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estava impregnada desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lírio,
derramava, como a flor, ondas suaves.
O mancebo colocara longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. Não
havia aí o menor laivo de essência artificial preparada pela arte do perfumista; era a pura exalação de uma cútis
acetinada, esse hálito de saúde que perspira através da fina e macia tez, e como através das pétalas de uma rosa.
De repente uma idéia perpassou no espírito do moço, que o fez estremecer. Essa botina grácil, em que mal
caberia sua mão aristocrática, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, não podia ter um número maior do
que o de seus anos, vinte e nove!
“Será de uma menina!” murmurou ele um tanto desconsolado.
Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a
orla da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste
exame profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio.
“É de moça, é de mulher!” murmurou ele. “Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de
Édipo é uma verdade eterna: no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã
anda sobre quatro pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se
rasteira, brota, pulula, mas conchega-se mais ao solo, de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois
da juventude, na época da expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se: é a árvore que hasteia e procura as
nuvens; a planta pede ao céu os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as
flores, que nós chamamos paixões. Na velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o
pó, que, depois de revoar no espaço, deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos
torna-se pé e calça esse coturno da mais triste das tragédias humanas, a decrepitude.”
Horácio observou de novo atentamente o objeto que tinha entre as mãos.
“A menina de quinze anos já não é a corça de quatro patas; não está mais na alvorada da vida, na puerícia;
também ainda não chegou ao meio-dia do qual aproxima-se. Contudo, seu andar conserva ainda aquela atração para a
terra; é pesado; calca o chão com força; tem o quer que seja de sacudido, que revela os impulsos da alma para
desprender-se do pó e elevar-se; assemelha a singradura do batel, que ora se levanta, ora submerge-se. Se esta botina
fosse de uma menina, aqui estariam impressos esses caracteres de sua idade. A sola, em vez de levemente triturada nas
extremidades, estaria estragada; o salto cambado. É uma observação que todo sapateiro confirmaria: o menino gasta o
calçado pela sola, o homem pelo couro; a razão, o sapateiro a ignora, mas o filósofo a conhece: o menino é o inseto que
rasteja, a larva; o homem é o inseto que voa, o besouro; aquele anda com o ventre, este com a asa.”
Horácio sorriu.
“Esta botina é de moça; e moça em todo o viço da juventude: a sola apenas roçada junto à ponta, o salto quase
intato, não estão descrevendo com a maior eloqüência a sutileza do passo ligeiro? Eu sinto, posso dizer, eu vejo, esse
andar gentil, que manifesta a deusa, como disse o poeta; a deusa, a Vênus deste olimpo em que vivemos, a mulher. Só
quando toda a seiva se precipita para o coração, quando germinam os botões que mais tarde abrirão em flor, só nesse
momento de assunção é que a mulher tem este andar sublime e augusto. É o andar do passarinho que, roçando a relva,
sente o impulso das asas; é o andar do astro nascente, caminhando para a ascensão; é o andar do anjo que, mesmo
tocando a terra, parece prestes a fugir ao céu; é, finalmente, a elação d'alma que aspira de Deus os eflúvios do amor, do
amor único ambiente do coração!”
Nisto o moço descobriu na fivela do laço da botina alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-se à
luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre as brancas unhas afiladas, verdadeiras garras de leão da moda. Com
alguma paciência retirou um longo cabelo castanho e muito crespo.
“Outra prova de que aliás não carecia! Este cabelo é de mulher; não há menina que o possa ter. Quatro palmos,
além do que se partiu naturalmente! Bem se vê que é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o cabelo castanho
e crespo, duas coisas lindas sem dúvida, embora minha paixão seja a trança basta e lisa, negra como uma asa de corvo.
Esse negrume dá à mulher o quer que seja de satânico: lembra que ela também gerou-se da terra; não é anjo somente;
não é somente filha do céu. Eu não posso suportar a mulher-serafim, que parece desdenhar do mundo onde vive, e do pó
de que é feita.”
Horácio voltou à botina.