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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MITSUKO SHITARA
1960’: Nova Iorque, Londres, Paris e São Paulo
Mestrado em História
São Paulo
Abril de 2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MITSUKO SHITARA
1960’: Nova Iorque, Londres, Paris e São Paulo
Mestrado em História
Dissertação de Mestrado apresentada à
Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em História, sob a orientação da
Profa. Dra. Yvone Dias Avelino.
São Paulo
Abril de 2010
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Banca Examinadora:
______________________________
______________________________
______________________________
Para Kanoe, com muita saudade.
Agradecimentos
No caminho percorrido entre o início da pesquisa e o depósito desta
dissertação, pude contar com o auxílio precioso de diversas pessoas, que me
estenderam a mão e emprestaram seus ombros, seus livros e seus
conhecimentos, de formas tão diferentes, nos mais diferentes momentos, todos
eles muito especiais e essenciais.
Antes de mais nada, gostaria de deixar registrada minha eterna
gratidão e admiração por Yvone Dias Avelino, que aceitou o desafio de orientar
este trabalho. Ao longo dos anos, pude contar com sua compreensão,
tolerância e paciência, sua imensa bondade e generosidade bem como a
atenção e o jogo de cintura com que tratou minhas limitações de tempo.
Quantas e quantas vezes incentivou-me nos momentos em que fraquejava,
fortalecendo-me com seus ensinamentos. Sou-lhe eternamente devedora.
Agradeço também a meus professores do programa de Mestrado da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que tiveram a capacidade de
fazer uma ex-engenheira entender melhor o ofício de historiador e despertaram
em mim um interesse mais profundo pela investigação histórica. Meu muito
obrigada aos meus leitores, os professores doutores Mariza Romero e Marcelo
Flório, pelos comentários preciosos que muito colaboraram para o
direcionamento deste trabalho.
Agradeço também aos meus ex-colegas do programa de mestrado.
Apesar do contato menos freqüente, o carinho e a preocupação mantiveram-se
intactos. Em especial Roseane Silveira, mais do que colega uma amiga do
peito, preciosidade que guardo com extremo cuidado, oferecendo palavras de
incentivo e inestimável ajuda sempre, inclusive dispondo do seu diminuto
tempo para revisão do texto. Agradeço muitíssimo a Fabiana Beltramin, que
também fez parte do meu cotidiano, sempre me ajudando nos momentos de
sufoco, tão intensa e gentil. Sidney da Silva Lobato, amigo e mestre, que de
longe me estende os braços. André Arruda, colega e querido amigo sempre tão
gentil e atencioso...
Meu muito obrigada a meus entrevistados – Adolpho Rodrigues, Ana
Maria Olmos, Berenice de Siqueira Rabello, Cátia Mori, Flavio Albertini, Maria
Inês Bonagura -, que dispuseram de seu tempo e de suas memórias para
enriquecer este resgate de época com imprescindíveis relatos orais de
experiências vividas. E em especial, a Raquel Fulcheron Valente, que além de
ser uma fonte oral inestimável, como coordenadora do curso Desenho de Moda
da Faculdade Santa Marcelina me ofereceu apoio e incentivo para finalizar este
trabalho. A Vera Lígia Pierrucini Gibert, Pró-diretora Acadêmica da Faculdade
Santa Marcelina, que me ofereceu sua fantástica dissertação de mestrado para
compreender as condições em que se desenvolveu a história que conto aqui.
Agradeço também ao CEDIC, particularmente a Professora Doutora
Yara Aun Khoury, que me permitiu reproduzir todas as matérias relevantes da
revista O Cruzeiro, e os funcionários do Centro, Simone Fernandes, Rodrigo
Campos, Ana Célia N. de Andrade e bio M. de Andrade, que pacientemente
me atenderam. Também agradeço a todos os funcionários do Arquivo do
Estado e a biblioteca Sofia Marchetti pela disponibilização de seus arquivos,
onde foram encontradas importantes fontes de época, edições dos jornais e
revistas em circulação na época.
Aos meus irmãos, um eterno muito obrigada, pelo amor dedicado em
todos os momentos da minha vida, principalmente Tati e José, e o anjinho que
veio diretamente do Japão para me consolar e ajudar, Mieko. Meus sobrinhos
todos, um grande agradecimento.
E o que dizer da Adriana Balduíno? Sem ela, este trabalho não seria
possível. Se matou de tanto trabalhar... Me suportou. Mas, acima de tudo, me
amou. Para esta, não há palavras.
Resumo
Mitsuko Shitara
1960: Nova Iorque, Paris, Londres e São Paulo
Esta dissertação procura analisar a evolução da moda e as influências que
sofreu e exerceu sobre a sociedade de consumo nos anos 1960. Após fazer
um resgate das condições que conduziram o desenvolvimento da moda até a
década de 1960, ilustradas pela evolução do design e das formas de produção,
bem como o surgimento de uma nova e importante categoria de consumidor
os jovens -, é registrada a forma de consumo de roupas, substituindo o elitismo
da alta costura pela democracia do prêt-à-porter. São analisadas as principais
cidades em termos de importância da produção e consumo de vestuário, a
saber: Nova Iorque e seu ready-to-wear, Londres e sua explosão jovem, e
Paris, onde o prêt-à-porter levava a assinatura de grandes designers de alta
costura. A partir dessas cidades, é apresentada a realidade de São Paulo, o
surgimento de uma moda com personalidade própria, apesar de ainda bastante
influenciada pelas formas de design e produção praticadas no exterior, e a
forma como a Rua Augusta dos anos 1960 se tornou o local certo para
conhecer as grandes novidades em primeira mão.
Palavras-chave: Moda. Anos 60. Rua Augusta. São Paulo.
.
Abstract
Mitsuko Shitara
1960’: New York, Paris, London and São Paulo
This thesis analyzes the evolution of fashion and the influences that have
suffered and induced on the society of consumption in the 1960s. After
surveying of the conditions that led to the development of fashion until the
1960s, illustrated by the evolution of design and ways of production and the
raise of an important new category of consumer the youth -, it is recorded the
way clothing is consumed, replacing the elitism of Haute Couture for the
democracy of Prêt-à-Porter. It also analyzes the major cities in terms of scale of
production and consumption of clothing, namely New York and its ready-to-
wear, the youth boom in London and the prêt-à-porter that carried the signature
of great designers of Haute Couture in Paris. From these cities, it is presented
the reality of Sao Paulo, the emergence of a fashion with its own personality,
although still strongly influenced by design and production practiced abroad,
and how Rua Augusta in the 1960s has became the right site to know the big
news at first hand.
Key-words: Fashion. 60’s. Rua Augusta. São Paulo.
Lista de Ilustrações
Ilustração 01. Grupo de jovens na Ilha de Creta, nus na boca da gruta, s.d.
© David Hurn/Magnum
Ilustração 02. Festival de música, s.d.
© Barry Miles
Ilustração 03. Festival pop, fins de 1960.
Fonte: The Telegraph Colour Library
Ilustração 04. Beatles, s.d.
© Tim Ridley/Memory Lane
Ilustração 05. Beatles usando roupas no estilo hippie, c. 1967.
Fonte: The Keystone Collection
Ilustração 06. Rolling Stones, fim dos anos 60.
Fonte: Camera Press
Ilustração 07. Membros de comunidade hippie, 1969.
© John Olson
Ilustração 08. Confronto em Paris, maio de 1968.
© Barry Miles
Ilustração 09. Terninho Yves Saint Laurent, s.d.
Fonte: IWS Photo
Ilustração 10. Neil Armstrong no solo lunar, 1969.
Fonte: NASA
Ilustração 11. Moda espacial, 1968.
© Peter Knapp
Ilustração 12. Esboço última coleção para Dior, inspirada na rua, 1960.
Fonte: Acervo YSL
Ilustração 13. Twiggy, s.d.
Fonte: Camera Press
Ilustração 14. Technicolor Dream, Alexandra Palace, 1967.
Fonte: Pictorial Press
Ilustração 15. Claire McCardell, 1947.
© Louise Dahl-Wolfe
Ilustração 16. Jackie Kennedy, 1961.
Fonte: Archive Photos
Ilustração 17. Estilo Jackie, 1966.
Fonte: Revista Burda
Ilustração 18. Scaasi, 1965.
Fonte: Vogue
Ilustração 19. Scaasi, 1961.
Ilustração 20. Claire McCordell, 1958.
© Louise Dahl-Wolf
Ilustração 21. Rudi Gernreich, 1964.
© William Claxton
Ilustração 22. Monoquini, 1964.
© William Claxton
Ilustração 23. No Bra, s.d..
© Richard Avedon / Exquisite Form
Ilustração 24. Baby Look.
Fonte: Revista Elle França
Ilustrações 25. Fragile, 1962
© Ken Heyman
Ilustração 26. Brillo e Fragile, 1962
Fonte: Coleção Gary e Sarah Legon, Los Angeles
Ilustração 27. Estampas, 1960.
Ilustração 28. Verushka por Giorgio di Sant’Angelo, 1968.
Ilustração 29. Rudi Gernreich, 1967.
© Willian Claxton
Ilustração 30. Twiggy para Vogue America, 1967
© Richard Avedon
Ilustração 31. Mercado de Pulgas, 1974
Fonte: Hulton Picture Library
Ilustração 32. Tye-dye, s.d.
Fonte: BBC Hulton Picture Library
Ilustração 33. Woodstock, 1969.
Fonte: Levi Strauss & Co. Historical Collection
Ilustração 34. Vestidos estilo college Mary Quant, fim anos 1950
Fonte: Acervo Mary Quant
Ilustração 35. Mary Quant e Vidal Sasson, 1964
© Hulton Getty
Ilustração 36. Moda intercambiável, Mary Quant, 1963
Ilustração 37. Biba, s.d.
© Sian Irvine/Pari Collection
Ilustração 38. Interior da Biba, s.d.
© Tim White
Ilustração 39. Vestido-saco, 1957.
Fonte: Acervo Givenchy
Ilustração 40. Pierre Cardin, Paris Morreu?, meados de 1966
Fonte: The Telegraph Color Library
Ilustração 41. Courrèges, 1964.
© William Klein
Ilustração 42. Courrèges, 1965.
© Willy Rizzo
Ilustração 43. Vestido Mondrian.
Fonte: Revista Elle, setembro 1965
Ilustração 44. Vestido smoking.
Ilustração 45. Look safári, 1968.
© Franco Rubartelli / Vogue Paris
Ilustração 46. Moda espacial, s.d.
© Yoshi Takata
Ilustração 47. Moda étnica, s.d.
Fonte: The Guiness Guide to 20t
h
Century Fashion
Ilustração 48. Hippie chic, s.d.
Fonte: The Guiness Guide to 20t
h
Century Fashion
Ilustração 49. Conjunto campestre Laura Ashley, s.d.
Fonte: Sunday Times
Ilustração 50. Yves Saint-Laurent, s.d.
© Sarah Moon / The Costume Research Centre, Bath
Ilustração 51. Dorothée bis, 1969.
© Tony Rent
Ilustração 52. Michèle Rosier, 1966.
© Guy Bordin
Ilustração 53. Courrèges, 1969.
© Peter Knapp
Ilustração 54. Paco Rabanne, s.d.
Fonte: Camera Press
Ilustração 55. Mick Jagger, s.d.
Fonte: Corbis-Bettmann
Ilustração 56. Pierre Cardin, 1960.
Foto: Keystone
Ilustração 57. Mods, 1964
Fonte: Mod: a very British phenomenon
Ilustração 58. Visual unissex, 1969
Fonte: Sunday Times
Ilustração 59. Leilah Assumpção veste Dener, s.d.
Fonte: Acervo de Leilah Assumpção
Ilustração 60. Anúncio Ponds, 1967
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 61. Anúncio Pond’s, 1967
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 62. Vestidos pop art, 1967
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 63. Estudantes dos anos 60, s.d.
Fonte: Revista Realidade
Ilustração 64. Maiô Engana-Mamãe, 1964
© David Bailey / Vogue
Ilustração 65. Biquini em tecido atoalhado, 1968
Fonte: Revista Figurino
Ilustração 66. Looks de Rudi Gernreich,1967
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 67. Minivestido Biba, 1967
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 68. Rhodia Stravaganza, 1969
Fonte: Reprodução Revista Claudia
Ilustração 69. Anúncio Tergal, 1968
Fonte: Revista Claudia
Ilustração 70. Anúncio Rhodianyl, 1969
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 71. Anúncio Crylor, 1969
Fonte: Revista Manequim
Ilustração 72. Confeitaria Fasano, s.d.
Fonte: Arquivo do restaurante Fasano
Ilustração 73. Salão de Chá do Mappin, s.d.
Fonte: Arquivo O Estado de São Paulo
Ilustração 74. Sala verde do Mappin, s.d.
Fonte: Arquivo Casa Anglo-Brasileira S.A.
Ilustração 75. New Look de Dior na Madame Rosita, 1948
Fonte: Arquivo Madame Rosita
Ilustração 76. Frequentador da Augusta, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
Ilustração 77. Chá na Confeitaria Yara, 1963
Fonte: Revista Claudia
Ilustração 78. Jovens observam vitrine, 1967
Fonte: Revista Realidade
Ilustração 79. Anúncio calça Far-West, 1967
Fonte: Revista O Cruzeiro
Ilustração 80. Anúncio calça rancheiro, 1958
Fonte: Revista O Cruzeiro
Ilustração 81. Hi-Fi Discos, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
Ilustração 82. Erasmo, Wanderléa e Roberto, s.d.
Fonte: Manchete Press
Ilustração 83. Programa Jovem Guarda, 1966.
Fonte: Agência JB
Ilustração 84. Roberto Carlos em anúncio para a coleção Jovem Guarda, 1966
Fonte: Revista Realidade
Ilustração 85. Caetano e os Mutantes em roupas de plástico, 1969.
Fonte: Manchete Press
Ilustração 86. Paquera motorizada, s.d.
Fonte: Arquivo O Estado de São Paulo
Ilustração 87. Congestionamento na Augusta, s.d.
© Claudine Petrolli
Ilustração 88. Vitrine da Kleptomania, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
Ilustração 89. As sete alamedas acarpetadas, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
Ilustração 90. Augusta nos anos 70, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
As roupas, de uma maneira geral, parecem
consequentemente preencher um certo número de
funções sociais, estéticas e psicológicas; elas juntam-
nas e expressam-nas todas simultaneamente. Isto
verifica-se tanto no que diz respeito ao vestuário antigo
como ao moderno. O que se acrescenta ao vestuário,
tal como nós o conhecemos no Ocidente, é a Moda.
Elizabeth Wilson
SUMÁRIO
Agradecimentos ................................................................................................. 5
Resumo.............................................................................................................. 7
Abstract.............................................................................................................. 8
Lista de Ilustrações ............................................................................................ 9
Introdução ........................................................................................................ 17
Capítulo 1 – 1960: Contexto Histórico.............................................................. 25
Capítulo 2 – Moda em Nova Iorque, Londres e Paris........................................50
Capítulo 3 – O Mundo na Augusta ................................................................... 86
Considerações finais...................................................................................... 133
Fontes ............................................................................................................ 136
Bibliografia...................................................................................................... 137
Anexo 1 – Entrevista com Adolpho Rodrigues............................................... 140
Anexo 2 – Entrevista com Raquel Valente..................................................... 155
17
Introdução
Da mesma forma que a arte, a arquitetura e o design, a moda traduz
a evolução de uma sociedade de forma visual, por meio de características que
vão da alteração dos conceitos morais, dos costumes, do vocabulário até dos
vestuários masculinos e femininos. São todas essas mudanças ao longo do
tempo que revelam em seus detalhes o espírito de uma época.
Para Wilson (1985), a moda é, entre outras coisas, ramo da estética,
da arte, da sociedade moderna. “É também um passatempo das massas, uma
forma de divertimento de grupo, uma forma de cultura popular”, diz, e
associando-a tanto às artes ditas sérias como à arte popular, pode ser uma
espécie de arte-espetáculo, do qual todos podem participar. Para Gilles Dorfles
(1990, p. 14), a moda, além de ser um dos mais importantes fenômenos sociais
e econômicos atuais, é também “um dos padrões mais seguros para medir as
motivações psicológicas, psicanalíticas, socioeconômicas da humanidade” e
“um dos mais sensíveis indicadores daquele peculiar “gosto da época” que
constitui sempre a base de toda a valoração estética e crítica de um
determinado período histórico”. Sinais externos mais perceptíveis de uma
sociedade em constante mutação são as roupas e os acessórios. A moda
reflete experiências estéticas sobre o gosto, o meio político para expressão de
dissidência, momentos de revolta, reformas sociais e desejos de mudança;
ainda reforça a solidariedade social e impõe normas de grupo, enquanto os
desvios da moda são normalmente considerados “chocantes e perturbadores”
(WILSON, 1985, p. 17-20), para, num momento seguinte, serem aceitos e
seguidos. Tal processo se torna possível em especial no século 20, quando a
moda, sem perder sua “mania da novidade e do diferente, da mudança e da
exclusividade”, passa a ser produzida em massa.
A produção de massa em estilos de moda – que é, em si, uma coisa
altamente contraditória une a política da moda à moda enquanto arte. Ela
está ligada, simultaneamente, à evolução dos estilos que circulam na arte
“séria” e de vanguarda, e ao gosto e cultura populares caráter inerente ao
prêt-à-porter, forma de consumo de moda prevalente nos anos 1960. Além
18
disso, a moda mostrou-se essencial para o mundo da modernidade, o mundo
do espetáculo e da comunicação de massas, em especial em um momento em
que o mundo despertava para uma série de reivindicações das ditas minorias
por igualdade de direitos e de condições, constituindo-se uma espécie de
tecido de ligação do nosso organismo cultural (WILSON, 1985, p. 20-25).
Para recriar e compreender a atmosfera do período e dos locais
eleitos chave para a compreensão do mundo, foi feita “reconstituição” de época
levando em conta pesquisa bibliográfica, contando com títulos que
extrapolaram o assunto “história da moda” e abriram espaço para reflexões
mais abrangentes acerca da sociedade e formas de consumo, bem como
investigação iconográfica, que envolveu consulta às revistas e jornais de
época, enriquecidos pelas imagens coletadas em revistas de época. É um
volume relevante de imagens, totalizando 90 ilustrações, que no estudo da
história da moda, bem como no estudo da história da arte, a pesquisa pictórica
se faz necessária de forma intensa. Em termos de conteúdo, a pesquisa focou-
se basicamente no vestuário feminino, que na moda contemporânea, a partir
do século XIX, as roupas masculinas não se alteraram de forma significativa,
enquanto as mulheres que viveram alterações drásticas em seus papéis dentro
e fora de casa, como resultado estético vivenciaram profundas alterações na
silhueta, merecendo uma análise mais detalhada. O trabalho contou também
com depoimentos de entrevistados que viveram de forma diversa os momentos
mais intensos de consumo na principal rua da moda dos anos 1960, a Augusta.
Apesar da larga abrangência do assunto em questão, esses materiais
ofereceram subsídios valiosos para resgatar a atmosfera daqueles anos.
O Capítulo 1 apresenta o contexto geral que propiciou o ambiente
necessário para uma ruptura com o passado. Ficam evidentes que fatores
como o aparecimento da pílula anticoncepcional e a Guerra Fria influenciaram
de forma decisiva a sociedade da época, e que se configurou uma nova ordem
nas formas de produção de bens de consumo, especialmente no que diz
respeito à moda, com o aparecimento de uma outra categoria de
consumidores, nascidos durante o baby boom após a Guerra Mundial e que,
nos anos 1960, eram adolescentes com poder de decisão e de compra. Foram
eles que redefiniram os conceitos de consumo e fizeram com que a indústria do
vestuário cada vez mais produzisse itens que satisfizessem seu gosto.
19
Apesar de disporem de dinheiro, os jovens ainda não tinham
exatamente o poder de compra abundante, o que levou a indústria a oferecer
peças mais em conta, com tecidos mais baratos em grande parte sintéticos
e produzidas em larga escala, com máquinas mais velozes e modernas. Isso
diminuía os custos de produção e possibilitava o consumo por um volume
maior de pessoas, afirmando o poder do prêt-à-porter e favorecendo o
aparecimento das butiques, lojas que vendiam roupas, acessórios, produtos de
beleza e demais objetos voltados ao consumo jovem e rápido, com alta
rotatividade de produtos nas araras. Um novo uniforme jovem se impôs:
camiseta e calças jeans, tal qual o faziam Marlon Brando e James Dean.
Além do cinema, a música ajudou a eleger novos ídolos jovens: os
bem-comportados Beatles, os “satânicos” Rolling Stones, bem como bandas e
músicos com influência hippie e folk consagrados pelos festivais – o mais
importante deles, Woodstock, em 1969 –, que começaram a pipocar
principalmente nos Estados Unidos. Acompanhando a rebeldia e o desejo por
mudanças dos jovens, os criadores de moda também se dedicaram a coleções
de prêt-à-porter, que iam ao encontro do que os jovens queriam: Mary Quant,
eleita a “mulher do ano” na Inglaterra, e Courrèges encurtaram o comprimento
das saias,, Pierre Cardin e Yves Saint-Laurent lançaram importantes coleções,
espacial e andrógina, respectivamente.. A moda ganhou mais espaço nas
revistas femininas, alçando à categoria de celebridades as modelos mais
importantes da época, como Twiggy, Veruschka, Jean Shimpton, Peggy Moffitt
e Donyale Luna.
O Capítulo 2 explora a moda produzida em três grandes centros:
Nova Iorque, Londres e Paris, verificando o predomínio do prêt-à-porter e da
moda das butiques, com múltiplas referências e tendências até então inéditas,
como a possibilidade de todos os grupos sociais escolherem seu vestuário e
seguirem a moda a seu modo, cobrindo praticamente todos gostos e desejos.
Em todas essas cidades, os modelos eram divulgados com muita rapidez
graças ao desenvolvimento dos meios de difusão e a popularização dos
veículos de comunicação, em especial as revistas e a televisão, presente cada
vez mais nos lares. Esses veículos mostravam, com relativo imediatismo,
imagens de moda e personalidades famosas do período vestindo as últimas
tendências. Com isso, as informações de moda deixaram de ser privilégio das
20
classes mais abastadas e permitiram que outras classes sociais pudessem
consumir mais roupas.
Nos Estados Unidos dos anos 1960, o ready-to-wear era a forma
mais corrente de consumo de moda desde os anos 1940 seu volume de
vendas era superior ao da alta costura com coleções anunciadas e
comercializadas em diversos pontos de venda do país. A celebridade mais
copiada da década era a primeira-dama Jacqueline Kennedy, poderosa, bela,
carismática e jovem, com estilo prático e fácil de ser copiado, combinando
espírito despojado com refinamento. Outro ícone made in America foi a calça
jeans, originalmente usada como roupa de trabalho dos mineiros em meados
do século 19 e que se adaptou a todas as mudanças ocorridas durante o ano,
apresentando-se mais larga, mais estreita, boca de sino ou pata de elefante,
com cintura baixa, alta ou no lugar. Resistente e durável, aceitou diferentes
formas de uso: amarrotada, rasgada, suja, desbotada ou gasta, em diversas
lavagens e que, democraticamente, ignorou fronteiras geográficas, regimes
políticos, diferenças sociais, sexo, idade e religião, e era peça-chave no visual
unissex que surgiu nessa década.
na Inglaterra surgiu o Swingin London, um estado de rebelião
criativa em oposição ao establishment conservador. Uma das figuras mais
importantes desse movimento foi a estilista Mary Quant. Criadora de peças
extremamente joviais, fáceis de usar e de descartar, logo viu milhares de
clones seus tomarem as ruas de Londres, com cabelo em corte geométrico,
olhos bem marcados e lábios pálidos, de meias-calças coloridas e saia acima
do joelho, tendência que se generalizou a partir da metade da década e se
tornou um fenômeno mundial. Suas roupas logo foram exportadas para outros
países da Europa e Estados Unidos, introduzindo sua moda jovem, vibrante,
criativa e versátil, para ser usada tanto de dia quanto de noite e com
comprimentos cada vez mais reduzidos. Além de Mary Quant, outro fenômeno
surgido na Swinging London foi a Biba, criada pela estilista e ilustradora
Barbara Hulanicki. Tendo como carro-chefe as roupas, a Biba vendia seu estilo
de vida extravagante e de rápido consumo, presente em acessórios, sapatos,
maquiagens e objetos de decoração. Era um lugar onde se podia ler jornais e
revistas, encontrar os amigos para tomar chá, conferir e comprar as novidades.
21
Do outro lado do Canal da Mancha, a moda se expressava, até o fim
dos anos 1950, por meio da alta costura (para a elite mundial e rica), a
costureira (para a burguesia, adaptando os modelos da alta costura) e a
confecção (destinada às massas, que não seguiam as tendências sazonais).
Porém, a partir de 1956 houve avanços maiores rumo ao prêt-à-porter com
uma nova leva de estilistas, como Nina Ricci e Guy Laroche, cujos modelos
eram adaptados para o consumo de massa, conciliando a originalidade da
criação, o prestígio da marca e a qualidade de fabricação por preços mais
acessíveis. Concomitantemente, era possível observar uma certa agitação
jovem em bairros como Saint Germain de Près, que inspirou a criação de
novas butiques que, a exemplo da Biba de Londres, tornaram-se templos de
consumo. Os jovens, conscientes do seu poder de compra, impuseram seus
gostos, entre eles a minissaia, cuja autoria o designer francês André Courrèges
disputa com a inglesa Mary Quant. O estilo de Courrèges determinou como as
francesas deviam se vestir nos anos 1960: a menina-mulher, de cílios postiços,
muito delineador e rímel para ressaltar os olhos e, algumas vezes, sardas
falsas. Em 1965, Courrèges lançou-se no prêt-à-porter dividindo suas coleções
em três categorias de preços: a alta costura (modelos feitos sob medida), o
prêt-à-porter de luxo (modelos produzidos em séries limitadas) e o prêt-à-porter
(quantidades maiores e preços bem mais acessíveis).
Outro sopro de frescor foi dado por Yves Saint-Laurent que, após
anos trabalhando com Christian Dior, em 1961 fundou sua própria maison e,
trabalhando com alta costura e prêt-à-porter, rejuvenesceu e revolucionou a
moda ao adotar elementos da cultura jovem, primeiramente com o famoso
vestido Mondrian e, em seguida, com a coleção pop art, com modelos
inspirados em artistas plásticos como Andy Warhol, Roy Liechtenstein e Tom
Wesselmann. Pierre Cardin foi p primeiro designer a criar roupas para uma
loja de departamentos. Vanguardista, em 1959 lançou uma coleção de prêt-
à-porter e, nos anos 1960, juntamente com André Courrèges, dedicou-se à
moda espacial.
Porém, o prêt-à-porter ainda não era totalmente acessível a todos os
bolsos e, dessa forma, houve reações ao elitismo na moda de diversas formas,
como a adoção pelas jovens de trajes étnicos, como roupas indianas das
garotas hippies ou do movimento negro nos Estados Unidos, ou as roupas
22
compradas em brechós. Instantaneamente, desde alta costura até as butiques
adotaram essas referências e, com isso, a moda viu seu campo de pesquisas
se alargar, e logo as variações se tornaram tão freqüentes que era impossível
seguir todas as tendências propostas. Assim, a diversidade tornou-se a
característica principal da moda e tudo passou a ser permitido, sem limites,
ultrapassando também os limites tradicionais da moda masculina, propondo
aos homens alternativas ao tradicional ou imutável, como camisas cor de rosa
ou com estampas florais.
O Capítulo 3 apresenta a moda praticada no Brasil. Verificou-se
também a mudança de foco do público-alvo da moda, voltando-se para a
juventude, gerando uma demanda por imagens jovens
desvinculadas do
padrão de vestuário de seus pais. Um marco importante nesse processo foi a
crescente utilização de fios sintéticos, iniciativa popularizada por Livio Rangan,
principalmente por meio de publicidade, editoriais de moda e shows-desfile
apresentados na Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit), que uniam moda,
apresentações musicais e performances teatrais. O predomínio da moda jovem
também começou a se manifestar na Fenit, que, em certo ano, contou com a
presença de criadores como Biba e Paco Rabanne, e de ídolos como Erasmo
Carlos e Wanderléia na passarela.
Rapidamente verificou-se grandes avanços quanto à estamparia e à
utilização de cores, além do uso de fios sintéticos, o que permitiu a diversos
designers de moda, entre eles Dener, desenvolverem linhas de prêt-à-porter de
preços médios, com produtos industrializados acessíveis, coincidindo com
mudanças nos bitos de consumo da classe média alta que,
progressivamente, foi aderindo ao prêt-à-porter. Peças descontraídas,
modernas e diferentes preferencialmente eram encontradas e adquiridas nas
lojas e butiques da Augusta e em ruas de seu entorno, que, nos anos 1960,
eram frequentadas pelos jovens mais descolados e antenados da época.
A Rua Augusta foi um capítulo à parte na história da moda brasileira.
De mera via de passagem, ela adquiriu o status de luxo e glamour, onde se
instalaram as principais lojas de tecidos finos, lojas de roupas, sapatos e
acessórios, butiques, cinemas, cafés e restaurantes, desde as tradicionais
confeitarias Fasano e Yara até os modernos drugstores, como a Mondo Cane,
e a loja de discos Hi-Fi. Segundo fontes orais, a variedade de lojas ia além do
23
que havia de mais badalado em termos de roupas e acessórios, e incluía
outros segmentos, como armarinhos, móveis e decoração, livrarias,
cosméticos, enxovais, colchões e travesseiros, e supermercados de luxo.
A constante busca pelo novo em forma de cosméticos, penteados,
maquiagens, vestuários correspondia a uma dupla necessidade: tanto a
reestimulação sedutora como a afirmação individual, mesmo que esse desejo
pela originalidade pessoal se desse pela afirmação dos mesmos sinais de
identificação da elite, o que ajuda a explicar a presença da moda no ciclo de
massa. Ou seja, fluía do topo (a alta costura), envolta nos atributos da
sedução, motivada pela necessidade de mudança em si mesma, do
enfastiamento do visto e do poder de atração do novo. Mas, a partir do
momento em que determinada moda se difundia, o desejo pela originalidade se
transformava em seu oposto, que a multiplicação do único transformava-o
em padrão. Dessa forma, o campo do consumo mostrava-se um campo social
estruturado, em que os bens e as próprias necessidades, como também os
diversos indícios de cultura, fluíam de um grupo modelo e de uma elite diretora
para as demais categorias sociais (BAUDRILLARD, 2005, p. 61).
Ao lado dos estabelecimentos comerciais tradicionalmente voltados
à elite, a Rua Augusta viu nascer um comércio dirigido a um novo segmento de
consumidor”, provida de mesadas e dotada de autonomia para decidir o que
desejava consumir, manifesta principalmente pelas roupas como forma de
expressão da ruptura com a forma de consumo adulta.
No Brasil, em meados dos anos 1960 acontecia a revolução da
Jovem Guarda, na qual Roberto Carlos e companhia inspiraram os jovens a
serem realmente jovens, auxiliados por um poderoso aparato de comunicação,
que incluía revistas e televisão, a ponto de ninguém sair de casa durante a
transmissão do programa Jovem Guarda, apresentado por Roberto Calos.
Porém, no final da década, a rua se encontrava em decadência, pois
Roberto, Erasmo e Wanderléa haviam se mudado para o Rio de Janeiro, e os
shopping centers, em especial o Iguatemi, transformaram-se nos novos locais
de preferência para compras e passeios em São Paulo, por diversos motivos,
como a comodidade para estacionar, a segurança e a proteção contra o clima.
Foram acrescidas como anexo, entrevistas com a Raquel Fucheron
Valente, coordenadora de moda da Faculdade Santa Marcelina, concedida em
24
11 de maio e 28 de junho de 2006; e Adolpho Rodrigues, concedida em 09 de
junho de 2006, então zelador da casa à Avenida Paulista, 1919 e comerciante
de postais.
25
Capítulo 1 – 1960: Contexto Histórico
Os agitados anos 1960, década que promoveu novas liberdades e
muitas mudanças, foram impulsionados principalmente por grande
desenvolvimento econômico mundial que se estabeleceu na década anterior, e
a crescente prosperidade que fez surgir uma sociedade do descartável e do
consumismo. Nesse momento, os louros podiam ser colhidos por muitos, mas
não foram vivenciados de forma convencional por uma nova camada de
consumidores recém-descoberta, os jovens, a ponto de muitos deles se
rebelarem, questionando a autoridade, a disciplina, a moral e a tradição
vigentes, criando uma contracultura própria,
1
com a propagação de um mundo
melhor, de paz e amor, desejo que unia todos eles.
Tudo era permitido, e muitas vezes experimentado, para esses
jovens que recusavam as regras de decoro e etiqueta e as convenções
tradicionais adotadas pela sociedade burguesa, como o casamento, a
fidelidade e os claros papéis atribuídos a homens e a mulheres. Era necessário
pensar e fazer coisas diferentes dos pais, constituir até uma “nova família”.
Assim, importante era o novo
2
e, para tanto, procuraram outros tipos de valores
existenciais que lhes propiciassem satisfação, como declarou a famosa modelo
alemã Uschi Obermaier nos anos 1960.
Tudo era novo a moda, a música, a filosofia. E naturalmente a forma de vida.
Não queríamos ter as mesmas relações que os nossos pais e na comuna
estávamos com a família que tínhamos escolhido. Vivíamos segundo o princípio
do prazer, experimentávamos tudo (SEELING, 2000, p. 338)
.
1
Se os sinais exteriores da contracultura eram evidenciados por cabelos longos, roupas
despojadas e coloridas, consumo de drogas e do rock, ela se traduzia, essencialmente, na
adoção de regras e valores diversos dos vigentes, em novas maneiras de pensar, de ver e
relacionar-se com o mundo e as pessoas, ou seja, um movimento de contestação de caráter
profundamente libertário e catalisador, capaz de propor, com enorme apelo junto a uma
juventude de camadas médias urbanas, um estilo de vida e uma cultura underground, que
redefinia a realidade por meio do desenvolvimento de formas sensoriais de percepção e,
embora a contracultura o se relacionasse apenas com a juventude, foi ela que viabilizou, no
seu cotidiano, diferentes idéias e comportamentos, quer no seio da família, nos campi
universitários, quer nas movimentações de rua, na música e no vestuário. Cf. PEREIRA, 1988.
2
É o gosto pela renovação que orquestra a moda, que não pôde nascer senão sustentada por
uma atitude mental inédita que valoriza o novo e mais valor à transformação que à
continuidade ancestral em um sistema cujo princípio básico é “tudo que é novo agrada”. Cf.
LIPOVETSKY, 2005.
26
As convicções sobre a eficiência da ciência e da tecnologia, a
perfectibilidade do homem e sua razão foram seriamente questionadas, e
alguns grupos tentaram levar uma vida simples em comunidades agrárias e
outros, mais radicais, ensaiaram voltar à Idade da Pedra, como um estilo
alternativo de viver, livrando-se das vestes e sinais de atualidade, apesar dos
óculos e botijão de gás com panela industrializados, vivendo em grutas na ilha
de Creta (ilustração 01). Nela, quatro rapazes e duas moças foram
fotografados totalmente despidos, sérios quase todos, um deles talvez
constrangido, pois parece ocultar-se em um chapéu de aba larga caída, dois
com barba, bigode e cabelos à Che, prontos para ser engolidos pela caverna e,
mais tarde, pelo establishment. Apesar da experiência frustrada, também essa
“família pré-histórica” mostrou a crise de confiança em relação à forma como se
desenvolvia a sociedade. Na imagem, mesmo com características físicas bem
distintas, os cabelos longos e os corpos desnudos e insípidos pulverizaram as
individualidades, colocando-os em patamares equivalentes, desejo de
igualdade manifesto do período.
E a pílula anticoncepcional oral,
3
método admitidamente bastante
seguro, que permitia contato direto das peles e que poupava a interrupção
momentânea da relação, como ocorria com uso do contraceptivo masculino
mais popular, a camisinha, contribuiu também para que a experimentação do
prazer sexual fosse mais plena, e não eclipsada pelo fantasma da gravidez
indesejada. Se, para diversos estudiosos como Pedro (2003), essa “pílula
estava vinculada às políticas de planejamento populacional relacionadas à
Guerra Fria”,
4
nem por isso deixou de promover uma intensa mudança, que
3
A etapa da anticoncepção moderna iniciou-se na cidade do México, quando foi sintetizado o
primeiro anticoncepcional oral em 15 de outubro de 1951 pelo químico mexicano Luis
Miramontes e comercializado nos Estados Unidos em 1960, sob forma de pílula, após
aprovação pelo Food and Drug Administration. Foi introduzida no Brasil em 1962 com o nome
de Enovid. Em 1974 realizou-se, pela primeira vez, a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, em Bucareste, abordando políticas populacionais e patrocinada
pelas Nações Unidas. Cf. MARTÍNEZ-MANAUTOU, 2000, p. 73
4
Desde 1956, pesquisadores estadunidenses como o biólogo Dr. Gregory Goodwin Pincus
empreenderam experiências contraceptivas em mulheres do Haiti e de Porto Rico, sem
promessa de eficácia, às vezes com efeitos colaterais, no intuito de reduzir a natalidade nos
países do terceiro mundo. Também aqui, notícias acerca do novo contraceptivo foram
acompanhadas por dados alarmantes sobre o perigo da superpopulação, para estudiosos,
causada pela redução da mortalidade infantil e pelo aumento da longevidade. Entendia-se que
o rápido crescimento da população, com o consequente aumento da pobreza, era forte aliado
para agitação comunista. Os países latino-americanos foram classificados como aqueles que
27
Ilustração 01. Grupo de jovens na Ilha de Creta, s.d.
© David Hurn/Magnum
estavam colaborando fortemente para superpopulação mundial. Não é de se espantar que, no
Brasil, incluído nesse programa político americano, foi rápida a introdução da pílula, com
antecipação de cinco anos em relação à França. No mesmo artigo, a revista Seleções de abril
de 1960 fez projeção populacional mundial de 8 bilhões de pessoas para o ano 2000, muito
além dos 6,1 bilhões registradas nesse ano pela ONU. Cf. PEDRO, 2003. Prevê-se 7,9 bilhões
para 2050. Cf. o site da ONU:
www.un.org/esa/population/publications/sixbillion/sixbillion.htm
28
Ilustração 02. Festival de música, s.d.
© Barry Miles
provocou verdadeira revolução, por meio da qual a prática do sexo, antes
aceita apenas com o matrimônio, passava a visar não somente à maternidade,
mas separando, de forma permanente, a sexualidade da reprodução.
Algumas de suas consequências foram a prática do amor livre, sem
restrições. Na moda, foram propostos vestuários mais livres e soltos, como
vestidos-tubinhos com cavas mais profundas e exposição maior do corpo, de
modo geral com minissaias e calças de cós baixo, conhecidas como saint-
tropez,
5
além das roupas semitransparentes sugeridas por estilistas franceses
como André Courrèges e Yves Saint-Laurent, pelo americano Rudi Gernreich e
pela inglesa Zandra Rhodes, mas pouco adotadas pelas garotas. Algumas
vezes viu-se topless ou nudez total em locais específicos, por exemplo, em
festivais de música, como na ilustração 02, em que um casal encontra-se de pé
em um happening musical, ambos com cabelos escorridos, longos, presos com
bandana à moda indígena, e possivelmente observado, de longe, por outro
casal de meia idade – a senhora com tubinho acima dos joelhos.
5
Saint-Tropez é uma cidade praiana francesa, frequentada pelo jet set internacional, onde esse
tipo de calça apareceu pela primeira vez e foi popularizada por atrizes como Brigitte Bardot,
símbolo sexual do período.
29
Apesar da nudez quase total da garota, decorada apenas com
echarpe larga enrolada em torno do pescoço e acompanhada de pendente sol,
e outra frouxamente cingindo os quadris, nenhum dos jovens ao redor se
importa, pois todos estão sentados no chão, descontraídos. O rapaz que a
acompanha apresenta-se com torso desnudo, shorts saint-tropez e cinto com
franjas longas, sem aparentar constrangimento. Ambos parecem procurar um
melhor espaço para se acomodar. Se até poucos anos, apresentar-se em
mangas de camisa (sem o uso de paletó) e sem gravata era uma prática
inadmissível, considerada falta de decência e conduta indecorosa, motivos
para se impedir entrada em locais públicos como cinemas e salões de chá, o
que se via nos anos 1960 era uma mudança radical de comportamento, mais
livre e com total informalidade. Na ilustração 03, de fins da cada, o
descompromisso com a etiqueta continua: são rapazes e moças sentados no
chão, uns brincando com bolinhas de sabão, outro talvez dançando, alguns
desatentos e outros parecem assistir ao show. Mas o que chama à atenção na
imagem é que se avista um negro na multidão, de pé, o que sugere que a
participação deles em eventos como esses era ainda bastante restrita, apesar
do período ter sido marcado fortemente pela luta contra segregação racial. O
público ao redor está indiferente à sua presença e diversas pessoas o usam
camisas ou estão com o tronco coberto por colete, ou com camisa
desabotoada escancarando o peito, e apenas um parece usar camiseta. A
calça jeans era vestida por homens e mulheres, notadamente entre jovens
estadunidenses, de preferência das marcas Levi’s e Wrangler, que
reinterpretaram os uniformes dos trabalhadores dos anos 1950 e incluíram
bordados e detalhes diferenciados, e a camiseta como roupa exterior, muito
usada nos Estados Unidos, ainda era adotada por poucos na Europa.
30
Muitos jovens sixties
tornaram-se independentes e
empresários de lojas de roupas e de
acessórios, vendendo para aqueles da
sua idade. Isso coincidia com o declínio
da alta costura, que demandava
modelos sob medida e mão de obra
especializada e onerosa; com a
diminuição de clientes abonadas; com a
expansão do prêt-à-porter
6
e com as
grandes opções lucrativas de perfumaria
e da cosmética. O prêt-à-porter e a
moda das butiques foram as grandes
novidades do período, e todos os jovens
estilistas fizeram sua contribuição, propondo segundas e terceiras marcas mais
baratas e juvenis do que as criações de alta costura.
Por outro lado, os donos das butiques foram reconhecidos como
grandes criadores de moda, caso da inglesa Mary Quant, e, desse modo, as
diferenças de propostas entre eles aos poucos dissiparam-se. Também os
novos maquinários, como overloques, galoneiras e interloques, permitiram
produzir em massa linhas de vestuário, enchendo as prateleiras das lojas com
as últimas tendências a preços acessíveis e com giro rápido das mercadorias.
Além disso, essas butiques tinham vitrines e interiores sedutores,
decorados com cores vivas, psicodélicas, como as dos parques de diversões, e
tocavam rock o tempo todo, atraindo ainda mais os jovens clientes. Diversas
delas ficaram famosas, como Bus Stop, de Lee Bender, ou Clobber, de Jeff
Bank, ambas sediadas em Londres. Mas a mais festejada e movimentada era a
6
Prêt-à-porter, tradução quase literal de ready-to-wear, foi citado oficialmente, pela primeira
vez, na ata do I Congresso da Indústria do Vestuário Feminino em 1947. A empresa Weill
utilizou-o em 1950 nos seus primeiros anúncios. Prêt-à-porter designa, desde os anos 1950,
coleções assinadas por designers, de maior variedade e criatividade, correspondendo à
segunda linha de uma casa de alta costura, produzida em série limitada. Alta costura veste as
mulheres sob medida, enfatizando o luxo e o savoir faire que se exige dela, exaltando a
criatividade e está sujeita a diversas obrigações, como a não terceirização ou feitura em série,
e a confecção dirige-se a todas, é mais dinâmica e assume o risco da estocagem ao produzir
de antemão modelos com numerações definidas e oferecidos a preços acessíveis. Cf.
REMAURY, 1994, p. 459; GRUMBACH, 2009, p. 33.
Ilustração 03. Festival pop, fins de 1960.
Fonte: The Telegraph Colour Library
31
Biba, de Barbara Hulanicki, estabelecida em 1964, também em Londres, cujo
interior fascinante era no estilo art nouveau, decorado com objetos orientais e
retrô, vasos com enormes buquês de plumas, provadores coletivos, e que
vendia as últimas novidades em roupas e produtos de maquiagem, com cartela
bem diversificada que, tão logo chegavam, sumiam das prateleiras.
Porém, foi no ramo da música que eles se destacaram e
enriqueceram. A música era aglutinadora de jovens de todo o mundo,
ultrapassando as fronteiras sociais, e sua trajetória ascendente observou-se
desde meados dos anos 1950 com Bill Harley e seus Cometas e Elvis Presley,
apresentando o ritmo endiabrado chamado rock’n’roll,
7
que conquistou o
público internacional a partir de 1956, quando se exibiu em todo o mundo o
filme americano Rock around the clock (em português, Ao balanço das horas),
do diretor Fred E. Sears, que apresentava sua ágil e acrobática coreografia.
8
No Brasil, o Festival de Rock da América do Sul, organizado pelo grupo que
se denominava Crazy Boys, aconteceu no dia 3 de fevereiro de 1957, na Rua
Rêgo Freitas, centro de São Paulo. Casais dançaram na rua após o baile,
fazendo piruetas ao som de uma vitrola portátil,
9
atrapalhando todo o trânsito
7
O rock’n’roll (rock significa balançar, agitar) surgiu nos Estados Unidos como uma evolução
do rhythm-and-blues e atraiu grande público composto, principalmente, por brancos. Cantores
negros como Chuck Berry e Little Richard fizeram sucesso junto a esse público mais amplo.
Mas popularidade bem maior estava destinada a intérpretes brancos como Bill Harley and the
Comets, Buddy Holly, e, principalmente, Elvis Presley, não raro pejorativamente chamado de
Elvis The Pelvis, por balançar frenética e sensualmente seus quadris. Cf. SADIE, 1996, p. 791.
8
A música Rock around the clock foi incluída na trilha sonora do filme Sementes da violência
(1955), de Richard Brooks, que retratava conflitos de uma juventude que buscava seu espaço
na sociedade. Foi exibido justamente quando se lamentava a morte trágica do maior ídolo da
juventude, James Dean. A estreia no Brasil aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, em
outubro de 1955. O frisson experimentado pelos jovens com o filme conduziu à incontrolável
desordem quando Ao balanço das horas entrou em cartaz no ano seguinte, primeiro em São
Paulo, e proibido para menores de 18 anos. Por isso, jovens chegaram a depredar salas de
exibição, pulando nas poltronas e rasgando cortinas. A edição de 2 de outubro de 1956 do
jornal Folha da Noite publicava: ”É essa música que, dançada pelos intérpretes do filme, causa
conflitos no seio de jovens mal formados pela educação modernizada, dando assunto aos
estudiosos de problemas psicológicos”. Jânio Quadros, então governador de São Paulo,
ordenou ao Secretário de Segurança que a polícia agisse e detivesse sumariamente,
colocando em carro de preso, os que promovessem cenas semelhantes”. Ver:
(www.caleidoscopio.art.br/cultural/musica/cinema/historiadorocknocinema01.html). Para evitar
incidentes semelhantes, o chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Rio de
Janeiro convidou para assistir ao filme, na cabine da Warner, o chefe de polícia, o ministro da
Educação, o juiz de menores, críticos de cinema e escritores, para constatar que o “filme era
inofensivo e que o rock’n’roll não tinha nada de enlouquecedor ou de mórbido”, e solicitou
policiamento especial para conter os ânimos dos jovens, proibindo a película para menores de
14 anos, “em virtude de nele não ter observado detalhes que o levassem a limitar mais” (O
Globo, 4 jan. 1957). O filme, lançado em DVD em 1994, recebeu classificação indicativa livre.
9
Folha da Noite, edição de de fevereiro de 1957. Jornal fundado em 19 de fevereiro de
1921, marco da história do grupo Folha.
32
da região. Nos princípios da década de 1960, grupos ingleses como The
Beatles, The Rolling Stones e The Who ampliaram suas fronteiras estilísticas e
criaram o rock, categoria musical mais diversificada, feito por e para jovens.
Mais tarde, entre 1965 e 1970, na região de Bay Area, em San Francisco,
várias bandas de rock e folk-rock floresceram, apoiadas e inspiradas na
crescente comunidade hippie
10
da contracultura, como Jefferson Airplane,
Credence Clearwater Revival e Santana. Temas fundamentais para o
movimento original do rock foram de amor, de drogas alucinógenas e de
protesto. Destacaram-se nesse movimento cantores e compositores como Joan
10
Para Friedlander, professor de História do Rock, na Universidade do Oregon, o termo hippie
foi cunhado pelos beats (beat, que significa beatitude), intelectuais da contracultura boêmia e
artística estadunidense dos anos 1950. Em seus cafés culturais da Columbus Avenue, em San
Francisco, eles classificaram seus companheiros dos anos 1960 como apenas um pequeno hip
(do hipster), daí o termo hippie. Os beats procuravam criar uma alternativa para o estilo de vida
conservador sob a Guerra Fria; buscavam respostas no existencialismo e nas filosofias do
Oriente; preconizavam a recusa de integração social, em benefício de uma existência
fundamentada na divagação e na devoção à arte. Apreciadores do jazz e da música folk
estadunidense, vestiam-se de forma displicente, sapatos sem meias, camisas desabotoadas
sem camisetas por baixo, cabelos em desalinho, portanto recusando os cânones de elegância
clássica e preferindo a descontração. Adotaram uma filosofia sexual sem preconceitos,
expandindo a consciência através do uso de drogas psicoativas. Exerceram grande influência
no nascente movimento hippie. Cf. FRIEDLANDER, 2002. p. 270. Dan Fletcher, repórter da
Time, no artigo Hipsters (29/07/2009), defendeu que a origem do termo hippie não é precisa,
pois, para uns, é derivado de hop, gíria para ópio, e, para outros, de hipi, que significa “abrir os
olhos de outra pessoa” em parte da África. Gradualmente transformou-se em hipster, para
designar jovens brancos da classe média, adeptos do estilo de vida dos cantores negros do
jazz dos anos 1930 e 1940. Após II Guerra Mundial, escritores beats, como Jack Kerouac e
Allen Ginsberg, este último inspirador do flower power, que aderiram ao movimento, foram
considerados hipsters “de origem”, mas foi Norman Mailer que definiu o movimento, em ensaio
intitulado The White Negro: superficial reflections on the hipster, no qual hipsters eram espécie
de existencialistas estadunidenses, com vida cercada de morte aniquilada pela guerra
nuclear ou sufocada pelo conformismo social e escolhendo fugir da realidade on the road e
alucinógenos. A geração seguinte, chamada por diminutivo etimológico hippies, tamm
mergulhou nos medos a respeito da Guerra Fria, abraçando a comunidade em detrimento do
individual. Ver: www.time.com/time/arts/article/0,8599,1913220,00.html
33
Baez e Bob Dylan, este guru dos
hippies, porta-voz da Nova Esquerda
estadunidense
11
e, possivelmente, o
primeiro a usar camiseta com frases
de protesto. Durante essa época, o
uso das drogas pelos membros da
comunidade alternativa, incluindo
seus músicos, “era regra e não
exceção” (FRIEDLANDER, 2002, p.
368), em busca da iluminação e
como forma de fugir do ambiente
opressivo da sociedade, pois
acreditavam que elas aumentavam a
qualidade de vida e criatividade
artística das pessoas.
Mesmo os Beatles, de
início bem vestidos mods (ilustração 04),
12
com terninhos estilo estudante,
camisa branca e gravata fina, cabelos cortados à tigela, como menininhos bem-
comportados, asseados e sorridentes de Eton College procuraram iluminação
interior, mergulharam-se nas drogas e foram parar na Índia, nomeando seu
11
A Nova Esquerda despontou no início dos anos 1960 com suas ideias e publicações,
diferenciando-se dos movimentos de esquerda anteriores (estes mais orientados para um
ativismo trabalhista), desvelando mecanismos e sentido de fenômenos como a dominação, a
repressão ou a alienação, e as possibilidades de transformação social radical das complexas
sociedades industriais, com ênfase na busca da liberdade e do prazer, chamando os jovens a
rejeitarem as crenças capitalistas e a paranoia anticomunista da Guerra Fria. Seus ideais
floresceram, principalmente, nos movimentos dos estudantes e dos negros, promovendo
passeatas contra a Guerra do Vietnã, lutando pelos direitos estudantis nas universidades e por
liberdade maior na vida cotidiana. O principal grupo era o Students for a Democratic Society
(SDS), fundado em 1962, tendo como ponto focal da crítica a própria universidade como
instituição e, desde 1965, quando a participação estadunidense aumentou na Guerra do
Vietnã, esse movimento concentrou-se na oposição à guerra. Cf. PEREIRA, 1988.
12
Mods (de modernists) foi um movimento de jovens surgido na Inglaterra no início dos anos
1960. Embora vindos da classe média baixa e constituídos por trabalhadores de empregos
terciários, os mods apresentavam-se como ultrarrefinados, ostentando um estilo clean: chiques
e sutis, assim se classificavam. Fãs do rhythm’n’blues e depois do rock, dedicavam-se ao lazer,
em atitude de negação ao trabalho. O desejo de ascensão social era manifestado por meio do
vestuário, rejeitando roupas inglesas, que julgavam sem estilo, mas sapatos eram ingleses da
prestigiada marca Clark, e com parkas (blusões soltos, mangas raglã, com capuz), camisas
brancas, coletes, calças de casimira e cabelos curtos com topete à moda do príncipe Danilo,
este jogador de futebol brasileiro dos anos 1940, do América do Rio e depois do Vasco;
frequentavam coffee-shops ao invés de pubs proletários e andavam de vespas italianas para
se dirigirem às praias ao sul da Inglaterra, aproveitando festas que duravam o fim de semana
inteiro. Cf. REMAURY, 1994, p. 395 e 397.
Ilustração 04. Beatles, s.d.
© Tim Ridley/Memory Lane
34
guru o propagador da meditação transcendental, Maharashi Mahesh, em 1967,
e adotaram indumentária indiana, com lenços e inúmeros colares, um pouco
paquistanês, no estilo nehru suit, um pouco mexicano, com decoração étnica e
poncho, conforme a ilustração 05, ostentando cabelos mais longos e
desgrenhados, instantaneamente identificados como hippies pela mídia, “que
assim classificavam todos os cabeludos” (SEELING, 2000, p. 343).
Ilustração 05. Beatles usando roupas no estilo hippie, c. 1967.
Fonte: The Keystone Collection
Os componentes da banda Rolling Stones, que passavam uma imagem de
rebeldia agressiva, alucinada, provocadora, em atitude muitas vezes
desafiadora, com camisas abertas em posição de enfrentamento, começasm
apresentando-se em vestuários semelhantes aos Beatles, mas logo assumiram
um visual mais agressivo, porém eram muitas vezes românticos na escolha das
roupas. Vestiam calças de veludo, camisa estampada, lenços dândis e gibão
florido com basque à moda do século 16 (ilustração 06), mas foram
protagonistas de uma série de processos por uso de drogas, alguns anulados e
outros convertidos em liberdade condicional. Foi a primeira vez que o
envolvimento de drogas e astros do rock era divulgado de forma tão aberta e
com tanto alarde pela imprensa internacional, que os transformou em bad boys.
35
Ilustração 06. Rolling Stones, fim dos anos 60.
Fonte: Camera Press
Os grandes acontecimentos musicais da contracultura,
principalmente a partir de meados dos anos 1960, foram os festivais,
happenings musicais que reuniram muitos músicos e público gigantesco.
Dentre eles, o mais sugestivo foi o de Woodstock, em 1969, cujos lemas “É
proibido proibir” e “Paz e amor” foram experimentados por cerca de meio
milhão de pessoas em um sentido de urgência diante do momento presente em
toda sua plenitude, sob três dias de muita chuva e lama. A apaixonante e
violenta versão do hino nacional americano executada por Jimi Hendrix, e a voz
rouca e intensa de Janis Joplin, que mais parecia miado de uma gata em cio
cantando Summertime, davam expressão ao estado de espírito e à excitação
que marcaram a vida dos jovens da década.
36
Mas foram os hippies que exerceram papel absolutamente
fundamental na contracultura, com seu mundo psicodélico, exibindo longos
cabelos e roupas coloridas (ilustração 07); batas e saias indianas em algodão;
peças compradas em “mercado de pulgas” ou “brechó” (como é conhecido no
Brasil a loja que comercializa roupas usadas); bordados manuais, crochês,
estampas tie-dye (método milenar asiático de tingimento artesanal, em que se
amarra porções do tecido com barbantes antes de tingir a peça, obtendo assim
desenhos diferenciados); colares de miçangas e contas, lenços e óculos de
aros redondos, e não mais
quadrados e grossos dos
anos 1950, e sandálias
rasas de tiras.
Pregando o
flower power, homens,
mulheres e crianças
adornaram-se com a
margarida, flor símbolo do
movimento, vivendo não
raro em tendas como os
índios. Idearam protestos
com caráter de não-
violência, empreendendo,
junto com negros e
estudantes que
representavam o início da
Nova Esquerda, grandes
marchas pacifistas contra a
Guerra do Vietnã ou pelos direitos do cidadão, empunhando slogans bem-
humorados como “Paz e amor”, “Faça amor, não faça a guerra”, e, durante
suas manifestações, distribuíam flores para todos, uma grande inovação nas
formas de luta política.
Os hippies, que também defendiam o uso de drogas para a
alteração de estados de consciência e uma vida mais livre, na qual a
sexualidade e os instintos individuais não eram reprimidos pela pesada moral
Ilustração 07. Membros de comunidade hippie, 1969.
© John Olson
37
americana, tinham predileção por materiais naturais e uma aversão por
plásticos e tecidos feitos com fibras sintéticas como o poliéster, o popular
tergal, comercializado pela divisão têxtil da Rhodia, a Rhodiaceta francesa, a
partir de 1953 e introduzida no Brasil em 1961 (BONADIO, 2005, p. 41, 46).
Cultuavam alimentos não industrializados, colocando em voga
comida vegetariana e macrobiótica. Não foram muitos que se envolveram
plenamente com essa vida, mas várias dessas práticas sociais foram
suavizadas e adotadas por jovens que começaram a se vestir, falar e agir de
forma despojada na prática
habitual, experimentar drogas
e assumir atitude mais liberal
em relação à sexualidade.
Dessa forma, o movimento de
contracultura concretizou-se
através de muitas
manifestações surgidas em
diferentes campos, nas artes
com destaque para a música;
na organização social, com
ênfase no movimento hippie à
vida comunitária, na cidade
ou no campo; na atuação
política, especialmente com
novo estilo de manifestação e
intervenção dos hippies e da
Nova Esquerda, como se viu
na prática do movimento estudantil em Paris em maio de 1968 (ilustração 08).
Na capital francesa, os jovens enfrentaram a intransigência e o cerco policiais,
e, para maior agilidade e praticidade, preferiram trajes confortáveis, blusões e
paletós soltos, alguns poucos de calça jeans e tênis, a maior parte com sapatos
de couro tradicionais, vestuário mais conservador na Europa do que nos
Estados Unidos. E, especificamente nos Estados Unidos, nas inúmeras
manifestações da cultura jovem, os movimentos em favor dos oprimidos ou
excluídos frente ao American way of life, como o gay power, o women’s lib e o
Ilustração 08. Confronto dos estudantes, trabalhadores
e socialistas em Paris, maio de 1968. © Barry Miles
38
black power, o orgulho negro representado pelo cabelo crespo e armado,
coleiras e túnicas africanas. Todos eles foram capazes de espelhar a “revolta e
as aspirações de toda uma juventude rebelde que via, na aliança entre arte,
comportamento e contestação, uma nova possibilidade de expressão e
sustentação de sua identidade” (PEREIRA, 1988, p. 45).
E a moda, que
absorveu todos esses
acontecimentos, tornou-
se mais igualitária,
simplificada e prática. A
roupa unissex foi se
impondo com a rua
13
e,
nas passarelas, os
famosos smokings e
redingotes femininos de
Yves Saint-Laurent, de
1966, e os terninhos de
1967 (ilustração 09),
marcos no mundo
fashion, popularizando
ainda mais o uso social
de calça, também
contribuíram para um
estilo mais andrógino que
se iniciou nesse período.
Portanto, a
grande filosofia do drop out (“cair fora”, em português) do movimento hippie
significava escapar das amarras da sociedade e da cultura ocidentais, ou seja,
“da cidade, retirada para o campo; da família para a vida em comunidade; e do
racionalismo cientificista para os mistérios e descobertas do misticismo e do
psicodelismo das drogas” (PEREIRA, 1988, p. 82). Assim, tanto o misticismo
como as drogas sendo o LSD a mais famosa constituíram-se em espécie
13
Em 1969, Rudi Gernreich declarou que a moda começava nas ruas e suas criações eram a
formalização dos looks vistos ali e reinterpretados por ele. Cf. DE LA HAYE, 1988, p. 125.
I
lustração 09. Yves Saint Laurent. Fonte: IWS Photo
39
de oposição ao racionalismo dominante nas sociedades tecnocráticas, que
conduziam a novas possibilidades de percepção da realidade, do entendimento
da natureza e do corpo, portanto, nova consciência e nova sensibilidade. À luz
desse entendimento, compreende-se o sucesso que as roupas indianas,
incluindo coleções com inspiração oriental do francês Yves Saint-Laurent e do
americano Rudi Gernreich, e as estampas multicoloridas lisérgicas do estilista
italiano Emílio Pucci alcançaram nos anos 1960. A comunhão com a natureza
também fez crescer um estilo chamado campestre, que lembrava trabalhadoras
rurais, em vestidos-camisolas de cintura alta, soltos, de algodão estampado
com flores miúdas e acrescidos de aventais ou construídos com retalhos de
tecidos – patchwork –, moda quase sempre associada à estilista britânica
Laura Ashley.
Outros acontecimentos marcantes no panorama internacional, como
a própria Guerra do Vietnã e a resistência dos vietcongues à agressão bélica
americana, a Revolução Cultural chinesa, e a guerrilha de Che nas selvas
bolivianas, colocam na ordem do dia Ho Chi Min, Mao Tsé Tung e Che
Guevara, que foram replicados por artistas pop como Andy Warhol.
Especialmente a imagem de Che foi depois silkada, no início dos anos 70, em
camisetas. Aqui no Brasil, muitos estudantes uspianos, no final dos anos 1960
e início dos 1970, adotaram o visual Che, cabelos longos, barba e bigode;
usaram ponchos, calças jeans da marca Lee, compradas nas lojas da Galeria
Pagé; sandálias franciscanas e, fazendo o sinal de V com as mãos, ficavam
sentados em roda nos gramados da Cidade Universitária. Logo esses
estudantes foram apelidados de “bicho grilo”. Peças em vermelho, roupas ou
objetos como livros, ou quaisquer manifestações de preferências ideológicas
nos vestuários foram evitados por muitos jovens durante os Anos de Chumbo,
para não caracterizarem ou exteriorizarem ser adeptos do movimento
comunista e assim escapar da repressão policial, especificamente depois do
Ato Institucional nº 5 (AI-5).
Parte da Guerra Fria, no imediatismo pela superioridade, Estados
Unidos e União Soviética lançaram-se à corrida espacial, e essa exploração
interplanetária foi um grande impulso para impressionantes avanços científicos
e tecnológicos, além do desenvolvimento de inúmeros “tecidos inteligentes”,
que foram incorporados ao cotidiano das pessoas ao longo dos anos.
40
Destacam-se o Nomex e o Kevlar, ambos da Dupont, que, desde então,
tiveram aplicações industriais e em vestuários, especificamente nos uniformes
militares, de trabalho e nas práticas esportivas.
14
Outros tecidos e materiais
artificiais, como o nailon e o PVC, foram aperfeiçoados, permitindo que as
roupas envolvessem o corpo sem serem demasiado justas, e estilistas
puderam usá-los conforme o volume ou a geometria desejados, criando, assim,
diferentes silhuetas.
Além disso, bastante
divulgado pela mídia desde o
lançamento em 1957 da nave
Sputnik II, tripulada pela cadela
Laika, até o primeiro vôo espacial
tripulado por um astronauta, o russo
Yuri Gagárin (1961); e Neil
Armstrong, Edward “Buzz” Aldrin e
Michael Collins, os três astronautas
americanos que pisaram pela
primeira vez no solo lunar em 1969,
o fato foi exaustivamente
aproveitado em seriados de TV
como “Perdidos no Espaço” e
“Jornada nas Estrelas”, ou no
cinema em “2001: Uma Odisséia no
Espaço”, no qual os protagonistas usaram camisetas de manga longa e calças
justas ao corpo, possivelmente de helanca, nome fantasia para a malha de
14
Em 1960 iniciou-se a comercialização do Nomex, fibra resistente ao calor e às chamas, que
não derrete e não entra em combustão com o ar. Oferece resistência notável a vários produtos
químicos. Muito usado em macacões de bombeiros, pilotos automobilísticos, uniformes
militares e de trabalhadores industriais, além da aplicação industrial como isolantes. O Kevlar é
uma fibra que combina alta resistência com peso leve, para melhorar a performance de uma
série de produtos industriais e de consumo, inclusive utilizado como componente para pousar
naves espaciais em Marte. A partir de experiências desenvolvidas desde os anos 1960, hoje
o Outlast, criado sob encomenda da NASA, que funciona como regulador térmico. Suas
microcápsulas de parafina causam sensação de frescor quando a temperatura sobe e forma
espécie de camada protetora, quando no frio. Entrou em circulação no final dos anos 1990 e,
entre outras aplicações, é usado para confeccionar meias esportivas, a partir dos fins dos anos
1990. O LZR Pulse, a base do maiô LZR Racer, da Speedo, para nadadores de elite, foi
desenvolvido pelo engenheiro da NASA, Steve Wilkinson. Cf. BRADDOCK, 1998, p. 70 e 139.
Ilustração 10. Neil Armstrong em solo lunar,
1969. Fonte: NASA
41
poliamida, fibra sintética derivada do petróleo, e o que hoje parece um pijama
colante constituía, para a época, um grito “futurista”.
Na moda, em particular, os estilistas franceses André Courrèges e
Pierre Cardin desenvolveram coleções espaciais, propondo uma “cartela
cósmica”, composta de branco, prata, areia e laranja, cores observadas na
ilustração 10, e criaram macacões, botas, óculos extravagantes e chapéus-
capacete inspirados principalmente nas fotografias como estas difundidas pela
mídia.
Courrèges apresentou, para o inverno de 1968 (ilustração 11),
conjunto em branco quase brilhante, bolero amplo acentuadamente geométrico
com zíper, calça que chamou de hipster, com palas em bolsos aparentemente
falsos, luvas brancas de cano curto conhecidas como shorties; e “óculos
eclipse” brancos com fendas para os olhos, criados em 1964, compondo a
produção.
A cenografia ao fundo sugere marcha de inúmeros extraterrestres,
como fantoches, destacando a
modelo que caminha decidida
na direção perpendicular ao
vértice do V aberto que se
forma atrás dela, com punhos
cerrados e apoiados nos
quadris, posição que denota
poder e dominação, muito
apreciada em paradas
estratégicas nas passarelas
pelas modelos a hoje e
outrora pelo ditador Benito
Mussolini.
A agitação que
dominava as ruas também
atingiu a moda quando, pela
primeira vez, Yves Saint-
Ilustração 11. Moda espacial, 1968. © Peter Knapp
42
Laurent apresentou sua coleção Dior Alta Costura para o outono-inverno de
1960, inspirada na moda de rua (GASSER, 1993, p. 18), que gerou muita
controvérsia tanto entre o público presente como na imprensa. Na coleção
foram vistos vestidos pretos simples em tricô com golas rulê, jaquetas de couro
reto, de crocodilo, enfeitada com mink,
15
como na ilustração 12, e jaquetas em
couro preto no estilo rocker.
16
A moda apresentada por
ele era simples demais, solta
demais, prática demais. Apesar da
genialidade de ter reconhecido sinais
de mudança antes de todos, Saint-
Laurent foi afastado da maison por
esse passo tão ousado de
rejuvenescimento da moda,
adaptando elementos da cultura
jovem à alta costura, ainda o
digerida por clientes que seguiam os
ditames clássicos da elegância e
não estavam preparadas para
tamanha audácia.
A explosão da indústria da
música e da cultura jovem fizeram
com que Londres se transformasse em importante polo de moda para esse
segmento de consumidores. Programas da televisão britânica como Ready,
15
Animal de pele muito cara, semelhante à doninha.
16
Rockers, também chamados leather boys e greasers, constituíam uma tribo urbana que
surgiu na Inglaterra em meados dos anos 1950. O filme O selvagem, do diretor Laslo Benedek,
de 1953, estrelado pelo ator Marlon Brando, e a chegada do rock’n’roll na Europa com Rock
around the clock, de Bill Harley, sinalizaram o aparecimento dos primeiros rockers, que
pilotavam motocicletas Triumph (como Brando no filme) ou Norton. A tribo floresceu em um
estilo meio cowboy, meio teenager revoltado, usando calça jeans apertada enfiada em botas
pesadas, camiseta branca, blusão de couro Perfecto, quepe, óculos Ray-Ban e muitas vezes o
rosto encoberto por um foulard (lenço), porque na época não se usava capacete. De origem
proletária, os rockers tinham apenas vontade de viver rapidamente e sem opressão. Ficaram
conhecidos e contra eles se levantou uma verdadeira histeria de massa quando, nos verões de
1964 e 1965, nas praias ao sul da Inglaterra, encararam seus inimigos mods, estes da mesma
origem social, mas acusados de terem “traído a classe” por almejarem ascensão social.
Desapareceram no final dos anos 1960 e seu estilo influenciou o dos punks dos anos 1970 e
dos heavy metal kids, os fãs do hard-rock do início dos anos 1980. Cf. REMAURY, 1994, p.
482.
Ilustração 12. Esboço da última coleção para
Dior, inspirada na rua, 1960. Fonte: Acervo YSL
43
Steady, Go e Top of the Pops (HEIMANN, 2007) aproximaram bandas como
The Who, The Rolling Stones e The Animals dos espectadores, que
compraram discos e imitaram seus visuais, nas mesmas butiques em Carnaby
Street e King’s Road, onde essas bandas compravam suas calças muito justas
e eram comercializadas as últimas tendências. Enquanto isso, na Califórnia,
Estados Unidos, o surf bronzeava a pele dos jovens praticantes ou
simpatizantes, que se divertiam nas praias ao som de Beach Boys. Biquínis e
saídas de praia floridas eram a tônica entre as garotas e o filme 007 Contra o
Satânico Dr. No, de 1962, dirigido por Terence Young, com Sean Connery no
papel-título, apresentou Ursula Andress em minúsculo biquíni branco saindo da
água como uma nus, popularizando ainda mais esse traje de banho. Os
rapazes desfilavam usando os populares calções de surf Hang Ten, marca
criada em 1960, em San Diego, e a mais apreciada de todos, acrescidos de
camisas com estampa havaiana.
Foi a primeira vez que a roupa dos jovens, comprada em butiques,
com identidade própria, não se espelhava na dos adultos. Também os vestidos
do período, que as garotas podiam costurar seguindo os moldes anexos em
revistas de moda, dentre elas no Brasil a revista alemã Burda e a nacional
Manequim, tinham corte geometrizado e simples, sem privilegiar muito as
curvas femininas, e eram réplicas dos modelos vendidos em butiques ou
propostos por estilistas no segmento prêt-à-porter. E a saia, com bainha quatro
dedos acima dos joelhos, a famosa minissaia, lançada em 1965 pelo estilista
francês André Courrèges (SEELING, 2000, P. 352) ou pela inglesa Mary Quant
até hoje não se chegou a um consenso em relação à invenção –,
complementada por sapatos ornados de fivela muito usados em calçados
infantis e agora propostos para jovens por Courrèges. Ou Mary Quant, que
criava em tecidos listrados jardineiras e vestidos com mangas curtas,
produzindo uma aparência infantilizada e andrógina, e as próprias modelos que
desfilavam tinham idade bem inferior àquelas da década anterior, que mais
pareciam senhoras da alta sociedade.
44
Com olhos enormes muito delineados,
sombras cintilantes claras e vastos cílios postiços,
lábios rosados, pesando apenas 42 quilos,
distribuídos em 1,73m, e 16 anos de idade, a
inglesa Twiggy (ilustração 13) era o novo padrão
ideal de beleza, de cabelo à la garçonne
(joãozinho no Brasil), com corpo reto sem seios
nem quadris, longas pernas magras, primeira
manequim a se transformar em um ídolo de
massas e preferida de Mary Quant. O corte do
vestido, com lástex no corpinho, cava americana
e saia solta muito curta, meia-calça de nailon
branca e sapato boneca bicolor, criou uma
silhueta de menina, incluindo a pose, com uma
perna à frente em rotação, cabisbaixa, mas
olhando de baixo para cima como uma garotinha
que aprontou e espera um pito.
Outras top models da época eram
todas bem esguias, como a inglesa Penelope
Tree, que aos 17 anos, em 1967, tornou-se
também musa do prestigiado fotógrafo de moda
David Bailey. A também inglesa Jean Shrimpton, camaleoa que encarnava
todos os papéis nas sessões fotográficas. A americana Peggy Moffitt, de
beleza excêntrica, queridinha do estilista americano Rudi Gernreich, inventor
do monoquíni maiô sem forro, até a cintura, suspenso apenas por duas tiras
e que deixava os seios desnudos, de 1964. E a russa Veruschka, esta com
1,85m. Começava a ditadura do corpo magro e, na ânsia de se obter silhueta
filiforme, muitas jovens fizeram regimes radicais.
Em 1960, aos 24 anos, Hiroko Matsumoto tornou-se a top model de
Pierre Cardin, primeira japonesa a ser contratada por uma grande maison de
moda parisiense e, nessa mesma década, Yves Saint-Laurent contratou, pela
primeira vez, uma modelo negra.
Uma das primeiras negras a desfilar foi Donyale Luna, modelo
estadunidense, suntuosa e agressiva, 1,88m de altura, capa da revista Vogue
Ilustração 13. Twiggy, s.d.
Fonte: Camera Press
45
inglesa em 1965. (BAUDOT, 1983, p. 56). Naomi Sims foi considerada a
primeira top model negra estadunidense, capa aos 19 anos do suplemento
Fashion of the Times, do jornal The New York Times, de 1967 e, em 1969,
alcançou fama mundial quando foi capa da revista Life e considerada a modelo
do ano, quando declarou “ser mulher e negra deveria ser considerado um ativo”
(QUICK, 1997, p. 99). Todas elas não eram simplesmente silhuetas delgadas e
impessoais, mas representavam ideais de beleza a se alcançar a qualquer
preço e levavam vida de superestrelas, muito divulgadas pela televisão, esta
cada vez mais presente nas salas de estar, tornando-se celebridades que
muitos ouviam e procuravam imitar.
Nessa década processou-se mudança profunda na forma das
modelos desfilarem nas passarelas. Se nos anos 1950 as manequins
enfatizavam com as mãos detalhes como golas, bolsos ou saias amplas e
exibiam peitos empinados por sutiãs com bojo, vestidos abaixo dos joelhos, em
rodopios elegantes e estudados sobre escarpins de salto agulha e, ao som de
Ray Conniff, deslizavam etéreas e vagarosamente, na década seguinte as
modelos desfilaram em passos largos e rápidos, balançando os corpos como
meninas, calçando sapatos rasos ou com pequenos saltos, dançando ao som
do rock, como se faz até hoje, com pequenas alterações. Aliás, a primeira
discoteca foi inaugurada nos Estados Unidos em 1964, chamada Whisky a Go-
Go, no Sunset Boulevard, Califórnia, frequentada por artistas e jovens
endinheirados. Nela, diversas bandas e cantores se apresentaram ao vivo,
como Jimi Hendrix, Janis Joplin e The Who, e até hoje a casa atrai legião de
freqüentadores. (WHISKY A GO-GO, 2007)
As fotografias de moda também mudaram, conforme retratado no
filme Blow Up (em português, Depois daquele beijo), de 1966, dirigido por
Michelangelo Antonioni, em que o personagem Thomas, inspirado no fotógrafo
de moda David Bailey, submetia as manequins a infinidade de poses sensuais,
de ou deitadas, sempre em movimento. Para Bailey, a câmera correspondia
ao pênis e cada sessão um ato sexual (SEELING, 2000, p. 349). Desde então,
as modelos começaram a posar e a desfilar de acordo com a atitude ou estilo
que a grife e o fotógrafo queriam transmitir, e isso se tornou mais importante do
que a apresentação formal e clara das roupas, cujos ecos pode-se sentir até os
dias de hoje.
46
Novos equipamentos chegaram à indústria têxtil, como as máquinas
circulares, que permitiram produzir meias-calças inteiriças em nailon, sem
costura traseira, ideais para acompanhar minissaias ou minivestidos, evitando
que as ligas das meias
aparecessem, o que não
ocorreu com duas garotas
(ilustração 14) no The 14
Hour Technicolor Dream,
maior e melhor evento
underground inglês,
realizado em 29 de abril
de 1967, em Alexandra
Palace (Londres).
Animadamente
conversando, fumando e
rindo, sentadas, elas
foram flagradas por um
fotógrafo indiscreto. Por
ser um vestido em peça
única e mais rente ao
corpo, ao levantar os
braços ou ao sentar, os
tubinhos eram, muitas
vezes, arregaçados perigosamente, expondo quase toda a perna. Foi o que
aconteceu aqui, em que as extremidades da meias destacaram-se e, em uma
delas, não o suspensório da cinta-liga vermelha como também parte da
anágua ficaram à mostra, exibindo uma imagem bastante desleixada,
negligente. Mas o grupo sinaliza, também, uma mudança no modo de se vestir.
A partir dos anos 1960, para muitas jovens, a elegância o era o
objetivo máximo, não se importando em combinar cores e nem peças. Mais
importante era conjugar diversas peças, de preferência as mais novas
tendências, como a bolsa em crochê artesanal azul-royal que a garota à
esquerda carrega, buscando associações que produzissem resultados
Ilustração 14. Technicolor Dream, Alexandra Palace, 1967.
Fonte: Pictorial Press
47
divertidos, modernos, juvenis. Ou peças vintage,
17
como o casaco de pele da
moça à direita, cujas bordas estão bastante desgastadas, sugerindo talvez que
ele tenha sido retirado do guarda-roupa da avó ou comprado em brechó,
coordenando e redefinindo uma antiga peça. As unhas não estão esmaltadas,
mas os cabelos desarrumados podem ser consequência da noite dançante. O
rapaz ao fundo está sentado quase de cócoras, de paletó com inspiração
militar escuro, possivelmente com camiseta branca sob foulard estampado,
calça justa enfiada em botas de camurça marrom-café de cano médio, visual
bem distante daqueles dos mais velhos.
Conforme declarou Uschi Obermaier, tudo era novo,
experimentavam tudo que era novo, inclusive em relação aos penteados. As
garotas que iniciaram a cada com cabelos curtos, às vezes mostrando corte
geométrico do cabeleireiro mais conhecido Vidal Sasson em cinco pontas
usado por Mary Quant, depois cortaram à la garçonne, à moda da Twiggy.
Posteriormente mostraram cabelos curtos, desfiados, penteados em largas
mechas e fixados com laquê. Também usaram cabelos longos escorridos
presos com bandanas ou guirlandas de flores, como as hippies. Ao longo da
década investiram em meia ou peruca inteira, que permitiam às mulheres variar
entre penteados curtos, armados ou longos.
A moda ocidental assimilou diversas culturas, moldando um aspecto
multiétnico à moda, que incluía cáftans orientais, batas, saias, calças e lenços
indianos; túnicas com estampas africanas; casacos com gola Mao; blusões de
couro com franjas dos índios estadunidenses ou ponchos latinos.
O espírito que conduzia a juventude desses anos 1960 não
influenciou somente as formas de criação: modificou a própria escolha das
peças. A moda jovem era dominada pela recusa em usar o traje adulto, mas os
jovens descobriram que a moda diferente com a qual sonhavam, reflexo de um
mundo novo, não existia no plano real. Como não encontravam roupas
adequadas às suas necessidades, desviaram-se da moda e buscaram roupas
diferentes, que lhes permitia solidarizar-se com povos menos privilegiados.
18
17
Em inglês colheita, vindima colheita ou apanha de uvas ou de qualquer fruto. Em moda,
significa “colheita” de peças de época, ou seja, resgate de uma peça de época
18
O desaparecimento dos vestuários tradicionais das sociedades fechadas e com nível
econômico débil acentuou-se com a difusão das peças ocidentais. As roupas antigas foram
substituídas por outras que estavam sendo usadas em todos os lugares, fabricadas a partir de
48
Também sofreram influências dos estudantes estadunidenses, que se vestiram
como operários, de calça jeans, produzidas por Levi Strauss, em tecido
encorpado e reforçado com rebites.
A moda exigia lavagem e desgaste evidentes, constelados de
ornamentos personalizados, como aplicações diversas e bordados. Marité e
François Girbaud inventaram a lavagem com rolo, inspirada em um método
japonês, vendendo jeans com aparência de usado. Ele foi usado com camisas
sem gravatas e com blusões de todos os tipos, depois compôs parceria com a
camiseta e freqüentou escolas, festas, greves e passeatas, e o sucesso dessa
peça devia-se a seu conteúdo ideológico: contestador, democrático, sinônimo
de libertação sexual e de emancipação feminina. Foi usado durante o ano
inteiro por todas as classes sociais, de todas as idades e por ambos os sexos,
em todo o mundo. (DESLANDRES, 1988, p. 254-255).
Foi uma década de grandes mudanças, marcada por inovações sem
precedentes, que terminou com gosto amargo da frase de John Lennon, que,
ao falar da dissolução dos Beatles, em 1970, acertava em cheio que o sonho
de um mundo melhor tão desejado pelos sixties tinha acabado.
Apesar de a contracultura ter sido vagarosamente comercializada e
dispersada no final dos anos 1960, ela foi fundamental pelo seu poder de
mobilização, pelo estímulo libertário que colocou em circulação, pelo espaço
concedido a novos atores sociais e pelo fato do mundo tornar-se mais
tolerante, com diversos grupos conquistando direitos importantes e
exteriorizando os sentimentos por meio de vestuários mais práticos,
despojados e sintonizados com a realidade.
Por outro lado, alguns jovens como Roger Waters, na época baixista
da banda Pink Floyd, o tiveram consciência do que foi a contracultura ou o
movimento underground. Waters disse na entrevista concedida em 2008 que
não tinha lembrança alguma do underground: “Quando falam disso, não
imagino o que seja. Lembro que falavam da Escola Livre de Londres. Nunca vi
uma evidência de qualquer ensinamento”. E completa dizendo “tinha era muita
puxação de fumo... (...) Não lembro de nada fundamentalmente revolucionário.
modelos padronizados e mais baratos e o mercado da moda conheceu um campo novo de
expansão. Por outro lado, esses trajes tradicionais ou regionais, que praticamente não haviam
ultrapassado suas fronteiras, foram adotados pelo mundo ocidental, de início pelos jovens que
queriam se solidarizar com esses povos. Cf. BOUCHER, 1983. P. 424
49
Não vi nada daquilo acontecer. Talvez por estar ocupado junto com o resto da
banda fazendo pose, colocando enfeites na minha calça e passando pelas lojas
chiques fingindo que podíamos comprar jaquetas de brocado” (GAMMOND,
2008).
50
Capítulo 2 – Moda em Nova Iorque, Londres e Paris
Nos anos de 1960, geração do baby boom chegava à idade jovem.
Essa juventude inquieta e sonhadora era muito emancipada em relação à das
décadas anteriores e questionava e rejeitava as estruturas rígidas do mundo no
qual vivia. Algumas tentativas foram feitas para se mudar o mundo ou, pelo
menos, para recusá-lo da forma que era. Os hippies também manifestaram
essa recusa renunciando ao conforto da sociedade de consumo e partindo para
uma vida no campo, junto à natureza e em comunidades simples. A moda
refletia tais questionamentos e aspirações profundos. Nesse período, o
consumidor adquiriu importância maior, pois seu poder de decisão e de compra
aumentou significativamente. Segundo John “Hoppy” Hopkins, fotógrafo,
jornalista e ativista político, grande personagem da contracultura londrina, sua
geração experimentou
o luxo de ter o espaço para expressar opiniões diferentes das dos pais. A
juventude sempre foi rebelde, mas quando entra o dinheiro e as coisas melhoram
acima da linha da pobreza, os jovens têm mais chances de fazer o que desejam.
(GAMMOND, 2008).
Foi essa juventude que determinou as grandes tendências de uma
moda decididamente diferente da que reinava a então, ficando mais
democrática, liberada e andrógina
19
. Significava o enfraquecimento da forma de
funcionamento do sistema, que era imposta por designers para o consumidor e,
de certo modo, criou-se um caminho inverso: rapazes e moças que circulavam
pelas ruas tornaram-se fontes de inspiração para esses estilistas.. Desde o
pós-guerra, as transformações profundas observadas na década de 1960
estavam sendo delineadas, mas só se manifestaram em toda a amplitude
19
As mulheres, cada vez mais ativas, exerceram responsabilidades sociais e reivindicaram sua
emancipação: adotaram calças para todas as horas do dia e mulheres de todas as idades e
níveis sociais descobriram o conforto e a comodidade de uma peça que era extremamente
versátil, sem o caráter transgressor. Desde 1965, fabricaram-se na França mais calças do
que saias e, em 1971, foram vendidas três milhões de calças femininas; em contrapartida, a
quantidade de vestidos diminuiu na mesma proporção. Cf. BOUCHER, 1983, p. 424-429
51
depois da reconstituição do mundo ocidental. Os jovens passaram a integrar
uma categoria específica da moda a partir dos anos 1950, que atingiu seu
ápice nos anos 1960 com a “explosão jovem”,
20
a geração oriunda de uma
sociedade em drástica mudança: consumiram uma moda que expressou
atitude e humor particulares, e ambos dentro de suas possibilidades
financeiras. As pesquisas de mercado mostraram que eles, vivendo em um
mundo com maiores facilidades, estavam compartilhando desse excesso, e as
roupas representavam a maior parte de seus gastos, comprando o que queriam
(EWING, 1997, p. 178). Barry Miles, escritor britânico que viveu intensamente a
cultura underground londrina dos anos 1960, confirmou essa assertiva ao dizer:
“Era a primeira vez que os jovens tinham dinheiro. Não dava para comprar
casas ou carros, mas [podiam comprar] discos, livros e principalmente roupas,
além de drogas, e podiam ficar fora de casa até tarde ouvindo música” (In:
GAMMOND, 2008).
Durante muito tempo, a moda era concebida para adultos e os
jovens tinham de adaptá-la ao seu tipo de vida. Para Peter Jenner, produtor
musical e ex-empresário da banda Pink Floyd, os jovens tentavam parecer
adutos da meia-idade nas décadas anteriores e, a partir dos anos 1960, os da
meia-idade queriam parecer jovens (In: GAMMOND, 2008).
As múltiplas criações dos grandes estilistas eram divulgadas com
rapidez, graças ao extraordinário desenvolvimento dos meios de difusão e de
comunicação, principalmente pelas revistas e pela televisão, que invadiram
cada vez mais os lares, mostrando imagens de moda e personalidades
famosas do período vestindo as últimas tendências. Dessa forma, as
informações sobre moda deixaram de ser acessíveis apenas aos privilegiados
e, com a melhora geral do nível de vida para a maioria das classes sociais,
quase todos puderam comprar mais roupas.
20
Em 1965, de 5 a 10% da população mundial tinha menos de 20 anos. Cf. BOUCHER, 1983,
p. 423.
21
Em 1948, a Royal College of Art de Londres inaugurou a famosa Escola de Moda, para as
necessidades dos novos criadores, que precisavam aliar seu senso intuitivo ao conhecimento
prático de produção para o mercado da moda em crescimento. A grade curricular era
abrangente e foi concebida adequando-a às necessidades práticas, como numeração
(tamanho) correta das peças, a quantidade de material necessário e de trabalhos envolvidos na
confecção, porque a maior parte dos fabricantes produzia dentro de uma faixa de preço e os
lucros podiam se esvair por detalhes como um botão extra ou acréscimo de um bolso . Ver
EWING, 1997, p. 178.
52
O desejo de se dedicar à moda dos jovens era um fenômeno
recente. Nos anos 1950 houve um movimento explícito de ruptura em relação à
forma convencional de criação em moda, com o surgimento de escolas de
moda e seu treinamento técnico
21
e elas produziram muitos dos trendsetters
(EWING, 1997, P. 178), aqueles que percebem, de antemão, qual será a
tendência e ditam a moda.
Nos Estados Unidos, nos anos 1940, designers prestigiados do
ready-to-wear (expressão estadunidense correspondente ao prêt-à-porter
francês) eram mais conhecidos do que os criadores da alta costura, uma vez
que suas coleções eram anunciadas e comercializadas em diversos pontos de
venda do país, ao invés de ficarem restritas aos salões e showrooms de seus
criadores. Esse grupo incluía nomes como Nettie Rosenstein, Maurice Rentner,
Trigère,Norman Norell, entre outros. Porém nomes mais inovadores da nova
moda nos Estados Unidos éramos que trabalhavam com vestuários de passeio
e esportivos: Claire McCardell, Tom Bringance (Lord & Taylor), Vera Maxwell,
Clare Potter, Tina Leser e Sydney Wragge. Apesar dos preços relativamente
elevados, suas criações vendiam muito porque eram práticas e criativas
(MILBANK, 1989, p. 132).
Uma das mais significativas foi Claire McCardell, cujas roupas eram
logo assimiladas pelo público, muitas vezes usadas de forma diversa da
concebida.Um bom exemplo é o
vestido chemisier de chambray (tecido
de algodão, armação tela, que se
assemelha a um denim fino), com
bolsos destacáveis em forma de luva,
inicialmente previsto para donas de
casa cuidarem do lar e do jardim, mas
tornou-se tão popular que o modelo
foi copiado para se usar tanto de dia
como de noite, em diferentes tecidos.
Muitos de seus designs,
Ilustração 15. Claire McCardell, 1947
© Louise Dahl-Wolfe
53
incomuns, eram recebidos com entusiasmo pela mídia, como o da ilustração
15: blusa tubular listrada de tricô, sem mangas, com saia godê branca, de
1947, diferente de tudo visto então. Assim que foi divulgado na Harper’s
Bazaar, o suéter imediatamente sumiu das prateleiras. O look, ainda hoje
extremamente atual, foi fotografado em frente à tenda de um circo com
operários em roupas amarrotadas, suadas e sujas, contratando com asseio
quase minimalista da modelo observando o grupo, praticamente de costas.
Podia ser qualquer uma das consumidoras, em pose bem espontânea,
antecipando uma nova maneira de fotografar e de divulgar as roupas. A
fotografia mostrou o frescor, a simplicidade e a liberdade da modelo
diametralmente opostas ao ambiente de trabalho fatigante e fiscalizado dos
homens.
54
Dos primeiros anos da cada de 1960 destacou-se a primeira-
dama estadunidense Jacqueline Kennedy, sempre fotografada com largo
sorriso, olhar gentil e porte elegante. Exercia influência intensa e generalizada
sobre a moda como a nova Gibson girl
22
pois era poderosa, bela, carismática e
e jovem, e seu estilo era prático e fácil
de ser copiado. Jackie Kennedy
combinava espírito despojado com
refinamento (ilustração 16), e o
princípio básico era colocar a sua
personalidade em primeiro plano.
Suas roupas, na condição de
primeira-dama, eram, geralmente,
criações de Oleg Cassini, designer
imposto pela Casa Branca e
considerado conservador. Usava quase
sempre vestidos retos, para o dia ou
para a noite, sem mangas nem cintura
marcada, em cores primárias ou tons
aquarelados, e acompanhados de
casaquinhos ou boleros também soltos,
com botões funcionais e decorativos. O conjunto podia ser substituído por
tailleur.
Usava poucos acessórios: colar, normalmente de rolas, brincos e,
às vezes, broche. Calçava luvas brancas, em comprimentos diversos, e portava
bolsa de mão tipo envelope, forrada e combinando com os sapatos clássicos
de salto médio. Como Jackie, mulheres estadunidenses começaram a
dispensar os chapéus exagerados e incômodos, substituindo-os por faixas de
tecido, lenços, boinas ou por pillboxes resgatados dos anos 1930, pequenos
chapéus em forma circular, baixos, como as caixinhas para remédios antigas.
22
Gison girl era um cartoon
criado
pelo ilustrador estadunidense Charles Dana Gibson. Entre
1890 e 1910, ele satirizava a sociedade com sua imagem da “nova mulher”: bela, competitiva,
esportista e emancipada, porém com silhueta sinuosa e extremamente sensual. A mais perfeita
delas chamava-se Camille Clifford. Sempre em sintonia com a moda, o seu look mais
emblemático era a saia usada com blusa bordada e aplicações de rendas, de gola alta
complementada com gravata enlaçada presa por broche ou em cascata. A camisa feminina
tornou-se roupa exterior antes mesmo da masculina, usada por todas as classes sociais.Ver
em
http://www.fashion-era.com/la_belle_epoque_1890-1914_fashion.htm#The Gibson Girl
Ilustração16. Jackie Kennedy, 1961. Fonte:
Archive Photos
55
O penteado também era imitado: o cabelo enrolado em grandes
bóbis (curtos rolos de plástico para enrolar mechas de cabelos) e escovado
para trás, aumentando o volume, como juba de leão, ressaltando a totalidade
do rosto, pois os seus olhos eram bastante afastados entre si. Sua aparência
era tão descomplicada que exalava juventude. As mulheres saudaram-na como
libertadora, uma vez que as livravam da cintura de vespa dos anos 1950 e das
roupas bem construídas, com detalhes primorosos, mas desconfortáveis. As
mulheres de todas as idades passaram a usar o mesmo tipo de vestido tubinho
e acessórios simples, look bem jovial, que se tornou o esteio do establishment
(MILBANK, 1989, p. 202).
Também no Brasil houve a versão Jackie, na figura da primeira-
dama Maria Tereza Goulart, vestida por Dener Pamplona de Abreu. A revista
popular alemã Burda Moden, muito
apreciada no Brasil, trazia encarte em
alemão e no idioma onde a revista
circulava, com moldes e informações sobre
tipo de tecido, metragens, esquema de
corte e modo de costurar, permitindo a
reprodução de alguns modelos. A revista
trouxe dois modelos no estilo Jackie
(ilustração 17): tubinhos e casaquinhos
soltos, complementados com luvas brancas
e chapéus pillboxes, sobre penteados
armados e semelhantes ao de Jackie.
Ilustração 17. Estilo Jackie, 1966.
Fonte: Revista Burda
56
De um modo geral, na primeira metade da década de 1960,
destacaram-se os vestidos tubinhos, curtos até os joelhos, ou conjunto de
vestido e casaquinho soltos, no estilo Jackie. Para a noite, os vestidos simples
eram inteiramente bordados ou apenas no decote, para dar efeito de colar, ou
complementados com jóias ousadas, incrustadas de pedras, lembrando peitoral
egípcio.
23
Para bolsos privilegiados, os vestidos longos de gala, em meados
dos anos 1960, eram feitos com tecidos suntuosos e apresentavam aviamentos
ricos, por exemplo, contas, plumas e
aplicações, como no vestido em gazar de
seda pura amarela (ilustração 18), com
aplicação em relevo de flores brancas de
renda, corpinho em faixas sobrepostas,
como xales, mas com as pontas voltadas
para frente. A maquiagem incluiu cílios
postiços, sombras, muito delineador e
rímel para os olhos. O penteado alto, com
cabelo desfiado e muito armado, não
apresentava um fio fora do lugar, uma
verdadeira “bonequinha de luxo”, como no
filme de Blake Edwards de 1961.
As saias mais curtas podiam
ser vistas em circulação por volta de 1960.
Os joelhos estavam em grande evidência
para trajes de passeio. Em 1961, Arnold
Scaasi, antes criador de ready-to-wear e,
a partir de 1962, de alta costura,
apresentou vestido de coquetel (vestido
social para tarde e noite, formal, mas não longo) tomara-que-caia, saia balão
franzida, estampada de pois (de petit pois, ervilha, desenho de círculos
preenchidos ou não) grandes, que mostrava os joelhos (ilustração 19) e
23
Possivelmente a moda dos colarinhos e decotes adornados tenha sido influenciada pelo
filme Cleópatra, dirigido por Joseph L. Mankiewicz, um dos filmes mais caros de todos os
tempos e que levou quase à falência 20th Century Fox, cujo orçamento inicial de 2 milhões
transformou-se em 44 milhões de dólares. Começou a ser filmado em 1962 e Irene Sharaff
levou o Oscar de melhor figurino em 1963.Cf. McCONATHY, 1976, p. 253, 254. André
Courrèges inspirou-se no Egito para desenvolver coleções em 1965 e em 1969.
Ilustração
18. Scaasi, 1965
Fonte: Vogue
57
revistas estadunidenses de moda, como a Seventeen e a Mademoiselle,
dirigidas a adolescentes, exibiam também
saias mais curtas (MILBANK, 1989, p. 204).
Parte de sua última coleção, Claire
McCardell criou, em 1958, vestido solto de
verão acima dos joelhos, em crepe de rayon
(Ilustração 20),
24
com cava americana
profunda formando triângulo à frente. Foi nos
anos 1960 que o comprimento da saia
deixou de ser apenas a altura de bainha,
mas importante componente de uma nova
silhueta, caracterizada pelo caimento reto,
sem destaque para os seios, cintura ou
quadris, incorporado em todas as tendências a partir da metade da década,
McCardell, sem dúvida, pode ser considerada visionária e precursora dessa
tendência.
5
Rayon é um tecido conhecido como seda artificial, feito de fibra de celulose; e crepe, por usar
fibra muito torcida, dá um aspecto ondulado.
Ilustração 19. Scaasi, 1961
Ilustração 20. Claire McCordell, 1958
58
Em 1964 foi proposta a
transparência no vestuário feminino e
Rudi Gernreich foi um dos primeiros
estilistas estadunidenses a apresentá-la,
em que sua modelo e musa, Peggy
Moffitt, apareceu em conjunto de ciré
25
preto, blusa transparente em chiffon
26
,
inspirado, possivelmente, nos rockers,
que eram notícia em toda a mídia da
época e, pela violência com que
enfrentaram os mods nas praias ao sul da
Inglaterra, foram considerados perigosos
e marginais.
P
eggy encarnou a atitude desses greasers
ao adotar a pose muito comum entre eles:
mão no cós da calça, quebrando os
quadris, olhar fixo e desafiador, cabelos
puxados para trás untados de brilhantina,
em estilo totalmente andrógino (ilustração
21) . É a mesma atitude de Marlon Brando
no filme “O selvagem” (1953), ou dos
rockers retratados em “Quadrophenia”
(1979), de Franc Roddam, que mostrou o
confronto entre as tribos rivais mods e
rockers no verão de 1964.
6
Ciré é um tecido de seda natural ou artificial, em ponto de cetim ou tafetá, com acabamento
brilhante obtido com cera especial.
7
Chiffon é um tecido de seda ou de fibra sintética, com fios finos, transparentes, com um pouco
de rugosidade.
© Louise Dahl-Wolf
Ilustração 21. Rudi Gernreich, 1964.
© William Claxton
59
Rudi abalou a opinião
pública mundial no mesmo ano,
quando concebeu maiô topless
(ilustração 22), aqui conhecido
como monoquíni, que 3 mil
clientes estadunidenses
compraram (MILBANK, 1989, p.
202). Esse maiô, símbolo de
liberação sexual, do corpo e do
movimento, e que vinha até pouco
acima da cintura, suspenso por
duas finas alças que o cobriam
os seios, causou enorme
escândalo e foi um dos primeiros
a dispensar o forro, uma inovação
para a época, moldando-se
melhor ao corpo. A modelo, mais
sensual na pose do que na visão do seio
desnudo, reforçou essa ideia, cerrando
um pouco as pálpebras e projetando
levemente a boca. O corpo molhado e muito branco, em contraste com o preto
do maiô e do cenário, destacou uma Vênus emancipada. Rudi apresentou, em
1965, o primeiro sutiã que cobria os seios confortavelmente, sem bojo de
Ilustração 22. Monoquini, 1964.
© William Claxton
Ilustração 23. No Bra, 1965
© Richard Avedon/Exquisite Form
60
espuma, conhecido como no bra (literalmente, sem sutiã), criando aspecto
mais natural, como mostra a ilustração 22. Interessante observar que,
atualmente, os sutiãs tornaram a apresentar bojo de espuma, suspendendo,
aumentando e valorizando os seios e o colo. A partir dos anos 60, já se
percebia na fotografia de moda poses e atitudes mais sensuais, colocando a
sexualidade em primeiro plano, em detrimento das roupas. Como
conseqüência da emancipação feminina e de maior exposição do corpo, os
editoriais e as propagandas “exploraram” a imagem mais sensual da mulher,
vendendo-a como um produto a ser consumido. A partir de então, surgiram
discussões sobre a mulher-objeto que se estende até os dias de hoje.
O uso generalizado do biquíni, a popularização dos bronzeadores (e
não protetores solares) e a prática de esportes ao ar livre tornaram a pele
bronzeada sinônimo de corpo saudável. Em consequência houve o declínio dos
chapéus, que tinham o papel indiscutível de manter a tez mais clara e protegê-
la, além de embelezar e, em tempos antigos, preservar a identidade de quem o
usava. Desse modo, o cabelo tornou-se quase um acessório e foi desfiado,
penteado em grossas mechas e imobilizado com laquê, quando curto. Ou
usado como uma juba, também mantido com laquê, se longo. Em ambos os
casos, podiam complementar o penteado a meia-peruca ou até a peruca
inteira, como faziam as antigas egípcias.
61
Muito apreciado pelas
adolescentes era o baby look, no exterior
conhecido como baby-doll.
27
Vestido de
cintura alta com saia muito curta, mangas
curtas, às vezes bufantes, gola
Claudine,
28
muitos laços e babados, ou
tecidos floridos, complementado com
meia-calça rendada e sapato boneca,
como os calçados infantis, de salto baixo
e alcinha no peito do pé. Ver na ilustração
24, na qual a modelo aparece vestindo
esse tipo de roupa, geralmente vendida
em boutiques. Quanto à maquiagem,
usavam-se muito delineador e cílios
postiços nos olhos, bochechas e lábios
rosados. Esse visual infantil refletiu a
vontade de muitas jovens de serem
eternamente crianças, curtindo a vida em
um mundo de paz e amor, sem
responsabilidades dos adultos e de uma forma a não se parecer com eles,
portanto não se inserir no mundo deles.
As butiques vendiam as roupas da moda do jeito que as garotas
queriam: em cores vibrantes, influenciadas pela optical e popular art desde os
princípios de 1960. O próprio Andy Warhol criou os conjuntos Fragile e Brillo
(ilustrações 25 e 26), em 1962, de modelagem simples. Confeccionavam-se
vestidos baratos de 15 dólares (MILBANK, 1989, p. 204) com diversas
estampas descompromissadas, caleidoscópicas e psicodélicas (ilustração 27).
Os acessórios incluíam cintos de corrente, relógios de pulso com pulseira larga
e visor divertido, óculos “da vovó” com aro redondo de metal (imortalizado por
27
Baby-doll é uma roupa para dormir, usada por jovens, sem mangas, espécie de túnica de
cintura alta muito curta até logo abaixo dos quadris, geralmente acompanhada por calcinha do
mesmo tecido. Foi inventada pela figurinista Nancy Melcher para o filme Baby Doll”, dirigido
por Elia Kazan em 1956, daí o nome. Foi estrelado por Carol Baker, uma das símbolos sexuais
do período, e o baby-doll fez sucesso estrondoso
28
Usada em roupas infantis, é uma gola chata arredondada.
Ilustração 24. Baby Look.
Fonte: Revista Elle França
62
Ilustrações 25 e 26. Brillo e Fragile, 1962.
© Ken Heyman e Fonte: Coleção Gary e Sarah Legon, Los Angeles
John Lennon) e bijuterias feitas de plástico, acrílico e toda sorte de materiais
como contas, miçangas e sementes de frutos (Ilustração 28).
Ilustração 27. Estampas, 1960
Ilustração 28. Verushka por Giorgio di
Sant’Angelo, 1968
63
As mulheres usavam
meias-calças rendadas ou
coloridas para combinar com o
vestido e sapatos de salto baixo
em couro colorido e vivo com
fitas ou fivelas no peito do pé,
similiares àqueles usados
atualmente, como na ilustração
29, ou botas, de cano curto ou
longo, feitas de diversos
materiais. Muitas dessas garotas
partiam o cabelo longo ao meio,
passando-o a ferro para atingir o
efeito liso desejado, como os
cabelos escorridos das hippies.
Nos tempos atuais, a moda tem
exigido cabelos lisos, e as
mulheres têm alisado com o
recurso da escova progressiva (utilização de produto químico agressivo, como
o formol) e chapinha (alisador munido de placas que são aquecidas e deixam
as mechas lisas).
As butiques dos anos 1960 eram verdadeiros laboratórios de
criação, e as revistas de moda desempenharam importante papel na difusão
desse trabalho. Se as revistas até então sinalizavam o que era apropriado
vestir, interpretando as propostas da alta costura, e menos do ready-to-wear,
ainda incipiente, a partir dos anos 1960 houve uma mudança para despertar
nas mulheres a necessidade de estarem atualizadas, de perder suas inibições
e experimentar. Nesse sentido, praticamente todas dedicavam suas páginas à
cobertura das butiques.
Sob o comando de Diana Vreeland, a Vogue América assemelhava-
se a uma butique. Produtores de moda e designers, como Giorgio di
Sant’Angelo, criavam maquiagens e pinturas corporais especiais, penteados,
roupas e acessórios, normalmente apenas para uma sessão de fotos
(Ilustração 30). Ou seja, as roupas não eram comercializadas, mas espelhavam
Ilustração 29. Rudi Gernreich, 1967.
© Willian Claxton
64
o espírito e o aspecto faça-você-
mesmo das butiques e inspiravam
os designers da alta costura e do
prêt-à-porter (MILBANK, 1989, p.
206).
Em butiques como
Paraphernalia, Tiger Morse’s Teeny
Weeny, Serendipity, Splendiferous
e Abracadabra, as novas modas
podiam aparecer a qualquer hora.
Por serem, na maioria, de
produções caseiras de designers
iniciantes e artistas, e com o
envolvimento de poucos
profissionais, havia maior
variedade de modelos, mas em pequenas quantidades, com alta rotatividade.
Portanto, tinham mais agilidade do que as maisons de prêt-à-porter, que não
conseguiam acompanhar o ritmo. As lojas de departamentos esforçavam-se
para deixar suas próprias butiques mais atualizadas. A Bergdorf Goodman
iniciou seu departamento Bigi, direcionado aos jovens, e deu a seu estilista,
Halston, a sua própria butique para a jovem consumidora de alta costura
(MILBANK, 1989, p. 204). Com equipe de vendas jovem e música ambiente,
geralmente rock, eram encontradas nas butiques calças para homens feitos de
tiras de plástico, saias de notas falsas de dólar, vestidos de plástico, macacões
de PVC e até minissaias de papel. Também vendiam camisetas caneladas
(malhas em ponto sanfonado, que se moldam ao corpo), vestidos tie-dye,
roupas feitas de couro e camurça costuradas artesanalmente e com franjas,
calças saint-tropez e boca de sino, descritas, pela primeira vez, em 1965 como
patas de elefante, de pernas justas nas coxas e que se abriam a partir dos
joelhos. No fim da década, esse look caiu no gosto popular, em jeans. Eram
vendidos também esmaltes com glitter, maquiagem corporal, adesivos plásticos
para o rosto e pernas, bem como objetos de decoração como posters
psicodélicos, flores artificiais etc.
Ilustração 30. Twiggy para Vogue America, 1967.
© Richard Avedon
65
Essas butiques eram frequentadas por adolescentes e por socialites
atraídas pelo throwaway chic: comprar um objeto de desejo por 20 dólares e
dispensá-lo quando um novo objeto de desejo for eleito (MILBANK, 1989, p.
208, 210). As butiques eram muito influentes, porque permitiam às clientes
montar seus looks individuais e ecléticos. Essas combinações, muitas vezes
inusitadas e divertidas, despertavam o interesse das lojas da Seventh Avenue.
A ideia de que tudo combina com
tudo (ou nada combina com nada
mas é moderno, é fashion) invadiu
a moda, e as pessoas tiveram
muito mais liberdade de escolha.
Em 1968, os
“descolados” descobriram o
mercado de pulgas (Ilustração 31),
que se multiplicou nos Estados
Unidos e países europeus, como o
de Windson Great Park, em Londres. Também frequentaram os outlets da
Marinha e do Exército, e empórios étnicos para fazer suas compras, como
faziam há muito os hippies, que não dispunham de muito dinheiro.
Nos brechós, as mulheres
procuravam xales com franjas, blusas rendadas
e vestidos dos anos 1930. Os homens
procuravam jaquetas e paletós antigos,
casacos longos para usar com jeans. As lojas
militares se tornaram fontes de peças em jeans,
que podiam ser personalizadas com bordados,
aplicações e pinturas pop. As lojas étnicas
ofereciam vestidos-camisetas em tie-dye
(Ilustração 32), roupas indianas com
espelhinhos bordados, xales mexicanos com
franjas, colares e brincos do Oriente Médio etc.
(MILBANK, 1989, p. 210).
Em 1969, Gernreich declarou que a alta costura não tinha mais o
mesmo significado, porque o dinheiro, o status e o poder também já não tinham
Ilustração 31. Mercado de Pulgas, 1974.
Fonte: Hulton Picture Library
Ilustração 32. Tye-dye.
Fonte: BBC Hulton Picture Library
66
mais o mesmo significado de antes. “Agora a moda começa nas ruas. O que eu
faço é observar o que os jovens estão combinando por si mesmos. Eu
formalizo essa visão, coloco algo de mim nisso talvez e então vira moda”
(DE
LA HAYE, 1988, p. 125).
Originalmente usados pelos mineiros da Califórnia durante a corrida
do ouro como roupa de trabalho em meados do culo 19, a calça jeans talvez
seja o mais universal tipo de roupa inventado pelo homem, símbolo da rebeldia
e companhia inseparável de diversos movimentos que se sucederam ao longo
do século 20, conseguindo manter-se imbatível como peça-chave do guarda-
roupa. Sobreviveu a todas as oscilações da moda desde os anos 1960, porque
soube adaptar-se a todas as
mudanças ocorridas, mais largas,
mais estreitas, boca de sino ou pata
de elefante, com cintura baixa, alta ou
no lugar, saindo das fábricas para a
rua em 1955 e vestiu a geração dos
anos 1960. Além de resistente e
durável, é a única calça que, mesmo
amarrotada, rasgada ou até suja, está
“tudo bem”, faz parte do estilo do
usuário, que é usada com diversas
lavagens e, no período, desbotada e
gasta. É a calça que ignora fronteiras
geográficas, regimes políticos,
diferenças sociais, sexo, idade e
religião.
Essencialmente democrática e igualitária, a calça jeans foi a grande
responsável pelo visual unissex que se iniciou nessa década. Na ilustração 33,
em Woodstock, muitos jovens apareceram usando a calça jeans, em diversas
cores, em total descontração, cena inimaginável na década anterior.
Se antes as calças femininas, amplamente usadas por jovens
desde os anos 1950, tinham fechamento lateral ou traseiro, foi com essa calça
que o zíper deslocou-se para a frente, tal qual as masculinas. No início dos
anos 1960, o jeans consolidou-se entre jovens, mas ainda foi tido como peça
Ilustração 33. Woodstock, 1969.
Fonte: Levi Strauss & Co. Historical Collection
67
de trabalho e esportiva, mais usada nos fins de semana. A partir da segunda
metade da década, começou a vestir a juventude que se rebelou contra o
establishment, transformando-se em roupa da contracultura, distintivo de uma
nova identidade social e ética, transgredindo o formalismo vigente.
na Inglaterra, a nova geração de jovens dândis, imbuída de uma
mistura de conservadorismo, insolência e excentricidade, inventou o Swinging
London,
29
um estado de rebelião criativa em oposição ao establishment
conservador. Esse universo paralelo tinha sua geografia (Chelsea, Fleet
Street), seus escritores (Osborne, Pinter), sua moda (Mary Quant, Biba), seus
cineastas (Richard Lester, Tony Richardson), seus fotógrafos e modelos (David
Bailey, Joan Shrimpton, Twiggy e Penelope Tree), seu cabeleireiro (Vidal
Sassoon), seus cafés, uma diversidade de butiques e primeiras discotecas. E
havia os príncipes encantados: The Beatles e seu duplo satânico, The Rolling
Stones (BAUDOT, 1983, p. 565).
Uma das figuras marcantes desse período foi a estilista Mary Quant,
que, após freqüentar a Escola de Artes da Universidade de Londres e não
conseguir seu diploma de licenciatura,canalizou seu talento para a moda. O
grande marco foi a abertura de sua
butique, a Bazaar. Para esse
empreendimento, Quant e seu
marido, Alexander Plunket Green,
escolheram um espaço em Chelsea,
bairro tradicionalmente freqüentado
pela boêmia londrina. Lá,
começaram adquirindo peças de
outros estilistas para revenda, mas
logo Quant decidiu produzir suas
próprias peças. Seus primeiros vestidos colleges (ilustração 34), dos finais dos
anos 1950, extremamente joviais, fáceis de usar e de descartar, foram um
sucesso imediato, e desfilar na rua com um desses vestidos tornou-se
sinônimo de pertencer a um grupo em ruptura com as convenções (BAUDOT,
29
Swinging London foi uma expressão cunhada pela jornalista de moda Diana Vreeland,
editora-chefe da Vogue America, que descreveu a efervescência cultural e a mudança de
costumes que assolaram Londres na segunda metade dos anos 1960. Em editorial, Vreeland
definiu Londres como a capital mais vibrante e avant-garde da época.
Ilustração 34. Vestidos college de Mary Quant,
fim anos 1950. Fonte: Acervo Mary Quant
68
1983, p. 565). Foi atribuída a ela a criação do ícone Chelsea girl, símbolo
desse novo movimento na moda (EWING, 1997, p. 179).
No começo da cada de 1960,
as ruas de Londres estavam cheias de
clones de Mary Quant, com cabelo em
corte geométrico com cinco pontas, do
cabeleireiro Vidal Sasson (Ilustração 35),
olhos bem marcados e lábios pálidos,
usando meias-calças coloridas e saias
acima dos joelhos. Essa tendência se
generalizou a partir de 1965 e se tornou
um fenômeno mundial. Censurada pelos
diretores de escola, considerada
indecente, e por Chanel, que a julgou imoral (BAUDOT, 1983, p. 565), foi logo
adotada pelas adolescentes, que enrolaram o cós e diminuíram o comprimento
das saias. Era o último grito de afirmação, ousadia e irreverência das jovens. O
corpo era cada vez mais exposto e elas reivindicaram o direito de vestir o que
queriam. Quant tornou-se praticamente um estilo de vida para suas fiéis
seguidoras. Apesar dos esforços da alta costura para aumentar o comprimento
das saias e das aparições esporádicas de saias midi (metade da panturrilha) e
máxi (na altura dos tornozelos), propostas pelo estilista francês Pierre Cardin
no final dos anos 1960, a maioria das saias ainda estava acima dos joelhos.
Em 1962, Quant abriu o Ginger Group, escritório próprio de venda
no varejo, em parceria com Leon Rapkin. A primeira coleção foi para uma
empresa americana e fez bastante sucesso (BAUDOT, 1983, p.565). Foi seu
mérito desenvolver o London Look, que conquistou o mundo no começo dos
anos 1960. As 28 coleções anuais estavam à venda em mais de 150 lojas na
Grã-Bretanha, 320 pontos de venda nos Estados Unidos e praticamente em
todos os países ocidentais. Era um novo look jovem, vibrante, criativo e
versátil, porque podia ser usado tanto de dia quanto de noite, e comprimento
cada vez mais reduzido.
Em 1966, Quant recebeu a comenda da Ordem do Império Britânico
por seus serviços para a exportação da moda e foi receber a honraria, no
Palácio de Buckingham, de minissaia (EWING, 1997, p. 181). Mais do que uma
Ilustração 35. Mary Quant e Vidal
Sasson, 1964. © Hulton Getty
69
moda nova, Quant procurou elaborar um novo estilo urbano, propondo peças
intercambiáveis (Ilustração 36) e,
“mais do que vestir a juventude,
soube representá-la” (BAUDOT,
1983, p. 565).
Uma das boutiques mais
importantes foi a Biba, criada pela
estilista e ilustradora Barbara
Hulanicki, que em 1964 decidiu
confeccionar suas próprias roupas e
Vendê-las pelo correio, como uma
butique postal (EWING, 1997, p.
186). Extravagantes e baratas, as
peças fizeram tamanho sucesso que
em 1967 Hulanicki abriu uma butique física em Kensington, com um estilo
totalmente diferente das otras da
época. Em 1969 mudou-se para uma
loja nova, localizada na mesma rua,
porém bem maior que a anterior.
(TURNER, 2004, p. 27-34). Unindo o
ambiente sonoro à vastíssima
liberdade de opções, vendia boás
30
de plumas, pelúcias de veludo,
vestidos e conjuntos pop combinando
com acessórios como chapéus,
brincos, bolsas, sapatos e óculos
(ilustração 37), vestidos pré-
rafaelitas, esmaltes pretos, rendas,
compondo um estilo jovem e retro.
31
30
Espécie de estola estreita, longa, usada em torno do pescoço.
31
Roupas atuais, inspiradas em épocas passadas.
Ilustração 36. Moda intercambiável.
Mary Quant, 1963
Ilustração 37. Biba, s.d.
© Sian Irvine/Pari Collection
70
Em 1972 abriu uma grande
loja (ilustração 38), estendendo sua
visão de moda a todos os aspectos da
vida doméstica: lençóis de cetim negro,
luminárias em fibra de vidro, cortinas em
macramê, poltronas em tressê, espelhos
e palmeiras, inspirados no art co, na
art nouveau e no ecletismo vitoriano,
compondo um grande “mercado árabe”,
que se tornou o mais divertido de
Londres. Era um local onde se podia ler
jornais e revistas, encontrar os amigos,
beber chá, flanar e eventualmente
comprar. Todo mundo desfilava na Biba,
que faliu em 1975. Barbara, então, mudou-se para o Brasil, abriu por pouco
tempo uma loja na alameda Franca, 1088, onde hoje funciona o restaurante
Ritz, e continuou colaborando com Cacharel e Fiorucci, entre outros.
(BAUDOT, 1983, p. 566)
Enquanto a moda jovem avançava a passos largos, desde o final
dos anos 1950 a alta moda britânica, com apoio de Board of Trade, lançava
uma série de iniciativas ambiciosas que deu visibilidade à moda britânica,
especialmente no território americano. Em 1960, costureiro britânicos
apresentaram em Paris uma coleção com diversos criadores, na exata semana
dos desfiles franceses, e atraíram a atenção dos 23 maiores compradores
americanos, que voaram para Londres e fizeram encomendas vultosas
(EWING, 1997, p. 189).
Os varejistas de moda também se movimentaram. O primeiro grande
passo para o aumento das exportações foi a criação da London Fashion Week,
duas vezes ao ano, realizada, pela primeira vez, em maio de 1959. Durante a
semana, compradores estrangeiros viram coleções de diversas empresas em
seus showrooms para depois assistir ao Fashion Spectacular, um desfile
combinado, representando o melhor do prêt-à-porter britânico em uma série de
cenas entremeadas por apresentações de música e dança. Foi uma inovação
nos desfiles de moda, com a primeira apresentação assistida por 73
Ilustração 38. Interior da Biba, s.d.
© Tim White
71
compradores internacionais e, algumas edições depois, por mais de 1.300
compradores de 35 países. As exportações decorrentes, que no começo das
ações atingia £300 mil libras anuais, subiu para mais de £5 milhões 30% do
total de exportações da moda britânica na época (EWING, 1997, p. 192).
A primeira apresentação do prêt-à-porter britânico em Paris
aconteceu em abril de 1963 e, em outubro de 1965, foi levada uma coleção
para Nova Iorque, que contou com 20 fabricantes. Foi um sucesso instantâneo,
vista por mais de mil compradores americanos. A nova minissaia foi
apresentada em Nova York, e garotas assim vestidas foram fotografadas na
Times Square, parando o tráfego na Broadway (EWING, 1997, p. 195).
no início dos anos 1960, surgiram novos criadores de moda, que
foram chamados de estilistas: Emmanuelle Kahn, Michèle Rosier, Daniel
Hechter e Cacharel. Alguns desenvolveram coleções para empresas, passando
a ser o foco da indústria do vestuário, e outros montaram suas próprias grifes,
como Jean Muir, que começou como vendedora na Liberty’s, foi designer da
Jaeger, em 1962 desenvolveu a marca Jane and Jane e fundou a marca Jean
Muir em 1966. Vendia para toda a Grã Bretanha, Estados Unidos, Canadá,
Austrália e Europa (EWING, 1997, p. 201-202).
Na França, a moda era a sua base econômica e expressou-se, até o
fim dos anos 1950, por meio de três formas distintas: a alta costura, destinada
a uma elite mundial e rica; a costureira, que adaptava os modelos às
necessidades da clientela burguesa; e a confecção, destinada às massas, que
não seguiam as tendências sazonais. Seguir a moda era uma prática básica
para a francesa média, face à invasão das beldades americanas, às ameaças
de padronização e à obrigação de se integrar ao mundo do trabalho (BAUDOT,
1983, p. 561).
A partir da década de 1960, a alta costura parisiense começou a
perder o vigor, e a exclusividade e a autoridade de Paris estavam
comprometidas. Era proibido reproduzir em revistas os modelos apresentados
nos desfiles em Paris, mas em 1957, Givenchy permitiu que os esboços de seu
72
modelo saco (ilustração 39)
aparecesse na poderosa revista
americana Womens Wear Daily. E, a
partir de 1958, a maioria dos designers
permitiu que desenhos tivessem
publicação imediata. Dior capitulou dois
anos depois.
O fim da alta costura era
sinalizada desde meados dos anos
1960, e a coleção Paris morreu?, de
Pierre Cardin (ilustração 40),
apresentou vestido de noiva casulo
pink, ladeado por rosas, sugerindo uma
urna funerária. O ocaso da alta costura
aconteceu quando Balenciaga, o último
dos costureiros “puros” (aqueles que se dedicaram à alta costura),
aposentou-se em 1968. Portanto, após o New Look, de Christian Dior, que
praticamente determinou a silhueta dos anos 1950, houve avanços maiores
rumo ao prêt-à-porter, a partir de 1956, com estilistas como Jean Dessès, Nina
Ricci, Guy Laroche, Lanvin, Madame Grès,
Jacques Heim, Carven, Jacques Griffe e
Madeleine de Rauch, cujos modelos foram
adaptados por fabricantes como C. Mendés
(BAUDOT, 1983, p. 564). Dessa forma,
conciliava-se a originalidade de uma
criação, o prestígio de uma marca e a
qualidade de fabricação por preços mais
acessíveis. Era o início do prêt-à-porter e
das butiques.
Porém, se a moda ainda ditava
regras rígidas, em Saint Germain de Près,
uma juventude se agitava, mas suas roupas
eram praticamente ignoradas pelos
Ilustração 39. Vestido-saco, 1957.
Fonte: Acervo Givenchy
Ilustração 40. Pierre Cardin, Paris
Morreu?, meados de 1960
Fonte: The Telegraph Color Library
73
editoriais de moda. Apesar de ainda conservadora, com cintura estreita, a
silhueta tendia a um rejuvenescimento: peito menos empinado, forma mais
solta e cabelos curtos. Quanto ao comprimento das saias, Yves Saint-Laurent
tinha mostrado os joelhos das modelos para a maison Dior em 1959
(BAUDOT, 1983, p. 562).
Para difundir essa moda jovem, novas butiques foram implantadas: a
Dorothée bis, de Jacqueline Jacobson; a Laura, de Sonia Rykiel; e a Tilbury, de
Blanche Rochlinem, que se tornaram templos de consumo. De 1960 a 1971,
parte da renda destinada ao vestuário cresceu nos domicílios franceses. A
dependência que a confecção tinha em relação à alta costura foi se diluindo e,
desde então, a moda tornou-se mais igualitária (BAUDOT, 1983, p. 564). Os
jovens, conscientes do seu poder de compra, impuseram seus gostos.
A minissaia, que fez sua aparição no começo dos anos 1960,
mostrou-se, de fato, uma marca exterior de liberdade sexual. Quando, em
meados da década de 1960, a inglesa Mary Quant diminuiu o comprimento da
saia, foi um fenômeno. Porém, elas ainda eram produzidas em baixa escala, o
que limitava sua difusão (DESLANDRES, 1986, p. 256). As tentativas dos
estilistas de renovar a moda, conferindo-lhe juventude e dinamismo,
mostravam-se frutíferas, mas ainda fragmentadas. Foi André Courrèges quem
conseguiu divulgá-la ao mundo e, com Mary Quant, tornou-se o pai da
minissaia. Como assistente do Cristobal Balenciaga, aprendeu os segredos do
corte perfeito, conferindo-lhe uma estrutura arquitetônica e um espírito
totalmente novo, quando abriu sua própria casa em 1963 (DESLANDRES,
1986, p. 256).
Quase sempre seus modelos eram executados em lisa, branca ou
em cores impactantes, com debruns contrastantes e não possuíam nenhuma
pence, mas com recortes estratégicos que conferiam caimento impecável. As
minissaias ou minivestidos eram usados com meias-calças e sapatos boneca
sem salto ou com botas de couro branco de meio cano.
Courrèges apresentou, em 1964, uma coleção inspirada na
conquista espacial, com grande impacto junto à mídia (BAUDOT, 1983, p. 563).
Compôs um verdadeiro espetáculo, misturando música, artistas e público
(DESLANDRES, 1986, p. 258). Era uma coleção bem jovem e inocente, cujas
bainhas das saias estavam acima dos joelhos (cerca de dez centímetros) e os
74
curtos vestidos, impecáveis, sem dobras ou pregas, eram suspensos apenas
nos ombros, complementados por botas de couro de cabrito, de solado baixo e
flexível, e óculos “eclipse”, de plástico com fendas curvas,. Estava lançada a
minissaia.
Nesse mesmo desfile, as calças, com cintura mais baixa, foram
chamadas hipster. Como se pode observar nas ilustrações 41 e 42, todas as
peças eram coordenáveis entre si e, concebidas como uma segunda pele,
deixavam os movimentos totalmente livres, conforme exigia a vida moderna.
Um branco luminoso, pontuado por algumas cores vivas, dominou esta moda,
que demandava um corpo longilíneo, flexível e em forma. Essa concepção
inteiramente nova, sem referências anteriores, era afirmação de sua
modernidade, que operou uma revolução na moda francesa (BAUDOT, 1983,
p. 563).
Ilustração 41 (esq,). Courrèges, 1964. © William Klein
Ilustração 42 (centro e dir.). Courrèges, 1965. © Willy Rizzo
Courrèges determinou o estilo de toda uma década, durante a qual as
mulheres pareciam meninas encantadas, semelhantes à boneca Barbie.32 Foi
o reinado da menina-mulher, e usavam-se cílios postiços, muito delineador e
rímel para ressaltar os olhos e, algumas vezes, sardas falsas. Manequins muito
jovens tornaram-se musas, como Twiggy e Penelope Tree. Na estação
seguinte, em 1965, todos os vestidos encurtaram e as calças estavam
32
Criada pela estadunidense Ruth Handler, esposa de Elliot Handler, fundador da empresa
Mattel, que até hoje comercializa a boneca. Foi lançada em 1959, inspirada na alemã Lili, uma
personagem de história em quadrinhos que oferecia favores sexuais por dinheiro. Fonte:
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/52917/Barbie
75
presentes em todas as coleções de alta costura. Foi quando Courrèges lançou-
se no prêt-à-porter, dividindo suas coleções em três categorias de preços: a
alta costura, que abrangia modelos feitos sob medida; o prêt-à-porter de luxo,
com modelos produzidos em ries limitadas e, por fim, o prêt-à-porter, em
quantidades maiores, portanto, a preços bem mais razoáveis. Isto explica sua
popularidade e seu sucesso: teve o bom senso de compreender que os tempos
eram de democratização das criações de moda, embora suas coleções
ficassem reservadas a um público restrito (DESLANDRES, 1986, p. 258).
Ilustração 44. Vestido smoking.
76
Outro
nome fundamental
para a difusão da
moda parisiense
foi Yves Saint-
Laurent que, em
julho de 1961, em
associação com
Pierre Bergé,
fundou sua própria maison, trabalhando com
alta costura e prêt-à-porter. Rejuvenesceu a
moda, ao adotar elementos da cultura jovem.
Em julho de 1965, o vestido Mondrian
(Ilustração 43), em jérsei, de linha rigorosa,
pura e corte preciso, utilizando cores primárias,
fez muito sucesso e foi o triunfo da grife. A
partir daí, iniciou sua fértil união com a arte. Em
janeiro de 1966, ele deixou atônito o mundo ao criar o primeiro vestido smoking
(ilustração 44). Propôs uma nova forma de sedução para a mulher, atual e
andrógina, aliando feminilidade à sobriedade do look masculino e, em julho do
mesmo ano, lançou a coleção pop art (modelos inspirados em artistas plásticos
Andy Warhol, Roy Lichtenstein e Tom Wesselmann) e inaugurou a primeira
butique Saint-Laurent Rive Gauche, em consonância com a fabricação
comercial e não mais alinhado à alta costura. Em 1967, colocou no guarda-
roupa feminino o famoso terninho, conjunto de casaquinho e calça, que
frequentemente retornam à moda e é uma espécie de uniforme até hoje de
muitas mulheres executivas, secretárias e advogadas. Em 1969, abriu sua
primeira butique Rive Gauche Homme.
Ilustração 43: Vestido Mondrian
Fonte: Revista Elle, setembro 1965
77
Saint-Laurent criou o look
safári em 1968, como mostra a ilustração 44,
em que a modelo Veruschka foi fotografada
vestindo um microvestido safári,
33
conhecido
também como saariana, em gabardine
34
de
algodão bege e bermuda justa preta em
algodão. O fechamento à frente, com ilhoses
e atacador, solto, deixou exposta grande
parte frontal do corpo. A pose da modelo,
com o quadril deslocado para um lado,
pernas e braços abertos, segurando uma
espingarda ou “imobilizada” nela, recorda a
figura de Jean-Auguste-Dominique Ingrès, “A
Vénus Anadyomène”, porém mais agressiva e
insinuante. Em 1969, abriu sua primeira
butique Rive Gauche Homme. (REMAURY,
1994, p.579). Catherine Deneuve, atriz e musa de Saint-Laurent, foi quem
melhor o descreveu:
Yves Saint-Laurent cria para as mulheres uma vida dupla. A roupa de dia ajuda a
mulher a apresentar-se num mundo cheio de estranhos. Permite-lhe ir para todo o
lado sem chamar demasiado a atenção, dá-lhe uma certa força graças à sua
natureza masculina, prepara-a para encontros que poderiam dar lugar a conflitos.
No entanto, à noite, quando ela pode escolher com quem quer estar, torna-a
sedutora. (SEELING, 2000, p. 356-259)
Criador importante foi também Pierre Cardin, famoso desde os anos
1950. Foi o primeiro designer a criar roupas para loja de departamentos
Printemps e estabeleceu ligações comerciais com o Japão e a China e, mais
tarde, com a Rússia. Foi extremamente vanguarda ao lançar, em 1959, uma
coleção de prêt-à-porter, antes mesmo dos franceses adotarem essa
denominação para roupas feitas em série, e por esse passo tão ousado, foi
expulso da Chambre Syndicale (SEELING, 2000, p. 372), retornando logo em
33
Peça inventada para ser usada pelos soldados ingleses durante a guerra anglo-boher, na
África do Sul, em fins do século XIX, foi feito em gabardine bege, para natural camuflagem. Os
uniformes militares posteriores foram muito influenciados por esse modelo.
34
Tecido de algodão duplamente impermeabilizado fio e tecido –, de armação tela,
patenteado pela empresa inglesa Burberry & Sons no século XIX, serviu para fabricar os
famosos trench-coats usados pelos aviadores ingleses durante a I Guerra Mundial.
Ilustração 45: Look safári, 1968.©
Franco Rubartelli / Vogue França
78
seguida. Em 1960, lançou uma coleção de blazers e casacos mao (blazers com
gola conhecida como mao ou padre), que se tornaram grandes clássicos do
período.
Em 1961, a loja de departamentos Printemps contratou Cardin para
desenvolver uma linha de roupas feminina para ser comercializada
exclusivamente em Paris, concedendo a Cardin o direito de comercializá-la no
interior da França. Em 1962, foi inaugurado o primeiro corner de um grande
criador, o do Cardin, na Printemps.
Ilustração 46. Moda espacial, s.d.
© Yoshi Takata
Nos anos 1960, juntamente com André Courrèges, dedicou-se à
moda espacial. A ilustração 46 mostra um grupo de manequins, inclusive
infantil, usando modelo espacial, em cores contrastantes, cuja cartela era mais
eclética do que a de Courrèges. As fendas nos tubinhos, inspiradas nos
79
emblemas da célebre rie de TV Jornada
nas estrelas, em diversas formas
geométricas, foram cortadas e preenchidas
com tecido preto. O tecido usado, batizado
de la cardine”, foi desenvolvido
especialmente para esta coleção, para que
os recortes ficassem firmes. A coleção
mostrou vestidos e conjuntos masculinos
com aparência puramente funcional, dentro
do espírito “futurista”.
Cardin foi considerado o criador de
moda que mais possuiu licenças no mundo
todo. No final da cada de 1960, cansado
das mini e microssaias, alongou as saias,
sugerindo maxivestidos, que se tornaram uma “febre” nos anos 1970.
A reação ao elitismo na moda
apresentou-se de diversas formas, com a
adoção pelas jovens de trajes étnicos, como
roupas indianas das garotas hippies ou do
movimento negro nos Estados Unidos, ou as
roupas compradas em brechós.
Instantaneamente, desde alta costura até as
butiques adotaram essas referências e, com
isso, a moda viu seu campo de pesquisas se
alargar consideravelmente. Assim, surgiram
coleções com referências étnicas (ilustração
47), como a moda inspirada na África, clara
influência da luta contra preconceito racial nos
Estados Unidos, em que se observam uma
túnica ou blusa com estampa africana, coleiras
de metal e cabelo black power. Yves Saint-
Ilustração 47. Moda étnica, s.d.
Fonte: The Guiness Guide to 20t
h
Century Fashion
Ilustração 48. Hippie chic, s.d.
Fonte: The Guiness Guide to 20t
h
Century Fashion
80
Laurent também apresentou para
primavera-verão 1967, a sua coleção
alta costura inspirada na África. Houve
os estilos hippie chic (ilustração 48) e o
campestre, consagrado por Laura
Ashley, que fabricava, no final dos anos
1960, vestidos-camisolas ou conjuntos-
camisolas (ilustração 49) em tecidos
naturais e floridos, e não hesitava em
desmanchar vestidos e reutilizar os
tecidos, rendas de algodão e bordado
iglês. Foi a moda de um estilo apelidado
vestido da vovó e, apesar da inspiração
nostálgica, eram atuais, porque as
formas antigas foram simplificadas e
ficaram soltas, com cintura alta. Os tecidos eram os mesmos tanto para as
roupas quanto para a casa, sem distinção.
Após a minissaia, vieram a microssaia (acima da metade da coxa), a
saia Chanel (na altura dos joelhos), a saia midi (altura da metade da
panturrilha) e a saia máxi, abaixo dos tornozelos, lançada por Pierre Cardin.
Jacqueline Jacobson propôs, na
Dorothée bis, a moda dos shorts
sob os maxicasacos com fenda da
cintura até a bainha. Yves Saint-
Laurent, que havia trabalhado com
a corrente folclórica em 1964
(ilustração 50), propondo vestidos
floridos de algodão provençal,
retomou o tema e criou, em 1969,
modelos em patchwork marcados
pela influência hippie.
Também Dorothée bis
Ilustração 49. Conjunto campestre Laura
Ashley, s.d. Fonte: Sunday Times
Ilustração 50. Yves Saint-Laurent, s.d.
© Sarah Moon/Costume Research Centre, Bath
81
apresentou, em 1969, sua coleção em
patchwork, em veludo etamina
35
de
(ilustração 51). Nessa época, Michèle
Rosier criava trajes esportivos para, entre
outros, a V de V e Pierre d’Alby, com
inspiração muito jovem e sem desejo
particular de ornamentação, mas utilizando
frequentemente materiais alternativos,
como PVC e vinil (ilustração 52).
O caftã surgiu em 1967m e era
comum ver pessoas pela rua com esse tipo
de roupa, parecidos com trajes bíblicos, que
não eram vistos há séculos. O verão de
1969 foi transparente com os vestidos de
Courrèges (ilustração 53), inspirados no
Egito, com finas bandagens e
transparências, com círculos costurados em
locais estratégicos. Ungaro fez roupas de
discos de metal ou de plástico, unidos por anéis (EWING, 1997, p. 200).
As variações da moda começaram a se tornar tão freqüentes que
nenhuma mulher conseguia se
imaginar seguindo todas as
tendências propostas. Os diferentes
estilos, comprimentos, formas de
criação e produção conviviam em
uma fusão de inspirações e de
invenções extraordinárias. Assim se
deu a verdadeira revelação dessa
década: percebeu-se que nenhuma
moda nova podia suplantar a
antecessora e que a pluralidade se
sucedia após séculos de
35
Etamina é um tecido fino.
Ilustração 51. Dorothée bis, 1969. ©
Tony Rent
Ilustração 52. Michèle Rosier, 1966.
© Guy Bordin
82
uniformidade. A escolha das roupas o era
mais feita de acordo com os critérios de uma
moda dominante, mas de acordo com as que
ditavam o sentimento de pertencer a
determinado grupo político ou social
(DESLANDRES, 1986, p. 263).
Dessa forma, a diversidade tornou-
se a característica principal da moda e tudo
passou a ser permitido, sem limites. Foi isso
que compreendeu Paco Rabanne, que abriu
sua própria maison em 1966. Formado em
arquitetura, explorava materiais como o metal
e materiais plásticos. Era estilista que, ao
invés de usar linha e agulha, costurava com
alicates, desconcertando o público nos seus desfiles. Talvez a mais
emblemática criação tivesse sido a cavaleira
medieval, vestida com armadura e camal de
escamas de metal, como os cruzados
(Ilustração 54). Interessante observar que os
filmes mais recentes de ficção como Jornada
nas Estrelas ou O Senhor dos Anéis, tendem a
se inspirar no período medieval. Seus
personagens usam vestidos longos com
mangas amplas, manto com capuz e espadas
poucas pistolas.
A grande convulsão de gostos que
marcou os anos 1960 no vestuário feminino não
podia deixar de ultrapassar os limites
tradicionais da moda masculina. Os fabricantes
propuseram a seus clientes algo diferente do
terno tradicional, que era composto por três
peças imutáveis desde o século 19 e
Ilustração 53. Courrèges, 1969.
© Peter Knapp
Ilustração 54. Paco Rabanne
Fonte: Camera Press
83
invariavelmente feitos em cores brias
como azul marinho e cinza, com
padronagem príncipe de gales ou
espinha de peixe.
A moda masculina derrubou,
de certa maneira, barreiras sobre o que
era considerado aceitável ou
efeminado, quando estilistas
desafiaram os homens a vestir camisas
cor de rosa ou com estampas florais.
Mick Jagger, vocalista da banda The
Rolling Stones, desafiou convenções ao
subir ao palco usando um mínivestido
branco de organdi por cima da calça,
inspirado nas camisas dos dândis do
século 19, adornado com babados (ilustração 55).
Um dos criadores mais dedicados à moda masculina foi Pierre
Cardin que, associado à confecção de Paul Bril, apresentou sua mais incrível
coleção masculina, em 1968. A nova moda jovem masculina substituiu o terno
por conjuntos compostos por uma calça com nica ou veste, cujas golas altas
mao impossibilitavam o uso de camisa e gravata, como mostrou a ilustração
46. Eram conjuntos com grossos
zíperes aparentes e cintos largos.
Seu sucesso não foi imediato, mas a
juventude aderiu, aos poucos, às
calças estreitas sem pences na
cintura e casacos ajustados. Antes,
em 1960, Cardin havia renovado o
costume masculino, ao apresentar
paletó sem lapela, gola careca (rente
ao pescoço, sem gola), linha reta,
mais curta e com bolsos esportivos,
como mostra a ilustração 56, o
Ilustração 55. Mick Jagger
Fonte: Corbis-Bettmann
Ilustração 56. Pierre Cardin, 1960.
Fonte: Keystone
84
modelo à esquerda em cotelê e o da direita em algodão. Cardin abriu, desse
modo, um espaço para uma moda mais despojada na tradicional indumentária
masculina.
Também Courrèges se dedicou ao traje masculino. Com sua
intrepidez costumeira, ele criou um conjunto composto por um blusão e uma
calça curta, feito em popeline azul claro ou rosa. Também criou camisetas,
suéteres e blusões de cores impactantes e sugeriu o uso com botas curtas.
Essa inovação, que rompia definitivamente com o traje masculino clássico, não
foi exatamente um sucesso. (DESLANDRES, 1986, p. 268).
Na Inglaterra, os Mods e
Rockers tornaram-se os subgrupos
culturais dominantes. Os Mods tinham
consciência de moda aguçada e
vestiam parkas (ilustração 57), ternos
italianos de caimento perfeito, coletes e
sapatos da marca Clark. Os trajes
casuais eram compostos por jeans
Levi’s, camisas esportivas Fred Perry e
cárdigã (blusa de malha abotoada na
frente, com decote careca ou em “V”).
Muitas dessas roupas eram compradas
em butiques na Carnaby Street. A
scooter italiana Vespa tornou-se central
para a identidade visual do grupo que
os transportavam para o litoral ao sul da Inglaterra, onde travavam verdadeiras
batalhas com seus rivais, os Rockers que, ao contrário daqueles, eram
desinteressados por moda e usavam roupas de couro, e guiavam motocicletas
potentes.
Mas, de um modo geral, os jovens dos anos 60 vestiram-se de forma
bem mais confortável e despojada que aqueles das décadas anteriores, em
que as gravatas e os chapéus (e às vezes guarda-chuva fechado) compunham
geralmente o visual elegante masculino, adotando visual hippie, dos cantores
de rock e dos artistas destacados do período. Porém os rapazes foram mais
Ilustração 57. Mods, 1964.
Fonte: Mod: a very British phenomenon
85
impermeáveis a uma androginia do que as garotas e, grande parte deles, foi
mais comportado.
Essa década assistiu a grandes transformações e, em relação à
moda, verificou-se o predomínio das criações do prêt-à-porter e da moda das
butiques, apresentando múltiplas referências e tendências jamais vistas até
então. Pela primeira vez na civilização ocidental, todos os grupos sociais
tiveram a possibilidade de escolher seu vestuário e de seguir a moda. As
inúmeras propostas davam a dimensão da diversidade de gostos e desejos, e,
sem vida, correspondia à recusa de uma geração dos padrões e dos
costumes dos seus pais. O movimento dos jovens, o movimento da
contracultura, beneficiou a expansão econômica, mas triunfou porque se
adequava a uma geração que buscava diversos caminhos alternativos para um
mundo melhor, que se lançou a
experiências muitas vezes tumultuadas.
Mas, conforme observou Barry Miles
com relação à contracultura,
Eu sentia as mudanças no fim do verão de 67. O
espírito dominante em 66 e na primavera de 67
começou a se corroer, porque ficamos populares
demais. Quando vira uma coisa de massa e a
Inglarerra pode fazer tudo virar moda, e vira
moda pop, mais do que um movimento sério,
então é inevitável. No fim de 69, todo mundo
estava cansado. Ninguém dormia direito
anos. Tomavam drogas demais. Estavam
totalmente exaustos. Não teve um motivo
especial. Acho que todo mundo finalmente
resolveu dormir... (MILES, 2009).
A moda talvez tenha ido descansar para
recuperar o fôlego, mas, antes, propôs o
visual unissex, em jeans (ilustração 58). Para não cansar...
Ilustração
58. Visual unissex, 1969.
Fonte: Sunday Times
86
Capítulo 3 – O Mundo na Augusta
A década de 1960 começou com uma ampla crise econômica no
Brasil, gerada pelo desenvolvimento acelerado e rápida industrialização,
sustentados por emissões vultosas de moeda e empréstimos externos,
desencadeando um processo inflacionário que, somado a outros fatores, levou
ao golpe militar de 1964. Uma importante consequência dessa corrida
desenvolvimentista foi a transformação do Brasil em um país cada vez mais
urbano, marcado pelo acelerado desenvolvimento tecnológico que se
identificava desde os anos 1950, principalmente a partir de 1957, devido à
ampliação das indústrias de base, como siderurgia e produção de máquinas;
da instalação da indústria automobilística e do comércio, que colaboraram para
a massificação do consumo de uma infinidade de novos produtos (de higiene,
de limpeza e alimentares) nos anos 1960, quando se processou uma “mudança
no modelo econômico, social e político de desenvolvimento”, que se consolidou
por volta de 1968 (BONADIO, 2008).
Em relação às atividades culturais, o Brasil, que estava às voltas
com um processo crescente de industrialização e ampliando seu circuito
artístico institucional, viu surgir, a partir de 1950, uma nova mentalidade, dando
salto para sua conquista de modernidade. Foi o período da construção de
Brasília e da criação do Parque do Ibirapuera, da fundação dos museus de arte
moderna, do surgimento do Teatro de Arena, do início do Cinema Novo.
Também foi o período do Concretismo em São Paulo e do Neoconcretismo no
Rio de Janeiro, segmentos mais radicais, que disseminavam suas idéias
através de manifestos e textos. Era o momento decisivo para a indústria
cultural que então se instalava e se consolidava. Essa indústria acompanhou
de perto as agitações do momento, e também nas artes plásticas observaram-
se mudanças definitivas, com a “multiplicidade de estilos e a ruptura dos
suportes tradicionais, a exploração do aleatório e a crítica ao sistema oficial da
arte, a valorização de situações instáveis e a alteração do ‘lugar’ da arte, assim
como a inserção da comunicação de massa e do cotidiano” (CANONGIA, 2005,
p. 62). De fora vieram conceitos como abstracionismo, concretismo,
figurativismo, surrealismo, arte cinética, op-art e pop-art, o movimento
psicodélico e outros, que se revezavam freneticamente.
87
A cultura, no começo da década, reproduzia o clima de democracia
populista. Diferentes obras, de diferentes autores, em diferentes áreas, ora
falavam de amor, barquinhos e flores, ora denunciavam situações dramáticas
de classes sociais menos favorecidas, ora abordavam o regionalismo e as
influências estrangeiras. Acima de tudo, gozaram de ampla liberdade de
expressão até 1964 (GONTIJO, 1987, p. 89). Depois, incorporou-se o clima de
contestação e de participação geral nas passeatas, nos festivais, nos
happenings. Surgiu a imprensa alternativa e jornais como O Pasquim e
Opinião, ambos do Rio de Janeiro, mas que circulavam pelos campi
universitários paulistanos, foram avidamente consumidos e fizeram a cabeça
de grande parte dos estudantes.
Nesse sentido, desenvolveu-se uma produção artística que tentou se
rearticular e forjar um posicionamento político após o golpe de 1964. No
decorrer da década, a temática de construir uma arte brasileira, ou que falasse
em nome do país, foi amplamente debatida. Parte dos artistas tomou
consciência sobre o caráter contraditório do Brasil que sobrepunha o
moderno ao arcaico, o erudito ao popular etc. e percebeu que o discurso
nacionalista homogeneizador não mais satisfazia os seus anseios.
Nos anos 1960, o teatro estava em crise por falta de patrocínio,
36
enquanto o cinema nacional começava a se firmar: em fins da cada de 1960
começaram a aparecer filmes de diretores novos, como Gláuber Rocha, Ruy
Guerra e outros. Era o Cinema Novo, reconhecido na Europa como importante
fenômeno cultural que, a partir de 1964, vai se dispersando e se exilando a
produzir obras menores sob a autoridade da censura. No final da década
surgiram as pornochanchadas (GONTIJO, 1987, p. 90).
Em 1960 existia no Brasil cerca de um milhão de aparelhos de
televisão, número que continuou crescendo exponencialmente. No princípio era
a Tupi, dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, depois vieram a
36
Por ocasião do movimento de 1964, os artistas do Oficina interromperam a temporada
corrente de Os pequenos burgueses. Em 1965, o grupo Opinião estreou no Rio de Janeiro o
musical de mesmo nome, em co-produção com o Arena e, no mesmo ano, em São Paulo,
Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri montaram o Arena conta Zumbi, com música de Edu
Lobo. O Teatro da Universidade Católica (TUCA), de São Paulo, montou a peça Morte e vida
Severina, de João Cabral de Mello Neto, com a qual venceu o Festival de Nancy, na França.
Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes, foi vista por 50 mil espectadores em 1965. No final
da década, a produção teatral foi caindo, muitos autores foram exilados e a censura passou a
exercer uma vigilância mais acentuada. Cf. GONTIJO, 1987, p. 89.
88
Record, a Excelsior e a Globo. Os festivais e os programas de auditório da
Record revelaram grandes talentos da música, como Nara Leão, Elis Regina,
Chico Buarque, Geraldo Vandré, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Milton Nascimento e o “brasa” Roberto Carlos.
Sob o autoritarismo, a vida afetiva e familiar foi duplamente
envolvida. Primeiro, porque a classe média intelectualizada viveu mais
intensamente que outros setores da sociedade brasileira as mudanças de
valores e comportamentos que acompanharam todo esse processo de
modernização socioeconômica e constituíram a cultura das novas gerações
urbanas. Segundo, porque sua participação política, pelas circunstâncias em
que se deu e pelos objetivos a que, em muitos casos, visou, invadia o cotidiano
familiar de cada um (ALMEIDA, 1998, p. 399).
A tão falada revolução de costumes foi uma experiência pessoal
marcante para mulheres e homens de classe média, que caminhavam e
cantavam na contramão da nova ordem política. O fato é que nos anos 1960
assistiu-se, no Brasil, a uma peculiar conjunção. De um lado, tomou o poder
pela força uma parcela daqueles brasileiros para quem “a dissolução dos
costumes” era parte da atitude subversiva comandada pelo movimento
comunista internacional. De outro, para os filhos do baby boom do pós-guerra,
que chegavam à idade adulta, ao mesmo tempo entravam na ordem do dia os
questionamentos acerca das normas que regiam o cotidiano das pessoas,
como o “casamento burguês”, tido como o “suprassumo da hipocrisia e da
desigualdade de oportunidades eróticas entre os sexos” (ALMEIDA, 1998, p.
399).
Muitos jovens mudaram e desconfiaram do lirismo da Bossa Nova,
da ingenuidade da Jovem Guarda, e fizeram a apologia da cultura engajada,
criticando o autoritarismo do governo, a censura e a repressão.
Em relação à moda, essa convulsão aparentemente parecia um
evento distante, ao menos para a alta costura brasileira, que revelava novos
talentos para as clientes endinheiradas: Guilherme Guimarães, Clodovil
Hernandez, José Nunes e o mais importante deles, Dener Pamplona de Abreu .
Nascido no Pará, talentoso, temperamental e criativo, foi o estilista favorito da
então primeira-dama, Maria Teresa Fontela Goulart. lido, frágil, de gestos
89
delicados e atitudes
excêntricas, Dener
desenvolvia estilo clássico de
bases simples (ilustração 59) e
tinha como maior ídolo
Cristóbal Balenciaga.
37
O distanciamento
em relação aos
acontecimentos era apenas
aparente: a moda seguia a
atmosfera de ruptura presente
no cotidiano e o corpo era
compreendido pelos estilistas
como suporte das novas
propostas de percepção. As
tendências de moda podiam
ser identificadas pela mudança
do público-alvo, agora os
jovens, consumidores
independentes de seus pais.
Isso gerou uma sociedade
desejosa por imagens jovens
que, por sua vez, não queriam
seguir o padrão de vestuário de seus pais e inovar, diferenciando-se deles
(DÓRIA, 1998).
37
O estilista paraense Dener Pamplona de Abreu é considerado um dos pioneiros da moda no
Brasil. Em 1945, sua família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou a desenhar seus
primeiros vestidos. Três anos mais tarde, aos 13 anos de idade, teve seu primeiro contato com
a moda quando foi trabalhar na Casa Canadá, uma importante loja carioca. Em 1950, foi
trabalhar com Ruth Silveira, dona de um importante ateliê, onde aprimorou seus desenhos. Em
1954 transferiu-se para São Paulo, como funcionário da butique Scarlett. Três anos depois
inaugurou seu próprio ateliê, denominado Dener Alta-Costura, na Praça da República, criando
para as damas elegantes da sociedade que até então se vestiam com criações parisienses.
Levando em conta o físico, a idade, o gosto e o clima do país, logo foi descoberto pela mídia e
passou a divulgar maciçamente seu nome e as coleções de seu ateliê, que se transferiu para a
Avenida Paulista. Em 1965 casou-se com Maria Stella Splendore, uma de suas manequins.
Nos anos seguintes fundou a Dener Difusão Industrial de Moda, considerada a primeira grife de
moda criada no Brasil e foi jurado do Programa Flávio Cavalcanti. Faleceu em 1978, vítima de
uma cirrose hepática. Cf. DÓRIA, 1998.
Ilustração 59. Leilah Assumpção veste Dener, s.d.
Fonte: Acervo de Leilah Assumpção
90
Em São Paulo, a Editora Abril lançou,
em 1959, sua primeira revista feminina de
prestação de serviço (CORRÊA, 2000). Foi a
Manequim que, além de ensinar a costurar seus
próprios vestidos por meio de moldes de Gil
Brandão encartados, falava de novas tendências
da moda, especialmente de Paris, apresentando
roupas fáceis de confeccionar e de usar. Também
sugeria cuidados com o corpo, mostrando últimos
lançamentos cosméticos, de indústrias
estrangeiras como Coty, Pond’s, Max Factor,
Helena Rubinstein entre outros, como na
ilustração 60: na seção “De olho na moda”,
diversas dicas para leitoras acerca dos produtos
de beleza, dos últimos lançamentos da Pond’s, o
“Cold Cream” (limpeza profunda da pele) e o
“Vanish Cream” (hidratação completa da pele); o
perfume “Dream Flower” e a maquilagem líquida
“Angel Face (a empresa informa que sua
aplicação é “a jato”, acompanhando o corre-corre
diário, com opção de mil tons, “você escolhe à vontade”); o batom “Fruto
Proibido” (descrito como uma nova “arma de charme”, com sabores, para
satisfazer o “Romeu em questão”). Essas pequenas seções incentivavam
mulheres a consumirem os produtos, salientando, entretanto, que era ela quem
estava escolhendo. Portanto, enfatizava a liberdade de escolha, incentivando a
compra de produtos que combinassem com a tez da leitora, individualizando-a,
apresentando paleta com infinidade de cores, inimagináveis na década
anterior. Também faz referência ao corre-corre diário, portanto tratava-se de
produto indicado para uma mulher ativa e participativa, quer com obrigações
domésticas; quer inserida no mercado de trabalho, em consonância com
aqueles anos conturbados.
Por outro lado, vende também a imagem da mulher-objeto, que se
maquila para o outro. Na ilustração 61, a jovem loira brejeira dirige olhar
ascendente, o que sugere presença de uma segunda pessoa, e “lambe” o lábio
Ilustração 60. Anúncio Ponds,
1967. Fonte: Revista Manequim
91
superior, convidando a outra a
experimentar e sentir o prazer do
“fruto proibido”. Evidentemente não
eram produtos populares, até porque
eram na maioria, identificados em
inglês.
Interessante observar
que, apesar de proclamar a
liberdade de escolha naquela seção,
a mesma edição da revista
Manequim (março de 1964), trouxe
matéria não creditada, intitulada
“Entre Garôtas”, apresentando
conselhos para “conciliar o amor, os
sonhos, os nervos, com a disciplina
do trabalho e do escritório”. Ali,
foram sugeridos três novos guarda-roupas e penteados “para a moça que
trabalha num escritório sempre sentada (secretária), aquela que trabalha de
(desenhista de publicidade) e a moça que tem um papel de responsabilidade
(professora)”. O texto aconselha abolir sapatos de salto alto, ser discretas,
unhas sem esmaltes, sem mechas loucas, evitar confidências, namoros, saber
se organizar etc. e não esquecer que
“você é antes de tudo, uma mulher, que encontrará a felicidade seguindo sua
verdadeira vocação (sua verdadeira vocação em negrito): o casamento. Não se
deixe levar pelo desejo de “independência”. Sobretudo se ainda não está casada”.
Continua dizendo que “a famosa liberdade das mulheres não existe”
e que, tarde demais percebe-se que o “lindo nome de ‘independência’ é
sinônimo de solidão” e, mais adiante, completa: ”há mulheres que, pelo fato de
serem casadas e trabalharem, pensam ter o direito de fazer o que querem”.
Portanto, foi um período ambíguo, em que ainda muitas mulheres ainda
estavam lidando com sua nova condição: melhorar (revista Manequim, março
de 1964, p. 22-29).
A aceitação das revistas femininas da Editora Abril motivou a criação
de mais uma revista feminina, a Claudia, que desde sua criação em 1961 logo
Ilustração 61. Anúncio da Cutex, 1967
Fonte: Revista Manequim
92
se firmou como a mais importante revista brasileira dirigida a mulheres e,
desde então, a mais lida até os dias atuais. Thomas Souto Corrêa, contratado
em 1962 para dirigir a publicação, disse em entrevista concedida em 4 de
novembro de 2003 ao Observatório da Imprensa
38
que
“o que agente percebia em Cláudia era que ela estava seguindo um modelo
tradicional de revista feminina italiana, que era o modelo que se conhecia naquela
época [início de 1960]. Era basicamente uma revista que tinha roupa, comida e
decoração. As fotos eram importadas, eram compradas e a gente fazia as
legendas aqui” (...) “o que a gente começou a perceber é que, de um lado, não
poderíamos continuar fazendo uma revista estrangeira. A gente tinha que chegar
perto da leitora brasileira, com um serviço que ela pudesse consumir. Dando a
indicação de coisa, de roupas, dando preço sempre que possível. Esse foi o
primeiro passo para chegar perto da mulher [brasileira]”
Portanto, as criações e as modelos eram estrangeiras, bem
distantes dos padrões de silhueta brasileiros. Muitas vezes, os tecidos não
eram adequados para o nosso clima ou as nossas indústrias não fabricavam os
tipos propostos para aquela estação, levando leitoras a comprarem tecidos
importados ou improvisarem. Quase sempre os tecidos estampados mostrados
nos editoriais não eram possíveis de se encontrar, que as tecelagens
preferiam produzir os lisos, menos influenciados pela sazonalidade da moda e,
como as estampas são sempre mais marcantes, o consumo era bem mais
reduzido. Vale lembrar, também, que as coleções estrangeiras eram
apresentadas com meio ano de antecedência em relação ao Brasil, o que
inviabilizava a reprodução dessas estampas.
A revista Cláudia fez muito sucesso desde o início do lançamento,
porque estava sintonizada com os anseios das mulheres e, através da seção
de cartas, ajustava-se às sugestões, respondendo as dúvidas e seus diretores
de publicação saíram por todo o país a fim de conhecer melhor a mulher
brasileira, fato bastante incomum para a época. se falava de pílula
anticoncepcional e ensaiava a luta pela liberação sexual. Também montou
cozinha para testar receitas culinárias, ao invés de apenas publicá-las, o que
foi novidade naquele momento (CORRÊA, 2000, p. 167).
Em setembro de 1963, uma corajosa psicóloga e jornalista gaúcha,
Carmen da Silva, chegou à redação da revista Cláudia e publicou seu primeiro
38
Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq041120032.htm
93
artigo, intitulado “A protagonista”, falando das insatisfações das mulheres, dos
seus desejos e temores, do casamento, incentivando-as a tomarem o “leme na
mão” (CIVITA, 1994, p. 23). Carmem empenhou-se na luta contra o machismo,
o preconceito e, durante 21 anos, discutiu com suas leitoras temas como
maternidade, aborto, feminismo, sexo, identidade da mulher etc., na seção “A
arte de ser mulher”.
As propostas de nova moda
chegavam através da mídia. Uns se
vestiram dentro do pop-art (ilustração
62): camisa estampada, calça de s
baixo, minissaia, meia rendada, botas,
bijuterias coloridas e exageradas, cílios
postiços e delineador, batons quase
brancos e cabelos lisos ou artificialmente
enrolados em cachos miúdos ou
grandes, ou em coques exagerados com
laquê. Algumas mulheres que tinham
cabelos crespos passavam horas na
tentativa de alisá-los: faziam touca ou
passavam a ferro. Na ilustração 62, o
texto indica que se compre 2,50 m de
seda pura, acrescentando que é o que basta para “armar seu vestido-tenda,
como diz em Paris”, referindo-se ao vestido trapézio já proposto por Yves
Saint-Laurent em 1958 para a maison Dior e muito apreciado desde então, aqui
na versão mini e pop. Portanto, na maioria das vezes a moda vista nas revistas
brasileiras era original ou cópia das criações parisienses ou inglesas, sem
muita divulgação dos novos estilistas estadunidenses. Conforme declarou Cátia
Mori,
39
“gostava das roupas francesas e aquelas mais simples da Mary Quant, do tipo
jardineira. Quando minha mãe podia, ela costurava um desses modelos, mas ela
era costureira, não tinha muito tempo porque fazia modelos de alta costura para
algumas freguesas, ela o tinha muitas clientes porque as roupas eram muito
finas e demoravam muito para ficarem prontas. Às vezes tinha de fazer plissê em
seda natural, que não pegava! Era para usar uma única vez! Eu não gostava
das roupas americanas, eram muito simples, sem graça, não eram fashion!”
39
Entrevista concedida em 16 de novembro de 2007.
Ilustração 62. Vestidos pop art, 1967
Fonte: Revista Manequim
94
Em outro grupo, as roupas eram típicas dos guerrilheiros e dos
estudantes universitários: camisas brancas ou lenhador (camisa xadrez,
semelhante às dos lenhadores canadenses, que é moda desde os anos 1950),
calça jeans ou clássica de tergal, ponchos, sapatos de couro rústico ou
sandálias franciscanas, boinas à Che, ausência de artifícios, cabelos escorridos
e uma elaborada aparência de descuidado.
A ilustração 63 mostra um grupo de estudantes com roupas
confortáveis, de um modo geral displicentemente vestidos, usando camisa
branca, lenhador, camiseta pólo, conjugadas a calças de tergal ou jeans e
cabelos descuidados. Uma das garotas à frente, bem vestida, faz pose,
flexionando os joelhos. A outra, na escada, perde-se no meio do grupo, pois
usa roupa semelhante ao dos rapazes, no estilo unissex.
Ilustração 63. Estudantes dos anos 60, s.d. Fonte: Revista Realidade.
95
Na praia, os biquínis foram
ficando cada vez menores, apareceu o
maiô “engana-mamãe” (de frente, um
maiô, e, de costas, um biquíni) e a
ousadia criada por Rudi Gernreich, o
monoquíni, que foi repelido. Mesmo o
maiô engana-mamãe, como desta
ilustração 64, não fez muito sucesso,
porque ele deixava faixa branca
indesejável na região do ventre. Os
materiais usados eram a helanca, a
malha de algodão com fio sintético e o
jérsei sintético (GONTIJO, 1987, p. 96),
como na ilustração 65, que mostra
biquíni de malha de algodão esponja
(atoalhado), estampado, proposta para o verão 68/69, cujo texto destaca o seu
“corte audacioso” (Figurino, edição de novembro de 1968, p. 21).
Muito utilizados no exterior, os fios sintéticos foram introduzidos no
mercado brasileiro pela
Rhodiaceta.
40
Lívio Rangan,
gerente de publicidade
contratado em 1960, em
parceria com a equipe da
Standard Propaganda,
estimulou o gosto pelo fio
sintético por meio da
publicidade, popularizando-
o, com produção exclusiva
no Brasil até 1968
(BONADIO, 2008, p. 6). Parte da estratégia de divulgação consistia na
produção de editoriais de moda desenvolvidas para revistas (a Seleção Rhodia
40
Divisão têxtil da Rhodia, filial brasileira da multinacional francesa Rhône Poulenc. Em 1965, a
Rhodia e a Rhodiaceta se fundiram, passando a ser denominada Rhodia Indústrias Químicas e
Têxteis S.A. Cf. Bonadio, 2005.
Ilustração 64. Maiô Engana-Mamãe, 1964.
© David Bailey / Vogue
Ilustração 65. Biquini em tecido atoalhado, 1968
Fonte: Revista Figurino
96
Moda) e desfiles, com destaque para a arte nacional, a fim de conquistar
significativa fatia do mercado e associar o produto à criação de uma moda
brasileira, conferindo novidades na apresentação e dinâmica às produções de
moda (TOLEDO, 2004, p.26).
A Rhodiaceta foi beneficiada pela Feira Nacional da Indústria Têxtil
(Fenit),
41
criada em 1958 pelo publicitário Caio de Alcântara Machado, que
idealizou e promoveu, no Ibirapuera, sua primeira edição. Ele reuniu em um
mesmo evento tecelagens, fiações, matérias-primas, maquinário e confecções,
suprindo uma carência do mercado têxtil. Embora esse primeiro evento não
tenha sido exatamente bem sucedido, as edições seguintes atraíram muita
atenção do público e da mídia.
Desde sua primeira edição (1958), a Fenit trouxe ao Ibirapuera
criadores de renome mundial como Pierre Cardin, Jean Dessès, Zoe Fontana e
a Condessa Simonetta, com desfiles de coleções apresentadas nas
passarelas internacionais. No ano seguinte, a moda brasileira debutou nas
passarelas da Fenit com Dener. Porém, foi em 1960 que a feira realmente
tornou-se sucesso de público, com a introdução de shows musicais ao vivo
(BONADIO, 2008, p. 115-118).
na quinta edição do evento (1962), a organização convidou
estilistas renomados, como Emilio Pucci e Valentino, para desfilar criações com
tecidos produzidos no Brasil, alterando a ideia de que fios e fibras sintéticas
eram matérias-primas estrangeiras e também conferindo aos tecidos um status
diferenciado. Além disso, foram agregados à feira os desfiles de Miss Universo
e das dez primeiras colocadas no concurso de Miss Brasil, com patrocínio do
fio Helanca. Na época, as misses chamavam muito a atenção do blico e da
imprensa, ocupando com frequência a primeira página dos jornais e de revistas
como Manchete, O Cruzeiro e Jóia. Em 1963, os desfiles passaram a contar
com uma cenografia mais elaborada para receber designers como Frederico
Forquet e Bill Blass, e foi nesse ano também que a Rhodia realizou seu
primeiro espetáculo na Fenit, o show-desfile Brazilian Look. Nos anos
seguintes, designers importantes desfilaram suas criações feitas em tecido
41
Até 1970, a Fenit era também espaço de lazer, Ao ser transferida do Ibirapuera para o
Anhembi, voltou-se apenas a profissionais da área têxtil.
97
made in Brazil, como Jacques Esterel, Jean Patou, Guy Laroche, entre outros.
Os expositores da feira viram seus negócios se avolumarem a cada ano.
Em 1966, outras iniciativas foram incorporadas à Fenit: o I Festival
Brasileiro de Alta Costura, com a apresentação de modelos de Dener,
Guilherme Guimarães, Clodovil e José Nunes, e a homenagem da confecção
Pull Sports ao teatro nacional. Assim, além de seus desfiles diários, a
confecção apresentou esquetes especialmente criados para a feira, estrelados
por Maria Della Costa, além de pequenos trailers das peças em cartaz no
Teatro Oficina e Teatro Arena, entre outros (BONADIO, 2008, p. 119-122).
A partir de 1966, a moda jovem ganhou mais espaço na feira,
primeiro com o stand patrocinado por Cláudia e Manequim, que promoveu
desfiles de artista plástica e designer de moda Mona Gorovitz. Nesse mesmo
ano aconteceu o desfile Moda Jovem Guarda, com a participação de dois dos
maiores ídolos da juventude, o “tremendão” Erasmo Carlos e a “ternurinha”
Wanderléia. Em 1967, Alcântara Machado trouxe para a feira grandes nomes
da moda jovem internacional: Pierre Cardin e sua famosa coleção de
inspiração espacial, desfilada por suas principais manequins (a top model
Hiroko, Maryse, Penny e Maria);
Biba, Paco Rabanne e Rudi
Gernreich (BONADIO, 2008, p.
122). A ilustração 66 mostra dois
looks do estilista estadunidense
Rudi Gernreich, de 1967, da
coleção “Ópera Chinesa”,
apresentados na X FENIT, no
mesmo ano, o que mostra que São
Paulo estava totalmente
sintonizada com as últimas
coleções internacionais, trazendo
para o que havia de mais novo
nos mercados europeu
e estadunidense.
Ilustração 66. Looks de Rudi Gernreich,1967.
Fonte: Revista Manequim
98
na ilustração 67, a
criação da Biba, representada na X
FENIT pelas inglesas Anne,
Joanna e Eleanor, apresentou um
microvestido vaporoso de estampa
Liberty, complementado por uma
boina de crochê artesanal e
longuíssimo colar de contas de
três voltas. O texto ilustrativo
chama atenção para a moda
“jovem, perdidamente jovem,
colorida, perdidamente colorida” e
que as modelos, correndo e
dançando na passarela, provaram
que a moda “hoje quer ser olhada,
quer provocar desejos”, e “a moda
hoje é choque”.
Porém, foi a Rhodia a grande vedete da feira durante seus oito anos
de participação. Sob o comando de Rangan, seus desfiles-espetáculos com
shows musicais fizeram enorme sucesso junto ao público, divulgando o seu
produto e a sua marca (GIBERT, 1993, p. 139-140). O primeiro evento criado
por Rangan para a Rhodiaceta foi a Rhodia Brazilian Fashion Look,
apresentado na Fenit em 1963.
Na edição seguinte, foi apresentado o Brazilian Style, um grande
desfile que apresentou as criações em prêt-à-porter de Alceu Penna e lio
Camarero ao lado de coleções de alta costura de importantes designers de
moda Dener, José Nunes, Jorge Farré, Guilherme Guimarães, José Ronaldo,
Rui Spohr e Marcílio Campos em tecidos de diferentes fibras sintéticas, com
estampas criadas por importantes artistas plásticos, tais como Aldemir Martins,
Volpi, Heitor dos Prazeres, Manabu Mabe e Milton da Costa, desfilados pelas
modelos da Rhodia ao som de Nara Leão e do Sérgio Mendes Trio.
Em 1966 foi apresentado o show Mulher, esse Super-Homem, com
texto de Millôr Fernandes e figurinos de Alceu Penna, musicado por Geraldo
Vandré. Em 1969, Livio Rangan apresentou o que seria considerado o maior
Ilustração 67. Microvestido Biba, 1967
Fonte: Revista Manequim
99
show da Rhodia na Fenit:
Stravaganza (ilustração 68), com
texto de Carlos Drummond de
Andrade e apresentado por Raul
Cortez. Nesse show, Alceu
Penna, além de criar todos os
figurinos do show, desfilou sua
coleção prêt-à-porter com
tecidos imitando peles de
animais, no meio de um
verdadeiro circo em que se
apresentaram Gal Costa e
palhaços, liderados pelo lendário
Piolin, além de performances
equestres, ginastas, trapezistas,
domadores com leões, ursos
etc. Em 1970, para a despedida
da Rhodia da Fenit, foi apresentado o espetáculo Build Up, com coordenação
geral de Abelardo Barbosa (o Chacrinha), estrelado por Rita Lee, com
participação de Jorge Ben, Juca Chaves e Tim Maia (TOLEDO, 2004, p. 40-
47). A partir do final dos anos 1990, com o Morumbi Fashion, posteriormente
chamado de São Paulo Fashion Week, diversas grifes contrataram, ao longo
dos anos, shows ao vivo de artistas consagrados para abrilhantar seus desfiles.
Exemplos mais recentes são Maria Rita para Fause Haten (janeiro de 2006),
Adriana Calcanhoto para Maria Bonita (janeiro de 2008) e Arnaldo Antunes
para Do Estilista (janeiro de 2008), que deram suas contribuições para
enaltecer as coleções.
Para Toledo (2004, p. 53), os desfiles-espetáculos da Rhodia
propiciaram um conhecimento maior sobre a moda e de sua importância, mas
não trouxeram alterações significativas em termos de forma. “Se olharmos os
modelos criados por Alceu Penna, veremos a forte influência que Valentino
exerceu sobre ele”, afirma Toledo. Segundo ela, a grande mudança processou-
Ilustração 68. Rhodia Stravaganza, 1969
Fonte: Reprodução Revista Claudia
100
se na utilização de cores,
42
criando a ideia de uma moda brasileira mais
colorida, livre da influência escura e sombria, baseada no marrom-cinza-bege
predominante na moda europeia. Essa visão minimiza a afinidade e completa
harmonia que a moda brasileira e particularmente a moda paulistana tinha
naquele momento, mesmo que não houvesse uma moda genuínamente
nacional, brasileira. Essa moda mais atualizada era apresentada nos shows da
FENIT, nas revistas como Manequim, Figurino ou Cruzeiro e, principalmente,
nas butiques da Rua Augusta. E mesmo porque Alceu Penna foi importante
ilustrador e figurinista, mas nem tanto um estilista.
Houve também um grande avanço quando à estamparia de tecidos.
A indústria brasileira via com restrições os tecidos estampados por achá-los
difíceis de serem vendidos e, quando os fabricava, era com padrões
comprados na Europa. Ao convidar artistas plásticos de renome para criar
desenhos próprios para a tecelagem, Livio Rangan mudou essa situação,
equilibrando o que era moda no momento com uma quantidade viável de cores.
Outra mudança deu-se no campo da moda masculina, com verdadeira injeção
de cores. Na época, os ternos eram convencionais, nas cores bege, cinza,
marinho e preto. Rangan propôs um novo estilo por meio do Clube 1,
43
uma
associação de confecções masculinas unidas pela etiqueta Rhodia. A partir de
então, era possível encontrar ternos em cores caramelo, roxo, verde e
ferrugem, e camisas “volta ao mundo”.
44
(TOLEDO, 2009, p. 54).
Essa iniciativa conferiu aos produtos da empresa uma brasilidade
até então inédita. As fibras sintéticas concorreram em igualdade de condições
com os tradicionais tecidos brasileiros em fibras naturais e até com tecidos
finos importados (preferência das classes médias emergentes), sensibilizando
42
Apesar de, ou pelo fato de ser daltônico, Alceu Penna era um grande colorista. Nos anos
1960 viajava para a Europa, para conferir as criações de grandes grifes e, posteriormente,
apresentava alguns looks em fotografias ou desenhos ilustrativos feito por ele na revista O
Cruzeiro. Em relação às cores, viu-se um caleidoscópio de cores nas criações internacionais,
principalmente nas do prêt-à-porter e das butiques, tanto influenciadas pela pop art quanto pelo
psicodelismo, bem como pelas inúmeras referências de culturas não ocidentais, tais como
México, Índia, Oriente Médio, entre outras.
43
Faziam parte do Clube 1 as empresas Vila Romana, Camelo, Renner, Patriarca, Garbo,
Epson e Ducal. Cf. TOLEDO, 2009, p. 54.
44
“Volta ao mundo” era uma camisa feita de fibra 100% sintético, à base de ilon, de mangas
longas ou curtas, gola esporte, para ser usada o dia inteiro. Se lavada à noite e secada, estaria
pronta para ser novamente vestida no dia seguinte, e assim indefinidamente. Por dispensar o
uso de ferro de passar, seria ideal para viagens. Não vingou porque, além de o permitir
transpiração adequada, o suor provocava mau cheiro.
101
principalmente a camada de jovens, que começava a disponibilizar seus
recursos para o consumo de vestuário com design e preço acessíveis, o que os
tecidos sintéticos podiam proporcionar, pois barateavam muito o custo, já que o
tecido e as roupas eram produzidos em massa (BONADIO, 2008).
102
Até os anos 1960, o nailon, produzido no Brasil desde 1956, não era
muito utilizado pelo setor do vestuário e se restringia, basicamente, a roupas
profissionais, impermeáveis e underwear – camisolas, combinações, sutiãs,
cintas e meias finas (BONADIO, 2008, p. 21-46). O aumento do emprego de
fios e fibras sintéticas no mercado nacional coincidiu com o fortalecimento de
uma sociedade de consumo e com a maior profissionalização de toda cadeia
têxtil, difundindo o prêt-à-porter.
nos anos 1960,
observando o uso crescente das
fibras sintéticas no vestuário, a
Rhodia investiu em um plano de
negócios agressivo para
divulgar produtos como o
rhodianyl (nailon) e o tergal
(fibra de poliéster), como a
ilustração 69, a fim de
familiarizar o consumidor com a
marca e os produtos finais que
levavam as etiquetas de
qualidade Rhodia.
45
Também
houve um grande investimento
em divulgação das marcas:
além dos shows de Livio
Rangan, a empresa investiu em
45
A estratégia priorizava o rigoroso padrão de qualidade e autenticidade, em que o fabricante
têxtil recebia a orientação técnica necessária e o confeccionista era obrigado a requerer
homologação da marca. Como os fabricantes de roupas não custeavam nada, eles consumiam
mais tecidos homologados, os produtos correspondiam àqueles anunciados em sua
publicidade e a etiqueta avalizava a qualidade e servia como signo de distinção. Com o
aumento da concorrência, os logotipos passaram a ser fundamentais nos anúncios das marcas
homologadas, como a Valisère, bem como outras duas marcas produtoras de fios sintéticos
que foram associadas à Rhodia, mesmo sem serem produzidas pela empresa: Ban-lon e
helanca, que eram fabricados com o náilon da Rhodia. Cf. BONADIO, 2008.
Ilustração 69. Anúncio Tergal, 1968
Fonte: Revista Claudia
103
propaganda
46
e em parcerias com revistas
como O Cruzeiro, Manchete, Jóia e Cláudia
e Manequim (ilustrações 70 e 71), em cujos
editoriais foi dado um caráter internacional,
incrementando as profissões de produtor,
fotógrafo de moda e modelo.
46
A moda como construção de distinção social e de gênero voltou-se para a consumidora
moderna. Os anúncios indicavam, de um lado, o avanço da produção e, de outro, o aumento
dos consumidores que buscavam obter determinadas marcas e tecidos como reconhecimento
de seu grupo social. Cf. COSTA, 2009, p. 134.
Ilustração 70. Anúncio Rhodianyl, 1969
Fonte: Revista Manequim
104
Aqui, a Seleção Rhodia Moda destacou modelos de Sonia Coutinho,
em duas ações, mostrando modelos juvenis e práticos, “construídas com cortes
astuciosos para conforto e liberdade de movimentos.” Se nos primeiros anos da
década de 1960 os principais anunciantes eram as tecelagens, na segunda
metade foram as confecções,
47
em consequência do seu redirecionamento. As
confecções ganharam caráter industrial em detrimento da costura sob medida,
e isto se deveu principalmente à popularização das fibras sintéticas e mistas, à
diversificação e ampliação dos setores do
vestuário, aos novos maquinários, às classes
médias mais amplas e à profissionalização
maior da cadeia têxtil, o prêt-à-porter, que
vinha se firmando na França com os
criadores jovens e encontrou terreno fértil no
Brasil (BONADIO, 2008, p. 63-64).
A partir dos anos de 1960, diversos
designers de moda, entre eles Dener
Pamplona de Abreu, desenvolveram o prêt-à-
porter de preços médios, com linha de
produtos industrializados acessíveis, “ao
alcance de todas as bolsas”, e “lançadas por
diversas casas em todo o Brasil”.
48
Essa
proximidade com a indústria de confecções que apresentava crescimento
superior a 200% ao ano ocorreu ao mesmo tempo em que se verificavam
mudanças nos hábitos de consumo da classe média alta que, vinte anos antes,
encomendava a costureiras e alfaiates a confecção sob medida da maior parte
de seu guarda-roupa, mas que, progressivamente, foi aderindo ao prêt-à-
porter; depois as compras eram feitas nas melhores butiques (ABREU, 1986, p.
47
Os editoriais de moda funcionavam como vitrines ao alcance das mãos das leitoras e, com a
ascensão do prêt-à-porter, saciar o desejo despertado ao folhear a revista se tornou muito mais
simples: bastava ir à loja ou à butique onde era vendida a peça desejada, comprar e sair
vestindo uma roupa da última tendência, estilo ou moda publicada naquele mês. As seções de
moda incitavam o sonho do consumo imediato, fenômeno que pôde ser observado com mais
frequência em meados dos anos 1960, que, no começo da década, enquanto o prêt-à-porter
se consolidava, os nomes da alta costura internacional podiam ser encontrados com maior
frequência nas páginas dessas revistas. A seção de moda consistia em fotos, com modelos
vestidas para diferentes ocasiões e épocas do ano, apresentando o nome das confecções e o
tipo de tecido utilizado nas roupas. Cf. COSTA, 2009, p. 133.
48
O Cruzeiro, edição de 18 de agosto de 1962, ano XXXIV, n. 45, p. 88.
Ilustração 71. Anúncio Crylor, 1969
Fonte: Revista Manequim
105
127). A evolução do Censo Industrial de 1970, com dados referentes ao
período de 1950-1970, mostrou um crescimento significativo das confecções
para os segmentos feminino, masculino e infantil, significando que outros
setores sociais também passaram a consumir roupas prontas,
49
pois a classe
média alta apenas o seria capaz de absorver toda essa produção
(BONADIO, 2008, p. 66).
Em 1967, a Fenit movimentou 18 bilhões de cruzeiros e os sintéticos
passam a dominar 80% do mercado, enquanto os fios naturais sofrem uma
queda estimada em 60%. Um novo expositor também marcou o crescimento
dos sintéticos no país, a Mafisa, produtora de fibras sintéticas e concorrente da
Rhodia (BONADIO, 2008, 125). Isso endossava os dados do Instituto de
Planejamento Econômico e Social (Ipea), que mostraram que o consumo
aparente de fibras sintéticas (nailon, nailon 6 e poliéster) havia aumentado de
5.731 toneladas em 1960 para 56.640 em 1970, confirmando a consolidação
dos fios sintéticos no mercado nacional e motivando a dispensa dos serviços
de Rangan e sua equipe. Ao longo da década ampliaram-se significativamente
os anúncios de roupas prontas nas revistas, que já não apresentavam os
moldes de roupas nas suas publicações (BONADIO, p. 70). Muitas dessas
roupas eram encontradas inclusive nas lojas e butiques da Augusta, como
Marie Claire e em ruas de seu entorno, frequentadas por uma juventude
“descolada e antenada”.
Embora seu auge tenha sido nos anos 1960, desde antes a Rua
Augusta era o principal centro comercial da região. Nela inicialmente
desenvolveu-se um comércio cujo objetivo era abastecer a Vila América e os
Jardins América e Europa, onde não era permitida a instalação de
estabelecimentos comerciais (REALE, 1982, p. 138). Porém, as primeiras
referências à Augusta datam de 1875, quando ainda se chamava Maria
Augusta e era uma trilha de terra batida que começava na entrada da Chácara
do Capão (altura da Rua D. Antonia de Queiroz) e seguia até o topo do
Caaguaçu (atual Avenida Paulista). A partir de 1880, com o nome de Rua
49
O segmento de roupas íntimas também sofreu drásticas alterações, especialmente o
feminino, uma vez que modeladores, combinações e anáguas foram suprimidas do guarda-
roupa das jovens e mesmo os sutiãs perderam o bojo (forro de espuma que deixava os seios
empinados). Em 1968, algumas mulheres ativistas estadunidenses queimaram simbolicamente
os sutiãs - símbolo de opressão feminina desde o século XVI, quando ainda era espartilho -
como forma de protesto contra a condição de submissão da mulher na sociedade.
106
Augusta, foi parte importante do plano urbanístico da região, uma vez que, para
complementar as obras ali realizadas, foi necessário melhorar a velha trilha
(Augusta), abrindo uma via de acesso rápido até o centro da cidade.
50
Em
1891, a Augusta já estava aberta, no trecho entre a Rua Caio Prado e a
Avenida Paulista. Em 1914 foi estendida em direção aos Jardins, prolongada
até a Rua Estados Unidos, mas em 1942 adquiriu seu traçado atual, com o
desmembramento da Rua Martins Fontes.
Nos anos 1910, a Rua Augusta começou a receber muitas casas
comerciais dedicadas à venda de produtos comestíveis, como vinhos,
conservas e latarias, a maioria importados, destinados a abastecer a região. Os
pioneiros eram o Empório e Confeitaria Jardim América, fundado em 1915, e o
Empório Montenegro, cuja inauguração foi em 1922. Conforme a rua foi se
transformando, iniciou-se uma intensa vida comercial, apesar da existência
ainda de muitas moradias (REALE, 1982, p. 140).
Nas décadas seguintes, entre 1935 e 1955, as ruas dos Jardins, em
especial as próximas à Avenida Paulista, foram definidas como “estritamente
residenciais” por legislação municipal, com o objetivo de preservar os bairros
nobres. Era que morava a maioria dos colegas de escola do aposentado
Flávio Albertini, uma das fontes orais deste trabalho,
51
que estudou no antigo
colégio Caetano de Campos, que ficava na esquina da Paulista com a Augusta,
no final da década de 1940. “Acho que o único pobre da classe era eu, que
morava na Freguesia do Ó e levava duas, três horas para chegar à escola. Os
demais moravam pela região mesmo, pegavam o bonde e estavam bem
rápido”, lembra.
Na época (1948-51), a Augusta estava longe de ser uma rua
famosa ou badalada. “Ainda era uma rua de passagem, era bem pacata, tinha
um comércio pequeno, local, para atender os moradores do entorno. O
único estabelecimento comercial mais assim que eu me lembro era a Mercearia
Montenegro, que, ainda por cima, ficava para o outro lado da Augusta, na
esquina com a Luís Coelho. Daquele outro lado [em direção à Rua Estados
Unidos], só casas”, lembra.
50
Ver www.dicionarioderuas.com.br.
51
Entrevista concedida em 16 de maio de 2009.
107
Nas décadas de 1950 e 1960, entretanto, as normas especiais se
multiplicaram para atender aos interesses dos proprietários dos imóveis,
permitindo usos comerciais (FRUGOLI JUNIOR, 2000, p. 118). Um dos
empreendimentos beneficiados foi o Conjunto Nacional, cuja lâmina horizontal
foi oficialmente inaugurada em 1958.
52
“De fato, foi depois da construção do
Conjunto Nacional que começaram a chegar à Rua Augusta lojas mais
incrementadas, de modas, de sapatos. Até então, era uma rua como qualquer
outra”, observou Flávio Albertini. Porém, desde um pouco antes, se não era
relevante aos olhos de Albertini, o Conjunto Nacional atraía a elite
paulistana, pois antes de
sua conclusão, em 1957
se instalou a Confeitaria
Fasano (ilustração 72),
53
onde damas da sociedade
se deliciavam com o chá da
tarde nas mesas distribuídas
pela ampla calçada da
Paulista. Seu mezanino foi
palco de diversos jantares
dançantes, e o jardim de
inverno virou salão de festas dos abonados, para até duas mil pessoas. Na
ilustração, belos cadillacs rabo-de-peixe estacionados na avenida Paulista
atestam que o local era frequentado por elite paulistana. A formatura do curso
ginasial de Cátia Mori foi comemorada por um petit comité”, em meados dos
anos 1960, nas mesas espalhadas nas calçadas da Paulista e para ela foi
muito chique e extremamente emocionante “ser servida por um garçon, como
se fosse gente importante”. Tomaram sorvete, o mais caro da vida dela e o
dinheiro foi da mesada acumulada durante meses: “o mais bacana é que não
52
A inauguração do Conjunto Nacional foi prestigiada pelo presidente Juscelino Kubitschek, e
tinha entre seus moradores Ciccilo Matarazzo, que adquiriu um apartamento de alto padrão no
22
o
andar da torre residencial. Cf. BEIRÃO, 2005, p. 83.
53
Foi fundada em 1903 com outro nome, Brasserie Paulista, pelo italiano Vittorio Fasano, cuja
família importava café brasileiro. Fasano chegou ao Brasil em 1890 para trabalhar na Brasserie
Castelões, no Largo do Rosário. Em 1902, tornou-se concorrente de seus antigos patrões ao
abrir a Brasserie Paulista, no mesmo Largo do Rosário (hoje Praça Antônio Prado, na Rua São
Bento). Cf. BEIRÃO, 2005, p. 83.
Ilustração 72. Confeitaria Fasano, s.d.
Fonte: Arquivo do Restaurante Fasano
108
enxotaram a gente de lá. Trataram a gente como príncipes! São essas belas
histórias que guardo da Augusta...”
A Confeitaria Fasano
era ponto de encontro da elite
quando se localizava na Rua
Barão de Itapetininga e competia
com a Mappin Store
54
pelo título
de chá mais concorrido da cidade
na década de 1950 (ilustrações
73 e 74). Para frequentar ambos
os salões à altura, as mulheres
se vestiam comme il faut,
devidamente enchapeladas,
trajando modelos executados por costureiras experientes, com tecidos
importados, comprados nas casas elegantes do Centro, roupas compradas nas
sofisticadas casas de moda, como aquelas da Barão de Itapetininga, Marconi e
Arouche. (BRANCO, 2001, p. 68).
54
Fundada em 29 de novembro de 1913, era a loja de departamentos ligada à Mappin & Webb,
até então especializada em cristais e pratarias, e localizava-se na Rua XV de Novembro,
operando inicialmente com 11 departamentos. Em 1919 mudou-se para a Praça do Patriarca,
onde oferecia roupas d’après midi para as senhoras, feitas de étamine charmeuse ou crepe
georgette. As blusas eram de seda japonesa ou jumpers (blusa solta) feitos a mão. Quando
surgiu, o Mappin preencheu um vazio no comércio varejista. Era a loja que tinha de tudo, em
um lugar, portanto precursora dos shoppings modernos. Era uma loja de artigos finos para
senhoras, homens e crianças. Pioneira na confecção de catálogos para vendas por correio ou
telefone, bem como nos anúncios de ofertas nos jornais e inovações como promoções em
datas importantes, como carnaval ou semana santa, liquidações sistemáticas, quinzenas de
produtos e dias de saldos. Em 1939, ao se mudar para um novo endereço, na Praça Ramos de
Azevedo, teve uma significativa ampliação em seu salão de chá, onde passaram a acontecer
os desfiles de moda. Além disso, foram abertos anexos, o American Bar e um salão de
banquetes, a Sala Verde. Almoçar no Mappin era uma grande pedida, conferia status e
merecia registros dos colunistas sociais. Observando as transformações em curso no país, a
alteração dos costumes e o crescimento da classe média, o Mappin percebeu um novo
consumidor e deu andamento a um processo de deselitização, cujo auge se deu em 1948,
quando inaugurou seu setor de roupas prontas. Cf. BRANDÃO, 2005, p. 4-10.
Ilustração 73. Salão de Chá do Mappin, s.d.
Fonte: Arquivo O Estado de São Paulo
109
Em meados da
década de 1950 surgiu a
primeira loja de
departamentos, a Modas
Clipper,
55
em Santa Cecília,
que revelou uma das pioneiras
da moda feminina, a estilista
Sonia Coutinho. Para a Modas
Clipper, ela organizou os
primeiros desfiles de moda
feminina com manequins
francesas e a partir de então foi que se iniciou a consciência de moda,
acentuada por revistas como A Cigarra, Jóia, Manequim, O Cruzeiro,
Manchete, Cláudia e Desfile (GIBERT, 1993, p. 135-136).
Por volta de 1955, essas revistas possuíam páginas dedicadas à
moda e mostravam modelos dos designers franceses de alta costura, como
Christian Dior, Jean Patou, Pierre Balmain, Hubert de Givenchy, Mme Carven,
Pierre Cardin e Coco Chanel, entre outros; dos italianos Fabiani, Conessa, Jole
Veneziani, Battilochi, Bianchini, Biki, Carosa, Germana Marucelli, Sarli; dos
ingleses Alexon & Co., S. Simpson, Daks Skirts, Crayson, Bicley, Verner
Culture; e dos americanos Bergdorf & Goodman, Bonwit Teller, Dest & Co. e
Adele Simpson. Essas criações eram apresentadas acompanhadas de textos
citando o nome da modelo, tecidos utilizados, algumas técnicas construtivas e,
por vezes, ilustrações de Alceu Penna, com textos de A. Ladino. De um modo
geral, eram peças mais formais, feitas com tecidos requintados, saias bem
amplas ou muito ajustadas ao corpo, ideais para moças mais maduras.
Modelo escolhido, era necessário adequar o tecido perfeito para a
execução da peça. Com o deslocamento da elite para os Jardins, comprar
tecidos finos na Augusta, nas tardes de sábado, passou a ser um programa
obrigatório para mulheres de fino trato. As preferidas eram as tecelagens
55
O publicitário João Dória é considerado o pai do Dia dos namorados devido à campanha
criada para as Modas Clipper em 1949. A idéia era alavancar as vendas em junho, um mês
sem datas comerciais relevantes, e a agência de ria foi contratada para criar uma grande
campanha de vendas. Com o slogan “Não é só com beijos que se prova o amor”, Dória criou
não só uma campanha genial, mas uma nova data comercial copiada por diversas lojas e que
recebeu o reconhecimento oficial da Confederação do Comércio de São Paulo.
Ilustração 74. Salão verde do Mappin, s.d.
Fonte: Arquivo Casa Anglo-Brasileira S.A.
110
Franceza, Hasson e Firenze.
56
Com os tecidos comprados, era recorrer às
costureiras ou não. Por sorte, a mãe de Raquel Fucheron Valente,
57
coordenadora do Curso de Desenho de Moda da Faculdade Santa Marcelina,
uma das fontes orais do trabalho, era uma ótima costureira, e as roupas, do
jeito que Raquel imaginava, ela as tinha. O trabalho da sua mãe “era alta
costura mesmo, tudo feito manualmente, não se colocava um zíper, mas sim
um colchete, tudo preso à mão, o chuleado feito à mão”.
a família da arquiteta Maria Inês Bonagura,
58
outra fonte oral,
recorria aos serviços de uma costureira.
Ela vinha em casa umas duas vezes por semana e fazia roupa para a semana
inteira. Minha mãe comprava o tecido em uma daquelas tecelagens da Augusta e
a costureira ia fazendo as roupas conforme os modelos que escolhíamos em
revistas, tanto na Manequim como em algumas importadas, como a Burda e a
Vogue. Lembro quando fui fazer uma viagem de navio. Eu fui à Franceza, comprei
um monte de tecidos, chamei a costureira e mostrei os modelos nas revistas:
‘Quero um desse, um desse, um desse, um desse, um desse, um desse’, porque
no navio você tinha de pôr um vestido por noite. Ela fez todos! (BONAGURA, 4 de
agosto de 2006).
Isso significa que, no início do prêt-à-porter em São Paulo, ainda a
classe média alta recorria a costureiras particulares, que copiavam das
criações apresentadas em revistas. Naquela época, além das tecelagens, o
comércio de luxo ainda não tinha se instalado definitivamente na região. A
Augusta acreditou que poderia ser luxuosa quando, nos anos 60, a
Peleteria Americana de Rosana Libman deixou seu endereço na Barão de
Itapetininga para se instalar no Conjunto Nacional” em 1964, quando passou a
chamar-se Madame Rosita (BEIRÃO, 2005, p. 97-98). Nascida no Uruguai e
ex-cronista de moda do jornal El País, Rosana mudou-se para o Brasil
acompanhando seu marido, então cônsul do Uruguai e, em 1935, fundou sua
loja, especializada em peles. Dois anos mais tarde começou a desenhar
modelos inspirados nas coleções que via em Paris para clientes com
sobrenomes estrelados, como Matarazzo, Guinle e Abreu Sodré. Em 1945
montou no Teatro Municipal um dos primeiros desfiles-espetáculo de que se
tem notícia no Brasil. Em 1948 foi a primeira a trazer o New Look de Christian
Dior para o Brasil (ilustração 75) e, em 1968, já instalada no Conjunto Nacional,
56
Fundada por Abrão Adib na Rua 25 de Março, mudou-se no final de 1950 para a Augusta.
57
Entrevista concedida em 29 de junho de 2006.
58
Entrevista concedida em 04 de agosto de 2006.
111
mostrou a coleção Pucci, feita
com tecidos assinados pelo
próprio estilista. “Era uma loja
maravilhosa, mas caríssima! Uma
vez comprei uma estola de pele
de raposa por dois mil lares!”,
contou Ana Maria Olmos, ex-
modelo exclusivo da Rosset.
59
Para ela, essas iniciativas eram importantes, pois traziam para o Brasil o que
estava acontecendo de mais moderno nas metrópoles da moda, como Londres
e Paris, para fazer “explodir” na Augusta. Adolpho Rodrigues,
60
que
trabalhava como jardineiro (também carregador, flanelinha e lavador de carros),
cuidava dos jardins da Madame Rosita, logo pela manhã, porque “lá
tomávamos o café da manhã, o café-com-leite e biscotinhos de nata que era
[sic] a melhor coisa que existia na época. Ela que fazia. Ela morava no
Conjunto Nacional e levava para a gente”.
Em 1954, sem o bonde, a região foi servida por uma linha de
troleibus e, na implantação desta linha, o jornal O Estado de o Paulo
acentuou a importância da Rua Augusta na mudança da fisionomia da cidade:
Na Rua Augusta, que hoje inaugurada sua linha de TROLEIBUS, desdobram-
se as atividades do comércio, no afam incessante de atender as necessidades das
populações dos Bairros-Jardins. E nessa grande artéria temos, formando
verdadeira vitrine abastecedora, o comércio que atende diretamente às famílias
paulistanas: luxuosas casas de modas, magníficos institutos de beleza, elegantes
magazines, casas de móveis e decorações, bancos, grandes mercearias,
confeitarias acolhedoras, panificações modernas, lojas de calçados, eletricidade,
discos, cinemas, boites, restaurantes, casas de carne e todos os demais ramos de
comércio indispensável à vida moderna (O ESTADO DE SÃO PAULO, 25 de
janeiro de 1953).
Segundo Ebe Reale, a vida social era efervescente na Augusta, a
nova Cinelândia paulista, com o Cine Paulista na esquina da Oscar Freire,
onde se reunia a estudantada do bairro”. E informa a seguir que “[...] na
década de 50 foi o Paulista reformado, passando a ser um cinema lançador.
Mais tarde, cerrou suas portas, dando lugar a uma galeria, mas seu nome está
ligado a todo um momento da vida da população dos Jardins”. Segundo ainda
59
Entrevista concedida em 28 de junho de 2007.
60
Entrevista concedida em 09 de junho de 2006.
Ilustração 75. New Look na Madame Rosita, 1948
Fonte: Arquivo Madame Rosita
112
Reale, apesar da posterior concorrência dos shopping centers, a rua conseguiu
manter seu prestígio até os anos 1970, com lojas e galerias repletas de
butiques, que eram “ponto de atração para a população, não dos bairros
mais próximos, mas de toda a cidade. E a juventude continua elegendo-a como
palco para os passeios descontraídos das manhãs ou para os ‘embalos’ das
noites de sábado” (REALE, 1982, p. 142).
A Augusta transformou-se em “sinônimo de glamour na cidade, um
complemento à sofisticação da confeitaria, do restaurante e do jardim de
inverno do Fasano, que brilhava absoluto no espigão da Paulista (IACOCCA,
1998, p. 70). Cheiros e gostos eram um capítulo à parte na história da rua.
Segundo o chef Silvio Lancelotti, a partir da instalação da requintada
Confeitaria Fasano, a rua passou a
receber casas com receitas
memoráveis: “Coxinha de galinha e
casadinho de camarão da Rotisserie
Bologna; Steak Moustarde e
Shaschlik à Siberiano, do
Restaurante Patachou;
Chateaubriand no Molho Madeira,
do Longchamps, e o unânime chá
completo da Confeitaria Yara”, com
seu sanduíche de croissant
(RAGAZZO, s.d., p. 9).
Eram locais frequentados
assiduamente por aqueles que iam
comprar de dia (ilustração 76),
lanchar ou jantar no final da tarde e paquerar à noite, como relembra Cátia
Mori.
Dava para ficar o dia inteiro na Augusta. Passeava, via as novidades nas butiques,
descia e subia a Augusta, via gente bonita, bem vestida, exótica,, comprava uma
roupa quando a mesada permitia, comprava maquiagem da Biba acho que na
Galeria Ouro Fino, gostava do cheiro dos incensos. Depois ia tomar sorvete
perto da Praça Oswaldo Cruz, voltava para casa, me produzia e, à noite, muitas
vezes ia ver o movimento lá. Era muito bom, muito divertido, e lembro que eu
voltava satisfeita para casa (MORI, 16 de novembro de 2007).
Ilustração 76. Frequentador da Augusta, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
113
O novelista Yves Drumont lembrou que “namorávamos no Frevinho,
marcávamos ponto no Lancaster, muito filme precioso foi visto graças às
matinês do Astor, disco de sucesso chegavam antes às prateleiras da Hi-fi. Os
mais românticos, quando algum free-lance inesperado permitia, arriscavam
consumar uma conquista, ao sabor de algum uísque de rótulo preto, no velho
Escócia; ou de um chá completo nos inesquecíveis salões da Confeitaria Yara”.
(RAGAZZO, s.d., p. 13).
Os jovens tinham muitas opções: além do famoso beirute do Frevo,
a pizza brotinho do Simbad e o chocolamour do Flamingo, a Augusta recebeu
ainda as primeiras lanchonetes a vender hot dogs e hamburgers no Brasil, em
sintonia com o american way of life da juventude difundida por Hollywood e
pelo rock´n´roll. “Em plenos Anos Dourados, o salão [do Fasano] era cenário de
concorridos bailes de formatura, protagonizados por garotas de saias rodadas
e laçarotes na cabeça e rapazes de smoking e topete carregado de brilhantina,
que dançavam ao som da orquestra de Sylvio Mazzucca sob o efeito de várias
doses de cuba-libre, a bebida da moda entre a juventude da época”
(IACOCCA, 1998, p. 70).
Raquel Valente também tem muitas memórias relacionadas à
gastronomia da Rua Augusta. Frequentadora assídua das lanchonetes que
serviam o sanduíche sensação da época, deliciava-se com o hot dog
tipicamente americano, acompanhado por batatas chips, servido em uma
caixinha de papelão listrada. “Era pão e salsicha, e ficava naquelas
maquininhas girando, bem anos 50”, recordou.
Outro ponto de
encontro memorável para
Raquel era a Confeitaria Yara
(ilustração 77), “com cara de
alemã, como se fosse uma
touceira e tinha um salão de
chá todo com bancos de
couro, que eram rabiscados
pelos namorados que
pichavam corações com seus nomes. Um horror”. Por outro lado, o chá
completo fazia com que se esquecesse de tudo: “O lanche era muito bom.
Ilustração 77. Chá na Confeitaria Yara, 1963
Fonte: Revista Claudia
114
Tinha um suco de framboesa que só eles faziam! Tinha também os merengues
com morango uma especialidade deles! o bolo de árvore, tostadas
americanas”, relembra.
Para ocasiões mais formais, a grande pedida era a Confeitaria
Fasano, “mas ia com minha família, porque era caro na época e os jovens
nunca iam sozinhos”. Domingos à tarde eram reservados para ir com a irmã à
Sorveteria Flamingo, para tomar um chocolamour. “Era sorvete de chocolate
com cobertura, chantilly e aquela farofinha”, delicia-se Raquel.
Anos depois foi inaugurada a Pub, lanchonete que introduziu o
formato fast food na Augusta e atraiu muitos jovens: ”Era o máximo! Eles
fritavam as batatas naquelas cestas, para mergulhar no óleo que hoje em dia é
comum... A lanchonete era moderna, bonita, toda azul... Sempre que eu ia,
comia batata frita”, relembra Raquel.
Porém, a Augusta não era apenas um ponto de encontro
gastronômico. Entre a Avenida Paulista e a Rua Estados Unidos, eram oito
quarteirões de comércio fino, sofisticado, caro para uma clientela de altíssimo
nível. Um comércio de elite, sobretudo moderno e variado, como notou Maria
de Lourdes Teixeira, autora do livro Rua Augusta:
Lojas de lãs e casimiras, com tailleurs esquartejados nos mostruários. Armazéns
de comestíveis exibindo pilhas de lataria em apresentação de colunas retas e
curvas. Lingerie quase imponderável pendendo de biombos dourados. Bôlsas de
couro ao lado de fulares e luvas. Sombrinhas na mão de manequins acéfalos,
feitos de arame roxo. Frascos de perfume entre brincos e pulseiras. Retalhos de
damasco servindo de fundo a binóculos e máquinas fotográficas. Cofres
entreabertos derramando fios de pérolas e de ouro. Bancos. Sapatarias.
Boutiques. Casas de chá, de discos, de modas. Farmácias. Livrarias. Automóveis
estacionados.(...) Por enquanto, um estado de transição. Em remanescentes do
passado, instalações modernas ostentando um comércio de luxo que abrange
todos os ramos das utilidades e frivolidades (TEIXEIRA, 1969, p. 203-204).
Essas instalações citadas pela autora permitiam que a Augusta
fosse comparada com outras mecas do consumo mundial, como Saint-
Germain-des-Prés (França) e Greenwich Village (Estados Unidos).
As memórias de Maria de Lourdes coincidem com o de Inês
Bonagura, que morava na Alameda Itu, 1030, a meia quadra de distância da
Rua Augusta.
Era possível encontrar literalmente de tudo na Augusta. Minha mãe tinha
recomendação médica para o andar muito, mas quem aguentava isso morando
tão perto da Augusta? Todo mundo fazia tudo a pé, subindo e descendo aquela
115
rua, inclusive minha mãe: ela andava aquela Augusta de cima a baixo, fazia boas
compras porque de tanto olhar as vitrines, sabia todos os preços de cor e na
época das liquidações, ela sabia exatamente se estava mesmo com preços mais
baixos (BONAGURA, 4 de agosto de 2006).
Para ela, o mix de lojas ia muito além do que havia de mais
badalado em termos de roupas e acessórios, e incluía outros segmentos, como
armarinhos.
A Ludi, onde eu comprava fio para empinar pipa. Além dela, tinha a Cerello, de
móveis de rattan, que na época já vendia coisas de vime, sisal; a Bibelot, de
perfumes e cosméticos, onde eu comprava rímel Helena Rubinstein e sombras
Max Factor, além de cílios postiços; e a Bettoni,
61
uma loja que vendia colchões e
travesseiros perto da Rua Estados Unidos (BONAGURA, 4 de agosto de 2006).
Raquel Valente acrescentou ao depoimento de Maria Inês que a
Casa Almeida, especializada em enxovais, e os supermercados de luxo, como
a Vilex e a Casa Santa Luzia. A Augusta, observou, era feita de pequenas lojas
com muita sofisticação. Não havia grandes lojas ou magazines: eram apenas
lojas de charme, aquela ideia das butiques, com produtos charmosos, sempre
supernovos”. Inclusive, por um ano, a professora Berenice de Siqueira Rabello
foi sócia de seu irmão Luis Gonzada, ex-designer da Casa Vogue e ex-
assistente de Clodovil, em uma butique na Galeria Ouro Fino.
Ele queria ter sua confecção, executar suas criações, confeccionar as próprias
roupas para vender, como o que acontecia com aquelas butiques bacanas como a
Biba. Só que vendíamos apenas roupas, e ainda assim fizemos um certo sucesso,
conquistamos clientela, mas, por falta de conhecimento de como administrar o
negócio, um ano depois tivemos de fechar as portas. Imagine só: não sabíamos
nem que podíamos comprar tecidos no atacado para diminuir nossos custos!
(RABELLO, 11 de julho de 2009).
Esse depoimento mostra como os jovens empreendedores da época
eram sonhadores e ousados, e, ao mesmo tempo ingênuos, sem conhecimento
nem preparo adequado. Mas às vezes dava certo.
61
João Bettoni aprendeu seu ofício com o pai, proprietário de uma fábrica de móveis.
Estudante de contabilidade no período noturno, João montou a Colchoaria Bettoni, no início,
um pequeno negócio de fabricação de colchões. Fundada em 9 de julho de 1937, na esquina
da Rua Augusta com a Alameda Itu, em 1945 mudou-se para um espaço maior, no número
2917, próximo à Rua Estados Unidos. O sucesso da loja foi graças à qualidade dos produtos
vendidos e o atendimento personalizado dispensado aos clientes, em sua maioria famílias ricas
e exigentes do bairro. Com o tempo, a griffe Bettoni virou sinônimo de status, destacando-se
pelos colchões especiais. Cf. RAGAZZO, p. 57-58.
116
Na ilustração 78, duas
garotas usando saias retas, acima
dos joelhos, e blusa que se
parece com twin-set, uma com
cabelo curto à la garçonne e
outra com cabelo escorrido e com
bolsas a tiracolo, com jeito de
estudantes observam, de fora, a
vitrine de uma butique que expõe
roupas e acessórios; dentro, duas
moças mais maduras, vestindo tubinhos ou conjuntos, cabelos em penteados
altos, parecem estar vendo um produto. Esta ilustração mostra como a Rua
Augusta, apesar de atender a uma elite, também comportava juventude menos
privilegiada que, eventualmente, faziam suas compras.
O comércio era bem diversificado e tudo que se desejava estava à
venda na Augusta e nada muito barato, porém não impossível de ser
consumido. O importante era estar e ser visto, e, na época, não havia lugar
melhor para isso. Tudo que era moda podia ser comprado antes na Augusta,
tal como o cenário perfeito para a constante atualização da lógica-moda
definida como diversificação marginal e renovação perpétua por Gilles
Lipovetsky. Na Augusta, o universo de bens de consumo funcionou como o
sistema de novidades permanentes, no qual o conforto consumista era
oferecido incessantemente e a oferta de estímulos processava-se por meio do
consumo da mudança, das possibilidades de experiências de prazer e de
“viagens” ligadas à novidade incessante dos produtos (LIPOVETSKY, 2007, p.
164). E as novidades não paravam: o ciclo de vida dos artigos que podiam ser
encontrados em suas lojas era cada vez mais efêmero, de consumo
instantâneo, desde os mais recentes lançamentos da moda internacional até os
discos que estariam na parada de sucessos na semana seguinte e esquecidos
nas semanas posteriores.
A nova moda chegava antes na Augusta. Para Berenice Rabello,
Augusta era perfeita para se pesquisar o que estava na última moda:
Nos anos 60 meu irmão trabalhava com moda e, às vezes, ele pedia que eu
fizesse algumas pesquisas de campo. E o meu campo de pesquisa tinha de ser a
Ilustração 78. Jovens observam vitrine, 1967
Fonte: Revista Realidade
117
Rua Augusta. Afinal, era que a moda era lançada, e se a gente queria saber se
uma tendência tinha pegado, era lá que a gente tinha de ir olhar (RABELLO, 11 de
julho de 2009).
Para Raquel Valente, não era ver: “Todo mundo queria fazer
parte daquele universo lançador de moda!”. Mas, segundo ela, a intenção não
era apenas ver, era ser visto, pois um dos objetivos de se dirigir para a Augusta
era de se mostrar. Para tanto, era preciso ir “montada” (gíria atual para bem
vestida, bem produzida com as últimas tendências) e mais para desfilar do que
para copiar roupas, pois as revistas eram suas maiores influências estilísticas:
“Eu procurava as informações nas revistas, e não nas lojas, porque nas lojas
tinha acontecido. Tinha essa coisa de antecipar um pouco a tendência. Mas é
lógico que, vendo o que acontecia, parte das informações era incorporada
também”, ponderou. Para se destacar no meio da multidão, Raquel recorria a
“uma extravagância a mais, a cor da moda, bijuteria mais exagerada,
maquiagem mais exagerada”, afinal a competição era grande. Os
frequentadores da Augusta dos anos 1950 até 1970 eram os mais bonitos e
elegantes da cidade, todos bem vestidos, com os acessórios combinando
(VALENTE, 2006).
Desde os fins dos anos 1950, ninguém ficava imune aos modismos:
calça jeans na época conhecida como rancheiro ou faroeste (ilustrações 79 e
80) e camisa vermelha, rádio portátil grudado ao ouvido, chiclé de bola, os
Ilustrações 79 e 80. Anúncio calça Far-West (1967) e calça rancheiro (1958).
Fonte: Revista O Cruzeiro
118
prazeres do hambúrguer, suspeitos fixadores para manter o topete armado.
Para Raquel, o jeans foi o marco da ruptura.
Para mim, virou antes e depois de 1965. Nesse ano, eu tinha 15 anos e o mundo
teve uma ruptura enorme no comportamento, em que o jovem começou a
acontecer, pois até então não existia! Tenho fotos aos 14, 15 anos em que estava
usando tailleur de lã, sapato salto alto de verniz preto e um coque enorme na
cabeça, nas quais pareço mais velha do que hoje! em uma foto de 1968, estou
de jeans, sapato boneca comprado na Casa Tod’s da Rua Augusta e de camisa
Lacoste. Mas minhas primeiras peças compradas na Augusta não eram de jeans,
não era o índigo blue, eram de sarja bege. Teve um ano em que ganhei dinheiro
no Natal e fui com meus primos comprar calças na Augusta. Fui à Casa Tobi, que
vendia calça Lee bege, para nós quem usava jeans índigo blue eram só os
homossexuais que frequentavam a Praça da República! (VALENTE, 29 de junho
de 2006).
Para Maria Inês Bonagura, os sapatos da Tod’s eram imbatíveis,
apesar de gostar também dos mocassins da Spinelli, também apreciados por
Ana Maria Olmos. Esta inclusive se vestia com o prêt-à-porter vendido na
Augusta da cabeça aos pés. Os sapatos eram feitos sob medida pela Adriano,
uma sapataria que ficava em uma travessa da Alameda Itu. “Quando ganhei
minha primeira calça jeans, importada dos Estados Unidos, foi uma emoção”,
lembrou.
62
Muitos jovens dirigiam-se para Augusta de ônibus, muitas vezes
apertados, cruzando toda a cidade, como lembrou Yves Drumont. Para ele,
estar na Augusta era possível para todos, embora ser parte da Augusta, em dia
com todas as novidades da moda e tudo o que bolsos bem abastecidos podiam
pagar fosse uma realidade apenas para poucos (RAGAZZO, s.d., p. 13).
Desde os anos 1920, a publicidade escolheu o caminho da
exaltação da juventude, enquanto as escolhas e decisões de compra
permaneciam reservadas essencialmente aos pais. Já nos anos 1950-60, os
jovens adolescentes, com o dinheiro dado pelos pais para pequenas despesas,
as mesadas, que se tornaram práticas corriqueiras, e influenciados pelas
propagandas e produtos culturais que lhe eram destinados, começaram a
emergir como consumidores independentes dos pais (LIPOVETSKY, 2007, p.
119-120).
62
Enquanto isso, os jovens com menos poder de consumo, como Flávio Albertini, usavam
ainda roupas feitas pelas costureiras de bairro, com tecidos comprados em lojas mais
populares, como as da Rua 25 de Março. A única peça do vestuário que ainda eram
compradas prontas eram as calças, adquiridas em lojas de departamentos, também no Centro.
119
Em contraposição aos estabelecimentos comerciais tradicionalmente
voltados à elite, a Rua Augusta viu nascer um novo segmento de consumidor, o
jovem, emancipado da lógica familiar. Raquel Valente lembrou-se de sua
primeira visita sozinha à Augusta, em que foi acompanhada apenas por uma
amiga.
Eu recebia mesada, era uma privilegiada, tinha vida gostosa, sem preocupações.
[Eu e minha amiga] pegamos um ônibus e descemos em frente da Loja Slopper,
63
na Avenida Paulista. comprei uma bolsa pequenininha, parecia um caixotinho,
tipo bauzinho. Depois passamos pela Madame Rosita e descemos a Rua
Augusta para o nosso delírio. Tivemos aquela sensação de liberdade e foi então
que comecei a frequentar a Augusta, principalmente para ver roupas e toda a
badalação envolvida! Foram dez ou onze anos de frequentar a Augusta de
verdade! (VALENTE, 29 de junho de 2006).
Um dos points
obrigatórios da Augusta era a Hi-
Fi Discos (ilustração 81), onde
anônimos e famosos como Elis
Regina, Rita Lee e Sérgio Dias
garantiam os últimos lançamentos
musicais, usando últimas
tendências em moda. Seu
proprietário, Hélcio Serrano, havia
sido comissário de bordo e trazia
de suas viagens discos de
sucesso. Ao fundar sua loja tinha
a proposta de “trazer música de
todo o mundo e levar todo mundo
para a Augusta”. Era o melhor
lugar em São Paulo para se encontrar os discos e para os agitos. Ficava no
trecho da Augusta próximo à Alameda Franca e dividia o prédio com os artistas
plásticos Wesley Duke Lee e Antônio Peticov, autor dos painéis psicodélicos
que decoravam a loja. A Hi-Fi abrigou momentos notáveis, como shows
63
Loja de roupas e acessórios femininos, frequentada por senhoras e moças mais
comportadas. Para ficar com visual parecido com o da modelo inglesa Twiggy, Raquel apelava
para “três quilos de maquiagem nos olhos, inclusive delineador verde, delineador preto,
delineador branco”, base e de arroz da marca Charles of the Ritz, que contava com a
mesma tecnologia cosmética que as marcas mais badaladas atualmente, como a Guerlain e a
Chanel, empregam hoje em dia.
Ilustração 81. Hi-Fi Discos, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
120
improvisados de Raul Seixas, um dos clientes mais fiéis, e outros inusitados,
como em 1965, quando Serrano montou em um elefante alugado, em plena
Augusta, para dar visibilidade à loja, que tinha como lema não ser preciso
esperar um ano para ouvir os últimos sucessos (BEIRÃO, 2005, p. 51-52).
Como muitos dos jovens possuíam em casa uma vitrola, bastava ir à Hi-FI e
comprar o disco desejado.
Havia também a possibilidade de ouvir no rádio suas músicas
favoritas, nas quais se reconheciam. Ao contrário do consumo semicoletivo
vigente até então, nos anos 1950 surgia o “indivíduo-ouvinte” que se
generalizou nos anos 60 (LIPOVETSKY, 2007, p. 103-104). E, se o dinheiro
estava disponível, surgiam incessantemente novas vontades de consumir. Ou
seja, quanto mais se consumia, mais se queria consumir. Para o economista
americano Thorstein Veblen,
64
a ênfase incontestável estava numa dimensão
essencial de moda: o dispêndio demonstrativo como meio para significar uma
posição, para despertar a admiração e expor um estatuto social, já que o
consumo das classes ricas caracteriza-se, sobretudo, pela preocupação em
sublinhar sua posição social e de se distinguir das outras classes
(LIPOVETSKY, 1989, p. 56).
O consumo ostentatório é mbolo de um nculo a um grupo
privilegiado e o preço elevado de certos bens é a única causa por que os
mesmos são desejados. Quanto mais aumentar o preço desses bens, tanto
mais seu consumo satisfaz as exigências sociais do grupo e tanto mais
importante é sua procura. O objeto de consumo não é desejável nem atrativo
em si, mas sim nas exigências de prestígio e de reconhecimento, de status e
integração social:
Juke box, fliperama, pin-up, patinete, rock’n’roll, toca-discos, transistor, televisão,
Club Mediterranée, cadeira “Djinn” de aspecto zoomórfico, design pop, jeans e
minissaia, uns tantos produtos certamente muito diversos, mas que, associados à
juventude ou a Eros, à mobilidade e à liberdade, à provocação e ao divertimento,
suavizaram, dinamizaram o imaginário consumidor”
(LIPOVETSKY, 2007, p. 38-
39).
Uma das formas mais contundentes de manifestação desse
fenômeno foi em relação ao vestuário. Era, basicamente, a expressão da
64
Economista e sociólogo americano, Thorstein Veblen (1857-1929) é o fundador da escola
institucional de análise econômica, o do papel das instituições na ordenação do capitalismo.
121
atitude em relação à sociedade uma vez que, diferente do arrumadinho que
prevalecia até então, os jovens escolheram o jeans, a jaqueta de couro, a
camiseta. O desabotoado e o despojado voluntários eram igualmente signos
ostensivos de uma resistência às convenções sociais do mundo dos adultos,
conforme lembrou Morin (1989, p.114).
No entanto, na Augusta também circulavam pessoas com menos
posse, como o Adolpho Rodrigues, cuja namorada que trabalhava em um
prédio da Oscar Freire era “muito metidinha a ser patroa, então ela gostava de
desfilar pela Rua Augusta”. Ao mesmo tempo, a rua era local de exclusão:
ele e seu primo tinham de ser apresentados sempre por conhecidos para
outros que trabalhavam ou circulavam pela rua, por exemplo, o gerente da
Tecelagem Francesa, “que era uma pessoa 100%”, para não serem tomados
como indigentes,
“via um preto e um branco andando na rua, porque meu primo tinha pele bem
escura e eu sou meio moreno, todo sujo com aquele monte de ferramentas nas
costas [de jardineiro], então eles pensavam que deviam ser mendigos, aí ele
apresentava a gente como rapazes que tomavam conta dos jardins, como
jardineiros. Então a gente foi ganhando confiança do pessoal da Rua Augusta (...).
Foi lá que a gente conheceu o Dener”. (RODRIGUES, 09 de junho de 2006).
Mesmo assim, fazer parte da rua, do “povo mais selecionado” era
importante:
“geralmente no final do ano (...), as famílias perguntavam que número a gente
vestia, porque eles iam para os Estados Unidos renovar o guarda-roupa e o antigo
eles davam tudo. Eu andava na maior estica, camiseta, camiseta pólo importadas
[sic], calça boa, tinha vezes que a gente tinha de pagar alfaiate para apertar as
calças. A gente pegava essas calças, mas ficava grande e só por causa da
etiqueta a gente mandava apertar, ajustar para poder usar, sapato bom, não
existia tênis, tênis só veio aparecer de 80 para cá, nós íamos beber cerveja à noite
lá para baixo, os caras confundiam a gente, a gente era tudo pobretão e confundia
a gente com os ricos. Comer, a gente comia bem; café da manhã também bem;
vestir, se vestia bem e sem gastar um centavo. Era umplayboy” sem moto..
O glamour da rua foi feito por “por um povo mais selecionado, então o auge era ter
uma camisa com etiqueda da rua Augusta. Nossa Senhora! Se a camisa
acabasse, arrancava a etiqueta e passava para outra, só para ter a etiqueta,
escrito Rua Augusta. sim, era filho de bacana, era burguês, que tinha uma
camisa daquelas. Não era qualquer um não”. (RODRIGUES, 09 de junho de
2006).
Portanto, estar na Augusta significava incorporar papéis, “conferindo
o poder de pertencer a um determinado segmento, marcado pelas aspirações
sociais e econômicas daquela época” (BENTO, 1998, p. 71). Significava
também fazer parte, ser up-to-date, falar as gírias certas, passar a imagem de
122
bacana e “prafrentex”, usar as roupas da moda, transformando o jovem em um
poderoso mercado consumidor que, ao buscar “sua identidade no seu ídolo
estava à procura de si mesmo”, conforme observa Valdivia (2002), para
completar:
Por isso consumia os produtos que o fazia construir sua identidade representada
nos objetos, na música, no estilo (...) A figura do playboy está associada ao rock,
ao consumo, à delinqüência, a gangues, à velocidade, desenhando a figura do
jovem que se diferencia do mundo adulto através de seu comportamento. A mídia
explorou essa imagem dos cantores de rock e dos ídolos do cinema norte-
americano” (VALDIVIA, 2002, p. 147-148).
Hoje, o termo playboy refere-se a outro tipo de atitude,
65
mas, no
período, era o arquétipo do jovem americano incompreendido e, por isso
mesmo, rebelde, irreverente, despojado, inconsequente, sem rumo, cuja
filosofia era “viver rápido e morrer jovem”.
Esse estilo chegou ao Brasil com Marlon Brando (O Selvagem, de
1953) e James Dean (Juventude Transviada, de 1955). O visual outsider, a
personalidade rebelde e contestadora dos dois ídolos hollywoodianos, foi
copiado pela juventude local: para Walter Benjamin (1996, p. 113), era tornar-
se semelhante e agir segundo a lei da semelhança, tipo confirmado por Erasmo
Carlos que, ao assistir a esses filmes, “saía do cinema querendo tirar onda de
falso mau” (SANTOS, 1997, p. 140).
Dessa forma, o cinema e a música estadunidenses (principalmente
de Elvis Presley) inspiraram os jovens e encontraram um mercado promissor.
Dessa forma, iniciaram “o conflito de gerações e a identificação enquanto
indivíduos diferentes dos ‘outros’ procurando sua identidade, em modelos
prontos como filósofos, cientistas, políticos, atletas, artistas entre outros,
passando a ser ídolos [citando Sigmund Freud] desses jovens” (VALDIVIA,
2002, p. 146-149). A busca por sua identidade, pelo inédito, como forma de
questionar e até negar as gerações anteriores, fez do jovem um excelente
mercado de consumo de produtos, já que tendência comum dentro desse
grupo é afirmar sua própria moral, arvorar seu uniforme (blue jeans, blusões,
suéteres), a seguir sua própria moda, a reconhecer-se nos heróis e fazer parte
de uma gangue, respondendo a estruturas afetivas elementares do espírito
65
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, “homem, geralmente jovem, rico e ocioso, que se
entrega a uma vida social intensa, ao convívio de belas mulheres, aos esportes, etc.”
123
humano, baseadas na participação comunitária em determinado grupo
(MORIN, 2005, p. 154-155).
Os barquinhos da Bossa Nova tinham dado lugar ao cadillac de
Roberto Carlos e companhia. Inspiradas no rock estadunidense e no visual dos
Beatles (ilustração 82), a Jovem Guarda espelhou um país cuja prioridade
governamental estava na indústria de base e no setor de bens de consumo
duráveis, como o automóvel e a TV, “consolidando um mercado consumidor
interno, atingindo as ‘classes’ sociais de poder aquisitivo, e também as de não-
poder aquisitivo que economizavam seus ‘centavos’ para poder ingressar no
paraíso do consumo” (VALDIVIA, 2002, p. 68). Para Flávio Albertini, os jovens
passaram a se reconhecer com uma nova categoria após a popularização
da TV. “Foi uma revolução, os programas de televisão mudaram tudo: as
roupas, o comportamento, o jeito de falar”, lembra.
“O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está
ultrapassada” foi a frase pinçada de um discurso do líder soviético Vladimir
Lenin pelo publicitário Carlito Maia, para batizar um dos movimentos mais
expressivos dos anos 60. A Jovem Guarda nasceu, oficialmente, em 22 de
agosto de 1965, com o programa de mesmo nome, apresentado por Roberto
Carlos, que completou a programação de domingo da TV Record, canal 7
(ilustração 83). Com o sucesso, mudou para um horário de maior visibilidade,
nas tardes de sábado, e tornou-se uma febre a tal ponto que ninguém saía de
casa durante sua apresentação (BENTO, 1998, p. 47). Foi a “música que
divertiu, sensibilizou e traduziu sentimentos e formas de comportamento para
Ilustração 82. Erasmo, Wanderléa e Roberto, s.d. Fonte: Manchete Press
124
aqueles que viveram e/ou experimentaram esse cotidiano” (VALDIVIA, 2002, p.
98-99). O ambiente ideal para cantar amores e aspirações juvenis era a Rua
Augusta.
[...] o point preferido de Erasmo Carlos, com jaqueta e calça de couro, correntes,
pulseiras e vários penduricalhos, fazendo pegas de madrugada em seu Fusca
verde-abacate com escapamento ensurdecedor, envenenado; Wanderléa de moto
Ducatti 350 e BMW conversível e Roberto Carlos com seu Aero Willys (BEIRÃO,
2005, p. 45).
“Toda essa produção de representação juvenil que envolveu Roberto
Carlos e outros integrantes da Jovem Guarda, esteve vinculado à cultura de
massa, divulgada pela mídia”, afirma Valdivia (2002, p. 117). Para completar:
“Um dos caracteres fundamentais da cultura de massa é o sincretismo entre o
imaginário e a realidade. Desta forma, esse tipo de cultura busca o máximo do
consumo”. Ou, como lembra Flavio Albertini:
Todos queriam o Roberto Carlos: todo mundo se vestia como o Roberto Carlos e
queria o Roberto Carlos. Até quem morava no meu bairro, que tinha menos
acesso a essas coisas da moda, cantava música do Roberto Carlos. As
meninas, então, ficavam enlouquecidas! Corria o risco de eu ser apedrejado se
confessasse que achava a voz dele um pouco fanha mas ele era o Roberto
Carlos e quem ia ligar para uma coisa dessas? (ALBERTINI, 16 de maio de 2009).
Ilustração 83. Programa Jovem Guarda, 1966. Fonte: Agência JB
125
A Jovem Guarda tinha sua própria moda ditada por Roberto, Erasmo
e Vanderléa: minissaia,
66
calça saint-tropez boca de sino, camisas de tecido
brilhante com mangas compridas bufantes e golas grandes como a de Elvis;
botinhas, correntes grossas no pescoço, pulseiras mesmo para homens, e o
famoso anel Brucutu. Era comum ver jovens das melhores famílias roubarem o
esguicho de água para limpar o para-brisa dos fuscas (“brucutu”) e com eles
fazerem seus anéis (GONTIJO, 1987, p. 94).
De um dia para outro, a
Augusta foi tomada por clones do trio: a
produção em massa permitia o consumo
de modo maciço e aproveitando o
sucesso do trio, a agência de
publicidade Magaldi, Maia & Prosperi
coordenou industrialmente a imagem da
Jovem Guarda, criando as marcas
Calhambeque (ilustração 84),
Tremendão e Ternurinha, para produtos
que iam de bonecas, chaveiros,
lapiseiras e porta-cadernos até calças,
botas, chapéus, cintos, coletes e blusas
em tecido azul, imitando o índigo
(FAÇANHA, 2000). A trinca também
podia ser vista toda hora entre a
Augusta, onde desfilavam seus carros envenenados e motos posstantes, e a
Bela Cintra, onde ficava a loja favorita da Jovem Guarda, o Ao Dromedário
Elegante. Aberta em 1968, a estilista da loja era a mineira Regina Helena Boni
que, além da Jovem Guarda, vestia os tropicalistas Gil, Caetano e Gal, relação
que se iniciou quando, sob encomenda, Regina Boni produziu as roupas de
plástico (ilustração 85) para Caetano Veloso (É proibido proibir) e os Mutantes
(2001), no Festival da Record (LIMA, 1969, p. 66-71). “Caetano ainda se
lembra de que estava vestido de plástico verde e negro, com uns colares de
66
Maria Inês Bonagura contou que os pais ficavam indignados ao ver suas filhas se deparando
com moças de minissaia. “No começo da moda, meninas de família não podiam nem sonhar
em usar minissaia”, lembra. a ex-modelo Ana Maria Olmos foi uma entusiasta da minissaia
desde o começo.
Ilustração 84. Roberto Carlos em anúncio
para a coleção Jovem Guarda, 1966
Fonte: Revista Realidade
126
correntes, tomadas, coisas
quebradas, pedaços de
lâmpadas, uma coisa muito
estranha”. (VENTURA, 1988, p.
202).
Por incrível que
pudesse parecer, a faixa etária
predominante dos
frequentadores da loja ia dos 30
aos 40 anos. Em suas araras,
podia-se encontrar peças
criativas, divertidas e informais:
“um gigantesco baú onde se misturam bolsinhas antigas, guarda-chuvas dos
anos 30 feitos de material à prova de balas, boás, xales da vovó, calças de
vinil, coletes de couro, de placas de metal, de acrílico” (LIMA, 1969).
Os jovens, que tinham em Roberto Carlos um ídolo, relacionavam-se
com ele no processo que Morin chama de “projeção-identificação”. Poucas
características definiram tão bem a juventude da época como o amor por
carros e motos e o gosto pela aventura e velocidade. Além de simbolizar poder
material e condição de conquista sentimental, “a paquera motorizada
(ilustração 86), em que moças e rapazes se jogavam para dentro do veículo
Ilustração 85. Caetano e os Mutantes em roupas de
plástico, 1969. Fonte: Manchete Press
Ilustração 86. Paquera motorizada, s.d. Fonte: Arquivo O Estado de São Paulo
127
alheio, empacando a circulação” (BEIRÃO, 2005, p. 49) representou o extremo
oposto do amor pela velocidade: passear no fim da tarde (ilustração 87) e
durante a noite na Rua Augusta era garantia de grandes congestionamentos.
Se, durante o
dia, a efervescência se
dava nas calçadas, e os
carros até poderiam
entrar “na Augusta a
120 por hora”, ao
escurecer, tudo
mudava. A velocidade
era trocada por filas
intermináveis de carros
que não saíam do lugar,
substituindo a arte de ver vitrines pela de observar quem andava pela calçada
e, ainda mais, quem dirigia os carrões ou quem estava sobre as lambretas.
Então, o que andava a 120 quilômetros por hora não eram mais os carros, mas
a paquera.
Apesar de a paquera ser livre e democrática, não sofrendo
influências e limitações sociais, a “boa paquera” impunha certas regras. “Nos
anos 60 nem carro eu tinha, ia fazer o quê na Augusta?”, lembra Flávio
Albertini. Além de um bom “possante”, o bom paquerador sempre devia estar
bem vestido, ter “papo firme” e agradável e, muito importante, nunca procurar
se afobar. “Professores e diplomados na Escola da Paqueragem” garantiam
também que uma certa dose de cara-de-pau ajudava a resolver impasses e
facilitava a abordagem (MONTANDON, 1967, p. 90-93).
As mulheres não deixavam por menos e se vestiam para matar em
busca do paquera perfeito. “As moças se emperiquitavam todas e saíam em
grupos para a Augusta”, lembra Albertini. Berenice Rabello era uma dessas
moças: programa infalível de sábado era ir para a Augusta com as amigas para
paquerar.
A paquera podia começar durante as compras, mas era à noite que a coisa ficava
mais bacana! Nós nos embonecávamos todas: muita make, rímel para deixar os
cílios postiços bem espessos, muita sombra, olhos marcadíssimos para ficar
Ilustração 87. Congestionamento na Augusta, s.d.
© Claudine Petrolli
128
parecida com maquiagem da Twiggy, que eu via nas revistas - Vogue, Marie
Claire francesa, Manequim, Cláudia, Realidade (RABELLO, 11 de julho de 2009).
Em seguida, era embarcar no carro com as amigas e se jogar no
sobe-desce da rua, até que algum rapaz pedisse para parar para conversar.
“Alguns rapazes estacionavam o carro e ficavam olhando o movimento, já
outros paravam um carro com mulheres que estivesse seguindo em sentido
contrário”, relembra Berenice. “Mas às vezes, a paquera não rendia, então ou
íamos ao cinema ou ao Frevinho para comer um lanche”, completa.
A paquera não acontecia apenas na rua. Ao longo da Augusta,
existiam inúmeros endereços onde os jovens podiam parar para bater papo
com suas conquistas fisgadas no trânsito, como a drugstore Mondo Cane,
entre a Rua Oscar Freire e a Alameda Lorena. Após sua inauguração,
converteu-se no quarteirão mais procurado e badalado da Augusta. Era que,
principalmente no sábado de manhã, entre 11h e 13h, a vida da Augusta diurna
atingia o ápice: meninas bonitas sendo paqueradas por rapazes bem
arrumados; mulheres da alta sociedade pelas calçadas, mostrando suas
roupas elegantes; alguns poucos playboys desfilando com seus carros bonitos
e bem equipados; adolescentes de ambos os sexos passeando de motocicletas
em alta velocidade e com direito a algumas surpresas: de dentro de uma loja
podiam sair, inesperadamente, grupos de moças e rapazes montados em suas
jump-balls, saltando de um lado para outro das calçadas (ZWETSCH, 1960, p.
56-61).
Segundo seu proprietário, Eduardo Branco, a clientela da Mondo
Cane batia cartão para badalar, ver e ser vista, mas sem nunca deixar de
comprar. Seu modelo de negócio inspirava-se nas drugstores americanas e
europeias, casas de comércio variado, de alta categoria, que trabalhavam com
artigos de butique, discos e, às vezes, livros e revistas. A maioria dispunha de
bar, lanchonete e sorvetes, e na Mondo Cane podia-se encontrar roupas
masculina e feminina, discos, lanches. Para Berenice Rabello havia o mais
importante: os drinques. “Sofisticados e coloridos, servidos em copos imensos,
exclusivos, com frutas espetadinhas”, em que entravam receitas secretas,
verduras, rosas e até cascas de frutas. “A loja vendia de tudo, tinha uns
almofadões espalhados pelo chão, era maravilhosa”, lembra ela.
129
Só na Rua Augusta havia três drugstores: Mondo Cane, Kleptomania
(ilustração 88) e Drugstore. A sofisticação de todas elas determinava uma
“seleção natural” do público, pois os preços eram altos, consequentemente a
clientela era de classe A (ZWETSCH, 1960, p. 56-61).
Ilustração 88. Vitrine da Kleptomania, s.d. Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
Igualmente bem frequentada era a Paraphernália. Aberta na
Alameda Franca, sob o comando de Lidia Chammes e Guaracy Lopes, a
charmosa butique não tinha nada de comportado ou careta: muito pelo
contrário, de tão up-to-date que era, podia estar em Sloane Square. A moda da
Paraphernália tinha a cara suingada de Londres, voltando as costas para o
tailleur e o clássico de Paris (BEIRÃO, 2005, p. 98-99). Era uma das lojas
favoritas de Berenice Rabello, porque “vendia de tudo lá, desde roupas,
acessórios aincenso, era um misto de tudo!”. para Ana Maria Olmos, o
endereço certo na Augusta para encontrar produtos com a cara de Londres,
como roupas, bijuterias e cosméticos das marcas mais in da época, como Biba
e Mary Quant, era a Pandemonium.
Também na Augusta, ficava a Rastro, de Aparício Basílio da Silva,
onde se podia encontrar desde roupas exclusivas, obras de arte e rodadas de
vinho com membros eminentes da cultura local até a colônia cult que leva o
mesmo nome da loja (BEIRÃO, 2005, p. 98-99). Raquel Valente era fã: “A
130
gente passava e deixava um rastro mesmo”, brinca. “Entre 1965 e 1966, a
Rastro era uma coisa totalmente nova. Um perfume como o Rastro, que
impregnava tudo, aquela loja toda cor-de-rosa, em plena Rua Augusta, era
sensacional!”, complementa.
A Augusta era um lugar fantástico, tornando acessível um mundo
que os jovens conheciam do cinema e da televisão. A rua deixou de ser apenas
um espaço físico comensurável para se tornar uma entidade moral, esfera de
ação social, província étnica dotada de positividade, domínio cultural
institucionalizado e, por isso, capaz de despertar emoções, reações, leis,
orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas
(ZWETSCH, 1970, p. 56-61). Tanto era que até mesmo antes de ir à Augusta
pessoalmente, pela primeira vez, Berenice Rabello já queria fazer compras lá.
De tanto ouvir falar e ler, tinha vontade de comprar as coisas que vendiam lá.
Tinha de ser da Augusta, porque era o que estava na moda. Saindo da
adolescência, era o que importava! E como não eram tantas as coisas que podia
comprar, várias vezes ia lá, via vitrines, gostava de algo, levava meu irmão para
ver a roupa, para ele fazer uma igual para mim (RABELLO, 11 de julho de 2009).
Berenice também recorria às lojas de departamento do Centro, como
o Mappin e a Clipper, para abastecer o guarda-roupa. Mas sapatos, bijuterias
e, mais tarde, camisetas, tinham de ser da Augusta.
Nesse sentido, as vitrines da Augusta eram essenciais para garantir
essa clientela fiel. Para subir e descer a rua, não era suficiente apenas estar na
moda, mas sim estar na última moda, fazendo com que as vitrines fossem
efetivamente uma fusão entre a rua e as casas comerciais. Era imperativo
parecer que tinha acabado de sair das vitrines de uma das lojas da rua – vitrine
badalada era o que não faltava e, por ser altamente vista, essa estética
programada passou a interferir na formação do gosto dos consumidores
(OLIVEIRA, 1997, p. 19) e a virar moda, transformando as ruas em verdadeiras
amostras das dinâmicas sociais, em que a escolha do sapato, entre os muitos
dispostos na vitrine, era feita mais pelo que a moda ditava do que por sua
função primeira – proteção e do conforto dos pés.
Assim, todos queriam estar na Augusta e parecer-se com seus
ídolos e, o que não era difícil, o que Walter Benjamin determina como uma
preocupação apaixonada das massas modernas: fazer as coisas ficarem mais
131
próximas, “com sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos
através de sua reprodutibilidade (BENJAMIN, 1996, p. 168-170). Cada dia fica
mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de o perto quanto
possível, na sua reprodução.
A TV e o rádio foram decisivos na propagação do estilo dos novos
ídolos e na sua fugacidade, pois,
[...] paralelamente, a perpétua incitação a consumir e a mudar (publicidade,
modas, vogas e ondas), o perpétuo fluxo dos flashes e do sensacional conjugam-
se num ritmo acelerado em que tudo se usa muito depressa, tudo se substitui
muito depressa, canções, filmes, geladeiras, amores, carros. Um incessante
esvaziamento opera-se pela renovação das modas, vogas e ‘ondas’. Um filme,
uma canção duram o tempo de uma estação, as revistas esgotam-se em uma
semana, o jornal na mesma hora” (MORIN, 2005, p. 177).
Porém, em 1969, a Augusta perdeu sua aura cult com a partida de
seus heróis emblemáticos. Roberto, Erasmo e Wanderléa estavam de volta ao
Rio “pela mesma razão que os tinha trazido a São Paulo: a TV Globo, nova
emissora de TV xodó do Brasil. A Augusta perdeu o status, retornou aos ofícios
do comércio e nunca mais foi a mesma” (BEIRÃO, 2005, p. 49). Para Cléber
Ragazzo, a Rua Augusta,
palco onde se reunia o crème
de la crème, influenciava de
forma lendária a vida cultural
e social do país. Localizada
em um dos pontos mais
nobres da cidade e por ter
sido a primeira e única rua do
mundo a ser acarpetada
(ilustração 89), era o
endereço das melhores lojas,
restaurantes, cinemas, livrarias e locais de lazer da cidade e passarela
constante de pessoas bonitas e famosas (RAGAZZO, p. 9-10). “Com a abertura
do Cine Astor no Conjunto Nacional, não precisávamos mais ir para o Centro
para assistir a um filme. E ainda tinha a Livraria Cultura e a Confeitaria
Fasano!”, suspira Raquel Valente. “Além do Astor, tinha o Cine Rio e também o
Marabá no bairro, eu era criança ainda e ia sozinha ver os filmes nas matinês”,
lembra Maria Inês.
Ilustração 89. As sete alamedas acarpetadas, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
132
A Augusta, principal rua dos
Jardins na época, exalava o
cosmopolitismo (ilustração 90). ”Por seu
perfil mítico, pode ser definida como a
parte de São Paulo que menos se parece
com São Paulo, cujo rosto se refere a
diversas cidades, como New York,
Chicago, Londres, Barcelona, Milão”
(BEIRÃO, 2005, p. 23).
Ilustração 90. Augusta nos anos 70, s.d.
Fonte: Rua Augusta: a calçada da glória
133
Considerações finais
A liberdade do corpo conquistada nos anos 1960 não teve
precedentes na história da humanidade. A emancipação feminina, principal
favorecida nesse processo, traz consigo uma moda mais confortável e prática,
condizente com o estilo de vida moderna, em sintonia com o clima e o cotidiano
da mulher ativa e participativa; e até hoje na moda observam-se ainda as
roupas que se usaram nessa época, como os tubinhos, as calças de cós baixo,
a minissaia que apesar de identificada com as mais jovens, foi extremamente
democrática, já que as mulheres mais maduras também se arriscaram em
comprimentos acima dos joelhos -, as botas, as meias colantes em outros
têxteis, cabelos lisos escorridos etc. Com o corpo à mostra, surgiram novas
preocupações, como a boa forma e, por conseqüência, a boa saúde. Essas
preocupações levaram a um avanço da medicina em prol da alimentação
equilibrada e da vida saudável, em que se pode incluir a prática de esportes,
inclusive as mais radicais, como o surf e o alpinismo. E hoje uma
preocupação efetiva em relação ao meio ambiente, cuja semente tinha sido
plantada pelos hippies 50 anos antes.
A década foi, certamente, um divisor de águas na história da moda,
e foi nesse período que realmente a moda brasileira nasceu. Ainda que fosse
incipiente e copiada do exterior, como foi constatado no decorrer do trabalho,
tanto pelas imagens da Jovem Guarda como pelos desfiles e espetáculos
realizados durante a Fenit e editoriais de revistas.
O período também se caracterizou por uma intensa confluência de
idéias, que foram assimiladas não só pelos confeccionistas, mas também pelos
próprios consumidores, que muitas vezes buscaram essas idéias ou
perceberam essas referências por meio da mídia, e de forma cada vez mais
intensa, pois nesse momento houve um grande desenvolvimento dos veículos
de comunicação e portanto um acesso muito maior à informação.
Dessa forma, observou-se que houve iniciativas no sentido de se
produzir uma moda de acordo com o clima brasileiro, valendo-se dos trabalhos
dos artistas brasileiros, conferindo às estampas uma brasilidade maior e a
134
moda diferenciada, porém fácil de assimilar, foi oferecida pelas butiques.
Importante notar que, tanto no Brasil como no exterior, foi nesse período que o
jovem surgiu como potencial consumidor, adquirindo o poder de decisão e de
compra totalmente desvinculados de seus pais. E mesmo os estudantes,
aqueles que não se diziam tão interessados, consumiam a moda ao adotarem
o jeans e outros looks mais descontraídos.
Quanto à forma de produção de moda, verificou-se uma intensa
migração das clientes da alta costura para o prêt-à-porter, bem como o fato de
uma classe que consumia até então uma moda desprovida de design, passou a
ter acesso a produtos de melhor qualidade, devido ao avanço na indústria têxtil,
que se utilizou de maquinários e tecnologia mais modernos. Houve uma
democratização decorrente do desenvolvimento e popularização de novos
tecidos, sintéticos, mais baratos, apesar de o exatamente confortáveis e de
imporem certos inconvenientes, como, por exemplo, não deixarem transpirar
convenientemente.
As mudanças verificadas na moda da década de 1960 persistem até
hoje também na forma de apresentação dos desfiles, mais descontraída, com
música. Outras áreas relacionadas à moda também conheceram evolução que
prevalece, como a fotografia de moda e a crescente profissionalização da
cadeia têxtil, que se potencializou com maior intensidade a partir dos anos
1990, com grandes eventos realizados principalmente em São Paulo, como os
desfiles da União Nacional da Indústria Têxtil (UNIT), que apresentou novos
talentos, entre eles grifes hoje estabelecidas no mercado, como A Mulher do
Padre, de Vinicius Campion; o Phytoervas Fashion, que deu visibilidade a
talentos como Alexandre Herchcovitch, Fause Haten e Walter Rodrigues, que
após alguns anos evoluiu para Morumbi Fashion e posteriormente, São Paulo
Fashion Week. Esse crescimento da moda favoreceu de forma bastante
intensa todo o setor têxtil, que é o segundo maior empregador de mão de obra
no Brasil, ficando atrás apenas da construção civil.
A Rua Augusta, no entanto, não mais reviveu os momentos de glória
do passado, apesar do resgate do lado “maldito” (sentido Centro) por diversas
tribos urbanas, onde foram abertos bares e danceterias badaladas. As lojas
chiques, de grifes refinadas, ainda permanecem nos Jardins não mais na
Augusta, mas em seu entorno.
135
Segundo os entrevistados, a Augusta perdeu o glamour e a posição
de local mais badalado da cidade devido a uma série de fatores, principalmente
a abertura de shopping centers e as comodidades oferecidas, bem como a
deterioração do trânsito. Dessa forma, a Augusta voltou a ser o que era em
suas origens: uma via de passagem que, sem as lojas sofisticadas, teve
alteração do perfil de seus freqüentadores nos anos 1970. Por reunir um
comércio mais popular, até a paquera das noites de sábado mudou: os
congestionamentos se mantiveram, mas os carros importados sumiram de
circulação e os jovens bem-nascidos passaram a freqüentar, paquerar e
comprar nos shopping centers (MENDES, 2000, p. 6) que, além das lojas,
ofereciam atrativos cada vez mais decisivos para seus freqüentadores como
lanchonetes, cinemas, vagas de estacionamento e, principalmente, segurança
– já que a cidade estava se tornando cada vez mais violenta.
136
Fontes
Entrevistas
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maio de 2009.
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140
Anexo 1 – Entrevista com Adolpho Rodrigues
67
Qual a trajetória, de sua origem até a rua Augusta?
Vim “fugido” de Minas Gerais, da minha família, de Governador Valadares, e
cheguei na Rua Augusta com 10, 11 anos, para trabalhar com meu primo e ser
caseiro com ele, que tomava conta de uma casa na Augusta, pouco abaixo
da Alameda Santos, aprendendo a profissão de caseiro e estudar, porque não
sabia ler nem escrever. Estudei em escolas públicas como Colégio Maria José,
depois vários anos no Colégio Rodrigues Alves e, como não tinha mais vagas
no Rodrigues Alves, fui estudar no Grupo Escolar Humaitá, depois no Colégio
Passalaqua, na rua 13 de Maio, e terminei o segundo grau. Ganhei bolsa de
estudos no Liceu de Artes e Ofícios e, para ter uma profissão, fiz o curso de
entalhe, porque gostava de marcenaria e me identifiquei com o curso. Não
terminei o curso, de 5 anos, porque no terceiro ano o Liceu “acabou” e tivemos
que sair com meio-certificado, mas trabalhei em marcenarias e fui me
especializando em entalhes.
Disse que veio “fugido” de Minas. Veio sozinho?
Vim sozinho. Meu primo foi uma vez para Minas, em Governador Valadares,
onde meu pai tinha um armazém de secos e molhados, e eu trabalhava como
faxineiro, e deixou uma carta com seu endereço de São Paulo. Eu nunca tinha
vindo para São Paulo, nunca tinha visto um prédio na minha vida, o prédio mais
alto que tinha visto era de dois andares que era o sobrado da minha família. Eu
era filho do prefeito, que era o meu pai, eu era bem conhecido na cidade. Eu
peguei um mil cruzeiros da caixinha que ele guardava o dinheiro, porque um
dia antes tomei uma surra daquelas, de deixar quinze dias mole, e pus na
cabeça de ir até a gaveta do meu pai pegar aquele endereço, porque ele falava
sempre que São Paulo era uma maravilha, que em São Paulo tudo dava
dinheiro, quase se achava dinheiro na rua e eu fiquei com aquilo na cabeça. E
eu pensava, nossa!, deve ser um lugar..., pelo menos não vou apanhar,
ninguém vai me bater... (risos). Eu fiquei com aquilo durante várias semanas.
E, um dia, no armazém, peguei um mil cruzeiros e o envelope, fui para
rodoviária e comprei uma passagem, falando que era para meu irmão, que era
vereador na cidade e estava muito ocupado. Foi assim que vim para São
Paulo, quase contrabandeado. (risos)
Com qual família da rua Augusta o seu primo trabalhou?
Na época, ele trabalhava para diversas famílias, porque era jardineiro, ia para
um jardim, limpava, e depois ia para outro jardim, na Paulista, na Augusta, nas
imediações da Tietê, Franca, Lorena, Oscar Freire. Então, ele cuidava do
jardim de lojas, aquelas floreiras de lojas e, no fim-de-semana, na sexta e
sábado, íamos para depois da alameda Santos para baixo para lavar os
carrões – os navios todos – de manhã.
Que época foi essa? Havia muitas casas nessa época na região?
67
Adolpho Rodrigues é zelador da casa à Av. Paulista, 1919 e comerciante de postais.
Entrevista concedida em 09 de junho de 2006.
141
Foi em 69, 70. Tinha ainda muitas residências de médicos, advogados, famílias
tradicionais que moravam ali para baixo.
Por que se estabeleceu na Augusta?
Porque o meu primo estava por aqui muito tempo, mais ou menos vinte
anos. Então ele conhecia as famílias tradicionais da área dos jardins, e uma
família, na Alameda Santos esquina com a Haddock Lobo, cedeu uma casa
nos fundos do tipo casa de garagem, para tomar conta, cuidar das árvores, do
jardim, que era da família Cardoso de Almeida. Cuidávamos das casas na
Augusta, na Paulista, no Pacaembu. Acordávamos às 3:00h da manhã, íamos
para o Manequinho Lopes, no Ibirapuera, e trazíamos várias mudas, de terças
e quartas. Subíamos a Brigadeiro, passávamos na Paulista e, como os portões
eram todos abertos na época e não tinha o que existe hoje, deixávamos as
mudas e descíamos a rua Augusta deixando as mudas nas travessas, nos
jardins de outras casas. Depois, subíamos de novo pela Bela Cintra ou
Haddock Lobo, e o primeiro jardim que aguávamos e tomávamos conta era o
da Madame Rosita, na Paulista, porque lá tomávamos o café da manhã, o café-
com-leite e biscoitinhos de nata que era a melhor coisa que existia na época.
(risos). Ela que fazia, ela morava no Conjunto Nacional e levava para a gente.
A primeira boutique dela foi no Conjunto Nacional, antes de comprar e se
mudar para a mansão na Paulista. Na esquina da Alameda Santos com a
Padre João Manoel, morava o Dr. Vicente, do outro lado onde está o flat era a
barbearia do paranaense alemão, na Alameda Franca morava uma família
alemã e nós limpávamos o jardim, varríamos a calçada todinha, cuidávamos do
lixo, e onde a gente deixava as mudas, fazia a poda das roseiras e das gramas
e replantava com novas mudas trazidas do Manequinho Lopes.
Então começou como jardineiro?
É, comecei como ajudante de jardineiro. Tinha que trabalhar e manter o estudo.
Ele me ensinou a profissão e fui aprendendo outras profissões e, quando
estudava no Liceu e o Liceu “acabou”, fui trabalhar na rua São Caetano, depois
da Avenida do Estado, com um senhor e ganhava meio salário mínimo, eu
lembro até hoje que era mais ou menos dezessete e setenta por mês,
dezessete mil cruzeiros e setenta centavos (sic), trabalhava meio período como
aprendiz de restaurador de tapeçaria para Ford 28, de onde veio a paixão por
cartões, por coisas antigas, por antigüidades. Eu era desfiador, porque os
assentos dos Fords antigamente eram feitos com fibras de coco maduro e a
gente batia com pente de aço, soltando as fibras para fazer o assento do Ford.
Era oficina de um italiano, sr. Nicole, sr. Nicola,que seguia a tradição da
restauração da tapeçaria dos carros.
Qual a primeira memória da Rua Augusta aos 10 anos de idade?
Ela era movimentada, tinha sempre o glamour desse movimento, a partir de
quinta, sexta, sábado, ela era ainda de paralelepípedo, o trilho do bonde estava
ainda abandonado no meio da rua. Na descida da Alameda Santos para a
Oscar Freire existiam muitas casas ainda, tinham muitas lojas de comércio,
mas era um comércio mais tradicional. A coisa que me lembro bem mesmo e
que a gente tomava conta até dos vasos que tinha na frente era a Tecelagem
Franceza, não me lembro do nome do administrador, ele era uma pessoa
100%, ajudou tanto a mim quanto meu primo. Apresentava a gente para
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pessoas, para outros proprietários de lojas que eram assim..., via um preto e
um branco andando na rua, porque meu primo tinha pele bem escura e eu sou
meio moreno, todo sujo com aquele monte de ferramentas nas costas, então
eles pensavam que deviam ser mendigos, ele apresentava a gente como
rapazes que tomavam conta dos jardins, como jardineiros. Então a gente foi
ganhando confiança do pessoal da Rua Augusta através desse gerente, não
sei se era proprietário da Tecelagem Franceza, que na época era uma loja
imensa, freqüentada mesmo pela alta sociedade, pela elite dos costureiros,
pelos grandes costureiros. Foi lá que a gente conheceu o Dener.
Fale sobre Dener...
Era uma pessoa sensacional, uma pessoa muito boa. Para nós, era uma
pessoa excelente, ele sempre tinha motorista, tinha aqueles LTDs, Landau,
chegava, sempre foi um cara de dar boas caixinhas (risos). A gente ficava por
ali, cuidando para ninguém chegar perto, ele saía, passava pelo motorista
dele, o motorista dele dava caixinha boa. Depois, esse “dono” da tecelagem
nos apresentou para ele e fomos cuidar do jardim dele, na esquina da Joaquim
Eugênio de Lima, onde ficava o atelier . Ele gostava muito de rosas e cravos,
arranjávamos então mudas de rosas no Manequinho e plantávamos para ele.
Ele era uma pessoa super gente fina.
Dener morava no atelier? Era casa ou apartamento?
A gente não sabia, porque ali, onde existe hoje o Edifício Savoy, era um prédio
residencial. Dizem que ele morava lá, e no térreo ficava o atelier, onde hoje fica
o MacDonald’s. O secretário dele, na época, chamou a gente para que, toda
vez que tivesse um desfile, em que vinha a alta sociedade, para assistir ao
desfile e comprar as roupas dele, a gente guardasse, limpasse e arrumasse os
carros direitinho na rua. Então, aprendemos outra profissão: a ser flanelinhas
(risos). A gente trabalhava de manhã de jardineiro e à noite de flanelinha
(risos). Mas era uma coisa muito boa, não existia o que existe hoje, essa
violência. Como meu primo sabia dirigir, ficava com a chave dos carros que
não tinham motoristas. Os bacanas deixavam a chave na mão dele! Mercedes
importado, quem tinha Mercedes na década de 70 era quase um milionário, era
muito caro o carro. Meu primo manobrava, guardava direitinho, como hoje com
valet. Na época, do lado da Madame Rosita, onde hoje está o Banco de la
Nación Argentina, existia uma garagem, na época não se chamava
estacionamento, que geralmente fechava às 6 horas da tarde. Então colocava
o carro em cima da calçada, do lado da porta, na época não tinha problema.
Eram todos carrões pesados, Mercury, Buick, Cadillac, Thunderbird. Quando
chegava Thunderbird, todo mundo ia em cima, porque sabia que a caixinha era
boa. Quem tinha carro desse porte era bom de caixinha. Depois, começou a
cair, os carros grandes vinham com motoristas e os motoristas não davam
nada. começamos a ir para os lados dos carros médios, que vinham sempre
com os donos. começaram a aparecer os Fuscas, os Opalas Comodoro,
começaram a aparecer os carros nacionais. A gente sabia o valor dos carros,
então quem tinha aquele carro, tinha dinheiro (risos). Geralmente carros
antigos, aqui se usavam muito o Buick, o Mercury, o Cadillac. Quando via
alguém chegando com o Cadillac Rabo-de-Peixe, ia rapidinho limpar, cuidar,
arrumar um lugar para ele rapidinho, porque geralmente a gente notava que
não tinha chapéu de bibico. Quando tinha chapéu de bibico, a gente nem ia,
143
porque era motorista. Ah, era gostoso... Meu primo ia todo certinho, todo
arrumadinho de paletó, que o secretário do Dener arranjava para ele, paletó
preto e um quepezinho. Agente usava quepe, e quando ia abrir o carro Landau,
LTD, para as madames, a gente tinha que usar luvas brancas, que vinha até o
meio do braço, por baixo do paletó, pegar na maçaneta e abrir a porta, não
podia abrir a porta do carro sem a luva e, quando a madame passava, tinha
que tirar o quepe e pôr debaixo do braço esquerdo e, com a direita, abrir a
porta. Tinha um ritual. Atender uma pessoa sem luvas e sem quepe era um
desacato ao patrão, ao cliente dele. Então, para “ficar bem na foto”, tinha que
fazer esse ritual. Luva branca, de preferência de cetim, bem brilhante, que
incomodava porque suava, sempre que não tinha cliente tirava e balançava a
mão para refrescar (risos). Aí, vinha outra, punha de novo, e sempre tinha que
manter a tradição: um sorriso largo na cara, mesmo que o sapato esteja
apertando (risos). Mas era gostoso, uma época sem maldades, sem violência,
sem o que existe hoje. Era época boa.
Que época foi esse período com Dener?
Mais ou menos 1971, década de 70, porque em 72, quando veio a reforma, o
alargamento da Avenida Paulista, eu lembro que ele não estava mais ali.
o prédio passou por uma reforma, passou de residencial para comercial, o
prédio ficou fechado vários anos. Mas assistimos ainda, acho que foi em 75 ou
76, aqui na Nossa Senhora do Brasil, o casamento da Elis Regina, onde ele foi
padrinho. Não chegamos a entrar, ficamos bem na porta, no tumulto todo.
Fomos com o negócio das flanelinhas (risos). O pessoal que conhecia a
gente daqui, eles iam para lá, os moradores bacanas, então a gente ficava na
esquina da Brasil, colocava faixas para guardar lugar, eles chegavam com
motoristas e entravam na vaga. A gente ficava guardando o carro daqueles que
a gente conhecia. Agora, dos outros o, que vinham com motoristas, com
toda aquela confusão em torno da igreja, muitos carros... Era o casamento da
Elis, a gauchinha, como nós chamávamos. Eu conheci a Elis quando ela vinha
para o ateliê, a gente conversava, brincava, era uma pessoa 1000%. Era uma
excelente pessoa.
O que a Augusta tinha de especial?
O especial dela eram as butiques. A alta sociedade que freqüentava e ainda
freqüenta a rua Augusta. Tinha um supermercado em baixo que a gente
roubava, desfiava o bacalhau para a gente poder comer, o Santa Luzia, eles
viviam tocando a gente de lá, eles podiam nem ver a gente passar na porta,
mas era por causa das butiques. A moda, na época, quando saía a moda no
Brasil, primeiro ela saía na rua Augusta, pra depois sair para o mundo. Era
assim. E os desfiles que tinham, ali virou um círculo de moda, de moda
realmente cara, tinham muitas costureiras, ateliês, quase todo mês tinha desfile
de moda, então era o glamour da rua Augusta, que foi feito por esse povo
selecionado, não foi como um shopping em outro lugar, foi um povo mais
selecionado, então o auge mesmo era ter uma camisa com etiqueta da rua
Augusta. Nossa Senhora! Se a camisa acabasse, arrancava a etiqueta e
passava para outra, só para ter a etiqueta, escrito rua Augusta. Aí sim, era filho
de bacana, era burguês, que tinha uma camisa daquelas. Não era qualquer um
não.
144
E você também teve uma dessas?
Eu tive, porque eu ganhava. Tinha uma costureira na Augusta, ela... (fomos
interrompidos)
Quando começou a trabalhar na Augusta vendendo objetos?
Quando comecei a trabalhar com marcenaria em uma galeria inaugurada ao
lado da rua Antonio Carlos, para fazer pôster de cinema e vender na rua
Augusta, já com moldura, mais ou menos em 76 e, depois começamos a
estampar e vender camisetas. Começamos mesmo a trabalhar na Augusta
quando começaram as demolições das casas da Augusta, e começamos a
catar cartões, a fazer as limpezas dos porões para demolir as casas.
começamos a juntar cartões, convites, e quando via que era interessante, a
gente ia guardando. foi aumentando. A gente ficou um tempo vendendo
painéis de cinema, comprava os cartazes de cinema nas distribuidoras,
montava e vendia, fazia os postais, ficava no Belas Artes, na época bem
freqüentado pela elite e vendia os pôsteres de cinema à noite.
Ainda teria esses materiais recolhidos da Augusta?
Tenho ainda algumas fotos que sempre encontrava nas demolições, fotos de
festas na rua, do clube dos motoqueiros da Oscar Freire, Clube da Vespa no
início da descida da Alameda Santos, fotos encontradas ao acaso, no lixo, e eu
fui guardando, guardando de lembrança e, depois, com o tempo, fui
restaurando e reproduzindo.
Tem muitos materiais ainda a restaurar?
Tem muita coisa para restaurar, que deixo guardado, bem dobradinhas dentro
de papel celofane para não perder a qualidade da foto. Estou garimpando com
filhos e netos das famílias que conheci, perguntando se tem fotos da rua, da
alameda Franca, Tietê, e eles me trazem fotos da avó que está frente ao
bonde, eu restauro, devolvo as fotos restauradas e me o o direito de expor
no meu mostruário e fica também no meu acervo. É tudo legalizado, o direito
de exibição da imagem e de comercialização. Tem vezes que nem querem
fazer esse documento, dizem que iam jogar fora mesmo e me dão, muitos me
trazem lotes de fotos, álbuns e nem querem a devolução de originais, dizem
que vão se mudar de casa para apartamento pequeno e não gostariam de ficar
com caixas de quinquilharias. Dizem “fica com vo e quando eu precisar
mesmo eu venho buscar”. Usam como arquivo também (risos). E assim vou
adiante. Tem muitas coisas, de desfile da rua Augusta, algumas casas, o Clube
dos Motoqueiros, porque, na época, a rua Augusta não era muito fotografada à
noite, então quem fotografava a Augusta era geralmente o pessoal que
freqüentava a noite da rua Augusta. Sexta-feira era dia de compras, bado de
lazer, aquele sobe e desce dos playboys da época, era muito divertido, os
tapetes da rua Augusta, os carros tinham que desviar, o carro da moda da
época era Kharmann-Ghia e o SP2, que eram o show, eram pequenininhos e
compactos, as motos Yamaha, 750 importada da Honda, tinha muitas Triumph,
as Harleys eram bem poucas, as pessoas que tinham uma Harley Davidson
que desciam a rua Augusta, como acontece até hoje, não podia nem chegar
perto, parecia que passavam cordões de isolamento, não podia nem encostar,
porque se encostasse, arranjaria encrenca pelo resto da vida, que era a paixão
deles (gargalhada). Porque não tinha muito no Brasil, tinha muitas poucas,
tinha mais no Rio e em outros lugares, aqui em São Paulo não. Eu me lembro
145
ainda que, uma época, mais ou menos em 76, o filho de uma família comprou
uma Honda 750, sofreu um acidente e veio a falecer. Então a moto ficou na
garagem por vários anos, era vermelha e branca, os caras chamavam de
Hollywood, porque parecia com a embalagem de Hollywood (cigarro), ficou
muito tempo coberta com lona e, um dia, o outro filho da família trocou essa
moto por uma banca de jornal na Avenida Paulista. Trocou pau-a-pau. Na
época, valia 200.000 cruzeiros. A banca existe a hoje, foi do sr. Luiz de
Jesus, falecido, quase na esquina da Consolação. Ele comprou, um ano
depois, que fica em frente ao Pão de Açúcar, da Consolação. Tinha também
metade de um prédio com padaria, hoje é um estacionamento. Há pouco tempo
fiquei sabendo que faleceu e sua ex-esposa vendeu o ponto, vendeu tudo. Na
esquina da Consolação com a Paulista existia essa banca de jornais, que era
do português, Dona Maria e Manuel Cabeça-Branca, que era metido a
comunista, com política, e um dia a banca amanheceu no meio da Consolação,
puseram fogo na banca dele, a torcida do Corinthians veio aqui e quebrou a
Paulista inteira, aquela bagunça toda, isso foi em 77 e, como a banca era
levinha e pequenininha, jogaram no meio da Consolação. Ele chegou de
manhã, chegou com maço de jornal, que antes tinha que buscar o jornal,
quando viu a banca no meio da rua, teve infarto e morreu. Aí, a Dona Maria
que não sabia administrar a banca, tinha uma quitanda na Consolação,
reformou a banca e colocou de novo no lugar e como o filho também não sabia
administrar, apareceu o Paulo que fez a troca da moto pela banca. Depois, o
pai dele, o Sr. Luiz de Jesus, fez sociedade com o filho, tocou a banca até
morrer, acho que em 2002, de problema cardíaco.
Teria parâmetros de comparação com outros “pontos comerciais” ? Por que
ficou na Augusta e não no centro da cidade?
(A pergunta inicial não foi respondida) Com o tempo, a gente assentou a poeira
e eu fiquei sendo caseiro de uma casa e como eu gosto demais da família, fui
ficando. Sobre o comércio, depois que inauguraram o terceiro shopping em
São Paulo, aí foi acabando a rua Augusta. Já foi mudando um pouco, começou
a linha de asfaltamento, a linha de demolição, mas mesmo assim, até a década
de 80 tinha bastante movimento, bastante loja, talvez até 85, mas não mais o
pessoal que vinha para fazer compras, gastar, passear, assistir a desfiles,
aquele auge dos anos 70. Dos anos 80 em diante, era mais o lazer,
começaram as casas noturnas, danceterias, na Consolação apareceu a
danceteria Hipopotamus, daí começaram os embalos de sábado à noite, que
mudaram o clima. Onde existiam os casarões de costureiras, foram
transformados em bares noturnos, em danceterias, discotecas, com vida
noturna.
Bastante freqüentada à noite e durante o dia nem tanto...
Durante o dia era mais para compras, mas o comércio estava mais fraco, por
causa dos shoppings. Boa parte das lojas já estava se mudando, já estava indo
para os shoppings, e quando abriram boates em volta da rua Augusta, junto
com elas veio a prostituição, vieram as drogas, a violência, veio tudo. Então os
lojistas da Augusta foram para outros lugares, o negócio começou a melar, com
a falta de segurança e abrindo um shopping atrás do outro, o movimento foi
baixando. Quem se manteve na Augusta foi porque tinha muito cacife. Inclusive
até a Hi-Fi, que era tradicional da rua Augusta, não tinha um artista que, para
146
uma apresentação na Record da Augusta, mesmo quando a Record era na
Consolação, não fosse na Hi-Fi. Tinha tarde de autógrafos, com Raul Seixas,
Elis Regina, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléia, a Wanderléia quantas
vezes vi subindo e descendo a rua Augusta de carro, o Tony , esqueci o nome
dele que fez desci a rua Augusta a 120 por hora, botando todo mundo da
calçada pra fora (cantarolando). A gente curtia demais isso. o movimento
começou a cair, acabou o clube do vespinha, o pessoal ficou mais para os
lados da Oscar Freire, e com casas noturnas tudo foi descendo para os lados
da Oscar Freire, do tipo “amaldiçoando um pedaço da rua” (risos).
começaram a aparecer bares, tinha muitos barzinhos na cada de 70, mas
eram pequenininhos com 30 a 40 mesas do lado de fora, na calçada, na rua,
era um agito, mas isso à tarde, e o pessoal descia para beber cuba-libre, crush,
grappette, geralmente no sábado não se via muita coisa até as 11:00h e depois
do meio-dia que começava a fechar e isso ia aa madrugada, trancava o
cruzamento da Paulista com a Augusta, juntava dois trolleybus no meio da
Paulista, ninguém subia nem descia. O lado de cá, o lado da paquera, era mais
por causa dos bares, das boates, para sentar-se nas mesinhas, conversar, ver
as motos, ver as vespinhas que estavam no auge também, e para curtir. Agora
o outro lado era mais o lado de boates da pesada mesmo. A gente chamava de
lado pobre e lado rico. O lado pobre era o lado das boates mesmo.
Fale sobre a lenda do medalhão. Por que um lado é rico e outro pobre, um lado
badalado e outro não.
Dizem que na época, Maria Augusta ganhou um medalhão do seu marido que
comprou num leilão de artes, em Paris. Arrematou o medalhão, chegou ao
Brasil e deu de presente a ela, que morava na Augusta, descendo, o lado da
Alameda Santos. E foi passear no Trianon, com medalhão, com várias pedras
de diamantes, rubis, uma coisa de doido, com cordões de ouro, uma jóia
poderosa da época. Um punguista, batedor de carteira, hoje a gente chama de
trombadinha, quando ela estava passeando no Trianon, bateu no peito dela e
arrancou o medalhão e saiu correndo. Ela chamou a Força Pública, os guardas
e saíram correndo até a Rua Augusta sentido centro. O guarda alcançou e
quando pegou o ladrão, ele caiu e o medalhão escapou da o dele e caiu no
bueiro. Procuraram, procuraram, e nada de encontrar o medalhão. Como ela
era bem apaixonada pelo medalhão, amaldiçoou a rua: que enquanto não
encontrasse o medalhão, a parte sentido centro da rua seria amaldiçoada pelo
resto da vida (gargalhada). Daí vem a lenda da maldição do medalhão. A
maldição do medalhão da Dona Augusta! O cara foi preso, mas nunca se
achou o medalhão, ninguém nunca achou o medalhão, foi revirada toda a rede
de esgotos, seguiram até onde deságua o Tamanduateí, acho que o esgoto da
Augusta desce e sai na 9 de Julho e, de cai no córrego Saracura que passa
abaixo, dali para o Vale do Anhangabaú e de para o Tamanduateí. Foram
para lá, puseram rede, mas nunca acharam o medalhão. Essa lenda é da
década de 20. Eu tinha uma foto de uma família que morava na rua Augusta,
aquele pedacinho da Antônio Carlos. Ele era motorista e tinha ido buscar um
Packard na concessionária de carro, no Largo Santa Cecília. Era, na época,
uma coisa louca! Ele tinha que subir a Augusta, para os lados dos Jardins. O
motorista resolveu parar em casa, como o Packard era um carro grande e ele
estava acostumado com carros pequenos, quando foi manobrar caiu na valeta
do esgoto que existia na rua Augusta. Não tinha calçamento nenhum, e na foto
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aparece bem o esgoto a céu aberto. Ligou para o patrão, chamou o patrão,
infelizmente o negócio era complicado, tirou a foto do carro e mandou para a
Prefeitura exigindo a canalização do córrego e o calçamento da rua Augusta,
porque morava e era proprietário de dois imóveis na rua Augusta e não podia
passar com o carro dele enquanto a rua estivesse daquele jeito. Não sei o
nome da família, mas tenho a foto. Estamos fazendo levantamentos para
descobrir e dizem que a foto foi tirada do lado da casa do motorista. Ali morava
a família Donatelli, que tinha uma loja, hoje Unibanco, do lado do Center 3
Por que Augusta era o point, ou virou point?
Por causa das casas noturnas. A moda que aparecia nos Estados Unidos, por
exemplo, como nos Embalos de Sábado à Noite, com John Travolta, ela ficou
mais badalada, porque a única pista de dança igualzinha ao filme era no
Hipopotamus, na Consolação. A primeira pista de dança luminosa, igualzinha
ao filme, com iluminação embaixo, assim eles dizem, foi no Hipopotamus.
Quem tinha um poder aquisitivo bom, ia para lá. Também houve a mudança do
Fasano da Paulista para baixo, os bons restaurantes, as boas casas
noturnas foram se concentrando em baixo, e virou superpoint. Tem a Oscar
Freire, que as lojas de grandes nomes, porque ali é a parte de descida.
Em que época as grifes chegaram na Oscar Freire?
Desde a década de 70 tinham lojas que vendiam produtos para a alta
classe. E eram materiais importados, coisas de cozinha importadas, tudo que
saía fora, primeiro lugar que se achava era na Augusta ou nas lojinhas das
imediações. Nos poucos shoppings que existiam não se achavam, só achavam
na Augusta. E por isso que se tornou esse point, com as casas noturnas e os
vários clubes que tinham. Os motoqueiros tradicionais, o clube Pégasus da Dr.
Arnaldo também começou na Augusta.
As pessoas entram em contato com você por causa dos postais?
Entram. Geralmente são historiadores, estudantes de engenharia, de
arquitetura, de paisagismo e colecionadores. Mas 60% dos meus clientes são
estudantes da USP, PUC, FAAP, escolas de engenharia de São Paulo, guias
turísticos que levam ônibus para determinadas regiões, cada um para uma
região, por exemplo aquele que faz a Av. Paulista, que mostra como era a
avenida, como foi a transformação, até chegar aqui com o ônibus e os turistas
ficam surpresos de como era antes e como hoje está. Outro anda pela
República, outro pelo Centro, porque eles dizem que é difícil um guia turístico
que abranja São Paulo inteira, ou ele fica louco, xarope da cabeça, ou fica
falando datas pelas ruas, com a cabeça balançando. Então eles dividem em
seção, um vai para o Pátio do Colégio, outro vai para São Bento, o
Anhangabaú, a Praça da Sé, a Praça Ramos, o antigo centro financeiro que
era Boa Vista e 15 de Novembro, então quando eles vêm aqui e vêem escrito
(nos postais) Rua do Império, atual 15 de Novembro, eles ficam doidos, não
sabem que chamava Rua do Império, porque o imperador passou várias vezes
por e ficou Rua do Império. Eu tenho um postal que está escrito Avenida
Paulista, antiga Real Grandeza, então além de terem mais ou menos uma aula
de história, eles conseguem mostrar aos turistas como era antes, e os alunos
de faculdades têm uma meia-aula de história, então eles sabem o que vão
colocar nas redações, o histórico, o que vão contar e todos eles, quando
148
voltam, eu garanto que todos eles quando voltam, dizem que tiraram 9,8 ou
então 10. (risos). Nunca um deles chegou aqui e falou tirei 4! O que tirou
menos aqui foi um guia turístico que ficou com 8,5, porque ele ficou meio
perdido com microfone, em falar com o público. eu falei, você tem que
relaxar, pegar o microfone e olhar para a frente e ver que não tem ninguém. No
seu pensamento não tem ninguém. Vai falando, dissertando tudinho, tudinho,
quando terminar fala “então é isso, muito obrigado” e vai ouvir os
aplausos. a sua ficha vai cair e você vai ver que tem um público, uma
platéia. E sabe que é isso mesmo? E isso sem nada, sem uma cervejinha
antes, e é assim que eu falo com o pessoal. Esse negócio de guia turístico,
antes de subir no ônibus, tem de passar uma imagem que é o auge, você é o
sabe-tudo. Tem de passar essa imagem de que você sabe, você estudou para
isso, então você não pode chegar no microfone e ficar parando sua palestra
para arrotar a cerveja que você bebeu antes. Você sabe que chegam aqui e me
falam que comigo aprendem coisas que não se fala na faculdade. É o que a
gente vive, tem turista que olha para mim e pensa esse cara bêbado, o que
ele vai ensinar para a gente?”, então o turista quer olhar para o guia turístico e
sentir firmeza no que ele está falando sobre a cidade, ele quer conhecer o
passado, o presente e o que ele está vendo aqui, que é o futuro dele, que vai
ser mais tarde o futuro, que nem o casarão, algumas casas que ainda restam
nos Jardins, de famílias tradicionais, na Av. Brasil, na Augusta.
A Augusta ainda é visitada por turistas ou não?
Ainda é. Tem um roteiro que vem de Pinheiros, anda pelos Jardins, sobe a
Groelândia e vem pela rua Augusta, como eu vendi muitas fotos da rua
Augusta inclusive para esses guias turísticos que fazem essa área, eles
compraram vários cartões postais para mostrar como era o movimento da rua
Augusta, alguma fachada de loja, a última que eu tenho é a Jeans Store, então
eles passam e falam que essa loja veio do primeiro mundo, a arquitetura dela,
essas coisas. Eles criam certo clima com os turistas, então eles falam da rua
Augusta, falam do glamour, dos clubes que existiam, das danceterias, hoje
inclusive até levam para passear na Oscar Freire, mostram como era a Oscar
Freire antigamente, com alguns casarões e mostram o que hoje é a Oscar
Freire, tem muitos que pedem para descer e visitar loja e vêm subindo a rua
Augusta, na Galeria Ouro também tem muitos que param, para cima da Ouro
Fino também tem outra galeria, que tem a Julian Marcuir, tem uma galeria de
arte no fundo, eles param ali, que sai na Consolação, uma galeria enorme que
esqueci o nome. Tem uns quatro ou cinco guias turísticos que param aqui e
compram fotos, e fazem Pinheiros-Jardins-Augusta, cruzam a Paulista e vão
embora para o Centro. eles mostram a Augusta do início, da Groelândia até
a Martins Fontes, onde entra para a Av. o Luiz, aquele lado ali e sempre
falando bem da Augusta.
Quais os postais mais procurados?
Eu não tenho o mais procurado, são todos. Os mais procurados são do Centro,
Paulista e Jardins, porque tem muitos que fazem faculdade de paisagismo,
associação de bairros, eles procuram esses postais porque nas décadas de 40,
50 existia mais árvores, mais verde e hoje não tem nada, então eles querem
mostrar que antigamente tinha árvore e o que tem hoje: nada (risos). Eu tenho
uma foto da av. Tiradentes que as duas calçadas e o meio eram de árvores,
149
hoje não existe mais, existem pouquíssimas árvores. Na Paulista tinha, na
Augusta tinha e conforme as calçadas foram diminuindo, eles foram acabando
com as árvores, a maioria era ipê, ficus, que se galha bem, faz bastante
sombra. conforme as lojas foram se mudando, foram tirando, tirando até
quase sumir. Eles levam muito essas fotos que aparece bem as paisagens
antigas, com as árvores e tudo mais, para mostrar e fazer as teses deles; por
exemplo os ipês roxo que tinha na av. Paulista, os ipês roxo que tinha na
região dos Jardins e que hoje não existem, então vamos fazer um projeto para
reurbanizar novamente, refazer novamente.
E isso é possível?
É sim, basta querer (risos). Replantar as árvores hoje. Eu confio, a associação
dos moradores dos Jardins e dos lojistas da Augusta replantou tudinho, ipê
roxo, ipê amarelo. Se você descer aqui a Padre João Manuel, você vai ver
aquelas arvorezinhas pequenas foram replantadas onde havia árvores
poderosas, centenárias. Na esquina da alameda Santos com a Padre Manoel,
em uma chuva de vento caiu uma árvore centenária, eles estão tirando a raiz
dela e vão plantar outra no mesmo local. sim, a árvore caiu, tira, mata a raiz
e replanta outra no mesmo local, fazer as mudas e replantar. Eu acredito que
melhoraria o ar, o ambiente, alguma coisa melhoraria (risos). O comércio,
inclusive. Quer dizer, cada comerciante pode adotar a árvore que tem na porta
de sua loja. Se tem duas árvores na frente, para elas ele manda fazer aquelas
grade de ferro, colocar e faz a divulgação dele, tipo essa árvore é protegida
pelo proprietário, pela loja tal”, seria uma campanha bonita. Hoje eles inventam
aqueles vasos para atravancar a calçada com a desculpa do camelô não
encostar na porta da loja, mas atrapalha tanto o passante quanto o próprio
cliente dele. Se ele fizer um espaço que não 50 x 50 ou 40 x40 na calçada
dele, plantando uma árvore e pondo uma gradinha quadradinha, bonitinha, com
o nome dele, da empresa dele, acho que ele tem bem mais vantagem do que o
vaso que ele coloca. Eu acho que ele ganharia mais pontos com a árvore do
que com os vasos atravancando a calçada. Por causa de um camelô, o
cavalete que você não quer que fique na sua calçada, para isso existe a
prefeitura, para remover esse pessoal da calçada, não é porque você põe um
vaso de 60 cm, você está tomando a calçada inteira, afunilando a passagem de
pedestres na porta da sua loja e fica ruim, antigamente o glamour da
Consolação, o charme era a calçada ter o tapete normalmente vermelho, o
motorista encostava direitinho na guia, você ia com sua luvinha branca, abria a
porta, a madame virava o corpo, punha primeiro o esquerdo, com aqueles
saltos enormes, colocava o no tapete, quando ela sentia firmeza no chão,
ela punha o outro, saía e entrava direto na loja. Mas agora, se você vai descer
do carro na rua Augusta, tem lugares que você tem de desviar, do ponto de
ônibus, dos camelôs, dos vasos, dos buracos (risos). Principalmente na
descida da rua Augusta eles fizeram quase uma calçada-degrau, cada um não
quer que a água passe na porta deles, então cada um inventa um degrau para
desviar a água. Fica feio, causa acidente, tem gente que esdistraído, os
lojistas podem falar, principalmente na descida da Augusta não tem
movimento, não tem uma loja ali que seja grande, é tudo fraco o movimento.
Depois da Alameda Franca tem uma galeria ali que o dono não aluga nem de
graça, não consegue ninguém para alugar porque está logo na descida, e na
descida está cheio de “gomos” (degraus) a calçada. Você vem distraidamente
150
olhando uma vitrine e pum! Tropeça, cai e se arrebenta todinho, principalmente
as mulheres. Da Lorena para baixo, Oscar Freire, você que é mais plano,
então o movimento fica maior, a pessoa quer ter o conforto de andar na rua,
mas em um lugar plano, ela pode mostrar o tamanco novo, o salto Luis XV,
sem tropeçar ou riscar o bico do sapato, ela pode andar num lugar plano,
sossegado, não tem degrau, buraco na calçada. Por isso a Oscar Freire é
tão bem freqüentada: por causa da conservação, os próprios comerciantes
conservam a passarela onde vão passar seus próprios clientes deles. Ali se vê,
hoje o cliente pára, encosta o carro, o segurança vai e abre a porta pra ele,
não tem vaso, tem poucas árvores – é um esculhambo total nesse sentido, eles
dizem que a árvore tapa a visão da loja, mas também tem de ver o outro lado,
não é porque eu tenho uma árvore centenária na frente da minha loja que eu
vou cortar ela. Tem que pensar no presente dele mas também no futuro, cada
dia que passa está acabando mais, daqui um tempo ao invés de ter verde,
vamos ter preto (risos). A coisa vai ficar preta, estão transformando tudo em
cinza. Se eles conseguissem replantar um pouco, nem que fosse na área
residencial, não na área comercial, replantar um pouco mais as árvores. A
associação dos moradores de Cerqueira César fez uma vez um projeto de
replantar todas as árvores, inclusive queriam doar mudas para serem plantadas
na Paulista mas teve uma associação aí que falou que não era necessário, que
já tem árvore demais.
Quais as melhores recordações que você tem da Augusta? Alguma em
particular?
São muitas! Tinha uma namorada que trabalhava em um prédio na Oscar
Freire, ela era muito metidinha a ser patroa (risos), então ela gostava de
desfilar pela rua Augusta. Ela não gostava de passear em outro lugar, na
rua Augusta. Eu falava para irmos para o centro da cidade, ao cinema. “Não,
vamos aqui no Regência”, que era o cinema que tinha na Augusta, antes do
teatro da Record. Quando o era o Regência, o filme podia não valer nada,
mas a gente tinha de ir ao Belas Artes porque o Belas Artes era cinema de
burguês. E tinha muita coisa, quando vim tomar conta de uma casa na rua
Augusta, na descida da ladeira, do outro lado da rua, um pouco para baixo do
Habib’s. Tem um estacionamento, um predinho no fundo, com uma cascatinha
na frente, era um casarão e seu Vicente, o dono da casa, me disse para
cuidar da casa, manter limpinha na frente, para as pessoas não perceberem
que a casa estava vazia. tudo bem, tomava conta e acabei morando uns
dois ou três anos, nos fundos. Esse seu Vicente veio a falecer e os filhos,
metidos a bravo, achei que fossem me expulsar dali, aí o filho dele veio e me
disse que se o pai tinha me deixado ali, eu podia continuar morando mas tinha
que cuidar da casa do mesmo jeito que eu estava cuidando do mesmo jeito, a
casa estava em inventário e eu cuidei dessa casa mais três anos, quando saiu
o inventário e foi vendida. Mas isso eu fazia o que eu podia, brincar e fazer o
que quisesse. Foi mais ou menos em 1978, morava meu primo e eu vinha
tomar conta de uma casa na Alameda Santos, ao lado da Sabesp, eu vinha
fazer o jardim, limpava carro, engraxava sapato, cuidava da casa para um
senhor, o dr. Raul, um médico. Ele sofreu um acidente de avião e quebrou
parte o maxilar, então ele falava meio torto e tinha problema na perna, então de
manhã a gente levava ele para andar no Trianon, se juntava com outros
moradores daqui e iam para o Trianon, voltavam e enquanto isso, ficávamos no
151
jardim, tomando conta, cuidando das motos, carros antigos da família, limpava,
arrumava, colocava lona, pegava os sapatos dele, engraxava, a gente cuidava
assim e à noite, ia dormir na rua Augusta, morar na casa do Paulinho, ele não
era Paulinho mas a gente gostava de chamá-lo de Paulinho porque ele falava
mas eu não sou Pauloe a gente respondia mas votem cara de Paulinho
(risos). E era gostoso, como a casa era grande, o quintal enorme e tinha muito
restaurante aqui para baixo, a gente juntava caixote de tomate, saía catando à
noite pelos restaurantes e quando juntava um cento de caixotes, a gente ligava
para a caixotaria do CEASA, eles mandavam um caminhão e a gente colocava
tudo no caminhão, vendia tudo. Ganhava dinheiro vendendo caixote, o caixote
era caro, a gente reciclava caixote e caixote de laranja, aqueles caixotões, que
jogavam fora, tinha muito restaurante fino aqui pra baixo que jogava aqueles
caixotes de laranja vazia, a gente tinha uma carroça chamada Burro sem Rabo,
a gente saía catando caixote nas ruas. Tinha em baixo, aqui na Padre João
Manoel, quase esquina com a Franca, chamava Fórmula 1, tinha um pneu
enorme de fórmula 1 na frente e ali juntava corredores de carro, na esquina
tinha um casarão com uma garagem, ali juntava corredores de stock car,
mecânicos, porque o restaurante chamava rmula 1 e servia comida que
eles queria, então a gente ia pra lá e o dono do Fórmula 1 fazia a gente lavar, a
gente almoçava nos melhores restaurantes, bebia café nos melhores lugares
no Jardins porque à tarde quando a gente ia catar caixote, a gente passava no
Fórmula 1 e ali, a gente lavava os dois banheiros de uso público, do pessoal e
limpava em volta do restaurante, tirar o lixo, existia poucas vendas que tinham
saco de lixo, então era uns tambores de aço, a gente tinha um carrinho, a
gente punha em cima dele, tirava e lavava aquela área. Então o dono do
restaurante mandava trazer almoço para a gente, um prato do dia e a gente
comia. Então todo dia a gente almoçava em um lugar diferente, o gastava
um centavo. Tomava café todo dia em um lugar diferente, um dia era no
Madame Rosita, outro dia era no dr. Vicente, outro dia era com a família
Matarazzo e assim a gente ia, até com o Pedro Diniz, dono do Pão de Açúcar,
na época na Brigadeiro. Tinha um restaurante aqui na Alameda Santos,
chamado Fogueira, uma churrascaria, a gente a mesma coisa, a gente ia
depois das 10 para recolher os caixotes e nisso lavava o banheiro e ajudava a
botar os tambores de lixo para fora. a gente levava a vasilha, passava na
cozinha e já deixava a vasilha, uma tupperware, quando a gente terminava isso
e estava tudo cheirosinho e bonitinho, o dono da Fogueira, um português, o
Manoel, ele falava “meninos, venham cá, podem levar comida para vocês” e
nós vivíamos comendo prato do dia sem gastar dinheiro. Diversão nossa era
essa. Fruta, nós íamos à dona Maria do Carmo, que tinha uma quitanda aqui
para baixo, na Consolação e a mesma coisa, de mancedinho, 5 horas da
manhã o caminhão trazia as coisas para ela, ela chegava um pouco mais tarde,
então a gente ia para lá, recebia a mercadoria, colocava tudo na porta da
quitanda e ficava aguardando ela chegar. Nessa, quando vinha assim couve-
flor, nós começávamos a limpar, a tirar as folhas que estavam ruins, a gente
pegava um saco, guardava tudo e aí quando ela chegava, a couve-flor, o
repolho estava tudo bonitinho, limpinho então ela falava “ah, meninos, meus
meninos limparam tudo certinho”, então ela abria e nós colocávamos tudo na
bancada, ajudava ela, uma senhora de idade e ela falava para nós voltarmos à
tarde, então ela nos dava um cruzeiro e a fruta que tivesse a gente podia levar,
então a gente levava banana, maçã, pêra, a fruta da época, uva, caixinha de
152
uva de dois quilos. A gente recebia a mercadoria para ela, ela chegava, a gente
botava pra dentro, a gente ajudava a arrumar e ela perguntava se a gente
gostava de uva e deixava a gente levar uma caixinha. Era assim, acabamos
virando cria da rua Augusta, da Paulista. O melhor lugar de todos, e eu convivo
nessa área há 39 anos, era a área residencial, Augusta, Jardins, Franca, Tietê,
Lorena, Oscar Freire, embaixo a Brasil, para s isso era o melhor lugar que
tinha porque era a área que tinha restaurantes, nós não pagávamos comida,
café da manhã, nada e tinha vez que a gente descia lá para a área dos Jardins,
para fazer jardim das casas, geralmente no final do ano, antes do Natal,
novembro por aí, as famílias perguntavam que número a gente vestia, porque
eles iam para os Estados Unidos renovar o guarda-roupa e o antigo eles
davam tudo. Eu andava na maior estica, jaqueta jeans US Top, quem tinha
uma dessas na época... Andava na maior estica, camiseta, camiseta pólo
importadas, calça boa, tinha vezes que a gente tinha de pagar alfaiate para
apertas as calças. A gente pegava essas calças, mas ficava grande e por
causa da etiqueta a gente mandava apertar, ajustar para poder usar, sapato do
bom, não existia nis, nis veio aparecer de 80 para cá, nós íamos beber
cerveja à noite para baixo, os caras confundiam a gente, a gente era tudo
pobretão e confundia a gente com os ricos. Comer, a gente comia bem; café da
manhã também bem; vestir, se vestia bem e sem gastar um centavo. Era um
playboy sem moto”.
Qual o fato mais marcante que presenciou na Augusta?
Não foi na Augusta, mas na João Manoel. Na época tinha o consulado
embaixo e desceu aqui um caminhão betoneira e na descida ele perdeu o freio,
ele foi batendo de um lado para outro, na década de 80, final. Foi a pior
coisa que eu vi. Teve um incêndio aqui no Conjunto Nacional, de frente para a
Paulista, mas não foi nada de grave.
E o tapete que colocaram na Rua Augusta?
Eu lembro disso, era colocado em uma pista, quando a rua era fechada e o
subia e não descia ninguém, eles colocavam tapete e saíam colocando
mesinha, geralmente o tapete servia também para os desfiles, juntava as lojas
de moda, lançavam a moda e colocavam o carpete no meio da rua. Uma vez
forraram a parte de baixo, plana da Augusta com carpete para um desfile, a
região da Oscar Freire, Lorena, as lojas chiques faziam desfiles. aqui na
ladeirinha todo mundo descia tudo de uma vez, era a moda mais, a gente
aprendeu a usar boca de sino embaixo, na Oscar Freire. Aí as bocas de sino
na época eram de 30 a 40 cm e tinha de cobrir o , então no meio da calça,
do joelho para baixo, a gente engomava com goma de maizena e quando
secava, ficava durinho e a gente sentava e caía certinho em cima do pé, blupt!
E o sapato era aquele salto carrapeta de 20 cm, aquelas plataformas, a gente
usava aquilo, era moda nos Estados Unidos, dos hippies, era moda na Rua
Augusta então a gente também tinha. O cabelo era comprido mas cavanhaque
quem tinha era meu primo, tipo o do Emerson Fittipaldi, a gente chamava
aquele cavanhaque de Emerson Fittipaldi, era o Wilsinho e o Emerson, a gente
dizia que o lado direito era o Emerson e o lado de , o Wilsinho. Era o
cavanhaque Fittipaldi e acho que até hoje falam sobre o cavanhaque Fittipaldi –
não, eram costeletas, as costeletas Fittipaldi. Ele usava aquelas costeletas
153
largas nas décadas de 70, 80, era campeão então todo mundo copiava,
deixava a barba crescer e depois fazia as costeletas quase iguais às dele.
Por que houve o declínio da Rua Augusta?
Acho que foi por causa disso mesmo, por causa um pouco da violência,
abandono e abertura de shopping centers, caiu um pouco, agora está
ressuscitando de novo, mas nunca mais vai ser a mesma. Agora tem bastante
loja, movimento durante as compras mas acho que ela nunca mais vai ter
aquele glamour dos anos 60, 70 e 80. Não tem mais porque uma parte dela
ficou meio abandonada, nunca vai voltar o que era, mas pode ter uma melhora
para a segunda fase, todas as lojas dela hoje parecem um chiqueirinho de
presídio, você entra e só falta passar aquele raio-X para saber o que você está
carregando, a segurança é muito grande. A gente ainda anda na Augusta, mas
tem lugares que a gente se sente meio constrangido de andar, a gente não tem
nada a ver com isso mas ouve o segurança falando ó, indo um fulano
assim, tal de calça jeans e camiseta, meio suspeito, cuidadoe o outro da
esquina vai te seguindo a onde você vai. Tem lugares do outro lado da
Augusta que acontece isso mesmo. Eu ando na Augusta, vou até a Galeria
Ouro Fino, vou e volto, não devo nada a ninguém, não tenho de dar satisfações
a ninguém aqui, mas tem certas áreas que eu evito andar por causa disso, em
lojas finas a pessoa te mede, passa por você, a pessoa também é um
trabalhador, é um segurança, mas ele fica te medindo de cima a baixo, estou
acostumado a andar de tênis, calça jeans, camiseta, eles vêem que a camiseta
não é cara, que o tênis não é caro, que a calça não é cara, então um passa um
rádio para outro, eles acham que a gente não sabe, mas eu sei, fui criado na
rua, eu sei esses códigos, QTRU, QPR, QTU, então eles falam em código para
outro rádio que fala que está indo um cara isso, um cara suspeito, mal vestido,
essas coisas. Então tem lugar que eu gosto de andar, vou aa Galeria Ouro
Fino, conheço todo mundo dentro, brinco com todo mundo, a menina da
lojinha do sapo, o Estevão da US Army, os DJs embaixo, mas tem certos
lugares que eu evito passar.
Esse constrangimento começa mais ou menos que época?
É recente, da cada de 90, teve problema de assalto a lojistas embaixo,
começaram os seguranças, todas aquelas coisas.
Há outras soluções para levantar a Augusta?
Tem outras, mas a Augusta é muito cara, qualquer coisa que queira montar na
Augusta, se torna quase impossível, parece que eles fazem isso pensando,
conheço um antiquarista que quando ele não quer vender uma peça, ele
coloca um preço bem alto que é para não vender mesmo, para que se alguém
comprar, para saber que ele pagou aquela fortuna mesmo, que possui e
mesma coisa parece que acontece com certas dependências da rua Augusta, a
pessoa põe aquele preço bem alto mesmo para que ninguém da média alugar,
para chegar um cara da classe alta mesmo, montar uma super loja, um super
stand e sim. Os próprios proprietários selecionam quem vai alugar, quem
tem dinheiro e quem não tem.
Você é caseiro dessa casa, na Paulista, 1919. Como aconteceu isso?
154
Foi isso que contei anteriormente, eu morava na Augusta e vinha tomar conta
da casa aqui atrás com o dr. Raul, depois que ele sofreu o acidente e tudo.
Essa casa é do irmão do dr. Raul, o Rubens. O dr. Raul faleceu em 1982, essa
casa é da família Franco de Melo. É uma das últimas casas originais da
Paulista, a casa ficou fechada por 10 anos. Eles moravam na frente, para a
Paulista mas se mudaram daqui em 1972, cada um foi para fazenda, exterior,
Europa. Aí o dr. Raul ficou morando na casa dos fundos, que dava entrada pela
Alameda Santos. eu vinha de manhã cuidar do jardim, das coisas dele, ele
tinha sofrido um acidente então a gente andava com ele pelo parque,
acompanhava ele, um senhor da idade, fui conhecendo a família,
convivendo, eu ficava até à tarde e daí em diante íamos ao projeto de
reciclagem, de catar caixote e nessa de catar caixote, a gente ia almoçar nos
restaurantes e daí em diante eu terminava o dia, ia para casa, fazer minhas
coisas de manpassava de manhã para vê-lo, se estava tudo bem com
ele, se ele precisava de alguma coisa, ele tinha um afundamento no rosto, ele
perdeu um pedaço do maxilar então ele falava de lado, eu passava para ver,
limpava o jardim, fazia as caminhadas com ele e nisso fui conhecendo a
família, ele veio a falecer e eu continuei para os lados da rua Augusta e
quando fui cuidar da casa do Cardoso de Almeida, pouco tempo eu fiquei lá,
a família vendeu, foi construído o estacionamento e quando conheci aqui, a
dona Charlotte que herdou a parte de trás da casa, eu continuei a freqüentar a
casa porque eu ajudava dona Charlotte, uma senhora de idade, a limpar o
túmulo da família toda semana, no Araçá. Nisso, mais convivência, mais
conhecimento, mais confiança, tudo e dona Charlotte mudou para a chácara
em Parelheiros e para a casa não ficar com cara de abandonada, eu ficava e
um dos netos dele, o seu Renato, ele falava para eu limpar o jardim na frente,
conservar a casa, trancar o portão e a gente o que faz. Quem herdou a
parte de trás vendeu para construir o prédio ele começou a me chamar para
cuidar daqui, cuidar do cafezal, das árvores, podar, fui indo, fui ficando até que
ele me perguntou se eu queria ser o caseiro daqui. “você já tá aqui mesmo, fica
sendo o caseiro daqui e eu disse bom”. me mudei pra e nessa
brincadeira, foram 20 anos. A casa tem um problema com o Condephaat,
com o Governo do Estado porque em 82, quando o dr. Raul morreu, ela
recebeu laudo de tombamento mas na época a família não estava no país,
tinha poucos deles no país e aí o dr. Raul assinou e tudo, e recebeu o laudo de
tombamento, pensando que o governo ia resolver o problema em pouco tempo.
como não resolveu, processo, processo e até hoje está em processo com o
governo do Estado, essa coisa de Condephaat, Fiam, Ciam, outro órgão do
Estado e eles estão brigando porque eles querem fazer alguma coisa na casa
para ela dar renda e o governo não deixa. O IPTU também é uma briga para o
pedido da isenção, acho que também tem briga, o me meto muito nessas
coisas de papéis mas ouvi falar que tem essa briga desde 90 na prefeitura para
a isenção do IPTU da casa, porque a casa não traz renda, não é ocupada e
como a família vai pagar o IPTU? Aí foi essa coisa de processo, processo, foi
indo, morreu um, morreu outro, um passa para o outro e o último que
morreu foi o dr. Rubens, pai do seu Renato.
155
Anexo 2 – Entrevista com Raquel Valente
68
Qual a sua primeira memória da Augusta?
Tinha dez anos de idade e estava descendo a Augusta e era um local de
grande impacto. Eu lembro que estava na Avenida Paulista, num carro e
aquela descida, aquela coisa grande, com meu pai, ele tinha comprado um
carro novo, um Opel Olímpia verde metálico, então nós descemos a rua porque
ele estava indo ao despachante por causa da documentação. Morei na Lapa
por 40 anos, minha família tinha indústria de ferramentas para lavouras na Vila
Anastácio. No começo era no centro do bairro mas como era uma indústria de
porte, tivemos que sair de e fomos para a Vila Anastácio, que é uma zona
industrial. Toda a família morava na região, muitas pessoas ainda moram.
Tem outras memórias antigas?
A segunda situação de que me lembro é atravessando a Paulista para ir ao
recém-inaugurado Cine Astor, era uma coisa nova – não era mais necessário ir
ao centro da cidade para ir ao cinema, você passava a freqüentar os cinemas
naquela região, o Conjunto Nacional, que tinha a Livraria Cultura e o Fasano.
Eu me lembro perfeitamente de ter ido com o meu tio, o tio Ian, que eu adorava
e não teve filhos, então nos adotou como filhos os sobrinhos e eu tinha uma
saia de tecido rústico com umas franjinhas de algodão e um galão todo
estampado, ponto russo marrom e laranja, muito chique. Eu estava muito
chique, estava me achando o máximo nesse dia, devia ter uns 11 anos e fomos
eu e outro primo. Como nós éramos os mais danados, nunca éramos
convidados porque dávamos um pouco mais de trabalho. Então ele, para nos
compensar, nos levou para ver um filme o lembro qual e depois tomar
um chá no Fasano que era o supra-sumo. São essas as primeiras impressões
de que me lembro quando penso na Augusta, daquele pedaço dos Jardins, da
Paulista para baixo. Desde aquela época havia a diferenciação entre o lado
dos Jardins e do Centro. A região interessante era do Frevinho que ficava para
baixo da Paulista, era a única coisa que se freqüentava para baixo da Paulista,
o restaurante que, nos anos 50, – acho – era uma lanchonete, um point
importante, muito moda. Até podia ser freqüentado por escritores, gente
importante, mas na época eu lembro mesmo era da moçada, um lugar de
paquera. Então era do Frevinho para baixo, até a Estados Unidos e de para
baixo, era outra história, era a Avenida Brasil. Logo em seguida lembro da
chegada da Tecelagem Franceza, isso um pouco mais tarde, do Centro
lembro porque era de um tio meu. Era uma sociedade, era a Lyon Fabril Têxtil
Moderna e a Tecelagem Franceza. As outras morreram no Centro, mas a
Tecelagem Franceza foi para a Augusta e está até hoje. Eram sócios, tinha
um sócio do Rio de Janeiro e esses meus tios dois, primos que eram
casados com as irmãs do meu pai e tinham essas lojas, um cuidava da Lyon
Fabril e o outro, da Tecelagem Franceza. A Tecelagem Franceza pegou fogo,
ela ficava na Rua São Bento na década de 60, foi muito triste, tinha um porão
cheio de tecidos maravilhosos, um lote que tinha acabado de chegar da
França, todos os tecidos eram importados como ainda são, tem muito tecido
68
Raquel Fulchiron Valente é estilista, coordenadora do curso de moda da Faculdade Santa
Marcelina. Entrevista concedida em 28 de junho de 2006.
156
importado -, então eles mudaram para esse lugar e eu até hoje lembro, da
importância de estar naquele “trechinho”, tinha Camilo Nader, a Hassan,
Firenze, tinha mais uma que eu não me lembro o nome. Pelo que me lembro, a
Camilo Nader foi a mais importante da Rua Augusta, nos anos 60 e 70, tinha
também na Rua do Arouche, mas não é mais Camilo Nader. São essas as
lembranças que tenho dos meus primeiros momentos, isso ainda como criança
porque quando era adolescente, a coisa mudou.
Já tinha ouvido falar na Augusta antes da primeira vez que a desceu?
Não, não me lembro. Essa [sensação de rua muito inclinada e muito longa] foi
a primeira impressão que tive da Augusta. Não tenho nenhum registro.
Em que momento passou a freqüentá-la?
era adolescente, tinha 14 anos. Estava no ginásio, estudei no Oratório Anjo
da Guarda, um colégio no Alto da Lapa, no final da São Guálter, uma instituição
de religiosos. Eu fazia uma escola que era muito interessante, que era um
colégio industrial, a gente aprendia modelagem, costura, bordado, pintura,
desenho de observação e tecnologia têxtil, uma coisa que poucas pessoas
fizeram. Tínhamos as aulas de ginásio e essas disciplinas. Eram as salesianas
e, como as marcelinas, as irmãs vieram para ensinar prendas domésticas.
Então, além dessas aulas de industrial, tínhamos aulas de economia
doméstica, culinária, sabia tudo sobre o lar, cultura. Éramos apenas 20 alunas
na sala e passávamos o dia todo bordando, costurando, fazíamos desde as
camisas pagão para crianças, toda feita a mão, em ponto Paris com bordado e
das roupas de crianças íamos para camisolas, peignoir, calcinhas, chinelos,
tudo o que se podia imaginar para noivas, depois faamos o lençol do dia, todo
bordado a mão, a colcha da cama e as toalhas de chá e mesa todo bordado e
costurado. A escola era linda, divertida, uma chácara bem no alto, a cidade
ainda não acontecia, o bairro era muito pequeno, a São Gualter ainda não
existia, era tudo de terra, um descampado, era muito divertido estudar lá. Uma
das minhas amigas era justamente a Vivielen, nós éramos As Atrevidas, aquele
padrão de menina de classe média, morando em um bairro como esse,
formado por pessoas de origem italiana, para esse tipo de gente éramos muito
atrevidas. Nós queriamos dar vôos, andar sozinhas e aos 14 anos fomos para
a rua Augusta porque queríamos ir às butiques, usar as roupas, mostrar as
roupas que nós desenhávamos e fazíamos para nós mesmas e eu lembro que
a gente foi uma tarde sozinha e tinha aquela preocupação de mãe: “vão como?
vão meninas?e fomos nós. Descemos na Slopper porque a Slopper
estava na Paulista – era uma maravilha! Comprei uma bolsa que era um
caixotinho, uma bolsa bem pequenininha, tipo bauzinho. Eu recebia mesada,
era uma privilegiada, tinha vida gostosa, sem preocupações, minha mãe
costurava bem e a roupa que eu imaginava, eu tinha. Era alta costura mesmo,
tudo feito a mão, não se colocava um ziper, mas sim um colchete, tudo preso a
mão, o chuleado feito a mão e a gente sabia fazer porque aprendia na
escola. Éramos hábeis nesse trabalho manual. Foi um dia muito marcante para
mim, lembro que tinha a Madame Rosita, passamos por lá, fomos na Slopper e
descemos a Rua Augusta para o delírio, aquela coisa da liberdade e
começa uma história de freqüentar, passei a freqüentar até com essa coisa de
ir ver roupa, badalação, até uns 25 anos de idade, foram 10, 11 anos de
freqüentar pra valer.
157
Teve fase em que ia para a Augusta copiar modelos, ou para se inspirar ou
quando lhe agradava já comprava?
Ia, primeiro, para se mostrar, como se diz hoje em dia, ia “montado”, a gente ia
mais para desfilar do que para copiar. Lógico, tinha uma troca: via o que estava
acontecendo e levava também. A gente queria fazer parte daquele universo
lançador de moda, a gente era um grupo provocativo, a gente ia com uma
extravagância a mais, a cor da moda, bijuteria mais exagerada, maquiagem
mais exagerada. Minha fonte [de inspiração] não era a rua Augusta, eram as
revistas. Onde eu procurava as informações eram nas revistas e não nas lojas,
porque nas lojas tinha acontecido, tinha essa coisa de antecipar um pouco a
tendência.
O fato de seus parentes terem loja na Augusta era pretexto para ir passear lá?
Foi mais no Centro. No Centro, a gente ia mesmo comprar tecidos. Na
Augusta, já era mais para visitar, comprar alguma coisa, não com a intensidade
que foi quando fomos crianças, que íamos para o Centro da cidade, que era a
Rua Direita, São Bento, a região da praça do Patriarca. Mas na rua Augusta
visitava só. Não tinha essa preocupação.
O que seus pais achavam da Augusta?
Meus pais gostavam sempre muito de moda. Então, para eles, a gente estar
num lugar que estava na moda, freqüentar os locais de moda era uma coisa
que fazia parte, não havia nenhum senão.
Então, o fato de estar “montada” não incomodava seus pais?
Isso sim, fazia parte, meus pais faziam questão. Meu pai, quando a gente ia
para uma festa, passava uma revista na gente, acertava a bainha do vestido,
tirava o fiozinho da roupa, abria a porta do carro para a gente sentar, ele tinha
preocupação que a gente estivesse sempre bem vestida. Coisa que a gente
não segue mais hoje.
Como era a Augusta nessa época?
Teve uma época em São Paulo que não era a Augusta, tinha outros locais
em São Paulo que estavam acontecendo, as chamadas butiques, que
começaram no final dos anos 50 pelo que me recordo. Eu me lembro que no
bairro tinha umas duas ou três butiques que eram muito bonitas que vendiam
sofisticação e charme. Começava a vender roupa pronta em lojas, acessórios
que eram sensacionais, porque era tudo contrabandeado e era uma verdadeira
loucura de coisas charmosas, diferentes. Se queria encontrar algo diferente,
era ir para a Augusta que encontrava. A loja de sapatos não era de sapatos
comuns, o sapato não vendia em qualquer loja, mas em uma loja específica.
Acompanhava todas as revistas de moda, tudo que tínhamos acesso, que era
muito pouco. Tinha acesso a todos os figurinos que vinham da Suíça para os
meus tios, então quando ia à loja deles sempre tinha um balcão ou cadeira
confortável e ficava pesquisando os figurinos para escolher os tecidos para as
roupas. As revistas da época, nesse primeiro momento, tinha a Manchete, o
Cruzeiro, e estavam começando as revistas de moda pela Editora Abril, como a
Cláudia, Desfile e Jóia, além de revistas estrangeiras que minha mãe adorava,
como o Jardin de France, compradas na Praça do Patriarca. E as revistas de
trabalhos manuais, crochê eram as japonesas, que eram encomendadas na
158
Casa Ono, no Ceasa. Minha e comprava tudo que ela gostava e comprava
as revistas japonesas de desenho de moda, que vinham os desenhos, os
moldes e as fotografias. Eu tenho ainda um exemplar dessas revistas. Elas
eram incríveis, tinham acessórios, bolsinhas, muito próximas da moda, tinha a
coisa do artesanal, saia de crochê, mostrava como fazia. Da Cláudia, eu tenho
todos os meus recortes até hoje e da Rhodia, que é um pouco mais pra frente.
Gostaria que descrevesse a Augusta, as lojas e suas vitrines, o tipo de
comércio.
Augusta era feita de pequenas lojas. O grande impacto, o gostoso da Rua
Augusta eram as pequenas lojas muito sofisticadas. o tinham grandes lojas,
magazines, a C&A, que veio muito mais tarde na Augusta. Eram essas lojas de
charme, podemos chamar de produtos de charme, sempre as supernovidades,
a idéia de boutique. É isso que tenho como boa lembrança. Depois, mais tarde,
vieram a Drugstore, a Pandemonium, a Paraphernalia, que o era na
Augusta, era numa travessa, eram lojas maiores, mais estruturadas, mais
profissionais; a Durart, loja de calçados que a gente gostava tanto, a Cordoban
que está até hoje, as lojas de enxovais, depois as da galeria Ouro Fino,
essas pequenas lojas, idéia de galeria, tudo muito preocupado com coisas
pequenas mas com muito charme. Isso que fazia grande diferença. Quanto às
vitrinas, na cidade de São Paulo tinha uma coisa muito interessante, não era só
na rua Augusta, em todos os bairros tinham concursos de vitrines patrocinados
pela Associação Comercial. Então, tinha uma preocupação muito grande em
fazer vitrines lindas, nos anos 60, até os anos 70. No bairro que eu morava,
faziam parte desse concurso, e faziam decorações incríveis. Englobava São
Paulo inteira: então tinha o Centro da cidade, a região da Augusta, principais
bairros como Pinheiros, Lapa, onde tinham grandes comércios, e muito
importantes, na verdade. Então se faziam concursos de vitrines, eram muito
caprichadas, geralmente quem faziam eram os decoradores. A figura do
vitrinista eu não me lembro, mas cheguei a conhecer pessoas que faziam
decoração de vitrines. As vitrines ficavam o mês inteiro, às vezes ficava uma
coleção inteira.
Eram decoradores de formação?
Não, eram aquelas pessoas de “bom gosto”, geralmente pessoas que
gostavam de fazer o interior [de casa]. Decorador oficial, como aqueles da
Casa Cor é bem mais tarde. Tinham outras formações. Aquela loja da Rastro,
que era do Aparicio Basilio, que fez um curso livre na FAAP e que tinha um
superbom-gosto, que jogava perfume na rua, tudo cheirava a Rastro, até
cachorro-quente cheirava a Rastro.
Poderia fazer uma descrição física da Augusta aos olhos da adolescente-
mocinha?
O meu maior problema quando era adolescente era pensar que eu tinha que
dirigir e segurar o carro na rua Augusta e não passar vergonha (muitos risos).
Subir a rua Augusta e o carro não morrer, era um grande drama, porque a rua
continuava eno[ooo]rme! Depois, o que me lembro são dos carros que eram
90% de fuscas, as motos que eram insuportáveis, eram meus coleguinhas da
faculdade, que até hoje ainda estão lá, que de vez em quando a gente passa e
todos barrigudos e com cabelos brancos, e ônibus elétrico também. Eu
159
usava muito o ônibus elétrico, porque eu tinha um namorado que morava nos
Jardins e a gente pegava o ônibus para atravessar a ponte e chegar lá do outro
lado da Cidade Jardim.
E as pessoas que circulavam na Augusta?
Eram sempre as mais bonitas, as mais arrumadas, tinha toda uma
preocupação realmente, nos anos 50, 60 e 70, quando saía de casa, saía todo
arrumado, algumas coisas combinando, sapato combinando com a bolsa, com
brincos, com vestido certo, ia para o cinema. Não ia de calça comprida, não ia
de jeans, começava nessa época a mudar, mas tinha toda uma preocupação,
realmente as pessoas iam muito bem vestidas para tomar um chá, sorvete, não
ia de qualquer jeito, tinha toda uma preparação para ir para esses lugares.
Então, as pessoas eram arrumadas mesmo. No bado de manhã, a gente ia
com roupas mais à vontade, de jeans, tênis nos anos 80, antes dos anos 80
ninguém usou tênis para sair. Tênis era tão voltado para o esporte, para prática
de esportes, que eram os keds antigos, dos anos 30 ou 40, a gente usava
sapatos e sandálias, para cada situação tinha que ter um par de sapatos, não
se usava um sapato o dia inteiro. Era fragmentado. Uma sandália, uma bolsa,
mudava de bolsa a toda hora, para combinar com o sapato. Não carregava a
sempre a mesma bolsa, tinha que mudar muitas vezes.
Então, que tipo de comércio mais se via na Augusta?
O forte mesmo era o comércio de confecção, calçados, depois tinha casa das
lonas, por exemplo, que vendia coisas para decoração de casa, papéis de
parede, tinha também de enxovais, a Casa Almeida, as tecelagens que são as
mesmas que estão até hoje, com uma ou duas variações, e tinha um lugar
que era genial, o Vilex, na verdade Vilex e Santa Luzia. Vilex era uma loja, um
supermercado de luxo com produtos ótimos, era muito freqüentado, então tudo
que era bebida importada, pães diferentes, queijos diferentes, tudo era no
Vilex. Estou falando da Paulista para Estados Unidos. Se pensar para o outro
lado, tinha todas aquelas lojas que faziam sapatos, sapatos para drag queens,
comércio bem mais popular para o outro lado. Mas para o lado de cá, sempre
foi comércio que foi se sofisticando muito, e chegou um momento em que ficou
um comércio muito sofisticado, muito valorizado. O auge do comércio
sofisticado foi nos anos 70. Aí, na década de 80, começou a decair.
Na sua opinião, o que tinha de mais atraente?
A sofisticação. Era daquele lugar, daquelas pequenas lojas com produtos muito
arrojados, modernidade, lançamentos, o novo, totalmente novo. Se saía um
relógio, tinha o famoso Old England, que vinha da Carnaby Street que era
super bacana, para o jovem era o máximo um mostrador imenso com a
bandeira da Inglaterra e pulseira de vinil cor de laranja fluorescente... Tinha
essa coisa de Carnaby Street, de Biba de Londres e era isso que fascinava a
gente. Na verdade, tinha uma coisa importante aí: a ruptura, antes e depois de
1965. Eu tinha 15 anos em 1965 quando o mundo teve uma ruptura enorme de
comportamento, o jovem começou a acontecer, até então não existia. Eu tenho
fotos de 14, 15 anos de tailleur de lã, sapato salto alto de verniz preto e um
coque enorme na cabeça que eu pareço mais velha do que hoje, com um aluno
de catecismo. na foto de 1968, estou de jeans, de sapato boneca comprado
na Casa Tod´s, na Augusta e de camisa Lacoste. É essa a ruptura, o jeans. As
160
primeiras peças compradas na Augusta não eram de jeans, não era o índigo
blue, eram de sarja bege. Foi outra cena com meus primos que me lembro
bem, ganhamos cheques no Natal e fomos comprar calças na Augusta para
poder ir para a praia no verão. Fomos na Casa Tobi que vendia calça Lee
bege, ainda não era jeans nem índigo azul, que quem usava eram só os
homossexuais que freqüentavam a Praça da República (era assim que nós
víamos!). compramos nossas calças beges e nossos perfumes Lancaster,
nós pedimos o Lancaster e aquele italiano, de pinho, que era o bacana. A
gente cheirava três perfumes: o Lancaster, esse italiano e o Rastro. Falar em
rua Augusta, eu lembro da Rastro, que a gente cheirava e deixava um rastro
mesmo. Mas eram essas coisas novas que aconteciam, um perfume como a
Rastro, uma loja como a da Rastro na Rua Augusta, era sensacional! Foi em
65, 66, aquela loja toda cor-de-rosa, escrito Rastro, aquele cheiro que
impregnava, quando você ia comer cachorro-quente na escola, comia com
gosto de Rastro. Freqüentar a Augusta na época era ser moderno, totalmente
in.
tinha essas referências do exterior Carnaby, Biba ou faz essa
comparação entre a Augusta e esses pontos do exterior a partir de vivências
posteriores?
Não, tinha essas referências através de revistas, que meus pais compravam
sempre.
Havia algo parecido em outro lugar do mundo com o que era a Augusta para
São Paulo?
Para a gente, na época, Augusta era Carnaby Street, em Londres, Via Veneto,
em Roma, Capri, todas as cidades da riviera francesa.
Que pontos da Augusta freqüentava?
Eu ia para subir e descer o tempo todo, o bacana era subir por um lado e
descer pelo outro, ver loja, entrar, tinha lojas mais pra frente, no final dos anos
60, lojas que tinham música. De artigos indianos, começa a coisa do hippie. Ia
ver os amigos que começavam a trabalhar, começava a ser bacana ser
vendedor de loja, era o máximo do máximo chegar e dizer “estou trabalhando
na loja tal”. A Vivi e eu fomos trabalhar na Sears, mas nossos pais não
deixaram. Fomos lá, fizemos entrevistas, passamos, tínhamos acabado a
escola normal, 18 anos, menina que tinha acabado a escola normal tinha um
status, fomos para fazer embalagens de Natal mas nossos pais não permitiram,
mas isso era bacana! Então na Augusta tinha Elle, Toi et Moi, Pandemônium,
Drugstore que era uma das principais, toda moça queria trabalhar lá porque era
muito chique. Quem trabalhava normalmente eram os filhos de estrangeiros,
porque os brasileiros ficavam envergonhados de ver os filhos trabalhando e
os estrangeiros achavam divertido. Então eu tinha umas amigas francesas e e
elas puderam ir trabalhar na Drugstore.
Mas freqüentava apenas ou freqüentava e comprava?
Freqüentava e comprava.
O que você comprava na Augusta?
161
Sapatos, porque era que estavam as lojas bacanas. O sapato que falamos
hoje cedo, do Saint-Laurent, quando saiu o vestido Mondrian, em 66.
Justamente veio junto com a minissaia. Foi uma explosão: meias coloridas,
meia arrastão, meia de renda, sapato de verniz, das cores mais lindas – cereja,
preto muito interessantes, com muitos detalhes. Comprava também discos
tinha a desculpa de ir à Augusta, na Hi Fi, para comprar um disco. Era de
praxe. E também livros, na Mestre Ju. Freqüentava também as lanchonetes,
primeiro no começo foram os cachorros quentes, que tinha em Santos e na
Rua Augusta, vendia o cachorro quente em uma caixinha de papel listradinha
com batata chips, que era uma novidade. Era pão e salsicha, que ficava
naquelas maquininhas girando, bem anos 50. Depois para coisas
cerimoniosas, o Fasano, com família porque era caro na época e jovem
nunca ia sozinho, mas ficou pouco tempo. Tinha a Yara, que era a casa de chá
e eu acho que foi o ponto mais importante da Augusta por muitos anos. Era
uma casa com cara de alemã, como se fosse uma touceira e tinha um salão de
chá todo com banco de couro, todo escrito, todo grafitado, era um nojo porque
os estudantes iam, os namorados iam e deixavam corações com seus nomes,
era horroroso, mas tinham um lanche muito bom, lembro dos sabores, um suco
de framboesa que eles faziam, e os merengues com morango que era outra
especialidade deles, o bolo de árvore, tostadas americanas, essa casa de chá
era um ponto que todas as estudantes iam. Fui estudar no Santa Catarina di
Sena, no Paraíso e passava todo dia e minha irmã dizia: “Vamos ao colégio
ou vamos ao cinema?e como ela era mais velha, eu obedecia, mas morria de
medo da minha e. Depois do cinema, a gente ia tomar um lanche no Yara.
No domingo à tarde, nos anos 60, o programa familiar era ir à Sorveteria
Flamingo tomar um “Chocolamour”, o sorvete de chocolate com aquela
farofinha... Mais tarde tinha uma lanchonete que foi o lançamento do fast food,
a lanchonete se chamava Pub, teve depois na Paulista e depois foi para o Cal
Center. Era o máximo, eles fritavam as batatas naquelas cestas para mergulhar
no óleo, hoje em dia é comum, mas na época... A lanchonete era moderna,
bonita, toda azul, ia e comia sempre batata frita. Lembro bem desses sabores!
A gente saía do colégio, também religioso. Então a gente enrolava a saia umas
trinta vezes para ficar com uma minissaia, ia com mocassim com salto alto e
uma meia ¾ rendada e 3 quilos e maquiagem nos olhos imitando Twiggy.
Delineador verde, delineador preto, delineador branco...
Onde comprava esses cosméticos?
Na Slopper, era apaixonada pela Slopper, eles tinham produtos americanos
Charles of the Ritz, base e de arroz, sentava em uma mesa de frente para a
esteticista e foi lá que eu descobri que as peles têm colorações, então você usa
o verde, violeta, que hoje você produtos como Chanel colocando corretivos
com violeta, verde, mas naquela época existia. Então essa esteticista olhava
a sua pele e fazia o da cor da sua pele. Era lindo! Era menina e tinha pele
boa, mas ficava muito natural, impecável porque usava uma base à base de
água e depois esses pós coloridos, que a Guerlain foi lançar depois de 20
anos. Disso eu não abria o de comprar, mas usava tudo quando era marca,
não tinha grandes qualidades de marca, não tinha muita sofisticação nessa
área. Era Helena Rubinstein, Max Factor, Coty. E tinha aqueles perfumes, e
mais tarde a rua Augusta ficou com cheiro de Cabochard... Todo mundo usava!
Fleur de Rocaille era da jovem coquete, com vidro cheio de florzinhas, um
162
mimo, delicada, com florzinhas brancas na caixa. Nos anos 70, quando tinha
me formado, fazia várias festas em meu atelier de cerâmica. Aí, corria para a
Vilex para comprar queijos Brie, Camembert, patês...
Fale um pouco sobre o declínio da Augusta.
Quando saí do colégio, fui fazer faculdade na Faap e passei a freqüentar aos
sábados. Era moda nos anos 70 ir aos sábados de manhã, descia ao Pandoro
para tomar o Caju Amigo – e paquerar! - ou ao Bolinha tomar chopp na
varanda. Foi a época da paquera na Augusta e eu pessoalmente detestava
entrar de noite naquele fusca para paquerar com as amigas na Augusta. Nessa
época, passei a freqüentar a Rua Augusta do lado da cidade, era noite, farra
total, a gente vinha da Praça Roosevelt até a Estados Unidos e fazia toda a
Augusta, porque na parte de baixo, junto à cidade, tinha o restaurante Piolim,
que não tinha mais toda essa sofisticação, o Iguatemi tinha sido
inaugurado, a Augusta começa a não ter mais tanto o charme dos anos 60 e
até hoje não temos nada com a mesma cara. O charme, a sofisticação da
Augusta, nunca mais existiu, teve nesse momento, que é uma coisa
parecida como as cidades da riviera francesa, cidades muito especiais. Depois
que abriu o Iguatemi, a Augusta começou a perder mas hoje não consigo
lembrar de nada parecido com aquilo, as butiques, muito interessantes. Tinha a
questão da exclusividade que não tem mais. Você pode até ter um casaco
exclusivo, mas aí todo mundo fez esse casaco. É a democratização da moda,
nessa época era mais elitista, sem dúvida nenhuma, mas que fugia dessa coisa
da alta costura. Eram coisas do dia a dia, mas mais charmosas. Aí passei a
freqüentar o outro lado da Augusta, o Piolim, quatro vezes por semana jantava
lá. O garçom me olhava e trazia o prato pra mim. Mas aí foi outra época
completamente diferente de Rua Augusta onde você freqüentava, na época
Sergio Mamberti era novinho e sentava na nossa mesa para jantar conosco,
era o Ney Matogrosso, Elke Maravilha, Zezé Motta, fora os bacanas, como
Maria Della Costa, que eram aquelas pessoas que a gente respeitava mas
que estavam jantando no Piolim, então a gente passava a noite inteira jantando
com essas pessoas, duros, estudantes, comíamos sempre um prato de
macarrão, tinha um tal de filé à Pompéia que a gente dividia em 4 às vezes,
mas é outra Rua Augusta, a Rua Augusta da noite, decadente, do teatro,
muito mais envolvente, muito mais divertido, mas era outra Rua Augusta. a
outra Augusta, do bairro, passou a ser a Augusta do filhinho de papai chato e
se hoje você passar na Augusta você ainda vai ver uns caras que foram meus
colegas na faculdade com suas motos Harley Davidson na Rua Augusta,
todos carecas, barrigudos, de cabelo branco, mas que às vezes ainda estão
por lá. Mas ficou uma Rua Augusta de boyzinhos, chegou um ponto que ficou
insuportável, não dava para passar, era um bando de vândalos. Acho que a
Rua Augusta entrou em decadência. A gente saiu do conceito europeu
(Augusta) e foi para o americano (Shopping), de grandes volumes, grandes
negócios, shopping atrás de shopping. Teve também as laterais começaram a
ficar importantes e a Rua Augusta foi perdendo, foi para a Oscar Freire,
Alameda Lorena, Haddock Lobo, Bela Cintra, começaram as galerias de arte
nessas ruas... A Augusta era a rua da moda e os aluguéis eram absurdamente
caros, quando a Augusta ficou importante, lembro que para abrir loja na
Augusta precisava ter muito dinheiro, então o comércio passou a se expandir
163
para as laterais. Depois, por causa do trânsito e do vandalismo, as pessoas
realmente deixaram de freqüentar a Augusta, trânsito, vandalismo.
Há chance da Augusta voltar a virar um point?
Difícil, mas acho que melhorou, já foi pior, Hoje sinto uma coisa diferente, de
4 a 5 anos tenho desejo de passear por lá, teve momentos que eu nem
passava. Achei que tinha perdido seu encanto mas hoje as lojas que ficaram e
as que começaram a abrir, novas, com certos cuidados, principalmente os
restaurantes. Mas se você perceber, você passa pela Augusta mas freqüenta
mesmo as laterais. Podia também ter uma política de preços mais
interessantes para os jovens talentos poderem se instalar. Com as butiques,
com certeza ia ficar muito interessante. Muitos dos alunos formados pela Santa
têm o perfil de charme que a Augusta precisa, mas eles não têm dinheiro até
acontecerem, e quando acontecem vão abrir as mesmas lojas de sempre nos
shoppings. Somos responsáveis por isso, por termos estimulado eles a
acreditar no que eles fazem, saem e fazem, mas isso está envelhecendo e não
estão mais arrojados como eram. Eram ousados e se enquadram. Precisa de
estimulo governamental, tirar a cara de hippie, tirar o incenso de lá. Era
interessante na época, mas foi-se. O ranço precisa sair.
Qual a importância da Augusta para a moda?
Foi um ponto importante. O que eu tinha em casa era voltado à alta costura,
arte de fazer, bordado, desenho, estudo. Quanto à Augusta, era a moda jovem,
jeans, roupas mais modernas, jeans.
seguiu algum modismo por conta de coisas/pessoas que tenha visto na
Augusta?
Nos anos 70 ia comprar camisetas, blusinhas. Tinha A Crazy Shirt do Tufi Duek
e a Idéia, roupas em malha que eu usava com jeans. Ia também à Galeria Ouro
Fino comprar roupas que a e não queria ou não sabia fazer nos anos 70.
Colocava um short com mantô, sandálias de plataforma altíssimas e descia a
Augusta de madrugada para danças nas boates do outro lado da Augusta, que
as moças de família o freqüentavam mas a gente ia, que era o Cave, onde
encontrávamos o Dener, de pelerine, maravilhoso! Mas era um lugar não muito
bem freqüentado mas que a gente ia de short. Outra coisa era a calça New
Man, que todos usavam. Era de veludo, vendia na Tobi e tinha uma plaquinha
de metal, se não tivesse a plaquinha, não valia.
O que faltava na Augusta?
Não sei. Para mim, era sempre interessante. No Natal eles colocavam umas
decorações horrorosas mas que chamava a atenção, em um Natal eles
cobriram a rua com carpete, um horror, que chovia e levantava, descolava
tudo. Como jovem, o que sentia era que a badalação era boa. Passava por lá e
via gente, marcava. Ia sábado de manhã para ver a festa que ia à noite, tinham
as galerias de arte, todas as vernissages eram na região. Mas o forte mesmo
era a badalação.
Qual o fato mais interessante/emocionante que presenciou na Augusta?
Tive muitos momentos pessoais interessantes, namoros, paqueras, os
namorados que se despediam à tarde das namoradas e à noite sem querer se
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trombavam subindo e descendo a Augusta. Durante os anos de chumbo,
parecia que a Augusta não sentia nada. Os o-alienados ficavam para o lado
do centro, os boyzinhos ficavam nos Jardins.
A importância da Augusta
Comportamento: queria ser jovem, fazer parte do universo, mesmo que
desse uma passadinha, tinha clima, ambiente, que até hoje o jovem faz e a rua
Augusta foi o primeiro ponto de encontro jovem pra valer. Antes era tudo muito
formal, não tinha a coisa da displicência jovem. tinha a provocação à
sociedade, a contravenção. Era uma época em que os pais de uma colega não
queriam que a gente freqüentasse mais a casa deles porque fomos de jeans e
sentamos no chão.
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