No meio das reflexões acerbas que lhe despertara a recordação da cena recente, das revoltas por
muito tempo contidas de sua dignidade contra o orgulho da mulher que o humilhava, flutuava um
sentimento que afinal desprendeu-se do turbilhão de seus pensamentos e o dominou.
Esse sentimento era a intensa admiração que lhe inspirava a energia e veemência do amor de
Aurélia. Havia nessa paixão que o acabava de insultar uma beleza fera, que incutia-lhe entusiasmo
cheio de espanto.
- Não compreendi esse amor... E como podia eu com-preendê-lo?... Se alguém me referisse o que
se acaba de passar comigo, eu receberia semelhante conto com um sorriso de incredulidade. Que
outrora, quando a família seqüestrava a mulher da sociedade, a paixão subisse a esse auge, e
absorvesse uma existência inteira...
“Então não havia tempo de amar-se mais de uma vez, e o amor deixava a alma exausta. Mas
atualmente que a mulher vive cercada de adoradores, e que todas as distinções se ajoelham ante sua
beleza, o amor não é mais do que um capricho, uma doce preferência, um terno devaneio, até que
se transforme na amizade conjugal. Assim o imaginei sempre, assim o senti e me foi retribuído.
Quando Aurélia me falava de sua afeição, estava bem longe de pensar que ela nutrisse uma paixão
capaz de tais ímpetos. Pensava que eram romantismos. Não os tinha eu também? Não jurei tantas
vezes um amor eterno, que no dia seguinte desfolhava no turbilhão de uma valsa? Esse amor que eu
supunha uma ilusão de poeta, um sonho da imaginação, aí está em sua realidade esplêndida. Suas
asas de fogo roçaram por minha alma e a crestaram para sempre!...”
Seixas ficou um momento como extático ante a imagem que se lhe debuxava no pensamento
representando a figura de Aurélia, quando soberba de cólera e indignação, o cobria de acerbas
exprobrações.
- Uma paixão como a sua tinha direito de ser implacável!... E essa mulher que se deu a mim com a
mais sublime abnegação, essa mulher a quem a sorte ligou-me eternamente, essa mulher única, eu a
admiro, e não posso amá-la nunca mais! Encontrei-a em meu caminho, e perdi-a para sempre!
Também não amarei outra. Depois de a ter conhecido, não profanarei minha alma com a afeição de
mulher alguma.
Os arrebóis da manhã já se arraiavam no horizonte. Uma brisa mais fresca derramava-se no espaço,
e os primeiros atitos das aves misturavam-se com os rumores confusos da cidade, que ia acordando
por detrás dos muros da chácara.
Seixas desceu ao jardim, e percorreu os passeios sinuosos do prado artificial coberto de fina grama,
e recortado à inglesa. Os tabuleiros de margaridas e boninas, abertas ao primeiro raio de sol,
recamavam com suas coroas matizadas a verde alcatifa de relva. Fúcsias e begônias lastravam pelas
grades das latadas compondo graciosos bambolins com os tirsos de flores caprichosas.
Os botões das camélias e magnólias cheios de seiva haurida com a frescura da noite, esperavam o
calor do dia para desabrochar, enquanto as flores da véspera que tinham cerrado o seio à tarde,
abriam-no de novo, mais pálido e langue, para despedir-se do sol, que lhe tinha dado a vida, e a
crestara, como o caprichoso artista.
Seixas, como homem de sociedade que era, conhecia a natureza de tradição apenas, ou quando
muito de vista. As árvores, as flores, as perspectivas, eram para ele ornatos, que se confundiam com
os tapetes, cortinas, trastes, dourados e toda a casta de adereços inventados pelo luxo.
À força de viverem em um mundo de convenção, esses homens de sociedade tornam-se artificiais.
A natureza para eles não é a verdadeira, mas essa fictícia, que o hábito lhes embutiu, e que alguns
trazem do berço, pois aí os espera a moda para fazer neles presa, transformando-lhes a mãe, em
uma simples produtora de filhos.
Freqüentemente, em seus versos, Seixas falava de estrelas, flores e brisas, de que tirava imagens
para exprimir a graça da mulher, e as emoções do amor. Pura imitação: como em geral os poetas da
civilização, ele não recebia da realidade essas impressões, e sim de uma variada leitura. Originais
somente são aqueles engenhos que se infundem na natureza, musa inexaurível porque é divina. Para
isso é preciso, ou nascer nas idades primitivas, ou desprezar a sociedade e refugiar-se na solidão.