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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA, MEMÓRIA E
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
CAMPUS V – SANTO ANTÔNIO DE JESUS
PESCADORES DO SAGRADO:
A FESTA DA SEREIA COMO PRÁTICA CULTURAL NO MUNICÍPIO DE
ARATUÍPE
Uberdan Cardoso dos Santos
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade
do Estado da Bahia para obtenção do Título
de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Felipe Santos Magalhães
SANTO ANTONIO DE JESUS-BAHIA
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaboração: Biblioteca Campus V / UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396
S231p Santos
, Uberdan Cardoso dos
Pescadores do Sagrado: a festa da sereia como prática cultural no
município de Aratuípe / Uberdan Cardoso dos Santos - Santo Antônio de
Jesus – Ba.: [s.n], 2008.
153 f.: il.
Orientador: Prof. Dr. Felipe Santos Magalhães
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Campus
V. Departamento de Ciências Humanas.
1. Cultura Popular 2. Mito – Dona das águas. 4. Aratuípe - pescadores.
I. Magalhães, Felipe Santos II.Universidade do Estado da Bahia Campus
V. Departamento de Pós-graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional. III. Título
CDD: 306
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À memória de meu pai, Santiago Avelino dos Santos.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Wellington Castellucci Júnior, por me fazer acreditar que: “Quando
tudo está perdido, sempre existe um caminho!”
Ao professor Dr. Felipe Santos Magalhães, pela tarefa de meticulosamente me auxiliar
em suas precisas observações e críticas.
Aos professores (as) Dr. Walter Fraga Filho, Dr. Jorge Araújo, Drª Nancy Sento Sé e Drª
Ely Estrela, pelo norteamento nas “perenes” qualificações.
À amiga Andréia, secretária do Programa de Pós - Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional pelo incessante acreditar.
Ao professor Vilson Caetano que apostou que a “Comissão de Frente” daria um belo
enredo.
Aos professores Ms. Denílson Lessa, Ms. Edinaldo Souza e Ms. Hamilton Santos pela
disponibilidade para os constantes ajustes.
Aos professores do Programa de Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, pela
infindas discussões.
À memória do professor Raimundo Nonato, pelos caminhos trilhados durante o
Tirocínio Docente.
Aos amigos que se compuseram irmãos, Danielle, Derneval, Dirceu, Eliane, Hildete,
Jorge Wilton, Juliana, Matheus e Yonã.
Aos pescadores que aqui tornaram-se fontes, mas que ternamente me fizeram acreditar
no caminhar.
5
Aos amigos, “presentes do cotidiano”: Alberto, Ana Lúcia, Ane Bitencourt, Calabau,
Consuelo, Dourival, Edna Schneider, Eneson, Isaac, Jociene, Maricelma, Nice,
Humberto e Zé Medonho.
Às professoras Mariângela Silva e Maria José Sacramento pela serena e cuidadosa
revisão textual.
Ao meu tio Nido, pela segurança transmitida e pela devoção recíproca.
Àqueles que mesmo nos seus silêncios torceram por mim.
À minha amada mãe, que em palavras não traduzo dimensão maior de amor.
Por fim, à Mery, Segundinho e Hannah por suportarem minhas tensões e medos da
forma mais despretensiosa que existe: Sorrindo e amando!
6
RESUMO
Neste trabalho, procuro discutir a dimensão e o sentido da dos pescadores do município de
Aratuípe-Ba no seu culto à Dona das Águas. Enfatizo, aqui, a cidade, seu povo, suas formas
de sociabilidade e suas práticas culturais, na perspectiva de entender a construção do mito, os
evidentes conflitos, os sonhos, os desencantos de homens e mulheres que nutrem grande
devoção pela “Sereia”. Fato que procuro abordar à luz de teorias que discutem: Festa,
Tradição, Religiosidade e Cultura Popular concatenados à utilização da memória como
suporte para que fosse possível ouvir, daquela comunidade pesqueira, como eles enxergam o
seu passado, seu cotidiano e como a visão de si mesmos foi se transformando com o passar do
tempo, e como a comunidade foi incorporando elementos e descartando outros. Discuto ainda
sobre os mitos, a festa, o candomblé e como esses aspectos, relacionados a divindades
aquáticas em algumas civilizações, são concebidos pela comunidade de Aratuípe. As
experiências desses sujeitos, suas comoventes narrativas e a investigação do seu cotidiano,
possibilitaram discutir a Festa da Sereia, seu candomblé, as disputas pelos espaços de poder -
o “duelo” que há dez anos se intensifica entre a festa com bandas na praça municipal e a Festa
da Sereia no bairro do Camamu, que defendo como ponto crucial deste trabalho - e o Presente
à Dona das Águas, momento de entrega da imagem e dos presentes, da renovação e da
esperança.
PALAVRAS – CHAVE:
PESCADORES – RELIGIÃO – MITO - CANDOMBLÉ – FESTA
7
ABSTRACT
In this work, I try discussing the dimension and meaning of the fischemen`s faith from
Aratuípe city Ba in their cult to “The Lady of Waters”. Enfatizo here the city, its people, its
forms of social and cultural practices, into a insight to understand the construction of the
myth, the obvious conflicts, the dreams, the disillusions of men and women that dedicate
great devotion for the Mermaid”. Fact that I to deal with theories which, in turn, discuss:
Festival, Tradition, Religiosities and popular Culture concatenated to the use of memory as
support in order to be possible to hear of that fishing community as they see their past, their
daily life and as the vision of themselves was turning in to along time life incorporating some
elements and discarding others. There is also a theoretical about the myths, festival, and
candomble and as these, are related to water gods in some cultures, are designed by the
community of Aratuípe. The experiences of thease guys, their moving narratives and research
of their daillives, allowed to discuss “the lady of water`s festival”, his candomble,
competitions about the force of power the argument that about ten years is intensifying
between the festival with local bands in the square municipal and Feast of the lady de water in
the neighborhood of Camamu that defend as a crucial point of this work, and the gift to the
lady of water, timing of delivery of the image and the gifts, of renewal and hope.
KEY – WORDS:
FISHMEN – RELIGION – MYTH – “ CANDOMBLÉ” – FESTIVAL
8
ÍNDICE DE FOTOS:
FIGURA 1 - Mapa do Recôncavo Baiano............................................................................25
FIGURA 2 - Mapa do acesso à cidade de Aratuípe............................................................26
FIGURA 3 - Igreja de Santo Antônio dos Índios...............................................................28
FIGURA 4 - Rua Alto da Favela........................................................................................32
FIGURA 5 - Desenho de Saveiro na Barraca de Aloísio...................................................36
FIGURA 6 - Mercado Municipal.........................................................................................42
FIGURA 7 - Unidade de Beneficiamento de Pescados......................................................48
FIGURA 8 - Associação dos Pescadores do Município de Aratuípe................................49
FIGURA 9 - Saída do Cortejo.............................................................................................71
FIGURA 10 - Imagem da Sereia........................................................................................74
FIGURA 11 - Cabana onde é realizada a Festa da Sereia................................................77
FIGURA 12 - Imagem da Sereia.........................................................................................79
FIGURA 13 - Casa da Sereia...............................................................................................81
FIGURA 14 - Cortejo...........................................................................................................84
FIGURA 15 - Embarcação conduzindo imagem da Sereia para o “Presente”..............113
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – A CIDADE, SUA ORIGEM, SUA GENTE..............................................21
1.1 - DE SANT`ANNA DA ALDEIA A ARATUÍPE...........................................................21
1.2-. “ SOU NASCIDO E CRIADO NAS ÁGUAS”.............................................................31
CAPÍTULO 2 – TODOS TÊM A MESMA MÃE ...............................................................52
2.1 - “ELA ME DEU O QUE TINHA QUE DAR!”! ........................................................52
2.2 - DE MITOS ANTEPASSADOS A ENCANTOS DO PRESENTE!...........................60
CAPÍTULO 3 - “Ô JOGA, JOGA NO MAR AZUL!”.......................................................75
3.1 - DUAS FESTAS: UM DUELO POR ESPAÇOS! .......................................................75
3.2 - O CANDOMBLÉ E A FESTA!................................................................................... 89
3.3 – DO TRANSE AO DEVER CUMPRIDO!................................................................ 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................116
FONTES ................................................................................................................................118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................... 136
ANEXOS................................................................................................................................142
10
INTRODUÇÃO
A construção deste trabalho é, em muito, fruto das instigantes indagações que eu,
desde menino, nutria; baiano, natural da cidade de Aratuípe, vivi grande parte da minha vida
na “rua de cima
1
”, onde tantas vezes fui arrancado dos prazerosos “babas” com bola de meia,
na rua larga, de chão batido, para atender aos chamados de minha avó que, aos gritos, me
incubia de comprar o peixe, normalmente para a moqueca do jantar, que era anunciado no
Mercado Municipal ao toque dos búzios. A incubência de comprar o peixe associava-se a
outras recomendações, que ainda hoje trago tão vivas em minhas lembranças, como a de
nunca comprar o bagre, peixe comumente vendido no Mercado, mas que não fazia parte do
cardápio de nossa família que, seguindo o costume de sua matriarca, preferia peixes de
escamas a peixes de couro, “não como peixe de couro porque é remoso, abre muito o corpo da
gente”
2
, ainda afirma minha avó, dona Letícia Anatália dos Santos Cardoso, do alto dos seus
oitenta e quatro anos.
Entre outras atribuições que eram confiadas a mim, havia a de procurar Maneca do
Peixe para que fosse ele o vendedor do pescado; e a compra do azeite de dendê, essencial para
a saborosa moqueca, vendido na venda de “seu Dedé”, que ingredientes como o coentro, o
côco e a pimenta eram encontrados no próprio quintal da nossa grande e velha casa, deixada
por meu avô e que era o lar de todos os seus filhos, inclusive de minha mãe, que mesmo
casada, morava ali com meu pai e eu.
O breve percurso que separava a nossa casa do Mercado Municipal era traçado a
passos largos, ávidos pela volta, e claro, pelo reencontro com os amigos e a bola, o que não
evitava os sermões dos “mais velhos”, que o azeite era vendido sem o vasilhame, sendo
comum que o comprador o levasse, e para um garoto de doze ou treze anos correr descalço
pelas ruas, com uma garrafa de vidro nas mãos, era sempre perigoso.
O senhor José Leone, que anos depois eu viria saber que era o mais reconhecido
intelectual aratuipense, ex-combatente na Segunda Guerra Mundial, oficial do exército
brasileiro, tornara-se conhecido como professor, músico, escritor e poeta. E era ele que, com
toda a sua paciência e sabedoria, me chamava com a sua voz
1
Referência à rua Dr. Manuel Vitorino na cidade de Aratuípe – Ba.
2
Letícia Anatália dos Santos Cardoso, entrevistada em 10 de dezembro se 2007
.
11
rouca e serena e pedia para que eu refletisse e avaliasse o prejuízo que seria para mim, no caso
de uma possível queda. Muito mais preocupado em não desobedecer àquele respeitado senhor
do que com minha integridade física, ritmava os passos lentos e talvez daí tenha nascido a
detalhada observação da paisagem e das pessoas que por tanto tempo iriam fazer parte da
minha vida.
Em 1988 me transferi de Aratuípe para Santo Antônio de Jesus, município vizinho,
distante apenas trinta e cinco quilômetros, objetivando estudar em um centro maior e que
disponibilizasse melhores perspectivas, o que não me impediu de estar constantemente em
contato com a cidade, sobretudo nas periódicas visitas aos meus pais, momentos sempre
aproveitados para rever os amigos e manter acesos os vínculos com uma matriz que revelava a
minha identidade.
Os estreitos vínculos estabelecidos com as pessoas daquele lugar, somados às
experiências construídas como estudante do curso de História, de ativista no movimento
estudantil e militante partidário, permitiram-me entender a importância de um maior
engajamento historiográfico com aquela cidade e com o seu povo. As lembranças dos tempos
de criança me voltavam vivas à memória, e não apenas a aflição de correr ao mercado para
comprar o tiriri, a pipira, a embira
3
, mas, sim, as lembranças do toque do enorme búzio, da
pedra do mercado repleta de peixes, das tardes de maré cheia, quando as águas do rio
Jaguaripe avançavam até a lateral do mercado, das canoas e saveiros ancorados no cais
natural, dos pedintes ansiosos pela esmola certa, que não passava de um ou dois quilos de
peixe e, é claro, dos pescadores.
Esses são os sujeitos prioritários deste estudo, homens e mulheres que, das mais
diferentes formas, atuaram como protagonistas das questões aqui reveladas, sempre
entremeadas por prazerosos exercícios de memória que nos trazem a percepção de como o
cotidiano de os conduz a estabelecer tão importantes laços de solidariedade e também de
conflitos, apontando ainda os encantos de um tema que seduz: é a relação que advem das
comunidades ribeirinhas com o culto à Dona das Águas.
Os aspectos míticos que envolvem o culto às águas no Brasil são objetos de vastos
estudos; mitos europeus, indígenas e africanos permanecem vivos em várias localidades,
permeando a vida de várias comunidades, influenciando em seu cotidiano, afetando relações
de sociabilidade, imprimindo-lhes um ritmo peculiar de sobrevivência, arraigados que estão
na ansiedade de satisfazerem suas necessidades espirituais.
3
Peixes menos “nobres”, comumente encontrados nas águas do rio Jaguaripe.
12
Segundo as narrativas dos pescadores de Aratuípe, município localizado no
Recôncavo baiano, um pescador chamado João Cilírio teria encontrado, em tempos
“imemoriais”, uma Sereia. Para alguns pescadores ele a capturou em uma rede de pesca; para
outros, ele apenas a viu e, como carpinteiro e artesão que era, esculpiu a imagem em um
tronco de madeira e passou a realizar anualmente o “Presente” até o Toque Toque, foz do
rio Jaguaripe, onde o pescador teria tido o seu contato com a Dona das Águas. João Cilírio era
o encarregado de mergulhar e depositar o presente nas profundezas das águas. Contam ainda
os pescadores que, depois de emergir, o pescador saía enxuto e ficava surdo e mudo por três
dias, segundo eles, para não “contar o que viu lá embaixo”.
Esse mito fez-se arraigar, e todo ano a celebração do Culto à Dona das Águas,
representada em Aratuípe por uma imagem de Sereia, metade mulher, metade peixe,
celebrada pela comunidade de pescadores que nutrem uma incomensurável por aquela
“divindade” conseguindo recompor, cada qual à sua maneira, narrativas que mantêm os
vínculos que por sua vez estabelecem fé e essa fé num mesmo patamar de dialogicidade.
Ao mencionar a relação entre memória e narrativa na construção de uma tradição,
nos remetemos a Costa ao afirmar que:
A cada minuto de nossa existência narramos o que testemunhamos, nossas
dívidas, nossas crenças, amores, desafetos, enfim, nossa experiência pessoal
e social do presente, do passado e do futuro e, dessa forma, construímos
nossa vida e a vida dos outros. São histórias reconstruídas na esteira do
passado e ressignificadas com o olhar do presente [...] Por meio das
narrativas, construímos e compartilhamos memórias. Nesse sentido, penso
que a narrativa, como ato de compartilhar memórias, como fala do homem
no mundo e sobre o mundo, sobrevive no tempo atual
4
.
Em diversas regiões ribeirinhas do Brasil, é fato comum o envolvimento das
comunidades com os mitos advindos das suas mais intrínsecas relações com a água. No caso
de Aratuípe, os pescadores arregimentaram a na Sereia e fazem da festa anual, realizada
entre os dias 31 de dezembro e o primeiro dia do novo ano, uma apoteose. Aquelas pessoas
vêem no esforço em realizar os preparativos para o ritual, no culto ou no “presente”, a
satisfação espiritual e a sensação do “dever cumprido”.
4
COSTA, C. B. da. Memórias compartilhadas. In: COSTA, C. B. da; MAGALHÃES, N. A. (orgs). Contar História, fazer História, cultura e
memória. Brasília: Paralelo 15, 2001, p. 79
13
Ao discutir as experiências desses pescadores é importante, conforme Hobsbawn,
“tentar recuperar o que pudermos sobre o modo como os trabalhadores pobres viviam, agiam
e pensavam”
5
, na medida em que agora está se produzindo uma grande quantidade de
“história oral” ou mesmo de memórias, realmente escritas por homens e mulheres da classe
trabalhadora. As perspectivas que se apresentam neste estudo, de formas variadas, enfocam o
pescador e o seu cotidiano, sua relação com o mito, seus rituais de devoção, à luz de
procedimentos teórico-metodológicos desenvolvidos por autores que dialogam com a
memória e o uso de fontes orais. Para Rousso, “a memória é uma reconstrução psíquica e
intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado que nunca é aquele do
indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”
6
.
Portanto toda memória é, por definição, “coletiva”.
Os depoimentos e reflexões presentes neste estudo não tratam apenas de registros de
estudiosos sobre o mar e o imaginário que o ronda, mas da memória de homens e mulheres
nutridos pela na Dona das Águas, uma memória viva, capaz de trazer um istmo que separa
lembranças e esquecimentos desses sujeitos que alicerçam o seu cotidiano respaldados nessa
fé, que os alimenta e os conduz a estabelecer fortes ou frágeis, mas invariavelmente
importantes laços de convivência, como atesta Armando Castro em seu artigo intitulado Irmãs
de Fé: Tradição e Turismo no Recôncavo Baiano:
Individual ou coletiva, a memória é elemento inseparável do sentimento de
pertença e identidade. Como fenômeno construído, é resultado de um
processo de organização mental inclusivo e exclusivo. Nesse sentido, a
memória como agente documental alinha-se em instâncias igualitárias às
outras formas de registro
7
.
E é desse sentimento de pertença e identidade que nasce a inquietação acerca do
universo dos pescadores e suas relações com o culto à Sereia, respaldado nas discussões
travadas com as relevantes obras de historiadores, antropólogos e pesquisadores que discutem
a experiência e a cultura de trabalhadores, concebendo um diálogo entre a história, a memória,
as culturas e as metodologias que permitem a compreensão de atitudes, gestos, práticas,
hábitos, costumes, manifestações, expressões e percepções que extrapolam os espaços
5
HOBSBAWN, Eric J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 23
6
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína
(Orgs). Usos e abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 94.
7
CASTRO, Armando Alexandre Costa de. Irmãs de Fé:Tradição e Turismo no Recôncavo Baiano. CULTUR - Revista de Cultura e Turismo
– Ano 2 – n.01 – jan/2008, p.50
14
convencionais das ideologias e redimensionam conceitos como identidade, cultura, tradição e
costumes, que pautará esta dissertação. De acordo com as reflexões de Ecléa Bosi,
É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas
idéias não são originais: foram inspiradas nas conversas com os outros. Com
o correr do tempo, elas passam a ter um história dentro da gente,
acompanham nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates.
Parecem tão nossas que ficamos surpresos se nos dissessem o seu ponto
exato de entrada em nossa vida. Elas foram formuladas por outrem, e nós
simplesmente, as incorporamos ao nosso cabedal. Na maioria dos casos creio
que este não seja um processo consciente
8
.
Ressaltamos que os estudos culturais nos proporcionam dialogar com o cotidiano,
alinhavando lembranças, experiências e vivências à trama histórica dos múltiplos sujeitos de
forma significativa. É o que nos assevera Certeau ao afirmar que
[...] cultura de um lado é aquilo que “permanece”; do outro, aquilo que se
inventa. Há, por um lado, as lentidões, as latências, os atrasos que se
acumulam na espessura das mentalidades, certezas e ritualizações sociais,
via opaca, inflexível, dissimulada nos gestos cotidianos, ao mesmo tempo os
mais atuais e milenares. Por outro lado, as irrupções, os desvios, todas essas
margens de uma inventividade de onde as gerações futuras extrairão
sucessivamente sua “cultura erudita”. A cultura é uma noite escura em que
dormem as revoluções de pouco, invisíveis, encerradas nas práticas, mas
pirilampos, e por vezes grandes pássaros noturnos, atravessam-na:
aparecimentos e criações delineiam a chance de um outro dia
9
.
Nessa perspectiva, apoiando-se nas reflexões de Costa e Magalhães, é possível
afirmar que “tantos os historiadores quanto quaisquer outros profissionais podem utilizar a
escrita e oralidade, além de outras linguagens, para corporificar as narrativas numa dimensão
temporal, social e culturalmente significadas e ressignificadas.”
10
.
Nesse sentido,
Pesavento
afirma que a “cultura
é uma forma de expressão
e tradução da realidade que se faz de forma
simbólica”
11
, acrescentando que “a partir das experiências de vida, os sujeitos ousam,
8
BOSI, Ecléa, Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, apud T. A. Queiroz, 1983. O tempo vivo da memória. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2005.p.77.
9
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994 , p. 239
10
COSTA, C. B. da; MAGALHÃES, N. A. Op cit. P. 9
11
PESAVENTO, Sandra J. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 15
15
redimensionam por meio de gestos, falas, expressões de e devoção, entre tantas outras
formas, suas histórias que, metaforicamente, revigoram e reconstroem o sentido da vida.”
12
Para Katrib, “precisamos entender cultura popular a partir de um contexto de
vivências e experiências desenhado através da dinâmica social e corporificado no cotidiano
dos sujeitos”
13
. Essa percepção se coaduna com as discussões de Maria Clara Machado, ao
afirmar que
Se a cultura é um modo específico de ver, sentir e representar o mundo em
que se vive, para estudar as suas formas de representações culturais é
preciso, antes de qualquer coisa, penetrar pelo interior de uma determinada
realidade social, desvendar a lógica de como essas representações foram
construídas e apresentam-se ao público- o que pode estar presente nos
gestos, na linguagem, nos seus referenciais de mundo, nas suas práticas
cotidianas de trabalho, de lazer e religiosidade
14
.
Também a história oral resultante da ligação entre memória e identidade social-,
será relevante para este estudo sobre o culto à Dona das Águas em Aratuípe. Uma vez que é
escassa a documentação escrita sobre a Festa da Sereia, objeto prioritário do nosso estudo em
seu terceiro capítulo, os pescadores se constituem como as mais significativas fontes para
nossas reflexões. Seus depoimentos, lembranças e esquecimentos, suas histórias de vida
relacionadas à Festa da Sereia se delinearam e configuraram como documentação ímpar,
potencializando o desvendar de seus aspectos identitários e de suas expressões de
religiosidade.
Ao ressaltar que a fonte oral não pode ser comparada à fonte escrita, o sociólogo
austríaco Michael Pollack escreve que “se a memória é socialmente construída, é óbvio que
toda documentação também o é [...]. Penso que não podemos mais permanecer, do ponto de
vista epistemológico, presos a uma ingenuidade positivista primária
15
.
Daí, inferimos que as
lacunas historiográficas existentes podem ser preenchidas e (re) construídas pelo importante
documento que são as lembranças daquela comunidade acerca das histórias da Dona das
Águas, o cotidiano de fé e a tradição da festa.
12
KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim. No (Des) Compasso da Festa: O Reencontro de muitas Histórias, História e Perspectivas, Uberlândia
(34): 367 – 392, jan-jun. 2006 p. 370.
13
Ibidem, p. 379
14
MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura Popular: um contínuo refazer de práticas e representações. In: PATRIOTA, R; RAMOS, A. F.
(Org). História e cultura : espaços plurais, Uberlândia: Aspectus, 2002, p.335-345 apud KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim. Op cit 379.
15
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Revista de Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, 1992, p.08
16
Sobre o sentido da palavra tradição, lê-se no Novo Dicionário Aurélio que a
palavra deriva do latim traditione, que por sua vez tem duplo significado, de transmissão e de
traição. No primeiro sentido significa: (1) transmissão; (2) transmissão oral de lendas e fatos;
(3) de valores entre gerações; (4) prática resultante de transmissão oral; (5) recordação,
memória; (6) testemunhos conservados ou desaparecidos. Por sua vez, a palavra traição, que
tem a mesma origem latina significa: (1) ato de trair; (2) crime de entrega ao inimigo; (3)
deslealdade; (4) infidelidade
16
.
Vemos, portanto que por sua origem, a palavra tem o duplo sentido de transmissão
oral entre gerações e de traição ou entrega ao inimigo. Os dois sentidos de transmissão e de
entrega estão intimamente relacionados com a problemática religiosa.
No Dicionário de Ciências Sociais, tradição é considerado um termo neutro,
empregado para designar “transmissão, geralmente oral, de atividades, gostos ou crenças do
passado, de uma geração a outra. Através da tradição, modos de vida, costumes, elementos do
vestuário, da alimentação e outros são perpetuados”
17
. Até porque a tradição é dinâmica, se
adequa às condições históricas do lugar e dessa forma vai ganhando sentido, significando
também conhecimentos e preconceitos acumulados. Um de seus mecanismos é a imitação. Os
elementos transmitidos recebem o status de tradições, considerados de valor e dignos de
serem aceitos, como fatores de coesão do grupo social. O termo enfatiza “continuidade,
venerabilidade, sabedoria coletiva, herança dos antepassados. Significa também fonte de
legitimidade ou base da autoridade, e ainda acúmulo de experiência pragmática, disto tudo
derivando a idéia de peso da tradição”
18
.
Tais idéias destacam o significado principalmente positivo do termo, embora o
Dicionário de Ciências Sociais o considere neutro, sabemos que a tradição pode ser também
considerada como negativa. O antropólogo Antônio Arantes, ao estudar a cultura popular,
afirma que:
Pensar a ‘cultura popular como sinônimo de ‘tradição’ é reafirmar
constantemente a idéia de que a sua Idade de Ouro deu-se no passado. Em
conseqüência disso, as sucessivas modificações por que necessariamente
passam esses objetos, concepções e práticas não podem ser compreendidas,
senão como deturpadoras ou empobrecedoras. Aquilo que se considera como
16
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Editora Nova Fronteira S.A.Rio de Janeiro, 1999.
17
SILVA, Bendito (Coord.) Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
18
idem.
17
tendo tido vigência plena no passado pode ser interpretado, no presente,
como curiosidade.
19
.
Vemos que Arantes critica, em relação à cultura popular, a tendência de se
supervalorizar a tradição, lembrando que ela é muitas vezes recriada nos moldes ditados pela
elite. Convém destacar também o elemento de invenção das tradições, expressão difundida
pelo historiador Eric Hobsbawn. Conforme este autor, “muitas vezes ‘tradições’ que parecem
ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas”
20
.
Com as inovações dos textos históricos publicados na revista Annales d’Histoire
Économique et Sociale, surgida na França em 1929 - cujo grupo de historiadores, liderados
por Marc Bloch e Lucien Febvre, rejeitava a história política, marcada pelos feitos dos
poderosos homens de guerras e decisões políticas e institucionais, e defendia uma história
abrangente e totalizante que levasse em consideração o homem comum - o estudo dos rituais,
crenças, festividades e feitiçaria ganhou destaque na historiografia. A História Nova francesa
influenciou pesquisas em outros países europeus, como Inglaterra, Itália e Espanha,
repercutindo também nos estudos da cultura e religião no Brasil. Os historiadores rejeitaram o
rótulo acadêmico de uma história das mentalidades, preferindo atualmente falar de história da
cultura ou de uma nova história cultural
21
. O historiador inglês Peter Burke foi um dos
responsáveis pelas renovações no âmbito dos estudos culturais. Ao analisar a cultura popular
na Idade Moderna, Burke chamou a atenção para o fato de que a noção do popular é
problemática por sugerir uma homogeneidade. Ele afirma que seria melhor utilizar a
expressão “a cultura das classes populares”, pois a dicotomia entre elite e popular é falsa, e a
fronteira entre as culturas de elite e culturas do povo é vaga. Portanto, seria mais interessante
pensar nas interações entre as duas culturas, o que o autor denominou “biculturalidade
22
.
Burke foi amplamente influenciado pelo crítico literário russo Mikhail Bakhtin que
se aproximou da cultura popular de forma indireta, por meio da literatura de François
Rabelais. Sua obra indica os caminhos para se pensar a cultura das classes subalternas e
certamente a sua maior contribuição foi a afirmação da existência de uma “circularidade
cultural”, ou seja, uma interferência recíproca entre as culturas populares e hegemônicas. Para
19
ARANTES, Antônio A. O que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1981.p. 17-18
20
HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das tradições. São Paulo:Paz e Terra, 1997.p.9.
21
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988; HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural.
São Paulo: Martins Fontes, 1992; VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História.Rio de Janeiro: Campus, 1997
22
BURKE, Peter.Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 16-17.
18
Bakhtin, a religião popular não é composta apenas de crenças mágicas, e sim de um conjunto
de atitudes e comportamentos fundado na inversão de valores e hierarquias
23
.
Procurarei então nesta dissertação, à luz dessas discussões, abordar os mitos
relacionados às figuras aquáticas em algumas civilizações fato que posteriormente poderá
contribuir para o entendimento do culto à Dona das Águas pelos pescadores de Aratuípe
entender a origem da cidade, o cotidiano dos pescadores, seus “tempos” de trabalho e lazer,
suas formas de organização e posteriormente a Festa, realizada entre os dias 31 de dezembro e
01 de janeiro, o ritual do candomblé, o “duelo” com a festa com bandas na praça municipal,
os espaços de poder e o “presente” à Dona das Águas, assim como toda a construção dos
vários sentidos em relação à fé cotidiana e às festividades relacionadas a esse mito.
O conjunto das questões trabalhadas surgiu do diálogo com moradores de Aratuípe,
da análise de suas entrevistas. Os entrevistados foram Manuel Crispiniano dos Santos, o
Maneca do Peixe, de 64 anos; América dos Santos Guedes, 88 anos; Adeneíldo Santos Souza,
30 anos; Guilherme Costa, conhecido como Duduza, 61 anos; sua esposa, Ana Maria Viana
Costa, 54 anos; a filha do casal, Ana Alice Viana Costa, 36 anos; Dickson Coelho dos Santos,
32 anos; Floriano Ribeiro, 80 anos; Domingas Maria Barbosa, 40 anos; Josenilton dos Santos
Reis, 36 anos; Raimundo Gilberto de Pinho, 57 anos; Esmeraldo Santana, 92 anos; Djalma
Cardoso, 45 anos; Letícia Anatália dos Santos Cardoso, 84 anos; Lenildo Santos Cardoso,
filho de Dona Letícia, 44 anos; Lindalva dos Santos, 40 anos; Luiz Antônio Coelho
Conceição, 36 anos; Maria da Conceição Santana, 44 anos; Maria Marta dos Santos, 76 anos;
Osmadil José dos Santos, 52 anos; Paulo Roberto Machado, 43 anos; Rute Costa Santos, 82
anos; Sandoval Barbosa Souza, 64 anos; Zenyldes Pereira, 60 anos; Lenilson Santos Cardoso,
48 anos; Fernando Costa Santos, 36 anos; Ziranildo dos Reis Moraes, 25 anos; Antonio
Miranda Silva Junior, 39 anos e Wilson Vitória de Almeida, 38 anos. Com exceção de
Raimundo Pinho, morador da cidade de Nazaré, Djalma Cardoso e Lindalva dos Santos,
moradores de Salvador, todos são moradores da cidade de Aratuípe.
Além desses depoentes, destaco dois dos mais importantes depoentes na construção
da pesquisa, Aloísio Lima, 60 anos e Costinha, como é conhecido Florival André Costa de 74
anos; eles foram, sem dúvidas, os primeiros a quem procurei na perspectiva de construir este
estudo, no que fui de imediato assistido com informações e orientações que me permitiram ir
adiante. Suas atuações, ao lado de outros entrevistados, convenceram-me de que a execução
de um trabalho como este implica o reconhecimento desses sujeitos como pessoas que
23
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb, 1996, p. 1-50. 9.
19
reivindicam um espaço para pronunciar uma reação pelo fato de se perceberem à margem do
processo social.
24
E embora não seja exclusividade dos depoimentos orais, uma de suas
virtudes está na apreensão das experiências daqueles que não foram ouvidos em outras
abordagens, sinalizando para a perspectiva da construção de uma História Vista de Baixo
25
Pescadores do Sagrado atingem a perspectiva de não se esgotarem em si, atento a
surpreender diferentes significados do vivido
26
, apresentados em forma de narrativa pelos
sujeitos que aqui se evidenciam, suas memórias entrecruzaram-se aos documentos de natureza
oficial, sugerindo novos rumos de investigação, apontaram novos problemas e deram a
dimensão para construir uma dissertação que traz como problemática central a relação dos
pescadores de Aratuípe com o culto à Dona das Águas.
Este trabalho está estruturado em três capítulos. O primeiro, intitulado A Cidade, sua
origem, sua gente, traz uma abordagem inicial sobre a história do município de Aratuípe – Ba
- sua origem, povoamento, emancipação política que trará elementos que permitirão
compreender os sujeitos prioritários nesta pesquisa: os pescadores. Eles que serão pensados
em seu cotidiano, suas formas de solidariedade e em suas relações de poder.
No segundo capítulo, intitulado Todos têm a mesma mãe, analisa-se os mitos que
permeiam as histórias de pescadores em várias civilizações, como mitos europeus, indígenas e
iorubás que permitirão compreender a dimensão do culto à Sereia em Aratuípe.
Finalmente, no terceiro capítulo, Ô joga, joga no mar azul, a dimensão da Festa da
Sereia, o duelo da festa com bandas na praça municipal, o que criou sérios obstáculos à sua
permanência como alternativa de lazer, devoção e fé. Ainda nesse último capítulo há a análise
do candomblé, defendido aqui como ponto matriz da Festa da Sereia. O candomblé é a Festa.
Seu aspecto de espetáculo permitiu aos negros dar maior visibilidade à sua religiosidade e as
disputas entre os terreiros locais pelo domínio da festa discutidos ali.
Finalizando, um estudo sobre a Festa de Iemanjá na capital baiana, em dois de
fevereiro, e em analogia à Festa de Aratuípe, há a defesa de que ambas têm uma origem
similar, não nos aspectos religiosos e étnicos mas numa análise conjuntural que permite
entender a construção da identidade não apenas do pescador soteropolitano, mas do
Recôncavo da Bahia.
24
CASTELLUCCI Júnior, Wellington. Pescadores da Modernagem: cultura, trabalho e memória em Tairú, Ba (1960 – 1990). São Paulo:
Annablume, 2007, p. 29.
25
Sobre essa questão é procedente a crítica feita por SHARPE a perspectiva Histórica de CAR, no seu belo ensaio intitulado “A História
Vista de Baixo”. IN: A Escrita da História. BURKE, Peter. (ORG.) Unesp, São Paulo, 1992.
26
CASTELLUCCI Júnior, Wellington. Op.cit. p. 31
20
Esta pesquisa se desenvolveu à luz do estudo de fontes orais que, dialogando com
áreas de conhecimento como a Antropologia, puderam contribuir para que pudéssemos
construir uma análise. Espero com este trabalho contribuir para trazer à luz do debate
acadêmico uma temática de pesquisa nem sempre valorizada por certas perspectivas
historiográficas que não prestigiam a história dos sujeitos comuns. História essa que de forma
bastante intrínseca está ligada a mim e a minha família.
21
CAPÍTULO 1
A CIDADE, SUA ORIGEM, SUA GENTE!
1.1 - DE SANT’ANNA DA ALDEIA A ARATUÍPE.
O território onde atualmente está localizado o município de Aratuípe fôra, em 1557,
parcela da sesmaria doada a Dom Álvaro da Costa por seu pai Dom Duarte da Costa, segundo
Governador Geral do Brasil, de acordo com o livro de Tombo da Paróquia de Senhora
Santana de Aratuípe, sem data específica, mas elaborado antes da criação da Diocese de
Amargosa, como afirma o próprio texto de capa, portanto anterior a 15 de outubro de 1942
27
.
O mesmo se refere à sesmaria posteriormente revertida a Coroa Portuguesa, limitada ao norte
pelo rio Paraguaçu, ao sul pelo rio Jaguaripe, a leste pelo mar e a oeste pela serra do Guariru,
depois chamada serra da Jibóia. A Coroa Portuguesa aquinhoara o fidalgo Paulo de Argolo
Menezes com uma sesmaria, na região do atual município, de uma légua e meia de terras
quadradas, que equivaleria a aproximadamente nove mil metros quadrados, com a obrigação
de construir residência, engenho de açúcar e plantações, tudo no espaço de dois anos. Tal
sesmaria fôra concedida a Argolo Menezes, através de Carta datada de 11 de novembro do
ano de 1600, conforme registra o documento encontrado na paróquia:
Neste local construiu-se uma capela dedicada a Santo Antônio, com a
finalidade de catequizar os índios Aimorés, habitantes da região, daí a vinda
da Companhia de Jesus através dos seus padres, os Jesuítas, que fundaram
um aldeamento chamado inicialmente de Aldeamento dos Índios de Santo
Antônio de Jaguaripe. Junto à igreja foi construído um prédio para escola e
oficina destinada aos índios. Das torres de Garcia D’Ávila foram enviados
outros indígenas com a finalidade de se oporem à tribo dos Aimorés,
impedindo o despovoamento da fazenda provocado pelos sucessivos ataques
destes que, segundo Braz do Amaral, foram “os principais inimigos dos
invasores, os mais fortes defensores da terra, os mais implacáveis
27
O Livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora Santana serviu como fonte de pesquisa para grande parte deste capítulo, fontes
referendadas pelo Diccionario Geographico, Topographico e Histórico do Império do Brazil, Enciclopédia dos Municípios Brasileiros,
Jornais e Arquivo Público do Estado da Bahia, que permitiram uma maior discussão historiográfica sobre o município de Aratuípe nos seus
primórdios
.
22
exterminadores dos estabelecimentos portugueses, os mais valentes e
indomáveis filhos deste paiz
28
.
Ainda segundo o livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora Santana
29
, esse
aldeamento teria se desenvolvido chegando a abrigar quatrocentos índios que, além de
dedicarem-se ao extrativismo animal e vegetal, também cultivavam mandioca e organizaram-
se como defensores da região. As margens dos rios Irajaí, Dona e Jaguaripe foram palco das
disputas entre os Aimorés e os índios da aldeia de Santo Antônio; posteriormente, outra
capela foi edificada em homenagem à Senhora Sant`anna. O documento inclusive, de forte
conteúdo católico, revela a insatisfação com a expulsão dos jesuítas em meados do século
XVIII pelo Marquês de Pombal, aludindo à administração leiga responsabilidade pela
decadência da aldeia, pois não defendiam os índios e deixaram que as terras que iam até o
Arco-Verde, atual município de São Miguel das Matas, fossem invadidas por colonos que não
mais pagavam rendas.
A aldeia, organizada nos arredores da capela, receberia o nome de Santa`Anna da
Aldeia, e pela Lei provincial 132, de 2 de junho de 1840, foi elevada à categoria de freguesia,
pertencente ao município de Nazaré com o nome de Senhora Santa’Anna da Povoação da
Aldeia, desmembrada da Vila de Jaguaripe e pequena parcela do de Nazaré, na região do
Maragogipinho, tendo como limites: “Se extremará das margens do Jaguaripe, Estiva e
Jiquiriçá, pelos limites civis de Nazaré pelos rumos das terras dos Índios de Santo Antônio”
30
,
ou, como atesta o Diccionario geographico, topographico e histórico do Império do Brazil,
sem, no entanto, contradizer o documento citado:
SANTA`ANNA DA ALDEIA. Nova freguesia da província da Bahia, no
districto da villa de Jaguaripe, creada por lei provincial de 2 de Junho de
1840, que lhe deo por termo parte da villa de Jaguaripe, ficando separado
d`elle pela Estiva e pelo ribeiro Jequiriça por esta parte, confinando por outra
com o termo da freguezia de Nazareth nas adjacências das terras dos
índios
31
.
Em 9 de junho de 1891, através de um Ato Estadual, a freguesia tem o seu nome
simplificado para Aratuípe e passa à categoria de Vila e sede de município: “O município,
28
ACCIOLI. Memórias históricas e políticas da Província da Bahia, Vol.I, p.175, (nota 4 de Braz do Amaral)
29
Livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora Santana. S/D
30
APEB. Arquivo Público do Estado da Bahia. 2º volume, primeira parte, fl.147.
31
Diccionario Geographico, Topographico e Histórico do Império do Brazil, pp 467,468.
23
com sede na povoação de Santana da Aldeia e a denominação de Santana de Aratuípe...”
32
passando a ter como território toda a freguesia de Sant’Anna da Aldeia, o da freguesia de
Nossa Senhora do Cariri de Nova Laje e o Distrito de Maragogipinho, que pertencia a Nazaré.
Tendo, em 1905, seu território sofrido grande perda com a criação do município de Nova
Laje, denominado Município da Vila da Laje, através da Lei 595, de 20 de julho de 1905,
em 31 de dezembro de 1943 o município de Aratuípe foi extinto pelo decreto Lei Estadual
141, incorporando-se novamente ao território de Nazaré. Em de junho de 1946 tem
restaurado o status de município por novo decreto 12.978, como também atesta o
documento encontrado na paróquia.
O nome Aratuípe, segundo alguns moradores mais velhos, vem do Tupi-Guarani e
tanto quer dizer vento sereno (brisa) como ave pacífica, ou ainda rio dos caranguejos. Para
algumas pessoas, o nome é uma referência a um cacique ali existente nos primórdios da
povoação. Reza uma lenda que Aratuípe também foi o nome de uma guerreira índia dotada de
beleza ímpar e que ajudou o bandeirante italiano Paolo Capucci Maggitti a escapar das mãos
de antropófagos índios tamoios, fugindo com o mesmo até a cidade de Salvador e de
partindo para a Itália onde constituiu família com o foragido.
No dia sete de setembro de 1922, centenário da Independência do Brasil, o Diário
Oficial do Estado da Bahia, na sua Edição Especial, revelava:
Aratuípe é termo pertencente à Comarca de Nazaré, servindo de marco o
território do extinto Aldeamento dos Índios de Santo Antônio: pelo sul, com
o Município de Jaguaripe, servindo de marco o rio da Dona até o Engenho
São Bernardo. Pelo poente com os municípios de Santo Antônio de Jesus e
Laje. Pelo nascente o rio Jaguaripe, onde faz barra o rio Aratuípe..
É atravessado pelos seguintes rios: o Aratuípe, que nasce a doze quilômetros
distante da cidade, banha esta, dividindo-a em dois bairros, ligados por uma
ponte de pedra e cal, e vai desaguar no rio Jaguaripe, recebendo em seu
percurso o rio Barro Podre, sendo navegado de sua foz até a cidade que lhe
o nome (Aratuípe); o Maragogipinho, que banha o povoado do mesmo
nome, e tem sua nascente a quinze quilômetros do arraial, na lagoa
denominada Maragogipinho faz moer diversos engenhos de úcar e é
navegável desde o lugar denominado Água Doce até a sua foz no rio
Jaguaripe, a distância de um quilômetro abaixo do povoado; o Onha, com o
percurso de setenta e dois quilômetros, faz moer diversos engenhos de
açúcar e deságua no Jaguaripe, na povoação do Onha, não é navegável, e o
32
Actos do Governo do Estado da Bahia, 28 de novembro de 1889 a 30 de junho de 1891, p.38, e 3 de janeiro a 30 de junho de 1891, p.64.
Coleção no Arquivo Público do Estado da Bahia
24
rio da Dona, que nasce na serra da Jibóia, e com grande percurso, serve de
limites, a este Município de Aratuípe com os de Jaguaripe, Laje, São Miguel
e Santo Antônio de Jesus, e deságua no rio Jaguaripe.
No Paço Municipal funcionam no rez do chão, o Quartel, a Cadeia e a
Arrecadação Municipal. Possui os seguintes templos: Igreja Matriz, capelas
de Guadalupe, e de Nossa Senhora da Conceição (em Maragogipinho), Santo
Antonio dos Índios, no subúrbio, numa grande eminência. Esta capela foi
levantada nos fins do século XVI, por descendentes de Paulo de Argolo
Menezes.
A navegação é feita por barcas e saveiros de velas que conduzem para a
capital e portos da costa os diversos produtos da lavoura que afluem ao
mercado
33
.
Os horizontes geográficos de Aratuípe ainda são os mesmos, suas fronteiras naturais
emolduradas ainda por uma escassa mata atlântica, definem um território guardado por rios,
manguezais, riachos, lagoas e quedas d`água, que trazem no canto das lavadeiras a harmonia
de uma natureza que ainda expõe, a moradores e visitantes, uma profunda sensação de paz.
Aratuípe tem velhas fazendas, muitas trazendo em seu nome a herança do passado colonial,
como a Engenhoca, os Engenhos de “Cima”, de Baixo”, do “Buraco”, do “Meio” e de
“Dentro”, antes especializados em produzir açúcar, aguardente e rapadura, “um município da
microrregião do baixo sul do recôncavo baiano com área geográfica de 177.15 km²,
localizado no Recôncavo Baiano, com uma população, estimada pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) no censo do ano de 2007, de 8.507 habitantes”
34
. Como
sugere o mapa do recôncavo baiano:
33
Jornal À Tarde, edição de 7 de setembro de 1922
34
Portaria nº 2025. IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dezembro o de 2007
25
Figura 1.
35
Os limites traçados abaixo são de um mapa, que consta do folder comemorativo dos
cem anos de emancipação política do município, datado de 1991:
35
Guia Cultural do Recôncavo Baiano
26
Figura 2.
36
Das várias pessoas entrevistadas na construção deste trabalho, obtive relatos
carregados de tristeza daqueles mais idosos, unânimes em revelar o tanto de glória de um
passado, hoje, travestido em saudade e ruínas. Há, em Aratuípe, principalmente nas pessoas
36
Folder comemorativo dos cem anos de emancipação política do município de Aratuípe
27
com mais de quarenta anos, um descontentamento pelo atraso econômico do município que
ainda tem no repasse mensal do Governo do Estado, via FPM (Fundo de Participação dos
Municípios), sua maior fonte de renda. Também em suas narrativas transparece a saudade das
Boites Preto Velho, Novo Rio e Ana Preta, somada aos também extintos Banco de Crédito
Nacional, as Micaretas, as gigantescas procissões de Nossa Senhora Santana, esta terrestre, e a
do Bom Jesus dos Navegantes, marítima, as brigas de boi, o Nacional Futebol Clube,
campeão do Campeonato Municipal de Futebol em Nazaré em 1978, os programas de alto-
falantes na Igreja Católica, os shows de calouros que animavam as tardes de domingo, os
saveiros e, é claro, a Capela de Santo Antônio dos Índios.
Essa Capela citada como pólo matriz do povoamento de Aratuípe, é uma das maiores
referências das ruínas que sobraram do passado, segundo o Jornal A Tarde, da cidade de
Salvador, na sua edição de 23 de novembro de 1988, conforme o seguinte artigo:
Capela de Santo Antonio dos Índios.
...Apesar de sua origem remota, a edificação deve ser anterior ao século
XVII, levando-se em consideração o aspecto e estilo arquitetônico. E está
bastante mutilada, pois resta apenas a nave e as colunas do alpendre lateral,
mas ainda se percebe que trata-se de uma casa com partido em “T”, isto é,
com nave e duas sacristias simétricas, Capela-mor, com alpendres frontal e
lateral. Existem anexos os alicerces de uma antiga construção, que
provavelmente abrigava a escola e o convento jesuíta. A capela é de típico
exemplar da arquitetura no que o seu proprietário, Aimbiré Ribeiro Soares,
procura conservar a qualquer custo. Numa correspondência enviada a ele, a
Coordenação do Fomento ao Turismo esclarece que a Capela poderá ser
transformada num pequeno museu onde serão reunidas as peças encontradas
em escavações do sítio arqueológico cuja manutenção ocorreria por conta do
próprio município
37
.
Passados quase vinte anos da edição dessa matéria, a capela, datada de 1558,
continua abandonada e também o sítio, que não tem nos descendentes do senhor Aimbiré
Ribeiro Soares herdeiros preocupados com a conservação do lugar, nem teve do poder público
municipal a atenção que se poderia esperar. Sobre a decadência do lugar, a professora
aposentada Zenyldes Pereira, viúva por duas vezes e revelada devota de Santo Antônio, diz:
todo ano no dia 13 de junho, tinha a Festa de Santo Antônio da Capela dos
Índios, tinha a celebração da missa e a procissão descia a colina, percorria as
37
Jornal À Tarde, edição de 23 de novembro de 1988
28
ruas da cidade, encontrava a Imagem da padroeira Nossa Senhora Sant’anna,
que recebia a de Santo Antônio, passava pela Matriz, aí se recolhia a da
Padroeira, enquanto a de Santo Antônio voltava para a sua capela. Agora
acabou. Olhe que meu filho nasceu em 1983 e naquele ano não tinha mais
a procissão, a missa, que até seis anos atrás a gente ainda rezava. Isso
antes da Igreja cair, aí trouxeram a imagem de Santo Antônio e colocaram no
salão paroquial da Igreja Matriz
38
.
A professora Zene, como é conhecida na cidade, revela que há mais de vinte e cinco
anos não é realizada a procissão com a imagem de Santo Antônio, a decadência da festa
religiosa veio acompanhada das dificuldades de acesso ao lugar, um sítio distante do centro da
cidade mais de três quilômetros, ligado por uma enladeirada e constantemente enlameada
estrada de terra, onde uma Igreja mal conservada, e com sua estrutura física em iminente
perigo de desabamento.
Figura 3.
39
Lembrar as festas religiosas, para muitos, em Aratuípe, é voltar a um passado idílico,
construído pelas lembranças da filarmônica Lira Siciliana, com seus músicos aratuipenses - e
outros tantos, convidados, de cidades vizinhas como Nazaré, Santo Antônio de Jesus e do
distrito de Jiribatuba, pertencente ao município de Vera Cruz - que conduziam com suas
38
Zenyldes Pereira, professora aposentada, moradora da rua da Glória, atual rua Elísio Cardoso. Entrevistada em 28 de dezembro de 2007
39
Igreja de Santo Antonio dos Índios, acervo pessoal.
29
marchas e dobrados as longas procissões pelas ruas da cidade e também nos saveiros que
singravam os rios na procissão do Bom Jesus dos Navegantes. Para muitos moradores,
Aratuípe é um velho quadro pintado em suas memórias, e nos bate-papos dos homens e
mulheres mais velhos, o é raro perceber as “disputas” para saber quem conhece mais sobre
os tempos idos.
Uma das pessoas que melhor traduzem em palavras essa saudade de um passado
“glorioso” é o memorialista Osmadil José dos Santos, de 52 anos, atual Diretor de Cultura do
Município. Osmadil relembra minuciosamente pessoas, eventos, instituições e fatos que
marcaram a história da cidade de Aratuípe em um passado não tão distante:
Eu não acho errado quando se diz por que Aratuípe é a cidade do “já
teve”. Ora! a melhor cachaça da região era produzida aqui, tínhamos duas
filarmônicas, dois cinemas e um teatro, várias salgadeiras. Vosabe porque
quem nasce em Aratuípe é chamado de Papa-Xebêu? Se o melhor Xebêu
40
era o nosso, tinha banha de porco melhor? Nós tínhamos fábrica de
vassouras, serrarias, várias olarias, charqueadas, juiz de direito que morava
no município, um imenso desfile no dia da Independência do Brasil. Eu me
lembro de tudo, se tem uma coisa que eu tenho mesmo é memória. E tem
mais, aqui mesmo na praça era a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, ali
na casa da professora Nilza foi um Convento, sem falar da fábrica de
charutos, de tamancos, das lojas de tecidos, dos armazéns, das vendas. Aqui
se fazia antigamente um refrigerante natural, feito em barril de madeira, com
gengibre e rapadura, tudo antigamente
41
.
Aratuípe não é mais esse quadro pintado nas paredes da memória de Osmadil,
embora seja ele tão preocupado em resgatar as histórias do povo do lugar. Dono de um
caderno de memórias, ele se preocupa em registrar fatos do passado e do presente, todos
meticulosamente escritos à mão, como inaugurações de obras públicas, os nomes de todos os
intendentes, prefeitos e vereadores do município com seus respectivos mandatos e votações, e
até datas de falecimento de pessoas comuns, mas que de alguma forma marcaram a vida
daquele senhor. Assim, as memórias são, por conseguinte, resultado da experiência humana e
particular de cada sujeito como reconstrução e representação seletiva do vivido
42
. O que para
muitos é um simples devaneio, para ele é um ato prazeroso e uma demonstração de amor ao
40
Xebêu– Toucinho da barriga do porco, frito na própria banha do animal.
41
Osmadil José dos Santos, diretor de cultura do município de Aratuípe, entrevistado em 12 de janeiro de 2008
.
42
Alistair Thomson. Recompondo a Memória: Questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias. IN: Revista Projeto História,
15, Ética e História Oral, PUC-SP, abril de 1997.
30
lugar em que nasceu, o que fica evidente nas conversas, que mais parecem monólogos, dada a
satisfação desse homem em falar do lugar em que vive.
Não é raro encontrar essas figuras emblemáticas em Aratuípe, vivas ou póstumas,
suas histórias, suas aventuras, seus “causos”, sempre relatados com bom humor, estão
fincadas nas memórias das pessoas. Um visitante de primeira viagem certamente voltaria à
sua terra, conhecendo Alice Brejéu, Maria Pamonhão, Toinho de João Borges, Tomás da
Loja, Manuel do Bar, Lelé Parteira e tantas outras personagens reais, marcadas pelo
comportamento solidário, pelo cotidiano de alegria ou até mesmo pela loucura.
Muitos dos aratuipenses, de hoje, foram aventureiros que por passavam e
resolveram ficar, alguns ex-trabalhadores de empresas como a Sortecom, especializada em
terraplanagem, que no final da década de sessenta estabeleceu-se em Nazaré; a Montreal,
instalada na cidade de São Roque do Paraguassu nos anos setenta, com a finalidade de fazer
prospecção petrolífera; e a Odebrecht, essa em princípios dos anos noventa encarregada da
construção da rodovia Ba-01, que liga o município de Nazaré ao de Valença e margeia a
cidade de Aratuípe. Essas empresas não absorveram mão de obra da cidade, como
utilizaram as pensões e criaram alojamentos no município para os trabalhadores de outras
cidades, o que fez com que muitos daqueles homens, mesmo depois da obra finalizada,
resolvessem ficar e constituir família em Aratuípe.
Hoje a cidade ainda tem no setor agropecuário a sua maior atividade produtiva,
com a produção do dendê e da mandioca sendo priorizadas - mesmo que nessas atividades
ainda sejam utilizadas práticas ultrapassadas de cultivo, com pouca eficiência e produtividade
- além da cerâmica artesanal do distrito de Maragogipinho e do extrativismo da piaçava que
subsidiam a economia do município. A agro-indústria artesanal, que tem por característica a
comercialização in natura ou semi-processados dos produtos, agrega baixo valor de renda e
consequentemente remunera mal quem a produz; são exemplos a farinha de mandioca,
produzida em grande parte nas três casas de farinha comunitárias do município, a cachaça, o
melaço de cana e rapadura, produzidos nos cinco engenhos da zona rural, além do azeite de
dendê, produzido nos vários rodões distribuídos pelo município.
Grande parte da população de Aratuípe, no entanto, vive do pescado, daí a
importância que exercem as águas na vida daquelas pessoas não apenas como fonte de
sobrevivência, já que do mar não tão distante da cidade e dos vários rios que lhe cortam, como
o Aratuípe, o Água Doce, o Barro Podre, o Caraípe –Acú e o Caraípe-Mirim, o Onha, o Rio
da Dona e o Jaguaripe, não saem apenas o pescado, mas também o universo imaginário, lugar
dos mitos e ritos que permeiam as histórias do povo aratuipense.
31
1.2 - “SOU NASCIDO E CRIADO NAS ÁGUAS!”
A história de Aratuípe confunde-se com a história dos seus pescadores. A
proximidade da Baía de Todos os Santos e os vários rios que banham o seu território
contribuiram para a aglomeração dos pescadores, principalmente nos bairros da Cidade de
Palha e do Camamu - em ruas como a da Bomba, Tombo, Largo de Iemanjá, Rua do Café,
Drº João Martins, Borrachudo, Rua da Piranga e Alto da Favela - localidades caracterizadas
por uma extrema pobreza da população e que se tornara palco das histórias da Sereia. A
história local, em muitos estudos menosprezada, assume aqui o importante papel de entender
os indivíduos como cidadãos da sua cidade de origem. Porque, segundo Pierre Goubert,
A pessoa é antes de tudo o lugar...”, enfatizando ainda que chamaremos
História local (aquela que diz respeito a uma ou algumas aldeias pequenas e
médias cidades)... na verdade, quem chegue mesmo a afirmar que
somente a História local pode ser verdadeira e bem fundamentada.
43
A rua do Alto da Favela, recém pavimentada com paralelepípedos, tem como traço
típico de sua arquitetura casas pequenas e baixas, grande parte delas de parede meia
44
e a
via central estreita, não permitindo, por exemplo, mão dupla para automóveis, que quando
transitam por requerem dos condutores uma atenção redobrada, dada a presença de
inúmeras crianças que ainda se divertem com brincadeiras tradicionais como amarelinha, jogo
de gude, pião e pipa. a impressão de que o alto da favela está fincado nos meados do
século XX.
43
GOUBERT, Pierre. História Local História e Perspectiva, n.º 6 Uberlândia, Jan –Junho de 1992 p 98.
44
Parede – meia - Parede divisória entre duas casas contíguas.
32
Figura 4.
45
Os moradores de lá são em sua maioria pescadores. Dentre eles, está o senhor
Aloísio Lima, aposentado, dono de uma pequena venda intitulada “Barraca do Aloísio”, que
se tornara o agradável local dos nossos bate-papos e também dos nossos “exercícios de
memória”. Certamente Aloísio, como corriqueiramente o chamam, às vésperas dos seus
sessenta anos, foi o mais importante personagem na inspiração deste trabalho. Seus relatos,
entremeados pelo bom humor de um negociante sagaz, que não se abate com o costumeiro
“fiado”, tampouco com o entra e sai dos netos, pedindo mais uma merenda, me fizeram
aguçar ainda mais um indecifrável sentimento de prazer pela pesquisa.
Aloísio ainda guarda, orgulhoso, recibos de compra e venda de produtos em
Salvador, assim como os documentos da Capitania dos Portos da Bahia que o autorizavam a
navegar, guiando o leme dos saveiros pela Baía de Todos os Santos. Lembrar desses
momentos o faz recordar algumas passagens que evidenciam o orgulho de ser pescador,
aliado às aventuras vividas no mar:
45
Foto da rua Alto da Favela, acervo pessoal.
33
Sou nascido e criado nas águas, tapo caranguejo
46
, boto muzuá
47
prá apanhar
amoreia (provavelmente Moréia), sou pescador de rede, sou embarcadiço
48
,
tudo com as águas. Peguei viajar prá Salvador quando inaugurou a ponte do
funil
49
. O primeiro barco que eu viajei foi o “É da vida”, o segundo o “Não
errei” de Juvenal, o terceiro o “Alve”, que vivia na mão de Dino Grande,
depois o saveiro “Vênus”. Fui também no “Monte Orebe” de Jaguaripe
Indústria Brasileira de Ioe o último foi o “Bahia” de meu pai Zezinho...
Outra vez emborquei em Jaguaripe e me perdi em cima do mar e o Ferry-
Boat Gal Costa me puxou da meia trevessa”
50
até São Joaquim, e o “Monte
Orebe”, outro saveiro, me puxou até Itaparica, e de Itaparica pra Jiribatuba,
um barco soleiro
51
, chamado “Boinho”.
E teve outra que arranquei o leme na boca do rio de Candeias, quem desceu
pra botar a ferragem foi João Curió. Era prá ir um dos três: eu, Déo meu
irmão ou ele. Era perigoso, e ele foi porque era o que tinha menos
“boca”
52
(filhos). Também já me bati na ponte do funil
53
.
A ausência de determinadas tecnologias exigia maior tempo dos pescadores longe da
terra, e essa longa permanência no mar acabava por reforçar os laços de solidariedade, mas
também influenciava no acirramento dos conflitos e tensões. Nesse depoimento de Aloísio, a
referência a um problema na embarcação sugere uma significativa forma de solidariedade,
onde, dos três tripulantes, o trabalho mais perigoso seria realizado pelo que tivesse menos
filhos.
um risco sempre constante na arte de navegar, e os pescadores deixam sempre
evidente em seus depoimentos e em seus reservados silêncios o sentimento de inquietação
pela fragilidade das embarcações, e que, segundo Simone Maldonado, os pescadores
franceses chamam de “a tábua que nos separa do reino dos mortos”,
54
quer seja pela
mobilidade do mar, quer pela possibilidade de sofrer agressão de peixes grandes.
As atividades a que o senhor Aloísio se refere são repletas de aventuras de um
homem que, por muitas vezes, revelara-me ter-se “educado no mar”, quando passara a
46
Tapar caranguejo – Capturar caranguejo no manguezal.
47
Muzuá – Armadilha em forma cônica para apanhar peixes.
48
Embarcadiço – Marinheiro
49
Referência à ponte erigida na Bahia de Todos os Santos sobre o estreito do funil, que liga o Recôncavo Baiano a Ilha de Itaparica.
50
Meia trevessa – Também chamada pelos pescadores de Meia água. Referência à metade do caminho entre a Ilha de Itaparica e a cidade de
Salvador, separadas pela Baía de Todos os Santos.
51
Barco soleiro – Barco de pesca, à motor, com velas pequenas.
52
Menos “boca” - Alusão à quantidade de filhos.
53
Aloísio Lima, entrevistado em 10 de setembro de 2006
54
MALDONADO, Simone Carneiro. Mestres e Mares: espaço e indivisão na pesca marítima. São Paulo: Annablume,1993, p. 72
.
34
navegar para Salvador em 1968, ano da inauguração da ponte do funil, local que acesso ao
mar aberto e que, para o navegador, ter esse enfrentamento com os perigos que o oceano
impõe dá–lhe, além de maturidade e sabedoria, uma suposta posição hierárquica em relação
aos seus pares, uma distinção pela habilidade e pela virtude, fato que consegui perceber na
construção desta pesquisa quando, por tantas vezes, pescadores mais novos faziam alusões
àqueles que, por necessidade ou mesmo ousadia, aventuraram ir a lugares mais distantes em
suas pequenas embarcações, geralmente o Saveiro, como o próprio Aloísio atesta em
depoimento:
Viajava, só olhava assim Jaguaripe abaixo que fechava Cacha-Prego, eu
dizia: agora não vou montar barra não, vou ficar embaixo, quando limpar eu
saio. limpava, eu saía. Quando eu chegava em Matarandiba que olhava
prá Itaparica não enxergava nada. “Vou ficar aqui em Matarandiba”, quando
clareava, viajava até Ponta de Areia. Quando chegava em Ponta de Areia
olhava prá Ribeira, tudo fechado, eu dizia: “de madrugada eu saio”. Pronto,
amanhecia o dia na Ribeira. Graças a Deus não sou valente, não sou ladrão,
não sou invejoso, não sou de tudo o que falar. Tudo que a gente faz a
gente tá emprestando
55
.
Aloísio retrata as dificuldades de um tripulante que, mesmo experiente, era
vulnerável às condições da maré, do clima e dos ventos. Impedido pela “viração”
56
de
enxergar o horizonte, sua habilidade em ler o tempo da natureza e o seu “código de conduta”,
respaldado numa postura ética, lhe proporcionava ao menos a segurança necessária para
alcançar o seu destino final.
O principal meio de transporte de carga do Recôncavo Sul baiano foi o saveiro,
projetado para o transporte de mercadorias e adaptado perfeitamente às condições marítimas
da região
57
. Em sua obra Matas do Sertão de Baixo, Isaías Alves revela:
A duração da jornada, sobre o rio de água salobra, dependia das condições,
favoráveis ou não, das marés e dos ventos. O corriqueiro e típico predomínio
da brisa leve no rio diminuía a velocidade do barco e, com a baixa da maré,
os bancos de areia apareciam impedindo a continuidade da viagem. Então se
55
Aloísio Lima, depoimento citado.
56
VIRAÇÃO – Mudança brusca de tempo. Brisa que se transforma em vendaval, tempestade.
57
Pedro Agostinho nos fala de uma possível característica do saveiro do Recôncavo com os tipos de embarcação do Mar Mediterrâneo, o
que, segundo ele, seria o saveiro talvez, uma herança das típicas barcaças deste mar. In: Embarcações do Recôncavo: um estudo de origens._
Publicações do Museu do Recôncavo Baiano Wanderley Pinho.
35
fundeava o saveiro, jogando a âncora na areia para esperar o próximo
lançamento da maré - cerca de oito horas – que traria bons ventos para seguir
a viagem, que geralmente era suave, salvo algumas tempestades
58
.
Das lembranças do tempo em que navegava, tanto nos rios como em mar
aberto, não é raro perceber nas palavras de Aloísio a saudade e a tristeza ao lembrar das
viagens, do sair ileso dos perigos do mar e das “armadilhas” das transações comerciais nos
Portos de Salvador. Nos olhos cansados daquele homem sisudo, navegam lembranças das
velas brancas, dançando ao sabor do vento nas águas da Baía de Todos-os-Santos, época em
que o transporte de mercadorias entre Salvador e as cidades do Recôncavo Baiano era feito
pelos tradicionais saveiros vela de içar. Antonio Risério, em Uma história da Cidade da
Bahia, revela que
Salvador não vivia sem o Recôncavo, e o Recôncavo não vivia sem a sua
capital
59
,
citando uma observação de István Jancsó que exemplifica um pouco a intensidade e
importância da relação entre Salvador e o Recôncavo baiano em tempos da Colônia e do
Império do Brasil; ele complementa, “a cidade e o Recôncavo formavam um todo
notavelmente interposto e integrado”
60
.
E continua Risério:
As muitas águas da região, fossem elas praieiras ou interioranas,
marítimas ou fluviais, eram constantemente cruzadas nas mais variadas
direções, com os barcos, os saveiros e as canoas transportando, de um
lado para o outro, números e inúmeras mercadorias. De certa forma,
podemos dizer que ilhas e vilas do Recôncavo, juntamente com a cidade
da Bahia, formam um rendilhado uma poética historicamente
solidária
61
.
Foi exatamente pela quantidade de rios, e também pela proximidade de Salvador,
que os pescadores, nessas pequenas embarcações a vela abasteceram importantes mercados da
capital baiana, como as Feiras de São Joaquim, Água de Meninos e Ribeira, sempre propensos
a negociar o peixe, a farinha, o azeite de dendê, a piaçava, o caranguejo, a cerâmica artesanal,
a banana, “a gente saía sábado ou domingo, dependendo da maré, e voltava terça ou quarta,
dependendo do tempo bom, a gente enfrentava o tempo quando tava de meia água pra cá,
58
ALVES, Isaías. Matas do Sertão de Baixo. Rio de Janeiro, Reper, 1967. pp. 35- 36.
59
RISÉRIO, Antonio. Uma história da Cidade da Bahia. Salvador: Versal Editores, 2004, p.55
60
JANCSÓ, István. Na Bahia contra o Império. IN: RISÉRIO, Antonio. Uma história da Cidade da Bahia. Salvador: Versal Editores, 2004
p.56
61
RISÉRIO, Antonio. Op cit. p.56
36
porque não pode voltar não, é pior”.
62
Segundo Kátia Mattoso, as vias terrestres eram
precárias e insuficientes, mas em Salvador e sua região, havia água por toda parte, e esta era a
“estrada” pela qual circulava parcela considerável das nossas riquezas”
63
.
A construção de
rodovias e o uso dos caminhões, aliados a outras dificuldades, remeteram o saveiro ao
esquecimento, e para Aloísio, por exemplo, resta além das suas lembranças a imagem do
saveiro Bahia, do seu pai Zezinho, desenhado em um papelão e exposto como um troféu nas
sujas paredes da sua barraca.
Figura 5
64
Para além dessa perspectiva, não só aqueles que se dedicavam à pesca e ao comércio
local do pescado são pescadores, mas também os que se aventuravam pela Bahia de Todos os
Santos, nos saveiros, como tripulantes que comercializavam outros produtos além do pescado.
Era o que normalmente ocorria também, com os pescadores de Maragogipinho, distrito do
município de Aratuípe, distante seis quilômetros da sede, e que tem em grande parte da sua
população oleiros especializados em produzir peças artesanais de cerâmica, o que deu ao
distrito o status de um dos maiores pólos de cerâmica artesanal da América Latina. Esses
oleiros, no entanto, se vêem com sérias dificuldades para comercializar o seu produto, pois o
maior evento de comercialização das peças é a Feira dos Caxixis que acontece anualmente no
vizinho município de Nazaré das Farinhas. O caráter anual da feira deixa os artesãos ociosos
durante grande parte do tempo. Assim, a alternativa encontrada é revender seus produtos em
outros centros (Salvador, por exemplo) ou praticar outras atividades produtivas que garanta a
sobrevivência. Em função disso, muitos oleiros e também pedreiros, agricultores, marceneiros
62
Aloísio Lima, depoimento citado.
63
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX: Uma província do Império. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira. 1992, p. 75.
64
Foto do desenho de um Saveiro exposto na Barraca de Aloísio, acervo pessoal.
37
e cabeleireiros de Aratuípe alternam suas funções originais com a de pescadores. O pescador
da cidade de Aratuípe, Luiz Antônio Coelho Conceição de 36 anos, conhecido na cidade
como Tonho de Valda, morador da rua do Tombo, atesta isso:
quando aparece uma coisa melhor, não vou mentir, eu largo a pescaria. Mês
passado mesmo eu fui prá Salvador trabalhar como ajudante de pedreiro
porque era uma coisa certa. Eu sou trabalhador, crio meus filhos com a
pescaria, mas na pesca é complicado...!
65
Tonho de Valda não nega a frustração em não ser jogador de futebol profissional.
Desde menino, assediado por várias pessoas interessadas em seu talento para o esporte,
recusou inúmeras possibilidades de sair da cidade e se aventurar em outros estados. Ainda
hoje, aos 36 anos, divide o seu tempo entre a pescaria, outras atividades profissionais como a
de ajudante de pedreiro e as partidas de futebol em times amadores da região. Casado, e com
dois filhos adolescentes, Tonho de Valda satisfação em sua vida de pescador, um
contentamento travestido nas palavras de um pai responsável, que com essa atividade
alimenta a sua família, embora não esconda as dificuldades inerentes a sua ocupação
Pelo fato de existir um grande entorno marítimo e fluvial, uma das mais
significativas formas de sobrevivência do povo do Recôncavo Baiano foi a pesca e é até hoje
o sustento de inúmeras famílias; mas seu caráter sazonal impõe sérias dificuldades à
sobrevivência do pescador. É comum, entre os pescadores do Recôncavo, essa alternância do
trabalho do mar com o da terra,
66
e o depoimento de Tonho de Valda revela essa
característica. As migrações para centros economicamente mais dinâmicos são constantes,
não raro os pescadores fixam residência nesses centros, onde comumente atuam em atividades
informais ou engrossam as fileiras do desemprego nas grandes cidades.
Um fato importante, no tocante aos pescadores de Aratuípe, é que eles, em sua
maioria, não se caracterizam como pescadores marítimos, especificamente de alto mar, os
relatos apontam para uma pesca eminentemente fluvial, excetuando-se alguns que se arvoram
ocasionalmente a enfrentar as águas salgadas, fato que é explicado pela carência técnica das
embarcações, como motor, refrigeração, instrumentos eletrônicos de pesca e de comunicação
65
Luiz Antônio Coelho Conceição de 36 anos, entrevistado em 20 de dezembro de 2007.
66
Para uma importante discussão sobre relação do tempo da natureza com localidades que estabelecem suas rotinas de trabalho com base nos
condicionamentos climáticos, ver THOMPSON, E.P. O Tempo, a Disciplina do Trabalho no capitalismo industrial.In:SILVA, Tomáz Tadeu
da. (org.). Trabalho, Educação e Prática Social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
38
e pelo fato de já serem encontradas determinadas espécies de peixes de águas salgadas nas
águas salobras da foz dos rios.
Essa pesca é realizada em grupo e normalmente prevalecem os laços de parentesco
na organização e na divisão do trabalho. São irmãos, primos, pais e filhos que partem para o
rio, o que propicia, segundo eles, um menor risco de conflitos e de brigas interpessoais,
facilitando os pactos e inferindo afetivamente as tomadas de decisão. Segundo Davis,
A família não pesca junta idealmente, como os membros não pescadores,
mulheres e crianças que permanecem na terra durante as ausências dos
homens, lhes dão suporte afetivo e emocional para o cotidiano do mar e para
as tensões de retomada da terra na volta dos botes
67
.
na pesca e no cotidiano do pescador, seja no mar ou na terra, um ritmo de
trabalho que foge às regras do assalariamento e mesmo da jornada de trabalho de outras
categorias de trabalhadores. Isso transforma o pescador em um trabalhador sui generis, que se
distancia da sociedade e tem diferentes noções de espaço por conta de sua atividade, uma
temporalidade diferenciada, seja pelo “tempo” de cada peixe, pelas diferentes tecnologias ou
mesmo pelos interesses do mercado onde será vendido o peixe, como atesta Maldonado
citando Andersen e Cunha:
Não é raro que os pescadores passem fins de semana e feriados pescando e
que numa quarta-feira sejam vistos em terra, bebendo ou consertando redes e
botes, por ter sido interessante em termos de “safra” e em termos da presença
dos compradores na praia e no mercado, pescar nos feriados, para poder
trazer o peixe para terra em dias “úteis”
68
.
Trabalho e vida cotidiana são quase indissociáveis, e o pescador tece seu tempo com
maior fluidez. Assim é que, para Castellucci:
Em um mundo onde as relações de trabalho ainda estão submetidas às
determinações e aos condicionamentos do tempo da natureza, é quase
67
Davis,DonnaL.-“Ocupational Communities and Fischermen`s Wives in a Newfoundland Fishing Village”, Anthropological Quartely
59(3), 1986, in Maldonado, Simone Carneiro. Mestres e Mares: espaço e indivisão na pesca marítima. São Paulo: Annablume,1993.Selo
universidade; p.7
68
Andersen, Raoul e Cato Wadel (eds.) - North Atlantic Fischermen: Anthropological Essayis on Modern Fishing, Memorial University of
Newfoundland, 1972. Cunha, Lúcia Helena de O. Tempo natural e Tempo Mercantil na Pesca Artesanal, II Encontro das Ciências Sociais e
o Mar, IOUSP, F.Ford, UINC,1988. In MALDONADO, Simone Carneiro. Mestres e Mares: espaço e indivisão na pesca marítima. São
Paulo: Annablume,1993.(Selo universidade; p. 7)
39
patente a inexistência de uma grande dicotomia entre trabalho e vida
cotidiana. Por vezes, as diversas dimensões da vida são tão fortemente
imbricadas, que se torna difícil estabelecer rigorosos e compartimentalizados
turnos de trabalho e de descanso
69
.
Segundo Heller, para quem toda a “vida cotidiana é constituída em torno da
organização do trabalho, à qual se subordinam todas as demais dimensões do viver
70
,
o
cotidiano dos pescadores parece inverso ao de outros trabalhadores, e é. De acordo com
Maldonado, referindo-se às formas dos pescadores em lidar com o tempo, não é muito raro
nesse ambiente flagrar-se, em plena luz do dia, pescadores se divertindo numa mesa de bar, e
no turno da noite, labutando com as marés. O que determina o horário de trabalho pode não
ser o ponteiro do relógio.
71
E esse dualismo tempo x trabalho, também é pensado por Edward
Thompson nos seus estudos sobre a Inglaterra, quando afirma que “não existe grande conflito
entre trabalhar e passar o tempo”
72
, o que alude à realidade da comunidade pesqueira de
Aratuípe.
A diversidade e abundância de peixes e mariscos nos “vários rios e estreitos” da região
do Jaguaripe são relatadas no século XVIII pelos viajantes e estudiosos que percorreram a
região. Luiz dos Santos Vilhena relata em suas cartas sobre a Vila de Jaguaripe que “havia no
seu termo bastantes ilhas, vários rios e estreitos, onde se pescava o delicioso peixe, e tirava
diversos mariscos em suma abundância, que constitui o sustento ordinário dos seus
habitantes”
73
.
Muitas famílias empregam as mulheres e crianças no processo de “catar” o
crustáceo, meticulosa tarefa que ocupa a família por noites a fio, inclusive adentrando
madrugada. O resultado do trabalho, em geral, são alguns poucos quilos de catado de siri,
caranguejo ou aratu, que as crianças, normalmente em grupo, saem às ruas para vender.
Segundo Maria Cristina Maneschy:, “a divisão sexual do trabalho atribui às mulheres as
atividades em terra, principalmente as realizadas no âmbito doméstico: cuidar dos filhos e da
casa, preparar o peixe trazido diariamente por seus maridos, fazer o café que eles levam a
69
CASTELLUCCI nior, Wellington. Pescadores da Modernagem: cultura, trabalho e memória em Tairu,BA (1960 1990). São Paulo:
Annablume, 2007, p.93.
70
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. 4ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 18.
71
MALDONADO, Simone Carneiro.Op cit. p..9
72
THOMPSON, E.P. “ O Tempo, a Disciplina no tempo do Capitalismo Industrial”. p. 48
73
VILHENA, Luiz dos Santos. A Bahia no século XVIII. Vol. II. Salvador: Editora Itapuã,1969, p. 88.
40
bordo, dentre outras atividades”
74
. O queo é regra geral, pois em Aratuípe há outras
implicações, sobretudo de ordem social, que inferem em uma nova realidade.
Os pescadores têm traços identitários que os diferenciam de outros sujeitos sociais,
não apenas pelo ritmo de trabalho. Em Aratuípe, como as embarcações não atracam mais ao
lado do Mercado Municipal, face ao estreitamento do rio aterrado nos anos finais da década
de 80 do século passado para a construção de uma quadra de esportes, não é raro vê-los
guiando carros de mão, trazendo redes e balaios repletos do pescado, avançando em direção à
praça municipal, geralmente em dupla, para vender o peixe. Homens seminus, descalços,
quase sempre de chapéus ou bonés, dispõem-se a vender o produto e ali mesmo dividem o que
arrecadam, e não raro dirigem-se a um bar ou venda próximos para beber.
A bebida alcoólica é companhia constante dos pescadores. Durante a pesquisa pude
observar os momentos de embriaguez de alguns e a desventura de se perder todo o dinheiro
arrecadado com a pescaria nas mesas de jogos de azar. E a evidência do conformismo a
respeito de “ter ou não ter o que levar para casa”, talvez fosse o mais inquietante naqueles
homens que arriscaram as suas vidas nas águas, e o que levam para casa, quando levam, são
os produtos resultantes de uma compra a prazo feita em uma venda próxima de suas casas.
As casas dos pescadores em geral são muito precárias, em muitas ainda não há
esgotamento sanitário, os dejetos são jogados no rio, as casas não possuem banheiro, o piso é
de chão batido e as paredes de barro. Há pelo menos doze anos, a Prefeitura do município, em
parceria com o governo Federal, vem construindo casas populares e destinando às pessoas
com maior carência, em geral os pescadores com suas famílias, ou consertando e aprimorando
algumas outras moradias também dessas famílias.
Novamente voltamos a dialogar com Castellucci, ao afirmar que no interior da casa
de um pescador nativo podem ser encontrados “objetos dispostos nas prateleiras de forma
ornamental, como os enormes búzios apanhados por acaso nas puxadas do calão
75
76
, pedaços
de rede utilizados como cortinas, imagens referentes a Iemanjá ou Santo de devoção. Tudo
parte das raízes da identidade de pescador, forjada na preservação de registros de suas
histórias
77
.
As mulheres, nesse contexto, apresentam-se muito mais ocupadas com o trabalho
74
MANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua, uma comunidade pesqueira ameaçada. Belém: UFPA. CFCH.1993, p. 7.
75
CALÃO – Rede de pesca com três lados retos e um curvo, e munida de pesos.
76
CASTELLUCCI Júnior, Wellington.Op cit , p.94.
77
Sobre constituições identitárias , sugiro a reflexão de Luiz Fernando Dias Duarte em seu texto acerca da importância do trabalho na
constituição dos pescadores artesanais como sujeitos sociais, que ele chama de identidade dos pescadores artesanais: “Me limito aqui a reter
a idéia de que referência à identidade pesqueira é extremamente forte, e que permanece forte, mesmo no contexto de um discurso sobre a
mudança e a decadência que apontam para a disrupção de certas formas tradicionais da pequena produção canoeira e o subseqüente
desencantamento com a introdução da pesca industrial de traineiras.”De Bairros Operários sobre cemitérios de escravos. Um estudo de
41
doméstico do que propriamente com a pesca, o que não quer dizer que elas não se aventurem
em mariscar, tarefa que exige habilidade, mas o requer enfrentamento com os perigos do
mar nem exige o percorrer de grandes distâncias, sobretudo em embarcações, o que
demandaria tempo e, ocasionalmente, passar a noite no rio ou mar, que as atividades
desempenhadas pelas mulheres, ocorrem em manguezais e rochedos próximos ao litoral, nos
períodos de maré vazante.
No passado, poucas eram as mulheres que pescavam de rede em Aratuípe, e os
pescadores são rápidos em enumerá-las, não raro com a admiração de quem respeita a
coragem e a determinação daquelas, em sua maioria desquitadas e viúvas que faziam do rio
sua fonte de sobrevivência. Hoje, elas são várias atuando nessa atividade, são garis,
lavadeiras, agricultoras, artesãs, empregadas domésticas, que usam a pesca com o duplo
fomento de alimentar a família e vender o excedente.
A grande quantidade de filhos e a ausência de assistência social são fatores comuns
às famílias pobres de Aratuípe - o desemprego, o alcoolismo, a violência doméstica e outros
sérios problemas sociais, fazem parte do cotidiano de muitos lares aratuipenses - o que, não
raro, reflete na organização das famílias que, geralmente, são dissolvidas, cabendo às mães a
tarefa de cuidar dos filhos. E, em um universo tipicamente masculino, essas mulheres que se
aventuram a pescar no rio, de canoa, têm não só o respeito e a admiração dos homens, mas se
incluem na sociedade em que vivem, apesar dos preconceitos, como aqueles que fazem da
coragem o seu alicerce cotidiano.
A comercialização dos produtos pescados pelas mulheres não acontece no Mercado
Municipal de Aratuípe nem essas mulheres ocupam aquele espaço para o comércio. As ruas,
sim, são os seus espaços mais comuns. Não raramente vêem-se mulheres e crianças com
mariscos, catados, cordas de caranguejos, côfos com siri, de porta em porta, oferecendo os
seus produtos. Segundo o pescador conhecido como Maneca do Peixe, “a única mulher que
chegou a vender peixe no Mercado foi a mulher do finado Ximbaú de Jaguaripe, mas que não
mora aqui já faz muito tempo. Ela chegava, botava aí e vendia. Mas só foi ela mesmo.”
78
O Mercado tem a área específica da comercialização do peixe, “a pedra”, um
enorme balcão de cimento com o espaço reservado para o peixe, que no sábado, tradicional
dia de feira livre, é dividido com outros produtos, mas que nos outros dias da semana,
inclusive aos domingos, tem todo o espaço apenas para a sua comercialização. Dada a
construção social de Identidade. In LOPES, José Sérgio Leite. Cultura e Identidade Operária: aspectos da cultura da classe trabalhadora.
Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
78
Manuel Crispiniano dos Santos, entrevistado em 5 de novembro de 2007
42
escassez cada vez mais constante do pescado, o espaço que lhe é reservado constantemente
tem ficado vazio, a dificuldade em encontrá-lo no mercado da cidade é resultado da carência
técnica para pescá-lo em alto mar e também devido às encomendas dos supermercados e
frigoríficos da região.
Uma das figuras mais significativas do Mercado Municipal é o senhor Manuel
Crispiniano dos Santos de 64 anos, o “Maneca do Peixe”. Morador do bairro do Camamu, de
posse dos inseparáveis chapéu de palha e cigarro de fumo, perdeu a conta dos filhos que tem.
Sentado em um tamborete, faz jogo do bicho e vende o peixe. Maneca não pesca mais, apenas
vende o peixe, e tem em um de seus filhos, Fernando, de 37 anos, o Feféu, seu herdeiro
natural no âmbito do comércio pesqueiro: “Comprando peixe eu tenho negócio de uns doze
anos. Eu tenho nove camboeiro
79
que traz peixe pra mim”
80
.
Maneca tem no Mercado Municipal uma espécie de habitat natural.
Trabalho aqui há mais de quarenta anos, e aqui é assim: quem chega vende o
peixe. Eu queria que fosse assim: uma parte prá cada (referindo-se ao espaço
da pedra), mas o prefeito não quis, se fosse eu ia mostrar a cada um quem ia
ser melhor, tudo dentro é meu: geladeira, freezer, búzio, balança, peso,
tudo.
81
O Mercado Municipal de Aratuípe, segundo Maneca, foi construído em 1924, data
comprovada na lápide comemorativa, atestando precisamente a sua inauguração no dia 9 de
junho do mesmo ano e em 1952 fôra demolido e reconstruído. Na gestão de Hamilton Lemos
Viana, em fins de 1994, o telhado do Mercado ruiu e o prefeito o interditou, transferindo
feirantes e pescadores para uma área fechada ao lado da Prefeitura. Uma nova reforma foi
realizada pela Prefeitura em 1997, quando reinaugurado passou a se chamar Mercado
Municipal Clarindo Bernardo Barreto.
79
Camboeiro - Pescador de preamar. (Área do rio ou mar, onde, durante a maré baixa, ficam pequenos
peixes e crustáceos.)
80
Fernando Costa Santos, entrevistado em 08 de outubro de 2007
81
Manuel Crispiniano dos Santos, depoimento citado.
43
Figura 6
82
Maneca é um senhor sisudo, de humor variável, cultuador de prazeres que o fizeram
conhecido dos aratuipenses, com o seu pequeno revólver calibre 22, que ele se gaba de nunca
ter atirado, o rapé, cheirado insistentemente e sempre oferecido aos curiosos, vítimas das
gozações resultantes dos involuntários espirros e a cachaça, da marca Carioca, fabricada em
Nazaré das Farinhas que, às noites, o fazem peregrinar pelas vendas da cidade, fazendo samba
de roda em ritmados compassos com os pés e as palmas das mãos.
O enorme Mercado em frente à Praça Municipal é o local dos bate-papos dos
pescadores, dos aposentados e de alguns funcionários da Prefeitura que normalmente se
reúnem ali após o expediente. Daí ser comum encontrarmos sempre as mesmas pessoas, nos
mesmos horários, em um local que antes era pólo de um dinâmico comércio, de uma feira que
atraía compradores da própria cidade e do seu enorme entorno rural. Tanto que
costumeiramente um dos assuntos mais tratados, principalmente entre os mais velhos, é a falta
de movimentação comercial na cidade, fruto, segundo eles, da atração que exercem os
mercados mais dinâmicos, como os da cidade de Nazaré das Farinhas, Santo Antônio de Jesus
e Valença.
Os tradicionais açougues que expunham a carne vermelha por até dezoito horas sem
refrigeração perderam espaço no Mercado Municipal para pequenos açougues frigoríficos
alojados em pequenos boxes. Cada proprietário desses boxes paga à Prefeitura uma taxa de
82
Foto do Mercado Municipal Clarindo Bernardo Barreto, acervo pessoal.
44
manutenção de sete reais semanais, referentes ao aluguel, à utilização da água e energia
elétrica. Em sua totalidade, existem quatorze boxes no Mercado, divididos em funções
variadas, em sua maioria bares que também funcionam como mercearias, vídeo-locadoras e
quatro açougues, que abrem aos sábados, exceto o de Emanuel Jorge Cardoso, aberto de
segunda a sábado, e certamente aquele com maior variedade de produtos. ainda no amplo
espaço central treze bancas expositoras, tabuleiros de madeira removíveis, onde seus donos
vendem hortaliças, frutas e verduras. Entre eles um carpinteiro de 92 anos chamado
Esmeraldo Santana, o mais velho comerciante do Mercado, acometido de uma surdez que o
impede de travar diálogos simples, mas que em uma de suas poucas frases dirigidas a mim,
em uma tentativa de entrevista realizada em sua casa, numa referência ao Mercado,
confessou: “trabalho desde os meus 12 anos, vendendo farinha sempre no mesmo lugar, a
minha vida sempre foi, casa, carpintaria e o mercado, o mercado todo sábado.”
83
entre os comerciantes deste Mercado uma revelada negligência em relação aos
cuidados com a higiene e a saúde pública. É notório o abate clandestino de bovinos, suínos e
aves, a precariedade sanitária e a distante preocupação com a esporádica inspeção da
Vigilância Sanitária, órgão de saúde pública coordenado pela Secretaria de Saúde Estadual via
4ª DIRES (Diretoria Regional de Saúde), sediada em Santo Antônio de Jesus.
As chaves do Mercado ficam com Maneca que, orgulhoso, fez questão de mostrar,
em um dos nossos contatos, a penca com as várias chaves, inclusive as enferrujadas que
outrora abriam as portas que hoje nem mais existem. Maneca é o guardião do Mercado,
pescador mais velho a ocupar os seus espaços, isento do pagamento da taxa de manutenção,
segundo ele, “desde o tempo de Carlos Pacheco”, prefeito que administrou a cidade por três
mandatos, sendo o de 1984 à 1988 a que Maneca se refere. Detentor daquele território, ele o
tem como espaço indivisível. Como afirma Maldonado,
A territorialidade se desenvolve através do tempo, passando de uma geração
a outra nos processos de socialização e de transmissão da tradição como uma
relevante dimensão da capacidade que o homem tem de conferir significado
simbólico ao espaço, inclusive ao espaço social em que ocorrem as suas
relações, construindo lugares. Estes comportamentos levam a fenômenos da
ordem da ocupação e da posse, de exclusão, de distanciamento e de
83
Esmeraldo Santana, entrevistado em 18 de janeiro de 2008.
45
pertencimento que constituem elementos fundamentais a cada cultura e a
todo ser
84
.
É permanente o clima de tensão entre os pescadores no Mercado Municipal, o clima
de coletividade comum ao rio e à embarcação termina na área de comércio, onde a
individualidade aflora e a apropriação daquele lugar gera uma disputa silenciosa. A absorção
do espaço pelo filho de Maneca, que controla a venda enquanto o pai apenas coordena,
indica a transmissão hereditária, e é claro que esse status de Maneca desagrada a muitos que,
mesmo em seus silêncios, desaprovam a postura do pescador, que tem como maior agravo à
sua pessoa o fato de ser chamado de atravessador.
Em uma conversa com Maneca no Mercado, presenciei o momento em que um
“desavisado” cliente chegou procurando peixe em grande quantidade e um dos pescadores
que estava atrás da pedra alegou que não tinha, mas que aquele senhor (indicando Maneca)
poderia encomendá-lo. Maneca, que conversava comigo e atendia a um senhor que fôra lhe
pedir o resultado do jogo do bicho do dia anterior, ouvira do cliente se o havia outro jeito,
se tinha que ser com o atravessador mesmo? Ele foi monossilábico com o rapaz, não vendeu o
peixe que alegou não ter, tampouco demonstrando interesse em encomendá-lo, e me
confessou:
Você viu como ele já veio me ofendendo? Eu não sou atravessador, tenho
minhas artes de pescar. Aqui eu faço tanta camaradagem, vendo a dinheiro,
vendo fiado, vendo a quem conheço, vendo a quem não conheço. Daqui de
Aratuípe mesmo, eu não compro na mão de nenhum, compro os que vem
de fora, de Jaguaripe, de Camassandí, tudo de fora, aos daqui ainda empresto
búzio, balança, peso, tudo
85
.
Foi o tempo de serviço que garantiu a Maneca essa superposição sobre os demais
pescadores no âmbito do Mercado Municipal e, é claro, as suas “artes de pescar”, referência
84
Em Mestres e Mares, MALDONADO nos apresenta uma boa discussão acerca da constituição dos territórios oceânicos e a formalização
jurídica e hereditária que os pescadores estabelecem nas suas relações de trabalho. Segundo ela, também no mar estabelecem-se fronteiras
simbólicas: “No decorrer da análise que faço das dinâmicas comunicativas e de sua relevância para a constituição de unidade histórica da
terra com o mar que os pescadores realizam com suas práticas tecnológicas e simbólicas, surgirão paradoxos entre os quais está a indivisão
do mar sob forma jurídica, individual e contínua, que os pescadores relativizam, construindo em praticamente todas as comunidades
estudadas, formas consuetudinárias e locais de divisão e de apropriação.In MALDONADO, Simone Carneiro. Mestres e Mares. Espaço e
indivisão na pesca marítima. ed., São Paulo: Anablume,1994. Sobretudo introdução e primeiro capítulo. .P.21- 44 apud CASTELLUCCI
Júnior, Wellington. Op cit, p 94.
85
Manuel Crispiniano dos Santos, depoimento citado.
46
às suas estratégias de sobrevivência estabelecidas após a sua aposentadoria, o investimento
em um pequeno freezer e uma geladeira e a apropriação de um espaço coletivo por sua
empáfia. Esses equipamentos lhe dão, sem dúvida, a proeminência sobre as outras pessoas
que convivem no âmbito das disputas do comércio do pescado, de uma útil geladeira, por
exemplo, que ele diz coletivizar embora não compre dos pescadores locais o produto, numa
evidência de conflito constante; até o búzio, espécie de concha sólida encontrada em alto mar
e que serve, em algumas comunidades pesqueiras, para convocar com o seu toque os
pescadores a partirem para a pescaria ou para fazerem o primeiro lançamento de rede, também
reforçam essa sua proeminência. Em Aratuípe a função do búzio é anunciar a chegada dos
pescadores e, naturalmente, do peixe.
Eu tenho um búzio que aqui não tem um que seja mais velho que ele. Fica
aqui guardado. Eu nem sei dizer os anos, peguei na mão de finado Tongo,
que pegou na mão de finado Filisberto. Calculo mais de cem anos. eu
toco nele, no outro todo mundo toca, com esse eu não quero folia pra não
quebrarem ele
86
.
Hoje a cidade de Aratuípe não tem mais saveiros, o último, segundo um pescador
conhecido como Bigo-Bigo, e confirmado por outros, foi o Bahia de “seu” Zezinho, vendido
por seus filhos, com carimbo da Capitania dos Portos da Bahia de 6 de fevereiro de 1992. A
viabilidade do transporte terrestre e a proximidade da Ilha de Itaparica, ligada ao Recôncavo
Baiano pela Ponte do Funil, além do crescimento econômico registrado nas cidades vizinhas
nas últimas décadas do século XX, fizeram afluir para estas cidades a quase totalidade da
produção agrícola e artesanal do município.
Em Aratuípe ainda coexistem a pesca artesanal com utilização de poucos recursos
técnicos tanto na captura como no beneficiamento, voltada apenas para o consumo das
famílias dos pescadores, utilizada ainda de forma tradicional e caracterizada pela captura de
crustáceos e moluscos nos manguezais e a pesca comercial, caracterizada pela venda do
excedente no Mercado Municipal de Aratuípe e até em outras localidades, o que não
caracteriza, nestes casos, a existência de pescadores assalariados no município.
Alguns órgãos federais e estaduais como a SEAP (Secretaria Especial de Agricultura
e Pesca) e a Bahiapesca, segundo Dickson Coelho dos Santos, pescador conhecido como
Jaquinho, presidente da Colônia de Pescadores de Aratuípe, enviaram para a cidade no dia 20
86
Manuel Crispiniano dos Santos, depoimento citado.
47
de novembro de 2005, nove canoas de fibra, motorizadas, com nove metros e dezesseis
centímetros cada, setenta e seis coletes salva-vidas médios, dezoito remos, nove âncoras e
cento e trinta peças de rede que se somaram à frota pesqueira que operava no município e
constituía-se em sua maioria de embarcações de pequeno porte e estilo primitivo: a canoa.
Mantida sempre a mesma padronização no formato, capacidade e flutualidade, essas
canoas utilizam principalmente a rede de espera (caçoeira, tainheira, etc), rede de cerco (calão
e redinha) e pequenos espinhéis (grosseiras). Por força do tipo de embarcação utilizada, o raio
de ação dos pescadores fica limitado, restringindo-se à exploração de regiões pesqueiras
tradicionalmente exploradas várias gerações, refletindo numa baixa produtividade da
atividade pesqueira. Contrariamente ao que se poderia pressupor, a motorização das
embarcações não expandiu o âmbito produtivo acessível a Aratuípe de maneira significativa,
o que também é perceptível em outras comunidades pesqueiras do Brasil. Segundo Maneschy,
em seu estudo sobre a comunidade pesqueira de Ajuruteua, no Pará, “em princípio os
pescadores têm livre acesso ao mar. Mas é visível que sua relação com o mar vai sendo
modificada, na medida em que passa a ser intermediada por uma tecnologia que está acima da
capacidade econômica desses pescadores”
87
.
A modificação trazida pelo uso dos motores tem muito mais impacto sobre o tempo
dessa pesca, na medida em que, sem afastar os pescadores da sazonalidade ou do tempo
natural que informam a sua lógica produtiva, o uso do motor lhes permitiu controlar reveses
trazidos pelo vento e pela chuva que em outros momentos os impediriam de sair ou que lhes
acarretariam riscos e dificuldades nas jornadas de pesca. Sem necessariamente ir mais longe
em termos de percurso, os pescadores que usam o motor não adquirem maior segurança e
rapidez, na forma de propulsão, como a possibilidade de alternar dois elementos, o vento e o
motor, nos termos que lhes pareçam mais convenientes e que o meio lhes sugira.
No ano de 2006, foi inaugurado pela Prefeitura de Aratuípe um entreposto de pesca
no bairro do Camamú, próximo ao principal cais de desembarque, os objetivos segundo o
prefeito municipal eram “viabilizar o escoamento da produção além de permitir o acesso ao
pescado com melhores condições higiênicas”
88
.
87
MANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua, uma comunidade pesqueira ameaçada. Belém: UFPA. CFCH.1993, p. 58
88
Antonio Miranda Silva Júnior, prefeito de Aratuípe, entrevistado em 30 de dezembro de 2006.
48
Figura 7
89
Esse entreposto, embora inaugurado, não atendeu às expectativas dos pescadores,
sobretudo no que tange à facilidade na comercialização do pescado. Em Aratuípe, há, ainda, a
tradição de se comprar o peixe no Mercado Municipal, como atesta Tonho de Valda:
90
“isso aí
não funciona não. A sorte é que fica um freezer grande, tem balança, tem tudo, a gente
chega e bota lá, quem tiver pescado pode chegar, pedir a chave e botar lá, mas vender mesmo,
no mercado”, referindo-se a tradição da comunidade local em comercializar o pescado no
Mercado Municipal.
Os dois pontos de desembarque do município produzem 5,8% do pescado capturado
no Recôncavo Sul e 1,4% do total produzido no Estado da Bahia, onde os peixes,
principalmente a pescada, a tainha, a carapaça e o bagre representam 63,8% e os crustáceos
especialmente o camarão, o siri e o caranguejo, 36,2% da produção municipal, segundo dados
do Bahiapesca, instituição estadual responsável pelo atendimento aos pescadores
91
.
Os pescadores de Aratuípe organizaram-se em uma Associação fundada em 21 de
agosto de 2002, haja vista que antes dessa data o havia nenhum tipo de regulamentação ou
entidade corporativa que os auxiliasse no município. Grande parte dos pescadores eram
associados à Colônia Z-9, de Nazaré das Farinhas, ou à colônia da Ilha da Ajuda, em
Jaguaripe. A Associação dos Pescadores do Município de Aratuípe não atendia a algumas
exigências sociais, visto que era mais voltada para procurar benefícios que atendessem às
questões mais técnicas e estruturais, como instrumentos de trabalho que lhes permitissem, ao
menos sobreviver. Além de atender às pessoas que utilizavam a pesca apenas como lazer, em
fins de semana, que por isso se associavam para terem a garantia do acesso aos barcos nesses
momentos.
89
Foto da Unidade de Beneficiamento de Pescados, acervo pessoal.
90
Luiz Antônio Coelho Conceição de 36 anos, entrevistado em 20 de dezembro de 2007
90
Informativo Bahiapesca, outubro de 2005
49
Figura 8.
92
Havia outros problemas, no entanto, que residiam na assistência social, na
regulamentação dos pescadores como trabalhadores, detentores de direitos constitucionais; daí
a comunidade se organizou, convidou os moradores do bairro da Cidade de Palha e das ruas
da Bomba, Tombo, Drº João Martins, do Café, Alto da Favela, além das ruas do Borrachudo,
Piranga e Largo de Iemanjá, essas últimas localizadas no bairro do Camamu, em sua grande
maioria formada por pescadores, e em assembléia criaram a sua Colônia dos Pescadores de
Aratuípe, em Ata registrada no dia 3 de maio de 2003.
Regulamentado o seu estatuto, estabeleceu-se posteriormente o CNPJ, (Cadastro
Nacional de Pessoa Jurídica) tendo como seu primeiro presidente nos anos 2003/2004, o
senhor Adeneildo Santos Souza, que renunciou meses depois. Segundo ele, “saí porque tinha
feito um curso de eletricista e fui prestar serviço à Prefeitura”,
93
os pescadores então, em
reunião, referendaram uma nova diretoria, cujo presidente eleito foi Dickson Coelho dos
Santos, assistido por mais seis membros do Conselho Fiscal, um Tesoureiro e um Secretário,
para um mandato de três anos, tendo sido esta mesma chapa reeleita para o triênio 2007-2009,
sem também ter havido eleição.
A Colônia procurou empreender um novo mecanismo de relação entre os
pescadores. Inicialmente eram setenta sócios, em junho de 2007 esse número inicial
ultrapassa os quatrocentos, agrupados entre a sede do município e o distrito de
Maragogipinho. Cada sócio contribui com uma mensalidade de sete reais. Todos têm direito,
92
Foto da Associação dos Pescadores de Aratuípe – Ba, acervo pessoal.
93
Adeneíldo Santos Souza, entrevistado em 10 de fevereiro de 2008
50
por determinação do governo federal, a receber uma cota anual dividida em três ou quatro
parcelas de um salário mínimo cada, por conta do DEFESO
94
na época do ano em que a pesca
é proibida. Só no ano de 2006, para pescadores de robalo, a Colônia recebeu setenta e dois mil
reais, sendo que em anos anteriores, a exemplo de 2004, ela chegou a receber 86 mil reais. E
no ano de 2007, cento e duas pessoas foram beneficiadas com quatro salários mínimos
cada, havendo a perspectiva desse número de pessoas crescer, como aponta o presidente da
Colônia, pois os pescadores dos municípios de Salinas das Margaridas, Baiacu (distrito de
Vera Cruz) e Ilha da Ajuda (distrito de Jaguaripe), por instrução da Bahiapesca, estão se
associando à colônia dos pescadores de Aratuípe, que depois da mortandade de milhões de
peixes na Baía de Todos os Santos, em janeiro e fevereiro de 2007, em um fenômeno
qualificado pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis) como maré vermelha, muitos pescadores ficaram sem a sua única alternativa de
sobrevivência, a pesca. Dessa forma, o cadastramento na Colônia de Aratuípe lhes garantiria
ao menos uma fonte de recursos, que em suas localidades as Colônias estão inadimplentes
com o governo e dessa forma não poderiam ser beneficiadas.
A Colônia de Pescadores de Aratuípe conseguiu junto ao Banco do Nordeste do
Brasil, uma linha de crédito conhecida como PRONAF-B (Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar), que também atende a pescadores, possibilitou a
muitas famílias adquirirem seus próprios instrumentos de trabalho, a exemplo de canoas e
redes. O pescador pode pegar por empréstimo até mil reais, com uma carência de dois anos
para pagar um valor total de setecentos e sessenta e cinco reais. Com isso, muitos pescadores
cadastram as suas esposas, que em geral são marisqueiras, portanto legitimamente pescadoras,
e juntos adquirem até dois mil reais, valor que tem possibilitado a muitas famílias, com a
venda do pescado, terem acesso a bens de consumo como eletrodomésticos e bicicletas e, em
muitos casos, eles têm reformado suas casas, ampliando-as e refazendo-as de alvenaria.
Há, por parte de muitos pescadores em Aratuípe, um descontentamento em relação à
diretoria da Colônia, neste caso, representada na pessoa do seu presidente, que passou a
concentrar todas as atribuições. A principal reclamação está no fato de estarem associados à
Colônia, não pescadores, como afirma Luiz Antônio Coelho, pescador local conhecido como
Tonho de Valda: “Tem muita gente que não é pescador e tem benefícios, o povo todo
descontente. Tem gente que nunca foi no rio e recebe o DEFESO antes da gente. Tem que ter
um controle sobre isso
...!”
95
94
DEFESO - proibição da pesca no período da desova dos peixes e crustáceos em que o pescador recebe um salário – desemprego.
95
Luiz Antônio Coelho Conceição, depoimento citado.
51
Na última reunião da Colônia, realizada em 22 de fevereiro de 2008, na casa doada
pela prefeitura municipal para servir como sede da Associação, e que se transformara em sede
da Colônia, justo pela desorganização da primeira, não eram raros os protestos dos pescadores
quanto à presença de homens e mulheres que não conviviam no seu meio, não eram
pescadores e não deveriam ter o direito àqueles benefícios.
Esse histórico, mesmo que aponte algumas melhorias tanto nas condições técnicas
quanto sociais, evidencia pontos de atrito que parecem insolúveis e identificam também uma
precariedade extrema de uma parcela significativa da população do município de Aratuípe.
52
CAPÍTULO 2
TODOS TÊM A MESMA MÃE!
2.1 - “ELA ME DEU O QUE TINHA QUE DAR!”
Pensar a cidade de Aratuípe e sua diversidade geográfica e cultural seria um viés
pertinente, mas não por ocasião deste trabalho, onde procurei analisar prioritariamente os
pescadores deste município, suas relações com o culto à Sereia, a Festa realizada em 31 de
dezembro, o Presente à Dona das Águas em 01 de Janeiro, enfim, seu cotidiano, suas
histórias, suas relações de poder.
A crença na força de entidades das águas foram presença marcante no Recôncavo
Baiano. Por conta disso e no contexto das formas locais de organização social, econômica,
cultural e religiosa, esse elemento da natureza apresenta peculiar significado na vida da cidade
de Aratuípe, de modo que, lá, as águas sempre foram e são elemento de confluência e
conflito, substrato e substância, fonte de paradoxo, matéria e mito. E assim serão discutidos e
analisados aqui, aqueles que no seu cotidiano têm a mais intrínseca forma de relação com as
águas: os pescadores. Esses que, “por viverem do mar e no mar, pedem proteção para manter
a própria vida no exercício do seu trabalho que se sustenta em uma rede de sociabilidade e de
solidariedade e se entrelaça à natureza e ao imaginário povoado de seres encantados, deuses e
demônios”
96
.
“Todo 31 de dezembro é assim, essa cidade não dorme!”
97
. As palavras do senhor
Aloísio Lima poderiam facilmente ser entendidas como declaração de um morador qualquer
acerca dos festejos de réveillon que, comumente, ultrapassariam os limites da madrugada em
qualquer cidade do mundo. Entretanto, o relato traz à luz o enfoque de um pescador de 59
anos, viúvo, pai de oito filhos, semelhante a outras dezenas de homens e mulheres,
pescadores, embarcadiços, “doutores” dos braços de rio, “domadores” do mar, “seu” Aloísio é
mais um dentre aqueles que cultuam a sereia.
Ele certamente se refere ao culto que, anualmente, move centenas de pessoas entre
devotos e curiosos às ruas da cidade de Aratuípe, e que culmina, na madrugada do primeiro
96
BLASS, Leila Maria da Silva. Dois de fevereiro,dia de Iemanjá, dia de festa no mar. Revista Nures nº5 - Janeiro/Abril 2007
97
Aloísio Lima, entrevistado em 01 de janeiro de 2007.
53
dia do ano, em uma Festa com um candomblé que homenageia a “Dona das Águas”. Em uma
de suas entrevistas, ele relembra:
Quando um corisco bateu no mastro de setenta palmos feito em Jiribatuba e
quebrou, eu chamei por Deus e as águas. Sonhava e vi, se não vi quero
cair aqui na porta. Ela tava acompanhando o saveiro e quando olhei, ela tava
com os braços guiando o leme do saveiro
98
.
São tantos os relatos sobre as aventuras e desventuras no trabalho com pesca que,
nas palavras de Vilson Caetano, “só os pescadores por trilharem os caminhos de Iemanjá
sabem contar”
99
. O senhor Aloísio, sempre afeito a frases curtas e quase monossilábico em
suas conversas cotidianas, se revelou um depoente obstinado, sempre propenso a narrar os
momentos que viveu no mar as grandes aventuras de sua vida. Não raro, com relatos
carregados de emoção, aquele homem sisudo de quase dois metros de altura, embaçava os
olhos de lágrimas e, disfarçadamente, os cobria com a velha boina azul, parceira desde os
tempos em que navegava. O mar é uma estrada longa e traiçoeira, oscilante e perigosa, que
tem que ser conquistada a cada dia; caminho movente, instável, tempestuoso, balançante,
caminho sem fim.”
100
O jogo dialético entre o viver e o morrer no mundo do trabalho daquele
pescador, revela a sua profunda religiosidade, e a Dona das Águas é, para aquele homem, a
protetora que lhe salvou dos perigos do mar e que, mesmo hoje, ainda o auxilia.
O Sr. Florival André Costa de setenta e três anos, popularmente conhecido como
Costinha, também pescador do município de Aratuípe, é uma dessas “autoridades” locais
quando o assunto é o culto à sereia. Aliás, para os pescadores, Costinha é a maior autoridade
no assunto. Devoto, desgastado pelo peso dos anos e abatido por um derrame que, por pouco,
não lhe tirou a vida, mas lhe deixou muitas seqüelas, comprometendo inclusive os
movimentos do corpo, arvora-se de ser, no primeiro dia de cada ano, um dos poucos a
enfrentar, com chuva ou sol, a foz do rio Jaguaripe, para, na região conhecida como Toque-
Toque, entregar às águas os presentes da Sereia. Para aquele homem, a devoção revigora a sua
vontade de, a cada ano, estar vivo e poder participar daquele evento. Costinha, sentado no
sofá de sua casa, sob os olhos atentos de sua esposa, revelou-me a origem do culto à Dona das
Águas em Aratuípe. Segundo ele,
98
Aloísio Lima, entrevistado em 10 de setembro de 2006
99
CAETANO, Vilson. Roda o balaio na porta da Igreja, minha filha, que o santo é de candomblé: os diferentes sentidos do sincretismo
afro-católico na cidade de Salvador. São Paulo, PUC, (Tese de Doutorado) Ciências Sociais, 2001, p. 247
100
AMADO, Jorge. Mar Morto. 26º ed. São Paulo: Livraria Martina Editora, 1970, p. 86.
54
João Cilírio na pesca pegou uma Sereia, uma filha, uma sereia menor n`uma
rede, ninguém calcula os anos, meu pai morreu com cento e quatro anos em
1965 e já falava essas coisas. Trouxeram a sereia viva, com os braços
cobrindo o rosto que não teve homem que tivesse força para desencruzar.
Viva, não falava, trouxeram, enfeitaram e levaram de volta para o lugar que
encontraram.Quando se aproximaram do local ela se jogou no mar.
Tem gente que ignora, que diz que não existe, mas existe. Esse João Cilírio,
era ele que no dia do presente mergulhava naquela profundidade para
entregar o presente lá, a ela. Todo de branco, e saía enxuto. Tô dizendo isso
porque meus mais velhos contavam. Quando saía do mar, saía surdo e mudo,
só falava após três dias, pra não dizer o que viu lá
101
.
Essa é a mais conhecida versão sobre a origem desse culto em Aratuípe, ao menos é
a referência que a maioria dos pescadores têm. Afinal, eles são unânimes em revelar a
importância de Costinha como guardião das histórias da Sereia, embora um rapaz de vinte e
cinco anos, chamado Ziranildo dos Reis Moraes, conhecido na cidade como Nido de Zequito,
artesão que nos últimos anos tem sido o responsável pela ornamentação da imagem, tenha
uma outra versão, a mim revelada de forma inusitada. Procurado insistentemente para uma
conversa, no intuito de entender o sentimento daquele jovem em ornar tão cuidadosamente a
imagem da Sereia, recusara-se sempre, e talvez pela timidez evidente em seu semblante,
resolveu enviar-me uma carta escrita de próprio punho, a lápis, dizendo:
O carpinteiro João Cilírio saiu pra pescar de canoa, quando chegou no
Toque-Toque, na beira do rio, ele viu em cima da pedra uma moça metade
peixe, metade mulher, ele ficou admirado, olhando, quando ela percebeu que
ele a observava, a sereia rapidamente caiu na água. João Cilírio voltou pra
casa com uma pescaria farta, mas aquela imagem da sereia não saía de sua
mente. Ele apanhou um tronco de mucugê e esculpiu com todos os detalhes a
Sereia que ele viu.
Depois disso, todos os anos ele ia com os amigos e os familiares levar
presentes, juntamente com a imagem da Sereia que ele fez. Contam que João
Cilírio quando ia colocar o presente nas águas, batia na água com uma cuia.
Em certo ponto da maré, do fundo do rio, subiam enormes bolhas. Era o
sinal que a Mãe D`água está esperando pelos presentes. Ele mergulhava com
os presentes, enquanto todos esperavam na canoa, ao som dos atabaques
entoando cânticos. João Cilírio saía um tempão depois sem se afogar. Era
101
Florival André Costa, natural e morador de Aratuípe, entrevistado em 10 de setembro de 2006.
55
incrível, todos chorando pensando que ele tinha morrido e ele saía vivo.
Meus mais velhos que contavam aqui em casa, minha avó mesmo
102
.
Não foram encontrados registros sobre o senhor João Cilírio nem os entrevistados
precisaram sobre o seu nascimento ou o tempo em que viveu. D existirem versões
antagônicas sobre a origem do culto, celebrados respectivamente pelo mais velho pescador do
município, respeitado e reverenciado no âmbito da pesca, do culto e da festa, e a de um jovem
que revela ter ouvido de sua falecida avó as estórias da Sereia e que, mais uma vez, procurado
por mim para discutirmos o teor da sua carta, assinalou: “eu gosto da sereia, mas não tenho
não, apenas procuro ajudar e nunca cobrei, esse ano que me deram cinqüenta reais”,
103
afirmou esquivando-se de uma conversa mais longa.
A pescadora Rute Costa Santos de 80 anos, moradora da rua do Borrachudo, no
bairro do Camamu, é também uma das principais referências locais neste estudo. Dona Rute,
mesmo confusa em alguns momentos de nossas conversas, confirmou-me a versão do jovem
artesão, atestando que a sua falecida mãe, Dona Maria da Paz, lhe contava essas estórias e
afirmou: “João Cilírio ficou horas observando a sereia, parece que ficou hipnotizado, por isso
ele fez a imagem de madeira, tava gravada na memória dele, foi no Toque-Toque”
104
.
Queixando-se da sua condição física, sobretudo pelo fato de alguns anos não poder andar,
Dona Rute demonstrava que a sua pior dor era não poder ir mais ao Presente à Dona das
Águas, inclusive por atribuir à sereia o milagre de ainda estar viva,
Daí, o que esperar? O confronto desses antagonismos na perspectiva de se erigir uma
verdade única, ou o convívio com vertentes diversas sobre a gênese de uma devoção?
Preferível então trilharmos aqui o trajeto de respeito a um tesouro comum que carece de
documentos escritos que possam lhe balizar, mas que mesmo no dualismo das suas fontes
orais oferece-nos um inesgotável recurso de pesquisa.
Um amplo estudo sobre as Sereias, Iaras ou Iemanjás não seria o foco mais
pertinente desta dissertação, não que eu temesse que a sedução dos seus “cantos” me
enveredasse por tortuosos caminhos, mas por não se tratar de um estudo sobre mitos aquáticos
apenas, o que seria um viés antropológico importante. Mas, priorizar os pescadores e a Festa
da Sereia em Aratuípe soa aqui mais pertinente. Busco, portanto, entender como o mito
sentido à luta pela sobrevivência de pessoas simples, que vêem na divindade a força que os
102
Ziranildo dos Reis Moraes, carta enviada em 20 de dezembro de 2007
103
Ziranildo dos Reis Moraes, entrevistado em 02 de janeiro de 2008.
104
Rute Costa Santos, natural e moradora de Aratuípe, entrevistada em 01 de janeiro de 2008
56
conduz no cotidiano, e isso é muito mais premente entre os mais velhos, que procuram buscar
em suas memórias o relato de fatos que os tenham aproximado da Dona das Águas. O
pescador Guilherme Costa, de sessenta anos, conhecido na cidade como Duduza, sobre esse
fato afirma:
Eu tenho um clima com a sereia muito grande. Tem uns que vão comigo e
não pega peixe nenhum, n`outro dia a gente não tava pegando nada, nem um
quilo de peixe dentro do barco, eu olhei para o lado da Sereia (referência
ao Toque-Toque, local onde fica a imagem), e disse: peraí que minha mãe
vai me ajudar! E um “negócio” me disse: “espere uns quinze minutos”. Aí eu
joguei a rede e peguei quatro robalos, e o pessoal me disse: “vamo pegar
mais!” E eu disse: “agora vou embora porque ELA já me deu o que tinha que
dar”
105
.
Duduza chegou a confessar que partiu para aquela pescaria muito mais preocupado
com a aquisição dos peixes para alimentar a sua família do que com a comercialização no
mercado local, e impressionara o relato de um pescador que, mesmo com a fome rondando o
seu lar, preocupara-se em não descontentar a Dona das Águas, insistindo em aventurar-se a
jogar sua rede no mar. A sua esposa, Ana Maria Viana Santos Costa, também pescadora,
porém sem desempenhar essa atividade atualmente, pois é funcionária pública municipal, me
confessou quando de uma visita a sua casa, apontando para uma imagem de Iemanjá em um
papel desgastado, não como figura de Sereia mas como uma mulher, com longos cabelos e
pele clara, vestida de azul e branco, saindo das águas do mar, referência comum a Iemanjá:
“Ali mesmo eu sei que é uma imagem de papel, mas n`um falta água e flores, e eu sempre
adoro e peço”
106
.
Para Edilece Couto, “além da sereia, costuma-se representar Iemanjá como uma
matrona de seios volumosos, símbolo da maternidade, ou mais comumente, como uma mulher
branca e esbelta, chegando mesmo a lembrar as imagens de Nossa Senhora.”
107
.
Essa
historiadora cita ainda Pierre Verger, aludindo que ele prefere comparar essa Iemanjá a uma
fada do imaginário infantil:
Ela é representada como uma espécie de fada, com a pele cor de alabastro,
vestida numa longa túnica, bem ampla, de musselina branca, com uma longa
105
Guilherme Costa, natural e morador de Aratuípe, entrevistado em 3 de agosto de 2006
106
Ana Maria Viana dos Santos Costa, natural e moradora de Aratuípe, entrevistada em 3 de agosto de 2006
107
COUTO, Edilece Souza. Tempo de Festas: Homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940) –
Assis, SP : UNESP, 2004, p. 138.
57
calda enfeitada de estrelas douradas; surgindo das águas, com seus longos
cabelos pretos esvoaçando ao vento, coroada com um diadema feito de
pérolas, tendo no alto uma estrela do mar. Rosas brancas e estrelas douradas,
desprendidas de sua calda, flutuam suavemente no marulho das ondas.
Iemanjá aparece, magra e esbelta, com pequenos seios e o corpo
imponentemente encurvado. Estamos bem longe da Iemanjá “matrona de
seios volumosos”.
108
.
Essa adoração que a senhora Ana Maria Costa revela ter pela Dona das Águas é
resultante da construção de um sentido de na protetora da labuta diária pelo sustento, na
divindade que determina preceitos morais a serem seguidos, que tem poder de transformar
calmaria em tempestade, que abençoa e pune, como uma verdadeira mãe. É dessa forma que
ela parece exprimir o que representa a Dona das Águas para a população local:
Minha mãe me contou que uma vez morreu muita gente no presente, aquelas
mulher que vivia no “brega”, ficou a noite toda com os homem e foram
com o corpo sujo. Aí a canoa virou e morreu todo mundo.
O pescador que tem devoção não pode dormir com mulher antes do
presente. O mar de uma hora para outra pode mudar
109
.
A noção de “corpo sujo”, evidente no depoimento de dona Ana Maria, inscreve o
corpo com uma própria identidade subjetiva, típica em religiões como o candomblé, resultante
da simbiose entre diferentes ritos de natureza africana com outras aqui transplantadas na era
da colonização e que permeia o culto à Dona das Águas em Aratuípe, já que muitos
pescadores, embora reveladamente católicos, se mostram simpáticos à religião dos orixás,
inclusive sendo presença constante nos cultos e festividades dessa religião.
O corpo, no candomblé, é o templo do sagrado por excelência, “é sagrado porque é
vivo, vida expressa através da motricidade que experimenta o espaço e o tempo e que
comunica aos outros, aos fiéis, à comunidade, expressando assim o conceito central da
filosofia da existência africana: ‘eu sou porque você é’, conceito que sublinha a importância
de cada um na comunidade e o encontro harmônico com o outro”
110
. O corpo pode ser
considerado um vaso que contém o orixá, algo de muito precioso que “manda em nós”.
108
VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997. p. 238. apud COUTO, Edilece Souza.
Op cit. p. 138.
109
Ana Maria Viana dos Santos Costa, depoimento citado.
110
Ciclos de aulas sobre etnomusicologia africana ministradas na Pós-Graduação da USP por o Prof. Kasadi wa Mukuna. (São Paulo, 1997)
58
Segundo algumas mães-de-santo, o corpo feminino é um corpo mais acessível às
energias externas pela própria característica do ser mulher: é um corpo "aberto" que deixa a
mulher, mensalmente aberta ao longo da menstruação, e ao longo da gravidez. Essas
experiências tão femininas são momentos nos quais as mulheres são particularmente sensíveis
e têm seus corpos transformados, acompanhando obrigatoriamente os ritmos da natureza. “É
no corpo que vivem as experiências e unem-se as várias informações simbólicas sobre o
mundo; é no corpo que, vivendo as energias sagradas, o fiel pode comunicar com o divino”
111
.
E, naturalmente, esse corpo “infringido” voluntariamente refletiria em desrespeito à
divindade.
Muitos pescadores afirmaram ter havido de fato um acidente. Poucos, porém, precisam
sobre a sua data, e embora não tivessem sido encontrados registros escritos sobre esse fato, é
lugar comum na memória de muitos deles a referência a este episódio. O senhor Costinha faz
alusão à tragédia da seguinte maneira:
E o ano que a canoa virou? Foi no Firmiano, dizem que onze pessoas
morreram. Eu não era nascido mas minha irAmérica eu acho que foi, era
mocinha ainda mas eu acho que foi
112
.
Muito menos preocupado em preencher os espaços vazios deixados pelas memórias
dos depoentes e sim em me debruçar sobre um fato tão instigante, procurei dialogar mais
profundamente com tal inquietação, tanto que minha avó, Letícia Anatália, de oitenta e quatro
anos, popularmente conhecida como Dona Nininha, ouvindo-me falar deste assunto
rememorou:
Eu era menina, mas eu me lembro. Minha tia Bernardina me chamou pra ir
pro presente, mas minha mãe não deixou. A gente chorou como o quê pra
ir...! Quando foi de tardinha, chegou a canoa com seis corpos, com tudo
adulto e uma criança. Eu logo vi, quando o presente desceu seu Joãozinho
falou: O azeite nada por cima d`água!” todo mundo falou, né? Como é
que canta uma coisa assim? Azeite é sangue, né? o pessoal estranhou que
todo mundo vinha quieto e aí foi aquela tristeza
113
.
111
Bárbara, Rosa Maria Susanna. Terapia Musical do Candomblé USP/Pós Graduação em Sociologia.Trabalho apresentado no seminário
temático ST08 "Experiências religiosas e novas espiritualidades".VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina São Paulo,
22 a 25 de setembro de 1998 st08-4.
112
Florival André Costa, depoimento citado.
113
Letícia Anatália dos Santos Cardoso, entrevistada em 10 de dezembro de 2007.
59
Em seu livro Mar Morto, o escritor Jorge Amado refere-se ao mar e seus perigos
iminentes e diz que “dele vem toda a alegria e toda a tristeza: a alegria do reencontro diário
com o cais, com a casa e com o amor; a alegria diária do peixe na mesa; a tristeza da chegada
do cadáver, do corpo amado na praia, da chegada dos corpos.”
114
É o que se pode perceber no
relato de minha avó Letícia quando alude ao acidente e também à comoção que tomou conta
dos moradores da cidade, fato que também foi relatado por Dona Rute Costa, que
posteriormente em uma reservada conversa em sua casa:
Eu não me lembro bem, mas acho que foi em 1933, quem tomou conta desse
presente foi meu tio Joãozinho. Eram as raparigas de Nazaré, as mulheres
eram tudo da Fontinha
115
, só se salvou Lito e América, que foram pra aquela
canoa porque as outras estavam cheias. As mulheres cantavam: “Pisa na
popa, pisa na proa, vem o mar virar canoa!”. América dizia no coração:
“Virgem Maria, me valha Jesus e a sereia do mar! Aquelas mulheres não
eram pra ter ido”
116
.
A conversa com Dona América, sobrevivente do naufrágio, moradora da rua 02 de
março, aquela senhora que sempre acompanhou com o seu olhar sereno o meu trajeto para a
escola da janela da sua velha casa, tornou-se foco de um dos mais preciosos depoimentos a
serem colhidos. Vivendo mais em Salvador do que em Aratuípe, para cuidar dos problemas de
saúde que, à altura dos seus quase noventa anos não são poucos, Dona América ainda tem
fortes lembranças daquele episódio:
Eu lembro, foi em janeiro. Eu estava com dez pra doze anos e meu irmão Lito
foi com finado Joãozinho. A canoa cheia, mas eu fui pra canoa de Sinhá Santa,
no Porto Alegre, meu irmão gostava muito de bater um coro. Aí quando
chegou no Firmiano, que tiraram a cantiga: - “Vem o mar virar canoa...!”
Eu sei que morreu Naná, Isabel, morreu Antônio, os dois filhos de Noberto
menino mole, de braço -, e teve mais gente: Maria Eugênia, uma doceira que
agora eu não lembrada. Com esses problemas, eu não me lembrando
muito das coisas não, mas sei.
Eu gostava muito de ir no presente, ia até escondida de mamãe, gostava do
candomblé, depois disso eu parei.
117
114
AMADO, Jorge. Mar Morto. 26º ed. São Paulo: Livraria Martina Editora, 1970. p.82.
115
Referência à rua Barão Homem de Melo,em Nazaré das Farinhas, famosa pela prostituição.
116
Rute Costa Santos, depoimento citado.
117
América dos Santos Guedes, natural e moradora de Aratuípe, entrevistada em 06 de fevereiro de 2008.
60
Mesmo nos dias de hoje, até os que não são devotos, e demonstram não crerem
nestes preceitos, revelam respeitar essa tradição. As águas para aquelas pessoas são fonte de
vida, mas instilam o veneno do perigo iminente, perigos reais e imaginários, “o mar é antes de
tudo mistério, lugar difícil para a racionalidade, espaço que, ao contrário da cidade, não se
submete aos ditames e projetos de intervenções racionalizadoras
118
. É o que revela a fala de
Aloísio: “quantos pais saem de casa de manhã, ‘pega’ a benção dos filhos e de tarde não pode
mais fazer isso? vem a notícia que morreu...!”
119
Ainda sobre o perigo e os mistérios do
mar, Amado em Mar Morto, discorre: “o mar é rebelde à razão, é espaço do mito, do sagrado,
do incontrolável, do ingovernável, da morte. Como entender o mar, como entender os que
vivem e morrem no mar? Para um homem da terra isto é impossível. O mar é lugar de poesia,
de música, de sentimento, de sensações, avesso à lógica e à compreensão
120
. E, nas palavras
de Deleuze e Guattari, o mar é “espaço liso, espaço difícil de ser estriado, de ser marcado pela
passagem dos homens, explicado por suas reflexões. O mar a tudo dissolve; tudo o que ele dá,
ele toma”
121
.
2.2- “DE MITOS ANTEPASSADOS A ENCANTOS DO PRESENTE!”
Os mitos, psicologicamente, são instrumentos de crença para os que os aceitam e por
eles pautam a sua vida. A crença essencial do mito explica-lhe a efetividade num determinado
contexto cultural. Para quem acredita, o objeto da crença deixa de ser mitológico. Segundo
Marilda Antunes, “o mito não existe por si mesmo. (...) A narrativa, a tradição ou explicação
em que determinada sociedade acredita, supõe que, de fato, isto é, do ponto de vista de quem
emprega o termo mito, esses itens de crença são falsidade”
122
.
A forma como os gregos contavam as suas histórias, desde os Aedos, tornaram-se
narrativas religiosas bem assimiladas, que legitimavam os seus rituais sagrados, o que podem
então ser entendidos como mitos. Alguns mitos presentes em muitas culturas são ricos, pois
relatam, de alguma forma, a mundivivência de um povo. Na visão do antropólogo
Malinowski,
118
AMADO, Jorge. Op.cit.
119
Aloísio Lima, entrevistado em 10 de janeiro de 2008
120
AMADO, Jorge. Op cit.
121
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs.Vol. 5. São Paulo: Ed 34, 1997, pp.179-214
122
ANTUNES, Marilda Coan. Revista Linguagem em Discurso, O mito e os 500 anos de Brasil. Volume 1,número 1. S/ED. Jul/Dez-2001.
61
O mito não é uma explicação que satisfaça o interesse científico, mas a
narrativa de uma realidade para satisfazer necessidades religiosas, anseios
morais, submissões sociais e até requisitos práticos. Um mito desempenha na
cultura primitiva uma função fundamental, pois expressa, acentua e codifica
a crença, reforça a moral, dá regras práticas para orientação do homem
123
.
A mitologia grega é repleta de figuras aquáticas e muitos são os vestígios de culto de
rios, fontes e lagos na Grécia antiga e entre os povos indo-europeus. Segundo o pensador
romeno Mircea Elíade,
Os deuses fluviais helenos são representados por touros, sendo o mais
conhecido Aqueloos (cujo significado mais provável era “a água”),
considerado por Homero como a divindade de todos os rios, dos mares e das
fontes. Algumas destas figuras alcançaram lugares importantes na mitologia
ou na lenda, como é o caso de Tétis, ninfa marinha, de Proteu, Glauco,
Nereu e Tristão, divindades netunianas cuja figura denuncia uma imperfeita
origem nas águas, com os seus corpos de monstros marinhos, caudas de
peixe, etc. Vivem e reinam nas profundezas marinhas. Semelhantes ao
elemento de que imperfeitamente se destacaram sem que nunca o
conseguissem definitivamente, essas divindades são estranhas e caprichosas;
fazem o bem e o mal com igual ligeireza, mas o mal com maior freqüência,
como o mar. Vivem, mais do que os outros deuses, para além do tempo, para
além da história.
124
Sobre a importância do mito para a humanidade em geral, ainda Marilda Antunes cita
o filósofo alemão Walter Otto, ao afirmar que:
A existência das próprias coisas se revela ao homem nos fenômenos iniciais
da imagem e do mito. Revela-se o mito como algo divino. Ele é talvez a
mais enfática formulação da concepção do mito adotada por muitos
estudiosos modernos de religião. Um mito, então, é a linguagem do símbolo
religioso, visto como o mais profundo e autêntico meio de expressar a
compreensão e a crença religiosa.
125
.
123
MALINOVSKY,B. Magia, Mito e Religião. Editora 70 S/D. p. 88
124
ELIADE, Mircea in .CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT,(1998), Dicionário de Símbolos, Rio de Janeiro, José Olympio
Editora)p. 102.
125
ANTUNES, Marilda Coan, Op cit p 23
62
Um mito, de um modo geral, é compreendido como uma história sobre coisas
fabulosas, que podem conter um significado mais profundo. Os mitos tiveram significado
quando os gregos principiaram as histórias transmitidas a respeito dos deuses e do surgimento
do mundo.
Tratando-se então de pensar os mitos que aludem à “força das águas”, tratarei aqui
de discuti-los nas formas como mais comumente se originaram e ora se nos apresentam, em
uma viagem que se inicia na Grécia Homérica e passa por outros locais da Europa, atinge
algumas comunidades da América até chegar às concepções africanas da nação iorubá sobre
os mitos aquáticos. Conforme escreve Campbell, na mitologia “as deusas, sereias e bruxas
que frequentemente aparecem como guardiãs ou manifestações da água (...) podem
representar tanto o seu aspecto ameaçador quanto promotor da vida”.
126
A lendária concepção da Sereia existia entre os gregos e suas referências a esse ser
não são raras. Aparecendo inicialmente como mulheres-pássaro, as figuras das mulheres-
peixe passam a ter registro literário pela primeira vez na obra épica Odisséia, atribuída ao
poeta Homero, quando o grego Ulisses retorna ao reino de Ítaca e tem que atravessar a região
onde as sereias habitavam. Ele é bem sucedido graças aos conselhos da feiticeira Circe, a
qual instruiu sua tripulação para que o amarrassem com força junto ao mastro de seu barco,
enquanto os marinheiros deveriam fechar seus ouvidos com cera. Passando incólume, Ulisses
extraiu dessa experiência o sofrimento e o desespero vividos enquanto estava preso ao mastro,
escutando e sentindo o canto e os encantos daquelas mulheres. Percebemos aí, que o
simbolismo mais veemente da sereia é o da sedução mortal. Nesse sentido, segundo Rosane
Volpatto,
A paixão inflamada que ela inspira é perigosa, porque provém do sonho e do
inconsciente, e por isso é sonho insensato, fantasma irreal”. Para preservar-se
das ilusões da paixão (o amor é cego), é necessário, como Ulisses, agarrar-se
à dura realidade do mastro (centro do navio e simbolicamente eixo vital do
espírito). As sereias são o arquétipo que representam a união da Grande Mãe
com a água, e esse elemento simboliza os sentimentos, as emoções, a
intuição, por isso é freqüente que nas histórias onde elas apareçem haja
paixão, amor desenfreado e haja um mortal que acabe morrendo afogado nas
águas e em seus sentimentos
127
.
126
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: mitologia ocidental.Vol.3 Ed. Palas Athena. p. 43
127
SEREIAS, QUEM SÃO ELAS? http://www.rosanevolpatto.trd.br/sereias1.html. Acessado em 20/02/2007.
63
Existem relatos nas mais diferentes culturas onde as sereias aparecem como figuras
maternais, protetoras, identificadas como santas, outras vezes ameaçadoras e vorazes,
“sentadas e rodeadas por montes de ossos de homens putrefatos cuja pele ia se
engrouvinhando
128
129
. Em outros momentos, é respeitada a possibilidade da sua existência,
mas não o seu comportamento:
Comumente, se fala e se trata dessas sereias, dizendo que, do meio do corpo
para cima têm forma de mulher, que dali para baixo têm de peixe;
representadas com um pente na mão e um espelho na outra, e dizem que
cantam com tão grande doçura que adormecem aos navegantes e assim
entram nas naus e matam todos que nelas estão adormecidos (...) e embora
seja assim, que haja no mar esse nero de peixe, eu tenho por fábula a
doçura de seu canto e tudo a mais que se conta delas
130
Segundo Luís da Câmara Cascudo,
Em outros locais da Europa, aparecem imagens de sereias bordadas em
mortalhas de pescadores ingleses do século XVI ou como uma divindade
irlandesa chamada Murgen, habitante do lago de Belfast, estão ainda em
diversas catedrais européias, amamentado uma criança, esculpidas em
capitéis, colunas, relevos e afrescos, e também em algumas lendas latinas,
onde aparece como aquela que em troca de riquezas, exige do pobre
pescador que lhe entregue o seu filho homem, há até entre os esquimós, uma
mistura de mulher e foca chamada Sedna, que é objeto, entre eles, de
adoração nas cerimônias de transe coletivo. No Brasil, no Convento de São
Francisco em João Pessoa, na Paraíba, existem seis sereias funerárias
esculpidas nas bases das colunas da capela do Santíssimo Sacramento
131
.
Muitos navegadores portugueses trouxeram seus mitos e lendas referentes às sereias
ligados às tradições greco-romanas, e muitas dessas sereias foram por aqui batizadas de Iara.
Curiosamente elas são louras, tem seus espelhos, estão sempre se penteando, cantando, e
vivem em palácios ou cidades submersas. Em Aratuípe, à luz dos relatos dos pescadores
entrevistados, não houve referência a esta concepção de Iara, a Dona das Águas é muito mais
uma força protetora, representada por uma imagem metade mulher metade peixe, que tem
128
Engrouvinhando – Desmembrando, desarticulando.
129
HOMERO,Odisséia,Canto XII, p.97
130
SEREIAS, QUEM SÃO ELAS? http://www.rosanevolpatto.trd.br/sereias1. Acessado em 20/02/2007
131
CASCUDO, Luís da Câmara. Lendas Brasileiras. S/ED S/D p.86.
64
seus cabelos pintados de outras cores e que, muito mais do que morar em palácios ou cidades
submersas, parece ser de fato uma força viva que alicerça a vida daquela comunidade. Câmara
Cascudo diz não ter conhecimento da existência de nenhuma Sereia ou Iara na tradição
indígena pura e que tais lendas decorriam da influência portuguesa. A mulher-peixe, se supõe,
chegou ao país depois do descobrimento, com os colonizadores. Eles, além da presença física,
da língua e dos hábitos, trouxeram ainda os seus valores, mitos, lendas e superstições. Nesse
sentido, a herança cultural européia misturou-se às culturas indígena e africana, permutaram-
se conhecimentos e valores, surgindo, através do sincretismo, um amálgama sui generis.
Por força de sua transmissão oral, através de gerações, o mito adquiriu, em cada
região, particularidades especiais, decorrentes da adaptação aos costumes e crenças locais.
Daí a existência de versões diferentes de um mesmo mito: as Sereias, no Mediterrâneo; as
Mouras encantadas, em Portugal; a Loreley, na Alemanha; Kianda, em Angola; Iemanjá, no
Brasil. O mito configura-se, pois, através dessas versões ou lendas.
Esses mitos têm uma incrível vitalidade, mesmo surgindo na antiguidade, suas
crenças se metamorfosearam, se adequaram à cultura local e acabaram chegando aos dias de
hoje. Dessa forma, foram ganhando sentido e preenchendo as inquietudes, sentimentos e
valores morais do povo do lugar. A forma como o mito se reelabora, ganhando novos
contornos, permitindo novos significados, e perceptível no fato de que a Dona das Águas, em
Aratuípe, assume o caráter de condenar as prostitutas, afogadas por irem ao Presente com o
“corpo sujo”.
Para alguns povos indígenas, Iara significa Senhora das Águas ou Ninfa das Águas.
Também é chamada de Uyára e, em tupi, de Uauyára, representando uma figura de dupla
imagem, que pode ser tanto feminina quanto masculina. No Brasil, de acordo com os
nortistas, a sereia habita nos rios e em seus afluentes, mas aparece diante de homens
solteiros, ou daqueles que estão prestes a se casar. Sendo metade peixe e metade mulher, ela
pode ser vista penteando os cabelos, cantando ou simplesmente conversando com algum
transeunte. E o pretenso parceiro, como se estivesse sob efeito hipnótico, é levado para o
fundo das águas.
Inspirados pelas referências literárias da Antiguidade Clássica, como a citada
Odisséia de Homero ou ainda a Eneida de Virgílio, os portugueses absorveram as lendas
marítimas e transplantaram-na para o universo colonial. Esse mito se difunde no Brasil
somente a partir do séc.XVII, coincidente com a expansão da ocupação da região amazônica
pelos colonizadores.
Luís da Câmara Cascudo formula a hipótese da identificação dos mitos
da seguinte maneira: "Chegando ao Brasil, o europeu encontrou uma estória vaga em que se
65
falava de um fantasma marinho, afogador de índio, espantando curumim. Imediatamente o
português diagnosticou: ‘É uma Sereia’!"
132
.
O poeta Luís Vaz de Camões, no século XVI, em Os Lusíadas, mencionou diversas
vezes a presença de sereias na rota das navegações. E os tesouros e palácios, ofertados pela
Iara, vêm corroborar com a forte presença de uma cultura importada - a européia - já que
muitas comunidades indígenas não possuem o mesmo referencial de riqueza que os europeus.
É provável então que exista um elo entre a Iara brasileira e as sereias que foram ressaltadas
pelos autores clássicos. Em Aratuípe, por exemplo, cidade que nasceu de um aldeamento
indígena, mesmo que hoje não sejam tão perceptíveis tais influências no que se refere ao
culto à Dona das Águas, não podemos aqui negligenciar tal possibilidade.
A Sereia, na cultura ocidental dos tempos modernos, é bem diferente das Sereias
metade pássaro, metade mulher da antiguidade homérica. A metade pássaro de seu corpo foi
substituída pela cauda de peixe. Na antiguidade, o mito ligava-se também ao culto dos mortos.
Eram as Sereias invocadas no momento da morte. Mas esse aspecto do mito desapareceu e
apenas o documentam as estátuas de Sereias nos sepulcros. Curzio Malaparte, em seu
romance A Pele, apresenta uma sereia ao natural, criada em aquário e servida num jantar
oferecido a oficiais americanos durante a ocupação da Itália. Malaparte descreve em tons
verídicos o espanto dos comensais à visão da pequena sereia, semelhante a uma menina
133
.
Segundo Bráulio do Nascimento, “em Portugal, de onde nos veio o mito, duas
designações para essa personagem mítica: no litoral do continente, Sereia; e no arquipélago
dos Açores, Feiticeira Marinha ou simplesmente Marinha”
134
. Esse romancista catalogou
cantigas populares que fazem referência a uma e outra:
Lá no meio desse mar
saiu-me a senhora
Sereia lá no palácio d'el rei.
E nos Açores:
Escutai se quereis ouvir:
ouvi um rico cantar;
devem ser as Marinhas.
Ou os peixinhos do mar.
132
CASCUDO, Luís da Câmara. Op cit.p.93
133
MALAPARTE, Curzio. A Pele. Ed. Abril Cultural, SP, 1972, p. 68.
134
NASCIMENTO, Bráulio do. Cátalogo do conto popular brasileiro. Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 2005.p. 56.
66
E ainda no Brasil, em uma lenda maranhense:
Acorda, minha princesa, não ouves ninguém cantar?
Serão os anjos do céu ou as Sereias do mar?
Não são os anjos do céu e nem Sereias do mar.
Quem canta é o conde Lindo, com ele quero casar.
135
É ainda o folclorista Câmara Cascudo, em sua análise sobre os mitos aquáticos
brasileiros, quem vai afirmar que no norte do Brasil há ainda uma espécie de forma masculina
da Iara, o Boto, “que à noite se transforma em um homem muito formoso e educado, vestido
de branco, que atrai as caboclas para o seu palácio encantado, no fundo das águas, matando-as
afogadas.”
136
Segundo Cascudo, no norte do Brasil, essa crença é tão forte que, ao anoitecer,
muitas pessoas não se atrevem a passar perto dos rios e igarapés. Nesse aspecto, convem
chamar atenção para a análise de Magali Sá, sobre uma experiência vivida pelo naturalista
Barbosa Rodrigues ocorrida pouco antes de sua chegada a Itaituba, no Pará, segundo o
testemunho e relato de várias pessoas:
Havia uma tapuia que vivia numa palhoça, e que de repente começou a
emagrecer e a tornar-se pálida, sem aparentar moléstia. Desconfiaram que
seriam artes de Boto e fizeram uma emboscada. Uma noite viram chegar ao
porto uma montaria (canoa), saltar dela um branco que não era do lugar e
dirigir-se para a choupana. Acompanharam-no, e quando ele entrou, de
manso abriram a palha da parede e viram-no querer deitar-se na mesma rede
da tapuia. Então, um tiro o prostrou, e arrastado para a barranca do rio, neste
o atiraram, porque atiravam um boto. A autoridade não fez corpo de delito,
porque matar um boto não é crime previsto na lei
137
No norte do Brasil, existem várias lendas referentes à Iara. Segundo uma lenda
corrente citada por Cascudo,
135
NASCIMENTO, Bráulio do. Op. Cit. p. 56.
136
CASCUDO, L.C. Op. Cit. p.112
137
SÁ, Magali Romero. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segunda metade do século XIX. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VIII (Suplemento) 899 – 924, 2001, p. 910.
67
Havia um belo índio tapuio, filho de um tuxaua valente e ousado, que estava
sempre triste, apesar de saber manejar a zarabatana com destreza com mais
coragem do que todos, brandir o tacape e retesar o arco; de representar o
orgulho da tribo; de ganhar os jogos que celebram as festas; e de, diante dele,
os próprios anciãos se curvarem em sinal de respeito. Sua mãe lhe
perguntou, então, o porquê de tanta tristeza. Ao que ele explicou que tinha
visto uma jovem belíssima, com uma voz harmoniosa, lindos olhos verdes e
cabelos louros como o ouro, presos por flores de mureré. Essa jovem lhe
estendera os braços, como se quisesse neles se entrelaçar, e, cantando,
desaparecera nas águas do igarapé.
Ao ouvir os lamentos do índio, a mãe pediu-lhe, chorando: “Por favor, meu
filho, não volte mais ao igarapé. A mulher que você viu, ali, é a Iara. O seu
sorriso é a morte. Não ceda aos seus encantos.”Entretanto, o tapuio decidiu
não seguir os conselhos maternos. Ao pôr-do-sol, integrantes da tribo viram
e ouviram, de longe, uma mulher cantando e, ao seu lado, o vulto de um
homem. Quando um índio mais corajoso ousou se aproximar do local,
rapidamente as águas do igara se abriram, e, nelas, sereia e tapuio
mergulharam. Escusado dizer que o índio jamais retornou à sua aldeia.
138
.
ainda outras lendas e algumas ressaltam na figura da sereia sua beleza, sua voz,
seu poder de enfeitiçar os homens com o canto, que é a “perdição dos pescadores”. O seu
chamado sedutor é misto de núpcias e morte:
Certa noite, um índio sonhou com uma bela jovem de cabelos louros, olhos
azuis e pele muito branca, que morava em um castelo de cristal, coberto de
ouro e safiras, e de onde provinha uma música celestial. Com tantos
atrativos, logo caiu de amores por ela, principalmente após ter ouvido o seu
canto e as suas juras de amor eterno. Navegando pelo rio, ele percebeu que,
sobre as águas, formou-se uma choupana e, em seguida, sorrindo-lhe, surgiu
a Iara. Apaixonado e enfeitiçado como estava, ele dirigiu-se à choupana com
a sua canoa. Naquele preciso momento, porém, a sereia o agarrou e, juntos,
índio e sereia mergulharam para nunca mais voltar.
139
Também em outras lendas existem aqueles que, mesmo envoltos em mortal sedução,
conseguem escapar ilesos dos perigos:
Um rapaz dormia à beira de um rio, quando foi despertado por uma voz que
o chamava pelo nome. Sem pensar duas vezes, ele se dirigiu às margens do
138
CASCUDO, L.C. Op.Cit. pp.106/107
139
CASCUDO, L.C, Op.Cit. p. 108.
68
rio, encostando-se no tronco de um ingazeiro. Olhou para as águas,
desconfiado, e distinguiu uma bela jovem que emergia. Ao mesmo tempo, o
rapaz sentiu um torpor em todo o corpo, que ameaçava paralisar-lhe os
membros. Começou a suar frio e um grande terror surgiu em seus
pensamentos. A jovem prometeu-lhe delícias e prazeres inesgotáveis, ela
caminhava em direção ao rapaz, com um olhar diabolicamente sedutor.
Estava nua da cintura para cima, podendo-se ver os seus contornos
exuberantes, de sedução e voluptuosidade sem limites. Os dois se
aproximaram, as defesas do rapaz foram se dissipando, e ele sentiu um beijo
em sua face. Nessa hora, percebeu que os lábios da jovem eram úmidos e
frios. Mas não houve tempo para reagir. Naquele instante, o rapaz
escorregou e caiu na água. Antes que afundasse, porém, ele desmaiou. Por
sorte, alguém que passava pelo rio conseguiu tirá-lo das águas.
140
Importante observar que os mitos aquáticos de muitos índios brasileiros, embora
sejam diversos, não absorvem a idéia de uma Iara como algoz ou má, fato explicado inclusive
pela relação de sobrevivência que eles estabelecem com os rios. Quando os indígenas citam a
beleza das cunhãs
141
, estão enaltecendo essa qualidade como uma referência estética, e não
como objeto de libido. A sua Mãe-d’Água, contrariamente à Iara, é uma figura bondosa e
importante: como a guardiã dos rios, ela se materializa nas plantas e flores aquáticas que
alimentam todos os seres vivos de água doce.
ainda no imaginário indígena amazônico a figura da Boiúna ou Cobra Grande,
um ser apavorante, uma imensa serpente capaz de virar barcas e afugentar banhistas. Com o
tempo, a Cobra Grande passou a chamar-se Mãe d`água, o que vai facilitar o sincretismo com
as lendas e mitos do branco europeu e também do negro, que trouxera para o Brasil a figura
da Rainha das Águas ou Dona Janaína, YÈYÈ OMO EJÀ, “Mãe cujos filhos são peixes.”
142
.
Tratando-se de Iemanjá, divindade das águas mais cultuada no Brasil, os mitos dos
orixás constituem a fonte básica para o seu conhecimento. Esses mitos, que fazem parte da
tradição oral dos diversos povos que formam o complexo lingüístico-cultural iorubá, foram
preservados nos países da diáspora africana, especialmente Brasil e Cuba, países a partir dos
quais se propagaram para outros lugares da América, dos Estados Unidos à Argentina,
levados pela expansão das diferentes modalidades americanas da religião dos orixás. Para
falar de Iemanjá , nada melhor que começar por seus mitos.
140
Idem. pp. 111/112.
141
CUNHÃS - Referência comum, na Amazônia, às mulheres jovens.
142
CASCUDO, L.C, Op.Cit. p. 146.
69
Armando Vallado faz uma seleção de mitos coletados por diferentes pesquisadores,
e em diferentes épocas nos territórios iorubás na África e na América, onde foram preservados
e ressignificados junto aos seguidores da religião dos orixás, especialmente aqueles
vinculados aos grupos de culto de tradição iorubá, no caso brasileiro os candomblés de
“nação” queto ou nagô, o xangô pernambucano de “nação” ebá (ègnbá, grupo iorubá que deu
início ao culto a Iemanjá), além de outras modalidades menores. Iemanjá aparece no mundo
dos orixás como personagem principal, assumindo os papéis de mãe, esposa, filha, amante e
com participação prioritária no governo do mundo dos homens. Segundo Armando Vallado
em sua obra Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil,
Olodumaré, o deus supremo, também chamado Olorum e Olofim, vivia
no infinito, cercado apenas de fogo, chamas e vapores onde quase nem podia
caminhar. Cansado de não ter com quem brigar, decidiu pôr fim àquela
situação. Libertou as suas forças e a violência das águas debateram-se com
rochas que nasciam e abriram no chão profundas e grandes cavidades. A
água encheu as fendas ocas fazendo-se os mares e oceanos em cujas
profundezas Olocum foi habitar. Do que sobrou da inundação se fez a terra.
Na superfície do mar, junto à terra, ali tomou seu reino Iemanjá, com suas
algas, estrelas-do-mar , peixes, corais, conchas e madrepérolas. Iemanjá
encantou-se com a terra e a enfeitou-a com rios, cascatas e lagoas. Assim
surgiu Oxum, dona das águas doces.
143
Tanto na África, como depois, na América, entre os cultuadores dos orixás, Iemanjá
ocupou um lugar de destaque ao lado de outras divindades também consideradas mães
veneráveis. Conforme Roger Bastide, “o mito é anterior ao rito; ele é, primitivamente, uma
tentativa de explicação dos fenômenos da natureza, uma primeira cosmogonia, e o rito viria
depois, moldando-se na sua estrutura, sobre os temas míticos já preexistentes”
144
.
Nos mitos da criação do universo, vamos sempre encontrar a presença feminina e a
masculina, Iemanjá representando o feminino. Como consideram alguns autores, o processo
de “criação resulta da complementaridade dinâmica entre os opostos, da tensão que surge da
necessidade de ambos existirem no mesmo universo”
145
.
Emblematicamente, a figura paterna não aparece, talvez seguindo uma representação
da relação entre os orixás, assim como o universo sócio-cultural da população afro-brasileira
143
VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil/ Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p 18
144
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1971,p.96.
145
BASTIDE, Roger. Op. Cit, p.97.
70
na escravidão e no pós-abolição, onde a figura principal é a mulher, sendo o homem quase
sempre ausente do meio familiar. “Na África, por sua vez, na organização sócio-econômica
tribal, as mulheres iorubás controlavam grande parte do suprimento alimentar, acumulavam
dinheiro e negociavam em mercados distantes e importantes”
146
, organizando as famílias,
enquanto os homens cuidavam de outras atividades.
Iemanjá é por isso sempre pensada como figura etérea e de suprema bondade e
sabedoria. Suas ações contraditórias mostram também, como no candomblé, diferentemente
da visão cristã, que o comportamento das divindades é muito semelhante ao dos homens, não
existindo no candomblé a distância intransponível que separa o mundo dos homens do mundo
dos orixás.
Na Bahia, segundo Pierre Verger, os seguidores do candomblé acreditam na
existência de sete iemanjás:
Iemanjá Awoyó é a mais velha, usa trajes mais ricos, mora no mar e repousa na
lagoa. Quando sai para passear, coroa-se com o arco-íris.
Iemanjá Oguntê vive nos arrecifes próximos da praia e é a guardiã de Olokum. É a
mulher de Ogum, o orixá da guerra, por isso usa o facão e outros instrumentos de ferro do
marido e mostra-se severa e violenta.
Iemanjá Maleleo vive no mato, num lago ou numa fonte de água inesgotável por
causa da sua presença.
Iemanjá Konla e Akura – vivem na espuma da ressaca da maré, vestidas de algas.
Iemanjá Apará – vive na confluência de dois rios.
Iemanjá Asesú é a mensageira de Olokum e vive em água agitada. Acredita-se que
ela é muito lenta para atender aos pedidos de seus fiéis, pois às vezes se esquece do que lhe
foi pedido
147
.
Em Aratuípe, a Iemanjá que mais se assemelha à Dona das Águas cultuada pelos
pescadores é a Iemanjá Awoyó, velha, lembrada por muitos como “vovozinha” e de trajes
ricos, assim como sai às ruas para o cortejo.
146
Idem.
147
VERGER, Pierre. Op. Cit p. 130
71
Figura 9
148
Todos os anos os seguidores de Iemanjá fazem procissões para buscar água em rios e
fontes, assim como devotam seus presentes às águas, num rito de ressacralização dos objetos
de culto que revela a necessidade de renovação cíclica de sua força.
É quase um lugar comum a afirmação de que a história da cidade de Aratuípe é
profundamente marcada pela presença das águas. Jacques Le Goff, muito apropriadamente
nos lembra que a “constituição das cidades quase sempre esteve associada à presença das
águas. As cidades geralmente eram portos, bastando um pequeno curso d`água, um
atracadouro de madeira”
149
.
Na cidade de Aratuípe, as águas são fonte de saúde, de doença,
promessa de desenvolvimento e veículo de purificação, além de uma das mais significativas
fontes de sobrevivência da população; daí, esse simbolismo que gira em torno das águas ser
justificado pelas noções de fonte de vida, meio de purificação e regenerescência. “Numa
fórmula sumária, poder-se-ia dizer que as águas simbolizam a totalidade das virtualidades;
elas são a matriz de todas as possibilidades de existência.”
150
.
Encontramos em diferentes culturas formulações sobre a água como fonte primeira
de vida: “tudo era água, dizem os textos hindus; as vastas águas não tinham margens, diz um
148
Foto dos preparativos para a saída do cortejo com a imagem da Sereia.. 31 de dezembro de 2005. Acervo pessoal.
149
LE GOFF, Jacques, São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1998, p.66.
150
ELIADE, Mircea. Tratado da História das Religiões, São Paulo, Martins Fontes. 1993, p 108.
72
texto taoísta. Bramanda, o Ovo do mundo, é chocado à superfície das Águas. Da mesma
forma, o Sopro ou Espírito de Deus, no Gêneses, pairava sobre as águas”
151
.
A exaltação das águas como fonte de vida, força e pureza é também exemplarmente
ilustrada no Rig Veda:
Vós, as águas, que reconfortam,
a grandeza, a alegria, a visão!...
Soberana das maravilhas,
Regente dos povos, as águas!...
Vós, as Águas, daí sua plenitude ao remédio,
A fim de que ele seja uma couraça para o meu corpo,
E que assim eu veja por muito tempo o sol!...
Vós, as Águas, levai daqui esta coisa,
este pecado, qualquer que ele seja, que cometi,
esse malfeito que fiz, a quem quer que seja,
essa jura mentirosa que jurei.
152
.
No depoimento a seguir do senhor Aloísio Lima, conseguimos observar a devoção
arraigada na força das águas, configurada na proibição de não se banhar mergulhando
diretamente no rio, nem emitir palavrões, aludindo ao respeito pela Dona das Águas:
Nunca dei um “nome” nas águas, porque tudo que tem nome tem dono.
Nunca senti uma dor de dente porque sempre respeitei as águas. É um
negócio que quem tiver nas águas tem que chamar por Deus e implorar a
ela que nada lhe acontece, porque tudo é o respeito. Eu passei tanta coisa
na minha vida que eu nem julgava de vivo. Eu sempre respeitei as águas,
quando ia tomar banho não desfazia, tomava banho de balde
153
.
O depoimento de Aloísio alude ao fato citado por Muniz Sodré, para quem, “as
pessoas ligadas ao culto do Candomblé, quando chegam à beira da água, pedem licença.
Licença pra penetrar em um espaço que a gente sebe que tem um dono, que é o orixá que
administra aquele lugar. E o banho ali não é apenas lazer”.
154
Essa fé, segundo a senhora
151
CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT,(1998), Dicionário de Símbolos, Rio de Janeiro, José Olympio Editora. In: SANTOS, Maria
Elisabete Pereira dos. A Cidade do Salvador e as Águas. Campinas-SP.sn, 1999.p. 189.
152
Ibidem
153
Aloísio Lima, depoimento citado.
154
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro – brasileira, Petrópolis, Vozes, 1988, p123.
73
Maria da Conceição Santana, voluntária social e pescadora do município de Aratuípe, é
pertinente ao universo dos pescadores:
Eu tenho essa fé, fui criada na beira d`água. Sou pescadora, pescadora de
coração mesmo, de alma, pescadora nata, amo a natureza e tudo que é
relacionado à água. Sou católica, agora, que devido a todas as
experiências que tive na água eu tenho essa proteção muito forte, muito
forte mesmo. Porque não é aqui que eu vou, eu vou pra Salvador na festa
de Iemanjá e já fui em outros lugares. Por causa da minha já tive muito
livramento. E é assim, a gente vai e pede, coisa de pescador mesmo.
Eu comecei a gostar, a ter fé, por causa da minha mãe, porque ela chamava
Iemanjá de vovó, vovó das águas, vovozinha. Aí eu, quando a gente ia
pescar, chegava na beira d`água, antes de pôr o na água a gente põe a
mão, como se fosse a água do batismo, como se fosse pedir licença.
licença minha mãe! Porque a gente molha o rosto e faz o sinal da cruz
pedindo proteção, porque às vezes, você entra num mangue e ta pescando
numa boa, daqui a pouco você olha pros quatro cantos e não sabe de onde
você veio. E como eu fui criada nesse culto, cultuando Iemanjá, mantendo
a minha fé, aí eu chego lá e peço proteção. Eu tenho muita fé mesmo.
155
Na relação de fé, convem chamar a atenção para este depoimento de Costinha:
Zé, meu filho, tava garotinho, me pediu pra levar ele quando a gente fosse
buscar a sereia,quando a gente chegou no local, a gente panhou a Sereia,
colocou na canoa, vinhemos. meu filho como era muito pequenininho,
eu botei junto comigo na popa. Quando chegamos aqui, no outro dia ele me
perguntou: ô painho, tem duas sereias? Eu disse não. Por quê você me
perguntando isso? Porque quando a gente vinha em cima, eu olhei pro
lugar onde a gente pegou essa, e tinha outra. E eu disse: a que a gente pegou
é uma imagem, a que ficou lá é a Dona das Águas.
156
E é exatamente essa fé na Dona das Águas que ainda norteia o cotidiano de Zé, hoje,
homem de trinta e seis anos de idade, e de tantos outros pescadores do município de Aratuípe,
que no mar ou na terra, pautam as suas vidas na veneração a essa divindade que os alimenta e
protege.
155
Maria da Conceição Santana, entrevistada em 12 de setembro de 2007
156
Florival Costa, depoimento citado.
74
Figura 10
157
157
Foto da Sereia. “Presente” do ano de 2006, acervo pessoal.
75
CAPÍTULO 3 - “Ô JOGA, JOGA NO MAR AZUL!”
3.1- DUAS FESTAS: UM DUELO POR ESPAÇOS!
Desde a transição do ano de 1996/1997, vem se realizando na Praça Municipal de
Aratuípe uma grande festa com grupos musicais, inclusive atrações reveladas pela mídia
nacional que se transformaram em atrativo para a população local e de cidades vizinhas. A
festa com as bandas é realizada concomitantemente à Festa da Sereia, em espaços diferentes,
pois esta é realizada no bairro do Camamu, no Largo de Iemanjá, e aquela realiza-se na Praça
Municipal, no centro da cidade. Porém, tendo em vista a limitada área urbana do município,
há, além da minha nítida percepção, o entendimento por parte dos pescadores e de algumas
outras pessoas entrevistadas, que não existe espaço para as duas festas, que uma acaba por
anular a outra quanto ao aspecto da visibilidade e da notoriedade que os envolvidos com a
festa da Sereia esperam tanto das autoridades quanto dos visitantes.
Os pescadores entrevistados foram unânimes em dizer que a festa com bandas, na
Praça Municipal, é a grande responsável pelo declínio da festa da Sereia, como afirma
Lindalva dos Santos: “essa festa daqui, a cada ano que passa fica pior, o sei prá quê essas
bandas aí na praça.”
158
O pescador Sandoval Souza também exprime a sua insatisfação com a festa
concorrente:
depois que botou essa banda aí, aqui na rua, a festa fica , isolada que não
tem ninguém, não mais prestando como era não. Às vezes, quando eu
de paxôa”
159
, eu ainda vou lá, quando eu com a vontade assim, ajudo a
“bater um coro
160
também
161
.
Dona Conceição ainda acrescenta:
a gente não pode deixar essa tradição morrer. Outra coisa que eu acho
errado, e não cabe a mim mudar isso, mas tem que ver com as autoridades, é
158
Lindalva dos Santos, 40 anos, entrevistada em 01 de janeiro de 2008.
159
Paxôa - Corruptela de paxôrra, falta de pressa.
160
Bater um coro - Tocar instrumento de percussão com as mãos.
161
Sandoval Barbosa Souza, entrevistado em 20 de maio de 2006.
76
que no dia 31 devia ser exclusiva essa festa de Iemanjá, que a outra festa eles
deixassem pro dia 1º, deixasse pra gente fazer uma festa boa.
162
O atual Superintendente de Esportes, Cultura e Lazer do município de Aratuípe,
Paulo Roberto Machado, de 43 anos, tem a opinião de que as festas podem coexistir. Segundo
ele,
Quem é simpatizante do culto afro nunca vai deixar de vir prá Sereia, quem
gosta do que é antigo, quem gosta de tradição, que quer ver, que tem aquela
curiosidade, não vão deixar de vir ver. O que eu acho que falta é divulgação,
que no dia 31 também ocorrendo uma festa. E pro poder público não é
bom acabar a festa de lá, porque também virando tradição, p você
convencer os que não gostam disso aqui a não ter lá, vai dar um problema
gravíssimo, principalmente ao político, concorda? Quando o Prefeito
assumiu em 2005 tinha oito anos dessa festa na praça. O que a gente
precisa é esclarecer a força, o fundamento que tem aqui, porque eu confio,
acredito e gosto também. O negócio é que agora o maior réveillon da região
é o de Aratuípe, vem gente de todo canto
163
.
Consegui perceber nas palavras do Superintendente o evidente conflito exposto à
cidade nas festividades de final de ano. Ele possui motivações subjetivas para ser favorável
aos festejos dos pescadores, no entanto, o comprometimento com a festa de maior público e
que infere maior visibilidade ao gestor municipal o impede, por razões objetivas, de ao menos
adotar políticas públicas que viabilizem a Festa da Sereia como anseiam os pescadores.
As bandas, na Praça Municipal, começam a tocar entre nove e dez da noite,
continuam após a queima de fogos que traduz a chegada do novo ano e, não raro, vão até às
seis horas da manhã. Algumas pessoas chegam à praça bem cedo, uns dirigem-se à Igreja
Matriz para a missa tradicional, outros ocupam o espaço das ruas. os que preferem sair
de casa após a meia-noite, presos ao ritual de ver o ano novo chegar nos seus lares, próximos
aos parentes.
A visita de curiosos ao bairro do Camamu também é intensa, invariavelmente
uma atmosfera de ansiedade não apenas pela fé, mas também pelo respeito à tradição. Muitos
me confessaram vangloriarem-se em ver aquela festa ainda existir em meio a uma “disputa
tão desleal”, como um senhor chamado Djalma, natural de Aratuípe, mas morando em
Salvador quase trinta anos, que, na companhia de sua esposa, visitavam a festa da sereia, e
162
Maria da Conceição Santana, depoimento citado.
163
Paulo Roberto Machado, entrevistado em 30 de dezembro de 2007
77
quando perguntados do porquê de não ficarem mais um pouco, a resposta foi: “nós só viemos
dar uma olhadinha na Sereia, vamos prá praça que o pessoal todo lá”
164
,
numa
demonstração de que, pra quem visita a cidade no réveillon, a prioridade não tem sido a festa
da Sereia, embora para os pescadores, ela continue sendo extremamente importante.
A festa é precedida de um cortejo por algumas ruas da cidade com a imagem da
Sereia que parece sair imune ao clima que contamina as pessoas na Praça Municipal e aos
curiosos que também a acompanham. E além da festa, é no cortejo que acontece o “duelo” de
uma tradição que luta por permanecer oxigenada e uma outra que, com tanto onipresente
investimento e apoio dos meios de comunicação de massa, parece se sobrepôr como
onipresente.
Figura 11.
165
Entre os dias 29 e 30 de dezembro começa a ser armada, no centro do bairro do
Camamu, a aproximadamente 20 metros do cais natural e enlameado do rio jaguaripe, a
“cabana”, com aproximadamente 40 metros quadrados, alguns pedaços de cedro e pau d`arco,
embora o que predomine sejam os pedaços de bambu, coberta com uma lona, folhas de
164
Djalma Cardoso, entrevistado em 31 de dezembro de 2008
165
Foto da cabana onde é realizada a Festa da Sereia, 31 de dezembro de 2007. Acervo pessoal.
78
coqueiros e dendezeiros e muitas palmas. Localizada exatamente em frente à sede da
Associação dos Pescadores, sua cobertura é uma extensão do telhado desta.
O serviço é realizado por funcionários da prefeitura. Nesse último ano, sob a
supervisão direta de Paulo Roberto Machado que, em entrevista, revelou:
a prefeitura deu quase tudo que aí, eles podem até dizer que não, mas 90%
foi a prefeitura que deu, foi o feijão tropeiro, deu fogos, vai dar o carro prá ir
buscar o candomblé pra tocar, tudo na cabana que é ampla o bastante para
o candomblé, entendeu? de madeira tem uns quinhentos reais, quase
seiscentos; deu uma contribuição em dinheiro de trezentos reais, deu arroz,
cenoura, batata, tomate, pimentão, tudo que eles pediram, uma lista enorme,
deu as bebidas todas, entendeu? Tá dando o som, tá botando a iluminação,
botando tudo
166
.
De fato, todos os anos, a infra-estrutura da Festa da Sereia é montada por uma
equipe da Prefeitura. A comissão da festa, centrada na figura do “festeiro”, que é o
coordenador do evento, deixa para o último mês os preparativos, o que infere, naturalmente,
na procura por apoio do poder público. Os conflitos então começam a aflorar, envolvendo a
comissão, os pescadores e os agentes públicos. Isso significa que a festa já assumiu um caráter
até certo ponto “oficial”, o que pode determinar seu aprisionamento e adequação aos modos e
gastos oficiais, tornando-a mais “aceitável” ante os valores do lugar.
As mulheres se dispõem a ornamentar a imagem da Sereia, que geralmente é
restaurada ainda entre os meses de outubro e novembro, em um outro ritual de e devoção
sem data específica, marcado pelo cortejo, que vai buscar a imagem a ser restaurada. Sem a
mesma pompa do cortejo de 01 de janeiro, a vinda da imagem para a cidade é acompanhada
por várias pessoas que, mesmo sem embarcar nos poucos barcos que fazem o trajeto,
amontoam-se no cais para vê-la chegar. Como afirma Dona Rute, “quando os foguetes tocam
no Guabiru, eu fico doida, não posso andar, o povo me leva e eu vou ver ela chegar.”
167
A imagem que atualmente é carregada no cortejo foi feita em 1994 no Galeão,
cidade de Valença, local conhecido na região pelo talento dos seus artesãos. Oca e feita de
madeira, antes era construída com gesso, porém um pescador de Jaguaripe, tido pela
população local como doente mental, quebrou esta imagem, “ele foi pescar e não achou nada,
quebrou a sereia com um machado. A polícia prendeu, mas não deixou preso porque viu
166
Paulo Roberto Machado, depoimento citado.
167
Rute Costa Santos, depoimento citado.
79
que era maluco, tanto que nem ocorrência fez
168
. Daí o Prefeito do município ter optado em
adquirir, por encomenda, a imagem em Valença. O trabalho de ornamentação é cuidadoso e
demorado, não que seja exigido rigor ou luxuosidade, mas pelo apreço com que aquelas
mulheres lidam com a imagem julgando tratar de uma representação táctil da Dona das
Águas. Todo o laborioso papel é plenamente compreensível, como se pode perceber no
depoimento de Dona Maria da Conceição: “é espírito, é a mãe das águas, é uma força viva.
Apesar do pessoal ver ali uma imagem. É madeira, é barro, mas por trás tem uma força viva;
pra mim, ali é uma entidade que faz proteger.”
169
Nos últimos anos, quem vem consertando a imagem é de Costinha, festeiro do
ano de 2007, “ele usa um quarto de tinta óleo preta, branca e rosa, o branco e rosa pinta da
cintura pra cima, preto pinta a cauda, as escamas são feitas com cortiça e pintadas com tinta
cinza, os cabelos variam de cor, depende de quem dá.”
170
Os preparativos exigem a atenção da comissão para alguns detalhes como a compra
do incenso,da alfazema, dos foguetes, do balaio de cipó, das flores, “a roupa e o cabelo
sempre tem uma pessoa que dá, esse ano o festeiro não quis pedir e na hora faltou dinheiro pra
comprar, aí a Colônia deu”,
171
revela Dickson.
Figura 12.
172
168
Dickson Coelho dos Santos, entrevistado em 22 de maio de 2007.
169
Maria da Conceição Santana, depoimento citado..
170
Dickson Coelho dos Santos, depoimento citado.
171
Idem
172
Foto da Sereia, , em 31 de dezembro de 2006. Acervo pessoal.
80
A roupa é de seda, sempre em tom amarelo claro ou azul claro, sua cabeça é ornada
por uma coroa de arame feita artesanalmente, (nos últimos anos por Nido de Zequito), e os
lábios e as unhas são cuidadosamente pintados com esmalte vermelho. Os cavaletes de ferro,
para abrigar o andor, é soldado também por um morador da cidade conhecido por João Curió,
isso porque antes esses cavaletes eram construídos em Nazaré das Farinhas. Os ajustes então
são feitos pelas mulheres que, até o momento da saída do cortejo, ainda vêem detalhes a
serem rebuscados, para que a Dona das Águas saia às ruas verdadeiramente como uma rainha.
A comissão da festa determina o horário para a saída do cortejo, acordo comumente
descumprido, seja pelo comum atraso das pessoas que se envolvem mais diretamente na
organização do evento, ou ainda pela necessidade que alguns em em reunir maior número
de pessoas para, ao som dos atabaques, fazer coro às vozes daqueles que entoam as ladainhas
e os hinos de adoração à Iemanjá, Oxum, Sereia, enfim, à Dona das Águas:
_E ou Oxum dê
Olha me dê...
E joga, joga no mar azul! (bis)
_________________________
_ Sereiá, Sereiá...nunca vi tanta areia no mar! (bis)
__________________________
_ Mamãe eu vou ver
Ô mamãe eu vou ver
A Sereia lá no mar
Ô mamãe eu vou ver! (bis)
___________________________
_ Sou Sereia pesco peixe,
Dentro do mar tenho fama.
Dentro do navio eu trago
Duas pedras em cada escama! (bis)
____________________________
_Nas águas claras do mar
Onde dona Oxum nasceu
Eu só queria minha madrinha
Uma mãe amorosa igual a minha (bis)
_______________________________
81
_ Na mão direita eu trago uma rosa
Na mão esquerda eu trago um botão
Eu sou Oxum, eu sou menina
Mas tenho um bom coração!
Esses cânticos são entoados por quase todos. Os versos são espontaneamente
lançados à multidão, e o côro que os acompanha mostra o entrosamento da comunidade com
os hinos de adoração a sua protetora. uma disputa em cantar mais alto, lembrar o verso
mais belo, ou mesmo em carregar o andor com a imagem da Sereia.
O cortejo dura aproximadamente trinta minutos. O ponto de partida é a sede da
associação dos pescadores, local amplo, centralizado no largo de Iemanjá, onde nos últimos
anos a imagem da Sereia vem sendo ornamentada; embora seja reservada uma pequena casa
de um só cômodo, com uma fachada pintada de azul e amarelo, onde se lê: Casa da Sereia.
82
Figura 13.
173
Essa casa foi uma conquista marcada por uma disputa entre a Colônia e a Prefeitura.
Segundo o presidente da Colônia, Dickson Coelho dos Santos, no ano de 2005, o prefeito,
Antônio Miranda Silva Júnior, havia doado um terreno no cais a um funcionário da Prefeitura.
Dessa forma o presidente teria posto embargo junto ao IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e sob pena de ser multado, o prefeito
concordou em construir a Casa da Sereia resolvendo uma antiga queixa dos pescadores, que
não aceitavam que a imagem ficasse nas casas de um ou outro morador festeiro daquele ano.
Essa moradia, embora oficial para os dias em que a imagem fica na cidade, tem na
sua moradora uma visitante esporádica, pois, quando a imagem retorna a Aratuípe é levada
para a sede da Associação para ser reparada, isso por conta de ser um local mais amplo, e ali
fica durante o tempo dos reparos. quando o responsável sai, é tomada a providência de
colocá-la em sua casa, para que em breve, quando sobrar tempo para o voluntário artesão, ela
possa voltar à sede da Associação onde será concluído o serviço. Fato importante a ser
observado é que há na casa uma imagem menor de uma sereia e uma outra de um marujo, mas
que não recebem a mesma reverência, são imagens que ficam todo o tempo na casa, inclusive
durante o cortejo, e mesmo no dia do presente permanecem no local. Ainda no dia 30 de
dezembro, em meio à construção da cabana, normalmente reparada dos danos causados por
quase dez meses na maré, a imagem é ornamentada por artesãos voluntários e pelas mulheres
da comunidade, normalmente filhas-de-santo escolhidas pela comissão da festa ou mesmo
voluntárias, que a todo o tempo se preocupam em deixar a porta fechada ou vigiada por um
membro da comunidade cuidadoso em evitar que curiosos adentrem o espaço então reservado
aos responsáveis pelo meticuloso trabalho de “enfeitar a Sereia”.
O retorno do cortejo é traçado pelo mesmo trajeto. O andor com a imagem também é
carregado por mulheres, algumas vestidas de branco com lenços envoltos na cabeça, colares
de contas que identificam a iniciação ao candomblé. Algumas se vestem às pressas, inclusive
com roupas emprestadas de última hora e juntam-se todos nesse momento de saudação à
Dona das Águas.
O espaço ocupado pelo palco no centro da cidade tornou-se um obstáculo no
caminho de melhor acesso ao bairro do Camamu. Aquele gigante colorido e iluminado,
voltado de forma frontal para o centro da cidade, faz perceber a muitos que não mais nada
atrás dele, que o universo do entretenimento, da sedução, da renovação termina ali. Os
173
Foto da casa da Sereia, 12 de maio de 2007. Acervo pessoal.
83
pescadores fazem o caminho contrário. Ao invés de passarem pelo pequeno espaço entre o
palco e a quadra de esportes, e mais na frente ainda terem de retirar as estacas e cavaletes
fincados nos espaços dos paralelepípedos para evitar o estacionamento de veículos, vão pela
rua da Bomba, avançam pela Praça Municipal, pela parte de cima, distante da aglomeração
formada em frente ao mercado municipal e passam incólumes pelos transeuntes que, por
muitas vezes, aderem ao cortejo e por outros tantos que fingem não vê-lo passar, envolvidos
que estão em seus outros entretenimentos, sobretudo nos bate-papos em mesas e balcões dos
bares. O cortejo, então, segue pela praça do coreto e pára em frente à Igreja Matriz. Antes,
pelo menos nove anos, subiam o adro enladeirado da Igreja para, como afirma Ana Alice
Viana Costa, a popular Lice, pescadora e filha-de-santo, “serem abençoados por Nanã
174
, de
lá pra cá, o padre não tem deixado mais, aí a gente pára mesmo é na porta, canta um malembe,
um ingouroci
175
saudando Nanã e vai embora”
176
:
“Ô Nanã qui já ô si... A lodê
Ô Nanã qui já ô si... A lodê
Ô Nanã qui lá si dó... A lodê ( bis )
Ai ai lodé Nanã já si
Ai ai lodé! (bis )
Ou ainda:
Na toalha que Jesus nasceu,
Nela eu já me ajoelhei.
Abençoa minha mãe,
Abençoa pelo amor de Deus ( bis )
Abençoa que eu sou filho seu!
174
Referência no candomblé à Nossa Senhora Santana, avó de Jesus Cristo.
175
Segundo o Babalorixá Lenilson Santos Cardoso, entrevistado em 01 de janeiro de 2008, malembe e ingouroci são orações, rezas, pedidos
de clemência, imploração para que algo de bom aconteça. Segundo este Babalorixá, malembe é termo proveniente da nação Angola e
ingouroci da nação Queto.
176
Depoimento de Ana Alice Viana Costa em 03 de maio de 2007.
84
Os pescadores, prostrados em frente à Matriz, não fazem reverência ao roco nem
esperam dele reciprocidade. A passagem é rápida e até os que estão do lado de dentro, dada a
distância que separa o adro das portas principais da Igreja, normalmente não ouvem as
saudações à Nossa Senhora Sant`Ana ou mesmo Nanã, que a santa católica é a padroeira
do município e por quem os pescadores demonstram nutrir um imenso respeito.
Figura 14.
177
Os moradores do bairro do Camamu, especialmente os da rua da Bomba - em sua
maioria pescadores - que não viram o cortejo passar na ida, espreitam em suas casas,
amontoados nas portas e janelas, para saudá-la com palmas e, não raro, como reverência,
fazem o sinal-da-cruz. Chegando ao Largo de Iemanjá, estão presentes muitos dos pais e
mães-de-santo que, principalmente pelo peso da idade e pelo fato de preferirem preservar sua
177
Foto do cortejo terrestre com a imagem da Sereia pelas ruas da cidade, produzida durante pesquisa de campo, 31 de dezembro de 2006,
acervo pessoal
.
85
devoção a um contexto particular, estendida apenas ao público nos momentos do transe em
meio ao ritual do candomblé, não se dispuseram a seguir o breve percurso do cortejo
.
Um fato que tem se tornado comum é a ausência de vendedores ambulantes no
espaço da Festa da Sereia. Antes eram comuns as barracas com jogos de dados, tiro ao alvo,
bingo, várias mulheres vestidas tipicamente de baianas vendendo acarajé, outras pessoas
vendendo milho cozido, barracas de capeta (bebida de forte teor alcoólico à base de vodka), e
os devotos sempre à mão com angélicas e rosas brancas, o que fazia com que fosse montado
também um mercado de flores. Algumas pessoas traziam perfumes, em geral a Seiva de
Alfazema, bonecas vestidas com os trajes de Iemanjá, brinquedos, além de dinheiro,
representado por moedas, e algumas bijuterias. À medida que os balaios iam se enchendo, os
membros da comissão os levavam para um canto da cabana e, pela manhã as embarcações,
formadas por canoas e saveiros, partiam com muitos presentes e também muitas pessoas.
Hoje é rara a presença dos ambulantes. Diferentemente das festas realizadas em
outros anos, inclusive a de 2005/2006, na Festa de 2006/2007 não havia uma barraca armada
sequer com qualquer atividade de entretenimento, um ou outro ambulante se aventurava a
vender, em caixas de isopor, cerveja ou refrigerante; e, por incrível que pareça, em uma Festa,
com um tradicional candomblé, não mais o registro de vendedoras de acarajé, a exceção se
fez na noite de 31 de dezembro de 2007, com uma senhora chamada Domingas Maria
Barbosa, de 54 anos, evangélica, natural de Nazaré das Farinhas, moradora da Cidade de
Palha um ano, pela primeira vez na festa, embora um pouco afastada da cabana, e que me
revelou:
vim porque a minha sobrinha me convidou e hoje parece que vai ser
fraco em cima pois tem muita gente com tabuleiro. eu aqui
pela primeira vez.. Nunca assisti outras vezes e não posso dizer nada,
mas eu tenho esperança porque ontem eu fui ppraça e foi ruim,
vendi doze reais.
178
.
A presença de Dona Domingas na Festa da Sereia, devia-se muito mais à
necessidade de comercializar o acaraem uma área menos competitiva do que propriamente
por uma razão de ou tradição. A comercialização do acarajé, nos dias de hoje, não se
vincula mais a sua origem. Antigamente, este produto podia ser vendido exclusivamente
pelas filhas-de-santo de Iansã, em cumprimento à obrigação do seu Orixá, que determinava
178
Domingas Maria Barbosa, entrevistada em 31dedezembro de 2007
86
inclusive o tempo em que essa obrigação deveria ser mantida. O preparo dos bolinhos uma
massa de feijão fradinho, cebola e sal, frita no azeite de dendê - era feito dentro do próprio
terreiro de Candomblé, de onde a baiana saía com todos os preceitos que a situação exigia,
ostentando um colar de contas vermelhas para simbolizar que era filha de Iansã.
Dona Domingas não trazia em sua indumentária nenhum rigor em vestir-se como
uma tradicional baiana de acarajé. Mostrando-se alheia ao ritual que se seguia na cabana, era
perceptível a sua tensão em estar ali, muito mais pelo lucro que podia auferir, do que pelo
conflito religioso que podia se depreender de uma mulher evangélica, prostrada em um
ambiente permeado pelo candomblé.
O conflito entre matrizes religiosas tão diferentes está presente no cotidiano de
Aratuípe quando o assunto é a Festa da Sereia. Os rituais nas igrejas evangélicas, próximas ao
largo onde a festa é realizada, continuam inalterados, com cultos que normalmente adentram a
madrugada. Muitos evangélicos, sobretudo os da área próxima ao bairro do Camamu, evitam
falar no assunto, e quando o fazem é sempre para considerar a festa como uma tradição e o
como um ato de religioso. E não é raro se ouvir, mesmo do lado de fora daqueles templos,
inflamadas alusões pejorativas ao culto dos pescadores; e os fiéis evangélicos, no caminho de
ida ou volta para casa, a passos largos, passam cabisbaixos, enfileirados e normalmente
usando os espaços mais próximos aos passeios das casas. Esses evangélicos, em geral, são
parentes dos pescadores presentes à Festa da Sereia. Não se misturam ao culto, não
contribuem financeiramente com a Festa (mesmo porque não são procurados) e alguns, mais
intolerantes, demonstram repúdio à presença dos familiares no evento.
A Festa da Sereia sempre atraiu vendedoras de acarajé, e as típicas baianas sempre
fizeram do largo o espaço para os seus tabuleiros. Principalmente Dona Maria da Glória,
moradora da rua do Borrachudo, a cinqüenta metros do Largo de Iemanjá, centro do bairro do
Camamu, conhecida mãe-de-santo e típica “baiana” de acarajé era figura marcante da Festa.
Falecida em 2002, em seu tabuleiro, armado na esquina do bar de “seu Grilo”, vendia acarajé,
passarinha e sardinha frita no azeite.
Uma outra vendedora de acarajé e também pescadora, essa ainda viva, é dona Maria
Marta dos Santos, de 76 anos, moradora da rua de cima. Dona Nenenzinha do Acarajé, como
é popularmente conhecida, duelava na preferência das pessoas quanto ao melhor “quitute”,
fixava o seu tabuleiro na Praça Municipal, em frente à venda de João Borges, de terça à sexta-
feira, até às 22 horas. Já no sábado, dia de maior fluxo de pessoas na cidade - por ser dia de
feira-livre - seu tabuleiro era armado a partir das dez horas da manhã. O “duelo” se dava lado
a lado, quando “Da Glória” subia com o seu tabuleiro e Dona Neném descia com o dela
87
(referências à forma como os moradores se dirigem à Praça Municipal). no espaço da Festa
da Sereia, Dona Neném não era muito de ir:
O meu ponto era na praça, em frente a venda de João Borges. Toda a vida
eu gostei de vender em cima (referindo-se à Praça Municipal), nem na
festa da sereia eu ia, mas todo mundo vinha de comprar que meu acarajé
era mais gostoso do que o dos outros.
179
Dona Nenenzinha, assim como a sua suposta rival, encantava a todos com a beleza
de seus trajes brancos de “baiana”, na cabeça um turbante (ojá), amarrado à moda africana,
formando um lindo torço, uma saia longa bastante armada por saiotes de goma, bata ou
camisa de algodão adornada com rendas, um largo pano-da-costa atado abaixo do busto,
anágua, sandália e os adereços que incluem as contas do orixá. E a sua ausência na festa da
Sereia devia-se ao fato dela se abster intencionalmente em dividir um espaço que
tradicionalmente era da sua “rival”, aludindo que era desnecessário vender o acarajé na área
da Festa, já que seus clientes normalmente saiam de lá para comprá-lo na praça municipal.
Sobre essa “rivalidade” com Da Glória, Dona Nenenzinha afirmou:
eu me dou com Deus e o mundo, agora, o coração de ninguém eu não sei.
Quando eu tomei entendimento por gente, eu pedi a Jesus: - No dia que ele
me desse a intenção de fazer o mal aos meus irmãos, que virasse prá cima de
mim.
Eu falava com ela, mas dizem que ela “botava coisa” prá mim. Dizem,
porque eu nunca vi. Panhá eu já panhei na “cafuzarda”
180
, pro lado de Nazaré
mesmo, aqui, com tudo, com gordura, com açúcar, com cachaça, com
charuto, com vela. Eu panhei, cheguei na água joguei. Então eu disse: - Se as
águas tiver poder, receba. Que eu não tenho força pra receber.
Eu sei que quando eu cheguei no trabalho ela sentou, largou o tabuleiro dela
assim e ficou virada pra o meu lado, me olhando, como quem diz assim: -
“Que força ela teve de encontrar aquilo e ainda ter força prá ir trabalhar”.
181
Hoje, Dona Nenenzinha do acarajé conserva o seu tabuleiro, onde vende apenas
frutas e verduras. Aposentada e salvaguardada financeiramente por um prêmio em dinheiro de
cinqüenta mil reais, ganho três anos no programa de televisão do apresentador Sílvio
Santos, ela, que pouco tempo tornou-se evangélica, mostrou-se cautelosa em falar sobre o
179
Maria Marta dos Santos, entrevistada em 10 de julho de 2007
180
Cafuzarda - Referência a “despacho”, local onde se deposita a oferenda ao orixá.
181
Maria Marta dos Santos, depoimento citado..
88
seu passado. Esquivando-se de falar sobre suas crenças e rituais de outrora, ela faz questão de
evidenciar um conceito preconceituoso, fruto de suas novas convicções religiosas, acerca do
tempo em que vendia o acarajé, que hoje, na cidade, é vendido apenas por algumas “baianas
de Nazaré, mas que armam os seus tabuleiros na Praça Municipal e não no largo de Iemanjá,
na Festa da Sereia.
Excetuando-se os tradicionais festejos de São João, as festas de fim de ano, as
comemorações de aniversário de Emancipação Política, realizadas em 9 de junho e a festa da
Padroeira da cidade Nossa Senhora Sant`Anna, dia 26 de julho, a única festa que se insere no
calendário popular do município de Aratuípe é a festa da Sereia, não pela coincidente data
de réveillon, mas, sobretudo, por estar fincada na memória das pessoas.
Muitos esperavam a turistificação
182
da Festa da Sereia, o que não aconteceu, pois,
desde 31 de dezembro de 1997, inverteu-se o atrativo da cidade para a festa com atrações
musicais na Praça Municipal, o que implicou uma justaposição de uma festa à outra. Mesmo
tendo a primeira mantido a sua estrutura religiosa e histórica, foi suplantada em visibilidade e,
aos olhos de muitos, em importância.
Na festa da última passagem de ano, desde às dezoito horas começaram a ser
tocados, esporadicamente, alguns fogos de artifício, um chamado da comunidade para o
evento, e na cabana, repleta de folhas no chão, já havia um clima de candomblé, ocasião em
que, através de uma caixa de som amplificada, já se podia ouvir músicas típicas desta religião,
e preparados para a festa, além da ornamentação típica, com destaque para as cores rosa e
branca e os atabaques. Grande parte das pessoas que circulavam pelo local eram visitantes que
desconheciam aquela festa e foram atraídos pela festa da Praça Municipal, tanto que muitos,
mesmo após a festa ter começado, insistiam em deixar o som dos seus automóveis em
máximo volume, inclusive com a conivência dos donos dos bares, tocando ritmos variados,
mas que destoavam do sentido da festa realizada.
Há uma disputa evidente entre os candomblés locais pelo domínio da Festa da
Sereia, um conflito explícito opondo, muitas vezes, figuras tradicionais, presenças marcantes
nas festas em todos os anos, e que se privam de ir por não aceitarem que aquele grupo ou
aquele candomblé esteja à frente da organização do evento naquele ano. Ainda na Festa deste
último final de ano, o festeiro foi o babalorixá Wilson Santos, morador do bairro da Cidade de
Palha, dono de um terreiro que vem sendo restaurado com o apoio da Prefeitura Municipal,
182
Sobre Turistificação ver Marutzschka Moesch, para quem, “O turismo é uma combinação complexa de inter relacionamentos entre
produção e serviços, em cuja composição integram-se uma prática social com base cultural, com herança histórica, a um meio diverso,
cartografia natural, relações sociais de hospitalidade, troca de informações interculturais”. MOESCH, Marutzschka. A produção do saber
turístico. São Paulo, 2002, Contexto, p. 09.
89
como ele mesmo confessou. Com o apoio da comunidade, através de “livro de ouro”, mais a
quantia de trezentos reais doada pelo prefeito, ele convidou um candomblé de Nazaré, do
Terreiro e Associação UZÓ UNGI KAFUGE MAVILLA que, segundo o babalorixá Raimundo
Gilberto de Pinho, o Mundinho de Ogum, de 57 anos, significa “o vento que tira a peste”.
Mundinho declara: “sou baba desde 1974, tenho 43 anos de santo; como apreciador vim
várias vezes, mas como organizador desse candomblé é a primeira vez. Trouxe umas vinte
pessoas comigo e chegando mais”
183
.
Mostrando um semblante
feliz, o babalorixá deixava
evidente a satisfação em organizar o candomblé, embora esse não fosse o sentimento de
muitos pescadores e candomblecistas de Aratuípe.
3.2- O CANDOMBLÉ E A FESTA!
O culto à Dona das Águas, terminologia aqui utilizada para designar a divindade
feminina celebrada em Aratuípe, não se limita aos dias 31 de dezembro e 1º de janeiro. Esse é
o momento da festa e do presente, uma espécie de apogeu de um culto que arregimenta
militantes no cotidiano do lar e da pesca. Iemanjá, Mãe-d`água, Princesa do Aiocá,
Dandaluna, Inaê
184
, além de Oloxum, Princesa do Mar, Sereia Mucunã, Janaína, etc, são
nomes alusivos às divindades aquáticas nas áreas litorâneas do Brasil. No imaginário iorubá,
os orixás das águas são representados por Iemanjá (a deusa dos mares e oceanos), Oxum (a
deusa dos rios, fontes e lagos), Oxumaré (aquele que transporta a água entre o céu e a terra) e
Nanã (a deusa da lama, da chuva, do fundo dos rios). No caso específico de Aratuípe, as
referências mais comuns à Dona das Águas são: Iemanjá, Oxum, Mãe d`água ou
simplesmente Sereia.
Segundo Artur Ramos, “no chamado candomblé de caboclo (resultante da
associação entre elementos afro e indígena), - ‘caso típico de Aratuípe’ -, Iemanjá apresenta-
se como sereia, como rainha do mar, como Janaína.”
Na mitologia do candomblé, Iemanjá participa do grupo de orixás associados à
criação, representando a figura da grande mãe, o princípio da fertilidade por excelência. As
iconografias religiosas a representam como uma bela mulher, de cabelos longos (símbolo da
feminilidade), seios fartos e quadris largos (símbolo da fertilidade). Segundo Armando
Vallado,
183
Raimundo Gilberto de Pinho, entrevistado em 31 de dezembro de 2007
184
CARNEIRO, Edison.Candomblé da Bahia. 8ªed,Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p.191
90
A grande presença africana no Brasil, mormente na Bahia, fez do candomblé
uma das mais significativas religiões do povo baiano, e as alusões às suas
divindades e as suas formas de adoração, mantêm uma relação muito estreita
com a natureza, daí se levar oferendas e presentes a cada orixá no seu “meio
natural”. Presentes a Exu são depositados nas encruzilhadas; a Oxum , nos
rios, fontes e cachoeiras; a Ogum, na estrada, especialmente a estrada de
ferro, que contém o elemento caminho e o elemento ferro; a Oxóssi e
Ossaim, no mato; a Xangô, numa pedreira e a Iemanjá, no mar. E devido ao
sincretismo religioso, também característico dessa região, o calendário
católico, que marca dias comemorativos aos santos, acaba por tornar-se
também dia de festa de comemoração aos orixás e no caso das festas de
Nossa Senhora, a simbiose com Iemanjá faz com que essa festa não tenha
data fixa, pode ser 08 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, 02
de fevereiro, dia de Nossa Senhora dos Navegantes ou a mesmo 31 de
dezembro, último dia do ano, onde se comemora o réveillon
185
.
No caso de Aratuípe, a festa é realizada entre os dias 31 de dezembro e 01 de
janeiro, e o pescador Costinha confessa que a festa é nesse dia porque foi quando João Cilírio
teria encontrado a Sereia, e comenta:
Antigamente não havia a festa, era uma festa de fé. Quando João Cilírio
morreu, meu tio Livino passou a tomar conta do presente, esse dançava
candomblé, mas no dia do presente. Ele não era candomblezeiro mas eu
acho que uma “coisa” achou que ele devia ser a pessoa enviada, isso uns
sessenta e quatro anos atrás, quando eu era menino e a festa não era tradição,
era fé, o candomblé era na casa da pessoa que tomava conta da festa.
Após a morte do meu tio Livino, tinha um rapaz aqui, filho de Cacha-Prego,
chamado Vivi. Não fumava, não bebia, não ia em festa, a vida dele era
pescar e dentro de casa. Uma certa vez “encostou uma coisa nele” dentro de
casa. Ele tava com a família, aí começaram o pessoal, a esposa e tudo a bater
palma, descobriram (porque o povo é curioso), que era Vivi que baixava o
negócio. Ele se “subremeteu” a tomar conta da Sereia, (mil novecentos e
cinqüenta e seis, cinqüenta e sete, por aí).
A festa era de fé, após a morte dele tinha muitos candomblezeiros aqui, e
nenhum deles quis assumir. Daí em diante foi que tornou-se tradição de
cabana na rua. Alguns, como eu, vai nessa festa por fé, para pedir a troca.
186
185
VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil/ Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p 30
186
Florival Costa, depoimento citado.
91
Sobre esse fato, Dona América, irmã mais velha de Costinha, conta que: “essa festa
começou com o candomblé dentro de casa. Antes, no tempo de Livino e compadre Vivi, a
festa era dentro de casa, um candomblé bonito”.
187
Os depoimentos do senhor Costinha e de sua irmã América revelam que a Festa da
Sereia, com cabana na rua, teria aproximadamente cinqüenta anos, admitindo que antes era
uma festa de fé, realizada por pescadores no âmbito de suas casas, uma festa circunscrita a um
candomblé que antecedia o presente, e impossível dissociar, ao menos no que evidencia o
depoimento, da festa do candomblé. Essa relação dos pescadores com o candomblé é lugar
comum em Aratuípe, mesmo aqueles que não freqüentam os terreiros, mostram nutrir um
grande respeito pela religião afro-brasileira. Como nos assevera Aloísio Lima:
em Camassandi, quando eu era menino, tinha as casas de candomblé que eu
freqüentava, a de Ladi e de Didi no Vai quem quer, de Bertinha em frente ao
campo da bola, isso tem mais de quarenta anos, era uma beleza pmim. E
eles saiam de pbotar o presente também no Toque-Toque e foi daí
que eu comecei a tomar gosto. Eu trabalhava na Fazenda Boca do Rio em
Jaguaripe, tirando barro pra levar prá Camassandi, prá olaria. Voltei prá
Aratuípe prá tirar barro e fazer na olaria de Bonfim e passava por cima
d`água, e era tudo de canoa e a fé tava presente
188
.
O candomblé confunde-se com a festa. Para muitos, ainda hoje, o candomblé é a
própria festa. Mesmo depois que a Festa ganhou os espaços da rua, e que, como alude
Costinha, “nenhum candomblezeiro quis assumir”, a festa não é realizada sem a presença do
candomblé, traço característico mesmo na cabana. um aglomerado de observadores que
vão assistir à cerimônia pública do candomblé, como afirma Maria Elisabete Pereira dos
Santos, em sua tese de Doutorado, intitulada A Cidade de Salvador e as Águas:
para o segmento leigo da festa, “assistir ao candomblé” é, antes de tudo,
colocar-se na posição de observador externo, de espectador, assumir uma
postura de não comprometimento religioso com o que vai ser observado,
admirado ou criticado. Alegam-se as mais variadas justificativas ou
motivações para assistir a essas festas: “porque é bonito de ver”, porque é
folclore”, porque gosta de ver o orixá dançar”, “por curiosidade”. Mais do
que entender, o leigo busca, antes de tudo, ver.
189
.
187
América dos Santos Guedes, depoimento citado.
188
Aloísio Lima, entrevistado em 10 de setembro de 2006.
189
Santos, Maria Elisabete Pereira dos. A Cidade do Salvador e as Águas. Campinas-SP.sn, 1999,p.194.
92
E esses “leigos”, geralmente declarados católicos, são muitos que, atraídos por toda
aquela simbologia, aglomeram-se ao redor do grupo que dança para assistir ou participar da
cena, dançando com os filhos-de-santo, batendo palmas, tirando fotos, dialogando, filmando.
Alguns demonstram certa familiaridade com o culto, outros não. “No candomblé, o ato
religioso por excelência é a grande cerimônia coletiva de tom festivo da qual tomam parte os
executantes do rito e os espectadores
190
.
É um espetáculo visual, musical, estético e
coreográfico; o prazer e a emoção daqueles que vão assistir está no mosaico de cores, sons,
ruídos, dança, transe e outros componentes da cena religiosa. A festa é lugar central na
estrutura do candomblé. Segundo a antropóloga Rita Amaral, uma das pioneiras na análise das
festas públicas de candomblé,
na festa do candomblé acontece o transe dos deuses em relação aos quais se
constrói o pensamento religioso; na festa, a identidade do grupo se manifesta
com sua força total (canta-se na língua da nação, veste-se de cor ou jeito tal,
dança-se de dada maneira porque se é do ketu, de angola, do jeje, do fon,
etc); é na festa que toda organização hierárquica do candomblé se apresenta;
enfim, é o momento em tudo aquilo em que o grupo é e acredita, em termos
de valores religiosos e estéticos, se mostra com força total
191
.
Para Eufrázia Menezes Santos, em sua tese de doutorado intitulada Religião e
Espetáculo,
a festa pública tornou-se um dos principais elementos responsável pela publicização do
candomblé na medida em que, através dela, essa religião foi sendo integrada à vida cultural e religiosa
de nosso país”
192
.
Eufrázia Santos cita o babalorixá Reginaldo Flores, do terreiro Axé Opô
Oxogum Ladê, que diz:
a
festa foi fundamental, porque se os procedimentos religiosos se
mantivessem limitados aos rituais internos, devido à opressão que se
processou desde a colonização, o conhecimento dos valores religiosos, o
significado da religião como um todo, não conseguiria ser entendido nem
percebido pela maioria. Prejudicaria o processo de memória cultural. A festa
é um se expor, ela foi fundamental para que a religiosidade africana pudesse
ganhar forma no Brasil
193
.
190
Santos, Maria Elisabete Pereira dos. Op.Cit. p.195.
191
Amaral, Rita de Cássia. Povo de santo, povo de festa: estilo de vida dos adeptos do candomblé paulista. Dissertação de Mestrado. São
Psulo: FFLCH/USP,1992,p. 78.
192
SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Religião e Espetáculo: Análise da dimensão espetacular das festas públicas do candomblé.
UNESP, 2005. p. 133 - 134
193
Depoimento de Reginaldo Flores In: SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes.Op cit p. 133 - 134
93
Em que pese esta dissertação ter como foco prioritário a relação dos pescadores de
Aratuípe com o culto à Sereia e terem na Festa e no Presente seus momentos apoteóticos, não
seria equivocado tratar aqui do candomblé, mesmo das controvérsias sobre a origem deste
termo “que foi referido, no passado, como sinônimo de festa pública, dança e instrumentos
musicais, empregado para indicar o local onde se realizavam as cerimônias públicas e mais
tarde a própria religião”
194
.
As cerimônias públicas de candomblé sempre foram vistas em uma esfera
basicamente lúdica, sobretudo sob o olhar dos brancos que se referiam às manifestações
culturais de origem negra como “brincadeira” ou “função”, um imaginário que foi se
arraigando e estabelecendo padrões de comportamento preconceituosos, balizados, inclusive,
em um passado escravista que negou o acesso à educação aos negros, “mas que fez crescerem
em importância os saberes performáticos no processo de comunicação social deste segmento
com os demais segmentos sociais. A importância dos ritos públicos encontra-se no seu
caráter comunicativo”
195
afinal, na ausência do dizer, há o mostrar-se, o exibir-se.
Ainda segundo Maria Elisabete dos Santos
,
para os negros, o gesto, a música e a dança representaram formas de
comunicação, com a mesma importância da palavra escrita. Esse tipo de
linguagem esteve igualmente na base de suas manifestações religiosas, a
exemplo da liturgia do candomblé. Para os adeptos dessa religião, a festa
constitui um meio de expressão para exibir temas e valores como poder,
realeza, sexo, maternidade, riqueza, luxo, beleza, entre outros. Os negros
afirmam no espaço religioso o que não conseguem afirmar, muitas vezes, em
outras instâncias sociais, e o fazem através da dramatização dos seus ritos;
da construção e apresentação de imagens- símbolo a qual os distancia dos
estereótipos que o condenavam a uma espécie de invisibilidade social
196
.
De acordo com Clifford Geertz, “o candomblé é uma história sobre os negros que
eles contam a si mesmos
197
. um implícito desejo de reconhecimento social das
comunidades negras nessa exposição pública, pois nem o excessivo contingente de população
194
LIMA, Vivaldo da Costa. A Família-de-santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia: um estudo de relações intra-grupais. 2 .ed,
Salvador: Corrupio, 2003,p.65.
195
Santos, Maria Elisabete Pereira dos. Op cit p.198.
196
Idem. p. 199.
197
GEERTZ, Cliffort. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora da Guanabara, 1989, p. 104 – 105.
94
negra no Brasil implicou uma visibilidade social para o povo negro e a arte e a religião
assumem papéis relevantes como alternativas à exclusão. O candomblé, por ser uma religião
surgida no contexto da escravidão, na medida em que sai dos terreiros e vai para a rua, mesmo
fazendo da cabana o seu terreiro, como no caso de Aratuípe, comunica ao mundo de fora seu
universo de valores.
Entre as grandes festas religiosas que ocorrem no Brasil estão as festas de largo,
muitas associadas ao universo das religiões afro-brasileiras. Essas festas assumem o nítido
caráter de dupla pertença, onde os santos católicos festejados, associam-se aos orixás, a
exemplo da Festa do Bonfim (com o orixá Oxalá), as festas de São Roque e de São Lázaro
(com o orixá Omolu), a festa de Santa Bárbara (com o orixá Iansã), a festa de Nossa Senhora
da Conceição (com os orixás Oxum e Iemanjá). Neste sentido, segundo Ordep Serra, as festas
de largo “compreendem um rito ou conjunto de ritos sacros cujo foco espacial é um templo,
mas as cerimônias sagradas, centradas no templo não constituem a totalidade da festa desse
tipo. Os ritos podem acontecer no interior do templo, ou para ele se voltar; a duração da festa
é definida pela duração do rito sagrado.”
198
Ainda dialogando com Serra, concordamos que a Festa da Sereia em Aratuípe não se
limita à cerimônia sagrada, mesmo sendo esta o ponto alto do evento, afinal, estão envolvidos
no contexto da festa muitos elementos não sagrados, a exemplo do grande número de pessoas
que a visitam, curiosos que, embora envolvidos nas festividades, não participam do ritual.
Exemplo claro disso é que, diferentemente dos últimos anos, a festa da Sereia em
Aratuípe, neste último ano, acabou assim que o candomblé parou de tocar. Pouco depois das
duas horas da madrugada do primeiro dia do ano, quem chegava para visitar a imagem da
Sereia deparava-se com uma cabana praticamente vazia. O que normalmente era prá adentrar
a manhã, acabara cedo por falta de pessoas para tocar os instrumentos de percussão, fato que
gerou uma insatisfação generalizada e a pergunta comum de todos os presentes: “Cadê os
ogãs?”, o que ocasionou um princípio de confusão, com tentativas de agressão, logo
controladas, ao babalorixá Wilson dos Santos, responsável pela contratação do candomblé da
cidade de Nazaré.
As pessoas ligadas aos candomblés locais mostram grande insatisfação quanto a essa
espécie de “terceirização” da festa. Isso não agrada àqueles que se sentem aptos a organizá-la
e por tal razão, distanciam-se dela, não entram na cabana, reverenciam a imagem da sereia de
longe, não fazem o cortejo pelas ruas, tampouco vão ao presente, como atesta Josenílton
198
SERRA, Ordep. Rumores de Festa. O sagrado e o profano na Bahia. Salvador, EDUFBA, 2000, p. 56.
95
Souza dos Reis, um outro artesão e filho-de-santo, conhecido na cidade como Ninito: “Eles
trouxeram uma vinte pessoas, cedo acabaram de tocar. Disseram que faltou ogã. Ora, e por
que não trouxeram? Cobram caro, fazem essa coisa ruim e depois vão embora!”
199
Tal disputa é assim percebida por Maria da Conceição:
a festa de antes eu achava um negócio mais de companheirismo, hoje estou
vendo uma festa com muita ambição, o pessoal não tá fazendo como antes. E
eu não posso chegar assim e dizer: eu quero ser um presidente dessa festa.
Porque se eu chegasse a ter essa graça, eu ia fazer realmente uma festa como
deve ser feita. É isso que eu preciso ver, pra mim a comunidade dos
pescadores nomeava uma pessoa, como todo ano nomeia
.
200
O funcionário público municipal aposentado, Floriano Ribeiro, de 76 anos, morador
do bairro do Camamu, também afirma:
fiz tanto candomblé desse de “pocar”
201
as mãos e depois ficar dois, três
dias sem trabalhar e hoje o povo tudo assim e não vem. O candomblé
nunca acabou, é que não tem mais quem faça. O povo não quer ajudar.
202
É desejo de muitos devotos organizar a festa, e o que a princípio não parece
representar um “status” evidente, acaba por consistir em um problema maior: a disputa pelos
espaços de poder, a dificuldade em articular outros setores que possam contribuir para o
evento, o estar ou não ligado ao grupo político que apóia o prefeito, a falta de coesão da
comissão que por razões variadas tem em seus membros verdadeiros rivais. Diferentemente,
em alguns anos atrás, como afirma Costinha,
o festeiro é quem fazia a festa sozinho, tinha dinheiro e fazia. Se eu sou
encarregado esse ano, vem alguém e me diz: - Costinha, você me essa
festa? Tudo bem! Se não tiver essa pessoa, a gente fazia uma reunião e
convidava umas pessoas e formava a comissão
203
.
Costinha enaltece ainda as festas organizadas por ele e acrescenta:
199
Josenilton Souza dos Reis, entrevistado em 6 de janeiro de 2008
200
Maria da Conceição Santana, depoimento citado.
201
Floriano Ribeiro, entrevistado em 31de dezembro de 2007
202
Florival Costa, depoimento citado.
.
96
Minhas festas era tudo regozijada, sei fazer mesmo, sei trabalhar. Quando
chega aí, a feijoada taí na cabana pra todo mundo. tem gente que diz:
“não entregue essa festa a pessoa nenhuma, que é você, não tem outro”. E de
fato não tem mesmo não. Eu não gosto de me exibir não, mas porque eu sei
trabalhar mesmo, se eu convido uma pessoa , -“vamo ali cortar um barro”,
todo mundo grita: “Vumbora coroa!” Tem gente que diz: “Costinha gosta
de trabalhar com cachaça”, mas não querem levar alguma coisa? Muita gente
vai pro mato, leva um litrozinho. Eu me responsabilizava por tudo, ou do
meu dinheiro quando começava logo ou do que já tinha comido. Porque o
povo dá, a gente tem que gastar. Eles querem comer e embolsar, eu não, eu
quero é gastar. É por isso que as festas todas eram boas. Quando chegava a
feijoada taí, prá cinqüenta, sessenta pessoas que tivesse na hora de comer
204
.
Havia uma centralização que hoje parece não ter mais sentido, mas que é um dos
principais focos das discordâncias entre os pescadores. A pessoa interessada em comandar a
festa do próximo ano pede ao atual festeiro que lhe passe o comando, e tanto o pedido
informal quanto a decisão unilateral se dão na dimensão da relação de amizade ou dos
compromissos que ambos estabeleceram, o que permite a manutenção quase sempre das
mesmas pessoas no comando da festa, em uma rotatividade que exclui interessados em dar ao
evento um novo oxigênio. O que, não raro, faz com que se espalhe a desconfiança e a falta de
estímulo em muitos, tanto para organizar quanto para participar da festa, como alude Costinha
e como atesta Lindalva dos Santos, aratuipense que reside em Salvador, ao questionar: “a
gente sabe que tem dinheiro prá festa, só não sabe quanto. Cadê a prestação de contas?”
205
.
É fato que, a cada ano, um registro de menos terreiros de candomblé presentes,
excetuando-se nos últimos treze anos, o ano de 2005/2006. Naquela oportunidade, vieram
representantes de terreiros de várias localidades, isso graças ao apoio dado pela prefeitura que
contratou costureiras para fazer todos os trajes brancos para as “baianas”, assim como
padronizou as camisas para os homens, também brancas com a foto da sereia.
Para Eufrázia Santos, “o branco tornou-se a cor emblemática do candomblé,
participando da construção da identidade religiosa dos seus adeptos no espaço público. No
imaginário popular, o branco simboliza paz, espiritualidade.”
206
O prefeito Antonio Miranda Júnior delegou esse papel de coordenação a um
comerciante local, chamado Lenildo Santos Cardoso, conhecido como Nido, que
204
Florival Costa, depoimento citado.
205
Lindalva dos Santos, depoimento citado.
206
SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Op cit. p. 179
97
voluntariamente organizou, junto à comissão da festa, reuniões periódicas e contactou com
pais e mães-de-santo de Maragogipinho, Nazaré, Camassandi e algumas comunidades rurais
próximas, para que o evento se realizasse
Nido afirma que,
a prefeitura pagou todas as despesas, roupas, comida, transporte, mas o que
se vê é muita exploração. Todo mundo anseia por uma boa festa, mas poucos
se esforçam para realizá-la e aí, quando sabem que a prefeitura está
envolvida querem explorar.
207
A Festa da Sereia em Aratuípe tem se tornado possível graças à participação
direta de órgãos e instituições públicas em sua organização. Em Aratuípe, por exemplo, nos
últimos quatro anos, a disputa político-eleitoral circunscreve-se a um âmbito familiar e um
acirrado embate entre tio e sobrinho, ex-prefeito e prefeito, respectivamente. O antecessor do
prefeito atual, o senhor Antônio Bonfim Pereira do Lago, cujo mandato estendeu-se de 1997 a
2004, foi o responsável por instituir a festa com bandas na Praça Municipal, feito que, se por
um lado lhe legou a fama de bom prefeito, preocupado com o entretenimento da população,
assim como o tornou conhecido como empreendedor do maior réveillon da região, por outro
lado, prejudicou a Festa da Sereia, trazendo para o mesmo espaço a concorrência de um
evento maior tanto no que se refere ao investimento de publicidade, quanto de público e de
recursos financeiros.
O atual prefeito, Antônio Miranda Silva Júnior, no cargo desde janeiro de 2005,
quando perguntado sobre as duas festas do dia 31 de dezembro, avalia: eu não me privo de
ajudar os pescadores no que eles precisam, mas não posso acabar com essa festa aqui na
praça, virou tradição, as bandas, a queima dos fogos, é tanta gente que vem.
208
O fato de
ter encontrado a festa na praça quando começou o seu mandato, e uma opinião pública que, se
não desaprova a festa da praça, ao menos não se manifesta quanto à criação de mecanismos
que dêem visibilidade à festa da sereia, dão uma relativa comodidade ao gestor público que,
associando-se estrategicamente a esses eventos populares, procura firmar-se como candidato
que, inclusive, já se prepara para enfrentar o seu tio, e antecessor, nas eleições municipais de
outubro de 2008.
207
Lenildo Santos Cardoso, entrevistado em 12 de abril de 2007
208
Antonio Miranda Silva Junior, entrevistado em 31 de dezembro de 2007.
98
A dimensão de uma festa da sereia “boa” ou “ruim”, no conceito da comunidade,
não está ligada unicamente aos esforços da sua comissão organizadora ou do interesse dos
pescadores e da própria comunidade. Dois fatores somam-se em prioridade para o sucesso da
festa, um é o apoio da prefeitura, daí a conveniência dos membros da comissão em terem uma
boa relação com o prefeito, o que não impede os atritos entre os partidários de um ou outro
candidato, fator que tem interferido tanto na organização das comissões quanto na relação do
poder público com a festa. O outro fator é a ausência, por parte da comunidade, da concepção
e consciência de que a festa é um patrimônio dela.
Na festa de 2006/2007, a prefeitura não patrocinou a vinda dos candomblés de
outros municípios, apenas forneceu o material e a mão-de-obra para a construção da cabana,
e, sem a presença de outros candomblés, não houve gastos com comida e/ou transportes,
embora tenham vindo alguns pais e mães-de-santo de outras cidades espontaneamente. Foram
então os candomblés da cidade que organizaram o evento sob a coordenação de Zé de
Costinha, então presidente da comissão, mas sem ligação com qualquer terreiro, como me
revelara, o que provavelmente permitiu a presença de devotos dos dois candomblés da cidade,
haja vista que outros estavam em vias de organização, como afirma Ana Alice Costa, filha
de- santo e presidente da Associação dos terreiros de candomblé de Aratuípe
:
só existem dois terreiros em atividade, o de Maria, filha de finada Balbina na
rua Elísio Cardoso e o de Dona Helena no Alto da Favela, o prefeito que
agora ajudando a reativar o de Diozinho na Cidade de Palha e fazer o de
Candeias e Wilson também na Cidade de Palha
209
O fato que se concretizou no ano de 2007 é que o senhor Wilson, babalorixá com
terreiro inaugurado no bairro da Cidade de Palha, com apoio da prefeitura, e presidente da
comissão da festa em 2007/2008, acabou por se tornar o alvo das várias críticas dos adeptos
do candomblé dos outros terreiros de Aratuípe, que o acusaram de, em detrimento dos
candomblés locais, que não foram privilegiados, ter convidado um candomblé de outra
cidade. Como afirma Ninito :
Eu soube que teve gente que pediu a festa, mas eu vou pedir a pai Wilson.
Me disseram que ele prometeu de boca pra um, mas eu vou pegar essa
festa e começar a organizar ela desde o início do ano, fazer um caixa, botar
livro de ouro, tudo cedo, pra não deixar púltima hora e depois ficar esse
corre-corre. Botar os candomblés daqui, ele trouxe esse pai-de-santo de
209
Ana Alice Costa, depoimento citado..
99
Nazaré com o povo dele prá dizer que tava tudo cansado. Comer, beber e
depois ir embora e ainda receber quatrocentos reais que eu soube.
210
um embate entre os candomblés locais quanto a sua valorização junto à
comunidade, assim como uma necessidade de se afirmarem, evitando a apropriação do
espaço da Festa da Sereia por candomblés de outras localidades e isso, é claro, passa por
questões de reconhecimento ético que, inclusive, influenciaria na conquista de mais adeptos e
mais apoio financeiro, que existe um sistema de troca monetarizada em torno dos serviços
prestados no candomblé, que alimenta e garante a subsistência de seus praticantes. Isso
explica, em parte, porque os candomblés, eventualmente contratados para a festa cobram pelo
“serviço”, e os de Aratuípe vivam em um constante duelo pelo controle da festa.
No dia 31 de dezembro de 2007, o cortejo estava marcado para sair às 19 horas,
porém o carro que estava a serviço da Prefeitura, encarregado de trazer as pessoas da cidade
de Nazaré para fazer o candomblé, atrasou, atrasando também a saída do cortejo, ainda que às
20:30 horas não se visse ao longo da área da festa muitas pessoas interessadas na saída do
cortejo. Aproximadamente às 21 horas, sob uma chuva fina, que se estendeu
intermitentemente até o amanhecer, chegaram os responsáveis pelo candomblé que,
juntamente com as pessoas que se aglomeravam na cabana, inclusive para se protegerem da
chuva, deram início à festa. Festa que, diferentemente das realizadas em outros anos, como
comentavam os mais velhos ali presentes, realizava-se sem o habitual cortejo até a Igreja
Matriz. O Presidente da Comissão da Festa decidiu então pela saída do cortejo pela manhã,
apostando em uma estiagem que de fato aconteceu.
Às 8 horas da manhã do primeiro dia de 2008, o pai-de-santo coordenou uma nova
roda de candomblé, novos ogãs substituíram aqueles que, alegando cansaço, pararam de tocar
na madrugada e o cortejo saiu pelas ruas da cidade, fazendo o mesmo trajeto de ida. O choro
de uma senhora de prenome Adélia parecia o da despedida de um ente querido que se prepara
para uma longa jornada. A imagem, inicialmente carregada por quatro homens, encontrava
braços providenciais que se revezavam ao longo do percurso e um bom número de pessoas,
entre devotos e curiosos, que ainda ousavam desafiar o cansaço da noite e acompanhavam o
cortejo. O babalorixá Mundinho de Ogum saudava a todos com banhos de alfazema gritando:
“É ouro! É ouro!. Rapidamente chegaram à porta da Igreja Matriz, fechada. Ali, então,
começaram as saudações à Nanã, alguns filhos-de-santo incorporando suas entidades ali
mesmo e depois, como se na sensação de um dever cumprido, eles voltaram e, também como
210
Josenilton Souza dos Reis, depoimento citado.
100
não acontecia onze anos, conseguiram voltar pelo caminho original, passando pela praça
principal, em frente ao prédio da prefeitura que estava vazia e, como era manhã, o palco já
não se constituía num obstáculo capaz de detê-los em sua caminhada.
3.3 – DO TRANSE AO DEVER CUMPRIDO!
É verdade que a Igreja Católica teve sempre a intenção de impor suas idéias de
cristianismo às populações que desejava converter. Isso é válido para a Europa pré-cristã e
para os continentes nos quais as nações européias desenvolveram a colonização. No entanto, a
vivência religiosa pregada pelo clero, seja na Idade Média ou nos tempos modernos, não se
estabeleceu de forma linear e hegemônica.
Segundo Hoornaert, durante a colonização portuguesa no Brasil, não se falava em
cultura popular porque indígenas e africanos não eram reconhecidos como “povo”. No
entanto, o autor afirma que para simplificar prefere utilizar a expressão catolicismo popular,
definida como a religiosidade vivida pelos pobres
211
. a historiadora Kátia Mattoso, ao
estudar a religião na Bahia oitocentista, considera ter havido uma síntese religiosa brasileira,
denominada por ela de “religião do povo”, por considerar que a expressão engloba todas as
classes sociais. E “religiosidade popular” teria uma conotação pejorativa, por sugerir a divisão
em dois níveis: a elite e o vulgo
212
.
Mattoso afirma, ainda, que as práticas religiosas privadas
ou oficiais não eram autônomas ou opostas, e sim complementares
213
.
.
Os estudiosos da História das Religiões procuram definir religião oficial e popular,
sem todavia chegar a um consenso. O clero talvez seja o maior defensor da dicotomia,
buscando preservar e aperfeiçoar a primeira e purificar a segunda. Segundo o antropólogo
Sérgio Ferreti, em seu trabalho intitulado Religião e tradição, “a partir do final do século
XIX, a inquietação dos teólogos e teóricos diante da mistura de crenças e rituais da Igreja
Católica com outras religiões fez com que outro conceito passasse a ser utilizado nos estudos
religiosos brasileiros: o sincretismo.”
214
O antropólogo Vilson Caetano discute essa religiosidade híbrida, ao que ele chama
de “dupla pertença”:
211
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro, 1550-1800. Petrópolis: Vozes, 1974. p.98.
212
MATTOSO, Kátia. Bahia, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.389
213
Ibid., p. 392
214
FERRETI, Sergio. A Religião como mantenedora da tradição, VIIIº Encontro Maranhense de História. São Luís, UFMA, 08/09/2000,
101
ou os africanos anteciparam o que é explicado por alguns autores como uma
característica do chamado mundo moderno, que invade aos poucos as
religiões, ou os modelos religiosos tornaram-se inautênticos. Verdade é que a
dupla pertença surge sempre para desmascarar e ameaçar os modelos
religiosos universais e totalizantes
215
.
Neste estudo, me posiciono pela adoção do termo dupla pertença, considerando-o
mais apropriado para justificar a religiosidade que permeia o universo dos pescadores de
Aratuípe. Termo que se refere à vivência religiosa do povo brasileiro, especialmente, em
alguns Estados aonde a presença do negro vindo da África marcou sensivelmente a cultura e,
por conseguinte, fomentou outra forma de religiosidade, onde os elementos de sua religião de
origem, em confronto com o catolicismo imposto pelos europeus, assimilaram-se gerando o
que para muitos é uma mistura, e fora denominado pejorativamente de sincrética.
É difícil, no entanto, datar o surgimento dessa religiosidade imbricada, mas sabe-se
que, até o século XVIII, as características dos principais orixás ainda não estavam claras para
os senhores de escravos e o clero português. Ainda segundo Ferreti,
no Brasil, durante a Colônia e o Império, fazia parte do projeto de
evangelização “tolerar” as danças e os cânticos indígenas e africanos durante
as cerimônias religiosas do catolicismo. Mesmo sem ser propósito da Igreja,
a atitude favoreceu a permanência de parte de rituais dos índios e dos cultos
africanos. O clero acreditava que a permissão para que os escravos fizessem
os seus batuques e cantassem em suas próprias línguas nas proximidades das
igrejas significava uma etapa para a evangelização. Afinal, os colonizadores
muitas vezes encaravam as manifestações apenas como divertimento de
negros nostálgicos. Estes, por sua vez, aproveitavam as brechas das festas
católicas para disfarçadamente cultuar os orixás. Quando chamados para
explicar o sentido dos seus festejos, apenas respondiam que estavam
louvando os santos do paraíso
216
.
O médico e antropólogo maranhense Nina Rodrigues é considerado o fundador dos
conhecimentos científicos afro-brasileiros. Apesar de pertencer à corrente evolucionista e
empregar conceitos hoje extremamente criticados, como os de inferioridade cultural e racial,
não podemos negar a importância de suas pesquisas e reconhecer ter sido pioneiro no estudo
da dupla pertença, mesmo sem usar explicitamente esta palavra. Em seus livros aparecem
215
CAETANO, Vilson. Op. Cit. p. 86
216
FERRETI, Sergio. A Religião como mantenedora da tradição, VIIIº Encontro Maranhense de História. São Luís, UFMA, 08/09/2000.
216
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Nacional; Brasília: UnB, 1988, p.87.
102
expressões como fusão, dualidade de crenças, justaposição e exterioridades de idéias
religiosas, associação, adaptação e equivalência de divindades.
E, por reconhecer que ainda não havia um amplo conhecimento das religiões
africanas, Nina Rodrigues foi um dos primeiros interessados em estudar as interrelações entre
o catolicismo e o candomblé: “ao tempo em que publicamos os nossos primeiros estudos
sobre o animismo dos negros baianos, era ainda de todo insuficiente o conhecimento que
possuíamos da mitologia iorubana tal qual existe na África
217
.
Apesar das contribuições de Nina Rodrigues e outros pesquisadores, a exemplo do
também médico Arthur Ramos, a abordagem sobre os estudos afro-brasileiros de Roger
Bastide se revela o mais pertinente a essa discussão. Os primeiros trabalhos de Bastide
publicados no Brasil datam do final dos anos 40 do século XX. Ele acreditava na existência de
várias religiões de origem africana no Brasil e não em uma religião afro-brasileira. Em relação
à Igreja Católica, Bastide afirma a existência de dois catolicismos - uma vez que os escravos
não participavam dos mesmos rituais que seus senhores, observando que,
dentro da igreja, os portugueses ocupavam a nave, enquanto os negros
ficavam nas portas, pórticos e adro. Ou então, havia a celebração de uma
missa para os escravos no início da manhã e outra para seus patrões mais
tarde. O escravo não trabalhava nos dias santos, principalmente durante o
ciclo de festas católicas, do Natal à Semana Santa. Mas a sua festa era
comemorada segundo outros ritos
218
.
Para Bastide, a separação forçada fez o negro ter maior consciência racial e procurar
protetores específicos entre os orixás ou santos da sua cor, como Nossa Senhora do Rosário,
São Benedito, Santa Efigênia, Santo Antônio de Catagerona, etc.
Ainda de acordo com Roger Bastide, “quando os senhores passaram a habitar nas
cidades, transferiram o culto dos seus santos para os altares particulares em suas residências,
enquanto os negros ocuparam as ruas, transformadas em espaços de devoção.”
219
Os
africanos reinterpretavam a liturgia cristã e recriavam a sua africanidade. Roger Bastide, ao se
referir ao catolicismo dos negros, concluiu: “O catolicismo negro foi um relicário precioso
que a Igreja ofertou, não obstante, ela própria aos negros, para aí conservar não como
relíquias, mas como realidades vivas, certos valores mais altos de suas religiões nativas.”
220
217
RODRIGUES, Nina. Op cit.p. 88.
218
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1971, p. 158-162. 29 Ibid., p. 170.
219
BASTIDE, Roger. Op cit., p. 179
220
BASTIDE, Roger.Op cit pp. 171/172.
103
É certo que a Igreja, mesmo sem o querer ou saber, propiciou a continuidade dos
rituais africanos. Mas é preciso não esquecer as perseguições empreendidas pelas autoridades
eclesiásticas e civis, na tentativa de extinguir qualquer outra religião do território português
nas Américas. Não à toa, nos primeiros terreiros de candomblé existiam altares com as
imagens dos santos para dar a impressão de seus membros serem católicos. Franziska Rehbein
acredita que esses altares evidenciam uma influência mútua entre o catolicismo e o
candomblé. Mas a própria autora afirma que
as imagens tinham função meramente decorativa, não desempenhavam
nenhum papel nas cerimônias para os orixás. Os filhos-de-santo prestavam
homenagem diante do peji. Quando dançavam no mesmo salão do altar
católico, não lhes davam atenção, e amesmo executavam as danças rituais
de costas para os santos
221
.
Tornou-se inevitável a necessidade de um maior enquadramento das manifestações
da religiosidade popular católica à ortodoxia, justamente pela orientação do modelo
eclesiástico formatado no Concílio de Trento, associado aos valores da emergente sociedade
burguesa, o clero passou a administrar a nos aspectos doutrinal, ritual e devocional. Como
afirma Riolando Azzi,
nenhuma manifestação religiosa poderia ser realizada sem a autorização e a
supervisão de um padre. O resultado desse processo é o afastamento entre o
catolicismo do clero e o popular. A difusão da ortodoxia era competência
dos sacerdotes letrados, preparados nos seminários, e da elite intelectual, ex-
alunos dos colégios católicos e membros dos novos movimentos da Igreja,
leigos praticantes e militantes na divulgação do novo espírito católico. Essa
especialização do culto desconsiderava as práticas populares folias, festas,
procissões e romarias – consideradas a partir de então como ignorância,
superstição, sincretismo e fanatismo
222
.
Na Bahia, segundo Ferreti, percebe-se a mesma preocupação em reformar os
costumes do povo:
O clero reformador considerava que o catolicismo dos baianos, sobretudo da
população negra e de baixa renda, restringia-se a um nível puramente
exterior, sem atingir a alma. Freqüentemente misturava-se a católica com
outras crenças religiosas, a superstição e o sincretismo. As festas em
221
REHBEIN, Franziska C. Candomblé e salvação: a salvação na religião nagô à luz da teologia cristã. São Paulo: Loyola, 1985
222
AZZI, Riolando. A Neocristandade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 93-95.
104
homenagem aos santos tradicionais Santa Bárbara, São Gonçalo, São
Jorge, São Cosme e São Damião, São Jerônimo, Santo Antônio, São Lázaro,
São Roque, São Sebastião, Sant’Ana, Nossa Senhora e o Senhor do Bonfim
apropriados pelos descendentes de africanos em seus terreiros de
candomblé, na impossibilidade de serem extintas, deveriam ser aos poucos
substituídas
223
.
Nina Rodrigues analisa, ainda, as medidas que foram implementadas contra os
cultos de candomblé no Estado da Bahia: “diante das violências da polícia, as práticas negras
se furtarão à publicidade: Hão de refugiar-se nos recursos das matas, nos recônditos das
mansardas e cortiços; se retrairão às horas mortas da noite.”
224
E, sobretudo, a Festa teria sido uma das maiores responsáveis em transmutar essa
prática religiosa para uma maior visibilidade, como atesta Santos:
Foi-se o tempo em que a noite era mplice daqueles que, movidos pela
curiosidade ou pelos mais variados interesses, dirigiam-se aos terreiros de
candomblé, atraídos pelas suas práticas mágicas e pelas suas cerimônias
festivas. A saída desta religião do isolamento social, das margens para o
domínio público implicou conflitos e alianças com a sociedade mais ampla.
Enquanto as zonas de conflito eram facilmente identificadas aos aspectos
mágicos, as festas públicas sempre representaram o lado mais “palatável”,
mais tolerável do candomblé
225
.
Embora muitos pescadores de Aratuípe se afirmem católicos, normalmente
alusões ao candomblé em seus relatos, e as pessoas circulam livremente e, com muita
naturalidade, no mundo religioso católico e no mundo religioso do candomblé, freqüentando
os rituais correspondentes às duas religiões. E revelam, impregnados que estão em suas
memórias, momentos repletos de um grande respeito pela religião dos orixás. A exemplo de
Costinha, que diz:
Tem gente que não tem em Deus. Agora, eu ouvi alta noite, no rio da
Dona, dentro do mato, na casa de minha tia Selvina. Ela disse: “olha lá,
não é toda noite, mas sempre aparece um candomblé”. Uma certa vez eu fui
na casa dela mais minha irAmérica, mãe de Cundamba, então de noite,
nós conversando, na base de umas onze horas ela disse: “pára aí a conversa e
escute”. nós ficou, quando a gente ouviu aquele candomblé descendo o
rio, a uma distância de casa para o rio de mais ou menos um quilômetro. O
som tava entrando pelo ouvido parecendo um grilo, aquele som fino...,
223
FERRETI, Sérgio. Op. Cit., p. 72.
224
RODRIGUES, Nina.Op.Cit., p. 246
225
SANTOS, Maria Elisabete Pereira dos. Op cit. p. 128.
105
chegou assim embaixo parou, depois subiu de novo o rio acima até quando a
gente não ouviu mais.
226
Aloísio Lima guarda lembrança semelhante:
uma vez eu desci, quando a gente chegou na pedra, eu disse: “ó Bigo-Bigo, é
vai um candomblé”. Ele fez: é de Congo de Ouro (pai de santo de Nazaré
das Farinhas), vamo puxá a vara, varejar
227
de fora a fora o saveiro, vamo
botar força”. Aí quando a gente chegou na Pedra, tava ouvindo o baticum
228
.
Eu disse: “vumbora pra gente acompanhar”. Quando a gente chegou na
borda das Cajazeiras, ele ia saindo na Boca do Rio. Eu disse: “já vai,
Bigo-Bigo, vumbora!” Quando chegou na Boca do Rio defronte ao Pires,
esse candomblé ia na volta da fazenda de Naninha, na Piedade. tome-
lhe remo, tome-lhe remo, quando a gente chegou na piedade ele já ia
cobrindo Jacaracica. Aí ele disse: “Ah! Aloísio, vai pegar mais não”. A gente
via as mulher dançando e comendo coro. “Não pega mais, não!” Quando
a gente passou no posto de baixo, não tinha nada, tudo mudo. Aí eu disse: “Ô
Ave Maria! É, tá bom, foi só prá despertar o sono da gente”
229
.
Essa religiosidade híbrida dos pescadores de Aratuípe, não é plenamente aceita pelo
padre Wilson Vitória de Almeida. Responsável pouco mais de três anos pela paróquia de
Nossa Senhora Sant`Ana, padroeira do município, ele afirma:
Essa questão do sincretismo, uma mistura que de certa forma prejudica
porque não ajuda a pessoa a ter uma visão mais correta ou uma visão única.
Ao mesmo tempo vai misturando, catando uma coisinha daqui outra dali.
Você faz a sua religião e não aquilo que as igrejas em si apresentam.
São dificuldades que a gente vai enfrentando em cada canto e aqui ainda tem
a questão de toda essa área de pescadores, que é uma cultura, uma
comunidade já com mais de cem anos, já tem uma outra história, pessoas que
de certa forma sempre "dominou" e que ainda sentem-se presos a isso
(referindo-se ao culto afro-brasileiro) e não aceitam as mudanças. E tem
também as comunidades novas que estão mais abertas prá pastoral.
230
226
Florival Costa, depoimento citado.
227
Varejar – Impelir o Saveiro, dar velocidade.
228
Baticum - Ruído de sapateados e palmas, como no batuque.
229
Aloísio Lima ,entrevistado em 10 de setembro de 2006
230
Padre Wilson Vitória de Almeida, entrevistado em 12 de julho de 2007
106
Quanto a proibir os pescadores que trazem a imagem da Sereia de não ultrapassarem
os portões da Igreja Matriz, ele afirma:
Nunca chegaram prá mim prá explicar, mas o que a gente prega é a
separação das coisas. Aquele que é católico tem que purificar a sua fé
católica. Quem é ligado a religiões africanas que tenha a sua fé aí nos
terreiros ou na sua cultura, quem é espírita ou quem é evangélico também na
sua comunidade, ao mesmo tempo respeitando mas sabendo separar cada
coisa. Se a gente alimenta esse sincretismo acaba confundindo aqueles que
não tem uma fé tão esclarecida, então eu creio que acaba sendo um prejuízo.
Se antes eles iam e recebiam essa benção (o que não foi da minha época), a
gente hoje procura fazer essa separação, orientar prá isso. Quando eu
cheguei já não tinha e eu agradeço por não ter. É um problema a menos
231
.
O padre, inclusive, a festa como algo que deixou de existir, mostrando
compreender o candomblé como um folclore e não como religião:
Quando eu cheguei não tinha mais a festa mas o pessoal sempre fala na
Sereia, os Navegantes, outras populares que tinham no início do ano que
eram festas grandes, era muito mais, pelo que eu entendi, de certa forma,
uma questão cultural, folclórica, não tanto religiosa, como se fosse um
folclore da comunidade.
232
O padre Wilson deixa explícito, e atenta em tom desabonador, para o fato de
preservar a distinção entre as práticas religiosas, sobretudo a católica e o candomblé.
Evidenciando parco conhecimento das práticas culturais do município, o pároco acaba por
promover uma distinção preconceituosa, fruto de sua formação religiosa conservadora, que
pouco contribui na desconstrução desses preconceitos. Analisar a Festa da Sereia em Aratuípe
apenas como um folclore da comunidade local, é negligenciar sua profunda religiosidade,
seus conflitos, sua expressão como manifestação cultural, a história de vida dos homens e
mulheres inseridos no cotidiano do culto e da festa. A tarefa de separarem-se os ritos, como
alude o padre, é tarefa quase impossível em uma comunidade com aspectos tão evidentes de
duplo pertencimento religioso.
O culto a Sant`Ana em Aratuípe tem pouca intensidade, as missas não atraem
tantos fiéis e as grandes procissões são coisas do passado, “aqui, a parte religiosa, a parte
católica, ela é tímida, aqui muita gente é católica mas de dentro de casa. Não assume a
231
Padre Wilson Vitória de Almeida, entrevistado em 12 de julho de 2007
232
Idem.
107
vivência na comunidade. Tem pessoas que reclamam quando tem missa com frequência.
‘Prá quê tanta missa?’”
233
. A pouca veneração popular que a santa católica atrai, se deve,
segundo Mariom Stremel,
ao fato de não ser especialista em curas milagrosas nem ser
invocada para resolver causas urgentes. Seu culto, inclusive, não representava raça, profissão
e nem auxílio individual”
234
.
A analogia que identifica Nanã como Sant’Ana será enfocado neste trabalho,
respaldado nos diálogos com a historiadora baiana Edilece Couto
235
,
sobretudo nos registros
de sua obra Tempo de Festas, na qual a autora aborda características desse orixá
que, como
vimos anteriormente, na mitologia Iorubá, é a senhora dos lagos: “proprietária de um cajado,
salpicada de vermelho, sua roupa parece coberta de sangue. Orixá que obriga os fon a falar
nagô. Minha e era inicialmente da região baribá. Água parada que mata de repente. Ela
mata uma cabra sem utilizar faca!”
236
.
Na África existem várias entidades cujo nome vem precedido do nome de Nanã, que
significa pessoa idosa e respeitável e, ao mesmo tempo, mãe. Porém, aqui, refiro-me à Nanã
Buruku
237
, o mais antigo orixá das águas, ela mora nos lagos, lagoas e pântanos. Seu domínio
é a “agua parada que mata de repente”, como nos revela o poema. Por isso, é preciso não
confundi-la com Oxum, cuja morada é o rio, e Iemanjá, que habita o mar. Nanã também está
relacionada à morte, pois é responsável pela transição do corpo material para o outro mundo.
Segundo a mesma historiadora, as pessoas que têm Nanã como orixá protetor
normalmente o calmas, benevolentes, gentis e lentas no cumprimento de suas tarefas, pois
acreditam ter muito tempo para realizar tudo o que precisam e desejam. São também
dedicadas à educação das crianças e, às vezes, agem com a indulgência das avós. Nanã é e
de Obaluayiê, o orixá que protege as pessoas das doenças contagiosas. Para alguns fiéis o seu
dia é segunda-feira, junto do seu filho. Para outros, é o sábado, dia consagrado aos outros
orixás das águas. Para solicitar ou agradecer seu auxílio é necessário fazer-lhe oferendas.
Na análise do poema citado acima, Couto diz que “Ela mata uma cabra sem utilizar
faca”. Dessa forma, sem o uso do instrumento, devem ser sacrificadas as cabras e galinhas-
d’angola que lhe serão oferecidas. Ainda fazem parte da oferta pratos à base de milho e coco
233
Padre Wilson Vitória de Almeida, depoimento citado. .
234
STREMEL, Marion Regina. Anos de glória: a festa de Sant’Ana em Ponta Grossa, 1930-1950 p 86.
235
COUTO, Edilece Souza. Tempo de Festas: Homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940) pp.
140 – 142
236
Versos dedicados a Nanã Buruku colhidos por Pierre Verger (2002, p. 240) em Kêto e Abeokutá. Sobre Nanã Buruku, cf. Pierre Verger,
op. cit., p. 236-241.
237
Sobre Nanã Buruku, cf. Pierre Verger, op. cit., p. 236-241
108
ou preparados com quiabos, mas sem azeite de dendê. O devoto que incorpora Nanã deve
vestir roupa azul e branca e usar colares de contas de vidro nas mesmas cores. Durante a
dança, os movimentos são lentos como os das pessoas idosas. O dançarino parece apoiado
num bastão imaginário, pois Nanã era “Proprietária de um cajado”, como se afirma no poema.
Para fazer a saudação, grita-se: Salúba.
Sant’Ana, também estudada por Edilece Couto, no universo católico, é a mãe da
Virgem Maria, cultuada principalmente pelos professores, idosos, além dos casais que
desejam ter filhos. Suas biografias enfatizam que Ana e o esposo Joaquim eram tristes por
Deus não lhes ter favorecido com uma prole. Por meio de orações, o casal pedia essa benção.
Com o nascimento de Maria, seus pais decidiram oferecê-la a Deus. Infelizmente, pouco se
sabe sobre a vida de Ana. Lehmann começa o seu texto sobre a santa dizendo, “que tarefa
mais difícil poderá haver, que escrever a vida de pessoa de quem escassez extrema de
notícias biographicas!”. Segundo ele, os evangelhos não fazem menção aos pais da Virgem e
a principal referência utilizada é o protoevangelho de Tiago. No entanto, essa obra não foi
bem acolhida pela Igreja ocidental, sobretudo pelos religiosos São Jerônimo e Santo
Agostinho
238
.
Na Legenda áurea, o frade Jacopo de Varazze não dedicou nenhum capítulo à vida
de Sant’Ana. O autor escreveu sobre ela na parte destinada à natividade da Virgem Maria.
Varazze relata a dificuldade encontrada por Ana e seu esposo Joaquim para gerar um filho.
Conta, ainda, que Ana casou-se três vezes e teve três filhas de nome Maria. O primeiro
marido foi Joaquim. Com ele, Ana gerou Maria, a mãe de Jesus Cristo. Após a morte de
Joaquim, Ana casou-se com Cleofas e teve a segunda filha. Ao ficar novamente viúva, Ana
uniu-se a Salomé e teve a terceira filha. Ana, portanto, não era infértil, apenas demorou a ter a
primeira gravidez, o que aconteceu após vinte anos de espera e depois de prometer a Deus
que entregaria a filha a seu serviço
239
.
No Oriente, o culto a Sant’Ana desenvolveu-se a partir do culo oito, quando suas
relíquias foram transportadas da Palestina para Constantinopla, em 710, e distribuídas entre as
igrejas do Ocidente. A Santa Sé, por intermédio do Papa Urbano VI, permitiu que os ingleses
cultuassem a santa em 1378. Somente em 1584 foi fixada a data da sua festa para o dia 26 de
julho
240
.
238
LEHMANN, João Baptista. Na luz perpétua: leituras religiosas da vida dos Santos de Deus, para todos os dias do anno, apresentadas ao
povo christão. Juiz de Fora: Lar Catholico, 1935. p. 82.In COUTO, Edilece Souza. Op. Cit p. 152
239
VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 747 -750. COUTO, Edilece Souza.
Op. Cit p.154
240
LEHMANN, op. cit. COUTO, Edilece Souza. Op. Cit p. 154
109
Segundo Anna Nascimento, em Salvador, Sant’Ana era cultuada em dois diferentes
pontos: na freguesia de Sant’Ana e no arrabalde do Rio Vermelho. Em 20 de julho de 1679
foi criada, por alvará da Mesa de Consciência e Ordens, no governo do arcebispo dom Gaspar
Barata de Mendonça, a freguesia de Sant’Ana. No entanto, ela era mais conhecida como
freguesia do Desterro, pois a matriz era a Igreja de Nossa Senhora do Desterro, localizada no
convento das Clarissas. O culto era tradicional, realizado por meio de missas, novenas e
procissões no mês de julho
241
.
No culto à Sant’Ana, nessa zona pesqueira de Salvador, um dos elementos que
chamam a atenção é o período da realização da festa: data móvel entre os meses de janeiro e
fevereiro. O que motivou os pescadores a homenagear a santa nessa época do ano que
tradicionalmente, no calendário litúrgico católico sua data comemorativa é dia 26 de julho?
Segundo alguns cronistas e folcloristas
242
que recolheram informações no local, a primeira
festa aconteceu em fevereiro de 1823. No ano anterior, durante as lutas pela independência, os
moradores do Rio Vermelho, temendo um ataque dos portugueses, se refugiaram na
localidade de Itapoã.
Algum tempo depois eles resolveram voltar ao povoado para verificar o estado das
suas casas. Após a vistoria, sentaram-se à beira-mar para um pequeno descanso, quando
foram surpreendidos pela aparição de uma velha que lhes disse: “Meus filhos, o que fazem
por aí? Olhem que os lusitanos vêm”. Os jangadeiros perceberam a aproximação dos
portugueses, que chegavam atirando. Nadaram em direção às jangadas e conseguiram fugir.
Acreditaram, então, que aquela senhora era Sant’Ana, e, a partir do ano seguinte, começaram
a realizar uma festa de louvor, com procissão terrestre e marítima, em agradecimento por
terem sido salvos naquele episódio.
Apesar de Sant’Ana ser associada como Nanã, os rituais do candomblé, realizados
na praia do Rio Vermelho, sempre tiveram relação com o culto de Iemanjá. Para a
historiadora Edilece Couto, não é difícil entender as razões dessa relação, embora ela também
suscite muitas interrogações:
Nanã é o orixá das águas paradas. Os habitantes do arrabalde têm por ela um
respeito distante. É natural que, vivendo próximos ao mar e tendo a pescaria
como atividade principal, tivessem a “necessidade” de cultuar Iemanjá. Mas
por que a romaria dos jangadeiros, em homenagem a Sant’Ana, deu origem
241
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986, p.
83-85.
242
QUERINO, Manoel. A Bahia de outrora. Salvador: Progresso, 1946, p. 127-130
110
ao presente para a rainha do mar? A festa de Iemanjá substituiu a de
Sant’Ana? Quais as causas dessa transformação? Quem foi responsável pela
mudança: os veranistas, a Igreja romanizada ou os adeptos do candomblé?
243
Essas são inquietações que se transferem para a Festa da Sereia em Aratuípe. No
tocante à festa em Salvador, Couto afirma que,
o processo de transformação foi lento e promovido por diferentes fatores. A
romaria dos jangadeiros, iniciada em 1823, foi modificada, em parte, pela
chegada dos veranistas à localidade durante a segunda metade do século
XIX. A festa religiosa foi carnavalizada com a inclusão de novos elementos,
como concursos de beleza, bailes à fantasia e desfiles de carros alegóricos.
Mas seria injusto colocar toda a culpa das mudanças nos recém-chegados. É
provável que a essa altura a lenda da aparição de Sant’Ana aos pescadores
tivesse perdido o significado e a motivação inicial para a realização dos
festejos, fazendo com que aceitassem a interferência externa
244
.
Para a autora, ainda corroboraram para essa mudança outros elementos importantes,
como os conflitos ideológicos das primeiras décadas do século XX, além das novas
orientações do clero e os costumes dos pescadores vinculados ao candomblé.
Acredito então, que uma relação intrínseca entre a Festa de Iemanjá, realizada no
bairro do Rio Vermelho em Salvador, com a Festa da Sereia no município de Aratuípe, e não
apenas por suas correlações com a Dona das Águas, ou com as divindades que a caracterizam
como Iemanjá, Nanã, ou mesmo Nossa Senhora Sant’Ana, mas por raízes históricas que
aludem, além das questões religiosas, a aspectos ideológicos, étnicos, sociais e econômicos
245
:
A pescaria não estava dando os resultados esperados. Os pescadores
começaram a ouvir dos próprios compradores que eles deveriam oferecer um
presente à Mãe d’Água. No primeiro momento, ficaram temerosos de
realizar aquela “bruxaria”, desconfiados quanto à eficácia de tal ato.
Resolveram mandar celebrar uma missa na igreja e, em seguida, partiram
para alto-mar a fim de oferecer o presente, composto de perfume e flores.
Não demorou muito tempo para surgirem comentários de que os pescadores
não estavam realizando o ritual corretamente. Era preciso buscar ajuda de
243
COUTO, Edilece Souza. Op cit p. 148
244
COUTO, Edilece Souza.Op cit p. 149
245
Edilece Couto cita Ubaldo Porto Filho que narra em seu livro Rio Vermelho, um segundo conflito entre os pescadores daquela localidade e
a Igreja Católica, ainda no ano de 1924
111
alguém que conhecesse bem o culto da Mãe d’Água. Eles solicitaram os
serviços de Júlia Bogun, mãe-de-santo do candomblé. Ela explicou como
deveria ser um presente para Iemanjá, de acordo com o preceito africano.
Pediu que fossem comprados um balaio grande, uma talha de barro, flores e
fitas nas cores do Orixá: branca e azul. O presente foi colocado na Casa do
Peso e depois encaminhado ao mar na chamada segunda-feira gorda, último
dia da festa de Sant’Ana.
246
Ainda segundo a historiadora, no ano de 1930, em um terceiro conflito, esse definitivo,
a festa católica foi separada da festa do candomblé:
O padre se recusou a celebrar a missa na igreja de Sant’Ana. Depois de muita
discussão e tentativas de conciliação, a celebração aconteceu, mas os
pescadores se sentiram ofendidos com o sermão, no qual o vigário afirmava
ser “ignorância” oferecer presente a uma mulher com rabo de peixe. Os
antigos moradores do Rio Vermelho deixaram de pedir a celebração da missa
no dia da entrega do presente e assumiram o culto da rainha do mar.
247
Dessa forma, a partir da década de 30 do século XX, os pescadores do Rio
Vermelho, em Salvador, passaram a criar uma nova relação com o culto africano, com uma
festividade autêntica, sem a intermediação da Igreja Católica, o que fez com que a festa de
Iemanjá se sobressaísse em relação à de Sant`Ana. O culto de Iemanjá, no dia 2 de fevereiro,
foi resultante da vitória dos pescadores, que legitimaram seu passado africano e que, mesmo
pressionados pela Igreja Católica, afirmaram sua devoção à Dona das Águas.
Dada a proximidade do município de Aratuípe com essas zonas pesqueiras de
Salvador, mesmo por seu contato marítimo, a inserção da Igreja Católica no cotidiano desses
pescadores, suas origens étnicas afrodescendentes, o que os aproximam tanto em matéria de
passado escravista quanto de religiosidade, permite neste estudo, que pensemos em um
possível anacronismo das origens da Festa da Sereia em Aratuípe com a Festa do Rio
Vermelho em Salvador. A necessidade de se despreender das imposições do catolicismo, sem
romper com seu vínculo original, fez os pescadores saírem da Igreja para cultuar suas
246
PORTO FILHO, Ubaldo Marques. Rio Vermelho. Salvador: AMARV, 1991, p. 96. In: COUTO, Edilece Souza op cit. p. 149- 150
247
COUTO, Edilece Souza.Op cit p. 149
112
divindades na rua e nos terreiros, que se organizaram como espaços de religiosidade e de
afirmação de identidade.
A Festa da Sereia em Aratuípe, realizada com cabana na rua, como sinalizou o
pescador Costinha em depoimento citado, teria começado entre os anos de 1956 e 1957,
arraigada em um mito que não podemos precisar o surgimento, mas que é comum entre
inúmeras comunidades ribeirinhas. Mas a Festa realizada e o Presente, teriam suas referências
mais próximas no distanciamento, que os pescadores erigiram tanto em Salvador como em
outras áreas do Recôncavo baiano, entre a sua fé, seus cultos e a ideologia católica dominante.
Em Aratuípe, toda manhã do primeiro dia do ano é de presente à Dona das Águas.
De acordo com a maré, o cortejo fluvial, que era levado em pequenos saveiros e canoas
movidas a remo, saíam pela manhã e voltavam quase ao anoitecer. Depois da aquisição das
canoas motorizadas pela Colônia de Pescadores em 2005, a partir de 2006, o cortejo leva em
média quatro horas para ir ao Toque-Toque levar o presente e voltar.
As pessoas se aglomeram no cais para verem o cortejo sair, as canoas comandadas
por pescadores mais experientes dispostas a receber os seus passageiros vão encostando,
sendo que na canoa em que vai a imagem da Sereia, vão também os atabaques e um grupo de
pais e mães-de-santo. As outras, sempre muito próximas, formam uma espécie de comboio.
O senhor Costinha, que por motivos de saúde não visita mais a festa durante a
noite, ao amanhecer, no entanto, prostra-se na beira do cais, sentado em uma cadeira, ansioso
para que alguns braços providenciais o coloquem em uma daquelas embarcações, o que não
tarda a acontecer, uma vez que, para todos ali presentes, Costinha é uma atração, um símbolo
vivo da homenagem à Dona das Águas.
Devido à pequena largura do rio e sua baixa profundidade, os primeiros quilômetros
são conquistados lentamente. O cortejo sai ao som dos ritmos do candomblé, passa por velhas
fazendas, algumas abandonadas, e olarias, que num passado, não tão distante, produziam
grande parte dos tijolos e telhas comercializados em Salvador. As garças são as companhias
mais comuns, cortando com seus vôos os espaços entre o rio e os manguezais que ocupam
quase toda a sua margem. E assim vai se passando pelo Porto Alegre, Guabiru, Pedra, Cavala,
Porto da Espada, Pires, Piedade, Terra Santa, Firmiano, Jacaracica, nomes de lugares fincados
ao longo do percurso que separa Aratuípe de Jaguaripe, até se avistar, ao longe o Toque-
Toque, uma falésia, distante aproximadamente dois quilômetros do cais principal da cidade de
Jaguaripe, de onde já se pode ver a Igreja Matriz daquele município. As embarcações que
chegam primeiro ao local, enquanto esperam as outras, dão voltas em torno do lugar e todos
113
aplaudem. O Toque-Toque parece ser mais que aquelas três enormes rochas e o paredão, com
um telhado de proteção sob onde é colocada a imagem.
Figura 15
248
Enquanto alguns pescadores descem das embarcações para colocar a imagem no
local, onde outrora o pescador João Cilírio teria tido seu primeiro contato com a Sereia, as
homenagens à Dona das Águas continuam nas embarcações e não raro as pessoas são tomadas
de súbito por um transe. Como considera Prandi:
...o transe no candomblé, pelos menos em suas primeiras etapas inicticas, é
experiência religiosa intensa e profunda, pessoal e intransferível. Como a dor e
as paixões não-religiosas experimentadas, não pode ser mensurado nem
descrito, a não ser metaforicamente e indiretamente.
249
É quando, mesmo que todos percebam e aceitem com a mais pura naturalidade, o
iminente risco de alguém cair nas águas do rio, pois, no momento da possessão, segundo Rosa
Bárbara,
A postura do corpo muda completamente, o rosto adquire uma expressão
fechada, às vezes os lábios são empurrados para frente, os olhos são
248
Foto da embarcação com a imagem da Sereia, 31 de dezembro de 2007. Acervo pessoal.
249
PRANDI, Reginaldo. Os Candomblés de São Paulo. São Paulo Hucitec Editora da Universidade de São Paulo, 1991.)
114
fechados, a figura humana tremendo, adquire para os orixás da água uma
postura
“mais redonda” no sentido que os cotovelos são alargados a altura do busto
que é levemente dobrado para baixo, e para os orixás guerreiros, Ogum e
Xangô mais reta; mais voltada para o céu para as divindades mais jovens,
Ogum, Oxossi e Iansã; e mais dobrada para o chão para as divindades
velhas, Nanã e Obaluaê
250
.
Referindo-se às pessoas que “caem no santo”, e são tomadas por Iemanjá, Pierre
Verger afirma:
Quando Iemanjá se manifesta, a pessoa incorporada normalmente está
vestida de azul claro e ornada com contas de vidro transparentes e nas mãos
carrega um abano de metal branco. Sua dança é realizada com movimentos
que lembram as ondas do mar. O corpo é flexionado e as mãos são levadas
alternadamente à testa e à nuca. Para saldar esse orixá basta dizer: Odò Iyá!
251
Depois de colocada a imagem de volta ao Toque-Toque, as canoas se dirigem ao
centro do rio que, dada à proximidade do mar, tem a sua água salobra, formando um
círculo, e as pessoas jogam flores nas águas, até que o barco com o presente principal, o
mesmo que trouxe a imagem da Sereia, dirige-se ao centro do círculo e o responsável pelo
presente, que é o presidente da comissão da festa ou, em alguns casos, o pai-de-santo
responsável pelo candomblé, deposita o cesto com os presentes nas águas.
As oferendas são mergulhadas com o objetivo de atingir a maior profundidade
possível. Se elas boiarem é sinal de que a Dona das Águas as recusou. Isso ainda pode
implicar não atendimento dos pedidos. Normalmente o presente é aceito. Afinal, é preparado
de acordo com o ritual do candomblé. Todas as regras relacionadas às preferências do orixá,
quanto à comida e aos objetos ofertados, são rigorosamente observadas no ritual.
Essa prática consiste no oferecimento de materiais e substâncias que contêm axé. As
oferendas lançadas ao mar estabelecem uma relação de troca entre os fiéis e a divindade, uma
manifestação de reciprocidade, e é a realização desse presente que garante a manutenção do
sentido de revitalização, impregnado nessa prática religiosa. De acordo Vagner da Silva,
250
rbara, Rosa Maria Susanna. Terapia Musical do Candomblé USP/Pós Graduação em Sociologia.Trabalho apresentado no seminário
temático ST08 "Experiências religiosas e novas espiritualidades".VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina São Paulo,
22 a 25 de setembro de 1998 st08-4.
251
VERGER, Pierre. Sobre as diferentes denominações de Iemanjá, cf., op. cit., p. 191-192.
115
o ebó, no sentido amplo de oferecimento de animais ou outros objetos, é um
dos princípios e mais freqüentes meios de propiciar beneficamente as
divindades das religiões afro-brasileiras para realizarem os desejos humanos
ou de agradecer dádivas recebidas ou ainda simplesmente reafirmar os laços
de união destas com seus filhos
252
.
É na esperança de que a Dona das Águas aceite o presente e permita a cada um que
no próximo ano possa retornar, que todos aplaudem e retornam para a cidade. Na sua festa
anual, os devotos lhe oferecem flores, perfume, sabonete e boneca. Afinal, a Dona das Águas
é vaidosa e gosta de presentes, como afirma o poeta Jayme Góes nos seus versos: “Yemanjá é
faceira gosta de pó, de extratos, de espelhos e fitinhas, meadas de todas as linhas, enfeites de
todas as cores... e de flores... de muitas flores!...”
253
.
252
SILVA, Vagner da.Orixás da Metrópole. Petrópolis:Vozes,1995, p.92
253
GÓES, Jayme de Faria. Festas tradicionais da Bahia. Salvador: Progresso, s/d, p. 71.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Nessa dissertação me propus a pesquisar os pescadores da cidade de Aratuípe, seu
cotidiano, sua religiosidade, seus mitos, seu culto à Dona das Águas, embasado em teóricos
que enfocam temas afins, como Cultura Popular, Mito, Religiosidade e Festa, e em estudos
dos relatos orais que não se pautaram somente em acontecimentos e fatos, mas também em
reflexões, desejos, frustrações e crenças, pois, de acordo com Alessandro Portelli:
A primeira coisa que torna a história oral diferente é que ela nos conta
menos sobre eventos que sobre significados. [...] O único e precioso
elemento que as fontes orais têm sobre o historiador, e que nenhuma outra
fonte possui em medida igual é subjetividade do expositor. [...] Fontes orais
contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que
acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez
254
.
Ou ainda o que diz Maria Isaura Pereira de Queiroz:
A história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas
também recolhe destas tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças
existentes no grupo, assim como relatos que contadores de histórias, poetas,
cantadores inventam num momento dado
255
As reflexões e os significados, que emergiram das entrevistas, compuseram boa
parte do conteúdo desta pesquisa; revelando não apenas as impressões pessoais dos
entrevistados, mas os pontos onde os diversos depoimentos convergiram e divergiram, pois o
diálogo entre eles compôs o que Maurice Halbwachs chama de “memória coletiva”, ou seja, o
conjunto de lembranças compartilhado por um determinado grupo e formado a partir da
“memória individual”.
256
A análise da cidade em seus primórdios foi o objetivo primeiro desta pesquisa: a
aldeia que se erige nos arredores da capela, a freguesia depois elevada à condição de Vila e
sede de Município, suas atividades produtivas, mormente a pesca, atividade que preenche o
cotidiano de muitas famílias e as histórias dos seus personagens mais reais - do espaço
254
PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral diferente”. In: Revista Projeto História. São Paulo. 1997. p. 31.
255
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. “Relatos orais: do ‘indizível’ ao ‘dizível’. In: Revista da USP 43. São Paulo: Vértice. 1988. p. 19.
256
HALBWACHS, Maurice. “A memória coletiva”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1990. pp. 25-47.
117
“indivisível” do mar ao cotidiano do Mercado Municipal, suas formas de organização, suas
tristezas e contentamentos.
O estudo dos mitos aquáticos que permeiam inúmeras civilizações, discutido aqui,
no segundo capítulo, atuou sob a perspectiva de entender aqueles que fizeram erigir o culto à
Dona das Águas em Aratuípe, os pescadores. O respeito às águas e à divindade que as
representam é lugar comum naquela cidade, e, mergulhar nesse cotidiano de dos
pescadores, implicou na certeza de saber que suas experiências e vivências alicerçavam cada
vez mais esse mito.
Tais relações com as águas dão uma dinâmica especial àquela comunidade, e a
discussão sobre mitos europeus, como a Sereia dos gregos, a Iara, de algumas comunidades
indígenas, e mesmo Iemanjá, divindade da nação iorubá, permitiram a compreensão de mitos
e ritos que advêm das águas desde tempos imemoriais, e que se reinventam em várias
comunidades pesqueiras, arregimentadas por suas necessidades de sobrevivência. Ser
pescador em Aratuípe, não se resume apenas ao mundo do trabalho no mar ou no Mercado,
mas, sobretudo, a ter sua vida pautada na fé na Dona das Águas.
A Festa da Sereia - referência maior desse universo de devoção realizada entre os
dias 31 de dezembro e 01 de janeiro, envolta num candomblé que se funde a ela numa
simbiose em que um o se faz sem o outro, foi, sem dúvida, a problemática central deste
estudo. Sua origem, aqui pioneiramente relacionada ao contexto da luta dos pescadores de
Salvador e do Recôncavo baiano pela afirmação da sua religiosidade e da sua identidade, a
sua tentativa em se manter oxigenada face ao obstáculo criado pelo poder público municipal,
que a dez anos vem realizando uma festa de revéillon de grande porte na Praça Municipal. E,
por fim, o Presente, prática ritual daqueles que, prometendo e/ou agradecendo pelos
“sucessos” cotidianos, revelam o desejo de uma boa pescaria ou, ao menos, de voltarem ilesos
dos perigos do mar.
Tive o especial cuidado em investigar a dinâmica da Festa da Sereia, percebendo a
necessidade que esta tem de um “acompanhamento profissional”, que possa compreendê-la e
melhor situá-la perante as suas necessidades e sua relevância sócio-histórico-cultural, o que
naturalmente vai além dos incrementos financeiros.
Procurei discutir a Festa da Sereia em Aratuípe como parte da Cultura Popular, mais
que tradição, passado e lembrança, um contexto múltiplo, que vai além do rito e do lúdico, um
espaço que permite àquelas pessoas, mesmo com tantas dificuldades, se reinventarem
cotidianamente.
118
FONTES
ORAIS
Adeneíldo Santos Souza, 29 anos, natural de Aratuípe, morador do bairro do Camamu,
primeiro presidente da Colônia de Pescadores de Aratuípe, entrevistado em 10 de fevereiro de
2008.
119
Aloísio Lima, nascido em 01 de dezembro de 1947, no distrito de Camassandí, município de
Jaguaripe, é pescador aposentado e embarcadiço. Reside no município de Aratuípe, na rua do
Alto da Favela. Atualmente é comerciante. Entrevistado em 10 de setembro de 2006, 01 de
janeiro de 2007 e 10 de janeiro de 2008.
120
Ana Alice Viana Costa, natural de Aratuípe, nascida em 05 de maio de 1972, Pescadora,
presidente da Associação dos Terreiros de Candomblé de Aratuípe, reside na rua do
Borrachudo. Entrevistada em 03 de maio de 2007.
121
Ana Maria Viana Costa, 54 anos, pescadora, natural de Aratuípe, reside na rua do Tombo.
Atualmente é funcionária pública municipal. Entrevistada em 03 de agosto de 2006.
122
Dickson Coelho dos Santos, nascido em 10 de março de 1976, pescador, natural de Aratuípe,
reside no bairro da Cidade de Palha. Atualmente é Presidente da Colônia de Pescadores do
município pelo segundo mandato consecutivo. Entrevistado em 22 de maio de 2007.
123
Esmeraldo Santana, 92 anos, carpinteiro e comerciante, natural de Aratuípe, aposentado,
mais velho comerciante do Mercado Municipal, reside na rus de “Cima”. Entrevistado em 18
de janeiro de 2008.
124
Fernando Costa Santos, 37 anos, natural de Aratuípe, pescador e comerciante, reside no
bairro do Camamu. Entrevistado em 08 de outubro de 2007.
125
Florival André Costa, (Costinha), natural de Aratuípe, nascido em 01 de fevereiro de 1934,
pescador aposentado, reside na rua do Tombo. Entrevistado em 10 de setembro de 2006.
126
Guilherme Costa, ( Duduza), natural de Aratuípe, nascido em 15 de outubro de 1947,
pescador, reside na rua do Tombo. Entrevistado em 03 de agosto de 2006.
127
Lenildo Santos Cardoso, natural de Aratuípe, nascido em 03 de setembro de 1963, é
comerciante e reside na Praça José Alves da Silva. Entrevistado em 12 de abril de 2007.
.
128
Luiz Antônio Coelho Conceição, 36 anos, pescador e pedreiro, natural de Aratuípe, reside
na rua do Tombo.Entrevistado em 20 de dezembro de 2007.
129
Manuel Crispiniano dos Santos, (Maneca do Peixe) nascido em Aratuípe em 10 de julho
de 1943. Pescador aposentado, atualmente faz jogo do bicho e comercializa o pescado, reside
no bairro do Camamu. Entrevistado em 08 de outubro de 2007.
130
Maria Marta dos Santos, (Nenenzinha do Acarajé), 76 anos, natural de Aratuípe,
pescadora aposentada e ex- vendedora de acarajé, reside na rua de cima. Entrevistada em 10
de julho de 2007.
131
Osmadil José dos Santos, 52 anos, natural de Aratuípe, memorialista e atual Diretor do
Departamento de Cultura do Município, reside na rua de “cima”. Entrevistado em 12 de
janeiro de 2008.
132
Rute Costa Santos, 80 anos, pescadora aposentada, moradora da rua do Borrachudo, no
bairro do Camamu. Entrevistada em 01 de janeiro de 2008.
133
Sandoval Barbosa Souza, nascido em 07 de junho de 1943, natural de Aratuípe, pescador
aposentado, reside no município no bairro da Cidade de Palha. Entrevistado em 20 de maio de
2006.
134
Ziranildo dos Reis Moraes, 26 anos, artesão e funcionário público municipal, natural de
Aratuípe, morador da rua do Campo Santo. Entrevistado em 20 de dezembro de 2007.
135
OUTROS DEPOENTES:
América dos Santos Guedes, 88 anos, pescadora, natural de Aratuípe, reside na rua 02 de
março. Entrevistada em 06 de fevereiro de 2008.
Antonio Miranda Silva Junior, 38 anos, prefeito do município de Aratuípe, eleito para o
quadriênio 2004/2008. Entrevistado em 30 de dezembro de 2006.
Djalma Cardoso, comerciante, natural de Aratuípe, reside em Salvador. Entrevistado em 31
de dezembro de 2008.
Domingas Maria Barbosa, 54 anos, vendedora de Acarajé, moradora do bairro da cidade de
Palha. Entrevistada em 31de dezembro de 2007
Floriano Ribeiro, funcionário público municipal aposentado, residente no Largo de Iemanjá.
Entrevistado em 31de dezembro de 2007.
Josenilton dos Santos Reis, 36 anos, artesão e filho de santo, morador da rua de “cima”.
Entrevistado em 6 de janeiro de 2008.
Letícia Anatália dos Santos Cardoso, 84 anos, aposentada, natural de Aratuípe, residente na
cidade de Santo Antônio de Jesus desde 1986. Entrevistada em 10 de dezembro de 2007.
Lenilson Santos Cardoso, 48 anos, babalorixá, natural de Aratuípe, reside em Salvador
desde 1976. Entrevistado em 01 de janeiro de 2008.
Lindalva dos Santos, 40 anos, natural de Aratuípe, reside em salvador. Entrevistada em 01
de janeiro de 2008
Maria da Conceição Santana, nascida em Aratuípe em 12 de julho de 1964, é pescadora e
voluntária social, reside no bairro da Cidade de Palha. Entrevistada em 12 de setembro de
2007.
Paulo Roberto Machado, 43 anos, Superintendente de Esportes, Cultura e Lazer do
município de Aratuípe. Entrevistado em 30 de dezembro de 2007.
Raimundo Gilberto de Pinho, babalorixá de 57 anos, residente em Nazaré. Entrevistado em
31 de dezembro de 2007.
Wilson Vitória de Almeida, padre da Paróquia de Nossa Senhora Santana em Aratuípe.
Entrevistado em 12 de julho de 2007.
Zenyldes Pereira, aratuipense, nascida em 15 de abril de 1948, professora aposentada,
moradora da rua do Tombo. Entrevistada em 28 de dezembro de 2007.
136
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142
ANEXOS
ORIQUIS
257
DE IEMANJÁ
Oríkì Iyemoja
I
Jogún-osó,
Iyemọja lòkum
Íyá mi ni njẹ ẹran ẹtù.
Íyá mi na ni njẹ ẹran pẹֶpẹyẹ.
Jogún-oso Iyemja lòkun.
Olómú agu-isi.
Sola-gbdadé ìyá mi a fio omo,
Tére lójú omi.
Ìyá mi losún,
Ìyá mi késan,
Omo olókó nílé seri.
Iwájú olókò a ma so jingbà ilèkè.
Omo algbo dudu gbolojo wo inu odo.
O de di funfun.
A lòmo lésè odó.
Omo ayílu omi.
Yá mi nse owó léjéléjé nínú omi.
Jogún-oso.
Iemanjá, senhora do mar.
É minha mãe, que come galinha d’angola.
É minha mãe, que se alimenta de pato.
257
Versos Sagrados
143
Jogún-oso, Iemanjá no mar.
A que possui seios fartos.
Sola-gbadé minha mãe que tem filhos
Na superfície das águas.
Minha mãe, que se enfeita de osún.
Minha mãe, elegante,
Que possui um barco em seri
Diante da casa da senhora dos barcos brota a prosperidade.
No quintal da senhora dos barcos brotam pérolas.
Dona do carneiro preto que, oferecido no meio das águas,
Lá chegando, sob sua força tornou-se branco.
A que tem filhos à beira do rio.
A que faz as águas se misturarem.
Minha mãe está erguendo as mãos, suavemente, dentro das águas.
II
Báálé !
Iyemojá, de dentro das água, responde com o bem.
Minha mãe,
Que pode ser chamada para trazer prosperidade.
A que sorri elegantemente.
Você é minha senhora.
Louváveis são os passos de seus pés.
Dona do meu orí.
A água que traz prosperidade não falta em nossa casa.
Água em abundância.
Iyemanjá,firme como a montanha,nela podemos nos apoiar.
Possui casa formada por muitas águas.
Orixá que cura doenças com água fria.
Que cura as doenças sem pedir sangue aos familiares do doente.
144
Iyemojá, que melhora o mau ori.
Melhora mais e mais o meu ori, até o fim da minha vida.
III
Yemojá lómu àgusi
Awa l’omo omi o.
Awa l’mo eja òké,
Ti nsunkún oru.
Awa omo Yemojá.
Yemoja, atibi ba égún jeun awo.
Iemanjá de seios fartos,
Somos os filhos das águas.
Somos os filhos do peixe, que fora d’água, choram de frio.
E o peixe, dentro d’água, chora de calor.
Nós filhos de Iemanjá
Iemanjá que come junto com egum para saber seus segredos.
IV
Yemoja iku li odò a pá bi elete
A de odo má pon
Aji pon toki oba omi
Yemoja a gbá ori eran má igi
Onibode iju
Atara mogba onibode iju.
Iemanjá mata no rio, ela mata como um leproso.
Ela vai ao rio e não atira água.
Ao despertar, ela tira a água mais limpa.
Ela bate a cabeça de um animal na árvore.
Gurdiã da floresta.
Ataramabá, guardiã da floresta.
145
V
Yemoja atara magba
Ayaba ti gbe ibu omi
Yemoja a so igbe di oju omo
Yemoja on je oti pagogo oju akagba
A gbo ni se oba má kase
Yemoj ti binu baje gadaje
Awoyo, awoyo je ile je li odò
Iya olo oyon oruba
O ni rum abe osiki
Abi obo fun oni òrum bi egbe isu
Okun onilaye a san enia bi ologun
Arugbo olokun
Fere obirin aji fon oni tara oba
Obirin pepe ti gba eni gbe ilekile
Kó je dahun ni ile
Oju omi ni je ni koro.
Rainha que vive nas profundezas das águas.
Iemanjá que faz o mato tornar-se a superfície do caminho.
Iemanjá que bebe álcool agachada na borda da cabaça.
Diante do rei ela espera, altivamente sentada.
Ela gira em torno da cidade.
Iemanjá que, descontente, arruína as pontes.
Iemanjá come em casa, come no rio.
Mãe que tem os seios úmidos.
Ela tem muitos Pêlos na vagina.
Que, por ocasião das relações sexuais, tem a vagina apertada
Como um inhame seco.
Mar, dona do mundo, que cura as pessoas como um médico.
Velha dona do mar.
Flauta de mulher que, ao despertar, toca na corte do rei.
Mulher que faz alguém permanecer em uma terra qualquer.
146
Ela não quer responder na terra.
Ela o faz rapidamente na superfície da água.
VI
Yemoja ogun beri
Ala kan se oso
Arugbo o se mbo oko lo ebi
O se abiomo nigba oge
O se abiomo nigba ayo leru.
Iemanjá do rio Ogum.
Aquela que se enfeita sozinha.
Velha que faz voltar o marido que viajou.
Ela é fecunda desde a juventude.
VII
Ki o lê ko ile ni je olowo yemoja
Oba oso ni se awoyo Yemoja
Bi o ri agbo a jô Yemoja
B i o ri agbo ayo Yemoja
Ki li o pá adagan Yemoja
Ògún a wá ògún a yo obe.
Iemanjá pode apoderar-se da casa do homem rico.
Se Iemanjá vê um carneiro, ela dança.
Se Iemanjá vê um carneiro, ela se alegra.
Iemanjá que matou adan.
Ela possui um talismã que salva da faca.
VIII
Yemoja ogigi tagitagi
A lê li odó bi Osumare
Olo oyon oruba
O gbe yara e jará mani
147
O gba ohum kan pati li owo egbe
Okoko ni ko olomu a ko egbe do
Iemanjá fortemente.
Ela sai do rio como o arco-íris.
Senhora que tem os seios úmidos.
Ela permanece em seu aposento descontente com alguém.
Ela pega com muita força a mão de seus amigos.
Com doçura, junta as pessoas em torno dela.
LENDAS DOS ORIXÁS DAS ÁGUAS
Como Olokum torna-se a rainha das águas
Olokum, a senhora das águas, consulta Ifá numa época em que as águas não
eram bastantes pra que alguém, nelas, se lavasse o rosto se alguém recolhesse água
em seu leito, recolheria também areia. Porque ela estava pobre de água.
Olossá, senhora da lagoa, consulta Ifá, numa época em que suas águas não
eram bastante para que alguém, nela, lavasse os pés. Se alguém quisesse, com elas,
lavar os pés, sujar-se-ia de lama e areia. Pois havia na lagoa muito pouca água.
Olukum e Olossá foram, ambas, aos pés de Orunmilá rogar-lhe examinar o
seu caso. Poderiam elas tornar-se as maiores do mundo? Orunmilá respondeu que se
elas pudessem fazer as oferendas que ele escolhera para elas, suas vidas seriam um
sucesso. Ele disse que Olukum deveria oferecer duzentas cobertas pretas, duzentas
cobertas brancas, um carneiro e vinte e seis mil búzios da costa. Depois ele
recomendou a Olossá fazer o mesmo.
Olokum fez as oferendas. Ela empregou tudo que possuía. Ela chegou a
empregar-se, como serva, pra completar as oferendas.
Olossá fez também as oferendas com tudo que possuía. Mas suas oferendas
não foram completas, porque ela não encontrou onde se empregar.
Oxum, o rio, elegante senhora do pente de cora, consultou Ifá no dia em que ia
conduzir todos os rios. Os rios não sabiam em que direção seguir. Eles correriam pra
148
frente ou pra trás? E haviam pedido conselho a Oxum. Ifá respondeu: “Tu, Oxum,
vais a um certo lugar e neste lugar, serás muito bem recebida.Os outros rios te
seguirão. Nenhum outro poderá te preceder, em nenhum lugar onde estejas
presente.”
Oxum reuniu todos os rios.E os rios seguiram todos juntos. Quando chegaram
à beira da lagoa (Osa) eles a cobriram completamente. Quando deixaram a lagoa,
eles cobriram completamente o mar (Okum) foi colocada a questão de saber quem
seria a rainha das águas. Olokum declarou: “O território onde vocês se encontram é
meu”.Eles discutiam aqui e ali.
Oludumaré manifestou-se, então: “A que possui o território é a rainha.”
Olokum foi, por direito, a rainha. Olossá disse aos rios que se retirassem das suas
terras. Mas, os rios não encontraram saída por onde passar. Assim, Olossá foi eleita
segunda pessoa de Olokum.
A cada ano, todos os rios vêm adorá-la. Foi assim que Olokum e Olossá
tornaram-se populares na Terra e famosas no mundo “dos deuses”.
258
Yemanjá
Y
emanjá era a filha de Olokum, a deusa do mar. Em Ifé, ela tornou-se a
esposa de Olofin-Odudua, com o qual teve dez filhos, estas crianças receberam
nomes simbólicos e todos tornaram-se orixás. Um deles foi chamado de Oxumaré, o
Arco-Íris, “aquele-que-se-desloca-com-a-chuva-e-revela-seus-segredos”. De tanto
amamentar seus filhos, os seios de Yemanjá tornaram-se imensos.
Cansada da sua estadia em Ifé, Yemanjá fugiu na direção do “entardecer-da-
terra”, como os iorubas designam o Oeste, chegando a Abeokutá. Ao norte de
Abeokutá, vivia Okerê, rei de Xaki. Yemanjá continuava muito bonita. Okerê
desejou-a e propôs-lhe casamento. Yemanjá aceitou mas, impondo uma condição,
disse-lhe: “Jamais você ridicularizará da imensidão dos meus seios.” Mas, um dia,
258
VERGER, Pierre.Lendas Africanas dos Orixás Editora Currupio,1985, p 53.
149
ele bebeu vinho de palma em excesso. Voltou para casa bêbado e titubeante. Ele não
sabia mais o que fazia. Ele não sabia mais o que dizia. Tropeçando em Yemanjá,
esta chamou-o de bêbado e imprestável. Okerê, vexado, gritou: “Você, com seus
seios compridos e balançantes! Você, com seus seios grandes e trêmulos!” Yemanjá,
ofendida, fugiu em disparada.
Certa vez, antes do seu primeiro casamento, Yemanjá recebera de sua mãe,
Olokum, uma garrafa contendo uma poção mágica pois, dissera-lhe esta: “Nunca se
sabe o que pode acontecer amanhã. Em caso de necessidade, quebre a garrafa,
jogando-a no chão.” Em sua fuga, Yemanjá tropeçou e caiu, a garrafa quebrou-se e
dela nasceu um rio. As águas tumultuadas deste rio levaram Yemanjá em direção ao
oceano, residência de sua mãe Olokum. Okerê, contrariado, queria impedir a fuga de
sua mulher. Querendo barrar-lhe o caminho, ele transformou-se numa colina,
chamada, ainda hoje, Okerê, e colocou-se no seu caminho, Yemanjá quis passar pela
direita, Okerê deslocou-se para a direita, Yemanjá quis passar pela esquerda, Okerê
deslocou-se para a esquerda. Yemanjá vendo assim bloqueado seu caminho para a
casa materna, chamou Xangô, o mais poderoso dos seus filhos. Xangô veio com
dignidade e seguro do seu poder, Ele pediu uma oferenda de um carneiro e quatro
galos, um prato de “amalá”, preparado com farinha de inhame, e um prato de
“gbeguiri”, feito com feijão e cebola e declarou que, no dia seguinte, Yemanjá
encontraria por onde passar. Nesse dia, Xangô desfez todos os nós que prendiam as
amarras da chuva, começaram a aparecer nuvens dos lados da manhã e da tarde do
dia, começaram a aparecer nuvens da direita e da esquerda do dia e quando todas
elas estavam reunidas, chegou Xangô com seu raio. Ouviu-se então: "Kakara rá rá
rá" … Ele havia lançado seu raio sobre a colina Okere. Ela abriu-se em duas e,
"suichchchch" … Yemanjá foi-se para o mar de sua mãe Olokum, aí ficou e recusa-
se, desde então, a voltar em terra.
Seus filhos chamam-na e saúdam-na:
“Odo Iyá, a Mãe do rio, ela não volta mais.
Yemanjá, a rainha das águas, que usa roupas cobertas de pérola.”
Ela tem filhos no mundo inteiro.
Yemanjá está em todo lugar onde o mar vem bater-se com suas ondas espumantes.
Seus filhos fazem oferendas para acalmá-la e agradá-la.
Odô Iyá, Yemanjá, Ataramagbá
Ajejê lodô! Ajejê nilê!
150
Mãe das águas, Yemanjá, que estendeu-se ao longe na amplidão.
Paz nas águas! Paz na casa!”
259
Oxum
Orê Yeyê ô! Oxum era muito bonita, dengosa e vaidosa. Como o são,
geralmente, as belas mulheres. Ela gostava de panos vistosos, marrafas de tartaruga
e tinha, sobretudo, uma grande paixão pelas jóias de cobre. Este metal era muito
precioso, antigamente, nas terras dos iorubas. Só uma mulher elegante possuía jóias
de cobre pesadas. Oxum era cliente dos comerciantes de cobre.
Omiro wanran wanran wanran omi ro!
“A água corre fazendo o ruído dos braceletes de Oxum!”
Oxum lavava suas jóias, antes mesmo de lavar suas crianças. Mas tem,
entretanto, a reputação de ser uma boa mãe e atende às súplicas das mulheres que
desejam ter filhos. Oxum foi a segunda mulher de Xangô. A primeira chamava-se
Oia-Iansã e a terceira Obá.
Alguns dias, suas águas correm aprazíveis e calmas, Elas deslizam com
graça, frescas e límpidas, Entre margens cobertas de brilhante vegetação.
Numerosos vãos permitem atravessar de um lado a outro.
Outras vezes suas águas, tumultuadas, passam estrondando, cheias de
correntezas e torvelinhos, transbordando e inundando campos e florestas.
Ninguém poderia atravessar de uma margem à outra, pois ponte nenhuma as
ligava. Oxum não toleraria uma tal ousadia! Quando ela está em fúria, ela leva para
longe e destrói as canoas que tentam atravessar o rio.
Olowu, o rei de Owu, seguido de seu exército, ia para a guerra. por
infelicidade, tinha que atravessar o rio num dia em que este estava encolerizado.
Olowu fez a Oxum uma promessa solene, entretanto, mal formulada. Ele declarou:
"Se você baixar o nível de suas águas, para que eu possa atravessar e seguir para a
259
VERGER, Pierre. Op cit pp. 50 - 52
151
guerra, e se eu voltar vencedor, prometo a você nkan rere", isto é, boas coisas. Oxum
compreendeu que ele falava de sua mulher, Nkan, filha do rei de Ibadan. Ela Baixou
o nível das águas e Olowu continuou sua expedição.
Quando ele voltou, algum tempo depois, vitorioso e com um espólio
considerável, novamente encontrou Oxum com o humor perturbado. O rio estava
turbulento e com suas águas agitadas. Olowu mandou jogar sobre as vagas toda sorte
de boas coisas, as nkan rere prometidas: tecidos, búzios, bois, galinhas e escravos.
Mel de abelhas e pratos de mulukun, iguaria onde suavemente misturam-se
cebolas, feijão fradinho, sal e camarões. Mas Oxum devolveu todas estas coisas boas
sobre as margens. Era Nkan, a mulher de Olowu, que ela exigia.Olowu foi obrigado
a submeter-se e jogar nas águas a sua mulher. Nkan estava grávida e a criança
nasceu no fundo do rio.
Oxum, escrupulosamente, devolveu o recém-nascido dizendo: "É Nkan que
m foi solenemente prometida e não a criança. Tome-a!". As águas baixaram e
Olowu voltou tristemente para sua terra. O rei de Ibadan, sabendo do fim trágico de
sua filha, indignado declarou: "Não foi para que ela servisse de oferenda a um rio
que eu a dei em casamento a Olowu!" Ele guerreou com o genro e o expulsou do
país.
O Rio Oxum passa em um lugar onde suas águas são sempre abundantes. Por
esta razão é que Larô, o primeiro rei deste lugar, aí instalou-se e fez um pacto de
aliança com Oxum. Na época em que chegou, uma de suas filhas fôra se banhar. O
rio a engoliu sob as águas. Ela só saiu no dia seguinte, soberbamente vestida, e
declarou que Oxum a havia bem acolhido no fundo do rio. Larô, para mostrar sua
gratidão, veio trazer-lhe oferendas. Numerosos peixes, mensageiros da divindade,
vieram comer, em sinal de aceitação, os alimentos jogados nas águas. Um grande
peixe chegou nadando nas proximidades do lugar onde estava Larô. O peixe cuspiu
água, que Larô recolheu numa cabaça e bebeu, fazendo, assim, um pacto com o rio.
Em seguida ele estendeu suas mãos sobre a água .Ataojá declarou então: "Oxum
gbô!" "Oxum está em estado de maturidade, suas águas são abundantes." Dando
origem ao nome da cidade de Oxogbô.
152
Todos os anos faz-se, aí, grandes festas em comemoração a todos estes
acontecimentos.
260
Oxumaré
Oxumaré era, antigamente, um adivinho (babalaô). O adivinho do rei Oni. Sua única
ocupação era ir ao palácio real no dia do segredo; dia que dá início à semana, de
quatro dias, dos iorubás. O rei Oni não era um rei generoso. Ele dava apenas, a cada
semana, uma quantia irrisória a Oxumaré que, por essa razão vivia na miséria com
sua família.
O pai de Oxumaré tinha um belo apelido. Chamavam-no "o proprietário do chale de
cores brilhantes". Mas tal como seu filho, ele não tinha poder. As pessoas da cidade
não o respeitavam. Oxumaré, magoado por esta triste situação, consultou Ifá. "como
tornar-me rico, respeitado, conhecido e admiradopor todos?" Ifá o aconselhou a
fazer oferendas. Ele disse-lhe que oferecesse uma faca de bronze, quatro pombos e
quatro sacos de búzios da costa.
No momento que Oxumaré fazia estas oferendas, o rei mandou chama-lo. Oxumaré
respondeu: "Pois não, chegarei tão logo tenha terminado a cerimônia." O rei, irritado
pela espera, humilhou Oxumaré, recriminou-o e negligenciou, até, a remessa de seus
pagamentos habituais. Entretanto, voltando à sua casa, Oxumaré recebeu um recado:
Olokum, a rainha de um país vizinho, desejava consultá-lo a respeito de seu filho
que estava doente. Ele não podia manter-se de pé. Caía, rolava no chão e queimava-
se nas cinzas do fogareiro.
Oxumaré dirigiu-se à corte da rainha Olokum e consultou Ifá para ela. Todas as
doenças da criança foram curadas. Olokum, encantada por este resultado,
recompensou Oxumaré. Ela ofereceu-lhe uma roupa azul, feita de rico tecido. Ela
deu-lhe muitas riquezas, servidores e um cavalo, sobre o qual Oxumaré retornou à
260
VERGER, Pierre.Op cit, pp. 42 – 46.
153
sua casa em grande estilo. Um escravo fazia rodopiar um guarda sol sobre sua
cabeça e músico a cantavam seus louvores.
Oxumaré foi, assim, saudar o rei. O rei Oni ficou surpreso e disse-lhe: "Oh! De onde vieste?
De onde sairam todas estas riquezas?" Oxumaré respondeu-lhe que a rainha Olokum o havia
consultado. "Ah! Foi então Olokum que fez tudo isto por você!" Estimulado pela rivalidade, o
rei Oni ofereceu a Oxumaré uma roupa do mais belo vermelho, acompanhada de muitos
outros presentes. Oxumaré tornou-se, assim, rico e respeitado. Oxumaré, entretanto, não era
amigo de Chuva. Quando Chuva reunia as nuvens, Oxumaré agitava sua faca de bronze e a
apontava em direção ao céu, como se riscasse de um lado a outro. O arco-íris aparecia e
Chuva fugia. Todos gritavam: "Oxumaré apareceu!"
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