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costureira e morava na rua Padre João Gonçalves. Esse passeio era muito legal,
porque nos dias de chuva a rua virava uma lama só. Eu adorava o terreno baldio
que ficava em frente, cheio de pés de amora.
Dona Mábile fazia roupas muito bem, mas eu sentia pena dela.
Trabalhava feito doida para pagar os estudos do filho que morava em Paris. Ela
aceitava qualquer serviço, desde roupa de bebê até vestido de noiva. Eu achava
estranho uma costureira tão pobre ter um filho em Paris: por que ele não estudava
aqui mesmo?
Na rua Mourato Coelho ficava uma loja de tecidos. O dono era seu
Jorge. Ele era narigudo e de olhos verdes. O filho dele, o Jorginho, narigudo e de
olhos azuis. O Jorginho, na Semana Santa, fazia papel de Cristo na procissão da
igreja do Calvário. Eu adorava entrar na loja e sentir o cheiro dos tecidos novos.
Muitas vezes ia lá só para cheirar. Anos depois, o armarinho foi transformado em
um bar que ficou conhecido como Bar da Terra.
Outro lugar bárbaro era o armazém da dona Dirce, na rua Simão
Álvares. A gente enfiava os braços nos sacos de arroz e feijão... Uma delícia!
Mesmo quando eu já estava com treze anos ainda sentia vontade de afundar a mão
nas lentilhas, mas me controlava um pouco porque todos diziam que eu já era
mocinha.
No entanto, eu ainda gostava de muitas coisas de criança, como essa de
brincar nos sacos da mercearia, colocar barquinho na enxurrada, jogar mamona ao
alvo, organizar circo na rua... Ah! Tinha também o seu Manoel, que vendia banana
no caminhão e anunciava: “Bananerô, bananerô”.
Na esquina da rua Mourato Coelho com Aspicuelta moravam o Chico e
o Paulo, que desenhavam muito bem. Nós estudávamos no mesmo colégio, o
Machado de Assis. Às vezes, saindo da escola eu via não sei se o Chico ou o Paulo,
e logo depois, na pracinha, eu encontrava não sei se o Paulo ou o Chico. Eles eram
gêmeos, e eu só comecei a distingui-los porque à medida que foram crescendo um
foi ficando mais hippie do que o outro.
Na Aspicuelta ainda havia um barzão ou uma padaria, não me lembro
mais, onde os velhinhos jogavam dominó. Eles tomavam conta do lugar como se
fosse a casa deles. Até o dono muitas vezes deixava de atender freguês para jogar
uma partida.
Na Vila moravam vários casais portugueses. Eles costumavam construir
nos quintais uma outra casinha para os filhos. Mais tarde, essas casinhas passaram
a ser alugadas para os novos moradores que foram chegando.
O bairro parecia cenário do interior. Nossos vizinhos da direita eram
dona Natália e seu Antenor. Os dois vira e mexe, no meio de qualquer conversa,
fosse o assunto que fosse, sempre falavam do filho eu estudava medicina..
No lado esquerdo morava Maria Amélia, que tinha uma sanfona, o rosto
cheio de espinha e – coisa mais careta eu achava – esperava marido.
Em frente ficava a casa do seu Ângelo, que era barbeiro. Nas noites de
Natal ele tocava sax para os moradores, saía distribuindo música de porta em porta.
Seu filho estudava contabilidade e ele achava o máximo que o rapaz estivesse no
Mackenzie, um colégio particular. Eu sentia uma coisa meio estranha quando o seu
Ângelo elogiava a contabilidade como uma profissão segura, porque o elogio não
combinava com o seu outro lado tocador de sax. Pena que música ele ó fazia uma
vez por ano!
Eu não sabia bem por quê, mas aquelas pessoas eram parecidas com as
ruas da vila: todas muito simpáticas mas estreitinhas, para cada desejo um
paralelepípedo... Às vezes essas impressões me pareciam besteira, coisa de criança.
Só mais tarde, com Magro, é que percebi que minha intuição tinha razão de ser.
Vejas só:
O Zé Luís, filho do seu Jarbas, estudava engenharia mas gostava de
tocar guitarra. O seu Jarbas ficava preocupado, onde já se viu engenheiro
guitarrista? Aí o Zé Luís só ensaiava na casa do Edu Bolão. E a rua inteira