sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste exame
profundo e
minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio
-- É de moça, é de mulher! murmurou ele. Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de Édipo é uma
verdade eterna. no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre
quatro
pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula,
mas
conchega-se mais ao solo de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época da
expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se; é a árvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao céu
os
orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flores, que nós chamamos paixões.
Na
velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço,
deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé e calça esse coturno da mais
triste das tragédias humanas, a decrepitude.
Horácio observou de novo atentamente o objeto que tinha entre as mãos.
-- A menina de quinze anos já não é a corça de quatro patas; não está mais na alvorada da vida, na puerícia; também
ainda
não chegou ao meio-dia do qual aproxima-se. Contudo, seu andar conserva ainda aquela atração para a terra; é pesado;
calca o chão com força; tem o quer que seja de sacudido, que revela os impulsos da alma para desprender-se do pó e
elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levanta, ora se submerge. Se esta botina fosse de uma menina,
aqui
estariam impressos esses caracteres de sua idade. A sola, em vez de levemente triturada nas extremidades, estaria
estragada;
o salto cambado. É uma observação que todo sapateiro confirmaria: o menino gasta o calçado pela sola, o homem pelo
couro; a razão, o sapateiro a ignora, mas o filósofo a conhece: o menino é o inseto que rasteja, a larva; o homem é o
inseto
que voa, o besouro; aquele anda com o ventre, este com a asa.
Horácio sorriu.
-- Esta botina é de moça; e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas roçada junto à ponta, o salto quase intato,
não
estão descrevendo com a maior eloqüência a sutileza do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer eu vejo, esse andar gentil,
que
manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Vênus deste olimpo em que vivemos, a mulher. Só quando toda seiva
se
precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde abrirão em flor, só nesse momento de assunção é
que a
mulher tem este andar sublime e augusto. É o andar do passarinho que, roçando a relva, sente o impulso das asas; é o
andar
do astro nascente, caminhando para a ascensão; é o andar do anjo que, mesmo tocando a terra, parece prestes a fugir ao
céu; e é, finalmente, a elação d'alma que aspira de Deus os eflúvios do amor, do amor, único ambiente do coração!
Nisto o moço descobriu na fivela do laço da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se à luz, viu as
voltas
de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verdadeiras garras de leão da moda. Com alguma paciência
retirou
um longo cabelo castanho e muito crespo.
-- Outra prova de que aliás não carecia! Este cabelo é de mulher; não há menina que possa ter. Quatro palmos, além do
que
se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabelo castanho e crespo,
duas
coisas lindas sem dúvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de corvo. Esse negrume
dá à
mulher o quer que seja de satânico: lembra que ela também gerou se da terra; não é anjo somente; não é somente filha
do céu.
Eu não posso suportar a mulher-serafim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do pó de que é feita.