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Universidade da Amazônia
A Retirada da
Laguna
de Visconde de Taunayde Visconde de Taunay
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A Retirada da Laguna
de Visconde de Taunay
Episódio da Guerra do Paraguai
Prefácio da Décima Terceira Edição
Em seis anos divulgaram-se cerca de seis mil exemplares da Retirada da
Laguna da última edição impressa.
Mostra tal fato quanto os leitores brasileiros se interessam pela história
pungentíssima deste episódio da Guerra do Paraguai, que figura entre as mais belas
e notáveis coisas da tradição de nosso pais.
Razão de sobra lhes assiste: não receia ele confronto com os mais elevados
feitos dos anais militares das nações do Ocidente.
É que poucas tropas – com tamanha intrepidez e espírito de abnegação
patriótica – sofreram o que suportaram os nossos soldados da Constância e do
Valor.
A esta edição anexei três documentos honradíssimos para o autor da
Retirada da Laguna e sua obra (ver pág. 12). É o primeiro a carta pela qual Caxias
lhe agradece a oferta de um exemplar da Retirada, manifestando-lhe o seu louvor ao
livro e o apreço em que tinha o seu autor.
Assim, mais uma vez e mais largamente se divulga uma das vozes mais
antigas de aplauso que a narrativa xenofôntica mereceu. De que prestígio se reveste
este depoimento! Partiu do grande e invicto cabo-de-guerra, expressamente ao
ofertante do livro quanto o seu relato vinha robustecer-lhe a convicção, de que as
forças empenhadas na campanha de Mato Grosso e na Retirada da Laguna, parte
do exército de que era generalíssimo, “cumprira sempre seu dever, sustentando
sempre a gloria das Armas Brasileiras”.
Assim de início teve a épica narrativa da campanha de maio de 1867 a
consagração do aplauso do magno Pacificador, gênio tutelar da nossa unidade
nacional, broquel do Brasil agredido exteriormente e ínclito patrono do Exército
Brasileiro.
O segundo dos documentos veio a ser a mensagem por Taunay merecida de
seus irmãos de armas, quando em 1885 e em virtude de circunstâncias políticas
incômodas, se não desagradáveis de sua carreira de homem público e parlamentar,
deixou o serviço do Exército.
Mais honrosas palavras de despedida seria impossível redigir do que as que
encerraram esta manifestação subscrita por centenas de oficiais-generais, oficiais
superiores e outros menos graduados, de toda a hierarquia militar da época,
partindo de um marechal de exército e ajudante-general do exército aos simples
alferes e cadetes.
Constituem estes apelidos um rol do mais alto significado. Nele surgem
muitos dos mais glorioso nomes de servidores do Brasil, já então, aureolados pela
reputação de seus feitos, e outros ainda no início de suas grandes carreiras.
O último dos três documentos refere-se à manifestação que várias centenas
de oficiais-generais, superiores e outros pertencentes à guarnição do Rio de Janeiro,
fizeram ao então major Taunay em testemunho de gratidão da classe à sua atuação
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de parlamentar, como membro que fora da Câmara dos Deputados em duas
legislaturas. À sua iniciativa devia haverem-se incorporado à legislação do país
medidas de alta benemerência como fossem: a imprescritibilidade dos direitos das
viúvas dos militares ao meio soldo, o reajustamento das tabelas de soldos e etapas,
a contagem em dobro do tempo de serviço em campanha, entre outras medidas de
menor alcance.
Ofereceram-lhe os manifestantes, encabeçados por um dos mais ilustres e
prestigiosos oficias daquele tempo, o heróico Antonio Tibúrcio Ferreira Sousa,
magnífico retrato a óleo, de tamanho natural.
Em todo o Brasil provocou a passagem do primeiro centenário natalício do
autor de Retirada da Laguna, a ocorrência de consideráveis demonstrações de
apreço à memória do soldado escritor.
Partiram as primeiras do Exercito Nacional. Por intermedio de generosa
ordem do dia, determinou o então Ministro da Guerra, General Eurico Gaspar Dutra,
que todas as guarnições do pais festivamente celebrassem a efemérides de 22 de
fevereiro de 1943 em altamente significativas cerimonias. Em largos artigos recordou
a Imprensa Brasileira o que fora a vida e era a obra do militar, do escritor, do
parlamentar, do nacionalista apaixonado, do administrador. E vários dos seus mais
prestigiosos órgãos a tal fim consagraram largas colunas e paginas de suas edições
como sobretudo o fizeram o “Jornal do Comercio” e “O Estado de São Paulo”.
Magníficas cerimonias votivas realizaram-se no Rio de Janeiro, por parte do
Exercito, do Instituto Histórico Brasileiro, da Irmandade de Santa Cruz dos Militares,
de numerosas e prestigiosas associações militares, de numerosas e prestigiosas
associações militares, literárias e Histórico de São Paulo e seus congêneres de
diversos Estados, sobretudo no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
promovendo sessões especiais as mais honrosas.
Em todo o Brasil, de extremo a extremo, pode-se afirma-lo, a memória do
autor da Retirada envolveu uma onda de simpatia e apreço que aos filhos do
reverenciado trouxe a mais grata emoção de despertou-lhes a mais reconhecida
saudade.
Assumindo a Presidência da Republica, o Exmo. Sr. General Eurico Gaspar
Dutra entendeu, ele e seu Ministro da Guerra, Exmo. Sr. General Canrobert Pereira
da Costa, coroar as manifestações de 1943 do modo mais dignificante.
Para patrono do Batalhão-Escola de Engenharia escolheram o soldado
historiador da Retirada da Laguna.
Assim, mais uma vez, quero, de publico, em nome próprio e no de meus
irmãos, e de quantos pelo sangue se prendem a Alfredo D´Escrognolle Taunay,
testemunhar aos dois eminentes oficiais-generais, autores de tão alta homenagem,
quanto ela nos sensibilizou e desvaneceu.
Mais nobre, mais eloqüente formula não se poderia encontrar para, em
perene rememoração, perante a nação, recordar os serviços de sangue e de paz
prestados a Pátria Brasileira pelo historiador do inesquecível feito daqueles
guerreiros seus irmãos de armas, de cujos sacrifícios foi comparte. Desses soldados
da Constância e do Valor, que, acabrunhados por inexcedíveis privações,
perseguidos por inimigo cruel e incomparavelmente mais forte, cercados pelo
incêndio, dizimados pela cólera e os combates, exinanidos de forcas mas nunca de
animo, salvaram as bandeiras e os canhões que o Brasil lhes confiara...
São Paulo, 25 de maio de 1952
Affonso de E. Taunay.
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A
Sua Majestade o Senhor
Dom Pedro II
Imperador do Brasil
Senhor,
Ao se render Uruguaiana, inaugurou Vossa Majestade, na América do Sul, a
guerra humanitária, a que aos prisioneiros poupa e salva, trata feridos inimigos com
os desvelos dispensados aos compatriotas, a que, considerando a efusão de sangue
humano deplorável contingência, aos povos apenas impõe os sacrifícios
indispensáveis ao solido estabelecimento da paz.
E principalmente sob este pontuo de vista que ouso achar-me autorizado a
colocar sob o augusto patrocínio imperial a desataviada narrativa da Retirada da
Laguna, obra de constância e da disciplina, em que os oficiais de Vossa Majestade,
devendo defender, por entre obstáculos os mais diversos, as bandeiras e os
canhões a eles confiados, jamais cessaram, quanto lhes foi possível, de conter o
legitimo desforço de bizarros soldados, exasperados pelo furores do inimigo, e
obstar à crueldade tradicional de auxiliares índios, vingativos como soem ser.
É este reflexo de um grande ato de iniciativa soberana, a mais bela
recordação que jamais poderemos entre camaradas invocar; cabe-nos a honra de a
Vossa Majestade dedicá-la.
De Vossa Majestade Imperial
Súdito e servidor, muito humilde e obediente,
Alfredo d`Escragnolle Taunay..
Prólogo
É o assunto deste volume a serie de provações por que passou a expedição
brasileira, em operações ao Sul de Mato Grosso, no recuo efetuado desde a
Laguna, a três e meia léguas do rio Apa, fronteira do Paraguai, ate o rio Aquidauana,
em território brasileiro, trinta e nove léguas, ao todo, percorridas em trinta e cinco
dias de dolorosa recordação.
Devo esta narrativa a todos os meus irmãos de sofrimento, aos mortos ainda
mais do que aos vivos.
Em todos as épocas largo interesse se ligou às retiradas, não só por
constituírem operações de guerra difíceis e perigosas, como nenhuma outra, mas
ainda porque os que as executam, já sem entusiasmo nem esperanças,
freqüentemente entregues ao desanimo, ao arrependimento de erros ou das
conseqüências de erros, precisam arrancar ao espirito, assim preocupado, os meios
de enfrentar a fortuna adversa, que a cada passo os ameaça, com todos os seus
rigores. Em tais contingências requer-se o verdadeiro cabo de guerra: ali há de se
lhe revelar a característica essencial: a inabalável constância.
Vive a Retirada dos Dez Mil em todas as memórias. Colocou Xenofante na
plana dos primeiros capitães. Nos tempos modernos vários ocorreram não menos
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notáveis: a de Altenheim, pelo marechal de Lorge, após a morte de Turenne, seu tio,
e que ao grande Conde fez declarar que lha invejava; a de Praga, enaltecedora da
nomeada do conde de Belle Isle: a de Plaffenhofen, por Moreau, tida como um dos
mais belos jeitos d´armas, efetuados por Turenne; já em nossos dias: a de Talavera,
que levou Lorde Wellington, triunfante, a Lisboa; a que honrou o funesto regresso de
Moscou e em que o Príncipe Eugênio e o Marechal Ney rivalizaram, em heroísmo; a
de Constantina pelo Marechal Clausel e outras menos célebres; mas que, no
entanto, pela variedade dos perigos e das misérias, chamam a atenção da história.
Resta-nos solicitar a maior indulgência para esta narrativa cujo único mérito
pretende ser o dos fatos expostos. Tiramo-los de um diário escrito em campanha.
Assim nela hão de abundar as incorreções, demasias e repetições; cremos
dever deixá-las; são indícios da presença da verdade.
Alfredo D’Escragnolle Taunay.
Rio de Janeiro, outubro de 1868.
CAPÍTULO I
Formação de um corpo de exército destinado a atuar, pelo norte, sobre o alto
Paraguai. Distâncias e dificuldades de organização.
Para dar uma idéia, algum tanto exata, dos lugares onde, em 1867, ocorreram
os acontecimentos cuja narrativa se vai ler, convém lembrar que, ao finalizar de
1864, havendo o Paraguai atacado e invadido, simultaneamente, o Império do Brasil
e a República Argentina, achava-se, decorridos dois anos, após tal investida,
reduzido a defender o próprio território, invadido do lado do sul, pelas forças
conjuntas das duas potências aliadas, a quem coadjuvava pequeno contingente de
tropas da República do Uruguai. Ao sul oferecia o caudaloso Paraguai mais
vantagens à expugnação da fortaleza de Humaitá, que, pela posição especial, se
convertera na chave estratégica do país, assumindo, nesta porfia encarniçada, a
importância de Sebastopol, na Campanha da Criméia.
Ao norte, do lado de Mato Grosso, eram as operações infinitamente mais
difíceis, não só porque ocorriam a milhares de quilômetros do litoral atlântico, onde
se concentram todos os recursos do Brasil, como ainda por causa das inundações
do rio Paraguai, que cortando na parte superior do curso terras baixas e planas,
transborda anualmente, a submergir então regiões extensíssimas. Consistia o plano
de ataque mais natural em subir as águas do Paraguai, do lado da Argentina, até o
coração da república inimiga e, do Brasil, descê-las a partir de Cuiabá, a capital
mato-grossense que os paraguaios não haviam ocupado.
Teria impedido à guerra arrastar-se durante cinco anos consecutivos esta
conjugação de esforços simultâneos. Mas era-lhe a realização extraordinariamente
difícil, devido às enormes distâncias a transpor. Basta lançar os olhos sobre um
mapa da América do Sul e examinar o interior do Brasil, em grande parte
desabitado, para que qualquer observador de tal se convença logo.
No momento em que se enceta esta narrativa, estava, pois, a atenção geral
das potências aliadas quase exclusivamente voltada para o Sul, para as operações
de guerra, travadas em torno de Curupaiti e Humaitá. Quanto ao plano primitivo fora
ele mais ou menos abandonado; quando muito ia servir de pretexto a que se
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infligissem as mais terríveis provações a uma pequena coluna expedicionária, quase
perdida nos imensos e desertos sertões brasileiros.
Em 1865 – ao arrebentar a guerra que Francisco Solano Lopes, o presidente
do Paraguai, na América do Sul suscitara sem maior motivo do que os ditames da
ambição pessoal; quando muito a invocar o vão pretexto da manutenção do
equilíbrio internacional – o Brasil, obrigado a defender honra e direitos, dispôs-se,
denodadamente, para a luta. A fim de reagir contra o inimigo, em todos os pontos
onde podia enfrentá-lo, o plano da invasão do Paraguai setentrional acudiu
naturalmente a todos os espíritos; preparou-se uma expedição para este fim.
Não foi infelizmente este projeto de diversão realizado nas proporções que
sua importância exigia; e, mais infelizmente ainda, os contingentes acessórios sobre
os quais contávamos, para avolumar o corpo de exército expedicionário, durante a
longa jornada através de São Paulo e Minas Gerais, falharam em grande parte ou
desapareceram devido a cruel epidemia de varíola e as deserções que esta
provocou. Marchou-se lentamente: provinha a demora de muitas causas, sobretudo
da dificuldade do abastecimento de víveres.
Foi somente em julho (partira do Rio de Janeiro em abril) que a coluna pôde
organizar-se em Uberaba, chegando-lhe os quadros a atingir cerca de três mil
homens. Reforçavam-na vários batalhões que, de Ouro Preto, trouxera o coronel
José Antônio da Fonseca Galvão.
Não sendo esta força ainda suficiente para uma ofensiva, seu comandante,
Manuel Pedro Drago, encaminhou-a para a capital de Mato Grosso, a fim de
avolumá-la. Assim se adiantou em direção ao noroeste, até as margens do
Paranaíba, quando ali recebeu peremptórias ordens do governo, levando-lhe
instruções formais de marchar para o distrito de Miranda, então ocupado pelo
inimigo.
Tal injunção, no ponto a que chegávamos, impunha como forçado corolário
obrigar-nos a descer em direção ao rio Coxim e a contornar em seguida a serra de
maracaju, por sua base ocidental, anualmente invadida pelas águas do Paraguai.
Assim, pois, estava a expedição condenada a atravessar extensíssíma região
emprestada pelas febres palustres.
A 20 de dezembro atingiu o Coxim, ainda sob o comando do coronel Galvão,
recentemente investido da chefia e, pouco depois, graduado em brigadeiro.
Embora sem valor algum estratégico, tinha pelo menos o acampamento do
Coxim uma altitude que lhe garantia a salubridade. Não tardou, porém, que a
enchente havendo-o ilhado e isolado, ali passasse a força pelas mais cruéis
privações, sofrendo até fome.
Após longas hesitações, forçoso se tornou romper ao acaso, através do
pestilento pantanal, onde a coluna foi desde o princípio provado pelas febres. Uma
das primeiras vítimas veio a ser o próprio e infeliz chefe, falecido à margem do rio
Negro. Afinal, arrastando-se penosamente, conseguiu atingir a povoação de Miranda
a 396 quilômetros para o sul. Aí uma epidemia climática de novo gênero, a paralisia
reflexa, ou beribéri, acabrunhou-a, dizimando-a ainda mais. Dois anos quase haviam
decorrido, desde a nossa partida do Rio de Janeiro. Lentamente descrevêramos
imenso circuito de dois mil cento e doze quilômetros. E já um terço de nossa gente
perecera.
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CAPÍTULO II
Miranda. Partida da coluna. Marcha de Miranda a Nioc.
Foi a 1º de janeiro de 1867 que o coronel Carlos e Morais Camisão, nomeado
pela presidência de Mato Grosso, assumiu o comando dos desventurados soldados
que, só mesmo profundo sentimento de disciplina, pudera até então manter em
forma. É Miranda quase inabitável, rodeada como se acha, e numa extensão
considerável, de depressões que a menor chuva, num instante, inunda, até mesmo
na melhor estação, e que os raios solares, som a mesma rapidez, enxugam. Privada
de boa água, pois a do Miranda é sempre agitada e lodosa, a disposição do terreno
não oferecia ali, aliás, nenhuma das condições militares às quais, em rigor, poderiam
Ter sido sacrificadas as considerações higiênicas. E com efeito, ao longo de um
caudal, acessível a grandes embarcações, estendem-se margens uniformemente
baixas a que tiram toda a segurança estradas abertas.
Freqüente e energicamente pronunciara-se a comissão de engenheiros contra
maior demora neste foco de infecção; e já, por duas vezes, em relatório, o assinalara
o chefe da junta médica como a causa de ruína da expedição, pois de contínuo
diminuía o seu pessoal, quer pela morte, quer pela dispensa forçada dos doentes.
Continuava o beribéri a fazer em nossas fileiras numerosas vítimas naquele lugar
ainda sujeito à influência dos grandes pantanais que a tropa acabara de atravessar,
entre o Coxim e Miranda.
Estava Miranda em ruínas quando nossas forças ali entraram. Ao partirem
haviam-na os paraguaios incendiado. Ardera parte das construções, mas eram
evidentes os sinais de decadência, anterior ao incêndio que sucedera à primeira
fase de desenvolvimento e prosperidade. Ainda se mantinham de pé prédios
cômodos e sobre o local de velha fortificação, outrora bem construído quartel, então
muito deteriorado pelo fogo, fechava uma praça de onde saíam duas ruas que iam
acabar em frente à igreja paroquial, ambas ladeadas de casas erguidas a pequena
distância umas das outras.
Da matriz apenas subsistiam as paredes laterais, e arcabouço da torre, o galo
de folha-de-flandes e uma cruz esculpida no alto do frontão. Fora edificada graças
aos esforços de virtuoso missionário italiano, Frei Mariano de Bagnaia, que não
somente nela empregara o produto das esmolas, por ele próprio recolhidas em toda
a vizinhança, com incomparável trabalho e ardor, como ainda ali aplicara a modesta
côngrua.
Os tristes destroços desta igreja, saqueada pelos paraguaio, que até os sinos
lhe tomaram, havia algum tempo antes presenciado uma cena que nos parece
merecer menção.
A 22 de fevereiro de 1865, deixando Frei Mariano as margens do Salobro,
onde se refugiara, ao aproximar-se a invasão, viera, de moto próprio, entregar-se
aos paraguaios, no intuito de lhes pedir compaixão para com a desventurada
paróquia. Ao chegar à vila, fora-lhe o primeiro cuidado correr à matriz, objeto da sua
mais viva solicitude. Desolador espetáculo o esperava: altares derribados, as
imagens santas despojadas dos adornos, enfim todas as mostras da profanação. Ao
presenciá-lo, dele se apoderou tal sentimento de indignação e desespero, que não
pôde dominar-se. Imediatamente, e em tom retumbante, à frente do chefe paraguaio
e seus comandados, pronunciou solene anátema contra os autores de tais
atentados. Ouviram-no todos cabisbaixos, como se esta voz severa fora a de algum
daqueles Padres que outrora lhes haviam catequizado os antepassados,
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esforçando-se o comandante em convencer o missionário que os únicos culpados
eram os Mbaias (Índios).
Lavado em lágrimas, corria o santo homem de altar em altar, como para
verificar os ultrajes praticados contra cada um dos objetos de sua veneração. Só
após minuciosa constatação de todas as indignidades cometidas se resignou a
celebrar o santo sacrifício da missa; e isto depois de tudo haver disposto para que a
cerimônia se pudesse realizar.
De cento e treze dias, foi a permanência da coluna em Miranda – de 17 de
setembro de 1866 a 11 de janeiro seguinte. A 28 de dezembro retirou-se um dos
comandantes enviados da capital de Mato Grosso, ele próprio atacado pela
epidemia. A 31 de mesmo mês apresentava-se em Miranda o coronel Carlos de
Morais Camisão; e no dia imediato, 1º de janeiro de 1867, assumia o comando,
como já o dissemos.
Enviou imediatamente a Nioc dos membros da comissão de engenheiros,
Catão Roxo e Escragnolle Taunay, a fim de examinarem as estradas e o local e
preparar ali acampamentos, tomando ao mesmo tempo algumas disposições
relativas à recepção de enfermos e ao armazenamento das munições de guerra e da
boca.
A 10 tornou pública a ordem de marcha.
Nova organização dera ao corpo de exército. Anteriormente dividia-se em
duas brigadas, cada qual composta de três corpos. Mas tanto uma como outra
estavam tão reduzidas, que as manobras, baseadas sobre um número certo de
homens, se haviam tornado quase impraticáveis. Pela fusão de todas em uma
brigada de mil e seiscentas praças, ficou o estado-maior aligeirado, e não sem
vantagens para o erário público, de pessoal supérfluo. Tal medida, desde muito
reputada útil, teve geral aprovação.
Moveu-se a força a 11; e, pela primeira vez, as peças de artilharia montada,
puxadas por bois, acompanharam a marcha da infantaria.
Saíram os diferentes corpos da vila de Miranda completamente fardados,
armados e providos de munições, libertos, pressentiam-no, das provações a que se
submeteram, desvanecidos daquele sentimento de disciplina que tudo os fizera
suportar, embora exercitando-se, cada vez mais, no manejo das armas. O que estes
homens pediam era um clima salubre que os revigorasse e os pusesse em
condições de agir. E este iam encontrá-lo em Nioac, a 210 quilômetros a sudeste de
Miranda.
Era a estrada larga e corria ao longo de magníficos bosques, onde
predominavam os umbus balsâmicos, espalhando ao longe o perfume das flores
abertas, os piquis, carregados de frutos, e as inesgotáveis mangabeiras.
São mui belos os acidentes do terreno; os ribeirões e riachos, a correrem
volumosos por toda a parte, ofereciam excelente água. Já não mais pousávamos os
olhos sobre as tristonhas perspectivas dos pântanos. Pelo contrário, nos
comprazíamos agora em contemplar verdejantes campinas, trechos que
apresentavam os mais poéticos aspectos, à sombra de poderosos contrastes
luminosos. Até Lauiad ruma a estrada, diretamente, para leste. A partir deste ponto
toma a direção sul-sudeste. O panorama que então subitamente se desdobra é
realmente grandioso. Aos pés do espectador, vasta campina a que embelezam
magníficos acidentes; além, as grandes orlas da mata que acompanham as
sinuosidades das belas águas do Aquidauana; ao longe a extensa serra de
Maracaju, com os píncaros escavados, refletindo os esplendores do Sol, e coroando
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toda esta massa prodigiosa, azulada pela distância. Foi este ponto, com razão,
chamado pelos Guaicurus Campo Belo (Lauiad).
Parece apanágio dos povos civilizados o sentimento admirativo; pelo menos
bem raro é nos homens primitivos a sua manifestação exterior. No entanto, as
grandes linhas de um quadro majestoso da natureza conseguem, às vezes, vencer a
feição material do selvagem, unindo ao autor da obra o rude espectador
maravilhado. O primeiro Guaicuru que sobre esta região encantada deitou os olhos,
não pôde conter a exclamação de surpresa; com a voz gutural e cavernosa
pronunciou a palavra Lauiad, que para sempre a assinalou.
A quatro léguas de Lauiad está a Forquilha, onde o Nioac conflui com o
Miranda.
São todos estes panoramas de incomparável beleza. Uma eminência, entre
outras, de onde se dominam as margens cheias de mata do Uacogo, do Nioc e do
Miranda, enlaçando a planície em suas curvas convergentes, oferece aspecto que
sobrepuja ainda, se possível, o panorama da Lauiad. Tão brilhante, tão suave a luz
que a toda aquela paisagem cobre que, involuntariamente, vem a imaginação
emprestar a sua magia a este irresistível conjunto dos encantos da terra e do céu.
Apertadas entre altas ribanceiras, cobertas de taquaruçus, correm as águas frescas
do Nioac sobre um leito quase contínuo, de grés vermelho, disposto em grandes
lajes; e, em vários lugares, é a ação da correnteza sobre a pedra tão notável, que se
recomenda à atenção e ao estudo do geólogo. Mas quem, sábio ou artista, não
acharia farta messe nestes campos admiráveis? Na extensão das dez léguas que
separam a Forquilha de Nioc têm os terrenos nível inferior aos que precedem
Lauiad, muito embora jamais possam, em tempo algum, ser invadidos pela
inundação. São, pelo contrário, secos e cobertos de pedregulho, como de
macadame natural. Nos cerrados surgem os piquis, freqüentes.; há também uma
grande árvore que se cobre de bagas açucaradas e agradáveis, a que chamam
fruta-de-veado. Não se mostram os jacarandás, também, aí raros.
Realizou-se a marcha para Nioac com muita ordem e regularidade. Eram
alguns doentes transportados em redes, outros em cangalhas semelhantes aos
cacoetes usados pelo exército francês na Argélia e da invenção de Larrey, no Egito.
Grandes serviços nos prestou este excelente modo de transporte. Suavizou, até, os
últimos momentos do capitão Lomba, do 21º batalhão, que morreu ao chegar,
supremo sacrifício, oferecido ao mau fado da nossa longa permanência em Miranda.
A benigna influência do planalto que atingíramos fez desaparecer
completamente a epidemia. Restabeleceram-se do pronto os doentes: não tornamos
a ver aquelas terríveis dormências, sinais precursores do mal que tantas vítimas
causara.
CAPÍTULO III
Nioac. O coronel Carlos de Morais Camisão. O guia José Francisco Lopes.
Fora a vila de Nioac abandonada pelo inimigo a 2 de agosto de 1866. Por
toda a parte ali se viam vestígios do incêndio. Poupadas, apenas, duas casas e uma
pequena igreja de pitoresca aparência. À primeira vista agrada o aspecto geral do
lugar. De um lado, o povoado e um ribeirão chamado Orumbeva; do outro, o rio
Nioac, cujas águas confluem cerca de 900 metros, para trás da igreja, deixando livre,
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em torno desta, à direita e à esquerda, um espaço duas vezes maior. Pequena
colina fica-lhe em frente, a pouca distância.
Ali chegamos às 11 horas de 24 de janeiro de 1867 acampando, em ordem de
batalha, com a direita encostada à margem direita de Nioac; e a esquerda à mata do
Orumbeva. Instalaram-se o quartel-general e o trem à retaguarda, no local da vila,
ocupando o hospital as pequenas casas salvas do fogo e um grande galpão que às
pressas se construiu.
Serviu a nave da igreja — de onde se retirara tudo quanto ainda havia de
símbolos do culto — de depósito ao cartuchame e a todas as munições.
Ergueram-se, de todos os lados, ranchos de palha, gurbis como lhes chamam
na Argélia, e, dentro em pouco, oficiais e soldados ali se acharam tão bem
instalados quanto as circunstancias o permitiam. Um bem-estar, desde vários meses
ausente, o renovamento da existência um sentimento de plenitude de vida a todos
nós exaltava, e em todos se transmutava na ânsia de sobressair, graças a algum
brilhante feito d'armas que chamasse a atenção do país para uma expedição desde
muito inativa. Reinavam no acampamento a esperança e a alegria.
Perigo havia, contudo, neste entusiasmo; e os que conheciam o chefe, de si
para si, indagavam, com secreto desassossego, qual lhe seria a demonstração da
iniciativa.
Ia-lhe no peito amarga lembrança que não conseguia remover da mente. Ao
abandonar o coronel Oliveira, comandante das armas da província, a praça de
Corumbá (1), embora estranho às primeiras deliberações motivadoras desta
precipitada retirada, figurara neste triste episódio o coronel Camisso na qualidade de
comandante do segundo batalhão de artilharia; e, por tal motivo, vira-se acoimado
de solidariedade com este ato de fraqueza. Contra ele servira-se a malevolência
destas vozes cruéis, circulando, em tal época, um soneto impresso, acerbo
estigmatizador dos defensores de Mato Grosso. Dentre os nomes nele apontados,
lera o próprio...
Subsistia a dor da afronta, profundamente magoado como se lhe achava o
pundonor militar. Com verdadeira paixão aceitara o comando da expedição. Seria, a
seu ver, o modo de se reabilitar perante a opinião pública e, desde tal momento,
concebera o projeto não de se manter na defensiva, como o critério o indicava, dada
a exigüidade dos recursos de que podia dispor, e sim de levar a guerra ao território
inimigo, fossem quais fossem as conseqüências.
Dia a dia. cada vez mais, tal idéia o empolgara. Sob, a influência de legítimo
ressentimento, tomou a feição da fixidez, apesar da inata indecisão do caráter.
Sinistro fadário o impelia ao infortúnio.
Encontrava-se no arquivo da coluna um ofício do Ministro da Guerra
recomendado a marcha sobre o Apa logo que as conjunturas a tanto se prestassem.
Ali enxergou, não o que exatamente havia, uma indicação facultativa, mas a
ordem de avançar, forma peremptória. Por mais que se lhe fizessem observações:
cego, graças a doentia suscetibilidade, levava a mal que de menos contestável se
lhe objetasse.
Uma frase depreciativa a seu respeito pronunciada, imprudentemente
repetida, ainda lhe acirrou a inflexibilidade, tornando-o surdo a quanto parecesse
desviá-lo do projeto de invasão. Não era que lhe não sopesasse as dificuldades; via,
porém, os soldados cheios de entusiasmo e já aguerridos; embalava-se na
esperança de, à sua testa, praticar grandes feitos; adestrava-os às manobras, por
meio de freqüentes exercícios, levava-os a empenhar combates simulados, em que
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a artilharia representava ruidoso papel; e desta agitação geral resultava uma
animação de que ele próprio compartia.
Entretanto, algumas vezes também, percebia nitidamente que apenas
dispunha de uma vanguarda de exército em campanha; e era obrigado a
reconhecê-lo. As hesitações lhe voltavam então, e, chegado o dia por ele próprio
fixado para a arrancada das forças, achava sempre motivo para o adiamento,
embora precisasse invocar as razões na véspera repelidas. Ora oficiava ao Ministro
que nada podia empreender sem cavalaria, e ora pretendia poder dispensá-la;
dolorosos embates entre a autoridade da razão clara e as inspirações do orgulho
magoado.
Era-lhe a atitude, aliás, sempre digna e firme; em todas as questões
administrativas trazia, sobretudo, o cunho de nobre integridade. Não admitia uma
diminuição ao prestígio de chefe e sabia mantê-lo tanto mais quanto lhe assistia real
singeleza e amenidade.
Homem de quarenta e sete anos de idade, baixo e aparentemente robusto,
feições regulares, tez morena-escura, olhos negros e vivos, tinha larga testa e belo
crânio, completamente calvo, que dos paraguaios lhe valeu injuriosa alcunha.
Sempre sério e preocupado, era visto solitário, ou a conferenciar com o velho
sertanista que nos servia de guia, José Francisco Lopes.
Merece este ser apresentado ao leitor antes que o veja agir. Dentre nós, os
que tinham presentes os romances de Fenimore Cooper, não podiam, à vista do
sertanejo brasileiro, o homem das solidões, deixar de evocar a grande e singela
figura de Olho de Falcão no Último dos Moicanos.
Tivera, desde a infância, o pendor pelas entradas nos sertões brutos.
Contava-se também que um ato violento, da primeira mocidade, lhe impusera,
durante algum tempo, este modo de vida. Viera depois a idade desenvolver-lhe
todas as aptidões. Prodigiosamente sóbrio, viajava dias inteiros sem beber, trazendo
à garupa da cavalgadura pequeno saco de farinha de mandioca, amarrado ao
pelego macio, que lhe forrava o selim. Jamais deixava o machado destinado a cortar
palmitos. Nascido na vila de Pinmi, em Minas Gerais, dali, ao léu das aventuras,
havia atingido todos os pontos da área que se estende das margens do Paraná às
do Paraguai. A fundo conhecia as planícies que entestam com o Apa, divisa do
Brasil e do Paraguai. Numerosas localidades até então virgens do pé humano, até
mesmo selvagem, percorrera e a várias batizara (Pedra de Cal, entre outras).
Tomara, em nome do Brasil, posse, ele só, de imensa floresta, no meio da qual
chantara uma cruz, grosseiramente falquejada, onde esculpira a inscrição P II (Pedro
Segundo), imponente madeiro, perdido no recesso dos desertos. Criava a iniciativa
do sertanista domínios ao soberano.
Numa viagem para estudar a navegação do rio Dourado, afluente do Paraná,
gravemente ferira a planta do pé, acidente de que jamais pudera curar-se. Um dia.
como lhe víssemos a chaga, semicicatrizada, sempre a sangrar, disse-nos:
"Prometeu-me o governo dar-me, a título de recompensa, trezentos mil-réis, mas
nunca os pagou. Perdoei-lhe a divida; o que se me devia era uma condecoração; já
a tenho e nada mais quero".
Durante sete anos, com a família, residira no Paraguai; mas no momento da
invasão já estava de volta ao solo brasileiro, habitando, à margem do rio Miranda,
uma propriedade sua, que batizara Jardim, fertilizada por seu trabalho e o dos filhos
já crescidos. Ele e a mulher, D. Senhorinha, generosamente hospedavam quantos
ali fossem ter.
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Quando, em 1865, irromperam os paraguaios em território brasileiro,
conseguira escapar-lhes, mas único da família, que caíra toda em poder do inimigo e
fora transportada para a aldeia paraguaia de Horcheta, a sete léguas da cidade de
Concepción. Com ela vivia o coração do velho guia.
Por todas estas razões, nele encontrou o coronel Camisso apaixonado
adepto. Desde que, dando-lhe a conhecer os seus projetos, acenou a José
Francisco Lopes com o ensejo de, como guia da expedição, ir ter com a familia e
vingar-lhe os agravos, empolgou o espirito do sertanista brasileiro, que, apesar de
todo o ardor, jamais perdeu, contudo, a perfeita intuição das conveniências. Assim,
nunca esquecendo a modéstia da posição, freqüentemente dizia: "Nada sei, sou
sertanejo; os senhores que estudaram nos livros é que sabem".
Era-lhe o orgulho num único ponto irredutível, no que tocava ao conhecimento
do terreno, legitima ambição, além do mais, pois dela nos proveio a salvação.
"Desafio, exclamava, todos os engenheiros com as suas agulhas (bússolas) e
plantas. Nos campos da Pedra de Cal e Margarida sou rei. Só eu e os indios
Cadiueus conhecemos tudo isto".
Resolveu-se a partida de Nioac, embora já com grandes dificuldades
tivéssemos que lutar, sobretudo quanto ao abastecimento de gado.
Comunicou-se a ordem às tropas sem que se soubesse para onde se ia
marchar. Pensava a maioria que se tratava somente de alguma incursão a fazer em
território inimigo. Levava a coluna apenas o material indispensável para um mês de
ausência. Ficavam no acampamento as mulheres dos soldados, exceto duas ou três.
______________
(1) Fora em fins de dezembro de 1864 Corumba tomada e devastada pelos
paraguaios. Era a principal praça comerciante de Mato Grosso: e o inimigo ali
realizou mui considerável presa. Haviam-se os habitantes refugiado na matas
vizinhas, mas Barrios os perseguiu. Saqueadas as casas, vários objetos roubados, e
dos mais valiosos, remeteram-se a Lopez que não hesitou em os guardar,
sobressaindo-se Barrios entre todos os que assim procederam. A um brasileiro rico,
e sua filha, levaram a bordo do seu navio: e quando o pai recusou deixar a menina a
sós com o chefe paraguaio, arrastaram-no à força, ficando a infeliz criança no navio.
Pôs Barrios em tratos todos os que Ihe caíram as mãos, quando queriam ou não
podiam dar-lhe as informações pedidas, ordenando que os espancassem: foram
vários lanceados como espiões.
The War in Paraguay por G. Thompson, vol. In 12, 1869. Jovem engenheiro
ao serviço de Lopez, entrara o Sr. Thompson em campanha, crente que ia defender
o fraco contra a opressão. A experiência dos fatos testemunhados dissipa-se,
porém, a generosa ilusão.
CAPÍTULO IV
Marcha sobre a fronteira paraguaia. Conselho de guerra.
Arrancou a coluna a 25 de fevereiro de 1867, indo acampar a uma légua da
vila, à margem do rio Nioac. Logo que pudemos, visitamos o comandante. Tinha a
barraca sobre um montículo pedregoso, a meio abrigado por palmeiras que
tornavam aprazível aquele local. Estava agitado: já para o rancho da tarde faltava
gado. A 26 estávamos no Canindé; a 27 no Desbarrancado.
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Dois dias demorou a coluna neste lugar, 28 de fevereiro e 1.° de março. A 2
marchava até o Feio, rio da vizinhança, onde, devido ao mau tempo, passou o dia 3.
Nesse mesmo dia voltou José Francisco Lopes de sua estância do Jardim
trazendo-nos, mais ou menos, duzentos e cinqüenta cabeças de gado, circunstância
que naturalmente veio aumentar a grande confiança que nele e em sua palavra já
depositávamos. A 4, à uma hora da tarde, ocupamos o lugar onde fora a colônia de
Miranda, distante 80 quilômetros S.S.O. de Nioac (1). Apenas ali restavam alguns
vestígios de construções incendiadas.
Principiou o coronel Camisão por fazer explorar os diversos pontos que se
ligavam à nossa posição e ordenou que, em todas as direções, se abrissem picadas
através das matas, mandando ocupar as estradas do Apa e da colônia por piquetes.
Ao mesmo tempo eram os aproches da frente e da retaguarda resguardados por
destacamentos consideráveis.
O que teria convindo seria investir com as fortificações paraguaias e tomá-las.
Na primeira confusão desta surpresa, poderíamos devastar o Norte da República an-
tes que o governo de Assunção soubesse de nossa marcha. Deu-se inteiramente o
contrário: teve o inimigo tempo de perceber a diretriz e o alcance da empresa.
Continuava sempre iminente a fome. Segundo rebanho de duzentas cabeças,
que Lopes ainda trouxera de suas terras, estava a acabar. Nenhuma remessa nova
se anunciava e a Intendência em ofício, datado de Nioac, declarava achar-se
incapaz de prover, daí em diante, ao abastecimento de gado. Nesta contingência
acentuaram-se as hesitações do coronel com maior freqüência. Deixou mesmo
pressentir a necessidade que talvez o compelissem a retrogradar até Nioac e
abandonar provisoriamente os projetos de ofensiva. Como fazia praça em observar,
tal idéia, aliás, jamais fora favoravelmente acolhida.
Quis em todo o caso pôr a salvo a responsabilidade, por meio de documento
oficial com que, oportunamente, pudesse justificar-se, quer perante o governo, quer
perante o público. Assim, pois, a 23 de março, oficiou ao presidente da comissão de
engenheiros, determinando-lhe que convocasse os colegas para deliberarem sobre
a possibilidade de um movimento ofensivo e os meios de o executarmos. A tarde
desse mesmo dia. graças a um contraste, cuja recordação nos ficará inapagável à
mente, reuniu-se este conselho pejado de tantas desgraças, quando a luz
crepuscular enchia os espaços de paz e alegria. A principio solene, acabou por
violências nascidas da exaltação conscienciosa.
Por diversas vezes esforçaram-se três dos membros da comissão em pintar a
posição do corpo do exército tal qual realmente era; a insuficiência de víveres; a
inópia absoluta dos meios de transporte; a ausência da cavalaria e a escassez das
munições; a impossibilidade de angariar reforços ou socorros para um punhado de
homens internados em terra inimiga. Daí a eventualidade infalivelmente próxima de
uma retirada a executar-se, sem dados de antemão estudados, e sob condições em
que as tentativas só podiam conduzir a um desastre, e isto com a deplorável
conseqüência de atrair novamente para o território brasileiro, a ocupação paraguaia,
acompanhada de todos os horrores.
Razão, mais que sobeja, assistia incontestavelmente aos que assim
pensavam. Dois dos colegas, porém, encarando a questão sob um ponto de vista
diverso, e buscando argumentos em mais elevada esfera, pretenderam que ao corpo
de exército assistia uma missão que, a todo o transe, devia cumprir. Tornara-se-lhe
a marcha para o Norte do Paraguai absolutamente indispensável no plano de
conjunto da guerra. Era sem dúvida a coluna mais fraca e talvez sucumbisse, mas
útil e gloriosamente. Dir-se-ia, pelo menos, que se compunha de valentes brasileiros.
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Éramos todos moços; tais pensamentos, tais modos de sentir invocados a
propósito de opiniões contrárias, trouxeram troca de palavras ásperas e afinal
recriminações pessoais.
Até então mantivera-se calado o tenente-coronel Juvêncio, chefe da comissão
de engenheiros, sem contudo conseguir dominar a comoção que de vez em quando
o agitava. De seu voto, preponderante, devia depende, o desfecho do debate.
Resumiu o parecer, colocando-se exclusivamente no terreno prático: "Não podia a
coluna avançar sem víveres e já não dispunha de mais gado" Exatamente em tal
momento ocorreu um destes incidentes que nas combinações das coisas humanas
surgem para lhes encaminhar o curso.
Um rebanho que o infatigável Lopes, a instancias do nosso comandante,
juntara nos campos de sua estância do Jardim e tangera para o acampamento, ali
entrava tumultuosamente, respondendo os mugidos dos animais aos clamores dos
vaqueiros e peões.
Desde então tudo se decidiu, como outrora em Roma expedições militares se
sobrestiveram ou precipitaram-se segundo os gemidos das vítimas ou os gritos dos
frangos sagrados.
Levantou-se o presidente do Conselho e, voltando-se para o secretário
encarregado de redigir a ata da sessão, o próprio autor desta narrativa,
encarregou-o de comunicar ao comandante que a comissão unânime reconhecia a
possibilidade da marcha para a frente, sobre a fronteira inimiga, apressando-se em
oferecer toda a sua boa vontade para a execução deste plano.
Em seguida, exclamou, como alguém que ao sacrifício se vota: —"Deixo viúva
e seis órfãos. Terão como única herança um nome honrado".
Assim se encerrou este conselho sobre o qual se fixara a atenção de toda a
oficialidade e cujo resultado; todos surpreendeu; a ninguém tanto, contudo, quanto
ao comandante, por se ver arrastado pelo obstáculo que acreditara antever à sua
pessoa e os riscos do primitivo projeto. O sentimento do decoro pessoal, nele
poderoso desde o despertar, preservou-o, contudo, de outro testemunhos da
impresso, além de alguns gestos, inopinados e involuntários. Esforçou-se desde
então em bem realizar o que fatalmente se tornara impossível deixar de empreender.
____________
(1) Não se encontra com a vila de Miranda, sita a 210 quilômetros N. O. de Nioac.
CAPÍTULO V
Reconhecimento. Rebate falso. Regresso de cativos escapos ao inimigo. O guia
Lopes e o filho. Avante!
Recebeu imediatamente o 21.° batalhão ordem de escoltar os engenheiros,
numa exploração das localidades vizinhas da colônia; e, com efeito, a 25, o
tenente-coronel Juvêncio, com os dois subordinados, avançou até o ponto chamado
Retiro que, havia pouco, fora evacuado por um destacamento paraguaio de uma
centena de homens. Feito o reconhecimento regressou na mesma tarde a nossa
comissão ao acampamento. Haviam tido os infantes que nos acompanhavam que
percorrer mais de 52 quilômetros transportando capotes e armas, além de sessenta
cartuchos na patrona. Pudemos freqüentemente constatar que as mais longas
marchas não conseguem abater a energia do soldado brasileiro.
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Decorreram os dias subseqüentes, na inação; e neste solene repouso do
pensamento, que é apenas prudência em vésperas de arriscadas empresas.
Tanto ninguém deve perturbar-se com a apreensão de desgraças, que talvez
não ocorram, como se não entregar à exagerada confiança no futuro, que à possível
catástrofe ainda venha trazer o rigor do imprevisto.
Abril começara, o mês fadado às nossas provações. O serviço de comboio
longe estava de se achar garantido e no entanto como que a abundância reinava no
acampamento. Carretas em contínua afluência ali traziam toda a espécie de
fazendas e demais objetos de luxo que aqueles páramos desertos jamais haviam
certamente visto. Assim, as mulheres dos soldados, atraídas por este movimento
comercial desciam de Nioac em grupos cada vez mais numerosos. Também para tal
afluxo de gente contribuía a reputação de salubridade da Colônia de Miranda.
Era para aquele ponto, com efeito, que, muito antes da invasão estrangeira,
de toda a vizinhança mandavam convalescentes e valetudinários. Ali são cristalinas
as águas do rio que as infiltrações salobras dos pântanos de jusante ainda não
contaminaram. Nada deixava a desejar o estado sanitário das tropas. Haviam, pois,
recomeçado os exercícios diários de todos os batalhões e nossas músicas,
rompendo afinal o longo silêncio, alegravam os espíritos. A dos voluntários de Minas,
sobretudo, cuidadosamente recrutada, executava sinfonias cuja novidade, para os
ecos locais, ajuntava novo encanto ao prazer da audição.
Recebeu logo o 17.° batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21.°,
realizar um reconhecimento, sob a direção do guia Lopes e em companhia de um
grupo de índios Terias e Guaicurus, que desde algum tempo se apresentara ao
Coronel. A 10 de abril, realizou-se a partida, bandeiras desfraldadas e música à
testa, espetáculo sempre imponente em vésperas de combate. Graças ao
comandante apresentava-se o corpo em pé de disciplina, que em qualquer ponto o
tornaria notado.
Reservava-nos o dia seguinte emoções muito diversas e quase contraditórias:
a esperança de encontrar o inimigo, que se não realizaria, e o imprevisto das mais
comoventes cenas familiares.
Anunciou-nos uma mulher, vinda de Nioac, o encontro, à margem de um rio
próximo, de um grupo de cavaleiros, falando o espanhol. Depois de lhe fazerem
algumas perguntas, haviam-na deixado passar tranqüilamente.
Deu-se logo o alarma em toda a frente e à retaguarda, mas tivemos logo a
agradável surpresa do regresso do nosso destacamento trazendo dez cavaleiros.
Eram brasileiros, eram irmãos! Pertenciam a famílias estimadas e bem conhecidas
de fazendeiros das vizinhanças de Nioac: Barbosas, Ferreiras, Lopes, e haviam
conseguido escapar ao inimigo inexorável. Com a rapidez do raio circula a notícia de
sua aparição por todo o acampamento, e até em Nioac. Para os ver acodem homens
e mulheres, possuídos como que de embriaguez; e a maioria até a chorar. Patrícios
nossos! Rodeados, carregados, acham-se de repente em presença do comandante
que os interroga.
Contam que, levados prisioneiros para o território paraguaio, eles e as
famílias, haviam, ao se retirar o inimigo, sido dispersos por diversas localidades,
principalmente em Vila Horcheta, a sete léguas de Concepción
Ali lhes haviam dado terras de cultura sob a condição de pagarem aos
coletores o quinto da colheita. Nunca os incomodaram muito até então, mas
sabendo, ultimamente, que o ditador Lopez, já falto de gente para o exército,
projetara recrutar todos os estrangeiros, e até mesmo os prisioneiros, e que, ao
mesmo tempo, se aproximava uma coluna brasileira, tudo tinham arriscado para
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reunir-se aos patrícios, escapando ao perigo de ter de os combater. As próprias
famílias os haviam acoroçoado a assim proceder.
A 25 de março, exatamente no dia dos nossos primeiros reconhecimentos
diante da colônia, conseguiram apossar-se de bons cavalos paraguaios, e, como se
não iludissem acerca do destino que os aguardava caso fossem novamente
capturados, tinham se arriscado a caminhar à noite, e de mata em mata, fazendo
contínuos rodeios, em direção à fronteira. Atingindo-a felizmente, atravessaram o
Apa e depois, deixando à direita a estrada da colônia, subiram ao norte, em direção
à estancia do Jardim, de onde desceram ao nosso encontro.
A um deles, o filho do guia Lopes, chamou o Coronel à sua barraca e a sós.
Era moço simpático, cuja inteligência e discrição pareciam provir da herança pa-
terna. Versou a conversa, naturalmente, sobre as informações que ele e o cunhado,
Barbosa, podiam dar relativamente à situação do Paraguai, à sua força apreciável,
meios de resistência, e sobretudo quanto à fronteira vizinha.
Responderam os refugiados que as fortificações do Apa não passavam de
simples estacadas de madeira comum, guarnecidas, em Bela Vista, por uma
centena de homens, sob o comando do major Martim Urbieta. Estavam os outros
fortes em piores condições defensivas; mas o governo paraguaio, à vista dos avisos
recebidos, comprometera-se a providenciar dentro em pouco e a enviar reforços,
determinando que até a chegada destes, se fizesse uma retirada ante a investida
brasileira, destruindo-se tudo o que não fosse possível carregar. Acrescentaram que,
no interior do Paraguai, era geral o desânimo; dia a dia menos se acreditava num
feliz desfecho da guerra. Entretanto a resolução da defesa, a todo o transe, não
parecia esmorecida. Quanto ao respeito pelo presidente, El supremo, cujo nome
todos pronunciavam descobrindo-se, era sempre o mesmo.
Apenas pelo acampamento se espalharam tais notícias, só houve um grito:
Ao Apa! Ao Apa! Atingiu o entusiasmo ao auge, deixando-se os mais prudentes
arrastar pela excitação apaixonada dos grupos que de todos os lados se formavam.
Anunciou-se neste momento a volta do 17.° batalhão que acompanhara o
velho Lopes. Era geral o desejo de assistir ao primeiro encontro do pai e do
primogênito que lhe voltava aos braços.
Passando pelos postos avançados soubera o nosso guia da grande notícia.
Vinha pálido, lacrimejante, em direção ao filho que, respeitosamente, o
esperava, descoberto. Não descavalgou; estendeu a destra trêmula ao filho, que a
beijou; depois o velho guia deu-lhe a bênção e passou sem proferir palavra.
Foi uma cena patriarcal, e como seja o coração humano sempre sensível aos
grandes lances, atônitos, olhávamos uns para os outros, como a indagar se não
seria fraqueza entre soldados nem sempre poder conter as lágrimas.
Que emoção devia sentir o velho vendo o filho escapo ao inimigo! E quanta
dor, ao pensar que os outros membros da família, ainda cativos, haviam perdido o
mais valente defensor! Quando em tal lhe falamos tomou longa pitada e disse: "Deus
tudo faz. Deus assim o quis. Fui outrora feliz, tive casa e família. Hoje durmo ao
relento; estou só, e como do que a caridade dá".
— Vamos encontrar casa em Bela Vista, lhe respondemos. Tem o senhor a
seu lado filho e genro. Come em companhia de amigos e até ainda é quem lhes dá a
comer de seu gado.
Com melancólico sorriso meneou a cabeça, dizendo: "Nunca mais será minha
a estancia do Jardim! . . . "
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Entrementes, depois de haver combinado com Barbosa os meios de ainda
obter gado do sogro, ordenou o Coronel que se avançasse.
CAPÍTULO VI
Em marcha. Formatura da coluna. A vista da fronteira.
Fortalecido em sua primeira resolução, não pôde entretanto, o coronel
Camisão executá-la sem deixar perceber algumas das antigas hesitações. Fora ele
próprio que para 13 de abril marcara a partida; adiou-se para o dia imediato, embora,
desde o romper d'alva, tudo estivesse pronto e o corpo do exército em ordem de
marcha. Só em hora avançada tornou conhecida a nova determinação, a tal respeito
estendendo-se em explicações que a todos espantavam, provocando malignas inter-
pretações, principalmente a propósito dos pousos, que fixara. Dispusera-os com
efeito de modo que a coluna chegasse a Bela Vista, ou em suas imediações, isto é
na fronteira, no sábado de Aleluia ou domingo de Páscoa, para que ali se celebrasse
esta solenidade. — "Assim diziam os críticos, os tiros de peça, iniciais de nossa
entrada em fogo, serão os mesmos que geralmente acompanham a cerimônia
religiosa: a iniciativa da campanha será coberta pela festa".
Treze de abril foi, pois, ainda um dia perdido: gastaram-se as horas da manhã
em preliminares de viagem, inteiramente supérfluos, e cujo único objetivo parecia
procurar entreter os soldados. Estes, aliás, a tudo se prestavam com a melhor
disposição. Fizera-se ouvir o hino nacional e uma explosão de entusiasmo o
acolhera. Vários ajudantes-de-ordens se despacharam então, cada qual do seu lado,
a ler uma ordem do dia. apelando para o patriotismo da coluna e a lhe relembrar a
confiança nos chefes. Enérgicas aclamações estrugiram ainda, após esta
proclamação, repetindo-se várias vezes: chegara ao auge a animação. No entanto
caíra a noite, que se passou sem que nos houvéssemos movido. Viram todos
comandante, meditativo como sempre, passear na sombra, em frente à sua barraca,
por mais tempo e mais tarde do que geralmente fazia.
No dia seguinte, desfilou o corpo diante dele; com isto pouco a pouco se
animou. Já a vanguarda, contudo devia dar-lhe motivos de reflexão, composta como
e de homens de nossa cavalaria desmontada. E com efeito já relatamos que não
tínhamos mais cavalos, todos vitimados na região de Miranda por uma epizootia do
gênero da paralisia reflexa que a nós mesmos, tão cruelmente, viera provar. Quando
muito pudera o serviço de faxina conservar alguns muares. Faltava-nos o elemento
primordial da guerra nestes terrenos, a cavalaria; e não havia quem com isto se não
impressionasse.
Malgrado a diferença de feição, a que se tinha: de resignar, nada perderam os
nossos caçadores do aspecto marcial. Após eles marchava o 21.° batalhão de linha,
precedendo uma bateria de duas peças raiada depois o 20.° batalhão, outra bateria
igual à primeira acompanhada pelo 17.° de Voluntários da Pátria; e afinal as
bagagens, o comércio, com a sua gente e material, as mulheres dos soldados,
bastante numerosas.
Ocupava o gado o flanco esquerdo, com as carretas de munições de guerra e
de boca, massa confusa protegida por forte retaguarda.
Tínhamos o Miranda à frente; os soldados o atravessaram; uns levantando
acima d'água armas, cinturão patronas; outros sobre uma ponte volante que os
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engenheiros acabaram de construir, auxiliando-os neste trabalho urgente um 2.°
tenente de artilharia, Nobre Gusmão, jovem oficial, cheio de inteligência, que nessa
ocasião demonstrou o zelo que mais tarde sempre pôs em destaque (1).
Mais de duas horas tomou esta travessia; neste ínterim havia o coronel
Camisão e seu estado-maior lido noticias que o correio de Mato Grosso acabara de
traz Nenhum comunicado, oficial ou privado, relativo à in, são do Paraguai pelo sul
viera ao nosso comandante nem coisa alguma que a tal fato se ligasse. Seriam,
entanto, informes do mais alto interesse, até mesmo indispensáveis no momento em
que nos aventurávamos à perigosa operação, sem que coligássemos prefixado fim.
Ás duas horas da tarde recomeçou a marcha, e, lentidão era extrema: regulávamos
o passo pelo dos bois que puxavam a artilharia e ainda, de tempos a tempos todos
estacavam, porque o próprio Coronel, indo e vindo com o seu estado-maior, da
frente à retaguarda, punha-se com o óculo de alcance, a examinar as cercantas, ora
distraída ora muito atentamente. Surpreendia-nos isto porque se jamais houve
campos sem mistérios eram os que atravessávamos. Estavam, então, inteiramente
despidos; recentemente incendiados neles perecera até a erva rasteira, de modo
que os atiradores distribuídos, no momento da partida, ao longo da nossa coluna,
para guardá-la, a ela se haviam incorporado, dispensados dum serviço sem razão de
ser.
Ao cair da noite atingimos elevado cômoro. A 16 horas recomeçou a marcha
na mesma ordem, somente deviam os diferentes corpos alternar, de um dia para
outro, atesta, ao centro e à retaguarda.
Seguíamos uma estrada formada de dois trilhos paralelos, espaçados por três
ou quatro palmos de capim e est estendendo-se a perder de vista pelas planícies
desnudadas. Uma outra moita, ou arbusto, quando muito, surgiam de vez em
quando. Só no horizonte se divisavam uns capões. Estavam os dois trilhos bem
batidos, tornando-se visível que havia pouco por eles tinham passado e tornado a
passar cavaleiros e em contingentes avultados.
Desta estrada partiam, de distancia em distancia, outros rastos de cavalos
encaminhados para os acidentes do solo, que permitiam a visão ao longe. Não se
podia mais duvidar que o inimigo nos observava a marcha.
Fomos acampar perto do morro do Retiro, onde ocupamos a vertente em cuja
base nasce o volumoso ribeiro do mesmo nome. É nesse lugar admirável a
natureza; corre a água emoldurada de palmares, entre margens ligeiramente
sinuosas, revestidas de relva curta e fina, da mais bela cor esmeraldina.
Não longe dali residira outrora esta mesma D. Senhorinha, cuja hospitalidade
já gabamos. Achava-se, então, casada, em primeiras núpcias, com um Lopes (João
Gabriel), irmão do nosso valente guia José Francisco, e falecido em 1849. Residindo
só, com os filhos, então crianças, numa zona fronteiriça, onde não há a mínima
segurança para os fracos, já fora outrora a viúva presa e levada por um magote de
paraguaios. Reclamada, ao cabo de algum tempo, pela legação brasileira em Assun-
ção e liberta, em 1850, contraíra, segundo o costume generalizado naquela terra,
segundo casamento com o cunhado, o nosso guia, que a estabelecera em sua
estancia do Jardim. Ali, ao começar a invasão, de 1865, fora de novo presa e
internada no Paraguai.
A 17 de abril, pela manhã, deixamos o Retiro e, duas léguas à frente,
encontramos uma construção em forma de galpão ou cabana que evidentemente
acabava de ser abandonada por uma ronda inimiga. Erguia-se-lhe ao lado um
destes mastros de vigia a que os paraguaios chamam mangrulhos, grosso esteio ou
travejamento de toscos madeiros, pelos quais trepam para descortinar, ao longe, os
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terrenos circunvizinhos. Haviam os nossos índios Guaicurus avançado até ali,
anteriormente, num reconhecimento do tenente-coronel Enéias Galvão. Desta vez
fizeram os selvagens, nossos aliados, alegre fogueira do tal mastro e da choupana.
Avisaram neste momento ao Coronel que o nosso comboio se atolara à saída
do Retiro. Decidiu imediata mente que, sem interromper a marcha, iríamos esperá-lo
a alguma distancia, à vanguarda. Foi o que fizemos assentando acampamento
exatamente no local onde existira a fazenda de João Gabriel. Grosso contingente d'
vanguarda colocou-se em observação sobre uma culminância que dominava a
campina.
Quem comandava este destacamento era um capitão da guarda nacional do
Rio Grande do Sul, Delfino Rodrigues de Almeida, mais conhecido pelo apelido
paternal de Pisa-flores, homem enérgico, a cuja bravura todo prestávamos
homenagem. Vimo-lo olhar fixamente par. oeste; de repente, partido de diferentes
pontos, reboou um grito: A fronteira! Da elevação onde se achava destacamento
avistava-se com efeito a mata sombria d’ Apa, limite das duas nações.
Momento solene este, em que entre oficiais e soldado nosso houve quem
pudesse conter a comoção! O aspecto da fronteira que demandávamos a todos
surpreende que realmente era novo. Podiam alguns já tê-la visto' mas com olhos do
caçador ou do campeiro, indiferente. A maior parte dos nossos dela só haviam
ouvido vaga mente falar; e agora ali estava à nossa frente com ponto de encontro de
duas nações armadas, e como campo de batalha.
__________
(1) Por ocasião da travessia dos pantanais e da Retirada da Laguna pr' tou este
oncial, Cesário de Almeida Nobre de Gusmão, prodigiosos servis _ Vd D1.Y de
Guerra e de Sertão nelo A.
CAPÍTULO VII
Passagem do Apa. Primeiro embate. Ocupação da Machorra.
Haviam as nossas carretas retardatárias chegado ao acampamento a 17. No
dia 18, pelas nove da manhã, fez-se a rendição das guardas avançadas. Reinava
em nossas linhas a maior tranqüilidade quando, de repente, pelas onze, ouviu-se o
grito de alarma: "Cavalaria inimiga!". Armam-se os batalhões; expede o comandante
os engenheiros aos postos avançados; o ajudante-general à retaguarda; o
assistente do quartel-general aos diversos corpos para lhes examinar as condições e
remediar ao que possa faltar. Para a vanguarda marcha ele próprio, acompanhado
pelo batalhão de voluntários, com as bocas de fogo do major Cantuária e do tenente
Marques da Cruz, o mesmo que havia de morrer combatendo nas Linhas de
Humaitá. Por nós passou, com a espada nua, não querendo, dizia, tornar a
embainhá-la senão depois que houvesse travado conhecimento com os paraguaios.
Estavam os inimigos, então, a pequena distância de nós, perto da mata que
beirava um ribeirão. Avançavam sensivelmente estendendo-se em linha de
atiradores, correndo de um lado para outro, sob as ordens de um oficial, que entre
eles se destacava; e súbito mandou se retirassem: perdemo-los de vista. Após tão
prolongada espera ordenou o comandante que volvêssemos às nossas posições.
Pela manhã de 19 deixamos o acampamento. O Coronel destacou o 21.°
batalhão para a vanguarda com a recomendação de nunca perder de vista o grosso
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do corpo do exército, durante a marcha, embora sempre a ganhar terreno. Seguia o
resto em estacamentos, próximos uns dos outros, mas, como a animação dos
soldados e a dos oficiais corressem parelhas, avançaram os corpos sem prestar
grande atenção ás ordens dadas, achando-se por vezes separados por distâncias
maiores do que a prudência aconselhava.
À passagem do Taquaruçu, cuja ponte acabavam os paraguaios de destruir,
deu-lhes a vanguarda uma descarga, embora quase estivessem fora de alcance.
Viu-se um de seus cavaleiros cair ferido. Tomou-o um dos camaradas á garupa,
enquanto o terceiro lhe laçava a montaria que fugia, sentindo-se solta. Ao presenciar
esta primeira cena de guerra, queriam os nossos soldados deitar-se á água para
perseguir o inimigo, quando um toque de clarim do quartel-general os fez estacar.
Toda a coluna achou-se logo agrupada atrás deles. Neste entrementes os
engenheiros restabeleciam a ponte; bastou-lhes uma hora. Efetuou-se a passagem
e a marcha recomeçou à outra margem.
Vencendo pequenos planaltos interpostos às depressões paralelas que
sulcam aquela campina, avançamos até a base de uma colina que domina toda a
vizinhança. Achara a nossa vanguarda esta posição ocupada por um piquete de
cavaleiros; estacou então, e todas as nossas unidades, isoladas, assim fizeram
também, uma após outra. Examinaram-nos, então, os paraguaios: nada entre nós e
eles se interpunha; podiam contar-nos à vontade. Foi para nós grande desvantagem.
Até então julgavam, dando crédito aos nossos refugiados, que a coluna brasileira
contava nada menos de seis mil homens, e nosso comandante, como regra de
guerra, esforçara-se por lhes alimentar a abusão. Desfizera-se-lhes a ilusão,
desvanecida ao primeiro olhar lançado sobre nós.
Mais uma razão para que logo e logo os atacássemos, mas o comandante
manteve-nos imóveis.
Só mais tarde soubemos por quê: provinha de intimo motivo: estávamos em
sexta-feira Santa e a iniciativa de urna ação de guerra, no próprio dia da morte do
Salvador, repugnava a um coração religioso como o do nosso chefe, escravo de
todos os nobres sentimentos, a ponto de os exagerar até á contradição, inquieto e
como perturbado pelo pressentimento do fim próximo.
Durou-lhe a hesitação bastante para que o destacamento paraguaio não mais
receando ser atacado e, cheio de desprezo, talvez, pela nossa pequena força
atirada, sem cavalaria alguma, em vastas planícies encharcadas, onde todo o
homem a pé é assunto de escárnio, se lembrasse pela atitude, de nos dar insolentes
mostras de desdém que lhe inspirava a inferioridade de nossos recursos militares e,
por meio de demonstrações ruidosas, nos fazer ver quanto considerava inúteis
quaisquer precauções contra nós. Descavalgaram todos os homens, assentando-se
uns á sombra das macaúbas, ao passo que outros faziam tranqüilamente pastar os
cavalos. Fazia-nos ferver o sangue aquele afetado descuido. Felizmente, afinal, até
ao nosso chefe atingiu esta indignação. Decidiu-se a agir. Só havia um meio de
rápido emprego e deste lançamos mão. Fez Marques da Cruz avançar a sua peça e
uma granada silvou ao meio das aclamações dos nossos soldados. Atingiu a base
de alta palmeira, que abrigava bom número de cavaleiros e depois de ricochetear
explodiu no ar.
Foi, pelo menos, para nós, um prazer vermos o efeito produzido, a surpresa, o
alarma, a confusão. Correram uns ap6s os animais que a detonação dispersara;
cavalgaram outros, precipitadamente; e sem mais detença dispararam pelo campo, a
todo o galope. Passados poucos minutos desaparecera o destacamento inteiro.
Lançou-se-lhe segundo projetil, e logo em seguida terceiro, que alcançou mais de
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meia légua e deu a conhecer ao inimigo a força de nossa artilharia. Toda esta tropa
fugidia só haveria de reaparecer diante da fazenda da Machorra, na fronteira.
Chegados esta tarde, à margem de um ribeirão, que os espanhóis chamam
Sombrero, fomos acampar no triângulo que ele ali forma, confluindo com o Apa.
Admiramos este belo rio, fronteira dos dois países e cujo aspecto, com sua mata
cerrada, tanto nos impressionara quando de longe o avistáramos. Grande futuro lhe
está reservado após a guerra.
Desce o Apa por três galhos, logo confluentes, da serra dos Dourados, um
pouco abaixo da colônia militar deste nome, a doze léguas, este-sudeste da de
Miranda. Corre a principio para Oeste, 10° N. até o forte de Bela Vista, que se acha
no paralelo 22, e dai, descambando para Oeste 10° S., vai com um curso levemente
sinuoso banhar Santa Margarida, Rinconada e outros pontos fortificados até o
Paraguai, em cujo leito se despeja.
Ao chegar pediu o Coronel que lhe dessem água do Apa, e, ou porque lhe
viessem á mente vagas reminiscências históricas, a propósito de caudais célebres,
ou porque, após tanto abalo de espírito, experimentasse como que uma agitação
febril, disse sorrindo: "Notemos a que hora provamos a água deste rio". Puxou o
relógio, bebeu e acrescentou a gracejar: "Desejo que este incidente seja consignado
na história desta expedição, se algum dia a escreverem". Pareceu empenhado que
se lhe fizesse uma promessa em tal sentido. Foi o autor desta narrativa quem, em
nome de todos, a tanto se comprometeu, e hoje o cumpre com religiosa exação
porque a morte, de que estava o nosso chefe tão próximo, sabe, pela própria
natureza enigmática, tudo enobrecer, tudo absolver e consagrar.
É neste ponto o Apa correntoso; mas as grandes lajes que lhe calçam o leito
como que convidam a entrar em suas belas águas. Foi o que fizeram muitos
soldados; passaram vários para a outra margem a dizer que iam conquistar o
Paraguai.
À noite chegaram dois oficiais que à hora do perigo vinham procurar-nos para
conosco dele compartirem. A marchas forçadas acudiam de Camapuã. Adiantando-
se à escolta haviam atravessado, não sem correr o risco de algum acidente, as
nossas linhas de vanguarda. Só no dia seguinte apareceram os seus soldados ao
acampamento, com um viajante por nome Joaquim Augusto, homem corajoso, mas
que ao nosso contato só incitava o interesse pessoal.
No dia imediato, às nove da manhã, pôs-se a coluna em movimento e,
atravessando o Sombrero, avançou sobre a margem direita do Apa, tendo á
vanguarda o batalhão de voluntários. Muito tempo nos custou vencer uma légua,
apenas. Sucedia a cada momento algum acidente às carretas das munições. Delas
não nos podíamos afastar, próximos como nos achávamos do inimigo. Atingíramos
quase, segundo a opinião dos refugiados, a primeira guarda paraguaia, a saber, o
forte e fazenda da Machorra, situada em território brasileiro, a uma légua e quarto
para cá do forte de Bela Vista, que está construído na margem paraguaia.
Esperávamos, a cada passo, encontrar resistência. No entanto marchava
sempre o nosso batalhão da vanguarda sem perceber ou sem medir a distância que
as paradas continuas dos demais corpos punham entre ele e as outras unidades.
Em vão soavam os clarins; já se afastara demais para que os pudesse ouvir. Deixa-
lo assim isolado não era prudente; tornava-se indispensável mandar um próprio
chama-lo. Ofereceu-se o tenente-coronel Juvêncio e partiu logo com seus dois
ajudantes-de-campo e Gabriel Francisco, o genro do guia, que conosco quis ir.
Felizmente, tínhamos bons cavalos, dos que haviam resistido à epizootia; safaram-
se de perigoso atoleiro, que pela ânsia de chegar não quiséramos contornar.
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Perdemos logo de vista o corpo de exército, mas não percebíamos, ainda, nossa
tropa já empenhada em combate, ao que supúnhamos, pelas descargas e disparos
isolados dos atiradores. Víamos perfeitamente, por vezes, tremular a bandeira
nacional, a que depois encobriam elevadas moitas. Parecia-nos, aliás, que não
avançava. Em poucos instantes a rapidez da carreira dela nos aproximou e, como
eletrizados pela sua vizinhança, atiramos os cavalos ás águas do volumoso ribeirão,
que nos barrava o passo, o José Carlos, e afinal nos achamos reunidos aos nossos
que, em lugar fechado, combatiam á entrada da Machorra.
Uma linha de paraguaios, assaz extensa, fazia frente ao ataque, ao passo
que grande número dos seus se encarniçava, com uma espécie de furor, em destruir
a fazenda, incendiando quanto parecia poder arder. Ocupava-se o nosso
comandante da vanguarda (1) em examinar uma ponte que cumpria
atravessássemos para envolver o inimigo. Foi então que o tenente-coronel Juvêncio
lhe comunicou a ordem de estacar. Não permitiam as circunstâncias, porém, que a
ela atendêssemos. Concordaram os oficiais na imprescindível necessidade de se
ocupar a posição, custasse o que custasse.
Imediatamente a nossa linha de atiradores atirou-se a correr para a frente
oposta, e pela própria ponte, porfiando todos em ardor.
Recuaram os paraguaios, mas em boa ordem. Tinham ordens, certamente,
para não empenhar combate, mas somente reunir e tanger á retaguarda cavalos e
bois que não queriam deixar-nos; e deviam ser numerosos, tanto quanto nos
permitia avaliar a poeira que sua marcha ocasionava.
Foi o recinto ocupado: o tenente-coronel Enéias, ali, deu imediatamente nova
formatura ao seu batalhão e o manteve numa série de posições que lhe valeu,
posteriormente, não só a aprovação do Coronel como gerais parabéns. Foram os
nossos os primeiros recebidos. Aplaudiram todos o espírito de disciplina dos seus
subordinados e o afã com que, logo á primeira voz, começaram a desentulhar o
terreiro de objetos que o atravancavam, sem coisa alguma subtrair, assim como de
quanto estava no interior das casas.
Neste ínterim apareceu o próprio comandante. Não vendo voltar nenhum
daqueles que á vanguarda mandara, ás pressas partira para constatar o que havia.
O entusiástico acolhimento que neste momento lhe fizeram, e as aclamações dos
soldados lhe causaram uma satisfação cuja expressão, malgrado a reserva habitual,
a todos se patenteou.
Os auxiliares índios, Guaicurus e Terias, não foram os últimos a se apresentar
para o saque. Tão pequena disposição para o combate haviam mostrado que, na
nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente, lhes bradáramos: Vamos! Avante! Valentes
camaradas! Agora se lhes transmutara a indolência num ardor sem limites para o
saque. Já se haviam disseminado pelas roças de mandioca e de cana, de lá
trazendo, imediatamente, cargas sob as quais vergavam, sem, contudo, encurtar o
passo.
Vislumbrava-se um resto de crepúsculo, ainda quando o grosso da coluna
chegou. Foi este o momento do atropelo e da balbúrdia: tantos objetos se avistavam
sem dono, misturados e fadados à destruição. Cada qual tomou o seu quinhão,
sendo exatamente os menos beneficiados aqueles que à presa tinham mais direito,
pois o haviam conquistado sob o fogo inimigo e guardado, como propriedade
pública, até o momento da depredação geral. Era este saque, aliás, legitimo, e não
se teria podido, sem manifesta injustiça, recusar tal prazer aos soldados, que o
haviam comprado e adiantado por uma série de meses de privações e fome.
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Das oito ou dez casas da Machorra, duas estavam reduzidas a cinzas pelo
fogo que os próprios paraguaios lhes haviam posto. Foram as outras preservadas
pelos nossos soldados. Alguns pedaços do madeiramento, alguns mourões
abrasados serviam para cozinhar as batatas, a mandioca e as aves do inimigo. A
Machorra, denominada fazenda do marechal Lopez, não passava realmente de terra
usurpada, cultivada por ordem sua, além da fronteira.
O trabalho dos invasores, frutuoso como fora, vinha acrescer ao banquete a
satisfação de um sentimento de reivindicação nacional. Autorizou-o o Coronel com
um ar prazenteiro que jamais até então lhe percebêramos.
CAPÍTULO VIII
Ocupação de Bela Vista. Devastações dos paraguaios em torno da coluna. Tentativa
de negociações. Seu malogro. Tornam-se os viveres escassos. Marcha sobre
Laguna.
É dia seguinte, 21 de abril, ás 8 da manhã, deram os clarins do quartel-
general o toque de marcha: nada menos significava do que transpormos a fronteira,
entrar em território paraguaio e atacar o forte de Bela Vista, que, deste lado, é a
chave de toda aquela região. Não havia quem não compreendesse o alcance da
operação, redobrando por este motivo a animação geral. Cada qual envergara o
mais luzido uniforme; e como ás nossas antigas bandeiras não prestigiasse ainda
feito notável algum, foram substituídas por outras, cujas cores vivas se destacavam
no céu formoso das campinas paraguaias.
Deixando a Machorra, adotara-se a ordem compacta. Dos dois lados da
coluna, e para lhe facilitar o movimento, os atiradores, que a flanqueavam, cortavam
a macega; pois mudara a natureza do terreno. Não mais tínhamos a grama curta e
fresca dos prados que acabávamos de atravessar. Estava o solo coberto desta
perigosa gramínea que atinge a altura de um homem, e a que chamam macega, e
cujas hastes duras e arestas cortantes tornam, em muitos lugares do Paraguai, a
marcha tão penosa. Transpusemos o Apa em frente a Bela Vista; o 20.° de infantaria
de Goiás formava a vanguarda, sob o comando do capitão Ferreira de Paiva.
Avançando á frente dos batedores, a quem comandava, jovem e valente oficial, de
nome Miró, fadado á morte próxima, víamos o velho Lopes, apressurado, montando
belo cavalo bafo um daqueles animais que o filho e os companheiros deste haviam
tomado aos paraguaios.
Estava no auge da alegria, o olhar como o de um rapineiro, a fitar Bela Vista,
que começávamos a avistar. De repente, no momento em que acabávamos de
chegar ao seu lado, percebemos que a fisionomia se lhe anuviara: "A perdiz, disse-
nos, voa do ninho e nada nos quer deixar, nem os ovos". Mostrava ao mesmo tempo
tênue fumo que subia aos ares. "São as casas de Bela Vista que incendiaram".
Foi a noticia levada ao Coronel que, avisado também por um sinal do alferes
Porfirio, do batalhão da frente, fez acelerar a marcha. Começamos a correr,
precipitando-se a linha dos atiradores do 20.° para o rio; mas a sua frente já se
antecipara pequeno grupo de que fazia parte o nosso guia. Com grande espanto
nosso não pareciam os inimigos pretender disputar-nos o passo; retiravam-se do
Apa como já se haviam afastado da Machorra, indo estacar a uma distância bastante
grande, imóveis sobre os cavalos.
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Cabia-nos, pois, o feliz ensejo de ser os primeiros a atravessar a fronteira,
pisar á esquerda do Apa e sentir sob os pés o solo paraguaio.
Transposto o rio, galgamos num ápice uma eminência que nos ficava
fronteira, e nos proporcionou a vista próxima da fortaleza e da aldeia: ambas ardiam.
Pelo interior e vizinhança vagavam ainda paraguaios a pé, retardados pelo pesar da
presa que nos abandonavam e a ira que os levava a tudo devastar. Outros, em
maior número, e a cavalo, retiravam-se desordenadamente.
Pôs-se o nosso guia a provoca-los com assobios e apóstrofes de desprezo,
ante as quais difícil nos foi conter o riso. Teriam podido volver sobre nós estes
robustos cavaleiros, e com as possantes montarias e pesados sabres facilmente
destroçar o nosso pequeno grupo, a meio montado e mal armado, como nos
achávamos.
Mas tal idéia não nos ocorria e a Lopes ainda menos. Este intrépido velho
quase sempre nos precedera na carreira, a galope; e por mais esforços que
fizéssemos, a todo o instante redobrava de velocidade, pensando na mulher, duas
vezes agarrada e arrastada prisioneira para o Paraguai, em todos os seus, nos
amigos e companheiras de existência, com ela prisioneiros. Mil recordações de
atrocidades antigas e recentes lhe incutiam violenta sede de vingança.
Uma vez efetuada a passagem pelo corpo de exército, o forte, que apenas
consistia em sólida estacada de madeira, foi ocupado, assim como a vila, por grande
destacamento. A linha de atiradores do 20.° batalhão, formada à esquerda, pôs-se
em movimento para ir atacar os paraguaios imóveis. Vimos, então, que haviam
arvorado alguma coisa branca. Não tardamos, porém, a perceber que se afastavam
devagar, tendo em mente, atrair-nos para algum mato, onde caro pagaríamos
excesso de confiança em sua lealdade. Soubemos tarde que tal lhes fora, com
efeito, o plano. Acreditavam precisar de algumas vitimas para coonestar uma
retirada por demais precipitada e que não podia deixar de atrair a cólera dos chefes
fossem quais fossem, aliás, as ordens deles recebidas.
Assim se passou 21 de abril; os dias imediatos consagramo-los ao repouso e
exame da situação. Todo o corpo de exército transpusera a fronteira e acampara ao
sul da fortaleza, ali apoiando a ala direita, ao passo que a esquerda se prolongava
pela mata do rio. Reinava, então, no acampamento abundância de víveres frescos.
Deles tínhamos a maior necessidade; e a nossa gente pôde gozar dos últimos bons
momentos que a sorte nos reservara. Parecia nosso chefe mais sereno do que
habitualmente, mostrando-se até confiante. Começou qualificar a coluna
expedicionária: Forças em operações Norte do Paraguai e todos os seus ofícios,
como aliás, imita-lo, todas as nossas cartas, destinadas a Mato Grosso, Goiás e ao
Rio de Janeiro (confiadas a Loureiro, que então de nós se despediu) traziam no
sobrescrito: Império do Brasil.
No entanto, do alto do morro da Bela Vista, viam-se de dia numerosos
cavaleiros inimigos, de sentinela ao pé de grandes buritis. À noite ousavam alguns
acercar-se do acampamento ainda mais.
Esta contínua vigilância tanto mais nos incomodava, quanto também tinha em
vista subtrair do nosso alcance o gado da campina, sempre que as nossas guardas
avançadas pareciam querer captura-lo. E a nossa inquietação a tal respeito crescia
sempre. Haviam os refugiados exagerado a facilidade do abastecimento nestas
pastagens; nada víamos do que nos fora anunciado; e até mesmo dois dias depois
de nossa chegada a Bela Vista, ordenando o Coronel um rodeio, protegido pelo 21.°
batalhão, e levado a mais de uma légua, dai se não auferiu resultado algum.
Ficamos todos convencidos de que nada havia a esperar, pelo menos agora, de
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tentativas neste gênero. Se é exato que os paraguaios haviam desaparecido ao
avistarem os nossos, desde o dia imediato estavam de novo no posto, ao pé da
palmeira.
Quase insultuosa chegava a ser tal permanência. Poderíamos livrar-nos dela
atirando algumas granadas, mas pensamento diverso veio contrariar esta idéia,
inclinando-se o espírito do comandante a outra ordem de sugestões.
Neste pressuposto fez partir, escoltado pelo 17.° Batalhão, um oficial
parlamentário, portador de proclamação escrita em espanhol, português e francês,
que se fincou, presa a uma bandeirola branca, a légua e meia do acampamento.
Assim se redigia:
"Aos Paraguaios:
Fala-vos a expedição brasileira como a amigos. Não é seu intuito levar a
devastação, a miséria e as lágrimas ao vosso território. A invasão do Norte como a
do Sul de vossa República significa apenas uma reação contra injusta agressão
nacional. Será conveniente que venha um de vossos oficiais entender-se conosco.
Poderá retirar-se, desde que assim entenda; e bastará que manifeste simplesmente
tal desejo. Jura o comandante da expedição pela honra, pela santa religião
professada por ambos os povos, que todas as garantias se oferecem ao homem
generoso que em nós confiar. Disparamos tiros de peça como inimigos, queremos
agora nos entender como amigos reconciliáveis. Apresentai-vos empunhando a
bandeirola branca e sereis recebidos com todas as atenções que os povos
civilizados, embora em guerra, mutuamente se devem".
A resposta, no dia seguinte encontrada, fora traçada sobre um papel preso a
uma varinha e era do teor seguinte:
"Ao Comandante da expedição brasileira:
Estarão os oficiais das forças paraguaias sempre atentos a todas as
comunicações que se lhes quiserem fazer; mas no atual estado de guerra aberta
entre o Império e a República, só de espada desembainhada poderemos tratar
convosco. Não nos atingem os vossos disparos de peça e quando tivermos ordens
de os obrigar a calar, há no Paraguai campo de sobra para as manobras dos
exércitos republicanos".
Era a letra de mão firme e corrente. Apunha-se-lhe o selo da República:
barrete frígido por sobre um leão rompante.
As fórmulas empregadas em tal resposta atestavam certo grau de cultura
intelectual e boa educação. Mas veio logo o insulto. Recebeu o comandante uma
folha de couro na qual se estampavam os seguintes versos, mais grosseiros do que
ingênuos:
"Avança, crânio pelado!
Mal-aventurado general que espontaneamente
Vem procurar o túmulo".
A isto se ajuntava:
"Crêem os brasileiros estar em Concepción para as festas; os nossos ali os
esperam com baionetas e chumbo".
Bravatas sem alcance, nada tendo de sério. Mas o que o era, e no mais alto
grau, viam-no todos, vinha a ser a impossibilidade de nos abastecermos. O 21.°
batalhão mandado novamente, a 27, para ajuntar e trazer gado, nada conseguira; e
embora a ninguém perdesse numas escaramuças de cavalaria, voltava com a triste
certeza de que a região estava para conosco nas disposições as mais negativas e
hostis.
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Assim, pois, tomou o comandante a resolução de manter, por algum tempo,
na Bela Vista; e numa expedida pelo viajante Joaquim Augusto, que determinou que
a Nioac lhe enviassem munições, a bagagem dos soldados e o arquivo da coluna.
Avisara aos oficiais que, a seu turno, deviam mandar vir tudo quanto haveriam de
precisar para uma assaz larga estada. Mas a falta de gado tornava insustentável a
própria posição de Bela Vista. Começávamos a sentir a penúria nas distribuições de
viveres. Era preciso sem mais detença procurar uma solução ou avançar na
esperança de bater o inimigo, que, à nossa frente, não podia ter grandes
contingentes, visto como a guerra ao Sul da República para ali atraíra a maior parte
das suas forças (e então, após algum feito feliz, teriam as nossas patrulhas mais
largo raio de ação sobre o gado errante nas campinas); a não ser assim convinha
retrogradar para os distritos da fronteira, menos desprovidos de recursos.
Esta alternativa, semelhante opção, veio por completo arrancar a calma ao
nosso comandante. Tornou-se-lhe a agitação do espírito visivelmente violenta. Pôs-
se de novo a imaginar a calúnia a abocanha-lo em toda a província de Mato Grosso,
sobretudo na capital, e assim, pois, como a refletir, em voz alta, deixava escapar
exclamações que debalde tentava sufocar: "Por toda parte me atassalham, dizia,
apregoam que até agora nunca tivemos encontro sério com o inimigo e apostam que
jamais o teremos".
Nesta perturbação e à falta de dados exatos para a escolha de um alvitre, os
refugiados, indiretamente consultados, começaram, com maior insistência do que
até então o haviam feito, a falar de uma fazenda chamada Laguna, cerca de quatro
léguas de Bela Vista, pertencente aos domínios do Presidente da República e
destinada à criação do gado.
Ali acharíamos, afiançavam, grandes rebanhos, posições firmes e base para
operações. Depois, como esta sugestão não parecesse desgostar ao Coronel, vários
oficiais que o cercavam, e a quem parecia consultar, deixaram convencer-se. "Por
que, exclamaram, não haveremos de ir até Concepción como nos desafiam? Viemos
parar tão longe para recuar? Contanto que possamos contar com um quarto de
ração, não há um único soldado que hesite em seguir os chefes, e com eles não
deseje tentar a fortuna do Brasil".
À testa dos mais ardentes via-se o capitão Pereira do Lago, oficial tão ousado
quanto positivo e obstinado. Dotado desta coragem que facilmente se exalta, e
jamais decai do nível a que se alçou, coube-lhe, certamente, a maior
responsabilidade nas nossas temeridades. Mas, também, soube sempre, mais tarde,
nos transes mais difíceis de nossa retirada, fazer frente a todas as necessidades do
momento, pela atividade, poderosa iniciativa e perspicácia do descortino, grandes
qualidades que lhe vinham realçar a doçura, a singeleza e o bom gênio.
CAPÍTULO IX
Ordem de marcha. Formatura do corpo expedicionário. O mascate italiano. O major
José Tomás Gonçalves. Surpresa e tomada do acampamento paraguaio da Laguna.
Acabara o coronel Camisão de determinar que marcharíamos sobre a
Laguna. A 30 de abril levantamos acampamento para estacar á margem do Apa-Mi,
ribeirão que dista uma légua do forte da Bela Vista.
Pareciam os soldados ressentir-se da insuficiência do rancho. Corria a
marcha silenciosa e como ensombrecida pela tristeza. Para a animar ordenou-se
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que os cornetas de todos os corpos alternadamente tocassem; e a tropa gostou
disto. Era como um desafio, uma provocação lançada aos paraguaios, que de longe
viam seguir a coluna.
Avançavam os nossos diferentes corpos em quatro divisões distintas,
formadas na previsão dos ataques de cavalaria que, com efeito, deveríamos
esperar. Em conselho de guerra, anterior á nossa ocupação de Bela Vista, fizera o
Coronel adotar uma ordem de marcha apropriada à feição da zona atravessada e da
campanha. Propusera, ao mesmo tempo, duas disposições de defensiva para duas
hipóteses: de planície descampada, ou coberta de capões de mato, combinações de
grande simplicidade que, na prática, nos prestaram grandes serviços, obstando
qualquer confusão ao se travarem os combates. Se, realmente, foram em geral as
cargas da cavalaria inimiga frouxas e impersistentes, é de se supor, contudo, que o
seu único fito não vinha a ser simplesmente avaliar-nos a resistência. Poderia um
primeiro momento de hesitação, ser sempre decisivo e trazer-nos o completo
destroço.
No caso, pois, em que estivéssemos pelas proximidades de alguma moita, ou
cerrado, ou ainda de algum ribeiro, devíamos convergir para este amparo natural,
nele apoiar as carretas de munições e de feridos, com as bagagens, e cobrir-lhes a
testa com uma curva formada pelas quatro divisões da coluna, levando cada uma a
sua boca de fogo. Em campo raso e desabrigado formariam estes corpos, sempre
alternados com as peças, quadrado em volta do nosso material. Em todo o caso
deviam os comandantes ser avisados pelos ajudantes-de-campo ou por próprios, da
formatura escolhida, de acordo com as circunstâncias.
Primeiro de mato. Após uma noite tranqüila recomeçamos a marcha, e sem
incidente, até a fazenda da Laguna, a localidade designada pelos nossos refugiados
do Paraguai. Ali havia, então, apenas uma choupana de palha que o inimigo,
retirando-se, desdenhara incendiar. Ao chegarmos vimos um dos nossos soldados
dirigir-se ao nosso encontro trazendo um papel que achara pregado, com um
espinho, ao tronco de uma macaubeira; variante da primeira ameaça em verso.
Dirigida ao comandante, assim dizia: "Malfadado o general que aqui vem procurar o
túmulo; o leão do Paraguai, altivo e sanguissedento, rugirá contra qualquer invasor".
Domina este planalto vasta extensão de terras, como que convidava o
Coronel a que ali acampasse; mas ainda desta vez fizeram os refugiados
preponderar a sua opinião que era a seguinte: sem mais detença, nos dirigíssemos
exatamente para o centro do estabelecimento, onde, mais facilmente, poderia o
gado ser rodeado e cercado. A vista disto resolveu-se que a marcha prosseguiria,
indo-se, sem que dai proviesse nenhum dos resultados acenados, acampar a meia
légua dali, num terreno triangular de marga nitrosa, entre dois regatos que confluem
antes de se lançar no Apa-Mi; e onde os rebanhos, atraídos pelas propriedades
salinas do solo, costumam geralmente concentrar-se na estação das grandes
cheias: lugar denominado Invernada da Laguna.
Mostrou-nos o primeiro relance de olhos que, tanto ali como em qualquer
parte, o inimigo nos cerceava sobretudo os viveres. Ao colocarmos guardas
avançadas pudemos, a certa distância, divisar um acampamento paraguaio
dispondo de grande boiada e cavalhada tangida para o Sul, enquanto a sua
vanguarda nos vigiava os movimentos. Que podíamos fazer sem cavalaria?
No entanto os dias 2 e 3 se empregaram em diversas tentativas para a
obtenção de gado ou pelo menos para surpreender algumas sentinelas de quem se
pudesse obter informações sobre o estado do interior da República. Malogrou-se-
nos, contudo, o duplo intuito. Quanto à grande boiada que avistáramos,
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desaparecera. Fizemos ainda algumas avançadas em busca dos animais
tresmalhados em tais pastagens. Ainda nos falhou este expediente precário. No dia
da chegada, tivera o 21.° batalhão a sorte de apanhar apenas umas cinqüenta
cabeças, malgrado os esforços dos cavaleiros inimigos, que nada pouparam para
lhas retomar. Nenhuma outra batida pelos arredores teve resultados; muito embora
para tal serviço partissem os demais corpos, uns após outros. O que deste trabalho
penoso lucramos foi que levando nossos soldados sempre vantagens nas
escaramuças parciais que dai provieram, completou-se-lhes a educação militar no
fogo, sem demasiados sacrifícios. Não só ganharam confiança em si como nos
chefes.
A 4 vimos chegar ao acampamento um mascate italiano, Miguel Arcanjo
Saraco, que de Nioac viera, seguindo-nos as pegadas, com duas carretas de
provisões, recurso para nós insuficiente. Passara o Apa, atravessando as três e
meia léguas que nos separavam, acompanhado de um único camarada que o
ajudava a conduzir os veículos. O maior terror o perseguira durante todo o trajeto;
mas a ele contrapusera o inato pendor para o cômico. Por uma fantasia armada para
se incutir coragem, rodeara-se, contava-nos, de imaginários batalhões a quem, de
tempo em tempo, dava ordens em voz alta, simulando manobras. Entre outras cenas
deste gênero relatava que às dez horas de uma noite trevosa, ao transpor o Apa-Mi
mandara, com todo o fôlego dos pulmões, cruzar baionetas, à vista de um capão de
mato que lhe inspirava receios.
No meio da alegria da chegada, e das emoções de toda a natureza, não
esqueceu, contudo, a noticia positiva, afirmava, da aproximação de longa fila de
comboios a que se adiantara, e rodava pela estrada de Nioac ao Apa, apesar de
todos os perigos de uma linha de perto de trinta léguas a percorrer em completo
descampado. Seja-nos relevada esta diversão cômica no momento de encetarmos a
narração de cenas sempre dolorosas. Traria esta mesma noite sério motivo de
inquietação. Verificara-se a ausência de um soldado do batalhão de voluntários.
Este miserável, de índole viciosa e semi-imbecil, havendo roubado a um dos
camaradas, furtara-se ao castigo desertando. E sobejas razões tínhamos de recear
que o comandante paraguaio por ele viesse a ter informações, as mais completas,
sobre a nossa falta de viveres e a necessidade em que já nos achávamos de bater
em retirada.
E efetivamente tivera o Coronel de dar neste sentido ordens impostas pela
necessidade. Não sabemos se ainda tentava engodar a si próprio como procurava
fazê-lo em relação a nós outros, ao qualificar o movimento retrógrado de
contramarcha sobre a fronteira do Apa, para ali ocuparmos forte base antes de
prosseguir na invasão do Paraguai. Não houve, porém, quem se iludisse. Principiava
a retirada.
Pretendeu pelo menos disfarçá-la com algum brilhante feito d'armas, pois
punha empenho em demonstrar aos inimigos, aos do Brasil e aos pessoais, que se
retrocedíamos não era porque a tanto estivéssemos forçados pela superioridade do
adversário. Conhecendo a excelente disposição de nossa gente, resolveu apossar-
se do acampamento paraguaio; e para a execução deste assalto designou o 21.° de
linha e o corpo desmontado de caçadores. Fixara-se a manhã de 5 para esta ação;
no entanto só se realizou um pouco mais tarde.
A causa de tal demora foi que, exatamente nesta mesma noite, às nove
horas, tremendo furacão se desencadeou sobre o acampamento. Torrentes de
chuva transformaram logo o solo em lamacento pantanal. Não são raros no Paraguai
estes terríveis fenômenos; jamais viramos, porém, coisa igual. Os relâmpagos que
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continuamente se cruzavam, os raios que por todos os lados caiam; o vendaval a
arrebatar tendas e barracas, formaram um caos a cujo horror se uniam, de tempos a
tempos, os disparos de nossas sentinelas contra os diabólicos inimigos que, apesar
de tudo, não cessavam de aferretoar-nos: interminável noite em que para nós tudo
representava a imagem da destruição. A mercê de todas as cóleras da natureza,
sem abrigo nem refúgio, quase nus, escorrendo água, mergulhados até a cinta em
correntezas capazes de nos arrebatar, ainda precisavam os nossos soldados
preocupar-se em subtrair da umidade os cartuchos. Veio a manhã encontrar-nos em
tal situação. Dois dias mais tarde, contudo, antes dos primeiros albores, e apesar de
se haver renovado a tormenta daquela noite, puseram-se em movimento os dois
corpos designados.
Era o comandante do 21.° um major em comissão, por nome José Tomás
Gonçalves, homem resoluto e audaz, além de tudo popular, tanto pelo mérito como
pela estima que facilmente conquista uma fisionomia aberta e simpática. Haveremos
de vê-lo à testa da nossa expedição, após a morte do coronel Camisão, guiando-a
ao termo desejado.
Gozava o comandante do corpo de caçadores, capitão Pedro José Rufino, de
grande reputação de bravura e atividade. Se alguma coisa devêssemos recear, era
o excesso de ardor por parte de ambos, a comprometer a empresa; e assim deitar a
perder toda a coluna. Foi, pelo contrário, a reunião de tais qualidades que facilitou o
êxito de uma combinação a que o comandante, com razão, ligara o maior apreço.
Ignorávamos com que forças iam eles medir-se. Fornece o Paraguai menos
espiões ainda do que guias; e por falta de cavalos não pudéramos efetuar
reconhecimentos.
Nada viramos ou ouvíramos, ruído, poeira ou fumaça, que nos permitisse
presumir da chegada de reforços inimigos. Nós lhes reconhecíamos, contudo, a
habilidade em encobrir os movimentos consideráveis de tropas. Assim, pois, deu o
coronel ordens para que os oficiais, comandando a coluna de ataque, só entrassem
em fogo quando o corpo de voluntários estivesse em condições de os sustentar. À
hora aprazada, destacou este corpo com uma das peças de nosso parque em
direção ao acampamento inimigo.
Neste entrementes, após grande rodeio, e a travessia de uma légua de
banhado, chegara a tropa do major Gonçalves ás posições dos paraguaios. Era
noite ainda, uma hora antes do nascer do Sol; e tudo se fizera no maior silêncio.
Verificou-se, então, que a bateria inimiga fora ali assestada para defender a
passagem do fosso. Na posição que lhe fora marcada, teria José Tomás Gonçalves,
desde o romper da alva, de sofrer o fogo do inimigo. Assim, pois, compreendendo
que não havia um momento a perder, mandou calar baionetas sobre os canhões;
investida favorecida pela negligência do inimigo. E, realmente, de toda a cavalaria
acumulada por trás do entrincheiramento não havia uma só patrulha para a guarda
das peças.
A toque-toque chegou nossa infantaria sobre os canhões, sem deixar tempo
aos seus animais de tiro de no-los subtrair. Forçou-se num ápice a entrada do
acampamento, mal defendido contra a impetuosidade desta surpresa, havendo o
capitão José Rufino e os seus caçadores também entrado em ação. Penetraram
todos de roldão no recinto, levando e derribando quanto pela frente encontravam, no
acanhado recinto em que oficiais e soldados, homens e cavalos, mutuamente se
embaraçavam, tratando muito menos de resistir do que de escapar para o campo.
Tudo o que não foi morto ou ferido, salvou-se pela fuga.
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Estas boas noticias, trazidas por um próprio, encontraram-nos no alto de um
cômodo que domina a planície e para onde se encaminhara o comandante, com o
seu estado-maior, a fim de poder fazer entrar em fogo toda a sua gente, se assim se
tornasse necessário.
Iluminados por uma aurora magnífica percebíamos, aos nossos pés, os
nossos soldados correndo pelo campo, para o local do combate; mais longe, os
índios Terias e Guaicurus, que depois de se haverem comportado nesta refrega
como bravos auxiliares, carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos
tomados aos paraguaios. Haviam os comandantes deixado sua gente tomar um
pouco de fôlego e como não recebessem, aliás, a ordem de ocupar as posições e
vissem, ainda, que o Coronel, sabedor do triunfo, não deixava a eminência para vir
ao encontro, pensaram que teriam de evacuar o posto recém-conquistado.
Começavam a mover-se em nossa direção, quando os paraguaios, rápidos como
cossacos, trouxeram a todo o galope a sua artilharia, então sustentada por
numerosa cavalaria. Abriram o fogo até que de nosso lado, entrando em linha todo o
nosso parque, com as boas pontarias feitas pelos nossos oficiais, tivessem de calar-
se, após alguns disparos.
O pequeno número de baixas que tivemos, as perdas consideráveis dos
paraguaios, sua inferioridade no combate em relação a nós, demonstrada pelos
fatos, restabeleceram a calma, incutindo ao espírito do Coronel uma apreciação
mais exata das circunstâncias e das coisas. “Estes selvagens, exclamou, que a tanta
gente assassinaram e tanto assolaram esta região, quando indefesa, não mais dirão
que os tememos. Sabem que dentro do próprio território, podemos obrigá-los a
pagar o mal que nos fizeram. Vamos à fronteira aguardar algumas probabilidades de
nos abastecer e gozar de pequeno repouso que me não poderá ser exprobrado".
CAPÍTULO X
Retrocesso sobre o Apa-Mi. Escaramuças e combates com a cavalaria inimiga que
envolve completamente a coluna.
Íamos, apesar de tudo, encetar a retirada. Sabia o inimigo que os movimentos
de nossa coluna, fosse qual fosse o sentido tomado, tinham motivos a que era alheia
a sua superioridade militar sobre nós. O combate que nos entregara o seu
acampamento abatera-lhe a presunção, elevando ao mesmo tempo a confiança de
nossa gente, em si própria, à altura das provações que o futuro nos reservava, assim
como das que já experimentáramos.
Era indispensável a vantagem obtida sobre os paraguaios para que a
realidade de nossa situação se fizesse, sem murmuração, aceita dos nossos
soldados, distraindo-os da imprevidência causadora de tão premente momento. Fácil
sem dúvida achar pretextos para a falta de víveres, tendo as informações dos
refugiados podido iludir-nos acerca dos recursos da região, mas a insuficiência de
munições, logo em começo de campanha, não podia deixar de constituir motivo de
injustificável censura pelo fato de que tudo de antemão devera estar calculado pelos
nossos chefes, muito embora os exaltassem o entusiasmo, a paixão da glória e o
amor da Pátria.
Quando, no dia seguinte, 8, o Sol se levantou lera um dia dos mais serenos)
já estávamos em ordem de marcha com as mulas carregadas, os bois de carro nas
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cangas, e tudo quanto restava de gado encostado ao flanco dos batalhões, de modo
a seguir todos os movimentos da coluna.
As sete da manhã, o corpo de caçadores desmontados, a quem competia o
turno da vanguarda, abriu a marcha, tendo a seguir bagagens e carretas,
circunstância que nos impediu de transpor facilmente um riacho avolumado pelas
chuvas dos dias antecedentes. Caindo um de nossos canhões à água só o tiramos
com grande dispêndio de tempo e esforços. Nesta ocasião os ímpetos de
sofreguidão do coronel Camisão ameaçaram reproduzir-se. Conseguiu, contudo,
refreá-los; e desde ai jamais lhe notamos vestígios sequer da antiga agitação; e sim,
unicamente, uma solicitude sempre devotada à salvação comum.
Avançávamos em boa ordem quando subitamente viva fuzilaria se fez ouvir:
era a nossa vanguarda que renteando um capão de mato fora atacada por uma
partida de infantaria, ali emboscada. Tinham algumas balas vindo cair por cima das
fileiras num grupo de mulheres que marchavam tranqüilamente ao lado dos
soldados; tal algazarra provocaram que não sabíamos o que poderia ter sucedido.
Pouco durou este terrível tumulto; investindo resolutamente com o inimigo, nossa
gente o desalojou impelindo-o até o primeiro declive do planalto, onde estava a
fazenda da Laguna. Mas ali formaram-se os paraguaios novamente, resistindo
algum tempo, achegando-se logo depois, passo a passo, dos cavalos; afinal,
enquanto alguns, já montados, disparavam, a todo dar de rédeas, outros fingiam
resistir para proteger os camaradas que fugiam a bom fugir, inteiramente derrotados.
Continuando a simular esta desordem aparente, pela qual procuravam
separar-nos uns dos outros, o mais que pudessem, vimo-los, pouco a pouco, estacar
com mais freqüência, sempre mais numerosos, à medida que os reforços lhes
chegavam. Ao mesmo tempo o nosso corpo de caçadores, contra eles lançado, cada
vez mais se isolava do resto da coluna. Redobrou, então, de intensidade a fuzilaria.
O capitão Pedro José Rufino, que à testa dos caçadores atravessara o
ribeirão, depois da bagagem, e se encontrava mais perto da vanguarda, embora
ainda bastante longe, percebeu logo o estado de coisas. Depois de expedir um
oficial para pedir socorros, deu voz de avançar; e ele próprio atirou-se, sem atentar a
quem o acompanhava, ao ponto do mais renhido entrevero. Chegou no momento
em que os paraguaios, após todas as suas evoluções de cavalaria, simulando a fuga
para depois ganharem terreno, subitamente voltaram, carregando furiosamente. A
principio surpresos, e algum tanto perturbados, mas logo confiantes à voz de Rufino,
formaram os nossos quadrado em torno dos oficiais, segundo a ordem recebida; e
destes grupos, fora dos quais só havia morrer miseravelmente, sob o sabre e a
lança, despejaram-se descargas acompanhadas de aclamações estrepitosas.
Enfim, cerrando fileiras, retomaram os caçadores movimento para a frente no
meio deste turbilhão de homens e cavalos, para se encostar aos capões de mato
aqui e acolá, se viam pelo campo. Encarniçada onde, de ambos os lados, muitos
mortos e feridos.
O imediato do corpo de caçadores, Antônio da Cunha deveu a vida à
dedicação de um dos seus soldados. Deu-se em outro ponto um episódio
freqüentemente relatado mais tarde. Parecia o capitão Costa Pereira o alvo dileto
dos assaltos de possante cavalariano; quis com isto e, abrindo espaço, lançou-se
fora do movido de tal ímpeto que o adversário, intimidado, deu de rédeas a fugir,
com grande aplauso dos nossos.
Neste ínterim chegara, a toque-toque, o reforço pedido por José Rufino; e isto
precisamente quando lhe iam os cartuchos acabar. Trazia um canhão a primeira
companhia que entrou em linha; e uma de suas granadas foi arrebentar no ponto em
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que mais se adensavam os assaltantes. Esta arma, introduzida inesperadamente na
ação, produziu o costumeiro efeito. Espalhou imediatamente a desordem na tropa já
abalada pela aparição do socorro; e toda a cavalaria paraguaia desapareceu,
deixando um segundo acampamento em nosso poder. Custou-nos isto quatorze
mortos e muitos feridos.
Entre estes últimos não podemos esquecer um jovem soldado, Laurindo José
Ferreira, que, cercado por quatro inimigos e apenas tendo o fuzil para se defender,
todo golpeado de sabraços, com a mão esquerda atingida, braço direito
profundamente retalhado em diversos lugares e o ombro quase arrancado por um
lançasso, assim mesmo se não rendeu. Só muito mais tarde veio a restabelecer-se
de tantas feridas; a firmeza na ambulância em nada lhe desmentira a bravura ante o
inimigo.
Fora o pessoal do nosso serviço médico muito perseguido pelas febres
palustres de Miranda. Haviam-nos deixado vários de seus membros; além de tudo
as nossas caixas de cirurgia e de farmácia tinham-se todas perdido ou deteriorado,
devido aos acidentes da viagem.
Puderam, contudo, os nossos feridos receber ainda todos os socorros de que
precisavam, graças aos esforços da engenhosa humanidade de que foram alvos.
Superintendera o comandante, sempre, este serviço, e tivéramos a felicidade de
conservar dois hábeis clínicos, os doutores Quintana e Gesteira. Pertencia este
último ao corpo empenhado no embate de 6, e, sob as balas, dera provas de
dedicação e sangue-frio, como verdadeiro discípulo do grande Larrey.
Os cadáveres paraguaios não arrastados pelo laço dos compatriotas foram,
todos, achados mutilados e de modo hediondo. A propósito de tais profanações fez
o Coronel violentas exprobrações aos índios, acenando-lhes até com a pena capital,
se acaso, dai em diante, desrespeitassem os mortos. Tais a sua indignação e o
pavor aos selvagens incutido, que até o fim da campanha, ficamos livres de
semelhante espetáculo, e isto quando já o nosso chefe deixara de existir.
Juntando o exemplo às palavras fez o coronel Camisâo inumar, sem exceção,
todos os corpos achados no campo de batalha, com o zelo da escrupulosa piedade
que tanto era da sua índole. Duas horas se consagraram à triste contingência de
entregar os nossos infelizes patrícios à terra inimiga. Que tristeza vê-los assim
desaparecer; e que choque não deveria ter sentido um de nossos oficiais ao fazer
questão de sepultar, ele próprio, o irmão mais moço, Bueno, voluntário paulista!
Cumprido este dever, recomeçamos a marcha, desta vez seguindo a ordem
recentemente adotada.
Dera-se uma peça ao corpo de caçadores, que ainda formava a vanguarda; o
17.° batalhão, dos voluntários de Minas, que também tinha um canhão, compunha a
retaguarda. No centro, o 20.° batalhão e o 21.o, cada qual com a sua boca de fogo,
escoltavam, à direita e à esquerda, a bagagem flanqueada de duas filas de carretas
puxadas por bois. O conjunto desta massa movediça parecia um grande quadrado
que, em cada face, tinha um menor diante de si; judiciosa formatura para nos
proteger das cargas de cavalaria; porquanto podiam as quatro frentes ser varridas
pelo fogo cruzado de nossa infantaria. Enfim, para maior segurança, linhas de
atiradores circulavam em torno do corpo do exército. Desde este primeiro dia
verificou-se quão vantajosa era tal disposição porquanto estava a cavalaria inimiga,
por toda a parte, em torno de nós: à frente, sobre os flancos; atrás, ora longe, ora
quase a nos tocar. Nossos soldados, marchando sempre, afastavam-na por meio de
descargas, freqüentes, e tanto mais profícuas quanto ao resultado quanto mais se
aproximavam os paraguaios. Algumas de suas balas também atravessavam as
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nossas fileiras, mas sem grande dano pela incerteza do tiro disparado a galope.
Entretanto, acabaram as balas de artilharia por visitar-nos.
Atravessávamos, então, o terreno lamacento, fundo, de planície cortada de
estreitas esplanadas, paralelos umas às outras, e uma peça paraguaia de 3,
sucessivamente assestada nestes pontos, abriu fogo contra nós; mas, ou porque a
sorte neste particular ao menos nos favorecesse, ou graças à inexperiência dos
artilheiros inimigos, iam-lhe os projetis enterrar-se na lama que nos rodeava; ou,
então, os menos inofensivos caiam no meio do nosso gado com mais estrépito do
que prejuízo.
Os nossos soldados, cuja primeira impressão fora bastante viva, não
tardaram a rir do que viam e até as próprias mulheres acharam nisto assunto de
mofa comparando estas balas, que faziam repuxar a água, aos limões-de-cheiro do
velho carnaval brasileiro. Demais tínhamos boa réplica á "palavra do bronze"; da
linguagem imaginosa do velho Lopes.
Ainda neste dia não desmentiu a nossa artilharia sua superioridade. As
nossas peças raiadas de calibre 4, La Hitter, bem assentes, perfeitamente sólidas,
eram manobradas, com a maior regularidade, por suas guarnições que, desde o
Taboco, com elas se exercitavam. Havia entre elas bons artilheiros. É preciso
acrescentar os nossos oficiais da arma de artilharia, tão hábeis quanto bravos, todos
dignos êmulos uns dos outros, cada qual se esforçava por melhor manobrá-las: João
Tomás Cantuária, Marques da Cruz, Napoleão Freire e Nobre Gusmão. Tal porfia
sobremodo interessava aos soldados, incutindo-lhes ardor novo cada tiro que bufam
ao seu artilheiro predileto. Assim caminhamos dia todo num caos de fumaça e
poeira, com grande trépido, e no meio das aclamações dos nossos, de agudos e
ferozes do inimigo, mugidos do gado, da pólvora, desordem dos homens e das
coisas.
Declinava o Sol quando percebemos distintamente morro da Margarida, o
mesmo que já de outro ponto observáramos do forte de Bela Vista, marco de
reconhecimento que desta vez nos brilhou aos olhos com um raio de esperança.
Fizéramos duas e meia léguas sob o fogo continuo e cansativo, muito embora pouco
mortífero.
A mata da margem do Apa-Mi nós a escolhêramos para o pouso daquela
noite. Íamos atingi-la quando verificamos que a bateria montada dos paraguaios
desde muito se adiantara pela esquerda, achando-se agora postada em frente à
nossa vanguarda. Varriam suas balas a margem onde íamos ficar encurralados, pois
havia pouco fora destruída a ponte ali existente. Era tempo que os nossos canhões,
penosamente arrastados até o alto da eminência aposta à que o inimigo ocupava,
começassem a fazer-se ouvir. Não tardaram a obrigar que os paraguaios, cuja peça
de 3 foi até desmontada, calassem o fogo.
Este combate, que pôs termo ás refregas do dia, não durou menos de uma
hora. Não foram consideráveis as nossas perdas, um morto apenas e alguns feridos.
Podíamos, pois, considerar como vantagem as provas que de sua firmeza, a
proteger a bateria, nos dera o 20.° batalhão. Pareceu-nos o fogo paraguaio melhor
dirigido do que até então, mas nossa gente não arredou pé. Eram, entretanto,
simples recrutas valetudinários, saídos de Goiás, verdade é que comandados por
valente oficial, o capitão Ferreira de Paiva. Ficamos sabendo o que podíamos
esperar da coragem e da abnegação de todos para o resto da retirada. Neste
ínterim, os membros da comissão de engenheiros estabeleciam a ponte.
Trabalharam rapidamente, sob as vistas do comandante. Cumprimentou-os pelo
serviço e foi o primeiro a passar. Todo o resto da coluna o acompanhou sem maior
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detença e veio acampar à margem direita do Apa-Mi. Mas já patrulhas de cavalaria
paraguaia, que haviam atravessado o rio, a jusante de nós, estavam a observar-nos.
Caíra noite, profundamente escura. Estávamos estrompados de cansaço, a
vista escura e o espírito abalado por tantas e tão variadas impressões cujas imagens
acabavam por se confundir. Não houve quem armasse tenda ou barraca. Dormimos
em grupos, formados quase ao acaso, de três, quatro ou mais, conchegados uns
aos outros, cobertos em comum por capotes, ponchos, mantas, com quanto
encontráramos; cada qual com o fuzil, o revólver ou a espada ao alcance da mão e o
chapéu desabado sobre os olhos, para se resguardar do orvalho, tão copioso que
tudo encharcava.
CAPÍTULO XI
Rebate falso. Últimas ilusões. O tenente Vitor Batista. Passagem do Apa. Volta ao
território brasileiro.
Algumas horas mais tarde, cerca de meia-noite, ouvimos horrível fragor a que
dominava um grito único: Cavalaria paraguaia! Abriram fogo as sentinelas
avançadas.
Tornara-se o acampamento teatro de geral balbúrdia: tiros rasgavam a treva,
deixando entrever formas fantásticas, ora de homens a empunhar o revólver ou o
sabre, ora de animais, estes ainda mais perigosos, procurando por toda a parte
como escapar, e numa excitação furiosa, ao passo que os seus guardas, não
sabendo como os conter, pejavas os ares de imprecações.
Alucinante terror se apoderara do gado no sitio em que estava preso.
Averiguada a causa de tal pânico pusemo-nos todos a rir, tornando-se universal esta
hilaridade. Está a vida da guerra cheia dos mais inesperados contrastes.
O extremo frescor das noites de inverno, na América do Sul, mesmo entre os
trópicos, obrigou-nos logo a voltar aos nossos improvisados abrigos onde as
exigências do sono reconquistaram todos os direitos durante as horas decorridas até
o amanhecer.
Aos primeiros albores pusemo-nos novamente a marchar, expostos ao fogo
da artilharia inimiga, mas sem que nos detivéssemos em lhe responder. Levavam os
nossos atiradores de vencida tudo o que diante deles achavam e não perdiam tiro.
Haviam alguns cavaleiros inimigos caído, desde o começo da fuzilaria e seus
cadáveres ficaram estirados, abandonados na estrada, não tendo seus camaradas
tido tempo de os levantar e arrastar na carreira. Reconhecendo os nossos que um
destes corpos era o de certo trânsfuga brasileiro, evadido de Nioac, muito antes da
guerra, não foi possível, apesar de todos os esforços dos oficiais, subtrair os
despojos deste miserável ao furor dos soldados. A medida que pasmavam o
golpeavam com a espada ou a baioneta.
Encaminhávamo-nos para as ruínas da Bela Vista. Abria-se diante de nós
largo vale, quase plano, tendo à direita um renque de colinas de suave declive. Teria
o inimigo podido aproveitar-se, contra nós, desta disposição do terreno; mas
chegamos a tempo de a utilizar, ocupando a primeira destas eminências. Dali o
nosso fogo manteve os paraguaios a distância, enquanto marchávamos, e nossas
peças iam sucessivamente ocupar os pontos que melhor podiam cobrir-nos. Esta
manobra, pela precisão com que foi diversas vezes repetida, levou-nos sãos e
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salvos até um último cabeço que domina o Apa e Bela Vista. Ali nos estabelecemos,
naquela manhã de 9.
Lá ainda ocupávamos a fronteira do Paraguai, embora batidos pelo pungente
pesar de a deixar. Tão recentemente a havíamos atravessado, certos de realizar
importante diversão, talvez até indispensável à causa da Pátria!
Nós nos sentíamos como corridos de vergonha, vendo nossas esperanças de
glória tão cedo desvanecidas. Escapara-nos a presa e não queríamos ainda aceitar
a absoluta necessidade de a abandonar.
Assim, pois, iria confinar-se à região dos sonhos a visão daquele território
magnífico, aberto diante de nós, sob tão belo firmamento? Dali nos era, pois,
indispensável sair, exatamente quando prováramos superioridade em armas?
Faltavam-nos, não havia dúvida, as munições; mas de um momento para outro não
poderíamos recebê-las? Já não tinham, desde muito, sido pedidas a Nioac?
Acaso cheguem, explicava um oficial aos seus camaradas, o Coronel, que ainda se
não conformou com o pronunciar a palavra retirada, ordenará logo nova ofensiva. E
assim devaneávamos sem ligar maior importância a todos estes pensamentos.
Um homem, no entanto, avidamente acompanhara tais conversas: era o
nosso infeliz guia. Absorto, sombrio, sem uma só palavra para quem quer que fosse,
desde que retrogradávamos reconcentrava-se na contemplação dos sofrimentos da
família, reduzida ao cativeiro, exposta aos tormentos, já os havendo sofrido talvez:
mulher, filhos, parentes, amigos. Assumira, a seu ver, a marcha para a frente, o
aspecto de um compromisso que, uma vez tomado sob a invocação do patriotismo e
da humanidade, era definitivo, embora a todos nós custasse a vida! Agora, que se
falava de penetrar novamente no Paraguai, tornara-se outra vez entusiástico e
expansivo. Do comandante, abroquelado no corria aos oficiais e destes aos
soldados, garantindo se encarregava de abastecer o corpo de exército.
Se nos entregássemos á sua experiência, haveria conduzir-nos por caminhos
que só ele conhecia, a seguro onde o esperaríamos. Enganavam-se os que ditavam
na exaustão de recursos de sua fazenda. Ainda possuía reservas e tudo sacrificaria,
como já tudo ficara.
Nós lhe admirávamos a alma generosa: mas eram-lhe evidentes as ilusões e
exagerações. Destruindo-se por si mesmas contribuíam para nos abrir os olhos à
verdade. Se ainda algumas dúvidas nos restavam, veríamos demonstrada a nossa
absoluta impotência pelas noticias trazidas por um dos nossos oficiais, o tenente
Vitor Batista, que, da colônia de Miranda, escoltado por doze soldados, viera ao
nosso encontro. Não se avistara com os paraguaios; mas quanto ao objeto de nossa
principal preocupação, ou por assim dizer, o único, contou-nos que nenhuma
remessa de munições partira de Nioac. Um bom número de carretas do comércio,
carregadas de mercadorias, havia realmente atingido a Machorra. Ainda estavam
algumas paradas á nossa espera; mas as outras, a maioria, ao saber de nossas
refregas com o inimigo, tinham tornado atrás, certas de que não nos encontrariam
mais.
A Machorra, como já dissemos, está situada a dez quilômetros de Bela Vista,
em território brasileiro; e podíamos supor que os inimigos, preocupados conosco, e
com o que poderíamos fazer, ainda se não haviam dirigido para ali. Interromper a
nossa marcha, para atrasar a deles, ficar além do Apa e fazer, entretanto, com que
os mercadores tomassem o mais depressa possível a estrada de Nioac, tais foram,
pelo que pudemos julgar, as idéias do Coronel. Por elas se apaixonou. Considerava
desonra ver apreender tão rica presa pelo inimigo, que indo sempre á nossa frente,
haveria de atingi-la antes de nós e não deixaria de arvora-la em troféu. Assim, pois,
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ordenou aos diferentes corpos que só a 11, dois dias mais tarde, levantassem
acampamento.
Debalde apressaram-se vários oficiais em lhe fazer ver que, para a execução
de uma retirada, já comprometida pela escassez de víveres que nos ameaçava,
havia a maior urgência em atravessar o Apa, antes que os inimigos tivessem
conseguido torná-lo para nós intransponível; a não ser mediante sacrifícios de todo o
gênero, e sobretudo o de uma delonga que infalivelmente nos perderia.
Mostrou-se irredutível, abroquelando-se numa única alegação: exigia a
dignidade do corpo de exército a demonstração de que a retirada se efetuava tanto
sem precipitação como sem temor.
Restava-lhe mandar levar à Machorra a ordem para que os nossos mascates
regressassem a Nioac; e foi então que se lhe transmutou a funesta obstinação em
verdadeira idéia fixa. Chamando o tenente Vítor Batista, o portador das noticias
recentes, dele indagou qual seria o melhor meio de entrar em comunicação com o
comboio e quem poderia executar a comissão. Depois, como este valente oficial não
hesitasse em oferecer-se, aceitou-lhe a proposta, sem nada querer ouvir das
observações que me foram feitas acerca dos inconvenientes de se arriscar assim a
perder um oficial, de patente já distinta, tão dedicado, e cuja perda podia trazer o
desânimo à coluna. Continuou inabalável, a tudo respondendo com o dizer que o
filho de Lopes lhe serviria de guia, tomando atalhos que conhecia e impraticáveis à
cavalaria.
Tal ordem se executou. Dois dos nossos refugiados do Paraguai, os irmãos
Hipólito e Manuel Ferreira, arrastados pela confiança no filho de Lopes juntaram-se
ao tenente Vitor. Partiram os quatro, deixando-nos cheios de apreensões as mais
intensas.
Mal decorrera meia hora, ouvimos distintamente, ao longe, tiros de fuzil.
Estremecemos, fitavam os nossos olhos o ponto onde os ausentes haviam
desaparecido. Vimos, afinal, o filho de Lopes sair só, da mata do rio, correndo para
nós, seminu e todo ensangüentado.
Apenas cobrou alento, contou o que se passara. Os paraguaios os haviam
cercado, matando o tenente e os irmãos Ferreira. Ele próprio conseguira escapar
graças a um espinhal denso onde se lançara e donde, por milagre, pudera atingir o
rio.
A todos consternou este fatal acontecimento. Quanto não deve ter sofrido o
infeliz coronel Camisão com o seu gênio tão acessível às angústias do
arrependimento e do remorso! Dominou, contudo, a comoção: não disse palavra, e
não tardou em ordenar aos engenheiros que, sobre o Apa, construíssem uma ponte
para a passagem das tropas.
Tudo o que se pôde fazer, por falta de material e ferramenta, foi uma pinguela
e ainda assim vacilante e pouco segura. Felizmente, porém, baixara sensivelmente o
nível das águas e o rio mostrava-se vadeável. Começou a passagem da coluna às
seis da manhã seguinte. Foi morosa e difícil. Os soldados atravessavam a água,
levantando acima das cabeças armas e bagagens, a lutar com a rapidez da corrente.
Os doentes, os oficiais, os músicos e as mulheres utilizaram-se da pinguela.
Houvesse o destino determinado que os inimigos cuidassem em assestar a artilharia
numa esplanada que nos ficava a cavaleiro, ou simplesmente espalhassem
atiradores em torno de nós, caro nos teriam feito pagar a invasão do seu território,
no momento em que o deixávamos. Felizmente adotaram outro plano; separados em
dois grupos, um esperou-nos à frente, ao passo que o outro se dispunha a cair-nos
á retaguarda, desde que entre ela e o resto da coluna visse o rio. Não surtiu efeito a
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combinação, mantidos que foram a distância respeitosa pelo fogo rápido, e
habilmente dirigido, de uma das nossas peças, a que, do alto da chapada, onde se
estabelecera o nosso acampamento, podia varrer todos os arredores.
Depois dos batalhões do centro e seus canhões passou o gado costeado por
dez ou doze homens, a quem comandava o capitão da guarda nacional Silva
Albuquerque. Nossa vanguarda com as peças que tinham protegido a passagem,
transpôs o rio a seu turno, coberta pelo fogo de uma bateria que acabava de tomar
posições defronte da margem paraguaia.
Às nove e meia, quando nos achávamos todos em território brasileiro, foi a
nossa ponte improvisada cortada por alguns soldados que para este serviço
reservara o tenente Catão Roxo. Recomeçou o corpo de exército a marchar,
acompanhando a margem que o fogo do forte de Bela Vista, agora arruinado, podia
outrora dominar.
Tomou a dianteira o batalhão de voluntários do tenente-coronel Enéias
Galvão, indo o 21.° de infantaria, comandado pelo major José Tomás Gonçalves,
formar a retaguarda. Entre eles ficaram os corpos do centro: à direita o 20.°,
comandado pelo capitão Ferreira de Paiva; e, à esquerda, o corpo de caçadores sob
as ordens do capitão Pedro José Rufino. Cobria toda esta força duas linhas de
carretas, no meio das quais iam as mulas carregando o resto de nossos viveres,
munições e alguma bagagem de oficiais. Vinha depois o grupo das mulheres, dos
enfermos e convalescentes. Nossas últimas juntas de bois arrastavam as peças; a
de Marques da Cruz, no ângulo da direita; a de Nobre de Gusmão, no da esquerda;
a de Cantuária à extrema direita da retaguarda; e a de Napoleão Freire à extrema
direita.
À retaguarda do 20.° batalhão, e fora das linhas, tudo superintendendo iam o
comandante e parte do seu estado-maior. A cada momento enviava, para todas as
direções, os seus oficiais e ajudantes-de-campo, a fim de se regularizar o
movimento. Por duas vezes ao chefe dos voluntários, à vanguarda, avisou que os
seus atiradores, por demasiado ardor, se isolavam da coluna, com grande risco para
todos, como não tardaram os fatos a demonstra-lo.
Avançávamos; e nossos olhos se despediam de Bela Vista, dizendo-lhe
adeus e para sempre. Muitos daqueles que conosco estavam, então, não mais
existem. O que podem desejar os seus sobreviventes é nunca mais regressarem
àquele teatro de tanta miséria. Já se não percebia um pedaço de muralha branca,
único destroço ainda de pé do que fora a fortaleza daquela fronteira; nada mais se
via além das franças da mataria do Apa.
Aberta de todos os lados, estendia-se a campina acessível aos olhos, exceto
num ponto a alguma distância, à nossa frente, e ponto que os nossos atiradores não
haviam reconhecido. Uma espécie de escarpa ali mascarava o que verificamos ser
profunda depressão do solo, embaixo de suave declive que tornava a subir para a
Machorra, cujo caminho seguíamos. Ascendia o Sol, eram doze horas.
CAPÍTULO XII
Ataque vigoroso do inimigo. Nós o repelimos, mas, com o fragor do comoate, nosso
gado se dispersa. Cenas do campo de batalha. A preta Ana. O ferido paraguaio. Vão
os víveres faltar.
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De repente, do fundo da que a estrada contornava, irrompeu um corpo de
infantaria paraguaia que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, através,
dirigindo-se para o 17.° batalhão dela distante uns cem passos. Enquanto este se
preparava para receber o ataque, os nossos atiradores, tornando a si da surpresa
que ao inimigo permitira penetrar em nossas linhas, haviam-se voltado e o
carregavam pela retaguarda Foi quando numerosos grupos de cavaleiros
apareceram, a galope, derribando e acuilando a quantos encontravam.
Travou-se, por toda parte, terrível entrevero e tal que o nosso batalhão de
voluntários de Minas hesitou a principio em fazer fogo, receoso de atingir amigos e
inimigos. Acabou, afinal, por fazê-lo, juncando o solo de mortos e feridos. Isto pelo
menos obrigou os paraguaios a recuarem e a fugir, mas somente para se
reformarem` a alguma distancia.
Não podíamos deixar de esperar um ataque geral. Formaram os corpos
quadrado e os canhões assestados nos ângulos despejaram nutrido e vivo fogo,
cujos pro-atingiram a grota onde se alojara o grosso do inimigo.
Novo pânico de nosso gado, agora de efeitos mais graves do que da primeira
vez, veio, então, comprometer-nos a situação, não só no momento como para todo o
resto da retirada. Espavorida pelos estampidos do canhoneio, o mais forte que até
então ouvira, apossou-se de nossa boiada vertiginoso terror. Abrindo passagem
através de guardas e soldados, precipitaram-se os animais sobre as nossas fileiras,
sobretudo à retaguarda, mais próxima de seu retiro. Produziu a principio esta
irrupção uma desordem que o comandante inimigo notou, trazendo-lhe
provavelmente a sugestão da idéia da manobra que imediatamente executou.
Distribuída em duas colunas profundas, toda a sua cavalaria arrancou, vindo rentear
as faces laterais de nossos quadrados, como a convergir sobre a nossa retaguarda,
para a esmagar. Poderia esta manobra ter ocasionado a nossa perda; mas
malogrou-se, sobretudo, graças à nossa infantaria que, colocada como estava, teve
durante minutos o inimigo sob os seus fogos cruzados e lhe causou avultadas
baixas. Amorteceram estes claros o ímpeto das massas, a quem os feridos e mortos,
aliás, atrapalhavam. A arma branca não as poupava menos que as balas e a
metralha. Vimos cavaleiros traspassarem-se sobre as nossas baionetas e assim
pereceram acutilados. Sobressaiu o 21.° batalhão nesta encarniçada pugna, que à
nossa retaguarda deu tempo de se consolidar contra o choque que a ameaçava.
Não foi, contudo, a violência tão grande quanto a esperávamos, porque os inimigos,
imaginando que nos achariam meio abalados, mas sentindo pelo contrário a nossa
coesão, graças ao vigor da resistência, não persistiram no ataque, acabando por
circunscrever o seu esforço em apanhar o nosso gado que, espavorido, disparava
pelo campo. Cercá-lo, dominá-lo, tangê-lo para a frente, foi para estes vaqueiros, os
primeiros do mundo, obra de instantes. Depois, tudo desapareceu: estava o campo
limpo e cessara a peleja. Foram os primeiros movimentos consagrados ao
contentamento da vitória; e as aclamações que espontaneamente estrugiram em
toda a nossa linha abafaram o estridor dos clarins e fanfarras.
A esta cena de entusiasmo e alegria, outra seguiu-se de desolação. Estava o
terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados,
ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde
esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos,
exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina (1) .
Felizmente, dominados pela impressão das ameaças do Coronel, a propósito
das mutilações infligidas aos cadáveres, abstiveram-se os nossos indios de tocar em
qualquer forma humana animada ou inanimada. Por isto mesmo redobraram de
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crueldade para com os cavalos, dos quais não pouparam sequer um só, estivesse
ele es tendido no chão, a dar sinais vida, ou, então, ligeiramente ferido, a pastar,
todo ajaezado ainda.
_______________
(1) Perderam os paraguaios cento e oitenta e quatro homens, número inscrito numa
grande cruz que, por ordem do major Urbiets, ali -se fincou.
Via-se, aliás, como inevitável conseqüência destas cenas deploráveis, o
saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do
exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram os corpos despidos
e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em mão, como
mercadorias, muita vez com violência disputadas.
Os cadáveres paraguaios, objeto dos primeiros esbulhos, ficaram assim nus,
estendidos ao sol. Notamos um, o de um rapaz de formas atléticas, cuja cabeça, de
uma têmpora à outra, perfurara uma bala. Tinha os olhos tumefactos nas órbitas e,
apesar de todo o sangue que em abundância correra ainda, de sob a fronte, lhe
gotejavam grossas bagas, que pareciam lágrimas. Pungente emblema da passagem
exterminadora da guerra sobre a sua valorosa nação, aniquilada pelo chefe
implacável que a regia.
Quanta idéia lúgubre evoca um campo de batalha! Sobretudo nestas solidões
imensas, onde o próprio gênio do mal parecia ter Penosamente convocado e reunido
alguns milhares de homens Para que mutuamente se exterminassem, como se terra
lhes faltara para viverem em paz do fruto do seu labor.
Deixaram os inimigos no chão mais de uma centena de mortos, entre os quais
divisamos um capitão e outro oficial, cujo posto, por falta de divisas, não pôde ser
identificado. Raro que se veja tão grande número de cadáveres paraguaios num
campo de batalha. Carregam os sobreviventes quantos podem e mesmo tomam
alguns dentre eles a precaução de se atar pela cintura a uma das pontas do laço
que sempre trazem consigo, prendendo solidamente a outra ponta ao arção da sela,
a fim de que caso caiam mortos ou gravemente feridos, possa o cavalo,
acompanhando os demais na volta, levá-los ainda que em pedaços - feroz
precaução que não deixa de ter tal ou qual grandiosidade.
Contamos do nosso lado muitos mortos, todos do batalhão da vanguarda ou
dos atiradores que o precediam. O tenente Palestino, que a estes comandava, tivera
o peito atravessado por um lançasso de que dias depois velo a morrer.
O tenente Raimundo Monteiro foi durante a ação apanhado a esvair-se em
sangue. Levaram-no numa padiola; ao passar diante da companhia que comandava
bradou-lhe que lhe vingasse a morte. Recebera oito lançassos, dos quais o primeiro
o derribara; e, mais ainda tivera que sofrer do pisar dos cavalos. Restabeleceu-se
entretanto, e tivemos o prazer de ver rapidamente curado este valente filho da
província de Minas.
Grande número de feridos brasileiros se transportaram de vários pontos;
foram todos levados à ambulância provisória, onde os nossos médicos os puseram
nos carros de bois, apertados, não há dúvida, e uns sobre os outros, mas recebendo
todos os socorros que as circunstancias comportavam. Uma mulher de soldado, a
preta Ana, antecipara nesta obra caridosa os cuidados da administração militar.
Colocada, durante a ação, no meio do quadrado do 17.°, desvelara-se por todos os
feridos que lhe traziam, tomando ou rasgando das próprias roupas o que lhe faltava
para os pensar e ligar, proceder tanto mais digno de nota e admiração quanto fora o
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da maioria das companheiras miserável. Escondidas quase todas sob as carretas, ali
disputavam lugar com horrível tumulto.
O único ferido inimigo, encontrado vivo, tinha uma perna fraturada. Quis o
Coronel vê-lo, e a fim de o interrogar chamou o filho de Lopes, que falava o
espanhol paraguaio. Parecia sentir horríveis dores e pediu água que avidamente
bebeu. A sombra com que o cobrimos, rodeando-o, pareceu dar-lhe maior alívio
ainda. Respondendo a algumas perguntas contou-nos que o comandante das forças
com quem combatêramos se chamava Martim Urbieta, o mesmo de quem já
falamos; que o corpo de cavalaria, com quem acabávamos de pelejar, era de 800
praças, estando ainda outro a chegar brevemente. Quanto às informações que lhe
pedimos sobre a artilharia, respondeu nada ter a contar: nada sabia. Entretanto,
espontaneamente, deu-nos noticias da Guerra do Sul. Havendo o filho do guia
indagado se Curupaiti fora tomada, respondeu pelo monossílabo: "Não!"—E
Humaitá? "Nunca!" Então a guerra não está para acabar? - Após uma pausa, em
que se lhe repetiu a pergunta, replicou o moço, como saindo de um sonho, e no tom
de ênfase próprio da língua de sua gente: "A terrível guerra está dormindo!" Delirava.
Levaram-no, então, para uma das carretas da ambulância.
O que a este incidente se seguiu (triste ocorrência que não quisemos, aliás,
averiguar) foi, segundo o boato espalhado, que o desventurado, posto num carro
atravancado e onde foi aumentar o incômodo de outros feridos e moribundos,
desvairados pelo ódio e sede de vingança, acabou estrangulado. Certo é que
poucas horas mais tarde, durante a marcha, foi lançado morto à estrada. Enterramos
todos os nossos cadáveres em covas que mandamos abrir pelos indios. Quanto aos
paraguaios, deixamos tal encargo aos seus compatriotas. Bem sabíamos haveriam
de voltar logo àquele local, após a nossa partida. Com os seus sentimentos de
homem profundamente religioso, teve o Coronel real desgosto deste abandono. Era,
porém, o número dos cadáveres muito avultado, ia o dia alto e o calor tornava-se
acabrunhador. Assim recomeçamos a marcha.
Tal foi o combate de 11 de maio, o mais importante da Retirada (1). Já o de 6
mostrara aos paraguaios o que valia a nossa gente; veio este confirmar o efeito em
seu animo; e tal impressão se traduziu pela hesitação e a moleza que, dai em diante,
mais do que nunca, lhes caracterizou os cometimentos. Ficou-nos, além de tudo,
patente que, além da prática da guerra, faltava-lhes a inspiração tática, a que sabe
apreciar os fatos, no momento em que se produzem e adivinhar os obstáculos pare
os vencer. O seu ataque de infantaria tivera como fim levar a confusão à nossa
vanguarda, de modo a entregá-la, no primeiro movimento de surpresa à mercê da
cavalaria. Baldado este piano, deveriam ter compreendido que a única probabilidade
de triunfo restante residia nas cargas de cavalaria, cada vez mais impetuosas, e
sustentadas por sucessivos reforços. Um pouco mais de hábito da guerra lhes teria
dado a conhecer, aliás, quanto era a nossa disposição geral excelente e que, pare a
derrocar se tornava preciso combinar o emprego da artilharia, de que dispunham,
com a ação da cavalaria. Sob este reforço simultâneo ter-nos-ia sido impossível, a
principio, defender as nossas bagagens e as munições que as acompanhavam; e
depois os nossos quadrados, que às bales ofereciam dilatado alvo. E, então, as
nossas fileiras, clareadas e combalidas pelo próprio fato de seu desenvolvimento,
não teriam resistido à sua cavalaria, poderosa como era, com os pesados sabres de
que dispunha.
Seja como for, vencêramos e ainda com este resultado excelente: crescera o
coronel Camisão no conceito dos soldados pelo sangue-frio de que dera mostras.
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Mas, infelizmente, não bastava isto: perdêramos o "ado. Que seria de nós
sem víveres? Mandou o comandante chamar vários oficiais, uns após outros e,
depois, longamente conferenciou com o velho Lopes, que, intrépido e até terrível,
pode-se dizê-lo, em combate apenas travado, mostrava-se nas deliberações, mais
do que ninguém, o homem dos bons conselhos e inspirados expedientes. E só deste
lado havia agora salvação a esperar.
___________
(1) Houve mais de 230 mortos. Travara-se a luta entre colunas cujo total, quando
muito atingi 3000 homens. (N. do A.)
A esta refrega deram os paraguaios o nome do combate de Nhandipá. (N. do
T.)
CAPÍTULO XIII
Deliberação sobre o caminho a seguirmos Primeiro incêndio no campo.
Dirigia-se pare leste a estrada que diante de nós se abria. Passadas seis
léguas, neste rumo, voltava-se pare o norte, até a colônia de Miranda, de que nos
separavam ainda quatorze léguas, às quais cumpria ainda ajuntar mais dez pare
atingirmos Nioac. Só ali, a vinte e quatro léguas da fronteira, poderíamos nos
reabastecer de "ado. De quinze dias, no mínimo, precisaríamos pare transpor esta
distancia, na marcha em que caminháramos, pare o Apa.
Conhecia o inimigo teme esta estrada e já se pusera à nossa frente. Seria sua
entrada em Nioac muito antes da nossa, ocasionando-nos, quiçá, a perdição, ao
cabo tantos esforços.
Logicamente era, pois, tal caminho impraticável. Iembraram-se alguns, então,
do que propusera Lopes, quando se tratava de invadir o território paraguaio e
escolher a melhor via pare o realizar. Na opinião do guia, preferível a qualquer outra,
era a passagem pela sua fazenda do Jardim, situada a três dias de marcha a
sudoeste de Nioac. Afirmava haver facilmente vencido esta distancia em dois dias e
meio. Dali à fronteira do Apa, quando muito, teríamos seis dias pelo campo Quanto a
este último trajeto que, segundo as suas asseverações, por ocasião de nosso
primeiro conselho de guerra sobre tal assunto, nos devia colocar em frente ao forte
de Bela Vista, insistira na necessidade de um reconhecimento que rapidamente
deveríamos, dois ou três, em sua companhia realizar, montados em bons cavalos.
Fora, então, impossível, porém, conseguir-se um estudo sério do alvitre.
Acoimaram-no de abusão existente apenas na imaginação do guia. Se houvesse
passagem, diziam, os paraguaios, grandes mateiros sempre a devagar,
conhecê-la-iam certamente. Ao que sempre respondera Lopes: — Só se meu filho
lhas ensinasse, pois só Deus, eu e ele podemos ir de minha fazenda ao Apa, pelo
campo. Riram-se os que lhe faziam as objeções e não se falara mais no caso. Nas
circunstancias em que nos achávamos, informado o Coronel da passagem dos
paraguaios para a margem setentrional do rio, e até da existência de um
acampamento, ali estabelecido, apressou-se em falar ao velho guia sobre o caminho
pela sua estancia. Respondeu este bastante fria. mente que, com efeito, em tempo,
indicara tal estrada Aconselhara então, porém, que de antemão se exploras" sem
aqueles lugares, no que não fora atendido. Agora era tarde demais.
Entretanto, havendo dado largas ao ressentimento, e passados alguns
minutos de silêncio, acrescentou que tudo bem meditado não via impraticabilidade
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para uma tentativa deste gênero. Certamente muito nos maltratara a macega alta;
supunha, contudo, que em menos de uma semana poderíamos atingir a sua
estancia onde repousaríamos; e, com suas laranjas, nos haveríamos de
restabelecer. A seu ver era esta fruta de inestimável valor para a saúde; cada vez
que ao Jardim fora, para nos abastecer de gado, grandes sacos dela nos trouxera.
Achavam-se as suas árvores carregadas e ainda o deviam estar.
Pessoalmente pertencêramos à maioria que outrora opinara pelo itinerário por
Lopes proposto, pelo fato de nos facultar. meios, graças aos quais mais facilmente
atingiríamos o território paraguaio. O que, então, mais proveitoso fora, para a
ofensiva, continuava a sê-lo para a retirada. Não havia hesitar.
Pronunciou-se a maioria dos oficiais pela escolha desta estrada sob a direção
do guia. De novo afirmou este, dando a palavra, que em cinco ou seis dias
estaríamos no Jardim. Mais dois ou três nos bastariam depois para alcançar Nioac,
onde nos poderíamos ainda antecipar ao inimigo. Foi o plano aceito pelo
comandante. Último dia de triunfo para José Francisco Lopes!
Inteiramente a seu favor tinha a opinião dos soldados, a dos oficiais e a do
chefe. Investia-o a confiança geral, até como que solenemente, de quase ilimitada
autoridade; a pública necessidade e a lei suprema da salvação tornavam-no como
um ditador.
Toda a vantagem havia em tomarmos a estrada do Jardim. Em primeiro lugar
podiam os nossos comboios escapar ao inimigo que parecia perseguir-nos noutra
direção. E não era só dos mercadores estacados na Machorra, à nossa espera, que
se tratava, mas também de todos os mais que, na suposição do secionamento ou da
perda de nossa coluna, penosamente retrogradavam para Nioac. Tínhamos ainda a
probabilidade de algum abastecimento nos distritos desertos, onde, mesmo longe
das estancias, há animais erradios. Em terceiro lugar não eram de pequena monta
as vantagens que nos apresentava a disposição de um terreno acidentado, em parte
coberto de matas e capões capazes de neutralizar as armas mais danosas em uma
retirada, a cavalaria, graças aos acidentes do terreno e a mataria; a artilharia, porque
a nossa, com a dianteira que tomávamos, teria sempre á faculdade de, antes do
inimigo, ocupar qualquer posição de algum valor estratégico.
Íamos desde logo evitar uma planície de meia légua onde a água das últimas
chuvas ainda encharcava o solo, apenas deixando estreita passagem ao longo da
qual, durante muitas horas, teríamos que suportar o fogo do inimigo.
Enfim, por esse caminho da estancia de Lopes, só havia um grande rio a
atravessar, 0 Miranda, enquanto pela estrada ordinária, precisaríamos, além deste,
transpor numerosas correntes, três pelo menos volumosas: o Desbarrancado, o
Santo Antônio e o Feio, que as menores chuvas sobremodo acaudalam.
Podia-se dizer, é exato, que um efeito desagradável do nosso desvio da
estrada batida seria persuadir aos paraguaios que procurávamos escapar-lhes pela
fuga, assim se amesquinhando a boa impressão que os últimos combates lhes
deviam ter dado de nós. Mas esta aparente desvantagem vinha pelo contrário,
naquele momento, reforçar o desejo em que nos empenhávamos de salvar os
comboios da perseguição do inimigo, atraindo-a sobre nós. 1t que ela não nos
inspirava temor. O que certamente nos levava a refletir sobre o cave vinha a ser a
idéia de nos embrenhar em lugares ainda não explorados, cheios talvez de
inesperados obstáculos, no meio desta macega alta que a alguns passos impede a
visão; que é preciso cortar sem descanso e quando seca (como então estava) exige
perigoso e pesado serviço. Qualquer consideração acerca de perigos e dificuldades
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secundárias desaparecia, contudo, em frente à urgência da situação. Não houve
quem não o compreendesse; uma única porta de salvação nos restava aberta.
Pusemo-nos a marchar a uma hora da tarde; iam os oficiais no centro de seus
batalhões. Achava-se o comandante com parse do seu estado-maior no quadrado
do 20. Ao entrar nele, jovialmente dissera ao capitão Paiva: "Venho colocar-me aqui
entre os senhores; ninguém se defenderá melhor que nós".
Caminháramos um quarto de légua, quando muito, e já o fogo dos paraguaios
começara do alto de uma eminência que dominava o teatro do combate da manhã.
Apanhava-nos os quadrados a descoberto, obrigando-nos a uma evolução em
colunas.
Surtiu esta manobra bom efeito. Deveria ela, no entanto, fazer compreender
ao inimigo as vantagens de contra nós empregar, em constante alternância, a
artilharia para bater os quadrados e a cavalaria para nos acutilar, desde que nos
formássemos em coluna. Felizmente não havia o que lhe abrisse os olhos e
safamo-nos deste mau passo sem maior dano. Nosso guia, sempre à vanguarda,
por simples intuição militar, e sem que nenhum recado tivesse recebido, aproveitou o
conhecimento que tinha do terreno, fazendo-nos deixar bruscamente a estrada da
Machorra e inflectir para a esquerda. Por meio de súbita contramarcha levou-nos ao
pé de uma eminência onde nos era fácil assestar uma bateria, caso fosse
necessário; era a segurança. Apenas percebeu Lopes, aliás, a ausência de
inconvenientes, tornou a meter-nos no rumo norte por subida bastante suave.
Pareceu-nos o inimigo hesitante sobre o que lhe convinha fazer. Era-lhe
visível a perplexidade; avultado número de cavaleiros corria no campo de um lado
para outro. Encaminhavam-se grupos sobre a bateria inimiga onde era evidente a
presença do comandante. Pareciam as peças seguir-nos o movimento à medida que
progredíamos no declive por onde nos fazia Lopes marchar Foi esta, aliás, a última
vez em que se mostraram: nunca mais as tornamos a ver, ou porque receassem os
paraguaios arriscá-las em paragens para eles desconhecidas e prestando-se a
emboscadas ou tivessem esgotado as munições. Provavelmente as despacharam
sob a escolta d' um corpo de cavalaria, que tomou a direção da Machorra. Desde aí
fomos menos incomodados, mesmo pela cavalaria.
Prosseguia a nossa jornada sem maior empecilho além da macega alta, que
nos cercava e precisávamos irremediavelmente cortar, e sobre a qual se tornava a
marcha das mais penosas; cortando as arestas das gramíneas os pés dos soldados.
Reservava-nos ela, entretanto, provações bem mais cruéis que não tardariam a
ocorrer.
Notamos, a alguma distancia, tênues rolos de fumo. Foi Lopes quem primeiro
deu pelo incêndio. Já o esperava. Nada nele traiu a mínima surpresa. Imóvel por
algum tempo, perscrutou o horizonte, rompendo depois o silêncio com uma dessas
apóstrofes próprias dos homens da natureza, quando enxergam uma luta iminente.
Desafiou as chamas que já ameaçavam alçar o colo "Está bem! haveremos de lutar!
Será, contudo, um pouco mais tarde, acrescentou, voltando-se para nós Vou
começar logrando os paraguaios. Caminho direito para Miranda; descambarei depois
para a minha fazenda".
Fomos esta tarde acampar perto de uma das cabeceiras do José Carlos.
Contávamos poder, à vontade, nos dessedentar após um dia dos mais penosos,
numa atmosfera escaldante. Mas ali só encontramos água turva e detestável e
como, por cima de tudo, tarde chegáramos a este triste pouso, com o Sol posto,
nada tivemos para dar, nem água nem pasto, aos nossos bois estafados e cujo olhar
invocava a nossa compaixão. Para descansar só tínhamos um solo poeirento, a cuja
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grama ressequida torrava o sol. Tivemos, nós mesmos, de nos contentar com um
quinto da ração costumeira, ou, para melhor dizer, faltou a comida. Em vez de vinte
e dois bois que, até então diariamente se abatiam, quatro apenas foram mortos,
escolhidos entre os mais miseráveis de nossas juntas Era um princípio de fome; veio
apressá-la uma medida, então, tomada pelo comandante. Tornara-se-lhe uma das
principais preocupações conservar o máximo de meios possível para o transporte
dos feridos. Acudiu-lhe à mente desatravancar algumas carretas para lhas reservar;
assim, pois, distribuíram-se pelos soldados o que nelas vinha. Foram repartidos a
farinha, o arroz, os legumes secos. Devia cada qual carregar os próprios víveres, por
alguns dias, mas como, em muitos, o cansaço e a fome venciam a previdência,
quase tudo o que naquele momento se distribuiu foi imediatamente consumido.
Iam começar as nossas grandes provações; datam dai os sofrimentos que,
agravados uns pelos outros, não tardaram em nos fazer crer na iminência de terrível
catástrofe ameaçando colher-nos fatalmente.
CAPÍTULO XIV
Continua a marcha. Temos o inimigo à frente Novo sacrifício de bagagens. Faltam
os víveres incêndios e temporais. Escaramuças incessantes.
A 12 de maio, ao romper d'alva, levantamos acampamento e, como de
véspera, recomeçou a marcha por entre a macega alta. Longas voltas tivemos de
dar para transpor o José Carlos, evitando alguns dos brejos profundos de onde lhe
nascem as águas. Avançamos para o norte. Prometia-nos Lopes que, naquela
mesma tarde, poderíamos acampar numa garganta funda, onde nada teríamos a
temer dos paraguaios. Ao longe os víamos também a procurar passagem, mas como
quem não mostrava conhecer, tanto quanto nós, o terreno por onde nos seguiam.
Alentou-nos o dia todo a esperança de bom acampamento; demonstrava o nosso
guia plena segurança, apontando-nos os fogos que os paraguaios haviam acendido
em vários pontos e procurando demonstrar-nos que ainda desta vez não
conseguiriam barrar-nos o caminho. Graças a ele conservávamos a dianteira
embora estivéssemos a ponto de perdê-la
No momento em que o Sol, já declinando, tornara-nos a marcha menos
penosa, mandou o comandante da artilharia prevenir ao Coronel que os animais
atrelados aos canhões estavam exaustos, havendo-se mesmo deitado alguns. Nem
eles nem o pequeno resto de rebanho, que ainda conservávamos, nada tinham
podido comer ou beber desde a noite de 12. Tornou-se, pois, forçoso estacarmos.
Paramos; nada mais havia a fazer. Estabeleceu-se a coluna sobre pequeno
cômoro, em parte coberto de mato à extremidade do qual havia uma fonte. Apenas
ali nos instaláramos, começaram as lufadas de vento sul, que soprava rijo, a
trazer-nos de longe o calor do fogo que ao nosso encalço progredia no campo. Já
Lopes, porém, pusera em movimento todo o pessoal, de que podia dispor,
ordenando que a toda a pressa se cortasse a macega, em torno de nós, e apenas
cortada fosse carregada o mais longe possível. Ele próprio, a tudo atendendo,
providenciou para que os soldados vigorosamente a cobrissem de terra e a
calcassem bem, o que se não pôde executar sem muito sofrimento e grandes
esforços dos trabalhadores. Era para nós questão de vida e morte e as ordens do
guia não representavam senão a expressão da mais rigorosa necessidade. Lopes, a
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grande personalidade para nós outros, nesta cena do incêndio da macega, dando
ordens por toda a parte, multiplicando-se, projetando-se sobre a cortina de chamas,
ou desaparecendo, em suas soluções de continuidade , não era uma figura de mera
teatralidade. Sem ele nos perdêramos!
A não serem tantas precauções, a fumaça nos asfixiaria, depois, quando o
fogo nos chegou, quando folhas e galhos, amontoados em torno de nosso refúgio,
acabaram, apesar de todas as precauções, por inflamar-se, a seu turno, dali saíram
imensas línguas de fogo que como nos lambiam, ora alçando-se ao céu, ora
deprimidas pelas correntes de ar variáveis e rápidas, que as impeliam, silvando
furiosamente por cima de nossas cabeças. Vários homens sofreram queimaduras
profundas e um até caiu morto, asfixiado.
Afinal este inimigo, esgotado pela própria violência e não achando mais
alimento perto de nós, começou a afastar-se, continuando o caminho para o norte.
Quando a nossa gente, extenuada e morrendo de sede, após esta luta
acrescida à fadiga da marcha, correu à fonte vizinha do acampamento, ali já achou
os paraguaios emboscados. Nada menos de duas companhias foram precisas para
os desalojar.
Aos últimos clarões do dia vimos este destacamento que se formara a certa
distancia, juntar-se ao grosso dos esquadrões inimigos, que em boa ordem
desfilavam, bandeiras desfraldadas, ao toque dos clarins, evidentemente para nos
provocar e, apressando-se, ao que nos pareceu, em ocupar o local exatamente onde
a princípio quisera Lopes acampar. Algumas balas que lhes despejamos vieram
distender a animosidade dos nossos, exasperados pela sua cruel e covarde tentativa
de queimar-nos vivos. Foi com verdadeira satisfação que verificamos quanto os
nossos projetis aceleravam a marcha destes adversários odiosos.
Todavia a provação por que acabáramos de passar, naquele campo
convertido em fornalha, era das que sobre o homem exercem irresistível ação física.
A enorme elevação de temperatura, subitamente ocorrida, bastava para explicar o
acabrunhamento em que caímos e o des" falecimento moral que se lhe seguiu. Não
sabíamos, aliás, como seria possível avançar. Estavam os animais de tiro de nossos
canhões esfalfados , sobretudo os bois mais ainda que as mulas, e incapazes de dar
um passo. No entretanto era mais que urgente não perdermos um instante em
recomeçar a marcha. Entre uma infinidade de razões não devíamos deixar tempo ao
inimigo, que agora nos precedia para fortificar algum ponto à nossa frente,
impedindo-nos a passagem. Sabe-se quanto os paraguaios são aptos em
movimento de terra, cavar fossos e levantar redutos. Vem-lhes a tradição dos seus
mestres, os padres da Companhia de Jesus, que cultivavam todas as artes,
sobretudo a arquitetura e a engenharia militar.
Este imenso perigo de nossa situação inspirou ao comandante a idéia
imediata de ainda diminuir a bagagem para reforçar as juntas e parelhas das peças
e carros manchegos.
Entendeu-se com os oficiais, a quem competia tal providência, e estes nada
lhe objetaram.
Ficando reduzidos ao que sobre 0 corpo traziam, queimaram algumas últimas
e míseras superfluidades, uma outra mala e barraca. Desde o combate de 8 nada
mais tinham os soldados que carregar ou que perder; haviam atirado fora até os
capotes que os embaraçavam, quando perseguiam os inimigos. As bestas, libertas
da carga foram destinadas ao transporte do cartuchame
Para maior desgraça nossa tivemos, essa noite, uma chuva torrencial,
verdadeiro dilúvio, que nos pôs atônitos, embora já houvéssemos experimentado
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outra e terrível, e, desde pela manhã, lhe víssemos os prenúncios, o acúmulo de
imensas nuvens bronzeadas, constantemente sulcadas pelos relâmpagos, por entre
contínuo trovejar. Durante toda a noite mantiveram-se de pé os nossos soldados
encostados às espingardas que haviam fincado no solo pela baioneta. Esta vigília
assinala-se em nossas reminiscências não menos penosamente do que a de 5,
entre tantos outros pousos desastrosos. 1t preciso haver alguém assistido, com a
alma tomada de tristeza, a estas tremendas crises da natureza, para poder avaliar
exatamente a extensão de sua influência sobre o organismo humano. Recursos não
os tínhamos. Não havia em todo o acampamento uma só gota de álcool capaz de
entreter o calor interno que nos fugia. O fogo, última esperança, não podíamos
acendê-lo sob tamanho temporal.
Foi neste estado de universal desfalecimento que ainda nos veio acabrunhar
a confirmação de quanto declarara o ferido paraguaio. Curupaiti e Humaitá resistiam
sempre e a guerra estava longe do seu término.
Soubemo-lo por um número de Semanário, hebdomadário de Assunção, que
acabava de ser encontrado sobre um inimigo morto numa escaramuça. Espalhou-se
o boato, com a rapidez de propagação das más notícias, extinguindo as últimas
centelhas da confiança e da coragem: foi-nos impossível marchar a 13.
No dia seguinte caía a chuva, ainda ao alvorecer, mas já um tanto mitigada,
quando deixamos este inóspito acampamento para entrar em cerrada mata que o
nosso guia, com grande sagacidade, julgara propício escolher. Ali caminhamos
durante mais de duas horas e não sem muitas dificuldades. Assim evitávamos,
porém, o desfiladeiro que os paraguaios ocupavam e onde, sem dúvida, supunham
aniquilar-nos.
Com razão mostrou-se Lopes desvanecido do êxito desta manobra. Havendo
alguém indagado que rumo seguira, gostosamente pôs-se a rir: "O de minha
cabeça". Se via consultar a bússola, declarava que a agulha grande só servia para
se fazerem bonitos desenhos destinados a divertir passeantes. Convenceram-no,
contudo, que deixara o rumo norte e assim se atrasara: "Sim, momentaneamente,
respondeu, nos desviamos para os campos da Pedra de Cal, que descobri e em
1864 o meu amigo, o general Leverger, viria visitar comigo, se não arrebentasse a
guerra".
Ao meio-dia estávamos em frente a um cerrado de taquaris, através do qual
precisamos abrir caminho, a foice e a machadinha, o que muito tempo nos tomou,
dada a dureza e elasticidade desta espécie de bambu e também a má atualidade do
aço de nossa ferramenta.
As duas horas ainda estávamos às voltas com este serviço. Nosso guia,
sobretudo, mal podia sopitar a impaciência. De tempos a tempos ele próprio tentava
varar o matagal, deitado sobre o pescoço da montaria, procurando entrever alguma
aberta para o campo. Como não conseguisse, porém, víamo-lo voltar descontente,
agitado, e com as roupas rasgadas.
Afinal dali saímos às três horas; às cinco, transposta a resistente barreira,
continuou toda a coluna a caminhada, já ao descambar do dia, para um cômoro
situado a um bom quarto de légua, e à base do qual belo arvoredo indicava a
vizinhança de uma fonte.
Já lá se achava instalada avultada partida paraguaia, disposta a acampar.
Tinham os cavaleiros descavalgado, embora ainda em forma. Bastaram duas
granadas de nossas peças da vanguarda para que se apressassem em nos ceder o
lugar. Ali nos estabelecemos tranqüilamente. Os nossos animais encontraram pasto
regular e toda a água de que careciam.
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Carneamos nesta tarde os bois mais cansados das carretas. Dada a
insuficiência e a má qualidade dos víveres, foi uma distribuição quase irrisória.
A 15, ao romper da alva, estávamos numa planície coberta de macega, onde
um incêndio, em outro momento do dia. seria de se recear. Objetou Lopes que a
erva, embebida do orvalho noturno, só poderia arder depois de exposta, por algum
tempo, aos raios solares. A partir deste dia adotamos a norma de, desde muito cedo,
pôr a tropa em movimento, ativando, quanto possível, a primeira marcha.
Em vasta extensão oferecia o terreno a atravessarmos uma série de
montículos intervalados, com certa regularidade, por extensos pântanos de onde
saem vários afluentes do Apa. A passagem destes pauis tornava-se difícil, com a
chuva torrencial de 13, e ora a artilhara, ora algumas carretas, se atolavam.
Estávamos a vencer um destes difíceis passos, no momento de transpor uma destas
sangas estreitas, quando patrulhas inimigas, em número considerável, vieram
dar-nos, não uma carga, mas realizar como que um reconhecimento bastante
prolongado, a fim de nos fazer crer, talvez, que desejavam algum embate sério.
Logo, entretanto, formaram-se em colunas e retiraram-se, o que tanto mais
nos surpreendeu, quanto, por trás deles, divisáramos um enxame de atiradores que,
dispostos em pequenos grupos, pareciam colimar a rarefação de nossas fileiras para
facilitar a tarefa da cavalaria, de que diversos destacamentos apareciam, prestes a
entrar em fogo. Nestas circunstancias não podíamos atacar a infantaria e tivemos de
lhe suportar o fogo. Felizmente era-lhe a pontaria má, afoita, incerta, como sempre
notáramos entre os paraguaios.
Empregavam cartuchos por demais volumosos, produzindo grande recuo.
Dir-se-ia que desejavam, sobretudo, fazer ruído com as armas e não obter um efeito
útil. Certo é que Ihes faltava suficiente aprendizagem e exercício.
Ainda desta vez pouco mal nos fizeram. Passaram suas balas por cima de
nossas cabeças e só tivemos dois homens fora de combate. Apontávamos muito
melhor, e virias vezes lhes perturbamos a formatura. Vimo-los, então, usar de
manobra nova: deitavam-se ao abrigo dos acidentes do terreno, ao seu alcance; e
destes esconderijos nos faziam fogo. Surgiam uma ou duas cabeças nas cristas dos
pequenos cômoros e, imediatamente, se escondiam, após alguns tiros disparados a
esmo. Quase não respondemos a este fogo. Um pouco mais longe havia, no
entanto, sobre um planalto bastante extenso, um grupo de cavaleiros, que faziam
empinar os cavalos, soltando vivas ao Paraguai e ao marechal Lopez. Como se
adiantasse ao alcance de nossa artilharia, atirou esta, retrocedendo o grupo
lentamente. Um deles, porém, deixado de observação, imóvel sobre o cavalo,
parecia afrontar-nos. Atirou-lhe o major Cantuária tão certeira granada que, caindo
às patas do cavalo, cobriu-o e ao cavaleiro, de terra e depois, ricocheteando, até um
bosque próximo, onde havia gente, explodiu com bastante efeito para que
pudéssemos notar rebuliço. A custo conteve a sentinela a cavalgadura, mas não
arredou do lugar e assim perdemos o gosto de sobre ela atirar.
Julgando o Coronel que esta demonstração só podia atrasar-nos, ordenou
que o 20.° batalhão atravessasse o brejo, e depois o resto da coluna, mas desde
que recomeçamos a marchar surgiram de todos os pontos da campina chamas que,
conglobando-se, tomaram aterradoras proporções.
Lopes que, durante toda a longa escaramuça, não conseguira disfarçar uma
inquietação, que jamais Ihe notáramos, reconquistou, então, toda a energia da de-
cisão. Mandou imediatamente encostar a coluna a dois capões que,
momentaneamente, nos preservaram das labaredas laterais e depois fez com que
se cortasse a macega, numa área ainda maior do que na primeira vez, e onde
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tivemos que sofrer menos a aproximação do fogo, mas onde foi a fumaça muito mais
terrível, devido imensa extensão do campo.
Tem este gênero de incêndio feição toda especial e de que nem uma cidade
inteiramente devorada pelo fogo poderia dar idéia. Cresça a distancia de onde vêm
as chamas tangidas pelo vento, que as domina, e mais formarão elas, em todos os
obstáculos encontrados, contra correntes espalhadas em todas as direções,
animadas como de inextinguível furor. Do combate, que no ar travam, saltam clarões
ofuscantes, ardentias e deslumbramentos que cegam e abrasam a pele do rosto.
Um dos capões a que nos encostáramos compunha-se em grande parte
desta espécie de bambus chamada taboca, cuja haste nos intermédios é oca. Nelas
produzia o fogo detonações semelhantes as do canhão: começamos a crer que a
artilharia paraguaia tornara a entrar em linha. Pôs-se o velho Lopes a zombar: "tem-
se vê que os senhores são novatos nesta terra".
Pouco depois, como o vento amainasse e a atmosfera refrescasse um pouco,
quisemos prosseguir a marcha; mas o Sol, reverberado pelo terreno escaldante e
calcinado, tornou-a, durante o breve tempo em que a suportamos, uma provação
que aos mais robustos arrancava involuntários gemidos. Não podiam os olhos
conservar-se abertos no abrasado ambiente que atravessávamos.
CAPÍTULO XV
Incerteza do rumo. Novo incêndio e novo ataque dos paraguaios. Penúria da coluna.
Acertamos novamente com o caminho. Passagem do rio das Cruzes Recomeça a
marcha. Nova travessia do rio. As mulheres da coluna.
Triste e pensativo, como antes do incêndio o víramos, marchava o nosso guia
à frente da coluna. Por vezes avançava demais, sem prestar atenção ao perigo que
podia correr, pois as volutas de vapor e cinzas que no campo, se levantavam,
caprichosamente e não raro nos envolviam, nos impediam de ver cavaleiros para-
guaios fazendo menção de se aproximar. Também impressionado com a atitude
inquieta de Lopes, perguntou-lhe de chofre o Coronel se acaso seguíamos o
caminho direito, e se corriam as coisas como ele desejava. Só obteve evasiva
resposta, muito no caso de nos capacitar que ele, o guia, perdera a firmeza, embora
hesitasse em confessá-lo. Os que por largo tempo comparticiparam da vida
sertaneja têm um amor-próprio muito maior que os demais homens. Provém-lhes
este sentimento do convívio com os selvagens, entre os quais, como se sabe, se
revela veemente pela inabalável firmeza com que suportam os mais cruéis
tormentos, infligidos pelo inimigo vencedor. Cerca de duas léguas ainda, andamos
assim, embora estrompados. Viera, confidencialmente, dizer-nos o filho de Lopes
que, a seu ver, tínhamos de reconhecer volumoso caudal, chamado o rio das
Cruzes. Observaram-lhe que tais palavras davam como a entender que ao acaso
caminhávamos. Respondeu imediatamente que de fato não sabia pare onde íamos;
sobrava-lhe a consciência do erro cometido; não ousava, contudo, abrir-se com o
pai. Fora significar-lhe que não mais sabia orientar-se em campo raso; e o respeito
ao pai votado, ao chefe da família, àquele que tantas vezes o guiara nas jornadas
através das solidões, obrigava-o ao silêncio. Este traço da vida primitiva não
poderíamos deixá-lo esquecido; fez-nos correr grande perigo.
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Quando o velho percebeu que duvidávamos de seus conhecimentos do
terreno, sobreveio-lhe grande desgosto, que não pôde ocultar. "Não fora a
perturbação deste atraso, murmurava, a própria estrada por si nos guiaria; quando
alguém, pelo campo, procura caminho nunca deve parar".
Não consentiu que seguíssemos as indicações do filho; fora a seu ver, uma
infração às leis naturais e ao direito patriarcal. Impediu-nos a noite, felizmente a cair,
prosseguirmos em rumo evidentemente incerto.
Apenas acampados, aliás, vimos que para nós o dia não acabara; grande
provação ainda nos esperava. Os compridos alagadiços que, como dissemos,
cortam esta campina haviam deixado a macega parcialmente a arder. Consideráveis
áreas ainda havia intatas, principalmente em torno do ponto que atingíramos. O fogo
que acabava de lhe ser ateado já nos cegava e vinha-nos ao encontro, desta vez,
porém, precedido dos próprios paraguaios. Julgavam que um ataque cerrado
obstaria à manobra pela qual até então nos tínhamos defendido do incêndio.
Desfilou sua infantaria ao longo de um brejo, em que se apoiava 0 nosso 21.°
batalhão. Tendo pelas costas a fumaça, que nos açoitava em cheio o rosto, graças
ao vento que reinava, lançaram-se sobre o flanco de nossa vanguarda. Se esta no
primeiro embate houvesse fraquejado e cedido, teríamos, provavelmente, sido todos
devorados pelas chamas. Mas longe de recuar, graças a desesperado esforço,
atirou com o inimigo, parte nos pântanos e parte sobre o seu terrível auxiliar, o fogo,
que rapidamente se aproximava. Devem suas perdas ter sido grandes; pelo menos
pôde o capitão Pisa-flores perceber pelas abertas do vento, nesse caso de vapores
e chamas, cavaleiros a correr arrastando cadáveres e feridos. Quanto à nossa
vanguarda fez ela um movimento de recuo, depois de nos ter dado, graças a sua
dedicação, tempo de cortar a macega e transportá-la para longe. E então, já no meio
de nós outros, estes homens estafados, a quem poderíamos chamar nossos
salvadores, caindo de cansaço e sofrimentos, com os rostos queimados, as goelas
secas, ardentes, deixaram-se ficar largo tempo estirados no chão sem voz nem
movimentos. Três dentre eles nem se ergueram mais; e muitos outros para sempre
ficaram enfermos e valetudinários.
Tendo-se formado de novo, após o incêndio, acamparam os paraguaios numa
colina, de onde nos dominavam; o repouso de que tanto carecíamos não nos seria
possível antes que deles nos desvencilhássemos. Obrigou-os a nossa artilharia a ir
procurar abrigo na vertente oposta
Caíra a noite. Havia um luar estupendo, cuja calma contrastava com os
clarões sinistros de alguns finais de incêndio, que ainda vagavam pelo campo.
Quando os nossos clarins deram afinal o toque de descansar, ao longe responderam
os dos paraguaios como um eco de escárnio. Tudo parecia insultar-nos as misérias:
reinava entre nós a fome, com todas as suas torturas e o seu triste prelúdio, esse
desfalecimento que aniquila a coragem e a vontade. De tudo carecíamos, oficiais e
soldados. Vivíamos andrajosos, mas a privação do calçado era em geral muito
menos sensível a estes do que aqueles, cujos pés estavam intumescidos e
ensangüentados. Nesta noite enregelou-nos o vento Norte, e ao mesmo tempo nos
achamos expostos a um desses orvalhos, que já nos haviam feito sofrer tanto e isto
quando ainda nos podíamos precaver com algumas roupas de agasalho.
Como de costume, estávamos todos de pé, pela alvorada; mas como nosso
guia continuasse a mostrar-se irresoluto, a cada passo chamava o filho a
confabularem. Parecia até querer abandonar o rumo de leste, insinuando que só o
seguira até agora para contornar um alagadiço. Afinal de repente, tomou a direção
do nordeste. Pelo que pudemos conjeturar, ficaram os paraguaios desnorteados
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com esta súbita inflexão. A galope subiram alguns a colina onde devia estar o seu
comandante.
Não durou muito, aliás, que percebêssemos haver tornado ao caminho
verdadeiro. Daí a um quarto de légua atingimos a margem esquerda de volumoso
caudal que não era outro senão o rio das Cruzes. Já na véspera o teríamos
alcançado não fora a excessiva deferência do filho e o orgulho do pai. Tivemos que
parar, pois embora desse vau, eram-lhe as barrancas demais escarpadas para que
as carretas pudessem parar sem prévio trabalho que nos devia tomar tempo. Os
corpos da vanguarda e do centro saíram, pois, de forma; e deixando a retaguarda
em linha, começaram a rampar as ribanceiras. Com muito vigor desempenhou o
batalhão de voluntários tão importante trabalho (urgidos como estávamos pelo
inimigo); e um dos seus oficiais, José Maria Borges, muito estimado dos soldados
pelo gênio alegre, raros mais críticos momentos, bem mereceu de toda a coluna
nesta ocasião. Muito grato nos é testemunhá-lo.
Foi, graças a ele e à sua gente, que pelas duas da tarde, tornou-se a
passagem praticável. Ali estiveram em sério perigo, sob as vistas dos paraguaios,
que, durante esta parada forçada, teriam com real vantagem podido atacar-nos.
Felizmente, e contra qualquer expectativa' mantiveram-se imóveis em ordem
de marcha, prontos a nos seguir, enquanto procuravam alguns dentre eles um vau a
montante e outro a jusante para, quando nos aproximássemos, incendiarem o
campo. São habilíssimos, tanto o sabíamos, neste gênero de manobras que entre
eles chega a constituir uma arte, com regras baseadas nos conhecimentos dos
ventos e lugares, arte, aliás, diabólica, quando empregada como arma de guerra.
Nós os provocávamos contudo, e, de tempos a tempos, iam os nossos
obuses cair no meio deles. 11 difícil compreender por que se haviam desfeito da
artilharia com a qual poderiam responder à nossa; coisa que apenas faziam por meio
de gritos e assuadas.
Galgáramos, neste ínterim, a margem oposta do rio, e ali, apenas chegados,
precisamos tomar providências contra o incêndio que nos precedera e vinha ao
nosso encontro. Apoiava-se a nossa esquerda ao mato que orlava o rio e onde,
felizmente, as árvores eram de natureza menos combustível que a macega. Na ala
direita, que também estacara, foi o capim cortado e acamado com terra, com mais
vagar e cuidado desta vez, com mais ordem do que até então o fizéramos.
Acercou-se o incêndio, envolvendo-nos como sempre, de horríveis rolos de fumo;
mas as labaredas já não nos ofenderam tanto como das outras vezes. Podíamos,
além de tudo, valer-nos do rio onde, lavados em suor, cobertos de pó e cinzas,
íamos beber e refrigerar-nos. Passado o fogo, limparam as nossas peças a planície
de paraguaios, que ainda por ali se mostravam; e, conservando sempre a mata à
esquerda, conseguimos avançar um pouco para ocupar melhor posição.
No dia seguinte, 17, esteve o tempo nebuloso e frio. Soprou o vento com
violentas rajadas. Tornou-se a marcha muito penosa, tivemos freqüentemente de
rentear a macega incendiada, o que a espaço nos forçava a paradas pare limpar o
chão. Procurávamos também alcançar uns bosques que, com trabalho,
atravessamos, porque ali encontrávamos tocos e madeiras ainda de pé, que a custo
podiam os machados entalhar. Víamo-nos ao mesmo tempo apertados pela
cavalaria paraguaia à frente, nos flancos e pela retaguarda.
Sentia o comandante a paciência esgotada. Acusava o guia, atirando-lhe a
responsabilidade de todos os atrasos; mas como tais exprobrações fossem ouvidas
em respeitoso silêncio, acabava por acalmar-se. Vencia a bondade natural e com o
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tom conciliador de quem sofre e compartilha dos infortúnios alheios. "Não nos
irritemos, dizia, estamos a pagar os nossos erros".
Todo este dia andamos sempre à matroca. Com o conhecimento do terreno
perdera Lopes todo o espirito de iniciativa. Deixava-lhe o filho transparecer crescente
inquietação, sem proferir, contudo, um único comentário. Tornou-se tamanha a
fadiga dos bois carreiros de nossa artilharia, que se negaram a ir além, deitando-se
no chão. Fizemos alto pois, forçadamente, no meio de pequeno capão, onde apenas
encontramos água insuficiente e má.
Não deixou o inimigo de vir à noite acampar a pequena distancia de nós; e o
21.° batalhão, que ainda constituía a nossa vanguarda, teve, desde então, de abrir
tiroteio. Durante a noite toda ladrou a canzoada dos paraguaios, que sempre
andavam acompanhados de matilhas. Mal lhes responderam os nossos cães,
míseros restos de uma malta a custo disputada à fome dos soldados.
A 18, desde a madrugada, começou copiosa chuva que não tardou em
ensopar o nosso pobre fato e nos predispôs mais tristemente para uma marcha
ainda mais lenta que a dos dias precedentes. Nem sempre caía chuva com a mesma
força, mas havia de vez em quando aguaceiros que não tardavam em encharcar o
solo, de modo tal que a cada passo ficavam as carretas presas e retidas nos
caldeirões que abriam. Que espetáculo confrangedor o do grupo de nossos míseros
enfermos, a quem, sob desabaladas batesse no melo dos regatos que elas
formavam, tínhamos de deixar no chão!
Precisamos logo atravessar um alagadiço muito extenso; e, durante esta
longa travessia, não cessaram os paraguaios, que já haviam ocupado todas as
alturas dominantes, de atirar, embora sem nos causar grande dano. As suas
descargas de pelotão não tinham maior êxito que os estrepitosos hurras com que as
acompanhavam. Por vezes chegaram-nos os dichotes com que nos insultavam a
miséria. "Venham tomar-nos o gado e fartem-se!" Algumas balas bem apontadas por
homens ávidos de vingança castigaram tais ironias.
Quase diariamente sucedia que o sol, fraco de manhã, após as noites
glaciais, tornava-se depois escaldante. Variação perene que acabava
arruinando-nos a saúde. Neste mesmo dia. acastelando-se a oeste espessas
nuvens, daí proveio cedo novo dilúvio, que transformou em furiosa torrente um
ribeirão já por si volumoso, que Lopes não nos assinalara; e nos forçara a uma
terceira parada, tão cruel quanto as precedentes. Morríamos de frio; estávamos a
jejuar, e só com muito trabalho, à meia-noite pudemos ter fogo, à custa de empilhar
muita lenha verde que ardia quase sem labaredas.
Nauseante espetáculo revelou-nos, nesse lugar, quanto entre os nossos
soldados era a fome tremenda. Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante.
Formara-se um círculo em torno do animal, cada qual mais ansioso esperando o jato
do sangue, uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali
mesmo. Chegado o momento, atiraram-se todos a ele, I os mais afastados e os mais
próximos. E assim era diariamente. Mal tinha o magarefe tempo de cortar a rês; era
quase necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos a fim de os levar ao local
da distribuição. Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali
mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido; repulsivo pasto de que não podia
deixar de originar-se alguma epidemia.
Na manhã de 19 lançou o major Borges, sobre o ribeirão, convertido em rio
estreito, mas profundo, improvisada ponte que, experimentada, não apresentou soli-
dez bastante, obra que fora de operários mais debilitados pela fome do que com
efeito desprovidos de ferramenta. Julgamos necessário reforçá-la com um tronco
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enorme de aroeira, encontrado pelas vizinhanças. Foi só então que a artilharia pôde
sem acidente atravessar. Uma carreta única a seguia: queimáramos as demais para
entreter as fogueiras que nos preservaram de completo tolhimento; e esta mesmo só
fora poupada porque podia prestar-se para o transporte dos feridos de uma para
outra margem.
Estava inundada a ribanceira que atingíramos e ainda várias vezes se
ensoparam os desventurados inválidos levantados a braço antes de acomodados
em padiolas ou cangalhas. Eram as mulheres que nos acompanhavam setenta e
uma, contadas à entrada da ponte. Iam todas a pé, exceto duas, montadas em
bestas; carregavam quase todas crianças de peito ou pouco mais velhas. Por
heroína passava uma e todas a apontavam. Havendo-se encarniçado um paraguaio
em lhe arrancar o filho, tomara ela de um salto uma espada largada no chão, e num
ápice matara o assaltante. Mais infeliz vira outra o filhinho recém-nascido
espostejado por um inimigo, que pelas pernas lho arrancara do colo. Traziam todas
no rosto, aliás, os estigmas do sofrimento e da extrema miséria. Ainda vinham
algumas carregadas de objetos provenientes do saque; mantas, ponchos, pesadas
espadas paraguaias, baionetas e revólveres.
Caíra a noite; quando muito conseguíramos estabelecer-nos em frente ao
nosso acampamento da véspera; mas já era imenso termos atravessado o rio.
CAPÍTULO XVI
Lampejo de esperança que se desvanece logo. A cólera Reaparece o inimigo. O
incêndio sempre. Recrudesce a cólera. Um recurso: os palmitos. Terrível passagem
de um pântano. O tenente Santos Sousa Acampamento. Conseguimos acender
fogo.
Lopes que, desde algum tempo, víramos perturbado a ponto de duvidar de si,
acabara, enfim, descobrindo onde estava, e orientando-se. A vista de uma eminên-
cia, a distancia, dissipara-lhe subitamente o mistério apontando-a, deu-nos a certeza
de que dois dias mais tarde chegaríamos à sua fazenda. "De lá se avista, afirmou,
aquele pico que os senhores vêem". Aos mais fracos e desanimados, reanimou esta
notícia. Chegados a 21 a distância do Jardim, poderíamos, pelo dia 25, entrar em
Nioac antes dos paraguaios e preservar a vila de novo saque, graças a esta marcha
executada em onze dias, e não em quinze.
Assim tínhamos muito próximo de nós o termo de tantas misérias, quando
outra novidade, mais terrível que tudo, veio agravar a situação, além de qualquer
pressão por mais sinistra que fosse: circulou de repente pelo acampamento a notícia
que nele havia cólera.
Já desde algum tempo tinham os doutores Quintana e Gesteira levado o fato
ao conhecimento do Coronel Pouco depois morrera, com um dia de moléstia apenas
um índio teria recebido na enfermaria de Bela Vista.
Supusera-se, a princípio, que seria mero cave esporádico; e sobre o fato se
guardara segredo, nada se podendo fazer, tudo nos faltando pare dominar o morbo
Em sodas as paradas, enormes fogueiras se acenderam supondo os soldados que
se empregava um processo saneador da atmosfera do pantanal. No silêncio
consistia, realmente, o melhor preservativo contra a propagação da peste. Mas a 18
rasgou-se o véu do mistério: caíram três homens atacados pela epidemia e com os
mais graves sintomas, e, desde então, os nossos dois médicos que haviam assistido
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à primeira irrupção da cólera no Rio de Janeiro, julgaram imperioso dever não mais
dissimular a verdade. Fora-nos necessário, contudo, prosseguir na marcha,
subitamente salteados de mal-estar e desmaios caíram alguns soldados; o que
provocou a perturbação e a confusão gerais em nossas fileiras. Não se caminhava
mais. Os três homens já atingidos pelo flagelo sucumbiram. Dentro em pouco
estavam a carreta que nos restava e um carroção de munições, que se lhe
adicionara, repletos de enfermos, cujos gemidos por toda a parte apressavam o
surto da epidemia.
Teve este dia cruel uma tarde e uma noite como era de prever. A 20, pela
manhã, o tempo, a princípio chuvoso, melhorou; e logo tornou-se o sol ardente.
Ainda caminharam menos os animais e os homens mal se arrastavam, tendo a
morte sob os olhos e no coração.
Haviam os paraguaios reconstruído a ponte e passado. Já à nossa frente
estavam, apenas dissipara o calor do dia o orvalho e secara a macega.
Puseram-lhe fogo, e com tal êxito que não fora um mato de pindaíbas,
felizmente provido d'água, teria a coluna sido colhida pelo incêndio, Mal teve Lopes
o tempo de nos alojar neste abrigo; deu-nos o Coronel ordem de acampar.
Atacados, até aí, defendemo-nos como quem defende o refúgio derradeiro. Afinal
obrigou o tiro de nossos canhões o inimigo a retirar-se.
Tudo e volta de nós era fumo, trevas e vapores ardentes. Caiu um de nossos
soldados asfixiado. Outro, cego, no meio de um redemoinho, metera-se entre os
paraguaios, conseguindo, contudo, graças à escuridão, safar-se e voltar sem ser
reconhecido.
Neste dia fez a cólera nove vítimas. Assinalaram-se vinte caves novos: o
chefe dos Terias, Francisco das Chagas, chegou moribundo numa rede que sua
gente carregava . Estavam estes desgraçados índios no auge do terror, mas não
podiam mais abandonar a coluna, ocupado como se achava todo o campo por um
inimigo que, quando os apanhava, jamais deixava de os fazer perecer nos mais
horríveis suplícios.
A que cause devíamos atribuir esta irrupção da cólera ou, melhor, a que
cause não a atribuirmos? Seria talvez a carne estragada que éramos obrigados a
comer, ou a fome curtida quando as náuseas venciam o apetite, ou ainda o
insuportável ardor dos incêndios que nos escaldavam o sangue, quiçá a infecção
oriunda de sodas as substancias vegetais que devorávamos, brotos, frutos verdes e
podres, ou também, enfim, a insalubridade do ar viciado pela água estagnada dos
charcos e lodaçais que naquela região tanto abundam.
Supunham alguns fosse o próprio inimigo o veiculador do morbo. É muito
possível que aos paraguaios houvesse acontecido —embora jamais suportassem as
mesmas privações que nós — porque, de seu exército do Sul, dizimado pelo flagelo,
tinham recebido reforços. Uma circunstancia ocorria fazendo-nos crer que também
reinasse o mal em suas fileiras: a frouxidão, para o fim, dos ataques, embora sempre
freqüentes.
No entanto, o número do Semanário de Assunção, anexo a esta narrativa,
nenhuma menção faz da epidemia na coluna paraguaia.
Para a noite caiu abundante chuva, agravadora de todos os nossos
padecimentos. Amontoados perto da pequena barraca dos médicos, sem abrigo e
ao ar livre, receberam os coléricos, nos corpos gélidos, as bátegas que desabavam,
de espaço em espaço. Era horrível ver estes míseros, presos de agitação extrema,
dilacerando os andrajos com que procurávamos cobri-los, rolando uns sobre os
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outros, a se torcerem com caimbras, vociferando soltando brados, que se fundiam
numa só voz articulada: Água!
Tinham os médicos esgotado os recursos; a princípio zelosos e ativos,
desanimavam os enfermeiros ante o número crescente dos enfermos e apesar da
ordem que proibira o uso da água, como fatal, davam-na alguma para satisfazer, um
instante ao menos, aos moribundos. A isto se limitavam os seus cuidados.
Apesar de tudo, recomeçamos a caminhar no dia 21. A carreta e o carroção,
com o dobro da lotação, de todos os lados deixavam pender braços, pernas,
cabeças onde já se imprimiam os sinais da morte. Aos manchegos aos armões das
peças igualmente atulhavam desventurados recentemente atacados e já
agonizantes.
Mas logo que a macega perdeu a umidade empregou-se novamente contra
nós o odioso expediente de guerra dos paraguaios. Cerca de um quarto de légua de
nossa última parada pareceu o incêndio, tangido por esperta aragem, na iminência
de nos envolver, exatamente no mesmo lugar onde nos detivéramos e onde, de
todo, se baldaria o zelo de Lopes, se acaso uma mudança do vento não houvesse
desviado aquele furacão de chamas. Recomeçamos o lúgubre desfilar; mas ainda
não vencêramos meia légua, quando os bois da artilharia afrouxaram, por não terem
bebido, desde o acampamento do dia 19.
Estávamos felizmente num terreno cuja macega escapara ao fogo da manhã,
graças, provavelmente, à corrente de ar que nos salvara.
Era uma chapada extensa que, inesperadamente, se levantava de uma
depressão onde corre um riacho. Outra chapada, um pouco mais alta, e voltada para
o sul, ligava-se a um campo imenso, 0 mesmo que Lopes, numa primeira incursão,
batizara Campo das Cruzes; e no fundo do qual se erguia a nossa baliza — o morro
da Margarida. Tem o perfil deste pico algo de notável em sua regularidade elegante.
Já da Bela Vista o avistáramos; agora o saudamos como a velho amigo.
Se tal foi a nossa impressão, teve Lopes outra muito mais viva, ainda. Via-se,
após tantas dúvidas cruéis, justificado no seu foro íntimo. Restituíra-lhe a alegria
toda a vivacidade da primeira mocidade. Arrebentara naquele momento novo
incêndio no campo; vimo-lo correr, de archote em punho, para o combater, com
armas iguais, dizia. E conseguiu-o, varando por entre os cavaleiros paraguaios,
espalhados pelo campo e que quase o apanharam.
Estava, novamente, na plena posse de si, liberto da responsabilidade que o
acabrunhava e quando lhe observávamos quanto precisava poupar-se, respondia
que ninguém podia ir de encontro à vontade de Deus, devendo cada qual
entregar-se às mãos do Senhor. Dizia-lhe Ele que estávamos chegando ao termo de
nossas provações. "Saibamos morrer, acrescentava; dirão os sobreviventes o que
fizemos".
A 22 apenas andamos três quartos de légua, pois dependíamos inteiramente
das juntas que puxavam os canhões e ainda na véspera quase não tivera o gado o
que beber. Mal dera o minguado filete, junto ao qual acampáramos, água bastante
para os homens.
Tivemos de parar, forçadamente, junto a um brejo, cuja vestimenta era
bastante capaz de dar algum alento aos nossos animais. Aí ficamos encostados a
um mato que, felizmente, ia até um riacho chamado Prata, o primeiro afluente
meridional do Miranda, como Lopes no-lo disse. Já, portanto, nos abeirávamos
desse caudal, objeto de tantos anseios.
Uma vez neste lugar, entendeu o Coronel que nada obstava informar a gente
de Nioac de nossa proximidade e da do inimigo. Estava o caminho livre, pela mata
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do Prata, que se perde na do Miranda; não correndo risco algum quem a
atravessasse. Para esta comissão escolheu dois homens corajosos, afeitos à vida
do mato, caçadores sabidos daquelas terras.
Fora o bilhete, que se lhes deu, endereçado ao coronel honorário que
comandava o depósito redigido em francês para, pelo menos, escapar às
probabilidades mais fortes de divulgação. Noticiava em suma que a coluna batera
em retirada; e, provavelmente, atingiria Nioac antes do inimigo, convindo, no
entanto, transportar para lugar seguro e o mais depressa possível, as munições, os
víveres, o arquivo, e alguma bagagem dos oficiais. Era, sobretudo, necessário que
toda a tropa disponível marchasse às ordens do capitão Martinho a emboscar-se
para deter os paraguaios, caso aparecessem.
A 24 chegavam os mensageiros à colônia de Miranda ali encontraram os
negociantes que com a lentidão habitual haviam retrocedido, tendo achado, ainda,
avolumados pelas chuvas, os grandes rios, que evitáramos graças à estrada pela
fazenda do Jardim. Deixando este comboio à retaguarda, a 27 atingiram Nioac os
nossos correios, com a missiva do comandante, divulgando o que em nosso
acampamento haviam presenciado, assim como todos os boatos sinistros de que se
fizeram ecos mercadores em caminho.
A 25 progredimos cerca de légua e meia, considerável esforço, pois os
nossos soldados válidos quase todos se empregavam em carregar as padiolas dos
enfermos e destes padioleiros, vários, subitamente atacados, em vez de ajudarem
aumentavam a carga.
As contínuas convulsões dos agonizantes ainda e de tal modo agravavam
esta faina horrivelmente penosa que os soldados, estafados, punham-se de repente,
como à porfia com os coléricos, a soltar selvagens gritos impacientes, ameaçando
arriar e abandonar o fardo.
Só algumas redes, ocupadas por oficiais, conservavam certo decoro lúgubre:
jamais esqueceremos o belo rosto resignado do tenente Guerra, moço exemplar,
filho único de uma viúva que nunca o tornaria a ver... Neste dia! ao incêndio
precedeu um ataque de atiradores . Repeliram-no alguns dos nossos e o fogo
também passou; mas o outro inimigo, a cólera, o adversário oculto, redobrou os
golpes com que nos feria, a ninguém perdoando Desapareceu no mesmo dia uma
família inteira; pai, mãe e filho em horas fulminados juntos. De inanição pereceu uma
criança de peito que, dos braços da mãe moribunda, passara aos do pai e deste aos
de camaradas, que também não tinham alimento algum.
Soubemos que dois soldados haviam enlouquecido. Assim se explicavam os
gritos, cujas notas estridentes se haviam associado aos ruídos que habitualmente
nos afligiam; lamentos, furores e desespero. Outro mal começou: a deserção;
desapareceram vinte e quatro soldados da linha de defesa do acampamento.
E no entanto impossível lhes era escapar à morte pela fome ou às mãos do
inimigo. A datar deste dia não houve, no mato, moita onde se não escondesse
algum fugitivo. Abandonaram-nos os nossos índios Guaicurus, não conseguindo
mais detê-los o receio do fado que os aguardava, se os paraguaios os apanhassem.
Tais os incidentes que entre nós ocorriam. Embora dizimados, serenamente
mantinham os oficiais o espírito geral da corporação; uns procuravam os outros
reuniam-se, trocavam palavras amigas e de bom conselho. Esta serenidade d'alma
só era natural entre homens de têmpera especial como José Tomás Gonçalves,
Pisa-flores e Marques da Cruz; ou excepcionalmente fortes como Lago, Catão
e José Rufino. A mesma atitude impassível tornava-se em outros igualmente notada,
embora menos energicamente constituídos. Tomava, no tenente-coronel Juvêncio,
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laivos de melancolia ao lembrar-se da família. Quanto ao comandante este se recon-
centrava em sua dignidade e no sentimento do dever. Aproximava-se a hora em que,
a tal respeito, nos daria as mais extraordinárias provas.
Na manhã de 24 uma chuva torrencial, e contínua, não tardou em transformar
em atoleiro o solo argiloso sobre o qual acampáramos. O vento áspero e impetuoso
lançava-nos verdadeiras enxurradas. Assim mesmo partiu Pisa-flores, o bravo
rio-grandense, à testa de cem homens, a um quarto de légua, à margem do Prata,
abrir uma picada num lugar indicado por Lopes. Este serviço, rapidamente
executado, deu aos trabalhadores o ensejo de descobrir na mata palmitos em
profusão, inesperado recurso que levou o comandante a mandar que estancás-
semos, porque também ali estava o solo mais seco. Não pôde, entretanto, a marcha
recomeçar antes das cinco da tarde, e o que foi este deslocamento de posição só
uma palavra traduz: desolação. Observando-nos de muito perto assaltaram-nos os
paraguaios, com vaias e tiros, a que tratávamos de responder do melhor modo. Mas
o que mais penoso foi, ao atravessarmos grande charco, o banho gelado em que até
a cinta afundamos. Rompeu-se a formatura; nem sequer nos víamos mais. A
espessa escuridão que sobreviera seguiu-se a noite, sem intervalo, uma destas
noites propícias aos desastres e aos crimes: a mais de um doente afogaram os seus
carregadores.
As oito horas passara o grosso da coluna acampando então, às dez veio a
retaguarda ocupar 0 seu posto. Até tarde, pela noite adentro, chegaram
retardatários, condutores de carretas extraviadas e até coléricos que haviam podido
pôr-se de pé, depois de atirados das padiolas ao chão.
Deu-se, entretanto, uma cena que à memória consola evocar. Entre as
padiolas, onde prostrados se achavam soldados, uma houvera que a queda de um
dos padioleiros ia submergir no pântano, prestando-se os demais três, talvez, a este
caso que os libertava do fardo, quando um quarto apoio, o ombro de um oficial, se
apresentou para salvar o infeliz que ia perecer. O tenente Clímaco dos Santos
Sousa, autor deste ato de altruísmo, teve, em prêmio, os louvores de nós todos.
Fôramos ficar em terreno menos lodoso; mas muito tempo decorreu antes que
pudéssemos acender a lenha encharcada.
Era felizmente resinosa. Oh! com que alegria saudamos as primeiras chamas!
Qualquer lugar junto destas fogueiras era cobiçado; quase todos conseguiram,
contudo, aboletar-se, sãos e enfermos misturados. Morreram até dois coléricos ali.
Foram os cadáveres removidos, eram heranças a receber, lugares de calor. Apa-
receram logo os palmitos que os mais ágeis dos nossos tinham corrido pedir aos
trabalhadores do capitão Pisa-flores, apenas se sentiram um pouco alentados pelo
fogo Foi o alimento prontamente cozido sobre brasas na cinza e cada qual teve o
seu quinhão, uns mais, outros menos.
Nunca se desmentiram os hábitos hospitaleiros da mesa brasileira, nem ali
nem em parte alguma; e até mesmo nas mais terríveis conjunturas.
CAPÍTULO XVII
Chegada às divisas das terras do guia Lopes. Passagem do Prata. O inimigo nos
acompanha sempre, mas persegue-nos frouxamente. Devastações da cólera.
Perplexidade do coronel Camisão. Abandonamos os enfermos. A separação. Ao
tenente-coronel Juvêncio e ao coronel Camisão salteia a peste. Morte do filho de
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Lopes. Prossegue a marcha. Chegada à fazenda de Lopes; morre este ali, de cólera.
Seu túmulo.
A picada que acabava de abrir o capitão Pisa-flores dera já passagem ao
nosso guia que, vendo-se, afinal, nas divisas de sua propriedade, dessa fazenda
que tanto amava, e de que tão freqüentemente falava — não pudera resistir ao
ímpeto de a palmilhar o mais depressa possível. Assim se adiantara com o filho e os
refugiados do Paraguai. Era a largura da picada suficiente para dar passagem aos
homens, mas não ainda aos armões e bocas de fogo. Havia ainda a melhorar as
rampas lodacentas do rio, o que pediria tempo, dado o estado de fraqueza em que
nos deixavam a moléstia e a fome.
Foi só às dez da manhã de 25 que começamos a nos mover para galgar a
margem direita do Prata, onde ocupáramos uma eminência dominadora de toda a
circunvizinhança. Forçadamente, ia o transporte ser extremamente lento; nem de
outro modo seria possível. Sublinhar o número de padiolas, que tinham de transpor
o rio, a 96, cada qual tomando oito homens que se revezavam, todos, aliás, de má
vontade, mostrando os mais recalcitrantes os pés esfolados e tintos de sangue. De
espada em punho exigiam os oficiais o cumprimento deste dever, tanto mais penoso
quanto dele se não podia esperar nenhum resultado favorável; achando-se quase
todos os enfermos, como de antemão, fadados à morte Sacrificava-se assim aos
moribundos o que ainda restava à coluna de força e futuro.
Já desde a irrupção da peste perdêramos muito mais de cem homens; uns
vinte acabavam de ser enterrados no acampamento que deixáramos e com eles o
tenente Guerra.
As duas da tarde e à custa de muito trabalho tudo estava na margem direita,
queimada, que fora a nossa última carreta e mortas as suas juntas para que as co-
mêssemos. Multiplicaram-se durante toda a tarde os casos epidêmicos a ponto de
se tornar impossível imaginar como poderíamos avançar. Novo arranjo imaginado
pelo comandante, para as padiolas, levou ao desespero o descontentamento dos
soldados, que nele enxergaram um aumento de carga e de fadiga. Chegamos a
pressentir que entre eles se gerava a idéia de geral "salve-se quem puder".
Metendo-nos no mato, diziam, "ao menos alguns de nós chegarão a Nioac; em todo
o caso deixaremos de ser escravos de moribundos, pela mor parte desvairados".
Entretanto tinha o inimigo vindo acampar no nosso ultimo pouso. Veio
incomodar-nos uma partida de seus atiradores; também desvaneceu-se logo diante
de duas companhias nossas. Então, como nos achássemos incapazes de pensar em
persegui-los, puseram-se os paraguaios a esquadrinhar, com todo o vagar, todos os
cantos do nosso último acampamento. Como percebessem a existência de
montículos recentemente revolvidos, abriram as covas, delas exumando os
cadáveres para os despojar dos miseráveis andrajos, que depois, violentamente,
entre si disputavam. Houve mesmo quem se desse pressa em os vestir.
Permitiam-nos os óculos de alcance perceber claramente tão revoltante espetáculo,
que nos punha estupefatos como se inacreditável miragem constituísse. Aí uma de
nossas granadas atiradas pela peça de Napoleão Freire que firmara a pontaria
quando eles estavam em grande número, no meio das sepulturas — estourou-lhes
exatamente sobre a cabeça, matando alguns. A outros atirou nas covas, dispersou
os restantes, e libertou aquele local de sua presença. Tão justa represália velo trazer
alguma animação ao acampamento até o pôr do Sol deste triste dia.
À noite mandou chamar-nos o coronel Camisão. Já com os comandantes dos
corpos tivera várias conferências. Parecia profundamente impressionado. Falou,
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contudo, sem acrimônia da fatalidade que acompanhava os movimentos da coluna e
várias vezes repetiu o que sinceramente lhe ia n'alma: "para um chefe era a morte
preferível ao espetáculo que desde algum tempo tinha sob os olhos". Queixou-se,
em termos comedidos, sem aquele tom acerbo de outrora, da escolha do caminho
que o haviam obrigado a seguir. —"E Nioac?, exclamava. E os nossos enfermos?
Ah! quanto quisera eu estar no lugar de um destes que acabaram!" Bem perce-
bíamos que ainda tinha qualquer coisa a nos dizer; retiramo-nos, contudo, sem que
conosco se abrisse.
Às dez da noite vieram novamente chamar-nos, de sua parte. Deixamos o
couro que com o tenente-coronel Juvêncio compartíamos, e ambos fomos com ele
ter. Já estava o comandante em conferência com o major Borges e o capitão Lago
excogitando os meios de transportar os novos doentes. Discuta-se a possibilidade
de colocá-los em metades de couros presos pelas beiras, à feição de cangalhas,
que as mulas carregadoras do cartuchame deviam levar. Era a empresa inexeqüível,
quando mais não fosse, pelo acréscimo de carga que assim recairia sobre os
soldados, já exaustos. Defendeu ele esta idéia com insistência e contra a opinião de
todos nós. Ainda desta vez nos separamos sem lhe conhecer o íntimo pensar.
Afinal, era cerca de meia-noite, e de novo convocou os comandantes e os
médicos. Acabara de tomar a suprema resolução com que, durante os últimos dias,
se embatera e cuja idéia, como recurso extremo, lhe acudira ao espírito como ao de
todos, sem que, contudo, houvesse alguém ainda ousado exprimi-la.
Depois de, em concisas palavras, haver exposto o estado das coisas, e a
urgência da avançada rápida, sem a qual estávamos todos perdidos e a
impossibilidade, agora perfeitamente averiguada e geralmente reconhecida, de
levarmos mais longe os enfermos, declarou aos comandantes que, sob a própria
responsabilidade, e em obediência a rigorosos ditames que lhe impunham este
dever, iam os coléricos, exceto os convalescentes, ser abandonados nesse mesmo
pouso! Não houve uma só voz que contra esta decisão se levantasse. A si avocava
o coronel Camisão toda a responsabilidade. Longo silêncio acolheu a ordem,
sancionando-a.
Convidou, contudo, o Coronel aos médicos que lhe apresentassem objeções,
acaso inspiradas pelo dever profissional.
Depois de alguma reflexão, disse o Dr. Gesteira que não ousava aprová-la
nem a desaprovar, só lhe competia, então, o silêncio, pois se de um lado tinha de
atender ao seu juramento profissional, por outro achava-se este, no caso atual, em
contradição absoluta com a sua consciência de funcionário público adido à
expedição.
Como desvairado, ordenou, então, o Coronel que, à luz de fachos
imediatamente na mata vizinha se abrisse uma clareira, para onde seriam os
coléricos transportados e abandonados. Ordem terrível de dar, terrível de executar;
mas que, no entanto (forçoso é confessá-lo), não provocou um único reparo, um
único dissentimento. Puseram os soldados, logo, mãos à obra como se
obedecessem a uma ordem comezinha; e — tão facilmente cede o senso moral ante
a pressão da necessidade — colocaram no bosque, com a espontaneidade do
egoísmo todos estes inocentes condenados, os desventurados coléricos, muitos
deles companheiros de longo tempo, alguns até amigos provados por comuns
padecimentos.
E, coisa que a muitos parecerá não menos espantoso os próprios coléricos,
desde os primeiros momentos, e sem que fosse necessário recorrer a subterfúgios,
resignadamente aceitaram este último golpe da fatalidade.
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Contribuíam provavelmente as dores do horrível mal para a indiferença dos
pacientes; ou talvez também a idéia do repouso substituído às torturas dos
solavancos da marcha; mas acima de tudo, este desprendimento fácil da vida,
próprio dos brasileiros e que deles, tão depressa, faz excelentes soldados. Apenas
pediam todos um favor: que lhes deixássemos água. Dominados por tantas e tão
funestas impressões nós nos reuníramos em torno da barraca do tenente-coronel
Juvêncio. Chamaram-nos a atenção os seus gemidos: acabara a moléstia de o
saltear também! Já estava irreconhecível com a voz demudada e sinistra. Foi o
nosso primeiro ímpeto correr à barraca dos médicos; dela voltávamos quando junto
a nós, reboou uma detonação, seguida de vários tiros das sentinelas inimigas. Era o
soldado de plantão do quartel-general que se suicidara; horríveis caimbras
havendo-o atacado, delas acabava de se libertar.
Ocorreram todos estes ruídos sem que o tenente-coronel Juvêncio desejasse
conhecer-lhes os motivos e até sem que parecesse percebê-los. Tomara-lhe, pouco
a pouco, a agitação o caráter de frenética alucinação.
Nós mesmos, ao seu lado, estafados pelo cansaço, esgotados por tantos
sobressaltos, mal conseguíamos combater um sono acabrunhador, pejado de
pesadelos, de desalento e carnificina.
Durou a noite inteira a trasladação das vítimas, até os primeiros albores do
dia. Neste momento de agonia dos míseros abandonados, veio o velho guia Lopes,
de regresso, desde a véspera, da excursão às suas terras anunciar a morte do filho,
de cuja moléstia já nos noticiara. Tremia-lhe a voz, mas conservava uma atitude
calma. "Meu filho morreu, disse ao Coronel, e desejo sepultá-lo em terra minha. 1:
um pequeno favor que por ele, e por mim, solicito; sua vida, como a minha, pertencia
à expedição. Deus, que tudo determina, salvou-o varias vezes da mão dos homens
para tomá-lo hoje".
Tudo, a cada momento, se entenebrecia em torno de nós. Nada mais digno
de inspirar a simpatia e a compaixão do que o aspecto do Coronel, depois da ordem
que dera, e se cumpria enquanto começávamos a marchar.
Pesar, remorso? perturbação de espírito, na apreciação dos motivos que o
haviam feito agir e parecia estar a debater intimamente, quando já as suas ordens
estavam no domínio dos fatos consumados? Certo é que, pálido como um espectro,
parava, para ouvir, como involuntariamente.
Por mais silenciosos e tristes houvessem sido os preparativos, não foi sem
gritos e ruídos estranhos ao ouvido e cuja causa assombrava o espírito, que chegou
o momento do abandono. A todos nós foi intolerável. Deixávamos entregues ao
inimigo mais de cento e trinta coléricos, sob a proteção de um simples apelo à sua
generosidade, por intermédio destas palavras escritas, em letras grandes, sobre um
cartaz pregado num tronco de árvore: "Compaixão para com os coléricos!"
Pouco tempo após nossa partida e já fora do alcance da vista, veio um
estrépito de viva fuzilaria apertar-nos os corações. E que clamores indescritíveis,
então, ouvimos! Ninguém de nós ousava olhar para o companheiro!
Pelo que depois nos contou um dos pobres abandonados, salvo
milagrosamente, vários enfermos (ele não sabia bem se houvera ou não geral
chacina) se haviam soerguido convulsamente e, reunindo todas as forças, corrido
para nós. Nenhum, porém, conseguira atingir-nos, devido à fraqueza física ou à
crueldade do inimigo. Nossa coluna tinha, contudo, demorado a marcha, instintiva-
mente, como à sua espera.
Já os nossos armões estavam sobrecarregados de novos enfermos, de
permeio com os convalescentes; e o corpo de exército, tomado do mais sombrio
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desespero, vencera, apesar do cansaço, duas léguas! A necessidade do repouso
deteve-o à margem de volumoso ribeirão que atravessava as dependências da
estancia do Jardim.
O filho de Lopes, até então transportado num reparo de peça, e escoltado
pelos amigos companheiros de cativeiro no Paraguai, foi enterrado à margem direita.
O pai que, enquanto se abria a sepultura, se mantivera a alguma distancia, disse, ao
lhe contarem que o solo estava muito úmido e até encharcado: "Agora que importa?
entreguem à terra o que lhe pertence!"
Voltava pouco depois colocar-se-nos ao lado, pálido e como exausto do
cansaço, dominando-se contudo. Sob os nossos olhos se dilatava a sua imensa
propriedade; assinalou-nos diversos pontos, por ele consagrados pelas recordações
da vida plácida que ali fora a sua. Naquele ponto, ao longe iam suas vacas beber a
água de um solo nitroso. Em outro encontrava o seu "ado, do qual parte era melo
alçado, pastagens das melhores que o detinham ou logo o faziam voltar. Outros
lugares despertavam-lhe imagens de cenas patriarcais; dominava-o febril expansão
que não conseguia reprimir.
Quando o deixamos, justamente preocupados, e apressurados pelo encontro
do tenente-coronel Juvêncio, vemos que nada mais havia a esperar do estado em
que se achava e como tanto receávamos. Indo levar notícias ao comandante, qual
não foi o nosso pavor quando o encontramos, ele próprio, por sua vez, atacado.
Deitado de costas na macega, com o chapéu no rosto desde que se levantou
e descobriu, para nos falar, vimo-lo irremediavelmente perdido; os estigmas da
cólera sobre ele se haviam impresso. Conservava, no entanto, uma calma que a
situação tornava admirável. "Vou morrer, também, pronunciou; era fatal. Salvei a
expedição. O Sr. que o sabe, há de o dizer".
Ao recomeçarmos a marcha, nem sequer experimentou montar a cavalo,
carregaram-no para um armão, onde o puseram ao lado do tenente Sílvio, já
agonizante; dois cadáveres, um perto do outro. Era-lhe a impassibilidade completa;
mãos cruzadas sobre o peito com o chapéu desabado sobre os olhos, procurava
subtrair-se aos raios do Sol deslumbrante que a esta triste cena iluminava.
Queixando-se Juvêncio de tão ofuscante claridade, corremos em busca de um
guarda-sol que vimos aberto; não conseguimos reprimir um grito de dor, en-
contrando sob este abrigo um dos mais amáveis moços da coluna, o alferes Mirá,
que expirava por entre indizíveis padecimentos. De manhã ainda o víramos válido e
bravo; derreado agora, sobre o cavalo, mal se sustinha entre os braços de um
patrício e amigo, o capitão Deslandes, que não tardaria em o entregar à terra.
Determinou-se o ponto do pouso: no meio da mangueira de Lopes. Estava a
findar o desempenho completo da missão do velho guia e este dever parecia ser o
último liame que à vida o prendia. Dissera-nos algumas horas antes: "Reparem
neste campo verde-escuro; é o meu retiro. Não chegarei até lá. Os senhores é que
breve estarão em Nioac".
Enfraquecido, arcado, caminhava cabisbaixo sobre o arção da sela.
Escaparam-lhe de repente os estribos e rolou ao chão, assaltado pela cólera.
Colocado sobre um reparo, reanimou-se um pouco, e ainda assim dirigiu a marcha.
Como o genro, Gabriel, quisesse atalhar por um capão, recomendou com voz
sumida: "Contornem 0 mato, que é muito sujo". Ao cair da noite estávamos à vista
da colina, ao pé da qual se acha o retiro, o antigo local do rodeio de gado da
estancia, que Lopes de longe nos mostrara. Declinava o Sol, do seu disco grandes
raios alaranjados se desferiam, na fímbria do horizonte, realçando a mais admirável
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perspectiva, tão bela que a memória no-la reproduz ainda agora. Estes esplendores
eternos da natureza ainda mais pungentes nos tornavam o sentimento de nossa
próxima ruína. Absorvia-nos esta contemplação quando um esquadrão paraguaio
chegou a galope com a intenção de cortar nalgum lugar a nossa linha indecisa e
descontínua. A parada instintiva que, por toda a parte, se realizou, preservou-nos do
ataque.
Acampamos naquele local, tendo vencido quatro léguas de estafante marcha,
privados como fôramos de alimentos e de sono; tangia-nos a necessidade e en-
tramos nos cercados do retiro.
Foram o coronel Camisão, o tenente-coronel Juvêncio e o guia Lopes
instalados num galpão arruinado, perto do qual acendemos grandes fogueiras, para
ver se os aquecíamos. Alguns limões e laranjas, que lhes foram dados,
acalmaram-lhes um pouco a sede. Quis ainda o Dr. Gesteira experimentar um
medicamento. "Dr., disse-lhe o Coronel, trate dos soldados. Não se canse
inutilmente comigo, sou homem morto". A calma não o abandonou um só momento.
Quando muito deixava escapar alguns gemidos surdos, ao sofrer torturas cujo
exacerbamento fazia gritar e estrebuchar os companheiros de agonia. Passou-se a
noite, para todos, numa agitação enorme. Aos lamentos respondiam outros lamen-
tos; aos horrores da moléstia acresciam os desfalecimentos da fome.
Na manhã de 27 ainda de nós se aproximou o inimigo, fazendo menção de
nos disputar a passagem do ribeirão a que dá o nome o retiro. Conteve-se, porém,
ante a atitude do 17.° de voluntários, que formava a nossa retaguarda, e assim
continuou a nossa marcha, como a da véspera. Já sem voz, era o coronel Camisão
carregado sobre um reparo de peça, Lopes sobre outro e 0 tenente-coronel
Juvêncio, assim como vários outros oficiais e inferiores, em redes. Durante a última
parada três haviam morrido. A meia légua do retiro atingimos afinal a margem do
Miranda, demasiado abatidos e acabrunhados, porém, pare podermos experimentar
a alegria com que contáramos. Via-se, à margem oposta, a case do guia, o teto
hospitaleiro onde o viandante sempre encontrara boa acolhida e a abundância de
tudo. No momento de ali chegar expirou o nobre velho, insensível à vista daquilo que
tanto amara. Foi enterrado no meio do nosso acampamento, em terra que era sua.
Os amigos lhe puseram sobre a sepultura tosca cruz de madeira.
CAPÍTULO XVIII
Chegada às margens do Miranda. Mantém-se o inimigo afastado para evitar o
contágio da cólera. O Miranda não dá vau. Alguns homens o atravessam, entretanto,
a nado, trazendo a boa notícia da existência de grande laranjal, coberto de pomos
maduros. Os caçadores recebem a ordem de tentar, em corpo, a passagem e
conseguem-no. Morte do tenente-coronel Juvêncio. Morte do coronel Camisão.
Substitui-o, no cornando, o major José Tomais Gonçalves. Instala-se um vaivém
sobre o riso. Chegam abundantes as laranjas. Seu efeito benéfico sobre os
esfaimados e coléricos.
Irremediável se afigurava a nossa situação. Os paraguaios, em torno de nós,
de observação, pareciam, como bem disse El Semanário de Assunção, anexo a este
narrativa, gozar sem perigo, e tranqüilamente, do espetáculo de nosso
aniquilamento pela fome e a peste. Tínhamos, com efeito, diante de nós um grande
rio transbordado a nos cortar a única via de salvação.
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A estação de abril a setembro não é a das águas; mas como se toda a
natureza se houvesse contra nós coligado, teis, desde 13 de maio, haviam sido as
chuva. radas que o Miranda intumescera de modo assustador, bramindo e
espumando sobre as raízes desnudadas das árvores da barranca, não dando
esperanças de permitir vau antes de alguns dias. Era, no entanto, para a Coluna, o
único meio de o transpor. Não podíamos pensar em alçar uma ponte quando mal
dispúnhamos de gente suficiente para o serviço das guardas: homens, no entanto,
bem capazes ainda de ardor e energia num combate, mas não de contínuo trabalho
manual, como este que exige uma construção de vulto. Estávamos, pois, sob os
olhos dos paraguaios, segundo uma expressão destes penes, como gado
encurralado e destinado ao corte.
Malgrado, entretanto, o aspecto ameaçador do rio, lançaram-se à água alguns
nadadores intrépidos, impelidos pela fome, e, contra a expectativa geral, após mui-
tos esforços, atingiram a outra margem, onde não encontraram vestígio algum do
inimigo. O que descobriram foi a tranqüila morada de nosso valoroso guia rodeada
de belo laranjal, cumprimento, tão agradável quanto completo, das promessas do
velho e de todas as maravilhas que do seu pomar nos referira.
Não tardou que um dos primeiros exploradores dessa terra de promissão,
lembrando dos companheiros de miséria, tivesse o mérito de, sem detença, atra-
vessar de novo o caudal. Com a descrição animada de tudo o que defrontávamos —
veio inflamar a mente daqueles que ainda haviam conservado algum resquício de
iniciativa. Como a ausência, já muito sensível, do chefe nos deixasse larga
autonomia, muitos foram os que, em tropel, correram à beira-rio, para tentar a
passagem. Muitos a experimentaram: os mais fracos ou os menos favorecidos,
traídos pelo desfalecimento, desapareceram na correnteza; outros dali,
contemplando os felizes ocupantes da margem fronteira, tomaram-se como de
desespero que quase desfechou supremo golpe nos restos da disciplina,
sobrevivente a tantos desastres. Do próprio couro em que jazia quase agonizante
ainda dava ordens o Coronel, umas, por vezes, incoerentes e inexeqüíveis, mas
outras lúcidas, e práticas. Mandou que o corpo de caçadores a pé, o único ainda não
contaminado pelo espírito de desorganização, atravessasse, quanto antes, o rio.
Guarnecendo a outra margem, devia impedir o saque do pomar até que ele,
comandante, ali pudesse ir ter a fim de proceder à justa distribuição de quanto lá
havia.
De acordo com esta prudente determinação, teve o capitão José Rufino de
fazer passar toda a sua gente - junta. Pensou, a princípio, na construção de uma
jangada, mas faltavam-lhe materiais e, sobretudo, operários. Tomou-se de
impaciência; podia contar com toda a sua tropa afeita a hábitos de austera disciplina
e, em absoluto, obediente às suas ordens. Viu os soldados porfiarem entre si, no afã
de facilitar a passagem dos oficiais. Foi ele próprio o primeiro a entrar dentro do
couro, com as quatro pontas levantadas e amarradas em forma de saco (o que se
chama pelota), a que um nadador puxa por uma corda presa entre os dentes. Assim
se pôs à frente daquela massa tumultuosa de homens.
Não os perdíamos de vista. Quando atingiram o meio da torrente, ainda os
ouvíamos, entre o marulho dos colchões, incitarem-se uns aos outros. Houve,
segundo nos pareceu, então, a todos, um momento de luta e hesitação que nos fez
por eles tremer, mas não tardaram a reaparecer, descambando para a outra
margem, embora com grande descaída. Vimo-los, enfim, sãos e salvos chegar a
fazenda do Jardim: era um consolo e uma esperança.
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Longe de amortecer, redobrara a cólera de violência. Crescia o número dos
enfermos e receávamos que, quando o rio baixasse, a ponto de nos dar mau, não
tivéssemos remédio senão abandonar segundo grupo de moribundos, à mercê do
inimigo inexorável; e só esta idéia nos causava a angústia de um pesadelo. Acabara
o corpo de artilharia de se extinguir. Depois dos mais fracos tombados nos primeiros
dias, tocara a vez aos mais robustos; caíam como para se aniquilar a arma a que de-
vêramos a salvação. Nada, entretanto, do que pudesse evitar ou combater o mal
haviam poupado os seus chefes. Dava o tenente Nobre de Gusmão,
constantemente o exemplo da dedicação pelos enfermos, e os soldados imitando-o,
entregavam-se à prática de socorros mútuos que os demais corpos ignoravam.
Tal o estado, cada vez mais deplorável, em que veio o dia 28 encontrar-nos.
De tempos a tempos íamos examinar o nível das águas para ver se baixava; pois
seria isto a nossa única via de salvação. Nada tínhamos que comer e a custo
conseguíramos, a peso de ouro, arranjar algumas 1aran]as que os nadadores mais
ousados traziam com largos intervalos. Foi este, aliás, o único conforto a que se não
mostraram insensíveis o coronel Camisão e o tenente-coronel Juvêncio, na sede da
agonia exasperada pela água.
Após a passagem do corpo de caçadores, cada vez mais considerável se
tornara o ajuntamento à beira-rio Todos os movimentos daquele batalhão, na outra
margem, acompanhados pelas nossas vistas alongadas, nós os comentávamos. De
tempos a tempos precipitava-se alguém a nado ou arriscava passar em pelota para
procurar reunir-se aos camaradas, apesar das ordens em contrário. A morte de
vários soldados, afogados, mostrara a urgência de se manter, mais rigorosa ainda, a
proibição. Não houve, entretanto, ameaças nem objeções capazes de dissuadir um
capitão do 20.° que, todo vestido, entrou numa pelota, conduzida por dois nadadores
Cria poder com eles contar, mas, no meio do rio, como as forças lhes faltassem,
entregaram-no à correnteza Vimo-lo envidar longos esforços para se manter à tona e
depois submergir-se, pouco a pouco a desaparecer, com gritos de desespero a que,
à míngua de socorro, respondiam os da multidão reunida no lugar de onde partira.
Pouco depois um nadador, chegando da margem
Era o receio infundado porém; pois é coincidência comum a todos os caudais
— depois de demorados nos transvasamentos pela própria expansão — adquirirem,
quando voltam ao leito, maior velocidade, embora transitória, que progressivamente
diminui, se não renovam as chuvas, até o momento em que as águas voltam ao
regime normal.
Neste ínterim, e por causa da afluência dos soldados à beira-rio, foi o nosso
pouso ficando deserto. Em busca de lugar fresco haviam os doentes transposto
algumas braças de um pântano que nos envolvia o acampamento e corrido mais
longe arrumar-se num bosque, bastante espesso, de ambos os lados de uma
estrada aberta que era a de Miranda. Haviam-nos seguido parentes e amigos e ali
todos se instalavam, como para ficar. Já vários soldados se tinham metido no mato,
a procura de caca, ouvindo-se os tiros que ao longe disparavam. Supusemos a
princípio fosse o inimigo, que não sabíamos onde parava. Desaparecera, ou para
preservar do contágio da epidemia que conosco arrastávamos.
Neste mesmo dia 28 morreram algumas mulheres, mais desvalidas ainda que
os demais doentes, mais desprovidas de recursos e, por motivo de sua natural
fraqueza, mais ferreteadas pelos estigmas da miséria absoluta. Quase não existia
mais entre nós a autoridade. Fora, desde o começo, frouxa às mãos do coronel
Camisão, sempre que se tornara precisa e iniciativa de uma decisão ou proceder a
uma escolha entre diversos alvitres e alternativas. Tornara-se, é certo, mais firme
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quando os reveses nos acabrunhavam, uns sobre outros; para o fim atingira o
heroísmo quando, com uma abnegação, cujo esforço indubitavelmente lhe arrancara
a vida, abandonara os enfermos para a salvação da coluna. Desde, porém, que a
cólera o atacara ia tudo ao deus-dará; sentíamos todos quanto nos era
indispensável novo chefe.
A 29 tornou-se evidente que o Coronel morreria. Por vezes, vencera o
sofrimento aquela dignidade que tanto zelara: "Dizem que a água mata, exclamava,
dêem-ma; quero morrer!" Caiu num estado de torpor e sonolência e o corpo
cobriu-se-lhe de manchas violáceas sete e meia fez supremo esforço; levantou-se
do couro em que estava deitado, apoiou-se sobre o capitão Lago perguntou-lhe
onde estava a coluna, repetindo ainda que a salvara. Depois, voltando os olhos, já
vidrados, para o seu ordenança, exclamou em tom de comando: "Salvador! dê-me a
espada e o revólver". Procurou afivelar o talim e exatamente nesta ocasião
deixou-se rolar no chão murmurando: "Façam seguir as forças, que vou descansar".
E assim expirou.
A alguns passos dali, numa barraca a todos os ventos aberta, achava-se o
tenente-coronel Juvêncio. Recobrara um fio de voz e livrara-se da horrível tortura
das caimbras, queixando-se, todavia, de forte dor no fígado. O tenente Catão, a
quem do melhor modo auxiliávamos fazia-Ihe continuamente aplicações novas, que,
contudo não o aliviavam. Tinha, constantemente, os nossos nomes nos lábios para
nos recomendar a família. Ao meio-dia acalmou-se, caiu numa letargia entrecortada
de sobressaltos, e, às três horas, expirou depois de nos entregar, para a mulher e os
filhos, uma bolsinha de couro contendo algumas economias de campanha.
Numa cova aberta, sob grande árvore, no meio da mata, enterrou-se o
Coronel com o seu uniforme e insígnias. Em outra cova, imediata, e à direita, foi o
corpo do tenente-coronel Juvêncio colocado pelos seus companheiros da comissão
de engenheiros e alguns oficiais do corpo de artilharia. Jamais se nos varrerá da
memória esta lúgubre cerimônia a que a escuridão da noite e da mata ainda mais
soturna tornavam. Eram quase sete horas quando de lá voltamos. Descansam os
nossos infelizes chefes à esquerda do Miranda, a alguma distancia da entrada do
bosque e em altura correspondente a estancia do Jardim, à margem direita. Se lhes
não profanarem os túmulos é de esperar que, um dia ou outro alguma cruz de
material duradouro, com uma inscrição, aponte à memória dos brasileiros o lugar
que recebeu os despojos destas nobres vítimas do dever (1)
Providências sabiamente combinadas seguiram de perto a morte do coronel
Camisão. Cumpria não surgisse alguma rivalidade que mantivesse a autoridade
incerta. Fora, era certo, já prejulgada a questão dos postos em comissão, por dois
ofícios do Ministro da Guerra, datados do ano anterior. Neles declarara o governo
não ter aprovado que o tenente-coronel em comissão, Enéias Galvão, simples
tenente nos quadros do exército, comandasse, como chefe interino de uma brigada,
oficiais mais antigos que ele e até capitães. O posto efetivo na primeira linha era
evidentemente, pois, uma condição de preferência e o mais antigo capitão, de todo o
corpo expedicionário, vinha a ser José Tomas Gonçalves, alias major em comissão.
Parecia assim o único que, de acordo com as instruções ministeriais, estava nos
casos de suceder ao tenente-coronel Juvêncio, substituto legal do coronel Camisão,
mas que também desaparecera.
Para evitar qualquer dissídio na eleição foram os tenentes Napoleão Freire e
Marques da Cruz, a pedido de todos, ter com o tenente-coronel, em comissão,
Enéias, convencendo-o da conveniência que, nas nossas circunstancias, havia, para
se evitar maior demora, de alegar ele moléstia que o forçasse a passar a outro
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oficial, momentaneamente, o comando do seu batalhão. A boa vontade com que
abriu mão de pretensões, pelo menos especiosas, que nos poderiam ter criado
embaraços, valeu-lhe a bem merecida gratidão de todos os camaradas. Reuniu-se,
ao meio-dia, o conselho dos comandantes. Sem o menor preambulo, para firmar os
seus direitos, e com este tom de confiança que subjuga, este ar de superioridade
indiscutida, a que se prestava a sua fisionomia vivaz e inteligente, anunciou o major
José Tomás Gonçalves a morte do coronel Camisão e a do tenente-coronel
Juvêncio, seu imediato legal. Daí lhe resultara a obrigação de assumir o comando,
como o capitão mais graduado em antiguidade. Nada lhe foi objetado. Deu-se parte
da moléstia do tenente-coronel em comissão, Enéias, assim como se notificou a
entrega do comando do seu corpo a seu imediato: o major em comissão José Maria
Borges.
Esta transmissão de poderes, regulada pela razão e o direito, e habilmente
subtraída ao jogo das paixões que podiam despertar, obteve completa sanção na
aprovação de todo o corpo do exército.
Havia, neste ínterim, baixado o rio, já oferecendo contínuo vau, embora muito
difícil ainda, devido à rapidez das águas. Teve o novo comandante a idéia de
assegurar a comunicação de uma para outra margem por meio de cabo fortemente
amarrado às árvores de ambas as barrancas.
Desde o momento em que funcionou este vaivém chegaram as laranjas,
copiosamente. Teve a sua abundância este primeiro efeito de distender estômagos
desde muito vazios. Eram, por vezes, devoradas com casca e tudo, no ardor da
fome e da sede que nos consumia. Sua maturidade e doçura convidava-nos, aliás,
ao abuso, mas os princípios medicinais que residem na essência da casca agiram
mais eficazmente ainda: diminuiu a epidemia, e quase cessou. Haveria nisto mera
coincidência? Já Lopes, contudo, nos predissera esta melhoria do estado geral.
Certo é que foram coléricos vistos — a mor parte dos quais se curaram—passar
longas horas a devorar montes de laranjas de que mal deixavam alguns restos.
Ainda neste dia vimos chegar ao acampamento, quase nu, e semelhante a
um cadáver, um dos desvalidos abandonados de 26, que, no próprio excesso do
terror encontrara restos de vitalidade que o salvaram. Caminhara de noite
arrastando-se pelos mais espessos cerra dos, e seguindo-nos as pegadas. Nem
sempre conseguira contudo, evitar os paraguaios, que, vendo o estado em que o
pusera a moléstia, se contentavam por divertimento com o moerem de pancadas.
Como lhes pedisse que o não matassem respondiam: "Não matamos defuntos,
queremos é o teu comandante". E atiravam o mísero ao solo com o conto das lanças
Assim pôde o pobre homem voltar ao nosso grêmio, após sofrimento a que poucos
organismos teriam podido resistir (2)
________________
(1) Fez o governo brasileiro, alguns anos mais tarde, exigir modesto padrão sobre os
túmulos dos dois comandantes do corpo de exército feirante. Nos últimos anos foram
estas sepulturas restauradas por ordem do General Alfredo Malan d´Angrogne,
comandante da região militar mato-grossense.
Vd. A este respeito as páginas patrióticas dos Heróis Esquecidos deste
eminente oficial-general e as não menos vibrantes e comovidas do Dr. Armando de
Arruda Pereira em Heróis Abandonados.
(2) Ao então cabo do 17 ° de Voluntários da Pátria Calixto de Andrade Medeiros,
hoje um dos três sobreviventes da Retirada, parecem referir-se os tópicos acima. Foi
estar abandonado como colérico e conseguiu reincorporar-se à coluna retirante. Em
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1919 publicou-se uma narrativa de seus sofrimentos e aventuras recolhida pelo Dr.
Godofredo Rangel. Neste relato há algumas divergências do versão consignada
nesta obra. Talvez aliás se refira o Autor a um outro colérico também escapo aos
paraguaios.
CAPÍTULO XIX
Renasce a confiança. Restabelece-se a disciplina. Passagem do Miranda. Os
canhões. Ainda o inimigo. Tomamos-lhe alguns bois que oferecem ótimo recurso.
Marcha forçada. Vencemos sete léguas! Canindé.
Apenas assumiu o comando, publicou o major José Tomás Gonçalves uma
ordem do dia em que, apelando para a coragem e os sentimentos de honra
individuais para conjurar o perigo geral, assinalava, como única tábua de salvação, a
marcha rápida sobre Nioac, a todo o transe. Imprimiu o tom vivaz desta proclamação
um frêmito de excitação moral útil para a restauração de um estado sanitário que,
dia a dia. melhorava, e fazer seguir ao abatimento dos espíritos as felizes
disposições ardorosas do novo chefe. Recomeçando os clarins a dar os toques de
ordem, às horas fixas tocaram a recolher. Já havia alguns dias que não os ouvíamos
mais; e um único corneta do quartel-general, tristemente, indicava a sucesso das
horas. Mas o que, sobretudo, causou viva e agradável surpresa foi, da outra margem
do rio, escutarmos as cornetas do nosso corpo de caçadores, que nos davam o
troco. Velava, pois, ainda, sobre nós, a regra militar; cessara o isolamento. A
distribuição de nossas forças parecia tê-las dobrado, por toda a parte,
restabelecendo a confiança e o prestígio da disciplina
Desperta sempre uma mudança de chefe a atenção geral e poderosamente a
agita, à espera da primeira manifestação sensível. O que não dissera a ordem do dia
do novo comandante exprimiram-no os atos. Tornara-se José Tomás Gonçalves a
personificação da ordem e era o seu órgão. Fez sentir-lhe a força a alguns
recalcitrantes que ousavam tentar desobedecer-lhe. Foi a repressão rápida, o que
para as turbas constitui o sinal da legitimidade do poder.
Estávamos a 30; fora dada a ordem de se transpor o rio e tudo se determinara
previamente. Regularizou-se o vaivém tão colocado. Soldados que, isoladamente,
haviam passado sem autorização foram chamados da outra margem e
reincorporados às unidades a que pertenciam após severa admoestação por esta
falta que, em campanha, e diante do inimigo, facilmente se transmita em crime
contra a segurança geral. Um sargento que, nesta ocasião, faltara ao dever foi
imediatamente rebaixado.
Bastou este ato de firmeza para reparar os males que os quatro dias de
moléstia do comandante haviam causado a disciplina. Fizera o coronel Camisão o
máximo empenho em a manter; mas ele não dispunha, como o sucessor, nosso
novo chefe, do dom de tornar fácil e agradável o cumprimento do dever, graças aos
modos afáveis; e embora estimado e respeitado pelas tropas que nele viam um
militar leal, vigilante, dedicado aos interesses da justiça e da humanidade, como o
gênio concentrado lhe desse um aspecto habitualmente sofredor acabara como por
incutir que, com efeito, a desgraça sobre ele adejava, coisa que ele próprio parecia
recear Nada há mais funesto ao crédito da autoridade: seja este o nosso último
conceito sobre tão atribulada existência.
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Quando, ao sinal convencionado, começou a passagem que, como Já
dissemos, fora determinada, tivemos sob os olhos um espetáculo que nada tinha de
desinteressante.
Já se verificara, por meio de bons nadadores, a força de resistência do cabo,
sob pesos assaz consideráveis. Agora, homens, em número sempre crescente, mas
calculado, dele se suspendiam mudando as mãos, enquanto os corpos,
completamente estirados pela velocidade da água à superfície, avançavam de
empuxão em empuxão acabando, não sem esforço nem perigo, por atingir a
margem oposta. Assim passou todo o 20.° batalhão.
Depois dele vimos coléricos tentar vencer o passo, e consegui-lo não
somente, como até ainda da prova se saírem alguns completamente curados.
Alguns houve também que se afogaram; procurávamos no começo, por meio
de boas palavras, conven-los a que esperassem; mas como tivessem presenciado
o abandono dos enfermos, ainda tão recente, não lhes saia da mente a previsão de
igual destino. Não houve consideração que os levasse a aceitar manterem-se à re-
taguarda. Teria sido preciso empregar a força para os conter; fora prudente e justo
deixá-los correr os riscos de um acaso cujos perigos queriam afrontar como se
alguma mercê implorassem.
Neste ínterim haviam armas e cartuchame sido transportados, em pelota, com
alguns enfermos quase agonizantes, a quem este favor não pudera ser recusado, no
estado de agitação convulsiva em que os punha a rapidez dos nossos preparativos
e, principalmente, a partida de outros coléricos que tinham tido forças para passar
pelo cabo.
Achando o comandante que já havia bastante gente do outro lado do rio,
resolveu que, no dia seguinte, se transportassem as nossas quatro peças de
artilharia. No meio de todas as nossas calamidades haviam-se elas constituído em
motivo de viva inquietação. Abandoná-las como troféus ao inimigo era inadmissível.
Já outrora, em conselho de guerra, deliberara o coronel Camisão a seu respeito, daí
resultando uma ata autorizando o comandante a fazê-las, em caso de premente
necessidade, desaparecer no leito de algum caudal, à maior profundidade possível,
de modo que se pudesse sempre, mais tarde, ir buscá-las, acaso por elas se
interessasse o sentimento nacional. Conhecíamos os paraguaios, porém; que
precauções poderiam ocultar-lhes tal depósito? De sobra sabiam o que tem armas
lhes haviam custado para que elas pudessem escapar às pesquisas prováveis que
não deixariam de fazer.
Fosse como fosse, ainda não nos havia sido imposto tal sacrifício, era,
sobretudo, para salvar os canhões que o major José Tomás Gonçalves tivera a idéia
da instalação do cabo, e, tomado de legítimo entusiasmo, assistira ao seu feliz
ensaio.
A 31, com a mais viva animação, puseram todos mãos à obra; não houve
quem se não prestasse, quer para trazer à ribanceira a primeira peça, quer para
multiplicar os nós da amarração em torno dos troncos de árvores da margem e os
consolidar, quer ainda para a fixação das polias que deviam facilitar o transporte.
Moveu-se, afinal, a boca de fogo e quando puxada, de modo a escorregar ao
longo do cabo, por diversas Juntas de bois colocadas na ribanceira oposta, pareceu
seguir regularmente, estrepitosas aclamações ergueram-se, em ambas as margens,
acompanhando-a até que saísse d'água No meio da corrente tanto fizera o cabo
bojar que lhe receáramos o desaparecimento completo. Menos feliz foi a segunda
peça: escapou de uma das alças, arrancou as demais e caiu no fundo do rio. Pouco
faltou para que o cabo se não rompesse. Resistindo a tão forte tensão e, de repente,
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liberto do peso que o sobrecarregava, fustigou a água com enormes jactos de
espuma, deixando, contudo, o canhão no fundo d'água. Felizmente, a nenhuma vida
comprometeu o incidente que, em ambas as margens, provocou intensa agitação.
Um soldado, cujo nome merece ser recordado, Damásio, ofereceu-se
imediatamente para mergulhar no ponto da imersão, e, tendo conseguido
reconhecer o fundo, pôde, após duas ou três emersões, para tomar fôlego, passar
em torno da peça uma corda de que se provera e serviu para a puxar. Foi a lição
aproveitada quanto aos cuidados tomados com a amarração das demais bocas de
fogo e apressou o resto da operação, permitindo completar a passagem à tarde
daquele dia e na manhã seguinte.
A primeiro de junho, à tarde, achamo-nos todos, afinal, reunidos em torno da
casa de Lopes, no seu pomar por nós despojado dos frutos, e logo, sem mais
repouso ou alimento, recomeçamos a caminhar. O inimigo, que passara para a
margem direita, lançou então os seus atiradores contra a nossa retaguarda.
Comandava-o o bizarro Pisa-flores, que, com a costumada galhardia, não tardou em
repelir este novo assalto; o único inconveniente daí resultante foi obrigar-nos a uma
parada que nos deteve até a vinda da noite, que nesta estação chega cedo. Embora
não tivesse havido contramandado algum, e apenas se interrompesse a marcha,
não foi sem alguma surpresa que, logo após o toque de recolher costumeiro,
ouvimos as cornetas dar o sinal da partida imediata. Tornou-se a impressão tanto
mais viva e penosa quanto a escuridão se tornara mais profunda, prenunciando-se
próximo temporal e mais violento ainda Cada qual, no entanto, compreendeu a
necessidade urgente de transpor, custasse o que custasse, o espaço que nos se-
parava da vila de Nica, quando o menor atraso de nossa parte podia causar-nos o
aniquilamento total.
Recomeçamos, pois, a marcha, indo à vanguarda o capitão José Rufino, que
conhecia bem o caminho. Por mais sombria e tempestuosa que estivesse a noite
não nos ocultava a estrada que diante de nós se abria, larga e plana.
Caminhávamos a passo dobrado. Restavam-nos poucos doentes, havendo vários
falecido nos dias antecedentes, e entre eles o alferes Muniz. No entanto os soldados
que se revezavam em carregar as padiolas começavam a murmurar ameaçando
desvencilhar-se da carga
Este princípio de insubordinação que tudo poderia arruinar, não teve, contudo,
tempo para progredir. Avisado, caiu o comandante, a todo galope e de espada
desembainhada, sobre os rebeldes, encontrando-os a implorar perdão.
Desde este momento reinou o silêncio na coluna, em obediência às ordens
dadas. Subitamente, no meio da estrada, surgiu uma patrulha paraguaia, a quem o
zunir do vento e o ribombo do trovão haviam encoberto qualquer suspeita de nossa
aproximação; e, ainda, sem que os seus cães, a ladrar, ou o gado, a mugir,
houvessem dado o alarma. Caminhando à frente da coluna, mandou nosso
comandante que estacássemos e deu ordem que nos preparássemos a carregar à
baioneta sobre o acampamento inimigo.
Mas já este a toda a pressa se retirava, deixando-nos o passo livre, nem tempo teve
de reunir todo o gado que tangia; estremalharam-se alguns bois que apresamos;
circunstancia para nós de inestimável valor; era a própria vida. Apesar da urgência
que nos impelia a avançar, não foi possível recusar aos soldados o tempo ne-
cessário para carrear algumas das reses apanhadas e comer um pouco da carne, às
pressas assada.
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69
Carregou-se o resto para as necessidades futuras. Atravessando o posto
abandonado, tomaram os soldados o que ainda ali havia de víveres e até couros,
que a penúria de dias precedentes lhes fazia considerar como último e precioso
recurso contra a inanição.
Recomeçando a caminhar acompanhou-nos a chuva ainda, sem que a nossa
marcha por isto se atrasasse, embora, de tempos a tempos, nos víssemos forçados
a estacar à espera da artilharia. Nos lugares piores retardava-se e, com ela, o
batalhão da retaguarda, encarregado de a escoltar. Daí, freqüentemente, resultava,
para a nossa marcha, perturbação tanto maior quando as ordens eram transmitidas
ao longo da coluna, por meio de agudos gritos, sujeitos a interpretações diversas.
Avançamos, apesar de tudo, até às quatro da madrugada Dado, então, o sinal de
alto, estrompados, e quase sonâmbulos deixamo-nos cair no chão enrolados nos
ponchos encharcados como o capim e que nos servia de colchão.
Duas horas mais tarde, às seis, estávamos de pé e graças ao que havíamos
ingerido, sentindo-nos mais fortes prosseguimos, sob um céu sereno e uma
atmosfera tépida, a nossa intérmina caminhada para Nioac, por toda a parte
percebendo, sobre a estrada, onde os paraguaios nos precediam, o rasto de seus
cavalos.
Desde a última parada atravessávamos cerrado matagal, onde os soldados,
já não mais temendo o ataque da cavalaria, marchavam com segurança, mais
afastados uns dos outros. Sabíamos que o campo raso só o veríamos depois de
Canindé. Foi às duas da tarde que avistamos a mata desse nome, que é o do rio
que a corta. A ele chegamos às três, tendo vencido sete léguas, motivo de espanto
geral, dada a fraqueza em que nos achávamos.
Ao atravessarmos o rio deparou-se-nos o cadáver de um capataz de carretas,
chamado Apolinário, a quem os paraguaios acabavam de matar. Pertencia ao
comboio daqueles mascates parados na Machorra, à espera de notícias e que, com
os boatos dos combates de 8 e 9 de maio, segundo os quais passáramos como
perdidos, cuidaram de retroceder. Vinte dias tinham gasto para atingir o Canindé,
onde encontraram os boiadeiros que ali nos deviam entregar uma boiada, mas,
antes de nossa chegada, haviam uns e outros caído às mãos do inimigo.
__________
(1) Apolinário Peralta de Sampaio chamava-se o carreteiro a que se o autor.
CAPÍTULO XX
Marcha sobre Nioac, que apenas dista duas léguas. O inimigo rodeia continuamente
a coluna. O mascate italiano Saraco.
À vista do cadáver estendido à margem do Canindé, não tivemos mais dúvida
a respeito da perda do comboio todo, da morte dos mascates e o saque das
provisões que traziam, além dos objetos que se propunham mercar por conta
própria. O que houvera sido necessário fazer, fora chegar dois dias mais cedo ao
Canindé. Teríamos, então, encontrado e protegido estes viajantes desarmados, que
regulavam sua marcha pela nossa e de quem dependera sempre grande parte do
nosso abastecimento; enfim, e sobretudo, preservaríamos de triste fado a vila de
Nioac que, evidentemente, ia ser completamente arrasada. Tudo isto compensaria,
bastante, um pouco de diligência, se para tanto fôssemos capazes.
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70
A observação maligna que daí decorreu, formulada a modo de acusação,
como sói sempre acontecer na adversidade, provocou entre os oficiais, naquele
mesmo local, discussão bastante azeda. Não foi, porém, difícil daí deduzir-se uma
justificação completa dos movimentos da coluna, desde que se soubera da chegada
à Machorra do desastrado comboio.
Para apenas falar dos últimos dias: acaso fora exeqüível mais rápida marcha?
Não estava de sobra provada a fadiga excessiva que ela nos valera? Não devêra-
mos à obrigação de salvar os canhões, o atraso de dois dias, decorridos entre a
morte do coronel Camisão e a partida da estância do Jardim? E se quiséssemos ir
além, até o momento em que preferíramos o atalho proposto por Lopes, convinha
não esquecer que, para tal escala, entre diversas vantagens, preponderara a
consideração do interesse dos mercadores que era deles desviar o inimigo,
atraindo-o sobre nós. Tomássemos a estrada batida para ir ao seu encontro, e
protegê-los, como parecia plausível, era mais que provável houvéssemos todos
sucumbido, nós e eles, até o último. Apanhando-os conosco não os teria a cólera
poupado menos do que a nós no itinerário então escolhido, fosse porque já lhes
transportássemos o germe ou os paraguaios nos houvessem contaminado. Quanto
aos contínuos ataques com que nos haviam atormentado, muito maior número de
ensejos lhes teríamos proporcionado se precisássemos atravessar tantos rios: o
Feio, o Santo Antônio, o Desbarrancado. Aí o comboio mais nos estorvaria, pois não
estaríamos em condições de o defender.
Se algum erro se cometera, devia ser atribuído aos próprios mascates,
quando ao passarem pela colônia de Miranda, tinham recusado ouvir os conselhos
de Vieira de Resende, um deles, o mesmo que víramos figurar na tomada de Bela
Vista. Propusera-lhes este homem, tenente da guarda nacional de Goiás, nortear a
marcha do comboio para a estância do Jardim, a cinco léguas, apenas, da colônia.
Ali tratariam de se emboscar na mata do rio, espera de nossa coluna, que não podia
deixar de lá chegar. E com efeito sua marcha para o norte assinalava-a no horizonte
a fumaça dos incêndios que diante dela se renovavam sem conseguir detê-la.
Mesmo que se aventasse alguma hipótese funesta, as vinte e duas carretas de
mercadorias teriam formado excelente entrincheiramento contra o embate, quando
muito momentâneo, de um troço de cavalaria, pois que, aliás, não podíamos, de
modo algum, tardar em vir libertá-los. Debalde tentara Vieira Resende fazer ainda
valer uma consideração decisiva, em relação a mercadores; acenara-lhes com o
ensejo de venderem as mercadorias com belo lucro, exatamente no momento em
que famintos iríamos sair daquelas planícies devastadas pelo fogo. Nada pudera
persuadi-los. O lado militar de tal projeto, muito de acordo com as tendências
aventurosas de quem o advogava - era esta a opinião geral - assustou aquela gente
cujos sobressaltos cresciam na razão direta dos boatos de catástrofe que por toda a
parte propalavam os nossos desertores. Persistiram na marcha para Nioac, pelo
Canindé. Ali os alcançaram os paraguaios e os dispersaram, à primeira descarga;
depois, saqueadas as carretas, empenharam-se em lhes prender os retardatários
donos, atrapalhados como muitos deles estavam pelos objetos mais preciosos de
suas cargas, que se não haviam disposto a abandonar. Inexoravelmente
perseguidos fácil lhes fora, no entanto, graças a um pouco de firmeza, colocar-se
sob a nossa salvaguarda.
Ao chegarmos ao Canindé nada mais ali havia do que destroços de toda a
espécie, juncando os dois lados da estrada alguns montes nauseosos de farinha e
arroz, amalgamados pelas bátegas de chuva, no meio das poças d'água do solo.
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Ninguém jamais imaginara que este terrível amontoado de gêneros, quase
irreconhecíveis, pudesse ser a causa de séria colisão, quase de um motim. Tal,
porém, o império do organismo debilitado, tais os reclamos dos estômagos desde
muito privados de alimento, que os soldados nele procuravam repasto com a avidez
das feras que devoram uma presa. Todos para ali quiseram precipitar-se;
romperam-se as fileiras, num tumulto inexprimível, no meio de um misto
ensurdecedor de queixas, ameaças, vociferações e risadas idiotas, à vista daquele
pasto imundo onde cada qual pretendia saciar-se. Quiseram a principio os oficiais
interpor a sua autoridade, vendo-se, porém, desrespeitados. Então um deles, o
tenente Benfica, injuriado por estes alucinados, atracou-se com um deles,
derrubou-o e o dominou com o revólver.
A surpresa causada por este ato de energia começou por conter a multidão.
Passado este primeiro momento apaziguara-se geralmente, quando súbito irrompeu
o grito: o inimigo! Quer houvesse este sido realmente divisado, quer se tratasse de
expediente empregado, graças a feliz inspiração, para que surgisse uma diversão,
ficou o ascoroso repasto esquecido.
Não teve esta desordem conseqüências. Fingiu o comandante ignorá-la como
provindo do excesso de nossas misérias e ativando, para um pouco mais longe, esta
marcha, para a qual já se não tornavam suficientes as nossas forças, ordenou logo
que fizéssemos alto e tratássemos de acampar.
Foram as disposições tomadas pelo novo ajudante do Quartel-Mestre, tenente
Catão Roxo, nomeado substituto do tenente-coronel Juvêncio. Passara o capitão
Lago a exercer o cargo de assistente do ajudante general, o tenente Escragnolle
Taunay o de secretário-geral adido ao comando. Ficara o tenente Barbosa o único
representante da comissão de engenheiros recém-dissolvida.
Duas léguas, apenas, nos separavam de Nioac e o comandante, para avisar a
nossa chegada, fez disparar, ao mesmo tempo, as nossas quatro peças,
acompanhadas de um fogo rolante de todos os batalhões.
Nesta ocasião percebeu nossa gente a irregularidade do tiro pelo fato de que
muito haviam as últimas chuvas deteriorado o armamento. Assim, pôs-se logo, e por
si, a repará-lo e experimentá-lo várias vezes, a apostar quem atiraria melhor e mais
depressa: luta improvisada que desvaneceu qualquer vestígio de torpor, chegando,
aos últimos clarões do dia, a tomar festivo aspecto. A esperança de melhores dias
está sempre pronta a renascerão no coração dos homens.
Nova fase de existência, realmente, como despontara; despertara a vida e o
nosso horrível passado da véspera a fome, a morte, sob todos os aspectos já não
nos apareciam mais senão como as alucinações dum pesadelo.
Não é que os pensamentos tristes não nos assaltassem mais, após as
realidades que presenciáramos. Contássemos quantos agora éramos! quantos
faltavam! Soavam os clarins e folgávamos em ouvi-los; mas que era feito das
músicas de nossos batalhões? Companheiras das primeiras provações da
expedição nos pantanais de Miranda, ainda luzidas, ao invadirmos o solo paraguaio,
não demorara que as dizimasse o fogo inimigo. Logo depois, à medida que as
nossas fileiras rareavam, fora necessário dentre elas recrutar soldados. Viera a
cólera acabar a obra destruidora, prostrando quatorze músicos dos que haviam
pertencido ao batalhão de voluntários de Minas.
Rapidamente percorremos no dia seguinte a distancia até Nioac, observando
com rigor a formatura adotada para atravessar os campos; e o inimigo que nos
perseguia a retaguarda não ousou empreender nenhum ataque. Mostrou-se, pelo
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72
contrário, muito afoito em bater em retirada, sempre que lhe aconteceu ficar ao
nosso alcance.
Costeávamos a margem esquerda do Nioac, e como estivessem a pastar uns
bois de tiro, que os carreiros do comboio de mascates haviam abandonado,
puseram-se alguns cavaleiros paraguaios a persegui-los. Uma companhia do nosso
21.° e uma peça foram então mandadas contra eles. Voltaram rédeas incontinente e
com tanta precipitação que provocaram o riso geral e as vaias de nossa gente.
Era o vau bom; e sem mais demora o atravessamos. A margem direita
encontramos o rasto ainda fresco da passagem de muita cavalaria e grande
quantidade de papéis rasgados, livros, talões oficiais, sujos e dilacerados que
evidentemente provinham do saque de alguma carreta brasileira, aprisionada
naquele ponto pelo inimigo e destruída, ou por ele levada.
Algumas fumaças no horizonte ainda nos revelavam a presença do adversário
e, pelo conhecimento que da permanência naquelas localidades obtivéramos,
supusemos que os paraguaios acabavam de incendiar uma espécie de aldeia, de
palhoças, que ali havíamos construído. Fez-nos isto apressar o passo e ao primeiro
relance reconhecemos que não nos enganáramos.
As três da tarde estávamos no meio dessas ruínas abrasadas que
habitáramos e a que deitamos último e melancólico olhar; o soldado e o viajante
interessam-se sempre pelos lugares onde repousaram.
Muito a propósito velo um incidente de ópera-bufa distrair-nos desta
impressão tristonha: a reaparição daquele italiano que, já no acampamento da
Laguna, nos divertira com as suas jogralidades. Contara-se, mas inexatamente, que
morrera, com os outros mascates que, por assim dizer, haviam desertado das
nossas fileiras ao atravessarmos o rio Miranda. Deles, habilmente se separara,
vagara entre Canindé e Nioac, sem noção do ponto para onde devia rumar, indo de
moita em moita, a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse
confiança. Acabara, no entanto, fazendo uma escolha e com tanta felicidade que,
naquele mesmo dia. pudera do seu refúgio ver o avanço da nossa coluna. Fora-lhe a
alegria tão viva que, por pouco, lhe ia sendo funesta.
O vestuário estrambótico e a precipitação dos movimentos fizeram-no passar
por paraguaio. Nossos atiradores da vanguarda sobre ele atiraram. Deixou-se,
então, cair como morto, na macega. Após um lapso de prudente imobilidade
começou a levantar devagarinho, no ar, na ponta de uma varinha, o cachenê; e
depois, vendo que as balas não vinham, um braço, a cabeça; e, afinal, o corpo todo,
que não era senão o do nosso amigo e velho conhecido Saraco.
Reconhecendo-o imediatamente, encheram-no os soldados de abraços,
cumprimentos e perguntas. Estava num estado de inexprimível êxtase, vendo-se
escapo aos perigos onde crera deixar a vida, e de que se via salvo, e ainda barato, à
custa da trouxa e de tantos momentos de pavor.
Quanto ao inimigo haveríamos de nos avistar com ele apenas uma última vez,
embora lhe tivéssemos ainda que sofrer o efeito da pérfida e cruel animosidade.
CAPÍTULO XXI
Nioac. Decepção; encontramos a vila saqueada, incendiada e quase destruída pelos
paraguaios. Infernal ardil de guerra. Desaparece o inimigo, definitivamente.
Regresso pacífico do corpo de exército. Ordem do dia sobre esta campanha de trinta
e cinco dias.
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73
O oficial encarregado da defesa de Nioac, durante a nossa incursão em
território paraguaio, ausentara-se da vila, a 1.° de junho, sem que ali se tivesse
notícia da aproximação do inimigo, procedendo assim contra as ordens terminantes
de 22 de maio que lhe impunham a defesa, a todo o transe, de um ponto que era a
nossa base de operações.
Não é que os víveres lhe faltassem, longe disto, deixara-lhos abundantes o
chefe da Intendência. Dar-se-ia o caso que os seus comandados, seduzidos pela
vizinhança do rio, e suas matas, houvessem desertado, um após outro, até o
largarem inteiramente só? Mas aí estavam todos os oficiais do nosso corpo de
exército concordes em atestar o espírito de submissão de nossos soldados aos
chefes. Acaso se houvesse dado um "salve-se quem puder" geral não teria podido
aquele comandante manter-se em observação pela vizinhança, onde tantos aci-
dentes de um terreno florestado lhe podiam servir de abrigo, à espera de nossa
chegada? Afastaria, assim, de si, a responsabilidade, não somente da enorme perda
de material como do novo sacrifício de vítimas humanas fruto de tão funesto
abandono. Faltou-lhe o animo desapareceu deixando ligado ao nome a
reminiscência de uma deserção em frente ao inimigo...
Tanto mais sensível e mais notada esta infidelidade quanto as demais
providências do coronel Camisão, no mesmo ofício, haviam com exação sido
observadas. As provisões de guerra e de boca, o arquivo, o dinheiro da pagadoria,
esperavam-nos nos Morros, para onde os transportara o Coronel Lima e Silva;
enquanto ele próprio, de acordo com as instruções, estacado à margem do
Aquidauana, providenciava no sentido de encaminhar em primeiro lugar tudo o que
poderia preceder-nos, enfermos, mulheres, crianças, soldados desgarrados ou
inválidos. Cuidadosamente ordenara, aliás, aos condutores das carretas, que
serviam para estes diversos transportes, voltassem sem demora, apenas
desocupados, retendo ao mesmo tempo, ao seu lado, a maioria das viaturas
carregadas de víveres, de que fizera um depósito volante, tendo em vista a nossa
próxima chegada.
Assim abandonada passara Nioac a ser a presa dos paraguaios. Tudo haviam
saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso, mas, pelo
contrário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal. Retirara-se a sua infantaria
ante a nossa aproximação, entrincheirando-se no cemitério. Seguira, então, pela
mata em direção a um vau do Orumbeva que a cavalaria reconhecera.
Sem preocupações quanto ao inimigo, fomos a toda a pressa ver o que
haveria ainda a salvar.
Esta bonita povoação, abandonada, ocupada e pela segunda vez, desde o
início da guerra, devastada, convertera-se num montão de destroços fumegantes. O
grande galpão que, outrora, nos servira de armazém de mantimentos e ainda
achamos de pé, sobre os esteios incendiados, mostrava renques de sacos que
nossa gente, sem dúvida, não tivera tempo de carregar e já serviam de pasto ao
incêndio. O arroz e a farinha carbonizados, exteriormente; o sal, gênero este tão
escasso e precioso no interior do país, negrejara e fundia sob as nossas vistas. Não
pouparam esforços os nossos soldados em salvar o que puderam.
Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de brasileiros. Constatamos que
muitos dentre estes infelizes mortos haviam servido em nossas fileiras. Desertando
por ocasião do exacerbamento de nossas misérias, e morrendo de fome pelas
matas, haviam se apressado, embora correndo o perigo de serem reconhecidos, em
tomar parte no saque.
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Fora um deles, de pés e mãos amarrados, sangrando como um porco. Jazia
outro, crivado de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios
decepados, nadava no próprio sangue.
Foi quase toda a coluna acampar por esta noite atras da igreja, sobre o
grande terrapleno que descrevemos e onde, escalonados com os canhões nos
ângulos, para maior segurança contra o inimigo, nos apoiávamos à mata do rio. Ali
gozamos, enfim, um pouco de verdadeiro descanso. Dupla e tripla ração se
distribuiu; permitiam-no as circunstancias; sentia-se o comandante feliz por contentar
os soldados, quanto possível. Pela primeira vez, e desde muito, podíamos contar
com o dia de amanhã. Restavam-nos, apenas, para nos pôr fora de qualquer perigo
eventual, fazer quinze léguas, a caminhar por excelente estrada, de Nioac ao
Aquidauana onde éramos esperados. E para tal marcha tínhamos víveres sobejos.
Foi a noite calma, como tudo prenunciava dever suceder. Apenas amanheceu
fizeram os soldados uma visita às ruínas da aldeia. Acabaram tomando tudo o que
aos paraguaios escapara. Graças a esta sucessão de roubos desaparecera, em
alguns meses, destas terras novas o pouco que o incipiente comércio ali introduzira,
como mecanismos e ferramenta, tudo, enfim, o que o trabalho conseguira juntar de
frutos e poupança.
Durante a última estada em Nioac depositáramos na igreja muitos e diversos
objetos, o instrumental das bandas de música, munições de guerra etc. Consta que
os paraguaios encontraram ainda muita coisa deste apetrechamento, não lhes
havendo chegado o tempo para tudo carregar. Existia ali grande reserva de
cartuchos e foi, talvez, o que Ihes sugeriu a primeira idéia da horrível maquinação
que tanto lhes condizia à feição cruel.
Depois de carregarem o que mais poderiam aproveitar, deixaram o resto por
destruir, para nos engodar e nos reter o maior lapso de tempo possível em torno de
um amontoado de objetos, sob o qual colocaram um barril de pólvora com rastilhos.
Não podíamos ter a menor suspeita de semelhante cilada; e, à vista dos cartuchos
que devíamos transportar, tomamos as precauções costumeiras contra as
eventualidades de uma explosão. Enquanto na igreja trabalhava o nosso pessoal
sentinelas vigiavam, a fim de que nenhum fogo se acendesse pela vizinhança.
Ocorreu, contudo, que um infeliz soldado encontrasse pelo chão um isqueiro,
dentro do edifício, e lhe viesse a estapafúrdia idéia de o utilizar. Saltou logo uma
faísca sobre alguns grãos de pólvora dos que coalhavam a nave. Sem a umidade do
solo, então muito grande ou acaso fossem os rastilhos contínuos, instantânea
ocorreria a explosão. Para melhor nos enganarem haviam os paraguaios espalhado
a pólvora sóbria e desigualmente com o minucioso cuidado, e os cálculos ardilosos
do selvagem que preparara os seus malefícios Só se viu, a princípio brilharem
pequenas chamas e aqui e acolá se levantarem sucessivamente ligeiras espirais de
fumaça. Já os soldados se precipitavam para conter o fogo, no momento em que ele
tomava corpo, quando os oficiais presentes, compreendendo melhor o perigo,
ordenaram que imediatamente fosse a igreja evacuada. A esta voz correram todos,
em massa, para as portas; como o atropelo perturbasse a saída, deu-se a explosão
antes que toda a gente se achasse do lado de fora. Pouco faltou para que todo o
edifício voasse aos ares; foram as paredes sacudidas, mas o conjunto resistiu; assim
não sucedera e teriam todos os nossos, que ali se achavam, infalivelmente perecido
esmagados sob os escombros.
Terríveis de se ouvir e sentir, até no ponto distante em que nos achávamos
com o comandante, foram o estampido e o abalo. Grande grito acompanhou a explo-
são seguida de silêncio, depois novo e horrível clamor e ainda pausa. Soaram os
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clarins; julgando todos que era o inimigo, os corpos entraram em formatura. Já nos
precipitáramos para a igreja; dela saíam, dentre turbilhões de fumo, irreconhecíveis
formas, fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo. Ardiam uns com as
roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos,
soltavam urros; alguns ainda rodopiando como alucinados já se debatiam nas
angústias da agonia. Perdera um soldado negro toda a epiderme do rosto,
arrancada como uma máscara. Era-lhe o corpo sangrenta chaga. Um sargento,
cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implorava, por misericórdia, que
o acabassem com uma bala ou um pontaço. Morreram ali mesmo, no local, uns
quinze desventurados.
Todos aqueles a quem podia a arte valer, ou para lhes diminuir o sofrimento
ou para os salvar, passaram a ser o objeto do desvelo dos médicos e das nossas
preocupações. A nossa compaixão para com eles acrescia a indignação contra os
autores deste cruel atentado; não houve depois dentre as vítimas arrebatadas à
morte nenhuma cuja cure não saudássemos como verdadeira felicidade geral.
Foi o adeus dos paraguaios, a última demonstração de seu ódio contra nós.
Sem nos abandonar de todo, porfiavam, contudo, em só se deixar entrever fora de
alcance.
A 5, entretanto, ao radar do dia, saímos da infeliz e bela Nioac, afinal,
aniquilada com a sua igreja. Seguíamos a estrada do Aquidauna e marchávamos
penalizados sob a impressão do funesto sucesso da véspera.
A sodas as vicissitudes atravessadas viera ajuntar-se a angústia da véspera.
Já era muito porém, era legítimo triunfo estarmos de pé e ter dominado um inimigo
tão perfidamente encarniçado em nos arruinar.
Foi o Orumbeva facilmente transposto. À margem direita paraguaios
acabavam de queimar, muitos víveres e objetos de apetrechamento espalhados e
todos sujos de terra como já na barranca do Canindé encontráramos; cadernos
dilacerados, folhas soltas ao vento, notas, entre as quais o autor desta narrativa
reconheceu a própria letra, e agora truncadas e inúteis.
A alguma distancia deste caudal aguardava-nos, tal a primeira impressão,
nova cilada, cujos efeitos foram, contudo, muito diversos de um desfecho trágico.
Duas pipas, daquelas em que se conserva a aguardente de cana, ocupavam o meio
da estrada. Lembrando-se da explosão da igreja e temendo algum novo
estratagema, da parte de um inimigo que nenhum escrúpulo Parecia poder conter,
apressou-se o capitão Pedro José Rufino e precipitando-se sobre os tonéis
arrombou-os com os copos da espada.
A vista do liquido, que a jorros corria, alguns soldados não podendo conter-se,
ajoelharam-se ou deitaram-se de bruços, para alcançar o seu quinhão, espetáculo
acolhido pelas gargalhadas, que se generalizaram em toda a linha.
Não teve o incidente outras conseqüências: pacificamente continuamos a
marcha até o ribeirão da Formiga, perto do qual acampamos, ainda contemplados
nesta nova fase de abundância pelo encontro de bom número de bois, em ótimas
condições.
A 6 rumamos para nordeste, seguindo grande caminho a que numerosas
moitas de taquaruçus dão o nome e aberto através da mata cerrada, que tanto se
presta a surpresas. Nada, porém, ali, nos sobressaltou a marcha.
A medida que percorríamos estes terrenos a nós familiares e aos paraguaios
menos conhecidos, cada vez mais frouxa e inofensiva se tornava a perseguição,
embora não houvesse inteiramente cessado. Fizemos neste dia ponto, junto a um
lindo ribeirão chamado das Areias. No dia seguinte, 7, quase vencemos as quatro
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léguas que medeiam deste ponto ao rio Taquaruçu. Atingimo-lo a 8 e, como a altura
das águas não nos permitisse vadeá-lo, acampamos à sua margem.
Noite para nós memorável, esta! Foi ai que os paraguaios, avistados a
alguma distancia, se decidiram, enfim, a desaparecer. Deles próprios partiu o aviso
da retirada, com uma fanfarra prolongada de clarins que tal sinal deu, mais lisonjeiro
a nós outros de que a eles. Não se fizeram nossas cornetas rogadas, aliás, em asso-
ciar-se àqueles toques com um estrépito a cujos ecos estremeceram longamente
aquelas solidões. Soubemos, alguns dias mais tarde, que se haviam dirigido para
Nioac, e, depois de recolhidas todas as suas patrulhas, pelo Apa regressado ao
território de sua república.
Quanto a nós, cada vez mais bem providos de víveres, graças a um rebanho
enviado das margens do Aquidauana, depois de um ofício do nosso chefe, ao
coronel Lima e Silva, transpusemos, a 9, o Taquaruçu e, a 10, duas léguas adiante,
um rio chamado Dois Córregos. A 11 (1) chegamos ao porto do Canuto à margem
esquerda do Aquidauana. Tal o último trecho de nossa penosa retirada. Ali findou o
doloroso itinerário que, como expiação de nossas temeridades, nos fizera curtir
tantas misérias quantas pode o homem suportar sem sucumbir. No Canuto nos
despojamos dos miseráveis andrajos que nos cobriam, libertando-nos, afinal, da
mais horrível sevandija e dos parasitas do campo, que, perfurando a pele, nela
produzem dolorosas úlceras. Oferecia-nos o magnífico ensejo para as nossas vidas.
Todas estas paragens podem ser chamadas: a terra das águas belas.
A 12 de junho baixou uma ordem do dia do nosso valente chefe José Tomás
Gonçalves, em poucas palavras resumindo os acontecimentos desta terrível
campanha de cinco dias: "A retirada, soldados, que acabais de efetuar, fez-se em
boa ordem, ainda que no meio das circunstâncias as mais difíceis. Sem cavalaria
contra o inimigo audaz que a possuía formidável, em campos onde o incêndio da
macega, continuamente aceso, ameaçava devorar-vos e vos disputava o ar
respirável, extenuados pela fome, dizimados pela cólera que vos roubou em dois
dias o vosso comandante, o seu substituto e ambos os vossos guias, todos estes
males, todos estes desastre vós os suportastes numa inversão de estações sem
exemplo, debaixo de chuvas torrenciais, no meio de tormentas de imensas
inundações, em tal desorganização da natureza que parecia contra vós conspirar.
Soldados! honra à vossa constância, que conservou ao Império os nossos canhões
e as nossas bandeiras!" (2),
(1') No dia da invasão do território paraguaio, Isto 6, em abril de 1867, era
efetivo da coluna de 1680 soldados. A 11 de junho reduzira-se a 700 combatentes .
Perdêramos pois 908 soldados pela cólera e o fogo. Morrera além disto grande
número de índios, mulheres e homens negociantes ou camaradas que haviam
acompanhado a marcha agressiva do nosso corpo.
FIM
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