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100 ANOS DE DNOCS: MARCHAS E CONTRAMARCHAS DA CONVIVÊNCIA
COM AS SECAS
André Silva Pomponet
1
INTRODUÇÃO
Em 2009 o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) completa um século
de existência. Instrumento estratégico na execução de políticas de convivência com as secas, o
órgão, lamentavelmente, acabou apropriado politicamente pelos coroneis nordestinos e usado
em proveito próprio, numa época em que a utilização do patrimônio público para o
beneficiamento de propriedades particulares era ainda maior que nos dias atuais.
Somente na década de 1950 se tentou abandonar o conceito de “combater” as secas e adotar a
filosofia da convivência com seus efeitos, deslocando a abordagem da questão da dimensão
climática para a econômica e social. Infelizmente, a longa ditadura que se seguiu terminou por
sufocar essa discussão, que incluía o tema crucial da reforma agrária. Assim, o DNOCS
permaneceu executando obras que pouco impacto tinham sobre a população mais carente que
não dispunha de meios de produção para se beneficiar com essas realizações, muitas vezes de
uso exclusivo dos poderosos locais.
Nos últimos meses, mais uma seca assola o Nordeste. Centenas de municípios decretaram
situação de emergência desde meados de 2008 e milhares de pessoas estão expostas à
escassez de água até para saciar a sede. Sinal de que as políticas executadas pelo DNOCS e
outros órgãos, sempre sob a tutela das elites tradicionais da região, ainda não alcançaram
pleno sucesso, mesmo depois de passados 100 anos.
O objetivo deste ensaio não é exaurir a discussão sobre o convívio com a seca, o papel do
DNOCS e a lógica política que perpetua o flagelo sobre a população. Busca-se,
objetivamente, ressaltar que o fenômeno climático que assola o semi-árido nordestino sempre
foi abordado sob um prisma equivocado e que, no presente, muitos equívocos se perpetuam.
1
André Silva Pomponet é Economista, Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental na Secretaria do Planejamento da Bahia
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Essa discussão é oportuna, particularmente no momento em que o DNOCS alcança um século
de existência.
O texto está estruturado da seguinte forma: na próxima seção traça-se um panorama do
surgimento do DNOCS, então Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), e sua trajetória até a
década de 1950. Depois, é abordada a tentativa de enxergar e tratar a questão sob a dimensão
social, o que foi abandonado logo em seguida. Nas seções seguintes fazem-se reflexões, com
o foco no fracasso das políticas de “combate” às secas, para se arrematar, por fim, com
algumas considerações.
O IOCS E O IFOCS: COMEÇA O “COMBATE” À SECA
O fenômeno da seca só ganhou notoriedade no Brasil com o grande flagelo dos anos
1877-1879, que abalou o semiárido brasileiro, à época esquecido e vagamente designado
como “norte”. Naquela estiagem pereceram pelo menos 500 mil nordestinos, com 200 mil
mortes somente no Ceará. A fome, a sede e as epidemias podem ter feito número ainda maior
de vítimas, conforme estimativa do jornalista potiguar Eloy de Souza, que calcula 600 mil
mortos (VILLA, 2000, p. 83). Mesmo que se adote a estimativa mais conservadora, pelo
menos 4% da população brasileira pereceu no flagelo, que obrigou outros 250 mil nordestinos
a migrarem para a Amazônia, em busca do ilusório eldorado da borracha, dessa época até o
final do século XIX (VILLA, 2000, p. 64).
As secas já era conhecidas desde 1583, quando Fernão Cardim registrou a estiagem que
assolava a Bahia, reduzindo a produção dos engenhos de açúcar e forçando muitos indígenas e
a se abrigarem no litoral. Em documentos oficiais, porém, os primeiros registros datam de
1729, quando vários escravos morreram de fome e os engenhos paralisaram suas atividades.
Na ocasião, providências foram solicitadas a El-Rei de Portugal para amenizar a situação
(ALVES, 2004). Esse, pelo visto, foi o marco inicial das políticas assistencialistas voltadas
para a região.
180 anos depois dos apelos iniciais foi finalmente criada, em outubro de 1909, a Inspetoria de
Obras Contra as Secas (IOCS), inspirada no Reclamation Service, surgido nos Estados Unidos
em 1902, conforme observa Villa (2000, p. 95). O IOCS, a propósito, nasceu na chamada
“Era de Ouro” da Primeira República, quando o país experimentava taxas de expansão em
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torno de 4,5% e grandes obras de infra-estrutura estavam em curso, como portos e ferrovias
(FRITSCH, 1990, p. 37).
A prosperidade do período, no entanto, não alcançou o IOCS, já que a execução orçamentária
estava muito aquém do previsto, o que tornou ainda mais severos os efeitos da seca de 1915,
novamente arrasadora para a região. O reconhecimento dos débeis esforços está na própria
mensagem presidencial de Venceslau Brás, comunicando ao país que em 1914 somente 42
poços haviam sido escavados, sendo 33 privados e apenas nove públicos (VILLA, 2000, p.
102).
Em 1918 Epitácio Pessoa, paraibano, ascendeu à presidência da República e a seca passou a
ser encarada com maior atenção. As soluções propostas, porém, não divergiam do que era
executado em pequena escala nos anos anteriores: escavação de poços e construção de açudes
e barragens, com o propósito de acumular a água dos períodos de grande precipitação
pluviométrica. O presidente visualizava o problema sob a seguinte ótica:
“Sabe-se hoje que no Nordeste há irregularidade mas não faltam chuvas. Tudo está em poder
armazenar-se as águas cabidas nos meses chuvosos, para gastá-las na irrigação durante os meses de
seca. Construídas as barragens para a formação de açudes e abertos os canais de irrigação, virá por si a
colonização das terras por essa gente laboriosa, cuja coragem e resistência assombram os que não lhe
conhecem as virtudes” (PESSOA, 2004).
Não faltou interesse de Epitácio Pessoa em preparar a região para o enfrentamento do
fenômeno. Em 1918, último ano da gestão Venceslau Brás, aplicou-se em obras contra as
secas 2.326 contos de réis. Quatro anos depois, o montante saltou para 145.947 contos de réis.
Conforme Guerra (1981, p. 60), houve um frenesi de importação de máquinas, equipamentos
e até cimento (o que o Brasil não produzia) para construção de açudes, estradas de ferro e
rodovias cortando o interior do Nordeste. A política para a região, portanto, era a de construir
imensos reservatórios artificiais de água, embora as obras não entusiasmassem os oligarcas
locais, temerosos da modernização do sertão e da erradicação da miséria que constituía seu
principal capital político. Por outro lado, havia os cafeicultores paulistas e a defesa
intransigente de seus interesses, contrariados com a aplicação de recursos no Nordeste
(VILLA, 2000, p. 136).
Assim, foi fácil para Artur Bernardes, sucessor de Epitácio Pessoa, abandonar os
investimentos na região, que encolheram a olhos vistos: em 1925, somente 3.827 contos de
réis foram investidos (GUERRA, 1981, p. 64), sob um discurso ambíguo de que as obras
haviam alcançado êxito e que o fluxo de recursos podia ser reduzido (VILLA, 2000, p. 137).
Na ocasião, Bernardes promovia um ajuste ortodoxo da economia, reduzindo despesas e
promovendo uma valorização monetária que criou embaraços para o seu sucessor,
Washington Luís e para o sistema primário-exportador brasileiro (FRITSCH, 1990, p. 55).
O longo governo Getúlio Vargas (1930-1945) preservou a lógica vigente de construção de
açudes como antídoto contra as secas. Como novidade, houve a intensificação da construção
de rodovias cortando a região, principalmente os sertões, também sob o encargo do órgão.
Uma dessas rodovias foi a Transnordestina (posteriormente incorporada à BR 116), que
visava ligar Fortaleza, no Ceará, ao Sudeste (GUERRA, 1981, p. 68). Depois de 1937, porém,
os recursos minguaram e o número de funcionários se reduziu drasticamente, conforme
assinala Guerra (1981, p. 69). Em 1945, o então Instituto Federal de Obras Contra as Secas
(IFOCS), que rebatizou o antigo IOCS em 1919, tornou-se finalmente Departamento Nacional
de Obras Contra as Secas (DNOCS).
Somente na década seguinte o fenômeno das secas e seus efeitos sobre a sociedade sertaneja
passaram a ser avaliados sob uma ótica mais plural, sem o reducionismo das adversidades
climáticas. Até então, a promiscuidade política produzira muitas obras com recursos públicos
em propriedades particulares, o sistema social se estruturara de forma que população sertaneja
era mantida sob as amarras dos poderosos locais e a questão fundiária, uma das raízes do
drama das secas, permanecia um tabu.
Mudanças, no entanto, começaram a ocorrer a partir de 1940. Uma delas é que as estradas que
iam surgindo facilitavam a migração dos sertanejos em direção ao litoral e às metrópoles do
Sudeste. Para tanto, colaborou o pensamento vigente à época, de que os fluxos populacionais
tendiam a se adensar no litoral, fortalecendo o comércio pelo Atlântico. Esse raciocínio
orientou o planejamento governamental de então (POMPONET, 2007, p. 1070-1). O fato
mais relevante, porém, é que o Nordeste estagnara nas cinco primeiras décadas do século XX,
em contraste com o extraordinário desenvolvimento urbano e industrial de outras regiões do
Brasil. O problema tornou-se mais visível somente na década seguinte.
O DNOCS E O PÓS-1950: UMA NOVA VISÃO
Como órgão operacional, sujeito às ingerências políticas dos poderosos que se digladiavam
nos parlamentos pelas verbas disponíveis, o DNOCS mostrava-se incapaz de romper a lógica
que o subordinava aos interesses dos latifundiários e coronéis regionais. É o que constata
Celso Furtado:
“As máquinas e equipamentos do DNOCS eram utilizados por fazendeiros ao seu bel-prazer. Nas terras
irrigadas com água dos açudes construídos e mantidos pelo governo federal, produzia-se para o mercado
do litoral úmido, e em benefício de alguns fazendeiros que pagavam salários de fome (...) Em síntese, a
seca era um grande negócio para muita gente” (1997, p. 86).
Mudava, então, a leitura sobre o fenômeno das secas: ao invés de decorrer meramente de
fatores climáticos ou geográficos, era produto de um conjunto de relações sociais
estabelecidas ao longo dos séculos de povoamento da região. Entre essas relações, estava a
maciça concentração de terras, com latifundiários detendo imensas propriedades que
abrigavam boa parte das obras executadas pelo DNOCS nas décadas anteriores e cujo uso
atendia a interesses particulares. Guimarães (1981, p. 213), utilizando dados censitários,
fornece um panorama da situação no Brasil: em 1950, 1,6% dos estabelecimentos detinham
50,9% da área total agrícola. Uma década depois, 1% dos proprietários rurais eram donos de
47,3% das terras agrícolas do Brasil.
Latifúndio e poder político concentrados produziram a famosa “indústria das secas”: meeiros
e trabalhadores rurais, sem meios de produção, subordinavam-se ao patronato rural que
pagava salários miseráveis e extorquia os trabalhadores nos anos chuvosos. Quando
sobrevinham as secas, a população era “artificialmente” mantida no campo através das ações
assistencialistas do governo federal, como frentes de trabalho e distribuição de alimentos, o
que evitava migrações em massa, como observa Furtado (1997, p. 72). O sistema era, ainda,
potencializado pelos repasses de recursos para execução de obras emergenciais que
beneficiavam os latifundiários e com verbas que eram simplesmente desviadas.
Herdado da República Velha, esse sistema originou, no âmbito eleitoral, os “currais
eleitorais”. Neles, a população pobre permanecia refém dos favores dos coroneis, que em
contrapartida impunham o “voto de cabresto”, que ia do mero constrangimento às ameaças de
jagunços armados. Conveniente aos poderosos, esse sistema configurava-se numa verdadeira
“fábrica de votos”, embora a lisura não fosse uma característica das eleições, reforçando o
vicioso ciclo da “indústria das secas”.
Como antídoto a essa “indústria das secas”, o projeto que instituiu a Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) colocava o DNOCS sob a supervisão desse órgão,
extinguindo seu papel na execução de obras rodoviárias, que passaram às esferas estadual e
federal e redefinindo suas funções, focadas na execução de projetos voltados para o
aproveitamento da água (FURTADO, 1997, p. 129). Apesar das resistências dos políticos
conservadores do Nordeste, o projeto foi aprovado pelo Congresso e melhores perspectivas se
lançaram sobre a região, que tinha um desafio a enfrentar: reduzir a imensa desigualdade
regional, que começava a criar diferenças profundas em relação ao Sul e ao Sudeste, mais
desenvolvidos e em franco processo de industrialização.
Havia, contudo, um obstáculo incontornável no caminho: o Golpe Militar de 1964, que
atropelou as esperanças de um desenvolvimento equilibrado em termos intra-regionais. O
foco dos militares voltou-se para a industrialização, que beneficiou o litoral nordestino, com
melhor infraestrutura e maior grau de desenvolvimento. Ainda assim, a guinada na forma de
abordar a questão das secas colaborou para uma melhor focalização da atuação do DNOCS,
que se voltou para projetos de irrigação que tinham a finalidade de aproveitar o imenso
potencial hídrico acumulado nos incontáveis açudes construídos ao longo de dezenas de anos
em nove estados. Um balanço do órgão em junho de 1980, indicava 2.930 famílias
beneficiadas e 32.703 hectares irrigados em 26 projetos nos estados do Piauí, do Rio Grande
do Norte, da Paraíba, do Ceará, de Pernambuco e da Bahia (GUERRA, 1981, p. 121). Em
1979, 257 açudes tinham capacidade total de acumular 11,496 bilhões de metros cúbicos de
água na região, com capacidade média de 44,734 milhões de metros cúbicos (GUERRA,
1981, p. 120).
A superação dos métodos políticos arcaicos vigentes no semi-árido no pré-1964, no entanto,
ficou apenas na retórica dos militares (VILLA, 2000, p. 199). Nova seca se abateu sobre a
região em 1969-1970 e a SUDENE e o DNOCS não se mostraram capazes de agir com
eficiência diante do flagelo. E, contrariando o discurso oficial, o órgão permaneceu realizando
obras em propriedades particulares, principalmente nas de quem tinha assento no Congresso
Nacional. A hipocrisia, a pusilanimidade e uma severa estiagem entre 1979 e 1983
produziram nova tragédia no Nordeste, com milhões de mortos e flagelados. À época,
contudo, já não cabiam os discursos incrédulos de parlamentares, como no início do século
XX, porque a calamidade ganhou os telejornais e comoveu o Brasil.
As cifras sobre o total de mortos variaram bastante. A mais conservadora, a dos governadores
da região, indicava 100 mil mortos. As demais estimativas apontam de 700 mil mortos por
fome ou fraqueza a 3,5 milhões (VILLA, 2000, p. 246-7). De qualquer forma, assume a
mesma dimensão das calamidades anteriores, como ocorreu em 1877-1879, 1915 e 1932, para
citar apenas as mais intensas. As medidas adotadas pelos governos foram a construção de
açudes pelo DNOCS as obras da seca de 1970 foram se decompondo logo depois de
concluídas e as frentes de trabalho nas quais se alistaram 1,5 milhão de flagelados. A
recessão de 1981 comprometeu ainda mais a ajuda aos nordestinos, que se alimentavam de
ratos, calangos e outros animais que sobreviviam na caatinga à estiagem severa. Fortaleza,
capital do estado mais afetado pela seca, o Ceará, recebeu 350 mil flagelados que se alojaram
nas favelas (VILLA, 2000, p. 240). O pouco recurso que chegava era embolsado pelos
corruptos de plantão ou servia para adquirir alimentos de péssima qualidade para as vítimas
da estiagem.
Parte da explicação para a intensidade do flagelo foi a concentração de terras na região
registrada na década de 1970: em 1972, 4 mil proprietários (2,71% do total) detinham 51%
das terras. Outros 350 mil detinham a posse de ínfimos 1,83% das terras da região, conforme
Villa (2000, p. 215). O “Brasil Potência” que produzia o “Milagre Econômico” também era o
mesmo país que concentrava meios de produção e expulsava milhões de sertanejos para as
periferias das metrópoles.
100 ANOS DE DNOCS: ALGUMAS REFLEXÕES
A seca de 1979-1983 mostra que houve uma involução em relação à interpretação produzida
desde os anos 1950 sobre os problemas do Nordeste semiárido e, principalmente, em relação
às políticas propostas para atenuar os efeitos da seca. Dessa forma, Furtado (1997, p. 79) nota
que “Não se trata de ‘combater’ as secas e sim de conviver com elas, criando uma
agropecuária que tenha em conta a especificidade ecológica regional”. Observe-se, contudo,
que essa convivência implicava em mudanças na configuração econômico-social que não
interessava às lideranças políticas regionais. Uma evidência foi a resistência enfrentada pelo
governo Kubistchek para a criação da SUDENE.
O latifúndio e o poder dele derivado constituam os maiores obstáculos às transformações
necessárias para alterar o panorama da região. À época estavam em curso pressões dos
movimentos sociais por mudanças políticas na região. Esses movimentos sociais, a propósito,
contavam com a simpatia dos setores mais progressistas dos meios urbanos. O choque entre
posições antagônicas, no entanto, resultou no Golpe Militar de 1964, que representou um
triunfo dos setores políticos mais conservadores e contribuiu para manter inalterada a
estrutura fundiária da região. Caso fossem à frente as mudanças que o sistema democrático
articulava, o DNOCS, como agência de desenvolvimento, certamente desenvolveria um
papel-chave sob outra perspectiva. Mas, conforme Villa (2000, p. 197), “As agências federais
perderam autonomia e ficaram submetidas à lógica militar”, tornando meras repartições
dedicadas a atividades rotineiras.
No contexto da época, a “lógica militar”, por extensão, era a lógica dos políticos
conservadores nordestinos, entusiastas da quartelada de 1º de abril. E, a exemplo dos decênios
anteriores, a missão do DNOCS era perpetuar o passado perverso em que açudes construídos
com recursos públicos acumulavam milhões de metros cúbicos de água em grandes
propriedades particulares. O retrocesso do DNOCS e da política de convivência com as secas,
apenas esboçada com a criação da SUDENE, ficou visível com a seca de 1970 e, mais ainda,
com a grande estiagem do quadriênio 1979-1983. Encerrado o regime militar, a chamada
“Civilização do Semiárido” pode, enfim, vislumbrar a retomada de uma discussão
interrompida em 1964.
Em 2009 o DNOCS completa um século de existência, perpetuando sua missão de combater
os efeitos das secas. É evidente que o semiárido exigia a criação de um órgão que dotasse a
região de infraestrutura para reter a água das chuvas irregulares, empregando-a nos períodos
secos, sustentando a atividade econômica e evitando a fome, a migração e a morte de milhões
de sertanejos. Só que a questão nordestina não se resume às limitações edafoclimáticas,
sanáveis com açudes, poços, canais de irrigação e represas. A situação, nos dias atuais, não
seria tão crítica caso o problema se limitasse a essas intervenções, mesmo com o largo uso
político do órgão em proveito da elite política local.
Uma evidência é que, nos últimos meses, as estiagens voltaram a assolar os sertões
nordestinos, dizimando lavouras, definhando e matando animais e expondo centenas de
milhares de pessoas residentes nas zonas rurais à escassez de água até mesmo para beber
(SECA deixa..., 2008). Não é à toa que, em meados de 2008, centenas de municípios
declararam situação de emergência inclusive na Bahia em função da ausência de chuvas.
Para amenizar o problema, mais do que um sistema de armazenamento e canalização das
águas captadas nos períodos chuvosos, o obstáculo consiste nas profundas desigualdades
sociais e econômicas, que mantêm milhões de sertanejos à mercê das políticas assistenciais
dos governos.
Pensar o convívio com a seca hoje envolve um esforço de articulação de políticas que se
integrem verticalmente e que possuam ampla transversalidade, alcançando o conjunto de
dimensões que configuram o hinterland setentrional brasileiro. A democratização do acesso à
terra, agenda considerada ultrapassada nos países desenvolvidos, ainda está por se construir
na região e é das questões mais centrais. Inversões em saúde, educação, qualificação
profissional, crédito para a agricultura familiar, assistência técnica e mais recentemente
capacitação para o manejo da flora e da fauna, degradada em grandes extensões, constituem
pilares do desenvolvimento integrado e sustentável e a base para o êxito transversal das ações.
Retomando-se o diagnóstico de 50 anos, percebe-se que o flagelo das secas é um fenômeno
mais social que propriamente climático, mais de políticas públicas que de engenharia civil. Os
pactos políticos, a interpretação equivocada da realidade, a manutenção do status quo e o
descaso com que, frequentemente, o semiárido é tratado explicam a derrocada das políticas
aplicadas ao longo do século XX. Nos primeiros anos do século XXI, porém, essa visão mais
abrangente da realidade ainda não encontra ressonância significativa.
É o que demonstra a proposta de transposição do Rio São Francisco, através de canais que
vão drenar parte das águas do rio para os estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio
Grande do Norte. Essa proposta, a rigor, não constitui sequer novidade, já que era apontada
como solução desde a grande seca de 1877-1879, conforme aponta Villa (2000, p. 62). O
discurso em defesa da transposição, inclusive, recai na armadilha de situar a obra como uma
panaceia para os efeitos da seca, já que, em tese, beneficiará 12 milhões de nordestinos
(CORREIA E LIMA, 2009). Ironicamente, nesse início de século saem de cena os antigos
coronéis locais e surgem os barões do agronegócio como principais beneficiários da iniciativa,
conforme acusações divulgadas pela imprensa (MOVIMENTO DOS SEM-TERRA, 2009).
Desgastado por décadas de apropriação política, ao DNOCS parece estar reservado um papel
secundário no processo de transposição. É que o órgão ainda não foi escolhido como gestor
do sistema e a obra encontra-se fora da sua alçada, embora se alegue que a gestão não cabe à
Companhia Hidrelétrica do São Francisco (por ser usuária) e à Companhia de
Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (cuja atuação se restringe ao
curso do rio). A declaração do presidente do órgão não deixa de demonstrar o desgaste
político do DNOCS, justamente às vésperas de completar um século de existência em outubro
de 2009 (DNOCS, 2008).
Nos últimos anos, os programas de aposentadoria rural, as políticas de transferência de renda
e o maior envolvimento dos governos estaduais na oferta de infra-estrutura hídrica – como é o
caso do Programa Água para Todos (PAT) em curso na Bahia -, somados à redução da
população no campo frearam o espetáculo macabro de mortes e migrações nos períodos de
estiagem. No entanto, é preciso ir além, desenvolvendo e aplicando políticas públicas que
reduzam as fragilidades demonstradas nos períodos secos, em que a declaração de estado de
emergência ainda constitui um mecanismo corriqueiro de proteção à população.
Mais do que situação emergencial, a medida é uma demonstração de que a população do
semiárido necessita de políticas adequadas à convivência com a seca e emancipatórias em sua
dimensão social. O raciocínio perverso que se aplicou à SUDENE e à SUDAM no governo
Fernando Henrique Cardoso, extintas porque eram consideradas ninhos de corrupção, não
pode ser aplicado ao DNOCS, que cem anos depois permanece como órgão indispensável ao
semiárido na oferta de infraestrutura para a convivência com as estiagens periódicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação do DNOCS ao longo de dez décadas reflete os conflitos de interesses e as formas
de enxergar o fenômeno das secas no semi-árido nordestino. Mas, sobretudo, reflete o
conjunto de relações sociais estabelecidas durante séculos, a importância do controle sobre os
órgãos do Estado em uma região com baixo dinamismo econômico, um modelo político
anacrônico e excludente e, por extensão, a relevância dos conchavos políticos como forma de
perpetuação no poder.
Sendo assim, é compreensível que o órgão tenha permanecido sob o controle dos poderosos
locais, enriquecidos com os benefícios advindos da “indústria da seca”. Verdadeiros
empresários da desgraça, foram beneficiados pela força das oligarquias na República Velha,
acomodaram-se aos dois prolongados períodos ditatoriais do século XX e, sobretudo,
regatearam e ratearam cargos e obras dos órgãos federais, entre cujas vítimas está o DNOCS.
Mas, contrariando toda a evolução dos últimos anos, a crença no “combate” à seca com obras
e retenção artificial de água permanece viva, como atesta a transposição das águas do Rio São
Francisco. Obra que vai beneficiar o agronegócio da fruticultura irrigada, protegido sob o
manto da iniciativa louvável de levar água a 12 milhões de pessoas. Como presente pelo seu
centenário, porém, parece que dessa vez o DNOCS vai ficar de fora.
REFERÊNCIAS
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Fortaleza, v. 1, n. 4, out-dez. 2004.
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