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7. ANEXO
Barba Azul
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de
ouro e de prata, móveis forrados com bordados e carruagens douradas. Mas, por desgraça, tal
homem tinha a barba azul, o que o tornava tão feio e horripilante, que toda mulher ou moça
fugia ao vê-lo.
Uma das suas vizinhas, senhora de qualidade,
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tinha duas filhas muitíssimo bonitas.
Ele lhe pediu uma em casamento, e lhe deixou a liberdade de escolher aquela cuja mão
quisesse dar-lhe. As duas não o queriam de modo algum, e resolveram conversar sobre o
assunto, e, ao final, nenhuma estava disposta a casar-se com um homem que tinha a barba
azul. O que as desgostava mais era o fato de que ele já havia desposado várias mulheres, e
ninguém sabia o que tinha acontecido com elas.
O Barba Azul, para decidi-las, levou-as junto com a mãe e três ou quatro das melhores
amigas delas, e alguns jovens das vizinhanças, à sua casa de campo, onde ficaram oito dias ao
todo. Só havia passeios, caçadas e pescarias, danças e banquetes, comilanças. NINGUÉM
dormia, e todos passavam a noite a fazer delícias uns para os outros. Enfim, tudo ia tão bem,
que a caçula começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul, e que era um
homem muito distinguido. Assim que voltaram à cidade, foi realizado o casamento.
Depois de um mês, o Barba Azul disse à mulher que se via forçado a fazer uma
viagem pelo interior, de pelo menos seis semanas, para tratar de um negócio importante.
Pedia-lhe que se divertisse durante sua ausência, que chamasse as boas amigas, que, se
quisesse, as levasse ao campo, e que as recebesse bem, dando-lhes a melhor comida.
─ Aqui estão ─ disse ele ─ as chaves de todos os aposentos. Estas são as chaves do
cômodo onde estão as baixelas de ouro e de prata, que não se usam todos os dias; estas são as
dos meus cofres onde está o meu ouro e a minha prata; estas, as dos cofrinhos onde estão as
minhas pedras preciosas. Esta pequenina é a chave do gabinete que fica no fim da grande
galeria do andar térreo: abra tudo, ande por toda parte, mas não nesse gabinete. Eu a proíbo de
nele entrar, e de maneira tal que, se o abrir, será o objeto de minha cólera.
Ela prometeu fazer exatamente tudo o que ele lhe acabara de ordenar. E ele, depois de
beijá-la, sobe à carruagem, e segue caminho.
As vizinhas e as boas amigas não esperaram convites para ir à casa da recém-casada,
de tão impacientes que estavam para ver todas as riquezas dela, pois não ousaram visitá-la
enquanto o marido lá estava, devido à sua barba azul, que lhes metia medo. Logo, se puseram
a percorrer os cômodos, os quartos de dormir, os guarda-roupas, uns mais lindos e mais ricos
do que os outros. Em seguida, subiram às salas, onde não conseguiam parar de admirar tantas
e tão belas tapeçarias, camas, sofás
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, gabinetes, mesinhas de centro, mesas, espelhos, onde se
miravam dos pés à cabeça, e cujas molduras, umas de vidro, outras de prata e de cobre
dourado eram as mais lindas e mais magníficas jamais vistas. Não paravam de exagerar e
invejar a felicidade da amiga, que, entretanto, não se divertia nada ao ver todas aquelas
riquezas, por causa da impaciência que tinha de abrir o gabinete do andar térreo.
Estava tão premida pela curiosidade que, sem pensar que era pouco cortês deixar as
convidadas, para lá desceu por uma escadinha oculta, e com tanta precipitação, que duas ou
três vezes, achou que ia quebrar o pescoço. Já na porta do gabinete, ali parou por algum
tempo, pensando na proibição do marido, e achando que lhe poderia acontecer uma desgraça
por ser desobediente. Mas a tentação era tão forte que não conseguiu vencê-la. Então pegou a
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No século XVII, era chamada de “pessoa de qualidade” quem pertencia à nobreza (tanto o gentil-homem,
quanto a senhora e a senhorita).
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A moda dos sofás era recente na época de Perrault.