Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE/ CCBS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM- MESTRADO
Luiz Henrique Chad Pellon
TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO
SAÚDE-DOENÇA NA POPULAÇÃO GUARANI MBYÁ DO MUNICÍPIO
DE ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO
RIO DE JANEIRO- 2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Luiz Henrique Chad Pellon
TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO
SAÚDE-DOENÇA NA POPULAÇÃO GUARANI MBYÁ DO MUNICÍPIO
DE ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO
Orientadorª: Profª Drª Liliana Angel Vargas
Co-orientador: Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire
RIO DE JANEIRO-2008
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Programa de Pós-
Graduação em Enfermagem da
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito para a
obtenção
do Título de Mestre em Enfermagem.
ads:
Pellon, Luiz Henrique Chad.
P392t Tensões interculturais e os impactos no processo saúde-doença na
população guarani mbya do Município de Aracruz, Espírito Santo /
Luiz Henrique Chad Pellon. – Rio de Janeiro, 2008. 243p.
Orientador: Liliana Angel Vargas.
Orientador: José Ribamar Bessa Freire.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (2003-). Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Programa de
Pós-Graduação. Mestrado em Enfermagem.
1. Índios Guarani Mbya. 2. Saúde indígena. 3. Enfermagem
transcultural. 4. Pesquisa em enfermagem. I. Vargas, Liliana Angel. II.
Freire, José Ribamar Bessa. III. Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (2003-). Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Programa de
Pós-Graduação. Mestrado em Enfermagem. IV. Título.
CDD – 610.72
Luiz Henrique Chad Pellon
TENSÕES INTERCULTURAIS E OS IMPACTOS NO PROCESSO
SAÚDE-DOENÇA NA POPULAÇÃO GUARANI MBYÁ DO MUNICÍPIO
DE ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO como requisito
para a obtenção do título de Mestre em Enfermagem.
Aprovada em______/_______/ 2008.
Banca Examinadora
Prof.______________________________________________________________- Presidente
Liliana Angel Vargas
Drª em Saúde Coletiva
Prof._____________________________________________________-Primeiro Examinador
Ribamar Bessa Freire
Dr. em Literatura Comparada
Prof._______________________________________________________________-Suplente
Armando Martins Barros
Dr. em Educação
Profª____________________________________________________-Segunda Examinadora
Fátima Teresinha Scarparo Cunha
Drª em Saúde Coletiva
Profª_______________________________________________________________-Suplente
Florence Romijn Tocantins
Drª em Enfermagem
RIO DE JANEIRO-2008
Ao Grande Espírito de Luz que tudo vê, tudo
sabe e ilumina o meu caminho para caminhar;
aos Guarani, por tudo que me ensinaram.
Agradeço aos Guarani, especialmente, ao amigo Marcelo (Wera Djeckupe) e à sua
família, por me propiciarem conhecer uma centelha do universo sagrado Mbyá; aos meus
filhos Íris Flora e Uirá Tupã que, com o brilho do seu sorriso renovam diariamente minha
alegria de viver; aos meus pais, pela dedicação e amor incondicional; aos meus irmãos ,
parentes e amigos que contribuíram para a realização desta obra; aos meus orientadores
Liliana Angel Vargas e José Ribamar Bessa Freire, pela conjugação de esforços e pelo
apoio nesta jornada; ao amigo Felipe Veiga, ao professor Armando Barros, à amiga
Valéria e à turma do Pro-Índio, pela força .
Percebemos a paz de todo o universo dentro
do nosso coração, e à noite quando
olharmos as estrelas, poderemos ter or-
gulho de pertencer à humanidade desse
pequeno planeta. Cuidaremos da terra com
o carinho que ela merece porque sentiremos
que é como um jardim onde cultivamos não
plantas, mas também nossas próprias
almas.
Carlos Aveline (S/D)
PELLON, Luiz Henrique Chad. Tensões Interculturais e os impactos no Processo Saúde-
Doença na População Guarani Mbyá do Município de Aracruz, Espírito Santo. 2008.
243 p. Dissertação [Mestrado em Enfermagem]. Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, 2008.
RESUMO
O Mbyá é um subgrupo Guarani que circula e habita historicamente em áreas de mata
próximas ao litoral sul e sudeste do país onde possui relações com elementos materiais e
simbólicos que lhe garante a sua reprodução enquanto povo, língua e cultura. O grupo que
habita as terras de Aracruz, Espírito Santo, alcançou esta região na década de 1960 após 40
anos de caminhada sagrada (oguata) sob a condução de uma líder religiosa de grande
proeminência entre seu povo, Tatati Yva Ete. Suas terras no Espírito Santo foram invadidas,
desmatadas e transformadas em monocultura de eucalipto pela transnacional Aracruz
Celulose, exceto pequena área que se encontra ao redor das aldeias. A inviabilidade para a
agricultura tradicional, para a prática da caça e para a medicina tradicional devido à
degradação das terras e ao repentino processo de urbanização dos arredores das aldeias tem
feito com que os Guarani modifiquem suas estratégias de sobrevivência, estabelecendo
parcerias e estreitando laços, na maioria das vezes, com instituições e serviços que não
consideram sua peculiaridades culturais na forma de se relacionar com o processo saúde-
doença. Com base nessas considerações, formulamos os seguintes objetivos da dissertação:
identificar as formas como as tensões interculturais impactam o processo saúde-doença no
grupo Guarani Mbyá de Aracruz, no Espírito Santo; analisar as contradições que surgem entre
as propostas normativas e o cotidiano do grupo em foco e discutir os aspectos normativos nas
políticas públicas que poderiam minimizar esses impactos. A metodologia qualitativa na
forma de um estudo de caso, possibilitou a formulação de uma questionário semi-estruturado
que foi realizado com agentes de saúde, lideranças e educadores Guarani dessas aldeias. Para
a leitura dos dados foi utilizado o referencial teórico de Bakhtin e a análise se apoiou nas
propostas normativas que versam sobre os direitos dos povos indígenas em âmbito nacional e
internacional. Os dados foram reveladores em apontar a ausência de estratégias de
fortalecimento das estruturas determinantes de qualidade de vida e saúde e a incapacidade do
poder público em atender condignamente as necessidades mais amplas em promoção,
proteção e recuperação da saúde indígena. Esta situação, aliada à escassez dos recursos
naturais impossibilita aos índios desenvolverem suas práticas autóctones de atenção à saúde e
traduz-se em uma precária situação sanitária, onde despontam elevados índices de doenças
relacionadas com a falta de infra-estrutura econômica, social, e ambiental.
Palavras Chave: Guarani Mbyá, saúde indígena, enfermagem, interculturalidade
PELLON, Luiz Henrique Chad. Intercultural tensions and impacts in health-disease case
in Guarani Mbyá population of Aracruz council, Espírito Santo. 2008. 243 p. Dissertação
[Mestrado em Enfermagem]. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
ABSTRACT
The Mbis a Guarani sub-group that circulates and inhabits zones of bush next to the south
and southeastern coast of Brazil where it has relations with material and symbolic elements
that guarantee its reproduction as people, language and culture. The group that inhabits lands
of Aracruz, Espirito Santo, reached this region in the decade of 1960, after 40 years of sacred
(oguata) walk under the Tatati Yva Ete religious leader conduction. Its lands in Espirito Santo
had also been invaded, deforested and transformed into eucalypt cultivation by the
transnational Aracruz Cellulose, except a small portion located around the villages. The
uncapacity for traditional agriculture due to degradation of lands, the loss of its traditional
pharmacy, practical of hunting and the sudden process of urbanization of the outskirts of the
villages made the Guaranis modify their strategies of survival, establishing partnerships and
relationships most of the time with institutions and services that do not know their cultural
peculiarities in relating with health-illness. Based on these facts we formulate the following
objectives of this report: to identify how the intercultural tensions impact the health-illness
process in the Guarani Mbyá group, from Aracruz, in the State of Espirito Santo; to analyze
the contradictions that appear between the normative proposals and the daily routine of the
group in focus and to argue the normative aspects in the public politics that could minimize
these impacts. The qualitative methodology as a case study enabled the creation of a half-
structuralized questionnaire by agents of health, leaderships and Guarani educators of these
villages. The theoretical referencial of Bakhtin was used to read the data and the analysis was
based on the normative proposals that that dictate the rights of the aboriginal people in
national and international scope. The data had been revealing in pointing the absence of
strategies to increase structures that enable the quality of life and health as well the incapacity
of the public power in provide with the promotion, protection and recovery of the aboriginal
people's health. This situation together with the absence of natural resources that enable the
Indian people to develop its aborinal attention to the health translates a precarious sanitary
condition, pointing high indices of illnesses related with the lack of economic, social, and
environmental infrastructure.
Key Words: Guarani Mbyá, aboriginal health, nursing, interculture
LISTA DE TABELAS
Tabela 1- Dispersão demográfica Guarani no ano de 1979 82
Tabela 2- Distribuição da população Guarani por ano e aldeia 91
Tabela 3- Distribuição das famílias Guarani por ano e aldeia 92
Tabela 4- Crianças Guarani de 0-5 anos desnutridas e em risco nutricional 119
nos levantamentos de maio a novembro de 2004
Tabela 5- Resultados dos exames parasitológicos de fezes realizado em 119
crianças Guarani no ano de 2005
Tabela 6- Informações sobre parto e nascimentos na população Guarani e Tupiniquim 126
Tabela 7- Atendimentos ambulatoriais na população Guarani e Tupiniquim 128
Tabela 8 Atendimentos especializados na população Guarani e Tupiniquim 129
Tabela 9- Causas de Internação na População Guarani e Tupiniquim 129
Tabela 10- Taxas de óbito na população Guarani e Tupiniquim 130
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
Pressupostos Teóricos 15
Fontes 19
METODOLOGIA 24
O Trabalho em campo 27
1-OS POVOS INDÍGENAS E A SOCIEDADE NACIONAL 32
1.1 Brasil Colonial 32
1.2 Brasil Império 37
1.3 Brasil República 40
1.4 As Políticas Indigenistas de Saúde no Brasil República 44
1.5 Panorama Atual da Saúde Indígena no Brasil 49
2- POVOS INDÍGENAS, GLOBALIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E SAÚDE-
DOENÇA 55
2.1 Cultura e Interculturalidade Entre os Guarani 61
2.2 Guarani, Línguas, Território e População 64
2.3 Os Guarani e os Aldeamentos Jesuíticos 71
3-OS GUARANI MBYÁ EM ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO 74
3.1 A Fundação de Tekoa Porã (Aldeia Boa Esperança) 80
3.2 A Aracruz Celulose, a Eucaliptocultura e os Guarani Mbyá 83
3.3 Estrutura Social e Aspectos Gerais das Aldeias Guarani do Espírito Santo 89
4-COSMOVISÃO MBYÁ E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA 95
4.1 Mito, Religião e Saúde na Cultura Guarani Mbyá 96
4.1.1 Mito e Práticas de Atenção à Saúde na Cultura Guarani Mbyá 103
4.1.2 Mito, Plantas Medicinais, Alimentação e Saúde na Cultura Guarani Mbyá 109
4.2 Processo Saúde-Doença: o Discurso Oficial 115
4.2.1 Estrutura do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Município de Aracruz 117
4.2.2 Saúde da Criança e o Risco Nutricional 118
4.2.3 Enfermidades Crônico-Degenerativas, um Reflexo das Transformações Sociais 121
4.2.4 Saúde Bucal, uma Situação de Precariedade
124
4.2.5 Saúde da Mulher, Doenças Sexualmente Transmissíveis 125
4.2.6 Gravidez, Parto e Puerpério entre os Mbyá de Aracruz 126
4.2.7 Atendimentos Ambulatoriais, Internações e Óbitos na População Indígena 127
de Aracruz: Um Retrato das Tensões Interculturais
5-ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS 132
5.1 Processo Saúde-Doença, uma Dimensão Espaço Temporal 138
5.1.1 A Doença do Preconceito 142
5.1.2 Ambiente, Dinheiro e Alimentação, uma Tríade de Tensões 146
5.2 Tensões Interculturais e a Atenção à Saúde Guarani, uma Mediação 156
entre o Local e o Global
5.2.1 Educação Intercultural e Saúde 158
5.2.2 Língua e Religião Mbyá, Identidade, Pertencimento e Saúde 162
5.2.3 Interculturalidade e a Atenção à Saúde Indígena, uma Trajetória de Tensões 166
5.2.4 Parto Hospitalar, Isolamento, Tensões e Impactos no Processo Saúde-Doença 171
5.2.5 Capacitação Profissional x Dominação Cultural, o Sujeito em Foco 177
CONCLUSÃO 191
REFERÊNCIAS 197
APÊNDICES
Apêndice A- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido(TCLE) 211
Apêndice B- Descrição do Processo de obtenção do TCLE 212
Apêndice C- Orçamento 213
Apêndice E- Cronograma de Atividades 214
12
INTRODUÇÃO
Ao longo da jornada acadêmica na Graduação em Enfermagem realizei meu Trabalho de
Conclusão de Curso nas aldeias Guarani Mbyá, denominadas Boa Esperança (Tekoa Porã)
Três Palmeiras (Boapy Pindo) e Piraquê-Açu, localizadas no município de Aracruz, no estado
do Espírito Santo.
Tive a oportunidade de participar do Seminário Interno de Escolarização dos Agentes
Indígenas de Saúde Guarani Mbyá do estado do Rio de Janeiro, modelo de Educação de
Jovens e Adultos, que o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (PRÓ-Índio/ UERJ) vinha
desenvolvendo em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), a Universidade
Federal Fluminense (UFF), a Escola de Formação Técnica em Saúde “Enfermeira Isabel dos
Santos” (ETIS), a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e as Prefeituras de Angra dos
Reis e Paraty, desde o ano de 2003. O projeto, em concordância com a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (Lei n° 9394/96), direcionava-se à formação intercultural em serviço, com
enfoque na construção de competências/habilidades dos Agentes Indígenas de Saúde Guarani
do Estado do Rio de Janeiro. O seminário interno objetivava a sistematização de
conhecimentos sobre o processo saúde-doença na população Guarani, no sentido de levantar
informações que auxiliassem no desenvolvimento do projeto.
Passei, então, a envolver-me com maior afinco nos estudos sobre a população Guarani
Mbyá, solidificando um vínculo com a comunidade onde realizei minha pesquisa. Por
intermédio do Pró-índio pude inserir-me de forma intensa no vasto mundo de informações
sobre a realidade indígena nacional, o que me conferiu a oportunidade de enquanto
graduando, participar de seminários, debates e encontros que abordavam temas relacionados à
saúde indígena.
13
Os resultados do estudo realizado em tais aldeias foram reportados no projeto “Saúde
Guarani: uma abordagem antropológica”. (PELLON; SAUTHIER, 2005). Os dados coletados
convergiram para categorias que relacionavam os impactos no processo saúde-doença aos
problemas advindos, principalmente, das tensões nos relacionamentos entre o povo Guarani
Mbyá e a sociedade envolvente, que se encontra fortemente comprometida com a filosofia
desenvolvimentista da empresa transnacional Aracruz Celulose, maior produtora de celulose
branqueada do mundo e responsável pela maioria dos empregos diretos e indiretos na região.
As tensões transpareceram, essencialmente, como oriundas de um relacionamento mal
estabelecido nos âmbitos social, ambiental, político, econômico e sanitário, refletindo o
choque de interesses distintos na busca pela qualidade de vida e saúde entre ambos os grupos
sociais.
A empresa implementou na década de 1960, sob os auspícios da ditadura militar, a
monocultura de eucalipto em larga escala no estado, mais precisamente no município de
Aracruz, apropriando-se irregularmente de áreas habitadas pelos grupos indígenas
Tupiniquim e Guarani. Seu modelo produtivo comporta atualmente, afora o plantio diário de
aproximadamente 37 mil mudas dessa mesma espécie, um complexo fabril altamente
comprometedor do ecossistema nativo, originalmente composto pela mata atlântica de onde
os indígenas retiravam as plantas medicinais e grande parte da sua subsistência alimentar.
A maior parte das aldeias Guarani, como as de Aracruz, situa-se bem próximas aos
grandes centros urbanos com os quais os indígenas estabelecem relações de troca. Muitas
delas estão localizadas em áreas cobiçadas por empresas extrativistas e mineradoras, grandes
latifúndios, fazendeiros e outros que corroboram para a destruição da natureza onde os índios
reconhecem sua fonte alimentar e medicamentosa. Como decorrência da limitação dos
recursos naturais resta a muitos desses grupos o estreitamento das relações com a sociedade
envolvente e o redimensionamento das suas necessidades sócio-econômicas e culturais. Estes
14
fatores, agravados pelas inúmeras barreiras encontradas nos relacionamentos interculturais,
vêm incidindo em impactos diretos e indiretos na qualidade de vida e saúde dos Guarani que
se encontram expostos à estas situações.
Neste sentido, merece destaque especial a situação dos Guarani Mbyá da região de
Missiones na Argentina, que também têm seus territórios cercados pelas empresas papeleiras
e sojicultoras. Em um período de apenas dois meses no ano de 2006 foram registrados 21
óbitos de crianças por problemas respiratórios e por desnutrição. Os desmatamentos têm
repercutido na perda da sua farmácia natural, onde os Mbyá identificavam, pelo menos, 150
plantas medicinais. Os indígenas, sem os recursos necessários à manutenção de suas práticas
terapêuticas autóctones, passaram a enfrentar uma outra dificuldade, a de se adaptar aos
tratamentos da medicina ocidental. (VALENTE, 2006). O Mbyá Hilário Moreira confirma:
“No es casual que empezamos a morir partir de la pérdida de territórios de la mano de las
sojeras, las madereras y papeleras. Si hay 30 familias sobreviviendo amontonadas en 30
hectáreas, es obvio que no podrán tener alimentos ni las medicinas naturales que hacen
nuestra forma de vida”.(ARANDA, 2006, p.2).
Somam-se a este quadro sombrio os números alarmantes de óbitos por desnutrição
infantil e por suicídios entre os adolescentes Guarani e Kaiowá, habitantes das aldeias
localizadas no estado do Mato Grosso do Sul. Segundo os dados disponíveis, do ano 2000 ao
ano 2006 ocorreram 300 casos de suicídio na área de quase 3.5 mil hectares, que abriga em
torno de 11 mil índios.(UNISINOS, 2006). Os membros do Conselho Indigenista Missionário,
Pauletti, Shneider e Mangolim (1997, p.41), destacam que:
Os Guarani e Kaio se suicidam por falta de perspectiva de vida. Foram
encurralados. Não há mais terras, foram roubadas e as poucas que ocupam são
insuficientes para a subsistência, física e cultural. Na carona do encurralamento
foram-se as matas, os peixes, a caça, a erva-mate, que permitiam sobrevivência
digna. Os casamentos, por falta de espaço, deixaram de ser estimulados. O
encurralamento trouxe miséria, fome e desnutrição.
15
No ano de 2006 foram registrados 14 óbitos por desnutrição em crianças Guarani
menores de dois anos de idade e, somente no ano de 2007, morreram 12 crianças indígenas
com o mesmo problema.
No estado do Espírito Santo o “Mapa da Fome entre os Povos Indígenas do Brasil”
(1994 apud VEIGA et al, 2004) descreveu a situação da seguinte forma: Carência alimentar,
desnutrição e mortalidade infantil que atingem os Tupiniquim, enquanto a inteira população
Guarani passa fome”. Um professor Guarani assinala que, “com a redução de nossas áreas,
ficamos em meio à monocultura de eucalipto. Ficamos sem terra para plantar e praticar caça
que era um dos meios de subsistência do nosso povo”. (BRASIL, 2000, p.13).
Muito embora tenha se passado mais de uma década deste triste diagnóstico, pouco
mudou em relação aos problemas identificados, pois, segundo os relatórios anuais da
Fundação Nacional da Saúde (2004, 2005, 2006) explorados nesta pesquisa, são prevalentes
ainda elevados índices de desnutrição infantil, gastroenterites, problemas de saúde bucal,
doenças respiratórias e óbitos decorrentes de violências internas e externas entre os grupos
indígenas do Espírito Santo.
Pressupostos Teóricos
Os impactos no processo saúde-doença vêm alcançando dimensões amplas e de difícil
resolução para o sistema biomédico por afetarem, não somente a base nutricional e
farmacológica dos Guarani, mas também, os elementos condicionantes de qualidade de vida e
saúde segundo a sua cosmovisão e cultura. Dessa forma, doenças e mortes misteriosas,
inexplicáveis, associadas ao produto das imperfeições humanas (teco achy) passaram a
constituir uma categoria cada vez mais em ascensão entre os Mbyá de Aracruz, sendo
16
reportadas por Ciccarone (2001) em diferentes momentos de seu convívio com os mesmos. A
autora denominou “estado de desordem” ao que era atribuído pelos mais velhos como uma
relação entre a deterioração dos recursos naturais e o afastamento do modo de ser Guarani.
Apesar dos dados epidemiológicos disponíveis evidenciarem uma precária situação de saúde
entre os Guarani de Aracruz, são ainda, insuficientes para elucidar a dimensão desses
impactos, a maneira como os sujeitos vivenciam os eventos mórbidos e as formas como as
tensões interculturais interferem na mobilização de recursos materiais e simbólicos para a
promoção, proteção e recuperação da saúde entre os membros do grupo atualmente.
Partimos do pressuposto, portanto, que saúde e doença são fenômenos universais e
constituem as formas pelas quais a vida se manifesta nas diferentes sociedades, o que requer
que sejam abordados de maneiras distintas em cada uma delas, conforme ressaltam Gualda e
Bergamasco (2004, p.25-26):
Saúde e doença não são questões unicamente pessoais, mas sócio-culturais. Se por
um lado, a saúde é considerada uma condição básica para a qualidade de vida, a
doença representa uma ameaça ao senso de segurança e é geradora de ansiedade.
Como conseqüência, as sociedades mobilizam recursos materiais e culturais para
que as pessoas possam lidar com o processo. [...]Na tentativa de compreender e
analisar saúde e doença em qualquer sociedade, comportamentos individuais,
interações e estrutura social precisam ser colocados em um contexto cultural.
Em concordância com as autoras optamos por aprofundar-nos na concepção que os
membros da etnia Guarani Mb das aldeias Boa Esperança (Tekoa Porã) Três Palmeiras
(Boapy Pindo) e Piraquê-Açu têm sobre saúde-doença. A partir destes dados, buscamos
identificar as tensões que emergem do convívio intercultural e influenciam a forma como os
sujeitos vivenciam os eventos mórbidos e se mobilizam para promover, proteger e recuperar
a saúde em sua ampla dimensão, considerando os aspectos essenciais da sua cosmovisão e
cultura.
17
A questão norteadora do estudo é de que forma as tensões interculturais influenciam o
processo saúde-doença na população Guarani Mbyá do município de Aracruz, no estado do
Espírito Santo?
A partir dessa questão buscamos formular os seguintes objetivos: identificar as formas
como as tensões interculturais impactam o processo saúde-doença no grupo Guarani Mbyá de
Aracruz, no Espírito Santo; analisar as contradições que surgem entre as propostas normativas
e o cotidiano do grupo em foco e discutir os aspectos normativos nas políticas públicas que
poderiam minimizar esses impactos.
A noção de interculturalidade, fundamental para nossa reflexão, precisa, portanto, ser
definida. Por interculturalidade, entendemos, conforme Canclini (2005, p.17), “a confrontação
e o entrelaçamento, aquilo que sucede quando os grupos entram em relações de trocas”.
Segundo Soria (1998, p.02) esse entrecruzamento “tende a construir constelações
poliaxiológicas, onde convivem, não sem conflito, diversos estilos de vida e normas de bem-
viver, enraizadas em diferentes discursos.”
Contudo, o convívio entre as culturas pode ser um elemento revelador de tensões,
como sinaliza Cuche (2002, p.144):
É preciso fazer uma análise “polemológica” das culturas, pois elas revelam
conflitos; elas se desenvolvem na tensão, às vezes na violência. No entanto, neste
tipo de análise, é necessário evitar as interpretações redutoras demais, como a que
supõe que o mais forte está sempre em condições de impor pura e simplesmente sua
ordem (cultural) ao mais fraco. Na medida em que a cultura real existe se
produzida por indivíduos ou grupos que ocupam posições desiguais no campo
social, econômico e político, as culturas dos diferentes grupos se encontram em
maior ou menor posição de força (ou de fraqueza) em relação às outras. Mas mesmo
o mais fraco não se encontra jamais totalmente desarmado no jogo cultural.
Os conflitos e tensões abordados pelos autores se evidenciam claramente nos vários
campos de convívio estipulados entre os membros dos diferentes grupos sociais como dentro
dos próprios grupos em função dos sujeitos vivenciarem, também, diferentes formas de
relacionamentos interculturais.
18
A importância desse estudo deve-se, sobretudo, ao fato de tratar de problemas
persistentes nos relacionamentos históricos que envolvem as populações indígenas do Brasil,
no entanto, em um contexto que oferece respaldo político-normativo para a resolução dos
mesmos.
Se em outros períodos da história do país, as políticas indigenistas estiveram voltadas
para a “pacificação e integração” dos grupos indígenas à sociedade nacional, legitimando a
aniquilação cultural e a homogeneização social, atualmente, elas reconhecem a diversidade
sócio-cultural da nação como imprescindíveis à formação de um Estado democrático e
multicultural.
De acordo com Soria (2006, p.01):
A Interculturalidade é um fenômeno que vem perdendo gradualmente o seu caráter
de excepcionalidade. Hoje em dia, todos os povos, todas as culturas, enfim, todos os
seres humanos tiveram que se adaptar ao novo curso dos tempos, combinando
eventos tradicionais com novas manifestações da modernidade. [...] O dado novo, no
entanto, não é a diversidade, que sempre existiu, mas o fato de que agora
começamos a assumi-la como componente do nosso quadro de referência perceptivo
e representativo, e inclusive entende-la como parte do nosso horizonte normativo e
axiológico.
Contudo, apesar dos avanços políticos que se deram com o reconhecimento da
diversidade sócio-cultural dos povos indígenas, a partir da Carta Magna de 1988, a sociedade
nacional tem demonstrado encontrar-se, ainda, despreparada para aceitar as diferenças nas
inúmeras esferas de relacionamento que estabelecem com essas populações, sejam elas,
políticas, sociais, culturais, lingüísticas, de gênero e/ou de saúde.
Dessa forma, são persistentes e comuns ainda hoje, as tensões nos relacionamentos
que envolvem os povos indígenas e demais segmentos da sociedade nacional em diferentes
campos dos seus relacionamentos, contribuindo para o agravamento dos impactos no processo
saúde-doença, segundo aspectos essenciais da cosmovisão e da cultura de cada grupo.
A construção de políticas públicas em saúde tem se voltado, atualmente, para
estratégias de atuação que englobam serviços, não somente para as populações indígenas,
19
mas também com as mesmas, destacando-se pelo fortalecimento da autonomia dos sujeitos no
controle e na participação social. Dessa forma, a efetivação de ações integrais em saúde
pressupõe um conhecimento detalhado do relacionamento sócio-cultural que os povos
indígenas estabelecem com a sociedade envolvente e do entendimento dos pontos de tensão
que se evidenciam nestas interações.
Consideramos oportuno sinalar a vinculação desta dissertação de mestrado à linha de
pesquisa Enfermagem e População: conhecimentos, atitudes e práticas em saúde, que se
encontra inserida dentro do grupo de pesquisa Enfermagem e a Saúde da População instituído
na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO.
Fontes
Na busca por materiais que auxiliassem na elaboração do estudo, procedemos ao
levantamento bibliográfico em banco de dados virtuais, realizado por meio da Biblioteca
Virtual em Saúde (BVS). Observamos pouquíssimas produções de conhecimentos por parte
da enfermagem no campo da saúde indígena no Brasil, mesmo exercendo sua presença nos
programas desenvolvidos em todo o território nacional. A Biblioteca Virtual em Saúde
proporciona o acesso a diferentes bases de dados bibliográficos com grande abrangência de
estudos e:
Constitui-se um dos modelos mais avançados de gestão de informação e
conhecimento, orientado pela missão da Organização Panamericana de Saúde
(OPAS), que tem como tradição a democratização da informação necessária para
alcançar a meta de “saúde para todos”, a busca pela equidade em saúde e a melhoria
das condições de vida dos povos das Américas. (BVS, 2006).
20
Levando-se em conta a diversidade de bases de dados disponíveis neste site, foram
identificados resumos de trabalhos, somente, na BDENF (Base de Dados em Enfermagem); e
na LILACS (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde).
Utilizamos para a pesquisa, primeiramente, os seguintes descritores: “Enfermagem,
interculturalidade e Indígenas” e depois “Índios sul-americanos e Enfermagem”, visando
encontrar dados que pudessem contribuir para a elaboração deste estudo, o que não se
efetivou. No entanto, aprimorando a busca, encontramos alguns resultados com os descritores
“Indígenas e Enfermagem”.
No banco de dados da LILACS foram encontrados cinco trabalhos com esses
descritores, três do Brasil e dois de outros países da América Latina (Chile e Colômbia),
sendo que um dos trabalhos do Brasil não foi desenvolvido por profissionais de Enfermagem,
e sim, faz referência ao trabalho de auxiliares de Enfermagem, entre outros. Dos trabalhos
desenvolvidos no Brasil, um enfoca a atuação de estagiários de Enfermagem da Universidade
Federal do Amazonas em aldeias indígenas da região. Trata-se de um relato de experiência,
onde os alunos descrevem que “a atuação do enfermeiro em comunidades indígenas requer
conhecimento antropológico, ecológico e social para a compreensão do processo saúde-
doença” (SILVA; FERREIRA; LOPES, 2003) e outro versa sobre “Os entendimentos,
práticas e contextos sóciopolíticos do uso de medicamentos entre os índios Kaingang”.
(DIEHL, 2001).
Um dos demais trabalhos da América Latina trata da implementação de uma política
indigenista de saúde intercultural pelo governo Chileno e a necessidade de se incorporar os
terapeutas tradicionais nas práticas de saúde. (SANTIBANEÑEZ; LABRA, 2001). O outro
versa sobre o papel da Enfermagem como canal de diálogos e impulsionador de soluções
conjuntas e não violentas no processo de paz em um grupo indígena que se encontrava em
meio à luta armada com grupos guerrilheiros colombianos, no período que se estende entre
21
1980 e 1983. (PERDOMO, 2001). O resumo encontrado no banco de dados da BDENF trata-
se do mesmo encontrado na LILACS que se refere à atuação dos estagiários de Enfermagem
em área indígena no Amazonas.
Devido à escassez de produções da Enfermagem sobre a saúde indígena no Brasil,
disponibilizados nesses bancos de dados, decidimos estender a busca ao banco de teses da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), delimitando a
busca ao período compreendido entre os anos 2000 a 2004. Dois trabalhos foram encontrados
ao todo entre teses e dissertações. Os descritores utilizados para proceder à busca foram os
mesmos já utilizados nos outros bancos de dados. Através desse critério, só foram encontradas
uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado, sendo que a primeira constava nos
itens previamente levantados. A outra versava também sobre a necessidade de se compreender
aspectos culturais, como a pintura corporal de um grupo indígena para entender o processo de
cuidado nessa comunidade. (SANTOS, 2002).
Assim, percebemos que apesar da procura criteriosa por estudos desenvolvidos pela
Enfermagem em saúde indígena, notamos a precariedade de dados que versam sobre o
assunto no Brasil, evidenciando somente três resumos nas bases de dados utilizadas para a
pesquisa. Apesar de não ter sido identificado nenhum estudo específico sobre os Guarani de
Aracruz no Espírito Santo, os poucos trabalhos encontrados sobre a Enfermagem e a saúde
indígena foram unânimes em tratar a pesquisa e a prática profissional como indissociáveis de
um conhecimento antropológico, ecológico e social do grupo em foco, conforme se propõe
este estudo.
Na busca por pesquisas realizadas no campo das ciências sociais também constatamos
que são poucas as produções que reportam a situação atual em que se encontra o grupo
Guarani Mb do Espírito Santo. Tomamos como referência a tese de Ciccarone denominada
“Drama e Sensibilidade: migração, xamanismo e mulheres MbGuarani” realizada no ano
22
de 2001 no Programa de Estudos de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. A autora em seu trabalho etnográfico aborda o
xamanismo Mbyá como a instituição reguladora da ordem terrena e o eixo da articulação das
dimensões entre a existência da sociedade e o sujeito, sendo determinante para a condução
dos processos migratórios quanto para a orientação da vida social.
Em um segundo momento recente foi realizado um levantamento antropológico a
pedido da Petrobrás por exigência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para viabilizar a
passagem de um gasoduto nas aldeias indígenas. O documento denominado Levantamento
Antropológico sobre as Terras Indígenas de Aracruz” (VEIGA et al., 2004), entre outros
temas abordados, realizou uma investigação sobre o estado de saúde das populações indígenas
Guarani Mbyá e Tupiniquim relacionando-o aos impactos ambientais e ao contexto das
tensões gerais na região. Ao destacar o reflexo destas tensões nos relacionamentos entre
profissionais de saúde e população indígena Veiga et al (Ibid, p.138) descreveu:
A falta de preparo dos profissionais reforça a manutenção de atitudes
discriminatórias a respeito do modo de vida indígena, como atesta uma enfermeira
de uma equipe que detecta, dentre as causas de doenças mais comuns- verminose,
doenças das vias respiratórias, doenças da pele (urticária, escabiose, alergias)-, a
“falta de higiene” e os “maus hábitos alimentares” encontrados nas aldeias,
naturalizando essas situações cuja responsabilidade é atribuída exclusivamente à
população indígena.
Por fim, após um criterioso levantamento na área das ciências sociais, foi identificada
uma monografia de conclusão de curso de graduação da Universidade Federal do Espírito
Santo denominada “Ambiente, Saúde e Desenvolvimento entre os Guarani do Espírito Santo”
(BERTOLANI, 2005) de orientação da professora Doutora Celeste Ciccarone. O trabalho
buscou contrapor os projetos assistencialistas desenvolvidos pela empresa Aracruz Celulose
com as necessidades reais de sustentabilidade dentro dos moldes de reprodução e preservação
dos aspectos simbólicos e estruturais dos Guarani da região.
23
A população indígena do Espírito Santo lutou aproximadamente 40 anos pela
restituição de uma área reconhecida pela Fundação Nacional do Índio como parte da Terra
Indígena Tupiniquim/Guarani, que se encontrava em poder da empresa transnacional Aracruz
Celulose. As tensões se estenderam às mais diferentes áreas de convívio entre indígenas e
sociedade envolvente. O conhecimento sobre a forma como essas tensões exercem influências
no processo saúde-doença são de extrema relevância aos profissionais de saúde integrantes
das equipes multidisciplinares que atuam nestas aldeias, especialmente os enfermeiros, para a
efetivação de práticas compromissadas com a redução das mesmas. Dessa forma, Coimbra
e Santos (2001, p-28) afirmam que, “Informações confiáveis são também imprescindíveis
para viabilizar análises sobre múltiplas relações entre desigualdades sociais, processo saúde-
doença e etnicidade.”
A inexistência de estudos específicos na área da Enfermagem com os Guarani do
Espírito Santo, confere a essa dissertação um caráter pioneiro na produção de conhecimentos,
que podem ser utilizados como base para a discussão de estratégias de minimização dos
impactos identificados e de uma Enfermagem compromissada com este processo no âmbito
da promoção, proteção e recuperação da saúde indígena na região.
24
METODOLOGIA
A metodologia utilizada na pesquisa pode ser classificada como de abordagem
qualitativa do tipo descritivo-exploratório que se deu por meio de um estudo de caso. O
Estudo de Caso consiste no aprofundamento em um determinado assunto previamente
pesquisado. Segundo Gil (1999, p- 72-73) trata-se do “[..]estudo profundo e exaustivo de um
ou de poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado, tarefa
praticamente impossível mediante os outros tipos de delineamentos considerados.” Quando se
trata de estudo de caso do processo saúde-doença em aldeias Guarani se faz necessário um
enfoque antropológico capaz de dar conta das particularidades culturais desse povo.
Costa (2003, p.42) assinala que, “A saúde e a doença são formas pelas quais a vida se
manifesta. Correspondem a experiências singulares e subjetivas, impossíveis de serem
reconhecidas e significadas integralmente pela palavra.” Contudo, é por intermédio da palavra
que o sujeito expressa o seu mal-estar esperando que o profissional de saúde ou outro
terapeuta compreenda o seu sofrimento que se apresenta influenciado culturalmente na forma
de sentir e de se mobilizar para solucionar o problema. (Ibid) .
Neste sentido, os Guarani Mbyá têm na palavra um elemento constitutivo da essência
do ser humano. Acreditam que a palavra é parte integrante da alma Guarani e a oralidade,
portanto, destaca-se pela sua importância no contexto sócio-cultural, conforme destaca Barros
e Castro (2005, p.96) :
Pensar a palavra guarani é considerar sua oralidade como discurso e percurso. A
presença da lasca de taquara sob o lábio do jovem ou o uso do cachimbo remetem à
importância da palavra “aquecida” pelos raios do sol- símbolo da presença do Deus
maior, Nhaude Ru. (grifos do autor).
25
Acreditamos que através da palavra Guarani evidenciada nos enunciados dos sujeitos
da pesquisa, podemos tomar contato com a expressão mais aproximada da realidade vivida,
pois a fala revela emoções, sentimentos e demais fatores da vida social e cultural.
Segundo a Resolução CNS n°304 (BRASIL, 2000): “Qualquer pesquisa envolvendo a
pessoa do índio ou a sua comunidade deve respeitar a visão de mundo, os costumes, atitudes
estéticas, crenças religiosas, organização social, filosofias peculiares, diferenças lingüísticas e
estrutura política”.Com base nessa informação, procuramos adequar a coleta de dados ao
contexto cultural. Dessa forma, ela se deu na forma de entrevista semi-estruturada gravada,
atendendo à necessidade de se conferir importância à oralidade Mbyá, sem interrupção da
fala, o que para essa cultura representa um sinal de respeito ao ato sagrado da expressão
verbal.
A opção pela entrevista semi-estruturada se deu pelo fato de ela possibilitar ao
pesquisador a liberdade para aprofundar-se em determinados assuntos, que, porventura,
pudessem se destacar na coleta de dados.
De acordo com Tobar e Yalour (2001, p.101), “O guia de entrevistas ajuda a mostrar
que o pesquisador tem clareza sobre seus objetivos, mas também é suficientemente flexível
para permitir a liberdade ao pesquisador e ao informante para seguir e/ou encontrar novas
pistas”. Neste sentido, o guia de entrevista contemplou as seguintes questões:
O que é saúde para você?
O que é doença para você?
O que você acha da proximidade da aldeia com a cidade e com a empresa Aracruz
Celulose?
O que você acha do atendimento no posto de saúde e no hospital?
26
Durante o trabalho em campo outras questões surgiram em decorrência dos
direcionamentos dados pelos sujeitos da pesquisa em suas respostas, permitindo que novos
assuntos fossem explorados.
O estudo foi realizado nas respectivas aldeias indígenas Guarani Mbyá, Três
Palmeiras, Piraquê-Açu Mirim e Boa Esperança que comportam uma média de 250
habitantes. Este contingente populacional costuma sofrer pequenas variações em função do
Mbyá ser um dos subgrupos Guarani que preserva ainda a importante característica de
mobilidade entre seus membros, com vistas a estabelecer intercâmbios sociais próprios de sua
cultura.
Os sujeitos da pesquisa compõem-se de lideranças nativas (caciques, ex-caciques,
pajés e anciãos), agentes indígenas de saúde, conselheiros indígenas de saúde e educadores
indígenas, todos membros do grupo Guarani das aldeias localizadas no município de Aracruz,
no estado do Espírito Santo.
O trabalho em campo possibilitou que fossem entrevistadas 12 pessoas no total, que foram
divididas nas seguintes categorias e designadas no corpo da entrevista pelas respectivas siglas
que se encontram entre parênteses:
Lideranças indígenas- pajés (Liderança A), caciques (Liderança E), ex-caciques
(Liderança B; Liderança C) e vice –cacique (Liderança D);
Lideranças femininas- esposas de caciques (Liderança M 1) e anciã (liderança M 2);
Educadores indígenas (Educador A; Educador B e Educador C);
Agentes indígenas de saúde (AIS1; AIS2).
Utilizamos após a transcrição dos dados o método de análise de conteúdo descrito por
Turato (2003). O autor recomenda avançar além do estado meramente descritivo, pois,
segundo ele (Ibid, p.442), “permitir que possamos discutir, inferir a partir dos dados
trabalhados é realmente a razão de recorrermos a tal procedimento de tratamento/ análise dos
27
dados”. Após a leitura sistemática dos relatos colhidos em campo os mesmos foram
agrupados em duas categorias, atendendo aos critérios de repetição e relevância
recomendados pelo autor e a leitura dos dados foi guiada pelo suporte teórico de Bakhtin que,
segundo Souza (2001, p.93), trata a “linguagem como espaço de recuperação do sujeito como
ser histórico e social”. Lançamos mão também do referencial teórico de outros autores que
auxiliaram na compreensão dos demais aspectos relacionados ao objeto do estudo, a saber:
Onocko Campos e Campos (2006); Bertolani (2005); Diehl e Rech (2004); Silveira (2004);
Veiga et al (2004); Follér (2004); Oliveira (2004); Coimbra e Santos (2000) e Langdon
(1999).
Os dados foram analisados segundo as propostas normativas vigentes, tendo em vista a
relevância atribuída pelas legislações nacionais e internacionais ao assunto em pauta. Dessa
forma, buscou-se discutir as contradições que surgem entre a realidade cotidiana do grupo
pesquisado e essas propostas, destacando aquelas que poderiam minimizar os impactos
encontrados.
O Trabalho em campo
Turato (2003, p.316) aponta para o fato de que ao se proceder uma pesquisa qualitativa
o pesquisador deve passar pela etapa de “entrevista de aculturação”, definida por ele como:
[...] atividades de estabelecimento de relação direta e coloquial com pessoas
representantes da comunidade de sujeitos a serem estudados [...] cuja finalidade é
permitir ao pesquisador vivenciar seu processo de assimilação do modo de pensar ( a
cosmovisão) daquela população-alvo em cujo ambiente ficará imerso
temporariamente.
28
Atendendo a este pressuposto, o trabalho em campo foi guiado por quatro visitas
consecutivas. Uma primeira realizada do dia 17 ao dia 21 de agosto de 2006, visando uma
retomada do contato com as lideranças locais e a obtenção da sua autorização para a
realização do projeto. Tendo em vista que o último contato estabelecido tinha se dado no mês
de Janeiro de 2006, quando o pesquisador foi discutir os resultados de seu Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) de graduação junto às mesmas lideranças, este contato foi
revestido de uma boa receptividade. Ao permanecer o período de cinco dias hospedado na
casa do cacique da aldeia Três Palmeiras, o pesquisador pôde participar de situações comuns
do cotidiano, como almoçar na casa de outras pessoas, ir a um jogo de futebol com os índios
em uma comunidade vizinha e participar de uma reunião interna.
Uma segunda visita foi realizada do dia 10 ao dia 15 de Janeiro de 2007 com a
finalidade de manter o contato sistemático, mostrar-se presente e observar as diferentes
situações do cotidiano do grupo. Neste momento, o grupo se encontrava sob fortes tensões,
decorrentes da negociação fundiária com a empresa Aracruz Celulose, que implicou entre
outras coisas, em prisões, confrontos diretos com a polícia, emboscadas e o temor de mais
confrontos, que refletia, necessariamente, no humor e na auto-estima dos membros dos povos
Guarani e Tupiniquim. O anfitrião do pesquisador fazia parte da comissão de caciques que
empreendeu a retomada pela demarcação da terra, o que o possibilitou participar de algumas
reuniões entre Guarani e Tupiniquim durante o período da pesquisa.
A terceira visita ocorreu do dia 15 ao 19 de Março de 2007, para a realização de
entrevistas com alguns membros das diferentes aldeias. Neste momento, o pesquisador
permaneceu hospedado na casa do cacique da aldeia Três Palmeiras novamente e pode
freqüentar uma reunião da comunidade sobre educação, o que criou um ambiente ideal para
realizar as entrevistas com os educadores indígenas.
29
A quarta etapa aconteceu entre os dias 11 e 20 de julho, quando ao contrário dos
outros momentos, o pesquisador decidiu se hospedar alguns dias em uma pensão no bairro de
Santa Cruz, para observar e dialogar com a população local, perceber como era vista a
presença dos índios na região e como as pessoas se posicionavam quanto aos problemas
fundiários. Neste momento, pôde ser percebido que a não permanência na aldeia Três
Palmeiras como de costume, parecia desencadear certo “desconforto” com a situação no então
ex-cacique dessa aldeia, acostumado a receber o pesquisador em sua casa quando ocupava o
cargo de cacique. Dessa forma, foi revista a decisão de permanecer em Santa Cruz e o
pesquisador se hospedou os últimos três dias consecutivos de sua visita na aldeia Três
Palmeiras.
Uma das tarefas mais importantes para o pesquisador em um ambiente que difere
culturalmente do seu é estabelecer relações de confiança. Neste sentido, a ambientação passa
também pelo fato de conhecer o tempo próprio do grupo, seus costumes, a forma de abordar
os sujeitos da pesquisa e os assuntos de maior interesse, sem fazer da sua presença uma
ameaça à privacidade das pessoas. Da mesma maneira, a ambientação deve possibilitar ao
pesquisador conhecer as estratégias de dissimulação contidas no discurso e nos
comportamentos e perceber quais os melhores momentos para a realização da entrevista, sem
que isso implique em desviar o sujeito de suas atividades cotidianas.
Tendo em vista que o gravador proporcionava certo desconforto nos sujeitos da
pesquisa, as entrevistas foram realizadas previamente em um tom de conversa informal, antes
mesmo que se anunciasse a pretensão de utilizar este recurso tecnológico para o registro das
falas. Quando se tinha criado um ambiente de troca e confiança mútuas, o pesquisador
questionava sobre a possibilidade de realizar uma gravação sobre aqueles assuntos que
haviam sido abordados informalmente. Todas as respostas foram positivas, o que possibilitou
retomar os assuntos quando os sujeitos da pesquisa se sentiam desinibidos frente ao gravador.
30
Dessa forma, assim foi conduzido o trabalho em campo, observando, respeitando o
tempo de cada um, procurando adequar os encontros aos horários próprios de cada família e
se auto-observando, se “auto-doutrinando” com relação aos pensamentos, atitudes e práticas
que criam barreiras à compreensão do diálogo intercultural como uma experiência única de
aprendizado e troca de conhecimento.
A elaboração do projeto de pesquisa se deu em conformidade com os princípios éticos
contidos na Resolução CNS n°196/96 priorizando sua descrição em um Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice B) que foi apresentado aos depoentes na
ocasião da coleta de dados.
Seguindo as exigências éticas para pesquisa em populações indígenas descritas na
Resolução CNS n°304/2000, o projeto foi encaminhado à apreciação de um Comitê Regional
de Ética em Pesquisa (CEP) que, posteriormente, o encaminhou à apreciação da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Da mesma forma, o projeto passou pela avaliação
metodológica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
A anuência das respectivas lideranças locais foi parte importante no processo de autorização e
foi realizada por intermédio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) após as devidas
avaliações dos órgãos parceiros na avaliação do projeto.
O primeiro capítulo da dissertação vai abordar o contexto histórico das tensões
interculturais entre povos indígenas e demais segmentos da sociedade nacional desde os
primeiros contatos entre ambos, enfatizando as políticas públicas que regulamentavam a
forma como deveriam se dar esses relacionamentos.
No segundo capítulo discutiremos a interculturalidade entre os Guarani no contexto da
globalização, seus subgrupos, estimativas demográficas atuais e dispersão territorial.
A migração dos Guarani Mbyá até o município de Aracruz e as relações conflituosas
decorrentes da implantação do sistema de monocultura de eucalipto na região, serão
31
apresentadas no terceiro capítulo, onde, também serão descritos aspectos gerais da vida social
nessas aldeias.
No quarto capítulo será feita uma abordagem sobre a relação entre os mitos, a
alimentação, as práticas terapêuticas e o uso das plantas medicinais entre os Guarani Mbyá.
Os indicadores epidemiológicos serão objeto, também, de discussão nesse capítulo, que
situará a fragilidade dos dados oficiais para a análise dos impactos no processo saúde-doença
e para o delineamento de práticas interculturais de promoção, proteção e recuperação da saúde
indígena na região.
A análise e discussão dos dados colhidos em campo serão objeto de abordagem no
quinto capítulo que se encontra divido em duas categorias e oito subcategorias. A primeira
ênfase às concepções sobre o processo saúde-doença descritas pelos sujeitos da pesquisa e a
segunda tratará da forma como os Mb percebem os impactos provocados pelas tensões
interculturais no processo saúde-doença e a interlocução conflituosa existente entre o sistema
autóctone de atenção à saúde e o sistema biomédico.
32
1- OS POVOS INDÍGENAS E A SOCIEDADE NACIONAL
1.1 Brasil Colonial
Estima-se que a população indígena do Brasil pré-colonial poderia se encontrar pouco
acima de 6 milhões de pessoas, que dominavam cerca de 1.3 a 1.5 mil línguas no período em
que as primeiras naus portuguesas aportaram no país. Denevan (1976)
1
calculou o contingente
populacional indígena restrito à região da região da Grande Amazônia
2
em torno de 6,8
milhões de pessoas para este mesmo século. Os números atuais apontam para um histórico de
massacres e epidemias, ocorridos, principalmente, nos primeiros anos que marcaram o contato
entre indígenas e colonizadores. Segundo Freire e Malheiros (1997, p.02):
Os demógrafos da Escola de Berkeley, nos Estados unidos, confirmaram essas
conclusões estarrecedoras. Woodrow Bora, em 1964, calculou que no primeiro
século de colonização, houve 90% de despovoamento (ou a razão de 10 para 1).
Dois anos depois, em 1966, os estudos de Henry Dobbyns apontaram um índice de
declínio populacional de 20 para 1, enquanto William Denevan em 1976, estimou
em 35 para 1.
As incursões coloniais que visavam o povoamento do território brasileiro atendiam aos
objetivos portugueses de expansão do cristianismo e das fronteiras capitalistas
concomitantemente. A relação sinérgica entre capitalismo e religião no período colonial
serviu como mola propulsora para a promulgação de propostas normativas que
1
Discordando dos inúmeros estudos que se baseavam em relatos dos colonizadores da época e que, portanto, não
conferiam a fidedignidade de um levantamento científico, o autor baseou-se em evidências pré-históricas,
históricas e contemporâneas que confirmavam a presença de um determinado grupo indígena em um
determinado local, associadas ao fato de que o contingente populacional estava estreitamente relacionado aos
recursos existentes no habitat natural e aos padrões de subsistência dominantes na população estudada.
2
Região que compreende a área leste da América do Sul, sul dos Andes e norte do Trópico de Capricórnio,
excetuando a região do Grande Chaco.
33
fundamentavam as deliberações da Coroa portuguesa com relação aos povos indígenas no
período pós-conquista. (HOORNAERT, 1994).
Como estratégia de ocupação territorial, a Coroa Portuguesa costumava conceder o
privilégio da exploração da madeira a alguns comerciantes, que passavam a se fixar em
pequenos acampamentos e feitorias provisórias.
3
Contudo, as primeiras medidas voltadas ao
povoamento efetivo da nova colônia portuguesa deu-se pela adoção de capitanias hereditárias.
(FREIRE, MALHEIROS, 1997).
O regime de capitanias hereditárias consolidou-se como a principal estratégia da Coroa
Portuguesa para garantir a ocupação das terras brasileiras e a sua propriedade. Com os
recursos do Tesouro Real voltados para investimentos no Oriente, a implantação do regime de
donatarias transferiu para a iniciativa particular a responsabilidade pela exploração econômica
da América portuguesa. Através de doações, a Coroa Portuguesa dividiu 5 mil quilômetros da
costa em 15 lotes, perfazendo 12 capitanias. (BUENO, 2006). Assim surgiu a figura do
donatário. Segundo Gagliardi (1989, p.26-27), “Os poderes desses régulos eram amplos.
Além da posse de um vasto território, inalienável e transmitido hereditariamente, podiam
ainda fundar vilas, nomear tabeliões, ouvidores, punir crimes, escravizar índios, conceder
sesmaria, etc.”
4
Em paralelo à atuação dos donatários, as missões religiosas agiam na catequese
indígena adentrando em território nacional, corroborando com a ampliação das fronteiras
coloniais. Dentro deste contexto, destacou-se a atuação dos missionários jesuítas na formação
dos chamados aldeamentos, reduções ou descimentos, que se referiam às aldeias criadas por
estes religiosos com a intenção de reduzir os indígenas da sua vida tradicional à cristã e ao
trabalho compulsório. O acordo firmado no dia 30 de julho de 1556 entre o então governador
3
“ A documentação histórica identifica duas feitorias criadas logo nos primeiros momentos, em 1503: um em
Cabo Frio, criada por Américo Vespúcio e outra onde, provavelmente, fica a Praia do Flamengo,criada por
Gonçalo Coelho. (FREIRE e MALHEIROS, 1997, p.37)
34
geral Mem de e os jesuítas afirmava a liberdade e a inviolabilidade dos aldeamentos. No
entanto, a base jurídica que assegurava a sua criação sofria de fundamental fraqueza, pois não
era aplicada aos escravos. Os descimentos quase sempre resultavam em fracasso em termos
demográficos, pois os índios morriam em quantidade, contaminados pelas doenças
transmissíveis oriundas de além-mar. (HOORNAERT, 1994).
Os missionários tinham o compromisso de catequizar os indígenas e transformá-los em
força de trabalho através da utilização de métodos que vislumbravam a perda das suas
referências cosmológicas, espirituais, territoriais e familiares. “Esta doutrinação teve como
resultado desfazer os laços existentes entre os indígenas, destribalizar e descaracterizar os
indígenas e produzir o índio genérico, pretérito, massificado, descaracterizado”.(Ibid, p.20).
Dessa forma, os métodos tradicionais de prevenção e tratamento de doenças,
milenarmente utilizados pelos povos indígenas, como fumigações com tabaco, utilização de
ervas em banhos, chás ou ungüentos, fomentações com saliva, escarificações, jejum, repouso
e rezas foram duramente combatidos pelos agentes do cristianismo que lhes atribuíam o
mérito de feitiçaria. Essas práticas terapêuticas, contudo, foram também se tornando
ineficazes na medida em que se intensificavam os contatos entre povos indígenas e as doenças
trazidas pelos colonizadores e missionários como a sífilis, o sarampo, a tuberculose e outras
que erradicaram grupos inteiros em períodos mínimos de tempo. Como decorrência desses
fatores, as atividades terapêuticas para as doenças não reconhecidas pelas medicinas
tradicionais passaram a ser realizadas pelos missionários religiosos que se destacavam pelos
conhecimentos médicos e se valiam, inclusive, desses conhecimentos para promover a
aproximação com os povos indígenas, por não haver nenhuma ação oficial neste sentido.
A administração das reduções foram alvo de diferentes legislações, oscilando entre
religiosos e colonos em momentos distintos da história. Todos os índios aldeados em idade
4
Segundo o autor, nas primeiras Cartas de Doação, já se encontra, entre outros direitos do donatário, o de
aprisionar e vender índios.
35
produtiva eram obrigados a trabalhar em jornadas excessivas que iam de 14 a 16 horas diárias
recebendo alimentação inadequada, castigos e maus tratos. Como remuneração recebiam,
alguns metros de pano de algodão tecidos pelas próprias índias. (FREIRE; MALHEIROS,
1997).
Os indígenas constituíam a única força de trabalho capaz de identificar caminhos,
abrir picadas, conduzir canoas, construir feitorias, engenhos e fortalezas, realizar roças e
prover as demais necessidades para a continuidade da ocupação territorial. Sem eles os
colonizadores não teriam conseguido se fixar no país, tampouco, teriam o que comer. Com o
ciclo econômico litorâneo da cana-de-açucar, durante o reinado de D. João III (1521-1557), as
populações indígenas que não se rendiam aos aldeamentos religiosos eram vítimas das
chamadas guerras justas conduzidas pelos colonizadores no intuito de exterminá-las ou
aprisioná-las para o trabalho escravo, abrindo suas terras, conseqüentemente, à ocupação. A
Coroa Portuguesa legalizou a escravização dos índios que deveriam ser caçados e castigados
com veemência desde o Regimento a Tomé de Souza, datado de 17 de dezembro de 1548.
Entretanto, uma lei de 20 de março de 1570 determinou que os índios podiam ser
aprisionados nas “guerras justas” quando se obtivesse a autorização do rei ou do governador,
não obstante, fosse permitido matar ou aprisionar aqueles que investissem contra os
portugueses ou os gentios
5
. (Ibid).
O poder político dos aldeamentos fez com que fossem se tornando uma ameaça à
ordem da Coroa Portuguesa. As tensões entre colonos e jesuítas na disputa pelo poder sobre
os indígenas fez com que as missões fossem se afastando dos centros comerciais
estabelecendo seus aldeamentos em locais isolados, identificados pelos índios, onde poderiam
impor maior resistência às invasões dos colonos em busca de mão-de-obra escrava. Os
aldeamentos passaram a constituir um Estado Indígena militarizado de resistência dentro do
5
Índios Tupi, aliados da Coroa Portuguesa que tinham sua liberdade garantida pela legislação real em
contraponto aos Tapuia que poderiam e deveriam ser escravizados.
36
próprio Estado, fato este que contribuiu para a expulsão dos jesuítas do país em 1759, logo
após a aprovação da Lei Pombalina
6
. (HOORNAERT, 1994).
Com a queda do Marquês de Pombal em 1777, a sua legislação perdeu a validade
oficial, tendo fim um período de relativa calma quando, paulatinamente, foram sendo
retomados os métodos violentos de contato com os índios.
Segundo Gagliardi (1989, p.29-30):
A carta régia de 13 de maio de 1808 é um dos exemplos mais chocantes do nível que
atingiu a repressão às populações indígenas, em particular os Botocudos de Minas
Gerais,[...]Outra evidência é a Carta Régia de 5 de novembro de 1808, de igual
conteúdo que a anterior, também propõe o uso da violência como meio de civilizar
povos bárbaros no caso dos Kaingang, através de uma escola severa. Propõe ainda a
prática da escravidão para os índios que caíssem prisioneiros nas mãos dos
responsáveis pela caçada.
O período colonial foi marcado por sucessivas tentativas de promover o recrutamento
de mão-de-obra indígena para o trabalho escravo, o que configurou no extermínio de
populações inteiras que se apresentavam incapazes de se ajustar ao projeto capitalista
português. É notável, portanto, que as relações interculturais entre povos indígenas,
colonizadores e missionários europeus foram construídas, desde os seus momentos iniciais,
de forma assimétrica e impositiva, pois, percebemos que as diferenças culturais serviram
como determinantes para se legitimar a dominação e o extermínio destes povos e com eles um
complexo acervo de conhecimentos sobre as diferentes formas de promoção, proteção e
recuperação da saúde, assim como, de manejo e transformação sustentável dos ecossistemas
naturais, neste período marcado pelo desrespeito aos direitos fundamentais da vida e da
liberdade na base da construção da sociedade nacional.
6
“No dia 14 de abril de 1755, foi decretado o primeiro alvará que, entre outras providências, incentivava o
casamento inter-racial e equiparava os índios aos colonos, em termos de trabalho e direitos. Em 6 de junho de
1755, foi decretada a liberdade irrestrita do índio, e no dia seguinte foi totalmente suprimido por lei- alvará de 7
de junho- o trabalho dos religiosos junto aos índios, o que vigorou inicialmente no Pará e no Maranhão, e após o
alvará de 8 de maio de 1758 estendeu-se para todo o Brasil.’(PRADO, 1973, apud GAGLIARDI, 1989, P.28) A
legislação posta em prática pelo Marquês de Pombal, proibia, no entanto, a língua geral e tupi em todo território
nacional, legitimando o português como língua oficial.
37
1.2 Brasil Império
Durante o período imperial pouca coisa mudou no que diz respeito às estratégias de
integração dos povos indígenas à sociedade dominante. As forças liberais, cuja forte
influência no processo culminou na proclamação da Independência do país, passaram a
discutir a necessidade de se implementar uma política indigenista para o Império. Um dos
documentos de maior significância que, tampouco chegou a ser legitimado, foi o “Projetos
para o Brasil” de José Bonifácio de Andrada e Silva, então ministro do primeiro imperador D.
Pedro I. Segundo Ramos (1999, p.8)
José Bonifácio bebeu sua inspiração nos séculos que o precederam e tentou uma
nova combinatória do jogo finito que herdou: emulou o teor laico e moderno que
fora lançado no Brasil pela política indigenista de Pombal, mas recorreu à figura
colonial do missionário como prático ideal para induzir os índios à civilidade.
Bonifácio propôs que o relacionamento entre Estado e populações indígenas fosse
permeado por princípios básicos que tinham como premissa a integração pacífica desses
povos à sociedade dominante, a sua conversão à cristã e a conseqüente desobstrução de
suas terras para a expansão dos projetos econômicos. Os princípios básicos a qual se referia o
documento apresentado à Assembléia Geral constituinte em 1823 eram respectivamente,
segundo Barbosa (1923, p.39) :
Justiça, não esbulhando mais os índios, pela força das terras que ainda lhes
restam, e de que são legítimos senhores; 2º Brandura, Constancia e soffrimento de
nossa parte que nos cumpre como usurpadores e christãos; 3° Abrir commercio com
os barbaros, ainda que seja com perda da nossa parte; 4º Procurar com dadivas e
admoestações fazer pazes com os Índios inimigos; Favorecer por todos os meios
possíveis os matrimônios entre Índios e brancos e mulatos. (grifos do autor)
O documento também fazia referência à catequese conferindo ao pároco o poder
político administrativo nas aldeias, garantindo-lhe a força policial à sua disposição, além do
poder de administrar os produtos agrícolas e um sistema de atenção à saúde com ênfase na
38
prevenção de doenças. Por fim, designava a um Tribunal Superior a supervisão das ações
eclesiásticas e civis das aldeias e das províncias. (Ibid).
Bonifácio resgatava a idéia do missionário como agente civilizador, pelo êxito
observado nas missões jesuíticas, que chegaram a ameaçar o poder estatal pelo seu domínio
organizacional e civilizador. As idéias liberais de José Bonifácio inspiravam-se em parte nas
ações jesuíticas, no entanto, contestava os projetos isolacionistas dos mesmos, referindo-se à
necessidade de se aperfeiçoar seus métodos de atração de índios bravios e a sua conseqüente
civilização dos mesmos. Segundo Ramos (1999, p.08), “Longe de ser irrelevante, o projeto de
José Bonifácio, perfeitamente à vontade das linhas sucessórias de experimentações
indigenistas, ajuda-nos a entender melhor a política e a prática atuais no lidar com a
etnicidade no país”.
Neste período, a forma como se davam os relacionamentos entre o Estado e as
populações indígenas eram embasadas, necessariamente, na taxonomia que se empregava na
época, opondo-se os índios ditos mansos aos bravos, bravios ou hostis. Aos primeiros, aliados
do conquistador (em termos ideais e normativos), não se poderia escravizar ou subtrair-lhes
as terras em compensação. Os segundos, considerados insubmissos, eram passíveis de
escravidão e de expropriação legalizada de seus territórios. Lima (1995, p.122) assinala que,
“A retórica parece incluir os nativos, aliados ou não, dentre os animais, a domesticação sendo
homóloga à civilização. Do ângulo do Direito aproximava-se os índios do domínio das coisas
e não da esfera das gentes”. Mesmo após o decreto de 27 de outubro de 1831 que revogava as
cartas régias que legitimavam a escravidão e a guerra declarada pela sociedade dominante à
população indígena, já era notável a inversão no panorama demográfico nacional, onde,
haviam se transformado em minoria os habitantes indígenas que representaram a maioria
populacional no país. (Ibid).
39
A partir de 1844 os capuchinhos passaram a assumir o controle oficial das ações
voltadas para os povos indígenas, responsabilizando-se pelas atividades de educação e saúde
desses povos. Dessa forma, os autóctones voltaram a ser objeto, mais uma vez, da tarefa
oficial civilizatória, catequista e integracionista desenvolvida pelas missões religiosas.
(FREIRE; MALHEIROS, 1997).
Em 1845 a promulgação do Decreto 426 associado a Lei 601- Lei de Terras
legitimou a delimitação das áreas necessárias à “colonização indígena” liberando o restante
das terras à expansão territorial capitalista. Os povos indígenas passaram, então, a depender
das ações estatais de reconhecimento e legitimação das terras indispensáveis à sua
sobrevivência física e cultural. (LIMA, 1995). Assim, um passo irreversível foi dado na
história, determinando um processo contínuo de sedentarização desses povos em contraponto
ao modelo de rotatividade milenarmente adotado pelos mesmos. Dessa forma, os povos
indígenas passaram a viver confinados em áreas demarcadas pelos governos que se seguiram,
o que veio interferir diretamente na dinâmica das relações estabelecidas com o meio-
ambiente, fossem elas de caráter cosmológico, de controle das doenças infecto-parasitárias, de
necessidades de reprodução biológica, cultural, econômica, educativa e/ou social.
Apesar de serem consideradas políticas liberais para a época, as legislações vigentes
durante o regime imperial legitimavam a continuidade da apropriação dos territórios
indígenas, inovando, somente, pela utilização de métodos persuasivos de atração dos mesmos
à sociedade dominante. No entanto, o deixaram de constituir foco de críticas das classes
conservadoras que se habituaram ao emprego de métodos violentos como forma de se
promover a expansão territorial e a resolução das tensões sociais. (GAGLIARDI, 1989).
Com base no que foi abordado, é notório que durante este período, os povos indígenas
do Brasil continuaram a ser vítimas de embates e tensões com os agentes dos projetos
econômicos do império que buscavam dar continuidade à apropriação dos territórios que lhes
40
asseguravam a preservação dos elementos simbólicos e estruturais necessários à manutenção
da sua qualidade de vida e saúde. O investimento na erradicação das diferenças culturais
através de estratégias de integração dos índios ao convívio social urbano ou mesmo pela
continuidade do seu extermínio físico declarado continuou a ser o método utilizado para lidar
com a diferença na formação das bases da sociedade brasileira, repercutindo em impactos de
diferentes ordens na qualidade de vida e saúde dos povos indígenas do Brasil.
1.3 Brasil República
Com a queda do regime Imperial Monárquico em 1889 chegou ao fim, também, a
política indigenista vigente. Dos anos que sucederam sua queda até a criação do então Serviço
de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPITLN) em 1910, pouca
informação se tem a respeito das políticas indigenistas.
O militarismo nacional, grande responsável pela instauração da República, sofria fortes
influências do positivismo francês, que tinha em Augusto Comte o seu mentor principal. Fruto
da ideologia positivista, a inferiorização étnica e cultural enraizou-se na cultura republicana e
serviu como mola propulsora às atividades de dominação dos povos indígenas, tendo por
detrás, também, o interesse pela apropriação territorial para a expansão das fronteiras
capitalistas.
O positivismo, surgido na França na primeira metade do século XIX, baseava-se na
teoria dos três estados da evolução humana, a saber: o Teológico, o Metafísico e o Positivo,
sendo o último, atribuído às populações que alcançaram o estágio mais elevado de
desenvolvimento científico, como as da Europa Ocidental. Segundo essa teoria, o estado
Teológico era divido em três etapas sucessivas: o fetichismo, onde se encontravam as
41
populações autóctones; o politeísmo e o monoteísmo. Era, portanto, atribuído às populações
fetichistas um alto grau de irracionalismo e imaturidade que levavam os homens a apoiarem-
se em crenças sobrenaturais, devido à sua incapacidade de compreender e explicar os
fenômenos naturais. (GAGLIARDI, 1989).
O artigo 6º do antigo Código Civil Brasileiro (BRASIL, 1916), que permaneceu
vigente até Janeiro de 2003, declarava os indígenas como “relativamente incapazes” de
exercer certos atos da vida civil, juntamente com os maiores de 16 (dezesseis) e menores de
21(vinte e um) anos e os pródigos. Por considerá-los dessa forma justificou-se, então, o
estabelecimento de um regime tutelar, com leis e regulamentos especiais, o qual, cessaria à
medida que se fossem “adaptando à civilização do país”. A influência da Teoria Positivista
veio se configurar na criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais (SPILTN) em 1910, renomeado logo em seguida como Serviço de
Proteção aos Índios (SPI).
A criação do SPILTN foi inspirada no êxito dos serviços do Tenente-Coronel Cândido
Rondon, ao fazer a travessia do Brasil Central estendendo a linha telegráfica de Mato Grosso
ao Amazonas, sem que tivesse, necessariamente, que utilizar métodos violentos no contato
com as populações indígenas que se colocavam em seu caminho. Segundo Lima (1995, p-
124), “Rondon conseguiu ganhar a guerra através da paz, abrindo territórios à administração,
transformando inimigos em aliados sem usar de violência aberta, por técnicas que remetia a
Barbosa Rodrigues, para não reconhecer sua ancestralidade nas fórmulas jesuíticas”.
Dessa maneira, suas ações serviram de exemplo às práticas do primeiro órgão oficial
indigenista, que visava à “pacificação” dos povos autóctones, considerados por seus membros
como em um estágio de transitoriedade na evolução humana. As ações do SPI partiam do
pressuposto que os povos indígenas deveriam ser integrados à sociedade nacional, deixando
de lado as suas terras e as suas culturas para transformarem-se em trabalhadores rurais.
42
Garnelo, Macedo e Brandão (2003, p.37) assinalam que “neste contexto, o grau de sucesso da
política indigenista seria avaliado por sua capacidade de suprimir a diferença étnica, de
promover a desintegração da cultura desses povos e de viabilizar a sua completa assimilação à
sociedade brasileira”.
O órgão era vinculado ao Ministério da Agricultura e tinha como objetivo principal,
estabelecer um diálogo entre as frentes expansionistas e os grupos indígenas que se
apresentavam como obstáculo ao crescimento da nação e ocupavam áreas que interessavam às
oligarquias agrárias e aos projetos de expansão econômica. A tarefa do SPI era a de promover
a passagem do estado fetichista ao positivo, abreviando os longos processos da evolução
humana, através da aplicação da educação racional positiva no desenvolvimento mental dos
índios criando assim, as condições propícias para sua integração à sociedade civilizada, na
forma de trabalhadores rurais. Seus líderes acreditavam na antecipação do que a história
indubitavelmente faria, ou seja, a integração paulatina das populações autóctones à classe
trabalhadora nacional e a conseqüente desobstrução das áreas tradicionalmente ocupadas,
conforme é retratado por Barbosa (1923, p.11):
Acabamos assim de citar os nomes de diversas tribus guerreiras que o Serviço de
Índios, affrontando e vencendo innumeros perigos, difficuldades e privações, foi
procurar nos mais recônditos sertões do paiz para trazer a relações de amisade com a
massa geral do povo Brazileiro, na qual em breve ellas desapparecerão,
definitivamente assimiladas.
O SPI desvinculou a “proteção” das populações indígenas das ações desenvolvidas
pelas missões religiosas, todavia, sem intervir no processo da catequese missionária e
proporcionou a criação de uma legislação específica que assegurava aos povos indígenas o
direito às terras em que viviam, o que, no entanto, não era observado quando as áreas em
questão interessavam aos projetos econômicos do Estado. Quanto ao conflito entre os
métodos utilizados pelos missionários e aqueles a que se dedicava o SPI, discorre Farias
(1919, p.73):
43
A principal obrigação da assistencia que o Serviço de Proteção deve ao índio é a
defesa do seu tutelado contra a opressão dos civilizados. Como, pois, admitir que
essa opressão se exerça pelo simples facto de ser feita por homens de batina? Prova
completa de tolerância é já o permitir que se tome o tempo ao índio para encher-lhe
a cabeça de phantasias que elle não entende nem póde claramente entender, dada a
falta de abstração a que está sujeito. Prova incontestável de intolerância é sofrer que
se queiram fazer mudanças instantâneas de crenças e de bitos, que com muito
tempo e avanço gradual seriam possíveis. O Serviço de Proteção apanha a
irracionalidade do processo, mas não intervem, nem protesta, desde que o ensino
seja ministrado sem imposição. Os seus methodos , pois, são outros. Elle sabe que a
alma do índio é a mesma alma do homem civilizado, apenas com as diferenças
resultantes da situação fetichista em que aquelle se encontra.
Na classificação administrativa proposta pelo SPI aparece, porém, um outro modo de
tratar as populações nativas, construído a partir do tipo de relação (de aliança ou guerra)
estabelecida com o colonizador. O decreto 5.484 de 27 de junho de 1928 em seu artigo
segundo classificou os índios do Brasil nas seguintes categorias: nômades, aldeados,
pertencentes à povoações indígenas e pertencentes a centros agrícolas ou que vivem
promiscuamente com os civilizados. Os índios selvagens constituíam o foco principal das
ações do SPI não por obstaculizarem as frentes de expansão para o interior ou se acharem
em guerra, mas também por comportarem as características ideais para o trabalho de
civilização, pois, segundo a filosofia institucional, se encontravam em um estágio primitivo da
escalada da humanidade para o progresso. Sem sombra de dúvidas ocupavam uma posição
inferior neste processo, portanto, a aplicação de métodos educativos ideais os impediria de se
transformarem em indivíduos cheios de defeitos.(LIMA, 1995, grifos nossos).
A discussão sobre a política indigenista, na época, polarizava-se entre aqueles que
viam os índios como obstáculo ao desenvolvimento nacional e passíveis, portanto, de serem
exterminados e aqueles que se horrorizavam com os massacres impetrados a esses povos e
combatiam as teorias racistas que apontavam para o extermínio como a solução para a
resolução dos conflitos sociais. (COSTA, 1987). No entanto, as violências, muitas vezes,
eram mascaradas pela guerra pacífica de aculturação desses povos, que passavam a viver
44
privados de suas referências de vida e, consequentemente, condenados à dependência da boa-
vontade do poder estatal para garantir-lhes as condições mínimas de qualidade de vida e
saúde.
1.4 As Políticas Indigenistas de Saúde no Brasil República
Não se têm registros sobre ações de saúde desenvolvidas pelo SPI a a década de
1950 quando foi implementado o primeiro sistema de atenção à saúde indígena oficial,
denominado de Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA), proposto pelo médico
sanitarista Noel Nutels. Seu trabalho teve início a partir de sua participação como médico da
Expedição Roncador-Xingu, juntamente com os irmãos Vilas Boas. O SUSA foi criado com o
objetivo de prestar assistência aos povos indígenas e às populações rurais de difícil acesso. O
trabalho de Nutels propunha a criação de um anteparo de proteção contra as doenças trazidas
através do contato, para as quais os índios não tinham adquirido resistência. O órgão, ligado
administrativamente ao Serviço Nacional de Tuberculose, contava também com o apoio da
Força Aérea Brasileira (FAB) até 1964. (COSTA, 1987).
Baseado na idéia de delimitar um espaço de proteção para as populações indígenas que
se encontravam no caminho dos projetos expansionistas brasileiros, foi criado o Parque
Nacional do Xingu em 1961. As ações de saúde no Parque eram desenvolvidas pelo médico
pioneiro Dr. Nutels e pela esposa de Orlando Vilas Boas, a enfermeira Marina. (BOAS,
2005). “Após a criação do SUSA, o trabalho se ampliou para os grupos indígenas do sul de
Mato Grosso e da área do Rio Negro (na Amazônia). As ações desenvolvidas foram
vacinações, extrações dentárias e cadastro torácico”.(COSTA, 1987, p.05). As intervenções
do SUSA, entretanto, costumavam restringir-se às ocasiões de surtos que se desencadeavam
45
quando grupos indígenas entravam em contato com a sociedade circundante sem que se
configurassem em ações permanentes, como no caso da epidemia de sarampo nas tribos do
alto Xingu em 1954. (CONFALONIERI, 1993). Eram escassos, portanto, os recursos para a
efetivação de um projeto de dimensões nacionais que atendesse à amplitude das necessidades
do complexo panorama étnico e cultural indígena do país com ações preventivas e de
promoção de saúde.
Em 1967, com a extinção do então SPI, após inúmeras denúncias de violências
cometidas contra os povos indígenas do Brasil, foi criada a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI). Segundo Davis e Menget (apud COSTA,1987, p.06):
Uma série de livros e declarações públicas falavam de cobertores sendo dados aos
índios contaminados por varíola e outras doenças; de incidentes onde napalm era
atirado sobre as aldeias indígenas; eram exibidas fotografias de aldeias que haviam
sido dizimadas, onde apareciam restos de mulheres e crianças sobre o solo árido e
carbonizado. A sentença unânime da Europa era que o Brasil estava pondo em
prática uma política de genocídio étnico.
Essas denúncias, segundo Costa (1987), vieram a ser confirmadas e comprovadas
através do Relatório Figueiredo em 1967 que foi conduzido por uma comissão nomeada pelo
então Ministro do Interior, General Albuquerque de Lima.
A Fundação Nacional do Índio, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, passou a
assumir as atividades de tutela das populações indígenas, sob a égide da ditadura militar, que
implementou na década de 70 o “Plano de Integração Nacional”(PIN). Este plano vislumbrava
a integração das diferentes regiões do país através da abertura de rodovias que entrecortavam
a nação de Leste a Oeste e a conseqüente continuidade da ocupação e exploração das áreas
isoladas do país. Ainda segundo Costa (Ibid, p.7), “A construção da Transamazônica seria
expressão maior da nova política de extermínio dos povos indígenas. Grupos que viviam
praticamente isolados seriam contatados de maneira extremamente violenta”.
46
Com o processo de apropriação das suas terras através dos projetos que davam
sustentação ao “milagre econômico”, também proposto pelos governos militares, várias etnias
perderam seus referenciais de vida, construídos milenarmente nas áreas em que habitavam.
Restaram a muitos desses povos, que atualmente vivem em intenso contato com a sociedade
envolvente, o legado dos problemas sociais que afligem as camadas mais empobrecidas da
população nacional, como o alcoolismo, a prostituição, a drogadição, a desnutrição, a
tuberculose, o suicídio, os problemas de saúde bucal e os altos índices de mortalidade infantil.
Em 1973 foi promulgado o Estatuto do Índio (Lei nº 6001/1973) que reafirmou
oficialmente a função política do Estado de integração dos povos indígenas à sociedade
nacional absorvendo os ditames segregacionistas implícitos no antigo Código Civil de 1916.
O Estatuto reforçou a necessidade de tutela para esses povos reconhecendo a capacidade civil
plena somente àqueles que fossem incorporados à comunhão nacional, ainda que
conservassem usos, costumes e tradições característicos de sua cultura. A promulgação do
Estatuto do Índio refletia a relação estipulada entre os militares e os povos indígenas. Segundo
Garnelo, Macedo e Brandão (2003, p.38), durante os governos militares, “os índios eram
considerados como inimigos do Estado brasileiro e o principal obstáculo ao desenvolvimento
da Amazônia e outras regiões de fronteira”.
A Fundação Nacional do Índio passou a desenvolver inúmeros papéis na atenção à
população indígena (proteção à terra, assistência à saúde, educação e resolução de conflitos),
durante o período da ditadura militar. Baseado na experiência do SUSA foi criado um serviço
específico de atenção à saúde indígena denominado Equipe Volante de Saúde (EVS), liderada
por Noel Nutels e José Antônio de Miranda. Esse modelo atuava nas áreas indígenas onde
funcionavam Postos Indígenas com um auxiliar de enfermagem que desenvolvia as ações
curativas emergenciais e garantia a continuidade de tratamentos prolongados. Seu
funcionamento deu-se plenamente durante a década de 70 em parcerias com o Ministério da
47
Saúde, hospitais universitários e de pesquisa e Casas de Saúde do Índio (CASAI), localizadas
nos centros urbanos ao qual eram encaminhados pacientes que necessitavam de maiores
cuidados. (VERANI, 1999).
Nos anos 80, o órgão indigenista brasileiro sofreu com as ingerências políticas e
administrativas externas e com um processo de redução orçamentária progressiva que resultou
no desmonte de suas atividades. A falta de uma política de recursos humanos resultou na
ineficácia das ações nos Postos Indígenas culminando na substituição cada vez mais freqüente
dos auxiliares de enfermagem por atendentes, criando acúmulo de pessoal no nível regional
(fora das áreas). Com o progressivo estrangulamento financeiro, o órgão abandonou a
formação específica voltada para o preparo antropológico desses profissionais e cada vez mais
a porta de entrada no sistema foi inviabilizada. (Ibid).
As inúmeras tentativas de integração dos povos indígenas à sociedade nacional
permitiram ao longo do tempo que, através do convívio sistemático com a lógica que
alimentava a sociedade dominante, as lideranças indígenas se apoderassem de novos
conhecimentos e mecanismos de luta pela defesa de seus direitos.
O final da década de 80 foi um período que marcou profundas mudanças no panorama
político nacional, destacando-se pelo processo de redemocratização do país que culminou na
queda do regime militar e na promulgação da Carta Constituinte brasileira em 1988, com
ampla participação dos povos indígenas.
No campo da saúde destacou-se o movimento da Reforma Sanitária que abriu espaços
para a discussão de um novo projeto político e normativo que deveria contemplar os
princípios da universalidade do atendimento, unificação, hierarquização e descentralização
das ações de gerência, planejamento e gestão, amplamente discutidos na Conferência
Internacional de Cuidados Primários de Saúde de Alma-Ata, celebrada em Setembro de 1978.
48
Existe amplo consenso de que a Conferência de Alma-Ata realizada na capital do
Cazaquistão, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URRS) em 1978,
constituiu um marco na Política Internacional de Saúde pelo alcance que teve em quase todos
os sistemas de saúde do mundo. Nela foi discutido um novo enfoque para o alcance do mais
alto nível possível de saúde, que preconizava a articulação dos diferentes setores sociais e
econômicos envolvidos neste processo.
A ampliação do horizonte axiológico acerca do conceito de saúde que se deu após a
Segunda Guerra Mundial passou a transfigurar-se, mesmo que de forma discreta e dispersa,
em programas de atenção básica em diferentes partes do mundo. Neste sentido, na
Conferência de Alma-Ata foram discutidas experiências que levavam a noção de saúde
descrita pela OMS como “bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de
doenças” ao alcance das pessoas em seus locais de moradia, trabalho e lazer, incluindo a
participação das comunidades nos programas de cuidados simples, de baixo custo e de fácil
acesso.
7
Acompanhando a tendência internacional de reconceitualização dos modelos de
atenção à saúde, aconteceu no Brasil em 1986 a Conferência Nacional de Saúde, que se
destacou por ampla participação de representantes da sociedade civil e delineou a formatação
do projeto da Reforma Sanitária para o país, norteado por três eixos principais: a ampliação
do conceito de saúde considerando seus condicionantes econômicos e sociais; a determinação
da saúde como direito social universal e dever do Estado, não mais como um direito
previdenciário; e a instituição de um Sistema Único de Saúde, descentralizado com comando
único em cada esfera de governo, atendimento integral e participação da comunidade.
7
Na conferência foram discutidas experiências como a dos “médicos de pés descalços”, trabalhadores rurais da
China com formação em saúde pública e curativa; os Family Wellfare Workers (Trabalhadores do Bem- Estar
Familiar) de Bangladesh que, inspirados no modelo chinês, realizavam atendimentos nas aldeias próximas à sua
residência ; e demais “experiências inovadoras” no campo da atenção primária à saúde. (VERANI, 1999).
49
No seu conceito ampliado, a saúde foi definida como resultante das condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer,
liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. A CNS possibilitou a
ampliação conceitual do termo saúde para fins de aplicabilidade política e normativa, não
obstante, tenha considerado que este conceito fosse definido dentro do contexto histórico e
cultural de cada sociedade de acordo com os valores sociais atribuídos aos bens e serviços
condicionantes de qualidade de vida e saúde.
Muito embora o paradigma conceitual de saúde considerado pela conferência tenha
representado grande avanço tanto no campo teórico como no prático, Buss (2003, p.44)
adverte para o fato de que, Ao se elaborar um sistema lógico e coerente de explicação,
mutilam-se as possibilidades de sua apreensão sensível, por se encerrar a realidade em uma
redução”.
1.5 Panorama Atual da Saúde Indígena no Brasil
Neste sentido, para discutir as especificidades da saúde indígena, foi realizada logo
após a CNS, a Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, com ampla
participação das organizações indígenas e indigenistas do país. A CNPSI recomendou a
implantação de um modelo de atenção à saúde indígena que garantisse a universalidade e a
integralidade das suas ações, a transferência da responsabilidade oficial de prestação de
serviços para o Ministério da Saúde, a ênfase no respeito às diferenças étnico-culturais de
cada povo e maior representatividade dos índios por meio da participação e do controle
social.
As conquistas realizadas pelos povos indígenas a partir dos movimentos que
começaram a tomar forma na década de 70 consubstanciaram-se em um capítulo inteiro
50
reservado aos seus direitos na Constituição Brasileira de 1988 . Segundo o artigo 231 da
Carta cidadã (BRASIL,1988), “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes
e línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. o
artigo nº 232 (BRASIL,1988) faz referência ao reconhecimento da cidadania dos povos
indígenas independente do grau de contato com a sociedade nacional, referindo que “os
índios e suas comunidades são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus
direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Apesar de
um grande passo político e normativo ter se configurado na possibilidade de auto-
representação dos povos indígenas na defesa de seus direitos, as práticas tutelares constituem
ainda a base do indigenismo brasileiro e continuam vulneráveis aos interesses econômicos
nacionais e internacionais.
A década que sucedeu à abertura democrática do país foi marcada pelo trânsito das
ações sanitárias desenvolvidas para os povos indígenas entre a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) e a Fundação Nacional de Saúde (FNS). Em 1991, através do Decreto Presidencial
23 essas atividades passaram da FUNAI para a FNS. Foi criada, então, a Coordenação de
Saúde do Índio (COSAI) no Ministério da Saúde para gerenciar estas ações. A FNS, por sua
vez, “sofria uma certa desorganização interna provocada pela junção das ex-SUCAM e
Fundação SESP”. (VERANI, 1999, p.180).
Em 1993 foi realizada a II Conferência Nacional de Saúde do Índio que delineou o
Subsistema Diferenciado de Saúde do Índio, baseado na figura dos Distritos Sanitários
Especiais Indígenas, dos Conselhos Distritais e da participação paritária dos indígenas nos
mesmos. Em 1994 o Decreto Presidencial n°1.141/94 revogou o Decreto Presidencial 23 e
constituiu uma Comissão Intersetorial de Saúde- CIS com a participação de vários Ministérios
relacionados com a questão indígena sob a coordenação da FUNAI, fazendo com que
51
retornassem a responsabilidade das ações sanitárias para este órgão. A Lei Arouca (Lei
n°983/99) marcou definitivamente a passagem das ações de saúde indígena para o Ministério
da Saúde, determinando a estruturação do subsistema de atenção à saúde indígena em agosto
de 1999.
O subsistema de atenção à saúde indígena
8
no Brasil está organizado em 34 Distritos
Sanitários Especiais Indígenas. O DSEI pode ser entendido como um modelo operacional de
serviços orientado para um espaço populacional, geográfico, social, etnológico, cultural e
administrativo bem definido, articulado com a rede do SUS para referenciar e contra-
referenciar pacientes ao atendimento de média e alta complexidade, desenvolvendo atividades
administrativo-gerenciais com controle social efetivo realizado por intermédio dos Conselhos
Distritais e Conferências Nacionais de Saúde Indígena. Cada distrito organiza uma rede de
serviços de atenção básica dentro da área indígena, integrada e hierarquizada, compondo-se
de um posto de saúde em cada aldeia e um Pólo Base que deve estar preferencialmente
situado dentro da área indígena contemplando as necessidades de um grupo de aldeias. Fora
da área indígena existem as Casas de Saúde do Índio (CASAI) que funcionam como casas de
apoio para indígenas e familiares que necessitam permanecer nos centros urbanos para
tratamento.
A implementação do subsistema de atenção á saúde indígena ocorreu em um momento
em que a descentralização do SUS estava sendo consolidada e os setores envolvidos neste
processo trabalhavam incessantemente para transferir as atribuições da esfera federal para as
secretarias municipais de saúde. A opção política pela manutenção de um órgão do governo
federal na função de gestores e executores do subsistema de saúde indígena gerou uma
contradição com a proposta de organização do Sistema Único de Saúde, que, até o momento
não produziu uma solução para o problema. A opção encontrada pelos dirigentes da FUNASA
8
As bases legais que regulamentam a Atenção à Saúde Indígena são descritas na Lei 9836/1999, no Decreto
3156/1999, nas Portarias 1163/1999 do Ministério da Saúde e nas portarias ministeriais nº 069 e 070/GM.
52
para viabilizar a concretização de atividades sanitárias nas aldeias foi a terceirização,
celebrada através de convênios com as prefeituras locais, que vêm assumindo a totalidade das
atividades de atenção à saúde indígena.(GARNELO, 2004).
Ao contemplar o princípio da integralidade das ações e a participação comunitária, as
propostas normativas contidas na Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena (BRASIL,
2002) contempla as atividades de abastecimento e controle da qualidade da água,
esgotamento sanitário, coleta, remoção e destino final do lixo. Para atender a algumas dessas
necessidades foi criada a figura do Agente Indígena de Saneamento que deve ser escolhido
pela sua comunidade para ser devidamente capacitado pela FUNASA para exercer a função
de mantenedor das estruturas de abastecimento de água e esgotamento sanitário e identificar
possíveis riscos ambientais. Da mesma forma, o Agente Indígena de Saúde (AIS) é indicado
pela sua comunidade para promover a interface entre a biomedicina e os sistemas tradicionais,
realizar visitas domiciliares e acompanhar pacientes que possuem limitações lingüísticas e
culturais para o atendimento ambulatorial ou hospitalar.
Muito embora um grande avanço tenha se dado com a inclusão dos indígenas no
campo da prática e do controle social, muito que se fazer para se conciliar os interesses
dos diferentes agentes envolvidos na atenção à saúde indígena. O modelo de atenção à saúde
indígena adota normativamente a atenção diferenciada, que podemos entender segundo
Menendez (2004 apud LANGDON; GARNELLO,2004) como, a articulação entre os serviços
de “prevenção primária” de saúde e as práticas de “auto-atenção” existente na comunidade
particular. Neste sentido, o autor descreve dois níveis de auto-atenção, a saber:
[...] um mais amplo, ligado aos processos de reprodução biossocial do grupo que o
gerou, o que remete à própria cultura por ele reproduzida e aos usos de recursos
corporais e ambientais, à dietética, a normas de higiene pessoal e coletiva, etc. O
segundo nível, mais restrito, refere-se principalmente às estratégias, científicas e não
científicas, de representação da doença e de práticas de cura e cuidados (Ibid, p.42).
53
O subsistema de atenção à saúde indígena é fruto de cinco séculos de relacionamentos
interculturais marcados pela assimetria e pela imposição de valores e práticas de atenção à
saúde. Normativamente, adota os avanços constitucionais de reconhecimento das diferenças
étnico-culturais como princípio maior que deve reger todas as suas diretrizes políticas e
estruturais, entretanto, é notável a reprodução de um modelo intervencionista curativo que
prevalece sobre os diferentes sistemas culturais desconsiderando sua historicidade e contexto,
demarcando um importante campo de tensões, ao constranger comportamentos considerados
inadequados e impor limites e regras que devem ser seguidos para se alcançar as metas
propostas. Garnelo, Macedo e Brandão (2003, p.52) sinalam que o subsistema de atenção à
saúde indígena:
[...]permanece preso a práticas sanitárias tecnicistas, sendo perceptível a ausência de
atribuições voltadas para o desenvolvimento de ações intersetoriais. Igualmente, não
se evidenciam, na regulação da resolubilidade da rede do Dsei, estratégias de
interação com os sistemas tradicionais de cura e cuidados e /ou com outras
manifestações culturais dos grupos assistidos.
Dessa forma, a atenção à saúde indígena costuma sofrer sérios comprometimentos
decorrentes da generalização do complexo sistema de idéias relativas ao nascimento e à
morte, à saúde e à doença, ao corpo e ao espírito, criando categorias totalmente
distintas das que são consideradas como válidas pelos indígenas e tomando-as como
universalmente aceitas nas práticas de promoção, proteção e recuperação da saúde.
(LANGDON, 2004).
É notável, portanto, que, o subsistema de atenção à saúde indígena não tem logrado
êxito no que tange à articulação entre diferentes setores envolvidos na promoção de um
estado de saúde integral que considera tanto os determinantes biológicos como sociais,
econômicos, culturais e territoriais necessários à manutenção e desenvolvimento da vida
humana em sua totalidade.
54
55
2- POVOS INDÍGENAS, GLOBALIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E SAÚDE-
DOENÇA
O relacionamento entre povos culturalmente diferenciados entre si têm sido objeto de
inúmeros estudos das Ciências Humanas e Sociais, desde os seus primórdios nos séculos
XVIII e XIX. As inúmeras abordagens convergem de formas distintas para a compreensão de
um mesmo assunto: as tensões existentes entre os grupos de culturas particulares e as
sociedades mais amplas com as quais se relacionam, ou seja, entre a heterogeneidade e a
homogeneidade ou entre o geral e o particular, o global e o local.
Com o início das expansões ultramarinas européias no século XVI, tornou-se premente
dar sentido às novas relações sociais que se formavam a partir de então, justificando a
dominação dos povos nativos das Américas, Ásia e África pelos seus conquistadores. Fazia-se
necessário legitimar a apropriação dos novos territórios, delimitando a participação de cada
grupo da população na construção das nações, seus privilégios e restrições. A escravidão veio
preencher o anseio de se obter mão-de-obra farta e de baixo custo. Tal ato deveria gozar de
pleno respaldo político e normativo, o que fez suscitar as mais diversas teorias que buscavam
conferir legitimidade às ações escravagistas.
Na gênese histórica dessas tensões localizam-se os estudos científicos que se
apropriaram da idéia de raça para explicar a diversidade humana. Estes estudos, contudo,
refletiam uma crença, amplamente compartilhada socialmente, de que as raças humanas
deveriam ocupar níveis hierárquicos distintos nas sociedades que compunham. No século
XIX, este termo passou a ser amplamente empregado como indicativo de categorias físicas
associadas a traços culturais comportamentais específicos.
56
A confusão entre a noção biológica de raça e as produções sociológicas e psicológicas
das culturas humanas alcançaram seu ápice nos horrores da eugenia nazista e constituiu o que
Levi Strauss (1989) denominou como o “pecado original” das ciências antropológicas.
Em 1859, ao publicar “A Origem das Espécies”, Charles Darwin apresentou a hipótese
de que todos os grupos humanos se encontravam ligados por uma origem genética comum e
que suas diferenciações biológicas remontavam os processos adaptativos pelos quais todos os
seres vivos teriam passado ao longo da sua evolução, indo de encontro com as teorias raciais
que postulavam diferenças irredutíveis na origem das raças humanas.
As primeiras escolas antropológicas européias sofreram fortes influências desta teoria,
não obstante, o evolucionismo cultural e sociológico lhe antecedesse no tempo. Essas
doutrinas se empenhavam em explicar a natureza única do ser humano, criando escalas
unilineares de evolução que determinavam os veis em que cada povo se encontrava para
alcançar a “cultura universal” ou a “civilização”, consideradas à época como a expressão
máxima das realizações intelectuais e materiais de uma sociedade. Levi-Strauss (1989) alerta
para os perigos apresentados pela noção de evolucionismo cultural apresentada por Edward
Burnett Tylor (1832-1917) e outros evolucionistas. Segundo o autor, a noção de evolução
cultural era desprovida de fundamentos sólidos, pois, constituía nada mais do que um pequeno
acréscimo de algumas melhorias ao progresso cumulativo legado pelas gerações antecedentes.
Embora as idéias evolucionistas tenham prevalecido por longo período tornaram-se
insuficientes para explicar a diversidade dentro da unidade como pretendiam. Uma outra
abordagem surgiu em contraponto a estas teorias tendo à sua frente o antropólogo alemão
Franz Boas (1858-1942). Os estudos relativistas de Boas e de seus seguidores, denominados
pejorativamente pela antropologia contemporânea como culturalismo, afastavam as
possibilidades de generalização e universalização do conhecimento humano que
predominavam até então. Partilhavam da idéia de que existiam diferenças irredutíveis entre os
57
homens de organizações socioculturais diversas e que as culturas deveriam ser preservadas
em sua pureza original sem a qual, estariam fadadas ao desaparecimento. Segundo Costa,
(2003, p.206) os representantes dessas idéias “rejeitam em nome do direito à diferença, numa
atitude etnocêntrica e de relativismo extremo, o intercâmbio entre culturas, a troca e a
convivência entre diferentes tipos de conhecimento e grupos socioculturais”.
O estilo relativista continuou a bloquear os problemas de interlocução e convivência,
conferindo especial ênfase às ações afirmativas que se preocupavam mais com as questões de
resistência cultural do que com as transformações estruturais propriamente. A auto-estima
particularista, na obrigação de esgotar-se no conhecimento de uma só cultura, passou a
valorizar acriticamente as virtudes da minoria a que se pertence em detrimento de uma
compreensão mais ampla dos relacionamentos compartilhados com as demais unidades
sociais, conduzindo a novas versões de etnocentrismo.(CANCLINI, 2005).
A globalização intensificou as dependências recíprocas entre as diferentes sociedades
ao ampliar a dinâmica dos relacionamentos do campo local ao global, contribuindo, assim,
para a formação de meios heterogêneos. Na medida em que se intensificaram as relações de
dependência entre as sociedades, a cultura passou a ocupar papel central no diálogo global,
determinando a forma como são interpretados os bens e os valores circulantes.
As inúmeras tentativas de definir o termo cultura tornaram-se insuficientes em suas
limitações conceituais e fizeram parecer sem sentido referir-se a este patrimônio comum da
humanidade como um sistema fechado, estático e afastado da realidade. Neste sentido,
Canclini (Ibid, p.41, grifos do autor) sinala que de um modo mais complexo a cultura abarca
o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida
social.” Dessa forma, a cultura não deve ser vista como um conjunto de regras sociais
delimitadas e congeladas no tempo e no espaço e sim, como um processo dinâmico e contínuo
que se constrói através da negociação dos atores envolvidos.
58
A dinâmica da vida contemporânea e a multiplicidade de valores e comportamentos,
formas de se expressar e modos de vida remetem à idéia de que vivemos em um mundo de
diferenças. Neste sentido, compreender o outro como produto histórico de suas interações
possibilita a superação dos paradigmas reducionistas que descartavam os relacionamentos
entre as culturas como parte da sua construção simbólica.
Segundo Soria (2006, p.02):
No mundo atual existem cerca de 6000 grupos de línguas vivas e mais de 5 mil
grupos étnicos, segundo Kymlicka. No âmbito da vida cotidiana, a
multiculturalidade e até mesmo a interculturalidade fazem parte da realidade de
quase todas as sociedades contemporâneas.
Após a expansão das relações socioeconômicas transnacionais, decorrente da ascensão
do fenômeno da globalização, tornou-se premente buscar novas formas de interpretação da
realidade social dos povos indígenas que se constrói, mais do que nunca, em intercâmbios
com outros meios sociais e culturais. Trata-se de observar a construção simbólica que surge
do inevitável entrecruzamento, da mistura, das convergências e das divergências que
vinculam os grupos. Segundo Canclini (2005, p.25):
Para entender cada grupo é imprescindível descrever a forma como se apropriam
dos produtos materiais e simbólicos alheios e os reinterpreta: as fusões musicais e
futebolísticas, os programas televisivos que circulam por estilos culturais
heterogêneos, os arranjos natalinos e os móveis early american fabricados no
Sudeste asiático. Naturalmente, não as misturas: também as barreiras em que se
entrincheiram, a perseguição ocidental a indígenas ou mulçumanos. Não os
intentos de conjurar as diferenças mas também os dilaceramentos que nos habitam.
Vivemos em ambientes cada dia mais interculturais onde a interseção e o
entrecruzamento dos modelos simbólicos manifestam-se na multiplicidade de valores
presentes no universo da vida cotidiana. A diversidade conseguiu sobreviver, apesar das
constantes investidas das culturas dominantes de construir unidades monolíticas e uniformizar
identidades, comportamentos, percepções, crenças, sensibilidades e modos de ser.
59
A interculturalidade apresenta-se como a forma ideal para se compreender as
alteridades no contexto de seus relacionamentos. Implica entender que os diferentes convivem
em relações de trocas, empréstimos, conflitos e tensões, que se dão necessariamente no
entrelaçamento das redes de conversações. Interculturalidade é o diálogo aberto e dinâmico da
pluralidade social por onde circulam diferentes discursos, amparados em diferentes conceitos
sobre bem-estar e qualidade de vida.
Entender os relacionamentos interculturais atualmente requer, necessariamente,
enfocar-se nas interações, nos entrecruzamentos, nas interseções e nos conflitos oriundos do
encontro das diferentes linguagens de mundo que determinam o caráter dinâmico e fluido das
identidades contemporâneas. Implica em compreender como os objetos e valores adquirem
novas significações no trânsito entre uma cultura e outra, como se transformam e se recriam,
como são ressignificadas as relações territoriais frente aos interesses econômicos e sociais e a
forma como as identidades se constroem neste diálogo.
Neste sentido, o pertencimento cultural não constitui fator de limitação, nem barreira
para o horizonte perceptivo, axiológico, representativo e prático, portanto não se apresenta
como uma condição monolítica e coercitiva. Permite manter, sempre possível e desejável, a
escolha das práticas, valores e tradições que os membros de determinada cultura deseja ou não
adotar. Os componentes culturais não devem ser entendidos como dados objetivos que se
colocam como fronteiras para o diálogo com outras culturas e sim, como mensagens abertas
com as quais dialogamos com o outro para nos apropriarmos do passado, pensarmos o
presente e imaginarmos o futuro. (SORIA, 2006).
Coelho (2004, p.49) assinala que, “[...] a interculturalidade contemporânea é um
processo em aberto, alicerçado na idéia de que a identidade cultural é dinâmica, que a
insistência no idêntico perdeu sentido e que a cultura é uma longa e indefinida conversa entre
coisas e pessoas diferentes, não entre coisas e pessoas iguais.”
60
Analisando a inteculturalidade em diferentes campos do saber, Soria (2006)
argumenta que, sob a perspectiva ética, seu objetivo é construir uma alternativa universal de
vida digna para toda a humanidade que torne possível o reconhecimento e o desfrute da
diversidade como “ponto de apoio” para a realização plena da pessoa humana. Neste sentido,
a interculturalidade deve se expressar na colhida do outro como sujeito, propiciando a
universalização da co-autonomia das pessoas e a co-soberania das culturas.
No campo político, o autor sugere basicamente três tipos de direitos coletivos que
viabilizam a congregação e a inserção das minorias étnicas na co-gestão política: o direito ao
auto-governo, através da delegação de poderes políticos; os direitos pluri-etnicos com
mecanismos de apoio financeiro que viabilizem a proteção das práticas culturais; e os direitos
especiais de representação que garantam cadeiras e postos na administração pública. (Ibid).
A Organização Mundial da Saúde (1998) faz referência à proposta de incorporação do
enfoque intercultural no campo da saúde como essencial à compreensão do lugar que cada
cultura ocupa nas sociedades nacionais e as conseqüentes variáveis que afetam suas condições
de vida e seu estado de saúde. Neste sentido, propõe a superação dos fatores determinantes
dos processos patológicos de forma direta e indireta, a começar pela erradicação das relações
assimétricas e discriminatórias que delimitam o grau de acesso das minorias étnicas e
culturais aos bens e serviços essenciais. Em sua definição formal sobre interculturalidade,
afirma que o envolvimento das interrelações eqüitativas das diferenças políticas, econômicas,
sociais, culturais, etárias, lingüísticas, de gênero e de gerações entre os povos/etnias
constituem fatores determinantes para a construção de uma sociedade justa.
Reportando-nos ao conceito ampliado de saúde, entendemos que ao se considerar seu
significado pleno está se lidando com algo tão amplo como a própria noção de vida. (BUSS,
2003). Neste sentido depreende-se que as ações próprias dos sistemas de saúde precisam se
articular necessariamente aos demais setores disciplinares e de políticas governamentais
61
responsáveis pelos espaços físico, social e simbólico com os quais os grupos étnicos se
relacionam, o que faz da interculturalidade mais do que uma estratégia de ação, uma
ferramenta de interlocução entre as diferentes linguagens de mundo.
2.1 Cultura e Interculturalidade entre os Guarani
Os processos históricos que confluíram para a criação dos Estados sul-americanos
foram determinantes para as condições de assimetria nos relacionamentos entre os Guarani e
as novas sociedades que se formaram nos territórios onde originalmente viviam. A imagem
do outro, tão necessária à construção da identidade cultural de cada etnia, passou a ser
interpelada pela figura do homem branco genérico, “ameaçador, invasor e perigoso”, que
delimitou suas fronteiras, restringindo os intercâmbios entre os diferentes grupos étnicos que
já habitavam as regiões conquistadas.
Os Guarani estiveram, historicamente, em diálogo próximo com o “homem branco”,
seja na condição de cativo, reduzido às missões religiosas ou através do convívio inevitável
com a sociedade envolvente nos dias de hoje. Desenvolveram estratégias de sobrevivência
física e cultural que lhes permitiram sobreviver no novo contexto social, político e econômico
que se originou com a chegada dos colonizadores europeus. Passaram, então, a conviver em
diferentes formas e graus de interculturalidade com a sociedade nacional e outros grupos
étnicos. Resistiram aos séculos de dominação, escravidão, catequização e desterritorialização,
extraindo desse processo histórico as condições de sua existência atual, adaptando-se ao
modelo social globalizado com o qual convivem atualmente sem perder os aspectos essenciais
de sua cosmovisão e cultura.
62
Chamorro (1988, p. 47), ao se referir ao processo dinâmico de recriação da identidade
Guarani frente às condições progressivamente adversas, sinala que “[...] as sociedades
indígenas mostraram que sua resistência não está centrada na possibilidade de elas
absorverem ou não elementos da cultura dominante, mas sim na forma em que esses
elementos podem ser rearticulados positivamente por elas.”
A maior parte das aldeias Guarani localiza-se, hoje em dia, em áreas bem próximas
aos grandes centros urbanos do país, onde os indígenas procuram manter relações de trocas,
abastecimentos e pontos de venda de seus produtos artesanais. Segundo Ladeira (1992), o
contato sistemático que se iniciou com a conquista do território Guarani produziu neste povo
formas muito peculiares de se relacionar com a sociedade dominante que garantiram a sua
reprodução enquanto povo e etnia. A autora ressalta que os Guarani, nunca renegando sua
condição de índios, desenvolveram estratégias de autopreservação caracterizadas pelo jeito de
trajar-se copiando a população regional, pela utilização de um nome “de branco” para
relacionar-se com a sociedade envolvente e pelas demonstrações de respeito aos costumes e
religiões alheias.
Como marca da cultura de sobrevivência Guarani destacam-se, ainda, os mecanismos
sociais discursivos de controle das informações, como o jakore ou “simular”, enganar” e o
nhande apu, ou “mentir”. Esses recursos são voltados para a dissimulação oral de discursos
sobre mitos e rituais secretos e outros elementos considerados como tabus para esta
sociedade. (LITAIFF, 2004).
O estreitamento do diálogo entre as manifestações da “modernidade” e os eventos
“tradicionais” vem se tornando, cada vez mais, uma realidade entre os Guarani
contemporâneos. As inúmeras formas com que cada grupo absorve e interpreta os valores e
tecnologias alheias nos remetem ao fato de que, entendê-las sob a égide dos paradigmas
dualistas que criam categorias dicotômicas entre valores e práticas modernas em oposição às
63
tradicionais, vem se tornando, cada vez mais, insuficientes para explicar o caráter dinâmico e
complementar dessas interações.
Canclini (2005) chama a atenção de que a busca pela inversão do quadro histórico de
desigualdade social, acentuado cada vez mais pela reestruturação neoliberal dos mercados,
tem feito com que os indígenas apropriem-se de novas tecnologias sem abrir mão de garantir e
defender aquilo em que em cada etnia é “inegociável e inassimilável”.
No entanto, por não exibirem o protótipo do indígena xinguano ou amazonense que
ilustra o imaginário da sociedade dominante, os Guarani carregam o estigma de “índios
aculturados”, paraguaios e nômades, o que dificulta enormemente a conjugação de forças
políticas, econômicas e sociais para viabilizar, principalmente, o reconhecimento de seus
territórios originais, como determina o artigo constituinte nº 231. (BRASIL,1988). Como
decorrência os Guarani vêm se destacando no panorama epidemiológico nacional e
internacional, em diferentes formas e graus, por índices alarmantes de suicídio, óbitos
provocados por violências internas e externas, alcoolismo e desnutrição infantil, evidenciando
a ausência de políticas mais abrangentes que considerem a dimensão cultural e territorial
desse povo.
As conquistas dos Guarani no campo da inteculturalidade junto às esferas políticas
atuais vêm se restringindo às ações setoriais de reconhecimento normativo das suas
manifestações culturais, lingüísticas e comportamentais, principalmente, no âmbito das
práticas diferenciadas de educação e de forma ainda discreta, de atenção á saúde. Ainda não
se tornou perceptível, contudo, um empenho político maior na eliminação da totalidade dos
fatores determinantes de vulnerabilidade social, econômica, política e sanitária desses povos,
que depende de ações mais amplas de legitimação dos territórios e da ampliação das
possibilidades de acesso aos bens materiais e serviços necessários à manutenção da sua
qualidade de vida e saúde, segundo os aspectos essenciais da sua cosmo-visão e cultura.
64
2.2 Guarani, Línguas, Território e População
Do ponto de vista lingüístico, os Guarani formam um povo indígena falante da língua
Guarani em seus vários dialetos, incluídos na família lingüística Tupi-Guarani, do tronco
lingüístico Tupi. A maioria dos grupos dominam a língua oficial do país em que habitam, o
que os caracterizam como bilíngües por falar o português ou o espanhol. A língua Guarani é
na atualidade considerada como uma das línguas mais faladas no continente. Segundo dados
do Conselho Indigenista Missionário (2007), no Paraguai a língua Guarani não tribal é
considerada como oficial e utilizada por cerca de 3 milhões de pessoas, ou seja, 60% da
população do país.
No século XVI os Guarani encontravam-se representados, principalmente, na figura
dos antigos Carijós, Carios ou Kari’ó, dispersos, segundo Monteiro (1992), pela imensa área
que abrange os estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e
Mato Grosso do Sul, habitando, mais precisamente, as florestas tropicais e subtropicais ao
longo do litoral e entre os principais rios do sistema Paraná-Paraguai. Segundo o autor, sua
presença igualmente se evidenciava de forma expressiva em partes da Argentina, Paraguai,
Uruguai e Bolívia.
Muita confusão tem sido feita atualmente em decorrência de se considerar o território
habitado pelos Guarani no tempo da conquista européia como a área restrita ao Paraguai atual.
Segundo Lugon (1976), os Guarani compunham uma das mais numerosas populações do
continente sul-americano, e a confusão se deve, sobretudo, pelo desconhecimento que se tem
acerca das dimensões desse território que fora posteriormente reduzido a um país. Dessa
forma, a etnia Guarani:
[...] não ocupava somente o Paraguai mas toda a área compreendida entre os confins
do Equador e o Rio da Prata, quase todo o Brasil, onde foi dizimada pelos
portugueses, e ainda o Uruguai e as províncias de Corrientes e Entre-Rios, na
65
Argentina. É costume dizer-se, simplesmente, que ela ocupava o Paraguai porque a
palavra Paraguai designava no século XVI toda a bacia dos três grandes rios que
convergem para o Prata, até aos Andes, do Chile ao Peru, bastante para o interior da
Bolívia, do Brasil e do Uruguai, e mesmo dos Pampas ao sul de Buenos Aires, até
aos confins da “Terra de Magalhães”. Mais tarde, a administração colonial
estabeleceu uma província mais restrita, sob o nome de Paraguai. Essa província,
contudo, era ainda muito mais vasta que o Paraguai atual. [...] Grupos compactos de
guaranis estavam escalonados até a cordilheira dos Andes.( LUGON,1976, p.22).
Os Guarani eram também conhecidos como Aranchãs, Chandris ou Chandules, Tapes
(SCATAMACCHIA 1984,1993,1995; SCHIMTZ,1991 apud FELIPIM, 2001) e Kainguá,
Caaiguá, Ka’ayguá que provém de Ka’aguygua, que, segundo Cadogan (1952, p.233 apud
LADEIRA, 1992, p.23), significa “habitantes das matas”.
Atualmente, é possível identificar os subgrupos Guarani existentes e a sua dispersão
territorial com maior precisão e dessa forma, traçar uma demografia mais aproximada dessa
realidade. Os Guarani expressam sua presença de diferentes formas em diferentes lugares do
continente sul-americano, permanecendo acampados em barracas à beira das rodovias ou em
Terras Indígenas legitimadas pelos poderes estatais, perfazendo um contingente populacional
de aproximadamente 225 mil pessoas. (CIMI, 2007).
Encontram-se em regiões do Paraguai, os grupos Pãi-Tavyterã; Avá Katú; Mbyá;
Aché; Guarani Ocidentais e Ñandeva, totalizando uma população de aproximadamente 53.5
mil habitantes. Na Argentina podemos encontrar os Mbyá e os Ava Guarani concentrando-se
na região norte do país, com uma população oscilando em torno de 42 mil pessoas. Na
Bolívia a população Guarani é representada na figura dos Chiriguanos que perfaz uma média
de 80 mil habitantes. No Uruguai os dados são escassos, pois os Guarani não possuem o
reconhecimento oficial do Estado.(Ibid).
No Brasil, um trabalho conjunto entre a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA) e o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) chegou a uma cifra de aproximadamente 50 mil
Guarani em 2007, dispersos em 100 municípios e compondo três subgrupos distintos, que
foram categorizados por Schaden (1974) como: Mbyá, Ñandeva ou Chiripá e Kaiowá. Estas
66
divisões grupais se caracterizam pela diversidade de dialetos, crenças, religiosidade e
costumes, e servem como fatores de diferenciação entre ambos os grupos existentes, cada qual
afirmando suas particularidades, evidenciadas até mesmo na sua distribuição espacial pelo
território nacional. Aproximadamente 80 % deste contingente vive no estado do Mato Groso
do Sul, perfazendo uma média de 40 mil pessoas e os outros 20 % vivem dispersos em terras
tradicionais no interior e litoral dos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
São Paulo, Rio de Janeiro, Espirito Santo e Pará.
Os Kaiowá (habitantes das matas) se encontram concentrados no estado do Mato
Grosso do Sul, sendo que algumas famílias vivem em aldeias Mbyá no litoral do Espírito
Santo e próximo aos Mbyá no litoral do Rio de Janeiro. Os Kaiowá, não se denominam
Guarani, diferentemente dos Mbyá e Ñandeva, apenas se auto-afirmam Kaiowá.
A população Ñandeva (nós, nossa gente) habita em aldeias situadas no estado do Mato
Grosso do Sul, no interior dos estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul e no litoral
dos estados de São Paulo e Santa Catarina. O termo Ñandeva é, contudo, uma auto-
denominação utilizada por todos os subgrupos Guarani.
Os Mbyá (gente) vivem em aldeias dispersas no interior e no litoral dos estados do
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, sendo
encontrado também um pequeno grupo no Pará. Segundo Ladeira (1992, p.22), “Alguns
grupamentos são notados ainda no Maranhão numa área das reservas Guajajara, no Tocantins
na aldeia Karajá do Norte (em Xambioá) e no Posto Indígena Xerente (em Tocantínia)”.
Alguns Mbyá se auto-denominam como Ñandeva ou Ñandeva Tambiope em alusão à
indumentária tradicional de chripá largo masculina (tanga larga). É comum fazerem alusão ao
temo Mbya´ como “o outro” ou “estrangeiro”, aquele que não pertence ao seu grupo.
Ciccarone relata que esta linguagem é utilizada pelos Mbyá do Espírito Santo como fator de
67
auto-afirmação e diferenciação entre eles e os demais grupos Mb que povoam os
aldeamentos presentes na região sul e sudeste, pois, segundo a autora:
Os Mbyá do Espírito Santo, ao contrário dos mesmos grupos localizados em outros
aldeamentos do sul e sudeste do Brasil, por mim visitados, sempre rejeitaram com
veemência essa designação, alegando tratar-se de um temo pejorativo, que se referia
a estrangeiros. Autodenominavam-se, fora do âmbito religioso, Guarani Nhandeva,
numa acepção compreensiva do povo Guarani, apesar deles se considerarem os mais
puros (os verdadeiros). (CICCARONE, 2001, p.26, grifos do autor).
Outras auto-denominações utilizadas pelos Mbyá foram também descritas por
Cadogan (1959, p.8) nos grupos que pesquisou, como Jeguakáva, ou Jeguakáva Tenonde
Poranguei que significa “os primeiros homens escolhidos que levaram o adorno de plumas” e
Jachukava em referência às mulheres. Dentre os três subgrupos encontrados em território
brasileiro, os Mbyá apresentam a maior e mais persistente mobilidade espacial e dispersão
territorial presentes pelas identificações realizadas até o momento.
Os séculos de relacionamento com a sociedade dominante não foram suficientes para
desfazer a unidade cultural, lingüística e religiosa que constituem importantes fatores de
identificação e diferenciação dos Mbyá e lhes permitem reconhecer seus iguais dispersos pelo
vasto território que habitam. Alguns estudos fazem referência aos Mbyá como descendentes
de grupos que não se renderam às missões jesuíticas, tampouco aos encomenderos espanhóis,
tendo se refugiado em lugares de difícil acesso nas florestas subtropicais da região do Guaíra
paraguaio e dos Sete Povos. (GARLET; ASSIZ, 2002).
Não existe consenso sobre as rotas migratórias que deram origem a divisão entre Tupi,
que baseavam sua subsistência no cultivo da mandioca e alcançaram o litoral sudeste e
nordeste e os Guarani, cultivadores de milho, que alcançaram a região sul do continente. A
maioria das pesquisas converge, entretanto, para um dado em comum: a presença remota
desses povos na região amazônica em períodos que demarcaram sua diferenciação lingüística
e cultural.
68
Os Tupi-Guarani, segundo Pinto (1994), constituíam um povo que habitava as
proximidades do istmo do Panamá, de onde iniciaram suas migrações para o sul, alcançando
as margens do médio Paraná-Paraguai. Posteriormente tomaram três rumos distintos: um
ramo atingiu a foz do rio Amazonas subindo pelo litoral, o segundo seguiu para noroeste e um
terceiro desceu os cursos dos rios Tapajós, Madeira e Ucaiali.
Esses movimentos tiveram inicio em algum lugar na bacia dos rios Madeira-Guaporé,
na região sudoeste da Amazônia, proporcionados por um processo de contínuo crescimento
demográfico e de ocupação territorial que, segundo Noelli (1999, p.247 apud SIMÃO, 2003),
impulsionou os Tupi-Guarani a migrarem em direção ao sul. Os Tupi-Guarani costearam a
zona da bacia do rio Madeira penetrando por via fluvial até as cabeceiras dos rios Tapajós e
Xingu formando um segundo núcleo na região do alto rio Araguaia e Tapajós. Alcançaram o
sistema fluvial Paraná-Paraguai-Uruguai através da costa atlântica e das bacias dos rios
costeiros, estabelecendo-se no litoral catarinense onde ocorreu o primeiro contato com os
colonizadores. (SUSNIK, 1994 apud SIMÃO, 2003).
Os Tupi, grupos de caçadores e coletores segundo Chamorro (1998), originaram-se ao
redor de 5 mil anos atrás na região compreendida entre os rios Jiparaná e Aripuanã, afluentes
do rio Madeira. Expandiram-se em direção ao sul aproximadamente 2 mil anos atrás,
impulsionados pelo crescimento demográfico associado a uma prolongada seca,
diversificando a protolingua Tupi, incorporando a agricultura, a plantação de tubérculos e a
cerâmica. Esses grupos teriam sido os ascendentes dos Tupi-Guarani que continuaram se
diversificando em duas tradições distintas entre os anos de 700 e 800 d.C.: os Tupi, que se
adaptaram ao clima quente do litoral atlântico e desenvolveram uma tradição baseada na
cultura da mandioca amarga e os Guarani, que ocuparam as florestas subtropicais dos rios
Paraná, Paraguai e Uruguai e desenvolveram uma tradição baseada na cultura do milho.
69
Pesquisas genéticas recentes apontam para o fato de a diferenciação entre os três
subgrupos Guarani que habitam o território brasileiro atualmente ter se iniciado no período de
aproximadamente 1.8 mil anos atrás, quando, segundo Bortolini, se iniciou a ocupação desses
povos em direção ao sul do continente. (ATHIAS, 2007).
Se, sob o ponto de vista etnológico a guerra constituía o motor da sociedade
Tupinambá, a religião mostrava-se como o elemento unificador das sociedades Guarani, não
obstante, vários relatos de cronistas espanhóis, jesuítas e portugueses apontassem para a
importância da guerra como elemento central para alguns grupos. As alianças estipuladas com
outras sociedades indígenas, especialmente os Guaycuru e Kaingang, aliadas ao surgimento
de lideranças poderosas que chefiaram rebeliões violentas contra o domínio espanhol nos
séculos XVI e XVII atestam que os Guarani não aceitavam passivamente a dominação
colonial. (MONTEIRO, 1992).
Os Guarani foram contatados em diferentes épocas, circunstâncias e locais, o que torna
difícil delimitar o seu contingente demográfico “original” relacionando-o a um espaço
territorial “homogêneo”. As estimativas para essa população no período pré e pós-colonial,
sofrem de exponencial problema de método, tendo em vista a grande mobilidade dos grupos,
impulsionada por uma multiplicidade de fatores, entre os quais, a instabilidade das alianças e
das hostilidades, os problemas epidemiológicos, o extermínio, a captura e a fuga para o
interior. (LADEIRA, 1992; MELIA´, 1997; MONTEIRO, 1992).
Apesar da dificuldade de se estabelecer um consenso entre os dados demográficos e
espaciais disponíveis para a época, Monteiro (1992) assinala que a estimativa proposta por
Pierre Clastres, mesmo apresentando o que denomina como “aberrações metodológicas”,
destaca-se por considerar o movimento da sociedade Guarani no tempo e no espaço. Clastres,
apoiando-se no reconhecido método de regressão estatística da escola de Berkeley chegou à
70
cifra de 1.5 milhão de indivíduos Guarani habitando de forma descontínua uma extensa área
de 350 mil Km², mesmo contingente populacional confirmado por Ladeira (2007).
Quando os primeiros portugueses e franceses contataram os Tupi e quando os
primeiros espanhóis encontraram os Guarani na Bacia Platina, perceberam uma
homogeneidade cultural nestes povos e uma inquietude notável que os impelia a caminhar na
direção do sol nascente e às vezes no sentido inverso, obedecendo aos apelos proféticos de
seus Karaí (líderes espirituais) que apregoavam a necessidade de se encontrar uma terra onde
o mal não estivesse presente.(CLASTRES, 1990).
Diferentes autores, entre os quais, Schaden (1974) Helene Clastres, (1978),
Nimuendaju (1987), Ladeira e Azanha (1988) e Pierre Clastres (1990) atribuem aos processos
migratórios Guarani um sentido mítico-religioso codificado na busca pela Terra Sem Males
(Yvy Marã Ey).
Não obstante Yvy Marã Ey (terra sem males) venha sendo associado, historicamente, à
idéia de um paraíso espiritual, Bartolomeu Melliá aceita a tradução feita pelo padre jesuíta
Ruiz de Montoya, em sua obra literária Tesouro de la lengua Guarani, como “solo intacto,
que não foi edificado”. (MONTEIRO, 1990).
Segundo Brandão (1990, s/p.) Yvy Marã Ey, também dita, como em Egon Schaden,
Yvy Ñombimbyré, Terra Escondida, Yvy Katu, a Terra Boa que León Cadogan ouviu dos
Mbuá no Paraguai, um lugar longe, para além de Kurutuê Reta, a Terra dos Portugueses, para
além do Mar Grande.”
Não seria possível compreender a aparição dos sábios Guarani e seus discursos
proféticos que anunciavam o fim do mundo, sem associar este fato ao surgimento de um novo
poder que ameaçava a antiga ordem social, ou seja, a presença do poder colonial em seus
territórios. Após o contato estabelecido com os colonizadores no século XVI houve uma
reconfiguração dos múltiplos elementos determinantes da qualidade de vida da população
71
Guarani, o que os forçou a adaptarem-se ao novo contexto geográfico, político, social e
cultural imposto pelos recém-chegados habitantes. Independente do caráter polissêmico que
venha adquirir Yvy Marã Ey, ela transfigurava-se no discurso profético Guarani com um
direcionamento para uma migração ascética, amparada pelo controle do corpo e da alma, que
reclamava novos horizontes políticos, religiosos e territoriais que garantissem a perpetuação
de sua sociedade.
2.3 Os Guarani e os Aldeamentos Jesuíticos
No século XVI, o sistema de encomiendas imposto pela Espanha levou ao extermínio
cento e cinqüenta mil Guarani na região do Guairá paraguaio, escravizados e mortos por
brancos que ocuparam suas terras posteriormente. Os Guarani que restaram do extermínio
passaram a se concentrar nos “aldeamentos” ou “missões” jesuíticas que mais tarde foram
destruídas pelos bandeirantes. (LITAIFF, 1996).
Segundo Simão (2003, p.101):
No século XVII, grande parte da “nação” Guarani se encontrava submetida às
reduções jesuíticas. Foram localizadas reduções às margens dos rios Paranapanema,
Pirapó, Piquiri, Tibagi e Ivaí. Na época, na área do atual estado do Paraná foram
fundadas as missões jesuíticas de Nossa Senhora do Loreto, Santo Inácio, São
Francisco Xavier, Encarnação, São Pedro e Santa Maria. Considerável fração de
reduções também coube ao Rio Grande do sul, e São Borja, São Nicolau, São Luiz
Gonzaga, São Lourenço, São Miguel, São João Batista e Santo Ângelo forma as
mais representativas do domínio jesuítico na região.
Os contatos entre os jesuítas e os Guarani se deram em um período de grandes
tribulações, quando a escravidão e o extermínio constituíam a realidade mais próxima dos
grupos que se encontravam nas frentes da expansão colonial. Os aldeamentos jesuíticos
transformaram-se com o tempo na opção mais viável à preservação física desses grupos,
apesar dos períodos iniciais terem sido marcados por inúmeras epidemias e conflitos.
72
As missões jesuíticas revelaram-se, portanto, nos momentos que antecederam a
expulsão desses missionários do Brasil em 1759, como uma estrutura sócio-político belicosa
que buscava, cada vez mais, afirmar sua segurança contra as incursões dos bandeirantes e
donatários em busca de escravos. Passaram a se estabelecer em locais estratégicos, sob a
orientação dos líderes indígenas, afastando-se dos centros comerciais onde eram vítimas
constantes do arbítrio do poder colonial. Foram consolidando sua independência produtiva e
seu distanciamento da Coroa portuguesa, o que, contribuiu para a decisão de seus
representantes sobre o destino desses religiosos em território brasileiro. (HOORNAERT,
1994).
A educação religiosa que propunha a descaracterização dos hábitos e costumes
tradicionais e a conseqüente produção do índio genérico, católico e submisso, não foi
suficiente para criar nos Mbyá um sentimento avesso às “ruínas” dos templos jesuíticos, que
deveriam lembrar-lhes os tempos de privações e confinamentos vividos nas missões. As
barreiras entre os dois mundos distintos foram historicamente superadas devido à
consolidação de firmes alianças entre esses índios e os jesuítas, transformando-se em uma das
poucas garantias de sobrevivência desse povo indígena em uma época de tantas ameaças a sua
existência.
Dessa forma, os Mbcontemporâneos atribuem aos antigos missionários jesuítas a
designação de Kesuíta ou Nhanderu Mirim por associação a Kuaray-Ru-Ete, divindade solar,
irmão mais velho de Jaxy que lhe ensinou a caminhar e nominar o mundo, sendo detentor dos
conhecimentos ecológicos ideais para que os lugares pudessem ser ocupados e vividos de
acordo com a sua cultura. A qualidade de conhecer estes aspectos implicava, necessariamente,
no domínio da língua e da vivência da tradição, o que, fez com que os Mbyá criassem uma
identificação com os jesuítas por terem nomeado vários lugares escolhidos para os
aldeamentos em língua Guarani, possibilitando a transformação desses locais em pontos
73
estratégicos a serem retomados nas caminhadas de cunho religioso (oguata). (GARLET;
ASSIS, 2002).
Após o fim das missões jesuíticas, os Guarani continuaram a se destacar pela
constante movimentação espacial e pela recriação de sua identidade frente às diferentes
situações de contato que mantiveram com a sociedade envolvente. Na impossibilidade de
alcançar um solo intocado por meio da migração religiosa, recriaram seu discurso simbólico
para dar sentido à sua existência terrena e à sua nova configuração territorial e social.
Contudo, a essência mítica das “Belas Palavras” proferidas pelos atuais Karaí não se
distanciaram do sentido de seus antigos discursos, a não ser por uma diferença: por não
conseguir alcançar yvy mara ey por meio da migração religiosa, os Guarani atuais “esperam
que os deuses lhes falem, que os deuses lhes anunciem a vinda dos tempos das coisas não-
mortais, da completeza acabada, desse estado de perfeição no e através do qual os homens
transcendem sua condição”. (CLASTRES, 1990, p.12).
A história do povo Guarani confunde-se com a ocupação do continente sul-americano.
Sua língua, seus valores e suas práticas encontram-se visivelmente imbricados na cultura
dominante dos países que habitam atualmente, designando acidentes geográficos, alimentos
largamente consumidos, arquitetura, plantas medicinais e outros, denotando a importância
desses conhecimentos para a formação das identidades nacionais. A forma como conseguiram
resistir, estrategicamente, aos séculos de opressão, violências, epidemias e expulsão de seus
territórios preservando sua língua, cultura e religião, mostra-nos que os Guarani formam um
dos mais consistentes exemplos de que é possível se manter, mesmo sob inúmeras formas de
tensão, o diálogo intercultural, preservando acima de tudo, aspectos essenciais da sua
identidade étnica.
74
3- OS GUARANI MBYÁ EM ARACRUZ, ESPÍRITO SANTO
Em meados do século XX um grande fluxo de grupos Mbyá e Chiripá (Ñandeva) foi
observado cruzando as fronteiras da Argentina e do Paraguai rumo ao território brasileiro.
Chamorro destaca a importância dos grupos Mbyá, que intensificaram suas caminhadas
ocupando vasta área do interior e do litoral brasileiro neste período, permanecendo até os dias
atuais.
Atenção especial merece a situação dos Mbyá. Depois dos transtornos causados pela
guerra da Tríplice Aliança (1865-1870), os Mbyá ainda viveram relativamente
isolados até a primeira metade deste século, nos imensos latifúndios criados como
“loteamento” do Paraguai no pós-guerra. Com o avanço da colonização (brasileira e
paraguaia) sobre a mata contígua ao rio Paraná, os Mbyá reagiram intensificando
suas migrações. Do Paraguai passavam para a Argentina e de lá, na busca da costa
atlântica, para o Brasil, onde se encontram em pequenas comunidades, desde o Rio
Grande do Sul até o Pará. Na motivação que os impulsiona a caminhar, aparece
claramente a necessidade de ter um lugar onde lhes seja possível viver em segurança
seu antigo modo de ser. (CHAMORRO,1998, p.46).
A Guerra do Paraguai constituiu um marco histórico na reorientação das estratégias de
sobrevivência do povo Mbyá que habitava neste país. Uma vez que o conflito bélico passou a
transformar-se em ameaça aos grupos que se encontravam vulneráveis às ações das milícias
armadas, estes passaram então, sob a condução de seus líderes espirituais (Karaí), a reelaborar
seu conceito territorial, vivenciando na práxis o mito da destruição e recriação de seu mundo.
Para os Mbyá, esta terra está fadada à destruição, que se dará por intermédio do fogo que,
vindo do oeste, destruirá o suporte de madeira pindovy
9
que a sustenta, dando início então, à
sua posterior inundação. Ladeira e Azanha (1988, p.21) chamam a atenção para o fato de que
9
Segundo Clastres (1990) pindovy é a palmeira azul ou palmeira eterna
75
os Mbyá acreditam que “somente aqueles que se dedicarem às orações, os cantos e danças e
abstinência alimentar conseguirão alcançar o aguyije, isto é, a ‘plenitude’. Segundo
Nimuendaju, é o medo desta inundação catastrófica o motivo das migrações Guarani para o
leste.” (grifos do autor)
Para os Mbyá aldeados no estado do Espírito Santo, o Paraguai é tido como o “Centro
da Terra” (Yvy Mbyté), lugar de onde teriam surgido os Guarani Ñandeva Tambiopé (sua auto-
designação) que migraram em direção ao litoral do Brasil. Garlet (1997) refere que o centro
da terra para os Mbyá é delimitado em forma de círculo pelo Paraguai Oriental e pelos rios
Paraná e Uruguai. Dessa forma, o autor explica a íntima relação entre os percursos traçados
nos atos migratórios que se desencadearam a partir do século XIX e as novas reelaborações do
território Mbyá, cuja incorporação constitui acréscimos de círculos a partir do centro
originário, expandindo-se até o mar. O oceano, por sua vez, define para os Mbyá o limiar
entre o mundo terreno das imperfeições (yvy mba`megua) e o seu plano espiritual (Yvy Mara
Ey). Segundo Ladeira e Azanha (1998, p.20, grifos do autor), “o mar, no pensamento e
cosmologia Guarani, ocupa um lugar ambíguo: ao mesmo tempo, obstáculo a transpor para se
atingir o paraíso e ponto de chegada, pois é ali, nas suas proximidades que o destino Guarani
pode se realizar.”
Um aspecto importante para o entendimento sobre os motivos que impulsionam os
Mbya a caminhar se encontra descrito na frase de Meliá (1989, p.336), sem tekoa, não
teko”. Ou seja, sem uma “terra boa” (Tekoa), agricultável, com mata, caça, água em
abundância e livre das pressões dos homens brancos, não como viver os costumes (teko)
Mbya.
Ao retomar os limites da ocupação territorial que antecedia a chegada dos
colonizadores europeus, os Mbyá passaram a habitar partes da vasta região que compreende o
76
litoral sul e sudeste do Brasil, fundando seus tekoa (aldeias) em áreas onde identificavam
vestígios de seus antepassados Carijós.
Ladeira (1992, p.87) assinala que:
Na verdade ‘fundar’ um tekoa, ou recuperá-lo ou reconstituí-lo através das unidades
familiares, é realizar o projeto coletivo de reconstrução do mundo Mbya através da
reprodução, nos diversos tekoa, dos elementos originais existentes em yvy apy. Yvy
apy é o lugar exemplar criado por Nhanderu, onde desceram seus filhos na terra, e
de onde é possível retornar ao infinito.
Posicionando suas aldeias (tekoá) em localidades próximas às áreas oceânicas,
relativamente altas e em regiões de mata atlântica, os Guarani Mbprocuram fortalecer o
sentido de sua existência terrena como parte de sua jornada rumo ao seu paraíso espiritual
(yvy Mara ey) que se localiza em além-mar. A fundação de um tekoa obedece a critérios
mítico-religiosos bem definidos na cultura Guarani, pois a terra escolhida deve representar a
ponte simbólica de aproximação do mundo terreno das imperfeições (yvy mba`megua) com o
seu paraíso mítico (yvy Mara ey).
Os Mbacreditam que através da reprodução do seu modo de ser, seus antepassados
alcançaram Yvy Mara Ey por meio de encantamento espiritual (kandire), ou seja, cruzando o
“grande oceano” sem passar pela morte física. Dessa forma, ao retomar o caminho traçado
por eles nas suas caminhadas (oguata), os Mbyá reivindicavam esta realização para si.
Atualmente, consideram esse feito praticamente impossível, devido às inúmeras
transformações que seu modo de vida vem sofrendo frente às diferentes formas de pressões,
oriundas do contato com os não índios (juruá).
É no contexto dos conflitos pós-Guerra do Paraguai que se situa a origem do grupo
Mbyá que foi conduzido pela líder espiritual Tatati Yva Rete em um processo migratório que
durou cerca de 36 anos e alcançou em meados da década de 1960 o litoral norte do Espírito
Santo, se estabelecendo em uma região de mata atlântica no município de Aracruz. Ciccarone
(2001, p.84, grifos do autor) chama a atenção para o fato de que, “O grupo familiar, liderado
77
por Tatati, afirmava-se frente ao seu povo como Tenondegwa, os primeiros eleitos para
reconquistar/recriar o mundo para a manutenção da sociedade mbya.”
Tatati destacou-se no panorama das lideranças Mbyá que se empenharam no processo
de reocupação do antigo território Guarani a partir do início do culo XX. Sua força
espiritual vivenciada na austeridade das normas sociais de seu grupo e observadas nas “Belas
Palavras” proferidas em seus discursos sagrados orientavam seu povo ao esplendor de uma
conduta humana imune às imperfeições do “mundo dos homens” (yvy mba’megua). Na
condição de líder xamã, Tatati representava uma figura simbólica de grande importância,
pois, segundo Cadogan (1949, p.671-683 apud CICCARONE, 2001, p.17):
Nos mitos, a mulher é antes um personagem humano, mortal e imperfeito do que
divino e eterno. No entanto, é ela que inaugura o movimento de caminhada que
origem ao mundo terreno, ao mesmo tempo que, por excesso de afeto materno,
torna-se responsável pelo desvio do percurso que conduz à morada divina. A autoria
da criação do mundo terreno é de seu filho, divindade solar, assim como as
migrações-interpretadas como refundações do mundo- são conduzidas, segundo os
relatos etnológicos, na grande maioria, por homens xamãs. Poucas são as mulheres
que compõem o pantheon dos heróis divinizados, como Takua Vera Chy Ete, que
teria alcançado a plenitude com seu filho reencarnado.
A líder religiosa vivia no Paraguai com seu grupo familiar em um tempo marcado por
grandes tribulações, onde os indígenas enfrentavam os ataques constantes dos soldados
comandados por Francisco Solano Lopes. O relato do líder xamã rio Brissuella do
aldeamento de Varginha no Rio Grande do Sul em 1998, descrito por Ciccarone (Ibid),
remonta o panorama de conflitos que possivelmente desencadeou a fuga dos clãs familiares de
Tatati e do marido Vera (Roque Benitez) em direção ao Brasil:
Candelária [nome paraguaio de Tatati Yva Retee] veio do Paraguai, perto de Paso
Yovái (...), era colônia jurua [área de plantação de erva-mate]. A mãe de Candelária
era Chiripá, o pai, Mbya e o aera Karai [líder xamânico]. O pai do avuelo de
Candelária era ce ramoi guasu [líder de vários aldeamentos]. O cacique Ocampo
matou o ervateiro, o patrão dos Mbque tiravam a erva [mate], e dmandaram o
exercito. Vieram da primeira vez, com um exército de 500 homens. Karaí sabia e os
xondaro mataram-nos com as flechas; vieram pela segunda vez, com um exército de
150 homens, mesma coisa; a terceira vez veio um jurua só, que queria conversar, e
cortou braços e pernas do cacique Ocampo. O cacique falou com a cabeça: “Pode
ainda matar, eu falo com o coração”. os juruá tiraram o coração dele, que ficou
78
num vidro exposto no Palácio do Governo. O segundo cacique Kamba-i decidiu
matar os jurua. Encontrou um Mb vestido de jurua, tinha tembetá e popygua
[varinhas mbolo de poder xamânico]. Kamba-i o matou e quando descobriu que
matou um Mbyá, assim decidiu: ‘nunca mais vamos matar os jurua’. Kamba-i
mandou usar as roupas Guarani, o tambeo. Kamba-i cuida do Para guasu [oceano]
para não subir e invadir a terra, junto com Tuparay, filho de tupã. O terceiro cacique
Arandu [sabedoria] decidiu não mais atacar os jurua.
Os dois clãs unidos cruzaram as fronteiras fugindo das perseguições impetradas pelo
exército paraguaio, seguindo os caminhos estratégicos trilhados pelos seus antepassados,
nomeados como tape miri ou caminho estreito, que os conduziam aos antigos aldeamentos
jesuíticos, considerados como espaços sagrados a serem retomados pelos Mbyá em suas
caminhadas, pois foi ali que seus antepassados se “encantaram”.
O início da caminhada sagrada (oguata) de Tatati, relatada por sua filha Aurora
(Keretxu Mirî), se a partir do Posto Indígena de Guarita, no Rio Grande do Sul na década
de 1940, quando sua mãe tinha aproximadamente 40 anos de idade. A caminhada se inicia
alcançando, primeiramente, a cidade de Pelotas no mesmo estado, acompanhada por mais
dois clãs, todos sob a liderança religiosa de Miguel Benitez, cunhado de Tatati, que se tornou
seu segundo esposo após o falecimento de Roque Benitez, seu primeiro cônjuge.
(MEDEIROS, 1979).
Ao alcançarem o estado de São Paulo, sempre seguindo pelo litoral, os três clãs foram
recolhidos pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e conduzidos à localidade de Tariri onde
permaneceram por mais de 10 anos. Inconformado pela interrupção de sua caminhada
religiosa (oguata) o xamã Miguel Benites resolveu retornar ao litoral com o seu clã, que nesta
época se compunha de somente 20 indivíduos, pois os outros haviam abandonado os hábitos
religiosos que os impulsionavam a caminhar. Miguel veio falecer logo após sua saída de
Tariri, quando seu grupo alcançou a cidade litorânea de Silveira. Antes de morrer solicitou à
sua esposa que continuasse a missão de conduzir seu povo à yvy mara ey. Tatati continuou a
79
caminhada parando em seguida na região de Parati, no Rio de Janeiro, onde residiu por cerca
de seis anos .(Ibid).
Nesta época, a líder religiosa chegou a premeditar os inúmeros problemas pelos quais
seu povo viria a se deparar no futuro e aventou a necessidade de se garantir a preservação dos
Tekoa (aldeias) da ambição e da ganância dos homens brancos que se aproveitavam da grande
mobilidade dos Mbe se apropriavam de suas terras, destruindo a natureza, fonte da sua
sobrevivência e continuidade social.
Em depoimento colhido por Maria Inês Ladeira do Centro de Trabalho Indigenista de
São Paulo, referindo-se a situação específica do processo de identificação e reconhecimento
da aldeia Itaxi em Parati Miri, Tatati dirigia-se ao povo Mbyá com as seguintes palavras que
foram traduzidas para o português:
Vocês precisam ser fortes e unidos. Terão com os brancos muitas dificuldades em
relação à terra. Precisa ter firmeza, ficar mais, morar anos e anos no mesmo lugar.
Tem que cultivar muito, fazer plantios, plantar milho, mandioca (...) para que não
falte alimento na aldeia e as crianças desfrutem disso. Antigamente tinha espaço
livre para andar e hoje é diferente. Os brancos se apoderam da terra como se
fossem donos, mas eles não são os donos, o dono verdadeiro é Ñande ru Tenonde,
ele é o verdadeiro dono e é ele que decidirá sobre a terra, ele sabe como está a
terra. Nós, filhos caçulas, temos que morar, construir uma aldeia no meio dos matos
e viver bem, em paz, juntos em harmonia com a natureza porque isso foi Ñande ru
mostrou para nós, para nós viver desse jeito. Viver de acordo com Ñande ru, o pai
verdadeiro e Nande-cy, a mãe verdadeira, criaram. Onde a gente viver e ficar bem,
morar bem juntos, vive bem Ñande ru koa pona (o todo da aldeia vive bem), para
que todas as criancinhas vivam felizes e saudáveis. Ñande ru fez a terra para todos
os filhos dele e os brancos devastaram os matos, destruíram quase tudo e o pouco
que restou, aquele que é bom tem dono, os brancos levaram tudo e hoje em dia é
difícil achar um lugar que convém, que é bom para os Guarani (CICCARONE,
2001, p.86, grifos do autor)
O grupo levou mais alguns anos para alcançar Caieiras Velha no litoral do Espírito
Santo, onde tiveram a primeira impressão de que se tratava de um lugar próximo à Terra sem
Males (Yvy Mara Ey), devido às particularidades da topografia da enseada de Santa Cruz.
Viveram, então, momentos de relativa tranqüilidade no período de 1962 a 1966 junto aos
índios Tupiniquim, povo indígena, também, do tronco Tupi, que habitava nessa localidade.
80
Este breve período foi interrompido pela chegada da transnacional Aracruz Celulose que
passou, de uma forma avassaladora, a ocupar de forma irregular a maior parte do território
reconhecido como área de ocupação tradicional indígena.
3.1 A Fundação de Tekoa Porã (Boa Esperança)
Em 1972, reproduzindo a estratégia largamente utilizada pelo Serviço de Proteção aos
Índios para desocupar terras que interessavam à expansão dos projetos desenvolvimentistas, a
Funai promoveu o confinamento dos Guarani, conduzindo-os para fora da área reconhecida
por este povo como seu território original. Sob o véu midiático que encobria a verdadeira
história do confinamento desses grupos, os Mbyá foram alocados em uma reserva de 120
alqueires, inicialmente denominada como Reformatório Indígena Krenak (Fazenda Guarani),
criado para abrigar e recuperar índios delinqüentes” que estavam envolvidos em conflitos
fundiários nas áreas de interesse para a expansão nacional.
Embora a sua re-alocação transparecesse, claramente, como uma estratégia de
desfragmentação do grupo e do seu ideal mítico-religioso, seus membros conseguiram se
manter coesos, até quando, em 1976/77, “driblando” a vigília do órgão tutelar, retornaram a
Caieiras Velha. Permaneceram por mais um breve período junto aos Tupiniquim, até que
Tatati decidiu liderar seu grupo composto por 40 pessoas na ocupação de uma área de mata
bem próxima dali, fundando então, a aldeia Tekoa Porã ou Boa Esperança, onde permanecem
até hoje.(MEDEIROS, 1979).
Os Tupiniquim possuem direitos seculares na região como atesta uma carta de doação
de sesmaria de “6 léguas por 6 léguas” da Coroa portuguesa, datada de 1610 e referenciada
pelo Imperador D. Pedro II em 1873, sendo a respectiva doação firmada no livro de tombos
81
de Nova Almeida no mesmo ano, ocasião em que foram colocados marcos em 40 mil hectares
que delimitavam o território indígena. No entanto, sua terra vem sendo há décadas, objeto de
ocupações irregulares realizadas por posseiros e por empresas extrativistas, a exemplo da
Companhia de Ferro e Aço de Vitória (COFAVI) que inaugurou a exploração de madeira
nativa na região ao adquirir irregularmente do governo do estado na década de 1940, 10 mil
hectares de área indígena para a produção de carvão vegetal.
A legislação brasileira à época não contemplava a demarcação de terras para os
Guarani, por não se tratarem de povos que habitavam imemorialmente em um mesmo lugar, e
sim, viviam em constante deslocamento. Dessa forma, desconsideravam o dinamismo interno
dessas culturas, assim como, as situações concretas de opressão que os obrigavam a caminhar
em busca de lugares em que pudessem viver livres das interferências do homem branco em
suas vidas, resguardando-se assim de novas feridas e tensões. Sua dispersa presença em
território nacional levantava a necessidade de se mobilizar forças para o reconhecimento dos
territórios por onde tradicionalmente circulavam, pois, à época os Guarani totalizavam 1.5 mil
habitantes em território brasileiro, o mesmo contingente na Argentina e 7 mil no Paraguai,
perfazendo um total de 10 mil Guarani recenseados nestes países, segundo dados do Centro
de Trabalho Indigenista.
Em nota referenciada com relação ao primeiro episódio de demarcação das terras
indígenas Tupiniquim do Espírito Santo, a antropóloga Lilia Valle (1981) ilustrou a falta de
atenção estatal voltada à situação fundiária dos Guarani, que dava origem à precariedade em
que se encontravam em território nacional:
mais de 150 anos registram-se migrações de grupos guaranis dos estados do sul,
da Argentina e do Paraguai para a faixa litorânea dos estados da região sudeste, onde
existem atualmente 11 grupos locais guarani em situação precaríssima, e apenas um
‘território guarani’, o posto indígena de Peruíbe, no estado de São Paulo. Nos
estados do sul os grupos guaranis vivem em reservas que pertencem nominalmente
aos índios Kaingang ou Xokleng, como Caieiras ‘pertence’ aos tupiniquins
82
Tabela 1 Dispersão demográfica Guarani no ano de 1979
Estado da Federação Localidade População
Rio Grande do Sul Tapes
50
R.S.
Osório 30
R.S. Rio Grande 7
R.S. Uruguaiana 10
R.S. São Miguel 110
R.S. Cruz Alta
40
R.S. P.I * Guarita 50
R.S. P.I. Nonoai (Planalto) 60
R.S. P.I.Votouro (S. Valentim) 15
R.S. P.I. Cacique Doble **
Santa Catarina P.I. Xapecó (Xaxim)
240
S.C. P.I. Ibirama 150
S.C. P.I. Mangueirinha 190
S.C. P.I. Rio das Cobras 300
S.C. Itariri (Serra do Itatines) **
S.C. P.I. Peruíbe (Bananal) **
S.C. P.I. Rio Branco (Itanhaém) 20
S.C. Rio Silveira (Barra do Uma) 17
S.C. Rio Promirim (Ubatuba) 33
S.C. Barragem (Parelheiros) 100
S.C. Mboy Miri (Santo Amaro) 10
E.S. Caieiras Velhas (Santa Cruz) 40
R.J. Angra dos Reis **
Fonte: Centro de Trabalho Indigenista (1979)
*Posto Indígena
**Inexistência de dados sobre esta população
Muito embora a passagem de grupos Guarani pela região fosse registrada pelo SPI em
diferentes momentos que antecederam a chegada do grupo de Tatati, a líder religiosa optou
por fundar sua aldeia (tekoá) dentro dos marcos de 40 mil hectares reconhecidos pelo
documento de sesmaria concedido aos Tupiniquim. A aldeia Boa Esperança (Tekoa Porã)
correspondia ao ponto extremo ao leste que haviam se fixado os Mbyá na costa atlântica,
delimitando a fronteira imaginária que divide o mundo das imperfeições terrenas (yvy
mba’megua) e a Terra sem Males ( yvy mara ey) para este povo.
83
3.2 A Aracruz Celulose, a Eucaliptocultura e os Guarani Mbyá
A partir da década de 1960, a lógica econômica dos governos militares, voltou-se para
o desenvolvimento tecno-industrial, favorecendo a instalação de grandes empresas
estrangeiras em território nacional. O Brasil destacava-se no panorama internacional por
oferecer as condições ideais para a produção em curto espaço de tempo da espécie de
eucalipto de fibra curta, utilizado para a elaboração da pasta de celulose. Esta espécie
proporcionava vantagens em termos de produtividade, o que, colocou o país em destaque com
relação aos principais países produtores que utilizavam a espécie de fibra longa, de maior
período de maturação. Os governos militares elegeram a eucaliptocultura como o projeto que
daria destaque ao país no mercado internacional, tendo em vista, as progressivas inovações
tecnológicas e industriais voltadas para a produção de pasta de celulose branqueada
desenvolvidas por grandes empresas internamente. Vale lembrar, que esta espécie exótica,
oriunda da África do Sul e da Austrália, foi introduzida no país no início do século XX, antes
mesmo, que se conhecesse suas especificidades botânicas e os impactos provocados em
condições ecológicas diferentes das do seu lugar de origem. (GONÇALVES, 1992).
Estas condições, aliadas à decadência do café que se esboçava como produto central
na economia capixaba, proporcionaram a implementação do Complexo Aracruz Celulose em
1967 no estado do Espírito Santo. O projeto recebeu fortes incentivos fiscais e foi amplamente
subsidiado pelo capital estrangeiro e nacional, sob a divulgação de que constituiria a solução
para o desemprego e para o progresso do estado.
Segundo Gonçalvez (Ibid, p.77):
A história da entrada do reflorestamento com eucaliptos nas regiões nordeste e norte
de Minas, no extremo sul da Bahia e no norte do Espírito Santo (que ocorreu ao
longo do período iniciado nos últimos anos da cada de 60) é marcada exatamente
por retirada do produtor da terra, sua transformação e dos membros de sua família
em trabalhador para a empresa, destruição do seu habitat natural e, finalmente, sua
expulsão da própria região.
84
A inserção das elites políticas em postos avançados na administração da empresa
garantiu, certamente, que os interesses econômicos internacionais se sobrepujassem à
qualidade de vida e saúde da população local que dependia do meio ambiente para sua
subsistência familiar. Valle (1981, p.01) confirma este fato sinalando que “[...]o governador
do Espírito Santo, Arthur Gerhard dos Santos, se deixou nomear como primeiro diretor
presidente do novo empreendimento de celulose.”
Em um processo avassalador a empresa ocupou uma área onde existiam 40 aldeias
Tupiniquim em um ato de desrespeito a esses grupos e à biodiversidade local sem precedentes
na história do país, conforme o relato de um professor indígena (BRASIL, 2000, p-13):
Ao longo dos séculos houve várias transformações em nossa cultura, provocadas em
grande parte pelo contato com os não-índios. Nesse processo de transformação
sofremos uma perda gradativa de nossas terras: de mais de 200 hectares demarcados
no século XVIII (1760) passamos a ter 60 mil hectares na década de 40 do século
XX e nos anos 70 deste mesmo século ficamos confinados em apenas 40 hectares.
Em 1940, contrariando a Constituição, o governo brasileiro autorizou a Companhia
de Ferro e Aço de Vitória (COFAVI) a explorar 10 mil hectares de nossas terras para
a produção de carvão vegetal. em 1967 a Aracruz Celulose (ARCEL) comprou da
COFAVI os 10 mil hectares e ocupou o restante das nossas terras.
Em suas negociações os representantes da empresa utilizavam, na maioria das vezes, a
opressão e a ameaça como forma de apoderar-se das áreas, como também fez com as
populações quilombolas da região. Segundo Coimbra (2006, p.02),“dos índios, a Aracruz
Celulose tomou cerca de 40 mil hectares de terras, no Espírito Santo”.
Tupã Kwaraí, pajé da aldeia Guarani Boa Esperança no Espírito Santo, em entrevista
à Silva e Samaniego (2005, p-03) relatou que “antigamente os índios viviam bem, viviam
plantando, caçavam nas matas e faziam mundéu e outras armadilhas; traziam anta, quati, tatu,
veado e todo tipo de caça da mata. No passado as águas eram limpas [...] e tudo era mais
alegre.”
85
Em uma carta redigida de próprio punho, o professor Huschi (1981 apud VALLE,
p.01-05) deixou claro que a ARCEL mexeu de forma significativa na vida dos habitantes da
região. O professor iniciou seu texto advertindo que “imensas florestas de eucaliptos acabam
com a floresta tropical e com as plantações de café dos pequenos fazendeiros” e informou que
o governo capixaba destinou incalculável quantitativo financeiro para a construção de um
imenso porto marítimo para a empresa, em contrapartida, negou-se a realizar a construção de
um pequeno molhe (quebra-mar) solicitado pelos pescadores de Barra do Riacho para facilitar
o seu trabalho. Quanto aos indígenas, Huschi demonstra com fatos, a intima relação entre o
domínio empresarial e os poderes administrativos da região, confirmando o abuso das
autoridades locais na determinação de conflitos com os povos indígenas Guarani e
Tupiniquim:
A Aracruz Celulose e a sua administração local tentam com proibições e ameaças
de um lado, e com atraentes propostas de compra de outro lado, ficarem donos da
terra. Quando a um ano atrás o prefeito de Aracruz bateu num índio com um chicote
e pisou no seu rádio transistorizado, a prensa e a televisão interferiram. Desde então
a Aracruz Celulose está sendo mais observada. (Ibid).
Nos últimos anos, empresa Aracruz Celulose vem despontando nos noticiários
internacionais pelas tensões com as populações indígenas e quilombolas no estado do Espírito
Santo, fazendo, inclusive, com que a família real sueca anunciasse em público a venda das
suas ações em um ato de não conivência com a postura da transnacional.
O surgimento de cidades próximas às aldeias, decorrentes do processo de implantação
do sistema industrial na região, ocasionou mudanças radicais na dinâmica social e cultural dos
Guarani intensificando os relacionamentos com a sociedade envolvente nos espaços e
serviços públicos. Os impactos exercidos sobre o ecossistema nativo e a, conseqüente,
escassez de recursos naturais fez com que os indígenas passassem a procurar recursos para a
sua sobrevivência nas cidades circunvizinhas. Keretxu Miri, filha de Tatãtî Ywarete,
fundadora da aldeia de Boa Esperança, afirma que “no passado os índios não se juntavam com
86
os brancos, depois que o branco chegou nesta terra os índios deixaram de viver em harmonia,
de algum tempo pra cá é que alguns brancos começaram a nos ajudar”. (SILVA et al, 2004,
s/p).
Na medida em que os relacionamentos com a sociedade envolvente foram se
estreitando, foram, também, diminuindo as fronteiras culturais que asseguravam a coesão do
grupo. Ladeira (1992, p.178) registrou em 1988 a fala de Tatati, dentro da casa de reza (opy)
da aldeia Boa Esperança, quando a líder religiosa mostrou sua insatisfação com a atração que
os bens de consumo dos brancos vinham despertando, sobretudo, nos jovens da aldeia.
Segundo a pesquisadora do Centro de Trabalho Indigenista, a xamã de grande ascendência
entre os Mbdo litoral, “encontrava-se triste e preocupada com vários acontecimentos que
ocorriam em sua aldeia: separações de casais, pouca participação nas rezas noturnas, duas
mortes súbitas inexplicáveis.” As transgressões impossibilitavam os indivíduos de acessarem
seu lugar sagrado dentro dos rituais noturnos, esvaziando a casa de reza. Ciccarone (2001,
p.82) sinala que elas “representam para os Mbya, as manifestações de pochy, a cólera, a raiz
de todo mal, e a única defesa contra essa desordem vinha da medicina mística gerida pelo
saber-poder da ação xamânica [...]”
Este quadro dramático passou a ser acentuado na medida em que se intensificaram as
disputas fundiárias incrementadas pelo forte poderio político, econômico e midiático da
empresa transnacional Aracruz Celulose. Desde o início das primeiras negociações entre os
indígenas e a ARCEL a mais variada ordem de conflitos tem permeado as relações na região,
culminando em confrontos diretos entre índios e trabalhadores da empresa em dezembro de
2006. As tensões vem sendo objeto de inúmeras divulgações na mídia desde a época da
chegada dos Guarani na região. O vínculo sócio-econômico estabelecido entre a transnacional
e a população do Espírito Santo fortalece a idéia de desenvolvimento regional sem
sustentação ambiental, com a substituição das florestas nativas pela monocultura de eucalipto,
87
indo de encontro aos interesses dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais
10
que
necessitam da terra e dos recursos naturais nela existentes para sua sobrevivência física e
cultural.
Alguns títulos de reportagens retratam uma pequena parcela das tensões que se deram
ao longo do ano de 2006, onde as influências da empresa estenderam-se às mais diversas
camadas do contexto social capixaba:
“Aracruz apela: cartilhas e palestras em escolas para desqualificar índios” “Polícia Militar
confirma emboscada para prender índios em área autodemarcada”; “Tentativa da Aracruz em
estender seus domínios à Universidade Federal do Espírito Santo é abortada e denunciada
pelos professores”; “Ação violenta em Aracruz, polícia federal prende, algema e espanca
índios desarmados”; Índios capixabas depõem contra a Aracruz Celulose em Viena”;
“Campanha na Internet condena outdoors contra índios no norte”.(BERNADES, 2006).
A transnacional procurou estender seus domínios às diferentes esferas da vida social
na região que vão desde a educação infantil, passando pela segurança, a saúde, até a
Universidade Federal, na tentativa de manipular as pesquisas desenvolvidas nas áreas
humanas, sociais e ambientais no estado. Buscando denegrir a imagem dos grupos indígenas
publicamente, desqualificando sua cultura mediante a sociedade capixaba, a empresa ampliou
o horizonte dos conflitos visando aumentar seu prestígio junto à opinião pública no intuito de
assegurar a teoria da inexistência remota de povos indígenas na região.
Em setembro de 2006, foram expostos outdoors nas margens da estrada que atravessa
as aldeias indígenas com frases que evidenciavam o preconceito explícito da empresa e de 58
sindicatos associados a ela em uma campanha marcada pela discriminação étnica e cultural.
10
Pescadores e quilombolas.
88
Como parte das estratégias midiáticas largamente utilizadas pela empresa foi divulgada,
também, uma imagem de um cacique Tupiniquim no seu site, sem que fosse concedida
autorização formal para tal ato. A empresa procurou denegrir a imagem dos Tupiniquim
publicamente referindo-se ao líder indígena como “mosaico étnico” por utilizar cocar e
pinturas que, segundo os representantes da transnacional, não pertenciam aos Tupiniquim pré-
coloniais. Este fato, além de demonstrar completo desconhecimento acerca da historicidade e
dinamicidade dos povos indígenas que tiveram que reelaborar seu modo de vida em função
dos séculos de opressão física e cultural a que foram submetidos, somou-se aos demais
acontecimentos que tornaram-se agravantes no campo das tensões interculturais, pois ampliou
os conflitos do âmbito da disputa fundiária ao dos direitos humanos fundamentais.
Não obstante este quadro pareça refletir uma tensão centrada em algumas formas de
violência, sua dimensão alcança amplos horizontes, repercutindo no processo saúde-doença
de forma direta e indireta. Muito embora os dados disponíveis apontem para elevados
coeficientes de morbidade e mortalidade por problemas oriundos do processo de
industrialização da região, outros aspectos devem ser observados na complexa dinâmica dos
relacionamentos interculturais.
Se por um lado a saúde é condicionada por uma gama de fatores que proporcionam o
desenvolvimento da vida em sociedade, a doença revela as dificuldades para a reprodução da
mesma e seus aspectos destrutivos e desfavoráveis sob o ponto de vista social. Isto implica em
entender a multiplicidade de fatores que determinam os processos mórbidos, entre os quais,
aqueles que se encontram imiscuídos nas relações assimétricas de poder e nos interesses
políticos e econômicos nacionais e internacionais.
89
3.3 Estrutura Social e Aspectos Gerais das Aldeias Guarani do Espírito Santo
Os Mbyá aldeados em Aracruz, tempos, dividem seu território com os Ñandeva e
Kaiowá. Os primeiros, provenientes das aldeias de Barragem e Morro da Saudade na Grande
São Paulo, encontram-se, principalmente, na aldeia de Três Palmeiras, onde mantém vínculos
matrimoniais. Já os Kaiowá, provenientes da aldeia de Porto Lindo no Mato Grosso do Sul,
expressam parte significativa do contingente demográfico da aldeia de Piraquê-Açu, onde
também mantém vínculos dessa ordem. As diferenças marcam, principalmente, o grau de
inclusão dos membros destes grupos na vida social e se expressam na distribuição espacial
das residências que se localizam nas regiões periféricas das aldeias Boa Esperança e Três
Palmeiras, em áreas próximas ao asfalto e distantes das áreas centrais das aldeias.
As moradias Guarani não possuem uma homogeneidade com relação ao material
utilizado, mas, persistem ainda algumas edificações de pau-a–pique com cobertura de sapê e
outras com telhas de amianto, na grande maioria, em condições precárias devido aos
problemas decorrentes da escassez dos recursos naturais necessários à sua manutenção.
Algumas famílias possuem residência de alvenaria, produto de projetos desenvolvidos em
parcerias com agencias de desenvolvimento.
As casas possuem abastecimento de água encanada fornecida pelo Serviço Autônomo
de Água e Esgoto (SAAE) de Aracruz e luz elétrica. O abastecimento da água de uso
doméstico é pago pelos índios, apesar de sua captação se situar dentro do território indígena e
servir para o abastecimento também de parte do município de Aracruz. O sistema de
abastecimento hídrico constantemente apresenta falhas, principalmente, nos períodos de férias
quando as cidades próximas ficam cheias de turistas, conforme relata uma liderança Guarani:
[...]aqui às vezes falta 4 dias água, às vezes falta 3 dias,4 dias. As crianças não
tomam merenda na escola porque não tem água, às vezes a gente fica sem tomar
banho, dorme uns dias sem tomar banho porque não tem água. A gente deixa de
90
comer um arroz, um feijão porque não tem água também. (PELLON, 2005, P.45,
mimeo)
As residências possuem “módulos sanitários” construídos pela Fundação Nacional de
Saúde na parte externa das casas, compostos de chuveiro, vaso sanitário e um tanque de lavar
roupa. Possuem fossa, sumidouro e caixa de gordura para destinação final de água e esgoto
domiciliares. É importante destacar a existência de uma imensa rede de tratamento de esgoto a
céu aberto, composto por três grandes lagoas, nos fundos da aldeia Piraquê- u, para onde
são encaminhados os dejetos domiciliares de Aracruz e do bairro Coqueiral de Aracruz que
são despejados no rio Piraquê –Açu após tratamento por decantação. Consideramos oportuno
relatar um óbito já ocorrido de uma criança Guarani nesses tanques, que não possuem
nenhuma proteção ou impedimento para acessá-los.
As aldeias Três Palmeiras e Boa Esperança possuem escola intercultural e bilingüe
onde são ministradas aulas do ensino fundamental por professores Guarani. Muitas famílias
têm aparelhos eletro-eletrônicos como DVD, televisão e rádio CD que possibilitam o acesso
às informações e constituem uma forma de distração condenada pela maioria dos anciãos por
colaborar com o esvaziamento dos rituais noturnos.
A estrutura de representação social e religiosa das aldeias é composta basicamente
pelo cacique, vice-cacique e o Karai, exercendo também os mais velhos, uma posição de
destaque, por serem detentores dos saberes espirituais e dos conhecimentos da história de seu
povo. Ao cacique é cabida a função de administrador dos assuntos internos, assim como de
controlador das articulações políticas com a sociedade envolvente. É comum algumas aldeias
possuírem o “cacique novo”, que desempenha a função administrativa e o “cacique velho”,
que representa o “esteio” do saber e da cultura de seu povo.
Ao Karai é incumbida a realização dos rituais noturnos (porahei) que acontecem
diariamente na casa de reza (opy) situada no lugar central da aldeia (físico e simbólico).
Atualmente a aldeia Três Palmeiras se destaca pela retomada desses rituais diários em uma
91
nova opy construída recentemente. Após o falecimento da líder espiritual Keretxu Mirî em
2005 a opy de Boa Esperança permaneceu fechada e a de Três Palmeiras resistiu por um
período a mais até que foi demolida por falta de condições estruturais. Na aldeia Piraquê-Açu
não tem opy.
A organização social Guarani é composta por joapygua, unidades familiares
caracterizadas pela família extensa e compostas pelos pais da mulher, genros, filhas casadas e
filhos solteiros. Os Mbyá procuram manter a endogamia, muito embora, em algumas aldeias
são criados espaços específicos para as famílias que realizam matrimônios com Juruá (homem
branco) ou outros grupos étnicos, geralmente Kaiowá ou Ñandeva.
Tabela 2 Distribuição da população Guarani por ano e aldeia entre 1993-2006
Aldeia 1993
1996
1998
2000
2004
2005
2006
Boa Esperança 169
108
88
96
74
100*
68
Pìraquê-Açu 0
0
0
0
27
33
Três Palmeiras 0
0
73
82
160
138
149
Total 169
108
161
178
261
238
250
Fonte: FUNAI (1993, 1996, 1998); FUNASA (2000, 2004, 2005, 2006)
Em 2005, foram contados os Guarani de Boa Esperança e Piraquê- Açu juntos.
A população Guarani do Espírito Santo vem mantendo uma demografia bastante
peculiar na região, tendo em vista que seu crescimento e diluição espacial pelas aldeias
refletem diferentes momentos da sua dinâmica interna, quando os indígenas, por diferentes
motivos, retomaram a busca de novos espaços com vistas a readquirir um novo equilíbrio
social, ambiental e econômico. Destacam-se, portanto, como momentos que refletem a
retomada de uma nova ordem interna, o surgimento das aldeias Três Palmeiras em 1998 e
Piraquê-Açu em 2000, que promoveu uma diluição demográfica anteriormente concentrada
na aldeia Boa Esperança.
92
Tabela 3 Distribuição das famílias Guarani por ano e aldeia entre 1993-2006
Aldeia 1993
1996
1998
2000
2004
2005
2006
Boa Esperança 40
25
20
24
20
147*
18
Piraquê-Açu 0
0
0
0
7
8
Três Palmeiras 0
0
14
14
19
33
Total 40
25
34
34
46
147
59
Fonte: FUNAI (1993,1996,1998); FUNASA (2000,2004,2005,2006)
Em 2005 foram contados os Guarani das três aldeias junto aos Tupiniquim da aldeia Pau Brasil
Os Guarani praticam a agricultura de subsistência. Plantam o milho tradicional
Guarani (avaxí eteí) em suas diferentes qualidades, feijão (kumandá), amendoim (manduvi),
abóbora (andaí), mandioca (mandió), batata-doce (jety), melancia (xanjau), inhame (caratxi),
ananás, banana (pacová), cana-de-açucar (taquary), entre outros cultivares de subsistência.
O milho ocupa um papel central na religião Guarani, pois, seu plantio determina os
ciclos do tempo nas aldeias, divididos entre o preparo da terra, o plantio, a colheita e o
consumo, que são guiados pela lua e pelas festas religiosas. O início da preparação da terra
dura um mês e após quatro meses os Guarani colhem o milho verde utilizado para fazer o
mbojapé (pão assado na brasa), o mbytá (bolo), o caguijy (bebida fermentada) e a papa de
milho. A ocasião da colheita do milho verde deve coincidir com o nheemongaraí, importante
ritual de batismo Guarani. Nos cinco a seis meses seguintes os Guarani colhem o milho
maduro que pode ser armazenado por mais tempo e é utilizado para fazer o korá (farofa) e o
awatxi ku’i (farofa de milho e amendoim). Após ter completado um ciclo, a terra descansa por
um período de aproximadamente um mês para dar início a um novo ciclo. A dimensão
religiosa do milho Guarani é identificada no relato de Kuaray Mirim da Aldeia Ribeirão
Silveira:
Toda família tem que ter um pouco de semente de avaxí eteí guardada. Caso alguma
criança ficar doente e o pajé falar que tem que batizar de novo, a mãe tem que fazer
um mbojapé, mesmo que não for no tempo do Nimongaraí. Evai fazer o mbojapé
93
para ela. ela ganha o seu outro nome. ela começa a ter saúde. (FELIPIM,
2001, p.47).
Os Guarani plantam em torno do joapygua pequenas quantidades de fumo (petÿ) que
destinam ao uso na casa de reza como instrumento imprescindível a qualquer ritual religioso.
Nestes espaços criam também alguns animais em instalações precárias para o consumo de
proteínas como galinha (uru) e codorna.
Foram implementados projetos da Associação Indígena Tupiniquim/ Guarani em
parceria com a Aracruz Celulose em acordo firmado pelo Projeto Socioeconômico de auto-
sustentação baseado na monocultura de ca para fins comerciais entre os Guarani de Boa
Esperança e Três Palmeiras. Todavia estes projetos não obtiveram o retorno e o respaldo
esperado devido à não adaptação dos indígenas à utilização de fertilizantes químicos nas
lavouras e à dificuldade em se adequar ao sistema de cultivo comercial que vai de encontro ao
sistema tradicional Mbyá.
A agricultura Guarani obedece à regras, ciclos rituais e cerimoniais que devem ser
seguidos criteriosamente para o consumo interno dos produtos cultivados para a subsistência
familiar ou utilização em rituais religiosos. Em visitas remotas pude presenciar pessoalmente
as divergências entre os Guarani e o agrônomo designado pela empresa para prestar
assistência técnica ao projeto de monocultura de café, quando o mesmo insistia na utilização
criteriosa de fertilizantes químicos na lavoura, pois, vinham sendo gradualmente
abandonados pelos índios. Dessa forma, permaneceram os cafezais nas aldeias Boa Esperança
e Três Palmeiras em condições comerciais desvantajosas por causa da falta de adubo químico,
da dificuldade em se adaptar ao solo árido das aldeias e pior, sem o retorno esperado do meio
social por não considerar os aspectos mais profundos da cosmovisão e cultura do grupo.
Assim também, situam-se todos os demais projetos voltados para a agricultura
familiar e coletiva que não consideram esses critérios, o que delimita um importante campo
de tensões que pode refletir em impactos significativos na saúde individual e coletiva das
94
pessoas que dependem dos investimentos públicos para a realização de projetos que atendam
as suas necessidades materiais e culturais em saúde.
95
4 COSMOVISÃO MBYÁ E O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
Neste capítulo, abordaremos as diferenças ideológicas entre dois sistemas de saúde, o
autóctone e o oficial, na busca de evidenciar os pontos comuns e os divergentes nas formas de
entender e lidar com o processo saúde-doença. Em um primeiro momento, daremos enfoque
aos aspectos inerentes à abordagem mitológica dos Guarani Mbyá, descrevendo
comportamentos e práticas culturais de atenção à saúde. Posteriormente, trataremos de
enfatizar como uma análise isolada dos dados epidemiológicos e a universalização dos
protocolos e rotinas de intervenção em saúde têm sido insuficientes para dar conta da
multiplicidade de fatores envolvidos com o processo de adoecer e de mobilizar recursos
simbólicos e estruturais para a promoção, proteção e recuperação da saúde entre os membros
do grupo Guarani Mbyá de Aracruz.
Desde os primeiros contatos com os colonizadores e missionários europeus, os
métodos de promoção, proteção e recuperação da saúde difundidos entre os povos indígenas
foram descritos, etnocentricamente, por cronistas e religiosos como selvagens ou diabólicos
por desconhecerem a lógica que fundamentava essas práticas. Quinhentos anos se passaram e
pouca coisa mudou com relação ao tratamento referido pelas ciências médicas às práticas do
xamanismo e da pajelança, largamente difundida nas sociedades indígenas.
A ciência contemporânea, que explora deliberadamente as substâncias alimentares e
farmacológicas utilizadas milenarmente pelos povos indígenas, quando muito, reduz os
sistemas autóctones de saúde à qualidade de primitivos ou mítico-religiosos, desprovidos de
eficácia e coerência. Esta forma de pensar as sociedades indígenas não passa, portanto, de
uma visão etnocêntrica e evolucionista, baseada em relações históricas de poder e de
dominação que condicionam a superioridade entre os grupos humanos à agregação de
96
conhecimentos e valores tecnológicos e científicos. Não considera o caráter integral de lidar
com o processo saúde-doença, que possibilitou a sobrevivência de inúmeros grupos étnicos
até os dias atuais, em um mundo marcado pela expansão cada vez mais gradativa dos
desequilíbrios ambientais e dos valores deturpados de bem estar coletivo e individual que vem
afetando a qualidade de vida e a saúde de toda a humanidade.
Se a saúde pode ser entendida como uma condição primária para a qualidade de vida, a
doença apresenta-se como uma ameaça a esta condição e desafia o significado da existência
humana. A doença como um processo é marcada por uma seqüência de eventos que deve
envolver os atores em dois objetivos principais: compreender o sofrimento no sentido de
organizar a experiência vivida e se possível, aliviar o sofrimento. Entretanto, os sinais
reconhecidos como indicadores de doença não são universais como pensado pela
biomedicina, mas vistos de diferentes formas de acordo com a cultura. Cada cultura possui
diferentes critérios para a compreensão dos agentes causais das doenças, seu prognóstico e
seus sinais mais sugestivos, que, muitas vezes, extrapolam os limites corpóreos. Dessa forma,
o corpo pode ser compreendido como a matriz simbólica que organiza tanto a experiência
biológica como o mundo social, natural e cosmológico dos seres humanos. (LANGDON,
1996).
4.1 Mito, Religião e Saúde na Cultura Guarani Mbyá
Existe amplo consenso de que é praticamente impossível delimitar fronteiras entre a
dimensão religiosa e o processo saúde-doença na sociedade Guarani Mbyá. A religião
constitui um dos mais importantes elementos dessa cultura e é considerada pelos Guarani
Mbyá como o fator principal de diferenciação entre eles e os demais grupos étnicos. Segundo
97
Clastres (1990, p.10), “a substância da sociedade guarani é seu mundo religioso. Se o seu
ancoradouro nesse mundo se perder, então a sociedade se desmoronará.” Autores como
Ladeira (2007, 1992), Ciccarone (2001), Pierre Clastres (1990), Meliá (1989), Schaden
(1974), Helene Clastres (1970) e Cadogan (1959) são unânimes em afirmar que a religião
Guarani constitui a própria condição de sobrevivência deste povo por comportar os
ensinamentos de convivência e tolerância que fizeram com que ele resistisse estrategicamente
aos séculos de etnocídio impetrados pelos agentes do colonialismo e do neocolonialismo
contemporâneo.
Durkheim (1972 apud Hita, 1994, p.2) sinala que as crenças religiosas pressupõem
uma classificação das coisas, reais ou ideais, em dois gêneros opostos: o sagrado e o profano.”
Sob esta concepção dual, no entanto, complementar e dialógica, é que transcorre a vida em
sociedade e se estrutura o universo simbólico Mbyá, onde se desenvolvem as relações entre o
sagrado e o profano, a vida e a morte, o bem e o mal, a saúde e a doença, o corpo e a alma, a
perfeição e a imperfeição.
Os Guarani pressupõem que a participação na sacralidade cósmica justifica o estado de
bem-estar social e de saúde individual e coletiva, constituindo esta, a meta principal dos
rituais (porahei) realizados todas as noites na casa de reza (opy). Neles, o mundo sagrado é
recuperado através do canto, da dança e da reza que constituem a “ponte”, o elo de ligação
entre a dimensão telúrica e a espiritual da alma Guarani Mbyá.
É na religião que os Guarani encontram explicações sobre a condição de sua existência
terrena e de sua relação com a natureza material e simbólica por onde transitam os espíritos
que determinam as condições de saúde e/ou morbidade para esta sociedade. Sua organização
social e experiência cotidiana transcorrem como uma reprodução dos mitos de seus deuses
primogênitos que se revelam, também, como os instrumentos primordiais na regulação das
atividades sociais. Segundo Ladeira (1992, p.64), ‘Viver os mitos’ enquanto ‘experiência
98
religiosa’ não se distingue do cotidiano, pois o cotidiano está impregnado de relações míticas
com o universo.” Ao descrever os ensinamentos sobre a origem do mundo, das plantas, dos
animais e, consequentemente, dos Mb e da sua relação com o universo e com os seres
sobrenaturais, "o mito obriga a viver sob certas regras, condiciona normas de comportamento
e modos de atuar”. (HITA,1994, p.5).
Littaif (2004) destaca que os mitos Guarani podem ser divididos em dois gêneros
distintos: os considerados sagrados, que tratam da criação da primeira terra e do Ne’eng, ou o
espírito humano, e os não-sagrados, que abordam a criação da segunda terra e compreende o
Mito dos Gêmeos. Nesta segunda categoria estão também incluídos os relatos históricos da
conquista da América, da Guerra do Paraguai e dos deslocamentos Guarani para o litoral
brasileiro.
Não se pretende fazer neste capítulo uma análise estrutural dos mitos Mbyá, mas sim,
compreender através deles como os Guarani classificam os eventos mórbidos e definem os
métodos de promoção, proteção e recuperação da saúde reconhecidos e validados
culturalmente.
Os Guarani atualizam seus mitos incorporando ou substituindo elementos na medida
em que a situação exige uma adaptação da sua linguagem e conteúdo para que se prevaleça
o sentido de reguladores da vida em sociedade. As sínteses mitológicas descritas neste
capítulo foram realizadas a partir de textos de autores que permaneceram longo período entre
os Mbyá como, Cadogan (1959), Pierre Clastres (1990) e Ladeira (1992) e, portanto, possuem
diferenças mínimas entre si em função do tempo e do espaço que não alteram o seu sentido
original.
É importante ressaltar que ao sofrerem as devidas traduções os textos passaram por
adaptações inevitáveis na sua descrição para tornarem-se inteligíveis à leitura da cultura
ocidental, pois, segundo Clastres (1990, p.17), “traduzir é, seguramente , tentar fazer passar
99
para um universo cultural e lingüístico determinado a palavra e o espírito de textos saídos de
um sistema cultural diferente, produzidos por um pensamento próprio.”
Sobre o primeiro ciclo da criação, descreveu uma liderança Mbyá à Cadogan no Ayvu
11
Rapyta (1959, p.14):
Nuestro Padre último-último primero
12
para su propio cuerpo creó de las tinieblas
primigenias. Las divinas plantas de los pies, el pequeño asiento redondo, en medio
de las tinieblas primigenias los creó, en el curso de su evolución. El reflejo de la
divina sabiduría (órgano de la vista), el divino oye-lo-todo (organ del oído), las
divinas palmas de las manos con las ramas floridas (dedos y uñas), las creó,
Ñamanduí, en el curso de su evolución, en medio de las tinieblas-primigenias. De la
divina coronilla excelsa las flores del adorno de plumas eran (son) gotas de rocio.
Por entre medio de las flores del divino adorno de plumas el pájaro primigenio, el
Colibrí, volaba, revoloteando. Mientras nuestro Primer Padre creaba, en el curso de
su evolución, su divino cuerpo, existía en medio de los vientos primigenios: antes de
haber concebido su futuro firmamento, su futura tierra que originalmente surgieron,
el Colibrí le refrescaba la boca; el que sustentaba a Ñamanduí con produtos del
paraíso fué el Colibri.
Após criar-se a si mesmo em meio às trevas originais, Ñamanduí criou a origem da
linguagem humana (Ayvu Rapyta) e os demais Ne’eng ru ete, ou seja, os verdadeiros pais da
palavra alma: Kuaray, senhor das chamas, Tupã, senhor do frescor e guardião do Grande Mar
e Jakaira, senhor da primavera, guardião da bruma onde nascem as Belas Palavras.
Alimentado com os frutos do paraíso que lhe trouxe o colibri, fez uma coluna com a alma
indestrutível do pindo vy (palmeira eterna) onde criou o centro da terra e em seguida colocou
um pindo vy, também, em cada um dos pontos cardeais, sendo no leste, morada de Kuaray; no
este de Tupã; no norte dos ventos bons e no sul do tempo originário. São, portanto, cinco as
palmeiras que os Mbyá acreditam que asseguram a existência da morada terreal. (Ibid).
Segundo Clastres (1990, p.46), “A primeira terra abriga uma humanidade que,
constituída por e na Palavra permanece na proximidade do divino”. A palavra-alma, ñe’eng,
participa de todos os seres viventes que comungam da criação divina, alimenta a vida de
homens, plantas e animais justificando assim a sua existência sagrada. Entretanto, o estado de
11
O Fundamento da Linguagem Humana- livro escrito por Cadogan (1959) sobre os dizeres sagrados de líderes
xamânicos Mbyá do Paraguai com os quais conviveu por longo período.
100
perfeição (aguyje) não estava assegurado definitivamente e a experiência da bem-aventurança
foi rompida pela transgressão das regras sociais que o herói mítico Karai Jeupie e sua tia
paterna cometeram ao praticar um ato incestuoso que deu origem a uma inundação
catastrófica responsável pela destruição da primeira terra. Ambos foram alcançados pela
inundação sem ter obtido a perfeição e se puseram a nadar nas águas implorando, por meio do
canto e da reza, o seu fortalecimento espiritual. Vendo o esforço de seus filhos, Ñanderu teve
piedade e fez com que surgisse em meio às águas uma palmeira eterna (pindo vy) a fim de que
o casal pudesse se agarrar nela até que conseguissem alcançar a imortalidade. Aqueles que
habitavam a primeira terra ascenderam aos paraísos, os virtuosos na forma humana e os
transgressores metamorfoseados em animais. (CADOGAN, 1959).
O fim da primeira terra marcou a disjunção do humano e do divino, o fim da Unidade
e a criação de uma fronteira onde, de um lado permaneceram os homens em sua condição
imperfeita (techo achy kue) tentando transpor o espaço que os mantinham afastados dos
deuses. Do outro lado, porém, permaneceram os deuses, a bem-aventurança, o estado de
plenitude eterna (aguyje ete) e a Terra sem Males (Yvy Mara ey). Com o fim da idade de ouro
é chamado um recomeço, a criação da nova terra onde habitamos atualmente, que por sua vez
não mais contém os mesmos elementos existentes na primeira terra, pois não se trata de uma
segunda versão da mesma. Terra dos homens, terra das imperfeições; com a sua criação é
determinado o fim do Gênesis Guarani. Yvy Pyaú (segunda terra) foi povoada pela imagem
dos seres que habitavam em Yvy Tenonde (primeira terra) e alcançaram a imortalidade e não
mais pela sua essência divina ñe’eng, que passou a compor o núcleo da alma Guarani no
mundo das imperfeições.(CLASTRES, 1990).
A nova Terra foi habitada inicialmente pelo irmão mais velho dos Mbyá, Kuaray, que
se tornou o Sol, e seu irmão mais novo Jaxy, que se tornou o Lua
13
. O mito dos Irmãos conta a
12
Nande Ru Pa-pa Tenonde
13
Os Mbyá referem-se à lua no gênero masculino
101
seqüência de aventuras dos primeiros habitantes da nova terra em um tempo em que os
animais e as pessoas conviviam e conversavam.
Após ter criado Yvy Pyau, Ñanderu se retirou para Yvy Mara ey, deixando sua esposa
grávida para trás. Kuaray falando no ventre de sua mãe a conduzia pelo caminho sinalizado
por seu pai. No trajeto pediu a sua mãe para pegar flores para ele, quando ela foi ferroada por
um maribondo (mamanga) que havia se alojado dentro de uma flor. Ao balançar a mão,
sentindo dor, sua mãe bateu em seu próprio ventre ferindo a criança que se calou a partir de
então, não mais a orientando pelo caminho que lhe conduziria até onde estava Ñanderu, seu
pai. Sua mãe tomou o caminho errado chegando à terra dos angue originários, as onças, onde
foi devorada pelas mesmas. A avó onça comeu a placenta da criança colocando em seguida
Kuaray para secar no fogo. Kuaray sobreviveu e foi criado por ela como um animal de
estimação. Kuaray descobriu que sua mãe foi devorada pela avó onça e com parte dos ossos
dela criou seu irmão Jaxy. Posteriormente, tentou restituir a palavra-alma de sua mãe
(ñe’eng), fazendo-a circular pelos ossos que sobraram sem lograr o êxito esperado, pois a
ansiedade de seu irmão em ser amamentado se tornou fator determinante para o insucesso de
sua ação. Os dois decidiram se vingar das onças eliminando-as. Contudo, por descuido de
Jaxy, uma fêmea grávida se salvou da armadilha feita pelos irmãos garantindo a reprodução
da espécie. Imersos em aventuras ora trágicas, ora cômicas os irmãos acabam sempre por
dominar seus adversários sob a orientação de Kuaray, a divindade solar, apesar das falhas e
leviandade de seu irmão Jaxy. Kuaray e Jaxy puseram-se a caminhar até que alcançaram a
morada de seu pai e, convertidos em astros, viveram eternamente em seu
firmamento.(LADEIRA, 1992).
Este importante mito revela uma série de provas às quais são submetidos os irmãos na
Terra Imperfeita enquanto buscam o caminho de volta para a morada de seu pai, a Terra Sem
102
Males (Yvy Mara ey), e se consubstancia na vida cotidiana dos Mbyá como um modelo a ser
seguido ao se tentar eliminar a distância que separa os homens dos deuses.
A relação ensino-aprendizagem que norteia os atos praticados por Kuaray e Jaxy no
Mito dos Irmãos são modelos a serem seguidos pelos Mbyá no processo de transmissão do
ñandereko (ñande-nosso, reko-costume, tradição). O ñandereko é um sistema de normas de
conduta que, passado de geração a geração através da tradição oral, regula a vida em
sociedade, prescrevendo as formas de convívio entre os indivíduos e os demais seres naturais
e sobrenaturais, constituindo um importante método de promoção de saúde para os Mbyá.
Através dele os Mbyá acessam os ensinamentos que permeiam a vida social e aqueles que
devem ser observados com rigor na ocasião da menarca da jovem, da perfuração labial do
adolescente, da gravidez, do parto e do puerpério e no caso de ameaças à saúde de origem
natural e sobrenatural.
As normas de conduta com relação ao resguardo da menarca da jovem Mbyá incluem
desde o confinamento, a restrições alimentares e abstinência sexual. Sua transgressão faz com
que a jovem púbere se torne vulnerável ao odjépotá. O odjepotá é um estado de
vulnerabilidade física e espiritual, onde a jovem adolescente corre o risco de sofrer
encantamento sexual e transformar-se em animal desaparecendo em seguida. Uma liderança
Mbyá revela que, quem o odjépotá à mocinha é o Karugá ou Arco-da-Velha, que lhe
aparece como gente para desatendê-la; depois vai ficando amarelinha, amarelinha, até
morrer”. (SCHADEN, 1974, p.87).
As normas de resguardo para o período gestacional consistem basicamente em dieta
alimentar e abstenção da prática de adultério, pois o mesmo pode provocar a morte prematura
do embrião. (CADOGAN, 1959). Ladeira (1992, p.99) destaca que “relações com múltiplos
parceiros podem provocar o nascimento de gêmeos, e comprometer a alma da criança”.
Durante a gestação os pais não podem dar laços em cordas, armadilhas de caça e/ou outros
103
objetos, pois dessa forma acreditam estar submetendo o concepto à ameaça de se enrolar no
cordão umbilical. Devem evitar atos violentos, assim como, sentimentos anti-sociais (ira,
cólera, raiva) que possam afetar a tranqüilidade da nova vida e devem observar com rigor os
preceitos alimentares, abstendo-se da ingestão demasiada de sal, gordura, açúcares e certos
tipos de carne.
Após o parto, a placenta deve ser enterrada próximo à residência da família e com o
cordão umbilical deve ser feito um colar para o uso da criança, pois, segundo uma liderança
Mbya da aldeia Piraquê-Açu de Aracruz no Espírito Santo :
Os Guarani tem o costume diferente, pegar esse bicozinho do cordão, botar
no cordão dele, quando ele nascer colocar no cordão. [...] Depois que ele
vai nascer com muito, vamos dizer é... a noite chora muito, fica agitado
demais. Pra não acontecer isso tem que pegar esse bicozinho de umbilical
[...]e fazer o colarzinho dele sem problema. [...] Pode ficar com esse
problema na cabeça (epilepsia). Então nós temos nosso costume de pegar
aquele negocinho do neném, nasceu da mãe e tem aquele negócio da mãe
(placenta), pega e enterra pertinho da casa dele, tem que ser um metro da
casa, chegar e enterrar, esse é nosso costume, (PELLON, 2005, p.54).
(mimeo)
Esta prática contém elementar ligação com o Mito dos Irmãos, pois, se a placenta for
manipulada por terceiros e/ou comida por algum animal como a exemplo das onças, os Mbyá
poderão atribuir qualquer problema que aconteça com a mãe e/ou com a criança a este fato.
Vale lembrar que estas normas objetivam não a promoção e a proteção da saúde do recém-
nato, mas também de toda a sua família.
4.1.1 Mito e Práticas de Atenção à Saúde na Cultura Guarani Mbyá
No Mito dos Irmãos são descritas, ainda, as primeiras práticas medicinais
desenvolvidas por Kuaray em suas andanças pela terra. Dessa forma, para aprimorar a sua
104
capacidade curativa, o Karai (líder religioso) deve passar por um processo de preparação que
pode durar muitos anos e implica, entre outras coisas, em observar rigorosamente os preceitos
de resguardo, abstinência, orações e dedicação ao aprendizado das mesmas práticas
medicinais empregadas por Kuaray no mito.
Não existem critérios pré-estabelecidos para a determinação de quais os métodos o
Karai deve utilizar para a recuperação da saúde do enfermo. Os Mbyá diferenciam as
enfermidades de origem cultural e aquelas às quais atribuem a causa ao contato secular com a
população não-indígena, também considerando suas implicações recíprocas.
As enfermidades de origem cultural se devem, principalmente, à malevolência de
forças espirituais que afetam a alma e muitas vezes o corpo do indivíduo ou até mesmo a
coletividade. Os agentes malévolos podem ser seres sobrenaturais que habitam lugares
proibidos ao homem, como pedras, rios, florestas, ou, podem se originar da transgressão das
normas morais, religiosas e de convívio social, da malquerência de alguém ou das práticas de
feitiçaria.
O karai deve desenvolver a potencialidade de transitar entre a esfera terrena e a
espiritual para que possa atuar sobre a causa e a conseqüência das enfermidades de origem
cultural, conjurando os espíritos maléficos causadores de doenças e tratando os seus sintomas
físicos e espirituais. Através do sonho ou da indução do transe por meio de substâncias
enteógenas
14
como o tabaco, ele faz o diagnóstico e identifica o tratamento a ser seguido,
assim como, se empenha na recuperação da ordem social se esta for a causa das enfermidades.
Segundo Cadogan (1959, p.89), “Es misión de los iñarandu porã i va’e- los que poseen la
buena ciencia, sanar a los embrujados y castigar a los culpables; recibir mensajes de los dioses
referentes a la vida tribal, dirigir los cantos e las danzas.”
14
Substâncias psicoativas utilizadas pelo pajé para estabelecer contato com o mundo espiritual.
105
Os Guarani Mbyá crêem que sua alma é composta de duas dimensões complementares
e interdependentes, o ñe’eng, ou palavra-alma, representação suprema da divindade manifesta
em si e outra de natureza telúrica, o angue. Ainda, segundo Cadogan (Ibid, p.186) “Ne’eng,
ñe’e, es la palabra-alma, la porción divina del alma que se encarna en el ser humano una vez
engendrado.[..] Quando muere el hombre ñe’eng, enviado por los dioses, vuelve a la morada
de su Padre”.
A ne’eng representa o elo de conexão individual à esfera do sagrado e é enviada pelos
Deuses Pais da Palavra Alma (Ne’ eng ru Ete) para se encarnar, viver e manter erguido o fluir
do dizer humano nesta terra de imperfeições (yvy mba’ megua). A ñe’eng é a porção divina
da alma, que circula pelos ossos e mantém o ser humano em posição vertical distinguindo-o,
assim, dos outros animais. Ela é definida pela sua origem espiritual e indica as qualidades
morais e os principais atributos da personalidade humana que determinarão a posição a ser
ocupada pelo indivíduo na sociedade Mbyá. Contudo, a palavra não se encarna no corpo
humano como uma manifestação acabada da alma Guarani, pois, o binômio palavra-
identidade é fortalecido no decorrer da vida por meio da dedicação e esforços próprios.
Uma das funções do karai é identificar de que região do paraíso provém a ñe’eng que
vai encarnar no corpo da criança. Isto se dá, quando a criança começa a verbalizar as
primeiras palavras, evidência de que a palavra-alma (ñe’eng) que até então acompanhava os
pais, está se aproximando do corpo, e indica, portanto, que é chegada a hora de ser batizada.
Ao morrer, portanto, a alma Guarani volta a se fragmentar e a ñe’eng retorna à dimensão
celeste de onde se originou.
Por outro lado, o espírito telúrico denominado angue é o princípio terrestre da alma
adquirido junto ao corpo da pessoa e desenvolve-se no decorrer da sua vida como resultado do
seu modo imperfeito de viver (teko achy kue). O teko achy kue se fortalece à medida que o
indivíduo se identifica com os prazeres terrenos e com as imperfeições mundanas,
106
incorporando os sentimentos anti-sociais que se consubstanciam na ofensa, na ira, na cólera e
na ambição.
Ao morrer o angue se converte em mboguã, um fantasma temido por todos, que vaga
pelas matas e pelos lugares por onde a pessoa transitou em vida, sendo um importante
causador de doenças. O mboguã é a sombra, o rastro, o eco do homem. (CADOGAN, 1959).
O temor do mboguã é tão presente na sociedade Mbyá que quando alguma pessoa vai a óbito
no interior de uma residência, a família costuma mudar da mesma tão logo seja possível.
Também, quando acontece o mesmo a algum líder religioso que habita em uma casa de reza
(opy) tem-se como regra em algumas aldeias, construir uma nova opy em outro local. Da
mesma forma, os Mbyá costumam não se referir aos mortos nos períodos que sucedem o seu
falecimento, recusam-se a olhar suas fotografias e tocar no assunto durante um bom período.
A vida para os Guarani transcorre na relação estipulada com a palavra-divina (ñe’eng),
pois, ela circula pelos ossos mantendo a verticalidade do corpo, sinônimo de saúde. Do
contrário, o desenvolvimento da porção telúrica da alma em conformidade com o modo
imperfeito de se viver (teko achy kue) condiciona um estado patológico de vida, onde
sobrevêm confusão, tristeza, inimizade, inveja, ambição e ofensas que acometem a alma e o
corpo colocando o ser humano na mesma posição horizontal dos animais.
É na palavra e pela palavra que se estrutura a condição humana e social Mbyá e é
através das ‘belas palavras”, as ñe’eng porá, que se pode acessar os ensinamentos que
direcionam a vida terrena ao estado de plenitude eterna (aguyje ete). “O conjunto das ne‘ eng
porã, as belas palavras é o ayvu porã, a bela linguagem que define para os Mbyá o seu modo de
agir e que expressas nas orações e cantos, são repetidas de geração em geração”. (LADEIRA;
AZANHA, 1988, p.23). As belas palavras proferidas nos rituais religiosos, nas orações, nos
cantos sagrados e nos conselhos dos líderes religiosos são exemplos maiores da sua
107
instrumentalização como reguladora dos infortúnios sociais e como mantenedora do equilíbrio
entre as forças espirituais e terrenas para os Guarani.
Quando a doença se relaciona à transgressão das normas míticas, à presença de
espíritos maléficos, maldade, cólera ou feitiçaria costuma-se dizer que a ñe’eng se encontra
contaminada ou afastou-se do corpo do sujeito. Os eventos mórbidos desta ordem exigem a
intervenção do Karai que, através das praticas milenares do xamanismo Mb, deve mediar a
ligação com o mundo espiritual para restituí-la ao corpo do enfermo, fazendo o que Cadogan
(1959) descreve como eepy, cuja tradução é resgatar ou redimir o dizer, ato realizado
inúmeras vezes por Kuaray em suas práticas medicinais descritas no Mito dos Irmãos. Para
tal, o mesmo faz súplicas aos deuses em forma de orações e cantos sagrados associados à
utilização, principalmente, de práticas de fumigações com tabaco, podendo também realizar
fricções com ervas, banhos, chás, ungüentos, cataplasmas e em alguns casos, a sucção de
objetos estranhos do corpo do doente, como emaranhados de cabelo, pedras, vermes e outros
elementos, sinais evidentes de feitiçaria para os Mbyá.
Quando uma mulher concebe um filho, a ñe’eng do mesmo irá acompanhar o pai até
a realização do batismo (nhemongaraí). Assim como Kuaray, ainda no ventre materno, sabia
identificar os caminhos sinalizados por Ñanderu, a palavra-alma do recém-nascido também o
saberá fazer com seu pai. Dessa forma, o mesmo deve sinalizar os caminhos que percorrer
com gravetos ou folhas facilmente identificáveis para que a palavra-alma (ñe’eng) do seu
filho não se perca dele até que tenha tomado assento junto ao seu corpo definitivamente. No
caso da criança ser do sexo feminino sua ñe’eng terá maior afinidade com a mãe. O recém-
nascido deve ser resguardado ao máximo de visitas de estranhos para que a sua alma seja
protegida de forças espirituais malévolas que possam assustá-la, fazendo-a afastar-se mais do
seu corpo. A entonação moderada da voz constitui, também, exemplar método de prevenção
108
de danos desta ordem, pois, a qualquer sinal de susto a palavra-alma pode afastar-se do corpo
da criança desprotegendo-a contra as enfermidades de origem espiritual.
O ciclo mítico da criação é retomado no cotidiano Mb na medida em que as
condições que ordenam e estruturam esta sociedade no tempo e no espaço ameaçam a
reprodução do seu modo de ser e estar no mundo. Segundo Clastres (1990, p.58), os Mbyá
reclamam a sua condição de “seres destinados `a totalidade acabada do bem-viver no coração
eterno da morada divina” e, movidos por este profundo sentimento, lembram cotidianamente
a dívida contraída com seu Deus na origem de um mundo para o qual não foram feitos. Dessa
forma, seu modo de vida (ñandereko) orienta para a sobreposição das virtudes espirituais dos
indivíduos às vicissitudes de suas imperfeições terrenas, objetivando a transposição do espaço
infinito que os separam de seus semelhantes divinos, pois, segundo Schaden (1974, p.165),
“caráter fundamental da concepção do Paraíso é tratar-se de um lugar de segurança, cujos
moradores estão livres, sobretudo das doenças e da morte”.
Na terra imperfeita, os homens almejam viver em conformidade com as suas regras,
dominando a mente e o espírito para alcançar o Kandire, ou seja, se encantar, atravessar o
“grande mar” rumo à Yvy Mara ey sem passar pela morte física. Fato comum aos
antepassados, o Kandire é descrito pelos Mbyá contemporâneos como uma prática difícil de
se realizar atualmente, devido aos inúmeros problemas que ameaçam a reprodução do modo
de ser Guarani (ñandereko), favorecendo as transgressões dos preceitos míticos que regulam
a vida individual, familiar e social.
Os Mbyá acreditam que a principal causa das imperfeições que assolam a sua
sociedade atualmente se deve ao fato de muitos de seus contemporâneos não seguirem mais
os ensinamentos de Kuaray, o sol. Segundo Littaif (2004, p.27), tanto os Guarani Xiripá como
os Mbyá [...]relacionam a lua à causa de todas as imperfeições humanas, especificamente, à
109
passagem da mobilidade ao sedentarismo que, segundo eles, caracteriza o abandono de um
importante traço cultural[...]”.
A conformidade com o estado de imperfeição terrena retrata a relação distante com o
universo sagrado, seus ritos e simbolismos, e expõe os indivíduos às insídias e fraquezas da
condição humana imperfeita, justificando assim, a presença de enfermidades. Por este motivo,
desde cedo é ensinado ao jovem Mbyá a necessidade de se dominar o pochy, o sentimento da
cólera, através do desenvolvimento de suas qualidades espirituais em detrimento das suas
imperfeições mundanas. O pochy é a raiz de todo mal para os Guarani e se relaciona com as
paixões terrenas, causas principais das doenças de etiologia espiritual.
4.1.2 Mito, Plantas Medicinais, Alimentação e Saúde na Cultura Guarani Mbyá
A escolha dos alimentos também deve ser observada criteriosamente por aqueles que
almejam viver em consonância com os preceitos religiosos Mbyá. Os alimentos são
diferenciados entre si pela capacidade de nutrir a porção divina da alma (ñe’eng) ou de
satisfazer os prazeres da imperfeição terrena (techo achy kue) e podem ser distinguidos pela
sua origem. A dieta vegetariana propicia o alcance de um estado de desprendimento,
favorecendo assim, junto às práticas religiosas e a observação das demais regras do
ñandereko, o alcance do agüyje.
Contudo, de acordo com Ladeira (1992) Anhã, o espírito mau, quis ser mais criativo
do que Ñanderu e inventou as raízes coloridas como a beterraba, a cenoura e verduras como a
couve, o repolho e outras folhas que imitam as plantas medicinais. Entre as frutas, a manga, o
abacate, a jaca e o abacaxi também foram descritos pela autora como invenções de Anhã.
Também, os Guarani reconhecem como criação de Anhã certos tipos de peixes coloridos
110
como as carpas e os crustáceos. Animais de criação de pasto como cavalos e gado são
exclusivamente para os jurua (homem branco) a quem Ñanderu destinou que vivessem nos
campos ao contrário dos Mbyá, a quem seu Deus enviou a floresta e todas as dádivas divinas
nela existentes, entre as quais os alimentos vegetais, as caças e as plantas medicinais.
Vale destacar que, muito dificilmente, os programas voltados para a erradicação da
desnutrição infantil e da fome entre os Guarani consideram estas classificações e comumente
orientam o consumo de certos alimentos proibidos a partir de um fundamento divino, o que
costuma gerar descompromisso por parte das famílias devido à dificuldade em abordar estes
temas com os profissionais de saúde.
Preferencialmente, os alimentos devem ser cozidos sem sal, excetuando-se a maioria
das carnes, estas sim, salgadas, com a intenção de anular o tupichua, o espírito da carne crua
associado à onça na mitologia Mbyá. Nas narrativas míticas, o tupichua se apresenta como
uma mulher adornada com pinturas que tem a capacidade de se converter em onça. A única
maneira de evitar as influências do tupichua consiste na proibição de comer carne sem sal ou
crua ou na de comê-la dentro da mata por infringir a importante relação de compartilhamento
social. A carne do porco do mato, animal domestico particular de Kuaray, é a única carne de
caça que difere das outras no seu preparo, devendo ser consumida insossa, pois, segundo
Helene Clastres (1970, p.103), “ao poder ser consumida sem sal, a carne de porco selvagem
integraria, excepcionalmente, os bons alimentos, aqueles que se relacionam com a leveza”.
Critérios semelhantes de restrição alimentar devem também ser observados nos
primeiros meses que sucedem o nascimento de uma criança, conforme assinala uma liderança
Mbyá da aldeia Piraquê-Açu no Espírito Santo:
Em casa come comida sem sal, mas no hospital come tudo. Carne não, nada de
carne, peixe faz mal pro umbigo do neném, não fecha muito rápido e faz mal aqui
também (fontanelas), carne de porco também não pode. galinha a gente pode,
sem sal também. Isso daí a gente guarda durante três mês. (PELLON, 2005, p.55,
mimeo)
111
Segundo um informante de Cadogan, entre os preceitos estabelecidos por Pa’i Rete
Kuaray, o fundador da ciência médica Mbyá, figuram alguns cuidados que se deve ter antes
de se preparar e consumir qualquer alimento:
La primera pieza de caza que cogiereis debéis fumigarla, com humo de tabaco
debéis comerla. En caso de que asi no hiciéreis de vuestro alimento adquiriréis
malestares, enfermedades, imperfecciones. Los frutos maduros debéis dedicar-los a
los de arriba; en caso contrario los niños de su proprio alimento contraerán
enfermidades. (CADOGAN, 1959, p.107).
Dificilmente os Guarani contemporâneos conseguem equilibrar suas necessidades
nutricionais com uma dieta voltada para alimentar a sua porção divina da alma. Conforme
abordado anteriormente, a pressão fundiária exercida sobre os territórios tradicionais tem
redundado de uma forma cada vez mais intensa na redução drástica das práticas da caça e da
coleta, ocasionando transformações irreversíveis no modo de vida dos Mbyá. Acuados na
contramão da cultura de consumo, os índios procuram reproduzir seu ñandereko com as
condições que dispõem atualmente, ainda que, o acesso aos elementos necessários para a sua
plena reprodução venha se tornando, cada vez mais, inacessível.
Após a criação do mundo, não achando justo que seus filhos permanecessem na terra
expostos às paixões do Teko Achy Kue, Pa’i Reté Kuaray deixou os remédios lícitos para a
cura das influências telúricas denominados Poã Rekó Achy. Segundo Cadogan (1959, p.108),
os médicos Guarani afirmam que, “debemos tener fe, tener confianza en ellos por haber sido
dejados por nuestro primer Padre, nuestra primera Madre. Unicamente ai serán eficazes. No
depositando plena confianza en ellos no será eficaz ninguna clase de remedio, sin excepción.”
A eficácia das práticas curativas e das plantas medicinais depende necessariamente de um
pacto de e cumplicidade entre curandeiro e paciente que devem enveredar pela complexa
trama de conhecimentos que se relaciona às concepções de saúde e doença na cultura Mbyá
para assumirem uma postura conjunta na resolução dos eventos mórbidos.
112
Como foi abordado, a palavra-alma (ñe’eng) é o fundamento da humanidade Mbyá,
contudo, segundo Hita (1994, p.17), a ñe’e, ou a alma, é o atributo que faz com que todos os
seres, homens, animais e plantas participem de uma mesma condição, ou seja, “uma
pertinência à ordem da criação”. Apoiados nesta visão animista, os Mb classificam as
plantas definindo a sua aplicação de acordo com as qualidades de sua alma, distinguindo entre
elas, as boas e as malévolas ou daninhas.
Deve-se assinalar aqui o lugar particular conferido ao tabaco na cultura Mb(Anexo
M), pois ele constitui o alimento por excelência da palavra-alma (ñe’eng). Segundo H.
Clastres (1974, p.103), equivalente da bruma, “o tabaco é o meio de comunicação privilegiado
entre os homens e os deuses, indispensável a qualquer cerimônia de alguma importância;
simboliza a vida e o saber humanos, assim como a bruma simboliza a vida e o saber divinos”.
Dessa forma, o tatachina
15
se encontra presente na maioria dos ritos de cura Mbyá em
analogia ao mito de Jakaira ru ete, o deus da primavera. Com a chegada da primavera,
Jakaira espalha a bruma originária por sobre a Terra, gotejando o orvalho matutino que
renova os ciclos vegetais possibilitando, também, a reprodução e a renovação da vida animal,
infundindo a vida em todos os seres, purificando as imperfeições humanas. Da mesma forma,
a fumaça do tabaco utilizada pelo Karai no seu petyngua (cachimbo sagrado) cura, purifica e
vivifica a alma, depois se eleva aos céus como oferenda aos deuses.
Algumas árvores que orvalham em épocas definidas do ano como a ysapy’y, a ygary, e
a yvyrá-ita, são consideradas como árvores da palavra-alma (yvyra ñe’ery) e são usadas como
remédios sagrados, pois, suas gotas são, segundo Hita (1994, p.19), “consideradas gotas da
água eterna que existe na terra dos deuses, onde as doenças e a morte estão ausentes”. Nesta
categoria destaca-se o cedro (yvyra ñamandu) pela docilidade da sua alma, conforme assinala
um informante de Cadogan (1959, p.90): “El arbol de alma cil es el Cedro, el árbol de
15
Fumaça ou névoa semelhante à neblina que se obtém após longas aspirações de tabaco.
113
Ñamandu [...]”. O cedro é considerado a “árvore mãe” de todas as árvores, pois, os Mbyá
acreditam que após o dilúvio suas sementes se espalharam por sobre a terra originando toda a
espécie vegetal existente atualmente. O mesmo depoente de Cadogan (Ibid, p.90) revela que,
“entre todos los árboles, el que posee alma más feroz es el Lapacho”. O lapacho, mais
conhecido no Brasil como pau d’arco, é uma importante espécime utilizada pela fitoterapia,
contudo, os Mb com os quais Cadogan conviveu, acreditam que mesmo cortando-a em
pedaços, a sua alma não desaparece e por isto a sua utilização não é indicada nem mesmo para
a queima nos fogões domiciliares.
Os Mb acreditam que uma árvore de alma impura pode ser uma causadora de
enfermidades entre os homens e, portanto, deve ser castigada por Tupã com seus raios. Ainda,
segundo um depoente de Cadogan (Ibid, p.102): “Lanzan rayos los Tupã; reprendem
violentamente a las árboles de alma indócil”. Merece destaque neste caso, o caráter mutável
da alma do ipê (tajy) que, sujeita ao castigo divino pode transformar-se em importante
amuleto contra o mal. O ipê, planta de alma indócil que fere invisivelmente os seres
humanos, ao ser castigado por um raio enviado pelo deus Tupã converte-se em instrumento
simbólico utilizado na proteção contra as maldades alheias.
Existem critérios específicos que devem ser atendidos rigorosamente para a extração
das plantas medicinais com o fim de possibilitar o seu adequado manejo e utilização em
conformidade com os preceitos divinos, pois, segundo Hita (1994, p.19), “sempre se extraem
do lado em que nasce ou se põe o sol, pontos cardeais pertencentes a Kuarahy e Tupã, e não
do norte ou do sul, pontos pertencentes a Jakaira e Ñamandu”. (grifos do autor)
Apesar das plantas medicinais ocuparem lugar de destaque na medicina Mbyá, existem
outras substâncias também empregadas nas práticas preventivas e curativas como, óleos de
animais, gorduras e mel de determinadas abelhas que compõem, também, importância
singular na medicina autóctone.
114
Alguns animais merecem destaque na cultura Mbyá pela sua posição privilegiada de
mensageiros dos deuses, tendo o poder de afastar as doenças, prevenir e proteger dos
infortúnios. É o caso do colibri, o pássaro originário que alimentou Ñanderu durante o ciclo
da criação divina. Ao posicionar-se próximo aos seres humanos este pássaro pode estar
trazendo mensagens da dimensão espiritual, indicando um caminho a seguir ou se desviar, ou
até mesmo, sinalizando bons presságios com a sua simples visita. Um depoente de Cadogan
(1959, p.141) relata que as penas do pássaro originário constituem também importantes
amuletos para a defesa pessoal. Segundo ele, “debes arrancar plumas del ala del colibri y
tenerlas, a fin de atajar los golpes de garrote que te dirigieren”.
Consideramos oportuno citar um caso que ilustra a importância do pássaro originário
para os Mb. Uma liderança revelou-me em uma conversa informal que uma amiga recebera
um aviso de um colibri em sua casa para que não saísse no dia de sua aparição. Segundo o
depoente, o colibri se posicionou em frente à janela de vidro e bicou-a sem cessar pelo lado de
fora chamando a atenção dos moradores da casa pela sua atitude persistente e ameaçadora da
sua própria integridade física. Logo em seguida uma das pessoas, ao sair da residência
conduzindo seu automóvel pela auto-estrada, sofreu um grave acidente que a levou a óbito
repentinamente. Assim, os Mbyá acreditam que as mensagens devem ser interpretadas
segundo a forma de se expressar do pássaro originário, sempre considerando que são trazidas
diretamente da dimensão espiritual onde habita Ñanderu .
Os Mb reconhecem uma categoria de remédios que deve ser empregada para o bom
funcionamento do aparelho reprodutor feminino, denominados Teko Pora Ja, ou seja, os
donos do bem viver. Já, os indicados para o aumento da fertilidade foram nomeados à
Cadogan (1959, p.112) como “Los dueños del calor de las criaturas” e devem ser
administrados em função da dificuldade da mulher procriar, situação descrita no mito da
primeira terra como inaceitável pelos deuses.
115
Contudo, os Mbyá acreditam que não foram feitos para se reproduzir em demasia,
pois, se consideram responsáveis pela conservação e pela proteção do mundo da destruição
impetrada pelos homens brancos (jurua). O mito da segunda terra descreve os jurua como
invasores do mundo Mbyá, o que, justifica a sua grande reprodução sobre o planeta. Um
depoente de Ladeira (1992, p.81 ) relata que, “Os Mbya etei não aumentarão tão depressa
como os brancos. Pois os Mbyá não foram feitos para aumentar como os brancos”. Dessa
forma, os Mbreconhecem, também, rios remédios a serem utilizados na prevenção da
gravidez indesejada, que são denominados como Memby ve’y ja, ou seja, os donos ou
produtores da esterilidade.
Os mitos dão sentido ao desenvolvimento da vida em todas as suas dimensões para os
Mbyá, indicando os caminhos a percorrer para o alcance da plenitude do corpo e da alma.
Através deles os Mbaprendem a conviver em um mundo onde o seu fim é anunciado em
função das transgressões cada vez mais freqüentes dos jurua que não conhecem os aspectos
simbólicos e estruturais que asseguram a sua preservação. Assim, os mitos explicam que os
Mbyá são os eleitos de Ñanderu para proteger o planeta de sua destruição e salvaguardar os
conhecimentos necessários para se trilhar o caminho de volta à Terra Sem Males (Yvy Mara
Ey) onde se é possível viver a eternidade livre das doenças e da morte.
4.2 Processo Saúde-Doença : o Discurso Oficial
Conforme abordado anteriormente, os Guarani Mb habitantes das aldeias Boa
Esperança (Tekoa Porá), Três Palmeiras (Boapy Pindo) e Piraquê-Açu há décadas vêm
experimentando profundas modificações em seu modo de vida face às dificuldades que lhes
impõem a degradação do ecossistema nativo e a precariedade de condições de subsistência.
116
Langdon (2004, p.36) sinala que os povos indígenas que se encontram em semelhante
condição “se caracterizam por uma situação sanitária semelhante aos grupos pobres da
população geral: alta incidência de desnutrição, tuberculose, problemas de saúde bucal,
parasitas, alcoolismo e mortalidade infantil.”
Muito embora os Mbyá de Aracruz mantenham relações com o seu entorno social ao
longo de décadas, procuraram manter durante anos a sua base nutricional e farmacológica
apoiada na agricultura familiar e na prática de coleta, complementando parte de suas
necessidades com alguns alimentos e medicamentos adquiridos com os poucos recursos
disponíveis, até que esta situação foi se tornando insustentável.
Ninom Rouze, ex-enfermeira da Funai e nutricionista que viveu junto aos Guarani,
relembra que:
A alimentação não era a alimentação tradicional mesmo desde que eu cheguei
(1989), mas ainda todo mundo tinha sua roça de mandioca, todo mundo tinha sua
batata, se colhia avati. O capitão cuidava da produção do alimento, dirigia as roças,
então se colhia mandioca, amendoim, feijão todo ano, aipim. Agora ninguém está
mais plantando sua rocinha, e aqueles que plantam também estão desestimulados.
Agora é a história da monocultura. (CICCARONE, 2001, p.39).
As pressões fundiárias originadas com o avanço da eucaliptocultura sobre o território
Guarani redundou na destruição da matas, na degradação do solo e na redução drástica dos
recursos hídricos confluindo para um redimensionamento das necessidades sócio-econômicas
dos índios frente a dependência cada vez maior dos serviços e produtos externos. Dessa
forma, merece destaque especial a dificuldade atual que encontram para se adaptar às regras
da sociedade de consumo que vincula a quantidade e a qualidade dos produtos consumidos à
renda familiar, o que vem redundando, cada vez mais, em problemas de saúde que tem como
causa principal, a falta de investimentos em infra-estrutura socio-econômica e ambiental.
Os dados explorados neste capitulo consistem em relatórios anuais da Fundação
Nacional de Saúde que se dividem em informações sobre os atendimentos ambulatoriais,
117
hospitalares e óbitos referentes aos anos de 2004, 2005 e 2006. Vale destacar que eles não
possibilitaram um viés de análise mais aprofundado dos coeficientes específicos de morbi-
mortalidade entre os Guarani de Aracruz, tendo em vista que a sistematização dos mesmos
não obedece a critérios específicos de diferenciação entre este grupo étnico e os Tupiniquim,
salvo em algumas modalidades de exposição.
As informações disponíveis mostram, no entanto, que as peculiaridades étnicas, as
relações sociais, ambientais, econômicas e religiosas que definem diferenças importantes na
forma como os indivíduos de grupos culturalmente distintos vivenciam o processo saúde-
doença, não são consideradas na sistematização destes dados e muito menos na
implementação de estratégias diferenciadas de atuação intersetorial de promoção, proteção e
recuperação da saúde indígena na região.
4.2.1 Estrutura do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Município de Aracruz
A atenção à saúde dos Guarani é desenvolvida por uma equipe contratada do
município de Aracruz pela Fundação Nacional de Saúde, composta por uma enfermeira, duas
técnicas de enfermagem, dois auxiliares de serviços gerais, uma médica ginecologista, uma
médica pediatra, um assistente social, uma nutricionista e dois agentes de saúde, totalizando
11 servidores. Os médicos, a assistente social e a nutricionista atendem em mais três unidades
de saúde indígena Tupiniquim em dias alternados. As atividades ambulatoriais são
desenvolvidas no posto de saúde que se encontra radicado na aldeia Boa Esperança e os
atendimentos hospitalares se dão no Hospital São Camilo que se encontra radicado no bairro
de Coqueiral. O Hospital das Clínicas (HUCAM) também recebe incentivo financeiro para o
118
atendimento da população indígena, não obstante, a maioria dos atendimentos e internações se
dá na primeira instituição citada.
Em 2005 iniciou o funcionamento do Pólo Base em Caieiras Velha, onde trabalha uma
equipe de saúde composta por quatro servidores contratados através do convênio 1340
celebrado em 2004 entre a Missão Evangélica Kaiuá e a FUNASA. Segundo as informações
contidas no relatório FUNASA 2006, o Pólo Base estava funcionando precariamente em um
local cedido pela Associação Indígena Tupiniquim/Guarani (AITG) na aldeia de Caieiras
Velha, onde funcionava uma farmácia que dispunha de uma pequena quantidade de fármacos
armazenados de forma inadequada. O Polo Base encontra-se ligado à competência
administrativa do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que tem sede em Governador
Valadares (MG) e presta assistência concomitante aos indígenas do estado de Minas Gerais.
4.2.2 Saúde da Criança e o Risco Nutricional
Em Maio de 2004 foi registrado que 13,2 % do total das crianças indígenas menores
de 5 anos de todas as aldeias de Aracruz encontravam-se em risco nutricional, sendo referido
aos Guarani uma proporção de 88% superior à etnia Tupiniquim. Segundo o relatório anual da
Funasa, foram realizadas ações de acompanhamento das crianças com riscos nutricionais pela
Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena e foram criados, também, quatro grupo de
mulheres indígenas com o objetivo de difundir práticas de promoção e proteção da saúde
entre as mães e as crianças. No mês de Novembro as taxas de prevalência de desnutrição e
risco nutricional caíram para 8, 43 %, havendo uma redução em 36,1% dos casos em 6 meses.
119
A redução das taxas foi maior na etnia Tupiniquim, ao passo que as taxas observadas nas
crianças Guarani sofreram uma elevação considerável, chegando a índices alarmantes de 108
% neste mesmo mês.
Tabela 4 Crianças Guarani de 0-5 anos desnutridas e em risco nutricional nos
levantamentos de Maio a Novembro de 2004
Fonte: FUNASA (2004)
Em 2005 foram realizados levantamentos pela Secretaria Municipal de Saúde em 30
crianças indígenas Guarani. A sistematização desses dados possibilitou identificar as
seguintes prevalências nessas crianças:
Tabela 5 Resultado dos exames parasitológicos de fezes realizados nas crianças Guarani
em 2005
Parasitas Número de casos %
Exames sem Alteração 7 23.3
Exames Alterados 23
76.7
Entamoeba coli 10
33.3
Ascaris lumbricoides 9 30
Giárdia lambia 4 13.3
Entamoeba histolytica 2 6.6
Fonte: FUNASA (2005)
O relatório Funasa 2005 assegura que 91,9% das residências indígenas Tupiniquim e
Guarani são abastecidas por rede geral de água tratada com cloro e que a destinação final dos
dejetos se dá principalmente para fossas absorventes. Entretanto, conforme abordado em
alguns estudos (BERTOLANI, 2005, VEIGA et al, 2004), é consenso entre os indígenas que a
qualidade da água é duvidosa, pois, consideram não ser boa para consumo humano devido à
Aldeias População menor do que 5 anos Crianças abaixo do percentil 10
Total %Total Total %Total
Maio
Maio Novembro Novembro
Boa Esperança 15
5 33.3 4 26.6
Piraquê-Açu 2
0 0 0 0
Três Palmeiras 42
8 19.0 5 11.90
TOTAL
59
13 22.0 9 15.25
120
quantidade exagerada de cloro e de coliformes fecais. O depoimento de uma ex-agente de
saúde da aldeia Três Palmeiras reforça a crença de que a água é uma das principais
propagadoras de doenças diarréicas entre os pré-escolares das aldeias Guarani. Segundo ela,
“aqui muito diarréia. Eu acho que é por causa da água né, a gente acha que é por causa da
água. A criança num outro dia bem, no outro dia com diarréia, derrepentemente tá
com diarréia. O pessoal da FUNASA, eles faz análise dentro de 2 em 2 meses [...] Eles acha
que não tem nada.”(PELLON, 2005, p.45, mimeo)
O estreitamento das relações entre povos indígenas e sociedades tecno-industriais tem
sido descrito como o principal motivo de alterações no estilo e na qualidade de vida desses
grupos, onde as transformações econômicas aliadas aos impactos ambientais são as de maior
visibilidade. A redução da base territorial, associada ao crescimento populacional rápido e à
sedentarização tem um papel preponderante na propagação de infecções que dependem da
contaminação ambiental, tal como as verminoses, as gastroenterites e a cólera.
(CONFALONIERI, 1993).
Dessa forma, em 2006 foram registrados 26 casos de desnutrição entre as crianças com
12 a 23 meses e 29 dias (1 ano), sendo esses dados sistematizados de forma abrangente, sem
diferenciá-los por etnia ou aldeia. É importante ressaltar que a população referente a esta
faixa etária na época era constituída de 102 crianças Tupiniquim e 19 Guarani, perfazendo um
montante de 121 infantes menores de dois anos no total.
As doenças respiratórias ocupam também, uma categoria de destaque no perfil de
morbidade infantil entre as crianças indígenas de Aracruz. Foram registradas 12 internações
por pneumonia para um total de 400 crianças menores do que cinco anos, sendo 49 Guarani e
351 Tupiniquim. Um quadro alarmante é, todavia, descrito através da expressão numérica de
49 casos de insuficiência respiratória aguda (IRA) em crianças menores de dois anos, em
contraponto aos outros relatórios que não se referem a esta categoria. A possibilidade de
121
subnotificações ou diluição desses dados nos relatórios anteriores não deve ser descartada,
tendo em vista que as internações decorrentes de doenças respiratórias constituem a segunda
maior causa de internação nestes anos.
Os dados explorados apontam para um fracasso sob o ponto de vista sanitário junto
aos Guarani e suscitam reflexões a respeito da adequação dos conceitos e recursos
mobilizados pelos diferentes atores comprometidos com a promoção, a proteção e a
recuperação da saúde indígena aos valores simbólicos que servem de referência à vida
individual, familiar e social no tekoa.
4.2.3 Enfermidades Crônico-Degenerativas: um Reflexo das Transformações Sociais
Sob o ponto de vista epidemiológico, é possível afirmar que as manifestações das
doenças crônicas não transmissíveis em populações indígenas expressam um estágio
avançado de transformações no estilo e na qualidade de vida desses povos. Como decorrência
da continuidade das transformações econômicas e sociais observa-se o esgotamento da base
tradicional de subsistência e conseqüentemente, a intensificação de troca com a sociedade
moderna, aumentando a dependência de novas práticas alimentares. Estas por sua vez vão
favorecer a aterogênese, a carcinogênese, a nutrição, a deterioração dentária e a
emergência das doenças de etiologia complexa, ou seja, as enfermidades crônico-
degenerativas. (CONFALONIERI, 1993).
Vieira Filho (1977) já diagnosticara a prevalência de diabetes mellitus em grupos
indígenas que atravessaram profundas transformações em seu estilo de vida, indo da condição
de caçadores e coletores para agricultores que passaram a basear seu sustento na farinha da
mandioca, na cana-de-açúcar e no pescado.
122
Vários grupos indígenas norte-americanos que muito experimentaram um processo
de transformação de seus hábitos tradicionais, adotando sistematicamente comportamentos
ocidentalizados, expressam números alarmantes de diabetes mellitus e Síndrome de
Resistência Insulínica (SRI)
16
, referenciados por Viera Filho. O sedentarismo, a
alimentação rica em hidratos de carbono e a obesidade são observados atualmente em grande
parte dos povos indígenas dos Estados Unidos constituindo determinantes essenciais para a
alta prevalência de diabetes mellitus e SRI.(Ibid).
Com relação aos fatores de risco encontrados nos índios norte-americanos foi
postulada a ocorrência do chamado Thifty gene, ou genótipo de poupança, que apresentaria
função reguladora no armazenamento energético sob a forma de gordura em momentos de
grandes privações alimentares, como em secas prolongadas e grandes invernadas. Este fator
genético passaria a representar uma incapacidade de adaptação metabólica aos padrões
impostos pela ocidentalização dos costumes, contribuindo para o surgimento da obesidade e
das disfunções metabólicas que confluem para o descontrole dos níveis glicêmicos. (HALL et
al, 1991; NELL, 1962; SZATHMÁRY, 1994 apud CARDOSO; MATTOS; COIFMAN,
2003).
Os resultados de pesquisas recentes mostram que os Guarani Mbyá do estado do Rio
de Janeiro apresentam prevalências elevadas de fatores de risco para o desenvolvimento da
SRI como prevalências elevadas de sobrepeso, de obesidade central, de hipertriglicemia, de
HDL- colesterol baixo, sobretudo no sexo feminino e encontram-se em uma situação
intermediária entre os grupos populacionais comparados quanto à expressão fatores de risco
cardiovasculares. (CARDOSO; MATTOS; COIFMAN, 2003 ).
16
“A fisiopatologia da SRI tem sido descrita como decorrente de uma resistência dos tecidos periféricos à
insulina e o surgimento de hiperinsulinemia compensatória, acarretando repercussões sobre a distribuição e o
acúmulo corporal da gordura, dos níveis glicêmicos, lipêmicos e de pressão arterial”.(CARDOSO, MATOS E
COIFFMAN, 2003, p.170)
123
Pouco se sabe sobre a hipertensão em grupos indígenas do Brasil, contudo, os casos
diagnosticados apontam para povos que experimentaram mudanças contínuas no seu estilo de
vida nos últimos anos, como os Xavantes de Pimentel Barbosa.
Este grupo foi estudado em dois períodos distintos, primeiramente na década de 1960
e em um segundo momento 30 anos após, quando apontaram aumento significativo nos níveis
tensionais sistólicos e diastólicos, acompanhados também, de um aumento nas médias do
índice de massa corporal e diminuição das atividades físicas. Acredita-se que estes fatores
predispuseram este povo à hipertensão e às doenças cardiovasculares atualmente.
(COIMBRA; SANTOS, 2003).
As informações disponíveis não possibilitam traçar um diagnóstico preciso sobre os
indicadores atuais de doenças crônicas como a hipertensão arterial e o diabetes mellitus nos
Guarani do Espírito Santo, tendo em vista que a sistematização dos dados não obedece aos
critérios de diferenciação étnica no último relatório. É interessante destacar que o povo
Tupiniquim há muito convive com altos índices dessas doenças, refletindo claramente a
precocidade das transformações alimentares e comportamentais que vem se radicando cada
vez mais no estilo de vida dos Guarani da região atualmente.
Os Guarani são incluídos em uma categoria junto com a população Tupiniquim da
aldeia Pau Brasil sem discriminação por tipo de diabetes, apontando para 17 portadores da
doença no ano de 2006, sendo que, os Tupiniquim correspondem pela maioria dos casos,
segundo o relatório. Quanto ao número de hipertensos para este mesmo ano somam-se 44
casos diagnosticados ente ambos os grupos dessas aldeias, o que alerta para a possibilidade de
emergência dessas doenças entre os Guarani de Aracruz.
A emergência de doenças crônicas não transmissíveis como o diabetes mellitus, a
hipertensão arterial, as cardiopatias e as diferentes manifestações oncológicas transparecem
como um termômetro real das transformações sociais, econômicas, ecológicas e culturais dos
124
povos indígenas. Sugerem, todavia, a necessidade de se delinear por parte dos atores
envolvidos na promoção, proteção e recuperação da saúde indígena, reformas estruturais que
garantam condições de desenvolvimento da vida em sua amplitude cultural, social, ambiental
e econômica.
O estímulo ao diálogo intercultural, a identificação conjunta das situações de risco e
vulnerabilidade e a promoção de hábitos e ambientes saudáveis dentro da perspectiva de
atenção diferenciada devem constituir prioridades nas práticas voltadas à redução das tensões
causadoras de impactos diretos e indiretos no processo saúde-doença a curto, médio e longo
prazo na população indígena de Aracruz.
4.2.4 Saúde Bucal, Uma Situação de Precariedade
Os dados disponíveis possibilitam traçar uma íntima relação entre carência nutricional,
problemas dentários e emergência de doenças crônico-degenerativas, tendo em vista que esses
agravos são os reflexos de problemas estruturais mais amplos como os de ordem econômica,
ambiental e cultural que impedem a realização de práticas mais abrangentes de promoção,
proteção e recuperação da saúde indígena. A conjunção desses fatores aponta para a ausência
de estratégias que garantam a universalidade, a equidade e a integralidade das ações, fazendo
com que a população indígena sofra as conseqüências ainda maiores decorrentes da
terceirização dos serviços de atenção à saúde.
A falta de pastas e escovas dentais foi descrita como prejudicial ao andamento das
atividades de promoção de saúde bucal. A precariedade dos equipamentos odontológicos foi
relatada, também, como um fator extremamente prejudicial às atividades curativas, pois, mais
da metade da população indígena não recebeu, em 2005, qualquer tipo de atendimento em
consultório odontológico.
125
Apesar dos dados não possibilitarem um viés de análise mais específico para a
população Guarani eles apontam para uma situação de extrema precariedade da saúde bucal
entre ambos os povos indígenas do Espírito Santo, com persistência de altos coeficientes de
intervenções cirúrgicas e restauradoras, refletindo as tensões que se originam na tentativa de
se conjugar interesses distintos com a finalidade de se promover saúde em sua ampla
dimensão.
4.2.5 Saúde da Mulher e as Doenças Sexualmente Transmissíveis,
No ano de 2004 os casos de DSTs somaram 94 ao todo, índice que se reduziu para
cinco casos registrados em 2005, somente. A ocorrência maior em 2004 foi de infecção por
Gardnerella vaginalis que representou 56,4% do total dos casos, perfazendo 53 registros. A
segunda maior ocorrência neste mesmo ano foi de Candidíase com 22,3% das notificações
perfazendo um total de 21 casos. Todos os casos de DSTs foram diagnosticados em mulheres,
sendo registrado recusa unânime de seus parceiros em procurar o posto de saúde. Destaca-se
que a especificação feita em 2005 foi referente aos casos diagnosticados na aldeia Tupiniquim
de Comboios somente, sendo dois casos de sífilis e três por Gardenerella vaginalis.
Entretanto, chama a atenção no ano de 2004, a ocorrência de quatro casos de infecção
por Papiloma Vírus Humano em mulheres e a sua invisibilidade nos relatórios seguintes, pois,
segundo Passos (2005), o HPV é o principal agente causador de câncer de colo do útero
mundialmente e responsável por 300% dos casos de neoplasias de alto grau. É importante que
se considere sua grande propensão disseminativa e cronificante para se contemplar possíveis
subnotificações nos relatórios seguintes. O mesmo se aplica às demais doenças sexualmente
transmissíveis.
126
4.2.6 Gravidez, Parto e Puerpério em uma Relação Intercultural
Os dados diponíveis apontam para a ausência quase completa de partos domiciliares.
A categoria Gravidez, Parto e Puerpério tem sido disparada, a maior causa de internação na
população indígena de Aracruz. No período compreendido entre os anos de 2004 e 2006
houve um parto domiciliar registrado, mais precisamente em 2005, para um coorte
considerado pela pesquisa de mulheres entre 15 e 49 anos, compreendendo 1.7 mil
Tupiniquim e 171 Guarani.
Tabela 6 Informações sobre partos e nascimentos na população Tupiniquim e Guarani
Entre os anos 2004 e 2006
TIPOS DE PARTO 2004 2005 2006
Parto Normal 52 24 62
Parto Cezáreo 14 8 16
Parto Domiciliar 0 1 0
Abortos 4 1 0
Natimortos 1 0 0
Nascidos Vivos 65 32 7
Fonte: FUNASA (2004, 2005, 2006)
É necessário destacar que o valor cultural atribuído ao parto “normal” não é o mesmo
para os Guarani e para os Juruá (homens bancos). Entretanto, é inegável que um diálogo
intercultural de “mão única” esteja se dando neste contexto, onde as mulheres indígenas estão
procurando o hospital de uma forma unânime para a realização do parto, em detrimento de um
acompanhamento pelas parteiras autóctones.
É importante realçar, também, que dificilmente as mulheres Guarani expõem aspectos
importantes de sua cultura quando não se sentem à vontade para faze-lo, não demonstrando
127
que existem necessidades importantes que se escondem por detrás do silêncio e da quietude
daquelas que vão dar a luz no hospital. Dessa forma, é notório que as instituições envolvidas
com a atenção à saúde indígena devem empreender esforços para o gerenciamento das
relações interculturais, investindo na capacitação de seus profissionais e na conseqüente
redução das situações de tensão na busca pelo atendimento às necessidades reais de atenção
diferenciada em saúde, onde certamente, as parteiras devem ser envolvidas.
4.2.7 Atendimentos Ambulatoriais, Internações e Óbitos na População Indígena de
Aracruz: um Retrato das Tensões Interculturais
Destacam-se como principais causas dos atendimentos ambulatoriais e internações
hospitalares, alguns agravos que, quando observados em sua tessitura, traduzem um quadro
evidente de falta de acesso aos elementos determinantes de qualidade de vida e saúde. Os
dados explorados são reveladores em apontar impactos provenientes das relações assimétricas
de poder político, econômico, social e cultural que permeiam as mediações entre povos
indígenas e sociedade local e global na busca pelo fortalecimento dos determinantes de saúde
e qualidade de vida.
O grande número de atendimentos por problemas ortopédicos e dorsalgias, expressa,
possivelmente, uma íntima relação com o desempenho de atividades ocupacionais de plantio,
manejo e corte de eucaliptos, uma das poucas formas de sobrevivência na região. Essa relação
fica bem ilustrada quando associada aos coeficientes, também, elevados, de procedimentos de
Raio X de coluna que se encontram descritos na tabela 8. Se por um lado, os povos indígenas
do Espírito Santo refutam ideologicamente o modelo monocultor da eucaliptocultura
implementada cadas pela empresa Aracruz Celulose em suas terras e arredores, por
128
outro, se vêem impulsionados pelo ganho certo e imediato proveniente desse trabalho para a
subsistência de muitas famílias devido à inexistência de investimentos em outras parcerias
economicamente viáveis.
Tabela 7 Atendimentos ambulatoriais na população Tupiniquim e Guarani
ATENDIMENTOS AMBULATORIAIS 2004
2005
Anemia 36
45
Diabetes Mellitus 46
47
Epilepsia 3
7
Hipertensão Arterial 302
182
Otite 132
31
Doenças do Trato Respiratório Superior 500
216
Pneumonia 57
38
Tuberculose 1
0
Asma 71
52
Gastroenterite 62
9
Parasitose Intestinal 102
45
Transtornos Mentais e Comportamentais 1
4
Paralisia Infantil 0
1
Piodermite 121
91
Dermatomicose 59
35
Parasitose Superficial 14
55
Neoplasia 1
0
Dorsalgia 58
11
Traumatismos 10
2
Fonte: FUNASA (2004, 2005)
Os elevados coeficientes de atendimentos oftalmológicos chamam a atenção por
superarem os de pediatria, cardiologia e angiologia no ano de 2006. Entretanto, merece
destaque especial para este mesmo ano, os atendimentos especializados em psiquiatria,
neurologia e neuropediatria, pois, segundo Confalonieri (1993, p.18):
Como último desenvolvimento possível das transformações econômicas e sociais
surgem os desequilíbrios psicossociais, onde o alcoolismo e as violências
constituem suas conseqüências extremas. Esses constituem o pior dos flagelos pois,
para sua prevenção , não existem nenhuma tecnologia médica ou esquema de
atenção sanitária adequados.
129
Tabela 8 Atendimentos especializados na população Tupiniquim e Guarani em 2006
ATENDIMENTOS ESPECIALIZADOS 2006
Ortopedia 21
Otorrinolaringologia 55
Oftalmologia 200
Psiquiatrria 21
Neurologia 13
Cardiologia 41
Pediatria 45
Neuropediatria 8
Ginecologia 7
Angiologia 10
Mamografia 53
RX de Coluna 45
Fonte: FUNASA (2006)
As internações no hospital da rede referenciada apresentaram certa homogeneidade
causal nos últimos anos, o que tornou possível considerar uma escala hierárquica entre ambas
as categorias e os fatores associados. A industrialização da região provocou modificações
estruturais abrangentes, como a degradação do solo, do lençol freático, a poluição do ar
atmosférico e o confinamento territorial, associado ao aumento da concentração demográfica
dos povos indígenas Tupiniquim e Guarani. Dessa forma, as altas taxas de internação por
gravidez, parto e puerpério, já discutidas anteriormente, e os elevados coeficientes de doenças
do aparelho respiratório, digestivo e circulatório são o reflexo das transformações de ordem
estrutural e simbólica ocorrida entre os grupos indígenas de Aracruz nas últimas décadas.
Tabela 9 Causas de Internação na População Tupiniquim/Guarani
CAUSAS DE INTERNAÇÃO 2004
2005
2006
Gravidez, parto e puerpério 52.2%
36.5%
46.6%
Aparelho respiratório 10.3%
21.1%
15.5%
Aparelho circulatório 4.4%
2.8%
3.1%
Aparelho geniturinário 4.4%
6.7%
2.5%
Aparelho digestivo 2.95
10.5%
6.2%
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Aracruz (2004, 2005, 2006)
130
O relatório anual de 2006 faz menção especial aos casos de óbito, referindo que suas
principais causas foram as “externas” (afogamento e agressão física) que representaram 40%
do total e foram associadas, em parte, às tensões que eclodiram entre povos indígenas e a
sociedade envolvente, fortemente influenciada pelas manipulações midiáticas da Empresa
Aracruz Celulose. Dessa forma, o documento muito bem ilustra o quadro de conflitos
decorrentes dos interesses distintos sobre assuntos comuns a ambos os grupos na busca de
melhores condições de qualidade de vida e saúde.
Tabela 10 Taxas de Óbitos na População Tupiniquim e Guarani
ÓBITOS (CAUSAS) 2004
2005
2006
Doenças do aparelho circulatório 2
0
1
Doenças do aparelho respiratório 2
0
2
Doenças do aparelho digestivo 1
0
0
Doenças do aparelho geniturinário 0
1
0
Doenças metabólicas 0
1
0
Neoplasias 0
0
1
Ferimento causado por arma branca 0
0
1
Afogamento 0
0
2
Agressão física 0
0
1
Sem causa definida 0
0
2
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Aracruz (2004, 2005, 2006)
A dificuldade de se estabelecer parâmetros precisos sobre a situação de saúde dos
Guarani Mbya do Espírito Santo devido à não categorização dos coeficientes disponíveis por
aldeias ou etnias, pela descontinuidade no fluxo das informações e pela subnotificação dos
dados demonstra a fragilidade do modelo adotado para nortear a implementação de programas
de atenção à saúde para e com esses povos. As tensões se estendem às esferas políticas locais
e inviabilizam a transferência de informações e a articulação entre os órgãos envolvidos com
a atenção à saúde indígena, impedindo a solidificação de vínculos intersetoriais de promoção,
proteção e recuperação da mesma, conforme pontuado nesses documentos.
131
A constatação de que os principais determinantes de saúde se situam fora dos setores
responsabilizados pelo seu tratamento não é algo novo. A Declaração da Primeira Conferência
Internacional de Promoção de Saúde realizada em Otawa (1986), Canadá, postulou a íntima
relação entre saúde e qualidade de vida, como resultado da multiplicidade de fatores que lhes
são determinantes, tais como: os políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais,
comportamentais e biológicos.
Contudo, embora os estudos epidemiológicos possibilitem conhecer as desigualdades
de acesso aos bens e serviços determinantes de qualidade de vida e saúde, mostram-se, ainda,
insuficientes para esclarecer a forma como os sujeitos vivenciam os eventos mórbidos e quais
os recursos materiais e simbólicos legitimados socialmente para se promover, proteger e
recuperar a saúde em sua ampla dimensão.
Buchillet (2004) sinala que é imprescindível que os profissionais de saúde não se
limitem às definições ocidentais das patologias e invistam em conhecimentos sobre as
nosologias indígenas, para identificar como os índios nomeiam e categorizam os sintomas e
os agrupam em entidades patológicas. Fica claro que sem este empreendimento corre-se o
risco de se anular a co-produção de sujeitos e instituições comprometidos com a co-
construção de um modelo de atenção à saúde baseado no respeito, na valorização e no diálogo
entre as diferenças étnico-culturais, conforme preconiza a Política Nacional de Atenção à
Saúde Indígena (2002). Resta afirmar que cada aldeia, independente de etnia, possui suas
peculiaridades sociais, culturais, econômicas e políticas que influenciam de forma direta e
indireta no processo saúde-doença.
132
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Através do desenvolvimento desta pesquisa que tem como objeto, “As tensões
interculturais que impactam o processo saúde-doença na população Guarani Mb do
município de Aracruz no estado do Espírito Santo”, tivemos a oportunidade de nos aproximar
da forma como alguns membros desse grupo étnico radicados nessas aldeias entendem saúde-
doença e mobilizam recursos simbólicos e materiais para lidar com este processo.
No intuito de alcançar os objetivos propostos, criamos um instrumento de coleta de
dados que possibilitou explorar através dos depoimentos dos sujeitos da pesquisa, os impactos
no processo saúde-doença decorrentes das tensões nos relacionamentos interculturais entre os
Guarani dessas aldeias e o seu entorno social, suas instituições, valores e práticas.
Assim, foram entrevistadas onze pessoas no total, entre lideranças nativas
17
, agentes
indígenas de saúde e educadores indígenas, todos membros do grupo Guarani das aldeias
localizadas no município de Aracruz, no estado do Espírito Santo. Optamos por entrevistar as
lideranças locais face ao seu profundo conhecimento a respeito dos saberes autóctones, assim
como, dos conflitos que emergem das articulações e confrontos políticos com a sociedade em
âmbito local e global, pois, segundo Onocko Campos e Campos (2006, p.674), “a política
deveria ser (e é, ainda que não consigamos apreciar este fato) ponto de criação e de regulação
de autonomia.” Da mesma forma, consideramos importante entrevistar os agentes indígenas
de saúde e educadores indígenas por conhecerem bem as tensões que permeiam as relações
interculturais no exercício de sua função, campo evidente de co-construção de autonomia
17
Caciques, ex-caciques, pajés e anciãos.
133
entre os diferentes sujeitos envolvidos com a promoção, proteção e recuperação da saúde
indígena.
A coleta de dados possibilitou identificar diferentes modos de discurso que
caracterizavam as posições sociais que os depoentes ocupavam em seu grupo. Os discursos
dos anciãos foram pontuados, de uma forma geral, pela lembrança da sua responsabilidade em
salvaguardar os saberes xamânicos através do desempenho da função de conselheiros internos
e reguladores dos infortúnios sociais, demonstrando descontentamento com relação à falta de
compromisso das novas gerações com os valores e práticas essenciais à manutenção da vida
social no tekoa (aldeia). Os discursos das demais lideranças
18
que se encontravam ligadas ao
poder dos caciques ou até mesmo de certos núcleos familiares de maior representatividade
política nas suas aldeias, destacaram-se pela propriedade com que tratavam os assuntos
relativos aos interesses atuais da coletividade, as articulações e as tensões internas e externas
decorrentes dos relacionamentos interculturais, demonstrando certo grau de autoridade em sua
fala que os diferenciava dos outros depoentes, confirmando as observações de Pizzolato
(2006, p.60):
Tais “lideranças” manifestam-se ora como falas que querem afirmar-se frente a
outra na aldeia, ora como representantes do cacique, que convoca entre as mesmas
indivíduos que o representem ou à “comunidade” em contextos de participação
extra-aldeã, geralmente envolvendo negociações com outras localidades mbya e
com os brancos.(grifos do autor).
Fora destes contextos de afirmação política e de autoridade xamânica, foi possível
identificar de forma unânime, um discurso Mbmarcado pela tranqüilidade e serenidade no
falar e ouvir, caracterizando extrema diplomacia na maneira de lidar com os seus pares e com
a alteridade.
Os dados foram reveladores em apontar impactos na maneira de se viver a saúde em
sua dimensão ampliada, que engloba para os Guarani, os aspectos simbólicos e materiais
134
como os seus determinantes principais. As tensões identificadas no âmbito dos
relacionamentos interculturais foram descritas como determinantes para a escolha do
itinerário terapêutico a ser seguido pelos sujeitos em caso de enfermidades, evidenciando
como a aceitação ou refração dos recursos e dos agentes das instituições públicas envolvidas
na prestação dos serviços de atenção à saúde exercem, também, importantes influências no
processo saúde-doença.
Procuramos analisar e discutir os impactos identificados, contrapondo o real e o ideal,
apoiando-nos para isto, nas propostas político-normativas que dispõem sobre o
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no que tange à melhoria da sua qualidade de
vida e saúde.
Atendendo ao critério de repetição e relevância, proposto por Turato (2003) como
essencial para o agrupamento dos dados, emergiram as seguintes categorias, a saber:
Processo Saúde-Doença em uma Dimensão Espaço-Temporal;
Tensões Interculturais e a Atenção à Saúde Guarani, uma Mediação entre o Local e o
Global.
O método de análise de conteúdo foi definido em seus primórdios pelo norte-
americano Bernard Berelson, em seu livro Contents Analysis in Communications Research ,
publicado em 1952, como: “[...]uma técnica de pesquisa para a descrição objetiva, sistemática
e quantitativa do conteúdo manifesto na comunicação.” (BERELSON, 1952, p.18 apud
TURATO, 2003, p.443).
Apesar de a metodologia tradicional recomendar a sistematização quantitativa dos
dados brutos, Turato adverte para o fato de que a sua transformação em dados trabalhados não
deve necessariamente apoiar-se em métodos matemáticos, pois:
É questionável que a abordagem qualitativa requeira a matematização das
ocorrências em que se configure uma reiteração de falas (freqüência calculada), mas
18
Lideranças que não são anciãos, mas exercem importantes funções políticas no seu grupo.
135
devemos entender que o critério da repetição de colocações por parte dos sujeitos
informantes é apenas um critério que sugere ao interpretante uma certa atenção às
falas para tornarem-se possivelmente um tópico categorizado. (TURATO, 2003,
p.446).
Deste modo, o autor ressalta que a formalidade metodológica não deve repousar na
regularidade do surgimento do elemento pesquisado no conjunto de todo o material
registrado, mas, na busca da essencialidade do fenômeno estudado. Turato (2003, p.452),
recomenda aos pesquisadores que utilizam este método de análise/tratamento dos dados, que
tenham em mente que “as palavras embutem silêncios” e, portanto, os mesmos devem discutir
os dados sem ficar colado ao que foi concretamente falado nas entrevistas, “já que palavras,
paradoxalmente, são emudecedoras das verdades subjacentes.”
Em concordância com este princípio metodológico, é importante destacar que o
critério para o agrupamento, sistematização e discussão dos dados desta pesquisa teve como
objetivo central, identificar os mitos, símbolos e sentidos mais profundos que se reiteraram
nos enunciados, mesmo que, sob o véu das diferenças que poderiam configurar falsas
categorias. Na busca por conduzir a categorização e interpretação dos dados à essência do que
se propõe a dissertação, foi preciso destacar enunciados que, por ampliar o espectro da
linguagem, permitiram que se ampliasse o olhar acerca dos significados e dos fenômenos
ligados à saúde-doença.
Para atender ao critério de diferenciação dos temas evidenciados através da fala dos
sujeitos da pesquisa, foram criadas oito subcategorias dentro das duas categorias principais,
em função da repetição com que foram abordados os temas e da relevância social que lhes foi
atribuída pelos enunciantes. Dessa forma, a repetição e a relevância com que a essência do
conteúdo aparecia na falas dos depoentes foi o critério determinante para a sua diferenciação
em subcategorias distintas.
136
As contribuições dos relatos que se destacam do conjunto das repetições podem
também, segundo o autor, tornarem-se categorias de análise, desde que encaminhem a
discussão para o pressuposto inicial do projeto, como destaca:
O outro critério, o da relevância, fugindo portanto a uma certa ortodoxia da classe de
análise de conteúdo, trata-se de considerar em destaque um ponto falado sem que
necessariamente apresente certa repetição no conjunto do material coletado, mas
que, na ótica do pesquisador, constitui-se de uma fala rica em conteúdo a confirmar
ou refutar hipóteses iniciais da investigação.(Ibid, p.446).
Neste sentido, partimos do princípio que a noção de cultura aponta para a relação do
homem com o mundo a partir das conversações que marcam suas relações com o outro
através da linguagem, instrumento que antecede todas as suas características fundadoras. A
linguagem não antecede como é a ação geradora das características culturais
(MATURANA, 2004), pois é nela e por meio dela que é construída a leitura da vida com seus
significados, valores e práticas que refletem a totalidade das relações em sociedade. A
linguagem configura-se como elemento central para a compreensão do homem como ator e
sujeito das suas transformações sociais, culturais e históricas e a língua transparece, assim,
como um signo, um instrumento, um material concreto que possibilita que as ideologias se
expressem na materialidade. (SOUZA, 2001).
Segundo Bakhtin (1930, p.4), todo discurso é dotado de uma natureza ativamente
responsiva, pois, “todo enunciado é feito em função de um ouvinte, isto é, da sua
compreensão e da sua resposta”. Isto implica, necessariamente, em compreender os
enunciados enquanto produto de uma relação hierárquica e social entre os interlocutores que
determina a formulação social dos “gêneros do discurso”. Os gêneros são as regras do dizer,
que definem o que é dizível e não dizível no diálogo entre membros dos diferentes sistemas
culturais e lingüísticos. (BAKHTIN, 1930,1992).
137
Apoiando-nos nestes conceitos, entendemos que os Guarani contemporâneos são
bilingües, falam a sua língua materna e o português ou o espanhol e, portanto, transitam entre
duas linguagens de mundo que lhes possibilitam dialogar com duas formas, também, de
entender saúde e doença e de conjugar recursos para lidar com o processo.
Para uma compreensão mais aproximada dos conteúdos dos enunciados Guarani feitos
em língua portuguesa é necessário que se leve em conta as limitações impostas pela situação
histórica determinante para a utilização do gênero do discurso a ser utilizado atualmente nos
diálogos com os representantes da sociedade ocidental. Analisar e discutir os conteúdos
existentes nas entrelinhas destes enunciados implica necessariamente abordá-los como fruto
de uma ideologia construída em cinco séculos de contato intercultural, marcados pelo conflito
e pela tensão com o outro, representado na figura do homem branco invasor e ameaçador e
consubstanciado genericamente na figura do pesquisador.
O trabalho intercultural exige que o profissional de saúde empreenda esforços para
compreender a dimensão ecológica, social, religiosa e lingüística do grupo com o qual atua e
as expressões culturais que emergem da interação com outras realidades sociais. É necessário
compreender também como essas relações influenciam a forma como as pessoas do grupo
vivenciam saúde e doença e quais os recursos materiais e simbólicos mobilizados para manter
um equilíbrio no processo. A Organização Panamericana da Saúde ressalta que:
En este universo dinámico, la búsqueda de estrategias conjuntas en el abordaje del
nexo salud-enfermidad, implica una reconceptualización de las prácticas de los otros
y el encuentro de dos o más visiones sobre las posibles soluciones a los problemas
de salud que parten de marcos contextuales distintos. Además, urge un cambio en
los paradigmas pues esta búsqueda lleva aun análisis, no desde la visión biomédica
sino desde aquella generada a través de la sensibilidad y el respecto hacia la
diferencia y fundamentada en un principio básico, el de la vida.
(OMS/OPAS,1998, p.26).
138
Embora não seja possível afirmar que o processo saúde-doença sofra influências
unicamente das relações interculturais, é importante que se destaque que elas constituem uma
importante categoria para se compreender os seus impactos atualmente.
Os Mbyá estrategicamente, omitem, resguardam e protegem aspectos essenciais da sua
cultura, fazendo-nos relembrar a todo o momento a dívida que herdamos com a sua sociedade,
ao conduzir o seu discurso por uma flutuação espaço temporal que remonta o processo
histórico de etnocídio impetrado pelo projeto de expansão colonial. Mostram-nos, também,
que este mesmo modelo de relacionamento é reproduzido atualmente através dos interesses
políticos e econômicos nacionais e internacionais que ameaçam a preservação dos seus
territórios e consequentemente a reprodução do seu modo de ser e de viver neste mundo.
5.1 Processo Saúde –Doença: uma Dimensão Espaço Temporal
A totalidade dos enunciados possibilitou o delineamento dessa categoria que aborda o
processo saúde-doença em uma relação dialógica entre o passado e o presente, no esforço,
quase unânime, dos sujeitos da pesquisa em evidenciar conflitos e perdas irrecuperáveis frente
ao contato histórico com o homem branco.
Os Guarani costumam referir-se à relação histórica de poder e hierarquia estipulada
entre colonizador e colonizado, atribuindo distintos papeis a cada um na determinação do
processo saúde-doença. Neste sentido, ao homem branco é veiculada a responsabilidade pela
invasão do território originário indígena e pela sua conseqüente expulsão do mesmo e
transformação em áreas urbanas e industriais. O produto dessa transformação constitui, por
sua vez, o principal determinante na difusão das enfermidades que assolam o mundo
atualmente, pois, segundo o relato de uma anciã Mbyá:
139
“Porque primeiro até não existia nem essa doença braba, essas doença como agora
aids, essa doença, essas coisa, não existia, porque não tem cidade aqueles tempo, não existia
nem cidade ainda. existia índio, só. o português que trouxe a doença pra o Brasil
tudo, ééé... existia a doença, nenhum médico aqui na terra que ele não conhece, agora
outro, a doença aids, câncer”. (liderança M 2)
Bakhtin (2006) assinala que as formas como os enunciados se evidenciam mostram
que eles estão estreitamente vinculados às condições de uma situação dada e reagem a todas
as flutuações dessa atmosfera social. Dessa forma, o tempo transcorrido entre os primeiros
contatos com os colonizadores europeus até os dias atuais não foram suficientes para
modificar a lembrança de escravidão e extermínio que marcaram, historicamente, a situação
social das relações interculturais. A reprodução secular dessa situação de assimetria nos
relacionamentos deixou marcas na memória do povo Guarani que, inevitavelmente, se
expressam refletidas na maneira de pensar a si próprios e aos homens brancos sobre a
condição de ser e estar no mundo.
A grande mobilidade (oguata) dos seus antepassados próximos, abordada neste
estudo, consistia em um movimento de busca pela imortalidade do corpo e da alma, condição
primordial para se chegar à Terra Sem Males (Yvy Mara Ey). É preciso ressaltar, no entanto,
que este movimento implicava em encontrar um lugar que oferecesse as condições propícias
para a preparação e realização espiritual do ser humano Mbyá, ou seja, preservasse certa
distância dos núcleos urbanos e oferecesse os recursos naturais propícios à subsistência física
e cultural do grupo.
Um importante xamã Guarani nos fala de um tempo não muito distante em que os
grandes líderes religiosos se empenhavam em conduzir seu povo sob o ideal da realização
140
mais profunda do ser humano Mbyá, ou seja, se encantar e alcançar Yvy Mara Ey com o corpo
e a alma (Kandire). Sua fala traduz com propriedade, profundidade e clareza a essência do
tema que se apresenta nas entrelinhas de todos os enunciados.
“Porque minha avó ela é líder espiritual. Porque antigamente não tinha muito cidade,
não tinha... tinha cidade, alguma cidade mas era pequena cidade. Então, aí minha avó, como
éé... a procura de Terra Prometida. então, desde pequenininha o pai, mãe falava pra ela
que pra ser encantado você tem que fazer a vontade de Deus. Então aí, ela vinha onde parava
ela sonhava, Deus... quando ela tava cantando ééé.... então, Deus revelava onde pode parar,
onde pode plantar..Tudo isso ela fazia a vontade de Deus, então ela vinha pra chegar em um
lugar encantado pra ela se encantar”.(liderança A)
Se os Mbyá vinculam a noção de saúde no passado à idéia de uma profunda realização
espiritual, a doença era entendida como o enfraquecimento da alma e o conseqüente fracasso
frente ao ideal divino de encantamento. A causa principal do insucesso da jornada divina dos
seus antepassados próximos foi relatada pelos Mbyá como a dificuldade encontrada pelos
mesmos para viver em um mundo cada vez mais ocupado pelos jurua, que haviam
transformado grande parte de seus territórios em áreas urbanas e industriais, limitando os
recursos necessários para se viver conforme o modo de ser Guarani (ñandereko).
Portanto, é comum que os anciãos Mbyá diferenciem dois momentos da sua
permanência no Espírito Santo: um anterior à chegada da empresa Aracruz Celulose, onde
relatam ter encontrado todas as condições para viver a saúde em sua dimensão integral e outro
posterior, quando a destruição dos recursos naturais pela empresa implicou na destruição,
também, das bases simbólicas e estruturais que viabilizavam o modo de produção e
reprodução material e cultural do grupo na região, conforme se expressa o xamã Guarani:
141
“[...] quando tinha a FUNAI ela tirou nós daqui, porque naquele tempo não tinha
eucalipto. Era uma mata até quase perto de Aracruz. Então foi lá e tirou nós daqui, lá pra
Minas. estado de Minas tem um lugar que chama... perto de Carmésia. Então depois
quando minha avó falou assim, Puxa vida, agora é longe de litoral, de praia, então a
gente tem que voltar pra o Espírito Santo, voltar pra beira-mar.” Então a gente voltamos
de de novo pra gente fazer uma aldeiazinha. Então, mas é como a gente que esse
Aracruz ainda ele fala que isso aqui não era do índio, mas é que a gente sabe que desde o
princípio dos tempos, dos português, que esse litoral todo desde Bahia, Porto Seguro era
onde que o índio habitava. Então eu sei que como a gente viu que esse Aracruz tirou
muitas coisas. Tirou remédio, matou muitos bichinho, caça, éé... Acabou com tudo, acabou
com a natureza. Acabou tudo mesmo, então aí... e também minha avó falava: Puxa vida e
agora que eu sei que isso não é bom pra mim? E ela enfraqueceu, ia enfraquecendo e depois
ela faleceu. Mamãe também foi, tudo que ela...minha avó falava, minha mãe também falava
isso. Então, depois que antes de minha mãe falecer ela lembrou, falou assim que, você
lembra da sua avó, o que ela falou e você tem que.. depois que eu ir embora também, você vai
saber o que a sua avó falou pra você. Então aí eu lembrei que eu tenho que fazer outra aldeia
pra levar escolhido pra viver mais natural [...] É isso.... doença traz até enfraquecer o
espírito, então tudo isso é doença”.(liderança A)
Purificar-se e encantar-se, transparece como um momento pretérito, ressignificado na
ideologia atual como um feito comum aos antepassados, uma crença que se desfalece em um
mundo cada vez mais imperfeito, onde as cidades e as indústrias representam a sua destruição
e anunciam o seu fim. Onde os vícios e as diversões dos homens brancos ameaçam a ordem
142
social Mbyá exercendo influências maléficas e perniciosas que alimentam a porção telúrica da
alma (angue) em sua identificação com o modo imperfeito de se viver (teko achy kue).
5.1.1 A Doença do Preconceito
O discurso dos jovens Mbyá se refere aos mesmos valores atribuídos pelos anciãos ao
processo saúde-doença, quando consideram a floresta, a água boa, a caça e a terra agricultável
como os condicionantes principais para a manutenção da vida em sua amplitude biológica,
social, econômica e espiritual, reproduzindo a idéia de que o processo de urbanização de seu
território é o principal fomentador das doenças que lhes acometem atualmente. Contudo, esses
elementos ainda são dotados na cultura Mbyá, de um simbolismo mítico-religioso que permite
que os índios pensem a si mesmos como os seus verdadeiros guardiões por se considerarem os
primeiros habitantes deste mundo e, no entanto, conhecedores dos mistérios mais profundos
da sua criação e preservação.
Frente à desestruturação maciça dos elementos que possibilitam viver a vida de acordo
com os preceitos divinos, os relatos apontam para a idéia de um tipo de vida enferma
atualmente, vulnerável aos infortúnios de diferentes naturezas, conforme relata um depoente
da aldeia Três Palmeiras:
“Você sabe que aonde o Guarani vivia, aonde Deus do povo Guarani que o índio
acredita, ele mostra aonde está saúde. Então por isso que muitos Guarani andam muito em
encontro dessa saúde, onde chamavam Terra sem Males né, aonde a mata está, aonde a água
não está poluída, aonde a mata não está poluída aonde tem caça, aonde ele convive e se
alimenta da própria natureza, aonde a natureza oferece né. Então se a gente não estiver
143
nesse tal lugar aonde Deus mostrou, a gente não pode dizer que nós estamos de saúde feliz,
contente. Isso a gente em cada Guarani que vive aqui, então é por isso que se a gente vive
nesse local isolado, isto não é saúde. A água encanada que vem, diz que é limpo, diz que é
saúde, a água encanada diz que ela é trabalhada né, pra não ver coisas. Então isso pra mim
não é saúde, aonde as crianças freqüentemente fica doente é porque acabou com a saúde do
Guarani.” (liderança C)
A má qualidade da água encanada e o ar poluído transpareceram nos enunciados como
os principais propagadores das doenças que acometem, principalmente, as crianças e os
idosos. Ao associar a Terra Sem Males à presença de água, não qualquer água, mas água boa,
caça e terra boa, a fala do depoente Mbyá revela que o sustentáculo da sua crença consiste no
fato de que cada elemento descrito por ele tem uma importância singular na estruturação do
seu universo simbólico e por isso deve ser preservado da sua destruição. O discurso vivo da
Terra Sem Males emerge em uma analogia à saúde, pois se renova cotidianamente na vida
individual, social e familiar dos Mbanunciando um tempo em que a terra imperfeita será
destruída e se salvarão aqueles que se dedicarem a viver segundo os preceitos divinos que
ordenam a vida em relação aos seus semelhantes e aos demais seres de origem natural e
sobrenatural.
Muito embora, o entendimento sobre saúde e doença apareça atrelado em todos os
relatos à condição de existência ou não dos elementos que estruturam o universo simbólico
originário no tekoa (aldeia) atualmente, é notável que não constituam fatores restritivos para
que os Mbyá mobilizem novos recursos materiais e simbólicos para lidar com o processo.
Os séculos de contato têm demonstrado que a resistência cultural Guarani está centrada na sua
capacidade de dialogar em diferentes formas e graus com outros valores e práticas e
144
reinterpretá-los em prol da melhoria de sua qualidade de vida e saúde, mesmo entendendo que
não lhes suprem as suas necessidades mais profundas.
Cada dia que se inicia nas casas Guarani consiste em uma reconfiguração de todas as
expectativas criadas para ele. Portanto, não existe ao certo uma prática cotidiana onde os
Guarani conseguem se programar e repetir igualmente todos os dias, mas um fluxo nas
atividades diárias decorrentes das necessidades econômicas imediatas e dos acontecimentos
sociais mais amplos que costumam exigir mobilizações de representantes das famílias para
negociar interesses comuns a todos.
A dependência financeira do trabalho remunerado por um ou mais membros de cada
família faz com que os Guarani, principalmente, os que se encontram em idade produtiva,
reconheçam a disposição diária para o mesmo, como uma decorrência da qualidade das
relações entre os homens e o mundo natural e sobrenatural atualmente. Assim, os Mbyá
identificam a qualidade do seu sono como uma importante fonte de renovação diária, pois, o
ato de dormir e sonhar pode encerrar em si uma experiência stica quando os sujeitos
afastam-se da sua condição imperfeita de viver (teko achy kue) e repousam na dimensão
espiritual da palavra-alma (ne’eng), que renova as forças necessárias para se retomar mais
uma jornada diária no mundo das imperfeições terrenas (yvy mba’megua).
Ao mesmo tempo, é através do sono que a alma desprotegida espiritualmente devido
às transgressões morais, sociais e religiosas pode ser atacada por seres sobrenaturais,
condicionando a horizontalidade do corpo, ou seja, as enfermidades que impossibilitam a
realização de tais atividades. Estar de e disposto para o trabalho pode ser entendido, em
analogia às descrições feitas por Cadogan no Ayvu Rapta (1959), como uma condição de
saúde mais ampla que integra o corpo verticalizado à fluidez da palavra-alma pelos ossos.
Assim, um depoente afirmou:
145
“Se não tiver saúde já fala logo, que não acordou bem e dormiu mal, o corpo dele
não estava bem no momento que ele tava dormindo e que não podia acordar . Então fala
logo, quando com saúde , ele fala logo que acordado, bem, participando, tem o
momento do trabalho.” (Educador A)
Se por um lado os Mbyá vêm assumindo, cada vez mais, novas posturas interculturais
para a sua sobrevivência, estas estão sujeitas à qualidade das interações com a sociedade
envolvente e os seus valores. Assim, não são raras as relações conflituosas que se
consubstanciam na forma de preconceito e discriminação etnico-cultural explícita,
constituindo fatores determinantes para o acesso aos bens e serviços condicionantes de
qualidade de vida e saúde atualmente. Segundo uma liderança da aldeia Três Palmeiras:
“Antes a gente sentia no olho das pessoas que as pessoas discriminavam o índio, mas
não falava que odiava o índio, que não gosta de índio, que o índio é preguiçoso, essas coisas,
não chegava a falar. Mas depois que a Aracruz Celulose divulgou essas mentiras pra
querer ficar com as questões da terra, todo mundo resolveu abrir a boca e dizer, fazendo
protesto contra os índio, botando pra fora o que eles sempre sentiram que é a discriminação
dos índios”.(Liderança B)
Referências às situações de preconceito explícito transpareceram na maioria dos
enunciados de forma espontânea, como parte do contexto das tensões vividas pelos Guarani
historicamente na região. Com vistas a ilustrar o sentimento e a apreensão vivenciada por
esses índios frente à situação de preconceito, uma depoente relata:
146
“Uma vez no ônibus, eu estava vindo de ônibus, o motorista era índio de Caieiras,
né. tinha um grupo de meninos, veio provocando, falando mal dos índios né, então eu
era índia que eu tava no meio e o outro menino também. “O motorista aqui é índio!” E ele
veio provocando, provocando até a gente descer. Falando mal do índio, é isso, é aquilo
né”.(Educadora A)
Vale lembrar, que as manifestações discriminatórias e anti-sociais são reconhecidas
como patológicas na cultura Guarani, pois, não raramente os indígenas as consideram como
agentes causais das doenças físicas e /ou espirituais. Dessa forma, empreender esforços no
combate sistemático a esses fatores de risco à saúde implica necessariamente em entender a
importância que exercem nos processos mórbidos e como a sua minimização pode ajudar na
promoção da saúde através da construção de relações igualitárias e respeitosas entre os povos
e as culturas. Neste sentido, o artigo número 31 da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho recomenda a adoção de medidas “[...] de caráter educativo em
todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato
mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que
poderiam ter com relação a esses povos.” (OIT, 1989, p.13).
5.1.2 Ambiente, Dinheiro e Alimentação, uma Tríade de Tensões
As doenças atuais foram classificadas pelos Guarani de acordo com a sua etiologia,
sendo diferenciadas em duas categorias que devem direcionar a busca pelo tratamento: as
enfermidades físicas e as espirituais. Os Guarani relacionam as enfermidades físicas,
principalmente, aquelas que por vezes chamam de “doenças leves”, ou seja, uma gripe, um
resfriado, uma contusão, entre outras. As doenças espirituais não são abordadas na íntegra em
147
suas falas, mas são aquelas que se relacionam tanto com as transgressões dos códigos de
conduta moral ou religiosa, como pela passagem por locais proibidos, entre os quais, rios,
pedras e florestas, onde habitam guardiões sobrenaturais ou em última instância, como
decorrentes de práticas de feitiçaria, muito pouco abordadas com os jurua, mas importante
prática reconhecida pelos Guarani. Contudo, ao se tratar a doença como processo tem-se uma
perspectiva de compreendê-la, também, na sua dinamicidade conceitual, sem que
necessariamente seja abordada em categorias distintas, encerradas em si mesmas e sem
possibilidades de relação entre si.
Ao longo do período de contato com os Mb de Aracruz foi possível observar que
estas categorias apresentadas pelos próprios índios pareciam não apresentar uma
universalidade na sua aplicação, o que não permite concebê-las como determinantes para a
escolha entre qual o sistema de saúde os pacientes devem recorrer na busca pelo tratamento
das enfermidades. O que pôde ser notado é que a relação entre ambas se apresenta muito mais
permeável do que podemos imaginar, não se restringindo a critérios específicos e pré-
estabelecidos. É perceptível, no entanto, que em diferentes situações essas categorias se
confundem, demonstrando que a forma de lidar com o processo saúde-doença reproduz a
dinamicidade implícita em cada cultura e por isso não se prende à idéias cristalizadas e nem à
classificações irredutíveis.
Em alguns casos, as doenças consideradas genericamente como de etiologia física ou
biológica, ao se manifestar, por exemplo, em lideres religiosos são tratadas como de etiologia
espiritual dentro da opy. Um exemplo que ilustra esta situação foi o falecimento de uma
importante líder religiosa quando eu estava na aldeia Três Palmeiras no ano de 2005. O acesso
da equipe de saúde foi veementemente negado para o tratamento de uma pneumonia, que para
os Mbyá eram sintomas secundários ao problema espiritual que acometia a anciã que sofria de
profunda tristeza devido às transgressões, cada vez mais freqüentes entre membros de seu
148
grupo, que estavam redundando em constantes desentendimentos internos, desunião e mortes
violentas em sua aldeia.
Ao que parece, os próprios índios atribuem certa estaticidade a estas taxonomias
como mecanismo claro de dissimulação cultural, pensando em restringir o acesso dos jurua
aos seus conhecimentos mais profundos sobre o processo saúde-doença. O que ficou claro era
que qualquer doença originada do profundo sentimento de tristeza, injúria, ofensas, ou outra
expressão anti-social poderia ser considerada como doença espiritual pelos Mbyá,
independente da sua sintomatologia física. Portanto, até mesmo uma simples gripe,
considerada como doença física, segundo a categorização feita pelos Mb, pode ser
diagnosticada e tratada como doença espiritual, dependendo da ação individual que lhe
precedeu.
Contudo, existe amplo consenso entre os entrevistados de que a maioria das doenças
que acometem a sua sociedade atualmente são frutos do confinamento fundiário, da poluição
e da degradação ambiental que implicam direta e indiretamente em mudanças no padrão
alimentar e nos hábitos de deslocamento e mobilidade, aumentando o sedentarismo e a
dependência dos serviços e dos bens e produtos adquiridos externamente.
Entre os valores e bens exógenos, os Mbyá identificam como prejudiciais à saúde a
alimentação industrializada comprada com os poucos recursos disponíveis. A não observação
das práticas alimentares saudáveis transparece como uma conseqüência direta do
confinamento territorial, da improdutividade da terra e da inviabilidade econômica de
algumas famílias, que passam a, inadvertidamente, consumir não somente os produtos de
outra cultura, mas, os valores que lhes são prejudiciais à saúde. Traçando uma importante
comparação com o estilo de vida dos seus antepassados, um depoente exemplifica com
clareza a situação:
149
“Antigamente pros povos Guarani era difícil da pessoa morrer assim de doença né.
Então primeiro fala que mesmo com cento e vinte anos de idade a pessoa ainda estava forte e
não consumia alimentação assim de fora. Sempre o costume do Guarani era ficar num lugar
por volta de cinco anos, oito anos e quando o líder religioso, ou então, um líder mulher
religiosa, ela tinha uma revelação, então que era pra procurar outro lugar, então, com isso
saía de um lugar para o outro porque a terra ficava fraca, e tinha que dar espaço pra
ela se fortalecendo de novo. E com isso, a gente não pode ir pro outro lugar porque a
gente que já... não temos mais essa liberdade. Então com isso, antigamente a gente
consumia alimentação mais natural, né, não tinha gordura [...]Então hoje em dia até tem
índios com diabetes, né, porque hoje em dia tem muito açúcar, então, com isso, em relação à
saúde e à doença é uma coisa muito preocupante, né. E sempre o pajé, hoje ele fala muito
sobre isso. Então com isso a gente vai perdendo mais, vai se enfraquecendo mais através da
alimentação, ou então, até mesmo da própria cultura, da religião também, a gente se
enfraquecendo”.(Liderança D)
O relato feito por Jean de Léry
19
(1534-1611) após ter convivido cerca de um ano entre
os Tupinambás serve de importante referência ao entendimento do enunciado do jovem Mbyá,
pois reforça o discurso que se reproduz através dos tempos entre os Guarani ao reportarem-se
ao passado para compreenderem sua situação presente. A primeira edição deste relato data de
1578 e diz o seguinte:
Direi inicialmente, a fim de proceder com ordem, que os selvagens do Brasil,
habitantes da América, chamados Tupinambás, entre os quais residi durante quase
um ano e com os quais tratei familiarmente, não são maiores nem mais gordos do
que os europeus; são porém mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem
dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos coxos,
disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem
contar a idade pela lunação) poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou
19
Estudante de teologia e missionário calvinista que integrou a malograda expedição França-Antártica de
Villegagnon
150
grisalhos[...] e de fato nem bebem eles nessas fontes lamacentas e pestilenciais que
nos corroem os ossos, debilitam a medula, enfraquecem o corpo e consomem o
espírito, essas fontes em suma que, nas cidades nos envenenam e matam e que são a
desconfiança, a avareza, os processos e intrigas, a inveja e a ambição. (LERY, 1578,
p.111-112 apud FREIRE, MALHEIROS, 1997, p.29)
As transformações econômicas, ambientais e sociais decorrentes do processo de
apropriação de grande parte das terras indígenas pela empresa Aracruz Celulose foram
reconhecidas de forma geral como um forte incremento às modificações na base alimentar dos
Guarani que, passaram a lidar com os recursos financeiros provenientes de uma negociação
feita com esta empresa no ano de 1998, repassados mensalmente na forma de fomento para as
famílias durante o período de sete anos. Segundo Bertolani (2005, p.8):
Esse acordo se configurou num paradoxo, uma vez que foi uma tentativa
institucional de burlar o artigo 231 da Constituição Federal, que declara as terras
indígenas como inalienáveis, na medida que propôs converter a indenização a ser
paga pelo usufruto das terras reconhecidamente indígenas, em projetos sociais nas
áreas de saúde, educação e agricultura.
A compensação econômica por parte da empresa pela apropriação ilegal das terras
indígenas foi relatada, no entanto, em apenas um relato que merece destaque especial nesta
categoria pela forma como associou a desestruturação do ideal comum do tekoa (aldeia) ao
poder individualizador do capital financeiro, principal desagregador social e impulsionador
de vínculos de dependência com os recursos da sociedade envolvente.
O conflito nas relações interculturais evidencia neste caso, ainda, o omitido ou o não
falado, presente nas entrelinhas do enunciado: a escolha do alimento adquirido externamente
não atende mais aos critérios necessários para nutrir a porção divina da alma (ñe’eng), mas, o
de saciar as necessidades imediatas de sobrevivência e os desejos do modo imperfeito de se
viver (teko achy kue):
“Aí eles comprava muita coisa de fora, inclusive refrigerantes e os chips apareceram
pelo relato das pessoa que fala né, que conta isso. Eles fala que apareceram tanto essas
151
coisas chips, de comer chips, refrigerantes. Aí pegaram esse costume porque o Aracruz
Celulose dava dinheiro pra eles. Até eu cheguei a pegar um pouco esse benefício. quando
eu vim do Mato Grosso do Sul estavam repassando ainda o benefício né. acostumou,
acostumou e com esse dinheiro eles comprava isso, aquilo e ninguém trabalhava mais.
Ninguém fazia mais nada, só esperando aquele dinheiro. Aí chegou agora acabou esse
dinheiro. E agora eu vendo que eles voltaram a plantar de novo. Mas não é mais igual
antes, a terra já foi destruída na verdade. E também, eu acho que acabou com a união da
comunidade.” (Educadora A)
Os Guarani reconhecem que muitos agravos à saúde são uma decorrência da
dificuldade de reproduzirem atualmente o padrão alimentar dos seus antepassados que
consumiam pouco sal, açúcar e muito pouca gordura. Muito embora saibam dos benefícios
proporcionados por esta alimentação, muitas famílias têm dificuldade para mantê-la com os
poucos recursos financeiros que dispõem, tendo em vista que a degradação do solo e a
escassez dos recursos hídricos inviabilizam a agricultura familiar para grande parcela dos
indígenas.
Na literatura etnográfica utilizada pelo pesquisador não foi encontrada nenhuma
tradução para o termo saúde que refletisse a abrangência com que foi tratada nos discursos
dos depoentes. Durante o tempo de contato com os Mbyá, pude notar que o termo saúde
apareceu estreitamente associado ao que é descrito nestas fontes como agüyije ou plenitude,
condição que retrata a realização física e espiritual condicionada pelo profundo compromisso
com os preceitos religiosos e com os códigos morais que regulam a vida em harmonia com
seus semelhantes e a natureza. O termo é habitualmente repetido após cada canto sagrado
entoado pelo Karai na casa de reza (opy), como uma invocação aos deuses para que lhes
propiciem todas as condições para o alcance da totalidade acabada do ser humano Mbyá, lhes
152
subtraindo as imperfeições que justificam a presença de enfermidades e determinam o grau
de distanciamento individual e coletivo da Terra Sem Males (Yvy Mara Ey), lugar onde as
doenças e a morte são inexistentes.
Contudo, a doença manifestada como sentimento de tristeza ou impotência perante a
situação restritiva de se viver a saúde em sua dimensão cultural ampla foi descrita como uma
importante categoria atual, assim como, já havia sido abordada com relação aos tempos
pretéritos. A tristeza mórbida dos Guarani Mbyá é uma resposta evidente à desestruturação
das bases simbólicas que sustentam a vida social e asseguram o fortalecimento espiritual do
grupo contra as ameaças da desordem terrena. Assim, ela é relatada por um sujeito da
pesquisa com muita propriedade:
“Doença pra nós eu acho que é a própria tristeza por causa que agente não encontra
mais o que a gente quer, não mais o que agente quer. A própria tristeza, essa briga, traz
tristeza, o conflito com própria Aracruz com os índios, o conflito com o povo da cidade que
não entende, então isso é a própria doença pra nós, estão acabando com o Guarani. Isto que
acaba com o Guarani, a gente nitidamente que aonde tristeza, ela morre de melancolia
que ela chama. Morre de tristeza, porque a gente não vê mais o que a gente quer, não vê mais
o que a gente gostaria de ver. Então a doença pra nós é a própria exterminação da natureza
pela própria empresa, fazendeiros, né, que isto é a doença do Guarani[...]Então isso
realmente é doença, porque acabou com a mata, aonde agente respira, aonde o índio tem que
respirar o ar puro, aonde ele costumou a respirar e se adaptou né. Agora o índio
repentinamente tem que se adaptar com o cheiro horrível, com a poluição, com o veneno do
eucalipto, cheiro mesmo de coisa químicas, então isso extermina, isto acaba com os índio,
então isto deve contribuir pra trazer doença, a própria doença pros índio e acabando com
eles”.(liderança C)
153
De acordo com Veiga et al (2004, p.158), “Os Mbyá faziam claras distinções entre as
doenças provocadas pelos brancos e doenças que tem origem no estado de desordem do
sujeito e da coletividade, sem excluir as implicações recíprocas”. Se a preservação dos
recursos naturais foi descrita como imprescindível para se manter um relativo distanciamento
dos valores prejudiciais à manutenção da vida social em conformidade com os preceitos
culturais, a degradação ambiental foi relacionada com uma situação que inviabiliza a
reprodução do modo de ser Guarani (ñandereko), favorecendo a adoção de valores e hábitos
nocivos à alma e ao corpo dos sujeitos que podem comprometer, também, todo o conjunto
social. Neste sentido, o apego demasiado aos valores e bens materiais da sociedade
consumista originam sentimentos de inveja, ciúme e ambição que são considerados como
patológicos para os Mbyá e constituem importantes causas de infortúnios que devem ser
evitados através da observação rigorosa dos códigos de conduta moral e religiosa que regulam
a vida em sociedade.
O longo tempo de contato intercultural tem demonstrado, entretanto, que em
condições de reciprocidade no relacionamentos interculturais, os Guarani são capazes de se
apropriar e re-interpretar valores e tecnologias utilizadas pela sociedade ocidental em prol da
melhoria da sua qualidade de vida e saúde, sem que isto implique na perda de suas referências
culturais.
Contudo, a preservação dos elementos que dão sustentação ao seu universo simbólico
constitui ainda hoje a única garantia de promoção de um estado de saúde que integra todas as
suas dimensões. Vale lembrar, que, segundo Veiga et al (Ibid, p.158), para os Guarani,
“doentio é muito mais do que um sintoma físico, é um modo de viver num estado de
deterioração moral e de constante ameaça e insegurança.”
154
Ao tentar projetar um prognóstico futuro para a situação de saúde do seu povo, o
depoente afirma a sensação de insegurança que aparece nas entrelinhas de todos os relatos
quando abordam o estreitamento dos laços interculturais:
“O que agente quer é a nossa paz de volta, a paz da antigüidade de volta pra nós, né.
Aonde a gente mudou porque, antigamente vivíamos de caça, de pesca de esporte, de
lazer, existia, né. Mas hoje temos que se adaptar, se acostumar com o povo né, mas isto
muda muito, porque traz muita coisa de mal pros Guarani. Hoje o índio tem que estudar, o
índio tem que estudar, as crianças tem que estudar, são obrigado a estudar pra que ela saiba
sobreviver no amanhã, no futuro, saiba sobreviver nos meio dos branco, pra sobreviver. Isto
é sobrevivência! Porque se ele não estudar como é que vai sobreviver daqui mais quarenta
anos? Daqui em volta estão fazendo mais obras de construção de casa. Daqui a pouco,
estamos no meio do povo. O Guarani plantava, cheguei a ver, aonde ninguém se incomodava,
onde alguém de fora se incomodava com isso, aonde o índio só trabalhava e ninguém
reclamava, aonde o povo não reclamava. Hoje quem reclama somos nós [..] aonde será que
nós vamos viver daqui vinte, trinta ano, como é que nós vamos sobreviver? Então esta
pergunta fez com que os povo, os cacique, as liderança de hoje fazer com que as criança de
hoje estude do modo do branco, do modo não indígena pra saber sobreviver.”(Liderança C)
É importante pontuar que o grupo Mbyá de Aracruz vinha passando por momentos de
muita tensão na disputa fundiária com a empresa ARCEL nos momentos em que ocorreram
as entrevistas. Sua imagem estava sendo divulgada na mídia como a de um povo que
atrapalhava o desenvolvimento regional e atravancava o progresso do estado, o que os
colocou em uma situação extremamente conflituosa com a população do município.
155
Em meio a tantas adversidades históricas que marcaram profundas modificações no
modo de vida dos indígenas da região de Aracruz, no dia 27 de agosto de 2007, através da
Portaria MJ 1.463, o Ministro Tarso Genro declarou posse permanente da totalidade da
Terra Indígena Tupiniquim/Guarani. A decisão pôs fim a quase 40 anos de disputas
fundiárias, marcadas pela desigualdade de interesses entre a maior empresa detentora do
mercado internacional de celulose branqueada e a população indígena do Espírito Santo, em
atendimento ao artigo nº 231 da Carta Constituinte Nacional que afirma que:
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, nguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las por lei, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens, (BRASIL, 1988).
No entanto, reconhecemos que embora um grande avanço se tenha dado com o
reconhecimento jurídico da dimensão oficial da Terra Indígena Tupiniquim/Guarani de
Aracruz, muito há que ser feito para se restituir os danos causados a estes povos pelos séculos
de descaso das agências governamentais com relação às suas verdadeiras necessidades.
Neste sentido, o documento que versa sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas aponta para a importância de se empreender maiores esforços para a
solução de problemas decorrentes de impactos provocados por grandes projetos econômicos e
recomenda “a exigência de estudos específicos de impactos na saúde e suas repercussões no
campo social, relativos a populações indígenas em áreas sob influência de grandes projetos de
desenvolvimento econômico e social [...] com implementação de ações de prevenção e
controle de agravos.” (BRASIL, 2002, p.19).
Muito embora, o meio-ambiente seja um elemento determinante de qualidade de vida
para os Guarani Mbyá, acreditamos que a redução do quadro de violências diretas e indiretas
contra a dignidade humana na região, também, possa contribuir para o controle dos impactos
identificados no processo saúde-doença. Dessa forma, a política indigenista de saúde
156
(BRASIL, 2002, p.19) recomenda que seja feito o “acompanhamento, monitoramento e
desenvolvimento de ações que venham coibir agravos de violência (suicídios, agressões e
homicídios, alcoolismo) em decorrência da precariedade das condições de vida e da
expropriação e intrusão das terras indígenas.”
Entendemos, portanto, que os avanços conquistados no âmbito da demarcação do
território tradicional, devam ser ampliados às ações de articulação entre os diferentes atores
envolvidos na promoção, proteção e recuperação da saúde de forma individual e coletiva,
reconhecendo na autonomia indígena sua estratégia principal para a reversão do quadro
histórico de discriminação e exclusão social.
No próximo capítulo abordaremos como as tensões interculturais se expressam através
das instituições e agentes envolvidos com a promoção, proteção e recuperação da saúde
indígena.
5.2 Tensões Interculturais e a Atenção à Saúde Guarani, uma Mediação entre o Local e
o Global
O documento que dispõe sobre a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas do Brasil (BRASIL, 2002) preconiza um modelo de atenção à saúde baseado no
princípio da integralidade do acesso aos serviços em todos os níveis de assistência,
pressupondo o fortalecimento da autonomia dos seus usuários através da participação no
planejamento, execução, controle e avaliação das atividades desenvolvidas, com vistas a
garantir a transformação da sua realidade social de forma crítica e consciente.
Contudo, é no âmbito dos recursos mobilizados para a promoção, a proteção e a
recuperação da saúde indígena que é possível se compreender a forma como as relações
157
interculturais são determinadas hierarquicamente em função dos interesses sociais distintos,
influenciando no grau de autonomia
20
dos sujeitos para a transformação da sua realidade
social.
Segundo Bakhtin (2006), todo elemento que possibilita expressar a ideologia de um
determinado grupo social pode ser considerado como um signo ideológico. O autor ressalta,
entretanto, que todo signo ideológico tem duas faces que permitem entende-lo como uma
arena onde se confrontam valores sociais e culturais contraditórios.
Para que um objeto entre no domínio da ideologia de um determinado grupo é
necessário que adquira um valor social, ou melhor, seja marcado por uma relação
interpessoal, quando somente poderá transformar-se em signo. Contudo, os signos não
existem como parte de uma realidade única e dissociável do contexto de outros signos, pois,
eles refletem e retratam uma realidade onde as ideologias se constroem no diálogo, ora
refutando ora refletindo outras realidades que lhes dão sentido. Assim, só é possível se
compreender os signos através de outros signos. (Ibid).
É notório, portanto, que os enunciados dos Guarani contemporâneos abordem com
certa freqüência os valores que ordenam as práticas das instituições ocidentais de ensino,
saúde, trabalho, religião e lazer com as quais se relacionam historicamente, estipulando
comparações com outros signos na busca de evidenciar contrastes e conflitos dentro do seu
próprio corpo social, em função de experimentarem diferentes formas de vivenciar as relações
interculturais.
O binômio cultura-identidade foi abordado de forma unânime nas interações
estipuladas com estes signos, no entanto, sob a luz das fronteiras que demarcam a sua
preservação. Segundo Barth (1998), as fronteiras colocadas por um grupo nos
20
Onocko Campos e Campos (2006) descrevem a autonomia como a reflexão e a ação do sujeito sobre si e o
mundo, como a capacidade de lidar com sua rede de dependências e com o poder, e, ao mesmo tempo,
administrar conflitos e estabelecer contratos com os outros, a fim de promover o bem e estar individual e/ou
coletivo.
158
relacionamentos com outros grupos não devem ser encaradas como fator de isolamento, mas
como a possibilidade real de se relacionar preservando aspectos essenciais da sua cultura e
identidade.
Campos (2003) assinala que a co-produção de sujeitos e instituições em sociedades
multiculturais depende da capacidade dos serviços e bens produzidos de atender às
necessidades culturalmente distintas, de conjurar as diferenças e de produzir co-gestores das
atividades desenvolvidas. Assim, o autor propõe a categoria “valor de uso” como a
potencialidade que certo produto ou serviço tem de atender às necessidades sociais e destaca
que, “os interesses corporativos e econômicos (de mercado) é que generalizam uma manobra
ideológica que procura equivaler o valor de uso, de um bem ou serviço, com necessidades
sociais” (Ibid, p.14).
5.2.1 Educação Intercultural e Saúde
Se estas instituições não faziam parte do universo simbólico Guarani antes dos
primeiros contatos com os colonizadores e missionários religiosos, a construção ideológica
que é feita das mesmas refere-se à forma como foram introduzidas em sua vida social e mais
ainda, ao produto gerado por elas ao longo de cinco séculos de relações interculturais. A
respeito da escola, Freire (2001, p.118) descreveu que:
[...] a imagem que os índios construíram da instituição não foi processada
exclusivamente a partir do que acontece internamente dentro das suas salas de aula,
nas aldeias, mas da observação sobre o que acontece lá fora, nas escolas das
principais cidades do país. Seguindo a máxima de que a árvore é conhecida por seus
frutos, alguns índios avaliam a escola brasileira, a partir do tipo de aluno que ela
forma, observando o modo como esse aluno se comporta no seu relacionamento com
os próprios índios.
159
A escola, símbolo de difusão das práticas colonialistas, é ressignificada atualmente
através do ensino intercultural e bilíngüe transformando-se em instrumento de defesa dos
direitos indígenas pela melhoria da sua qualidade de vida e saúde. A escola desejada pelos
índios é descrita de forma unânime, como aquela onde podem estipular relações dialógicas
com os conhecimentos universais, no entanto, sob a perspectiva da filosofia educacional
Guarani, ou seja, deve centrar-se na suas verdadeiras necessidades.
Assim, a instituição é encarada pelos Mbyá como uma extensão da vida social onde se
a educação oral passada de pai para filho e, portanto, onde se devem retomar
cotidianamente os valores e práticas fortalecedores da sua identidade cultural como
importante método de promoção de saúde. Isto não significa entender que os Guarani se
encontram irredutíveis a outros conhecimentos, mas, que a escola é um espaço de apropriação
dos mesmos para instrumentalizar-lhes na defesa das suas necessidades frente às pressões
externas. Dessa forma, uma educadora relata:
“A gente trabalha muito em cima do problema que surge na verdade né. Aqui por
exemplo, um problema sobre demarcação de terra a gente trabalha também. Então a gente
trabalha sobre saúde dos dois lados da verdade. Eu falo pras criança que, por exemplo, a
gente tem que saber da cultura não indígena e também tem que manter nossa cultura
também. Que é, por exemplo, a gente tem umas regras né, por exemplo, a criança. Eu vou
ganhar um irmãozinho, eu não posso comer carne, eu não posso comer assim, tem algumas
coisa que eu não posso comer. Isso é uma regra né. O próprio pai tem que seguir as regras.
Então, eu acho assim, tem que trabalhar em conjunto, não somente eu, não somente eu,
os pai. Os cacique também tem que tá junto nessa batalha na verdade, pra conseguir. E não é
pra gente voltar atrás como igual antes, mas a gente tem que preservar, a gente tem que
manter isso pra poder contar pros nossos filho, senão eles vão esquecer tudo. Eles não sabem
160
nem o que era antes, o que era feito, de jogar bola por exemplo. O homem não pode jogar
bola quando o filho recém-nascido né. E tem muitas criança que sabe ainda e fala assim:
Ah, fulano não pode jogar bola por causa que ele tem um filho recém-nascido e tal. Eles fala
as própria criança fala pra gente. Então a gente vai aprendendo junto, eu como professora
aprendo junto com eles. Quando a gente trabalha com área da saúde mesmo, a gente sempre
manda assim, é tarefa de casa pras criança pra perguntar pros pai que tipo de remédio assim
naturais assim eles usam por exemplo. Assim, pra que serve isso pra determinada planta? E a
maioria não sabe. Então isso é uma preocupação muito grande né”.(Educadora A)
Em um universo intercultural onde diferentes valores coexistem oscilando na sua
capacidade de complementar ou de conflitar com as necessidades do grupo, a língua e a
religião demarcam as fronteiras necessárias à preservação da identidade Mbyá, pois, é através
da experiência da palavra como signo de realização espiritual que os índios acessam os
conhecimentos mais profundos sobre a sua própria condição humana.
Assim é possível entender o porquê da escola intercultural não ser impositiva nem
obrigatória entre os Mbyá, mas opcional, e por isto freqüentada principalmente pelos
adolescentes e adultos. Até os sete, oito anos de idade, o aprendizado da maioria das crianças
Mbyá se no convívio familiar e social, onde aprendem aspectos essenciais da sua língua e
religião. É notório, portanto, que somente uma pequena parcela das crianças desta faixa etária
freqüente a escola, ou tenham algum domínio da língua portuguesa, o que, devem fazer após
consolidarem os conhecimentos básicos que dão sentido à sua existência como ser humano
Mbyá. Neste sentido, essa estratégia adotada pelos Mb possibilitou a preservação de
aspectos essenciais de sua cultura e identidade, mesmo após séculos de imposição ideológica
ocidental.
161
A escola não é para os Guarani um signo novo, desconhecido, mas parte do seu
cotidiano desde o contato com as missões religiosas. Ela pode ser vista como o espaço da
transposição das fronteiras entre o mundo jurua e o Guarani, onde a experiência da palavra
ouvida, falada e sonhada se materializa e se renova na escrita, designando um importante
exemplo de construção intercultural que possibilita alcançar ampla dimensão nos contextos
sociais atualmente.
Contudo, é necessário que a entendamos também como um espaço de coexistência
ideológica onde conflitam interesses sociais distintos. Segundo um vice-cacique Mbyá, estas
tensões podem determinar influências diretas no processo saúde-doença ao limitarem a
autonomia dos sujeitos no gerenciamento de suas reais necessidades no âmbito escolar:
“Que nem, por exemplo, na questão da educação, falam que a educação aqui é
diferenciado, mas só que ele tem o poder de tá executando pela prefeitura, né. A secretaria da
cultura é que tem aquela demanda tudo. Então, hoje em dia eu acredito que não é nem, nem
é diferenciado. A merenda que vai ser uso ali da comunidade né, os menino que passa
necessidade, às vezes tem alguns pais que tem aquela dificuldade de comprando aquele
alimento fora , não tem condições nenhum, tem direito de levar os filhos na escola pra
poder se alimentar. A gente lá em São Paulo, até os adultos mesmo que trabalha na roça das
comunidade pode comer na escola. Agora aqui não é mais assim né, porque a gente não
temos esse poder de falando não, você tem que ir ali. Até aconteceu isso já, chega
algumas mãe que tá com o filho fora do peso pra se alimentar ali, então às vezes a secretaria
da educação veio reclamar com isso. E uma coisa que eu falo, disseram que a escola é
diferenciado e não sendo dessa forma também, então com isso a gente tem muitas coisa
pra discutindo. Então com isso, até mesmo a saúde né, primeiro que falando
aí”.(Liderança D)
162
A escola é para os Mb, conforme abordado, uma extensão de sua vida social onde
se devem reproduzir, inclusive, as práticas de compartilhamento que possibilitam reduzir as
desigualdades internas. Neste sentido, sua finalidade deve se adequar aos anseios e
expectativas dos povos indígenas em atendimento ao artigo numero 27 da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (1989, p.12) que dispõe que :
Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão
ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas
necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e
técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais,
econômicas e culturais.
5.2.2 Língua e Religião Mbyá, Identidade, Pertencimento e Saúde
Ao tomarmos o signo como a arena das tensões interculturais reportamo-nos à idéia de
dinamicidade cultural que permite que as culturas se desenvolvam através da mobilidade, da
interação, do contato, da informação e, consequentemente, através das fronteiras que
permeiam os relacionamentos entre os grupos, conforme já abordado. Dessa forma, a refração
do outro e de seus valores por meio dos signos não deve ser tomada como uma analogia às
teorias puristas que apregoavam que a preservação da cultura e da identidade era possível
através da indiferença hostil entre os povos indígenas e os seus vizinhos. Ela é marca dos
relacionamentos interculturais, onde, as tensões se desenvolvem devido à não observação das
fronteiras estipuladas para a manutenção da identidade e da cultura, conforme evidencia o
enunciado de um sujeito da pesquisa :
“Porque cada cultura, ele tem sua cultura diferente. Então como é a vivência também,
nós não pode viver assim como os branco. A gente fala, poder usar roupa dos branco, mas é
163
que a língua e a vivência e seu religião, não pode esquecer do seu religião. Dança espiritual,
então ele tem saúde, traz saúde para os filhos, traz saúde para as crianças, para as
comunidade.”(Liderança A)
Se a língua e a religião constituem os elementos nucleares na formação e afirmação da
identidade Mbyá, são também elementos que demarcam o campo do pertencimento, pois,
através delas os membros do grupo reconhecem os seus pares distribuídos no vasto território
Guarani. Assim, é possível se ampliar a compreensão sobre a abordagem feita pelo depoente
Mbyá nas palavras de outro sujeito da pesquisa com amplo conhecimento no campo da
educação bilingüe, quando trata de pontos essenciais para a preservação da identidade frente à
diversidade de informações e valores oriundos das relações interculturais:
“Religião é uma coisa que fala muito da saúde , né. E a cultura também. Tudo vem
junto. Mas primeiro você tem que se sentir bem pra caminhar sempre na direção certa pra
não se perder no meio. Quando você perde totalmente seu costume, sua religião, você não
sabe por onde caminhar.você acha um bloqueio no seu caminho. Aí você não consegue se
identificar mais e você se perde. E para você se sentir bem tem que ser sempre assim,
procurando as regras do seu costume, as regras da sua religião, da sua cultura, como é que
é. Eu acho que isso é saúde pra mim. Os conflito assim, às vezes acontece. É no caso de lá de
Mato Groso do Sul. E bem, isso mesmo, que eles perderam totalmente a identidade, e eles
ficaram sem rumo, sem nada e aí eles viram índio contra índio. Tem que tomar muito
cuidado, porque é que nem na entrada da igreja. Isso eu não queria falar mas isso prejudica
muito, né.. Eu sempre falo assim, igreja é assim, crente é coisa do jurua. Que eles também
tem sua religião, eles escolheram pra ser assim. Então, mas a gente, nós temos a nossa
religião, né. Pra que ter mais outra? Se aceitar tudo que vem de fora com certeza isso vai
164
atingindo os mais novos. E quem atinge é os mais jovens, porque os mais velhos já tem a
sua própria história, sua própria religião”.(Educadora A)
A religião é o elemento unificador da sociedade Mbyá e é através dela, também, que
os índios encontram explicações sobre os métodos milenares de promoção, proteção e
recuperação da saúde. A perda do vínculo com a religião tradicional constitui grande ameaça
à preservação da identidade Mbe se apresenta, assim, como a condição primordial para a
determinação dos processos mórbidos. A não observância dos preceitos religiosos por grande
parte dos membros do grupo, no entanto, justifica o distanciamento das referências milenares
de convívio entre os indivíduos, onde as tensões oriundas deste processo determinam a
transição da doença da dimensão individual para a social trazendo conseqüências drásticas
para toda a população, como bem exemplificou a educadora ao se referir à sua aldeia de
origem no Mato Grosso.
A presença das igrejas pentecostais nas aldeias afronta o modo de ser Guarani e impõe
estrategicamente a sua modificação como forma de dominação através da perda das
referências culturais mais importantes para a preservação da identidade. Consideramos
oportuno ressaltar um caso particular e esclarecedor desta relação quando tive a oportunidade
de participar de uma situação social onde o pastor de uma igreja pentecostal cobrava a
participação dos índios de Boa Esperança no culto inaugural de uma edificação que havia
feito com recursos da sua instituição no pátio central da aldeia para reuniões da comunidade.
O mesmo exigia com veemência que um líder Mb providenciasse portas, janelas e
construísse bancos compridos para a celebração, o que foi negado de forma diplomática pelo
sábio indígena que, demonstrando constrangimento com a situação, buscava explicar que a
proposta inicial de construção daquele espaço era de que fosse utilizado para reuniões da
comunidade e não para cultos ecumênicos. Em uma conversa informal com um grupo de
165
pessoas da aldeia Piraquê-Açu tomei conhecimento que este mesmo pastor referiu-se à opy,
onde viveu e faleceu a importante líder espiritual Keretxu Mirî, filha de Tatatî Yva Ete, como
uma “casa de macumba” que deveria ser demolida o mais rápido possível, demonstrando
completo desconhecimento e desrespeito com relação aos aspectos simbólicos e estruturais
dos Guarani Mbyá.
As interações com os representantes de outras religiões podem assumir formas
distintas de acordo com os interesses envolvidos, como é possível se observar na aldeia Três
Palmeiras, onde, para a construção de uma nova opy, os índios receberam forte incentivo
financeiro de missionários católicos com os quais mantém relacionamentos duradouros e bem
consolidados. No entanto, outra linha de protestantismo vem edificando seu templo bem
próximo à esta opy, demonstrando que existe certo consenso ideológico entre pequena
parcela da população e as religiões pentecostais, conforme destacou com muita preocupação a
educadora Guarani. Ao que parece, os Mbyá aceitam o que lhes é oferecido em termos de
edificação pelos agentes de outras religiões e organizações com as quais se relacionam,
assumindo uma ideologia que lhes permite entender o ganho material como parte da dívida
histórica contraída pelos jurua com a sua sociedade. Assim, a oferta de alimentos também,
parece constituir importante moeda de troca para garantir a presença nas celebrações
ecumênicas, principalmente das famílias que passam dificuldades financeiras. Apesar de
exercerem influências simbólicas reconhecidamente daninhas à coesão do grupo, estes ritos
não costumam mobilizar um grande quantitativo de pessoas, muitos dos quais ainda
costumam se deslocar para o ritual noturno (porahei) na opy após o término destas
celebrações.
No entanto, é premente que se observe as contradições existentes entre a ideologia
institucional das igrejas pentecostais e o disposto no artigo da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (1989, p.4) que afirma que, “Deverão ser
166
reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais e religiosos e espirituais
próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração e natureza dos
problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente.”
5.2.3 Interculturalidade e a Atenção à Saúde Indígena, uma Trajetória de Tensões
A prática cultural recomenda que a doença seja diagnosticada dentro da opy (casa de
reza) pelo Karai que deve indicar o tratamento adequado, não se privando de orientar o
paciente para o sistema biomédico de atenção à saúde se assim julgar necessário.
Inegavelmente, os Mbreconhecem que o contato secular com o homem branco produziu
manifestações patológicas para as quais a medicina autóctone não dispõe de métodos eficazes,
o que tem impulsionado a busca de intercâmbios viáveis para a resolução destes problemas.
Se por um lado a biomedicina constitui um recurso indispensável atualmente, parece
ser mais utilizada pelos Guarani para o tratamento dos sintomas de algumas doenças, ao passo
que a medicina autóctone geralmente está voltada à etiologia dos processos mórbidos, ou seja,
à sua causa, seja ela social, espiritual ou biológica. Como parte integrante da sua cultura, o
sistema médico Mbnão é um sistema estanque, cristalizado e parado no tempo, imune às
transformações e ao diálogo com os outros sistemas de saúde, pois, geralmente os índios
reconhecem a eficácia da biomedicina e estipulam uma relação de complementaridade entre
os dois sistemas, conforme relata uma liderança:
“A gente sempre tem esse costume assim, quando uma pessoa doente, então,
primeiramente é consultado pelo pajé. Então aí, depois se no caso a pessoa tiver a doença
assim que deveria ser tratado fora, o pajé também sabe.[..] então algumas pessoas que
167
trabalha na saúde com os povos Guarani, eles não pode chegando e fala assim: “você
tem que ir pro médico direto”. Porque às vezes muitos caso aconteceu aqui, às vezes a
pessoa leva e encaminha diretamente pra o hospital e às vezes os próprios médico não sabe o
que é. Então com isso, às vezes até a gente tem essas falha com isso”. (Liderança D)
Existem diferentes qualidades de pajés ou karai, que possuem conhecimentos
específicos em cada campo do saber medicinal Guarani, o que demanda, muitas vezes, a
superação de obstáculos de ordem política e financeira para buscá-los em outros estados
quando se faz necessário. É importante destacar que os índios encontram enorme dificuldade
em se fazer entender pelos profissionais de saúde para a inclusão dessas despesas no
orçamento anual da atenção diferenciada, pois, os mesmos costumam considerar esses líderes
religiosos de forma genérica, sem compreender a especificidade de cada um na arte de curar,
assim como, compreendem as diferentes especialidades da medicina convencional. Os
Guarani com muitos esforços, quando conseguem, se mobilizam financeiramente para trazer
essas lideranças para tratar algum enfermo necessitado ou, até mesmo, para a realização do
importante ritual do neemongarai uma vez ao ano.
Os Mbdiferenciam claramente a qualidade dos serviços de saúde prestados pelas
agências governamentais em ambos os locais onde ela é desenvolvida, segundo as suas
respectivas prestadoras: a Fundação Nacional de Saúde e a Secretaria Municipal de Saúde de
Aracruz.
No entanto, alguns estudos (BERTOLANI, 2005; PELLON, 2005; VEIGA et. al,
2004; CICCARONE, 2001) são unânimes em apontar uma insatisfação dos indígenas com
relação ao atendimento dispensado no hospital da rede referenciada do SUS em função de
experimentarem situações de preconceito e etnocentrismo por parte dos profissionais e da
população local que divide física e simbolicamente este espaço na busca pelo atendimento às
168
suas necessidades de saúde. A opinião do diretor técnico do hospital de que os índios
gozariam de um atendimento “privilegiado” ao invés de “diferenciado” é materializada nas
atitudes dos profissionais que atuam nessa instituição e retomada no sentimento de
discriminação contido no enunciado de uma liderança da aldeia Piraquê-Açu, quando afirma
que, “O pessoal não atende os índio direito, eles são jogado fora e ainda xinga, é mole?”,
(PELLON, 2005, p.54). Segundo o diretor do hospital, “O índio acha que pode tudo e não
gosta de esperar pelo atendimento”, (VEIGA et al, 2004, p.137).
A imposição de um modelo de atenção centrado na lógica ocidental, que universaliza e
padroniza as práticas unicamente em função de regulamentos e protocolos, não considerando
o diálogo com as diferenças culturais que se consubstanciam na forma de falar, de se buscar
compreender o que foi falado, de esperar, de se alimentar e de se comportar diante da
enfermidade não é recente e foi reportado por Ciccarone (2001, p.58) no passado. Segundo
a autora, “[...] na internação legitimava-se a tentativa de transfiguração dos Mbyá da condição
de grupo culturalmente distinto para o status genérico de cidadãos carentes com direito
perversamente adquirido a um tratamento sanitário precário, agressivo, quando não etnocida”.
Este diagnóstico situacional revelava na época, um problema que vem se
reproduzindo através dos tempos e pode ser identificado ainda hoje nas acusações atribuídas
pelos índios de maus tratos, ofensas e demais manifestações explícitas de preconceito étnico
e cultural por parte dos profissionais de saúde deste nosocômio e da população local pelo fato
de não entenderem os motivos reais que devem assegurar a necessidade de uma atenção
diferenciada à saúde dos povos indígenas. O relato feito pela anciã Keretxu Mirî em 1994
(CICCARONE, Ibid, p.58), afirmando que, “Naquele lugar você entra vivo e sai morto”,
ilustra o horror que permeia ainda o imaginário Guarani sobre o atual atendimento dispensado
nesta instituição. Suas palavras foram renovadas no enunciado de um sujeito da pesquisa ao
pontuar importantes acontecimentos que aconteceram com membros da sua família:
169
“E depois é porque aconteceu com meu tio. Ele estava doente, depois ele tava
falando, conversando direitinho, são assim. Depois quando a gente ouviu ele já faleceu lá no
hospital. É o meu tio João
21
, então, porque também eu falo que os médico quando que é
que espírito que está triste e ele não sabe, então ele aplica injeção pra, às vezes piorou, às
vezes dá a injeção pra matar ele”.(Liderança A)
O discurso dos Guarani sobre o trabalho desenvolvido neste hospital, de uma forma
geral, é pontuado por erros diagnósticos e terapêuticos e pela falta de compreensão por parte
dos profissionais sobre os problemas que acometem a alma dos indivíduos e determinam o
agravamento das enfermidades. Esta crítica é, portanto, constantemente acrescida de outra
sobre a sua própria condição atual, a de que, a extrema dependência dos serviços de saúde se
deve ao fato de que atualmente os Guarani experimentam um processo cada vez mais intenso
de deterioração dos recursos indispensáveis ao pleno desenvolvimento das suas práticas
xamânicas de promoção, proteção e recuperação da saúde.
O desconhecimento dos diagnósticos da maioria dos Guarani que vão a óbito neste
nosocômio é descrito como um fato comum e é observado com preocupação pelas lideranças,
que costumam atribuir a sua causa à transgressão da norma cultural que preconiza que os
doentes devem se apresentar primeiramente ao Karai (líder religioso), sem o qual, corre-se o
risco de se tratar erroneamente uma enfermidade de etiologia espiritual no âmbito hospitalar,
onde para esta categoria de doença não existe tratamento.
Os Guarani são unânimes em afirmar que o modelo de atenção à saúde indígena
vigente no hospital da rede referenciada é centrado na atenção à doença como uma entidade
isolada do sujeito e da sua subjetividade, não considerando a importância da participação
21
Nome fictício
170
ativa dos mesmos como imprescindível ao êxito das ações. Dessa forma, descarta a historia de
vida dos mesmos, os seus nculos sociais e os fatores culturais que podem contribuir para o
comprometimento de ambas as partes envolvidas na promoção, proteção e recuperação da
saúde indígena.
É importante ressaltar, que esta situação vivida pelos povos indígenas no âmbito dos
serviços de saúde confirma a ideologia que permeia os tratamentos realizados nos sistemas
autóctones, onde, a valorização e a participação do indivíduo como sujeito do seu cuidado
constitui parte fundamental do processo terapêutico.
As tensões decorrentes de situações de discriminação sofrida pelos índios neste
ambiente atingem, também, em última instância, aqueles que deixam seus parentes internados,
conforme o relato de um pai que expressa a sua aflição ao afirmar que “às vezes eu com
filho meu doente também, então, à noite nem durmo direito pensando, será que eles vão
cuidando direitinho dele lá?”
Coimbra e Santos (2000, p.127-128) alertam que :
Vivenciar situações de discriminação pode ser, por si, um elemento desencadeador
de doenças. Tal fato é ainda mais grave quando a experiência se passa no contexto
de um serviço destinado à atenção em saúde. Essas situações podem gerar fortes
emoções, que vão do medo e desconfiança à raiva e frustração, comprometendo,
portanto, não somente a qualidade e a credibilidade dos serviços prestados mas a
própria saúde do indivíduo (Broman, 1996; Krieger,1990). É importante que se diga,
contudo, que as modalidades através das quais a discriminação se expressa nem
sempre são tão diretas e evidentes. Não raro, está imiscuída subliminarmente nas
teias de relações sociais e econômicas que estruturam e determinam a expressão do
processo saúde-doença, seja de seus determinantes diretos como dos indiretos.
Com a revogação da Portaria MS 2656/2007 que dispõe sobre a transição definitiva
das ações da saúde indígena da área federal para os municípios, os índios temem que o
comprometimento social com os interesses da transnacional Aracruz Celulose aliado à falta de
capacitação adequada dos profissionais dêem continuidade à baixa qualidade dos serviços no
âmbito hospitalar. Segundo Confalonieri (1993, p.40), um dos aspectos a serem considerados
171
na atenção à saúde indígena diz respeito à incapacidade do poder municipal atender
condignamente as necessidades dos índios porque, “freqüentemente, os grupos indígenas são
precariamente tolerados, ou mesmo ostensivamente rechaçados pela população local”, em
decorrência de atitudes etnocêntricas e disputas fundiárias que ocorrem habitualmente. Dessa
forma, os índios acreditam que a recente solução dos problemas fundiários possa colaborar
com a redução dos problemas descritos.
5.2.4 Parto Hospitalar, Isolamento, Tensões e Impactos no Processo Saúde-Doença
Um depoente Mbyá voltou-se à hierarquia ideológica nas práticas de saúde
desenvolvidas no hospital da rede referenciada como uma ameaça à reprodução biológica,
social e cultural Guarani. Sua preocupação pode ser compreendida, especialmente, no que
diz respeito à adoção da prática de cesariana e dos métodos contraceptivos de laqueadura
tubária e de tratamento hormonal que vêm sendo utilizados nas mulheres indígenas da região.
“Às vezes se a criança não descer normal, então faz um cirurgia, às vezes corta a
barriga. Então tudo isso traz coisa que não é bom pra o índio Guarani. Então, por isso que
nós índio Guarani tem remédio pra ter criança, tem remédio pra não ter mais criança, aí não
precisa mais cortar o lugar das criança. Tudo isso a gente sabe fazer esse remédio. Então,
porque às vezes aí, aconteceu com minha irmã, ela tava dando luz e a criança não desceu
direito e levou por hospital e a criança morreu e a mãe também morreu. Minha mãe
sempre falava isso, pra nascer dentro da aldeia, mas algum não obedeceu e aí vai pro
hospital. Então às vezes até tira o lugarzinho da criança. Então isso não é bom, porque
quando Deus fez o mundo e criou o homem pra ser companheira, companheiro, mulher e
172
homem né. É pra ter crianças, pra ter frutas... às vezes é moça nova, tira o lugarzinho que vai
tirar criança, então, isso não é bom. Deus não gosta disso. Deus mandou pra semear
semente, pra ter semente bom”.(Liderança A)
Sua observação não teria sentido, no entanto, se não fizesse referência à adesão
espontânea das mulheres Guarani a este tipo de atendimento, onde a transgressão das regras
necessárias à manutenção de um estado de saúde integral tem sido determinante para a
vulnerabilidade física e espiritual das gestantes e suas famílias.
A perda de interesse atual por parte das mulheres na reprodução de importantes traços
culturais como o resguardo na menarca da adolescente e o parto tradicional chamam a atenção
dos mais velhos das aldeias. Uma anciã exemplificou como a não observância das normas do
ñandereko entre as mulheres jovens tem sido a principal causa dos problemas de saúde que as
acometem atualmente. Sua fala soa como um alerta para as jovens que não estão se
preparando mais durante a menarca, a gestação, o parto e o puerpério como faziam no tempo
da sua juventude. Assim, ela refere-se às transgressões dos códigos e normas divinas como a
principal causa dos problemas de saúde atualmente. O relato foi feito em tom de advertência
à sua neta adolescente que se negara a realizar tal resguardo em sua primeira menstruação e às
demais jovens que participavam da situação social da entrevista.
“Quando a moça, primeira moça, a gente Guarani tinha cama, cama no quarto.
Quando a mocinha, primeira moça, botar ela na cama sentada até um mês, dois, três mês
por aí, eles bota. botava lenço ou lençol, botar em cima, não olhar nem, não olhar
nada”.(Liderança M2)
173
Quando questionada sobre a possibilidade de colocar os pés no chão durante o período
de resguardo a anciã respondeu:
“Não. pra ir no banheiro. não deixa nem olhar, também. Aqueles tempo era
assim. vivo, tudo vivo ainda, minha avó, marido de vovó, tudo vivo ainda. eu formei
com 16 anos, não deixava nem eu olhar, nem botava o lençol na cabeça. Agora não, as
menina primeira , quando for formar primeira mocinha já vai andar por aí, vai brincar pra lá
e pra cá. Eles mesmo não se guarda mais nisso também. Não era assim não, antigo não! Não
podia comer carne de boi, pode comer carne de cotia e só. E sem sal! Agora, anda por aí,
pula igual cabrita” (risada).
O estado de vulnerabilidade física e espiritual associado à primeira menstruação requer
que a jovem não olhe para o lado ou qualquer outro local na tentativa de se proteger contra os
feitiços já descritos anteriormente como odjepotá, onde um animal pode utilizar a imagem de
um jovem de bela aparência e leva-la embora, transformando-a, também, em animal.
A palavra-alma (ñe’eng) é um atributo próprio dos Mbyá que os diferencia dos demais
seres humanos e animais, pois os mantém em íntima relação com Ñanderu, seu Deus
superior. Por sua vez, a identificação com os prazeres mundanos e com os caprichos
terrestres, entre os quais a luxúria, considerados como desejos que alimentam a porção
telúrica (angue) da alma, nutrem, também, o lado animal e irracional do indivíduo fazendo-o
sobrepujar seus instintos à sua própria razão. Por isso, a jovem na menarca pode
metamorfosear–se em animal, caso não obedeça aos preceitos religiosos de resguardo, como
no mito que descreve o acontecido com os transgressores que viviam na Primeira Terra (Yvy
Pyau).
174
A sábia anciã ressaltou que o parto autóctone não é um ato isolado de um contexto
mais amplo a ser observado pela gestante e seus familiares, mas é um processo que implica
em obedecer a importantes preceitos de resguardo no decorrer da gestação, como condição
para a sua realização. Dessa forma, ela chama atenção para a integralidade do processo,
quando ressalta importantes normas que se relacionam à preparação física e espiritual para
conceber uma nova vida e com ela uma nova fala sagrada:
“As mulher come as coisa que não podia comer, sente mal né, sente mal vai
pro hospital né. Porque o antigo, a parteira não deixava comer de galinha, e ovos não
podia comer muito e porção de coisas que não podia mulher quando ia ganhar neném. As
mulher antes de ganhar neném tem que se guardar né. Agora não, nem as mulher que
esperando neném, aquelas mocinha que não podia comer, come tudo, por isso que acontece
muitas coisa e vai pro hospital”.
Envolvida pelo tema que emergiu, outra depoente que havia se negado a dar
depoimento, resolveu romper o silêncio e acrescentar uma relevante informação sobre a
importância do parto autóctone como método milenar de promoção e proteção da saúde, que
muito vem sendo abandonado pelas jovens Mbde Aracruz. A mesma deu à luz ao sexto
e derradeiro filho pela primeira vez no hospital da rede referenciada, onde teve que
permanecer internada durante o período de um mês. Muito emocionada, a depoente falou da
importância do parto Guarani sem ao menos conseguir descrever os detalhes do parto
hospitalar que a deixaram extremamente consternada.
175
22
“Antigamente quando a gente ganha neném, que nem a Rosa.. Vou contar a história da
Rosa. Rosa., quando ela nasceu, minha irmã fez o meu parto... Lair, a Marilda e D. Maria.
E... a placenta elas enterraram. O umbigo eu guardei. E ela nunca foi pro hospital! Para
levar ela consultar, internar, é para remédio hora em hora. Eu nunca fiz isso com ela. Porque
ela foi atendida muito bem em casa né, que eu ganhei. É, essa daí eu acho que deu
(chorando e falando), por isso que ela assim, ela é uma mocinha, assim muito forte para
mim, eu acho. Eu nunca levei ela no hospital. Eu mandei batizar ela em Mato Grosso
(cessando o choro). O padrinho dela falava, tua filha quando ficar grande ela vai ter sorte,
ela vai ter saúde. Muito forte e não se preocupa com ela porque ela vai, ver ela crescendo.
Você vai vendo casando, tendo filho”. E é isso que eu tô vendo com ela agora. É, tô chorando
porque eu vejo ela assim, de alegria. Ela é uma moça bonita, ela está bem, com saúde. [...]
Agora, Paulo já me deu tristeza. É, Paulo já me deu tristeza e foi uma época ruim para mim,
para todos. Se eu contar a história dele não vou conseguir falar. Aí dona Maria, essa senhora
batizou também ela, deu nome dela Keretxu’í, Keretxu, Keretxu’í é. Ela é uma moça muito
forte, ela respeita, ela não responde. Ela fala a gente fala, resolve faz isso, ela faz. Não faz
isso que não é bom para você, ela não faz. Tudo que eu falo de bom para ela, ela faz. Rosa
não me dor de cabeça não, nunca!. Hoje em dia as mulher ganha no hospital e joga a
placenta no lixo! Joga umbigo no lixo! Joga o sangue que tinha no umbigo da criança no
lixo! Tudo isso tristeza para mãe e pro neném. Por isso fica com aquela doença. A gente
fala doença, tosse, pneumonia essas coisa a gente fala, mas na verdade é a tristeza das
criança que tá na criança. Porque umbigozinho (voz no fundo, “guardar, guardar, sagrado”)
é, tem que guardar, isso é uma coisa muito sagrada para gente. É o umbigozinho da
criança. Eles tem que usar no colarzinho. Faz um colarzinho. Paulo, a barata comeu tudo. Eu
guardei na gaveta mas a baratinha comeu tudo”. (Liderança M1)
22
Foram utilizados nomes fictícios neste relato para resguardar a verdadeira identidade das pessoas citadas
excetuando-se D. Maria que corresponde à Tatati Yva Ete
176
É importante pontuar que a situação atual está vinculada a um passado não muito
distante, quando houve a transferência do controle dos serviços de atenção à saúde indígena
da FUNAI para a FUNASA. Desde os meus primeiros contatos com os Guarani de Aracruz
fui movido por uma grande curiosidade em relação aos motivos reais da não realização do
parto autóctone nessas aldeias. Dificilmente as mulheres abordam o assunto, porém, depois de
algum tempo de investigação obtive a resposta de que neste período as parteiras sofreram
fortes pressões por parte dos profissionais de saúde para que deixassem de desenvolver o seu
ofício, em função desses não compreenderem a dimensão integral desta prática e assim,
considerarem que ela constituía um risco extremo para as parturientes e para os conceptos. Da
mesma forma, foi dito que as gestantes, principalmente as mais jovens, sofriam, também,
fortes influências durante os atendimentos de pré-natal para realizar o parto hospitalar.
Em resposta a esta situação, as poucas parteiras ainda existentes nas aldeias deixaram
de realizar o parto Guarani em função de se sentirem impossibilitadas de fazê-lo nestas
circunstâncias de pressão. Vale lembrar que, o não reconhecimento e valorização do saber
ancestral das parteiras implicam necessariamente na reclusão dessas terapeutas autóctones, na
gradativa extinção desses saberes milenares e na perda de importantes vínculos com aspectos
determinantes de saúde para os Mbyá, como destaca Follér (2004, p.134):
Os conhecimentos médicos dos povos indígenas m sido tratados como algo não
médico. A prática e a experiência da sobrevivência, o xamanismo, o uso de plantas
medicinais e os conhecimentos das parteiras têm sido desvalorizados em relação aos
conhecimentos biomédicos.
Dessa forma, os Guarani deixam de reproduzir importantes práticas que servem de
referência para o fortalecimento espiritual dos indivíduos nos diferentes ciclos do
desenvolvimento humano.
177
5.2.5 Capacitação Profissional x Dominação Cultural, o Sujeito em Foco
Pelo fato de se localizar na área interna da aldeia Boa Esperança, o posto de saúde foi
descrito como o local onde se pode obter um atendimento melhor e mais seguro do que o
desenvolvido no âmbito hospitalar, entretanto, longe de ser considerado como diferenciado
em algum aspecto. O relato de um Agente Indígena de Saúde ilustra esta situação, pois,
segundo ele:
“É especial porque eles dão tudo pra tentar ajudar na saúde indígena. Porque encaminha
qualquer encaminhamento quando os índio faz consulta na unidade de saúde. Pelo menos é
avaliado né. É avaliado e dali o que precisa é ir pro hospital, ele vai pro hospital. Então, no
alcance deles eles faz assim de tudo né”(AIS).
Entretanto, os Guarani foram unânimes em afirmar a inexistência de atividades que
pudessem ser consideradas como atenção diferenciada tanto na promoção, como na proteção
e na recuperação da saúde indígena, indo de encontro a um importante princípio que rege a
política indigenista de saúde:
O principio que permeia todas as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas é o respeito às concepções, valores e práticas relativos ao
processo saúde-doença próprios de cada sociedade indígena e a seus diversos
especialistas. A articulação com esses saberes e práticas deve ser estimulada para a
obtenção da melhoria de saúde dos povos indígenas. (BRASIL, 2002, p.18).
O simples fato de que no posto de saúde os casos são avaliados e os pacientes
encaminhados para a rede referenciada quando necessário é descrito como um atendimento
satisfatório pelo agente de saúde em um local onde, segundo Ciccarone (Ibid, p.58), a
sociedade é “ponteada de lugares e figuras hostis, considerados agentes responsáveis pelo
crescimento de novas enfermidades”.
178
A falta de capacitação adequada desses profissionais foi considerada por algumas
pessoas como determinante para a ausência de conhecimentos sobre a forma como os índios
se organizam socialmente, seus costumes, horários e condições de vida que influenciam de
forma direta e indireta o processo saúde-doença. Silveira (2004, p.126) assinala que, “para
alcançar as mudanças necessárias à prática de atenção diferenciada, é indispensável agregar as
experiências e os conhecimentos de todas as pessoas envolvidas na assistência à saúde,
especialmente os usuários”. No entanto, os Guarani reclamam que alguns profissionais se
consideram detentores de um conhecimento universal que deve prevalecer nos
relacionamentos interculturais e por isso deixam de observar a qualidade das relações
interpessoais e interculturais que determinam a solidez dos vínculos na atenção diferenciada à
saúde indígena.
O amor ao trabalho foi descrito de forma unânime como a característica principal do
bom profissional de saúde, aquele que estabelece vínculos com a população pela sua
capacidade de acolher e dialogar com a diferença, ao passo que a falta de paciência e de
comprometimento com a causa indígena são vistas como fatores desencadeadores e
agravantes das enfermidades, pois, interferem na maneira como os Guarani se mobilizam para
lidar com os recursos terapêuticos disponíveis.
Um depoente teceu uma importante consideração ao abordar como conflitos dessa
ordem no âmbito do atendimento à saúde foram determinantes para levar sua filha a óbito por
pneumonia. Segundo ele, quando a levou para se consultar no posto de saúde, o médico que a
atendeu diagnosticou um quadro gripal leve, prescreveu alguns medicamentos e a liberou
logo em seguida, sem solicitar nenhum exame complementar ou examiná-la em pormenores.
Com a evolução repentina do quadro clínico dois dias após a consulta, o aflito pai,
influenciado pela má qualidade do atendimento, conduziu sua dependente diretamente ao
hospital, onde foi diagnosticada uma pneumonia grave que a levou a óbito depois de três dias
179
de internação. Segundo o pai aflito, o descaso foi tanto que chamou a atenção do médico que
cuidou da sua filha neste nosocômio, pois, chegou a orientá-lo a mover uma ação contra o seu
colega de profissão, o que, segundo ele, foi feito por intermédio da Fundação Nacional do
Índio .
A qualidade do relacionamento intercultural é determinante para que os índios se
sintam à vontade para expressar suas dúvidas e anseios frente ao estranho, ao diferente,
consubstanciado nos profissionais que atuam em um sistema de saúde que pouco considera as
peculiaridades de cada cultura. A não observação de critérios culturais de gênero, idade e
posição social que influenciam a forma de se expressar e de se posicionar frente aos eventos
mórbidos, foram relatados como os principais determinantes para o distanciamento físico e
ideológico entre indígenas e profissionais na busca pelo tratamento dos agravos à saúde.
A prática cotidiana dos Agentes Indígenas de Saúde foi objeto, também, de críticas de
algumas lideranças que afirmaram a sua pouca atuação nas aldeias junto às famílias,
principalmente com relação ao monitoramento de aprazamentos e dosagens de medicações
alopáticas por pessoas que desconhecem a escrita da língua portuguesa e não estão
acostumadas a administrar o seu horário rigorosamente. Assim, o mesmo depoente tomou
novamente uma situação própria como referência para discutir o assunto, argumentando que
esteve doente em casa por três dias e não recebeu a visita do agente de saúde que permanecia
a maior parte do tempo no posto de saúde junto à equipe multidisciplinar.
“Os agentes de saúde ficam direto lá no posto e não tem o acompanhamento dos
comunidade daqui ! Que nem esses dias, eu tava doente três dias de cama, mal alimentava,
não conseguia fazer nada, três dias de cama sem alimentar nem fazer nada. minha esposa
falou assim, mas você tem que ir pro médico. eu falei assim, mas como que eu , sendo que
eu tô fraco aqui não consigo nem levantar da cama. E o agente de saúde né?! Nem soube que
180
eu tava doente! Então eu falei duas vezes na reunião das comunidade: O agente de saúde
ele aqui pra acompanhar, ter o acompanhamento das comunidade e às vezes ele mesmo
falou assim: Não, porque a enfermeiras falou assim que é pra mim ficar pra ver as
papeladas lá.[...] Porque as pessoas às vezes que tem mais idade, mais idoso que é mais
preocupante, né. Então se ele não for fazer a visita ali ele não vai saber né, se a pessoa
bem, doente, se mais ou menos, então é dessa forma. Então, hoje os agente de saúde
mais acompanhando lá esse costume dos jurua de que fazendo o papel dele. Então até mesmo
uma coisa muito burocrático né. Até mesmo afetou isso daí , influenciou o índio na parte
disso né..” (Liderança D)
O agente indígena de saúde representa um ator intermediário na negociação com os
doentes, suas famílias e demais redes de dependência para a escolha do itinerário terapêutico a
ser seguido para a recuperação da saúde. O seu vínculo empregatício demanda
necessariamente uma reconceitualização da sua posição social e das relações internas de
poder em torno dessas negociações. Tendo em vista que seus conhecimentos e práticas
transitam entre uma cultura e outra, sua função é promover a interface entre os diferentes
sistemas de atenção à saúde, o que requer a capacidade de identificar pontos confluentes,
conciliar as diferenças e lidar com as tensões.
Se por um lado, possuem vínculos socioculturais com os Karai, que representam as
figuras referenciais para o diagnóstico e o tratamento das enfermidades para o povo Mbyá,
por outro, estão subordinados à agência oficial de prestação de serviços em saúde indígena e à
sua ideologia institucional. Oliveira (2004, p.28) adverte para o fato de que, neste contexto, os
agentes indígenas de saúde, “sofrem fortes pressões para que estabeleçam rotinas, constituam
infraestrutura e produzam resultados positivos e imediatos em termos de assistência à saúde,
terminando por ocupar-se quase exclusivamente da medicina ocidental.” Neste panorama é
181
comum os agentes indígenas de saúde se ocupem, quase que integralmente, da intermediação
entre os pacientes indígenas e o sistema biomédico corroborando para a anulação dos usuários
e dos terapeutas autóctones como sujeitos ativos nos processos terapêuticos.
Dessa forma, sua prática revela um campo onde se desenvolvem as relações
interculturais marcadas pela aceitação ou refratamento dos recursos e agentes da biomedicina
por parte dos sujeitos sociais, conforme se expressa um depoente que está no cargo um
ano:
“A importância de a gente valorizar a casa de reza e também a importância da
unidade de saúde, né, lá de fora. Então a gente, às vez enfrenta alguma dificuldade quando as
pessoa não entendem . [...] a gente tem que passar a entender como é o mundo fora, o
mundo dos pessoal branco né. Então a gente fica dividido .”
Os agentes indígenas de saúde vinham passando por uma capacitação intercultural na
época em que foi realizado o trabalho em campo. O enunciado do jovem agente deixou
transparecer em diferentes momentos, um conflito decorrente da expectativa de difusão dos
conhecimentos da biomedicina para os membros do seu grupo social, como uma ideologia
que precisava ser difundida em caráter de verdade absoluta. Neste sentido, relatou encontrar
fortes barreiras a transpor no exercício das suas atividades, pois, segundo ele:
“Às vezes eu fico nesse meio mesmo, porque às vezes acontece isso, porque hoje eu
entendi mais ou menos como é que é, como doença surge e como as pessoas assim... deve
aceitar isso, né. Então, eu assim, tenho dificuldade.” (AIS )
182
A tolerância com as práticas e valores autóctones foi descrita como parte de um
contexto de bom atendimento pelo agente indígena de saúde, ao abordar a forma respeitosa
com que a enfermeira chefe tratava os encaminhamentos de pacientes para a opy, onde os
índios se fortalecem na palavra do Karai e recebem instruções de como evitar a medicalização
excessiva. Apesar do louvável respeito da enfermeira com a cultura Guarani, não foi
identificada nenhuma articulação com esses saberes em nível de paridade na construção de
um atendimento diferenciado em saúde:
“A gente conversa muito como é que, por exemplo, às vezes eu peço conselho o que eu
devo fazendo. E os pessoal lá fora como por exemplo, a enfermeira chefe né. Ela respeita,
também, a gente quando por exemplo a gente sempre leva pro pajé. Então, ali a gente recebe
a força do conselho do pajé também, né. ele fala sobre saúde e como pode evitar tanto os
pessoal lá, como que pode, é o remédio, remédio pode estar evitando também, né”(AIS )
A reprodução de uma ideologia dominante que hegemoniza o pensamento da cultura
biomédica foi mais uma vez evidenciada na fala do agente indígena de saúde, encerrando as
possibilidades de solução para o problema identificado, tendo em vista que o mesmo
naturalizou o próprio estilo arquitetônico Guarani como um elemento favorecedor de doenças:
“Doença que afeta mais é gripe, febre, essas coisa mais, né. Que devido a gente não ter um
lugar apropriado, de ter as nossas casinha assim de tupique, estuque, estuque que fala né? É
um estudo que eu fiz.”
Este modelo de construção é adotado pelos Guarani como marca de sua identidade
arquitetônica séculos e a qualidade do seu acabamento depende diretamente da
183
disponibilidade dos recursos naturais existentes na região, o que não deixa de refletir,
também, o grau de disponibilidade dos elementos condicionantes de qualidade de vida para
esse povo.
A moradia de pau-a-pique não constitui uma falta de opção para os Guarani, mas um
modelo que reproduz e preserva aspectos essenciais da sua cultura ao se adequar às
necessidades do seu modo de vida. Dificilmente as pessoas permanecem por muito tempo em
um mesmo local, cedendo seus espaços para outras famílias habitarem ou até mesmo
transformarem as antigas construções em criadouros de animais, depósitos, etc. A casa de
pau-a-pique possibilita modificações periódicas em sua estrutura interna sem que isto
implique em grandes despesas. Sua estrutura é feita de barro e madeiras nativas, que os
Guarani entrelaçam e fixam com cipós ou com pregos para garantir maior firmeza e sua
cobertura é feita geralmente de folhas de palmeira pindo, ou seja, aquela descrita no mito
Mbyá com relação à sustentação do mundo, muito embora, a maioria das casas construídas
recentemente utilizem a cobertura de telha de amianto, devido à falta de recursos naturais na
região.
Os Guarani costumam utilizar seus “enripamentos”
23
para colocar apoios para guardar
artesanatos, roupas, e demais utensílios domésticos, dispensando a maioria dos móveis
conhecidos em nossa sociedade. Vale assinalar, que a quantidade e a qualidade dos recursos
disponíveis nas aldeias, entretanto, é que assegura uma construção livre de condições
facilitadoras de correntes de ar e de microambientes propícios ao alojamento e à reprodução
de vetores e animais peçonhentos em suas estruturas.
Não se trata, portanto, de se tentar cristalizar os aspectos simbólicos da cultura
Guarani como se a casa de pau-a-pique fosse a sua certidão de identidade, mas de relativizar
os conhecimentos descritos pelo agente indígena de saúde no sentido de entendê-los como a
23
Termo utilizado para designar os pontos de junção entre as ripas.
184
expressão de uma construção intercultural permeada por ideologias divergentes e muitas
vezes conflituosas.
Projetos de construção de casas de alvenaria vêm sendo desenvolvidos em parcerias
com organizações externas para assegurar moradia, prioritariamente, àquelas famílias que não
as possuem em boas condições. Na aldeia Piraquê-Açu pode ser observado que a
substituição das casas de pau-a-pique pelas de alvenaria constitui uma realidade que reflete
não só uma mudança de estilo arquitetônico, mas de modo de vida, pois, além da transição da
mobilidade para o sedentarismo, os índios passaram, também, a depender dos poucos recursos
financeiros disponíveis para a manutenção periódica de suas residências.
Contudo, mesmo possuindo infinitas possibilidades arquitetônicas para a construção
da opy, os Guarani buscam preservar o estilo do pau-a-pique, demonstrando como os
relacionamentos interculturais implicam na demarcação de zonas fronteiriças que delimitam
instâncias impenetráveis ao outro, garantindo a preservação e reprodução da sua identidade
através dos signos inegociáveis ideologicamente.
Ao que parece, o cotidiano do agente indígena de saúde constitui para este, um campo
de práticas dicotômicas e conflituosas, onde descreve que encontra grande dificuldade em
conciliar as diferentes formas de se pensar o processo saúde-doença. Por isso, a política
indigenista de saúde (BRASIL, 2002) recomenda que a formação desses agentes favoreça a
apropriação de conhecimentos e recursos cnicos da biomedicina com vistas a acrescentar e
não a substituir o acervo de terapias próprias do grupo. Assim, deve constituir um processo
recíproco de aquisição de conhecimentos que oportuniza aos profissionais de saúde, também,
conhecerem as singularidades de cada cultura para integrar e adequar seus valores e práticas
àqueles próprios desses sistemas autóctones, pois, segundo Langdon (1999, p.1), é importante
que se diga que a “biomedicina deve ser vista também como um sistema cultural e não como a
única ciência da verdade.”
185
É bom que se ressalte, que não existem motivos reais para se considerar os dois
sistemas de saúde contraditórios ou dicotômicos, mas, complementares e dialógicos quando a
relação entre ambos é respeitosa e paritária. Deve-se assinalar aqui que as tensões existentes
na prática do agente de saúde não se encontram isoladas de uma condição hierárquica mais
ampla entre os grupos sociais e podem ser determinantes para o agravamento dos processos
patológicos, pois, influenciam nas formas de se compreender saúde e doença e de se mobilizar
recursos para lidar com o processo.
Vale destacar, que os sistemas indígenas de saúde não se diferenciam do sistema
biomédico pela sua maior ou menor eficácia curativa, mas pela forma integral de
compreender os eventos mórbidos através da multifatorialidade dos elementos envolvidos,
tanto na sua determinação como na sua evolução e prática terapêutica. Assim, considera a
doença não em sua dimensão fisiológica e condicionada por um agente causal específico,
mas, pelos seus determinantes biológicos, sociais e espirituais que enfraquecem o corpo e/ou a
alma possibilitando a atuação dos agentes patogênicos de origem natural e/ou sobrenatural
sobre os mesmos.
Langdon (1999, p.) destaca que :
Enquanto a biomedicina define cura como ausência de sintomas de doença, o
significado de cura para os sistemas indígenas aproxima mais o conceito de ‘heal’,
que vem do grego e implica totalidade. Assim, ‘heal’ para os sistemas indígenas
implica na restauração de bem-estar, e nos casos de doenças sérias, que ameaçam a
vida, bem-estar requer a restauração das relações ameaçadas pela doença, e não a
ausência de doença.
Por reter a posição de paradigma universal, o sistema biomédico tem servido
erroneamente de referência para a avaliação das questões de saúde e doença em todas as
sociedades. Neste sentido, concordamos com o disposto pela Organização Panamericana de
Saúde (1998) que recomenda aos profissionais que atuam com os povos indígenas para que
busquem repensar a forma como o sistema biomédico tem tratado o ser humano em suas
186
limitações cartesianas, restringindo o diálogo com outras maneiras de entender a vida e as
relações sociais que influenciam direta e indiretamente o processo saúde-doença.
5.2.6 A Alopatia nos Serviços de Saúde: os Guarani e a Medicalização
Os Guarani foram unânimes em afirmar a precariedade estrutural da FUNASA, que,
na época das entrevistas encontrava-se sem recursos financeiros para a aquisição de
medicamentos. Abordar o tema da medicalização entre os povos indígenas não é tarefa fácil,
pois, requer não somente um conhecimento sobre as crenças, valores e práticas que se
relacionam ao uso dessas substâncias em cada cultura, como sobre as questões políticas,
econômicas e burocráticas que definem o seu suprimento e a sua disponibilidade nos serviços
de saúde. (DIEHL; RECH, 2004).
Estar disponível não significa que os medicamentos serão distribuídos e utilizados de
acordo com os pressupostos da biomedicina, muito pelo contrário, pois, segundo os autores
(Ibid, p.149), a distribuição “é também determinada pela política e economia nacionais, pelas
questões burocráticas da FUNASA e de outras instituições e suas políticas de distribuição,
pela natureza da relação médico-paciente, pelas interações e negociações de poder nos locais
de serviço e pela expectativa da população.”
Os Guarani reclamam do encurralamento sofrido pela degradação da terra e a
conseqüente escassez dos recursos naturais necessários à manutenção das suas práticas
autóctones de atenção à saúde e relatam que esta situação é agravada pela falta do suprimento
das medicações alopáticas, as quais fazem parte da complexa rede de recursos terapêuticos
utilizados atualmente por estes índios. Neste sentido, uma liderança aborda o assunto com
grande propriedade:
187
“Vem piorando as coisas, cada vez mais é remédio, é remédio, é remédio, então, não tem
mais o remédio do mato, então, ele vai acostumar com o remédio da cidade. Se você não tem
dinheiro, não tem condição de comprar, a FUNASA que é órgão também das
comunidade indígena, quando a gente vai falam que não tem nem recurso pra comprar
remédio ele não tem. Aqui não temos mais nada, não temos remédio do mato e o próprio
pessoal, os branco, a FUNASA acostuma o índio errado com o remédio da cidade. Se você
não tiver dinheiro você não compra remédio, porque são remédio caro. Como que nós vamos
tá comprando?”(Liderança E)
Os medicamentos constituem o instrumento da biomedicina mais difundido atualmente
no mundo e nas sociedades autóctones o que implica em entendê-los não mais como um
recurso de domínio exclusivo deste sistema ou da farmacologia (DIEHL; RECH, 2004), mas
como um signo através do qual se expressam as diferentes formas de coexistência ideológica
e de relações de poder na atenção à saúde, pois:
Os fármacos não são somente aceitados em várias instâncias, mas também eles se
tornam o símbolo do poder da biomedicina até tal ponto que os índios os demandam
e criticam severamente o médico, enfermeiro, ou assistente de saúde que não os
distribui em situações nas quais o profissional não os julga necessários, numa
tentativa de prestar um atendimento mais holista e/ou de incorporar a fitoterapia do
próprio grupo. (LANGDON, 1999, p.1).
Apesar de os Guarani relatarem uma hierarquia que deve ser respeitada no itinerário
terapêutico, e que preconiza a passagem do enfermo inicialmente pela opy, é perceptível que
no caso de doenças unicamente de origem biológica, ou seja, aquelas que não tem origem
sobrenatural, costumam se dirigir diretamente ao posto de saúde onde aceitam sem restrições
a utilização das medicações alopáticas como um recurso mais do que essencial atualmente.
188
Muito embora, sua inclusão na gama de recursos terapêuticos utilizados pelos Guarani
nos dias de hoje esteja atrelada ao discurso da falta de opção frente às condições restritivas de
se viver o seu modo de ser (ñandereko), sua disponibilidade nos serviços de saúde é vista
pelos índios como um indicativo da sua boa estruturação, ou seja, um posto de saúde deve
necessariamente ter uma boa farmácia para atender às suas necessidades sintomáticas.
Se a saúde foi descrita como uma condição que possibilita estar bem para o trabalho
diário, é necessário que se entenda que esta noção é determinante para a relação estipulada
com a utilização dos medicamentos alopáticos atualmente. Poucas são as pessoas que se
encontram disponíveis para permanecer longo tempo afastadas de suas atividades cotidianas
em decorrência das enfermidades que as isolam da sua vida social. Neste sentido, em algumas
situações, pôde ser observado que os Guarani utilizavam as medicações alopáticas em
concomitância ou não com as práticas autóctones de atenção à saúde, aplicando-as mais
enfaticamente na redução daqueles sintomas físicos para os quais a medicina tradicional não
dispõe de recursos eficientes ou de atuação rápida.
É importante ressaltar, no entanto, que a busca espontânea por esses recursos está
vinculada necessariamente à sua fácil disponibilização pelos profissionais de saúde. Diehl e
Rech (2004, p.160) tratam do assunto entre os Kaingang no sul do país, destacando que:
A disponibilidade da grande maioria dos medicamentos na ‘Enfermaria’ era um
forte estímulo para a significativa demanda observada , e é nesse sentido que
devemos procurar entender a atuação dos profissionais. O fato de os médicos da
‘Enfermaria’, trabalhando em um contexto público de atenção, terem emitido
prescrições em grande parte de suas consultas e o número expressivo de
medicamentos encontrados nas casas corroboram a idéia de que essa atitude dos
profissionais legitima e encoraja os índios a procurarem por medicamentos
sintomáticos.
O documento que dispõe sobre a atenção à saúde dos povos indígenas (BRASIL, 2002)
recomenda a promoção do uso racional de medicamentos em concomitância com o incentivo
e a valorização das práticas farmacológicas tradicionais o que, todavia ainda não foi
observado nessas aldeias Guarani.
189
Tendo em vista que a escassez de recursos naturais condiciona uma maior dependência
de outros instrumentos e práticas, é premente que se invista em alternativas compatíveis com
as necessidades e os conhecimentos dos índios, sem as quais, corre-se o risco de se
comprometer a continuidade dos processos terapêuticos colocando em risco a saúde daqueles
que passam a depender unicamente dos recursos da biomedicina.
As agências oficiais de prestação de serviços em saúde costumam tomar os dados
epidemiológicos disponíveis para nortear a sua prática agindo na transformação de hábitos e
estilos de vida prejudiciais `a saúde individual e coletiva através da universalização de
normas, regulamentos e protocolos que não consideram a singularidade cultural de cada grupo
da população como fator determinante para a co-construção de sujeitos envolvidos com a
transformação da sua realidade.
Entretanto, o aumento do grau de autonomia das pessoas constitui finalidade central da
política, da gestão e do trabalho em saúde. A co-construção de sujeitos autônomos tem
importantes implicações políticas, epistemológicas e organizacionais e exige a reformulação
dos valores e conceitos teóricos para a redefinição do objeto das práticas de atenção à saúde.
Assim, a singularidade social, cultural e histórica dos sujeitos constituem fatores
determinantes para o êxito das ações de promoção, proteção e recuperação da saúde
individual e coletiva. A participação e o controle social implicam, no entanto, no
comprometimento do Estado em garantir as condições propícias para que se a co-
construção de sujeitos, profissionais de saúde, gestores e agentes da comunidade, capazes de
reconstruir novos padrões culturais e sanitários que emergem do contexto de seus
relacionamentos. (CAMPOS, O.; CAMPOS, 2005).
Dessa forma, os diferentes espaços sociais que se relacionam com a atenção à saúde
dos Guarani Mbde Aracruz, evidenciaram-se como campos onde se conflitam ideologias
distintas demarcando as tensões que determinam o grau de autonomia dos sujeitos na busca
190
pelo atendimento às suas necessidades ampliadas de saúde. A hierarquização ideológica de
valores e práticas culturais no planejamento, na execução e no gerenciamento das atividades
desenvolvidas em todos os níveis e setores de atenção à saúde não se encontram
desvinculadas do processo de construção histórica dos relacionamentos sociais que
determinam a universalização dos valores ocidentais como parâmetros para julgamento e
avaliação dos valores e práticas autóctones.
Os sujeitos da pesquisa foram capazes de reconhecer a importância de todas as esferas
da sua vida social como campos onde a saúde deve ser promovida em sua dimensão ampliada,
contudo, onde se desenvolvem também as tensões decorrentes dos diferentes interesses
ideológicos que determinam os impactos na forma de vivenciar saúde e doença e mobilizar
recursos materiais e simbólicos para lidar com o processo. Concluímos, portanto, que o
processo de apreensão do conceito ampliado de saúde consiste em uma lenta caminhada à
forma integral de se entender o tema, como bem nos ensina os Guarani Mbyá.
191
CONCLUSÃO
O tempo passou. Agora, tenho duas línguas. Uma língua nasceu comigo, no colo da
minha mãe. É a língua que expressa a alma guarani. É a língua do tekoha, da opy,
onde as palavras se abrem em flor e se convertem em sabedoria, as belas palavras,
nhe´en porãngue´i, palavras indestrutíveis, sem mal, ayvu marã´ey. O nome que
tenho, foi ela quem me deu na cerimônia do Nhemongarai. É nela que ouço as
divinas palavras do maino´i. Com ela nomeio as plantas, as flores, os pássaros, os
peixes, os rios e as pedras, o sol e a chuva, a roça e a caça. Com ela, faço soar o
mbaraka, aspiro o pityngua, danço xondaro, canto pra Nhanderu e rezo nhembo´e.
Bebo kaguy, como avaxi e jety, aprendo jopói e potirõ, tudo isso com ela eu faço:
rio e choro, rezo e canto. Com ela, eu sou o que falo: guarani. A outra língua que
tenho é a que sobrou de uma guerra de muitas batalhas. Ela trouxe a espada e a
cruz, o livro e as imagens, o sermão, o catecismo, a doutrina, as leis. Ela me
ensinou a aprisionar o som, como quem pega a fumaça com a mão e a guarda no
adjaká. Com ela, aprendi riscar as letras, e a desenhar as palavras no papel.
Quando saio da aldeia, é ela quem me ajuda. Com ela, procuro escola e biblioteca,
mercado e igreja, posto de saúde e hospital, cartório e tribunal. É com ela que me
comunico com índios de outras línguas. Com ela navego na internet, descubro o
pensamento do juruá, caminho pelas ruas, leio as cidades, entro nos ônibus,
embarco e desembarco na rodoviária, vendo o artesanato e converso com as
pessoas. Agora não posso mais viver sem as duas. Estou sempre trocando de
língua com um pouco de medo, como se fosse um caso de bigamia.
24
Ao delinear os primeiros passos dessa dissertação de mestrado em Enfermagem,
acreditava que as tensões as quais me propunha investigar e discutir transpareceriam de forma
clara e objetiva entre os dois grupos humanos que ocupam posições desiguais na luta por um
bem incontestável, a terra indígena.
Para compreender o problema em sua amplitude, empenhei-me na aquisição de
conhecimentos sobre as propostas políticas e normativas que regulamentaram historicamente
o tratamento dispensado aos povos indígenas na formação de uma sociedade que não lhes
interessava, a qual pertencemos.
24
Texto adaptado do poema “Dues Lhéngues” de Amadeu Ferreira, pelo professor José Ribamar Bessa Freire
em uma oficina realizada com os professores Guarani no ano de 2007.
192
Como pesquisador não pude deixar de observar o alcance das relações assimétricas de
poder e autonomia, assim como, a abrangência dos seus impactos no processo saúde-doença e
na determinação do itinerário terapêutico a ser adotado pelos indígenas em situações de
contato intercultural.
As políticas públicas resultam de amplas negociações entre os diferentes atores sociais
envolvidos com os interesses mais profundos de uma nação, em seu contexto de relações
internas e externas. É necessário que possamos entendê-las como instrumento de regulação da
vida em sociedade, através da qual se torna possível reprimir comportamentos inadequados e
ameaçadores à mesma. Contudo, apesar das políticas públicas terem logrado êxito teórico no
que tange à superação do paradigma ideológico que se fazia dos povos indígenas do Brasil e
das suas culturas, muito há que se consubstanciar na prática para se reverter o quadro
histórico de relacionamentos assimétricos entre estes e os demais segmentos da sociedade
nacional.
Em pleno acordo com Freire e Malheiros (1997), consideramos que os povos
indígenas constituem um indicador sensível da natureza da sociedade com que interagem e
nesse contexto, estudar o índio implica em conduzir indagações e reflexões sobre a própria
sociedade em que vivemos.
Os Guarani sofreram historicamente, as conseqüências diretas da colonização e da
política positivista do século passado. Suas marcas se encontram enraizadas, não somente, na
memória ancestral desse povo, mas na memória da nossa sociedade atual, que discrimina e
confina o índio em míseros territórios que lhes são incapazes de suprirem as suas
necessidades mais amplas de qualidade de vida e saúde, segundo aspectos essenciais da sua
cosmovisão e cultura.
Frente às adversidades históricas, no entanto, os Guarani desenvolveram mecanismos
estratégicos de extrema diplomacia para lidar com a alteridade, através da regulação das
193
línguas que dominam e lhes possibilitam transitar entre as diferentes linguagens de mundo
atualmente. O poema “Duas Línguas”, descrito no início dessas considerações, expressa bem
essa situação: a língua como instrumento capaz de possibilitar novas leituras da vida.
A História é irreversível, não volta atrás, mas, os dados explorados nesta dissertação
apontam para o fato de que a língua materna permanece para os Guarani como atemporal,
pois, representa a possibilidade concreta de sobrevivência no presente e no futuro. A palavra-
alma integra a natureza e o corpo humano em um elemento, é o elo entre o natural e o
sobrenatural, é o instrumento de realização pessoal e de libertação. Nesse entendimento,
natureza, palavra e homem são para os Guarani uma coisa, pois, não existe divisão, existe
integração na e pela palavra. A vida se desenvolve e se encerra na palavra-alma, pois, ela
designa nomes e possibilita, concretamente, a relação entre o homem e Deus, através da
manifestação de Deus no homem.
Os entrevistados deixaram claro que longe da natureza e diante de situações de
opressão a palavra-alma não se manifesta, se aprisiona e o homem não se realiza como ser
humano pleno em seus interesses e desejos mais profundos. Onde não mais se ouve o canto
dos pássaros, a palavra-alma se emudece e advêm os infortúnios, a tristeza, a confusão, as
doenças e a morte. A morte da palavra é a morte da alma e a impossibilidade de manifestação
da vida em sua plenitude.
Os Guarani foram unânimes em afirmar que o legado das doenças trazidas de além-
mar representa o reflexo da identificação com um modo de vida que consideram imperfeito,
doentio (teko achy kue), que tem sua origem nas transgressões dos códigos morais e
espirituais que regulam os relacionamentos entre os seres humanos e os demais seres de
origem natural e sobrenatural. Quando a natureza é destruída seus guardiões se entristecem e
vão embora, deixando os homens à própria sorte, sem proteção para se defender do malefício
que criaram contra si mesmos.
194
A língua portuguesa, por sua vez, foi introduzida aos Guarani em um processo que se
encontra enraizado na formação da identidade desse povo atualmente, a catequese. Essa, os
Guarani conhecem bem, em decorrência de suas experiências passadas que demonstraram que
seu objetivo central era promover o isolamento e a desintegração das forças políticas e sociais
que unem os homens, fortificam seus vínculos e a sua autonomia e possibilitam a realização
das suas aspirações mais profundas. Entretanto, a língua portuguesa, associada à invasão,
degradação e desintegração, se renova atualmente na cultura Guarani como uma possibilidade
concreta de garantir as mediações necessárias à melhoria da qualidade de vida e saúde desse
povo, em uma sociedade que se expandiu, ocupou e se desenvolveu em seu território original.
Hoje, os Guarani tem duas línguas e com elas transitam entre dois universos
diferentes, mediam conflitos e tensões e buscam sobreviver em um mundo, cada vez mais,
marcado pela universalização de um modelo de sociedade incapaz de dialogar e respeitar a
diversidade de valores, saberes e práticas. Hoje os Guarani tem duas línguas, e com elas
procuram o posto de saúde, o hospital e a escola na esperança de minimizar os impactos
causados por séculos de desrespeito e violências impetrados contra a sua unidade como povo,
língua e cultura.
Como enfermeiros, apoiamo-nos em conceitos construídos e renovados em amplos
diálogos a cada conferência, simpósio, seminário e demais atividades científicas que se
propõem a discutir a adequação dos serviços de saúde à dimensão integral das necessidades
humanas, tanto no âmbito individual como coletivo, e temos assim, logrado êxito teórico no
avanço de uma reconceitualização dos modelos de produtividade e gestão desses serviços.
Dessa forma, a “atenção diferenciada” proposta pela Política Nacional de Atenção à Saúde
Indígena (2002), enquanto modelo normativo desse processo, tem como eixo central o
delineamento de estratégias de valorização e articulação entre os saberes e práticas do sistema
biomédico e aqueles reconhecidos socialmente por cada povo indígena, em contraponto à
195
perspectiva assimilacionista amplamente adotada nas políticas públicas que precederam a
Carta Constituinte de 1988.
As categorias delineadas para a análise e discussão dos dados possibilitaram o alcance
dos objetivos propostos no início da dissertação, ou seja, a identificação das formas como as
tensões interculturais impactam o processo saúde-doença, a análise das contradições
existentes entre as propostas normativas e o cotidiano do grupo em foco e uma discussão
sobre os aspectos normativos que poderiam minimizar os impactos identificados entre os
Mbyá do Espírito Santo. Possibilitaram concluir que apesar dos instrumentos político-
normativos disponíveis atualmente constituírem grande avanço rumo à democratização dos
serviços integrais de atenção à saúde dos povos indígenas do Brasil, a implementação do
modelo de atenção diferenciada ainda é imperceptível aos olhos dos Guarani Mb de
Aracruz.
Os dados foram reveladores em apontar estratégias interculturais de “mão única” na
atenção à saúde, demonstrando que os Mb fazem um esforço enorme para adequarem-se
ao modelo assistencialista do sistema público de atenção à saúde, evidenciando uma resposta
clara da inadequação dos serviços ofertados às suas peculiaridades sócio-culturais. Esta
situação, aliada às inúmeras barreiras encontradas no âmbito do convívio intercultural e à
escassez dos recursos naturais que impossibilitam aos índios reproduzirem suas práticas
autóctones de atenção à saúde, traduzem-se em uma precária situação sanitária, onde
despontam elevados índices de doenças e infortúnios relacionados à falta de infra-estrutura
econômica, social e ambiental entre os Guarani Mbyá de Aracruz.
As propostas político-normativas que sustentam o atual sistema de saúde brasileiro,
SUS, que pressupõe a universalização do acesso, a integralidade, a intersetorialidade, a
participação e o controle social das ações como estratégias centrais para sua concretização e
196
para a redução das iniqüidades em saúde, são o pano de fundo onde esta discussão se torna
relevante.
Encerramos esta dissertação deixando a certeza de que as reflexões sobre o assunto
abordado estão longe de se esgotar nesta produção. Esperamos, portanto, que, com o produto
final dessa dissertação possamos contribuir de alguma forma para novas discussões em torno
do compromisso da enfermagem com a construção de uma nova sociedade e humanidade
mais justa e solidária, através de uma prática que seja capaz de estabelecer um diálogo plural
e conciliador com as diferentes formas de se compreender a vida e as suas relações.
REFERÊNCIAS
ARANDA, Dario. Los guaraníes misioneros, com poca tierra pero muchos niños muertos.Net.
Buenos Aires, Out.2006. Disponível em www.pagina12.com.ar/diario/principal. Acesso em:
24 outubro de 2006.
ATHIAS, Renato. Migração indígena no Brasil: genética revela migração de índios no Brasil.
Net. B.H., Ago 2007. Seção Povos indígenas no Brasil. Disponível em :
www.cedeefes.org.br. Acesso em: 29 agosto de 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Fratesch Vieira. 12ª
ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
______.Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
______. Estrutura do enunciado. Tradução de Ana Vaz. Revista Literaturnja Ucëba, Paris
vol. 3, 1930.
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. São Paulo, fundação editora UNESP,
1998.
BARBOSA, L. B. Hortago. Pelo índio e pela sua proteção official. Rio de Janeiro:
Typografia Macedo, 1923.
BARRROS, Armando Martins & CASTRO, Renata Pinheiro (Orgs.). Ara reko: memória e
temporalidade Guarani. Rio de Janeiro: E-papers, 2005.
BERNARDES, Flávia. A luta dos índios por suas terras Net. 2006. Disponível em
<www.seculodiario.com.br.> Acesso em: 01 de Novembro de 2006.
BERTOLANI, Marlon Neves. Ambiente, Saúde e Desenvolvimento entre os Guarani no
Espírito Santo. Trabalho de conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais.
Universidade Federal do Espírito Santo/UFES. Vitória, 2005.
BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE – BVS. Informações sobre bancos de dados.
Disponível em: http://www.bvs.br . Acesso em: 20 de junho de 2005.
BOAS, Orlando Villas. Trinta e cinco anos de assistência e pesquisa: a escola paulista de
medicina e o parque indígena do xingu. In: BARUZZI, Roberto G; JUNQUEIRA, Carmen
(Org.). Parque indígena do Xingu: saúde, cultura e história. SP: Terra Virgem Editora,
2005.
BORGES, Fabiane; SANTOS, Verenildes. Performances estéticas e interventivas no campo
público. Net. 2008. Disponível em http://cassandras.multiply.com/journal/item/93 . Acesso
em : 02 de fevereiro de 2008.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os Guarani : índios do sul-religião, resistência e adaptação.
Net. Revista Estudos Avançados, vol.4 10. o Paulo. 1990.disponível em www.scielo.br.
Acessado em 10 de setembro de 2007.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Net,
Brasília, DF. 1996. Disponível em <portal.mec.gov.br> Acesso em: 10 de abril de 2006 .
______. Ministério da Saúde. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas
Envolvendo Seres Humanos. Conselho Nacional de Saúde- Resolução n° 196/96. Disponível
em http://www.ufrg.br/HCPA/gppg/res19696.htm. Acesso em: 15 de junho de 2005.
______.Ministério da Saúde. Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas
envolvendo Seres Humanos. Conselho Nacional de Saúde- Resolução 304/2000.
Disponível em http://www.ufrg.br/HCPA/gppg/res19696.htm. Acesso em 15 de junho de
2005.
______ Código Civil. Net, Brasília, DF. 1916. Disponível em < www.soleis.adv.br> Acesso
em : 05 de agosto de 2006.
______. Congresso Nacional. Estatuto do índio. Net, Brasília, DF.1973. Disponível
em:<
www.soleis.adv.br. >Acesso em: 05 de agosto de 2006.
______. Fundação Nacional do Índio. Net, Brasília, DF 2006. Seção Personagens. Disponível
em < www.funai.gov.br.> Acesso em: 15 de maio de 2006.
______. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos
indígenas. Brasília. DF, 2002.
______. Fundação Nacional de Saúde. Relatório técnico anual de saúde indígena: 2006 .
Vitória, ES: 2006.
______. Fundação Nacional de Saúde. Relatório técnico anual de saúde indígena: 2005 .
Vitória, ES: 2005.
______. Fundação Nacional de Saúde. Relatório técnico anual de saúde indígena: 2004 .
Vitória, ES: 2004.
______. Ministério da Educação . Os Tupinikim e os Guarani na luta pela terra. Brasília,
DF, 2000.
______. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.
1988.
BUENO, Eduardo. A coroa, a cruz e a espada: lei, ordem e corrupção no Brasil colônia
1548-1558. RJ: Ed. Objetiva. Ltda, 2006.
BUCHILLET, Dominique. Cultura e saúde blica: reflexões sobre o Distrito Sanitário
Especial Indígena do Rio Negro. In: LANGDON, Esther J. ; GARNELLO, LUIZA (Org.).
Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de janeiro:
Contra-Capa Livraria/ associação Brasileira de Antropologia, 2004.
BUSS, Paulo Marchiori. Uma introdução ao conceito de promoção de saúde. In: COSTA,
Dina Czereznia(Org.). Promoção de saúde: conceitos, reflexões e tendências. RJ: Editora
Fiocruz, 2003.
CADOGAN, Léon. Ayvu rapyta: textos míticos de los mbyá-guarani del Guairá.
Universidade Federal de São Paulo. SP: 1959.
CAMPOS, Gastão Vagner de Souza; CAMPO, Rosana T. Onocko. Co-construção de
autonomia: o sujeito em questão. In: ______ et al. Tratado de saúde coletiva. São Paulo:
Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006.
_______.Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.
CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da
interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
CARDOSO, Andrey m; MATTOS, Inês; KOIFMAN, Rosalina J. Prevalência de diabetes
mellitus e da ndrome de resistência insulínica nos índios guarani do estado do Rio de
Janeiro. In: COIMBRA JR.,Carlos E. A; SANTOS, Ricardo Ventura; ESCOBAR, Ana Lúcia
(Orgs). Epidemiologia e saúde dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2003.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. No Brasil todo mundo é índio exceto quem não é. In:
INSTITUTO SÓCIOAMBIENTAL. Povos indígenas do Brasil 2001/2005. São Paulo:
Instituto Socioambiental, 2006.
CHAMORRO, Graciela. A espiritualidade guarani: uma teologia ameríndia da palavra.
São Leopoldo: Sinodal, 1998.
CHIORO, Arthur; ALMEIDA, Eurivaldo Sampaio; ZIONI, Fabíola. Políticas públicas e a
organização do sistema de saúde: antecedentes, reforma sanitária e SUS. São Paulo:
FSP/USP, Secretaria de Estado de Saúde/SP, COSEMS/SP, 1997.
CICCARONE, Celeste. Drama e sensibilidade: migração, xamanismo e mulheres mbya
guarani. Tese de doutorado. PUC/SP: 2001.
CLASTRES, Helene. La tierra sin mal. Buenos Aires: Del Sol, 1970.
CLASTRES, Pierre. A fala Sagrada: mitos e cantos dos índios guarani. Tradução Níci
Adan Bonatti. Campinas, SP: Papirus, 1990.
_______.Crônicas dos índios Guayaki: o que sabem os ache, caçadores mades do
Paraguai. Tradução Tânia Stolze lima e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira,
1995.
COELHO, Teixeira. O contexto das interculturalidades: identidade, diferença e globalização.
In: GUELMAN, Leonardo; BEDRAN, Eduardo. Interculturalidades. Niterói, RJ: UFF,
2004.
COIMBRA, Ubervalter. Família real sueca se desfaz de ações da Aracruz devido a agressões
ambientais e sociais da empresa.
COIMBRA JR., Carlos E. A; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Cenários e tendências da
saúde e da epidemiologia dos povos indígenas no Brasil. In:_______; _______; ESCOBAR,
Ana Lúcia. Epidemiologia e saúde dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2003.
COIMBRA JR., Carlos E. A & SANTOS, Ricardo Ventura. Perfil epidemiológico da
população indígena no Brasil: considerações gerais. RO: Universidade Federal de
Rondônia/ Centro de Estudos em Saúde do Índio de Rondônia, 2001.
______ Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos
povos indígenas no Brasil. Net. Revista Ciência e Saúde coletiva, vol 5, n°1. Rio de Janeiro,
2000. Disponível em: www.scielo.br/scielo. Acesso em: 20 de setembro de 2006.
CONFALONIERI, U.E.C. Perfis epidemiológicos. In: ______ Saúde das populações
indígenas. Uma introdução para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRZ,
1993. p.15-26.
______. A assistência médico sanitária. In: ______. Saúde das populaces indígenas. Uma
introdução para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 1993.p 01-39.
COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR
CAPES. Banco de teses. Disponível em:
http://www.capes.gov.br/capes/portal/conteudo/10/Banco_Teses.htm. Acesso em: 12 de
Setembro de 2006.
COSTA, Dina Czeresnia. Política indigenista e assistência à saúde: Noel Nutels e o serviço
de unidades sanitárias aéreas. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública/
FIOCRUZ- Caderno de Saúde Pública, 1987, vol 03, n°04.
______.O conceito de saúde e a diferença entre a prevenção e a promoção. In______(org.).
Promoção da saúde: conceitos reflexões tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
COSTA, Wanderleya Nara G. Etnomatemática: uma tomada de posição da matemática frente
à tensão que envolve o geral e o particular .In:Gusmão, Neusa Maria M. de. Diversidade,
cultura e educação: olhares cruzados. São Paulo: Ed. Biruta, 2003.
CUCHE, Denys. A noção da cultura nas ciências sociais.Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru,
SP: EDUSC, 2002.
DENEVAN, William M. The aboriginal population of Amazônia. In: DENEVAN, Willian M.
The native population of the Americas in 1942.Tradução de Ludmila S. Fernandes e Mirla
Silva de Paiva. Net. Madison: University of Wisconsin, 1976. Seção Etno-história. Disponível
em: <www.uerj.br/~proindio> Acesso em de 20 julho de 2006.
DIEHL, Eliana Elizabeth; RECH, Norberto. Subsídios para uma assistência farmacêutica no
contexto da atenção à saúde indígena: contribuições da antropologia. In: LANGDON, Esther
J. ; GARNELLO, LUIZA (Org.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia
participativa. Rio de janeiro: Contra-Capa Livraria/ associação Brasileira de Antropologia,
2004.
FARIAS, Alípio. Serviço de proteção aos índios. Editora do Exército Brasileiro, 1919.
FELIPIM, Adriana Perez. O sistema agrícola guarani mbyá e seus cultivares de milho: um
estudo de caso n aldeia guarani da ilha do Cardoso, município de Cananéia, SP.
Dissertação de mestrado. SP: Universidade de São Paulo, 2001.
FILHO, João Paulo Botelho Vieira. O diabetes mellitus entre os índios dos Estados Unidos
e do Brasil. SP: Revista da Escola Paulista de Medicina, 1977.
FOLLÉR, Mj-Lis. Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos indígenas e
profissionais de saúde. In: LANGDON, Esther J. ; GARNELLO, LUIZA (Org.). Saúde dos
povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de janeiro: Contra-Capa
Livraria/ associação Brasileira de Antropologia, 2004.
FREIRE, José Ribamar; MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos indígenas do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Programa de Estudos dos Povos Indígenas/ Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, 1997.
______. A representação da escola em um mito indígena. RJ: Revista Teias/UERJ, nº3,
jun.2001.
GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a república. São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 1989.
GARLET, Ivory, J. Mobilidade mbyá: história e significação. Dissertação de mestrado.
Porto Alegre: PUCRS, 1997.
______; ASSIS, Valéria S. de. A imagem do Kechuíta no universo mitológico dos mbyá-
guarani. Net. Revista de História Regional. p. 99-114, Inverno, 2002.
GARNELO, Luiza. Política de saúde dos povos indígenas no Brasil: uma análise situacional
do período de 1990 a 2004..In:XXVIII Reunião da ANPOCS, Caxambu. Anais. 2004.
______; MACEDO, Guilherme; MACEDO, Luiz Carlos. Os povos indígenas e a construção
das políticas de saúde no Brasil. Organização Panamericana de Saúde: 2003.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999.
GONÇALVES, Múcio Tosta. Exploração florestal, desenvolvimento e sociedade. In:
ACSELRAD, Henri (Org.). Meio ambiente e democracia. Rio de Janeiro: IBASE, 1992.
GUALDA, Dulce Maria R. , BERGAMASCO, Roselena Bazilli. Enfermagem, cultura e o
Processo saúde-doença. São Paulo: Icine, 2004.
HITA, Suzane Ramirez. Entre el cielo y la tierra: salud y enfermedad en la mitologia
mbyá. Paraguay-Assuncion: Centro de Estudios Antropológicos-UCA, 1994.
HOORNAERT, Eduardo. A igreja no Brasil colônia: 1500-1800. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Senso demográfico 1991 e
2000. Net. Rio de Janeiro, 2005.
LADEIRA, Maria Inês. “’O caminhar sob a luz”- o território mbyá à beira do oceano.
Dissertação de mestrado. SP: Pontifícia Universidade Católica, 1992.
______. Terra em movimento: a lutas do povo guarani. Revista História Viva, RJ/SP, n°40,
p.80-84, 2007.
______; AZANHA, Gilberto. Os índios da serrado mar. SP: Centro de Trabalho Indigenista,
1988.
LANGDON, Esther J. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre a
antropologia e profissionais de saúde. In:______ ; GARNELLO, LUIZA (Org.). Saúde dos
povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de janeiro: Contra-Capa
Livraria/ associação Brasileira de Antropologia, 2004.
_______. A doença como experiência: a construção da doença e seu desafio para a prática
médica. Net, Santa Catarina, 1996. Disponível em
www.cfh.ufsc.br/~nessi/A%20doença%como%20Experiência.htm. Acesso em: 04 de maio de
2005.
_______. Saúde e povos indígenas: os desafios na virada do século. Net, Santa Catarina,
1999. Disponível em www.cfh.ufsc.br/ñessi/Margsav.htm. Acesso em 10 de maio de 2005.
LEOPARDI, Maria Thereza. Metodologia da pesquisa na saúde. Florianópolis: Ed. UFSC,
2002.
LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e
formação do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
LITAIFF, Aldo. Os Filhos do sol: mitos e práticas dos índios Mbya-Guarani do litoral
brasileiro. Revista Tellus/ Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas-
NEPPI/UCDB, Campo Grande, ano 4, nº6, p.25-30, abr.2004.
_______.As divinas palavras: identidade étnica dos guarani-mbyá. Florianóplis: Editora
da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996.
LUGON, Clóvis. A república “comunista” cristã dos guaranis: 1610-1768. Tradução de
Álvaro Cabral. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
MATURANA, Humberto. Cultura e autopoiesis. In: ROCHA, Vanessa; GUELMAN,
Leonardo. Interculturalidades. Niterói: EDUFF, 2004.
MEDEIROS, Rogério. A terra sem males está no litoral capixaba. Jornal do Brasil, Rio de
janeiro, 30 de maio de 1979. Caderno B.
MELIÁ, Bartolomeu. A experiência religiosa guarani. In: o rosto índio de deus. Desafios
da religião do povo. S P: vozes, tomo I, série VII, 1989, p. 293-357.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org). O Desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa
em saúde. São Paulo- Rio de Janeiro: HUCITEC-ABRASCO, 2003.
________. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2003.
________;HARTZ, Zulmira Maria de A; BUSS, Paulo Marchiori. Qualidade de vida: um
debate necesário. Net, RJ. 2000. Rev. ciência e Saúde coletiva. Disponível em
www.scielo.br/scielo.php. Acesso em: 22 de outubro de 2006.
MONTEIRO, John Manuel. Os guarani e a história do Brasil meridional. In: CUNHA,
M.C. (org) História dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESP/Companhia das Letras/SMC,
1992.
______. As “raças” indígenas no pensamento brasileiro do império. In: MAIO, Marcos Chor;
SANTOS, Ricardo Ventura (Org. ). Raça, ciência e sociedade. edição. Rio de Janeiro:
editora Fiocruz, 2006.
OMS/OPAS- Division de Desarrollo de sistemas e Servicios de La Salud. Incorporación del
enfoque intercultural de la salud en la formación y desarrollo de recursos humanos.
Washington DC, 1998.74 p.
OIT. Convenção 169. Net. 1989. Seção Direitos Internacionais. Disponível em<
www.socioambiental.org> Acesso em: 03 de maio de 2006.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Pluralizando tradições etnográficas: sobre um certo mal-estar
na antropologia.In: LANGDON, Esther J. ; GARNELLO, LUIZA (Org.). Saúde dos povos
indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de janeiro: Contra-Capa
Livraria/ associação Brasileira de Antropologia, 2004.
PASSOS, Mauro Romero Leal. Vacina quadrivalente contra hpv: uma realidade na
prevenção do câncer. Merck e Sharp Dohme, 2005. CD ROM.
PAULETI, Maucir; SCHNEIDER, Nereu; MANGOLIM; Olívio. Por que os Guarani e
Kaiowá se suicidam? Mato Grosso do Sul: Conselho Indigenista Missionário, 1997.
PELLON, Luiz Henrique Chad. Saúde Guarani: uma abordagem antropológica. Trabalho
de conclusão de curso de graduação em Enfermagem. RJ: Escola de Enfermagem Luiza de
Marillac, 2005.
PINTO, E. A medicina dos tupi-guarani. Actas. Rio de Janeiro, v.11, n3/4, 1944, p.42-61.
PIZZOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa, mobilidade, parentesco e
xamanismo mbya (Guarani). Tese de Doutorado do Programa de Pós- Graduação em
Antropologia Social. RJ: Museu Nacional/ UFRJ/MN/PPGAS, 2006.
RAMOS, Alcida Rita. Projetos indigenistas no Brasil independente. Net, Brasília.1999.
Disponível em www.unb.br/ics/dan/serie267empdf.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2006.
RIVERA, Josefina Perdomo. Õyo patron! Pautas metodológicas en la resolución de conflictos
en medio del conflicto. Bogotá: Actual Enferm.: 2001.
ROCHA, Vanesa. Cultura, uma ecologia humana: perspectivas para um diálogo intercultural.
In: ______; GUEKMAN, Leonardo. Interculturalidades, Niterói: EDUFF, 2004.
SANTIBAÑEZ, Patrícia Gonçalez; DIAZ, Marcela Paz Labra. Satisfacción usuária de los
pacientes atendidos por el agente de salud mapuche en el consultório Santiago de la Nueva
Extrremadura de la Comuna de la Pintana en septiembre del 2001. Net. Chile: Resumo
disponível em: http://bases.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/online. Acesso em 10 de
outubro de 2006.
SANTOS, Ana Maria Lima. A contribuição da arte indígena na construção do saber de
enfermagem: um estudo do significado da pintura corporal no ritual de cura Guarani de São
Paulo.Net. Resumo disponível em: http://serviços.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese.
Acesso em: 10 de outubro de 2006.
SHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. ed. SP: ed. Pedagógica e
universitária e ed. da Universidade de São Paulo: 1974.
SILVA, Nair Chase da; GONÇALVES, Maria Jacirema Ferreira; LOPES NETO, David.
Enfermagem em saúde indígena: aplicando as diretrizes curriculares. Rev. Brasileira de
Enfermagem, 2003. Resumo disponível em: http://bases.bireme.br/cgi-
bin/wxislind.exe/iah/online . Acesso em: 10 de outubro de 2006.
SILVA, Marcelo Oliveira et al. Keretxu Mirî e Tupã Kwaray contam: memória oral da
tradição guarani através de testemunhos orais. Rio de Janeiro: Proindio/UERJ, 2005.
SILVEIRA, Px. Diversidade e o bispo da capadócia. In: BRANT (Org.). Diversidade
cultural: globalização e culturas locais: dimensões, efeitos e perspectivas. SP: Escrituras
Editora Ltda, 2005.
SILVEIRA. Nádia Heusi. O conceito de atenção diferenciada e sua aplicação entre os
Yanomami. In: LANGDON, Esther J. ; GARNELLO, LUIZA (Org.). Saúde dos povos
indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de janeiro: Contra-Capa
Livraria/ associação Brasileira de Antropologia, 2004.
SIMÃO, Lucieni. Historiografia do contato: demografia indígena e deslocamentos através do
território nacional. In: GUIMARÃES, Dinah (Org.) Museu de artes e origens: mapas das
culturas vivas guaranis. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003.
SORIA, José Lopes. Filosofia e Interculturalidade.Traduzido por Beatriz Furtado. Rio de
Janeiro.2006. Disponível em: <http:/paginas.terra.com.br/Ludmila/filosofia.htm.> Acesso
em: 17 de outubro de 2006.
SOUZA, Solange Jobim e. Infância e linguagem: Bakhtin, Vigotsky e Benjamin.
Campinas, SP: Papirus, 1994.
STRAUSS, Levi. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
VALLE, Lilia. Plano de apoio aos guaranis do Espírito Santo. Espírito Santo. Aracruz:
Centro de Trabalho Indigenista, 1979.
VALLE, Lilia. Plano de apoio aos guaranis do Espírito Santo. Espírito Santo. Aracruz:
Centro de Trabalho Indigenista, 1981.
VEIGA, Felipe Berocão (Org.). Estudo antropológico sobre as terras e populações
indígenas de Aracruz-ES. Rio de Janeiro: PETROBRÁS/ BIODINÂMICA, 2004. CD-
ROM.
______. Estudo etnoecológico das terras indígenas do Espírito Santo. Rio de Janeiro:
PETROBRÁS/BIODINÂMICA, 2005. CD-ROM.
VERANI, Cibele Barreto Lins. A política de saúde do índio e a organização dos serviços no
Brasil. Boletim do MPGG: Série Antropologia, Belém: MPEG, v.15, 2, p.171-192, dez,
1999.
TOBAR, Frederico; YALOUR, Margot Romano. Como fazer teses em saúde pública:
conselhos e idéias para formular teses e informes de pesquisas. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2001.
TURATO, Egberto Ribeiro Tratado da metodologia da pesquisa clínico –qualitativa:
construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde
e humanas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
APÊNDICES
APÊNDICE A
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE- CCBS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM-MESTRADO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Mestrando: Luiz Henrique Chad Pellon
Orientadorª: Profª Drª Liliana Angel Vargas
Co-orientador: Prof. Dr. Ribamar Bessa Freire
O presente estudo que tem o nome de: “Tensões interculturais e seus impactos no processo
saúde-doença na população Guarani Mb do município de Aracruz, Espírito Santo” tem
como objetivos :
Descobrir as formas como os conflitos entre a cultura Guarani e a cultura Juruá
interferem na saúde do povo Guarani;
Discutir as políticas que poderiam diminuir essas interferências;
Analisar as contradições que surgem entre essas políticas e o dia a dia do grupo
Guarani.
A entrevista será gravada e o pesquisador compromete-se a devolver uma cópia do material
gravado às pessoas entrevistadas e não divulgar o nome dessas pessoas. O pesquisador
garante as pessoas entrevistadas a liberdade de inerromperem a entrevista se não se sentirem
`a vontade e não divulgar os dados se, por algum motivo, acharem que isto deve ser feito.
O pesquisador se compromete em manter a comunidade informada sobre o desenvolvimento
do estudo , através de suas lideranças e, também, de entrega-lo finalizado aos caciques das
aldeias Boa Esperançae, Três Palmeiras e Piraquê Açu Mirim, à Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) e ao comitê de Ética responsável pelo seu acompanhamento. Da mesma forma, se
disponibiliza a discutir os seus resultados com a equipe de saúde local, se for de interesse da
Fundação Nacional de Saúde.
Afora esses casos, os resultados do estudo só serão divulgados em congressos, seminários,
revistas e outros espaços que possam torna-los de fácil acesso ao conhecimento dos
profissionais de saúde.
O pesquisador disponibiliza seus telefones de contato e e-mail para os entrevistados,
garantindo sua disponibilidade em esclarecer qualquer assunto relativo ao estudo.
_________________________________________________________________________
Luiz Henrique Chad Pellon -21 2578 9300 / 9456 65 06 ([email protected])
Declaro a quem possa interessar, ter tomado conhecimento de todas as informações
necessárias para responder voluntariamente às perguntas, através da leitura do
documento acima descrito.
APÊNDICE B
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE
PROGRAMA DEE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM- MESTRADO
DESCRIÇÃO DO PROCESSO DE OBTENÇÃO E DE REGISTRO DO TEMO DE
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
Mestrando: Luiz Henrique Chad Pellon
Orientadora: Profª Drª Liliana Angel Vargas
Co-orientador: Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire
O processo de obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em concordância
com a Resolução CNS 304/2000, deve “Respeitar a visão de mundo, os costumes, atitudes
estéticas, crenças religiosas, organização social, filosofias peculiares, diferenças lingüísticas e
estrutura política” (BRASIL, 2000) da população estudada. Neste sentido o pesquisador
procurou expressar os informes necessários no TCLE de forma simplificada, respeitando as
peculiaridades culturais. A pesquisa levará em conta a anuência das respectivas lideranças
indígenas ou conselhos locais que deve ser obtida por intermédio de um representante legal da
Fundação Nacional do Índio, órgão indigenista oficial, responsável pela fiscalização do
cumprimento das Resoluções CNS 196/96 e 304/2000. O mesmo órgão deverá indicar
um representante para intermediar a relação entre pesquisador e comunidade, caso haja
necessidade. Os Guarani Mb das aldeias estudadas são bilíngües, falam a língua Guarani e
o português. Os indígenas que tiverem o ensino fundamental poderão ler o documento.
Mediante alguma dúvida ou dificuldade na compreensão do texto, o pesquisador, junto ao
intermediador, poderá fazê-lo.
A coleta de dados deve atender aos princípios éticos contidos na Resolução CNS n° 196/96 no
sentido de assegurar a autonomia dos depoentes e a sobreposição dos benefícios sobre
quaisquer riscos, conferindo-lhes o anonimato na divulgação dos dados, o direito de retroagir
com relação a entrevista ou não divulgar informações que possam apresentar riscos à pessoa
entrevistada ou aos demais membros das comunidades pesquisadas.
Os dados serão disponibilizados para as instituições envolvidas no processo de capacitação
profissional e acompanhamento das ações de saúde nessas comunidades, com vistas a
contribuir para a elaboração dessas atividades. No mais, serão disponibilizados e discutidos
junto às lideranças locais, e em casos de publicações científicas.
APÊNDICE C
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO-MESTRADO EM ENFERMAGEM
Mestrando: Luiz Henrique Chad Pellon
Orientadorª: Profª Drª Liliana Angel Vargas
Co-orientador: Prof. Dr. Ribamar Bessa Freire
ORÇAMENTO
O pesquisador é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior/ CAPES. As despesas com a realização da pesquisa são de sua inteira
responsabilidade.
ESPECIFICAÇÃO DESCRIÇÃO CUSTO (REAIS)
ALIMENTAÇÃO 15 DIAS 300,00
CORREIOS SEDEX
FUNASA/FUNAI/CNPQ
50,00
ESTADIA (COQUEIRAL) 15 DIAS 350,00
APARELHO DE
GRAVAÇÃO
MP-3 170,00
PAPEL 2000 FOLHAS 80,00
PASSAGEM RJ-COQUEIRAL (IDA E
VOLTA)
150,00
TINTA 3 CARTUCHOS 90,00
XEROX 2000 CÓPIAS 200,00
TOTAL 1390,00
APÊNDICE D
CRONOGRAMA DE ATIVIDADES
Atividades Mar/
06
Abr
06
Mai
06
Jun
06
Jul/
06
Ago
06
Set/
06
Out
06
Nov
06
Dez
06
Jan
07
Fev
07
Mar/
07
Abr
07
Mai
07
Jun
07
Jul/
07
Ago
07
Set/
07
Out
07
Nov
07
Dez
07
Jan
08
Fev
08
Pesquis
a
X X X X X X X X X X X X X X X X
Elaboração
do projeto
X
X X
Defesa do
projeto
X
Entrega do
Projeto ao
CEP
X
Coleta de
dados
X X
Análise
preliminar
dos dados
X X X
Qualificação
X
Análise final X X
Discussão
dos dados
X
X X
Editoração e
arte final
X X
Defesa da
dissertação
X
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo