V
Fitei-a.
A prima Anica estava vestida de branco e com os cabelos solto. Eu já tinha idéia do seu rosto,
mas ainda não apreciava bem o seu porte; agora não tenho dúvidas sobre o juízo que fazia do seu
merecimento físico.
Anica não é feia, nem bonita; abre muito os olhos, porque os tem pequenos e sem o fogo do
sentimento; seu rir é triste, sua cintura delicada, os braços são tão finos que movem dó, e os pés tão
grandes, que fazem pena; tem cabelos pretos, finos e bastos; o seu parecer porem, a sua figura, o seu
andar são de um desenxabimento, que desconsola. O melhor dom que a natureza lhe deu foi a voz, que
é doce e maviosa como a queixa de uma santa.
Retirei a luneta antes de passar o terceiro minuto; mas imediatamente senti o impulso da
curiosidade que se tornava irresistível.
Esqueci o protesto feito, esqueci a dor da primeira experiência da visão do mal, esqueci,
sufoquei a razão que ainda me falava, condenando o desejo imprudente, e dizendo a mim mesmo:
—Preciso saber com quem vivo.
De novo fitei a minha luneta sobre a prima Anica, que estava dando os bons dias às suas flores
A principio vi somente o que já tinha visto, que ela não era nem bonita nem feia, mas
notavelmente desenxabida. Passados três minutos, não lhe vi mais o rosto nem a figura, vi-lhe o
coração e a alma; o coração era uma pedra de gelo, a alma era o espírito reduzido a cálculo, a alma era
como o seu olhar sem o fogo do sentimento; no seu coração li a indiferença e a tristeza, na sua alma a
ambição de um marido rico que lhe desse mais o gozo da mesa, do que o esplendor do luxo e das
festas; era, é a mulher fria, egoísta positiva, material, incapaz de amizade, e ainda menos suscetível de
amor, mulher que sendo esposa nunca desejaria um filho, nem teria zelos do marido, mulher sem
caridade, porque só vivia ocupada de dormir bem, comer bem, e passar bem.
Encontrei a minha imagem na alma de Anica, mas a minha imagem estava ali, como se fora
um X em um problema de álgebra: eu era em sua alma uma hipótese de marido, e como letreiro, como
nome da minha imagem, li em caracteres aritméticos a soma das legitimas, das heranças que me
haviam deixado meu pai e minha mãe! . . .
E mais viva do que a minha imagem vi a do mano Américo que é muito mais rico do que eu
(sem dúvida porque ele pensando por dois, pensava mais e melhor em si, do que por mim é em mim),
vi a imagem do mano Américo, outra hipótese de marido, mais desejada, mais afagada do que a minha
hipótese, mas só com afagos de cálculo, e sem um ligeiro afago de amor.
E, à exceção do gelo e do cálculo, coração morto na vida, alma estéril, seca, inóspita.
Anica e a mulher do egoísmo sublime: contanto que lhe dessem boa casa, boa mesa, bom
jardim e melhor pomar, amas se tivesse filhos, criados que a deixassem não trabalhar, silêncio e
isolamento à noite para dormir à vontade, poderia enviuvar vinte vezes, dando à memória de seus
finados, não a consolação das lágrimas do amor e da saudade, mas a da certeza de não ter sido infiel,
nem falsa a nenhum deles menos por virtude, do que pela acerbidade e aridez de sua alma enregelada.
Que mulher! olhos sem lágrimas, terra sem vegetação, mar sem ondas nem tempestades, céu sem
estrelas e horizonte sem nuvens, natureza, rochedo.
Desviei a minha luneta dessa mulher, campo árido, deserto infindo de áreas estéreis sem um
só oásis consolador.
Mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher sem sentimento, mulher sem amor, mulher-
egoísmo é um triunfo da matéria sobre o espírito mais terra do que céu, mais pó do que alma, mais
lodo do que pureza da eternidade; é a mulher-monstro que calunia a mulher criada por Deus; é um
assombro que se faz admirar pela hediondez.
A prima Anica tornara-se para mim repulsiva, mais do que repulsiva, repugnante.