bem e o mal na preferência de várias camadas da população


expulsa-o e consequentemente “transforma” o indivíduo, dando origem ao “ex-bandido”. Para

48


outro estado. Foi a partir das narrativas feitas em torno dessa segunda prisão que
primeiro soube desse irmão de Catra e passei a entender o porquê da presença
repentina, na casa da família, de uma cunhada do casal Catra, moça de família de
bicheiros, que em uma visita de rotina a um parente encarcerado conheceu Julio
em sua primeira reclusão, que durou cerca de 14 anos, e por ele se apaixonou.
Passaram então a viver como marido e mulher, ele na prisão e ela transitando pela
cidade, até a sua recente soltura.
Catra efetivamente imprime uma marca pessoal ao modo como dá sentido à
sua vida. De um lado realiza o movimento mais ou menos previsível de deixar a “vida
bandida” através da arte, dizendo ele mesmo que o Funk oferece a oportunidade
de uma vida honesta àqueles que não a teriam com facilidade. Acredita que o crime
é “riqueza em vão” e “prisão em liberdade” enquanto o Funk é uma “válvula de

que promova o escapismo ou a alienação das classes populares, como embutido
na noção de ‘ópio do povo’. Através do trocadilho que faz com o dito e parece pegar
a ele mesmo em desaviso – “escapou pela válvula” – Catra indica que apreende o
Funk como o mecanismo que permite ao sujeito escapar do sistema, da “sociedade
escrota, da “sociedade católica” e da “hipocrisia da sociedade” ao mesmo tempo
em que mantém relação com esse mesmo sistema, tirando proveito dele. Faz isso
de um modo particular, não opondo o bem ao mal, a vida errada ao caminho certo
ou àquele apontado por Deus. Este, aliás, é onipresente em qualquer das fases de
sua vida. Hoje, passados cerca de dezoito meses do encerramento do trabalho de
campo propriamente dito Catra canta que “quem tem fé em Deus não tem religião.
Replicação e individualidade
Na próxima sessão passo a palavra à Regina que, ao nos conduzir por um
pequeno detour
designado como sendo de Mr. Catra. Mergulharemos em mais uma tarde na casa
          

de pessoa que rege a ela, ao marido e a outros de sua rede de relações e que se

O modelo genealógico, de acordo com Roy Wagner, é o que melhor
concretiza como a “pessoa fractal” não é ser individual nem grupo, mas “uma

49
As pessoas existem reprodutivamente ao serem “carregadas”
como parte das outras, e “carregam” ou engendram outras ao
se fazerem “fatores” genealógicos ou reprodutivos destas. Uma
genealogia é assim um encadeamento de pessoas, como se
pessoas fossem mesmo vistas como se “brotando” de outras,
em uma descrição cinética acelerada da vida humana. Pessoa
como ser humano e pessoa como linhagem ou clã são cortes
     

Dessa perspectiva tomar Catra como o centro ou o ponto de partida da
análise se assemelharia ao modo pelo qual Claude Lévi-Strauss (1991) elege em O
Cru e o Cozido o mito bororo como aquele de referência, não por ser o mais simples,
o mais complexo ou o mais arcaico dos mitos, mas por sua posição “irregular” no
seio do grupo. Ele não é “senão uma transformação mais ou menos elaborada de
outros mitos” (Lévi-Strauss 1991:12). Ou nos termos de Wagner (1991), a tarefa
do great man, através do qual o antropólogo nos informa sobre a pessoa fractal, é
manter uma escala que é ao mesmo tempo pessoa e agregado, e sendo ele “não-
    great] como uma instanciação ou
great
men como podem existir variantes do mito” (Wagner 1991:173).
Por outro lado, o lugar do indivíduo e as idiossincrasias dos sujeitos
emergirão, de modo que ao mesmo tempo em que veremos a replicação se
desdobrando em moldes mais costumeiramente melanésios, notaremos
           
o indivíduo ocidental. Como em Rapport (1997a), o indivíduo criativo, o
“indivíduo transcendente” [transcendent individual] – a se distinguir do indivíduo
transcendental, que busca transcender as “amarras da sociedade” – é aquele “que
escreve a si e, no processo, re-escreve o seu entorno sócio-cultural” (Rapport
1997a:3). Mas a “individualidade” de que fala Rapport não se aproxima do
“individualismo” – “uma particular conceptualização histórico-cultural da pessoa

amazônicos Piaroa. Como Overing (1988) já mostrara, os amazônicos Piaroa
guardam uma noção de individualismo que se foca sobre a felicidade do indivíduo
vivente em sociedade. Mas a noção Piaroa de individualismo se diferencia da nossa
na medida em que ao invés de tomar a sociedade como um objeto sobre o qual a
pessoa individual criará, e à qual o indivíduo criativo se oporá, o indivíduo Piaroa
se detém de impor o seu self sobre a sociedade e se realiza na medida em que cria
a sociedade à sua volta (Overing 1988:190).
É nesta tensão entre uma pessoa fractal que replica as partes ao mesmo
tempo em que e é replicada por elas e uma individualidade idiossincrática que a
50
tese se constrói. Pois deve se notar que a fractalidade da pessoa em Roy Wagner
não diz respeito à uma replicação como repetição idêntica, mas à derivação de uma

do holograma contém a informação que compõe todas as outras – as “relações
integralmente implicadas” contidas em parte e todo, pessoa e agregado – mas não
originam partes iguais.
Através do desvio que se segue saberemos ainda sobre um terceiro irmão
de Catra, poderoso e branco como Julio. Entretanto, as narrativas feitas em

diferenciar esses mundos é não tanto a sua cultura como o ponto de vista do
corpo. Branco e negro se opõem aqui para nos falar de humanidades distintas.

ao visualizar cosmologias diferenciadas não engloba todos os animais (Viveiros


mais claras nos capítulos em que trato das relações entre materialidade e corpo.
Entretanto, a noção de “frescura” que nos será oferecida a seguir permitirá começar
a notar a forte correspondência existente nesse universo entre corpo e pessoa,
como notaram em contexto ameríndio Seeger, da Matta e Viveiros de Castro
(1987[1979]). Desse modo, dialogaremos não apenas com a teoria sobre a pessoa
melanésia. Ao levarmos adiante o estreito nexo existente entre corpo e pessoa,
veremos que os mecanismos que geram as concepções de personhood em um
contexto Funk e no universo ameríndio mais se aproximam do que se distanciam.
O modelo reduzido de Regina
É uma quinta-feira, dia em que a expectativa para que eu apareça é grande,
especialmente para Karla, que muitas vezes aproveita o meu “bonde”, a carona pega
em meu carro, para “descer pra Sul”, a Zona Sul onde vive, no Morro do Cantagalo.
Karla é comadre do casal Catra, e naquele período ajudava Regina em seu último
mês de uma gravidez que desde o início inspirou alguns cuidados. Como em outras
vezes, as mulheres da casa disseram que eu me ausentara por mais tempo do que
eu mesma registrara.
Estacionei meu carro, como de hábito, sobre a calçada ao longo do muro
que abriga a casa e o estúdio de gravação de Catra, em terrenos contíguos.

movimentado. A campainha do interfone que dava acesso à residência estava com
defeito, de modo que me dirigi à garagem, cujo portão estava entreaberto, e depois
entrei pela cozinha. Antes cumprimentei Tio Rocha, que varria o terreno e abriu
seu bonito sorriso ao me saudar.
51

de frente para a grande TV de plasma. Dou-lhe dois beijinhos e cumprimento de
longe a moça que desconheço e está sentada com um bebê em seus braços. Depois

é mulher do MC Funk, que está naquele momento no estúdio, junto com “todos os
DJ’s”, como me disse Rocha na chegada.
5

está de costas para a TV acendendo um cigarro. Ao me ver ela solta um “iiiiiiih!”
sorridente, me perguntando em seguida se eu fumo. Antes que eu responda,

     
ainda sentada, leva sua mão em minha direção (eu estava de pé, já perto da escada
que me levaria a Regina) me oferecendo o cigarro.
Karla conta que falou em mim nesses dias. Eu pergunto o que falaram, e
Regina, sempre do alto, volta a provocar, dizendo que a amiga falou mal de mim.


eu, imaginando elas falarem de mim, disse, imitando-as: “Pô... Mylene não bota a
cara.... Karla sorriu de novo, desta vez parecendo concordar comigo. E em seguida
contou que estiveram na Terê-Fantasy, tradicional festa à fantasia que acontece
anualmente em Teresópolis, cidade da região serrana do Estado do Rio de Janeiro,
e que sentiram minha falta, pois eu teria tirado ótimas fotos delas.
Subo para entregar a Regina a lembrancinha que eu trouxera para o seu
bebê e ela me dá feliz a notícia de que será uma menina. Regina está especialmente
agitada nesta tarde. O seu quarto está todo revirado, devido a faxina que resolveu
fazer, mesmo que a faxineira, que chamarei de Claudia, esteja presente. Sobre sua
cama, coberta por lençol de estampa idêntica ao que forra o colchão do berço da

do tipo capitoné , os pufes de tecido, os tapetinhos e o enorme leão de pelúcia, que

as coisas que estão sobre a cama pra recolocar em seus lugares. Eu faço menção de
ajudá-la, e ela diz que “a Karla é assim também”: não pode vê-la “pegando nada que
quer ajudar”. Após colocar sobre o chão o leão de pelúcia – que possui formato tal

faz menção de pegar o grande banco de couro sozinha. Eu a interrompo dizendo
que assim já era demais e que ela ao menos pegasse o móvel de um lado e eu do
outro, sugestão que não foi rechaçada.
5 MC é designação para o cantor de Funk, e pode ser usada para denominar seu correlato no Hip-
Hop. DJ é aquele que toca e produz a música sobre a qual as letras serão cantadas.
52
Noto pela primeira vez, à
esquerda da grande televisão de

do casal, uma pequena prateleira
triangular de alvenaria com uma série
de garrafas de bebidas, muitas delas
do uísque Red Label da destilaria
escocesa Johny Walker. Penso que
aquelas devem ser as garrafas que

localizado onde agora está armado
o berço que aguarda Regininha, na
sala que antecede o quarto de casal.
Regina nota meu interesse pelas garrafas, e comenta como aprecia as bebidas
alcoólicas. Eu não dou muita atenção para a última frase de Regina, mas digo que
quero fotografar as garrafas, e ela, normalmente avessa às fotos feitas em seu
ambiente privado, surpreendentemente não se opõe. Ao contrário, parece gostar
da ideia.
Ela me mostra então uma espécie de presépio, uma instalação montada
atrás de sua cama, no parapeito da janela localizada acima de sua cabeceira. Sem

De um lado está Catra, e ela comenta como o boneco se parece com o marido,
e eu concordo, acrescentando que até a roupa se assemelha com o estilo que ele
costuma vestir. Curiosamente, naquela tarde chuvosa e fria, Catra está no estúdio
vestindo precisamente um conjunto de moletom formado por calça preta e casaco
de zíper, exatamente a roupa que o boneco veste. O boneco que representa Catra
está rodeado dos muitos leões de “que ele gosta, como diz Regina. Um dos leões é
bem grande, mais escuro e está deitado, os outros são todos iguais e claros. Estes
muitos leões, penso, remetem aos companheiros de criação e vida de Catra. São os
Leões de Judá, “guerreiros a serviço do Criador”, como ele diz em uma canção, e
formam o “coletivo” Sagrada Família.
Na outra extremidade da montagem, em posição oposta e simétrica ao
boneco que representa Catra, há uma boneca bem alta de corpo voluptuoso e de
pele cor de canela, como é Regina. Em torno desta boneca maior há uma série de
bonequinhos dos dois sexos, que se assemelham a anjos, eu diria, mas representam
crianças, de acordo com Regina. Ela explica: “esse aqui já é o meu lado... porque eu
sou mais mãezona. Mostra uma bonequinha na extremidade esquerda, abraçada
a uma outra boneca que representa uma mulher adulta e explica que Nina, como

53
à saia da mãe. Há outras três mulheres adultas na instalação: estão ao centro

              
africano, de todo modo distinto da grande boneca que está ao canto esquerdo.


segura a mão não é a mesma que imediatamente pareceu representá-la, como
enquanto esposa e amante. As três bonecas, de seios à mostra e corpo mais magro
e jovem do que o seu, ou seja, da grande boneca, remetem às muitas parceiras de
Catra que passam e passaram pela vida dele e com ela. São também de certo modo
ela, Regina. Como ela mesma disse, pertencem ao seu lado. Mas são ela de modo
parcial, como ela é também parcialmente essas outras mulheres.
A grande boneca está com o corpo mais coberto. Como a própria Regina já
disse, ela hoje se veste “mais tiazinha, como as mulheres não tão jovens. Mas, e
novamente, esta não é uma regra. Se ainda alguns meses após a gravidez ela se vestia
“muito tapada, expressão que ela certa vez usou para se referir, decepcionada, ao
modo como eu me vestia para uma noite de festa, um ano após o nascimento de
Regininha, a mãe – vestida por calça jeans justíssima e adornada nas nádegas por

e do tipo frente-única, revelando costas e abdômen – causava furor ao passar pelo
pátio de um Circo Voador lotado em noite dedicada exclusivamente ao Funk.


da noite “fortalecidos” por artistas que já alcançaram projeção com o ritmo musical.
54
Estas bonecas são todas elas partes desse “lado” de Regina, o qual não é por
sua vez a soma dessas partes. Partes novas podem ser inseridas, que não alterarão

aconteceu nessa manhã, com a incorporação ao conjunto de uma nova bonequinha.
Esse “lado” de Regina é também a pessoa fractal que ela é, nem parte nem todo,
mas “todo e parte a uma só vez” (Wagner 1991:172).
Também faz parte do lado de Regina o retrato, que colocado ao centro da
instalação, nos mostra um Mr. Catra mais jovem carregando ao colo um bebê. Nêgo,


fato se vê mais jovem na foto, mas o seu rosto, sua expressão é a mesma. Seu modo
de olhar a câmera parece muito atual, de modo que parece mais jovem e ao mesmo
tempo não tanto. Pergunto a Regina porque foi Nêgo quem recebeu o nome de

porque não Flavinho, por exemplo, já que é mais velho, e Regina explica que Flávio

seu nome, dado pela mãe biológica do menino sem a participação do pai.
Pergunto a Regina sobre as bonecas e sua materialidade. Como não as
toquei estou curiosa para saber se são de cerâmica ou madeira. Mas Regina me
explica que não, que são de gesso, branco pintado de preto, ou marrom. A única
55
que é de cerâmica é também a de pele em um tom mais claro, a que mais se

preto ou marrom bem escuro e brilhante. Com a representação do lado de Catra
ocorre de certo modo o inverso. Ele aparece como o mais negro de todos. O leão
maior, feito em madeira entalhada e que aparece aos seus pés, é mais claro que
ele, mas ainda assim escuro. Todos os outros leões são entalhados em pedra e são
pequenos e claros.
Indago sobre a procedência das bonecas, onde ou como Regina as teria
obtido. Já sei que a boneca que se assemelha a ela foi adquirida na Bahia: “é
baiana. Uma outra delas, que está ao centro rodeando a imagem de Catra e Nêgo,
ela ganhou naquela manhã de Claudia. Regina não me fala nada mais sobre o
modo como adquiriu as peças de sua instalação, e chama a minha atenção para os
bonequinhos pequenos, especialmente uma dupla que está lado a lado, vestidos
por roupa em ombro só, mostrando-me como são “expressivos”. Pouco perguntei
sobre os bonecos do lado masculino, pois Regina mesma, ao dedicar pouco tempo
aos mesmos, me levou a isso. O motivo de serem claros esses leões aos pés de Catra,
ou loiros como a quem conheceremos adiante como Valéria, não foi explicitado por
Regina. A minha sugestão é a de que remetam ao homem branco e o modo como
a relação com este é constitutiva da pessoa de Catra, atuante em sua criação e
movimenta a sua criatividade.
Na representação de Regina, os mundos feminino e masculino estão


mas não os isolam. Tanto através do tempo gasto por Regina na explicação de
um e de outro lado, como na própria diversidade dos objetos presentes no lado
feminino e ausente no masculino, podemos ver como o primeiro lhe parece
muito mais complexo e rico face a simplicidade e clareza do segundo. O universo
feminino ocupa dois terços do espaço representacional e é capaz de conter o
masculino, o que não ocorre do outro lado. Assim, se Catra me dirá no estúdio que
as mulheres “já nascem veadas”, pois partilham intimidades como eles, homens,
jamais ousariam fazer, poderia ser inferido o inverso a partir da montagem de
Regina. A obsessão por mulheres e pelo órgão sexual feminino, não correspondia

povoados por homens, como a van ou o estúdio de gravação, mas uma invocação
constante da presença feminina em um mundo que vinha se mostrando como
altamente dependente dela.
A miniatura de Regina funciona assim como um modelo reduzido de seu
universo, e veremos ao longo da tese como ela não se distância do modo como
as coisas de fato ocorrem no dia-a-dia. O estúdio, muito menor do que a casa, é

majoritariamente masculino. E a casa, ainda que espaço do feminino, abriga
também os homens. Possui três quartos: o “das meninas”, pintado de rosa, o “dos
meninos”, pintado de azul, e o do casal, localizado no andar superior.
Como em Lévi-Strauss (1989), ao reduzir a escala, Regina se permite
falar de modo sintético e apreensível da vida que se desenrola ao seu redor. Mas
diferentemente do antropólogo francês, para quem o objeto de arte envolve “sempre
uma renúncia a certas dimensões” do protótipo, de modo que “o conhecimento do
todo precede o das partes” (Lévi-Straus 1989:39), a miniatura de Regina é feita
de partes que não são mais do que versões de si mesma. Como em Gell (1998), e
ao modo do deus singular A’a, cuja imagem “representa sua divindade como uma
composição de relações” (Gell 1998:140) ou do personagem de Ibsen, Peer Gynt,


uma sucessão de homunculi, de modo que os limites de suas pessoas não podem
ser individuados através dos limites espaciais de seus corpos” (Gell 1998:140). Se
em Lagrou os artefatos surgem como cristalizações das aptidões e características
dos corpos (2007a; 2009b), aqui eles obviam as capacidades replicatórias e a
noção de pessoa nativa.

por Miller (1987), com sujeito e objeto constituindo-se mútua e simultaneamente,
ele é antes representacional do que partes estendidas da pessoa de Regina. Se
destaca dela, mas não a replica ou medeia ações nem tampouco expande a sua
       
de uma abordagem anti-representacional dos objetos. Permanece imobilizado

1998), do que da parte destacada da pessoa andrógina melanésia (Strathern
1988) ou mesmo do objeto andrógino (McKenzie 1991). O objeto feito por Regina
representa seu mundo, mas é também todo ele a sua pessoa fractal, pois ainda
que esteja dividido em partes femininas e masculina, ela é também Catra. Ele faz
parte de seu lado, com a criança que carrega e rodeado de mulheres. Então ela
é também o Catra que está do outro lado, rodeado de leões. A sua pessoa não o
seria sem esse masculino dualisticamente construído em seu universo. Um mundo
“supergenderizado” de tal maneira que a dualidade entre os sexos, ao invés de
remeter a uma suposta universalidade da dominação masculina, como defendeu
apud Hoskins 1998:14), expressa precisamente a sua particularidade

Na cabeceira do lado esquerdo da cama, que é o mesmo em que, no
presépio, está o feminino, estão também duas pequenas esculturas. Uma delas é de
madeira, em tom levemente dourado, e parece ser a imagem de um animal felino.
57
Mas Regina me fala que não, que aquela é Valéria. Eu rio. Acho na verdade estranho
que esteja ali uma homenagem à parente que se apropriou de objetos de Regina
em sua própria casa. E Regina mais uma vez diz que não, que aquela é a cachorra,

Valéria, a cadela, de fato se parece com a imagem que Regina traz em sua mesa
de cabeceira. Da raça Pitt Bull, ela foi assim nomeada em homenagem à referida
parente, que então tingira os longos cabelos escuros de loiro e usava lentes de
contato cor de mel.
7
Passamos para o andar inferior da casa. Regina tem nas mãos agora balde e
vassoura, na qual enrola um pano de chão e depois dá um nó. Passa-o pelo piso do
corredor próximo ao banheiro, e eu e Karla comentamos como ela está inquieta. Regina
está ansiosa aguardando a chegada do bebê. Como me dissera mais cedo, arrumava
para se distrair. Enquanto ela limpa, vamos todas conversando. E ela nos faz rir.
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velha de Catra ao psicólogo. Tábata, continua Regina, era agitada, levada, de modo
que “a família do Wagner” “cismou” que a menina precisava se consultar com um
psicólogo. Regina e uma de suas “cunhadas”, acompanharam a menina ao terapeuta.
Nesta época moravam todos juntos na Usina: Regina, Wagner, Seu Edward, Tábata

Edward, e que Regina já havia morado com eles, o que as impacienta. Falam algo
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participava da conversa, enquanto Lenora permanecia mais afastada.
Regina imita a irmã de Wagner sentada na ante-sala do consultório
enquanto aguardam o atendimento, com os ombros encolhidos e a cabeça baixa.
Em seguida descreve o consultório propriamente, como uma sala em que em um
de seus cantos estavam “uns papéis” e “umas canetinhas”. Regina está de pé, entre

na sala da psicóloga estariam os papéis e as “canetinhas”, palavra que Regina fala
com desdém ao mesmo tempo em que sacode uma de suas mãos reforçando o seu
desprezo, é o canto direito da TV, no extremo oposto de onde ela estava parada.
           
apresentou à psicóloga um desenho de “uma casa linda, com um jardim bonito
na frente”, onde estavam a menina, o pai e Regina, sob um céu que abrigava um
7 Estas intervenções, que convertem o branco em negro – como ocorreu com os bonequinhos
de gesso do altar de Regina que foram pintados de marrom – ou negro em branco – como com
a parente que tinge seus cabelos e olhos pretos de tons dourados – não me parecem aleatórias.
Correspondem, outrossim, a elaborações estéticas e miméticas que possuem como móvel a
relação com o outro, com a alteridade. Este ponto será aprofundado nos capítulos cinco e seis da
tese.
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sol “imenso” e no qual voavam “gaivotas”. A psicóloga, sempre de acordo com o
relato de Regina, examina o desenho e diz que a menina está com “problemas”,
comentário que muito irrita a Regina. Ela se volta para a psicóloga e fala que “se

tem que ser “internada, e que se faz “um desenho todo lindo, tá com problemas”.
Então, pergunta ela à psicóloga, “qual é o desenho que ela [a criança] tem que fazer
pra mostrar que ela não tem problemas?!”. Já fora do consultório, a irmã de Catra
diz a Regina que não concordara com o modo como ela falou com a terapeuta.
Regina nos diz que “gente fresca é assim: tudo é psicólogo. Eu imediatamente
reajo dizendo que não sou assim, e Regina reage também rapidamente dizendo
que o “fresca” bateu “fundo na alma, pois ela, continua, não se referia a mim.
Eu me defendo mais uma vez dizendo que elas, ou ela, gosta de me chamar de
“fresca, e Regina insiste que eu me entreguei, pois não usa essa expressão, e de
fato, Regina nunca havia me chamado de “fresca. Ela continua a contar o que teria
desencadeado essa ida ao psicólogo.
Certo dia Regina estava em casa fazendo a sua sobrancelha e Tábata, então
com nove anos, entrou no banheiro e lá se trancou. Ao sair, trazia um “pano
cobrindo o seu rosto, e quando o removeram viram que a menina estava com
 
sobrancelha ao seu modo. Para completar, numa tentativa de ajeitar a bobagem

sua testa, separou duas mechas e fez com os dedos o movimento de uma tesoura
cortando-as – e colou-as no lugar da sobrancelha. Tudo isso foi relatado com a
narrativa hilariante de Regina, ainda que Tábata talvez não encontrasse tanta
graça na performance que a envolvia.
Acabado o relato, eu falei que isso não me parecia motivo para mandar uma
criança ao psicólogo, e voltando ao tema da “frescura”, comentei que em algumas
casas as crianças só se sentam à mesa com os adultos depois de completados oito
anos de idade e que antes disso se sentam na cozinha, como na casa de uma prima
minha. Regina fala que “lá” era assim também, que “até a comida” é diferente. O
tempero, acreditam “eles”, têm que ser outro para a criança. Tábata acrescenta


palavra “merda. Eu pergunto a Tábata se Tânia nunca esteve “lá, e ela diz que não,
com alguma veemência. Até então eu não sabia que Tânia, a quem frequentemente

de sangue apenas de Nilda, a mãe de Tábata.
Regina segue por sua narrativa. Diz que no sítio do irmão de Catra, havia
uma empregada “só para pentear os cabelos de Tábata, e eles falavam para a
59

a menina tinha “um cabelo grossinho. Regina admira o cuidado que “eles” têm ao
nomear o cabelo crespo. No seu entender, sabiam usar palavras mais adequadas
para não “ofender”. Eu lhes pergunto se dizer que alguém tem cabelo crespo é uma
ofensa, mas não me respondem. Entendo que neste contexto adjetivar um cabelo

Regina fala que até então Catra e Tábata eram os únicos negros na família
e com a chegada dos novos membros “pardos”, continua Regina, “foram se
acostumando. Regina fala que o irmão de Catra é rico e associa isso ao esnobismo
que nele vê. Coloco que Edward, o pai, era rico também e não parecia esnobe.
Regina fala que Edward “era rico”, em um tom de voz que indicava que ele não era



notar que o pai perdia dinheiro na “bolsa, “passou tudo para o seu nome”. Tábata

entende”, acrescentando que é Catra quem o leva para as boates de shows eróticos.

ressoando em minha cabeça enquanto eu refazia o trajeto de volta para minha
casa, a ponto de ao escrever os relatos de campo ter a sensação de que esta parte

o carro vazio. Junto com os trechos que voltavam à minha mente, ainda na “Estrada
do Rio Morto, que nos leva de Vargem Grande ao Recreio dos Bandeirantes, pensei
como se posicionaria Catra em relação a tudo isso: um irmão rico que controlava


de viver em uma casa na qual ao mesmo tempo em que partilhava dos confortos

dormir, a mãe servira como empregada doméstica. A resposta, me parece, veio
através de seu posicionamento face à sociedade envolvente, feito tanto através de
escolhas mais privadas, como aquelas relativas à religião e à família, como através
da criação artística. A frase que Catra me falou lá no começo de nossa convivência
começava a fazer sentido. O pai branco que é “mais preto do que muito preto
falava da diferença desse pai em relação a outros brancos, diferença não só na
relação com os negros, mas de estilo de vida.

A família hoje
Regina e Catra estão juntos há dez, talvez onze anos. Foram Catra e Regina
que assumiram Nêgo ainda bebê, entregue ao pai pela mãe, com quem Catra tivera
um relacionamento fortuito. O casal criou ainda Tábata e Flavinho, pois a mãe
deste último, que tem hoje onze anos de idade, “não cuidava dele direito. Nêgo
chama Regina de “mãe”, Tábata a chama pelo nome e Flavinho a chama de “tia”. À
Tânia conheci na casa da família como a irmã de Tábata que, um ano mais jovem
do que ela, desde pequena preferiu viver com a mãe a viver com o pai, Catra. Na
época quem as efetivamente criava era “Dona Elza” e Tânia, conta-me Tábata, não
se “dava bem” com a avó, de modo que “preferiu” viver com a mãe, Nilda. Foi ao
conhecer Tânia que soube do fato de Tábata possuir mãe viva, pois pensei eu que
sua mãe já havia falecido e por isso fora criada primeiro pela avó e depois pelo pai
e pela mulher dele. E mais uma vez equivocada, pensei que foram de fato escolhas


Tábata me conta que quando Regina “chegou” ninguém sabia que ela se
relacionava com Catra, pois era amiga de “umas primas” de seu pai. Trabalhavam
juntas “na Globo, uma das empresas do grupo de telecomunicações Globo. Regina
passa a morar no mesmo apartamento em que as moças residiam, enquanto inicia
sua relação com Catra, que vivia com Patrícia, mãe de Luiza, atualmente com doze


apartamento vizinho viviam Elza, Raul e Tábata, que da maternidade foi levada
por Elza para a casa do casal, como me contou Raul. Catra e Nilda, à época do
nascimento da menina, brigavam com frequência, um com ciúmes das investidas
extra-matrimoniais do outro. A avó, segundo Tábata, “não deixou” que a mãe

seu nome. Em um terceiro e também adjacente apartamento viviam Regina e as
primas de Catra, que por sua vez transitava entre as três residências.

de modo que se em 2008 chegaram mais dois ele teria dezoito descendentes.
Conversando com Karla, comadre do casal, refazemos as contas. Já foram
apresentados Tábata, Tânia, Luiza, Flavinho e Nêgo. Com Regina, a única mulher
com quem Catra gerou mais de uma criança, ele teve Saul, Nina e a recém chegada
          

dezoito [anos], outro de dois [anos] e um recém-nascido. Diz que Catra, quando


não servia pra lavoura não. Ficaria na “Casa Grande”. Catra já sabia da existência

aproxima da ilegalidade. A mãe, sem saber o que fazer, recorre à Catra, que retira o
rapaz do rumo pelo qual se enveredava e passa a ser o responsável por sua criação.
Alan hoje vive com o pai, acompanhando-o em seu trabalho e dando início a sua
carreira como MC. Trata Regina por “tia, que muitas vezes faz “a linha mãe”, como
diz, ao prestigiar o enteado em suas apresentações solo. Alan é mais velho do que
Tábata, e foi o pivô da separação de Catra e Nilda, que estavam juntos quando o
garoto veio ao mundo.
Digo a Karla que conheci recentemente Isaac, um bebê que não deveria
ter ainda um ano. Ela já sabia da existência do menino, mas curiosa, quer mais
detalhes, e me pergunta aonde o conheci, e eu digo que em uma passagem de som.

mesmos sete anos de Saul, e Rute, um pouco mais velha, como Nêgo, talvez. Lembro
a Karla da irmã menor de Pérola, Suzana, e ela me olha seriamente nos olhos e fala:
“olha bem pra cara daquela menina, Mylene, e vê se ela se parece com o Negão!”.
Eu insisto em minha dúvida e pergunto se Suzana é “aquela loirinha? ”, e Karla diz:
“loirinha não, talvez “ruivinha. Suzana tem a pele dourada, os olhos verdes e os
cabelos crespos, que pensei serem loiros mas que aparentemente forma tingidos

peninha e adota as irmãs também. Na tarde em que conheci Suzana, ela estava na
casa da família, com febre, e chorava no colo de Catra, com saudades de seu lar.



Karla concorda que Catra é “um cara legal”, mas não vê com bons olhos

fala dessa característica inclusiva que não é só de Catra. Uma predisposição para a
adoção que aparece também em Regina, que está presente na facilidade com que

sua esposa, a mãe de Catra “Dona Elza” e ainda o marido desta, Raul.
Relações e pessoas tornam-se de fato análogas, as capacidades
destas revelando as relações sociais das quais elas se compõem,
e as relações sociais revelando as pessoas que elas produzem.


as complexidades de sua existência em seu fazer artístico, transformando-as em
marcas singulares. Em 1999, Dona Elza falece, com cerca de cinquenta e dois

             
de cinco anos, de um câncer que migrou do globo ocular para o córtex. Catra,
Regina e Tábata passam a viver com Edward e sua irmã e madrinha no bairro de
Copacabana, inicialmente em um apartamento na Rua Inhangá e posteriormente
em outro na Rua Barata Ribeiro. Em seguida, conta-me Tábata, Catra se muda com
ela e Regina, para o bairro do Catete, época em que Catra “começou a ter a própria
vida” e passou a se dedicar exclusivamente à vida artística. Em um determinado
período, inclusive, a irmã e madrinha, treze anos mais velha do que Catra, trabalha
com ele: montam juntos uma produtora, cujo nome, Carbô, faz referência à avó de
Catra, dona Carbosina.
Regina vive hoje em uma casa em Vargem Grande, Zona Oeste da cidade,
com Tábata, Flavinho, Nêgo, Samuel, Nina e Regininha. Na frente da casa está
um grande gramado com churrasqueira e uma piscina de boas dimensões. Catra,
durante o período do trabalho de campo também vivia na casa, mas fui aos poucos
            
      
período tenso para o casal Catra, ambos com seus ânimos alterados por supostas
incursões extra-conjugais que teriam ocorrido de ambos os lados, situação que
se assemelha à época em que Tábata veio ao mundo. Mas desta vez ocorre uma
pequena inversão de lugares. Como Catra fez no passado, é Regina, quem coloca na

ainda fez com que o próprio Catra realizasse o seu desejo, pois sendo ele o pai lhe
caberia o dever de fazer o registro.

me anuncia “que eu e o Negão estamos separados”, e eu levo um susto. O ritmo da

aqueles que não vivem na casa, assim como o próprio Catra, que encontrei se
arrumando para sair. Regina me fala que “é sempre a mesma história, [ele] arruma
[uma] piranha nova, depois [a] piranha racha a cara [dele] e ele volta” para ela:
Catra se encanta por uma nova mulher, depois se decepciona com a moça e procura
por Regina novamente. Ela diz que “cansou”, e acrescenta que ele não tem mais o

localiza na mesma região que a sua residência.
Catra vive hoje como vivia então, quando a mãe ainda era viva e ele iniciava
seu relacionamento com Regina. Como antes, quando transitava entre a casa da
mãe, a casa em que vivia Regina e a casa de Edward. Não possui pouso único,
ainda que a casa em que vive Regina hoje parece ser o mais permanente deles.
Nos termos de Rapport (1997b), Catra mostra-nos “não apenas que é possível
se sentir em casa em movimento, mas que o movimento pode ser o próprio lar”

(Rapport 1997b:73). O autor propõe uma noção de


a identidade se faz através do “movimento
      
sendo coerente com o que me dissera antes de
minha partida. Me avisara, então, que quando eu
voltasse ela não estaria mais na mesma casa, que
se mudaria para o Recreio [dos Bandeirantes]. Se o
marido quer “ter várias mulheres”, disse, ela então
“quer viver de madame”.
8
Regina está magrinha. Veste um top bem
curto e um short bem baixo, em nylon preto.
Achei-a mais jovial. Leve. Regininha está linda.
A mãe a penteou e vestiu com esmero. Fez várias
chuquinhas dividindo o seu cabelinho preto e
crespo e aplicou na parte presa bastante gel de
cabelo, com o auxílio de uma escova de dentes.



O altar de Regina não está mais ordenado como quando o conheci. Os únicos
bonecos que permanecem no mesmo lugar são dois, aqueles que representam
a ela e a Catra. Se Regina procurou garantir a ordem em seu mundo através de
algum tipo de volt sorcery, como em Gell (1998), a própria vida tratou de produzir
seus efeitos sobre o seu objeto de arte. Se a vida é o protótipo do objeto, ela então
             
pequeno não se encontra mais lá, e as bonecas femininas que a rodeavam estão
espalhadas pela base da instalação. As crianças também estão espalhadas, e os
leões que acompanhavam o boneco de Catra desapareceram. Há, porém, um leão
extra, que está levemente deslocado do centro. É feito de látex, e poderia ser um
brinquedo infantil. Tem traços hiper-realistas e a sua boca está largamente aberta,
como se o animal desse um grande rugido.
Mas se os bonecos de Regina estão embaralhados em seu altar, a ordem
parece assegurada em sua cama. A colcha de plush que a cobre é estampada
por uma grande imagem de um casal de felinos abraçados, aconchegados um ao
outro. Na metade da coberta que corresponde ao lado de Regina está reproduzida

“casado” com cinco mulheres.

uma onça pintada, e do lado que corresponde à Catra vemos um leão. Ambas as
imagens possuem novamente traços hiper-realistas e estão margeadas por um
fundo vermelho sangue. Sobre o travesseiro de Catra esta recostado um macaco
de tecido atoalhado marrom escuro, e sobre o de Regina uma boneca de pano, de
pele clara e rosada e cabelos em lã amarelo claro, trançados.
Os bonecos felinos que estavam em sua mesa de cabeceira tampouco estão
presentes. E sobre a mesa correspondente a de Catra estão dois livros. Um deles
é sobre o Comando Vermelho. O segundo, acomodado abaixo deste, é a coletânea
que lhe dei, onde consta um artigo de minha autoria sobre a sua pessoa e o seu
fazer artístico. Na prateleira de baixo encontra-se uma “Torá, nome hebreu que
Regina usa para designar o que os cristãos chamam de Pentateuco. Suas páginas
estão abertas no livro Levítico, onde repousa um relógio masculino de metal
prateado. Sob o livro está a cópia mimeografada de um paper que apresentei em
um congresso, que trata da agência dos objetos em um Baile Funk.
Mr. Catra e a religião
A religiosidade de Mr. Catra faz-se visível através de sinais cotidianos, de
suas falas e atitudes, como evidenciado a partir das descrições do próprio show,
das interações que se dão nos bastidores dos eventos e durante os deslocamentos
da trupe. Catra, como nenhum outro artista Funk, insere o discurso em torno da


efetivamente a busca por uma conexão com o sobrenatural, o “Todo Poderoso.
O louvor realizado ao início de seu show está relacionado ao fato de o artista se
considerar um “instrumento de Deus”, e formar com Ele uma dupla: ele mesmo, Mr.

o cantor.
9
Deste modo, nada do que Mr. Catra faz pertence a ele mesmo, continua o
artista. É ainda em busca do elo com o divino que ele louva a Deus na abertura de
seus shows. Explica que pede que “tudo dê certo” no decorrer de sua apresentação,

sua apresentação com mais um louvor, agradecendo o resultado positivo que obteve.
Dessa perspectiva, a canção Minha facção, cujos versos estão reproduzidos
no capítulo anterior, tem de fato uma “letra religiosa”. Entretanto, ela remete
igualmente ao modo de vida anterior do artista, onde estabeleceu uma relação
de proximidade com um mundo “proibido” e ilegal, como indicado nessa mesma

 Mr. Catra o Fiel.

suas falas em situações off-stage.
10
O codinome “Fiel”, deste ponto de vista, poderia


facção. Mas hoje a mesma composição musical pode permitir uma leitura outra,
onde a vida à margem da sociedade é substituída pela “vida loka, a vida que une à
esfera anterior, festas e trabalho formal. Mr. Catra fala,
Aqui no Rio de Janeiro, cada um tem a sua facção. A minha facção
é a de todos aqueles que crêem em Deus. Não interessa de onde
for, qual classe social. Todos os puros pertencem à minha facção.
Quero saber do Funk, que é a minha facção, quero saber de Deus,
que é a minha facção. O presente que ele deu pra gente que é
o Funk, vida loka. Essa vida maravilhosa que a gente pode usar
como válvula de escape dessa violência, da prostituição, como
válvula de escape para o ostracismo, pro marasmo, ligado?
Isso é que eu vivo. Onde dá um dinheiro bom, que não dá bolo na
mão. Que não tem problema. Um dinheiro sadio.
Catra se diz hoje “hebreu”, seguidor do que ele chama de “Judaísmo
    
causa” de sua mãe. Mas não se adaptou:
Reparei que em casa que manda muita gente, é sempre bagunçada.
Nunca dá certo nada... Porque espírita tem uma porrada de deus,
semi-deus, secretário do deus... não?!
É através da sua insatisfação com o cristianismo, seja ele em sua versão
católica ou pentecostal, que ele se permite colocar lado a lado questionamentos de

Você ser cristão é usar sua religião como política. Você não acha?
Que a cultura ocidental é toda manipulada? Leva o homem contra
  
Você jurando um bagulho que você não vai fazer nunca!! Que
é contra a natureza do animal homem... que é a natureza divina.
A conversão de Mr. Catra, ou a sua fé em Deus, é por ele atribuída ao fato
de Ele tê-lo salvo da vida errada. Foi Ele que o impediu de se vingar do assassino
de seu irmão.
11
Mas Mr. Catra explica que, mesmo “evangélico” possuía “muitas
10 A reportagem da revista Trip, edição de junho de 2009, adjetiva a música Facção, também

11 Esta passagem da vida do artista está registrada no documentário Mr. Catra o Fiel (2005),
onde Catra conta que seu irmão foi morto por um colega da escola que, passado a policial, teria
“subornado” este irmão e com medo de uma denúncia armou-lhe “uma tocaia” e o matou. Catra
decide vingar a morte do irmão e matar o policial, que é antes morto por uma terceira pessoa. O
MC vê no ocorrido uma intervenção divina, que o impediu de cometer um assassinato.

dúvidas, sobre muitas coisas”, e foi ao visitar Israel e o Muro das Lamentações,
em Jerusalém, que ele passa pelo que pode ser considerado como uma segunda
conversão. A sua adesão ao Judaísmo possui, segundo ele, fundamento espiritual,
místico e simultaneamente político. Pois foi o que sentiu lá aliado à decepção que

Botei papelzinho
12
e o que eu senti lá [no Muro das Lamentações],
eu não consigo nem explicar. O que me transformou, foi o que
eu senti no Muro. Aquela sensação boa, ligado? Saí de alma
lavada. Foi do jeito que eu me senti. Dá uma vontade de chorá.
Mas é bom. Você não triste. Você se fortalecendo. Você não
sente tristeza. As pessoas não choram de tristeza.
Mr. Catra acredita que durante todo esse tempo foi enganado. Que Jesus
sofreu um “golpe de Estado, pois como é possível que não haja um Evangelho de
Jesus, nem de Judas, “seu melhor amigo”? Por acaso, pergunta, “Jesus de Nazaré,
o Rei dos Judeus, rabino e criado no templo, era analfabeto?” Recentemente vem

religião é a de um “povo que passou por vários holocaustos” e que aqui no Rio de
Janeiro acontecem holocaustos diários.
A fascinação e a admiração de Mr. Catra pela Terra Prometida parecem estar
relacionadas tanto à sua tradição religiosa como à feição moderna do Estado de
Israel, país cuja fundação, em 1948, foi feita em bases socialistas, regidas por uma
ideologia igualitária, e que, de acordo com o que vivenciou Mr. Catra, não exclui
nem oprime como nas cidades brasileiras. A leitura de Mr. Catra surge marcada
por uma interpretação que encontra explicação na própria cosmologia associada a
uma religião distinta da católica, que viabilizaria um respeito pelo outro, diferente
do que pode ser por ele experienciado no Rio de Janeiro.
Submissão. Compaixão. Esmola... Isso que o cristão prega. Doação.
Donativo. Isso não existe. O que existe é o-p-o-r-t-u-n-i-d-a-d-e.
Um povo próspero é onde todos produzem. Jesus caôzada é esse
bagulho que pregam aí. Jesus [com cara de] metrossexual... com
cara de anjo. ligado? [Nada disso.] Jesus era revolucionário.
É a distância do Ocidente que, aos seus olhos, permite ao judeu uma visão
de mundo distinta. Pois mesmo passando pela Europa, foi em Israel que encontrou
um mundo sem as opressoras hierarquias que guiam as pessoalizadas relações
sociais estabelecidas em seu mundo de origem.
12 Refere-se ao costume de se colocar pequenos pedaços de papel nos quais são escritos os
pedidos ao deus. Estes bilhetes são dobrados e inseridos nas fendas do muro, formadas pela
junção de um e outro bloco de pedra.

O que foi decepcionante para mim foi, depois de vir de Israel, foi
saber que tudo que se aprende aqui é viver de ilusão, não é viver de
realidade. Uma ilusão imposta pela cultura ocidental, pela cultura
católica. As discriminações. É tudo culpa dessa cultura ocidental.
Uma lei que condena o inocente, que liberta o poderoso, aonde o
órfão e o velho são abandonados.
Israel é o modelo de educação tanto do lado árabe quanto do

a serem independentes. Os pais lá criam as crianças com amor,
aqui a gente cria as crianças com mimo.
Lá não tem playboy. Israel não tem playboy.
13
Lá, todo mundo é
todo mundo, ligado? Lá não tem isso que fulano, que é beltrano,
que é branco, que é negro.
Israel foi o único país que levou o negro pra dentro sem escravizar.
Mas para ajudar os etíopes.
14
Mas o judaísmo de Mr. Catra é vivido de modo particular e em sua esfera
doméstica. O uso subversivo que faz da religião, que produz o seu idiossincrático
“Judaísmo Salomônico, lhe permite coadunar relações amorosas e simultâneas

posição a meio termo do Ocidente e do Oriente que o Judaísmo lhe concede. Pode
assim “viver como os orientais”, com muitas mulheres, como ocorreu no período
salomônico, mas a um modo ocidental.
15
Catra acredita piamente que se fossem
possíveis “arranjos de três ou quatro mulheres juntas e um homem” não haveria
tanta pobreza e miséria no mundo. Pois é de modo também idiossincrático que
             
imóvel em que vive sua família é alugado assim como já o vi recusando proposta de
seu empresário para que realizassem juntos ganho monetário rápido na compra
e venda de terrenos imobiliários. Durante conversas que giravam em torno da
religião e da natureza masculina, Catra me falou ainda: “eu deixo as pessoas me
roubarem, o que já havia sido me dito por pessoas que trabalham com ele, mas
que acreditavam que ele não percebesse o fato.

“com condições”, que não precisam trabalhar para suprir o seu sustento. A terminologia é
utilizada como categoria de acusação por funkeiros e favelados para deles se diferenciarem,
dinâmica que será aprofundada adiante.
14 Os “etíopes” formam uma etnia de judeus negros que foram retirados de seu país de origem, a
Etiópia, onde viviam em situação muito precária.
15 Elaborações sobre o “judaísmo salomônico” e arranjos poligâmicos deram título à reportagem
da revista Soma, edição de maio de 2009, sobre Catra. Em “As Minas do Rei Salomão, o termo
“minas” é empregado por seu duplo sentido que remete tanto às minas de ouro associadas ao rei
hebreu como às muitas mulheres, meninas, também chamadas de minas, que teriam Salomão e
Catra.

De início pensei que as falas de Catra através das quais ele defende a primazia
do macho dominante eram de algum modo retóricas, repetidas para o pesquisador,
o entrevistador ou o documentarista na construção de seu personagem, como
fazendo parte de seu processo de auto-representação. Poderíamos pensar, junto
com Marco Antonio Gonçalves (2008), que Catra, como Jean Rouch, teria se
tornado refém de seu próprio personagem (2008:24-25). Ou levar mais adiante
esta ideia e sugerir que o que se dá é mesmo uma escolha de vida. Pois soube por
Regina e Tábata, em uma tarde em que a primeira estava especialmente furiosa
com as investidas extra-matrimoniais do marido, que ele repete “o seu sermão

Como os animais, os homens podem e devem ter muitas fêmeas, e a melhor amiga
da mulher deveria ser a amante de seu marido, pois ambas querem bem à mesma

considerando judeu, “é muçulmano nesses negócios de mulher”, traduz Alan, seu

esta lógica é similar a da favela, ou a de seus chefes.

Em contextos exteriores aos shows, podemos notar que o discurso
articulado em torno da religião revela um ideal transgressor e peculiar diante da

designa como “a sociedade católica” e a “hipocrisia” que a caracterizaria. A “mídia”,
segundo Catra, expressa esta “sociedade”, “impondo valores hipócritas”. Estes
valores vão desde a proibição da prostituição e do comércio de drogas, quando a
atitude correta seria “legalizar e taxar”, até o casamento monogâmico e a pobreza.
Quanto às apreciações relativas às relações raciais, diria que se estas são pouco
verbalizadas, de acordo com uma “penetrante etiqueta do silêncio”, como registrou

de discursos não-orais. São elaboradas através da música, da beleza, das imagens e
dos objetos, e no que toca à Mr. Catra, são expressas através das paródias musicais
que faz. Dessa perspectiva, a estética revela o seu potencial político e conforma
poderoso meio de acesso a questões costumeiramente evitadas e referidas de
forma velada. Peter Fry (2002), em seu artigo sobre a publicidade e a produção
da beleza no Brasil, sugere que é o discurso silencioso da estética que poderá nos



compartilhado pelos presidentes masculinos das associações de moradores (Alvito 2001:143-

ampliação das redes de parentesco e de solidariedade (Alvito 2001:72). Os discursos de Catra

à natureza o aspecto fundante da radical diferença entre as sexualidades feminina e masculina
(Salem 2004), tornando esta refém dos desejos da “carne”.

Esse aspecto maior, cosmológico, que as narrativas em torno da religião
evidenciam, possibilita a Mr. Catra comunicar o seu posicionamento político face
ao mundo envolvente, posicionamento este que tende a expressar, através de
suas reivindicações, o ponto de vista da própria juventude favelada, principais
criadores e consumidores do ritmo musical aqui em questão. As narrativas
pessoais de Mr. Catra em torno da religião, aquelas que ele faz em seu reduto
doméstico, nos revelam que a mesma é meio de manifestação tanto de sua fé como
de suas angústias relativas ao poder e à subjugação e ponte com o político. É a

portanto coerente com o seu interesse no trânsito e na ambiguidade, que se torna
possível compreender a aproximação de Mr. Catra com a “religião dos Hebreus”,
modo como ele denomina a crença que constrói de maneira pessoal e particular.
Mr. Catra compôs em hebraico com seu parceiro Sapinho, um judeu branco,
nascido no mesmo bairro que abriga a favela do Borel, território por onde Catra antes
circulou, e que hoje vive em Israel e de policial passou a cantor de Funk Carioca.
Atem tzrichim leavin
Tzarich latet kavod
Bishvil lekabel kavod
Daber she zé anachnu
Baruch atah adonay
Eloym achi chashuv
Ichié baruch Yerushalaim
Na minha casa
O mal não vai entrar
Tem a Bíblia e o Alcorão
E na porta mezuzá
E a Torá baruch atá
Baruch atá adonai
Quem tá puro entra
Quem tá mandado sai
Yoshua Je t’aime
Faith in god, iluminations
make a peace, make love
with a positive vibration
Com Deus no coração
Salam
Salam alekon
Salam alekon shalom
70
Hoje eu fui foi lá no muro
Conversar com o rabino
Quando de repente ouvi
O bonde dos palestino
Meti a mão na estrada
Fui conferí qual é
O bonde mais sinistro
É Jerusa e Nazaré
Jerusalém
A melhor noite que tem
(repete)
Rebolando com as mina
Começaram a se esfregar
Chegaram perto de mim
Me pedindo neshiká
Id chamudá
Bitch neshiká
Id chamudá
Bitch neshiká
Haifa, Tel-Aviv, Guivataim, Ashdod
Acco, Nazaré, Gaza só para quem pode
Natania, Hedera, Massada, só disciplina
Das Colinas do Golan à fronteira palestina
Eloym vem conduzindo
A caneta e o papel
Moshé abriu o Mar Vermelho
Com a força linda do céu
Da terra irá brotar
Vida, leite e mel
Mr Catra de Golan
E Sapinho de Israel
17
Nos dois primeiros parágrafos, transliterados do hebraico, são feitos
louvores a Deus e repetidas palavras de ordem da favela.
Vocês precisam entender
Pra ter respeito
É preciso respeitar
Fala que é nóis

Deus é o mais importante
Haverá paz em Jerusalém
17 Jerusalém, MC Sapinho e Mr. Catra. Faixa nº7 do CD 1 anexo.
71
No sexto parágrafo pede-se paz em árabe e hebraico.
De modo geral, é através da ironia, mais

contextos performáticos seus questionamentos

gosto estabelecido. A subversão de símbolos da
alta cultura, ou de esferas “sagradas” da cultura
é constantemente realizada por Mr. Catra por
meio das canções que executa. É precisamente
o aspecto subversivo que fará a ponte entre as
formulações mais domésticas de Catra e a sua
criatividade artística. A ironia possibilitará a
Mr. Catra reunir transgressoramente religião,
sexualidade e posicionamento político, como
ocorreu na prévia do que seria posteriormente
encenado. Taussig (1997) entende que a
transgressão é um “componente chave” da
religião, e atribui a antropólogos como Turner e
Gluckman a sua exclusão de sistemas de crença
ou sua circunscrição a períodos liminares, ritos de passagem e rituais de rebelião,
que constituiriam assim momentos de “transgressão autorizada. Para Taussig
(1997) é a ameaça da transgressão, a sua possibilidade mesma de irrupção, mais
do que a sua atualização, que garante a sua “extraordinária força criativa. Como
em Catra, é a transgressão que permite unir em um mesmo plano erotismo, religião
e alucinógenos.
Estamos na passagem de som que antecede ao show que mais tarde Mr. Catra
fará na Fundição Progresso. O palco está montado como uma arena, no centro do
salão, e à sua volta estará mais tarde o público. Mr. Catra vai muito informalmente
passando pelas músicas que cantará, assim como está informalmente vestido.
Diferentemente do modo como se apresenta em seus shows – sempre muito
adornado por colares, anéis, pulseiras e relógio dourados, algum boné bem grande
e bordado por aviamentos que são também frequentemente dourados, trajando
calças jeans amplíssimas, vestindo blusas t-shirts e agasalhos fornecidos por
seus patrocinadores, em sua maioria marcas associadas ao Hip-Hop paulistano, e
calçando tênis de marcas estrangeiras, preferencialmente Nike, Puma, Adidas ou

sem qualquer marca evidente, um chinelo de dedo branco e verde e uma camiseta
preta, com as mangas cortadas, da Termas 4x4, localizada no Centro da Cidade
72
e que inspirou uma de suas canções. Traz ainda um par de óculos de sol sobre a
cabeça, também sem marca. Parece recém-saído da praia.
Ele ensaia a mais nova paródia que fez, e que incluirá no repertório desta
noite, uma versão feita a partir de uma música de Alceu Valença. Os músicos e
outros membros da trupe riem com a novidade, sentados nos degraus dos
tablados acomodados em volta do palco. Em seguida é repassada a paródia da
canção “Pais e Filhos” de Renato Russo. Mr. Catra explica a Sandro, o DJ, como lhe
parece que a batida eletrônica a acompanhar o refrão da versão da música deve

Sandrinho escuta o MC e se dirige a Jota, o tecladista, preocupado que está em
adequar o timbre de sua bateria eletrônica ao tom do teclado na música “4x4”,
também conhecida como “Adultério, versão parodiada da canção “Tédio, do
grupo de rock Biquíni Cavadão. Mr. Catra pode-se fazer acompanhar por mais de
um músico a tocar instrumentos acústicos, mas nesta noite só o teclado de Jota
estará ao palco. Jota faz parte da Sagrada Família, como o coletivo de músicos
se autodenomina, que tem Mr. Catra como seu componente mais conhecido.
Apresentam-se em grupo ou individualmente, mas estão sempre juntos, no mesmo
“bonde”, que aqui não é de bandidos, mas de parceiros de criação e de vida.
A passagem de uma música a outra é muito pouco marcada, assim como
toda a atmosfera do ensaio. Parece mesmo uma reunião de amigos, de modo que
o antropólogo é muitas vezes pego de surpresa. Mr. Catra inicia uma pregação,
com a voz grave como a de um pastor, mas simultaneamente bem-humorada:

e irmãs... Nesse exato momento..., agora... Abra seu coração, abra sua mente, e
deixe tudo de bom entrar... Então, irmão. Vem comigo.... Levanta o tom de sua voz
e, de modo vigoroso, fala: “Putaria que é bom!”. Eu dou uma gargalhada isolada
e dissonante, surpresa com o inusitado da cena, me dando conta de que o que
assisto será efetivamente performado no show que acontecerá mais tarde. Em
seguida, Mr. Catra grita algo que me soa como: “Isso?! Nem no circo tem, nem no
circo tem!”, o que leva seus parceiros a produzirem um clamor de aprovação e, aí
sim, soltarem a sua gargalhada. Mr. Catra dá sequência ao seu louvor, sempre com


com seu teclado, e Sandrinho regula o som de sua bateria eletrônica de acordo com


DJ eleva o som das batidas eletrônicas.
73
Mr. Catra e Jota elaboraram, através de uma operação mimética e criativa,
um aspecto da vida pregressa dos dois. Mr. Catra, já sabemos, foi “cristão” e hoje
segue o “judaísmo salomônico, abraçado por lhe parecer expressar uma visão
de mundo e uma cosmologia que se diferencia daquelas que regem “a sociedade
católica, que, acredita, tantos males trouxe para o seu mundo. Jota, por sua vez, ao

na mesma. Garantia o seu sustento fazendo exatamente o que fez naquela tarde.
Tocando teclado. E hoje, coerente com seu projeto de viver da música, o tecladista
se dedica ao Funk que, de acordo com o que me disse Mr. Catra, tem salvado muita
gente, mais até do que Jesus.
O que assistimos foi a encenação reinterpretada de um culto evangélico. Jota
e Mr. Catra representaram-no teatralmente, parodiando a performance religiosa
que já esteve muito presente em suas vidas. As suas impressões sobre esse universo,
inclusive, são reiteradamente externadas nas conversas estabelecidas no furgão
em que muitas vezes nos deslocamos entre um e outro show. Mas a encenação

outra, pois avisam, através do ato performático, que a salvação não se encontra
onde antes estiveram, mas em uma vida alternativa, regida por valores próprios,
que combina festas e prazeres carnais com a crença no divino. Mr. Catra me

Jota, igualmente, sequer cogita a possibilidade de uma vida sem Deus. O problema,
dizem ambos e em separado, são os homens. A ironia permite, assim, que Mr. Catra
insira criativamente a religião na estruturação de suas performances, e não nos
deixa esquecer que o aspecto político é peça fundamental para se compreender a
ele e ao Funk.
A história pessoal de Mr. Catra lhe possibilitará assumir diferentes pontos

a classe média de modo geral não tem acesso e assumindo o olhar da favela, inicia

pontes entre mundos, pinçando daqueles pelos quais circula os símbolos com os quais

sua prática artística, como espero evidenciar nos capítulos a seguir.
Parte II
A individualidade (...) é para a cultura
como o próprio sopro da vida.
Edward Sapir 1949:310
Capítulo 3
Autonomia da arte,
criatividade e difusão
77
É o beat que dita
Mr. Catra
Neste capítulo colocarei em evidência o estúdio de gravação em que Mr. Catra
trabalha junto a seus parceiros de criação. A abordagem sobre o artista se fará em
sintonia com a perspectiva oferecida no módulo anterior – a apreensão do artista a
partir da replicação de sua pessoa distribuída –, recurso que me permitirá conciliar
em uma mesma narrativa a exigência de apresentação da efervescência criativa que
acontece no estúdio com a participação das diferentes pessoas que passam pelo
local, acontecimentos discorridos em muitas e distintas tardes. Dessa perspectiva,
a fractalidade que as pessoas me permitem acessar me possibilitará produzir uma
assemblage de ideias e conceitos nativos múltiplos. Contudo, na medida em que a
escrita evolui e que penetramos no ambiente de produção musical, a necessidade
de problematização da pessoa individual para a compreensão das mecânicas que
regem a criação artística vai se mostrando mais premente. Se a discussão em
torno da individualidade travada no capítulo anterior ocorreu de maneira pontual,
acompanhar o aspecto processual que envolve a criatividade, como faremos neste
capítulo e no próximo, a tornará urgente.
Meu objetivo no presente estágio de meu argumento é extrair a lógica
abstrata a reger a criação musical Funk. Ao invés de pensar o Funk para além dele
mesmo e utilizá-lo como dispositivo para a objetivação de uma cultura da favela ou
de seu contexto de produção, busco ver o que o Funk tem para dizer de si mesmo e

lógica apropriativa, anteriormente referida como “um estilo
da bricolagem sonora” (Vianna 2007) ou um “pegue e misture” (Herschmann
2000a:222) e que ao meu ver ainda não foi devidamente explorada.
O estúdio de gravação

Regina e as crianças. É lá que Catra realiza as gravações de suas canções bem como
são efetivadas as produções de músicos de fora, aqueles que não pertencem ao
centro nervoso do “coletivo. Este é composto por Dr. Rocha, Jota, WF, Kapella,
e Mr. Catra, além de Beto da Caixa, que passado um tempo se afastou do grupo.
Trabalham juntos e em separado, se apresentando em conjunto, e mantendo seus

abarcar “todos aqueles que fecham com a gente”. O estúdio poderia ter seus
78
ganhos incrementados por produções externas. Entretanto, só são recebidos ali

“amigos”. Alguns destes possuem um vínculo mais forte com Catra, estabelecendo
com o artista uma relação que poderia se chamar de apadrinhamento. O que coloca
o estúdio em ação são mais questões que concernem às relações sociais e à criação
artística do que o mero ganho monetário, ainda que, como mais tarde me diria Dr.

hora ele trabalha apenas “pra nós mesmos”.
Entrar no estúdio propriamente nem sempre foi tarefa simples. A
campainha à porta era inexistente e o recurso mais usual era “dar um grito” para
quem estivesse lá dentro ouvir e vir até o portão abri-lo. Quando “gritar” não surtia
efeito, pois deve se considerar que a sala principal de um estúdio de gravação possui
paredes e portas grossas revestidas com material anti-ruído, eu recorria a algum
dos moradores da casa de Regina. Em geral quem me ajudava era Tábata, com sua

de os pequenos da casa entrarem em ação. Flavinho, Nêgo e Saul disputavam pra

surgiu a possibilidade de ligar de fora para o telefone móvel de algum dos músicos
dentro do estúdio, o que, novamente, não produzia resultados imediatos, pois os
números telefônicos eram recorrentemente alterados, os aparelhos telefônicos

que ali se encontrava, simplesmente não escutavam ou ignoravam a minha ligação,
a bateria do telefone poderia estar descarregada, e assim por diante. O meio de

As minhas chegadas se faziam frequentemente no meio da tarde, por
volta das três horas, horário em que o estúdio de fato começa a funcionar. Quem
costumeiramente abria o portão era Tio Rocha, ou Dr. Rocha, ou simplesmente
Felipe, como só Catra o trata. Rocha, por sua vez, pode se referir a ele como Negão
ou Catra, mas o usual é que chame-o de Wagner. Os dois são primos e trabalharam
juntos no início da carreira de Catra, logo que este deixou o grupo “Caravana do
Borel”. Mr. Catra e Dr. Rocha formaram assim uma dupla de MCs, como era moda na
época. Escolheram seus nomes artísticos de modo a “homenagear” a “localidade”
de onde vieram. Ambos moravam na rua Rocha Miranda, no Alto da Boa Vista,
muito próxima à rua Doutor Catrambi. Esta última deu origem ao nome artístico
de Catra, que adicionou o Mister, também em voga naquele momento, enquanto
Rocha acrescentou o Doutor ao primeiro nome da rua em que moravam. Beto da
Caixa, também morador da mesma área, tem seu codinome em referência à “caixa
79
d’água, um reservatório da Companhia de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro,
CEDAE, localizada nas proximidades da comunidade onde morava, no alto da rua
Doutor Catrambi.
1
Catra e Rocha, a despeito das diferenças em
suas técnicas corporais, possuem histórias de vida
com pontos em comum. Como o primo, Felipe, uma
criança negra, foi criado por uma família branca,
a quem sua mãe biológica o entregou por não ter
condições de manter. A mãe de criação de Felipe
já “praticamente” criara a sua mãe biológica, com
quem ele vai morar já rapaz. Rocha diz que assim
teve a oportunidade de conhecer dois mundos: “o
lado da vida boa e o lado de uma vida de luta. Felipe
cresceu no bairro do Flamengo, Zona Sul, área
privilegiada da cidade, estudou na escola pública
Senador Correa, vizinha à sua casa e onde teve
  
Marília Pêra, como frisa, e praticou natação dos sete
aos catorze anos no Clube Fluminense, casa do time
de futebol mais elitizado à época e conhecido por
seus traços racistas, localizado no adjacente bairro
      
infância não teve “visão do preconceito” e que só

a sua mãe biológica, decisão que tomou movido
pela vontade de conhecer melhor seu “lado verdadeiro. Ele não se demora na
explicação de como vivenciou o preconceito, mas deixa clara a sua percepção da

que se desenrolava de um lado e não do outro.
Rocha, mais do que intérprete, é hoje compositor, e a conversa com ele
deixa evidente que a Sagrada Família, bem como o modo como Catra conduz
seus negócios e como cada um deles encara o Funk, se distancia em muito de
1
na vida dos jovens funkeiros, traço especialmente evidenciado pelos bailes Funk dos anos 1990,
em que a briga violenta e lúdica colocava em relação através do embate galeras de distintos
lados da cidade, como pode se aferir a partir de trabalhos produzidos em meados da referida
década (Herschmann 2000a, 1997; Cechetto 2003; Cunha 1997). Hoje, essa mesma lógica
da territorialidade é recortada pelas diferentes facções e milícias a comandarem as distintas
localidades da cidade, aspecto que será iluminado pelas canções Funk “Proibidas”, que ganharam

capítulo subsequente.
80
atividades espontâneas, não programadas ou ingênuas, como muitas vezes são
caracterizadas as manifestações estéticas populares. Rocha fala explicitamente do
poder de transformação da arte. De como a estética e a conectividade substituem

formal. O modo como Rocha, Catra, Kapella, WF e Jota conduzem seus passos está
estreitamente ligado a um projeto. O Funk, para Rocha, é um
(...) ideal... Tanto que ele invadiu tudo. A música, independente
da letra, ela é forte. Invade qualquer lugar. E eu gosto disso. Acho
legal isso. Podem vir mil barreiras, mas o Funk, ele passa por
todas essas barreiras. Faz parte do Rio de Janeiro. Ele mesmo se
 aqui. Não saio mais daqui.
Um “ideal” que é ao mesmo tempo individual e coletivo. A começar pela
maneira como o cerne do coletivo conduz suas atividades na música. Gravam
em conjunto, mas cada um cuida de sua carreira “individualmente”, realizando
trabalhos independentes. O modo como se dão as parcerias musicais ilustra bem
esta dinâmica. Rocha explica que muitas vezes está escrevendo uma letra e “chega
o Beto [da Caixa] e dá uma ideia; aí o Wagner chegando, e dá nova sugestão. Ou

uma solução. Na hora do registro, porém, a música pertencerá a Rocha: “É um
ajudando o outro coletivamente. Mas o trabalho é ao mesmo tempo individual,
porque cada um vai ter o seu trabalho. As parcerias podem se dar também na hora
de interpretar uma música, “fortalecendo o parceiro, como nesta música cantada
por Kapella e com participações de Mr. Catra, Dr. Rocha e Jota.
Péraí malandro, tem que ser na disciplina
Como é que tu quer ser macho se não dá moral pras minas
Coisa mais linda que Deus botou nessa terra
Quer ter paz irmão, leva ela pro edredom
É mó loucura, ela dançando só pra mim é um fato
Parece que eu na Arábia, eu nem saí do quarto
A música é boa, essa mina é maravilhosa
Se tiver sonhando eu mato o corno que me acorda
Minha realidade também pode ter uísque
Avisa pro sistema que eu não vivo de alpiste
Cada um no teu estilo, cada beat uma missão
Essa aqui eu dediquei pas mulher de coração
Te pego e aperto preta
É nóis no amor preta
Te beijo na bochecha
81
Chama as amiguinha de Nilópolis pra vir
Nóis no baile o quatro porta o bonde é só de MC
blindão no rolé com os meus parceiros
As mina vai colar, um brinde pros guerreiros
Mas tem um pouco mais o bonde é sem miséria
Malandro que é malandro curti asfalto e a favela
Eu não podia nunca deixar de rimá os olé
Eu ia mentindo forte se faltar mulher
E quantas festas que nós fez no casarão
Ladrão, muita mulher, fumaça, churrasco pro doidão
Dona Maria pirava com nóis
Kapella no violão e o coral com muitas voz
Infelizmente a droga fez geral se separar
Eu tenho fé que um dia os irmãos vai tudo acordar
Vamo ligar mina que o bagulho é meter
a cara no estudo que é pra depois ter o lazer
Tira o dia da semana e dedica pra mim
Na disciplina ela vai pirar, vai por mim

Fiz um cafuné gostoso na minha preta
Te pego e aperto preta
É nóis no amor preta
Te beijo na bochecha
2
“Parceiro” e “amigo” são categorias que ilustram relações distintas.
“Parceiro” é aquele com quem se partilha efetivamente a vida e o trabalho. “Amigo”
é um aliado, uma pessoa que está do mesmo lado da vida, que partilha pontos de
vista em aspectos considerados cruciais. Se em algumas ocasiões fui “parceira” era
também considerada uma “amiga, uma aliada na divulgação do Funk.
Cada um dos membros da Sagrada Família exerce funções práticas, ou
não-artísticas, como meio de incrementar o ganho que obtém com a música, mas
também como modo de reforçar o “coletivo”. Nos termos de Rocha, “cada um tem
que ter a sua função. Não é só cantar. Isso é coletividade”. Com exceção de WF, que
trabalha como auxiliar de serviços gerais em um condomínio em Belfort Roxo, na
Baixada Fluminense, todos eles trabalham para o estúdio. Rocha é o responsável por

produção das músicas de Hip-Hop e eventualmente também produz músicas de Funk.
Ele é a figura mais permanente na mesa de gravação, mesmo não sendo o produtor
exclusivo das músicas ali gravadas. Jota trabalha como tecladista das produções de
2 É nóis no amor, MC Kapella, música do CD “Os brutos também amam, que reúne produções da
Sagrada Família. Faixa nº 8 do CD 1 anexo.
82
Catra e do estúdio. Catra, por sua vez, mantém negócios paralelos, o que contribui
para que a engrenagem que se articula à sua volta continue em andamento.
Rocha, ao mesmo tempo que atribui a Catra a razão de estarem juntos,
como um “coletivo”, a todo momento procura desfazer a excepcionalidade do

e que “se você perguntar a ele se ele é o grande astro do Funk”, Catra responderá
negativamente. Explica que “Wagner poderia cantar sozinho” e não precisaria “de
nenhum de nós aí”, pois “o trabalho dele cresceu e se desenvolveu” de maneira
independente. E após atingir uma “situação” mais estável em sua trajetória
artística ele reuniu “os amigos dele que gostavam também da música” para com
eles “dividir o fruto” de seu trabalho e para que “seus amigos plantem e possam
colher também. Encerra re-enfatizando que Catra poderia “sozinho” seguir sua
vida, “mas ele, por dentro, ele é isso que você está vendo: os amigos, o trabalho.
Ouço os pés que deslizam sobre a pedra brita. O portão que dá para
a rua se abre, e vejo o rosto de Rocha com seu sorriso largo e enigmático me
cumprimentando. Sorrisos, não risos, são pouco usuais nesse contexto. O estilo
manda que se mantenha o cenho fechado ou indiferente. Refaço com Rocha o
caminho pela área externa que nos adentra efetivamente no estúdio. Passamos
pela ante-sala, de piso de pedras, como também é revestido o chão do corredor

frente ao qual há uma velha geladeira. Atravessamos a primeira porta à prova
de som, que nos coloca no corredor que dá acesso às duas salas do estúdio de
gravação propriamente. A partir daqui tanto piso como paredes são revestidos de
um material que se assemelha à madeira, e em alguns trechos as paredes foram

o DJ mais jovem da companhia, e Harley, também chamado de WD e irmão de WF.
Os irmãos W são igualmente “parentes” de Catra. Rocha se junta a eles. Buscam
na internet uma música de “Samba” que Catra lhes pediu, talvez para produzir
uma “versão. Sigo pelo corredor até a sala principal do estúdio, a única com ar-
condicionado. Catra coloca a mão em meu ombro, me avisando que “tamo cheio de

Passa por mim um rapaz que veste uma blusa t-shirt bordô, que eu não havia
visto antes. É Naja, técnico de som e músico de Pagode. Jota lhe diz algo que não
compreendo. Fala sobre “ar mona, que entendo como “as monas”, já que a letra S é
muitas vezes pronunciada como um R aspirado. Mas não, Jota fala sobre a harmonia,
“harmôna. Diz para Kapella que dará trabalho “ajeitar” a música em que este mexe
naquele momento em seu computador. Kapella está sentado à sua mesa, em frente
ao novo e grande monitor de LCD, tipo wide screen, que contrasta com o monitor
imenso e arcaico que antes os atendia. Kapella me cumprimenta: “e aí parceirinha?”.
83
           

advindos das músicas que produz. Como Jota, Kapella conheceu Catra em São
Paulo. E como Jota, Kapella teve problemas com a polícia e foi Catra quem os
ajudou a deles se desembaraçar. A “prisão” é um tema recorrente nesse universo.
Rodô malandro, já era
E é melhor se preparar pro futuro que te espera
Sua vida daqui pra frente pertence à sociedade
E você vai conhecer o inferno de verdade
Na DP você vai ver que o negócio é sério
Covardia, cela lotada isso não é mistério
Preste atenção sangue bom, tu tem que preparado
Pois lá não é lugar seguro pra quem tenha cagüetado
Então segura a onda e aguenta o pau
Sem direito de defesa vão acabar com a sua moral
Submarino, pau-de-arara viram brincadeira
É o terror amigo, são os carrascos da cadeia
Na hora da bóia vem a quentinha e a tradicional laranja
Divina sucata pois o coletivo já te manja
Judaria não tem vez, o ritmo é de união
E pa aguentar tanto esculacho tem que ter disposição
84
Porque você rodô já era
Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Agora não é mais a brinca, o negócio é à vera
A coisa piora quando chega a hora da travessia
Presídio é um inferno, será o seu lar, o seu dia-a-dia

Procure sua banda e o seguro é certo
Ficar no seguro é o mesmo que ser acovardado
E pelo contexto se você não sabe será esculachado
Não terá nenhum lugar em nenhuma esfera
Porque você rodô já era
Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Agora não é mais a brinca, o negócio é à vera
Amontoados vivem num regime que os faz de lixo
Pra viver na cadeia amigo você tem que virar bicho
Denominadas como casas de reabilitação
A cadeia é a faculdade da marginalização
Esses lugares só hostilizam, não recuperam ninguém
A escola de bandidos chama-se FUNABEM
Eis que um dia chega a liberdade, vai encontrar tudo mudado
Muitas portas se fecharão, será discriminado
Pensamento elitizado é cruel e louvado
Ex-presidiário é inocente não é mais culpado
Ex-presidiário é inocente não é mais culpado
E o pensamento elitizado é cruel e malvado
Porque você rodô já era
Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Agora não é mais a brinca, o negócio é à vera
3
Quando adolescente, “pressionado” pelo “Rock in Rio, festival dedicado ao
Rock que tomou conta da cidade no ano de 1985, Kapella montou com colegas
uma banda de Hardcore: “o rock acabou pegando a mente um pouco.
4
O seu nome

a presença de instrumentos ou bases musicais, faz referência à voz potente e rouca
que ele possui, similar a de Catra. Ele é o cérebro do estúdio. Sua mesa, colocada
3 Rodô malandro, Mr. Catra. Faixa nº9 do CD 1 anexo.
4 Julio Naves Ribeiro (2009), em seu estudo sobre o Rock brasileiro na década de 1980 mostra
como o referido festival cumpriu papel de “divisor de águas” para o ritmo musical.
85
ao centro da sala de gravações, é uma espécie de
centro nervoso do local. É ali que ele centraliza,
junto ao seu computador, todas as ações
necessárias para que as músicas sejam gravadas
de modo satisfatório, “produzindo”-as: prepara
as bases – que vêm a ser a melodia composta por
ritmos eletrônicos e feitas através de batidas que
podem ser eletrônicas ou não –, regula o compasso
    

muita concentração, mental e auditiva. Aspectos
que se traduzem em sua fala e raciocínio rápidos.
É a “mente” colocada em ação.
Jota me explica que o cantor da música
na qual Kapella trabalha naquele momento
“não tem voz pra cantar Melody, não é cantor de
Melody”, de modo que se estabelece um embate
entre a voz dele e o fundo musical, a base. Digo
a Jota que concordo com ele, que ao meu ouvido
soavam descompassados, na verdade não mesclavam, não combinavam, voz e

enquanto gênero musical e me introduz mais propriamente em questões relativas
à criação e à criatividade. É também deste momento em diante que Jota passa a
corresponder aos meus cumprimentos.
Você não pode usar muita harmonia no Funk, porque ele se
 não é rico em harmonia, ele tem
uma harmonia e você tem que saber não escrachar muito a
harmonia do Funk.
A “harmonia, que “descreve e normatiza as relações de construção e
encadeamento dos acordes dentro do sistema tonal” (Buarque de Holanda
diferencia especialmente as musicalidades do Funk Melody e
do Proibidão. O primeiro, dono de letras românticas, mesmo sendo um sub-gênero
mais melódico e harmônico não pode ainda assim ser excessivamente harmônico.
Deve manter uma certa escassez, uma “pobreza lírica e melódica” que tanto
desgosto causa aos “peritos” (Herschmann 2000a:223) e aos “críticos”, regidos por
uma “preconceituosa cartilha de música de qualidade’” (Vianna 1997:19). Essa
economia nos aspectos lírico e harmônico do Funk convive com o exagero de sua
estética hiper-realista, da qual trataremos adiante, e remetem ambos aos aspectos

de contenção e exuberância que, como mostra Santuza Naves (2000), conviveram
lado a lado e marcaram a produção de diferentes representantes da Bossa Nova. A
pouca riqueza harmônica do Funk, como coloca Jota, contrasta ainda com outras
de suas manifestações, como a estética do corpo que, em consonância com a lógica

objetos uma “estética da abundância
5
que busca desfazer através da aparência
o contorno totalizante com o qual muitas vezes se localiza, inclusive no próprio
contexto de investigação, aqueles rotulados como “pobres”, assunto que será

A ausência e a falta, que de acordo com Pierre Bourdieu (1984) conformam
a única alternativa estética possível aos “pobres em capital cultural e econômico”
surgem no Funk como uma opção, uma escolha. A Estética Funk
um “gosto da necessidade” (Bourdieu 1984:374) e sim por um estilo cultural que
ao mesmo tempo em que limita o repertório de variações possíveis cria espaço para
a invenção. É verdade que Bourdieu considera o potencial subversivo que os usos
dos bens de consumo pelos membros da classe trabalhadora podem representar,
como através da alimentação. É no âmbito da convivialidade produzida em torno
da comida que o autor observa um explícito desafio das classes populares ao gosto
burguês. Assim, Bourdieu, que localiza na lógica distintiva um aspecto essencial da
organização dos gostos que separam as classes sociais, considera a possibilidade
de as classes inferiores não apenas imitarem, mas também resistirem a um gosto
e à uma ética superiores, mesmo que em uma esfera relativamente restrita da vida
social. Entretanto, o autor não aprofunda a discussão, concedendo maior destaque
ao aspecto imitativo que estaria presente na governança do gosto e da cultura
populares. A lógica distintiva não permite ao autor prever a possibilidade de
ocorrer um trickle up, uma disseminação dos gostos das camadas inferiores tal que
possibilite a criação de modas a serem usadas por grupos sociais hierarquicamente
superiores, não havendo, deste modo, espaço para a circularidade dos gostos,
tendência que vem sendo sinalizada pelo streetwear.
A parcimônia com que elementos melódicos são usados na música
Funk é mais evidentemente assumida pelo Funk do tipo Proibido, aquele que,
sinteticamente, enaltece através de suas letras as ações dos bandidos. Nas palavras
de Jota:
5 Tomo a expressão de empréstimo a Tassi (2009).
Ted Polhemus (1994) ilustra este processo, denominando-o bubble up, através de diferentes
exemplos. Se o New Look de Christian Dior foi o exemplo máximo dos efeitos trickle down (Simmel

Perfecto, ilustra um movimento, se não inverso, não tão unívoco. A peça de roupa, “baseada em


87
O Proibidão não tem harmonia, não tem melodia, é uma batida.
O cara capricha na batida de todos os jeitos que ele pode colocar
em cima de uma voz, só uma voz.
É por este motivo que aquele que canta esta variante de Funk raramente
possui voz apropriada para cantar um Melody. Foi isto que causou a inadequação
de voz e base presente na música na qual Kapella trabalhava. Como o cantor
não possuía em sua voz a melodia necessária para a execução de uma música do
sub-gênero, acabou-se por “exagerar” na melodia da base musical, e a produção
resultou dissonante de seu estilo.

também através de outro exemplo. Passados vários meses do início do trabalho
de campo, Catra começou a se fazer acompanhar em suas performances por uma
dançarina, Yani de Simone. No show de Catra, Yani apenas dançava, mas antes de
seguir por carreira solo, a moça posou para uma revista de nus, voltada para o
público masculino, e gravou músicas no estúdio “Sagrada Família”. Algum tempo
depois, com Yani já seguindo rumo próprio, Sheila, como a chamarei, participou
como dançarina de algumas performances de Catra. Como Yani, Sheila gravou

o que comentei em voz alta. Sheila me explicou então que ainda pequena cantava no
coro da igreja que frequentava com sua família, e Catra adicionou que ela poderia
cantar qualquer coisa, ao contrário de Yani, que só “pode” cantar Putaria.
Ética e estética
Jota conta-me a sua trajetória por meio de uma história musical de vida. Ele
hoje tem cerca de 31 anos, e diz que “curte Funk desde moleque”. Depois “virou
cristão” e aos doze anos “entrou para a igreja”. Jota possui uma arraigada fé em
Deus, e acredita que mais do que este, foi a música, ou melhor, um objeto musical,
que o levou para a Igreja de modo a colocá-lo em contato com Ele.
Quando eu vi aquilo, que eu entrei na igreja que eu vi o teclado...
Vamos dizer..., não foi nem Deus, ? Deus falou: “olha pro teclado
que tu vai me ver”. Fiquei preso com aquilo ali.
Jota possui diversos músicos em sua família, um deles é inclusive “maestro,
e foi de fato a música que o manteve ligado à igreja e à Deus. Ali ele adquiriu a
   
missionário, viajando pelo Brasil e para a África. Trabalhou na mesma instituição
religiosa dos doze aos vinte e dois anos de idade, recebendo “ordens” e salário.
88
Gostava do que fazia, mas com o passar do tempo começou a questionar a sua
             
trabalhar pros outros ou se você quer ser patrão”.
Hoje, hoje, hoje sou patrão
Maluco pra ter o que eu tenho
Tem que ter disposição
ligado...?!
Protejo minha favela com unhas e dentes
Pode vir quem for que aqui a chapa é quente
Protejo minha favela com unhas e dentes
Pode vir quem for que aqui a chapa é quente
Mas eu não posso esculachar
Só somar e dividir
E eu luto pela favela
E não vou sair daqui
Desde pequenininho
Eu vivi no meio disso
E pela hierarquia
Eu assumi o compromisso
Essa missão tenho que cumprir
Não posso abandonar
Caiu pra dentro do problema se tentar vir me tomar
Caiu pra dentro do problema se tentar vir me tomar
7
Ao deixar a igreja, Jota passa a viver do ganho que obtém com a música, além
dos trabalhos ocasionais a que recorre para reforçar seu orçamento. Tocava com
uma banda de “Funk music de fora mêmo” e depois “Música Popular Brasileira”:
“Djavan, Tim Maia, Ed Motta. Ao mesmo tempo “fazia bico de segurança. Passados
alguns anos, Jota decide que cantará Funk Carioca: “Eu sempre curti Funk, mas
eu sou músico. Eu tinha que trabalhar com origens musicais, com música. Assim,
se o contatava um grupo de Pagode precisando de um tecladista, ele aceitava. O

A decisão de trabalhar com Funk Carioca causa certo espanto em sua mãe,
            
que lhe parecia pouco instigante artisticamente. Jota responde à mãe que acha o
Funk “musical” e que estava decidido a “viver no caminho do underground”. Em
seguida ele se muda para São Paulo, onde vive por três anos e trabalha como “back
vocal” de uma banda de Hip-Hop. Mas continuava a escrever suas “letras de Funk”,

7 Hoje sou patrão, de MC Jota, com produção do DJ Ratinho. Faixa nº10 do CD 1 anexo.
89
O que move Jota em direção a um ritmo e o afasta do outro relaciona
antes aspectos de ressonância cultural do que puramente de qualidade musical
e melódica. Ao perguntar-lhe qual a diferença entre escrever uma letra de Funk
e uma letra de Hip-Hop, ele estabelece uma relação direta e imediata entre ética

Pergunto-lhe “como assim lá, lá, lá, lá”?, e ele responde que não é possível cantar
no Hip-Hop “uma melodia tão simples assim”: “ela quer/ela dá/ ela quer/ela quer

não tem no Hip-Hop. Pergunto se isso não pode ocorrer no Hip-Hop:
Não [é que não pode]. Não existe isso. O Hip-Hop já vem com
mais outras influências. Do Jazz, do RB [Rythm and Blues]
contemporâneo. A galera já é mais tah, sou do Hip-Hop. A galera
do Hip-Hop já é mais metida. Não sei o que passa pela cabeça, não
sei se é porque a música é mais rica. [É um] estilo musical que
implica a alta sociedade. Você não vê a premiação da música? A
maioria dos caras que tão ganhando são os rappers. As cantoras
de Rhythm and Blues que cantam Hip-Hop também. Então o rap
tem isso aí. Eu não vou falar contra o rap mas não é o que eu quero.
Os hip-hoppers se julgariam “superiores” pelo fato de produzirem uma
             
and Blues contemporâneo– quanto pelo fato de sua matriz norte-americana

Jota o ritmo dos poderosos.
O mesmo vale para o MC Black Ney, que nesta tarde estava no estúdio
tentando reatar o elo desfeito com Catra, aparentemente, por negligência do
próprio Black Ney. Nascido Waldnei Bispo, na Bahia, ele se utilizou do termo Black
ao criar seu nome artístico por ele ser “da cor”. Black Ney inicia sua carreira em
São Paulo, como cantor de Hip-Hop, e ao chegar no Rio de Janeiro nota que o ritmo
não possui muita penetração: “não era bem aceito. Ele contrapõe Funk e Hip-Hop
ao delinear este último em termos que caracterizam a chamada “indústria do jabá,
através da qual músicas e estilos musicais alcançam grande circulação e sucesso
comercial graças à pressão do grande capital.
Pra você seguir no Hip-Hop tem que ter um investimento muito
forte: gravadora, um empresário sinistro bancando a parada
toda. Em qualquer lugar do Brasil.
Funk Carioca e o Hip-Hop nacional possuem pontos de contato, partilhando
universos musicais e contextos sociais, como os músicos que passam pelo
90
estúdio da Sagrada Família permitem notar.
8
Ambos cantam raps, mas rappers
são chamados apenas os cantores de Hip-Hop, como Kapella. Catra, por sua vez,
é um MC, terminologia que se aplica ao cantor de Funk. Ainda assim grava com
constância músicas de Hip-Hop.
Entretanto, a percepção que um e outro ritmo suscita é distinta. No Brasil,
continua Jota, o Hip-Hop é “cego, “puxado, não possui a autonomia que conduz o

Eu entro em qualquer lugar”. Jota, como Rocha, está interessado na comunicação
que o Funk produz e lhe permite estabelecer. E como o parceiro, Jota vê no Funk
uma autonomia que não encontra em outros ritmos musicais:
O rap tem barreiras. Não sei porquê, mas tem. Parece que a galera
não curte legal a ponto de ter bailes de Hip-Hop e encher igual ao
Funk, entendeu? Isso que eu te falando: o Funk dominando
os espaços das outras músicas. O Hip-Hop perdendo espaço.
Hip-Hop brasileiro, nacional, já não tinha espaço. Agora com o
Funk explodindo forte, acabando mais ainda o espaço deles.
Acrescenta que não é possível um músico viver no Brasil do Hip-Hop:
Quem vive? Racionais e MV Bill só?! Marcelo D2?! E os
underground? Kapella é underground e vive de produção.
A autonomia que emerge das falas de Jota, Rocha e Black Ney relaciona-
           

postas pela reestruturação do “grande business da música gravada” (Herschmann
2007:179). Mas ao invés de me ater a questões mercadológicas, me interessa
seguir pela pista deixada por meus interlocutores e elaborar a estreita vinculação
que se estabelece entre arte, criatividade, difusão e circulação. Padrão estilístico e
circuito de consumo se equiparam. Continua Jota:
O Funk precisa de harmonia, mas você não pode exagerar muito.
Tem um padrão. O Funk tem um padrão, você não pode viajar.
O padrão seria o que vai tocar num circuito que já existe, favela,
        
dentro de casa. Não vai ser comercializável.
8 O documentário L.A.P.A. mostra essa comunicação entre os mundos do Hip-Hop e do Funk no

já se autodenominou MC Funk na época em que participava mais ativamente da cena Funk. Sua
mulher, Lenora, já trabalhou como produtora dos shows de Catra e na tarde em que Regina, no
capítulo 2, me contava as trajetórias familiares, ela aguardava na casa desta pelo marido, que se
encontrava no estúdio.
91
A criação coloca em relação produção e o consumo, pois “tudo tem um
circuito, e é este “circuito” por onde as músicas Funk circulam que dará o “padrão
de variação para a sua harmonia bem como o “parâmetro” para a construção das
letras das canções. É a audiência, a recepção que deverá ser atendida.
O exercício que me parece relevante é o de problematizar como pode ser
pensada a autonomia da criação artística em contextos modernos que escapem à
oposição indivíduo versus sociedade. Veremos que a “autonomia da arte”, como
delineada por Jota, Rocha, Black Ney e outros artistas Funk que nos falarão ao
longo desta tese, é muito diferente da que encontramos nas artes visuais moderna
e contemporânea, pois ao mesmo tempo em que prescinde do “gênio criativo,
coloca em evidência a relevância que possui a individualidade para a criatividade.

pessoa individual no Ocidente e é caracterizada pela liberdade total de invenção
que possuiria o criador único e soberano da obra de arte, proprietário exclusivo
de algo que pertence ao domínio do extraordinário, no ambiente Funk a arte em si
é que é autônoma, mas não o artista. A arte, para ser arte, de acordo com o artista
Funk, precisa circular, ser consumida e romper a barreira do extraordinário.
         
expressão artística, pois “rompe barreiras”, como é reiteradamente afirmado pelos
artistas com os quais trabalhei. Entretanto, é muitas vezes a expressão artística
que faz o artista se submeter a ela, e não o contrário. Como coloca Jota, “você tem
que andar com o Funk” porque a sua “cadência” “muda”. Diferentemente do autor
moderno que constrói um texto semanticamente fechado (Foucault 1979; Barthes
1991), no Funk é a arte enquanto vida que arrasta o artista. Se esta ideia pode
desagradar os mais puristas, que vêem na arte o papel fundamental de transcender
todas as amarras da sociedade, ou aqueles que, através de uma concepção marxista
do mercado, opõem produção e consumo, ela parece coerente em um ambiente em
que a invenção não é apenas balizada pela tradição, mas limitada e/ou estimulada
pela audiência e pela recepção.

do artista feita por Kant. De um lado, as atividades artísticas são descritas em
contraposição às desempenhadas pelo artesão, que “simplesmente segue regras”, ao
passo que o artista, mesmo seguindo-as adicionaria a “espontaneidade” essencial

outro, segundo Donald Crawford (2005), as belas artes em Kant se diferenciariam da
natureza por serem “produto da liberdade humana. Crawford enfatiza ainda que em
Kant, mesmo que o artista siga regras, suas produções devem parecer “espontâneas”

criativo”, mesmo que considerem a necessidade de esforço e treinamento para o seu
92
desenvolvimento, ou que a criação imaginativa muitas vezes deve se submeter ao
julgamento disciplinado, promulgou o romântico mito do gênio como “abençoado
pela extraordinária e inexplicável faculdade da criatividade” (Boden 2005:480). A
‘liberdade’, descreve o “gênio criativo” e a própria concepção de arte, legados da
         

Louis Dumont (1992) delineia o individualismo ocidental em contraste com
o sistema de castas indiano e com as sociedades tradicionais. Enquanto nestas “o
acento incide sobre a sociedade em seu conjunto, em que ordem e hierarquia são
valores máximos e “cada homem particular deve contribuir em seu lugar para a
ordem global”, nas sociedades modernas “o Ser humano é o homem ‘elementar’,
indivisível”, “é a medida de todas as coisas” e a sociedade apenas “o meio” para
            
cada ser individual (Dumont 1992:57). Nigel Rapport e Joanna Overing (2000)
destacam aspectos similares na descrição do indivíduo moderno – “o essencial
valor e dignidade do indivíduo humano, sua autonomia moral e intelectual,
sua racionalidade e auto-conhecimento, espiritualidade, direito a privacidade,
soberania e auto-desenvolvimento, e sua voluntária adesão à uma sociedade,
a um mercado e a um Estado” (Rapport & Overing 2000:178) – mas criticam

universal, já que com a noção de “indivíduo fora do mundo” o etnólogo francês
teria encontrado, mesmo em uma sociedade holista como a de castas, um exemplar
do indivíduo moderno (Rapport & Overing 2000:180). Diferentemente, Rapport &

localização da agência em cada ser humano individual e não na sociedade ou na
cultura (Rapport & Overing 2000:178). As agências e consciências individuais, e
não a moderna liberdade individual, oferecem perspectivas particulares sobre o
mundo, diferenciando os homens entre si. Os autores propõem assim uma noção
de indivíduo “não durkheimianaque renega a prioridade do social (Rapport &
Overing 2000:182).
O Funk, como será visto, produz uma noção de autoria que ao mesmo tempo
em que coloca em questão a propriedade individual [ownership], não evolui, do
ponto de vista do seu produtor, para noções de feições mais pós-estruturalistas,
como a “morte do autor” (Barthes 1991) ou o anonimato e o murmúrio (Focault
           
pessoal juntas com a vida em sociedade” (Lagrou 1997:47). Ao invés de “projetar
o poder de criatividade para fora da sociedade” (Lagrou 1997:47), como faria o
artista ocidental ao sintetizar a sinonímia que o indivíduo moderno promove entre
coletividade e coerção, como já mostrara Clastres (2003), será “a sociedade” que será

93
A lógica criativa e a não-proeminência da palavra
Chego ao estúdio no horário de costume, e quem abre a porta da rua é Das 7,
músico recém agregado ao coletivo. Na sala principal, Kapella está sentado à mesa
            
centro da sala. Seu corpo está envolvido desde os pés por um lençol que se enrola
sobre sua cabeça como uma touca, deixando somente seu rosto de fora. Eu me
pergunto como ele conseguiu fazer aquilo. Estão todos cansados, dizem. Ontem foi
“dia de puteiro”: estiveram na inauguração de “uma termas” no Centro da Cidade
onde Catra fez um show. As tardes após estas noitadas, que ocorrem geralmente
no início da semana e se estendem pela madrugada adentro, pois após o show
Catra permanece com seu “bonde” aproveitando as amenidades que os “cabarés”
oferecem, são marcadas ora por cansaço ora pela excitação com os momentos que
vivenciaram e relembram.
Eu havia marcado um encontro com Sandro no estúdio, mas não tinha
certeza se ele viria. Como as visitas à casa e ao estúdio eram invariavelmente

explorar, eu não estava exatamente preocupada com a sua chegada. Decorridos
dezesseis meses de campo, eu já aprendera que o conhecimento objetivo que eu
poderia estar buscando, a pergunta que eu trazia em minha “mente”, raramente
era me entregue, respondida, como eu planejara. Mas desta vez tudo deu certo.
Catra adentra o estúdio e fala em tom alegre e suave: “E aí meu povo?”.
Em seguida se mostra furioso. Regina saiu e levou a chave de casa. Ele precisa se
trocar, pois segue para o município de Guapimirim para fazer a campanha do “Dr.
Eduardo, candidato a vereador que apesar do doutor que acompanha seu nome
não é um MC:
          
Guapimirim. Puta que o pariu...! Regina é mó vacilona. Vai à praia
e deixa a porra do telefone desligado. O bagulho é daqui a pouco,
tenho que trocar de roupa.
Me dou conta de como ele fala rápido, e ainda arfa graças ao cigarro que
fuma. A voz de Sandro, de uma potência que só os DJs possuem, me deixa ainda
mais descentrada. Mas recobro o prumo.
Catra está chegando da praia e pela primeira vez acho-o com cara de rico,

me dizer porque o vejo deste modo. A informação está na sutileza da diferença
em relação às roupas que ele usualmente veste. Traja uma blusa t-shirt branca
relativamente comprida e ampla, cobrindo os quadris, mas não oversized como as
94
blusas da Manos, a griffe paulista que o patrocina, produtora de roupas no estilo
Hip-Hop, de cores fortes e estampas marcantes. A blusa que traja é estampada
por uma grande imagem, que cobre boa parte da sua frente, mas os desenhos

claro, produzem um efeito de fading, em tom de preto esmaecido, como se já bem

por desenho abstrato, em tons de marinho, verde bandeira e branco, e calça um
par de sandálias de dedo Havaianas. Não usa óculos de sol, nem cordões, e traz um
único anel no dedo anelar direito, em ouro amarelo, com um reluzente cabochão
engastado. Catra parece mais magro, e a sua blusa t-shirt não o deixa nem com o
look de hip-hopper, como usualmente se apresenta, nem com o ar de pagodeiro
como o vimos na passagem de som da Fundição Progresso.
Ele me pergunta se eu “trouxe a música”. Na última vez em que eu estivera
no estúdio eles tentavam baixar a canção O meu amor, do musical A ópera do
malandro, com letra de Chico Buarque e interpretada por Marieta Severo e Elba
Ramalho. Sabe-se lá porque não conseguiram fazer o download, mas o que me
parecera interessante foi o fato de somente Catra e eu conhecermos a música que
ele buscava. E esta não era apenas uma questão geracional, já que Rocha, da mesma
faixa etária que a nossa, também desconhecia a música. Era, talvez, uma questão
de formação e circuito.
Entrego-lhe o pen drive com a música, ele o repassa para Sandro, que o

quatro HDs externos diferentes: o de Kapella, o de Sandro, o de Buiú e o de
Ratinho, funcionando como quatro diferentes computadores. Cada um deles chega
e conecta o seu equipamento portátil. Ou “espeta” o seu pen drive para alimentar o
seu acervo de sonoridades.
“Se liga na letra, Sandrinho. Esquece a música e se liga na letra, orienta
Catra. Antes que a música se inicie eu falo que ela tem um instrumental bem leve,
e ele diz que “então essa é outra [versão]”, pois a que conhece “tem um sax forte”, e

então, que a canção era cantada por Tânia Alves, o que eu lhe disse saber que não
era verdade, mas acertou em cheio quanto à sua musicalidade. A música começa a

dizendo que pareço estar tão acostumada com o Funk que o referido instrumental
me parecera muito leve. Ficamos ouvindo. Catra fala agora para Rocha que ele
preste atenção na letra, notando como ela é “sensual” e “erótica, e Rocha concorda.
Pergunto a Catra se ele fará uma paródia da música, e ele responde negativamente.
Diz que será como é “no original”. Catra parece querer mostrar que Funk e MPB
não estão tão distantes assim, e que a sensualidade nas letras não é privilegio do
95
História sexual da MPB. A música seria
cantada por Yani, o que não aconteceu, talvez devido ao fato de sua voz, como o
próprio Catra me diria posteriormente “só se adequar à Putaria.
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca

E me beija com calma e fundo até minha alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos com tantos segredos lindos indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo e me crava os dentes, ai
Eu sou sua menina viu, ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca e quase me machuca com a barba mal-feita
E de posar as coxas entre as minhas coxas quando ele se deita, ai...
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios, me beijar o ventre, me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
Eu sou sua menina viu, ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz
9
Catra pede a Sandro que me mostre as últimas produções que realizou,
dentre elas a música que gravou em seu estúdio com Afrika Bambaataa,
10
um
dos pais da música eletrônica que originou o Funk Carioca, como o próprio Catra

A gente veio do Miami Bass, que é originário do Techno Pop, que é
o início da música eletrônica, o Kraft Werk. Porque tudo começou
em Stuttgart, e veio pra cá pro Brasil como música eletrônica.
Entrou com aquele suingue novo e juntou naquele beat eletrônico.
[Mas] passou primeiro pelo Estados Unidos: Run DMC, Soulsonic
          

anos dependendo da base dos gringos pra tocar.
9 O meu amor, Chico Buarque. Faixa nº 11 do CD 1 anexo.
10 Ver faixa nº 12 no CD 1 anexo. Ver faixa nº 12 no CD 1 anexo.


a abertura de seu show na Fundição Progresso, a casa de espetáculos na Lapa, no
Centro do Rio de Janeiro. O MC carioca cantou imediatamente antes do artista norte-
americano entrar em palco e foi antecedido pelos rappers BNegão e Shawlin. Catra
era o único funkeiro naquela noite e se apresentara como tal, repetindo o roteiro
e repertório musical de seus shows acompanhado das performances eróticas da
Mulher Filé, a dançarina Yani de Simone.
Conversamos sobre cada uma das produções que Sandro repassa, e logo
Regina chega acompanhada de Tábata e Karla, fazendo a cara de espanto que repete
a cada vez que me vê no estúdio, rodeada somente por homens. Ela costumava

E a verdade é que era no abrigo de sua casa e da companhia feminina que eu me
refugiava quando já cansada daquele mundo puramente masculino e de música e
vozes tão altas. Antes que Catra saia, ele pede a Sandro que lhe grave um CD com
as novas músicas, para ir “escutando no carro. Eu peço a Sandro que grave um
para mim também e Kapella pede a Catra que lhe deixe o cigarro que traz entre
os dedos. Fala de modo tão engraçado que o próprio Catra ri e lhe passa o fumo.

rende muito e esclarece as questões relativas à criação levantadas por Jota.
97
Sandrinho, hoje com 30 anos, é o DJ número um de Catra, com quem começou
a trabalhar em 2000, com um intervalo entre os anos de 2005 e 2008, quando
assume Edgar, que já trabalhara com o MC. Catra e Sandro foram apresentados por
um amigo comum, um barbeiro que cortava o cabelo de ambos em um pequeno
salão nas imediações do Morro do Borel, onde Sandro nasceu e foi criado e por onde
Catra transitava. Sandro enfatiza que jamais fez qualquer curso de DJ e aprendeu
disc-jockey. Sandro
começou a discotecar aos quinze anos de idade, e hoje concilia o trabalho com Mr.
Catra com a carreira independente que lhe garante sólida presença na Europa. Ele

DJs de Funk Carioca, que hoje fazem turnês bi-anuais pelo velho continente, como
o já mencionado Edgar.
Conversamos sobre a música Olha a vibe, recém produzida por ele, e a
primeira constatação a que chego é que a noção de ‘canção, no sentido de uma
“composição musical popular ou erudita para ser cantada” (Buarque de Holanda

11
Rocha já antecipara esta ideia, ao esclarecer que o Funk, hoje, depois do surgimento
das “montagens”, não permite mais letras longas, como o próprio Jota falara, ao
 não pode abarcar melodia e letras tão simples com o Funk
faz. O que Sandro fará, entretanto, será manter a simplicidade da letra, na verdade
excluindo-a e transformando palavras e fraseados em som, de modo a produzir
uma longa “montagem” Funk altamente rica em conteúdo melódico, e ainda assim

Começamos o processo de exegese da música. Mesmo seguindo por uma
abordagem conceitual que questiona o lugar que a palavra pode possuir no

sua letra, que a mim parecera enigmática, incorro no vício produzido pela vertente

uma curiosidade silenciosa sobre aquele que seria seu sentido semântico. O que
me diriam aquelas “categorias nativas”? Esta mesma dúvida me guiara a cada vez
que eu me colocara a infrutífera missão de traduzir os “cantos nativos”, projeto que




do rap. O pontapé inicial do debate teria sido dado por Chico Buarque, que em entrevista ao
Jornal Folha de São Paulo disse ver no rap uma forma de “negação da canção” (http://www.

rap viera

defende que ele, ainda anteriormente, já chamara atenção para a “grande novidade” que
rap no cenário da música popular nacional (2004:319-333).
98
é que a agência do som parece ultrapassar a das palavras. Além disso, existe uma
comunicação que só se estabelece para os iniciados e que possui códigos em vários

em seu conteúdo mas em sua forma, como mostrou Marco Antonio Gonçalves para

ao estilo Funk e não o conteúdo de suas letras. Este traço certamente contribuiu
para que uma tradução efetiva das letras das músicas não tivesse sido possível e a
exegese resultou do próprio processo de imersão no campo e do extenso tempo de
investigação. Pois o fato de partilharmos a mesma língua já havia me mostrado que

tampouco, questões de ordem linguística que poderiam iluminar o desvendamento
que eu fazia da sabedoria nativa.
Reproduzo a letra abaixo. Visualizá-la já nos coloca no caminho que aqui antecipo.
Olha a vibe me’irmão!
130 BPM
[Hey, hey, hey]
Vamo começá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui proibido! proibido! proibido!
[Êta pô!]
Atenção, atenção!
130 BPM
[À pedido, à pedido]
[À pedido, à pedido]
Olha a vibe me’irmão!
[Ap, ap, à pedido]
Atenção, atenção!
Vamo comecá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui proibido! proibido! proibido!
Olha a vibe me’irmão!
Êta pô!
[Que isso. Como é que é o bagulho?]
[Êta pô!]
[À-à-à-à-à-à, à pedido]
[À pedido, à pedido]
Olha a vibe me’irmão!
[À pedido, à pedido, à pedido]
Pára tudo
Vamo comecá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui proibido! proibido!
12
12 Olha a vibe, de Mr. Catra e produção de DJ Sandrinho, faixa nº 13 do CD 1 anexo.
99
Rindo de minha pergunta sobre quem teria tido a “ideia” que originou a música,
Sandro me responde que “não teve ideia nenhuma” e repassa comigo os procedimentos
que tomou e lhe permitiram originá-la. Chama assim atenção para o lugar que o
processo de criação artística possui na compreensão dos mecanismos que regem a
criatividade, como problematizado recentemente em dois diferentes trabalhos.
Matthew Rampley (1998) especialmente interessado na criação artística,


“gênio criativo”, persona soberana de toda fonte de criação. Rampley se volta para
a teoria do “acompanhamento de regras” [rule-following], como elaborada por
Wittgenstein, que rompe com a noção de que “com as regras o sistema continua um
dado” (Rampley 1998:272). As regras, como as placas de sinalização, “indicam uma
direção mas não mapeiam todos os passos do caminho, como não contêm o lugar
a que o viajante, o jogador ou o artista criativo chegará. Seguir regras tampouco
           
fórmula em si” (Rampley 1998:273). É no próprio processo de criação que o artista,
ao se deparar com cada um dos limites, encontrará saídas e adotará ou não as regras
do jogo: o “processo de seguir regras é a fonte de criatividade” (Rampley 1998:275).
Ingold e Hallam (2007) estão interessados na criatividade de modo amplo, e
não apenas como pode ser conceptualizada em contextos artísticos em seu sentido
estrito. A ênfase recai sobre a improvisação e no modo como o processo criativo
surge como o caminho que se toma em busca de soluções muitas vezes cotidianas.
          
interessado no modo como a criatividade pode ser dissociada da inovação e
do novo, dando destaque a improvisação como “generativa da forma” (Ingold
          
[keep life going] (Ingold 2007a:48), em contraste com uma visão “combinatória da

pré-existentes subjacente à noção lévi-straussiana da mente criativa como uma
bricoleur (Ingold 2007a:45).
Logo que voltou a trabalhar com Catra, no início daquele ano de 2008,
Sandro pediu a Sabrina, então produtora dos eventos do MC, a gravação de algum
“show do Negão.
13
Sabrina lhe passou então a reprodução somente da voz de Catra,
a sua capela, retirada do registro de um show que deveria ter originado um DVD
ao vivo. Sandro diz que queria produzir “novidades” para o cantor, mas não lhe
interessava uma voz “de estúdio, pois ao vivo “você pega aquela vibe do público.
A vibe é a vibração, a energia, algo similar ao que já foi chamado de “astral”, à qual
13 Nesta etapa de meu argumento, escutar o CD que acompanha esta tese faz-se especialmente Nesta etapa de meu argumento, escutar o CD que acompanha esta tese faz-se especialmente
relevante para a compreensão do ponto que quero fazer.
100
Catra se referia, falando com o público, entre uma e outra música: “olha a vibe”,
“sente a vibe. O “do jeito que tem que ser” foi retirado da introdução que Catra faz
recorrentemente ao início de seus shows, antes de entoar o louvor a Deus: “Pra
começar do jeito certo! Do jeito que tem que ser! O Senhor é meu pastor e nada me
faltará!”. O “ proibido, por sua vez, é proferido no momento da ode à maconha.
Sandro então “meditou” e separou as frases que queria usar. Fez também a base,
um “corpo da música todo eletrônico, com samplers, sons tomados de empréstimo
mais precisamente ao House, que possui a mesma “velocidade”, as mesmas batidas
por minuto que o Funk, em torno de 129 e 130 BPMs, dependendo do produtor.
Em seguida, Sandro colocou sobre a base de House, beats de Funk, bem como
as vozes Funk, “mais cantadas, mais suingadas, mais melódicas” em contraposição
à voz que é “mais sampleada” do House. A escolha do House não é aleatória. Ocorre
pelo fato de as músicas deste ritmo possuírem a mesma “velocidade” que o Funk.
Algumas produções de Hip-Hop também podem ser sampleadas e incorporadas ao
Funk. Catra, quando da visita de um “DJ de fora, incorporou a base feita a partir do
sampler de uma música do rapper norte-americano Jay-Z a uma música sua Funk.
Conseguiu fazer isso, explica Sandro, porque a música do norte-americano possui

assim o casamento de um e outro ritmo em uma mesma música Funk.
14
Voltando à Olha a vibe, Sandro decide então “brincar” com a similaridade
e a diferença. A diferença com que as vozes são trabalhadas em um e outro
ritmo é presentificada pela voz cantada de Catra. Esta é “suingada” e “melódica”,
como próprio das vozes Funk, em contraste com as vozes “mais sampleadas” do

as equivalências de velocidades que possuem os ritmos: “130 BPM!”. A diferença
na cadência, no beat do House, que “é aquela coisa reta, que não tem virada” é
sobreposta pelas “viradas loucas” do Funk, que “vai, volta, vai, termina, volta.
Sandro vibra com sua criação: “Parece uma escola de samba entrando na
avenida!”. Logo que Catra e Sandro começaram a trabalhar, ainda em 2000, o MC
teria lhe dito que gostava de suas músicas com muita “percussão, algo incomum
na época, o que levou Sandro a perguntar se Catra era “macumbeiro”. Ao provocar
Catra com a sua pergunta, pois ser chamado de “macumbeiro” neste contexto pode
ser uma ofensa, Sandro denotava o seu estranhamento com a solicitação de Catra
para inserir elementos percussivos na música Funk. Gostar de “batuque” parecia-
lhe incomum entre funkeiros e faria mais sentido entre aqueles próximos do


o trabalho do DJ, tanto no momento da produção musical no estúdio, como nas mixagens que
feitas ao vivo nas apresentações em casas noturnas.
101
universo da Umbanda. Hoje, Sandro concorda com Catra que o Funk é um “samba
eletrônico” e se isto é verdade, a Olha a vibe
Catra, é uma mostra convincente do modo como sua porção eletrônica permite ao
ritmo inovar e a certo modo re-inventar tradições: “A parada tem som de samba,
não adianta. Mas a marcação, a cadência que a música tem é eletrônica, diz Sandro.

e não exatamente de conteúdo semântico. As palavras e os fraseados valem como
mais um som, um instrumento musical. Este é o modo através do qual Catra lida

seria ele mesmo: não seria Mr. Catra, nem Wagner Domingues da Costa, nem Negão.
Seria outra pessoa. O que Sandro está fazendo é assumir de modo mais evidente a
musicalização da palavra falada, já contida no modo como são engendrados muitos
dos sons que recheiam as “bases” das músicas Funk.
Os diferentes sons que uma palavra como “chão” pode produzir, por meio
da aplicação de distintos “efeitos”, reforçam a lógica que transforma a palavra em
som. O “reverbe” reproduz a palavra como um eco, reverbera o som. O “reverse”
“reverte” a palavra, como diz Buiú, invertendo-a de traz pra frente e transforma-a
no som “ôj”. O “delay” igualmente reproduz a palavra como um eco, mas indica

igualmente de “chão, mas chega a esta forma não através da aplicação de efeitos.
Neste caso, explica Buiú, a palavra chão é “cortada pela metade”, gerando assim
o som “tch, que é colocado em “sequência” até ser distorcido pela velocidade da
música: “tch, tch, tch, tchow”.
Outra manifestação exemplar da tendência que indico é dada pelo beatbox.
Estruturado como um loop – um ciclo de uma frase musical, com começo, meio e

determinado de tempo que dura apenas alguns segundos – o beatbox 
é produzido pela voz que reproduz o som de um ou mais instrumentos de
percussão.
15
Entretanto, os loops podem ser produzidos a partir de qualquer som:
voz, instrumentos de percussão, sons sampleados, isto é, apropriados de outras
produções e convertidos em timbres eletrônicos através do sampler.
Os beatbox produzidos pela voz de Catra estão presentes em grande parte das
“bases” de músicas Funk. A “base”, como o nome diz, consiste na base melódica de
uma música que receberá posteriormente a letra, ou no limite, a voz. Sandro, como
Catra, um cantor, partem primeiro da base para então colocar a letra. Sandro diz que
primeiro prepara a “base” e depois chega à voz que lhe parece se adequar a ela. A
“base” resulta de beats sobre beats, da junção e sobreposição de diferentes batidas,
como o “Tamborzão” , a “Guerra de Atabaque” ou “Macumba” , e outros samplers,
como os provenientes de músicas estrangeiras, como o Miami Bass, o ritmo que é
15 Ver faixa nº 14 do CD 1 anexo. Ver faixa nº 14 do CD 1 anexo.
102
tido como o grande originário do Funk Carioca. Dominar todos estes recursos faz
parte do trabalho de um produtor de Funk Carioca, bem como do produtor de música

música. É assim que majoritariamente produzem inovações na cena Funk.
Além das vozes de Catra, Sandro colocou na Olha a vibe outros “elementos
Funk” sobre o “sampler         
estrangeiro, ao contrário do brasileiríssimo “Tamborzão”. O interessante de um
sampler é também ele ter sua origem reconhecível. A sua condição estrangeira deve
estar presente, pois torna evidente a comunicação entre os estilos musicais. Esta
mesma lógica da evidência dos empréstimos estará presente nas paródias feitas por
Mr. Catra, que escolhe sempre “clássicos da cultura” para fazer suas versões Funk. Os
“elementos Funk” de que fala Sandro são, além do Tamborzão, as sentenças “êta pô!”
e “a pedido, o “gemido de mulher”, a palavra “chão” e o “pontinho” do Planet Patrol.

A palavra “chão” aparece na música em duas versões: em “sequencial”, virando “tó,
tó, tó, tó, tó” , ou a frase “oi chão” que vira “oije, oije, oije”. É interessante notar que o
que pode converter algo em “elemento Funk” é menos a sua autoctonia e mais a sua
premência ao estilo musical. A palavra “chão” não é um elemento Funk incorporado
ao ritmo aleatoriamente. Esteve e continua presente nas performances de MCs
que, acompanhados de dançarinas ou dançarinos, comandam as coreografias
pedindo-os que rebolem “até o chão”, proferindo muitas vezes somente a palavra
em sequência ritmada: “chão, chão, chão!”.
Junto a esses “elementos Funk” não-“gringos” de que fala Sandro, encontra-
se reunido ainda um beat estrangeiro, o “pontinho” proveniente da música do
grupo Planet Patrol, de Miami Bass. Samplers de Miami Bass por si só podem ser
     
o ponto de partida para o Funk Carioca, em especial a batida “volt mix”. Mas o
“pontinho” do Planet Patrol, isolado pelo DJ Fábio, do Castelo das Pedras, casa de
shows da Zona Oeste da cidade, virou verdadeira febre no verão de 2008, compondo

público acabou por nacionalizá-lo. Desta maneira, se o conteúdo semântico das

em sua letra, os elementos de linguagem transformados em som não são eleitos
apenas por sua sonoridade e musicalidade.
Essa não-proeminência da palavra sinaliza para o descolamento do social
que vem caracterizando a produção Funk da primeira década de nosso século.
Indica ainda um caminho de análise pelo qual sigo, segundo o qual a arte, mesmo
que estudada por um cientista do social, não representa o real, mas revela “a
Ver faixa nº 17 do CD 1 anexo.
103
verdade da convenção” (Weiner 1997:201). As práticas artísticas, sejam elas
produzidas em contextos mais ou menos hegemônicos, “podem não ter nada a ver
com o tornar a sociedade visível e tudo a ver com o delinear dos limites da ação
humana e do pensamento” (Weiner 2002:7). Sandro diz que sempre começa a criar

essa “mente” funcionará, por meio do pensamento analógico, se alimentando do
estoque de imagens que o mundo lhes oferece, é que trará a cultura e a sociedade
à tona, e não o inverso. É a lógica que rege a música Funk que determina a sua
criação, e não o contexto social em que foi gestado o ritmo. O Funk, inicialmente
dançado em formato de Soul na privilegiada Zona Sul do Rio de Janeiro (Vianna

          
Contudo, esse mesmo contexto social não dá conta de seu sentido.
O que proponho é avançar na discussão da relação entre arte e cultura
sem que a necessidade de referenciá-la a um contexto de produção, como defende
Geertz (1997 [1998]), seja a única e necessária condição. Em alguns momentos,
é verdade, o contexto cultural parece ser mesmo o fundo que permite explicar a
socius,
de sua referência social, e só a invenção e seus mecanismos são capazes de dar
conta de si própria. Catra, o mestre das paródias, o mago na arte de equivocar o

É o BPM. 130 BPM de música eletrônica. [Mais do que letra, mais
do que sensualidade], é o beat. Porque o beat toca sozinho. Você
sabe que é Funk. Você vem cantando uma letra sensual, depois
entra o beat. É o beat que dita.
Funk é em primeiro lugar música, feita dentro de certos limites
convencionados. É preciso se submeter ao seu beat.
17
E as razões que o move são
também as da “arte pela arte”, o prazer da pura criação, do exercício da invenção.
A gente fazia muita coisa em cima da base dos gringos. Agora a
gente tem que criar. E essa que é a melhor, a coisa mais gostosa.
(Mr. Catra)
A liberalidade das apropriações
A lógica apropriativa que rege a criação artística Funk é extremamente
atuante, como notou Herschmann (2000a) que se refere à “estética da versão”
17 De acordo com Bacal (2003) é característico da música eletrônica de modo amplo se submeter De acordo com Bacal (2003) é característico da música eletrônica de modo amplo se submeter
ao “pulso percussivo” (2003:5).
104
          
da multiplicidade estilística” – para a caracterização do Funk em contraposição
ao Samba: enquanto os agentes do primeiro reconheceriam em sua criação um
“artefato cultural”, aqueles envolvidos na engrenagem do último preservariam seu
“mito da autenticidade”. Ao meu ver, não é a lógica apropriativa em si que pode
nos oferecer o diferencial do Funk. Esta, além de caracterizar a música eletrônica
como um todo, mais bem parece ser um princípio geral da criatividade cultural e
artística além de um dispositivo que aproxima as racionalidades das produções do
conhecimento antropológico e da arte contemporânea.
Claude Lévi-Strauss (1989) aproxima o modo de operar do artista ao
bricoleur que inventa criativamente, sejam
obras de arte ou as transformações de mitos, a partir das apropriações que faz
dos elementos contidos pelo conjunto que forma o repertório pré-determinado

nas incorporações feitas por artistas contemporâneos de elementos estrangeiros,
condiciona a atividade apropriativa à própria qualidade de otherness, de
estrangeirismo, que deveria ter o elemento incorporado. Barbara Stafford (2007),
igualmente lidando com contextos artísticos ocidentais, chama atenção para o
lugar central que ocupa a atenção visual na apropriação de imagens pela mente
que serão posteriormente convertidas em representações mentais (Stafford
2007:142/143). Nicholas Thomas (1991) nos mostra como a troca interessada e
a posterior domesticação estética dos objetos incorporados pelos “nativos” esteve
desde cedo no horizonte das relações inter-étnicas, em particular aquelas levadas

produção de arte e mais sobre as políticas que governam os mundos artísticos
contemporâneos, igualmente evidenciam o lugar que a alteridade possui, tanto
para a arte como para a antropologia, no mapear do modo pelo qual acontecem

da collage” como paradigmático da racionalidade que traz à luz os trabalhos
      
retirar “distintas realidades culturais” de seus contextos e submetê-las “a uma

É a especificidade do modo como se movimenta o mecanismo apropriativo
no Funk que pode nos oferecer dados para o processo de demonstração necessário
para recortar esse complexo estilo musical. Pois de um lado, o que nos dizem os

assim, tratamos de uma criação musical que não pode ser desvinculada de seu
contexto de produção. Se o social não a explica, sem o social não a apreendemos.
105
A dinâmica expressa pela categoria nativa “rouba-rouba, empregada para
designar o ato de um músico se apropriar integral ou parcialmente da produção de

através da engrenagem de criação funkeira como um todo, estando presente não
apenas na elaboração de suas bases musicais, mas igualmente nas letras dos raps,
e engloba a difusão do ritmo. O que diferencia o Funk Carioca é a liberalidade que
rege a prática de sua lógica apropriativa e a concomitante velocidade com que
ela é colocada em marcha graças à informalidade que governa as relações entre
seus agentes. A informalidade , de suas
apropriações, e igualmente alavanca a sua difusão. Entre funkeiros, ao contrário do
que ocorre com as produções de música eletrônica realizadas nos grandes centros

a apropriação para então “deixar rolar”, esperar para ver o que acontece. Como diz
Sandro, “no Funk os cara ouve uma parada, já pum. Já faz o loop, já edita, já joga na
música. Já no Eletrônico, no House, no Baltimore, os cara são mais organizados”.
A velocidade é inerente ao Funk, está presente em muitas de suas instâncias,
na “vida loka, na vida “corrida”, e é muito valorizada pelos funkeiros, artistas ou

BPMs, as batidas por minuto, ou é viabilizada pela informalidade que rege a
          
própria materialidade do equipamento que produz a música Funk é facilitadora da
velocidade com que os seus artistas se deslocam pela cidade. Só o Funk permite a

eventos Magelo, com experiência também na realização de shows de outros ritmos
musicais. Munidos de um laptop ou uma MPC, o MC e o DJ possuem reunidos os
equipamentos necessários para realizarem suas performances, ao contrário dos
muitos instrumentos acústicos necessários para que os muitos componentes de
grupos de Pagode Romântico, como Exalta Samba e Jeito Moleque realizem suas
performances musicais.
18
Além disso, se vimos no primeiro capítulo a velocidade com que a van
circula pelas pistas do Grande Rio, ainda assim o veículo pode ser considerado um
entrave à aceleração, e não havendo visitantes ilustres para ciceronear pelos bailes,
pode-se pulverizar o coletivo em alguns carros de passeio, que cruzam a cidade
em velocidade ainda mais alta, tornando as narrativas em torno das peripécias de
Catra pelo asfalto frequentes. E se o artista Funk não quiser se fazer acompanhar
18 A comparação com o Pagode Romântico não é aleatória. O ritmo partilha parte do público do A comparação com o Pagode Romântico não é aleatória. O ritmo partilha parte do público do não é aleatória. O ritmo partilha parte do público do O ritmo partilha parte do público do

na pesquisa de doutorado. Muitos dos shows que Catra fez foram antecedidos ou sucedidos por
apresentações de grupos desse ritmo musical.

de seu “bonde”, bastará um único carro para carregar o MC, o DJ e o motorista. Foi
desta maneira que Beto da Caixa e Catra começaram a trabalhar juntos. Beto era
compositor, mas era também quem dirigia o carro para Catra fazer seus shows.
Passados muitos anos, Beto voltou a trabalhar com Catra, compondo e dirigindo.
Entretanto, esta última atividade realizou menos para fazer frente às turnês
profissionais do MC e mais para atender às necessidades da esfera mais doméstica
da vida do cantor. O Funk, como negócio, cresceu e junto veio a necessidade de
transportar mais pessoas. Mas a ideologia da velocidade, associada ao novo e à
tecnologia, permaneceu. E nesse contexto, o fato de me acharem “calminha” era
frequentemente reiterado junto à pequena lenda que Tábata construiu em torno
da pouca velocidade com que eu uma vez dirigi o meu carro quando seguíamos de
sua casa para o salão de cabeleireiro em Madureira.
No que concerne à liberalidade, os artistas Funk não só não pedem
autorização para a utilização de trechos de produções Funk, como a informalidade
com que são realizadas as apropriações é estimulada e muitas vezes permitida de
modo velado, o que, contudo, não livra o processo de tensões. Do mesmo modo
como Sandro produziu o seu Olha a vibe
a escala produtiva da companhia na qual trabalha, se utilizando de samplers da voz
ao vivo de Catra em uma produção para o próprio artista, produtores contratam e
gravam shows para ter material ao qual de outro modo não teriam acesso.
19
Sandro
acrescenta que não cabe a ele, nem a Catra e nem a ninguém proibir a prática, pois
além desta estar “ajudando a divulgar o artista, está também “ajudando o cara a
tocar música. Entretanto, há um limite tênue e subjetivo, regido por uma certa
lógica da camaradagem e um código de honra, para o modo como são feitas estas
apropriações e como elas serão posteriormente utilizadas.
Deixa os cara gravar porque ele sabe o que ele vai fazer. Ele não
vai pegar a música pra negociar. Ele vai pegar a música pra tocar,
pra passar pra outro DJ, pra jogar na internet, pra jogar na rádio.
A divulgação no Funk rola por meio disso. Você pegando uma
coisa de um, com uma coisa de outro. E aí o DJ mesmo cria a seu
modo a sua produção , e aí ele vai divulgando.
A rapidez e a informalidade foram ainda responsáveis por um dos grandes
sucessos de uma música Funk que “estourou” no verão de 2008. O MC Rael, autor

mas “improvisava” no Complexo do Alemão. Gravaram então a sua “capela” e

19 O Tecno-Brega, ritmo musical das “festas de aparelhagem” que acontecem em Belém, Pará, O Tecno-Brega, ritmo musical das “festas de aparelhagem” que acontecem em Belém, Pará,
também se alimenta das gravações que são feitas ao vivo durante os eventos. Esta prática,
no entanto, é mais assumida do que no Funk Carioca, sendo explicitamente incorporada à
engrenagem de difusão e comercialização do ritmo. Os shows são gravados sistematicamente e
seus discos posteriormente vendidos ao público.
107
Ai, ai, ai meu peru
Ela senta c’a xota
Ela senta com o cu
Ai meu peru
Essa novinha é safada
Dá a buceta
E dá o cu
Ai meu peru
20
Criação e difusão estão de fato estreitamente relacionadas, e estabelecem
ou ampliam os parâmetros do estilo musical. Retornando ao processo de fatura da
música Olha a vibe, digo a Sandro como a acho instigante, e que no meu entender ele

de platéias mais cosmopolitas, mas que permanece sendo Funk, e faço referência a
outros DJs que em busca de recepção similar, acabaram por fazer produções que ao
meu ver não são mais Funk. O selo alemão Man Recordings adjetiva positivamente
tais produções como “pós baile Funk”.
21
Sandro concorda com a gravadora, mas de
modo não tão otimista. Entende que estas produções não são para este “momento

22
Sandro
mais uma vez enfatiza a importância que possui na música que produzem o vínculo
entre a criação artística e sua audiência. Se o beat eletrônico permitiu inovar a
tradição do Samba, o consumo, neste momento, colocou um limite para a inovação,
norteando uma busca por algo “novo”, “diferente”, mas com o qual a audiência

constranger a inovação, pode conceder o seu norte, produzindo o esgarçamento
dos limites, de modo que a recepção e o consumo podem indicar os caminhos para
estas mesmas inovações.
A Putaria, o sub-gênero de Funk que em muitos aspectos pode ser
considerado o substituto para o Funk Proibido, como ainda detalharemos, é uma
inovação que surge em função da busca de seus agentes por uma maior circulação
do ritmo que se “encaixou” no gosto carioca e brasileiro, como disse Rocha. Assim,
se falas mais informadas por uma noção que apreende produção e consumo em uma
chave dual entendem que o mercado “impõe” ao MC de Funk que ele cante coisas

Amigos do Funk, a APAFunk, e o alemão MC Gringo, dentro do “Estúdio Sagrada
20 Ai meu peru, MC Rael. Faixa nº 18 do CD 1 anexo.
21 http://www.overmundo.com.br/overblog/funk-carioca-de-berlim
22 O selo alemão produz EPs de música eletrônica, com especial foco no Funk Carioca, ou Baile O selo alemão produz EPs de música eletrônica, com especial foco no Funk Carioca, ou Baile
Funk, como o ritmo é conhecido na Europa, e lançou no mercado europeu discos individuais de
Sandro, Edgar e Sany Pitbull, dentre outros artistas do estilo musical.
108
Família” vemos que foi a sintonia entre a sensualidade das letras e a expectativa
do público que produziu a novidade, de modo que a audiência ampliou os limites
para que a inovação ocorresse. Como coloca Marshall Sahlins (2003), não devemos
ser ingênuos a ponto de acreditar em uma imposição do gosto por meio de ações
conspiratórias por parte dos produtores, mas não podemos tampouco cair na

aos desejos do consumidor (Sahlins 2003:184).
As contendas que as apropriações geram entre os artistas Funk derivam
não do ato de incorporação propriamente dito, pois já vimos como ele é mola
propulsora da engrenagem de produção, mas quando um destes, ao invés de
“criar” algo “novo” com as partes tomadas de empréstimo, simplesmente incorpora
a produção integralmente, mudando a voz e declarando-a de sua autoria. Não
produz assim algo “novo. Desse modo, se os discursos dentro do estúdio trazem
à tona a relevância que soluções cotidianas adquirem no processo de feitura
            
“gênio criativo” e a inovação e privilegiam o aspecto processual como chave para
a elucidação do que rege a criatividade (Rampley 1998, Ingold e Hallam 2007;

Ocidente ao explicitarem o valor que atribuem ao novo, à inovação e à tecnologia.
As rivalidades entre os artistas Funk colocam uma interessante questão
no que toca a autoria e o lugar da individualidade entre artistas Funk. Pois se as
apropriações dos samplers acontecem livremente, a partir da noção de que este é
de domínio público, material disponível para a livre criação, o resultado da ideia, da
criação, é privado. De um lado, a música Funk pode ser considerada um “híbrido”,
no sentido que detentora de uma propriedade intelectual que deriva em uma rede
que articula diferentes donos, como contido na noção de propriedade e criatividade
melanésia (Strathern 1999). Este traço pode ser notado em músicas que possuem
mais de um dono: o DJ produtor, o MC que a interpreta e o seu compositor. Mas
já aqui as disputas têm início e um DJ por exemplo pode não querer passar a sua
produção para o MC que ainda colocará nela a sua voz, com medo que este se
aproprie de sua produção, registrando-a à sua revelia e antes que o faça. De outro
lado, a questão da propriedade pode simplesmente não ser suscitada, como com
os exemplos dados por Dr. Rocha, ao início deste capítulo.
As disputas se tornam ainda mais evidentes quando somente DJs são
colocados em relação, explicitando a tensão que articula a criação e a criatividade ao
coletivo e ao individual.
23
As bases das músicas são compostas de partes de culturas
sonoras e musicais, e conformam assim um “híbrido”no sentido de Clifford (2002).
23 O vídeo disponível em O vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=7uFvgs9K4CE concede uma mostra
do modo como essas disputas reverberam no meio artístico Funk.
109
Entretanto, estas diferentes partes não possuem dono até serem arregimentadas
pelo DJ produtor. Desse modo, a música só adquire identidade após ter suas partes
reunidas por seu criador individual, de modo que torna impossível tomar o DJ como


anônimo. Nos ensinam, outrossim, que para se desconstruir a noção de indivíduo
não é preciso que se reconstrua a sua contrapartida simetricamente oposta, que
precisamente por esta sua condição lhe é complementar e dependente: o autor
faceless, que não possui rosto.
Os artistas funkeiros sabem que para submeter-se ao coletivo não é preciso
abrir mão da criatividade individual. Ao contrário, a relação é de interdependência,
como bem nota Edward Sapir (1949). É a tensão entre parte e todo, entre cultura e
personalidade, tão bem elaborada pelo antropólogo norte-americano, que garante
a vitalidade de uma cultura, a sua condição “autêntica, “genuína”. É a própria
possibilidade de se exercer o potencial criativo individual, a factibilidade de sua
viabilização, que previne uma cultura de se tornar “espúria.
Uma perpetuação automática de valores padronizados, não
sujeitos à constante remodelação de indivíduos desejosos de
r uma parte deles mesmos nas formas que recebem de seus
predecessores, conduz ao domínio de formas impessoais. O
indivíduo se exclui, a cultura torna-se uma maneira e não um
modo de vida: ela cessa de ser autêntica. (Sapir 1949:299)
Entretanto, a consideração do indivíduo como sujeito criativo e não mero
atualizador não o deixa livre para inventar ao seu bel-prazer. A criação se dá na
articulação de padrão e norma, de convenção e invenção. Como já notara o MC Jota,
existe um “parâmetro” para a criação, não se podendo inventar livremente.
Contudo, não é menos verdade que o indivíduo nada pode
sem uma herança cultural de que possa lançar mão. Não pode
ele, com suas forças espirituais desamparadas, tecer um forte
instinto cultural com o ímpeto de sua personalidade. A criação
é a sujeição da forma à vontade de alguém, não a manufatura da
forma ex-nihilo. (Sapir 1949:299)
A “individualidade (...) é para a cultura como o próprio sopro da vida
(Sapir 1949:310). Mas individualidade não é sinônimo de individualismo,
como aprofundará Nigel Rapport (1992; 1997; Rapport & Overing 2000). O
individualismo é uma das possibilidades de conceptualização da pessoa individual
e refere-se ao modo como a individualidade foi concebida no ocidente, “um milieu
sócio-cultural particular” (Rapport & Overing 2000:179). A individualidade seria
assim um traço universal do ser humano,
110
           
conhecimento do mundo e toda a criatividade humana que se dá


necessária ao esquema conceitual de Foucault (Rapport 1992:21), não deixando
espaço para que o sujeito criativo emirja. A individualidade, além de não se
confundir com o individualismo, tampouco se opõe a ela.
Pertence ao nosso estar no mundo [being in the world], fruto de
nossos distintos prismas interpretativos, através do qual cada
um de nós inevitavelmente representa um lugar de consciência
independente e através do qual cada um de nós atua como agente

modo seria matéria cultural inerte... (Rapport 1992:21)
Foi a necessidade de supressão da individualidade que infelizmente
tornou menos potente o argumento de Matthew Rampley (1998). Interessado em
problematizar a relação entre o indivíduo criativo e os limites que lhe são dados,
de modo a produzir um conceito de criatividade que não oponha o sujeito ao
“sistema de regras”, o autor excluiu do processo inventivo a intenção do sujeito
que cria e transfere para o acaso, para a “sorte”, a responsabilidade de um trabalho
denotar ou não criatividade. Rampley, como Tim Ingold (2007a), enfatiza a
         
        
“marginalmente” relacionada a esta. Mas diferentemente, Rampley desloca para
a sombra o papel que os sujeitos criativos possuem no exercício da criação, papel
que mesmo não tendo sido enfatizado por Ingold é implícito ao seu argumento
de que são as soluções cotidianas desenvolvidas por, por exemplo, operários que
executam o projeto de um arquiteto de renome, que trazem à tona mecanismos
criativos. A criatividade, nessa perspectiva, não é subsumida mas pulverizada,
reside na intenção de muitos.
Informalidade, difusão e o “estilo favela

        
poder de poucos, ela deve circular, pois o Funk “vive disso”: “Eu sou DJ, eu tenho que

nova do Catra... Aí faço uma parada maneira... Eu tenho que passar porque eu tô
divulgando a música do Catra. A música, enquanto está sendo executada, está se
111
mantendo “viva, defende Dr. Rocha, ao falar do período em que ele interrompeu
sua carreira de MC, mas manteve suas produções com Catra para que ele as
trabalhasse: “Acho legal porque a música [“Líquido do Amor”] não foi esquecida.
Ele mesmo foi regravando, foi mantendo a música viva. Esta música, do início
dos anos 1990, recebeu em 2008 mais uma nova roupagem, a terceira ou quarta,
feita por Sandro, que reconhece que hoje “ela não é mais Funk”, mas a sua letra
possui os “elementos” que a mantém “direcionada para o Funk”: a “sensualidade”,

Procuro a todo tempo
Um jeito de encontrar
Palavras e gestos
Fazer você enxergar
Entre quatro paredes
Nós vamos viver
Os mais felizes
Somente eu e você
Sussurros, gemidos na escuridão
Seu corpo todo treme, treme de tesão
Vou te fazer uma nova mulher
Que sabe o que faz, que sabe o que quer
Revigorada pelo líquido do amor


Eu plantei só pra mim
Então vem amor...
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Eu sou Catra amo e gosto de ser amado
A troca de carinho me deixa completamente alucinado
Mulheres sedutoras, gostosas
Com expressão gulosa, fogosa, dengosa
Tornam um simples momento em hora maravilhosa
Arranhando o meu peito, acariciando o meu sexo
Dizendo obscenidades, sem privacidade
Ação corporal, barbaridade
Uma linda e pequenina boca
Desliza em minha nuca, invade minha orelha
Faminta gata louca
Nessa hora nada importa
Entre quatro paredes vem saciar minha sede
112
Objetivo é fazer a gata se sentir mulher
Ficar dentro de você e explodir de prazer
Então vem...
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Na cama, no sofá, no chão, em qualquer lugar
Gata eu vou te amar, te abraçar, te acariciar
Te beijar, te morder

A gente vai enlouquecer
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
24
A circulação da música e o afrouxamento na cobrança dos direitos de
execução e autoria mantêm “acesa a chama do Funk”, diz Rocha. Pois se artistas mais
estabelecidos registram sua músicas antes de as “jogar na pista, antes de colocá-

do sistema, permitindo o seu funcionamento. Assim, a execução é cobrada quando
tocada mecanicamente, seja como repertório de casa de show, rádio ou televisão,
mas não quando é executada por um MC em seu show. O registro dá à música uma
“identidade”, e a “música entra no mundo da música, como explica Kapella, mas o
que não pode ocorrer é o engessamento da sua circulação.
“O que seria do Funk se não fosse a Uruguaiana?”, pergunta Sandro, se
referindo ao papel que possui o Mercado Popular da Rua Uruguaiana, centro de
comércio informal conhecido pela mercadoria majoritariamente pirateada que
vende, na Zona Central da cidade. Kapella, com malícia, diz que “a Uruguaiana até
ajuda”: ajuda não apenas na divulgação e nos ganhos de execução decorrentes desta,
mas principalmente nos rendimentos que são alavancados pelas oportunidades de
shows que certamente surgem quando a música “vira, quando ela alcança grande
sucesso. Como diz WF, quando a música de um artista “vira, a sua vida “vira
também: muda radicalmente, para melhor.
24 Líquido do Amor, de Dr. Rocha e Mr. Catra, produção DJ Sandrinho. Ver faixa nº 19 do CD 1 anexo.
113
O Funk, ao invés de correr paralelamente ao mercado formal, ocupando os
“espaços deixados em branco pela indústria cultural” (Vianna 1988:110) mostra a
habilidade que possuem seus agentes na manipulação das regras do mercado que
governa essa mesma indústria cultural. Os artistas Funk se mostram igualmente
em sintonia com o movimento que vem regendo os ganhos dos artistas da

de importância face a desvalorização monetária e mercantil do fonograma
(Herschmann 2007).
Black Ney, evidencia claramente o modo como a informalidade convive
lado a lado com o mercado formal ao alavancar a difusão do Funk, enfatizando
o papel que possui, neste processo, a favela, uma das expressões máximas da
informalidade econômica no estado do Rio de Janeiro.
25
No Funk é o seguinte: você faz um som, leva num DJ, se o DJ da
favela gostar do teu trabalho, o cara começa a executar na favela.
Dali, mano, os outros DJs da elite, que vivem mais pra baixo, lá na
Zona Sul, começam a copiar dos DJs da favela.
Buiú fala o mesmo, de modo ainda mais direto: a música “tem que agradar ao
DJ: é aí que o bagulho vira. A favela não surge apenas como fonte de autenticidade
para o Funk, mas ela age em sua difusão. É o consumo que ela exerce que fará de
uma música um sucesso ou não. Rodrigo, o noviço MC Novim, ou MC Novinho,
sobrinho de Catra, explica de modo similar a estratégia da qual ele, como outros
artistas Funk, se utilizam para lançar uma música.
Pra tu fazer sucesso, primeiro tu tem que ter tuas música
estourada nas favela. Se tuas música não estiver estourada nas
favela, tu não vai estourar no Rio de Janeiro, e nem no Brasil.
Primeiro a música precisa ser sucesso nos Bailes, e para que isto ocorra o
passo inicial é entregá-la a um DJ. É preciso que este goste da música para que ele
a execute na festa. Uma vez que isto tenha ocorrido, a audiência dos Bailes irá dar o
seu referendo. Se ela agradar, chegará aos mercados de comércio informal, como o
da rua Uruguaiana, no centro da cidade, e aí poderá chegar a TV, depois às rádios e

das lógicas distintivas, como ilustradas por Simmel (1957) e Bourdieu (1984). Ao
invés do trickle down effect simmeliano, tão inspiradores do Distinction de Bourdieu,
temos o bubble up process, expressão utilizada pelo antropólogo Ted Polhemus
(1994:10) para falar de como as tendências das ruas tornaram-se fundamentais
para constituição do alto gosto e da criação na indústria da moda européia.
25 Ver, por exemplo, a série de reportagens “Favela �. A., do jornal O Globo, que trata das cifras Ver, por exemplo, a série de reportagens “Favela �. A., do jornal O Globo, que trata das cifras
movimentadas pelo mercado informal da favela.
114
A favela age na divulgação da música e fornece os elementos para se
inovar no Funk. Buiú, como Sandro, é morador de uma favela. O jovem DJ, hoje
com 20 anos, é morador da Favela do Jacaré, e também como Sandro, aprendeu
              

trazer ingredientes novos para as produções de Putaria, sub-gênero em que ele
é especializado, produzindo as bases e trazendo novos samplers. Estes samplers,
além de serem compostos a partir de pedaços de outras músicas, eletrônicas
        
animação, como o Pica-Pau, da Universal Pictures, a Cuca, do seriado Sítio do
Pica Pau Amarelo, produzido pela TV Globo, ou a campainha do aplicativo para
comunicação on-line Messenger.

A rapidez com que Buiú faz as apropriações é
explicada por sua juventude, por ser menos ocupado do que Sandro e por estar “lá
dentro” da favela, do Jacaré. Como o próprio Buiú diz ele é “doente”, obcecado por
novos samplers
nas proximidades dos terreiros de macumba para gravar “os batuques”, novos sons

diz que vive “de aluguel” e se queixa da pouca valorização do trabalho de DJ no Funk
desde que o lugar do MC ganhou destaque com o surgimento das letras nacionais,
nos anos 1990.
A favela se converte mesmo em elemento essencial para recortar o estilo
Funk de música. Pois se o Funk e a música eletrônica se assemelham pela velocidade

são feitas estas apropriações, a favela fornecerá de modo quase ideal, ou ideológico,
uma outra fonte de distinção. Segundo Sandro o que diferencia o Funk do Eletrônico
de modo amplo é a sutileza que reside na “batida”. Enquanto no último ela é mais
“centrada” no primeiro ela é “mais favela”. Pergunto-lhe o que é “mais favela”, e ele
fala do Tamborzão, a batida made in Rio mais distintiva do Funk, a que mexe com
o público e o coloca para dançar. Sem os samplers
Sandro, não há Funk. O que o Tamborzão traz de novo, continua ele, não é somente
o seu aspecto sonoro, mas a “sujeira” que o acompanha, uma “baixa qualidade
sonora, como diz, uma falta de equalização que “é o bacana da parada. A BPM
em 130 permitiu ao Funk se inserir em playlists cosmopolitas, e assim aumentar a
circulação do ritmo, inclusive em contextos globais, pois o fato de possuir a mesma
“velocidade” que o House, o Techno e o Baltimore permitiu a sua mixagem com
 Apesar de inusitadas, não são surpreendentes as fontes destes samplers. Obedecem à lógica
que explicitei acima sobre a inserção de samplers
“pica pau” faz referência jocosa à sexualidade, mais precisamente ao órgão sexual masculino, e o
uso do Messenger é constante entre os jovens, como pude notar ao acompanhar Tábata, sua irmã
Tânia, seu primo Rodrigo e o DJ Buiú.
115
estes ritmos e a consequente inclusão nas sequências musicais dos DJs dos clubes
noturnos europeus como mais um set de música eletrônica. Contudo, foi a “sujeira”
que deu-lhe um de seus diferenciais, ao chamar a atenção de DJs e produtores
estrangeiros, garantindo a sua entrada em mercados estrangeiros.
O interessante, para Sandro e outros DJs, é usar “o que é original” e “mostrar
o que é o Funk mesmo, sem “botar lacinho” ou “enfeitar”. Pergunto a ele se possui
alguma versão “limpa, equalizada, na “pasta” que reúne inúmeras variantes do
Tamborzão em seu HD. Ele responde negativamente, dizendo que o que fazem é
“dar uma maquiada. Por outro lado, em outros gêneros musicais a construção de
um beat é “perfeita. E se no Funk os plug ins – recursos para equalizar o som,
ajustar a voz aumentando-a, deixando-a mais grave ou aguda – são instalados
diretamente na “máquina, no computador, “lá fora os cara, com a mó paciência do

A “sujeira” que concede ao Funk o estilo “favela” está novamente associada
              
musicalmente é traduzida a estética hiper-realista que rege as letras imagéticas do
Funk. O lugar que a favela possui no processo de criação funkeiro é fundamental:
ela contém grande parte de seus consumidores e produtores, age na difusão de
suas músicas, concede a sua marca estilística e fornece parte do repertório de
imagens sobre o qual se elaborará criativamente. Mas mais do que isso, a favela
proverá à estética Funk, e aí sim por oposição “à pista, a sua porção hiper-realista.
Através de uma estratégia do chocar, o Funk, junto com seus agentes, elaborarão
sobre o real para torná-lo ainda mais real e visível. Uma realidade hiper-real, tão
real que só é passível de ser representada através da arte, como Gregory Bateson
defende, antecipando a discussão sobre mapa e território (Bateson 1999:185) que
mais a frente inspirará Jean Baudrillard (1994) e que aprofundarei a seguir.
A porção hiper-real da estética Funk relaciona-se ao que venho chamando
de não-proeminência da palavra. O que pretendo com esta proposição não é
sugerir que a palavra não seja relevante em meu contexto de investigação, mas que
a palavra não é usada de modo descritivo, produzindo-se assim um descolamento
do social. O que sugiro é que o potencial de comunicação das letras reside menos
nos valores semânticos e aspectos linguísticos do que na estética engendrada por
elas. As letras são antes imagéticas, menos do que linguágicas. Pois não se trata de



Tampouco é o social que o explica. Como último exemplo, e antes de passarmos
para o capítulo seguinte, deixo a letra da romântica música composta no verão de


verão anterior. O contraste entre uma e outra letra, acredito, ilustra bem o ponto
que procuro fazer. Como a primeira música, esta também fez muito sucesso entre

para ouvi-lo cantar.
Eu digo vem morena
Quero te namorar

Pra sempre eu vou te amar
O amarelo lembra ouro
O ouro lembra ladrão
Ladrão lembra você
Que roubou meu coração
Porque da uva faz o vinho
Do vinho se faz licor
Levanta a mão e grita
Só quem quer fazer amor
Vem morena
Quero te namorar

Pra sempre eu vou te amar
O amarelo lembra ouro
O ouro lembra ladrão
Ladrão lembra você
Que roubou meu coração
Porque da uva faz o vinho
Do vinho se faz licor
Do licor faz o beijo
Do beijo se faz o amor
Mas eu quero falar não posso
E dormir eu não consigo
Se falar falo o seu nome
Se dormir sonho contigo
27
27 Vem morena, MC Rael. Ver faixa nº 20 do CD 1 anexo.
Capítulo 4
Englobamento e subversão
118
De agora em diante é só cultura
Mr. Catra
Este capítulo tem duas ambições fundamentais. Uma delas é trazer para o
primeiro plano o artista Mr. Catra. Até o momento, o tomamos como mais um dos
que compõe a sua rede de relações, seja em seus ambientes doméstico ou artístico.

que deriva justamente de sua capacidade de se fazer ao mesmo tempo exemplar e
singular do Funk. Entretanto, será através de um movimento que alterna emersão
e imersão que se tornará possível delineá-lo. Em alguns momentos, Mr. Catra
plot que nos concede o Funk. Em outros, Mr. Catra
submerge no fundo, e vemos a sua unicidade, a sua singularidade, como passível
de ser apreendida em contraposição a um fundo Funk comum.
Diferentemente de outros artistas Funk, Mr. Catra canta MPB, Reggae, Hip-
Hop, Pop, Soul e Samba. Este entrelaçar de diferentes gêneros musicais se faz
        
entre distintos universos sociais e estéticos cariocas, nacionais e globais. Este traço
característico é, inclusive, reconhecido por outros artistas do meio, estejam eles
envolvidos ou não no universo deste MC. Alguns atribuem esta plasticidade à sua
formação musical, à sua boa escolaridade e ao modo como ele foi criado. Parece-
me verdadeiro que ter sido educado no seio de uma família branca de classe média

e por ela simultaneamente criado, ter acesso a um conhecimento diferenciado.
Mas a capacidade de mesclar diferenças e se reinventar é, ao meu ver, um traço
também próprio ao Funk, de modo que este apresenta à Catra a possibilidade de
fazer música ao seu modo, reinventando e inventando a si e à arte.
O segundo aspecto a ser evidenciado, diz respeito ao papel que as imagens
possuem no processo de criação funkeiro. Procurarei explicitar como essa
categoria “mente”, utilizada por todos, estejam eles envolvidos na criação ou nos
afazeres domésticos que fatalmente suportam a criação, nos fala de uma qualidade
de articulação e processamento do “pensamento” que se faz fundamentalmente
através das imagens. As imagens entram e saem pela cabeça, e o que temos são
imagens outras, que podem ser verbais, como as expressas pelos artistas nas letras
das músicas, ou visualizáveis no processo da representação e apresentação de si.
          
músicas que privilegiaremos nesta parte da tese, o corpo se fará inevitavelmente
presente. Este capítulo oferecerá, assim, a amarração desse ir e vir de imagens que
circulam pela mente e pelo corpo dos sujeitos criativos desta tese.
119
As imagens e contra-imagens
Tomando por base o material empírico que venho acumulando, parece-

constante produção de imagens e contra-imagens. Estas imagens são suscitadas
tanto a partir de disputas internas quanto externas. Parece ser distintivo do Funk
uma lógica subversiva que se constrói a partir de uma dinâmica que toma o poder

termos, parece ser próprio do Funk se construir por oposição ao que lhes parece
representar “a sociedade”, que surge mesmo como “externa, “exterior”, ao mesmo
tempo em que manifesta um claro fascínio sobre esta mesma “sociedade” e suas
produções.
          
conteúdo, resultante de sucessivos englobamentos e apropriações. A lógica que
rege a criação artística musical é ela mesma análoga àquela que governa o gosto
indumentário dos jovens frequentadores do Baile Funk, aspecto que analisei em
           
material resulta, como venho mostrando, de uma mimesis que não é pura cópia
(Taussig 1993), a criação musical Funk opera por lógica apropriativa similar, onde
o “rouba-rouba, a categoria nativa empregada para designar o ato de um músico
se apropriar da produção do outro, parece ser inerente ao modo de criação, sem
que isto resulte em uma pura reprodução do trabalho alheio. A viabilização da
criação Funk é altamente dependente da liberalidade com que são feitas estas
apropriações, o que não isenta o processo de brigas e disputas, como vimos no

funkeira uma vez que a disputa, muitas vezes, está em seu cerne.

A partir da musicalidade do ritmo e suas melodias, como já examinado, e através
das letras das músicas. No presente capítulo, ao me deter exclusivamente sobre
as letras, evidenciarei a importância que as imagens e os tropos possuem nas
mesmas (Lagrou 2007b), de modo a fazer ver a maneira pela qual as apropriações
e a manipulação de símbolos geram imagens outras, exclusivamente verbais, que
se encontram, por sua vez, em concordância com o próprio mundo imaginário
daqueles envolvidos na criação.
1
Assim, procurarei sublinhar como ao mesmo
1 A lógica apropriativa está presente em distintas modalidades de Funk, e gera inúmeras versões
de músicas. Muitas das “respostas” e “duelos” que dão título a músicas do ritmo musical possuem
as relações de gênero como tema. Assim, uma MC, uma cantora, pode “responder” a um MC, um
cantor, que compôs uma canção que “esculacha”, ofende as mulheres, com uma versão que a
parodia ou alude a esta através de sua narrativa, defendendo assim o gênero feminino. Ou um

outra na posição da “amante”.
120
tempo em que a própria criação se revela dependente de mundos que são muitas
vezes representados como se em franca oposição, as suas fronteiras resultam


          
formulação de Roy Wagner (1981[1975]) segundo a qual a cultura se faz de modo
           
do antropólogo, defende que arte e antropologia podem ser pensadas em uma
mesma chave, ambas se alimentando dos tropos e metáforas que encontram no
mundo. A antropologia “inventa” a cultura que estuda por meio de um processo

          
ocorre, de modo que o trabalho de campo mesmo pode ser dito como o momento
de “invenção” da “cultura”. Por outro lado, os nossos interlocutores em campo

nos sintetizarem, como os “cargo cult”, de que nos fala Wagner. Se para nós muitas
vezes torna-se factível apreender os nossos outros por meio de, digamos, rituais de
acesso ao mundo sobrenatural, para eles parece que o que nos distingue é a nossa
relação com os objetos materiais. O autor está nos falando de como nós estamos
presentes no mundo deles e eles estão presentes nos nossos mundos, e como é
ao compartilhar presenças que descrevemos a nós enquanto “inventamos” a eles.
Esta dinâmica é precisamente o que torna possível esses mundos se relacionarem,
já que não são realidades estanques.
Como antecipei, Wagner permite-me avançar em minhas elaborações sobre
o Funk, de uma perspectiva de viés mais sociológico para uma que entendo como
sendo mais propriamente antropológica. O termo “avançar” faz sentido a partir
    
de doutorado, carregava como hipótese central a ideia de que a arte Funk, para
ser compreendida, teria uma estreita relação com uma determinada cultura, em
especial a localizada na “favela. A minha trajetória no campo foi aos poucos dando-
me evidência de que as complexidades a reger o universo Funk eram muitas para
que eu o atrelasse ao ambiente da “favela.

havia compreendido que um contexto bem circunscrito não me daria instrumentos
empíricos para conceptualizar a estética Funk. E foi por este motivo que Mr. Catra
me pareceu tão fascinante. Permitia-me conciliar o estudo do Funk com o desejo

não foi simples nem rápido. Evoluiu do mesmo modo lento, extenso e intenso com
que se desenrolou o meu trabalho de campo. E a maior resistência para que esta
121
transposição ocorresse foi-me dada pelas letras das músicas. Eram tão explícitas
que não podiam estar falando de outra coisa. A imersão no estúdio de gravação me
possibilitou ver que de fato não falavam mesmo de outra coisa. Falavam do mesmo
mas em outro registro, no registro da arte.
Percebo hoje que a dinâmica criativa Funk usa os símbolos da “favela,
assim como os da “pista, ou seja, as imagens que a “cultura” oferece, como uma
espécie de acervo imagético ou como um “conjunto instrumental”, a fornecer o
repertório sobre o qual o artista bricoleur trabalhará (Lévi-Strauss 1989). Ao invés
de a cultura explicar a arte, será a invenção da arte a permitir ver como a cultura
se “inventa”.
Vejamos a letra de uma música Funk para que eu comece a ilustrar o meu ponto.
FP me deu um papo
Deu um toque no radinho
Pediu uma XT
E também uma Dobló vinho
O bonde foi na pista
Nem quero falá mais nada
Me dá logo o segredo
Se não te jogo na mala
Os irmão ligado
Você vai  fudido
Se tivé cu criança
Tu vai passá batido
Já peguei sua chave
Seu segredo e o documento
Teu carro na Chatuba
Dentro do estacionamento
Se tu não ligado
Eu vou logo te explicar
Eu não tirei a roda
E nem tirei o ar,
Sabe por quê?
É encomenda, encomenda
Não podemos arranhá
Encomenda, encomenda
Passa teu carro!
Oi, é encomenda, encomenda
Não podemos arranhá
Ah!, é encomenda, encomenda
Passa a tua moto pra cá
FP me deu um papo
Deu um toque no radinho
Que qué uma Hornet
E uma Dobló vinho
122
Nosso bonde foi pa pista
Todo boladão
Foi com vários bicos
E um carro sangue bom
O bonde revoltado
Eu não quero briga
essa vai pu Jansen,
FP e pu Naíva
Oi, oi mano Pufa
Mano MK
O bonde perverso
Pronto pa te derrubá
Se liga no papo reto
Tu vai passá mal
O bonde partindo
pu Banco Central
Manda o dinheiro todo
Preste atenção
Oi esse é o novo funk
Eu mando no cha...
É encomenda, encomenda
Não podemos arranhá
Encomenda, encomenda
Manda seu carro pra cá
Se tu não se ligou
Ou se tu ainda não viu
Fecharam a Marechal Rondon
E fecharam a Brasil
Os moleke bolado
Olha aqui tu não se mete
Trouxeram uma Pajero
Um Corolla e uma Hornet
O bagulho é doidão
Vê se experimenta
O bonde vai na pista
Mas só pega de encomenda
É encomenda, encomenda
Aí?!
Aí eu te explico
Se liga aqui, ó
O bonde já deu o papo

Se tivé cu criança
Tu vai passá batido
123
Que o bagulho é doidão
E os moleke tão bolado
E quando vão na pista
Só pega encomendado
É encomenda, encomenda...
É encomenda, encomenda...
Aí vem assim, ó
A pedido do FP
Pra toda a rapaziada
Chegando no Chatubão
Atividade dobrada
A pedido dos irmão
Pra toda a rapaziada
Chegando aqui no Complexo
Atividade dobrada
De dia, até de tarde
De noite, de madrugada
Chegô aqui no Complexo
Atividade dobrada
2
Temos nesta letra diversos elementos, representações que remetem a
esferas do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e a algumas de suas localidades.
A sua narrativa nos conta sobre a ação de um “bonde”, neste caso um grupo de
bandidos, que vai até a “pista, o espaço exterior à favela, roubar carros e motos,
em sua maioria de marcas estrangeiras, encomendados pelo chefe do bando.
Nos fala de um universo que, assim como a música que o narra, se constrói por

que se dá o encontro, mas que se alimenta dessa mesma “pista, de seus elementos,
dos objetos e imagens ali colhidos, para se inventar.
A música que reproduzi acima é um Funk Proibido. De modo sintético,

crime organizado nas favelas, ao enaltecer o nome de seus chefes, ou tematizam
as relações com o inimigo, que pode ser a facção criminosa vizinha, ou o inimigo
comum, a polícia. Estas canções são assim prescritas pela polícia e fontes indicam
ter sido ela mesma a criadora do termo.
3
Mas, da perspectiva dos funkeiros, estas
músicas podem ser chamadas “Funk de Contexto, o Funk que versa sobre a
“realidade” da vida na favela. Este dado não é pouco importante, pois os funkeiros
muitas vezes têm a percepção de que não é apenas proibido cantar sobre o que é
2 Toque no Radinho, de MC Frank. Faixa nº21 do CD 1 anexo.
3 De acordo com a declaração do delegado de polícia no documentário Mr. Catra, o Fiel.
124
legalmente proscrito, mas sobre uma assimetria de poder que envolve a relação
dos habitantes da favela com a polícia e sobre a qual a sociedade formal não teria
interesse em ter conhecimento. É por este motivo que Mr. Catra me disse que faria
um disco chamado “Papo Reto não é Proibido, querendo dizer com o título que
falar “a verdade dos fatos”, o que acontece no dia-a-dia da favela, não pode ser
considerado ilegal.
Pinta um na sua frente
Abordando o negão Sebá
Pergunta se está portando
Por isso vai lhe revistar
Ofendem, são intolerantes
Marginalizam só para variar
Dizendo favela é local suspeito
Por isso vai lhe interrogar
Responde Sebá...
Meu movimento é político-social

Meu movimento é político-social

Vem comigo...

Desentoca dessa
Marca atividade
O negócio é plantar pra colher
Tem peito, tem branco, tem mofo, tem sim
Empenhado no seu bem-estar
A favela é socialista
Me deu overdose de consciência
Religiosidade, Fe em Deus
Trazemos no coração
Paz, justiça e liberdade
Guerra pelo bem e sem desunião
E responde Sebá!
Meu movimento é político-social

Meu movimento é político-social

Vem comigo...
125

Desentoca dessa
Marca atividade
O negócio é plantar pra colher
[Essa parada. Sem neurose. Taí. Isso daí é a realidade do cotidiano. De vários cidadãos
que infelizmente habitam em nossas favelas]
4
Outro traço fundamental do Funk Proibido, que teve seu auge na segunda
década dos anos 1990, é o fato de este possuir circulação restrita não apenas por
ser prescrito pela polícia mas por ser este, a princípio, o intuito de seus produtores.

músicas criadas para serem executadas nos chamados “bailes de favela, de e para
a favela, como uma conversa interna que não deveria ter “saído para fora. Mas,
como disse Jota, “não tem jeito”: é próprio da música vazar, “romper barreiras”. E
como o próprio Kapella reconheceu em outro momento, “antigamente” fazia-se um
Proibido e a música “virava no dia seguinte”, fazia sucesso imediato fora da favela.
Portanto, o Proibido era um modo de comunicação consciente com a sociedade
como um todo. Eu argumentaria, assim, que o “romper barreiras” não se dá por
uma causalidade natural da música, mas porque está no âmago do Funk e ocorre
por intenção de seus produtores. Uma intenção de subversão que se manifesta
esteticamente e está a serviço da conectividade.
Ao mesmo tempo em que a conversa que o Funk Proibido estabelece possui
caráter endógeno e se engendra por oposição à “pista, ela necessita do outro e da

do Proibidão se desse de modo restrito ao ambiente interno à favela, a dinâmica de
sua criação permaneceria necessitando do mundo exterior e dos elementos a ela
associados para se estabelecer. Portanto, os dois mundos estão incondicionalmente
comunicados, sem contar que não é preciso muito esforço para se ter acesso a estas
canções. As mesmas podem ser adquiridas no comércio informal carioca, mesmo
que a sua negociação assuma caráter sigiloso, e seja, pela lei, proibida. Desse
modo, retornaria aqui à ideia de que o Funk correria paralelamente ao mundo

que foi tangenciado por Hermano Vianna quando chamou atenção para os traços
antropofágicos que teriam os funkeiros (Vianna 1988:101), foi mais propriamente

o Samba (Vianna 2002 [1995]). Sugiro, entretanto, que esta ideia é fortemente
compatível com o universo em que pesquisei.
O Funk Carioca, mesmo que apresente uma estética do choque que rompe
com a malemolência da malandragem e da não ruptura mais própria ao Samba,
como chamaram atenção alguns autores (Herschmann 1997; Coelho 2004),
4 Sebá, Mr. Catra. Faixa nº22 do CD 1 anexo.

mantém como concomitante estratégia de ação a troca com essa sociedade exterior.
A conceptualização da sociedade formal em seu sentido durkheimiano possibilita
que a estética Funk se engendre de modo a mostrar menos como ela se impõe ao
indivíduo e mais no intuito de evidenciar como é possível ultrapassá-la como força

uma escolha e permite ao artista Funk de fato não fazer parte dela, mas participar
da mesma apenas parcialmente. Esta concepção de sociedade como exterior ao
coletivo por sua vez informa igualmente a habilidade que os sujeitos criativos
Funk possuem na manipulação das relações com os de fora de modo a atualizar
essa relação simultaneamente independente e dependente que o Funk constrói.
Essa “a sociedade” pouco inclusiva é tematizada explicitamente pelos Funk
Proibidos, alimentará a Putaria e será relacionada de modo mais ambíguo por meio

os DJ Edgar e Sany Pitbull e o empresário Juninho, para citar apenas alguns com
os quais trabalhei ao longo da pesquisa de campo, jamais viveram à margem da
sociedade formal, mas se aproximaram da “favela” na própria constituição do Funk
Carioca. É preciso notar que Catra, Sany e Edgar são expoentes do Funk ativos em

associada ao “mistério” que constituiu o Samba enquanto as músicas dos bailes
permaneceram sendo representadas como “música de gueto.
5
Se a expressão é
utilizada pelos artistas Funk, isto pode se dar muito mais pelo poder de atração que
a favela exerce como um todo do que por sua exclusividade na produção do gênero
musical. Evitar a cristalização que o representacionalismo ofereceu faz parte do
mesmo ponto que persigo, o de descolar a apreensão do Funk de uma explicação
social ou mais propriamente sociológica. A partir dos anos 1990 não se pode mais
apreender o mundo Funk e a engrenagem que ele coloca em funcionamento como
“um movimento de mão única, um mecanismo antropofágico mas que nada devolve
ao mundo (Vianna 1988:102). Ele não apenas devolve ao mundo as músicas Funk
que passaram a ser criadas na virada da década de 1990 como articula diversas
esferas da sociedade.
O Funk Carioca é produto desse ir e vir entre sociedade formal e informal do
qual Catra é nesse sentido um expoente. Esse espaço ambíguo, que Vianna (1988)
sugeriu chamar de “Quarto Mundo, une não apenas “pobreza e alta-tecnologia
(Vianna 1988:109), mas se constrói através de uma retórica do englobamento
do seu contrário que na prática não se concretiza. Daí a produção de um senso
5 Um exemplo do poder totalizador que muitas vezes se outorga à favela na produção da
música Funk Carioca é o modo como o interessante documentário Favela on Blast retrata a
individualidade artística de diferentes MCs e DJs do gênero musical que entrevista vinculando-
os ao espaço da favela e suas associações com a escassez e a violência que caracterizariam o
cotidiano de seus moradores.
127
estético que é duplamente próprio do Funk e pautado pela similitude. Diferentes
mas iguais.
Reproduzo agora outras duas músicas, para seguir ilustrando o meu ponto.
As duas letras são de músicas que resultam de leituras e re-leituras de outras
produções Funk, de modo que o exercício de devoração do outro permanece
atuando internamente. Estas composições ilustram de modo acurado a maneira
pela qual a dinâmica que rege o processo criativo funkeiro se assemelha a uma
usina de imagens, colocada em movimento por meio de processos miméticos que
se constroem por oposição e simultâneo englobamento do outro. Mas agora o
outro não está mais fora e sim ao lado.
Sai da frente
Lá vem eles minha gente
Agora o chumbo é quente
Eles têm toda razão

Se não quiser virar defunto
Ir pra Cidade dos Pés Junto
Dentro de um lindo caixão
Um perdeu querido pai
O outro perdeu o irmão
Os dois querem os bandidos
Pra levá-los à prisão
Se os bandidos resistirem
atirarem de repente
Se sarve quem puder
Porque daí é chumbo quente
Atenção
Sai da frente
Porque nóis não é a gente
Na Mangueira o chumbo é quente
Eles têm toda razão

Se não quisé virá peneira
Esse é o bonde da Mangueira
Esse é o bonde do Gordão
Chumbo Quente, de Leo Canhoto e Robertinho, em versão remix feita pela equipe Furacão 2000.
Faixa nº23 do CD 1 anexo.
128
ADA perdeu o pai
O treis cu perdeu o irmão
Porque aqui é nóis à vera
É os Quarenta Ladrão
Nosso bonde é chapa quente
Só bandido prepotente
Se salve quem puder
Que na Mangueira o chumbo é quente
Vai
Vamos
Saiam todos da minha frente
Sai da frente, já disse
7
A primeira música é de uma dupla sertaneja da cidade de Goiânia, formada

montagens “Homem Mau” e “Jack Matador”. De nome Chumbo Quente, sua melodia
é cantada com um sotaque
peculiar, como o de um vaqueiro de uma área rural e interiorana, o que concede
certa graça à produção. Esta já é uma versão remixada. Recebeu batidas Funk e
samplers que reproduzem o som dos tiros de armas de fogo, o chamado “ponto de
tiro. Mas esta música jamais foi considerada um Proibidão.
A segunda música é um Funk Proibido e resulta da subversão da anterior,

de ações ilícitas em uma favela carioca, a Mangueira, e possui uma outra versão, que
enaltece a mesma favela da Chatuba, do Complexo do Alemão, no bairro da Penha,
mencionada no Proibidão Toque no Radinho, mais acima. Mas diferentemente da
música que lhe inspira, que fala da “bandidagem” de modo essencialmente cômico,
não há humor em sua narrativa. Além disso, para quem compreende o dialeto
próprio às facções, ela discorre explicitamente sobre grupos criminosos rivais e
seus principais chefes. Ao falar que “nóis não é a gente” o MC está se distinguindo
de seus antagonistas. “Nóis” é o termo que os membros da facção criminosa
Comando Vermelho utilizam para se auto-denominarem, enquanto “a gente” é
o termo correspondente utilizado por um dos bandos rivais representado na
música, o Amigos dos Amigos, ou ADA (leia-se a-dê-a). O Terceiro Comando, outro
7 Chumbo Quente Treis Cu, artista desconhecido. Faixa nº24 do CD 1 anexo.
129
bando rival, é denominado “treis cu” na música.
8
É interessante notar que as três
músicas que expus acima nos permitem visualizar a vida destas pessoas como se

aparece recorrentemente nas falas nativas. Mas estas narrativas descrevem o outro
inimigo mais como um rival que estimula a disputa, do que como ameaça disruptiva.
Estas músicas, ao nos oferecerem a possibilidade de pensar o mecanismo de

entre as castas na Índia, onde a oposição entre o puro e o impuro seria o princípio
ideológico do sistema (Dumont 1992:83), mostram-nos como o “englobamento do

Funk. O conteúdo semântico de suas letras imagéticas produz uma hierarquia
expressa pelos objetos materiais, pelos bens de consumo elencados ao longo da
narrativa. Novamente, esta hierarquia não é denunciada para ser desfeita, mas é
exposta como o mote da própria dinâmica cultural e artística.
9
Os objetos materiais estão presentes no Proibido que abre este capítulo,
naquele transcrito imediatamente acima e continua ilustrando a maquinária
criativa Funk na música abaixo. A letra desta concede igualmente destaque
diferenciado às imagens artefatuais e suas marcas, e indica a recorrência de uma
relação ambígua com o mundo oficial que ao mesmo tempo renega o “asfalto” e
dele se alimenta. A versão que apresento é de uma gravação ao vivo, o MC que
“puxa” a letra faz uma pequena introdução.
[Essa daqui é pros cinco sete do bagulho, ligado? Os moleke boladão que vai lá fora
buscá. Lá no Centro, lá onde o couro come e ninguém vê, ligado?].
Bolado à vera, maior resignação
Ontem eu tava durinho
Hoje chei’de milhão
Por que?
8
pronunciadas e escritas. O termo “nóis”, por exemplo, é escrito precisamente desta forma. Como
me disse o DJ Ratinho, não se escreve “nóis”, como outros termos, por desconhecimento de um
modo correto de se escrever, mas sim porque trata-se de uma “palavra outra, ainda que seu


Mr. Catra o Fiel (2007) que hoje são falados dois
idiomas no Rio de Janeiro, o do asfalto e a da favela. A última é designada como “favelês” pelo
O preto em movimento. Eu mesma, no início do

porque não dominava o assunto tratado mas porque ignorava muitos dos termos empregados e

9 Lagrou, a propósito dos povos de línguas pano amazônicos, nos fala de um modo não-dicotômico


pensamento e na ação existem para serem dissolvidas (Lagrou 2001:105).
130
Se é pá roubar, irmão
Não deixe pra depois
A Mangueira é cinco sete
Cinco sete é vinte dois
Bolado à vera, maior resignação
Ontem eu tava durinho
Hoje? Chei’de milhão
Se é pá roubar, limpo
Eu não deixo pra depois
CDD é um cinco sete
E o Mangueirão é vinte dois
Civic, Honda, trago Audi, S10
Osklen, Cyclone, ando de Nike nos pés
Aquele Citröen Brasil que é demais
Cinco sete boladão, só anda de boné pra trás
O cinco sete não dá boi para ninguém
Falcon, quinhentas, tem CB também
Tu 
Com carro importado aqui no Morro da Mangueira
Se vacilar, sangue, você não vai ter nada

Aí maluco, ninguém vai mais te ver
Foi o cinco sete que baleou você...
10
O MC “puxador” chama então Mr. Catra para fazer uma participação,
pedindo a ele para “mandá o refrão. Dono de uma voz rouca e melódica e que
graças a sua peculiaridade faz interessante contraste com outras vozes Funk, Mr.
Catra faz esta sua participação entremeada por risos e gargalhadas, e em sua voz
pode se adivinhar o tom jocoso de sua performance. Ele canta,
Civic Honda [ha, ha, ha]
Civic Honda...
Humildemente...
A minha boca é sinistra
Vende vários papéis [ééééé]
Humildemente
De 5 e de 10
Humildemente, eu vou dá um papo
Preste muita atenção
Eu vou dá uma ideia
Só pros bondes de ladrão
10 Cinco sete, um cinco sete e vinte dois são, respectivamente, referências aos artigos do Cinco sete, um cinco sete e vinte dois são, respectivamente, referências aos artigos do
código penal que concernem os crimes culposos de trânsito, o roubo envolvendo violência ou
impossibilidade de reação e o crime de coação irresistível e obediência hierárquica.
131
O bonde é sinistro
Com... ninguém se mete
Já falei
É o Bonde do cinco sete
Humildemente na onda
Eu vou falá pra você [ha, ha, ha]
A gente sai pa pista pode crê

Ha! Não dá não
A gente rouba burguês
Gaúcho e rouba patrão
Na rua é a gente que manda
Tu sabe como é que é
O bagulho é disposição
No nosso bonde não cola mané, então
Civic Honda, trago Audi S10...
(falando apenas, sem cantar)
Vou te dizer humildemente
Meu Nike tá no pé
Baseado na boca
Humildemente? Uísque e Red Bull...
11
Mr. Catra e o Funk – alterando a cultura
Mr. Catra introduz o riso, ausente até então nas outras músicas de Funk
            
sociedade” à qual o artista e o Funk se opõem de modo ambíguo, conectivo.
Mr. Catra já foi um dos nomes mais representativos do Funk Proibido, em
uma época em que, me conta, havia “ideologia envolvida, ideologia do coletivo, e
ser MC de Proibido era um “estilo de vida”.
Nunca deixei de cantar Proibido, só que eu sempre cantei Proibido
com ideologia, então eu não cantava Proibido, cantava um canto
revolucionário. Hoje eu sei que eu nunca cantei Proibido, eu
sempre cantei Revolucionário, Funk Revolucionário.
Pergunto-lhe então o que o levou a “abraçar esta causa”, já que Wagner,
como é chamado no ambiente familiar, não teve uma infância dura, nem passou

11 157 Mangueira, com Mr. Catra e outros. Faixa nº25 do CD 1 anexo. “Uísque e Red Bull” refere-se
a uma beberagem excitante e estimulante, bastante consumida entre os funkeiros e resultante da
mistura da bebida de origem escocesa com alguma bebida energética, cuja marca mais conhecida
é a Red Bull.
132
a buscar uma vida outra. Este “ponto de vista” que o corpo lhe concede parece-
me uma chave importante, especialmente porque questões de cor raramente são
mencionadas e desta vez foram expostas em um momento em que conversávamos
a sós, na sala de sua casa, o que era uma rara oportunidade. As crianças maiores
estavam na escola e Regina se recuperava no hospital de um mal-estar que sentira
em função de sua gravidez. Catra elabora a “perspectiva do corpo” de um modo
que desloca a discussão das questões de “raça, como categoria de pensamento
sócio-antropológico, promovendo a sua desessencialização. Como ele mesmo
diz, “estamos nos anos 2000” e não será mais através de um discurso explícito da
denúncia que se chamará atenção para as discriminações que a cor da pele gera.
Havíamos deixado o estúdio após Mr. Catra ter dito para os músicos e
outros ali presentes que iria até a sua casa, em terreno adjacente, comer algo.
Já passavam das quatro horas da tarde e ele precisava, disse, aplacar a fome
repentina que lhe acometera. Mr. Catra chama-me então para acompanhá-lo.
Ele sabia que eu queria conversar e ele mesmo me avisara, em minha chegada,
que estava com especial vontade de falar. Saímos do estúdio e fomos andando
pela calçada gramada. Uma pequena multidão se formava ali. Pais, muitos deles

próxima. Aquela aglomeração chamou a minha atenção e Catra, talvez por isso,
me disse que aquela escola vizinha pesou na escolha daquela casa para viver. Eu
lhe disse que também gostava muito do alarido de crianças brincando em pátios
escolares, como eu mesma tivera nos fundos de minha casa.
Entramos pelo jardim e Nina, então com três anos e a menor da casa, veio
até nós. Fomos passando pela cozinha e, já sentados na sala de estar, Wagner pede
à Célia, a empregada, que lhe traga algo para comer. Célia lhe traz um pedaço
de bolo e aproveita pra dizer à menina que saia de meu colo. Eu disse que não
havia problemas, mas Célia insistiu, acreditando que a pequena atrapalharia
a conversa. Catra estava de fato inspirado para falar e talvez por estar já muito
ciente de que poderia fazer declarações que pudessem comprometer a imagem
do artista, controlava, com o timbre de sua voz, a capacidade de registro de meu
gravador digital, programado para, na ausência de voz ou na presença de sons
inapreensíveis, provocar uma pausa na gravação. Catra, conhecedor de sua voz
e dos equipamentos de captação de som, aproveitou sua habilidade para falar e
evitar o registro. Eu disse-lhe que ele precisava falar mais alto, porque ele falava
coisas importantes e assim nada seria registrado. Ele me respondeu, com um riso

“mística do Catra” poderia passar. Eu lhe perguntei se ele não cogitava o fato de as
ambigüidades que me revelava poderem depor a seu favor. E ele me respondeu:
“não existe gangster playboy”.
133
A inquietação que este duplo pertencimento parece gerar, e que surge no
           
“playboy”, do “favelado” e da “sociedade”, presentes tanto nas falas cotidianas
como na música Funk como um todo. Catra me disse, nessa mesma conversa, que
é “um playboy fudido, se referindo ao fato de nunca ter sido “favelado, tornando
evidente a oposição entre um e outro personagem. O “playboy”, se não está tão
presente nas letras das canções, é representação onipresente nas falas dos jovens

            
palavras de Tábata, eles são “os boys da Sul”, os garotos bem nascidos da Zona Sul,
área privilegiada da cidade. Karla, moradora do Morro do Cantagalo, localizado na
Zona Sul entre os bairros de Copacabana e Ipanema, aprofunda a oposição ao dizer
que “no morro não tem playboy”, e que “mesmo tendo condições ele não é playboy,


outros gêneros musicais, devendo-se notar que o modo como ele se relaciona com

mais incorporando músicas do gênero em suas performances. Catra responde que

  
após um dia bastante intenso no estúdio. Era o início da noite e ao contrário do
modo como se deu a entrevista anterior, a casa estava movimentadíssima. Vários
músicos aguardavam por ele na varanda que separa a sala do jardim, inclusive
Black Ney, que esperava com seu agente pela oportunidade de entabular uma
conversa apaziguadora com Catra. Regina se arrumava para ir com as crianças à
“igreja, na verdade o “templo judaico” comandando por um “pastor”, localizado nas
imediações de sua casa, e se fazia presente através de pequenas interrupções, fosse
para falar com o marido ou para dar sua opinião em relação ao que conversávamos.
É muito interessante observar como Catra explicita a possibilidade que
a “cultura” Funk lhe concede de ele se fazer através dela ao mesmo tempo que
o permite “alterá-la”, bem aos moldes da dinâmica que, segundo Edward Sapir
(1949), viabiliza a constituição de uma “cultura autêntica” e a pessoa individual
que lhe corresponde.
Vou falá legal. Eu me considero funkeiro. É o som que me lançou,
           
que eu tenho liberdade para mexer. Do beat, até a dança, até
as levadas, até o  (...) Foi a cultura que me abraçou, que me
adotou. E se hoje eu tenho alguma coisa é graças ao Funk. (...)
É a minha cultura de verdade, porque eu faço do meu jeito, do
jeito que eu quero fazer. Do jeito que a minha cultura me aceita.
134
Porque a minha referência no Funk sou eu mesmo. Escolhi [o
Funk] em primeiro lugar porque é o lance mais autêntico pra
se fazer. Eu sabia que se eu fosse alguém dentro desta cultura
eu não seria mais outro. Eu seria alguém. Se eu fosse alguém na
cultura do Samba, eu seria mais um do Samba; do Rock, eu seria
mais um do Rock; do Rap, eu seria mais um do Rap. Você não tem
espaço para sobressair. Não tem como inventar um Samba novo,
um Rock novo.
E quando lhe pergunto porque não escolheu ser “playboy”, ele diz:
É mais maneiro ser funkeiro. Porque [sendo] playboy, você só
é playboy. [Sendo] funkeiro você é ídolo. É melhor você dançar
conforme a música, ou você fazer a música pra você dançar?”
Não é que Catra não tenha sido “playboy”, mas ser funkeiro lhe permitiu ser
“playboy” ao seu jeito. Um “playboy gangster”, como ele disse.
Catra confunde, subverte os papéis. Se ele é “playboy”, cantará em nome da
favela, mostrando que “favela também é arte”, como ele diz em uma canção, levando
“cultura” para as favelas.
12

música Sebá, “é cultural” e seu “movimento é político-social”. Esta possibilidade
que a história pessoal deste artista lhe oferece, como a de assumir tão diferentes
pontos de vista, lhe permitirá fazer pontes entre mundos, pinçando daqueles pelos
quais circula os símbolos com os quais jogará, manipulará, conectando mundos
supostamente não-comunicáveis. Foi isto que seu pai Edward lhe ensinou a fazer,
misturas e mediações de um modo que, acredita Catra, é mais próprio ao negro.
Daí seu pai ser “mais preto do que muito preto, pois possui, como poucos, as

ambiguidade, justaposição e ironia” que os “funkeiros (...) parecem cultivar”, como
bem notou Herschmann (2000a:114). O Funk revela como a arte é expressiva do que
Gregory Bateson (1973) chamou de “graça” ou “integração psíquica, localizáveis
não em seu aspecto representacional mas na “informação psíquica” implícita em

É a partir da integração entre mente e corpo, como proposta por Bateson,
que Tim Ingold (2000) define o conceito de skill, habilidade uma “forma de
conhecimento” e uma “forma de práxis” [form of practice
a segunda das cinco de suas dimensões, através da qual o autor, ao criticar Marcel
Mauss, postula que “a habilidade [skill] não pode ser vista simplesmente como uma
técnica do corpo” (Ingold 2000:352) mas como uma propriedade “do campo total de
relações constituído pela presença do organismo-pessoa, indissoluvelmente corpo
12 Favela também é arte
135
e mente, em um ricamente estruturado ambiente” (Ingold 2000:353). A partir do
estudo das comunidades de caçadores e coletores, o autor desfaz as separações
entre tecnologia, técnica e meio ambiente, nestes incluídos as relações sociais, de
um modo que me remete ao Funk, resultado de habilidades que tanto produzem a

O sucesso de seu modo de vida depende de suas possessões de
        
como propriedades de pessoas, desenvolvidas no contexto de seu
envolvimento com outras pessoas ou agências pessoa-similares
[person-like agencies] no meio ambiente, as habilidades técnicas
são em si constituídas dentro da matriz de relações sociais.
(Ingold 2000:289)
Catra diz que desde “moleque”, com cerca de onze anos, sabia que seria
músico. E foi na escola que montou sua primeira banda, de Rock, que se chamou “O
Beco. O Rock, era para Catra “a cultura mais maneira do Brasil”. “Escutava tudo” e
“gastava muito dinheiro com discos”: “Ojerizah, Picassos Falsos, Biquini Cavadão,
Ultraje a Rigor, RPM, Ira, Garotos Podres, Replicantes, As Mercenárias, Kid Abelha,
Lobão. Mais tarde ele formou o grupo de Hip-Hop “O Contexto. E depois, continua,
“o Funk veio e me adotou”. Foi através do MC Duda do Borel, a quem conhecia
“desde criança” da área onde ambos viviam, que Catra chegou ao Funk. Duda desfez
a dupla de MCs que formava com William, e lhe “ofereceu” o Funk. Formaram com
outros músicos o grupo Caravana do Borel, que durou pouco tempo.
Gosto de cantar pros manos
Muita gente não sabia
É no Morro do Borel que eu faço
Rap na marizia
E na Indiana, shock
No prédio Maracaí
Quando eu rolo pra você Ratinho
Rola para mim
Não é melhor e nem pior
Não temos pena, não temos dó
É lá de Pernambuco, é o bom
É da Cabrobó
Hey, lá, hey lá...
No Morro do Borel

Formiga, Usina e Catrambi

Se liga de processo
Esse rap está demais
Como diz o Pensador que veio
Com o cachimbo da paz
E continua a queimação
O half vai rolando na minha mão
Depois que eu torrar
Eu canto para os irmão
Hey, lá, hey lá...
No Morro do Borel

Formiga, Usina e Catrambi
Um alô para os funkeiros
E orgulho em ser negro
Foi no Morro da Barão
Que eu conheci o ouro preto
Termino esse rap, shock

Sou do Morro do Borel
Sou eu Duda MC
Hey, lá, hey lá...
No Moro do Borel
Chapadão na rua São Miguel e na Conde Bonfim
Formiga, Usina e Catrambi
13
Pigmeu, empresário atual de Catra, já trabalhava no meio, inclusive com
Duda, e disse a Catra que quando ele decidisse seguir carreira solo no Funk que
o procurasse. Pigmeu, conta-me Catra, foi o primeiro empresário de Lobão e Lulu
Santos, respectivamente cantores do Rock Brasil e do Pop Nacional, além de ter
sido o DJ do debochado Chacrinha, apresentador de um programa de auditório da
TV Globo, na década de 1980.
Uma nova tarde no estúdio da Sagrada Família, com uma breve passagem pela
casa de Regina, reiterará a constante busca de Catra pelo caminho da ambiguidade,
da não explicitação e do não-confronto. Através do processo de tradução da letra
de uma música Funk produzida em contexto estrangeiro, anteciparemos a discussão
sobre o duplo-sentido mostrando-o como recurso fundamental para a mediação e
notaremos a relevância que a oralidade 
se seguem oferecerão uma interessante ponte para tratarmos do sub-gênero Putaria.
Regininha estava com cerca de vinte dias e a atmosfera da casa, clara e
com as janelas abertas, já era bem diferente da que se formava na última vez em
que eu lá estivera, de pouca luz e introspecção, necessárias à recém-nascida e
complementadas pela chuva. Catra recém chegara da praia e circulava de sunga em
13 Rap da marizia, Mr. Catra e Duda do Borel. Faixa nº27 do CD 1 anexo.
137

lateral traseira. Viera acompanhado do rapaz muito claro, sem cabelo na cabeça e de
corpo roliço que se sentava ao sofá lateral. Era Sapinho, como supus, o carioca que
se mudou para Israel há cerca de dez anos e de policial passou a MC de Funk Carioca.
Fazia a sua visita anual ao Brasil, oportunidade para que ele e Catra atualizassem
sua relação de parceria, iniciada quando este esteve em Israel no ano de 2001.
Quando entrei pelo portão da casa, os cães, soltos para que o canil fosse limpo,
escaparam, entraram na casa adjacente e supostamente atacaram os cães vizinhos.
A dona destes estava agora ao portão querendo tirar satisfações e era atendida
pela funcionária da família. Catra se postara à janela de casa para acompanhar de
longe o desenlace da confusão, ladeado por Sapinho. Eu, que já havia passado por


observando o bate-boca à distância. Sapinho diz à Catra que ele terá que pedir
que prendam os cachorros, pois tem medo deles e não sairá da casa enquanto
estiverem soltos. Regina desce as escadas de seu quarto e, com olhar altivo e certo
desdém, passa por nós, sai pelo jardim e desfaz o mal-entendido, enquanto os dois
homens olhavam e davam ordens da janela. Sapinho se mostra admirado com a
coragem de Regina e quando ela entra de volta à casa diz que ela é “palestina,


Sentado novamente ao sofá, Sapinho fala em tom alto que Regina deveria
falar para Tábata voltar para casa, pois Karla já não está na praia e Regina não pode

ferver com um sol daqueles”, fazendo um trocadilho com a gíria “ferver” – que se
refere aos excessos no comportamento – e o calor excessivo que fazia na praia.
Solidária, comento com Regina se por acaso uma moça de quase dezessete anos

sentado ao sofá grande, de frente para a televisão, e apenas escuta a conversa.

mescla irritação e deboche, diz “pois é, [azul] igual ao pai dela. Sapinho não desiste

“mais colado nele”, para orientá-lo. Sapinho está também preocupado com a chave

que aquele houvesse se dado conta.
Pergunto a Sapinho se ele vive há muitos anos em Israel, e ele me responde

ser íntimo de Mr. Catra e de sua família como um todo. Ele me pergunta então se
sou judia, e eu respondo positivamente, sem que minha resposta pareça a ele uma
138
novidade, ainda que verbalmente ele expresse que sim. O que penso era novidade
para a família foi o fato de eu ter vivido cerca de dois anos em Israel, como expliquei
em resposta à pergunta de Sapinho, relatando os lugares por onde morei. Catra
continuava quieto, aparentemente assistindo a uma luta na televisão.
Catra começa a se movimentar para ir para o estúdio. Sai pelo jardim
enquanto veste uma t-shirt branca com dizeres em preto, da RapSoulFunk, a
empresa que gerencia artistas de Hip-Hop e Funk e com a qual ele tem conexões.
No Rio a RapSoulFunk está a cargo de Juninho, compadre de Catra e Regina, e em
São Paulo é tocada por Primo Preto, a quem Catra conheceu ainda quando cantava
com Dr. Rocha. Catra conta-me um tanto maravilhado que o “parceiro”
            
Brandão. Um é preto e o outro branco, ligado? Muito louco! O
Primo Preto faz paradas de Funk, Hip-Hop, enquanto o Branco
Mello é Rock n’Roll.
14
A admiração de Catra expressa o modo como ele aprecia os jogos contra-
intuitivos que a cor da pele pode oferecer. Não lhe agrada cristalizar na aparência

Preto, são negros e escolheram o Rap, mas como Primo Preto, vieram ambos de
famílias em que conviviam brancos e negros. Como ele mesmo de um certo modo
           
negro” não teria contribuído pra a sua escolha: “É, mas eu fui criado numa família
em que meu pai não era negro. Meus irmãos não eram negros”. O que lhe interessa
é esta possibilidade de equivocar o outro com a sua própria aparência e brincar

mas em torno de sua conjugação com classe social e educação formal. E isso ele
fará magistralmente no palco, ao executar as paródias musicais.
No estúdio Buiú já está a postos. Sentado à mesa de gravação, o jovem
DJ tem entre as mãos uma MPC, uma “drum machine”, que até então ele jamais
manipulara. Conforme testa os pads, as teclas que pressionadas emitem o som dos
samplers
desorientado com tanta novidade, desabafa: “É muita informação, mané”. Catra ri
de seu comentário e lhe diz que ele vai ver o que é “muita informação” quando
estiver no palco com “aquele montão de mulher” gritando à sua volta e ele tiver
que improvisar ao vivo. Buiú até então trabalhara na manipulação de sons por
meio do uso de computadores portáteis.
Catra está sentado à direita de Buiú, afastado do DJ, e eu me coloco recuada,

14 Branco Mello é um dos componentes do grupo de Rock paulistano Titãs. Branco Mello é um dos componentes do grupo de Rock paulistano Titãs.
139
partido, o único disponível. A tarde será dedicada às produções de Sapinho, em
especial o rap que fez recentemente e que a turma ainda não conhece. Ele canta
a letra, acompanhado de uma base formada por um beatbox de Catra e um
Tamborzão, colocada por Buiú.
Eu falando dos HB
Que agora eu vou quebrar
Pra quem não sabe o que é HB
É os homem-bomba boladão
Querendo se explodir
Por causa de uma facção
Não acreditam em Eloym
E nunca terão perdão
Eloym achi chashuv
15

Eu fui orar no muro
E vi meu sonho se realizar
Eu acho já na hora
De nóis botá a chalifá

Pa nóis ir naquele lugar
Botar as mina pra nha, nha
Pra você me conquistar
E poder me convencer
Você vai ter que me mostrar
O que é o prazer
Eu sou rato de Israel
Já peguei as muçulmana
Agora vou botar
As palestina aqui na cama
Elas sabem muito bem
Que o meu bonde é só blindão
Eu vou meter com elas
De colete e cinturão

Vários toques pros irmãos
Daber she zé anachnu
17
E um grande shalom



cujo emprego ultrapassou seu contexto original e é utilizado como modo de reconhecimento

140
Esse papo que eu te dei
É a pura realidade
Vem pra cá pra Israel

Pois a onda do momento
Agora vou te falar
É o retorno de Jerusa
E o pitch chamudá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá.
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá
18
Sapinho transpôs para a “realidade” israelense a lógica cantada nos
Proibidões do Funk Carioca que opõe as facções criminosas no Rio de Janeiro e quer
agora executar a música com Catra no Brasil. Mas Catra não está interessado nas
polarizações e sim nas ambiguidades e na mediação que elas oferecem. Ele refaz a
letra com a ajuda de Dr. Rocha, que a reescreve em uma folha de papel, corrigindo a

o intelectual do grupo, como é Catra também. Mas de um modo outro. É como
se ele fosse o duplo do cantor, cuidando para que as ideias que compartilham


estava lá, presente e fazendo algumas intervenções. O mesmo se deu quando eu
conversava a dois com Kapella e em outros momentos. A sua presença só fui notar
no processo de escrita, ao escutar as gravações em áudio que a subsidiou. Rocha,
ainda que pouco ativo em sua faceta artística, é muito mais do que o administrador
do estúdio.
Contrastando com a voz acelerada do ex-policial, que se defende dizendo
que não está “mentindo, Catra argumenta pausadamente que “você não pode fazer
isso, pois temos no Brasil “uma comunidade árabe gigante”. Sapinho continua
dizendo à Catra que “dos HB” ele “tem que falar” porque é “a realidade”. Ao invés
de discutir Catra lhe fala “olha só, e com humor vai amenizando a letra da música:
“Pra quem não se ligou / Uma pista eu vou te dar / Pra comer quarenta minas /
Não precisa se matar”. Eu demoro a me dar conta do que fala e pergunto “porque
quarenta minas?”, e Sapinho logo explica que a “realidade dos palestinos” é que
se “explodem” porque “lá no além vai todas esperando por eles”. E eu digo, “ah,
as virgens”, e Catra então dá o seu parecer: “Porra, que merda. Pegar quarenta
cabaços. Que problema.... Eu rio, e ele se acaba de rir, perguntando a Rocha se

141
“tem seda aí?”, que responde negativamente e acrescenta que “os cara já se mata
pensando em arrumar mulher no Além. Catra aproveita a deixa do parceiro e
continua: “O problema é mulher a vida inteira pra [ainda] se levar na morte. Além
de ter problema com mulher a vida inteira, ainda arruma problema depois da
morte. Pô, [a pessoa] vai morrê, [ao] invés de pegar quarenta piranha, vai pegar
quarenta cabaços? Porra! Ainda vai ter problema meu irmão!? Porra....
Sapinho tem urgência e reclama que discutem em momento inapropriado
sobre o estrago que a cadela teria feito em algum equipamento do estúdio: “Cês
querem colocar o bagulho de Verônica agora no bagulho da música?”. Catra
continua a procurar um caminho alternativo para a música: “Pra quem não sabe
/ eu vou esclarecer / a ignorância de um cidadão / querendo se explodir / por
causa de uma facção. Catra vai fazendo os ajustes sempre com uma base Funk por
trás, submetendo a nova letra ao beat do Funk. Sapinho diz que reconhece “que
o bagulho tá pesado com as palestinas e as muçulmana, mas que em relação ao

lhe responde dizendo que “os cara [os árabes] têm a mesma descendência nossa
[judeus]”. Mas Sapinho não se convence, e pergunta se “os evangélicos escuta
Putaria?”, e Catra lhe diz: “Meu parceiro, esquece os evangélicos. Isso daí não é
religião, já começa por aí. Os evangélico não é religião, não confunde as coisa,
ligado?”. E Sapinho lhe pergunta se “judeu e árabe não é religião, é o quê?”. E Catra
explica que “isso daí é religião. Isso daí, desde que o mundo é mundo que judeu é
judeu e árabe é árabe”. Solta então o “psiu” que usa quando quer receber atenção
para o que fala e diz “Cristão, católico, isso é invenção de moda. Enquanto Sapinho
e Catra discutem a “visão” diferenciada que possuem, Buiú solta os samplers que
reproduzem os sons dos tiros de armas de fogo.
Pelo rádio Catra avisa à Sabrina que hoje quer um carro com motorista,
pois quer “beber” nesta noite, e cantarola o refrão de um Funk do Mágico MC.
Hoje eu tô facim, hoje
Hoje eu tô facim, hoje
Vem quebrando de ladinho
Vem quebrando de ladinho
Vem quebrando de ladinho
Pode vim que eu facinho
Hoje eu tô facim, hoje
Hoje eu tô facim, hoje
Eu sou Mágico MC
Represento toda hora
Vou tirando devagar
É meu boneco da cartola
142
Hoje eu tô facim, hoje
Hoje eu tô facim, hoje
Vai quebrando de ladinho
Vai quebrando de ladinho
Vai quebrando de ladinho
Pode vim que eu facinho

Vem que vem, vem rebolando
Rebolando, rebolando, rebolando
Porque hoje eu tô facim
19
Em seguida Catra se vira para Buiú e reclama muito seriamente, sem
qualquer riso:
Tira a tua cara daí! Porra! Por que só você bota essa sua cara
horrível ali, cara? Ninguém quer ver tua cara não, cara. Porra,
toda hora abre a porra vem um feioso ali. Ainda sorrindo pra
nóis. Porra, ninguém é obrigado a ver tua cara toda hora não, meu
irmão. Porra! Só homem no bagulho, carona feia. Porra, bota
uma paisagem, um bagulho que quer dizer Buiú...
Catra refere-se à imagem que o jovem DJ colocou como o ícone de seu HD

na cabine de gravação e fazer as alterações na letra de improviso, conforme vai
cantando. Catra lhe pede tranquilidade: “Calma que a gente tem que terminar aqui
agora. Eu fazendo o esboço do bagulho. Pô, quer fazer os bagulho... Ali é o
esboço da música. Calma. Calma, cara. Pelo amor de Deus”.
Catra acrescenta mais um verso à música: “‘E a palestina, me amarro como
ela dança, pronto, cabô! ‘Elas sabem muito bem / que meu bonde é blindão
/ e pra ter várias mulheres / tem que ter disposição’”. Buiú completa então com
deboche: “e uma carteira de hambúrguer”. Uma carteira recheada pelas notas de
dinheiro, que saem pelas bordas como sairiam os alfaces do sanduíche-carteira, e
os “boldinhos”, a erva que “é natural e não faz mal”.

fato de ele ter colocado em um mesmo “rap” diferentes temas:
“Sabe qual é o mal, que é grande pra caralho. Aqui dá pra fazer
três rap. O Sapinho viaja. Você começa falando de um bagulho de
religião, daqui há pouco na Putaria, daqui a pouco falando
de maconha. , você é muito louco. No mesmo show dá pra
fazer, mas na mesma música, parceiro? É demais parceiro. Você
faz Proibidão, Putaria, Gospel, Consciente, na mesma música?!”.
19 Hoje eu tô facim_light, MC Mágico. Faixa nº28 do CD 1 anexo.
143

e a parte que caberá a Catra.
Vou te dar um papo

Vim de longe pra caralho
Das colina de Israel
Para quem não me conhece
Sou Sapinho MC
Lá perto de casa
Tão querendo se explodir
Para quem não se ligou
Uma pista vou te dar
Pra comer quarenta mina
Não precisa se matar
144
E para quem não sabe
Meu mano vou esclarecer
A ignorância de um cidadão
Querendo se explodir por causa de uma facção
Não acreditam em Eloym
E nunca terão o perdão
Eloym achi chashuv

Eu fui lá no Muro vi meu sonho se realizar
Eu acho já na hora
De botar a chalifá
Chamando as minas na paz
Ensinando o que é amar
E para me conquistar
Vão ter que me convencer
Na noite de Jerusalém
O que é o prazer
Eu sou rato de Israel
Me amarro nas muçulmana
E as palestina
Me amarro como ela dança
Elas sabem muito bem
Que o meu bonde é só blindão
E pra ter muitas mulheres
Tem que ter disposição

Vai um toque pros irmãos
Daber che zé anachnu
E um grande shalom
Esse papo que eu te dei
É a pura realidade
Vim pra cá de Israel

Pois a onda do momento
Agora vou te falar
É o retorno de Jerusa
E o pitch chamudá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá
O restante da tarde foi dedicado a gravação desta e de outras músicas de Sapinho.
145
O hiper-realismo no Funk
Segundo Mr. Catra são as mulheres que gostam de escutar Putaria e é fazendo
referência a esta convicção que ele anuncia em seu show a chegada do momento
em que cantará tais músicas. Foi também baseado nesta sua percepção que ele
criticou o romântico Funk Melody que Jota compôs e empolgado nos apresentava.
Conheci ela no baile
Meu coração se apaixonou
Seu jeitinho bem stáile
20
Que me impressionou
Fiquei admirado
A mina era um tesão
Perdi o rumo todo
Perdi a direção
Pra quem tava do lado
Se ligou então
Sentiu que eu tava louco
No meio do salão
Foi tão bom
Foi tão bom
Que a gente se empolgava
E aumentava a emoção
Foi tão bom
Foi tão bom
Que até cheguei em casa
Com marca de batom
Ela gamou, gamou
Se amarrou, marrou
Na noite que ela me amou
21
Jota defende a sua criação dizendo que é uma    
     
composição dessas você “leva a mina pra qualquer lugar”. Catra diz que “isso já
tá passado” e que hoje é a “piroca quem tá mandando”: “pau na buceta, buceta no
pau”. Jota discorda dizendo que “isso” é para ele que é “todo ôu! ôu! ôu!”, querendo
dizer que Catra é abrupto demais, imitando a sua voz grave e rouca.
As divergências entre Jota e Catra falam de diferentes percepções em
relação à circulação do Funk e de seus distintos sub-gêneros. Jota acredita que o
Melody, como é a sua nova composição, “entra em qualquer lugar”, ao passo que

21 Tão bom, de MC Jota. Faixa nº29 do CD 1 anexo.

Catra atribui esta permeabilidade à Putaria. Catra é tido como um dos “inventores”
deste sub-gênero, que trata de forma ora mais ora menos explícita o erotismo e a
sexualidade. Ele recebeu inclusive a alcunha de “Rei da Putaria, e é mencionando-a
que muitas vezes é anunciada a sua entrada em cena.
O Funk Melody não possui presença expressiva em “baile de favela, onde

como modo de sinalizar que a festa está sendo encerrada ou quando o público
já é diminuto, acompanhando o esvaziamento gradual da festa. O que comanda
a seleção musical destes eventos é a alternância entre as músicas de Proibido e
Putaria. Estas últimas são anunciadas pelo DJ que rege a festa como a “sequência
da mulherada, se referindo ao fato de que os jogos sexuais, quando explicitados
nas músicas, é assunto que concerne às mulheres, indicando que é chegada a hora
delas entrarem em cena. Assim, após um conjunto de músicas cujas melodias são
invariavelmente compostas por frases como “  ” e pelo som dos
disparos das armas de fogo, muitas vezes as nomeando, ouvimos refrões como
“vem mulher vem rebolando” e “mas ela não se incomoda que a saia levantando.
Outros refrões são menos sutis e não mais se referem ao erotismo e à sensualidade
 
sexuais, como faz o refrão repetido acima por Catra e presente em diversas canções
do sub-gênero.
A Putaria apresenta traços de continuidade com o Proibido.
22
Similarmente,

ao ritmo, como antecipei no terceiro capítulo. Além disso ela retém o elemento
transgressor do Proibido. E para que a circulação estabeleça a ponte entre distintos
mundos, como fez o Proibido na década de 1990, a explicitação na tematização da
sexualidade deve ser substituída pelo duplo-sentido. As músicas invariavelmente
possuem uma versão “pesada” e outra “light, de modo que a mesma música pode
tocar tanto no baile de favela como nos bailes de clube, nas boates da Zona Sul, nas
rádios e na televisão.
23
O que variará será a sua versão. A música do MC Mágico que
Catra cantarolou na tarde em que anunciara a sua disponibilidade para os jogos
sexuais possui assim uma outra variante.
22 Na verdade, é possível fazer referência às músicas explícitas de Putaria como Proibidos, Na verdade, é possível fazer referência às músicas explícitas de Putaria como Proibidos, é possível fazer referência às músicas explícitas de Putaria como Proibidos, às músicas explícitas de Putaria como Proibidos,
indicando o seu conteúdo censurado, “x-rated, como diz Catra. No entanto, entre os músicos com
que trabalhei, Proibido é categoria que se refere às ações ilícitas. Além disso, a ressonância de um
e outro sub-gênero marcam momentos distintos da trajetória histórica do Funk.
23 As músicas possuem ao menos duas versões, pois são constantemente regravadas, muitas As músicas possuem ao menos duas versões, pois são constantemente regravadas, muitas
vezes ao vivo, o que sempre acrescenta diferença à reprodução. Mas ainda assim, nem sempre
o Funk tem livre circulação. A rádio FM Mix não toca músicas Funk, mas também não rejeita a
receita que este possa lhe gerar. Anuncia shows de artistas Funk, mas não pronuncia os seus
nomes. Mr. Catra, por exemplo, é referido como “O Fiel do Funk” e o MC Marcinho como “O
Príncipe do Funk”.
147
Hoje eu facim, hoje
Hoje eu facim, hoje
Vou chorar seu cabacinho
Vou chorar seu cabacinho
Vou chorar seu cabacinho
Pode vim que eu facinho
Hoje eu facim, hoje
Hoje eu facim, hoje
Eu sou Mágico MC
Represento toda hora
Vou tirando devagar
É minha piroca da cartola
Hoje eu facim, hoje
Hoje eu facim, hoje
Vou chorar seu cabacinho
Vou chorar seu cabacinho
Vou chorar seu cabacinho
Pode vim que eu facinho

Vem que vem, vem rebolando
Rebolando, rebolando, rebolando
Porque hoje eu facim
24
A Putaria, como disse Karla, chega “para unir as facções”, e o duplo-sentido
é utilizado para que ela “saia pra fora”. Passada a moda dos Proibidões, o elemento
subversivo permanece atuante na Putaria. Além disso, Proibido e Putaria partilham
o hiper-realismo estético com que são construídas suas letras. Este hiper-realismo
está diretamente relacionado ao aspecto imagético destas músicas – como colocou
Das Sete, as músicas são como “clips” – e à estratégia do chocar de que se utilizam
seus produtores.

mas possibilitam ao dançarino viver situações que na vida real não lhe seria possível.
Mas não se trata de fantasiar uma outra vida ou de um “escapismo compensatório,
mas de fazer em um plano outro, que aqui chamamos de arte – mas que poderia
ser chamado também de brincadeira ou jogo, como argumentará Gregory Bateson
(1999). Dançando e cantando o que outros registros não tornariam possível.

Sagrada Família e que prefere escrever letras a cantar, o Funk é “a liberdade de
expressão da vida.
25
O Funk, acredita ele como Catra, permite falar e vivenciar
24 Hoje eu tô facim, MC Mágico. Faixa nº30 do CD 1 anexo.
25 O apelido de Das Sete faz referência ao endereço da casa em que viveu, de número sete. O apelido de Das Sete faz referência ao endereço da casa em que viveu, de número sete.
148

com a mulher casada que no baile está dançando “tranquila” e ao mesmo tempo
cantando coisas que se um homem ouvir ou se falar para o seu marido ela “até
assusta. É desta maneira que as músicas de Putaria constituem a “sequência da
mulherada. O tricky das letras de Funk reside nessa elaboração sobre o possível.
O seu conteúdo de realidade faz com que mesmo uma empreitada improvel seja
vista como claramente passível de ocorrer.

Junto com Gregory Bateson (1973),

escolhido, seu estilo, em suma, pode nos revelar sobre o sentido da expressão
artística. É desta perspectiva que esta feição mais real do que o próprio real, a
feição hiper-real, se torna relevante para o meu argumento.
Mas não se trata de um hiper-real construído para escamotear um real não

temático Disneyland (Baudrillard 1994:12). Nem tampouco resulta de um social
que não mais existe (Baudrillard 1994:22), produzindo um signo sem referente
e uma relação mapa-território na qual o primeiro é precedido pelo segundo, uma
“precessão do simulacro” (Baudrillard 1994:1). Denota, outrossim, como a música
Funk elabora a relação com a “sociedade”, no sentido durkheimiano que lhe é dado
pelos sujeitos criativos Funk, a partir de seu descolamento do social. Por social não

proposto por Latour e utilizado em minha análise no primeiro capítulo. Neste
momento, aludo mais exatamente à noção de sociedade que, sendo exterior aos
indivíduos, se impõe sobre estes, moldando as suas ações e criações.
As relações mapa-território no Funk se dariam mais propriamente de
acordo com o modelo do “enquadre da brincadeira, como proposto por Gregory

sobre diferentes formas de comunicação, dentre elas a arte. No frame da arte, mapa
e território, realidade e representação, são simultaneamente “neutralizados” e
“diferenciados” (Bateson 1999:41). Pois a arte é uma linguagem metacomunicativa,
que funciona a partir de um código icônico, de acordo com o qual o objeto dos
discursos é menos o seu conteúdo semântico e mais a relação entre os falantes. Em

mordida, mas não denota o que a mordida de verdade denotaria. O Funk fala de
armas e sexo, mas não denota o que estes implicariam em um embate com a polícia
ou durante o ato sexual.

músicas, constituindo uma espécie de ‘lenda urbana’ sobre a atividade sexual com que se
envolveriam os jovens dentro do local da festa. Como disse uma de minhas interlocutoras em
campo, quem “quer fuder vai pro motel” e não para o Baile. Ao Baile se vai para dançar, como eu já

149
          



seriam também se comparadas à realidade como desenhada pelos jogos virtuais
que se desenrolam no cyber-espaço, tão presentes nos momentos de ócio no
estúdio e na casa de Regina. Além disso, estas letras imagéticas são engendradas
a partir de uma realidade que não é apenas experienciada, mas muitas vezes
informada através de meios de comunicação que por sua vez já elaboram de modo
realista sobre o real.
27
Falam-nos sobre a onipresença da imagem, seja através da
cartoons ou dos vídeo-games, e do modo pelo qual, como
vimos ao início do capítulo, estas imagens alimentam o repertório sobre o qual os
sujeitos criativos elaborarão.
28
             
narrativas sobre a favela, como ele cantou em um Proibido, tem sua alcunha
derivada de uma série de animação japonesa da década de 1980. O “corredor X”,
de carro numero 9, possui identidade secreta e é o misterioso irmão do também
corredor “Speed Racer”, a quem acompanha de longe, mantendo o seu anonimato.
Oi cachorro...
Quer din din?
Quer din din?
Pede um X9 pra mim
Quer din din?
Quer din din?
Traz um verme
Traz um ganso
Se faz de amigo só pra escoltar
Sujeito safado tem que apanhar
Por causa dele o meu mano morreu
Plantando o trabalho ele enfraqueceu
27 Como quando em uma tarde Karla me contava sobre a invasão da polícia, ocorrida na favela Como quando em uma tarde Karla me contava sobre a invasão da polícia, ocorrida na favela
em que vive, a partir dos relatos que lera naquela mesma manhã no jornal. Ela passava alguns
dias na casa de Regina e portanto não experienciara os acontecimentos, mas o fato de conhecer
todas aquelas pessoas presas dava-lhe autoridade para fazer seus relatos de modo que pareciam
não apenas verossímeis mas vivenciados por ela. Só ao ler a reportagem é que me dei conta então
que muitos dos detalhes que Karla me dera foram ali colhidos.
28 As imagens virtuais estiveram presentes ao longo do campo de diversas maneiras: através As imagens virtuais estiveram presentes ao longo do campo de diversas maneiras: através
das novelas que marcavam primeiro o início da tarde e depois o cair da noite; nos jogos virtuais
jogados tanto do lado feminino como do masculino; nos jornais populares e tele-jornais que
davam relatos de embates entre polícia e ladrão; nos programas de auditório dominicais dos
canais abertos de televisão; nos programas acessados por pacotes do tipo pay per view, como as
lutas de Vale Tudo e o reality show Big Brother Brasil.
150
Causou muitas mortes deixando infeliz
Família dos manos que eram raiz
Os moradores já querem pegar
Até grampearam o seu celular
Patrão tava preso e mandou avisar
Com sua certeza vamo executar
Bala de AK!
Cachorro
Se quer ganhar um din din
Vende um X9 pra mim
Vende um x9 pra mim
Cachorro
Me entrega esse canalha
Deixa ele bem amarrado
Pega o dinheiro e rala
Sujeito safado já sabe de cor
O endereço, o contato lá do DPO
Comédia fudido que entrega o irmão
Se eu pego esse verme não tenho perdão
Eu pago quanto for mas me dá o canalha
Eu vou comer esse verme na bala
De qualquer modo não vai escapar
Tenho pra ele uma bolsa de AK
Cachorro
Se quer ganhar um din din
Vende um X9 pra mim
Vende um x9 pra mim
Cachorro
Me entrega esse canalha
Deixa ele bem amarrado
Pega o dinheiro e rala
29
Jonathan Crary (1990), na esteira de Baudrillard, localiza no
desenvolvimento de máquinas miméticas que antecederam o surgimento da

de “observador” compatível com as futuras “práticas nas quais as imagens visuais
não mais possuem qualquer referência à posição de um observador em um mundo
‘real’, opticamente percebido” (Crary 1990:2). A passagem fundamental se dá da
visão enraizada na “verdade visual” possibilitada pela “câmera obscura, para uma
outra que o autor denomina como “visão subjetiva, derivada de um novo modo
29 Cachorro, de Mr. Catra. Faixa nº31 do CD 1 anexo. O termo “cachorro, na música, é designação
para o policial corrupto e segundo o cantor esta música versa sobre a “instituição corrupção” de
modo geral.
151
de experiência visual abstraída de qualquer referente (Crary 1990:14). Dessa

em “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, não teriam mais relevância
na produção imagética atual, fundamentalmente produto não da imitação e da
semelhança que a cópia possibilita mas da”equivalência e da indiferença” como
produzidas pela “esfera do simulacro”(Baudrillard apud Crary 1990:12).
Michael Taussig (1993), no entanto, não abandona o “problema da
mimesis
o poder que as imagens concedem àquele que as produz ou controla. A mimesis,
como conceptualizada pelo autor, está intrinsecamente relacionada à e resulta
de processos imitativos que se estabelecem com a alteridade mas não produz
o idêntico. Nesses termos a cópia não produz o equivalente, mas através da
semelhança permite que um se apodere das propriedades do outro. A partir desse

colonial e o nazismo. É baseado no modo como Taussig analisa a magia simpática
que Alfred Gell (1998) formula seu conceito de “pessoa distribuída, como
utilizado no primeiro capítulo desta tese. Por sua vez, Marco Antonio Gonçalves
e Scott Head (2008) cunham a noção de “devir imagético” para falar de um modo
de percepção mimético que se faz através das imagens, sejam elas captadas a olho
nu ou através de máquinas, que “permite uma fusão [merging] entre o objeto da
percepção e o corpo do perceptor” (Gonçalves & Head 2008:4). A abordagem que
imprimo às imagens nesta tese não se relaciona tanto com a “experiência visual”,
como elaborada por Crary, e mais com o modo como as imagens visuais entram
pelo olho, que de acordo com Taussig é também um órgão tátil, são processadas
pela mente e produzem imagens outras, verbais, como nas músicas, ou artefatuais,
como nos corpos.
Bruno Latour (2002) igualmente insiste no poder que possuem as imagens
enquanto produto de mãos humanas e mediadoras de esferas outras das quais
são signos. Ao contrário do que acreditam os religiosos e os defensores da ciência
objetiva, Latour defende que é precisamente o fato de as imagens serem resultado
de mãos humanas que as torna tão potentes. O iconoclash ocorre justamente
quando atos de iconoclastia, de destruição da imagem feita por humanos, produz
simultaneamente uma proliferação de imagens. A arte, a ciência e a religião
oferecem três diferentes padrões de “rejeição e construção de imagens [image
rejection and image construction]” (Latour 2002:8). A arte contemporânea, por
exemplo, quer a todo custo evitar os modos tradicionais de produção de imagem
iconoclash
dá nome e origem a uma exposição de objetos e imagens e expressa o enigma
que concilia uma “sociedade totalmente anicônica” e a fabulosa proliferação de
152
imagens que caracteriza as “culturas tomadas pela mídia” []
(Latour 2002:5). Um “enigma visual” colocado pela co-existência de expressões de
iconoclastia e de adoração das imagens.
O duplo-sentido e as paródias musicais
As músicas de Putaria de Catra nunca foram explícitas, sempre primaram
por uma certa gaiatice e humor, além do uso do duplo-sentido. Ratinho, o DJ da

fato de só ver maldade nestas músicas quem já tem “a maldade” dentro de si, já
tem conhecimento sobre elas, permitindo falar de modo velado o que de outra
maneira não seria aceito socialmente. Com as músicas de Proibido “sufocadas”
pela polícia, a Putaria surge como alternativa para os MCs, como Mr. Catra declara
ao início da gravação ao vivo de uma de suas músicas.
30
Na maior diplomacia, na maior diplomacia, tá brabo da gente
cantar Proibidão, mas liberaram a Putaaaaariaaaaaa!
Diplomaticamente, Catra carregará no duplo-sentido e no riso de maneira
a imprimir uma certa sutileza em suas produções, como nos versos abaixo em que
ele fala da conquista de um modo não convencional de relação sexual através da
analogia que faz entre o piscar dos olhos, o consentimento feito pela parceira e o

Rebolando até o chão
Rebolando até o chão
A gente só invade
Depois que a gata pisca
Bum bum não se pede
Bum bum se conquista
31
30 Outros cantores representativos do Proibido foram gradualmente abandonando o sub- Outros cantores representativos do Proibido foram gradualmente abandonando o sub-
gênero, ou ao menos introduziram novos elementos ao seu repertório “neurótico. O vociferante
MC Frank, autor da Toque no Radinho que abre este capítulo, música cuja execução assisti ser
performada pelo artista sem qualquer alteração na bem estabelecida casa de shows Fundição
Progresso, passou a se fazer acompanhar da dançarina Mulher Melão, cujo nome artístico
homenageia o tamanho das próteses de silicone que moldam os seus seios. A MC Sabrina, antes
conhecida como Sabrina da Provi e que durante minha pesquisa de mestrado eletrizava o público
em suas performances com à ode que fazia à facção que controla o Morro da Providência, sua
localidade de origem, investiu no Melody, através de parcerias com o MC Buchecha ou com o MC
Marcinho, como gravou Putarias.
31 Bum bum não se pede, de Mr. Catra. Faixa nº1 do CD 2 anexo.
153
Ou da forma como se refere à genitália feminina e seus efeitos sobre o
masculino, entremeando por gargalhadas a sua narrativa.
Gatinha assim você me assusta
Com o seu capu de fusca
Gatinha assim você me assusta [que delícia]
Com o seu capu de fusca
Aparada e limpinha
Coisa linda de se ver
Abre a tampa da fusqueta
Que eu faço você gemer
Triângulo do biquíni
Me deixou taradão
Tava úmida e quentinha
Batendo palma na minha mão
Eu me assustei
Mas tava preparado
Parecia um bolo
Aquele nêgo azul inchado
Movimento pélvico
Cara de sapeca
Me deixou louco eu não sou sapo
Mas me amarro em perereca
A moral do motivo
Toda peça se encaixa
Mexo no capô da fusqueta
Enquanto você passa a marcha
Gatinha assim você me assusta
Com o seu capu de fusca [que delícia]
Gatinha assim você me assusta
Com o seu capu de fusca [que delícia]
32
Além do duplo-sentido, Mr. Catra inserirá a “cultura” na Putaria através
de paródias musicais. Conta-me, com voz de quem se diverte, que muitas vezes
a escolha da música a ser mimetizada é aleatória, podendo ocorrer quando está
escutando o rádio. Mas diz que tem especial preferência pelos “clássicos da cultura
à sua ideia de trânsito cultural, “ensinar música” àqueles que não a
conhece. Pois, ainda que desconheçam, “já escutaram a melodia” e “tão ligado que
aquela versão não é a verdadeira.
32 Capu de Fusca, de Mr. Catra. Faixa nº2 do CD 2 anexo.
154
É aí que chega a hora da cultura. A pessoa vai procurar um Tom
Jobim, que a pessoa vai procurar um Tim Maia, que a pessoa vai
procurar saber o quê que é, ligado? E o funkeiro tem muito
disso. O funkeiro curte um som que ninguém imagina.
Mr. Catra já fez paródias de músicas de Vinícius de Moraes, Legião Urbana,
Biquíni Cavadão, Alceu Valença, Vanessa da Matta, Kiko Zambianchi, Chiclete com
Banana. De alguns ele gosta mais, de outros menos, podemos perceber.
Ele frequentemente avisa, já na metade de sua performance, em um tom
sutilmente jocoso, capaz de confundir aquele que o escuta pela primeira vez: “De

baderna... Não aguento mais essa vida de Funk!”. Pode então cantar, parodiando
Vinícius de Moraes e Toquinho, a sua versão erotizada de “Tarde em Itapoã, como
vimos no primeiro capítulo.
Esta é “a hora da cultura”, pois os espectadores, diz Catra, terão que
“procurar para saber que ‘uma mamada de manhã’ vem de ‘uma tarde em Itapoã,
que é de Vinicius de Moraes e interpretada por Dorival Caymmi. Isso que é legal”.
Mas esta manipulação de símbolos é também um ensejo para brincar com o
público e engajá-lo em sua empreitada com o riso. Como ele fez antes de parodiar
o Rock Nacional na boate Baronetti, localizada no privilegiado bairro de Ipanema e
detentora do ingresso mais caro dentre os locais pelos quais circulei com o artista.
Já passavam das duas horas da madrugada, e a casa estava lotada. Mr. Catra,
após cantar muita Putaria, além das homenagens a Bob Marley e a Marcelo D2, as
odes ao consumo de maconha e o hino do time de futebol Flamengo, passa a falar
serenamente, advertindo o público: “Agora, rapaziada... Agora chega. Pára, pára.
Chega de Funk. Daqui pra frente, é só Legião Urbana. Vaias e risos são proferidos

vou desligar essa porra! Vou cantar Legião Urbana sim, o show é meu e eu vou
tocar Legião Urbana!”. E completa dizendo que “acabou a zombaria” e que era
chegada a hora de “respeitar”.
Toalhas e fronhas
Cama desarrumada
Essa noite a chapa ferveu
Ela me ligou
E quis me encontrar
Num apart hotel que é meu
Eu disse
Sobe agora
com o boneco pra fora
Vem no colo
155
Pode vir de saia
Que eu 
Vem sem medo
É um palmo e cinco dedos
senta devagar
não senta de um vez
O menino vai crescer
Pro seu espanto
Vai passar do meu umbigo
Porque?
Ela só quer sentar
Cavalgando no boneco
Até de manhã
E se você parar
Com certeza pr’as amigas
Ela vai te explanar
Ela beija,
Lambe os beiços e tudo
É coisa de maluco
Ela quica e sabe gemer
Ela sabe fazer
O boneco crescer
Esta música é uma paródia da canção , do grupo Legião Urbana,
composta de frases que se referem a um suicídio e proferidas por jovens personagens

Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou
Da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender
Dorme agora
É só o vento lá fora
Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui
Com você

Estou com medo
Tive um pesadelo
Só vou voltar
Depois das três

Nome de santo
Quero o nome mais bonito
É preciso amar
As pessoas como
Se não houvesse amanhã
Porque se você parar
Pra pensar
A verdade não há
Me diz porque que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo

Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua
Não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa
Que nem me lembro mais
Eu moro com meus pais
É preciso amar
As pessoas como
Se não houvesse amanhã
Porque se você parar
Pra pensar
A verdade não há
Sou uma gota d’água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
Isso é um absurdo
São crianças como você
O que você vai ser quando você crescer?
33
O grupo Legião Urbana fez parte da “infância musical” de Catra e as músicas
da MPB eram escutadas por seu pai Edward e a esposa deste.
33 , de Legião Urbana. Faixa nº3 do CD 2 anexo.
157
Com suas paródias Catra faz operações mentais e realiza projetos
intelectuais similares aos que derivaram nos Proibidões, resultantes não apenas
de versões e contra-versões de si mesmos como de paródias de músicas da MPB

ou hegemônica cultura brasileira e o Funk, Catra manipula os símbolos de um
e outro lado. E evidencia mais uma vez o aspecto englobante do Funk. Mr. Catra
novamente diz que “é a coisa mais gostosa” a possibilidade que o Funk lhe dá de
não apenas cantar “MPB como MPB, Rock como Rock”, mas transformar um Rock
em um Funk: “No Funk você pode tocar Rock, você pode tocar Samba, você pode
tocar MPB. Tudo se encaixa nos beats, nas 130 BPMs”. Como a música Adultério,
que parodia a Tédio, do grupo Biquíni Cavadão, do Rock Brasil, que como Funk
virou sucesso nacional e foi posteriormente transformada em Forró.
Sabe esses dias que tu acorda de ressaca?
[Muito louco, doidão]
Sua roupa cheia de lama
E a cachorra na cama
É o dia que a orgia tomou conta de mim
Eu saio com o Brancão, Beto da Caixa, o Leo
Fumando doidinho
[Vamo pra onde?]
Na 4X4 a gente zoa
Uísque Red Bull
Quanta mulher boa

O bagulho sério
Vai rolar o adultério
Sua mina só reclama
E tira a sua paz?
Ela é chata demais

Meu mano
Que ela sabe o que faz
É uma coisa louca
Quica, quica
Em cima de mim
Antes, durante, depois
É tesão

Na 4X4 o tempo voa
Uísque Red Bull
Quanta mulher boa
158

O bagulho ta sério
Vai rolar o adultério
34
A música original trata do tédio que abate um rapaz que, mais uma vez em
crise existencial, cogita cometer o suicídio.
Sabe estes dias em que horas dizem nada?
E você não troca o pijama
Preferia estar na cama
Um dia, a monotonia tomou conta de mim
É o tédio
Cortando os meus programas

Sentado no meu quarto
O tempo voa
Lá fora a vida passa
E eu aqui à toa
Eu já tentei de tudo
Mas não tenho remédio
Pra livrar-me desse tédio
Vejo um programa que não me satisfaz
Leio o jornal que é de ontem
Pois pra mim tanto faz
Já tive esse problema
Sei que o tédio é sempre assim
Se tudo piorar não sei do que sou capaz
Sentado no meu quarto
O tempo voa
Lá fora a vida passa
E eu aqui à toa
Eu já tentei de tudo
Mas não tenho remédio
Pra livrar-me desse tédio
Tédio, não tenho um programa
Tédio, esse é o meu drama
O que corrói é o tédio

E me atiro desse prédio
35
34 Adultério, de Mr. Catra. Faixa nº 4 do CD 2 anexo.
35 Tédio, do grupo Biquíni Cavadão. Faixa nº5 do CD 2 anexo.
159
Catra se diverte ao manipular símbolos da cultura hegemônica, não apenas
no palco, gargalhando e quase perdendo a voz, mas também em seu cotidiano.
Assim, após um baile, ele pode, no deslocamento entre um e outro show, ter a
irreverente ideia de criar uma “Barbie Prima” ou uma “Barbie Bitch, uma versão
que transgride a bonequinha fundamentalmente alva, loira, de traços faciais
e padrão corporal caucasianos. A boneca de Mr. Catra, como a original, traria
consigo um imóvel. No entanto, ao invés da “casinha” que acompanha o brinquedo
fabricado pela multinacional Mattel e que remete à “mulher do lar”, a sua versão

cogita entre “Mettel” ou “Mottel”, e a bonequinha viria acompanhada de uma
“terminha, local no qual trabalham as prostitutas, as “meninas”.
Catra, ao elaborar sobre o repertório que a cultura lhe oferece, produz o
deslize presente no trabalho do bricoleur.
A poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato
de que não se limita a cumprir ou executar, ele não “fala” apenas
com as coisas, como já demonstramos, mas também através das
coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis
limitados, o caráter e a vida de seu ator. Sem jamais completar
seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si.

Como na mimesis, uma cópia que não é pura cópia. Mas o deslize que a
mimesis produz não apenas traz o novo, a diferença, mas empodera o artista.
O ponto importante do que eu chamo de a magia da mimese é o
mesmo – a saber, que “de uma maneira ou de outra” a confecção
e existência do artefato que retrata algo concede poder sobre
aquilo que é retratado. (Taussig 1993:13)
Homi Bhabha (1998), ao discorrer sobre o modo pelo qual o poder colonial
se torna refém de si mesmo graças ao deslize que a “mímica” de sua própria

produzir sobre o próprio colonizador.
Quero voltar-me para esse processo pelo qual o olhar de
vigilância retorna como o olhar deslocador do disciplinado,
em que o observador se torna o observado e a representação
“parcial” rearticula toda a noção de identidade e a aliena da
essência. (Bhabha 1998 [2007]: 134)

O riso conectivo e subversivo
Mr. Catra diz que não há ironia nas subversões que realiza de símbolos da
cultura hegemônica. Contudo, argumento eu, é através das operações miméticas que
realiza, bem como do modo como se utiliza do humor e do riso, que ele se mantém
coerente com o posicionamento político que veio expressando ao longo da pesquisa

que aparecem em muitos Proibidos, fazem referência a uma época em que “havia


para Rogério Lemgruber, o fundador do grupo Falange Vermelha, embrião da
facção criminosa Comando Vermelho que teria surgido da convivência estreita de
Lembgruber e outros presos comuns com presos políticos do regime militar que

como “você prefere vender a laranja ou o suco?”, “você prefere vender a borracha
ou o pneu?”, características do ideário da esquerda da década de 1980 que via a
industrialização do país como alternativa para escapar à relação de subserviência
ao capital externo, ganhando autonomia interna face ao comércio exterior.
Ao criar a sua música e o seu modo de vida tão idiossincráticos, Catra oferece-
nos a sua versão ou a sua interpretação da dinâmica cultural carioca e brasileira.
Age de modo análogo ao do antropólogo, que ao inventar “uma cultura, a cultura



O aspecto político é peça fundamental para se compreender Mr. Catra. É
notório o show que o artista fez no Circo Voador, há alguns anos, em que ao mesmo
tempo em que cantava “o Rio de Janeiro continua lindo...” alternavam-se sobre o
telão ao fundo do palco imagens de uma praia de Ipanema lotada, com animações

dentro da favela. Parece querer fazer ver àqueles que se negam a isso, rompendo
assim como o mito da “cidade maravilhosa. Dessa perspectiva, a ironia nos fala

e é tirando partido do “jeitinho brasileiro, saída que evita o confronto, que Catra
externalizará o seu desdém pela “hipocrisia” da “sociedade”, como costuma dizer. O
humor lhe permitirá falar de suas inquietações políticas e lhe permitirá rir do poder

O riso, ao tornar palatável o que de outro modo pode ser percebido como
ameaçador, permite falar do proibido de modo menos chocante e torna o Funk,
ainda mais potente ao permitir conectar e revelar a conexão entre realidades que

sob outra perspectiva poderiam parecer isoladas. Esse riso conectivo remete a
Mikhail Bakhtin (1999), à tão relevante boca do corpo grotesco que através de

não individual, não separado de seu meio ambiente.

Coloca-se a ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao
mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou


genitais, seios, falo, barriga e nariz. (Bakhtin 1999:23)

na Idade Média, tem seu auge no Renascimento e seria feita “em oposição aos
cânones modernos” (Bakhtin 1999:23), permeia elaborações de autores como
       
ocidental um modo não-dualista de se apreender as relações sociais. O primeiro
           
viabilizadas por concomitantes processo de hibridização. De modo análogo com
que o autor pensou o iconclash (Latour 2002), as separações entre domínios geram
novas misturas entre os mesmos, levando o autor a questionar a própria validade
de nos auto-denominarmos modernos. Para Gell(1998), uma antropologia da arte
é também uma antropologia dos corpos, não apenas porque o objeto, como aparece
em sua análise da volt sorcey, seja o corpo do representado em sua forma-artefato,
mas porque os objetos possuem status de pessoas, são person-like, dotados de
intencionalidade como pessoas em seus corpos.
37

que a aquisição das habilidades [skills] se faz não apenas por meio de observação
imitativa, mas no processo de execução repetitiva que coloca em interação o corpo
com seu ambiente, entendido em seu aspecto biológico e social.
De modo similar ao contexto de Rabelais como delineado por Bakhtin (1999),
         
    à de certo modo tradicional veia cômica
 Para análises sobre o poder do riso e o rendimento cosmológico da ênfase bakhtiniana “nas
partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior” ver para a cultura popular Carvalho
(2008) e para o contexto indígena Lagrou (2008).
37 Esta mesma associação entre arte e teorias da pessoa e da corporalidade vem sendo Esta mesma associação entre arte e teorias da pessoa e da corporalidade vem sendo
desenvolvida pela etnologia desde os anos 1980. Para uma síntese a respeito ver Lagrou (2009b).

que possui.
38



do gosto “superior”. O Funk estabelece com o gosto hegemônico e com a sociedade

    
É preciso enfatizar que Bakhtin não fala propriamente de uma fusão da
cultura oficial com a não-oficial no Renascimento, mas de como o riso passa de

           
instigante no Funk, por sua vez, é como este constrói ativamente o seu caráter

É através do riso que o Funk se torna apto a desestabilizar o poder falando
muitas vezes do próprio local em que se encontra aquele que não é apenas seu
público-alvo como o alvo de suas provocações. O riso simultaneamente penetra e
se faz ouvir pelo ‘bom gosto’ ao mesmo tempo em que torna o Funk apto assim a
rir do poder a ele associado de dentro de seus próprios redutos.
39
Catra produz algo similar a volt sorcery
154), que por sua vez é inspirado pela teoria da mimesis de Taussig (1993). Mesmo
que Catra não confeccione um objeto artefatual, que de acordo com o esquema de
Gell é o corpo da vítima em sua forma artefato, ou do deus em sua forma ídolo, que
receberá e remanejará para o representado a agência impingida na representação,
a paródia de Catra é construída a partir de um protótipo evidente, “os clássicos da
cultura”, que por sua vez remete a uma cultura e gostos oficiais, ou hegemônicos.
Através do riso que provoca em si mesmo e nos outros, ele se permite rir nesses
espaços associados ao bom gosto e faz a audiência desses espaços rirem de sua
manipulação de símbolos que são também caros a eles, como o foram ao próprio
Catra em sua infância e juventude. Mas não é apenas isso. O feitiço não retorna
somente para o feiticeiro, mas se distribui e engaja também os funkeiros que,
de acordo com o esquema de Catra, adquirem acesso à “cultura” através destas
paródias e poderão agora não apenas conhecê-las mas rirem também do modo
38 A dupla de funkeiros Gorila e Preto se utiliza ativamente das paródias musicais para compor A dupla de funkeiros Gorila e Preto se utiliza ativamente das paródias musicais para compor
seu repertório, tendo como um de seus temas recorrentes a mulher feia. Foi também através
do riso que eu ouvi relatos que davam conta de aspectos mais propriamente trágicos do
cotidiano, como a invasão pelo veículo blindado da polícia Caveirão que, em suas incursões na
favela, avisava com uma risada macabra: “eu vim roubar sua alma”. Para a maneira como o riso
acompanha acontecimentos cotidianos no contexto da favela ver Goldstein (2003).

se pode ser tão explícito ao cantar Putaria, ainda que, acredita, o público ali presente “faça tudo” o
que está sendo implicitamente dito na letra das músicas e tenham muitas vezes dançado a versão
original em baile de favela.

como foram subvertidas. Deste modo é que o riso desempodera o poderoso, pois,
por meio da paródia, permite ao artista Funk rir do poder em seu próprio domicílio
e concede também àqueles que não possuem acesso a estes locais poder sobre a


além de Taussig e Gell, devemos chamar agora Bateson para a conversa. Pois o
que a paródia permite à Catra é que ele estabeleça uma metacomunicação com
seu público. Enquanto a religião permite ao MC, em contextos preferencialmente
particulares, expor com mais clareza o nó de suas inquietações políticas, através
do riso Mr. Catra as deslocará para o palco e conversará sobre elas. Conversará
através de um código icônico, onde os discursos importam não apenas por seu
conteúdo semântico, mas possuem como objeto fundamental a sua relação com
sua audiência.
Foi exatamente isso que presenciei quando, ainda ao início do trabalho de
campo, o DJ Edgar, antes de Mr. Catra começar a sua apresentação no elitizado
Jockey Club da Gávea, soltou o sampler que simulava o som de uma rajada de fuzil,
como descrevi no primeiro capítulo. O bicheiro Luizinho, amigo pessoal de Catra,
se encontrava em meio à audiência branca como ele e levava à boca um charuto
enquanto gesticulava o braço cuja mão estava livre, incentivando as palavras do
MC. Catra, naquele instante, não apenas pedia “humildade” ao seu público, mas
nomeava os produtos de beleza da empresa norte-americana Victoria Secrets e
os carros da montadora alemã Audi, dizendo que ia-se o tempo em que apenas
alguns possuíam privilégio sobre os referidos produtos, que seriam hoje não
apenas almejados mas consumidos por muitos. Estávamos recuados, Dr. Rocha,
LC – antigo funcionário da casa de Catra e que participava também da produção
musical – e eu, atrás do carro de som, e os dois riam a valer com as palavras do
MC, meneando com a cabeça em sinal de aprovação. Já em outra ocasião, quando
assistíamos a um show na Baronetti, Rocha, indicando novamente com a cabeça o
assédio que Jota sofria de três moças brancas que o seduziram ao longo da noite,
me perguntava se agora eu entendia o que ele queria dizer com o poder que o
Funk possui. E continuou falando que eles, se referindo a ele mesmo, Catra, Jota,
Sandrinho, Kapella, e WF, não teriam acesso a ambientes e pessoas como aqueles
se não fosse pelo modo como a arte os empodera. Pela cor de suas peles “negras”,
como explicitou, seriam tomados apenas como bandidos.
Catra me disse uma vez que “tudo” pode ser feito através do Funk, qualquer
ritmo cantado, qualquer letra inserida. E eu acrescentaria, qualquer lógica
subvertida. Mas diferentemente do modo como Steven Feld (1995) entende o uso
do sampler digital pelos músicos de Hip-Hop norte-americanos, subversão aqui
não é utilizada “para resistir e recusar participar das convenções de autenticidade

literária do Euromundo [euroworld]” (Feld 1995:121). No Funk não se trata de
resistir e tampouco de construir uma síntese, mas de manter o seu aspecto não-
hegemônico e singular ao produzir diferença através da mistura. Subversão e
englobamento são as molas propulsoras do Funk. É a capacidade englobadora
do Funk que permite ao aspecto subversivo ser tão atuante em sua dinâmica de
criação, possibilitando a Mr. Catra fazer coexistir criativamente na estrutura de
suas performances religião, “clássicos da cultura” e Putaria. Ao absorver em sua
forma conteúdos que são a priori díspares é que a rápida e contínua passagem da
esfera sagrada para a esfera mundana torna-se viável.
40
Pois o potencial político do Funk reside não em um discurso explícito da


o “Proibidão” nos apresenta uma relação de confronto com a alteridade, a ironia

subvertendo símbolos da alta cultura, ou de esferas ‘sagradas’ da cultura.
40 Essa lógica do englobamento através da qual opera o Funk pode ser pensada junto ao modo Essa lógica do englobamento através da qual opera o Funk pode ser pensada junto ao modo

neutralizando e se apoderando de suas potências (Lagrou 1998, 2007b, 2009b; Albert e Ramos
2002).
Parte III
-
mo tempo da pessoa e mais do que a pessoa. Não
é apenas que elas são extensões integrais às rela-
ções que uma pessoa estabelece, e ‘instrumentos’

como composto desses instrumentos como ele é
composto de relações.

Capítulo 5
Os cabelos femininos e a
confusão de símbolos

O importante, no Rio, é ter estilo
Mr. Catra
Este capítulo continua pela trilha aberta no anterior, acompanhando a
manipulação de símbolos como feita pelo sujeito criativo Funk, de modo que,
veremos, não é preciso ser artista, no sentido estrito do termo, para possuir a
          
operações lógicas e mentais o exercício apresenta continuidade com o anterior,
o lócus de sua execução muda, e ao invés do resultado surgir em músicas e suas
letras, ou em imagens verbais e virtuais, elas serão agora materializadas no e pelo
corpo. O exercício, novamente, nos fará ver a impossibilidade de considerar uma
cisão entre corpo e mente, onde o corpo mostrará de modo ainda mais ativo as
suas capacidades agentivas, participando ele mesmo da construção do que chamo
de estética corporal Funk. Não bastará aqui assumir o ponto de vista do corpo, mas
assumi-lo como criativo do mesmo modo como fazemos com a mente. O corpo é
sujeito de suas escolhas. Se vimos no capítulo anterior que os homens, como as
compositoras mulheres, facilitam a sua circulação ao manipular a palavra, aqui
veremos as mulheres, em contextos não-artísticos, se produzirem com o mesmo
tipo de preocupação, ao considerar o entrar e sair de diferentes espaços da cidade.
1
A presente narrativa será conduzida pelos cabelos femininos, que nos
guiarão por problemas relativos ao lugar que a aparência possui no modo como são
estabelecidas as relações sociais no Rio de Janeiro. Semelhantemente ao que vimos
a van fazer no primeiro capítulo desta tese, veremos os cabelos articulando o ir e

neste as tensões, geradas a partir das interações concretas e tradicionalmente
subsumidas por categorias como “raça” e “classe social”, virão à tona. Virão à tona
não através de embates evidentes, mas emergirão da escolha em relação ao adorno
adequado a ser portado e do julgamento do gosto.
Objetos e sujeitos
Daniel Miller (1987) re-insere na agenda da disciplina antropológica a
discussão em torno dos objetos materiais, chamando atenção para o rendimento
1 No Funk, existem também compositoras mulheres, mesmo que em menor quantidade que os
músicos homens, e seus discursos podem ser considerados como “feministas” (Lyra 2007; Sou
feia 2004). No capítulo seis algumas destas letras serão trabalhadas e elas expressam ao meu
ver menos um feminismo mas remetem ao aspecto agonístico que marca as relações de gênero
quando tematizadas pela arte na esfera da festa.

analítico que estes oferecem bem como para o seu potencial de produção de
         
os objetos às abordagens semióticas e linguágicas, Miller simultaneamente faz
ver como aqueles podem possuir, comparativamente à palavra e aos discursos
verbais, maior acuidade na expressão de pequenas diferenças. Está em jogo a
sutileza com que o universo material à nossa volta nos ordena ao mesmo tempo
em que o ordenamos, resultante da “humildade dos objetos” (Miller 1987:85-108;
1994a:408) que residiria na capacidade que teriam os itens de uma determinada
cultura material de silenciosamente nos remeter à vida que emolduram ao mesmo
tempo em que são produzidos por ela.
É através do conceito de      
hegeliana, que Miller busca “desenvolver um modelo não-dualístico das relações
entre pessoas e coisas” (Miller 1987:18). Inerente a este modelo é a indiferenciação
inicial que ocorre entre pessoa e coisa e que, através de sucessivos processos de
diferenciação, vai tomando consciência do que ele não é até atingir uma total
separação entre sujeito e objeto. O sujeito toma consciência de si para então se
reconhecer como um não-outro (Miller 1987:22). É dessa dualidade que dependerá
o modelo dialético através do qual irá então procurar desfazer o dualismo da
relação entre pessoas e coisas.
Assim, quanto maior a distância entre o sujeito e seu objeto,

da verdade de que o objeto externo (...) é de fato o resultado das
projeções do próprio sujeito na história (...) e é portanto uma
parte integral de si. É o entendimento dessa verdade que permite
ao sujeito incorporar aquilo que até agora era externo, uma vez
que a percepção de que algo é de fato sua própria criação é uma
parte essencial de sua habilidade que se tem de reincorporá-lo.
(Miller 1987:24)
É a própria possibilidade desse sujeito reconhecer a si como diferente
do objeto que lhe permitirá superar a sua dualidade face ao mesmo. O sujeito
hegeliano, ao compreender o processo pelo qual externaliza a si através do objeto

é em si produto desse processo. É esse ponto que interessa a Miller, pois defende
que “neste estágio qualquer diferenciação latente entre o sujeito e o objeto é
           
Material Culture and Mass Consumption para
reter o que chama de aspectos “positivos” da “alienação, como foi empregado pelo

170
Um processo dual por meio do qual um sujeito externaliza a si em
um ato criativo de diferenciação, e que por sua vez se re-apropria
dessa externalização através de um ato que Hegel chama de
sublação. Esse ato elimina a separação do sujeito de sua criação
mas não elimina a criação em si; ao contrário, a criação é usada
para enriquecer e desenvolver o sujeito. (Miller 1987:28)
          
se apreender as relações sujeito-objeto, e para entendermos como elas se dão

sujeitos de pesquisa, continua Miller, possuem como suas “noções de senso
comum” a radical distinção entre sujeito e objeto (Miller 2007:10). O autor está se

que a re-inserção dos objetos materiais como foco de pesquisa, a partir dos anos

Sinteticamente poderíamos resumir a contenda ao separar de uma lado
aqueles que defendem que agência e intencionalidade são qualidades que devem
ser consideradas como relativas aos objetos, como o são à pessoa, em contextos
de relação social, e aqueles que entendem que os objetos possuem rendimento
analítico justamente pelas qualidades diferenciais que a materialidade agrega às
interações com o humano e às análises mesmas dos antropólogos.
Neste último grupo inserem-se o próprio Daniel Miller (1987, 1994a, 2005) e

ontológico diferencial de sujeito e objeto que não apenas concederá o rendimento

como permitirá superar abordagens dualistas que os envolvem. Miller sugere que
essa superação pode ser feita ao se abordar pessoas e coisas como constituídos
a partir de um único e dialético processo de objetivação, este sim o movimento
prévio ao surgimento de ambos e através do qual o sujeito ao mesmo tempo em
que cria o mundo ao seu redor é criado por ele. 


até se indiferenciarem deles. Keane, por sua vez, defende que não é exatamente o
representacionalismo que deve ser superado, ou seja, a diferença entre conceito e
coisa, mas o modo equivocado com que tradicionalmente apreendemos os signos
como dissociados da materialidade que representam (Keane 2005). E em radical
contraste com a abordagem que evidenciaremos no parágrafo a seguir, o autor
defende que “somente ao considerar a existência dos objetos independentemente
das experiências, interpretações e ações humanas” é que poderemos realizar o seu

171
Já Bruno Latour e Alfred Gell estão entre os que defendem o uso do conceito
de agência para acessarmos os efeitos que os objetos causam na vida social. Ambos
os autores enfatizam o aspecto relacional dos objetos e a sua inserção em uma
cadeia de relações sociais. No entanto, Latour (2005), ao meu ver, parece se ater
menos ao objeto e à intencionalidade e mais aos efeitos que os objetos podem
provocar estando em interação com as pessoas. Parece advogar, assim, por uma

que metodológico e que permite ao analista ver, ao re-armar [reassemble] o social,
como os objetos possuem causalidades idênticas aos dos sujeitos em eventos
sociais, ponto que trarei à tona por meio da descrição empírica feita no capítulo
que se segue. Já Gell (1998), toma os objetos como foco de sua análise e como
detentores de qualidades person-like. Se empoderam de uma agência causada por
um agente primário humano – o artista ou o artesão – que a partir de um protótipo
cria o objeto que passa ele mesmo a ser um agente secundário, repositório de
intencionalidades causais como o humano que o produziu.
Gell e Latour colocam as fundações para que se colapsem as diferenças
entre conceito e coisa, como defenderam Henare, Holbraad e Wastell (2007), os
quais, me parece, manifestam uma discreta preferência pelo conceito em relação à
matéria. Os autores sugerem ainda um uso apenas heurístico para o que possamos
vir a chamar de coisa. Keane (2009), por sua vez, retorna ao debate, e ao invés de
advogar por um desmantelamento da diferença entre sujeito e objeto ou conceito
e coisa, defende que a riqueza da materialidade está em sua capacidade de cruzar


mostrado, a “vida social das coisas” coloca em movimento objetos e contextos.
Ao longo de toda a tese, adoto as diferentes perspectivas sobre o objeto
material como destacadas acima. No entanto, o modo como venho desenvolvendo
a noção de estética presa por uma dessubstancialização do objeto que envolve não
exatamente o colapsar das diferenças ontológicas que estes venham a ter com o
humano, mas o modo como o seu estudo é indissociável da vida que o produz. Ao meu
ver, e ao modo como meus interlocutores vêm mostrando, considerar que objetos
possuam naturezas diferenciais dos sujeitos não nos impede de os incorporarmos
aos nossos corpos, nos fundirmos a eles e deles nos indiferenciarmos. Subjacente
a esta abordagem está uma outra que toma a arte como domínio não exclusivo
daqueles considerados como artistas stricto sensu, como coloca Els Lagrou para a
produção dos objetos ameríndios.
172
Mas em vez de concluir que por esta razão não existe estética
nem arte, poderíamos também dizer que, se todos os membros
ativos têm acesso ao processo de produção de objetos e à beleza
resultante deste saber fazer, impregnando o cotidiano de uma
comunidade com um estilo particular, todo membro dessa

mais ampla de ‘arte’, derivada da palavra ars em Latim e anterior
à especialização que a palavra sofreu durante o Iluminismo.

Além das abordagens esmiuçadas acima, neste e no próximo capítulos
estará mais evidente o modo protético de relações entre corpo e artefato, derivado
da maneira como Marylin Strathern (2004[1991]) incorporou o ciborgue ao seu
modelo de análise do social. A ferramenta, que 
estendendo a capacidade de um agente (Ingold 2000:315), o faz somente a partir
da posição em que a pessoa se encontra. A extensão não amplia as capacidades
intrínsecas, mas concede capacidades outras que a pessoa não possui. Dessa
perspectiva, não existe relação sujeito-objeto entre a pessoa e a ferramenta,
somente capacidades expandidas ou realizadas.
A pujança dos cabelos
Os cabelos estiveram sempre presentes
nos momentos que antecederam a festa, como
possibilidade da transformação necessária
para a entrada em sua esfera. Ainda que
estes sejam posteriormente carregados para
onde quer que o seu dono vá, é sempre na
imanência da festa que são desencadeadas
as elaborações estéticas que os envolverão.
A primeira vez em que notei o seu poder
transformador foi em Tina, como chamarei
a moça que trabalhava na casa de Regina
assim que iniciei meu campo. Regina viera
me buscar para que fôssemos ao baile do
Tuiuti, uma favela na Zona Norte da cidade.
Entrei pela porta de trás do carro, e sentei-me
ao lado de Regina, Tábata e uma outra moça
que não reconheci. As três riam muito e num
primeiro momento atribuí o seu divertimento
à mistura de uísque e Red Bull que tomavam e
173
preparavam ao virar no copo plástico e com gelo os conteúdos da garrafa de Black
Label e das latinhas de energético. Tábata não bebia do uísque e talvez bebesse
o energético, mas ria igualmente, e Alex, o motorista, dirigia quieto e sem beber,
naturalmente. Alguns instantes depois olho novamente para a moça ali sentada e
reconheço nela Tina, mas uma Tina absolutamente diferente da que eu conhecera
alguns dias antes, quando vestia bermuda, camiseta e uma touca de tricô na cabeça
que deixava apenas a franja de seu curto cabelo à mostra, parecendo mesmo com
um menino. Nesta noite ela trajava um vestido vermelho e trazia seus cabelos
negros alongados.
Os cabelos retornaram de modo ostensivo nas vésperas do novo ano de
2008, que eram também anteriores ao show de gravação do DVD de Catra. Eu
à
casa e/ou ao estúdio: dependendo de qual dos lados estivesse em atividade eu me
atinha a um, a outro, ou a ambos. Nesta tarde o estúdio estava inativo e Catra se
recuperava, fechado em seu quarto, de um mal-estar súbito. Junto à grande mesa

de cabeça baixa, com seus cabelos sendo manipulados por Taninha, a “Taninha
do Mega-Hair”, que coloca as “extensões” na cabeça das “passistas da Mangueira,
como me disseram.
Enquanto Tina tinha as mechas de seus cabelos alongadas, sentamo-nos
Regina e eu em um banco ao lado e conversamos sobre assuntos diferentes, dentre
eles os cabelos no estilo “Black”, usado por algumas atrizes brasileiras, os quais
Regina não aprecia. Ao mesmo tempo,

o cabelo desta, que ao deixar a piscina,
tinha-os armados e desalinhados,
diferentemente do usual, quando os traz
meticulosamente penteados e presos,
em rabo-de-cavalo, maria-chiquinha ou
chuquinhas várias.
Esta foi uma tarde interessante,
pois junto aos cabelos emergiu o tema da
circulação pela cidade e do preconceito
racial, mas de modo implícito, como
costumeiro, e de maneira indireta.
Não relacionou os cabelos delas à
sua circulação, mas o modo como a
minha aparência era facilitadora de
minha mobilidade, que era por sua
174
            

de volta para a Zona Sul, e que além de ter a carteira de motorista com a validade
vencida, eu teria como agravante, no caso de ser parada por uma vistoria policial,
a acusação de haver consumido substância entorpecente. Regina me pergunta

nunca me intercederão. E imita o modo como um policial agiria ao me ver em uma
blitz, inclinando a cabeça para olhar quem estaria no carro e fazendo com a mão o
sinal de “passa, que era repetido por suas palavras. Não lhe perguntei porque ela
pensava daquele modo, mas retive a questão na mente, escolhendo elaborá-la a
posteriori, exatamente como ela a introduzira, através da aparência e dos objetos.
A pujança que possuem os cabelos no ambiente em que eu pesquisava se
revelou de fato para mim em uma terceira ocasião e relacionou novamente a festa,
em dois momentos distintos. Desta vez envolvia Karla, a comadre do casal que
eu sempre pensei ser branca mas que, como ela me diria, não era branca. Era da
“cor que os gringos gostam, diferença que ela mostrou-me ainda mais claramente
quando em um Natal lhe dei um gloss de presente e ela reclamou de sua coloração.
Eu já entendera que moças com a “boca preta” não gostam de brilhos labiais
escuros, mas os lábios de Karla eram, ao meu olhar, claros. Para que eu entendesse
melhor ao que se referia, ela levantou seus lábios para que eu visse em sua gengiva
que aqueles não eram claros como eu poderia pensar.
Karla, como nenhuma outra das mulheres com as quais interagi em
campo, manipulará a ambiguidade de sua aparência para entrar e sair de espaços
da cidade. De certo modo, ela faz jogo simétrico e oposto ao que Catra realiza:
enquanto este se utiliza de sua aparência para entrar e sair de espaços que não
são tradicionalmente franqueados aos membros das classes mais altas, ela usará
o modo como se apresenta para adentrar espaços que não são tradicionalmente
franquead
a riqueza que a ambiguidade oferece à produção de conhecimento antropológico.
Os cabelos estiveram todo o tempo presente, contudo foi em seu uso ambíguo que
eles revelaram toda a sua potência.
Chegávamos à Fundição Progresso, na Lapa, Centro da Cidade – bairro que

– para a apresentação que Mr. Catra faria logo a seguir. Regina, em seu sétimo mês
de gravidez, viera dirigindo desde sua casa em Vargem Grande, bairro da Zona
Oeste da cidade, e subira apressadamente as escadas do camarim em busca de um
toalete. Inspiradas por ela, resolvemos fazer o mesmo, mas achamos mais prático
entrar em um sanitário ainda no andar térreo. Eu já estava novamente fora da
175
sala de banhos, mas através de sua porta entreaberta
observo Karla se olhando no espelho. Ela fala que
não gosta de si com o seu cabelo “daquele jeito,
“enroladinho. Taíssa, prima de Regina, diz que gosta
do visual de Karla, mas Karla continua a se olhar no

por meio de palavras, que não aprecia a imagem que
vê. Karla já me dissera, em outras ocasiões, que não
lhe agrada levar seus cabelos anelados, e pensando
na vez em que eu a encontrara na noite de gravação
do DVD de Catra, nesta mesma Fundição, de tal modo
produzida que eu não a pude reconhecer, com cabelos
lisíssimos e loiríssimos e a pele dourada, pergunto-
lhe porque viera então com o cabelo daquele modo.
Ela me olha, com um ar blasé, e diz que é porque veio
“representando. Eu acho uma certa graça em seu comentário e dou um riso seco.
Ela me olha novamente e diz: “é verdade”, parecendo comunicar que não havia
nada do que se rir ali.
Karla, uma mulher com cerca de 30 anos, mignon, de pele clara, que ela já

em malha rosa, ajustado ao corpo, com manguinhas curtas levemente franzidas
e adornado por aplicações localizadas, feitas por
cristal, por pequenos quadrados de espelho e ainda
por uma pequena estampa prateada. A griffe da
roupa, PXC, assim como a recorrência dos “brilhos”
e a modelagem ajustada, são ícones do gosto e do
estilo indumentário Funk. A PXC é marca de roupa
há muito bastante popular entre os funkeiros e a
presença do “brilho” é hoje o grande traço do estilo
indumentário em voga entre as meninas no Baile,
como antes foi a calça de moletom stretch (Mizrahi

Por outro lado, quando encontrei Karla com
seus cabelos “pranchados”, justamente na noite de
gravação do DVD de Catra, ela vestia uma roupa de
ares cosmopolitas. Igualmente curto, seu vestido
era do tipo tomara-que-caia e baloné: bufante e
esvoaçante, solto no corpo e preso às coxas por uma
barra larga, na mesma visco-lycra que compunha a


cujo estilo é inspirado nas estampas do designer italiano Emilio Pucci, de ares
psicodélicos e hit
das fortes tendências das coleções do verão carioca de 2007/2008.
2
Até então eu
havia visto Karla uma única vez, em uma tarde na qual, após breve parada no estúdio,
eu parti com ela e Regina rumo ao Barra Shopping, centro de compras localizado
na Barra da Tijuca, igualmente na Zona Oeste. Karla, naquela tarde, estava sem
maquiagem, com seus cabelos anelados presos em meio-rabo, vestindo camiseta e
uma “Calça de Moletom Stretch” da marca Gang. De modo que não a reconheci ao
revê-la bronzeada, com cabelos dourados e lisos, vestindo roupa de modelagem
e estilo globais, complementados por seu glamour pessoal. Cumprimentei-a e

lhe pareceu natural: “claro, naquele dia não era festa.
Karla, através de suas roupas e cabelos, nos fala sobre sua habilidade em
manipular representações. Quando deseja ou lhe é conveniente se apresenta como
funkeira. E quando quer pode também passar por uma jetsetter internacional. O
“representar” é uma categoria nativa. Alguém “representa legal” quando manda
2 Para maiores detalhes sobre o estilo da Pucci ver http://www.emiliopucci.com.
177
de modo convincente a sua mensagem ao falar
em nome dos seus. A expressão pode ser usada,
por exemplo, para aferir a performance de um
MC – “ele representou legal” – mas também a
performance de uma pessoa em seu processo de
auto-apresentação.
Em uma noite Karla e eu chegamos em
casa de Regina para buscarmos Tábata e Lucia,
outra das primas de Regina, e “fazer os bailes
com o Negão. Lucia veio ao portão da casa com
Tábata, prontas para sair, e Karla, em reação
ao visual da primeira, diz: “ih... representando
mo”. A morena Lucia trazia cabelos pretos
em corte Chanel, de comprimento na altura do
pescoço e lisos, e vestia um macacão preto justo,
formado por short e blusa com decote Vê do tipo
frente-única, lhe deixando com as costas desnudas.
Feito em jersey de algodão, como o vestido rosa
que Karla vestia na Fundição quando ela mesma
disse que veio “representado, o macacão de Lucia
compartilhava ainda com aquela roupa de Karla
a marca PXC, e as elaborações em brilho. Estas se
encontravam não apenas na logomarca rebordada
em cristal na altura do cóccix de Lucia, como nas tachas e quadrados que adornavam
os bolsos frontais de sua roupa. Estes últimos, ao invés de decorados por espelhos,
eram-nos por lantejoulas prateadas. Ambas as roupas possuíam o mesmo estilo.
Karla sabe bem como escapar às representações, às cristalizações que estas
podem produzir, e nessas horas escolhe um visual mais cosmopolita, mudando
estilos indumentários, cabelo e maquiagem. Com isto, ela não está comunicando
apenas como é hábil na manipulação de símbolos, mas como domina os códigos
estéticos de diferentes ambientes, potencializando o seu trânsito entre eles. Esta,
como venho defendendo ao longo da tese, é uma habilidade [skill] partilhada pelos
     
entre diferentes mundos sociais é tamanha que acaba por causar uma confusão de
símbolos, que gera agitação não tanto na cabeça dos próprios, como se supõe às
vezes, quanto na percepção do observador de fora e do antropólogo.
3
3 Algumas semanas antes de escrever este capítulo fui procurada pelo jornal O Globo para
escrever um ensaio para sua coluna Logo a propósito de visitas que jogadores de futebol cariocas

colocava era se esse ir e vir entre favela e asfalto não causaria confusão na cabeça dos jogadores
ao se depararem com realidades que a mídia apreende como sendo radicalmente diferentes.
178
A confusão de símbolos
Eu aguardava na porta da Fundição Progresso para que liberassem a minha
entrada no local.
4
Saíra de casa sozinha e por acaso encontrara com Karla no portão
do estacionamento da casa de shows, por onde entram os convidados da casa e
dos artistas. Karla estava impaciente com a demora de Catra e decidira ir embora,
mas antes de partir reconhece o rapaz que sai do táxi que ele mesmo estacionara
próximo a nós. Ela diz que é Rodriguinho, “amigo do Negão, que se aproxima de
nós, cumprimenta a Karla, que nos deixa em seguida.
Ficamos conversando, Rodriguinho e
eu, e eu lhe pergunto se já não nos havíamos
     
na dúvida. Eu estou certa que já o vira no
estúdio. Rodriguinho me pergunta então se
por acaso não era eu que lá estava no dia em
que foram fazer umas fotos para a Osklen,
uma “Osklen pa Nêgo. Eu disse que não
estive lá nessa ocasião não, e curiosíssima,
levo tudo aquilo muito a sério, e pergunto
se o pessoal da Osklen esteve por lá. Ele diz,
em tom já um tanto decepcionado, que acha
que só a fotógrafa estivera lá. Mas eu insisto
na conversa, e ele diz que na verdade acha
que, como “o pessoal” sabe que ele “gosta
de Osklen, estavam “zoando” ele. Sem
ainda entender direito o que acontecera,
pergunto-lhe se esse lance de “Osklen pa
Nêgo” era “zoação, e ele diz que sim, que
acha que “tudo era zoação, “até a fotógrafa,
e que “não teve Osklen nenhuma lá”. Conclusão, nessa tarde, a suposta fotógrafa/
estilista da Osklen era eu. E o pessoal do estúdio, sabendo do interesse de
Rodriguinho pela griffe ipanemense, de roupas muito caras e apreciada tanto por
4 A dinâmica de acompanhamento dos shows de Catra se deu de distintas maneiras. Muitas
vezes, como aparece no primeiro capítulo, acompanhei o artista em suas turnês, do começo ao



relevante para a pesquisa.
179
“playboys” como por funkeiros
5
, se utilizou de minha presença para pregar uma
peça no rapaz. Mas se eu fui usada para confundir Rodriguinho, este também me
confundiu com sua aparência.

estúdio com seu porte elegante em roupas caras de marcas esportivas globais,
o que fez com que eu me perguntasse quem seria ele, pois não me parecera
exatamente um funkeiro ou rapper. No estúdio, as roupas usadas pelos músicos
são mais propriamente as dos fabricantes nacionais de roupas no estilo Hip-Hop,
como a Manos, a XXL e a Blunt. Rodriguinho parecia um empresário bem-sucedido
do meio musical, como eu já vira antes em Brancão, um homem branco e agente de

táxi que atendia a Catra, e a julgar por sua aparência, muito bem-sucedido em seu
ramo. Nesta noite em que nos encontramos na porta da Fundição Progresso, ele
vestia uma blusa da Osklen e uma calça da Taco, rede de lojas que pratica preços
bastante acessíveis. Nos pés trazia um tênis da Puma, marca estrangeira de artigos
esportivos, de preços bastante elevados no mercado nacional.
Mas a confusão não cessa aqui. Um grande e vistoso carro importado, do
tipo caminhonete, preto e de vidros escuros, pára ao portão do estacionamento,
onde aguardávamos para entrar. Me pergunto quem poderia estar ali dentro,
certamente um “playboy”, do tipo desprezado pelos funkeiros. De repente
Rodriguinho, muito à vontade, leva a mão à maçaneta do carro, abre a porta e
cumprimenta o motorista, apertando a sua mão. Tratava-se de Juninho, padrinho

empresa que agencia músicos de Funk e Hip-Hop. Ele vestia uma calça social preta,
de pregas e pernas soltas, uma camisa também social, de listras azul e branco,
para dentro da calça, sobre uma blusa t-shirt de malha branca, cuja gola careca
5 A marca Osklen inspirou o nome de um grupo de cantores e dançarinos de Funk, o Bonde
da Oskley. Essa subversão de seu nome causou espécie nos dirigentes da empresa, como notei
em uma conversa com um de seus funcionários da área de comunicação. Entendem que o jogo
com o nome de sua etiqueta, que remete ainda ao de uma outra marca muito apreciada por
funkeiros, a Oakley, indica a incapacidade destes de proferir de forma correta o nome Osklen. Mas
parafraseando o DJ Ratinho, Oskley já é um “nome outro, derivado da característica dinâmica do
Funk, que opera através de sucessivos englobamentos a incorporação da estética alheia e que,
através de jogos miméticos, produz diferença.
Na roupa em que Rodriguinho vestia na Fundição Progresso estão duas marcas caras, a carioca
Osklen e a alemã Puma, misturadas à bem mais acessível Taco. Poderia se cogitar se as primeiras
não corresponderiam a cópias dos originais, encontradas em centros de comércio informal
como o Mercadão da Uruguaiana. Entretanto, a empresa Osklen faz forte controle para evitar a
difusão de cópias no mercado e os tênis esportivos usados por funkeiros são preferencialmente
originais, mesmo que usem alguma peça de roupa “falsa”. As tensões entre o falso e o verdadeiro
na indumentária 
foram elaboradas em artigo posterior (Mizrahi 2007a), são objeto de aprofundamento em nova
discussão (Mizrahi 2010c) e retornarão no capítulo seis.
180
aparecia pelo colarinho branco da camisa, de punhos também brancos, que estava
aberto. Nos pés, ele trazia sapatos sociais pretos, lustrosos, do tipo inteiriço, que
não possui amarração por cadarço. O empresário bem sucedido do ramo musical
era o protótipo do empresário paulista.
A música do MC Maiquinho, ao anunciar que a Zona Sul, área residencial
ainda considerada por alguns como privilégio de poucos, é de fato território de
muitos, fala-nos simultaneamente sobre como hoje podem ser tênues as fronteiras
que separam o “playboy” e o funkeiro. Se antes as oposições cantadas pelo Funk
Proibido informavam sobre um mundo que se construía a partir do eglobamento
dessas oposições, colocadas para serem desfeitas, hoje os pólos vão aos poucos se


oposição Zona Norte/Zona Sul não faz mais o mesmo sentido que fez na segunda
metade do século que se encerrou (Velho 1989[1973]).
Eu fechado com o Funk
Se tentar tu passa mal
A concorrência tentou
Podes crer que se deu mal
Eu sou MC Maiquinho
Sem cumprir vacilação
Quem tocando no baile
É o DJ com tambozão
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
No meu bonde é chapa quente
Só uísque e Red Bull
Tem gente que vem de fora
Curtir, na Zona Sul
Não vejo problema algum
Pelo menos é o que eu acho
Pode vir curtir direito
Nóis zoa nosso pedaço
Sou MC Maiquinho
Contra nóis não há quem possa
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul é nossa
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul é nossa
Vem curtir, vem dançar
Podes crer que é marola
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul...
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul...
181
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
7
Estamos no carro novamente, Karla e eu. Depois de mais uma tarde em
Vargem Grande dirijo de volta para casa e Karla retorna comigo “pra Sul”. Enquanto
dá alguns telefonemas, ela me explica que a música do MC Maiquinho da Zona
Sul, como é o nome completo do cantor, é “praticamente um hino lá no morro.
Maiquinho, como Karla, mora na Zona Sul: ele na favela da rua Pereira da Silva,
em Laranjeiras; ela no Morro do Cantagalo, localizado na divisa de Copacabana
e Ipanema. A música fala “tem gente que vem de fora, curtir na Zona Sul”. De fora
aonde? De fora da Zona Sul ou de fora da favela? Não importa, diz Maiquinho. Na
favela ou no asfalto a “Zona Sul né deles; A Zona Sul é nossa”. Eles quem? Os de
fora da favela ou os de fora da Zona Sul? Novamente, não importa, diz Maiquinho,
porque “nóis zoa nosso pedaço”: curtimos no nosso território. Território que é
todo ele de Maiquinho e seus pares.
Karla está em busca de companhia para o show de Catra que assistirá mais
tarde na Katmandu, boate localizada na porção ipanemense do entorno da Lagoa
Rodrigo de Freitas. Primeiro ela telefona para Bebel, que está cansada e quer
dormir cedo. Liga então para outra amiga, que diz estar “loiríssima, mas também
não quer sair. Karla pergunta-lhe se fez “tudo isso, tingiu os cabelos de loiro, “pra

que está loira, e loira de cabelo duro não dá. Karla desliga o telefone e reclama

Um pouco depois comenta que mais tarde fará uma escova com a “tiazinha lá do
morro, uma senhora que atende perto de onde ela mora.
Chegamos ao Leblon, e decido seguir pela rota que margeia a praia. Caímos

Karla solta um suspiro de satisfação, e eu a acompanho. Ela diz que adora a Zona
Sul e que tem imenso prazer em adentrá-la daquela forma, pela praia do Leblon.
Cabelos como extensões
Karla, diz Regina, “é uma piranha”: é abençoada por ter cabelos que
não precisam de extensões. Karla dá um sorriso de consentimento, parecendo
concordar que ela é mesmo agraciada com uma dádiva divina. Mas insiste que
seu cabelo para chegar ao ponto em que chegou precisou passar por “vários
processos”. Mas em compensação ela “tá como?; só jogando”. “Jogar” os cabelos
significa tê-los longos a ponto de, ao virar a cabeça de um lado para outro, eles
7 Zona Sul é nossa, cantada pelo MC Maiquinho da Zona Sul. Faixa nº37 do CD 2 anexo.
182
acompanharem o seu movimento, se deslocando na direção oposta. Por isto Karla
é como se abençoada, pois apesar de ter feito “várias progressivas”, tem hoje seu
          
possuírem versatilidade para os momentos em que os quer anelados ou lisos.
Pois nem sempre os cabelos resistem aos tratamentos relaxantes que
permitem a cabelos como os de Karla crescer, anelar ou serem alisados. Pois de tão

É isto que os faz “não crescer” ou levar muito tempo para que isso ocorra, a pouca
resistência aos produtos para alisar os cabelos e “relaxar” os cachos. Se gostassem
de penteados no estilo “Afro, seus cabelos cresceriam. E ao invés de os usarem
“baixinhos” e “vazios”, como gostam, os trariam “armados”, “cheios” ou trançados.
8
Mulheres como Regina, Tábata e Tina recorrem, então, às extensões
capilares. Houve uma época em que muito invejaram as norte-americanas, pois
pensavam que estas tinham acesso a tratamentos poderosos para terem os cabelos
longos, mas descobriram com o tempo “que é tudo amarrado. Dizem que a cantora
Beyoncé, um ícone de beleza, já nem se preocupa mais em esconder os nós de
suas extensões. E falam com orgulho de como hoje elas podem “ter os cabelos”.
Acrescentam ainda que muitos debocham de seus cabelos estendidos mas não
desdenham das “brancas” que também as usam, como as atrizes que participavam
da novela das oito que passava à época na Rede Globo de Televisão: Suzana Vieira,
Aline Moraes, e Juliana Knust.
A cabeleireira Taninha me explica que “antigamente” havia um tipo de
cabelo que era chamado de “100%”, mas que, sintéticos, embaraçavam muito. Os
cabelos atuais são humanos e igualmente importados, diz. Primeiro são tratados
e lavados, pois “às vezes podem ter piolho. As extensões de cabelos, me conta,
existem há cerca de vinte anos e ela mesma já as usa há mais ou menos treze anos.

cabelos da outra. Em cada cabeça coloca-se cinco a seis amarrados de cabelo, que
pesa cerca de 50 gramas cada um, cujo custo girava em torno de cento e vinte reais
em 2008.
Encontrei com Taninha na casa de Regina em três diferentes ocasiões. Na
primeira vez ela fazia os cabelos de Tina, como descrevi no começo deste capítulo,
tarde que corresponde a um momento mais inicial da pesquisa de campo. As
duas outras vezes também antecederam as festas, como marcaram minhas saída
e retorno ao campo: quando parti para fazer a bolsa-sanduíche, nas vésperas

viagem, nas vésperas de mais uma festa do amigo bicheiro, e à qual eu não poderia
8 É preciso notar que os cabelos no estilo “Afro” não são mais naturais ou menos feitos do que os
que passam por processos químicos ou são alongados por extensões.
183
deixar de ir
com cuidado, mas eu vinha de um campo em que os mesmos não me pareceram
tão relevantes. Muito diferentemente do que aqui ocorreu, eles não clamaram por
minha atenção.
        
transcorreu majoritariamente em um determinado Baile Funk. Ainda que eu tenha
acompanhado as moças e rapazes em incursões para compras de roupas ou em
visitas ao barbeiro, o foco principal da pesquisa foi a produção para a festa, estando
           
por diferentes ambientes sociais da cidade não foi problematizado, e de fato este
não parecia muito interessar aos jovens com os quais trabalhei. Moradores de
favelas cariocas, eles frequentavam um evento que ainda que ocorresse fora de
suas comunidades de moradia, era de certo modo a extensão
de suas casas, ou de seu ambiente de residência. O Baile do
Boqueirão, diziam, era o “baile do oi”: podia-se encontrar
tantas pessoas conhecidas que corria-se o risco de passar a
noite nos cumprimentos.
A marca estilística feminina que emergiu do conjunto
indumentário que arrolei foi a “Calça de Moletom Stretch”,
         
fato eu já cheguei ao Baile interessada em problematizar os
resultados de uma pesquisa anterior (Mizrahi 2003), que
         
mídia, que por sua vez atribuía o sucesso da peça de roupa à
sua capacidade de “dar bunda” à sua usuária. A calça, segundo
o discurso midiático, produziria por si mesma um corpo.
No Baile, como constatei, o relevante não era a marca de seu
fabricante mas a materialidade de seu tecido, que emprestava
o seu nome à categoria englobante que designou o estilo: “Calça
de Moletom Stretch

que as moças do Baile se apropriassem da peça de roupa e
criassem assim um estilo, através do sentido que lhe atribuíram
por meio de seu uso na festa. A calça não concedia atributos
corporais, mas realçava-os. Por este motivo, moças de corpos
magros e poucas curvas elegiam peças de roupas alternativas.
A calça que vazou para o “alto gosto” era criação delas e não
produção individual resultante de uma suposta fórmula mágica
encontrada para gerar belos corpos.
184
O estilo em questão referia-se a uma calça elástica como as de ginástica, mas
de tecido que, após ser tinturado e lavado, adquiria o aspecto do denim, simulando
assim uma calça jeans. Entretanto, estas calças femininas eram feitas não do índigo
blue, o tecido plano que dá origem ao jeans e pode adquirir alguma elasticidade
ao ser mesclado à lycra, mas de uma malha – tecido circular que já é em si elástico
           
confortável para a dança, que era em última instância o que movia os jovens ali.
Além disso, o moletom stretch, o tecido que compõe o estilo, apesar de ser uma


como bordados, cristais, perfurações, tachas de metal, encaixes de outros tecidos,

merge, uma fusão entre corpo e artefato, realçando e tornando ainda mais sinuosos
os corpos das moças em dança, que repetiam movimentos circulares.
Havendo desvendado essa lógica, voltei a campo, desta vez tendo como
contexto de investigação a rede de relações de Mr. Catra. Meus sentidos estavam
em busca de outras discussões, e foi ao esquecer a calça e as roupas feminina e
masculina, no sentido de não tê-las como foco central de minha atenção, que os
cabelos me argolaram, ao mesmo tempo em que trouxeram de volta a calça. Pois
parece ter sido o próprio processo de seu esquecimento que me fez ver os cabelos
e entender que a calça não aparecia no novo contexto de investigação não tanto

me dizendo: que eles estendiam as pessoas, agiam em sintonia com seu desejo de
conectividade.
9
A calça, por sua vez, localiza as usuárias, cristaliza a sua identidade
funkeira, operação que era precisamente o que todas aquelas mulheres buscavam
evitar.
10
Escapar não ao Funk, mas a uma noção de identidade concebida como
9
a uma informação que inconscientemente guardamos, mas refere-se à operação cognitiva de
empurrar para um canto da mente

Lagrou, foi possível converter este procedimento em método de investigação. Lagrou, em sua
pesquisa de doutorado, igualmente esqueceu o desenho kaxinawa para depois então recuperá-
lo (comunicação pessoal), permitindo à estética falar em seu próprio moto sobre a vida que lhe
produz.
10 Na pesquisa de 2003 (Mizrahi 2003) mostro que o fenômeno “Calça da Gang” produz um Na pesquisa de 2003 (Mizrahi 2003) mostro que o fenômeno “Calça da Gang” produz um
trickle up de duas maneiras. De um lado, a marca foi consumida por representantes do star system
e passou a compor o mix de lojas voltadas para um público de alto poder aquisitivo. De outro,
fabricantes nacionais voltados para o mesmo público das referidas lojas, se inspiraram em sua
modelagem para desenvolver suas calças jeans, excluindo das mesmas os adornos barrocos que
as faziam tão prementes ao Baile e substituindo o moletom stretch
lycra, como na imagem da calça jeans que aparecerá logo adiante. O tecido, contudo, justamente

constituiu no elemento fundamental a ser evitado, como pude aferir através da investigação de
2003 e como ressurgiu nas falas da pesquisa atual.
185
categoria que atrela as identidades individuais a algum traço saliente comum,

          
levam pela cidade, que era o que lhes interessava agora, mais do que dançar. Pois
a calça, se não impedia as moças de transitar pela cidade, era retirada por elas
na hora em que o faziam. Adriene e Lívia foram minhas interlocutoras durante a
pesquisa de mestrado. A primeira, moradora da Cruzada, conjunto habitacional
popular no Leblon, bairro que possui, em média, o metro quadrado mais caro do
Rio de Janeiro, não usava suas diferentes “Calça de Moletom Stretch quando ia ao

A segunda, moradora do Morro da Coroa, no bairro do Catumbi, Zona Central da
cidade, tampouco usava sua calça ao dançar nas boates do Centro da Cidade.
Foi precisamente essa preponderância do cabelo em relação ao corpo e à
roupa que Regina, Tina e Tábata defenderam enquanto assistíamos à novela da
tarde. Eu lhes explicava sobre meu campo e pesquisa anteriores e o fato de não
haver explorado os cabelos femininos. Explorara sim os cabelos masculinos, que
retornarão no próximo capítulo. Tina se levanta e teatralmente me diz: “Gata, sem
cabelo a mulher não é nada... O cabelo é a coisa mais importante, mapoa.... De nada
vale ter roupa e um belo corpo se você não tem cabelo, dizem, acrescentando que
se eu não havia ainda atentado para a importância dos cabelos era porque eu os
tinha. Por isso posso pensar que a bunda é o mais importante. Falo que eu posso
ter cabelo, mas que não tenho o tipo de corpo que elas valorizam. E elas insistem
que se eu quiser posso tê-lo, que “é só malhar”. E eu insisto que não, e que para ter
um corpo como elas acham bonito eu teria que “tomar bomba. Regina acha que

homem, seu cabelo vai cair”.

a Elba.
11
Lembro-lhe que quando a conheci ela usava cabelo liso, e ela diz que são
os mesmos cabelos enrolados, nos quais faz escova e depois passa a prancha, para

com duas placas de ferro na ponta, que se aquecia no fogo e depois passava-se no
cabelo, prática que estragaria o cabelo mais do que faz a prancha, defendem, que é feita
de plástico, é revestida de duas placas de metal e ligada na eletricidade. Regina usa
cabelos lisos somente no inverno, pois não molha a cabeça todo dia, como no verão. E
cachos bem alinhados exigem que sejam molhados para depois receberem o creme de
pentear. Deste modo as extensões permitem a elas maior versatilidade, possibilitando

11 Refere-se à cantora Elba Ramalho. Refere-se à cantora Elba Ramalho.

Resolvi olhar mais de perto o processo de produção dos cabelos, sua
retirada, colocação, e o “relaxamento” das raízes entre uma e outra etapa. Fiz isso
acompanhando Célia e Tábata que, talvez para se diferenciar da madrasta, resolveu
que trataria de seus cabelos não com Taninha, que vinha até a sua casa, mas em um
salão em Madureira, ao qual fomos diversas vezes em meu carro. Quando eu não
as podia acompanhar, elas seguiam de ônibus. As produções dos cabelos foram
contudo acompanhadas das produções por todo o corpo.
O corpo como sujeito
A primeira vez em que fui a Madureira com Célia e Tábata foi quase por
acaso. Eu chegara na casa em uma tarde seguinte a uma noitada pós-“puteiro”, e os
músicos no estúdio estavam todos “derrotados”. Catra, já acostumado com o ritmo
da vida Funk, como disse Regina, era o único que “tava pra rua. Regina, tomada
pelo mau-humor que a cercou no início de sua gravidez, também não estava muito
interessada em conversar comigo, e Célia e Tábata se arrumavam para sair. Eu
decido então que logo irei embora e aproveitarei o restante da tarde para resolver
algumas pendências. Antes de sair, acompanho a conversa delas com Kátia, que
dizia haver “domado” os seus cabelos no dia anterior, alisou-os. Tábata diz que
seu cabelo é “duro” e que não pode usar o “creme alisante” que usa Kátia, pois ele
“cairia. Pergunto a Tábata se posso tocar seus cabelos, e ela diz que sim. Eu acho o
seu toque macio, gostoso, e falo isso a ela, que ri, dizendo que “não é nada.
Regina sugere então que as moças venham comigo e que eu as deixe em
algum lugar ao longo do meu trajeto. Eu digo “ok” e acrescento que irei até o Leblon.
E Regina responde com sarcasmo: “não adianta nada oferecer carona até o Leblon
pra quem vai pra Madureira”. Pensando retrospectivamente, aquele parece ter sido
um modo seu de me colocar na direção dos cabelos, o mesmo modo indireto e não
explícito que muitas vezes pauta as comunicações verbais naquele ambiente. Pois
ocorre que em seguida lamento comigo mesma o fato de que as deixarei no meio

para acompanhar mais de perto a produção dos cabelos. Resolvo ir com elas.
Célia vestirá uma micro-saia jeans da ACR e uma blusa roxa do tipo “baby
look”, um tipo de blusa t-shirt curta e ajustada ao corpo, da Puma, com o contorno
da pantera, a logomarca da empresa, gravada em cristal sobre a parte frontal da
blusa. Tábata também vestirá uma “baby look” da Puma, em vermelho, com a

de um dos ombros da blusa, e uma calça jeans capri, de comprimento acima do
tornozelo, da Abusiva que, ela diz, não é marca de funkeira.
187
Já a ACR, patrocina festas Funk, como as noites de quinta-feira, dedicadas
ao ritmo, na Via Show, casa de espetáculos localizada na Rodovia Marechal Dutra,
na altura de São João de Meriti.
12
As suas roupas começaram sendo vendidas
por sacoleiras nas favelas cariocas, maneira através da qual Regina adquiriu as
primeiras peças da marca que, ao longo do trabalho de campo, desenvolveu o
seu alcance. Em minhas visitas à Madureira vi a pequena loja neste bairro migrar
de uma galeria para um ponto central do seu comércio, ampliada em grande e
vistosa instalação. A empresa possui atualmente onze lojas, localizadas em bairros
das Zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro, no Centro da Cidade, em Niterói e em
municípios da Baixada Fluminense. O hit da marca eram então as “sainhas” jeans
super-curtas e sem qualquer elasticidade, soltas no quadril, como as que Célia
vestiria. Apesar de muito pequenas, “não é nada que uma cruzada de pernas não

13
Eu vou pro baile
De sainha
Agora eu solteira
E ninguém vai me segurar
[daquele jeito!]
Eu vou pro baile procurar o meu negão
Vou subir no palco ao som do tamborzão
Sou cachorrona mesmo e late que eu vou passar
Agora eu solteira e ninguém vai me segurar
14
As mulheres produzem a sua moda, como    
Moletom Stretch”, e também as próprias marcas. Além da ACR, outra marca muito
presente durante o campo do doutorado foi a M&M, que faz blusas e tops em
malha elástica e sintética, sempre adornadas por brilhos, como vimos nas roupas
da PXC de Karla e de Lucia e como presente na “Calça de Moletom Stretch. Estas
blusas custavam entre cinco e vinte reais e eram vendidas de porta em porta, em
12 Nestas ocasiões são tocadas também sequências de outros ritmos musicais, mas o carro chefe Nestas ocasiões são tocadas também sequências de outros ritmos musicais, mas o carro chefe

outros cantores do ritmo, que variavam a cada semana.

personagem da novela Duas Caras, da Rede Globo de Televisão. A personagem era uma mulata
de cabelos fartos e anelados, ostensivamente produzidos de maneira que as mulheres da casa de
Regina diziam que as extensões acabavam por fazer seu cabelo se assemelhar a um “capacete”.
O vestuário de Lucilene, este é o nome do personagem, era composto não de “sainhas”, mas de

e a percepção das moças com quem convivi de que quando se quer produzir uma representação
congelada sobre o feminino no Funk recorre-se à calça. Lucilene simbolizava a moça fogosa da
favela, caracterizada não apenas por sua indumentária mas pelas músicas Funk que apreciava.
14 De Sainha, Gaiola das Popozudas. Faixa nº38 do CD 2 anexo.
188
pequenas lojas e nas feirinhas. Tábata brinca
que a sigla que dá nome à marca derivaria de
Manguinho-Mandela, duas comunidades que
junto com uma terceira, a do Jacaré, formam o
complexo de favelas localizado na Zona Norte.
As blusas são mesmo produzidas naquela
região, e a brincadeira de Tábata indica a

o gosto acarreta, atrelando-a à marca.
E mesmo que usem marcas globais, o
corpo determinará a sua modelagem, prática
       
que cheguei com a pesquisa de mestrado. Em uma outra tarde em que saíamos
para o salão em Madureira, Tábata vestia uma calça jeans bem justa, certamente
com elastano na composição do tecido, em índigo blue
efeito similar de fusão com o corpo como o moletom stretch produz, realçando as
formas corporais. Pergunto-lhe onde comprou a peça de roupa, e ela responde que
comprou em São Paulo, acrescentando que é da Diesel, em tom que me pergunta
se eu não percebia isso. A calça parece ser uma ‘réplica’ da marca estrangeira,
mas que resulta de uma lógica interessante: reproduz a marca apenas, mas não a
modelagem. Esta é desenvolvida de modo a atender o gosto local.
Essa particularidade do gosto feminino, não apenas de produzir sua
própria moda, mas de englobar através do corpo a marca e o gosto globais, foi-me

Karla e Regina vendiam para a sua rede de relações na favela, ele diz que aquelas
direcionadas para as mulheres nada mais são do que “cópias das nossas roupas
com as marcas deles”. A modelagem é nossa, a marca é dos “gringos”. Não há aqui
um protótipo único, mas dois, que em relação originaram uma terceira coisa.
Os “gringos”, como também surgiu em Karla ao descrever a cor de sua pele,
não são apenas os estrangeiros não-brasileiros, mas aqueles que não possuem
vínculo com a favela. Assim, as marcas copiadas podem ser as italianas Dolce &
Gabbana e Diesel, a alemã Puma, mas também as paulistanas Carmin e Cavalera. Se
com a roupa masculina, continua Catra, “eles”, os estrangeiros, “partem na frente”,
no que diz respeito à roupa feminina, “o Brasil dita a moda. Se na música Funk o
beat é soberano e submete a ele as inovações feitas, no que toca à indumentária
das moças, o que a conduz é o corpo. O gosto global precisa se submeter às
suas vontades. Esta mesma lógica produziu a “Calça de Moletom Stretch, uma
solução criada em terras brasileiras para o global jeans a partir das exigências da
corporalidade local.
189
A produção dos cabelos e a noção de pessoa
Tábata nos conta sobre um ex-namorado que foi preso, e Célia diz que
“graças a Deus” ele é menor de idade, pois assim, logo que alcançar a maioridade
será solto. Ele não está exatamente na prisão, continua, mas em um internato, o
que não é tão ruim apesar da falta de liberdade. Ela sabe o que fala, já que também
foi presa e esteve em um desses internatos, dizendo que agiu em “legítima defesa.
Célia, após ter saído de casa aos treze anos, foi morar na rua, em Copacabana.
           
garoto, também morador de rua, veio “mexer” com ela, mas ela conseguiu dele
se desvencilhar. Na noite seguinte, ele voltou e ela, para se defender, cortou dois
de seus dedos com um caco de vidro. A polícia chegou e pensou que o ferimento
tivesse sido causado por uma outra menina. Célia foi até o policial e disse-lhe que
era ela a autora dos cortes. E assim foi presa.
Célia, à época do trabalho de campo, estava com trinta e seis anos e se dizia
muito grata a Deus por ter o emprego em casa de Regina. Diz que já fez “de tudo

Fala que é um “dinheiro seu, limpo, e que isso lhe dá tranquilidade, pois “não deve
nada a ninguém. Eu desenvolvi especial afeição por Célia, que era extremamente


campo tão denso, me acolhendo e defendendo sempre que pôde. Célia, passado
um tempo, começou a se transformar, deixou de ser doce, parou de tratar de seus
cabelos e foi aos poucos se ausentando, até desaparecer da casa. Frequentemente
perguntei por ela, até que me disseram que ela havia se viciado em crack, droga
tida como altamente letal e que volta e meia ressurgia em narrativas que envolviam
relações disruptivas. Como apareceu em Tina, que um dia retornou para sua
casa e a encontrou vazia. Seu marido, também viciado nesta substância, havia
desaparecido com todos os seus pertences.
Cerca de cinquenta minutos depois chegamos à Madureira. Vamos em
direção ao salão de cabeleireiro, mas antes entramos em uma loja que vende
cabelos. Nos dirigimos para o display    
Na parede oposta estão os cabelos loiros, vermelhos e marrons, e também outros
pretos. Parecem ser de uma categoria mais lisa do que os que estão do outro lado.
Célia é atraída pelo cabelo loiro. Toca-o e diz que quando comprar os seus serão
daquele tipo, mais “macio, mas os tingirá de preto. O aspecto loiro dos cabelos
despertou em Célia interesse por eles, que em seguida avaliou a sua materialidade,

incorporá-los ao seu gosto.
190
O que moveu Célia foi a oportunidade que vislumbrou de realizar a
mesma operação englobadora que viemos vendo reger a estética Funk, produto
de estratégias miméticas de se relacionar com a alteridade, no sentido de Taussig
(1993), “domesticando, tornando familiar e trazendo para o interior do socius o outro
desconhecido ou ameaçador, modelo recorrente em sociedades amazônicas (Lagrou
1998, 2007a, 2009b; Guss 1990; Albert 2002; Buchillet 2002; Howard 2002; Van
Velthem 1992). Vimos ocorrer procedimentos equivalentes com os bonequinhos de
Regina, originalmente brancos e posteriormente pintados de preto, e com a prima
de cabelos e olhos negros que tingiu os primeiros de loiro e os segundos com lente
de contato verdes. A prima deu origem ao nome da cadela mais paparicada da casa,
Valéria, a única que tinha acesso ao interior do ambiente doméstico e do estúdio e
que possui como traços inatos o pelo dourado e os olhos esverdeados.
Entramos em um pequeno e simples prédio. No primeiro andar há um
consultório dentário. Subimos as escadas estreitas e pouco iluminadas que
contrastam com o interior muito amplo e claro do salão de cabeleireiro, decorado
em branco, azul celeste e azulão. Célia exclama: “chegamos ao paraíso. Penso que
o seu bem-estar talvez fosse causado pelo frescor que o ar-condicionado produzia
no ambiente. Mas a sua felicidade é porque terá seus cabelos tratados. Ela paga ao
entrar quarenta e cinco reais, e Tábata desembolsa um pouco mais do que o dobro
desse valor. Ela terá os seus apliques removidos e prefere fazer isso na privacidade
de uma “sala VIP”. O momento da retirada dos cabelos é um tanto delicado, não
é algo para ser feito na frente de todos e notei que minha presença pode ter sido
            
compartilhamos conversas que pareceu a todas nós muito interessar.
Aguardamos para que iniciem o relaxamento que será feito nos cabelos de

os “parentes”. Eu repito o termo, mostrando que não entendi, e Tábata ri, dizendo

traduz a metáfora: “são como parentes, você não escolhe: bom ou ruim, você tem
que aturar”. Célia pergunta a Tábata se aqueles cabelos que tirará irão para a Tina
ou pra ela, e Tábata diz que irão para Tina. Célia diz que está “tudo bem. Quando
chegar a sua vez de receber os cabelos de Tábata, o que ocorreria em três meses,
os seus cabelos já estarão tratados pelo relaxamento.
         
cuidará inicialmente de Célia divide o seu cabelo e em seguida a encaminha para


logo em seguida com água abundante. Faz isso em sucessivas vezes e aos poucos,
aplicando o produto em áreas pequenas de sua cabeça. O momento mais prazeroso,
191

seu couro cabeludo.
Passa uma mulher com cabelos enroladinhos, cujo comprimento chega
ao meio das costas. Ela está “colocando cabelo, explicam. No alto de sua cabeça
o seu próprio cabelo está preso e aguardando para ter as mechas implantadas.

são relaxados e foram alisados por prancha. Se assemelham aos cabelos que usava
Lucia, a prima de Regina, na noite em que a buscamos em casa com Tábata. Tábata
diz que já usou seus cabelos daquele modo, mas hoje prefere tê-los enroladinhos.
Procuro entender melhor o tipo de cabelo que lhes agrada. Tábata diz que
gostariam de ter um cabelo “liso, e olha para o meu e fala, “não tão liso assim,
mas que enrole. O meu cabelo me parecia especialmente anelado naquele dia, pois
estava recém cortado e o cabeleireiro havia o repicado mais do que o costume.
Célia diz que se tivesse que pedir algo pediria “um novo couro capilar”. Eu já havia
escutado comentário similar de Tábata que na tarde em que assistíamos à novela
com Tina e Regina disse que gostaria de ser uma “cientista pra inventar uma
fórmula para mudar o couro cabeludo. Inventaria uma cirurgia pra trocar o couro

imaginativo e diz que “não, cirurgia dói muitoe na cabeça é “perigoso. Ela, diz,
inventaria um injeção. Seriam três aplicações. A primeira para preparar... Tábata
a interrompe, insistindo na cirurgia, pois se existe para colocar silicone nos seios,

Subimos para o segundo andar,

Na sala destinada a Tábata há uma antiga
e pequena televisão. Sentada em uma
cadeira, ela tem as suas mechas retiradas
por Renata, que corta com uma tesourinha

cabelo originais da moça. Tábata diz que
já imagina o desespero que será para
desembaraçar o seu cabelo.
           
relaxamento no cabelo de Tábata, após a retirada das extensões. Joana tem as
unhas das mãos decoradas por esmalte com um mini-cisne meticulosamente
desenhado em rosa, nadando sobre um lago vermelho – a ponta de sua “unha
francesinha” – sob a lua cheia e contra um fundo escuro, como é a noite. Eu

alerta, lembrando que na última vez em que lá estivemos me disseram que eu
192
não poderia fazê-lo. Joana diz que não se
preocupa com isso, argumentando que
as unhas lhes pertencem e que eu posso
sim fotografá-las. Renata aproveita para
me mostrar a decoração na unha do

menos incomum mas ainda assim feito
de modo bastante elaborado.
Joana me leva até a manicure no primeiro andar para que eu veja melhor
o trabalho artístico que ela faz. Célia, mais uma vez, me relembra que eu não devo

manicure me mostra os desenhos que cria, ao abrir uma cartela dupla, como a capa
de um portfólio, forrada por tecido acamurçado preto, como os mostruários de
jóias, todo coberto por unhas postiças decoradas e agrupadas em ordem crescente.
O efeito desse todo é fascinante. Não resisto e pergunto se posso fotografar. A
resposta, como previsto, é não.
15
Já de volta à sala onde está Tábata, Renata me pergunta de onde surgiu a
ideia de meu estudo. Eu conto sobre a pesquisa em torno da “Calça da Gang”, a

a pesquisa com Catra. Tábata diz, se referindo a mim, que “parece que ela tá vendo
um outro mundo. Eu digo que de certa maneira isso é verdade. Pois até então
eu pouco sabia sobre as extensões capilares, nem tampouco sabia reconhecê-las.
Falo que o cabelo de Renata, por exemplo, me equivocou, especialmente porque
a familiaridade que eu ainda possuía com as extensões era com aquelas do tipo
longo. Além disso, Renata possui sobre o alto de sua cabeça um trançado diagonal,

     
me explica, é possível desfazer e refazer de outro modo depois de os implantes
terem sido colocados. Diz que é prático, pois assim está “sempre arrumada. Joana
também usa o mesmo tipo de trançado, e seu cabelo é ainda mais curto. Ela diz

15 Negativas como estas foram uma constante ao longo de toda a pesquisa. As recebi quando Negativas como estas foram uma constante ao longo de toda a pesquisa. As recebi quando
tentei entrevistar os produtores da ACR e da M&M e ao ser impedida de fotografar não apenas
no cabeleireiro como na loja de cabelos e em feirinhas. Poderia se cogitar que o receio adviria
da possibilidade de cópia, como no caso das decorações em unhas e das roupas, mas o temor
parecia ser também relativo ao mal uso que eu poderia fazer com a informação obtida. No salão
de cabeleireiros, por exemplo, foi deixado claro que temiam a ação de jornalistas que pudessem
denunciar os efeitos colaterais que os produtos químicos empregados nos cabelos podem vir a
causar nos clientes.
193
surpresa, já que ela troca as suas a cada vez que refaz os amarrados, e “gasta um
barão, mil reais, pois coloca cerca de quatrocentos gramas de cabelo.

Renata fala que de fato “o modo de uma negra se arrumar é totalmente
diferente do de uma branca”. Elas, diz, são como que “montadas”, e é nesse montar
que começará a emergir mais claramente a noção de pessoa que as diferencia das

como em contexto ameríndio (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro 1987[1979]),
mas diferentemente do que ali ocorre, o que parece conceder a perspectiva do
sujeito não é tanto o que é ingerido e diluído internamente, produzindo os afetos

do corpo. Dessa perspectiva, o modo como a exterioridade é relevante para a
            
caribenho (Miller 1994b).
17

a pessoa, mas também uma capacidade que parece ser congênita ao corpo, inata,
que é categorizada por meio da aparência. A aparência e as elaborações sobre


ocorrem em continuidade com transformações em seus afetos, causados pela
convivialidade e hábitos alimentares estabelecidos em um modo de vida outro,
como ocorre com a jovem Yanesha que passa a viver na cidade e adquire modos e
costumes “brancos” (Santos-Granero 2009). No Funk não há tal cisão clara entre
mundos, e Karla, ao parecer branca, se utiliza da ambiguidade de sua aparência
deliberadamente como meio de se empoderar do poder do outro através da
mimesis, se transpondo corporealmente para sua imagem (Taussig 1993:40).
Karla, ao “vestir uma roupa-máscara”, não oculta ou altera a sua essência mas o faz

A mimese produz esse pequeno truque de oscilar entre o muito
igual e o muito diferente. Um impossível mas necessário tema,
de fato um tema cotidiano, a mimese registra tanto igualdade
como diferença, de ser como e de ser Outro. Criar estabilidade
dessa instabilidade não é uma tarefa simples, ainda assim toda
 Nem sempre os cabelos de Tábata eram integralmente trocados. Muitas vezes ela acrescentava

17 Sonia Giacomini (2004), por sua vez, vincula estreitamente aparência e classe em sua análise Sonia Giacomini (2004), por sua vez, vincula estreitamente aparência e classe em sua análise
de um contexto carioca. A propósito dos frequentadores do Clube Renascença, associação de
classe média que reunia negros “intelectualmente e economicamente capazes”, os investimentos
na aparência buscavam “bloquear um processo de contaminação da posição social pelas marcas
étnicas” (Giacomini 2004:37). No contexto Funk, diferentemente, a importância da aparência não

uma tendência que é da cultura brasileira como um todo.
194
formação de identidade está comprometida nessa habitualmente
          
mesmo, mas manter a igualdade através da alteridade. (Taussig
1993:129)
Renata diz que nós,
18
as brancas, não temos “resistência” como elas, e
             
resistência para colocar cabelo e unha como elas fazem, continua Renata, pois
somos mais “meiguinhas”, delicadas. Tábata, em outro momento e a propósito

ela é atípica, pois “apesar de negra é cheia de frescuras”. Digo que não é por ser
negra que não pode ser “fresca”. Mas ela insiste, argumentando que seu pai diz
que o negro tem anticorpos mais resistentes, e ela tem muita alergia à poeira e à
mordida de mosquito, e “agora isso, “não pode tomar golpe de ar frio, evento que
supostamente teria lhe causado o incômodo em sua face. A ideia do branco como
mais frágil do que os negros é também tematizada por meio dos cachorros, pois
além de Valéria, a casa conta ainda com Titi, o cão negro que fecundou Roberta e
Paula, duas cadelas nomeadas por Regina em homenagem a duas ex-mulheres de
Catra. O cão totalmente branco frequentemente tem problemas em seus pelo e
pele, e como as pessoas brancas, dizem, é mais suscetível às doenças.
De volta ao salão, Célia fala que “até o modo de colocar implante de vocês

cabelo da pessoa com uma pistola de “cola quente”. Depois basta lavar a cabeça
que o excesso de cola sai e passa-se o pente normalmente, “como se fosse o
seu cabelo. Para Renata, o estilo da “branca” se vestir é “paty. O estilo “paty” é
também para elas o modo como as mulheres mais velhas ou casadas se vestem, as
“tiazinhas”, como colocou Regina, em outra ocasião, ao examinar uma das peças de
roupa que uma amiga de Karla trouxera para vender. Disse que a referida blusa,

como “paty”, dependendo de quem a usasse. Dessa perspectiva, o modo como as
“brancas” se vestem equivaleria sempre à indumentária de uma pessoa mais velha.
             
minha colocação, mas acaba por responder positivamente. Contudo, diz que ainda que
sejam modos muito distintos de se vestir, eles de alguma maneira se comunicam: “já
há uma aceitação maior”, e é mencionada a novela Duas Caras, que tem como um de
seus núcleos principais uma favela comandada por uma milícia, como é característico

cabeleireiro em que estamos. Pergunto então o que há de diferente, e dizem que se eu


empregados por minhas interlocutoras como “vocês” e “seu(s)”.
195
corpo que faz a diferença, e Renata fala que também não é o corpo, pois cada uma delas
 
pernas grossas e quadris largos; Renata é alta e toda cheia.
Célia diz que a diferença está no “jeito, e repete que o que eu visto não

nem usaria as roupas que uso. No máximo a bermuda que eu vestia – em jeans
escuro, sem qualquer lavagem, detalhe ou contraste de cor. Porém, não usaria com
“aquele salto” – uma sandália de plataforma não muito alta, forrada de cortiça e
tiras de cetim preto que cruzavam na parte da frente do pé – nem usaria com
aquela blusa – uma bata em tecido sedoso azulão. Célia comenta que agora eu ao
menos tenho usado bermuda, mas antes eu “só aparecia de calça”. Falo que não

que tem?!”. Digo que sim uso minissaia e que Tábata já me viu de shortinho, mas
ela diz que não, e eu a relembro que me viu usando tal peça de roupa em duas

baloné”. E eu falo que era esse modelo mesmo que eu vestia. Ela fala: “viu?”, mas,
continua, “você não usaria esses shortinhos jeans pequenininhos”, como elas
usam, e eu digo que ela tem razão.
19
Renata fala que o que mais se nota em uma mulher é o cabelo, se o cabelo


mostrando como acham a menina bela. E Tábata fala que ela teve muita sorte com
os cabelos, que são cacheados e sedosos. Era isso que a imagem tinha de especial,

uma pequena touca e quando se aproximavam para falar com a menina, ela retirava
a cobertura de sua cabeça e impressionava a pessoa, que encantada e deslumbrada,

aleatória: “também, eu pedi muito quando ela tava na minha barriga.
19 Nunca me privei de expor em campo o meu gosto pessoal em relação à moda de vestuário, Nunca me privei de expor em campo o meu gosto pessoal em relação à moda de vestuário,
pois sabia que assim como eu me interessava pelo modo como os meus interlocutores se
apresentavam, eles atentavam para a maneira como eu fazia o mesmo. Me utilizei, isto sim, do
modo como eu me vestia e adornava de duas maneiras: para provocar eventos e comentários e

Este era um equilíbrio delicado e preservá-lo garantiu a possibilidade de transitar com liberdade
em ambos os lados da casa, além de haver me permitido a própria possibilidade de concretizar
minha pesquisa.

Joana, com as mãos no cabelo de Tábata, conta que quando ela era jovem sua

cabelo “duro. Ela respondia à mãe que a vida era dela e aos doze anos saiu de casa
para trabalhar na casa de uma “família muito rica, em Ipanema, casa do “Doutor

pra trabalhar, através do qual apareciam somente “seus olhinhos”, de tão grande
que era a roupa e de tão pequena que era Joana. Ela conta que começou de “baixo
e foi galgando postos até chegar a cozinheira. Primeiro trabalhou como auxiliar de


Se casou e teve três meninas. Todo dia, antes de mandá-las para a escola, passava

do dia, seus cabelos estavam todos “cheios” de novo. Tábata a interrompe dizendo
que “sabe bem o que é isso. E Joana segue contando que foi assim “obrigada” a

tornando cabeleireira. O modo como as mulheres desenvolvem a capacidade para
cuidar dos cabelos parece diferente daquele que forma os músicos no estúdio.
          
os. As cabeleireiras, por sua vez, reforçam que foi o fazer e o re-fazer que lhes
ensinaram a sua prática, um aprendizado que se desenvolve nos moldes como se
dão as aquisições das “habilidades” [skills] em Ingold (2000).
197
Renata diz que “esse cabelo implantado” é uma “cachaça, um “vício. Que


um cabelo “enorme”, “até a cintura, e mostra com a mão a altura em que chegavam
seus cabelos. Os tais cabelos ela “ganhou” e depois os vendeu porque “precisava de
dinheiro. A prática de “dar” e “receber” cabelos de outras pessoas é usual, como

começou a colocar cabelo ao trabalhar com Regina, quando esta ainda morava no
Catete, próxima à “favelinhaonde Tina mora até hoje. Mesmo não trabalhando
mais com Regina, Tina continua amiga da família. Mas lamentava o fato de estar
desempregada. Havia a promessa de uma faxina, que lhe renderia cento e cinquenta
reais. Já sabia o que faria com o dinheiro. Cem reais usaria para colocar os cabelos
que herdaria de Tábata, e os cinquenta reais restantes empregaria para comprar


dá “graças a Deus” por ter “esse emprego”: “A tristeza da minha vida é quando
eu tô com esses cabelos duros. Pode faltar tudo, comida pra comer, roupa pra

saio. A cabeleireira penteia os cabelos de
Célia, passando-lhes “creme de pentear”,
próprio para serem aplicados após lavados
e enxaguados. Ela diz que o cabelo de Célia
está “quebrando muito, e recomenda que
ela use o conteúdo da ampola “AD forte”.
Célia fala, animada, que não se importa
que seu cabelo esteja “quebrando, pois
      
“dez”. Ela se levanta e anda em direção a
um grande espelho. Vai rebolando, com as
nádegas empinadas e gingando o corpo, e
fala que fará “sucesso” com “os novinho
de onde mora. Em breve, diz, sua “bunda,
que chamaram de “murcha, e sua “canela”
     
graças, também, ao emprego que Deus
lhe providenciou. Os cabelos de Tábata
igualmente recebem o “creme de pentear”
do salão, produto que ela decide comprar
para si e usar em casa.
198
O salão está prestes a fechar, e lá fora já é noite. Mas Célia e Tina estão
eufóricas. Querem passear pelo bairro. Atravessamos a rua e paramos em uma
loja que vende presilhas para o cabelo. Enquanto olho o que poderia levar, elas
já escolheram, pagaram e estão a caminho da rua. Vamos até o camelódromo de
Madureira. Célia quer cumprimentar seus colegas de tempos atrás, parece haver
trabalhado naquela região. Está se sentindo especialmente bem, e quer mostrar
isso aos outros. Seus cabelos foram cortados, estão bem penteados e brilhosos,
efeito do “reparador de pontas” que Renata passou após o corte. Tábata também
está contente. Fala que Joana lhe disse que seu cabelo cresce bem, que sua raiz é
boa de ser “domada” e que em três meses estarão no comprimento dos que estão

o couro cabeludo “respirar”.
Seguimos pela Estrada do Portela, em direção ao Madureira Shopping.
São quase sete horas da noite. Algumas lojas fecham e as barraquinhas dos
ambulantes vão tomando as calçadas. Entramos em uma grande loja de xampus,
cremes e esmaltes, chamada “Palácio da Mulher”. Buscam a ampola recomendada
à Célia e lhe informam que a mesma só é vendida em farmácia. Voltamos para a
rua e passamos por alguns camelôs, onde elas compram brincos. E continuamos
seguindo, até terminarmos nossa incursão no shopping local, comendo pizza e
bebendo guaraná.
A lógica da prótese
Os cabelos informam sobre uma noção de pessoa que ao mesmo tempo em

         
em “salões étnicos” da cidade de Belo Horizonte, rótulo que parecia ser evitado
por Tábata e Célia,
20
        
que poderia residir nos processos de embelezamento estará sempre presente,
na medida em que “por mais intervenções estéticas que realizem, esses “sujeitos
sabem que, mesmo apresentando-se alisado, pranchado ou alongado, o seu cabelo

Karla, Tábata, Célia, Regina e Tina não se nota tal cisão, como se houvesse uma



passávamos no trajeto das incursões à Madureira. A toda vez que tentei estimular uma conversa
sobre este último salão, o que se manifestou foi desinteresse, tanto em relação ao referido
estabelecimento comercial quanto em relação à conversa em si. As respostas às minhas
provocações foram sempre evasivas.
199

ou depois das ações embelezadoras. Não emerge dos seus discursos, orais e
corporais, o desejo de se fazer “passar por” branca. Ao contrário, desde o princípio

ou minimizar essa diferença, mas para re-inscrevê-la de um modo que atenda
ao seu gosto. Pois se os cabelos eleitos para alongar as mechas originais não são
nunca lisos, mas sempre anelados, é por desprezarem também uma época em que
as possibilidades de embelezamento eram restritas. Longos ou curtos, lisos ou
crespos, estendidos ou não, os cabelos precisam “sempre” ser tratados.
21
Edmund Leach destaca o potencial mágico dos cabelos, que não apenas
simbolizam poderes mas são efetivamente “potentes em situações mágicas”
(Leach 1983:159). Os cabelos, nota o antropólogo inglês, possuem uma quase
universal presença em rituais de passagem, mas, diferentemente do que ocorre no

Leach demonstra, através de uma série de exemplos e comparações entre teses

mudança de status sexual é menos devido à existência de uma universal relação,
inconsciente, entre cabelo e impulsos sexuais, mas
é precisamente porque o comportamento do cabelo abrange um
conjunto ritualmente compreendido de simbolizações sexuais
conscientes que ele desempenha um papel tão importante em rituais
do tipo rites de passage que envolvem a transferência formal de um
indivíduo de um status sócio-sexual para outro. (Leach 1983:159)
Poderíamos arriscar dizer, em analogia com o seu raciocínio, que é
justamente por saber conscientemente que o cabelo é estereotipicamente

tal identidade.
22
21 Peter Fry (2002), ao tratar de cabeleireiros ‘étnicos’ e do mercado dos produtos de beleza para Peter Fry (2002), ao tratar de cabeleireiros ‘étnicos’ e do mercado dos produtos de beleza para
negros, chama atenção para o potencial político que a “preocupação individual com a aparência
(Fry 2002:323) pode possuir. Apontando forte correspondência entre aparência e inner self,
considera que as mudanças de representação e auto-apresentação podem contribuir para a
erradicação da discriminação e da desigualdade e gerar uma “sociabilidade intensa” que leve à
“formação de uma identidade ‘negra’ coletiva que pode ir além do interesse comum de produzir
beleza” (Fry 2002: 324).

“uma forma de arte popular que articula uma variedade de ‘soluções’ estéticas para uma gama de
problemas criados por ideologias da raça e do racismo” (Mercer 1994:112) e é, depois da cor da
pele, “o mais visível estigma da negritude ” (Mercer 1994:113). Carol Tulloch (2004) igualmente
reconhece o papel que os cabelos tiveram como símbolo de opressão e resistência, mas enfatiza a
grande variedade de penteados oferecidos atualmente aos homens e mulheres negros e lamenta
que as extensões capilares sejam muitas vezes vistas como “fraudes” de identidade negra (Tulloch
2004:92-93). Lívio Sansone (2000), por sua vez, aponta o “cabelo negro” como um dos “novos
elementos e objetos por meio dos quais a cultura moderna negra se distingue dos meios culturais
dos não negros e da cultura afro baiana tradicional” (Sansone 2000:97).
200
Os cabelos resultam também de um consumo conspícuo, no sentido
de Thorstein Veblen (1983). Mas, ao contrário da conspicuidade dos objetos

em Célia que através de sua aparência comunicava que sua vida tomava novos
rumos. Mas não se trata apenas de conceder uma prova visual de felicidade e da
igualdade alcançada, como em Jean Baudrillard (apud Crary 1990:11). O consumo
ostentatório, mais evidente por meio do gasto que envolve a compra e a colocação
das longuíssimas extensões de Regina e Tábata, aproxima-as menos de classes
hierarquicamente superiores, como era a classe ociosa à época em que escrevia
            
criação de modas como empreendeu a emergente burguesia ao buscar inserção
e visibilidade na Sociedade de Corte francesa, como mostra Norbert Elias (2001).
Não se quer aqui tanto passar por “brancamas tampouco permanecer com um
cabelo que, entendem, as localiza em um lugar da falta e da ausência. Daí os cabelos
serem muitas vezes conspicuamente longos, pois devem desfazer uma imagem da
escassez, distanciando-as de um “gosto da necessidade” (Bourdieu 1984).
O modo como os cabelos podem ser facilitadores da circulação da pessoa

lhes permite penetrar espaços que seriam a eles tradicionalmente vedados. No

Como quando uma “amiga do Negão, de cabelos curtos e lisos, relaxados e depois
pranchados, como foram os de Lucia e o da cabeleireira que atendeu Célia, causou
estranhamento e fez questionar a apreciação que teria tido Catra por uma moça

Este tipo de avaliação talvez explicasse ainda o tom sutilmente pejorativo que

Mas o que une estas moças todas, ao meu ver, não é tanto o cabelo mas a
lógica da prótese e da transformabilidade que estes cabelos evidenciam. Pois a
mesma plasticidade que vimos no colocar e retirar cabelos, vimos também nas
unhas postiças de Joana, cujo uso visa não necessariamente encobrir unhas feias
ou fracas. As unhas de Regina, por exemplo, sempre chamaram a minha atenção
quando, em fase de troca, eu podia ver que as originais eram longas e fortes. Não
se trata, tampouco, de um consumo puramente ostentatório, pois a mesma Joana
das unhas postiças possui as suas curtas mechas há treze anos.
Falamos da produção de uma estética corporal segundo a qual a beleza não
é tanto dada como feita. A beleza no Funk não é produzida para se transformar no
outro, como nota Sonia Maluf para o transgênero, mas está igualmente ligada ao

contexto de estudo, do feminino. O manipular do corpo obedece à ideia de que
201
este é resistente às intervenções que nele são feitas. A hipotética cirurgia que

extraídos ou implantados, seios e nádegas colocados, lipoaspirações realizadas.
23
           
da pessoa e mais do que a pessoa. Não é apenas que elas são
extensões integrais às relações que uma pessoa estabelece, e

como composto desses instrumentos como ele é composto de

As próteses aqui estendem a pessoa e se são “extensões do corpo” (Santos-

desse corpo (Erikson apud
do self, são também constitutivas deste. Pois se os cabelos implantados são
preferencialmente anelados, escolher a sua coloração passa também por uma
adequação à cor da pele, como vi em Regina que, ao manusear as mechas que
seriam posteriormente colocadas, dizia que as tingiria primeiro, acrescentando
que “o meu cabelo não é dessa cor”, da cor que as mechas compradas apresentavam
originalmente. E o cabelo, como disse Catra, “depois que você [o] colocou é seu,
              
humano, mas a sua fusão com o corpo, a sua absorção por ele.


três diferentes tonalidades de cabelos na cabeça de Tânia. E diz que foi a moça que
“inventou isso. De início ela só usaria os cabelos herdados de Regina, que são de
tom acobreados e casam também com a pele de Tânia. Mas Tânia comprou ainda

pensei que aquele era um modo diferente de se tingir os cabelos. Era como um jogo
onde o encaixe das diferentes colorações de cabelo permitia que se tivesse uma
visualização antecipada do resultado a que se planejara chegar.
Taninha diz que as extensões, o mega hair, “fez com que os negros pegassem
os papéis principais”. Se refere às produções da TV Globo, e em especial a “Viver
a Vida, novela que ia ao ar no chamado “horário nobre” e que possui como
personagem principal a atriz Thais Araujo. Era a primeira vez que um ator negro
ocupava tal posição. Taninha diz que ao colocarem os cabelos “já não são mais
negros”. Eu continuo a escutá-la: “São morenos, mulatos… Mas não negros”.
23 Alexander Edmonds (2002) a partir de pesquisa sobre intervenções cirúrgicas embelezadoras Alexander Edmonds (2002) a partir de pesquisa sobre intervenções cirúrgicas embelezadoras
realizadas tanto em clínicas particulares como em hospitais públicos, atribui o crescimento do
número destas intervenções bem como a democratização a seu acesso à redução e facilidade de
pagamento do custo destas cirurgias.
202
Taninha segue falando sobre as angolanas que atende e me pergunta se

uma rota de “sacoleiras” que partem de Angola para comprar roupas no Brasil
que serão posteriormente revendidas em seus países de origem. Ela explica que
diferentemente das brasileiras, as angolanas querem cabelos o mais liso possível.
Alisam o cabelo e ainda passam prancha, conta, acrescentando que elas não molham
o cabelo sob qualquer hipótese, como ela faz ao trabalhar as mechas na cabeça de
Tânia. Separa com uma pinça de alumínio o pequeno tufo de cabelo desde a raiz do
couro cabeludo e o umedece com um borrifador de água. Taninha diz que “aqui”
todo mundo quer poder molhar o cabelo e querem cabelos anelados. Acredita que
as angolanas, por terem “o cabelo tão duro, querem-nos lisos a todo custo. Com
a novela, prevê, ao verem os cabelos da personagem principal – longos, fartos e
anelados – essa tendência deve mudar.
As mulheres no Funk não apenas fazem a própria moda como a disseminam
    
conversa que tivemos em meu retorno ao campo, o poder que possuem os objetos
de transportar as pessoas, de deslocá-las, de levá-las para outros domínios. É isto
que seguiremos vendo no próximo capítulo, mas de uma perspectiva outra. Uma
que mostra como os objetos não possuem apenas ações previsíveis, mas suscitam
eventos que não foram programados.
Capítulo 6
Os adornos masculinos
e as relações de gênero
204
Mulher pode tudo
Mr. Catra
No capítulo anterior procurei mostrar como os símbolos e representações
atrelados aos objetos podem ser manipulados para comunicar diferentes
contextos sociais e como é possível, através desta mesma manipulação, equivocar
o observador. Neste capítulo trarei uma dimensão outra da agência dos objetos:
o modo como eles podem desencadear eventos independentemente das ações e
desejos humanos. Em outros termos, procurei trazer à tona o modo pelo qual as
ações dos objetos podem produzir efeitos que estão fora do controle das pessoas
que o cercam. Ao mesmo tempo, discorrerei sobre os objetos que circunscrevem
o universo masculino em meu contexto de investigação e de que modo a cultura
material participa das marcações de gênero. A partir dos eventos desencadeados


propriamente utilizados por Mr. Catra e seus “parceiros”. E como desdobramento
desse foco empírico sobre os objetos que proponho chamar de masculinos,
seremos forçosamente levados a tangenciar as relações de gênero. Continuo,
assim, pela vertente aberta em minha dissertação de mestrado – a cultura material
que abrange os Bailes Funk – para promover uma discussão resultante do material
de minha pesquisa de doutorado.
A festa e a desambiguizadora estética corporal
Era aniversário do “de frente” do Morro do Borel. Como diziam os jovens,
era “dia de Borel show”, em comemoração ao aniversário do “responsável” pela

preso há mais de vinte anos.
1
O som na quadra de esportes estava altíssimo, tão
alto que ao vibrar em nosso corpo produzia uma incômoda sensação de coceira
em nosso canal auditivo, algo que eu nunca sentira em todos esses anos de
Bailes. Consequentemente, a todo momento precisávamos eu e as pessoas que
estavam comigo, tapar os ouvidos para aliviar o desconforto que sentíamos. Quem
1 Ser “responsável” por uma área ou favela no Rio de Janeiro refere-se ao seu “dono” ou aquele
que o “representa, protegendo a localidade e estando encarregado de seus negócios. O “dono de


morro” é preso. Em situações nas quais o “responsável” é um substituto do “dono” ele é também
chamado de o “de frente” da área.
205
comandava a festa naquela noite era Sandrinho, o DJ número 1 da companhia de Mr.
Catra, “cria” e morador do Borel. Com o passar da noite, o espaço foi sendo ocupado
pelos dançarinos, e os efeitos do som diluídos. Moças e rapazes estavam belamente
vestidos, com produções esmeradas. Os meninos, portando suas variações da roupa

serpenteavam em seus trens humanos, cortando a massa de dançarinos enquanto

2

mas em menor quantidade e de modo menos performático e homogêneo. Dentro
do baile, os rapazes se destacavam.

primo e de alguns de seus amigos, bem como de sua mãe, Nilda. Com a quadra
tomada pelos jovens, Nilda preferiu sair. Deixamos o grupo de adolescentes e

frente para o ginásio que abriga o baile. Juntaram-se a nós algumas conhecidas de
Nilda: 
blusa larga de tecido sedoso e estampado por motivo abstrato, em tons de marrom
sobre fundo claro; Pamela morena, de cabelos pretos e anelados, magra, vestia
uma calça jeans acompanhada de blusa e jaqueta brancas. Maísa nota que Nilda

“com o cabelo assim” e Nilda acrescenta que “não aguentava mais ter que”, naquele
frio, “entrar no chuveiro” com frequência para manter os cachos alinhados. De fato,
até então sempre que encontrara Nilda ela trazia seus cabelos curtos cacheados e
em tom acobreado. Nesta noite os cabelos de Nilda estão similares aos de Lucia
e ao da “amiga do Negão, como descrito no capítulo anterior: pretos e em corte
Chanel, acima dos ombros, lisos e escovados com as pontas viradas para dentro.
Enquanto conversávamos e bebíamos, dançávamos, como também se
seduzia. Escutamos a nova música do MC Didô vir do baile, e Nilda se empolga.
Bota uma rôpa
Bota uma rôpa
Fica bunda toda empinada
Os peito pontudo
Nóis pensa que ela é toda gostosa
Mas quando ela tira a roupa
Puta que pariu!
Cheia de furúnculo
3
2 Bebida pronta à base de vodka e aromas de limão.
3 Bota uma rôpa, de MC Didô. Faixa nº39 do CD 2 anexo.

Ela faz uma pequena performance, brincando com a música. Na passagem
em que é mencionada a “bunda empinada, ela requebra mimosamente os quadris,
rindo. Quando os “peitos” são referidos, ela novamente se vira em minha direção
e balança o tronco, empinado o tórax. E no momento em que o cantor grita “puta
que pariu”, ela simplesmente cai na gargalhada.
Em seguida é o próprio MC Didô quem passa, seguindo em direção à festa,
onde logo mais se apresentaria. Nilda o chama e me apresenta a ele, dizendo
conhecê-lo desde garoto, do morro. O rapaz é um mulato claro, de pele morena

e descolorido em tom de louro. Veste calça e jaqueta, um agasalho esportivo, em
tecido impermeável fosco, com diversos encaixes, nos tons vermelho, marinho e


de sua música. Ele a observa e fala “sossega mulher”. Nilda é uma mulher morena
e pequena, de quadris largos e seios fartos. Veste uma calça jeans da ACR bem
justa, em tom escuro, com os bolsos traseiros rebordados em linha bege acetinada,
      
malha “Bali”, com decote canoa, mangas raglan, em tom de cinza também brilhoso.
A blusa esconde as “gordurinhas”, como diz, de seu abdômen e é estampada pelo

que traz nas orelhas.
Da birosca, plantada sobre uma plataforma acima do nível da rua, era
possível observar o movimento dos jovens que subiam e desciam a ladeira que
dava acesso ao local da festa. Este ir e vir criava uma boa oportunidade para
as moças exibirem seus corpos expostos e realçados por roupas aderentes e
reluzentes, graças às aplicações de cristais e metais. Subir a ladeira, inclusive,
tornava ainda mais salientes as formas arredondadas de seus quadris. Aqui, ao
contrário do interior da festa, eram elas que sobressaíam sobre a homogeneidade
estética oferecida pelo corpo e indumentária dos rapazes.
Tânia e sua amiga se aproximam de nós. Esta última veste uma “Calça de
Moletom Stretch”, da mesma marca PXC que vimos em Karla e Lucia, simulando
um jeans em tom azul royal e o cós rebordado por cristais, com uma blusa em
malha fria ajustada ao corpo com alças formadas por correntes de metal prateado.
A estampa da blusa é curiosa, com motivo e cores que remetem às estampas de

ao invés de ser formada por manchas disformes como ocorre tradicionalmente,
o motivo é composto por pois, discos do tamanho de uma moeda de um real,
como os confetes de carnaval, mas que por suas tonalidades – em verde, cáqui e

207
se de uma versão da estampa militar subvertida pelos confetes de carnaval. Seu
cabelo castanho claro ou louro escuro, penteado com bastante creme, passava de
seus ombros e formava muitos e pequenos cachos. E muito me chamou atenção
a parte posterior de sua calça, com bolsos fechados por aba arrematada por um
“diamante”, uma pedra retangular, como um cristal prateado e leitoso, com as
suas extremidades lapidadas como as pedras preciosas. Uma pequena corrente
              
pendiam as pequenas letras PXC, unidas e formando uma única peça, igualmente
em metal prateado e com a letra X cravejada de cristais. Eu pego na tal corrente
pra ver melhor o que era o objeto em sua extremidade e a moça diz que era para
“entrar no clima. Ela dá uma rebolada, como só elas sabem fazer, remexendo o
quadril circularmente ao mesmo tempo em que jogando-o pra trás. Mostra-me
  
da dança, se movimentando junto com ela, como um pêndulo, não apenas indo
e vindo, mas também rebolando. Tânia, muito mais gorda do que a amiga, veste
roupa de estilo similar, mas sem tantos detalhes. A sua bermuda – bastante justa
e feita em jeans propriamente dito mesclado à lycra – também é rebordada por
cristais, mas talvez por serem de outro tipo, não são tão reluzentes. E a blusa que
traja, preta em malha fria, é pouco decotada e não possui adornos.
Joana de Vilhena Novaes defende que “as mulheres de classes baixas”
estabelecem uma “relação muito mais liberta, prazerosa e lúdica” com seus corpos
(Novaes 2010), enquanto que as mulheres das classes superiores se submeteriam
ao “dever moral de ser bela” (Novaes 2005). Mirian Goldenberg, por sua vez,
argumenta que “o culto ao corpo, produto de “coerções estéticas”, como observado
entre a classe média carioca, vincula “sucesso pessoal” e “autonomia individual” à
“exigência de conformidade aos modelos sociais de corpo” (Goldenberg 2002:9).
No ambiente em que investigo, diferentemente, não é possível compartimentar da
mesma maneira.
Em minha dissertação de mestrado   mostro como os
de dançarinas de grupos como o Gaiola das
Popozudas oferecem uma síntese de qualidade superlativa do ideal de beleza no


longe de serem inexistentes no ambiente em que venho investigando. O que ocorre,
entretanto, é que a sua existência não impede que as moças gordas, que não são
raras no Baile, exponham e usufruam de seus corpos de modo similar à maneira
como se apresentam as magras. A roupa justa usada por todas comunica não um
modus vivendi livre de coerções estéticas, como um olhar romântico pode querer

208
marcar radicalmente a diferença entre o feminino e o masculino, que por sua vez
é vestido pela roupa larga. É esta mesma lógica que faz com que, numa noite fria
como a no Borel, os homens lancem mão de seus agasalhos – como vimos em Didô,
como veremos em Rodrigo, e como Catra usava na van que nos transportava no
capítulo um – ao mesmo tempo em que as mulheres usam roupas não apenas
justas mas decotadas e curtas. A mulher não deve estar “tapada.
As potências do homem e da mulher, contudo, não residem apenas em sua

disposições agentivas do corpo. O poder do feminino, em discursos artísticos e
cotidianos, surge estreitamente vinculado à sexualidade feminina e à genitália
da mulher, e o poder do masculino ao seu correlato no homem. As diferenças
morfológicas, por sua vez, estão fortemente relacionadas ao estilo de roupa a ser
usada. Por este motivo, diz Mr. Catra, o homem não pode usar calças jeans justas,
             
deformado pela roupa que, em desacordo com as exigências do corpo, lhe surgiria
estranha, alienadora. Os corpos femininos super-expostos ou super-realçados
à estética dos corpos
masculinos, que, no ambiente Funk, devem estar encobertos. A estética corporal,
no que concerne as relações de gênero, é desambiguizadora.
209
Rodrigo, o MC Novim, primo de Tânia, passa por nós, dá um aceno e depois
se aproxima. Ele veste uma calça jeans ampla e uma jaqueta cinza clara, com as
costas estampadas por desenho em tom de cinza mais escuro, o mesmo que vemos
no avesso do capuz de seu agasalho. Rodrigo traz às costas uma mochila, em
material emborrachado branco, com leves riscos pretos e vermelhos, que parece
absolutamente vazia. Molda-se à sua roupa. Parece mais um detalhe de sua jaqueta
ao invés de uma acessório. Nos pés calça um tênis todo preto, sobre a cabeça traz
um boné vermelho e um pequeno brinco cravejado de cristais adorna uma de suas
orelhas. Indicando que notava o esmero de sua produção brinco dizendo que “até
de brinquinho” ele está. Ele ri e diz que não pode frequentar a “casa do Wagner”
usando brincos.
Cabelos como ornamentos
Através dos brincos e da brincadeira que faz com os mesmos, Rodrigo se
refere a toda uma estética indumentária que não agrada à geração de Catra, que

Rapaziada que é carecão não qué saber muito de caô não. Só
bigodão, cavanhaque que é o ritmo, pá, mais sério. Graças a Deus
a gente ainda tem aquele tradicionalismo.
O gosto de Rodrigo se constrói a partir de uma estética menos ascética que
usa e abusa das elaborações feitas no próprio corpo, o que pode ser mais bem
visto a partir de seus penteados.
4
Os “funkeiros”
5
, como Didô e Rodrigo, usam
t-shirt largas que recobrem

Compõem ainda o seu look com tênis de marca internacional e
4 O uso de tatuagens parece seguir uma lógica diferenciada da que rege a roupa e a estética
corporal. A sua dimensão de recurso potencialmente embelezador parece suplantada pelo
aspecto temporal. A incorporação de tatuagens é acompanhada pelo passar do tempo, de modo
que um corpo jovem, de pele lisa, tende a apresentar poucas tatuagens, ao passo que um corpo
maduro vai ganhando sucessivamente novas inscrições que são adicionadas como as próprias
marcas do tempo se fazem sobre a pele.
5 Sempre que o termo funkeiro surgir entre aspas é indicação que estou utilizando-o não como
designação para aqueles envolvidos na produção e consumo do ritmo Funk e sim como categoria
para recortar um estilo indumentário e corporal particular.
Nesta noite de inverno os dois rapazes vestiam a peça de roupa típica do “funkeiro” quando as

ambos vestiam, no entanto, não eram vestidas somente pela variação sazonal, mas igualmente
sinalizavam um estilo emergente no Baile, composto pela calça jeans ampla e por camisa pólo
listrada. À época de meu campo de mestrado, esse modo de se vestir era associado ao gosto dos

típica do “funkeiro, se vestiam como homens de negócio. Hoje já não é possível mais fazer
tal divisão, mas o interessante é que a associação entre o gosto cosmopolita e a roupa ampla
permanece regendo as escolhas indumentárias dos rapazes na festa.
210
adornos na cabeça. Estes últimos podem ser os bonés, que igualmente reproduzem
as marcas preferidas, ou seus cabelos artefatuais.
O gosto que cultivam esses rapazes pela indumentária global não é de hoje
e já foi cantado em uma música que se tornou um clássico do Funk.
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Eu no baile funk danço a dança da bundinha
Sou MC Dolores e criado na Rocinha
Eu no baile charme já danço social
Sou MC Markinhos muito velho em Marechal
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Eu sou funkeiro ando de chapéu
Cabelo enrolado, cordãozinho e anel
Me visto no estilo internacional
Reebook ou de Nike sempre abalou geral
Bermudão da Cyclone, Nike original
Meu quepe importado é tradicional
Se ligue nos tecidos do funkeiro nacional
A moda Rio funk melhorou o meu astral
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Eu sou charmeiro ando social
Camisa abotoada num tremendo visual
Uma calça de baile e um sapato bem legal
Meu cabelo é asa delta ou então de pica pau
No mundo do charme eu sou sensual
Charmeiro de verdade curte baile na moral
Os new jack swing
7
são a atração
Trazendo as morenas pro meio do salão
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
7 Tipo de ritmo musical tocado nos bailes charme.
211
Eu no baile funk danço a dança da bundinha
Estou me despedindo mas sem perdê a linha
Eu no baile charme já danço social
Estou deixando um abraço muito especial
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Markinho anda bonito e o Dolores elegante
8
      griffes estrangeiras e a concomitante
indústria da imitação que o acompanha. A “moda Rio Funk”, como descrita,
apresenta poucas variações quando a comparamos com a indumentária Funk
atual. O seu correspondente “estilo internacional” é muito similar ao seguido pelos
garotos bem nascidos da classe média carioca, os “playboys”. A categoria “playboy”


dos rapazes com os quais conversei como aquele que “tem condições”, graças à

fazer “nada pra ninguém”: estudam, vão à praia “surfar” e saem à noite para “curtir
boate”.
9
A diferença entre o gosto dos “funkeiros” e o “estilo internacional”, no
entanto, começa a se fazer notar quando deslocamos o foco do design das roupas
e o transferimos para a manipulação que é feita dos elementos verdadeiros ou
falsos para compor sua estética. São as distintas relações com a autenticidade que
irão conceder a marca estilística da indumentária masculina Funk. Os “funkeiros”
realizam poucas variações na composição do conjunto de roupas trajadas,
especialmente em comparação com a grande variedade de modelos que compõe o
vestuário feminino. O grande investimento dos rapazes recai sobre os acessórios,
aí incluídos os cabelos e os tênis, além dos bonés, chapéus, colares e aparelhos
de telefones celulares. Os tênis devem ser, sempre que possível, de marcas
8 “Rap da diferença, de MC Dolores e MC Markinhos. Faixa nº40 no CD 2 anexo. Esta canção é

(www2.uol.com.br/bigmix), equipe de som do DJ Marlboro, o mais conhecido disc-jóquei de Funk
no Brasil, e cada vez mais renomado internacionalmente. Para maiores detalhes sobre a trajetória



mostrou a música do MC Maiquinho no capítulo cinco. Contudo, é possível dizer que a categoria


que, ainda no meu campo de mestrado, referia-se a um colega seu, morador de uma favela, como

exteriores à favela.
212
estrangeiras e genuínos. Só em último caso se recorrerá aos simulacros oferecidos

trazem em suas roupas, mas sim que aqueles com renda muito restrita se esforçam
para ostentar a griffe ao menos em uma das peças de sua indumentária, e a peça
eleita é invariavelmente o tênis que trazem em seus pés.
A imitação de roupas e tênis é feita como uma busca pelo real, uma cópia

produto propriamente dito, como também as etiquetas internas de tecido e as
tags, as etiquetas externas feitas de plástico ou papelão. O tênis, nesse contexto,
sintetiza o esforço de atingir não apenas o autêntico mas o idêntico. E como as
roupas, em sua maioria reproduções
de originais compradas em mercados
informais da cidade, poderiam ter
sido adquiridos em qualquer parte do
mundo. Diferentemente, os adornos
     
particularidade de uma estética.
A base dos cortes usados pelos
rapazes “funkeiros” é, de maneira
geral, uma só. A primeira etapa
constitui em cortar o comprimento
do cabelo com a tesoura, mantendo a
região do alto da cabeça mais densa
em função do maior comprimento de
     
    
para então se dar contorno ao corte,
ao se fazer o “pé” do cabelo e as costeletas, um trabalho minucioso, realizado
manualmente com o uso da navalha. A aplicação de tintura, quando realizada,
é a etapa seguinte do trabalho. Inicialmente os cabelos são descoloridos, para
que então seja aplicada a “tinta, concedendo ao cabelo o tom que se quiser:
avermelhado, amarelado, branco, etc. Pode-se ainda salpicar o cabelo por pontos
descoloridos, e nesse caso é necessário colocar sobre a cabeça do cliente uma

os tufos de cabelos sobre os quais se passará a mistura de pó descolorante e água
oxigenada, que retirará a cor do cabelo. O tom desejado será adquirido, então, com
o tingimento.
           
trabalho, após os cabelos haverem sido cortados e tingidos, se for o caso. Nesta
213
etapa, o barbeiro faz as elaborações sobre a cabeça dos rapazes se utilizando de

“máquina um. Os motivos são variados – “corrente”, “tribal”
10
, “tribalismo, que é
um conjunto de “tribais”, “teia de aranha” – ou reproduzem as marcas esportivas
dos calçados masculinos.


Tanto pelo aspecto feito que um cabelo loiro, vermelho ou branco denota sobre uma
pele negra, mulata ou morena, como pela ornamentação barroca dos desenhos Pois
diferentemente das mulheres, eles não
buscam adequar a cor de seus cabelos
ao tom de suas peles, nem tampouco
elegem como marca de localidade um
objeto removível, como fazem as moças
com a “Calça de Moletom Stretch”.
As mulheres constroem uma
estética corporal mais ambígua quando
está em jogo a potencialização de sua
circulação pela cidade. Os rapazes, por
sua vez, possuem um gosto que pode
ser dito híbrido, pois funciona em
dois registros: as roupas e os tênis são
imitativos mais em acordo com a mimicry
de Bhabha (1998) e os cabelos ao modo
da mimesis de Taussig (1993). De um lado temos roupas que poderiam ser descritas
como se resultantes da chamada pasteurização que a indústria global produz sobre
as escolhas de consumo. De outro, seus cabelos, que não podem ser retirados em
sua circulação pela cidade, tendem a localizá-los em uma identidade “funkeira”. E
é esse hibridismo, que coloca lado a lado o muito igual e o muito diferente, que
desconcerta o olhar estrangeiro, o olhar “gringo”, o olhar de fora. Como me disse
Emanuel, ao imaginar o modo pelo qual reagiria o “playboy” ao ver um “funkeiro
no Baile:
Por exemplo. Se eu chego no baile com meu cordão de ouro, tal.
Minha bermuda cara, meu tênis caro. Eu vou ver um tênis igual
ao meu, só que falso. , se eu ver um tênis igual ao meu falso, eu
vou falar: ‘Caraca, que maluco’!
10 Idêntico aos desenhos das tatuagens de mesmo nome, que formam linhas sinuosas e Idêntico aos desenhos das tatuagens de mesmo nome, que formam linhas sinuosas e
espiraladas, que se entrelaçam. Estas tatuagens são geralmente realizadas sobre o músculo do
bíceps dos braços masculinos ou na região do cóccix feminino.
214
Os “playboys”, contudo, mesmo que os copiem em seu modo de falar, dançar
e andar, não podem, dizem os “funkeiros”, imitá-los de fato graças às diferentes
materialidades que possuem seus cabelos. Os primeiros trazem o cabelo “sempre

poderiam fazer-nos pensar que a indumentária masculina Funk é calcada na
imitação prestigiosa (Mauss 2003), ou que obedeceria a lógicas distintivas (Simmel
1957; Bourdieu 1984), os penteados derivam de um processo simultaneamente
mimético e criativo, que produz a diferença através de uma cópia que não é pura
cópia. A materialidade dos cabelos evidencia a escolha de uma estética que se


autenticidade. Entre os cabelos dos rapazes, a cópia não tem papel espúrio, nem
está por oposição ao autêntico, como em Sapir (1949), mas é componente ativo do
mecanismo criativo.
Bruno Latour (2002), ao tratar das diferentes percepções que o ídolo suscita
no encontro colonial, chama atenção para o papel que a condição de feito possui
para os efeitos que um objeto pode causar e para as atribuições de agência que
lhe são feitas pelos humanos. O poder da imagem religiosa, defendem os “nativos”,
reside precisamente no fato de a mesma ter sido feita por mãos humanas, e não
por ser produto do mundo sobrenatural, como preferiria a racionalidade cristã.
Já os jesuítas, não podiam suportar a ideia de um objeto simultaneamente feito e
dotado de agência divina. Ter sido fabricado pelo homem, diriam, tornaria os ídolos
uma farsa, uma vez que seus criadores, ao mesmo tempo em que reconheciam
que os mesmos não eram obra divina simultaneamente acreditavam em sua


própria condição de feito e não na de dado.
11
Os cabelos dos rapazes, ao mesmo tempo em que conferem autenticidade
e concedem a marca estilística da estética indumentária masculina, se constituem
no aspecto mais evidente da fabricação. Subvertem o cabelo loiro do “playboy”,
através de uma ação que imprime características falsas, no sentido que feitas e
artefatuais, aos seus cabelos, como os tons loiros, vermelhos e brancos que não
possuem “originalmente” e todos os cortes e recortes que são feitos sobre os
pelos da cabeça. Os cabelos dos “funkeiros”, ao persistirem no “detalhe que dá a

Gilles Deleuze (2005), ao tratar da imagem no cinema, substitui o poder da

11 Lagrou (2009a) aplica esta importância do fazer notada por Latour à sua análise da estética Lagrou (2009a) aplica esta importância do fazer notada por Latour à sua análise da estética
ameríndia.
215
o orgânico e o cristalino. Se no primeiro ocorrem desenvolvimentos encadeados

o falso, o sonho, surgem como dissociados da realidade concreta e sempre por
             

narrativa realidades “compossíveis”, passíveis de serem unidas somente no plano
das imagens, como o cabelo liso e loiro do “playboy” e o cabelo crespo e preto do
“funkeiro”. Desta maneira, o falso permite ao cineasta, ao artista, ou ao sujeito que
manipula o repertório imagético, explicitar o seu ponto. O falso e o verdadeiro
são, assim, manipulados pelo “funkeiro” de modo a expressar o sentimento
duplo de fascínio e desprezo pelo “playboy”. Uma relação ambígua que envolve
simultaneamente cobiça pela vida confortável e rejeição por aquele que depende
do pai para viver.
O cabelo masculino Funk, ao fazer uso da sua materialidade para a


feito. Os meninos “funkeiros”, ao contrário, são assertivos ao comunicarem, por
meio de sua estética, que se suas roupas são idênticas ou muito similares às que
também usam o “playboy”, seu rival máximo, o seu gosto é imitativo até certo
ponto. Pois a diferença evidenciada por seus cabelos, que não são simulacros de
cabelos loiros mas cópias miméticas, avisam que querem e podem ter as mesmas
coisas, mas as querem ao seu modo (Mizrahi 2007a). Os cabelos não devem
ser vistos como falsos, na medida em que não possuem a intenção de simular
           


pode ser entendido como político. Se os elementos que compõem a indumentária
dos rapazes poderiam gerar a impressão que o seu uso produziria uma estética
globalizada e similar àquela também usada pelo “playboy”, os seus penteados
constituem uma marca visual da diferença que buscam.
A tensão entre falso e verdadeiro que os cabelos epitomizam, ao reterem
e materializem a marca de localidade , diferencia-os do “estilo
internacional” e imprime autenticidade à apropriação dos elementos tomados de
empréstimo ao “playboy”, ao gosto global e à “pista, constituindo uma estética
           
diversidade local (Sahlins 2004).

Tiros que articulam o social
São quatro horas da manhã no Borel e a festa está chegando ao seu auge.

branco e vermelho, esta última a cor da facção que controla as atividades ilegais
locais. Ocorre uma pequena interrupção e nova sequência de fogos acontece, desta
vez composta por esguichos dourados de luz que cortam o escuro do céu. Novo
intervalo se estabelece, acompanhado de um breve silêncio, se assim é possível
dizer de um local que margeia um Baile Funk, e começamos então a ouvir estouros
abafados. Alguém comenta que são ruídos de tiros de armas de fogo, outra pessoa
diz se tratar do som de morteiros. Mas em seguida temos certeza que ouvimos
tiros. São esparsos, como se produzidos por pistola.
Maísa diz que não gosta de tiros. Nilda diz que “pra cima, adora. Maísa
e Pamela, ambas residentes do morro e amigas de Nilda desde o tempo em que
esta ainda morava no Borel, retrucaram lembrando-lhe que “tudo que sobe desce”.

que a polícia anda matando, principalmente nessa área da Tijuca. De dentro do
baile ouço vir a voz de Duda do Borel, MC famoso e “cria” da comunidade. Digo a
Nilda que gostaria de entrar para assistir ao show, mas ela não se mostra muito
      
“conversando com os amigos”. Como entendi que coube à Nilda a função de me
ciceronear naquela noite, achei que seria indelicado romper com aquele código
tácito de etiqueta e permaneci ao seu lado.
Logo os tiros recomeçaram, e desta vez soaram como rajadas de fuzil. A
minha vontade de entrar no baile recebeu estímulo adicional, mas mantive-me
quieta. Maísa se mostra apreensiva, e diz que o som parecia vir “de baixo”, do
início da rua. Mas Nilda diz que não, que trata-se do eco produzido pela rua em
curva e o modo como acomodam-se as construções. Como prova do que fala,
ela nos mostra a tranquilidade com que as pessoas se movimentam em frente

para Maísa que pare com seus comentários pois irá “assustar a minha amiga. Os
tiros continuam, e Maísa insiste em verbalizar o seu medo. Sugere-se então que
passemos para o “pagodinho, um pequeno salão luminoso, de pisos e paredes
revestidos de cerâmica clara, onde toca o “Suingue”, o “Pagode Romântico, uma
espécie de samba melódico e romântico. Na televisão acomodada em um suporte
preso ao teto, passa o videoclipe da música que escutamos, e pelo salão evolui um
par de mulatas curvilíneas, dançando sinuosamente com seus corpos enlaçados e
ao som da canção.
217


tiros terá. Digo a Nilda que estou preocupada com o meu horário, e relembro-a que
preciso estar às seis horas da manhã no hospital, para render uma de minhas irmãs
que acompanha meu pai em um pós-cirúrgico, e que se tiver que esperar para que
voltemos todos juntos corro o risco de perder a minha hora. Nilda duvida de minha

disse-lhe que não eram os tiros que me tiravam mais cedo da festa.
Vejo um táxi parado na subida da rua, e pergunto a Nilda se lhe parece
adequado que eu o utilize. Ela responde negativamente, explicando que estes
motoristas que vêm ao baile estão sempre “doidões”: bêbados ou drogados. Nilda
e Maísa dizem que é melhor que eu tome a minha condução na “pracinha, uma

da Tijuca, o bairro que abriga o Morro do Borel.
Descemos a pé pela rua que mais cedo cruzáramos de carro. Nilda,
aparentemente tensa com a via escura e deserta, pede a Maísa que ande mais rápido,
reclamando dela e de sua “bolsinha de piranha”, o objeto que a amiga segura em
uma de suas mãos por sua alça curta, ao mesmo tempo em que procura equilibrar

um mendigo que logo ao início da noite eu vira circulando pelo baile. Em seguida,
tomamos um atalho à esquerda, cruzando uma espécie de galeria a céu aberto,
um “camelódromo” onde ambulantes durante o dia recheiam de mercadorias as
barracas que víamos vazias e formavam àquela hora um beco escuro. Uma senhora
vem em nossa direção. Não aparenta ser funkeira. Está vestida e penteada como
uma evangélica, com seus cabelos escuros divididos ao meio e presos em coque
baixo, sem qualquer adorno ou maquiagem. Ela, muito magra e parecendo bêbada,
pergunta à Nilda onde é o “Samba. Nilda lhe responde que não há “Samba” nenhum
por ali àquela hora, mas um “Funk”, lhe indicando o local.
Chegamos à “pracinha” e os tiros recomeçam. Maísa se apavora e nós
nos abrigamos na frente de uma banca de jornal que jazia solitária na ponta do
pequeno largo que se forma entre uma das extremidades da praça e a rua Conde de


esquerda, reclamando com a amiga que ela “nem parece cria, nem parece criada
no morro. E resmunga novamente com sua voz manhosa: “assim você vai assustar

função do horário e não do medo. De fato eu já estava menos tensa.
Um táxi, após desembarcar alguns passageiros na quadra anterior, se
aproxima de nós. Eu comento com minhas colegas que o carro não possui qualquer
218
número de registro pintado em sua lateral, como é costumeiro nos táxis que fazem
parte de cooperativas. Maísa me responde, dizendo: “mas tem placa. Nilda se
aproxima do carro e através da janela entreaberta ao lado do banco do carona
pede ao motorista “que deixe a minha amiga direitinho em casa. O motorista ri e
diz a ela que não se preocupe. Enquanto isso eu vou até a parte posterior do veículo
para registrar o número de sua placa, e Maísa me avisa que “já está guardado,
dando a entender que não era preciso eu ser tão explícita.
Entro no carro, acompanhada de novas recomendações feitas por Nilda ao
motorista para que este tenha cuidado no trajeto. Ele dá a partida no motor e me diz
que se conseguíssemos sobreviver ao tiroteio que assolava a região chegaríamos
em casa sãos e salvos. Procurando acalmá-lo, disse-lhe que não haveria problema.
E fazendo minhas as palavras de Nilda, acrescentei: “hoje é dia de festa. Sentada no
banco do carro eu assumia uma nova perspectiva e traduzia assim para o motorista
o que poderia ser o ponto de vista da favela. Mas eu veria ainda que outros tantos
eram possíveis, e as implicações dos tiros poderiam ser muitas outras, articulando
ainda tantos outros mundos.
Passei alguns dias pensando no que poderia ter me causado tanto medo.
            
Nilda, era “dia de festa, dando a entender que os tiros deveriam ser tomados

supor que do mesmo modo como ali começaram, ali terminariam. Mas como suas
amigas alertaram, “tudo que sobe desce”. Os tiros não caem no vazio e possuem
consequências. Eles não apenas me causaram medo, como abreviaram a minha
permanência na festa, desencadearam os acontecimentos na “pracinha” e a minha
conversa com o taxista. E teriam a possibilidade de produzir novos eventos, como
uma outra conversa deixaria claro.
Dois dias após a festa no Borel, fui até a casa de Regina lhe fazer uma visita
de cortesia. Era seu aniversário e, de acordo com os meus cálculos, faziam duas
semanas que eu não aparecia por lá. Regina mora a cerca de quarenta e cinco
quilômetros de minha casa, na Zona Sul da cidade, o que me rendia cerca de uma
hora e meia dirigindo em meu carro, e a outros tantos quilômetros da favela do
Borel, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Mas Regina conhecia bem as realidades não
tão estanques que repousam por trás de rótulos que dividem a cidade em áreas

em diferentes bairros da cidade, em imediações de favelas ou não, e já tivera o seu
salão de cabeleireiro instalado no Morro do Jacaré. Regina era, em uma palavra,
“contemporânea, termo que ela mesma gosta de empregar para descrever aqueles
que transitam com facilidade por diferentes ambientes estéticos e sociais.
219
Como de costume, eu estacionara meu carro sobre a calçada que margeia
o muro da casa, Regina acabava de sair de seu carro, estacionado mais à frente e
do mesmo modo que o meu. Ela vestia um dos dois vestidos que vinha trajando

branco e azul petróleo, de modelagem ampla e sem mangas, fazendo o que a
indústria da moda chama de “linha A. Os seus cabelos cacheados e acobreados
estavam presos ao alto da cabeça por uma “piranha” em um coque cujas pontas
pendiam. Regina não esboçou em sua face qualquer emoção ao me ver e, dando-
me as costas, seguiu falando com Das Sete que, além de ser músico, atendia à casa
em alguns momentos. Ela entrou pelo portão e aguardou na trilha do jardim que
eu cumprimentasse Das Sete que, com um skate na mão, me perguntou: “como
vai a senhora?”, e me convidou para que mais tarde fosse até o estúdio ver a nova
produção que realizava. Respondi-lhe que não garantia que iria até lá, pois hoje a
visita era para Regina.
Regina, malgrado o fato de “detestar” fazer aniversário, como me dissera,
tirara a tarde pra fazer sobremesas. E depois da gelatina de uva, preparava agora
uma musse de maracujá, ao mesmo tempo em que íamos conversando amenidades,
que versavam sobre desde as receitas que ela executava até a última vez em que eu
lá estivera, o que de acordo com Regina havia ocorrido há três semanas.
O bolo que Regina batera está agora no forno e ela lava a leiteira onde
fervera a água para fazer a gelatina. Aproveito a casa calma e o clima relaxado pra
dizer que estive na festa do Borel. E Regina, com a mesma expressão neutra que
apresentara ao me receber, pergunta, em tom de quem já sabe a resposta, se eu

indiferente ela diz: “aquele baile não é seguro pra você” e acrescenta que Wagner,

Tábata houvesse consultado o pai antes de decidir ir à festa, mas vejo que não.
Continuamos a conversa e Regina explica que como os chefes da comunidade
não “dão arrêgo, não pagam propina, a polícia, ao ouvir os tiros dados pelos
bandidos “sobe o morro. E como o baile é ilegal “eles”, os policiais, entram “dando
tiro, sem se preocupar com as pessoas na rua. Ela acrescenta que o baile do Borel
tem uma única entrada, o que torna ainda mais complicado sair de lá em momentos


me convencer dos perigos reais que ela acreditava que eu corria.
Regina continua em sua explanação. Explica que o Borel é separado apenas
por uma rua de um “morro alemão, uma favela controlada por uma facção rival.
Os chefes deste último, por sua vez, ao ouvirem os tiros entre policias e bandidos
inimigos, entendem que seus rivais estão em posição vulnerável. A “invasão” da
220
polícia se constitui assim em desculpa para uma segunda “invasão, feita pelos
bandidos do Morro da Casa Branca. O caos está armado.
A tarde passou assim, suave. E entre uma ida e outra à cozinha, sentei-me

favela. Aproveito para dizer-lhe que quero ir ao Jacaré, a favela na Zona Norte,
ver o comércio informal local, que soube ser muito interessante e rico. Regina
novamente diz que “lá não é seguro” para mim. Digo-lhe que não fotografaria.
E ela diz: “você não fotografa, mas você olha. Em alguns momentos tivemos a
companhia de Valéria, a prima que passava a semana em sua casa, como fomos
permanentemente acompanhadas pelas imagens emitidas pela grande televisão
de plasma ligada na sala de estar.


Regina, de costas para ele, de costas permaneceu, sem se virar para cumprimentá-
lo. Ele me cumprimenta com dois beijinhos, vai até a sala e volta à cozinha,
mostrando à esposa o fumo que trazia e, sorridente, lhe dá os parabéns. Regina
nada lhe diz, e as crianças invadem a cozinha, recepcionando Catra efusivamente,
, chamava-o de pai.
Ele se senta à mesa de jantar e enquanto conversamos prepara o seu cigarro.
Aproveito para fotografar o boné que ele usa e que deixara sobre a mesa. O boné
é preto e traz rebordado em sua frente a frase “OTRA VIDA, em grandes letras
brancas e sem a letra U que, de acordo com a norma culta da língua portuguesa,
deveria constar na primeira de suas palavras. Sobre
a frase em branco está bordado em preto um fuzil.
E conforme fotografo o boné, Catra segura-o com a
mão, facilitando o meu trabalho ao mesmo tempo
em que insere na imagem que produzo o seu
cigarro alternativo. Uma outra vida construída por
uma estética “otra.
Catra logo sairá para mais uma de suas
turnês noturnas, e Regina, me chamando de “nem,
corruptela de “neném” que se converteu em nome
carinhoso utilizado tanto no trato com crianças
como com adultos quando se quer abordar algum
tema delicado, me pergunta se eu acompanharia Valéria até o banco para que
Catra tivesse mais tempo em casa antes de sair para trabalhar. Eu lhe respondi que
sim, não haveria problemas. Conversando com Valéria aguardei Catra e Regina que
conversavam serenamente sentados à mesa próxima à churrasqueira do jardim.
221
Partimos para o banco. Em meu carro íamos
eu e Valéria, além das quatro crianças sentadas no
banco de trás, enquanto Catra seguia só em seu
veículo. Cerca de vinte minutos depois chegamos
à agência do banco, onde Catra saltou do carro, foi
até o caixa eletrônico e voltou com um maço de
dinheiro na mão. Valéria, a quem ele entregaria o
dinheiro a ser dado a Regina, sentava ao meu lado,
no banco do carona. Mas Catra deu a volta pela
frente do meu carro e, colocando-se ao meu lado,
contou as notas que segurava. Através de minha
janela, esticou sua mão em frente aos meus olhos
e entregou o dinheiro nas mãos de sua parente.
Alguns meses depois, essa mesma presença do
dinheiro nos recepcionou de modo ostensivo ao
chegarmos à favela da Mangueira.
Outros adornos masculinos
Já amanhecia, e depois de haver feito seis shows, Catra nos propôs que
fôssemos até o Baile Funk da favela em São Cristóvão. Nesta noite, ao invés de nos
deslocarmos todos juntos em um único carro, como fazíamos quando saíamos de
van, cruzamos a cidade divididos em quatro diferentes carros de passeio.
12
Ao chegarmos à Mangueira, Catra estaciona o seu veículo próximo à rua
que dá acesso ao baile, e nós estacionamos logo atrás. Ao sair do carro eu pergunto
à ele se pagaria agora ao guardador que nos cercava e qual seria o valor adequado,
para que eu tivesse um parâmetro sobre o que deveria fazer com relação ao
meu carro. Sem emitir qualquer palavra, ele tira do bolso de sua calça um gordo
maço de notas de dinheiro, composto por outros maços menores, presos por um
elástico em cruz. Segurando em uma de suas mãos e sem qualquer preocupação
em esconder o amarrado de dinheiro, ele leva a este sua outra mão e separa uma
nota de cinquenta reais. Em seguida pergunta ao guardador se ele teria trinta reais
para lhe dar de troco e paga por ele e por mim.
Vamos andando em direção à entrada do baile, que acontece ao ar livre e
ao longo de uma rua comum, cujas calçadas são ocupadas por quatro diferentes e
subsequentes “equipes de som”: paredões de auto-falantes que emitem a música
12 Nas ocasiões em que nos deslocávamos em um “bonde de carros” meu carro poderia ser Nas ocasiões em que nos deslocávamos em um “bonde de carros” meu carro poderia ser
dirigido por mim mesma, por meu companheiro ou ainda por um dos seguranças de Catra.
Invariavelmente eu levava comigo outros membros da entourage de Catra.
222
Funk que é tocada por seus respectivos DJs. O
início da rua está vazio e estão postados em
cada um de seus lados três garotos, um atrás do
outro e separados alguns metros de si. Vendem
drogas. Gritando, oferecem “papel de cinco e de
sete”. Cada um deles segura em uma de suas mãos
sacos plásticos transparentes e incolores que nos
deixam ver o conteúdo resultante das transações
         
para entregar a droga e receber o dinheiro, que é
em seguida inserido no saco plástico. Catra pára
em frente a um desses meninos, chamados de
“vapores”, leva a mão ao bolso e novamente traz
à tona o seu bolo de dinheiro. Subimos a rua e ele
pede à Karla que lhe prepare um cigarro. Esta,
além de assistir à Regina em casa era também
uma espécie de braço direito de Catra.
Atingimos o centro da festa. São quase seis horas da manhã, o dia está claro
e a rua lotada. Catra deixou no carro o chapéu de risca de giz que usou ao longo

careca escura e reluzente torna fácil a tarefa de acompanhá-lo à luz do dia. A roupa
que ele veste é mais uma variante das que traja nas noites de turnê: porta um jeans
escuro amplíssimo e uma blusa t-shirt branca de mangas longas e em proporções
igualmente grandes. Usa o seu colar cuja corrente
resulta do encaixe de grandes placas de ouro, de
formatos que alternam hexágonos e estrelas de seis
pontas, emoldurando ao centro a cara de um leão.
A estrela de seis pontas é uma estrela de Davi e
o rosto ao centro do colar é do “Leão de Judá,
referências ao fato de ele ser hoje “hebreu”.
13
Em seu pulso esquerdo ele traz um grande relógio
também dourado, que me parece ser de ouro maciço,
e em seu outro pulso carrega uma pulseira feita
das mesmas placas de ouro que formam o colar ao
pescoço. Os dedos são adornados por diversos anéis,
sempre em ouro, como o que traz ao topo a grande
estrela de Davi cravejada de pedras brilhantes e

“ventre judeu” (Mattias 2009).
223
incolores, colocado ao seu dedo indicador, ou o que reproduz o rosto de um leão, colocado
no dedo anelar da mesma mão.
A indumentária de Catra, como de muitos MCs de Funk, se inspira no visual
dos cantores norte-americanos de Hip-Hop, no vestuário dos jogadores da liga
norte-americana de basquete e na moda skate, resultando em peças muito amplas,
muito mais do que as já amplas roupas usadas pelos meninos “funkeiros” e pelos
jovens MCs. Existe também uma diferença nas marcas usadas. Catra e seu grupo
privilegiam as marcas nacionais mais associadas ao Hip-Hop, como as paulistas
Manos, Blunt e Otra Vida. As marcas que usam os jovens “funkeiros”, por outro
lado são preferencialmente “gringas” e associadas ao surfwear. Mas é certo que
existem pontos em comum. A marca Ecko Unlimited, por exemplo, é usada por
Catra e por seus parceiros e é ao mesmo tempo muito apreciada pelos “funkeiros”.
Como a marca Osklen, ela originou um grupo de cantores e dançarinos, nomeado
a partir do símbolo da marca, um rinoceronte. Além da diferença de modelagem e
marcas, há também uma variação nas cores usadas. Em Catra e no Hip-Hop há um
predomínio do preto e dos tons metálicos, e a presença das cores básicas amarelo,
vermelho e verde. Já entre os “funkeiros” há um uso mais sóbrio das cores, que
gira em torno de azul-marinho, preto, branco, vermelho e cinza. O repertório das
roupas que Catra usa versa sobre elementos que, novamente, parecem reproduzir
o gosto estrangeiro. Mas os usos locais produzem seus próprios deslizes.
Diferentemente das mulheres, que produzem sua própria moda, os homens
aparentam atualizar sobre seu corpo uma tendência global, seja ao seguir o gosto

usos locais da indumentária Hip-Hop, os excessos do estilo “Bling”, que denomina
o modo pelo qual os rappers norte-americanos se adornam, recorrendo a grossas
correntes e grandes brincos de diamantes, além de outras jóias, assumem
contornos particulares. De modo que o chamativo “cordão” de Catra passa de
            

interartefatual, a partir da interconexão entre os artefatos e no qual qualquer
exemplar de um corpus estilístico remete ao todo. Não há um objeto ou motivo
do qual o todo estilístico derive, mas todos são transformações uns dos outros.

totalidade contida no holograma, o elemento permite reconstruir o todo, que por
sua vez não é visto como “uma coleção de objetos separados, mas apenas um objeto

Na Mangueira, enquanto dançamos, curtimos e bebemos de pé sobre a
calçada, observamos o movimento e as pessoas, exatamente como ocorrera há três
meses no Borel. Fazemos isso cercados pela música Funk, pelo cigarro que circula
224
e ao invés de cerveja, bebe-se “uísque e Red Bull”, a famosa mistura da bebida
de origem escocesa e energético que invariavelmente está presente nas noites de
Catra, como já víramos com Regina, e é associada aos artistas do meio. O uísque, em
especial o Johnnie Walker Red Label, é outro importante componente da cultura
material que cerca o Funk.
Ao nosso lado dança um “gerente
      
com seus olhos fortemente maquiados por
sombra colorida e cintilante e desenhados por
delineador e máscara pretos. O rapaz tem pele
clara e cabelos acinzentados e crespos. É forte e
veste uma calça jeans ampla e escura, mas não
tão larga como a que veste Catra, além de possuir corte diferente. Se assemelha ao
estilo “semi-baggy, ou “carrot-cut” usado por hip-hoppers berlinenses (Ege 2010),
de cintura alta e ajustada, pernas de corte amplo e afuniladas em suas extremidades.
O seu torso está desnudo, o que não é raro entre os rapazes musculosos que
frequentam o baile.

como o chamarei aqui, veste um
“cordão” de aparência e espessura
similares às dos cabos de aço que
seguram elevadores. Feito em
material dourado, o colar dá três
voltas em seu pescoço, de onde
pende uma medalha retangular
de cerca de dez centímetros
de extensão, cinco centímetros
de altura e um centímetro de
espessura. Sobre a placa lêem-
se as iniciais K. C., cravejadas em
pequenas pedras brilhantes e
incolores. O rapaz traz em uma de
suas mãos um estilo de anel típico
da indumentária Punk, também
conhecido como “soco inglês”.
Este tipo de anel é tradicionalmente feito em metal prateado e consiste em


dedos, deixando livre apenas o seu polegar, e é feito em metal dourado. Seus braços,
225
talvez devido aos efeitos tensores que
os exercícios produzem nos músculos,
     
punho, graças à pouca mobilidade que
o anel lhe impõe, está cerrado.
Mais acima há um outro rapaz musculoso
como KC, que sobre o torso veste apenas uma
grande medalha redonda em metal dourado, de
cerca de nove centímetros de diâmetro. Toda
a sua circunferência é adornada por pequenos
cabochões, semi-esferas de um cristal incolor e
translúcido. Em seu centro está gravada a letra C,
o que pode ser uma alusão ao seu nome pessoal
como também ao “Comando Vermelho, ou
simplesmente “Comando, a facção criminosa que

aqueles que “fecham” com a referida facção, mesmo que a inicial do nome próprio
seja outra.
Estes rapazes de torso nu e calças “semi-baggy” se vestem como os
“bombados” que vemos no Baile Funk. Diferentemente dos “funkeiros”, os
“bombados” não atentam tanto para a marca de suas roupas já que, como me
disse um deles, “malham a semana inteira” para chegar na festa e tirar a blusa,

sua indumentária e estética corporal estão assim a meio termo das que cercam os
“funkeiros” e das que envolvem as moças. Possuem formas arredondadas, em seus
torsos, que devem ser realçadas pela roupa justa, como ocorre entre as últimas.

e devem ser encobertas por calças largas, o que os aproxima do corpo magro que
ganha volume por meio das roupas, um sobre-corpo, como entre os “funkeiros”.
Além disso na festa rebolam como as moças, muitas vezes recorrendo a trejeitos
de deboche para delas se diferenciarem.
Mas há uma pequena diferença entre a estética dos “bombados” do Baile
e a dos que vemos na Mangueira. Os colares aqui, ao invés de serem em metal
prateado, como é usual entre os “bombados” do Baile, são feitos em ouro, de modo

de dinheiro e as muitas mulheres de que se cercam. Se a roupa justa expressou
ao início do capítulo a potência do feminino, aqui os objetos de valor dos quais
se cercam os homens, nos falam também sobre as relações de gênero. O poder
masculino, que segundo Catra, reside na “piroca, como o vimos falar no capítulo


notas de dinheiro e os outros objetos dos quais se cercam. O poder econômico
é geralmente detido pelo homem, uma ideia com a qual se é socializado. Assim,

autonomias diferentes. O primeiro possui dinheiro para pagar a escova que uma
potencial namorada quer fazer em seus cabelos, já a segunda deve pedir ao pai
autorização e dinheiro para ir ao salão cuidar de seus cabelos.
Na música abaixo, Catra fala do modo ambíguo como ele e outros homens
se relacionam com o potencial de atração que o poder monetário exerce sobre
certas mulheres. Ao mesmo tempo em que ele diz que se “libertou” da mulher
“mercenária, ele o faz rindo de si mesmo e em uma versão recente da mesma
música diz que “todo mundo tem a sua mercenária”. É interessante notar ainda
que o termo “peças”, que na letra se refere às jóias de ouro como as que ele, KC
e o outro rapaz usavam no Baile da Mangueira, é denominação também para as

sexual e poderio bélico. A música de Catra é antiga, tem cerca de dez anos, mas a
associação permanece. Hoje, em 2010, uma outra música, de autor diferente, hit
nos bailes, possui refrão que se baseia na mesma analogia: “é só pentada violenta”.
“Pentada” deriva do pente de balas, que é descarregado através dos tiros de fuzil
ou da atividade do órgão sexual masculino. E antes do “pentada” existiu o “toma,
presente tanto em canções “eróticas” como nas ditas “violentas”. O que estas
associações nos dizem, contudo, é que o erótico e o violento podem ser pensados
não como aspectos diferenciados mas em uma mesma chave.
[Então, meus amigos. Por favor, prestem atenção. A gente sofre pra caralho, plantando,
correndo pra lá e pra cá... e ela vem e leva o lucro! Leva o malote, irmão. Então, por
favor... por favor, DJ. Por favor...]
Irmãos, cuidado...
[Ela gosta de lanche do Bob’s. Lanche do Bob’s, quer toda hora, Bob’s. Quer ir pro
mirante, toda hora! Cento e cinquenta suíte!]
Que ela quer o seu malote
O que ela quer
Ela quer o seu malote
Atividade meu mano
Humildemente,
Eu me libertei!
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália
Ela é sanguessuga
227
pronta pra te dar o bote
Eu vou te dar um papo
de olho no seu malote
Fica toda excitada
Doida para dar no couro
Quando bate de frente
Com tuas peças de outro
A libido sem
Safadeza é sua sina

Quando sente cheiro de gasolina
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália
Se liga sangue bom
Ela raspa o seu bolso
E só te larga depois que te deixa no osso
Danadinha
Dá até sair sangue
Só pra comprar
Aquele traje da Gang
bom, bom

Se tu rodar
Ela te abandona na cadeia
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália
14
O sol já está alto na Mangueira e penso que gostaria de ir embora, mas Karla



e eu sigo com Karla para Ipanema, onde a deixarei antes de ir para minha casa. No
carro ela fala satisfeita que Catra lhe pagou o salário da semana, explicando que ele
lhe entregou o dinheiro “no talento, discretamente, sem fazer alarde. E contente
elogia-o, dizendo que ele a “apadrinha” para ela, por sua vez, poder “apadrinhar”
14 Mercenária, Mr. Catra. Faixa nº41 no CD 2 anexo. Esta música possui três diferentes versões.
A letra que transcrevo mescla duas versões, ambas antigas, de modo a mostrar o modo jocoso e
ambíguo com que os homens se relacionam com a “mercenária.
228


à família.
15
Mas o “no talento” de Karla nos fala ainda sobre uma certa economia
de gestos e palavras que coexiste com e parece mesmo ser complementar à
         
mais claro em mais uma noite, quando Karla me contava sobre a diferença entre o
“escandaloso” e o “presepeiro. A narrativa a seguir nos dará ainda a oportunidade
de conhecermos um pouco do universo particular de Karla.
O “presepeiro”e o “escandaloso
Karla e eu havíamos deixado juntas Vargem Grande e seguíramos para a sua
casa em Ipanema. Eu saíra cedo da minha casa sabendo que a tão esperada festa do
amigo bicheiro aconteceria mais tarde, mas como não havia conseguido falar com
ninguém com antecedência, segui para Vargem Grande com uma roupa de festa no
porta-malas de meu carro, o que muita graça causou em Karla. Mais tarde ela diria
a Tábata, que reagira surpresa ao saber que eu “subira o Galo”: “Você precisa ver
como ela é danada. Veio até com roupa no carro. Karla por sua vez, deixara a casa
de Regina carregando o vestido que pegara emprestado a Tábata, mas queria “ir
em casa” pegar seus “sapatinhos”.
Subimos o Galo pela entrada de Ipanema, e Karla me pediu que eu deixasse
o farol do carro no modo lanterna, recomendando que eu subisse a rua com a
marcha na primeira posição. Passamos por um grupo de jovens rapazes que sorri
para ela, que por sua vez lhes retribui com um sorriso malicioso e um meneio com
a cabeça que indica concordância com algo. Penso que ela é a perfeita tradução da
carioca que com seu jeitinho consegue o que quer. E era isso que o sorriso maroto
daqueles meninos parecia dizer, que ela sempre encontrava um modo de “se dar
bem, de usufruir das boas coisas da vida sem ter que se submeter excessivamente

ela era mesmo.
Passamos pela quadra de esportes de onde vem o som de uma bateria de escola
de samba. Estacionamos o carro no alto do morro, perto do “Criança Esperança,
a sede do projeto da Rede Globo de Televisão que ambiciona “transformar a vida
das crianças e jovens brasileiros”. Karla desce do carro e pergunta à “tiazinha,
que está dentro de uma banca em frente à vaga onde colocaríamos o carro, se a
atrapalharíamos. A senhora pergunta se demoraremos a retirar o carro, e Karla diz
que levaremos apenas “meia-hora, e ela diz que então está “tudo bem. Mas depois

229
de já havermos deixado o carro a “tiazinha” quer agora que o estacionemos de um
modo que lhe parece mais adequado, pois atrapalharíamos a eventual passagem
de um caminhão para o canteiro de obras do PAC, o Programa de Aceleração do
Crescimento do governo federal. Karla e eu sabemos que àquela hora nenhum
caminhão passará por ali, mas achamos melhor mover o carro.
Vamos descendo a pé a Ladeira Saint Roman, a principal via de acesso ao
Morro do Cantagalo, em direção à casa de Karla. Viramos em uma ruela à direita e
começamos a entrar em um cenário muito diferente do de ar precário e decadente,
trash, como se diria, que acabáramos de deixar. Já era noite, e as casas, talvez
pela iluminação elétrica pouco feérica, pareciam ter a mesma coloração cinza do
concreto que revestia as ruelas e suas laterais. Vermos no horizonte próximo que
estávamos no alto de uma montanha tornava a paisagem escura e monocromática
com um aspecto lunar, espacial. Tudo era muito simples e silencioso.
Continuamos andando, e um rapaz se aproxima de nós, vindo de trás. É
um mulato magrinho, talvez de bigode, vestindo “blusa de time” larga, bermuda
igualmente solta em seu corpo e calçando chinelo de dedo. Sobre uma de suas
mãos ele equilibra uma embalagem cartonada de pizza, como faria um garçon
ao segurar uma bandeja. Karla pára para falar com ele e lhe pergunta algo como
“pizza pras crianças...?”. Ele responde positivamente e lhe oferece um pedaço do
petisco. Eu a observo, curiosa para ver como ela se sairá. Karla levanta a tampa da
caixa de pizza com uma das mãos e retira uma de suas fatias. Não a pega toda para
si, mas corta um tira de sua extensão. O rapaz oferece a pizza a mim também, eu
agradeço, mas não me sirvo. Ele segue na nossa frente com passo acelerado e Karla
vai usufruindo de sua porção.
Entramos à esquerda, subimos alguns degraus que logo nos deixam na casa
de Karla. Entramos pela sala, onde estão dispostas, lado a lado, duas cadeiras de
estrutura de metal tubular pintado de vinho e, perpendicular a estas, um sofá de
dois lugares. Ao fundo, com a luz apagada, parece estar a cozinha, e ao lado desta
vejo a porta do banheiro. No alto da porta de entrada, do lado de dentro da casa, há
uma imagem em três dimensões de São Jorge sobre seu cavalo branco. Karla diz que

recentemente pronto, gravada em Paris com um artista senegalês.

Ela me chama
para irmos para seu quarto e subindo as escadas bato com o topo de minha cabeça
na laje do segundo andar da casa. Karla me olha sem nada dizer. Passamos por uma
sala antes de entrar em seu quarto que, ela nota, está com a lâmpada queimada. Isto
muito a irrita, pois quer pranchar os cabelos e precisa de alguma iluminação. Ela
cogita descer para retirar a lâmpada de um dos cômodos inferiores, mas resolve o

May day. Faixa nº42 do CD 2 anexo.
230
Começamos a nos vestir, e coloco o vestido que trouxera em meu carro
acompanhado de um par de leggings. Karla, quando eu lhe disse que meu vestido
era preto, achou ótima a escolha, pois era véspera de Halloween e o vestido que
ela usaria era igualmente preto, acrescentando que “a ideia” era todos irem de
preto naquela noite. Mas ao me ver vestida noto que minha produção não lhe
agrada, e logo ela diz que não é preciso colocar as leggings que visto. Eu lhe disse
que o vestido era curto demais, e tiro as leggings para que ela avalie. Ela diz que
“assim está muito melhor”, que o vestido não era “nada muito curto” e que a faixa
que eu colocara na cintura já estava “dando um pan. Eu argumentei dizendo que
meu “marido” não acharia graça nenhuma em me ver chegando com o dia claro e
as pernas de fora daquele jeito. Rapidamente, ela retrucou dizendo que então eu
colocasse as leggings antes de entrar em casa, porque “ninguém precisa arrumar
confusão com marido por conta de roupa.
Karla prancha os cabelos com bastante cuidado, se olhando no espelho

e reclama que precisa fazer nova “progressiva, pois nem a “prancha” consegue
manter baixa a raiz de seu cabelo, explica. Me pergunta então se eu sei onde está o
seu vestido e me pede que o traga até ela. É um vestido preto de malha pesada, saia
godê que se inicia abaixo do busto e decote nas costas do tipo “nadador”. A frente da
roupa tem “decote em U” e, sem mangas, é toda aplicada de paetês pretos, grandes
e brilhosos, sobrepostos de maneira a formar o efeito de escama. O seu sutiã, na
verdade um top, como ela diz, possui alças grossas que saem de baixo do vestido,
   

detalhe da própria roupa, e ela diz que era essa a intenção. O termo “bonito” não é


moral”, mas evita-se o uso do “bonito.

retrô, como das melindrosas dos anos 1930, mas de salto anabela. O seu sapato
é revestido de material acamurçado em tom vinho e é produzido pela Grendene,
fabricante nacional de calçados plásticos, detentora da marca Melissa, que vem
adquirindo status de marca cult e possui grande projeção no exterior.
17
Ela diz
que gosta muito deles, e fala com carinho. Resolvemos descer para o banheiro
para nos maquiarmos, mas antes ela me chama: “vem ver a minha laje”. Subimos
17 A Melissa licencia ainda marcas européias, como a inglesa Vivienne Westwood, que por muito A Melissa licencia ainda marcas européias, como a inglesa Vivienne Westwood, que por muito
tempo foi associada ao estilo Punk transgressor e é hoje nome hegemônico da indústria da moda.
Desse modo, o mesmo sapato que é vendido em versão plástica no Brasil, pode ser encontrado
em vitrines inglesas tanto em plástico como em sua versão em couro.
231
alguns degraus e chegamos ao teto de sua casa, onde estão ao fundo duas caixas

apartamentos, que se ergue da rua Barão da Torre e é um pouco mais alto do que
o morro. A sua fachada ampla e sinuosa impede que, daquela perspectiva, a favela
e o bairro de Ipanema se entrevejam. O restante da vista da laje de Karla se volta
para a própria favela.
Eu me maquio rapidamente, pois Karla espera que eu termine para que ela

banheiro. Abaixo está a pia e ao seu lado um gaveteiro de plástico branco. Eu lhe
ofereço a maquiagem que trouxera: base, máscara, lápis e blush, que eu aprendera
a usar com a própria Karla, em uma outra noite em que saíra com Tábata de
Vargem Grande. E nesta noite aprendo com ela novos “truques de maquiagem. Ela
acha graça no fato de que a ofereço “base”, e me pergunta se eu já vi “quanta coisa
ela passa na cara. Mas mesmo assim usa a minha base, que ela diz ser mais um
“corretivo, pois as bases possuem uma cor mais escura, diz. Em seguida ela passa
sombra, máscara, lápis na parte inferior interna do olho, e com o mesmo lápis
marrom faz o contorno dos lábios, que é suavizado com o próprio dedo. Não usa
batom, diz, só “gloss”, brilho labial, que passa em seguida. Também com o lápis ela
faz duas pintas: uma na junção do nariz com o início da bochecha e outra no canto
inferior do lábio. Me explica que são pintas que já possui e que só as realça. Apaga
com o dedo os sinais feitos pelo lápis, me mostra as pintas originais e as refaz.
Agora é a vez de Karla pedir minha opinião em relação ao cumprimento
de sua roupa. Eu lhe digo que sim, que seu vestido me parece um pouco longo.
Ela pega o alto da saia, e dobra-a prendendo-a por baixo do sutiã que está sob o
vestido. Já estamos próximas da porta para sair, e Karla decide passar um esmalte
incolor sobre suas unhas. Ela comenta que as roeu e que estavam mais longas,

machucadas e com peles soltas à volta. Ela reage dizendo que “também não é
assim!”, acrescentando que “rói no talento. Partimos. Vamos andando pelas ruelas

que acenaram para Karla ao chegarmos. Da quadra de esportes chega agora o som
de uma música Funk.
Karla e eu aguardamos por Negão em frente à boate Katmandu, em
Ipanema, onde ele fará um show antes de seguir para a festa de Luizinho, que será
na badalada The Week, clube noturno de grandes proporções, localizado na Zona
Central da cidade, originalmente voltado para o púbico gay e que se converteu em
reduto cosmopolita da música eletrônica, onde Catra também faria uma pequena
apresentação. Como ele demora mais do que o esperado, eu e Karla decidimos
aguardar sentadas no carro enquanto conversamos. Ela se senta no lugar do
232
motorista e pede que eu tire algumas fotos
suas, para colocar em sua página no Orkut.

Karla, descrevendo Luizinho, que
até então eu vira uma única vez, diz que
não gosta de “homem perigoso” e que
ele é do tipo “escandaloso. Peço-lhe que
me detalhe melhor o que quer dizer com
“escandaloso, o que ela faz por contraste
ao “presepeiro”, como seria Catra. Ela
explica que este age como aquele que é “o
cara, como quem é seguro de si.
Se você lhe fala, continua Karla,
“me dá aí cinco contos pra eu comprar
ali alguma coisa para eu beber”, Catra irá
“desfolhar todo aquele dinheiro, e Karla o imita calmamente passando os dedos
pelas notas de dinheiro. Acrescenta que ele fará isso “de preferência” com a mão



estávamos em frente à agência do Banco do Brasil, no Recreio dos Bandeirantes, e
ele entregava o dinheiro a ser dado à Regina.
Catra, continua Karla, faz “tudo isso,
“desfolha todo aquele dinheiro, para tirar
dele uma nota de dez reais e dar à pessoa
para que ela mesma compre a bebida que
quer. Já o “escandaloso”, segue Karla, iria
“gritar pra todo mundo ouvir que ele está
te pagando a bebida. Então ela simula
como agiria Luizinho, que diria: “vai lá

garçom: “aqui, ô garçom, traz uma bebida
pra ela aqui!”, gesticulando, apontando
“pra mina” e “gritando. Luizinho, talvez
por dominar menos intensamente o

os objetos, recorre às palavras e aos gestos
para fazer uma explicitação excessiva e
escandalosa de seu poder.
233
Pois o modo de um e outro se apresentar também varia, como dizia Regina
em outra ocasião. Desta vez Catra separava a roupa que usaria na “festa da Gisele
Bündchen, a modelo brasileira de carreira internacional, que aconteceria na
mesma The Week, por ocasião do Fashion Rio, a semana de lançamentos de moda
da cidade. Catra parecia um tanto deslumbrado com o convite que recebera e
pedia a opinião de seus parceiros sobre que roupa deveria usar. Aproveita para
“gastar” Regina, falando em tom de esnobação que iria para o “Fashion Week”. Ela
entre aborrecida e brincalhona diz que veio de “Bangu”, que já viu a “lama” e que
não entende desses assuntos mas, diz, o chapéu que lhe sugerem que use “não
tem nada a ver”. Ele pede a ela que lhe separe então a sua camisa de manga longa,
e leva a mão ao punho mostrando o seu comprimento. Regina, um tanto irritada
com a insegurança do marido para escolher sua vestimenta, lhe pergunta para que
ele vai de “bicheiro” se “já é o cara, e para que precisa “vestir uma blusa cheia de
correntes se todo mundo já sabe que ele é acorrentado?”, está sempre adornado
por peças de outro. Eu já o vira usando a tal camisa, que era em tecido de algodão
azul Royal estampado por correntes em amarelo ouro. Catra cede, mas diz que
vestirá “ouro e preto” e pede que separe duas de suas blusas t-shirts que possuem
esta combinação.
Mas se aquele que é “o cara” e o “bicheiro” possuem gostos e gestuais
distintos, o modo como ambos se relacionam com as mulheres e o dinheiro não
é tão diferenciado, como canta Catra na música em que homenageia Luizinho e
outros de seus colegas. Ao parodiar a música Funk De Sainha, do grupo Gaiola das
Popozudas, transcrita no capítulo cinco, a peça de roupa feminina que viabiliza
o poder do feminino, como expresso na letra, é substituída pelas máquinas de
pôquer, objeto gerador de grande parte da renda dos bicheiros e que potencializa
o masculino.

Com a maior saudade
Do João Ratão, Seu Miro
E do Castor de Andrade
Vou te dar um papo
Cê tem que ser blindão
Crime é crime
Contravenção, contravenção
Crime é crime
Não é contravenção
Esse é o regime
Respeito e blindão
234
Tu tem que ser disciplinado
Para poder desfrutar
Dos carro importado
E vários fardo pa gastar
Pois cada um tem seu harém
Mas sem perder a linha
O lucro é garantido
No talão, na maquininha
Se liga sujeito
Respeito é bom se ligar
Agora eu sou bicheiro
E ninguém vai me segurar

Com maior saudade
Do João Ratão, Seu Miro
E do Castor de Andrade
Vou te dar um papo
tem que ser blindão
Crime é crime
Contravenção, contravenção
Minha maquininha
Agora eu sou bicheiro
E ninguém vai me segurar
Olha o respeito
Mulheres gostam de dinheiro
Mas não se esquecem dos valores
Mulheres gostam de conforto
Mas não se esquecem dos amores
Mas o que elas querem mesmo
É o quê?
É o quê?
É o bonde dos contraventores
É dinheiro na laje
No chão
Na parede
Dinheiro pa cacete

Com a maior saudade
Do João Ratão, Seu Miro
E do Castor de Andrade
235
Vou te dar um papo
tem que ser blindão
Crime é crime
Contravenção, contravenção
18
As diferenças entre o homem e a mulher
Catra canta que é preciso ser disciplinado, “ter blindão”, ter conduta reta,
direita, para poder administrar tanto dinheiro e tantas mulheres. Em suma, diz
ele, não é fácil assumir a responsabilidade que envolve a vida que escolhem. E
essa conduta estreita, o “proceder”, que rege como um “sente” que é correto agir,
é acompanhado da estética relativamente ascética ilustrada pela citação ao início
deste capítulo através da qual introduzo a análise sobre o gosto indumentário dos
rapazes. Retornemos à sua percepção sobre os cabelos ornamentadores.
Ele argumenta que é por ser
“nacionalista” que não os aprecia, pois são
“muito norte-americanos”, são “gringos demais”.
Volto então ao tênis Nike que ele acabara de me
mostrar e que teria sido concebido após um
show em Berlim, quando conheceu a designer
da empresa de calçados esportivos. Ele contra-
argumenta que os tênis são da marca norte-
americana, mas fabricados na China, em sua
lateral estão as iniciais RJ, de Rio de Janeiro, e
em sua frente está gravado Mr. Catra. Pergunto-
lhe então porque é que ele pensa que os cabelos
também não podem ser RJ, locais. Ele diz que
“pode”, mas que aqueles que os portam cantam
“uma outra conversa” e trata-se de uma questão
de estilo: “é um estilo outro. Menciono então o
Bonde da Oskley, que alude à marca ipanemense
Osklen que caiu no gosto da juventude carioca,
seja ela favelada ou da “pista. Catra demonstra
desprezo por eles: “eu não sei quem é Oskley,
quem é Zoskley”. Vagner, DJ do Jacaré, explica
que é uma marca de roupas. Mr. Catra começa
a rir: “Tu ia me considerar se eu me chamasse
Mr. Levi’s?”. Ele insiste, gargalhando: “Tu ia me
18 Contravenção, Mr. Catra. Faixa nº43 no CD 2 anexo.

considerar do mesmo jeito se eu me chamasse Mr. Nike?”. E além do nome há os
cabelos, que em si fazem a diferença, independentemente do que cantam: “Mas já
é diferente, porque quem tem cabelo preto, tem cabelo preto, quem tem cabelo
descolorido, tem cabelo descolorido. Não é igual. Você não vai me dizer que é a
mesma coisa que não é. Tô errado?”. É ele agora quem insiste: “Qual foi o preto que

mostra um. Argumento que no baile não faltam moças com os cabelos tingidos de

Mas mulher pode tudo... Mulher tem direito de fazer o que quiser...
Pintar [o cabelo] até de rosa... Mulher é mulher. Elas têm o direito
de tudo... Homem não tem direito. Homem não tem direito de

moral que não dói. E já bão.
Sabrina, à época produtora dos shows de Catra, entra na conversa pra dizer
que quem usa esses cabelos são bondes de “rebolação. E Mr. Catra enfatiza: “A
gente não rebola. A gente não rebola. Regina, do mezanino que leva ao quarto do

Os “bondes” são grupos formados por um MC homem e três ou quatro
dançarinos masculinos. Estes últimos se esmeram no rebolado, muitas vezes
retirando suas blusas e simulando strip-tease
excitadas, e aproveitam a oportunidade para tocar os rapazes, sobre suas roupas,
preferencialmente em suas nádegas e áreas genitais. Regina tem a mesma concepção
que o marido: rebolar é para mulheres e não para homens. De fato, os homens que
rebolam na festa, como parcela de sua audiência, são os “bombados” que, como
mostrei, podem ser apreendidos como híbridos das estéticas corporais feminina e
masculina. Os “magrim, ou os “funkeiros”, realizam ao dançar movimentos retos
e angulosos, que apresentam continuidade com sua silhueta igualmente angulosa
e ao mesmo tempo se opõem aos movimentos sinuosos e corpos redondos das

2009a, 2009b, 2010a).
Vianna (2003) – a partir de Sansone que de acordo com Herschmann e Freire


com o “samba na bunda, caracterizado pelo “requebrado, o rebolado e o jogo de
cintura, que predominaria em Salvador – baseia-se na performance dos dançarinos
dos bondes para defender que no Funk é produzida uma “sensualidade unissex”
 
sensualidade expressa pelos “bondes de rebolação” constitui mais uma exceção na
festa do que a manifestação de um costume generalizado. A encenação que ocorre
237
no palco não se reproduz pela audiência masculina do mesmo modo como ocorre

Os frequentadores do baile que rebolam são os “bombados”, que estão longe de
constituir maioria na festa. Chamam atenção mais por sua peculiaridade do que
por sua presença maciça. Além disso, as estéticas corporal e indumentária dos
dançarinos dos bondes é muito próxima das que apresentam os “magrim”: usam

magros. O que estes dançarinos parecem fazer é ousar exibir uma sensualidade no
palco que não é permitida ao seu correlato desempenhar quando se encontra fora
do palco. Desse modo, se aproximam da noção de masculinidade de Catra e de seus

Mas se rebolar surge como uma atividade mais feminina, o mesmo tipo
         
            
cidade de Belém, papéis de gênero organizados a partir de um pólo sexualmente
“passivo” feminino e outro “ativo” masculino, que adquiririam ainda os sentidos
de “dominação” e “submissão. Ao gênero masculino caberia idealmente o papel
de dominar aquele que desempenha o gênero feminino, como está a “bicha” na

de papéis de gênero onde a atividade sexualmente ativa de “comer”, ou penetrar
sexualmente, caberia ao pólo masculino, enquanto “dar”, ou ser penetrado,
caberia ao pólo feminino e passivo da relação entre travestis de Salvador, marcada

tipo de sobreposição, entre dominação e sexualidades mais ou menos ativas, não
ocorre. A mulher, fala-se no palco e fora dele, “come” e “dá, de modo que relações

de agência nem tampouco a subjugação de um pólo pelo outro. Se o universo
Funk pode ser lido como se baseado em relações de gênero tradicionais ele é
possibilitador de uma leitura mais subversiva.
De um lado, não é permitido às mulheres acumular os papéis de “esposa” –
a mulher “de fé” com quem, contudo, não é preciso estabelecer matrimônio legal –,
“amante” – aquela com quem se mantém uma relação extra-conjugal relativamente
duradoura – e “piranha– com quem se tem uma relação extra-conjugal fortuita
– enquanto os homens não são organizados da mesma maneira. Mr. Catra, por
exemplo, anunciou no estúdio, no capítulo quatro, que naquele dia estava “facim,
disponível para os jogos sexuais extra-conjugais. Pode assim ser “marido” e
“prostituto, esta última uma denominação que pode ter emprego pejorativo e não
conota o sexo pago mas os homens que o fazem indiscriminadamente, aqueles
“fáceis”. Cabe ao homem, como vi entre os parceiros de Catra, verbalizar as
238
muitas mulheres com as quais se diz relacionar, esteja ele casado ou não. Catra

capítulo dois desta tese, e elabora criativamente sobre essa ideologia masculina
reforçando-a com as declarações públicas que concede aos meios de comunicação,
dando conta dos diversos e simultâneos matrimônios que manteria, informação
para a qual não encontrei evidências empíricas.
19
A retórica que vincula masculinidade e relação com múltiplas mulheres
está presente em diversas músicas. Uma delas se tornou um clássico que, por sua
vez, dentro da lógica das imagens e contra-imagens que rege o Funk, como venho
mostrando, gerou uma “resposta” do feminino. Esta última é muito apreciada pelas
moças do Baile, por as defender dos homens que “esculacham as mulheres”.

Valeu, o maior orgulho
Mas tu mexeu com as nossa amante
Eu comprando esse barulho
Se liga no meu papo
Que é tão interessante
Um homem de verdade
Tem que uma amante
Tem que
Tem que
Tem que
uma amante
Baile lotado
A chapa fervendo
Se tem mulher casada
De neurose eu correndo
Geral já me conhece
Já sabe o meu lema
O que eu quero é solução
correndo de problema
Se tem mulher solteira
Aceite esse convite
Vem junto com o Mascote
Eu pagando uma suíte
É um papo neurótico
Papo de trique-trique
Sou homem de verdade
Gosto muito de uma amante
19 Ver Bressane e Lessa (2009).Ver Bressane e Lessa (2009).
239
Tem que
Tem que
Tem que
uma amante
Quem é que fortalece
Às quatro da madrugada?
Tem que tem que ...
[Tem que uma mamada]
A mina é sinistra
Desenrola ajoelhada
Tem que tem que ...
[Tem que uma mamada]

Não quero saber de nada
O que seria de nós
Se não fossem... [as mamadas]
Tem que
Tem que ...
Tem que uma amante
(ai, ai amor)
20
O amigo deu papo
Que é muito interessante
Ele disse que um homem
Tem que uma amante
Se liga aí amiga
No que a Gaiola vai falá
Mulher de verdade
Qué um otário pra bancá
Ah!
Ahá!
Um otário pra bancá
E aí?
Ele chega no baile
De cordão e celular
Quando vê uma gatinha
Ele corre pra azará

É um otário pra bancá

É um otário pra bancá
20 Tem que ter uma amante, MC Mascote. Faixa nº44 no CD 2 anexo.
240
Ah!
Ahá!
Um otário pra bancá
E aí?
Os homens querem amante
Escutem o que eu vou falá
As mulheres do baile
Qué um otário pra bancá, e aí?
Ah!
Ahá!
Um otário pra bancá
E aí?
21
Na primeira música o cantor coloca que o homem verdadeiro tem que ter


tipos que por sua vez relacionam papéis que não devem ser acumulados. Pois
de fato, não é franqueado socialmente à uma mulher casada o mesmo tipo de
comportamento que ao homem, que se não o faz é permitido e valorizado que fale.
Se ela estabelece relações fora do casamento isso deve ser feito de modo velado,
não deve ser compartilhado em conversas intra-gênero e pertence ao campo da
transgressão. Liberdade similar a do homem terá talvez a “piranha, que deve ser

Mas na peça seguinte a MC avisa que esse “homem de verdade” não passa
de mais um “otário” a fazer as vontades das mulheres. Esta segunda música alude

pensa ser uma amante potencial, pode ser também uma moça que o usará para

navios”, como se dizia.
22
Dessa perspectiva, me parece ser possível ler agentividade do feminino mais
do que a sua subjugação por um pólo masculino dominante em representações
consideradas como demonstração de uma cultura machista. Cechetto e Farias
(1999), por exemplo, a partir da leitura da letra da música “Capu de Fusca”, de
           
que a letra diz literalmente, contudo, é que uma “gatinha, uma mulher agradável,
21 Um otário pra bancar, Gaiola das Popozudas. Faixa nº45 no CD 2 anexo.
22 A “piriguete” – personagem que deriva de música proveniente da Bahia, de musicalidade A “piriguete” – personagem que deriva de música proveniente da Bahia, de musicalidade
inspirada no ritmo Reggaeton, muito popular em países de fala hispânica da América Latina – foi

atrair pelo homem que tem dinheiro mas, diz o cantor, ela “não é amante, não é prostituta, é ao

241
“assusta, portanto coloca em posição vulnerável, o homem a quem mostra o seu
“capu de fusca, o seu órgão genital.
23
Ou como coloca o famoso refrão, é “pau na
buceta, buceta no pau”. Ambos são agentes.
Parece ser essa complementaridade que tem unido em performances Catra

que, no entanto, não o vi explicitar para o grande público, Valeska sobe ao palco
e grita de seu microfone para a sua audiência, múltipla como a de Catra, que “o
poder da mulher tá na buceta!”.
A MC Kátia verbaliza de modo análogo em suas músicas a potência
do feminino.
Ex é sempre ex
Você foi caso antigo
Eu não tenho culpa
Se gamou na minha xóta
[Fazê o quê, né?]
Ex é sempre ex
Você foi caso antigo
Eu não troco o atual
Pelo ex-marido
[Você já era]
24
23 Ver música Capu de fusca à página 155.

242
É em relação a essa essencialização feita pela hiper-realista música Funk
que deve ser entendido o aspecto desambiguizador e complementar que possuem
as estéticas corporal feminina e masculina ao se encontrarem. Pois com as muitas
assimetrias que vemos, as relações entre homens e mulheres me pareceram em
várias ocasiões, desde a pesquisa de mestrado, igualitárias. Diferença aqui nem
sempre foi sinônimo de dominação, mas modos distintos de ser que, em certos
momentos se aproximavam. E o mundo feminino continente do masculino se
mostrou também independente dele.
Penso que era isso que Regina me comunicava quando, após o banho que

cheirosa, com seus cabelos longos molhados, penteados e soltos, vestindo uma
blusa regata que, por ser justa, estava dobrada no alto de sua barriga grávida,
acompanhada de uma parte de baixo que parecia ser de Catra. Ela estava em período
intermediário de sua gestação e vinha
alternando o uso de vestidos soltos
com as bermudas e calças que pegava
no armário do marido. Ela se senta à
cabeceira da mesa de jantar, acende
seu cigarro artesanal, levanta a tampa
de seu laptop e me chama para que eu

ilustra o plano de fundo de seu desktop é composta por uma única 
está multiplicada nove ou doze vezes, mas formando um quadro só. Uma imagem
           
branco, mostra ela e Catra do busto pra cima. Ele veste uma blusa t-shirt escura e não
está especialmente adornado. Regina tampouco está ornamentada. Está sem as suas
extensões de cabelo e provavelmente sem sapato de salto alto, ou calçando pouco
salto, pois aparenta a mesma altura que o marido, que não é muito alto, para padrões
masculinos. Estão próximos, lado a lado, mas não abraçados. Um posicionado em
diagonal ao outro, talvez se tocando pelos ombros, sérios e sem sorrir. Ela, em

“Chapa quente é bico pro alto
A narrativa que compôs este capítulo foi desencadeada pelos tiros dados
na noite de festa no Morro do Borel. Já na manhã em que iniciamos no Baile da
Mangueira não houveram tiros, ao menos não enquanto estivemos lá, mas pude
sim ver armas. De onde “dançávamos e bebíamos” víamos também o garoto que
243
subia e descia a rua com seu fuzil para o alto e ao invés do medo que senti ao início,
desta vez pude perceber no mesmo um adorno. Um adorno poderoso, e é deste


Ao início vimos as balas disparadas pelos bandidos da favela da Tijuca
colocarem em jogo medo e fascínio. Ao abreviar a minha saída da festa, o medo
deixou evidente o meu não domínio daquele mundo bem como o meu não
pertencimento a ele. Era isto que Nilda comunicava ao reclamar da amiga dizendo-
lhe “nem parece cria. O excessivo medo de Maísa, dizia a amiga, só poderia ser
aceito em alguém que não havia sido socializado naquele mundo, opinião que
            
não apenas pelo desconhecimento mas também pela experiência do perigo. A
explicação que deu-me Regina na tarde de seu aniversário torna evidente que
os objetos podem precipitar eventos que estão fora de nosso controle, trazendo
consequências imprevistas e nesse sentido, revelam mais uma vez como os objetos
possuem agência própria. É essa ideia que está expressa através da fala “tudo
que sobe, desce”, proferida por Maísa e Pamela ao ouvirem os primeiros tiros no
Borel. Os objetos participam da vida social, precipitam acontecimentos e refazem
constantemente o social e a cultura.
uma alteridade que até então eu não

aparente da vida social carioca, que não estivera visível nem ao acompanhar Catra

aos poucos percebi que “fechava” com a mesma facção à comandar o Borel e a
Mangueira. De fato, a primeira vez em que participei de um Baile com a presença
maciça de armas foi ainda em outra ocasião, quando cerca de catorze meses
antes do Baile no Borel, Regina me iniciou em um “Baile de Favela” que, como ela
recorrentemente frisou, é “muito diferente” dos “Bailes de Asfalto” aos quais eu
estava acostumada. E a grande diferença esteve sempre evidenciada pelas armas
e seus tiros.
Pois socializados ou não entre as armas, são estes mesmos objetos que
continuam exercendo fascínio sobre os de dentro e os de fora. Na noite em que
encerraríamos na Mangueira, Karla, Lucia e Tábata, todas familiarizadas com a
“realidade da favela, comemoravam a chegada à festa onde poderiam “ouvir uns

as ações ilegais dos chefes bem como as armas e os tiros aos quais recorrem para
exercer o seu papel. Por sua vez, Dudu, produtor de alguns dos shows de Mr. Catra, se
utiliza dos “bicos para o alto, os fuzis em riste, para descrever aos “gringos” que muitas
vezes ciceroneia, o diferencial que poderão encontrar em um Baile Funk na favela.
244
Seja através do som “real”, produzido efetivamente pelas armas de fogo,
seja através do som que é simulado através de sintetizadores e transformados
         
da favela” a outros domínios da cidade. As armas tornam, se não visualizáveis
ao menos imagináveis realidades que poderiam passar desapercebidas para a

formas: quando dentro do táxi ‘explico’ ao motorista o que ele escuta mas não vê
e quando na casa de Regina esta me explica o que poderia ainda haver ocorrido.

estão livres de agência. Os tiros falam de um mundo para outro, falam da favela pra
o asfalto, conectando-os ao mesmo tempo em que revelam os seus limites.
O adorno é uma dimensão da prótese (Strathern 2004[19991]) que remete à
“fabulação sobre o real” (Gonçalves 2008). O garoto subindo e descendo a rua do Baile
da Mangueira se assemelha a um dos “seguranças de cinquenta merréis” que de acordo
com Das Sete circulam pelo baile da favela “só pra falar que é nóis”. Dizer que “é nóis”
indica pertencimento ao Comando Vermelho, e a exposição ostensiva de armas, assim

que a torna mais poderosa. A mesma ideia é expressa pela frase que dá título a esta
sessão: os fuzis para o alto mostram o poder ao mesmo tempo em que empoderam os
seus portadores. Mas os fuzis para o alto causam também frisson, compõem a festa.
Tratar do adorno traz ainda uma dimensão outra, a das relações de gênero.
Pois curiosamente, ao me propor a falar dos objetos masculinos, objetivo inicial
             
femininos no capítulo anterior, mas isto, contudo, não se tornou possível. Falar
do mundo masculino gerou a exigência de falar das mulheres, ao passo que foi-me
possível escrever todo um capítulo sobre a estética corporal feminina sem mencionar
os homens. Se “as mulheres já nascem veadas”, como disse Catra, ele, como outros
homens de seu universo, expõe o seu sucesso através dos objetos e da estética que
partilha com a favela: dinheiro, ouro, roupas, armas, bebidas e, não menos importante,
mulheres. A mulher ocupa então em alguns momentos esse lugar de adorno, mas
um adorno que é muito mais do que o acessório, apêndice ou “operação exterior ao
objeto” como coloca Paim (2000:10) a propósito da era modernista. O adorno é de

estendendo as suas capacidades e mostrando como noção de pessoa, corpo e objetos
estão vinculados.


esquema do autor. Fica claro que é inerente ao estatuto de masculino se fazer cercar
            
245
          
As mulheres, no Funk, por sua vez, não necessitam se fazer cercar de homens, não
         

O modo como um e outro gênero se relaciona com os adornos é também
diferenciado. Nos homens, vimos como o seu uso é sempre ostensivo, seja entre
aqueles que fazem de seus cabelos ornamentos seja entre os que escolhem fazê-lo
em objetos exteriores ao corpo. As mulheres por sua vez, dão menos destaque a
estes, o que não é o mesmo que dizer que invistam menos neles. Os adornos mais
vistosos são os sapatos e unhas, e eventualmente as mais jovens usarão brincos
chamativos. A lógica do merge rege os cabelos estendidos e as roupas que, como
epitomizado pela “Calça de Moletom Stretch, se moldam ao corpo e próximas a ele,
serão então adornadas pelos muitos brilhos. Esse moldar ao corpo torna sutil o
uso de adereços. Regina, que gosta de se adornar para festa, é assim uma exceção
entre seu grupo de amigas, pois correntes, pendentes, anéis e pulseiras tendem, de
maneira geral, a ser pouco vistosos.

O fuzil 
ele é metáfora para o órgão sexual masculino, ele remete às “peças”, ao ouro e ao
dinheiro. E traz à tona ainda o modo pelo qual a estética é um dispositivo poderoso
utilizado pelo Funk e pela favela que, ao manipularem a circulação de símbolos e
imagens que ressoam culturalmente na cidade do Rio de Janeiro, dão visibilidade
a si mesmos e se posicionam face à sociedade envolvente.
Conclusão
248
Esta tese se construiu tendo como argumento subjacente a ideia de que,
no Funk, a criação está à serviço da conectividade. Este conceito é mais bem
traduzido pela imagem com a qual encerrei o primeiro capítulo, a de que a estética

do Rio de Janeiro, manifestas através de distintos gostos. Daí a importância que
possui a ambiguidade no Funk, pois ao mesmo tempo em que é construída sobre
um senso estético próprio, esta singularidade é capaz de articular múltiplas
diferenças. Portanto, ao me propor elaborar sobre o que chamo de Estética Funk,
não pretendi sistematizá-la ou chegar a um denominador comum que dê conta
de suas diferentes manifestações estéticas – como roupa, corpo, dança, música,
Estética Funk, como a apreendo, é
uma agência. Ela faz, não apenas representa, ou remete, mas age. Acompanhá-la
permitiu-nos ver diversos aspectos da vida social em movimento, como em Latour.
Mas se não abstraí uma única lógica, abstraí várias lógicas a regerem esta
estética. Uma delas trata da criação musical, e partindo da dinâmica apropriativa,

deles mostra como criatividade e difusão estão estreitamente articuladas. Mas não

relação com a recepção, com o público, que a criação musical encontra os parâmetros

Funk. Como bem colocou o tecladista Jota, existe uma vinculação entre circuito e
padrão, e não é possível fugir a ela. O padrão que recorta o estilo musical acompanha
o circuito em que ele é consumido. Portanto, não há possibilidade de pensar em
um criador nos moldes da noção de gênio, através da qual tantas vezes se explicou

o mesmo que dizer que o indivíduo não tenha lugar no Funk, ao contrário, o que
ocorre é uma conversa entre as habilidades individuais e as demandas externas.
Como mostrou Sapir, a cultura autêntica é aquela que produz espaço para que as
agências individuais, a individualidade, altere a herança histórica.
Outro aspecto muito relevante que o trabalho de acompanhamento da
criação musical trouxe foi o modo como o Funk, para seus criadores, é antes de
tudo música e como para compreender a importância desse aspecto tivemos que
amenizar a importância dada à palavra. Não porque ela seja irrelevante, inclusive
por toda a tese temos a letra informando o ponto que se quer fazer. Mas o fato de
249
ela haver sido tão privilegiada em outras análises do ritmo, acadêmicas ou não,
fez com que o aspecto sonoro fosse deixado em segundo plano, como se tratassem
somente de poetas e não de músicos, ou como se a palavra pudesse ser dissociada
de seu som, cisão que Tim Ingold mostra como sendo uma das especializações
que a introdução da escrita impressa produziu. Vimos como o Funk transforma
a palavra falada em som, especialmente aquelas que possuem ressonância em
seu contexto de criação e circulação, os ditos “elementos Funk”. Este traço não é
periférico, pois ao mesmo tempo em que vemos que o conteúdo semântico por si só

que é transformada em som não é eleita apenas por sua sonoridade, mas também
por sua premência histórica, no sentido da trajetória que o elemento eleito possui
na evolução do ritmo.
Uma outra feição trazida pela pesquisa em torno da criação musical reside

um componente da música eletrônica como um todo, movimenta a criatividade
cultural de modo amplo e relaciona ainda a maneira como tanto a antropologia
quanto a arte contemporânea funcionam. O que distingue a sua lógica apropriativa
é a liberalidade com que são feitas estas apropriações, liberalidade esta que é
viabilizada pela informalidade que rege as relações entre os agentes de sua cadeia
produtiva. É a informalidade de sua engrenagem que permite velocidade a estas
         
vitalidade ao ritmo. A informalidade está presente ainda no padrão estilístico que
recorta o Funk, pois a “sujeira, como seus agentes se referem à falta de equalização,
que poderia ser associada a uma economia outra de recursos técnicos que teriam
os seus produtores, é também “o bacana da parada”, o que dá à música o seu
diferencial “favela, de modo que a restrição se converte em escolha, uma eleição
incorporada ao estilo. Mas a informalidade está presente não apenas na produção
da música, como também no momento de sua difusão. Pois é a recepção no

ao grande mercado. É o gosto da favela que referenciará o potencial de circulação
de uma produção Funk individual pelos diferentes gostos da cidade e determinará

“estourar” na sociedade formal. A favela age invertendo exemplarmente as lógicas
distintivas que nos acompanham desde Veblen e Simmel e foram re-lidas por
Bourdieu, deixando ver uma capacidade que é própria da dinâmica da cultura
         
culturais populares, como Peter Fry chamara atenção ainda nos anos 1970.
Derivamos assim em um traço muito atuante no Funk, que é o subversivo.
Com efeito, o Funk se apresenta como se resultante de um projeto de subversão.
250
Mas não falamos aqui de subversão em seu sentido político estrito. Mas de uma
subversão estética que parece sim carregada de ideologia. Uma subversão utópica,
mas que produz seus efeitos, aproxima as partes e mesmo que não dilua as
diferenças – pois estas são inerentes à vida social, como já mostrara Louis Dumont –
as ameniza. Como disse a cabeleireira Renata, “hoje já há uma aceitação maior”. Foi
esse mesmo aspecto subversivo que produziu os Proibidos, que produz as Putarias
e que produz as paródias de Mr. Catra. É por este motivo que a lógica apropriativa
salta tanto aos olhos, e aos ouvidos, quando um se depara com a música Funk, visto
que o fato do englobamento e dos empréstimos tem que ser evidente, tem que ser
explicitado.
Daí a importância de chamarmos atenção para o aspecto hiper-realista do
Funk. A palavra é importante e remete ao social, ela expressa muito bem o modo
pelo qual a arte está em direta conexão coma vida que a produz, como em Geertz.
Isto, contudo, não é o mesmo que dizer que a arte explica o social ou que este a
produz. A arte não é um espelho da vida, pois possui suas lógicas próprias. A do

cores do real. Esse é o aspecto tricky do Funk, e Mr. Catra, como hábil trickster, tira
magistralmente partido das ferramentas que o Funk lhe oferece.
A tensão entre parte e todo, entre indivíduo e sociedade, é um dos motes da

pode ser entendido como mais um dos elementos que compõe a sua rede de relações
familiares, não se tratando de dizer que são todos iguais, mas que as relações que
o compõem replicam-se nas outras pessoas da rede, e ao mesmo tempo em que
nenhuma delas é exemplar dessa rede, o todo tampouco é a soma dessas partes. É


que as individualidades emirjam. Ainda no reduto doméstico de Catra, a imagem
que ele faz de Israel nos interessou menos por sua veracidade e mais pelo modo
como a usa como anteparo para falar, por contraste, sobre a sociedade em que vive.
Esta tensão entre individual e coletivo nos introduz também no estúdio de
criação, ao vermos que o Funk é para os membros da Sagrada família um “ideal” ao

não apenas como um ritmo que abarca com facilidade qualquer membro de sua
comunidade, como uma alternativa econômica, mas que ele se faz também dentro

uma relação anterior com a música, estabelecida através de familiares de geração
anteriores. Vimos também como é a relação entre ética e estética que move muitos
dos artistas em direção ao Funk, um desejo de fazer uma música que circule, que

251
em que ela circula, é consumida e rompe a barreira do extraordinário, deixando de
ser uma manifestação apartada da vida social para fazer parte de sua articulação.
E a marca de Mr. Catra, que inventa a sua própria tradição, emerge da dinâmica
de apropriações do Funk, porque esta não nos fala apenas de englobamentos
e empréstimos culturais, mas de mediação. Da possibilidade de ir e vir entre
mundos que o Funk faz e deixa ver em especial através das letras das músicas
proibidas, que é constituinte da pessoa de Catra e está presente na confecção
das suas paródias musicais, ao subverter os símbolos da cultura hegemônica e
englobá-los. É dessa união entre subversão e englobamento que a mediação se faz

englobá-los para se comunicar com eles. E é através do riso que Catra estabelece
essa comunicação já que é com humor que faz as suas transgressoras paródias e
engaja o espectador na operação mimética que realiza.
Vimos como a favela possui papel central no processo criativo funkeiro, ao
conter grande parte de seus consumidores e produtores, ao divulgar a sua música,
ao lhe conceder parte de sua marca estilística e ao fornecer parte do repertório
imagético e cultural sobre o qual seus artistas elaboram. Mas de outro lado, esta
tese evolui ao mostrar que essa mesma Estética Funk ganha força pela capacidade
que possui de articular diferentes ambientes sociais e estéticos cariocas. Assim
deslocar o Funk do contexto exclusivo da favela, representá-la não como “música
de gueto” mas como “música eletrônica brasileira” envolve evitar as cristalizações
que o representacionalismo pode produzir. E creio que o Funk é hábil em deixar ver
como as representações podem ser falaciosas, ao se revelar pouco sistematizável
e ao mostrar como os símbolos podem ser manipulados para equivocar o outro. É
dessa capacidade mediadora que deriva a força do Funk e que o torna tão relevante
para a cultura carioca. Não por que é o “grito da favela, como querem alguns. Ele
é também “a voz da boca amordaçada”, como coloca WF, mas é por sua premência
cultural que ele se faz escutar.
Outra fonte de abstração da tese foi concedida pela abordagem dos objetos
materiais e do corpo, que conformam o que chamei de estética corporal. A ênfase
sobre o objeto produziu de verdade a sua dessubstancialização, na medida em

sujeitos mas aos distintos domínios do social, materiais ou imateriais. Além disso,
seguir o fazer e re-fazer da estética corporal deixou evidente a interação entre
corpo e mente.
Na análise dos objetos tivemos dois guias. De um lado, nos conduziram os
cabelos femininos. Acompanhá-los nos permitiu isolar uma lógica da prótese a
emergir das escolhas individuais e ver o corpo como instância agentiva, que submete
as escolhas de gosto ao seus desejos. A particularidade do gosto feminino, de não
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apenas produzir sua própria moda mas de englobar às exigências da corporalidade
local a marca e o gosto globais, ressoa com o modo como opera a música Funk,
onde o beat é soberano e é a ele que a letra deve ser submetida. Mas não são
somente marcas e gostos que são submetidos ao corpo enquanto corporalidade. As
relações com a alteridade, com um gosto outro, são também vivenciadas no corpo,
o que é feito através de operações mentais e projetos miméticos que produzem a
incorporação ou agencia potências outras. A corporalidade é fundamental para a

para se chegar ao que lhes parece o belo e agradável para a constituição do self, se
dão em conjunção com capacidades que são representadas como inatas ao corpo
não-branco. Capacidades que distinguem as mulheres não apenas pelo modo de se
apresentar mas também pela força e resistência que possuem os seus corpos para

         
interações sociais como estabelecidas no Rio de Janeiro, nos levou a tangenciar
questões relativas aos preconceitos de ‘raça’ e ‘classe social’. No uso ambíguo dos
elementos que compõem a estética corporal feminina revelou-se não somente a
grande habilidade que possuem esses sujeitos na manipulação de símbolos, de
modo a serem melhor recebidos em um ou outro espaço da cidade, como o seu
domínio de diferentes gostos e códigos estéticos. Como fez Tânia que, ao produzir
os seus cabelos, juntou àqueles herdados em seu ambiente familiar outros de
colorações diferentes pinçados aqui e acolá e, como em um jogo de quebra-cabeça,

externa e pré-concebida. É do sucesso destas manipulações que dependerá o bom
trânsito por diferentes espaços da cidade. A habilidade que possui o sujeito Funk


            
preciso notar que esta centralidade que possui o modo como um se apresenta não
diz respeito somente ao Funk, mas é característica do Rio de Janeiro como um todo
e é capaz de produzir diversos outros desdobramentos em diferentes contextos
sociais do Brasil urbano.
É interessante chamar atenção ainda para o fato de os cabelos femininos

em jogo era mais a circulação pela cidade do que o Baile Funk propriamente dito.
Isto nos remeteu à maior versatilidade que as extensões capilares permitem às
mulheres, tanto no que toca às possibilidades embelezadoras como no que diz
respeito à sua mobilidade. Pois as extensões permitem que os cabelos possam ser
usados ora lisos ora anelados, diferentemente da aparência permanentemente
253
         
preferencialmente anelados que, em determinadas épocas, em especial o inverno,
são transformados em cabelos lisos, através da realização de “escovas” e da
utilização da “prancha, como modo de evitar a sua lavagem frequente em épocas
mais frias, já que cabelos anelados para estarem bem apresentados devem, nesse
contexto, ser constantemente molhados e em seguida penteados com creme. Mas
a escolha de cabelos anelados envolve uma outra intenção, a de desestabilizar

permanecer como representação congelada do que é ser negro. Daí o desinteresse
por penteados em estilo ‘afro’ ou ‘black’. Não se quer nem uma coisa, nem outra. Os
cabelos envolvem um consumo conspícuo como modo de mostrar o valor atribuído
ao trabalho e negar um gosto da necessidade que vincula classe popular à uma
estética minimalista e puramente utilitária.
Mas o que une o gosto das mulheres com as quais trabalhei não é tanto
o cabelo, mas a lógica da prótese e da transformação que a materialidade dos
cabelos e sua produção permite ver. A beleza não é tanto dada, como feita.
Pode-se ser agraciada com o dom de cabelos idealmente belos ou de dentes
considerados perfeitos, mas quando uma não os tem, os incorpora. E se a lógica
da prótese não desfaz inicialmente a diferenciação entre sujeito e objeto, o
objeto, depois de apropriado pelo corpo biológico, “já é seu”: pertence ao corpo
e à pessoa, funcionando a partir do mesmo nexo de fusão com o corpo que eu já
vinha apontando com a “Calça de Moletom Stretch. Mas ainda assim estes objetos
corporais não perdem a sua dimensão de adorno, pois como a roupa, o cabelo pode
ser retirado e pode se permanecer sem eles durante um período de semanas ou
meses. O que reforça a ideia que não se quer simular um corpo outro ou passar por
outro, mas se empoderar através dos objetos.
Mas se acompanhar os cabelos femininos trouxe à tona o modo com o qual
os efeitos causados pelos objetos são passíveis de serem manipulados, seguir as
balas de armas de fogo, nos mostrou como eles podem produzir eventos que estão
fora de nosso controle. Os tiros colocaram em relação diferentes partes da cidade
ao darem visibilidade a realidades sociais que poderiam passar desapercebidas e
nos conduziram ainda aos adornos e à estética corporal masculinos que por sua
vez nos levaram às relações de gênero.
Isolamos dois estilos diferentes de o homem se adornar. Um deles tem como
marca estilística os cabelos elaborados por meio de desenhos e colorações, que são
cortados baixinhos, próximos ao couro cabeludo, e depois re-cortados e tingidos.
Esse estilo se faz a partir da tensão entre o falso e o verdadeiro e tem como aspecto
central a artefatualidade desses cabelos, o seu aspecto feito. Novamente a beleza

254
dos cabelos femininos, os masculinos não 
seu aspecto de fabricado a identidade funkeira, representação esta que resulta de
uma indumentária híbrida que reveste o corpo por meio do gosto global e veste a
cabeça com cabelos locais.
Já homens como Mr. Catra constroem uma estética corporal que pode ser

ornamentos. O homem, acredita Catra, tem que seguir uma estética ascética, para
se diferenciar da mulher, que “pode tudo. Dessa perspectiva, o homem também não
pode rebolar. As estéticas corporais feminina e masculina, ambíguas e conectivas
quando está em jogo a sociedade envolvente, são desambiguizadoras quando os
gêneros são colocados em relação. Mas as elaborações inscritas no corpo masculino,
como ocorre no caso dos cabelos funkeiros, são substituídas por adornos que se
destacam dele e parecem ser, aí sim, partes extra-somáticas. A exibição ostensiva
de objetos, como fazem Catra e outros homens, remete a uma cultura da favela que

armas, dinheiro, ouro e bebidas, de modo que os objetos substituem as palavras na

imagens do “presepeiro” e do “escandaloso” oferecidas por Karla.

seu poderio ao mesmo tempo em que sente-se empoderado por meio da exibição de
objetos de valor. Mas ao falar dos homens é preciso ainda acrescentar a mulher, que

como Catra se cercam: dinheiro, ouro, roupas, armas, bebidas e, não menos importante,

como são organizados os adornos corporais, a mulher não necessita da presença do



mundo recorrentemente tachado como machista. Foi essa independência feminina, e
não um suposto feminismo das mulheres, que me permitiu escrever todo um capítulo
em torno delas e de sua estética sem precisar contrastá-las aos homens ou invocá-los.
As diferentes noções de beleza nos levaram forçosamente a tangenciar as
relações de gênero. Pois se como Strathern partíssemos do pressuposto que não

também os gêneros, as diferenças fundamentais estariam organizadas em torno
da beleza e da aparência. O adorno    
mostrando como noção de pessoa, corpo e objetos estão vinculados. A pista para se
tratar da sexualidade e das relações de gênero, nesse universo, parece residir em uma
recusa às grandes categorizações sociais, e a estética corporal parece sinalizar um
caminho interessante para escapar a elas.
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