MIRANDA - Então, senhor, não sois meu pai?
PRÓSPERO - Tua mãe foi um modelo de virtude, e me disse que, em verdade, minha filha tu eras. Teu
pai era, pois, Duque de Milão. Como herdeira única tinha ele uma princesa, nada menos.
MIRANDA - Oh céus! Por que traição perdemos isso? Ou foi melhor assim?
PRÓSPERO - Ambas as coisas. Sim, por traição, como disseste, viemos parar aqui; mas redundou em
nossa felicidade.
MIRANDA - Oh céus! O coração me sangra só de pensar em quanto vos fui causa de sofrimento, do que
não me resta nada mais na memória. Prossegui, por obséquio.
PRÓSPERO - Meu mano, e, pois, teu tio, de nome Antônio... Peço-te prestar-me toda atenção. -
Concebe-se que possa ser um irmão tão pérfido a esse ponto? - Depois de ti, era a ele que eu amava mais
do que tudo neste mundo, tendo-lhe confiado a direção de meu Estado, que, na época, primava sobre
todos, tal como Próspero entre os outros príncipes. Gozando de tão alta dignidade, não achava rival no
que respeita às artes liberais. A estas dedicando todo o meu tempo, o peso do governo transferi a meu
mano, assim tornando-me cada vez mais estranho à minha terra, porque às ciências secretas dedicado.
Teu falso tio, entanto... Estás me ouvindo?
MIRANDA - Sou toda ouvidos, meu senhor.
PRÓSPERO - Havendo ficado inteiramente a par de como satisfazer pedidos ou negá-los, a quem
favorecer, a quem de todo burlar nas pretensões, criou de novo minhas criaturas, ou melhor, mudou-lhes
a natureza, outra feição lhes dando. A um só tempo dispondo dos ofícios e da chave do cargo, afinou
todos os corações de acordo com a toada que aos ouvidos mais grata lhe soasse, e na hera se mudou,
pois, que meu trono principesco escondia e que lhe a seiva vital sugava toda. Mas não prestas atenção ao
que eu digo.
MIRANDA - Presto, sim, meu bondoso senhor.
PRÓSPERO - Não percas nada peço-te. Descurando dos assuntos temporais e vivendo inteiramente
retirado, a cuidar, tão-só, dos meios de aperfeiçoar o espírito com as artes que, a não serem secretas, no
conceito dos homens subiriam, fiz instintos perversos despertar no mano pérfido. Minha confiança, como
pai bondoso, fez nascer nele uma traição tão grande quanto minha boa-fé, que era, em verdade, sem
limites, imensa. Assim, tornado senhor não só de quanto minhas rendas lhe facultavam, mas também de
tudo que meu poder, então, lhe permitia - como alguém que o pecado da memória cometesse, por dar
inteiro crédito às suas próprias mentiras, enunciadas como verdades puras - chegou ele a acreditar que
era, de fato, o duque, por ser o substituto e estar afeito às mostras exteriores da realeza e aos privilégios
inerentes a ela. Tendo sua ambição tomado vulto... Estás me ouvindo?
MIRANDA - Estou, senhor, que a vossa narração curaria os próprios surdos.
PRÓSPERO - Porque anteparo algum se interpusesse entre o papel que então lhe competia e o ator desse
papel, julgou preciso tornar-se de Milão o único dono. Eu, coitado, ducado muito grande já me era a
biblioteca. Ele julgou-me incapaz da realeza temporária; confederou-se com o Rei de Nápoles - tal era a
sua sede de domínio! - prometendo pagar-lhe anual tributo e prestar-lhe homenagem, sujeitando sua
coroa à dele, e, assim, deixando-a - pobre Milão, que nunca se dobrara! - na mais vil sujeição.