www.nead.unama.br
9
organizavam em uma das salas das Tulherias durante a quaresma, e as quais
deram gamenhamente, o nome de Concertos espirituais.
Luís XV gostava de presenciá-las, sentado a um canto entre algumas
formosas mulheres, e bebendo vinho da Síria, que era o seu vinho predileto.
Pestanejava e sorria para todos os lados. Liam-se versos ternos e religiosos,
cantavam-se o Miserere, o De profundis, o Stabat, e outras cousas tristes, mas tudo
com muita graça e requebros faceiros.
Era o amor temperado com óleo cheiroso de Santa Luzia.
Havia sempre para estrear, no púlpito desses concertos, um ou mais jovens
eclesiásticos, sempre moços bonitos, aos quais, durante o sermão, serviam água
rosada e licor de violetas. E o que deles se exigia, era apenas voz doce, olhar
meigo, dentes bem claros, lábios vermelhos, rendas alvíssimas na camisa, e mãos
brancas de unhas limpas. Às vezes criava-se uma bela reputação e fazia-se uma
bonita carreira, só com uma palavra feliz ou com um gemido suspirado com chiste
em ocasião oportuna. O caso era que as gentis devotas se impressionassem. E só
se falava à meia voz, só se namorava a meio sorriso e só se andava lentamente aos
pulinhos, abafando os passos nos arminhosos tapetes a que Pompadour deu o seu
nome.
Ângelo, coitado, nada conhecia disso nem por notícia sequer; como
igualmente não conhecia o outro gênero de pregadores, não menos comum nesse
tempo, o do pregador terrível, de pulso forte e cabeça dura, que ia para o púlpito de
cacete escondido debaixo do capote, e cujos sermões eram por via de regra uma
descarga política e uma tremenda descompostura, contra o partido dos Jansenistas
ou contra o partido dos Molinistas, conforme a filiação do orador, e que, em geral,
acabavam também por soluços e gemidos, mas estes agora bem sinceros e bem
reais, e grossa pancadaria no átrio da igreja.
Até certa idade, Ângelo chegou a acreditar que o mundo se resumia no seu
convento, e que a humanidade se compunha apenas daquela meia dúzia de frades,
ingênuos e quase santos, que ele conhecia. Ozéas, com um cuidado enorme, um
zelo de guarda do Paraíso, isolava-o dos seminaristas e dos empregados do
seminário, e lhe não deixava cair nas mãos a mais inofensiva página de qualquer
livro que não fosse religioso.
E, no entanto, Ângelo era dotado de um poderoso talento de assimilação e
devorava sofregamente tudo, bom ou mau, que lhe davam para ler. As matérias
religiosas que plantaram no fundo do seu espírito, desabrocharam logo, produzindo
uma intrincada floresta de filosofia teológica, que abismava aos próprios seus
professores.
Aquela criança, diziam estes, estava destinada a fazer o verdadeiro
renascimento da religião cristã.
E cresciam os desvelos em torno de Ângelo, orçando já pelo fanatismo. Não
lhe permitiam olhar para o pátio do convento, onde havia uma criação de galinhas e
coelhos. Receavam, e com razão, que o espetáculo dos instintos procriadores dos
inocentes bichos despertasse no outro inocente idéias que a igreja reprovava.
Escondiam-lhe o próprio sol em dias de grande calor, como se a exibição daquela
vida que se derramava sobre a terra para fecundar com a luz germinadora e
benéfica, fosse bastante para acordar na carne pálida do seminarista a
revolucionária centelha do amor.
Entretanto, Ângelo bem pouco se impressionava com essas cousas, e tinha
para todas essas lubrificações com que a natureza estimula a vida, um profundo
olhar de indiferença, como se todo ele estivesse perenemente voltado para a fria