Download PDF
ads:
Susan Mary dos Reis
A ARTE DE (NÃO) SILENCIAR: O SILÊNCIO LOCAL
“COSTURADO” EM MÚSICAS DE CHICO BUARQUE
Passo Fundo
2010
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS
Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS
Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: mestradolet[email protected]
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Susan Mary dos Reis
A ARTE DE (NÃO) SILENCIAR: O SILÊNCIO LOCAL
“COSTURADO” EM MÚSICAS DE CHICO BUARQUE
Passo Fundo
2010
ads:
2
Susan Mary dos Reis
A ARTE DE (NÃO) SILENCIAR: O SILÊNCIO LOCAL
“COSTURADO” EM MÚSICAS DE CHICO BUARQUE
Dissertação apresentada ao Programa de s-
Graduação em Letras, do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo,
requisito parcial para obtenção de titulo de Mestre
em Letras, sob a orientação da Profª Dr. Carme
Regina Schons.
Passo Fundo
2010
O silêncio indica o limite da interpretação e
acompanha a concepção do movimento dos
sentidos e dos sujeitos:
incompletos e abertos para se tornarem outros.
Eni Orlandi
À minha orientadora, profª Dr. Carme Regina Schons, antes de
tudo pelo exemplo de força e coragem, pela leitura atenta e
crítica, pela segurança nas orientações e, em especial, pelo
vínculo que construimos ao longo desses mais de dois anos.
A Ângela Stübbe Netto e Ana Luiza Setti Reckziegel, cada uma
a seu modo, que foram preciosas no trabalho de qualificação.
À minha família, em especial aos meus pais, pelo incentivo, pelo
amor e carinho que sempre demonstraram ao longo da minha
trajetória, por acreditarem em mim e por terem me ensinado que
o conhecimento não ocupa lugar.
Obrigada!
RESUMO
Esta investigação trata do modo como o silêncio local (censura) pode ser evidenciado por
meio do efeito metafórico. Tem como objetivo verificar a manifestação do “outro” em, pelo
menos, duas dimensões, considerando nas análises a questão do silenciamento (silêncio local-
censura). Para atingir esse objetivo analisam-se as 14 canções compostas por Chico Buarque
de Hollanda no período de 1970 a 1979, levando em consideração as condições de produção
(materialidade histórica), segundo as bases teóricas da Análise do Discurso de linha francesa.
Por meio da AD observamos que o locutor quer dizer, mas não pode dizer em razão da
censura, ou seja, o silêncio é que produz o rompimento da censura e é uma constante em toda
a análise. Observamos também a constituição do sujeito na trama discursiva evidenciando
efeitos de sentido múltiplos. Assim, conclui-se questionando a visão monológica da
linguagem, enfatizando-se o caráter heterogêneo nas canções analisadas, conceito
fundamental na perspectiva da Análise de Discurso de linha francesa. Como não temos a
pretensão de esgotar a totalidade das enunciações feitas em torno da noção de silêncio local,
fazemos algumas considerações sobre as questões trazidas para discussão e tecidas a partir do
efeito metafórico, através: a) das formações discursivas que ao se movimentarem ganharam
novos sentidos; b) o discurso-outro em duas dimensões: o governo, e o povo brasileiro, que
evidenciam o silêncio local (a censura) e c) a posição-sujeito, que em sua constituição
heterogênea aponta novos sentidos. Apontamos as propriedades discursivas do discurso
político analisado no período histórico recortado e, com base na análise do seu funcionamento
discursivo, identificamos os efeitos de sentido que caracterizam tal discurso.
Palavras-chave: Silêncio local (censura). Efeito metafórico. Música. Heterogeneidade.
Análise do Discurso.
SUMÉ
Cette recherche s’occupe de la façon comme le silence local (censure) peut être souligner à
cause d’effet métaphorique. Son objectif est de rifier la manifestation de l’autre” dans au
moins deux dimensions, considérer dans l’analyses la question du silence. Pour atteindre cet
objectif, nous analysons les 14 chansons de Chico Buarque de Hollanda pendant le período
de 1970 a 1979, nous avons considérer les conditions de production (matérialisme historique),
selon la base théorique de l’Analyse du Discours de la ligne française. À travers de l’Analyse
du Discours nous observons que le locuteur veut dire, mais ne peut pas dire à cause de la
censure, le silence et une constante tout au long de l’analyse. Nous avons également observé
la formation du sujet dans le discours, montrant les effets de sens multiples. En conclusion, le
questionnement le point de vue monologique de la langage, en insistant sur l’hétérogeneité
dans les chansons analysées, ce qui est central pour l’Analyse du Discours. Comme nous
n’avons pas la prétention d’épuiser toutes les opinions ni dappréhender la totali des
énonciations qu’ils émettent dans la notion de silence local, nous faisons quelques
commentaires sur les questions soulevées pour la discussion et tissé a partir de l’effet
metaphorique, à travers : a) les formations discursives qui ont gagné en se déplaçant de
nouveaux sens, b) les discours des autres dans deux dimensions: le gouvernement, et le peuple
brésilien, qui mettent en évidence la place en silence (la censure) et c) la position du sujet qui,
dans sa nouvelle montre d’une manière hétérogéne. Nous montrons notre propriétés
discursives du discours politique dans la période historique découpé, basée sur lanalyse du
sont fonctionnement discursif, nous avons identif les effets de sens qui caractérise tel
discours.
Mots-clés: Silence local (la censure). Effet métaphorique. La musique, La hétérogeneité.
L’Analyse du Discours.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
1. O fio dourado: efeito metafórico...........................................................................................13
1.1 Primeiros fios................................................................................................................20
1.1.1 A ideologia e a Análise do Discurso ......................................................................... 21
1.1.2 Ideologia em Marx ................................................................................................... 27
1.1.3 Ideologia em Althusser ............................................................................................. 30
1.1.4 Ideologia em Žižek ................................................................................................... 35
1.1.5 Ideologia em Pêcheux ............................................................................................... 39
2 TECENDO OS FIOS DO TAPETE TEÓRICO DA AD ...................................... 42
2.1 Língua, linguagem e discurso ................................................................................. 42
2.2 A trama do Sujeito na AD - Que sujeito é esse? .................................................... 46
2.3 Formações ideológicas e discursivas: a movência dos sentidos ............................. 54
2.4 Memória discursiva e interdiscurso ....................................................................... 58
3 COSTURANDO OS FIOS TEÓRICOS AO SILÊNCIO LOCAL ....................... 63
3.1 Silêncio(s) e sentido(s) ............................................................................................ 63
3.2 Silenciamento e resistência ..................................................................................... 66
3.3 Arrematando os fios... ............................................................................................ 70
4 PERCORRENDO O CAPÍTULO DAS ANÁLISES ............................................. 76
4.1 Seleção do corpus .................................................................................................... 76
4.2 O caminho metodológico a ser percorrido... .......................................................... 78
4.3 O acontecimento discursivo: nosso gesto de interpretação ................................... 83
4.3.1 O milagre econômico e o silêncio local..................................................................... 83
4.3.1.1 A censura e silêncio local ......................................................................................... 99
4.3.1.2 O discurso-outro e o silêncio local .......................................................................... 131
4.3.1.3 As torturas e silêncio local ...................................................................................... 162
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 186
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 191
8
INTRODUÇÃO
A perspectiva de estudar os silenciamentos em letras da música popular brasileira
(MPB) permite-nos vários pontos de partida. Gostaria de propor como um dos pontos
possíveis o título, que nos leva a uma inquietação: “A arte de (não) silenciar: o silêncio local
costurado
1
em músicas de Chico Buarque”. A inquietação diz respeito ao objetivo de
descobrir o que estaria silenciado nas letras das músicas de Chico Buarque e que não
compreenamos (ou queamos compreender). Começamos nossa busca por descobrir que
inquietação era essa, ou seja, como o silêncio local (a censura) perpassaria nas canções de
Chico Buarque? Por que Chico Buarque de Hollanda, com tantos trabalhos já realizados sobre
sua obra? Por que a época da ditadura militar no Brasil? Que representações do imaginário de
si e do outro, com a construção de metáforas, é possível capturar no inter e intradiscursivo?
Tais questionamentos encontram eco nesta pesquisa. Os efeitos do (não) silenciar
fazem-se presentes na contradição do deixar falar por meio do silêncio local. Este trabalho
tem por objetivo maior fazer falar o que foi silenciado nas canções de Chico Buarque de
Hollanda no período conhecido como “ditadura militar” brasileira, que compreende o lapso
temporal de 1964 a 1985, ou seja, 21 anos em que o regime militar assumiu a presidência da
República no Brasil. Nosso objetivo norteador, portanto, é investigar esse silêncio local
presente nas canções de Chico Buarque por meio do efeito metafórico, o fio dourado, que irá
costurar todos os conceitos aqui suscitados. Para tanto, analisamos, à luz da Teoria da Análise
do Discurso, o silêncio local (a censura), observando os processos de memória, esquecimentos
e resistências.
Apresentamos, no início, alguns fios que farão parte de um grande tapete em que será
tecida a teoria, tendo como parâmetro os conceitos teóricos da Análise de Discurso de linha
francesa, preconizada por Michel Pêcheux, na França, e por seus colaboradores. Tais fios
teóricos sustentam as nossas análises, procurando sempre aproximá-los do nosso objeto de
estudo, letras das canções de Chico Buarque.
O primeiro capítulo, que traz como título “O fio dourado: efeito metafórico”, sustenta-
se numa reflexão inicial proposta por Orlandi. Segundo a autora,
1
O termo “costura”, nomeado pelo filósofo Jacques Derrida, faz referência à leitura e à escritura. “Seria preciso,
pois, num gesto, mas desdobrado, ler e escrever. E aquele que não tivesse compreendido nada do jogo
sentir-se-ia, de repente, autorizado a lhe acrescentar, ou seja, acrescentar o importa o quê. Ele não
acrescentaria nada, a costura não se manteria.” (1997, p. 8).
9
a Análise do Discurso é uma disciplina de interpretação. E por ser uma disciplina de
interpretação trabalha com o não estabilizado na ngua. Língua, aqui, como
possibilidade do simbólico, base ao mesmo tempo estruturada e furada. Ou seja,
possibilidade do simlico como inscrição de processos de significação nos quais se
materializam a tensão entre o estabilizado e o não-estabilizado, o mesmo e o
diferente, o mesmo no diferente e o diferente no mesmo. Falar do simbólico em
termos discursivos é falar desses processos de modo não estanque, é falar da
pafrase e da polissemia perpassando a fluidez do simbólico. (1998, p.224)
É justamente nessa possibilidade de haver deslocamento dos sentidos, que consiste o
processo metafórico. Nesse mesmo capítulo nos ocupamos da noção de ideologia, para o que,
realizamos um percurso teórico que vai de Marx até Pêcheux. Os conceitos de formação
ideogica e formação discursiva, importantes para nossa investigação, partem das reflexões
de Pêcheux (1975-1996), bem como as categorias de luta de classes e mais-valia propostas
por Marx encontram eco em nossa pesquisa. As contribuições de Althusser, sobre o fato de
que toda prática ocorre por meio e sob a ideologia e que ao mesmo tempo existe ideologia
através do sujeito e para sujeitos, tornam-se relevantes em nossa pesquisa. Por meio das
reflexões de Žižek interpretamos cinismo e a fantasia ideológica marcados nas letras das
canções de Chico Buarque. E, para finalizar, Pêcheux propõe uma abordagem discursiva da
história que investe contra a evidência do sujeito e do sentido e que procura descrever,
justamente, o funcionamento no discurso de um imaginário que dá efeito de unidade ao
mundo e ao sujeito.
No segundo capítulo, “Tecendo os fios do tapete teórico da Análise do Discurso”,
abordamos noções básicas, a saber: língua, linguagem, discurso, sujeito, formações
ideológicas, formações discursivas, memória discursiva e interdiscurso. Para tanto, trazemos a
discussão de alguns teóricos dos estudos da linguagem que contribuíram para o
aprofundamento das questões discursivas: Pêcheux (1969/1993), Gadet e Pêcheux (2004),
Foucault (1979), Courtine (1981) Pierre Achard (1999), Milner (1987), além de outros autores
brasileiros, como Orlandi, Leandro Ferreira, Indursky, Coracini. Com a concepção de língua
como possibilidade de discurso, entendemos que a AD “não trabalha com a língua enquanto
sistema abstrato, mas com a língua no mundo”. (ORLANDI, 2000, p. 15-16). Portanto, o
discurso não é transmissão de informação, mas, sim, funcionamento da linguagem. A
linguagem é tratada no plano simbólico e coloca em relação sujeitos afetados pela ngua e
pela história num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de
sentidos. Pêcheux nos diz que “as palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles
que as empregam. Elas tiram seu sentido dessas posições, isto é, em relações às formações
10
ideológicas (FI) que lhe correspondem”. (PÊCHEUX, 1988, p. 58). Disso decorre, o conceito
de formação discursiva, que se refere “ao que pode e deve ser dito em determinada situação”.
(1975/1996, p. 35). Por fim, podemos dizer que o discurso não tem início nem fim, pois
remete sempre a outros discursos (o dito ou interdiscurso) constitutivos do dizer. Portanto,
nunca se diz tudo; há sempre um resto, ou seja, o exterior ao propriamente linguístico,
apontado por Pêcheux como aquilo de que a linguística tradicional não dá conta.
Na sequência da tessitura do tapete temos o capítulo três, “Costurando os fios teóricos
ao silêncio local”, no qual a primeira pergunta que ressoa é: De qual silêncio estamos
tratando? Trata-se de um silêncio discursivo nomeado por Orlandi como o silêncio local que é
a interdição
2
do dizer (censura). Justamente porque os sentidos foram proibidos, silenciados,
nos permitem estabelecer relações com nosso corpus, ou seja, as letras das canções que foram
censuradas na ditadura militar, as quais rompem com o que foi logicamente estabelecido.
Segundo Smith (2000, p. 33), o regime militar que tomou o poder no Brasil em 1964
formulou sua própria ideologia de segurança nacional e elaborou novos procedimentos
jurídicos e fundamentos institucionais para suas ões.
A autora ressalta que tal regime também procurou exercer controle por meio da
repressão, de órgãos de segurança que vigiavam, interrogavam e torturavam. O regime mudou
ou menosprezou as leis ao seu bel prazer, mesmo as que ele próprio instituíra. Contudo,
apesar de todo esse poder, ele não era onipotente. Era constrangido por divisões internas, por
facções que competiam pelo predomínio. O regime buscava a legitimidade por meio de
tentativas, por vezes contraditórias, de validar seu sistema de dominação e de justificar sua
ocupação do Estado, que limitava até certo ponto o que ele podia fazer. (2000, p. 133). É
interessante notar que mesmo com essa atmosfera de legitimidade as arbitrariedades se
mantinham, e a censura era uma delas. Lembramos, assim, que é pelo trabalho do silêncio que
se dá a relação do sujeito com o interdiscurso, identificando-se com determinados pontos do
já-dito e silenciando outros.
É, ao trançar os conceitos anteriores aos conceitos de silêncio, silenciamento e
resistência que passamos a compreender que o silêncio local pode ser capturado na
“movência” dos sentidos (efeito metafórico) e que, portanto, podemos encontrar nas canções
2
Segundo Orlandi: “A censura tal qual a definimos é a interdição da inscrição do sujeito em formações
discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares,
certas posições. Se se considera que o dizível define-se pelo conjunto de formações discursivas em suas relações,
a censura intervém a cada vez que se impede o sujeito de circular em certas regiões determinadas pelas suas
diferentes posições. Como a identidade é um movimento, afeta-se assim esse movimento. Desse modo, impede-
se que o sujeito, na relação com o dizível, se identifique com certas regiões do dizer pelas quais, ele se representa
como (socialmente) responsável, como autor. (1995, p. 107)
11
de Chico Buarque a resistência e a contradição como constitutivas do dizer. Antes de iniciar o
capítulo quatro com o percurso metodológico, fazemos uma síntese de todos os conceitos-
chave até então apresentados.
No capítulo quatro, “Percorrendo o caminho das análises, procuramos mostrar as
condições de produção que constituem o corpus discursivo da pesquisa, bem como a
construção da metodologia para proceder às análises. O leitor ainda encontrará neste capítulo
a justificativa e a seleção de letras das músicas de Chico Buarque que compõem o corpus
discursivo. Procedemos às análises das canções subdivindo-as por temáticas e,
concomitantemente, reencaminhamos questões teóricas, buscando desfazer os “nósque vão
surgindo nas falhas, faltas e na(s) voz(es) de outro(s), descobrindo e efetivando por meio das
análises que o silêncio tem muito a nos dizer. Quando falamos de falhas, de faltas, estamos
nos referindo às estruturas e aos elementos constitutivos das formações discursivas que pela
falta viabilizam contínua ressignificação dos discursos que estão dispersos. Falamos, portanto,
dos silenciamentos decorrentes de práticas político-discursivas que foram praticadas na época
da ditadura militar brasileira, período histórico que nos propusemos analisar nesta dissertação.
De acordo com Gadet e Pêcheux (2004, p. 63), “a ausência de um conceito não produz seu
simples contrárioe, apoiados nos trabalhos de Milner (1978), estes autores lembram que
um impossível que se assenta sobre o real da língua (alíngua), ou seja, em toda língua se
consagra o equívoco, sendo, portanto, impossível dizer tudo e impossível não dizer de uma
certa maneira. E se assim o é, “o equívoco aparece exatamente como o ponto em que o
impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica) o ponto em que a língua atinge
a hisria”. (GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 64).
É a esses silenciamentos que nos referimos e é em torno deles que iremos desenvolver
nossas análises. Orlandi nos diz que é justamente pelo viés da falta’ e do indefinido que se
dão os deslizamentos e as rupturas que fazem e desfazem sentidos. É nesse jogo com e sobre a
linguagem que tais fenômenos vêm à tona e ganham corpo e significação” (1998, p. 207).
Assim, os sentidos existem nas relações de metáfora. É dessa forma que analisamos as
canções de Chico Buarque, encontrando na “movência” dos sentidos o que se buscou
silenciar, mas que (não) silencia.
Logo, o resultado é predominância do silêncio local (a censura). Assim, é com base
nessas questões norteadoras e fundamentadas nos pressupostos teóricos que entendemos como
fundamentais para a presente investigação que pretendemos analisar as pistas linguísticas
deixadas pelo silêncio local nas letras de Chico Buarque.
12
1 O fio dourado: efeito metafórico
Neste capítulo inicial, apresentamos o primeiro eixo norteador do trabalho, o efeito
metafórico, afinal, tratar de efeitos de evidência, de acordo com Pêcheux (1969), é tratar do
funcionamento do discurso na língua, que os sentidos constituídos de x e y são designados
por x e por y também. E para tal, a metáfora não pode ser vista como desvio, mas como
transferência de uma palavra por outra, pois, conforme Pêcheux (1975) diversos efeitos
sobre o discurso que carrega vestígios da historicidade.
Ao nos referirmos ao termo metáfora, recorremos a uma cena do filme de Skármeta O
carteiro e o poeta. O humilde carteiro descobre-se apaixonado e, para conquistar o coração de
sua amada, solicita ao poeta Pablo Neruda que lhe ensine como fazer poesia. Então, o poeta
declama alguns versos e diz que o segredo da poesia é a metáfora. O carteiro, sem entender o
significado da palavra metáfora, volta para a vila onde mora. Lá, escreve alguns versos e neles
descobre a metáfora. Fica feliz e, ao final do filme, conquista o amor de sua deusa inspiradora
pela metáfora.
Iniciamos, então, nossas reflexões questionando sobre o que representa conquistar
alguém pela palavra e que poderes a palavra tem para modificar (alterar) o sentimento de
outra pessoa. A palavra tem força criadora, possui um poder que está relacionado com a força
do imaginário e do simbólico
3
, que, como no reflexo de um espelho, se simboliza. É
importante que o leitor compreenda que nosso tapete teórico mobiliza muitos fios, e
consequentemente, conceitos e autores. Mais que isso, via palavra, desestabiliza o mundo
“logicamente estabilizado” proposto por Pêcheux na obra Estrutura ou acontecimento. Para
não nos apressarmos e, assim, comprometer o entendimento desse mundo “logicamente
estabilizado” que se desestabiliza pela metáfora, procederemos com cautela e sem muita
pressa, como tomar um bom vinho em uma noite fria de inverno: sentindo o aroma, provando
o gosto e sorvendo-o aos poucos, com calma...
3
A relação Real, Simbólico e Imaginário proposta pela psicanálise será retomada e aprofundada nos próximos
subitens deste capítulo.
13
Tratamos em primeiro lugar do imaginário na perspectiva da história, o que,
antecipamos, não é o mesmo proposto pela psicanálise. Qual é, então, o imaginário que
constitui a época da ditadura militar?
Aqui também a resposta não é única e precisa. Em realidade, encontramos vários
imaginários dessa época. Comecemos pelo que diz Carlos Fico:
Esse ideário se alimentava de variadas obsessões: a obsessão anticomunista, a
obsessão da imposição à sociedade civil da disciplina e hierarquia características do
ethos militar, a obsessão persecutória dos divergentes, a obsessão da construção de
uma grande potência. Esta mescla frágil de idéias toscas não pode ter sua
significação compreendida de maneira completa fora do contexto da Guerra Fria e
da influência política americana, cujos efeitos se fizeram sentir poderosamente na
conjuntura dos anos 60 e 70. (2001, p. 13).
O autor, em outra obra, assinala que um desses imaginários representa a imagem
otimista, segundo a qual o Brasil seria um país que, desde o descobrimento, já daria sinais de
sua singularidade e positividade. Esse imaginário dificilmente poderia ser abalado (1997, p.
31), vendo-se o Brasil como predestinado a ser uma grande potência. Fico também afirma que
o vigor do discurso sobre o futuro é sustentado pela unidade de idéia, pela
identidade que propicia essa convicção quanto à singularidade. O futuro promissor
há de vir para um país tão especial – essa imagem tem força suficiente para situar-se
como foco de referência de auto-reconhecimento social: ‘brasileiros’ são os que
vivem no ‘país do futuro’. (p. 78). Grifo nosso.
A qual identidade se refere Fico? Afinal, quem são esses “brasileiros”?
Em seu texto ele afirma que “o que se queria era a criação de um clima’, de uma
atmosfera de aprovação, de contentamento com os rumos que se iam traçando que os
militares iam traçando” (p. 130). Para a propaganda militar, a massa, o povo, era carente,
despreparada para votar, deseducada e influenciada por políticos demagógicos. Portanto, eles
(os militares) deveriam educar essa população por meio do desenvolvimento, ou seja, inserir
“a massa” para construir literalmente a imagem que projetavam de grande potência mundial.
Temos, no entanto, outros exemplos o tão otimistas assim o autor Carlos Fico relata
que: pelos documentos guardados nos Arquivos blicos do Rio de Janeiro e São Paulo é
possível ter uma ideia das estratégias, do imaginário e das representações simbólicas que
regiam o olhar e a produção escrita da burocracia repressiva Percebemos certa incoerência e
14
descompromisso com a verdade dada a necessidade de superdimensionar qualquer atitude que
pudesse ser considerada suspeita. Gostaríamos de chamar a atenção do leitor para o fato de
que, se os brasileiros deveriam ser educados para concretizar a imagem projetada pela
propaganda militar, não poderia haver brasileiros que se posicionassem contra essa suposta
imagem, os quais aparecem como subversivos, comunistas, etc. Observemos a citação da
Revista Brasileira de História, em que o autor Marcos Napolitano afirma:
Na lógica da repressão, artistas da MPB, CEBRADE
4
, ABI, intelectuais de esquerda,
anistia ampla, geral e irrestrita”, Chico Buarque e movimento operário eram parte
de uma grande conspiração para desestabilizar o regime e a ordem vigente, através
de eventos aparentemente pacíficos. Se esse documento fosse produzido alguns anos
antes, poderia dar início a uma onda de perseguição e repressão sem precedentes.
[...] Mas a “comunidade de informações”, neutralizada desde, ao menos 1976, ainda
estava viva e patrocinava atentados contra entidades da sociedade civil, com três
finalidades básicas: dificultar o diálogo do regime militar com setores liberais da
sociedade civil (base da agenda da “abertura”), criar um clima de radicalização
política, entre direita e esquerda e chantagear governo e sociedade para impedir
qualquer punição aos Direitos Humanos, cometidas principalmente entre 1969 e
1976. (2004, p. 117).
A grande questão que observamos é o modo como a ideia de um regime autoritário
que se diz democrático é lançada pelos militares e como o povo a absorve. No caso do corpus
selecionado para esta dissertação, é possível adiantar que o conjunto de letras de músicas da
MPB não incomodava os militares, como também produzia certa desestabilização, ou seja,
entendemos que o imaginário produzido pelos militares sobre o bom” e o “mau” brasileiro se
constrói pelo modo como os sujeitos da formação discursiva MPB se relacionam com a
forma-sujeito da formação discursiva militar, uma vez que a censura impedia (ou tentava
impedir) que eles exercessem uma influência negativa sobre os “bons” brasileiros.
É, portanto, nessa representação de bons” e “maus” brasileiros, observados como
modalidades de sujeito preconizadas por Pêcheux, que analisamos a identificação do “bom”
como o que se identifica com a imagem sugerida pela propaganda militar, ou a que se
identifica com a formação discursiva dos militares, e a representação de “mau” como, a que se
identifica com a formação discursiva da MPB, que é a que questiona, que denuncia, que diz
sem dizer. Ora, isso nos leva, na perspectiva da AD, ao efeito metafórico, que não é uma mera
4
A sigla CEBRADE- refere-se a Centro Brasil Democrático e era vista como uma espécie de organização
clandestina e subversiva que articulava o mundo da música popular às organizações sindicais, numa clara
alusão às estratégias de alianças de intelectuais e artistas de esquerda com a classe operária. Neste caso, a
estratégia sonhada da esquerda se transformava em seu espelho invertido, prova da periculosidade e grau de
organização dos artistas e intelectuais “subversivos” e “terroristas”, tentando dar plausibilidade à ficção
imaginativa da acusação. (NAPOLITANO, 2004, p. 116).
15
substituição da palavra proibida de circular, da palavra censurada, mas o sentido que está
camuflado nesta palavra.
No encaminhamento de letras de sicas do corpus que analisamos, percebemos que
a representação de ummilagre econômico” e da construção e transformação do Brasil
5
próspero exigia a participação de “bons brasileiros”, como os idealizados e que prestassem
apoio e solidariedade ao governo. Obviamente, os que não o fizessem - os criadores do caos e
subversivos – seriam negligenciados e, consequentemente, punidos por suas escolhas. Sabe-se
que o “milagre econômico”, na realidade, não existia para a grande parcela da população
excluída, que era conduzida pela força da repressão. Segundo Carlos Fico,
essa nova era estaria garantida porque o governo militar ‘brasileiro e bom’ investiria
na juventude com especial vigor naquele momento, vigor indispensável para reverter
os caminhos que essa juventude vinha sendo obrigada a trilhar E, note-se, que tal
‘educação para os novos temposestaria também garantida porque se daria a partir
de instrutores que interpretavam corretamente a ‘brasilidade’: os militares que, além
de se imaginarem os brasileiros mais autênticos, também supunham que os eflúvios
dessa ‘alma nacional’ garantiriam o correto encaminhamento do futuro. Pois, como
se viu, o ‘brasileiro’, por si só, seria alguém especial: ele habita um país ‘singular’.
Basta interpretar corretamente essa essência e isso nos assegurará o rumo certo.
(FICO, 1997, p. 122).
De acordo com o exposto anteriormente, estamos tratando de três imaginários, a saber:
1. O imaginário que os militares criaram, ou seja, os bons brasileiros. Aqueles
que acatam e obedecem sem duvidar, questionar ou desobedecer, afinal eles
habitam um país singular;
2. O imaginário divulgado pela imprensa sobre a conduta dos brasileiros e do
encaminhamento do Brasil como um país do futuro;
3. O imaginário que passava a ideia da brasilidade dos militares como os que
cuidariam para que tudo desse certo.
E a análise do discurso observa os modos de construção do imaginário necessário na produção
dos sentidos. Segundo Orlandi: “os processos discursivos se desenvolvem sobre a base desta
estrutura (a língua) e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade
cognitiva que utilizaria ‘acidentalmente’ os sistemas lingüísticos (1995, p. 22) Grifo da
5
Alguns slogans das principais campanhas da Aerp/ARP reforçam esse imaginário: Você constrói o Brasil”
(1972),” País que se transforma e se constrói” (1971),” Este é um país que vai pra frente” (1976). As ideias de
“construção” e transformação”, nesse contexto, estavam associadas às de ruína: segundo os militares, diante
da situação de completa decadência moral e material que o país experimentara, caberia precisamente a eles
inaugurar um novo tempo, reconstruindo, em bases transformadas, o Brasil. (FICO, 1994, p. 121).
16
autora. Ou seja, o discurso não é indiferente à língua. “O silêncio, portanto, é garantia do
movimento dos sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio” (ORLANDI, 1995, p. 23)
Voltemos à cena do filme que, em nossa perspectiva de trabalho, representa a pretensão
apontada por Pêcheux de que “o discurso é concebido como efeito de sentido entre locutores”
(1975/1988), o que nos remete a uma compreensão da linguagem como prática simbólica e
que se encontra, portanto, na constituição do sujeito. Percebemos que na relação
mundo/linguagem (palavra) não há uma relação linearizada (termo a termo) entre as coisas e a
linguagem, pois são ordens diferentes: a do mundo e a da linguagem. Para a Análise do
Discurso (AD) importa a linguagem como mediadora entre o trabalho simbólico, o
ideológico, o político, o histórico e o social, fazendo surgir daí a linguagem como algo que
não é transparente. Daí também a necessidade da noção de discurso para pensar nessas
relações entre linguagem/mundo.
Como observamos no início desta seção, Pêcheux (1995, p.165) articula a noção de
efeito a outras noções, como, por exemplo, efeito de sentido, efeito significante, efeito
metafórico e tantos outros que encontraremos neste texto e de outros autores que se filiem às
concepções teóricas da AD a partir da AAD69 (Análise Automática do Discurso). Segundo
Nina Leite, o efeito de sentido refere-se à exterioridade implicada no processo de
significação e deve ser pensada nos termos da materialidade da língua, construída
discursivamente (exterior/interior). O efeito significante designa ao sujeito seu lugar,
identificando-o a um certo ponto da cadeia, e o efeito metafórico é o que produz
significações deslocando-as. (2004, p. 106-116).
Portanto, enquanto estruturado por linguagem, o simbólico es relacionado ao
processo do significante e do sócio-histórico na constituição do sujeito, de tal forma que,
posto em relação à experiência no mundo, possibilita que sentidos sejam sempre produzidos.
No plano do discurso, a dimensão sociossimbólica tem um furo no simbólico e no social
que, estruturalmente, o imaginário não pode suturar. Esse furo no simbólico corresponde
exatamente ao da divisão subjetiva, condição para que o sujeito possa aparecer e tenta
desamarrar o significante do significado. Essa separação equivale à “barra” de que Lacan se
vale para separar o significante do significado, que corresponde também à “barra” que divide
e corta o sujeito. Essa divisão representa a castração simbólica, condição de possibilidade de
emergência do sujeito, do sujeito do desejo
6
. (MALUF-SOUZA, 2005, p. 89).
6
Remetemos o leitor ao capítulo 2: Tecendo os fios do tapete teórico da Análise de Discurso” no subitem: A
trama do sujeito na AD Que sujeito é esse? “em que serão aprofundadas as reflexões sobre o conceito de
sujeito.
17
Por isso, Pêcheux afirma ser “a linguagem como prática simbólica, uma prática que se
constitui pela via do significante”. (1975-1993
7
, p. 160). E justamente por que a linguagem
não é transparente e é atravessada pelos componentes mencionados anteriormente, que nossa
proposta será perpassada pelo fio dourado do efeito metafórico. Dito de outra forma, o lugar
do sentido, lugar da metáfora, é função da interpretação, espo da ideologia. Ressaltamos
que o político é o fato de o sentido ser sempre dividido, tendo uma direção que se especifica
na hisria pelo mecanismo ideológico de sua constituição. estão ligadas três noções o
político, o histórico e o ideológico –, as quais serão definidas discursivamente. O efeito
metafórico passa pelo simbólico, pelo político e pelo ideológico e será, portanto, o fio
condutor de nosso trabalho, pois todos os conceitos aqui mobilizados estarão sempre sendo
perpassados por esse efeito. Esse é o nosso gesto de interpretação, pois percebemos que é o
espaço do possível, da falha, da falta, do equívoco; é um espaço simbólico marcado pela
incompletude e pela relação com o silêncio. Este silêncio local (censura) de que trataremos é a
categoria analítica que se faz presente no corpus deste trabalho, especificamente nas canções
compostas por Chico Buarque na época da ditadura militar no Brasil.
Na trama da constituição dos sentidos perpassam fios (in)visíveis que se entrelaçam no
tecido do discurso. É como se precisássemos observar cada fio de uma vez, notar o seu
sentido original e depois perceber que um fio isolado pode ter um sentido, mas na trama total
pode e adquire outro(s) sentido(s). É justamente porque os sentidos não são únicos e
imutáveis que devemos apreendê-los em cada dizer ou discurso, visto que se modificam, se
transformam e silenciam sentidos inimagináveis. Exemplificamos com a letra da canção
“Fado tropical”, nos versos que seguem: esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai
tornar-se um imenso Portugal. Podemos fazer uma possível interpretação de que a voz
veiculada procede do período do Brasil Colônia e discorre sobre a influência portuguesa na
Colônia, evocando também a possibilidade de o Brasil cumprir seu ideal e tornar-se um
imenso Portugal. O ainda aponta para efeitos de sentido de esperança, de uma possibilidade
futura de a Colônia tornar-se um Portugal livre da ditadura. Percebemos, portanto, que
algo que ressoa na memória e que, portanto, faz significar. Em outras palavras, podemos
afirmar que o discurso político presente integra na sociedade sua história, que é prenhe de
historicidade. Portanto, o discurso constitui-se de sentidos e produz história.
que trouxemos à baila uma música de Chico Buarque, retomamos uma questão
levantada na introdução: Por que Chico Buarque de Hollanda se tantos trabalhos foram
7
Reportamo-nos ao ano de publicação original e ao ano da edição que utilizamos na pesquisa no decorrer de
toda a dissertação quando tiverem as duas datas.
18
realizados sobre sua obra e pessoa? As respostas, nesse caso específico, podem ser duas: por
ter sido um dos cantores mais visados pela censura e também pela riqueza de metáforas nas
letras de suas canções.
Francisco Buarque de Hollanda nasceu no dia 19 de junho de 1944 no Rio de Janeiro.
numa família de intelectuais e de artistas. Filho do historiador Sergio Buarque de Hollanda,
morou em São Paulo, Rio e Roma durante a infância. Desde criança teve contato em casa com
grandes personalidades da cultura brasileira, como Vinícius de Morais e Baden Powell,
amigos dos pais ou de Miúcha, também cantora e violonista. Sempre gozou de notoriedade
que incomodava os militares, por ser artista dotado de uma consciência social. Todas as
análises desenvolvidas sobre o mundo social das canções no Brasil reconhecem a obra de
Chico Buarque como um dos repertórios de maior referência. Autor de 260 canções durante o
período de 1964-1985, gravou dezessete discos individuais e participou de doze álbuns
coletivos, nos quais é autor principal. Escreveu no mesmo período várias obras de teatro,
como Roda viva (1967) e Calabar, em parceria com o cineasta Ruy Guerra, entre outros.
Hoje há cerca de vinte livros que abordam sua obra, principalmente de duas
perspectivas: como crítica literária corrente, ou, na forma de biografia do artista. Não vamos
nos deter na imensa biografia de Chico Buarque, que é bastante divulgada. Gostaríamos de
trazer questões que atendem à nossa proposta de pesquisa, como as informações contidas no
artigo “A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância”, de
Marcos Napolitano (2004). No artigo Napolitano traça a trajetória da censura no regime
militar brasileiro, assinalando a obsessão pela vigilância como forma de prevenir a atuação
“subversiva”, sobretudo naquilo que os militares chamavam de propaganda subversiva. Os
espaços, instituições e personalidades ligadas à cultura (artes, educação, jornalismo) eram
particularmente vigiados pela “comunidade”. Sabemos que os agentes policiavam muito mais
o campo da MPB, aumentando o grau de suas efetivas e orgânicas articulações político-
partidárias. Por exemplo, lê-se num informe produzido em 1968 que o campo da música
popular
vem se constituindo num dos principais meios de cisão psicológica sobre o público,
desenvolvida por um grupo de cantores e compositores de orientação filo-comunista,
atuando em franca atividade nos meios culturais. Dentre os principais agentes desse
grupo se destacam: FRANCISCO BUARQUE DE HOLANDA, EDU LOBO,
NARA LEÃO, GERALDO VANDRÉ, GILBERTO GIL, CAETANO VELOSO,
MARÍLIA MEDALHA, VINÍCIUS DE MORAES, SIDNEY MULLER,
GUTEMBERG, MILTONS [sic] NASCIMENTO, etc. (NAPOLITANO, 2004, p.
107).
19
A partir de 1971 os shows do chamado “Circuito Universitáriopassaram a ocupar a
maior parte dos informes e relatórios. O inimigo número 1 do regime passou a ser Chico
Buarque, secundado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gonzaguinha,
Ivan Lins. Com o exílio de Vandré e sua desagregação como persona pública do meio
musical politizado, e as novas posturas de Chico Buarque, este passa a ser destacado como o
centro aglutinador da oposição musical de esquerda. Assim, é frequente nas fichas e
prontuários a expressão “pessoa ligada a Chico Buarque de Hollanda”, como se essa relação,
por si aumentasse o grau de suspeição. Entendermos, portanto, que as informações faziam
parte de uma grande rede de comunicação, cujo centro era a figura de Chico Buarque.
No mesmo texto Napolitano afirma que no início da década de 1970, sobretudo entre
1971 e 1974, a vigilância sobre a MPB estava ligada intimamente à vigilância sobre o
movimento estudantil; qualquer movimento de artistas ligados à MPB junto ao público jovem
e estudantil deveria ser objeto de atenção redobrada e preventiva. (p. 108). Os relatórios de
informação utilizavam-se de agentes infiltrados que esquadrinhavam o ambiente e arrolavam
todas as formas de ação e palavras de ordem que pudessem caracterizar um clima de comício
político. Sobre o I Festival Universitário de Niterói, realizado em março de 1972, registrou-se
o seguinte:
1. No palco via-se uma faixa que dizia “AMANHÃ SERÁ OUTRO DIA e os
universitários cantavam um samba “APESAR DE VOCÊ AMANHÃ DE SER
OUTRO DIA”, de Chico Buarque.
2.Ao final do show apresentaram uma faixa, que dizia: PELA CULTURA,
CONTRA A CENSURA. (NAPOLITANO, 2004, p. 111). Grifos do autor.
Àquela altura, ano de 1972, Chico Buarque era um dos artistas mais vigiados pela
censura e pela “comunidade de informações”
8
e qualquer evento que contasse com a sua
presença era digno de atenção. Napolitano continua relatando:
Se Chico Buarque já aparecia como ‘um agente do grupo da MPBdesde os anos 60, o
episódio envolvendo a música Apesar de você, em 1970, quando a crítica ao ditador
disfarçada em uma querela amorosa acabou sendo liberada pela censura e vendendo cem mil
compactos, até ser cassada, piorou o grau de suspeita que recaía sobre suas costas. O Centro
de Informações do Ercito CIE registrou as atividades do compositor como se ele fosse a
“ponta de um iceberg” do mundo da subversão. (2004, p. 113).
8
Nessa comunidade de informações encontravam-se os milhares de agentes envolvidos, funcionários públicos
ou delatores cooptados”. (NAPOLITANO, 2004, p. 104).
20
Por tantas razões, mas, sobretudo, considerando-se o conjunto de sua obra, o seu
prestígio internacional e, particularmente, as formas de enfrentamento da censura durante a
ditadura militar, nossa pesquisa versa sobre as letras das canções de Chico Buarque de
Hollanda. A construção de nosso trabalho representa o tecer da trama desse grande tapete, no
qual iremos realizando a construção por meio de fios invisíveis (nem tão invisíveis assim),
que são a ideologia, a língua, a linguagem e o discurso, o sujeito do inconsciente e do
discurso, a formação ideológica, a formação discursiva, a memória discursiva e o
interdiscurso. É importante destacar que os conceitos-chave deste primeiro capítulo da
dissertação são resultado do diálogo de Pêcheux com rios autores, dentre eles Althusser,
Foucault, Courtine, Lacan, Milner, Achard; desse modo, são feitas reformulações e
redirecionamentos à teoria, como acontece com questões sobre ideologia, formação
imaginária, formação discursiva, por exemplo. No entanto, o suporte de nosso trabalho
encontra-se nas formulações de Pêcheux.
1.1 Primeiros fios
Assim como a teceprecisa desenredar os fios para começar seu trabalho, “tenta
velar, tecer este vazio a partir de significantes” (VISCO, 2006, p. 202), nosso trabalho inicial
será separar os fios (conceitos) para observá-los, estudá-los e, então, organizá-los para a
manufatura de nosso tapete teórico-analítico. A Análise do Discurso tem como característica a
passagem da noção de funcionamento da língua para o discurso e a construção de um
dispositivo analítico fundado na noção de efeito metafórico. Orlandi (1998, p. 80) afirma que
“não sentido sem essa possibilidade de deslize, e, pois, sem interpretação, citação que
reforça nossa proposta de observar os deslizamentos de sentido. Nas palavras da autora:
Algo do mesmo que está no diferente; pelo processo de produção de sentidos,
necessariamente sujeito ao deslize, há sempre um possível “outro” mas que constitui
o mesmo. Isto demonstra a relação língua, historicidade no discurso, através da
mefora, ou seja, o mesmo já é produção da história, já é parte do efeito metafórico
21
a historicidade está representada justamente pelos deslizes (paráfrases) que
instalam o dizer no jogo das diferentes formações discursivas. Fala-se a mesma
ngua mas se fala diferente. Pelo efeito metafórico. Esse deslize próprio da ordem
do simlico é o lugar da interpretação, da ideologia e da historicidade. (ORLANDI,
1998, p.81).
Será a ideologia o primeiro fio que estudaremos, perfazendo um percurso teórico que
começa por Marx, passando por Althusser, deslocando-se com Žižek e finalizando com
Pêcheux.
1.1.1 A ideologia e a Análise do Discurso
O sentido parte da linguagem e dos conceitos que mobiliza e pode ser percebido na
articulação de vários conceitos, entre os quais os de história, ideologia e sujeito. Utilizaremos
o efeito metafórico para a “construçãodos conceitos teóricos da Análise de Discurso (AD).
Vamos, então, entrar na morada da Análise do Discurso, na qual adentraremos pela
porta da frente, que é por onde se começa a visitar uma moradia. Acreditamos que a realidade
exterior e aquilo que constitui o sujeito não podem ficar isentos dessa visita. A compreensão
do conceito de ideologia e a relação que esta estabelece entre sujeito, língua e história
justificam nossa entrada nesse edifício teórico. Percorreremos vários caminhos para conhecer
essa construção que é Análise de Discurso (AD) no Brasil. Se causarmos a impressão de
estarmos com dificuldades de encontrar os modos e de ingressar num caminho sem volta,
talvez precisemos trilhar uma via dupla para perceber a distribuão desta morada, que é nosso
texto. Assim como os sentidos se movimentam de um lado a outro, nosso percurso será pleno
de idas e vindas nos conceitos que essa construção mobiliza.
Antes, entretanto, de apresentar a construção da AD, vamos tratar sobre o arquiteto
que a projetou. Trata-se de Michel Pêcheux, que nasceu em Tours em 1938 e faleceu em Paris
em 1983, fundador da Escola Francesa de Análise de Discurso. Quando se fala em AD, está se
fazendo referência à escola francesa de Análise de Discurso e ao grupo que se reuniu em
torno de M. Pêcheux a partir da década de 1960. Sabemos que o nascimento oficial como
disciplina universitária deu-se em 1969, ano de publicação da revista Langages, nº 13,
organizada por Jean Dubois, e do livro Análise automática do discurso, de Pêcheux.
(ORLANDI, 1998, p. 201)
22
Estamos no hall de entrada dessa moradia, de onde podemos observar o projeto
dessa imensa construção. Nesse primeiro momento vamos situar as reflexões de Pêcheux
dentro do campo da linguística contemporânea, abordando questões que consideramos
essenciais no estudo da linguagem e que serão fundamentais para nosso trabalho de análise.
Começaremos pelo texto “Observações para uma teoria geral das ideologias” (1968/1995),
escrito por Thomas Herbert (pseudônimo de M. Pêcheux). O texto tem uma importância
histórica porque nele Pêcheux já esboça algumas noções que fariam parte da construção
teórica da Análise do Discurso.
O primeiro aspecto que chama nossa atenção neste texto é o apoio que Pêcheux às
análises sobre as condições históricas e sociais de produção do discurso, entendendo a
ideologia como elemento constitutivo desse processo. O autor identifica duas formas de
existência da ideologia: as ideologias do tipo A: produtos derivados da prática técnica
empírica, e ideologias do tipo B: condões indispensáveis da prática política. Postula
também duas formas de resistência ideológica, a saber: ideologia do tipo A (técnico-
empirista), como aquela que se refere ao processo de produção, tendo como característica
fundamental a originalidade, ideologia do tipo B (político especulativa), que mostra as
relações sociais de produção marcadas pelo conservadorismo, já que sua função é “produzir e
conservar as diferenças necessárias ao funcionamento das relações sociais e de produção nas
sociedades de classe”. (HERBERT, 1968/1995, p. 67). A resistência de tipo “Bdesempenha
o papel de cimento que está na base da “construção”. Contudo, uma vida surge e nos leva a
um questionamento: Qual a diferença entre os dois tipos de resistência? O autor esclarece que
“essa diferença remete à diferença estrutural fundamental que constitui a essência de todo
modo de produção, a saber, a diferença entre forças produtivas’ e relações de produção’
9
.
(p. 65). Portanto, percebemos que, na realidade, não existe separação, mas, sim, a união de
ambas (força produtiva e relação de produção), da qual surge a ideologia.
No mesmo texto, o autor faz um deslocamento em relação à questão da metáfora,
revelando que a similaridade-metafórica “permite colocar corretamente o problema da
‘realidade exterior’ e da prova dessa realidade, não é a realidade que permitiria, a partir de
uma ligação originária e não metafórica com o ‘objeto real’, edificar a posteriori as
metáforas”. (1968/1995, p. 73 - grifos do autor).
A questão referente às metáforas nos interessa em particular, por levar-nos ao fio
condutor de nossa pesquisa. Portanto, percebemos que desde este texto Pêcheux se
9
Estudaremos a força produtiva e a relação de produção no próximo subitem, “Ideologia em Marx”.
23
preocupava com a questão da ideologia e do inconsciente. Leite em sua pesquisa estabelece
claramente estas diferenças no texto de Pêcheux.
No texto Psicanálise e Análise do Discurso, a autora afirma que a relação entre o
ideológico e o inconsciente se fazia na direção oposta, ou seja, pela identificação de um
inconsciente estrutural e um inconsciente analítico, que se revelava subordinado à ideologia,
definida como a combinação do efeito metafórico e metonímico. Os processos metafóricos e
metonímicos seriam os responsáveis pela articulação das instâncias do econômico, ideológico
e político. Segundo Nina Leite em Herbert tratava-se de construir uma teoria geral das
ideologias, com base na hipótese de a ideologia estruturar-se como linguagem. Nesse sentido,
nada seria mais distante disso do que concebê-la como respondendo pela função de expressão.
(1994, p. 140-142).
Já na obra de 1969, A análise automática do discurso, Pêcheux não retoma o que fora
esboçado no texto anterior, de 1968, apenas introduz o conceito de condições de produção,
lugares sociais, formações imaginárias e papéis discursivos, conceitos que podem (e
devem) ser pensados com base no conceito de ideologia. Por “condições de produção
entendemos o processo de produção do discurso, que seria o “conjunto de mecanismos
formais que produzem um discurso de tipo dado em “circunstâncias” dadas” (PÊCHEUX,
1969-1993, p. 74). Na mesma obra Pêcheux apresenta a noção de discurso e funcionamento:
“O discurso não é transmissão de informação, mas pressupõe funcionamento da linguagem e
e em relação sujeitos afetados pela língua e pela hisria, em um complexo processo de
constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.” (1969-1993, p. 78) (grifos do autor).
Leite (1994) assinala que Pêcheux propõe uma teoria do discurso como teoria geral
da produção dos efeitos de sentido, que não seria para ele nem o substituto de uma teoria da
ideologia nem o de uma teoria do inconsciente, mas poderia intervir no campo destas teorias”.
(p. 112). Ressalta também que é o discurso que tece a ligação material entre o inconsciente e a
ideologia. Segundo a autora, é preciso entender a língua não como sistema e sim como tendo
a função de exprimir sentido, tornando-se um objeto teórico cujo funcionamento
pode ser cientificamente descrito. Este ato implica um deslocamento conceitual
importante, na medida em que realiza a separação da “homogeneidade cúmplice
entre a prática e a teoria da linguagem, e impõe à ciência assim constituída um resto
parte integrante da linguagem necessariamente abandonado, e que por isto não
cessa de retornar (não se escreve). (1994, p. 113).
24
Cabe ressaltar que no texto de Pêcheux de 1969 é a referência à sociologia e à teoria
das formações sociais que responderá, neste momento, como instrumento para nomear esta
falta, constituindo o Outro na teoria. (p. 114 - grifo nosso). Nesse texto aparece também o
estudo dos processos de produção, que são definidos como as relações de sentido nas quais
um discurso é produzido. O fato de um discurso remeter invariavelmente a outro impõe a
necessidade de pensar a categoria do discursivo como matéria-prima de qualquer discurso e,
assim afirmar que não realidade pré-discursiva. Esta tese é fundamental porque condiciona
a concepção de sentido como efeito, que vai operar na teoria e impor que a exterioridade
implicada no processo de significação seja pensada nos termos da materialidade da língua,
construída discursivamente (exterior/interior). É o que Pêcheux denomina de representação
imaginária do lugar social. (p. 116). Em suma, o que faltou no texto de 1969 foi uma teoria do
imaginário nas suas relações com o real. (p. 138).
No texto de 1975/1996, além do conceito de ideologia, outros conceitos são
explorados, entre os quais os de formação ideológica e formação discursiva, onde fica
esclarecida, portanto, a maneira como o estudo do sentido implica necessariamente uma
mudança de terreno, vale dizer, de objeto. É o discurso que realiza a ligação da ideologia com
a língua. (p. 128). A ideologia, por meio do hábito e do uso, está designando ao mesmo tempo
o que é e o que deve ser qual o lugar social a ser ocupado pelo sujeito do discurso.
Destacamos desse texto a importância de operar com categorias de modo não-opositivo, ou
seja, “o sistemático aqui não se oe simplesmente ao não sistemático, assim como o exterior
não se define como o não-interior”. (1994, p. 133). O aspecto relevante aqui para nossas
reflexões é justamente a discussão sobre o caráter histórico ou não da língua.
Leite reafirma que é importante destacar também “o abandono da contradição lógica
como forma de oposição (relação exclusiva) entre categorias para a elaboração de um
conceito de estrutura que, incluindo o real como contingência, reserve um lugar para a
história”. Diríamos com a autora que é, portanto,
a consideração do sujeito em sua relação com o sentido que traz a inclusão do não-
sistemático na teoria. É por presentificar algo da ordem do real que o sujeito
(enquanto sujeito-efeito e não efeito-sujeito) introduz, neste contexto, um elemento
capaz de romper com a sistematicidade. E o que rompe com a sistematicidade
configura-se como resíduo (resto) (p.134 - grifos nossos).
25
O sujeito, enquanto referido ao real, deixa de ser simplesmente o sujeito do discurso
para tornar-se um sujeito afetado pelo inconsciente. E se é afetado pelo inconsciente, não
podemos negligenciar esse resto, que, em nossa perspectiva, representa o silêncio local.
Lembramos, portanto, que o silêncio local é uma das categorias não sendo a única. A autora
assim reflete sobre as colocações de Pêcheux: “[...] que o sujeito do discurso o se identifica
quer com o sujeito da ideologia, quer com o sujeito do inconsciente, sendo a articulação entre
estes três conceitos o ponto nodal, núcleo a ser incessantemente trabalhado na teoria”. (1994,
p. 134).
É, portanto, a partir da referência ao sujeito na origem do sentido que ele enuncia que
Pêcheux introduz a noção de ilusão subjetiva, retirada da teoria de Althusser (e referida ao
conceito de sujeito da ideologia) e central para a análise a ser empreendida em 1975,
constituindo o esteio da inclusão explícita da teoria psicanalítica no quadro epistemológico
delineado. (1994, p. 135). A afirmação althusseriana – de que a ideologia interpela os
indivíduos em sujeito abre para Pêcheux a possibilidade de articular no do discurso a
questão do sujeito e do sentido. O sujeito no discurso é definido por uma “evidência de
sentido”, o podendo, então, ser tomado como origem real de onde emanaria um/o sentido,
mas, justamente por isso, devendo se identificar imaginariamente como sua fonte. Dito em
outras palavras, se é produzido como sentido, dele não pode ser causa. (p. 138).
Pêcheux e Fuchs retomam a noção de formação discursiva esclarecendo que as FDs
são componentes das formões ideológicas, ou seja, as FDs “materializam o ideológico
presente nas formões sociais, nas relações do homem com o mundo” (1993, p. 166). Em
outras palavras, a ideologia está presente dentro do funcionamento do discurso. Tudo e todos
são constituídos pela ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que
se produza o dizer, que também está repleto de ideologia.
Nesse contexto das reflexões de Pêcheux, o autor passa a considerar o eu nas práticas
de resistência e abre espaço para a noção de pensamento inconsciente, que implica
compreender que a própria construção teórica tem cunho inconsciente. No texto “Só há causa
daquilo que falha”
10
, Pêcheux afirma:
causa daquilo que falha (J.Lacan). É nesse ponto preciso que ao platonismo
falta radicalmente o inconsciente, isto é, a causa que determina o sujeito exatamente
onde o efeito de interpelação o captura: o que falta é essa causa, na medida em que
10
O artigo “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação” foi publicado,
como anexo no livro Semântica e Discurso, de 1988. Neste texto, o autor inclui a possibilidade de resistência
do sujeito.
26
ela se manifesta” incessantemente e sob mil formas (o lapso, o ato falho, etc). no
próprio sujeito, pois os traços inconscientes do significante o são jamais
“apagados” ou “esquecidos”, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação
sentido/nonsens do sujeito dividido. (1983-1995, p. 300).
As falhas no ritual de interpelação ideológica indiciam um sujeito dividido, que se
manifesta por lapsos e atos falhos, por meio dos quais resiste. E por falar em resistência,
reforçamos as palavras de Pêcheux, que nos diz que
a ordem do inconsciente não coincide com a da ideologia, o recalque não se
identifica nem com o assujeitamento nem com a repressão, mas isso não significa
que a ideologia deva ser pensada sem referência ao registro inconsciente. Não
estamos, com isso, querendo sugerir que o lapso ou o ato falho seriam, como tais, as
bases históricas de constituição das ideologias dominadas; a condição real de sua
disjunção em relação à ideologia dominante se encontra na luta de classes como
contradição histórica motriz (um se divide em dois) e não em um mundo unificado
pelo poder de um mestre. (1995, p. 301- grifo nosso).
Tentemos entender a citação acima, na qual Pêcheux defende que é possível
conceber a contradição como desigual, ou seja, estamos diante do que ele nomeia como
relações de contradição-desigualdade-subordinação. E é nesse processo que se chega à
apropriação do conhecimento. Aí, surge a concepção de FD como heterogênea, constituída
por saberes que vêm de outro lugar, de uma outra formação discursiva. E uma FD entendida
assim vai desencadear mais do que o desdobramento da forma-sujeito em duas tomadas de
posição. Na verdade, este desdobramento conduz a pensar em fragmentação da forma-sujeito
em várias posições-sujeito desiguais entre si. É que reside a contradição. Vemos, portanto,
que tais saberes são provenientes do exterior e, num determinado momento hisrico, passam
a poderem ser ditos (ou não) no espaço da FD.
É claro, portanto, que os aspectos tratados são relevantes para nossa pesquisa, porque é
exatamente nesse movimento dos sentidos de uma FD para outra que encontramos os não-
ditos (silenciados) nas letras das sicas de Chico Buarque. Vemos que os lapsos, os atos
falhos e o silêncio local inscrevem traços de resistência, do jogo não homogêneo das FDs.
Isso significa que reprodução e transformação ao mesmo tempo, nem de modo pontual e
sucessivo. Nas palavras com que Pêcheux fecha seu artigo, isso quer dizer que não
dominação sem resistência, e que ninguém pode pensar do lugar do outro, produzindo a
resistência no outro, “é preciso ousar pensar”. (1995, p. 304). Pêcheux assim registra em sua
obra Semântica do Discurso:
27
Com relação à forma dessa contradição, vamos especificar que ela o poderia,
levando-se em conta o que acabamos de dizer, ser pensada como a oposição de duas
forças que se exercem uma contra a outra em um mesmo espaço. A forma de
contradição inerente à luta ideológica entre as duas classes antagonistas não é
simétrica, no sentido em que cada uma tenderia a realizar, em proveito pprio, a
mesma coisa que a outra.
Vemos na leitura de Leite que a proposta de Pêcheux é
neste sentido amplamente compavel com a teorização lacaniana; mais ainda,
segundo nosso entendimento (Nina Leite), tal proposta se sustenta caso se adote
uma noção de estrutura tal como desenvolvida na teoria de Lacan, a partir de uma
teoria do significante afetada pela hipótese do inconsciente. (1994, p. 187 - grifo
nosso).
De todas essas reflexões, observamos que a língua na concepção da AD, é furada, e é
por possui furos que pode existir a possibilidade de deslocamentos, que nos permitem ler o
não-dito (o que foi silenciado), ou seja, esses pontos de deriva são passíveis de serem
interpretados. Portanto, esta dissertação é uma das leituras possíveis de tais pontos.
Observamos que o conceito de ideologia é essencial para todo e qualquer trabalho que
se proponha seguir nos caminhos da AD. Julgamos oportuno, portanto, evocar os trabalhos
desses teóricos para compreender os deslocamentos que foram efetuados. Para tanto,
começaremos por Marx e Engels, que com o conceito de materialismo histórico contribuíram
para o deslocamento do conceito de ideologia proposto por Pêcheux.
1.1.2 Ideologia em Marx
Karl Marx, economista, filósofo e socialista alemão, nasceu em Trier em 5 de maio de
1818 e faleceu em Londres a 14 de março de 1883. Em 1848, Marx e Engels publicaram o
folheto “O Manifesto Comunista”, primeiro esboço da teoria revolucionária que, mais tarde,
seria chamada teoria marxista”. Marx apresentava uma filosofia revolucionária, que
procurava demonstrar as contradições internas da sociedade de classes e as exigências de
superação. Os princípios básicos que fundamentam o socialismo marxista podem ser
sintetizados em duas teorias centrais: a teoria da mais-valia, em que se demonstra a maneira
pela qual o trabalhador é explorado na produção capitalista, e a teoria da luta de classes, na
28
qual se afirma que a história da sociedade humana é a história da luta de classes ou do conflito
permanente entre explorador e explorado.
Além disso, Marx dedicou-se a um estudo intensivo da história, elaborando uma
teoria que viria a ser conhecida como a concepção materialista da história. Materialismo
histórico é uma teoria sobre toda e qualquer forma produtiva criada pelo homem de acordo
com seu ambiente ao longo do tempo, a qual concebe que os acontecimentos históricos são
determinados pelas condições materiais (econômicas) da sociedade. Dentre as ideias do
materialismo histórico estão as forças produtivas e as relações de produção. As forças
produtivas constituem as condições materiais de toda a produção; representam as matérias-
primas, os instrumentos e as cnicas de trabalho. Por sua vez, as relações de produção são as
formas pelas quais os homens se organizam para executar a atividade produtiva; em suma, as
forças produtivas e relações de produção são condições naturais e históricas de toda atividade
produtiva que ocorre em sociedade. A forma pela qual ambas existem e são reproduzidas
numa determinada sociedade constitui o que Marx denominou de “modo de produção”. O
materialismo histórico, ao afirmar que “toda sociedade só existe porque consome e
consumo onde produção”, pretende que a explicação da história das sociedades humanas,
em todas as épocas, se pelos fatos materiais, essencialmente econômicos e técnicos. A
sociedade é comparada a um edifício no qual as fundações, a infraestrutura, seriam
representadas pelas forças econômicas, ao passo que o edifício em si, a superestrutura,
representaria as ideias, os costumes, as instituições (políticas, religiosa, jurídicas, etc.).
Com base nos pressupostos teóricos do materialismo hisrico, o pensador alemão
demonstra que a ideologia é determinada pelas relações de dominação entre as classes sociais.
Ao se referir à ideologia burguesa, Marx entende que as ideias e representações sociais
predominantes numa sociedade capitalista são produto da dominação de uma classe social (a
burguesia) sobre a classe dominada (o proletariado) e que a sociedade é determinada por suas
condições socioeconômicas. Em outras palavras, a busca pelo poder leva a que os homens,
organizados em classes sociais, por meio de processos de perda, domínio e manutenção desse
poder, façam sua história, a história da humanidade.
Segundo Marx e Engels (1984), na obra Ideologia alemã, o obscurecimento da origem
real das ideias na vida material da sociedade possibilita a reprodução das ideias dominantes
nesta sociedade e, consequentemente, das formas de dominação nela encontradas, as quais,
desse modo, são aceitas, não estando sujeitas à crítica. Daí a famosa tese de que sempre, num
dado momento histórico, as ideias da classe dominante são também as ideias dominantes.
29
Para Marx, o termo “ideologia” tem um sentido negativo, que a imposição do
pensamento de uma classe a outra tem o objetivo de ocultar a realidade, de modo que a classe
dominada aceite sua situação de dominação. A ideologia marxista estabelece a teoria do valor
do trabalho, que, por sua vez, abriga o conceito de mais-valia: o capitalista como proprietário
dos meios de produção retém parte da produção do trabalhador. A mais-valia mede a
exploração dos assalariados pelo capitalista e é fonte de lucro destes. Schons e Mittmann
(2009, p. 295-304) afirmam que a “contradição é elementar para o entendimento do conceito
produção/reprodução, que a contradição é constitutiva de qualquer luta de classes e não é
apenas oposição de idéias, nem antagonismos”. Para as autoras, a contradão é constitutiva e
está articulada ao trabalho da memória e do interdiscurso.
Marx, em suma, critica a essência do capitalismo, que reside precisamente na
exploração da força de trabalho pelo produtor capitalista e que, segundo ele, um dia haverá de
levar à revolução social. Logo, as categorias de luta de classes, a mais-valia, a revolução
socialista são conceitos básicos para a transformação social.
Essa concepção de ideologia, apesar de limitada se comparada às propostas que estão
por vir, tais como as de Žižek e cheux, encontra certa ancoragem neste trabalho,
principalmente pela relação com a mais-valia e a ppria revolução socialista, já que a época
da ditadura militar no Brasil era justificada justamente como uma luta contra os comunistas.
Em relação ao nosso corpus, lembramos que, mesmo o sujeito pragmático não podendo dizer
pela proibição da palavra, ele diz, porque o silêncio significa. A palavra dita no silêncio local
(pela interdição da censura) não é o implícito, mas o exemplo de resistência.
Durante os regimes autoritários, os que comandam, os que atuam no poder, passam a
ideia de segurança. No caso da ditadura militar brasileira, era especialmente associada à
defesa interna do país contra a ameaça comunista e à necessidade de reforçar valores cristãos
num mundo dividido pela Guerra Fria, em que as duas maiores potências mundiais Estados
Unidos e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tentavam obter a adesão dos países
oferecendo-lhes auxílio ao desenvolvimento econômico.
Pêcheux, na obra Semântica e discurso uma crítica à afirmação do óbvio (1975-
1993), avança em outra direção: ao considerar o sujeito interpelado socialmente e afetado pelo
inconsciente, entende a ideologia numa relação com o social, com o simbólico e com o
imaginário, o que marca um distanciamento com o modo marxista de pensar língua, sujeito e
sentido.
Para dar continuidade à transformação do conceito de ideologia estudado na AD é
imprescindível, no entanto, nos reportarmos às reflexões de Louis Althusser, de quem
30
Pêcheux foi aluno e do qual faz deslocamentos muito significativos para o edifício teórico da
AD.
1.1.3 Ideologia em Althusser
A ideologia, na concepção althusseriana, retoma e desloca a noção marxista de
ideologia; é, portanto, o próprio processo de codificação do mundo e o viés pelo qual os
atores sociais tomam consciência dos seus atos. As teses que estudaremos neste subtítulo são
as de que a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos e que a ideologia não tem
história, ou seja, é eterna. Ambas são importantes para a AD, pois foi por meio delas que
Pêcheux fez um deslocamento para a teorização da teoria não subjetiva da subjetividade.
O ponto de partida da reflexão althusseriana sobre ideologia é o princípio do
materialismo histórico: toda sociedade existe porque consome e consumo onde
produção. Para a produção acontecer são necessários um aparelho do Estado – governo,
administração, exército, polícia, tribunais, prisões, etc. e rios aparelhos ideológicos do
Estado igrejas, escolas, partidos, empresas, famílias, jornais, etc. Na teoria marxista, o
aparelho de Estado (AE) contém o governo, os ministérios, o exército, a polícia, os tribunais,
os presídios, etc., que constituem o aparelho repressivo de Estado (ARE). Como o próprio
nome sugere, repressivo refere-se àquilo que funciona pela violência. Por sua vez, os
aparelhos ideológicos de Estado envolvem um certo mero de realidades que se apresentam
ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas, como as citadas.
Todo aparelho de Estado, seja repressivo, seja ideológico, funciona ao mesmo tempo
pela violência e pela ideologia. É importante ressaltar que o aparelho repressivo atua,
predominantemente, pela repressão e, secundariamente, pela ideologia, ao passo que o
aparelho ideológico de Estado funciona, predominantemente, pela ideologia e,
secundariamente, pela repressão. Althusser, no artigo intitulado Ideologia e aparelhos
ideológicos de Estado” (notas para uma investigação), de 1996
11
, esclarece que o papel do
ARE consiste em assegurar, por meio da força (física ou de outro tipo), as condões políticas
de reprodução das relações de produção: as relações de exploração. Ressaltamos que o ARE
assegura, pela repressão (desde a mais brutal força física a meras ordens e proibões
11
Este artigo se encontra no livro Um mapa da ideologia de Theodor W. Adorno.et al., organização de Slavoj
Žižek, tradução Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
31
administrativas) ou pela censura, as condições políticas de atuação dos AIEs (1996,
p. 116-117). Para nossa proposta de trabalho é importante a compreeno dos conceitos
referidos, pois, como veremos nas análises das canções, a repressão e a censura estarão
perpassando o nosso corpus. Na canção Cálice”, o verso Mesmo calada a boca/ resta o
peito
12
indica tratar-se da censura propriamente dita, do silêncio imposto, ou seja, ter de
aguentar calado uma situação de repressão. Remete a que, mesmo que à boca não seja
permitido falar, os sentimentos que estão guardados no peito não foram calados, porém o
silêncio imposto (a censura) não permite que tais sentimentos sejam expressos, verbalizados.
Althusser foi o primeiro teórico marxista a propor que a ideologia seria um elemento
onipresente, trans-histórico e eterno na história humana, ou seja, não existiria apenas em
função da sociedade de classes. Nesse momento, Althusser registra que
se estou apto a propor o projeto de uma teoria da ideologia em geral, e se essa teoria
é realmente um dos elementos de que dependem as teorias das ideologias, isso
acarreta uma proposição aparentemente paradoxal, que expressarei nos seguintes
termos: a ideologia não tem história. (1996, p. 124).
Logo, entendemos que Althusser tem a intenção de construir uma teoria da ideologia
em geral e justificar o projeto de uma teoria da ideologia em geral, que se baseia na história
das formações sociais e dos modos de produção combinados nas formações sociais e nas lutas
de classes que se desenvolvem dentro delas. Afirma o autor:
Nesse sentido, é claro que não nenhuma possibilidade de uma teoria das
ideologias em geral, já que as ideologias (definidas no duplo aspecto sugerido
acima: regionais e de classe) têm uma história cuja determinação, em última
instância, situa-se claramente fora das ideologias em si, embora as suponha. (1996,
p.124).
Althusser afirma que a ideologia não tem história. Marx também afirmava que a
ideologia não tem história (sua história lhe é externa), o que denota um sentido negativo.
Althusser defende que as ideologias têm uma história ppria” (ainda que seja determinada,
em última instância, pela luta de classes). Isso evidencia um caráter positivo da ideologia, que
12
Vale salientar que o recorte do corpus tem a finalidade, apenas, de ilustrar a questão levantada nesta discussão.
Uma análise mais aprofundada será apresentada no capítulo 4, “Percorrendo o caminho das análises”.
32
está justamente no fato de ter uma estrutura e funcionamento próprio, o que faz dela uma
realidade não histórica, ou melhor, oni-histórica, cuja estrutura e funcionamento permanecem
imutáveis durante toda a história humana. Sendo, portanto, a ideologia, a hisria e o
inconsciente considerados eternos, permitem que as interpretemos como noções
constitutivas dos sentidos presentes em nosso corpus. Schons faz um deslocamento da noção
de contradição e afirma que,
ao admitir as contradições, a língua perde seu caráter homogêneo e estável, passando
a ser entendida como elemento de base material, heterogêneo por excelência, o
estável, não previsível e não fechado, o qual combinado à materialidade do processo
sócio-histórico, constitui o lugar da produção dos efeitos de sentido. (2006, p. 55).
É o que explica Althusser ao relacionar essa ideia à proposição freudiana segundo a
qual o inconsciente não tem história, ou seja, é eterno.
Se eterno não significa transcendente a toda a história (temporal), mas onipresente,
trans-histórico, e, portanto, imutável em sua forma em toda a extensão da história,
adotarei a expressão de Freud palavra por palavra e escreverei: a ideologia é eterna,
exatamente como o inconsciente. E acrescento que julgo essa comparação
teoricamente justificada pelo fato de que a eternidade do inconsciente guarda alguma
relação com a eternidade da ideologia em geral. (1996, p. 125).
Entretanto, de forma alguma isso significa que a ideologia (ou o inconsciente
freudiano) transcenda a história, mas, sim, que é mutável na sua forma ao longo da história. O
autor utiliza o termo “ideologia” para designar a ideologia em geral e proe duas teses sobre
a estrutura e funcionamento da ideologia. A primeira tese é: A ideologia é uma
“representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência.
Pela expressão “a ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência” (1996, p. 126) entendemos que seria na
ideologia que os homens representam o mundo para si mesmos, porém este nunca é tal como
existe efetivamente, mas, sim, é um mundo marcado pela intervenção humana.
Nas palavras de Althusser o que “se reflete na representação imaginária do mundo
encontrada na ideologia são as condições de existência dos homens, ou seja, seu mundo real.”
(1996, p. 127). O sujeito (por ser sujeito) sente-se capaz de representar fielmente a realidade,
33
mas a representa, de fato, ideologicamente. É a ideologia que constitui o sujeito; portanto,
toda ideologia teria como função primordial constituir indivíduos em sujeitos.
Sendo a ideologia, antes de tudo, um sistema de representações, é também
profundamente inconsciente, ou seja, impõe-se primordialmente como estrutura, não passando
pela consciência humana. Os homens vivem as suas ações não de forma livre e consciente,
mas, sim, na ideologia, através e pela ideologia; na ideologia “os homens representam para si
mesmos suas condições reais de existência sob forma imaginária”. (ALTHUSSER, 1996,
p. 126). Essa relação aparece como sendo consciente apenas na medida em que é
inconsciente. Se pensarmos a estrutura nos moldes da psicanálise, de que o sujeito o está no
centro de si mesmo, tampouco é a fonte do sentido, o lugar onde está não tem centro, mas é
uma estrutura. Todavia, o que essa estrutura tem em comum com a concepção discursiva que
lhe atribuiu Pêcheux? Justamente o fato de representar a inclusão do sujeito na cena da
linguagem e por ser marcada por um furo fundante, uma falta constitutiva, que vem funcionar
como verdadeiro motor da estrutura. Lacan deu um nome a essa falta, cunhando-a como uma
de suas mais importantes invenções teóricas, o objeto a
13
, um objeto faltoso, perdido, que o
sujeito busca reencontrar, como causa do desejo. (LEANDRO FERREIRA, 2005, p. 73).
A segunda tese de Althusser refere-se ao fato de que a ideologia tem uma existência
material, ou seja, não tem uma existência ideal, já que existe num AIE (aparelhos
ideológicos de Estado) e em suas práticas. Essas práticas, ou rituais, são realizadas por
sujeitos conscientes, que agem de uma maneira, não de outra, por determinação de sua(s)
ideias/consciência, de modo que uma identificação entre o ritual e a ideia de cada sujeito.
Nas palavras de Althusser, “uma ideologia existente num aparelho ideológico material, que
prescreve práticas materiais regidas por um ritual material, práticas estas que existem nos atos
materiais de um sujeito que age, com plena consciência, de acordo com sua crença”. (1996,
p. 131).
Em outras palavras, diz respeito ao fato de que toda prática ocorre por meio e sob a
ideologia, ao mesmo tempo em que existe ideologia através do sujeito e para sujeitos. O
autor chega, então, à sua tese central de que a ideologia interpela os indiduos enquanto
sujeitos (ALTHUSSER, 1996, p. 131), e faz isso indistintamente, recrutando a todos: “Toda
ideologia invoca ou interpela os indivíduos como sujeitos concretos, pelo funcionamento da
categoria de sujeito”. (p. 133). Essa recrutação se dá no momento em que o sujeito se
identifica com o sujeito de uma ideologia por meio de uma evincia. Ainda nas palavras de
13
As questões sobre a falta constitutiva, o objeto a (Lacan) e sujeito desejante serão retomadas e aprofundadas
no capítulo “A trama do sujeito na AD – Que sujeito é esse?
34
Althusser, “os indivíduos são sempre já sujeitos (p. 134); mesmo antes de nascerem estão
predeterminados a se identificarem com determinados sujeitos ideológicos, seja em razão do
sexo, seja do comportamento, da crença religiosa, etc. Valemo-nos neste ponto das reflexões
presentes na tese de doutoramento de Ângela Stube Netto, por serem pertinentes ao tema
proposto:
“Percebemos, nas reflexões de Althusser, um deslocamento na noção de ideologia em
relação à concepção de ideologia como dominação, que aborda seu caráter imaginário,
constitutivo e a sua materialidade”. (2008, p. 46). A autora ressalta que:
o sujeito pensado por Althusser é interpelado e se constitui nessa interpelação; já em
Freud e em Lacan, a estruturação inconsciente possui uma complexidade maior que
a da interpelação, ou seja, o sujeito se constitui justamente no que escapa à
interpelação, no que falha e faz furo na linguagem, isso diferencia o papel atribuído
ao inconsciente nesse cenário”. (2008, p. 46).
Afirma ainda que “a ordem do desejo inconsciente, promotora da divisão subjetiva do
sujeito, fica minimizada ou pouco desenvolvida tanto na teoria althusseriana quanto em
teorias do discurso tributárias ao trabalho de Althusser, tal como nas de Pêcheux, em função
da primazia dada ao sujeito ideológico.” (STÜBE NETTO, 2008, p. 46).
Reforçamos aqui que um conceito está entrelaçado a outro numa rede de significações.
A teoria marxista propõe que a ideologia pode ser considerada um instrumento de dominação
que age pelo convencimento (não pela força), de forma prescritiva, alienando a consciência
humana e mascarando a realidade.
Althusser considera que a ideologia interpela indivíduos em sujeitos, é materializada
em aparelhos ideológicos de Estado (AIEs) e sua função é uma prática social e política, pois
está relacionada às lutas de classes e à reprodução das condições de produção e de existência
dos indivíduos nas instituições e na sociedade. Percebemos, pois, nas reflexões de Althusser
um deslocamento na noção de ideologia em relação à concepção de ideologia como
dominação, já que aborda seu caráter imaginário, constitutivo e sua materialidade. O autor, ao
final da sua obra, remete à questão do inconsciente freudiano, afirmando que os laços sociais
são inconscientes. Não obstante, o conceito de sujeito refere-se a um sujeito
ideológico/jurídico, sem referência ao sujeito do desejo. Entendemos que o grande
deslocamento proposto pela psicanálise está no fato de compreender a estruturação da
35
realidade social através de fantasias ideológicas, sustentadas na relação Real
14
, Simbólico e
Imaginário, o que implica que elas também se transformam. E por falar em psicanálise, o
filósofo político esloveno Slavoj Žižek propõe a noção de “fantasia ideológica”, a qual, dentro
dos estudos filosóficos e políticos contemporâneos, tem sido bastante citada. Žižek é um
estudioso das relações de poder com os sistemas de comunicação social, fazendo uso da
psicanálise lacaniana para a realização da crítica social. Dedicamos um subtítulo ao estudo de
tais conceitos.
1.1.4 Ideologia em Žižek
O engajamento de Žižek
15
deve ser encarado de modo diferente da participação ritual
em movimentos sociais. No artigo intitulado “Como Marx inventou o sintoma?” Žižek
apresenta o conceito de ideologia preconizado por Marx como “falsa consciência”, como um
desconhecimento da realidade social que faz parte dessa mesma realidade. (1996, p. 312). E
questiona: “Será que esse conceito da ideologia como consciência ingênua ainda se aplica ao
mundo de hoje?” Žižek baseia-se na obra de Peter Sloterdijk, cuja tese afirma que o modo
dominante de funcionamento da ideologia é cínico, o que torna este funcionamento
impossível ou, mais exatamente, inútil. Em outras palavras, o sujeito cínico tem perfeita
ciência da disncia entre a máscara ideológica e a realidade social, mas, apesar disso,
continua a insistir na máscara: “Eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo
assim o fazem”
16
, (p. 313). Nesta citação transparece o paradoxo de uma falsa consciência:
sabe-se muito bem da falsidade, tem-se plena ciência de um determinado interesse oculto por
trás de uma universalidade ideológica, mas, ainda assim, não se renuncia a ela.
Observamos, portanto, um deslocamento nas idéias de Marx, e essa ideia de cinismo
encontra eco em nossas reflexões sobre o silêncio local, pois nas análises que efetuaremos em
14
STÜBE NETTO (2008) Afirma que para cheux, o Real emerge apenas pontualmente na linguagem, pois,
configura o impossível de ser tocado e simbolizado. Ao conceber que o Real emerge na linguagem e que nos
deparamos com ele, o autor revela a tensão e o conflito na produção de sentidos. Para Lacan, o Real (escrito
com letra maiúscula e, ao longo do seu trabalho, como R) é o que se repete como falta, é o não simbolizável, o
impossível de ser tocado; o liga ao resto (uma realidade desejante e inacessível), ao desejo inconsciente. Por
sua vez, o real (com letra minúscula) aponta para representação, sempre imaginária da realidade. (p. 48).
15
Žižek nasceu em 1949, em Líubliania, capital da Eslovênia, a mais próspera das províncias da antiga
República da Iuguslávia, e a primeira a se tornar independente em 1991. Em 1971 completou sua graduação
em Filosofia e Ciências Sociais e apresentou sua tese A relevância prática e teórica do estruturalismo
francês. Filho de comunistas linha-dura, viu fracassar sua aspiração ao pido ingresso no sistema
burocrático-universitário.
16
Baseada na fórmula marxista “disso eles o sabem, mas o fazem”.
36
muitos momentos visualizaremos nitidamente o eles sabem muito bem o que estão fazendo
(referindo-se ao governo), mas mesmo assim o fazem”, ou seja, ao tentar driblar” a censura
(silêncio local), “mascaram” uma situação que não condiz com a realidade. Segundo Žižek,
eles sabem muito bem como as coisas realmente são, mas continuam a agir como se
não soubessem. A ilusão, portanto, é dupla: consiste em passar por cima da ilusão
que estrutura nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão
desconsiderada e inconsciente é o que se pode chamar de fantasia ideológica. (1996,
p. 316).
Essa citação por si justifica a inclusão de Žižek como um dos teóricos que
embasam nossa pesquisa. Žižek acredita que o vel fundamental da ideologia não é uma
ilusão que mascare o verdadeiro estado de coisas, mas de uma fantasia (inconsciente) que
estrutura nossa própria realidade social. (1996, p. 316).
O autor chama de “realidade social um constructo que se sustenta num certo como se
(agimos como se acreditássemos na onipotência da burocracia, como se o Presidente
encarnasse a Vontade do povo, etc.)” (1996, p. 318). O próprio autor questiona-se: O que
significa, mais exatamente, dizer que a fantasia ideológica estrutura a própria realidade? A
explicação parte da teoria lacaniana de que na oposição entre o sonho e a realidade a fantasia
fica do lado da realidade: ela é, como certa vez disse Lacan, o suporte que dá coerência ao que
chamamos realidade. (p. 322).
Vemos assim com o autor que
a ideologia, portanto, não é uma ilusão de tipo onírico que construamos para escapar
à realidade insuportável; em sua dimensão básica, ela é uma construção de fantasia
que serve de esteio à nossa própria “realidade”: uma ilusão” que estrutura nossas
relações sociais reais e efetivas e que, com isso, mascara um insuportável núcleo real
imposvel. (1996, p. 323).
Ora, percebemos que a função da ideologia não é oferecer-nos uma via de escape de
nossa realidade, mas oferecer-nos a ppria realidade social, como uma fuga de algum núcleo
traumático”. (p. 323). Como podemos exemplificar esta citação? Talvez, nos valendo do
exemplo usado por Lacan, sobre um rei que pensa ser rei, que toma seu ser-rei por uma
propriedade imediata, e não por um mandato simbólico que lhe é imposto. Grosseiramente,
trata-se do louco que acredita em suas próprias loucuras. Explicando as palavras de Žižek de
37
outra maneira, é como se o sujeito mantivesse a ilusão de controlar o seu dizer e o seu fazer
por meio descaras pelas quais se identifica; ele, então, inscreve-se na fantasia, que
estrutura a realidade social. Em síntese, para o autor, a ideologia é do nível daquilo que os
sujeitos fazem, não do que pensam ou sabem estar fazendo; o que sustenta esse fazer é uma
fantasia ideológica; uma ilusão no nível daquilo que os sujeitos fazem (1996a, p. 314). O
funcionamento da fantasia ideológica marca-se justamente quando essa contradição entre a
imagem e a experiência serve de argumento para ratificar a fantasia.
Decorre da fantasia ideológica a produção de uma exceção que fixa o elemento
faltante para o universal que ela promete. Esta exceção é o sintoma social, que como negação
interna carrega dentro de si as propriedades formais da fantasia da qual se origina. É nesse
sentido que Marx pode ser considerado o inventor do sintoma ao descrever a emergência da
mercadoria que representa a negação interna do princípio universal da equivalência das trocas
de mercadorias. Assim, temos uma nova maneira de entender a ideologia e, sobretudo, de agir
sobre ela. Não se trata apenas de revelar sua falsa aparência, desvelando seu núcleo de
ressignificão essencialmente deslocada, não se trata apenas de interpretar o sonho revelando
seu segredo oculto, mas de mostrar o segredo da própria forma assumida no trabalho de
produção do sonho. A crítica da ideologia, em nossa época, deve se deslocar da primazia do
saber para o eixo do fazer. Em outras palavras, o dito cristão de que eles não sabem o que
fazem deve ser revertido em: mesmo sabendo, eles continuam a fazer como se não soubessem.
(ŽIŽEK, 1999). A noção de fantasia ideológica não alcança apenas o plano de uma espécie de
falsa cobertura do real. A fantasia ideológica não se opõe à realidade, mas estrutura a própria
realidade social. O problema reside em saber o que, em cada momento, precisa ser excluído
da realidade para que a própria realidade se mostre consistente. “O cinismo como patologia da
crença, é uma das estratégias mais eficazes para cegarmo-nos ao poder estruturador da
fantasia ideológica. O cinismo é capaz de utilizar a verdade como forma mais eficaz de
mentira”. (2005, p. 52-53).
Retomando nosso corpus observaremos nas análises que o poder instituído (o
governo) utiliza-se de uma verdade (a sua) para mascarar a mentira (da situação vivenciada).
Nesse aspecto, chama nossa atenção a noção de censura conceituada em Žižek:
no próprio ato de censura e de outras formas de exclusão, gera o excesso que ela se
empenha em conter e dominar, falta-lhe algo em um ponto crucial: deixa de perceber
a maneira como a censura não afeta o status da força marginal ou subversiva que
o discurso do poder esforça-se em dominar, mas, em um nível ainda mais radical,
gera, de dentro, o próprio discurso de poder. (2005, p. 16).
38
Esse discurso de poder estará presente em nossas reflexões baseadas no mecanismo de
autocensura,
17
que só é eficaz na medida em que permanece censurado. E o que foi censurado
surge nas letras das sicas de Chico Buarque de Hollanda no regime militar brasileiro. “A
resistência é imanente ao poder, diz Žižek, ou seja, poder e contra-poder geram-se um ao
outro; não é só que o próprio poder gera o excesso de resistência que não pode mais
dominar”. IŽEK, 2005, p. 19). Ao contrário, é justamente porque é censurado e resiste que
é possível construir novos sentidos. A censura não permite o dizer; no entanto, ao mesmo
tempo não consegue evitar que os sentidos se modifiquem, caminhem e ganhem novo sentido.
Dito assim, para que o poder funcione deve encontrar formas de camuflar por meio da
repressão e do silêncio local, assim conseguindo driblar a censura e fazer falar um novo
sentido.
Quando é dotado de autoridade simbólica, o sujeito atua como apêndice de seu título
simbólico, ou seja, ele é o “grande Outro”, a instituição simbólica, que age por seu
intermédio. (p. 26). É precisamente por meio desse autodistanciamento que funciona a
ideologia nica pós-moderna.
Como observamos, as reflexões de Žižek também encontram eco em nossa pesquisa
por todos os aspectos ressaltados, como os mais relevantes para este trabalho: a fantasia
ideológica, o cinismo e o sintoma. Em nossa investigação, a relação entre o linguístico e o
ideológico pode ocorrer também por meio do efeito metafórico. E as contribuições de Žižek
colaboram para que entendamos, por exemplo, a expressão “como se”, em que o movimento
do sentido se faz presente. Na análise da canção Construção de Chico Buarque
observaremos a designação “comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe”, e
analisando-a também com o cinismo que Žižek assinala, pois utiliza o cinismo para disfarçar
uma outra situação vivenciada. A ilusão de comer como um príncipe muda o sentido de lugar,
que na realidade da conjuntura militar não era verídica.
Como afirmamos inicialmente, seguimos a linha de pensamento de Pêcheux, e para
tanto, concluindo nosso estudo sobre a ideologia pela apresentação das reflexões de Michel
Pêcheux.
17
No capítulo 4 Percorrendo o caminho das análises”, no subitem: 4.3.1.2 “A Censura e silêncio local”,
aprofundaremos a temática sobre a censura no regime militar brasileiro.
39
1.1.5 Ideologia em Pêcheux
Pêcheux (1975) retoma de forma crítica a concepção de Althusser para fundamentar a
teoria do discurso. Para o autor, é a ideologia que, por meio do “hábitoe do uso”, designa,
ao mesmo tempo, o que é e o qual deve ser o lugar social a ser ocupado pelos sujeitos.
Pêcheux considera que a ilusão de autonomia do discurso e do sujeito é efeito da interpelação
ideológica do indivíduo em sujeito e que essa ilusão tem a função de manter a coerência e a
completude de uma determinada representação, necessária à constituição do sujeito e do
discurso.
A questão da ideologia e seu caráter paradoxal é desenvolvida por Pêcheux em sua
obra Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Michel Pêcheux, ao longo de
sua obra, reterritorializa o conceito de ideologia, num movimento por meio do qual acaba por
ampliar as fronteiras da própria ciência da linguagem. Nesse texto Pêcheux esclarece os
fundamentos de uma teoria materialista do discurso, afirmando que a contradição é inerente a
todo modo de produção baseado numa divisão de classes; assim, a reprodução/transformação
faz parte de um mesmo processo que atravessa o modo de produção em sua totalidade (no seu
conjunto). O aspecto ideológico da luta pela transformação das relações de produção reside,
sobretudo, na luta para impor, dentro do complexo de aparelhos ideológicos de Estado,
“novas relações de desigualdade-subordinação”. (PÊCHEUX, 1993, p. 145-146).
contradição na reprodução/transformação. Tanto a reprodução quanto a transformação das
relações de produção atravessam as práticas sociais, sendo impossível localizá-las e analisá-
las de forma estanque (separada).
Pêcheux resume assim a questão da ideologia:
A objetividade material da instância ideológica se caracteriza pela estrutura de
desigualdade-subordinação do ‘todo complexo que está no domínio’ das formações
ideológicas de uma dada formação social, uma estrutura que expressa a contradição
reprodução/transformação que constitui a luta de classes. (1993, p. 146).
Portanto, a prática discursiva é a forma como a prática política se materializa no
domínio simbólico da linguagem, a qual é um espaço permanente de observação das relações
contraditórias de reprodução e transformação, uma vez que a sua constituição ocorre no seio
de contradões e de relações desiguais dentro da luta de classes. Em realidade, Pêcheux
40
reforça o caráter contraditório de todo modo de produção cujo princípio seja a luta de classes,
afirmação que nos leva à heterogeneidade das formações discursivas e ao encontro da
subjetivação do sujeito.
Acreditamos ser exatamente nesse aspecto que Pêcheux e Althusser se aproximam: “A
luta de classes perpassa o modo de produção como um todo, o que, no campo da ideologia,
significa que a luta de classes “passa” pelo que Althusser chamou de Aparelhos Ideológicos
de Estado.” (PÊCHEUX, 1993, p. 143). Para chegar a uma teoria materialista dos processos
discursivos articulada com a problemática das condições ideológicas da
reprodução/transformação é preciso analisar a tese central de Althusser sobre a interpelação
a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, pois não existe prática a não ser através de
uma ideologia e dentro dela e, também, porque não existe ideologia a não ser pelo sujeito e
para sujeitos. Para Pêcheux, existe uma intrínseca relação entre a ideologia e o inconsciente.
Segundo suas palavras, “tanto a ideologia quanto o inconsciente operam ocultando sua própria
existência, produzindo uma rede de verdades ‘subjetivas’ evidentes”. (1993, p. 148).
Assim nos diz Pêcheux:
Todo nosso trabalho encontra aqui sua determinação, pela qual a questão da
constituição do sentido junta-se à da constituição do sujeito e não de um modo
marginal (por exemplo, no caso particular dos ‘rituais’ ideológicos da leitura e da
escritura), mas no interior da própria ‘tese central’, na figura da interpelação. (1983-
1995, p. 153-154).
No mesmo texto Pêcheux esclarece que essa interpelação do indivíduo em sujeito de
seu discurso acontece pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina,
sendo o sentido “produzido como evidência pelo sujeito(p.261), ou seja, é produzido como
causa de si. O autor afirma, portanto, que é no non-sens das representações que se encontra o
lugar do sujeito que toma uma posição em relação a elas, numa atitude de aceitação ou
rejeição. É nessas representações que o sujeito se “produz” e, consequentemente, produz o
sentido. Nesse ponto, Pêcheux cita Lacan o qual afirma: “A metáfora se localiza no ponto
preciso em que o sentido se produz no non-sens”. (p. 261). Portanto; Pêcheux admite que os
elementos significantes estão dotados de sentido, ou seja, “o sentido existe exclusivamente
nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de substituição, paráfrases, formações de
sinônimos), das quais certa formação discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou
menos provisório: as palavras, expressões e proposições recebem seus sentidos da formação
41
discursiva à qual pertencem”. (p. 263). São exatamente, esses aspectos que estamos
trabalhando em nossa proposta: a movência dos sentidos e do sujeito dentro de várias FDs.
Pêcheux continua explicando que o que torna possível a metáfora é o caráter local e
determinado do que cai no domínio do inconsciente, enquanto lugar do Outro”. (1995,
p. 263). É, pois, por meio dos atos falhos, dos lapsos e do silêncio que o inconsciente pode ser
resgatado, apreendido, lido. Essa citação de Pêcheux vem ao encontro do que estamos
propondo na análise do nosso corpus, em que será observada essa movência dos sentidos por
meio do efeito metafórico que mascara o sentido, já que se move no meio de várias FDs e,
por meio do interdiscurso, poderá ser recuperado e analisado evidenciando o silêncio local (a
censura). Pêcheux ressalta:
As palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam o que quer dizer que elas adquirem seu
sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações
ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. (1995, p. 160).
Lembramos ao leitor a nossa pergunta inicial: Como ler o silêncio local nas letras das
músicas de Chico Buarque? É a linguagem que possibilita, portanto, fazer emergir outros
sentidos, por meio da falha, do equívoco e do silêncio local. Partindo dessa concepção de
linguagem como lugar do eqvoco, da falta, é possível encontrar as palavras para ler o
silêncio, e dentro dessa leitura o Real emerge e (re)vela uma construção de sentidos diferente
e inusitada.
Nossas (re)formulações teóricas referentes à ideologia demonstram, no entanto, uma
ausência de outros fios (teóricos) para a tessitura de nosso tapete. Começaremos por eles, que
são língua, linguagem, discurso, sujeito, formação ideológica, formação imaginária, memória
discursiva e interdiscurso.
42
2 TECENDO OS FIOS DO TAPETE TEÓRICO DA AD
Após o estudo dos nossos primeiros fios ideológicos (Marx, Althusser, Žižek e
Pêcheux), continuaremos a “tessitura” do tapete teórico da AD. Nosso trabalho será extenso,
afinal, estamos diante de uma teoria rica (profunda) e, ao mesmo tempo, complexa, pois,
como sabemos, mobiliza conceitos de três regiões do conhecimento: psicanálise, materialismo
histórico e teoria do discurso. Nosso caminhar será lento e parcimonioso (não queremos
enfadar nosso leitor!), com considerações, deslocamentos e releituras constantes.
Começaremos tentando definir língua, linguagem e discurso, para o que buscamos uma
maneira didática de fazê-lo, embora saibamos que o será uma tarefa fácil.
2.1 Língua, linguagem e discurso
A linguagem não é transparente.
Eni Orlandi
O estudo do discurso na perspectiva da Análise do Discurso explicita a maneira como
linguagem e ideologia se articulam e se afetam, numa relão recíproca. (ORLANDI, 2000
p. 15-18). Segundo a autora, percebemos que as palavras não significam por si s, mas
significam porque têm textualidade, ou seja, porque sua interpretação deriva de um discurso
que as sustenta, que as provê de realidade significativa. “A língua é assim condição de
possibilidade do discurso.” (2000, p. 22). Partimos do princípio de que a AD “não trabalha
com a língua enquanto sistema abstrato, mas com a língua no mundo” (2000, p. 15-16), o que
faz uma diferença muito grande em termos de conteúdo, pois incluem-se a exterioridade e o
sujeito. A autora continua: “Levando em conta o homem na sua história, considera os
processos e as condições de produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida pela
língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer.”
Nas palavras de Orlandi, retomando Pêcheux, “o sujeito, ao dizer, se significa e
significa o mundo”. (ORLANDI, 2005, p. 44). Assim, não poderíamos isolar a linguagem dos
sujeitos que dela se valem e por ela são constituídos. Pêcheux afirma que “o discurso é efeito
de sentido entre locutores”. O discurso não é transmissão de informação, mas, sim,
funcionamento da linguagem, e coloca em relação sujeitos afetados pela língua e pela história,
43
num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
(PÊCHEUX, 1969-1993, p. 82). Em suma, a AD concebe a linguagem como mediação
necessária entre o homem e a realidade natural e social.
Por isso se diz que a linguagem não é transparente. A questão que se coloca ao ler um
texto, um enunciado, uma frase que seja, é como o texto significa, não o q significa. A
linguagem é linguagem porque faz sentido, e só faz sentido porque se inscreve na história.
Não sentido que não seja determinado ideologicamente. “A linguagem é ação que
transforma.” (ORLANDI, 1996, p. 82). A AD produz um conhecimento a partir do próprio
texto, porque o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa; concebe-o
em sua discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos,
materializando-se nele.
Nesse sentido, há que se fazer uma distinção entre organização e ordem da língua. Por
organização entende-se o lugar de passagem possível para explicitar mecanismos de
funcionamento discursivos que nos levam a compreender fatos da ordem do discurso. O que
realmente nos interessa é a ordem da língua, como sistema significante material em
funcionamento, marcada pela falha, pelo “real da língua” e pelo real da história, enquanto
materialidade simbólica, ou seja, o lugar do equívoco que clama por interpretação, instalando-
se como um real da história. , então, um real da língua e um real da história. São essas
duas ordens, em relação, que nos interessam, porque constituem em seu conjunto e
funcionamento a ordem do discurso. Em outras palavras, o analista trabalha com a
organização para atingir o que constitui a ordem do significante; assim, tem de considerar o
que essa organização indica em relação ao real, seja da língua, seja da história. assim
atravessará a instância do imaginário para apreender, no funcionamento discursivo, o modo de
constituição do sujeito e dos sentidos. (ORLANDI, 1998, p. 45-51).
Orlandi (1998, p.19) propõe três regiões de conhecimento que apontam para essa
reconfiguração: o marxismo (que afirma a não transparência da história), a psicanálise (que
mostra a não transparência do sujeito) e a linguística (que se constitui na não transparência da
língua). Dito diferentemente, a linguística constitui-se pela afirmação da não transparência da
linguagem: tem seu objeto próprio, a língua, a qual tem sua ordem própria. A AD procura
mostrar que a relação linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, nem é uma relação direta,
que passa de um a outro, pois cada um tem sua especificidade. Por outro lado, pressupõe o
legado do materialismo hisrico, isto é, de que um real da história, de tal forma que o
homem faz história, a qual também não lhe é transparente. entra a psicanálise, com o
44
deslocamento da noção de homem para a de sujeito, que, por sua vez, se constitui na relação
com o simbólico, na história. É o “real do inconsciente”.
Para elucidar tais conceitos trazemos a figura topológica do nó borromeano formulada
pelo matemático Guilbaut, a qual servia como brasão à família dos Borromeus no século XV.
Lacan valeu-se desse para enodar os três registros: R (Real), S (Simbólico) e I
(Imaginário). Esclarece que a propriedade borromeana pertence ao enodamento. O
sustenta-se, pelo enodamento. Ao liberar qualquer um dos nós, os outros dois também se
libertarão. O o é somente um modelo, mas a apresentação do real da estrutura. (1997,
p. 166-167). O enodamento borromeano permite a articulação do Real, Simbólico e
Imaginário; permite, assim, sair da impossível reciprocidade entre sujeito e objeto a como
causa do desejo, e passar da binariedade do especular ao tenário, à triplicidade, que suporta a
subjetividade ao mesmo tempo em que a barra. O objeto a estaria no centro desse
enodamento; é o objeto impossível e inatingível, que vem se alojar na prensagem dos três
aros, aonde o buraco fixa para o sujeito o vazio da sua ausência. Observamos, portanto, que a
estrutura sendo o que se articula da linguagem, “este Real que alvorece na linguagem” (1999,
p. 186), demonstra que nenhum homem é o prolongamento sem falta do Real. Tudo está aí.
(p. 187). “O Real é o impossível”, dizia Lacan, acrescentando que a ele o falta nada e que
não se pode imaginá-lo. Então, a abordagem do Real sue a do imaginário e do simbólico,
três registros o sendo logicamente dissociáveis. E Lacan pode, com razão, sustentar então
que o real é seu sinthoma, este impossível sem lei e sem ordem, pelo qual ele vai introduzir,
para dele saber alguma coisa, a pouco evidente dimensão da evidência. (BALBO, 2004, p.
52).
Vejamos:
45
Real da
Língua
Real da
História
Objeto
a
Real do
Inconsciente
Figura 1
Dito de outra maneira, o Real aponta para algo impossível de localizar. Milner (1987,
p. 22) afirma que o real da língua toca no impossível: “É próprio a qualquer língua que não se
possa dizer tudo nem que se possa dizer de qualquer maneira.” Afirma que o lugar do Real é o
lugar do equívoco. Como vimos, anteriormente na concepção lacaniana, o Real é o impossível
que não seja de outro modo; é um registro que se marca como falta e no qual o significante
primordial se inscreve na tentativa de vedar o vazio que o Real faz comparecer e que resiste à
simbolização, permanecendo recalcado. E é justamente porque se refere ao Real que a
estrutura se constrói, visto que o Real se define como o estritamente impensável, instituído
pelo fato de haver inconsciente estruturado como linguagem. Quando, por exemplo, cometo
um lapso, posso dizer que, apesar de ser uma ação produzida por mim, ele me escapa, me
espanta e revela aos outros, e às vezes a mim mesmo, um sentido que até então permanecera
oculto. (NASIO, 1997, p. 112). É esse “escapar” que nos propomos analisar. O silêncio local é
o que “escapou” e, ao “vazar”, permite que vejamos um novo sentido no não-dito. É o registro
do que a linguagem não alcança, manifesto na língua pelo equívoco, o lapso, o nonsense. É
também o caminhar do sujeito e da movência dos sentidos, marcados pela incompletude.
Orlandi afirma que “o silêncio que é feito sobre uma certa região de sentidos é carregado de
palavras a não serem ditas. E é por isto mesmo que elas significam” (1995, p. 115).
Na obra A língua inatingível, Pêcheux e Gadet esclarecem que “a irrupção do
equívoco afeta o real da história, o que se manifesta pelo fato de que todo processo
revolucionário atinge também o espaço da língua”. (2004, p. 64).
46
Temos, assim, que a AD teoriza como a linguagem é materializada na ideologia e
como esta se manifesta na linguagem por meio do discurso. Salientamos que é justamente na
determinão dos lugares e dos momentos de interpretação no discurso, a partir da descrição
das materialidades discursivas, que ocorre o trabalho da AD. Ao apontar as tomadas de
posição, a AD pode mostrar as filiações cio-históricas com que o discurso está identificado
e, ao mesmo tempo, os inevitáveis deslocamentos que empreende por causa da emergência do
“real da língua”, do equívoco, que coloca em evidência o fato de que não identificação
plenamente bem-sucedida.
Portanto, o discurso é uma prática que cria e define o objeto de que fala; faz mais do
que usar signos para designar coisas, porque é um acontecimento que nem a língua nem o
sentido podem esgotar totalmente. O discurso associa estruturas e unidades possíveis, dando-
lhes existência concreta (conteúdo) no tempo e no espaço. Portanto, em nosso trabalho a
língua em uso representa um discurso, um acontecimento em que uma situação de uso,
uma condição sócio-histórica cultural e econômica, e sujeito(s) do discurso. Para melhor
compreendermos a importância do sujeito nos estudos da linguagem encaminharemos nosso
estudo para a constituição do sujeito no próximo subitem.
2.2 A trama do Sujeito na AD - Que sujeito é esse?
A trajetória de reflexão sobre o conceito do sujeito da Análise do Discurso inicia-se ao
procurar estabelecer uma teoria não subjetiva da subjetividade, proposta por Pêcheux em
Semântica e discurso (1975). A AD trabalha com um sujeito atravessado pelos componentes
ideológico e inconsciente, os quais se manifestam materialmente na linguagem. Todo sujeito é
sempre e interpelado por ideologias, e essa interpelação se por processos inconscientes
no próprio discurso. O sujeito, ao ser interpelado por determinada ideologia, submete-se a um
processo de identificação, já que os sentidos de determinada ideologia, em detrimento de
outras, são evidentes para ele. Desse modo, o sujeito pode, por meio do seu discurso,
evidenciar uma identificação com a ideologia da classe dominante, mesmo não pertencendo a
essa classe, sem ter consciência disso.
Interessa-nos trazer as razões pelas quais essa perspectiva teórica rejeita trabalhar o
sujeito empírico e contempla o estudo de um sujeito interpelado pela ideologia. Considerando
que o sujeito produz o discurso e, ao mesmo tempo, é produzido por ele, não se pode pensar
47
num sujeito pleno, completo, porque todo sujeito se inscreve em uma posição
1
no discurso e
tem uma tomada de posição perante a forma-sujeito. Essa noção é advinda de Althusser
(1996), o qual afirma que todo indivíduo atua numa sociedade revestido de uma forma
histórica. E é com base nessa condição que ele passa a se relacionar com os saberes das
formações discursivas
2
postas em circulação.
Quando Lacan postula a máxima “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”,
ressalta a relação estabelecida entre o sujeito e seu discurso, porque o inconsciente, segundo o
autor, nada mais é do que uma cadeia de significantes sobre os quais não se tem controle.
(LACAN, 1966, p. 25). Podemos afirmar, com o autor, que o inconsciente é mais do que o
lugar privilegiado da subjetividade: é o discurso do Outro, é o desejo do Outro. E é a esse
Outro que antecede a própria existência do indivíduo, a que ele tem de se assujeitar para se
constituir como sujeito. É nessa luta com o Outro enquanto linguagem que o sujeito se perde e
se aliena, pois tem a ilusão de ser a origem do seu dizer
3
. O sujeito psicológico, ao apontar
para a presença de não-ditos no interior do que é dito de algo que emerge no discurso à revelia
do sujeito falante, vai contra a teoria estruturalista, já que estaria pregando “a morte do
sujeito”. A linguística, ao excluir o sujeito, também nos fornece um suporte trico que
permite tomá-lo numa nova perspectiva, ou seja, o sujeito pensante (cartesiano) dá lugar a um
sujeito que, ao se valer dos signos, encontra-se numa posição de submetimento à linguagem.
Lacan postula que no plano da demanda o sujeito se dirige ao Outro
4
, demanda sua
presença, seu amor e, ao mesmo tempo, é movido por uma força impelente em direção a um
objeto que, no entanto, é faltoso, ou seja, jamais foi conhecido pelo sujeito. Não é possível,
portanto, entender a demanda, que é sempre de amor, sem articular a esse entendimento o
objeto faltoso que habita a demanda e o amor. Esse objeto foi nomeado por Lacan, o objeto a;
é o objeto causa do desejo, aquele que, por incidir como faltoso na experiência, causa o desejo
do sujeito. O desejo do sujeito está no desejo do Outro; é o discurso do Outro e o desejo do
Outro que lhe permitem construir a imagem sobre si.
Esclarecemos que objeto do desejo não é a mesma coisa que objeto a, pela razão de
que, quando o desejo se volta para objetos, o faz revestindo o objeto faltoso que o causa com
1
O sujeito, ao relacionar-se com a forma-sujeito (sujeito histórico), pode assumir diferentes posições de sujeito.
2
O conceito de formação discursiva (FD) que adotamos nesta pesquisa vem do deslocamento feito por Pêcheux
e Fuchs, que retomam o conceito de FD de Foucault, e diz respeito “ àquilo que, a partir de uma posição dada
numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e deve ser dito”. (1988, p. 160).
3
Trabalharemos essa questão no próximo subitem. É o que foi nomeado por Pêcheux de “esquecimentos 1 e 2.”
4
O conceito de Outro introduzido por Lacan é distinto do outro de Bakhtin. O Outro (Lacan) refere-se ao
inconsciente, ou seja, um lugar simbólico, a lei, a linguagem. O outro (com letra minúscula) diz respeito ao
outro imaginário, lugar da alteridade especular, refere-se ao “eu”; o “outro” de Bakhtin faz parte do
princípio de alteridade. A AD trabalha ambos os conceitos como constitutivos do sujeito.
48
alguma marca, algum atributo de significação que faz do objeto o alvo do desejo. O desejo
degrada o Outro em objeto, ou seja, reduz seu grau, promovendo uma queda do Outro e sua
virada no objeto que, dele caindo, o descompleta, o fura, o barra. (ELIA, 2007, p. 54-55).
Dito de outra forma: o objeto a surge no espaço que a linguagem cria para além da
necessidade fisiológica, no espaço da demanda, que nunca pode ser suprida pelo objeto da
necessidade. Assim, é um objeto que não existia antes de ser perdido: é a perda que o cria,
instalando uma “falta a ser”. O objeto a é encarado como o que une os três registros (Real,
Simbólico e Imaginário) num nó.
A única forma de entender essa ngua que falha, segundo Milner, é via psicanálise,
por meio da noção de alíngua (não-todo), pois a falha da língua tem de ser levada em conta
como sendo não da natureza da língua, mas da natureza do sujeito também, o que equivale
a dizer que o existe falha da ngua. Essa noção de falha vem da lógica. A falha da língua
está diretamente ligada à natureza da relação do homem com o mundo, ao fato de que uma
parte da experiência humana que sempre fica fora do simbólico, pelo simples fato de que são
naturezas diferentes: a da língua e a humana. Para a psicanálise, então, a teoria do sujeito situa
a falta no campo do Outro (inconsciente). Este sujeito é, portanto, um efeito de linguagem,
que é pela linguagem que ele existe.
Podemos dizer também que é por intermédio deste Outro da linguagem que o
sujeito pode se incluir na ordem simbólica e se identificar. É como se o sujeito estivesse
sempre buscando a completude, uma completude utópica, e essa busca é sempre marcada pela
falta que lhe é constitutiva.
Em outras palavras, o que Pêcheux e Lacan afirmam é: a linguagem está sempre
submetida ao eqvoco, à alíngua, ao inconsciente. Trata-se de uma impossibilidade de dizer
tudo que faz com que sempre haja um resto
5
não representável que retorna e nos leva à
tentativa de apreendê-lo em nossos ditos. Esta falha é constitutiva da memória, assim como o
esquecimento. Aqui, transportamo-nos aos silêncios que fazem parte do nosso objeto de
pesquisa: as letras das canções de Chico Buarque na época da ditadura militar. Os sentidos
não falham apenas na memória; foram silenciados, censurados, excluídos, para que não
houvesse um já-dito, um significado constituído nessa memória, de tal modo que tornasse,
a partir daí, outros sentidos possíveis. Em outro trabalho Orlandi (1999, p. 71) lembra que
5
A tese lacaniana diz que sempre existe um núcleo sólido, um resto que persiste e que não pode se reduzir a um
jogo universal de especularidade ilusória. Para Lacan, o único ponto em que nos aproximamos desse cleo
sólido do Real é, efetivamente, o sonho. A única maneira de romper com o poder de nosso sonho ideológico é
confrontar o Real de nosso desejo que se enuncia nesse sonho.
49
a falha é o lugar do possível, do sentido a vir; e a falta é o que foi tirado do sentido,
o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e, na maior parte das vezes,
não é fácil sepa-las. E está aí justamente, do ponto de vista da ideologia, a eficácia
de seus efeitos.
Em relação ao nosso corpus faltas e também falhas. Há, assim, “furos”, “buracos”,
na memória, porque os sentidos “faltam” por interdição, dissimulam. Isso acontece porque
toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é apagada, silenciada, interditada.
Contudo, eles continuam ali, tanto que esta é a nossa proposta de trabalho: ler os silêncios nas
canções de Chico Buarque.
Afirmamos com Leandro Ferreira (2005, p. 71) que
o sujeito constituído pela linguagem manifesta-se como efeito de linguagem; ao ser
interpelado pela ideologia como sujeito, comparece como assujeitado; e, ao ser
atravessado por uma teoria não-subjetiva da subjetividade, marca-se como desejante.
Deixemos as coisas claras: ambos os conceitos, o de ideologia e de inconsciente, não
se entrecruzam, nem se superpõem, apenas se aproximam, se tocam, e desse leve toque entre a
ideologia e o inconsciente surge o sujeito do discurso, enquanto efeito. Esse “efeito de
estrutura”, comum ao sujeito, à linguagem e à ideologia, deixa sempre um furo, uma falta: “É
precisamente essa falta que vai acabar tornando-se o lugar do possível para o sujeito
desejante e para o sujeito interpelado ideologicamente da Análise do Discurso.(LEANDRO
FERREIRA, 2005, p. 72 - grifo nosso). Com essa citação notamos a confluência entre o
sujeito da psicanálise (sujeito desejante ou sujeito do inconsciente) e o sujeito interpelado
ideologicamente. A autora nos diz que, “ao ser constituído pela linguagem, o sujeito encontra
nela sua morada e disso decorre uma marca do sujeito como efeito de linguagem”. (p. 72 -
grifo nosso).
Seguindo o raciocínio de Leandro Ferreira,
se não houvesse a falta, se o sujeito fosse pleno, se a língua fosse estável e fechada,
se o discurso fosse homogêneo e completo, não haveria espaço por onde o sentido
transbordar, deslizar, desviar, ficar à deriva. A falta é, então tanto para o sujeito
quanto para a língua, o lugar do possível e do impossível (real da língua); impossível
50
de dizer, impossível de não dizer de uma certa maneira o não-todo no todo, o não-
representável no representado. (2005, p. 71).
No nosso entendimento, é como um copo que está cheio e precisa vazar para não se
romper e, assim, deixar sair os sentidos que não tem como segurar, controlar, estancar. Nesta
citação fica clara a relação do inconsciente com o sujeito e confirma-se que este sujeito não pode, o
é, nem nunca será, completo pois existe uma falta que lhe é constitutiva, e é justamente esta falta que
não permite que percamos o rumo, que literalmente não enlouqueçamos. É pelos furos, pelas fendas,
pelos transbordamentos que o inconsciente pode vazar (escapar) e o que parece que foi impossível de
dizer – como os silêncios nas canções de Chico – possa dizer (e dizer muito!).
Observamos, no entanto, outra marca fundante do sujeito que também vem da
psicanálise e é incorporada pela AD. Trata-se da natureza intervalar, ou seja, o lugar entre a
linguagem, a ideologia e o inconsciente. (LEANDRO FERREIRA, 2005, p. 71-72). Para a
autora o sujeito é afetado ao mesmo tempo por essas três ordens: a ideologia, a linguagem e o
inconsciente, deixando em cada uma um furo: o furo da linguagem é o equívoco; o furo da
ideologia, expresso pela contradição, e o furo do inconsciente, manifestado pelos lapsos, pelos
atos falhos.
Linguagem
Ideologia
Inconsciente
Lapsos, atos falhos
Contradição
Equívoco
Lugar Intervalar
Figura 2
51
O equívoco é fato de discurso, ou seja, é a inscrição da língua (capaz de falha) na
história, que produz o equívoco. O equívoco se dá no funcionamento da ideologia e/ou do
inconsciente; é a falha da língua na (da) história. (ORLANDI, 2005, p. 1-103). Dito de outra
maneira, o equívoco é o ponto em que a língua toca a história e o inconsciente, ou seja, aponta
para o que está além do controle do sujeito, sendo, ao mesmo tempo, presente e, em razão
mesmo de sua ausência, constitutivo dele.
Podemos afirmar com a autora que a marca desse sujeito do discurso é ser clivado,
assujeitado, submetido tanto ao seu próprio inconsciente, quanto às circunstâncias histórico-
sociais que o moldam. O sujeito é falado pela ideologia tanto quanto é falado pelo
inconsciente, resultando daí que a ideologia seja compreendida como ruptura, como equívoco,
como desenrolar de conflitos e contradições, como causa do desejo. Para elucidar como o
inconsciente atrelado ao materialismo histórico (ideologia) se manifesta na linguagem,
afetando o sujeito, podemos dizer que é como se ideologia e inconsciente tentassem
dissimular sua existência no interior do próprio funcionamento, produzindo um tecido de
evidênciassubjetivas” que são constitutivas do sujeito.
Afirmamos com Orlandi que
O silêncio seria o que não é preciso ser dito. Assim, o silêncio seria o “exílio”
do sujeito, o seu desterro, pois estaria habitado pelo já-dito, o pleno, o efeito
do UM: o literal. Paralelamente à produção do efeito de literalidade, esse
mecanismo de apagamento do silêncio tira do sujeito a possibilidade dele
mover-se. O que nos faz ver a literalidade como negação do sujeito. A ilusão de
que o “seu” sentido pode ser aquele é justamente sua negação. Nega-se a
historicidade ao sentido e nega-se a história ao sujeito. (1995, p. 91)
Quando se faz refencia à interpelação do sujeito, está-se fazendo uma crítica a duas
formas de evidência: a da constituição do sujeito e a do sentido. A primeira evidência, pela
teoria (materialista) do discurso à filosofia idealista da linguagem que se apresenta, quer sob o
modo do objetivismo abstrato (a ngua como sistema neutro, abstrato), quer sob o modo
subjetivismo idealista (o sujeito como centro e causa de si)
6
. A língua é capaz de falha, a qual
é constitutiva da ordem simlica, e essa incompletude é real, verdadeira. Essa falha, esse
furo, é, então, tanto para o sujeito quanto para a língua, o lugar do possível e do impossível
(real da língua), impossível de dizer, impossível de o-dizer de uma certa maneira.
(LEANDRO FERREIRA, 2007, p. 103-104). Para a psicanálise, essa falta é o inconsciente,
que, como sabemos, é fugaz, atemporal.
6
A crítica foi feita por primeira vez por M. Bakhtin (Volochinov) em sua obra Marxismo e filosofia da
linguagem.
52
Existe mais um ponto de aproximação entre o sujeito da psicanálise e o do discurso,
como foi levantado no capítulo sobre a ideologia e diz respeito à estrutura. Como salientamos
anteriormente, ambos são determinados e condicionados por uma estrutura, que tem como
singularidade o não fechamento de suas fronteiras e a o homogeneidade de seu território.
Dessa forma, sujeito, linguagem e discurso poderiam ser concebidos como estruturas às quais
se têm acesso pelas falhas. Esse deslocamento teórico da noção de estrutura inscreve-se como
um novo paradigma no seio das ciências da linguagem, constituindo-se numa das grandes e
revolucionárias contribuições de Pêcheux para os estudos da área. E isso, certamente, tem a
marca da psicanálise. (LEANDRO FERREIRA, 2005, p. 74).
Será, portanto, no espaço exato da articulação entre o inconsciente e a ideologia que
irá se constituir o sujeito como sujeito, ao entrar no simbólico, ao mesmo tempo em que é
ideologicamente assujeitado, mas também atravessado pelas determinações de ordem
inconsciente. Assujeitamento é, portanto, uma condição do ser sujeito; diz respeito à relação
do homem com o simbólico. Quando diz que “o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia”, Althusser está exatamente falando de que, a partir do momento em que entra na
linguagem, o homem passa a estar assujeitado.
Orlandi (2005, p. 105-106) postula dois movimentos na subjetividade:
a) na interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia: é o passo para que o
indivíduo afetado pelo simbólico na hisria seja sujeito, se subjetive. O sujeito
é, ao mesmo tempo, despossuído e mestre do que diz. A forma-sujeito que
resulta dessa interpelação pela ideologia é uma forma-sujeito histórica, com
sua materialidade. Entendemos, então, que a forma-sujeito é um sujeito
histórico com o qual o sujeito se identifica, constituindo-se em “sujeito do
discurso”, ou, ainda, nas palavras de Pêcheux, em um “efeito de sujeito
(1975-1993);
b) o estabelecimento (e o deslocamento) do estatuto do sujeito: corresponde ao
estabelecimento (e o deslocamento) das formas de individualização do sujeito
em relação ao Estado. É por meio das relações histórico-sociais que o sujeito
assume em sua prática discursiva uma posição social, pensando ser esta escolha
consciente, quando, na realidade, assume posições afetadas ideologicamente.
Dizendo de outra forma, uma vez interpelado em sujeito pela ideologia, num
processo simbólico, o indivíduo como sujeito determina-se pelo modo como,
na história, terá sua forma individual(izada) concreta: no caso do capitalismo,
que é o caso presente, a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável,
53
que deve, assim, responder como sujeito jurídico (sujeito de direitos e deveres)
perante o Estado e os outros homens. Temos, portanto, o sujeito
individualizado, caracterizado pelo percurso biopsicossocial. O que fica de fora
quando se pensa o sujeito individualizado é justamente o simbólico, o
histórico e a ideologia, que torna possível a interpelão do indivíduo em
sujeito. (2005, p. 105-107). Lembramos que esses três conceitos foram
“esquecidos” pela linguística contemporânea.
A concepção de sujeito da Análise do Discurso é criticada, normalmente, por diversas
teorias da linguagem, em razão da falta de compreensão do processo de assujeitamento do
sujeito a uma formação discursiva e, em conseqncia, a uma formação ideológica.
Considerando-se que este sujeito não tem liberdade para se posicionar, propõem-se, por vezes
equivocadamente, graus de assujeitamento: o sujeito ora é assujeitado, ora rompe com a FD e
é “livre” (esquecimento 2-ilusão) para posicionar-se, tornando-se repentinamente fonte do seu
dizer. Cumpre esclarecer aqui que a noção de assujeitamento tem por base que todo dizer está,
de alguma forma, filiado a uma formação discursiva. E uma vez que a incompletude é própria
desta língua sujeita a falhas, a discursividade se textualiza, diz Orlandi, também com falhas.
Em síntese, por tudo que foi dito a respeito do sujeito na Análise do Discurso,
percebemos que ele é duplamente afetado: em seu funcionamento individualizado, pelo
inconsciente, e em seu funcionamento social, pela ideologia, que também abarca o social.
Pêcheux (1975-1993) postula, então, a teoria não subjetiva da subjetividade, “já que
não pode haver prática sem ideologia e nem ideologia sem sujeito”. Assim, entendemos que a
unidade da forma-sujeito é imaginária. Esse sujeito, de fato, é, fundamentalmente,
heterogêneo, disperso e fragmentado. (INDURSKY, 1998a, p. 115-116).
Sabemos que essa trama parece dar um “nó conceitual”. Por isso sintetizamos as
noções apresentadas num quadro.
Sujeito desejante ou do inconsciente
(Psicanálise) e Sujeito do discurso (AD)
Dimensões do sujeito:
1. a linguagem é a porta de entrada tanto para a
psicanálise como para o discurso.
2. a ideologia materialismo histórico (Althusser)
discurso. A psicanálise não opera com essa
noção.
3. o sujeito – entremeio entre linguagem, ideologia
e inconsciente.
1. Forma-sujeito o indivíduo, ao ser
interpelado ideologicamente em sujeito,
identifica-imaginariamente = sujeito
histórico.
2. Posições- sujeito as várias posições do
sujeito correspondem a diversas formações
discursivas (enunciados diversos, que
derivam de várias FDs) ou de uma FD
54
4. a
falta
é o lugar do possível para o sujeito
desejante (Psicanálise) e o sujeito interpelado
ideologicamente da AD.
5. o efeito de linguagem é o que é comum ao
sujeito, à ideologia e à linguagem. Ao ser
constituído pela linguagem, o sujeito encontra
nela sua morada e disso decorre uma marca do
sujeito como efeito de linguagem.
6. o sujeito da psicanálise e do discurso– ambos
são determinados e condicionados por uma
estrutura.
podem surgir várias posições-sujeito.
Teoriao subjetiva da subjetividade:
1. o pode haver prática sem ideologia, nem
ideologia sem sujeito.
2. O sujeito não é identificado ao indivíduo;
trata-se de um sujeito social e múltiplo, já
que a um tempo é um sujeito linguístico,
ideológico e desejante.
O sujeito, para a AD, não é livre pensante, pois é histórica e ideologicamente
determinado apesar de si mesmo. Este sujeito é efeito das formões discursivas (FDs) e
formações ideológicas (FIs), noções essenciais ao nosso trabalho que serão abordadas no
próximo subitem.
2.3 Formações ideológicas e discursivas: a movência dos sentidos
Na trama do nosso tapete teórico, percebemos que um fio entrelaça outro.
É como se estivéssemos usando uma lupa para observar cada um dos fios e o entrelaçamento
que se esconstituindo neste exato momento. Neste trabalho, os muitos fios até aqui vêm
sendo “costurados” pelo viés da ideologia, assim como os conceitos de “língua”,
“linguagem”, “discurso”, “sujeito”, os quais constituem os primeiros conceitos-chave que
trabalhamos.
Pêcheux e Fuchs (1975) retomam o conceito de FD de Foucault propondo essa noção a
partir do conceito de Formações Imaginárias (FI), o que marca uma diferença em relação ao
conceito proposto por este, qual seja, a inscrição do ideológico. A FI constitui um conjunto
complexo de atitudes e representações que não são individuais nem universais, mas
relacionam-se com as posições de classe. Elas comportam necessariamente uma ou várias FD
interligadas, as quais determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada
numa conjuntura” (p. 160), excluindo ou apagando, por sua vez, o que não pode e não deve
ser dito. É importante, portanto, considerar as contribuições nas quais palavras e/ou
enunciados se combinam, pois elas mudam de sentido segundo as posições adotadas por
aqueles que as empregam, ou seja, as palavras mudam de sentido ao passarem de uma FD
para outra. Isso está relacionado também com as diferentes posições que o sujeito vai assumir
55
no discurso, pois a posição que ele assume está diretamente ligada com a FI e FD em que ele
(o sujeito) está inscrito. Daí se dizer movência dos sentidos, pois as palavras vão adquirir um
sentido ou outro conforme a posição discursiva de quem as estiver usando.
Como vimos, o discurso deve ser pensado como um dos aspectos da materialidade
ideológica. Em outras palavras, é pela ideologia que todos sabemos que o enunciado é aquilo
que se enuncia, não outra coisa. Quando dizemos algo, dizemos de um lugar específico da
sociedade para um outro sujeito também de algum lugar da sociedade, e tudo isso faz parte da
significação. Pêcheux afirma que “a formação discursiva que veicula a forma-sujeito é a
formação discursiva dominante, e que as formações discursivas que constituem o que
chamamos de seu interdiscurso determinam a dominação da formação discursiva.
(1983/1995, p. 164 - grifos do autor).
É nessa articulação, diz Pêcheux, que “se constitui o sujeito em sua relação com o
sentido, de modo que representa no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da
forma-sujeito
7
(1995, p. 164). Isso representa que os sujeitos dominados pela formação
discursiva “se reconhecem entre si como espelhos uns dos outros: o que significa dizer que a
coincidência (que é também conivência e mesmo, cumplicidade) do sujeito consigo mesmo
se estabelece pelo mesmo movimento entre os sujeitos.” (p. 168). Na realidade, o sujeito
tem acesso à parte do que diz; ele é estruturalmente dividido, pois desde sua constituição a
falta o constitui.
Todo processo discursivo, neste primeiro momento de formação da AD, supõe,
portanto, a existência das formações imaginárias que são constitutivas das condições de
produção do discurso
8
. Essas formações, segundo Pêcheux, incluem ainda a imagem que os
protagonistas do discurso, supostamente A e B, têm cada um a respeito do referente e da
imagem que o outro tem do referente. Na AD o há transmissão, mas efeitos de sentido entre
locutores (PÊCHEUX, 1969-1993); por isso, efeito-leitor, efeito-texto, efeito-autor e efeito-
sujeito
9
. Os sentidos fazem parte de um processo; realizam-se num contexto, mas não se
limitam a ele. Seguindo a linha de pensamento de Pêcheux, destacamos a definição que o
autor nos traz sobre o imaginário nas palavras de Leandro Ferreira:
7
É pela forma-sujeito que o “sujeito do discurso” se identifica com a formação discursiva que o constitui. (1983-
1995, p. 167).
8
As condições de produção referem-se às condições sócio-históricas de produção do discurso, que serão
trabalhadas no próximo subitem “Memória discursiva e interdiscurso”.
9
Freda Indursky, no artigo intitulado A prática discursiva da leitura” (1998, p. 191), desloca a reflexão de
cheux sobre o efeito-sujeito para o âmbito da leitura. A mudança de domínio de saber implica a emergência
de um efeito de sentido diferente, mobilizado por um efeito-leitor igualmente diverso, ou seja, uma mesma
sequência discursiva pode produzir diferentes efeitos de sentido, em virtude das diferentes subjetividades não
subjetivas que pode mobilizar. (Grifos da autora).
56
A partir do conceito lacaniano de imaginário, (Pêcheux, 1975) define que as
formações imaginárias sempre resultam de processos discursivos anteriores. As
formações imaginárias se manifestam, no processo discursivo, através da
antecipação, das relações de foa e de sentido. Na antecipação, o emissor projeta
uma representação imaginária do receptor e, a partir dela, estabelece suas estratégias
discursivas. O lugar de onde fala o sujeito determina as relações de força no
discurso, enquanto as relações de sentido pressupõem que não discurso que não
se relacione com outros. O que ocorre é um jogo de imagens: dos sujeitos entre si,
dos sujeitos com os lugares que ocupam na formação social e dos discursos já-ditos
com os possíveis e imaginados. As formações imaginárias, enquanto mecanismos de
funcionamento discursivo, não dizem respeito a sujeitos físicos ou lugares
empíricos, mas às imagens resultantes de suas projeções. (LEANDRO FERREIRA,
2005, p. 16).
Ao falar, o sujeito produz, portanto, um efeito de sentido, o qual nem sempre está
sintonizado com as intenções do sujeito. Esse efeito de sentido às vezes está tão distanciado
das intenções do sujeito que acaba sendo o oposto do que ele pretendia, embora não deixe de
denunciar, como, por exemplo, nas canções de Chico Buarque que analisaremos.
O sujeito é, então, concebido, discursivamente, como posição entre outras; o é uma
forma de subjetividade, mas um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz. E nesta posição-
sujeito de que é constitutivo, ele não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso). A
linguagem, portanto, não é transparente, nem o mundo é diretamente apreensível, quando se
trata da significação. As posições do sujeito são uma função da relação da língua com as
formações sociais em seus mecanismos de projeção imaginários. Como a ordem da língua e a
ordem do mundo não são coincidentes, funcionam pelo imaginário. A formação
imaginária, para a AD, é a representação simbólica dos lugares que o emissor e o destinatário
se atribuem a si e ao outro na situação concreta de comunicação, isto é, a formação imaginária
é uma ilusão necessária à existência da discursividade.
Pêcheux (1975-1993, p. 160) afirma que a formação discursiva refere-se ao que
pode e deve ser dito em determinada situação”, ou seja, é ela que determina o que pode e o
que deve ser dito de acordo com uma região de formação social, com um certo contexto
sócio-histórico. Portanto, tem relação com a exterioridade. O que distingue uma FD da outra é
o modo como se relacionam com a FI (que é a materialidade ideológica); logo, as FDs estão
sempre inscritas numa FI. Dito diferentemente, é como se as palavras mudassem de sentido de
acordo com as posições sustentadas por aqueles que as empregam, ou seja, adquirem sentido
em referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Dessas
formações fazem parte uma ou mais formações discursivas, que, com base numa posição dada
numa certa conjuntura, determina(m) o que pode e deve ser dito. Transportando para o nosso
corpus, enfatizamos que o espo de movimento deste sujeito é dado pelo silêncio e é o que
57
lhe permite romper com determinada formação discursiva. Assim, o lugar da constituição do
sentido é na formação discursiva. Nas canções a serem analisadas observaremos essas
mudanças nas FDs, as quais se movem passando de uma FD religiosa cristã para uma FD
política ou uma FD da MPB, para uma FD esportiva, e assim por diante.
É importante chamar a atenção para o fato de que a FD comporta dois tipos de
funcionamentos: a paráfrase e a polissemia. A primeira pode ser explicada como a retomada e
repetição de sentidos enunciados, de modo a conservar as fronteiras de uma determinada FD.
Pode-se afirmar que a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem
sustentação no saber discursivo, o que ocorre via interdiscurso. A segunda é aquela que
instaura o deslizamento do sentido, rompendo as fronteiras das FDs e multiplicando os efeitos
de sentido. Entendemos que “a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria
condição de exisncia dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos – não fossem
múltiplos, o pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer. A polissemia é
justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico”.
(ORLANDI, 2001, p. 38).
Esse jogo entre paráfrase e polissemia atesta o confronto entre o simbólico e o
político. Todo dizer é ideologicamente marcado. É na ngua que a ideologia se materializa,
nas palavras dos sujeitos. Como afirmamos, o discurso é o lugar do trabalho da língua e da
ideologia. Relacionando ao nosso corpus, podemos enfatizar e afirmar que, na ordem do
simbólico, as letras das canções de Chico Buarque podem ser trabalhadas tanto pela paráfrase
como pela polissemia; dito de outra maneira, pela paráfrase, pois ao ocorrer o deslizamento de
sentido (efeito metafórico) a FD leva a que ocorra a “movência” dos sentidos, mas mantém a
mesma matriz de sentido. Por exemplo, quanto ao ditado que diz “Quem cala consente”,
sabemos que, na realidade, quem cala não consente. Em A arte de calar,
10
o abade Dinouart
nos diz que,“[...] para calar, não basta fechar a boca. Porque não haveria nisso nenhuma
diferença entre o homem e os animais; estes são naturalmente mudos; mas é preciso saber
governar a língua”. (1771-2001, p. 10).
Sobre essa citação podemos refletir que o que diferencia o homem do animal é
justamente sua capacidade de mobilizar a palavra como instrumento, a qual é capaz de se
deslocar, de se movimentar e adquirir novo sentido, sobretudo pela constituão do homem
em sujeito político. E relacionando com nosso corpus, o “calar” não foi calado, porque
continua a falar (através do silêncio). Ilustramos com a canção “Apesar de você”, no verso
10
Essa obra foi traduzida no Brasil por Luis Filipe Ribeiro e conta com o prefácio de Jean-Jacques Courtine e
Claudine Haroche.
58
“Hoje você é quem manda/ Falou, falado/ Não tem discussão”, que o efeito metafórico
perpassa os versos, mas, mesmo empregando uma palavra por outra, como em quem manda,
que poderia ser lido como uma mulher autoritária, ou, em nossa análise,o como o governo
Médici, ou seja, mantém-se a mesma matriz de sentido: a censura, o não-dito, o proibido.
Evidencia-se, pois, a fala pelo silêncio.
Lembramos ao leitor que é o deslizamento de sentido ou “efeito metafórico” o fio
condutor de nossa pesquisa; portanto, podemos afirmar que manter intactas e fixas as
fronteiras de uma determinada FD significa controlar sujeitos inconscientes e atravessados por
diversas ideologias em constante relação de tensão, ou seja, algo impossível de ser feito.
Como as FDs se modificam e se reformulam a todo instante, é o efeito de continuidade e
ressignificão dos sentidos que conduz a que o discurso não se associe a um sentido
específico, mas seu sentido mude conforme um conjunto de fatores externos ao discurso que o
condicionam. Nas análises que iremos realizar, a noção de uma FD marcada pela contradição,
pela instabilidade e dispersão será uma constante. A formação discursiva, o discurso, a
ideologia estão relacionados à noção de sujeito, que remete a um sujeito discursivo e a
posições que o sujeito ocupa no discurso. Logo, ao falarmos em tomada de posição do sujeito
na história evidenciamos outros conceitos essenciais para nosso trabalho de pesquisa: a
memória discursiva e o interdiscurso. A noção de memória é um dos fios que, dentro da
tessitura de nosso tapete teórico, exercem um papel de destaque e, ao seu lado, muitos outros
fios estarão em evidência, como as condições de produção, os esquecimentos 1 e 2 e o
interdiscurso.
2.4 Memória discursiva e interdiscurso
... a memória é feita de esquecimentos, de silêncios.
De sentidos não-ditos, de sentidos a não dizer,
de silêncios e de silenciamentos.
Eni Orlandi.
Inicialmente, para falar memória e interdiscurso salientamos que a AD se fundamenta
em duas noções básicas: condões de produção e formações imaginárias. Pêcheux
(1969/1993, p. 170-171) propõe um nível de análise que contemple as circunstâncias de
produção de um enunciado. A essas circunstâncias, que levam em conta a expressão da
exterioridade na materialidade linguística, Pêcheux denomina “condições de produção” do
59
discurso. A AD, portanto, pretende estudar exatamente a ligação entre essas condições e o
processo de produção do discurso.
Faz parte dessas condições de produção uma infinidade de outros discursos já ditos, ou
seja, o interdiscurso; logo, um discurso remete sempre a outro com o qual dialoga,
identificando-se com ou contrapondo-se a ele. Como todo discurso remete a outro discurso,
no processo histórico as formações ideológicas podem desaparecer para reaparecer mais
adiante, agora reapropriadas por outras formações ideológicas, as quais, por sua vez, vão
determinar novas formações discursivas. (PÊCHEUX, 1969-1993, p. 167-68). O interdiscurso
representa o universo de formulações possíveis que, por meio da memória discursiva, retorna
no dito como a base que o sustenta. Em outras palavras, o interdiscurso e a memória
discursiva retomam sentidos existentes, ideologicamente determinados e sabidos pelo
sujeito. Associada a essa noção de interdiscurso há a do intradiscurso, que representa a
superfície discursiva, a materialidade do interdiscurso, a forma como os elementos do saber
armazenado são linearizados. A memória discursiva representa as significações trazidas à tona
no momento em que o discurso é produzido e o constituem, dando-lhe as referências que irão
estabelecer os encadeamentos de sentido. Esses dois conceitos, ao interagir, constroem as
relações de sentido para o discurso.
No trabalho do sujeito com relação ao dito e ao seu dizer há duas espécies de
esquecimentos que funcionam, diz Pêcheux, e que promovem a ilusão do sujeito de ser fonte
do seu saber. O esquecimento n01, inerente à prática subjetiva da linguagem, é aquilo que
nunca foi sabido; dito de outro modo, todo sentido se constitui sempre a partir de uma
formação discursiva dada, sendo, por isso mesmo, um efeito de sentido. Todavia, o sujeito
não tem consciência disso, pois não tem consciência de sua interpelação ideológica, nem,
menos ainda, das determinações de ordem inconsciente do seu dizer. Expressando-nos de
outra maneira: por esse esquecimento temos a ilusão de ser a origem do que dizemos, quando,
na realidade, retomamos sentidos preexistentes.
O esquecimento nº2 é aquilo que é apagado pelo sujeito no discurso, podendo ser mais
ou menos consciente. Este esquecimento está relacionado a escolhas que o sujeito faz no seu
discurso, ou seja, o que ele diz e o que deixa de dizer (o não-dito). Está aí, diz Pêcheux, a
fonte da ilusão do sujeito, ou seja, por meio desse esquecimento podemos perceber as relações
necessárias entre o dito e o não-dito e analisar como foram realizados os processos de seleção
de termos e organização sintática, bem como as possíveis reconstruções feitas pelo sujeito,
que, ao (re)elaborar seu dizer, pode modificar a constituição do sentido.
60
Percebemos que a oposição entre os dois esquecimentos é da ordem do
inconsciente/pré-consciente-consciente, ou seja, diz respeito à interpelação ideológica (ilusão
da origem) do sujeito, no caso do esquecimento nº1, e sua identificação ao Outro, da
psicanálise lacaniana; diz respeito ao nível das escolhas pré-conscientes/conscientes, no caso
do esquecimento 2, e, portanto, à situação vivida pelo sujeito no processo de interlocução.
No caso do esquecimento nº 2, é importante destacar que, embora as escolhas do sujeito sejam
feitas de forma consciente e p-consciente, isso não significa que não sofram determinações
de ordem ideológica e inconsciente (ilusão de controle). Ambos os esquecimentos operam de
forma articulada no discurso e são o que permite ao sujeito se constituir como tal e fazer
sentido. É, pois, por essa razão que, como vimos anteriormente, no capítulo destinado ao
estudo do sujeito, não existem dois conceitos de sujeito: o da psicanálise e o da AD. O sujeito
do discurso sofre determinações de ordem ideológica e inconsciente. Dessa forma, a memória
discursiva retorna a enunciados preexistentes, os pré-construídos. Pêcheux define como pré-
construído esta noção que vem de Henry (1992) e que foi definida como efeito discursivo
ligado ao encaixe sintático, no qual um elemento de um domínio irrompe num elemento de
outro domínio sob a forma de pré-construído, como se já estivesse aí.
O interdiscurso é o espo complexo do conjunto das formações discursivas; portanto,
nele habita todo o já-dito e todos os sentidos. A memória, por sua vez, é sempre lacunar e,
sendo lacunar, sofre determinações de ordem ideológica e inconsciente, ou seja, o
esquecimento faz parte da memória porque a partir dele é possível dizer; portanto, o
esquecimento é constitutivo da memória e o que a torna possível. O esquecimento faz, pois,
parte da memória. O esquecimento produzido pelo sujeito sofre determinação, como já vimos,
de duas ordens diferentes: o inconsciente e a ideologia.
Percebemos as relações entre memória e incompletude. É pela incompletude do
sentido no trabalho do silêncio que o dizer se torna possível, e essa incompletude é,
consequentemente, constitutiva da memória discursiva.
Tomamos as ideias de Foucault, que nos levam a reflexões sobre o modo como os
saberes se produzem no discurso. Para Foucault, mesmo em enunciados repetidos, a unidade
material não é a mesma, pois sofre variação conforme os recortes que se fazem de discurso
para discurso, mesmo que versem sobre o mesmo tema. Um discurso apresenta-se preso a
outros discursos, sistema a que Foucault denomina de um em uma rede” (2005, p. 26).
Pensamos com Foucault que nenhum tipo de análise se faz isoladamente, já que os enunciados
não se anulam, nem se excluem, mas se entrecruzam, privilegiam lembranças, promovem
esquecimentos, autorizando a circulação do que convém a uma FD. Para Foucault, a memória
61
discursiva traça seus limites no interior de uma formação discursiva e na dispersão dos
discursos e do sujeito, ou seja, algo precisa ser esquecido para que outra coisa seja lembrada.
Outro aspecto que surge é a noção de exterioridade, ou seja, a memória está fora do enunciado
e, ao mesmo tempo, pode ser lembrada dentro do enunciado, o que constitui um paradoxo.
O lugar ocupado pela memória seria um lugar intervalar.
Para Pêcheux (1993, p. 17), a memória é um espaço que instala sentido, que constitui
um ponto de encontro entre um acontecimento e uma atualidade. A memória compõe a
materialidade discursiva de um modo absolutamente particular e constitui a retomada direta
no espaço de um acontecimento, ou seja, a memória e a atualidade são constitutivas do
acontecimento, da ruptura, do novo. Nesse aspecto, Foucault e Pêcheux (com)partilham a
mesma ideia: a memória é lacunar; logo, é passível de esquecimentos, contradões e
movimentação dos sentidos. Vemos, então, que a determinação no interdiscurso não é de
apagamento, mas de dominância. dizeres constituídos ou agrupados em formações
discursivas diversas, sendo uma FD dominante em relação às demais e, em vista disso,
mobilizada com mais frequência e com mais força. Assim, no interdiscurso, temos o todo
complexo das formações discursivas com suas relações de identificação e contradição com a
dominante. Na memória discursiva, temos um recorte do interdiscurso, determinado pela
interpelação ideológica em que se constitui o sujeito, o que, contudo, não significa, como
afirma Pierre Achard (1999, p. 64), que teremos na mobilização do interdiscurso, ou seja, na
memória discursiva, enunciados iguais a outros já ditos, mas redes de sentidos, paráfrases,
deslizamento de sentidos (transferência).
Lembrando novamente o nosso corpus, observamos que é pelo trabalho do silêncio
que se dá a relação do sujeito com o interdiscurso, identificando-se a determinados pontos do
já-dito e silenciando outros. É nessa relação com o interdiscurso que se percebe, com extrema
clareza, a relação indissociável entre silêncio e linguagem. Embora constitutivo da linguagem
e, consequentemente, do texto, este último só pode ser percebido por meio das palavras.
Para finalizar este subitem podemos dizer que o discurso é um continuum: não tem
início, nem fim; remete sempre a outros discursos (o já dito ou interdiscurso), constitutivos do
seu dizer, e também aponta para um devir discursivo. Portanto, nunca se diz tudo; há sempre
um resto, ou seja, o exterior ao propriamente linguístico, apontado por Pêcheux como aquilo
exatamente de que a lingstica tradicional não dá conta.
Eni Orlandi, refletindo sobre a movência dos sentidos e o funcionamento próprio da
linguagem, acabou, paradoxalmente, por chegar ao sincio. O silêncio é fundante e
constitutivo da linguagem, afirma; é um continuum de significação, recortado pela linguagem.
62
Assim, é resultado do trabalho do silêncio a possibilidade do equívoco, da polissemia, em
suma, da movência dos sentidos. Não fosse isso, dir-se-ia tudo que fosse possível; se não
houvesse silêncio nas palavras e em torno delas, poderíamos fixar sentidos. (ORLANDI,
1997). O resto é exatamente trabalho do silêncio, eixo central do funcionamento de toda
linguagem, como veremos no decorrer deste trabalho. O silêncio funda a Análise do Discurso.
Embora tenha sido formulado por Eni Orlandi no Brasil, o silêncio, enquanto fundante da
linguagem, está subjacente a toda a teoria de Pêcheux, sendo a base da mobilidade do sujeito
e do sentido e, por extensão, do funcionamento de todas as noções da AD. (LISBÔA, 2008,
p. 35-36).
Assim, a trama do nosso tapete discursivo chega ao ponto vital para esta pesquisa: a
relação da língua com este resto o silêncio. Partiremos, então, para o terceiro capítulo desta
dissertação, em que serão retomados os conceitos de “língua”, “discurso”, “ideologia”, “FD”,
“memória discursiva” e sujeito”, ampliando com o conceito de silêncio” e mostrando o
caminho metodológico que iremos trilhar. Reforçamos que os discursos (canções, protestos,
etc.) que foram relegados ao silêncio, à censura, ao controle dos censores (que definiam o que
podia ser dito ou não) devem emergir em nossas análises e mostrar o que pode ser entendido
no silêncio de suas palavras.
63
3 COSTURANDO OS FIOS TEÓRICOS AO SILÊNCIO LOCAL
Se va enredando, enredando
Como el muro en la hiedra.
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra.
Violeta Parra
Sabemos que a letra da música propõe uma relação com o silêncio, e não só o leitor se
depara com ele, mas o próprio compositor precisa desses momentos de silêncio para produzir
suas canções. Isolar-se em um canto, ficar incomunicável, alheio ao mundo a sua volta,
caracteriza momentos de silêncio que singularizam um pouco do seu temperamento, de sua
personalidade, e que representam o silêncio auncia/presença de palavras, mas também a
emergência de sentidos na ausência das palavras. Ser introvertido, reservado, mido pode
representar um gesto a ser interpretado, a ser lido. É seguindo os rastros desse silêncio do
sujeito-compositor Chico Buarque de Holanda que buscamos “pistas” nas letras de suas
músicas. Encontramos, em primeiro lugar, a incompletude, o vazio, a falta; depois,
percebemos o silêncio. Devemos, portanto, compreender que “há um modo de estar em
silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido... silêncio nas palavras”.
(ORLANDI, 1995, p. 11).
Sem vida, lendo a citação da autora, percebemos que a questão do sentido perpassa
a opacidade da linguagem, pois, se falamos de não transparência, falamos de sentidos que são
apagados, omissos e, por que não, silenciados. “As palavras o atravessadas de silêncio; elas
produzem silêncio; o silêncio fala por elas; elas silenciam.” (ORLANDI, 1995, p. 14).
3.1 Silêncio(s) e sentido(s)
No início é o silêncio. A linguagem vem depois.
Eni Orlandi
De qual silêncio estamos tratando? Do silêncio que nos acompanha num momento de
oração, no momento em que refletimos sobre as nossas atividades diárias, no momento em
que somos obrigados a confessar, a concordar e a calar. Que silêncio é esse?
64
Orlandi foi a autora que introduziu a noção de silêncio. Assim, por meio de suas
palavras buscamos entender a noção de silêncio. Seguindo o raciocínio de Orlandi,
o silêncio é garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio. O
silêncio não é pois, em nossa perspectiva, o “tudo”da linguagem. Nem o ideal do
lugar “outro”, como não é tampouco o abismo dos sentidos. Ele é, assim, a
possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa
na relação do “um” com o múltiplo”, a que aceita a reduplicação e o deslocamento
que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá
realidade significativa. (ORLANDI, 1995, p. 23).
No trabalho sobre o silêncio, Orlandi identifica dois funcionamentos
primordiais: o silêncio como fundante e a política do silêncio. Trabalharemos primeiro o
silêncio como fundante e, em outro subitem, a potica do silêncio. Segundo a autora, o
silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido
pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais importante, nunca se diz,
todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o
silêncio é “fundante”. (ORLANDI, 1995, p. 14).
O silêncio constitutivo está relacionado ao fato de que dizer implica, necessariamente,
não dizer; logo, todo dizer traz consigo sentidos silenciados. No silêncio, diz ela, o sentido é.
A afirmação de Orlandi de que no silêncio o sentido é significa que no silêncio o sentido não
pode ser definido, não pode ser colocado em palavras, na medida em que colocá-lo em
palavras significa uma interpretação, ou seja, não é mais silêncio. Isso não impede,
entretanto, que silêncio e linguagem compartilhem certos funcionamentos. Uma vez que dizer
implica não dizer e, sendo a linguagem determinada ideologicamente, o que é silenciado é tão
da ordem do ideológico quanto o dito: “Ele passa pelas palavras. Não dura. é possível
vislumbrá-lo, de modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das falas. O silêncio é o real do
discurso.” (ORLANDI, 1995, p. 30-34).
Se, por um lado, não podemos analisar o sentido sem contemplar o funcionamento do
silêncio na sua constituição, conforme diz Orlandi, por outro, é importante observar que não
podemos analisar o silêncio sem considerar sua relação imprescindível com a linguagem, uma
vez que o silêncio pode ser percebido em contraponto a ela, ou seja, existe a partir da
existência desta. Impossível de ser dito, o silêncio constitutivo (ou fundante) é, assim, o
65
espaço que, permitindo o movimento dos sentidos, nos mostra que o próprio da linguagem é a
incompletude, tal como a concebe Orlandi:
[...] a incompletude é fundamental no dizer. É a incompletude que produz a
possibilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside essa
possibilidade. A linguagem empurra o que ela não é para o “nada” se multiplicando
em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidade de
sentidos se apresenta. (1995, p. 49)
É por isso que a linguagem é incompleta, porque pode ser modificada, ampliada,
revista, reformulada e, assim, ganhar novos sentidos. O silêncio fundante cumpre o seu papel
onde o “nada” se transforma em “tudo”. Muitas vezes, porém, escapa pelas tramas da
linguagem e faz sentido. Nem tudo se pode dizer. Essa é a diferença entre o silêncio e o
implícito. Segundo Lisbôa (2008, p. 129), o implícito é um “dizer entranhado em outro dizer,
ou seja, são palavras o pronunciadas, mas que se manifestam através de outras palavras”.
Por sua vez, o silêncio não está relacionado ao verbal, mas, sim, à significação. O implícito
remete ao dito; o silêncio é sempre silêncio, e significa. Nas palavras de Orlandi “o silêncio
não tem uma relação de dependência com o dizer para significar: o sentido do silêncio não
deriva do sentido das palavras”. (1995, p.68)
Orlandi afirma: No entanto, sem considerar a historicidade do texto, os processos de
construção dos efeitos de sentidos, é impossível compreender o silêncio.” Por isso, podemos
afirmar que o silêncio é o real do discurso. Di Renzo (2007, p. 224) expressa muito bem nosso
pensamento:
Na verdade é como se essa ordem (do real), impossível de não existir e pela
contradição provocada por esse choque entre os dois reais o da língua e o da
história possibilitasse os sentidos outros, lugar do impossível, mas um impossível
que rompe com a idéia de que a ngua não é um sistema ordenado e fechado, mas
um sistema sujeito a falhas e, justamente porque falha, faz rupturas, ao mesmo
tempo em que irrompem outras possibilidades de significar o até então tomado como
proibido. Por essa razão podemos dizer que há no modo como os sentidos
funcionam existência do trabalho do político, ou seja, trata-se de perceber que um
jeito de ser da própria língua que escapa ao logicamente estabilizado.
Quando falamos em sentidos que foram proibidos, podemos estabelecer relações com
o nosso corpus, ou seja, as letras das canções que foram censuradas na ditadura militar, as
quais rompem com o que foi logicamente estabelecido. No entanto, o que foi proibido
66
(político/censura) encontra uma maneira de romper e, por meio do silêncio, de dizer.
Lembramos as palavras de Coracini,
1
que se vale da metáfora da panela de pressão, a qual
precisa da válvula para deixar escapar o que está no seu interior. O silêncio funciona como
essa válvula na medida em que permite que os sentidos que foram proibidos saiam e
signifiquem.
Podemos entender o silêncio como um intervalo semântico em que ocorre uma fissura
(uma ruptura) na ordem do discurso, espaço no qual se estabelecem as relações de
contradição, de resistência, de luta. O funcionamento dessas relações é manifestado por meio
do silêncio, que estabelece significação pelo o-dito. Assim, os efeitos de sentido são
construídos com base no silêncio fundante, que remete às condições de significação, à política
do silêncio, a qual impõe um dizer em lugar de outro. Ao seu lado o silêncio local, que se
volta para a proibição do dizer, ou seja, para a censura. A censura age impedindo o sujeito de
se identificar com determinada formação discursiva (FD)
2
, o que leva a que seu discurso
produza determinado sentido, que a filiação a uma FD é condão essencial para a
constituição do sentido. É o caso, por exemplo, da FD comunista durante o regime militar no
Brasil: “[...] após o golpe de 64, toda crítica ao governo foi identificada ao comunismo,
embora procedesse de muitas outras FDs; crítica, comunismo e subversão foram identificados
pelo governo como uma coisa e toda crítica ao governo catalogada deste modo, como
subversão proveniente de comunistas”. (LISBÔA, 2008, p. 115).
Como falamos em sentidos proibidos, censurados e silenciados, apresentamos no
próximo subitem a política do silêncio, ou silêncio local, que se refere à situação de censura
de acordo com a classificação de Eni Orlandi.
3.2 Silenciamento e resistência
De acordo com Orlandi (1995), o silêncio evidencia o que não pode ser dito para poder
dizer, sendo chamado de “constitutivo”. A política do silêncio produz um recorte entre o que
se diz e o que não se diz, ao passo que o silêncio fundante não estabelece nenhuma divisão,
porque significa em (por) si mesmo. (p. 75-79). Como parte da política do silêncio o
silêncio local, que é a manifestação mais visível desta política: o da interdição do dizer (a
1 Coracini forneceu esse exemplo no Seminário de Dissertação em 2008 na Universidade de Passo Fundo-RS.
2
Reportamo-nos ao conceito trabalhado no item 2.3.
67
censura). O sincio local, ainda na formulação de Orlandi, é a censura, ou seja, aquilo que é
proibido dizer em determinada conjuntura.
É assim, produzindo efeitos metafóricos, que se afetam a história e a sociedade. De
maneira geral, a censura retoma o fato de que “falar é esquecer. Esquecer para que surjam
novos sentidos mas também esquecer apagando
3
os novos sentidos que já foram possíveis
mas foram estancados em um processo histórico-político silenciador. São sentidos que são
evitados, de-significados”. (ORLANDI, 1999, p. 61-62 – grifo nosso). No caso da ditadura no
Brasil, período em que os censores não admitiam questionamentos, era imposta uma ordem, a
censura, de modo que ninguém podia fazer (ou dizer) nada. Dessa forma, “sentidos possíveis,
historicamente viáveis foram politicamente interditados”. Orlandi registra ainda que
[...] toda uma região de sentidos, uma FD, é apagada, silenciada, interditada.Não há
um esquecimento produzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto
impede que certos sentidos hoje possam fazer outros sentidos. Como a memória é,
ela mesma, condição do dizível, esses sentidos não podem ser lidos. (1999,
p. 65-66).
É como se apagassem (camuflados os deslizamentos) da memória do povo brasileiro
os horrores da ditadura militar. Contudo, o que foi censurado não desaparece de todo, pois
ficam seus vestígios, suas pistas, suas faltas no silêncio, como nos versos que dizem “ser a
cicatriz risonha e corrosiva. Marcada a frio, a ferro e fogo. Em carne viva.” A cicatriz da
censura está marcada nas letras das músicas de Chico Buarque, e com nosso gesto de
interpretação propusemo-nos analisá-la e fazer a censura emergir das sombras escuras dos
porões da ditadura.
A história da repressão no período estudado divide-se claramente em três períodos:
antes do AI-5, entre o AI-5 e o início do governo Geisel e de então até a restauração da
democracia. Antes do AI-5, a censura estava incluída entre as medidas que poderiam ser
adotadas se "necessárias para a defesa [do regime]", assim como em caso de estado de sítio. O
período entre a edição do AI-5 e a posse de Garrastazu Médici e os anos de seu governo é
considerado como os anos de chumbo, por ter sido um dos mais repressivos da história
política do Brasil.
3
Segundo Orlandi (1988, p. 78), o “apagamento” não tem um sentido negativo, pois: 1. ele é a própria
possibilidade de transmutação do sujeito em suas múltiplas formas e funções; e 2. ao colocar-se socialmente, o
sujeito-autor se percebe subjetivamente. O apagamento é constitutivo do sujeito. É um modo de existência do
sujeito; um procedimento pelo qual ele se constitui. Em resumo: o apagamento faz parte das condições de
produção do sujeito.
68
A censura foi, sobretudo, um instrumento de proteção autoritária do pprio Estado,
com a qual se procurava esconder o autoritarismo de forma silenciosa, mas o menos
autoritária, assim como as resistências a ele. Durante a ditadura de Garrastazu Médici, mais de
80% do conteúdo das mensagens foram classificadas na categoria de "defesa do Estado
autoritário", com a proibição da divulgação de notícias sobre a repressão, inclusive torturas,
prisões, destruição de aparelhos, cassações, nocias sobre a própria censura, sobre a
organização da comunidade de segurança, sobre as dissenções no interior do Estado,
particularmente as militares, assim como sobre a oposição ao Estado autoritário, fosse
violenta ou não. Algumas pessoas foram definidas como "inimigas do Estado" e nada,
absolutamente nada, a respeito delas deveria atingir o público. Entre os "inimigos do Estado",
o mais notório foi dom Hélder Câmara.
De acordo com Ridenti, após o golpe de 1964, os artistas não tardaram a organizar
protestos contra a ditadura em seus espetáculos. Ainda mais porque os setores populares
foram duramente reprimidos e suas organizões, praticamente inviabilizadas, restando
condições melhores de organização política especialmente nas camadas médias
intelectualizadas, por exemplo, entre estudantes, profissionais liberais e artistas. Esse período
testemunharia uma superpolitização da cultura, indissociável do fechamento dos canais de
representação política, modo como muitos buscavam participar da política, inserindo-se em
manifestações artísticas. (2006, p. 143).
No rádio e na televisão, a censura atingiu sistematicamente vários artistas cuja
oposição à ditadura era conhecida, entre eles Chico Buarque e Geraldo Vandré. (SOARES)
4
.
Nesse sentido, Chico Buarque de Hollanda era um dos artistas mais vigiados pela censura e
pela “comunidade de informações” e qualquer evento que contasse com sua presença era
digno de atenção do regime.
O mesmo autor relata que vários inquéritos policiais militares (os IPMs) foram abertos
depois de 1964 contra os adversários do golpe, incluindo artistas considerados subversivos
pelos novos donos do poder. Eles buscavam intimidar a esquerda cultural, que, entretanto, não
se deixou abater, constituindo-se num dos poucos focos de resistência ao movimento de 1964.
(2006, p. 143).
4
Este trecho sobre a censura foi baseado no trabalho: Censura durante o regime autoritário, de Gláucio
AryDillonSoares. Disponível no site http://www;anpocs.org.br/portal/publicações/rbcs–0010/rbcs10–02htm.
Acesso em: 3out. 2009.
69
Vemos, portanto, que justamente porque foram censuradas é que as composições de
Chico Buarque sofreram um deslizamento de sentido, ou seja, as palavras se moveram e
ganharam um novo sentido. Orlandi propõe que
o silêncio é o espaço da resistência, da luta, da oposição, em que uma
incompletude, uma fissura na trama do discurso. Em situações autoritárias e de
censura, o sujeito não pode ocupar posições distintas, apenas o lugar que a ele é
destinado, previamente, a fim de produzir os sentidos que são permitidos no espaço
em que ele se encontra. Assim, a censura determina a identidade do sujeito,
impondo-lhe um poder-dizer que o constitui socialmente. (1995, p. 81).
No caso do compositor Chico Buarque, por exemplo, ele foi obrigado a se separar dos
outros (o governo e alguns setores da sociedade), o que produziu um efeito de retorno sobre
sua própria identidade. O autor escreve para significar (a) ele mesmo. Por meio de
apagamentos, ele anula os limites história/relato/história, em outras palavras, apaga o limite
entre o eu pessoal e o eu político, entre o sujeito e o cidadão brasileiro, ou entre o real e a
ficção... É como se por intermédio desse brasileiro todos os brasileiros pudessem falar. “Se
um silêncio que apaga, há um silêncio que explode os limites do significar.” (ORLANDI,
1995, p. 85-87). Para que a censura funcione joga com o princípio do autor: remete à
responsabilidade do sujeito (autor) quanto ao que ele diz. A censura intervém, assim, na
relação do indivíduo com sua identidade social e com o Estado. (p. 110). Ele é responsável
perante a lei com relação ao que se diz e o que não diz concernente à ética e ao político.
Censura e resistência trabalham a mesma região de sentidos: na censura está a resistência; na
proibição, eso “outro” sentido, porque, como assinalamos, a censura atinge a constituição
da identidade do sujeito. (1995, p. 115-121).
Em realidade, estamos representando o processo de silenciamento presente neste
trabalho. O querer-dizer é censurado, proibido, e a maneira de escaparem” os sentidos
relembramos a válvula de escape da panela de pressão , o que é censurado, é por meio da
canção de protesto. Como o autor sabia que as letras seriam barradas pela censura, realizava
um apagamento do sentido expresso inconscientemente pelo silenciamento: a política do
silêncio, ou seja, há que ler no fio do discurso a resistência e a contradição que perpassam nas
canções. “Ao silêncio imposto pela censura ele responde com o silêncio dos ‘outros’ sentidos
que ele constitui em uma outra região.” (ORLANDI, 1996, p. 88).
Orlandi utiliza a denominação “língua-de-espumapara definir a língua “vazia”, na
qual os sentidos não ecoam; é aquela língua falada pelos militares no período que começa em
70
1964 com a ditadura no Brasil. A língua-de-espuma trabalha o poder de silenciar. No domínio
do discurso da MPB uma forma específica de resistência que apareceu durante a ditadura foi o
“samba-duplex” de Chico Buarque de Hollanda. O samba-duplex é uma resposta particular ao
modo “torto” de significar instalado pela surdez da língua-de-espuma (1996, p. 103-126). Dito
de outra forma, o samba-duplex se instala para dizer o que é proibido, caracterizando-se pela
censura, pela interdição da palavra no contexto da ditadura militar no Brasil. Na verdade, suas
músicas, antes de falar com o povo e/ou pelo povo, falam entre si.
Lembrando ao leitor o texto referido ao final do item “Formação ideológica e
formação discursiva: a movência dos sentidos” “A arte de calar” nos mostra que tal
silenciamento pela interdição produziu silêncio local, pois a resistência também é um modo
muito significativo de dizer. Nas palavras do abade Dinouart, seria como fazer do silêncio
um espaço de controle e de cálculo que proteja do outro; exercer, enfim, A arte de calar para
cativar o outro, apoderar-se dele e dominá-lo”. (2001, p. XXIV). Referindo-se ao sujeito
empírico deste trabalho (as canções de Chico Buarque) consegue-se calar a linguagem,
fazendo falar o silêncio. “Seu silêncio é prudente quando se sabe calar oportunamente,
conforme o tempo e o lugar em que se está no mundo”. (p. XXX).
3.3 Arrematando os fios...
Nosso tapete teórico está quase completo (como se isso fosse possível...). Para
provocar um efeito de arremate deste tapete vamos sintetizar o que estudamos até o presente
momento. A AD, conforme trabalhado anteriormente, considera que o sentido não pode ser
produzido sem que o sujeito esteja inscrito numa formação discursiva determinada, que irá
definir os sentidos possíveis de serem construídos. A sociedade dispõe de uma conjuntura
sócio-histórica atravessada por formações ideológicas que se interligam às FDs. Logo, a FD, o
discurso, o interdiscurso, a memória discursiva, o silêncio e a ideologia estão relacionados à
noção de sujeito e a posições do sujeito no discurso. Por meio da memória discursiva, dos pré-
construídos e do efeito metafórico será resgatado em nosso corpus o imaginário do Brasil na
época da ditadura militar, mais especificamente, analisaremos a formação discursiva da MPB,
via interdiscurso.
É importante ressaltar que o discurso existe em função do outro, em função das
imagens elaboradas e da encenação que o sujeito constrói para si mesmo, como autor, e para o
71
outro, como locutor. Nesse aspecto, pensamos o homem sempre em relação aos demais,
afirmando ser o sujeito social e constituir-se nas interações cotidianas e sociais num diálogo
permanente entre sujeitos. O sujeito não existe para si, senão na medida em que é para os
outros.
Para a AD, “a falha, o furo, o deslizamento o o lugar de resisncia, o lugar do
impossível (nem o impossível) e do não-sentido (que faz sentido).” (LEANDRO
FERREIRA, 2000, p.24), ou seja, é nessa falha, nesse furo, que encontraremos o silêncio
local, e é na movência dos sentidos (efeito metafórico) que encontraremos a resisncia e a
contradição que surgem nas caões de Chico Buarque.
À guisa de uma demonstração mais concreta sobre os conceitos-chave que
trabalhamos até o momento, sintetizaremos nosso estudo com a demonstração topológica da
fita de ebius, que apresenta uma superfície bidimensional a qual contém um único lado,
resultante da junção de duas extremidades de uma fita após uma de suas extremidades girar
180º. Leandro Ferreira (2007. p. 213) explica que a Banda/Fita “mostra a impossibilidade de
se estabelecerem os limites entre o avesso e o direito, entre o interno e o externo, o dentro e o
fora, já que cada lado representa essas duas faces ao mesmo tempo”.
Em relação ao corpus que será analisado nesta dissertação, percebemos que as
palavras autorizadas pela censura nem sempre revelavam o que se pretendia dizer, ou seja, ao
ocorrer a movência dos sentidos o que estava silenciado aparece na borda da fita ou na
circularidade dos sentidos. A fita de Möebius, nos domínios da psicanálise, representa a
relação do discurso inconsciente com o discurso consciente; o inconsciente está no avesso,
mas pode surgir no consciente em qualquer ponto do discurso, demonstrando que o interior se
comunica com o exterior
5
.
Em Alise do Discurso (AD), a fita pode movimentar vários conceitos. Segundo
Orlandi (1999, p. 25), “na perspectiva discursiva, a linguagem é linguagem porque faz
sentido. E a linguagem faz sentido porque se inscreve na história”. Essa inscrição pode ser
representada na fita como o verso constitutivo. O sujeito é constituído pela história e pela
ideologia. Ainda explorando o efeito de oposição da fita, a relação língua/ideologia aponta
para um dos postulados da AD: não há como trabalhar a língua sem fazer intervir a ideologia,
e vice-versa. A fita faz irromper um dos lados, mas trata-se, como já dito, de um avesso
constitutivo e passível de ser apreendido. Em nossa proposta apresentaremos um
5
A explanação sobre a fita de Möebius refere-se a um artigo intitulado “A banda de Möebius e a análise do
discurso”, escrito por vários autores, tendo como coordenadora Maria Cristina Leandro Ferreira. UFRGS/
março de 2002.
72
deslocamento em relação ao que foi trabalhado pelas autoras do artigo. Inserimos na fita de
Möebius os conceitos que foram apresentados na primeira e segunda partes desta dissertação
para uma melhor visualização:
Figura 3
De acordo com os conceitos evocados por nós ao momento, podemos inferir que os
vários pares que aparecem na fita e que serão mobilizados na análise constam no quadro a
seguir.
Direito/Avesso Avesso/ Direito
Materialidade Linguística
Memória discursiva
Língua
Discurso
Formação Ideológica
Simbólico (Inconsciente)
Contradição
Sujeito
Poder
Formações ideológicas
Imaginário
Estrutura
Materialidade Histórica
Interdiscurso
Discurso
Formação Ideológica
Inconsciente
Político (ideológico)
Resistência (silêncio local)
Ideologia
Resistência (silêncio local)
Formações discursivas
Formações imaginárias
Acontecimento
Os componentes acima equivalem ao direito/avesso, avesso/direito, dentro/fora, o que
seria nesta circularidade da fita justamente a questão da movência” dos sentidos; eles o e
73
vêm, aparecem e desaparecem conforme o movimento da fita. É como se não existisse início e
fim, em que cada lado se (con)funde, se mistura, se entrelaça. Por exemplo, ao falarmos do
simbólico, concomitantemente, falamos de ideologia, que nos remete ao sujeito e ao político,
como se todos os conceitos estivessem interagindo simultaneamente. A partir do momento em
que surge a materialidade linguística (que seria o texto), na outra borda aparece a
materialidade histórica, representada pela memória discursiva, ou seja, as condições de
produção, que são recuperadas por meio do fio do discurso (o interdiscurso). Lembramos
Orlandi (1998, p. 86): “É pela referência às sociedades e à história que ‘aí pode haver
ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação, abrindo a
possibilidade de interpretar.” Para a AD a noção de memória é de suma importância porque
chegamos à conclusão de que todo dizer se liga a uma memória”. (ORLANDI, 1998, p. 95).
A categoria de memória discursiva é a que permite que seja acionada a conjuntura sócio-
histórica em que ocorreram os fatos linguísticos, colocando em movimento enunciados pré-
construídos, isto é, “formulações enunciadas anteriormente”. (COURTINE, 1981, p. 52).
Em outro momento pode surgir a língua que é condição de possibilidade do discurso, o
qual parte da formação ideológica que está para o inconsciente. O inconsciente, por sua vez, é
apresentado pelo simlico (atos falhos, chistes e o silêncio). A ideologia e o inconsciente
caminham sempre um ao lado do outro e mantêm relação com o sujeito. Ao tratar sobre essa
questão, Cazarin (2000, p, 177) afirma:
A historicidade e a ideologia apresentam-se como constitutivas do discurso e este
como efeito de sentido entre locutores. O funcionamento lingüístico e as condições
extralingüísticas em que o discurso se realiza estão de tal forma imbricados que são
considerados simultânea e integradamente e os efeitos de sentido do discurso se
remetem e são apreendidos no horizonte de sua historicidade e da dimensão
ideológica que os constitui.
O sujeito, que é ideológico por natureza, resiste ao poder ditatorial por meio do
silêncio local. Ao mesmo tempo que, politicamente, resiste, tenta “mascarar” sua prática
política mudando de uma FD para outra, apresentando uma aparente “aceitaçãoe, por meio
do imaginário, que é justamente onde ocorre o efeito metafórico, deixa “vazar” o verdadeiro
sentido das letras de suas canções. “E é no espaço dessa ilusão que sujeitos e sentidos se
movem. Ainda que para serem os mesmos, já que a diferença é, frequentemente, insuportável
(para o sujeito, para a sociedade, para a história)”. (ORLANDI, 1998, p. 94).
74
As formações imaginárias que foram mobilizadas aparecem nãona estrutura mas no
acontecimento discursivo. As palavras de Orlandi confirmam o que foi afirmado:
Como o trabalhamos com a estrutura mas também com o acontecimento da
linguagem, esses aspectos que tocam o acaso, o equívoco e a forma histórica da
interpretação são levados em conta na compreensão de cada gesto de interpretação.
E, o que talvez seja mais importante, com a noção de ideologia, se evita pretender
chegar à verdade do sentido, estando, no entanto, atentos às suas diferenças. (1998,
p. 98)
E é justamente por todos esses aspectos salientados que o efeito metafórico é o fio
condutor de nossa proposta. À guisa de uma suposta conclusão, mostraremos como o efeito
metafórico funciona basicamente em todos os pares de conceitos apresentados em nossa tese.
É exatamente essa transferência (efeito metafórico) que observamos em nosso corpus;
por isso a utilização da representação pela fita de Möebius, que nos permite visualizar a
“movência” dos sentidos. “Algo do mesmo está nesse diferente; pelo processo de produção de
sentidos, necessariamente sujeito ao deslize, há sempre um possível “outro” mas que constitui
o mesmo.” (ORLANDI, 1998, p. 81). Seguimos o raciocínio da autora:
[...] esse mesmo já é produção da história, já é parte do efeito metafórico. A
historicidade está representada justamente pelos deslizes (paráfrases que instalam
o dizer no jogo das diferentes formações discursivas. Fala-se a mesmangua mas se
fala diferente. Pelo efeito metafórico. Esse deslize, próprio da ordem do simbólico, é
o lugar da interpretação, da ideologia, da historicidade.É assim que podemos
compreender a relação entre língua e discurso. (1998, p. 81).
Em nossa perspectiva de trabalho, cada acontecimento discursivo é inédito e o retorno
da memória colabora para que haja transformação do sentido. O sentido que foi silenciado
ganha um novo significado a partir do funcionamento do efeito metafórico, que está “na base
da constituição do sujeito, na perspectiva do histórico, do equívoco, da relação
língua/discurso”. (p. 82).
Dessa forma, assim como os fios invisíveis na trama do tecido, sabemos que os
sentidos existem e que estão lá de forma inerente; não os analisamos por si só, uma vez que
ganham “valor” na constituição da trama de sentidos, no conjunto, na totalidade, nunca
isolados. Se fizermos uma reflexão mais aprofundada, poderemos perceber que o silêncio
75
atravessa a linguagem como um ato falho que vem do inconsciente, o real do inconsciente o
impossível.
Na perspectiva da psicanálise, Leite (1994, p. 71) afirma que
a relação ao impossível é uma relação de pensamento, isto é, o sentido desta relação
está na dependência da impossibilidade de pensamento, visto que esta é a única
demonstrável. O impossível refere precisamente o impensável. Isto significa que a
estrutura deve comportar um lugar que represente o impossível, que como tal resiste
à simbolização [...].
Por isso, o silêncio é fugaz e apresenta uma movência extraordinária; também por esse
motivo, “atua na passagem (des-vão) entre pensamento-palavra-e-coisa.” (ORLANDI, 1995,
p. 39-48). É por fissuras, rupturas, falhas, que ele se mostra, fugazmente.” Lembramos que
as letras das canções de Chico representam todos os pares de conceitos simultaneamente. Não
temos primeiro o direito depois o avesso; primeiro o simbólico e depois o político. Todos os
conceitos se dão ao mesmo tempo, ininterruptamente, num vaivém incessante, interminável...,
e o real da língua e o real da história também entram nessa dança de conceitos, cujo resultado
é o deslizamento dos sentidos.
Depois de apresentar, de forma sucinta, o tapete teórico da AD, seguiremos nosso
caminho e explicitaremos como encaminharemos as análises. Partimos, então, para o capítulo
referente às análises das canções de Chico Buarque de Hollanda.
76
4 PERCORRENDO O CAPÍTULO DAS ANÁLISES
Fazer interpretação em análise do discurso não é tarefa das mais fáceis. O analista de
discurso trabalha a interpretação, enquanto exposição do sujeito à historicidade (à ideologia,
ao equívoco e ao silêncio), na sua relação com o simbólico. “A interpretação também é
constitutiva do sujeito e do sentido, ou seja, a interpretação os constitui: a interpretação faz
sujeito, a interpretação faz sentido.” (ORLANDI, 1996, p. 83). Podemos dizer que o trabalho
do analista é “desvendar” por meio do seu gesto de interpretação
1
os efeitos de sentido que
aparecem no discurso.
Para realizar essa empreitada nosso corpus compõe-se de 14 letras de músicas
compostas no período de 1970 a 1974 por Chico Buarque de Hollanda e outros compositores.
Estas serão subdivididas em quatro recortes discursivos, que foram agrupados por temática.
Como exemplo, o recorte 1 refere-se à temática do “milagre econômicoe apresentará as
canções “Construção e “Cotidiano”. Julgamos oportuno manter no corpo do trabalho as
letras das canções para uma melhor visualização pelo leitor das sequências discursivas que
serão recortadas e analisadas, não como anexo, conforme é usual. Iniciaremos apresentando a
seleção do corpus, com o posterior encaminhamento metodológico para o gesto de
interpretação das canções.
4.1 Seleção do corpus
As análises, neste trabalho, serão compostas por 14 canções de Chico Buarque de
Hollanda (algumas em parceria com Ruy Guerra e Gilberto Gil) no período de 1970 até 1974,
época em que o Brasil esteve sob o governo do presidente Médici considerado o mais
repressor de todos na ditadura militar brasileira. Sabemos que as práticas repressoras e os
decretos autoritaristas se reforçavam mutuamente.
Segundo Smith, a coerção direta era a contraparte das contorções do sistema jurídico
representadas pelo AI-5 e a Lei de Segurança Nacional, que negavam o habeas-corpus e o
direito ao recurso. Tais legislações concediam grande autonomia e alcance de ação às forças
1
É frequente utilizar gesto de interpretação em Análise do Discurso, cuja explicação vem de Orlandi (1996,
p. 84): Estamos, pois, fazendo da leitura, e da interpretação, um ato simbólico dessa mesma natureza de
interveão no mundo.”, uma prática discursiva, linguístico-histórica, ideológica com suas consequências.
Com efeito, pode-se considerar que a interpretação é um gesto, ou seja, intervém no real do sentido.
77
de segurança e lhes permitiam operar com impunidade. Revestidas de tal poder, as forças de
segurança podiam, por sua vez, impedir infrações ao AI-5 e a outros fundamentos semilegais
de suas ações. A modalidade específica de repressão da liberdade de imprensa bem como de
outras liberdades naquele período – decorria da interação dessas duas características do
regime. (2000, p. 41)
Ao darmos início às análises, ressaltamos que as letras das músicas foram selecionadas
levando em conta, especialmente, o período de 1970 até 1974, considerado o mais “duro” da
ditadura militar, e a temática de cada música. Para melhor visualização e compreensão das
análises foram selecionados quatro recortes discursivos, dos quais foram formados blocos
compostos pelas canções que se referem às diversas temáticas. No recorte discursivo nº1 a
temática é o “milagre econômico” do bloco 1 fazem parte as caões “Construção” e
“Cotidiano”, compostas quando Chico retornou do exílio na Itália, onde permanecera por um
ano. Segundo os críticos, essas canções apresentam a temática referente ao “milagre
econômicopelo qual o Brasil estava passando e demonstram uma maturidade artística de
Chico Buarque.
No recorte discursivo nº 2, o critério de seleção contemplou as canções da peça
“Calabar um elogio à traição”, em que a temática sobre o governo e a censura “salta aos
olhos” de quem a assiste. Fazem parte do Bloco 2 as seguintes canções: Hino de Duran”,
“Ana de Amsterdam”, “Boi voador não pode” e “Cala a boca, Bárbara”. No recorte discursivo
nº 3 a temática sobre a censura e o (s) discurso-outro(s)
2
foram os requisitos para a seleção
das canções que compõem o Bloco 3: “Cálice”, “Apesar de você”, “Você vai me seguir”,
“Partido alto”, “Deus lhe pague”. No último recorte, o nº 4, a temática contempla a tortura
física e psicológica e as canções que compõem o Bloco 4 são as seguintes: “Vence na vida
quem diz sim”, “Fado tropical” e “Tatuagem”. As sequências discursivas selecionadas de
cada recorte são apresentadas com a abreviatura SD. Elaboramos um quadro-síntese para
facilitar a visualização desses recortes.
2
É o próprio Pêcheux que traz para sua reflexão o conceito de discurso-outro. O discurso-outro está
efetivamente inscrito nas reflexões da teoria discursiva como um elemento constitutivo não da
interpretação, mas também da constituição de todo e qualquer discurso. “Todo enunciado, toda sequência de
enunciados é, pois, linguísticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos
de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de
discurso”. (PÊCHEUX, 2008, p. 53).
78
Recorte Discursivo 1
Temática: Milagre ecomico
Bloco 1 – Texto 1 Construção (1971)
Bloco 1 – Texto 2 Cotidiano (1971)
Recorte Discursivo 2
Temática: Censura – Política governamental
Bloco 2 – Texto 3 Hino de Duran (1972-3)
Bloco 2 - Texto 4 Ana de Amsterdam (1972-3)
Bloco 2 – Texto 5 Boi voador não pode (1972-3)
Bloco 2 - Texto 6 Cala a boca, Bárbara (1972-3)
Recorte Discursivo 3
Temática: Censura, discurso-outro
Bloco 3 - Texto 7 Cálice (1973)
Bloco 3 - Texto 8 Apesar de você (1970)
Bloco 3 - Texto 9 Você vai me seguir (1972-3)
Bloco 3 – Texto 10 Partido alto (1972)
Bloco 3 - Texto 11 Deus lhe pague (1971)
Recorte Discursivo 4
Temática: Tortura física e psicológica
O funcionamento da Pontuação
Bloco 4 - Texto 12 Vence na vida quem diz sim (1972-3)
Bloco 4 – Texto 13 Fado tropical (1972-3)
Bloco 4 - Texto 14 Tatuagem (1972-3)
4.2 O caminho metodológico a ser percorrido...
Do ponto de vista metodológico, é importante lembrar que a Análise do Discurso não
é só uma disciplina de interpretação, mas também de análise dos processos discursivos. Nesse
sentido, como destaca Orlandi, a finalidade do analista não é interpretar, mas compreender
como um texto funciona, ou seja, como produz sentido. (ORLANDI, 2001, p. 19). Logo, o
objetivo do analista é perceber como se dá a textualização do discurso. Assim, acrescenta
Orlandi que a AD o interpreta os textos que analisa, mas, sim, os resultados da análise dos
textos que constituem o corpus. (ORLANDI, 2001, p. 32).
Sendo a análise de um processo, é natural que a definição do corpus em AD se
durante o próprio desenvolvimento da análise do material que o analista tem a sua disposição,
o que faz do trabalho um constante ir e vir entre teoria e prática. No processo de análise se dá
o deslocamento do nível da organização, que é o nível de funcionamento da língua
propriamente dita, para o nível da ordem, que é o discurso. Essa passagem se faz por etapas.
Optamos, assim, no que diz respeito ao trabalho analítico, por fazer uma seção exclusiva de
análises. A princípio, é necessário diferenciar corpus empírico de corpus discursivo: o corpus
empírico é constituído pela totalidade de 14 sicas compostas por Chico Buarque de
Hollanda durante o regime militar brasileiro; e o corpus discursivo, que é o corpus
selecionado para as análises, será o objeto sobre o qual incidirão nossas análises.
A delimitação do corpus discursivo mobiliza uma postura teórica própria à AD.
Conforme Courtine (1981, p. 24), parte-se de um “universal discursivo”, entendido como um
conjunto potencial de discursos que podem ser objeto de análise para estabelecer um campo
79
discursivo de referência, o qual se define como um tipo específico de discurso, como, no
nosso caso, o discurso político.
O campo discursivo de referência deste trabalho relaciona-se ao período de 1970 a
1974, abrangendo as músicas de Chico Buarque de Hollanda durante a ditadura militar.
Identificaremos dentro do corpus empírico sequências discursivas para integrar o corpus
discursivo, na qualidade de objeto específico de análise. As sequências discursivas,
selecionadas de acordo com nossos objetivos, constituirão os recortes discursivos, que, a
título de unidades discursivas, compoo nosso corpus discursivo.
A noção de recorte discursivo foi formulada por Orlandi (1983, p. 128-129; 1984,
p. 13-17) para distinguir o gesto do linguista, que segmenta a frase, do gesto do analista do
discurso, que, ao recortar uma sequência discursiva, recorta uma porção indissociável de
linguagem e situação. É nesse sentido que a autora propõe “o recorte como unidade
discursiva”. (ORLANDI, 1984, p. 14). Assim, as sequências discursivas selecionadas segundo
nossos objetivos constituirão os recortes discursivos, que, a título de unidades discursivas,
compoo nosso corpus discursivo. Como refletimos a agora sobre a constituição do
sentido, esse é o momento de mostrarmos na prática, ou seja, nas análises como a AD a
realiza. Para tanto, valemo-nos dos estudos de Eduardo Guimarães, que explicitou o
funcionamento dos nomes e, especificamente, da designação. Entendemos a designação como
a significação de um nome, não no aspecto abstrato, e sim como “algo próprio das relações de
linguagem, enquanto relação lingüística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja,
enquanto uma relação tomada da história”. (2002, p. 9). Para o autor,“nomear é assim inserir
alguém, como falante, num espaço de enunciação específico.” (p. 93). Entendemos com
Guimarães que “o sentido é constituído pelo modo de relação de uma expressão com outras
expressões do texto”, e nesse aspecto tentaremos analisar sentidos que foram silenciados no
corpus desta dissertação. (p. 28).
É importante ressaltar que nas análises das canções refletiremos, inicialmente, sobre as
condições de produção da época em que foram escritas, entendendo-se condições de produção
como a expressão da exterioridade na materialidade linguística.
O regime militar instaurado no Brasil em 1964 estendeu-se por 21 anos, (de 1964 até
1985), nos quais a Presidência da República foi ocupada, sucessivamente, por generais de
Exército. A estratégia dos militares era clara: impor ao Congresso um candidato militar que,
uma vez nomeado, pudesse realizar a “limpeza” tão desejada pelas forças conservadoras. Esse
momento político na hisria brasileira s fim ao período de contestações políticas,
movimentos culturais e manifestações sociais que haviam agitado o país até então.
80
Fico afirma que
uma série de relativizações conformava um regime político que, embora autoritário,
ditatorial, não pretendia ser identificado desse modo. Os militares buscaram o
rodízio dos presidentes, tentaram construir um arcabouço legal com atos
institucionais que ‘ocultassem’ sua ilegitimidade e, no plano da propaganda política,
não só praticaram uma propaganda peculiar ‘não política’ -, como também
falavam em ‘verdade’: ‘num mundo cada vez menor [...] querer iludir o público é
antes de tudo um despropósito, porque ninguém pode mais vender imagem que o
seja a da verdade. (1997, p. 95).
Na obra Um acordo forçado, Anne-Marie Smith relata que a banalidade da censura era
a característica sica sentida pela imprensa. A censura era percebida como um sistema tão
corriqueiro e abrangente que parecia funcionar automática e impessoalmente, a tudo
abarcando. Era com relação a esse sistema anônimo, rotineiro e abrangente não contra a
crua força coercitiva do regime que a imprensa se sentia impotente. E a autora questiona:
“Por que motivo foi essa a maneira pela qual o regime militar exerceu a censura? Ela poderia
ter sido muito mais aberta, coercitiva, pública. Por que ele se esforçou tanto para disfarçar e
negar a censura e por que essa prática foi tornada tão rotineira?”
A resposta, segundo a autora é que “o fator preponderante era o desejo de legitimidade
por parte do regime. Embora fosse um regime autoritário que aspirasse ao controle social,
também queria a legitimidade política. Nessa busca diversificada, e por vezes contraditória,
uma base potencial de legitimidade era a manutenção e a proteção das instituições tradicionais
e das formas jurídicas.”
Smith ressalta que:
o regime, por exemplo, expurgou mas não fechou o Congresso, baixou atos
institucionais que violavam a Constituição porém não rejeitou esse documento, de
rias maneiras tratou de manipular as eleições mas continuou a realizá-las. No trato
com a imprensa, sustentava que a sua liberdade era protegida constitucionalmente e
negava a existência da censura, embora impusesse novas proibições todo dia. Os
procedimentos e a linguagem das proibições, além do mais, arremedavam as
formalidades judicas sempre que possível. Em parte devido a essa busca da
legitimidade política fundamentada na prática correta e constitucional, o regime
aplicou sua censura numa maneira extraordinariamente burocrática, formal, oficiosa
e rotineira. (2000, p. 12).
No exame das relações entre imprensa e Estado e da censura sob o regime militar,
quatro questões são de particular relevância, de acordo com Smith (2000).
81
A primeira diz respeito à transformação do sistema jurídico formal e a segunda, ao
exercício efetivo da repressão. Smith afirma que o controle da imprensa no Brasil durante o
regime militar possuía componentes tanto quase – legais quanto diretamente coercitivos.
Eram estas as duas faces apresentadas à imprensa: uma oficiosa, a das restrições específicas e
codificadas, a outra de fato, a da repressão direta. Complementa dizendo que, essas faces não
eram completamente diferentes, mas antes partes de um continuum, pois os procedimentos
formais muitas vezes não eram de fato legais e a repressão extralegal era exercida
abertamente por “autoridades constituídas”.
A autora continua explicando que duas outras questões relevantes são as divisões
internas do regime e sua busca de legitimidade, que configuraram as escolhas feitas e as
opções exercidas pelo regime em cada situação. Tais aspectos, segundo Smith, também
podiam beneficiar a imprensa quando o Estado deixava de tomar medidas contra a imprensa
se essas ações pusessem em risco a legitimidade política. As divisões internas e a busca de
legitimidade ajudam a explicar certos aspectos peculiares da própria censura
3
, como seu
sigilo, sua aplicação desigual e seu modo de aplicação. (2000, p. 35-36).
Esse momento político foi marcado por uma geração sensibilizada pelo desejo de fazer
da arte não mais instrumento repetitivo e previsível de uma veiculação política direta, mas um
espaço aberto à invenção, à provocação, à procura de novas possibilidades expressivas,
culturais e existenciais. A década de 1970 foi selecionada por ter sido a época em que houve a
vitória dos militares da linha dura. “Embora esses fizessem parte do regime desde o começo,
depois de 1968 assumiram o controle de todas as principais posições do governo e as
mantiveram até a presidência de Médici, de 1969 a 1974, quando a tortura e a repressão
atingiram seu auge”. (SMITH, 2000, p. 35).
A ideia de “milagre econômico”, aliás, sempre foi controvertida, mesmo no âmbito do
governo ou daqueles que o apoiavam. A oposição, desde as primeiras menções ao assunto,
sempre procurou denunciar o caráter ilusório da situação. A temática sobre o milagre
econômico será demonstrada em nosso primeiro recorte discursivo por meio das canções
“Construção” e “Cotidiano”.
O recorte discursivo 2 nos apresenta as canções “Hino de Duran”, “Ana de
Amsterdam”, “Boi voador não pode” e “Cala a boca, Bárbara”, compostas por Chico Buarque
e Ruy Guerra para a peça intitulada Calabar - um elogio à traição. Faremos um retorno no
tempo para explicar do que trata o título da peça. No século XVII, ainda colonizado, o Brasil
3
No recorte discursivo 3 nos procedimentos de análise estaremos aprofundando sobre a questão da censura no
regime militar.
82
sofreu invasão holandesa. Em meio a esta invasão se destacou um mulato alagoano chamado
Domingos Fernandes Calabar, casado com Bárbara, os quais se amavam e lutaram juntos por
seus ideais. O Brasil vivia em franco desenvolvimento no cultivo da cana-de-açúcar,
despertando os interesses de outras nações, principalmente da Holanda, que invadiu o
Nordeste brasileiro. Em uma dessas invasões, no Arraial do Bom Jesus começou a aparecer a
figura de Calabar, defendendo o seu lugar; porém, mais tarde, passaria a lutar ao lado dos
holandeses, o que lhe custou o título de traidor da pátria brasileira. A história foi contada
pelos portugueses, que na época tinham o poder sobre a terra brasileira. Tanto a peça como as
canções foram duramente censuradas. (D’ARAÚJO, 1994, p. 23).
As demais canções de Chico da mesma época (Recorte Discursivo 3) também foram
censuradas e, inclusive, proibidas de serem tocadas nas dios. A regularidade presente em
todas as canções refere-se à política do governo que estava no poder e que o exercia por meio
da censura. Os governantes (os militares) utilizavam um aparelho de repressão bem montado,
por meio do qual controlavam a sociedade, exercendo a fiscalização permanente de todas as
atividades consideradas “suspeitas”; controlando os meios de comunicação e informação, que
envolviam escritores, sicos, poetas, artistas, os quais passaram a divulgar somente o que
era selecionado pela censura ou fiscalização. Ainda nas palavras de Smith, em vez de
combater forças externas, os militares procuravam a subversão dentro da nação. A ameaça de
luta interna transformou os cidadãos em inimigos potenciais, e novas medidas adquiriram
relevância, desde a guerra psicológica ao contraterrorismo. (SMITH, 2000, p. 34).
Um aspecto importante desse período foi a repressão política aos dirigentes e
lideranças que operavam dentro das estruturas legalmente constituídas, como políticos,
sindicalistas, professores, militares, padres, etc., que foram muitas vezes cassados, submetidos
a processos, prisões e torturas. (D’ARAÚJO, 1994, p. 7). “No plano político, os partidos
foram fechados, o Poder Executivo foi tomado pelos militares e assumiu a preponderância e o
Congresso sofreu intervenção. Muitos parlamentares perderam seus mandatos e seus direitos
políticos”. (SMITH, 2000, p. 34). Esta é a temática presente no Recorte discursivo 4, a
tortura, nas letras das músicas “Vence na vida quem diz sim”, “Fado tropical” e “Tatuagem”.
Esclarecidos a tessitura desse tapete teórico e o caminho metodológico a ser
percorrido, chegamos ao ponto em que se faz necessário o arremate dos pontos: a análise das
letras das músicas de Chico Buarque.
83
4.3 O acontecimento discursivo: nosso gesto de interpretação
4.3.1 O milagre econômico e o silêncio local
Ao iniciar as análises das canções, observaremos as condições de produção da época
em que as canções foram compostas por Chico Buarque.
A partir de 1964, o Estado deteve o poder de impor, muitas vezes pela força, as
normas de condutas que deveriam ser seguidas por todos. Assim, cabia ao governo o
monopólio governamental pela coerção, o qual passou a ser o centro de todas as atividades
sociais, políticas, econômicas e culturais. Uma das preocupações do regime estava centrada na
diversidade social, o que impulsionou a formação ideológica sobre a “segurança nacional”.
Em 1965 os militares extinguiram os partidos políticos, acabaram com as eleições
diretas para a presidência da República e começaram a intervir nas universidades. Todavia, a
cena cultural, ao mesmo tempo, dava sinais de grande vitalidade, pois muitas produções
artísticas e culturais começaram a ser criadas, inclusive reagindo ao progressivo fechamento
das empresas que se observava no país.
Na época, a economia brasileira crescia num ritmo alucinante, com milhares de
fábricas sendo instaladas. Definitivamente, o governo parecia determinado a tirar o Brasil do
rol dos países subdesenvolvidos e a palavra de ordem era “desenvolvimento”. Com a
crescente expansão econômica (1968-1973), conhecida como “milagre econômico”,
ocorreram a expansão do sistema de crédito, a atuão das empresas estatais, o endividamento
externo e a reconcentração da renda nacional. A abertura da economia brasileira deu-se tanto
em termos do aumento das exportações e importações como nos investimentos estrangeiros
no país por meio das multinacionais, pois os governos militares ofereciam condições
extremamente vantajosas para a instalação dessas empresas, como, por exemplo, a concessão
de créditos e a liberdade para remeter para suas matrizes no exterior os lucros gerados no país.
Se a censura e a repressão prejudicaram os escritores brasileiros, o desenvolvimento
do regime militar beneficiou, e muito, a indústria editorial do país. Nos anos do milagre
brasileiro” multiplicaram-se as editoras em atividade, cujas tiragens chegaram a mais de 150
milhões de exemplares por ano. Além disso, o governo reduziu impostos, taxas de
importação, viabilizou subsídios e promoveu melhorias nos meios de transporte e de
comunicação, o que favoreceu a indústria editorial.
84
As grandes obras construídas nesse período, como a usina de Itaipu, a ponte Rio-
Niterói, a Transamazônica e outras, empregavam milhares de trabalhadores e davam a
impressão de que o Brasil caminhava para o desenvolvimento. Porém, para realizar essas
obras o governo recorreu a enormes empréstimos, aumentando a dívida externa e a
dependência das instituições internacionais. Apesar do aparente crescimento econômico, o
trabalhador continuou sendo explorado, porque não se valorizava a o de obra e os salários
eram muito baixos. Logo, “o crescimento econômico constituiu outro fundamento importante
das proclamações de legitimidade. O regime militar, alegava-se, poderia conduzir o Brasil a
milagres econômicos graças à aplicação da eficácia tecnocrática e eficiência administrativa”.
(SMITH, 2000, p. 45).
A censura, que se fez presente desde o início da ditadura militar no Brasil e se
intensificou com o AI-5, a partir de 1968 foi o mecanismo mais utilizado pelos militares para
cercear a liberdade de expressão de artistas, jornalistas e intelectuais. Fico afirma que
depoimentos de militantes de esquerda, que viveram intensamente a época, chamam
a atenção para ‘o momento de maior poderio’ da história do PCB, em 1963, e para
essa etapa, como ‘uma fase de excepcional florescimento da cultura brasileira [...]
[ainda que] sem vida com certa marca de populismo e de otimismo ingênuo.
(1997, p. 77).
Desde o início de sua carreira artística (1964), Chico Buarque demonstra preocupação
com o aspecto social. Sua trajetória no cenário musical começou no mesmo período em que
se instalou o regime militar no Brasil. No ano de 1968, com a deflagração do AI-5, as
cassações, deportações e prisões recrudesceram e a censura proibiu a circulação de centenas
de filmes, livros, peças teatrais, músicas e até novelas. Esses acontecimentos afetaram
intensamente as elites cultas do país, que passaram a se posicionar como “focos” de
resistência ao projeto nacional representado pelo regime militar. Nesse contexto, movimentos
de renovação baseados no engajamento político e social transformaram o cinema, o teatro, a
música, as artes plásticas, a literatura, o cinema novo, o teatro de oficina, o tropicalismo, a
poesia marginal, criando propostas inovadoras de expressão artística, voltadas à realidade
nacional, e redefinindo os rumos da cultura brasileira.
Em 1968, a esquerda marxista mergulhou na guerrilha, a qual se manifestou por meio
de reações terroristas contra os donos do poder. Contudo, não podia ter escolhido momento
pior, pois o regime estava suficientemente forte para enfrentar reações desse tipo. Nesse
85
mesmo período, os poetas da década de 1970, especialmente aqueles que faziam poesia social,
viram-se tolhidos pela censura e pela repressão do governo militar. Chico fazia música de
resistência, tornando-se parte do funcionamento dos sentidos e inaugurando parte do “evento
histórico” que se instalou no jogo entre censura e resistência. Orlandi (1995, p. 102-103)
afirma que o discurso da sica popular brasileira (MPB) na época da ditadura militar no
Brasil apresentava na fala dos militares a língua-de-espuma, ou seja, uma língua “vazia”
prática, de uso imediato, na qual os sentidos não ecoam.
O momento histórico de produção da canção foi marcado por acidentes de trabalho,
baixos salários e longas jornadas de trabalho na sociedade brasileira. O assalariado não tinha
acesso aos bens de consumo duráveis, como carro zero-quilômetro, geladeira, televisão,
“luxos” que eram privilégio de poucos ricos, os quais ficavam cada vez mais ricos. Uma das
principais consequências desse desenvolvimento econômico foi, sem dúvida, a concentração
de renda e o empobrecimento de classes. No período de 1964 instalou-se no Brasil o regime
militar, e evidenciou-se uma situação difícil porque muitos produtos eram fabricados, porém
não havia para quem vendê-los. A juventude estudantil, ao se rebelar contra o governo, pagou
um preço muito alto, como se sabe. No período “duroda repressão, os estudantes foram a
categoria social mais visada e mais atingida, ocupando o primeiro lugar nos casos de morte,
tortura e denúncias. Nas malhas da repressão, os estudantes eram um alvo privilegiado, o que
não era infundado, porque a maior parte dos que aderiram à guerrilha provinham de setores
socioeducacionais de níveis mais elevados. Para diversos militares, o envolvimento das
Forças Armadas nesse combate se fazia necessário porque a melhor parte da inteligência
brasileira, o que havia de mais alto nível, estava comprometida com o comunismo, desafiando
não os valores da pátria como também a própria polícia, não tão abastecida de cérebros.
(D’ARAÚJO, 1994, p. 21-22).
As letras das canções “Construçãoe “Cotidiano” serão nosso objeto de análise nesse
momento, no qual faremos referência também à imprensa, pois esse modo de produção de
linguagem posto em prática durante a ditadura militar no Brasil se caracteriza pela censura,
pela interdição da palavra ao conjunto da sociedade brasileira. (ORLANDI, 1995, p. 104). A
força do significante aparece explícita na situação de censura, sendo mais forte que o autor, o
leitor, o censor, a polícia; está em todo lugar; está onde está o poder. A crítica à ditadura
expande-se em todas as direções, sendo, ao mesmo tempo, crítica de muitos outros aspectos
dessa sociedade colocada na mira de força: o autoritarismo das gravadoras (a voz do dono), o
comportamento social geral, tudo é colocado em causa. (ORLANDI, 1995, p. 127).
86
Na perspectiva teórica da AD, toda vez que o sujeito de um discurso toma a palavra,
mobiliza um funcionamento discursivo que, segundo Orlandi (1983, p. 53), é a “atividade
estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para um interlocutor
determinado, com finalidades específicas”.
Apresentaremos, para tanto, a análise das canções “Construção e “Cotidiano” de
Chico Buarque de Hollanda, compostas em 1971. Estas canções, por evidenciarem o sujeito
do discurso e o discurso fundador e se relacionarem com a época do “milagre econômico”,
serão as primeiras a ser analisadas. Observaremos, portanto, o funcionamento do silêncio na
constituição dos sentidos e dos efeitos de evidência. Para sistematizar as análises dessas
canções designaremos da seguinte forma: Recorte 1 Bloco 1 do qual foram selecionadas
cinco sequências discursivas, que vão da SD1 até a SD 5. Segue o texto 1, que configura este
primeiro bloco de músicas.
Recorte 1: Bloco 1- Texto 1
“Construção”
Chico Buarque de Hollanda
1971
Amou daquela vez como se fosse a última.
Beijou sua mulher como se fosse a última.
E cada filho seu como se fosse o único.
E atravessou a rua com seu passo tímido.
Subiu a construção como se fosse máquina.
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas.
Tijolo com tijolo num desenho mágico.
Seus olhos embotados de cimento e lágrima.
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe.
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago.
Dançou e gargalhou como se ouvisse música.
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado.
E flutuou no ar como se fosse um pássaro.
E se acabou no chão feito um pacote flácido.
Agonizou no meio do passeio público.
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
Amou daquela vez como se fosse o último.
Beijou sua mulher como se fosse a única.
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado.
Subiu a construção como se fosse sólido.
Ergue no patamar quatro paredes mágicas.
Tijolo com tijolo num desenho lógico.
Seus olhos embotados de cimento e tráfego.
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe.
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo.
Bebeu e soluçou como se fosse máquina.
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo.
E tropeçou no céu como se ouvisse música.
E flutuou no ar como se fosse sábado.
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago.
Morreu na contramão atrapalhando o público.
Amou daquela vez como se fosse máquina.
Beijou sua mulher como se fosse lógico.
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas.
Sentou pra descansar como se fosse um ssaro.
E flutuou no ar como se fosse um pncipe.
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Iniciemos a análise do Recorte 1:
87
O exame deste primeiro recorte discursivo torna mais evidente os fatos discursivos
correspondentes ao “milagre econômico”, que determinam seu sujeito por meio das
formações imaginárias provenientes de um discurso fundador. Na Análise do Discurso, os
conceitos se implicam, cada um exigindo a explicação de muitos outros, com os quais
estabelece uma relação de interdependência. Para seu exame sequências discursivas foram
recortadas e a SD1 seguiu o critério da regularidade, ou seja, por se encontrar repetida nos
versos 10 e 16 e também em Comeu feijão com arroz como. Lembramos que na letra da
música a repetição da expressão como se fosse é uma estrutura comparativa bastante
recorrente, o que, no nosso entendimento, projeta uma memória futura, uma vez que e em
uma relação de equivalência as condições concretas de uma vida vivida e a projeção de uma
possível num outro momento, talvez pós-morte.
Na perspectiva do teórico Žižek, a estrutura “como se” determina um valor de uso,
como se a mercadoria não estivesse sujeita a trocas físicas e materiais, como se ela
estivesse excluída do ciclo natural da geração e da deterioração, embora, no vel de
sua ‘consciência’, eles ‘saibam muito bem’ que isso não acontece. (1996, p. 303).
Nessa seqncia discursiva é como se o sujeito do discurso dissimulasse seu estado
atual mesmo sabendo o que é real. É como um faz-de-conta: eu finjo que é uma coisa, mas sei
que na realidade isso é uma ilusão, é uma fantasia, e vivo no faz-de-conta para não ter de,
pensar, de me incomodar, de modificar a situação que vivencio. Passemos, então, à análise da
sequência SD1.
SD1 comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
comeu feijão com arroz como se fosse o máximo.
Na sequência discursiva SD1 identificamos uma marca importante do discurso de
Chico Buarque: a inversão de valores e de papéis sociais. Quando o sujeito enuncia que
comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe, está invertendo o papel social que lhe
cabe, ou seja, deixa de ser o operário da construção civil e passa a exercer o papel da realeza
(o príncipe), julgando o máximo essa situação vivenciada. Pode ser uma paródia do enunciado
comer como um padre, que reproduz a cena de refeição farta, da comida em abundância,
assim como falar em governo e religião era proibido; portanto, o sujeito do discurso
ressignifica os lugares sociais ao escrever príncipe no lugar de padre. Como se tratava de um
88
período em que se pregava o “milagre econômico”, não se podia nem se devia dizer que se
comia mal, ou que faltava comida.
Nesse deslocamento de sentido, é por meio do efeito metafórico que o brasileiro passa
a ter acesso à transformação dos sentidos e o sujeito revela
4
traços de seu desejo inconsciente
de ser reconhecido socialmente; na realidade, o sujeito excluído socialmente ganha voz no
discurso da MPB. Por outro lado, revela a falta de alimento, a situação econômica vivenciada,
que de “milagre econômico” o tinha nada, quer dizer, a valoração dada a esse sujeito
permite-nos relacionar a organização da estrutura social brasileira naquele momento marcada
por diferenças econômicas, sociais e políticas. A questão silenciada diz respeito ao fato de
que um operário da construção civil o deveria ter direito de reclamar; deveria, sim, dar
graças aos militares, que o lhe deixavam faltar feijão e arroz à mesa. Logo, esse mesmo
sujeito, ao emitir uma opinião concreta sobre o papel que a política representava no momento
para o país, instala um novo sentido aos discursos dos militares, ou seja, a evocação do
enunciado como se fosse... não se dá para repetir a metáfora do “milagre econômico”, mas
para produzir uma nova metáfora, funcionando aqui como uma negação de saberes da FD
militar. Portanto, os sentidos são produzidos de acordo com os lugares ocupados pelos
sujeitos no discurso e a sua voz vem representada na voz do sujeito da MPB.
O sujeito representado na SD1 indica uma apatia em relação ao que acontece em sua
vida, no seu país, percebendo-se oprimido, desanimado e sem forças para reagir contra o que
o oprime; vive uma situação de total desesperança e dissimula como um marginal, apesar de
trabalhar na construção. É a negação de uma realidade com a qual não concorda, o que nos dá
a certeza de uma correlação de forças. As forças externas (o governo, a política, a censura)
são mais fortes do que sua apatia. As palavras têm sentido em conformidade com as
formações ideológicas em que os sujeitos se inscrevem; em contrapartida, o discurso, ao ser
encaminhado para outra parcela da população, pode ser lido como uma resistência a esse
poder ditatorial.
Dito de outra forma, há o atravessamento de saberes da FD militar no dizer da
FDMPB, o que significa que o “mascaramento” de um sentido em favor de outro (re)vela
5
a
presença do silêncio constitutivo. Nesse caso, o efeito metafórico vem marcado na língua pelo
funcionamento da comparativa “como se fosse...”, que coloca na condição de equivalência o
sujeito da construção civil e o da realeza, ou seja, constitui-se uma negação ao afirmado pela
4
O termo revela sendo usado aqui no sentido de confessar, declarar.
5
Explicamos ao leitor o uso de (re)vela não apenas no sentido de confessar, declarar, desembuchar o que está
mascarado, silenciado, mas também de (re)velar , ou seja, de ocultar, de encobrir, de vigiar, de ficar de guarda.
89
política governamental: “o milagre econômico” é uma farsa. Trata-se de uma correlação de
forças: de um lado, saberes da formação discursiva da MPB, que rejeitam os saberes da
formação discursiva militar; de outro, os saberes da formação discursiva militar, que, pela
memória, produzem a lembrança de que o brasileiro não tem do que reclamar, porque não
falta feijão em sua mesa.
Como dissemos no início da análise da SD1, a repetição da mesma estrutura
apontando para uma regularidade não é mera paráfrase; em realidade, trata-se do efeito
metafórico que se move evidenciando o silêncio local (a censura). Observemos o
desdobramento da SD1, em que é possível substituir “pncipe” e “máximo”.
SD1 (1) “... como se fosse a última ...”
SD1 (2) “... como se fosse o único ... ”
SD1 (3) “... como se fosse quina ...”
SD1 (4) “... como se fosse um náufrago ...
SD1 (5) “... como se ouvisse música ...
SD1 (6) “... como se fosse bêbado ...”
SD1 (7) “... como se fosse um pássaro ...”
A repetição nas sequências acima projeta um efeito de memória que indica o futuro
comprometido desse trabalhador: em (1), a despedida, a morte; em (2), a capacidade de
resistir; em (3), a substituição homem-máquina; em (4), a referência àquele que está
abandonado à ppria sorte; em (5), a determinação da porta-voz do discurso; em (6), a
obnubilação da consciência: e em (7), o sonho da liberdade tão esperada.
O efeito metafórico concretiza-se pela substituição de uma denominação por outra. Na
estrutura linguística podemos ler a última, no entanto pela ação do efeito metafórico no
acontecimento discursivo nosso gesto de interpretação é o sentido de despedida de morte.
Para tanto, é necessário recorrer à materialidade histórica para sustentar o que acabamos de
afirmar. A SD1 recortada relaciona-se com a época do “milagre econômico”, que o Brasil
estava em pleno desenvolvimento industrial (máquina) e a música constituía um outro sentido
de construção e de produção, passando, por isso, a ser um dos alvos dos censores.
De acordo com o que estudamos em Žižek, a ideologia é do nível daquilo que fazem,
não do que pensam ou sabem estar fazendo. E o que sustenta esse fazer é a fantasia
ideológica. Na análise que ora empreendemos, o “como se” representaria a ilusão que
estrutura essa realidade, não a realidade em si. A ideologia não é uma ilusão que mascara o
90
verdadeiro, mas uma fantasia ideológica que estrutura a realidade social. Sei muito bem,
mas, ainda assim...” É como se o sujeito do discurso construísse (inconscientemente) uma
carapaça para se proteger, para suportar a realidade que lhe é hostil, ameaçadora.
Para dar sequência às nossas análises, recortamos a SD2, que reforça o que foi descrito
anteriormente sobre o milagre econômico, ou seja, e em circulação a existência de uma FD
capitalista, a qual atravessa saberes da FD militar, como será analisado a seguir. Vejamos a
SD2:
SD2 Subiu a construção como se fosse máquina.
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas.
Tijolo com tijolo num desenho mágico.
Nessa sequência discursiva observamos que os elementos construção/máquina/ quatro
paredes/ tijolo/ desenho mágico convergem para a formação discursiva do capitalismo.
Lembramos, novamente que formação discursiva, segundo Pêcheux, define-se como aquilo
que numa formação ideológica dada, ou seja, a partir de uma posição dada numa conjuntura
sócio-histórica dada, determina o que pode e deve ser dito. Na perspectiva histórica, Ridenti
afirma que
a modernidade capitalista que se desenvolveu ao longo do século XX, com a
crescente industrialização e urbanização, avanço do complexo industrial-financeiro,
expansão das classes dias, extensão do trabalho assalariado viria a consolidar-se
com o desenvolvimento nos anos de 1950 e especialmente após o movimento de
1964, implementador da modernização conservadora, associada ao capital
internacional, com pesados investimentos de um Estado autoritário, sem
contrapartida de direitos de cidadania aos trabalhadores. Uma parte da
intelectualidade brasileira, particularmente no meio artístico, viria a politizar-se
criticamente nesse processo. (RIDENTI, 2006, p. 137).
Na perspectiva da AD, nota-se que a esse conjunto de saberes (FD) capitalista está
relacionado o “milagre econômico” alardeado para o país, ao qual relacionamos o
interdiscurso, ou seja, o sujeito do discurso, independentemente da sua vontade, assume uma
posição-sujeito, inscreve-se num -dito, numa memória discursiva que o antecede e que
traduz as relações de poder constituídas histórico-ideologicamente Subiu a construção, Ergueu
no patamar e num desenho mágico sugerem o movimento de crescimento, de mágica, como
91
sugerido pelo desenvolvimento econômico. No texto de Maluf-Souza
6
vemos que “o
funcionamento da instância ideológica produz, pelo processo de interpelação, um
assujeitamento ideológico que constitui o próprio sujeito como forma-sujeito, forma de
existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. Desse modo, podemos
dizer que a ordem social dos militares significa desordem na concepção do sujeito do discurso
da MPB, uma vez que para se atingir o “milagre econômico” paga-se o ônus da exploração.
Esse sujeito do discurso, entretanto, a nosso ver, não pode ser entendido apenas por
sua função social, mas também pelas interações que realiza. Ao ser comparado à máquina,
demonstra que o indivíduo deve realizar suas funções mecanicamente, sem pensar nem
questionar; os passos devem ser seguidos metodicamente, para que não se perca tempo nem
dinheiro. Essa é uma das marcas da sociedade capitalista contemporânea. Essa atitude de
realizar as tarefas mecanicamente se refere à época em que o Brasil crescia vertiginosamente
à custa de longas jornadas de trabalho, de trabalho braçal, pesado, rotineiro os operários
sempre realizando a mesma função, todo dia, toda hora. À luz do efeito metafórico,
recorremos à imagem do vídeo Cálice censurado, em que vemos imagens de tanques de
guerra que atuavam nas ruas do Rio de Janeiro, produzindo um imaginário de esmagamento,
de aniquilamento do sujeito da resistência, representando a força repressora da máquina
militar.
A palavra “construção” pode significar prédio, que, no caso, representa,
metaforicamente, o esforço angustiado de um homem à espera da consquista de sua liberdade,
desvencilhando-se das amarras da opressão que o sufocam. Assim como um prédio se
constrói tijolo a tijolo, o discurso de nossa vida se constrói palavra a palavra, pela música, que
produz mecanismos de denúncia e de defesa contra as ações opressoras dos representantes do
governo militar.
No prédio, de acordo com a SD2, busca-se a construção de paredes lidas e fixas. O
discurso do sujeito evidencia a resistência, a coragem de calar para poder negar, o não-poder
dizer; no entanto, o movimento contrário paredes sólidas encaminha a ideia de luta contra a
censura, contra a opressão e contra a repressão que estão sendo impostas pela política do
governo. Em Construção, o sujeito é generalizado. O homem é visto, em relação à sociedade,
de maneira trágica, oprimido, marcado pela inutilidade, que constrói, mas é destruído por essa
estrutura social que o aprisiona.
6
MALUF-SOUZA, Olimpia Cidade, discurso e ideologia. Disponível em http://www.discurso.ufrgs.br/sead.
Acesso em: 12 out. 2008.
92
O efeito metafórico presente na SD2 possibilita compreender os deslizes dos sentidos.
Como exemplo, ao citar um desenho mágico, instala um sentido novo, o de redesenhar com
magia (ilusão) a violência psicológica que assolava o país, ou seja, ao mesmo tempo em que
traz no desenho mágico a memória do que foi dito e do que se instituiu como uma ilusão, traz
a ilusão de que poderia ser diferente, como num baile de máscaras, em que cada indivíduo usa
uma máscara diferente para dissimular a realidade social.
A seguir, a SD3, que foi recortada pela incidência do modalizador na contramão,
reforça a resisncia enfrentada pelo sujeito do discurso. Observemo-la.
SD3 Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
O modalizador na contramão é constitutivo do efeito metafórico, podendo ser lido no
sentido do tráfego como direção contrária, ou seja, de resistência ao regime militar. Tudo que
o sujeito faz o faz na contramão das coisas instituídas, atrapalhando a tranquilidade das
ações cotidianas, mesmo que estas sejam opressoras. Assim, contramão (re)vela o que foi
silenciado, pois, ao falar do operário, o sujeito do discurso está falando de si próprio, que está
na contramão desse regime ditatorial. Observamos aqui que a posição-sujeito é de negão, o
que se comprova pela enunciação do sujeito da FDMPB de que os intelectuais foram os
primeiros a se darem conta de que o tal do “milagre econômico” era tão somente uma idéia
implantada pelos militares no imaginário do brasileiro. O silêncio local vem, então,
desmascarar essa ideia, justamente, ao denunciá-la, como em atrapalhando o tráfego.
Podemos inferir também que o operário da construção civil (bem como de outros
setores) será sempre um incômodo, um estorvo, o que o deixa de ser uma forma de protesto
contra sua condição. O sujeito do discurso protagoniza na figura do operário o drama de sua
revolta silenciosa e de sua impotência; questiona a insensatez da sociedade diante dos
oprimidos, o desdém dos militares pelo pximo, seu desinteresse comunitário. Coloca-se,
portanto, na contramão da política capitalista, tentando resgatar as ideias do povo e nação.
Ridenti assinala que
a valorização do povo não significava criar utopias anti-capitalistas regressivas, mas
progressistas; implicava o paradoxo de buscar no passado (as raízes populares
nacionais) as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante
que, no limite, poderia romper as fronteiras do capitalismo”. (2006, p. 138).
93
O sujeito, por ser sujeito, sente-se capaz de representar fielmente a realidade, mas a
representa, de fato, ideologicamente. É a ideologia que constitui o sujeito, na ótica de
Althusser. Para Pêcheux, uma dada formação discursiva (FD), ao atravessar o sujeito, o
constitui, pois se configura numa dada formação ideológica (FI), a partir de uma dada posição
sujeito e numa dada conjuntura, determinando-se como espaço de dizer pelo estado da luta de
classe, isto é, pelas relações de poder e de saber que constituem cada classe. (MALUF-
SOUZA, 2005, p. 2). Relacionando ao nosso corpus, percebemos que o sujeito do discurso
não se identifica com a formação imaginária preconizada pelo regime no poder. A imagem de
segurança nacional, tão amplamente veiculada pela mídia, não é aceita pelo sujeito; ao
contrário, ele tenta se desamarrar dessas teias utilizando-se do recurso de ir na contramão,
correndo o risco de ser atropelado pelo tráfego da ditadura, que o impede de chegar ao seu
destino ideal.
A sequência discursiva 4 retrata a questão ideológica marcada na língua. Vejamos.
SD4 Seus olhos embotados de cimento e lágrima
O discurso aqui analisado remete à ideologia dominante no período da ditadura
militar. O efeito metafórico marcado na estrutura da língua pela expressão de cimento nos
remete aos saberes da FD capitalista, ou seja, a construção civil representando a ideia de
progresso, e seus olhos embotados é entendido aqui como olhos vendados (a censura velada,
produzida pelo aparelho ideológico de Estado, pelo censor). As designações olhos, cimento e
lágrima indicam a sujeira do cimento (ideologia do governo militar), os olhos que tudo veem,
mas que, por não poderem modificar o instituído, choram, lavam e limpam sua alma com as
lágrimas da indignação e do inconformismo. Nessa SD4 o silêncio local permite-nos fazer a
seguinte leitura a partir dos elementos da construção civil: (o cimento) está encravado no
corpo humano (olhos e lágrimas). E esse cimento sobre o corpo produz o enrijecimento, o
entorpecimento da consciência do sujeito do discurso. Pelo efeito metafórico, podemos ler
esse corpo humano como uma laje: fria, compacta, dura, impermeável, o que implica cegueira
perante a censura instituída, que cimenta os olhos desse sujeito.
Sabemos que a música, em confluência com a poesia, desperta o interesse dos cursos
de literatura por sua riqueza e valor estético. Nesse sentido, é oportuno apresentar o
94
comentário do crítico literário Affonso Romano de Sant’Anna
7
sobre a obra de Chico Buarque
para o encerramento das análises deste primeiro recorte discursivo:
Sua obra se desenvolve sistematicamente como uma “construção”, onde todas as
imagens, mesmo as mais banais, contribuem para a reafirmação da música como
atividade destinada a romper o silêncio do cotidiano e a fazer falar as verdades que
os homens querem calar. Em Chico a música é possibilidade de comunhão, a
lembrança do paraíso perdido, música como abertura para a vida. (2004, p. 161).
Nesse comentário diz-se pouco, no entanto, aponta-se o essencial sobre a obra de
Chico Buarque: faz falar verdades que os homens querem calar, verdades (leituras) que
queremos lembrar e mostrar.
Desse modo, encerramos a análise do Texto 1 do Recorte 1 e passamos, agora, ainda
no Recorte 1, à análise do texto 2. Na sequência trazemos a letra da canção “Cotidiano”, que
pertence ao Bloco 1, composta na mesma época. No texto 2 foram recortadas quatro
sequências discursivas, que vão da SD5 a SD8, as quais selecionamos por meio de um
processo de identificação da repetição nas sequências de designações como Todo dia, que
chama nossa atenção para os sentidos silenciados. Que efeitos de sentido todo dia produz?
Com esse questionamento observamos por meio da materialidade histórica o que estaria sendo
silenciado. Estamos, portanto, numa posição de entremeio entre a descrição e a interpretação e
esperamos tornar visíveis as relações que se estabelecem entre diferentes sentidos.
7
Esta citação se encontra em FERNANDES, Rinaldo de Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o
teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Nacional, 2004.
95
Recorte 1- Bloco1 - Texto 2
“Cotidiano”
Chico Buarque
1971
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no poro
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Vamos à análise:
SD5 Todo o dia eu só penso em poder parar
E me calo com a boca de feijão.
Na sequência discursiva SD5 - Todo o dia eu só penso em poder parar/E me calo
com a boca de feijão há marcas linguísticas, como penso, que nos permitem afirmar que
esse seria o momento de parar e dizer o, porém este foi silenciado pelo calo – fecho a boca
com feijão. Na perspectiva da AD, podemos entender este calar a boca de feijão como a
política do silêncio, a censura, ou seja, o governo ao povo o que comer para que ele não
pense, não reivindique, não critique e não se revolte. A confirmação dessa subserviência se dá
pelo funcionamento do reflexivo me, o qual aponta para o sujeito responsável pela ação calar
e, simultaneamente, para o sujeito que sofre o efeito desse calar. a recorrência da negação
de uma realidade com a qual o sujeito do discurso não concorda. Sabemos que simbolizar é
um ato político e ideológico por excelência, é o ato que divide o sujeito. Não existe um espaço
do sujeito fora do ideológico; o que existe é o espo onde o silêncio se manifesta (fala). É
algo fora do alcance do sujeito que não lhe é permitido simbolizar.
Podemos dizer, então, que, na SD5 ao produzir essa nova metáfora o sujeito da FD
MPB acaba por denunciar o funcionamento da violência, que atua sobre o corpo do sujeito
com a ilusão de fazê-lo silenciar. Este espaço determina a movência do sujeito e dos sentidos,
uma determinação já não de ordem ideológica, mas também inconsciente. Portanto, o
sujeito resulta de uma ligação da ideologia inscrita histórico-socialmente com o inconsciente,
96
que dá vazão à manifestação do silêncio, do desejo... É dessa forma que o sujeito se relaciona
com a forma-sujeito da FD MPB, por meio do silêncio local e que funciona como uma
resistência.
Na sequência, ainda, em calar a boca de feijão o que ressoa é que para calar não basta
fechar a boca, já que o fechar a boca do povo brasileiro funciona como uma ilusão que
mascara a realidade. É como se calar a boca de feijão fosse suficiente para preencher a falta
atestada pela interdição. Em a Arte de calar lemos que “o rosto fala pela língua e, para calar
não basta fechar a boca” (2001, p. 10), pois, mesmo fechada pela ilusão do “milagre
econômico”, a boca fala, e fala de outra maneira, mantendo, porém, a mesma matriz de
sentido (paráfrase). Ocorre o deslocamento, o efeito metafórico, mas o que se está dizendo é a
mesma coisa; o que falta a esse sujeito desejante é justamente o que ele não pode ter: a
liberdade de expressão.
SD6 Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Nessa seqncia, o sujeito empírico representa este sujeito do discurso, que é o seu
porta-voz
8
; fala em nome de uma classe oprimida, sem seu consentimento, pois o povo não
tem noção do que está acontecendo, tanto que ainda há muitos brasileiros que hoje afirmam
sentir saudades dos tempos da ditadura militar. O novo está preso nas teias do seu dia a dia,
no cotidiano de sua vida, constituída pelo - trabalhar, comer, beber e se divertir. Ele rompe
com o silêncio do cotidiano, e as questões políticas estão fora de seu mundo; o sujeito é
obrigado a levar adiante sua vida mesmo que sofra a violência de ser calado, à foa, pela
boca de feijão. O proibido está justamente na formulação poder parar, que aponta para a
interdição disfarçada de generosidades do governo. Assim, o silenciado fica marcado na
estrutura linguística penso em dizer não, uma vez que é proibido dizer em uma certa
conjuntura e para se dizer não se requer muita coragem, que é antecipada a ideia da dura
conseqüência àquele que resiste. Nessa perspectiva, reconhecemos aqui três posições-sujeito
imbricadas na FD MPB: a posição-sujeito(1), a do poder exercido pelo regime autoritário, a
8
Pêcheux no artigo “Delimitações, inversões, deslocamentos” afirma que o porta-voz , ao mesmo tempo ator
vivel e testemunha ocular do acontecimento: o efeito que ele exerce falando ‘em nome de...’ é antes de tudo
um efeito visual, que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim
ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele
representa, e sob o seu olhar. Dupla visibilidade (ele fala diante dos seus e parlamenta com o adversário) que o
coloca em posição de negociador potencial, no centro visível de um ‘nós’ em formação e também em contato
imediato com o adversário exterior. (1990, p. 17).
97
posição-sujeito (2), da submissão exercida por aquele que se cala em troca de comida, e a
posição-sujeito (3), da resistência ocupada pelo sujeito da MPB.
SD7 Todo dia ela faz tudo igual.
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
Todo dia eu só penso em parar
A regularidade presente em Todo dia leva-nos a produzir um gesto de interpretação
em relação a uma projeção para o futuro da situação vivenciada pelo sujeito do discurso, ou
seja, a ação rotineira de continsmos que causam exaustão e projeta a falta de perspectiva. A
ordem da realidade reforça não só a posição do poder, mas tamm a ordem do imaginário,
representada pela sequência ... penso em parar, que instaura um silêncio encoberto pelo
desejo de que essa rotina termine. É possível recuperar pela linha do interdiscurso que os fatos
presenciados são relembrados e posteriormente projetados para o futuro de uma maneira
interminável. Percebe-se também uma correlação de forças entre a FD MPB e a FD militar.
Na determinação tudo igual, que pode ser qualquer coisa, inclusive o fato do governo que
mantém a linha ditatorial, observamos certo efeito de indeterminação e, na formulação
penso em parar, projeta-se uma ação futurista que seja capaz de romper com o cerco da
censura. Orlandi (1999, p. 67) nos diz que “o que foi censurado não desaparece de todo.
Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso”. São discursos esses abertos a novos gestos
de interpretação que acabamos de observar nas análises das SDs
SD8 Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Na denominação “pra eu não me afastar” é possível recuperar na voz feminina o tom
de recomendação, de alerta sobre o perigo. É, pois, pelo interdiscurso que se recupera a ideia
de perigo que as reuniões contra o regime militar ocorriam na calada da noite, mas, mesmo
assim, muitas vezes os participantes eram pegos de surpresa e, inclusive, presos. O
afastamento refere-se, portanto, ao perigo, às prisões que ocorreram na época da ditadura
militar. “O que está fora da memória não está nem esquecido nem foi trabalhado,
metaforizado, transferido.” (ORLANDI, 1996, p. 66) É como se não tivessem existido na
realidade da ditadura militar. É com este enunciado sinalizado pela marca temporal toda noite
que o sujeito da FDMPB produz o efeito de metáfora. Aqui, o jogo entre Todo dia (SD7) e
Toda noite (SD8) ratifica a assimetria entre as posições-sujeito (posição-sujeito do poder e
98
posição-sujeito da resistência) e, desse modo, a correlação de forças entre as duas posições.
Ao mesmo tempo, esse jogo é também marca do que se busca silenciar, de um lado, pelos
militares e, de outro, desvendar pelo sujeito da MPB: a violência praticada na calada da noite,
sob o pretexto e à sombra da lei.
Considerações parciais
Para finalizar as reflexões do presente recorte, observamos que os silenciamentos
presentes nos textos das sicas Construção e Cotidiano vêm camuflados pelo ar de
constitucionalidade e democracia presentes na FD militar que atravessa a FDMPB. A busca
pela construção de um cotidiano marcado pelo crescimento e pelo progresso por parte dos
governos militares, retomada nas letras analisadas, denuncia outra preocupação: a expulsão
dos comunistas (subversivos). “O milagre econômico” reforça isso, do mesmo modo que
reforça a ideologia presente na FD militar.
Ressaltamos também que a cena enunciativa se caracteriza por constituir modos
específicos de acesso à palavra, dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas
linguísticas. A cena enunciativa, segundo Guimarães:
É assim um espaço particularizado por uma deontologia específica de distribuição
dos lugares de enunciação no acontecimento. Os lugares enunciativos são
configurações específicas do agenciamento enunciativo para aquele que fala” e
“aquele para quem se fala”. Na cena enunciativa “aquele que fala” ou aquele para
quem se fala” não são pessoas mas uma configuração do agenciamento enunciativo.
São lugares constituídos pelos dizeres e o pessoas donas de seu dizer. [...] Esta
distribuição de lugares se faz pela temporalização própria do acontecimento. Neste
sentido a temporalidade específica do acontecimento é fundamental na cena
enunciativa. (2002, p. 23).
A cena enunciativa construída neste primeiro recorte refere-se, portanto, ao “milagre
econômico”, na qual salientamos aspectos referentes às condições de produção da época em
que as canções foram compostas, bem como, por meio do efeito metafórico, abrimos um
leque de leituras possíveis na perspectiva da AD. É justamente nesse contexto de busca da
construção de uma imagem grandiosa do Brasil que os brasileiros deveriam pensar com
grandeza. Fico nos diz que eles deveriam aprender que nada mais pode ser pequeno ou
medíocre quando se vive num país como este. Era essa a imagem que foi construída no
imaginário dos brasileiros. Enfim, após os anos do milagre econômico o imaginário
99
presente era o de um país singular, exuberante, especial, que, por um impulso também
incomum, “milagroso”, estaria brevemente, segundo essa ótica, no plano das nações mais
desenvolvidas” (FICO, 1997, p. 82).
Nesse bloco (1), constituído por dois textos, encontramos no texto 1 a inversão de
valores e papéis pelo sujeito da MPB. O conceito que fica mais evidente diz respeito às
formações discursivas militar e da MPB, evidenciando diferentes posições-sujeito. No texto 2
percebemos claramente as seguintes posições-sujeito: (1) a do poder exercido pelo regime
autoritário; (2) a submissão exercida por aquele que se cala em troca de comida; (3) a
resistência ocupada pelo sujeito da MPB. A política do silêncio se faz presente, mascarada
pelo efeito metafórico, que resgatamos por meio da memória discursiva.
4.3.1.1 A censura e silêncio local
Em nosso caminhar metodológico o primeiro passo é o que se refere às condições de
produção, que compreendem os sujeitos e a situação social. Portanto, falar em discurso é falar
de condições de produção, as quais mudam à medida que muda o objeto de um determinado
enunciado, embora se apresentem como algo inacabado. Em nosso corpus o modo como os
censores agiam, de forma arbitrária e implacável, foi observado no primeiro bloco de análises.
Na obra Como eles agiam, de Carlos Fico (2001), relata-se como foi polêmico o
estabelecimento da censura e por que as atividades culturais e artísticas foram especialmente
visadas. A censura à imprensa foi tão sistemática que se tornou uma rotina e, em muitos
casos, acabou sendo absorvida pelos jornalistas como etapa regular dos trabalhos diários da
imprensa. A imprensa escrita foi uma das grandes vítimas da interdição dos censores. O
diretor-geral do Departamento de Polícia Federal (DPF) era quem comandava essa atividade,
orientado pelo ministro da Justiça, ambos atendendo a diretrizes gerais ou a determinações
específicas provenientes das diversas instâncias do governo. No início de 1973, o diretor-geral
do DPF, general Nilo Caneppa Silva, encaminhou ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, um
relario geral sobre as atividades desenvolvidas “no campo da censura e aos órgãos de
comunicação social a partir de agosto de 1971” até janeiro de 1973.
Segundo o documento, estavam submetidos à censura prévios periódicos Tribuna da
Imprensa, O Pasquim, A notícia, entre outros. As notícias a serem censuradas diziam respeito
aos seguintes conjuntos temáticos: anistia, clero, educação, índios, liberdade de imprensa,
100
moral e bons costumes, política, política econômica, subversão, sucessão presidencial,
tóxicos, e Transamanica. O Pasquim foi o mais visado pela censura na modalidade “moral e
bons costumes”, tendo 65% de suas notícias censuradas por incidirem nessa classificação; a
Tribuna da Imprensa teve índice de 100% no quesito ‘política’. (FICO, 2001, p. 168-269)
A censura, portanto, era um dos esteios do regime militar brasileiro, tendo sido
amplamente utilizada para impedir a divulgação de temas na imprensa ou para coibir
manifestações artístico-culturais. Pelo que se divulgara à comunidade, os jornais, as emissoras
de TV, o cinema e o teatro estariam dominados por comunistas, subversivos e licenciosos.
Referindo-se ao nosso corpus, todas as letras das canções que fazem parte do recorte
discursivo 2 integravam a peça intitulada Calabar o elogio da traição, escrita por Chico
Buarque e Ruy Guerra. Por meio de movimentos culturais, como a peça teatral, os autores
conseguiam denunciar a violência policial e do aparelho jurídico que era praticada naquele
momento histórico as formas de resistência pelo silêncio local. Escrita originalmente em
1973, a peça não chegou a ser encenada nesse ano, já que, quando estava prestes a estrear, a
censura agiu proibindo sua exibição, bem como quaisquer referências ao episódio na
imprensa. Teve, até mesmo, a capa (o título em grafite pintado no muro) censurada e várias
letras cortadas. O mundo musical de Francisco Buarque de Hollanda foi proibido pela polícia
local. Mas o que teria Calabar de tão subversivo para não passar pelo crivo dos militares?
A peça trata do verdadeiro significado da palavra traição na época da invasão
holandesa ao território brasileiro (século XVII). As constantes batalhas entre portugueses e
holandeses pelo domínio do Brasil são o ponto de partida para refletir sobre como a traição
era vista nesse período. Domingo Fernandes Calabar, que a princípio lutava a favor de
Portugal, mas passou para o lado da Holanda, foi executado como traidor. Ele o aparece em
cena, mas suas ideias são relatadas por Bárbara, sua mulher. Para a história oficial, este
personagem é considerado traidor, exemplo de má conduta. Chico e Ruy Guerra, entretanto,
optam por discutir a questão, por desmistificar a figura do herói e relativizar conceitos
sagrados da hisria. Os autores questionam o mito ‘Calabar-traidor’ e os discursos que
constroem mitos e heis no decorrer do processo histórico.
Em princípio, o texto havia sido liberado pela censura federal para maiores de dezoito
anos, e os autores, juntamente com Fernando Torres e Fernanda Montenegro (no papel de
produtores), iniciaram a produção, bastante cara e audaciosa (algo em torno de trinta mil
lares na época). Quando já avançados nos ensaios, começaram a aparecer rumores de que
haveria problemas, pois os censores não apareceram para o ensaio, adiando-se a estreia da
peça. O texto acabou sendo interditado para reexame, resultando em sua proibição, como
101
também do nome ‘Calabar’, que Chico Buarque não pôde usar nem na capa do disco com as
canções da peça, que tiveram as letras censuradas, sendo proibida também a sua divulgação.
Com a proibição, os produtores arcaram com o prejuízo e Calabar pôde ser encenada em
1979, quando entrávamos no período de abertura política. (FERNANDES, 2004,
p. 233-234).
Em realidade, a batalha entre holandeses e portugueses foi travada apenas pelo poder,
visto que nem de longe se pensava na libertação do Brasil ou no que seria melhor para a
nação. Aos brasileiros restava escolher qual seria o melhor modelo de colonização, ou seja,
português ou holandês. Os interesses em relação ao Brasil eram meramente comerciais. Em
Calabar todos traem em algum momento. Transcrevemos um trecho do parecer emitido pelo
Centro de informações do Exército (CIE), que, apesar de longo, fala por si só:
A peça teatral em epígrafe é da autoria dos subversivos Chico Buarque de Holanda e
Ruy Guerra [...]. Vários heróis de nossa história, inseridos no fato, são
ridicularizados e acusados de traidores, na tentativa de desmoralizar aspectos
fundamentais da formação da nacionalidade brasileira, cujo berço se assenta,
exatamente, no episódio da luta contra a dominação holandesa no Nordeste[...]
alguns escritores atuais, inocentes úteis ou ideólogos do comunismo internacional,
entre esses os Srs. Nelson Werneck Sodré e Barbosa Lima Sobrinho, fazem apologia
da inocência de Calabar. [...] nos anos de 1970 e 1971, os setores de agitação e
propaganda das diversas organizações terroristas tentaram fazer de Tiradentes o
patrono da subversão no Brasil [...]. O trabalho dos órgãos de segurança para
neutralizar essa propaganda alcançou êxito em 1972, durante as comemorações do
sesquicentenário da nossa Independência, quando a figura de Tiradentes foi exposta
à opinião pública como “Patrono da Nacionalidade Brasileira”. No início deste ano
foram levantados indícios de que “Tiradentes” seria, na propaganda subversiva,
substituído por “Calabar” [...] A peça “Calabar”, que segue essa orientação [...].
(FICO, 2001, p. 174).
Mescla-se nesse parecer o que de pior em termos de compreensão da história do
Brasil, de preconceito político e delírio persecutório, além de denunciar que a personagem
Ana de Amsterdam exalta o comunismo sexual. Propondo um fecho literário, o órgão
expedidor do documento, afirma:
Concluindo o subversivo trai, convulsiona, assassina: é herói. É Calabar de uma
tria diferente: a pátria ideológica. É Calabar de uma só religião: o comunismo. Por
isso, todas as traições são boas se servirem à causa comunista: o que é bom para o
comunismo é bom para o Brasil. (FICO, 2001, p.174-175).
102
Chico Buarque diria, posteriormente, sobre a peça (em depoimento a Regina Zappa)
que a ideia era discutir se Lamarca, um militar que passou para o lado da guerrilha, era ou não
um traidor. Havia uma paralelo evidente, e o interesse era esse na época. Mais tarde, a peça
seria encenada, mas então perderia o sentido.
Nosso segundo recorte discursivo será composto pelo Bloco 2, constituído pelas
seguintes sicas de Chico Buarque em parceria com Ruy Guerra (1) “Hino de Duran” , (2)
“Ana de Amsterdam”, (3) “Boi voador não pode”, (4) “Cala a boca, Bárbara”. Todas as
canções foram produzidas nos anos de 1972-1973 e a temática refere-se à censura e à política
governamental.
Apresentamos a seguir, as análises das sequências discursivas da canção Hino de
Duran. O primeiro texto do bloco 2 é a letra da sica Hino de Duran, composta por 21
sequências discursivas agrupadas em blocos, que vão da SD9 até a SD15.
103
Recorte 2: Bloco 2- Texto 3
HINO DE DURAN
(HINO DA REPRESSÃO)
CHICO BUARQUE
1979
Se tu falas muitas palavras sutis
E gostas de senhas, sussurros, ardis
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar
Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raio-x
Se vives nas sombras, freqüentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de doberman
E se definitivamente a sociedade só tem
Desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo
És um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
Depois, chamam os urubus
Se pensas que burlas as normas penais
Insuflas, agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar, infrator
Com seus braços de estivador
Se pensas que pensas
Estás redondamente enganado
E como disse João Alves
Eu tenho a sorte ao meu lado
Pra não me levar
Pra não me levar
Vocês não tem leis pra julgar
Iniciamos, agora, a análise do texto 3 do Recorte 2, Bloco 2.
Em relação ao procedimento que será utilizado na análise do texto 3 deste
segundo bloco de textos do recorte discursivo 2, lembramos ao leitor que selecionamos
conjuntos de SDs que formam diferentes blocos de sequências. O critério utilizado para
a subdivisão do recorte em blocos é uma mesma regularidade discursiva presente no
conjunto, normalmente de quatro até onze sequências discursivas. Analisaremos nas
sequências discursivas selecionadas as seguintes categorias: designações, pronomina-
lizações, nomeações e modalizadores. Vejamos as SDs e os grupos selecionados.
SD9 Se tu falas muitas palavras sutis
E gostas de senhas, sussurros, ardis
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar”
Nas sequências Se tu falas muitas palavras sutis/ E gostas de senhas,
sussurros, ardis a ação da censura atravessa a estrutura da palavra, mas não de
qualquer palavra, e, sim, daquelas sutis, observadoras, sagazes, que, mesmo
sussurradas, demonstram astúcia. Tal efeito do interdiscurso mostra o funcionamento da
história na estrutura da língua; são os dizeres que não podem ser ditos (o silêncio local).
Nesse caso, as determinões sutis e ardis das designações palavras, senhas e
104
sussurros denunciam os efeitos do aparelho repressivo de Estado, ou seja, usar palavras
sutis era uma artimanha para camuflar a ameaça que estava silenciada, a aparente
legitimidade de tais palavras silenciava a liberdade de escolha. Ainda, as sequências A
lei tem ouvidos pra te delatar e Nas pedras do teu próprio lar permitem observar a
inexistência de um lugar seguro naquele período, razão para fazer circular esses sentidos
proibidos, visto que até nas pedras do lar, lugar sagrado, da intimidade do sujeito, a lei
tem ouvidos para delatar. E a ação dos aparelhos repressores e jurídicos do Estado é tão
forte que escapar deles é uma dificuldade, a serviço dessa construção ideológica que os
olhos dos cidadãos ficam embotados de cimento, como vimos na leitura do texto 1 do
primeiro bloco. Portanto, o sujeito perde sua privacidade e o direito de dizer. Aparece,
pois, a interdição do dizer marcada nangua (a censura).
O funcionamento das designações lei e pedras se dá pelo efeito da
personificação, por meio da qual é possível apontar o funcionamento dos aparelhos de
Estado: pela interdição da palavra. Assim como as cidades têm olhos que espiam, a lei
tem ouvidos que delatam. Portanto, não a palavra (denúncia) funciona, mas também
a invasão (violência) acontece, como podemos verificar de forma mais intensificada na
SD 10.
SD10 Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raio-x
As sequências discursivas acima remetem às situações concretas da época da
ditadura. Observamos a repetição nesta sequência discursiva dos saberes da FD policial,
representada pelas denominações contravenção/lei te vigia/olhos de raio-x. A
sequência sugere que, mesmo sendo vigiados muita ações eram realizadas na surdina e,
mesmo sabendo ser uma contravenção para o sistema vigente, conseguia-se driblar a
censura. Sabemos que o aparelho repressor compreendia numerosas organizações, cujas
funções principais incluíam a vigilância, a detenção, o interrogatório e a ação anti-
terrorista. “A institucionalização do aparelho repressor e a considerável autonomia de
que gozava têm sido apontadas como as características principais do regime autoritário
brasileiro.(SMITH, 2000, p. 39).
105
Novamente, o autor Marcos Napolitano nos apresenta mais detalhes sobre as
atividades subversivas:
Se os informes e as informações tinham a função de esquadrinhar as
atividades potencialmente ou declaradamente ‘subversivas’ dos artistas ou do
seu público, havia um conjunto de documentos voltados para a vigilância e o
controle dos indivíduos considerados ‘suspeitos’. Basicamente, compunham-
se de quatro tipos: o levantamento de dados biográficos; as fichas-conceito
(levantamento da atuação pública e profissional); o prontuário (histórico das
atividades registradas do ‘suspeito’) e o juízo-sintético (espécie de parecer do
agente sobre o indivíduo). Esse conjunto de documentos tinha a clara função
de peças acusatórias, em eventuais processos ou punições mais direcionadas,
prontos para serem acionados a qualquer momento. Em muitos casos, os
informes e informações não eram monopolizados por um único órgão de
informação, sendo freqüente o intercâmbio de documentos entre os diversos
órgãos do sistema. (2004, p. 106-107).
Podemos observar, portanto, que tais sequências marcam na língua a ação do
aparelho jurídico e policial como na sequência (SD9), analisada anteriormente. Ao
trazer no bolso a infração às normas (leis), traz a prova da pobreza, por possuir somente
muambas, baganas e nenhum dinheiro, o sujeito do discurso é qualificado como
bandido infeliz, tornando-se detectável por meio da visão raios-x da lei. Na próxima SD
(11), as denominações analisadas, manterão a temática da censura.
SD11 Se vives nas sombras freqüentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de doberman
As denominações sombras/porões/revoluções sugerem algo escondido,
proibido, como as reuniões que as pessoas que não estavam de acordo com o regime
ditatorial faziam para arquitetar estratégias contra o estabelecido. A esquerda, que
representava a massa, estava isolada e seus militantes eram caçados pela repressão,
tendo de se preocupar com os aparelhos (lugar onde se escondiam e se organizavam) e
com os pontos (lugar onde se encontravam) para discutir o caráter da revolução
106
brasileira. Em depoimento,
9
o general Adyr Fiúza de Castro, ao ser questionado sobre a
afirmação de que os comandantes não seriam responsáveis pelo que acontecia nos
porões, respondeu: “Sim, são responsáveis. O comandante é responsável por tudo aquilo
que acontece ou deixa de acontecer sob seu comando. Ele é o responsável.” Confirmam-
se, pois, novamente os saberes provenientes da FD militar e policial, ambas executoras
do regime ditatorial. Por isso, era preciso tramar na calada da noite. Eram esses que a lei
farejava e buscava em muitas manhãs, como fez com Chico Buarque e tantos outros.
Gregolin (2007, p. 226) afirma que “[...] esse enlaçamento, (efeito metafórico),
uma ancoragem semântica, não se processa indiferentemente, ele tem a ver com a
história, com a tensão entre memória e esquecimento, e com a subjetividade”. É por
meio do efeito metafórico, portanto, que podemos ler que eles (o governo) não
conseguiram vencê-los (subversivos) com suas leis, pois há modos de burlá-las, de
transgredi-las e mandar seu recado político. Pode-se estimar que cerca de cinquenta mil
pessoas tiveram no período ditatorial a experiência traumática da passagem nos porões,
das quais não menos de vinte mil foram submetidas à violência da tortura. (FICO, 2001,
p. 13-75). Na sequência discursiva SD12, outra FD secontemplada, a FD religiosa
cristã. Vejamos como.
SD12 A lei fecha o livro, te pregam na cruz
Depois, chamam os urubus”
Temos, assim, na sequência discursiva A lei fecha o livro, te pregam na cruz o
atravessamento da FD religiosa cristã, em que a designação livro remete à Bíblia
Sagrada, demonstrando que os mandamentos sagrados o são observados e que, em
meio a tantas contravenções, não se seguem os preceitos da igreja. Não se leva em
consideração o sacrifício feito por Jesus, que foi pregado na cruz para livrar-nos de
todos os pecados, ou seja, nem o maior sacrifício do mundo foi capaz de dissuadir os
repressores (os urubus), que logo abraçariam, (agarrar) os infratores (subversivos) que
ousam desafiar a lei suprema.
9
O general Adyr em depoimento concedido a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares em
março de 1993, publicado no livro Anos de Chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 73.
107
SD13 Se pensas que burlas as normas penais
Insuflas, agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar, infrator
Com seus braços de estivador
Se pensas que pensas
Estás redondamente enganado
E como disse João Alves
Eu tenho sorte ao meu lado
Pra não me levar
Pra não me levar
Vocês não tem leis pra me julgar.
A denominação “João Alves” refere-se ao senador que, como sabemos, era
filiado aos democratas, o antigo PFL, e na época da ditadura militar foi membro da
Juventude Universitária Católica (JUC) e redator do jornal da Frente Única, da
esquerda. Era um dos anões do orçamento. Podemos ler sob o efeito metafórico o
quanto estar sob a proteção do poder (governo e da Igreja) possibilita inocentar ou não
punir os que exercem o poder de forma arbitrária. O discurso-outro por meio da
pronominalização Vocês refere-se ao povo brasileiro, que não tinha, e não tem, como
provar ou manifestar seu direito de cidadão brasileiro. Os deveres são cobrados e os
direitos são omitidos, negligenciados, silenciados. Por esse motivo, o tem lei pra
julgar.
Ocorre o atravessamento, então, da FD do aparelho jurídico, em que observamos
que o sistema judiciário foi corrompido pelo exercício do poder ditatorial. Podemos
pensar que as relações de poder funcionam, discursivamente, através das posições que o
sujeito ocupa em determinado discurso, já que, ao ocupar uma posição, seja dominante
ou não, ele está se identificando com determinados saberes, os quais estão atravessados
pelas relações de poder, que são também ideológicas.
Desse modo, o insuflar, gritar demais sugere que quem grita não tem razão e,
por isso, ser calado pelo grito, pela violência, é uma maneira arbitrária de silenciar. E
numa inversão de papéis, o infrator passa a ser o que não violou, não transgrediu; o que
violenta, transgride, é o que censura, proíbe e viola as leis (O governo).
Ainda, a análise das SDs 9 a 13 leva-nos a apurar o seguinte sobre o efeito
metafórico.
108
a) O primeiro grupo de sds refere-se à recorrência no uso da condicional
“se”
SD9 - (1) Se tu falas muitas palavras sutis
SD10 - (2) Se trazes no bolso a contravenção
SD11 - (3) Se vives nas sombras, freqüentas porões
SD11 - (4) Se tramas assaltos ou revoluções
SD13 - (5) E se definitivamente, a sociedade só tem desprezo e horror
SD13 - (6) Se pensas que burlas as normas penais
SD13 - (7) Se pensas que pensas
Em todas as sequências discursivas destacadas a regularidade da condicional
se, que produz efeito de alerta sobre algo a ser interditado, com tom de provocação, o
que incita o sujeito do discurso contra o governo (o outro). O se, no discurso em análise,
apresenta-se como introdutor do discurso-outro, funcionando como marca lingstica da
heterogeneidade discursiva. Por exemplo, Se tu falas palavras sutis e gostas de senhas
ou se trazes no bolso a contravenção, aponta para o governo, que dissimula por meio
de um discurso democrático e otimista em virtude do “milagre econômico”, enganando
o povo, que acredita nessas palavras. Contudo, eram eles (os militares) a cometerem a
contravenção, seja por meio do falso discurso, seja aproveitando-se das facilidades que
a vida blica proporciona aos que estão no poder. Percebemos, então, o fato
discursivo como materialidade onde se instaura a voz do outro, onde acontece o repetido
e o novo”. (SCHONS, 2000, p. 74). Todas essas sequências (re)velam a censura à
liberdade de expressão e a política governamental da época. Somente na SD12 (5)
observamos o se sendo empregado não como condição, mas como um chamado, uma
lembrança de algo que aponta para a ação dos militares.
A designação sociedade presente na seqncia E se definitivamente a
sociedade só tem... coloca a maioria dos setores como uma condão para o desprezo e
horror ao discurso do outro (governo). O funcionamento do se aponta aqui,
primeiramente, para a negação do outro, sobretudo para a condenação de práticas que,
para o sujeito do discurso, são nocivas, traiçoeiras (sutis), criminosas (contravenção) e
burlescas (sombras, porões). O mais curioso é que o efeito metafórico se configura no
imbricamento de dois sujeitos: o criminoso (militar) e o criminoso (o subversivo).
109
As SD 13 - (6) Se pensas que burlas as normas penais e SD13 - (7) Se pensas
que pensas referem-se ao criminoso militar que, por burlar a lei instituída e por ser
amparado pelo poder ditatorial, pensa que pensa conseguir mascarar a verdade.
Foucault afirma que “a manutenção do poder está relacionada, entre outras coisas, aos
discursos que produz e ao prazer que é proporcionado, seu campo de atuação é bem
maior que a repressão(1979), ou seja, o poder es disseminado pelos campos da
ditadura e o “poder como repressão, utilizado para produzir discursos de verdade”.
(1979). No caso do corpus em alise, é o dizer que foi silenciado pela repressão, mas
que, o deixa de ser exercido. É novamente Orlandi que nos dá respaldo ao que
afirmamos:
Essa duplicidade, que faz referir um discurso a um discurso outro para que
ele faça sentido, na psicanálise, envolve a questão do inconsciente. Na análise
do discurso, essa duplicidade, esse equívoco, é trabalhado como a questão
ideológica fundamental, pensando a relação material do discurso à língua e a
da ideologia ao inconsciente. (1996, p. 81-82).
Assim, é o sujeito do discurso que, afetado pelo inconsciente e pelo domínio do
dizer, permite que haja um maior deslizamento dos sentidos, que o seu dizer será
ratificado de alguma forma pelo discurso do(s) outro(s), no caso em análise, do
governo, do militar. É o efeito metafórico que se movimenta por meio das tramas do
discurso, por meio do silêncio local (censura), deixando no não-dito o dito de outra
forma. Interpretar é dizer o dito que não foi dito e que, no entanto, está dito.
Ainda na SD13 - (7) Se pensas que pensas, encontramos em pensas que
pensas, a marca linguística do discurso do sujeito jurídico, aquele que se julga
autorizado a tirar conclusões e produzir julgamentos e comentários sobre tal discurso, e
no entanto revela a impossibilidade de ser um sujeito-jurídico de fato, ou seja, de
exercer seus direitos, seus deveres, seu livre-arbítrio. Justificamos essa posição com as
palavras de Orlandi [...] a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurídico
constituído pela ambigüidade que joga entre a autonomia e a responsabilidade sustentada pelo
vai-e-vem entre direitos e deveres”. (1999, p. 60). O sujeito do discurso não mantém a
liberdade de expressão, de dizer o que pensa, em que acredita; na realidade, “ele possui
um único direito: o de submeter-se livremente aos deveres que lhe o impostos pelo
Estado”. (INDURSKY, 1997, p, 92). Essa sequência funciona como um grito de
110
desabafo, um protesto silenciado. Observamos nesse bloco que o sujeito assume duas
posições de sujeito distintas, que se contrapõem num jogo de diferentes verdades. O
sujeito do discurso (o povo brasileiro), embora não negue explicitamente o discurso-
outro, coloca-o em dúvida e insere-o em seu próprio discurso para denunciá-lo,
marcando, assim, o confronto entre as duas FDs (a militar e a FD da MPB) que
analisamos.
b) O segundo grupo de SDs recortadas do texto 3 no Bloco 2 do Recorte 2
mostra a remissão à violência do aparelho jurídico e policial. A seguir,
examinamos as diferentes marcas linguísticas de cada uma das
sequências discursivas:
SD9 (1’) - A lei tem ouvidos pra te delatar
SD10 (2’) - A lei te vigia bandido infeliz
Com seus olhos de raio-X”
SD11 (3’) - A lei te procura amanhã de man
SD12 (4’) - A lei logo vai te abraçar, infrator
SD13 (5’) - Vocês não tem leis pra julgar
Outra regularidade presente na letra dessa canção refere-se à questão da
violência do aparelho jurídico e policial. A lei tem ouvidos pra te delatar remete às
situações concretas da época da ditadura, em que as pessoas poderiam ser delatadas e,
consequentemente, presas, exiladas, etc. Mostra o funcionamento da ação
governamental via aparelho jurídico e policial. O cidadão brasileiro fala para os espiões,
delatores (governo) para que ouçam o que ele tem a dizer. Nesse funcionamento, o
silêncio local aponta para a denúncia dos delatores por meio da negação, ou seja, o
sujeito do discurso nega a situação vivenciada, ao mesmo tempo em que nega por meio
uma relação de antagonismo, na qual se localiza a posição sujeito do próprio sujeito do
discurso, que luta pela manutenção do direito de liberdade longe das ‘garras’ da
instituição/Estado. (SCHONS, 2000, p. 131).
Essa negação funciona como uma marca de que no interdiscurso existe um
enunciado afirmativo, possível de ser recuperado por meio da categoria da memória
discursiva. Dito diferentemente, o sujeito do discurso recupera no interdiscurso o
discurso-outro e insere-o no seu discurso de forma negativa, o que lhe abre espaço à
apresentação de um outro discurso, próprio de sua FD. O discurso-outro é recuperado
111
pelo viés da negação, que possibilita a apresentação de outro enunciado, próprio da FD
interna, estabelecendo-se, então, um jogo tenso entre distintas posições de sujeito que
colocam em confronto o discurso das duas FDs. (CAZARIN, 2000, p. 180-181).
Percebemos, portanto, claramente a correlação de forças entre as FDs (militar) e a FD
(jurídica).
Em outra sequência (3’), A lei te procura amanhã de manhã indica que
somente é preso aquele que burla a lei, pois o que burla a lei legalmente não será preso.
Explicando segundo Smith,
ao quebrar a coluna dorsal do sistema jurídico, o regime militar dificultou a
entrada de processos judiciais – tanto por parte da imprensa quanto de
qualquer outro ator da sociedade civil. O sistema jurídico alterado também
dificultou a entrada a identificação do que era considerado legal, pois as
atividades legais agora incluíam atos que eram inconstitucionais mas
cobertos por um ato institucional. (2000, p. 48)
Lembramos também as contribuições de Žižek, ao afirmar que “o que se
‘recalca’, portanto, não é uma origem obscura da Lei, mas o próprio fato de que a Lei
não tem que ser aceita como verdadeira, mas apenas como necessária o fato de que
sua autoridade é desprovida de verdade”. (1996, p. 320). Sem vida, a citação
reafirma o que foi dito com ênfase nesta pesquisa: de nada adiantou a lei (a censura)
proibir, coibir que se falasse uma verdade, pois essa verdade encontraria uma maneira
de se libertar.
Nessa sequência a FD policial se repete: a questão da lei que tem ouvidos
(audição), da lei que te vigia (olhos), da lei que te procura (todos os sentidos). Segundo
Napolitano,
se a violência policial, legal e ilegal, era sistemática e utilizada contra
inimigos e críticos do regime em casos extremos e em situações nas quais os
generais no poder sentiam-se particularmente ameaçados, a vigilância sobre a
sociedade civil era constante. A obsessão pela vigilância como forma de
prevenir a atuação subversiva”, sobretudo naquilo que os manuais da
Doutrina de Segurança Nacional chamavam de “propaganda subversiva e
“guerra psicológica contra as instituições democráticas e cristãs”, acabava
por gerar uma lógica da suspeita ou ‘ethos persecutório’. (2004, p. 104-
grifos nossos).
112
Napolitano aclara também que os milhares de agentes envolvidos, funcionários
públicos ou delatores cooptados eram regidos por essa lógica e, ao incorporá-la,
acabavam produzindo um fenômeno que é típico de regimes autoritários e totalitários:
mais importante do que a produção da informação em si era a produção da suspeita.
Foucault, em sua obra Microfísica do poder (1979), faz uma explanação sobre a
questão da vigilância dizendo que “a vigilância é, pois, um olhar invisível, que deve
impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o
olha” (p. 225). Explica, na sequência, que o sujeito se torna obediente às ordens, às
regras pela insistência com que são exercidas; logo, o sujeito é coagido a internalizá-las
e a agir da maneira como as leis preveem, como o provérbio que diz Água mole em
pedra dura tanto bate até que fura. Repetindo sempre a mesma coisa, o sujeito
aliena-se e acaba por acreditar no que lhe está sendo passado: “O corpo não distingue
entre si mesmo e o olho do poder.” (GREGOLIN, 2006, p. 133). Essa lei que representa
o governo é o algoz que usa e abusa da ingenuidade e boa-fé dos capachos o povo
brasileiro –, representando as relações entre sujeito(s) e o poder.
Foucault propõe, como dito anteriormente, que as relações de poder são
historicamente constituídas. Por isso não podemos pensar no poder como uma forma
única, mas sim, como uma prática social que só funciona e se exerce em rede, ou seja,
para que o poder e/ou as relações de poder se constituam, é preciso que alguém detenha,
comande e domine tais relações, assim como se faz necessário alguém que se submeta,
assujeitando-se e cumprindo as ordens impostas e determinadas por aqueles que estão
no topo dessas relações. É nesse espaço da rede de relações dominador/dominado que
surgem as formas de resistência, representadas pelas lutas, pelas relações de forças
travadas, desencadeadas no interior da própria rede de poder. A resistência e o poder,
portanto, estão espalhados no cotidiano, transcendem a noção de classe; interagem um
sobre o outro, num movimento infinito.
Para Pêcheux, a saída para explicar as resistências parte da psicanálise, ao
afirmar que, por meio dos atos falhos, lapsos, etc., o sujeito resiste à ideologia, e essa
resistência se encontra materialmente instalada nos traços do equívoco. Pêcheux propõe
a abordagem do cruzamento entre ideologia e inconsciente.
Na (5’) Vocês não tem leis pra julgar reforça-se que a lei que é sinônimo da
ordem imposta pelo sistema, que julga as ações do sujeito e os valores a elas
relacionados e os penaliza com prisão e morte, não será concretizada, pois eles não a
aceitam como sendo sua lei; ao contrário, transgridem-na, burlam-na, fogem dela.
113
Reforçamos a posição de Orlandi de que “falar é esquecer. Esquecer para que surjam
novos sentidos, mas também esquecer apagando os novos sentidos que já foram
possíveis, no entanto foram estancados num processo histórico-político silenciador.
Ainda em relação ao texto 1 deste segundo bloco de textos do recorte 2, é
possível analisar um terceiro grupo, no qual observamos a mudança de pessoa.
c) O terceiro grupo de SDs recortadas é em relação à repetição da segunda
pessoa do singular (tu), que predomina na maior parte do texto, mudando
apenas no final para a terceira do plural (vocês) e, posteriormente, para a
primeira pessoa do singular (eu).
O terceiro grupo que assinalamos refere-se à dêixis EU TU VOCÊS, por
meio das quais percebemos uma alternância nas posições-sujeito na letra da canção. O
tu presente nas sequências discursivas Se tu falas/ Se trazes/ Se vives/ Se pensas que
burlas e se pensas que pensas refere-se ao povo brasileiro (o outro). É como se, ao
falar do outro, o sujeito do discurso falasse também de si, dos perseguidos, dos
censurados, dos excluídos. Segundo Schons. (2000, p. 135),
no domínio da memória, encontramos um conjunto de seqüências discursivas
preexistentes à SDR, as quais dão materialidade a esta para a produção de
efeitos de lembrança, redefinição, transformação, esquecimento, denegação,
ruptura no seio de determinado processo discursivo.
Ao negar a ação do outro, nego a minha própria ação e, por medo de represálias,
da coerção, digo o que o outro quer ouvir. No entanto, envio minha mensagem de não
conformismo com a situação vivenciada. É por meio da negação que reconhecemos os
efeitos da subversão, da desobediência. Desobedecer significa combater o governo,
neutralizar as forças do poder institucional.
Quando ocorre uma mudança do TU para VOCÊS na sequência Vocês o tem
leis pra julgar, modifica-se a posição-sujeito do sujeito do discurso, passando a ser o
povo brasileiro (a sociedade), que por estar envolto na ilusão do “milagre econômico”,
deixa-se iludir e deixa a responsabilidade da punição dos faltosos ao Estado ( que cria
as leis). Essa mudança de posição-sujeito, por sua vez, produz o efeito de sentido não
de discordância, mas também de crítica ao discurso do outro.
Na sequência discursiva Se pensas que burlas as normas penais/ insuflas,
agitas e gritas demais há a transposição do TU para o EU. A individuação, aqui, chega
114
a considerar algo animalesco como extremamente racional, ao passo que o VOCÊS
seria o coletivo, o povo, a massa, que perderia o controle social.
Schons (2000, p. 174-175) afirma que é como se
[...] a perda da dignidade e a desqualificação do ser-gente refletissem um
exterior que mais se constitui num conjunto de efeitos, no qual a violação do
direito de produzir e a negação desse direito impedem-no de viver em
condições dignas. Acarretam, com isso, a neutralização sobretudo de suas
ações, ou seja, pelos discursos, é-nos permitido estabelecer relações que não
estão explicitadas, mas que sugerem veis de desigualdade ou de
equivalência aos dos animais (por isso, homens que se sujeitam a catar
comida nos lixos das cidades, a dormir ao relento e, instintivamente, a
exterminar a sua própria espécie).
A ação insuflas sugere presenças subversivas no meio de pessoas inocentes e
puras. Se pensas que pensas aponta para o mundo da ilusão, para a impossibilidade de
ser um sujeito-jurídico (de exercer seus direitos, seus deveres, seu livre-arbítrio). Por
outro lado, Se pensas que pensas pode apontar para uma crítica ao aparelhos
ideológicos de Estado e o que vem fortificar esta posição é justamente a mudança de
pessoa (tu) por você na última sequência da SD13. Justificamos esta posição apoiada
nas palavras de Orlandi (1999, p. 60): “[...] a forma-sujeito histórica capitalista
corresponde ao sujeito-jurídico constituído pela ambigüidade que joga entre a
autonomia e a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e deveres).”
Manter a liberdade de expressão, de dizer o que se pensa, em que se acredita,
não é possível; então, o discurso funciona aqui como um grito de desabafo, um protesto
silenciado daqueles que tiveram seus direitos confiscados. Como dito anteriormente, o
único direito é o de se submeter aos deveres que o Estado impõe. Indursky, em sua obra
Fala dos quartéis e as outras vozes (1997, p. 95), afirma que “para ser um bom
brasileiro é preciso apoiar incondicionalmente as decisões do Estado, é preciso aceitar-
lhe submissamente a tutela para, assim, adquirir o direito de ser cidadão ou brasileiro.
Assim procedendo, adquire cidadania e nacionalidade”.
Ainda, nas sequências discursivas transcritas anteriormente vemos em palavras
sutis, o silêncio local (a censura) como uma forma de abrigar um outro sentido: as
palavras sutis são usadas para convencer o povo (a sociedade) sobre as convicções do
governo, mas também podem camuflar exatamente aquilo que não pode e não deve ser
dito, mas se diz. Orlandi (1995, p. 104) afirma: “O silêncio imposto pelo opressor é
115
exclusão, é forma de dominação, enquanto que o silêncio proposto pelo oprimido pode
ser uma forma de resistência.” O sujeito do discurso tanto exclui como é excluído; no
entanto, resiste a esse silêncio imposto (pela censura, pela interdão), cuja possibilidade
de falar pode se dar via efeito metafórico. Vemos, nitidamente, que “o sentido não
pára, ele circula, assim como a ideologia e a hisria o param; em cada acontecimento
discursivo, um novo deslocamento do sentido de uma determinada posição do
sujeito, enfim, um discurso com um novo sentido”. (SCHONS, 2000, p. 30). Num
primeiro momento pensamos estar tratando as designões acima dos perseguidos pelo
regime militar; no entanto, ao levar em conta o efeito metafórico, percebemos que os
dois se confundem. É a fala do oprimido para falar do militar e das ações praticadas por
este último. Existem, portanto, posições-sujeito nessa FD capitalista, a posição-sujeito
do oprimido (subversivo), que se entrelaça à voz da posição-sujeito da MPB, e a
posição-sujeito do militar (opressor), que, à primeira impressão, é silenciada pela voz do
oprimido, no entanto emerge mais fortemente, que é contra esse sujeito que o sujeito
da MPB está se posicionando. Isso vem demonstrar que a FD o apenas indica o “que
pode ser dito (Pêcheux), mas também o que não deve ser dito, e ainda o que pode, mas
não convém ser dito”. (INDURSKY, 1997, p. 96).
d) O quarto grupo de SDs refere-se à marca de segunda pessoa em gostas/
trazes/ vives/ burlas, que se referem às ações de subversivos (os que
estavam contra a ditadura militar), assumindo certo tom de generalidade,
tendo em vista o funcionamento da forma verbal encaminha para gostos,
preferências, opções de vida, como observamos na retomadas das
sequências, a seguir:
SD9 (1”) - ... gostas de senhas, sussurros, ardis
SD10 (2”) - ...trazes no bolso a contravenção, ...muambas, baganas e nem um tostão
SD11 (3”) - ... vives nas sombras, ... frequentas porões, ...tramas assaltos ou revoluções
SD12 (4”) - ...burlas as normas penais, ...insuflas, agitas e gritas demais
Nessas sequências discursivas observamos o fato de que existe alguém (o
governo) que quer colocar a culpa em alguém, pois deve haver um bode expiatório,
alguém que pague o pato. Carlos Fico (2001) nos apresenta uma afirmação que
contempla o que analisamos acima:
116
Na difamação dos mesmos “vilões” e “traidores”; no enaltecimento de
“heróis” comuns, etc. Grupo que se reconhecia como comunidade de puros,
“força autônoma”, ou linha dura”, porta-vozes especialistas que, por isso
mesmo, os demais militares não podiam ignorar até que o reconhecimento
se quebrasse. Suas mensagens não foram simples informações. Advertiam,
indicavam os riscos de opções liberalizantes, incutiam temor com sua simples
existência. Construíram, também, uma identidade sobre “eles”, isto é, sobre
nós, impondo-nos rótulos ora de subversivos, ora de corruptos; ora de
inocentes úteis, ora de inermes. Assim eles agiam. (2001, p. 218).
Encerrando a reflexão sobre esses cinco blocos, assinalamos que o
funcionamento discursivo se caracteriza pela rejeição do discurso-outro, pela busca da
desqualificação do mesmo e pela tentativa do discurso que circula no silenciamento de
fazer falar a voz do povo brasileiro. Nas palavras de Pêcheux (2008), “todo enunciado é
intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (p. 53). É o que constatamos
ao observar o caminhar dos sentidos. Ao passar de uma FD para outra os sentidos foram
se modificando e, ao receber um novo sentido, deixaram cair a m(á)scara
10
do que
estava silenciado (censurado). A temática sobre a censura perpassa todas as sequências
analisadas.
A seguir, nossas análises partem do texto 4 do Bloco 2 do recorte discursivo 2,
com a música “Ana de Amsterdam”. Esta análise está composta por quatro sequências
discursivas, da SD 14 à SD 17, cuja temática é a da censura.
10
Podemos fazer duas leituras: máscara que esconde algo ou alguém e mascara que dissimula,
disfarça uma situão.
117
Recorte discursivo 2: Bloco 2- Texto 4
Ana de Amsterdam
Chico Buarque – Ruy Guerra
1972- 1973
Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, da troca das pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das
fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, bacana (sacana)*
Sou Ana de Amsterdam
Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar.
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam
* TERMO ORIGINAL, VETADO PELA
CENSURA
A análise da canção, a seguir.
SD 14 Sou Ana
Quando perguntamos ao sujeito quem é você? A resposta que nos vem é Eu sou
(fulano de tal). Partimos desse ponto para analisar esta sequência discursiva. Há um eu
aqui se assumindo, assumindo sua personalidade, sua especificidade. Sempre
perguntamos algo porque queremos uma resposta. Levando em conta o nosso corpus,
lemos que são as perguntas dos interrogatórios feitas nos porões da ditadura. Em
entrevista, o coronel Adyr Fiúza de Castro relata que, “quando o preso entrava, a
primeira coisa que se fazia era identificá-lo. Ele era fotografado, tiravam-se as
impressões digitais, e se fazia, inicialmente, um interrogatório muito ligeiro, para saber
nome, filiação, quem era ele [...].” (D’ARAÚJO, 1994, p. 60). No caso da resposta na
SD14 Sou Ana, a designação não encaminha a filiação do sujeito interrogado como
também a identidade dos que são contra o instituído.
Podemos fazer essa leitura evocando conceitos que provêm da psicanálise, os
quais nos permitem afirmar que a significação é produzida de maneira inconsciente, ou
seja, o sujeito pragmático
11
não tem consciência dessa significação, nem tem controle
11
Segundo Pêcheux, o sujeito pragmático refere-se a cada um de s, os “simples particulares”. (1988-
2008, p. 33).
118
sobre ela. Ao abordar a noção de sujeito com base na linguística e na psicanálise,
julgamos oportuno chamar a atenção do leitor para o fato de que estas duas disciplinas
surgiram no mesmo momento sócio-histórico, mas focalizando pontos diferentes.
Voltada para a língua como sistema, a linguística esbarra na inevitável emergência do
sujeito, ao passo que a psicanálise, voltada para o sujeito, reconhece a importância da
linguagem, embora não conte com o saber da linguística sobre a língua para sistematizar
esse reconhecimento. A noção de inconsciente, então, encontra-se intimamente
relacionada à noção de sujeito como aquele que emerge na cadeia de significantes. O
inconsciente é em Lacan algo que está estruturado como uma linguagem. É muito
interessante perceber que, apesar de não existir fora da linguagem, é a língua que afeta o
sujeito quando ele é falado pelo Outro (o inconsciente). Por isso, podemos assinalar que
a análise se propõe a pontuar o sem sentido, os buracos, as faltas, o silêncio. O eu aqui
é a instância responsável pela denegação do inconsciente. Entendemos a denegação no
sentido daquilo que não pode ser dito pelo eu e que tenta apagar o inconsciente.
Podemos exemplificar por meio da construção EU SOU x EU NÃO SOU, na qual o
sujeito do discurso é e, ao mesmo tempo, foi proibido de ser. No entanto, é justamente
ao tentar apagar, calar o inconsciente que o sujeito produz o seu discurso singular.
Ocorre que os sentidos são inevitavelmente deslocados na (re)significação inerente à
produção da cadeia de significantes, isto é, por meio do efeito metafórico.
SD 15 Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
A designação Índias reporta-nos ao discurso fundador enunciado pelos
portugueses de que a nossa terra teria sido descoberta por acaso, favorecendo e
ocultando as suas verdadeiras intenções, ou seja, de exploração no sentido pleno, de
usar a nossa terra como caminho para o transporte de especiarias vindas das Índias e de
explorar o que ela tivesse a oferecer. No período da invasão holandesa, Maurício de
Nassau, com suas ideias polêmicas para a época, trouxe desenvolvimento à capitania de
Pernambuco. Preocupado com as artes, foi acusado de ser um administrador gastador
pelo fato de, segundo os holandeses, ter levado a Companhia das Índias à falência.
Em muitas canções aparece a questão do amor atravessado pela prostituição de
um dos parceiros, e nessa canção, especificamente, o problema do amor vendido
(prostituição em si). O conflito de forças entre dominado e dominador pode ser
119
facilmente lido. Por exemplo, na designação patente podemos ler por meio do efeito
metafórico o sarcasmo e o deboche sendo usados contra o autoritarismo, talvez como
forma de atenuar o medo que ele inspira”. (FICO, 2001, p. 74). Patente refere-se aos
militares, que de cabo a tenente utilizavam-se do poder para coibir, reprimir, os
subversivos; medo de ser preso, torturado, morto, medo real, não excesso de alguns
subversivos. Logo, o jogo que se estabelece entre identidades de um sujeito comum
(Ana) com um sujeito de patente (cabo e tenente), revela que a relação entre os
parceiros, é de tensão, uma vez que o sentimento nutrido por eles é pura obrigão. Isso
se pode ver mais fortemente marcado na SD16 abaixo.
SD16 Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, bacana (sacana)*
Existe uma denotação sexual na denominação sacana, que é justamente por
onde vaza o silêncio. O uso do asterisco, uma das marcas da subjetividade do censor,
funciona como denunciador do silêncio local e os efeitos de evidência decorrem do
deslizamento de sentidos entre bacana/sacana. A designação censurada comporta a
inconformidade diante das atitudes dos repressores, com o objetivo de de fazer uma
denúncia. O protesto silenciado, porém salientado, é reforçado pela própria censura, ou
seja, ao proibir, o proibido ganha mais destaque do que se não o tivesse sido.
Fico (2001, p. 76) salienta que:
Saber detalhes sobre a vida sexual de algm era inútil, como informação,
para as decisões governamentais; mas poderia ser essencial para as atividades
clandestinas de espionagem do sistema que poderia como efetivamente
fez – lançar mão de tais dados para desqualificar o “inimigo”.
O sujeito pragmático (Chico Buarque), em entrevista contida no DVD Vai
passar, relata que, como sabia quais palavras estariam mais propensas a ser censuradas,
elaborar a letra de uma sica bem extensa e, no final ou no meio, por exemplo,
escrevia o que lhe interessava. Desse modo, os censores cortavam um palavrão, ou outra
palavra que chamasse a sua atenção, mas o que realmente ele queria dizer passava pela
censura sem ser notado. Percebemos que, em razão da censura constante no período da
ditadura, a canção popular foi obrigada a utilizar uma “linguagem de fresta” (expressão
120
criada por Caetano Veloso); que em nosso caso específico podeamos chamar de
linguagem da falta, referindo-se àquela falta que nos é constitutiva e que permite
deixar escorrer pelas frestas o sentido que foi silenciado. Valemo-nos das considerações
feitas por Leandro Ferreira (2007, p. 104) sobre o efeito de estrutura, que é
[...] comum ao sujeito, à linguagem e à ideologia, deixa sempre furo e, em
torno desse furo, é que irá se travar o embate pela completude, um
movimento incessante que age como uma injunção para o sujeito. O furo
seria, assim, o lugar do espanto, do estranho, que faz funcionar as
‘estruturas’, que em sua forma de organização tenderiam ao fechamento,
donde, a busca incessante de soldar o buraco que lhes é constitutivo.
“Dizer ou não dizer simplesmente é, nos dias de hoje, uma falsa alternativa. O
importante é saber como pronunciar; da necessidade do olho na fresta da MPB.”
(HOLLANDA, 2004, p. 37). Podemos ler esse olhar como desconfiaa, suspeita, medo
de ser sobressaltado. Por fim, o sujeito aprendeu a driblar a censura
SD 17 Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
A determinação de carta, no caso marcada, refere-se à perseguição que os
inimigos do regime sofriam por serem contrários ao instituído. Com o AI-5 foram
presos, cassados, torturados ou forçados ao exílio muitos estudantes, intelectuais,
políticos e outros oposicionistas, incluindo artistas (Chico Buarque inclusive).
(RIDENTI, 2006, p. 152). As reuniões da equipe do Movimento, nas quais todos
deveriam participar das decisões, também eram lembradas por mais de um participante
como um jogo de cartas marcadas”. (SMITH, 2000, p. 65), visto que se sabia de
antemão quem ganharia o jogo.
Na designação jogo de azar o que ressoa é o vivido por causa do regime
ditatorial, ou seja, todo sujeito estava fadado à sorte de ser pego ou não, de ser
perseguido ou torturado. Sempre era um jogo de azar, literalmente falando.
O modalizador de tempo hoje não apenas evoca a época do Brasil, ame-o ou
deixe-o, momento em que o país vivia um processo acelerado de urbanização e
modernização da sociedade, mas também o hoje da contemporaneidade, em que
121
vivemos uma ideologia cínica ižek), porque a vida para os brasileiros continua sendo
um jogo de azar.
Dando prosseguimento às nossas análises, apresentamos o texto 5, pertencente
ao recorte discursivo 2, do Bloco 2, composto por três sequências discursivas: da SD 18
à SD 20.
Recorte discursivo 2: Bloco 2 - Texto 5
Boi voador não pode
Chico Buarque – Ruy Guerra
1972- 1973
Quem foi, quem foi
Que falou no boi voador
Manda prender esse boi
Seja esse boi o que for
O boi ainda dá bode
Qual é a do boi que revoa
Boi realmente não pode
Voar à toa
É fora, é fora, é fora
É fora da lei, é fora do ar
É fora, é fora, é fora
Segura esse boi
Proibido voar.
É fora, é fora, é fora
É fora da lei, é fora do ar
É fora, é fora, é fora
Segura esse boi
Proibido voar.
SD 18 Quem foi, quem foi
Que falou no boi voador
Manda prender esse boi
Seja esse boi o que for
O primeiro aspecto que chama nossa atenção na SD18 diz respeito ao indefinido
Quem, o qual produz efeitos de indeterminação e estabelece relação com a pessoa em
estado de interrogatório, numa sessão de tortura nos porões da ditadura. Presentifica-
se a ideia de delação, julgamento e traição, é possível recuperar pelo funcionamento
da designação boi voador, que aciona discursos veiculados em outro momento
histórico e um outro acontecimento discursivo. No caso, a designação retoma um dos
personagens de Maurício de Nassau, usado por ocasião da inauguração da ponte em 28
de fevereiro de 1644 para recuperar parte do dinheiro investido. A atitude do conde
holandês configurou no imaginário do brasileiro uma das formas de representação
política: a corrupção e uso do poder público para atingir interesses pessoais, sobretudo,
econômicos, uma vez que a imagem do boi criado em Brasília tem relação com as obras
farnicas e práticas bastante comuns ainda hoje entre os deputados e senadores.
122
Em relação à nossa análise da SD 18, Manda prender esse boi reitera a fala do
povo durante o espetáculo da inauguração da ponte. Porém, deslocando para momento
histórico da produção do discurso da FDMPB, o mando de prisão não se refere ao
mesmo personagem, mas, sim, aos militares. Esse deslizamento de sentido é o efeito
metafórico, constitutivo do funcionamento do discurso da MPB, e vem ligado à
ideologia antimilitar, anticapitalista – é a ideologia da subversão.
E por falar em porões, no artigo “Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua
herança”, Ridenti assinala que
[...] nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do assassinato e
de outros desmandos. Tudo em nome da ‘segurança nacional’, indispensável
para o ‘desenvolvimento’ da econômica, do posteriormente denominado
‘milagre brasileiro’.
[...] O regime instituiu rígida censura a todos os meios de comunicação,
colocando um fim à agitação potica e cultural do período. Por algum tempo,
não seria tolerada nenhuma contestação ao governo. (2006, p. 152).
É a punição a quem NÃO fala, não entrega o companheiro, não delata nem
assume seus ideais. Há uma correlação de forças entre o que se DEVE e NÃO se DEVE
FALAR, ou seja, são forças ao mesmo tempo antagônicas e indefinidas, que promovem
um apagamento dos sentidos atribuídos ao boi no tempo presente.
Indursky trata em sua obra sobre a questão da indefinição do contrário e nos
esclarece:
Resulta do preenchimento da posição estrutural, na frase por um pronome,
geralmente indefinido. Assim, procedendo, o mesmo movimento que
preenche a posição a posição estrutural, no plano sintático, apaga o referente,
no plano semântico, possibilitando que o contrário seja mencionado, maso
identificado, inscrevendo-o, dessa forma, na modalidade da indeterminação
referencial. (2001, p. 120).
Essa o identificação” sugerida por Indursky em nossa proposta refere-se ao
silêncio local (a censura): é proibido falar; portanto, a estratégia é deixar silenciado na
letra da canção. A censura age repressivamente e o Não deve falar prevalece, calando
os subversivos, os inimigos do poder. Porém, o silêncio local age também exercendo o
seu papel, falando por meio do efeito metafórico.
123
Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é constituída pelo
esquecimento, do que decorre que a ideologia, segundo Pêcheux (1988), seja um ritual
com falhas, sujeito a equívoco. Desse modo, do já dito e significado de irromper o novo,
o irrealizado, no movimento contínuo que constitui os sentidos e os sujeitos em suas
identidades na história. (ORLANDI, 1999, p. 65). Ainda sobre isso, veja-se a próxima
SD.
SD 19 O boi ainda dá bode
Qual é a do boi que revoa
Boi realmente não pode
Voar à toa.”
Nessa seqncia discursiva, novamente (repetição) contendo a designação boi,
entendemos, com Achard, que “a regularização se apóia necessariamente sobre o
reconhecimento do que é repetido. [...] Por outro lado, uma vez reconhecida essa
repetição, é preciso supor que existem procedimentos para estabelecer deslocamento,
comparação, relações contextuais”. (1999, p. 16). Por meio do deslocamento podemos
ler a delação, o dedurar, o entregar o subversivo àquele que foge à verdade, que nega,
dissimula. A forma verbal revoa coloca em questão a espionagem, como os urubus que
sobrevoam o animal ferido para depois devorá-lo, nada deixando; é um olhar de cima,
do poder (Foucault, 1979), que tudo supervisiona, que tudo controla, que tudo investiga
e tudo censura. A negação em Não pode permite observar a interdição do dizer marcada
na língua e silencia que deve ser encontrado alguém para servir de bode expiario para
esconder, camuflar, as barbáries praticadas. Isso posto, observe-se a SD 20, que tem
mais a nos dizer.
SD 20 É fora, é fora, é fora
Segura o boi voador
Proibido voar
A repetição da estrutura é fora nos permite a análise de que se trata de uma
forma de resistência em que o sujeito do discurso ressalta esse fora-da-lei, fora do país
(exílio) e os fora-da-regra (fora do regime autoritário). Novamente transparece a noção
do outro como subversivo, corrupto, inimigo do partido, aquele que não se pode
124
segurar porque esse boi (o subversivo) precisa voar, precisa ter liberdade na idealizada
democracia. “Na época da ditadura militar os sentidos relacionados à palavra
‘liberdade’, são evitados em um processo histórico-político silenciador, de modo que se
estabelece uma falta na memória.” (ORLANDI, 1999, p. 10).
É interessante ainda observar a desestabilização do logicamente estabilizado
em relação à designação boi. Se, antes, tal designação era tomada como uma forma de
representação do imaginário produzido por Maurício de Nassau em relação ao
espetáculo político e econômico, nesta sequência discursiva (SD20) a mesma
designação constitui-se numa política disfarçada sobre a expulsão de comunistas do
Brasil. Na SD20, assim como nas SD precedentes, a retomada do lema Brasil, ame-e
ou deixe-o se assenta na crítica à ideologia capitalista de progresso e à política
governamental de aparente constitucionalidade. Assim como Nassau, em 1644, criou o
espetáculo do boi voador para cobrar ingresso do povo eo perder o dinheiro investido
na construção da ponte, no governo militar, criando a ilusão de que o povo estaria
recebendo um espetáculo em troca de seu dinheiro, os militares, no final das cadas de
1960 e 1970, promoviam campanhas para difundir a ideia de nacionalismo e amor pelo
país que, no entanto, só acobertava o inmodo que o fantasma do comunismo ainda lhe
causava.
O recorte discursivo do texto 5 permite-nos entrever o modo como a designação
boi voador, dentro da temática censura e política governamental, promove
deslocamentos que incidem sobre a posição-sujeito do discurso, apontando para o
discurso duplo e uno ao mesmo tempo, revelando o ir-relevado, de acordo com
Althusser, e trazendo a presença do outro em forma de equívoco. casos, porém, em
que isso aparece de modo mais dissimulado, conforme a SD20. É justamente o efeito
metafórico que permite observar esses deslocamentos. Observa-se, ainda, que, além da
designação, é comum a marca de gênero feminino, conforme “Ana de Amsterdam”,
analisada no texto 4. Essa identidade feminina ajudava os intelectuais ligados a
atividades subversivas, segundo os militares a driblar a censura e a escapar de
perseguições por parte dos membros dos aparelhos jurídico e policial, conforme
referimos na análise dos textos 5 (Ana) e 6 (Bárbara), a seguir.
Por meio do recorte discursivo 2, texto 6 do Bloco 2 de músicas, foram
recortadas as seguintes sequências discursivas (21 a 25), cuja temática refere-se à
censura e ao silêncio local.
125
Recorte discursivo 2: Bloco 2 - Texto 6
Cala a boca, Bárbara
Chico Buarque – Ruy Guerra
1972- 1973
Ele sabe dos caminhos
Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu
Minhas matas percorreu
Os meus rios
Os meus braços
Ele é o meu guerreiro
Nos colchões de terra
Nas bandeiras, bons lençóis
Nas trincheiras, quantos ais, ai
Cala a boca
Olha o fogo
Cala a boca
Olha a relva
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina
Onde guardo o meu prazer
Em que pântanos beber
As vazantes
As correntes
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro
Nas campanhas, nos currais
Nas entranhas, quantos ais, ai
Cala a boca
Olha a noite
Cala a boca
Olha o frio
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Observemos as SDs
SD 21 Ele sabe dos caminhos
Ele é o meu guerreiro
Ele sabe dos segredos
Ele é o meu parceiro
Examinando atentamente essa sequência discursiva, percebemos o outro
apresentado por meio do clítico ele, que pode nos fazer compreender a historicidade
pelo deslizamento de um enunciado em outro. Trata-se, portanto, de uma substituição
lexical. O clítico ele representaria, portanto, a presença do governo, mas também a
presença do confidente (amante) imbricados no sujeito da FDMPB. Questionamos: Que
caminhos seriam esses que ele sabe (conhece)? O guerreiro de qual guerra? Quais
segredos ele conhece? Parceiro em quê? O funcionamento do clítico ele”, portanto,
permite observar o efeito de generalidade da fala na perspectiva do regime ditatorial,
por via da resistência, uma vez que jogando na estrutura da língua se pode dizer o
que é proibido dizer.
As respostas que obtivemos dizem respeito aos caminhos da ditadura, a guerra
da injustiça, aos segredos escondidos no Serviço Nacional de Informações (SNI) e aos
parceiros que comungavam o autoritarismo. Smith assinala:
126
Embora o regime jamais tenha conseguido alcançar a legitimidade, ele
certamente nunca deixou de tentá-lo. Nunca abandonou suas tentativas de
autojustificação. Esse desejo de legitimidade impôs fortes restrições ao
alcance da atuação do regime. Quase nunca praticou abertamente a repressão,
mas disfarçava suas tomadas de poder com fórmulas semijurídicas de atos
institucionais e decretos-lei. Praticava a tortura em prisões clandestinas e
negava sua existência, afirmando que os prisioneiros haviam morrido em
acidentes de trânsito ou em ‘tentativas de fuga’. No trato com a imprensa, o
regime inventou procedimentos que disfarçavam o ato da censura. Mentia a
respeito de restrições à imprensa e censurava as notícias acerca da censura à
imprensa. (2000, p. 48)
De novo percebemos a ocultação, o mascarar, das situações que aconteciam. Ele,
portanto, aponta para esse mascaramento, uma vez que pode ser qualquer um, menos o
governo, que não assumia os atos que praticava. E isso se pode afirmar pela força das
designações caminhos, guerreiro, segredos e parceiro. Tais designações remetem aos
pré-construídos de FDs democrática e religiosa, menos militar. Logo, o funcionamento
repetido da pronominalização passa a ser de determinação na SD 21. De acordo como
Indursky, esse é o caso de “uma voz indeterminada, de natureza institucional. Ou seja, a
indeterminação, por meio da terceira-pessoa discursiva, opacifica o contrário, visando
a minimizá-lo e reduzir a credibilidade de suas formulações”. (1997, p. 123 - grifos da
autora).
SD 22 Cala a boca, Bárbara
Em “Cala a boca” a marca linguística da interdição do dizer. Retomamos
Milner ao afirmar que o fato de que um impossível deva dar lugar a uma proibição
explícita prova que pelo menos um lugar do qual se fale do que não se pode falar:
esse lugar é a alíngua”. (2004, p. 52). É este, o ponto central de nossa pesquisa: o que
não se pode falar em razão da censura. É uma FALA por meio do silêncio local,
“costuradopelo efeito metafórico, ou seja, o imperativo cala a boca da bárbara está
nos dizendo que os rbaros (os militares) não devem falar mais: devem, sim, ser
calados, silenciados. Neste caso, o jogo estabelecido no intradiscurso Bárbara/bárbaro
dá-se pela marca de gênero. No estudo do português, conforme Câmara Jr. (1979,
p. 88), o gênero é uma distribuição de classes rficas para os nomes e, do ponto de
vista semântico, o masculino é uma forma geral, não marcada, ao passo que o feminino
indica uma especialização qualquer. Na perspectiva discursiva, a mudança de gênero
implica a mudança de classe, ou seja, observa-se em bárbaros a passagem de
127
designação para a determinação, pois junto com o nome encontramos a duplicidade de
sentidos, não apenas para identificar a autoria das ações durante o período militar, mas
do tipo de ação, ou seja, a violência é tanta ao ponto de caracterizar a autoria como
primata, colocando-se no mesmo nível de animais que agem simplesmente por instinto,
sem pensar. O resultado da análise da SD22, portanto, vem sustentado pela tensão entre
a paráfrase e a polissemia, pois estamos durante o tempo todo deslocando, pela
repetição, a diferença. Porém, de que chamaríamos o deslocamento de sentidos e o
efeito metafórico senão de polissêmico? Vejamos a SD 23.
SD 23 Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu
Minhas matas percorreu
Os meus rios
Os meus braços
Nos colchões de terra
Passando agora à SD23, temos o caso em que o sujeito pontua claramente sua
contraidentificação com o posicionamento que ele próprio assumira na FDMPB; desse
modo, revela de forma explícita a nova conjuntura. As designações
terra/corpo/matas/rios/braços/colchões de terra apontam para uma conotação sexual
de abuso e de violência. Nesta SD figura o alerta de que o relacionamento com Bárbara
(leia-se bárbaro) é, na verdade, um outro, diferente daquele cantado na MPB e assumido
como amoroso.
Foucault (1979) nos leva a pensar no corpo como máquina, como força de
produção, de exclusão social. Uma prostituta seria uma excluída social. Na realidade,
dissimula por meio da relação corpo a corpo (na relação amorosa) a relação do poder
que é exercida coibindo o corpo do outro (subversivo). A próxima SD, portanto, procura
trazer a emergência desse poder nas relações de Bárbara. Vejamos.
SD 24 Nas trincheiras, quantos ais, ai
Em que pântanos beber
As vazantes
As correntes
Nos colchões de ferro
128
Como se na SD24, o funcionamento da denominação ntanos aponta para
um sentido historicamente sedimentado e, bem por isso dominante, uma vez que o
enunciador da FDMPB vai justamente operar sobre esse sentido, transferindo-o para
outro lugar: o lugar do suposto esquecimento daquilo que é proibido dizer. Ele pode
falar de amor, mas não o faz quanto ao domínio de memória do velho. Em outros
termos, ressignifica e imprime um novo sentido, com a sua marca de resisncia. Há
algo escuro, sujo, mórbido, nesse relacionamento com Bárbara, que nos causa asco,
nojo, como as cenas de tortura com pau-de-arara, choque elétrico, afogamentos– nas
quais podiam ser ouvidos muitos ais, ai; gemidos de dor, não de amor. Essas foram
algumas das formas de tortura utilizadas para reprimir as manifestações e obter
informões sobre as atividades de grupos e pessoas ligadas à oposição durante a
ditadura militar. Ainda segundo Foucault (1979), “os poderes funcionam como
mecanismos que estão ao alcance de todos, que se disseminam como uma, maquinaria,
estabelecendo relações de força”.
Da SD analisada selecionamos algumas designações que remetem aos pré-
construidos ligados à repressão: Nas trincheiras, quantos ais, ai, ... as correntes, ..
colchões de ferro. É interessante destacar a sigla utilizada pelo Destacamento de
Operões de Informações (DOI) E ficou uma sigla muito interessante, porque i”
(D’ARAÚJO, 1994, p. 52) –, que mantinha aparelhos para a repressão dos subversivos,
as torturas utilizadas na época da ditadura militar no Brasil
12
:
* cadeira de dragão os presos sentavam-se nus numa cadeira de zinco
ligada a terminais elétricos. Quando o aparelho era ligado, transmitia choques
a todo o corpo;
* telefone com as duas mãos em forma de concha, o torturador dava tapas
ao mesmo tempo contra os dois ouvidos do preso. A técnica era o brutal
que podia romper os tímpanos do acusado e provocar surdez permanente;
* afogamentos os torturadores fechavam as narinas do preso e colocavam
uma mangueira ou um tubo de borracha dentro da boca do acusado para
obrigá-lo a engolir água. (1994, p. 52)
12
Disponível em: htpp://mundoestranho.abril.com.br/historia/pergunta–287330.shtml. Acesso em: 11 out.
2009.
129
Dessa forma, não como os torturados não utilizarem os ais, ai,... porque
sofrem tortura física e psicológica, que aparece bem mais intensificada no recorte a
seguir.
SD 25 (ele)Cala a boca
(ele)Olha o fogo
Cala a boca
Olha a relva
....
Cala a boca, Bárbara
....
Cala a boca
Olha a noite
...
Olha o frio
O discurso-outro (ele) permite-nos observar o confronto entre a voz do poder (o
militar), daquele que interroga, que investiga, que tortura, e a voz do interrogado. De
um lado, é possível resgatar os métodos de tortura utilizados: queimar as pessoas com
pontas de cigarro aceso olha o fogo dar-lhes banhos de água gelada olha o frio
levar a vítima para o porão de uma delegacia olha a noite . A presença do jogo
injuntivo que se estabelece pelo reiterado uso de olha também permite recuperar a
questão do interrogatório, da vigilância. Assim, a necessidade de resgatar aqui uma
das formulações de Pêcheux, para quem a memória é um espaço que gera sentido, um
ponto de encontro entre uma realidade e uma atualidade, como podemos comprovar por
meio de entrevista feita com o coronel Adyr Fiúza de Castro:
Todo interrogatório é monitorado, não visualmente, através daquele
espelho falso, como por meio de escuta dentro da sala de interrogatório, e às
vezes, do lado de fora com dois, três ouvindo, monitorando e pensando. O
interrogador que está dentro também recebe instruções do pessoal de fora
para fazer certas perguntas, mas o preso não os vê. (D’ARAÚJO, 1994,
p. 61).
130
Desse modo, o funcionamento do imperativo permite que o sentido mude
porque, num movimento conjunto, muda o posicionamento ideológico do sujeito
enunciador. Referimo-nos aqui não mais ao companheiro de Bárbara, mas ao militar,
que expressa ordem, mandato, ou seja, é preciso obedecer, fazer o que é mandado para
que não se pague o ônus da rebeldia. Pela equivocidade, o efeito metafórico movimenta-
se entre as palavras e nos permite fazer leituras e entender o sincio local, dito de outra
maneira, a possibilidade de que o sentido possa sempre ser outro configura-se no espaço
da contradição.
Considerações parciais
Nas páginas que discorremos em forma de análise do Recorte 2: Bloco 2-
Textos de 3 a 6, procuramos mostrar como as temáticas censura e política
governamental são exploradas nas letras de músicas de Chico Buarque. Das 17 SDs
analisadas (de 9 a 25) é possível dizer que observamos a reiteração de dois sentidos
que se sobrepõem nessa voz indeterminada que se dirige ao sujeito do discurso (ou dois
sujeitos): um que comete a subversão social e outro que se dedica a práticas políticas
(subversivas), infringindo as leis sociais vigentes da mesma forma e atacando o
monopólio do poder repressor. No texto (3), observamos a correlação de forças por
meio das FDs militar e policial. A FD religiosa cris também se presentifica em nosso
gesto de leitura, pois nem o maior sacrifício do mundo foi capaz de dissuadir os
repressores. O funcionamento da condicional SE no discurso em análise apresenta-se
como uma possibilidade de recuperar o discurso-outro, compondo a materialidade
linguística, na qual observamos a heterogeneidade discursiva. Este discurso-outro
também evidencia duas posições-sujeito: a do povo brasileiro e a do governo, as quais
estabelecem um confronto entre as duas FDs (a militar e a MPB).
A política do silêncio aponta para a denúncia dos delatores por meio da negação,
visto que ao negar a ação do outro, nega-se a própria ação e, por medo da represália, da
coerção, diz-se o que o outro quer ouvir. No texto (4) e (5) o conceito recorrente diz
respeito ao silêncio local e à censura, porque censores agem repressivamente. O Não
dever falar prevalece, calando grupos subversivos, os inimigos do poder, dentre os
quais os sujeitos ligados a Chico Buarque, conforme vimos na sequência discursiva 17
do texto 4. É preciso mencionar também a resistência presente na denominação É
fora..., na qual o sujeito do discurso ressalta esse fora-da-lei, fora do país (exílio) e os
131
fora-da-regra (fora do regime autoritário) e vem ancorada na designação boi voador,
cujos sentidos o recuperáveis pelo interdiscurso, pelos pré-construídos e memória
discursiva. No texto (6) o discurso-outro por meio do enclítico (ele) representa o
governo, e as designações representam elementos da repressão. A tortura física e
psicológica é uma temática que se repete. Da mesma forma, o imperativo encaminha a
possibilidade dos deslizamentos de sentido, passando a instaurar a contradição e a
possibilidade da polissemia.
Se se observar o funcionamento do processo discursivo e do efeito metafórico
em exame, ver-se-á que, de um lado, existe o retorno de um saber estabilizado (o
repetível) e, de outro, a descontinuidade a desestabilizar certas filiações de sentidos, em
prol das novas e totalmente distintas. Pode-se ver claramente isso nas SDs 22 e 24, por
exemplo. A subseção a seguir abordará melhor o que já se adiantar até aqui.
4.3.1.2 O discurso-outro e o silêncio local
O recorte discursivo 3 será composto pelas seguintes canções do Bloco 3: (1)
“Cálice”, (2) “Apesar de você”, (3) “Você vai me seguir”, (4) “Partido alto” e (5) “Deus
lhe pague”. Essas canções foram selecionadas por apresentarem em suas letras
temáticas referentes ao discurso político e à censura. Serão analisados nesse recorte
aspectos referentes à censura e ao discurso-outro. Segundo Pêcheux,
[...] é porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse
outro próprio ao linguageiro discursivo, que pode haver ligação,
identificão ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a
possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações
históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes
de significantes. (1988/2008, p. 54).
É com base nas palavras de Pêcheux que utilizaremos o discurso-outro na
análise deste recorte discursivo. O fio metafórico como fio condutor desta dissertação
far-se-á presente em todas as análises, visto que é pelo funcionamento no discurso que
podemos evidenciar o silêncio local (a censura).
132
Alguns aspectos referentes à censura no regime militar brasileiro são necessários
para entendermos a sua relevância em nossa dissertação. Sabemos que havia muitas
maneiras de perseguir, intimidar, cercear e prejudicar a imprensa sem que o regime, que
buscava tanto a legitimidade quanto o controle autoritarista, tivesse de abrir mão de um
compromisso formal com a liberdade de imprensa.
Smith assinala:
Dois tipos de censura contra a imprensa foram praticados pelo regime militar
no Brasil. Um foi chamado censura prévia, o outro a auto-censura. Ambos os
rótulos eram enganadores. A censura prévia, exercida apenas contra um
punhado de publicações, determinava que tudo o que fosse preparado por um
jornal seria examinado pela polícia antes da divulgação. A auto-censura
consistia nas proibições de noticiar certos fatos que eram indicados pela
Polícia Federal às publicações antes de sua investigação e divulgação e até
mesmo de seu conhecimento, no caso de muitos eventos noticiosos. Dessa
forma, a censura prévia não intervinha num estágio o inicial do processo
quanto a autocensura, e a autocensura certamente não era autoimposta. (2000,
p. 95)
Autora segue em seu relato:
Ao analisar a censura prévia é possível deixar passar o fato de que essa
modalidade de censura do Estado era ilegal, secreta e rara. O processo inteiro
era inconstitucional. Era esse um aspecto da peculiar dualidade resultante do
caráter repressivo do regime e do concomitante desejo de legitimidade. O
regime precisava de que a censura prévia fosse um segredo relativamente
público (quer dizer, público pelo menos na esfera da imprensa) a fim de
poder rechaçar eficazmente possíveis desafios de outras publicações. Por
outro lado, em nome da legitimidade fundamentada no apelo às instituições e
direitos formais tradicionais, o regime tinha de esconder essa violação ilegal
de uma liberdade assegurada constitucionalmente. (SMITH, 2000, p. 96).
A única canção escrita em parceria com Gilberto Gil é “Cálice”, as demais são
compostas por Chico Buarque. A reflexão desenvolvida nesta seção, inicialmente, busca
compreender o silêncio local. As sicas “Cálice”, “Apesar de Você”, Vence na vida
quem diz”, “Partido alto e “Deus lhe pague” integram o conjunto de músicas que
foram produzidas por Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil) na década de 1970,
período em que o Brasil estava sob o domínio do governo do general Emílio Garrastazu
Médici. De acordo com Napolitano:
133
O regime militar brasileiro, como de resto outras ditaduras latino-americanas,
concentrou-se em vigiar e controlar o espaço público, regido por uma lógica
de desmobilização política da sociedade como garantia da “paz social”. Neste
sentido, esses regimes poderiam ser caracterizados como autoritários, pois
sua atuação voltava-se para o controle e esvaziamento político do espaço
público, preservando certas formas de liberdade individual privada. (2004,
p. 104).
Entre os artistas que optaram por retratar o momento político vivido por meio de
produções literárias em que usavam a criatividade e a genialidade para dizer o que
pensavam, por meio de uma linguagem cuidadosamente selecionada, que provocava
determinados sentidos, temos Chico Buarque de Hollanda.
O autor Marcos Napolitano (2004) explica que na diversidade de gêneros de
escrita da burocracia repressiva percebem-se uma certa incoerência e descompromisso
com a verdade, dada a necessidade de superdimensionar qualquer atitude que pudesse
ser considerada suspeita. Portanto, as táticas da produção da suspeita sobre os artistas
obedeciam a uma gica perversa, apesar da aparente improvisação e falta de critérios.
As principais peças acusatórias notadas nos documentos foram as seguintes, em grau de
suspeição decrescente: a) participação em eventos patrocinados pelo movimento
estudantil; b) participação em eventos ligados a campanhas ou entidades da oposição
civil; c) participação no “movimento da MPB” e nos “festivais dos anos 60”; d)
conteúdo das obras e declarações dos artistas à imprensa (cujas matérias eram anexadas
aos informes, relatórios e prontuários, como provas de acusação); e) ligação direta com
algum “subversivo” notoriamente qualificado como tal pela “comunidade de
informões”, sendo Chico Buarque de Hollanda um dos mais citados; f) citação do
nome do artista em algum depoimento ou interrogatório de presos políticos (bastava o
depoente dizer que gostava do cantor ou que suas sicas eram ouvidas nos
“aparelhos” clandestinos). (NAPOLITANO, 2004, p. 105).
Esses movimentos de resistência ao regime militar, que compõem as esferas
estatais e os aparelhos ideológicos de Estado (AIE), justificam o desenvolvimento de
análises de letras de músicas e a inclusão de outros conceitos trabalhados na perspectiva
da AD, como contradição, resistência, materialidade linguística e histórica.
A fim de observar o silêncio local e o efeito metafórico (constituído na própria
contradição), trabalharemos, a seguir, com sequências recortadas das canções de Chico
Buarque. Foram selecionadas sequências discursivas que vão da SD 26 até a SD 34.
134
Recorte discursivo 3 – Bloco 3-Texto 7
Música: “Cálice”
Gilberto Gil e Chico Buarque
1973
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade, não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha caba perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça.
Passemos, então, às análises:
SD 26 Pai, afasta de mim esse cálice
Vinho tinto de sangue
No poema-canção intitulado Cálice” (leia-se “cale-se”), essa homofonia,
fazendo um jogo de sentidos, permite-nos entender o silenciamento imposto pela
censura. Podemos ler na estrutura da língua Calese ---- calice que é uma estratégia
linguística utilizada pelo sujeito empírico para driblar a censura. As pistas do silêncio
local permitem-nos observar o antagonismo que se estabelece em relação a diferentes
saberes, inscritos no movimento dos intelectuais e em torno de diferentes formações
ideológicas, tais como a FD religiosa cristã, bastante recorrente e muito apropriada à FD
da MPB. A SD26 permite que identifiquemos a imagem bíblica do calvário,
desencadeando o sentido religioso-político, e esses saberes mascaram o silenciamento
imposto pelos aparelhos repressores de Estado. A resistência mascarada na lembrança
do conjunto de saberes da formação religiosa constrói o espaço do dizer, o mesmo dizer
que foi censurado, proibido. Não diz por que é proibido dizer, mas, contraditoriamente,
135
passa a dizer justamente porque mobiliza pré-construídos e dizeres que pertencem ao
interdiscurso, à memória de outras FDs. Portanto, ao falar da FD religiosa-cristã é
retomado o tema presente na Bíblia e, por meio dessa “lembrança”, podemos ler o que
não foi dito.
A designação lice num jogo de sentidos (efeito metafórico), pode ser
substituída por Médici. Neste caso, recorrendo à norma gramatical das palavras
proparoxítonas (cálice Médici), vemos que a sílaba tônica é a antepenúltima.
Notamos, portanto, que o efeito metafórico consegue costurar na estrutura linguística o
efeito de sentido presente.
Trata-se do silêncio imposto pelo poder, no caso, a censura do governo Médici,
que silenciava a voz do sujeito. Mas não somente a censura silenciava, pois a repressão
e o silêncio atingiam a todos aqueles que ousassem falar. A sica “Cálice”
transformou-se em símbolo da ditadura, num dos confrontos de Chico com a repressão.
No show Phono 73, realizado em São Paulo, a gravadora Phonogram desligou os
microfones para impedir que Chico e Gilberto Gil cantassem a música e, logo, que a
palavra cálice (cale-se) fosse pronunciada, o que a transformou em imagem concreta.
Contudo, ao agir, para que ninguém ouvisse cale-se, a censura levou todos os presentes
a verem o cale-se concretizado nos microfones calados.
A designação vinho remete à FD religiosa cristã do momento da celebração, em
que o vinho é transformado no sangue de Cristo. Em nossa análise, sangue mascara os
censores, o sangue dos torturados políticos; ao mesmo tempo, lembra por meio do
efeito metafórico aos outros” (os intelectuais), este sangue derramado. A designação
vinho tinto de sangue refere-se ao sangue que foi derramado por aqueles que foram
violentados, agredidos, o sangue dos inocentes. Podemos ler também comoo a cena do
calvário, com a dor, o sofrimento, a violência física e humilhação que Cristo suportou
para salvar os inocentes.
Sabemos que o contraponto do silêncio é a voz, essa voz esmagada, abafada,
estrangulada, oprimida, reprimida pelo cale-se; é uma imposição do silêncio à força,
obrigando a se calar, e que produz o efeito de sentido de um protesto, um grito;
demonstra o momento de aguentar calado, silenciado, a situação de repressão. Esse
poder dominador toma conta da pessoa, paralisa-a e domina-a. Não deixa de ser uma
violência sobre o corpo do sujeito do discurso e sobre o corpo da língua que é a sua voz.
Tem-se o efeito do silêncio acontecendo além das palavras e além do fato de falar ou
não falar.
136
Diante do que foi analisado aqui, impõe-se reconhecer o processo discursivo
polissêmico como uma necessidade à resistência, pois, mesmo situado no confronto
entre o que podia e devia ser dito, o sujeito procura resistir e dizer aquilo que está
proibido dizer. Joga-se, pois, com o enunciável o proibido, próprio da identidade
polêmica, dos embates do sujeito com a ideologia no instante que tais embates põem em
jogo a fronteira do enunciável e do não enunciável dentro de uma FD. Passemos à SD
27, que faz retomar, de certa forma, algo dito na SD26.
SD 27 Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Mesmo calado o peito, resta
a cuca.
Tanto a SD 27 quanto a SD 28 (logo mais abaixo) concorrem, em seu conjunto,
para a formulação de um repetível em torno do sacrifício, da doação, remetendo-nos
novamente a uma FD religiosa cristã, como a entrega, o amor total de Cristo pela
humanidade. Subentende-se que dar a outra face não quer dizer dar o rosto para bater.
As designações dor e labuta podem ser pistas linguísticas para afirmarmos que Cristo
não falava da face física, da agressão física que compromete a preservação da vida, mas
da face psíquica. Dar a outra face, na realidade, não é um sinal de fraqueza, mas de
força e segurança, só na medida em que uma pessoa forte é capaz de dar a outra face; só
uma pessoa segura dos seus próprios valores é capaz de elogiar o seu agressor. Quem dá
a outra face não se esconde nem se intimida, mas enfrenta o outro com grandeza e
segurança.
Uma função importante da dimensão da memória é o esquecimento. Na cultura
brasileira uma demanda por gestos de recuperação e conservação da memória que
visa a responder a urgentes necessidades sociais e históricas. Para usar as palavras de
Pêcheux, essas problematizações aparecem sob duas formas: o lamento pelo
acontecimento que não chega a se inscrever e a procura pelo acontecimento que,
absorvido na memória, resta como se não tivesse acontecido. Pelo viés psicanalítico,
podemos dizer que “sem o esquecer torna-se impossível o acesso à memória como
virtualidade do dizer, consequentemente fica impossível o sujeito e seu discurso. Entre
o esquecer e o lembrar incide uma memória absoluta que denuncia”. (SOUZA, 2000,
p. 100-101).
137
Com o terror de Estado desencadeado pelo AI-5, enfrentar a ditadura militar
tornava-se ainda mais difícil. Nesse contexto, desenvolveram-se as Comunidades
Eclesiais de Base (CEB), pequenos grupos de pessoas ligadas à Igreja Católica que
discutiam a religião e a realidade local. Assim, a Igreja retomou seu papel de refúgio
para os perseguidos. Oficialmente, havia apoiado o golpe de1964, mas não consegiu
calar-se diante das atrocidades cometidas pela repressão, que atingiram o próprio clero,
pois houve padres torturados e assassinados.
Em A arte de calar, o Abade Dinouart, lemos que “só se deve deixar de calar
quando se tem algo a dizer que valha mais do que o silêncio. O autor continua sua
explicação:
A superioridade do silêncio sobre a palavra, na conduta ordinária da vida,
funda-se assim, num ideal de auto-conservação que extrai seus recursos da
imobilidade e que na palavra um risco. Se o tratado tem uma grande
preocupação em separar silêncio e palavra, em marcar que um não pode
substituir o outro, e em inverter a hierarquia de valores que atribui tanto
prestígio ao verbo, é porque há na palavra o perigo de uma despossessão de
si: O homem nunca é tão dono de si mesmo quanto no silêncio: fora dele,
parece derramar-se, por assim dizer para fora de si e dissipar-se pelo
discurso; de modo que ele pertence menos a si mesmo do que aos outros.
(2001, XX).
Nessas palavras e com referência ao nosso corpus, percebemos que até a Igreja,
que no princípio era considerada amiga da ditadura, a certa altura passou a posicionar-
se contra ela. Por isso se justifica que nas canções a FD religiosa cristã seja bastante
recorrente.
No gesto de interpretação da AD, o efeito metafórico perpassa na designação
Mesmo calada a boca, que remete à censura propriamente dita, ao silêncio imposto, ao
aguentar calado uma situação de repressão. Remete a que, mesmo que à boca não seja
permitido falar, os sentimentos que estão guardados no peito não foram calados,
embora, o silêncio imposto não permita que sejam expressos, verbalizados. Denota-se,
pois, a resistência aos censores. Podemos dizer de um silêncio por opção, como se o
sujeito discursivo optasse por não falar. Nesse movimento observamos uma correlação
de forças entre a FD musical e a FD política, com o sujeito do discurso ocupando uma
posição sujeito de espectador passivo da batalha pelo poder. E o corpo que tudo
(olhos), mas não pode falar (boca), está paralisado (coração), anestesiado (corpo e
consciência) pela censura e opressão.
138
Tragar /a labuta reporta ao fato de ter de esconder a dor, o sentimento de
insatisfação, o represamento das emoções, o que acarreta sofrimento, uma espécie de
sufoco. Podemos depreender a expressão também como engolir o trabalho, fazer as
coisas sem ser remunerado corretamente, ou justamente; é a exploração, a sujeição em
nome da sobrevivência. Esse tragar é a arte de silenciar e que, contraditoriamente, nos
revela o outro lado, o da imposição do silêncio.
Nas palavras de Orlandi, (1995, p. 36), “o homem exerce seu controle e sua
disciplina, fazendo o silêncio falar ou, ao contrário, supondo poder calar o sujeito”. O
silêncio local, ainda na formulação de Orlandi, é a censura, ou seja, aquilo que é
proibido dizer em determinada conjuntura. A censura estabelece um jogo de relações de
força pelo qual configura, de forma localizada, o que do dizível não deve (não pode) ser
dito quando o sujeito fala. Não se pode dizer o que foi proibido (o dizer devido), ou
seja, não se pode dizer o que se pode dizer ou o que se quer dizer. O sujeito do discurso
aí atua como um articulador entre a voz silenciada do povo e o grito desumano (que foi
censurado) do governo, contudo deixa sua mensagem, seu grito de protesto. O silêncio,
portanto, é significativo.
O efeito de sentido que se traduz é que nada mais restará a não ser a cuca (a
consciência) sobre o que está ocorrendo. Aqui, com o sentimento, metaforicamente, no
peito calado, resta à cabeça, significando a consciência e o discernimento, lutar e se
conscientizar. Portanto, o sujeito empírico faz do “silêncio um espaço de controle e de
cálculo. Exerce a arte de calar para cativar o outro, apoderar-se dele e dominá-lo”. É
preciso, assim, fazer calar a linguagem, porém, inversamente, é preciso “fazer falar o
silêncio”. Fazê-lo falar é, em primeiro lugar, reconhecer suas diferentes espécies pelos
sinais que as distinguem, como numa história natural do silêncio, que fosse de fato a das
ocasiões, das circunsncias e das condutas em que o silêncio se ime na vida social.
(DINOUART, 2001, p. XXIV).
SD 28 De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Conforme podemos ler na SD 28, segundo a concepção ortodoxa, o pecado é
eterno e nos foi dado, ou seja, o homem traz o pecado em si e o traz desde o princípio.
Novamente o religioso vem encobrir o que a censura não pode e nem deve enxergar, ou
139
o que não se quer que apareça. Freud refere que o simbolismo dos sonhos não pertence
propriamente ao sonho, mas às representações inconscientes do povo, surgindo numa
forma mais perfeita nos mitos, nas lendas e ditos espirituosos. Aqui, o pecado, na
perspectiva da AD, é posicionar-se contra o governo.
Ocorre um deslizamento de sentido na rede discursiva, porque essas sequências
poderiam se referir à pátria (santa), fazendo uma referência à pátria-mãe, e a outra, à
revolta de Chico por não ser aceito em seu país (exílio). Antes ser filho-da- puta
(velado, o não-dito), que aqui é visto como um processo para driblar a censura (o furo, o
equívoco), do que dessa pátria como madrasta. A inter-relação entre pátria e mãe se faz
quando indica a opressão, o sofrimento. Poderíamos inferirr também que a santa é a mãe
de Jesus, e o crucificado, a outra.
A censura intervinha nas questões morais e nos costumes. Os estudantes, por
exemplo, eram obrigados a ter aulas de educação moral e cívica e fomentou-se o
patriotismo ufanista traduzido pela frase Brasil: ame-o ou deixe-o. A todos aqueles que
eram contrários ao regime restavam o exílio, a clandestinidade, a luta armada e o
silêncio. Assim, qualquer atuação política tornara-se perigosa no país, visto que os
militares passaram a exercer uma vigilância total sobre todos os setores da vida
nacional. Porém, de que chamaríamos essa vigilância senão de perseguição? Vejamos a
SD 29.
SD 29 Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Segundo os fundamentos de uma teoria materialista do discurso, proposta por
Pêcheux (1996), que nos diz que tudo é determinado historicamente, a ideologia
também sofre transformação através do tempo, de modo que as manifestações de sua
operação se modificam. Assim, ao deslocar a concepção marxista de ideologia como
ocultação para o âmbito do discurso, Michel Pêcheux diz que o ideológico se manifesta
como um efeito de evidência do sujeito e do sentido. Este trabalho da ideologia é
possível a partir do sincio, pois é dando a impressão da existência de um sentido
literal, ou único ou seja, pelo efeito de apagamento não de outros sentidos, mas
também das próprias condições de produção do sentido – que a ideologia faz seu
trabalho; sem o silêncio isso não seria possível.
140
No caso da SD 29, é possível observar que essa outra realidade, menos morta,
seria uma realidade sem opressão, sem a “mão de ferro da ditadura”, que se tornou
portadora de mentiras, como, por exemplo, o “milagre brasileiro”, um milagre
econômico que não existia para a maioria excluída, conduzida pela força bruta da
opressão. A análise dos diferentes posicionamentos assumidos pelos sujeitos viabiliza
alcançar o funcionamento da heterogênea forma-sujeito de cada uma das formões
discursivas em questão (a saber, as FDs: MPB e militar, respectivamente). Neste caso
(mas também nas demais SDs recortadas do texto 7), estamos diante dos processos
polissêmicos, que permitem à mesma forma material significar, na FDMPB, algo
daquilo que significa na FD militar e na FD religiosa. Vejamos a SD 30.
SD 30 Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Podemos perceber por meio da SD 30 que a sequência calada da noite e grito
desumano remonta às sessões de tortura a que eram submetidos os presos políticos. Era
na calada da noite que o Exército prendia pessoas suspeitas de não serem favoráveis ao
regime instalado, de fato, cumprindo as ordens do governo, os policiais entravam nas
casas e prendiam as pessoas sem que estas ao menos soubessem o porquê da prisão.
Relaciona-se, também, com o calar do homem, com o calar da noite. O autor reforça o
peso da censura, no entanto deixa clara a certeza da resistência: Quero lançar um grito
desumano /Que é uma maneira de ser escutado. Além disso, o regime tinha bastante
força para sufocar as organizações clandestinas.
SD 31 Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
141
A análise da SD 31 permaneço atento movimenta a ideia do sobressalto, de
estar sempre com medo, preocupado em ser apanhado pelos censores, o que nos
possibilita observar os pré-construídos da FD militar, como violência, tortura e traição,
por exemplo. Ser sobressaltado pelo monstro da lagoa permite abordar os
deslocamentos de sentido, pelos quais um determinado enunciado, uma vez
ressignificado, torna-se outro sem deixar de ser, formalmente, o mesmo.
Referimo-nos novamente ao silêncio local, considerando-o como um meio de
tortura, de atordoamento porém, mesmo o sujeito estando atordoado, mesmo como
espectador, na arquibancada (a recorrência ou insistência aos efeitos malignos da
censura e interdição dos aparelhos repressores de Estado, como jurídico, policial,
imprensa autorizada, etc.), ele permanece vigilante. Nesse caso, o atravessamento
dos saberes da formação discursiva (FD) dos espetáculos do império romano, em que o
sujeito do discurso ocupa o lugar de espectador inconformado, por não poder atuar
efetivamente como protagonista, mas mesmo assim continua atento, pois sabe que a
qualquer momento poderá ser surpreendido por uma nova traição .
Os saberes da FD militar evidenciam as ações da polícia, dos militares, na calada
da noite, os quais sorrateiramente faziam prisioneiros os cidadãos que não eram
favoráveis ao sistema imposto. Este espectador não desiste e aguarda consciente o
surgimento do monstro da lagoa, designação que nos remete ao filme O monstro da
Lagoa Negra. A história fílmica passa-se na Amazônia, o imenso pulmão verde palco
de civilizações perdidas, de mundos ocultos, animais pré-históricos, etc, onde
um cientista, Carl Maia (Antonio Moreno), que procura na região fósseis antigos,
encontra a pata de uma criatura desconhecida. Resolve, então, organizar uma pequena
expedição e parte a bordo do barco “Rita” à procura de outros vestígios e esqueletos.
Então, viaja até um local chamado de Lagoa Negra, em razão de suas águas escuras,
onde acaba encontrando uma estranha criatura viva, um ser anfíbio muito parecido com
o homem, considerada a maior descoberta de todos os tempos. O monstro passa a ser
caçado pelos humanos, que querem capturá-lo com vida; porém, após vários confrontos
com o ser parte da expedição morre. As ótimas sequências aquáticas envolvendo as
lutas entre os pesquisadores e o monstro anfíbio, interpretado por Bem Chapman, são o
ponto mais alto do filme.
De acordo com uma visão psicanalista, podemos sugerir que esse monstro (a
censura) que surge das águas profundas (inconsciente) emerge para assombrar e destruir
os que se confrontarem com ele. É como se já fizesse parte do inconsciente coletivo
142
dessa comunidade que este monstro pode aparecer a qualquer momento, sem um aviso
prévio, e nos surpreender. Em uma entrevista Chico descreve esse monstro:
Vopensa que a censura é uma anomalia, uma coisa provisória. Eu acho
que para o jovem compositor, a censura é um monstro natural, que existe, que
sempre existiu, que não adianta combater. E que esaí. Então ele cria a
autocensura
13
.
Como o país vivia sob o domínio do terror e o império da censura, muitos
recursos linguísticos passaram a ser usados para burlar o controle dos censores. Por
outro lado, aqueles que não se valiam da arte como instrumento de contestação, eram
policiados pelas patrulhas ideológicas de esquerda. Continuemos a discussão sobre os
efeitos das censuras e das torturas na SD 32.
SD 32 Como beber dessa bebida amarga
Esse pileque homérico no mundo
Me embriagar até que alguém me esqueça.
Na análise do nosso corpus, o que retorna no discurso de Buarque sobre a ação
dos militares é a questão da censura, da tortura, da violência. Conforme podemos
depreender na SD 32, somente de consciência anestesiada se poderia aceitar a censura
imposta. Na designação bebida amarga confunde-se o vinho (sangue de Cristo) com o
sabor do fel, os quais, associados, agem como anestésicos (do corpo e da consciência)
para reduzir o sofrimento do povo. É uma marca do silêncio imposto e, ao mesmo
tempo, de resistência.
O compositor constrói a imagem de um ser associado ao estado de embriaguês,
que o tem discernimento entre o certo e o errado, nem tem controle da realidade.
Segundo o próprio autor, a repressão era tanta que apenas na cabeça de um ébrio haveria
a possibilidade de se pensar em (com) liberdade; aí haveria a esperança de que a vida
talvez não fosse um fato consumado. Ainda menciona a impressão de que o mundo
inteiro está vivendo um pileque homérico do mundo, isto é, bebendo até que alguém o
esqueça. Esse alguém remete à censura, à repressão, na figura do presidente Médici.
Segundo Orlandi (1995, p. 81),
13
Dispovel em: <http://www.chicobuarque.com.br>
143
a situação típica da censura traduz exatamente esta asfixia: ela é a interdição
manifesta da circulação do sujeito, pela decisão de um poder de palavra
fortemente regulado. No autoritarismo, não há reversibilidade possível no
discurso, isto é, o sujeito não pode ocupar diferentes posições: ele pode
ocupar o “lugar” que lhe é destinado, para produzir os sentidos que não lhe
são proibidos.
A censura age como anestésico da consciência do sujeito do discurso.
SD 33 Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
O que podemos perceber na SD acima é que, no combate à repressão, à ditadura,
o discurso de Buarque desindentifica-se em relação aos saberes da formação discursiva
militar, o que caracteriza uma prática política que rejeita o Estado, o governo, e se
mostra contrária à ditadura e, sobretudo, às ações e métodos autoritários. Portanto, em
contraste com os valores e formas de vida impostos pelos militares, o compositor
apresenta os seus conceitos morais quero inventar o meu próprio pecado –, ou seja,
ele não quer mais se sujeitar ao juízo de valor do governo, que determina o que é certo e
o que é errado. Além disso, quer decidir a forma de sua morte negando-se a morrer pelo
veneno dos militares, ou seja, quer ter seu próprio juízo. É lógico que esse querer vem
do inconsciente, transparecendo a ideologia dominante. Sabemos que “a ideologia é
constitutivamente inconsciente dela mesma”. (ECKERT-HOFF, 2008, p. 127).
SD 34 Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
De muito gorda a porca já não anda
Observamos na SD 34 uma situação de sujeição, por não poder dizer alguma
coisa, mas, ao mesmo tempo, querer ir contra essa tua cabeça (o governo). No
linguístico ocorre um deslizamento de sentido, como, por exemplo, na designação
Quero cheirar fumaça de óleo diesel, em que se evoca a morte do militante de
esquerda Stuart Angel no pátio de um quartel no RJ, cujo rosto ficou imprensado no
cano de escapamento de um jipe.
144
De muito gorda a porca não anda é passível de ser interpretado como
referência à obesidade de um dos mais notórios ministros da ditadura
14
. O sujeito do
discurso deseja manter sua capacidade de raciocinar, de pensar e agir diante das
situações, de manter o seu livre-arbítrio, e não quer mais se sujeitar ao juízo de valor do
governo, que determina o que é certo e o que é errado.
No caso do autor, a repressão esmaga a voz, destituindo o indivíduo de tudo,
impondo-lhe a perda total de sua autonomia. Porém, ele quer correr o risco de ser
reprimido pela sua expressão, ou seja, não importam as consequências, quer mostrar seu
posicionamento, sua insatisfação. Em outras palavras, o autor não está de acordo com a
ideologia dominante e, pelo silenciamento, deixa transparecer seu posicionamento
político e ideológico.
Na sequência de nossas análises, o texto 8 do recorte discursivo 3, o bloco de
sequências discursivas que selecionamos perfaz um total de sete, que vão da SD 35 à
SD 41.
14
Dispovel em: www.jornaldapraça.com.br\olunistas\cotidiano\345-edi-266.html. Acesso em: 16 jan.
09.
145
Recorte Discursivo 3 - Bloco 3- Texto 8
Apesar de você
Chico Buarque 1970
Hoje você é quem manda
Falou, ta falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Vovai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Vovai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Vovai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Vovai se dar mal
Etc. e tal.
Para Pêcheux, a formação discursiva é o lugar específico da constituição dos
sentidos e da identificão do sujeito, que é a manifestação no discurso, da
materialidade ideológica. Na AD a noção de FD representa um lugar central de
articulação entre língua, memória e discurso. Portanto, para que uma sequência
discursiva seja dotada de sentido, deve pertencer, necessariamente, a uma FD, o que
explica também o fato de que uma mesma sequência pode produzir diferentes efeitos de
sentido, conforme a FD em que se inscreve.
Cabe ressaltar que as condições de produção, na AD, alcançam também as
queses ligadas à natureza da teoria psicanalítica da subjetividade, que é imprescindível
na análise da discursividade. É por essa razão que o Real, sendo o espaço próprio da
146
movência do sujeito e do sentido, é também o espaço por excelência de transgressão da
linguagem e de resistência à ideologia.
Analisaremos, portanto, as sequências discursivas que fazem parte desta canção:
SD 35 Hoje você é quem manda
Não tem discussão
Como vai proibir
Na SD 35, os enunciados é quem manda/ não tem discuso/ proibir são
pistas linguísticas que nos permitem analisar o discurso autoritário tanto em atos
discursivos declarativos como em operações de negação. A negativa assume o tom da
obediência não tem discussão que significa um ter de obedecer; é, pois, no
funcionamento da negação que vamos encontrar também vestígios do silêncio local,
marcas da interdição do dizer. Apresenta um efeito de ameaça àqueles que discordam e
pensam em resistir ao poder instituído. Essa negação implica a cassação discursiva dos
direitos do cidadão e equivale ao Brasil: ame-o ou deixe-o do período Médici, de
acordo com Indursky. (2000, p. 97).
Podemos afirmar também que, ao negar, o sujeito está afirmando, está emitindo
uma voz afirmativa que ecoa vinda do interdiscurso. A negação revela, embora tente
disfarçar, o que é e não é dito ao mesmo tempo, ou seja, a questão da autoridade, da
repressão imposta naquele período. A negação constitui um modo de tomar
conhecimento do que está reprimido; com efeito, é uma suspensão da repressão,
embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido”. (FREUD, 1925,
p. 296), ou seja, o sujeito expressa uma resistência regida pela censura, enunciando uma
verdade reprimida. o diferentes vozes que expõem o conflito e a contradição,
inerentes à constituição do discurso e do sujeito. Esse dizer marcado pela negação
reafirma a ausência do desejado (do reprimido): a falta de liberdade (física e psíquica).
A negação marca a materialização de um movimento contraditório de identificação
entre o ser e o não ser, entre o fazer e o não fazer. A marca linguístico-discursiva da
negação leva-nos a verificar que ocorre mudança no que foi dito, a qual fica evidenciada
pela heterogeneidade da linguagem. Coracini nos diz:
147
Se aceitarmos, pois, a heterogeneidade como constitutiva do sujeito,
perpassado pelo inconsciente, fica mais cil perceber que todo e qualquer
dizer resvala sentidos inesperados ou a indesejados, conflitos e
contradições, desejos recalcados, faltas que, preenchidas, gerarão sempre
outras faltas. (2000, p. 10).
A falta nunca podeser preenchida porque surge do inconsciente, e é por meio
dessa falta, que nos é constitutiva, que podemos nos manter equilibrados mentalmente;
do contrário, enlouqueceríamos ao tentar explicar o que o pode/ou não deve ser
explicado. Na SD 35 podemos resgatar por meio do fio metafórico o que foi silenciado
na época da ditadura militar: o grito contido, lágrima rolada e penar reforçam nossa
análise das torturas pelas quais passavam os inimigos do poder.
SD 36 Esse meu sofrimento
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Sofrimento, amor reprimido, grito contido, lágrima rolada, penar são
designações que apontam para o sofrimento do sujeito do discurso, que, o podendo
falar, tem de silenciar seu sofrimento. Pêcheux, no texto “Delimitações, inversões,
deslocamentos” (p. 17), chama a atenção para o papel do porta-voz, aquele que
“determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa
enfim ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em
nome daqueles que ele representa, e sob o seu olhar [...]”. O sujeito do discurso, então,
representa esse porta-voz que, por meio das letras de suas caões, age como um
interlocutor para o afeto; aquele que sofre e sente junto com o povo brasileiro os abusos
do poder. No caso da SD 36, o sujeito do discurso fala de si para falar do outro (do
militar, mas também dos que, como ele, sofrem por serem governados por militares).
Avançando as análises, vemos que a SD 37, a seguir, aborda o outro inscrito em uma
FD antagônica. Vejamos.
148
SD 37 Apesar de você
Você que inventou esse estado
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Você que inventou a tristeza
Observamos no funcionamento do demonstrativo quem inventou esse estado,
que o esse no lugar de este, indica distanciamentos entre um e outro. Ainda observamos
certa tentativa de driblar a censura e encobrir aquilo que mais se busca tornar visível: o
que foi silenciado, que é o momento de silêncio e de interdição, mas também estado
(país) falso (“milagre econômico” de “falsa liberdade”, etc.), que resgatamos pelo fio
do interdiscurso e fica marcado no intradiscurso. O estado com minúscula visa driblar
os censores, já que poderia ser este Estado Regime militar, inventado com o golpe, mas
que queria ser entendido como revolução.
Chico, ao ser questionado sobre quem seria o você, declara “que era o tudo, era
o sistema. Não era falando de um general, mas de uma generalidade, era mais amplo”
15
.
Observamos que o funcionamento do pronome vo, na letra desta canção
permite observar como o outro passa a ser falado pelo sujeito da FD MPB, que se refere
ao governo ou a uma generalidade, nas próprias palavras do autor. Assim, sempre que
falamos de nós mesmos, falamos também do Outro que nos habita alteridade
constitutiva; ao falarmos do outro (governo), é de nós mesmos que falamos, uma vez
que, mesmo sem percebermos, sempre e inevitavelmente escapam fagulhas do sujeito
cindido. Afirmamos, com Authier-Revuz (1982), que o sujeito é clivado, dividido pelo
inconsciente, vivendo sua autonomia de seus discursos”. Como o sujeito é cindido (por
assumir rias posições no discurso) e clivado (por ser fragmentado, uma vez que o
inconsciente o constitui), seu discurso é constitutivamente heterogêneo. No caso
específico do você, pode ser lido como algoz e igualado ao diabo, que é o responsável
pelo pecado, o militar, ou seja, esses elementos da FD religiosa atravessam a FD da
MPB.
Logo, no corpus em análise, VOCÊ é o enunciado-outro, que, por meio de
operações linguísticas de transformação, permite vislumbrar o pré-construído que está
nivelado na formulação em análise. A operação de identificação discursiva do discurso-
15
O depoimento de Chico Buarque encontra-se no DVD Vai passar, editado em 2001.
149
outro complementa-se, assim, pela mobilização da categoria de memória discursiva, a
qual permite relacionar o que é dito na sequência discursiva com o dizer de outros
discursos. (INDURSKY, 2000, p. 49).
Apesar de remete àqueles que não concordam com o Estado, àqueles que não
abdicam de seus direitos, desacatando a autoridade do Estado; são os que desafiam o
poder e que, não podendo discordar, são silenciados. Escuridão, pecado, tristeza são
designações que remetem à ditadura.
SD 38 Minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Minha gente autoriza o sujeito da FD MPB a falar em lugar do povo brasileiro,
que sofreu as violências da ditadura, que teve de se submeter ao que lhe era imposto. De
lado possibilita observar a costura realizada no fio do discurso pelo efeito metafórico,
ou seja, as ressalvas, os medos são efeitos de ações de violência durante a ditadura dos
governos militares; logo, de lado não se restringe a modalizar o modo como o povo
fala, e sim que está proibido de falar. Olhando pro chão significa submissão, proibição
e interdição, sob o pretexto de não despertar suspeitas. Viu, apesar de ser um verbo,
funciona como um vocativo, uma vez que busca estabelecer interlocução com o outro,
chamando a atenção do governo para a situação criada e sustentada por ele mesmo.
Aqui, pode-se dizer que se está produzindo um discurso sobre o povo (outro). Por meio
de minha gente é construída a imagem de um povo desconfiado, submisso, deprimido e
oprimido, o que reforça o caráter do discurso autoritário, antes citado. Em realidade,
não se trata de um discurso do povo, mas de um discurso construído pelo sujeito do
discurso sobre o povo e a ele atribuído. o é a voz do povo, porque foi silenciada; é
o sujeito do discurso que ocupa posição de porta-voz desse discurso. De um lado,
coloca a imagem do opressor (agressor); de outro, a imagem do oprimido (vítima).
SD 39 Amanhã há de ser
Outro dia
Observamos na SD 39 a atualização da memória discursiva do enunciado Brasil,
o país do futuro, amplamente divulgado pela ditadura militar. Temos novamente o
150
desgaste das palavras produzido pela banalização da linguagem, no caso, o da esperança
no futuro, slogan utilizado pela mesma ditadura que reprimiu, prendeu, torturou e matou
os que tentavam efetivamente lutar contra a situação de miséria de grande parte da
população, que não via qualquer futuro. Por isso, O amanhã, de ser, outro dia traz
consigo o silêncio, tornando possível observar o deslizamento dos sentidos. A partir de
uma memória discursiva mobiliza-se um discurso gasto pela inexistência de políticas
governamentais que permitissem vislumbrar uma garantia de futuro. A modalidade
temporal, neste caso, funciona mais como protesto que aposta em futuro.
SD 40 Vou cobrar com juros, juro
Você vai se amargar
Você vai pagar e é dobrado
E eu vou morrer de rir
Inda pago pra ver
Como vai se explicar
Nessas sequências discursivas estão presentes a indignação e a cobrança por
todos os momentos perdidos, pelo amor reprimido, pelo sofrimento. Percebemos a
presença do desabafo do sujeito do discurso, sua revolta contra a própria impotência
para fazer alguma coisa em defesa do povo oprimido e alienado. No mesmo ano em que
a seleção brasileira conquistava o tricampeonato mundial, as torturas e
desaparecimentos de pessoas contrárias ao regime do general Médici eram constantes. O
embate era constante. Então, o sujeito do discurso questiona como ele (o governo) vai
se explicar. O outro 1 (o povo brasileiro) faz até uma ameaça para aquele você (outro
2): Você vai pagar e é dobrado. O uso da nominação juros, juro sugere uma vingança
por parte do sujeito do discurso, visto que tudo será cobrado com juros, com
acréscimos.
SD 41 Você vai ter que ver
A manhã renascer
Como vai se explicar
Vendo ou clarear
De repente, impunemente
151
uma luta constante entre o sujeito do discurso e o poder. Pela letra, que
sugere uma mudança nos acontecimentos, no presente (incluindo-se o próprio Chico)
todos estão dominados, e submetidos, mas no futuro (A manhã renascer), se tudo
ocorrer de acordo com as esperanças do povo, quem estará por baixo, sofrendo, seo
poder. Um quer massacrar o outro, num confronto de forças. O sujeito do discurso
mostra também que a viria do povo nessa luta só trará felicidade, o renascimento da
manhã.
Ao mesmo tempo, há a (in)certeza sobre se haverá essa vingança. A ditadura terá
um fim ? Os culpados serão punidos? Ou, mais uma vez, sairão impunes? A justiça não
ocorrerá de novo?
Na sequência da análise das canções selecionamos a sica “Você tem que me
seguir”, que faz parte do Bloco 3 do recorte discursivo 3, texto 9, e reforça a questão da
heterogeneidade. Percebemos nesta canção um dlogo entre o sujeito do discurso,
representado pelo povo brasileiro (discurso-outro 1), e o governo (discurso-outro2).
Três sequências discursivas foram selecionadas (SD 42 a SD 44) por apresentarem uma
recorrência do Vo, identificado como sendo a voz do discurso-outro 1 (o governo),
bem como sequências discursivas que se referem à voz do discurso-outro 2 (o povo
brasileiro). Tais sequências discursivas foram desmembradas em blocos. Examinemo-
las:
Recorte discursivo 3 – Bloco 3 - Texto 9
Vovai me seguir
Chico Buarque e Ruy Guerra
1972- 1973
Vovai me seguir
Aonde quer que eu vá
Vovai me servir
Vovai se curvar
Vovai resistir
Mas vai se acostumar
Vovai me agredir
Vovai me adorar
Vovai me sorrir
Vovai se enfeitar
E vem me seduzir
Me possuir, me infernizar
Vovai me trair
Vovem me beijar
Vovai me cegar
E eu vou consentir
Vovai conseguir
Enfim, me apunhalar
Vovai me velar
Chorar, vai me cobrir
E me ninar
Deparamo-nos novamente com a repetição de uma mesma estrutura, que aponta
uma regularidade e não é uma paráfrase, mas o efeito metafórico que se movimenta
evidenciando o silêncio local (a censura). Recortamos sequências discursivas em que
aparece o Você.
152
SD 42 (1) “Você (o governo) vai me seguir”
(2) “Você(o governo) vai me agredir”
(3) “Você (o governo) vai me cegar”
(4) “Você vai resistir”
(5) “Você vai me trair”
(6) “Você (o governo) vai conseguir”
(7) “Você (o governo) vai me adorar”
(8) “Você (o governo) vai me sorrir”
(9) “E vem me seduzir (o governo)”
(10) “Vai se acostumar”
(11) ”Vai se enfeitar”
Observemos o desdobramento da SD 42 em que é possível substituir o Vo por
governo, evidenciando o discurso-outro 1. Nas sequências (1, 2, 3, 6, 7, 8, 9) lemos, por
meio do efeito metafórico, o seguinte:
a) O primeiro grupo de SDs refere-se à recorrência no uso da designação
Você, que identificamos como sendo o governo.
Observamos também que essas sequências, ao apresentarem marcas linguísticas
como seguir, resistir, me agredir, me trair, me cegar e conseguir, fornecem-nos
pistas de que se trata de um discurso em que o sujeito representa o discurso-outro 1
(governo) falando para o discurso-outro 2 (povo brasileiro). Os saberes da FD militar
estão em evidência em todas as sequências discursivas, e cujas pistas observamos em
Você vai me seguir (1) Vovai me agredir(2) Vovai me cegar(3). O agredir
retoma a FD da tortura a que foram submetidos os presos políticos. Ainda, as formas
verbais no infinitivo seguir/agredir/cegar retomam a FD da censura, a censura velada,
como a faixa nos olhos da justiça, do direito, e também pela forma direta e coercitiva
como são empregadas nas sequências. O cegar retoma o beijo de Judas ao trair Jesus,
que representou uma punhalada, evidenciando a FD religiosa. Existe, em realidade, uma
batalha entre várias FDs: militar, religiosa, jurídica, etc.
b) O segundo grupo de SDs recortadas do texto 9 Bloco 3 do recorte 3 é a
voz do outro como porta-voz do povo brasileiro. A seguir examinamos o
153
funcionamento das diferentes marcas linguísticas de cada uma das
sequências discursivas.
SD 43 (1’) “Você vai me adorar”
(2’) “ Você vai me sorrir”
(3’) “E vem me seduzir”
O segundo grupo de SDs recortadas no texto refere-se ao discurso-outro 2, que
remete, portanto, ao povo brasileiro. Nestas seqüências, apesar de a marca linguística
Você sugerir o mesmo discurso-outro 1, percebemos, pelo deslizamento de sentidos,
que se refere ao discurso-outro 2 (povo brasileiro). Pelas infinitivizações adorar, sorrir
e seduzir observamos que o outro o é tão genérico assim, ou seja, o sujeito do
discurso se refere ao povo brasileiro e o efeito metafórico permite que cheguemos ao
silêncio local, revelado na trama discursiva. É a voz do outro/Outro que emerge pela
fresta e mostra a face do opressor e ditador. Indursky, (1997) realizou um estudo
fecundo sobre o discurso-outro. Concordando com a autora, reafirmamos que, “se tal
presença virtual (discurso-outro) instaura-se na materialidade descritível da seqüência
discursiva, ela pode ser percebida como já-dito pelo confronto que dela se faz, pelo
viés da reconstituição teórica, com a memória discursiva.” (1997, p. 42). Essa memória
é resgatada pela repetição e pela regularidade das denominações. Podemos analisar
também que a forma verbal composta Vai me seguir/vai me servir etc. aponta para um
futuro próximo, passando uma ideia de efeito de memória por antecipação. Está, pois,
silenciando as prática ilícitas do discurso-outro 1 (o governo).
c) O terceiro grupo de seqüências discursivas refere-se ao recorrente uso da
condicional se.
SD 44 (1’’) “vai se acostumar”
(2’’) “vai se enfeitar”
Como assinalamos anteriormente, o uso da quarta pessoa discursiva por meio do
uso da condicional se sugere-se que para ser bom brasileiro aqueles que apoiam o
governo – o sujeito do discurso vai se acostumar /vai se enfeitar, compreendendo-o (o
governo) e com ele colaborando. Constrói-se, portanto, a imagem de povo obediente e
154
compreensivo, que atende às imposições do outro 1 com resignação, “cordatocomo
deve ser o cordeiro de Deus (o governo).
Partimos para o último texto, texto 10 do Bloco 3, recorte discursivo 3,
composto por cinco sequências discursivas, que vão da SD 45 à SD 49 .
Recorte discursivo 3 – Bloco 3 - Texto 10
Música: Partido Alto
Chico Buarque – 1972
Diz que deu, diz que dá
Diz que Deus dará
Não vou duvidar, ô nega
E se Deus não
Como é que vai ficar, ô nega
Diz que Deus diz que dá
E se Deus negar, ô nega
Eu vou me indignar e chega
Deus dará, Deus da
Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo
inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro
(brasileiro)*
Eu sou do Rio de Janeiro
Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me
explica
Como é que pôs no mundo esta pobre coisica
(pouca titica)*
Vou correr o mundo afora, dar uma canjica
Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da
cuíca
E aquele abraço pra quem fica
Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me
despenteio
Que eu já to de saco cheio
Deus me deu a mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu pernas compridas e muita malícia
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia.
* Termos originais vetados pela Censura.
Nas sequências discursivas recortadas da canção “Partido Alto”, a temática
permanece a mesma (a censura) e está marcada no uso dos asteriscos, os quais
funcionam como silenciamento dos sentidos; são, de fato, marcas da ação dos censores
deixadas na estrutura da língua. O efeito de evidência que suscitam as palavras originais
não chamaria tanta atenção como chamaram as palavras vedadas, censuradas. Em
realidade, o efeito foi o contrário esperado pelos censores, visto que permite que se
observe o que eles mais buscaram calar. Vejamos como isso aparece na SD 45.
SD 45 Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro (brasileiro)*
Eu sou do Rio de Janeiro
Como é que pôs no mundo esta pobre coisica (titica)*
Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente quase sem recheio
155
Nas denominações batuqueiro/brasileiro, o deslizamento do sentido aponta
para os processos de paráfrase e de polissemia, ou seja, tal processo se efetiva pelo
efeito metafórico (transfencia), porque, ao substituir um termo por outro, ocorre a
movência de sentidos. Ao mostrar as marcas dos censores, o sujeito enunciador (re)vela
também o silêncio local. Nesse sentido, vale lembrar que a canção “Partido Alto” foi
inserida na trilha do filme Quando o carnaval chegar, vivido pelo trio de atores Chico
Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia: “Deus me fez um caro fraco, desdentado e feio/
pelo e osso simplesmente, quase sem recheio/[...] na barriga da miséria, eu nasci
brasileiro” (a censura quis batuqueiro). Logo, é imposto o silêncio sobre o sujeito.
Chama nossa atenção a substituição de brasileiro por batuqueiro, ou seja, o cidadão
(brasileiro) foi excluído para dar lugar a batuqueiro (baderneiro o que foi velado, o não
dito), que soa como uma crítica ao autor (Chico), considerado subversivo e nocivo ao
sistema vigente.
O discurso de Chico voz ao excluído, é seu porta-voz: Ele tira o foco das
classes dominantes para focar o dominado – olhar antes a senzala do que a Casa
Grande”. (FERNANDES, 2004, p.41) Ao mesmo tempo em que reforça a imagem do
brasileiro como indolente e preguiçoso, manda seu recado político.
Nas designações coisica (titica)/cara fraco, desdentado e feio/pele e osso
veem-se refletidos os sentimentos de baixa autoestima do brasileiro, o estereótipo de
brasileiro de classe operária que ganha apenas para garantir a sobrevivência, não lhe
sobrando dinheiro para cuidar da saúde, nem, muito menos de sua aparência pessoal.
Assim, diz que na barriga da miséria nasci batuqueiro, referindo-se ao sujeito
malandro, que gosta de samba, mas não gosta de trabalho, leva a vida na massiota,
como se diz. Na designação Rio de Janeiro lemos carnaval, do qual muitas
composições de Chico tratam. Sabemos que as comunidades primitivas desenvolveram
uma rie de mitos e ritos para expressar a necessidade inconsciente que o homem tem
de acreditar que pode recuperar o tempo perdido e, assim, salvar-se da destruição. O
tratamento que carnaval recebe aqui não é o mesmo da festa brasileira; refere-se, sim, a
um rito em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas máscaras
e disfarces a sua verdadeira identidade. Ocorre, então, a união entre o sujeito e a
sociedade, tratando-se do silêncio imposto pela repressão. Esse seria um primeiro gesto
de interpretação.
156
Entretanto, pelo olhar da AD percebemos outros sentidos subliminares
atravessados por esse dizer. O Brasil passava pela época do milagre econômico e crescia
vertiginosamente, principalmente na área da construção civil. Porém, a questão do sub-
emprego, das longas jornadas de trabalho e das condições muitas vezes desfavoráveis
pelas quais eram submetidos estes trabalhadores não eram levadas em conta. O governo
oferecia empregos, mas pouco era explicitado sobre o salário que seria pago (aliás,
sabemos sim, a dívida externa, por exemplo). Na verdade, é como o ditado que diz:
Cobrir um santo para descobrir o outro. Seria como um disfarce, uma máscara, um
subterfúgio para manipular o povo.
SD 46 Diz que Deus dará
E se Deus não dá
E se Deus negar, ô nega
Eu vou me indignar e chega
A designação Deus pode ser interpretada como o governo (o todo-poderoso
governo dici), que promete muito, mas nada cumpre; que controla a tudo e a todos;
é quem decide, diz que dá e, na vida, E se Deus não . O se nos sugere uma
hipótese que pode se concretizar ou não; em realidade, certezas ninguém tem, muito
menos o povo. O povo acredita, tem esperança, mas é desconfiado, tem medo. E se
promete e não cumpre? Será que dá para confiar?
Eu vou me indignar e chega é a voz do porta-voz, daquele que se constrói, de
um lado, entre o povo (a sociedade) como um todo, e, do outro, entre o governo (os
militares). É o autor que fala do seu lugar discursivo em nome do povo (pelo povo), que
não tem voz, não reclama, não denuncia, não atua; atua como um representante do povo,
que espera que alguém faça alguma coisa por eles. A voz silenciada não faz eco,
portanto, é como permanecer sem voz, significando que o que está no inconsciente não
teria como se manifestar. No entanto, o silêncio (a não voz) assume esse papel e
consegue, por meio da fresta, do furo (que é o efeito metafórico), movimentar o sentido
e mudar o significado do não dito; consequentemente, o sujeito também realiza uma
modificação por meio do histórico que o constitui, ou seja, a constituição do sujeito pela
não voz se faz, então, na contradição entre o um e o múltiplo, o mesmo e o diferente.
Segundo Scherer (2006, p. 18), “falar, então, é escutar a história que se tem na voz, é
escutar a boca falando. O não falar pela voz apaga a distinção que se faz entre o silêncio
157
e o sentido”. Concordamos com a autora e acrescentamos que a o voz (o silêncio),
como apresentamos em nossas análises, confirma que o silêncio está prenhe de sentido e
que mesmo não tendo voz, é possível ser escutado.
SD 47 Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria eu nasci batuqueiro (brasileiro)*
Eu sou do Rio de Janeiro”
Esse Deus (O governo) é um sádico, pois, com tanta coisa boa para dar ao
cidadão, permitiu que nascesse na barriga da miséria e no Rio de Janeiro. Reforça-se
nessas sequências o discurso do sujeito fundador que assinalamos na sequência anterior.
No entanto, podemos ampliar nossa análise relacionando as denominações gozador,
brincadeira, engraçado, batuqueiro as quais sugerem uma despretensão deste
sujeito, que aparenta não estar muito preocupado com a situação real, verdadeira.
Emergem, então, os saberes da FD da MPB, pelas quais o samba (batuque) liberta o
sujeito de todas as represes, com o que ele passa a se sentir livre para demonstrar sua
identidade, sem medo de ser punido, censurado. O samba é efeito metafórico da
expano ou abertura para a vida, de deixar a vida nos levar...
SD 48 Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica
Vou correr o mundo afora, dar uma canjica
Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da cuíca
E aquele abraço pra quem fica
Na sequência discursiva 48 reaparecem a FD religiosa cristã e a FD futebolística.
Ao compararmos com a análise de “Cálice”, percebemos que nela esses saberes estavam
relacionados ao sacrifício, à doação, a dar a outra face, a não agir com o sentimento de
vingança, mas ser forte e conseguir inverter a situação. Os saberes da FD religiosa cristã
nesta sequência discursiva o são de sacrifício, mas, sim, de questionamento, de acerto
de contas, de cobrança das atitudes tomadas por parte dos censores. Relacionamos este
Jesus Cristo aos militares, que estariam no escalão celestial, logo abaixo de Deus. O
querer acertar contas com Jesus Cristo (militares) reforça a ideia de que as
158
contravenções que estavam sendo praticadas eram abusivas e mereciam um acerto final.
A FD futebolística remete ao General desportista, como ficou conhecido o general
Médici, pois estimulava as competições da Copa Canarinho e, como o Brasil foi
campeão, o povo novamente ficou anestesiado pelo título e esqueceu as agruras da
ditadura. Enquanto centenas de pessoas eram torturadas e mortas, muitos aplaudiam o
general Médici em suas aparições públicas. Mas como no Brasil tudo termina em pizza
ou batuque, vamos esperar ao ronco da cuíca que tudo se resolva, na designação, e
aquele abraço pra quem fica, a despedida de quem vai partir por não mais aguentar
essa situação (exílio).
Fico afirma que
as denúncias vindas do exterior, acusando o regime militar de prática
atentatórias aos direitos humanos, geravam grande irritação, seguramente por
duas razões: eram verdadeiras e vinham “do estrangeiro”, a supervalorizada
instância mítica de comparação dos militares nacionais, que, assim, sentiam-
se inferiorizados. Descontavam, então, nos brasileiros exilados ou banidos,
acusados de viverem em ‘exílios dourados’. Quando se anunciava a possível
volta de um brasileiro exilado, era grande o alvoroço na comunidade de
informações. (2001, p. 167).
A imagem de um Brasil do futuro, democrático, não poderia ser manchada pela
veiculação de tais notícias; portanto, os culpados pela inversão dessa imagem deveriam
ser penalizados e a perseguição era inevitável. Na pxima SD(49) o sentimento de
inconformidade diante das situações vivenciadas estará em destaque.
SD 49 Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu pernas compridas e muita malícia
Pra correr atrás da bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia.
As designações carícia/malícia provocam um efeito metafórico que indica a
malícia de ludibriar a polícia. Fugir da polícia refere-se à censura pela qual passaram os
subversivos, que muitas vezes eram obrigados a sair correndo das reuniões que
frequentavam. Ser notícia se em páginas policiais, revela que havia o medo de ser
preso e sofrer o ônus por seu comportamento subversivo. Vemos, portanto, que uma
159
forma-sujeito pode se fragmentar em várias posições-sujeito. Conforme Indursky, “uma
forma-sujeito fragmentada abre espaço não para os saberes de natureza semelhante,
equivalente, isto é, para o parafrástico e o homogêneo. Da convivência com apenas o
mesmo passa-se para a co-existência com o diferente e o divergente”. (2000, p. 76). É
exatamente desse diferente presente no mesmo que tratamos nesta sequência discursiva.
Temos a impressão de que estamos tratando sempre do mesmo assunto, no entanto
tratamo-lo de maneira distinta, com um outro olhar, o olhar do efeito metafórico, que
nos permite ver o que subjaz ao dito, que é a censura e a tortura foram implacáveis e
cruéis com os que se posicionaram contra o instituído.
A seguir temos o texto 11 do mesmo bloco e recorte (3), composto por duas
sequências discursivas SD 50 e SD 51. A temática sobre o discurso-outro se mantém e o
silêncio local é sustentado pelo efeito metafórico.
Recorte discursivo 3 – Bloco 3 - Texto 11
Música: Deus lhe pague
Chico Buarque -1971
Por esse pão pra comer, por esse chão pra
dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo “estamos aí”
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que
engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que
tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que
cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade e zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Nas sequências discursivas seguintes estaremos trabalhando com a análise da
canção “Deus lhe pague”, composta por Chico Buarque em 1971, lembrando ao leitor
que era a época do dito “milagre econômico”, quando o Brasil ia muito bem segundo a
imprensa e a publicidade da época. A temática presente nessas sequências discursivas
diz respeito ao discurso-outro, que nos remete ao Outro (inconsciente), assim como ao
silêncio local (a censura). Vejamos a SD 50
160
SD 50 Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
As infinitivizações engolir/tossir/cair permitem-nos observar o funcionamento
do efeito metafórico, o qual suaviza ações em sessões de tortura, como inalar os gás do
cano de descarga de automóvel, engolir os abusos do governo, sobretudo os
xingamentos e acusações. ainda o jogo entre graça e desgraça, indicando uma
oscilação entre uma ilusão de ter recebido uma vantagem (de graça) e a consequência
desta falsa vantagem (a desgraça), e as designações entre vírgulas, que marcam, na
estrutura da língua o que está silenciado. No caso, desgraça, pingentes e agonia
apontam para a decadência.
Resgatamos pelo fio do interdiscurso a época do dito milagre econômico”, que,
conforme analisado, não tinha nada de milagre. Era, em realidade, um subterfúgio, uma
máscara usada pelos detentores do poder para dissimular o que realmente acontecia:
uma parcela da população recebia os benefícios do tal “milagre”, enquanto a parcela
mais numerosa pagava o ônus do progresso e desenvolvimento.
A censura estabelece um jogo de relações de força no qual há o que pode ser dito
(o que foi liberado pelos aparelhos repressores de Estado SNI), o que o deve ser
dito (a censura) e o que é dito pelo silêncio.
SD 51 Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
A sequência rangido dos dentes/ grito demente/ a fugir/ a zunir nos sugere a
violência sica e psicológica a que eram submetidos os presos políticos. Por exemplo,
“botar o sujeito numa cela com uma cobra. A tortura não é física, o deixa marca
nenhuma. É uma tortura psicológica – mesmo que a cobra seja uma jibóia, o sujeito fica
apavorado”
16
. (D’ARAÚJO, 1994, p. 69). Assim, confirma-se a existência de tortura
física e psicológica na época da ditadura militar no Brasil. A memória é uma “voz sem
nome”. (COURTINE, 1999, p. 15). Por isso, lembramos o dito em outras análises e
16
Este extrato foi retirado do depoimento de Cyro Guedes Etchegoyen, militar que serviu no gabinete do
ministro do Exército, general Orlando Geisel, atuando na área de informações e contrainformações.
161
reforçamos que existe a negação, poderíamos até dizer, a anulação do sujeito do
discurso, porque lh eram negadas e usurpadas todas as possibilidades de ter direitos de
cidadão e que sua voz fosse ouvida. A voz sem nome (a voz do povo brasileiro) é a voz
que foi silenciada pela censura. Misturam-se memória e esquecimento na repetição do
mesmo, do dito que não foi dito e não foi escutado, mas silenciado.
Considerações parciais
A trama do nosso tapete está findando e foram trabalhados os seguintes
conceitos: sujeito, memória discursiva, formação discursiva e o silêncio local. Contudo,
a tessitura mantém-se incompleta. Falta-nos tratar, especificamente, sobre a temática da
tortura física e psicológica, que será contemplada no último recorte discursivo.
Lembramos ao leitor a dificuldade em separar as temáticas nas canções justamente por
conta da movência dos sentidos, o que torna impossível delimitar espaços para o
sentido.
No texto (7), sobre a canção intitulada Cálice”, aparecem nas análises as FD
religiosa cristã e musical, que travam embate desencadeando o sentido religioso-
político. Esses saberes foram mascarados pelo silenciamento imposto pelos aparelhos
repressores de Estado. A resistência representa o espaço do dizer. Pelo jogo metafórico
que se estabelece na ngua, na repetição da sequência Pai, afasta de mim esse lice
vemos a resistência mascarada na lembrança do conjunto de saberes da FD religiosa, o
que vem constituir o espaço do dizer, o mesmo dizer que foi censurado, proibido,
silenciado.
Nos textos (8) e (9), na canção “Apesar de você”, o você na sequência Hoje você
é quem manda, que pelo efeito metafórico, pode ser lido como o governo em um
discurso autoritário. Na canção “Você vai me seguir”, Você evoca o outro, que, no
primeiro bloco de sequências discursivas, refere-se ao governo e, no segundo, ao povo
brasileiro. Além disso, percebemos o atravessamento da FD religiosa e da FD musical
em uma luta constante entre o sujeito do discurso e o poder instaurado. Vemos que
nesse jogo é pela repetição da designão Você que, por meio de operações linguísticas
de transformação, vislumbra-se o pré-construído que está nivelado na formulação em
análise, como nas seqüências que se repetem Você (o governo) vai me seguir/ Vo(o
povo) vai me adorar.
162
Nos textos (10) e (11), nas canções “Partido alto” e “Deus lhe pague” a
recorrência da heterogeneidade discursiva na designação Deus também pode, à luz do
efeito metafórico, ser interpretada como o governo, bem como a anulação do sujeito do
discurso, que teve sua voz silenciada pela censura (silêncio local), como nas sequências
Deus lhe pague /Deus é um cara gozador, adora brincadeira.
4.3.1.3 As torturas e silêncio local
O último recorte discurso (4) composto pelas músicas (1) “Vence na vida quem
diz sim”, (2) Fado tropical”, (3) “Tatuagem”, tem como temática a violência física e
psicológica. Para analisa-la levaremos em conta a pontuação.
Segundo Fico, foi a partir do golpe de 1964 que a elite política brasileira e a
assim chamada opinião pública” assistiram, estupefatas, a uma escalada, jamais vista
em nossa hisria de atos arbitrários de toda natureza. Assim, uma das formas mais
eficazes do “agir” da comunidade de segurança e de informações foi o estabelecimento
dessa relação entre ela ppria, que executava, e os demais militares, que a admitiam,
baseada na força de elocução de tal discurso que, assim, vivificava-se, recriava-se
continuamente e sustentava ações. (2001, p. 23).
Fico afirma que, evidentemente, nem todos os militares da linha dura atuaram,
efetivamente nos sistemas de segurança e de informações. Aliás, mesmo os militares
radicais que integraram tais sistemas afirmam que os casos de tortura, por exemplo ou
não existiram ou não foram mais do que excessos pontuais, contrapondo-se à acusação
de “institucionalização” da prática desses suplícios. No entanto, sabe-se que o AI-5 foi
uma resposta à escalada do terrorismo isto é, uma reação inevitável por parte do
regime àqueles que pretendiam derrubá-lo por meio do terrorismo de esquerda’ (atos
como sequestros, assaltos, atentados, etc.), da guerrilha urbana e da guerrilha rural
(entendidas como “luta armada” contra o regime militar). (2001, p. 57). De fato, o ato
institucional 5, portanto, por decorrência do processo de maturação da linha-dura,
cada vez mais convencida de que não bastava sua existência como simples grupo de
pressão.
163
Relata:
Os episódios de radicalização política, especialmente os de 1968, foram
utilizados como ‘prova’ da necessidade de um sistema de segurança rigoroso,
mas é claro que essa radicalização, em boa parte, foi fomentada pelos
próprios radicais. Certos casos, como a invasão da Universidade de Brasília,
em agosto de 1968, foram provocações evidentes, parte de uma tática que o
sistema de segurança persistiria usando por muito tempo, qual seja,
disseminar o terror, terreno fértil para a incrementação de ações repressivas.
(2001, p. 74).
Segundo o autor o Serviço Nacional de Informações constituiu-se em fonte
bastante profissional de informações para os generais-presidentes, permanecendo quase
sempre nos veis subalternos as avaliações equivocadas, filtradas que eram,
naturalmente, pelos escalões superiores e mais habilitados. Desse modo, a comunidade
de informações gerou situações muito sérias, com consequências gravíssimas para a
sociedade brasileira. (FICO, 2001, p. 74-75).
Continuando nossa proposta faremos as análises do último recorte discursivo (4),
composto por três textos. O primeiro texto texto 12 refere-se à letra da música
“Vence na vida quem diz sim”, composta em 1972-1973 por Chico Buarque em parceria
com Ruy Guerra. Foram selecionados nessa canção quatro grupos de sequências, que
vão da SD 52 à SD 55, e cujas temáticas são a violência física e psicológica.
164
Recorte discursivo 4 – Bloco 4 - Texto 12
“VENCE NA VIDA QUEM DIZ SIM”*
Chico Buarque de Hollanda – Ruy Guerra
1972-1973
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te dói o corpo
Diz que sim
Torcem mais um pouco
Diz que sim
Se te dão um soco
Diz que sim
Se te deixam louco
Diz que sim
Se te babam no cangote
Mordem o decote
Se te alisam com o chicote
Olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te jogam lama
Diz que sim
Pra que tanto drama
Diz que sim
Te deitam na cama
Diz que sim
Se te criam fama
Diz que sim
Se te chamam vagabunda
Montam na cacunda
Se te largam moribunda
Olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
Se te cobrem de ouro
Diz que sim
Se te mandam embora
Diz que sim
Se te xingam a raça
Diz que sim
Se te incham a barriga
De feto e lombriga
Nem por isso compra a briga
Olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
Vence na vida quem diz sim
*Letra vedada pela censura, em disco foi gravada a versão orquestral. Mais tarde Nara Leão gravou no LP
com açúcar, com afeto. (Março de 1980)
O procedimento na análise desta sequência discursiva é o mesmo realizado nas s
anteriores. Vale lembrar, porém, que o critério utilizado para recortar a SD52 foi: a) a
repetição da estrutura sintática, no caso a condicional “Se” + oblíquo “te”, segunda
pessoa singular, + a transitividade verbal direta + complemento direto. Na SD 52
observamos uma ocorrência, que rompe com a regularidade da estrutura referida em
razão da presença da intransitividade verbal e do adjunto. Portanto, vejamos a SD52.
SD 52 (1) Se te dói o corpo
(2) Se te dão um soco
(3) Se te deixam louco
(4) Se te babam no cangote
(5) Se te alisam com o chicote
(6) Se te jogam lama
(7) Se te chamam vagabunda
165
(8) Se te largam moribunda
(9) Se te cobrem de ouro
(10) Se te mandam embora
(11) Se te xingam a raça
(12) Se te incham a barriga
Nesta sequência discursiva, a recorrência do SE, inicialmente, permite observar
a presença da quarta-pessoa discursiva, em que ocorre a impessoalização do sujeito, ou
seja, resulta na indeterminação do agente. De acordo com Indursky (1997), com a
indeterminação do agente “[...] o sujeito do discurso simula o não-preenchimento da
forma-sujeito, o que promove o efeito de seu apagamento”. Essa simulação acarreta
uma outra, que lhe é correlata: a aparente não pressuposição do outro, ou seja, “a quarta-
pessoa discursiva pronominal promove o efeito de apagamento da estrutura dialógica,
de modo que os acontecimentos discursivos apresentam-se como fatos que independem
de um sujeito do discurso, sendo, pois, representativos de uma verdade absoluta”.
(1997, p. 84).
Seguindo o raciocínio de Indursky (2000, p.76-78), “a quarta-pessoa discursiva
produz a impessoalização desse sujeito: ele abdica de dizer eu, cedendo espaço para o
acontecimento discursivo”, ou seja, não inclusão do outro nessa forma de
representação. Por meio dela, o sujeito representa-se como se fosse o outro; é como se
fosse um refúgio, um esconderijo, para a subjetividade, muito próximo do inconsciente.
Em outras palavras, a relação precedente indica uma dupla possibilidade para um sujeito
assim constituído: por um lado, pode falar, pode dizer eu; por outro, pode ausentar-se,
refugiando-se em sua subjetividade. Assim procedendo, não mais diz eu,
representando-se por um ele ou um se. Neste estudo, porém, o procedimento é não mais
dizer eu e representar-se por um tu em vez de ele, e o se passa a ter outras funções: de
condição, de alerta, de aconselhamento, como veremos adiante ainda neste item.
Em síntese, a quarta-pessoa discursiva gera a ideia de que o acontecimento
discursivo é produzido por si , sendo privado de um sujeito responsável pela sua
enunciação. Neste caso temos a presença de uma voz onipotente e onisciente que tudo
sabe e tudo diz; a voz da resistência. Há uma voz que diz seja obediente, seja cordato,
obedeça! As designações corpo (1)/soco(2)/louco(3)/chicote(5) fazem ecoar saberes da
FD da tortura física, em que o sujeito é silenciado de forma desumana e cruel.
166
No contexto sociopolítico, o SE ocupa posição de condicional e diz respeito a
um aconselhamento: se te dói o corpo/ diz que sim, se te alisam com o chicote/ Olha
bem para mim. De acordo com Fico,
evidenciamos que o que hoje nos parece uma monstruosidade, um pesadelo
de noites e dias não remotos, produziu o imaginário que pretendeu mutilar o
povo brasileiro. Esse imaginário se alimentava de variadas obsessões: a
obsessão anticomunista, a obsessão da imposição à sociedade civil da
disciplina e hierarquia características do ethos militar, a obsessão
persecutória dos divergentes, a obsessão da construção de uma grande
potência. Essa mescla frágil de ideias toscas não pode ter sua significação
compreendida de maneira completa fora do contexto da Guerra Fria e da
influência política americana, cujos efeitos se fizeram sentir poderosamente
na conjuntura das décadas de 1960 e 1970. (2001, p. 13).
Ainda em relação à SD52, no recorrente uso de SE a irregularidade vem
marcada pela intransitividade verbal e pelo modalizador de lugar: Se te mandam
embora. A questão do exílio vem bastante marcada no intradiscurso, cuja informação
somente pode ser recuperada no interdiscurso e pelas condições de produção.
Reconhecemos em embora outra forma de violência cometida na época da ditadura, a
questão do exílio, ou seja, o fato de ter de se afastar de sua terra deve-se às
perseguições, censura, discriminação. A posição-sujeito representada pelo sujeito da FD
MPB é de resistência, uma vez que nega dizendo que sim: Se te mandam embora/ diz
que sim.
Ao dizer isso, retomamos ainda as designações que se referem a um papel
feminino – vagabunda (s.d. 7), moribunda (s.d.8), ouro (s.d.9) e barriga (s.d.12) as
quais demonstram um deslocamento do papel masculino até então presente na maioria
das análises das canções, mas que nesse momento transfere para o papel feminino a
responsabilidade de driblar a censura. Mais que isso: violência moral, psicológica e
depreciação da mulher constituem formas de violência que transcendem a instância do
poder institucional. Ao mesmo tempo, atravessam saberes da tortura e do abuso sexual a
que eram submetidas (algumas) pessoas na ditadura militar. Por exemplo, Se te
chamam vagabunda/ Se te incham a barriga/de feto e lombriga ratificam, por meio
do efeito metafórico, a questão da sexualidade (diria promiscuidade) a que eram
submetido(as) essas pessoas quando presas para interrogarios e averiguações. Com o
depoimento de Adyr Fiúza de Castro no livro Os anos de chumbo confirmamos isso:
167
Ah! Vê-se logo, tanto os homens como as mulheres... Não falo mal das
mulheres. Elas são mais ferozes e controladas que os homens. Normalmente.
A minha experiência é essa. O exército de Israel que o diga. Mas vê-se logo
quando o cidadão é frio e está perfeitamente controlado, porque ele não tem
esses sinais reveladores, quer dizer, a desinteria, a menstruação. (1994,
p. 62).
Aqui, o jogo entre as nominações que sugerem tortura física e psicológica
i/dão/babam/jogam/xingam/incham reforçam nossas análises sobre os efeitos
físicos e psicológicos que marcaram profundamente as pessoas que foram vítimas das
torturas. Ao mesmo tempo, esse jogo é também marca da heterogeneidade discursiva, porque o
sujeito-compositor traz para o seu discurso, através da posição-sujeito representada pelo sujeito
da FDMPB, o discurso-outro autorizando certos tipos de tortura. A tortura física, é clara
nas expressões (1) dói o corpo; (2) dão um soco; (4) babam no cangote; (5) alisam
com o chicote; (6) jogam lama; (8) largam moribunda; (9) cobrem de ouro; (11)
xingam a raça; (12) incham a barriga. Como se isso não bastasse, não se dispensava
a tortura psicológica, como ofensa verbal e moral: (3) deixam louco; (difamação) (7)
chamam vagabunda (desrespeito, humilhação); (10) mandam embora; (12) incham a
barriga.
Ao mobilizar esse discurso-outro, o sujeito representado pela FDMPB acaba por
revelar uma sociedade feita de violências, quer dizer, com a mostra desse conhecimento,
o sujeito representado pela MPB pode ser pensado como um denunciador das injustiças
cometidas no período governado pelos militares. Além dos aspectos ressaltados,
veremos na SD 53 a censura propriamente dita.
SD 53 Diz que sim
Olhe bem para mim
Vence na vida quem diz sim
O jogo injuntivo, estabelecido pelos verbos no imperativo, acaba construindo
outro efeito: o da imposição do silêncio, a palavra velada. A afirmação Diz que sim
sugere a submissão, pois o sujeito do discurso é obrigado a aceitar pacificamente
(porque não outra maneira...), já que imposições do Estado, das quais não se pode
fugir, nem resistir, porque há um aparelho de controle repressor: o policial. Percebemos
que a política do silêncio age sutilmente no/sobre o discurso. É preciso dizer alguma
168
coisa para não se deixar dizer outra(s); diz X para dizer Não X, ou seja, a resisncia é
manifesta no funcionamento da negação.
Nas palavras de Agustini (2007, p. 311) vemos que
[...] há, um processo de (contra)identificação do sujeito com os sentidos
que participam da construção enunciativa do dizer. A contra-identificação
produz uma necessidade discursiva, referente à textualização do político, de
que o sujeito suture o dizer, levando-o a produzir uma dobradura: uma
pafrase denegativa de um efeito da presença do interdiscurso naquilo que
diz e, dessa forma, um sentido que afeta o sujeito mas que ele não o
(re)conhece, acaba por ser (re)afirmado na e pela sutura que o nega.
Essa sutura é entendida como o silêncio local (a censura), que atua impedindo o
sujeito de se identificar com determinada FD. Nas situações de autoritarismo extremo o
sujeito não pode ocupar posições distintas, senão o lugar que lhe é destinado
previamente, a fim de produzir os sentidos permitidos no espaço em que ele se encontra.
É interessante notar que, mesmo não sendo permitido dizer, ele diz, ou seja, por meio do
efeito metafórico é possível analisar o Diz que sim como Diz que não. Para fazer
sentido é necessário que outros sentidos (possíveis) permaneçam não ditos e, assim, se
apaguem para o sujeito.
Observamos na sequência discursiva que o Olhe bem pra mim soa como um
direcionamento do olhar para o grito silenciado do oprimido: Abra os olhos, veja meu
exemplo. Com tanto sofrimento, dor, humilhação, tortura, censura, chega-se à conclusão
de que só sobrevive quem diz sim, quem aceita as agruras da ditadura para não sofrer
mais.
Percebemos que os processos de resistência são manifestações da luta ideológica
de classes ou de posições sociais distintas. Essa luta é uma característica do caráter
instável da ideologia, que es permanentemente redefinindo posições e relações de
poder a fim de consolidar sua hegemonia. Desse modo, o discurso é um instrumento
ideológico e sociológico por excelência. Na realidade, se o sujeito resiste, é porque algo
do exterior o afeta de modo constitutivo, significando dizer que há aí um trabalho sobre
sentidos já existentes e que produzem uma necessidade de ruptura. Essa ruptura ocorre
por meio da movência dos sentidos e, consequentemente, do sujeito, o qual pode
assumir diferentes posições-sujeito. Ao falar em movência dos sentidos e do sujeito,
169
lembramos a fita deebius, que representa muito bem esse movimento entre o
interior e o exterior. Segundo Agustini (2007, p. 309),
as propriedades topológicas da Faixa de Möebius, nos permite dizer que,
além de mostrarem uma o-coincidência de sentido, as dobraduras são
pafrases de um discurso transverso
17
do interdiscurso, uma vez que o
intradiscurso se constitui de recortes do pprio interdiscurso, que sob a
forma de fio do discurso.
Em outras palavras, é no movimento da fita que os sentidos caminham (se
movem), e o sujeito também caminha (se move) para outras posições-sujeito.
Resgatamos nesse caminhar do sentido o sujeito por meio do efeito metafórico; assim,
lemos no que não foi dito (o silêncio local) o que poderia ser dito, mas foi censurado
(silenciado). Na FD 54 veremos a denegação como uma forma de mascarar a censura.
SD 54 Nem por isso compra briga.
O sujeito representado pela FD MPB nega a possibilidade de ir contra o
estabelecido, aconselhando que se aceite o imposto. A denegação pode ser um lapso de
linguagem, um esquecimento, em que o não significa a presença, a voz do Outro. Em
outras palavras, a denegação é o discurso Outro; mascara a voz do outro, outras vozes
que, inconscientemente, atravessam o dizer do sujeito; funciona como um mecanismo
de defesa e de confissão. Embora não estabilize fronteiras, faz emergir diferenças e
contradições no interior de uma mesma FD. (INDURSKY, 1997).
Para Freud, a negação é uma defesa contra realidades externas que ameaçam o
ego; é entendida como uma presença feita de ausência, não só como negatividade
constitutiva da linguagem, mas também como presença denegada do que está recalcado.
Com base em Lacan (1966), entendemos que a denegação é regida sempre pelo
discurso do Outro. O sujeito não tem acesso à própria enunciação, senão por meio da
negativa que lhe dá a ilusão da lógica, marcando o retorno do recalcado. É na ilusão do
17
O discurso transverso faz referência ao que cheux (1975) denominou como o funcionamento do
interdiscurso, que determina as articulações e/ou encadeamentos entre os enunciados. “O interdiscurso
enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos
pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o
sujeito se constitui como “sujeito falante”, com a formação discursiva que o assujeita”. (p. 167).
170
domínio da linguagem e dos sentidos que o inusitado irrompe. Lacan, ao se referir ao
texto de Freud sobre a negativa, afirma:
Ele [Freud] nos desvenda um fenômeno estruturante de qualquer revelação de
verdade no diálogo. Existe a dificuldade fundamental que o sujeito encontra
naquilo que tem a dizer, a mais comum é a que Freud demonstrou no
recalque, ou seja, essa espécie de discordância entre o significado e o
significante que é determinada por toda censura de origem social. A verdade
pode ser sempre comunicada nas entrelinhas. Ou seja, quem quer dá-la a
entender sempre pode recorrer à cnica indicada pela identidade entre a
verdade e os mbolos que a revelam, isto é, atingir seus fins introduzindo
num texto, deliberadamente, discordâncias que correspondem
criptograficamente às impostas pela censura. (1966, p. 373 - grifos nossos).
À guisa de um efeito de fechamento, lembramos que na análise da canção “Deus
lhe pague” do recorte anterior falamos em negação e, posteriormente, salientamos uma
alienação do sujeito do discurso, o mesmo que acontece nesta canção. Ocorre uma
anulação plena total e irrestrita do sujeito do discurso que ao perder sua voz, perde
também o direito a uma vida normal como a de todos os brasileiros.
Na sequência das análises do recorte discursivo (4) do Bloco 4, o texto 13 analisa a letra
da música “Fado tropical” composta pela SD 55 até a SD 57.
171
Recorte discursivo 4 – Bloco 4 - Texto 13
Música: Fado tropical
Chico Buarque e Ruy Guerra
1972-1973
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma
boa dose
De lirismo (além da sífilis, é claro)*
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas
em
Torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha aos olhos e sinceramente
chora...
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.
“Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa”
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial.
*Trecho original, vetado pela Censura.
As últimas sequências discursivas referem-se à canção “Fado Tropical e
apresentam um aspecto muito significativo, que diz respeito aos sinais de pontuação na
perspectiva discursiva, especificamente o uso de vírgula, reticências e aspas.
Para Grantham (2009, p.108), “uma das funções da pontuação é a de estabelecer
vínculos”. Neste trabalho, tais vínculos podem ser estabelecidos entre palavras, entre
frases, entre um texto e outro, entre discursos, fazendo deslizar os sentidos.
172
SD 55 Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial.
Nesta canção, Chico discorre sobre a influência portuguesa na Colônia e evoca a
possibilidade de o Brasil cumprir seu ideal e tornar-se um imenso Portugal. A
inclusiva ainda aponta para efeitos de sentido de esperança, de uma possibilidade futura
de a Colônia tornar-se um Portugal, livre da ditadura. O sujeito da FD MPB nega o que
ainda não constitui o Brasil e afirma, ao mesmo tempo, que ainda não atingiu o que se
pretende (do outro, do Brasil), denotando a esperança de que possa a vir a se realizar.
Tal relatividade produzida por ainda pressupõe, conforme Coracini (1981), a
continuidade de um estado que se espera que seja modificado no futuro ou a
continuidade de algo que se desejaria que já estivesse modificado.
Quando a sica Fado Tropical”, composta por Chico Buarque e Ruy Guerra
para a peça Calabar, da autoria de Chico e Ruy Guerra, passou a divulgada em todo o
Brasil, em fins de 1973, seus autores sequer podiam imaginar o rumo inesperado que
tomaria. Ao abordar, com ironia, a herança lírica portuguesa, Fado Tropical
promoveu uma inevitável analogia entre o Brasil da ditadura militar de então e a
ditadura salazarista, que se mantinha há quarenta anos em Portugal: Mesmo quando as
minhas os estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha
aos olhos e sinceramente chora. A analogia, reforçada ainda por outros trechos da
letra, encontra especial terreno no estribilho, que, na voz da oposição brasileira, passa a
simbolizar a crítica à perpetuidade da ditadura no Brasil, que alcançava seu décimo
ano: Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso
Portugal.
A música de Chico e Ruy Guerra seguia seu caminho de oposição ao governo,
bastante familiar na obra do primeiro, quando, inesperadamente, em abril de 1974,
ocorreu uma revolução em Portugal. Liderada pelos capitães do exército português, a
conhecida Revolução dos Cravos depôs, pacificamente, o presidente Marcelo Caetano,
pondo fim à longa ditadura no país.
O Brasil vivia, nessa época, seus primeiros momentos de distensão política, após
a truculência do governo do general Garrastazu Médici. Reprimindo com violência a
luta armada, os movimentos estudantis e sindicais, o início do governo do general
173
Ernesto Geisel marca o reencontro de muitos ex-presos políticos, libertados na esteira
da total desmobilização da sociedade brasileira. É nesse ambiente de renovação de
esperanças e de disposição de luta, mas ainda inteiramente sob controle da repressão
política, que, ao proibir manifestações, acabou-se por fazer da música popular brasileira
o carro-chefe do movimento oposicionista, com a revolução portuguesa, a realidade
brasileira e a letra de Chico/Ruy Guerra se encontrando. Seu estribilho assume, então,
novos sentidos, ainda na voz da oposição brasileira: do desejo de uma “revolução dos
cravos” também para o Brasil.
Percebemos, nitidamente na SD55 que os sentidos se movimentam e que, em seu
movimento, rompem os limites de quem os produz, porque na constituição dos sentidos
historicidade e ideologia se entrelaçam. Há, então neste discurso o contraste de duas
posições-sujeito: a que retoma as questões políticas de Portugal e a que desmobiliza os
efeitos de sentidos no Brasil, segundo o imaginário que essas questões produziram. O
contraste entre o que é e o que deveria ser joga com o estabelecido e a dor inscrita na
interjeição ai, tanto encobrindo os sentidos da primeira posição, quanto da segunda,
uma vez que os desejos, os suspiros, na relação de afetividade em relação ao país, é de
sair dessa fase de dificuldades e tiranias em que se encontra.
O sentido é sempre constituído a partir de uma posição ideológica determinada e
plena de historicidade, concepção que questiona, portanto, os fundamentos da crença na
existência de um sentido literal. Os significados que as palavras assumem e o modo
como deslizam, constituindo novos sentidos, mostram-nos que na linguagem nada é
neutro. A exterioridade, ou seja, as condições em que um discurso é produzido, é
constitutiva do sentido; logo, mudando as condições, muda o sentido, como é o caso do
estribilho acima.
Na SD a seguir observaremos a pontuação, mais efetivamente a vírgula, os
parênteses, aspas e as reticências, que funcionam como marca da retomada do discurso
citado. Bakhtin, em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, registra que o discurso
citado é um fenômeno linguístico que explicita a “transmissão das enunciações de
outrem e para a integração dessas enunciações, enquanto enunciações de outrem, num
contexto monológico coerente .(1981, p. 143). Dito diferentemente, o discurso citado
é visto pelo falante como a enunciação de outra pessoa, dotada de uma construção
completa e situada fora do contexto narrativo; no entanto, esse discurso é trazido para o
contexto narrativo no todo ou em partes. Embora as concepções de enunciação e de
sujeito não coincidam com as da AD, as contribuições teóricas sobre o dialogismo são
174
importantes para a noção de heterogeneidade discursiva proposta por Authier Revuz. A
ideia central da heterogeneidade constitutiva, diz a autora, é a que de que todo discurso
se apresenta constitutivamente atravessado por ‘outros’ discursos, ou seja, pelo
discurso do outro’. a heterogeneidade mostrada é aquela em que aparece o ‘outro’
no discurso marcado por aspas ou por dois pontos introdutórios. (1990, p. 29-32) É o
que observaremos na SD 56.
SD 56 “Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose
De lirismo (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em
Torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha aos olhos e sinceramente chora...”
Antes de proceder a nossa análise da SD 56, vale lembrar que a pontuação é um
gesto de interpretação, no qual se materializa o ideológico, marcando os espos de
acréscimo, de silêncio: “Na pontuação, gesto técnico em um processo menos cnico de
subjetivação, confronto de gestos de interpretação, expressão do confronto do
simbólico com o político, vestígio de outras formulações possíveis, conformação da
política do dizer.” (ORLANDI, 2001, p. 123).
Como se considera o funcionamento do silêncio e, em consequência, a
exterioridade como constitutiva do sentido, e o sujeito como heterogêneo, a pontuação é
determinante para criar a ilusão de homogeneidade do discurso e do sujeito.
Inicialmente, em Sabe, no fundo eu sou um sentimental o uso da vírgula marca a
presença de um vocativo, a busca por uma interlocução. E o interlocutor seria o público,
o leitor que ouve o sujeito do discurso em seu protesto silenciado.
Em nossa análise, a vírgula no enunciado fala o oposto do que pretendia,
ganhando uma outra interpretação. Em De lirismo (além da sífilis, é claro) observamos
a inscrição do sujeito da FD MPB, que busca deixar claro não se tratar apenas da sífilis
e, sim, de outros malefícios, como as torturas, as injustiças, a imposição do regime
autoritário e, mais importante, a negação dos direitos básicos e essenciais dos seres
humanos: a liberdade de ir-e-vir e de expressar suas opiniões.
A expressão De lirismo (além da sífilis, é claro), que antecede o conteúdo entre
parênteses, retoma o poema de Manuel Bandeira Poética”, o qual busca romper com os
175
formalismos e as estruturas da era parnasiana. Tal retomada não deixa de ser uma
negação da estrutura criada pelos governos militares, sobretudo pela negação do clima
de tensão gerado por essa estrutura. Do mesmo modo que a busca pela liberdade é uma
imposição para Bandeira, é também para o sujeito da FD MPB. Logo, o explicitado no
parêntese o é uma simples retomada dos problemas abordados por Bandeira, mas
desestabilização, uma vez que a sífilis da década de 1930 continua na década de 1970,
porém a maior dificuldade recai sobre o lirismo, ou seja, sobre o excesso de zelo e amor
pela pátria por parte dos militares, usado como pretexto para a manutenção do regime
autoritário. Eis o ressoar do lema Brasil, ame-o ou deixe-o; eis o ressoar de uma prática
política com a qual o sujeito da FD MPB não se identifica. As aspas na concepção da
heterogeneidade mostrada marcam no discurso o lugar do ‘outro’, que produz um efeito
de denúncia (torturar, esganar) e, ao mesmo tempo, de uma luta por reconquistar a
liberdade e a emoção contida (sinceramente chora).
É isso que representa dizer que a interpretação em AD é uma atividade inerente
à linguagem, porque está exposta ao equívoco e, portanto, diz respeito ao não dito, à
ausência, ao silêncio. Novamente, Orlandi afirma:
As reticências [...] são signos do silêncio, presença de uma ausência
anunciada. Um acréscimo radical que abre para tudo, para qualquer coisa.
Não é o vazio; elas marcam o lugar de um acréscimo posvel, mesmo
necessário, livrado à memória, aberto ao efeito leitor. Presenças que aludem a
uma ausência apenas delineada. Evocação, ausência, buraco, silêncio, falta
mostrada pela relação com uma completude impossível mas imaginariamente
referível. (2001, p. 120-121).
A incompletude da linguagem expressa pelas reticências é da ordem do
indizível. Não se consegue dizer, porque as palavras faltam; porque são falhas; porque
há algo na experiência subjetiva que é da ordem do indizível; porque o sujeito,
determinado pelo simbólico é inevitavelmente clivado. E é por meio de um trabalho
constante do silêncio fundante da linguagem, expresso de forma singular pela
pontuação, que ela nos devolve o silêncio que estrutura sujeito e sentido no real,
inalcançável, do discurso: “O silêncio não é vazio, é plenitude. Na relação
sujeito/sentido sempre um intervalo, espaço de movência do sujeito e do sentido,
atravessados que são pela história e pelo inconsciente.
176
A reticência, portanto, remete ao real discursivo, àquilo que excede as
possibilidades da linguagem. O recorte discursivo que procederemos aponta para essas
marcas de pontuação, em que o silêncio está presente, deixando evidentes os sentidos
instalados: o discurso do colonizado, sobreposto ao discurso do colonizador. O
sentimento manifestado nada mais é do que o desejo de se livrar da ditadura, na qual
há mãos ocupadas em torturar, em violentar (esganar, trucidar); é um grito silenciado
de protesto. O sujeito do discurso gostaria de voltar a ser livre como os irmãos lusitanos.
Ao analisar a designação lirismo, podemos ler por meio do efeito metafórico cinismo,
pois, além de trazer outros malefícios, nos enche de DST (doenças sexualmente
transmissíveis). Nessa SD (a) surge na cena discursiva o discurso-outro entrelaçado ao
discurso do sujeito. Quanto ao uso das reticências na SD 56, o funcionamento
discursivo permite observar o que fica em suspenso pelo uso das reticências entre o
dizer e o não dizer; é o discurso-outro, o sujeito da FD MPB, que no silêncio (censura)
grita, denuncia e clama pelo fim da ditadura.
A esse respeito Grantham (2009, p. 131) afirma que o sujeito-autor, ao
suspender o discurso, ancora o seu excesso do dizer, seu excesso de significação, no
interdiscurso. Para a autora, o sujeito do discurso deixa entrever que discurso antes,
concomitante, sempre já-lá, e que seu discurso é uma formulação pessoal e possível do
já dito. Nas palavras de Grantham,
quando um sujeito-autor emprega as reticências, não é porque não tenha
conseguido completar o que queria dizer. Não se trata, portanto, de manter a
organização do enunciado. Antes, indicar que algo foi suprimido, as
reticências cumprem outra função: abrem espaço para o dizer do outro,
marcam para o sujeito um lugar de interpretação, de interferência. (2009,
p. 132).
Neste ponto é possível estabelecer algumas relações entre as reticências na SD
56, relacionadas ao já-dito na análise anterior, e que se referem ao desejo de se livrar da
ditadura e ser livre para seguir o seu caminho.
Ainda, o uso das aspas a SD 57 nos permite observar novamente o discurso-
outro marcado na letra da canção, que mescla duas posições-sujeito contraditórias.
Observemos:
177
SD 57 Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa”.
É a fala do outro mesclada ao discurso do sujeito. Essa posição-sujeito 1 (o
militar) é o que tem o golpe duro e presto/ostento a aguda empunhadura à proa/ a
sentença se anuncia bruta/ a mão cega executa, o qual se mescla à fala do sujeito da
FD MPB meu coração tem um sereno jeito/ meu coração nas mãos estreito/meu
peito se desabotoa/o coração perdoa. Sabemos que as marcas da pontuação podem
nos dar muitos elementos para a compreensão do político e da ideologia no
funcionamento discursivo em que emerge a questão da interpretação. Deslocaremos a
noção de pontuação para o domínio do discurso, não da gramática, pois as marcas de
pontuação podem ser consideradas, segundo a AD, como uma manifestação da
incompletude da linguagem, fazendo intervir em sua análise tanto o sujeito como o
sentido. Voltando a atenção para nosso objeto de estudo o silêncio local- vemos que a
pontuação faz parte da marcação do ritmo entre o dizer e o não-dizer. A pontuação é,
portanto, a manifestação do interdiscurso na textualização do discurso. Citando Orlandi
(2005, p. 113), “o discurso é sempre incompleto assim como são incompletos os
sujeitos e os sentidos”. Dito em outras palavras, a incompletude é o incio da abertura
do simbólico, do movimento do sentido e do sujeito, da falha, do possível. Novamente
178
Orlandi (2005), ao considerar a pontuação como fato de discurso, afirma que a
finalidade é compreender a relação estabelecida entre a instância do real, do sentido (e
do sujeito) na ordem do discurso e a instância imaginária da organização, das palavras,
das frases ou do texto em si.
Pode-se afirmar com Orlandi que a pontuação é o gesto de um sujeito que se
situa num mundo com suas dimenes, em que o sentido é carregado de memória e o
dizer tem sua extensão, seus segmentos, suas dimenes. Promovendo um deslocamento
nesta concepção de pontuação enunciativa para uma concepção discursiva, Eni Orlandi
considera a pontuação como o lugar em que o sujeito trabalha seus pontos de
subjetivação, o modo como ele interpreta. Desloca, assim, o estudo da pontuação do
domínio da gramática (e da frase) para o domínio do discurso, onde a exterioridade é
constitutiva do dizer. Nessa perspectiva, “as marcas de pontuação podem ser
consideradas como manifestação da incompletude da linguagem fazendo intervir em sua
análise tanto o sujeito como o sentido”. (ORLANDI, 2001, p. 110). Os limites da
interpretação na AD são dados pelo silêncio, que acompanha, assim, a concepção do
movimento dos sentidos e dos sujeitos, incompletos e abertos para se tornarem outros.
(ORLANDI, 1997, p. 182).
Numa abordagem discursiva da pontuação, na qual se considera, portanto, a
exterioridade, a historicidade, como constitutiva do sentido, Orlandi afirma que a
pontuação é um elemento de organização do texto, fundamental, portanto, para que seja
possível a textualização do discursivo.
Como diz Orlandi,
do ponto de vista discursivo não ponto final como o um começo
absoluto [...]. O ponto final, por exemplo, funciona imaginariamente como
um signo de acabamento (impossível). [...] A pontuação serve assim para
marcar divisões, serve para separar sentidos, para separar formações
discursivas, para distribuir diferentes posições dos sujeitos na superfície
textual. Elas indicam modo de subjetivão. (Orlandi, 1997, p. 93-116).
As aspas representam uma responsabilidade outorgada ao outro; é a fala do outro
reproduzida na fala do sujeito da FD MPB, de modo que a responsabilidade pelo que
está dito também não é dele. As aspas, como uma forma de pontuar a fala do outro,
ganham aqui um outro sentido: o sentido nas designações Meu coração/minhas
mãos/meu peito se desabotoa, em que há a divisão do sujeito, que assume duas
179
posições-sujeito distintas: especificamente, nessas designações há um sujeito marcado
por fortes emoções, que exprimem o sofrimento, a dor, a desesperança desse sujeito; e a
outra a da mão cega que executa, que aponta para a mão que tortura, e infrige
sofrimento a alguém.
Na vírgula em Desencontrado, eu mesmo me contesto observa-se um outro
núcleo de significação, que fala o oposto do pretendido (des)encontrado, ou seja, negar
a situação vivenciada, a realidade bruta e (des)humanizante que leva o indivíduo a
contestar, a questionar sobre tudo isso. E é nessa segunda posição-sujeito, com as
designações Eu mesmo me contesto/ É que distância entre intenção e gesto/ a
mão cega executa, que o discurso do sujeito é mesclado, confundido, pelo discurso-
outro, aquele cuja o (que é um prolongamento do cérebro, digo do inconsciente)
executa o ato de barbárie (o militar). Os efeitos de evidência estão sempre remetendo a
outro(s), movimentando-se na trama discursiva; assim, ora surge o discurso do sujeito,
ora o discurso-outro, como uma onda que, no balanço da brisa, em cada momento está
de uma forma e representa-se com outros sentidos.
Percebemos que cada posição-sujeito representa diferentes modos de se
relacionar com a forma-sujeito, os quais vão de pequenas difereas até grandes
desigualdades, que marcam “o primado do outro sobre o mesmo” (PÊCHEUX, 1990,
p. 315), colocando em cena o discurso-outro. A intenção e o gesto da mão que executa
fazem parte do discurso-outro (militares). Ao sujeito do discurso, por sua vez, cabem
a contestação, a indignação, ao fazer uso da metáfora, do efeito metafórico. Portanto,
não pode ter um só sentido, e é no furo, no equívoco, no silêncio, que ele transborda em
significação.
Veremos que na canção “Tatuagem”, composta por Chico Buarque para a peça
Calabar em 1972-1973, a temática central dá ênfase à tortura, tanto física quanto
psicológica, pelas quais passavam os prisioneiros políticos na época da ditadura militar
no Brasil. A análise será composta por três blocos de sequências discursivas, que vão da
SD 58 à SD 60. Os conceitos contemplados dizem respeito ao silêncio local (censura) e
à heterogeneidade discursiva que sustentam o efeito metafórico.
180
Recorte discursivo 4 – Bloco 4 - Texto 14
Tatuagem
Chico Buarque – Ruy Guerra
1972- 1973
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava
Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
Mas não sentes
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço
Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Na SD 58 o leitor encontrará pistas linguísticas em que ressoa a tortura física e
psicológica. Vejamos a SD 58.
SD 58 que te retalha em postas
ser cicatriz risonha e corrosiva
marcada a frio, a ferro e a fogo
em carne viva
Esta sequência discursiva sugere a temática da violência física e psicológica a que
eram submetidos os presos políticos e nos autoriza a afirmar que estes sofreram nas mãos dos
seus algozes. As designações em postas/ cicatriz risonha podem ser lidas como feridas
abertas. Tomemos a imagem de uma posta de peixe e perguntamos: Como ficariam se fossem
feitas do corpo da pessoa? A resposta imediata é que ficariam marcas permanentes.
O efeito metafórico permite-nos retomar as marcas da tortura física, que, portanto, nos
permitem identificar os instrumentos usados nas sessões de tortura. Em realidade, percebemos
que o sujeito diz uma coisa para revelar outra. o entrelaçamento entre a FD poética, a FD
militar e a FD MPB.
As determinações risonha e corrosiva o envolvem somente a lesão física, que
permanece no corpo para sempre, mas também as psicológicas. Além de ficar a marca para
sempre no corpo, a mancha permanece em sua vida, o que permite que outros o apontem
como um perigo outros referindo-se aos militares. Isso é observado na ocasião dos
inquéritos policiais, quando muitas pessoas tinham a sua inscrão ligada a Chico Buarque.
181
No item 4.3.1.3 autor Marcos Napolitano nos explica sobre as táticas da produção da suspeita
sobre os artistas, as quais e que obedeciam a uma lógica perversa, apesar da aparente
improvisação e falta de critérios. Eni Orlandi, no artigo intitulado “À flor da pele: indivíduo e
sociedade”, trata especificamente da tatuagem no corpo do indivíduo, dizendo que “a
metáfora do grupo-corpo acalma a angústia da cisão do sujeito. O que é uma denegação
também da diferença entre o sujeito singular e o grupo. Da contradão latente”. (2006,
p. 23).
Referindo-se à designação presente na SD 58, é como se o sujeito se negasse durante
todo o tempo a não se sentir pertencente ao grupo-corpo (social), um peixe fora d’água; por
esse motivo, nega sua experiência, sua existência, seus direitos, sua participação. É uma
forma alienante de viver, como as pessoas tatuadas, “que increvem em sua pele um símbolo,
que vai significá-lo em sua singularidade”. (ORLANDI, 2006, p. 23). O sujeito do discurso de
que tratamos também inscreve em sua pele em vel psicológico e, por vezes, físico (as
marcas da tortura) uma simbologia que marcou toda sua vida: sofri uma tortura física e/ou
psicológica na época da ditadura militar. E isso não remédio que cure, o
esquecimento que apague.
Novamente retomamos Orlandi (2006), que afirma:
Pressionado pela memória institucional, a de arquivo (memória que não esquece), e
a memória discursiva, o interdiscurso (que se estrutura pelo esquecimento), este
sujeito vive o impacto que o leva ao modo como vai textualizar seu corpo. Às voltas
com a interpretação. Pressionado, como disse, entre o discurso institucional,
rarefeito, e a possibilidade de significar onde o sentido ainda não faz sentido. Na
própria pele” (p. 26).
O sujeito do discurso leva em seu corpo, na sua própria pele, as marcas do horror, da
barbárie e do sofrimento imposto pelos outros (os militares).
Para intensificar nossas reflexões dialogaremos com outro teórico, Jacques Derrida,
filósofo francês que nos mostra como a escritura
18
abrange a linguagem em todos os sentidos
da palavra:
18
Derrida propõe um pensamento do outro no mesmo movimento que o faz propor outro pensamento, que leve
em consideração todos os outros excluídos do pensamento metafísico. Segundo Derrida, se o mistério é aquilo
que faz tremer diante do que escapa, o pensamento precisa tremer e suportar o silêncio da responsabilidade.
182
Escrever no corpo do outro, que, de certo modo, é também seu próprio corpo: outro
que constitui a subjetividade de quem escreve imprimindo sinais, marcas que são
suas, na brancura do papel”, corpo do outro e seu buscando se distanciar ao se
debruçar, aproximando o seu corpo do corpo do outro, ao mesmo tempo em que
constrói para si uma imagem, uma história, uma identidade, [...]” (2008, p. 64).
A canção que tem por título “Tatuagem” imediatamente nos reporta a essa passagem
da escritura de Derrida. A inscrição das mensagens mais importantes do dizer do outro(s)
perpassa, mas não como pistas ou marcas, e, sim, como cicatriz profunda, dilacerante, que
fere, machuca e dificilmente será apagada. Em outras palavras, escritura cirúrgica que traça,
sobre o corpo do outro e sobre o seu próprio, sinais indeléveis, rasgos a serem suturados e
cicatrizados, à semelhança das ‘tatuagens’[...]”. (DERRIDA, 2008, p. 64).
Em depoimento, o general Adyr Fiúza de Castro explicou os tipos de tortura a que
eram submetidos os presos políticos. Apesar de extensa a citação, acreditamos que vale a pena
ser lida:
[...] é muito difícil que haja uma pressão física sem deixar marcas. A própria
‘maricota’ queima. um método de interrogatório em que você põe um eletrodo
nos dedos, em qualquer lugar os mais sádicos põem no bico dos seios ou nos
testículos e roda um dínamo que faz passar uma corrente. E quanto mais rápido
você girar aquele dínamo, maior a voltagem que dá. É como o tratamento de
eletrochoque dos loucos. Uma sensação terrível. Terrível! A maior dor, a maior
angústia que se pode ter é sofrer aquele choque. É muito difícil o eletrodo, que é
semelhante a uma garra, pegar uma coisa grande, Pode pegar no bico dos seios ou
no dedo do pé, mas deixa marca. No lugar que fica o eletrodo, sempre queima um
pouco, por menor que seja a amperagem. E você pode verificar. Então o Frota
(Sylvio Frota), que sabia disso, dizia: Mostre as mãos”. O sujeito mostrava, e ele
examinava. E sem ser isso, somente a borracha: eles batem com a borracha nas
partes moles, barriga e nádegas, porque essas partes não deixam muitas marcas. Se
você bater com uma borracha numa parte dura, fica o vergão. (1994, p.69-70)
O que foi silenciado nessas sequências remete à tortura que foi cometida, com
exageros ou não. O general Adyr complementa: “Havia um responsável. Na sua opinião, pelo
menos, o responsável era o presidente da República. Porque, de acordo com os regulamentos
militares, “o chefe é responsável por tudo o que acontece ou deixa de acontecer na unidade
sob o seu comando”. (p. 80). Na SD 58 a tortura física ficou evidente e na SD 59 trataremos
da tortura psicológica.
183
SD 59 Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
Mas não sentes
Nesta sequência discursiva os versos Que é pra te dar coragem/ Pra seguir viagem/
Quando a noite vem/ Mas não sentes remetem a outro tipo de tortura, a psicológica. A
posição do sujeito do discurso diante dessa situação de violência é de uma total anestesia, ou
seja, o sujeito do discurso está anestesiado diante da sua dor e, por isso, não consegue reagir,
permanecendo em estado catatônico (paralisado, inerte, sem movimentos com o olhar
perdido). Coragem para continuar lutando contra as ameaças, no discurso do sujeito da FD
MPB, é a marca da heterogeneidade que se configura pelo discurso-outro, que o encontra
forças para modificar a situação atual, mas fala pelo silêncio nas suas canções. Valemo-nos
também aqui do depoimento do general Adyr, que narra:
Em combate, interroga-se o prisioneiro de guerra logo que ele é aprisionado, porque
nesse momento ele diz muita coisa. Depois que se recompõe, o fala tanto.
Porque o medo (grifo nosso) é um grande auxiliar no interrogatório. Os ingleses, por
exemplo, recomendam que se interrogue o prisioneiro despido porque, segundo
eles, uma das defesas do homem e da mulher, evidentemente, é a roupa. Tirando a
sua roupa, fica-se muito agoniado, num estado de depressão muito grande. E esse
estado de desespero é favorável ao interrogador....E também por uma questão de
higiene, porque o prisioneiro se suja, suja o chão... É impressionante. Não se pode
parar um interrogatório e convidar: “Vamos mudar a roupa?” E o cheiro fica terrível.
Interrogando o preso despido, é mais fácil qualquer limpeza. (1994, p. 62 - grifo
nosso).
Em outro momento de seu depoimento o general relata:
Eu acreditava que, para as informações imediatas, era preciso uma certa dose, pelo
menos, de tortura psicológica, como sugeriam: botar o sujeito numa cela com uma
cobra. A tortura não é física, não deixa marca nenhuma. É uma tortura psicológica
mesmo que a cobra seja uma jibóia, o sujeito fica só apavorado. (p. 69)
A memória funciona aos saltos, e existem muitas lacunas na memória histórica que
precisam ser preenchidas. Sabemos, pela AD, que a linguagem é furada e sempre deixa a
possibilidade de outros sentidos. Contudo, por meio do sincio local (censura) presente
184
nessa canção realizamos uma leitura como esta, marcada pelo silêncio local (não poder dizer)
e, dizendo com outras palavras, com poesia, rima, astúcia e ironia, driblando a censura para
mandar o recado, pois os rastros do passado são indeléveis. (CORACINI, 2008). Na SD 59 a
heterogeneidade é marcada no discurso-outro, a voz do sujeito do discurso que se indigna e
tenta com coragem lutar contra o instituído (a ditadura), ao passo que na SD 60 a ênfase recai
sobre a tortura física, como as tatuagens, que permanecem marcadas a ferrro e a fogo.
SD 60 Corações de mãe
Arpões, sereia e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes
O corpo social está anestesiado, mas o corpo psicológico está atento, vigilante,
tentando encontrar uma saída, um caminho, como o coração de mãe sempre preocupado,
atento, vigilante pelo bem-estar do filho. A e pode ser lido como a pátria-mãe, tão
castigada pelos arpões, serpentes, que ferem (tortura) o corpo social (Brasil), o qual de tão
anestesiado não sente mais.
A tatuagem é uma forma de escritura do homem civilizado, urbano, mas, ao mesmo
tempo, os diferentes desenhos podem ser interpretados como diferentes digos usados para
cada tipo de punição, que sacrificam o corpo para silenciar a voz. Todavia, o cala, porque,
neste caso, o corpo fala pelo sujeito, revela um tipo de escritura e escrita feitas não por seu
dono, mas por outro que mantém o controle sobre seu corpo.
Orlandi registra:
Este gesto, à flor da pele, guarda em si a ambigüidade e o equívoco que mantém a
tensa relação entre o dentro e o fora, entre o corpo do sujeito e o corpo social. No
entanto, ele não é indiferente. Traz para outro regime significante a relação do texto,
da escrita, da individualização do sujeito pelo traço. Ele atinge assim de forma
fundamental um modo de circulação dos sentidos e os meios em que circula. E estes
são parte importante do processo de significação.[...] o sentido é como se constitui,
como se formula e como circula. (2006, p. 29).
O silêncio perpassa por essa tatuagem e pelo mover dos sentidos e faz significar, faz
falar, e fala muito!
185
Considerações parciais
Nesse último recorte discursivo a temática sobre a violência, a tortura física e
psicológica nos mostrou, por meio do silêncio local sustentado pelo efeito metafórico, que “o
silêncio fala. O silêncio é “No entrelaçamento de várias FDs com a alternância ou
concomitância de posições do sujeito, evidencia-se a heterogeneidade discursiva aparecendo
em discurso-outro (s) e no discurso Outro, conceitos relevantes para nossa proposta, pois
percebemos claramente a relação língua-ideologia-história.
No texto (12) “Vence na vida quem diz sim”, a recorrência do pronome SE é
caracterizada por Indursky como a quarta pessoa discursiva, aquela que produz a
impessoalização do sujeito: ele abdica de dizer eu, cedendo espo para o acontecimento
discursivo. O texto está atravessado por saberes provenientes da FD da tortura e pela negativa
do dizer do sujeito, que pode ser resgatado no interdiscurso por meio do efeito metafórico.
marcas da heterogeneidade discursiva, porque o sujeito-compositor traz para o seu discurso,
por meio da posição-sujeito representada pelo sujeito da FD MPB, o discurso-outro
autorizando certos tipos de tortura. O silêncio local atua impedindo o sujeito de se identificar
com determinadas FDs. A resistência é manifesta no funcionamento da negação: diz que sim
como diz que não, ou seja, nega a possibilidade de ir contra o estabelecido.
No texto (13) “Fado tropical”, algo inusitado acontece: a questão da pontuação (aspas,
vírgulas, reticências), que atesta um trabalho do simbólico e cujas marcas, portanto, podem
ser lidas como marcas do silêncio local e que evidenciam um discurso dentro de outro
discurso. Fundamental nas reformulações do dizer, a pontuação, ao trabalhar os espaços de
silêncio na linguagem, possibilita a movência do sujeito e do sentido. o contraste de duas
posições-sujeito: a que retoma às questões de política de Portugal e a que desmobiliza os
efeitos de sentidos no Brasil, com base no imaginário que essas questões produziram.
E para finalizar o texto (14) com a caão “Tatuagem”, a temática sobre a tortura
física e psicológica se mantém. O sujeito do discurso inscreve em sua pele em vel
psicológico, e muitas vezes no físico (as marcas da tortura), uma simbologia que permanecerá
para sempre. A posição do sujeito do discurso diante dessa situação de violência é de
anestesia. O discurso-outro que se manifesta é a voz do povo brasileiro, que o encontra
forças para modificar a situação atual e que fala pelo silêncio na sua canção
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para tentar arrematar o tapete...
Estamos no final da caminhada. É hora de olharmos com atenção o que foi feito.
Elaboramos, por meio do efeito metafórico, um grande tapete em que visualizamos cada fio
teórico em separado para, depois, perceber que um fio sozinho não tece nada; são necessários,
portanto, muitos fios que se entrelacem para constituir a trama teórica da AD. Foi um
percurso fecundo e rico porque a teoria nos permite fazer leituras por muitos sequer
imagináveis.
Nossa questão inicial era entender e fazer entender ao leitor o silêncio local que
identificamos nessas canções. No primeiro capítulo,” O fio dourado: efeito metafórico”,
compreendemos o efeito metafórico como uma relação de transferência de um sentido por
outro, como se uma palavra passasse a significar outra coisa conforme as FDs nas quais se
inscrevia. É importante ressaltar tal aspecto, porque foi o fio condutor desta pesquisa. O
discurso, então, é utilizado para pensar as relações entre linguagem e mundo. O corpus do
trabalho foi composto por 14 canções compostas por Chico Buarque de Hollanda (algumas
em parceria com Ruy Guerra e Gilberto Gil) durante o regime militar, mais especificamente
no período de 1970 a 1974, época do governo do general Emílio Garrastazu Médici,
considerado pelos historiadores o mais repressivo da ditadura no Brasil.
Nos “Primeiros fios teóricos” a presente dissertação buscou sinalizar o que se entende
ser um deslocamento da ideologia, tal como apontado por Marx, Althusser, Žižek e Pêcheux.
É importante essa caminhada teórica porque, ao analisar as canções, percebemos desde Marx
até Pêcheux evidências dessa(s) ideologia(s). A prática discursiva é a forma como a prática
política se materializa no domínio simbólico da linguagem, que é um espaço permanente de
observação das relações contraditórias e de relações desiguais dentro da luta de classes. A
língua, linguagem, discurso e sujeito o outros fios teóricos em que ressaltamos que a
linguagem não é transparente. A relação do sujeito com a linguagem e a história, que é a base
teórica da AD, coloca-se pela maneira particular com que se explicita o fato de que sujeito e
sentido se constituem, ao mesmo tempo, por um processo que tem como fundamento a
ideologia, tendo como unidade o texto. Notamos, portanto, que a questão da ideologia aponta
para o fato de que a ideologia não exclui as relações de poder; ao contrário, as relações de
187
poder e a ideologia estão entrelaçadas, complementam-se, funcionam na mesma materialidade
lingüística. Segundo Orlandi (2005, p. 101-103), “a marca do sujeito na concepção da AD é
ser clivado, assujeitado, submetido tanto ao inconsciente – quanto às circunstâncias histórico-
sociais que o moldam”. Além disso, também é importante observar que “o discurso é um
ponto de contato crucial onde se articulam os diversos fios que compõem seu tecido:
verdadeira instância de produção de sentidos, em cuja materialidade (discursiva) se
confrontam o lingüístico e o ideológico”. (ZOPPI-FONTANA, 1998, p. 203).
Em “Formações ideológicas e discursivas: a “movência” dos sentidos” observamos
que as palavras adquirem um sentido ou outro conforme o lugar de quem as estiver usando. O
sujeito é, então, concebido discursivamente, como posição entre outras; não é uma forma de
subjetividade, mas um “lugar” que ocupa para ser sujeito do que diz. Já em “Memória
discursiva e interdiscursolembramos que o interdiscurso é o espaço complexo do conjunto
das FDs; portanto, nele habitam todo o já-dito e todos os sentidos. A memória, por sua vez, é
sempre lacunar e, assim sendo, sofre determinações de ordem ideológica e inconsciente, ou
seja, o esquecimento faz parte da memória porque só a partir dele é possível dizer. Portanto, o
esquecimento é constitutivo da memória e o que a torna possível.
No capítulo três, “Entrelaçando os fios teóricos ao silêncio local”, estudamos que “há
um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido... silêncio
nas palavras”. (ORLANDI, 1995, p. 11). Assim, podemos entender o silêncio como um
intervalo semântico em que ocorre uma fissura (uma ruptura) na ordem do discurso, espaço no
qual se estabelecem relações de contradição, de resistência, de luta. O funcionamento dessas
relações é manifestado por meio do silêncio, que estabelece significação pelo não dito. “É
pela matéria significante do silêncio que as diferentes formações discursivas se encontram em
processo constante de reconfiguração e delimitação, produzindo uma relação dinâmica entre
as diversas posições de sujeito estabelecidas no interior de cada formação.” (ZOPPI-
FONTANA, 1998, p. 80). Assim, os efeitos de sentido o construídos com base no silêncio
fundante, que remete às condições de significação, à política do silêncio, a qual impõe um
dizer em lugar de outro. Ao seu lado o silêncio local, que se volta para a proibão do
dizer, ou seja, para a censura.
No capítulo quatro “Percorrendo o caminho das análises”, salientamos que “a
interpretação também é constitutiva do sujeito e do sentido, ou seja, a interpretação os
constitui: a interpretação faz sujeito, a interpretação faz sentido(ORLANDI, 1996, p. 83).
Procedemos à seleção do corpus e do caminho metodológico a ser percorrido e esclarecemos
ao leitor as diferentes formas como ocorreriam as análises. Foram utilizados quatro recortes
188
discursivos, dos quais sessenta e duas sequências discursivas foram analisadas. Em alguns
momentos foi necessário reagrupar em blocos as sequências por apresentarem repetição de
designações, como, por exemplo, a condicional SE, que foi trabalhada em três recortes
discursivos distintos.
No “Acontecimento discursivo: nosso gesto de interpretação, subidividimos as
canções de acordo com a temática: na;
(1) “O milagre econômico” e o silêncio local: nas canções “Construção e
“Cotidiano”, assinalamos que a ordem social dos militares significa desordem
na concepção do sujeito do discurso da MPB, uma vez que para se atingir o
“milagre econômico” paga-se o ônus da exploração; em “Construção”, o
sujeito é generalizado, o homem é visto, em relação à sociedade, de maneira
trágica, oprimida, marcado pela inutilidade, o qual constrói, mas é destruído
por essa estrutura social que o aprisiona; em “Cotidiano”, a recorrência da
negação de uma realidade com a qual o sujeito do discurso o concorda. É
dessa forma que o sujeito se relaciona com a forma-sujeito da FD musical,
por meio do silêncio local, mas que funciona como resistência;
(2) A censura e silêncio local: em “Hino de Duran” denota-se a ão da censura
em relação à palavra, mas não a qualquer palavra; na verdade, os dizeres que
não podem ser ditos (o silêncio local). A condicional SE apresenta-se como
introdutor do discurso-outro, funcionando como marca linguística da
heterogeneidade discursiva; o dizer que foi silenciado pela repressão e que
não deixa de ser exercido. A lei, que representa o governo, poderíamos dizer,
é o algoz que usa e abusa da ingenuidade e boa dos capachos o povo
brasileiro –, representando as relações entre sujeito(s) e o poder. Em “Ana de
Amsterdam”, o sujeito do discurso é e, ao mesmo tempo, foi proibido de ser.
No entanto, é justamente ao tentar calar, tamponar o que está reprimido
(inconsciente), que o sujeito produz o seu discurso singular. Lembramos
novamente a válvula da panela de pressão é necessário ter a lvula para
deixar escapar o que está contido nela. É assim que os sentidos são
inevitavelmente deslocados na ressignificação inerente à produção da cadeia
de significantes, isto é, por meio do efeito metafórico. Em “Boi voador não
pode” a designação é fora pode ser uma forma de resistência em que o
sujeito do discurso ressalta esse fora-da-lei, fora do país (exílio) e os fora-da-
189
regra (fora do regime autoritário). Novamente transparece a noção do outro
como subversivo, corrupto, inimigo do Estado. Em Cala a boca, Bárbara” o
discurso-outro (ele) representa a voz do poder (o militar), aquele que
interroga, que investiga, que tortura.
(3) O discurso-outro e silêncio local: nas canções “Cálice”, “Apesar de você,”
“Deus lhe pague”, Vence na vida quem diz sim” e Partido alto”. Há a voz
esmagada, abafada, estrangulada, oprimida, reprimida pelo cale-se, que é
uma imposição do silêncio à força; a voz é obrigada a se calar e produz o
efeito de sentido de um protesto, um grito. A censura age como anestésico da
consciência do sujeito do discurso. Nas designões Você e Deus retoma-se
o discurso-outro (1), que designa o governo, e o discurso-outro (2), que se
refere ao povo brasileiro. É, portanto, a voz do outro(s)/Outro que emerge
pela fresta e mostra a face do opressor e ditador;
(4) As torturas e silêncio local; nas canções “Vence na vida quem diz sim”, “Fado
tropical e “Tatuagem”. a recorrência do pronome SE na canção “Vence
na vida quem diz sim”, em que o sujeito se representa como se fosse o outro;
assim procedendo, não mais diz eu, representando-se por um ele ou um se.
Em Fado tropicalalgo inédito ocorre, pois a pontuação surge como marca
linguística do silêncio local e observamos dois discursos mesclados, ou seja,
surge na cena discursiva o discurso-outro entrelaçado ao discurso do sujeito.
Em “Tatuagem” o sujeito do discurso inscreve em sua pele, em nível
psicológico e também físico (as marcas da tortura), uma simbologia que
permite ler a violência a que foram submetidas tais pessoas. A posição do
sujeito do discurso diante dessa situação de violência é de total anestesia.
Em síntese, na AD o que está fora (o exterior) faz parte integrante do que está dentro
(o interior). Por isso a representação pela fita de Möebius, pois não há dicotomia, mas tensão,
contradição. O mesmo ocorre com os enunciados das sequências verbais, as quais são
intrinsecamente suscetíveis de se tornarem outras, expostas, em suma, ao equívoco da língua.
A AD de linha francesa pretende articular três ordens do Real o Real da ngua, o Real da
história e o Real do inconsciente , uma vez que os três se conjugariam no objeto de análise,
a saber, o discurso.
É, o real da língua o lugar onde estão o equívoco, a falta, o ato falho e o silêncio local,
nosso objeto de análise e estudo. Sabemos que não se pode dizer tudo na língua, e esse
190
mecanismo de indeterminação abre brechas para a paráfrase e o efeito metafórico,que foi o fio
condutor de nossa pesquisa. Quando dizemos que o próprio da língua é o Real, estamos
dizendo que aquilo que está mais perto da língua é quando ela falha, é o equívoco, o lapso, o
deslizamento de sentidos. As letras das sicas de Chico Buarque levam esta falha até o
ponto do indizível, até provar que a linguagem é efetivamente falha, no sentido de que tudo
não se pode dizer, ou seja, nosso corpus nos dá pelas palavras o Real do discurso. O silêncio é
o Real do discurso.
O silêncio local deve ser visto, portanto, como um lugar de resistência, um lugar de
diferença com o sistema e modo de se perceber melhor o sujeito que o produz e/ou o detecta.
Não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Esse é o princípio básico da noção de
sujeito em AD. Assim, o sujeito é afetado pelo inconsciente e interpelado pela ideologia;
sempre fala de um determinado lugar social, o qual é afetado por diferentes relações de poder,
e isso é constitutivo do seu discurso. (2007, p. 125).
Esse foi nosso gesto de interpretação, em que tomamos como ponto de partida para as
análises as letras das sicas de Chico Buarque como pistas do silêncio local (a censura).
Este estudo caminhou no sentido de perceber que, embora o silêncio tenha pistas, não
marcas, como diz Orlandi, no caso de nosso corpus, esta afirmação não se confirma, uma vez
que a censura “mascaradapelo efeito metafórico, como se verificou, funciona como marca
discursiva do silêncio.
Uma inquietude nos acompanha em busca de respostas e, por que não, de (in)certezas.
Quiçá a ilusão de por um momento estar próximo do fim. Foram muitas noites maldormidas,
ansiedade, medo, desespero até. E na escrita desse tapete teórico, a tessitura incansável,
interminável. O tapete está finalizado! Lembramos que na Odisséia Homero nos apresenta a
primeira tecelã: Penélope, vista só após a partida do marido. Ele sai pelos mares, à procura de
novas terras e aventuras. Para suportar sua falta e afastar os pretendentes que tinham dado
Ulisses como morto, ela planeja uma estratégia: promete a estes homens sedentos que, depois
de tecer a mortalha para o seu pai, escolherá um pretendente. Por três anos Penélope passa os
dias tecendo, fio a fio, a veste prometida, e à noite desfaz o trabalho do dia. Nosso desejo não
é de desmanchar, mas de continuar tecendo infinitamente...
191
REFERÊNCIAS
ACHARD, Pierre. Papel da memória. Campinas, SP. Pontes, 1999.
AGUSTINI, Carmen L. Reflexões sobre a constituição epistemológica da análise de discurso.
In: INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA (Org.). Michel Pêcheux e análise do
discurso:uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007.
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogeneité montrée et hétérogénéiconstitutive: élements pour
une approche de l’autre dans lê discours”. Revue de linguistique, 26, p. 91-151. 1982.
–––––––. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos, 19. Trad. de
C. M. Cruz e J. W. Geraldi. Campinas: IE/ Unicamp, p. 25-42. 1990.
BALBO, Gabriel. O Real. In. Dicionário de psicanálise: Freud & Lacan 2. Trad. Leda Mariza
Fischer Bernardino et al. Salvador, BA: Ágalma, 1997.
CAMARA Jr, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 9. ed. Petrópolis: Vozes,
9. ed., 1979.
CAZARIN, Ercília Ana. O confronto entre duas posições de sujeito, inscritas em diferentes
formações discursivas, marcado lingsticamente pelo enunciado dividido. In: CORACINI,
M.J. Autonomia, poder e identidade na sala de aula. In: L. PASSEGI, L; OLIVEIRA, M. do
S. Linística e educação: gramática, discurso e ensino. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
CORACINI, M. J. Les adverbes de relativité déjá-encore, já-ainda. Dissertação (Mestrado em
Letras Modernas: Língua Francesa) –USP, São Paulo, 1981.
COURTINE, J J. Le concept de formation discursive. Langages, n. 62, 1981.
–––––––., J. J. O chapéu de Clémentis. Observações sobre a memória e o esquecimento na
enunciação do discurso político. In: INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria
Cristina. Os múltiplos territórios da análise de discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.
D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os anos de
chumbo: a memória militar sobre a repressão.Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras. 2.
ed. 1997.
DINOUART, Josep-Antoine-Toussaint. A arte de calar: 1771/Abade Dinouart. Trad. de Luis
Filipe Ribeiro; apres. por Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. (Breves Encontros).
DI RENZO, Ana Maria. La lengua de nunca acabar: o real da língua e o real da história. In:
INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Michel Pêcheux e a análise do
discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007.
DORGEUILLE, Claude. Dicionário de psicanálise: Freud & Lacan 1. Trad. Leda Mariza
Fischer Bernardino et al. Salvador, BA: Ágalma, 1997.
192
ECKERT-HOFF, Beatriz M. Escritura de si e identidade: o sujeito-professor em formação.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008.
ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. 2 ed. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. 2007.
(Psicanálise passo-a-passo 50).
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
–––––––, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001.
FREUD, S. Negativa. In: Das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. e ver.
de J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. 1925 (original).
FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a
ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional,
2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979.
–––––––. Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível. Trad. de Bethânia Mariani e
Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004.
GRANTHAM, Marilei Resmini. Da releitura à escritura: um estudo da leitura pelo viés da
pontuação. Campinas: Editora RG, 2009.
GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação.
Campinas, SP: Pontes, 2002.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos &
duelos. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2006.
HERBERT, T. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, n. 1, 1995.
HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Trad. Maria Fausta P. de
Castro; com posfácio de Oswald Ducrot. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.
HOLLANDA, Chico. Chico Buarque, letra e música: incluindo Gol de Letras de Humberto
Werneck e Carta ao Chico de Tom Jobin. São Paulo; Companhia das Letras, 1989.
INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp,
1997.
–––––––. O sujeito e as feridas narcísicas dos lingüistas. Gragoatá, Niterói, n. 5. 1998a.
–––––––. A prática discursiva da leitura. In: ORLANDI, Eni Puccinelli. A leitura e os
leitores. Campinas: Pontes, 1998.
193
–––––––. A fragmentação do sujeito em Análise do Discurso. In: INDURSKY, Freda;
CAMPOS, Maria do Carmo. Discurso, memória e identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto,
2000.
–––––––. Da heterogeneidade do discurso à heterogeneidade do texto e suas implicações no
processo da leitura. Pelotas: Educar, 2001.
LACAN, J. Escritos. Trad. de V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. 1998.
LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Da ambigüidade ao equívoco:a resistência da língua
nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.
–––––––. Linguagem, ideologia e psicanálise. Estudos da lingua(gem), Viria da Conquista:
Edição Uesb, n 1, jun. 2005.
–––––––. A língua da análise de discurso: esse estranho objeto de desejo. In: INDURSKY,
Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Michel Pêcheux e a Análise do discurso: uma
relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007.
–––––––. O quadro atual da análise de discurso no Brasil Um breve preâmbulo. In:
INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Michel Pêcheux e a análise do
discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007.
LEITE, Nina. Psicanálise e análise do discurso: o acontecimento na estrutura. Rio de
Janeiro: Campo Matêmico, 1994.
LISBÔA, Noeli Tejera. A Pontuação do silêncio: uma análise discursiva da escritura de
Clarice Lispector. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) -Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
MARIANI, Bethânia. A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e em
psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006.
MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Moraes, 1984.
MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Trad. de Ângela Cristina Jesuíno. Porto Alegre,
Artes Médicas, 1987.
NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços
de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História – São Paulo: Anpuh, v. 24,
n. 47, jan./jun. 2004.
NASIO, Juan David. Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Trad. de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? Estudos, Uberaba, n. 10, p. 9-26, 1984.
–––––––. Discurso e leitura. São Paulo. São Paulo: Cortez. 1988. (Coleção Passando a
limpo).
–––––––. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 1995.
194
–––––––. Exterioridade e Ideologia. Cadernos Estudos Lingüísticos, Campinas, SP. v. 30,
p. 27-33, jan./jun. 1996.
–––––––. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 2. ed. Petrópolis, RJ,
Vozes, 1998.
–––––––. A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998a.
–––––––. Maio de 68: os silêncios da memória. In: ACHARD, Pierre. Papel da memória.
Campinas: Pontes, 1999.
–––––––. Discurso e texto. Campinas: Pontes, 2001a.
–––––––. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.
–––––––. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 2. ed. Campinas: Pontes,
2005.
–––––––. À flor da pele: indivíduo e sociedade. In: MARIANI, Betânia. A escrita e os
escritos: reflexões em análise do discurso e psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F; HAK, T.
(Org.). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
–––––––. FUCHS,C. A propósito da análise automática do discurso: Atualização e
Perspectivas (1975). In: GADET, F; HAK, T. (Org.) Por uma análise automática do discurso.
Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
–––––––. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas. Editora da
Unicamp, 1988. Trad. de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp,
1995.
–––––––. O discurso:estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas:
Pontes, 2008.
RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 4v.
SCHERER, Amanda Eloina. Subjetividade, inscrição, ritmo e escrita em voz. In: MARIANI,
Benia. A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e em psicanálise. São Carlos:
Claraluz, 2006.
SCHONS, Carme Regina. Saberes anarquistas: reiterações, heterogeneidades e rupturas.
Passo Fundo: UPF Editora, 2000.
–––––––. Carme Regina. “Adoráveis” revolucionários: produção e circulação de práticas
político-discursivas no Brasil da Primeira República. 2006. Tese (Doutorado em Letras) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006.
195
–––––––. MITTMANN, S. A contradição e a (re)produção/transformação na e pela
ideologia.In: INDURSKY, F; LEANDRO FERREIRA, M.C.; MITTMANN, S. (Org.). O
discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras. 1. ed. São Carlos, 2009.
SMITH, Anne-Marie. Um acordo foado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil;
Trad. de Waldívia M. Portinho. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
SOUZA, Pedro de. O esquecimento como condição da memória: a identidade em
desabamento no ato do dizer. In: INDURSKY, Freda; CAMPOS, Maria do Carmo. Discurso,
memória eiIdentidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.
STÜBE NETTO, A. D. Tramas de subjetividade no espaço entrelínguas: narrativas de
professores de língua portuguesa em contexto de imigração. Tese (Doutorado em Linguística
Aplicada). Unicamp, Campinas, 2008.
VISCO, Mônica. A escrita da letra e o feminino. In: MARIANI, Betânia. A escrita e os
escritos: reflexões em análise do discurso e em psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006.
ŽIŽEK, S. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj; ADORNO, Theodor W.et. al. Um
mapa da ideologia. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
–––––––, S. Como Marx inventou o sintoma? In: ŽIŽEK, Slavoj; ADORNO, Theodor W. et
al. Um mapa da ideologia. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
–––––––, S. Žižek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. (Org.) Christian
Dunker, José Luiz Aidar Prado. São Paulo: Hacker, 2005.
ZOPPI-FONTANA, Mônica Graciela. Limiares de silêncio: a leitura intervalar. In:
ORLANDI, Eni P. A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998.
Perdicos
JUNQUEIRA, Zilda Almeida. AI-5: cruel, desumano e degradante. Desvendando a História,
São Paulo, n. 20, ano IV, p. 34-43, out. 2008.
DVD
VAI PASSAR. Direção de Roberto de Oliveira. Produção Artística de Vinícius França.
Produção de Alessandro Allodi, Camila Villas-Boas e Jorge Saad Jafet. Rio de Janeiro: EMI
Music Brasil . 2001. 1 DVD (30min).
Endereços eletrônicos:
http://pequenamorte.com/2006/05/ideologia-individuo-e-sociedade-em -althusser.
http://www.achegas.net/numero/vinteecinco/leda-e-rosa.25htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/ideologia
http://educacao.uol.com.br/sociologia/ult
http://www.chicobuarque.com.br
http://www.discurso.urfgs.br/sead. acesso em 12/10/08
htpp://www.anpocs.org.br/portal/publicações/rbcs–0010/rbcs10–02html. Acesso em 3 out. 09.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo