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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SISTEMAS DE PRODUÇÃO AGRÍCOLA FAMILIAR
Dissertação
AGRICULTURA FAMILIAR E SEGURANÇA ALIMENTAR:
a importância da produção para o autoconsumo
em três municípios do RS
Wanda Griep Hirai
Pelotas, 2008
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WANDA GRIEP HIRAI
AGRICULTURA FAMILIAR E SEGURANÇA ALIMENTAR:
a importância da produção para o autoconsumo
em três municípios do RS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Sistemas de
Produção Agrícola Familiar da
Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel,
Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Ciências.
Orientador: Prof. Dr. Flávio Sacco dos Anjos
Pelotas, 2008
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Dados de catalogação na fonte:
( Marlene Cravo Castillo – CRB-10/744 )
C668a Hirai, Wanda Griep
Agricultura familiar e segurança alimentar: a importância
da produção para o autoconsumo em três municípios do RS /
Wanda Griep Hirai. - Pelotas, 2008.
140f. : il.
Dissertação ( Mestrado ) Programa de Pós-Graduação
em Sistemas de Produção Agrícola Familiar. Faculdade de
Agronomia Eliseu Maciel. Universidade Federal de Pelotas. -
Pelotas, 2008, Flávio Sacco dos Anjos, Orientador.
1. Segurança Alimentar 2. Agricultura familiar 3.
Autoconsumo I Sacco dos Anjos (orientador) II .Título.
CDD 307.72
Banca examinadora:
Prof. Dr. Fvio Sacco dos Anjos
Prof. Dr. Volnei Krause Kohls
Prof. Dr. Antônio Jorge Amaral Bezerra
Por meio das telecomunicações vemos que tem
muita fome no próprio país e no mundo.
Enquanto, que nós [agricultores familiares] não
temos como comercializar e, acabamos
botando o produto fora. E isso eu acho uma
coisa bastante injusta.
N.B. (Agricultora familiar, Canguçu)
A todos agricultores familiares
representados pelos meus pais e
aos meus filhos.
3
Agradecimentos
Quando um trabalho se gesta de forma compartilhada, o seu fruto adquire
outra dimensão, porque cada avanço, cada descoberta, cada dificuldade e cada
crítica podem ser pensadas e avaliadas de formas distintas. Ter humildade para
reconhecer as falhas e a sabedoria para agradecer a contribuição e o apoio de
muitas pessoas torna-se fundamental neste momento de conclusão de mais uma
etapa da minha formação acadêmica.
Deixo assim registrados meus agradecimentos.
Aos meus filhos, Thiago e Raquel por todo o amor que nos une e sempre nos
fortaleceram, para que nos lançássemos em busca de nossos objetivos.
Aos meus pais que, através do seu modo de vida, como agricultores
familiares, foram exemplos de luta e de trabalho perseverante na educação e no
trabalho com a terra.
Ao meu orientador, Flávio Sacco dos Anjos, que aceitou o desafio da
orientação, apesar das adversidades advindas do escasso tempo disponível para a
construção e finalização deste processo. Agradeço de coração pela paciência, apoio
e competência profissional.
Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção
Agrícola Familiar, pela excelência dos conhecimentos transmitidos e aos colegas da
primeira turma do programa, com os quais tive a oportunidade de conviver. Dentre
estes, de forma especial, à Nádia Velleda Caldas, pela amizade e por disponibilizar
seus conhecimentos técnicos na formatação final desta dissertação, ao Eberson
Eicholz e ao Cláudio Becker que, incansáveis, me acompanharam indicando as
localidades das propriedades dos agricultores familiares nos municípios de Canguçu
e São Lourenço do Sul.
Às alunas do curso de Serviço Social da Universidade Católica de Pelotas,
Ana Carolina M. Jardim, Jurema Martirena, Juliana M. Garcia, Janaína M.
Gonçalves, Daiane D. Cassal, Alessandra Beck que muito contribuíram, seja na
pesquisa de campo, na tabulação e na sistematização dos dados.
4
Ao Centro de Informática (CI) e ao Instituto Técnico de Pesquisa e Assessoria
(ITEPA) da UCPEL, na pessoa de Paula Amin e de Erli Massaú, pela disponibilidade
e apoio.
Às organizações que se envolvem com a agricultura familiar nos municípios
de Pelotas, São Lourenço do Sul e Canguçu, respectivamente, Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), Federação dos Agricultores
Familiares (FETRAF) e União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu
(UNAIC), que contribuíram no sentido de indicar os agricultores familiares
pesquisados.
Às minhas amigas Maria Manuela Valente pela solidariedade, Ana Luisa
Xavier Barros pela atenção em ler meus textos de forma crítica e, sobretudo, de
dimensionar a importância do tema da dissertação para a área do Serviço Social e a
Alaíde Motta, cuja amizade e companheirismo serviram de incentivo quando o
cansaço e a falta de tempo deixavam dúvidas quanto à finalização desta
dissertação.
Aos assistentes técnicos, Guido Hirdes motorista, que assumiu a
responsabilidade de conduzir a equipe pelas estradas empoeiradas ou enlameadas
da zona rural, pois, para finalizar a pesquisa, nem a chuva foi obstáculo e à
pedagoga Mara Brum, presente com seu apoio bem humorado na assessoria às
gravações.
Por fim e de modo especial, aos trinta agricultores familiares e suas famílias
que interromperam sua rotina de trabalho e nos receberam em suas propriedades de
forma hospitaleira e solidária. Foram seus depoimentos, suas expressões e seu
modo de vida que deram sustentação para nossas conclusões. Muito mais do que
informações, suas falas permitiram que compartilhássemos fragmentos de suas
vidas, experiências ricas e fecundas de um saber forjado no trabalho que se
fundamenta em valores e crenças de uma cultura que necessita ser preservada.
5
Resumo
HIRAI, Wanda Griep. Agricultura Familiar e Segurança Alimentar: a importância
da produção para o autoconsumo, 2008. 140 p. Dissertação (Mestrado) Programa
de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas.
Esta dissertação aborda o tema da segurança alimentar no contexto da agricultura
familiar, tendo como base pesquisa realizada nos municípios de Pelotas, São
Lourenço do Sul e Canguçu, no extremo sul gaúcho. O foco do estudo centrou-se na
questão do autoconsumo, envolvendo o conjunto de práticas adotadas pelas famílias
para assegurar o atendimento pleno ou parcial de suas necessidades alimentares,
tanto de produtos de consumo imediato (de origem vegetal ou animal) quanto
transformados, como é o caso dos artigos da chamada indústria doméstica rural
(queijos, embutidos, conservas, etc.). As práticas de autoconsumo expressam a
matriz cultural das famílias rurais, em que pese o valor simbólico atribuído aos
produtos gerados no próprio estabelecimento rural em comparação com o que é
adquirido externamente, no comércio, ou em outras unidades de produção. A
pesquisa de campo foi realizada em trinta (30) estabelecimentos de agricultura
familiar cuja atividade comercial principal das famílias reside na produção do leite,
pêssego e/ou fumo. Os resultados indicam que apesar das inúmeras transformações
ocorridas através do tempo, as práticas de cultivo para a autoprovisão persistem
nos estabelecimentos pesquisados, embora isso não assegure que essa produção
seja quantitativa e qualitativamente suficiente para suprir todas as necessidades do
grupo familiar. A diminuição do número de pessoas que compõem o núcleo familiar,
o alto custo de insumos, a escassez de mão-de-obra e a ausência de políticas
agrícolas que assegurem preços satisfatórios aos produtos foram apontados como
fatores que conferem vulnerabilidade econômica às famílias dessa região. O esforço
por atender às novas necessidades materiais empurra as famílias rurais a
incrementarem a produção de cultivos comerciais, sacrificando a produção para o
autoconsumo. A presença, cada vez mais freqüente, de camionetas vendendo
6
hortifrutigranjeiros é um claro indício do declínio no nível de protagonismo da
produção de autoconsumo para um grande número de famílias rurais.
Palavras-chave: agricultura familiar; segurança alimentar; autoconsumo.
7
Abstrat
HIRAI, Wanda Griep. Family Agriculture and Food Security: the importance of
production for self-consumption. 2008. 140 p. Dissertação (Mestrado) Programa
de Pós-graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar. Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas.
The present dissertation approaches the theme of food security in the family
agricultural context, having as its basis a research performed in the municipalities of
Pelotas, São Lourenço do Sul and Canguçu. The focus of the study is centered upon
the issue of self-consumption, which involves a myriad of practices adopted by
families to ensure the full or partial demand of their feeding needs, both for
immediate consummation products (vegetable or animal source) and transformed,
which is the case of those items of the so-called rural domestic industry (cheeses,
sausages, preserves, etc.). The self-consumption practices present a cultural matrix
among rural families, in spite of the symbolic value attributed to products generated
within the very rural establishment, as compared to the ones which are acquired
externally in usual commerce or from other production units.The field-work was
performed within 30 family agricultural establishments whose main commercial
activity lies on the milk, peach and/or tobacco production. The results show that in
spite of the several transformations which have occurred through time, the cultivation
practices for self-provision still remain among the researched establishments, though
this does not assure that this production be quantitatively and qualitatively sufficient
to supply all the family group necessities. The decreasing number of people who
comprise the family nucleus, the high cost of income, the scarcity of labor, and the
absence of an agricultural politics which ensures satisfactory prices to products, all
were named as factors which give economic vulnerability to the families in this
region. The effort to answer to the new material necessities forces families to
increase the production of commercial cultivation, thus sacrificing the self-
consumption production. The more and more frequent presence of vans which sell
8
horticulture farming products is a clear evidence in the decline of the performance
level of self-consumption for a large number of rural families.
Keywords: family agriculture, food security, self-consumption.
9
Lista de figuras
Figura 1 Mudanças indicadas pelos entrevistados do tempo atual com
relação ao tempo dos pais .............................................................. 102
Figura 2 Tipos de criações presentes nos estabelecimentos investigados ... 114
Figura 3 Produtos agrícolas informados pelos agricultores familiares e que
se destinam ao autoconsumo nos três municípios estudados
segundo o número de famílias. ....................................................... 116
Figura 4 Distribuição percentual das famílias entrevistadas segundo a
atuação de seus membros nas atividades de criação de animais
para atender ao autoconsumo familiar nos três municípios
pesquisados. ................................................................................... 119
Figura 5 Porcentagem das famílias que possuem horta e pomar nos três
municípios investigados ................................................................... 120
Figura 6 Distribuição das famílias entrevistadas segundo a informação
sobre a compra de produtos nas kombis. ........................................ 125
Figura 7 Distribuição das famílias entrevistadas segundo a informação
sobre a ,melhora da alimentação hoje se comparada ao tempo
dos pais ........................................................................................... 128
Lista de tabelas
Tabela 1 Distribuição do número e percentual dos estabelecimentos
agrícolas familiares e participação percentual no VBP dos
municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul e Canguçu. ............... 79
Tabela 2 Distribuição das famílias entrevistadas segundo a quantidade de
residentes por estabelecimento . .................................................... 80
Tabela 3 Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais
2000/2004. ....................................................................................... 82
Tabela 4 Distribuição dos membros da família segundo o nível de
escolaridade. ................................................................................... 83
Tabela 5 Distribuição das famílias entrevistadas segundo a etnia familiar
predominante ................................................................................... 85
Tabela 6 Distribuição dos estabelecimentos segundo a existência de
pensionistas e/ou aposentados na família ....................................... 88
Tabela 7 Distribuição da famílias entrevistadas segundo o tempo de
residência no estabelecimento rural ................................................ 89
Tabela 8 Distribuição das famílias entrevistadas segundo a forma de
acesso à terra ................................................................................. 90
Tabela 9 Distribuição das famílias sobre o desejo de permanência ou não
meio no rural . ................................................................................. 94
Tabela 10 Distribuição porcentual dos entrevistados segundo a indicação da
principal dificuldade enfrentada na atividade agropecuária ............. 96
Tabela 11 Distribuição das famílias entrevistadas segundo a posição sobre
como era a vida no tempo dos pais em relação ao tempo presente 98
Tabela 12 Produtos agrícolas produzidos no tempo dos pais destinados ao
autoconsumo nos municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul e
Canguçu. ......................................................................................... 111
Tabela 13 Distribuição percentual dos entrevistados segundo a opinião sobre
a mudança, ou não, de hábitos alimentares em relação ao tempo
dos pais .......................................................................................... 123
Lista de siglas
AFDLP Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Pluratividade: a
emergência de uma nova ruralidade no Rio Grande do Sul
CI Centro de Informática
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CONSAD Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local
CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar
EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FAEM Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel
FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
FMI Fundo Monetário Internacional
FETRAF Federação dos Agricultores Familiares
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia Estatística
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
INAN Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira
INSS Instituto Nacional de Seguro Social
ITEPA Instituto Técnico de Pesquisa e Assessoria
LOSAN Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional
MEC Ministério da Educação e Cultura
MESA Ministério Extraordinário de Combate à Fome e à Insegurança
Alimentar
MDS Ministério de Desenvolvimento Social
ONU Organização das Nações Unidas
PCA Programa Comunidade Ativa
PGDR Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural
PIB Produto Interno Bruto
PNAD Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios
POF Pesquisa de Orçamentos Familiares
PRODEA Programa de Distribuição de Alimentos
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PRONAN Programa Nacional de Alimentação e Nutrição
SA Segurança Alimentar
SAN Segurança Alimentar e Nutricional
SESAN Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
SISAN Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
UCPEL Universidade Católica de Pelotas
UFPel Universidade Federal de Pelotas
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Sumário
1 Introdução .................................................................................................... 17
1.1 O problema de pesquisa .......................................................................... 17
1.2 Os objetivos da pesquisa ........................................................................ 21
1.3 Metodologia da pesquisa ......................................................................... 21
2 Agricultura familiar e autoconsumo ........................................................ 26
2.1 Os fundamentos teóricos dos clássicos sobre a questão agrária:
Marx, Lênin, Kaustky e Chayanov ........................................................... 27
2.1.1 Marx e o desaparecimento da agricultura .......................................... 27
2.1.2 O desenvolvimento agrário na perspectiva de Kautsky e Lênin ...... 29
2.1.3 Chayanov e a reprodução da unidade camponesa ........................... 33
2.2 Campesinato e agricultura familiar ......................................................... 37
2.2.1 O campesinato no Brasil ...................................................................... 39
2.3 Agricultura familiar: outras elaborações ................................................ 41
2.4 Concepção de autoconsumo ................................................................... 43
2.5 A autoprovisão e seus imbricamentos culturais ................................... 49
3 Estado e segurança alimentar: alcances e limitações das políticas
públicas no
Brasil ..................................................................................... 52
3.1 Segurança alimentar um conceito ampliado ......................................... 52
3.2 Focalizando os aspectos históricos e conceituais da segurança
alimentar ................................................................................................... 53
3.3 As políticas de segurança alimentar no Brasil ...................................... 62
3.4 A política de segurança alimentar a partir da criação do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome .......................................... 65
3.5 A implantação dos CONSAD(s): uma estratégia de inclusão social? . 66
3.6 Alguns resultados quanto a segurança alimentar, segundo dados da
PNAD 2004 ................................................................................................. 69
3.7 Perspectivas da luta contra a fome ....................................................... 71
4 O universo empírico: cenários da agricultura familiar em três
municípios do Rio Grande do Sul ........................................................... 73
4.1 Situando o universo empírico ................................................................ 73
4.2 As bases históricas de formação das propriedades agrícolas
familiares pesquisadas ............................................................................ 74
4.2.1 A chegada dos imigrantes alemães ao sul do Brasi ......................... 77
4.3 A agricultura familiar nos municípios de Pelotas, São Lourenço do
Sul e Canguçu .......................................................................................... 79
4.3.1 A família dos agricultores pesquisados ............................................. 80
4.3.2 Escolaridade pode significar ruptura com a vida do campo? .......... 81
4.3.3 Aspectos étnicos das famílias rurais ................................................. 84
4.3.4 A relevância da previdência rural nas explorações familiares ......... 87
4.3.5 Tempo de vida no estabelecimento .................................................... 88
4.3.6 A aquisição da terra ............................................................................. 89
4.4 A permanência no campo ....................................................................... 93
4.5 Tempos difíceis para a Agricultura familiar .......................................... 95
5 Transformações no mundo da agricultura familiar e suas
implicações na produção para o autoconsumo e segurança alimentar
das famílias ............................................................................................... 100
5.1 O tempo dos pais e as mudanças ocorridas ......................................... 100
5.2 Os fatores da mudança segundo os agricultores familiares ............... 102
5.3 As implicações da Revolução Verde sobre a forma de produzir ........ 108
5.4 A produção no tempo dos pais e a de hoje: tempos que se
distanciam e se aproximam mediados pelas práticas da produção
para o autoconsumo ................................................................................ 110
5.5 A criação de animais para o autoconsumo ........................................... 113
5.6 Os alimentos produzidos pelos agricultores familiares em tempos de
insegurança alimentar ............................................................................. 115
5.7 A criação de animais : uma atribuição da mulher ................................ 118
5.8 A horta e o pomar: o risco da insuficência para o autoconsumo ....... 120
5.9 Mudanças na alimentação e segurança alimentar segundo as
famílias rurais ........................................................................................... 122
5.10 O comércio de hortifrutigranjeiros nas comunidades: as kombis na
cena rural ................................................................................................... 124
5.11 Compreendendo outra dimensão da segurança alimentar: se come
melhor hoje ou antigamente? .................................................................. 127
6 Conclusões .................................................................................................. 131
Referências ..................................................................................................... 134
Apêndices ....................................................................................................... 139
1 Introdução
A presente seção apresenta os principais elementos que estruturam essa
dissertação de mestrado, destacando os aspectos pertinentes ao problema de
pesquisa, os objetivos e a metodologia utilizada para a consolidação do trabalho.
1.1 O problema de pesquisa
No momento em Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN,
passa a integrar o marco jurídico brasileiro e que tem como objetivos: assegurar o
direito à alimentação a todas as pessoas, definir Segurança Alimentar, implantar um
princípio de soberania alimentar e difundir um caráter intersetorial para a segurança
alimentar e nutricional no Brasil, torna-se necessário a mobilização dos diversos
segmentos sociais envolvidos para que se avance nessa matéria, que a questão
possui interesse social e prioridade na agenda pública do país.
Esta dissertação pretende incidir nesse plano, coincidindo com o esforço de
outros pesquisadores brasileiros, oriundos das mais diversas áreas de
conhecimento, que elegeram a Segurança Alimentar como objeto central de estudo,
considerando suas múltiplas implicações. Através de estudos dessa natureza busca-
se estabelecer conhecimentos capazes de avançar na consolidação de práticas, que
venham ao encontro das reais necessidades da população, na perspectiva de
simultaneamente assegurar o direito à alimentação e reduzir os graves problemas a
ela associados.
Como é sabido, trata-se de uma questão atualmente convertida em objeto
de atuação do Estado brasileiro, a partir do “novo marco político e institucional, que
estabeleceu um conjunto de iniciativas visando assegurar esse direito às pessoas,
particularmente das que se encontram momentânea ou permanentemente
impedidas de satisfazerem suas necessidades alimentares sicas. No Brasil esse
tema não é recente e as tentativas de superação, invariavelmente, não atingiram os
resultados esperados (TAKAGI, 2005, p.105).
Alguns dados mais recentes dão conta do quadro da insegurança alimentar
no Brasil, como é precisamente o caso da Pesquisa Nacional por Amostra de
18
Domicílio (PNAD, 2004) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) que desenvolveu estudo específico sobre esse tema, chegando a um
conjunto de informações bastante relevantes. Segundo essa fonte, existe atualmente
51,8 milhões de domicílios particulares no Brasil, nos quais 18 milhões
experimentaram algum tipo de insegurança alimentar (IA). A de tipo leve atinge 8,3
milhões de domicílios ou 16,0% do total, ao passo que a de tipo moderada e grave
alcançam respectivamente 6,3 milhões e 3,3 milhões de domicílios, ou o que
equivale a percentuais equivalentes a respectivamente 12,3% e 6,5% do total.
Chama a atenção o fato de que esse fenômeno incide no meio rural de
modo mais intenso, em termos relativos, do que no meio urbano. Em termos gerais,
ela alcança 43,4% destes domicílios, sendo 17,4% de tipo leve e 17,0% e 9,0% de
tipo moderada e grave, respectivamente. Nada menos que 72 milhões de pessoas
moram em domicílios com algum tipo de insegurança alimentar, sendo 32,6 milhões
com insegurança leve, ao passo que 25,6 milhões e 13,9 milhões vivem em
domicílios rurais com insegurança alimentar moderada e grave, respectivamente.
Com relação ao Estado do Rio Grande do Sul a insegurança alimentar
atinge 2.986 468 pessoas em todas as suas formas ou 27,8% do total. No meio
urbano a proporção de indivíduos nessa condição equivale a 29,7%, enquanto que
no meio rural ela ascende a aproximadamente 19,5%.
Frente a esse quadro caberia indagar: em que medida as transformações
oriundas do processo de modernização de nossa agricultura contribuíram para
gerar esse quadro? Este estudo parte da premissa de que a revolução verde alterou
profundamente a forma de organização da agricultura familiar gaúcha,
especialmente com relação ao que a literatura define como práticas de autoconsumo
ou autoprovisionamento. O foco dessa pesquisa orienta-se sobre o estudo dessas
práticas, tendo como base um conjunto de informações levantadas recentemente
através de projeto de investigação, realizado pelo Departamento de Ciências Sociais
Agrárias da Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel (FAEM) da Universidade Federal
de Pelotas UFPel, sob apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico CNPq. Buscar-se-á examinar a importância do
autoconsumo em propriedades familiares do Estado do Rio Grande do Sul,
localizadas em três municípios gaúchos, a saber: Pelotas, Canguçu e São Lourenço
do Sul.
19
Preliminarmente torna-se fundamental estabelecer algumas definições
diretamente relacionadas com o objeto do presente projeto, quais seja a noção
correspondente, à agricultura familiar e o conceito de segurança alimentar.
Estudos recentes identificam a importância da agricultura familiar enquanto
categoria de investigação nos mais diferentes países do mundo. Entrementes, não
raras vezes associam esse conceito a outras denominações tais como “agricultura
de subsistência”, “pequena produção”, “agricultura campesina”, bem como a formas
de referência que buscam argumentar sua irrelevância do ponto de vista da
contribuição à formação da riqueza econômica do país. Há, portanto, enorme
importância no sentido de identificar as características que permitem defini-la
enquanto forma social de produção.
Em linhas gerais, os empreendimentos familiares têm como característica
fundamental a gestão familiar, sendo o estabelecimento ao mesmo tempo, unidade
de produção, de reprodução social e de consumo. Dessa forma, entende-se que o
estudo da dinâmica da agricultura familiar passa pelo reconhecimento de que é a
família e não o estabelecimento rural a unidade de referência.
No Brasil, aproximadamente 85% do total de estabelecimentos rurais
pertencem a grupos familiares, o que corresponde a 4,1 milhões de unidades
produtivas que absorvem o trabalho de 13,8 milhões de pessoas. E disso resulta a
produção de cerca de 60% dos alimentos consumidos pela população brasileira e
37,8% do valor bruto da produção agropecuária (EMBRAPA, 2006). Dessa forma, a
Agricultura Familiar representa um fator crucial para a implementação da política de
Segurança Alimentar no país, pois além de criar oportunidades de trabalho local,
diversifica a atividade econômica e principalmente, produz alimentos em espaços
agrários próximos aos locais de consumo, evitando com isso gastos com transporte
além de possibilitar maior aproveitamento de alimentos regionais, cujo consumo está
relacionado intimamente aos hábitos culturais das populações.
A definição clássica de segurança alimentar estabelecida pela FAO,
“determina que haja uma situação na qual todas as pessoas, durante todo o tempo,
possuam acesso físico, social e econômico a uma alimentação suficiente, segura e
nutritiva, que atenda a suas necessidades dietárias e preferências alimentares para
uma vida ativa e saudável” (BELIK, 2003, p.47). Percebe-se que esse conceito é
bastante amplo, pois comporta as noções não do alimento, mas também da sua
qualidade nutritiva. Enfatiza os aspectos do acesso, qualidade e disponibilidade,
20
valoriza os hábitos alimentares adequados e coloca a segurança alimentar e
nutricional como condição de cidadania. Entende-se atualmente por segurança
alimentar e nutricional
A realização do direito de todos ao acesso regular e permanente de
alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o
acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas
alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e
que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis (IBGE, 2006,
p.21).
Sabe-se que para garantir a segurança alimentar necessidade de
programas de combate à pobreza e de promoção de eqüidade social. Logo, para
que isso ocorra, devem ser promovidas mudanças estruturais que assegurem
trabalho e renda para o conjunto da população ameaçada pela insegurança
alimentar.
Referindo-se à questão da fome e à produção de alimentos, Amrtya Sen
destaca que a fome relaciona-se também ao funcionamento da economia e mais
amplamente, com a ação das disposições políticas e sociais que podem influenciar
direta ou indiretamente, no potencial das pessoas para adquirir alimentos e obter
saúde e nutrição, sendo que as pessoas passam fome quando não conseguem
estabelecer seu “intitulamento
1
sobre uma quantidade suficiente de alimentos (SEN,
2000). Dessa forma, políticas governamentais sensatas podem funcionar no sentido
de permitir uma ativa participação de partidos políticos, organizações o
governamentais e demais instituições que facilitem o avanço das discussões com
embasamento adequado.
Nessa perspectiva, torna-se importante abordar o tema Segurança Alimentar
no contexto da Agricultura Familiar, destacando-se as dinâmicas econômicas e
sociais e apreendendo a diversidade sócio-espacial e cultural das populações e, em
especial, os elementos que compõem a reprodução das unidades familiares rurais
principalmente no que tange à esfera do “autoconsumo familiar” ou “consumo
improdutivo”, entendido preliminarmente como “produtos ou processos que atendem
fundamentalmente às necessidades imediatas do grupo doméstico, sendo gerados
na própria exploração com base no uso da força de trabalho familiar” (SACCO DOS
ANJOS, 2OO5).
1
Trata-se de expressão traduzida do inglês “entittlement” que significa: garantia do acesso aos
benefícios relativos aos direitos sociais decorrentes de acordos legais.
21
Considerando-se as noções e conceitos preliminares acerca do tema da
dissertação, destaca-se que o problema de pesquisa que orientou a investigação,
possui as seguintes questões norteadoras: De que forma a questão da segurança
alimentar é concebida em estabelecimentos de agricultura familiar? Qual o sentido e
a importância da produção do autoconsumo para as famílias? De que forma essa
produção é por elas avaliada? Houve mudanças na forma de alimentação das
famílias e, se positivo, quais os fatores que determinaram tais mudanças?
1.2 Objetivos da pesquisa
O foco da investigação incide na questão da Segurança Alimentar em
estabelecimentos de agricultura familiar, buscando identificar a existência de
práticas de produção para o autoconsumo, e de que formas essas convergem com
os objetivos de consolidação da política estatal de segurança alimentar. Dessa
forma busca-se:
a) Identificar a natureza sócio-cultural do processo de autoprovisão e seus
impactos na Segurança Alimentar;
b) Realizar uma abordagem teórica sobre o tema da política de segurança
alimentar;
c) Conhecer a concepção de segurança alimentar dos agricultores familiares;
d) Observar a percepção dos agricultores sobre a fome em suas
comunidades;
e) Examinar a compreensão dos agricultores acerca das mudanças ocorridas
na agricultura, comparando o tempo de seus pais com o atual;
1.3 Metodologia da Pesquisa
Para a consolidação dessa dissertação, fez-se uso de metodologias de
natureza qualitativa e quantitativa. Justifica-se a adoção de tais procedimentos pela
necessidade de relacionar dados qualitativos obtidos através de uma perspectiva no
nível micro analítico e que correspondem ao recorte realizado com o objetivo de
focalizar o estudo de campo na microrregião de Pelotas, mais especificamente nos
municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul e Canguçu.
O conjunto de dados que compõem nossa investigação, nessa perspectiva,
foram obtidos a partir de um trabalho de campo que contou com o apoio de três
importantes referências. Partiu-se do pressuposto de que as organizações a seguir
22
relacionadas, encontram-se diretamente vinculadas aos agricultores familiares,
conhecendo portanto sua principal produção. Faz-se necessário aludir que além da
proximidade com os agricultores familiares, as organizações de apoio foram
fundamentais para a localização das propriedades no interior dos municípios.
No município de Pelotas procurou-se fazer o agendamento da visita às
propriedades para a realização da entrevista através de contato telefônico prévio,
com o objetivo de combinar o melhor dia e horário para a entrevista com o agricultor
e sua família, bem como obter informações mais detalhadas acerca da localização
da propriedade, considerando que nesse município contamos apenas com o apoio
de um motorista que conhecia razoavelmente a localidade.
Em cada município foram entrevistados dez (10) agricultores familiares,
tomando-se como parâmetro a principal produção da unidade da exploração familiar
como critério de seleção e agrupamento. Os agricultores familiares foram pré-
selecionados a partir da indicação das organizações às quais se acham vinculados:
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER, Federação dos
Agricultores Familiares – FETRAF e União das Associações Comunitárias do Interior
de Canguçu – UNAIC.
Tratava-se de conceber a escolha de famílias rurais que
fossem efetivamente representativas do padrão médio da agricultura familiar em
cada uma das localidades estudadas, para a qual a atuação dessas organizações foi
crucial.
O primeiro município a ser pesquisado foi o de Pelotas e os agricultores
familiares foram indicados pela EMATER local, sendo as entrevistas realizadas com
agricultores vinculados a produção de pêssego e leite. Desses, foram seis (6)
produtores de pêssego, três (3) de leite e um (1) de fumo e leite.
No município de São Lourenço do Sul, segundo a ser pesquisado, obteve-se
a indicação dos agricultores familiares através da FETRAF. Os sujeitos entrevistados
foram cinco (5) agricultores familiares voltados á produção de fumo, três (3)
produtores de leite e dois (2) dedicados a produção fumo e leite.
Para a realização da pesquisa no município de São Lourenço do Sul
contamos com o auxilio de um estudante de agronomia vinculado à FETRAF, natural
do interior do município e, consequentemente, profundo conhecedor dos “caminhos
a percorrer”.
23
No terceiro município pesquisado, os agricultores familiares foram indicados
pela UNAIC, sendo entrevistados sete (7) agricultores familiares que cultivam fumo,
dois (2) produtores de leite e um (1) de fumo e leite.
Essa etapa da pesquisa foi acompanhada por um agrônomo vinculado à
UNAIC, natural do município pesquisado e fortemente integrado ao cotidiano dos
agricultores familiares através de trabalhos desenvolvidos nessas comunidades.
As entrevistas realizadas tiveram como referência dez (10) questões abertas,
utilizando-se a técnica do gravador que, através do relato humano, constituiu-se na
fonte de dados que apresentaremos na seção 3 desta dissertação.
Justifica-se a opção por esse método porque
a história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas destes
também recolhe tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes
no grupo [...] colhidas por meio de entrevistas de variada forma , ela registra
a experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma
coletividade” (QUEIROZ, 1991, p. 5).
O trabalho de campo realizou-se em janeiro de 2007, durante o qual,
percorremos dezesseis (16) distritos no total correspondente aos três municípios
pesquisados.
Para a realização da pesquisa de campo, além do apoio do pessoal vinculado
à FETRAF e UNAIC, contamos com a participação de três (3) acadêmicas do curso
de Serviço Social da Universidade Católica de Pelotas que nos auxiliaram na
realização das entrevistas.
No que tange aos dados auferidos através de metodologias quantitativas,
cabe esclarecer que necessitamos de fontes de informações mais abrangentes, de
forma a que o foco da nossa lente investigativa se ampliasse, fazendo um
movimento científico dedutivo.
A primeira fonte consultada foi o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária INCRA, órgão vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Agrário MDA.
Entre os inúmeros dados obtidos através da referida fonte, cabe destacar as
informações sobre o número de estabelecimentos de agricultura familiar existentes
nos municípios pesquisados. Constatou-se que Pelotas possui 3.555 unidades de
produção agrícola familiar, em São Lourenço do Sul 3.806 unidades e em
Canguçu chega a 8.831 unidades.
24
A segunda fonte de dados quantitativos que subsidiou nossa investigação foi
a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, Segurança Alimentar – PNAD
(2004), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE. Através dessa fonte
obteve-se os dados que possibilitam traçar um panorama acerca da Segurança
Alimentar no país em termos estatísticos, os quais, em conjunto com a pesquisa
bibliográfica, embasaram a segunda seção da presente dissertação.
A terceira fonte de dados quantitativos teve como referência o conjunto de
informações pertinentes a Pesquisa do Departamento de Ciências Sociais e Agrárias
da Universidade Federal de Pelotas UFPel e do Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Rural PGDR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFGRS denominada: “Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Pluratividade; a
emergência de uma nova ruralidade no Rio Grande do Sul”, também referida em
algumas publicações como “Pesquisa AFDLP”.
Essa fonte, além de servir de ponto de partida para a elaboração do nosso
projeto de pesquisa quando nos vinculamos ao Programa de Pós-graduação em
Sistemas de Produção Agrícola Familiar da FAEM/UFPel, permitiu a visualização da
realidade do município de Morro Redondo que compõe a microrregião de Pelotas e
que possui um quadro preocupante em face da escassez de alternativas
econômicas para as famílias rurais e onde a agricultura familiar apresenta
características de crise e estagnação, fato que poderá incidir na aumento da
insegurança alimentar no campo.
O fato é que, embora não fizéssemos uso dos dados da “Pesquisa AFDLP”
diretamente, esta serviu de base para iluminar a discussão em torno do peso da
produção de autoconsumo em estabelecimentos familiares no Rio Grande do Sul.
Os trabalhos científicos gerados a partir dessa pesquisa, inclusive artigos, teses, e
dissertações, propiciaram elementos interessantes para avançar nessa discussão e
aprofundar sobre certos aspectos que foram cruciais para o desenvolvimento da
presente dissertação.
Ao fazermos a opção por metodologias qualitativas, além dos dados
quantitativos, o fizemos porque esses últimos nem sempre apreendem os
fenômenos observados na sua totalidade. Para Minayo (2001), as metodologias
qualitativas “compõem um universo que não pode ser quantificado, ou seja, um
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que
corresponde a um espaço mais profundo das relações”.
25
O contato “in loco com os agricultores familiares e suas famílias,
transformou-se um espaço fecundo para a apreensão da realidade vivenciada,
oportunizando a ampliação da participação de sujeitos, considerando-se que na
maioria dos casos, o chefe da família solicitou a presença e participação da esposa
durante a realização das entrevistas.
26
2 Agricultura familiar e autoconsumo
Diversos o os estudos que indicam que o termo agricultura familiar é
recente e, devido a sua amplitude e complexidade, torna-se necessário analisar o
processo de transformação social que alterou as noções existentes sobre o tema.
Dentre várias denominações existentes para identificar a produção agrícola familiar,
podemos encontrar as seguintes: “plantação para o gasto”, “pequena produção”,
“produção de subsistência”, “produção de baixa renda”, dentre outras. As
transformações na lógica e na organização do processo produtivo modificam os
sujeitos envolvidos no mesmo e metamorfoseiam o camponês, o qual se torna um
agricultor familiar. Nessa metamorfose, os cultivos comerciais passam a substituir a
produção para o autoconsumo, prática crucial para assegurar a reprodução social do
camponês. O deslocamento e a transformação desses espaços de reprodução
social serão analisados neste capítulo, cujo objetivo é demonstrar que apesar dos
inúmeros esforços no sentido de definir agricultura familiar e revelar suas
transformações, pouco se fala da questão da produção para o autoconsumo nas
explorações familiares. O enfoque convencional, ao enfatizar apenas a dimensão
comercial da agricultura familiar, deixa de demonstrar que o agricultor quando
trabalha a terra realiza outro trabalho:
o da ideologia, que, juntamente com a produção de alimentos, produz
categorias sociais [...] além de ser um encadeamento de ações técnicas, é
também um encadeamento de ações simbólicas, ou seja, um processo ritual
(WOORTMAN e WORTMANN, 1997, p. 15).
A pesquisa que originou a presente dissertação tem como ponto de partida o
estudo da dinâmica da agricultura familiar no Rio Grande do Sul, com ênfase no
papel das atividades e rendas não– agrícolas. Esse projeto evidenciou a importância
da produção para o autoconsumo para a reprodução social das famílias rurais, tem
como necessidade de aprofundar a discussão em torno a essa questão
2
.
2
Ver a propósito entre outros trabalhos: GRISA ( 2007)
27
Parte-se aqui da premissa de que é fundamental discutir as características
dessa forma social de produção e abordar os principais referenciais teóricos, tendo
em vista que ela representa a categoria de análise da investigação desenvolvida.
Para conceber a presente seção servimo-nos de algumas obras
3
e de
esquemas analíticos que nos pareceram mais adequados, muito embora saibamos
da existência de outras abordagens. Não se trata aqui de expor um tratamento
exaustivo sobre as singularidades das diversas formas familiares de produção que
se conhece na atualidade ou de formas pregressas, mas de evidenciar traços que
nos permitam identificar de que setor estamos falando quando nos referimos à
dinâmica da agricultura familiar do Rio Grande do Sul em sua lógica peculiar de
funcionamento.
A abordagem aqui proposta se estrutura em torno da apresentação de cinco
grandes referenciais: os enfoques antropológicos, os enfoques modernizantes, o
enfoque marxista clássico, o referencial chayanoviano e alguns enfoques atuais. O
emprego do termo “camponês” e “campesinato” se justifica como estratégia
operativa para situar o debate que precede a atual incorporação do termo agricultura
familiar como forma de referência consagrada tanto no âmbito do debate político e
institucional quanto no plano estritamente acadêmico.
2.1
Os fundamentos teóricos dos clássicos sobre a questão agrária: Marx,
Lênin, Kaustky e Chayanov
2.1.1 – Marx e o desaparecimento da agricultura
A penetração do capitalismo no campo provoca a transformação da
propriedade da terra, das relações de trabalho e da própria produção agrícola. Esse
processo é analisado por Marx e Engels nas sociedades camponesas da França e
da Alemanha onde o pequeno lavrador é visto como um futuro proletário, estando
irremediavelmente condenado a desaparecer. Com efeito, a “pequena propriedade
rural está votada ao desaparecimento, mas o seu fim inevitável será tanto menos
ruinoso para os interesse directos e para a nação, quanto mais se antecipar o que
não pode ser evitado” (MARX, 1975, p. 14-15) .
Sob o ponto de vista da transformação do feudalismo para o capitalismo, para
Marx, a conjunção de três fenômenos deve ser considerada. Em primeiro lugar, uma
3
Referimo-nos aos trabalhos de Heynig (1982); Abramovay (1992) e Sacco dos Anjos (2003).
28
estrutura fundiária que permitiu a libertação dos camponeses em um certo
momento; em segundo, o desenvolvimento dos ofícios urbanos geradores de
produção de mercadorias especializadas e não agrícolas e, em terceiro, “a
acumulação de riqueza monetária derivada do comércio e da usura” ( MARX, 1975,
p. 46).
A economia capitalista, ao transformar a agricultura em simples ramo da
indústria, aniquila o baluarte da velha sociedade, o camponês, substituindo-o pelo
trabalho assalariado. Se antes o camponês produzia com o auxílio de sua família
quase tudo o que necessitava para sua subsistência, agora
[...] não se pode contentar em produzir para seu uso pessoal; para
comprar o pouco que necessita, pagar seus impostos, pagar juros das
suas dívidas, precisa produzir para trocar, quer dizer, entrar em
concorrência com outros produtores. Por conseqüência, efetuada a
concentração em qualquer parte, os nossos pequenos proprietários
sentirão seus efeitos ( MARX, 1957, p. 15)
Para Marx, os verdadeiros agricultores são assalariados, empregados de um
capitalista, o arrendatário, que exerce a agricultura apenas como um campo
específico de exploração do capital, como investimento de capital numa esfera de
produção. Segundo o autor, o modo de produção capitalista se apossou da
agricultura e, como conseqüência, tomou o domínio de todas as esferas da
produção.
Sob o ponto de vista da economia política, Marx chegou a denominar os
camponeses como um grupo social que dificultava o progresso econômico
preconizado pela sociedade moderna. Classificou-os como um grupo de baixa
consciência de classe, incapaz de transmutar-se de “classe em si” para “classe para
si”, deixando esse ponto de vista claro no XVIII Brumário de Luis Bonaparte. A sua
posição foi explicitada quando associou os camponeses franceses a um “saco de
batatas”, devido a sua natureza indiferenciada e submissa enquanto força política
(SACCO DOS ANJOS, 2003)
4
.
Acerca disso, Lima (2005), refere que os camponeses foram classificados de
“bárbaros miseráveis [...] um estorvo à evolução histórica, uma classe reacionária
4
Autores como Abramovay (1992), Sacco dos Anjos (2003) e Lima (2005) convergem sua posição no
entendimento de que Marx considerou o campesinato como forma ou modo de produção pré-
capitalista e nessa condição não despertou grande interesse para ser estudado numa sociedade em
que o capitalismo industrial se tornava emergente.
29
fadada à ruína
5
”. Ao descrever as comunas russas, Marx via nessas um submundo
arcaico de pobreza material e bil posição contra as forças exploratórias externas.
No entanto, o Marx tardio (pós-1870) admitiu a coexistência e a dependência mútua
de formas sociais capitalistas e não capitalistas. A natureza dual da propriedade
individual e coletiva na Rússia oferecia à Marx a suposição de duas vias de
desenvolvimento: “as comunas rurais (artel) ou seriam destruídas por um tipo
específico de capitalismo de estado, ou se manteriam sob a revolução, dado aos
aspectos corporativos de organização” (LIMA, 2005, p. 140).
No modelo teórico de Marx, a compreensão do papel da agricultura deve dar-
se a partir de seu próprio método de análise, ou seja, aquele em que a ordem lógica
ou a hierarquia das categorias o obedece a mesma seqüência da sua origem e
desenvolvimento histórico. Assim, um determinado fenômeno pode ser
compreendido a partir de sua forma mais desenvolvida (LIMA, 2005).
Conseqüentemente, na ordem histórica do desenvolvimento econômico,
embora a agricultura tenha sido o setor mais importante da economia e com ela
tenha contribuído decisivamente, no momento que coincide com a emergência e
consolidação da agricultura capitalista produtora de mercadorias, sua dinâmica pode
ser compreendida apenas sob a ótica e a lógica da produção capitalista, cujo
objetivo central é a acumulação do capital.
Nesse sentido, o paradigma marxista limita a compreensão e a explicação
tanto da dinâmica da agricultura familiar em seu devenir, quanto de sua
permanência, podendo-se concluir que “a situação social e o destino do importante
setor camponês de sua época não foram considerados como uma de suas
principais preocupações científicas” (SACCO DOS ANJOS, 2003, p. 12). Estudos
posteriores retomam a questão agrária através de Kaustky e Lênin e procuram
preencher o vácuo teórico existente na teoria marxista acerca da evolução da
agricultura sob a égide do capitalismo.
2.1.2 – O desenvolvimento agrário na perspectiva de Kautsky e Lênin
Em condições inteiramente distintas derivadas do retardo do desenvolvimento
do capitalismo russo, em comparação com a Europa Ocidental, e que refletem
5
Para Lima (2005, p. 140) tanto Marx quanto os adeptos do evolucionismo europeu acreditavam na
tese do desaparecimento dos camponeses. Kautsky (1980, p. 133), citando Marx, diz que na pequena
propriedade territorial que se forma à margem da sociedade, nasce uma classe de bárbaros sujeitos a
toda sorte de infortúnios e misérias.
30
contextos políticos específicos, no ano de 1899 são publicadas duas obras que
compõem os fundamentos do marxismo agrário. A primeira obra, intitulada A
Questão Agrária, de Kautsky, estuda de forma sistemática o dinamismo que o
capitalismo instaura na agricultura.
A segunda obra, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, de Lênin, é
uma reflexão teórica que discute o confronto do autor com um capitalismo atrasado,
que se firma rapidamente, embora travado por fortes traços que sobrevivem do
ancien regime Mesmo após a emancipação dos servos, ocorrida em 1861, na
Rússia, “Lênin se movia no interior de uma sociedade cuja estrutura de poder era
absolutamente autocrática, onde o emergente proletariado não dispunha de
tradições organizativas nem de experiência política” (NETTO, 1985, p.IX).
Para Kaustky, a família do camponês da Idade Média constituía uma
sociedade econômica bastando-se inteiramente, ou quase inteiramente, a si
mesma, pois não produzia o seu alimento, mas também construía sua casa, a
maior parte de suas roupas, ferramentas e utensílios domésticos. A existência do
camponês não dependia do mercado e, para o autor, essa sociedade
6
, que se
bastava a si mesma, era indestrutível. Os infortúnios que poderiam acontecer ao
camponês ele, assim os descreve:
O pior a lhe acontecer seria uma péssima colheita, um incêndio, a invasão de um
exército inimigo. Mas mesmo esses golpes do acaso constituíam um mal
passageiro; não secavam as fontes da vida. Contra as colheitas infelizes o
camponês se protegia as mais das vezes com grandes provisões armazenadas; o
gado lhe dava o leite e a carne; a floresta e o córrego pagavam igualmente, seu
tributo à alimentação. Na mata colhia ainda a madeira que se utilizava na construção
de nova casa, depois de um incêndio. À aproximação do inimigo, escondia-se na
floresta com o gado e os bens móveis, retornando quando o invasor se afastava. O
que este poderia ter devastado, a lavoura, a pastagem, os bosques, não pudera
contudo destruir Se os braços necessários continuavam válidos, se os homens e o
gado nada haviam sofrido, o mal era de fácil reparação.” KAUTSKY, 1980. p. 29)
No entanto, Kautsky, ao observar as condições do camponeses europeus,
percebe uma profunda revolução econômica produzida a partir da Idade Média e
assinala o ponto de partida dessa revolução como a dissolução que a indústria
essencialmente urbana e o comércio determinaram na pequena indústria dos
camponeses. À medida que tal processo avança, o camponês aumenta sua
6
Na obra de Kautsky “A questão agrária”, no capítulo III, o autor descreve a agricultura sob o
feudalismo, afirmando que assim como cada família de camponeses formava uma sociedade
doméstica bastando-se a si mesma, cada aldeia formava, do ponto de vista econômico, uma
sociedade fechada, a sociedade de território (markennossenshaft) e que o ponto de partida da
exploração camponesa foi o quintal da casa (haushofstätte), que compreendia além da casa, uma
faixa de terra em torno do prédio, que era cercado. (KAUTSKY, 1980, p. 38)
31
necessidade de possuir dinheiro para comprar não apenas coisas supérfluas, mas
também coisas que deixou de produzir. Ao transformar seus produtos em
mercadorias e levá-los ao mercado para a venda, “o camponês foi finalmente
forçado a tornar-se o que se entende hoje
7
por camponês, coisa que absolutamente
não foi no início: um agricultor puro(KAUTSKY, 1980, p. 32, destacado no original).
No capítulo VI de A Questão Agrária, Kautsky (1980) defende a superioridade
técnica da grande produção, apresentando vários lculos referentes às superfícies
cultivadas, ao uso de força animal e humana, ao crédito e ao comércio, entre outros.
Para o autor, o uso das máquinas permite a execução do trabalho com maior
rapidez e perfeição maior do que o realizado por operário manual com suas
ferramentas simples. O autor se utiliza, em defesa da superioridade técnica da
grande exploração agrícola, do seguinte argumento:
[...] a grande exploração é sempre superior. Ela pode gozar de tais vantagens no
preparo dos produtos e na utilização do crédito. Mas o grande proprietário tem,
sobretudo, o privilégio de poder, em virtude de sua situação e de seus fins, basear a
sua empresa num plano determinado, plano que lhe permite uma visão de conjunto e
a sistematização dos diversos serviços, mediante a aplicação do importante princípio
da concentração e da divisão do trabalho, pode orientar as tarefas em direções
especiais, tornando mais produtiva, a atividade dos homens que emprega. É
indubitável que a evolução moderna da agricultura proporciona à grande propriedade
recursos científicos e técnicos extraordinários, que a habilitam, pela formação de
pessoas especializadas, a afirmar a sua superioridade nesses diferentes setores”
(KAUTSKY, 1980, p. 126-127)
Segundo Kautsky, os especialistas também reconhecem a superioridade da
grande exploração agrícola ao fundarem associações cooperativas. A formação de
cooperativas é mais fácil para os grandes proprietários do que para os camponeses,
pois os primeiros são menos numerosos e dispõem de tempo, de relações extensas,
de conhecimentos comerciais – próprios – e de empréstimos. Os camponeses
poderão passar para a grande produção cooperativa quando compreenderem que
“uma produção desse gênero se realizará onde e quando o proletariado tenha a
força de modificar a forma da sociedade, no sentido de seus interesses. Mas então
ele será socialista” (KAUTSKY, 1980. p. 149).
A segunda obra em análise trata da desintegração do campesinato na
Rússia, a partir de Lênin. Esse processo foi conseqüência de uma série de fatores,
tais como: “o arrendamento, os implementos agrícolas aperfeiçoados, as atividades
7
A obra de Kautsky foi escrita em 1899, portanto, “hoje” refere-se a esse ano.
32
temporárias, o progresso da agricultura mercantil, o trabalho assalariado“ (LÊNIN,
1985, p. 94).
Em seu estudo, Lênin demonstra que a ruína dos camponeses não implica a
liquidação do mercado interno para o capitalismo e que essa ruína é uma
conseqüência necessária para sua evolução através da industrialização. O processo
da industrialização acelera e aprofunda os antagonismos de classe os quais,
existentes no bojo da comunidade camponesa, desintegram o campesinato,
liberando massas para a formação do proletariado. Reportando-se aos pequenos
produtores e a sua relação com o sistema capitalista, Lênin assim os descreve:
Não temos diante de nós simples produtores de mercadorias, mas, de um lado,
proprietários de meios de produção e, de outro, trabalhadores assalariados que
vendem sua força de trabalho. A transformação do pequeno produtor em operário
assalariado pressupõe a perda dos seus meios de produção (terra, instrumentos de
trabalho, oficina, etc) ou seja, pressupõe o seu “empobrecimento”, a sua “ruína”
Sustenta-se que essa ruína “reduz o poder de compra da população” e “estreita o
mercado interno” para o capitalismo. (LÊNIN, 1985, p. 15-16, destacado no original)
Contrariando as afirmações dos populistas
8
, Lênin afirma: “o que importa
para o desenvolvimento capitalista é a demanda originada pelos próprios
capitalistas, a crescente transformação de mais-valia em capital constante, com o
mais rápido crescimento do setor de bens de capital” (LÊNIN, 1985, XV). Conforme
o autor, o mercado interno para o capitalismo é criado pelo próprio capitalismo em
desenvolvimento, o qual aprofunda a divisão social do trabalho e decompõe os
produtores diretos em capitalistas operários. “O grau de desenvolvimento do
capitalismo interno é o grau de desenvolvimento do capitalismo no país. É incorreto
colocar a questão dos limites do mercado interno independentemente da questão do
grau de desenvolvimento do capitalismo - como fazem os economistas populistas”
(LÊNIN, 1985, p. 33).
Observa-se que a tese de diferenciação social no campo apoiava-se nas
bases de um processo inevitável de dissolução das formas familiares de produção
no Ocidente. Porém, essa tese não foi confirmada em nenhum dos países
estudados por Lênin (ABRAMOVAY, 2002).
8
O populismo é uma corrente pequeno-burguesa no movimento revolucionário russo, surgido nos
anos 1860-70, que lutava contra o fim da autocracia e pela entrega de terras dos latifundiários aos
camponeses. Viam na sociedade agrária o embrião do socialismo, defendendo que o campesinato, e
não o proletariado, era a principal força revolucionária.
33
2.1.3 – Chayanov e a reprodução da unidade camponesa
O estudo de Chayanov, The Theory of Peasant Economy(1907), publicado
em 1966, trouxe grande contribuição a diferentes áreas do conhecimento,
influenciando de forma notável pesquisadores da área de economia, sociologia e
antropologia. Os estudiosos encontraram na sistematização do pensamento
chayonoviano as chaves para compreender a perseverança e a estabilidade da
exploração familiar (SACCO DOS ANJOS, 2005).
Chayanov era o expoente da Escola para Organização da Produção e seu
debate teórico sobre a questão agrária russa resultou na construção de uma teoria
diferente daquela que se baseava na lógica da empresa capitalista. “Mais do que
um teórico da economia camponesa, Chayanov elaborou uma teoria do
funcionamento das unidades produtivas baseadas fundamentalmente no trabalho da
família” (ABRAMOVAY, 1998, p. 6).
Enquanto que na economia capitalista a força de trabalho pode ser definida
de forma objetiva, sob a forma de capital variável e suas combinações com o capital
constante, para Chayanov “el trabajo de la familia es la única categoria de ingreso
possible para un campesino o un artesano, porque no existe el fenômeno social de
los salarios, por tal motivo, también está ausente el cálculo capitalista de ganância”
(CHAYANOV, 1974, p. 10) .
Chayanov estabelece em seus princípios básicos que a unidade familiar de
exploração não pode ser considerada somente como unidade econômica. Sua
natureza essencialmente familiar agrega uma série de traços peculiares, tais como o
esforço físico, o tamanho da exploração e os fatores de produção.
Ao situar a família camponesa e a influência de seu desenvolvimento na
atividade econômica Chayanov, afirma que:
De hecho, la composición familiar define ante todo los límites máximo e
mínimo del volumen de su actividad económica. La fueza de trabajo de la
unidad de explotacíon doméstica está totalmente determinada por la
disponibilidad de miembros capacitados en la familia. Por eso es que el
límite más elevado posible para el volumen de la actividad depende del
monto de trabajo que puede proporcionar esta fuerza de trabajo utilizada
com la máxima intensidad. (CHAYANOV, 1974, p. 47),
A concepção de família, em especial a de família camponesa, sofre variações
e nem sempre é coincidente com o conceito biológico. Estudos estatísticos sobre o
34
zemstvo
9
russo revelam que na mente do camponês o conceito de família inclui as
pessoas que comem sempre na mesma mesa e da mesma panela. no
campesinato francês, é incluído no conceito de família o grupo de pessoas que
passa a noite protegido por la misma cerradura (CHAYANOV, 1974).
Em muitos distritos agrícolas de países eslavos, encontravam-se vários
casais morando sob um mesmo teto, muitas vezes até três gerações unidas em
uma só família patriarcal. Nos distritos industrializados, os membros jovens da
família buscavam alternativas que garantissem sua independência econômica,
separando-se do lar paterno e vivendo sua própria vida.
Entretanto, por mais variados que fossem os modelos de família, sua base
seguia o conceito biológico, no qual o casal vive junto com seus descendentes. Com
efeito, essa “naturaleza biológica de la familia determina en gran medida los limites
de su tamaño y, principalmente, lás leyes de su composición, aunque, por supuesto,
las circunstancias cotidianas pueden introducir numerosas complicaciones”
(CHAYANOV, 1974, p. 49).
A família camponesa, quando emprega sua capacidade de trabalho no cultivo
da terra, recebe como resultado uma certa quantidade de mercadorias, a qual, ao
ser trocada nos mercados, de constituir-se no produto bruto de sua unidade
econômica (SACCO DOS ANJOS, 2005).
Ao se subtrair os dispêndios do produto bruto da unidade econômica, ter-se-á
o produto final do trabalho familiar. Esse resultado poderá variar de acordo com
fatores de mercado, tamanho e composição da família, disponibilidade dos meios de
produção, quantidade de terra, entre outros. O que se busca nesse processo é a
satisfação das necessidades familiares de consumo e não a taxa de lucro prevista
pelos empreendimentos capitalistas.
Para Archetti
La teoria de Marx se propone explicar por qué el campesino cede parte de
su trabajo a la sociedad, siendo esa la causa de que no acumula capital
(...) Chayanov parte de outro supuesto pero llega a la misma conclusión: la
falta de acumulación de capital. Para él campesino deja de trabajar cuando
produce lo suficiente como para poder comprar lo que necessita; por outro
lado este supuesto está en el modelo de Marx de circulación de
mercancías. Este descubrimiento sido llamado por Shallins “ley de
Chayanov” e formulado de la siguiente manera: “En la comunidad de
grupos de produción domésticos, cuanto mayor sea la capacidad de trabajo
9
Os zemtvos eram as novas assembléias de províncias e de distritos criadas para colaborar na
aplicação de reformas agrárias de 1861(SACCO DOS ANJOS, 2003, p. 20)
35
de cada grupo menos trabajan sus miembros” (ARCHETTI, 1974, p. 19,
destacado no original)
Chayanov utiliza a hipótese do balanço subjetivo entre consumo e trabalho
para analisar os processos de continuidade na unidade econômica camponesa e
para estabelecer a natureza da motivação da atividade econômica da família. Sua
tarefa foi a de analisar o funcionamento de “una familia que no contrata fuerza de
trabajo exterior, que tiene una certa extensión de tierra disponible, sus proprios
medios de producción y que a veces se ve obligada a emplear parte de su fuerza de
trabajo en ofícios rurales no agricolas” (ARCHETTI, 1974, p. 44).
Assim, a introdução de atividades não-agrícolas nas explorações familiares
pode passar a ser uma das formas de garantir a reprodução social do grupo
doméstico, o qual enfrenta modificações ao longo de seu ciclo vital. Dados
censitários indicam que o tamanho das unidades domésticas de propriedades se
reduz juntamente com o nível de renda per capita. Há, então, uma correlação
histórica entre tamanhos de grupos domésticos e nível de renda. O próprio
Chayanov reconheceu que a relação entre o nível de renda e a estrutura familiar
poderia se dar no sentido contrário ao proposto por sua teoria, isto é, “o nível de
renda decrescente poderia ser a causa da redução do tamanho familiar e não seu
efeito, via desnutrição infantil, mortalidade neonatal e controle da natalidade que
Chayanov chamava de “malthusiasianismo prático” (ALMEIDA, 1976, p. 74, aspas
no original).
Chayanov, estudando a realidade econômica da Rússia, observou que o
camponês orienta suas atividades no intuito de maximizar oportunidades e não
somente rendas. Comprovou que a cada descenso dos preços agrícolas sucedia um
aumento correspondente ao volume de produção, utilizando-se o aumento das áreas
cultivadas. Os camponeses e suas famílias aceitavam pagar preços de aluguel da
terra superiores ao valor da renda capitalizada e sujeitavam-se a vender seus
produtos em condições que levariam à ruína qualquer granja capitalista, porque se
obrigavam a um ritmo de auto-exploração, compatível com suas necessidades de
consumo. Chayanov privilegia em sua análise os elementos internos da organização
camponesa, procurando entender sua morfologia e funcionamento. Essa forma de
análise constitui-se naquilo que passa a ser conhecido como uma microeconomia do
comportamento camponês (GRISA, 2007).
36
Apesar do inquestionável valor do referencial teórico de Chayanov, cujo
legado permite a compreensão dos elementos internos da organização camponesa,
algumas limitações são apontadas por Sacco dos Anjos (2005, p. 25) no que
concerne à Teoria da Diferenciação Demográfica, a saber:
a) Sua teoria é a-histórica no sentido de que o autor atribui à lógica de operação
da unidade camponesa de produção, sendo vista como um ente que atua
independentemente do sistema econômico no qual se acha inserido. Os
camponeses reduzem-se, no limite, a meros “consumidores-produtores”.
b) Apesar de ter identificado regularidades supostamente inquestionáveis quanto
ao ciclo vital do processo de produção das famílias, os complexos
mecanismos de extração econômica que atingem as formas familiares de
produção modificam-se de acordo com as distintas formações históricas. Isso
implica na constatação de que a sobrevivência das explorações nem sempre
resulta da suposta eficiência cnica, e sim, da aceitação de preços
miseráveis pelos seus produtos, bem como pelo próprio interesse do modo de
produção capitalista em manter esse tipo de produção para atender as
demandas do sistema.
c) O esquema proposto por Chayanov defende a idéia de que o objetivo
fundamental das famílias é o de atender as necessidades básicas de
consumo e esse processo exigirá um ritmo de trabalho diferenciado. Esse
postulado modificou-se porque existem hoje casos concretos em que a opção
de um ou mais membros de uma família por outro de tipo de atividade não-
agrícola altera o âmbito da produção e também o ingresso econômico global.
Dessa forma, as esferas da produção e do consumo deixam de ser
mutuamente correspondentes.
d) A premissa de Chayanov, que se fundamenta na total flexibilidade de acesso
à terra, foi construída a partir da realidade da Rússia e esse fato histórico não
pode ser estendido à maioria dos países nos quais predomina a propriedade
privada da terra e dos meios de produção. Nesse caso, rompe-se a relação
entre o tamanho da família e sua capacidade de produção.
No nosso entendimento, mesmo havendo limitações no esquema teórico e
analítico de Chayanov apontadas por Sacco dos Anjos e com as quais
concordamos, encontramos nesse modelo de análise elementos cruciais que
ampliam a dimensão do conhecimento e da compreensão do processo de
37
reprodução das unidades familiares. Essas unidades compõem o universo empírico
desse trabalho e serão apresentadas posteriormente.
2.2 Campesinato e agricultura familiar
Para Eric Woff (1976), a existência de uma vida camponesa não envolve
meramente uma relação entre camponeses e não-camponeses, mas um tipo de
adaptação que combina atitudes e atividades destinadas a sustentar o cultivador em
sua luta pela sobrevivência individual e de toda sua espécie, dentro de uma ordem
social que o ameaça de extinção.
O autor procura responder o que distingue os camponeses de formas
primitivas de produção:
Nas sociedades primitivas os excedentes são trocados diretamente pelos
grupos ou por seus membros; os camponeses, no entanto, são cultivadores
rurais, cujos excedentes são transferidos para as mãos de um grupo
dominante, constituído pelos que governam, que os utilizam para assegurar
seu próprio nível de vida, e para distribuir o restante entre grupos da
sociedade que não cultivam a terra, mas devem ser alimentados, dando em
troca bens específicos e serviço (WOLF, 1976, p.16).
O desenvolvimento da civilização decorre do desenvolvimento de uma ordem
social complexa, baseada entre os que governam e os que cultivam, produzindo
alimentos. Os estudos arqueológicos indicam uma grande diversidade no processo
de transição de sociedades primitivas para camponesas. Wolf (1976, p. 16) situa o
processo de civilização, referindo que no Velho Mundo, “o cultivo agrário e a
domesticação de animais datam de 9.000 na América e na Ásia, enquanto que o
surgimento das vilas agrícolas sedentárias por volta de 6.000 a 7.000 a.C. e o cultivo
pleno em torno de 1.500 a.C.”
Para esse autor, as relações sociais de qualquer espécie nunca serão
exclusivamente utilitárias ou instrumentais, mas cercadas de construções simbólicas
que servem para explicá-las, justificá-las e regulá-las. Decorre daí a existência do
fundo cerimonial e do fundo de aluguel. O primeiro refere-se a despesas com
cerimônias e varia de cultura para cultura. O segundo possui um ônus permanente
que o produtor paga “ao fundo de poder” dos dominadores.
No que se refere ao lugar do campesinato na sociedade, só podemos falar em
campesinato quando um cultivador está integrado em uma sociedade com um
Estado. Ou seja, existe subordinação aos grupos dominantes exteriores - o que
38
provoca tensões -, pois o camponês é “a um tempo, um agente econômico e o
cabeça de uma família [...] Sua propriedade tanto é uma unidade econômica, como
um lar” (WOLF, 1976, p. 28).
Ao tratar da economia camponesa, Wolf apresenta os sistemas pretéritos e
atuais utilizados para a extração e o sustento e de excedentes da terra, descrevendo
dois diferentes ecótipos (conjunto das séries de transferência de alimentos e de
projetos para a obtenção de energia através de forças inorgânicas) sendo: 1)
Paleotécnico
10
, ecótipo em que homens e animais são utilizados para produzir
alimentos, sendo conseqüência da 1 Revolução Agrícola, 3.000 a.C.) e 2)
Neotécnico, aquele que se desenvolveu com a Revolução Industrial, através de
novos campos do conhecimento e formas de energia. O modelo neotécnico
racionalizou a agricultura, transformando-a numa empresa econômica voltada
prioritariamente para o mercado, deixando em segundo plano a agricultura de
subsistência, condenando o campesinato à regressão.
Assim sendo, o autor situa o camponês dentro de um sistema de trocas,
ligando-o às atividades de uma ordem mais ampla que, ao mesmo tempo em que
facilita suas necessidades de troca, ameaça seu equilíbrio social e econômico. Ele
conclui apresentando os três tipos de domínio que têm afetado tradicionalmente o
campesinato: o patrimonial (direito de receber tributos de quem ocupe a terra), o
prebendal (concessão de terra pelo governo em troca de tributo pelos funcionários) e
o mercantil (a terra é a propriedade privada, desse modo é utilizada e vendida com a
finalidade de lucro). Destaca que “somente numa situação onde existem opções
alternativas eficientes, pode-se efetuar a mudança para uma nova ordem” (WOLF,
1970, p. 87) e que a reorganização totalizadora de ordem camponesa paleotécnica
só é possível em circunstâncias especiais:
A forma de domínio é importante para aquinhoar as formas de relação
social que governarão o período de transição e determinarão a estrutura da
sociedade emergente [...] a maneira pela qual eles são empregados é uma
questão de organização social e da organização de poder. (WOLF, 1976, p.
87).
10
As formas paleotécnicas dos ecótipos descritos por Wolf (1970, p. 38) o: 1) Sistemas de pousio
de longa duração (swidden), podendo ser associados ao que se conhece no Brasil por coivara ou
queimada; 2) Sistemas de pousio setoriais; 3) sistemas de pousio de curta duração; 4) cultivo
permanente (hidráulicos) e 5) cultivo permanente de campos fecundos. No processo de evolução
cultural os de maior importância são três: o swidden, o pousio de curta duração e os tipos hidráulicos.
39
2.2.1 – O campesinato no Brasil
A dinâmica da agricultura familiar, como já foi anunciada no início desse
capítulo, requer inúmeros elementos que permitam a compreensão de sua
complexidade e, para tal, um importante estudo de Maria de Nazaré Wanderley
(1999) permite que se entendam as raízes do campesinato brasileiro, sendo essa
uma das formas sociais da agricultura familiar. A autora refere-se à uma releitura do
campesinato no Brasil, apoiando-se na reflexão elaborada por Henri Mendras e por
Marcel Jollivet, ambos ligados ao grupo de Sociologia Rural Francesa, na década de
1970. Para Mendras (1976), existem cinco traços das sociedades camponesas, a
saber: a) uma relativa autonomia face à sociedade global; b) importância estrutural
dos grupos domésticos; c) um sistema econômico de autarquia relativa; d) uma
sociedade de interconhecimentos e e) a função decisiva dos mediadores entre a
sociedade local e a sociedade global. Nesse sentido:
A agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas sociais de
agricultura familiar, pois relaciona propriedade, trabalho e família. No
entanto, ela tem particularidades que a especificam no interior do conjunto
maior da agricultura familiar e que dizem respeito aos objetivos da
atividade econômica, às experiências de sociabilidade e à forma de sua
inserção na sociedade global. (WANDERLEY, 1999, p. 25)
Os estudos sobre as sociedades camponesas tradicionais mostram que o
binômio policultura pecuária é uma sábia combinação entre diferentes técnicas, que
pode fornecer uma segurança contra as intempéries e a variabilidade das colheitas.
Sobre o sistema de “policultivo-criação”, Marcel Jollivet (1974, p. 236) assevera: “Ele
exige, com efeito, um trabalho intensivo, que os membros da família se dispõem
a fazer e aceitar; por outro lado, a multiplicidade de tarefas que implica requer muita
leveza no trabalho, da mesma forma que uma grande diversidade de competências”.
Jerzy Tepich (1973), estudioso da sociedade agrícola polonesa em um regime
socialista, observa que o campesinato organiza seu trabalho levando em conta dois
fatores estruturais: as forças produtivas não transferíveis (trabalho de pessoas
ligadas parentalmente) e o tempo de não-trabalho (quando o desenvolvimento
cultural, animal ou vegetal segue seu curso biológico, dispensando o trabalho
humano).
Percebe-se através dessas constatações que o camponês precisa
estabelecer constantemente os ajustes necessários entre a força de trabalho
disponível e o ritmo e a intensidade do trabalho exigido ao longo do ano. Assim a
40
“pluratividade
11
e a contratação de trabalhadores alugados no estabelecimento
familiar estão inscritas na própria forma de produzir do camponês enquanto uma
possibilidade, mas sua concretização dependerá, fundamentalmente, do contexto
mais geral que engloba o campesinato” (WANDERLEY, 1999, p. 28).
A autora refere que o “horizonte das gerações” se expressa por meio de um
projeto para o futuro, ou seja, a família define estratégias, visando, ao mesmo
tempo, assegurar a sobrevivência imediata e garantir a reprodução das gerações
subseqüentes, tendo uma cultura própria, considerando as regras de parentesco, de
herança, as formas de vida local.
No Brasil, a construção de um espaço camponês se efetivou, na maioria dos
casos, sob o signo da precariedade estrutural, inibindo o desenvolvimento das
potencialidades do próprio sistema clássico de produção e de vida social. Essa
precariedade foi analisada por Antônio Cândido
12
ao estudar os caipiras paulistas,
considerados camponeses, como portadores de uma cultura rústica.
É interessante observar que esse estudo, que data de 1964, considera a
natureza camponesa stica”, mas reconhece que “a sociedade caipira tradicional
elaborou técnicas que permitiram estabilizar as relações do grupo com o meio [...],
mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, sua exploração
sistemática e o estabelecimento de uma dieta com o mínimo vital tudo relacionado
com uma vida social tipo fechada, com base na economia de subsistência”
(CÂNDIDO, 2003, p. 46).
Não seria o caso de focar o olhar nessa “rusticidade” e tentar compreendê-la
como uma criativa e inteligente forma de resistência? Afinal, dispondo de meios de
produção precários e, na maioria das vezes insuficientes, esse grupo social manteve
suas condições de existência preservadas. Parece que a “rusticidade” carrega em si
as possibilidades de avanço necessárias a sua consolidação enquanto espaço social
heterogêneo, ambíguo e complexo. Nele se movem sujeitos denominados de acordo
com as peculiaridades regionais: “caipiras” ou “colonos” centram-se no esforço de
11
A pluratividade trata-se de um fenômeno no qual os componentes de uma unidade familiar
executam diversas atividades com o objetivo de obter uma remuneração pelas mesmas, sendo que
essas podem desenvolver-se no interior ou fora da exploração familiar (SACCO DOS ANJOS,
2003).
12
A obra de Antônio Cândido Os Parceiros do Rio Bonito” trata da reconstrução histórica da
sociedade caipira e abrange desde as relações sociais básicas até os meios elementares de
subsistência. Descreve técnicas de plantio, festas religiosas e analisa fatores de persistência e
mudança.
41
constituir um espaço familiar, um lugar de vida e de trabalho, capaz de guardar a
memória da família e de reproduzi-la para as gerações posteriores.
2.3 Agricultura familiar: outras elaborações
O debate em torno da caracterização e definição do termo agricultura familiar
corresponde a uma questão que tem inquietado pesquisadores e acadêmicos nas
últimas décadas. A partir dos anos 1990, essa discussão tornou-se mais acirrada
quando diversos autores, entre eles Veiga (1991), Abramovay (1992 e 1997), Arnalte
Alegre (1997) e Lamarche (1993 e 1999) reconheceram a multiplicidade de
situações presentes nas estruturas agrárias no final do século XX e no início do
século XXI.
Embora a agricultura familiar, enquanto categoria de investigação, tenha se
firmado na década de 1990, muitos pesquisadores já voltavam seus estudos teóricos
e empíricos para o conhecimento da dinâmica de produção e organização da família
rural. nas duas décadas anteriores. A maioria desses estudos trata de famílias
camponesas definidas como “proprietários ou arrendatários que utilizam
prioritariamente a mão-de-obra familiar e utilizam pouco capital” (ALMEIDA, 1986, p.
67).
O estudo de Almeida (1986) esclarece que, na década de 1970, a visão que
se tinha acerca do papel das famílias camponesas era no sentido de que elas
ocupavam uma posição de elemento funcional ao processo de acumulação
capitalista. Isso, segundo o autor, ocorria pelo fato de elas produzirem alimentos de
baixo custo para os consumidores urbanos, em especial para as famílias
assalariadas, cujos salários poderiam permanecer com reajustes inferiores aos
índices da inflação. Os pequenos produtores poderiam, assim, gerar lucros para
uma camada de comerciantes, usurários rurais ou agroindústrias. Nessa condição,
constituiriam famílias para o capital, “espécie mágica de empresa que para
sobreviver faz qualquer negócio, com lucro ou prejuízo” (ALMEIDA, 1986, p. 66).
Mais tarde, Lamarche (1993) e Abramovay (1997) ratificam que a agricultura
familiar é uma forma social reconhecida e legitimada nos países desenvolvidos,
sendo funcional ao capitalismo, ao garantir comida farta e barata para uma
população urbana crescente. Para Sacco dos Anjos (2005), a idéia exclusiva que se
tinha, na década de 1970, sobre o caráter funcional da pequena produção para a
42
acumulação de capital como a razão essencial para explicar sua existência, deve
agregar também a idéia de que é o conjunto da economia que se beneficia de sua
condição, mediante o uso de transferência de rendas em relação a distintos setores.
Enquanto os debates em torno da agricultura familiar como categoria de
investigação se constroem, pode-se ter como referência duas posições. De um lado,
pensa-se que as explorações camponesas se encontram em um lento processo de
desaparição. De outro, defende-se a idéia de que essas explorações constituíram-se
em formas organizadas, permanentes e estáveis no sistema capitalista.
Para Lamarche, citado em Sacco dos Anjos (2005, p. 42), a exploração
camponesa é de caráter familiar, mas nem sempre as explorações familiares são de
caráter camponês. Aqui compreende-se que a possível diferença entre uma e outra
é o maior ou menor grau de vinculação aos mercados e, conseqüentemente, uma
maior ou menor autonomia dessas unidades de produção. Contudo, o que tais
estudos (JOLLIVET, 1974) demonstram é que existem alguns elementos recorrentes
no que tange às condutas e iniciativas dessas unidades de produção: elas têm como
objetivo principal garantir a reprodução social dos membros do grupo doméstico.
De acordo com os estudos realizados até a elaboração desse trabalho, pode-
se perceber que diferentes perspectivas em torno do tema agricultura familiar.
Não se pretende elaborar um conceito único, uma vez que esse poderia engessar a
amplitude e suas formas de existência social. Porém, é oportuno esclarecer que
nessa dissertação compreendemos como traços essenciais da agricultura familiar
aqueles apontados por Gasson e Errington (1993), devidamente ressaltados por
Sacco dos Anjos, tais como:
a) a gestão é feita pelos proprietários; b) os responsáveis pelo
empreendimento estão ligados entre si por laços de parentesco; c) o
trabalho é fundamentalmente familiar; d) o patrimônio pertence à família; e)
o patrimônio e os ativos são objeto de transferência intergeracional no
interior da família e finalmente f) os membros da família vivem na unidade
produtiva. (Gasson e Errington,1993 apud SACCO DOS ANJOS, 2005, p.
43)
A sistematização desse conjunto de dados, que compõem os traços
essenciais da agricultura familiar, permite o balizamento da noção que adotaremos
nessa dissertação.
43
2.4 Concepção de autoconsumo
A produção para o autoconsumo permeia a existência da espécie humana,
uma vez que a necessidade da alimentação é crucial para a sobrevivência e
perpetuação do homem. Marschall D. Sahlins caracterizou o mundo econômico e
social dos povos primitivos enfatizando "que nas economias primitivas, a maior parte
da produção está estruturada em função das necessidades dos produtores ou do
desencargo de obrigações de parentesco e não em função do comércio ou lucro"
13
.
Dessa forma, entende-se que nesse tipo de sociedade o controle efetivo dos meios
de produção está descentralizado, tanto local como familiarmente, o que faz com
que não haja relações sociais de dependência ou domínio no sistema de produção.
Nesse caso, não havendo abundância de bens no mercado que pudessem
servir como troca, existe uma tendência a limitar a produção de bens que podem ser
utilizados diretamente pelos produtores. Portanto, na sociedade primitiva, os
produtores controlam os meios de produção, inclusive seu próprio trabalho, e
trocam-no junto com seus produtos por bens e por serviços definidos culturalmente
como equivalentes a outros.
Nas sociedades primitivas, os excedentes são trocados diretamente pelos
grupos ou por seus membros; os camponeses, no entanto, são cultivadores
rurais cujos excedentes são transferidos para as mãos de um grupo
dominante, constituído pelos que governam, que os utilizam para assegurar
o seu próprio nível de vida, e para distribuir o restante entre grupos da
sociedade que não cultivam a terra, mas devem ser alimentados, dando em
troca bens específicos e serviços. (WOLF, 1976, p.15)
Percebe-se, assim, que a partir do momento em que o excedente produzido
passa para o controle de um grupo dominante, seu valor se modifica. Wolf (1976)
observa que à medida que a sociedade se torna mais complexa, os níveis de troca
das unidades de alimentos e unidades de bens não são traduzidos em equivalências
determinadas por negociações de produtor e consumidor, mas por sistemas
assimétricos de trocas.
Definindo-se sua existência de um meio camponês fundamentalmente por seu
relacionamento subordinado a grupos dominantes exteriores, os camponeses serão
obrigados a manter o equilíbrio entre suas próprias necessidades e as exigências de
fora. Esse fato poderá gerar tensões, considerando-se que uma unidade camponesa
não estará preocupada exclusivamente com a alimentação de seus membros, mas
13
SAHLINS, (1976 apud WOLF, p. 15).
44
também em prover o atendimento de inúmeras necessidades que configuram sua
natureza social.
No Brasil, na década de 1940, o estudo etnográfico de Antonio Cândido
denominado “Parceiros do Rio Bonito” examina com atenção o modo de vida do
caipira
14
paulista. Os objetivos mais imediatos e explícitos de Cândido é a pesquisa
das relações possíveis entre a obtenção dos meios materiais de vida e as formas de
sociabilidade correspondentes. Nesse sentido, as necessidades possuem também
um caráter social, pois a vida e a sobrevivência de um determinado agrupamento
humano dependem do equilíbrio estabelecido entre tais necessidades e os recursos
de que o grupo dispõe para satisfazê-las.
Para cada cultura há, em cada momento, certos mínimos abaixo dos quais
não é possível haver equilíbrio: a certos "mínimos vitais" de alimentação e abrigo
correspondem certos "mínimos sociais" de organização para obtê-los e garantir a
própria sociabilidade do grupo. Por isso, a sociologia proposta por Cândido é
chamada de "sociologia dos meios de subsistência", a qual busca interpretar todas
as dimensões da vida social, a partir da alimentação. Para o autor:
Assim, os meios de subsistência de um grupo não podem ser
compreendidos separadamente do conjunto das "reações culturais",
desenvolvidas sobre o estímulo das "necessidades básicas". Em nenhuma
outra parte vemos isto melhor que na alimentação, que é recurso vital por
excelência. [...] a alimentação ilustra o caráter de seqüência ininterrupta, de
continuidade, que nas relações do grupo com o meio. Ela é de certo
modo um vínculo entre ambos, um dos fatores de sua solidariedade
profunda, e, na medida em que consiste numa incorporação ao homem de
elementos extraídos da Natureza, é seu primeiro e mais constante
mediador, lógica e por certo historicamente anterior à técnica. (CÂNDIDO,
2001, p. 35-36; aspas no original)
Caracterizando o modo de vida do caipira, Cândido (op. cit, p. 107) destaca
que, na formação rural de São Paulo, tendo o caipira conseguido elaborar formas de
equilíbrio ecológico e social, apegou-se a elas como expressão da sua própria razão
de ser, enquanto tipo de cultura e sociabilidade. Tal mecanismo de sobrevivência,
pelo apego às formas mínimas de ajustamento, provocou certa anquilose de sua
cultura e como se tinha no seu antepassado índio, verificou-se nele certa
14
Para Cândido, “o caipira típico foi o que formou uma vasta camada inferior de cultivadores
fechados em sua vida cultural [...]”. Constitui-se de “uma população dispersa, móvel, livre, branca ou
mestiça, geralmente de branco e índio, com pouco sangue negro. [...] A precariedade dos seus
direitos à ocupação da terra contribuiu para manter os níveis mínimos de sobrevivência biossocial”
(2001, p, 106-107).
45
incapacidade de adaptação rápida às formas mais exaustivas de trabalho, no
latifúndio da cana e do café. Seu não-enquadramento aos padrões do trabalho servil
diferenciou-o do escravo e do colono europeu, que foram chamados sucessivamente
a desempenhar o papel que ele não pôde, não soube ou não quis assimilar.
Disso resultou uma imagem estereotipada do caipira como "preguiçoso",
confundindo-se muitas vezes a desnecessidade de trabalhar com vadiagem. O
desamor ao trabalho estava ligado à desnecessidade de trabalhar, condicionada
pela falta de estímulos para o aumento da produção. A extraordinária fertilidade das
terras virgens favorecia uma economia de subsistência, com o objetivo de plantar
para viver, com pouca ou nenhuma utilização comercial do produto. Em caso de
enfraquecimento da terra, buscavam-se outras frações, onde se recriavam as
condições anteriores, não apenas de produtividade mas também de isolamento,
perpetuando a auto-suficiência e tornando desnecessária a introdução de hábitos
mais rigorosos de trabalho. Entretanto, a parceria apontada pelo estudo de Cândido,
e que foi posteriormente denominada de recampesinização
15
por Tedesco (1999, p.
48), representa "um ponto de precária estabilidade no processo de mudança em
andamento, colocando o caipira entre a posição de proprietário, ou posseiro, e a de
assalariado agrícola, aparecendo, muitas vezes, como única solução possível de
sua permanência no campo".
Considerando-se que o estudo de Antônio Cândido data da década de 1940,
convém destacar que, pela profundidade de sua análise, este se torna uma
referência para todos os pesquisadores sobre o tema da produção para o
autoconsumo, podendo-se encontrar em sua vasta e detalhada descrição os
fundamentos sociológicos que permitem a compreensão de fenômenos e estratégias
de resistência dessa e de outras formas familiares de produção.
Estudos mais recentes, como os de Tedesco (1999) e Woortmann (1995),
destacam a natureza cultural do processo de autoprovisão, desenvolvido no decorrer
da formação social do Brasil meridional com o assentamento dos imigrantes não-
ibéricos desencadeado a partir da primeira metade do século XIX.
Tedesco (1999), quando se refere ao horizonte das gerações de agricultores,
lembra que a família define estratégias que visam ao mesmo tempo garantir a
15
Tedesco refere-se à recampenização compreendendo-a como um processo de adaptação do
camponês às transformações do mundo agrário necessárias à sua permanência no campo.
46
reprodução das gerações seguintes, bem como assegurar a sua imediata
sobrevivência. Dessa forma:
Da centralidade da família, como portadora do esforço de trabalho e
detentora da propriedade tanto quanto definidora das necessidades de
consumo, decorre a importância que assume a evolução de sua
composição, como elemento-chave do próprio processo de transformação
interna da unidade família/estabelecimento o que Chayanov denominou
diferenciação demográfica (TEDESCO, 1999, p. 29).
Woortman, por sua vez, ao discorrer sobre o significado da alimentação para
as famílias camponesas no Brasil, lembra que a palavra família deriva de famulus,
que quer dizer famintos ao redor de um pote ou panela com comida. Além disso, ele
ressalta que, nos recenseamentos da coroa portuguesa, registravam-se os "fogos"
(destacado no texto), os quais significavam a existência de casas com famílias ao
redor de um fogão.
Em diversas pesquisas (WOORTMANN, 1997; MENASCHE, 2005), os
autores demonstram que, na alimentação camponesa, a quantidade e a diversidade
são mais importantes do que a qualidade, sendo que a família camponesa produz a
maior parte daquilo que consome, o que pode levar a uma dieta razoável, porém
pouco variada e marcada pela sazonalidade. Em épocas de crise decorrente de
fatores ambientais (falta ou excesso de chuvas, fortes geadas), dependendo da
região do país, o consumo de determinados alimentos pode ser reduzido a um
mínimo necessário.
A produção de alimentos para o autoconsumo, portanto, depende de uma boa
colheita e representa a segurança alimentar da família, bem como a obtenção de
sementes que garantirão o consumo do ano seguinte.
Leite (2004), compondo o cenário da produção científica sobre a categoria
correspondente ao autoconsumo, destaca que durante os anos 1990, no Brasil, se
retoma de modo significativo o debate sobre as estratégias de reprodução social e
econômica da agricultura familiar. Ele foca seu estudo sobre agricultores familiares
assentados e analisa o significado da produção autoconsumida em quatro
assentamentos estabelecidos a partir de projetos governamentais. Sua concepção
de autoconsumo é expressa nos seguintes termos:
Se entiende aquí por autoconsumo, la fracción de la producción
agropecuaria (agrícola, ganadera, extractivista y aquella que deriva de
productos primarios beneficiados) que se realiza en establecimiento y se
destina al consumo alimenticio de los miembros de las familias de los
responsables e inclusive la alimentación animal y otros usos en la actividad
productiva, es decir, al consumo de este excedente. De esta forma, si se
47
deduce de la producción realizada las partes relativas a la comercialización,
a la donación, al almacena miento y a producción perdida, tenemos
efectivamente la producción autoconsumida (LEITE, 2004, p. 125).
Para dimensionar o valor da produção para o autoconsumo, Leite utiliza a
metodologia também adotada por outros autores (GARCIA JR, 1994; SACCO DOS
ANJOS, 2005), na qual se aplica aos produtos autoconsumidos o preço dio que
se obteria com a venda dos produtos de igual natureza no mercado local.
Leite (2004) constata que a produção para o autoconsumo favorece as
unidades familiares da agricultura brasileira, de modo especial àquelas que se
situam em regiões menos favorecidas. Destaca que a "producción para
autoconsumo posibilita a las familias rurales un patrón medio de alimentación
superior al conjunto de familias, con niveles de renta similares, que habitan las
grandes ciudades" (LEITE, 2004, p.162).
Aproximando nosso olhar sobre a produção para o autoconsumo, faz-se
necessário focar o estudo que serviu de ponto de partida para nossa pesquisa de
campo e que se origina do Projeto "Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e
Pluratividade: a emergência de uma nova ruralidade no Rio Grande do Sul",
referido na introdução desse trabalho.
Trata-se de um estudo comparativo, realizado por Sacco dos Anjos et. al.
(2005), em quatro regiões da geografia gaúcha, a saber: Pelotas, Cerro Largo,
Frederico Westphalen e Caxias do Sul. Esse estudo parte do pressuposto de que as
condições agronômicas e as potencialidades do meio físico por si são
insuficientes enquanto instrumentos de interpretação da heterogeneidade dos
processos de reprodução da agricultura gaúcha. Devido à diversidade de situações
que nela se ocultam, trabalhou-se a perspectiva das dinâmicas territoriais de
desenvolvimento, procurando-se, desse modo, estabelecer um diálogo entre o
âmbito da produção familiar e a dimensão mais ampla da sociabilidade local.
Para Sacco dos Anjos et al (2005, p. 3), autoconsumo familiar significa
"produtos ou processos que atendem fundamentalmente às necessidades imediatas
do grupo doméstico, sendo gerados na própria exploração, com base no uso da
força de trabalho familiar".
Para o cálculo do autoconsumo, a pesquisa utilizou a metodologia
FAO/INCRA, que considera que
48
[...]
quando um agricultor de uma unidade de produção produz algum bem,
e este é consumido pela própria família (alimentos, artesanato, lenha,
materiais para construção, etc.), tal produção deve ser considerada para
efeito de cálculo do produto bruto. (SACCO DOS ANJOS, et al, 2005, p. 7)
Na pesquisa citada, as famílias entrevistadas, em sua grande maioria,
tiveram dificuldades em atribuir valores para as "culturas do gasto da casa". Para
ilustrar essa dificuldade, toma-se o caso do leite como exemplo: quando este
produto é trocado entre os vizinhos de uma dada comunidade, o valor a ele
atribuído é igual ao valor pago pela indústria de laticínio local. Verifica-se que, nessa
situação, o preço do leite para o autoconsumo e para a produção que é vendida é o
mesmo. No entanto, em muitas situações em que os agricultores precisam comprar
mercadorias que irão consumir e se utilizam do varejo nos pequenos comércios
locais, o preço atribuído ao produto por eles adquirido é valorado pelo preço ao
consumidor.
Essa forma de determinar o lculo para o autoconsumo foi criticada por
alguns analistas, os quais argumentam que o agricultor jamais obtém os mesmos
preços do varejo como pagamento aos produtos que possui e não vende. Cabe
destacar que tais produtos acabam sendo utilizados para consumo próprio ou para
alimentar os animais dentro da propriedade. Por um lado, essa análise acarreta uma
superestimação do valor do autoconsumo; por outro lado, a contra-argumentação
também é verdadeira, uma vez que afirma que a utilização dos preços recebidos
como referência para o cálculo do valor do autoconsumo acabaria por subestimar os
valores (SACCO DOS ANJOS, et. al, 2005).
Considerando-se todos esses aspectos, o procedimento adotado pela referida
pesquisa
16
foi o de calcular o valor do autoconsumo, tomando como base os preços
recebidos pelo agricultor em cada localidade, embora se soubesse que tal
procedimento poderia implicar na subestimação do valor do autoconsumo das
famílias rurais entrevistadas.
Entre as inúmeras contribuições que o citado estudo fornece, salienta-se a
alusão ao papel transcendental da autoprovisão. O termo "caixa-verde" utilizado
16
Para melhor compreensão dos procedimentos utilizados para o lculo do valor do autoconsumo
sugere-se a leitura do artigo “Abrindo a caixa-verde: estudo sobre a importância econômica do
autoconsumo na agricultura familiar meridional”, publicado nos anais do II Seminário Internacional
sobre Desenvolvimento Regional, Santa Sruz do Sul, set , 2005. Neste artigo Sacco dos Anjos et.al,
apresenta rigorosa discussão acerca da dificuldade em determinar o cálculo do valor do
autoconsumo.
49
pelos autores parece traduzir nos dias de hoje uma contundente necessidade de
refletir sobre a importância do patrimônio sócio-cultural ligado a essas práticas. Esse
patrimônio formata-se no processo de trabalho materializado em explorações, cuja
base se fundamenta no trabalho da família que, em maior ou menor medida, é
destinado à produção dos próprios alimentos consumidos na unidade de produção.
2.5 A autoprovisão e seus imbricamentos culturais
A sociedade moderna tende a desvalorizar determinados padrões de
subsistência e corromper as teias culturais que lhes dão sentido. Muitas vezes, a
produção em massa dos bens modernos, serviços e imagens provocam um
solapamento cultural através da desvalorização sistemática dos bens encontrados
nas culturas tradicionais (ROBERT, apud SACHS, 2000).
A cultura nasce de uma dinâmica complexa e não-lienar. Ela é criada por uma
rede social dotada de ltiplos elos de realimentação, através dos quais os valores,
as crenças e regras de conduta são continuamente comunicados, modificados e
preservados. Essa rede social que se cria tem potencialidade para produzir um
corpo de conhecimentos comuns, os quais podem transformar-se em capacidades
práticas: são moldados pelos valores e crenças da cultura que podem expressar-se
através do modo de vida de uma determinada sociedade. Segundo Capra,
[...] os valores, as crenças da cultura também afetam o seu corpo de
conhecimentos. Fazem parte das lentes através das quais vemos o mundo;
ajudam-nos a interpretar nossas experiências e a determinar quais espécies
de conhecimento são significativas. (2002, p.99)
Esse conjunto de elementos cria uma identidade entre os membros da rede
social e permite que as pessoas se sintam fazendo parte de um grupo maior. Essa
identidade pode ser diferente porque o indivíduo pode pertencer, ao mesmo tempo,
a diversas culturas. Entretanto,
O comportamento das pessoas é moldado e delimitado pela identidade
cultural delas, a qual, por sua vez, reforça nelas a sensação de fazer parte
de um grupo maior. A cultura se insere e permanece profundamente
entranhada no modo de vida das pessoas e essa inserção tende a ser tão
profunda que até escapa`nossa consciência durante a maior parte do
tempo. (CAPRA, 2002, p. 99)
50
A autoprovisão integra o modo de vida do camponês e expressa-se na
organização do seu trabalho. Ao trabalhar na terra, trabalha na natureza e
dela extrai os seus meios de existência. O processo de trabalho dá-se pela
articulação de forças produtivas
17
com relações sociais de produção.
O conjunto de fatores de produção se combina de maneira específica em
cada sociedade e molda-se ao momento histórico de determinada sociedade para
produzir o que ela necessita. No entanto, concordamos que " nem os recursos, nem
os instrumentos e os homens existem sem cultura. É o saber que permite usá-los e é
a cultura que lhes significado, inclusive para mais além da materialidade ou da
instrumentalidade prática do trabalho” (WOORTMANN & WOORTMANN, 2002, p.
10).
Acredita-se que a autoprovisão não pode ser dimensionada e muito menos
compreendida, adequadamente sem que se evidencie o seu forte conteúdo cultural
e simbólico. Os valores, as crenças e os significados formatam espaços nos quais se
materializa um modo de vida. É nesse espaço que as famílias organizam estratégias
que permitem que não se rompam os elos entre o passado e o presente e onde a
memória que guardam de sua história revigora práticas e saberes
18
incontestavelmente cruciais para sua preservação.
No entanto, sabe-se que:
A transmutação da natureza em recurso foi acompanhada por um
processo de alienação do direito ancestral de utilização da natureza como
fonte de sustentação. Quando as florestas, o solo, a água e a vegetação
são " desenvolvidos" ou "manejados cientificamente" para suprir as
necessidades da indústria, deixam ser propriedade das comunidades cujas
culturas e cuja sobrevivência eles mantiveram durante séculos". (SHIVA,
apud SACHS, p. 310, aspas no original)
Essa transmutação também afetou as formas de produção para o
autoconsumo, podendo ser uma das causas do crescente empobrecimento rural e,
como uma das conseqüências, o aumento da fome no campo.
17
Entende-se por forças produtivas o conjunto de fatores de produção: recursos disponíveis, homens
e instrumentos de trabalho (WOORTMAN & WORTMAN, 1997, p.2)
18
Acerca de práticas e saberes do camponês ver: WOORTMANN & WOORTMANN. O trabalho da
terra: a lógica simbólica da lavoura camponesa, Brasília: Ed UFB, 1997; GARCIA JR. Terra de
trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores, RJ: Ed. Paz e Terra, 1983; ROBERT, Jean.
Produção, in SACHS, w. Dicionário do desenvolvimento, RJ, Ed. Vozes, 2000, entre outros.
51
Nessa perspectiva, a produção para o autoconsumo, que se ameaçada
cotidianamente pela brutal exigência da produção para o mercado, precisa ser
fortalecida, formando alianças amplas nas comunidades rurais. Essas alianças
devem permitir o desenvolvimento econômico e social e a conseqüente redução de
pobreza nesse espaço geográfico pleno de possibilidades para tal.
Reconhecer as potencialidades da força do trabalho familiar nessa construção
e fornecer ferramentas que assegurem formas de reprodução social, biológica e
cultural, profundamente imbricadas nesse processo, significa vislumbrar um
horizonte de manutenção da própria vida humana. Para 1,1 bilhão de pessoas, esta
condição encontra-se ameaçada pela pobreza e pela fome, assunto do qual
trataremos no próximo capítulo.
3 Estado e segurança alimentar: alcances e limitações das
políticas públicas no Brasil.
A presente secção reúne alguns elementos para ampliar a compreensão em
relação às recentes discussões sobre a temática da Segurança Alimentar, que se
tornou um desafio mundial desde a Declaração de Roma, em 1996. Procura-se
apresentar breves aspectos conceituais e históricos, bem como a construção do
conceito que se amplia ao incorporar outros elementos, além da noção de
abastecimento que lhe deu origem. Por fim, apresentam-se e discutem-se alguns
dados da última PNAD
19
(2004) sobre Segurança Alimentar no Brasil, os quais
apontam o impacto da insegurança alimentar, cuja expressão mais severa é a fome.
Esta secção, finaliza com uma alusão à recente discussão sobre o tema da
segurança alimentar no plano internacional e que exprime o grau de importância que
adquire na atual conjuntura.
3.1 Segurança alimentar: um conceito ampliado
Embora o direito à alimentação tenha sido consagrado como um direito
humano, e apesar de todo o avanço tecnológico e científico que permite a produção
abundante de alimentos, convive-se ainda hoje com 816 milhões de pessoas
distribuídas em todas os cantos do mundo sob situação de insegurança alimentar
(BELIK, 2001).
No Brasil, a política de Segurança Alimentar adquiriu ampla visibilidade
apenas nos anos 1990, quando seus objetivos centrais voltaram-se não apenas à
questão do suprimento das necessidades alimentares da população e auto-
suficiência nacional na produção agroalimentar, mas diante de esforços no sentido
de incorporar outros aspectos relativos ao acesso aos alimentos, carências
nutricionais e qualidade dos alimentos. A introdução dessas dimensões fez com que
seus objetivos se estendessem, de forma que hoje é vista como “um direito para
19
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio é realizada anualmente pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) em todo o território nacional.
53
todas as pessoas ao acesso regular e permanente de alimentos em quantidade e
qualidade suficiente, sem comprometer a atenção a outras necessidades essenciais,
tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a
diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis”
(IBGE, 2006, p.22).
Apesar dos avanços em termos da importância que o tema encerra, o que se
verifica tanto em nível mundial como em nível nacional é que os objetivos de
redução de insegurança alimentar não estão sendo atingidos no ritmo esperado,
gerando enorme incerteza em relação às reais condições de aplacar seus efeitos e
as causas que a produzem. Assim sendo, discutem-se aspectos relacionados à
construção do conceito de segurança alimentar e a forma com que essa se configura
como política na sociedade brasileira, enfocando algumas das propostas levadas a
efeito por organismos internacionais envolvidos na questão.
As inúmeras implicações, tanto do ponto de vista científico quanto na
perspectiva da intervenção estatal, fazem desse assunto matéria obrigatória no
marco de um processo essencialmente multidimensional de análise e reflexão.
3.2 Focalizando os aspectos históricos e conceituais da segurança alimentar
As questões atinentes ao escopo da Segurança Alimentar passaram a figurar
como grandes desafios no ideário das sociedades civis e na agenda dos poderes
públicos. Em sua fase mais importante, na Europa, no Pós-Segunda Guerra, é
quando se estabeleceram políticas continentais para que as garantias ao acesso à
alimentação pudessem ser mantidas nas mais diversas situações, até mesmo
durante conflitos internacionais (GALEAZZI, 1996). No entanto, o termo Segurança
Alimentar começou a ser referido logo após a Primeira Guerra Mundial, quando essa
traumática experiência deixou claro que um país poderia dominar outro através do
suprimento alimentar e que isso poderia tornar-se uma arma poderosa,
principalmente, se países menos desenvolvidos não dispusessem de meios para
atender sua própria demanda. Nesse sentido, o abastecimento alimentar adquiria
um significado de segurança nacional, apontando para a necessidade de formação
de estoques “estratégicos” de alimentos, fortalecendo a idéia de que a soberania de
uma nação dependia de sua capacidade de auto-provisão de alimentos e de
matérias-primas. Portanto, o termo segurança alimentar é de origem militar e
54
vinculava a questão alimentar exclusivamente à capacidade de produção.
Segurança alimentar significava, sobretudo, soberania.
Em 1943, quando milhões de europeus tiveram sua infraestrutura agrícola
destruída pelas guerras, discutia-se a constituição da Organização das Nações
Unidas ONU e do Fundo Monetário Internacional FMI e junto com essa
discussão havia uma proposta de criar uma organização multigovernamental para o
incentivo da agricultura e alimentação. Decorrente dessa idéia realizou-se, nesse
mesmo ano, a I Conferência Internacional sobre o tema, em Hot Spring, Arkansas,
EUA. Mas a proposta de garantir um mecanismo de cotas e ajuda alimentar,
semelhante ao do FMI, para que cada país pudesse reerguer sua produção
alimentar de forma soberana não foi aceita. Entretanto, como resultado de um amplo
debate, cria-se em 1945 um organismo denominado Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação – FAO.
A idéia inicial sobre Segurança Alimentar, que estava essencialmente
ancorada na produção de alimentos, manteve-se até a I Conferência Mundial de
Segurança Alimentar promovida pela FAO, em 1974.
em 1996, mais de 180 nações participaram da Cúpula Mundial da
Alimentação, as quais se comprometeram em diminuir pela metade, até o ano 2015,
o índice de pessoas subnutridas no mundo. Foram concebidos dois grandes
documentos: a Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial, listando
sete compromissos que os governos participantes iriam assumir para elevar o nível
de segurança alimentar, e o plano complementar de ação da Cúpula Mundial da
Alimentação, listando objetivos específicos para alcançar as metas
consubstanciadas na Declaração. Todas as nações envolvidas concordaram e
subscreveram a declaração, coincidindo em relação à urgência na adoção de
medidas, devendo-se, para isso, implementar ações nas distintas esferas de
atuação (local, regional, comunitária). Essas ações implicam iniciativas no âmbito
educativo e político relacionadas ao combate à fome e à insegurança alimentar.
Esse compromisso foi renovado em Roma, no dia 11 de junho de 2002, pelos
mesmos 182 países signatários da Declaração anterior. No marco do documento
final da Cúpula Mundial da Alimentação, cinco anos depois, os chefes de Estado e
de governo evidenciaram a necessidade de renovar os esforços de organizações
internacionais, da sociedade civil e do setor privado, no sentido de atuar de modo
55
ainda mais incisivo com vistas a pôr fim à tragédia que alcança atualmente mais de
800 milhões de pessoas em todo o mundo (BELIK, 2003).
A definição clássica adotada pela FAO estabelece que a segurança alimentar
representa um estado no qual todas as pessoas, durante todo o tempo, possuam
acesso físico, social e econômico a uma alimentação suficiente, segura e nutritiva,
que atenda a suas necessidades dietárias e preferências alimentares para uma vida
ativa e saudável (BELIK, 2003, p.23).
Percebe-se que esse conceito é bastante amplo, pois comporta elementos
que afetam não somente à disponibilidade de alimento, mas também a sua
qualidade nutritiva. Enfatiza os aspectos do acesso, qualidade e suficiência,
valorizando os hábitos alimentares adequados, ao mesmo tempo em que situa a
segurança alimentar e nutricional como condição basilar de cidadania.
Com efeito, trata-se de uma noção que vem sendo objeto de novos
significados. Desde a I Conferência Mundial de Alimentação realizada pela FAO em
1974 houve a incorporação de novos elementos ao seu conteúdo, cabendo ressaltar
que um dos avanços coincide com o fato de minimizar o enfoque centrado apenas
na qualidade do alimento em si (“safety food”). A partir daí, começa-se a dar
importância às questões relacionadas às formas de acesso por parte do conjunto da
população (produção e distribuição) ou o que se conhece como “food security”. No
que tange a essa questão, faz-se necessário lembrar que a década de 70 foi
marcada pela escassez dos estoques mundiais de alimentos, vislumbrando-se na
Revolução Verde o caminho insofismável para reverter esse quadro, tendo em vista
o potencial de inovações tecnológicas capazes de incrementar exponencialmente a
oferta de alimentos e de matérias-primas. Esse movimento teve início nos anos 1950
nos Estados Unidos, espraiando-se pelos demais continentes no decorrer das duas
décadas subseqüentes.
Admitia-se à época que incrementos sucessivos da produtividade agrícola
seriam capazes de resolver o problema da fome nos países em desenvolvimento. Ao
longo dos anos, e inclusive nos dias atuais, o ideário da Revolução Verde passou a
sofrer inúmeras críticas. No curso desse processo vem sendo questionada a
sustentabilidade de uma tecnologia voltada à monocultura, altamente dependente do
uso de fertilizantes, pesticidas e insumos não-renováveis, de alto custo, e geradora
56
de inúmeros impactos ambientais
20
. Embora a produção mundial de alimentos tenha
crescido consideravelmente, esse fato não garantiu o desaparecimento da fome e da
desnutrição. Reforçou-se, assim, o entendimento de que tais mazelas eram
decorrentes, não da falta de alimentos, e sim dos problemas relativos ao acesso e
distribuição.
No início dos anos 1980, novos temas reclamam renovada atenção,
particularmente os que afetam às vinculações entre produção agroalimentar,
desenvolvimento rural e desenvolvimento agrícola. Percebe-se que a fome não é
tanto uma conseqüência de uma produção alimentar insuficiente, mas, sim, da
marginalização econômica de certas populações (CHONCHOL, 2005, p.3).
Diante dessa questão, cabe destacar o interessante livro, “Aid as a Obstacle”,
no qual os autores referem que os programas levados a cabo pelos países ricos no
âmbito dos países pobres, e que deveriam cumprir com o desiderato de aplacar a
fome e a insegurança alimentar, tem por meta, além dos objetivos humanitários, a
redução dos próprios estoques alimentares. Essa atitude reafirma politicamente o
poder dessas nações, tendo como principal conseqüência a desestruturação dos
sistemas produtivos locais, no âmbito dos países que foram objeto desses
programas. Nesse estudo, Lappé et al (1980) revela algumas das causas do
fracasso dos programas de ajuda internacional desencadeados desde o final da II
Guerra Mundial.
No bojo desse importante debate a FAO apresentou, em 1983, um novo
conceito de Segurança Alimentar que se baseava em três grandes objetivos: a oferta
adequada de alimentos, a estabilidade da oferta e do mercado dos alimentos e a
segurança no acesso dos alimentos ofertados. Dessa forma, mais do que a
disponibilidade de alimentos, a capacidade de acesso por parte dos povos assume o
status de questão crucial para a segurança alimentar. A partir de então, ela aparece
associada à garantia de poder aquisitivo da população, crescimento econômico,
redistribuição de renda e redução de pobreza (VALENTE, 1995).
Referindo-se à questão da fome e da produção de alimentos, Amartya Sen
destaca que a fome relaciona-se também ao funcionamento de toda economia e,
mais amplamente, à ação das disposições políticas e sociais que podem influenciar
direta ou indiretamente o potencial das pessoas para adquirir alimentos e obter
20
Sobre os danos provocados pela Revolução Verde no Rio Grande do Sul ver: CAPORAL (2003).
57
saúde e nutrição. Assim, políticas governamentais coerentes devem funcionar no
sentido de permitir uma ativa participação de partidos políticos, organizações o
governamentais e demais instituições que atuam no sentido de criar as condições
para que o diálogo entre atores sociais se estabeleça em torno a esses mesmos
objetivos. Nesse contexto,
Subnutrição, fome crônica e fomes coletivas o influenciadas pelo
funcionamento de toda a economia e de toda a sociedade o apenas
pela produção de alimentos e de atividades agrícolas [...] os alimentos não
são distribuídos na economia por meio da caridade ou de algum sistema de
compartilhamento automático. O potencial para comprar os alimentos tem
que ser adquirido. [...] as pessoas passam fome quando não conseguem
estabelecer seu “intitulamento” sobre uma quantidade suficiente de
alimentos. (SEN, 2000, p.190)
Para que ocorra esse “intitulamento” necessidade de: 1) dotação de
recursos produtivos e riquezas, as quais têm preço no mercado, sendo que para boa
parte da humanidade a única dotação significativa é a força de trabalho; 2)
possibilidades de produção, considerando que essas condições o determinadas
pelo uso da tecnologia disponível e a capacidade das pessoas em organizar seus
conhecimentos para usá-los de forma efetiva e 3) condições de troca: consistem no
potencial para comprar e vender bens e a determinação dos preços relativos de
diferentes produtos. Sendo a força de trabalho o recurso de maior parte disponível
no âmbito da humanidade o mercado de trabalho é crucial, sendo que diante de uma
crise econômica alguns serviços podem ser muito mais afetados do que outros.
Nesse sentido,
As fomes coletivas podem ocorrer mesmo sem nenhum declínio na
produção ou disponibilidade de alimentos. Um trabalhador pode ser levado
a passar fome devido ao desemprego, combinado com a ausência de um
sistema de seguridade social que forneça recursos como seguro-
desemprego. [...] Uma fome coletiva pode sobrevir apesar de um nível geral
elevado ou até mesmo de um “pico” na disponibilidade de alimentos. (SEN,
2000, p.194; aspas no original)
No itinerário da consolidação do atual conceito de Segurança Alimentar
percebe-se, ao final dos anos de 1980 e início de 1990, a incorporação sucessiva de
outras acepções, tais como: alimento seguro, pressupondo que o mesmo esteja
livre de contaminação biológica ou química; qualidade do alimento, reunindo
atributos relacionados aos aspectos nutricionais, biológicos e da tecnologia de
58
produção; balanceamento da dieta, informação e opções culturais, considerando os
hábitos alimentares da população-alvo das políticas públicas. Outrossim,
Passa-se também a considerar a questão da eqüidade e da justiça,
especialmente no que tange às relações éticas entre a geração atual e as
futuras gerações, o uso adequado e sustentável dos recursos naturais, do
meio ambiente e do tipo de desenvolvimento adotado. Entrou em pauta a
discussão dos modos-de-vida sustentáveis. O direito à alimentação passou
a se inserir no contexto do direito à vida, à dignidade, à auto-determinação e
à satisfação de outras necessidades básicas. (VALENTE, 1995, p.3)
A Conferência Internacional sobre Nutrição, conjuntamente promovida pela
ONU e FAO, realizou-se em 1992, contando com a presença de 159 países e dos
líderes da Comunidade Econômica Européia, e teve como corolário a elaboração da
Declaração Mundial sobre a Nutrição. Todas as nações que participaram da
conferência coincidiram no entendimento de que a fome e a desnutrição são
inaceitáveis e que o acesso a alimentos nutricionalmente adequados e seguros é um
direito de cada pessoa. Um plano de ação foi concebido com vistas ao combate à
fome e aumento da segurança alimentar no âmbito dos domicílios, agregando-se
outras questões correlatas, como as que afetam a assistência básica à saúde
(abastecimento de água, saneamento e saúde pública) e o cuidado promovido nos
domicílios aos membros da família (carinho, atenção, preparo do alimento,
aleitamento materno, estimulação psicossocial, informação, educação).
Em nível internacional, emergiu um movimento em defesa da Segurança
Alimentar como um direito básico e que chamava atenção para cinco grandes
aspectos:
A questão da Segurança Alimentar deve ser entendida como um direito humano
básico (entitlement) à alimentação e à nutrição. – a
Este direito deve ser garantido por políticas públicas e privadas.
O papel do Estado é o de proteger o exercício desses direitos.
A fundamentalidade da participação ativa e atuação da sociedade civil, nas
situações e circunstâncias em que o Estado é incapaz de agir.
A necessidade de romper com a tendência de opor o mercado e o Estado,
entendendo que cada setor tem seu papel, cabendo à sociedade civil o
compromisso de mediá-los ( VALENTE, 1995).
Seguindo os debates sobre Segurança Alimentar, a Cúpula Mundial de
Alimentação reuniu-se em Roma em 1996, tratando da questão e destacando:
59
A pobreza é uma causa importante de insegurança alimentar, e o
progresso sustentável em sua erradicação é fundamental para melhorar o
acesso aos alimentos. Os conflitos, o terrorismo, a corrupção e a
degradação do meio ambiente contribuem também consideravelmente para
a insegurança alimentar. É preciso esforçar-se para conseguir uma maior
produção de alimentos, incluindo os alimentos básicos. Isto deve realizar-se
no contexto da utilização sustentável dos recursos naturais, da eliminação
de modelos de consumo e produção não sustentáveis, particularmente nos
países industrializados, e da estabilização no prazo mais curto possível da
população mundial. Reconhecemos a contribuição fundamental das
mulheres para a segurança alimentar, sobretudo nas zonas rurais dos
países em desenvolvimento, e a necessidade de garantir a igualdade entre
o homem e a mulher. Para reforçar a estabilidade social e contribuir na
correção da excessiva taxa de migração do campo para as cidades que
muitos países enfrentam, será também necessário considerar prioritária a
revitalização das áreas rurais. (DECLARAÇÃO MUNDIAL DE ROMA, 1996,
p.1-2)
Nesse documento ressalta-se a importância dos governos, a quem cabe
garantir políticas que promovam a paz, a estabilidade social, política e econômica, a
eqüidade e igualdade entre os sexos. A fome é vista como uma ameaça para as
sociedades e para a própria estabilidade da comunidade internacional. Evidencia-se
também a necessidade de investimentos em pesquisas e infra-estrutura para
garantir a segurança alimentar, associando-os à geração de emprego e renda e
promoção do acesso eqüitativo aos recursos produtivos e financeiros. Destaca-se,
ainda, o papel fundamental dos agricultores, pescadores, povos das florestas,
populações indígenas e suas comunidades. Por fim, o documento assume
compromissos direcionados a ações nacionais e internacionais orientadas no
sentido de:
a) Garantir um ambiente político, social e econômico que promova ações de
erradicação da pobreza, a participação plena e equitativa dos homens e
mulheres e a sustentabilidade da segurança alimentar;
b) Aplicar políticas que melhorem o acesso físico e econômico de todos, em todos
os momentos, a alimentos suficientes, nutricionalmente adequados e seguros;
c) Adotar políticas, práticas participativas e sustentáveis de desenvolvimento
alimentar, agrícola, pesqueiro, florestal e rural para assegurar o abastecimento
alimentar de cada nação;
d) Promover políticas de comércio mundial justo e orientado para o mercado;
60
e) Prevenir o enfrentamento de catástrofes naturais e emergências de ordem
humanitária para fomentar a reabilitação, a recuperação, o desenvolvimento e a
capacidade para satisfazer necessidades futuras;
f) Promover a destinação, utilização e otimização dos recursos públicos e privados
para fortalecer os recursos humanos, os sistemas alimentares, agrícolas,
pesqueiros e florestais sustentáveis e o desenvolvimento rural em áreas de baixo
e alto potencial;
g) Aplicar e vigiar as medidas, dando seguimento ao Plano de Ação em todos os
níveis, em cooperação com a comunidade internacional.
Considera-se importante a manifestação desses compromissos, em que pese
o fato de que no início de 2002 a FAO organizou uma nova Conferência com o nome
de “Cúpula + 5”, na qual se constatou que a meta para 2015 estava muito distante
de ser atingida. Para o Diretor Geral da FAO, Jaques Diof, o progresso em reduzir a
fome no mundo paralisou, e em conseqüência da fome, ainda morrem anualmente
seis milhões de crianças com até 5 anos de idade. Para reduzir o número de
famintos é necessário atingir 24 milhões de pessoas ao ano. O que se observa, no
entanto, é que entre os anos de 1998-2000, esse número atingiu apenas 2,5 milhões
(FAO, 2002). Esses dados revelam que as políticas de combate à fome, em nível
internacional, prescindem de resultados mais significativos, sendo que, para isso
necessita-se, sobretudo, de ampla vontade política de todos os países envolvidos
diante desses imperativos.
Constata-se que o binômio pobreza/fome está profundamente interconectado,
embora esses conceitos sejam equivocadamente vistos como intercambiáveis e de
igual conteúdo e significado. A fome é a manifestação mais crítica da pobreza. É
interessante observar que em relação aos investimentos necessários para a
diminuição da pobreza no mundo, Jefrey Sachs, Diretor do Instituto da Terra da
Universidade Columbia e assessor especial do então secretário-geral da ONU, Kofi
Annan, para as Metas de desenvolvimento de Milênio,
refere:
A verdade é que agora o custo é provavelmente pequeno em comparação
com qualquer medição relevante [...] o que é mais importante, a tarefa pode
ser executada dentro dos limites que o mundo rico já empenhou: 0,07% do
produto nacional bruto do mundo de renda alta, meros Us$ 10 de renda.
Todo o incessante debate sobre assistência ao desenvolvimento [...] diz
respeito na verdade, a menos de 1% da renda do mundo rico. (SACHS,
2005, p.331)
61
Seguindo em sua análise, Sachs
21
aponta duas grandes razões para justificar
a existência desse quadro. A primeira relaciona-se à diminuição da quantidade de
miseráveis,
22
estimada pelo Banco Mundial em 1,1 bilhão de pessoas, o que
corresponde a um quinto da população mundial. Há duas gerações atrás essa
proporção estava perto da metade e há uma geração atrás, estava em torno de um
terço. No entender desse autor, a “proporção da população mundial que ainda está
atolada na miséria é, em termos relativos, administrável” (SACHS, 2005. p.332).
De acordo com Sachs, ao referir-se à “miséria administrável” tem-se a
sensação de que houve um total afastamento da dimensão ética necessária para
compreender que a miséria provoca um estado de desvalorização social do sujeito
perante à sociedade, e o mais grave, denota a banalização desse fenômeno. O valor
numérico indicado torna invisível a verdadeira dimensão do cotidiano de
aproximadamente 816 milhões de pessoas atingidas pela privação constante de
alimentos e desenha uma realidade onde a coexistência das forças essenciais do
ser social e sua negação demonstram as contradições do sistema capitalista.
A segunda razão apontada por Sachs para justificar esse quadro é assim
manifestada:
A meta é acabar com a pobreza extrema, não com toda a pobreza, e ainda menos,
equiparar as rendas mundiais ou acabar com a distância entre ricos e pobres. Isso
pode acabar acontecendo, mas, para tanto, os miseráveis terão que ficar ricos
graças aos próprios esforços. Os ricos podem ajudar muito os pobres dando alguma
assistência para arrancá-los da armadilha da pobreza que agora os aprisiona.
(SACHS, 2005, p.332)
Essa concepção, perfeitamente ajustada à ideologia neoliberal, transfere a
responsabilidade de sair da pobreza ao próprio indivíduo, ignorando completamente
que o “homem torna-se um ser que respostas precisamente na medida em que,
paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente ele generaliza,
transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de
satisfazê-los” (LUKÁCS, 1978.p 5). Isso requer que o homem tenha, antes de tudo,
condições materiais concretas de trabalho que assegurem sua capacidade de
reprodução social. De acordo com Marx, o trabalho é o fundamento ontológico-
social, o qual permite a humanização do homem e o refinamento de suas faculdades
(BARROCO, 2001).
21
As demais razões aludidas podem ser encontradas em Jefrey Sachs (2005).
22
Para o Banco Mundial o critério utilizado para determinar a quantidade de miseráveis no mundo é a
renda de Us$ 1 por dia, sendo que o mesmo banco utiliza a renda 2 Us$ por dia para medir a pobreza
moderada (SACHS, 2005, p. 47).
62
Acredita-se, assim, que “sair da armadilha da pobreza” pressupõe interrogar-
se a respeito de quem a criou e quais são os interesses implicados em sua real
extinção. Isso talvez seja um dos fatores que justifique os resultados de programas
de combate à pobreza e à fome propostos pelos organismos internacionais estarem
muito aquém do esperado, que a pobreza de 1,1 bilhão de seres humanos é
considerada por Sachs, e por seus seguidores como “perfeitamente administrável”.
3.3 As Políticas de Segurança Alimentar no Brasil
A luta contra a fome no país não é recente. No pós-guerra, o médico brasileiro
Josué de Castro mapeou a fome no Brasil e “suas idéias foram decisivas para a
instituição do salário mínimo, que estabeleceu uma cesta de 12 alimentos, que
comprometeria 50% da estimativa salarial e atenderia a 100% das recomendações
de calorias, proteínas, sais minerais e vitaminas” (BATISTA FILHO, 2003, p.1).
Na década de 1970, cria-se o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição
INAN com o objetivo de formular uma política de alimentação e nutrição, inserida na
proposição do I Plano Nacional de Desenvolvimento, o qual integrava o I PRONAN
(Programa Nacional de Alimentação e Nutrição). A abrangência de suas ações
incluía o sistema de produção e distribuição
23
de alimentos básicos e o fornecimento
de suplementação alimentar a parcelas de população de baixa renda. Cabe frisar
que:
A intenção era de que o Estado atuasse junto à população mais pobre
enquanto não houvesse uma melhoria na distribuição de renda que
reconhecidamente constava nos textos oficiais como modo de resolver o
problema de desnutrição no país. Em contrapartida, a distribuição mais
equitativa da renda vai sendo postergada em razão da conjuntura de crise
do país, que reproduz as condições do capitalismo internacional, com
inflação e desemprego. (FELICIELLO e GARCIA, 1996, p.225)
No entanto, as primeiras referências à Segurança Alimentar enquanto política
pública surgem ao final de 1985 através do Ministério da Agricultura, que prevê uma
"Política Nacional de Segurança Alimentar", visando atender às necessidades
alimentares da população e atingir a auto-suficiência nacional na produção de
alimentos. Formulada por uma equipe de técnicos, a convite do Ministério da
Agricultura, ela trouxe consigo, à época, poucos desdobramentos. A utilização da
23
O tema abastecimento e distribuição de alimentos no Brasil é tratado no trabalho de BELIK, SILVA
e TAKAGI (2001).
63
noção de segurança alimentar limitava-se, até então, em avaliar o controle do estado
nutricional dos indivíduos, sobretudo a desnutrição infantil, sob a égide da Vigilância
Sanitária (MALUF, 1996, p.2). A proposta de elaborar uma política de Segurança
Alimentar também contemplava a criação de um Conselho Nacional de Segurança
Alimentar que deveria ser presidido pelo Presidente da República e composto por
Ministros de Estado e representantes da Sociedade Civil. Esse tema foi retomado
durante a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, realizada em 1986, a
qual colocava a alimentação como um direito básico.
O conceito de Segurança Alimentar ampliava-se incorporando, às esferas
de produção agrícola e do abastecimento, as dimensões do acesso aos
alimentos, das carências nutricionais e da qualidade dos alimentos.
Começava-se então a falar de Segurança Alimentar e Nutricional.
(VALENTE, 1995, p. 2)
Em 1991, o Partido dos Trabalhadores, articulado à época em torno ao
Governo Paralelo,
24
elaborou uma conjunto de medidas na Política de Segurança
Alimentar, fundamentada na proposta de 1986, agora sem limitar a segurança
alimentar ao tema do abastecimento e da problemática agrícola. Porém, essa
proposta, quando encaminhada ao Governo Collor não foi acolhida, sendo
reapresentada ao governo de Itamar Franco, em 1993, havendo sido aceita como
base para subsidiar a elaboração do Plano Nacional de Combate à Fome e à
Miséria, bem como a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar –
CONSEA no mesmo ano. O movimento desencadeado na “Ação da cidadania contra
a Fome, a Miséria e pela Vida” assumiu uma dimensão nacional, inspirada em
razões de ordem ética e na importância da solidariedade. Seu mérito foi o de
denunciar a existência de 32 milhões de miseráveis nos campos e nas cidades do
país.
Sob a liderança do sociólogo Herbert de Souza, desencadeia-se a Campanha
contra a Fome, e com o apoio do CONSEA, realiza-se a I Conferência Nacional de
Segurança Alimentar em julho de 1994, durante a qual, obtém-se uma declaração
política e um documento pragmático com as condições e requisitos para consolidar
uma Política Nacional de Segurança Alimentar. A experiência do CONSEA, contudo,
durou apenas até o final de 1994, quando o governo substituiu essa iniciativa por
ações do Programa Comunidade Solidária. A extinção do CONSEA e a criação do
24
O Governo Paralelo foi criado, em 1991, por Luis Inácio Lula da Silva para acompanhar as ações
da administração de Fernando Collor de Mello após as eleições de 1989.
64
Conselho Consultivo da Comunidade Solidária acarretaram certa indefinição na
Política Nacional de Segurança Alimentar, afetando amplos setores da sociedade
como os pequenos e médios produtores rurais e urbanos, deixando, assim, de
cumprir as diretrizes básicas anteriormente formuladas.
Observa-se uma nova fragmentação das políticas públicas de combate à
fome. Essa divisão resultou, por exemplo, na extinção do INAN, em 1997, e na
manutenção do programa de distribuição de cestas básicas de forma instável e
sujeito ao calendário eleitoral. O Programa Comunidade Ativa PCA, criado em
1999, voltava-se para os municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano
IDH), sendo que até 2001 apenas 157 municípios haviam sido atendidos, contra a
previsão inicial de 1000 até o final do ano 2000, quando o governo federal cortou do
orçamento a verba para o PRODEA, que distribuía cestas básicas para a população-
alvo desta política.
A justificativa oficial alicerçou-se no entendimento de que “o caráter
assistencial do programa não contribuiu para a redução da pobreza e além disso, a
distribuição de cestas vindas de fora não ajuda a melhorar a economia dos
municípios”. Depois disso, passa-se então para uma “nova estratégia”: a de
gradativamente transferir às famílias beneficiadas por algum programa social para
os “novos programas” criados em 2001, como o “Bolsa-Alimentação” e o “Bolsa-
Escola”, os quais foram implantados em 2001 pelo Ministério da Educação com
recursos provenientes do Fundo de Combate à Fome. Nesse contexto, o valor dessa
bolsa era bem menor do que o das cestas básicas distribuídas pelo PRODEA, sendo
muito menor ainda se comparado com as que deram origem ao programa nas
prefeituras de Campinas, Porto Alegre e Distrito Federal (BELIK; SILVA; TAKAGI,
2001 p. 23).
Percebe-se, assim, que durante o governo Fernando Henrique existiram duas
tendências nas políticas de combate à fome e insegurança alimentar. A primeira
direcionou-se ao esvaziamento das políticas universais, substituindo-as por políticas
compensatórias e localizadas, com alcance limitado e baixos resultados. A segunda
tendência consistiu na substituição de programas baseados na distribuição de bens
por um valor mensal em dinheiro, variando de R$ 15,00 a R$ 20,00 por mês.
Nenhuma dessas tendências concedeu primazia a fatores determinantes para se
alcançar as diretrizes da Segurança alimentar como é o caso da diminuição da
65
concentração das riquezas, que, como é sabido, agrava o quadro de extrema
desigualdade social no país e, em conseqüência, a fome e insegurança alimentar.
3.4 A Política de Segurança Alimentar a partir da criação do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome
As políticas estruturais podem modificar as bases sociais e culturais das
populações consideradas em situação de risco nutricional. Mediante o
desenvolvimento de mecanismos que permitam o acesso a ativos de produção e
educação, torna-se possível garantir a melhoria de renda, em bases permanentes,
para as populações excluídas (BELIK, 2003).
O Ministério Extraordinário de Combate à Fome e Insegurança Alimentar
MESA, foi criado em 23 de janeiro de 2004 pelo Presidente Lula e sua missão era a
de coordenar, supervisionar, controlar e avaliar a execução dos programas de
transferência de renda como o Bolsa Família, bem como aprovar os orçamentos
gerais do Serviço Social do Comércio, do Transporte e da Indústria. Era o
responsável pelas políticas nacionais de desenvolvimento social, segurança
alimentar e nutricional, de assistência social e de renda e cidadania do país, sendo
também o gestor do Fundo Nacional de Assistência Social.
Os programas de Segurança Alimentar e Nutricional do atual Ministério de
Desenvolvimento Social MDS, compreende iniciativas ligadas ao Fome Zero, que
buscam erradicar a fome e suas conseqüências imediatas para o conjunto da
população mais pobre. Na prática, são ações e programas que seguem os preceitos
da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, envolvendo a atuação
dos governos estaduais, ministérios e sociedade civil em geral. Essas iniciativas
visam contribuir para a superação dos desafios e o alcance da estratégia de
desenvolvimento no conjunto do país.
Os programas da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
SESAN são: acesso à Alimentação, Educação para a Alimentação Saudável; Gestão
da Política de Segurança Alimentar e Nutricional; Construção de Cisternas;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa do Leite; Restaurante Popular;
Cozinha Comunitária e Popular; Banco de Alimentos e Colheita Urbana; Hortas
Comunitárias; criação dos Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento
Local, (CONSAD’s); Educação Alimentar; Apoio a Comunidades Quilombolas; Apoio
a Comunidades Indígenas e Atendimento Emergencial. Todos esses programas
66
contemplam distintos projetos, sendo que o Programa Fome Zero possui um
conjunto de 25 políticas e 60 programas que atendem a três dimensões: estruturais,
específicas e locais.
Percebe-se que há uma forte determinação para que a Política de Segurança
Alimentar e Nutricional se volte para a integração de seus objetivos com as demais
políticas sociais promovidas pelo MDS. O reconhecimento de que a insegurança
alimentar tem como causa a falta absoluta ou relativa de poder aquisitivo de
aproximadamente um terço da população brasileira representa a possibilidade de
pensar essa política de forma diferente e de tratá-la também com novos olhares.
Cabe ressaltar que, em termos de acompanhamento dessa política, o Ministério do
Planejamento Orçamento e Gestão divulgou recentemente a Pesquisa Nacional por
amostra de Domicílios (PNAD), a qual permitiu investigar as condições dos
domicílios em relação à segurança alimentar, propiciando a construção de
indicadores para a medida direta daquela condição. “É a primeira vez que esse
indicador é observado em âmbito nacional [...] e os resultados obtidos oferecem o
perfil de segurança alimentar no Brasil [...], sendo ampliado o potencial explicativo
dos indicadores construídos” (IBGE, 2006, p.13).
Percebe-se que as PNADs representam um instrumento consistente de
pesquisa e informação, capaz de subsidiar estudos para as diferentes áreas de
conhecimento, dentre elas, o Serviço Social, profissão que atua diretamente com os
problemas decorrentes da insegurança alimentar e análise sobre a eficácia dos
programas sociais implantados nesse âmbito.
3.5 A implantação dos CONSAD(s): uma estratégia de inclusão social?
O objetivo da Segurança Alimentar e Nutricional – SAN, por sua própria
natureza, confere papel central à atuação do Estado na constituição do Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e atribui relevância às
ações igualmente públicas originadas das organizações da sociedade civil (MALUF,
2007).
A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional LOSAN, estabelece a
participação das organizações sociais da iniciativa privada e pública, além da
administração direta, tendo como critério o comprometimento com os objetivos e
princípios de sua formulação. As políticas e programas são implementados,
67
fundamentalmente, através de unidades político-administrativas que compõem a
federação (União, Estados e Municípios).
O conhecimento das especificidades regionais e sua aproximação com as
realidades municipais é um importante fator para que se possam efetivar ações junto
a indivíduos e populações vulneráveis ou com carências específicas e assim
constituir redes de proteção e de promoção social como forma de superação às
práticas assistencialistas bastante arraigadas em nossa sociedade.
As iniciativas de âmbito municipal visando gerar trabalho e renda, por
exemplo, podem contribuir de forma efetiva no enfrentamento do desemprego e da
pobreza, além de melhorar a condição alimentar de famílias tanto no âmbito
doméstico como no comunitário.
Nessa perspectiva o CONSAD pode e deve desempenhar um papel
transcendental no combate à fome e à insegurança alimentar além de desenvolver
ações em outras áreas tais como: recuperação e proteção ambiental, recursos
hídricos e saneamento, resíduos sólidos, cultura, saúde, produção agropecuária,
abastecimento, entre outras.
Os CONSAD(s) são organizações territoriais institucionalmente formalizadas,
com um número definido de municípios que se agrupam para desenvolver
diagnósticos e projetos de segurança alimentar e nutricional e desenvolvimento
regional, geradores de trabalho e renda. Constituem-se como associações sem fins
lucrativos, formados por 1/3 de representantes do poder público e 2/3 de
representantes da sociedade civil de cada município participante.
Nesses territórios, em que os CONSADs foram implantados, o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) apóia a implementação de
projetos de combate à pobreza relacionados a sistemas agroalimentares, capazes
de intervir na realidade sócio-territorial, integrando políticas blicas, envolvendo
atores sociais e gerando trabalho e renda. Esses projetos devem refletir as
propostas e anseios do Fórum CONSAD e ter passado pela discussão e aprovação,
por meio de assembléia.
O enfoque territorial do CONSAD considera os seguintes fatores:
a) Índices de Desenvolvimento Humano(IDH) dos municípios que o integram,
b) as relações sociais, comerciais, produtivas, políticas e culturais existentes na
região;
c) a dimensão física e ambiental do território;
68
d) suas potencialidades, geoestratégias para arranjos sócio-produtivos
sustentáveis;
e) reorganização do território visando à inclusão social
f) construção de uma institucionalidade capaz de mediar conflitos e agregar
esforços, de forma a direcionar a integração territorial para os objetivos da
segurança alimentar e nutricional, com desenvolvimento local;
g) identidade territorial e solidariedade social.
Nesse sentido, cabe citar importante estudo resultante de uma ampla
pesquisa resultante de um acordo de cooperação cnica firmado entre a FAO e o
governo brasileiro, cuja investigação denominada TCP FAO/BRA/2905,
desencadeou-se junto aos nove (9) recém-instalados CONSADs das regiões Sul,
Sudeste e Centro-Oeste, respectivamente realizada por pesquisadores vinculados
às Universidades Federais de Pelotas, Lavras e Uberlândia.
Na região sul do Brasil o estudo envolveu os CONSADs de Missões, Campos
de Lages e Pitanga, respectivamente instalados nos Estados do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná. Para os pesquisadores envolvidos nesta pesquisa resta a
opiniaõ de que apesar das limitações, “a experiência TCP FAO/BRA/2905, significou
indubitavelmente, um marco referencial para a elaboração de projetos relacionados
ou não com o tema da segurança alimentar, tanto para poderes públicos, quanto
para organizações civis” (SACCO DOS ANJOS e CALDAS, 2007, p. 63).
Segundo informações colhidas na página do MDS, no momento em que
escrevemos esta dissertação, quarenta (40) CONSADs foram implantados,
distribuídos em 26 estados, envolvendo 576 municípios e uma população de 10, 5
milhões de habitantes, o que significa que muitoainda por fazer, considerando-se
que no município é que se encontram as potencialidades para a redução de
complexos problemas relacionados à segurança alimentar da população. A
implementação dos CONSADs visa contribuir, de forma decisiva, para transformar
a vida de milhares de pessoas que nem sequer tem assegurado um direito
primordial: - o direito a uma alimentação sadia e segura. Num país de dimensões
continentais esse desafio é ainda maior, considerando-se as grandes discrepâncias
regionais.
Portanto, necessidade de fortalecer as organizações sociais no sentido de
que essas se tornem espaços de participação e decisão democrática e não meros
69
reprodutores de tarefas prescritas por programas que nem sempre se mostram aptos
a atender as reais necessidades da população.
3.6 Alguns resultados quanto a segurança alimentar, segundo dados da
PNAD 2004
A PNAD (2004) revela que em 65,2% dos aproximadamente 52 milhões de
domicílios particulares brasileiros, estimados para 2004, residiam pessoas em
situação de Segurança Alimentar (SA)
25
. Desse conjunto fazem parte indivíduos que
efetivamente tiveram acesso, nos 90 dias prévios à data da entrevista, aos alimentos
em quantidade e qualidade adequadas e que sequer se sentiam na iminência de
sofrer qualquer restrição no futuro próximo. Significa um contingente equivalente a
109 milhões de pessoas ou 60,2% do total. Por outro lado, nos outros 34,8% dos
domicílios, considerados em situação de insegurança alimentar (IA), residiam,
aproximadamente 72 milhões de pessoas (39,8% do total), as quais viviam em
unidades domiciliares submetidas à insegurança alimentar leve, moderada ou grave.
A mesma fonte indica que em 12,3% e 6,5% deles vivem pessoas com
insegurança alimentar moderada e grave, respectivamente. Isso significa que
apesar de todos os esforços no que tange à política de segurança alimentar e
nutricional implantada nos últimos anos, esse fenômeno atinge a um universo de
39,5 milhões de pessoas, o que supera a título de exemplo, a população da
Argentina, equivalente a cerca de 35 milhões de habitantes.
Outro fator apontado pela pesquisa é que no meio rural brasileiro maior
prevalência domiciliar de insegurança alimentar grave ou moderada, sendo que
cerca de 9,5 milhões de moradores rurais convivem com restrição quantitativa de
alimentos e 3,4 milhões convivem com a experiência da fome. No Sul do Brasil, a
incidência de insegurança alimentar no âmbito da população rural é menos intensa
do que no Norte-Nordeste do país, atingindo, segundo a mesma fonte, 12,3% da
população com insegurança alimentar, ou seja, 1.053.100 pessoas. Não obstante,
torna-se igualmente importante examinar as causas que produzem esse quadro.
Alguns estudos realizados recentemente identificaram razões históricas que
25
Segundo o IBGE (2006, p. 27) considera-se Segurança Alimentar: o acesso ao alimento em
quantidade e qualidade suficientes sem preocupação de ausência em um futuro próximo.
Insegurança Alimentar Moderada é a limitação de acesso quantitativo aos alimentos e Insegurança
Alimentar Grave é a situação de fome pela qual passam as pessoas quase todos os dias.
70
contribuem para produzir esse cenário, os quais repercutem até os dias atuais.
Nesse contexto:
Na retórica do Estado desenvolvimentista da era Vargas e das
transformações subseqüentes os agricultores foram duramente penalizados
por produzirem farinha e serem relegados a meros produtores de cereais
[...] simultaneamente foi sendo esvaziado um dos esteios da tradição
camponesa do Brasil meridional [...] o que chamamos de mito da
“autonomia camponesa”, com o abandono de muitas práticas vinculadas ao
autoconsumo (hortas, pomares, criação de pequenos animais e
transformação caseira). (SACCO DOS ANJOS 2005, p.17; aspas no
original)
A insegurança alimentar das populações rurais expressa também a
desigualdade que permeia as relações sociais no âmbito da produção agrícola.
Muitas seriam as análises necessárias para discutir a questão do acesso à terra e
aos meios de produção, mas não é esse o objetivo desse trabalho.
Quanto às regiões pesquisadas pela PNAD 2004, a desigualdade regional é
confirmada mais uma vez, apontando o Norte e Nordeste como regiões em que a
insegurança alimentar grave apresentou proporções mais elevadas na zona rural,
enquanto que no Sul e Centro-Oeste ocorreu o inverso, havendo sido detectada a
insegurança alimentar grave em maiores proporções nas áreas urbanas. No
Nordeste a insegurança alimentar grave atinge respectivamente 17,1% e 13,2% da
população residente no âmbito rural e urbano. Na região Norte, ela incide sobre
14,4% da população rural e 12,7% na população urbana. Na região Sul, a incidência
de situações de insegurança alimentar grave é de apenas 2,6%.
No que se refere à raça, constatou-se que a insegurança alimentar atinge
11,5% da população negra ou parda e cai para 4,1% entre os brancos, o que
demonstra também a desigualdade econômica entre as raças. Cabe ainda destacar
que a insegurança alimentar não se manifesta pela ausência dos alimentos, mas
também pelo seu uso inadequado, o que se comprova nos dados de 2002-2003 da
POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares).
Segundo essa mesma fonte, existem 38,8 milhões de brasileiros com excesso
de peso, dos quais 10,5 milhões o considerados obesos (BELIK, 2006). Esse fato
denota a complexidade da questão relativa à Segurança Alimentar, seus múltiplos
enfoques e os atuais desafios para a construção de políticas que atendam às
dimensões implicadas, bem como à natureza interdisciplinar dessa questão.
Esses dados evidenciam parte de um quadro deveras complexo, o qual
requer uma aproximação, cada vez mais rigorosa, por parte dos instrumentos de
71
mensuração, de forma a oferecer a real expressão da fome e de insegurança
alimentar no contexto de um país plagado de desequilíbrios regionais. É o
conhecimento dessa realidade que nos permite reformular os instrumentos de
intervenção estatal, visando reduzir esse grave problema que se estende, em maior
ou menor grau, por todas as regiões do Brasil.
3.7 Perspectivas da luta contra a fome
Pensa-se que o tema da Segurança Alimentar, não pode ser abordado sem
que se considere o funcionamento de uma sociedade construída sob o império da
lógica capitalista, marcada pela brutal desigualdade social, na qual o acesso à
alimentação é dificultado pela concentração dos meios de produção. Parte-se aqui
da premissa de que se torna crucial oferecer condições mínimas que permitam
aumentar os graus de liberdade às estruturas de ascensão social por parte da
população mais pobre. Percebe-se que o Brasil, no plano diplomático-institucional,
segue estritamente as determinações emanadas das grandes arenas mundiais de
decisão em torno das noções de Segurança Alimentar, incorporando os elementos
que ampliam o seu conceito e escopo temático.
Entretanto, somos do entendimento de que as políticas públicas adquiriram
visibilidade apenas na década de 1990, quando a sociedade brasileira passava por
um momento no qual o Estado havia reduzido consideravelmente seu nível de
protagonismo diante do ajuste fiscal imposto pelos organismos multilaterais.
Parte-se do suposto de que a criação de um Ministério que prioriza o combate
à fome não garante a eficácia das medidas preconizadas. Considera-se que os
indicadores divulgados pelo IBGE permitem dimensionar os problemas da
insegurança alimentar e sua manifestação mais severa que é a fome, bem como o
fato de que muito ainda a se fazer para tornar mais efetiva a Política de
Segurança Alimentar, pois os fatos indicam a redução das situações de insegurança
alimentar num ritmo muito aquém do esperado.
Pode-se concluir que em termos percentuais não houve uma grande
transformação e que a insegurança alimentar não pode ser atribuída à falta de
alimentos e sim às condições que assegurem o seu acesso, seja na forma de
programas de transferência de renda, seja via produção de alimentos para o
autoconsumo, tanto no campo quanto na cidade. O fato de a fome e da insegurança
72
alimentar atingirem as populações rurais é sumamente importante e pode estar
associado ao desprestígio que acomete as famílias rurais em relação a produzirem
para atender a suas próprias necessidades de consumo. Essa e outras questões
devem servir de base para que o Estado e a sociedade civil atuem no sentido de
ampliar e qualificar o papel das políticas públicas de longo prazo, sem perder de
vista ações emergenciais e a formação de recursos humanos para atuar nessa área.
Parte-se da premissa de que existe uma considerável escassez de estudos
que abordem o tema da segurança alimentar no âmbito rural. As práticas de
autoconsumo invariavelmente são consideradas como objeto de menor relevância,
se comparadas com a dimensão comercial das explorações familiares, bem como de
outros temas como a questão das relações de produção, da sustentabilidade e
modernização dos processos produtivos.
A próxima secção é dedicada a ampliar essa discussão a partir da abordagem
dos dados coletados a campo através das entrevistas realizadas com 30 famílias
rurais residentes nos municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul e Canguçu (RS).
4 Universo empírico: Cenários da agricultura familiar em três
municípios do Rio Grande do Sul
Nessa secção apresentamos as características essenciais do contexto da
pesquisa bem como outros aspectos que afetam diretamente o objeto da
investigação.
4.1 Situando o universo empírico
Para situar o universo empírico faz-se necessário delimitar o espaço
geográfico no qual desenvolvemos nossa pesquisa. Trata-se do sul do Rio Grande
do Sul, mais especificamente a microrregião de Pelotas na qual se situam os três
municípios, em cujos distritos, respectivamente indicados, abrigam as unidades de
produção agrícola familiar pesquisadas situadas em Pelotas (Colônia Maciel, Santa
Helena, São Manoel e Cerrito Alegre), São Lourenço do Sul (Picada Moinhos,
Caipira, Fortaleza, Serra Velha, e São João da Reserva) e Canguçu (Herval,
Chácara Moreira, Lagoa do Junco, Chácara do Paraíso, Glória e Remanso)
Sabe-se que o Rio Grande do Sul é um estado marcado por diferentes formas
de ocupação, tornando-se necessário compreender esse processo e assim
vislumbrar as pecularidades da agricultura familiar. Dessa forma:
Como em todos os âmbitos da vida humana, as sociedades rurais têm
uma história e um tempo, ou seja, cada sociedade possui atributos
específicos que são característicos do momento ou espaço a que
correspondem. Estes atributos podem ser investigados através da maneira
de viver, de pensar e agir dos indivíduos que estão inseridos neste meio.
(COSTA, 2006)
Segundo Caldas (2008), com base nos dados do Censo Agropecuário
1995/1996, existem 429.958 estabelecimentos agrícolas no Rio Grande do Sul,
sendo que 92% desses têm menos de 100 hectares, muito embora absorvam
apenas 32% da área agrícola total. A mesma autora refere que “as unidades
agrárias com área inferior a 50 hectares são responsáveis por 52,28% do valor bruto
da produção agropecuária total, 61,51% do valor da produção animal e por 46, 71%
do valor bruto da produção vegetal (CALDAS, 2008, p. 44).
74
Esses dados permitem dimensionar a importância da produção agrícola
familiar no contexto gaúcho onde, entre campos e serras, surgem os cultivos que
produzem alimentos, geram rendimentos e perpetuam, através do tempo, um modo
de vida que resiste às intempéries, aos escassos preços, ao diminuto
reconhecimento de sua importância por parte das diversas instâncias
governamentais e, muitas vezes, à falta de perspectivas denunciada nos
depoimentos dos agricultores familiares que entrevistamos.
Com os dados coletados através de entrevistas gravadas e que geraram 120
páginas de transcrição, torna-se possível conhecer a dimensão dos elementos
reunidos nessa pesquisa, as quais expressam, fragmentos de vidas dedicadas a um
trabalho árduo, constante, porque lida com processos que não podem ser
interrompidos ou postergados por serem regidos pelos ritmos da natureza e que, ao
fim e ao cabo, repercutem na própria organização da produção.
É sobre essas questões que focalizaremos a análise que compõe essa
secção.
4.2 As bases históricas de formação das propriedades agrícolas familiares
pesquisadas
A agricultura familiar na metade sul
26
do Rio Grande do Sul compõe o cenário
histórico dessa zona historiográfica gaúcha mais de um século. Sua existência
reflete o processo de imigração desencadeado especialmente na segunda metade
do século XIX com a vinda de colonos (alemães, italianos, dentre outros), os quais
passaram a conviver com índios e com negros remanescentes de quilombos.
Expostos às mais diversas vicissitudes inerentes ao processo de colonização, os
imigrantes estabelecem diversas estratégias que construir suas próprias estratégias
para o enfrentamento de dificuldades que ameaçavam sua sobrevivência.
Sabe-se que o Brasil é muito valorizado por sua imensa variedade de
riquezas naturais e por seu grande potencial agrícola e pecuário. Tanto que o cultivo
de suas terras significou, durante o período colonial (século XVIII e XIX), o aumento
do poder de Portugal enquanto potência mercantil. As formas encontradas para
colonizar a “nova terra” foram inicialmente as Capitanias Hereditárias, sendo estas
26
A metade sul ocupa uma área de 154.204 Km², abriga 25% da população gaúcha e corresponde a
108 dos 497 municípios do RS. A renda per capita é R$ 4.892,89 ( RS: R$7.001,10) e o PIB atinge
18% do total dessa unidade federativa. (Jornal Extra Classe, 2001)
75
substituídas pela criação das sesmarias (lotes de terras destinadas aos homens que
dispunham de recursos próprios para produzirem) que eram uma forma de explorar
a fertilidade do solo e extrair riquezas. Segundo Caio Prado JR.:
O que caracteriza ainda as sesmarias é a obrigação do seu aproveitamento
por parte do beneficiário dentro de um certo prazo. O prazo variava, sendo
em principio de cinco anos, excepcionalmente mais. Como sanção, figurava
a perda da terra e uma determinada multa pecuniária. (PRADO JR, 1933, p.
15)
Com isso é dado o estabelecimento de latifúndios aliados à idéia de cultivos
de grande valor comercial, como é o caso do açúcar. Dentro desta organização
social-econômica as pequenas lavouras, periféricas às plantations cumpriam papéis
subordinados. Ainda segundo Caio Prado Júnior
Nestas condições não era possível à pequena propriedade medrar no Brasil
colonial. Impelidos pelas circunstâncias se vão os pequenos proprietários
aos poucos desfazendo de suas posses em beneficio dos grandes
domínios. Depois de tal processo de eliminação da pequena propriedade,
vai-se afinal fundar toda a economia agrária da colônia unicamente no
grande domínio rural. (PRADO JÚNIOR, 1933, p. 21)
A o-de-obra utilizada neste período é a escrava, a principio os índios;
depois os negros foram submetidos a este regime de trabalho. Ainda no que se
refere à escravização dos negros cabe lembrar que este era um mercado lucrativo e
amplamente dominante neste período.
Dentro desta conjuntura é o campo a base econômica e social caracteriza-se
pelo peso político do latifúndio, orientado ao desenvolvimento da monocultura da
cana para o mercado externo com base na o-de-obra escrava. O centro da vida
colonial concentra-se no meio rural, sendo o número de cidades ínfimo. Os
principais produtos brasileiros produzidos nesse período são o açúcar no nordeste, o
café em São Paulo e o charque no Rio Grande do Sul aliado à pecuária.
Esta estrutura social mantém-se até meados do século XIX, quando por razão
da Revolução Industrial e, conseqüentemente, a implantação do capitalismo como
novo sistema econômico, a Inglaterra intervém no tráfico de escravos negros e
passa a proibi-lo. Para isso usa dos mais diversos meios desde medidas políticas
até a interceptação de navios e prisão de comandantes responsáveis pelo
transporte. Indubitavelmente a Inglaterra tem claros objetivos, no afã de extinguir
esse lucrativo negócio e criar um mercado consumidor para seus produtos
industrializados. Para que isto acontecesse era necessário que os indivíduos
76
tivessem condições mínimas para o consumo, o que implica a presença de
trabalhadores assalariados. .A escassez de mão-de-obra escrava no Brasil faz com
que seja necessário procurar outro meio para suprir a demanda. São então
oferecidos incentivos para a vinda de imigrantes a fim de cultivarem os campos
brasileiros e operarem a transição para a mão-de-obra livre.
A conjuntura brasileira neste período, antes mencionada, aliada à situação
da Europa contribuem para que o Brasil incentivos às famílias interessadas na
ocupação de terras no novo mundo. Na Alemanha (séculoXIX), a Revolução
Agrícola e o aumento demográfico transformavam incisivamente a estrutura da
sociedade. Segundo Lando e Barros (1996, p. 13): “O fato principal desta revolução
agrícola foi a abolição da estrutura feudal”.
As dificuldades enfrentadas neste período na Alemanha chegam quase que
ao limite da preservação das condições necessárias para a sobrevivência dos
pequenos proprietários, o que aliado às vantagens oferecidas pelo governo
brasileiro, favoreceu a vinda desses povos para o Brasil.
Primeiramente a ação colonizadora foi incitada pelo governo imperial. Para
que os imigrantes viessem para o Brasil era preciso oferecer algumas vantagens,
caso contrário rumavam em direção aos Estados Unidos onde o preço da passagem
era o maior atrativo (metade do preço cobrado para o Brasil). Eram oferecidos: “[...]
uma compensação à demora e ao custo da viagem, conceder terras, instalar colonos
e manter os estabelecimentos, pelo menos durante algum tempo” (ROCHE, 1969, p.
93). Durante o período do Império
27
já haviam sido promulgadas algumas leis,
segundo Lando e Barros. Assim, o decreto baixado em 25 de novembro de 1808, na
chegada de D. João VI, determinava que fossem dadas terras aos imigrantes sob a
exigência de se dedicarem à atividade agrícola ou de povoamento.Todavia, algumas
das promessas devido ao seu caráter inconstitucional, nunca poderiam ser
realizadas, tais como: concessão imediata da qualidade de cidadão brasileiro; inteira
liberdade de culto e isenção por 10 anos do pagamento de impostos.
O motivo pelo qual o governo ofereceu terras rio-grandenses à colonização
deriva-se à necessidade de povoar zonas fronteiriças, haja vista a proximidade com
terras da coroa espanhola. Ocupar então essas terras de mata e produzir gêneros
27
O período do Brasil Imperial corresponde ao período de 1882 a 1889 sendo dividido em Primeiro
Reinado (1822-1831) e Segundo Reinado ( 1831-1889).
77
alimentícios era fundamental para abastecer os centros urbanos mais próximos e o
resto do Império.
A política colonizadora da Província tinha, com o Regulamento de 1900, os
seguintes objetivos:
1-evitar a concentração da propriedade, proibindo a concessão de mais de
um lote à mesma pessoa e a transferência das glebas antes da totalização
de seu pagamento; 2- as áreas concedidas deveriam ser efetivamente
exploradas; 3- o colono deveria morar no seu lote de terra, explorando-o
pessoalmente ou através da produção familiar. (LANDO E BARROS, 1981,
p.23)
Em São Paulo. os imigrantes foram submetidos a um sistema (colonato) no
qual não tiveram acesso à terra como proprietários. Esse sistema tinha por objetivo
suprir a falta de mão-de-obra ocasionada pela proibição do tráfico negreiro,
exposto anteriormente. Os imigrantes nesta situação vinham para trabalharem nas
lavouras de café do sudeste brasileiro e eram tratados pelos donos das terras, como
se se tratassem de escravos. O colono tinha por obrigação comprar gêneros nos
armazéns da fazenda de propriedade do latifundiário, originando dívidas altíssimas
as quais não podia pagar. Houve a formação de núcleos coloniais que não deram
certo, assim como menciona Lando e Barros:
Ao lado da necessidade de recrutar mão-de-obra para as fazendas de café,
coube ainda ao empreendimento imigratório de caráter particular formar
núcleos coloniais que desenvolvessem culturas de subsistência,
abastecendo não os centros de consumo como a própria lavoura
cafeeira. Esse empreendimento era idealizado de tal forma que o colono,
somente com a exploração de seu pequeno lote de terra, não conseguia
atender a todas as suas necessidades, vendo-se forçado a empregar-se
como assalariado nas fazendas de café, quando elas necessitem. (LANDO
E BARROS, 1981, p. 25)
Pode-se, a partir desses dados, verificar que o processo de imigração no
Brasil possui particularidades dependendo da localidade onde se deu.
4.2.1 A chegada dos imigrantes alemães ao sul do Brasil
O processo de colonização no Rio Grande do Sul data de 1824, ano em que
foi fundada a colônia de São Leopoldo, no Vale do Rio dos Sinos. É, no entanto, no
extremo sul gaúcho que o presente estudo se desenvolveu. Nessa região, a primeira
iniciativa de colonização foi de natureza privada e partiu do comerciante Jacob
Rheingantz, em 1858. Seu empreendimento foi estimulado pela Lei 304 de 30 de
dezembro de 1854, na qual é incitada a colonização por meios privados. Em 30 de
78
dezembro de 1856 Jacob Rheingantz assina contrato com o Império, e em 1857
viaja para Alemanha a fim de arregimentar os imigrantes ao Brasil. Os imigrantes
eram naturais das zonas da Rhenania, Holstein, Prússia, e principalmente
Pomerânia.
A data (15 de janeiro de 1858) de chegada desses imigrantes alemães ficou
marcada na história de São Lourenço do Sul, havendo sido celebrado
presentemente os 150 anos dessa efeméride. Esses rumaram para o interior do
território ocupando as terras de mata que não tinham vocação para a atividade
pastoril. Inicialmente a atividade das colônias era de subsistência, como afirma
Roche:
A atividade de todas as colônias e de todos os seus habitantes, pelo menos
no começo, era a cultura de “subsistência”, sobretudo do milho, feijão-preto
e da batata. Nessa época firma-se entre os colonos a idéia de que as únicas
terras próprias para a agricultura o as da floresta... Quer tenham sido de
origem oficial ou privada, todas essas colonias foram estabelecidas na orla
florestal, que limitara a penetração luso-brasileira. (ROCHE, 1969, p. 113)
O fato de os imigrantes se instalarem em locais distanciados das fazendas e
dos povoados propiciou que a cultura alemã permanecesse viva entre os colonos.
A expansão da colônia de São Lourenço do Sul foi incentivada devido ao
aumento demográfico dos primeiros núcleos. A medida que novas porções de terra
foram agregadas, a colonização se estende a os municípios de Pelotas e
Canguçu.
Em Pelotas a atividade agrícola principal concentrava-se na pecuária e na
produção de charque (carne salgada desidratada). Localizada às margens do canal
São Gonçalo a estrutura física, política, social e econômica de Pelotas era centrada
na dinâmica das charqueadas. Essas eram responsáveis pelo abastecimento do
mercado brasileiro, uma vez que o charque fazia parte da alimentação dos escravos.
É importante salientar a existência da mão-de-obra negra, escrava, trabalhando
nestas charqueadas. Os imigrantes alemães foram assentados em áreas de mata,
na Serra dos Tapes, permanecendo relativamente distantes do centro “urbano” e
das charquedas.
Quanto ao município de Canguçu não se sabe ao certo a data da chegada
dos imigrantes alemães, no entanto, sabe-se que estes eram descendentes dos
primeiros colonizadores que, ao afastaram-se de sua família em busca da sua
própria terra, acabaram por colonizar também o território canguçuense.
79
Esse processo trouxe consigo importantes desdobramentos à região.
Segundo Lando e Barros, esses núcleos:
Constituem-se, portanto em precursores da pequena propriedade rural,
através da ocupação, que toma o lugar das concessões do Poder Público. É
certo que nem sempre a posse serviu à pequena propriedade, pois foi
também a forma como se instituíram muitos latifúndios. Entretanto sua
importância reside no fato de que, enquanto a expansão do latifúndio era de
várias formas facilitada, a pequena propriedade, durante os três primeiros
séculos, contou com uma via de acesso: a posse. (LANDO E BARROS,
1981, p. 49)
4.3 A agricultura familiar nos municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul e
Canguçu
Embora a grande propriedade tenha se imposto como modelo socialmente
reconhecido, recebendo o apoio substancial das políticas agrícolas no Brasil, a
importância da agricultura familiar não pode ser vista como desprezível, tal como
indicam os dados da Tab. 1.
Em Pelotas, os estabelecimentos familiares representam 94,7% do total,
concentrando 53,1% da área total, não obstante serem responsáveis por 55,1% do
valor bruto da produção agropecuária (VBP) desse município.
Tabela 1 – Distribuição do número e percentual dos estabelecimentos agrícolas
familiares e participação percetual no VBP dos municípios de Pelotas,
São Lourenço do Sul e Canguçu
Município
N.º de
estabelecimentos
familiares
% sobre o total
% da área total
% participação
no VBP*
Pelotas 3.555 94,7 53,1 55,1
São Lourenço do Sul 3.806 96,3 57,9 70,9
Canguçu 8.831 95,8 65,7 73,8
(*) VBP: Valor bruto da produção
Fonte: INCRA SADE
28
(2008)
Em São Lourenço do Sul 96,3% dos estabelecimentos são de caráter familiar,
com uma participação de 70,9% na formação do VBP, ao passo que em Canguçu
existem 8.831 estabelecimentos familiares (95,8% do total), responsáveis por 73,8%
do VBP municipal.
28
SADE refere-se ao Banco de dados da agricultura familiar do Ministério do Desenvolvimento
Agrário.
80
Esses dados corroboram a relevância de um espaço agrícola cuja estrutura
social abriga em seu interior um modelo de agricultura que tem como traço distintivo
o trabalho da família que além de assegurar sua reprodução social, torna-se crucial
para que milhares de pessoas tenham suas necessidades de alimentação supridas.
4.3.1 A família dos agricultores pesquisados
O Brasil, cada vez mais urbano, vem sendo marcado por profundas
transformações sociais, econômicas, culturais, éticas e mesmo no plano do
comportamento humano. Permanece, contudo, um consenso em torno da família
como sendo um espaço privilegiado para a prática de valores comunitários e de
aprofundamento das relações de solidariedade (KALOUSTIAN, 2000).
É na família que se constroem relações consideradas insubstituíveis porque
através delas é que o ser humano poderá aprender noções de cuidado com o outro,
valores, proteção e amparo aos seus membros e, principalmente, desenvolver ações
de respeito entre gêneros e gerações. É através da família, tenha ela a configuração
que tiver, que se formarão as bases que garantirão a reprodução social dentro de
limites necessários para a preservação de valores e elaboração de identidades.
A Tab. 2 permite visualizar a distribuição das famílias entrevistadas e número
de residentes nos estabelecimentos investigados.
Tabela 2 – Distribuição das famílias entrevistadas segundo a quantidade de
residentes por estabelecimento
N.° de pessoas residentes por
estabelecimento
N.° de famílias
%
2 pessoas
5 16,7
3 pessoas
10 33,3
4 pessoas
8 26,7
5 pessoas
5 16,7
6 pessoas
1 3,3
8 pessoas
1 3,3
Total
30 100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Observa-se que o intervalo compreendido entre 1 e 4 pessoas residentes
concentra 76,7% das famílias, o que indica a sensível diminuição do tamanho do
81
grupo doméstico na zona rural em relação aos primórdios da colonização, quando
predominavam famílias bastante numerosas. Esse fato reflete mudanças no padrão
demográfico. No Brasil rural de 1991, as mulheres tinham em média, 4,3 filhos,
correspondente a dois filhos a mais do que aquelas que viviam nas cidades. Dez
anos mais tarde, essa diferença se reduziu para 1,2 filhos, e foi mantida em 2004
(BERQUÓ e CAVENAGH, 2006).
Ao perguntarmos sobre quantas pessoas vivem na casa, o agricultor DB
respondeu: tenho duas filhas e um rapaz [...] hoje vive eu e ela (esposa) , o filho
mais velho não mora aqui, casou mas segue trabalhando comigo, as filhas casaram
com pessoas de outro setor [...] não tem como seguir na agricultura” (informação
verbal
29
).
Já o agricultor SG relata: “a gente só tem um filho, ele estudou e se formou na
Escola Agrícola e ele está trabalhando na cidade e ganhando o dele” (informação
verbal
30
).
A queda nas taxas de fecundidade e, consequentemente, um menor número
de filhos, pode contribuir para o que alguns estudos (MELLO et al, 2001) denominam
de crise de sucessão na agricultura familiar
4.3.2 Escolaridade pode significar ruptura com a vida do campo?
Toda a cultura dispõe de sistemas de regras e preceitos da vida cotidiana que
criam e consagram instituições sociais capazes de determinar as posições que os
indivíduos ocupam na sociedade. Uma dessas instituições é a educação que se
formaliza através da escola. É escola que forma os indivíduos e alimenta suas
expectativas em relação ao futuro.
Sabe-se que historicamente a população rural enfrenta dificuldades no que
tange o acesso à educação. De acordo com o Panorama da Educação do Campo,
documento elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira – INEP, do Ministério da Educação (MEC), é revelado o descaso com
as escolas no campo em todo o país. Informa que as escolas rurais enfrentam
diversos problemas, tais como: precariedade de instalações físicas, professores com
29
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
30
Informação fornecida por SG (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
82
baixa qualificação e baixos salários, dificuldade de acesso em decorrência de um
deficiente sistema de transporte escolar, reduzido número de escolas do ensino
médio, entre outros.
Os dados da Tab. 3, extraídos do aludido relatório, indicam que no campo
31
,
no ano de 2000, a taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais,
correspondia a 10,3% na zona urbana e 29,8% na zona rural. Este índice passa para
8,7% na zona urbana e 25,8% na zona rural, no ano de 2004. A disparidade do
percentual de analfabetismo entre as regiões urbana e rural revela a necessidade de
maiores investimentos na educação rural.
Tabela 3 – Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais – 2000/2004
Regiões
geográficas
Taxa de analfabetismo (%)
Total Urbana Rural
2000 2004 2000 2004 2000 2004
Brasil 13,6 11,4 10,3 8,7 29,8 25,8
Norte 16,3 12,7 11,2 9,7 29,9 22,2
Nordeste 26,2 22,4 19,5 16,8 42,7 37,7
Sudeste 8,1 6,6 7,0 5,8 19,3 16,7
Sul 7,7 6,3 6,5 5,4 12,5 10,4
Centro-Oeste 10,8 9,2 9,4 8 19,9 16,9
Fonte: IBGE – Censo Demográfico 2000 e PNAD 2004. Tabela elaborada pela DTDIE, apud Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2007).
.
A Região Sul apresenta os menores índices de analfabetismo no campo. Em
nossa pesquisa junto aos agricultores familiares constatamos que 86,7% dos chefes
de família, possuem o grau, destes 76,7 % completo e 10,0% incompleto (Tab.
4).
No nosso entendimento, a “educação, como atividade humana inserida na
totalidade da organização social, é uma das condições que possibilitam a
reprodução das relações materiais e sociais de produção” (CURY, p. 12, 1997). Nas
comunidades rurais, dependendo da visão de mundo que ostentam os indivíduos,
essa adquire significados e valores diferenciados.
Percebemos através dos depoimentos, que os pais assumem posições
diferenciadas em relação ao acesso e a continuidade do tempo de estudo de seu
31
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaodocampo/panorama.pdf>
83
filhos. Para o agricultor JC e sua esposa, ao falarem sobre a escolaridade da família
revelam:
Eu tenho até o primário, a esposa até o ano e os outros meninos [...]
um completou até a 8ª série, o outro até a 7ª, não quis mais, só rodava, tava
com 14 anos e tem serviço em casa, ele parou, não ia bem, nunca ia bem,
então pra que corrê
32
, só pra ficá com a pasta nas costa? mandei ele
escolhê, não proibi [...] rodou de novo tinha que fazer a 7ª de novo, ia
passar muito tempo , com a pasta nas costa de novo não adiantava, eu
acho. (informação verbal
33
)
Tabela 4 – Distribuição dos membros da família segundo o nível de escolaridade.
Grau de
escolaridade
Chefes de
família
% Esposas % Filhos %
1º grau incompleto 23 76,7 21 70,0 11 29,7
1º grau completo 3 10,0 2 6,7 4 10,8
2º grau incompleto 1 3,3 0 0,0 3 8,1
2º grau completo 0 0,0 0 0,0 4 10,8
3º grau incompleto 0 0,0 0 0,0 1 2,7
3º grau completo 0 0,0 0 0,0 5 16,2
Não informou 3 10,0 7 23,3 8 21,6
Total 30 100,0
30 100,0 37 100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
No entanto a falta de incentivo para que os filhos continuem estudando não
ocorre em todos os lares. Às vezes é opção pessoal e pode advir de dificuldades de
manutenção do próprio núcleo familiar. O depoimento do agricultor EU traduz essa
situação:
[...] somos quatro, nós dois e duas filhas, eu estudei até a série, e a
esposa até a 5ª, elas [as filhas] até o grau [...] com relação às filhas eu
não me conformei, as duas começaram o segundo grau e tinham facilidade
com os estudos, eu queria que elas estudassem, mas elas não terminaram.
(informação verbal
34
)
32
Cabe esclarecer que procuraremos descrever as falas dos agricultores da forma mais aproximada
possível preservando a forma original das expressões usadas pelos mesmos.
33
Informação fornecida por JC. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
34
Informação fornecida por EU. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
84
Ainda no mesmo depoimento, a mãe inconformada diz “elas tinham
condições, tinha ônibus tinha tudo, mas simplesmente não teve jeito, optaram por
trabalhar.”
Observamos que os agricultores fazem a distinção entre “quem tem estudo e
que não tem estudo”. Para os que têm estudo, a vida pode ser mais fácil, como.
Indica o agricultor MH ao se referir a filha de sete anos:
Depende do que ela quer, o que ela acha melhor, estudar... bem... se for um
momento bom talvez não precise ficar na lavoura. Tem que ficar a critério
dela, se quiser estudar e ter uma vida mais tranqüila e não se judiar tanto
quanto nós... mas se quiser ficar na lavoura com nós, como é só ela, né? eu
gostaria que ficasse com nós. ( informação verbal)
Nesse mesmo sentido, o agricultor IE ao falar da escolaridade dos filhos
relata:
A professora me falou esses dias, que ele [filho de 9 anos] disse que ia
plantar fumo, eu não acho o melhor caminho, eu vou oferecer oportunidades
para ele estudar, isso eu fiz com minha filha que tem 26 anos, ela optou por
ficar na lavoura, dele eu vou exigir até um pouquinho mais, vou abrir o jogo
com ele que se estudar fica mais fácil para ele, que [pausa], o nosso
passado fica pra trás porque a lavoura não tem prá quem deixar. (
informação verbal
35
)
Percebe-se, nesses depoimentos, um sentimento de ambigüidade no
entendimento de que, se por um lado estudo facilita a vida, por outro representa ou
pode representar ameaça à continuidade do negócio familiar, se os que estudarem
deixarem efetivamente o estabelecimento rural.
Parece haver uma ruptura entre o grau de escolaridade e a manutenção da
propriedade. Essa visão de mundo deixa transparecer o afastamento das instituições
de ensino no meio rural, pois os filhos dos agricultores deveriam dispor de escolas
que permitissem o aperfeiçoamento de suas práticas através de um ensino voltado
às suas necessidades. Esse quadro contribui para debilitar o baixo desenvolvimento
do capital humano, implicando diretamente no nível de expectativas dos jovens em
relação à agricultura e ao mundo rural.
4.3.3 Aspectos étnicos das famílias rurais
Uma etnia ou um grupo étnico é, no sentido mais amplo, uma comunidade
humana definida por afinidades lingüísticas e culturais e semelhanças genéticas.
35
Informação fornecida por IE (agricultor), em entrevista concedida no município de Canguçu,
Jan./2007.
85
Normalmente partilham de uma origem comum, possuem uma estrutura social e
tendem a estabelecer uma continuidade no tempo através da transmissão, de
geração em geração, de uma mesma linguagem, de um sistema de valores,
tradições e instituições.
Os dados da Tab. 5 indicam que 90% dos agricultores entrevistados são de
origem alemã ou pomerana. A antiga Pomerânia
36
situava-se na região oriental da
atual Alemanha, e estava sob o domínio do Império Prussiano à época da imigração.
Conforme referido no início dessa secção, o desmantelamento da estrutura feudal
na Europa ocasionou a expulsão de grande parte dos camponeses alemães,
processo esse associado à vinda de ancestrais das famílias dos agricultores
pesquisados, pois sabe-se que os colonos que vieram a São Lourenço do Sul,
depois da primeira leva, em 1858, eram na sua maioria pomeranos. Estes se
dedicaram quase que exclusivamente à agricultura, ao passo que imigrantes
oriundos de outras regiões da Alemanha desenvolveram, também, atividades
industriais.
Tabela 5 – Distribuição das famílias entrevistadas segundo a etnia familiar
predominante.
Etnias de agricultores %
Alemães/Pomeranos 27 90,0
Italianos 2 6,7
Potuguesa
Total
1
30
3,3
100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007
Originariamente os pomeranos foram conhecidos como um povo rebelde e
resistente à submissão e que valorizava a liberdade e a amplidão do espaço
geográfico. Apesar de cristianizados, muitos deles não renunciavam ao paganismo.
Adoravam o deus Triglav, um deus de três cabeças e a mais importante entidade do
politeísmo pré-cristão entre os wendes.
37
36
Pomerânia, ou Po Morje, como se dizia no dialeto dos wendes, ancestrais dos pomerânios,
significava Terra perto do mar. A terra natal daqueles pescadores de arenque no Mar Báltico não
existe mais: o que foi quase um país com cultura própria virou apenas uma parte da Polônia
http://br.geocities.com/ondinebruch/tk/pome5e6.jpg
37
Denominação dada ao povo eslavo que nunca teve uma nação independente e que ocupou a
Pomerênia. Sua germanização iniciou-se com o Duque Boleslau II em 1124 (COSTA, 2007)
86
A germanização da Pomerânia deu-se pela cristianização que foi imposta pelo
rei Lotário da Saxônia, o qual impediu que essa fosse invadida pela Polônia e, em
troca, os nobres pomeranos convidaram comerciantes da Renânia, Saxônia e
Turíngia para explorarem suas terras.
A integração foi inusitadamente rápida, havendo inclusive renúncia ao próprio
idioma wende, tendo sido adotado o platt-deustche, ou seja, o baixo-alemão,
dando mais tarde origem ao dialeto pommersche-platt ou pomerano, que se tornou
de uso comum entre os pomeranos. (COSTA, 2007, p. 37)
Sabe-se que as ambições territoriais de outros povos trouxeram guerras para
a Pomerânia, sendo essa atacada por suecos, dinamarqueses e poloneses. Muitas
vezes e durante muito tempo esse povo assistiu a morte de sua gente, a destruição
de suas cidades e plantações e o saque de seus bens (COSTA, 2007).
O breve resgate histórico que aqui fazemos, serve como argumento para
justificar o caráter reservado e fechado atribuído ainda hoje, à grande maioria dos
descendentes de imigrantes pomeranos. Esses vivenciaram a reprodução das
brutalidades históricas de sua terra natal, também na terra que se tornou sua Pátria,
o Brasil. Durante a Segunda Guerra Mundial tiveram seus bens confiscados, suas
propriedades invadidas e grande parte de seu patrimônio cultural destruído.
Percebe-se que além das dificuldades de adaptação a um novo modo de vida
e os problemas dela decorrentes, as gerações que os antecederam precisaram lutar
para a preservação da própria identidade e de seus valores culturais.
Para Salamoni (2001, p. 4), “uma parcela significativa de imigrantes alemães
eram oriundos de regiões marcadas por um modelo econômico bastante servil, do
qual herdaram um modo de vida bastante específico.”. Esse fato, na minha opinião,
pode explicar atitudes conformistas diante de situações que talvez gerariam
protestos e manifestações por parte de outra etnias.
Por outro lado, observa-se que grande parte das famílias de origem pomerana
atribui elevada importância ao trabalho e ao dever de prover as necessidades do
grupo familiar.
Os laços familiares estendem-se para a comunidade, onde atitudes de
solidariedade e apoio tuo são ainda evidentes. A aprendizagem e o exercício de
tais atitudes pode ter sido gerados a partir das inúmeras dificuldades que tiveram
que ser enfrentadas durante o processo de adaptação na nova pátria.
87
4.3.4 A relevância da previdência rural nas explorações familiares
A previdência social rural sofreu importantes mudanças a partir da
promulgação da Constituição de 1988 e de legislação complementar, a qual
acarretou na extensão de benefícios sociais para a população rural, que até então
destinavam-se apenas à população urbana (CALDAS, 2008).
O agricultor BF fala do direito à aposentadoria antecipada:
Eu sou aposentado, teve uma época que se juntou quem pagou INSS, e
juntei 16 anos que eu paguei com o meu pai que era agricultor e eu
trabalhava desde os 12 anos e eu consegui juntar, antecipou um pouquinho
a aposentadoria, ganho um salário. (informação verbal
38
)
o agricultor IE relaciona o recebimento da aposentadoria a possibilidade
das comunidades rurais terem uma melhor alimentação dizendo o que eu vejo é
que o que eles não conseguem produzir eles compram, hoje tem poucas casas
onde não tem um aposentado e isso facilita [...] se não fosse isso, seria mais difícil, é
o que a gente vê, né? (informação verbal
39
)
Segundo Caldas (2008), houve um aumento significativo nas transferências
governamentais na renda total das localidades integrantes da microrregião de
Pelotas entre 1991 e 2000
40
, mas evidências que “se na década de 1990 o
contingente de aposentados e pensionistas rurais cresceu a uma taxa anual de 5,1%
, nos seis primeiros anos do novo milênio esse incremento viu-se reduzido
substancialmente” (CALDAS, 2008, p. 55).
Com base na Tab. 6 observa-se que dentre as famílias pesquisadas, 76,6%
possuem aposentados ou pensionistas da seguridade social entre seus membros.
Esse fato coincide com as constatações feitas por Caldas (2008), em termos da
incidência dessa política pública.
38
Informação fornecida por BF. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
39
Informação fornecida por IE (agricultor), em entrevista concedida no município de Canguçu,
Jan./2007.
40
A participação das transferências governamentais na economia do município de Pelotas, no ano
de 1991, era de 15,26%, em São Lourenço do Sul de 10,48% e em Canguçu 12,12%. No ano de
2000, o mesmo índice se eleva para respectivamente para 21,13%, 20,40% e 18,02%. (CALDAS,
2008, p. 76).
88
Pensa-se que não seria equivocada a constatação de que muitas famílias de
agricultores familiares mantêm-se no campo graças à existência de uma renda
mensal fixa proveniente de aposentadoria ou pensão de algum de seus membros.
Tabela 6 – Distribuição dos estabelecimentos segundo a existência de
pensionistas e/ou aposentados na família.
Situação da família Nº. de famílias
%
Com pensionistas ou aposentados 23 76,6
Sem pensionistas ou aposentados 6 20,0
Não informou 1 3,4
Total 30 100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
4.3.5 Tempo de vida no estabelecimento
O processo de assentamento
41
dos colonos ocorreu entre os anos 1858 a
1893, o que nos permite compreender que os agricultores familiares pesquisados
compõem a terceira geração dos pioneiros que aqui chegaram.
Observa-se na Tab. 7, que em Pelotas sete (7) famílias vivem na propriedade
mais de 50 anos e em São Lourenço do Sul apenas três (3), o que os distingue
dos demais locais onde o tempo de vida fica, predominantemente, entre 21 e 50
anos. Verifica-se que no município de Canguçu, o tempo de permanência no local é
o mais reduzido podendo-se explicar esse fato pela divisão das terras que ocorreu
nas últimas cadas e também porque essas propriedades foram adquiridas
posteriormente por descendentes dos imigrantes, os quais foram se espalhando no
espaço que se localiza entre os municípios de Pelotas e Canguçu, na Serra dos
Tapes.
O tempo de fixação num dado espaço geográfico que ser identificado com
o tempo de trabalho e o resultado desse trabalho. Ele é um espaço construído e
41
Interessante conferir a página da Rootsweb, disponível em:
<http://www.rootsweb.ancestry.com/~brawgw/alemanha/col_SaoLourenco.htm> no qual é possível
localizar as 35 localidades do interior do município de São Lourenço do Sul cujo nome geralmente
inicia pelo nome de Picada e que relaciona com o nome dos proprietários e a fração de terra
correspondente. Nos demais municípios não foi encontrada essa referência que pode ser atribuída
ao fato de mudanças ocorridas na divisão do espaço geográfico, ou seja, parte do município de o
Lourenço poderá ter sido incorporada aos municípios de Pelotas e Canguçu. No entanto, nessa
pesquisa não temos a pretensão de precisar esses dados por não constar de nossos objetivos.
89
alterado à medida que as famílias se reproduzem e perpetuam sua existência
material, social e cultural. E no tempo o espaço da terra foi se fracionando,
contribuindo para a migração de agricultores para os espaços urbanos nos quais a
maioria deles perdeu suas referências e viram reduzidas suas possibilidades de
prover os meios para sua subsistência via agricultura.
Tabela 7 – Distribuição da famílias entrevistadas segundo o tempo de residência
no estabelecimento rural.
Tempo que a família vive no
estabelecimento
Município
Pelotas
São Lourenço
do Sul
Canguçu
De 0 a 10 anos
0
1 2
De 11 a 20 anos
0
0 1
De 21 a 30 anos
0
3 4
De 31a 40 anos
1
2 2
De 41 a 50 anos
2
1 1
Mais de 50 anos
7
3 0
Total
10
10 10
Fonte: Pesquisa de Campo, 2007
4.3.6 A aquisição da terra
Sabe-se que a propriedade da terra é um aspecto central no universo
camponês, não somente no sentido de ser ela referente na relação direta entre o
possuidor e o que dela está distante, entre o arrendatário e o proprietário, mas na
perspectiva de que ela expressa um processo que envolve trocas, mediações,
contradições, articulações, conflitos, movimentos e transformações ( MARTINS,
1997).
No caso dos municípios pesquisados observa-se que as propriedades dos
agricultores familiares originaram-se de um processo mais amplo que interessava ao
governo imperial.
Segundo Salamoni (2001), em 1856, após ter obtido autorização do governo
imperial, Jacob Rheingantz formou uma sociedade com o lourenciano Cel. José
Antônio Guimarães para a aquisição de terras destinadas aos núcleos coloniais.
Nesse período outras colônias alemãs foram fundadas por iniciativa privada,
podendo-se citar as de Blumenau, Taquara e Soledade, mas que após alguns anos
90
de administração tiveram que ser socorridas e absorvidas pelo governo. Nesse
sentido, a colônia de o Lourenço do Sul teve outra característica: nasceu como
um negócio privado que serviu de base para o surgimento desse município no
extremo sul gaúcho.
Até o ano de 1877, quando Rheingantz faleceu, a colônia contava com um
total de 52 mil hectares e mais de 6 mil moradores entre imigrantes e seus
descendentes.
A área destinada à formação das colônias era uma gleba de terra de
topografia irregular, em grande parte coberta de mata virgem e com um solo rico em
húmus. A distribuição era feita da seguinte forma:
Para a delimitação dos núcleos coloniais, foram abertas picadas e, aos lados,
marcavam lotes de tamanho que permitissem a sobrevivência das famílias,
obedecendo à topografia e ao relevo, o que fazia com que estas fossem
rigorosamente iguais. Os lotes tinham em média 484.000 ou 48 hectares.
(SALAMONI, 2001, p. 6-7)
Percebe-se que as propriedades agrícolas familiares historicamente ocupam
pequenas áreas, as quais foram se fracionando com o passar do tempo. A Tab. 8
permite visualizar a forma de aquisição dos estabelecimentos investigados.
Em Pelotas, 80% dos estabelecimentos foram adquiridos através de herança
e parte de compra e nos municípios de São Lourenço do Sul e Canguçu esse
percentual é de 50%.
Tabela 8 – Distribuição das famílias entrevistadas segundo a forma de acesso à
terra.
Município
Forma de acesso
Compra Herança Posse
Herança e
compra
Pelotas 0 1 1 8
São Lourenço do Sul 2 3 0 5
Canguçu 2 3 0 5
Totais 4 7 1 18
Fonte: Pesquisa de campo, 2007
No município de Pelotas, o agricultor DB fala da aquisição do
estabelecimento:
Olha, foi o seguinte, nós era a família B, era tudo junto, então foram se
separando, um irmão tinha terra separado e é falecido, então dividimos a
propriedade eu e outro irmão mais novo, cada um ficou com 9 hectare, ele
91
ficou na parte velha, eu fiz a casa nova nessa parte aqui. (informação
verbal
42
)
Observa-se que à medida que as gerações se sucedem, a terra vai sendo
fracionada e o excesso desse fracionamento pode acarretar restrições para a
produção, além de interferir diretamente no uso e manejo do solo, muitas das vezes
obrigando as famílias ao uso intensivo dos recursos naturais.
Em alguns casos observou-se que a família, de certa forma conseguiu criar
estratégias para preservar o quantum de terras herdadas e inclusive ampliar a área
disponível. Nesse sentido o agricultor JC relata:
Olha... o meu pai tinha uma herança, recebeu uma herança pequena,
comprou dos irmãos, depois andou comprando mais pedaço, mais
propriedades, mais terras. Trabalhando... conseguiu com o trabalho da
lavoura, conseguiu juntar um pouco para comprar as terras, além que agora
estamos dividindo as terras eu e meu irmão somos dois irmãos só, então eu
vou receber a metade e metade ele, vai dar 17 [ha] mas eu comprei
mais 43 [ha]. Depois que casei eu comprei mais 43 [ha] de pedacinho aqui
pedacinho lá [...] com dificuldade.(informação verbal - grifos nossos
43
)
No caso desse estabelecimento, a fração de terras equivalia a 34 hectares
que foram divididos entre os irmãos, ficando cada um com 17 hectares, os quais,
somados aos 43 hectares adquiridos “[...] de pedacinho aqui pedacinho lá [...]”
equivalem atualmente a 51 hectares.
Constata-se também que esse agricultor reproduz a situação de seu pai que
“recebeu uma herança pequena, comprou dos irmãos”. A manutenção do pedaço
de terra é importante para a reprodução da família e sua permanência no campo. O
chefe da família demonstra certo orgulho quando diz: “eles
44
optaram, eles querem
trabalhar juntos, eu trabalho menos, com idade [...] a propriedade que eu
tenho dá, dá para todos trabalhá a vontade, é só querer”.
Outra forma de acesso à terra é através da posse, e embora tenhamos
encontrado somente um caso, esse reflete certa dificuldade entre famílias da região
devido ao fracionamento intensivo a ponto de inviabilizar a permanência da família
no local. O agricultor WM assim relata:
42
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
43
Informação fornecida por JC. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
44
Trata-se de uma família que possui três filhos, dois dos quais são agricultores e que optaram por
trabalhar com o pai na propriedade com 51 hectares, cuja produção principal é o pêssego.
92
Era do meu pai que ele não tinha documentação nenhuma disso aqui.
foi feito usucapião, nós estamos em 8 irmãos, mas nós éramos 9 irmãos,
um é morto e tocava um pedacinho para cada um. Eu e esse meu irmão
que nós trabalhamos junto 30 anos aqui, vamos comprar dos outros
irmãos. (informação verbal)
O mesmo agricultor, ao descrever a sua propriedade, revela: “[...] essa fração
são 23 hectares, mas não se aproveita a metade porque é mato, são intocáveis, as
margens do arroio são intocáveis, parte tem sangões
45
que não para aproveitá.
Em terra cultivada não sei se dá 10 hectares.”
Analisando-se esse relato percebe-se que o acesso à terra que ocorreu
através da posse corresponde a uma fração de terras que dificulta o cultivo,
considerando-se que menos da metade da propriedade não serve para o plantio de
culturas anuais.
No caso do acesso à terra por meio da compra obteve-se um total de 20%
das propriedades nos municípios de São Lourenço do Sul e Canguçu.
O agricultor SG explica o processo de aquisição da sua propriedade falando
“eu morei com os sogros 23 anos [...] trabalhei muito para comprar terra para mim.
Eu comprei com muito suor, eu plantei junto com meu sogro e eu comprei aqui”
(informação verbal
46
).
o agricultor OS, ao falar de sua propriedade, relata: “aqui nós temos 33
anos nesta propriedade [...] não foi herança, isso foi tudo fruto do nosso suor, nós
tinha 17 hectares, depois compramos essa aqui, de 8 hectares” (informação
verbal
47
).
A expressão “a terra é fruto do nosso suor” é recorrente nos depoimentos.
Traduz o trabalho árduo, pesado, penoso. Mas também denota orgulho, satisfação
por obter êxito, retribuição pelo trabalho que possibilitou a conquista da propriedade,
de um espaço para viver e continuar o trabalho na terra.
Nos municípios de São Lourenço do Sul e Canguçu encontramos 30% das
propriedades que tiveram sua origem através da herança. O agricultor EH fala da
sua propriedade dizendo:
45
. Termo utilizado no Rio Grande do Sul para denominar pequenos córregos, normalmente bastante
úmido e por isso impróprio para a produção de certos cultivos.
46
Informação fornecida por SG (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
47
Informação fornecida por OS (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
93
Essa propriedade era de meu pai e ficou dividido comigo e com meu irmão,
então a gente ficou com um total de 17 hectares e meio [...] meu irmão
pegou 7 hectares, mas eles produzem pouco, muito pouco [...] eles não são
mais agricultores familiares, eles produzem o leite mais por esporte
(informação verbal
48
)
Distingue-se nessa fala o valor atribuído à terra: para o agricultor entrevistado
a propriedade é lugar de trabalho, é espaço de produção e garantia de
sobrevivência. a propriedade do irmão, que não é mais um agricultor, assume
outros papéis.
A propriedade, na visão do agricultor, é lugar de produção: “tudo tem que ser
produzido, não se consegue nenhuma coisa sem produzir. De certa forma eu sou
orgulhoso por ser alguém que consegue produzir” (informação verbal).
Percebe-se, através destes depoimentos, que a aquisição da terra seja por
meio de compra ou herança, é motivo de orgulho para o agricultor. Para ele, ter um
pedaço de terra representa a possibilidade de produzir, de assegurar a reprodução
do núcleo familiar e assim preservar valores que lhe são transmitidos através dos
antepassados que vieram aqui para realizar o “sonho de um pedaço de terra”. Mas
esse sentimento encerra ambigüidades, tendo em vista as dificuldades hoje
enfrentadas na agricultura do ponto de vista do atendimento das necessidades
materiais da família.
4.4 A permanência no campo
Os espaços rurais não são apenas espaços produtivos, mas espaços de vida
cada vez mais heterogêneos, onde precariedade, envelhecimento e incertezas são
similares aos que acometem o mundo urbano (HERVIEU, 1997).
O trabalho na terra e a própria terra tem significado simbólico para os
agricultores familiares. Observamos em nossas entrevistas que a preocupação com
a continuidade do trabalho na agricultura foi manifestada de forma recorrente.
Traçar perspectivas em relação ao futuro torna-se uma necessidade no
universo da agricultura familiar. Desde os seus primórdios o homem que cultiva a
terra teve que planejar o suprimento da necessidade de alimentos para sua família,
assim como as colheitas futuras, guardando as sementes e reservando espaços
48
Informação fornecida por EH. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
94
para o plantio. Segundo Capra é a capacidade de imaginar o futuro que permite ao
homem fazer suas escolhas no presente. Para esse autor:
Nossa capacidade de formar imagens mentais e associá-las ao futuro o
nos permite identificar metas e objetivos e desenvolver estratégias e planos
como também nos habilita a escolher entre diversas alternativas e, assim,
formular valores e regras gerais sociais de comportamento. (CAPRA, 2002, p.
97).
Observando-se a Tab. 9 constata-se que nos municípios de Pelotas e
Canguçu 100% dos agricultores manifestaram o desejo de continuar vivendo no
campo, ao passo que em São Lourenço do Sul em apenas 10% a resposta é
negativa. Esses percentuais são os mesmos, para as três localidades quando
indagamos sobre o desejo, ou não, de que seus filhos sejam agricultores como o
fazem os pais atualmente.
Tabela 9 – Distribuição das famílias sobre o desejo de permanência ou o meio
no rural.
Município
Permanecer no meio rural
Sim % Não %
Pelotas 10 100 0 0
São Lourenço do Sul 9 90 1 10
Canguçu 10 100 0 0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Sobre a decisão de permanência no campo, a esposa do agricultor EB relata:
Eu acho que as coisas vão melhorar, na cidade tem muito desemprego,
aqui a gente se criou e sabe fazer o serviço [...] essa questão de se mudar...
tu vai ter que se acostumar com outro ambiente, em outra atividade, existe
muita violência nas grandes cidades e aqui onde eu moro, na colônia, o
vou dizer que é um céu aberto, mas é bom e tu tens uma vida mais
tranqüila. (informação verbal
49
)
A mesma agricultora conclui: “[...] quando a gente é pobre na colônia ainda é
melhor viver aqui do que sendo pobre na cidade [...]. Aqui na colônia a gente não
tem dinheiro às vezes, mas o alimento não falta, sempre tem algo para comer.”
49
Informação fornecida por NB esposa de EB. (agricultor), em entrevista concedida no município de
Canguçu, Jan./2007
95
Quando a agricultora associa a vida no campo com a existência do alimento é
possível compreender o significado material e simbólico da produção para o
autoconsumo, assunto que retomaremos na secção 5 (cinco) dessa dissertação.
Quanto ao desejo de que os filhos permaneçam no trabalho da agricultura
familiar, o agricultor DB diz: “[...] eu gostaria muito, mas vai ser muito difícil [...] o
meu filho seguiu minha profissão” (informação verbal
50
).
Os governos municipais mostram-se preocupados com a dificuldade de
manter as famílias no campo. Interessante observar o site da Prefeitura Municipal de
Canguçu
51
, localidade que abriga centenas de minifúndios e onde encontramos a
seguinte manifestação que expressa a opinião do Executivo Municipal.
Faltam políticas sérias que possam fixar o homem no campo, trocar a pobreza
do campo pela miséria da cidade, é uma realidade que passa a ser percebida
pelos agricultores brasileiros, tarde demais. Se o governo federal aplicasse 5%
do seu orçamento na agricultura, o governo do estado também 5% e os
municípios outros 5%, seria possível desenvolver políticas sérias
principalmente para a agricultura familiar, que responde por 85% dos
estabelecimentos rurais do país. (informação verbal)
Políticas agrárias que privilegiem a criação de estratégias de desenvolvimento
rural locais são, portanto, imprescindíveis para atender aos anseios dos agricultores
familiares no sentido de terem seu trabalho reconhecido e ver preservado esse estilo
de vida. Para Sacco dos Anjos (2003, p. 234), “tanto a ausência potencial de jovens
no meio rural, como a desproporção entre gêneros, podem comprometer a validade
e a eficácia de qualquer iniciativa destinada a reverter o quadro de desruralização
desenhado” (destaque do autor).
4.5 Tempos difíceis para a Agricultura familiar
As políticas e as leis não são apenas reflexo da atuação do Estado e da
sociedade civil. Elas se consolidam através do protagonismo dos movimentos
sociais que devem encaminhar suas lutas, forjar suas resistências e criar instâncias
em que a inovação possa definir rumos diferentes do que os desenhados por um
modelo agrícola excludente.
50
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
51
O site apresenta informações sobre o Município de Canguçu e entre estas encontramos a opinião
de Executivo Municipal. http://www.prefeituracangucu.com.br/index.php?exibir=secoes&ID=59
96
Enquanto os países ricos
52
continuam subsidiando fortemente seu setor agrário
e setores dedicados à exportação, os alimentos são utilizados como arma de
pressão política e econômica contra países dependentes. As empresas
transnacionais adquirem os produtos por um preço muito baixo, prejudicando os
agricultores familiares dos países emergentes, os quais denunciam as
conseqüências desse quadro.
A Tab. 10 indica a opinião dos entrevistados ao serem interrogados sobre as
principais dificuldades que enfrentam na atividade agropecuária. De longe aparece
como mais importante a questão dos baixos preços dos produtos gerados pelas
famílias de Pelotas (60%), São Lourenço do Sul (100%), e Canguçu (70%). Os fortes
vínculos com os mercados representam um traço fundamental que identifica esses
agricultores desde os primórdios do processo de colonização.
Tabela 10 – Distribuição porcentual dos entrevistados segundo a indicação da
principal dificuldade enfrentada na atividade agropecuária.
Tipos de dificuldades
Municípios
Pelotas
São Lourenço
do Sul
Canguçu
Falta de apoio do governo 10,0 0,0 10,0
Falta de mercado 30,0 0,0 20,0
Baixos preços 60,0 100,0 70,0
Total 100,0 100,0 100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007
O agricultor EH além do baixo preço, associa a falta de mercado para sua
produção como problema central. Ele diz,
muito difícil né? Se [a gente] planta feijão não tem prá quem vender, se
planta batata não tem para quem vender, o fumo... a gente tem um pouco
de terra sobrando né, tu te mete naquilo, tu não consegue pagar as contas,
dá prejuízo, então o que vai nos salvando é o pêssego, não é muito, mas
para sobreviver, vai tocando o barco, não adianta.e vamos indo.
(informação verbal
53
)
52
O estudo de Lappé et. al. (1981) destaca o impacto negativo de programas de ajuda alimentar (“Aid
as Obstacle”) sobre os sistemas produtivos nos países do Terceiro Mundo. Essas ajudas, em boa
medida, servem para dar uma destinação aos excedentes de uma agricultura fortemente subsidiada.
53
Informação fornecida por EH. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
97
A expressão “vai tocando o barco” traduz a dependência do agricultor às
oscilações do mercado, seu esforço contínuo de adequar-se ao cultivo de produtos
na tentativa de estabilizar seus rendimentos e sua condição de “sobreviver da
lavoura”. Muitas vezes a especialização produtiva conduz à instabilidade e
dependência exclusiva a uma única forma de ingresso econômico (SACCO DOS
ANJOS, 2003), conferindo vulnerabilidade frente aos mercados.
No caso do citado agricultor, “o que vai salvando é o ssego, não é muito, mas
para sobreviver”, denota a tendência à especialização produtiva, a qual não tem
sido a garantia para melhores resultados para o agricultor familiar.
Nossos entrevistados foram interrogados sobre como era a vida no tempo dos
seus pais em relação ao tempo presente. Um panorama dessa analogia é
apresentado na Tab. 9 e no depoimento do mesmo entrevistado:
Na época que era dos pais não tinha tanta dificuldade para vender, hoje tem
certas coisas, feijão batata, não tem para quem vender, chegou um ponto
que não precisa plantar porque não tem p/quem vender nem por cinco nem
por dez, não vende, naquele tempo tinha negócio. (informação verbal)
A facilidade para vender o produto na época dos pais foi relatada pela esposa
do agricultor JC. Ela diz: “Naquele tempo era batata, cebola e feijão, pêssego era
pouco, não plantavam como hoje e vendiam, valia mais do que hoje [...] hoje em dia
se plantar, não consegue vender, porque os produtos vem de outro lugar”
(informação verbal
54
).
Quando o agricultor se reporta ao tempo de seus pais, deve-se esclarecer
que esse período corresponde à década de 1950, quando a agricultura no país
registrou um crescimento
55
de 57%, devido, principalmente, à ampliação da área de
cultivo (BESKOW,1999, p. 59).
A opinião dos agricultores entrevistados dos três municípios foi agrupada nos
dados da Tab. 11, reunindo as respostas por afinidade. Metade deles considera que
a vida no tempo dos pais era pior. Neste grupo, cinco justificaram sua posição ao
54
Informação fornecida pela esposa de JC (agricultora), em entrevista concedida no município de
Pelotas, Jan./2007.
55
Segundo BESKOW (1999, p.59), os fatores determinantes para tal acontecimento foram: a)
melhorias na infra-estrutura, com a construção de rodovias e o aumento da capacidade de
armazenagem; b) o estabelecimento e expansão dos serviços de extensão rural; c) a garantia de
preços os subsídios às taxas de câmbio na importação de fertilizantes, produtos derivados do
petróleo, tratores e caminhões; d) e no fim da década, a intensificação do crédito agrícola.
98
afirmar que naquele tempo “não havia dinheiro”, como atualmente, ao passo que dez
incluem-se nos que aludem, conjuntamente, “à falta de aceso à saúde, transporte e
educação”.
Tabela 11 – Distribuição das famílias entrevistadas segundo a posição sobre como
era a vida no tempo dos pais em relação ao tempo presente.
Opinião Justificativa %
Pior
Porque, não havia dinheiro 16,7
Porque o acesso a saúde, educação e transporte era difícil 33,3
Melhor
Porque a vida era mais simples 13,4
Porque havia mercado para a produção 36,7
100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007
As profundas transformações decorrentes da modernização, urbanização e
internacionalização produziram modificações na agricultura mundial e provocaram a
crescente diminuição da importância econômica atribuída à produção agropecuária
scrito sensu, em meio à emergência das grandes cadeias e complexos
agroindustriais. A transferência de rendas para outros setores da economia, em
especial a partir da década de 1970 e o aumento no preço do petróleo afetou à
agricultura no sentido do aumento intensivo e permanente do custo de produção
56
.
O relato do agricultor
57
AH expressa a dificuldade para conciliar os gastos de
produção com os preços de seus produtos nos mercados. Ele diz: “ Logo que
casamos, o preço do saco de feijão era o de três sacos de uréia, hoje a uréia R$
42,00 e um saco de feijão R$ 40,00, três por um” (informação verbal
58
). o
agricultor
59
DJ, compara a mudança dos preços dos insumos dizendo:
A agricultura hoje é muito difícil, o preço dos produtos é muito baixo.
Quando comecei a trabalhar com o leite, com um litro de leite comprava um
litro de óleo diesel, hoje tem que vender quatro litros para comprar um litro
de óleo. Isso desanima o produtor. (informação verbal)
O cenário de “desânimo” refletido nesse depoimento denuncia a falta de apoio
institucional, a ausência de uma política agrícola competente e diferenciada para a
56
Ver a propósito o Capítulo 2 de SACCO DOS ANJOS (2003, p. 45-102
57
Esse agricultor tem 56 anos, casou-se na década de 1970.
58
Informação fornecida por AH (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
59
Esse agricultor também tem 56 anos e se refere a década de 1970.
99
agricultura familiar. Embora tenham se esboçado algumas tentativas nesse sentido,
o agricultor DB faz sua leitura crítica dizendo,
A agricultura se tornou um fator difícil e complicado devido nossos
governantes, temos muito apoio para pegar dinheiro do Banco , mas um
preço mínimo não temos [...] agora a gente depende do mercado, a gente
não se cria, porque a mercadoria entra de qualquer lugar, e entra por um
preço mais baixo do que a nossa aqui. No Uruguai tem subsídio e na
Argentina também [...] e o transporte é uma coisa muito rápida, então é
difícil as pessoas se manter na agricultura. (informação verbal
60
)
O que se percebe é que os agricultores familiares, de modo geral o têm a
possibilidade de participação nas instâncias de negociação e deliberação das
políticas que determinarão o futuro do seu processo produtivo. A política de
liberalização do comércio adotada pelo governo, seguindo a determinação das
instituições e organismos multilaterais impedem os agricultores familiares de
competirem com os preços de mercado estabelecidos pela agricultura comercial.
Ficou evidente, nessa secção, que os agricultores familiares têm capacidade,
vontade e determinação para consolidarem o processo de produção agropecuária. A
vinculação com o trabalho na terra, de onde extraem alimentos e produzem
riquezas, torna-se a base fundante de práticas que resistem às crises econômicas,
sociais e políticas. Entretanto, a lentidão com que se processam ações que
garantam preços mínimos e acesso aos mercados, podem redundar em sérios
prejuízos quanto ao futuro da agricultura familiar, principalmente no que tange a
práticas para o autoconsumo e seu imbricamento com a segurança alimentar nas
comunidades rurais. Os dados a serem apresentados na secção 5 (cinco) dessa
dissertação contemplam a análise dessa complexa questão.
60
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
5
Transformações no mundo da agricultura familiar e suas
implicações na produção para o autoconsumo e segurança
alimentar das famílias
Esta secção aborda alguns aspectos decorrentes das transformações
ocorridas no mundo da agricultura e que se manifestaram de diferentes maneiras na
organização e na vida das famílias dos agricultores pesquisados. Procura-se trazer
as evidências de um processo geral que apesar de repercutir no desestímulo à
produção para o autoconsumo, e em conseqüência, gerar impactos sobre a
segurança alimentar das famílias, em boa medida, como a seguir demonstraremos,
são preservadas algumas das práticas essenciais nesse âmbito.
5.1 O tempo dos pais e as mudanças ocorridas
Não sentido de novidade e de descoberta quando se constata que desde
os primórdios da humanidade a forma crucial de preservação da vida é o acesso a
alimentação. Portanto, agricultura e alimentação são categorias de relevância para
se pensar os destinos da humanidade. Nesse sentido: “a alimentação tem uma
função estruturante da organização de um grupo humano” POULAIN (2006, p. 19).
A falta de dinheiro e o difícil acesso à saúde, à educação e ao transporte
foram indicados como aspectos que dificultavam a vida dos agricultores em tempos
pretéritos, se comparada com o tempo presente, tal como consta nos dados da Tab.
11.
O agricultor DB ao falar da sua infância e juventude, destaca a falta de
dinheiro quando diz: “[...] era uma época muito difícil, hoje os jovens não entendem
[...] para sairmos de casa era uma vez por mês, não se tinha dinheiro para sair ,
jogávamos bocha com laranja e durante o dia se trabalhava e ainda ia para a escola
[...]”(informação verbal
61
).
A e do agricultor ET, ao se referir à saúde de sua família, relata: “[...] o pai
e a mãe sempre tinham um dinheiro. Se adoecesse alguém, se levava ao médico
que baixava sempre no hospital mais próximo, tudo era pago [...] Hoje tem tanta
coisa no mercado, tantas coisas se consomem, não alimentos”. E voltando à
61
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
101
época de seus pais declara: “[...] não tinha tanta coisa para convencer as pessoas a
gastar, meu pai não comprava tanta coisa assim. (informação verbal
62
)
A agricultora fala que o estabelecimento rural do pai permitia a auto-
suficiência da família: “[...] essa propriedade dava para a gente viver e não se
gastava muito dinheiro, hoje tem muitas ofertas, prestações, me parece que a gente
tá no mesmo barco, o consumismo existe” (informação verbal).
Essa análise permite compreender que o agricultor familiar se situa no mundo
através da materialidade de suas funções. Com isso, “seu trabalho não aparece
como uma relação de trabalho, embora de fato seja. É uma relação invisível com o
mercado de produtos e, por meio dele com o capital”(MARTINS, 2002, p. 71).
A dificuldade do transporte no tempo dos pais
63
também foi apontada como
dificuldade. O agricultor IE diz: “[...] quando eu era criança, eu me lembro que saía a
passear aos sábados, ia de carroça e voltava na segunda-feira. Hoje uma viagem
dessas a gente faz em poucos minutos”.
Já a esposa do agricultor JC descreve a vida no tempo dos pais dizendo:
Eles passaram bastante dificuldade até mesmo para ir até a cidade, eu
era grande quando a professora vinha para lecionar nesta escola, não tinha
ônibus. Para ela ir até a cidade tinha que pedir carona de um caminhoneiro
que levava carga. Depois fizeram um abaixo assinado pro trem, aqui
passava a linha de tem Pelotas/Canguçu, fazer uma parada na ponte
grande porque a estação era em cima e alguém tinha que levar ela de
carrocinha ou algum auto [...] e era longe para ela vir da cidade, então o
transporte era difícil. ( informação verbal
64
)
Sabe-se que o desenvolvimento humano se efetiva através da criação de
oportunidades sociais e que estas contribuem para a expansão de potencialidades
humanas. Com efeito, surgem “evidências de que, mesmo com renda relativamente
baixa, um país que garante serviços de saúde e educação a todos pode
efetivamente obter resultados notáveis da duração e qualidade de vida de toda a
população” (SEN, 2002, p.170-71).
Parte-se aqui do entendimento de que que a ausência de investimentos por
parte das instâncias governamentais para o desenvolvimento das comunidades
62
Informação fornecida por esposa de ET (agricultor), em entrevista concedida no município de São
Lourenço do Sul, Jan./2007.
63
A expressão no tempo dos pais” será utilizada nesta dissertação, compreendendo-se o tempo em
que os pais dos agricultores familiares entrevistados eram responsáveis pela produção. Pela idade
dos entrevistados, esse período corresponde às décadas de 1950 e 1960.
64
Informação fornecida por JC. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
102
rurais, no Brasil, vem se repetindo ao longo do tempo. Esse fato pode incidir sobre o
aumento da pobreza e da fome no campo.
A modernização agrária brasileira está associada a um violento e drástico
processo de expulsão da população rural que “provocou a saída de quase 30
milhões de pessoas do campo no curto espaço de tempo compreendido entre os
anos sessenta e oitenta” (SACCO DOS ANJOS, 2002, p. 312).
5.2 Os fatores da mudança segundo os agricultores familiares
A Fig. 1 aponta as quatro principais mudanças indicadas pelos agricultores
familiares quando questionados em relação ao “o tempo dos pais”. O acesso à
tecnologia, o aumento do custo de produção, o aumento no uso de insumos e a
falta de tempo para o convívio social foram apontados por eles como os principais
aspectos.
10%
34%
25%
31%
Acesso à tecnologia
(luz, geladeira,
televisão)
Aumento do custo de
produção na
agricultura
Aumento do uso de
insumos (adubos,
agrotóxicos)
Falta de tempo para o
convívio social
Figura 1 – Mudanças indicadas pelos entrevistados do tempo atual com relação ao tempo dos pais.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Sobre o acesso à tecnologia, deve-se esclarecer que nesta dissertação o
termo tecnologia é empregado para designar o conjunto de produtos introduzidos
nos lares dos sujeitos pesquisados a partir da difusão da luz elétrica no campo, tais
como: água encanada, chuveiro, geladeira, freezer, TV, liquidificador, lavadora de
roupas, máquina de fazer pão, o forno elétrico e de microondas. O fogão a gás
103
também foi destacado. O uso de telefone, o acesso aos meios de transporte
coletivos ou individuais, compõe o universo tecnológico.
No mundo da produção, destaca-se o uso do trator, da ordenhadeira, do
resfriador de leite, do forno de secagem do fumo, serra elétrica, também são citados
como “facilidades de hoje em dia”.
Os sinais das transformações no capitalismo do final do séc. XX expressam-
se através de modificações radicais nos processos de trabalho, hábitos de consumo,
configurações geográficas e geopolíticas, poderes e práticas de Estado, entre
outras. Constata-se que, no Ocidente, ainda vivemos numa sociedade em que a
produção em função de lucros permanece como princípio organizador básico da vida
econômica (HARVEY, 1989).
O agricultor DB evidencia a mudança através da introdução da tecnologia e
ao uso intenso de insumos. Ele diz
O que mudou são as maquinarias que agora temos trator, serra elétrica e
antes tinha que ser feito tudo a mão, tem muita facilidade com os manejos
das culturas e devido essa facilidade é difícil o mercado, temos herbicidas
que matam as sujeiras e não é necessária se capinar como a época do meu
pai Antes, 500 pés de fruta dava mais trabalho que hoje quando planto
2000, o que não mudou é a colheita que é a mão, mas também para
puxar o é mais com o cavalo que precisa de cuidados. (informação
verbal
65
)
O agricultor SH também diz: “[...] meu pai trabalhou muito, faziam roça novas
naquele tempo, derrubava o mato a braço, a enxada, não tinha nada de maquinário
era tudo lavrado a cavalo, lavrado a boi” (informação verbal
66
).
Sobre o desmatamento como condição de produção, SALAMONI (2001, p.
10) explica a situação do colono imigrante:
Diante das condições impostas pelo meio físico, a instalação das atividades
produtivas exigia um mínimo de capital que, por sua vez, os imigrantes
empobrecidos estavam longe de possuir. Assim, os colonos lançaram mão
apenas do seu trabalho na árdua tarefa de derrubar a mata e tornar
produtivos os solos nesta época, colonizar e desmatar eram sinônimos.
Para tal foi adotado o sistema primitivo de rotação de terras do tipo roça.
A esposa do agricultor HB fala: “[...] existe muita diferença, naquele tempo
não existia nem energia, não tinha televisão, geladeira, meio de comunicação, a
65
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
66
Informação fornecida por SH. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
104
mão-de-obra era mais difícil, não tinha trator nem máquinas, tudo era mais manual,
as pessoas judiavam mais o próprio corpo do que hoje” (informação verbal
67
).
O depoimento acerca das transformações introduzidas no estabelecimento a
partir do uso da luz elétrica é relatada em outro depoimento:
Em 1973 nós ganhamos essa luz aqui a energia elétrica, em diante se
comprou muita coisa: triturador, ordenhadeira mas isso ajudou também.
Trocar nem pensar... naquele tempo a gente tinha que fazer tudo a mão, a
lenha era picada com machado. Hoje a gente pega a serra e pica num
estantinho lenha para o fogo e forno. A roupa era lavada tudo a mão, a
gente tem máquina agora. Água eu lembro quando a gente começou, a
gente carregava água de balde não tinha energia elétrica e água quase
sempre ficava numa baixada. Buscar água para os banhos e botar numa
bacia, para dar banho nas crianças era bem difícil... Agora muito melhor,
a gente tem que lutar bastante. A gente naquele tempo lutava muito que
agora é diferente, agora a gente pega as máquinas tem o trator. Era só com
os animais, agora tem uma baita carreta, tem as máquinas de plantar, de
adubar de inseminar (informação verbal
68
).
Outro depoimento do agricultor SLH ao falar do tempo passado diz:
É muita diferença, se meu pai tivesse aqui e ele contasse a história, tu ias
ver que a diferença é imensa, bah! A dificuldade era muito maior e o
sistema de trabalhar era diferente, não tinha a tecnologia que se tem hoje.
De primeiro, se quisesse fazer um almoço, para começar tinha que fazer
fogo, lá tu já ias levar uma hora para aquecer o fogão. Hoje tu tem a
facilidade de chegar, tem um microondas, tem um troço congelado, uma
questão de dois ou três minutos, descongelado, tu quer aquecer a água
num fogão à gás, é num piscar de olhos. (informação verbal
69
)
As mudanças da vida moderna invadem o campo, transformam as relações e
a organização do trabalho e do mundo doméstico e familiar. A fala do agricultor
expressa bem a velocidade com que ocorre essa invasão: “num piscar de olhos”.
Mas numa sociedade na qual se mede o padrão de vida pelo volume de bens
e serviços consumidos, há de se pensar, que muitas vezes, nem sempre o uso da
tecnologia permite os melhores padrões de vida. Acerca dessa questão, Ullrich
expressa sua opinião:
A capacidade de transferir custos à tecnologia moderna a possibilidade
de se apresentar envolta em um certo misticismo. Ela engana os sentidos
com respeito a sua verdadeira capacidade de atuação e seduz a razão com
justificativas baseadas em estimativas de curto prazo. (ULLRICH. 2002,
p.350)
67
Informação fornecida por HB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
68
Informação fornecida por ET. (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
69
Informação fornecida pó SLH. (agricultor) em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan/2007
105
E os agricultores encontram-se diante de um paradoxo. Suas falas permitem
a apreensão do dilema a que são submetidos no cotidiano do seu trabalho ao
fazerem uso da tecnologia.
A mãe do agricultor SH, com 92 anos de idade analisa o custo do conforto:
Naquela época era muito mais fácil de se conseguir juntar o dinheiro do
que hoje em dia, porque a naquele tempo não tinha luz elétrica, hoje em dia
todos meses tu paga luz elétrica, naquele tempo não existia o telefone tu
pagas telefone, não existia o carro pra tu sair não existia o trator, quer dizer
quanto gasto a gente tem hoje em dia, né? (informação verbal
70
)
A agricultora citada, associa o conforto produzido pela tecnologia à
“mordomia”, ou seja, a uma regalia, a um benefício. Na visão dela para ter
o conforto a gente gasta muito, né? Então quer dizer, a produção tu
continua trabalhando igual, então o que adianta se tu conseguir fazer uma
safra boa? Antigamente o dinheiro sobrava, hoje em dia tu ganha a safra
boa mas esse dinheiro tu vai gastando ele porque a gente tem muita
mordomia. (informação verbal)
Essa entrevistada reafirma seu entendimento sobre essa questão:
A gente tem a facilidade né? Mas essa facilidade custa caro se a gente
pegar e parar com isso tudo e divou voltar morar como era antigamente,
com certeza tu vai conseguir juntar dinheiro, mas se vai juntar dinheiro não
vai levar nada disso o dia que morre né? Mas a gente tem que poder
aproveitar um pouco da vida. (informação verbal)
Cabe destacar que na maioria dos depoimentos dos agricultores familiares
traduzem sua opinião favorável às facilidades provenientes do uso das tecnologias
deixando claro que não pretendem voltar “ao tempo de antigamente, quando tudo
era sacrifício, tudo era no braço”.
Sobre o fato de se conciliar o gasto com a tecnologia o agricultor SH tenta
explicar o paradoxo entre o uso da tecnologia e seu custo, quando fala que agora
não precisa mais prender os bois, é ir no posto e comprar R$ 40,00 ou R$ 50,00
de óleo diesel para o trator,
[...] tem a vantagem é bom mas o gasto quer dizer que é um dinheiro que
não tem como se juntar, tu junta ele, mas tu vai gastando pra ter esse
conforto coisa que antigamente não tinha. Tu tinha que ter aquele trabalho
de unir boi, tratar boi, mas tu não gastava aquele dinheiro que tu gasta com
diesel e outras coisas. (informação verbal
71
)
70
Informação fornecida por IH. (agricultora), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
71
Informação fornecida por SH. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
106
O agricultor HB faz sua análise evidenciando além do descompasso entre o
valor do gasto de produção e sua comercialização, o uso de venenos e agrotóxicos.
Ele diz
Hoje o trabalho é mais facilitado mas se torna muito mais caro, o custo de
vida é mais alto, as despesas são muito mais alta e o retorno é menor
devido a tantas despesas, é muita conta para pagar, no final do mês a gente
recebe o dinheiro do leite e já o supermercado esperando e conta para
todo o lado. Naquele tempo as pessoas trabalhavam mais se judiavam mais
no corpo, mas tinham uma vida mais saudável porque não se usava tanto
veneno, tanto agrotóxico como agora, sei lá, se a gente fosse pensar em
voltar para aquele tempo não sei se a gente ia gostar trabalhar no braço
(informação verbal
72
).
Embora esse agricultor não queira voltar ao tempo do “uso do braço” ele
denuncia as dificuldades enfrentadas e até um certo desalento ao dizer
Olha eu não sei a gente espera melhorar as coisas. Se não for para nós,
para os filhos ou netos, porque a gente fica pensando se continuar no ritmo
que está. O fertilizante é muito caro e o nosso produto não vale nada
praticamente. Quer dizer a gente acha que não, mas tem gente que investe
em cima da alta produção, que tem extensão de terra, dá. Para a gente,
que é pequeno, tá difícil! (informação verbal).
Ele segue queixando-se da falta de apoio para a conservação do leite no
resfriador:
É muitas as dificuldades, a energia elétrica chega muito fraca aqui e isso é
uma grande dificuldade que estamos enfrentando agora por causa do
resfriamento do leite, a energia chega tão fraca que o resfriador não resfria
o leite... é devido um pouco, aos fumageiros, e outro aos granjeiros, que
nessa época todo mundo vive com o motor e consome muita energia. Tem
dias que fiquemo até a meia noite para não ligar o gerador, tem gerador e
tem tudo, mas o custo é muito alto e não compensa, e liga e desliga e não
resfria é nunca (informação verbal).
Percebe-se que a produção do leite requer o uso da energia elétrica para sua
conservação, mas que “os granjeiros” e os “fumicultores” disputam o uso da energia
com o agricultor familiar. E esse finaliza dizendo:
Para a gente que é pequeno difícil [...] daqui a pouco vai acabar o
pequeno produtor, vai ficar o grande, esses fazendeiro, tão colocando
leitaria, tem extensão de terra, pode fazer pastagem a vontade, e produz
um leite mais barato e vai terminar com o pequeno (informação verbal).
72
Informação fornecida por HB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
107
Parece que essa fala encontra-se com o pensamento de Karl Kautsky:
É indubitável que a evolução moderna da agricultura proporciona à grande
propriedade recursos científicos e técnicos extraordinários, que a
habilitam, pela formação de pessoas especializadas, a afirmar a sua
superioridade nesses diferentes setores. (KAUTSKY, 1980, p. 126-127):
Entretanto, o mesmo agricultor, ao retomar a análise de sua persistência com
o trabalho familiar, parece convergir com a teoria chayanoviana:
[...] o pequeno é muito teimoso, pode levar uma caixa de tomate no Ceasa
e vender a R$ 3,00, uma caixa de melão a R$ 2,00 ou R$ 3,00. Se fosse
pagar um funcionário para produzir ele tinha que tirar o dinheiro do bolso
para manter aquele, não sobra, não tem como”. (informação verbal)
A queixa dos agricultores acerca do custo de produção relaciona-se com o
uso de insumos na agricultura e caracteriza-se como uma significativa mudança no
processo de produção.
O agricultor AR, ao relatar o “tempo de seus pais”, revela
Eu não lembro direito, mas eles sempre dizem nos tempo de antigamente
não precisava comprar adubo, plantava sem adubo, hoje se tu não compra
adubo, uréia e semente, tu não colhe mais nada. Não sei como é que
pode, não sei se é da própria natureza o que é isso, o clima, e se o cara
pudesse plantar hoje sem adubo, sem uréia, sem herbicida é aqui que vai o
dinheiro que o cara faiz né? Sempre digo que antigamente não comprava
nada, nem conhecia adubo e uréia, e hoje tem que comprar tudo.
(informação verbal
73
)
No longo período de expansão no pós-guerra, que se estendeu de 1945 a
1973, o capitalismo teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho,
tecnologias, hábitos de consumo e configurações do poder político-econômico,
sendo esse conjunto denominado “fordista-keynesiano
74
. O colapso desse sistema,
a partir de 1973, iniciou um período de rápidas mudanças, de fluidez e de incerteza.
A agricultura estabelece-se sob a “base fordista”
75
resultando desse modelo
forte especialização e intensificação, acompanhada de uma dupla e crescente
integração ao capital industrial. As mudanças incidentes sobre as técnicas de
produção suscitam o crescente abandono das formas tradicionais, tanto no plano da
73
Informação fornecida por AR (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
74
. Expressão utilizada por Harvey (1989, p. 119).
75
Por agricultura de base fordista entende-se os grandes investimentos em tecnologias industriais de
produção voltadas à crescente busca do aumento de produtividade agrária, à redução dos custos de
produção e ao uso de combustíveis fósseis e de fontes não-renováveis de energia (SACCO DOS
ANJOS, 2005, p. 50).
108
produção vegetal quanto animal, coincidindo com a implantação da Revolução
Verde.
O agricultor AH remonta seu depoimento para o “tempo de seus pais” onde
ainda era possível cultivar a terra com vários cultivos e sem uso de pesticidas e
agrotóxicos. Ele diz,
A gente vai chegar no ponto onde a gente tava começando, lembrando
dos pais, era lavrado tudo a cavalo plantava milho com matracas. O pai
plantava milho com saraquá, tinha uma sacola do lado, abria a cova,
largava a semente e plantava essa terra toda.Tinha quatro junta de
cavalo, mas naquela época dava o milho, sobrava um pouco mais,
porque hoje o investimento é maior comparando, mas o que me lembro é
isso. Plantava batata sem agrotóxico e se colhia batata sem veneno
somente colocava-se estercos e mais nada e colhia, não entrava praga.
Hoje se tu vai plantar sem colocar nada o bichinho come né? Plantava-
se muito feijão, se fazia roça nova, hoje nem se pode derrubar a mata
mais. se plantava milho, queimava, fazia roça nova plantava milho no
meio, colhia que era uma coisa incrível, que não era aquela
quantidade, não sei se entende. A gente tinha criação de porco, tu
tinhas os porcos ali mas se tu tinha um lote de 10 porcos e fazia o
dinheiro. Hoje tu tens 10 porcos tu não sobrevive, nós vamos chegar
naquele ponto que eu tava te explicando colhia dez sacos de milho é
muita coisa para sobreviver, hoje tu colhe 100 sacos e não para
nada, hoje tem que ser 500 sacos para fora 1000 sacos para fora
(informação verbal
76
).
5.3 As implicações da Revolução Verde sobre a forma de produzir
A Revolução Verde
77
no Brasil assumiu a forma de uma modernização
tecnológica socialmente conservadora. Nas décadas de 1960 e 1970, observou-se a
prioridade do subsídio de créditos agrícolas para estimular os grandes produtores,
as esferas agroindustriais, as empresas de maquinários e de insumos industriais
para uso agrícola, como tratores, herbicidas e fertilizantes químicos (MOREIRA,
1999).
A implantação da Revolução Verde pode ser divida em três fases. A primeira
fase corresponde à implantação desse modelo nos países denominados de Terceiro
Mundo como México, Brasil e Filipinas. A segunda etapa foi o momento de
expansão das técnicas utilizadas pelas empresas e que se constituíram, pelo resto
76
Informação fornecida por AH (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
77
A crítica social feita à Revolução Verde manifestou-se através das denúncias do empobrecimento
do campo, do desemprego, da favelização dos trabalhadores rurais, do esvaziamento do campo, da
sobrexploração da força de trabalho rural, incluindo o trabalho feminino, infantil e da terceira idade
(MOREIRA, 2000)
109
do mundo, na forma de massificação da agricultura”
78
. A terceira etapa, que
vivemos hoje, consiste em que as grandes empresas do ramo da biotecnologia e da
nanotecnologia
79
passaram a desenvolver experimentos tecnológicos, com a
utilização do material biológico de plantas e animais, ou seja, os organismos
geneticamente modificados (transgênicos).
O depoimento do agricultor AS denuncia o uso de transgênicos alertando
para o perigo que esses cultivos representam. Ele diz
No caso do grão de soja nós plantamos transgênicos vai tudo herbicida,
resistente a herbicidas e as pessoas comem. Como fica o estômago delas?
Como funciona? o é uma coisa natural, esse dessencante mata tudo
menos a soja. Acho que faz mal, então se conseguisse produzir mais coisas
naturais seria melhor, o só para nós, mas para a cidade também.
(informação verbal
80
)
Nesse depoimento começa a aparecer a noção de segurança alimentar a partir do
entendimento dos agricultores familiares, assunto do qual trataremos nesta secção.
Constata-se que a terceira fase da Revolução Verde consolida um modelo de
produção que gera maior desigualdade no interior dos países, marcado pelo
incentivo às monoculturas e pelo uso intensivo de insumos químicos. Como é
sabido, esse modelo tende a favorecer as empresas do ramo dos agrotóxicos e de
sementes transgênicas, provocando um crescimento econômico e tecnológico
desequilibrado, no esgotamento dos recursos ambientais, no desperdício de energia
e perda da qualidade de vida pelo excesso de trabalho.
Nesse sentido, pode-se destacar o depoimento dos agricultores que incide na
falta de tempo para o convívio social, comparando-se ao “tempo dos pais“. A esposa
do agricultor LW, ao falar do trabalho do sogro, relata:
O fumo não deixa a gente cuidar de mais nada é uma dedicação total tem
gente como o meu sogro, que é 24 horas, porque ele cuida o fogo durante
a noite da estufa. A gente não trabalhando 14 ou 15 horas por dia, a
gente trabalhando 24 horas, pouco tempo tem para descansar.
(informação verbal
81
)
78
Entendemos por “massificação da agricultura” o processo de homogeneização de práticas
agrícolas que levaram à extinção de espécies e variedades, provocando o declínio dos patrimônios
culturais e ambientais no campo.
79
Nanotecnologia é a capacidade de criar novos materiais e produtos a partir da manipulação da
matéria à escala atômica. Foi descoberta em 1959 pelo físico norte-americano Robert Feynman
através de estudos sobre física quântica.
80
Informação fornecida por AS (agricultor), em entrevista concedida no município de Canguçu,
Jan./2007.
81
Informação fornecida por LW. (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
110
Outro agricultor, relata a perda da sua qualidade de vida que tem início na
infância, através do seguinte depoimento: “Lá no passado, eu tinha uma vida muito
sacrificada o meu pai botava nóis no serviço, eu estragado. Hoje ele chora por
causa disso, trabalhei desde criança eu não tive infância nem juventude e não me
arrependo disso, ensinei o meu filho a trabalhar” (infomação verbal
82
).
A intensidade do trabalho na agricultura familiar manifesta-se também neste
depoimento da esposa do agricultor AH: “Antes a gente tinha mais tempo, hoje a
tendência é a gente correr cada vez mais. Antes, naquele tempo, tínhamos tempo no
sábado e no domingo a gente ia passear pegava a carroça e ia nos parentes e
levava três dias para voltar [...]” (informação verbal
83
).
O permanente esforço necessário para assegurar a produção, exigindo
eficácia do agricultor familiar, pode significar a renúncia aos padrões anteriores de
qualidade de vida e prejuízo às atividades que fundamentam suas relações de
pertencimento.
A limitação do tempo para o convívio social e o lazer, poderá provocar a
fragilização da rede social e comunitária típica do mundo rural. O conjunto de
conhecimentos produzidos através de informações, idéias e capacidades práticas se
concretizam através dessa rede e o enfraquecimento resultante da não participação
poderá afetar e modificar um modo de vida específico.
5.4 A produção no tempo dos pais e a de hoje: tempos que se distanciam e se
aproximam mediados pelas práticas da produção para o autoconsumo
A Tab. 12 apresenta a indicação dos entrevistados quando perguntados sobre
os produtos mais proeminentes no tempo em que os pais eram agricultores.da
produção no tempo pais dos agricultores. Constata-se que 96,7% dedicavam-se ao
cultivo da batata. E é sobre esse cultivo que a mãe do agricultor SH fala:
Chegamos a plantar e colher 1000 saco de batata, eu não sei se tu
imagina o que pode ser mil saco de batata, é muita coisa. A gente nem
tinha nem como colocar no galpão. Colocamos embaixo de uma figueira
que a gente tem e se tapou para esperar preço. Acabou botando toda
todinha fora. (informação verbal
84
)
82
Informação fornecida por SG (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
83
Informação fornecida por AH (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
84
Informação fornecida por SH. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
111
Esse depoimento denota que além da produção para o autoconsumo, a
batata plantada destinava-se para o mercado, mas nesse tempo a família “acabou
botando todinha fora” .
O desperdício dos alimentos produzidos é também evidenciado nessa fala da
esposa do agricultor EB,
Por meio das telecomunicações vemos que tem muita fome no próprio país
e no mundo, enquanto que nós não temos como comercializar e acabamos
colocando o produto fora e isso eu acho que é uma coisa bastante injusta.
Enquanto uns passam fome, outros produzem e não tem para onde vender.
(informação verbal
85
)
O “tempo passado” e o “tempo presente” se encontram nesses dois
depoimentos, os quais denunciam e comprovam que a fome no mundo é, antes de
tudo, uma questão política “a alma da fome é politica”
86
(SOUZA, 1993).
Observando-se a Tab. 12 percebe-se também que o cultivo do feijão ocorria
em todas as propriedades agrícolas familiares e o arroz em 70% delas. Esses
alimentos são considerados típicos e fundamentais na alimentação do povo
brasileiro.
Tabela 12 – Produtos agrícolas produzidos no tempo dos pais destinados ao
autoconsumo nos municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul e
Canguçu.
Produto Pelotas
São Lourenço.
do Sul
Canguçu
Total
(%)
Batata 100,0 90,0 100,0 96,7
Feijão 100,0 90,0 100,0 100,0
Arroz 50,0 80,0 80,0 70,0
Trigo 50,0 80,0 80,0 73,3
Milho 80,0 90,0 100,0 90,0
Carnes (ave, gado, suíno) 100,0 90,0 100,0 93,3
Leite 90,0 90,0 100,0 93,3
Verduras e legumes 90,0 90,0 100,0 90,0
Frutas 90,0 80,0 100,0 80,0
Embutidos 80,0 80,0 80,0 80,0
Doces e schmiers 80,0 80,0 80,0 80,0
Não informou 0,0 10,0 0,0 3,3
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
85
Informação fornecida por NB esposa de EB. (agricultor), em entrevista concedida no município de
Canguçu, Jan./2007
86
Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 12 de setembro de 1993. Disponível em:
<http://www.ibase.br/betinho_especial/com_a_palavra/alma_da_fome.htm>
112
Segundo o depoimento do agricultor CS “[...] a gente plantava aquele
quadradinho de arroz, quando eu era pequeno, eu era guri e levava descascar, o
trigo que virava farinha, então poucas coisas se comprava” (informação verbal
87
).
a agricultora EST diz
Naquele tempo a gente não comprava fazia as coisas em casa. A gente
plantava arroz para comer, descascava em casa a mão, chamava-se pilão.
Colocava-se no sol, quando tava quentinho botava ali dentro, pegava um
pau ou madeira e batia até tirar a casquinha. A gente fazia tudo em casa.
(informação verbal
88
)
A esposa do agricultor JC confirma a venda do trigo excedente e relata sobre
a produção:
Plantava até arroz, até arroz. A gente plantava milho para fazer pão,
polenta, trigo também se plantava, eu ajudei muito a plantar trigo...
naquele tempo era... o meu pai dizia que se fazia dinheiro era com o trigo.
Depois começou a não dar mais na casa dos meus pais. surgiu uma
variedade boa, então nós plantemos uns quantos anos, nós plantava até de
sócio em outras propriedades e até vendia, tinha um moinho nos Bonato.
Naquelas casas na ponte velha ali tinha um moinho de trigo, era da firma
dos Bonato. Então eles compravam trigo, dos agricultores da volta, até meu
pai fez dinheiro plantando trigo. (informação verbal
89
)
Sobre a produção para o autoconsumo que incluía o trigo, têm-se esse
depoimento da agricultora LR que analisa também as mudanças ocorridas na
alimentação.
No meu tempo a gente o conhecia esses montes de doce, o doce que se
comia era o mel e ficava muito feliz quando tinha pão de trigo. Muito
trigo cortei e carreguei, ficava faceira quando o pai ia no moinho buscar:
nós falava, nós vamos comer pão branco de trigo. A minha mãe fazia do
rolão cuca, vinha farinha de segunda e de primeira era o rolão, a segunda
era para misturar no pão de milho. O rolão era para cuca era uma farinha
bem escura, ela [a mãe], fazia umas cucas bem crescidas, ficava escura,
mas para cuca o importava. Se bota bastante ovos fica escura também.
(informação verbal
90
)
A variedade de produtos existentes também é relatada pelo agricultor SLH:
87
Informação fornecida por CS. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
88
Informação fornecida pela EST esposa de ET. (agricultor), em entrevista concedida no município de
São Lourenço do Sul, Jan./2007
89
Informação fornecida por JC. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
90
Informação fornecida por LR esposa de WK (agricultor), em entrevista concedida no município de
Canguçu, Jan./2007.
113
Naquele tempo o que se sabe é que o básico feijão, batata, se plantava, se
criava porco para se ter gordura e carne em casa. Naquele tempo se fazia
muito, cebola para tempero, usava muito plantar o milho, se fazia farinha
tanto é que tinha muitos moinhos pela colônia. Sefazia farinha, eu acho que
alguns até trigo né, plantava trigo e se fazia a farinha de trigo, né, uma
coisa que hoje em dia não existe mais ( informação verbal)
O plantio do milho foi citado em 90% dos agricultores entrevistados, aludindo
a importância deste cereal, para o autoconsumo, aproveitando a farinha dele
proveniente, para a alimentação dos animais e também para a comercialização. O
agricultor AR, fala do uso do milho para a criação de porcos:
Naquela época plantavam milho, eu me lembro, era moleque de 10/15
anos, era lavoura de milho, plantavam tudo. Não se vendia um saco de
milho, mas vendia cada mês uma carga de porco. Hoje em dia quem é que
tem porco? Não sei, mudou tudo completamente, né? (informação verbal
91
)
5.5 A criação de animais para o autoconsumo
A criação de animais é uma característica da agricultura familiar que vem se
perpetuando ao longo do tempo. O uso e a preservação da carne produzida na
propriedade é que se modificou. Observemos esse depoimento da mãe do agricultor
MH:
Nós também plantávamos fumo. Milho, feijão, batatinha para comer e batata
doce a gente vendia. Animal a gente criava e vendia também, galinha a
gente criava para o consumo e porco para vender. A gente era uma família
humilde, nem luz elétrica não tinha nem geladeira nem freezer, nem nada. A
gente fazia tudo, carne a gente fritava e botava em uma lata na banha. Tudo
assim bem antigão, ao passar o tempo a gente foi botando luz, a gente foi
comprando as coisas e foi se adaptando e, né? E melhorando a vida.
Observa-se que a criação de animais é mantida nos estabelecimentos
familiares. No conjunto de famílias entrevistadas, 96,7% mantêm o hábito de criar
animais para o autoconsumo (Fig. 2). Hoje os agricultores dispõem do freezer para
conservar a carne. Do abate de um boi, tudo se aproveita. A esposa de um, ao falar
da carne consumida pela família assevera:
Eu não gosto de comprar carne a quilo caro, não para comer. Eles
cobram preço de carne a quilo. Claro quando nós carneamos, botemos
tudo em pacotinho a quantia que para um dia, mas já sai pelanca, saí
graxa, sai osso, o resto vai para os cachorros, até guardado para os
91
Informação fornecida por AR (agricultor), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
114
cachorros, depois a gente cozinha quando falta faz o alimento para eles.
(JC – informacão verbal
92
)
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Aves Peixes Gado Porco
Pelotas São Lourenço do Sul Canguçu
Figura 2 – Tipos de criações presentes nos estabelecimentos investigados.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
O agricultor HB associa a economia que representa o produção para o
autoconsumo dizendo:
Economizamos a metade dos gastos com a nossa produção, a gente carne
mesmo, tem abate em casa e põe no freezer e tem carne para o ano todo...
e tem peixe no ude... é difícil de pegar...tem carpa cabeça grande,
não pode ser pega de anzol, pegamos carpa de 26kg. (informação
verbal
93
)
Alguns agricultores foram enfáticos em registrar a importância material da
produção de autoconsumo: “Economizamos a metade dos gastos com nossa
produção” (informação verbal
94
).
O lculo não é, obviamente, preciso, exato. A agricultora ED, tenta explicar
o seu entendimento, dizendo:
[...] na ponta do lápis a gente não fez, mas todas as vezes que colocamos
comida na mesa tem feijão, verduras, tem ovos, carne, leite [...] comprado
só tem o sal e o açúcar. E tudo que a gente trouxe da lavoura para a mesa,
se fosse comprar, ia gastar uma barbaridade! (informação verbal)
92
Informação fornecida por JC. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
93
Informação fornecida por HB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
94
Informação fornecida por HB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
115
Observou-se, entretanto, que nem sempre é o valor monetário o fator
determinante da manutenção da prática para o autoconsumo. A qualidade do
alimento é valorizada pelo agricultor EU quando diz:
Horta, ovos, carne, leite, isso tudo é daqui de casa tanto carne bovina,
frango, como galinha caipira, eu não sei se vocês diferenciam uma da outra.
Essas a gente tem criadas separada com milho e ovos assim... Eu acho que
não se economiza, se tem o fato de ser mais saudável. Mas o que isso
traga um retorno econômico, isso não, porque no caso ovos e essas galinha
na verdade elas comem mais do que se a gente fosse ao mercado
comprar... A gente consome muito pouco, às vezes não chega a uma dúzia
de ovos por semana para quatro pessoas, então é uma coisa que a gente
nem considera. (informação verbal
95
)
Observa-se que a fala desse agricultor coincide com uma das dimensões da
noção que hoje se tem sobre a segurança alimentar, que é o acesso a alimentos
básicos de qualidade e que resultem de práticas saudáveis. As aves
96
e os ovos
produzidos para o consumo da família são diferentes das que se criam para a
comercialização.
Outro depoimento interessante sobre os alimentos produzidos num
estabelecimento cujo “carro chefe” é o leite foi feito pelo agricultor EPP, segundo o
qual “a propriedade produz para o sustento, mas às vezes se colhe um pouco a mais
e, se tem comércio, a gente vende. Não é para o consumo da casa, a gente
fornece para os parentes da cidade, eles vem e buscam alguma coisa” (informação
verbal).
Percebe-se que o ato de doar aos parentes os alimentos excedentes, é uma
forma de valorizar o que se produz e também denota a generosidade que
caracteriza o modo de vida das comunidades rurais, onde a solidariedade e as
trocas, não de serviços, mas também de produtos, constitui-se como elemento
intrínseco a esse modo de vida.
5.6 Os alimentos produzidos pelos agricultores familiares em tempos de
insegurança alimentar
Indubitavelmente a alimentação das populações do mundo e a melhoria das
condições de vida nas áreas rurais tem sido assunto de debates nacionais e
internacionais.
95
Informação fornecida por EU. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
96
No caso do citado agricultor familiar, apesar de ter como principal produção o leite, esse também
implantou recentemente um aviário em sua propriedade.
116
Nesse sentido a manifestação do Diretor Geral da FAO, Jaques Diof, que “a
fome é uma manifestação concreta das desigualdades de poder, persistentes e
generalizadas que existem no mundo” alerta para o fato de que dos 6 milhões de
habitantes do planeta, 850 milhões sofrem de fome todos os dias e que três quartos
dos pobres do planeta são habitantes rurais. Grande parte deles é formada por
camponeses sem acesso à terra e demais meios de produção para alimentar suas
famílias (ICARRD, 2006).
Apesar desse cenário desolador, face as inúmeras adversidades expressas
nos depoimentos dos agricultores familiares em questão, nosso estudo permitiu
constatar que a totalidade das famílias, continua cultivando parte considerável dos
alimentos que consomem. Eles identificaram a produção que conservam desde o
tempo de seus pais, muitos dos quais se destinam fundamentalmente para o
autoconsumo. A Fig. 3 identifica os principais produtos que foram destacados pelas
famílias nas entrevistas. Esses dados revestem importância na medida em que
refletem o padrão alimentar dos indivíduos na atual conjuntura.
Feijão Batata Leite Carnes Frutas e
verduras
Compotas
e
Schimiers
Pão Não
informou
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Pelotas São Lourenço do Sul Canguçu
Figura 3 – Produtos agrícolas informados pelos agricultores familiares e produtos transformados que
se destinam ao autoconsumo nos três municípios estudados segundo o número de famílias.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007
O feijão é cultivado por 93,3% das famílias, o que não significa que este
esteja sempre disponível, o ano todo, em suas mesas. A esposa do agricultor
117
familiar IK, cujo cultivo principal é o fumo, explica que é “muita ocupação [...] a gente
as pessoas falar no geral que o fumo o deixa a gente cuidar de mais nada”, ao
ser questionada sobre os cultivos para o autoconsumo resume: “feijão e batata
agora não tem, mas tem bergamota, laranja, lá em baixo tem bananeira, é uma coisa
que todos consomem. E senão tiver,o pessoal vai na cidade e compra, né? Mas tem
marmelo, galinha e porco”.
Quanto ao arroz não encontramos nenhum agricultor que planta essa
gramínea como faziam os antepassados. Entretanto, o hábito de consumir arroz nas
refeições permanece em 93,3% da mesa das famílias. O mesmo percentual
mantêm-se para a produção do leite e da batata.
No entanto, a produção de leite não é vista com vantajosa para o agricultor
VFM, que diz “é preferível comprar uma caixa no supermercado, do que ter uma
vaca todos os dias, ter que estar me envolvendo com essa vaca, não é negócio”.
O trigo também não é mais produzido pelos agricultores. Esses compram a
farinha para fazerem o pão em suas casas. O agricultor VF diz: “o o, a gente
compra a farinha e faz em casa, inclusive tem um forno de fazer pão, tem um
forninho elétrico, tem o forno do fogão”(informação verbal
97
)
O agricultor MA, fala sobre a produção de trigo, do seu desejo de produzir:
“Eu comecei com o trigo e tive que parar [porque] não tem quem trilhe, tem bastante
máquina mas não quem trilhe. Eu digo, o problema não é plantar, é quem compre e
colha. Existe maquinário, mas não pessoas, as pessoas não querem.”(informação
verba).
A produção do trigo na concepção do agricultor é socialmente necessária,
mas não maquinário disponível para torná-la viável. Nesse sentido, Garcia Jr,
(1990, p. 126-127) considera que:
Entende-se também que, dado que o consumo é socialmente necessário é
um dado anterior ao processo de produção, mesmo que a produtividade
[sic] valor por unidade de trabalho seja muito baixa, vizinha de zero, ou
mesmo zero, portanto invendável, a produção camponesa pode realizar tal
esforço e tal produção se ela é necessária para completar, in natura, o
consumo socialmente necessário.(itálico no original).
A lembrança dos moinhos do tempo dos pais e do seu fechamento está ainda
presente na memória:
97
. Informação fornecida por VF(agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas.
Jan/2007
118
Do moinho a gente levava o trigo e eles moíam, tiravam o rolão. Tiravam a
farinha branca e saia a mais morena, mas era bom. E o milho também,
hoje tem moinho na Coxilha dos Campos, né... mas é com maquinaria,
não é como os moinhos de primeiro, que eram com água. (informação
verbal
98
)
Sobre o fechamento dos moinhos ele diz: “teve uma lei do governo para fechar os
moinhos”.
Percebe-se que a análise feita pelo agricultor, denuncia o parodoxo da
modernização tecnológica no campo. Se, de um lado, ela facilita a produção, de
outro ela pode restringi-la. Sem maquinário torna-se impossível voltar a cultivar o
trigo. Esse fato, pode também contribuir para o aumento da insegurança alimentar
no campo, deixando o atendimento das necessidades imediatas das famílias a cargo
da aquisição no mercado local. O fato é constatado no depoimento de um dos
entrevistados quando ele fala da “invasão das kombis” na zona rural e que vendem
de tudo. Ele relata “tem de tudo, antes não tinha, de uns três anos para cá...
começou com o padeiro [...] a maioria não planta e precisa comprar, e passa na
casa mesmo, é um supermercado batendo em casa.”
5.7 A criação de animais: uma atribuição da mulher?
Como no tempo de seus pais, as famílias pesquisadas, preservam o hábito de
se dedicarem à criação de animais domésticos. Segundo dados da pesquisa em
33,3% dos casos são as mulheres responsáveis por tal tarefa, atribuindo-se essa
função a toda a família em 30% dos estabelecimentos (Fig. 4). Para Woortmann,
(1999 p. 134), a “noção de trabalho, como categoria subjetiva, e o processo de
trabalho, como encadeamento de ações, marcam distinções de gênero”. O cuidado
com as “criações”, cabe à mulher. A categoria “trabalho” normalmente se aplica
ao homem, ao chefe da família. A atividade feminina é considerada restrita ao
âmbito da casa e quando as mulheres se envolvem em atividades produtivas, esse
envolvimento é considerado ajuda.
Embora nem sempre esteja sendo atribuído valor equivalente ao trabalho do
homem, a mulher executa um trabalho penoso e perigoso ao lidar com os animais. O
relato do agricultor HB atribui a desistência da criação de porcos, por conta de que
o manejo é difícil. Ele diz:
98
Informação concedida por MA (agricultor) em entrevista realizada no município de Canguçu.
Jan/2007
119
Porco, nós paremos com a criação, [era] a esposa que cuidava da criação
de porcos, dava trabalho pois eles eram grande para limpar o cocho.
Manusear é um pouco difícil, minha esposa cuidava, ela se quebrou a
costela duas vezes e não quis mais saber de porcos. (informação verbal
99
)
A desistência de criar porco, pode ser compreendida se temos em mente o
que considerou Garcia Jr. (1990, p. 179) ao constatar que:
A criação tem uma função complementar ao roçado, mas seu caráter
subordinado é claramente marcado. Por um lado a criação atende a
necessidades socialmente consideradas menos prioritárias [...] por outro
lado, a criação pode ser apropriada para o consumo alimentar [...].
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
Homens Mulheres Toda a família Não informou
Pelotas o Lourenço do Sul Canguçu
Figura 4 – Distribuição percentual das famílias entrevistadas segundo a atuação de seus membros
nas atividades de criação de animais para atender ao autoconsumo familiar nos três municípios
pesquisados
Fonte: Pesquisa de campo, 2007
Em sua análise, Garcia Jr aponta que a criação de animais implica no uso de
um tempo que os membros femininos devem disponibilizar para tanto. No caso em
discussão, o trabalho feminino exigido em outra ocupação, associado ao baixo valor
atribuído ao produto, parece ter sido um dos determinantes da supressão de tal
criação.
99
. Informação fornecida por HB (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan/2007
120
Novamente evidencia-se a pressão do mercado sobre o trabalho da família,
dessa vez diretamente sobre o trabalho feminino que estava voltado para a
produção de carne para a alimentação da mesma. Provavelmente esse produto
passe a ser adquirido no mercado pela família tornando-se mais um item
anteriormente gerado com o fito de atender o autoconsumo familiar.
5.8 A horta e o pomar: o risco da insuficiência para o autoconsumo
A existência de hortas e pomares nas propriedades dos agricultores familiares
pesquisados é indicada na Fig. 5. Em todos os municípios foi constatada sua
existência, sendo que em 25 propriedades foram encontrados ambos, em quatro
delas só o pomar e, em uma, somente a horta.
0%
20%
40%
60%
80%
100%
P elota s S ão L ourenço do S ul C ang uç u
H orta e P om ar P om a r
Figura 5 – Porcentagem de famílias que possuem horta e pomar nos três municípios investigados.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
A fato de verificar-se a ocorrência de hortas e pomares, num primeiro olhar,
parece plenamente satisfatório no sentido da segurança alimentar e nutricional.
Entretanto, isso não significa que se tenha a garantia da autosuficência da produção
da família para satisfazer as necessidades de deus membros. O depoimento do
agricultor SLH, deixa dúvidas quanto a esse aspecto:
Horta tem uma ali, mas as verduras que tem dentro não vale nem pra se
falar de horta, né? Não tem tempo, mas se produz alguma coisa. Quando é
época de inverno se produz alguma verdura se produz mais, pouca coisa
assim. E pomar de outras frutas é uma laranjeira umas bergamoteira na
volta da casa que é o que tem fora disso, o pêssego, né? ( informação
verbal)
121
Outro agricultor também deixa dúvidas quanto à capacidade de produção de
seu pomar e da horta, dizendo “frutas, além do pêssego temos laranja, bergamota,
maçã, tem uns dois pés, pro gasto dá. Verdura a gente às vezes tem, mas às vezes
tá em falta”.
O desperdício do excedente, que apodrece é, por isso, eliminado, denunciado
pelo agricultor EP:
Tem pomar e fruta de todo tipo: pêssego, laranja, bergamota, maçã, pêra
de todos os tipos [...] as árvores de frutas que eu tinha para comércio eu
acabei eliminando para não ter preocupação de tu vendo aquela frutinha
tão bonita cair e não ter comércio. Isso me dá um certo nojo de ver a fruta
no chão e não ter para quem passar. (informação verbal
100
)
No estabelecimento rural do agricultor WK, sua esposa LR diz:
Sim tem tudo junto, erva, tem repolho, alface, cenoura, couve flor,
beterraba, pepino. Eu fiz mais de cem vidros de conserva de vagem e
pepino, feijão vagem, batata, milho, feijão, tenho duas vacas de leite, faço
queijo para vender, a minha filha leva para Pelotas, não tem quantia
(informação verbal
101
).
Ao contrário das outras duas famílias anteriormente referidas aqui, além do
uso in natura, produção excedente, nesse casso, é plenamente aproveitada. Nesse
estabelecimento constatou-se a existência de sucos engarrafados e muitas
prateleiras contendo vidros de compotas e schmiers que a agricultora fez questão de
mostrar.
A educação, no que tange à produção e conservação dos alimentos, é fator
decisivo na preservação dessas práticas como traço cultural. Em Canguçu
detectamos que o trabalho com jovens rurais, produz efeitos dignos de nota.
Embora o agricultor ER tenha dificuldade para produzir frutas devido às geadas, ele
fala com orgulho da horta produzida pelo filho de 14 anos:
Esse guri de 14 anos, ele veio com a semente da UNAIC
102
, ele plantou e
hoje ele colhendo melão, tomate, pepino. A gente tem tanto pepino que
até conserva de pepino tem. O melão, tem tomate e os repolhos que não
100
. Informação fornecida por EP (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan?2007
101
. Informação fornecida por LR (esposa do agricultor WK), em entrevista concedida no município e
canguçu, Jan/2007
102
A União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu UNAIC, uma organização não-
governamental, desenvolve um trabalho de incentivo ao plantio diversificado de verduras e legumes
nas escolas rurais desse município.
122
vencemos comer, beterraba, cenoura, na própria horta aqui. (informação
verbal
103
)
O incentivo de organizações sociais às práticas orientadas para o
autoconsumo mudaram a opinião desse agricultor, no sentido de resgatar a
importância correspondente. Essa prática foi alterada através de orientação
adequada. O agricultor argumenta: “A horta é de tradição para o colono caprichoso,
que tem uma estrutura boa sempre tem uma boa horta, antes eu não tinha horta,
mas tirava um canto da propriedade para plantar, né?
Pode-se inferir, a partir dessas experiências, que a produção de frutas e
verduras pode ser incentiva e preservada, resgatando-se práticas que se perderam
ao longo do tempo diante das sensíveis mudanças nos hábitos de consumo via
introdução de produtos industrializados no cotidiano das famílias rurais.
5.9 Mudanças na alimentação e segurança alimentar segundo as famílias
rurais
Entre as inúmeras transformações ocorridas com o processo de alimentação
humana, pode-se apontar o distanciamento, a falta de informação e a perda de
controle da população sobre o processo de produção, em face da imposição dos
mercados e dos complexos agroindustriais. As inúmeras facilidades introduzidas
pelo uso da tecnologia na produção dos mesmos, por outro lado afetaram a forma, o
sabor e o preparo dos alimentos.
Todavia a alimentação humana conforma-se num ato que transcende o saciar
da fome, porque:
O ato de alimentar-se para o ser humano está ligado a sua cultura, a sua
família, a seus amigos e festividades coletivas. Ao alimentar-se junto de seus
amigos, de sua família, comendo pratos característicos de sua infância, de sua
cultura, o indivíduo se renova em outros níveis além do físico, fortalecendo
também sua saúde mental e sua dignidade humana. (VALENTE, 2002, p. 38)
Através da Tab. 13 pode-se constatar que a mudança nos hábitos alimentares
é percebida por 50,0% dos entrevistados, ao passo que 43,3% julgaram que não
houve grandes modificações em relação ao tempo dos pais e 6,7% julgaram que as
mudanças ocorreram apenas em parte.
Essa transformação é relatada pelo agricultor MAF:
103
Informação fornecida por ER (agricultor), em entrevista concedida no município de Canguçu,
Jan./2007.
123
Eu acho que mudou bastante. Para começar os temperos, antes se usava
toucinho e graxa, hoje se usa óleo, sason, essas coisa prá nós o existia.
O arroz nós comia batido, nóis batia no pilão. Antes a mãe fazia sopa de
galinha com massa de farinha e hoje tem sopa pronta no supermercado. E
os congelados nem existia, além de não ter energia, não se tinha condições
para comprar isso, hoje em dia tu vai no supermercado e está tudo
prontinho. (informação verbal
104
)
Aqui se percebe a alteração do sabor pelo uso de temperos, o modo de
preparar a sopa de galinha, “com massa de farinha”, que agora vem pronta, além
da introdução de produtos congelados que “nem existiam naquela época”.
Tabela 13 Distribuição percentual dos entrevistados segundo a opinião sobre a
mudança, ou não, de hábitos alimentares em relação ao tempo dos
pais.
Mudança nos hábitos alimentares
%
Sim 50,0
Em parte 6,7
Não 43,3
Total 100,0
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Sobre a transformação no modo de preparo dos alimentos outros
depoimentos destacam certos aspectos dignos de nota, como o da esposa do
agricultor EB:
[...] eles diziam que era grão de café e se misturava e torravam uma batata
doce que eu me lembro e misturavam e tomavam, e o café da tarde era
misturado com erva, com essa erva mate Desde a época de criança o
nosso pão era sempre feito com farinha de milho. Pão de trigo se tinha
em época de festas aniversário de alguém, Natal ou coisa assim, não se
conhecia pão feito com farinha de trigo, era sempre a farinha de milho e se
usava muito a canjica que era descascada no pilão. Quanto ao café se tinha
uma máquina que a gente torrava o grão. (informação verbal
105
).
A mesma agricultora se reporta a uma geração anterior, a de seus avós, e
relata:
Não temos tanto acesso a essa farinha de milho, fazer mingau que nem
fazíamos para as crianças é uma coisa que costumamos usar no leite, fazer
o repolho refogado, o chuchu não escorrer a água para deixar e aproveitar
até os nutrientes desses alimentos para serem melhor aproveitados, a
maneira de preparar o feijão. A minha avó, que hoje teria uns 150 anos, se
104
Informação fornecida por MAF. (agricultor), em entrevista concedida no município de Canguçu,
Jan./2007.
105
Informação fornecida por NB esposa de EB. (agricultor), em entrevista concedida no município de
Canguçu, Jan./2007
124
fosse viva talvez muito mais, e meus pais que hoje teriam mais que 90 anos
e meus avós maternos que conheci e também faleceram com quase 100
anos. A gente tem muitas lembranças que elas usavam muitas frutas.
Parreira tinha que ter em todas as casas muita uva, laranja, bergamota,
tanto quanto marmelo tinha bastante, as árvores frutíferas era uma coisa
sagrada quando éramos crianças não podia se quebrar um galho, não podia
bater com um vara para apanhar as frutas tinha que ter muito cuidado para
não danificá-las para que pudesse sempre existir para gente. (informação
verbal).
Esse depoimento expressa uma experiência acumulada e transmitida através
das gerações, reporta-se ao conhecimento trazido pelos primeiros imigrantes.
Encerra uma visão de mundo que necessita ser resgatada e novamente ser
colocada em prática numa sociedade que se enfrenta as dificuldades crescentes no
atendimento às necessidades de consumo alimentar.
As aparentes facilidades para consumo de produtos desconhecidos e sem
qualidade, batem à porta dos agricultores familiares através de kombis e caminhões
que trafegam, atualmente, pelas comunidades rurais para vender produtos
alimentares, incluindo hortifrutigrangeiros.
5.10 O comércio de hortifrutigranjeiros nas comunidades: as kombis na cena
rural
O contato com a realidade concreta permite comprovar que o abastecimento
alimentar das famílias foi consideravelmente modificado. aproximadamente
quatro décadas, ou seja, antes do auge da modernização, seria impensável que
famílias rurais adquirisssem gêneros de primeira necessidade, além do café, erva-
mate, trigo ou açúcar refinado. As referidas “kombis” trafegam pelas estradas rurais
vendendo especialmente hortifrutigranjeiros, paradoxalmente, legumes, verduras,
frutas entre outros produtos.
A atitude manifestada no sentido de não comprar os alimentos oferecidos
pelos comerciantes das kombis é assim justificada pela mãe do agricultor VM : “não
Kombi [passam por aqui] porque outras pessoas daqui mesmo da comunidade,
aqui tem dois irmãos que fazem isso, eles vão no Ceasa em Pelotas buscar e vende
no interior o que quê eles fazem normalmente” (informação verbal
106
)
E o agricultor EH fala: “Ah isso tem, duas vezes por semana, oferecem de
tudo, repolho, beterraba, cebola, as pessoas compram porque é barato. É barato, a
106
Informação concedida por VM (agricultor), em entrevista realizada no município de Pelotas,
Jan/2007
125
gente acaba comprando quando o se vai para a cidade. Frutas também , o que
não tem na época” (informação verbal
107
).
Apesar dessa constatação, muitos agricultores resistem e não compram os
alimentos. A Fig. 6 registra a posição dos entrevistados em relação ao fato de
comprarem ou não os produtos comercializados através das kombis.
Figura 6 – Distribuição das famílias entrevistadas segundo a informação sobre a compra de produtos
nas kombis.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Constatou-se que 40% dos agricultores familiares não compram os alimentos,
40% o fazem às vezes, e 13,3% costumam comprar esses produtos. Ou seja, em
maior ou menor medida, 53,3% adquirem parte de suas necessidades de legumes,
verduras e de outros produtos através do comércio ambulante.
A atitude manifestada no sentido de por não comprar os alimentos oferecidos
pelos comerciantes das kombis é assim justificada pela mãe do agricultor MH passa
uma kombi também vendendo fruta, mas a gente não compra porque a higiene
deles é de péssima qualidade. Os caras de , em cima todos sujos, então a gente
prefere não comprar e diz que as frutas o todas machucadas, a gente não
compra”
Aqui aparece de forma clara a percepção que os agricultores familiares
possuem de segurança alimentar, apesar de desconhecerem a importância que
107
Informação fornecida por EH. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
13,3%
40,0%
40,0%
6,7%
Sim Não
às vezes Não informou
126
essa noção adquiriu na atual conjuntura. Esse entendimento é recorrente em
depoimentos que registram a idéia construída em torno aos alimentos vendidos
pelas kombis:
Sem dúvidas eu não saberia o que estava comendo, é uma alimentação
super duvidosa não tem etiquetas, não tem nada que proteja que diga que
não tem agrotóxico. Por isso, o que se produz na própria horta a gente
sabe, não vai botar agrotóxico. E se botar tem as carências... se aparecer
um bichinho? Antes um bichinho vivo do que morto. (informação verbal
108
).
Esse depoimento vem ao encontro das preocupações do estado a respeito da
importância da educação para o consumo de alimentos adequados. Essa questão
pode ser abordada a partir de três pontos de vista destacados por Maluf (2007, p.
140):
Um deles é o da educação alimentar e nutricional voltada para aprimorar
hábitos, difundir noções de higiene e adequar a composição da dieta
alimentar, de modo a prevenir doenças e deficiências. Outra abordagem
refere-se à conscientização relativa aos direitos do consumidor [...] e uma
terceira abordagem voltada para a valorização dos aspectos sociais,
ambientais e culturais envolvidos na produção e distribuição dos alimentos.
A educação para o consumo dos alimentos junto aos agricultores familiares é
atualmente veiculada através do trabalho de organizações não-governamentais e
movimentos sociais que incentivam a produção sem o uso de agrotóxicos, que
simultaneamente atuam, adotando uma postura mais crítica diante dos apelos do
mercado.
No município de São Lourenço do Sul, existe uma cooperativa que nasceu da
necessidade de apoiar a comercialização de hortifrutigranjeiros por parte de
agricultores familiares. A agricultora, ET, ao explicar que a família é cooperativada
há 15, anos diz:
Veja, como era difícil naquele tempo, foi a dificuldade que fez os colonos se
abraçarem. Acho eu, essa lição que eu tive é que éramos muito explorados
por intermediários. Agora a gente tem uma enorme vantagem que não tinha:
compra e vende tudo ali tem os agrônomos, os técnicos agrícolas que dão
assistência, bom, incentiva a gente a ficar na área da agricultura.
(informação verbal
109
)
A família da agricultora citada, cuja produção principal é o fumo e o leite,
procura manter a produção para o seu autoconsumo porque reconhece sua
108
. Informação concedida por ER (agricultor), em entrevista realizada no município de Canguçu,
Jan/2007
109
Informação fornecida por ET (agricultora), em entrevista concedida no município de São Lourenço
do Sul, Jan./2007.
127
importância. Ela informa que: “[...] a gente faz manteiga, queijo, schmier, pão, bolo,
bolacha, tem horta, tem todos os produtos da época, tem fruta, ovos, tem galinha,
tem porco”
Apesar dessas iniciativas, 13,3% dos agricultores familiares, compram
alimentos que poderiam ser produzidos na propriedade.
A chegada à casa de uma das famílias entrevistadas, logo após o café da
manhã, permitiu com que observássemos os alimentos consumidos nessa refeição.
Na mesa vimos que havia margarina e pão industrializado. Essa observação
coincide com o que a agricultora fala acerca das modificações ocorridas na
alimentação de sua família, comparando-a ao tempo de seus pais. Sobre esse
aspecto ela declara; “a gente quase não comprava nada, agora é que a gente
compra tudo fora desde a fruta, verdura a gente compra tudo, né?”.
O último depoimento reveste importância na medida em que expõe, com
bastante nitidez, as mudanças que vêm sendo alvo os hábitos alimentares e de
consumo, em geral, por parte das famílias rurais dessa região gaúcha. Mais do que
a questão de ter satisfeitas suas necessidades de consumo, trata-se de um aspecto
intrinsecamente ligado à cultura camponesa dessas famílias, ou seja, à própria
ancestralidade dos indivíduos.
5.11 Compreendendo outra dimensão da segurança alimentar: se come melhor
hoje ou antigamente?
Analisando os dados da Fig. 7, correspondente à percepção dos agricultores
acerca da melhoria (ou não) das condições de alimentação, comparando-as ao
tempo dos pais, observou-se que 80% dos agricultores familiares do município de
Pelotas consideram que a alimentação das pessoas efetivamente melhorou. nos
municípios de São Lourenço do Sul e Canguçu, os índices se situam em 50% e
60%, respectivamente.
O agricultor JC assevera:
Eu acho que hoje em dia o pessoal come mais frutas e verduras.
Antigamente, com a moda que eu me criei, minha mãe e o meu pai queria a
comida muito gorda. Tinha que ter molho, não podia faltar molho, era pura
banha, água muito pouquinho. Se a minha mãe botava um pouco mais de
água ele reclamava que era água, Era muita gordura, se matava porco
também se cozinhava com banha [...] agora eu uso mais óleo de girassol.
(informação verbal
110
)
110
Informação fornecida por JC. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
128
Esse agricultor percebe que houve a introdução de novos elementos no
cardápio como frutas e verduras e a supressão da banha. No seu entendimento,
esse fato melhorou a qualidade da alimentação. No entanto, ele fala a partir do seu
modo de vida, com ênfase para o papel da horta, de onde retira um produto
cultivado sem agrotóxicos, que lhe assegura a qualidade do mesmo. Essa
experiência não pode ser generalizada para outras realidades, pois nem sempre o a
introdução de novos alimentos assegura a manutenção destas práticas de
autoprovisão.
No entanto, o agricultor CS expõe outra idéia a respeito, tendo por base a
alimentação em geral:
Comem mais, eu só não posso garantir se é melhor porque tem muito
produto com agrotóxico, muito produto que se compra no supermercado
como embutidos e coisa assim e eu não sei se esses produtos são
saudável que nem o nosso. Aqui a gente pensa que come melhor.
(informação verbal
111
)
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Pelotas São Lourenço do Sul Cangu
Sim Não Em parte
Figura 7 – Distribuição das famílias entrevistadas segundo a informação sobre a ,melhora da
alimentação hoje se comparada ao tempo dos pais.
Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
Comer mais, mas sem a certeza de que o produto tenha qualidade reforça a
importância das práticas de autoconsumo.
111
Informação fornecida por CS. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
129
No depoimento do agricultor EU, aparece o problema da obesidade como
outro aspecto ligado à segurança alimentar dos indivíduos:
Hoje estão comendo mais porcaria, tu vai no supermercado é à base de
salgadinho, tem a venda mas compra quem quer, acho o pessoal muito
mais conscientizado [....] anos atrás, se nascia gordo e morria gordo [...] se
uma pessoa quer emagrecer hoje ela tem mais facilidade. (informação
verbal
112
)
A insegurança alimentar e nutricional, manifesta-se através da fome oculta,
da desnutrição e da obesidade. No relato em análise, o agricultor associa a
alimentação com a obesidade, que se caracteriza pelo “peso corporal acima do
normal como conseqüência da acumulação excessiva de gorduras ou uma
manifestação de hipernutrição” (MALUF, p. 102, 2007).
No Brasil, esse grave problema é dimensionado pela Pesquisa de Orçamento
Familiar - POF 2002-2003 indicando a existência de 10,5 milhões pessoas sob a
condição de obesidade.
A percepção da obesidade, decorrente do consumo de porcarias”, indica
que nosso entrevistado possui conhecimento de um problema para o qual não havia
solução no tempo dos pais porque, segundo ele, “se nascia e morria gordo”.
De acordo com MALUF (2007, p. 141), “a insegurança alimentar aparece
devido a um conjunto de fatores ambientais, políticos, sociais, econômicos e
culturais, e também devido à inabilidade do grupo para lidar com esses fatores de
risco, de forma efetiva e continuada”.
Entendemos que um dos requisitos imprescindíveis para ensejar ações
consistentes no combate à insegurança alimentar seja justamente reverberar, no
âmbito comunitário, programas de curto, médio e longo prazo.
Cabe observar que foi recorrente, nos depoimentos dos entrevistados, que as
pessoas necessitadas da comunidade recebem ajuda efetiva do governo. Um deles
critica essa ajuda dizendo: “no caso eu tenho um vizinho que recebe ajuda, ele
passa o dia na sombra, esperando preceber, não tem estímulo, se não passar
fome”. (informação verbal
113
)
Outro depoimento também deixa evidenciado a organização da comunidade a
partir da Igreja:
112
Informação fornecida por EU. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007
113
Informação fornecida por DB. (agricultor), em entrevista concedida no município de Pelotas,
Jan./2007.
130
[...] a mãe é evangélica e eu sou católico então a gente aqui em baixo na
Igreja, a gente fica sempre na volta e as famílias que tem dificuldade,
porque sempre têm aquelas famílias que tem a dificuldade para conseguir
alimento. Então sempre tem as campanhas [...] assim a gente acaba
ajudando com algum alimento ou coisa assim. (informação verbal
114
)
Em contraposição, o agricultor VFM, ao justificar que as pessoas de sua
comunidade não têm dificuldades na alimentação, argumenta: “todas as pessoas de
menos poder, nem terra tem , mas consegue trabalho.”
O fator determinante nesse caso, para eludir a insegurança alimentar, é o
acesso ao trabalho. Conforme referido na secção 3 dessa dissertação, os
CONSAD(s) são organizações territoriais institucionalmente formalizadas, com um
número definido de municípios que se agrupam para desenvolver diagnósticos e
projetos de segurança alimentar, nutricional e desenvolvimento regional, geradores
de trabalho e renda. Constituem-se como associações sem fins lucrativos, formados
por 1/3 de representantes do poder público e 2/3 de representantes da sociedade
civil de cada município participante.
Ações efetivas propostas pelos CONSADs poderão tornar-se importantes
meios para minorar o problema do acesso aos alimentos pela via da geração de
renda, mas, sobretudo, pelo resgate de certas práticas que sistematicamente vêm
sendo esvaziadas, como é o caso da produção de legumes e proteína animal no
próprio estabelecimento rural.
Pensa-se que através destas, poder-se-ia desacelerar o processo de
empobrecimento do campo e dar novos rumos para a questão da segurança
alimentar em nosso país.
Nestas páginas que conformam a presente secção realizamos um exaustivo esforço
por discutir o tema da segurança alimentar, com ênfase nas praticas de
autoconsumo adotadas pelas famílias entrevistadas. Exploramos outros elementos,
especialmente os que se acham associados à percepção das pessoas, enfocando,
inclusive, certos aspectos relativos à dimensão simbólica das práticas alimentares.
6 Conclusões
O estudo aqui apresentado tratou de elucidar diversos aspectos associados à
complexa questão que envolve a produção para o autoconsumo nos
estabelecimentos de agricultores familiares, tendo em vista a importância que esta
prática representa para as famílias rurais, especialmente aos descendentes de
colonos de origem alemã, italiana e pomerana residentes em municípios que
integram a microrregião de Pelotas.
A segurança alimentar é hoje objeto de políticas públicas implementadas pelo
governo federal a partir de diversos mecanismos, invariavelmente ligados à
transferência direta de recursos às famílias e aos indivíduos residentes no perímetro
urbano dos municípios brasileiros. Como é sabido, a insegurança alimentar e
nutricional atingem a um universo de 39,5 milhões de brasileiros, sendo que destes,
9,5 milhões residem em comunidades rurais.
Nesse sentido, convergimos no entendimento de que existem poucas
iniciativas consistentes destinadas a combater a insegurança alimentar no âmbito
rural e que estejam efetivamente orientadas a fomentar a produção de autoconsumo
das famílias como via capaz de reduzir o impacto desse grave problema social.
Constatou-se enormes vínculos existentes entre a dimensão do autoconsumo
e o grau de mercantilização da agricultura nos estabelecimentos familiares. Muitas
famílias, especialmente as que se encontram na condição de integradas ao
complexo fumageiro, enfrentam sérias dificuldades de produzirem para o
autoconsumo, sendo a deficiência de mão-de-obra um dos principais argumentos
apresentados na realização das entrevistas. O tempo disponível, cada vez mais
escasso, é dedicado ao trabalho árduo e insalubre da produção e secagem da
produção de fumo.
Nessa perspectiva, a grande maioria dos agricultores familiares entrevistados
apontou a baixa valorização da produção agropecuária obtida em seus
estabelecimentos como elemento desalentador para busca de outras alternativas
produtivas, o que, ao fim e ao cabo, pode comprometer, no longo prazo, a
reprodução social de seus membros. A inexistência de mercados compatíveis com
132
a natureza dos processos produtivos da agricultura familiar, simultaneamente
marcados pela menor escala de produção e regularidade na oferta, figuram como
elementos em destaque para mostrar a crise dessa forma social de produção.
A adoção de uma política de liberalização do comércio pelo governo federal, a
partir da determinação das instituições e organismos multilaterais, produz um
cenário em que os agricultores vêem-se à deriva frente às contínuas oscilações do
mercado, tendo que adequarem-se ao cultivo de produtos, muitas vezes o
almejados, na tentativa de estabilizar seus rendimentos e assegurar a sobrevivência
do seu núcleo familiar. Observou-se que muitas vezes, a difundida idéia da
especialização produtiva, não traz os resultados esperados pois a dependência
exclusiva a uma única forma de ingresso econômico (no caso em questão: leite,
pêssego ou fumo), gera vulnerabilidade, instabilidade e endividamento.
O processo de mercantilização da agricultura passou a exigir dos agricultores
familiares a utilização de maquinários e equipamentos que são apontados por eles
como “facilitadores do trabalho”. Entretanto, o alto custo atribuído à sua aquisição e
uso nas propriedades rurais, torna-se motivo de grande preocupação, dado que
incidem diretamente nos custos de produção, impossibilitando-os de concorrerem
com os preços de mercado praticados pela agricultura comercial.
Pressionados pelo processo de mercantilização da agricultura, os agricultores
familiares intensificam suas horas de trabalho, tornam-se dependentes de
tecnologias de custo incompatível com seus recursos e utilizam insumos cada vez
mais caros. Esses fatores contribuem, conjuntamente, para minimizar a expressão
da produção para o autoconsumo.
A pesquisa constatou alterações profundas no modo de vida das famílias
rurais nas últimas cadas, a tal ponto que na época em que seus pais produziam
seria inconcebível a possibilidade de se comprar qualquer produto de consumo
alimentar, além do café, erva-mate, sal e, em alguns casos, o açúcar. Atualmente
não somente produtos alimentares industrializados são crescentemente consumidos
pelos membros das famílias, mas inclusive frutas, ovos, leite, carnes e legumes.
Embora os resultados da pesquisa tenham apontado para o fato da grande
maioria preservar as práticas de cultivo para o autoconsumo alimentar, isso não
significa que essa produção seja suficiente para assegurar a alimentação da
famílias. Esse quadro reveste importância e serve para compreender o fato de que
53% das famílias entrevistadas haverem manifestado que regularmente compram
133
hortifrutigranjeiros de terceiros, particularmente de comerciantes que circulam com
suas Kombis e camionetas nas estradas rurais.
Esses dados desfazem certas visões, freqüentemente romantizadas, que
associam as colônias do extremo sul gaúcho a um espaço rural, que no passado,
era ocupado por uma agricultura tipicamente camponesa, a qual assume hoje a
forma de agricultura familiar. Há, portanto, uma série de aspectos a serem ampliados
e aprofundados a partir da realização dessa pesquisa por outras investigadores
comprometidos com a questão da segurança alimentar no espaço rural. O tema do
autoconsumo responde a uma rie de aspectos ligados ao âmbito estrito da família
rural e ao universo mais amplo em que se acha inserida, tal como se buscou
evidenciar a partir desse estudo.
134
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São Paulo: Cortez, 2002, 272 p.
VALENTE, F. L. S. A Evolução, Conceito e o Quadro da Segurança Alimentar dos
anos 90 no Mundo e no Brasil. Publicação Eletrônica. Disponível em:
<http://www.sept.pr.gov.br/conselhos/consea/artigos
>. Acesso em: 04 de abril. 2006.
VEIGA, J. E. O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo: HUCITEC, 1991, 219 p.
138
WANDERLEY, M. N. B. Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidades.
In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, nº 21, 2003. p. 42-62.
WOLF. E. Sociedades Camponesas. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
WOORTMANN, E., WOORTMANN, K. O significado do alimento na família
camponesa. In:Revista IHU on-line, Unisinos, 2007 p 12- 15. Disponível em:
<http://www.unisinos.br/ihuonline/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1>
WOORTMANN, E., WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a lógica simbólica da
lavoura camponesa. Brasília: Editora Universidade Brasília, 1997, 192 p.
139
Apêndices
140
Apêndice - AROTEIRO DE ENTREVISTAS -
ROTEIRO PARA ENTREVISTA
Nome do entrevistador .............................................................................................
Nome do entrevistado: .............................................................................................
Idade: ....................
Tempo de duração da entrevista (início/fim): ...........................................................
Data:...................................................... Município: ...............................................
1) Qual a principal atividade de produção a que se dedica a família?
2) Quantas pessoas vivem em casa? (ver aspectos como: escolaridade dos
membros, idade, ocupação principal ou secundária, se pensionistas na
família, se fazem às refeições conjuntamente, há quantos anos vivem na
propriedade, como essa propriedade foi adquirida?)
3) Como a família a situação da agricultura hoje? (perspectivas quanto ao
futuro, se desejam que os filhos sejam agricultores, se gostariam de ficar
vivendo no meio rural e quais as maiores dificuldades no momento?)
4) Como era a vida no tempo de seus pais? Quais as principais mudanças desse
tempo para o de hoje? (como plantavam, o que produziam, o que compravam
fora)
5) Houve mudanças na alimentação da sua família se comparado ao tempo de
seus pais?
5.1) Quais alimentos que seus pais costumavam fazer e que sua família ainda
usa?
5.2) Existe horta, pomar?
6) E as criações? Quais? Quem se dedica a elas?
7) Quais são os alimentos que a família produz para o “gasto da casa”? (tentar
listar todos os alimentos)
7.1) A família tem idéia de quanto gastaria se comprasse esses alimentos?
8) kombis ou caminhões vendendo verduras, frutas e demais alimentos na
comunidade? Com que freqüência elas aparecem?
9) A família adquire os produtos oferecidos pelas kombis? Quais os produtos
que costuma comprar?
10) O Sr. acha que nos dias de hoje as pessoas comem mais e melhor do que no
passado?
10.1) E na sua comunidade as pessoas tem facilidade de conseguir sua
alimentação?
141
Apêndice B – Acervo de imagens do pesquisador
Apêndice B.1 –
Visão panorâmica da microrregião de Pelotas RS que compõe o cenário dos
estabelecimentos de agricultura familiar.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
Apêndice B.2 –
Casal de agricultores familiares produtores de pêssego no município de Pelotas -RS.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
142
Apêndice B.3 –
Família agricultores familiares produtores de leite no município de São Lourenço do Sul,
Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
Apêndice B.4 –
Prédio que abrigou a família do colonizador Jacob Rheinghantz situada na Coxilha do
Barão - São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
143
Apêndice B.5 – Monumento em homenagem ao colono, localizado na Coxilha do Barão, São
Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
Apêndice B.6 –
Moinho desativado, Picada Moinhos
, São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
144
Apêndice B.7 –
Galpão em estabelecimento rural no município de Canguçu com destaque para a
produção de fumo,
Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007.
Apêndice B.8 Família de
agricultores familiares produtores de fumo entrevistados no município de
Canguçu,
Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007
145
Apêndice B.9
Agricultora na companhia de seus netos exibindo a produção para o autoconsumo no
município de Canguçu,
Rio Grande do Sul.
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2007
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