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LEANDRO PASSOS
RAPTO E ABSORÇÃO: REFERÊNCIAS CLÁSSICAS EM CONTOS DE AMOR
RASGADOS DE MARINA COLASANTI
Dissertação apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, câmpus de Araraquara, para
obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários
Orientador: Prof. Dr. João Batista
Toledo Prado
Araraquara
2008
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Passos, Leandro.
Rapto e absorção : referências clássicas em Contos de amor
rasgados de Marina Colasanti / Leandro Passos. - Araraquara :
[s.n], 2008.
175f. : il ; 30 cm.
Orientador: João Batista Toledo Prado
Dissertação (mestrado) Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Ciências e Letras
1. Literatura brasileira – História e crítica. 2. Contos
brasileiros História e crítica. 3. Intertextualidade. 4. Mitologia
na literatura. 5. Simbolismo nos contos de fada. 6. Colasanti,
Marina, 1937- - Contos de amor rasgados Crítica e
interpretação. I. Prado, João Batista Toledo. II. Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras. III. Título.
CDU 821.134.3(81).09
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LEANDRO PASSOS
RAPTO E ABSORÇÃO: REFERÊNCIAS CLÁSSICAS EM CONTOS DE AMOR
RASGADOS DE MARINA COLASANTI
COMISSÃO EXAMINADORA
Titulares
Prof. Dr. João Batista Toledo Prado (orientador)
Profa. Dra. Karin Volobuef (UNESP – FCL)
Prof. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos (UNESP – IBILCE)
Suplentes
Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti (UNESP – FCL)
Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta (UNESP – IBILCE)
Araraquara, 17 de janeiro de 2008
4
À minha eterna musa mãe Maria Inês e ao sátiro irmão Alexandre
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pela oportunidade de trabalho em vida.
A minha “sagrada família” pelo constante apoio e incentivo: meu pai Jair, meus irmãos
Alexandre e Luana. À Magê, sempre presente. Ao EdinalDU pela paciência em ouvir às
vezes as mesmas “narrativas do périplo do trabalho”.
Aos meus amigos apaixonados pela arte da linguagem Angélica, Denise, Kelly, Lígia,
Nilda, Priscila, Sérgio, Solange e todos que me acompanharam às “idas” ao passado
clássico e ao “retorno” à contemporaneidade.
Ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários.
Aos professores incentivadores Prof. Dr. Cláudio Aquati, Profa. Dra. Araguaia, Profa.
Dra. Celeste Ramos, Prof. Dr. Sérgio Motta, Profa. Dr. Karin Volobuef e Profa. Maria
Celeste Dezotti.
Aos funcionários da Pós sempre prestativos.
Ao meu orientador, Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, por acreditar na realização do
trabalho, pela tranqüilidade na orientação e pela liberdade de escolhas a mim concedida.
À CAPES (2006/2007) e ao CNPQ (2007/2008) pelas bolsas concedidas.
A todos que colaboraram de modo direto e indireto na realização desse trabalho.
6
É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo
onde predomina a atualidade mais incompatível.
Ítalo Calvino
7
PASSOS, Leandro. Rapto e absorção: referências clássicas em Contos de amor rasgados
de Marina Colasanti. 175f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara,
2008.
RESUMO:
Esta dissertação propõe-se a analisar o livro Contos de amor rasgados (1986), de Marina
Colasanti. Nessa obra, percebe-se que a escritora, famosa e estudada pelas narrativas
voltadas ao público infanto-juvenil, mantém o diálogo com as formas simples (mito e
conto maravilhoso), como as define Jolles (1976), mas altera os significados simbólicos
presentes nessas narrativas clássicas. Em Contos de amor rasgados, o passado é raptado,
inserido no cotidiano de relacionamentos amorosos e absorvido por uma linguagem
literária que nos mostra a sensualidade e a subversão na narrativa da escritora em estudo.
Por isso, foram selecionados aqui os contos que dialogam com o passado clássico (rapto),
alteram os significados desses conteúdos (absorção) e sugerem a sensualidade, ora de
forma velada, ora explícita. Diante disso, os objetivos deste trabalho são: (i) analisar de
que maneira se dá a inserção dos mitos e dos contos maravilhosos nos textos selecionados,
destacando os efeitos obtidos com os possíveis desvios ou confirmação dos sentidos dos
textos antigos na obra moderna; (ii) evidenciar: a) quais os efeitos que se obtêm com a
inserção dessas formas simples; b) como são trabalhados os temas dos relacionamentos
amorosos e da vida, presentes nos contos, sobretudo porque a simbologia dos mitos e dos
contos maravilhosos nem sempre significa hoje o que significava no passado.
Palavras-chave: Marina Colasanti; conto; formas simples; literatura clássica; imagem;
subversão.
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PASSOS, Leandro. Abduction and absorption: classical references in Contos de amor
rasgados, by Marina Colasanti. 175f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras,
Araraquara, 2008.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the book Contos de amor rasgados (1986), by Marina
Colasanti. In this book, the writer whose fame was achieved by narratives directed to
children and teenager readers, engages in a dialogue with simple forms (Myth and Folk
Tale), as defined by Jolles (1976), altering the simbolic meanings of these classical
narratives. In Contos de amor rasgados, the past is abducted, inserted into the daily
routine of romantic relationships and absorbed by a literary language that shows us the
narrative’s sensuality and subversiveness. That is the reason why the short stories selected
for analysis were those in which the classical past is abducted, the meanigs are altered
(absorption) and sensuality is sugested, either explicitly or inconspicuously. That in mind,
this paper’s goals are: (i) to analyse the way Myths and Folk Tales are inserted into the
selected texts, pointing out the effects of meaning change or maintenance in the modern
writings; (ii) to clarify: a) the effects of the simple forms’ insertion; b) the way romantic
and life relationships’ themes appear in the narratives, maily because Myths and Folk
Tales’ symbolic meanings in the past are not necessarily the same nowadays.
Keywords: Marina Colasanti; short story; simple forms; classical literature; image;
subversion.
9
SUMÁRIO
1. Introdução ......................................................................................................................11
2. Contos de amor rasgados: contos rasgados de amor rasgado ........................................16
3. O rito e o mito nos contos ..............................................................................................26
3.1. Literatura e rito primitivo ............................................................................................27
3.1.1. “Uma questão de educação”: entre a rudeza e a polidez ..........................................35
3.1.2. O rito fora da moldura ..............................................................................................42
3.2. Literatura e mito antigo ...............................................................................................43
3.2.1. O mito clássico das flores ........................................................................................48
3.2.1.1.. O mito das flores na contemporaneidade .............................................................62
3.2.1.2.. A (de)floração, a violação e o estupro dos signos.................................................71
3.2.1.3.. O mito deslocado .................................................................................................73
3.2.2. Da melopéia à música de Roberto Carlos: a sereia desautomatiza de Contos de amor
rasgados..............................................................................................................................75
3.2.2.1. As ilhas Sirenusas e a nau de Ulisses: o espaço mítico .........................................76
3.2.2.2. O conto desencanta o canto: a sereia na banheira entre azulejos .........................81
3.2.3. É fogo que arde ........................................................................................................93
3.2.3.1. O ritual e o mito de Shiva e a sua esposa sati .......................................................94
3.2.3.2. É como se fosse na Índia .....................................................................................100
3.2.3.3. A história de Pigmaleão ......................................................................................104
3.2.3.4. A verdadeira estória da história de Pigmaleão ....................................................107
3.2.3.5. Preparação, contemplação, encontro, perpetuação e destruição: os instantes dos
relacionamentos ................................................................................................................113
3.2.4. O único momento de completude de Sísifo ...........................................................118
3.2.4.1. A tarefa no conto .................................................................................................121
10
4. Formas simples conto maravilhoso na contemporaneidade .........................................125
4.1. A curiosidade feminina e a crueldade masculina em “Barba Azul” de Perrault........130
4.2. A permanência da curiosidade feminina e a ausência da crueldade em “De um certo
tom azulado” de Marina Colasanti ...................................................................................142
4.3. “O Rei Sapo ou Henrique de Ferro” de Grimm e a preferência do belo ao grotesco
...........................................................................................................................................148
4.4. “Perdida estava a meta da morfose” de Marina Colasanti: o grotesco torna-se belo
...........................................................................................................................................153
4.5. Ressignificação de Perrault e Grimm em Colasanti: a transfiguração feita pela
linguagem lúdica ..............................................................................................................158
5. Rapto e absorção em Contos da amor rasgados ...........................................................163
6. Referência bibliográfica ...............................................................................................167
7. Anexo............................................................................................................................172
11
1. INTRODUÇÃO
É pertinente reforçar a idéia de que a escolha dos contos em questão se justifica,
primeiramente, porque fazem parte de uma obra da escritora Marina Colasanti pouco
estudada. Essa obra diferencia-se das demais da mesma escritora, porque o universo
maravilhoso dos contos de fadas e dos mitos clássicos é resgatado, ali, de um modo sensual e
subversivo.
Trabalhar com Contos de amor rasgados, além de mostrar a “outra face” da narrativa
de Marina Colasanti, premiada escritora de literatura direcionada para crianças e jovens,
possibilita explorar sua escrita poética, que mantém, em seus procedimentos de composição
literária, o resgate das formas simples (mito e conto maravilhoso), voltado, porém, para um
público adulto.
Contos de amor rasgados contêm uma série de contos que tratam do cotidiano
amoroso, seja de marido e mulher, de namorados ou de amantes em relações extraconjugais.
O teor de sensualidade é extrapolado no livro em estudo, principalmente se comparado a
outras obras da autora, tais como Uma idéia toda azul (1979), Doze reis e a moça no labirinto
de vento (1982), A menina arco-íris (1984), Ofélia a ovelha (1989), Entre a espada e a rosa
(1992) e Ana Z, aonde vai você? (1994). Foi baseado nessa particularidade da obra que foram
selecionados para a análise os contos que, além de conter a presença das formas simples,
apresentam a sensualidade de forma velada e, às vezes, explícita.
Além dessas questões, foi possível analisar a independência do texto em relação ao
seu escritor. Se se consideram as obras da escritora em estudo como sendo todas direcionadas
ao público infanto-juvenil, estaremos colocando sua obra poética numa “moldura” ou numa
“fôrma” da qual sairá somente após muitos estudos. Afinal, Marina Colasanti também escreve
crônicas, tais como Eu sozinha (1968) e A casa das palavras (2002); ensaios jornalísticos
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como Intimidade pública (1990) e Fragatas para terras distantes (2004); poesia, tais como
Rota de Colisão (1993) e Poesia em 4 tempos (2005 prelo).
Assim como Contos de amor rasgados, as obras Zooilógico (1975) e A morada do ser
(1978) são direcionadas ao público adulto e precisariam ser estudas com o mesmo empenho e
rigor crítico que as demais, que já tiveram a fortuna de merecem estudos específicos. Somente
assim, a escritora e seus textos deixarão de ser vistos apenas como direcionados ao público
infantil e infanto-juvenil, nem por isso desprovidos de valor literário.
Ao inserir elementos simbólicos oriundos das formas simples (como as chama Jolles,
1976), na obra Contos de Amor rasgados, a escritora Marina Colasanti os deslocou de sua
origem primeira e os inseriu em um contexto novo. Assim, eles passam a figurar em um
universo fictício específico em que operam outras significações, ou seja, figurativizam
“fragmentos de relacionamentos amorosos”.
Retomá-los não implica apenas uma entrega passiva ou encantada às suas imagens,
funções e simbologia, mas um gesto duplo de recusa e esvaziamento, aproximação e
distanciamento, contemplação e crítica. É desse modo que as formas simples vêm sendo
raptadas e absorvidas pela consciência do homem moderno.
É por isso, pois, que tivemos a preocupação de fazer uma “leitura cuidadosa”, a fim de
identificarmos os possíveis sentidos velados nos contos selecionados. Portanto, as
observações realizaram-se por meio da visão de leitura proposta e explicitada por Barbosa
(1990), na qual o que lemos é o “intervalo”, espaço construtivo em que são segregados os
sentidos e se estabelece a articulação entre a realidade de fora e a de dentro do texto.
A escritora em estudo utiliza os mitos, os contos maravilhosos e as lendas como
material para compor sua escrita poético-narrativa. Logo, castelos, princesas, reis, rainhas,
aldeias e todos os elementos da Idade Média estão presentes em suas obras. Em Contos de
amor rasgados, essas narrativas “clássicas” são re-configuradas. O termo clássico é visto,
13
neste trabalho, como obras que “exercem uma influência particular quando se impõem como
inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como
inconsciente coletivo ou individual” (CALVINO, 1993, p. 10-11). Para Calvino, existem
obras que, embora estejam esquecidas ou “adormecidas” permanecem no nosso inconsciente e
deixam registradas suas “sementes”. Ainda conforme o crítico, é “clássico aquilo que persiste
como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (p. 15).
Baseados nesses posicionamentos de Ítalo Calvino (1993) sobre o clássico, optamos
por levar em consideração a peculiaridade das narrativas clássicas (mitos e contos
maravilhosos) e analisamos os textos-base. Recorremos às Metamorfoses de Ovídio para os
mitos de Orfeu, das flores e de Pigmaleão. A Odisséia de Homero serviu-nos para mostrar a
perversidade das sereias, figuras femininas da morte. A Teogonia e Os trabalhos e os dias de
Hesíodo permitiram-nos analisar o mito de Pandora. Para o mito indiano de Shiva e Sati, por
sua vez, utilizamos a adaptação de Coomaraswamy e Nivedita (2002). Os contos
maravilhosos “Barba Azul” e “Rei Sapo ou Henrique de Ferro” foram retirados,
respectivamente, das versões de Perrault e Grimm.
A fim de destacar que o resgate ao clássico mítico é uma das peculiaridades da
contemporaneidade, levamos em consideração os apontamentos de Frye (2000), ao dizer que
os artistas, sejam escritores ou pintores, se interessam pelos mitos e por arranjos de naturezas
mortas porque ilustram princípios essenciais de narração. As pinturas inseridas na dissertação
são: Vaso com girassóis de van Gogh (1888-1889), Le viol (The rape) de R. Magritte (1934),
Pigmaleão e Galatea de Jean-Gérome (1980), além da capa da obra em estudo e a imagem do
texto publicitário da cerveja Skol. A inserção das pinturas e o respectivo diálogo com os
contos da escritora Marina Colasanti, aliás, surgiram após as análises dos textos narrativos
que, por sua vez, mostraram princípios de significação distintos dos textos visuais e dos
respectivos mitos que retomam.
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Uma vez que Contos de amor rasgados dialoga com os clássicos e incorpora, em
diferentes momentos, traços do absurdo, do estranho e do maravilhoso, baseamo-nos nos
conceitos equivalentes de Todorov (1975) e de Chiampi (1980). Quanto ao tratamento do
conto e sua estrutura concisa, direcionamo-nos a Cortázar (1974), Gotlib (1991) e Moisés
(1971). A fim de ressaltar o modo como os contos analisados “quebram” a simbologia
clássica, baseamo-nos em Brandão (1987, 1992, 1993), Chevalier (1988), Távola (1985),
Eliade (1972), Lévi-Strauss (1987), Bettelheim (1980) e outros.
Inicialmente, analisamos os textos antigos, para, depois, verificarmos de que modo o
conto contemporâneo os resgata e os absorve. Convém ressaltar, contudo, que a dissertação
não se marca, essencialmente, por um “caminho” teórico tomado como fim em si mesmo. Por
isso, as discussões teóricas se mesclam às reflexões sobre a própria obra em estudo e à sua
análise.
Na seção 2, “Contos de amor rasgados: contos rasgados de amor rasgado”, elucidamos
o fazer poético da obra em questão: o convite para a inserção do leitor em um mundo estranho
e maravilhoso, característica que se mantém do Prólogo (“Enfim, um indivíduo de idéias
abertas”) ao último conto (“Um tigre de papel”).
As definições de rito e mito encontram-se na seção 3, com a análise dos contos “Uma
questão de educação” que retoma o rito de decapitação, esquartejamento e canibalismo. Os
contos “De floração”, De fato, uma mulher preciosa”, “De água nem tão doce”, “Ao largo
das ilhas sirenusas”, “Como se fosse na Índia”, Verdadeira estória de um amor ardente”, e
“Ela era sua tarefa” retomam os mitos greco-romanos e indianos.
As análises e discussões dos contos “De um certo tom azulado” e “Perdida estava a
meta da morfose”, que remetem aos contos maravilhosos, localizam-se no item 4, seguidas de
“Rapto e absorção em Contos de amor rasgados”, no item 5, a referência bibliográfica e o
anexo nos itens 6 e 7.
15
Contos de amor rasgados (capa). Marina Colasanti
16
2. CONTOS DE AMOR RASGADOS: CONTOS RASGADOS DE AMOR
RASGADO
A obra Contos de amor rasgados, da escritora Marina Colasanti, compõe-se de
noventa e nove contos curtos. Uma das peculiaridades do livro é a menção a outros textos:
mitos, lendas, contos maravilhosos, pinturas, acontecimentos históricos, etc. A retomada,
contudo, não é feita com o mesmo sentido “primeiro”, uma vez que é inserida no cotidiano de
relacionamentos amorosos, ocorrendo, desse modo, uma “virada ou rodada” no eixo dos
textos-base raptados.
O material de Marina Colasanti para compor suas obras é o texto maravilhoso e
fantástico: contos populares, contos de fadas, mitos diversos, etc. A partir deles, a escritora
“tece” a sua obra ficcional, criando personagens, tramas e enredos. É por isso que os trabalhos
acadêmicos sobre Marina Colasanti propuseram-se a analisar a presença desses textos nas
suas obras narrativas.
O trabalho de Mara Lúcia David (2001) priorizou a análise de como a escritora traz
para sua obra (Uma idéia toda azul, 1979; Doze reis e a moça no labirinto, 1985; e Um
espinho de marfim e outras histórias, 1999) elementos das narrativas orais, entre elas, as que
falam da cosmogonia: alguns mitos importantes da Grécia, como o mito de Penélope, de
Aracne, de Narciso, de Eco e alguns elementos dos contos de fadas. Entretanto, a estilização,
e não aparódia, foi destacada com maior freqüência nessa dissertação de mestrado.
Ana Maria da Silva (2001), por sua vez, investigou como se expressa a imagem do
“fio” nos contos de Colasanti (Uma idéia toda azul, 1979; Doze reis e a moça no labirinto,
1985; e Um espinho de marfim e outras histórias, 1999), para evidenciar que o conto de fadas
permanece como um discurso que veste roupa nova para uma nova ocasião, sob um prisma
crítico, buscando o diálogo com os leitores, mas mantendo as mesmas finalidades didáticas
do passado.
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Luciana Faria Le-Roy (2003) teve por objetivo, investigar a representação da mulher
na literatura infantil e juvenil brasileira, focalizando, além dos textos de Marina Colasanti, os
de Júlia Lopes de Almeida, Ana Maria Machado e Lygia Bojunga Nunes. Por meio das
narrativas dessas escritoras, identificou a busca de uma nova representação feminina, visto
que suas obras revelam que tanto o discurso quanto a representação da mulher passam a
ganhar visibilidade e possíveis reformulações, que problematizam as relações de
dominação masculina, propondo novos padrões de comportamento para homens e mulheres.
Contos de amor rasgados, por outro lado, quebra com a estrutura dos textos que
retoma; não percebemos mais o aspecto moralizante dos contos maravilhosos; tampouco a
simbologia dos elementos míticos contém a mesma significação. Os textos servem como
motivo para descrever, figurativizar momentos de crises e dramas conjugais. Aliás, grande
parte dos contos não possui um desfecho amoroso positivo: personagens são “podadas” como
flores, presas por coleiras no pescoço, queimadas com isqueiro, por exemplo. A justaposição
e a aglutinação das referências clássicas (mitos e contos maravilhosos) desvencilham a
narrativa do palpável, realizando, assim, a negação e o afastamento das convenções do real.
As situações são as mais inusitadas, o que faz com que o leitor se surpreenda e se
choque com o desenrolar da narrativa. Convém reproduzir, aqui, os conceitos de Todorov
(1975, p. 47-48)sobre essa classe de gênero, quando afirma que:
O fantástico [...] dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao
leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não
da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum. No fim da história, o leitor
quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou
outra solução, saindo desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da
realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos,
dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário,
decide que devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno
pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso.
Caso o leitor dos contos tenha um “repertório cultural” significativo e
18
decodifique os textos retomados, levará em conta que, no contexto em que se dão os
acontecimentos narrativos, as ações poderão admitir novas leis, tanto para as personagens que
agem sem hesitação diante dos estranhamentos, como para o leitor, que passa a aceitar o novo
modo de funcionamento narrativo. No conto “Uma questão de educação”, por exemplo, a
personagem corta a cabeça da esposa e a põe para cozinhar; em “De floração” o seio da
personagem se transforma em orquídea; em “De fato uma mulher preciosa”, a personagem
retira uma pérola da vagina da esposa; em “De água nem tão doce”, uma sereia é criada numa
banheira; em “Embora ao largo das ilhas Sirenusas”, a personagem ouve vozes maviosas e
pede a esposa que o prenda na cabeceira da cama; em “Como se fosse na Índia”, a esposa
sobe numa pilha de móveis e estende a caixa de fósforos para o marido; em “Verdadeira
estória de um amor ardente”, ocorre a relação entre uma personagem e uma boneca ou estátua
de cera e corantes; em “Ela era a sua tarefa”, o marido rola e empurra a esposa numa
montanha incessantemente; em “De um certo tom azulado”, a nova esposa da personagem
abre a porta do quarto proibido e encontra as esposas anteriores tidas como mortas; e no conto
“Perdida estava a meta da morfose”, a moça tem uma noite de amor com um “desgracioso”
sapo.
Os acontecimentos maravilhosos em Contos de amor rasgados podem ser aceitáveis,
caso levemos em conta novas configurações, novas leis plausíveis somente no contexto
narrativo em que ocorrem; o que nos remete às explicações de Todorov, citadas há pouco.
Chiampi (1980, p.48) conceitua o maravilhoso como “extraordinário”, o insólito”, o
que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano, “[...] o maravilhoso preserva algo do
humano, e sua essência. A extraordinariedade se constitui da freqüência ou densidade com
que os fatos ou os objetos exorbitam as leis físicas e as normas humanas”. A obra em análise
privilegia a saída da norma, a quebra de expectativa e, do mesmo modo, a saída da “moldura”
ou da “fôrma” em que, comumente, o diálogo entre literatura, mitos e contos maravilhosos é
19
colocado.
O Prólogo e o conto que encerra a obra, por exemplo, sugere-nos a entrada e a
“pseudo saída” para o mundo mágico dos relacionamentos amorosos; para o amor rasgado
experimentado pelas personagens. Por meio de uma economia de palavras e frases, ou seja,
por meio da concisão e da economia de material lingüístico, os contos tornam-se rasgados,
como se a vida das personagens, seus dramas, angústia e paixões fossem pequenos rasgos ou
fragmentos que são postos à mostra rapidamente:
Prólogo
Enfim, um indivíduo de idéias abertas
A coceira no ouvido atormentava. Pegou o molho de chaves, enfiou a
mais fininha na cavidade. Coçou de leve o pavilhão, depois afundou no
orifício encerado. E rodou, virou a pontinha da chave em beatitude, à
procura daquele ponto exato em que cessaria a coceira.
Até que, traque, ouviu o leve estalo e, a chave enfim no seu encaixe,
percebeu que a cabeça lentamente se abria. (COLASANTI, 1986, p. 11).
O leitor do conto, desde o prólogo, é inserido neste mundo estranho, fica incomodado
com a abertura realizada pela chave enfiada no ouvido. Leitor e “indivíduo” precisam
abrandar o incômodo: este insere e roda a chave no ouvido, aquele necessita continuar a
leitura dos contos, impulsionado por essa atitude “esquisita” da personagem-indivíduo. É o
texto Contos de amor rasgados convidando-nos para penetrar a e na obra, nos universos
ficcionais às avessas do plano “real”.
Se o prólogo convida-nos e, de pronto, nos insere num ambiente maravilhoso, o conto
que encerra a obra, por seu turno, mantém a “cabeça do leitor aberta” para novas perspectivas
de leitura e de significações:
Um tigre de papel
Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e
controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materializar o tigre.
Não se preocupou com descrições de pêlo ou patas. Preferiu introduzir a fera
pelo cheiro. E o texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar
20
por entre as linhas.
Depois, com cuidado, foi aumentando a estranheza da presença do
tigre na sala rococó em que havia decidido localizá-lo. De uma palavra a
outra, o felino movia-se irresistível, farejando o dourado de uma poltrona,
roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.
Em vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensação de
movimento com uma frase curta. Em vez de imitar o terrível miado, fez
tilintar os cristais acompanhando suas passadas. Assim, escolhendo o autor
as palavras com o mesmo sedoso cuidado com que sua personagem pisava
nos tapetes persas, criava-se a realidade antes inexistente.
O quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal para ordenar
ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o tamborete de petit-point. E
a fera aparentemente domesticada tensionava os músculos para obedecer
quando numa rápida torção do corpo, lançou-se em direção oposta. Antes
que chegasse a vírgula, havia estraçalhado o sofá, derrubado a mesa com a
estatueta de Sèvres, feito em tiras o tapete. Rosnados escapavam por entre as
letras e volutas. O tigre apossava-se da sua natureza. não havia controle
possível. O autor podia acompanhar-lhe a fúria, destruindo a golpes de
palavras a bela decoração rococó que havia tão prazerosamente construído,
enquanto sua criatura crescia, dominando o texto.
Impotente, via aos poucos espalharem-se no papel cacos de móveis e
porcelanas, estilhaçar-se o grande espelho, cair por terra a moldura
entalhada. Não havia mais ali um animal exótico na sala de um palácio, mas
uma animal feroz em seu campo de batalha.
O escritor esperava que o cansaço dominasse a fera, para que ele
pudesse retomar o domínio da narrativa, quando o viu virar-se na sua
direção, baixar a cabeça em que os olhos amarelos o encaravam, e
lentamente avançar.
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a enorme pata do tigre
abatendo-se sobre ele obrigou o texto ao ponto final.
FIM (COLASANTI, 1986, p. 207-208).
Em “Um tigre de papel” podemos deduzir certas questões que emergem da prática da
literatura, que o conto trata do fazer criativo da literatura e de suas especificidades. Desse
modo, a metalinguagem poética é feita ao modo do maravilhoso e estranho. O título ressalta o
duplo: um animal que deveria ser de carne e osso (plano real) é, no plano narrativo, de papel
(ficção).
O escritor-personagem do conto, ser criador, determina e controla o tigre e inicia a sua
materialização no papel. Cabe aqui, desde já, observarmos o caráter dúplice dos vocábulos,
pois a materialização ocorrerá tanto no plano da escrita da personagem-escritor, como no
plano narrativo do conto “Uma questão de educação”, no qual estão escritor e tigre. O
“determinar” e o “controlar” as ações do animal, inicialmente, ligam-se ao automatismo que
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foge da idiossincrasia do fazer literário. Contudo, o embate e a tensão entre escritor e tigre
giram em torno do processo de desautomatização da linguagem da literatura.
As escolhas da personagem-escritor, a fim de introduzir o tigre na narrativa, salienta o
princípio proposto por Roman Jakobson (1969), em seu ensaio “Lingüística e Poética”. De
acordo com Jakobson (1969), um ato de comunicação envolve seis fatores: remetente,
mensagem, destinatário, contacto, código e contexto. Desse modo, como nas funções da
linguagem, raramente, se encontrariam mensagens verbais que preenchessem uma única
função apenas, “a diversidade reside não no monopólio de alguma dessas funções, mas numa
diferente ordem hierárquica de funções” (JAKOBSON, 1969, p. 123). Assim, a ausência de
uma e a forte presença de outra num texto verbal sugere alguns sentidos. Silva (1981), ressalta
que “devemos estar atentos para o fato de que o significado de uma mensagem depende da
22
Esse indicar pela sugestão lembra-nos a linguagem literária que procura sugerir ao
descrever: o tigre não é descrito, mas sim poetizado pelos seus atributos. Aguiar e Silva
(1968, p. 36) ressalta que a linguagem literária, diferente da coloquial, “define-se pela rejeição
intencional dos hábitos lingüísticos e pela exploração inabitual das virtualidades significativas
de uma ngua”. Para o teórico, o escritor singulariza “os seres e os acontecimentos de um
modo inédito, através de uma espécie de ‘deformação criadora’ e esse desejo de ‘tornar
estranho’ manifesta-se claramente na linguagem literária” (AGUIAR E SILVA, 1968, p. 36).
Ora, mesclando elementos da “escritura artística” e a caracterização do animal, o escritor do
conto “contamina” o plano da sua escrita e a singulariza: “o texto impregnou-se do bafo
carnívoro, que parecia exalar por entre as linhas”.
O processo de singularização operado pela linguagem, predicado do texto artístico
segundo Chklovski, é mais significativo quanto mais se abrirem os planos ou espaços
ficcionais no mesmo texto. Lemos o conto “Um tigre de papel”, escrito pela escritora Marina
Colasanti, por meio de um organizador da narrativa (narrador), que nos vai relatar a “fuga” de
um tigre duplamente fictício criado por um escritor-personagem.
O poder criador ainda encontra-se nas mãos do escritor-personagem, que, ao modo
dos formalistas russos, vai aumentando a estranheza da presença do tigre, inserido, ainda, no
plano narrativo, determinado e controlado pelo escritor, criador de uma “realidade outra”:
“Assim, escolhendo o autor as palavras com o mesmo sedoso cuidado com que sua
personagem pisava nos tapetes persas, criava-se a realidade antes inexistente” (COLASANTI,
p. 207). Este trecho relembra-nos Jakobson (1969): projetando o princípio de equivalência do
eixo de seleção sobre o eixo de combinação, a personagem-escritor traz significação ao tigre
de papel e, conseqüentemente, para o conto em questão. Se o eixo de seleção mostrar muitas
possibilidades de escolha, a projeção de seu principio de equivalência tornará o eixo de
combinação carregado de múltiplas significações.
23
O quarto parágrafo da escrita da personagem-escritor encontra-se no quarto parágrafo
do conto em que está inserido “Um tigre de papel” (Marina Colasanti, por meio de um
narrador), reforçando o amalgama isotópico do conto de descrição do tigre.
Centrando-nos na especificidade da linguagem literária, ocorre no conto o (des)ajuste
dos seguintes planos: a descrição do tigre, realizada pela escrita da personagem-escritor, e a
narrativa na qual estão personagem escritor e tigre de papel. Acentua-se a desautomatização
textual e o aspecto tensivo; o escritor escolhe, ou seleciona, como quer Jakobson, o “momento
ideal para ordenar ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o tamborete de petit-point
(COLASANTI, p. 208). O tigre, porém, com os músculos tensos, “desobedece” aos comandos
do escritor e lança-se em direção oposta, instaurando a metalinguagem poética do conto.
Para tanto, pensemos o discurso literário como autônomo, em que o estranhamento, o
não automatismo e a fuga do habitual são elementos constitutivos da linguagem. Ao
“desobedecer” (desautomatização) às “ordens” (automatismo) do escritor, o tigre realiza o
mesmo processo típico da arte literária: a quebra do senso comum. O (des)ajuste do plano da
escrita da personagem e a junção dos planos permanece, pois o tigre “supera” a rgula”,
recurso gráfico geralmente utilizado para separar elementos sintáticos, desordenando o espaço
do qual faz parte, “estraçalhado o sofá, derrubando a mesa (...) Rosnados escapavam por entre
as letras e volutas” (COLASANTI, p. 208); e reconfigura a fábula.
O tigre de papel assume a sua natureza independente, e o escritor perde o controle de
sua criação. É a perda do controle da personagem e a nova “postura” do animal que
desautomatizam a narrativa. O embate se por meio dos recursos lingüísticos; o autor
destrói “a golpes de palavras” a bela decoração, enquanto sua criatura crescia, “dominando o
texto”; via se espalharem no “papel” cacos de móveis e porcelanas.
Ciente de que o seu criador não retomaria o domínio da narrativa, o tigre de papel
vira-se na sua direção e lentamente avança. Como a ambigüidade é uma das singularizações
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da linguagem literária, o desfecho do conto metalingüístico mantém essa especialidade. A
pata do tigre abate-se sobre o autor personagem, e o texto nos o ponto final. Assim,
verificamos, duplamente, a derrota do escritor, a vitória do tigre de papel e o término da
narrativa, desfecho, vale dizer, marcado pelos pontos finais do conto “Um tigre de papel” e
enunciado pelo narrador, assim como pelo “FIM” abaixo da narrativa, sobremaneira presente
nos contos maravilhosos.
É bom lembrar que a capa de Contos de amor rasgados foi ilustrada pela escritora
Marina Colasanti.
Se levarmos em conta a imprecisão inicial que a semelhança das figuras masculina e
feminina causa, uma vez que os traços distintivos são, entre outros, o rosado dos lábios da
figura à direita, e a confusão das línguas, os dois perfis delimitam um plano que aparenta estar
“rasgado” pelo entrelaçamento das línguas; a parte superior, além disso, nos remete levemente
ao aparelho reprodutor feminino, ao contorno do útero. É possível dizer que o “convite” para
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o universo sensual de contos rasgados de amor rasgado configura-se desde a capa, e não
apenas a partir do prólogo. O leitor de Contos de amor rasgados, como se vê, é levado a
aceitar esse contrato de ficção e a permanecer com as “idéias abertas” desde a capa e prólogo
até o último conto.
Desse modo, poderemos, agora, nos reportar às referências presentes nos contos, ao
rapto, e à absorção decorrida de sua inserção no cotidiano dos relacionamentos amorosos.
26
3. O RITO E O MITO NOS CONTOS
David com a cabeça de Golias (1606-1610)Caravaggio
27
3.1 LITERATURA E RITO PRIMITIVO
Em As raízes históricas do conto maravilhoso, Propp (1997, p. 20) procurou, nos
dados objetivos do passado, a origem das imagens e temas desses contos:
Assim como o mito, o rito é produto de um determinado pensamento.
Às vezes, é muito difícil explicar e definir essas formas de pensamento.
Entretanto, para os folcloristas é indispensável não apenas levá-las em conta
como também explicitar para si mesmo as concepções que estão na origem
deste ou daquele motivo. O pensamento primitivo o conhece a abstração.
Manifesta-se em atos, em formas de organização social, no folclore e na
língua.
Como é possível observar, Propp salienta a necessidade de ampliar os estudos
comparatistas do conto maravilhoso e encontrar a base histórica responsável por sua criação.
O estudioso pesquisou a quais fenômenos (e não a quais acontecimentos) do passado histórico
o conto correspondia, e em que medida esse conteúdo condicionou o gênero. O autor
considera o mito como uma das origens possíveis desse tipo de conto. De acordo com Propp
(p. 15), é importante que confrontemos o conto tanto com os mitos de povos primitivos
quanto com os mitos dos Estados cultos da Antiguidade, a fim de levar em consideração não o
fator psicológico da crença, mas sim o fator histórico.
Nesse estudo “proppiano”, o mito e o conto não são distinguidos por suas formas, mas
pela função social: “Também a função social do mito não é sempre a mesma e depende do
grau de cultura de um determinado povo” (PROPP, p. 16). Os mitos dos povos, cujo
desenvolvimento não atingiu o estágio de Estado, possuem uma configuração diferente dos
Estados cultos da Antiguidade. Sobre essa questão, o pesquisador ressalta que não
conhecemos os mitos por meio de seu criador, a “população”; tomamos contato com os
relatos retratados por meio da escrita.
Ainda de acordo com Propp (1997, p. 5), nenhum assunto do conto pode ser estudado
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sozinho e nenhum motivo pode ser considerado senão de modo relacionado com o seu
conjunto, pois o conto maravilhoso conservou vestígios de organizações sociais hoje
desaparecidas. Assim, precisamos verificar o modo como esses “textos” refletem-se no conto.
O estudioso destaca também serem poucos os casos em que ocorre uma relação direta entre
conto e rito, sendo mais freqüente a “reinterpretação” do rito:
[...] substituição, pelo conto, de um elemento (ou de vários
elementos) do ritual, que se tornou inútil ou obscuro devido à modificação
histórica, por um outro elemento mais compreensível. Portanto, a
reinterpretação está geralmente ligada a uma ‘deformação’, à mudança das
formas (PROPP, 1997, p. 11).
A partir desse excerto, depreendemos que a base inicial do rito está tão obscurecida
que nem sempre é possível detectá-la. Além da “deformação”, o autor fala da “conversão”:
“gênero específico de reinterpretação de todas as formas do ritual, revestido daquele sentido
ou significado, daquela interpretação inversa que lhe o conto” (PROPP, 1997, p.12).
Exemplo de “conversão” seria o salvamento de velhos nos ritos. Na época desse rito, a pessoa
que os salvasse da morte teria sido ridicularizada ou até mesmo punida. “No conto, quem
poupa os velhos é um herói que age sabiamente” (PROPP, 1997, p. 12). Afora esse exemplo,
outro costume era o de se oferecer uma jovem em sacrifício ao rio do qual dependia a
fertilidade, no início da semeadura: o herói surge e a liberta do monstro que iria devorá-la; o
conto converte o rito. “Esses fatos mostram que um assunto do conto pode às vezes ter como
origem uma atitude negativa em relação a uma realidade histórica ultrapassada” (PROPP,
1997, p. 13).
O fenômeno, no caso particular do conto “Uma questão de educação”, é a
decapitação, o esquartejamento e o cozimento, um tipo de morte temporária, que assume
diversas formas; é um rito de iniciação no qual, geralmente, ocorre uma representação
mimética da morte e do renascimento do iniciado. A morte seguida do renascimento era
29
considerada necessária para a aquisição de qualidades mágicas. Propp explica que o
despedaçamento e o esquartejamento do corpo humano “desempenham um papel
considerável em grande número de religiões e mitos, e também no conto” (p. 103). Esses atos
são fonte de força ou condição para a deificação. É válido lembrar, a esse respeito, os mitos
de Osíris, no Egito; de Orfeu, na Grécia; de Dioniso, da arte de Medéia; do conto Barba Azul,
entre outros.
Assim, explicitaremos alguns pontos desses textos (mitos e contos populares) para,
posteriormente, verificar de que modo ocorre o esvaziamento dessa simbologia no conto em
questão de Marina Colasanti.
Passaremos às peculiaridades da decapitação de Orfeu, depois de levantarmos
algumas questões da singularidade desse mito tão poético. Tocar e cantar são o saber e o fazer
do semi-deus: “Sua maestria na cítara e a suavidade de sua voz eram tais, que os animais
selvagens o seguiam, as árvores inclinavam suas copadas para ouvi-lo e os homens mais
coléricos sentiam-se penetrados de ternura e de bondade” (BRANDÃO, 1987, p. 141).
Orfeu toca e canta; o seu saber é um encantamento intimamente relacionado ao fazer
poético, ao discurso literário, ao poder transfigurador e à capacidade de transubstanciação. O
cantar e o tocar de Orfeu alteram, modificam os seres, assim como o signo poético, que
assume sentidos e valores plurivocais.
O poder de Orfeu, realizado pelo saber e fazer poético, penetrou o Hades:
Enquanto assim falava, acompanhado com as cordas da lira o ritmo
das palavras, choravam as almas exangues, Tântalo desistiu de alcançar a
água que lhe fugia, a roda de Íxion parou, as aves cessaram de roer o fígado,
as netas de Belo, de encher as suas urnas e tu, Sísifo, te assentaste sobre o
teu rochedo. Então, pela primeira vez, conta-se lágrimas umideceram as
faces das Eumênides, comovidas com o canto. Nem a real consorte, nem o
rei dos infernos têm ânimo de se opor ao pedido, e chamam Eurídice
(OVÍDIO, s.d. p. 183-184).
A passagem do mito de Orfeu nos mostra a poesia harmonizando o subterrâneo,
30
alterando punições e comovendo o senhor dos mortos, Plutão, e sua esposa, Perséfone. O som
oriundo de Orfeu, a sua tônica poética, transfigura os seres e as coisas.
Várias são as versões do mito de Orfeu e seu despedaçamento, ora atribuindo a morte
do cantor às Bacantes, ora às Mênades, ora a outras mulheres. Levaremos em conta as duas
versões apresentadas por Brandão (1987). Uma delas conta que Orfeu, ao voltar do Hades
sem a amada, privou dos mistérios iniciáticos as mulheres, deixando-as revoltadas. Certa vez,
apoderando-se das próprias armas dos homens, essas mulheres mataram Orfeu e seus
seguidores. Outra variante destacada por Brandão (1987, p. 143), informa que “Afrodite
inspirou às mulheres trácias uma paixão tão violenta e incontrolável, que cada uma queria o
inexcedível cantor para si, o que as levou a esquartejá-lo e lançar-lhe os restos e a cabeça
no rio Hebro”. A cabeça de Orfeu ainda chamava por Eurídice e o seu nome era repetido pelo
eco nas duas margens do rio, elemento que, por sua vez, traz em si a idéia de travessia,
mudança e renascimento.
Esquartejada e decapitada, a cabeça de Orfeu manteve o saber e o fazer, qual seja, a
poesia transfiguradora. A cabeça (substituinte) de Orfeu (substituído) ainda concentra o
princípio de positividade. Perfeita “sinédoque tica” que potencializa o teor poético e
simbólico de encantamento do filho de Apolo. Sua cabeça era venerada como verdadeira
relíquia. “Educador da humanidade, conduziu os trácios da selvageria para a civilização”
(BRANDÃO, 1987, p. 141-2). Se no mito de Orfeu a cabeça conserva o princípio de
positividade poética, no de Medusa, decapitada por Perseu, a negatividade transfiguradora
permanece na cabeça da Górgona.
Embora tenha nascido Pégaso, o cavalo alado (positividade), em relação à cabeça
decapitada de Medusa, é preciso lembrar que quem fixasse os olhos no monstro era
petrificado (negatividade). Brandão (1993, p. 82), baseado nos apontamentos de Diel (1952),
comenta que tal transformação se deve ao fato de Medusa refletir a “imagem de uma
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culpabilidade pessoal [...]. O reconhecimento da falta, alicerçado no conhecimento de si
mesmo, pode se perverter em exasperação doentia, em consciência escrupulosa e paralisante”.
Consoante Brandão (1993), a Górgona simboliza a imagem deformada daquele que a
contempla, uma “auto-imagem” que petrifica pelo horror.
Desse modo, o princípio de positividade de Orfeu configura-se pela audição, pelo som
e o princípio de negatividade de Medusa, pela visão, pelo reflexo horrendo exteriorizado pelo
seu fazer petrificador.
São bem-vindas aqui as colocações de Chevalier (1988, p. 151), quando nos explica
que a cabeça simboliza “o ardor do princípio ativo. Abrange a autoridade de governar,
ordenar, instruir [...]. O espírito manifestado, em relação ao corpo, que é uma manifestação da
matéria”. As cabeças de Orfeu e Medusa, como percebemos, preservaram esse princípio ativo,
destacado por Chevalier; enquanto a do semi-deus da música atua como a poesia
transfiguradora positiva, a de Medusa age petrificando, por isso, transubstanciando os seres e
as coisas que a contemplavam.
Um dos instrumentos de encantamento de Medéia era o caldeirão, a panela onde se
colocavam para ferver os pedaços de carne que se separavam da tima do sacrifício. De
acordo com Grimal (1993, p. 293):
Na literatura alexandrina e em Roma, Medéia tornou-se o protótipo
da feiticeira. É um papel que desempenha na tragédia ática e na lenda dos
Argonautas. Sem Medéia, Jasão o teria conquistado o velo de ouro: é ela
quem o auxilia no cumprimento das tarefas impostas por Eetes. [...]
Retornado a Iolo, com Jasão, Medéia começou por se vingar de Pélis, que
tentara fazer perecer Jasão, impondo-lhe a procura do velo de ouro.
Persuadiu as filhas do rei de que, se quisesse, era capaz de rejuvenescer
qualquer ser vivo, fazendo-o ferver num preparo mágico de que possuía o
segredo. Sob os olhos das jovens, fez em pedaços um velho carneiro, deitou
os bocados num grande caldeirão que pusera sobre o fogo e, no instante
seguinte, tirou dele um cordeiro bem vivo e satisfeito. Convencidas, por essa
demonstração da sua arte, as filhas de Pélias despedaçaram o pai e deitaram
os bocados num caldeirão fornecido por Medéia; mas Pélias nunca voltou a
sair de lá.
32
Sua cozinha, diz Brandão (1993, p. 193), tinha uma aparência de altar de sacrifício:
[...] é a vida que deve sair de seu caldeirão, como de um ventre
feminino, uma vida renovada, como aquela que ela própria prometeu às
filhas de Pélias, mostrando-lhes um cordeirinho saído do caldeirão, onde
foram colocados os pedaços. O caldeirão, todavia, foi o meio usado para
matar Pélias e escondê-lo no ventre da terra.
Esse fazer de Medéia era o de rejuvenescer o ser esquartejado num cozimento mágico.
A feiticeira, certa vez, enganou as filhas de Pélias, fazendo com que falhassem na arte do
cozimento como um princípio de restauração vital. Desse modo, não ocorreu a reconstituição
do corpo.
No que diz respeito ao deus Dioniso, perseguido pela ciumenta Hera, foi feito em
pedaços, cozinhado num caldeirão e devorado pelos Titãs. O “desmembramento” do menino
divino e seu “cozimento” num caldeirão apresenta ecos de um rito iniciático. Citando
Jeanmarie (1978), Brandão (1987, p. 119) nos explica que a cocção, sobretudo num caldeirão,
ou a passagem pelas chamas “constitui uma operação mágica, um rito iniciático, que visa a
conferir um rejuvenescimento; especialmente, em se tratando de uma criança, o rito tem por
objetivo outorgar virtudes diversas, a começar pela imortalidade”.
Do mesmo modo, vemos essa simbologia no mito egípcio de Osíris, deus da Terra e
dos Mortos. O ciumento Set, seu irmão, selou-o com chumbo derretido em um caixão e o
jogou no Rio Nilo. Ísis, sua irmã e rainha do Egito, trouxe a urna de volta, mas Set
despedaçou o corpo de Osíris em quatorze pedaços, que espalhou pelo país. Novamente, sua
esposa foi à procura de todos os pedaços e os enterrava quando os encontrava. Renascido,
Osíris foi governar a “outra terra”, onde julgava as almas dos recém-mortos.
Em Barba Azul, por exemplo, que é uma variante dos contos sobre a noiva na casa dos
bandidos na floresta, a jovem no cômodo proibido as mulheres de Barba Azul cortadas em
pedaços. O esquartejamento acontecia na casa da floresta, espaço no qual ocorriam os rituais
33
de iniciação.
Ainda à luz dos estudos de Propp (1997, p. 444), o conto maravilhoso passou por um
processo progressivo de deterioração, pois os ritos e os mitos perderam o significado
específico e foram incorporados nos contos, ou seja, ocorreram seus desligamentos. Livre dos
laços do “convencionalismo” religioso, motivado agora por outras questões sociais, o conto
“irrompe no espaço livre da ‘criação artística’ e começa a levar uma vida rica de conteúdo”.
Feitos esses apontamentos acerca do rito de iniciação do ciclo decapitação,
esquartejamento e cozimento, é possível abordar o conto “Uma questão de educação”, que
resgata esse procedimento primitivo, porém, como é comum na contemporaneidade, esvazia-
os e preenche-os com novas significações.
Cabem aqui as elucidações de Dias (2005), sobre o diálogo entre literatura e mito:
[...] é preciso deslocar essa permanência, ou melhor, desequilibrar a moldura
que cerca o mito [e ritos], o que só pode se fazer por um olhar transgressor e
criativo. Aí, sim, as relações entre mito [e ritos] e literatura podem ganhar
conotações insuspeitadas. O que importa perceber, nesse caso, é o tratamento
singularizado dado aos mitos por uma linguagem narrativa que os recria, em
seus procedimentos de construção, para gerar novos significados. Por outras
palavras, para a consciência moderna o resgate do mito, por via ficcional ou
crítica, só pode se fazer se souber transformá-lo em uma realidade móvel,
colocando passado e presente em uma contínua circulação de trocas [grifos
nossos].
Baseado nesses posicionamentos, é possível afirmar que os “temas históricos”
primitivos, presentes no conto “Por uma questão de educação”, são “reinterpretados” no
sentido profano; ocorre também uma “continua circulação de trocas”, como destaca Dias
(2005). No conto, ocorrem a “reinterpretação” e a “conversão” de um texto (rito e mito)
“deformado”, re-elaborado. Não se trata mais de um rito de iniciação primitivo, mas, sim,
de um recurso figurativo inserido no cotidiano de um relacionamento amoroso. É por isso,
pois, que foi necessário fazer uma “leitura especialmente cuidadosa”, a fim de identificar os
possíveis sentidos velados no conto em questão. Aproveitando o que diz João Alexandre
34
Barbosa (1990) acerca de experiência da leitura, o que se é o “intervalo”, espaço
construtivo em que são segregados os sentidos e se estabelece a articulação entre a realidade
de fora e a de dentro do texto:
[...] uma leitura intervalar é, a meu ver, capaz de melhor se aproximar da
obra, deixando-a melhor revelar os seus elementos estruturadores e, ao
mesmo tempo, obrigando o leitor a considerar sem preconceitos, todos
aqueles elementos os históricos, os sociais, os antropológicos, os
psicológicos que convergem para a sua manifestação e que são articulados
num espaço/tempo específico de invenção pessoal que é a obra que se lê que,
por isso mesmo, não pode desprezar, ou deixar de lado como sabida, a
tradição de outras obras e outras leituras (BARBOSA, 2004, p. 44).
O leitor dos contos rasgados precisa desprover-se de preconceitos e levar em
consideração que não se trata mais de símbolos de ritos de iniciação. Esses elementos fazem
parte da estrutura de significação da narrativa, contudo, como explicita Barbosa (2004), não
se pode desprezar e deixar de lado a tradição de outros textos e, conseqüentemente, o seu
modo de significar. Apenas desse modo, o diálogo entre literatura contemporânea e rito antigo
poderá suscitar leituras interessantes, o que requer um fazer poético sobremaneira interessante
e criativo.
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3.1.1. “UMA QUESTÃO DE EDUCAÇÃO”: ENTRE A RUDEZA E A POLIDEZ
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa,
olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a
amiga, quis levá-la, mas o cadáver, parece que a retinha também. Momento houve
em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os olhos de viúva, sem o pranto
nem palavras desta, mas grandes e abertos, com a vaga do mar lá fora, como se
quisesse tragar também o nadador da manhã.
Machado de Assis
Esse mini-conto de Marina Colasanti, composto por dois parágrafos apenas, trata do
caso de uma “provável” traição e vingança: o marido a esposa conversando com o amante
no portão; decapita-a com o machado; recolhe a cabeça e cozinha-a na panela:
Viu sua mulher conversando no portão com o amante. Não teve
dúvidas. Quando ela entrou, decapitou-a com o machado. Depois recolheu a
cabeça e, antes que todo o sangue escapasse pelo pescoço truncado, jogou-a
na panela. Picou a cebola, os temperos, acrescentou água, e começou a
cozinhar a grande sopa.
Pronta, porém, não conseguiu comê-la. Ânsias de vômito trancavam-
lhe a garganta diante do prato macabro. Nunca desde pequeno, suportara a
visão de cabelos na comida. (COLASANTI, 1986, p. 205).
No primeiro parágrafo, deparamo-nos com o marido, lingüisticamente descrito por um
sujeito implícito “ele”, com a “sua esposa” e com o “amante”. O narrador-onisciente nos
informa que a personagem “conversa” com o amante no portão, o que nos faz perguntarse, de
fato, seria uma suspeita do marido, ou um caso extraconjugal. Tal situação se acentua no
período seguinte: “Não teve dúvidas”. Perguntaríamos se a dúvida se refere ao fato de ser
aquele o amante, ou ao de realizar o ato primitivo de decapitar a mulher.
Quanto à questão do número de personagens, Moisés (1971, p. 127) informa-nos que
poucas são as personagens no conto: “as unidades de ação, espaço e tempo podem
estabelecer-se com reduzida população no palco dos acontecimentos”. De acordo com o
teórico, em conseqüência das unidades que governam a estrutura do conto, “as personagens
tendem a ser estáticas ou planas, porque são surpreendidas no instante climático de sua
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existência; o contista as imobiliza no tempo, no espaço e na personalidade” (p. 128).
Diferente das personagens do romance que crescem ao longo da narrativa, as do conto
oferecem apenas uma faceta de seu caráter. É justamente sobre esse aspecto tênue, conciso e
restrito da personalidade da personagem que o conto em questão se organiza.
Passemos às ações, a fim de verificar o posicionamento das personagens: “viu”
(marido) e “conversando” (esposa e amante). Temos dois verbos de ação (ver e conversar)
que dão dinâmica à narrativa. O verbo “ver” transmite uma idéia de menos movimento,
atitude que contrasta com o “decapitar”, ligado ao primitivo. Voltando à dúvida sugerida pelo
texto, o “conversar”, no conto, não compromete necessariamente os possíveis amantes. O
“gerúndio irônico” (conversando), porém, desfaz quaisquer tentativas de afirmação, causando
essa dúvida ao leitor. Seria uma suspeita do marido, declarada pelo narrador onisciente? As
personagens são amantes de fato? Por que o marido revoltou-se somente quando viu os
amantes conversando no portão?
Baseado na oposição rudeza e polidez presente no conto, o primeiro período desse
parágrafo apresenta um sentido neutro, pois, ao lê-lo, não é possível depreender a crueldade
do marido ou sua polidez; o segundo “Não teve dúvidas” apresenta o princípio rude,
primitivo, qual seja, a irracionalidade da personagem. Essa modalidade negativa de frase,
plano de expressão mais curto de todo o conto com somente três vocábulos, começa a
ressaltar a personalidade áspera do marido e a justaposição lúdica e poética da oposição
semântica proposta. A personagem não reflete sobre a situação vista os amantes
conversando no portão ou, pelo menos, tal fato não nos é contado. A elipse estilística do
plano do narrado contribui para potencializar o aspecto ambíguo do conto e da própria
estrutura concisa desse tipo de narrativa. É através dessa falta” que o leitor deve ver os
sentidos possíveis, articulando e utilizando o conteúdo expressivo presente no texto.
Sem que saibamos o que conversavam e se eram amantes, o organizador da narrativa
37
nos diz que o marido não teve dúvidas. A marca de plural (dúvidas) acentua o clima ambíguo
do conto, como se, rapidamente, vários questionamentos tivessem surgido em sua mente
como: são de fato amantes? Devo matá-la? procedimento que, de certa forma, desfaz o tom de
irracionalidade anteriormente sugerida, mas que estiliza o discurso duplo do conto, os
conteúdos semânticos de rudeza e polidez, enfim, a linguagem lúdica peculiar do discurso
literário. Como um flash, o marido vê sua esposa e o amante conversando e decide matá-la.
A ação é realizada assim que a personagem esposa entra. Pode-se, agora, destacar os
traços espaciais da narrativa. Como a mulher é decapitada quando entra, deduzimos que a
personagem marido estava dentro de casa observando-a e a seu (presumido) amante. Dessa
forma, tem-se as dimensões fora/exterior (mulher e amante) e dentro/interior (marido), nas
quais ocorre uma inversão implícita. Sendo amantes, as personagens deveriam localizar-se em
um espaço fechado, interno e escondido, não em um espaço aberto, externo (no portão),
diante do marido que se encontra próximo a eles no ambiente interno.
Nesse espaço interno, ocorre a cena da decapitação e do esquartejamento, logo que a
personagem entra na casa (espaço pressuposto). A elipse dos fatos nos possibilita inferir a
ausência de conversa, de diálogos entre marido e mulher; tem-se a impressão de que a esposa
não teve tempo de se defender. Verificamos as ações de entrar (esposa) e decapitar (marido).
Relacionando-as com as anteriores “ver” (ele) e “conversar” (ela), as ações tornam-se mais
dinâmicas, visto que são, agora, dois verbos de movimento, sendo um deles decapitar
motivado semanticamente por toda a história cultural que se discutiu anteriormente. A
narrativa adquire um ritmo tensivo, configurado tanto pelas ações como pelo espaço e tempo
concisos. O marido usa o machado, instrumento carregado de valores ticos, e, por ora, a
rudeza toma conta desse período da narrativa.
Inicia-se o “pseudo-ritual”: o cozimento da cabeça. As escolhas lingüístico-
expressivas desse momento da narrativa configuram a imbricação da linguagem lúdica e do
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rito macabro: a personagem “recolhe a cabeça” e “joga-a na panela”. Se compararmos com os
verbos “pegar” e “colocar”, por exemplo, os sentidos destes seriam amenizados e o daqueles
aproximar-se-iam do fazer mítico: recolher a cabeça (mítico) X pegar a cabeça (polido), e
jogar a cabeça (rústico) X colocar a cabeça (polido). Além disso, o discurso agressivo se
mescla com as figuras de linguagem: “[...] o sangue escapasse pelo pescoço truncado”. Nesse
fragmento, a prosopopéia, figura de pensamento, causa um efeito de sentido peculiar ao
momento de tensão narrativa. O traço verbal animado escapasse” migra para outro domínio,
conferido, estilisticamente, ao ser inanimado “sangue”. Esse procedimento construtivo cria
um efeito de suavização no conto, justapondo a rudeza ritualística e o lúdico da linguagem.
Altera-se o caráter macabro do conto, à medida que a seqüência dos acontecimentos
avança. Do decapitar e do cozinhar a cabeça, a narrativa troca o registro para o cozinhar mais
próximo ao fazer culinário; a cabeça da esposa transubstancia-se em grande sopa. O aspecto
negativo, suscitado pelo cortar a cabeça, pelo sangue e pelo pescoço truncado, agora dá lugar
ao picar cebolas e temperos, à água acrescentada e à futura sopa. O leitor precisa, pois, ficar
atento a essa trama narrativa que funciona como um indicador do desfecho paródico.
O narrador onisciente nos informa que o marido não consegue comer a sopa pronta,
causando-nos, primeiramente, a impressão de arrependimento. Se a modalidade de frase
negativa anterior “Não teve dúvidas” , caracterizou uma ação não refletida da personagem
e a sua rudeza, esta “[...] não conseguiu comê-la” , mostra a sua sensatez. Ele não
consegue dar continuidade ao ato de rudeza primitiva, pois as “Ânsias de vômito trancavam-
lhe a garganta [...]”. Mais uma vez, o duplo se instala: o grotesco diante do prato macabro é
suavizado pelo lúdico da linguagem. O mal-estar é grande, como se as ânsias, personificadas,
obstruíssem a sua garganta.
Entretanto, é apenas no desenlace do conto que o leitor percebe a organização
engenhosa do narrador que engana um leitor desatento. Aliás, a quebra do horizonte de
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expectativa se inicia na mudança do cozinhar ritualístico para o cozinhar culinário (picar
cebolas e temperos e acrescentar água na grande sopa). Não comer a cabeça da esposa e sentir
as ânsias de vômito nada mais são que armadilhas narrativas que colaboram para o desfecho
irônico. O leitor tem a impressão de uma mágoa que, na verdade, não se configura no conto.
Da personagem, inesperadamente, nos é mostrada a polidez. De marido ciumento,
grosseiro, que decapita a esposa e cozinha a cabeça, ele passa, nesse desfecho, à infantilidade.
O narrador retoma a sua puerilidade “Nunca, desde pequeno [...]” , para descaracterizá-lo,
“des-referencializá-lo” do perfil rude e primitivo do inicio do conto.
Percebemos, assim, duas dimensões do marido: por um lado, ciumento, vingativo,
bárbaro, sanguinário e brutal, e, por outro lado, infantil, frágil, refinado e polido. A
personagem agrega, pois, duas faces justapostas: a de um ser que ora utiliza machado, o que
conota a sua rudeza, ora se repugna com a visão de cabelos na comida, sugerindo a sua
polidez.
O conto “Uma questão de educação” possui a ambientação do duplo, configurada, em
grande parte, pela rudeza e a pela polidez. Esses conteúdos são percebidos por um plano de
expressão que procura motivá-los. Destacamos a descrição das ações rústicas da personagem,
amalgamada com o lúdico da linguagem; o jogo engenhoso do organizador da narrativa, que
descreve o marido ora de forma rudimentar, parecendo polido, ora polido, indiciando a
rudeza. Verificamos também o espaço duplo: exterior, no qual a incerteza de adultério se
estende do marido ao leitor do texto; e interior, local no qual a brutalidade e a fragilidade se
desenvolvem.
É possível também elucidarmos os períodos lingüisticamente equilibrados do conto.
Embora seja um conto denso e tenso, uma harmonia de períodos simples e compostos
(coordenados e subordinados). A subordinação pode ser relacionada ao modo mais elaborado
de organização textual, o que no conto se liga a dois momentos marcantes e pontuais:
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“Quando ela entrou, decapitou-a com o machado”; e “Depois recolheu a cabeça e, antes que
todo o sangue escapasse pelo pescoço truncado, jogou-a na panela”. No primeiro, temos o
primeiro ato selvagem da personagem e, no segundo, o reforço desse ato. Por outro lado,
podemos relacionar o período simples aos momentos de polidez e de refinamento culturais:
“Nunca, desde pequeno, suportara a visão de cabelos na comida” (COLASANTI, 1986, p.
205).
São bem vindas, aqui, as colocações de Gotlib (1991, p. 34), quando afirma que o
contar se reveste de estilo; são as expressões, com as respectivas sugestões que suscitam, as
responsáveis por conferirem a essa narrativa um resultado de ordem estética. No que concerne
à estética, tais considerações entram em consonância com as informações de Cortázar (1974,
p. 152): “em literatura não há temas bons ou ruins, há somente um tratamento bom ou ruim do
tema [...] é ruim quando é escrito sem essa tensão que se deve manifestar desde as primeiras
palavras desde as primeiras cenas”. Ora, temos uma narrativa na qual um marido, por ciúmes,
decapita e cozinha sua esposa, mas que não consegue comê-la por causa da visão de cabelos
na “comida”. Descrita desse modo, a narrativa não nos apresentaria o seu perfil estético
literário e as tensões a ela agregadas.
Para Poe (apud Gotlib, 1991, p. 34-5), a elaboração do conto é um produto de um
extremo domínio do autor sobre os materiais narrativos; é produto, também, de um trabalho
consciente, que se faz por etapas e cujo objetivo é causar o efeito único, ou a impressão total.
Se o escritor o tende à concretização desse efeito na primeira linha de sua narrativa, ele
falhou em seu primeiro passo; em toda a composição não deve haver nenhuma palavra escrita
cuja tendência direta ou indireta não esteja a serviço desse desígnio preestabelecido. Sob a
economia dos meios narrativos, o contista deve conseguir o máximo de efeitos. O contista, de
acordo com Poe, condensa a matéria para apresentar os seus melhores momentos. Assim, a
questão da brevidade é o elemento caracterizador do conto, ao qual é necessário causar o
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efeito, a impressão total no leitor, que deve ser mantido em suspense.
O desenlace irônico do conto, concomitante com a quebra de expectativa do desfecho
narrado, lembra, novamente, as explicações deCortázar sobre o impacto do acontecimento:
No conto vai ocorrer algo, e esse algo será intenso. Todo o rodeio é
desnecessário sempre que não seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente
digressão por meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase e nos
predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento (1974, p.
124).
O jogo duplo da rudeza e polidez, configurado desde os primeiros enunciados do
conto, segue a proposta de Cortázar, haja vista que o leitor se depara com a personagem
primitiva e a que fica incomodada com cabelos na comida. Essa oscilação de conteúdos
semânticos elaborada pelas figuras de estilo, de pensamento, ou seja, pelo plano expressivo da
linguagem, é um procedimento narrativo e discursivo do conto que contribui para causar esse
“impacto”, o knock-out.
Ainda sobre os procedimentos de significação do conto, resta observar a
transfiguração pela qual passa a mulher da personagem. No início do conto ela é a “esposa”
que conversa com o amante no portão; depois, ocorre sua redução físico-estilística, a
metonímia: de esposa passa a ser a cabeça decapitada pelo marido. Seguindo a transfiguração,
ela já não é mais cabeça, mas, sim, a grande sopa. Resume-se, enfim, a cabelos, que o marido
não suporta ver, logo se transubstancia em comida.
Por fim, nota-se o esvaziamento do rito de iniciação decapitação, cozimento e
canibalismo, descrito e explicitado por Propp (1997), que será investigado a seguir.
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3.1.2. O RITO FORA DA MOLDURA
A ambigüidade é uma das singularizações da linguagem literária.
João Alexandre Barbosa
As análises descritivo-interpretativas levaram a constatar que os conteúdos
decapitação, esquartejamento e cozimento (ritos primitivos) não apresentam os valores de
rejuvenescimento e morte temporária, sugeridos Propp e Chevalier. Esses “textos históricos”
são inseridos no conto da escritora Marina Colasanti como materiais passíveis de reconstrução
significativa, auxiliando a figurativização de um relacionamento extraconjugal.
A inserção dessa fonte antiga, vale dizer, desse rito de iniciação, não significa a
erudição de um conteúdo sacro realizado pela escritora, mas, sim, o esvaziamento mítico e
ritualístico que, por sua vez, tem um funcionamento na narrativa e, por isso, faz parte de seu
recurso de significação, do seu caráter tensivo e ambíguo, peculiar ao discurso literário. O rito
incorpora-se no conto “Uma questão de educação”, e ajuda a construir um todo de sentido
com visões plurivocais e com sentidos abertos, que extrapolam o sensato e o previsível.
Manifesta-se, dessa forma, o jogo intertextual, a circulação de trocas, nos quais o texto antigo
é re-significado no presente, e o antigo é reavaliado pelo olhar crítico, suscitado pelo poder
arbitrário do signo literário que estrutura o conto analisado.
Os procedimentos literários, adotados por uma escritura lúdica, alicerçada por precisas
relações de imagem e escolhas vocabulares criativas, operam reverberações contínuas de
significado, criando o espaço para a potencialização daquela função poética da linguagem
definida por Jakobson (1969), quando o que é significado narrativo se torna completamente
dependente da mais complexa articulação textual.
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3.2. LITERATURA E MITO ANTIGO
Em várias áreas do conhecimento, os estudiosos enxergam os mitos como poderosos
instrumentos para compreender cada sociedade em que eles existem. Por isso, não devemos
apenas pensá-los como simples e ingênuas histórias criadas pelos primitivos, uma vez que os
mitos se utilizam de recursos simbólicos para expressar seus conteúdos.
Távola (1985, p.12), no que se refere à simbologia dos mitos, diz que expressar-se por
meios simbólicos “é a forma de as mentes individual e coletiva fazerem emergir ao consciente
o que nelas jaz ou lateja em profundidade, oclusão, alcance, memória ancestral ou futura”.
Para o autor, o homem traz consigo uma espécie de memória da humanidade, uma forma de
conservar, no inconsciente, experiências ancestrais da espécie.
Eliade (1972, p. 11), em Mito e realidade, salienta que:
[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido
no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. ...narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja
uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma
espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
A partir dessas observações de Eliade, destacam-se o Mito de Origem e o
Cosmogônico. Enquanto este conta como o mundo foi criado, modificado, enriquecido ou
empobrecido, aquele conta e justifica uma nova situação; prolonga e completa o mito da
Cosmogonia. Afora essas questões, os mitos narram todos os acontecimentos primordiais, em
conseqüência dos quais o homem se transformou no que é hoje: um ser que se organiza em
sociedade e que trabalha para viver de acordo com determinados deveres e direitos.
Esses apontamentos entram em consonância com os estudos do antropólogo Lévi-
Strauss (1987), que estudou o pensamento dos antigos para mostrar que os assim chamados
selvagens não são atrasados nem primitivos, mas operam com o pensamento tico. A fim de
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explicar a composição de um mito, Lévi-Strauss refere-se a bricolage. Um bricoleur produz
um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos. Vai reunindo, sem um
plano muito rígido, tudo o que encontra e que serve para o objeto que está compondo. O
antropólogo ressalta, ainda, que o pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa, isto é,
vai reunindo as experiências, as narrativas, os relatos, até compor um mito geral. Com esses
materiais heterogêneos, produz a explicação sobre a origem e a forma das coisas, suas funções
e suas finalidades, os poderes divinos sobre a natureza e sobre os homens.
Desse modo, o mito possui três funções principais: a explicativa, a organizativa e a
compensatória.
Na função explicativa, o presente é explicado por alguma ação passada, cujos efeitos
permaneceram no tempo. No mito de Píramo e Tisbe, por exemplo, as amoras passaram da
45
homens que se protegessem da cólera de Zeus, realizando o sacrifício de um boi, mas que se
mostrassem mais astutos do que o poderoso deus, comendo as carnes e enviando-lhe as tripas
e gorduras. Zeus, entretanto, descobriu a artimanha, e os homens teriam sido punidos com a
perda do fogo, se Prometeu não lhes tivesse ensinado um novo artifício, a saber, colocar
perfumes e incenso nas partes dedicadas aos deuses. Assim, narra-se o modo como os
humanos se apropriaram de um bem divino (fogo) e criaram um ritual (sacrifício de um
animal com perfumes e incenso) para conservar o que haviam roubado dos deuses.
Ginzburg (2001), em Olhos de madeira, dedica um capítulo à discussão acerca da
definição de mito, passando pelas análises de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Abelardo,
Maquiavel, e outros. Ginzburg conclui que “o mito é por definição um conto que foi
contado, um conto que se conhece. Assim, a consciência tica, embora rejeitada no
mundo moderno, ainda está viva e atuante nas civilizações antigas” (p. 84). Portanto, o valor e
o significado do mito, quando ele se encontra inserido como parte central de uma sociedade,
corresponde a um condutor das transformações ocorridas nessa sociedade e, no caso da greco-
latina, inserida na mente dos cidadãos que a compõem.
Segundo Moisés (1971, p. 347), “o mito implica uma narrativa e, ipso facto, o
concurso da imaginação”. Para ele, “criar um mito significa conceber, através das forças
imaginativas, uma história que reflete um modo não lógico de enfrentar o mundo”. Ele
uma estreita ligação entre mito e metáfora: “o mito seria uma macrometáfora, espécie de
transposição amplificante de uma metáfora-matriz, elaborada a partir de uma analogia
elementar, descoberta instintivamente, entre duas entidades ou coisas”.
Assim, se o mito foi e ainda é facilmente transmitido por via oral, quer se acredite nele
como sagrado quer não, ele é, seguramente, uma “forma simples”, no sentido que Jolles
(1976) lhe dá, isto é, cerne de uma narrativa, contido completamente em seu “conteúdo”, o
importando sua “forma”.
46
Frye (2000, p. 28), por sua vez, observa que mito é “uma concepção que atravessa
muitas áreas do pensamento contemporâneo: antropologia, psicologia, religião comparada,
sociologia e diversas outras”. O autor enfatiza, porém, o que o termo significa em crítica
literária hoje, e explica que o mito é e sempre foi um elemento integrante da literatura; o
interesse de poetas pela mitologia tem sido notável e constante desde a época de Homero. De
acordo com Frye, os escritores interessam-se pelos mitos (e contos populares) pela mesma
razão pela qual os pintores se interessam por arranjos de naturezas mortas, ou seja, ilustram
princípios essenciais de narração. O artista que os usa, então, tem o problema técnico de fazê-
los plausíveis ou verossímeis para um público sofisticado. O mito oferece, portanto, “os
principais contornos e circunferência de um universo verbal que é mais tarde também
ocupado pela literatura. A literatura é mais flexível que o mito e preenche esse universo de
modo mais completo ... (FRYE, 2000, p. 41).
É com base nesses contornos e circunferências que nos propomos a analisar os contos
de Marina Colasanti, narrativas que resgatam em seus procedimentos de significação a poética
do mito. Chamamos de poética do mito, pois percebemos, de acordo com os posicionamentos
teóricos citados, que o mito tem um modo particular e simbólico de “dizer o mundo”; ele se
utiliza dos materiais existentes para significar. Como destaca Barthes (1980, p. 131), o
“mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito
tem limites formais, mas não substanciais”.
Com Colasanti, o mundo maravilhoso e estranho dos relacionamentos amorosos é
figurativizado por meio do diálogo com os mitos e os contos maravilhosos. Assim, os contos
analisados também adquirem uma forma singular de proferir seu conteúdo.
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Vaso com Girassóis. V. van Gogh (1988-1989)
48
3.2.1 O MITO CLÁSSICO DAS FLORES
Primeiramente, levantaremos alguns apontamentos sobre os mitos das flores e seus
modos de construção de sentidos, para, depois, analisar de que modo o conto “De floração”
trabalha com a transformação de algo em orquídea. Podemos refletir sobre as metamorfoses
em flores como um modo de significação do renascimento, da vida e da morte e, também, da
instabilidade e estabilidade dos relacionamentos amorosos. Basta, para tanto, que nos
reportemos aos mitos de Narciso, Clítia, Croco e Esmílace, Jacinto e Adônis.
O mito das flores, recriado em grande parte por Ovídio, em As metamorfoses, resgata
a história da oralidade e o converte em forma literária.
Frye (1992, p. 46) afirma que “não existem histórias novas, que a história de amor e
morte é, provavelmente, mais velha do que a própria escrita, e o escritor original é aquele que
conta uma das histórias mais antigas do mundo de uma maneira nova”. Por isso, utilizaremos
a versão literária de Ovídio sobre os mitos que, como dissemos, tem sua raiz na oralidade.
O mito de Narciso, surgido da superstição grega segundo a qual contemplar a própria
imagem prenunciava má sorte, de acordo com Brandão (1992, p. 172), possui um simbolismo
que fez dele um dos mais conhecidos da mitologia greco-latina. Narciso era um jovem de
singular beleza, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. O adivinho Tirésias vaticinou que
Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Indiferente aos
sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor da ninfa Eco segundo outras fontes, do
jovem Amantis – e seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao observar o reflexo de seu
rosto nas águas de um lago, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até
consumir-se. A flor, conhecida pelo nome de narciso, nasceu no lugar onde morrera. Em outra
versão do mito, Narciso contemplava a própria imagem para recordar os traços da irmã
gêmea, morta tragicamente (BRANDÃO, 1987).
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Várias são as explicações desse mito. Mas, em nossa análise, será priorizada a questão
do amor e a metamorfose em flor, a fim de estabelecer uma relação com o conto “De
floração” de Marina Colasanti. Vejamos, inicialmente, a poética dos mitos e seus modos de
significação.
O ambiente da narrativa mítica amalgama conjuntos léxicos que nos remetem aos
conteúdos semânticos da flor, da morte e do renascimento.
A ninfa Eco, dominada pelo amor, se esconde de Narciso “pseudoflor”: “Desdenhada,
esconde-se na floresta e protege com flores o rosto corado de vergonha, e, desde então, vive
naquelas grutas isoladas (OVÍDIO, s.d., p. 58) [grifo nosso]. As “flores” com as quais a
ninfa esconde o rosto é “Narciso-flor”, é a causa de sua reclusão, de sua vergonha; a ninfa tem
flor em seu rosto coberto de vergonha. O jovem, no texto, é ligado às flores antes mesmo da
metamorfose no desfecho do texto poético.
apaixonado por si mesmo, Narciso, braços estendidos, dirige-se à floresta que o
cerca: “O filho de Cefiso tinha, então, dezesseis anos, e poderia ser tomado tanto por um
menino como por um moço” (OVÍDIO, s.d., p. 58); “E já o sofrimento abate o meu vigor, não
me resta muito mais tempo a viver e me extingo na flor da idade” (OVÍDIO, s.d., p. 61) [grifo
nosso]. Embora seja um efeito das escolhas da tradução do texto de Ovídio que não tem
amparo no original latino (cf.: primoque exstinguor in aevo. Met. II, 470), nota-se o jogo
metafórico “flor da idade” ao mesmo tempo que caracteriza jovialidade, anuncia a sua
metamorfose, sua morte que simboliza um renascimento em flor; do interior de Narciso
começa a transformação sem que ele se dê conta disso.
Contidos no campo semântico da flor, os termos cor e cheiro (riqueza das flores), no
texto ovidiano, contribuem para dar sentido e isotopia artística ao mito; ocorre todo um
ambiente sinestésico no desenrolar da narrativa mítico-poética: “Havia uma fonte de água
muito pura, brilhante e prateada [...]” (OVÍDIO, s.d., p. 59); “Inspira a paixão que sente, e,
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ao mesmo tempo, acende e arde (OVÍDIO, s.d., p. 59), “Estou apaixonado, e vejo, mas não
posso alcançar o que vejo e me seduz [...]” (OVÍDIO, s.d., p. 59); “[...] e, tanto quanto posso
adivinhar pelos movimentos de tua linda boca, dizes-me palavras que o chegam aos meus
ouvidos (OVÍDIO, s.d., p. 61) [grifos nossos]. Por meio desses exemplos, notamos a arte de
Ovídio que concilia as sensações juntamente com o drama da personagem Eco e,
principalmente, Narciso.
Considerando a situação problema do mito, qual seja, a falta de reciprocidade amorosa
a si mesmo, é válido destacar os sentidos da visão e da audição. Ora, Narciso se refletido
nas águas de um lago, homólogo de rio, sua fonte de nascimento, visto que é filho de Cefiso,
mas suas súplicas não são correspondidas. É como se o “outro-ele-mesmo” se fizesse surdo,
ou ele mesmo não se pudesse ouvir: “[...] dizes-me palavras que não chegam aos meus
ouvidos. Somos o mesmo” (OVÍDIO, s.d., p. 61). Narciso admira e ama o que “vê” e sofre
porque o “outro-ele-mesmo” não o ouve, e não pode ouvir. Além disso, o toque (tato) é
impossível. Está ao mesmo tempo tão próximo da visão e tão distante do toque: “[...] e
quando te estendo os braços, estendes, por tua vez, os teus [...]” (OVÍDIO, s.d., p. 60).
Completamente dominado por Eros, Narciso, agora sim, inicia um processo de
transformação explícita e, mais uma vez, ressaltamos a arte de Ovídio com suas sugestões de
imagem. É a procura do plano da expressão poética pela configuração do conteúdo
“metamorfose em flor”; é a palavra escrita querendo ser imagem, ser pintura:
[...] Que me seja permitido olhar o que não posso tocar e alimentar a minha
triste loucura. Enquanto se alimenta, abre as vestes, desde o alto, e esmurra o
peito nu com as mãos esculturais. Com as pancadas, o peito se tinge de
vermelho, como acontece com as frutas, que, alvas em parte, em parte
enrubescem, ou como, nos cachos variegados, a uva, ainda verde, se colore
de púrpura. Quando o viu, na água cristalina de novo, não pôde suportar
por mais tempo, mas, como costumam se derreter a loura cera ao leve calor
do fogo ou o orvalho matinal ao morno sol, assim, esgotado pelo amor, ele
definha, e um fogo secreto o consome, pouco a pouco. Agora, sua cútis já
não oferece a alvura misturada ao rubor; nem restam o vigor e o ânimo
que seduziam os seus olhos; nada resta do corpo que outrora Eco havia
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amado. Essa, ao ver tal coisa, embora ainda ressentida com o agravo,
apiedou-se, e todas as vezes que o infortunado adolescente exclamava ‘Ai!’,
ela repetia ‘Ai!’ Quando as mãos lhe esmurram os braços, ela repetiu com
sua voz o ruído das pancadas . Foram as últimas palavras de Narciso com
os olhos postos naquela água tão conhecida: ‘Ah, querido em vão!’, e o
local devolve todas as palavras. E dizendo ‘Adeus!’, responde Eco Adeus!’
Ele repousa na verde relva a cabeça fatigada, e a noite fechou-lhe os olhos
cheios de admiração pelo dono. E mesmo depois de ter sido recebido no
inferno, ainda se olhava na água de Estige. As náiades, suas irmãs, choraram
em altas vozes e depositaram os seus cabelos no túmulo do irmão; choraram
as dríades; Eco repete os seus lamentos, e elas preparavam a pira, as
tochas e o féretro. Em lugar do corpo, acharam uma flor dourada, rodeada
de folhas brancas (OVÍDIO, s.d., p. 61) [grifos nossos].
Como se disse anteriormente, os sentidos são extrapolados e contribuem para a
isotopia do mito de Narciso. Sente-se um jogo cromático, por meio da sugestão das mais
variadas cores, o que remete à flor, ao seu perfume, à textura de suas pétalas. Ocorre um
amálgama entre descrição da dor e do sofrimento de Narciso e a sua transformação de
humano em vegetal. O peito, outrora alvo, “se tinge de vermelho”, como as frutas, que “alvas
em parte, em parte se enrubescem [...] a uva, ainda verde, se colore de púrpura”. As sucessões
de cores invocadas pela comparação com as frutas e pancadas no alvo peito vão colorindo o
texto de Ovídio e (des)construindo o novo Narciso. De alvo, adquire novas cores: vermelho,
verde, púrpura e rubro.
A descrição intrínseca dor/sofrimento/metamorfose permanece. Narciso está esgotado
pelo amor; definha como “costumam se derreter a loura cera ao leve calor do fogo ou o
orvalho matinal ao morno sol”. A junção cor, transformação e dor atingem seu ápice: a cera e
o orvalho derretem, ou seja, perdem suas antigas formas pelas ações do leve calor de fogo e
do morno sol. Narciso transformando-se. E mais, “loura”, “fogo” e “sol” carregam as cores
amareladas e douradas; cada uma delas suscita um tom cromático, fazendo com que o texto
ovidiano se figurativize em um mosaico colorido, em um calidoscópio lingüístico-verbal.
Embora estejamos levando em consideração a tradução do texto, tais sugestões imagéticas
estão presentes também no original, além disso, com tal recurso poético de Ovídio a obra
52
Girassóis (s.d.) de Van Gogh estabelece um diálogo, apesar das especificidades de suas
linguagens.
Convém recordar alguns conceitos sobre o diálogo entre as artes. Segundo Frye (1973,
p. 133) a pintura é, normalmente, uma pintura “de alguma coisa”: pinta ou ilustra um ‘tema’
composto de coisas análogas a objetos, no sentido sensitivo”. Para o crítico, ao mesmo tempo
estão presentes certos elementos do plano pictórico: “o que uma pintura representa organiza-
se em modelos estruturais e convenções que se encontram somente nas pinturas”. Desse
modo, o “sensibilizar algo” do texto visual se configurará por meio de outros elementos
distintos da narrativa poética (mesmo em tradução) de Ovídio.
Manguel, no primeiro capítulo de Lendo Imagens, comenta a relação entre imagem e
memória. Para tanto, cita a observação do ensaísta Francis Bacon, para os antigos, todas as
imagens que o mundo dispõe diante de nós já se acham encerradas em nossa memória desde o
nascimento (2001, p. 20). A fim de salientar essa idéia, o autor lembra Platão, que tinha a
concepção de que todo esquecimento bem como toda descoberta não passavam de recordação.
O que o autor quer deixar claro com tais citações é que, se isso for verdade, os povos (todos)
estão refletidos de algum modo nas numerosas e distintas imagens que os rodeiam, uma vez
que elas já são parte daquilo que rodeiam.
As imagens, segue o autor, que formam o mundo, são símbolos, sinais, mensagens e
alegorias, ou talvez sejam apenas presenças vazias completadas com o desejo, experiência,
questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são
a matéria com que se faz o todo. Essas observações de Manguel entram em consonância com
a linguagem simbólica utilizada pelos artistas que utilizam as narrativas ticas em suas
obras.
O estudioso das artes faz as seguintes questões para levar à reflexão: qualquer imagem
pode ser lida? Pode-se criar uma leitura para qualquer imagem? Se for assim, toda imagem
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encerra uma cifra simplesmente porque parece um sistema auto-suficiente de signos e regras?
Qualquer imagem admite uma tradução em uma linguagem compreensível, revelando ao
espectador aquilo que se pode chamar de Narrativa da imagem, com “ene” maiúsculo?
Manguel completa dizendo que, se a natureza e os frutos do acaso são passíveis de
interpretação, de tradução em palavras comuns, no vocabulário artificial que se constrói a
partir de vários sons e rabiscos, então, talvez esses sons e rabiscos permitam, em troca, a
construção de um acaso ecoado e de uma natureza espelhada, um mundo paralelo de palavras
e imagens mediante o qual se pode reconhecer a experiência do mundo que se chama real.
Manguel (2001) retoma em seu texto a narrativa como arte temporal e a imagem como
espacial. Observa que, durante a Idade Média, um único painel pintado poderia representar
uma seqüência narrativa, incorporando o fluxo do tempo nos limites de um quadro espacial,
como ocorre nas modernas histórias em quadrinhos, quando se sugere o movimento de um
personagem fazendo-o aparecer várias vezes em seqüência em uma paisagem unificadora, à
medida que avança pelo enredo da cena. A imagem se apresenta à consciência
instantaneamente encerrada pela sua moldura em uma superfície específica.
O autor finda suas observações dizendo que não sabe se é possível algo como um
sistema coerente para ler as imagens, similar àquele que se criou para ler a escrita. Talvez, em
contraste com um texto escrito, no qual o significado dos signos deva ser estabelecido antes
que eles possam ser gravados na argila, ou no papel, ou atrás de uma tela eletrônica, o código
que habilita a ler uma imagem, conquanto impregnado por conhecimentos anteriores, é criado
após a imagem se constituir de um modo muito semelhante àquele com o qual se cria ou se
imaginam significados para o mundo, construindo com audácia, a partir desses significados,
um senso moral e ético para se viver.
Dias (1996, p. 158-159), com base nessa particularidade do objeto artístico, comenta
que:
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que se ter muito cuidado para não se ficar enredado nas malhas
dessa leitura circular, atraente, porém perigosa. Afinal, não é nem um pouco
difícil a obra passar a figurar como pretexto para que o outro texto desponte,
fruto do exercício apaixonante com a própria linguagem crítica.
Dias ressalta que a relação entre as linguagens e, principalmente, seus métodos de
descrição e estudos é uma “aventura perigosa” e ousada. O crítico deve, pois, não se
“encantar” com as especificidades dos textos, é preciso reconhecer a necessidade de
transformar a leitura de uma obra verbal ou visual numa prática que incorpore cada vez mais
em si mesma o processo criativo. Por isso, tomamos o cuidado de, apenas, destacar as
sensações que as obras suscitam, apesar dos diferentes modos de se significar e da distância
temporal que as separa.
O mito, a pintura e o conto possuem seus próprios e particulares meios de
singularização, logo, lidar com essa multiplicidade de elementos é tarefa que requer o
conhecimento de cada um deles e o domínio dos distintos contextos a que pertencem.
Feitas essas considerações acerca do diálogo entre as diversas artes, levantaremos
algumas “leituras de intervalo”, consoante Barbosa (1990); daí, então, a análise poderá dar
conta do jogo de relações e de proximidade presentes.
Além da proximidade temática dos signos “flores”, as duas obras apresentam o
componente sinestésico/cromático como motivo de elaboração estética, fazendo com que
extrapolem a aparente “visão de leitura” e se insiram numa significaçãomais profunda.
No texto pictórico, vemos um vaso de girassóis (primeiro plano) ocupando o centro do
texto, figura que possui dois tons de amarelo marcantes, que são inversos aos do plano que
sustenta o vaso e a parede (plano de fundo). A cor do plano inferior da pintura liga-se à parte
superior do vaso, e a parede do fundo da obra assemelha-se à parte inferior do vaso. O que
chama a atenção, contudo, é a “gradação” cromática de amarelo e a “degradação” das formas
dos girassóis: enquanto alguns são plenos de pétalas, tons avermelhados e arredondados,
55
outros são mais claros e disformes. hastes rijas, firmes, eretas e contorcidas, conduzindo a
“visão de leitura” a várias direções: para baixo, para cima, para os lados e, significativamente,
para o leitor da obra. Destacam-se a horizontalidade do plano de fundo, a verticalidade de
algumas hastes das flores, a circularidade do vaso e de alguns girassóis, e a deformidade de
outros. O centro da pintura é marcado pela curva da linha do vaso que separa os tons claros e
escuros do amarelo.
Com base nesses apontamentos, os planos expressivos visuais remetem aos planos dos
conteúdos vida (vigor das pétalas, forte tonalidade dos tons cromáticos, formas arredondadas,
e verticalidade), envelhecimento (ausência de pétalas, clara tonalidade de amarelo,
deformidade das flores, e horizontalidade), e inevitabilidade da morte (inversão de cores do
plano inferior e superior), todos figurativizados pela ação do tempo nas flores.
Dessa forma, os girassóis em Van Gogh são revitalizados semanticamente num
mecanismo de ampliação de sentidos; os signos, que não são flores referentes, remetem a
outros conteúdos conotados. As formas e a disposição dos girassóis, assim como os diferentes
tons de amarelo figurativizam a vida e a morte que percorre todo o texto visual, singularidade
plástico-expressiva que lembra a metamorfose sinestésica de Narciso no trecho pouco
transcrito.
Consoante Motta (1996, p. 147), existem dois pontos fundamentais do signo poético
ou do fazer literário:
a intransitividade do signo para o fechamento de seus mecanismos
automáticos e, conseqüentemente, a abertura de novas redes de relações a
morte do uso para o florescer do inusitado; a motivação do plano de
expressão que, entre tantas possibilidades de soluções formais, tem no
processo de iconização um representante prodigioso de como dotar de laços
de semelhança o signo lingüístico que é arbitrário novamente, o processo
de como dar a vida, ao gerar vínculos associativos, a uma matriz sígnica que
por princípio é morte, porque as relações entre o seu plano de expressão e o
seu conteúdo dão-se no âmago de um útero seco, a convenção.
56
Ocorre a morte dos signos, ou seja, a quebra do automatismo dos conteúdos denotados
dos vocábulos expressivos em Ovídio e da imagem em Van Gogh. O jogo sinestésico
utilizado por Ovídio abre novas redes de relações, motivando os signos em questão, fazendo-
os “florescer” para transformar Narciso, singularizar a dor amorosa e exteriorizar a tensão e os
conflitos do personagem da mitologia. As formas e as cores, recursos plásticos de Van Gogh,
dada a intransitividade dos signos pictóricos, dirigem-nos a uma “via de mão dupla”: são
girassóis na identificação visual e vida e morte na “visão sensível”.
Assim, a morte e a vida se manifestam tanto no plano expressivo da linguagem como
no plano narrativo: Narciso, destruído por Eros, morre e renasce flor narciso.
Valendo-nos da leitura de Brandão (1992, p. 173), sobre a simbologia do mito, várias
associações poderiam ser feitas com a flor narciso: “ela é bonita e inútil; fenece, após uma
vida muito breve; é estéril; tem um perfume soporífero e é venenosa, tal qual o jovem
Narciso, que, carente de virtudes masculinas, é estéril, inútil e venenoso”. Lembremos que
“nenhum jovem, nenhuma jovem o tocara” (tato) tanta era sua “rude soberba” acompanhada
de “suas formas delicadas”. Na Ásia, por outro lado, “é mbolo da felicidade e expressa os
cumprimentos do Ano Novo, isto é, de um ano que sucede ao sono do ano velho”
(BRANDÃO, 1992, p. 174). A relação desse outro significado parece ligar-se ao
renascimento, à mudança de um estado a outro, ao retorno, tal como Narciso que, de jovem
(humano), transformou-se em vegetal (flor narciso).
Esse clima de transformação percorre todo o mito, seja física, emocional ou
espacialmente. Narciso antes era amado e desejado, contudo, ninguém o tocava. Depois,
amaldiçoado pelos deuses, é desprezado e sofre como seus admiradores. O jovem tem uma
situação inicial positiva e uma final negativa: beleza e admiração de outros (estabilidade),
beleza e não correspondência do “outro-ele-mesmo” e desprezo (instabilidade) resultam em
morte/suicídio/metamorfose. Oriundo das águas de um, rio pelo lado paterno de Cefiso,
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Narciso retorna às águas, dessa vez de um lago ou fonte (fons, no original) em que se
contempla e admira, e, por meio dele, morre e se liga eternamente: “E mesmo depois de ter
sido recebido no inferno, ainda se olhava na água do Estige” (OVÍDIO, s.d., p. 61).
A transformação de Narciso em flor do mesmo nome liga-se às idéias de
renascimento, de retorno, de circularidade. Se Narciso definha à vista de sua própria imagem
refletida na água, Clítia definha contemplando o Sol, dando origem ao girassol.
O mito do girassol também se relaciona com amor, vingança, além de ciúme, ódio e
privação. Amaldiçoado por Vênus, o Sol apaixona-se por Leucotoé, causando o ciúme de seu
antigo amor, Clítia. Esta, para se vingar e por ódio a rival, espalha a notícia de adultério de
Leucotoé e denuncia a jovem ao pai, que a pune severamente. Apolo, o Sol, priva Clítia de
seus prazeres:
Quanto a Clítia, embora o amor pudesse desculpar o seu ciúme, e o
ciúme a delação, Apolo não mais a procurou e renunciou aos prazeres
venéreos em sua companhia. A partir de então, arrastada pelo amor a uma
loucura, a ninfa definhou, desanimada de tudo; e deixava-se ficar, exposta ao
tempo, noite e dia, sentada ao chão, nua, e com os cabelos desgrenhados.
Durante nove dias, sem comer nem beber, mata a fome e a sede com o
orvalho e com as suas próprias lágrimas, sem se levantar do chão. Limitava-
se a olhar a face do deus que se movia, e acompanhava a sua marcha
voltando o rosto. Seus membros, dizem, fixaram-se no solo, a lividez os
descolore em parte e os transforma em hastes ressequidas; é vermelha em
parte, uma flor semelhante à violeta esconde o rosto. Embora presa pelas
raízes, ela se volta para o Sol, e conserva o seu amor, mesmo transformada
(OVÍDIO, s.d., p. 74).
Apolo despreza Clítia por -lo delatado. A punição da ninfa foi a ausência do deus,
mas o amor de Clítia era tanto que, mesmo transformada, continuava a contemplar o Sol,
como o girassol acompanha o calor solar. Baseando-nos na função explicativa de Lévi-Strauss
(1987), podemos dizer que o girassol segue o astro, porque, no passado, uma ninfa,
apaixonada por Apolo, o amava tanto que o seguia incansavelmente. Clítia, diferente de
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Narciso que amava a si mesmo, definhou por amar o outro, por ser desprezada. Tal como o
jovem, não se alimentava e limitava-se a olhar a face do deus que se movia.
Outra transformação em flor, ligada às vicissitudes do amor, é a do mito do jovem
mortal Croco e da ninfa Simílace. Ele é apaixonado e triste, que, como todos os homens, é
mortal, e ela, como todos os seres maravilhosos e míticos, tem longa existência. Por uma vez,
o Olimpo se compadece e decide transformar Simílace em uma salsaparrilha (Celas aspera) e
Croco, na flor do açafrão que tem o seu nome (Crocus sativus). Por esse motivo, gregos e
romanos colocavam flores de açafrão sobre os túmulos dos amantes que morriam por amor,
segundo Chevalier (1988).
Embora não chegue a narrar a história de Croco e Simílace, Ovídio cita os
personagens no mito de Salmácida e Hermafrodito: “Também nada direi de ti, Celmo, agora
diamante, outrora fidelíssimo a Júpiter infante, nem de vós, curetas, nascidos das chuvas
abundantes, nem de Croco, com Simílace, transformados em florzinhas” (OVÍDIO, s.d., p.
75). Nesse mito, a transformação está mais ligada à união do casal, logo, a metamorfose é
reparadora do amor complicado; sobremaneira díspar dos mitos de Narciso e Clítia.
Seguindo a relação de um mortal com um ser mítico divino e o ardor amoroso dos
mitos anteriores, lembremos o mito de Jacinto e o deus Apolo, que amava intensamente o
jovem:
Não se interessava mais pela cítara ou pelas setas: esquecendo-se de
sua própria condição, não se recusa e estender reder, a conduzir cães pela
trela e a percorrer as íngremes encostas dos montes, como teu companheiro;
o prolongado hábito dessa convivência insuflou a paixão (OVÍDIO, s.d., p.
187).
Por meio desse fragmento, podemos perceber o quanto o deus ama o jovem,
sentimento que o faz esquecer de sua condição superior divina. A Eros, ninguém está imune.
59
Contudo, esse mito, assim como o de Croco e Simílace, não contém a idéia de
metamorfose como castigo, mas, sim, de reparação, tendo em vista que o deus Sol fere, sem
intenção, o rosto de jovem Jacinto:
Os dois se despem e com os corpos reluzentes de azeite, preparam-se
para a competição do lançamento de disco. Febo, depois de haver balançado
o disco, atira- o no ar e o disco atravessa as nuvens em sua passagem. A
pesada massa cai sobre o solo muito tempo depois, mostrando a destreza e a
força do deus. Imediatamente, o imprudente jovem, na sua ânsia de
participar da competição, corre a apanhar o disco. Esse, porém, ao chocar-se
contra o chão muito duro, ricocheteia e vem ferir, em cheio o rosto, Jacinto.
O deus empalidece tanto quanto o jovem, sustenta nos braços o corpo
desfalecido e trata, ora de reanimá-lo, ora de estancar o sangue da cruel
ferida, ora de procurar impedir, por meio de ervas, que lhe fuja a vida. De
nada valem as artes; o ferimento era incurável. Assim como, em um bem
tratado jardim, quando se esmagam as violetas, as papoulas e os lírios,
nas hastes a que estão presas, logo, murchas, abaixam-se sem suportar o
próprio peso, voltando-se para o chão, assim Jacinto, com a morte estampada
no rosto, perdidas as forças, pende a cabeça, que cai sobre o ombro. ‘Morres,
Jacinto, sem teres visto a flor da juventude’, diz Febo (OVÍDIO, s.d. p.
187) [grifos nossos].
Mesmo que sutil, percebemos o mesmo recurso poético dor/sofrimento/metamorfose,
no qual o léxico das flores é relacionado ao personagem e seu mal-estar. A languidez de
Jacinto é comparada ao esmagamento das violetas, das papoulas e dos lírios no jardim e às
quedas das hastes a que estão presas. Jacinto, assim como Narciso, morre na “flor da
juventude”, mas, diferente deste, aquele tem a morte reparada pelo amado divino. Jacinto
morre e renasce flor-jacinto:
‘Tangida por minha mão, a lira e meus cantos te exaltarão; e, transformando
em uma flor, imitarás, por escrito, os meus lamentos. Virá um dia em que se
juntará a ti nesta flor um herói valoroso entre as mais valorosas e estará
escrito em tuas pétalas’. Enquanto proferia estas palavras sinceras, eis que o
sangue que se espalhara pelo chão manchou a relva. E deixa de ser sangue, e
dele nasce uma flor mais brilhante que a púrpura, cuja aparência seria a do
lírio, se a sua cor não fosse púrpura, e a do lírio prateada (OVÍDIO, s.d., p.
187-188).
60
Jacinto é renascido pelo poder divino e, nesse aspecto, se assemelha a Adônis,
transformado em anêmona. Assim como Apolo, a deusa Vênus, tomada pelo amor provocado
pelas flechas de Cupido, afasta-se do seu ambiente divino e passa a acompanhar o jovem.
Embora tivesse sido advertido pela deusa do Amor, Adônis vai à caça, e o ataque de
um javali lhe é fatal. Vênus, à maneira de Apolo, exclama:
‘Não restarás, porém, de ti apenas isso. de ficar para sempre uma
lembrança da minha dor, meu Adônis: a repetição da imagem de tua morte
exprimirá todos os anos, a recordação dos meus lamentos. E teu sangue será
transformado em uma flor. Se tu, Perséfone, permitiu outrora que fosse
transformado em perfumosa hortelã o corpo de uma mulher
1
, como me seria
recusada a transformação do herói filho de Ciniras? (OVÍDIO, s.d., p. 199).
Nesses mitos, percebemos a presença significava da intensidade amorosa: Narciso
apaixonou-se por si mesmo e definhou perante seu reflexo no rio; a ninfa Clítia definhou
contemplando o seu amado Sol; Croco, amando intensamente a ninfa Simílace, sensibilizou
os deuses; Jacinto e Adônis, belos jovens, foram amados pelos divinos Apolo e Vênus. Se a
transformação em flor como reparo e punição liga-se aos mitos de Narciso e Clítia, nos mitos
de Croco e Simílace, Jacinto e Adônis relacionam-se à restauração e à permanência amorosa.
Utilizando a concepção de Jolles (1976, p. 88), de que se chama mito a forma simples,
quando o universo (e as coisas) se cria para o homem por “pergunta” e “resposta”, é possível
pensar nas questões simbólicas: Por que existem as flores narciso, girassol, jacinto, anêmona e
as de açafrão e salsaparrilha? No espaço, tempo, e ações míticos a resposta é sempre
admissível, logo, tais flores existem, porque houve eventos que justificam, explicam e dão
nexo à existência dessas flores. Tal procedimento está fundamentado na linguagem da
metáfora mítica.
1
Plutão apaixonara-se pela ninfa Minta, que Perséfone matou, enciumada. Plutão a metamorfoseou em uma
planta que tomou o seu nome (minta ou menta-hortelã).
61
No entender de Cassirer (1974, p. 102), mito e linguagem estão submetidos às mesmas
ou às análogas leis espirituais, basta que apontemos uma raiz comum de onde ambos tenham
surgido; atua neles uma mesma forma de concepção mental, o pensamento metafórico. A
metamorfose em flores, nos mitos analisados, possui uma categoria simbólica que organiza o
pensamento antigo como uma forma de dizer algo por uma linguagem segunda,
plurissignificativa, polissêmica. Cassirer completa dizendo que “Jamais se compreenderá a
mitologia, enquanto não se souber que aquilo que chamamos antropomorfismo,
personificação, ou animismo, foi, muitíssimos séculos, algo absolutamente necessário para
o crescimento de nossa linguagem e de nossa razão” (p. 103-104).
A flor, símbolo do ciclo da renovação, da beleza, rica pelas cores e pelo aroma, serve
de instrumento de linguagem metafórica ao mito desde a sua forma oral até sua escrita, na
qual Ovídio, poeticamente, reconta as histórias, ao mesmo que mantém o princípio enunciado
por Jolles de “pergunta” e “resposta”. Lembre-se do girassol que segue o astro como a ninfa
apaixonada pelo deus Apolo, e as flores-condimentos: açntme(o)-250(e)-246(sa)3(l)-2(sa)3(p)-10(a)4(r)3(r)3(i)-2(l)-2(h)-10(a)4(.)]TJ1 0 0 1 121 359 Tm[(A)2(t)-2(é)-266(e)4(st)-3(e)-266(m)-2(om)-2(e)4(nt)-2(o,)-270(e)4(st)-3(i)-2(ve)-6(m)-2(os)-271(e)4(st)-3(a)4(be)4(l)-2(e)4(c)-6(e)4(ndo,)-270(ba)4(si)-3(c)-6(a)4(m)-2(e)4(nt)-2(e)4(,)-270(o)-270(m)-2(odo)-270(de)-266(si)-13(g)10(ni)-2(f)mcação dos
mitos das flores e seus recursos poéticos por meio de As metamorfoses de Ovídio. A partir
daqui, passaremos à análise do conto “De floração”. Para que isto ocor(t)2(m)-a, salientaremos de
que forma os principais contornos e ci2(m)-cunferência do universo verbal mítico são resgatados
pela escritora em estudo, e de que maneira ela os inse(t)2(m)-e no cotidiano do relacionamento
amoroso.
62
3.2.1.1.. O MITO DAS FLORES NA CONTEMPORANEIDADE
Os Peitos
Mulheres
têm dois
peitos.Os
homens têm
um peito só.
Arnaldo Antunes
O conto “De floração” resgata, em seus procedimentos de construção de sentido, a
transformação de parte de um ser humano em flor: os seios em orquídea. O título de seus
contos funciona como uma metonímia da narrativa, dando-nos, de início, o índice sutil do que
será lido e analisado. “De floração” é um conto ambíguo, em que os campos semânticos do
órgão sexual feminino são, ao mesmo tempo, transportados e figurativizados pelos das flores.
O título do conto pode funcionar, no nível primeiro de sentido, como um sintagma
preposicionado (preposição DE + sintagma nominal floração), assim como um sintagma
nominal (defloração), no vel segundo. Ora o primeiro, ora o segundo sentido sobressaem
com a leitura analítica da narrativa. Com a análise descritivo-interpretativa do conto,
salientaremos essa questão.
Composto por sete parágrafos curtos, o conto “De floração” se inicia com o mal-estar
da mulher, a dor nos seios:
De floração
A mulher acordou com os seios inchados, doloridos. Tocou de leve,
comentou com o marido. Na manhã seguinte os mamilos estavam duros,
brilhantes. E notou que no seguir dos dias modificava-se a cor, escura a
princípio, quase roxa, clareando aos poucos em tons esverdeados à medida
que os mamilos mais e mais erguiam suas pontas.
Compressas, pomadas, água morna. Delicado trato. Racha-se nas
extremidades a pele agora fina, quase transparente. E leve cacho de carne
protubera entre os lábios da fenda, projeta-se desenovelando lento e seguro a
primeira pétala lilás.
Sépalas tensas, trêmulos babados. E o rijo clitóris do labelo. Nos
seios da mulher duas orquídeas explodem em silêncio.
63
Reverente, o marido a transporta frente à janela, abre cortinas, despe
blusa, que se derreta a luz no colo em primavera. Nem descuida da água, em
jarra e copos, que ela bebe seguida.
Como aranhas, assim as orquídeas tecem seu perfume. Fio frágil
flexível e nunca igual. Quase indizível nos primeiros dias, doce em seguida,
fazendo-se maduro, pegajoso enquanto nas pétalas manchas escuras se
alastram queimando a cor, vazando a consistência.
Bebe e bebe a mulher tentando prolongar sua floração. Mas o
rendado se encolhe, o lilás se retrai. Murchas passas pardas, caem enfim as
orquídeas deixando nos mamilos uma gota de seiva.
Que o marido vem colher entre os dedos. Para depois, cuidadoso,
segurando a tesoura nas duas mãos, podar em sangue a matriz
(COLASANTI, 1986, p. 97-98).
À maneira de Ovídio em sua obra As metamorfoses, o conto une as percepções e as
cores com a metamorfose dos seios em flor: “inchados”; “doloridos”; “Tocou de leve”;
“duros”; “morna”; “rijo”; “pegajoso”; “queimando” (tato); “brilhantes”; clareando”; “cor”;
“escura”; “roxa”; “tons esverdeados”; “quase transparente”; “manchas escuras”; “lilás”;
“pardas” (cores e visão); “doce” (paladar); “perfume” (olfato), etc. Além dessas, outras
expressões sugerem sensações e sentidos que veremos no decorrer da análise.
No primeiro parágrafo, a mulher sente o mal-estar noturno, na manhã seguinte, os
seios estavam duros e brilhantes e, no seguir dos dias, segue a transformação. Com a
economia de recursos espaço-temporais, o leitor desse conto breve se depara com o
estranhamento literário: parte da mulher se transformando em flor. Num único parágrafo,
diversas ações ocorrem, o tempo na narrativa é dinâmico e o espaço é pressuposto:
imaginamos um quarto de casal, uma casa ou, apenas, uma janela de sala. De chofre,
identificamos os elementos do campo semântico das flores penetrando no universo semântico
do corpo feminino, concomitantemente com um teor sensual do casal e de mal-estar da
mulher. Dos seios, enfatizam-se os mamilos que erguem suas pontas, sugerindo a excitação
feminina. Típico do gênero conto, as ações acontecem numa concentração de efeitos e de
pormenores: o conto dispensa as digressões, as divagações, e os excessos; exige, pois, que
todos os seus componentes estejam condensados.
64
No que diz respeito à cromaticidade desse parágrafo inicial, notamos que as cores são
mais explícitas, ou seja, surgem não como imagens, mas sim como citação direta:
“brilhantes”, “modificava-se a cor, escura a princípio, quase roxa, clareando aos poucos em
tons esverdeados [...]” (COLASANTI, 1986, p. 97).
No segundo parágrafo do conto, segue a transformação e intensificam-se as sugestões
cromáticas e sonoras da narrativa. O marido “dedica-se à esposa”, e o clima ambíguo do conto
adquire força maior: “Compressas, pomadas, água morna. Delicado Trato” (COLASANTI,
1986, p. 97). Vale a pena nesse trecho descrever os modos de articulação das palavras. Temos
a seguinte hierarquização: oclusivas (/c/, /p/, /d/, /g/ e /t/), nasais (/m/, e /n/), fricativas (/s/ e
/r/), tepes e laterais (/l/). A disposição e quantidade dos modos de articulação das consoantes
estão em consonância com a explosão da “floração”, da flor que sai dos seios da personagem,
ao mesmo tempo que insinua toda a excitação de um ato amoroso.
De acordo com Silva (2003, p. 33-34), nos modos de articulação oclusiva e nasal, os
articuladores produzem uma obstrução completa da passagem da corrente de ar através da
boca e do nariz. No fricativo, por sua vez, a obstrução é apenas parcial, causando, pois a
fricção. No tepe (ou vibrante simples), o articulador ativo toca rapidamente o articulador
passivo ocorrendo uma rápida obstrução da passagem da corrente de ar através da boca. Ao
mesmo tempo que o cacho de carne rompe a pele do seio numa direção de interioridade à
exterioridade, os articuladores produzem a obstrução da passagem da corrente de ar através da
boca e do nariz, numa hierarquia de intensidade completa, parcial e rápida.
Ainda sobre o segundo parágrafo, as sugestões de sentidos começam a ser mais
implícitas e indiretas, mais poéticas, portanto. Em “cacho de carne”, percebemos o vermelho
ou o rubro, o que nos lembra os “lábios da fenda”, simultaneamente relacionado ao clitóris e à
“pétala lilás”. Em “De floração”, a mulher, seus seios e sexo não são descritos como são
realmente, mas contados, ficcionalmente, por meio de palavras, de signos potencialmente
65
motivados, emprestados das partes correspondentes de outros seres, no caso, a flor orquídea,
suas cores, perfumes e textura.
Ocorre a transposição “seio-vagina”; os seios transformam-se numa “pseudo-vagina”,
trazendo à tona todos os elementos a ela relacionados: o ato amoroso em “Delicado trato”; a
abertura do sexo feminino em “racha-se nas extremidades”; o rompimento do hímen em “a
pele agora fina, quase transparente”, o clitóris em “leve cacho de carne” e “lábios da fenda”.
Nesse momento da narrativa, tem-se o duplo e o lúdico na “defloração” do ato sexual, e a
mulher “de floração”, aquela que produz flores ou que “florece”.
Esses apontamentos continuam no parágrafo seguinte com o processo de mescla entre
campos semânticos distintos: mulher, flor e ato amoroso. Como nos mitos narrados por
Ovídio, o conto de Marina Colasanti utiliza os elementos sensoriais: “Sépalas tensas, trêmulos
babados. E o rijo clitóris do labelo” (COLASANTI, 1986, p. 97). As sépalas, conjunto de
folhas verdes das flores, e o labelo, pequeno lábio; pétalas grandes da corola das orquídeas, ou
bordo revirado de certas conchas, estão em movimento. Ainda que o período seja ausente de
verbo, a ação é figurativizada pelos adjetivos em questão, potencializados sensualmente pelos
“babados” do gozo amoroso. Como se fosse um clímax, o fragmento possui o tátil (“tensas”,
“trêmulos” e “rijo”) e o sonoro (“explodem em silêncio”). Configuram-se, então, a dor e o
prazer, a mulher e a flor, o real e o fictício; explodindo (ruído) em silêncio (ausência de ruído,
o nada).
Em “De floração”, entretanto, a representação do sexual, do sensual, ocorre de uma
maneira “velada”, uma vez que o lúdico da linguagem poética quer ser um “jogo de esconde-
esconde”, um “ir e vir” de significantes e significações. Os vocábulos, ao mesmo tempo que
são eles mesmos, são palavras outras que se encaixam em conteúdos e deles saem fora,
causando o estranhamento da linguagem literária.
66
Expostas as duas orquídeas nos seios, a narrativa muda o registro: a mulher se
“coisifica”, fica mais próxima ao vaso de planta, ao objeto doméstico que ornamenta a casa.
Novamente o duplo se instala, e, entre o trágico e o cômico, o marido cuida da esposa:
“Reverente, o marido a transporta frente à janela [...]” (COLASANTI, 1986, p. 97). A postura
diante da “mulher-vaso” mostra-nos a reverência do marido, tal como um sacerdote que cuida
da imagem dos deuses num altar. Logo, a dedicação do sacerdote que reverencia os deuses e
seus assuntos sagrados é revestida no conto, o rito é parodiado. À maneira de uma santa no
altar (espaço mítico sagrado), a mulher é transportada frente à janela (espaço humano) e como
uma planta recebe do marido “água, em jarra e copos, que ela bebe seguida” (COLASANTI,
1986, p. 97). Instala-se o antigo no moderno, o sagrado no profano, o divino no humano numa
total absorção de valores.
A metamorfoseada, porém, não perde seu perfil de figura feminina de poder e
sedução. O seu fazer ainda é mítico e divino: “Como as aranhas, assim as orquídeas tecem seu
perfume. Fio frágil flexível, e nunca igual” (COLASANTI, 1986, p. 98). Aracne e Penélope
da mitologia greco-latina conheciam a arte de tecer. A primeira tinha o mais belo bordado,
envaideceu-se e foi castigada pela deusa Palas Atena numa competição. A segunda fazia do
tecer uma artimanha para enganar os pretendentes: durante o dia tecia e durante a noite
desfazia o tecido. O tecer está intimamente relacionado à figura da mulher.
As fricativas labiodentais (/f/) para expressar o fio do “tecido do perfume”, o tato
“frágil”, “flexível”, “pegajoso” e “consistência”, o gustativo “doce” e a junção do tato e do
cromático “queimando a cor” dão ao conto o tom poético narrativo, bem como a
figurativização da mulherorquídea. Inicia-se o emurchecer: [...] o rendado se encolhe, o lilás
se retrai” (COLASANTI, 1986, p. 98). As flores caem, enfim, dos “seios-vulva” da mulher,
deixando “nos mamilos uma gota de seiva”.
67
Apesar da ênfase dada à personagem feminina e a sua transformação em flor, é
interessante discutir a postura da personagem masculina. Sabemos que, ao sentir o seio
dolorido, a mulher comentou com o marido. Ainda que pressuposto, podemos pensar nas
ações dele com as compressas, pomadas, água morna e delicado trato. Com reverência, ele a
transporta para diante da janela, a fim de que ela ficasse exposta à luz e nem descuida da
água. Assim, verificamos um marido presente, um amante voraz, de acordo com a polissemia
dos signos poéticos do conto. Mas, o duplo, o ambíguo, impera na narrativa: “[...] o marido
vem colher entre os dedos. Para depois, cuidadoso, segurando a tesoura nas duas mãos, podar
em sangue a matriz” (COLASANTI, 1986, p. 98) [grifo nosso]. À primeira leitura, é possível
identificarmos uma atitude brutal do amante que pega com as duas mãos e poda em sangue a
esposa. Contudo, o adjetivo cuidadoso quebra essa primeira impressão, instalando o dúbio
novamente, além da ação de podar, que significa cortar os ramos supérfluos, sem vida, para
(re)florecer. Desse modo, seiva e sangue, elementos vitais dos vegetais e dos animais,
contribuem para dar sentido à isotopia no conto “De floração”.
A metamorfose no conto vem revestida de uma postura moderna, uma vez que se
configura e figurativiza em ato amoroso, em vida conjugal, resgatando, afirmando e negando
a simbologia dos mitos das flores. De acordo com Brandão (1993, p. 307), a flor é a imagem
das virtudes da alma, e o buquê que as reúne é o símbolo da perfeição espiritual; é idêntica ao
elixir da vida e a floração é o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. Narciso,
Jacinto e Adônis morrem e renascem flores. Croco e Simílace, pela perfeição do amor,
tornam-se flores pela atuação dos deuses do Olimpo. Clítia, por outro lado, metaforiza o
girassol que segue o astro na eternidade amorosa.
A imagem da orquídea em “De floração” liga-se mais ao valor sensual da flor, seu
perfume e maciez do que ao valor espiritual. Os seios no conto são duas flores que explodem
em silêncio; os mamilos, duas orquídeas doces que o marido trata com cuidado e atenção,
68
podando a matriz para que refloresça; aqui, sim, o retorno ao centro, assim como nos mitos
das flores, tem um sentido simbólico.
Distante e ao mesmo tempo próximo aos mitos das flores, o conto de Marina
Colasanti metaforiza a relação amorosa, seu ciclo, a intensidade dos prazeres, a interioridade e
exterioridade do relacionamento conjugal.
Temos um artifício metafórico parecido no conto “De fato, uma mulher preciosa”,
cuja transposição não é mais seio-vagina-flor, mas sim ostra-vagina:
Adoeceu a mulher. Bebia água, banhava-se com leite, recusava
comida, e não saía da cama. Entre as coxas, por vezes, uma baba irisada
escorria, secando sobre a pele.
Passado algum tempo, quis penetrá-la o marido, muito ausente
daquele corpo. Mas adentrando nas carnes, sentiu o impedimento. Então,
retirando-se dela, mergulhou os dedos em pinça, e no fundo, além de pétalas
e pistilo, rodeada de mucosas palpitantes, pescou, úmida a pérola
(COLASANTI. 1986, p. 53).
Mais compacto que o conto anterior, com apenas dois parágrafos, percebe-se, mais
uma vez, o mal-estar inicial de uma mulher. Embora não sinta, necessariamente, uma dor, a
personagem fica acamada. Chama a atenção a disposição do período (verbo + sujeito), na qual
o destaque parece ser o adoecimento. A ordem direta seria “A mulher adoeceu”, que destaca a
narrativa que inverte os valores simbólicos das formas simples. O banhar-se com leite, na
narrativa, funciona como um índice caracterizador da mulher divina, preciosa. O
estranhamento de uma baba irisada, secando sobre a pele entre as coxas da mulher, liga-se aos
mamilos duros e brilhantes do outro conto analisado, ao aspecto cromático da mucosa e ao
próprio molusco presente no interior das conchas.
no segundo e último parágrafo, o tempo salta, passa-se algum tempo e, com esse, o
desejo do marido de penetrar a esposa. Se, em “De floração”, a penetração é sugerida, em “De
fato, uma mulher preciosa”, o ato é contado. O duplo se instala e os vocábulos extrapolam o
sentido, na medida em que são selecionados e dispostos esteticamente na narrativa.
69
É possível pensar nesse impedimento do marido como algo que barra a continuidade
do ato, como também a impossibilidade de dar prazer a sua esposa acamada. Retirando-se
dela, o personagem, com os “dedos em pinça”, elemento fálico, mergulha profundamente, o
que pode ser associado à habilidade do tato. O pescar no conto deve ser visto como a ação de
pescar, mas também de causar e proporcionar prazer, metaforizada pela pérola rodeada de
mucosas palpitantes. Os elementos das flores e da ostra adquirem outro significado nesse
conto: pétalas e pistilo (órgão sexual feminino dos vegetais) ligam-se ao sexo feminino, e
pérola ao orgasmo dos amantes.
Discutido o conto, passemos aos comentários da pérola das ostras. A ostra reage à
introdução de uma impureza em seu organismo dando origem à pérola: pura e preciosa,
retirada de uma água lodosa, de uma concha grosseira, surge bela e límpida.
Assim, ocorre, nos dois contos analisados, a transferência de um signo (orquídea e
ostra), de sua percepção costumeira, para uma esfera de nova percepção (seios, vagina e ato
amoroso); uma mudança semântica motivada. É preciso, pois, libertar essa identificação
dos significantes primeiros do automatismo, dar-lhes uma roupagem nova de acordo com o
modo como eles são elaborados e trabalhados em uma narrativa criativa nos seus recursos de
significação.
70
Le viol (The rape). R. Magritte (1934)
71
3.2.1.2. A (DE)FLORAÇÃO, A VIOLAÇÃO E O ESTUPRO DOS SIGNOS
O pintor René Magritte coloca em justaposição em suas pinturas situações
sobremaneira conflitantes, apresentadas de uma forma potencialmente realista. Ao compor
imagens paradoxais, dilui os limites entre o fictício e o mundo real, questiona as relações
entre arte e vida, e critica, poeticamente, as fronteiras entre o belo natural e o belo artístico.
As pinturas de Magritte o "colagens pintadas à o" de acordo com as palavras de Max
Ernst (1891-1976).
Utilizando os conceitos da proposta da XXIV Bienal de São Paulo, Núcleo de
Educação, “Entradas e enigmas do imaginário surrealista René Magritte”, pode-se pensar no
sentido de canibalismo de imagens, que se refere ao método surrealista de criação, ao se
apropriar e descontextualizar diferentes imagens, que passam a fazer parte de uma nova
ordem impactante por seu aspecto enigmático. Justaposição, fusão, canibalismo e
antropofagia o diferentes palavras que remetem igualmente ao processo ou a metodologia
surrealista utilizada por Magritte.
Fundem-se na obra de Magritte imaginários de natureza diferente, num processo
chamado por Didier Ottinger, curador da Bienal, "canibalismo fusionista". Essa dimensão
conciliadora de opostos torna-se visível pelo uso da colagem como modelo estrutural.
Assim, pensemos na obra Le viol ou The rape (1934), em que uma cabeça feminina é
configurada e organizada pelo corpo do mesmo sexo: os seios ocupam o lugar dos olhos, o
umbigo o do nariz, a vagina o espaço da boca, a silhueta das pernas lembram as bochechas e o
queixo. A imagem do rosto exibe o pescoço alongado, cujo contorno sombreado em cor mais
escura se assemelha a um membro masculino ereto, e os cabelos um corte arrojado. Com isso,
o título da pintura se conjuga com o conteúdo da obra. O sugerido pênis toca o queixo da
figura, e, portanto, “procura” a boca-vagina da mulher.
72
A leitura da obra causa um estranhamento, um desconforto, promovido pela
transferência do tronco feminino para o rosto. Não nos é possível confirmar o campo de visão
dessa imagem, se ela sequer nos olha com o que seriam as pupilas, transformadas ou
metamorfoseadas em mamilos.
Acentuam a desautomatização representativa o espaço mítico que a cabeça ocupa: ela
está em primeiro plano; atrás, visualiza-se uma espécie de deserto e um céu que vai do
amarelo claro ao azul escuro, numa perspectiva horizontal de baixo para cima. A impressão
que se tem é a de um espaço fora da Terra.
Retomando as elucidações de Motta (1996), percebemos, por meio desse recurso
artístico, as “novas redes de relações”, “a morte do uso para o florescer inusitado” do signo,
no caso, visual. Ao deslocar partes do corpo, o artista “viola” o signo, “estupra” o
automatismo de representação. E é esse o ponto de contato entre quadro e narrativa, que torna
possível retomar e entender os procedimentos composicionais dos contos “De floração” e “De
fato, uma mulher preciosa”. Basta refletir na metamorfose dos seios da personagem em
orquídeas e na sugestão da vagina com as “sépalas tensas” e “rígidos babados”, por exemplo.
A vagina da mulher, em “De fato, uma mulher preciosa”, entra em relação figurativa com a
ostra e com os órgãos sexuais das plantas: pétalas e pistilos.
O tratamento dado à quebra, ou melhor, à “de-floração”, à “violação” e ao “estupro
dos signos (rosto, seios, vagina, orquídeas e ostras) é tomado como motivo de construção
artística, seja por Magritte seja por Colasanti. Ao menos nesse caso, o diálogo entre os textos
verbais e visuais se manifesta mais pelos recursos significantes (plano de expressão) do que
pelo significado (plano de conteúdo). O meio de fazer a obra significar por meio da
transposição de signos faz com que as obras em questão teçam um dialogo intertextual; cada
um, é claro, se configurando a sua maneira e pelas especificidades de sua linguagem, verbal,
em se tratanto de contos, e visual, no que toca à pintura.
73
3.2.1.3. O MITO DESLOCADO
De acordo com as análises descritivo-interpretativas dos mitos e de seus símbolos,
pudemos perceber que os contos “De floração” e “De fato, uma mulher preciosa” ligam-se aos
mitos antigos, às suas formas de significação metafórica e a seus procedimentos de narração.
As duas narrativas contemporâneas “olham” para os mitos em suasformas simples e literárias,
como se em Ovídio, mas afastam-se deles num tratamento de afirmação e negação. A
simbologia das flores e da pérola é pertinente nos ritos sagrados. Esses conteúdos, por outro
lado, são esvaziados nos contos analisados. Ao mesmo tempo que os afirmam, as narrativas
negam esses valores, recuando para se fazer valer.
Os contos utilizam os mesmos contornos e circunferências dos mitos e, nesse
momento, cabe trazer, novamente, as explicações de Frye (1957, p. 138): Quando o que está
escrito é como o que se conhece, temos uma arte de símile extenso, ou subentendido. E, assim
como o realismo é uma arte do símile implícito, o mito é uma arte da identidade metafórica
implícita”. É pela expressão metafórica da linguagem mítica que literatura e mito estabelecem
conotações insuspeitas. É um dizer como, não um dizer o quê. A dor e o amor das
personagens da mitologia são como a metamorfose em flores; o relacionamento dos casais,
suas vidas conjugais e seus atos amorosos são como o ciclo de floração da orquídea e o pescar
a pérola da ostra.
Os contos analisados se aproximam da esfera mítica e deles se deslocam e recuam. De
acordo com a deslocação proposta por Frye (1957, p. 139), no que se refere ao mito e à
literatura, “o que pode ser identificado metaforicamente num mito pode apenas ser vinculado,
na estória romanesca, por alguma forma de símile: analogia, associação significativa, imagem
incidental agregada, e semelhantes”.
74
Os contos “De floração” e “De fato, uma mulher preciosa” deslocam os mitos e seus
símbolos de sua origem antiga para um novo contexto, por meio da conjugação natural entre
as duas linguagens (mítica e literária). Ao afastar-se dos mitos, e, por causa disto, deslocá-los,
a narrativa contemporânea um tratamento singularizado ao passado cultural dos povos que
conceberam os mitos e os ritos, transfigurando conteúdos e re-significando valores.
75
3.2.2. DA MELOPÉIA À MÚSICA DE ROBERTO CARLOS: A SEREIA
DESAUTOMATIZADA DE CONTOS DE AMOR RASGADOS
Sereia da Skol. Bruna di Túlio
76
3.2.2.1. AS ILHAS SIRENUSAS E A NAU DE ULISSES: O ESPAÇO MÍTICO
Os contos analisados, nas páginas anteriores, dialogaram com os ritos primitivos e os
mitos antigos, por meio de ritual de iniciação (decapitação, esquartejamento e canibalismo) e
pelo modo de “dizer algo”, ou seja, pela linguagem metafórica, verificada no mito das flores.
Os textos que analisaremos nesta seção ligam-se aos mitos de forma mais explícita,
exigindo um leitor atento para perceber e decodificar as referências clássicas neles presentes.
Em “De água nem tão doce” e “Ao largo das Ilhas Sirenusas”, encontra-se a figura-
personagem da sereia e a situação de incômodo de outra personagem diante das “vozes
maviosas”, que remetem ao Canto XII da Odisséia de Homero, no qual Ulisses ouve os cantos
irresistíveis das sereias.
O fio condutor que norteará as análises se o aspecto espacial dos contos, uma vez
que, se comparados aos dos mitos, será possível perceber a subversão e ironia deles. Isto não
quer dizer, aliás, que não ocorram inversões de outra natureza, tais como personagens, ações
etc, como se verá.
Tomando por base o princípio de que o espaço homologa o que ocorre com as
personagens, seus conflitos, dramas e ações tensivas, pense-se no espaço das Ilhas Sirenusas,
local ao qual as sereias levavam suas vítimas. Esses monstros eram filhas de Aqueló e
Terpsícore, uma das nove Musas. Diferentes da figura sensual, sugerida por sua
representações mais correntes na atualidade, metade mulher e metade peixe, as sereias
possuíam asas que foram arrancadas e transformadas em coroas pelas Musas num combate, de
acordo com as explicações de Francis Bacon (2002, p. 96).
De acordo com Castro (2003, p. 23), o mito das sereias coloca em evidência a “escuta
da palavra cantada”: Ulisses “escuta” a feiticeira Circe, suas advertências acerca da inevitável
“travessia” pelas ilhas desses monstros; “escuta” também o canto das sereias; e, por último,
77
realiza-se a “escuta da não-escuta”, aquela que seria mortal ao herói. A primeira escuta mítica
de Ulisses é a de Circe:
Escuta agora o que eu vou dizer-te; aliás, um deus de novo
recordará isso mesmo. Chegarás, primeiro, à região das Sereias, cuja voz
encanta todos os homens que delas se aproximam. Se alguém, sem dar por
isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus filhos
pequeninos se reunirão em torno dele, pois que fica cativo do canto
harmonioso das Sereias. Residem elas num prado, em redor do qual se
amontoam as ossadas de corpos em putrefação, cujas peles se vão
ressequindo (HOMERO, Odisséia, XII, p. 166) [grifos nossos].
Castro chama atenção para o verbo escutar no imperativo logo no início da fala, plena
de informações e conselhos: advertido, o herói sabe do poder do canto das sereias. Pode-se
caracterizar essa primeira escuta de Ulisses como uma “escuta da advertência”; a segunda,
pelo contrário, chamaremos “escuta da opção”. Tendo feito sua “escolha”, o herói decide
ouvir o canto das sereias:
Tu, se quiseres, ouve-as; mas, que em tua nau ligeira te atem pés e
mãos, estando tu direito, ao mastro, por meio de cordas para que te seja dado
experimentar o prazer de ouvir a voz das Sereias. Se acaso pedires e
instares com teus homens que te soltem, que eles te prendam com maior
número de ligaduras (HOMERO, Odisséia, XII, p. 166) [grifos nossos].
É Ulisses quem decide ouvir o canto das sereias, mas, para isso, deverá ser amarrado
ao mastro da nau pelos companheiros, aos quais se dirige:
Ordena-nos ela [Circe] que, antes de mais nada, evitemos as
enfeitiçadoras Sereias, sua voz divinal e seu prado florido. Aconselha que
eu as ouça. Mas, atai-me com laços bem apertados, de sorte que
permaneça imóvel, de pé, junto ao mastro, ao qual deverei estar preso por
cordas. Se vos pedir e ordenar que me desligueis, apertai-me com maior
número de laços. (HOMERO, Odisséia, XII, p. 169) [grifos nossos].
Ulisses reproduz a fala de Circe aos companheiros, que, de acordo com Castro (2003,
78
p. 27) não possuem a astúcia do herói para ouvirem tanto a primeira fala de Circe, como o
canto prazeroso e mortal das sereias:
Súbito, entoaram [as Sereias] este harmonioso canto: ‘Vemaqui, decantado
Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz.
Jamais alguém por aqui passou em nau escura, que não ouvisse a voz de
agradáveis sons que sai de nossos lábios; depois afasta-se maravilhado e
conhecedor de muitas coisas, porque nós sabemos tudo quanto, na extensa
Tróade, Argivos e Troianos sofreram dos deuses, bem como o que acontece
na nutrícia terra’. Assim elas cantavam, e suas magníficas vozes
inundavam-me o coração com o desejo de as ouvir, de sorte, que com um
movimento das sobrancelhas, ordenei aos companheiros que me soltassem;
eles, porém, curvados sobre os remos continuavam remando; mas,
imediatamente, Perímedes e Euríloco, tendo-se levantado, prenderam-me
com laços mais numerosos e os apertaram com mais força. Depois que
passamos as Sereias e não mais lhes ouvimos a voz nem o canto, meus fiéis
companheiros retiraram a cera com que lhes tapara os ouvidos, e libertaram-
me das cordas (HOMERO, Odisséia, XII, p. 169-170) [grifos nossos].
Ulisses, preso ao mastro da nau, ouve o canto das sereias: é a “escuta da opção”. São
bem vindas, novamente, as colocações de Castro, explicando-nos que, se o herói quer ficar
79
tempo que é mortal. Os homens, ao escutarem o canto encantador das sereias, se deleitam,
mas, ao ouvi-lo, são enfeitiçados e levados ao prado, ao espaço onde vivem as sereias e, por
elas, são exterminados.
O drama dos homens, das vítimas das sereias ou, mais especificamente, de Ulisses e
seus companheiros ocorre no mar, espaço aberto, profundo e misterioso, no qual se encontram
as ilhas Sirenusas. Os desavisados, facilmente, são devorados, como nos fala Circe: “[...]
nunca mais sua mulher nem seus filhos pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará
cativo do canto harmonioso das Sereias”.
Centralizando o espaço em questão, a nau, onde se encontram o herói e seus
companheiros e, no caso de Ulisses, o mastro, no qual é amarrado. Nesses espaços, ele coloca
a cera de abelha no ouvido dos parceiros:
Eu, depois de ter cortado com o bronze afiado da espada um grande
pedaço de cera, amassei os pedaços com minhas mãos fortes. Logo a cera
amoleceu, mercê da grande força e do brilho do rei Hélio, filho de Hipérion.
Com ela tapei as orelhas de todos os meus companheiros, a cada um por sua
vez (HOMERO, Odisséia, XII, p. 169).
Embora a nau esteja inserida no espaço do mar, é possível atribuir-lhe o ambiente de
estabilidade. Por outro lado, o mastro figurativiza o limite da força humana, do herói da
Odisséia; ele quis ouvir o canto harmonioso das sereias, ressaltando, desse modo, a sua
coragem. Notamos, assim, os companheiros na parte inferior da nau; Ulisses na parte
superior, preso ao mastro; todos no misterioso espaço marítimo, próximo à ilha das Sereias.
Outro aspecto importante a ser observado é o da proximidade e do distanciamento. As
sereias pedem ao herói, amarrado ao mastro, que se aproxime delas: “Vem aqui, decantado
Ulisses, “Jamais alguém por aqui passou em nau escura [...]”. A fala cantada surge de um
“lá” perigoso, mortal e harmonioso. Ulisses as escuta de um “aqui”, nau e mastro. O “lá” seria
o distante e o “aqui” o próximo, pela perspectiva da narração de Ulisses na Odisséia.
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Ao mar, podem relacionar-se a imensidão, a mobilidade, a instabilidade e a infinidade,
enquanto à nau, a restrição, a imobilidade e a finitude. Como esses lugares são, na verdade,
únicos, ou seja, o espaço mais amplo “mar”, no qual a ilha das Sereias se encontra, e pelo qual
a “nau” de Ulisses passa, é de se esperar a tensão da ação e o drama da personagem. O mastro
se transforma no limite não somente espacial da nau, mas do herói que pede para ser
libertado: “com um movimento das sobrancelhas, ordenei aos companheiros que me
soltassem”. Ele não está na parte inferior da nau com seus companheiros que não ouvem o
canto, tampouco está na ilha; é a fronteira demarcada pelo espaço mastro. Afastar-se da ilha
(distanciamento) é, para Ulisses e seus companheiros, a salvação da travessia. Para o herói, é
o duplo libertar-se: ele se liberta do canto mortal das sereias e se liberta das cordas.
Os espaços mar, nau, mastro e ilha das Sereias correspondem ao conflito das
personagens, com todo o aspecto tensivo da travessia dos navegantes, assim como o desejo
devorador das sereias. Sua ilha é afastada, está distante da vista humana. Para Bacon (2002, p.
98), “os prazeres geralmente buscam lugares retirados, longe dos olhares dos homens”. Prazer
e sofrimento se conjugam nesse mito, pois o canto das sereias é harmonioso e mortal; o local
é amontoado de ossadas de corpos em putrefação.
Após essas considerações sobre o mito, passaremos à leitura dos contos “De água nem
tão doce” e “Ao largo das Ilhas Sirenusas” que com ele dialogam.
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3.2.2.2. O CONTO DESENCANTA O CANTO: A SEREIA NA BANHEIRA ENTRE
AZULEJOS
O conto “De água nem tão doce” trata do cotidiano de um “possível casal”; não se
sabe se são marido e mulher ou amantes. Estão ausentes momentos de briga ou carícia, mas
sim, a ênfase na alteração realizada, durante toda a narrativa, da personagem mítica sereia.
Essa alteração paródica configura-se tanto no espaço, como no próprio físico da personagem:
De água nem tão doce
Criava uma sereia na banheira. Trabalho, o dava nenhum, a
aquisição de peixes com que se alimentava. Mansa desde pequena, quando
colhida em rede de camarão, já estava treinada para o cotidiano da vida entre
azulejos.
Cantava. Melopéias, a princípio. Que aos poucos, por influência do
rádio que ele ouvia na sala, foi trocando por músicas de Roberto Carlos.
Baixinho, porém, para não incomodar os vizinhos.
Assim se ocupava. E com os cabelos, agora pálido ouro, que trançava
e destrançava sem fim. “Sempre achei que sereia era loura”, dissera ele um
dia trazendo tinta e água oxigenada. E ela, sem sequer despedir-se dos
negros cachos no reflexo da água da banheira, começara a passar o pincel.
uma vez, nos anos todos em que viveram juntos, ele a levou até a
praia. De carro, as escamas da cauda escondidas debaixo de uma manta, no
pescoço a coleira que havia comprado para prevenir um recrudescer do
instinto. Baixou um pouco o vidro, que entrasse ar de maresia. Mas ela nem
tentou fugir. Ligou o rádio, e ficou olhando as ondas, enquanto flocos de
espuma caíam dos seus olhos. (COLASANTI. 1986, p. 77-8).
Assim como “De floração”, o título desse conto apresenta o motivo da fábula e da
trama narrativa: “nem tão doce” pode se referir à passividade da sereia e ao fato de ela não
viver no mar de água salgada.
O estranhamento, logo no primeiro período do conto, manifesta-se pelo “criar” a
sereia “na banheira”, desautomatização mítica que perpassa todo texto. Se se temia a sereia do
mito antigo por seu fazer encantador e mortal, no conto, a personagem, nesse deslocamento,
perde tal poder. Além de ser criada na banheira e ser de fácil trato, a personagem “só” se
alimentava de peixes, diferente da mitológica que se alimentava da carne dos homens em
putrefação. Inicia-se o processo de diminuição e submissão da sereia, marcada,
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lingüisticamente pelo advérbio (só). A passividade em “Mansa, desde pequena”, e em
“treinada para o cotidiano”, salientam a sua desautomatização, pois as sereias devoravam
carne humana; a do conto, pelo contrário, é infantilizada. O narrador apresenta-nos o seu
caráter pueril (mansa desde pequena); e, “treinada”, carrega todo o processo de dominação ou
percurso de transformação e alteração de instinto. Em “quando colhida em rede de camarão”,
flash-back narrativo, notamos que essa sereia foi “pega” ao acaso, uma referência que a
aproxima da classe dos peixes e ao modo como elessão “pescados”.
Pensando na trama narrativa desse primeiro parágrafo, destacamos a sereia realizando
a maioria das ações (evento e estado), “não dava nenhum”; “se alimentava”; “colhida em
rede”; estava treinada”, ao passo que ele realiza apenas uma, “criava”. Ainda que a maioria
das ações seja realizada por ela, é ele o dominador do conto, mesmo que apenas com a ação
de “criar”. Assim, a soberania das ações não corresponde à superioridade do relacionamento,
por causa, também, da carga semântica dos verbos escolhidos.
A ordem dos acontecimentos disposta na narrativa, “Criava uma sereia na banheira”;
“Trabalho não dava nenhum [...]”; “[...] colhida em rede de camarão [...]”; “[...] estava
treinada para o cotidiano [...]”, relatada pelo narrador, não coincide totalmente com a ordem
natural dos acontecimentos, que seria, logicamente, esta: “[...] colhida em rede de camarão
[...]”; “Criava uma sereia na banheira”; “Trabalho não dava nenhum [...]”; “[...] estava
treinada para o cotidiano [...]”. A alteração da seqüência do relato traz à tona a ênfase
pretendida pelo narrador onisciente, qual seja, a de desestruturar o relato e causar um efeito de
knock-out.
O organizador da narrativa, como se suspeitasse da reação do leitor e se quisesse
aumentar o estranhamento literário, nos relata que a sereia cantava, que essa é a
particularidade daquele ser. Mas o segundo parágrafo conciso é constituído pelo verbo no
pretérito imperfeito seguido de ponto final. Esse recurso, verbo transitivo direto cantar sem
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complemento de objeto, auxilia a trama narrativa da fábula a causar a surpresa no leitor, a
agarrá-lo desde as primeiras linhas, segundo Cortázar (1974), pois o que se segue é o
“complemento” do período anterior: “Melopéias, a princípio. Que aos poucos, por influência
do rádio que ele ouvia na sala, foi trocando por músicas de Roberto Carlos” (COLASANTI,
1986, p. 77). A justaposição e o encadeamento dos períodos dispostos, literariamente,
quebram o horizonte de expectativas de leitura do conto e iconiza, sintaticamente, a
desautomatização da figura mítica da sereia. Ela, “a princípio” tinha o saber “cantar
melopéias”, porém trocou por músicas de Roberto Carlos. O modo como a sereia do conto
deixa de “cantar” potencializa o processo de subversão: ela é influenciada pelo rádio; está na
banheira e ouve, desse local, o que ele ouvia na sala.
Tomando a sereia “na banheira” como referência de espacialidade, configura-se o
“lá”: o artificial do rádio e do som da música, a presença do treinador/criador. O “aqui”, pelo
contrário, fica sendo o natural do canto da voz da sereia já desautomatizada, a própria sereia, a
ausência do companheiro. Esse novo “cantar” não mais mítico, tampouco relacionado ao
saber como sabor harmonioso e mortal, é, agora, “baixinho” para não incomodar. A sereia do
conto tem o “cantar entretenimento”, o “cantar do cotidiano” que não enfeitiça os homens a
fim de serem devorados.
Manifesta-se, desse modo, o “ir e vir” ao passado, ao antigo, ao clássico, marcado
pelo vocábulo “princípio”, que atua como aspecto temporal da narrativa, a saber, o período
em que a personagem do conto cantava melopéias do “princípio”, peculiar à mitologia,
quando as sereias, como diz Castro (2003), são a própria palavra cantada. O “ir” ao princípio
é o canto enquanto rito e encantamento; o poder e o saber; a melopéia; o “vir”, por seu turno,
é a “troca”, a música de Roberto Carlos enquanto passatempo; o aprender por influência do
rádio, não o saber inato. Há, no conto, a “troca” do canto pela música; o som da voz
harmoniosa e mortal (natural) pelo som automático do rádio (artificial).
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A atmosfera de cotidiano e de passatempo se estende ao terceiro parágrafo do conto,
juntamente com a transformação física da personagem: cantava para se ocupar e “trançava e
destrançava sem fim” os cabelos. A sereia, que é criada na banheira entre azulejos, que canta
músicas de Roberto Carlos, baixinho para não incomodar os vizinhos, tem “agora” seus
cabelos tingidos. Ele traz “tinta e água oxigenada” e ela “sem sequer despedir-se dos negros
cachos no reflexo da água da banheira, começara dócil a passar o pincel” (COLASANTI,
1986, p. 77). Por achar que sereia era loura, ele altera a cor dos cabelos da sereia: de negros
cachos a pálido ouro. O jogo entre o “princípio” mítico e o “agora” contemporâneo, no
fragmento, realiza-se pela cromaticidade paradoxal: se antes ela tinha negros cachos, agora
tem cabelos ouro pálido. A cor negra torna próxima, culturalmente, a obscuridade, a força do
feitiço; os cachos dão a idéia de plenitude, de vigor, características que contrastam com a
expressão paradoxal “pálido ouro”. O narrador, ao passar a voz à personagem, “Sempre
pensei que sereia era loura”, faz com que o leitor compactue com o símbolo da sereia
moderna, a que seduz os homens pela beleza das curvas do corpo, pela pele bronzeada e
brilho dos cabelos.
Essa é a concepção de sereia que temos modernamente. Não mais aquela que teve
suas asas arrancadas pelas musas, que enfeitiçam os homens, que comem suas carnes em
decomposição e que juntam ossadas humanas nas Ilhas Sirenusas (ver Ulisses and the sirens
de Waterhouse, 1891, pintura em que as sereias possuem copo de passaro e cabeça de
mulher).
Tanto o leitor como a personagem que cria a sereia têm esse “pensamento” sobre essa
sedutora figura feminina. Todavia, no conto em questão, o ser mítico é retirado da “moldura”
clássica, é desautomatizado, reorganizado pela narrativa suscitando novas significações. É
possível, se comparar as sereias, dizer que até mesmo a figura moderna é subvertida e
parodiada no conto.
85
Ulisses and the sirens. Waterhouse (1891)
A sensualidade, a paixão e o dom de persuasão ausentam-se das ações da “sereia da
banheira”. Essa submissão e passividade em nada nos lembram a sereia mortífera do mito,
tampouco a loura sedutora da publicidade da Skol, embora o “signo sereia” apresente
reminiscências da mitologia. Mazucchi-Saes (2005, p. 13) destaca que a:
[...] publicidade é uma modalidade de discurso que opera com mecanismos
de sedução e de persuasão. Para tanto, procura atingir seu objetivo, criando
textos e imagens com os quais o leitor estabelece alguma identificação. Para
criar o seu ‘mundo mágico’, serve-se de valores e conceitos enraizados, que
tocam profundamente a alma. Esses valores e conceitos são representados
pelos mitos presentes em todas as culturas e que vêm, desde os primórdios
da existência, sendo cristalizados na mente humana.
Tal é a artimanha publicitária da propaganda da cerveja Skol, que resgata o arquétipo
sedutor da sereia com os seios de fora, apenas entrecobertos por cabelos, e que oferece ao
consumidor masculino o produto e serve de modelo para a consumidora que, por isso, passa a
ter essa “figura feminina de sedução” como modelo. Essas imagens arquetípicas, pertencentes
86
ao inconsciente coletivo são, segundo Jung (1981, p. 515), “sempre coletiva, quer dizer, é
sempre comum a povos inteiros ou, pelo menos, a determinadas épocas. Provavelmente, os
motivos mitológicos principais são comuns a todas as raças e a todas as épocas”.
A sereia da Skol não canta, mas encanta com sua beleza e sensualidade. Beber a
cerveja pode levar o consumidor a “conquistar a sereia” e fazer que a consumidora “encante”
o público masculino. É baseado na “reminiscência” de encantamento mítico que se estrutura o
texto publicitário. Mazucchi-Saes (2005, p. 15) comenta também que o “publicitário vale-se
da força do inconsciente, inclusive do seu próprio, e é nesse outro mundo, dos sonhos, das
fantasias, entidades sagradas e das imagens arquetípicas, que ele vai encontrar inspiração para
o seu trabalho”.
O conto “De água nem tão doce”, do mesmo modo que o texto publicitário, retoma o
ser mitológico, mas, diferente desse, subverte os sentidos primordiais pertencentes a ele. De
temida e terrível, de mulher sedutora e fatal, a do conto passa ao arquétipo da criada, daquela
que oferece segurança. Jung (1985) diz que o arquétipo da Grande-Mãe é ambivalente e pode
sofrer desdobramentos que revelam dualidade.
A submissão da personagem sereia extrapola quando ele a leva à praia. No desenlace
do conto, assim como em todo a narrativa, o léxico colabora com a atmosfera de limitação:
“entre”; “só”; “até”; “escondidas debaixo”; “Baixou um pouco”; “nem tentou”. A sereia foi
domesticada; trocou as melopéias pelas músicas de Roberto Carlos; canta baixinho; tingiu
seus cabelos porque ele achava que sereia tinha de ser loura.
Durante toda a fábula ocorre a degradação da personagem e a redução do espaço, no
qual ela estava “treinada para o cotidiano”. Do espaço mítico mar, Ilhas Sirenusas (espaço
aberto da figura mítica), a sereia vive na banheira entre azulejos (espaço fechado do conto). A
diminuição do espaço acontece juntamente com a submissão da personagem. “Só” uma vez
(limite temporal), ela saiu desse espaço “caseiro”, indo, ainda assim, somente “até” (limite
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espacial) a praia. O modo como esse deslocamento se entra em consonância com a
situação, “as escamas escondidas debaixo de uma manta, no pescoço a coleira”. Ele a esconde
e a prende para “prevenir um recrudescer do instinto”, e, nesse momento, é ele quem teme as
reminiscências da figura feminina da morte, bem como o poder encantador doce e mortal da
sereia, pois ela ainda carrega, na “raiz mítica” do seu ser, a natureza daquilo que ela é e
representa.
A personagem foi re-significada e retirada da moldura da qual fazia parte e “nem
tentou fugir”. O leitor espera uma reação que não acontece, e, novamente, o horizonte de
expectativas se desfaz diante do desfecho disfórico do conto. O automatismo da vida da sereia
durante o conto chega ao clímax, antes de os “flocos de espuma” caírem de seus olhos; ela
havia sofrido uma série de limitações. O conto “De água nem doce” figurativiza o cotidiano
de um relacionamento em que a figura mítica da sereia metaforiza a submissão feminina, o
apagamento de personalidade. A sereia é vista, no conto, como aquela que se deixa dominar
pelo parceiro e a que se submete às suas vontades e desejos. Ciente de que a sereia hoje não é
mais lembrada por suas qualidades cruéis, mas pela sensualidade de seu corpo e mistério de
seu canto sedutor, ou seja, é um elemento filtrado por uma consciência crítica e deslocado
do círculo do perigo potencial e imediato para o da sedução e o da sexualidade, a narrativa
“configuração singular” à personagem, reconstruindo sentidos e suscitando leituras ambíguas
por causa do resgate ao passado clássico antigo.
No conto, a sereia é criada na banheira, espaço carregado, culturalmente, de imagens
prazerosas, juntamente com as espumas. Esses recursos, por outro lado, na estrutura do conto
o trazem a idéia de paixão e prazer, mas de prisão e lágrimas: a banheira é para a sereia o
espaço restrito, e os “flocos de espuma” são lágrimas. Esses signos literários (sereia, banheira,
música, flocos de espuma, negros cachos, praia) combinados e tramados no conto assumem,
na trama narrativa, outros valores. Foi por essa razão que se analisou anteriormente, no
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episódio das sereias do Canto XII da Odisséia de Homero, a força mítica da sereia, para
mostrar que, no conto analisado, a sereia recebe um tratamento literário particular.
No conto “Ao largo das Ilhas Sirenusas”, não está presente a figura da sereia, mas o
seu canto enquanto elemento perturbador:
Embora ao largo das ilhas Sirenusas
Todas as tardes, chegando em casa cansado do périplo do trabalho, e
por mais que quisesse evitá-lo, via-se envolvido pelo sortilégio das vozes
maviosas, dos cantos irresistíveis que lentamente o penetravam arrastando-o
para outros mundos, aniquilando qualquer tentativa de reação, e deixando-o
entregue a obscuros desígnios.
na rua, longe do chamado, conseguia revoltar-se. E foi quando
ainda restavam-lhe forças, que urdiu o plano de ação. Voltando mais cedo
aquele dia, pediu à mulher que o amarrasse firmemente à cabeceira da cama.
Depois exigiu que coasse cera em seus ouvidos.
então, seguro, permitiu que, na sala, ela ligasse a televisão.
(COLASANTI. 1986, p. 197).
O título do conto também nos remete ao clássico (Ilhas Sirenusas) e nos previne,
sutilmente, sobre uma provável alteração de conteúdos. A conjunção subordinada concessiva
“embora”, iniciando o título, por seu valor semântico, funciona, literariamente, como se
“algo” contrário a uma oração principal fosse aparecer. É como se a oração principal, não
escrita no título, fosse todo o conteúdo pré-definido, emoldurado e fechado de que se falou,
e a subordinada “Embora ao largo das ilhas Sirenusas”, o seu concessivo ou contraditório.
Como o “canto” se evidencia nesse conto, é interessante destacar os aspectos sonoros
nele presentes, ou seja, os elementos responsáveis pela função poética, como a define
Jakobson (1969). Se a sereia (emissor) não aparece na narrativa, o canto (mensagem) e o
ouvinte/personagem (receptor) estão presentes.
Pense-se na relação som (ou plano de expressão) e sentido (ou plano de conteúdo)
presentes na narrativa. Tem-se a personagem perturbada por vozes durante um período,
“Todas as tardes”, e que se dirige ao árduo trabalho:
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Todas as tardes, chegando em casa cansado do périplo do trabalho, e
por mais que quisesse evitá-lo, via-se envolvido pelo sortilégio das vozes
maviosas, dos cantos irresistíveis que lentamente o penetravam arrastando-o
para outros mundos, aniquilando qualquer tentativa de reação, e deixando-o
entregue a obscuros degnios.
Ao esforço do trabalho, conjuga-se a sugestão de um ritmo de tambor das oclusivas /t/,
/p/, /g/, /k/, /b/ e /d/, marcadas em amarelo, assim como o automatismo de um período
cotidiano, a saber, “Todas as tardes”. Além disso, “périplo do trabalho” nos remete à
“travessia marítima de Ulisses”. O mal-estar causado pela escuta das “vozes” pode ser
percebido pelas fricativas /s/ e /z/, em azul claro, juntamente com a vozeada em /v/, marcadas
em vermelho, com as vogais em /i/,/o/, /e/ e /a/, causando uma pluralidade de sons, que se
pode relacionar com os sortilégios das vozes maviosas”. Essa “escuta” da personagem o
penetra e o arrasta lentamente, por isso, a presença das nasais /m/ e /n/, marcadas em lilás, que
dão, ao menos à dimensão fonológica do texto, a ilusão de prolongamento.
Cabe, agora, trazer as reflexões de Octavio Paz (1982, p. 59), quando diz que “as
palavras sempre dizem ‘isto e o outro’ e, ao mesmo tempo, aquilo e o outro mais além. Para
que a linguagem se produza, é mister que os signos se associem de tal maneira que impliquem
e transmitam um sentido”. É a escuta e a descrição da sensação que os vocábulos motivados
transmitem. Nesse conto, a sereia se faz presente não física e lingüisticamente, mas pela
sonoridade do plano de expressão. Diferente do mito clássico, no qual, de acordo com Castro
(2003), a sereia é a própria palavra cantada, é o conto cantado que se faz sereia, que se
transmuta em mito.
Ainda de acordo com Octavio Paz (1982, p. 68), “o ritmo é algo mais que medida,
algo mais que tempo dividido em porções. A sucessão de golpes revela uma certa intenção,
algo como uma direção”. O ritmo conduz a personagem, a leva para outros mundos, retira
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suas forças e a deixa na obscuridade. Para Paz, “o ritmo é um ir em direção a alguma coisa”
(p. 69). É o canto do conto que leva a personagem a algo e, ao mesmo tempo, que engana o
leitor desatento, pois, se o ritmo é uma cadência que se pode medir e prever, quando é
quebrado, desfaz a euforia, desmancha o horizonte de expectativa sobremaneira presente nos
contos analisados. Ora, o que se segue não é a continuidade do canto; é a resolução e a busca
de bem-estar da personagem, o seu “plano de ação”, que se quando ele volta “mais cedo
aquele dia” do trabalho. O desautomatismo do dia-a-dia e a quebra da cronologia costumeira
da personagem ocorrem tanto no plano da fábula como na trama narrativa; é a quebra do
automatismo que o faz urdir o “plano de ação”.
Se, no Canto XII da Odisséia, Ulisses tapou orelhas dos companheiros com cera
derretida pelo Sol, a fim de que seus companheiros não ouvissem o canto mortal das sereias, e
depois pediu que o atassem com laços bem apertados junto ao mastro, no conto, pelo
contrário, é a personagem que pede à mulher que o amarre “firmemente à cabeceira da cama”
e, depois, “exigiu que coasse cera em seus ouvidos”. À medida que a sugestão de ritmo de
tambor e a riqueza de sonoridade do primeiro parágrafo do conto se reduzem, a alteração do
plano de ação da personagem do conto, comparada a do herói Ulisses, vai-se revelando. A
inversão se manifesta juntamente com a espacialidade da narrativa: no mito, Ulisses atado
ao mastro da nau; no conto, a personagem amarrada à cabeceira da cama. Enquanto o
primeiro espaço é mítico, o segundo é doméstico e conjugal.
O clímax narrativo, porém, se revela no desenlace do conto, “Só então, seguro,
permitiu que, na sala, ela ligasse a televisão” (COLASANTI, 1986, p. 197). As vozes
maviosas, os cantos irresistíveis que arrastavam a personagem para outros mundos eram
oriundos do som da televisão, não do canto irresistível das sereias. Ele está amarrado no
“aqui”, no quarto, mais especificamente, à cabeceira da cama, ao passo que o som, que agora
sabemos ser o da TV, está no “lá”.
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Em “De água nem tão doce”, na banheira, a sereia ouvia o som do rádio da sala em
que se encontrava o “criador”; em “Embora ao largo das ilhas Sirenusas”, o personagem
“seguro” e amarrado à cabeceira, no quarto pressuposto, não ouve o som da televisão da sala
em que se encontra a mulher: nesse conto, a personagem se assemelha aos seus companheiros
de Ulisses com cera no ouvido.
Sabemos que a sereia do conto “De água nem o doce” e a personagem que pede à
esposa para coar cera em seus ouvidos não são as figuras míticas “sereia” e “Ulisses”.
Entretanto, o diálogo intertextual permite que se façam tais relações. A recordação do mito,
estabelecida pelos personagens em questão, na contemporaneidade, causa o estranhamento
literário. O herói da Odisséia , preso ao mastro de sua nau pelos companheiros, cujas orelhas
foram cobertas por cera derretida durante a travessia, e a carnificina feita pelas sereias nas
ilhas Sirenusas, no contexto fabuloso da mitologia antiga, não causa estranhamento, visto que
esses acontecimentos contribuem para a isotopia das narrativas mitológicas.
É a inserção dessas figuras clássicas na modernidade que causa o “efeito estranho
ficcional”. Criar a sereia na banheira, treiná-la para o cotidiano da vida entre azulejos e tingir
seus cabelos, assim como cantar músicas de Roberto Carlos, ao invés de melopéias, ser preso
à cabeceira da cama e se incomodar com “as vozes maviosas” oriundas da TV “modulam”
todos os valores simbólicos da antiguidade, dando ao conto a possibilidade de gerar novos
sentidos, por meio, também, de “uma contínua circulação de trocas”, como explicou Dias
(2005).
Lins (1976, p. 70), quando tece considerações sobre o espaço romanesco, diz que o
“delineamento do espaço, processado com cálculo, cumpre a finalidade de apoiar as figuras e
mesmo de as definir socialmente de maneira indireta [...]”. Ao criar a sereia na banheira e
levá-la à praia de coleira e coberta por uma manta, sugere-se a atmosfera de dominação e
92
porque o som da televisão lhe é fatal figurativiza o dia-a- dia conjugal, o cotidiano e o tédio
“automatizante” da personagem de “Embora ao largo das ilhas Sirenusas”.
As inversões não se manifestam, apenas, no que se referem ao espaço da narrativa.
Voltemos, mais uma vez, às elucidações de Lins (1976, p. 76):
a atmosfera, designação ligada à idéia de espaço, sendo invariavelmente de
caráter abstrato de angústia, de alegria, de exaltação, de violência, etc.
consiste em algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens,
mas não decorre necessariamente do espaço, embora surja com freqüência
como emanação deste elemento, havendo mesmo casos em que o espaço
justifica-se pela atmosfera que provoca.
Desse modo, a “troca” da espacialidade realizada pela narrativa moderna causa uma
certa inadequação das personagens ao meio: banheira X Ilhas Sirenusas, e cabeceira da cama
X mastro da nau. Não podemos deixar de assinalar que, numa narrativa, deve-se levar em
consideração a harmonia do espaço com os demais elementos narrativos, tais como
personagens, ações e, principalmente, seus dramas.
93
3.2.3. É FOGO QUE ARDE
Nesta seção, serão analisados os contos “Como se fosse na Índia” e “Verdadeira
estória de um amor ardente”. O primeiro dialoga com o mito hindu de Shiva e sua esposa Sati
e, conseqüentemente, com um ritual funerário indiano chamado sati; o segundo, com o mito
greco-romano de Pigmaleão e a estátua Galatéia.
Os textos possuem o elemento fogo como elemento simbólico: no mito, a deusa Sati é
consumida pelo próprio fogo interno, no conto, a ausência desse elemento pressupõe outra
leitura e suscita outros sentidos; no caso do mito do escultor e sua estátua de marfim, o fogo
não está presente; no conto que o resgata, a personagem queima a sua companheira de cera,
alterando, assim, o desfecho do mito clássico.
94
3.2.3.1.O RITUAL E O MITO DE SHIVA E SUA ESPOSA SATI
No conto “Como se fosse na Índia”, embora re-configurado, identificamos o ritual
sati, praticado na Índia atualmente. Tal prática funerária relaciona-se com o mito hindu de
Shiva e sua esposa Sati.
De acordo com os estudos de Coomaraswamy e Nivedita (2002), ocorre uma imensa
síntese, no hinduísmo, que compilou seus elementos de várias direções distintas e inseriu
todos os temas de religião concebíveis: adoração da terra, do sol, da natureza, do céu, do pai e
da mãe, homenagem prestada a heróis e a ancestrais, prece pelos mortos, associação mística
de certas plantas e animais. As estudiosas ressaltam que cada um desses temas assinala algum
período específico do passado, com sua combinação característica ou invasão de povos,
outrora desconhecidos uns dos outros.
Além de visitas a santuários, por meio do estudo da literatura de certos períodos
definidos e pela cuidadosa observação de seu encadeamento, é possível localizar algumas das
influências que entraram na composição da mitologia hindu, dentre as quais destacam-se
livros como os Puranas, o poema épico chamado Ramaiana (história da reconquista de uma
esposa raptada), e o mais perfeito de todos, consoante as estudiosas Coomaraswamy e
Nivedita, o Mahabharata. O próprio nome Mahabharata mostra que o movimento que
culminou na reunião dessa grande obra teve atrás de si uma consciência viva da unidade do
povo bharata ou indiano.
95
Desse modo, explica-nos Coomaraswamy e Nivedita (2002, p. 14), “[...] na Índia a
mitologia não é um mero tema de pesquisa e estudo de coisas antigas: ela ainda permeia
inteiramente a vida de seu povo, como uma influência controladora”. Os seguidores do
hinduísmo, como se verá, por meio do mito de Shiva e Sati, exercitam o ritual funerário no
qual a esposa viúva deve ser enterrada, cremada ou queimada juntamente com o marido morto
Antes de tecer considerações acerca do mito e mostrar, posteriormente, como o conto
“Como se fosse na Índia” rapta e absorve o texto mítico em questão, citaremos a narrativa
hindu em sua forma escrita (já que, antes dessa forma de fixação, ela era transmitida
oralmente) e adaptada:
Muito tempo atrás houve um chefe supremo dos deuses chamado
Daksha. Ele casou-se com Prasuti, filha de Manu, e com ela teve dezesseis
filhas, das quais a mais moça, Sati, tornou-se esposa de Shiva. Foi um
casamento que desagradou a Daksha, pois ele tinha vontade com Shiva
não apenas por seus hábitos mal-afamados como também porque, por
ocasião de um festival para o qual ele havia sido convidado, Shiva não lhe
tinha prestado homenagem Por essa razão Daksha tinha lançado sobre Shiva
a maldição de que ele não receberia nenhuma porção das oferendas feitas aos
deuses. Um brâmane devoto de Shiva, entretanto, pronunciou outra maldição
de que Daksha dissiparia a vida em prazeres materiais e observâncias
cerimoniais e teria cara de cabra.
Nesse meio tempo Sati cresceu e apaixonou-se por Shiva, adorando-o
em segredo. Ela chegou à idade núbil e seu pai organizou um swayamvara,
ou escolha própria, para o qual convidou deuses e príncipes, de longe e de
perto, com exceção de Shiva. Sati foi conduzida para a grande reunião,
empunhando a grinalda. Mas não se via Shiva em parte alguma, nem entre os
homens nem entre os deuses. Então, desesperada, ela atirou a grinalda para o
ar, exortando Shiva a recebê-la; e viu-o de pé, no meio de toda a corte, com a
grinalda em volta do pescoço. Assim, Daksha não teve escolha senão realizar
o casamento; e Shiva foi embora com Sati para sua casa em Kailas.
Kailas era longe, muito além dos brancos Himalaias, e morava
Shiva, em pompa real, adorado por deuses e sacerdotes; ele passava a maior
parte do tempo andando a pela montanha, como um mendigo, o corpo
manchado de cinzas, e com Sati usando roupas andrajosas; algumas vezes
também ele era visto nos pátios de cremação, cercado de duendes dançarinos
e tomando parte de ritos horrendos.
Um dia Daksha tomou providências para um grande sacrifício de
cavalo e convidou todos os deuses para que fossem e participassem das
oferendas, omitindo apenas Shiva. As oferendas deviam ser feitas a Vishnu.
Sati viu a partida dos deuses, no momento em que saíam, e virando-se para o
marido perguntou: “Aonde, ó senhor vão os deuses, com Indra à frente? Eu
queria saber para onde eles de dirigem”. Então Mahadeva respondeu:
“Brilhante senhora, o bom patriarca Daksha preparou um sacrifício de cavalo
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e para os deuses se dirigem”. Ela indagou: Por que não vais também à
grande cerimônia?” Ele lhe informou: “Foi combinado entre os deuses que
eu não tomaria parte em quaisquer oferendas feitas em sacrifício”. Então
Devi ficou irritada e exclamou: “Como é possível que aquele que mora em
cada ser, que é inatingível em poder e glória, seja excluído das oblações?
Que sacrifícios, que dádivas devo eu fazer para que meu Senhor, que
transcende todos os pensamentos, receba uma parcela, um terço ou metade
da doação?” Shiva sorriu para Devi, lisonjeado por sua afeição, e disse,
“Essas oferendas têm pouca importância para mim, pois eles, que cantam os
hinos do Samadeva, me fazem sacrifício; meus sacerdotes são aqueles que
oferecem a oblação de real sabedoria, na qual não é necessária a presença de
um brâmane oficiante; essa é a minha porção”. Devi respondeu: “Não é
difícil apresentar razões perante mulheres. Seja como for, me permitirás ir à
casa de meu pai nessa ocasião”. “Sem convite?”, respondeu ele. “Uma filha
não precisa de convite para a casa de seu pai”, replicou ela. “Então, que seja
assim”, anuiu Mahadeva, “mas disso resultará algum mal, pois Daksha me
insultará em sua presença”.
Então Devi dirigiu-se à casa de seu pai e lá, de fato foi recebida, mas
sem honras, pois viajou no elefante de Shiva e usava roupa de mendiga. Ela
protestou pela negligência de seu pai para com Shiva; mas Daksha irrompeu
em impropérios e ridicularizou o “rei dos duendes”, “o mendigo”, o
“homem-cinza”, o iogue de cabelos compridos. Sati respondeu ao pai:
“Shiva é amigo de todos; ninguém, a não ser vós, fala mal dele”. Os devas
sabem de tudo o que dizeis, e contudo adoram-no. Mas uma esposa, quando
seu Senhor é ultrajado, se ela não pode matar as pessoas más que falam
contra ele, deve deixar o lugar tampando os ouvidos com as mãos ou, se
tiver poder para tal, deve abrir mão da vida. Isso farei, pois me envergonho
de dever este corpo e uma pessoa como vós”. Então Sati liberou o fogo
interno consumidor e caiu morta aos pés de Daksha. (COOMARASWAMY,
A . K. & NIVEDITA, 2002, p. 272-274).
A história do casal segue o mesmo modelo de comportamento ideal de esposa hindu.
Sati, a fim de mostrar ao pai Daksha a grandeza de seu amor, abre mão da própria vida e é
consumida pelo fogo interno. A deusa torna-se, assim, a “perfeita encarnação da piedade e da
dedicação feminina”. Em sua obra Mascaras de Deus mitologia oriental (1994), Campbell
explica a pertinência da analogia entre Sati e o animal sagrado vaca. O estudioso explica a
enorme presença da figura da vaca, seja na religião, na literatura, etc., sempre “à maneira de
uma imagem maternal, bondosa e querida” (CAMPBELL, 1994, p. 57-58). Se a Shiva atribui-
se o touro, quando os ritos e as mitologias de Vishnu e Shiva floresceram, a Sati atribuíram a
figura sagrada da vaca. Outro aspecto importante a ser notado emana da raiz verbal sânscrita,
que, consoante Campbell (1994, p. 59), expõe a identificação com o papel de “esposa fiel e
dedicada”: a palavra provém de sat, “ser”, “estar”; a forma substantiva satya significa
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“verdade”, “o real, genuíno e sincero, o leal, virtuoso, puro e bom”, assim como “o realizado,
o consumado”, ao passo que o negativo, a-sat, “irreal, não-verdadeiro”, tem as conotações
“errado, mau e vil”, e na forma feminina do particípio, a-sati, “esposa infiel, incasta”. O
termo sati:
[...] particípio feminino de sat, é a fêmea que realmente é algo
porquanto ela é de fato uma personagem do papel feminino: ela é apenas boa
e verdadeira no sentido ético, mas verdadeira e real ontologicamente. Na
lealdade de sua morte, ela se torna una com seu próprio ser verdadeiro.
(CAMPBELL, 1994, p. 59-60).
A etimologia da palavra, plano de expressão, liga-se ao caráter da personagem hindu,
plano de conteúdo. Ao abrir mão de sua vida, a filha de Daksha demonstra todo o seu
sentimento não apenas ao pai, mas também a Shiva. Afora as questões etimológicas e
simbólicas como a figura da vaca, as sucessivas encarnações da deusa revelam que Sati
mantém em sua “matriz espiritual” os predicativos positivos de esposa ideal.
A esposa de Shiva renasceu como filha da grande montanha Himalaia, que, ao
contrário de Daksha, fez questão na união de Shiva e Uma Haimavati ou Parvati filha da
montanha outrora Sati. Antes do casamento, porém, o deus hindu testou a fidelidade de
Uma, que havia se tornado uma sannyasini, ermitã; deixou de lado todas as jóias, o trato com
os cabelos e usava roupas de casca de árvores. Retirada em uma montanha, Uma meditava
sobre Shiva e praticava a asceses de que ele gostava. Em certa ocasião, um jovem brâmane
caluniou as práticas de Shiva, e Uma Haimavati defendeu seu senhor e lhe disse que o amor
que sentia não se alteraria com quaisquer verdades ou inverdades sobre o deus. O jovem
brâmane, na verdade, era Shiva disfarçado que a tomou como esposa.
Em outra existência, por imposição de Shiva, a fim de que Sati aprendesse a ouvir os
relatos dos textos sagrados, tornou-se filha adotiva do chefe dos pescadores. Encontrada à
beira-mar, tornou-se uma moça muito bonita e bondosa. O deus assumiu a forma de um
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jovem procedente de Madura e capturou o grande tubarão que ameaçava os pescadores.
Quando Shiva exterminou o tubarão, a filha do chefe foi dada em casamento ao jovem, que
assumiu sua verdadeira forma divina: Shiva. Sati, depois dessas experiências, refletiu e
percebeu que deveria ficar mais atenta para ouvir os relatos dos textos sagrados.
A deusa e suas outras existências mantiveram a qualidade de “mulher bondosa e fiel”,
ao demonstrar o amor queimando-se no fogo interno consumidor (Sati), ao abdicar da vida em
sociedade, isolando-se na montanha, ao defender Shiva (Uma Haimavati ou Parvati), e
tornando-se uma moça bonita e bondosa (filha do chefe dos pescadores). Os predicativos
ideais hindus de perfeição feminina acompanham as sucessivas vidas de Sati. Desse modo, o
ritual sati, praticado na Índia, ainda que em casos isolados, tem sua explicação no mito hindu
de Shiva e sua esposa Sati.
O portal do Estadão informou, em 21 de setembro de 2006, que uma viúva morreu
depois de se jogar sobre a pira funerária de seu marido no estado de Madhya Pradesh, no
centro da Índia. Foi o segundo caso, em um mês, de suicídio cometido de acordo com a
tradição sati, proibida por lei desde 1829. A lei prevê até a pena de morte para quem, direta ou
indiretamente, estimular, aplaudir ou festejar o ritual. Segundo fontes policiais, o novo caso
de sati aconteceu na quarta-feira, 20 de setembro, na localidade de Baniyani, no distrito de
Chhatarpur. Kuria, de 95 anos, se lançou à fogueira em que ardia o corpo de seu marido,
Siaram Rajput, que havia morrido um dia antes. Os quatro filhos de Kuria foram detidos pela
Polícia. Eles são acusados de assassinato, conforme a Lei de Prevenção do Sati, informou o
administrador do distrito, Ajatshatru Shrivastava, que foi ao local para supervisionar a
abertura de uma investigação. Outras pessoas que assistiram ao funeral também foram detidas
por incitar a mulher a se imolar, informou o inspetor geral da Polícia, Swarn Singh. Vários
moradores da localidade se manifestaram nas ruas exigindo a construção no local de um
“templo de sati”, por considerar o ato sagrado.
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Em 22 de agosto do mesmo ano, Janakrani, uma mulher de 45 anos, cometeu sati no
povoado de Tulsipur, também no estado de Madhya Pradesh. Ela se lançou à fogueira de
noite, quando não havia mais ninguém no local. Por isso, a Polícia não pôde acusar ninguém,
mesmo admitindo a dificuldade de demonstrar se foi um suicídio voluntário ou se a viúva se
viu forçada pela sociedade e pela família. A prática funerária tem sua raiz na concepção
mítico-religiosa dos hindus, que sustentam concepções de vida e religião sobremaneira
distinta dos ocidentais.
Convém lembrar os estudos de Chevalier (1988, p. 440): grande parte dos aspectos
simbólicos do fogo está concentrada na doutrina hindu, que lhe confere fundamental
importância. “Agni” corresponde a fogo do mundo terrestre, o fogo comum; Indra”, ao
intermediário, o raio; e “Surya”, ao celeste, o Sol. Além desses, existe o fogo da penetração
ou absorção –“Vaishvanara”. O fogo, quando queima e consome, é “símbolo da purificação e
de regenerescência” (CHEVALIER, 1988, p. 443). A deusa Sati, ao ser consumida pelo fogo
interno, abdicou de sua vida, valorizou o marido e provou a Daksha o amor puro e verdadeiro
que sentia por Shiva. Baseados nesses aspectos simbólicos, os hindus acreditam que as
esposas devam abdicar de sua vida pelo marido falecido.
O conto “Como se fosse na Índia”, por sua vez, lembra-nos esse ritual antigo por meio
da perspectiva irônica e de sua crítica questionadora.
100
3.2.3.2. É COMO SE FOSSE NA ÍNDIA
Com a leitura do conto “Como se fosse na Índia”, o leitor talvez não perceba,
imediatamente, relações com algum mito, lenda ou conto maravilhoso. O simples fato de uma
personagem saber que vai morrer, juntar seus bens numa pilha e ser auxiliado pela esposa não
constituem ações suficientes para tecermos relações tão precisas com o mito de Shiva e Sati e,
conseqüentemente, com o ritual funerário:
Como se fosse na Índia
Quando ele soube que ia morrer, comprou uma serra, um formão, e
durante semanas, com as poucas forças que lhe restavam, empenhou-se em
destruir os móveis do apartamento, reduzindo armários, mesas, cadeiras,
molduras e consoles em cavacos de pau que ordenadamente empilhava no
centro da sala.
A mulher acompanhava o labor, varrendo o entulho, cuidando para
que ele não se cansasse demais, sempre disponíveis na bandeja a xícara de
cafezinho ou o copo d’água. E estando tudo pronto afinal, quando já se
esgotava o tempo do homem, subiu ela no alto da pilha, atenta para não
derrubar o cuidadoso arranjo.
Deitada em cima, ainda tirou com a mão uma teia de aranha do
lustre. Depois vasculhou o bolso do avental, e estendeu para o marido a
caixa de fósforos.
(COLASANTI, 1986, p. 135).
O título, no entanto, funciona como uma das contexturas textuais, se levarmos em
consideração o intenso pensamento mítico-religioso peculiar à Índia e ao hinduísmo. A
expressão “como se fosse” funciona como artifício de estranhamento literário da narrativa,
dando, não apenas ao título do conto, mas a toda fábula, a relação de comparação com o mito
e o rito hindu.
A comparação consiste num tropo em que dois elementos são relacionados por traços
significativos comuns. Temos, no caso, duas representações (mito/rito e conto) relacionados
por uma unidade de sentido. Essa ligação, no que se refere ao título do conto, realiza-se pela
expressão lingüística “como se” (nexo gramatical). O verbo “ser” no pretérito imperfeito do
101
subjuntivo potencializa a trama incerta e duvidosa, ou até mesmo “irreal” característica do
mito e do maravilhoso entre os dois textos em questão. Assim, as representações simbólicas
do mito e do rito e o modo de significar do conto mantêm suas independências; os textos
(mito/rito e conto) não se fundiram e não formaram uma identidade plena entre si. O nexo
gramatical e o verbo ser no pretérito imperfeito do subjuntivo contribuem, semanticamente,
para essa in-dependência. O mito e o rito possuem suas particularidades simbólicas; o conto
re-significa essas mesmas particularidades para a construção de outros sentidos.
Entendendo a comparação com o seguinte esquema, teremos: A [conto “Como se
fosse na Índia”] é B [mítico/cruel; mítico/agressivo; mítico/primitivo], assim como C [mito de
Shiva e Sati e rito funerário sati] é B [mítico/cruel; mítico/agressivo; mítico/primitivo]. Tanto
no título como no conto, a analogia está implícita, ficando ao encargo do leitor completar as
“lacunas” que a narrativa utiliza para significar.
O conto se inicia com a oração subordinada Quando ele soube que ia morrer” que
sugere, além do próprio aspecto temporal, a consciência de morte da personagem. Esse
aspecto do tempo e a idéia de morte, entretanto, não são os fios condutores da narrativa,
que, em nenhum momento, percebemos marcas de preocupação e mal-estar da personagem. O
seu empenho é, pelo contrário, “destruir os móveis do apartamento” e, para tanto, lança mão
de serra e de formão para “ordenar a pilha” no centro da sala.
O único e longo período do primeiro parágrafo do conto sugere a rapidez com a qual a
personagem realiza as ações “durante semanas”, ao mesmo tempo que aguça a curiosidade do
possível leitor, pois não sabemos, ainda, o porquê da destruição dos móveis e da ordenação da
pilha no centro da sala, “com as poucas forças que lhe restavam”. À primeira vista, parece ser
a de revolta e inconformismo diante da morte, mas, com o desenrolar da narrativa, saberemos
que não se trata disso em absoluto, tendo em vista que o narrador transfere, no segundo
parágrafo, a perspectiva da situação para a mulher.
102
A trama do conto prende a atenção do leitor que ainda não sabe o motivo da
destruição dos móveis. Nesse momento, o título, novamente, colabora como elemento
contextualizador que nos remete a um rito, a um fazer tico e místico da cultura oriental.
Diante de um “como se fosse”, a leitura começa a dar pistas do diálogo intertextual com o
mito e rito hindu.
A mulher configura-se no conto prontamente envolvida com o “labor” do marido, e
suas atuações vinculam-se ao fazer doméstico de uma esposa atenta que auxilia: “varrendo o
entulho, cuidando para que ele não se cansasse demais, sempre disponíveis na bandeja a
xícara de cafezinho ou o copo d`água”. Ao “cafezinho”, é possível relacionar a bebida
prazerosa e o descanso, e à “água”, a reposição de energia, ou seja, ela cuida” para que ele
“não se cansasse demais”. No plano da fábula, “E estando tudo pronto afinal”, a pilha está
concluída; no plano da decodificação da leitura, contudo, o porquê o se explicita; “as
lacunas textuais” potencializam a curiosidade, e a análise do conto se realiza pelas
“entrelinhas” justamente dispostas na narrativa. A mobília do apartamento, matéria
organizada pela indústria, transforma-se, no conto, em lenha, material da natureza em seu
estado bruto; tal procedimento intensifica a circulação de trocas entre as reminiscências do
passado clássico e a ficção contemporânea, mercê do recurso intertextual.
Inicia-se o desfecho do conto, o seu término, e a narrativa retoma a questão de morte e
tempo de vida, “quando se esgotava o tempo do homem”. A mulher sobe, “atenta”, no alto
da pilha e se transfigura, simbolicamente, no entulho dos móveis do apartamento destruídos
pelo empenho do marido. O narrador trama o clímax narrativo, o desfecho do conto e
descreve as ações da mulher: que havia subido “atenta” no alto do “cuidadoso arranjo”,
tirando “com a mão uma teia de aranha do lustre”, vasculhando “o bolso do avental” e
“estendendo para o marido a caixa de fósforos”.
Essa atitude da mulher aproxima-se do rito funerário sati pela perspectiva irônica e
103
crítica. O marido ainda vive, e é a esposa quem tira do avental, utensílio doméstico, a caixa de
fósforos. Como se fosse a deusa Sati, a personagem transfigura-se na perfeita encarnação da
piedade e da dedicação feminina. Se Sati, no mito, manteve esse princípio ideal de mulher nas
sucessivas encarnações (Uma Haimavati ou Parvati e filha de pescador), a do conto é tão
zelosa como a deusa, a ponto de tirar a teia de aranha do lustre. É o ponto máximo da ironia
da mulher fiel e dedicada, que sempre deixava disponível café e água na bandeja.
Porém, esse exagero de dedicação e o fogo, representado no conto pela caixa de
fósforos dão, à narrativa, um valor de ironia crítica. O fogo simbólico, regenerador,
purificador, resume-se, nesse diálogo intertextual, à caixa de fósforos. Chama-nos atenção que
um item da cultura industrial e urbana como o fósforo se relacione com a força incontrolável
da natureza que é o fogo de uma pira funerária. Destaca-se, por isso, a tensão entre cultura,
natureza e ficção. Pode-se evidenciar também a comparação da atitude da mulher de Shiva e a
do conto: a do conto, ironicamente, age como se estivesse na Índia, como se fosse Sati. O
marido sequer morreu, e não haveria motivo para o sacrifício.
Importa sublinhar o desfecho em aberto do conto, pois, textualmente, não é possível
saber se, de fato, o marido atearia fogo na pilha, o que remeteria, assim, ao sati. Se ocorresse
o “pseudo-rito” sati, a prática dar-se-ia no espaço interno e fechado do apartamento, ambiente
sobremaneira urbano, ao invés de em um espaço externo e aberto, como o espaço natural de
um campo ou da beira de um rio como o Ganges, por exemplo. Sugere-se, assim, a futilidade
e a superfluidade da prática que não se relaciona, no conto, com a tradição de que o rito
contribui para a salvação da viúva e traz benções para toda a família.
104
3.2.3.3. A HISTÓRIA DE PIGMALEÃO
O conto “Verdadeira estória de um amor ardente” retoma o mito de amor do escultor
Pigmaleão e sua estátua de marfim Galatéia. Embora nesse mito o fogo não tenha uma
presença tão significativa como no mito hindu de Shiva e Sati, no conto, sua significação é
mais expressiva. Vejamos, primeiramente, o mito para, depois, passarmos à elucidação do
modo pelo qual o conto de Marina Colasanti o re-significa.
A história de Pigmaleão
1 Um homem, Pigmaleão, que tinha visto essas mulheres
Levando suas vidas desavergonhadas, chocado com seus vícios,
Achou que a natureza deu uma disposição muito errada
Às mulheres e escolheu viver sozinho,
5 Não ter nenhuma mulher em sua cama. Para se distrair,
Fez, com habilidade maravilhosa, uma estátua de marfim,
Branca como a neve, e lhe deu uma beleza tal
Que nenhuma moça teria, e se apaixonou
Pela sua própria criação. A imagem parecia
10 Ser a de uma virgem, quase de verdade, quase viva,
E disposta, salvo pela modéstia,
A se movimentar. A melhor arte, dizem,
É aquela que dissimula a arte, e assim Pigmaleão
Se maravilhou, e se apaixonou pelo corpo que ele próprio construiu.
15 Colocava sempre suas mãos na estátua, para testá-la, tocá-la,
Seria isso carne, ou apenas marfim?
Não, não poderia ser marfim. Seus beijos,
Ele fantasia, ela retribui; fala com ela,
Abraça-a, acredita que seus dedos deixam
20 Marcas nos braços dela, e teme machucá-la.
Ele lhe faz elogios, lhe traz presentes
Do tipo que as moças adoram, pedras lisas, caramujos,
Passarinhos, flores de mil cores,
Lírios, bolas pintadas, torrões de âmbar.
25 Ele a enfeita com vestidos e coloca anéis
Nos seus dedos, e lhe traz um colar,
E brincos, e uma fita,
E tudo isso, vai se transformando nela. Mas ela parece
Ainda mais adorável nua, e ele estende
30 Um acolchoado carmim para deitá-la,
Leva-a para sua cama, coloca um travesseiro macio sob
Sua cabeça, como se ela o sentisse, e a chama de Querida,
Meu amor adorado!
E chegou o feriado de Vênus
35 E todo o povo da ilha
105
Estava participando da festa. Novilhas alvas como a neve
Tiveram os chifres enfeitados com ponteiras de ouro,
Foram colocados nos altares,
Onde o incenso queimava. Timidamente, Pigmaleão
40 Fez suas oferendas, e pediu: “Se vocês podem nos dar tudo,
Todas as coisas, ó deuses, rezo para que minha mulher possa ser –
(Ele quase disse Minha menina de marfim, mas não ousou fazê-lo) –
Como a minha menina de marfim”. A dourada Vênus
Estava ali, e entendeu a intenção da prece.
45 Mostrou-se a ele como uma chama brilhante que saltou
Três vezes no altar, e Pigmaleão voltou
Para onde a donzela estava deitada. Deitou-se ao lado dela,
E a beijou. Ela pareceu corar, e ele a beijou de novo,
E acariciou seu seio, e sentiu o marfim ficar macio
50 Ao toque de seus dedos, como a cera dura que amolece ao calor
do sol. Pigmaleão
Se assusta, duvida, está desconfiado e feliz.
Acaricia-a novamente, toca aqui e ali
No corpo todo, com as mãos. É um corpo!
55 As veias pulsam sob seus dedos. E, oh!, Pigmaleão
É pródigo em preces e agradecimentos a Vênus,
Nenhuma palavra lhe parece boa o suficiente. Os lábios que ele beija
São de verdade, a moça de marfim consegue senti-los,
E cora e responde, e os olhos abrem
60 Agora para o amor e para o céu, e Vênus abençoa
O casamento que ele fez. A lua crescente
Passa para cheia nove vezes, e mingua de novo,
E então nasce uma menina, que recebe o nome de Pafos,
De quem, mais tarde, a ilha herdaria o nome.
(OVIDIO, Metamorfoses, Livro X, pp. 207-209.)
Na passagem das Metamorfoses, de Ovídio, que conta a “História de
Pigmalião”, o escultor dispensou horas, dias, semanas e meses, para criar a sua obra. Ele
elaborou, fez e refez a sua criação; verificou o ponto mais sensível a fim de transfigurar o
material bruto: marfim. Sua obra, Galatéia, soube o quanto o seu criador havia dispensado
todo o tempo necessário para que ela pudesse ser metamorfoseada. O tempo em que ambos
ficaram juntos foi suficiente para, num determinado momento, torná-los um ser único: artista
e obra ao mesmo tempo. Desse modo, o artista preparou a sua obra, e o encontro com ela foi
inevitável:
Pela sua própria criação. A imagem parecia
10 Ser a de uma virgem, quase de verdade, quase viva,
E disposta, salvo pela modéstia,
106
A se movimentar. A melhor arte, dizem,
É aquela que dissimula a arte, e assim Pigmaleão
Se maravilhou, e se apaixonou pelo corpo que ele próprio construiu.
(OVÍDIO, versos 9 a 14).
O criador tocou a sua criatura, “Seria de carne, ou apenas marfim? (OVÍDIO, verso
16). O momento exigia adoração; Pigmaleão falava com ela; abraçava-a e temia machucá-la;
fazia-lhe elogios; trazia-lhe presentes; levava-a para cama e colocava um travesseiro macio
sob sua cabeça e chamava-a de “Querida, meu amor adorado”.
Eros, princípio do amor-paixão, havia se instalado no coração do artista. Apenas
Vênus poderia ajudá-lo no assunto amoroso. No Feriado de adoração à deusa, Pigmaleão
aproveitou a ocasião para fazer preces: “Novilhos alvas como a neve / Tiveram os chifres
enfeitados com ponteiras de ouro, / Foram colocados nos altares, / Onde o incenso queimava”
(OVÍDIO, versos 36 a 39). Esse detalhe merece uma breve elucidação de Brandão (1987, p.
39), que comenta:
[...] por meio do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se
de todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza
no imediato uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, ‘o sentido
de uma ação essencial e primordial através da referência que se estabelece
do profano ao sagrado’. Em resumo: o rito é a práxis do mito. É o mito em
ação. O mito rememora, o rito comemora.
Essa Festa, celebrada pelo ritual religioso de Vênus, trouxe luz ao coração do
apaixonado: “[...] rezo para que minha mulher possa ser / [...] como a minha menina de
marfim” (OVIDIO, versos 41 a 43). Vênus atendeu ao pedido de Pigmaleão. Posteriormente,
a estátua de marfim pôde sentir o toque do amante. Como perpetuação desse amor, nasceu a
menina de nome Pafos, nome de uma ilha e uma das moradas da deusa Vênus.
Feitas essas observações acerca do mito do escultor e sua criatura, voltemos ao conto
de Marina Colasanti.
107
3.2.3.4. A VERDADEIRA ESTÓRIA DA HISTÓRIA DE PIGMALEÃO
Além da relação entre criador e criatura, muito significativa no conto e no mito, o
título escolhido por Colasanti também oferece uma gama de sentidos velados entre o texto-
base e o texto “novo”, traço bem característico de Contos de amor rasgados. Se em “Como se
fosse na Índia a analogia entre rito, mito e conto aproximou-se do símile ou comparação, em
“Verdadeira estória de um amor ardente”, é a metáfora o elemento norteador de alteração
de sentidos.
Verdadeira estória de um amor ardente
Nunca tivera namorada, esposa, amante. Desde jovem, vivia só.
Entretanto passando os anos, sentia-se como se mais ficasse, adensando-
se ao seu redor aquele mesmo silêncio que antes lhe parecera apenas
repousante. E vindo por fim a tristeza instalar-se no seu cotidiano, decidiu
providenciar uma companheira que, partilhando com ele o espaço,
expulsasse a intrusa lamentosa.
Em loja especializada adquiriu grande quantidade de cera, corantes, e
todo o material necessário. Em breves estudos nos almanaques e tratados
aprendeu a técnica. E logo, trancado à noite em sua casa, começou a moldar
aquela que preencheria seus desejos.
Pronta, surpreendeu-se com a beleza que quase inconscientemente lhe
havia transmitido. A suavidade opalinada, rósea palidez que aqui parecia
acentuar-se num rubor, não tinha semelhança com a áspera pele das
mulheres que porventura conhecera. Nem a elegância altiva desta podia
comparar-se à rusticidade quase grosseira daquelas. Era uma dama de nobre
silêncio. E só tinha olhos para ele.
Perdidamente a amou. O calor dos seus abraços tornando aquele corpo
ainda mais macio, conferia-lhe uma maleabilidade em que todo toque se
imprimia, formando e deformando a amada no fluxo do seu prazer.
algum tempo viviam juntos, quando uma noite a luz faltou.
Começava ele a cansar-se de tanta docilidade. Começava ela a empoeirar-se,
turvando em manchas acinzentadas os tons antes translúcidos. Um certo
tédio havia-se infiltrado na vida do casal. Que ele tentava justamente
combater naquela noite empunhando um bom livro, no momento em que a
lâmpada se apagou.
Sentado na poltrona, com o livro nas mãos prometendo delícias, ainda
hesitou. Depois levantou-se, e tateando, com o mesmo isqueiro com que
pouco acendera o cigarro, inflamou a trança da mulher, iluminando o
aposento.
Arrastou-a então para mais perto de si, refestelou-se na poltrona. E,
sereno, começou a ler à luz do seu passado amor, que queimava lentamente.
(COLASANTI, 1986, p. 35-36).
108
Os artifícios de migração de sentidos de um termo para outro encontram seu campo
propício de manifestação nos procedimentos mentais por similaridade, e os poeticamente mais
109
gradação de um envolvimento amoroso: namorada, esposa e amante. A ausência dessa fase
reforça o caráter solitário da personagem, sua inexperiência nos assuntos amorosos, ao mes3s asst250(mpa)4(o)-que11(a)-246(i)efamaasatr66(f)3(t)4(m)-1(a)-d-11(a)-356(252(hom)4(t)-2(250(52(a)4(m)-2(-2(vi)-2(os)-v)-2((nvolho)-2(,)-v246(ist4(s4(o)-que11(a)-(D)(m)-2(ed-11(r)-j-6(m)v)10(e)4(m)-2(,)-v246(ivi)4(m)-1(a)-)4(63”66(.3s)-251(a)4(121 663 718 TE)1de)4(ss)-251)-246(i)-2(ne)4(x)-10(pe)4(r)3(i)-2(ê)4(nc)4(i)-251)-)-21-252)-)(sona(nvoli12(m)-2(e)4(nt)-7(a)4251)-pf)33(que1(da)453)-250(a)6(e)]TJ1 0 088 663 718 T246(i)vxaorxnur66(f)(pe)-1517-356(522Tm[(r)3(l)4(i)-26()4(nc)4(io363(na)4(m)-2(e)4(nt)-3s)-251(a)4(ss)635 746 Tm[(a)4(m)-2(or)3a)4541(r)3(l)4(i-1153)-p-2(or)3(e)ona10(pe)4(-11(e)rg 0 Tc 0 T4 /F3 12 Tf1 0 196)635 746 Ta4(nvoldar11(e)rg 0 Tc 0 Tw /F3 12 Tf1 0 237)635 746 Tuamnomtpahe4(nc)4(ir66(f)(pea)4540-(E)1d56(542(l)4(ioj)4(m)-153)-360(e)e66()4(nc)4(i)-4a(nvoli12(mz)(pe)-7(a)4253pe)-7(aquc)4(ir66(c)4(iu)4540-m[(g)10(r)-7(nd-11(e)]TJ1 0 0 1605 718 Tqu)-2(a)4(ntinvolda-7(a-11(8)-d-11(9)-)4(n)-2(e)4(r)-7()-2(9x))4(n)-2(or)-7(aa)4(nt)-2(s)-2(9s)-11(8)-1)4(todo-2(9x)o-2(9x)a)4(m)-2(1)4(t)-2(e)3nc)4(i)-4a(nvo9(i)60(d)-14-)4(n)-2(e)4(ss)-2((pe)-6(c)4(io”61(8)-(-6(C4(sO)48(L)(s)A)(mS)-4-3708(N)(mT)-9(I)13()-2(9x)1986)-2(9x)pe00(35)-6(;nvo9(ip)-2(-2(or)-1(e)]TJ1 0 0 1580 718 T1)4(t)-2(a)4(nt3a)4400(1)4(t)-2(v-10(9)-que11(9)-)-2(p-2(or)3(nd-1(pe)-140or)-7(9)-)-2(t)-21-3()4(nnc)4(i260(c)4(9)-()10(e)4402(br)ona10(pv366(e)]TJ1 0 0101580 718 Ts)440s)-116ist4(sudos)440s)nos)440snvolamaque1(ds)440s9tr66(f)3(t)4(m)-7(aos”61397-(-6(pe)4400(35)-6(.-1(e)]TJ1 0 0 1552 718 TL)(s)r)4(x)m[(g3a)4430(r)3(l)4(i-1142)-)4(nom)4(teç)-6(ou)4430(a1142)-amrque1(dl)4(i)-242or 2eiusdee66(j-6(m)s.)4431-Me66(r)ona10(p)4(n)-142det4(s)-7(que1142)-e
110
agora, às manchas acinzentadas. Ele acendeu o cigarro, pegou o livro e inflamou a trança da
mulher, iluminando o aposento.
No último parágrafo, percebe-se uma quebra dos sentimentos da personagem que se
mostrou, inicialmente, só, com a tristeza instalada no seu cotidiano; depois de apaziguada a
carência e saciados os prazeres, ele arrastou a estátua para mais perto de si, refestelou-se na
poltrona e, sereno, “começou a ler à luz do seu passado amor que, queimava lentamente”
(COLASANTI, 1986, p. 36). Assim, a luz volta para o lar do casal, servindo para que a
personagem leia o livro e, dessa forma, afaste o tédio do seu cotidiano amoroso.
A queima da companheira, na estrutura desse conto, não se aproxima dos símbolos de
purificação, regeneração, e paixão, explicados por Chevalier (1988) e coerentes com o mito
hindu. A chama do fogo, em “Verdadeira estória de um amor ardente”, aproxima-se mais do
fim do relacionamento e do tédio que da paixão sentida pela personagem outrora solitária.
Porém, percebe-se o mesmo recurso presente no conto “Como se fosse na Índia”, em que um
elemento da cultura industrial um isqueiro seja o veículo que põe fogo força
incontrolável da natureza e prenhe de simbologia na mulher de cera e corantes. No conto
anterior, é a caixa de fósforos o instrumento utilizado; em “Verdadeira estória de um amor
ardente”, é o isqueiro que, se comparado a caixa de fósforos, é um elemento industrial mais
moderno e sofisticado.
Ambos, Pigmaleão e a personagem do conto, tinham problemas com mulheres. A
solidão fez com que eles tomassem uma providência: no conto, a construção de uma estátua
de cera e corantes; no mito, uma estátua de marfim. O escultor era um talentoso artista e sabia
como fazer uma bela obra; a personagem do conto teve que aprender, lendo almanaques e
tratados, a técnica de construção.
111
A rapidez com que adquiriu a habilidade de moldar foi mais rápida para a personagem
do conto, o que salienta o caráter dinâmico que tal gênero deve ter, mesmo assim, por causa
da perfeição de sua obra de cera, pode-se dizer que a personagem é também talentosa.
No mito, o desfecho amoroso é positivo, tendo em vista que o escultor conseguiu dar
vida a sua obra. Pigmaleão, antes, beijava e acariciava sua amada, mas sentia-lhe a rigidez do
marfim. A personagem do conto, por sua vez, era capaz de sentir a suavidade opalina e a
rósea palidez de sua estátua de cera, bem como conferiu-lhe a maleabilidade do corpo,
formando e deformando a amada no fluxo do seu prazer. Todavia, diferente de Pigmaleão, a
personagem do conto não enfeitava, tampouco presenteava a estátua feita de cera e corantes.
Pigmaleão foi vítima da perfeição de sua arte; a personagem do conto, ao contrário,
moldou a mulher para, justamente, pôr fim à tristeza que se instalou no seu cotidiano. Mas, o
tédio visitou novamente a casa da personagem que, ironicamente, queimou a estátua de cera.
No mito, a concretização da felicidade amorosa atinge seu ápice com o nascimento de Pafos,
filha de Pigmaleão e Galatéia, no conto, pelo contrário, a personagem queima a companheira
de cera e, assim, lê à luz de seu passado amor.
A personagem do conto parte de uma situação inicial “só”, e não se sabe o motivo
dessa solidão, característica típica do miniconto literário; depois, uma situação intermediária
“acompanhada”, com sua mulher de cera e corantes; e, finalmente, a fase final solitária,
quando, entediado, ateia fogo na companheira. Pigmaleão tem uma situação inicial
semelhante à da personagem do miniconto, mas o mito nos diz que foi a decepção a causa de
sua reclusão; a situação intermediária, quando esculpe a mulher de marfim, também
representa um estado “acompanhado, diferente da fase final tica e idealizada pela
personificação da estátua. O escultor, além da mulher de carne e osso, teve a filha Pafos, o
que reforça a idéia de companheirismo e aproximação amorosa. A personagem do conto, pelo
contrário, prefere “ler à luz do seu passado amor, que queimava lentamente” (COLASANTI,
112
1986, p. 36).
113
3.2.3.5. PREPARAÇÃO, CONTEMPLAÇÃO, ENCONTRO, PERPETUAÇÃO E
DESTRUIÇÃO: OS INSTANTES DOS RELACIONAMENTOS
Pigmaleão e Galatea. Jean-Gérome (1980)
114
Em “A história de Pigmaleão”, presente nas Metamorfoses de Ovídio, encontram-se
momentos de sensibilidade, que se manifestam de formas distintas das do conto de Marina
Colasanti. Primeiramente, a atitude criativa: Pigmaleão decide esculpir uma mulher de
marfim, e, depois, entra no plano da preparação. O artista prepara sua obra, transforma o
marfim, dá-lhe formas e contornos. Transfigurado o marfim, ele contempla o corpo e o adora.
A contemplação leva ao encontro, é Eros manifestando-se: “[...] e se apaixonou / Pela sua
própria criação” (OVÍDIO, versos 8-9). Por meio da intervenção de Vênus, a estátua de
marfim metamorfoseia-se em mulher de carne e osso:
Acaricia-a novamente, toca aqui e ali
No corpo todo, com as mãos. É um corpo!
As veias pulsam sob seus dedos. E, oh!, Pigmaleão
É pródigo em preces e agradecimentos a Vênus,
Nenhuma palavra lhe parece boa o suficiente. Os lábios que ele beija
São de verdade, a moça de marfim consegue senti-los,
E cora e responde, e os olhos abrem [...] (OVÍDIO, versos 53-59).
O escultor, após todo processo de criação poética (do verbo grego ποιείν poiéin
cujo sentido próprio é “criar”), desfruta o instante: ele a ama, a toca e verifica o corpo
transfigurado novamente, pois, antes, fora marfim bruto. A perpetuação configura-se no
nascimento de Pafos e evidencia o poder feminino e fértil da deusa Vênus.
No conto, percebe-se o desejo da personagem em pôr fim à solidão: “[...] decidiu
providenciar uma companheira que, partilhando com ele o espaço, expulsasse a intrusa
lamentosa” (COLASANTI, 1986, p. 35). No mito, o escultor inicia a arte para se distrair; no
conto, a personagem, por outro lado, decide ter uma companheira. A preparação realizou-se
com a ajuda de cera, corantes, e todo material necessário, juntamente com o auxílio dos
breves estudos nos almanaques e tratados técnicos que teve de pesquisar. Ele foi em busca do
saber, diferentemente de Pigmaleão que já sabia esculpir.
115
A contemplação de tanta beleza foi inevitável: “Pronta, surpreendeu-se com a beleza
que quase inconscientemente lhe havia transmitido” (COLASANTI, 1986, p. 35). O encontro
configurou-se no próprio calor do ato amoroso: “toque se imprimia, formando e deformando a
amada no fluxo do seu prazer” (COLASANTI, 1986, p. 35). A perpetuação, presente no mito,
lugar à destruição do corpo de cera. O cansaço e o tédio levaram à queima, ao fim do
envolvimento amoroso sem frutos.
Pela leitura que faz Bastos (2003) da obra pictórica Pigmaleão e Galatéia de Jean
Leon Gérome (1980), identificam-se, simultaneamente, instantes de sensibilidade oriundos do
texto-base e, por isso, re-configurados por meio da linguagem plástica visual.
A mulher se forma à sua frente e, aos poucos, deixa de ser a estátua.
[...] Num instante de delírio, ele saltou ao encontro do corpo bem conhecido,
procurando seus lábios com o ardor concentrado dos dias em que a esteve
contemplando, em que a esteve criando. [...] No instante em que seus lábios
se tocam, que seus corpos se unem, apesar de suas almas estarem se
amando tempo, a estátua começa a receber a vida. O rosto de Galatéia se
enrubesce. Seus cabelos ganham um brilho negro, o corpo se rende e se
entrega em direção ao amante e ela o abraça, segura suas mãos [...] O
escultor, até então solitário operário da arte, recebe a recompensa dos dias de
trabalho: mais do que a obra, ele possuirá a amante. (BASTOS, 2003, p. 18-
19).
A imagem oferece todos os instantes simultaneamente. Tem-se a preparação pelo
maço do escultor jogado ao chão e pela base ainda tosca e branca do material em contraste
com a gradação do tom, à medida que o olhar sobe para o tronco da obra. Ao mesmo tempo
que matéria bruta e opaca, a obra é corada e rosada; a parte inferior sem vida desliga-se do
corpo do escultor; a parte superior viva volta-se para aquele que a preparou. Contemplação e
encontro nos abraços dos amantes que se beijam. Se, em Ovídio, Vênus atende aos pedidos de
Pigmaleão, em Gérome (1980), a figura mítica de Cupido flecheiro aquece o casal de paixão.
Em Colasanti, a expressão ambígua “amor ardente” sugere, no início, tanto calor quanto
material que está em chama de fogo; mas sugere também o relacionamento fogoso e intenso.
116
Galatéia-imagem nos as costas e volta-se para aquele que a criou: é o que lhe
importa. Dando as costas a quem contempla a pintura, ela sai da “moldura” mitológica e
adquire seu estado pleno numa leitura de intervalo, como a que sugeriu Barbosa (1990);
não é mais a personagem clássica, mas sim aquela que conjuga-se ao amante e proporciona-
lhe sensações.
Ao queimar a estátua de cera, a personagem do conto distancia-se da idealização
amorosa e de perpetuação, e rompe com a significação do texto-base. O mito de Pigmaleão
serve, apenas, como motivo no conto, que o recupera por meio da linguagem para mostrar a
instabilidade de um relacionamento amoroso. O texto, então, absorve o mito, alterando seus
valores simbólicos; a pintura também recupera o mito por meio de seus recursos expressivos,
destacando a simultaneidade da cena escolhida: o momento de transformação da estátua de
marfim em uma mulher real.
117
Vi Sísifo, anelante e afadigado,
Em pés e mãos firmar-se, pedra ingente
Para um monte empurrando, e lá do cume
Galgado por Crateis, rolar de novo
O pertinaz penedo; ei-lo persiste,
Suor escorre e a testa se empoeira.
(HOMERO, ODISSÉIA)
Sem que se diga
Sísifo empurrava sua pedra
morro acima. E chegando no alto
a pedra rolava, a pedra
rolava.
Semelhante é o destino das mulheres.
Sem que se diga ‘maldição’
Refazem camas.
(Marina Colasanti, Rota de colisão)
118
3.2.4. O ÚNICO MOMENTO DE COMPLETUDE DE SÍSIFO
No conto “Ela era sua tarefa”, as personagens homem e mulher adquirem outras
significações por meio do mito de Sísifo e sua pedra. O conto, através do diálogo com o mito,
atinge a pluri-significação, dando ao relacionamento do casal uma configuração singular.
Sísifo era o mais sábio e prudente dos mortais. Algumas versões, devido à transmissão
oral, divergem sobre os motivos que o levaram a ser o trabalhador “inútil” dos infernos. Ele
revelou o segredo de que Zeus havia seqüestrado Egina, filha de Asopo. Noutra versão, o
astuto havia também acorrentado a Morte, e Plutão não pôde suportar o “silêncio” de seu
império, privado de almas pela ausência do “trabalho” proporcionado pela Morte, por isso,
enviou Ares, deus da guerra, que a libertou.
Narra-se que Sísifo, perto da morte, ordenou a esposa jogasse seu corpo insepulto
no meio da praça pública. Sísifo foi para os infernos e obteve a permissão de Plutão para
voltar à Terra a fim de, supostamente, castigar a mulher. Quando retornou, porém, não quis
voltar para as sombras infernais e, durante anos, continuou morando em frente à curva do
golfo. Foi necessária a intervenção dos deuses. Mercúrio segurou o audacioso pelo pescoço e,
privando-o de suas alegrias, trouxe-o de volta para a morada de Plutão, onde sua pedra estava
preparada. Os deuses condenaram Sísifo a empurrar permanentemente uma pedra até o alto de
uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso (CAMUS, 2004).
Távola (1985, p. 42) explica-nos que, no embate contra a morte, os homens, a cada
dia, “executam” um suplício. “A própria vida é uma corrida para a morte, representa o labor
talvez infrutífero de trabalhar, crer, sonhar e ter esperanças sem indicação de recompensas,
salvo circunstâncias”. Os homens, à maneira de Sísifo, estariam sujeitos a repetir a pena sem
fim que os conduz a trabalhar, comprometidos, eternamente, com o vazio ou com o constante
recomeçar, castigo por sua esperteza e sagacidade, mbolos do uso exagerado da inteligência
119
na relação com a vida. Sísifo éa expressão da pena humana, do trabalho eterno.
A pedra rolando eternamente e sendo levada outra vez acima simboliza a mais inglória
das tarefas. É inútil rolá-la para cima, pois ela retornará a seu ponto de partida. Para o
pensamento antigo, isso tinha um significado maior: “Permanecer no Hades, sem poder
retornar para seu astro-guia e voltar a viver, era o pior dos castigos, uma vez que significava
perder o mais sagrado dos direitos de uma alma”, comenta Salis (2003, p. 200). Esse fazer
contínuo significa que o homem prossegue “em seu destino, evoluindo cada vez mais numa
nova existência, para finalmente reconquistar a imortalidade perdida” (SALIS, 2003, p. 200).
Camus, por sua vez, trata sifo como o herói do absurdo, tanto por causa de suas
paixões como por seu tormento. Seu amor à vida terrena e seu descaso com os deuses valeram
esse suplício, no qual o ser se empenha em não terminar coisa alguma. Camus (2004, p. 138)
descreve o seu esforço:
[...] vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme,
empurrá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto
crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que
recebe a massa coberta de argila, um que a retém, a tensão dos braços, a
segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse
prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem
profundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla a pedra despencando em
alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la
até os picos. E volta à planície. [...] Um rosto que padece tão perto das
pedras já é pedra ele próprio!
A relação de Sísifo e sua pedra chega ao ponto pleno de torná-los um “ser único”:
Sísifo transfigura-se em pedra, e pedra é Sísifo. Ele tem, ainda que breve, o momento
prazeroso; ao atingir o pico, com sua pedra, o astuto tem a sensação de ter completado a
tarefa, de ter terminado o trabalho outrora eterno. Nesse momento, diante a complexidade do
suplício e do esforço para realizá-lo, esse instante breve torna-se sublime, pois é a única
circunstância “agradável” da qual Sísifo pode tirar algum proveito. Por isso, torna-se superior
aos deuses que o condenaram e acharam que todo o processo seria árduo; ele ainda continua
120
ardiloso e enganando os imortais. Consciente de que a pedra voltará a despencar monte
abaixo, Sísifo recomeça a tarefa e espera pelo ínfimo momento de plenitude: a de atingir o
pico do monte, a esperança de triunfar; o esforço para chegar ao cume é suficiente para
preencher o interior de um homem. Se a descida é feita na dor, a subida é realizada à procura
do bem-estar passageiro.
121
3.2.4.1. A TAREFA NO CONTO
Em “Ela era sua tarefa”, é o esposo que empurra não uma pedra, mas a esposa. Devido
à peculiaridade dessa forma narrativa, o conto não explica as causas dessa ação: o que levou
as personagens a assumirem as funções, um, de empurrar, e outra, de ser empurrada. A leitura
do conto sem o conhecimento do mito de sifo causa maior estranhamento ao leitor; a
recuperação/reconhecimento intertextual, por outro lado, proporciona uma outra espécie de
estranhamento.
Ela era sua tarefa
Desde sempre, o dia chegando vinha encontrá-lo ali, no começo da
encosta, empurrando e rolando sua esposa para cima, longo esforço em
direção ao cume.
Desde sempre, resvalando lentamente para a noite, o sol desenhava a
sombra embolada do corpo da mulher que, mal chegada ao alto, despencava
novamente pelo flanco do monte.
Desde sempre. Até o momento em que, cravando os dentes e
agarrando as unhas nas pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu
destino. E erguidas aos poucos as costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-
se de pé.
Desaparece quase a luz do sol, o último alento vermelho tinge a mão
do homem. Que se levanta. E firme, empurra a mulher pelas costas, monte
abaixo. (COLASANTI, 1986, p. 99).
A presença do verbo ser do título, no pretérito imperfeito, além de descrever fatos
freqüentes ou repetidos no passado, é uma expressão de uso em mitos, fábulas e contos
maravilhosos, funcionando como um índice intertextual que aponta para as formas simples e,
especificamente para o mito de Sísifo e sua tarefa perpétua.
Os itens lexicais empregados, tais como “desde sempre”, “encosta”, “para cima”,
“longo esforço”, “direção ao cume”, “ao alto”, “despencava”, “flanco do monte”, “pedras”,
“cimo árido”, “empurra” “monte abaixo”, os gerúndios e os advérbios terminados em “mente”
contribuem para a isotopia do conto e sugerem o mito. Juntamente com os recursos verbais e
os lexicais, o recurso anafórico colabora, esteticamente, para a produção de efetivos
122
resultados na significação da narrativa. “Ela era sua tarefa” trabalha com o tema da repetição,
do fazer contínuo que, de certa forma, figurativiza o relacionamento amoroso, os seus “altos”
e “baixos”, como quer o mito, texto-base em questão. O conto sugere, por meio do resgate de
Sísifo, os “embates” da relação homem/marido e mulher/esposa.
Desenvolvido em quatro parágrafos, os três primeiros iniciam-se com a expressão
adverbial “Desde sempre”, formada pela preposição “desde”, com sentido de sugestão de
movimento, isto é, de afastamento de um limite, com insistência no ponto de partida
(CUNHA, 2001, p. 569), e pelo advérbio de tempo “sempre”. A expressão anafórica “Desde
sempre” intensifica o “fazer sem fim” da personagem que rola e empurra a sua esposa;
ocorrem determinação e intensificação de um tempo: o homem e a mulher sempre estiveram
assim, de acordo com o conto. O exagero estético de tempo figurativiza e particulariza a vida
conjugal, sua perene instabilidade: subidas e descidas.
Em “Até o momento em que”, seguida do anafórico “Desde sempre”, seguido de
ponto final significativo, o fazer ininterrupto parece cessar: a mulher esforça-se para manter-
se de pé. A ambigüidade intrigante, no que diz respeito ao casal, nesse momento, se
intensifica: a mulher põe-se de (alto) e contém seu destino; firme, o homem que se levanta
(baixo); empurra a esposa, ambos no cimo. Essa inversão homem e mulher e alto e baixo
poderia apenas sugerir a superioridade e a inferioridade, marcada pelo gênero e pelas
dimensões espaciais. Porém, pense-se no esforço dele em empurrá-la em direção ao cume
(alto), bem como nela, “que, mal chegada ao alto, despencava novamente pelo flanco do
monte” (COLASANTI, 1986, p. 99).
Deparamo-nos com o casal que se esforça em um fazer incessante. Não importa dizer
quem supera quem, mas, sim, o modo como a vida conjugal literariamente é transfigurada em
linguagem. Vale a pena lembrar, novamente, as considerações de Camus (2004), quando
esclarece que Sísifo se torna a própria pedra, e essa, em Sísifo.
123
No conto, homem e mulher se unificam; e o rolar para cima e para baixo se torna tão
assimilado em suas vidas que, após o “breve cessar”, ambos voltam a cair monte abaixo, pois
a mulher foi novamente empurrada pelas os do homem. A ambigüidade e os intervalos
presentes no conto salientam a análise crítico-literária, já que não é significativo “resolver” os
dramas das personagens ou justificar seus atos na narrativa. É preciso que o modo de
configuração e de sugestão de sentidos velados se manifeste. Seria, então, um procedimento
reducionista dizer apenas que a mulher se submete ao marido, e que este, por empurrá-la, é
dominante. Interessa, antes, ler o conto e destacar, em sua estrutura, aquilo que foge do
meramente referencial e do concreto, mas que se utiliza de recursos poéticos, por isso,
alusivos e não de todo definíveis.
124
Tens que dançar – disse Dança com teus sapatos vermelhos até
que caias pálida e fria! [...] Dançarás de porta em porta e onde vivam
crianças cheias de orgulho e vaidade, chamarás, para que te ouçam e
se assustem. (H. C. ANDERSEN)
Que tirasse tudo, menos os sapatos — os três imploraram no quarto
em desordem. Garrafa de uísque na penteadeira, Fafá de Belém antiga
no toca-discos [...] Tirou tudo, jogando para os lados. Menos as
meias de seda negra, com costura atrás, e os sapatos vermelhos.
(C. F. ABREU)
125
4. FORMAS SIMPLES CONTO MARAVILHOSO NA CONTEMPORANEIDADE
Ligado à idéia do maravilhoso e do sobrenatural, o conto de fadas ou popular trata do
que não é explicável pela razão e leis naturais. Nessa forma narrativa, nem os leitores
tampouco as personagens se surpreendem com os acontecimentos estranhos.
Esse tipo de conto está inserido nas “formas simples”, nas quais a “linguagem
permanece fluida, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de renovação constante”
(JOLLES, 1976, p. 195). Qualquer pessoa é capaz de contar um conto com suas próprias
palavras, desde que mantenha o chamado “gesto verbal” da forma, pois é a linguagem a
verdadeira força da execução.
Volobuef (1993, p. 100) explica que se denomina conto de fadas ou conto da
carochinha histórias que “constituem um legado da tradição oral popular: narrativas
transmitidas de geração a geração durante um longo tempo antes de serem, afinal,
coletados e recolhidas em livros”. Assim, a prolongada difusão oral, no seio do povo mais
simples, fez dessas obras um fruto e um bem da coletividade.
Charles Perrault, por exemplo, adaptou literariamente os contos que não
pertenciam à literatura infantil, mas, sim, ao folclore francês, à literatura oral, sempre em
mudança, destinada aos adultos dos povoados e concebida para o entretenimento noturno.
A oralidade é marcada pela escrita, por meio do emprego de versos rimados,
fórmulas (Era uma vez, muito tempo atrás, Num reino distante, etc.), repetições
diversas (o número três, por exemplo). Volobuef (1993, p. 103) destaca, ainda, que esses
recursos estruturais facilitam sobremaneira “a exteriorização de sentimentos e reforçam a
clareza na exposição dos acontecimentos [...]”. Principalmente versos, fórmulas e
repetições “facilitam a memorização, concorrendo, portanto, para tornar o conto de fadas
126
popular à narrativa oral”. No texto de Grimm, “O Rei sapo ou Henrique de Ferro”, por
exemplo, encontram-se essas repetições:
Princesinha, princesinha,
abre a porta para mim!
Juraste ser boazinha,
e foi por isso que vim!
(GRIMM, 1994, p. 74)
A passagem do texto oral para o escrito implica um processo de transformação de
forma que procura, de certa maneira, manter conteúdos.
O conto adotou o sentido maior de forma literária fixa, no momento em que Perrault
publicou a coletânea hoje considerada a primeira versão literária dos contos folclóricos
dirigida ao público infantil, chamada Contos da mamãe Gansa, e quando os irmãos Grimm
deram a uma coletânea de narrativas o título de Kinder- und Hausmärchen (Contos para
crianças e famílias).
O conto maravilhoso, aliás, tem sua ênfase artística no conteúdo, ou seja, no plano
narrativo. Isso não quer dizer, aliás, que essa forma não tenha uma riqueza estilística e
artística, visto que o modo como se conta e se narra deve ser levado em consideração nos
estudos críticos da teoria literária. Cabe aqui uma vez mais a observação de Jolles no que diz
respeito a essas narrativas:
[...] não são apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela
poética, nem mesmo pela ‘escrita’, talvez; que não se tornam
verdadeiramente obras de arte, embora façam parte da arte; que não
constituam poemas, embora sejam poesia [...] (1976, p. 20).
Para o autor, tais formas encontram-se “num estado de agregação” diferente do da
literatura propriamente dita, uma vez que ainda não são abrangidas pelas disciplinas que
descrevem e explicitam a construção dessas obras, desde as unidades e as articulações
127
lingüísticas até a composição artística definitiva.
Propp, porém, isolou as partes constitutivas dos contos, seguindo métodos particulares
e, depois, comparou-os segundo as partes que os constitui. O resultado desse trabalho foi a
Morfologia do conto maravilhoso, na qual concluiu que “O que muda são os nomes (e ao
mesmo tempo os atributos) das personagens; o que não muda são as suas acções, ou as suas
funções” (PROPP, 1983, p. 58). Para o autor, a questão de saber o que fazem as personagens é
a única que importa; quem faz qualquer coisa e como o faz são as questões acessórias. O autor
salienta, na sua morfologia, a grande diversidade das personagens e a restrita quantidade de
funções, dando a essas narrativas “o duplo aspecto do conto maravilhoso: de um lado, a sua
extraordinária diversidade, o seu pitoresco colorido, e por outro lado, a sua uniformidade não
menos extraordinária, a sua monotonia” (p. 59).
Na já citada obra As raízes históricas do conto maravilhoso, Propp se propôs a fazer o
estudo genético do conto. A gênese tem como objetivo, segundo o autor, estudar a origem de
um fenômeno; a história estuda o seu desenvolvimento, tendo em vista que o conto conservou
vestígios de organizações sociais (rito de iniciação e mitos) hoje desaparecidos.
Desse modo, à luz das considerações de Jolles (1976), no que se refere ao trato das
“formas simples”, priorizar-se-ão, aqui, primeiramente as análises descritivo-interpretativas
dos textos-base “Barba Azul” de Perrault e “Rei Sapo ou Henrique de Ferro” de Grimm de
1810 (1ª versão), quais sejam, personagens, ação, espaço, e tempo, para, posteriormente,
verificar como os contos “De um certo tom azulado” e “Perdida estava a meta da morfose”
absorvem esses textos-base.
É preciso frisar de início que as duas narrativas, de Perrault e Grimm, e as duas de
Marina Colasanti suscitam pontos de vista distintos sobre o fazer artístico: as primeiras se
referem à criação “original escrita”, valorizada nos séculos XVII e XIX; as segundas
“ressignificam” os textos do passado, procedimento peculiar à contemporaneidade.
128
Até este momento, foram elucidadas algumas características do gênero conto
maravilhoso. A partir daqui, passar-se-á às análises das narrativas escolhidas.
129
Barba Azul. Gustave Doré.
130
4.1. A CURIOSIDADE FEMININA E A CRUELDADE MASCULINA EM “BARBA
AZUL” DE PERRAULT
O conto “Barba Azul” de Perrault (ver Anexo) faz parte daqueles contos ditos
“terríveis”, por causa da crueldade do marido em relação às suas esposas. Hoje, está excluído
das histórias infantis das edições brasileiras, não apenas por causa da violência, mas pela
ausência de personagens infantis.
A narrativa se inicia com a estrutura típica do conto popular, ou seja, “Era uma vez”,
recurso que, embora introduza o leitor num espaço e tempo maravilhosos, não ameniza as
ações terríveis do personagem. Consoante Propp (1997, p. 29), as primeiras palavras do
conto:
[...] introduzem o ouvinte em uma atmosfera especial, que se caracteriza pela
tranqüilidade épica. Mas, trata-se de uma impressão ilusória. Ante ele não
tardarão a se desenrolar acontecimentos extremamente tensos e vibrantes.
Essa tranqüilidade é um recurso artístico que se contrasta com a dinâmica
interna do conto, geralmente vibrante e trágica, às vezes cômica e realista.
Esse recurso típico dos contos maravilhosos funcionará como uma armadilha para
surpreender o leitor no decorrer da fábula. Vale ressaltar que o fato de a personagem ter a
barba azul não é explicado no texto; essa característica, por sinal, afasta as mulheres que o
consideram feio e horripilante.
Silva (2004) informa que, na Grécia antiga, a barba separava os homens dos meninos
nos Jogos Olímpicos. Para Santo Agostinho, ela marcava os homens rápidos, fortes e ativos.
Essa visão positiva sobre a barba sofreu uma mudança drástica durante a Idade Média, por
causa dos esforços, empreendidos pela Igreja Católica, para relacioná-la a figuras
consideradas pagãs. A barba era a marca do bode e, dada a natureza lasciva desse animal e sua
ligação com sátiros e ao deus Pã, passou a representar o próprio Diabo. Silva destaca também
que essa relação se intensificou durante as Cruzadas, quando a barba era considerada a marca
131
registrada dos “infiéis” muçulmanos. Durante a corte do Rei Luis XIV e a época de Perrault, o
uso da barba estava completamente fora dos padrões dos salões estando associado a
selvagens.
Jolles (1976, p. 193) informa que “[...] os fatos, tal como os encontramos no conto,
podem ser concebidos no conto. Numa palavra: pode aplicar-se o universo ao conto e não o
conto ao universo”. A barba azul é aceita pelo leitor que estabelece um “contrato ficcional”
com a narrativa, ao mesmo tempo que qualifica e sugere o caráter do personagem.
As informações sobre os bens de Barba Azul são mostradas ao leitor primeiramente:
“belas casas na cidade e no campo”, “baixelas de ouro e de prata”, “móveis forrados com
bordados e carruagens douradas”. Esses bens amenizam, por ora, o aspecto cruel e bárbaro,
pois a seqüência das informações da personagem (bens e depois ter a “barba azul”) contribui
para dar sentido poético ao ato da leitura: há, inicialmente, a caracterização de Barba Azul
pelos seus pertences e, posteriormente, a “desgraça” de ter a barba azul. Perrault seleciona
(paradigma) e combina (sintagma) os termos para causar o máximo de tensão, estratégia que
nos remete a Jakobson (1969), quando propõe, para o entendimento da função poética, a
projeção do princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.
O viúvo quis uma nova esposa e, por isso, procurou uma das suas vizinhas, cujas
filhas eram “muitíssimo bonitas”. Ambas resolveram pensar no assunto, mas o temiam porque
ele “já havia desposado várias mulheres, e ninguém sabia o que tinha acontecido com elas”.
Aqui, percebemos um índice sutil: o leitor do conto é instigado a ficar curioso e se
perguntar o que aconteceu com as esposas de Barba Azul. Esse índice, assim como a
seqüência das características do viúvo (bens positivo e aversão negativo), também
funciona como um recurso para causar curiosidade durante a leitura do conto.
Para persuadir as jovens, Barba Azul convidou-as, juntamente com a mãe e os amigos
para conhecer a sua casa de campo. Nesse espaço, os convidados se divertiram: “Só havia
132
passeios, caçadas e pescarias, danças e banquetes, comilanças. Ninguém dormia, e todos
passavam a noite a fazer delícias uns para os outros”. Essa astúcia da personagem fez com que
a caçula começasse a achar que “o dono da casa não tinha a barba tão azul, e que era um
homem muito distinguido”. É como se a intensidade da cor azul estivesse relacionada ao
caráter do pretendente, isto é, se a cor não é tão azul, a personagem, de acordo com o ponto de
vista da caçula, não é tão horripilante.
Esses detalhes da narrativa merecem uma breve ênfase, que é típico dos contos
populares e de alguns mitos conferir destaque para os caçulas. Nesse conto de Perrault, é a
caçula que teve interesse no casamento. De acordo com Mendes:
[...] os atributos das personagens femininas logo saltam aos olhos. Cinderela,
Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho são muito lindas, dóceis e
amáveis e lembram as garotas ingênuas e desprotegidas, que são expostas
aos perigos do mundo (2000, p. 124).
A esposa de Barba Azul faz jus ao padrão da beleza feminino, por isso é encantadora,
algo típico dos mitos e contos maravilhosos. Pode-se tomar um exemplo de narrativa
mitológica e verificar a permanência de seus motivos nos contos populares; por exemplo, a de
Psiquê, que, com sua beleza excepcional, despertou a inveja da deusa Vênus.
Ainda segundo Mendes (2000, p. 37), em termos literários, tudo começou com a
história de Psiquê, que está no livro O asno de ouro (s.d.), de Apuleio. A pesquisadora
comenta que: “os principais temas e motivos do mito de Psiquê estão nos contos de fadas
mais conhecidos”.
O jogo de conquista de Barba Azul ocorreu no campo e o casamento na cidade
(espaços delimitados da narrativa). Embora fossem naturais, na época do conto, casas de
campo, é possível fazer uma relação de afastamento (casa de campo) e aproximação social
(cidade). No campo, ele usou do poder material para efetuar a sedução por curtos oito dias
(tempo) e, na cidade, ele concretizou, para que todos soubessem, o seu “novo casamento”.
133
Casado, Barba Azul precisou se ausentar por alguns dias, “pelo menos seis semanas,
para tratar de um negócio importante”. O marido deu à esposa liberdade para convidar as
amigas para lhe fazer companhia e instruções sobre as “chaves de todos os aposentos”. Nesse
momento do texto, o narrador passa a voz à personagem, recurso que causa uma maior
veredicção ao caráter de Barba Azul:
Aqui estão disse ele as chaves de todos os aposentos. Estas o as
chaves do cômodo onde estão as baixelas de ouro e de prata, que não se
usam todos os dias; essas as dos meus cofres onde está o meu ouro e a minha
prata; estas, as dos cofrinhos onde estão as minhas pedras preciosas. Estas
chaves permitem circular por toda a casa. Ah, esta pequenina é a chave do
gabinete que fica no fim da grande galeria do andar térreo: abra tudo, ande
por toda parte, mas não nesse gabinete. Eu a proíbo de nele entrar, e de
maneira tal que, se o abrir, será o objeto de minha cólera (PERRAULT,
2004, p. 80).
No trecho citado percebemos a descrição “chave a chave” que a personagem fez, além
da enumeração dos seus bens mais preciosos. Barba Azul deu à esposa uma falsa liberdade
para circular por toda a casa, já que entrar no gabinete era proibido.
Cabe salientar a questão da dimensão da chave e da “futura situação” da esposa: a
chave do gabinete era “pequenina”, e o cômodo ficava no fim da “grande” galeria do andar
térreo. A narrativa sugere alguns conteúdos paradoxais por meio das dimensões do objeto: a
“pequenina” chave do gabinete, que fica no fim da “grande” galeria do andar térreo, é o
objeto que causará “grandes” problemas aos protagonistas (pequenina versus grande). Afora
essas questões, a topologia espacial também sugere sentidos: “gabinete que fica no fim da
grande galeria do andar térreo”. Temos “fim” do espaço, concomitante com “início” de
problemas e a noção de baixo do “andar térreo” sugerindo uma catábase, uma “descida aos
infernos”; espaço no qual os “mortos” são enterrados; topologias relacionadas à proibição
imposta à personagem.
Barba Azul impôs limites à esposa, imposição que pôde ser notada pela presença dos
134
imperativos, “abra” e “ande”; pela adversativa “‘mas não nesse gabinete’”; o próprio verbo
proibir, “Eu a proíbo”; o vocábulo “cólera”, e a modalidade de frase condicional se o abrir,
será o objeto da minha cólera”. Barba Azul e sua esposa assumiram um “contrato”: “Ela
prometeu fazer exatamente tudo o que ele lhe acabara de ordenar”. Se ela não entrasse no
gabinete proibido, ele não iria puni-la. O “contrato” foi firmado pelo beijo de despedida: “E
ele [Barba Azul], depois de beijá-la, sobe à carruagem, e segue caminho”.
Seguindo o “conselho” do marido, a esposa chamou algumas amigas para fazer-lhe
companhia; o que não era possível antes, pois as amigas “não ousaram visitá-la enquanto o
marido estava, devido a sua barba azul, que lhes metia medo”. Esse momento do conto de
Perrault tece uma tênue relação com o mito de Psiquê. Basta lembrar a visita que as irmãs da
caçula lhe fizeram e a inveja que sentiram diante de tanta riqueza, como se pode constatar a
seguir:
As excelentes irmãs, entrando em casa, cada vez mais devoradas pelo fel
ardente da inveja, conversavam com barulhenta animação. Por fim, uma se
exprimiu assim: ‘Aí estão, oh! Iníqua Fortuna, tua cegueira e tua injustiça!
Por que aprovaste que filhas de um mesmo pai e da mesma mãe tivessem
sortes tão diversas? Nós, as mais velhas, fomos entregues a estrangeiros,
para sermos suas escravas. [...] Tu viste, minha irmã. Quantos colares,
valiosos, jogados pela casa! E brilhantes tecidos e faiscantes pedrarias, sem
falar desse ouro sobre o qual se pisa, por toda parte. (APULEIO, Livro V,
cap. IX, p. 79-80) [grifo nosso].
Logo se puseram a percorrer os cômodos, os quartos de dormir, os guarda-
roupas, uns mais lindos e mais ricos do que os outros. Em seguida, subiram
às salas, onde não conseguiam parar de admirar tantas e tão belas tapeçarias,
camas, sofás, gabinetes, mesinhas de centro, mesas, espelhos, onde se
miravam dos pés à cabeça, e cujas molduras, umas de vidro, outras de prata e
de cobre dourado eram as mais belas e mais magníficas jamais vistas. Não
paravam de exagerar e invejar a felicidade da amiga [...] (PERRAULT,
2004, p. 85) [grifo nosso].
A riqueza do casal foi, mais uma vez, destacada no conto. É importante perceber que,
se anteriormente foram esses bens que persuadiram a jovem caçula a casar-se com Barba
Azul, agora não lhe despertam tanto interesse, pois foi o gabinete proibido que lhe despertou e
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aguçou-lhe a curiosidade: “não se divertia nada ao ver todas aquelas riquezas, por causa da
impaciência que tinha de abrir o gabinete do andar térreo”.
Novamente, a topologia espacial sugere significados: em cima (alto) são destacados os
bens preciosos da casa, estão presentes as amigas que se divertiam com todas as suas
riquezas; no térreo (baixo) está o gabinete proibido. Essas categorias relacionam-se com
positividade e negatividade, tais como “céu”, ascensão”, “crescimento”, (alto); “inferno”,
“queda”, “decréscimo” (baixo). Assim, a esposa de Barba Azul quer ir ao plano inferior
(gabinete do térreo), no qual encontrará o perigo.
Desse modo, a quebra de contrato foi inevitável e a jovem:
[...] desceu por uma escadinha oculta, e com tanta precipitação, que, duas ou
três vezes, achou que ia quebrar o pescoço. Já na porta do gabinete, ali parou
por algum tempo, pensando na proibição do marido, e achando que lhe
poderia acontecer uma desgraça por ser desobediente. Mas a tentação era tão
forte que não conseguiu vencê-la. Então, pegou a pequenina chave e abriu, a
tremer, a porta do gabinete (PERRAULT, 2004, p. 85).
A esposa de Barba Azul, tal como Psiquê foi vencida pela curiosidade, desobedecendo
à ordem estabelecida. Outra personagem feminina da mitologia grega também serve de
exemplo de curiosidade: Pandora.
Hesíodo, em Os trabalhos e os dias e na Teogonia, apresenta a mesma estória de
maneiras matizadas. De acordo com Lafer (1990, p. 59-60), na Teogonia, os protagonistas são
Prometeu, caracterizado por sua astúcia e sua arte fraudulenta, e Zeus, cuja sabedoria se
manifesta pela astúcia superior e pela inteligência soberana. Aparecem, ainda, Atena e
Hefestos para confeccionar a primeira mulher, o “belo mal”, que Zeus ofereceu a Epimeteu,
irmão e reverso de Prometeu.
a presença de Pandora em Os trabalhos e os dias é muito mais enfática, ela não
aparece apenas como a primeira mulher, mas vem nomeada e é um dos protagonistas do
episódio. Com a primeira mulher, destaca Lafer (1990, p. 61), surge a sexualidade e é com a
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primeira fêmea, da raça dos mortais, que um novo ciclo se inicia. Pandora traz consigo um
jarro e dentro dele inúmeros males:
[...]. Fala
o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou
Pandora, porque todos os que têm olímpia morada
deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão.
E quando terminou o íngreme invencível ardil,
a Epimeteu o pai enviou o ínclito Argifonte
veloz mensageiro dos deuses, o dom levando; Epimeteu
não pensou no que Prometeu lhe dissera jamais dom
do olímpio Zeus aceitar, mas que logo o devolvesse
para mal nenhum nascer aos homens mortais
Depois de aceitar, sofrendo o mal, ele compreendeu.
Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos,
a recato dos males, dos difíceis trabalhos,
das terríveis doenças que ao homem põe fim;
mas a mulher, a grande tampa do jarro alçando,
dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, vv. 79-95) [grifo nosso]
De acordo com os versos de Hesíodo, Pandora o belo mal ao abrir o jarro liberou
todos os males existentes na terra. A curiosidade parece estar ligada ao ser feminino desde a
Antiguidade greco-romana, permanecendo até a Antiguidade cristã. Do mito pagão dirigimo-
nos ao mito cristão, no qual verifica-se a desobediência, o castigo e curiosidade feminina com
Eva:
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim
comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não
comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.
Então a serpente disse à mulher: Certamente que não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os
vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal.
E vendo que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos
olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e
comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela. (Gênesis, 3, 3-6).
A primeira mulher, de acordo com a Gênesis, foi tentada pela serpente e provou do
fruto proibido. A punição de tal ato para Eva foi: “E à mulher disse [Deus]: Multiplicarei
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grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu
marido, e ele te dominará” (Gênesis, 3, 16). Essas ações narrativas dos mitos estão em
concordância com as elucidações de Frye (2000, p. 33), porque o mito tem o esquema -
(ponto crescente que tende a decrescer), com a ação intensificando a crise até uma peripécia e,
depois, mergulhando-a numa catástrofe por meio de uma série de reconhecimentos, em
grande parte, das conseqüências inevitáveis de atos anteriores.
Para os antigos, as desgraças do mundo existiam por causa da curiosidade da mulher
Pandora. Além disso, essa é a função explicativa de Levi-Strauss (1987), na qual o presente é
explicado por alguma ação passada, cujos efeitos permaneceram no tempo. Para os cristãos, a
expulsão do paraíso e suas conseqüências tiveram lugar porque Eva ofereceu o fruto proibido
a Adão.
As mulheres, tanto do conto como dos mitos, são vencidas pela curiosidade: a mulher
de Barba Azul abriu a porta do gabinete proibido; Pandora abriu o jarro de todos os males,
Psiquê abriu a caixa de formosura oriunda do Hades, e Eva provou do fruto proibido.
No conto de Perrault, quando a esposa de Barba Azul abriu a porta e entrou no
gabinete, configurou-se o ponto máximo de tensão: ela sanou a curiosidade, e o leitor do texto
também fica surpreso e admirado, juntamente com a personagem, com a descrição das
mulheres estranguladas e penduradas ao longo das paredes e com o chão coberto de sangue
coalhado. A personagem estava no térreo (baixo), dentro do gabinete (interior); situação que
ela mesma provocou para si, porque abriu a porta proibida. Os termos “baixo”, “interior” e
“abrir” figurativizam o momento tensivo da personagem.
Convém citarmos também outro índice desse fragmento: “Achou que ia morrer de
medo, e a chave do gabinete que ela acabara de tirar da fechadura lhe caiu da mão”. Ela
perdeu o controle não apenas de si, mas de toda a situação: tirar a chave da fechadura do
gabinete que lhe causou fortes emoções e deixá-la cair (baixo) da mão simboliza, no contexto
138
da narrativa, futuros problemas.
A jovem pegou a chave, fechou a porta e subiu ao quarto: “Depois de se acalmar um
pouco, pegou a chave, fechou a porta, e subiu ao quarto para se recompor, mas não conseguia,
tamanho era o seu transtorno”. As modalidades “abrir” versus “fechar”; “subir” (alto) versus
“descer” (baixo) mais uma vez sugerem significações: abrir a porta, no conto, significa
surgimento de problemas, tensão, angústia etc.; fechar a porta significa fuga do
desconhecido; subir relaciona-se a ações menos negativas, tais como tranqüilidade aparente,
uma vez que ela subiu para o quarto para se recompor; ação que se opõe ao descer para
transgredir a ordem do marido. Todavia, como os problemas devem ser resolvidos no interior
mesmo dos contos populares, não bastaria que a esposa de Barba Azul, simplesmente,
fechasse a porta do gabinete. É por isso que a mancha de sangue da chave a obrigou, de certa
forma, a encarar os problemas e sofrer a punição pela quebra do acordo:
Por mais que a lavasse, e até mesmo a esfregasse com areia fina e com argila
arenosa, o sangue continuava lá, pois a chave era mágica e não havia meio
algum de limpá-la: quando se tirava o sangue de um lado, ele aparecia do
outro (PERRAULT, 2004, p. 85).
À medida que a narrativa avança, os aspectos tensivos aumentam. Barba Azul
retornou mais cedo, “O Barba Azul voltou naquela noite mesmo, e disse que havia recebido
cartas no caminho, que lhe confiavam que o negócio pelo qual ele saíra em viagem acabara de
se resolver a seu favor”. Diante do inusitado, a esposa fingiu estar tudo bem e feliz com o
retorno do marido. O retorno de Barba Azul e a sua chegada à noite também dão uma
coerência interna ao texto: a noite escura é sempre e ado,
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retomou o Barba Azul -, mas eu sei. Quis entrar no gabinete, não? Pois bem, a senhora vai
entrar e ficar ao lado das outras que viu”.
O narrador do conto passa a voz ao casal, e várias seqüências de diálogos com
frases interrogativas e declarativas, típicas de um verdadeiro interrogatório. Ameaçada, a
jovem pede perdão ao marido:
Ela se lançou aos pés do marido, aos prantos e a pedir-lhe perdão,
com todos os sinais de verdadeiro arrependimento por o ter sido
obediente. Comoveria uma rocha, bela e aflita como estava, mas o Barba
Azul tinha o coração mais duro do que um rochedo (PERRAULT, 2004, p.
86).
O traço tátil “duro” qualifica o caráter do marido que, por sua vez, está resolvido a
matar mais uma esposa. Nada mais coerente, então, do que a relação com o “rochedo”.
A esposa pediu-lhe algum tempo para rezar a Deus e recorreu à irmã para auxiliá-la. A
cunhada de Barba Azul subiu ao topo da torre para ver se os seus irmãos estavam chegando.
Nesse momento do conto, o subir (alto) relaciona-se ao positivo; é no topo da torre que Ana, a
irmã, procurava avistar os irmãos.
Outro ponto comum à estrutura do conto maravilhoso é que as personagens
solucionam os conflitos com a ajuda de outros personagens auxiliares, que mostram uma
verdadeira astúcia e esperteza para resolver os problemas. A personagem, fingindo rezar para
Deus no quarto, ganhava tempo e, “três vezes”, perguntou a sua irmã se os irmãos estavam
chegando. Desse modo, a vítima perguntava à irmã; a irmã respondia e Barba Azul apressava
a jovem:
Ana, minha irmã Ana, não vê nada ainda?
E a irmã Ana respondia:
Nada vejo além do sol que empoeira e da urze que verdeja.
Porém, o Barba Azul, empunhando um facão, gritava alto e bom som à
esposa:
Desça rápido, ou eu subirei.
140
mais um minutinho, por favor respondia-lhe a mulher, que em
seguida gritava, quase sussurrando à irmã (PERRAULT, 2004, p. 87).
Somente na quarta seqüência de pergunta e resposta Ana avistou os irmãos, recurso
que acentuao aspecto tensivo da narrativa:
Ana minha irmã Ana, não vê nada ainda?
Sm, vejo – respondeu ela – dois cavaleiros que vêm deste lado, mas estão
muito longe... Deus seja louvado exclamou um momento depois são os
meus irmãos. Vou acenar-lhes para que se apressem (PERRAULT, 2004, p.
87).
Barba Azul gritou, e a esposa desceu para o encontro: “Em seguida, pegando-a com
uma das mãos pelos cabelos, e erguendo o facão com a outra, ia decapitá-la”. A chegada dos
irmãos (auxiliares) coincidiu com o exato momento da luta entre Barba Azul e sua esposa,
que ainda suplicava por mais alguns minutos:
Nesse instante, bateram com tanta força na porta que o Barba Azul
parou na hora. A porta foi aberta, e logo entraram dois cavaleiros, que,
empunhando a espada, correram diretamente até o Barba Azul. [...]
Traspassaram-no com as espadas, e o deixaram morrer (PERRAULT, 2004,
p. 88).
Como se trata do desfecho do conto, é necessário o final-feliz, mas é preciso analisar
de que modo o final ocorreu. O contraste facão” de Barba Azul e “as espadas” dos dois
141
Pela explicação de Frye (2000, p. 33), um enredo trágico ou cômico não é uma
linha reta. A comédia, análoga ao conto, tem um enredo em forma de - (denotando um
movimento para baixo e uma arremetida para cima), com ações afundando em complicações
profundas e, com freqüência, potencialmente trágicas (proibição da jovem em entrar no
gabinete proibido; a desobediência propriamente dita; a surpresa e o choque com a descoberta
do segredo; e a punição do marido) e, depois, repentinamente, voltando-se para cima em
direção a um “final-feliz” (morte do vilão, herança de bens, recompensa dos auxiliares e
novos matrimônios).
Verificou-se, nesta seção, de que modo o tema da curiosidade e do castigo é
trabalhado pela linguagem literária de Perrault, destacando os procedimentos narrativos, como
espaço, tempo e ação das personagens. Passar-se-á, agora, ao conto “De um certo tom
azulado” de Marina Colasanti para analisar de que modo o conto clássico é transfigurado pela
poética da narrativa em estudo.
142
4.2. A PERMANÊNCIA DA CURIOSIDADE FEMININA E A AUSÊNCIA DA
CRUELDADE EM “DE UM CERTO TOM AZULADO” DE MARINA COLASANTI
Em “De um certo tom azulado”, narra-se a história da esposa avisada pelo marido para
que não entrasse num modo. Vejamos como o texto sugere outro significado, comparando-
o com o texto de Perrault. O título do conto já funciona como traço intertextual:
De um certo tom azulado
Casou-se com o viúvo de espessa barba, embora sabendo que antes
três esposas haviam morrido. E com ele subiu em dorso de mula até o
sombrio castelo.
Poucos dias haviam passado, quando ele a avisou de que num
cômodo jamais deveria entrar. Era o décimo quinto quarto do corredor
esquerdo, no terceiro andar. A chave, mostrou, estava junto com as outras no
grande molhe. E a ela seria entregue, tão certo estava de que sua virtude não
lhe permitiria transgredir a ordem.
E o permitiu, na semana toda em que o marido ficou no castelo.
Mas chegando a oportunidade da primeira viagem, despediu-se ela acenando
com uma mão, enquanto com a outra apalpava no bolso a chave proibida.
esperou ver o marido afastar-se caminho abaixo. Então, rápida,
subiu as escadas do primeiro, do segundo, do terceiro andar, avançou pelo
corredor, e ofegante parou frente à décima quinta porta.
Batia seu coração, inundando a cabeça de zumbidos. Tremia a mão
hesitante empunhando a chave. Nenhum som vinha além da pesada porta de
carvalho. Apenas uma fresta de luz escorria junto ao chão.
Devagar botou a chave na fechadura. Devagar rodou, ouvindo o
estalar de molas e lingüetas. E empurrando lentamente, bem lentamente,
entrou.
No grande quarto, sentadas ao redor da mesa, as três esposas
esperavam. ela faltava para completar o jogo de buraco (COLASANTI,
1986, p. 115-116).
O conto inicia-se com o casamento das personagens. A primeira ação da narrativa,
“Casou-se”, é a própria união do casal. Cabe destacar que o verbo está no singular sem a
presença do ser/agente e, por isso, pressupõe um sujeito oculto “ela”. A esposa sabia da morte
das três esposas; informação marcada pela conjunção concessiva embora”, que marca um
fato contrário (saber da morte de três esposas) à ação principal (casar-se), incapaz, porém, de
impedi-la. Esse saber, aliás, ameniza o aspecto tensivo e de terror; mesmo que alguns traços
no conto moderno funcionem como “pequenas armadilhas” e truques, como por exemplo, o
143
“sombrio castelo”. Silva (2004, p. 72) destaca que as narrativas de Marina Colasanti
“transcorrem numa época que sugere a Idade Média [...]”. Ainda que Contos de amor
rasgados não tenha o ambiente típico dos contos de fadas, o espaço medieval está presente na
obra direcionada ao público adulto, haja vista o supra mencionado “castelo”.
O viúvo do conto não possui a barba azulada como no conto de Perrault, tampouco a
narrativa nos oferece explicações acerca da decisão da moça em casar-se com o viúvo: não se
sabe se ela tem uma irmã, ou se é a caçula da família; não se conta, também, se o marido de
espessa barba teve de persuadir a noiva para que se casasse com ele.
Esses apontamentos estão em conformidade com o posicionamento crítico de Cortázar
(1974, p. 152) sobre o contista, que sente a necessidade de escolher e limitar uma imagem ou
um acontecimento que seja significativo, que valham por si mesmos e sejam capazes de atuar
no espectador ou no leitor como uma espécie de “abertura, de fermento que projete a
inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou
literário contido na foto ou no conto”. Tal limite ocorre porque o conto de Colasanti possui
outro funcionamento quando comparado ao de Perrault.
Outro aspecto importante a ser notado é a adjetivação da barba: ela é espessa, e esse
adjetivo possui os traços semânticos de densidade, compacidade, consistência, grossura,
rudeza etc. Tais características sugerem virilidade ao marido e, portanto, um provável aspecto
dominador. Logo, a barba permanece como elemento metonímico quer da personagem
popular quer da contemporânea; enquanto esta tem a barba espessa, aquela tem a barba azul.
Percebe-se, também, uma simplificação de bens do marido: “dorso de mula”
(COLASANTI) versus carruagens douradas” (PERRAULT).
No segundo parágrafo, ocorre a celebre cena da proibição: ela estava proibida de
entrar no “décimo quinto quarto do corredor esquerdo, no terceiro andar”. Entretanto, o
marido “a avisou” sobre o cômodo. Se se compara o verbo avisar (COLASANTI) com
144
proibir (PERRAULT), nota-se naquele um traço menos autoritário do que o deste.
A “dessemelhança” ocorre também no aspecto temporal das narrativas: “Depois de
um mês” (PERRAULT) versus “Poucos dias (COLASANTI). A proibição em “De um certo
tom azulado” ocorre num tempo mais curto de duração de casamento, fato que dá a esse conto
um aspecto mais dinâmico aos acontecimentos.
No que diz respeito ao espaço, o cômodo proibido fica no terceiro andar (alto), no
conto de Perrault encontra-se no térreo (baixo); inversão que, ironicamente, sugere um futuro
desfecho paródico. A descrição do local em que está o cômodo “proibido” e “avisado” merece
destaque, pois insinua um “labirinto”.
A esposa, diferente da mulher de Barba Azul, não se comprometeu a obedecer à
ordem; nada se informa sobre isso. Deve-se enfatizar, todavia, que o marido “estava certo de
que sua virtude não lhe permitiria transgredir a ordem”. O uso do futuro do pretérito por si
acusa a quebra de contrato implícito entre o marido e a mulher, visto que o verbo indica um
fato que talvez não se realize. O personagem entregou o molho de chave à esposa mesmo sem
viajar, ação que ocorreu uma semana depois. Podemos dizer, com isso, que a esposa do
“barba espessa” ficou com a chave em mãos por um período maior do que a de Barba Azul.
Viajando o marido, a esposa, imediatamente, dirigiu-se ao quarto e subiu até o
cômodo proibido. É interessante frisar o modo cômico como a curiosidade da esposa é
insinuada na narrativa: “[...] despediu-se ela acenando com a mão, enquanto com a outra
apalpava no bolso a chave proibida”. Nesse ponto, ambas as esposas dissimularam: uma
prometeu fazer exatamente tudo o que o marido lhe ordenara (PERRAULT); a outra mostrou
o seu perfil dúbio: uma mão é fiel e submissa ao marido e a outra é a mão da curiosidade e da
transgressão.
À maneira da esposa de Barba Azul, de Psique, de Pandora e de Eva, a personagem do
conto contemporâneo não dominou a curiosidade e correu para o quarto proibido, à medida
145
que o marido se afastava “caminho abaixo”. Mais uma vez, a idéia de espaço labiríntico está
presente, pois o narrador descreve passo-a-passo a ida da personagem ao quarto: “Então,
rápida, subiu as escadas do primeiro, do segundo, do terceiro andar, avançou pelo corredor, e
ofegante parou frente à décima quinta porta”. Esse recurso causa tensão no leitor, tendo em
vista que a sugestão de que a esposa entrará no quarto foi dada no parágrafo anterior (terceiro)
e se concretizará no sexto e penúltimo parágrafo da narrativa.
A reação das personagens femininas de Perrault e Colasanti é bem parecida: “[...] para
desceu por uma escadinha oculta, e com tanta precipitação, que, duas ou três vezes, achou
que ia quebrar o pescoço” (PERRAULT); “[...] avançou pelo corredor, e ofegante parou frente
à décima quinta porta” (COLASANTI, p. 115). Uma ainda hesitou e pensou no que lhe
poderia acontecer por ser desobediente, a outra teve a cabeça inundada de zumbidos pela
batida do coração, “Tremia a mão hesitante empunhando a chave” (COLASANTI, p. 115-
116).
Os significantes expressivos do quinto parágrafo, de certo modo, tendem a imitar o
estado da esposa, que pára frente à porta, ou seja, a narrativa, no que diz respeito ao plano da
expressão, prolonga as ações por meio da oração reduzida de gerúndio, “inundando a cabeça
de zumbidos” e das consoantes nasais, nasalizadas e, também, pelas sibilantes surdas /s/ e
sonoras /z/, “zumbidos”, “Tremia”, o”, “hesitante”, “empunhando”, “Nenhum”, “som”,
vinha”, e “além”.
Se no texto de Perrault a percepção visual foi posta em destaque, no momento de
tensão da narrativa, “Num primeiro momento, nada viu, porque as janelas estavam fechadas”.
No de Colasanti, o traço auditivo, juntamente com o visual, foi utilizado para causar suspense:
“Nenhum som vinha além da pesada porta de carvalho. Apenas uma fresta de luz escorria
junto ao chão”. No conto popular a personagem viu que “o assoalho estava todo coberto de
sangue coalhado, e que nesse sangue refletiam os corpos de várias mulheres mortas e
146
pregadas ao longo das paredes”. Em “De um certo tom azulado”, por seu turno, a personagem
vê “uma fresta de luz”. A oposição é, pois, “sangue” (escuro) versus fresta de luz” (claro).
Por mais que o conto de Marina Colasanti não possua, no seu conteúdo, o mesmo
aspecto de crueldade do de Perrault, é possível percebermos um recurso para causar não a
uma tensão propriamente, mas uma certa curiosidade no leitor atento: “Devagar botou a
chave na fechadura. Devagar rodou, ouvindo o estalar de molas e lingüetas. E empurrando
lentamente, bem lentamente, entrou” (COLASANTI, p. 116). O recurso anafórico “devagar”
(advérbio de modo) mais verbo (“botou e rodou”) aguçam o leitor, que espera saber o que há
por trás da porta, estratégia que também prolonga a narrativa e retarda, por um certo tempo, o
desfecho. Os gerúndios “ouvindo” e “empurrando”, e os advérbios em MENTE “lentamente”,
contribuem para causar esse efeito. Esses recursos expressivos encontram-se no sexto e
penúltimo parágrafo do conto.
A entrada da personagem no quarto proibido, desfecho do conto, é o clímax do texto:
ela encontra as três esposas do marido, tidas como mortas, sentadas ao red-390(uw /4390(qua)1)-501(t)-2(do,)-500(t)-2(7 Tm[(a)4(sur)3(r)3(a)4(ndo)]TJ1 013300(t)-2(7 Tm(-)Tj1 013700(t)-2(7 aTm(-)Tj1 01 850(t)-2(7 ))36(h)-10(9)-2861o)-500((r)3((e)4(xt)-2(i)8)-2861o)0(uw30e)-276(r)3)-2(ol)-2)10(u-2(e87(nã)44(xt)-2(e)-6(nt)-2)-2(or)3(t)-2(e)4(x)-10(ut)-3(a)3(m)-P)-4(se)úndf276(r)3-276(r)3n286(h)-1(uç)4o.
147
Em “De um certo tom azulado”, destaca-se o lúdico da relação intertextual, na qual o
“buraco” se relaciona não apenas com o jogo de cartas, mas, comicamente, pode ser entendido
como a “metáfora da morte”: o buraco da cova seria o quarto proibido.
As diferenças são, pois: morte (PERRAULT) versus vida (COLASANTI);
estranguladas e pregadas ao longo da parede (PERRAULT) versus sentadas ao redor da mesa
para uma partida de buraco (COLASANTI). Há, como vemos, redução e alteração de
conteúdos do conto de Perrault no conto de Colasanti. O conto de Marina Colasanti ao
tema curiosidade outro tratamento narrativo, atenuando o aspecto tensivo e de terror peculiar
ao texto de Perrault. Além disso, o castigo, presente em Perrault, está ausente em “De um
certo tom azulado”.
Feitas as análises dos contos de Perrault e Colasanti, resta ver ainda os contos de
Grimm e da autora em estudo.
148
4.3. “O REI SAPO OU HENRIQUE DE FERRO” DE GRIMM: A
PREFERÊNCIA DO BELO AO GROTESCO
Esse conto dos irmãos Grimm também se inicia com a estrutura típica dos contos
maravilhosos, inserindo o leitor num mundo mágico, apesar das estranhezas nele presentes:
“Há muitos e muitos anos, no tempo que se amarrava cachorro com lingüiça [...]” (GRIMM,
1994, p. 71). Assim como no texto de Perrault, o leitor do texto de Grimm sabe que
encontrará personagens, espaços e ações fantasiosas. Temos também a presença de filhas
belíssimas: “Até mesmo o Sol se encanta com o rosto da caçula”.
Próximo ao “castelo do Rei”, encontrava-se uma “grande e sombria floresta”, lugar no
qual a princesa brincava com sua bola de ouro, próxima a um “poço de água muito fresca”,
“embaixo de uma velha limeira”. No que diz respeito a esses espaços, Propp destaca que, na
maioria das vezes, a heroína (ou herói) afasta-se de seu lar (casa ou castelo) e dirige-se para a
floresta, onde começam suas aventuras. Para o autor trata-se de um resquício dos ritos de
iniciação, que sempre ocorrem em uma floresta. “Toda vez que o herói se encontra na
floresta, surge o problema da relação entre o assunto apresentado e o ciclo iniciático”
(PROPP, 1997, p. 55). É nesse espaço que a princesa irá perder seu brinquedo e firma um
contrato com o sapo.
Outro fato importante é a peculiaridade da princesa desse conto. Quando se sentia
aborrecida e queria se distrair, ela brincava com sua bola e a lançava bem alto. Essa atitude da
personagem mostra que ela é mais ativa do que outras típicas dos contos maravilhosos, tais
como Branca de Neve, Cinderela e Rapunzel, etc., que bordavam, pintavam e faziam outras
atividades passivas. A personagem, certo dia, deixou a bola cair no poço e não conseguiu
recuperá-la: inicia-se a situação-problema da narrativa, ou melhor, o processo de
amadurecimento da menina. Ela perdeu o controle da situação: em vez de cair nas mãos da
princesa, como costumava, caiu no chão, atrás dela, e rolou para dentro da água”. De acordo
149
com Bettelheim (1980, p. 327), essa bola é um símbolo duplo de perfeição, pois tem a forma
de esfera e é feita de ouro, o material mais precioso. “A bola representa uma psique narcisista
ainda não desenvolvida: contém todos os potencias, mas nenhum foi ainda concretizado”. A
perda da bola simboliza o início da perda da inocência rumo à maturidade. Do mesmo modo
que a esposa de Barba Azul perdeu o controle da situação ao deixar cair a chave do cômodo,
iniciando com isso uma mudança, a filha do rei passará para outro estágio de sua vida.
A personagem de Grimm chorou (puerilidade) pela perda de seu objeto de prazer
solitário: “começou, então, a chorar, inconsolável, soluçando a toda altura”. Nota-se que a
personagem relutou como pôde, tentando manter-se nesse estágio infantil.
O narrador do conto passa a fala a uma voz que, depois, sabemos tratar-se do sapo. Ao
retomar o discurso, é o narrador que qualifica o sapo, “[...] a cabeça, muito grande e feia”.
Não sesabe ainda, a essa altura, a impressão da menina sobre o sapo.
Após saber o motivo do choro da filha do rei, o sapo se comprometeu a devolver a
bola a ela, mas perguntou o que ela daria em troca. Não se interessando pelos bens materiais
da princesa, o sapo disse que ela deveria gostar dele, permitir que ele fosse o seu companheiro
e jogasse com ele, e sentasse em sua mesa, comendo no prato dela e bebendo no seu copo e
dormindo na sua cama.
O narrador retoma a voz da narrativa e nos informa o pensamento da princesa, “Que
sapo bobo falando dessa maneira! A única coisa que ele faz é ficar no meio da água com os
outros sapos a coaxar! Não pode ser companheiro de um ser humano!” (GRIMM, 1994, p 72).
Ainda que a voz narrativa não tenha sido dada à filha do rei, o discurso oferece veracidade ao
fragmento, uma vez que se trata do pensamento da garota.
A filha do rei aceitou e prometeu tudo o que o sapo desejava. Firmado o acordo, “o
sapo mergulhou de cabeça para baixo e pouco depois reapareceu, nadando com a bola
dourada na boca e atirou-a à grama à margem do poço. A filha do Rei ficou satisfeitíssima e,
150
mais do que depressa, agarrou a bola e saiu correndo” (GRIMM, 1994, p. 72). Fugindo e
correndo, a princesa quebrou o acordo com o sapo. Se, nesse conto de Grimm, o desacordo se
fez na presença do outro, no de Perrault ocorreu quando o marido se afastou do castelo; ação
que faz dessa personagem de Grimm uma pseudo-heroína.
A pergunta retórica do narrador (“O que valeria para o sapo, porém, coaxar, coaxar,
atrás dela, o mais alto que pudesse?”) demonstra o quanto a súplica do sapo para que a filha
do rei o levasse com ela seria inútil. Ao sair do espaço mítico da floresta, descumprindo um
acordo, a princesa não adquiriu ainda um amadurecimento.
No dia seguinte, o sapo dirigiu-se até o castelo e cobrou a parte do acordo:
“Princesinha, princesinha, abre a porta para mim!” (GRIMMM, 1994, p. 72). O rei, notando o
desconforto da filha, pediu-lhe explicações e, sabendo do ocorrido, deixou o sapo entrar.
Antes, porém o sapo cantou novamente:
Princesinha, princesinha,
abre a porta para mim!
Juraste ser boazinha,
e foi por isso que vim!
(GRIMM, 1994, p. 74)
Ao mesmo tempo que o cantar do sapo nos leva ao passado oral dos contos
maravilhosos, funciona como um lembrete de como a princesa deve se portar, a saber, ser
boazinha. Nesse momento, a situação das personagens do conto se inverte: o sapo tem o apoio
do rei e suas vontades serão todas satisfeitas, e a princesa vai sofrendo um gradativo
apagamento. Se antes ela fugia do sapo, batia a porta com toda força e dizia que o sapo era um
ser repulsivo, agora ela é obrigada a ser “boazinha”, atitude que reforça o aspecto moralizante
dos contos nos séculos XVII e XVIII.
Ciente de seu poder e apoiado pelo rei, o sapo lhe deu uma série de ordens: Levanta-
me, para ficar ao teu lado”; “Agora empurra o teu prato para junto de mim”; “Leva-me para o
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teu quarto, arruma a tua cama para nós dois deitarmos e dormirmos”; “Levanta-me, portanto,
e coloca-me ao teu lado. Do contrário, vou contar a teu pai”.
A princesa fazia tudo o que ele pedia, “mas era visível a sua repugnância” (GRIMM,
1994, p. 74). O repúdio da princesa pelo sapo ora é marcado por ela, “Que sapo bobo falando
dessa maneira!”; “Não é gigante, meu pai, mas um sapo repulsivo”; ora é marcado pelo
narrador, “a cabeça, muito grande e feia”; “aquela pele viscosa e repelente, que tinha nojo de
tocar mesmo de leve”; “a princesa segurou o sapo com dois dedos, levou-o para o seu quarto e
colocou-o em um canto”. A filha do rei, mesmo perdendo a força e se submetendo às
vontades do sapo e ao rigor do pai, teve um acesso de fúria, agarrou o sapo e o atirou com
toda força contra a parede, atitude que salienta o seu perfil de pseudo-heroína: “Cala a boca
agora, sapo nojento – gritou” (GRIMM, 1994, p. 75).
Seguindo a leitura de Bettelheim (1980, p. 328):
Quanto mais o sapo se aproxima fisicamente, mais ela sente repulsa e
ansiedade, especialmente de ser tocada. O despertar do sexo não está isento
de repulsa ou ansiedade, até mesmo de raiva. A ansiedade se transforma em
raiva e ódio quando a princesa atira o sapo contra a parede.
Diferente das versões nas quais a princesa beijava o sapo para transformá-lo em
príncipe; nessa versão, a dos irmãos Grimm, não foi o beijo que o trouxe à antiga forma, mas
o contato com a princesa que o jogou contra a parede: o sapo vira “um garboso príncipe, de
porte elegante e belos olhos” (GRIMM, 1994, p. 75).
Os acontecimentos no conto se deram num curto período. Os dois primeiros
parágrafos funcionam como caracterizadores, fornecendo-nos as informações principais:
espaço (castelo e floresta) e personagens (rei e suas duas filhas). No terceiro parágrafo,
iniciado pela marcação temporal “Certo dia”, inicia-se a situação problema da narrativa; a
perda de um objeto pela princesa, o estabelecimento do acordo entre o sapo e a filha do rei, a
quebra desse acordo. “No dia seguinte”, inicia-se a resolução dos problemas: o sapo foi
152
cobrar a princesa, adquiriu a confiança do rei, teve suas vontades feitas, foi agredido pela
princesa, transformou-se em príncipe e ficou noivo da filha do rei. E, “No dia seguinte”,
temos: o encontro com o criado – o fiel Henrique – e a partida do casal para o reino.
Como se disse, durante a narrativa, a filha do rei vai perdendo a autoridade e suas
vontades se amenizam; de menina que chorava pela perda da bola, ela tornou-se a noiva dócil
e obediente que o rei, seu pai, e o príncipe desejavam. É pelo querer do rei que o príncipe
tornou-se seu companheiro e marido.
Se antes a personagem repudiava o sapo por suas formas repulsivas e grotescas, após a
mudança, na qual o sapo se transformou num “garboso príncipe, de porte elegante e belos
olhos” (GRIMM, 1994, p. 75), ela aceita as exigências do pai e futuro marido, porque prefere
às formas do belo, arquétipo do homem guerreiro.
Analisado o conto de Grimm, é possível neste momento verificar de que modo a
relação entre mulher e sapo é resgatada no conto “Perdida estava a meta da morfose”.
153
4.4. “PERDIDA ESTAVA A META DA MORFOSE” DE MARINA COLASANTI: O
GROTESCO TORNA-SE BELO
O título desse conto de Marina Colasanti, ao contrário do anterior, “De um certo tom
azulado”, não oferece pistas intertextuais com o texto dos irmãos Grimm:
Perdida estava a meta da morfose
Durante todo o verão, o sapo coaxou no jardim, debaixo da janela da
moça. Até que uma noite, atraída por tanta dedicação, ela desceu para
procurá-lo no canteiro. E entre flores o viu, corpo desgracioso sobre pernas
tortas, gordo e verde, os olhos saltados, aguados como se chorando, o papo
inchado debaixo da grande boca triste. Que criatura era aquela, repugnante e
indefensa, que com tanto desejo a chamava? A moça abaixou-se, apanhou o
sapo e, carregando-o nas pregas da camisola levou-o para cama.
Naquela noite o sapo não coaxou. Suspirou a moça, descobrindo as
viscosas doçuras do abismo.
Mas, ao abrir os olhos, a manhã seguinte rompeu seu prazer. Sem
aviso ou pedido, o sapo que ela recolhera à noite havia desaparecido. Em seu
lugar dormia um rapaz moreno. Bonito, porém semelhante a tantos outros
rapazes morenos e louros que haviam passado antes por aquela cama, sem
jamais fazê-la estremecer.
Ao seu lado, sobre o linho jazia inútil a pele verde (COLASANTI,
1986, p. 43).
Mesmo que o título o teça relações explícitas com o texto-base, a inversão se
configura na quebra do vocábulo metamorfose por “morfose” e a inserção da preposição “de”
e artigo “a”: “meta da morfose”. A mudança da ordem canônica da estrutura do português
(sujeito + predicado + complemento) reforça a idéia de inversão contida no conto. Ao invés
de: A meta da morfose (sujeito) estava perdida (predicado), lê-se: “Perdida estava”
(inversão do predicado formado pelo verbo estar - auxiliar - e pelo principal perder - no
particípio) “a meta” (sujeito) “da morfose” (adjunto caracterizador).
Retomando, novamente, o princípio proposto por Jakobson (1969) a projeção do
princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação (função poética) a
inversão da locução verbal “estava perdida” por “Perdida estava”, funciona como um índice
do desfecho disfórico.
Assim como o conto anterior de Colasanti, esse não apresenta a fórmula inicial típica
154
dos contos maravilhosos, “Era uma vez”, “Há muito tempo atrás” etc. Ele inicia por: “Durante
todo o verão” (COLASANTI, 1986, p. 43). Ora, se nas formas simples esse recurso funciona
como um elemento que introduz o ouvinte em uma atmosfera especial, sua ausência, mesmo
que o leitor saiba tratar-se de uma obra de ficção, oferece maior verossimilhança aos
acontecimentos, ao mesmo tempo que causa um estranhamento.
No primeiro e segundo períodos, do primeiro parágrafo, as duas personagens, o sapo e
a moça, são apresentados ao leitor de forma diferente.
O Sapo:
Durante todo o verão (tempo) – o sapo (agente) – coaxou (ação) – no jardim
(espaço I) - debaixo da janela da moça (espaço II).
A moça:
Até que uma noite (tempo) atraída por tanta dedicação (predicativo do
agente) – ela (agente) – desceu para procurá-lo (ação) – no canteiro (espaço).
Logo nos dois períodos iniciais do conto, verifica-se a atração das personagens: o sapo
que coaxa e a moça que é atraída por ele. No que diz respeito ao tempo, cabe destacar o
período no qual o sapo dedicou-se a coaxar na janela da moça. “Durante” traz em si a idéia de
duração, no decurso de; e “todo”, a de totalidade, complexidade. Ou seja, o sapo se empenhou
em “conquistar” a moça por um período sobremaneira significativo e positivo, uma vez que
“verão” contempla Sol, calor, quente, dia, etc.
Se a noção de duração se nota no tempo relacionado à ação do sapo, a de limite é
notada em relação à moça: Até que uma noite”. Pode-se inferir que a personagem “resistiu”
ao coaxar do sapo por um certo tempo e desceu para procurá-lo. Enquanto o “verão” faz parte
do agir do sapo, uma “noite” liga-se à moça, com a noção de Lua, frio, escuro e etc.
A estrutura de tempo, agente, ação e espaço da descrição do sapo mantêm-se a mesma
155
na descrição da moça, salvo a inclusão do predicativo “atraída por tanta dedicação”, que
destaca a idéia de sedução e de atração; reforçada pelo advérbio de intensidade “tanta”. A
ação de coaxar durante todo o verão resulta em descer para procurar atraída por tanta
dedicação.
Assim como os agentes, tempos e a ações, os espaços também suscitam significações.
O sapo está no “baixo”, e a moça está no “alto”. O baixo do sapo abrange duas posições: “no
jardim” e “debaixo da janela da moça”. O alto da moça pressupõe um terraço, sobrado ou uma
torre de um castelo, pico da Idade Média narrada em contos maravilhosos e peculiar à
narrativa de Marina Colasanti. Importa destacar a iniciativa da moça que desce para procurar
o sapo no plano inferior.
No texto de Grimm, foi o sapo que desceu no lago para pegar a bola de ouro e
devolvê-la à princesa. No de Colasanti, é a moça que desce “no canteiro” para, de certa forma,
“ajudar” o sapo, ou melhor, ela atende ao chamado do animal. No texto clássico, o sapo falou
com a moça; no moderno, contudo, o sapo mantém seu aspecto natural e a ação habitual de
coaxar.
Em “Perdida estava a meta da morfose”, configura-se o jogo entre o belo e o grotesco.
Apesar de a moça encontrar o sapo entre flores (belo), a descrição é grotesca: “corpo
desgracioso sobre pernas tortas, gordo e verde, os olhos saltados, aguados como se chorando,
o papo inchado debaixo da grande boca triste” (COLASANTI, 1986, p. 43). A descrição do
narrador reafirma a caracterização do sapo de Colasanti mais próximo ao animal do que ao
humano do sapo de Grimm que, além de falar, cantava para a princesinha.
A pergunta retórica do narrador do conto de Colasanti, “Que criatura era aquela,
repugnante e indefensa, que com tanto desejo a chamava? (COLASANTI, 1986, p. 43),
reforça os conteúdos de animal grotesco e, por outro lado, indica o possível envolvimento
entre as personagens. A pergunta do conto de Grimm, pelo contrário, indicava o quanto o
156
coaxar do sapo era inútil para fazer a princesa retornar e levá-lo consigo. É o jogo entre o
duplo “belo” X grotesco” e “antigo” X “moderno”.
A princesa fugiu do sapo, e este teve que ir ao castelo para cobrar o acordo feito na
floresta; a filha do rei pegava o sapo com os dois dedos e o colocava num canto do quarto. Em
“Perdida estava a meta da morfose”, a moça vai à procura do sapo que a chamava
incessantemente: “abaixou-se, apanhou o sapo e, carregando-o nas pregas da camisola, levou
–o para a cama” (COLASANTI, 1986, p. 43). Assim, temos as personagens femininas se
posicionando de modo distinto nas narrativas clássica e contemporânea: pegar com os dois
dedos e colocar num canto do quarto (GRIMM) versus colocar nas pregas da camisola e levar
para cama (COLASANTI). O sapo de Grimm coaxava e não obteve êxito, e o de Colasanti
coaxou, foi “apanhado” e “carregado” pela moça.
todo um jogo de sensualismo nesta atitude da personagem: um abaixar-se, um
carregar nas pregas da camisola e levar para cama. Iniciado o jogo sensual no primeiro
parágrafo, no segundo, mais curto que o primeiro, o sapo não mais chamou a moça: “Naquela
noite o sapo não coaxou” (COLASANTI, 1986, p. 43); e a moça descobriu “as viscosas
doçuras do abismo” (COLASANTI, 1986, p. 43). O ato sexual configura-se com a ausência
do coaxar do sapo e a presença do suspiro da moça, insinuando o ponto máximo de prazer.
Além disso, a descoberta das “viscosas doçuras do abismo”, expressão que amalgama uma
série de campos semânticos ambíguos, prenunciados, talvez, pela seleção lexical do
substantivo “pregas”, em “pregas da camisola”: as doçuras descobertas são “viscosas” como a
pele úmida típica dos sapos; como a lubrificação feminina diante da excitação; ou até mesmo
o gozo e o suor dos amantes. A ambivalência do verbo descobrir acentua a sensualidade
presente no conto, pois pode significar tanto encontrar e/ou passar a conhecer como revelar,
mostrar ou melhor, levantar ou desvelar aquilo que cobria. “doçuras do abismo” funciona
como uma metáfora do órgão sexual da mulher e a penetração do ato amoroso.
157
O segundo parágrafo é o segundo mais curto do conto e, de certa forma, expressa o
breve período de prazer da moça; é como se a economia do plano de expressão mimetizasse a
efemeridade do momento amoroso (plano de conteúdo).
Em “O Rei sapo ou Henrique de Ferro”, quando o sapo pediu à princesa que o
colocasse na cama, ocorreram a fúria da princesa e a transformação do sapo em um garboso
príncipe, de porte elegante e belos olhos” (GRIMM, 1994, p. 75), ou seja, o final-feliz. Em
“Perdida estava a meta da morfose”, após a noite de amor da moça, “a manhã seguinte
rompeu seu prazer” (COLASANTI, 1986, p. 43), dando início ao desfecho negativo do conto,
o final-infeliz. O sapo transforma-se em um “rapaz moreno. Bonito, porém semelhante a
tantos outros rapazes morenos e louros que haviam passado antes por aquela cama, sem
jamais fazê-la estremecer” (COLASANTI, 1986, p. 43).
A meta da morfose perde-se, pois foi com o sapo-amante que a moça descobriu as
doçuras. Preferindo o grotesco que se torna belo, a moça decepciona-se com o belo que se
torna grotesco no contexto da narrativa; outros rapazes, ainda que belos, não a levaram ao
clímax na cama. E, quanto ao sapo, torna-se “inútil sua pele verde”.
O desfecho, negativo para a personagem, descrito no último e mais curto parágrafo,
ressalta a insatisfação e decepção da moça. Junto à metamorfose sapo-rapaz moreno, “jaz”
toda a esperança em ter, novamente, outro momento de intenso prazer. Outro aspecto a ser
notado é que o coaxar do sapo e seu aspecto desgracioso no conto, entendidos como
estratégias de sedução, não são mais necessários, pois o “rapaz” já a levou para a cama.
No conto maravilhoso de Grimm, a noite trouxe a verdadeira forma ao príncipe e, na
manhã seguinte, o casal partiu junto para o reino. No de Colasanti, a noite foi prazerosa, mas
foi com a forma de sapo que o então rapaz moreno conseguiu fazê-la estremecer e, a manhã
seguinte rompeu seu prazer.
158
4.5. RESSIGNIFICAÇÃO DE PERRAULT E GRIMM EM COLASANTI: A
TRANSFIGURAÇÃO FEITA PELA LINGUAGEM LÚDICA
Com a análise dos contos “Barba Azul”, de Perrault, e “De um certo tom azulado”, de
Marina Colasanti, e “O Rei Sapo ou Henrique de Ferro”, de Grimm, e “Perdida estava a meta
da morfose”, também de Marina Colasanti, pôde-se verificar que a escritora resgatou os textos
clássicos do século XVII e XIX e os dispôs num contexto de relacionamento amoroso,
fazendo e propondo, simultaneamente, uma releitura do passado e uma leitura do presente.
É como se a autora estivesse se apoderando do conteúdo dos autores antigos para
descrever uma cena estruturalmente idêntica e diferente, apesar da distância que os separa. Ao
recuperar os mitos antigos e os contos maravilhosos sob a perspectiva do mundo
contemporâneo, a escritora apresentou novas possibilidades de significação.
Psiquê foi considerada a psique da vaidade feminina ao abrir a caixa da formosura
oriunda dos infernos. Pandora foi a primeira mulher, de acordo com o mundo grego clássico e
a responsável por todas as desgraças do mundo, por ter aberto o jarro no qual todos esses
males estavam depositados. Eva, a primeira mulher do mito judaico-cristão, por sua vez,
desobedecendo à ordem Divina, comeu do fruto proibido, causando, dessa forma, a expulsão
do homem do paraíso.
“De um certo tom azulado” rompe com toda aquela tradição da mulher causadora de
todos os males, ao mesmo tempo que mantém o ser feminino vencido e dominado pela
curiosidade e desobediência ao marido. Dessa forma, ao aceitar esse conteúdo, a contista
afasta as ditas verdades sobre a questão do belo mal, que perseguia e qualificava as mulheres
desde a antiguidade. Não se trata de uma questão de imitação nostálgica de modelos passados;
é uma confrontação estilística, uma recodificação e ressignificação moderna que estabelece a
diferença no coraçãoda semelhança.
É uma espécie de permanência e ruptura ao mesmo tempo. A metonímia da “barba”,
159
para o marido, permanece como elemento caracterizador, porém, ao invés de se ter, aí, outro
“barba azul”, tem-se um “barba espessa”. Preferindo o “espessa” ao “azul”, ocorre um jogo
lúdico na linguagem, pois, como se disse anteriormente, esse adjetivo deveria qualificar o
marido; o que ocorre é uma suavização dele, uma vez que, diferente do Barba Azul que
proibe, o marido do conto contemporâneo apenas avisa a esposa de que num cômodo ela não
deveria entrar. Cabe relembrar que a esposa, ao contrário da do conto de Perrault, fica um
período maior com as chaves em mãos, embora a presença do marido impedisse que ela
desobedecesse ao aviso. É um jogo de ir e vir intertextual.
O desfecho paródico, por seu turno, é o clímax do conto. Em Perrault houve morte e
tentativa de assassinato. Retomando as concepções de Jolles (1976, p. 197-198), o conto,
durante o período em que se opôs à novela ou coexistiu com ela, teve uma certa predileção
como narrativa moral. Cada um dos contos de Perrault rematava com uma moral da história
em verso
2
e, na introdução de seus contos, ele próprio disse que em todos eles a virtude é
recompensada e o vício, punido. Tendem todos a mostrar a vantagem que existe em sermos
honestos, pacientes, refletidos, trabalhadores, obedientes, e o mal que recai sobre todos os que
não o são.
No conto de Colasanti, houve a vida reforçada pelo aspecto lúdico da linguagem e da
própria questão interna do conto, que as esposas estavam vivas e jogando uma partida de
buraco. Rompe-se toda uma tradição: não há morte e punição.
O conto maravilhoso escolhe, de preferência, os estados e os incidentes que
contrariem o nosso sentimento de acontecimento justo. Não é possível resgatar, nessa história,
o padrão final-feliz dos contos antigos nem mesmo qualificá-la com um desfecho negativo,
pois a narrativa termina com a surpreendente cena da mesa de buraco. O leitor precisa estar
2
MORALIDADE
“É a moralidade uma mania/ Que apesar do atrativo e da apetência,/ Custa muitos desgostos com freqüência,/ E
disso mil exemplares todo dia./ E, apesar das mulheres, é um prazer/ Passageiro e muito avaro/ O qual,
provando-o, já deixa de o ser,/ E sempre custa muito, muito caro”. (PERRAULT, 1980, p. 91).
160
atento e conhecer o texto-fonte, para decodific
161
certo o sapo repugnante se revelará um companheiro encantador. E esta
mensagem é transmitida sem se mencionar nada de sexual (1980, p. 331).
Essa explicação psicanalítica aplica-se ao texto de Grimm, mas, no conto de
Colasanti, essa repulsa contém outra significação. Inversamente, a personagem repudia o
belo, o ideal que nunca a fizera estremecer; ela prefere o grotesco, o repulsivo que, na
narrativa, adquire o valor de belo e de ideal, capaz de levá-la à “descoberta das doçuras do
abismo”. Embora, no conto, nada de sexual seja mencionado, explicitamente, o jogo da
linguagem literária pressupõe, como se demonstrou aqui, uma série de insinuações
sensuais: “pregas da camisola”; “suspirou a moça”; “viscosas doçuras do abismo”; “fazê-la
estremecer”, etc.
A relação intertextual entre os textos de Marina Colasanti, de Perrault e de Grimm se
mediante a subversão e inversão dos valores expressos pelos contos-base. Tal
procedimento constitui-se numa sutil crítica: Colasanti tanto (des)constrói e invalida a moral
veiculada pelo texto de Perrault acerca da curiosidade feminina, dando ao desfecho do conto
não o valor de morte mas de lúdico, com a partida de buraco, como sugere que o grotesco
pode-se tornar belo, fazendo com que a moça sinta prazer não com o belo rapaz moreno e,
sim, com o sapo de corpo desgracioso sobre pernas tortas.
Do mesmo modo que o mito, cada conto maravilhoso, que herdou seus motivos, vai
transmitindo os seus conteúdos moralizantes. Os prêmios e os castigos para as boas e as más
ações são a base da moral ingênua, que caracteriza as narrativas de origem popular.
Em Colasanti, por outro lado, o castigo está ausente em “De um certo tom azulado”,
embora a curiosidade feminina permaneça como um jogo lúdico e uma “armadilha narrativa”
entre passado e presente. A metamorfose, típica das formas simples, no sentido que lhes
Jolles, permanece, ainda que ao avesso, na modernidade, em “Perdida estava a meta da
morfose”, e o casamento ou união amorosa não se realiza como prêmio para a moça que se
162
frustra diante do belo rapaz moreno.
Os signos do discurso literário possuem um valor plurissignificativo e pluri-vocal. A
linguagem reforça o jogo permanente entre a essência e a aparência, entre a motivação sígnica
da palavra poética e a arbitrariedade do signo lingüístico. Cada texto é único nas suas diversas
formas de funcionamento. Perrault e Grimm deram um tratamento estético aos conteúdos da
curiosidade feminina e da transformação de sapo em homem. Marina Colasanti, por sua vez,
utilizando-se de outros recursos da linguagem literária, deu uma configuração peculiar aos
mesmos temas, lançando mão desses valores ambíguos, picos do discurso literário,
possibilitando outros olhares em relação ao dizer o outro em seus contos.
É preciso, pois, reforçar a atenção dispensada a esses procedimentos, com uma visão
não ingênua nem anacrônica, e sermos, de acordo com Barthes (1995), leitores capazes de
elaborar um significante para a leitura. É preciso também empreender uma leitura plural, sem
que ela esteja determinada pelo que está apenas escrito e impresso, a fim de produzir, no
momento da leitura, o espaço vazio para que a significância do outro, que é o texto, aconteça.
163
5. RAPTO E ABSORÇÃO EM CONTOS DE AMOR RASGADOS
Nossas flores são mais bonitas
Nossas frutas mais gostosas
Mas custam cem mil réis a dúzia.
Murilo Mendes. Canção de exílio.
Os contos “Uma questão de educação”, “De floração” e “De fato, uma mulher
preciosa” dialogam, respectivamente, com o rito do ciclo decapitação, esquartejamento e
canibalismo, e com a linguagem metafórica dos mitos das flores. “Como se fosse na Índia”,
“Verdadeira estória de um amor ardente”, “Ela era sua tarefa” e “Perdida estava a meta da
morfose”, por outro lado, dialogam com o rito, mito e contos maravilhosos pela ações das
personagens: a pseudo-cremação, a criação de uma companheira de cera, ao invés de marfim;
o rolar a esposa pelo monte incessantemente, tal como Sísifo com a pedra; e o envolvimento
de uma garota com o sapo, assim como nos irmãos Grimm. O rapto dos mitos e contos
maravilhosos clássicos é mais explícito nos contos “De água nem tão doce”, “Ao largo das
Ilhas Sirenusas” e “De um certo tom azulado”, nos quais se identifica a referência da sereia, a
da ilha em que viviam e a “barba espessa” que aponta o conto “Barba Azul”. A presença das
formas simples nesses contos pode ser constatada, se se levar em conta uma leitura
desautomatizada ou aquela intervalar, de acordo com Barbosa (1990).
Todos os contos, dialogando direta ou indiretamente com os textos clássicos de
relacionamentos amorosos, raptaram e absorveram os sentidos deles e deram outro
tratamento aos seus conteúdos, estabelecendo, desse modo, as próprias estruturas de
significação. Aliás, essa é a essência do recurso da escritora: “o trabalho de assimilação e de
transformação que caracteriza todo e qualquer processo intertextual” (JENNY, 1979, p. 10).
De acordo com Jenny (1979, p. 22) é necessário que o texto raptado “admita a
renúncia à sua transitividade: ele não fala, é falado. Deixa de denotar, para conotar”. As
164
narrativas clássicas tornaram-se significantes para sugerir significados nos contos analisados.
Ao absorver esses textos, vale dizer, não ocorre a sua desconstrução”, apenas a retomada
com diferença, procedimento típico do discurso paródico. Na paródia, mesclam-se e
encontram-se vários discursos, por isso, ela pode ser definida como um “jogo de ir e vir”, em
que o leitor se depara com um discurso polifônico e tem de estabelecer paralelos entre as
várias vozes presentes no texto. Assim, o “codificador e, depois, o descodificador, têm de
efetuar uma sobreposição estrutural de texto que incorpore o antigo e o novo” (HUTCHEON,
1989, p. 50).
Em Contos de amor rasgados, verifica-se que os clássicos, contituindo o legado da
tradição mítico-literária, foram reestruturados em outro contexto, a saber, os relacionamentos
amorosos: a relação sexual sugerida, em “De floração”; a relação sexual explícita, em “De
fato uma mulher preciosa”; o possível adultério, em “Uma questão de educação”; a reclusão
da mulher, em “De água nem tão doce”, e a pseudo-imolação, em “Como se fosse na Índia”; o
mal-estar do marido ao entrar em casa, em “Ao largo das ilhas Sirenusas”; a construção, o
envolvimento amoroso e a destruição de uma companheira de cera, em “Verdadeira estória de
um amor ardente; a estabilidade e a instabilidade amorosa, em “Ela era a sua tarefa”; a
desobediência feminina e a ausência da crueldade masculina, em “De um certo tom azulado”;
e a frustração amorosa, em “Perdida estava a meta da morfose”.
Esse mecanismo ficcional utilizado pela escritora entra em consonância com as
observações de João Alexandre Barbosa, acerca das ilusões da modernidade na poesia.
Embora o crítico discuta a linguagem da poesia e a sua relação com o leitor, pode-se dizer
que, assim como o poeta moderno, que se interessa pela tradição, uma vez que sua “tradução”
em linguagem moderna “implica no desbravamento de novas possibilidades de utilização da
linguagem da poesia” (p. 29), Marina Colasanti transubstancia esses conteúdos da tradição. A
escritora, se se pensar nos procedimentos elucidados por Barbosa (1986), traduz” a
165
“tradição”, na medida em que seu texto persegue uma convergência de textos possíveis: “a
tradução é a via de acesso mais interior ao próprio miolo da tradição” (p.29).
Pela “tradução”, a “tradição” do novo perde o seu tom repetitivo, o que se consegue
obter por meio de uma linguagem e recursos estéticos criativos. O que em nosso trabalho
chamamos de “rapto” e “absorção” é justamente a leitura de acréscimo, na qual ler os contos
(textos novos) nos clássicos (textos antigos) significar (re)novar.
166
6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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VOLOBUEF, K. Um estudo do conto de fadas. Revista de letras. São Paulo (UNESP), v. 33,
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171
7. ANEXO
Barba Azul
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de
ouro e de prata, móveis forrados com bordados e carruagens douradas. Mas, por desgraça, tal
homem tinha a barba azul, o que o tornava tão feio e horripilante, que toda mulher ou moça
fugia ao vê-lo.
Uma das suas vizinhas, senhora de qualidade,
3
tinha duas filhas muitíssimo bonitas.
Ele lhe pediu uma em casamento, e lhe deixou a liberdade de escolher aquela cuja mão
quisesse dar-lhe. As duas não o queriam de modo algum, e resolveram conversar sobre o
assunto, e, ao final, nenhuma estava disposta a casar-se com um homem que tinha a barba
azul. O que as desgostava mais era o fato de que ele havia desposado várias mulheres, e
ninguém sabia o que tinha acontecido com elas.
O Barba Azul, para decidi-las, levou-as junto com a mãe e três ou quatro das melhores
amigas delas, e alguns jovens das vizinhanças, à sua casa de campo, onde ficaram oito dias ao
todo. havia passeios, caçadas e pescarias, danças e banquetes, comilanças. NINGUÉM
dormia, e todos passavam a noite a fazer delícias uns para os outros. Enfim, tudo ia tão bem,
que a caçula começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul, e que era um
homem muito distinguido. Assim que voltaram à cidade, foi realizado o casamento.
Depois de um mês, o Barba Azul disse à mulher que se via forçado a fazer uma
viagem pelo interior, de pelo menos seis semanas, para tratar de um negócio importante.
Pedia-lhe que se divertisse durante sua ausência, que chamasse as boas amigas, que, se
quisesse, as levasse ao campo, e que as recebesse bem, dando-lhes a melhor comida.
Aqui estão disse ele as chaves de todos os aposentos. Estas são as chaves do
cômodo onde estão as baixelas de ouro e de prata, que não se usam todos os dias; estas são as
dos meus cofres onde es o meu ouro e a minha prata; estas, as dos cofrinhos onde estão as
minhas pedras preciosas. Esta pequenina é a chave do gabinete que fica no fim da grande
galeria do andar térreo: abra tudo, ande por toda parte, mas não nesse gabinete. Eu a proíbo de
nele entrar, e de maneira tal que, se o abrir, será o objeto de minha cólera.
Ela prometeu fazer exatamente tudo o que ele lhe acabara de ordenar. E ele, depois de
beijá-la, sobe à carruagem, e segue caminho.
As vizinhas e as boas amigas não esperaram convites para ir à casa da recém-casada,
de tão impacientes que estavam para ver todas as riquezas dela, pois não ousaram visitá-la
enquanto o marido estava, devido à sua barba azul, que lhes metia medo. Logo, se puseram
a percorrer os cômodos, os quartos de dormir, os guarda-roupas, uns mais lindos e mais ricos
do que os outros. Em seguida, subiram às salas, onde não conseguiam parar de admirar tantas
e tão belas tapeçarias, camas, sofás
4
, gabinetes, mesinhas de centro, mesas, espelhos, onde se
miravam dos pés à cabeça, e cujas molduras, umas de vidro, outras de prata e de cobre
dourado eram as mais lindas e mais magníficas jamais vistas. Não paravam de exagerar e
invejar a felicidade da amiga, que, entretanto, não se divertia nada ao ver todas aquelas
riquezas, por causa da impaciência que tinha de abrir o gabinete do andar térreo.
Estava tão premida pela curiosidade que, sem pensar que era pouco cortês deixar as
convidadas, para lá desceu por uma escadinha oculta, e com tanta precipitação, que duas ou
três vezes, achou que ia quebrar o pescoço. na porta do gabinete, ali parou por algum
tempo, pensando na proibição do marido, e achando que lhe poderia acontecer uma desgraça
por ser desobediente. Mas a tentação era tão forte que não conseguiu vencê-la. Então pegou a
3
No século XVII, era chamada de “pessoa de qualidade” quem pertencia à nobreza (tanto o gentil-homem,
quanto a senhora e a senhorita).
4
A moda dos sofás era recente na época de Perrault.
172
pequenina chave e abriu, a tremer, a porta dogabinete.
Num primeiro momento, nada viu, porque as janelas estavam fechadas. Após alguns
instantes, começou a ver que o assoalho estava todo coberto de sangue coalhado, e que nesse
sangue refletiam os corpos de várias mulheres mortas e pregadas ao longo das paredes (eram
todas as mulheres que o Barba Azul desposara e estrangulara, uma após a outra). Achou que
ia morrer de medo, e a chave do gabinete que ela acabara de tirar da fechadura lhe caiu da
mão.
Depois de se acalmar um pouco, pegou a chave, fechou a porta, e subiu ao quarto para
se recompor , mas não conseguia, tamanho era o seu transtorno. Tendo notado que a chave do
gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não saía. Por
mais que a lavasse, e a mesmo a esfregasse com areia fina e com argila arenosa
5
, o sangue
continuava lá, pois a chave era mágica e não havia meio algum de limpá-la: quando se tirava
de um lado, ele parecia do outro.
O Barba Azul voltou naquela noite mesmo, e disse que havia recebido cartas no
caminho, que lhe confiavam que o negócio pelo qual ele saíra em viagem acabara de se
resolver em seu favor. A mulher fez tudo o que pôde para lhe mostrar que estava muito feliz
com a sua volta.
No dia seguinte, pediu-lhe as chaves, e ela as devolveu, mas a sua mão tremia tanto
que ele adivinhou o que havia acontecido.
Por quê disse-lhe ele a chave do gabinete não está com as outras?
Achodisse-lhe ela que a deixei lá em cima, na minha mesa.
Vá buscá-la disse o Barba Azul , e imediatamente.
Depois de várias tentativas de ganhar tempo, foi preciso trazer a chave. O Barba Azul,
após refletir, disse à mulher:
Por que há sangue nesta chave?
Eu não sei de nada respondeu a pobre mulher, mas lívida do que a morte.
Não sabe de nada retomou Barba Azul , mas eu sei. Quis entrar no gabinete,
não? Pois bem, a senhora vai entrar e ficar ao lado das outras que viu.
Ela se lançou aos pés do marido, aos prantos e a pedir-lhe perdão, com todos os sinais
de verdadeiro arrependimento por não ter sido obediente. Comoveria uma rocha, bela e aflita
como estava, mas o Barba Azul tinha o coração mais duro do que um rochedo.
Chegou a hora de morrerdisse-lhe ele e já.
que chegou a hora de morrer respondeu ela olhando para ele com os olhos
rasos d´água , me dê algum tempo para rezar a Deus.
Dou-lhe cinco minutos retomou Barba Azul e nem um segundo mais.
Quando ficou sozinha, chamou a irmã, e lhe disse:
Minha irmã Ana (pois era esse o seu nome), suba, eu lhe peço, no topo da Torre
para ver se os meus irmãos estão chegando, pois eles me prometeram que viriam visitar-me
hoje, e se os vir, lhes acene para que se apressem.
A irmã Ana subiu ao topo da Torre e a pobre afligida lhe gritava de tempos em
tempos:
Ana, minha irmã Ana, não vê nada ainda?
E a irmã Ana respondia:
Nada vejo além do sol que empoeira e da urze que verdeja
6
.
Porém, o Barba Azul, empunhando um facão, gritava alto e bom som à esposa:
Desça rápido, ou eu subirei.
5
Sablon e grès, no original. Areia fina e argila arenosa (ou de pedra) utilizadas no século VXII para limpar as
baixelas de estanho.
6
É digno de nota o uso, no original, de poudroie que brilha com a cintilação de mil poeiras no horizonte e
verdoie verdeja (Os verbos poudroyer e verdoyer eram palavras que não se utilizavam mais no século VXII).
173
Só mais um minutinho, por favor respondia-lhe a mulher, que em seguida gritava,
quase sussurando, à irmã:
Ana, minha irmã Ana, não vê nada ainda?
E a irmã Ana respondia:
Nada vejo além do sol que empoeira e da urze que verdeja.
Ande, desça logo gritava o Barba Azul ou subirei.
Estou indo respondia a esposa, e em seguida gritava, baixinho:
Ana, minha irmã Ana, não vê nada ainda?
Sim, vejo respondeu a irmã Ana uma grande poeira que vem deste lado.
São os meus irmãos?
Infelizmente, não, minha irmã. É um rebanho de carneiros.
Não quer descer? Gritava o Barba Azul.
Só mais um minutinhorespondia a esposa, e em seguida gritava, baixinho:
Ana, minha irmã Ana, não vê nada ainda?
Sim, vejo respondeu ela Dois cavaleiros que vêm deste lado, mas estão ainda
muito longe... Deus seja louvado exclamou um momento depois são os meus irmãos.
Vou acenar-lhes para que se apressem.
O Barba Azul começou a gritar tão forte que toda a casa tremeu. A pobre mulher
desceu, e foi lançar-se-lhe aos pés toda chorosa e toda desgrenhada.
Isso de nada adiante disse o Barba Azul , chegou a hora de morrer.
Em seguida, pegando-a com uma das mãos pelos cabelos, e erguendo o facão com a
outra, ia decapitá-la. A pobre mulher se virou para ele, e olhando-o com os olhos agonizantes,
suplicou que lhe desse um momentinho mais para se recolher.
Não e não disse ele. Recomende-se bem a Deus.
E levantou o braço...
Nesse instante, bateram com tanta força na porta que o Barba Azul parou na hora. A
porta foi aberta, e logo entraram dois cavaleiros, que, empunhando a espada, correram
diretamente até o Barba Azul. Este reconheceu que eram os irmãos da sua mulher um dragão
e o outro mosqueteiro
7
, de modo que fugiu para se salvar, mas os dois irmãos o perseguiram
de tão perto, que o agarraram antes que ele chegasse ao patamar da escadaria. Transpassaram-
no com as espadas, e o deixaram morrer. A pobre mulher estava quase tão morta quanto o
marido, e não tinha força para se erguer e beijar os irmãos.
Ocorreu que o Barba Azul não tinha herdeiros e, por isso, a sua esposa se tornou dona
de todos os seus bens. Usou uma parte para casar a irmã Ana com um gentil-homem que a
amava havia muito tempo. Uma outra parte, para comprar os cargos de capitão
8
para os dois
irmãos. E o resto para ela própria casar-se com um homem muito distinguido, que lhe fez
esqueceros tempos ruins que passara com o Barba Azul.
MORALIDADE
É a curiosidade uma mania
Que apesar do atrativo e da apetência,
Custa muitos desgostos com freqüência,
E disso há mil exemplos todo dia.
E, apesar das mulheres é um prazer
7
Dragão era um soldado da cavalaria que combatia a ou a cavalo. Mosqueteiro era um gentil-homem que
punha o seu mosquete (arma de fogo) a serviço do rei. A Companhia dos Mosqueteiros foi criada no século
XVII.
8
Os cargos eram empregos que se obtinham no século VXII, comprando-os da administração real para se
beneficiar, em seguida, dos seus lucros. O cargo de capitão era um alto grau ocupado por um grande senhor.
174
Passageiro e muito avaro,
O qual, provando-o, já deixa de o ser,
E sempre custa muito, muito caro.
OUTRA MORALIDADE
Por pouco razoável que alguém seja,
Mas que saiba viver atualmente,
É lógico que logo esse alguém veja
Que o que ele leu foi dito antigamente;
Que não há mais esposo tão terrível,
Nem tampouco que peça inda o impossível,
Mesmo que ciumento e desgostoso,
Que com a mulher não seja obsequioso;
E seja a barba azul ou doutra cor,
Não sabemos dos dois quem é o senhor.
PERRAULT, C. Barba Azul. IN: Histórias ou contos de outrora (Concepção e tradução de
Renata cordeiro).
175
Autorizo a reprodução deste trabalho.
São José do Rio Preto, 17 de janeiro de 2008
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