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CONCLUSÃO
O tempo passou. Agora, tenho duas línguas. Uma língua nasceu comigo, no colo da
minha mãe. É a língua que expressa a alma guarani. É a língua do tekoha, da opy,
onde as palavras se abrem em flor e se convertem em sabedoria, as belas palavras,
nhe´en porãngue´i, palavras indestrutíveis, sem mal, ayvu marã´ey. O nome que
tenho, foi ela quem me deu na cerimônia do Nhemongarai. É nela que ouço as
divinas palavras do maino´i. Com ela nomeio as plantas, as flores, os pássaros, os
peixes, os rios e as pedras, o sol e a chuva, a roça e a caça. Com ela, faço soar o
mbaraka, aspiro o pityngua, danço xondaro, canto pra Nhanderu e rezo nhembo´e.
Bebo kaguy, como avaxi e jety, aprendo jopói e potirõ, tudo isso com ela eu faço:
rio e choro, rezo e canto. Com ela, eu sou o que falo: guarani. A outra língua que
tenho é a que sobrou de uma guerra de muitas batalhas. Ela trouxe a espada e a
cruz, o livro e as imagens, o sermão, o catecismo, a doutrina, as leis. Ela me
ensinou a aprisionar o som, como quem pega a fumaça com a mão e a guarda no
adjaká. Com ela, aprendi riscar as letras, e a desenhar as palavras no papel.
Quando saio da aldeia, é ela quem me ajuda. Com ela, procuro escola e biblioteca,
mercado e igreja, posto de saúde e hospital, cartório e tribunal. É com ela que me
comunico com índios de outras línguas. Com ela navego na internet, descubro o
pensamento do juruá, caminho pelas ruas, leio as cidades, entro nos ônibus,
embarco e desembarco na rodoviária, vendo o artesanato e converso com as
pessoas. Agora já não posso mais viver sem as duas. Estou sempre trocando de
língua com um pouco de medo, como se fosse um caso de bigamia.
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Ao delinear os primeiros passos dessa dissertação de mestrado em Enfermagem,
acreditava que as tensões as quais me propunha investigar e discutir transpareceriam de forma
clara e objetiva entre os dois grupos humanos que ocupam posições desiguais na luta por um
bem incontestável, a terra indígena.
Para compreender o problema em sua amplitude, empenhei-me na aquisição de
conhecimentos sobre as propostas políticas e normativas que regulamentaram historicamente
o tratamento dispensado aos povos indígenas na formação de uma sociedade que não lhes
interessava, a qual pertencemos.
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Texto adaptado do poema “Dues Lhéngues” de Amadeu Ferreira, pelo professor José Ribamar Bessa Freire
em uma oficina realizada com os professores Guarani no ano de 2007.