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Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota
d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por
um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina,
voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito,
precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme
tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a
límpida gota assustada, a tromba monstruosa, — equóreo traço de união colocado
entre o mar e as nuvens, — parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou,
irônica:
— Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos
perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos
ventos?
Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota
límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:
— Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a
ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá em baixo, clamando
por nós. Ouves?
A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria
a terra, em baixo, reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um
bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro
às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade,
chorava, gemia, guaiava, num tumulto de vozes desesperadas.
Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:
— Lá em baixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um
destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei
uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as
minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas
águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço
de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre,
sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!
— Meu Deus!... gemeu a gota d'água. apavorada, pálida, trêmula, no horror
daquele extermínio próximo.
Nesse instante, um trovão continuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do
oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-
a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram
com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois,
serenada a tempestade, aparecia, de novo, ao sol, a face tranqüila do mar.
Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não
existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na
praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do
céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas...