Download PDF
ads:
9
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES
A CRUCIFICAÇÃO NECESSÁRIA:
O PROJETO LITERÁRIO DE HENRY MILLER
Orientadora: PROFESSORA DOUTORA ANDREA DAHER
Rio de Janeiro
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
10
LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES
A CRUCIFICAÇÃO NECESSÁRIA: O PROJETO LITERÁRIO DE HENRY MILLER
Dissertação apresentada ao Programa de s-graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de mestre em História Social
Orientadora: PROFESSORA DOUTORA ANDREA DAHER
Rio de Janeiro
2009
ads:
11
Esteves, Lainister de Oliveira.
A Crucificação necessária: o projeto literário de Henry Miller/ Lainister de Oliveira
Esteves. – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009.
VIII, 154f. 31 cm.
Orientador: Andrea Daher.
Dissertação (mestrado) UFRJ/ IFCS/ Programa de s-graduação em História Social,
2009.
Referências Bibliogficas: f. 148-154.
1. Literatura norte – americana I Andrea Daher II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título.
12
LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES
A CRUCIFICAÇÃO NECESSÁRIA: O PROJETO LITERÁRIO DE HENRY MILLER
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de mestre em História Social.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Professora Doutora Andrea Daher (orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________
Professora Doutora Eliane Robert Moraes
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
________________________________________
Professor Doutor Paulo Henriques Britto
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
13
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-graduação em Hisria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
À Professora Doutora Andrea Daher pelos valiosos conselhos e fundamental apoio na
elaboração deste projeto
Ao programa de bolsas do CNPQ e da FAPERJ pelo suporte financeiro sem o qual este
trabalho não seria possível.
À minha falia pelo apoio incondicional.
À minha esposa pela dedicação e companheirismo fundamentais ao longo desses anos.
14
RESUMO
O objetivo deste estudo é compreender as bases que estruturam o projeto literário de Henry
Miller. Considerando os mecanismos de que o escritor americano lança mão no sentido de
construir o valor de sua obra e ocupar um lugar de prestígio no campo literário, este trabalho
procura entender o sentido das disputas que Miller trava em nome da legitimação de um
determinado tipo de romance. A busca pela consagração literária envolve ainda a tentativa
construção de uma determinada tradição literária a que o escritor tenta se filiar. Construindo
um personagem que deve funcionar como a imagem de seu criador, Henry Miller tenta
atribuir um sentido sagrado para seus textos. Ao exporem a via crucis de um herói, seus
romances guardam uma verdade que tem de ser revelada, em vista da redenção da decadente
cultura ocidental”. Na trajetória das disputas que configuram esse projeto literário,a a obra de
Miller ocupou diferentes lugares, desde “literatura suja parisiense” até figurar como base da
literatura americana, na segunda metade do século XX.
Palavras – chave: Henry Miller, literatura americana; decadência; crucificação.
15
ABSTRACT
The aim of this study is to understand the elements that structure the Henry Miller´s literary
project. Considering the mechanisms that the American writer uses in order to construct the
value of his work and to occupy a place of prestige in the literary field, this work aims to
understand the meaning of the disputes that Miller hangs on behalf of the legitimating of a
particular type of novel. The search for literary consecration also involves the attempt to build
a literary tradition which the writer tries to join. Building a character who must function as the
image of its creator, Henry Miller tries to attribute a sacred meaning for his texts. As they
exposethe Via Crucis of a hero, his romances save a truth that needs to be revealed in view of
the redemption of the "decadent Western culture." In the course of the disputes that configure
this literary project the work of Miller occupied many different positions, from “Parisian
dirty literature up to appearing as the base of the American literature in the second half of the
XX century.
Keywords: Henry Miller, American literarature; decadence; crucifixion.
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9
1 MODELOS E REPRESENTAÇÕES LETRADAS NA OBRA DE HENRY
MILLER
1.1 Uma vida entre livros ........................................................................................ 14
1.2 Matrizes intelectuais .......................................................................................... 21
1.3 O burlesco .......................................................................................................... 42
1.4 O Jogo das apropriações .................................................................................... 48
2 UM NOVO ROMANCE CONTRA A DECADENTE ARTE OCIDENTAL
2.1 A escrita da verdade .......................................................................................... 56
2.2 As possibilidade de Paris .................................................................................. 66
2.3 A opção pelo obsceno ....................................................................................... 71
2.4 Modelos em disputa .......................................................................................... 78
3 A CRUCIFICAÇÃO ENCENADA
3.1 O crucificado ..................................................................................................... 96
3.2 A via crucis ...................................................................................................... 108
3.3 O sentido sacro ................................................................................................. 124
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 135
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 144
17
Introdução
Na galeria dos grandes nomes da literatura ocidental do século XX, o de Henry Miller
ocupa um lugar de destaque. Sua produção literária alcançou fama internacional a partir da
segunda metade do século, ficando marcada por seu caráter polêmico. A obscenidade
apresentada em seus romances, a dimensão pornográfica, agressiva e quase sempre violenta
de seus textos lhe renderam a fama de autor maldito. Fama essa que o acompanharia mesmo
quando, já mais para o fim de sua vida, poderia ser considerado um autor de sucesso.
Miller nasceu no Brooklyn, em 1891, e morreu em Pacific Palisades, Califórnia, em
1980. Em 1914, após vagar pelos Estados Unidos, se estabeleceu em Nova York, cenário de
vários de seus textos e fez suas primeiras investidas na carreira de escritor. Um dos resultados
desse período é o romance Crazy Cock, escrito ao longo da década de 1920. Publicado
somente nos anos 1960, o livro narra as aventuras de um triângulo amoroso, envolvendo o
escritor Tony Brings, sua esposa Hildred e Tanya, uma artista lésbica que vive um caso com
Hildred. Em 1930, Henry Miller se mudou para Paris onde escreveu Tropic of Cancer,
publicado somente em 1934. No conjunto de suas principais obras ainda Black Spring
(1936); Tropic of Capricorn (1939); e os volumes Sexus (1949); Plexus (1952) e Nexus
(1959), que formam a trilogia denominada The Rosy Crucifixion.
O choque que seus livros causaram é justificável, pois os textos descrevem relações
sexuais sem grandes pudores. Em seus romances, o diálogo com o gênero pornográfico
acabou por colocar a obra de Miller em uma tensa fronteira: se suas narrativas o podem ser
caracterizadas como unicamente pornográficas, tampouco essa dimensão pode ser descartada
delas. Caminhando nesse limite, Henry Miller arma uma dissidência literária. Seus romances
e ensaios reunidos conformam uma produção literária extremamente vigorosa, sempre
passível de suscitar controvérsias.
É possível afirmar que, dentre inúmeros assuntos tratados, o tema que Henry Miller
desenvolve ao longo de seus mais significativos romances é basicamente o mesmo: a
dramatização da tortuosa trajetória de um homem para se tornar um artista, o que acaba
criando uma espécie de encenação na qual Henry Miller único personagem a que o autor
efetivamente pretende dar densidade aparece como o artista modelo, o herói marginal, o
salvador que almeja, no limite, a redenção diante de uma atmosfera decadente densamente
construída.
18
A dor parece legitimar e no fundo, talvez, venha a dar sentido a evolução
espiritual, cuja apoteose se daria no processo de crucificação. A performance literária de
Henry Miller dialoga com o teatro burlesco, em que as atrações são trazidas ao público com o
objetivo último de chocar. O próprio autor considera uma de suas mais significativas
lembranças de sua juventude a ida constante a espetáculos desse tipo no Brooklyn.
A produção literária de Miller é autobiográfica, em um esforço constante de confundir
vida e literatura. Miller deseja que seus romances sejam lidos como narrações de uma
experiência vivida e sofrida em sua própria carne.
Situados assim em um jogo ambíguo entre a autobiografia e a ficção propriamente
dita, os romances de Miller aludem a um sentido bastante específico de verdade. Ao mesmo
tempo em que faz questão de destacar o fato de estar somente narrando suas experiências
pessoais,
inclui
em
seus
relatos
fantasias
e
delírios
ficcionais. Como elemento autobiográfico
entende qualquer evento de sua vida, seja ele real ou fictício. No fundo, é tudo verdade, é tudo
ficção, e a única “história” que subsiste é a própria obra literária.
Nesse jogo em que os limites que definem ficção e realidade parecem turvos, cabe
tentar entender as opções feitas pelo escritor americano: compreender como é construído um
projeto literário que busca se legitimar na medida em que se faz crer como não ficcional. A
crença na ideia de que os textos por ele escritos expressam a verdade do que foi sua vida é
condição primeira de seus romances, para a qual mobiliza inúmeros recursos.
Em seus romances, o incontáveis as passagens nas quais cataloga autores que ele
considera importantes, tornando-os parceiros em sua jornada pessoal. Assim se configura a
imagem do herói que atua no seio de uma tradição letrada, marcando uma inserção. Citar com
frequência esses grandes nomes é um dos recursos importantes na construção autobiográfica
de um personagem Miller”.
Manipulando signos de sofrimento, renúncia e redenção, o escritor americano busca
construir um personagem cujo drama pessoal encerre a maior das dores do mundo: a da
criação. Sua escrita é, em grande medida, uma literatura da solidão. Como o demiurgo, Miller
es quase sempre sozinho, os outros personagens, na maioria dos casos, o passam de
esboços, coadjuvantes que aparecem quase exclusivamente para servirem de escada para as
falas do personagem principal. Justamente por isso, o escritor foi por diversas vezes tachado
de egoísta e repetitivo, um narcisista cuja autoindulgência teria dado origem a um conjunto de
romances infantilmente agressivos.
19
Henry Miller encena ao longo de suas principais obras o que definiria como um
“prolongado ciclo de frustrações e derrotas” que terminaria com a publicação de Tropic of
Cancer em 1934. Seus escritos dramatizam o calvário de um homem que, pelo sofrimento, se
descobre artista e, como tal, deve proclamar a verdade redentora. O caminho da redenção é o
do despertar do estado de sonolência espiritual decadente. Na literatura de Miller, é pela arte
que se entra em contato com os segredos do universo, é por onde a verdade se liberta e Deus
se manifesta. Os poderes do artista o ilimitados, ele se apresenta como um anjo libertador
que, em sua suprema compaio, é capaz de expor suas feridas para confortar o mundo.
Em O romance americano moderno, Malcon Bradbury aponta Miller como precursor
dos experimentalismos típicos do s-modernismo, inserindo seus textos num conjunto de
livros denominado por ele antirromances” da década de 1930. A nomenclatura seria uma
forma de conceituar textos literários distantes dos padrões convencionais da literatura
ocidental. Nesses antirromances” cujo grande modelo seria justamente Tropic of Cancer
estariam contidos traços configuradores de sentimentos de degradação histórica e esterilidade
criativa, sobretudo nos universos urbanos.
1
Segundo Bradbury, o apocalipse econômico teria
gerado a necessidade de um subjetivismo surrealista em nome da autoliberação individual.
Henry Miller é então definido como o patrono da geração beat, voz potente do novo
romantismo norte-americano.
Malcon Bradbury faz eco a certa tendência da crítica ao definir Miller como um
rebelde profissional. Desde a publicão de Tropic of Cancer, a obra de Miller foi, na mesma
medida, defendida e atacada. Porém, é inegável que, a partir dos anos 1970, ela foi reabilitada,
e o escritor americano tornou-se um grande nome da literatura ocidental. O “rebelde sem
causa” passou a ser o paladino da liberação sexual, e os romances marginais, autorizados
definitivamente para a publicação, tornaram-se clássicos do século XX.
Tratando
a
obra
de
Miller
como
tipicamente
modernista,
Otto
Maria Carpeaux, em
Tendências contemporâneas da literatura ocidental,
2
argumenta que o irracionalismo é o
fundo de todos os modernismos, e esses se articulam como um ataque à cultura burguesa. Os
romances de Miller estariam ligados às revoltas contra a família e o status quo em nome de
uma liberação dionisíaca dos instintos. Segundo Carpeaux, a eclosão de duas guerras
mundiais no seio de povos ditos civilizados teria proclamado uma verdadeira crise do
intelectualismo. O ressurgimento dos instintos leva ao aparecimento de movimentos estéticos
1
BRADBURY, Malcon. O romance americano moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 98.
2
CARPEAUX, Otto Maria. Tendências contemporâneas da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Estudante, 1976.
20
como o realismo mágico que buscou as camadas não civilizadas do homem a fim de
revitalizá-lo.
A imagem de escritor rebelde é um dos dados caracterizadores da dissidência que
Henry Miller tenta articular em relação ao que julga “padrão ouro da literatura”. A tentativa
de construção de um tipo de romance que se defina por não ser mera ficção, o esforço de
fabricação de um “personagem Miller” que se revela a partir de um processo de crucificação e
a evocação constante de grandes nomes da cultura letrada fundamentam o projeto literário de
Henry Miller como busca da renovação estético-conceitual da literatura ocidental. Nesse
sentido, cabe investigar os recursos manipulados pelo escritor para atingir a sua meta.
É preciso entender como, a partir da construção de um “teatro de representações
letradas”, Miller empenha-se por inventar uma tradição rebelde ocidental da qual se coloca
como um dos últimos representantes. Compreender esse jogo pode significar a possibilidade
de se pensar como, em determinado momento, os romances do escritor americano passam a
funcionar como referência para um determinado modelo de pensamento jovem e transgressor.
Para compreender a construção da suposta “tradição maldita” que Henry Miller
almeja encarnar foi preciso fazer um mapeamento das referências textuais que o escritor
manipula. Entender como diferentes tipos de dispositivos textuais são apropriados por suas
narrativas pode ser um modo de procurar compreender os sentidos que esses textos assumem.
Tentaremos demonstrar como as questões que estão em jogo no tipo de literatura proposta por
Miller se referem a essa tradição inventada e a objetivos expressos por seu projeto literário.
Pensar os romances de Henry Miller levando em consideração a existência de um
projeto literário significa, aqui, abandonar as determinações de ordem macro-históricas e fazer
com que seus textos testemunhem a lógica das disputas literárias em que estão envolvidos,
entendendo que elas se traduzem em conflitos conceituais em torno do que é literatura, arte,
sexo etc. É dessa forma que os textos de Miller assumem diferentes significados.
Em suma, o objetivo desse trabalho, portanto, é tentar compreender as premissas que
estruturam o projeto literário de Henry Miller levando em consideração as disputas travadas
no processo de sua configuração. Importa entender como a obra de Henry Miller desempenha
funções diversas de acordo com o rumo dessas mesmas disputas. É preciso examinar como
um determinado tipo de produção literária, inicialmente encarada como suja, típica do
submundo letrado parisiense, passa a ser o símbolo das contendas em torno da liberdade de
21
expressão nos Estados Unidos da segunda metade do culo XX, sendo, inclusive,
considerada de “alto valor literário por críticos de todos os países”.
3
3
MILLER, Henry. O mundo do sexo. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Ed. Americana, 1975, p.
5.
22
Capítulo 1
Modelos e representações letradas na obra de Henry Miller
1.1 Uma vida entre livros
Um dos temas mais constantes nos romances de Henry Miller é a intimidade com
livros. O escritor constrói um personagem que é, antes de tudo, um amante dos livros. Em
grande medida, seus romances dramatizam um certo tipo de relação com a cultura letrada. É
recorrente em seus textos a citação de diversos autores e o uso desse recurso não é aleatório:
ter como marca de identidade autoral a constante evocação de nomes é um ponto chave para a
definição do projeto literário de Henry Miller.
O esforço para atribuir aos próprios textos um caráter autobiográfico é ainda um dos
fundamentos de seu projeto: Henry Miller, personagem criado em Tropic of Cancer, seu
primeiro romance publicado, deve ser a imagem de Henry Miller, o escritor.
Robert Ferguson, seu mais importante e respeitado biógrafo, parte da seguinte
premissa:
Henry Miller foi uma pessoa incomum. Começou sua vida como um ser humano, e
depois de uma série de aventuras surpreendentes e às vezes arriscadas obteve sucesso na
tarefa para a qual se auto-nomeou, de se transformar em um híbrido raro de homem e
livro. Penetrar no mundo que ele criou no cumprimento dessa tarefa é uma experiência
estranha, desorientada, e se faz isso com a mesma sensação agradavelmente nervosa de
antecipação que Alice deve ter sentido quando penetrou no mundo dos espelhos. A
primeira impressão é de um salão de espelhos, todos refletindo a mesma face. Um exame
mais de perto revela que cada face é levemente diferente, pois o propósito do mundo é
criar mitos, e a matéria-prima do mito é um abundante suprimento de imagens. As
habilidades necessárias à tarefa eram um talento para a fabulação, a mentira, a
improvisação, o exagero, e para contar e evitar as verdades duras. Ele as possuía todas. É
um mundo hilário, amplo, disparatado e ocasionalmente cruel e mal orientado, mas
jamais um mundo sinistro.
4
Considerando-se que a construção do homem-livro é uma das particularidades
fundamentais do projeto de Miller, cabe em um primeiro momento tentar entender como se
4
FERGUSON, Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 16.
23
articulam as autorrepresentações do escritor, no que se refere às relações travadas com a
cultura letrada e com o mundo dos livros. Serão mapeadas, ainda, as principais referências
intelectuais do escritor buscando entender de que forma se apropria de alguns autores e como
esses se tornam seus aliados. Por meio dessa chave se pode começar a pensar o projeto
literário de Henry Miller.
Nos romances de Henry Miller, há um verdadeiro desfile de nomes e referências
intelectuais que o autor faz questão de demarcar constantemente. Miller é, certamente, um dos
escritores que mais cita outros no conjunto da literatura ocidental. É possível afirmar que a
eleição constante de figuras supostamente fundamentais na configuração da literatura no
Ocidente não é gratuita. Relacionar uma miríade de autores, criticá-los ou adorá-los, é parte
do jogo que distingue a ficção de Henry Miller. E reconhecer em que medida a evocação
desses autores é relevante na configuração do projeto literário de Henry Miller é a condição
sine qua non para entendê-lo.
Thus, while sedoulously and slavishly imitating the ways of the masters tools and
technic, in other words – my instincts were rising up in revolt. If I craved magical powers
it was not to rear new structures, not to add to the Tower of Babel, but to destroy, to
undermine. The novel I had to write. Point d`honneur. But after that…? After that,
vengeance! Ravage, lay waste the land: make of Culture an open sewer, so that the stench
of it would remain forever in the nostrils of memory. All my idols and I possessed a
veritable pantheon I would offer up as sacrifices. What powers of uttrerance they had
given me I would use to curse and blaspheme. Had not the prophets of old promised
destruction? Had they ever hesitated to befoul their speech, in order to awaken the dead?
If for companions I had never aught but derelicts and wastrels, was there not a purpose in
it? Were not my idols also derelicts and wastrels – in a profound sense? Did they not float
on the tide of culture, were they not tossed hither and thither like the unlettered wretches
of the workaday world? Were their demons not as heartless and ruthless as any slave
driver? Did not everything conspire the grand, the noble, the perfect works as well as
the low, the sordid, the mean to render life more unlivable each day? Of what use the
poems of death , the maxims and counsels of the sage ones, the codes and tablets of the
lawgivers, of what use leaders, thinkers, men of art, if the very elements that made up the
fabric of life were incapable of being transformed?
5
A longa passagem acima é um bom exemplo da relação que Miller estabelece com
seus “mestres”.
6
Diz imitá-los, pois lança o conscientemente de suas técnicas e
ferramentas. Os autores que venera são os alicerces de seus textos. Mas nele também a
revolta, o desejo de ver ruir a estrutura cultural erguida por seus mestres. Aqueles que
5
MILLER, Henry. Nexus. NEW JERSEY: Castle Books, 1965, p. 247-248.
6
Optou-se por utilizar as versões originais em inglês nos casos onde se considerou que as traduções, de alguma
forma, não estavam devidamente adequadas.
24
possibilitaram a exisncia de sua arte e que deram forma a modelos que, posteriormente, ele
se apropriaria, serão, no fim, oferecidos em sacrifício para que uma nova ordem se imponha.
A relação objetiva e direta que Miller estabelece com os escritores o leva a escrever
uma obra bastante curiosa intitulada The Books in My Life. Publicado pela primeira vez em
1952 pela New Directions editora de Nova York – que viria a lançar também vários de seus
livros posteriores, The Books in My Life é uma espécie de livro de ensaios no qual o escritor
elenca suas mais significativas referências intelectuais. “Quais os assuntos que me levaram a
procurar os autores de que gosto, que me permitiram ser influenciado, que modelaram o meu
estilo, o meu caráter, a minha abordagem da vida?”
7
pergunta o próprio Miller. E a resposta
parece ter sido dada ao longo das páginas do livro. Na verdade, ele sintetiza nessa publicação
um esfoo que perpassa qualquer dos seus romances, pois em cada um de seus textos faz
questão de enunciar seus ídolos literários analisando-os e tentando entender o lugar de cada
um em seu próprio processo criativo. O livro funciona também como uma espécie de
“panfletagem”, por meio da qual o autor fortifica a imagem que busca construir para si de
intelectual irresponsável, leitor das mais variadas fontes, de Lewis Carrol a Krishnamurti.
Nesse mosaico de referências, destacam-se, ainda, Nietzsche, Emerson, Thoreau, Dostoievski,
Blaise Cendrars, Walt Whitman e Rimbaud.
Ainda que seja essa uma obra construída com o intuito de marcar a importância dos
livros na sua formação, faz questão de mostrar como sua experiência com os livros se dá em
uma lógica orgânica: os livros são tão fundamentais quanto qualquer outra experiência
cotidiana. A vida em si é o que importa, é ela que traz a verdadeira sabedoria; os livros são
guias, manuais que ajudam a sobreviver na selva do mundo.
[…] Our whole theory of education is based on the absurd notion that we must learn to
swim on land before tackling the water. It applies to the pursuit of the arts as well as to
the pursuit of knowledge. Men are still being taught to create by studying other men`s
works or by making plans and sketches never intended to materialize. The art of writing
is taught in the classroom instead of in the thick of life. Students are still being handed
models which are supposed to fit all temperaments, all kinds of intelligence. No wonder
we produce better engineers than writers, better industrial experts than painters.
My encounters with books I regard very much as my encounters with other phenomena of
life or thought. All encounters are configurate, not isolate. In this sense, and in this sense
only, books are as much a part of life as trees, stars or dung. I have no reverence for them
per se. Nor do I put authors in any special, privileged category. They are like other men,
no better, no worse.
8
7
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978.
8
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 12.
25
Situando livros e escritores em um nível cotidiano, retirando qualquer dimensão
privilegiada, Miller parece querer demarcar uma relação bastante particular com os autores
que encontra. Livros surgem como elementos naturais da vida, o que, em um primeiro
momento, pode contradizer algumas de suas passagens, em que aos grandes livros é atribuído
um caráter sacro, libertador. De qualquer forma, o que aparece expresso no texto acima, e o
que pode se estender como comentário para toda a obra, é que Miller tenta fazer dos autores
companheiros de viagem: ele os olha de um mesmo patamar, trata os supostos mestres como
pares, homens iguais e com uma mesma missão.
The Books in My Life não é nem um livro de crítica literária, nem uma apologia aos
autores mencionados. Talvez seja mais um livro destinado a mostrar como Miller se tornou o
que é. Dessa forma, não estaria deslocado do que parece ser uma ambição maior de escritor,
ou seja, narrar os percalços enfrentados na construção de sua identidade de artista.
Como foi dito anteriormente, demarcar influências e referências intelectuais é um
recurso comum nos romances de Miller. The Books in My Life simplesmente é um
empreendimento que verticaliza essa tendência. Nele o escritor se permite, por exemplo, falar
da importância dos livros que nunca leu.
9
[…] It is this: many of the books one lives with in one`s mind are books one has never
read. Sometimes these take on amazing importance. There are at least three categories of
this order. The first comprises those books which one has every intention of reading some
day but in all probability never will; the second comprises those books which one feels he
ought to have read, and which, some at least, he undoubtedly will read before he dies; the
third comprises the books one hears about, talks about, reads about, but which one is
almost certain never to read because nothing, seemingly, can ever break down the wall of
prejudice erected against them.
10
Vale ressaltar que Miller aponta para o curioso fato de que os livros nunca lidos
podem inclusive ter papel relevante na configuração do trabalho de um escritor. Miller
destaca uma circulação de ideias que transcende o ato da leitura em si. O universo de
referências que circundam a figura criada por ele se expande: conversas com amigos, e
encontros casuais são colocados como de fundamental importância, ao lado dos livros e do
conhecimento formalmente adquirido. Dedica um capítulo de The Books in My Life ao que
9
Sobre este tema o trabalho de Pierre Bayard é particularmente importante. Em Como falar dos livros que não
lemos, o autor discute a importância deste jogo que envolve diferentes modalidades de não-leitura.
10
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 29.
26
chama de “living books”, ou seja, amigos e parceiros que passaram por sua vida e com
calorosas conversas ajudaram a consolidar a sua formação cultural.
A importância desse destaque dado às conversas com os amigos talvez esteja no fato
de que esse é um recurso usado no intuito de fortalecer a ideia de um personagem que se
realiza nas ruas. Nos romances do escritor, são inúmeras as passagens que descrevem leituras
ao ar livre, sobretudo em cafés, e longas discuses filosóficas travadas com amigos em
lugares públicos. Henry Miller quer ser tudo menos um eremita e encontra um problema.
Como construir um personagem extremamente erudito sem perder a característica de homem
de rua? É fundamental para o escritor a máxima de que seus romances são filhos da rua e,
para isso, seu herói deve se tornar sábio em plena rua. Os cenários, nesse caso, são os cafés, e
os coadjuvantes, seus amigos. As longas conversas são momentos privilegiados para Miller
desenvolver uma série de tópicos. Muitas vezes é nessa arena pública, com o auxílio do
“elenco de apoio”, que o escritor encontra as pistas necessárias para atuar como crítico,
filósofo e facínora cultural.
— Listen, Henry, eat, drink, smoke, do anything you want, as much as you want. I’ll give
you everything we have in the house. But don’t stop talking now… please.
[…] You`re an actor, she said. In the real sense of the word, of course. I don’t
wonder that people are frightened of you sometimes.
I know, I get frightened of myself sometimes. [] It’s just as crazy when things are
normal and peaceful as in times of war or revolution. The evils are insane evils, and the
panaceas are insane panaceas. Because were all driven like dogs. Were running away.
From what? We don’t know. From a million nameless things. It’s a rout, a panic. Theres
no ultimate place to retreat to unless, as I say, you stand stock still. If you can do that,
and not lose your balance, not be swept away in the rush, you may be able to get a grip on
yourselfbe able to act, if you know what I mean. […] If we could still believe in a
God, we’d make him a God of Vengeance. We’d surrender to him with a full heart the
task of cleaning things up. It’s too late for us to pretend to clean up the mess. We’re in it
up to the eyes. We don’t want a new world… we want an end to the mess we’ve made.
11
Nos diálogos informalmente travados, Miller se posiciona como um hábil orador,
verdadeiramente capaz de seduzir sua plateia. Esse é um expediente particularmente comum
nos romances que compõem The Rosy Crucifixion. Como o textos destinados a narrar sua
vida em Nova York antes da chegada a Paris, onde o escritor busca “reconstituir” seu
cotidiano na cidade, a presença de amigos, revelada em grandes conversas, é marcante. E a
eles Miller presta um tributo em The Books in My Life.
11
MILLER, Henry. Sexus. New York: Grove Press, 1979, p. 496- 497.
27
And now for the living books”… Several times I have said that there were men and
women who came into my experience, at various times, whom I regard as “living books.
[…] They stay with me, these individuals, as do the good books. I can open them up at
will, as I would a book. When I glance at a page of their being, so to speak, they talk to
me as eloquently as they did when I met them in the flesh. The books they left me are
their lives, their thoughts, their deeds. It was the fusion of thought, being and act which
made each of these lives singular and inspiring to me.
12
Miller compara amigos a livros, citando-os como “influência”. Há em seus textos uma
noção de conhecimento não encerrado, indomado, livre e experimentado nas ruas. Seus livros
se pretendem livros da vida, dominados por uma força vital e orientados para uma sabedoria
da carne. Em suma, todos seus encontros, fortuitos ou não, são características fundamentais de
romances que almejam uma verdade limite, para abolir fronteiras entre a imaginação e a
experiência.
Determinar o lugar de cada “influência” é, nesse caso, um jogo complexo. “It is my
opinion that each man has to dig his own foundations.”
13
Com essa sentença, Miller deixa
claro que o universo letrado em que está imerso é antes de tudo fruto de escolhas. É ele quem
forja o quadro de referências que toma como definitivo. Assim entende-se livre para formar,
de acordo com seus interesses e perspectivas, seu panteão privado.
“The books a man reads are determined by what a man is”.
14
A afirmativa inverte a
máxima corrente de que um homem é formado pelos livros que lê: ao contrário, o que um
homem é, define o que ele lê. Dessa forma, todo o jogo de The Books in My Life se revela.
Para dar sentido à sua trajetória, para afirmar o que Miller é, os nomes são evocados. Esse
comentário poderia se estender para outros textos. O teatro de nomes que Miller traz à tona
em seus romances são demarcações do que Miller é ou pretende ser.
Uma autorrepresentação bastante eloquente, nesse sentido, é a ideia do leitor de
banheiros. Por mais que, em The Books in My Life, o escritor dedique um capítulo inteiro,
todo ele escrito em tom de piada, a criticar o costume de ler no banheiro como desculpa para a
falta de tempo no mundo moderno, fato é que essa ideia de ler no banheiro lhe é bastante cara.
Em Black Spring, o banheiro é descrito como uma espécie de santuário, lugar de revelações,
onde alguns livros se mostram em essência.
O the wonderful recesses in the toilet! To them I owe my knowledge of Boccaccio, of
Rabelais, of Petronius, of The Golden Ass. All my good reading, you might say, was done
12
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p.126.
13
MILLER, Henry, op. cit., p. 32.
14
MILLER, Henry, op. cit., p. 33.
28
in the toilet. At the worst, Ulysses, or a detective story. There are passages in Ulysses
which can be read only in the toilet if one wants to extract the full flavour of their
content. And this is not to denigrate the talent of the author. This is simply to move him a
little closer to the good company of Abelard, Petrarch, Rabelais, Villon, Boccaccio all
the fine, lusty genuine spirits who recognized dung for dung and angels for angels. Fine
company, and no rari nantes in gurgite vasto. And the more ramshackle the toilet, the
more delapidated it be, the better.
15
O banheiro seria também um lugar de teste e de crítica.
No harm, I say, can ever be done a great book by taking it with you to the toilet. Only the
little books suffer there by. Only the little books make ass-wipers. Such a one is Litle
Caesar, now translated into French and forming one of the Passions series. Turning the
pages over it seems to me that I am back home again reading the head-lines, listening to
the goddamned radios, riding in tin buggies, drinking cheap gin, buggering virgin harlots
with a corn cob, stringing up niggers and burning them alive. Something to give one
diarrhoea. And the same goes for the Atlantic Monthly, or any other monthly, for Aldous
Huxley, Gertrude Stein, Sinclair Lewis, Hemingway, Dos Passos, Dreiser, etc., etc.
16
Para Miller, os grandes livros são descobertos no banheiro, os ruins devem ser
arremessados no esgoto. Portanto, ele se representa como um leitor de banheiros, um
intelectual de lavatórios, reforçando a representação do “herói marginal”, daquele que
caminha na contramão do senso comum e articula novas possibilidades de conhecimento.
Miller faz do banheiro um lugar de reflexão, onde o sujo, o baixo, o escatológico se
unem às sublimes realizações do pensamento. Essa mistura é fundamental para Miller. A
concepção de que o homem íntegro é baixo e sublime, puro e sujo, belo e feio, e de que a
verdadeira literatura deve unir esses polos marca o seu projeto literário.
, ainda, em Black Spring, uma lista dos cem livros que, segundo o pprio Miller,
teriam sido suas mais significativas referências.
I have already mentioned that in the Appendix I am listing all the books I can recall ever
reading. There are a number of reasons why I am doing this. One is that I enjoy playing
games, and this is one of the oldest of games: the pursuit game. A better reason is that I
have never once seen a list of the books read by any of my favorite authors. I would give
anything, for example, to know all the titles of those books which Dostoievsky devoured,
or Rimbaud. But there is a more important reason still, and it is this: people are always
wondering what were an author’s influences, upon what great writer or writers did he
model himself, who offered the most inspiration, which ones affected his style most, and
so on.
17
15
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 44.
16
MILLER, Henry, op. cit., p. 45.
17
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 121.
29
Essa é, sem dúvida, a fala de um escritor confirmado. Ao escrever The Books in My
Life, Miller já gozava de certo sucesso e possuía um público razoavelmente grande e fiel. É
para eles que escreve. De uma forma talvez pretensiosa, já se coloca em uma galeria de
grandes escritores, escritores esses cujas leituras, supostamente, seriam alvo da curiosidade do
público em geral.
A citação acima deixa ver, ainda, a relação que Miller estabelece com outros
escritores. Esses mais do que “fontes de inspiração” – expressão bastante imprecisa, por sinal
– são modelos: as “inspirações” oferecem subsídios estilísticos e modelos dramáticos.
1.2 Matrizes intelectuais
Como visto, o sinuoso caminho de Miller para se tornar um escritor é perpassado pelos
textos fundamentais que ajudaram a configurar a sua ficção. Relacionar esses autores
importantes é uma forma de apresentar o drama de sua crucificação. Eles aparecem ao longo
de seus romances porque efetivamente são parte essencial da trama.
Miller, inúmeras vezes, comentou que seu objetivo maior, em literatura, seria tentar
entender o “padrão de significado de sua vida. Essa meta ele busca atingir, em grande
medida, ao falar de suas realizações literárias pela boca do personagem que é seu homônimo,
uma figura marginal, apresentada por ele em Tropic of Cancer e ainda presente em outros
romances ulteriores. Como Henry Miller se tornou o que é: parece ser este o objetivo e, para
desvendá-la, é fundamental que as matrizes literárias que permitiram a formação desse
personagem sejam investigadas. Ao longo de seus textos, Miller se impõe essa tarefa, apesar
de se mostrar consciente das dificuldades envolvidas nesse jogo.
Despite what I have just said, there will be endless speculation as to which authors, which
books, influenced me most. I cannot hope to arrest these speculations. Just as each man
interprets an author’s work in his own limited way, so will the readers of this book, on
scanning my list, draw their own conclusions as to my “trueinfluences. The subject is
fraught with mystery, and I leave it a mystery.
18
Entre as referências intelectuais que Henry Miller faz questão de assinalar em
praticamente todos os seus textos, sem dúvida a figura de Oswald Spengler ocupa um lugar
18
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 122.
30
privilegiado. De forma ainda mais contundente, seria possível afirmar que é em A decadência
do
Ocidente
que Spengler fornece um
dos
argumentos
decisivos
para
Miller. Os romances de
Miller são concebidos em um universo dramático organizado pelo princípio da decadência.
Em grande medida, é a força da ideia de um fim inevitável que motiva as falas de seu hei.
Na lógica da decadência, em que a civilização representa um estágio final, predominam o que
Spengler caracteriza como formas inorgânicas e vazias:
Ora, cada cultura tem a sua ppria civilização. Pela primeira vez, estas duas palavras,
que até agora designavam uma vaga distinção ética, acham-se aqui empregadas num
sentido periódico, como expressões de uma sucessão orgânica, estrita e necessária. A
civilização é o destino inevitável de cada cultura. Com isso, alcançamos o cume onde se
tornam solúveis os derradeiros, os mais difíceis problemas da morfologia histórica.
Civilizações são os estados extremos, mais artificiosos, que uma espécie superior de
homem é capaz de atingir. São um término. Seguem ao processo criador como o produto
criado, à vida como à morte, à evolução como a rigidez, ao campo e à infância das almas
como a decrepitude espiritual e a metrópole petrificada, petrificante. Representam um fim
irrevogável, ao qual sempre se chega, com absoluta necessidade.
19
O universo urbano das metrópoles, consideradas improdutivas e céticas, frias e sem
tradições, é o cenáriopico da decadência para Spengler. Nesse ambiente árido, se vê
encenada uma profunda degradação dos valores morais. Em razão desse desgaste, o homem
das metrópoles segue sempre à procura de um quadro de referências éticas e espirituais
perdido.
Um século de atuação meramente extensiva, com exclusão de toda produtividade elevada
nos campos das artes e da metafísica – digamo-lo em breves palavras: uma época
irreligiosa, o que harmoniza perfeitamente com o espírito das metrópoles – é uma fase de
decadência. Certamente. Mas essa nossa época não foi escolhida por nós. Não podemos
alterar o fato de termos nascido como homens do incipiente inverno da Civilização
amadurecida e não ao meio-dia da Cultura, nos tempos de Fídias ou de Mozart. Tudo
depende de darmo-nos conta desse destino e de percebermos que a seu respeito podemos
iludir-nos, isso sim, porém jamais escapar dele.
20
Diante do irrevogável fim, Henry Miller inicia uma espécie de missão quixotesca,
construindo um arquétipo de herói sadio em um universo doente, cujo objetivo parece ser o de
salvar pelo exemplo. De certa forma, é a partir de Spengler que as falas apocalípticas de
Miller fazem sentido.
19
SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da história ocidental. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 47.
20
SPENGLER, Oswald. op. cit., p. 57.
31
No texto crítico sobre a obra de Miller intitulado Dentro da baleia, George Orwell
aprofunda o olhar na atmosfera dramática dos romances de Henry Miller. Segundo ele, nos
textos de Miller, “logo nos afastamos das mentiras e simplificações, do caráter estilizado e
mecânico da ficção comum, inclusive da ficção bastante boa, e passamos a lidar com as
experiências reconhecíveis dos seres humanos”.
21
Para George Orwell a grande potência da ficção de Miller é, justamente, a capacidade
de narrar os sentimentos de toda uma geração. Miller teria tido a coragem de expor as feridas
da vida cotidiana, nas quais o horror é sempre maior do que aquele que os escritores
normalmente são capazes de narrar. O texto de George Orwell, que data da década de 1940,
constrói uma interpretação bastante precisa de Tropic of Cancer; Black Spring e Tropic of
Capricorn. Para o autor de 1984, Henry Miller é capaz de aceitar o que enxerga como a ruína
da civilização sem aludir ao desespero.
[…] Devo dizer que ele acredita na ruína iminente da civilização ocidental com muito
mais firmeza do que a maioria dos escritores “revolucionários”; que não se sente
exortado a fazer algo a respeito. Ele vadia enquanto Roma arde em chamas, e, ao
contrário da grande maioria das pessoas que o fazem, vadia com o rosto voltado para as
chamas.
22
As chamas que queimam Paris ou Nova York, desenhadas por Miller, são lançadas
pela dimensão apocalíptica da obra de Oswald Spengler. Em Henry Miller: The Paris Years,
Brassai reporta-se à seguinte fala de Miller:
[…] What have I gained from the enlargement of my knowledge, the enrichment of my
culture. Nothing. I`ve lost more. Do you know why I called my first book Tropic of
Cancer? It was because to me cancer symbolizes the disease of civilization, the endpoint
of the wrong path, the necessity to change course radically, to start completely over from
scratch… Yes, from scratch, no question about it, for better or for worse
23
Indubitavelmente, o diagnóstico ou a invenção do câncer que corrói o Ocidente se deu,
em grande parte, em função da leitura de A decadência do Ocidente, que, para Miller, é como
um grande poema sobre o mundo. As consequências dessa leitura sobre sua produção literária
configuram uma estética específica que fundamentam, como foi dito, a construção de seu
universo dramático. Segundo Miller:
21
ORWELL, George. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 99.
22
ORWELL, George. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 134.
23
BRASSAI. Henry Miller: The Paris Years. New York: Arcade Publishing, 2002, p. 38.
32
And so it is with a premonition of the end be it tomorrow or three hundred years hence
– that I feverishly write this book. So it is too that my thoughts sputter out now and then,
that I am obliged to rekindle the flame again and again, not with the courage alone, but
with desperation for there is no one I can trust to say these things for me. My faltering
and groping, my search for any and every means of expression, is a sort of divine
stuttering. I am dazzled by the glorious collapse of the world!
24
Ou ainda:
Nevertheless, I am immensely grateful to Oswald Spengler for having performed this
strange feat of skill describing to a nicety the unholy atmosphere of arteriosclerosis
which is ours, and at the same time shattering the whole rigid though-world which
envelops us, thus liberating us at least in thought. On every page, virtually, there is an
assault upon the dogmas, conventions, superstitions and mode of thinking which have
characterized the last few hundred years of “modernity”. Theories and systems are
battered about like ninepins. The whole conceptual landscape of modern man is devasted.
What emerges are not the scholarly ruins of the past but freshly recreated worlds in which
one may “participate” with one’s ancestors, live again the spring, the fall, the summer,
even the winter, of man’s history. Instead of stumbling through glacial deposits one is
carried along on a tide of sap and blood. Even the firmament gets reshuffled. This is
Spengler’s triumph – to have made Past and Future live in the Present. One is again at the
center of the universe, warmed by solar fires, and not in the periphery fighting off vertigo,
fighting off fear of the unspeakable abyss.
25
Spengler surge como uma referência contra o que Miller considera um dos maiores
fantasmas da cultura ocidental: historicismo”. Na grande maioria de seus romances, o
protagonista manifesta um profundo mal-estar em relação à exisncia de um passado, que,
para ele, soa sempre como um fardo. Ainda que boa parte de seus textos possua um tom
memorialístico, eles estão livres da pressão de serem reproduções da realidade. Descrever o
passado só aparece como uma atividade legítima na medida em que o caminho seja percorrido
com uma liberdade criativa, que atua desmistificando e ressignificando o peso dos
acontecimentos.
Henry Miller considera o que chama de “historicismo”, uma futilidade e um entrave
para o progresso do espírito. Em Nexus, afirma:
[…] A Socrates hitched to a nagging wife, a saint plagued with a thousand woes, a
prophet tarred and feathered… to what end? All grist for the mill, data for historians and
chroniclers, poison to the child, caviar for the schoolmaster.
26
24
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 25.
25
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 638.
26
MILLER, Henry. Nexus. New Jersey: Castle Books, p. 132.
33
O autor constantemente se refere ao passado e à história, manifestando uma angústia
que, muitas vezes, encontra dificuldade em racionalizar. Diante desse quadro, Oswald
Spengler surge como um anjo libertador, aquele que torna passado e futuro dimensões do
presente, pois o homem se reposiciona definitivamente no centro da experiência temporal.
Diante dos marcos culturalmente estabelecidos como o passado, o presente e o futuro,
Spengler oferece uma proposta interpretativa em que a contemplação rbida dá lugar à
experimentação.
Miller, em cena, essozinho, mas suas falas não são a de um profeta solitário. É na
companhia dos grandes pensadores da cultura ocidental que os enredos, em forma de
monólogos, o construídos. O sentimento de solidão, raramente em tom melancólico, marca
todos os seus romances. É sempre uma voz potente e solitária que se ouve em suas falas. Com
a possível exceção de Mona personagem que faria as vezes de June, sua segunda esposa, e,
aparentemente, sua maior paixão , os demais personagens parecem surgir, apenas como
esboços no papel de coadjuvantes ao lado dessa figura maior e destacada que é o personagem
Henry Miller. Esses coadjuvantes aparecem ao seu redor, mas nunca são decisivos na
narrativa. A voz de Miller parece estar descolada e absolutamente soberana.
Figura ainda em seu livro The Books in My Life, dentre os cem livros que mais o
marcaram, Desobediência civil e outros ensaios, de Thoreau. De modo geral, essa coletânea
de ensaios de Thoreau contém um argumento a favor das diferenças e da excentricidade, em
última instância. A chamada opinião pública” não é vista como um princípio democrático,
mas como uma voz normativa, conformadora de preconceitos.
[…] Thoreau surge como defensor de excentricidade como a virtude dos homens que têm
a coragem de viver de acordo com princípios não consagrados pela comunidade a que
pertencem, e lamenta aqueles que se conformam e vivem em “silencioso desespero”.
Pouco adianta se livrar da tirania política do colonizador inglês para cair nas garras do
rei Preconceito”, entidade que hoje pode muito bem ser chamada de “opinião pública”.
27
Se há algo de evidente nos romances de Henry Miller é a total concordância com esses
pensamentos contidos em Thoreau. Sua obra é, antes de tudo, uma espécie de grito
perturbador desse silencioso desespero. Obviamente, há mais do que isso, mas, sem dúvida
nela se estrutura um drama calcado na coragem e no desejo de liberdade. E o sentido último
dessa liberdade defendida por Miller sugere que, em sociedade, a vida é mascarada, apagada
27
THOREAU, Henry. Desobedecendo. A desobediência civil e outros ensaios. Prefácio de José Augusto
Drummont. São Paulo: Círculo do livro, 1984, p. 27.
34
bruscamente na mediocridade do cotidiano. A vida, tida como mágica e portadora de
divindade, deve ser experimentada na solidão cósmica resultante da imersão radical em um
universo de valores e sentidos de expressão puramente individual.
[…] I have been an adult and a father and a responsible member of society. I have earned
my daily bread. I have adapted myself to a world which never was mine. I want to break
through this enlarged world and stand again on the frontier of an unknown world which
will throw this pale, unilateral world into shadow. I want to pass beyond the
responsibility of fatherhood to the irresponsibility of the anarchic man who cannot be
coerced nor wheedled nor cajoled nor bribed nor traduced .
28
A
relação
estabelecida
entre
respeito
às
individualidades
e
liberdade verdadeira é comum
a Thoreau e a Miller. Nesse último, essa defesa assume um caráter mais dramático, dada a
própria natureza dos escritos. Em ambos, a vida social vazia é a própria face da escravidão, do
aniquilamento da vida. Em tons diferentes, surge a apologia do anarquismo enquanto direito à
existência desvinculada de estruturas organizadas de governo e condicionamentos socialmente
conformados. A sociedade aparece como uma entidade maléfica fadada a aniquilar a potência
de liberdade do indivíduo. Constata-se uma tragédia e funda-se uma utopia, no caso de
Thoreau clara e com fins objetivos mais bem delineados. Em Miller menos um projeto
político do que um discurso esteticamente elaborado: trata-se de um projeto literariamente
agressivo que funda, depois de Huckleberry Finn de Mark Twain, um novo mito de vida e
liberdade.
Ambos renegam ainda signos de sucesso ou de riqueza. Miller e Thoreau parecem
unânimes em afirmar que as formas convencionais para a obtenção de dinheiro são
absolutamente degradantes: “Creio que nada, nem mesmo o crime, se opõe mais à poesia, à
filosofia e, acima de tudo, à vida, do que essa incessante movimentação dos negócios,” diria
Thoreau no ensaio A vida sem princípio. Aliás, não seria exagerado afirmar que esse ensaio
forneceria para Miller um tipo de guia referencial de comportamento para a construção de seu
“personagem”. Nele, se apresentam traços decisivos do que viria a se configurar como o
eterno andarilho que aparece em seus romances. Esse homem que se recusa a funcionar de
acordo com governos ou maiorias, e que, no limite, busca fundar as diretrizes de seus pprios
atos.
A produção literária de Henry Miller aponta para uma insuficiência geral de liberdade
traduzida como condição meramente política –, que anuncia a necessidade de uma postura
bem mais audaciosa no sentido de sua conquista efetiva. Assim, as democracias modernas são
28
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 145.
35
ironizadas e desprezadas por não atingirem um sentido pleno de liberdade. Nessa
imobilização da vida individual instala-se um câncer, uma doença que limita a vida plena.
I have been trying to save my precious hide, trying to preserve the few pieces of meat that
hid my bones. I am done with that. I have reached the limits of endurance. My back is to
the wall; I can retreat no further. As far as history goes I am dead. If there is something
beyond I shall have to bounce back. I have found God, but he is insufficient. I am only
spiritually dead. Physically I am alive. Morally I am free. The world which I have
departed is menagerie. The dawn is breaking on a new world, a jungle world in which the
lean spirits roam with sharp claws. If I am a hyena I am a lean and hungry one: I go forth
to fatten myself.
29
Esse trecho enfático de Tropic of Cancer anuncia uma ruptura, um desligamento, a
passagem do homem que se mantinha forçadamente preservado nas malhas do convencional
para uma espécie de animal que se liberta, sai da jaula e se arrisca nos perigos da liberdade.
Presente em seu primeiro romance, essa passagem delineia alguns traços fundamentais do
“personagem” que se repetiria nos outros romances do autor.
Estamos diante de outra característica comum a Thoreau e Miller: um certo elogio ao
selvagem como exemplo de força vital e liberdade. Para ambos “o mais selvagem é o que está
mais vivo”
30
por estar afastado da vida social que cerceia a existência. Porém é possível dizer
que a visão de Thoreau é mais próxima à de Rousseau para quem o selvagem estaria mais
próximo do Bem absoluto. Para Miller, a beleza do estado selvagem reside justamente na
possibilidade de experimentação intensa tanto do bem como do mal. O selvagem simboliza o
não domesticado, portanto o livre.
Em Thoreau encontramos também algumas reflexões acerca do que configuraria uma
boa literatura, sempre marcada por uma espécie de pensamento indomado. Nesse ponto,
parece haver mais uma forte conexão com as perspectivas de Henry Miller. Thoreau tocaria
em questões fundamentais para o projeto literário do escritor americano:
Somos atraídos na literatura unicamente pelo que é indomado. Monotonia é apenas outro
nome para o que é domesticado. Tiramos nosso prazer do pensamento incivilizado, livre e
selvagem que explode em Hamlet e na Ilíada, em todos os textos sagrados e nas
mitologias, e não da reflexão erudita oriunda das academias. Tal como o pato selvagem é
mais ágil que o doméstico, o pensamento selvagem alça vôo agilmente em meio à garoa,
por cima das águas do charco. Um livro verdadeiramente bom é algo tão natural, o
inesperado e inexplicavelmente belo e perfeito quanto uma flor selvagem das planícies do
Ocidente ou das selvas do Oriente. A genialidade é uma luz que torna a escuridão visível,
tal como o clarão do relâmpago que às vezes atinge e abala o próprio templo do saber e
29
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 90.
30
THOREAU, Henry. Desobedecendo. A desobediência civil e outros ensaios. Prefácio de José Augusto
Drummont. São Paulo: Círculo do livro, 1984, p. 124.
36
não uma vela acesa ao pé da lareira da humanidade, cuja luz enfraquece ainda antes de
clarear o dia.
31
As palavras de Thoreau poderiam perfeitamente fazer parte de um romance de Miller.
O prazer oriundo do “pensamento incivilizado” e a crença de que o bom livro pertence ao
domínio do natural e do imponderável, cabendo ao artista genial trazê-lo à luz, são ideias que
conformam a produção literária de Henry Miller.
Ainda no terreno das reflexões acerca das obras literárias, Thoreau toca em outro
ponto central, definidor do projeto literário empreendido por Miller: “nunca li um romance,
pois neles muito pouco de vida real e reflexão”. Estão estabelecidos aí dois dos problemas
mais significativos que os romances de Miller buscavam enfrentar: trazer “vida real” e
reflexões de cunho filosófico para o romance moderno.
Na lógica da decadênciaque tem como marca a produção de uma arte opaca e estéril
– a obra de Miller se coloca como um manifesto contra a estagnação, e caminha, como mostra
o conjunto de seus textos, no sentido de ser algo destoante, forte e agressivo, sem as
“falsificações” e “mutilações da vida” que a ficção tradicional covardemente operaria. A
tradição romanesca ocidental é atacada, fundamentalmente, pela incapacidade de fazer da
literatura um conjunto de relatos da vida em todas as suas dimensões, tanto sacras quanto
sórdidas. Nesse sentido, a vulgaridade, a sordidez e, sobretudo a obscenidade que os textos de
Miller manipulam são, antes de um retrato da vida boêmia de Paris no início do século, um
diálogo nesses termos com a tradição literária ocidental.
A opção mais interessante encontrada por Miller para encher de vida uma literatura
morta é a autobiografia. Esse gênero, como outros, é, de fato, uma composição onde vários
gêneros se misturam. Nesse sentido, dizer que a obra de Henry Miller é autobiográfica seria
insuficiente.
Sua meta é uma verdade que se revela na lógica da tragédia. Essa busca da verdade e
de reabilitação das referências mitológicas agora encarnadas na figura do artista criador
divinizado é indubitavelmente uma caminhada rumo ao autoconhecimento, mas também é um
esforço de autoconstrução. Assim, sua verdade é também o mito construído sobre si.
Como epígrafe de Tropic of Cancer, encontra-se a seguinte citação de Emerson:
31
THOREAU, Henry. Desobedecendo. A desobediência civil e outros ensaios. Prefácio de José Augusto
Drummont. São Paulo: Círculo do livro, 1984, p. 129.
37
These novels will give way, by and by, to diaries or autobiographies captivating books,
if only a man knew how to choose among what he calls his experiences that which is
really his experience, and how to record truth truly.
32
Nesse ponto, Miller e Thoreau se ligam por uma mesma referência intelectual: a obra
de Emerson, que tem como uma de suas bases a crença de que todo homem é um amante da
verdade como princípio vital. Emerson aparece nos dois autores, sobretudo a partir do
entendimento de que o gênio é aquele que acredita em si mesmo. É a partir desse pressuposto
que Henry Miller conduz a opção decisiva para a elaboração de sua obra. A revelação da
divindade adormecida em cada um dos homens parece estar constantemente no seu horizonte,
e o caminho dessa descoberta residiria numa profunda busca existencial a ser percorrida pelo
gênio. Segundo Emerson:
Acreditar no vosso próprio pensamento, acreditar que o que é verdadeiro para
vós, no fundo dos vossos corações, é verdade para todos os homens, eis o que
constitui o gênio. Dizei a vossa convicção latente e ela será sentido universal;
pois sempre o mais íntimo se torna o mais aparente, e nosso primeiro
pensamento volta a nós tangido pela trombetas do Juízo Final.
33
Não é à toa que uma citação de Emerson serve de epígrafe para o primeiro romance de
Miller. Em suma, as posições intelectuais do filósofo americano parecem estabelecer o
programa que Miller seguiria ao escrever, expresso na necessidade da busca da verdade, no
sentido da produção letrada como algo que se refere, antes de tudo, em um tipo de busca
interior reveladora de uma divindade humana, como afirma o próprio Miller:
Aquêle que escreve para si mesmo, escreve para um público eterno. A afirmação digna de
ser tornada
pública
é
aquela
à
qual
chegou
nosso
esfôrço
para
satisfazer-nos
a
própria
curiosidade. O escritor que toma seu assunto de ouvido e não de coração deveria saber
que perdeu tanto quanto pensa ter ganho; e, mesmo quando um livro vazio tenha
alcançado todos os aplausos, e meio mundo estiver dizendo: Que poesia! que gênio!” êle
ainda precisa combustível para produzir fogo. Somente aproveita o que é aproveitável.
a vida produz vida; e por mais que nos esforcemos, somente valemos pelo valor real que
temos. o existe sorte em reputação literária. […] Somente sobrevivem os livros que
merecem durar.
34
A necessidade da busca sincera da verdade torna a função do artista divina e, portanto,
despreocupada com meras repercussões mundanas. O verdadeiro escritor escreve para si
32
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961.
33
EMERSON, Ralph Waldo. Ensaios I. São Paulo: Livraria Martins Editôra, 1976, p. 49.
34
EMERSON, Ralph Waldo. Ensaios I. São Paulo: Martins Editora, 1976, p. 56.
38
mesmo e despreza a fama imediata. As glórias do gênio estão reservadas para o futuro. No
ensaio intitulado O poeta, escrito em 1844, Emerson define da seguinte forma a função da
poesia e dos poetas:
[…] o poeta é um representante: o mbolo, dentre os homens incompletos, do homem
completo, informando-nos não de sua própria riqueza, mas da riqueza comum a
todos.[…] é o homem sem impedimentos, que entrevê e pratica aquilo com que os outros
sonham, que atravessa toda a escala da experiência; ele é o representante dos homens
porque tem a mais alta capacidade de receber e de transmitir. […] O emblema e as
credenciais do poeta são o fato de ele anunciar o que ninguém havia profetizado. Ele é o
verdadeiro e único terapeuta; ele sabe e diz; somente ele revela algo novo, pois
presenciou e conheceu os fenômenos que descreve. […] Os poetas são, por conseguinte,
deuses libertadores […] eles são livres e nos tornam livres.
35
É em grande medida a partir desses pressupostos que Henry Miller viria a definir a sua
função como artista, tendo como parâmetro o princípio de que a literatura deve funcionar
como algo além dela mesma. O artista assume o papel de mártir e deve consagrar a sua
existência à tarefa de libertar e salvar os homens comuns.
Citar Emerson – sobretudo como epígrafe de seu primeiro romance é também
estratégico: é como se Miller convidasse os seus leitores a acreditar que os relatos que se
seguem são reais. É uma cartada importante no sentido de fazer crer a todos que o romance
que se inicia narra a trajetória de um homem de verdade.
“Life, said Emerson, consists in what a man is thinking all day. If that be so, then my
life is nothing but a big intestine. I not only think about food all day, but I dream about it at
night”.
36
Com essa passagem, Miller usa Emerson para fundamentar sua operação ficcional: o
relato autobiográfico é um lugar em que tudo é possível, onde o mais prosaico dos
pensamentos é relevante, como tudo aquilo que foi imaginado ou desejado. Em sua proposta
de romance autobiográfico, de certa forma legitimado por Emerson,
há
espaço,
inclusive,
para
os
mais
variados
delírios
oníricos
.
Walt Whitman, poeta pelo qual Miller diz ter profunda admiração, é outro nome
recorrente em seus romances:
[…] It was on the battlefield, among the dead and wounded, that Whitman discovered the
meaning of abnegation, or better, of service without thought of reward. Only heroic men
35
LAVALE, Luci M. Collin. Os cantares de Whitman e Neruda: a tradição do epico-lírico americano. Curitiba:
Ed. UFPR, Revista Letras n. 65, 2005, p. 94.
36
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 63.
39
could have survived such ordeals. Only illuminated men could have transformed these
experiences into great messages of love and benediction.
37
Para Miller, a obra de Whitman guarda traços de abnegação. É a marca do sacrifício
que o verdadeiro artista deve fazer em nome da humanidade.
Com sua poesia de evocação messiânica, Whitman tornou-se o xa americano”, aquele
profeta religioso que, com uma profunda ligação com o divino, traz uma mensagem de
libertação. Como bardo solitário que proclama ser a multidão, Whitman levanta uma
mitologia essencial que não é apenas resultado do passado norte-americano, mas que
também deriva de sua própria experiência pessoal, uma experiência que é “… lived or
dreamed, and his hero is, therefore, himself. He is, in his sense, the first truly modern poet
with epic ambitions, the first author to portray himself as the mythic representative of his
people and his time”.
38
Em termos gerais, seria possível afirmar que o conjunto das obras de Miller configura
também uma espécie de Song of Myself. Tanto nos textos de Miller quanto nos de Whitman
reside a intenção de construir um hino de valorização da liberdade que aponte para a
coletividade com um fervor messiânico. Em ambos, a autoinvestigação se traduz como um
esforço para transcender a si mesmo.
[…] The artist’s game is to move over into reality. It is to see beyond the mere “disaster”
which the picture of a lost battlefield renders to the naked eye. For, since the beginning of
time the picture which the world has presented to the naked human eye can hardly seem
anything but a hideous battle ground of lost causes. It has been so and will be so until
man ceases to regard himself as the mere seat of conflict. Until he takes up the task of
becoming the “I of his I”.
39
Henry Miller não parece ter a intenção de representar os americanos”, o que pode
corresponder, entretanto, a Whitman. Se, para o segundo, a valorização da liberdade aponta
para um individualismo que, no limite, almeja representar o coletivo, ou fazer-se como
esncia de uma coletividade , no primeiro ela é a identidade de um personagem que se
esforça todo o tempo para ser o outro, o diferente, aquele que se descobriu sadio em uma
sociedade
doente.
Nesse
sentido,
as
últimas
linhas
de
Primavera
negra marcam as
proximidades e distâncias entre os dois escritores.
37
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 240.
38
LA VALE, Luci M. Collin. Os cantares de Withman e Neruda: a tradição do épico-lírico americano.
Curitiba: Ed. UFPR, Revista de Letras n 65, 2005, p. 95.
39
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 273.
40
Tomorrow you may bring about the destruction of your world . Tomorrow you may sing
in Paradise above the smoking ruins of your world-cities. But tonight I would like to
think of one man, a lone individual, a man without name or country, a man whom I
respect because he has absolutely nothing in common with you MYSELF. Tonight I
shall meditate upon that which I am.
40
Por um lado, a definição do personagem principal de Miller deve muito ao fervor
messiânico e ao poder de eloência voltado para si mesmo encontrado em Whitman. Porém,
por outro, o arquétipo do primeiro é essencialmente configurado na diferença e nunca na
suposta ambição de ser a expressão do coletivo.
Rimbaud é outro poeta muito citado por Henry Miller, que dedica, inclusive, um livro
à obra do poeta francês. Em A hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud, Miller reflete
muito mais sobre sua própria atividade literária do que analisa a de Rimbaud, realçando,
entretanto, os pontos de contato entre os dois projetos literários.
Rimbaud passou pela sua grande crise aos dezoito anos, quando chega à beira da loucura;
dpor diante sua vida torna-se um interminável deserto. Comigo, a crise ocorreu aos
trinta e seis ou trinta e sete anos, a idade que ele tinha ao morrer. É a partir de então que
começo realmente a viver. Rimbaud trocou a literatura pela vida; fiz o contrário. Ele
fugiu das quimeras que havia criado; eu as aceitei. Temperado pela loucura e desperdício
da mera experiência, dei um basta e concentrei minhas forças na criação. Mergulhei no
ato de escrever com o mesmo fervor e entusiasmo com que mergulhara na vida. Em vez
de per-la, ganhei-a; milagres e mais milagres ocorreram, cada infortúnio sendo
transformado em algo útil. Rimbaud, embora lançando-se a uma rego de climas e
paisagens incveis, a um mundo de fantasia tão estranho e maravilhoso quanto seus
poemas, foi ficando cada vez mais amargurado, taciturno, vazio e desolado.
Rimbaud insuflou a literatura de vida; eu venho me empenhando em dar vida à literatura.
Tanto nele como em mim a qualidade confessional é grande, a preocupação moral e
espiritual decisiva. O gosto pela linguagem, pela música em lugar da literatura, é outro
traço que temos em comum. Nele senti uma natureza primitiva fundamental, que se
manifesta da maneira mais estranha. Claudel considerou Rimbaud “um místico em estado
selvagem”. Não existe melhor definição. Ele se sentia “desenraizado” o se achava
bem em lugar algum. Sempre tive a mesma sensação.
41
Sem dúvida, Rimbaud é um modelo para Miller, um exemplo do verdadeiro artista e
uma referência intelectual. Alguns temas são comuns, como o apelo ao instinto e uma visão
catastrofista do Ocidente, além da mesma perturbadora busca pela verdade. O tratamento de
questões metafísicas, em ambos, é recheado de imagens fortes e fantásticas, mas, acima de
tudo, Rimbaud encarna para Miller a figura do poeta herói e marginal. Ele vê em Rimbaud o
esboço do sobrevivente criminoso e desajustado que ocuparia lugar central em seus romances.
40
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 205-206.
41
MILLER, Henry. A Hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 14.
41
Nesse sentido, é possível perceber um esforço da parte de Miller em se
autorrepresentar à sombra da mítica imagem de Rimbaud.
Desde a mais tenra infância fui um leitor insaciável. No natal, pedia livros, vinte a
trinta de cada vez. Até chegar aos vinte e cinco anos, mais ou menos, quase nunca saía de
casa sem um volume debaixo do braço. Lia em pé, a caminho do trabalho, muitas vezes
decorando longos trechos de poesia de meus autores favoritos. Um deles, ainda me
lembro, era o Fausto de Goethe. O principal resultado desse connuo enlevo com os
livros foi me inflamar a novas revoltas, a estimular a vontade latente de viajar e aventurar,
a me tornar antiliterário. Levou-me a desprezar tudo o que me rodeava, alienando-me aos
poucos de meus amigos e impondo-me essa índole solitária, excêntrica, que faz com que
se seja qualificado de “esquisito”. A partir dos dezoito anos (a idade da crise de
Rimbaud), fiquei definitivamente triste e infeliz, desolado e abatido. Só uma completa
mudança de ares seria capaz de dissipar essa disposição imutável. Fui-me embora aos
vinte e um, mas não por muito tempo. De novo como Rimbaud, as primeiras fugas
sempre acabavam mal. Parecia não ter saída, nenhum meio de chegar à liberdade. Aceitei
os empregos mais insensatos, tudo, em suma, para o que não me sentia talhado. Como
Rimbaud nas pedreiras de Chipre, com pá e picareta, a trabalhar como diarista, operário
errante, um nômade. Houve aessa semelhança: quando sde casa foi com a intenção
de viver ao ar livre, de nunca mais ler um livro, de me sustentar com minhas próprias
mãos, de ser um homem dos espaços abertos e não o habitante de uma cidade ou capital.
42
Assim, Miller se vale da trajetória de Rimbaud para narrar a sua própria. Há, nesse
caso, um tipo de apropriação bastante particular: Rimbaud é evocado no sentido de servir de
parâmetro e suporte para a representação de Henry Miller.
Em um documentário gravado, no fim de sua vida (Asleep and awake), Henry Miller,
contemplando as figuras que ilustram as paredes de seu banheiro em Big Sur, destaca a foto
de Blaise Cendrars que diz ser o seu “escritor predileto”. Cendrars seria o responsável,
segundo Miller, por ter tirado o “peso da ficção”. A narrativa leve e fluida de Morravagin,
provavelmente a mais importante obra de Cendrars, teria se revelado para Miller como um
manifesto contra as convenções literárias e um exercício de liberdade criativa. O romance,
publicado em 1926, seria um modelo para Miller tanto no que tange à forma desregrada,
repleta de digressões, quanto no conteúdo emblemático de algumas passagens.
This particular technique of Cendrars’ creates a kind of exorcism – a deliverance from the
heavy weight of prose, from the impedimenta of grammar and syntax, from the illusory
intelligibility of the merely communicative in speech. In L’Eubage, for example, we
discover a subylline quality of thought and utterance. It is one of his curious books. An
extreme. Also a departure and an end. Cendrars is indeed difficult to classify, though why
we should want to classify him I don’t know. Sometimes I think of him as “a writer’s
writer,” thought he is definetely not that. I mean to say is that a writer has much to learn
from Cendrars. In school, I remember, we were always being urged to take as models
42
MILLER, Henry, op. cit., p. 20.
42
men like Macaulay, Coleridge, Ruskin or Edmund Burke even Maupassant. Why they
didn’t say say Shakespeare, Dante, Milton, I don’t know. No professor ever believed, I
dare say, that any of us brats would turn out to be writers one day. They were failures
themselves, hence teachers. Cendrars has made it clear that the only teacher, the only
model, is life itself. What a writer learns from Cendrars is to follow his nose, to obey
life’s comands, to worship no other god but life. Some interpreters will have it that means
the dangerous life”. I don’t believe Cendrars would limit it thus. He means life pure and
simple, in all aspects, all its ramifications, all its bypaths, temptations, hazards, what not.
If he is an adventurer, he is an adventurer in all realms of life. What interests him is every
phase of life. The subject he has touched on, the themes he has pursuited, are
encyclopaedic. Another side of “emancipation”, this all-inclusive absorption in life’s
myriad manifestations.
43
Blaise Cendrars é para Miller uma espécie de professor. Um mestre que, de alguma
forma, o ensinou a ser autônomo. A não linearidade de sua ficção e a sua capacidade de narrar
uma hisria entre digressões e dispersões, fizeram com que Miller o tomasse como modelo.
Morravagin é um herói marginal, um imoral fora da lei que chama de covardes os
homens comuns. Com ele, Cendrars apresentava uma questão que Miller encararia durante
toda sua vida: a utopia de produzir uma literatura que não mutilasse a verdade, mas que
emanasse, que se realizasse como vida em todos os seus aspectos: “A Vida. A vida é o crime,
o roubo, a inveja, a fome, a mentira, a porra, a estupidez, as doenças, as erupções vulcânicas,
os tremores de terra, montes de cadáveres.”
44
Nessa fala, Morravagin anuncia o que seria a
própria essência da vida, cuja energia fundamental Miller tentaria dramatizar.
Falando sobre o processo de elaboração do romance, Cendrars escreveu:
Foi o que me aconteceu com o senhor Morravagin. Eu queria começar a escrever e ele
tomara meu lugar. Estava ali, instalado no fundo de mim mesmo como numa poltrona.
[…] Ele viajou no meu lugar, fez amor no meu lugar. Mas nunca houve identificação real,
pois éramos, ambos, ele, eu, e o Outro. Trágico tête-à-tête que faz com que possamos
escrever um único livro, ou várias vezes o mesmo livro. Por isso é que todos os belos
livros se parecem. São todos autobiográficos. Por isso existe um único tema literário: o
homem. Por isso existe apenas uma literatura: a desse, desse Outro, o homem que
escreve.
45
Miller escreve sobre o homem, mais especificamente sobre o homem que escreve,
concebido como um herói, construído com traços de profeta e de mártir.
O profeta, o portador da verdade que aparece nos seus romances é, em grande medida,
a emulação do Zaratustra de Nietzsche, filósofo que em Nexus é tido como o responsável por
exercitar no autor o espírito crítico. O Zaratustra nietzschiano é um inversor dos valores, um
43
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 68.
44
CENDRARS, Blaise. Morravagin. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 208.
45
CENDRARS, Blaise. Morravagin, op. cit., p. 239 - 240.
43
destruidor de ídolos e um exaltador dos valores da vida, da existência mundana. Anuncia o
crepúsculo dos valores metafísicos e éticos que exaltam o além-túmulo e a vida espiritual.
Zaratustra é, pois, um Anticristo: não se dirige aos pobres, aos humildes, aos doentes, aos
perdidos e aos fracos, muito menos lhes promete o Reino dos us. Fala aos vencedores, aos
afirmadores da vida, aos que querem viver a materialidade da experiência terrena; veio a
público para reverter a organização cristã das coisas. Escreveu o evangelho do super-homem
– o que anuncia um novo tempo, uma era em que o homem se apressa para assumir o poder na
totalidade, na qual terá de arcar com as consequências morais e éticas de um mundo em que
Deus está morto.
Para tanto, ele, o super-homem, operará a transvaloração. Tudo o que o cristianismo
estigmatizara o orgulho, o egoísmo, a riqueza, a vontade de poder, a sensualidade e a
nobreza de espírito deverá voltar a modelar e a inspirar a humanidade. A resignação, a
docilidade e o servilismo, à sua volta, serão sucedidos pela ação e pela inconformidade. A
lamúria do resignado cederá lugar ao grito do forte.
Zaratustra, como Henry Miller, é um celebrante da carnalidade, um pregador, da
sensualidade, do prazer de dominar, ou do simples gozo de estar vivo. É o grito do instinto
sufocado. Por conseqüência, seu alvo são os que detestam a vida, os "acusadores da vida,"
46
os
que reprimem e condenam a volúpia, os que dizem que as pulsões humanas são artes menores,
os que pregam o “outro mundo”, como os sacerdotes e os moralistas que insistem em fazer
com que o homem envergonhe-se do seu próprio corpo e das suas sensações, chamando-as
inumanas, imundas e pecadoras.
Zaratustra é uma das referências mais significativas no processo de construção de seu
principal personagem. As falas do personagem Miller, em diversos trechos, remetem a
Zaratustra.
Roberto Machado, em Zaratustra, tragédia nietzschiana,
47
argumenta que Assim falou
Zaratustra, de Nietzsche, é uma narrativa trágica. A base da argumentação parte de uma
análise do texto Tentativa de autocrítica, posterior ao Zaratustra, em que o fisofo alemão
maduro comenta seu primeiro trabalho O nascimento da tragédia, e o considera uma obra mal
estruturada na medida em que ela pretende ser uma crítica total da razão feita a partir da
razão.
Machado, revendo o projeto intelectual nietzschiano já expresso em O nascimento da
tragédia, examina os princípios que resultariam na tentativa de construção de uma filosofia
46
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Rideel, 2005.
47
MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
44
trágica como crítica à racionalidade conceitual da filosofia de Sócrates e Platão, apresentando
a arte trágica como alternativa à racionalidade. Em seu Zaratustra, Nietzsche pretende
realizar essa adequação entre conteúdo e expressão, propondo uma teoria filosófica em uma
linguagem narrativa, dramática e poética. Em vez de uma teoria da tragédia, uma tragédia, no
sentido da apresentação do aprendizado trágico de Zaratustra. Aprendizado trágico sim, pois
na obra Zaratustra é apresentado de modo incompleto.
Isso significa que o personagem não está feito: é apresentado como um ser que evolui
e se transforma, educado pela vida, pelo caminho em que Zaratustra se torna o que é. Sua
doutrina desenvolve-se na medida em que ele cresce, elaborada no caminho do sofrimento.
Zaratustra apresenta a finalidade da tragédia: exibir os sofrimentos do herói para produzir
alegria. Roberto Machado define o personagem central da obra de Nietzsche como um herói,
a princípio fundamentalmente apolíneo que, no final de um processo de aprendizado, em que
deve enfrentar o niilismo em suas variadas formas, assume seu destino trágico, isto é, diz sim
à vida como ela é, sem introduzir oposição de valores, afirmando poeticamente seu eterno
retorno. Dessa forma, Assim falou Zaratustra é uma obra que o quer corrigir a existência,
como pretende a metafísica racional, mas justifica essa mesma existência transfigurando-a
pela experiência trágica.
O herói de Nietzsche é trágico porque aceita a vida em sua crueldade, se caracteriza
por sua incompletude e é capaz de chegar ao limite da dor, ainda que dela extraia um prazer
sublime. O mesmo pode ser dito sobre Henry Miller. O escritor americano quer escrever um
mito trágico que ouse encenar uma transfiguração de valores centrada na figura de um homem
sadio em meio a um mundo doente.
Sobre a importância do mito, afirma Nietzsche:
Sem o mito toda cultura perde sua força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado
por mitos encerra em unidade todo um movimento cultural. Todas as forças da fantasia e
do sonho apolíneo são salvas de seu vaguear ao u somente pelo mito [...] Imagine-se
uma cultura que não possua nenhuma sede originária, fixa e sagrada, senão que esteja
condenada a esgotar todas as possibilidades e a nutrir-se pobremente de todas as culturas
– esse é o presente, como resultado daquele socratismo dirigido à aniquilação do mito.
48
Tanto na obra de Nietzsche quanto na de Miller bem distintas, sem vida evoca-
se o efeito persuasivo de um mito trágico. Nos dois casos, o sentido da tragédia aponta para a
encenação de uma redenção, onde a dor se redefine como prazer. Não para Miller, como
48
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992, p.135.
45
para o Zaratustra, corpo separado da alma, nem bem nem mal: carne é espírito, a terra também
é o céu, mal também é bem. Enfim, não dois mundos, e a transcendência se conquista no
espaço da maria pelos necessários caminhos da tragédia.
O nome de D.H. Lawrence é também bastante recorrente nos textos de Miller. Talvez
seja com o escritor inglês que Miller tenha a relação mais complexa, pois chegou a dedicar
boa parte de sua vida a estudar a obra de Lawrence. Porém, o estudo nunca terminado veio a
ser publicado postumamente com o título de The World of Lawrence. Nele Miller oscila ao
comentar a obra de D.H. Lawrence, que aparece tanto como herói libertário quanto como
covarde. A solução, no entanto, está no tratamento da sexualidade.
Nos romances de Lawrence, como se sabe, o sexo ocupa lugar fundamental. Em
geral, em suas tramas os personagens agem acima das convenções sociais, conforme seus
desejos. Lawrence, assim como Miller, recusava-se a assumir a postura do pornógrafo.
O amante de Lady Chatterley
49
é a história de Constance Reid, uma bela mulher que se
casa com Clifford Chatterley, um oficial inglês em licença. Após a lua de mel ele é chamado
para uma das frentes de batalha da Primeira Guerra. Retorna inválido, numa cadeira de rodas.
Sir Chatterley é um homem refinado e compreensivo. Vendo a situação da jovem esposa,
autoriza-a a encontrar um amante que ela "deseje de todo o coração". Inicialmente Constance
opta pela castidade, mas com o tempo se interessa por Oliver, empregado da mansão, que vive
numa cabana no parque que envolve a propriedade.
Oliver é baixo, feio e rude, mas tem para ela a foa da natureza. Ao encontrá-lo para
transmitir ordens do marido, acaba por entregar-se a ele. Suas relações com o empregado são
arrebatadoras. A irmã de Constance tenta levá-la a Paris para que esqueça o amante. Mas ela
volta mais apaixonada. cenas de relações sexuais em diversos ambientes diferentes,
sobretudo ao ar livre.
O desfecho se dá com Oliver deixando o emprego para tornar-se operário em
Sheffield. Constance descobre que está grávida e confessa ao marido. Esse imagina que o
filho pertence a Duncan Forbes, um pintor que eles haviam hospedado. Ela sente horror pela
condescendência do marido e abandona a casa para refugiar-se junto à família.
Lawrence narra a alegria dos corpos durante o sexo como uma força particularmente
potente da natureza, o que cousou polêmica quando livro apareceu, em 1928. Lawrence se
defenderia dos críticos, alegando que esses não seriam capazes de reconhecer a "sexualidade
vital". Justamente pelo papel que Lawrence conferiu à paixão amorosa, O amante de Lady
49
LAWRENCE, D.H. O Amante de Lady Chatterley. Rio de Janeiro: Editora Abril, 1971.
46
Chatterley conheceu sucessivas proibições de edição, e o texto integral veio a público em
1959, em Nova York.
Ao conceder um lugar privilegiado à sexualidade, Lawrence tornou-se importante para
Miller. Sua obra é em grande medida um diálogo com a do escritor britânico, como afirma
Brassai:
But the writer to whom Henry felt the most kinship of all and his favorite author during
his Paris years – was D.H. Lawrence. Curious indeed that Lady Chatterley’s Lover
happened to apear in 1928, the very moment Miller arrived in Europe for the first time,
and that Lawrence died in March 1930. Several days after Henry’s return to Paris.
Miller’s desire to immerse himself totally in a fundamental reality, fleshly, awash in
sexuality, attracted him to Lawrence, who was in many years a much less liberated man.
Indeed, Lawrence’s work is imbued with a puritanism, a dolorous romanticism,
particularly evident in the cult of mystery with which he shrouded sex: Sex should come
upon us as a terrible thing of suffering and privilegy and mystery,” wrote Lawrence in
The Birth of Sex” which Miller quotes in his essays on Lawrence, “Shadowy
Monotonia”. “The Mystery, the terror and the tremendous power of sex should never
explained away”. “The mystery must remain in its dark secrecy, and its dark, powerful
dynamism”. If sex was everything to Lawrence, to Miller it was only a part o life; and if
Lawrence developed a mysterious religion around it, Miller saw in it only a transient
passion whose role was relative. Yet, though Miller had rejected the cult of sex, and
instead wanted to desmystify it by flashing obscenities in the face of respectability and
prudishness, Lawrence’s thinking continued to have a hold over him. Miller wanted to
embrace it, if only because by so doing he might free himself of the man to whom
sometimes he referred as an incubus and a litle midget,”and called “intolerant and
mean”. He nearly call Lawrence a hypocrite: “Just as he glorifies life, in order to slay it
throught his art, so he glorifies woman in order to execrate her, punish her, for the
necessitous character of her role, which he recognize only too clearly”. Miller reproached
Lawrence (who died in Vence) for his hatred of the French, for seeing them as decadent
rather than as men of flesh and blood who loved life and breath.
50
Bastaria ter feito da sexualidade um tema central e Lawrence ocuparia um lugar
importante na galeria de refencias intelectuais de Henry Miller. Nisso reside a admiração e,
ao mesmo tempo, a crítica de Miller em relação ao escritor britânico. A obra de Lawrence
coloca a pulsão sexual como definidora das tramas. Assim, em Lawrence Miller viu a
possibilidade de trazer o sexo à tona sem produzir pornografia propriamente dita: o tipo de
ficção que o escritor britânico produz ainda que guarde articulações com o gênero
pornográfico – não pode ser classificado dessa forma.
Os romances de Miller são produzidos nesse mesmo limite: caminham entre o
burlesco e o pornográfico, guardam caractesticas dos dois gêneros, mas se pretendem algo
distinto. Em grande medida é dialogando com a obra de Lawrence que Miller concebe seu
50
BRASSAÏ, Gilbert. Henry Miller: The Paris Years. New York: Arcade Publishing, 2002, p. 174 - 175.
47
projeto literário, objetivando ser mais claro, direto e, essencialmente, menos romântico que
Lawrence. Em um certo sentido, é tomando-o como referência que Miller busca definir sua
identidade autoral.
Dostoievski é mais um escritor que Henry Miller elege como fundamental.
The night I sat down to read Dostoevski for the first time was a most important event in
my life, even more important than my first love. It was the first deliberate, concious act
which had significance for me; it changed the whole face of the world [...] But the world
stopped dead for a moment, that I know. It was my first glimpse into the soul of a man, or
shall I say simply that Dostoevski was the fisrt man to reveal his soul to me? Maybe I had
been a bit queer before that, without realizing it, but from the moment that I dipped into
Dostoevski I was definitely, irrevogably, contentedly queer.
51
A leitura de Dostoievski, para Miller, é reveladora: um segredo vem à luz, e a verdade
aparece como em uma liturgia. Na galeria de personagens de Dostoievski, é o homem do
subsolo que parece mais propriamente encarnar essa figura reveladora. Um funcionário
público medíocre e grosseiro blasfema contra tudo e todos. Acha-se muito superior aos que o
rodeiam, dentro e fora do local onde trabalha. Os colegas do escririo, ou os despreza ou os
inveja, e, em ambos os casos, jamais os encara. Sente-se mal de saúde e se delicia
encontrando um certo prazer no seu estado mórbido.
Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do
fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou
sofrendo. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o
fígado, que doa ainda mais.
52
Dentre os personagens de Dostoievski, a voz do homem subterrâneo é uma das mais
contundentes. O narrador sem nome das Memórias do subsolo é o verdadeiro anti-herói, a
pura materialização da ira (pecado que mais cultiva). Seja contra a ciência, contra a
superstição, contra o progresso, sua postura é essencialmente agressiva.
Em seus momentos mais trágicos e contundentes, Henry Miller parece tomar por
referência essa figura do homem do subsolo. Nas falas desse habitante do submundo já estão
esbadas, desde a segunda metade do século XIX, as linhas gerais que viriam a desenhar em
Miller o princípio da revelação do mistério: esse homem doente torna-se uma espécie de
representante paradigmático de todos os descontentes.
51
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 208.
52
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 8.
48
A leitura dos livros de Miller nos leva a concluir que foi Dostoievski que lhe mostrou
um ponto de vista, advindo desse lugar estratégico: no subsolo, é possível ser sem ser,
participar e, ao mesmo tempo, observar com a isenção de quem não está. Abre-se então a
possibilidade de um heroísmo marginal que alia uma linguagem agressiva e vulgar,
supostamente em contraste com a sofisticação e a profundidade das ideias que expressa. Na
verdade, a mescla de sofisticação intelectual e vulgaridade expressiva não possui nada de
aleatório nem de contradirio; reproduz, como é o caso de se dizer, o universo estético de um
personagem que se coloca à margem da sociedade e no âmago da decadência. Em relação aos
dois personagens, o homem do subsolo e Henry Miller, tem-se a impressão de que o plano do
texto é insuficiente: a necessidade do grito faz parecer que o autor deseja forçar os limites da
escrita para chegar até o leitor, colocando-o contra a parede.
As falas de Henry Miller, em muitos momentos, poderiam se confundir com as desse
habitante do subsolo.
The wallpaper with which the men of science have covered the world of reality is falling
to tatters. The grand whorehouse which they have made of life requires no decoration; it
is essential only that the drains function adequately. Beauty, tht feline beauty which has
us by the balls in America, is finished.
53
Ambos se expressam como se anunciassem o fim definitivo do império da razão,
atacam a ciência denunciando a impossibilidade de leitura e de interpretação da realidade. As
vozes do subsolo corroboram, nos textos de Miller, o anúncio de uma crise da racionalidade
ocidental: razão, civilização e progresso são conceitos desgastados, falidos diante da
incontornável decadência do Ocidente.
Como foi visto, Henry Miller se coloca como uma espécie de profeta que fala do fim
do império da racionalidade e da extinção do Ocidente, à margem de toda a ordem burguesa e
do grupo de valores dela derivado. As falas em tom de manifesto que permeiam seus
romances tratam da necessidade de uma renovação de valores, funcionando retoricamente no
sentido de desenhar o mito do herói marginal. Assim, seus romances exaltam uma radical
transformação de valores: o primeiro passo foi o desprezo do programa vitoriano, que
descumpriu quase à risca. Onde se queria o domínio da mente sob o corpo, ele trouxe instintos
e sexualidade desenfreada; onde se pensou em progresso, decadência; onde se cultuou a
ciência, ele indicou a sua falácia; onde se pregou educação, Miller se representou como um
53
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 148-149.
49
eterno desempregado. Mais do que pura rebeldia, essas perversões da ordem moral são, na sua
visão, um manifesto em favor da vida contra a decadência e a decrepitude. É a voz do homem
do subsolo que dá lugar à do anticristo de Nietzsche
54
em uma postura agressiva que aponta
para a necessidade de uma ruptura profunda com todo um universo de valores.
Outro personagem de Dostoievski de que Miller se apropria abertamente é o príncipe
Míchkin. Ao fazer de Míchkin uma espécie de encarnação ideal da bondade e da humildade,
um herói entre as figuras de D. Quixote e Jesus Cristo, Dostoievski demonstra o que pode
suceder a um homem genuinamente bom quando posto em confronto direto com a realidade
organicamente pérfida. Em carta de 13 de janeiro de 1868 a S. A. Ivánova, afirma:
A idéia do romance é uma idéia minha antiga e querida, mas tão difícil que durante muito
tempo não me atrevi a colocá-la em prática... A idéia central do romance é representar um
homem positivamente belo. No mundo não nada mais difícil do que isso, sobretudo
hoje. Todos os escritores, tanto nossos quanto... europeus, que se propuseram representar
o positivamente belo, sempre acabaram se dando por vencidos. Porque esse problema é
imenso. O belo é um ideal, e o ideal seja o nosso, seja o da Europa civilizada ainda
está longe de ser criado.
55
Míchkin foi projetado para atingir o grau supremo da evolução do indivíduo, capaz de
sacrificar-se em benefício de todos. Em Miller, como será visto, esse processo só se tornaria
possível a partir da crucificação, que permitiria realizar o supremo ideal da redenção dos
homens.
O idiota é a hisria do retorno do jovem Míchkin à Rússia, após vários anos de
internação na Suíça (para tratamento da epilepsia), e de seu envolvimento em um triângulo
amoroso no qual os outros dois vértices são Rogójin (um devasso perdulário que dilapida a
herança paterna) e Nastácia Filíppovna (uma mulher ao mesmo tempo ultrajada e altiva, além
de arrebatadoramente bela).
O romance conflui para uma esfera escatológica, na medida em que parece se
desenvolver em torno do tema do fim dos tempos. Essa dimensão impregna cada frase ou
ação das personagens de O idiota. Míchkin é uma espécie de iluminado cuja simplicidade
cativa e comove todos a sua volta. Mas sua ingenuidade e pureza quixotescas, que tangem a
idiotia, não o impedem de, logo na primeira cena, no trem que o leva de volta à terra natal,
conhecer Rogójin e penetrar na trama passional que esse e Nastácia vivem. Com eles
Dostoievski humaniza o mal e encena o homem em estado de decadência espiritual.
54
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. Lisboa: Edições 70, 2006.
55
DOSTOIEVSKI, Fiodor. O idiota. Prefácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004.
50
A imagem desse homem organicamente bom, altruísta e espiritualmente elevado, em
Miller, ganharia outras feições, mas seria conservada em sua essência. A violência e a
obscenidade dos textos de Miller parecem querer revelar, no fundo, a mesma pureza das
paisagens brancas de Dostoievski.
1.3 O burlesco
O gênero teatral é algo à parte no conjunto das matrizes intelectuais que fornecem
argumentos e mecanismos decisivos para a estruturação da ficção de Henry Miller.
Drama is the one of the category of literature into which I have develd more than any
other. My passion for the theatre goes so far back that it almost seems as if I were born
backstage. From the age of seven I started going to the vaudeville house called The
Novelty, on Drigg’s Avenue, Brooklyn. I always went to the Saturday matinée. And
alone. The price of admision at the “nigger heaven” was then a dime.(It was the golden
period and you really could get a good cigar for ten cents).
56
Na interpretação de William Solomon,
57
a relão com o teatro burlesco seria
importante para que Miller realizasse uma dissidência literária. A partir dos mecanismos
extraídos do burlesco, gênero teatral bastante comum nos Estados Unidos durante a Grande
Depressão, que o escritor teria fundamentado a sua obra ficcional e marcado uma distinção
em relação ao cânone literário.
A energia dos romances de Miller seria tributária desse tipo de diversão coletiva. A
violência sensacional burlesca que ele, por experiência própria, experimentara, seria um
componente axiomático de seu projeto literário. No limite, a literatura de Miller objetiva
aquilo que orienta o burlesco: animar, chocar, às custas da encenação de uma violência
positiva.
[...] Miller wished to recreate the perceptual excitement produced by watching a
discontinuous series of astonishing, outrageous performances. The writer was to be a
showman, a master of the explosive spectacle, the latest in a long line of energizing
American entertainers. Miller's exhibitionist prose may thus be conceived as an attempt to
56
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p.287.
57
SOLOMON,William. Burlesque Dreams: american amusement, autobiography, and Henry Miller. Northern
Illinois University, 2001.
51
produce another genuinely marvelous form of American amusement, one that positioned
the reader as the ideally amazed, overwhelmingly stimulated patron.
58
O projeto literário de Miller nasce, assim, orientado pela necessidade de chocar e
entreter. A perspectiva do teatro burlesco é, por isso mesmo, modeladora. A extravagância de
seu texto e a violência de sua performance literária fazem referência direta a esse modelo
cultural. Para Miller esses espetáculos tinham uma dimensão redentora. A performance
literária de Henry Miller, sua dimensão trágica e mica e seu apelo a imagens não
convencionais, beirando o fantástico, seria oriunda do teatro burlesco. Esse tipo de especulo,
que frequentou durante toda sua infância no Brooklyn, se faz ver em sua técnica literária na
medida em que seus romances, em várias passagens, apresentam um show de excentricidades.
Miller dedica a esses espetáculos um capítulo de Black Spring, em que elogia sua
energia e capacidade de chocar, o que, no limite, teria fins terapêuticos. “I could easily have
ended up a neurotic like most youngsters today. Thanks to the filth, vulgarity, and the humor
of the burlesk I was saved.
59
Ainda que Miller não tenha inventado a dimensão redentora de sua literatura
unicamente a partir do teatro burlesco, descobriu com ele o poder da violência. A energia e a
agressividade desses espetáculos são evocadas constantemente pelo escritor, associando arte e
agressão, choque e prazer, estética e violência, que se tornariam então marcas da sua
identidade autoral.
At any rate, from the momentous day when I first visited The Empire I became a devotee
of burlesque. Before long I knew them all Miner’s on the Bowery, The Columbia, The
Olympic, Hyde & Beeman’s, The Dewey, The Star, The Gayety, The National Winter
Garden all of them. Whenever I was bored, despondent, or pretending to search for
work I headed either for burlesque or the vaudeville house. Thank God, there were such
glorious institutions in those days! Had there not been, I might have comited suicide long
ago.
60
Miller se diferencia de determinada postura crítica, recorrente na primeira metade do
culo XX, que tendia a associar a disseminação de formas de diversão urbano-industriais a
58
SOLOMON, William. Burlesque Dreams: american amusement, autobiography, and Henry Miller. Northern
Illinois University, 2001, p.3.
59
SOLOMON, William. op. cit., p. 6.
60
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 290.
52
uma mecanização negativa, limitadora da experiência humana. Nesse sentido, ele se opõe a
alguns pressupostos da Escola de Frankfurt.
Interest in the parallels between unskilled work and play in industrialized settings goes
back in critical theory to the 1930s in Benjamin's work on Baudelaire. More recent
developments in this area of inquiry have continued to explore how the rhythms of
technological play, the thrills it provides notwithstanding, replicate the rhythms of
monotonously routine forms of work, and to investigate how both processes atomize the
individual's physical movements and sensory apparatus (Benjamin 133; see also
Horkheimer and Adorno 120-67). Just as he is subordinated in the factory to the repetitive
jolts of the assembly line, the constrained worker is rendered a passive appendage to the
pleasure machine during what it thus becomes inappropriate to call his or her free time.
The predicament of the worker in the age of mechanized entertainment is that because the
amusements he enjoys drill his body and mind, they facilitate his synchronization to the
devices he operates on the job. Under the aegis of recreation he continues to train to
become an efficient and obedient part of a rationalized industrialized system, for the
segmented excitements in one prepare him for the numbingly chopped-up movements
required for him to perform his duty in the other... With this in mind one might say that
exposure to new technologies of entertainment sparked Miller (and a few of his
contemporaries) to rethink literature as itself a mechanized activity. But for Miller, as will
become more apparent below, the mechanization of literature did not necessarily entail
that it would be assimilated to the disciplinary construction of individuals within machine
culture. On the contrary, his turn toward technologically mediated forms of entertainment
furnished him with a basis on which to develop a performative aesthetic he hoped would
serve as a mode of resistance to dominant systems implemented to hasten the
manufacture of docile persons. Thus, the energy his autobiographical writing derives
from the kind of attractions one might have enjoyed at Coney Island around the turn of
the century support a cultural endeavor designed to alter the functioning of the thoroughly
mechanized subjects of urban-industrial modernity.
61
Para Miller, o burlesco é o extremo oposto da disciplina. Esses espetáculos são, na
verdade, realizações gicas. Neles se encenam ritos de libertação. O choque extremamente
salutar que as imagens excêntricas causam às sensações faz com que o espectador desperte de
um estado natural de letargia espiritual. Essa prerrogativa, como marca que ele identificou no
vaudeville, seria fundamental na estruturação de seu projeto literário como um todo: os
romances de Miller se referem diretamente aos traços constitutivos desses espetáculos. Neles
a função da arte é redentora, portanto sagrada, associando o baixo e sublime, o vulgar e o
santo, o profano e o sagrado, o vil e o sublime.
What good taste would require be disclosed only in private, Miller puts on stage in his
literary performance. Hoping simultaneously to amuse and offend, Miller believes that
such a tactic is genuinely therapeutic on individual and collective levels. Finally, as many
have argued that the type of assault on the perceptual apparatus of the viewing subject
61
SOLOMON,William. Burlesque Dreams: American amusement, autobiography, and Henry Miller. Northern
Illinois University, 2001, p. 8-9.
53
that early twentieth-century entertainments maintained was suited, for better or worse, to
the conditions of existence in modernity, so, in this sense, the affinity for variety formats
is a corollary of Miller's desire to adjust literature for redemptive purposes to life in an
urban and industrial setting. The radical tenor of the imperatives driving his enterprise
and the unexpected critical twists and turns it takes are what make his project unique.
62
Para Maurice Blanchot o objetivo final de Henry Miller seria o de escrever um único e
imenso livro que seria como algo à parte, não mais belo ou original; algo à parte como uma
bíblia; algo como o último livro, a última das forças, uma realização completa e final. Estaria
o escritor imbuído de uma missão comum a outros autores do século XX, em que a literatura
assume a função de ser mais que literatura: “uma experiência vital, um instrumento de
descoberta, um meio para o homem de se pôr à prova, de se tentar, e nessa tentativa buscar
ultrapassar seus limites”.
63
A busca de Miller tem um sentido religioso. Ele mesmo se definiu como alguém que,
acima de tudo, busca a verdade. Anais Nin inclusive o criticaria por desprezar a arte e
priorizar o que entendia por verdade”.
64
Em todo caso a verdade é um ponto crucial no
horizonte de Miller. Em The Books in My Life, diria: “Autobiograpy is the purest romance.
Fiction is always closer to reality than fact.”
65
A questão é que, para ele, a verdade não se
revela plenamente pelos fatos, ela vem à luz a partir de uma operação; é a recompensa por
uma caçada. Só pode ser capturada com a força da imaginação e da ficção.
Sua arte é a da revelação e da verdade. No livro Nexus, o autor diz que a sua obsessão
pela verdade o teria levado a desprezar a literatura e ambicionar escrever um “livro da vida”,
que não compactuaria com as farsas da literatura comum e traria as energias e vulgaridades da
vida cotidiana.
People have had enough of plot and character. Plot and character don’t make life. Life
isn’t in the upper storey: life is here now, any time you say the word, any time you let rip.
Life is four-hundred and forty horsepower in a two-cylinder engine...
66
Ao afirmar que a “vida o está em um andar superior” e que ela acontece aqui e
agora, Miller denuncia o que considera uma covardia, uma mutilação da vida que a literatura
62
SOLOMON,William. Burlesque Dreams: American amusement, autobiography, and Henry Miller. Northern
Illinois University, 2001, p. 5.
63
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 207.
64
BRASSAÏ, Gilbert. Henry Miller: The Paris Years. New York: Arcade Publishing, 2002, p. 54.
65
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 37.
66
MILLER, Henry. Sexus. N.J. Grove Press, 1978, p.47- 48.
54
convencional operaria. Ao inserir vulgaridade e coisas baixas, ele pretende apresentar uma
suposta integralidade literária.
Tire a Bíblia do púlpito e a coloque no banheiro (sociedade de Gideon, por favor, anote
isso!). Não em quartos de hotel onde é atirada pela janela ou usada para cálculos e
memorandos e como papel higiênico em um momento de aperto. comecei a ler a
Bíblia quando descobri sua violência e obscenidade, suas grandes imagens insanas. Eno
eu a li com prazer e deleite, con amore... Do púlpito, ao ouvir seus comentários, ela
deslizava pelas minhas costas como se fosse água, não tinha nenhum significado para
mim, nenhuma relação comigo pessoalmente, mas através do sexo eu encontrei seu
significado, e sua grande poesia…
67
O banheiro é o lugar da Bíblia porque ela mesma é uma celebração do mundo das
coisas vulgares e sublimes. Escatologia, vulgaridade, sexualidade, e mundanidade encontram-
se encerradas em uma busca espiritual profana. O cheiro de carne humana, o sangue, a
transpiração, a mesquinharia, a mixórdia, a divinização do perecível, que Miller diz encontrar
na Bíblia, permitem que ele construa uma epopeia de redenção espiritual baseada em termos
baixos, violentos e vulgares, o que corrobora as análises de Auerbach:
O ponto central propriamente dito da doutrina cristã – Encarnação e Paixão – era, como
dissemos antes, totalmente incompatível com o princípio da separação dos estilos. Cristo
apareceu não como herói ou como rei, mas como um homem da mais baixa extração
social; seus primeiros discípulos foram pescadores e artesãos, movimentava-se no mundo
cotidiano do povo palestino, falava com publicanos e prostitutas, com pobres, doentes e
crianças; e nem por isso suas ações e palavras deixaram de ter a mais elevada e a mais
profunda dignidade; foram mais importantes do que tudo que aconteceu em qualquer
outro tempo. O estilo no qual isto vem narrado não possuía nenhuma, ou pelo menos
possuía muito pouca cultura rerica no sentido antigo, era sermo piscatoris, e, contudo,
profundamente comovente e mais eficaz do que a mais elaborada obra retórico-trágica. E
a mais comovente destas narrativas era a Paixão. Que o Rei dos Reis tenha sido
escarnecido, cuspido, açoitado e pregado na cruz como um criminoso comum esse
relato aniquila totalmente, tão logo atinja a consciência dos homens, a estética da
separação dos estilos.
68
O poder do relato bíblico de misturar sofisticadas ambições metafísicas ao vulgar e ao
cotidianoo que no texto de Auerbach aparece como mistura de estilos e viria a fundamentar
toda uma tradição ocidental de representação da realidade fundamenta a apropriação do
texto bíblico feita por Henry Miller. A Bíblia é referência permanente de seu projeto literário,
moldando uma encenação da crucificão de Henry Miller.
67
FERGUSON, Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 244.
68
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva,
2002, p.61 - 62.
55
Em suma, nos moldes de um espetáculo dramático Miller estrutura seu projeto
literário. Em seu quase-monólogo, é somente a figura central que importa, é ela que está
quase sempre sozinha no centro de um palco armado expondo suas dores para um público que
deseja – ou deve desejar ser chocado.
O drama modelo de Miller tende a funcionar como um exemplo mítico. Seu drama
individual se quer profundamente enriquecedor para quem : a história da maior das dores
humanas, a crucificação, é trazida a público para que o leitor possa se confortar e entender
que suas próprias dores nada são.
Miller dá vida, assim, a um anjo libertador, um ser de suprema compaixão, capaz de
expor suas feridas para confortar o mundo. Citando Pierre Abailard, Miller anuncia, na
epígrafe de Tropic of Capricorn, as suas pretensões:
Often the hearts of men and women are stirred, as likewise they are soothed in their
sorrows, more by example than by words. And therefore, because I too have know some
consolation from speech had with one who was a witness thereof, am I now minded to
write of the sufferings which have sprung out my misfortunes, for the eyes of one who,
though absent, is of himself ever a consoler. This I do so that, in comparing your sorrows
with mine, you may discover that yours are in truth nought, or at the most but of small
account, and so shall you come to bear them more easily.
69
As intenções autorais de Miller, em grande medida, se revelam. Sua trajetória pessoal
é encenada para o conforto do público. O grande drama apresentado por Miller, a encenação
de sua via crucis, deve funcionar como um catalisador de emoções que, dado o seu fundo
lirgico, desperta, redime e apazigua. Em grande medida, esse projeto dramático articula-se
ao burlesco:
At home, in school, in church, in the street, whatever I went, I was impregnated with
drama. If it was to obtain a replica of daily life, then I had no need for the theatre. I went
because from a tender age I shared preposterous as this may sound, the secret intenteions
of the playwright. I sensed the everlasting presence of a universal drama which had deep,
deep roots, vast and unending significance. I did not ask to be lulled or seduced; I asked
to be shocked and awakened.
70
Como foi visto, no burlesco, Miller encontra um modelo fundamental que viria a
orientar sua ficção, extraindo dele recursos para projetar sua literatura como dissidente,
marginal. Nesse sentido, a filiação ao burlesco não é gratuita: o caráter excêntrico desse tipo
69
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 7.
70
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 300.
56
de produto cultural é evocado pelo escritor também com o objetivo de associar a sua literatura
ao extravagante, ao bizarro, ou seja, ao diferente.
1.3 O jogo das apropriações
Henry Miller constrói, ao longo de seus textos, um tipo de autorrepresentação cujo
eixo básico é apresentá-lo como um amante de livros. Os contornos dessa relação, como
vimos anteriormente, são também marcados pela irresponsabilidade, e, sobretudo, pela
necessidade: ama livros, acima de tudo, porque precisa deles. Talvez a última imagem que
queira para si seja a de um homem educado ou de cidadão ilustrado. A relação com a cultura
letrada que busca encenar é uma relação de profunda dependência, posto que os livros são seu
alimento e sua própria razão de ser.
A imagem de leitor feroz e livre lhe é muito cara. É envolto em livros que constrói a
figura do pensador marginal encontrada em seus romances. Na segunda capa de uma edição
brasileira de Nexus temos, a respeito da elaboração da trilogia A crucificação rosada, o
seguinte depoimento de Miller:
Minha idéia, muito simples, foi a de contar sem pensar no número de ginas, a história
do período mais pungente da minha vida, a saber, os sete anos antes da minha fuga
voluntária para a França. Parte considerável da narrativa refere-se à luta que travei para
me expressar em palavras – eu comecei tarde! – dificuldades para ganhar a vida, luta com
o meu próprio ser complexo, encontros com outros homens e mulheres na condição de
errante facínora cultural” e assim por diante. E mais do que tudo, talvez, meu esforço
para compreender o padrão de minha vida, seu propósito e significação.
71
A ênfase aqui está na imagem de “errante facínora cultural”. A figura do outsider, do
marginal, do bandido da cultura equivale à voz que se levanta contra uma realidade
petrificada e espiritualmente morta. O facínora é aquele que vem para denunciar o fim de uma
era decadente. Mas ele não age sozinho. Se por um lado, as falas de Miller são quase
monólogos, ele passa a maior parte do tempo solitariamente em cena; por outro lado, para
atacar a lógica da decadência, uma série de nomes são evocados, desfilando em sua narrativa
como espíritos iluminados que funcionam como antídotos à atmosfera moderna e estéril.
71
MILLER, Henry. Nexus. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1971, p.10.
57
Esse recurso não é aleatório. Os nomes são convocados na medida em que são parte
fundamental da trama, são trazidos para que a figura do facínora cultural possa ganhar corpo.
After leaving the Pension Orfila that afternoon I went to the library and there, after
bathing in the Ganges and pondering over the signs of the zodiac, I began to reflect on the
meaning of that inferno which Strindberg had so mercilessly depicted. And, as I
ruminated, it began to grow clear to me, the mystery of his pilgrimage, the flight which
the poet makes over the face of the earth and then as if he had been ordained to re-enact a
lost drama, the heroic descent to the very bowels of the earth, the dark and fearsome
sojourn in the belly of the whale, the blood struggled to liberate himself, to emerge clean
of the past, a bright, a gory sun god cast up on a alien shore. It was no mystery to me any
longer why he and others ( Dante, Rabelais, Van Gogh, etc., etc.) had made their
pilgrimage to Paris. I uderstand then why it was that Paris attracts the tortured, the great
maniacs of love.
72
No mais “parisiense” dos romances de Miller, nomes significativos da cultura
ocidental são postos em cena para afirmar certa condição de Paris. A cidade que o escritor
buscou como refúgio serviu também para Dante, Rabelais e outros. Henry Miller se coloca no
mesmo rol de degredados, maníacos e torturados, dividindo as mesmas indagações que
Strindberg, em suma, como personagem da mesma trama que os envolve.
In The Possessed the earth quakes: it is not the catastrophe that befalls the imaginative
individual, but a cataclysm in which in a large portion of humanity is buried, wiped out
forever. Stravrogin was Dostoevski, and Dostoevski was the sum of all those
contradictions which each paralyse a man and lead him to the heights. There was no
world too low for him to enter, no place too high for him to fear to ascend. He went the
whole gamut, from the abyss to the stars. It is a pit that we shall never again have the
opportunity to see a man placed at the very core of the mystery and, by his flashes,
illuminating for us the depth and the immensity of the darkness.
73
Aqui, o elogio a Dostoievski é também um lamento. Não há mais, na decadente
cultura ocidental, um homem da estatura do escritor russo. O nome de Dostoievski parece ter
sido trazido à cena também para funcionar como um modelo. Sua ficção, de certa forma,
aparece como sendo aquilo que a verdadeira literatura deve ser. É uma referência também
àquilo que a literatura de Miller se pretende.
I want o world of men and women, of trees that do not talk (because there is too much
talk in the world as it is!) of rivers to take you to places, not rivers that are legends, but
rivers that put you in touch with other men and women, with architecture, religion, plants,
72
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 163-164.
73
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 230.
58
animals […] I want rivers that make oceans such as Shakespeare and Dante, rivers which
do not dry up in the void of the past.
74
A novidade que, na imagem do rio, aparece para revitalizar uma natureza moribunda, é
um desejo de iluminação, de renascimento que, segundo Miller, remete às páginas de
Shakespeare e Dante. Somente ao lado deles o delírio faz sentido. Ambos circulam na
narrativa como parâmetros da força de uma cultura viva e fértil, trazendo para o texto de
Miller peso e densidade.
Now is everything so simple that it mocks one. From this peak of drunkeness one rolls
down into the plateau of good health where one reads Vergil and Dante and Montaigne
and all the others who spoke only of the moment, the expanding moment that is heard
forever…
75
As vozes de dois pilares da cultura ocidental como Virgílio e Montaigne são colocadas
no lugar do universal e do eterno. Vozes que falam da planície da saúde. A ideia de saúde é
absolutamente fundamental, pois é em busca dela que Miller se orienta. uma tentativa
estratégica de demarcação por parte de Miller, que se põe ao lado dos detentores da
salubridade e denuncia um estado de falência. O lugar das vozes universais que se ouvem
eternamente, onde se chega em estado de embriaguez, é o lugar onde Miller quer inserir sua
própria literatura.
Sobre Robinson Crusoé, afirma:
A remarkable book, coming at the culmitation of our marvelous Faustian Culture. Men
like Rousseau, Beethoven, Napoleon, Goethe on the horizon. The whole civilized world
staying up nights to read it in 97 different tongues. A picture of reality in the 18
th
century[...] Henceforward everyone is running away from himself to find an imaginary
desert isle, to live out this dream of Robinson Crusoe. Follow the clasics flights, of
Melville, Rimbaud, Gauguin, Jack London, Henry James, D.H. Lawrence... thousands of
them. None of them found happiness. Rimbaud found cancer, Gauguin found syphilis,
Lawrence found the white plague.
76
Os nomes desfilam como personagens de uma mesma saga da cultura ocidental. Os
exilados, marginais configuram um grupo de heróis desprezados. A tragédia da cultura
ocidental encontra na figura desses nomes evocados sua expressão mais individualmente
74
MILLER, Henry. op. cit., p. 231.
75
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 37.
76
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 41- 42.
59
dramática. O rol dos sofredores, vítimas de uma fuga necessária, representa o avesso da
“cultura fáustica” e o triunfo da civilização estéril.
Nesse sentido, se inserir no seio de uma certa tradição, é um recurso recorrente de
Miller que constantemente se coloca entre aqueles espíritos iluminados que surgem como um
último traço de salubridade intelectual.
Ah yes, if I had know then that these birds existed Cendrars, Vaché, Grosz, Ernst,
Apolllinaire if I had know then, if I had know that in their own way they were thinking
exactly the same things as I was, I think I’d have blown up. Yes, I think I’d have gone off
like a bomb. But I was ignorant.
77
Oswald Spengler, por exemplo, aparece como a referência de um mestre cuja
sabedoria teria permitido escrever um grande poema sobre a morte do Ocidente. Vimos como
Spengler é um grande “aliadode Miller no sentido de apoiar a sua interpretação acerca da
cultura ocidental numa tradição já consagrada.
Miller não esconde suas matrizes: faz questão de deixá-las expostas, como marcas de
um caminho já percorrido. Os nomes que circulam na trama geral de seus romances acabam
atuando como personagens de uma mesma estirpe, a mesma que caracteriza o próprio Miller.
E, em se tratando de um jogo que quer confundir constantemente vida e literatura, tem-se um
processo de construção duplo: Henry Miller aparece encerrado no núcleo de uma tradição
intelectual.
Nietzsche, my first great love, hadn’d seemed very German to me. He didn’t even seem
Polish. He was like a fresh-minted coin. But Spengler immediately impressed me as being
German to the core. The more abstruse and recondite his language, the easier I followed
him. A pre-natal language, his. A lullaby. What is erroneously called his “pessimism”
struck me as nothing more than cold Teotonic realism. The Teutons having being singing
the swan song ever since they entered the ranks of history. They have always confounded
truth with death. Let us be honest. In the whole metaphysic of Europe has there ever been
any truth but this sad German truth which, of course, is a lie? Suddenly, thanks to this
historical maestro, we glean that truth of death need not be sad, particularly, when as
happens, the whole civilized world is already part of it. Suddenly we are asked to look
into the depths of the tomb with the same zeal and joy with which we first greeted life.
78
Da mesma forma, isso se com a apropriação que faz de Spengler, analisada no
início desse capítulo. Miller o cita
por julgar que ele é parte de sua
experiência
pessoal. Usa
A decadência do Ocidente abertamente, transformando as falas de Spengler em suas. Nas
77
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 295.
78
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 621-622.
60
páginas finais de Plexus, é possível entrever pequenas passagens inteiras da obra de Spengler
alocadas entre falas do próprio Miller. A apropriação, nesse caso, chega a um ponto extremo:
trata-se de um jogo e Henry Miller deixa claro que sua literatura faz sentido nessa lógica.
Ao assumir a missão de narrar sua própria experiência, é preciso pôr em cena os personagens
que dela participaram, fazendo com que passem a fazer parte da grande tragédia da cultura
ocidental.
O conjunto de nomes apresentados por Miller aparece como um panteão de heis e
como espíritos positivos que representam uma possibilidade de redenção, gênios que podem
funcionar como antídoto para uma crise estabelecida.
Yes, I was a fortunate man to have found Oswald Spengler at the particular moment in
time. In every crucial period of my life I seem to have stumbled upon the very author
needed to sustain me. Nietzsche, Dostoevski, Elie Faure, Spengler: what a quartet! There
were others, naturally, who were also important at certain moments, but they never
possessed quite the amplitude, quite the grandeur of these four. The four horsemen of my
own private apocalypse. Each one expressing to the full his unique quality: Nietzsche the
iconoclast; Dostoevski: the grand inquisitor; Faure the magician; Spengler: the
patternmaker. What a foundation!
79
A fundação” de que Miller tanto se orgulha, os cavaleiros de seu apocali
ps
e pessoal,
o modelos, que não devem necessariamente ser imitados, mas apropriados, convocados para
trazer luz à escuridão.
80
Henry Miller o se vale deles como se coloca entre eles. Sua literatura, toda
permeada por uma dimensão escatológica, se pretende ela mesma uma luz na escuridão. Seus
romances são construídos em tons apocalípticos e, ao narrarem o processo vivido por um
homem para se tornar um escritor, fazem um elogio a todos aqueles que supostamente
sofreram as mesmas dores. Miller dramatiza a dificuldade de ser um artista em uma sociedade
doente, decadente, e convoca um panteão de heróis marginais, por ele forjado, para atuar ao
seu lado. Ou seja, estabelece antídotos antidecadência e, ao mesmo tempo, marca sua inserção
em um rol de grandes nomes da cultura ocidental.
And while these invisible ones went about their tasks, the author what a misnomer!
lived and breathed, performed the duties of a householder, a prisoner, a vagabond,
whatever, the role, and as the days passed, or the years, the scroll unrolled, the tragedy
(his own and his characters) spelled itself out, his moods varying like the weather, from
day to day, his energies rising and sinking, his thoughts seething like a maelstrom, the
79
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 639.
80
O papel específico de Elie Faure será analisado adiante, uma vez que este não participa do mesmo núcleo
filofico dos demais nomes citados.
61
ending ever approaching, a heaven which even if he have nor earned it he must force,
because what is begun must be finished, consummated, even if on the cross.
What need, eh, to read the pages of a biography? What need to study the worm or the ant?
Think, for just a moment, of such willing victims as Blake, Boehme, Nietzsche, of
Holderlin, Sade, Nerval, of Villon, Rimbaud, Strindberg, of Cervantes, or Dante, or even
of Heine and Oscar Wilde! And I, was I to add my name to this host of illustrious
martyrs? To what further depths of degradation had I to sink before acquiring the right to
join the ranks of these scapegoats?
81
A pergunta formulada por Miller é um dos pontos definidores de seu projeto literário:
esses mártires ilustres circulam, nos romances de Miller, como imersos em um mesmo
repertório de queses. Com eles, fabrica uma tradição.
Para produzir uma literatura que quer discutir a própria literatura, Henry Miller usa
como recurso mais importante à construção de uma tradição cultural vasta e particular, que
tem uma função instrumental em seus textos. É nesse teatro montado com nomes que Henry
Miller atua: é nele que o facínora se define e ataca.
O próprio escritor diz que, ao narrar sua história, dramatiza a trajetória de um
“fanora cultural”, um marginal que atua no universo da cultura. Todos os seus passos estão
marcados pelos diálogos e as disputas travadas no seio de determinada tradição inventada. Ao
evocar nomes que o de Goethe a line, Miller constrói um teatro e inventa seu próprio
papel. Assim, só tem condições de atuar referindo-se a um patrimônio construído.
Nas profundezas da mina, entrei em contato com os espíritos da terra. Foi assim que
compreendi que as profundezas que eu havia situado num horizonte vago e etéreo, como
balões sonhadores, tinham na realidade uma essência subterrânea. Estava acompanhado
de espíritos vitais como os de Nietzsche, Emerson, Thoreau, Whitman, Fabre, Havelock
Ellis, Maeterlink, Strindberg, Dostoievsky, Gorky, Tolstoy, Verhaeren, Bérgson, Hebbert
Spencer. Compreendia a linguagem deles. Eu me sentia em casa na companhia deles. Não
conseguia encontrar uma razão válida para voltar à tona em busca de ar fresco. Tinha
tudo nas mãos. Mas como um explorador solitário que descobre uma velha mina de ouro,
tive que transportar com as mãos tudo que era possível e voltar à tona em busca de
auxílio. Era necessário convencer os outros que o tesouro existia, suplicar a eles que me
acompanhassem e se servissem à vontade da riqueza enterrada.
82
A imagem é bastante forte. A figura do homem do subsolo surge de forma
contundente. A novidade que a literatura de Miller traz não é tão nova assim: é menos fruto de
uma originalidade do que da descoberta de tesouros escondidos. Restos desprezados, fósseis
que o Ocidente cegamente desprezou. Nesse trecho, Miller definitivamente se coloca como
companheiro dos mártires que louva. É ao lado deles que sua missão ganha corpo.
81
MILLER, Henry. Nexus. New Jersey: Castle Books, p. 131.
82
MILLER, Henry. O mundo do sexo. Rio de janeiro: Americana, 1975, p. 48.
62
Henry Miller se esforça para se representar como um outsider. A imagem de marginal
lhe é bastante cara, sobretudo porque, para quem dramatiza uma cultura doente, estar no
mainstream seria assinar atestado de culpa. O escritor, em seu jogo poderoso que quer
confundir bios e literatura e consti para si mesmo a ideia do marginal e somente ele pode ser
herói.
A fama de escritor maldito que recairia sobre o escritor, é em grande medida, marca do
sucesso de sua empreitada. Em suma, Henry Miller se esforçou em produzir um tipo de
literatura que fosse essencialmente marginal, outsider, e não mediu esforços em convocar
nominalmente aqueles que para ele seriam grandes “gângsters culturais”.
No centro da revolta que Miller encena estão os personagens que configuram em sua
literatura um panteão ocidental. Sua maior questão é a própria criação literária e é
precisamente nesse sentido que narra sua via crucis para se tornar um artista encarada na
presença nominal de seus grandes mestres. Miller, nesse aspecto, marca a sua posição como a
voz da novidade. Estrategicamente, se associa aos marginais, mestres, mas também
companheiros, exilados e refugiados.
Ao se colocar ao lado daqueles que julga como heróis desprezados de uma cultura em
vias de extinção, Miller se torna um personagem heroico. Como exilado, desprezado, seu
heroísmo ganha contornos mais do que evidentes, sua carga dramática é potencializada e sua
dimensão religiosa, redentora se revela. É na imagem desse personagem que a novidade, a
nova cultura erigida dos escombros da velha deve se consolidar. O artifício que possibilita
essa transformação passa, como vimos, pela construção de uma tradição, não necessariamente
desvinculada de um cânone preestabelecido, com fins de demolição posterior, para que, no
derradeiro final, uma novidade absoluta se consolide. O personagem que Henry Miller cria
pretende-se, assim, como o ponto final dessa tradição inventada.
Dessa maneira, o jogo de apropriações tem um sentido duplo: Miller, em seus
romances, lança mão de escritores que lhe fornecem modelos e dispositivos narrativos, como
também os nomeia para povoar sua ficção e fazê-los funcionar como personagens de um
mesmo drama. Para narrar a tragédia da cultura ocidental, ele se alia, assim, aos seres
iluminados que devem destoar da “lógica da decadência”. A convocação desses “espíritos
elevados” é um traço definidor da literatura de Miller, parte de sua existência, que tem como
efeito incontornável – e até mesmo intencional – a identificão do próprio Miller aos
escritores tidos por deslocados e marginais.
As representações letradas ocupam, assim, um lugar fundamental na fião de Henry
Miller. A construção de um “personagem Miller”, que tem como pressuposto um jogo que
63
quer confundir vida e literatura, pode se dar a partir da sua articulação, pela montagem de
um cenário onde o “errante facínora culturalatua. Esse personagem está no centro de uma
trama trágica, burlesca e pornográfica, que se pretende, antes de tudo, autobiográfica.
64
Capítulo II
Um novo romance contra a decadente arte ocidental
2.1 A escrita da verdade
Vimos como o projeto literário de Henry Miller se define a partir da tentativa de
renovação da produção literária no Ocidente. Sob a premisssa de tentar estabelecer novas
bases conceituais e estéticas para a literatura, Henry Miller articula um projeto que, no limite,
visa imputar aos seus romances a missão de salvar uma estrutura cultural decadente. Para uma
literatura considerada em estado de declínio, Henry Miller traria a revitalização espiritual.
Em grande medida, a apropriação do texto de Oswald Spengler encontra-se nas bases
de sua suposta ruptura estética. Criando um quadro onde a produção artística do Ocidente
apareceria espiritualmente enfraquecida, o escritor americano tenta forjar o sentido de sua
própria obra.
Europe is saturated with art and her soil is full of dead bones and her museums are
bursting with plundered treasures, but what Europe has never had is a free, healthy spirit,
what you might call a MAN. Goethe was the nearest approach, but Goethe was a stuffed
shirt, by comparison. Goethe was a respectable citizen, a pedant, a bore, a universal spirit,
but stamped with the German trade-mark, with the double eagle. The serenity of Goethe,
the calm, Olympian attitude, is nothing more than the drowsy stupor of a German
burgeois deity. Goethe is an end of something, Whitman is a beginning.
83
Henry Miller se colocaria como herdeiro desse caminho aberto por Whitman. A
renovação do espírito ocidental que o poeta americano teria começado, ao esboçar os
contornos do “homem verdadeiramente livre”, seria também tarefa de Miller. Para uma
Europa saturada, a obra desse “estrangeirosignificaria a renovação e a redenção.
A acusação mais constante que o escritor dispara contra o que define como romance
de ficção tradicional, é a sua dimensão supostamente artificiosa e mutiladora. Por vezes,
Miller parece querer atacar exatamente aquilo que define a ficção. Para ele, a preocupação
83
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 217.
65
com a verdade deveria ser o ponto básico de qualquer proposta artística. Nesse sentido,
denuncia o excesso de artifício e a falta de sinceridade. A literatura, enquanto discurso
descolado de uma realidade maior, não o interessa. Em carta escrita no ano de 1955,
endereçada a James Laughlin – seu editor nos Estados Unidos – a respeito da possibilidade de
publicão de seus romances em pequenas partes separadas no intuito de fugir da censura,
Miller comenta:
There are writers who can do this sort of thing, an skilfully, and it is all right. But not
me. Whatever disorder, illogic, irrelevancies, etc. one may find in my works – and they
exist, viewed objectively they nevertheless belong and form an integral part of my
books, because they are always facets of me. And my aim, from the beginning, has been
to give myself – totally. No evasions, no compromises, no falsifications. Distortions and
exaggerations, yes! But for aesthetic reasons, to make the truth more truthful. To put it
another way, I put down what comes to me in the way it is given. I don't question how it
is given or by whom. I obey, I yield. I know "it" knows better than I. I am the receiving
station. This is my "purity," if you like. And my credo, as
writer. Or "my water-
mark”.
84
Seu compromisso com a verdade passa pela necessidade de fazer de sua literatura uma
expressão genuína e integral de si mesmo. Ao dizer que escreve exatamente aquilo que lhe
vem à cabeça, sem consertar ou interferir, uma relação de pacto profundo com a verdade. Ao
supostamente renunciar ao uso indiscriminado de artifícios literários, se esforça no sentido de
atribuir ao seu trabalho uma dimensão pura e, portanto, verdadeira.
O fato de Henry Miller ter permitido posteriormente a publicação desses trechos, e de
ter ele mesmo censurado algumas partes, para facilitar a veiculação de suas obras nos Estados
Unidos, não invalida o ponto aqui apresentado. Seria inclusive muito ingênuo acreditar que o
escritor nunca corrigia ou reescrevia partes de seu trabalho. De fato, há uma série de
passagens onde ele mesmo descreve situações em que teriam sido feitas várias modificações
nos textos. O que nos interessa aqui é o fato de Miller querer a todo tempo se colocar como
um amante da verdade que nunca faria concessões de nenhuma ordem. É com essa imagem
que busca fundamentar seu projeto literário. Tenta projetar sua literatura como uma busca
obsessiva pela verdade. O que não implica a impossibilidade da pura criação ficcional. A
revelação desse tipo de verdade profunda pressupõe inclusive uma imensa dose de criação e
imaginação. O compromisso com a verdade em Miller nunca é um pacto com o verídico, mas
84
MILLER, Henry. Henry Miller and James Laughlin: selected letters/ edited by George Wickes. New York:
Norton, p. 116 – 117.
66
sim uma preocupação constante com um determinado sentido místico-religioso que, segundo
o escritor, a arte verdadeira deve possuir. Segundo Brassaï:
Truth and reality are not terms that can be defined in any conventional way in Miller's
work. Reality is limitless and indefinable. It is never raw fact, which, Miller believed, was
actually nothing but surface. Facts offer only their own version of events, and it would be
a mistake to assume that human documents intimate diaries, autobiographical jottings
place us squarely in the heart of the matter. Reality must include thoughts, memories,
dreams, everything that one can imagine or invent about a subject. "Fiction is always
closer to reality than fact". Facts are feelings and thoughts they are assimilated and
digested. Life, therefore, cannot be grasped either by realism or by naturalism, but only
through dreams, symbols, and storytelling. Because historical fact is not what happened,
but what people's imaginations make of what has happened, reality is myth and legend.
Hence the paradox of Miller's believing that works called "realistic" or "naturalistic" are
really packs of lies, and that those in which the pure imagination constitutes the "real"
(however we define it), such as in Rider Haggard's She, Balzac's Séraphita, and Alain-
Fournier's Le Grand Meaulnes [The Lost Domain], offer a reality that is "richer, denser”.
Miller never believed the truth to derive from a precise notation of facts and events, but
instead from the flood of images that are unleashed in his imagination by these facts,
from what he finds within, from what he wants to give of himself. He would agree with
Aragon that "nothing is ever more lifelike than our imagination, our pure imagination".
85
Nesse sentido, Miller investe pesadamente para colocar sua obra em termos de
verdade profunda e revelação. Ao denunciar uma lógica cultural falida, artificial e vazia, a
opção pela verdade ou pela busca de um efeito de verdade surge como uma possibilidade
interessante e, em grande medida, eficaz. Definir seus romances como ficções autobiográficas
foi um recurso de que Miller lançou mão buscando definir sua produção com o melhor dos
dois mundos: a suposta liberdade da criação ficcional com o também suposto compromisso
com a realidade que marcaria a narrativa autobiográfica.
Esse jogo lhe é bastante caro. Se a literatura ocidental falha ao mutilar a vida em toda
a sua grandeza, torna-se necessário compor um personagem que espelhe um homem de
verdade, um personagem íntegro, de carne e osso, um herói cujas dimensões devem extrapolar
a de um único livro.
In fact, Proust's insistence that everything is invented in Remembrance was as hearty as
Miller's insistence that his autobiographical narratives were based on truth. One can't help
wondering if Miller wouldn't have been better off calling his stories novels, if this
wouldn't have provided a way of avoiding unfortunate misunderstandings. How wise
Goethe was not to title his autobiography The Truth About My Life, but instead Poetry
and Truth About My Life, indicating right from the start the part that both fiction and
invention would play. Louis Aragon called the story of his relationship with Matisse not
Henri Matisse, but Henri Matisse, A Novel, making it sound almost like a literary hoax.
85
BRASSAÏ, Gilbert. Henry Miller: The Paris Years. New York: Arcade Publishing, 2002, p. 145.
67
The writer who writes his autobiography becomes the historian of his life. He is not
supposed to make things up. He is supposed to stick scrupulously to what happened. Can
a writer of Miller's stature be an objective, impartial historian of his life? Aragon thought
not: "I am close to thinking of autobiographers as forgers," he wrote in Theatre/Roman.
"Honesty, without any doubt, would demand that most books being called memoirs he
called novels, or, more accurately, novelistic". Curiously, Miller seems to have shared
Aragon's opinion: "No artist has ever succeeded in rendering nature on canvas, just as no
author has ever truly been able to give us his life and thoughts," he noted in his essay
"They Were Alive and They Spoke to Me". "Autobiography is the purest' romance." "I
began my writing career with the intention of telling the truth about myself," he writes in
that essay on Rider Haggard. "What a fatuous task! What can possibly be more fictive
than the story of one's life?"
86
O fundamental para Henry Miller é poder caminhar entre esses dois termos. Lançar
mão de recursos do gênero ficcional sem perder o poder de persuasão que identifica nos
discursos biográficos. Quer confundir bios e literatura sem abrir mão das possibilidades
próprias do texto ficcional. Entende que a força de sua obra depende desse jogo.
Dentre todos os mecanismos que usa para gerar a crença de que os textos que escreve
o relatos profundos de sua experiência pessoal, o mais evidente e eficaz é batizar seu
personagem principal com seu próprio nome. O herói Henry Miller que aparece em todos os
romances aqui estudados é construído para ser a imagem projetada de seu criador. Dado esse
primeiro passo, Miller se vê na tarefa de persuadir o público de que a narrativa que se segue
trata da verdadeira história de sua vida dramatizada nas linhas de um romance. Dessa forma, o
escritor construiria sua obra literária como um espelho, em alguns momentos obedecendo a
uma ordem cronológica linear, de sua vida, concebida como uma luta constante em busca da
realizão artística.
A filiação a um elenco de nomes da cultura americana que trazem como marca a
necessidade de expressão do self, tais como Emerson e Whitman, é um outro recurso utilizado
por Miller.
The autobiographical novel, which Emerson predicted would grow in importance with
time, has replaced the great confessions. It is not a mixture of truth and fiction, this genre
of literature, but an expansion and deepening of truth. It is more authentic, more veridical,
than the diary. It is not the flimsy truth of facts which the authors of these
autobiographical novels offer but the truth of emotion, reflection and understanding, truth
digested and assimilated. The being revealing himself does so on all levels
simultaneously.
That is why books like Death on the Installment Plan and the Portrait of the Artist as a
Young Man catch us in the very bowels. The sordid facts of miseducated youth acquire,
through the hate, rage and revolt of men like Céline and Joyce, a new significance. As to
the disgust which these books inspired when they first appeared, we have the testimony of
86
BRASSAÏ, Gilbert. Henry Miller: The Paris Years. New York: Arcade Publishing, 2002, p. 144.
68
some very eminent men of letters. Their reactions are also significant and revelatory. We
know where they stand as regards truth. Though they speak in the name of Beauty, we are
certain that Beauty is not their concern. Rimbaud, who took Beauty upon his knees and
found her ugly, is a far more reliable criterion. Lautréamont, who blasphemed more than
any man in modern times, was much closer to God than those who shudder and wince at
his blasphemies. As for the great liars, the men whose every word is flouted because they
invent and fantasticate, who could be more staunch and eloquent advocates of truth than
they.
Truth is stranger than fiction because reality precedes and includes imagination. What
constitutes reality is unlimited and undefinable.
87
Ao tentar confundir realidade e ficção, Miller parece estar querendo marcar para o
público a forma ideal como seus textos devem ser lidos. Caberia ao leitor estar consciente de
que aqueles relatos são imagens reproduzidas de uma experiência vivida que o se limitaria a
fatos comprováveis, mas seria construída com recursos da imaginação e da ficção.
Esse compromisso com um tipo de verdade profunda, misteriosa, marca todo o projeto
literário de Henry Miller. Seus romances o concebidos como se deles pudesse surgir um
tipo de verdade redentora que estaria omitida nos livros convencionais.” É como se sua
sinceridade absoluta revelasse um corpo de mistérios relativos à experiência humana como
um todo. Miller se coloca como o personagem-artista-herói, que viria para salvar a decadente
cultura do Ocidente. Em grande medida, sua obra, colocada como imagem objetiva de sua
vida, deve aparecer como um exemplo. Nesse aspecto, uma interpretação romântica e
inspirada do que venha a ser o processo de composição artística, torna-se fundamental para a
definição que almeja para seus trabalhos. Envolver sua estética em uma aura de magia e
mistério é um artifício de que o escritor lança mão com o objetivo de fazer de sua obra algo
para além de um mero conjunto de romances.
I have made a silent compact with myself not to change a line of what I write. I am not
interested in perfecting my thoughts, nor my actions. Beside the perfection of Turgenev I
put the perfection of Dostoevski. (Is there anything more perfect than The Eternal Hus-
band?) Here, then, in one and the same medium, we have two kinds of perfection. But in
Van Gogh's letters there is a perfection beyond either of these. It is the triumph of the
individual over art.
There is only one thing which interests me vitally now, and that is the recording of all that
which is omitted in books. Nobody, so far as I can see, is making use of those elements in
the air which give direction and motivation to our lives. Only the killers seem to be
extracting from life some satisfactory measure of what they are putting into it. The age
demands violence, but we are getting only abortive explosions. Revolutions are nipped in
the bud, or else succeed too quickly. Passion is quickly exhausted. Men fall back on
ideas, comme d'habitude. Nothing is proposed that can last more than twenty-four hours.
87
MILLER, Henry. The Books in My Life. New York: New Directions, 1978, p. 169.
69
We are living a million lives in the space of a generation. In the study of entomology, or
of deep sea life, or cellular activity, we derive more
88
A ideia de falar a verdade é um traço fundamental do personagem criado por Miller.
Sem a perspectiva de que sua trajetória pessoal é marcada por um prolongado processo de
autodescoberta, esse mesmo Henry Miller não poderia funcionar. Um dos pontos cruciais de
sua construção é o estabelecimento da crença de que, não aquela é uma narrativa
verdadeira, como também é uma narrativa heroica com traços místicos e reveladores. Cada
etapa dramatizada de seu sofrimento serve para configurar a expectativa de uma redenção
preestabelecida.
A construção de seu personagem principal se dá em conjunto com o estabelecimento
do sentido de seu projeto literário. Ao produzir uma literatura que quer, entre outras coisas,
discutir o papel da arte e da própria literatura, Henry Miller dramatiza cenários em que as
falas de seu herói se apresentam como discursos inflamados em nome de uma renovação
estética que não só tenta forjar, como já aparece estabelecida nessas mesmas falas convertidas
em romances.
Every one who lifts himself above the activities of the daily round does so not only in the
hope of enlarging his field of experience, or even of enriching it, but of quickening it.
Only in this sense does struggle have any meaning. Accept this view, and the distinction
between failure and success is nil. And this is what every great artist comes to learn en
route - that the process in which he is involved has to do with another dimension of life,
that by identifying himself with this process he augments life. In this view of things he is
permanently removed and protected from that insidious death which seems to
triumph all about him. He divines that the great secret will never be apprehended but in-
corporated in his very substance. He has to make himself a part of the mystery, live in it
as well as with it. Acceptance is the solution: it is an art, not an egotistical performance
on the part of the intellect. Through art then, one finally establishes contact with reality:
that is the great discovery. Here all is play and invention; there is no solid foothold from
which to launch the projectiles which will pierce the miasma of folly, ignorance and
greed. The world has not to be put in order: the world is order incarnate. It is for us to put
ourselves in unison with this order, to know what is the world order in contradistinction
to the wishful-thinking orders which we seek to impose on one another. The power which
we long to possess, in order to establish the good, the true and the beautiful, would prove
to be, if we could have it, but the means of destroying one another. It is fortunate that we
are powerless. We have first to acquire vision, then discipline and forbearance. Until we
have the humility to acknowledge the existence of a vision beyond our own, until we
have faith and trust in superior powers. The blind must lead the blind. The men who
believe that work and brains will accomplish everything must ever be deceived by the
quixotic and unforeseen turn of events. They are the ones who are perpetually
disappointed; no longer able to blame the gods, or God, they turn on their fellow-men and
vent their impotent rage by crying «Treason! Stupidity!» and other hollow terms.
89
88
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 10.
89
MILLER, Henry. Sexus. New York: Grove Press, 1979, p. 269-270.
70
Seus livros são como verdadeiros manifestos, arquitetados como livros da vida, onde o
verdadeiro conhecimento se faz ver. Dessa forma, a revolução inventada e pretendida por
Miller quer também uma modificação no entendimento do homem como um todo, para servir
como exemplo para o homem comum.
Nesse sentido, o papel do artista é divinizado. O grande mistério da vida deve ser
revelado pela arte. Talvez seja esse propósito que justifique a obsessão pela verdade. Seus
textos são construídos como se houvesse algo de profundo e misterioso a ser despertado.
Dessa maneira, referência a Elie Faure se torna clara. Em carta endereçada a Lawrence Durrel
comenta:
Freud... Você por diversas vezes afirmou coisas sobre a minha absorção dele e da sua
influência. Verdade, li-o bastante, mas quanto à «influênci, se alguma houve, eu iria
antes em Rank e Jung. Bergson pertence à minha juventude (aos dias da oficina de
alfaiate). Aque ponto me influenciou é impossível determinar. As grandes influências
foram Nietzsche, Spengler, sim, Emerson, Herbert Spencer, Thoreau, Whitman e Elie
Faure. Você nunca insistirá demais no último. Para mim afigura-se cada vez mais como
um gigante.
90
Miller parece fazer uso, de modo bastante específico, dos recursos que aparecem na
introdução (escrita também em tom de manifesto) do primeiro volume de Histoire de l’Art, de
Elie Faure, publicado em 1919. Nele, o historiador da arte francês expõe suas concepções
acerca das funções da arte e do artista, entendido como um ser capaz de revelar os misteriosos
caminhos da vida a partir de seu ofício. O próprio Faure, em uma outra introdução feita em
1921, em função de uma republicação, denuncia o romantismo excessivo do texto que
introduz. De qualquer forma, os elementos presentes na edição de 1919 seriam fundamentais
para Henry Miller.
L’art, qui exprime la vie, est mystérieux comme elle. Il échappe, comme elle, à toute
formule. Mais le besoin de le définir nous poursuit, parce qu’il se le à toutes les heures
de notre existence habituelle pour en magnifier les aspects par ses formes les plus élevées
ou les déshonorer par ses formes les plus déchues. Quelle que soit notre répugnance à
faire l’effort d’écouter et de regarder, il nous est impossible de ne pas entendre et de ne pas
voir, il nous est impossible de renoncer tout à fait à nous faire une opinion quelconque sur
le monde des apparences dont l’art a précisément la mission de nous révéler le sens. Les
historiens, les moralistes, les biologistes, les taphysiciens, tous ceux qui demandent à
la vie le secret de ses origines et de ses fins sont conduits tôt ou tard à rechercher
pourquoi nous nous retrouvons dans les oeuvres qui la manifestent.
91
90
MILLER, Henry. Correspondência com Lawrence Durrel. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 273.
91
FAURE, Elie. Histoire de l’Art. L’esprit des formes. L’Art antique. Paris : Éditions Denoël. Collection
Folio/Essais, 1992.
71
A ideia de que a vida e a arte tem dimensões misteriosas que o espírito humano busca
desvendar é um traço da obra de Faure que Miller leva às últimas conseqncias. Em ambos,
o apelo da beleza, a dimensão estética da existência são as forças fundamentais que orientam,
ou deveriam orientar, o entendimento do humano.
Ce n’est qu’en écoutant son cœur qu’on peut parler de l’art sans l’amoindrir. Nous
portons tous en nous notre part de vérité, mais nous l’ignorerons nous-mêmes si nous
n’avons pas le désir passion de la rechercher et si nous n’éprouvons aucun
enthousiasme à la dire. Celui qui laisse chanter en lui les voix divines, celui-là seul sait
respecter le mystère de l’œuvre où il a puisé le besoin de faire partager aux autres
hommes son émoi.
92
Para Elie Faure, o artista é aquele que busca ouvir sua voz interior, resgatar sua
divindade e expressar para os outros homens. É o responsável por revelar a verdade que
teoricamente existe em todos. Uma verdade que não se localiza na razão, mas se coloca na
ordem do coração. Cabe destacar que, em 1941, Henry Miller publicaria uma coletânea de
ensaios intitulada justamente: The Wisdow of the Heart. Nesse livro, entre reflexões sobre a
obra de D.H. Lawrence e de Balzac, faz um tipo de elogio ao saber não domesticado, relativo
ao coração. Tal como afirma Faure:
Il y a de grands savants qui ne savent pas émouvoir, de grands hommes de bien qui ne
savent pas raisonner. Il n’y a pas un héros de l’art qui ne soit en même temps, par l’âpre
et longue conquête de son moyen d’expression, un héros de la connaissance, un héros
humain par le cœur.
93
A imagem do artista-herói une a capacidade de domínio da razão, relativa à dimensão
formal da arte, com uma grandeza espiritual determinada por essa sabedoria do coração.
Segundo Miller:
O escritor que quer comunicar-se com seu companheiro ser humano, e assim estabelecer
comunhão com ele, precisa apenas falar com sinceridade e objetividade. Não precisa
pensar em padrões literários ele os estabelecerá à medida que prossegue –, não precisa
pensar em tendências, vogas, mercados, idéias aceitáveis ou inaceitáveis: precisa apenas
entregar-se, nu e vulnerável. Tudo o que o constringe e restringe, para usar a linguagem
da negação, sente com igual desespero e perplexidade seu companheiro leitor, mesmo o
sendo um artista. O mundo pressiona a todos da mesma forma. Os homens o estão
sofrendo por falta de boa literatura, boa arte, bom teatro, boa música, mas pelo que
impossibilitou tudo isso de se manifestar. Em suma, estão sofrendo por causa da
92
FAURE, Elie. Histoire de l’Art. L’esprit des formes. L’Art antique. Paris: Éditions Denl. Collection
Folio/Essais, 1992, p. 3.
93
FAURE, Elie. op. cit., p. 5.
72
silenciosa e vergonhosa conspiração (mais vergonhosa ainda por deixar de ser percebida)
que juntou a todos como inimigos da arte e do artista. Estão sofrendo o fato de que a arte
não é a força básica que impulsiona suas vidas. E estão sofrendo com o ato, repetido
diariamente, de se manter o fingimento de que eles podem, sem a arte, seguir seu
caminho, levar suas vidas. Nunca sonham ou se comportam como se nunca
percebessem isso – que o motivo para se sentirem estéreis, frustrados e sem alegria é que
a arte (e com ela o artista) foi excluída de suas vidas. Para cada artista que assim foi
assassinado (sem consciência?), milhares de cidadãos comuns, que poderiam ter
conhecido uma vida normal e alegre, estão condenados a levar uma existência que é um
purgatório, como neuróticos, psicóticos e esquizofrênicos.
94
Assim, seus romances são escritos como se deles uma verdade misteriosa e definitiva
tivesse que ser extraída. São inúmeros os recursos de que o escritor lança mão no sentido de
fazer crer que aquele é um drama onde o próprio mistério da vida se revela. Miller pretende
que funcionem como um drama real, uma imagem objetiva de sua experiência pessoal que
deve guardar em si toda a força mística que supõe haver no espírito humano.
Diante de uma decadência supostamente evidente, Miller projeta sua obra como uma
espécie de caminho para a redeão. Vimos que nela estariam dadas as bases para uma
revolução estética e uma reformulação conceitual. O primeiro passo dado nesse sentido é a
desvinculação. É preciso construir a noção de que os livros que escreve não se vinculam com
essa suposta tradição literária de que padece. Nesse ponto, as cartas são colocadas na mesa
desde a primeira página de seu primeiro romance publicado. Em Tropic of Cancer afirma:
I have no money, no resources, no hopes. I am the happiest man alive. A year ago, six
months ago, I thought that I was an artist. I no longer think about it, I am. Everything that
was literature has fallen from me. There are no more books to be written, thank God.
This then? This is not a book. This is libel, slander, defamation of character. This is not a
book, in the ordinary sense of the word. No, this is a prolonged insult, a gob of spit in the
face of Art, a kick in the pants to God, Man, Destiny, Time, Love, Beautywhat you
will.
95
Vemos, nessa passagem, um romance que não quer se entender como tal. Um romance
em que a noção de literatura é desprezada. Um romance colocado como algo muito além de
um simples livro e que almeja, desde o início, ofender. Pretende-se como um manifesto contra
um estado de coisas e tenta reservar para si um lugar paralelo. A intenção de andar na
contramão ficaria estabelecida em Tropic of Cancer e marcaria inegavelmente a trajetória
da obra de Miller.
94
MILLER, Henry. Bis Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 73.
95
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 1.
73
A dramatizada revolta de Miller passa por um jogo onde as disputas podem se
traduzir, em um primeiro momento, como uma tentativa de regeneração. A dimensão heroica
de sua obra pressupõe a ideia de que deva haver artistas iluminados para salvar as artes no
Ocidente.
– A primeira tarefa – diz Rudhyar – é a regeneração da substância de todas as artes.
– A nova música soa ridícula e sem sentido em uma sala de concerto; uma nova
dramaturgia pede um novo teatro; a nova dança quer novos ambientes e uma relação livre
entre música e ação dramática. Além disso, as condições de performance, de um ponto de
vista social, financeiro, o tragicamente absurdas. O comercialismo completou a
destruição do espírito de devoção à arte, o espírito de real participação na performance. O
público vem em busca de sensação em vez de estar preparado para experimentar a vida
como arte, por meio da arte. A maior necessidade da Nova Arte talvez seja um novo
público; a maior necessidade dos artistas é uma nova consciência de seu verdadeiro
relacionamento com o público. O artista deixou de se considerar fornecedor de alimento
Espiritual, estimulador do Poder dinâmico; deixou de encarar sua posição como um
"ofício", ele próprio como um oficiante. Não pensa senão em se expressar, em liberar as
forças que não consegue controlar dentro de si mesmo. Para que essa liberação? Ele o
se dá ao trabalho de pensar nisso. Não enfrenta deliberadamente e com toda a vontade seu
dever espiritual com a espécie. Dessa forma, não tenta moldar a espécie, reunir em torno
de sua obra o público adequado ao seu trabalho. Ele vende seus bens. Não é mais um
Mensageiro da vida, que, pelo próprio exemplo de sua existência, atrai seres humanos
para a Mensagem da qual é portador.
96
O papel do verdadeiro artista, esquecido na cultura contemporânea, deve ser o de
moldar a espécie, ser um mensageiro da verdade que salva. Nesse sentido, talvez o traço mais
marcante desse artista definido por Miller seja o de modelo. É pelo exemplo de sua própria
vida que esse herói deve atrair seu público. Sua mensagem faz sentido porque se refere a
uma experiência sentida na carne. A dimensão técnica da arte é desprezada em detrimento
dessa mensagem. A literatura deve ser fruto da vida e não um corpo meramente estético.
Rimbaud insuflou a literatura de vida; eu venho me empenhando em dar vida à literatura.
Tanto nele como em mim a qualidade confessional é grande, a preocupação moral e
espiritual decisiva. O gosto pela linguagem, pela música em lugar da literatura, é outro
traço que temos em comum. Nele senti uma natureza primitiva fundamental, que se
manifesta da maneira mais estranha. Claudel considerou Rimbaud "um místico em estado
selvagem". Não existe melhor definição. Ele se sentia "desenraizado" – não se achava em
lugar nenhum. Sempre tive a mesma sensação.
97
Henry Miller se vale de diversos mecanismos para caracterizar os seus livros fora de
um determinado padrão literário. O que marca essa exterioridade é o fato de terem surgido nas
ruas, a partir de sua tortuosa caminhada.
96
MILLER, Henry. O pesadelo refrigerado. São Paulo: Ed. Francis, 2006, p. 288 - 290.
97
MILLER, Henry. A hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre. L&PM, 2004, p. 14.
74
But I was born in the street and raised in the street. 'The post-mechanical open street
where the most beautiful and hallucinating iron vegetation,' etc… Born under the sign of
Aries which gives a fiery, active, energetic and somewhat restless body. With Mars in the
ninth house!
To be born in the street means to wander all your life, to be free. It means accident and
incident, drama, movement. It means above all dream. A harmony of irrelevant facts
which gives to your wandering a metaphysical certitude. In the street you learn what
human beings really are; otherwise, or afterwards, you invent them. What is not in the
open street is false, derived, that is to say, literature. Nothing of what is called 'adventure'
ever approaches the flavour of the street. It doesn't matter whether you fly to the Pole,
whether you sit on the floor of the ocean with a pad in your hand, whether you pull up
nine cities one after the other, or whether, like Kurtz, you sail up the river and go mad.
No matter how exciting, how intolerable the situation, there are always exits, always
ameliorations, comforts, compensations, newspapers, religions. But once there was none
of this. Once you were free, wild, murderous.
98
Em carta endereçada a Lawrence Durrel, em 1938, citando Balzac, comenta:
Tudo o que dizes ou fazes, tem sentido. Sabe o que ele disse a essa cabra da George
Sand? Disse: «Literatura! Mas, minha querida senhora, a literatura não existe. O que é
a vida, de que a política e a arte participam. E eu sou um homem que vive, é tudo, um
homem que vive a sua vida, nada mais.
99
A citação de Balzac é bastante oportuna para Miller, uma vez que expressa um
determinado sentido que deseja imprimir à sua própria arte. Ao referir sua obra à sua vida nas
ruas, o escritor demarca a sua originalidade. Seus romances passam a trazer uma novidade, na
medida que sua vida também é única. A particularidade de sua experiência passa a ser
traduzida como originalidade estética. Se o que não se passa em plena rua é falso, toda
literatura que não se pretende filha das ruas também é falsa. Os romances autobiográficos de
Miller aparecem nesse quadro como o caminho a ser seguido pela produção literária.
2.2 As possibilidades de Paris
A dissidência literária é um dos temas fundamentais de sua literatura. Essa proposta de
dissidência articulada com uma tentativa de renovação estética tem como palco a cidade de
Paris. É na capital francesa que Henry Miller definitivamente daria início à sua carreira
literária.
98
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books. 1974, p. 9.
99
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p.161.
75
Henry Miller deixa bem claro que morar em Paris sempre fora um sonho. O escritor
parecia ter a certeza de que somente estando naquela cidade poderia ter uma chance de
prosperar artisticamente. Muda-se para Paris estrategicamente para se tornar um escritor
publicado.
Poucas cidades exerceram uma influência tão profunda sobre as artes por tanto tempo.
Uma importante razão disso, rapidamente descoberta por quase todos os escritores
estrangeiros que fixaram residência na capital francesa, foi que se sentiam emancipados e
respeitados como artistas. Em certo sentido, Paris proporcionou aos escritores norte-
americanos ali residentes um verdadeiro lar artístico. Ou nas palavras de Gertrude Stein:
Afinal, todo mundo, ou seja, todo mundo que escreve está vivendo dentro de si para
contar o que existe dentro de si. E por isso que os escritores tem duas pátrias, aquela à
qual pertencem e aquela onde vivem realmente. A segunda é romântica, e distinta deles
próprios, não é real mas está realmente ali.
Em suma, Paris dava poderes, dava permissão para ser artista de uma forma que os
Estados Unidos jamais deram. Nos relatos de quase todos os escritores tratados nesse
livro, Paris equiparava-se à liberdade artística, a possibilidade de experimentar, de ter
sucesso, até de fracassar sem se sentir um desviado social.
100
A primeira viagem que Miller fez a Paris, em 1927, foi como turista. Em 4 de março
de 1930, chega à cidade para uma temporada bem mais longa. Esse período seria crucial para
a definição de sua carreira literária. Miller encontra então um cenário bem mais propício do
que nos Estados Unidos. As possibilidades oferecidas pela capital francesa o deixariam ainda
mais convicto de sua decisão.
Segundo os relatos do próprio Miller, a produção artística e intelectual na França do
início do século XX era muito mais rica do que em Nova York. Haveria um mercado já
estabelecido, ainda que em parâmetros mais modestos, para a publicão de romances,
ensaios e poemas na língua inglesa. A possibilidade de publicão de artigos em pequenas
revistas literárias era vital para os escritores iniciantes, sobretudo estrangeiros. Com os
pagamentos obtidos por essa via, era possível sobreviver. Viver de sua própria produção
literária era algo bem mais viável em Paris do que em muitas outras cidades do mundo.
Ainda que fosse viver algum tempo em condições um tanto precárias, Henry Miller
parece ter entendido, desde o momento de sua chegada à cidade, que ali seria o lugar certo
para que sua carreira literária pudesse, enfim, começar. Parecia haver a possibilidade real de
reverberação de suas ideias. O cenário cultural estabelecido era um pressuposto básico para
100
SAWYER-LAUÇANNO, Cristopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996,
p. 328.
76
que o escritor americano pudesse efetivamente articular as disputas que viriam a configurar
seu projeto literário.
uma série de escritores americanos que se estabeleceram em Paris no início do
culo XX. A chamada geração perdida” (que inclui nomes como Scott Fitzgerald e Ernest
Hemingway) teria sido a primeira. escritores como James Baldwin, Chester Himes, John
Ashbery, Allen Ginsberg e William Borroughs seriam membros de uma dita segunda geração.
Um episódio supostamente ocorrido com Chester Himes ilustra um pouco a busca dos
escritores americanos em Paris.
Himes o levou muito tempo na revisão do texto. Como lembrou Duhamel, "cerca de
uma semana após o encontro anterior, ele retornou com o romance concldo, além de
duas ou três opções de finais diferentes, todos igualmente surpreendentes e verossímeis".
Himes apanhou o restante do adiantamento de mil dólares naquele dia e foi direto a uma
loja de vestuário masculino. Sempre trajado com apuro, gostava de investir na aparência,
que sentia ter sido seriamente prejudicada pela falta de dinheiro para roupas. Para Himes,
o bem vestir equivalia até certo grau ao bem-estar. Nesse caso, teve um significado ainda
mais simlico. ‘Saí da loja’, lembrou, ‘caminhando firme e sentindo-me orgulhoso;
agora eu era um escritor francês e os Estados Unidos poderiam lamber meu saco’.
101
Publicar em Paris era não teoricamente mais fácil como conferia status. Para um
escritor americano que não conseguia obter sucesso em seu país, ir para a capital francesa
poderia significar a possibilidade da redenção. A existência de um cenário cultural mais ativo
e rico em possibilidades fazia da cidade um lugar onde “ser artista” era mais fácil. O
dinamismo desse cenário parecia oferecer um campo mais amplo de possibilidades.
James Baldwin, que chegou em 1948, percebeu que "o escritor norte-americano na
Europa está livre, em primeiro lugar, da necessidade de ficar se desculpando… Não lhe é
necessário, ali, fingir ser algo que não é, pois o artista não encontra na Europa a mesma
desconfiança que encontra por aqui". Essa era uma razão não apenas para Baldwin, mas
também para muitos outros. Explicou James Jones:
O artista desfruta de certa dignidade aqui. Predomina um sentimento em Paris que
divulga a arte em qualquer de suas formas... Em Nova York, mesmo um escritor de
sucesso, se escreve a sério, sempre tem o sentimento de estar um pouquinho na periferia
de tudo.
102
As possibilidades abertas na capital francesa permitiram que Henry Miller pudesse
definitivamente se ver como um escritor. A chance efetiva de visualizar uma trajetória
101
SAWYER-LAUÇANNO, Cristopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996,
p. 235.
102
SAWYER-LAUÇANNO, Cristopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996,
p.12
77
profissional seria determinante. Mesmo que tenha passado um longo período rodando a esmo
pela cidade, as portas foram se abrindo. Miller estabeleceu relações importantes que lhe
permitiram sobreviver com os ganhos obtidos com a venda de seus textos para pequenas
revistas literárias.
O aspecto talvez mais importante dessa relação com essas revistas era o fato de que, a
partir delas, o nome Henry Miller começaria a circular nos meios letrados franceses. Um
exemplo disto foi o artigo que publicou na New Review, de propriedade de Samuel Putnam,
em que faz uma defesa de L`Age d`Or, a segunda colaboração cinematográfica de Luis
Buñuel e Salvador Dalí, diante das acusações que o filme recebera dos mais conservadores.
No texto, Miller comenta:
Eles acusam Buel de tudo, traidor, anarquista, pervertido, difamador, iconoclasta. Mas
não o chamam de lunático. É verdade que é a loucura que ele retrata, mas não é a sua
loucura. Este caos nojento que por cerca de uma hora se amalgama sob sua direção, essa é
a loucura da civilização, o registro da realização do homem após dez mil anos de
aperfeiçoamento.
103
Ainda que a circulação dessas revistas fosse um tanto limitada, fato é que com elas,
Henry Miller começava a ser lido e conhecido. Nesses artigos, algumas das ideias centrais que
marcariam sua obra aparecem. O estilo contundente e combativo se deixa ver. Seu nome
passava a ser lido inclusive nos Estados Unidos por força do trabalho voluntário de amigos
que levavam esses textos para a publicação entre uma viagem e outra. Seus inúmeros contatos
pessoais lhe renderam inclusive a publicação de artigos no Chicago Tribune.
Durante os anos 1930 várias editoras de língua inglesa atuaram em Paris. O grande
número de escritores e também de leitores que procuravam a cidade, justificam essa presença.
A grande maioria delas seria obrigada a fechar suas portas com a guerra. O mesmo
aconteceria com as revistas literárias. Publicações como Transition, The Little Review, This
Quartier e New Review também encerrariam suas atividades.
A proximidade estilística entre seu texto ensaístico e sua obra ficcional seria um dado
relevante. O público que o escritor alcançava com os artigos seria posteriormente o mesmo
que leria seus romances. O Henry Miller polemista e agressivo que se punha ao lado de
Buñuel seria o mesmo que assinaria Tropic of Cancer. Segundo Brassaï:
In an essay on Miller entitled “Unto Us An American Writer Is Born,” published in the
magazine Orbe, Cendrars wrote: “Discovering Paris, breathing Paris, devouring Paris, he
103
FERGUSON. Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p.198
78
swallowed furiously, and ate it, then he wanted to vomit in it and piss against it, adore it
and curse it until he felt that he was part of the extraordinary people in the streets of this
great city, until Paris had gotten under his skin and he knew that from that day forward he
could never live anywhere else.” As Miller himself recalled in an interview with Georges
Belmont in 1970 about the second trip to Paris: There had to be a second time, a time
when I was totally broke, desperate, and living like a vagrant in the streets to start to see
and to live the real Paris. I was discovering it at the same time that I was discovering
myself.
104
Foi falando de Paris, de seus personagens e temas, que Miller começou a ter os seus
primeiros textos publicados. O personagem estrangeiro e amante da cidade ganha força e abre
caminho para o desenvolvimento do projeto literário de Henry Miller. A cidade aparece como
um elemto importante: dramatizando-a, o drama de Miller se constrói.
Escrevendo para um público em grande medida composto de estrangeiros, muitos
deles americanos, Henry Miller obtém relativo sucesso ao narrar as aventuras de um estranho
nessa cidade bela e enigmática. Muitos de seus artigos publicados nos Estados Unidos, como
na revista U.S.A., por exemplo, tratam dessa vida parisiense. Ter a cidade como tema nesses
artigos foi um artifício que teve consequências também na estrutura dos romances e dos
contos que viria a escrever, como o faz em Tropic of Cancer:
It is not accident that propels people like us to Paris. Paris is simply an artificial stage, a
revolving stage that permits the spectator to glimpse all phases of the conflict. Of itself
Paris initiates no dramas. They are begun elsewhere. Paris is simply an obstetrical
instrument that tears the living embryo from the womb and puts it in the incubator. Paris
is the cradle of artificial births. Rocking here in the cradle each one slips back into his
soil: one dreams back to Berlin, New York, Chicago, Vienna, Minsk. Vienna is never
more Vienna than in Paris. Everything is raised to apotheosis. The cradle gives up its
babes and new ones take their places. You can read here on the walls where Zola lived
and Balzac and Dante and Strindberg and everbody who ever was anything. Everyone has
lived here some time or other. Nobody dies here
105
Nessa passagem a cidade é representada como um lugar onde “pessoas como Miller”
migram em busca de algum tipo de esclarecimento ou revelação. Ela é o lugar onde os dramas
o trazidos à tona e experimentam uma espécie de apoteose. Estrangeiros do mundo todo se
encontram e têm a oportunidade de expurgarem seus demônios. Uma vez em contato com a
atmosfera reveladora de Paris, a volta para casa se torna possível. Na cidade por onde
passaram Dante, Zola, Balzac e Strindberg, os outsiders, sonhadores, sofredores e criadores
encontram lugar.
104
BRASSAÏ, Gilbert. Henry Miller: The Paris Years. New York: Arcade Publishing, 2002, p. 19.
105
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 26.
79
Representações românticas à parte, não se pode incorrer no equívoco de fazer da
capital francesa “o centro das liberdades” naquele momento. O próprio Miller conheceria a
censura de seus escritos em Paris. Em 1945 houve uma tentativa de proibição da primeira
edição em francês de Tropic of Cancer, que não veio a ocorrer devido à ajuda de vários
escritores, muitos deles amigos de Miller, que se mobilizaram em nome da liberação. Porém,
alguns anos mais tarde, Sexus, primeiro volume da trilogia The Rosy Crucifixion, seria
proibido.
Em todo caso, o nome Henry Miller nasce atrelado à cidade de Paris. Nos circuitos
ditos marginais dos meios literários, seu nome ganharia notoriedade mais rapidamente. O
público consumidor de pequenos jornais e revistas literárias seria de fundamental importância
para a trajetória de Miller. É o primeiro foco de repercussão de seu trabalho e uma espécie de
público alvo que estaria constantemente no horizonte de Miller, mesmo quando gozava de
fama internacional.
2.3 A opção pelo obsceno
Dentre as possibilidades que Paris oferecia a Henry Miller uma se destacava. O
mercado que o escritor encontraria na capital francesa lhe abriu a possibilidade de lançar mão
de um recurso que seria parte fundamental de sua identidade e de seu estilo literário. Em
Paris, Miller poderia ser obsceno. Isso muito em função da existência de um mercado
propício. A questão aqui não é definir se o escritor poderia usar recursos estéticos ligados
ao gênero pornográfico estando naquela cidade, pois não se pode excluir a possibilidade de se
escreverem livros obscenos em outros lugares do mundo. O que cabe destacar é o fato de que
o escritor encontrou em Paris um ambiente favorável para produzir romances que se
aproximam (e em grande medida também se afastam) das características que definem uma
arte pornográfica. Como afirma o crítico Sawyer-Lauçanno:
A licença sexual também era a especialidade (e espinha dorsal) da Olympia Press, de
Maurice Girodias, que editava livros em inglês. Porém, além da literatura erótica, suprida
primariamente por norte-americanos que viviam em Paris, a editora publicou obras
literárias tão notáveis como Lolita, Watt, Naked Lunch, The Ginger Man. Nem a
Transition nem a The Trasatlantic Review existiam ainda, mas outras pequenas revistas
floresciam, respondendo ao influxo de jovens escritores angfonos. Entre elas, Points,
Zero, Merlin e New-Story. Mas o empreendimento editorial mais duradouro da época foi
80
The Paris Review. Fundada em 1953 por George
Plimpton, Peter
Matthiessen, William
Bene
du
Bois, John
Train,
Thomas Guinzburg, Harold Humes e William Styron, foi uma
sucessora digna das grandes revistas literárias dos anos 20 e 30. Muitos de seus primeiros
textos e ilustrações vieram de norte-americanos residindo na França, inclusive seus
fundadores, além de Evan Connell, Jr., Alfred Chester, James Lord e Eugene Walter.
Com revistas publicando obras novas e importantes, com leituras nas livrarias de língua
inglesa Librairie Mistral e The English Bookshop, com acomodações e comida baratas,
Paris rapidamente reconquistou a posição de centro da atividade literária e artística dos
expatriados norte-americanos. "Ser jovem e estar em Paris", observou Styron, "costuma
ser uma experiência inebriante… Sentimo-nos peculiarmente à vontade para variar,
sabemos onde estamos e queremos ficar por aqui".
106
Foi Jack Kahane, pai de Maurice Girodias e dono da famosa editora Obelisk Press, que
aceitou publicar o primeiro romance de Miller. A editora ficaria famosa por publicar livros
polêmicos, em geral considerados obscenos. Dentre os autores que foram publicados estão
Ans Nin, Lawrence Durrel, Radclyffe Hall, Frank Harris e D.H. Lawrence. A Obelisk Press
teria uma função estratégica na difusão dos textos de um grupo de escritores novos que
criaram para si a missão de renovar a literatura no Ocidente. Nesse jogo, que envolvia uma
rie de disputas em torno dos sentidos da produção literária, um dos artifícios mais utilizados
por esse grupo de escritores era a opção pelo obsceno.
Romances como os de Anaïs Nin, de D.H. Lawrence e do próprio Henry Miller
ficariam marcados por muito tempo como livros sujos. Passariam por longos processos
judiciais até que fossem definitivamente liberados para a publicação.
Em 1945 Maurice Girodias ressuscitaria a Obelisk Press, que havia fechado as portas
em função da guerra, e reeditaria Tropic of Cancer, entre outros títulos. Com isso enfrentaria
vários processos legais.
Primeiro, foi processado por difamação por Felix Gouin, líder do Partido Socialista
Francês, por publicar um panfleto doder da Resistência Yves Farge criticando o conluio
entre o governo e o grande capital. Tão logo Girodias ganhou o processo junto com duas
outras editoras francesas, foi processado pelo governo por publicar livros obscenos:
Trópico de ncer, Trópico de Capricórnio e Black Spring de Miller. Foi o primeiro
julgamento por obscenidade na França desde os lebres casos envolvendo Madame
Bovary, de Flaubert, e As flores do mal, de Baudelaire. O establishment intelectual
francês acorreu em sua defesa, mas l'affaire Miller prosseguiu por dois anos. No final, o
governo abandonou o caso. A essa altura, Girodias estava quase falido. Pouco tempo
depois, através de um mau negócio com um credor, perdeu todas as suas editoras.
Por quase três anos, Girodias viveu no que descreveu como "vagabundagem quase
completa". Devastado pela perda das editoras, amargurado com o que interpretou como
sanção da moralidade burguesa pelo governo, sentiu-se desolado, incapaz até de dar a
volta por cima. Então, na primavera de 1953, fundou a Olympia Press a fim de "escapar à
106
SAWYER-LAUÇANNO, Cristopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996,
p. 13.
81
completa aniquilação social e econômica". Raciocinou que "publicar livros em inglês em
Paris, livros que venderiam facilmente por pertencerem à categoria de não vendável nos
EUA e no Reino Unido”, parecia (...) a única forma possível para mim de ganhar dinheiro
e construir um novo negócio editorial apesar de minha falta de capital". Foi a essa altura
que soube pelo editor da Merlin Austryn Wain-house que a Collection Merlin, como se
chamou o empreendimento editorial da revista, necessitava de um sócio francês. Dai sua
aparição no início da primavera de 1953 na residência de Seaver e o nascimento da
Collection Merlin-Olympia Press.
107
A ideia de que os processos legais sofridos por Henry Miller tenham atrapalhado o
desenvolvimento de seu projeto literário e dificultado a difusão de seu nome, não parece
totalmente correta. Ao enfrentar esses processos, os romances de Miller ganham mais
notoriedade. Seu nome fica mais em evidência, torna-se assunto constante nos círculos
letrados de Paris.
Ao fundar a Olympia Press Girodias tem clareza de que uma forma de ganhar dinheiro
rápido é vender livros classificados como “não vendáveis nos EUA e no Reino Unido”. Fica
claro que os rótulos pejorativos de livro sujo”, proibido, censurado ou invendável servem
também, quando resignificados, de atrativos para as vendas, resultando por fim numa
determinada inserção dos autores no cerio cultural. Henry Miller é um escritor que
claramente joga com esses rótulos e se beneficia deles. É óbvio que não se pode descartar o
fato de que esses mesmos rótulos geram sérias complicações para autores e editores, mas
indubitavelmente podem ser manipulados por eles.
Nesse sentido, ser um autor maldito não é só uma estratégia para Miller, mas é
também um dos temas mais recorrentes em seus romances. Seus textos falam justamente do
escritor marginal e herói que produz uma literatura também marginal e heroica. Estar no
submundo, como um outsider, é ocupar um lugar específico e sofrer dores e alegrias. Miller
faz questão de ocupar esse lugar que aponta para baixo, mas que aspira a uma pureza de
alturas quase inalcançáveis.
A man who belongs to this race must stand up on the high place with gibberish in his
mouth and rip out his entrails. It is right and just, because he must! And anything that
falls short of this frightening spectacle, anything less shuddering, less terrifying, less mad,
less intoxicated, less contaminating, is not art. The rest is counterfeit. The rest is human.
The rest belongs to life and lifelessness.
When I think of Stavrogin for example, I think of some divine monster standing on a high
place and flinging to us his torn bowels.
108
107
SAWYER-LAUÇANNO, Cristopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996,
p. 154-155.
108
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 230.
82
Estar no subterrâneo é um tema literário para Miller e uma postura estratégica no
tocante à definição de seu projeto literário. Miller quer estar à margem. Talvez daí se extraia
alguma coerência com os romances que escreve, na medida em que esses se estruturam como
um processo de crucificação, de dor e de sofrimento que geram a felicidade plena e a
redenção.
Talvez seja possível afirmar que os romances de Henry Miller foram escritos dentro
de uma lógica de demarcação do lugar que devem ocupar. São manifestadamente construídos
para serem marginais e a aproximação com o gênero pornográfico aparece como um recurso
eficaz nesse sentido.
Ao optar por fazer da pornografia uma marca de sua identidade literária, o escritor se
viu na obrigação de se defender de algumas acusações. Se, por um lado, causar polêmica a
partir da dimensão pornográfica de seus textos lhe interessava, por outro, a redução de sua
obra ao status de mera pornografia seria um entrave no desenvolvimento de seu projeto
literário, tal como afirma no ensaio Obscenidade e reflexão:
Quando a obscenidade se revela na arte, e mais particularmente na literatura, manifesta-
se,
sempre ou quase, como um dispositivo técnico. Isto é: o elemento que
deliberadamente ali figura nada tem a ver com a excitação sexual (o que acontece, no
entanto, e considerando o mesmo elemento, no campo da pornografia). Um elemento
desse gênero, no espaço da literatura, ultrapassa em muito a sexualidade. O seu intento é
de estimular, ou melhor, o de apresentar um determinado sentido da realidade. Em certa
medida, a sua utilização pelo escritor (artista na verdadeira acepção do termo) equipara-se
ao milagre operado pelos Mestres dessa ou daquela religião.
109
Nesse trecho fica clara a intenção de Miller de desvincular arte e pornografia. Na sua
literatura, o pornográfico deve aparecer como um recurso técnico que ambiciona estimular e
acordar o leitor. Sua pornografia não se relacionaria com a excitação sexual propriamente
dita. O pornográfico traduzido em tons artísticos funcionaria como um elemento explosivo
que, nas mãos do verdadeiro artista, operaria a salvação dos leitores. Como um mestre
religioso, o escritor buscaria redimir seu público na medida em que o tiraria de seu sono
espiritual.
O pequeno ensaio intitulado foi publicado em 1945 em Nova York e é uma das
diversas estratégias de que o escritor lança mão no sentido de tornar a publicação de seus
livros nos Estados Unidos possível. Nele, o escritor discute a relação entre Deus e
obscenidade; transcendência e imanência; liberdade e repressão. Mais importante do que as
distinções tricas realizadas por Miller, interessa o fato de que esses textos surgem em
109
MILLER, Henry. Obscenidade e reflexão. Lisboa:. Ed Vega, 1991, p. 49.
83
momentos decisivos. São ensaios em que o autor se defende das acusações de pornógrafo e
tenta dar um outro sentido para seus romances. Com eles Miller tenta passar a ideia de que a
sua pornografia tem fins nobres e deve ser pensada com seriedade. A obscenidade é associada
a temas como Deus e liberdade para que a vulgaridade dos livros sujos não se confunda com a
sua obra literária.
Se há qualquer coisa que merece o nome de «obsceno» é precisamente essa confrontação
oblíqua de voyeur com os mistérios, essa marcha pelas bordas do abismo, com todos os
êxtases da vertigem, ao mesmo tempo que nos recusamos a abandonar a atração-encanto
do desconhecido. O obsceno tem todas os requisitos da pausa que nos é subtraída. É tão
vasto como o inconsciente e tão amorfo e fluido quanto a própria matéria desse mesmo
inconsciente. É o que vem à superfície de estranho, de excitante e de proibido e que a
um tempo se detém e paralisa quando, sob as aparências de Narciso, fazemos pender a
nossa imagem sobre o espelho da nossa iniqüidade. Reconhecido por todos, ei-lo, no
entanto, desprezado e rejeitado e, daí, o ele sempre emergir constantemente de sob os
seus desaires proteicos nos momentos mais inesperados. Quando reconhecido e aceite,
como ficção da imaginação ou parte integrante da realidade humana, ele não inspira mais
temor ou repulsa do que o lótus em flor que mergulha as raízes na lama do rio que o
sustenta.
110
O obsceno ganha contornos de mistério a ser enfrentado, decifrado e naturalizado.
Henry Miller aparece como uma espécie de autoridade no assunto, um mestre que deve
revelar verdades escondidas e desmistificar aquilo que é supostamente parte da natureza
humana.
Nesses textos se pode perceber uma série de tensões que envolvem a produção literária
de Miller. É possível detectar de que formas o escritor tenta tornar sua literatura mais aceita,
como tenta construir um espaço de inserção. Ao jogar a pornografia para o donio do
sagrado, o escritor assume o papel de definidor do lugar de seus romances e, no limite,
viabilizador de sua publicação.
Talvez um dos textos mais importantes nesse sentido seja O mundo do sexo. Publicado
em Nova York em 1940, esse pequeno livro apresenta Henry Miller como um libertário que
aparece para redescobrir o sexo no Ocidente. o é à toa que tanto Obscenidade e reflexão
quanto O mundo do sexo são publicados primeiro nos EUA, algo absolutamente incomum em
se tratando de Henry Miller, uma vez que seria naquele país que o escritor enfrentaria as
maiores dificuldades em termos de censura. Importante destacar ainda que na edição brasileira
do livro, que data de 1975, um prefácio de Otto Maria Carpeaux que definiria Miller como
um “apóstolo da liberdade”. Segundo Miller;
110
MILLER, Henry, op. cit.; p. 56 – 57.
84
Quando nossos desejos o refreados ou reprimidos, a vida torna-se má, feia, perversa e
parece-se com a morte. Em resumo, torna-se o que, em geral, ela é. Afinal de contas, o
mundo em que vivemos é o reflexo da imagem do nosso caos interior. Nossos médicos,
nossos juristas fanáticos, todos os pedagogos e mistificadores que dominam o mundo
querem nos fazer acreditar que para participar de uma vida em sociedade, o selvagem ou
ser primitivoque é o nome que eles dão ao homem que age com naturalidade – deve ser
algemado e torturado. Todo indivíduo criador sabe que isso é falso. Nunca se conseguiu
nada do homem torturado, preso, imobilizado. Nada se consegue ainda. Nem crimes ou
guerras, nem luxúria ou gula, nem malícia ou inveja podem ser eliminados dessa forma.
Tudo o que se consegue alcançar, em nome da sociedade, é perpetuar a grande mentira.
111
Henry Miller de fato se coloca como um apóstolo da liberdade. Fala como aquele que
vem para libertar desejos e livrar a vida de sua perversidade e feiura. Age supostamente em
defesa do homem selvagem e primitivo. Ataca o que define como grande mentira que se
poderia traduzir como civilização. As falas que aparecem nesse ensaio poderiam fazer parte
de qualquer um de seus romances: é por essa via que Miller tenta abrir espaço para o seu
trabalho.
O mundo do sexo foi escrito em Nova York por solicitação de Huntington Cairs e teve
uma tiragem limitada, algo em torno de 250 cópias. A ideia era que Miller falasse abertamente
sobre sexualidade e tentasse desfazer alguns “equívocos” em relação ao seu próprio trabalho.
Era uma oportunidade para tentar fazer virar o jogo a seu favor. Miller defenderia o caráter
libertador e sagrado de sua proposta literária e ainda conseguiria alguns trocados. Na época de
sua publicão a repercussão o foi das maiores; o livro teve uma tiragem pequena e caiu
basicamente nas mãos do público americano que admirava o trabalho de Miller (a partir de
importações clandestinas e tiragens proibidas). O mundo do sexo teve uma acolhida bem mais
calorosa depois que Miller se tornou um autor famoso. As questões relativas ao sexo e à
sexualidade entrariam em pauta na América nos anos 1970 e Miller se tornaria uma espécie de
guru. De fato, o livro seria um argumento importante no processo de liberação de sua obra no
seu país. Em O mundo do sexo, afirma:
[...] descobri que mesmo que a reação de um leitor contra o meu trabalho de escritor seja
violentamente negativa, quando nos encontramos frente a frente, ele geralmente acaba por
me aceitar de boa vontade e até mesmo com entusiasmo. Dos inúmeros encontros que tive
com meus leitores, pareceu-me sempre que toda espécie de antipatia desaparece diante da
presença viva do autor. As diversas experiências que mantive nesse campo levaram-me,
finalmente, a acreditar que todas as vezes que sou capaz de fazer com que a palavra
escrita transmita o sentido exato da essência da verdade e da sinceridade, desaparece logo
o contraste violento entre o homem e o escritor, entre o que sou e o que digo ou falo. Essa
é, na minha modesta opinião, a finalidade máxima que um autor pode esperar alcançar. A
111
MILLER, Henry. O mundo do sexo. Rio de Janeiro: Ed. Americana, 1975, p. 103-104.
85
mesma meta a unificação está implícita em todas as buscas de aspecto religioso.
Talvez, sem mesmo saber, eu sempre tenha sido um religioso.
112
O esforço de Miller para atribuir um sentido místico para a dimensão pornográfica de
sua obra corresponde também à tentativa de fugir da imagem simples de autor sujo, barato e
menor. O sentido do sexo que aparece em seus textos deve ser expresso em tons misteriosos,
deve ser um manifesto pela liberdade e o simplesmente um relato erótico qualquer.
Um episódio bastante interessante no que se refere a essa questão é a coletânea Opus
Pistorum. Trata-se de uma coletânea de textos pornográficos que teoricamente Miller e um
grupo de amigos entre eles Anaïs Nin teriam escrito para colecionadores particulares de
obras eróticas.
Devido à notoriedade de Henry, o material supostamente escrito por ele começou a
circular em forma datilografada e logo adquiriu uma reputação underground. Seis cópias
de histórias não-assinadas, supostamente de autoria de Miller, foram anonimamente
doadas ao Instituto Kinsey de Pesquisa Sexual em Indiana em 1946, e cópias-carbono dos
textos circularam entre colecionadores de obras eróticas durante os quarenta anos
seguintes. Finalmente, em 1983, três anos após a morte de Miller, os textos foram
reunidos e publicados sob o título de Opus Pistorum, latim macarrônico para "a obra de
um moleiro*". Os seis textos comem uma série de fantasias pornográficas que incluem
sexo com uma criança corrompida, com um anão, incesto, orgias em ampla escala,
bestialidade e rituais de humilhação envolvendo urina e garrafas. Para os colecionadores e
biógrafos que entraram em contato com as cópias de essas histórias no decorrer de suas
pesquisas, Miller sempre negou ter escrito e, provavelmente devido à vulgaridade das
fantasias, havia persistentes rumores de que os textos fossem de fato falsificões. Quem
mais se preocupou com sua autenticidade foi o escritor e folclorista Gerson Legman, um
homem com um conhecimento enciclopédico da história dos escritos sexuais. Em 1945,
um colecionador quis vender-lhe as histórias, mas ele se negou a aceitá-las como
genuínas, raciocinando que Miller não as teria escrito, pois isso "representaria denegrir e
travestir a sinceridade de sua própria obra". Permaneceu o convencido da teoria da
falsificação que, em uma introdução não publicada que escreveu para a edição de 1983 da
Grove Press de Opus Pistorum, fez o que equivalia a uma confissão de ter escrito ele
mesmo o material, com a ajuda de outro escritor profissional de pornografia chamado
Robert Sewall. Mas não foi o único a reivindicar sua autoria. Outro foi o falecido Bernie
Volfe, jornalista, roteirista de cinema e autor de Memoirs of a not altogether shy
pornographer, embora mais conhecido por sua colaboração em Really the Blues com o
sico de jazz Mezz Mezzrow. Lupton Wilkinson também foi mencionado como um
possível autor.
113
É difícil definir objetivamente a autoria desses textos. Mesmo que se possa
reconhecer o estilo de Miller, tarta-se, no caso, de um projeto específico que pouco tinha a ver
com seus romances. Em todo caso, há em algumas passagens, referências que remetem a
Miller, comoa de Dostoiévski. Alguns trechos também lembram os primeiros e mais
112
MILLER, Henry. O mundo do sexo. Rio de Janeiro: Ed. Americana, 1975, p. 16.
113
FERGUSON. Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 301.
86
agressivos escritos de Miller, mas a identificação da autoria não é o mais importante nesse
caso, e sim o fato de Miller não a reconhecer.
Em 1950, respondendo a um colecionador que recebera uma oferta por esses textos,
Miller comenta:
Os títulos dos três que você mencionou eu nunca poderia ter inventado, estão
completamente fora da minha linha! Detesto textos eróticos deste tipo puramente
obscenos como suponho que esses sejam. Agora é possível que eles tenham inventado
esses títulos – talvez para textos que eu tenha escrito – mas duvido muito disso.
114
Não é à toa que Opus Pistorum seria realmente publicado após a morte de Henry
Miller. Enquanto estava vivo o escritor negou sempre a autoria dos textos. Sua reação sempre
contundente sugere como o incomodava a ideia de ver sua literatura associada à pornografia
convencional. Miller sabia que estava situado em uma fronteira nada segura. Ao fazer uso de
recursos do gênero pornográfico havia sempre o risco de ser tachado como um pornógrafo;
fugir desse estigma seria uma tarefa árdua que envolveria seu nome em uma série de disputas.
A própria crítica literária se dividiu. Aqueles que viam algum valor literário em Miller faziam
coro à teoria da falsificação; por outro lado, os críticos que o viam como mais um mero
boêmio se divertindo em Paris, entendiam que naqueles textos a vulgaridade e a
superficialidade da obra de Miller se revelavam em essência.
2.4 Modelos em disputa
O projeto literário de Henry Miller se articula de um lugar estratégico. Miller constrói
uma literatura que quer ocupar um lugar marginal. Inventa uma tradição literária, aponta para
a sua falência e se coloca como uma espécie de resposta salvadora. A dimensão heroica da
tarefa que se impôs aplica-se à construção de romances marcados pela intenção de gerar
polêmica. Nesse sentido, as primeiras reações aos seus textos são as mais diversas. Não se
pode deixar de considerar o fato de que, ao serem publicados, os primeiros romances de
Miller têm um público alvo que, de certa forma, está familiarizado com a estética dos
chamados livros sujos que circulavam por Paris. Cabe destacar ainda que a própria expressão
114
FERGUSON. Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 302.
87
“livros sujos” teria sido criada pelo editor da Obelisk Press, que publicou Tropic of Cancer
pela primeira vez. Segundo Robert Ferguson:
Foram expedidas pias de
Trópico de Câncer
para todos os escritores e críticos
influentes
em que ele conseguiu pensar, incluindo T.S. Eliot, Ezra Pound, Aldous
Huxley, Sherwood Anderson, Theodore Dreise, H.L. Mencken, Emma Goldman,
Havelock Ellis e Gertrude Stein, assim como para escritores franceses que ele admirava,
como Céline e Blaise Cendrars e críticos que achava poderem ser úteis. Alem de escrever
literalmente centenas de cartas e distribuir dúzias de cópias gratuitas, visitou
pessoalmente grandes e pequenas livrarias parisienses, conversando com o gerente ou
com o proprietário e deixando com eles uma circular impressa contendo observações
complementares sobre o livro de qualquer nome famoso que tivesse tido a cortesia de
responder a seu pedido para comentar. A tônica geral das citações era de entusiasmo, um
exemplo típico sendo a referência de Eliot ao livro como "um exemplar magnífico".
Alguns, como Aldous Huxley, foram mais circunspectos. Ele o considerou "um pouco
aterrorizante, mas bem feito", e o comparou a "alguns tipos de música folclórica a
sérvia, por exemplo que são pura paixão sem adulteração e nos engolfam
completamente de tal maneira que não as podemos escutar durante muito tempo". Dos
Passos apenas diria que o livro era "certamente interessante", mas Pound o aclamou como
"um livro sujo digno de ser lido" e "uma obscenidade que será muito útil para por
Wyndham e J.J. em seus devidos lugares; porque Miller é normal e sem manias". A
campanha foi um sucesso estrondoso, e depois de um ano de sua publicação, o livro havia
adquirido uma reputação sólida como um clássico do "underground".
115
As estratégias ultilizada por Henry Miller dão resultado na medida em que consegue
relativo sucesso entre seus pares e, dessa forma, começa a ter seu nome comentado nos
círculos intelectuais de Paris. A imagem de um escritor absolutamente anárquico que deseja
ver ruir as estruturas da cultura ocidental não combina exatamente com a imagem de um autor
que busca, antes de tudo, o reconhecimento de seus pares. Nesse sentido, talvez seja possível
afirmar que a recepção a seus primeiros livros é bastante favorável, como se pode ler na carta
de Lawrence Durrel:
Acabo de reler o Tropic of Cancer e sinto que gostaria de escrever-lhe umas linhas a esse
respeito. O livro impressionou-me como o único trabalho de dimenes realmente adultas
de que o nosso culo se pode jactar. É um atordoador triunfo da força da palavra; e o
se limita a dar, literária e artisticamente, um murro no estômago do leitor, porque até
consegue pôr ali no papel, realmente, o sangue e as entranhas do nosso tempo. Nunca li
nada que se compare. Não imaginava que fosse possível escrever uma coisa assim; mas,
facto curioso, enquanto lia parecia-me reconhecer alguma coisa para que eu sabia estar-
mos todos preparados. O terreno estava desbravado. O Tropic vence a dificuldade
traduzindo a nova vida que lhe reanimou as entranhas. Diante disso o elogio é vulga-
ridade; portanto não se zangue comigo se tudo isto soar a balido de fatigado crítico ou a
um anúncio de creme de amaciar. Deus bem sabe que peso as palavras tanto quanto sou
capaz, mas o raio do livro avariou-me a balança como um terremoto e perturbou todo o
115
FERGUSON. Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 263.
88
meu sistema normal de pesos e medidas. Adorei-o até a medula. Adorei ver
completamente liquidados os cânones das belas e dissimuladas emoções; vê-lo desprezar
os rodriguinhos e as habilidadezinhas dos nossos contemporâneos desde Eliot a Joyce.
Deus deu-nos, aos jovens, o animo de pôr de parte os bonitinhos e de completar a obra.
O Tropic é qualquer coisa que andavam a tentar realizar desde o fim da guerra. É a versão
definitiva desses débeis, fuscos e grosseiros rascunhos Chatterley, Ulysses, Tarr etc.
o só volta atrás, mas (o que nenhum dos outros fez) avança também.
116
Essa carta, escrita em agosto de 1935 entre Miller e Durrel, seria o ponto de partida de
uma amizade longa e de uma parceria em termos literários. Ela nos dá um pouco da noção de
como os primeiros livros de Henry Miller foram recebidos dentro de determinados círculos
literários franceses. Um grupo de intelectuais, escritores e leitores, relativamente pequeno em
um primeiro momento, veria nos primeiros romances do escritor americano uma espécie de
síntese da novidade. Tropic of Cancer alcançaria o status de “clássico do undergroundpor
reunir caractesticas de uma ruptura supostamente necessária.
Um dos eixos centrais que reunia esse “grupoera a Obelisk Press. A editora seria
responsável pela publicação de nomes como Anaïs Nin, Lawrence Durrel, Radclyfe Hall,
Frank Harris e D.H. Lawrence. Obviamente que esse círculo letrado não seria composto
somente de escritores e celebridades. O mais interessante, na verdade, é pensar na existência
de um conjunto de leitores, editores, agentes literários e escritores (que eventualmente não
vieram a triunfar) que se organizavam em torno dessas pequenas editoras parisienses. Não se
pode supor uma união harmônica entre os agentes em questão. Por mais que se tenha
estabelecido uma rie de alianças estratégicas em nome da consagração de um determinado
tipo de literatura, as disputas se dariam mesmo entre os supostos membros desse grupo. Não
se pode sequer supor que houvesse uma “consciência de grupo” assim definida.
A obra de D.H. Lawrence seria outra uma referência nesse cenário. Ele era o símbolo
de um escritor polêmico, por vezes considerado pornográfico, que ao ser publicado teria
conseguido popularidade de forma relativamente rápida. Enfrentou uma batalha judicial
bastante difícil, mas venceu censura. Lawrence era como um modelo para esses escritores. O
que não impedia que fosse criticado:
[…] E também este facto importante: no nosso tempo alcançamos uma fase na arte de
escrever em que é possível ao escritor ser ele próprio no que escreve. É mais do que
possível. É inevivel e necessário. Mas para os isabelinos escrever e viver eram
compartimentos inteiramente distintos. O eu que escrevia era identificável por certos
maneirismos, por um estilo de pensamento moral etc. Mas não correspondia mais ao autor
do que o Hamlet corresponde a você. A virtude dos isabelinos consistia nisto: a sua
exuberância era tão descomunal, tão volátil, tão dilacerada pela peste, tão dolorosa e vil e
116
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 28.
89
contrita e eruptiva, que aqui e ali, graças a gloriosos erros, quebrava as convenções. Mas
o seu aparelho crítico estava interessado na narração. Era bom neca ou o era? Se
observar o actual estado da crítica você descobrirá que se encontra penetrada por toda
uma terminologia misticista. O próprio crítico tem tentado acostumar-se ao elemento
perturbador que toda essa nova literatura do «eu» pôs em destaque. Lawrence é mau
Sêneca, teria dito Ben Johnson, pensando a sério no que dizia. Esse Lawrence sabe
escrever, mas o basta ter opiniões sobre a sua própria pessoa. Falta-lhe arte. À forca
com ele.
117
Em uma carta escrita para Miller em janeiro de 1937, Durrel comenta a coletânea de
ensaios que o primeiro prepara em parceria com Michael Fraenkel. Tratava-se de uma
coletânea de ensaios sobre a obra de Shakespeare, publicada em 1939. Na carta Durrel diz que
Miller teria superado o dramaturgo inglês ao ter se realizado mais integralmente como
homem. Fala de uma suposta necessidade de o escritor ser ele mesmo ao escrever esse seria
uma dos pontos centrais nessa proposta de ruptura que se ensaiava e critica severamente
D.H. Lawrence.
Miller, por sua vez, também acusaria Lawrence várias vezes, mas por um motivo
diferente. Para ele o escritor inglês era covarde, não tinha coragem de expor a natureza
humana de forma completa. O amante de Lady Chatterley era considerado por Miller um livro
muito romântico, de uma sensualidade conservadora. Fica claro nesse caso que os ataques de
Miller têm como referência sua ppria obra: ele se coloca como mais corajoso e
profundamente erótico, sendo esta uma forma de chamar para sua própria obra a
responsabilidade de ser realmente revolucionária. Miller vira em Lawrence um adversário à
altura; atacá-lo poderia render frutos interessantes.
No entanto, esses ataques não fizeram com que Miller o condenasse à forca. Durante
boa parte de sua vida se dedicou a um estudo sobre a obra do escritor inglês: The World of
Lawrence, que veio a ser publicado após a morte de Miller. O trabalho, que permaneceu
incompleto, trata dessas e de outras questões, ressalta as qualidades literárias de Lawrence
sem deixar de denunciar o seu caráter covarde.
Talvez Anaïs Nin e Lawrence Durrel sejam os escritores que Miller mais se
aproximou. Com os dois, Miller estabeleceu fortes alianças, sempre em torno da literatura.
Possivelmente as obras mais importantes de Nin sejam seus diários publicados em mais de
trinta volumes. Neles o nome de Henry aparece muitas vezes, seja como amante ou como
mentor literário. Ainda que o uso de recursos do gênero pornográfico seja sensivelmente
diferente, se compararmos os dois escritores – Anaïs Nin tem muito mais claramente o
117
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 72.
90
objetivo de construir narrativas com apelo etico no sentido mais usual do termo uma
rie de características comuns. Entre elas se destaca a tentativa de construir uma literatura
notadamente de cunho autobiográfico. Em todo caso, os projetos literários de ambos se
encontrariam e, em alguma medida, o sucesso de um beneficiaria a trajetória do outro.
A relação de Henry Miller com Lawrence Durrel começou quando o escritor inglês
enviou a primeira carta. Nela, tece uma série de elogios ao primeiro livro de Miller,
considerando-o uma obra revolucionária.
118
Miller responde com grande entusiasmo e lança
as bases para uma amizade que seria também uma aliança importante do ponto de vista de seu
projeto literário.
18 Villa Seurat, Paris (XIV)
1 de Setembro de 1935.
Caro Sr. Durrel:
A sua carta tamm me impressionou um pouco. O senhor é o primeiro britânico que me
escreve uma carta inteligente a respeito do livro. Nesse aspecto o senhor é até a primeira
pessoa que acertou em cheio. Apreciei particularmente a sua carta por se tratar da espécie
de carta que eu próprio teria enviado se não fosse o autor do livro. Não se trata aqui de
pura vaidade ou de egotismo, acredite-me. É curioso como poucas pessoas percebem o
que o livro possui de digno de ser admirado.
A frase que mais me impressionou na sua carta foi: parece-me reconhecer nele alguma
coisa para que todos estávamos preparados”, é isso mesmo. O mundo está preparado para
algo de diferente, algo de novo, mas parece que é preciso uma guerra ou qualquer
calamidade colossal para as pessoas compreenderem isso.
A sua carta é o brilhante e tão profunda que pergunto a mim mesmo se o senhor não é
também um escritor. Como descobriu o livro – por intermédio do Barclay Hudson?
Cordialmente seu, Henry Miller.
119
Lawrence Durrel manifestaria posteriormente suas ambições enquanto escritor e
Miller seria uma peça fundamental para que o primeiro livro de Durrel fosse publicado. Por
outro lado, Lawrence seria um engajado promotor das obras de Miller na Inglaterra. A reação
de Miller ao ler Black Book (Durrel lhe enviou ainda no original) foi de estupefação. Fica
claro que naquele momento Henry Miller havia encontrado um parceiro importante. O livro se
assemelhava bastante com Tropic of Cancer, uma vez que manipulava uma série de temas e
questões que Miller também atacava. O tom de manifesto antidecadência e a escrita em
primeira pessoa que refaz a intenção de se estabelecer a crença na sinceridade e na
honestidade do narrador, faziam de Black Book uma espécie de “filho espiritualde Tropic of
Cancer. Assim Miller escreve a Durrel, em 1937:
118
A carta aparece citada na nota 34.
119
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 29.
91
[…] Meu caro Durrel, como disse no seu bilhete, nunca mais escreverá, nada que lhes
agrade. Você cruzou o Equador. A sua carreira comercial está, acabada. A partir deste
momento é um fora-da-lei e felicito-o de todo o coração. Penso com toda a sinceridade
que é realmente o primeiro inglês! Quero dizer que esta muito para além do Lawrence e
de toda essa tribo. Está, no meio dos asteróides e para todo o sempre, assim o espero.
Todo o seu livro é um poema, um poema colossal. Não consigo compreender por que é
que você tanto quis em tempos escrever poemetozinhos bem torneados. Seja que poema
for que você escreva depois disto só poderá, ser um sopro de vento que passa. Este livro é
o poema. É como a peste negra. Estou siderado. A minha única reação desfavorável é que
é colossalmente colossal. E preciso ser-se o próprio Gargântua para ingeri-lo todo.
Parece-me, de momento, que Kahane seria o único editor para o livro. E possivelmente
Fraenkel. Por isso é que eu gostaria de possuir vários exemplares. Nenhum editor
comercial, estabelecido, poderá publicá-lo. Vejo-os a desmaiarem à medida que o lêem.
Infelizmente Kahane, o meu editor, não gosta muito de si. É curioso isso, mas é um facto.
Uma espécie de ciúme profissional. Ele também escreve, você sabe, sob o pseudônimo de
Cecil Barr. Uma porcaria, o que há de mais reles, de mais ordinário, e ele concorda, mas
com aquela indiferença inglesa que me arrepios. Mas, se você concordar, vou palpitá-
lo. Farei o que for preciso, lisonjeá-lo-ei, dançarei a jiga em torno dele, cantar-lhe-ei
caões de embalar, se for necessário, porque acredito no seu livro com todo o meu
coração. E porque não vejo mais ninguém no horizonte. Somente Fraenkel. De novo nos
encontraremos diante do mesmo problema profissional. Simplesmente Fraenkel é mais
capaz de ser objectivo, de admirar uma coisa que ele próprio não é capaz de realizar.
120
Miller felicita Durrel por ter se tornado um marginal e comemora o fato de ter
encontrado um aliado importante. As mesmas estratégias de que Miller lançaria mão, tendo
em vista seu próprio projeto literário, são transferidas para Durrel. Ao impor que nunca mais
escreva “nada que lhes agrade”, Miller tenta definir, a partir de referenciais seus, os padrões a
serem seguidos pelo outro. Nesse caso, escrever de forma autêntica é escrever de modo a não
agradar uma suposta maioria. É produzir um tipo de literatura que se quer marginal, que busca
se definir dessa forma tendo em vista ocupar um lugar específico.
a certeza de que não se pode recorrer a um editor estabelecido. Talvez tão
importante quanto a crença de que ao se buscar um editor “convencional” a chance de
fracasso seria grande, seja a convicção de que essa obra não pertence ao universo da literatura
tida como convencional. Um livro “marginal” deve buscar um caminho também de
“marginalidade”. É com orgulho que Miller, como se falasse de si mesmo, coloca Durrel
como um fora da lei. Como tal caberia a Durrel escrever sem se preocupar em se tornar
comercial. Na verdade estar comercialmente morto é quase como um título de nobreza
literária. É sempre importante destacar que, nas concepções de Miller, buscar um caminho
alternativo não significa desprezar a possibilidade de ser publicado. Por trás de cada obra sua
publicada um esforço colossal seu e de diversos outros agentes envolvidos. Publicar, ainda
que para poucos, sempre esteve no horizonte de Miller, que faria inclusive, das questões
120
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 94
92
pertinentes a esses mesmos processos de publicação, temas literários. Nesse sentido, em 1936,
aconselha:
Escute, Durrel, não se sinta desesperado. Se tem tripas para isso o que a fazer é ir até
ao amargo fim – na sua literatura, claro. Se você puder resistir, e penso que pode, escreva
o que lhe apetecer. Não há nada mais a fazer, a não ser que queira tornar-se famoso.
Mas seja como for hão de desprezá-lo e, portanto, comece por dizer o que tem a dizer.
o estou a recomendar, necessariamente, a obscenidade. Cada homem tem a sua
maneira de se realizar e de dizer o que tem dentro de si de forma tão definitiva que o
pode ser contestada. O compromisso é fútil e não satisfaz. Terá sempre uns duzentos
leitores e, se eles possuírem gosto e discernimento, que mais pode desejar você? Mesmo
quando uma pessoa resolve ser absolutamente honesta é difícil. A expreso parece ser
uma coisa tão natural, uma dádiva de Deus – e, contudo, não é nada disso. É uma luta que
dura a vida inteira para se achar a si próprio. Pense em Cezanne, Van Gogh, Gauguin,
Lawrence. Pense em Dostoievski, ou em Ticiano, se quiser. Gosto dos documentos
autobiográficos: ensinam-nos mais que qualquer outra coisa. Bem, basta.
121
De qualquer forma, mesmo com seu autor morando na Inglaterra, Black Book seria
primeiramente publicado em Paris, o que a ideia de como havia um mercado bastante
aberto para “livros marginais” escritos em inglês.
Sobre o próprio Jack Kahane e o papel de sua editora, a Obelisk Press, Henry Miller
tece um outro comentário bastante emblemático:
Quem manda na Obelisk Press é Jack Kahane. Conhece-o a si através do que eu lhe tenho
contado. Não edita um livro a não ser que o livro possua qualquer qualidade sensacional,
a não ser que o livro tenha probabilidades de ser banido na Inglaterra ou na América. Essa
é a potica dele por agora.
122
Kahane aparece assim como um editor dedicado a publicar livros polêmicos,
preferencialmente aqueles passíveis de serem censurados. Se dificilmente essas obras
configurariam, em um primeiro momento, sucessos contundentes de venda, tampouco se pode
dizer que eram produzidas sem se considerar uma certa gica de mercado. A ousadia de um
editor como Jack Kahane e dos escritores que publicava tinha como suporte a certeza da
existência de um público consumidor fiel.
Se a relação de Henry Miller com seus editores em Paris, basicamente Kahane e seu
filho Maurice Girodias, se desenvolveu, em geral, de forma tranquila, o mesmo não se pode
dizer da relação estabelecida com o editor responsável pela publicação de suas obras nos
Estados Unidos. O famoso editor James Laughlin conheceu o trabalho de Henry Miller em
121
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 41.
122
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 40.
93
1936. Ao ler Tropic of Cancer, Laughlin ficou profundamente admirado com o talento de
Miller e começou a lhe enviar cartas. Logo as correspondências mudariam de tom e a relação
de amizade se converteria em meramente profissional, e particularmente conturbada, na
medida em que Miller consideraria as posições de Laughlin muito conservadoras. Segundo o
escritor, muito da demora de sua consagração nos Estados Unidos se deveu covardia do
editor.
De qualquer forma, Miller só teria convicção do suposto conservadorismo de Laughlin
depois de anos de relacionamento. De fato os dois teriam relações profissionais até
praticamente o fim da vida de Miller. A New Directions Books, editora de James Laughlin,
foi responsável pela publicação de diversas obras de Miller. No entanto, em torno dos livros
proibidos de Miller (Tropic of Cancer, Black Spring e Tropic of Capricorn), James Laughlin
teria sido pouco ousado.
De qualquer forma, a escolha de Laughlin para editor nos Estados Unidos não se deu
por acaso, uma vez que ele era uma referência no tocante à publicação de livros polêmicos, e
é o próprio Miller que atesta isso em uma carta que lhe escreve:
DEAR J.L. August 18th. [1945] Big Sur
Just had a long letter from my old friend Raymond Queneau (writer), who is now a
person of importance chez Gallimard, Paris, and directs the reading of foreign books.
They are interested (vitally) in new books, preferably of an "avant-garde" type, and want
to exchange books with an avant-garde publisher here. I informed Queneau that you are
still the one and only publisher of that description here. And that I would urge you to send
him whatever you think worth while. He says they are starved for good books and have
received only the usual commercial hash from big publishers. (Gallimard, incidentally, is
now more powerful than ever – this I heard from Duhamel.)
Queneau has written several books during the war, short ones, he says, and perhaps too
strong (in language) for American taste, also difficult to translate, but, he adds, if there
were an acceptance, he would help in the translation he knows English well and has
done lots of translation. He talks of a possibility of putting three of his books in one vol-
ume. At any rate, I told him to send me whatever he likes and I would show them to
you…
123
Mesmo sendo um editor importante, especializado em publicar “autores difíceis”,
Laughlin se concentraria, no caso de Miller, em editar livros menos polêmicos como The
Books in My Life e The Wisdow of The Heart, por exemplo. A impressão que se tem ao ler o
volume de correspondências trocadas entre os dois é que Miller se via bem menos confortável
com a censura dos livros do que Laughlin. Assim, Miller escreve em 1944:
123
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. edited by George
Wickes. New York: Norton, p. 54.
94
I got an idea in the shower yesterday and am writing three great legal minds about it. To
wit: possibility of publishing banned books with blank spaces (on my own, if necessary)
and saying in foreword that if reader is curious he can write the author about said blanks.
We are keeping within the law, observing the four freedoms, etc. etc. Then when they
write send them a printed slip to paste in book, revealing deleted passages. But this plan
is only if it is legal. My aim is to defeat the law, the censors, and attain my objective too.
Will add that if illegal to mail such slips, what about sending them through American
Express. I lie awake sometimes wondering how I could get these books published openly,
keep within the law, defeat them on their own grounds, and play a good prank at same
time. I hate to think I have to play their stupid, serious, tragic game.
124
A proposta de Miller revela além de explorar sua condição de autor proibido a
intenção de ver, mesmo com algum custo, esses livros publicados. Posteriormente, o próprio
Miller recuaria ao consultar um advogado e descobrir que a tentativa poderia resultar em
cadeia. De 1944 em diante, a paciência de Miller começa a se esgotar, entendendo que a
suposta passividade de Laughlin passa a atrapalhar a divulgão de sua obra em seu país
natal. Cabe ressaltar que nesse período Miller não mora mais em Paris, e sim em Big Sur, na
Califórnia. Sua obra já tem ampla recepção em boa parte do mundo, mas seus principais livros
ainda circulam de forma ilegal nos Estados Unidos.
A ocupação de Paris por tropas americanas, por ocasião da Segunda Guerra Mundial,
teve um efeito positivo para Henry Miller. Seus livros sofreram um aumento substancial nas
vendas e foi o próprio Miller que teve o faro comercial para sugerir a Laughlin que os livros
da New Directions fossem mandados para Paris. Em 1945, escreveu:
I thought I ought to let you know that I've had a number of letters since the occupation of
France by our troops to the effect that all the Obelisk books are prominently displayed in
Paris book stores and are selling well to American soldiers. Also that I heard from the
son of Kahane, former director of O.P. that he (the son) is carrying on the business, under
the name now of "Les Editions du Chene," same address-16 Place Vendome. His own
name is changed to M. Girodias.
I mention these things because it occurred to me that you might possibly be able to sell
the N.D. books to the Paris book stores, and, if you like, get Girodias to have them
translated into French. He asked in his letter if he could publish my books in French too.
It's just a thought.
125
De fato o nome de Henry Miller na década de 1950 é bem conhecido na Europa. Ao
passo que essa fama lhe traz uma inegável satisfação, por outro lado, a falta de um maior
reconhecimento em seu país natal é motivo de frustração.
124
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. edited by George
Wickes. New York, Norton, p. 46-47.
125
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. op. cit., p. 51.
95
All Europe is alive & enthusiastic about my work. Only America lags. Q.E.D.
Everywhere I receive a royal reception. My name could be Charlot just as well. And
these people really know my workall classes, the wine merchant, the worker, the
Communist, the Catholic. What a difference! The Smile is coming out in French soon.
And Correa is dickering with Fraenkel now about the Hamlet book. Corrêa is much
interested in everything I do…
126
Miller escreve essa carta estando na França depois de uma longa estada na Califórnia.
Ela foi enviada para Bob MacGregor, editor que cuida de seus interesses na New Directions
depois do afastamento de Laughlin. Esse o responde com as seguintes palavras:
We all think it is simply wonderful that you are getting such a reception in Europe.
Would that the same thing could be done here, but perhaps it is the fate of a genius like
you that recognition in your own country is delayed. Certainly the sale of The Books in
My Life here is nothing to encourage you to return to this country. The volume of course
will sell steadily for years to come I am convinced, but its total sale in 1952 was only
1201 copies…
I hope that the reception is continuing, that you are in great good health, and that all goes
well.
127
Ambas as cartas foram escritas em 1953. Henry Miller acabaria por considerar que a
New Directions estava sendo um entrave para a sua penetração no mercado americano. Nesse
momento Miller era um autor publicado nos Estados Unidos, mas seus livros principais
continuavam proibidos; pior do que isso, continuavam sem novas edições, já que estavam nas
mãos da New Directions. Os únicos volumes que circulavam eram os que eram trazidos de
forma contrabandeada da Europa. Era prática comum a publicão de livros banidos, que
acabavam sendo vendidos “por debaixo do balcão”, e a relutância em produzir edições desse
tipo acabaria por gerar um rompimento entre o escritor e a editora.
Now supposing, when I began my career as writer, I had weighed all these (irrelevant)
considerations: finding a publisher, being banned, displeasing public taste, telling my
own story instead of (that of) some imaginary novelistic hero, waiting ten or fifteen years
to be recognized, and so on. Do you think I would ever have written those books? "There
is only one man in the world who may possibly print your Cancer," said the Paris agent,
when he had read the ms. "That man is Jack Kahane of the Obelisk Press." It was true.
And Jack took the book, and then got cold feet, and I waited almost three years before he
had the courage to bring it out. You have to think of such things, my dear Bob, because
they all form part of the chain that brings us to the present moment.
128
126
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. edited by George
Wickes. New York, Norton, p. 96.
127
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York: Norton, p. 97.
128
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York: Norton, p. 118.
96
Com essa mensagem, Miller cobra a responsabilidade de Bob MacGregor. A
justificativa padrão, utilizada pelos editores, de que o conservadorismo americano impedia
seu trabalho, passa a não ser mais suficiente para Miller. O escritor, ao lembrar de Jack
Kahane, aponta para a necessidade de se forçarem determinadas situações. Embora o mercado
americano fosse mais fechado, para Miller a falta de ousadia dos editores começava a pesar e
a ser um entrave no desenvolvimento de seu projeto literário.
Em uma derradeira tentativa de manter os direitos dos livros banidos, James Laughlin,
que voltara a comandar as ações na editora, sugere a publicação de uma coletânea de textos de
Miller, em que trechos de Tropic of Cancer sairiam misturados a outros como uma forma de
tentar driblar a censura. Miller recusa veementemente a ideia e o editor lhe responde:
I think that the position which you take on inclusion of material from the "banned" books
is a very reasonable one. I think too that recent experience shows that it is possible to do
in a high-priced volume things that one cannot do in a paperback that is available in
drugstores to school children. One point that should be studied, I think, is the question of
what is known, I believe, as "artistic wholeness." I have not read Judge Woolsey's famous
decision on the Ulysses case for some years, but my recollection of it and it remains, I
think, one of the major precedents to which jurists look in this field is that he made the
point that the last chapter of Ulysses, which is so sexy, was justified because it was part of
a whole work which covered the whole span of human living. From this point of view, it
would not be advisable to pick out isolated passages from the "banned" books which
would stand out specifically for their freedom of expression, without, at the same time,
showing that they were part of a whole, coherent, carefully planned artistic structure.
The solution might be to plan a rather large book, which might sell for as much as seven
dollars and a half, which might include Cancer entire.
129
A nova proposta de Laughlin parte de uma reflexão feita a partir do clássico caso do
livro de James Joyce. Ulysses teve sua publicão liberada quando o juiz, em sua sentença,
considerou que as passagens que poderiam soar como obscenas eram parte de um contexto
maior e ultrapassavam os limites da mera pornografia. De certa forma, essa é uma estratégia
de que Henry Miller lançaria mão durante toda a sua trajetória literária. Fazer crer que a
dimensão sexual, ou mesmo pornográfica, de sua obra estava inserida em um projeto
libertário, inclusive de cunho religioso, de retratar o humano em toda a sua complexidade,
certamente sempre foi um dos seus recursos mais recorrentes.
Sua opção por utilizar recursos estéticos relativos ao gênero pornográfico sempre
esteve associada ao caráter teoricamente revolucionário de seus romances. O que em outros
textos seria mera apelação erótica, nos romances de Miller, aparece como elemento
129
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York: Norton, p.137-138.
97
transgressor. Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que a recepção de sua obra esteve
sempre, de alguma forma, marcada pelas intenções de seu projeto literário e pelas disputas
travadas a partir dele em termos de consagração de determinado modelo de literatura.
De qualquer forma, Miller voltaria a negar a nova proposta de Laughlin e a relação
entre os dois estaria assim definitivamente abalada. Miller escreve a Laughlin, em 1958:
You raise a question of precedents, the Woolsey decision on the Ulysses case and the
more recent decisions in the San Francisco trials. It is my belief, based on the talks and
the correspondence I have had with legal minds, that no previous decisions, favorable or
unfavorable, can be relied on in predicting the results of a court case with respect to my
banned books. Whatever the law reads at any given time is only a starting point.
Everything depends on the interpretation of the law, and particularly who interprets it and
at what moment in time. I would hazard the opinion that my work would be the very last
to be recognized as publishable by our courts. As to whether, in an omnibus edition,
where the intent is clearly to present every facet of the writer and not a work of
pornography; the situation (be) different, or could be viewed differently, I am unable to
say. (I can envisage the possibility of a biased judge viewing such a work as a cloak to
permit the entry of salacious material.) The point is that we never know and have no way
of telling how the minds of judges work or will work. However, one might sound out in
advance such people as Huntington Cairns, Judge Horn (of the Howl case) and such like.
From past experience, however, I am almost certain that they will refuse to commit
themselves.
But to answer a point you raised in our letter (…) No, I would never dream of permitting
the Tropic of Cancer to be included in toto in such a book. Nor would I even consent to a
trial publication of it on its own or any of the banned books unless I was certain in
advance that it would not be subject to seizure and suppression. I don't believe in fighting
lost battles. And I refuse to be a scapegoat. I am quite content that these banned books
continue to be repu-blished (in English) abroad and in translation. They are all as much
alive and sought after now as the first day they were published.
130
Essa carta seria um “nãodefinitivo as tentativas de publicação dos livros proibidos
por parte da New Directions. Em pouco tempo o editor Barney Rosset, representante da
Grove Press, assumiria a tarefa de publicar esses livros. É importante destacar que, a essa
altura, Miller parece um tanto sem esperanças quanto à possibilidade de obter uma liberação
judicial. Na verdade o escritor revela uma certa satisfação com o fato de esses livros
chegarem aos Estados Unidos de forma clandestina.
Mesmo sendo a Grove Press que viria a publicar tanto os livros proibidos quanto os
volumes que compõem The Rosy Crucifixion, Laughlin, por amizade, continua mantendo
Miller a par dos acontecimentos que cercam as publicões, como escreve em 1960:
130
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York: Norton, p. 140-141.
98
Barney's lawyers must be very confident that they can get a favorable court decision. No
doubt they think this because of their success with the, Lawrence book. But I feel there
are certain basic differences which might cause many judges to rule against the Tropic
books. After all, Lady Chatterley, except for the four-letter words, is a rather
"sweet,"even a conventional book. Whereas the Tropics are "anarchic" (I use the word in
the good sense), and I think that some judges, and even more so a typical jury, would feel
that they were an attack on the bourgeois order and react accordingly. Of course, that is
part of their greatness, (yet) the last thing which the kind of mind which puts up with the
social system as it is can accept. However, you are the one who should decide
131
A partir dessa carta se pode ter uma ideia de como um acontecimento relativo ao
livro de Lawrence acaba afetando a obra de Miller. Tanto as decisões judiciais relativas a
Ulysses quanto a Lady Chatterley`s Lover interferem na posição ocupada pelo escritor
americano. A partir dessas decisões favoráveis foi possível estabelecer um plano de
publicão. Ainda que os julgamentos das obras tivessem ocorrido em lugares e tribunais
diferentes, esses estão sempre no horizonte no que concerne às condições de publicação de
obras consideradas afins.
O respaldo crítico e jurídico que os dois livros tiveram seriam fundamentais para a
orientação do projeto literário de Henry Miller. Guardando aproximações e distâncias em
relação aos dois exemplos, o lugar ocupado pela obra de Miller foi se modificando. Dentro
desse interminável jogo de reposicionamentos se a possibilidade da publicação de suas
obras na América, primeiro de forma ilegal e depois, oficial.
Uma estratégia interessante utilizada pelos editores da Grove Press para viabilizar a
produção dos livros é produzir edições mais caras, limitadas e assinadas. Parece haver um
consenso entre Miller e Rosset de que publicar obras mais luxuosas seria de vital importância
para que houvesse uma acolhida mais favorável. Em 1959, Miller escreve a Laughlin:
Rosset is very eager to publish Cancer as soon as possible possibly an expensive de
luxe limited edition which would probably be sold out (in advance) before any action
could be taken. Thinks Girodias could bring out same here – as a sort of 25th anniversary
of Cancer's publication here. All dependent, of course, on outcome of Lady Chatterley
trial now pending. He thinks copyright in America has lapsed – Hoffman thinks by a new
international agreement, it's still in force, everywhere.
Anyway, you have first choice, if you think you want to take the book and all the
consequences. Think it over and let me know how you feel. Should add this Rosset is
willing to share the publication with you, if you prefer. He realizes you deserve first
consideration. He doesn't seem to care about money. Offers same huge advance as before
131
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York: Norton, p. 174.
99
and will sacrifice it if he failed to go thru with publication. He returns to N.Y. next week,
I believe.
132
Dois pontos entram em questão no que se refere à produção de edições mais caras. O
primeiro fica claramente expresso na carta. Uma edição mais luxuosa e limitada significaria
uma venda mais rápida, evitando assim uma eventual apreensão. Esses livros cairiam
rapidamente nas mãos de leitores já familiarizados com a obra de Miller, possivelmente
leitores que já possuíssem ou eventualmente tivessem lido o próprio Tropic of Cancer. Por
outro lado, uma edição luxuosa poderia, sim, ajudar a gerar uma acolhida mais favorável para
o livro. Se as edições pornográficas, de livros sujos, eram normalmente mais baratas,
produzidas por pequenas editoras, Tropic of Cancer apareceria para o público americano de
forma radicalmente diferente. Obviamente não se pode fazer nenhum tipo de generalização
que associe exclusivamente pornografia com edições mal acabadas. O que talvez seja possível
afirmar é que, ao produzir uma edição luxuosa, a estratégia dos agentes envolvidos seja a de
colocar a obra em um patamar mais elevado. Apresentado em uma edição cara, portanto,
voltada para um público específico, o livro poderia ter um tipo de recepção que, em tese, lhe
seria favorável, sobretudo tendo em vista um eventual processo judicial.
De fato a Grove Press publicaria Tropic of Cancer em junho de 1961, em uma edição
limitada e assinada. A estratégia daria certo, como atesta uma carta enviada por James
Laughlin para Miller, em 26 de maio de 1961:
There is a very interesting group of young poets and writers centered around Ferlinghetti.
They are now planning to get out a new magazine, or rather an anthology, which will be
sort of a "protest" statement. Ferlinghetti hopes very much that you will be able to send
him something for this. I have only seen some of the material, but the general idea seems
to be that writers should express their dissatisfaction with the way the "system" is
conducting our affairs in this sad world. Of course, your whole oeuvre hás been a protest
of this kind and perhaps the most eloquent of our time I hope that you will still find
something that you will want to add to this young group of Ferlinghetti's friends.
It is a big disappointment that you aren't down there in Big Sur. But perhaps I'll be able to
stop by and say hello to Eve and the children if they are still the , if I drive down that
way.
Ferlinghetti is selling the Tropic of Cancer quite openly in his store, and he tells me that
all of your books are doing extremely well. He does not seem at all worried about
eventuality, and, in fact, I think he would welcome the opportunity to go to bat again. I
haven't seen the book in any other store windows around town, but I haven't as yet made a
132
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York, Norton, p. 164.
100
very thorough search. I'll let you know of anything I hear, but I daresay Bob is more in
touch with developments back there in New York
133
No ano seguinte, após a edição até então ilegal preparada pela Grove Press, Tropic of
Cancer seria considerado passível de publicação por decisão do juiz Samuel B. Epstein da
Cook Country Court de Chicago. Essa decisão abriria caminho para outras vitórias judiciais
que se seguiriam. De qualquer forma, várias edições piratas já circulavam pelos Estados
Unidos. Em 1940, Jacob R. Brussels publicou uma tiragem de duas mil cópias do livro e
cumpriu uma pena de dois anos de cadeia em função disto. A grande esperteza de Rosset foi
perceber que aquele era o momento propício, uma vez que ele mesmo havia acabado de
ganhar um processo semelhante referente ao livro de D.H. Lawrence. É claro que essa
primeira liberação judicial o representaria uma vitória definitiva. Esse e outros livros de
Miller passariam por uma série de tribunais nos Estados Unidos, mas o precedente legal foi de
fundamental importância para as outras disputas que se seguiriam. De qualquer forma, Miller
conseguiria ter finalmente uma edição integral do livro publicada legalmente na América.
Talvez o mais importante dessa trajetória do livro é que seu autor nunca deixou de capitalizar
com a sua proibição: ser um clandestino, um banido na América, sempre funcionou como um
tipo de propaganda bastante adequada para a articulação de seu projeto literário. Segundo
Robert Ferguson:
Do início ao fim, a atitude de Miller foi de completa intransigência: ele preferia
ver o livro publicado clandestinamente do que expurgado. Tornou muito clara a
sua posição para Frank Dobo, em 1938. Dobo, que naquela ocasião havia
retornado de Paris para Nova Iorque, tinha sugerido a publicão de um livro
consistindo de excertos de Trópico de Câncer e de Black Spring, mas Miller não
queria saber disso:
Fazer o público esperar todos esses anos e depois dar-lhe uma versão diluída e
modificada de meus livros não me parece muito estratégico poderia reverter
contra mim. Muita coisa depende do editor, da escolha do editor, e de qual a sua
atitude em relação a mim e ao público ao qual ele se dirige. Não quero lidar com
nenhum diabo oportunista esperto, como tantos em Nova Iorque. Veja, eu
esperei muito tempo para ser aceito in toto, não em parte. E quanto mais tempo
eu ficar de fora, maior o meu poder, vis-à-vis com a AmericaEstrategicamente,
quanto mais tempo eu mantiver meus livros fora do alcance do público
americano, maior o prestigio que adquiro, quer queira, quer não. Minha tática
todo o tempo foi justamente o contrário das táticas americanas usuais. Eu me
comportei como um chinês Se a América jamais capitular, eu posso
prosseguir sem ela. Não estou tentando me transformar em um milionário.
Estou tentando preservar minha integridade, escrever como me agrada e o
receber ordens de ninguém exceto de Deus, que é meu chefe.
133
MILLER, Henry; LAUGHLIN, James. Henry Miller and James Laughlin: selected letters. Edited by George
Wickes. New York: Norton, p. 195-196.
101
Em 1945, Denoel finalmente publicou uma tradução de Henri Fluchere de
Trópico de Câncer, e as autoridades francesas imediatamente fizeram uma
tentativa de confiscar o livro. Os escritores franceses, muitos deles amigos
pessoais de Miller, organizaram uma campanha bem-sucedida em sua defesa, e
os depoimentos de alguns desses mesmos defensores foram reunidos pelo
Sindicato das Liberdades Civis Americanas para uma campanha em 1950 para
liberar a importação de Trópico de ncer para a Arica. Isto teve de ser
abandonado em outubro, quando o juiz se recusou a admitir os depoimentos. Três
anos depois, o Tribunal de Apelões dos Estados Unidos, localizado em São
Francisco, suspendeu a proibição de ambos os Trópicos. Nesse meio tempo,
Sexus foi proibido na França, e em 1956 foi proibido na Noruega.
134
Por ser um tipo de literatura propositalmente agressiva, que busca se definir todo o
tempo como transgressora e libertária, a obra de Henry Miller seria posta em cheque,
questionada do ponto de vista legal durante muitos anos. Mesmo já sendo um escritor
confirmado e legitimado por crítica e público, Miller teria de acompanhar processos judiciais
até praticamente o fim de sua vida. A publicação de sua famosa trilogia acompanharia a
trajetória de Tropic of Cancer e Tropic of Capricorn. Depois de publicada pela Obelisk Press,
entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1960, as obras foram ganhando edições pelo
mundo e, depois da liberação dos dois livros nos Estados Unidos, surgem as primeiras edições
americanas. Ao longo dos anos 1960 sua obra já está praticamente toda publicada na América
e o nome de Miller ganha definitivamente fama e reconhecimento internacional. Ainda
segundo Ferguson:
Apesar disso, Miller permaneceu essencialmente inepto e amador em suas queses
financeiras. "Todo mundo tem me extorquido desde que fiquei rico", escreveu ele a Hans
Reitzel em 1963, e três anos depois reclamou ter feito empréstimos no total de setenta e
cinco mil dólares que jamais lhes foram restituídos. Mas, por mais rápido que gastasse ou
distribuísse, o dinheiro estava sempre entrando. Black Spring e Trópico de Capricórnio
vendiam extraordinariamente em seguida à notoriedade de Trópico de Câncer, e em 1965
a Grove Press publicou edições em brochura de A crucificação encarnada que foram
direto para o topo das listas dos livros mais vendidos nos Estados Unidos. Miller podia se
vangloriar de ter cem traduções diferentes de seus livros, incluindo dezessete apenas de
Trópico de Câncer.
Tal aclamação popular maciça inevitavelmente levou a uma novel campanha contra
Miller entre os críticos intelectuais. Em 1957 ele havia sido eleito membro do Instituto
Nacional de Artes e Letras. A citação lida por Louise Bogan dizia: "Sua abordagem
arrojada e intensa curiosidade com respeito ao homem e a natureza não têm paralelo na
literatura em prosa de nossa época". Entretanto, agora que Henry estava rico e famoso, e a
batalha pela liberdade de expressão temporariamente ganha, não era mais necessário que
o meio literário estabelecido apresentasse uma frente unida.
135
134
FERGUSON. Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 372.
135
FERGUSON, Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 377.
102
Na década de 1960 se daria a consagração de Henry Miller. O processo de fim da
censura às obras literárias, que se arrastava desde a década anterior, ganharia força nos
Estados Unidos e livros como Fanny Hill, My Life and Loves de Frank Harris assim como o
próprio Kama Sutra, estariam pela primeira vez dispostos nas livrarias americanas. Livros
contemporâneos aos de Miller teriam sua liberação facilitada dado o precedente aberto por
eles. The Naked Lunch de William Burroughs, An Americam Dream de Normam Mailer,
Portnoy´s Complaint de Philip Roth assim como as novelas de Charles Bukowski são
exemplos de obras que ganhariam maior destaque a partir desse movimento gerado pela
liberação e pela consequente requalificaçao das obras de Miller.
Os escritores da chamada “geração beat” elegeriam Henry Miller como uma espécie
de patrono. Assim, um novo tipo de aproprião de suas obras, que passam também a ser
encaradas como fontes primárias dos traços que constituiriam as bases do novo movimento
literário. O flerte com a cultura oriental, o desprezo pelo materialismo e a proposta de um
fazer literário calcado na sinceridade e na falta de pudor fariam que obra de Miller passasse a
funcionar também como o local de origem de uma autodenominada nova literatura
Americana”. A frase de Lawrence Durrel exemplifica bem a questão, escritor inglês diria na
época que: “a literatura americana começa e termina com o sentido daquilo que Miller
realizou”.
136
É claro que o papel de patrono da nova literatura corresponde a um determinado tipo
de apropriação, particularmente interessante para todos aqueles que, de alguma forma, se
colocavam como “herdeiros” do “legadodeixado pelo escritor. De qualquer forma, a obra
de Miller ocuparia um lugar de destaque e seria importante na definição de todo um repertório
de questões relativas à produção literária. Questões estas que, redefinidas e abertas a inúmeras
possibilidades em termos de novos usos, fazem o nome de Henry Miller figurar entre os
grandes da literatura ocidental do século XX. Uma marca desse sucesso seria o fato de tanto
Tropic of Cancer quanto Quiet Days in Clichy ganharam versões cinematográficas. Ambos
foram lançados em 1970, o primeiro dirigido por Joseph Strick e o segundo por Jens Jorgen
Thorsen.
Quiet Days in Clichy causou a maior polêmica na época de seu lançamento. O filme
acabou sendo censurado e circularam diferentes versões ao redor do mundo. Contendo
originalmente cem minutos, chegou a ser exibido com noventa e até oitenta minutos apenas.
A versão cinematográfica de Tropic of Cancer foi considerado impróprio para menores e
136
FERGUSON, Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 377.
103
também sofreu sanções em alguns países. Quiet Days in Clichy foi filmado com uma “estética
rock´n roll” a trilha sonora inclusive é compostas de canções do gênero o que ajudou a
fazer com que Miller pudesse ser tomado como um ícone da nova juventude americana.
É sempre importante destacar que o processo que faz Henry Miller passar de um mero
escritor perdido em Paris a um romancista bem-sucedido, não tem nada de natural, ou seja,
não se trata de uma questão de justiça. Talvez o que se possa dizer é que o seu sucesso, em
alguma medida, se deve ao triunfo de seu projeto literário. De forma geral, se pode afirmar
que, das inúmeras disputas que travou, o saldo final ou atual, para ser mais preciso é de
sucesso. É nessas disputas que se estrutura a identidade literária de Henry Miller; e nelas,
sua obra faz sentido.
104
Capítulo III
A crucificação encenada
3.1 O crucificado
Em entrevista concedida à Paris Review em 1961, Henry Miller comenta que toda sua
obra, de Tropic of Capricorn à trilogia The Rosy Crucifixion trata dos sete anos que
antecederam sua viagem para a Europa, quando ficou sozinho, posto que em 1927 sua mulher
já havia partido para Paris. É nesse período que decide escrever um livro sobre sua vida.
“That was the crucial period of my life as a writer, the period just before leaving America.”
Ainda na mesma entrevista, Miller comenta sobre a possibilidade de escrever um segundo
volume de Nexus (o que nunca viria a acontecer), de modo a finalizar um projeto iniciado
ainda em 1927.
Well, yes, in a sense I must finish my project, the project I laid out in1927. This is the end
of it, you see. I think part of my delay in finishing it is that I don't want to bring the work
to an end. It means that I will have to turn over, take a new tack, discover a new field, as
it were. Because I no longer want to write about my personal experiences. I wrote all
these autobiographical books not because I think myself such an important person but -
this will make you laugh - because I thought when I began that I was telling the story of
the most suffering any man had endured. As I got on with it I realized that I was only an
amateur at suffering. Certainly I had my full share of it, but I no longer think it was so
terrible. That's why I called the trilogy The Rosy Crucifixion. I discovered that this
suffering was good for me, that it opened the way to a joyous life, through acceptance of
the suffring. When a man is crucified, when he dies to himself, the heart opens like a
flower. Of course you donn´t die, nobody dies, death doesn´t exist, you only reach a new
level of vision you only reach a new level of vision, a new realm of consciousness, a new
unknow world. Just as you don't know where you came from, so you don't know where
you're going. But that there is something there, before and after, I firmly believe.
137
Miller narra sua hisria como a maior das tragédias humanas. Dramatiza uma via
crucis para expor a sua dor. Há claramente um projeto cujo objetivo maior é encenar a paixão
e a morte
de Henry Miller. Em seus textos, é dada a ver uma crucificação positiva e
necesria, que gera a dor, mas redime a carne. O efeito final é de uma redenção sem
transcendência. A plenitude espiritual se experimenta na matéria.
137
MILLER, Henry. The Art of Fiction. Paris Review n.º 28, New York, 1961, p. 31.
105
A encenação da crucificação que Henry Miller realiza em seus romances parte de um
esboço da figura daquele que sofre. O calvário que Miller dramatiza é personificado na figura
de um herói marginalizado. No caso de Miller, esse herói é o artista autônomo, aquele que
define sua existência em nome da criação e sente necessariamente as suas dores. A
possibilidade de existência dessa figura do artista autônomo, segundo Pierre Bourdieu, teria
sido uma conquista de artistas franceses do século XIX. Desse processo se daria a invenção de
uma espécie de modelo representante dos valores inscritos no princípio da “arte pela arte”. O
artista moderno que se dedica exclusivamente à sua arte, é um profissional que, em tempo
integral, trabalha exaustivamente alheio à moral e à política, reconhecendo as leis de sua
própria arte.
138
Trabalha em nome de sua arte e apenas ela o interessa, as outras forças que
ordenam o mundo não lhe dizem rerpeito. Segundo Bourdieu:
Flaubert sentiu muito bem o principio da nova economia: Quando não nos dirigimos à
multidão, é justo que a multidão não nos pague. É economia política. Ora, sustento que
uma obra de arte digna desse nome e feita com consciência é inapreciável, não tem valor
comercial, não pode ser paga. Conclusão: se o artista o tem rendas, deve morrer de
fome! Acha-se que o escritor, porque não recebe mais pensões dos grandes, é muito mais
livre, mais nobre” [...] Quanto mais consciência se põe em seu trabalho, menos se tira
lucro dele. Sustento esse axioma com a cabeça sob a guilhotina. Nós somos operários de
luxo; ora, ninguém é bastante rico para pagar-nos. Quando se quer fazer dinheiro com sua
pena, é preciso fazer jornalismo, folhetim ou teatro.”
139
Para o verdadeiro artista nobreza na fome, na incompreensão e no sofrimento. É
uma economia do mundo às avessas que se constrói na oposição ao universo burguês. É a
partir desse entendimento do que seja um artista legítimo que o personagem central de Miller
é construído.
Ainda segundo Pierre Bourdieu, a principal referência para a construção do estilo de
vida do artista é a figura do boêmio. Com o elogio à fantasia, à bebida e ao amor em todas as
suas formas, a arte de viver dos boêmios se converte em uma das belas-artes.
140
Nesse sentido,
o personagem que se configura como o artista” ultrapassa os limites do fato literário: os
romancistas atuam ajudando a difundir um novo tipo de identidade social especialmente ao
138
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 95.
139
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 101.
140
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 72.
106
inventar e disseminar a ppria noção de boemia, e para a construção de sua identidade, de
seus valores, de suas normas e seus mitos”.
141
Mas a sociedade dos artistas não é apenas o laboratório onde se inventa essa arte de viver
muito particular que é o estilo de vida de artista, dimensão fundamental da empresa de
criação artística. Uma de suas funções principais, e no entanto sempre ignorada, é ser para
si mesma seu próprio mercado. Ela oferece às audácias e às transgressões que os
escritores e os artistas introduzem, não apenas em suas obras, mas também em sua
existência, ela própria concebida como uma obra de arte, a acolhida mais favorável, mais
compreensiva; as sanções desse mercado privilegiado se não se manifestam em dinheiro
vivo, m pelo menos por virtude assegurar uma forma de reconhecimento social ao que
outro modo aparece (ou seja, a outros grupos) como um desafio ao senso comum. A
revolução cultural nascida desse mundo às avessas que é o campo literário e artístico
pode ser bem-sucedida porque os grandes heresiarcas podiam contar, em sua vontade de
subverter todos os princípios de visão e de divisão, se não com o apoio, pelo menos com a
atenção de todos aqueles que, ao entrar no universo da arte em via de constituição,
haviam tacitamente aceito a possibilidade de que tudo fosse possível.
Assim, está claro que o campo literário e artístico constitui-se como tal na e pela oposição
ao mundo burguês” que jamais afirmara de maneira tão brutal seus valores e sua
pretensão de controlar os instrumentos de legitimação, tanto no domínio da arte como no
domínio da literatura, e que, por intermédio da imprensa e de seus plumitivos, visa impor
uma definição degradada e degradante da produção cultural.
142
A forma mais contundente do boêmio que sintetiza a oposição ao universo burguês
aparece, em Miller, na figura do crucificado. Henry Miller é o homem que na busca de sua
realização espiritual sofre como um rtir. Sua missão é revelar a palavra e a verdade
redentora. Sua trajeria é narrada para que dela se possa ver a construção de um herói trágico
que se revela entre dores e prazeres mundanos.
Talvez seja possível afirmar que esse personagem aparece pronto em seu primeiro
romance. Se Tropic of Cancer é o primeiro capítulo de sua trajetória, é também o
adiantamento de um fim. O romance é narrado no presente, quase na forma de um drio.
Basicamente é um romance das aventuras de Henry Miller nos submundos de Paris. O
narrador vive nas ruas de uma Paris ao mesmo tempo decadente e fervilhante. Nesse sentido,
o romance funciona como uma espécie de diário de bordo, onde as ruas tornam-se o foco de
exploração do tema da decadência. Utilizando-se de uma linguagem brutal e às vezes
agressiva, Miller parece querer montar o quadro de uma sociedade doente e em vias de
extinção, a força do romance parece vir justamente daí, desse lugar onde o autor fala quase
como um profeta do caos. É possível perceber que Henry Miller começa a narrar sua via
141
BOURDIEU, Pierre, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 72.
142
BOURDIEU, Pierre, op. cit., p. 75.
107
crucis de trás para frente. Em seu primeiro romance, apresenta o homem que desceu da cruz e
conheceu a redenção espiritual. Nos romances seguintes passa a narrar essa trajetória. Nesse
sentido, dos textos aqui tratados, Tropic of Cancer é o único narrado no presente, todos os
outros têm um tom de lembrança que remete a uma espécie de resgate dos tempos passados.
If one isn't crucified, like Christ, if one manages to survive, to go on living above and
beyond the sense of desperation and futility, then another curious thing happens. It's as
though one had actually died and actually been resurrected again; one lives a supernormal
life, like the Chinese. That is to say, one is unnaturally gay, unnaturally healthy,
unnaturally indifferent. The tragic sense is gone: one lives on like a flower, a rock, a tree,
one with Nature and against Nature at the same time. If your best friend dies you don't
even bother to go to the funeral; if a man is run down by a streetcar right before your eyes
you keep on walking just as though nothing had happened; if a war breaks out you let
your friends go to the front but you yourself take no interest in the slaughter. And so on
and so on. Life becomes a spectacle and, if you happen to be an artist, you record the
passing show. Loneliness is abolished, because all values, your own included, are
destroyed. Sympathy alone flourishes, but it is not a human sympathy, a limited sympathy
it is something monstrous and evil. You care so little that you can afford to sacrifice
yourself for anybody or anything. At the same time your interest, your curiosity, develops
at an outrageous pace.
143
O personagem que Miller apresenta em seu primeiro romance é justamente esse que,
diferentemente de Cristo, sobreviveu à crucificação. O escritor passa a se representar como o
mais sadio dos homens, aquele que diante de um sofrimento sublime, conheceu a verdade e a
paz. Sua experiência como sobrevivente lhe teria aberto a consciência para uma compreensão
mais plena da realidade. Como escritor, Miller experimenta os segredos e mistérios da
plenitude da vida. Em Tropic of Capricorn tenta explicar como se sentia no momento em que
começava a experimentar essa sublime salubridade espiritual:
I could put up with heartbreaks and abortions and busted romances, but I had to have
something under my belt to carry on, and I wanted something nourishing, something
appetizing. I felt exactly like Jesus Christ would have felt if he had been taken down from
the cross and not permitted to die in the flesh. I am sure that the shock of crucifixion
would have been so great that he would have suffered a complete amnesia as regards
humanity. I am certain that after his wounds had healed he wouldn't have given a damn
about the tribulations of mankind but would have fallen with the greatest relish upon a
fresh cup of coffee and a slice of toast, assuming he could have had it.
144
O personagem apresentado em Tropic of Cancer é a imagem do homem livre moral e
fisicamente. É um andarilho que espalha sua mensagem pelas ruas entre encontros com
amigos e noitadas com mulheres.
143
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p.63 – 64.
144
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 67.
108
Walking along the Champs-Elyes I keep thinking of my really superb health.
When I say "health" I mean optimism, to be truthful. Incurably optimistic! Still
have one foot in the nineteenth century. I'm a bit retarded, like most Americans. Carl finds it
disgusting, this optimism. "I have only to talk about a meal," he says, "and you're radiant!"
It's a fact. The mere thought of a meal another meal rejuvenates me. A meal!
That means something to go on – a few solid hours of work, an erection possibly. I don't
deny it. I have health, good solid, animal health. The only thing that stands
between me and a future is a meal, another meal.
145
A libertação que experimenta gera a superação das dores do passado e anuncia um
mundo de possibilidades inexploradas para o futuro.
My eye, but I've been all over that ground years and years ago. I've lived out my
melancholy youth. I don't give a fuck any more what's behind me, or what's ahead of me.
I'm healthy. Incurably healthy. No sorrows, no regrets. No past, no future. The present is
enough for me. Day by day. Today! Le bel aujourd'hui!
146
Esse homem liberto, redimido e saudável é aquele que sobreviveu à crucificação. Esse
processo de descoberta espiritual, baseado no sofrimento e na refleo intelectual aparece
como o único caminho que pode levar à revelação da arte. O artista é o sobrevivente, produto
final da via crucis encenada.
The artist, I call myself. So be it. A beautiful nap this afternoon that put velvet between
my vertebrae. Generated enough ideas to last me three days. Chock-full of energy and
nothing to do about it. Decide to go for a walk. In the street I change my mind. Decide to
go to the movies. Can't go to the movies short a few sous. A walk then. At every movie
house I stop and look at the billboards, then at the price list. Cheap enough, these opium
joints, but I'm short just a few sous. If it weren't so late I might go back and cash an
empty bottle.
147
Nesse caso, “o artista” é também um tipo de herói. Sua missão vai se revelando ao
longo de todos os romances. Sua cruzada romântica tem como alvo constante a redefinição da
moral e a reformulação dos valores que retratam o homem ocidental.
When I reflect that the task which the artist implicitly sets himself is to overthrow
existing values, to make of the chaos about him an order which is his own, to sow strife
and ferment so that by the emotional release those who are dead may be restored to life,
then it is that I run with joy to the great and imperfect ones, their confusion nourishes me,
their stuttering is like divine music to my ears. I see in the beautifully bloated pages that
follow the interruptions the erasure of petty intrusions, of the dirty footprints, as it were,
145
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 45.
146
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 45 - 46.
147
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 60.
109
of cowards, liars, thieves, vandals, calumniators. I see in the swollen muscles of their
lyric throats the staggering effort that must be made to turn the wheel over, to pick up the
pace where one has left.
148
Para que essa tarefa monumental faça sentido, é preciso ir muito além da arte. Assim,
os romances de Miller são estruturados para funcionarem como algo além da literatura.
There is only one thing which interests me vitally now, and that is the recording of all that
which is omitted in books. Nobody, so far as I can see, is making use of those elements in
the air which give direction and motivation to our lives. Only the killers seem to be
extracting from life some satisfactory measure of what they are putting into it. The age
demands violence, but we are getting only abortive explosions. Revolutions are nipped in
the bud, or else succeed too quickly. Passion is quickly exhausted. Men fall back on
ideas, contrite d'habitude. Nothing is proposed that can last more than twenty-four hours.
We are living a million lives in the space of a generation. In the study of entomology, or
of deep sea life, or cellular activity, we derive more
149
Seus livros devem ocupar um outro lugar, devem ser revestidos de um sentido bastante
particular. Definitivamente é preciso ir além. Para funcionarem como “mais do que
literatura”, esses romances devem manifestar a pretensão de ignorá-la e superá-la.
I have been looking over my manuscripts, pages scrawled with revisions. Pages of
literature. This frightens me a little. It is so much like Moldorf. Only I am a Gentile, and
Gentiles have a different way of suffering. They suffer without neuroses and, as Sylvester
says, a man who has never been afflicted with a neurosis does not know the meaning of
suffering.
I recall distinctly how I enjoyed my suffering. It was like taking a cub to bed with you.
Once in a while he clawed. You and then you really were frightened. Ordinarily you
had no fear you could always turn him loose, or chop his head off.
150
A ficção que Miller produz quer justamente forçar as fronteiras do ficcional para soar
como uma mensagem viva. Na imagem do herói que leva seu nome, as dores devem parecer
verdadeiras e sua trajetória verídica. Nesse sentido, boa parte de sua narrativa se dá como um
desfile de trivialidades. Narra algumas banalidades de seu cotidiano inserindo nele traços de
uma trajetória ardorosa.
Hotels and food, and I'm walking about like a leper with crabs gnawing at my entrails. On
Sunday mornings there's a fever in the streets. Nothing like it anywhere, except perhaps
on the East Side, or down around Chatham Square. The Rue de l'Echaude is seething. The
148
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p.228.
149
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 10.
150
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 8.
110
streets twist and turn, at every angle a fresh hive of activity. Long queues of people with
vegetables under their arms, turning in here and there with crisp, sparkling appetites.
Nothing but food, food, food. Makes one delirious.
151
O crucificado é aquele que superou a si mesmo e revelou sua condição para além do
humano.
I am Chancre, the crab, which moves sideways and backwards and forwards at will. I
move in strange tropics and deal in high explosives, embalming fluid, jasper, myrrh,
smaragd, fluted snot and porcupine's toes. Because of Uranus which crosses my
longitudinal I am inordinately fond of cunt, hot chitterlings and water bottles. Neptune
dominates my ascendant. That means I am composed of watery fluid, that I am volatile,
quixotic, unreliable, independent, and evanescent. Also quarrelsome. With a hot pad
under my ass I can play the braggart or the buffoon as good as any man, no matter what
sign he born under. This is a self-portrait which yields only the missing parts – an anchor,
a dinner bell, the remains of a beard, the hind part of a cow. In short, I am an idle fellow
who pisses his time away. I have absolutely nothing to show for my labours except my
genius. But there comes a time, even in the life of an idle genius, when he has to go to the
window and vomit up the excess baggage. If you are a genius you have to do that – if for
no other reason than to build a little comprehensible world of your own which will not
run down like an eight-day clock! And the more ballast you throw overboard the easier
you rise above the esteem of your neighbours. Until you find yourself all alone in the
stratosphere. Then you tie a stone around your neck and you jump feet first. That brings
about the complete destruction of anagogic dream interpretation, together with mercurial
stomatitis brought about by inunctions. You have the dream for the night time and the
horse laugh for the day time.
152
A sua “genialidade” o conduz para uma solidão divina. Miller define um universo
literário para que seu personagem principal funcione como um mito. Esse mito se constrói
entre o humano e o divino, entre o mundano e o sublime.
Between these moments, in the interstices of the dream, life vainly tries to build up, but
the scaffold of the city's mad logic is no support. As an individual, as flesh and blood, I
am leveled down each day to make the fleshless, bloodless city whose perfection is the
sum of all logic and death to the dream. I am struggling against an oceanic death in which
my own death is but a drop of water evaporating. To raise my own individual life but a
fraction of an inch above this sinking sea of death I must have a faith greater than
Christ's, a wisdom deeper than that of the greatest seer. I must have the ability and the
patience to formulate what is not contained in the language of our time, for what is now
intelligible is meaningless. My eyes are useless, for they render back only the image of
the known. My whole body must become a constant beam of light, moving with an ever
greater rapidity, never arrested, never looking back, never dwindling. The city grows like
a cancer; I must grow like a sun. The city eats deeper and deeper into the red; it is an
insatiable white louse which must die eventually of inanition. I am going to starve the
151
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961, p. 35.
152
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books. 1974, p. 29 - 30.
111
white louse which is eating me up. I am going to die as a city in order to become again a
man. Therefore I close my ears, my eyes, my mouth.
153
A trajetória do crucificado define a formação do artista em si. Estabelece sua condição
como sábio e revolucionário. É com a autoridade de quem sobreviveu às mais poderosas
provações que o personagem de Miller fala.
I am a traveller, not an adventurer. Things happen to me in my search for a way out. Up
till now I had been working away in a blind tunnel, burrowing in the bowels of the earth
for light and water. I could not believe, being a man of the American continent, that there
was a place on earth where a man could be himself. By force of circumstance I became a
Chinaman a Chinaman in my own country! I took to the opium of dream in order to
face the hideousness of a life in which I had no part. As quietly and naturally as a twig
falling into the Mississippi I dropped out of the stream of American life. Everything that
happened to me I remember, but I have no desire to recover the past, neither have I any
longings or regrets. I am like a man who awakes from a long sleep to find that he is
dreaming. A pre-natal condition the born man living unborn, the unborn man dying
born.
154
Henry Miller, na condição de homem mais que humano, comunica-se com um público
inscrito no texto, mas parece querer falar para uma multidão anônima de ouvintes.
Once you have given up the ghost, everything follows with dead certainty, even in the
midst of chaos. From the beginning it was never anything but chaos: it was a fluid which
enveloped me, which I breathed in through the gills. In the substrata, where the moon
shone steady and opaque, it was smooth and fecundating; above it was a jangle and a
discord. In everything I quickly saw the opposite, the contradiction, and between the real
and the unreal the irony, the paradox. I was my own worst enemy. There was nothing I
wished to do which I could just as well not do. Even as a child, when I lacked for nothing,
I wanted to die: I wanted to surrender because I saw no sense in struggling. I felt that
nothing would be proved, substantiated, added or subtracted by continuing an existence
which I had not asked for. Everybody around me was a failure, or if not a failure,
ridiculous. Especially the successful ones. The successful ones bored me to tears. I was
sympathetic to a fault, but it was not sympathy that made me so. It was a purely negative
quality, a weakness which blossomed at the mere sight of human misery. I never helped
any one expecting that it would do any good; I helped because I was helpless to do
otherwise. To want to change the condition of affairs seemed futile to me; nothing would
be altered, I was convinced, except by a change of heart, and who could change the hearts
of men?
155
Ou ainda:
153
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 122 – 123.
154
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 159.
155
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 9.
112
It is the twenty-somethingth of October. I no longer keep track of the date.
Would you say my dream of the 14th November last? There are intervals, but
they are between dreams, and there is no consciousness of them left. The world
around me is dissolving, leaving here and there spots of time. The world is a
cancer eating itself awayI am thinking that when the great silence descends
upon all and everywhere music will at last triumph. When into the womb of time
everything is again withdrawn chaos will be restored and chaos is the score upon
which reality is written. You, Tania, are my chaos. It is why I sing. It is not even
I, it is the world dying, shedding the skin of time. I am still alive, kicking in your
womb, a reality to write upon.
156
Sua mensagem quase nunca é otimista. Fala como um profeta do caos com a missão de
destruir uma realidade decadente. Mesmo anunciando uma possibilidade de redenção, o
profeta que Miller criou guarda na mesma medida palavras de ódio e de compaixão absoluta.
Sem nunca deixar de ter no horizonte uma redenção coletiva, o personagem, por vezes,
assume a face de um messias que o quer salvar ninguém.
Everywhere I go people are making a mess of their lives. Everyone has his
private tragedy. It's in the blood now misfortune, ennui, grief, suicide. The
atmosphere is saturated with disaster, frustration, futility. Scratch and scratch
until there's no skin left. However, the effect upon me is exhilarating. Instead of
being discouraged, or depressed, I enjoy it. I am crying for more and more
disasters, for bigger calamities, for grander failures. I want the whole world to be
out of whack, I want everyone to scratch himself to death.
157
Esse personagem, que assume posições contraditórias ao demonstrar doses de amor e
ódio pela humanidade, foi, em grande medida, construído a partir de dois outros. Como já foi
demonstrado anteriormente, o Zaratustra, de Nietzsche e o príncipe Míchkin, de Dostoievski,
o referências importantes na construção do personagem Henry Miller.
A importância de Zaratustra se revela na estrutura dos textos. Henry Miller é
construído como um orador que fala para um público determinado. Seu personagem é,
sobretudo, um pregador. Se Cristo pregou o Sermão da Montanha para os pobres, Henry
Miller, como Zaratustra, fala aos destemidos. O seu texto é um evangelho dos fortes. Sua
mensagem não é para todos, é para poucos. Ela anuncia o fim de uma era e de um tipo de
humanidade.
It may be that we are doomed, that there is no hope for us, any of us, but if that is so then
let us set up a last agonizing, bloodcurdling howl, a screech of defiance, a war whoop!
156
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 2.
157
MILLER, Henry, op. cit.; p. 11.
113
Away with lamentation! Away with elegies and dirges! Away with biographies and
histories, and libraries and museums! Let the dead eat the dead. Let us living ones dance
about the rim of the crater, a last expiring dance. But a dance!
158
Se Zaratustra ficou meditando por dez anos numa caverna no alto de uma montanha,
tendo ao seu lado apenas a águia e a serpente, até o momento em que se sentiu compelido a
baixar à planície, Miller é construído nas ruas. Sua sabedoria nasce à medida que sua
crucificação se desenvolve. Porém, a missão de ambos passa pelo anúncio da chegada de um
novo homem.
Tanto um quanto outro pretendem atingir parte específica da humanidade: os homens
superiores, excluídos, ou pelo menos não perfeitamente identificados com a mensagem de
Cristo. Suas falas anunciam uma era em que o homem deve assumir o poder na totalidade. No
caso de Zaratustra, isso se articula com a morte de Deus, e no caso de Miller, com a afirmação
de um novo sentido para a divindade. Para Miller, o homem deve redescobrir Deus e se
reinventar em Deus.
I am thinking of that age to come when God is born again, when men will fight and kill
for God as now and for a long time to come men are going to fight for food. I am thinking
of that age when work will be forgotten and books assume their true place in life, when
perhaps there will be no more books, just one great big book – a Bible. For me the book is
the man and my book is the man I am, the confused man, the negligent man, the reckless
man, the lusty, obscene, boisterous, thoughtful, scrupulous, lying, diabolically truthful
man that I am. I am thinking that in that age to come I shall not be overlooked. Then my
history will become important and the scar which I leave upon the face of the world will
have significance. I cannot forget ihat I am making history, a history on the side which,
like a chancre, will eat away the other meaningless history. Regard myself not as a book,
a record, a document, but as a history of our time a history of all time.
159
Para Zaratustra, na sua doutrina do eterno retorno, o tempo é um ciclo perfeito. Sem
início nem fim, segue uma estrada infinita para trás e para frente, sendo o instante o ponto
onde as duas estradas se encontram. Assim, tudo aconteceu e voltará a acontecer
novamente, numa repetição infinita. O eterno retorno é o mais pesado dos pesos, e Zaratustra
é, sobretudo, seu profeta. O eterno retorno aparece, por um lado, como assustador, quando
não mortífero, e, por outro, como libertador, como o mecanismo que permite a suprema
afirmação. De qualquer forma, Zaratustra apresenta a forma mais extrema de niilismo.
158
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 232.
159
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 24-25.
114
Henry Miller também propõe uma reformulação da compreensão acerca da linearidade
do tempo.
I want to make a detour of those lofty arid mountain ranges where one dies of thirst and
cold, that "extra-temporal" history, that absolute of time and space where there exists
neither man, beast, nor vegetation, where one goes crazy with loneliness, with language
that is mere words, where everything is unhooked, ungeared, out of joint with the times. I
want a world of men and women, of trees that do not talk (because there is too much talk
in the world as it is!) of rivers that carry you to places, not rivers that are legends, but
rivers that put you in touch with other men and women, with architecture, religion, plants,
animals rivers that have boats on them and in which men drown, drown not in myth and
legend and boots and dust of the past, but in time and space and history. I want rivers that
make oceans such as Shakespeare and Dante, rivers which do not dry up in the void of the
past. Oceans, yes! Let us have more oceans, new oceans that blot out the past, oceans that
create new geological formations, new topographical vistas and strange, terrifying
continents, oceans that destroy and preserve at the same time, oceans that we can sail on,
take off to new discoveries, new horizons.
160
Henry Miller, nas falas de seu herói, atualiza assim a ideia de decadência na cultura
ocidental, que carrega o pressuposto de que a sociedade moderna, uma vez centrada no
materialismo, teria gerado uma lógica gananciosa e insensível, onde impera uma profunda
desvalorização do humanismo. O resultado mais evidente seria o fato de os homens viverem
na modernidade de forma deslocada, desenraizada, psicologicamente prejudicados e isolados.
A lógica da decadência parte do princípio de que o modelo ocidental baseado no capitalismo,
no racionalismo científico e em instituições democráticas está fadado ao fracasso. O mundo
das massas é lido como o império da ignorância e do fim da cultura.
Ainda que se percebam claramente as diferenças entre os conteúdos das falas que
definem os dois personagens, a importância de Zaratustra para a invenção de Henry Miller é
clara. Talvez seja possível afirmar que determinados mecanismos textuais utilizados pelo
filósofo alemão sirvam de modelo para o escritor americano. O esforço de filiação que o
segundo articula em relação ao primeiro (já analisado no primeiro capítulo), demarca ainda
mais objetivamente a apropriação de Miller.
Segundo Roberto Machado, Assim falou Zaratustra é uma tragédia:
o evidentemente uma tragédia no sentido preciso e exclusivo de um gênero artístico
determinado. Como a tragédia grega de Ésquilo, de Sófocles e de Eurípedes. Em sua
forma híbrida, polivalente, ltipla, Assim falou Zaratustra me parece um resultado da
independência do trágico em relação à tragédia clássica, que ocorre no início da
160
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 231.
115
modernidade com Schelling, Hegel e Hölderlin, quando a questão da essência do trágico
passa a não mais se ligar necessariamente a uma determinada forma estética.
Radicalizando O nascimento da tragédia, para qual a finalidade da tragédia, ao exibir os
sofrimentos do herói, é produzir alegria, Nietzsche, ao mesmo tempo filósofo do
sofrimento e da alegria, no momento em que se sente o primeiro filósofo trágico, pretende
mostrar como a trajetória de Zaratustra, pensada como uma tragédia, que, apesar de todo
sofrimento, a afirmação do eterno retorno torna o herói trágico fundamentalmente alegre,
o que teria escapado aos autores de tragédia, clássicos ou modernos.
161
O sentido trágico de Zaratustra é também importante para Miller. A ideia de apresentar
um homem que se constrói a partir de sua experiência e do acúmulo de sofrimentos e que
desenvolve um amor pela vida que se traduz em uma aceitação plena de todas as suas faces, é,
em grande medida, o que norteia a construção de Miller. Nesse sentido, o trágico nietzschiano
é também um elemento definidor de seu projeto literário.
A imagem do crucificado construída por Miller, remete também a um outro
personagem modelo, o príncipe Míchkin. O idiota é um romance em que o personagem
central, homem positivamente belo, define todo o sentido da trama. Assim como nos textos de
Miller, a sua construção parece ser o único objetivo da obra de Dostoievski. O personagem de
Míchkin tenta atingir o grau supremo da evolução do indivíduo, por ser capaz de sacrificar-se
em benefício de todos.
No romance de Dostoievski se encena a tentativa de superação de qualquer forma de
egsmo: a figura do príncipe aparece como a dramatização de um ideal ético, somente
possível em Cristo. Henry Miller, por sua vez, também se coloca como a encarnação da
máxima bondade cristã.
I have never found such a man! I have never found a man as generous as myself, as
forgiving, as tolerant, as carefree, as reckless, as clean at heart. I forgive myself for every
crime I have committed. I do it in the name of humanity. I know what it means to be
human, the weakness and the strength of it. I suffer from this knowledge and I revel in it
also. If I had the chance to be God I would reject it. If I had the chance to be a star I
would reject it. The most wonderful opportunity which life offers is to be human. It
embraces the whole universe. It includes the knowledge of death, which not even God en-
joys.
162
Se Míchkin carrega sua utopia do amor-compaixão por todos, por Marie e pelas
crianças, por Hippolit, Keller, Liébediev e principalmente por Nastácia Filíppovna, Henry
Miller aparece como o melhor dos homens. A plenitude de sua sabedoria ousa ser mais
completa que a do pprio Deus e sua compaio abraça toda a humanidade. Miller se
161
MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 28-29.
162
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 229.
116
aproxima da representação de Cristo, joga com ela, mas também se afasta. O funcionamento
de seu herói depende da relação complexa existente entre a pureza da virtude e o cheiro de
carne humana, articulando-se entre dois polos extremos para extrair o máximo de energia e
violência possível.
What was
most annoying was that at first blush people
usually took me to be good, to be
kind, generous, loyal, faithful.
Perhaps I did possess
these virtues but if so it was
because I was indifferent: I could afford to be good, kind, generous, loyal, and so forth,
since I was free of envy. Envy was the one thing I was never a victim of. I have never
envied anybody or anything. On the contrary, I have only felt pity for everybody and
everything
163
O crucificado é o artista, pois é aquele que sofreu as dores da crucificação, mas se
manteve vivo. Vivo e reanimado, como se de fato viesse de uma ressurreição. É o mensageiro
que parte do princípio de que “when all is lost the soul steps forth”.
164
Como artista, se coloca
acima do bem e do mal, revelando amor e ódio. O profeta Henry Miller está sempre na
fronteira entre condenar e redimir os homens. É o homem sadio que despreza os fracos, mas
insiste em se colocar como o salvador de todos na medida em que compreende todas as dores
do mundo.
I was like the lighthouse itself secure in the midst of the most turbulent sea. Beneath me
was solid rock, the same shelf of rock on which the towering skyscrapers were reared. My
foundations went deep into the earth and the armature of my body was made of steel
riveted with hot bolts. Above all I was an eye, a huge searchlight which scoured far and
wide, which revolved ceaselessly, pitilessly. This eye so wide-awake seemed to have
made all my other faculties dormant; all my powers were used up in the, effort to see, to
take in the drama of the world.
165
3.2 A via crucis
A montagem do cenário da via crucis de Henry Miller tem como um de seus eixos
principais um tipo de representação de seu país natal: a América é o cenário da dor e do
sofrimento. É o ambiente onde, por excelência, o artista é desprezado e massacrado. É o lugar
163
MILLER, Henry, op. cit.; p. 9 - 10.
164
MILLER, Henry. Nexus. N.J. Castle Books, 1965, p. 45.
165
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 76.
117
onde Miller nasce já culpado por sua própria condição. Na rua das primeiras tristezas” (nome
que Miller dá a rua onde passou a infância), o cenário de um calvário é montado. Na América
opressora, Miller se torna o que ele é.
Recordando minha vida na América, tenho a impressão de ter percorrido milhares de
quilômetros de barriga vazia. Sempre atrás de alguns vinténs, de um pedaço de pão,
emprego, de um lugar onde cair morto […] Conheço centenas de restaurantes em Nova
York, não de visitá-los como freguês, mas de ficar parado do lado de fora, contemplando
faminto as pessoas que comiam dentro […] Quando mendigava pouco mais que o
suficiente para uma refeição, ia imediatamente ao teatro ou ao cinema. A única coisa que
me interessava, de estômago cheio, era encontrar um lugar aquecido e aconchegado onde
pudesse descansar e esquecer minhas atribulações por um par de horas […] Percorri a pé,
inúmeras vezes, a distância que vai do coração do Brooklyn ao coração de Manhattam.
166
Em Black Spring o palco é apresentado nos tons de uma melancólica recordação. Esse
seria o seu segundo livro publicado e em que a ideia de narrar sua trajetória pessoal começa a
ficar mais clara. Trata-se de uma reunião de contos que, em geral, tratam da infância de
Miller. Em Black Spring, o bairro do Brooklyn surge como um recurso importante para o
desenvolvimento do drama. Nele, é criada a imagem de uma infância triste, porém marcada
por eventos decisivos.
The house wherein I passed the most important years of my life had only three rooms.
One was the room in which my grandfather died. At the funeral my mother's grief was so
violent that she almost yanked my grandfather out of the coffin. He looked ridiculous, my
dead grandfather, weeping with his daughter's tears. As if he were weeping over his own
funeral.
167
A imagem do andarilho aparece esboçada. Henry Miller, ainda jovem, se dedica
a investigar a cidade e seus habitantes, sempre com um certo ar acusador que marca a
figura do hei que se desenvolve.
Walking over the Brooklyn BridgeIs this the world this walking up and down, these
buildings that are lit up, the men and women passing me? I watch their lips movin, the
lips of the men and women passing me. What are they talking about some of them so
earnestly? I hate seeing, people so deadly serious when I myself am suffering worn than
any of them. One life! And there are millions mad millions of lives to be lived. So far I
haven't had a thing I say about my own life. Not a thing. Must be I haven't got the guts.
168
166
MILLER, Henry. A hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 27.
167
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 23.
168
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 110.
118
É importante destacar que os textos que compõem Black Spring não tratam
exclusivamente da infância de Miller, mas esse é certamente o livro em que o escritor mais
investe na ideia de dramatizar e caracterizar seus primeiros anos de vida. É um livro essencial
por apresentar, pela primeira vez, uma narrativa em tons memorialísticos, que Tropic of
Cancer é todo narrado no presente. Black Spring fala da inncia de Henry Miller e lança as
bases de toda a encenação da via crucis.
na primeira página do livro, a ênfase na ideia de ser um filho das ruas é evidente.
169
Este é um traço fundamental de seu personagem e um elemento chave na configuração de sua
infância. Ter experimentado as ruas desde a juventude teria dado a Henry Miller a sabedoria
verdadeira. Seu processo de crucificação começa e termina nas ruas, entre Nova York e Paris.
Dessa maneira, os primeiros passos são dados em Black Spring.
Going down the street past the flats, an ice-blue gaiety in my narrow, choking veins. The
winter's snow is melting, the gutters are swimming over. Sorrow gone and joy with it,
melted, trickling away, pouring into the sewer. Suddenly the bells begin to toll, wild
funereal bells with obscene tongues, with wild iron clappers that smash the glass
haemorrhoids of the veins. Through the melting snow a carnage reigns: low Chinese
horses hung with scalps, long finely-jointed insects with green mandibles. In front of each
house an iron railing spiked with blue flowers.
Down the street of early sorrows comes the witch mother stalking the wind, her wide sails
unfurled, her dress bulging with skulls. Terrified we flee the night, perusing the green
album, its high decor of frontal legs, the bulging brow. From all the rotting stoops the hiss
of snakes squirming in the bag, the cord tied, the bowels knotted. Blue flowers spotted
like leopards, squashed, blood-sucked, the earth a vernal stain, gold, marrow, bright bone
dust, three wings aloft and the march or the white horse, the ammonia eyes.
170
Predominam, nas ruas do romance, tons frios de uma paisagem cinzenta. A cidade
nublada emana hostilidade. Na “rua das primeiras tristezas”, o jovem Miller conhece as dores
que teria que aprender a suportar. As imagens fantásticas revelam ainda um procedimento que
seria marcante nas narrativas de Miller. Suas recordações nunca são lineares e nem
necessariamente precisas. O uso de características próximas de uma estética surrealista
definem as linhas de uma autobiografia que se quer entendida como um processo de
autodescoberta, mas que não se desenvolve de forma objetiva ou meramente factual. As
memórias de Miller são, em grande medida, inventadas, o que o próprio escritor faz questão
de deixar claro várias vezes, e não assumem nenhum compromisso mais específico com a
realidade.
169
Ver citação da nota 99.
170
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 153.
119
O Brooklyn de Miller é uma cidade assumidamente inventada. Suas ruas obedecem,
exclusivamente, ao objetivo maior de construírem o palco de uma encenação que se anuncia.
It is night and I am on my way home. My path lies through a wild park such as I had
often stumbled through in the dark when my eyes were closed and I heard only the
breathing of the walls. I have the sensation of being on an island surrounded by rocky
coves and inlets. There are the same little bridges with their paper lanterns, the rustic
benches strewn along the gravelled paths, the pagodas in which confections were sold, the
brilliant skups, the sunshades, the rocky crags above the cove, the flimsy Chinese
wrappers in which the fire crackers were hidden. Everything is exactly as it used to be,
even to the noise of the carousel and the kites fluttering in the tangled boughs of the trees.
Except that now it is winter. Mid-winter and all the roads covered with snow, a deep
snow which has made the roads almost impassable.
171
Nessa cidade fria, Henry Miller dá seus primeiros passos. Em um cenário decorado
com experiências difíceis e marcantes, Miller chega a narrar inclusive um episódio em que ele
e outro amigo de inncia apedrejam um outro garoto até à morte. Seu personagem começa
assim a se definir e o projeto da crucificação se estrutura. O último parágrafo do livro é
emblemático.
172
Talvez seja possível afirmar que todas as obras aqui estudadas partem desse ponto
exato. O profeta-andarilho-despatriado anuncia sua missão: entender e revelar a si mesmo.
Dentro dessa gica, Tropic of Capricorn aparece como um capítulo fundamental. Em
seu terceiro romance, Henry Miller define as linhas que fundamentariam sua produção
posterior. O livro pode ser entendido como uma síntese de seu esforço para narrar sua
trajetória. Nele, as ideias gerais que marcariam a The Rosy Crucifixion já estão dadas.
Truth lies in this knowledge of the end which is ruthless and remorseless. We can know
the truth and accept it, or we can refuse the knowledge of it and neither die nor be born
again. In this manner it is possible to live forever, a negative life as solid and complete, or
as dispersed and fragmentary, as the atom. And if we pursue this road far enough, even
this atomic eternity can yield to nothingness and the universe itself fall apart.
For years now I have been trying to tell this story; each time I have started out I have
chosen a different route. I am like an explorer who, wishing to circumnavigate the globe,
deems it unnecessary to carry even a compass. Moreover, from dreaming over it so long,
the story itself has come to resemble a vast, fortified city, and I who dream it over and
over, am outside the city, a wanderer, arriving before one gate after another too exhausted
to enter. And as with the wanderer, this city in which my story is situated eludes me
perpetually. Always in sight it nevertheless remains unattainable, a sort of ghostly citadel
floating in the clouds. From the soaring, crenelated battlements flocks of huge white
geese swoop down in steady, wedge-shaped formation. With the tips of their blue-white
wings they brush the dreams that dazzle my vision. My feet move confusedly; no sooner
171
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 146 - 147.
172
Ver citação da nota 40.
120
do I gain a foothold than I am lost again. I wander aimlessly, trying to gain a solid,
unshakable foothold whence I can command a view of my life, but behind me there lies
only a welter of crisscrossed tracks, a groping, confused, encircling, the spasmodic
gambit of the chicken whose head has just been lopped off.
173
Nova York é novamente representada como o palco de uma tragédia. Em Tropic of
Capricorn, Henry Miller começa a narrar mais propriamente o período final de sua estada em
Nova York. Nele Miller apresenta a dimensão de sua dor que se pretende como a maior de
todas. É onde conhece a dor e a humilhação, que seriam elementos catalisadores de sua
ressurreição.
I sat riveted to my desk and I traveled around the world at lightning speed, and I learned
that everywhere it is the same hunger, humiliation, ignorance, vice, greed, extortion,
chicanery, torture, despotism: the inhumanity of man to man: the fetters, the harness, the
halter, the bridle, the whip, the spurs. The litter the caliber the worse off the man. Men
were walking the streets of New York in that bloody, degrading outfit, he despised, the
lowest of the low, walking around like auks, like penguins, like oxen, like trained seals,
like patient donkeys, like big jackasses, like crazy gorillas, like docile maniacs nibbling at
the dangling bait, like waltzing mice, like guinea pigs, like squirrels, like rabbits, and
many and many a one was fit to govern the world, to write the greatest book ever
written.
174
O repúdio aos outros habitantes da cidade serve ainda para definir o próprio Miller.
Em sua via crucis o escritor cruza com aqueles que o odeiam. Observa suas vidas medíocres
enquanto é também observado. No centro da cena o personagem de Miller desfila como um
outsider. Em toda sua caminhada, ele nunca foi outra coisa. A imagem do marginal que habita
os centros urbanos se relaciona com a de um Cristo desprezado e condenado. O homem quase
engolido pelas cidades por onde passa, sobrevive como um herói. Esses cenários decadentes
o a face do processo de crucificação. Na América, o outsider conhece a exclusão que o
define.
Persona non grata! Jesus, how clear it seems to me now! No pick and choice possible: I
had to take what was to hand and learn to like it. I had to learn to live with the scum, to
swim like a sewer rat or be drowned. If you elect to join the herd you are immune. To be
accepted and appreciated you must nullify yourself, make yourself indistinguishable from
the herd. You may dream, if you dream alike. But if you dream something different you
are not in America, of America American, but a Hottentot in Africa, or a Kalmuck, or a
chimpanzee. The moment you have a "different" thought you cease to be an American.
173
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 334-335.
174
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 32-33.
121
And the moment you become something different you find yourself in Alaska or Easter
Island or Iceland.
175
O tortuoso caminho que ele enfrenta na América expressa as vidas em torno de sua
realização como artista. Ao falar de sua terra natal, Henry Miller narra fundamentalmente a
dificuldade de ser um escritor em uma terra supostamente devastada pela ignorância e
espiritualmente estéril.
Em Tropic of Capricorn as dúvidas acerca do futuro aparecem de forma evidente. Seu
processo de autodescoberta inclui a assimilação da hostilidade de seus compatriotas.
I sit on the stoop for an hour or so, mooning. I come to the same conclusions I always
come to when I have a minute to think for myself. Either I must go home immediately
and start to write or I must run away and start a wholly new life. The thought of
beginning a book terrifies me: there is so much to tell that I don't know where or how to
begin. The thought of running away and beginning all over again is equally terrifying: it
means working like a nigger to keep body and soul together. For a man of my
temperament, the world being what it is, there is absolutely no hope, no solution. Even if
I could write the book I want to write nobody would take it – I know my compatriots only
too well. Even if I could begin again it would be no use, because fundamentally I have no
desire to work and no desire to become a useful member of society.
176
Henry Miller nega a imagem do escritor como um “membro útil da sociedade”. O
conceito romântico de artista que o escritor manipula não pode conviver com nenhuma outra
concepção, a não ser a de um herói despido de qualquer tarefa considerada mundana ou
superficial. Sua trajetória pessoal pertence ao domínio do sagrado e do mistério. Nesse
sentido, em um trecho de Tropic of Capricorn, Miller transcreve uma suposta conversa com
um amigo:
Sometimes I think you were born in the wrong time. Listen, I don't want you to think I'm
making an idol of you but there's something to what I say… if you had just a little more
confidence in yourself you could be the biggest man in the world today. You wouldn't
even have to be a writer. You might become another Jesus Christ for all I know. Don't
laugh I mean it. You haven't the slightest idea of your own possibilities… you're
absolutely blind to everything except your own desires. You don't know what you want.
You don't know because you never stop to think. You're letting people use you up. You're
a damned fool, an idiot. If I had a tenth of what you've got I could turn the world upside
down. You think that's crazy, eh? Well, listen to me… I was never more sane in my life.
When I came to see you tonight I thought I was about ready to commit suicide. It doesn't
make much difference whether I do it or
not. But
anyway,
I don't
see
much point in
doing it now. That won't
bring her back to me. I was
born
unlucky. Wherever
I go I seem
175
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 56.
176
MILLER, Henry, op. cit.; p. 102.
122
to bring disaster. But I don't want to kick off yet. I want to do some good in the world
first. That may sound silly to you, but it's true. I'd like to do something for others…
177
No terceiro romance as comparões com Cristo e seu drama aparecem mais
claramente: palavras como crucificação, redenção e sacrifício entram de forma mais
contundente no vocabulário de Miller. É seu primeiro texto todo escrito para funcionar como
um livro de memórias.
Em diversos aspectos, Tropic of Capricorn marca o início de uma empreitada. Se
Black Spring já trazia o conceito de um livro de lembranças, somente em Tropic of Capricorn
o caminho de uma trajeria organizada para a revelação de um momento final decisivo se
deixa ver. Publicado em 1939, em Paris, pela Obelisk Press, o romance é marcado pelo
desenvolvimento do que pode ser considerado o tema chave de sua obra. É a partir desse
romance que Miller começa a narrar suas experiências pessoais nos últimos anos que passou
em Nova York antes de viajar para Paris. Nele, esboça-se o sentimento de ódio aos Estados
Unidos, através do ataque à cultura americana, nos traços do american way of life. É nesse
romance que Miller aprofunda o esforço de compreensão do processo individual de se tornar
um artista.
At the point from which this book is written I am the man who baptized himself a new. It
is many years since this happened and so much has come in between that it is difficult to
get back to that moment and retrace the journey of Gottlieb Leberecht Muller. However,
perhaps I can give the clue if I say that the man which I now am was born out of a wound.
That wound went to the heart. By all man-made logic I should have been dead. I was in
fact given up for dead by all who once knew me; I walked about like a ghost in their
midst. They used the past tense in referring to me, they pitied me, they shoveled me under
deeper and deeper. Yet I remember how I used to laugh then, as always, how I made love
to other women, how I enjoyed my food and drink, and the soft bed which I clung to like
a fiend. Something had killed me, and yet I was alive. But I was alive without a memory,
without a name; I was cut off from hope as well as from remorse or regret. I had no past
and I would probably have no future; I was buried alive in a void which was the wound
that had been dealt me. I was the wound itself.
178
O novo batismo de Miller início ao processo de nascimento de um artista nascido
de uma ferida. Artista morto por todos aqueles que o ignoraram, mas que conseguiu renascer.
A sintonia com o grande drama do cristianismo não parece ser gratuita. Há uma tentativa clara
de aproximação. O personagem Henry Miller quer ser o Cristo crucificado que vaga
solitariamente na cidade de Nova York.
177
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 88.
178
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 230.
123
Whoever, through too great love, which is monstrous sifter all, dies of his misery, is born
again to know neither love nor hate, but to enjoy. And this joy of living, because it is
unnaturally acquired, is a poison which eventually vitiates the whole world. Whatever is
created beyond the normal limits of human suffering, acts as a boomerang and brings
about destruction. At night the streets of New York reflect the crucifixion and death of
Christ. When the snow is on the ground and there is the utmost silence there comes out of
the hideous buildings of New York a music of such sullen despair and bankruptcy as to
make the flesh shrivel. No stone was laid upon another with love or reverence; no street
was laid for dance or joy. One thing has been added to another in a mad scramble to fill
the belly, and the streets smell of empty bellies and full bellies and bellies half full. The
streets smell of a hunger which has nothing to do with love; they smell of the belly which
is insatiable and of the creations of the empty belly which are null and void.
179
Dramatizar a experiência de um homem íntegro em seu calvário, encenar uma longa e
penosa crucificação que se encerra na descoberta do prazer supremo: este é o caminho de
Miller e o sentido de seu esforço. Isso fica evidenciado no prefácio de uma edição brasileira
de Nexus, último volume de sua trilogia.
Jamais pretendi escrever uma trilogia, nem tinha em mente, ao iniciar essa obra conhecida
como A crucificação encarnada, dar às partes distintas os títulos de Sexus, Plexus, Nexus.
O título principal era o único que se revestia de importância para mim. Através da
crucificação uma pessoa pode ser ressuscitada ou “transformada”, se preferirem
assim.
180
A passagem acima pode ser encarada como um resumo de toda The Rosy Crucifixion.
Publicada originalmente entre 1949 e 1960, a trilogia foi responsável por tornar Miller um
autor mundialmente conhecido. Romances autobiográficos centrados nos últimos anos da vida
americana de Miller, antes de retornar à Europa, Sexus, Plexus e Nexus focam a reorganização
da vida do protagonista-autor em torno de uma relação amorosa, e seu intenso debate acerca
da criação artística.
O primeiro dos três volumes aborda especialmente os encontros sexuais de Miller e
abre espaço para outras reflexões acercado de sexo. O uso de recursos típicos do gênero
pornográfico marcaria toda a configuração da obra de Miller. De fato, Tropic of Cancer
contém uma série de passagens que podem ser consideradas obscenas. Já em seu primeiro
romance, suas aventuras de andarilho são sempre entrecortadas por atos sexuais
extravagantes.
179
MILLER, Henry, op. cit. p. 67 - 68.
180
MILLER, Henry. Nexus. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1971, p. 10
124
In the lavatory I stand before the bowl with a tremendous erection; it seems light and
heavy at the same time, like a piece of lead with wings on it. And while I'm standing there
like that two cunts sail in Americans. I greet them cordially, prick in hand. They give
me a wink and pass on. In the vestibule, as I'm buttoning my fly, I notice one of them
waiting for her friend to come out of the can. The music is still playing and maybe
Mona’ll be coining to fetch me, or Borowski with his gold-knobbed cane, but I'm in her
arms now and she has hold of me and I don't care who comes or what happens. We wrig-
gle into the cabinet and there I stand her up, slap up against the wall, and I try to get it
into her but it won't work and so we sit down on the seat and try it that way but it won't
work either. No matter how we try it it won't work. And all the while she's got hold of my
prick, she's clutching it like a lifesaver, but it's no use, we're too hot, too eager. The music
is still playing and so. We waltz out of the cabinet into the vestibule again and as we're
dancing there in the shithouse I come all over her beautiful gown and she's sore as hell
about it. I stumble back to the table and there's Borowski with his ruddy face and Mona
with her disapproving eye. And Borowski says "Let's all go to Brussels tomorrow," and
we agree, and when we get back to the hotel I vomit all over the place, in the bed, in the
washbowl, over the suits and gowns and the galoshes and canes and the notebooks I never
touched and the manuscripts cold and dead.
181
De qualquer forma, é em Sexus que esse recurso é usado de forma mais ostensiva. O
tema básico do livro é o seu encontro com Mona (personagem que representaria sua segunda
esposa June e que também aparece com o nome de Mara). A união de Henry Miller e Mona é
apresentada como uma exploo de desejo e luxúria.
Don't ever take it out again”, she begged, “it drives me crazy. Fuck me, fuck me !” I held
out on her a long while. As before, she came again and again, squealing and grunting like
a stuck pig. Her mouth seemed to have grown bigger, wider, utterly lascivious; her eyes
were turning over, as if she were going into an epilectic fit. I took it out a moment to cool
it off. She put her hand in the puddle beside her and sprinkled a few drops of water over
it. That felt marvelous. The next moment she was on her hands and knees, begging me to
give it to her assways. I got behind her on all fours; she reached her hand under and
grabbing my cock she slipped it in. It went right in to the womb. She gave a little groan of
pain and pleasure mixed. «It's gotten bigger,» she said, squirming her ass around. «Put it
in again all the way... go ahead, I don't care if it hurts,» and with that she backed up on
me with a wild lurch. I had such a cold-blooded erection that I thought I'd never he able
to come. Besides, not worrying about losing it, I was able to watch the performance like a
spectator. I would draw it almost out and roll the tip of it around the silky, soppy petals,
then plunge it in and leave in there like a stopper. I had my two hands around her pelvis,
pulling and pushing her at will. «Do it, do it,» she begged, «or I'll go mad!» That got me.
I began to work on her like a plunger, in and out full length without a let-up, she going
Oh Ah, Oh Ah! and then bango! I went off like a whale.
182
quase sempre uma mistura de sexo e violência, o que aponta para uma exploração
específica do tema da sexualidade e do amor. Henry Miller acusara o romantismo de
181
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 16.
182
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 74-75.
125
Lawrence de covarde e mutilador da vida. Nesse sentido, se faz necessária uma outra
abordagem do universo do sexo.
I slid my hand down the small of her back, over her plump buttocks, wedged my fingers
deep into the big crack, pressing her against me, chewing her lips, biting her ear lobes,
her neck, licking her eyes, the roots of ther hair. She got limp and heavy, closing her eyes,
closing her mind. She sagged as though she were going to drop to the floor. I caught her
up and carried her through the hall, up the flight of stairs, threw her on the bed. I fell over
her, as if stupefied, and let her rip my things off. I lay on my back like a dead man, the
only thing alive being my prick. I felt her mouth closing over it and the sock on my left
foot slowly slipping off. I ran my fingers through her long hair, slid them round under her
breast, moulded her bread basket which was soft and rubbery like. She was making some
sort of wheeling motion in the dark. Her legs came down over my shoulders and her
crotch was up against my lips. I slid her ass over my head, like you'd raise a pail of milk
to slake a lazy thirst, and I drank and chewed and guzzled like a buzzard. She was so deep
in heat that her teeth were clamped dangerously around the head of my cock. In that
frantic, teary passion she had worked herself up to I had a fear that she might sink her
teeth in deep, bite the end of it clean off. I had to tickle her to make her relax her jaws. It
was fast, clean work after that no tears, no love business, no promise me this and that.
Put me on the ticking block and fuck! That's what she was asking for. I went at it with
cold-blooded fury. This might be the very last fuck.
183
Tal abordagem, que tende a realçar aspectos agressivos e violentos do ato sexual, não
inibe a possibilidade de momentos mais ternos na narrativa. Se Sexus é o livro em que uma
maior quantidade de cenas sexualmente fortes, é talvez o único romance de Miller no qual, em
algumas passagens, é possível perceber um tratamento mais suave do tema. Em determinados
pontos, o romance apresenta momentos de uma sensualidade mais tênue e, portanto, próxima
de um modelo literário mais propriamente erótico.
I turned the warm water on and threw in a bar of soap. I soaped her crotch with tingling
lingers. By this time my prick was like an electric eel. The warm water felt delicious. I
was chewing her lips, her ears, her hair. Her eyes sparkled as if she had been struck by a
fistful of stars. Every part of her was smooth nad satiny and her breasts were ready to
burst. We got out and, letting her straddle me, I sat on the edge of the tub. We were
dripping wet. I reached for a towel with one hand and dried her a bit down the front. We
lay down on the bath mat and she slung her legs around my neck. I moved her around like
one of those legless toys which illustrate the principle of gravity.
184
Indubitavelmente, passagens como a citada acima ilustram a exceção que confirma a
regra: por mais que em Sexus se possa identificar traços de “literatura erótica”, a produção
literária de Henry Miller dificilmente pode se enquadrar nessa categoria. O uso de elementos
183
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 125.
184
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 117.
126
do gênero pornográfico aparece em sua literatura com finalidades distintas, que giram em
torno do objetivo de chocar e da vontade de construir romances agressivos. Todo o seu
projeto literário parte do pressuposto da denúncia do que considera uma covardia, uma
mutilação da vida que a literatura convencional operaria. Trazer o sexo, a violência, o sangue,
o mau cheiro, o escatológico para a cena do romance significa, então, trazer vida. O vulgar e o
baixo ganham espaço em sua literatura. Sua ideia de integridade guarda a necessidade de se
fazerem ver as mesquinharias do cotidiano. Nelas residiria uma energia vital necessária. Em
sua liturgia, o cenário da celebração da experiência se compõe de coisas sujas. É pelo baixo e
pela violência que a redenção torna-se fato.
The skin itself was just a hag in which were loosely collected a rather messy outfit of
bones, muscles, sinews, blood, fat, lymph, bile, urine, dung, and so on. Germs were
stewing around in this stinking bag of guts; the germs would win out no matter how
brilliantly that cage of dull gray matter called the brain functioned. The body was in
hostage to death, and Dr. Kronski so vital in the X-ray world of statistics, was just a louse
to he cracked under a dirty nail when it came time to surrender his shell. It never occurred
to Dr. Kronski, in these fits of genito-urinary depression, that there might be a view of the
universe in which death assumed another aspect. He had disembowelled, dissected and
chopped to bits so many corpses that death had come to mean something very concrete a
piece of cold meat lying on the mortuary slab, so to say. The light went out and the
machine stopped, and after a time it would stink. Voila, it was as plain and simple as that.
In death the loveliest creature imaginable was just another piece of extraordinary cold
plumbing. He had looked at his wife, just after the gangrene had set in; she might have
been a codfish, he intimated, for all the attractiveness she displayed.
185
Sua via crucis é também a celebração das coisas vulgares e sujas: escatologia,
vulgaridade, sexualidade e mundanidade encerradas em uma busca espiritual profana. O
cheiro de carne humana, o sangue, a transpiração, a mesquinharia, a mixórdia, a divinização
do perecível são elementos de sua crucificação. O sentido de sua caminhada é também o de
uma epopeia de redenção espiritual baseada em termos baixos, violentos e vulgares.
From bar to bar I would wander, always looked on askance, always insulted and
humiliated, often pummeled and
kicked about like a sack of oats. Time after time I would
find myself flat on the
pavement, the blood trickling from mouth and ears, my hands cut
to ribbons, my body one great welter of
bruises and contusions. It was a terrible price I
always had to pay for the privilege of
watching her take a breath of air. But it was worth
it! And when in my dreams I saw George Marshall approaching, when I heard the
promise which his reassuring words of greeting
always contained, my heart would begin
to pound
furiously and I would hasten my steps to arrive in front of
her house at just the
right moment. Strange that I could
never find my way alone. Strange that George
Marshall had to be the one to lead me to her, for George Marshall had never seen in her
anything more than a pleasing bundle of flesh. But George Marshall, tied to me
by an
185
MILLER, Henry. Sexus. N.J: Grove Press, 1978, p. 97.
127
invisible cord,
had been the silent witness of a
drama which his unbelie ving eyes had
repudiated. And so in dream George Marshall could look again with eyes of wonder; he
too could find a certain contentment in rediscovering the junction where our ways had
parted.
186
Sua encenação aparece como uma luta cotidiana para superar obstáculos de diversas
ordens. Suas ambições mais puras e audaciosas, seu desejo de redenção individual e sua sede
por desvendar segredos metafísicos esbarram nas mesquinharias do dia a dia. Sua descoberta
espiritual deve acontecer entre divagações sofisticadas e a busca por um prato de comida.
Henry Miller é um herói que se entende, acima de tudo, humano em um sentido profundo.
Ah, the monotonous thrill that comes of walking the streets on a winter's morn, when
iron girders are frozen to the ground and the milk in the bottle rises like the stem of a
mushroom. A septentrional day, let us say, when the most stupid animal would not dare
poke a nose out of his hole. To accost a stranger on such a day and ask him for alms
would be unthinkable. In that biting, gnawing cold, the icy wind whistling through the
glum, canyoned streets, no one in his right mind would stop long enough to reach into his
pocket in search of a coin. On a morning like this, which a comfortable banker would
describe as "clear and brisk,"a beggar has no right to be hungry or in need of carfare.
Beggars are for warm, sunny days, when even the sadist at heart stops to throw crumbs to
the birds.
187
A dimensão humana de seu personagem, no entanto, é fruto de suas descobertas. É
preciso viver como um mendigo, sofrer as maiores humilhações, para que uma nova dimensão
de humanidade se revele. Há trechos em sua caminhada em que a dor se intensifica a ponto de
uma representação animalesca entrar em cena. Miller, o mais humano, se mostra no limite
da raiva e da agressividade.
Through months of shame and humiliation I have come to hug my solitude. I no longer
seek help from the outside world. I no longer answer the door-bell. I live by myself, in the
turmoil of my own fears. Trapped in my own phantasms, I wait for the flood to rise and
drown me out.
When they return to torture me I behave like animal which I have become. I pounce on
the food with ravenous hunger. I eat with my fingers. And as I devour the food I grin
them mercilessly, as though I were a mad, jealous Czar. I pretend that I am angry: I hurl
vile insults at them, I threaten them with my fists, I growl and spit and rage.
188
A animalização que Miller sofre se constrói também a partir de uma “libertação de
instintos”. Em Sexus, a energia sexual explode, caracterizando, de certa forma, um processo
de libertação.
186
MILLER, Henry. Sexus. N.J: Grove Press, 1978, p. 374-375.
187
MILLER, Henry. Nexus. New Jersey: Castle Books, 1965, p. 20.
188
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 614.
128
Suddenly she dangled it before my eyes. It was a magnificent knuckle bone, full of
marrow, encircled by a gold wedding ring. I was furiously eager to seize it but she held it
high above her head, tantalizing me mercilessly. Finally, to my astonishment, she stuck
her tongue out and began to suck the marrow into her mouth. She turned it around and
sucked from the other end. When she had made a clean hole through and though she
caught hold of me and began to stroke me. She did it so masterfully that in a few seconds
I stood out like a raw turnip. Then she took the bone (with the wedding ring still around
it) and she slipped it over the raw turnip. «Now you little darling, I'm going to take you
home and put you to bedAnd with that she picked me up and walked off, everybody
laughing and clapping hands. Just as we got to the door the bone slid off and fell to the
ground. 1 tried to scramble out of her arms, but she held me tight to her bosom. I began to
whimper.
«Hush, hush she said, and sticking her tongue out, she licked my face. «You dear,
lovely, little creature!»
«Woof woof! Woof woof !» I harked. «Woof! Woof, woof, woof
189
A transformação que sofre finda por reafirmar a sua humanidade. Sua condição
animalesca é parte de um processo de purificação espiritual. Os estados de selvageria, que por
vezes se encontram, surgem como capítulos de sua caminhada rumo à redenção. A trajetória é
encenada tendo-se em vista a exposição máxima da dor e do sofrimento. Ela é organizada
para que o nome de Henry Miller funcione como um mito de superação e conquista da
liberdade a partir do sofrimento.
I was no longer a man; I was a creature returned to the wild state. Perpetual panic, that
was my normal state. The more unwanted I was, the closer I stuck. The more I was
wounded and humiliated, the more I craved punishment. Always praying for a
miracle to occur, I did nothing to bring one about. What's more, I was powerless to blame
her, or Stasia, or anyone, even myself, though I often pretended to. Nor could I, despite
natural inclination, bring myself to believe that it had just "happened."I had enough
understanding left to realize that a condition such as we were in doesn't just happen. No,
I had to admit to myself that it had been preparing for quite a long while. I had, moreover,
retraced the path so often that I knew it step by step. But when one is frustrated to the
point of utter despair what good does it do to know where or when the first fatal misstep
occurred? What matters and how it matters, O God! is only now.
190
A trajetória que se encena em Nova York é basicamente feita de sofrimento e de
miséria: a cidade assiste à sua dor e a potencializa. Mas é nela que ele se realiza, ela é sua
matriz e nela ele funciona, que o lugar do gênio deve ser a sarjeta e o sangue deve ser
sua matéria prima. As últimas páginas de Nexus, que são também as últimas de toda The Rosy
Crucifixion, são bastante emblemáticas como representações da relação de Miller com os
Estados Unidos. Há uma despedida que guarda todo o entusiasmo da partida e alguma
189
MILLER, Henry. op. cit.; p. 634.
190
MILLER, Henry. Nexus. New Jersey: Castle Books, p. 36 -37.
129
melancolia. Nas últimas palavras de seu drama, Miller se despede da América sabendo que
sua realizão pessoal se daria em outro lugar. Em sua via crucis, um ciclo se encerra.
The boat will be pulling out soon. Time to say goodbye. Will I too miss this land that has
made me suffer so? I answered that question before. Nevertheless, I do want to say
goodbye to those who once meant something to me. What am I saying? Who still mean
something! Step forward, won't you, and let me shake you by the hand. Come, comrades,
a last handshake!
Up comes William F. Cody, the first in line. Dear Buffalo Bill, what an ignominious end
we reserved for you! Goodbye, Mr. Cody, and Godspeed! And is this Jesse James?
Goodbye, Jesse James, you were tops! Goodbye, you Tuscaroras, you Navajos and
Apaches! Goodbye, you valiant, peace-loving Hopis! And this distinguished, olive-
skinned gentleman with the goatee, can it be W. E. Burghardt Dubois, the very soul of
black folk? Goodbye, dear, honored Sir, what a noble champion you have been! And you
there, Al Jennings, once of the Ohio Penitentiary, greetings! and may you walk through
the shadows with some greater soul than O. Henry! Goodbye, John Brown, and bless you
for your rare, high courage! Goodbye, dear old Walt! There will never be another singer
like you in all the land. Goodbye Martin Eden, goodbye, Uncas, goodbye, David
Copperfield! Goodbye, John Barleycorn, and say hello to Jack! Goodbye, you six-day
bike riders… I'll be pacing you in Hell! Goodbye, dear Jim Londos, you staunch little
Hercules!
Goodbye, Oscar Hammerstein, Goodbye, Gatti-Cassazza! And you too, Rudolf
Friml! Goodbye now, you members of the Xerxes Society! Fraires Semper!
Goodbye,
Elsie
Janis!
Goodbye,
John
L. and Gentleman Jim! Goodbye, old Kentucky! Goodbye, old
Shamrock! Goodbye, Montezuma, last great sovereign of the old New World! Goodbye,
Sherlock Holmes! Goodbye, Houdini! Goodbye, you wobblies and all saboteurs of
progress! Goodbye, Mr. Sacco, goodbye, Mr. Vanzetti! Forgive us our sins! Goodbye,
Minnehaha, goodbye, Hiawatha! Goodbye, dear Pocahontas! Goodbye, you trail blazers,
goodbye to Wells Fargo and all that! Goodbye, Walden Pond! Goodbye, you Cherokees
and Seminoles! Goodbye, you Mississippi steamboats! Goodbye, Tomashevsky!
Goodbye, P. T. Barnum! Goodbye, Herald Square! Goodbye, Fountain of Youth!
Goodbye, Daniel Boone! Goodbye, Grosspapa! Goodbye, Street of Early Sorrows, and
may I never set eyes on you again! Goodbye, everybody… goodbye now! Keep the
aspidistra flying!
191
Mas, se a América é o cenário da tortura, Paris é o palco da redenção.
I understood why it is that here, at the very hub of the wheel, one can embrace the most
fantastic, the most impossible theories, without finding them in the least strange; it is here
that one reads again the books of his youth and the enigmas take on new meanings, one
for every white hair. One walks the streets knowing that he is mad, possessed, because it
is only too obvious that these cold, indifferent faces are the visages of one's keepers. Here
all boundaries fade away and the world reveals itself for the mad slaughterhouse that it is.
The treadmill stretches away to infinitude, the hatches are closed down tight, logic runs
rampant, with. bloody cleaver flashing. The air is chill and stagnant, the language
ap
ocalyptic. Not an exit sign anywhere; no issue save death. A blind alley at the end of
which is a scaffold.
An eternal city, Paris! More eternal than Rome, more splendorous than Nineveh. The
very navel of the world to which, like a blind and faltering idiot, one crawls hack on
h
an
ds and knees. And like a cork that has drifted to the dead center of the ocean, one
191
MILLER, Henry.Nexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 315-316.
THE ROSY CRUCIFIXION
130
floats here hi the scum and wrack of the seas, listless, hopeless, heedless even of a
passing Columbus. The cradles of civilization are the putrid sinks of the world, the
charnel house to which the stinking wombs confide their bloody packages of flesh and
bone.
192
Paris é construída como a terra prometida para os homens livres e salvos. Nela os
dramas cessam porque a consciência se torna plena. É um tipo de paraíso terral, onde as
feridas da crucificação cicatrizam e o homem torna-se o que é. A terra onde loucos e
torturados são atraídos pela luz que redime. Como diria em A hora dos assassinos, sua vida
no Brooklyn seria o equivalente a uma “Temporada no Infernoenquanto a fase parisiense,
entre 1932 e 1934, representaria o momento de suas iluminações.
193
Sua trajeria na França o aparece cercada apenas de momentos de alívio espiritual.
Esse “momento de suas iluminações” é marcado por um intenso período de transformação.
Em Paris, sua caminhada começa a chegar ao final, pela primeira vez suas dores fazem
sentido, suasvidas, ainda que persistentes, começam a clarear.
With that bottle between my legs and the sun splashing through the window I experience
once again the splendor of those miserable days when I first arrived in Paris, a
bewildered, poverty-stricken individual who haunted the streets like a ghost at a banquet.
Everything comes back to me in a rush the toilets that wouldn't work, the prince who
shined my shoes, the Cinema Splendide where I slept on the patron's overcoat, the bars in
the window, the feeling of suffocation, the fat cockroaches, the drinking and carousing
that went on between times, Rose Cannaque and Naples dying in the sunlight. Dancing
the streets on an empty belly and now and then calling on strange people Madame
Delorme, for instance. How I ever got to Madame Delorme's, I can't imagine any more.
But I got there, got inside somehow, past the butler, past the maid with her little white
apron, got right inside the palace with my corduroy trousers and my hunting jacket – and
not a button on my fly.
194
Na capital francesa Henry Miller se descobre como artista e a via crucis chega ao fim.
Todos os segredos parecem se revelar e o escritor pode caminhar pelas ruas como um homem
novo. Esse homem aparece carregando seu nome em Tropic of Cancer: a partir daí, um
mundo em aberto para ser devorado.
Walking down the Rue Lhomond one night in a fit of unusual anguish and desolation,
certain things were revealed to me with poignant clarity. Whether it was that I had so
often walked this street in bitterness and despair or whether it was the remembrance of a
phrase which she had dropped one night as we stood at the Place Lucien -Herr I do not
192
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 164.
193
MILLER, Henry. A Hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre: L&PM, 2004, p. 13.
194
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 13.
131
know. "Why don't you show me that Paris," she said, "that you have written about?" One
thing I know, that at the recollection of these words I suddenly realized the impossibility
of ever revealing to her that Paris which I had gotten to know, the Paris whose
arrondissements are undefined, a Paris that has never existed except by virtue of my
loneliness, my hunger for her. Such a huge Paris! It would take a lifetime to explore it
again. This Paris, to which I alone had the key, hardly lends itself to a tour, even with the
best of intentions; it is a Paris that has to be lived, that has to be experienced each day in a
thousand different forms of torture, a Paris that grows inside you like a cancer, and grows
and grows until you are eaten away by it.
195
Entender o sofrimento como edificante é uma marca da produção de Miller. Em seus
romances está encenada a jornada de um homem em busca de si mesmo, que sofre, sangra
rumo à redenção final. Esse homem, o artista, e a sua criação só se legitimam no limite da dor
e da renúncia. A arte faz sentido se for verdadeira e, ser verdadeira, significa ter de cortar
na carne. A primeira palavra que o escritor põe no papel “is the word of the wounded angel:
pain”.
196
Assim, escrever é ir até o mais amargo fim, explorar os limites e as possibilidades da
palavra e do drama.
A crucificação é entendida como um processo salutar e necessário. Nela, as portas da
consciência são abertas. Ela é positiva na medida em que afirma a vida; a dor gera a expansão
da percepção e um adensamento da experiência. A partir dela a vontade se multiplica e o
desejo assume sua forma mais violenta.
Suffering is unnecessary. But one has to suffer before he is able to realize that this is so. It
is only then, moreover, that the true significance of human suffering becomes clear. At
the last desperate moment when one can suffer no more! – something happens which is
in the nature of a miracle. The great open wound which was draining the blood of life
closes up, the organism blossoms like a rose. One is "free" at last, and not "with a
yearning for Russia," but with a yearning for ever more freedom, ever more bliss. The
tree of life is kept alive not by tears but the knowledge that freedom is real and
everlasting.
197
Henry Miller é o personagem que foi baixado da cruz antes de morrer em carne e
avança para devorar o mundo. Depois de ter todas as forças consumidas no esforço de ver e
“absorver o drama do mundo”, parte com o desejo revitalizado para degustá-lo. Constrói,
dessa forma, a figura de um mártir que às vezes parece o querer salvar ninguém. Sofreu
amnésia no que diz respeito à humanidade, e no fundo a despreza, ainda que guarde uma
mensagem de libertação.
195
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 161-162.
196
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 25.
197
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 640.
132
"It is good," I replied. "It will always be good. And people will go on doing the very
opposite. The very ones who applauded his words betrayed him the instant he stopped
speaking. That goes for Vivekananda, Socrates, Jesus, Nietzsche, Karl Marx,
Krishnamurti… name them yourself! But what am I telling you all this for anyway? You
won't change. You refuse to grow. You want to get by with the least effort, the least
trouble, the least pain. Everyone does. It's wonderful to hear tell about the masters, but as
for becoming a master, shit! Listen, I was reading a book the other day… to be honest,
I've been reading it for a year or more. Don't ask me the title, because I'm not giving it to
you. But here's what I read, and no master could have put it better. The sole meaning,
purpose, intention, and secret of Christ, my dears, is not to understand Life, or mold it, or
change it, or even to love it, but to drink of its undying essence.
198
A crucificação é algo caro a Henry Miller, posto que com ela o sofrimento, a renúncia,
e a redenção são experimentados. Com ela se encena também uma dramatização em que a
violência assume uma dimensão positiva, afirmativa: “Aceitação é a palavra chave. Mas é
precisamente o grande empecilho. Tem que ser uma aceitação total e o um
conformismo”.
199
O princípio da crucificação, que se associa com a ideia de evolução
espiritual a partir de um adensamento da experiência, funciona em Miller como uma aceitação
plena da vida. Inegavelmente, há uma proximidade com a filosofia nietzschiana em sua
dimensão positiva. Porém, para Miller, Cristo é o exemplo da imersão na experiência.
3.3 O sentido sacro
Talvez o grande mistério que a obra de Miller pretende revelar se relacione
diretamente com sua compreensão acerca dos poderes infinitos da arte. Para Miller, a religião
é fruto de uma concepção artística do mundo. No universo ficcional de Miller, o artista é mais
valioso que um sábio ou um padre: o verdadeiro artista é como um santo. É pela arte que se
entra em contato com os segredos do universo, é por onde a verdade se liberta e Deus se
manifesta. Os poderes do artista são ilimitados, ele se apresenta como um anjo libertador.
Em Pesadelo refrigerado afirma:
A função do artista, que é apenas um tipo criador, é nos despertar. O artista estimula
nossa imaginão[…] Eles abrem para nós porções da realidade, destrancam as portas que
mantemos habitualmente fechadas. Eles nos perturbam, uns mais que os outros[…] Eles
parecem o frágeis e indefesos, mas quando chegam ao objetivo podem causar uma
198
MILLER, Henry. Nexus. New Jersey: Castle Books, p. 293.
199
MILLER, Henry. A Hora dos assassinos. um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre. L&Pm, 2004, p. 14.
133
inestimável devastação. Temos boa razão para temê-los, aqueles de nós que estão
dormindo. Eles trazem a luz que mata, além de iluminar.
200
em Sexus, comenta:
The creative artist has something in common with the hero. Though functioning on
another plane, he too believes that he has solutions to offer. He gives his life to
accomplish imaginary triumphs. At the conclusion of every grand experiment, whether by
statesman, warrior, poet or philosopher, the problems of life present the same enigmatic
complexion. The happiest peoples, it is said, are those which have no history. Those
which have a history, those which have made history, seem only to have emphasized
through their accomplishments the eternality of struggle. These disappear too, eventually,
just as those who made no effort, who were content merely to live and to enjoy.
201
A arte teria funções sagradas, estaria diretamente relacionada com a libertação do
homem. Assim, todos os rumos da humanidade passariam pelas mãos do artista criador.
Deveria ser ele o responsável por guiar a história, sobretudo em momentos de crise.
When the nineteenth century crumbled on the field of Armageddon the old barriers were
burst asunder. The demonic artists who dominated that century contributed as much to the
undermining of the past as did the statesmen and militarists, the financiers and
industrialists, the revolutionaries and the propagandists who had paved the way for the
debacle. The war of 1914 seemed like the end of something; it was however only the
culmination of something long overdue. Actually, it opened up vast new horizons.
Through its work of demolition it afforded outlet to vast new fields of energy. The period
between the first and second World Wars is rich in artistic production. It is in this period,
when the world is about to be shaken to its foundations a second time, that I was taking
form. It was a difficult period primarily because one had to rely so exclusively upon
himself, upon his own unique powers. Society, torn by all manner of dissension, offered
the artist even less support and encouragement than in Van Gogh's time. The very
existence of the artist was challenged. But was not everyone's existence menaced?
202
Como seus romances partem justamente desse questionamento acerca do lugar do
artista e de sua condição em uma realidade supostamente decadente, suas falas se articulam
em um momento de grave crise estabelecida.
Boris has just given me a summary of his views. He is a weather prophet. The weather
will continue bad, he says. There will be more calamities, more death, more despair. Not
the slightest indication of a change anywhere. The cancer of time is eating us away. Our
heroes have killed themselves, or are killing themselves. The hero, then, is not Time, but
200
MILLER, Henry. Pesadelo refrigerado. São Paulo: Francis, 2006, p.185.
201
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey. Grove Press, 1978, p. 268 - 269.
202
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey. Grove Press, 1967, p. 86.
134
Timelessness. We must get in step, a lock step, toward the prison of death. There is no
escape. The weather will not change.
203
O diagnóstico pessimista, encontrado logo na primeira página de seu primeiro
romance, ajuda a dar o tom de sua busca. O sentido da caminhada que se apresenta pela frente
é de uma luta contra o fim. Henry Miller narra suas aventuras de redenção em um mundo que
morre e fala aos poucos que podem vir a se salvar. Na medida em que relata as tragédias que
vê, inventa as possibilidades de libertação.
For a hundred years or more the world, our world, has been dying. And not one man, in
these last hundred. years or so, has been crazy enough to put a bomb up the, asshole of
creation and set it off. The world is rotting away, dying piecemeal. But it needs the coup
de grâce, it needs to be blown to smithereens. Not one of us intact, and yet we have in us
all the continents and the seas between the continents and the birds of the air. We are
going to put it down the evolution of this world which has died but which has not been
buried. We are swimming on the face of time and all else has drowned, is drowning, or
will drown. It will be enormous, the Book.
204
Assim, o grande livro a ser escrito é o relato das catástrofes humanas. Seu personagem
principal é o profeta da reinvenção do mundo. Este seria mais que um livro. Em todo caso,
trata-se de um projeto literário materializado na figura do personagem-mito, de nome Henry
Miller. De certa forma, os romances tendem a funcionar como palcos para a sua atuação, onde
suas mensagens reverberam.
The more you reach out toward the world the more the world retreats. Nobody wants real
love, real hatred. Nobody wants you to put your hand in his sacred entrails that's only
for the priest in the hour of sacrifice. While you live, while the blood's still warm, you are
to pretend that there is no such thing as blood and no such thing as a skeleton beneath the
covering of flesh. Keep off the grass! That's the motto by which people live.
205
A exibição de sua sabedoria é quase sempre carregada por um discurso moral: Miller
se apresenta como homem salvo que fala aos que também almejam a salvação. Longas
digressões surgem no meio de seu drama, palavras de condenação e de conforto se espalham
pela cena como se todo o universo dramático girasse em torno delas e das etapas da via
crucis.
203
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 1.
204
MILLER, Henry. Tropic of Cancer. New York: Grove Press, 1961, p. 24.
205
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 62.
135
Today man is cut off. Today man lives as a slave. Worse, we are slaves to one another.
We have created a condition hitherto unknown, a condition altogether unique: we have
become the slaves of slaves. Doubt it not, the moment we truly desire freedom we shall
be free. Not a whit sooner! Now we think like machines, because we have become as
machines. Craving power, we are the helpless victims of power…
The day we learn to
express love we shall know love and have love and all else will fall away. Evil is a
creation of the human mind. It is powerless when accepted at face value. Because it has
no value in itself. Evil exists only as a threat to that eternal kingdom of love we but dimly
apprehend. Yes, men have had visions of a liberated humanity. They have had visions of
walking the earth like the gods they once were. Those whom we call "The Masters"
undoubtedly found the road back. Perhaps the androids have taken another road. All
roads, believe it or not, lead eventually to that life-giving source which is the center and
meaning of creation. As Lawrence said with dying breath "For man, the vast marvel is
to be alive. For man, as for flower, beast and bird, the supreme triumph is to be most
vividly, most perfectly, alive…" In this sense, Picodiribibi was never alive. In this sense,
none of us is alive. Let us become fully alive, that is what I have been trying to say.
206
Cabe ao artista iluminar o mundo, trazer a mensagem que salva. Nesse sentido, Henry
Miller se aproxima da figura de Jesus Cristo para modelar seu artista salvador, interessado nos
aspectos carnais desse deus-homem. Em seus romances, a crucificação e a transcendência são
experimentadas em vida, definindo assim os enredos. São encenações de uma via crucis onde
a morte e a ressurreição se tornam necessárias para a conquista de uma existência plena:
Miller morre como homem para ressurgir como artista, dando o exemplo de que a experiência
humana pode se revestir de divindade. Nesse sentido, sua mensagem é de fé.
Faith! I was talking about faith a moment ago. We've lost it. Lost it completely. Faith in
anything, I mean. Yet faith is the only thing man lives by. Not knowledge, which is
admittedly inexhaustible and in the end futile or destructive. But faith. Faith too is
inexhaustible. Always has been, always will be. It is faith which inspires deeds, faith
which overcomes obstacles literally moves mountains, as the Bible says. Faith in what?
Just faith. Faith in everything, if you like. Perhaps a better word would be acceptance. But
acceptance is even more difficult to understand than faith. Immediately you utter the
word, there is an inquisitioner which says: "Evil too?" And if one says yes, then the way
is barred. You are laughed out of countenance, shunned like a leper. Good, you see, may
be questioned, but evil and this is a paradox evil, though we struggle constantly to
eliminate
it, is always
taken for granted. No one doubts
the existence of evil, though it
is
only an
abstract
term
for that
which
is constantly changing character and which, on close
analysis, is often found to be good. No one will accept evil at its face value. It is, and it is
not. The mind refuses to accept it unconditionally. It would really seem as if it existed
only to be converted into its opposite. The simplest and readiest way tos accomplish this
is, of course, to accept it. But who is wise enough to adopt such a course?
207
Nas páginas de The Rosy Crucifixion, Henry Miller torna-se mais propriamente um
orador. Nos volumes da trilogia a preocupação religiosa aumenta. Ao organizar de forma
206
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 418.
207
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 415-416.
136
definitiva sua trajetória, o escritor parece querer destacar o aspecto transcendental de sua obra.
Suas palavras de e libertação ganham contornos mais explícitos. É o momento de sua
produção em que seu personagem assume mais declaradamente o papel de guia espiritual.
The Lord our God has all time in which to reveal Himself. You pretend that you wish to
decide the matter of His existence. Useless, dear comrades, it was decided long ago,
before there even was a world. Reason alone informs us that if there be a problem there
must be something real which brings it to birth. It is not for us to decide whether or not
God exists, it is for God to say whether or not we exist"(Dog! Have you anything to say?"
I shouted in the Emperor Anathema's ear.) "Whether to eat or not before deciding the
issue, is that, I ask you, a metaphysical question? Does a hungry man debate whether he
is to eat or not? We are all famished: we hunger and thirst for that which gave us life, else
we would not be assembled here. To imagine that by giving a mere Yes or No the grand
problem will be settled for eternity is sheer madness. We have not… " (I paused and
turned to the one on my right. "And you, Fyodor Mihailovich, have you nothing to say?)
We have not come together to settle an absurd problem. We are here, comrades, because
outside this room, in the world, as they call it, there is no place in which to mention the
Holy Name. We are the chosen ones, and we are united ecumenically. Does God wish to
see children suffer? Such a question may be asked here. Is evil necessary? That too may
be asked. It may also be asked whether we have the right to expect a Paradise here and
now, or whether eternality is preferable to immortality. We may even debate whether Our
Lord Jesus Christ is of our divine nature only or of two consubstantially harmonious and
divine. We have all suffered more than is usual for mortal beings to endure. We have all
achieved an appreciable degree of emancipation. Some of you have revealed the depths of
the human soul in a manner and to a degree never before heard of. We are all living
outside our time, the forerunners of a new era, of a new order of mankind. We know that
nothing is to be hoped for on the present world level. The end of historical man is upon
us. The future will be in terms of eternity, and of freedom, and of love. The resurrection
of man will be ushered in with our aid; the dead will rise from their graves clothed in
radiant flesh and sinew, and we shall have communion, real everlasting communion, with
all who once were: with those who made history and with those who had no history.
Instead of myth and fable we shall have everlasting reality. All that now passes for
science will fall away; there will be no need to search for the clue to reality because all
will be real and durable, naked to the eye of the soul, transparent as the waters of Shiloh.
Eat, I beg you, and drink to your heart's content. Taboos are not of God's making. Nor
murder and lust. Nor jealousy and envy. Though we are assembled here as men, we are
bound through the divine spirit. When we take leave of one another we shall return to the
world of chaos, to the realm of space which no amount of activity can exhaust. We are
not of this world, nor are we yet of the world to come, except in thought and spirit. Our
place is on the threshold of eternity; our function is that of prime movers. It is our
privilege to be crucified in the name of freedom. We shall water our graves with our own
blood. No task can be too great for us to assume. We are the true revolutionaries since we
do not baptize with the blood of others but with our own blood, freely shed. We shall
create no new covenants, impose no new laws, establish no new government. We shall
permit the dead to bury the dead. The quick and the dead will soon be separated. Life
eternal is rushing back to fill the empty cup of sorrow.
208
208
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey. Grove Press, 1967, p. 611 – 612.
137
Nessa longa passagem acerca do destino do homem e de sua relação com Deus,
destaca-se o momento em que Miller se diz privilegiado por ser crucificado. Em nome da
liberdade o sofrimento da crucificação se torna uma bênção. É um privilégio de poucos
homens: somente os grandes podem ter a verdade revelada. A arte e o artista teriam um papel
fundamental nesse processo. Seu sacrifício é em prol de todos aqueles que almejam a
salvação.
Mas voltemos ao artista… Quando ele utiliza os seus poderes extraordinários e estou
justamente a pensar na obscenidade em seus termos mágicos –, ei-lo inevitavelmente
tomado e preso no fluir das forças que o impulsionam. Num primeiro tempo assumisse
como alguém capaz de despertar os leitores, mas contas feitas, ele também transita para
uma outra dimensão da realidade, e tal é essa dimeno que deixa de sentir qualquer
necessidade de ocasionar um despertar iluminado. A revolta experimentada contra a
inércia que o rodeia, transmuda-se e reconverte-se, enquanto que sua visão se desenvolve
tendente à aceitação de uma ordem humana e de uma harmonia muito para além, uma e
outra, da concepção humana, e suscepveis de serem alcançadas pela fé… É nesse
momento que se apercebe que a verdadeira natureza do obsceno reside no desejo de
converter. Feriu, bateu, impressionou com um único sentido: o de estimular, reanimar,
despertar.
209
Se o profeta que Henry Miller construiu fala em termos baixos e vulgares e narra
aventuras sexuais sem grandes pudores, é porque essa é sua missão. O profeta do caos é
também um mestre da sensualidade. Sua via crucis é marcada pela energia sexual de
episódios violentos. A obscenidade que define seu drama é a mesma que sentido a toda
caminhada. As etapas de sua crucificação são permeadas por episódios sexualmente
agressivos porque sua redenção passa por uma redescoberta da carne. O crucificado é também
aquele que descobriu os mistérios de seu próprio corpo. Fez-se animal para renascer
plenamente como homem.
This is all a figurative way of speaking about what unmentionable. What is
unmentionable is pure fuck and pure cunt: it must be mentioned only in de luxe editions,
otherwise the world will fall apart. What holds the world together, as I have learned from
hitter experience, is sexual intercourse. But fuck, the real thing, cunt, the real thing, seems
to contain some unidentified element whirl, is far more dangerous than nitroglycerin. To
get an idea of the real thing you must consult a Sears Roebuck catalogue endorsed by the
Anglican Church. On page twenty three you will find a picture of Priapus juggling a cork-
screw on the end of his weeny; he is standing in the shadow of the Parthenon by mistake;
he is naked except for a perforated jock-strap which was loaned for the occasion by the
Holy Rollers of Oregon and Saskatchewan. Long distance is on the wire demanding to
know if they should sell short or long. He says go fuck yourself and hangs up the receiver.
In the background Rembrandt is studying the anatomy of our Lord Jesus Christ who, if
209
MILLER, Henry. Obscenidade e reflexão. Vega, 2001, p.52 - 53.
138
you remember, was crucified by the Jews and then taken to Abyssinia to he pounded with
quoits and other objects.
210
O sexo, em sua forma supostamente pura, guardaria uma sagrada dimensão
subversiva. Seria o essencial para fazer acordar os homens e garantir a redenção da
humanidade. Daí a justificativa para a obra de Miller ser sexualmente violenta. O desejo de
chocar viria da necessidade de redimir. A face da violência é a obscenidade e o sexo sua
expressão máxima, colocado entre a agressividade e a sublimação. Fator explosivo de uma
defesa da positividade da violência que afirma a vida. No obsceno reside o traço literário que
encena a violência positiva em Miller. Sua literatura é, portanto, uma literatura da agressão
pela obscenidade, do aprofundamento na dor que redime. Pretende-se sofrida e violenta como
o calvário de Cristo e aponta para a salvação como o exemplo bíblico.
No more peeping through keyholes! No more masturbating in the dark I No more public
confessions! Unscrew the doors from their jambs! I want a world where the vagina is
represented by a crude, honest slit, a world that has fccli on' for bone and contour, for
raw, primary colours, a world that has fear arid respect for its animal origins. I'm sick of
looking at curds all tickled up, disguised, deformed, idealized. Curets with nerve ends
exposed. I don't want to watch young virgins masturbating in the privacy of their
boudoirs or biting their nails or tearing their hair or lying on a bed full of bread crumbs
for a whole chapter. 1 want Madagascan funeral poles, with animal upon animal and at
the top Adam and Eve, and Eve with a crude, honest slit between the legs. I want
hermaphrodites who are real hermaphrodites, and not make-believes walking around.
With atrophied penis or a dried-up cunt. I want a classic purity, where dung is dung and
angels are angels.
211
Em Miller, a violência que se expressa na forma de obscenidade articulada, como
vimos, à apropriação da estética burlesca busca criar uma diferença em relação ao cânone
literário. Seus esforços se concentraram na produção de uma literatura situada entre o profano
e o sagrado, encenando a trajetória de um personagem que sobrevive à crucificação e
redescobre os limites do prazer. Esse homem sadio caminha enquanto a cidade arde em
chamas, orgulhoso de seus feitos. Legitimado pela dimensão sagrada de sua experiência, de
sua arte, sozinho, é assim que Henry Miller caminha.
Em uma passagem do último volume da trilogia um diálogo misterioso que Miller
teria travado consigo mesmo. Nesse episódio, temos uma indicação do sentido que o escritor
quer dar para sua trajetória e, consequentemente, para sua obra.
210
MILLER, Henry. Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963, p. 192.
211
MILLER, Henry. Black Spring. Frogmore: Panther Books, 1974, p. 45.
139
Another almost equally disturbing thought entered my head. Would I ever write anything
acceptable?
The answer which came at once to my lips was: "Fuck a duck!"
Still another thought now came to mind. Why was I so obsessed about truth?
And the answer to that also came clear and clean. Because there is only the truth and
nothing but the truth.
But a wee small voice objected, saying: "Literature is something else again."
Then to hell with literature! The book of life, that's what I would write.
And whose name will you sign to it?
The Creator's.
That seemed to settle the matter.
The thought of one day tackling such a book the book of life kept me tossing all night.
It was there before my closed eyes, like the fata morgana of legend. Now that I had
vowed to make it a reality, it loomed far bigger, far more difficult of accomplishment
than when I had spoken about it. It seemed overwhelming, indeed. Nevertheless, I was
certain of one thing it would flow once I began it. It wouldn't be a matter of squeezing
out drops and trickles. I thought of that first book I had written, about the twelve
messengers. What a miscarriage! I had made a little progress since then, even if no one
but myself knew it. But what a waste of material that was! My theme should have been
the whole eighty or a hundred thousand whom I had hired and fired during those sizzling
cosmococcic years.
212
A ideia de escrever um livro da vida parece ser a ambição máxima de Miller. Não se
trata de fazer com que a literatura seja um espelho de sua vida, mas que se confunda com ela a
ponto de ser impossível dizer onde uma começa e a outra termina. O sentido mágico e
religioso de sua trajetória talvez se revele também nesses termos. O apelo misterioso de sua
caminhada deve se revelar, além disso, no surgimento desse ser híbrido de homem e livro.
Sua redenção passa por essa transformação e se afirma a partir dela.
To ask the purpose of this game, how it is related to life, is idle. As well ask the Creator
why volcanos? Why hurricanes? Since obviously they contribute nothing but disaster.
But, since disasters are disastrous only for those who are engulfed in them, whereas they
can be illuminating for those who survive and study them, so it is in the creative world.
The dreamer who returns from his voyage, if he is not shipwrecked en route, may and
usually does convert the collapse of his tenuous fabric into other stuff. For a child the
pricking of a bubble may offer nothing but astonishment and delight. The student of
illusions and mirages may react differently. A scientist may bring to a bubble the
emotional wealth of a world of thought. The same phenomenon which causes the child to
scream with delight may give birth, in the mind of an earnest experimenter, to a dazzling
vision of truth. In the artist these contrasting reactions seem to combine or merge,
producing that ultimate one, the great catalyzer called realization. Seeing, knowing,
discovering, enjoying – these faculties or powers are pale and lifeless without realization.
The artist's game is to move over into reality. It is to see beyond the mere «disaste
which the picture of a lost battlefield renders to the naked eye. For, since the beginning of
time the picture which the world has presented to the naked human eye can hardly seem
anything but a hideous battle ground of lost causes. It has been so and will be so until
212
MILLER, Henry. Nexus. New Jersey: Castle Books, p. 217-218.
140
man ceases to regard himself as the mere seat of conflict. Until he takes up the task of
becoming the «I of his I».
213
A missão de se tornar “o eu de si mesmo”, no caso de Miller, possui uma dimensão
estética. O total domínio sobre o que se é aponta para a criação artística de si mesmo. No
limite, trata-se do entendimento da ppria vida como obra de arte.
With our instruments we now detect worlds of whose existence ancient man had not the
slightest inkling. We are able to plot realms of worlds beyond our present ken, because
our minds are already receptive to the light which emanates from them. At the same time
we are also able to visualize our own wholesale destruction. But are we frozen in our
tracks? No. Our faith is greater than we dare admit. We sense the magnificence of that
life eternal which is man's and which we have ever denied. Despite all our pride and
vanity, we behave as if we knew nothing of our true heritage. We protest that we are only
human, all too human. But if we were truly human we would be capable of all things,
ready for all exigencies, know all conditions of being. We ought to remind ourselves
daily, repeat it like a litany, that in our being lies concealed the whole gamut of existence.
We should cease worshiping and inspire worship. Above all, we should cease postponing
the act of becoming what in fact and essence we are.
"I prefer," wrote Van Gogh, "to paint men's eyes than to paint cathedrals, because there is
something in men's eyes which is not in cathedrals, however majestic and imposing the
latter may be"
214
Seu jogo é um jogo audacioso, pretendendo confundir bios e literatura. A metamorfose
final é fruto de um projeto literário traçado a longo prazo. Seus romances são escritos não
necessariamente para se parecerem com a realidade do que Miller foi: foram escritos para
revelá-lo em um mistério sagrado. Não devem se sobrepor a ele ou emulá-lo, devem ser ele
mesmo, sem deixar de ser literatura ou ficção. Talvez seja possível considerar que, para Henry
Miller, seja essa a função de toda obra de arte verdadeira e a aspiração maior de todo artista.
A writer woos his public just as ingnominiously as a politician or any other moutebank;
he loves to finger the great pulse, to prescribe like a physician, to win a place for himself,
to be recognized as a force, to receive the full cup of adulation, even if it be deferred a
thousand years. He doesn't want a new world which might be established immediately,
because he knows it would never suit him. He wants an impossible world in which he is
the uncrowned puppet ruler dominated by forces utterly beyond his control. He is content
to rule insi-diously in the fictive world of symbols because the very thought of
contact with rude and brutal realities frightens him. True, he has a greater grasp of reality
than other men, but he makes no effort to impose that higher reality on the world by force
of example. He is satisfied just to preach, to drag along in the wake of disasters and
catastrophes, a death-croaking prophet always without honor, always stoned, always
shunned by those who, however unsuited for their tasks, are ready and willing to assume
responsibility for the affairs of the world. The truly great writer does not want to write: he
213
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 272 – 273.
214
MILLER, Henry. Plexus. New Jersey: Grove Press, 1967, p. 88 – 89.
141
wants the world to be a place in which he can live the life of the imagination. The first
quivering word he puts to paper is the word of the wounded angel: pain.
215
A realização da vida como obra de arte aparece nas propostas filosóficas de Nietzsche.
Em A gaia ciência comenta: “Como fenômeno estético a exisncia ainda nos é suportável, e
por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer
de nós mesmos um tal fenômeno.
216
Para o filósofo alemão, assim como para Henry Miller,
fazer-se obra de arte é algo muito mais fundamental do que criar objetos artísticos. Cabe ao
homem ser o poeta de sua própria exisncia. Assim, tornar-se o que se é o é se voltar para
um ser absoluto escondido. O “eu” é uma criação, uma construção, um criar permanente de si
mesmo. O primeiro passo para a realização da tarefa é uma certa traição da natureza: é preciso
investir contra o estado natural das coisas e enfrentar a feitura do ser, sendo essas atribuições
da
arte
. O
artista
se
aproxima
de Deus para
inventar
os novos papéis a serem
experimentados.
217
Aqui acrescenta algo, ali suprime outro tanto, mas em ambas as vezes aplica longa prática
e trabalho diário. “Aqui esconde o que é feio e não pode suprimir, ali o transforma de
modo a obter um significado sublime”. Muito do que era vago e resistia a tomar forma foi
reservado para ser utilizado mais adiante. Por fim, terminada a obra, é manifesto o modo
como o gosto próprio dominou e deu forma às coisas grandes e pequenas; “se o gosto foi
bom ou mau, significa menos do que se pensa é suficiente que seja um gosto
próprio!”.
218
Dessa forma, é possível concluir que o sentido sagrado e misterioso da via crucis de
Henry Miller se relaciona também com a sua autorrepresentação como “o artista da vida”. O
segredo revelado ao fim da crucificação é o que aponta para a possibilidade de sua arte e sua
vida se fundirem em nome de uma plenitude existencial consagrada na ressurreição e pela
redenção de sua vida-obra.
Não é que eu coloque o bio ou o santo adiante do artista. O que gostava era de ver
instalado o artista da vida”. O Cristo ressuscitado
seria o tal artista, por exemplo.
Milarepa foi outro.
215
MILLER, Henry. Sexus. New Jersey: Grove Press, 1978, p. 25.
216
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras: 2001, p.107.
217
Sobre as interpretações de Nietzsche acerca da vida como obra de arte ver o trabalho de Julian Young,
Nietzsche's Philosophy of Art.
218
DIAS, R. M. Nietzsche e Foucault: a vida como obra de arte. In: Imaculada Kangusso, Olimpio Pimenta,
Pedro Süssekind, Romero Freitas. (Org.). O cômico e o trágico. 1 ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, v. 1, p. 50.
142
Isto relaciona-se com a progressão, como você apresenta a coisa, de Bergson-Spengler
aos chineses e indianos. Penso que também ultrapassei esse período. A palavra-chave
é realidade.
219
219
MILLER, Henry; DURREL, Lawrence. Correpondência. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d, p. 273.
143
Conclusão
Tratar o conjunto dos trabalhos literários de Henry Miller a partir da perspectiva da
existência de um “projeto literáriosignifica assumir que sua produção artística depende de
um determinado “sistema de possibilidades” (por exemplo, estilísticas). Esse universo de
possíveis é “oferecido pela hisria e organizado de acordo com os interesses que orientam
os agentes sociais envolvidos.
220
Esses interesses se estruturam de acordo com o lugar ocupado e por aquele que produz
e que se propõe, de alguma forma, a participar do jogo de forças que ajudam a definir figuras
como a do “estabelecido” ou outsider. No caso de Henry Miller é possível perceber que, logo
após a publicação de Tropic of Cancer, mesmo sendo um autor notadamente “marginal”, seu
nome já gozava de um certo prestígio em alguns círculos letrados. Entre os autores de “livros
sujos”, instalados em Paris na década de 1930, Miller se destaca, sua obra ocupa um lugar, de
certa forma, privilegiado.
Pensar os trabalhos literários de Henry Miller de forma relacional significa levar em
consideração, ao mesmo tempo, a sua condição de outsider considerarados os cânones
franceses, ou mesmo ocidentais – e seu lugar de destaque dentre os ditos “autores marginais”.
Considerada a dinâmica dessas posições, se pode tentar entender as “tomadas de posição”
221
que definem o seu projeto literário. Esses posicionamentos se referem tanto às estratégias
“políticas” manipuladas no sentido de oferecer determinada resolução acerca dos sentidos
pretendidos para os textos, quanto às opções estéticas ou estilísticas que o escritor lança mão
escrever os romances.
Nesse sentido, é possível afirmar que o projeto literário de Henry Miller se definiu a
partir de suas expectativas e de suas percepções em relação às possibilidades disponíveis no
campo literário: Miller inventou uma tradição literária para si mesmo e buscou discutir o que
define como os temas centrais de uma legião de heróis da cultura ocidental que ele mesmo
elegeu.
Ao evocar “grandes escritores”, Miller realiza uma espécie de teatro de representações
letradas. Nesse teatro, ele constrói um panteão de “heróis da cultura”, inserindo-se nele. É ao
lado deles, heróis marginalizados, que é inventado um “personagem Miller” capaz de atuar
como um “errante facínora cultural”. As funções desse teatro aparecem quando se observa a
220
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 63.
221
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 63.
144
estruturação de seu projeto literário como um todo; posto que os nomes que circulam em suas
obras estruturam o tipo de filiação que o escritor pretende. Grandes figuras da cultura letrada
ocidental aparecem em cena para ajudarem a definir o padrão de atuação do próprio Henry
Miller. É ao lado desses personagens que a sua literatura busca definição.
O teatro de representações letradas é, portanto, um artifício que tem como objetivo
legitimar a sua própria escrita. Construída com o “aval” de todos os “marginais” da literatura
do Ocidente, a arte de Miller aspira ocupar um lugar de prestígio. Dessa forma, a mesma obra
que tem a ambição de ser revolucionária e não convencional, busca sua legitimação em um
tipo de tradição fabricada: supostos escritores dissidentes são convocados por Miller para
referendarem, assim, a ousadia de seu trabalho, para aumentarem suas possibilidades de
sucesso e fornecerem referência ao que pudesse significar rebeldia e novidade.
Ao forjar assim uma tradição, Miller forja também um repertório de questões a serem
enfrentadas como pontos chave” para a saúde espiritual do Ocidente. É preciso lembrar, no
entanto, que essa tradição é inventada a partir de um determinado repertório letrado
circulante, de um horizonte, provavelmente o mesmo horizonte de expectativa em que se
inscreveriam suas obras. A tradição literária que Miller quer para si é a mesma tradição que
comporia a base do repertório letrado circulante entre os consumidores de “livros sujos” na
Paris das primeiras décadas do século XX.
Se o projeto literário aqui tratado pressupõe a manipulação de alguns modelos
textuais, literários ou não, é preciso considerar os “recursos de gênero historicamente
disponíveis”,
222
assim como o repertório de temas possíveis tratados. A delimitação temática
de Miller se articula fundamentalmente com os interesses que orientam um projeto que parte
da premissa de que a literatura deve servir à redenção dos males espirituais do Ocidente.
Nesse sentido, Henry Miller pensa a arte, a sexualidade e a decadência da civilização,
entre outros, a partir de uma determinada tradição literária. O sucesso de seu projeto foi
determinante para uma futura apropriação, que o tornaria o mentor da literatura beat e o
patrono da nova literatura americana. Ele surgiria como um dos inventores de um novo
sentido de sexualidade e de liberdade.
Nesse sentido, semelhanças evidentes entre os romances de Miller em especial
Tropic of Cancer e Tropic of Capricorn e On the Road, de Jack Kerouac: o jogo calcado no
desejo de fazer da literatura uma experiência de vida e não mera articulação estética; a
exposição de questões relativas à sexualidade; a oposição à civilização materialista e a busca
222
PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. o Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 13.
145
por uma renovação espiritual para o Ocidente são características comuns ao projeto literário
de Henry Miller e ao programa beat. Não se pode dizer que Miller trouxe de forma pioneira
essas questões para a literatura ocidental. Talvez o que se possa afirmar é que Miller manipula
essas questões em praticamente toda a sua obra e o personagem que criou (estrategicamente
chamado Henry Miller) é um modelo bastante completo de artista romântico e herói. Não por
acaso, Miller seria considerado pela crítica como o patrono dessa geração. Para Robert
Kiernan, ao se mudar para Califórnia, Henry Miller “transformou-se no guru do novo
radicalismo, a geração beat, a voz do anarquismo romântico norte-americano”.
223
Em 1976 os franceses concederam a Miller a Légion d´honneur, um signo de
respeitabilidade que o incentivaria a concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura. Miller começa
uma mobilização em 1978, quando todos os seus editores foram contatados e convocados a
escreverem para o comiapoiando a sua candidatura. O escritor se empenhou pelo prêmio
que poderia lhe render ainda mais respeitabilidade e uma boa quantia de dinheiro. O Nobel
acabou indo para Issac Bashevis Singer, em 1979. De qualquer forma, naquele momento, o
nome de Henry Miller estava absolutamente estabelecido entre os grandes da literatura
ocidental.
Um episódio interessante ajuda a marcar o deslocamento de Miller de “escritor
marginal” para “autor reconhecido”. Em um dos julgamentos que Tropic of Cancer enfrentou,
o juiz Samuel B. Epstein, em 21 de fevereiro de 1962, decretou que o livro não era obsceno
aos olhos da lei. Seu argumentário foi baseado em uma determinada leitura da sociedade
americana da época. Segundo o juiz, em uma sociedade onde o maiô inteiro está sendo
substituído pelos biquínis e a dança de salão de antigamente está sendo substituída pelo
twist”, um livro como Tropic of Cancer não pode ser considerado subversivo, mesmo porque
os delinquentes juvenis “tem uma base educacional tão pequena que não leem livros desse
calibre literário”.
224
Ainda que guardando algum potencial subversivo” a literatura produzida por Miller
parecia ter alcançado um outro patamar já no início da década de 1960. De alguma forma, já
não poderia mais ser lida como um tipo de produção barata, destinada a um pequeno grupo de
leitores acostumados com literatura considerada marginal. O argumentário oferece um
panorama de como o nome de Miller estaria legitimado, a ponto de ter seu “calibre
literário” destacado em um processo judicial. A liberação de sua publicação nos Estados
Unidos, certamente revela algo sobre a dinâmica em torno de questões como “liberdade de
223
KIERNAN, Robert F. A literatura americana pós 1945. Rio de Janeiro: Editora Nórdica, 1983, p. 131.
224
FERGUSON. Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 374.
146
expressão”, por exemplo, mas revela ainda mais acerca do triunfo de um determinado tipo de
literatura.
Miller tem sua obra liberada porque havia conseguido se estabelecer como autor.
Seus romances foram a julgamento depois de já estarem legitimados por parte considerável da
crítica literária e contarem com a admiração de escritores importantes e influentes. George
Orwell sempre foi um aliado importante. No ensaio Dentro da baleia, o escritor e crítico
inglês, já em 1940, busca ressaltar as qualidades literárias dos primeiros romances de Miller.
Segundo Orwell, com Miller, “logo nos afastamos das mentiras e simplificações do caráter
estilizado e mecânico da ficção comum, inclusive da ficção bastante boa, e passamos a lidar
com experiências reconhecíveis dos seres humanos”.
225
Miller aparece como aquele que seria capaz de narrar os sentimentos de toda uma
geração, por ter tido a coragem de expor as feridas da vida cotidiana, onde o horror é sempre
maior do que os escritores normalmente são capazes de narrar. Para o crítico, Henry Miller é
capaz de aceitar o que enxerga como a ruína da civilização sem aludir ao desespero. Ele
“acredita na ruína eminente da civilização ocidental com muito mais firmeza do que a maioria
dos escritores revolucionários, que não se sente exortado a fazer nada a respeito. Ele vadia
enquanto Roma arde em chamas, e, ao contrário da grande maioria das pessoas que o fazem,
vadia com o rosto voltado para as chamas”.
226
Para George Orwell, Henry Miller é uma espécie de Jonas conformado, autotragado
por sua baleia transparente que o permite navegar e contemplar o mar. Como poucos, o crítico
se esforça para destacar o que reconhece como talento literário de Miller. As palavras do
crítico colocam ainda o escritor americano como alguém que tratou incessantemente de
refletir sobre os rumos da civilização. Em Dentro da baleia, mais do que um simples rebelde,
Miller é lido como um pensador contundente que se expressa através de romances destinados
a criar um novo capítulo na literatura ocidental.
O texto foi publicado inicialmente na New Directions in Prose and Poetry, importante
periódico da editora que seria responsável pela publicação das obras de Miller nos Estados
Unidos, antes da Grove Press. Não é difícil perceber a dimensão estratégica que o ensaio
tinha. Na verdade trata-se de uns dos inúmeros recursos utilizados por Miller e seus editores
para que seu projeto literário pudesse se efetivar. No caminho das disputas em torno do que é
“valor literário” ou mesmo do que é “literatura” – que no limite almejam a consagração de um
determinado modelo travavam-se verdadeiras batalhas políticas em que a crítica
225
ORWELL, George. Dentro da Baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 99.
226
ORWELL, George. op. cit., p. 134.
147
estabelecida ocupava uma função muitas vezes determinante. Sem dúvida, a trajetória de
Miller de autor marginal a autor renomado foi marcada por lutas que atestam como um
determinado tipo de discurso literário pode assumir valores diferentes em diferentes
circunstâncias históricas.
Vimos como a “inveão” do valor da obra literária de Henry Miller carrega uma série
de questões que o desde sua tentativa de construção de uma determinada tradição letrada
(primeiro capítulo) até a construção de sua autorrepresentação como o herói romântico
crucificado (terceiro capítulo), passando pela sua tentativa de criar uma espécie de atmosfera
mística para suas obras, onde o próprio Miller como amante da verdade revela segredos
sagrados que redimem (segundo capítulo). É claro que essa “invenção” não pode, em hipótese
alguma, depender das características específicas do projeto literário então forjado. A
construção do valor de uma obra depende de um conjunto de fatores que configuram o campo
literário em um momento específico. Mas é inegável que, no caso de Miller, boa parte de seus
esforços se deram no sentido de evidenciar o seu próprio talento e a beleza de sua obra. Miller
buscou, assim, como poucos, agregar valor para seus textos.
A partir da manipulação de conceitos como os de civilização e decadência,
apropriados de Oswald Spengler, Miller pros uma renovação estética em que a literatura
produzida por ele ocuparia o lugar do novo, frente a uma produção letrada contemporânea
considerada estéril e vazia. Ao tentar desmontar a lógica que regeria o status quo literário, o
escritor estava também demarcando o sentido de sua ppria obra, ajudando a construir sua
inserção. Mais do que uma estratégia com fins práticos e objetivos, esse parece ser o jogo que
sua literatura deseja provocar.
No universo literário de Miller, as pequenas dores cotidianas se revestem assim de
sublimidade, quando então a verdade se revela, apontando constantemente para a pequenez
humana. Disso é extraída uma moral que se quer nova e revolucionária. Os personagens
aparecem em cena expondo suas dúvidas e debilidades, a humanidade assume uma dimensão,
ao mesmo tempo, sublime e perecível, entre heroica e vulgar. Em histórias que tratam de
experiências corriqueiras, se revelam importantes descobertas de ordem pessoal.
O investimento de Miller na ênfase do valor de sua própria obra talvez resulte do fato
dela se propor a funcionar como um grande drama da cultura ocidental. Nela se veem
encenadas a tragédia da decadência e a busca de uma salvação. Henry Miller surge como o
herói letrado que redescobre a literatura, redefinindo seus atributos fundamentais. O
personagem herói das letras marginais é aquele responsável pela escrita de romances que
querem discutir a literatura e superá-la.
148
Henry Miller produz um tipo de romance que tem como um de seus pontos básicos o
jogo que visa confundir vida e literatura, realidade e ficção. Assim, faz questão de demarcar,
sempre que possível, não nos próprios romances como em cartas, relatos e entrevistas, que
seus textos o autobiográficos. É justamente nessa lógica, por exemplo, que Emerson é
constantemente mencionado como um amante da verdade e defensor de um tipo de literatura
essencialmente confessional. Trata-se uma filiação necessária para o estabelecimento da
crença que Miller pretende: ao emprestar o seu próprio nome ao seu personagem principal e
envolver a sua literatura em uma atmosfera místico-religiosa, marca a intenção de apresentá-la
como reveladora de uma verdade escondida. Colocar sua arte na esfera do sagrado surge
como um recurso eficaz para que ela se defina em termos de verdade profunda e se estabeleça
diante de cenário cultural que o próprio Miller considerava decadente.
O artifício de se confundir com um personagem literário, de criar-se a si mesmo como
obra de arte, aponta para a perspectiva de que mais importante do que a arte é a arte de viver.
A literatura de Henry Miller se pretende como uma apreensão da vida em sua plenitude. Seus
romances precisam exercer uma função para além do que entende como ficção tradicional:
devem ser relatos da vida e, em termos misteriosos e sagrados, conter a própria essência das
coisas. Quando Henry Miller diz ter a pretensão de escrever um grande “livro da vida” que
só se pode ser vislumbrada ao se tomar sua obra como um todo – significa que seus romances
devem capturar ou mesmo atualizar a energia de suas dores e o prazer da sexualidade
violenta que explode entre as páginas.
Nesse sentido, o escritor faz questão de se definir como o precursor de um novo
gênero literário marcado pela transparência. Na literatura “mais que literáriapretendida por
Miller, a ambição máxima se resume na perspectiva de construção de um conjunto de
romances que possam configurar a verdade de uma vida exemplar. Mais do que relatos de
experiências vividas, os romances são construídos para funcionarem como modelo de um
novo tipo de experiência literária. Há, nesse caso, tanto uma aproximação quanto um
distanciamento dos chamados gêneros confessionais. Ao mesmo tempo em que se apropria de
Emerson, Miller faz questão de escapar do constrangimento de ter que comprovar o que diz: a
verdade passa então a ser um atributo da imaginação.
Para encenar uma tragédia que se pretende pessoal, Henry Miller se apropria até
mesmo do texto bíblico, que aparece como uma refencia na medida em que é interpretado
como sendo capaz de ser, ao mesmo tempo, vulgar e sublime. No entanto, o desejo de
converter literatura em vida é mais estético do que religioso. Para Maurice Blanchot,
justamente, a liberdade dos romances de Miller impediria que essa conversão se desse. Para o
149
crítico, na obra do escritor americano não se encontraria essa passagem da metáfora à
metamorfose.
227
A aproximação com o gênero autobiográfico acaba por funcionar como um recurso no
sentido de atribuir um sentido mais íntegro a seus relatos. Para fazer de seu personagem um
exemplo, um modelo, Miller lança mão de efeitos persuasivos que identifica em relatos
autobiográficos. A partir de alguns personagens modelares, como o homem do subsolo,
Zaratustra e Jesus Cristo, constrói uma encenação do que pode ser definida como a via crucis
de Henry Miller. Ao narrar a trajetória que deve espelhar sua própria vida, utiliza recursos
trágicos, burlescos e pornográficos para dramatizar uma hisria de renúncia, sofrimento e
revelação, cujo ápice se caracteriza pela ideia da crucificação. Somente a partir dela, o artista
pode se tornar o que ele é. Sua narrativa é, portanto, trágica na medida em narra o caminho
incontornável de um homem em constante transformação; burlesca em sua dimensão
agressiva e salutar; e pornográfica pelo desejo de marcar uma diferença em relação ao que
define como padrão de beletrismo. Aliás, para Miller, o gênero pornográfico guardaria ainda o
mesmo potencial redentor do burlesco.
O crucificado é a imagem de Miller para o artista sofredor. Artista que se define por
sua autonomia e nasce com a invenção do estilo de vida boêmio de meados do século XIX.
228
Criado em contraposição ao estilo de vida burguês, o artista boêmio é mais do que um
personagem literário, uma vez que “os romancistas contribuem grandemente para o
reconhecimento público dessa nova entidade social, especialmente ao inventar e difundir a
própria noção de boemia, e para a construção de sua identidade, de seus valores, de suas
normas e de seus mitos”.
229
O personagem Miller é construído justamente a partir dessa “nova entidade social”. De
certa forma, é ela que entra em cena na narrativa da via crucis. Esse modelo, inventado na
“sociedade dos artistas”,
230
aparece nos romances dramatizando as audácias e transgressões
que os artistas introduzem, não apenas em suas obras, mas também em sua existência, ela
própria concebida como obra de arte”.
231
Cabe destacar que tais transgressões, em grande
medida, se sustentam nas conquistas dessa mesma sociedade capaz de se garantir como seu
227
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 171.
228
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p.72.
229
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 72.
230
Para Pierre Bourdieu, a expressão “sociedade dos artistas” faz alusão à uma espécie de laboratório
socialmente configurado onde os artistase outros agentes envolvidos na estruturação do campo literário ou
artístico – se articulam na criação dos valores e identidades que, de certa forma, norteiam a lógica da produção
cultural.
231
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 75.
150
próprio mercado, oferecendo às audácias da rebeldia boêmia “uma acolhida mais favorável,
mais compreensiva”.
232
Em outras palavras, talvez seja possível afirmar que a literatura rebelde de Miller é
pensada dentro de um projeto que entende as possibilidades de circulação das obras. Os livros
“transgressores” possuem um público consumidor fiel interessado em livros sujos produzidos
em Paris nas primeiras décadas do século XX.
No projeto literário de Henry Miller, a via crucis aparece como a nova arte desse
artista autônomo e livre, suportado pelas redes de segurança da sociedade dos artistas. É
entendida como a obra máxima de um tipo de artista que se define pela renúncia. É justamente
essa nova arte que deve surgir como a redenção para a decadente cultura ocidental.
A literatura do “artista da vida” o pode querer ser outra coisa senão um grande
exemplo de imersão na experiência. Nesse sentido, a busca de uma identidade literária, no
caso de Miller, equivale à tentativa de se estabelecer como uma espécie de profeta de uma
nova ordem, expoente combativo de um novo tipo de literatura “livre” e “essencialmente
honesta e transparente”, engajada em não promover as “mutilações” que a literatura tida por
tradicional supostamente opera.
Essa identidade é construída na dinâmica que orienta suas tomadas de posição em
relação a outros escritores: sendo teoricamente mais “ousado que D. H. Lawrence; mais
sincero e menos técnico do que James Joyce, tão “livre” e rebelde” quanto Whitman, ou
“sincerocomo Emerson. São romances estruturados na lógica do conflito e no horizonte de
uma determinada tradão literária.
É sempre importante destacar que as ambições e os interesses que orientam o projeto
não seriam capazes de definir os ltiplos lugares ocupados e sentidos atribuídos aos seus
trabalhos: Henry Miller teria sido o símbolo de uma nova literatura marginal surgida nos
submundos de Paris; o escritor maldito impossibilitado de ser publicado em seu país; ou
ainda, autor de uma rebeldia juvenil e inofensiva, até figurar como um “clássico do século
XX”. Ao ser alçado ao posto de patrono da geração beat e, portanto, ser considerado como
matriz da chamada “nova literatura norte-americana”, a obra de Henry Miller se
monumentalizaria a ponto de ter o valor reconhecido em tribunais pela defesa da liberdade de
expressão. O escritor aparece para a literatura americana moderna como um paria modelo, o
marginal bem-sucedido que forneceria modelos literários e comportamentais para uma nova
geração. O boêmio pervertido se converte, enfim, em uma espécie de rebelde patrimonial.
232
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 75.
151
Articulado basicamente na figura do artista-herói, o projeto de Miller tem como eixo
fundamental à construção de um personagem que tem como uma de suas principais funções
confundir a vida do escritor americano com a trajetória trágica de um personagem literário.
Nesse sentido, Miller buscou definir sua literatura como uma forma mais complexa e bem
acabada de arte. Esta seria o fruto de um aprimoramento formal e espiritual que resultaria em
uma apreensão mais completa e bem definida da realidade. O cotidiano viria à tona guardando
elementos trágicos e mesquinhos. A realidade cotidiana, às vezes tratada a partir do uso de
características do teatro burlesco, é dramatizada tendo em vista a encenação de uma tragédia,
em que as cores do grotesco, do sublime e do baixo se revelam e o sexo assume uma função
redentora. O projeto literário de Henry Miller, nesse sentido, se define em uma proposta de
gênero literário que bem poderia ser definido como uma “autobiografia trágico-burlesco-
pornográfica”.
152
BIBLIOGRAFIA
APOLLINAIRE, Guillaume. Le flâneur des deux rives. Paris: Gallimard, 1993.
ARAGON, Louis. Anti-portrait. Paris: Maisonneuve & Larose / Archimbaud, 1997.
______________ Une Vague de rêves. Paris: Seghers, 1990.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. o
Paulo: Perspectiva, 2002.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e potica: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
________________ Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
BERMAM, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. o
Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BERTHOFF, Warner. A Literature without Qualities: American Writing Since 1945.
Berkeley: University of California Press, 1979.
BIRO, Adam e PASSERON, René (org.). Dictionnaire Général du Surréalisme et de ses
environs. Paris: Presses Universitaires de France, 1982.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
BLOON, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da Literatura. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
________________ Razões práticas: sobre a teoria daão. Campinas: Papirus, 1996.
BRADBURY, Malcon. O romance americano moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.
BRASSAI. Henry Miller. The Paris Years. New York: Árcade Publishing, 1995.
BRETON, André. Oeuvres Complètes, volumes I, II, III e IV. Bibliothèque de La Pléiade.
Paris: Gallimard, 1999.
______________ Position politique du surréalisme. Paris: Librairie nérale Française,
1991.
BROCHIER, Jean-Jacques. L'Aventure des surréalistes : 1914-1940. Paris: Stock, 1977.
153
BURGUESS, Anthony.The Novel Now: A Guide To Contemporary Fiction. New York: W.W.
Norton, 1967.
BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992.
____________ Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
CARPEAUX, Otto Maria. Tendências contemporâneas da literatura. Rio de Janeiro: Edões
de Ouro, 1968.
____________________ Historia da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 1976.
____________________ Revoltas modernistas na literatura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1974.
CARR, Roy, Brian Case, and Fred Dellar. The Hip: Hipsters, Jazz and the Beat Generation.
Faber and Faber, 1986.
CENDRARS, Blaise. Morravagin. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes,
1999.
CHARTERS, Ann. Beats and Company, Portrait of A Literary Generation. Dolphin
Doubleday, 1986.
________________ "The Beats: Literary Bohemianism in Postwar America," Parts I and II,
Dictionary of Literary Biography, Volume 16. Gale, 1983.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL,
1986.
_______________ Os desafios da escrita. São Paulo: UNESP, 2002.
________________ A ordem dos livros. Brasília: UNB, 2002.
CHÉNIEUX-GENDRON, J. O surrealismo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
COOK, Bruce. The Beat Generation. New York: Scribner, 1971.
DAHER, A. (org.) SURREALISMO. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil /
Instituto Takano, 2001.
DAVIDSON, Michael. The San Francisco Renaissance, Poetics and Community at Mid-
Century. Cambridge University, 1989.
DE SALVO, Donna. Staging Surrealism. Columbus: The Ohio State University, 1998.
DIAS, R. M. Nietzsche e Foucault: a vida como obra de arte. In: Imaculada Kangusso,
Olimpio Pimenta, Pedro Süssekind, Romero Freitas. (Org.). O mico e o tgico. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2008, v. 1.
154
DONALD, Miles. The American Novel in the Twentieth Century. New York: Barnes and
Noble, 1978.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.
____________________ O idiota. São Paulo; Editora 34, 2004.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2v.
_____________ A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____________ Estabelecidos e Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
EMERSON, Ralph Waldo. Ensaios I. São Paulo: Martins Editora, 1976.
EVERDELL, Wiliam R. Os primeiros modernos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
FAURE, Elie. Histoire de l’Art. L’esprit des formes. L’Art antique. Paris : Éditions Denoël.
Collection Folio/Essais, 1992.
FER, Briony; BATCHELOR, David e WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: a
arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
FERGUSON, Robert. Henry Miller: uma vida. Porto Alegre: L&PM, 1991.
FIEDLER, Leslie. Love and Death in the American Novel. Revised Edition. New York: Stein
and Day, 1966.
FINKELSTEIN, Sidney. Existencialismo e alienação na literatura americana. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1969.
FISHER, Stanley.Beat Coast: An Anthology of Rebellion. New York: Excelsior Press, 1960
FREUD, Sigmund. O futuro de uma Ilusão e o mal estar na civilização. in Obras Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GAY, Peter. Paixão terna: experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. o Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 2000.
GHERGO, Pedro. Henry Miller para principiantes. Buenos Aires: Longseller, 1998.
GOLD, Herbert. Bohemia: Digging the Roots of Cool. New York: Simon and Schuster, 1994.
GUMBRETCH, Hans Ulrich. Making sense in life and literature. Minneapolis: Minnesota
press, 1994.
HASSAN, Ihab Habib. Radical Innocence: Studies in the Contemporary American Novel.
Princeton: Princeton Up, 1961.
155
HAYES, Kevin J. Conversations with Jack Kerouac. University Press of Mississipi, 2005.
HERMAN, Arthur. A idéia de decadência na hisria ocidental. Rio de Janeiro: Record,
1999.
HERRON, Don. The Literary World of San Francisco and Its Environs. San Francisco City
Lights, 1985.
HIBBARD, Allen. Conversations With William Burroughs. University Press of Mississipi,
1999.
HOBSBAWN, Eric J. A era do capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
______________ A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______________ A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOLMES, John Clellon. Passionate Opinions: The Cultural Essays. University of Arkansas
Press, 1988.
HOWE, Irving. A World More Attractive: A View of Modern Literature and Politics. New
York: Horizon Press, 1963.
HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 200O.
KIERNAN, Robert F. A literatura americana pós 1945. Rio de Janeiro: Editora Nórdica,
1983.
KNIGHT, Arthur The Beat Vision: A Primary Sourcebook. New York: Paragon House
Publishers, 1987.
LAVALE, Luci M. Collin. Os cantares de Whitman e Neruda: a tradição do épico-lírico
americano. In Revista de Letras, Curitiba: Editora UFPR, 2005
LAWRENCE, D.H. O Amante de Lady Chatterley. Rio de Janeiro: Editora Abril, 1971.
MACHADO, Roberto. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio e Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MCNALLY, Dennis Desolation Angel: Jack Kerouac, the Beat Generation and America.
New York: Delta Books, 1979.
MAILER, Norman, The White Negro. San Francisco: City Lights, 1957.
MAYNARD, John A. Venice West: The Beat Generation in Southern California. Rutgers
University, 1993.
MILLER , Henry. O mundo do sexo. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Ed.
Americana, 1975.
156
______________ Nexus. Castle Books, N.J. 1965.
______________ The Books in My Life. New York: New Directions, 1978.
______________ Sexus. New York: Grove Press, 1979.
______________ Black Spring. Frogmore: Panther Books. 1974.
______________ Plexus. N.J. Grove Press. 1967.
______________ Tropic of Capricorn. New York: Grove Press, 1963.
______________ Tropic of Cancer. New York: Grove Press. 1961.
_____________ A Hora dos assassinos: um estudo sobre Rimbaud. Porto Alegre. L&PM,
2004.
_____________ Nexus. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1971.
_____________ Henry Miller and James Laughlin: selected letters edited by George Wickes.
New York: Norton, 1995.
_____________ Correspondência com Lawrence Durrel. Lisboa: Ed. Ulisseia, s/d.
_____________ Bis Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: José Olympio,
2006.
_____________ O pesadelo refrigerado. o Paulo: Francis, 2006.
_____________ Obscenidade e reflexão. Lisboa: Ed Vega, 1991.
_____________ The Art of Fiction: Paris Review n28. 1961.
_____________ O Colosso de Marússia. Rio de Janeiro: L&PM. 2003.
_____________ Cosmological Eye. New York: New Directions, 1961.
_____________ Opus pistorum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
_____________ Dias de Clichy. Rio de Janeiro: CEA, 1974.
_____________ Deslizando para os Everglades, São Paulo: Agora, 1986.
_____________ Um diabo no paraíso. São Paulo: Pioneira, 1997.
MORAES , Eliane Robert. O que é pornografia. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Rideel, 2005.
___________________ O anticristo. Lisboa: Edições 70, 2006.
157
___________________ A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIN, Anais. Henry, June e eu. São Paulo: Circulo do Livro, 1986.
ORWELL, George. Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
PARRY, Albert. Garrets and Pretenders: A History of Bohemianism in America. Mineola,
New York: Dover Publications, 1960.
PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2001.
PENNA, Annio Gomes. Freud. As ciências humanas e a filosofia. Rio de Janeiro: Imago,
1994.
PRESCOTT, Orville. In My Opinion: An Inquiry into the Comtemporary Novel. New York:
Bobbs-Merrill, 1952.
RICKET, Arthur. Vagabond in Literature. New York: Ayer, 1968.
SAWYER-LAUÇANNO, Cristopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1996.
SCHORSKE, Carl E. Pensando com a história. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______________ Viena fin -de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SENETT, Richard. Carne e pedra: O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de
Janeiro: Record, 2002.
SOLOMON, William. Burlesque dreams: American amusement, autobiography, and Henry
Miller. Northern Illinois University, 2001.
SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da história
ocidental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_______________ Palavras sob palavras. São Paulo: Perspectiva, 2001.
STEPHENSON, Gregory. Daybreak Boys: Essays on the Literature of the Beat Generation.
Southern Illinois University Press, 1990.
STRAUMANN, Heinrich. American Literature in the Twentieth Century. New York: Harper
and Row, 1965.
SUKENIC, Ronald. Down and In. New York: Macmillan, 1988.
158
SUTTON, Walter.American Free Verse: The Modern Revolution in Poetry. New York: New
Directions, 1973.
SWAIN, Tânia Navarro. História no plural. Brasília: Editora UNB, 1993.
TANNER, Tony. City of Words, American Fiction, 1950–1970. New York: Harper and Row,
1971.
THOREAU, Emerson. A desobediência civil e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989.
TYTELL, John. Naked Angels: The Life and Literature of the Beat Generation. McGraw-Hill,
1976.
VENDLER, Helen. Part of Nature, Part of Us: Modern American Poets. Cambridge: Harvard
University Press, 1980.
WATSON, Steven. The Birth of the Beat Generation. New York: Pantheon Books, 1995.
WATTS, Alan. Beat Zen, Square Zen, and Zen. City Lights, 1959.
WEBBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
YOUNG, Julian. Nietzsche's Philosophy of Art. Cambrige: Cambrige University Press, 1992.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo