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certa derrota militar. Segundo Saraiva
78
, o mito sebastianista "é também uma forma de
compensação em relação a uma realidade frustrante. É quando Portugal parece
condenado a um estrangulamento inglório". Para o próprio José Cardoso Pires, "o
sebastianismo é um dos mitos mais frágeis e mais desesperados da frustração histórica de
um país que, no século XVI, descobriu um novo rosto do mundo"
79
. Apesar disso,
Alexandra, como se acatasse o mito sebastianista, suspira e diz: "Desaparecido. Nunca
morreu o reizinho" (AA, 187).
De forma ainda bem dessacralizante (do ponto de vista da tradição oficial), o
narrador apresenta outro episódio, onde aparecem Francois Désanti e Maria. O casal está
preso em um engarrafamento, próximo a uma praça, no centro de Lisboa. De repente,
interrompendo a conversa, Maria aponta: "olhe", e indica um monumento exposto na
praça ao lado: ela refere-se à
ESTÁTUA DO BARÃO MANETA
O personagem estava numa pequena praça ao desabrigo. Podiam vê-
lo, podiam apreciar o barão e tribuno desbraçado porque o trânsito ia
tão devagar que dava tempo. Ali estava um que nunca pedira desculpa
das piratarias que engendrou. Negociatas de negreiro, intrigas de
palácio e igreja, revoluções a dois gumes, não houve nada em que o
safado do tribuno não metesse a mãozinha e ainda lhe sobrara um braço
para os desperdícios. Maria sempre achou que Lisboa era uma cidade
cheia de bibelots de má-fé e aquele era um deles. Um dos seus
preferidos, a estátua do barão maneta. De casaca e chapéu alto,
assemelhava-se a um amador de salão cheio de truques na manga
dobrada ao meio. Pelo troca-tintas que tinha sido toda a vida, se
deixasse cair a manga com certeza que apareceria logo a mãozinha que
ele trazia escondida. Não? Ah, pois não. O ronha do barão nunca fora
maneta, era tudo golpada. Em vez de uma aquele menino andava mas
era cheio de mãozinhas guardadas na manga da casaca: mãozinhas de
pretos para exemplo de castigo, mãozinhas de ouro ou figas confiscadas
aos ourives ambulantes, mãozinhas de cera benta, mãozinhas de ferro
arrancadas a portões da nobrezia, mãozinhas de bronze, espólio de
estátuas proibidas, um arsenal de mãozinhas era o que escondia aquele
maneta de salão. Se o tribuno baronês apresentava, como se via, um
braço cortado ao meio, era pura e simplesmente para comover a
assistência e dar tragédia aos discursos. (AA, 136).
78
SARAIVA, A. J. (1982) p. 120.
79
PIRES, J. C. apud ABREU, M. F. de (2005) p. 214.