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Marcelo Lima Calixto
O discurso único no livro didático de língua portuguesa.
Passo Fundo, maio de 2006.
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS
Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS
Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: mestradolet[email protected]
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Marcelo Lima Calixto
O discurso único no livro didático de língua portuguesa.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade de Passo Fundo, como requisito
para obtenção do grau de mestre em Letras, sob a orientação
da Profª. Drª. Florence Carboni.
Passo Fundo
2006
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__________________________________________________________________
C154d Calixto, Marcelo Lima
O discurso único no livro didático de língua portuguesa /
Marcelo Lima Calixto. – 2006.
114 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade de Passo Fundo,
2006.
Orientação: Profa. Dra. Florence Carboni.
1. Língua portuguesa Estudo e ensino. 2. Livros didáticos.
3. Análise do discurso. I. Carboni, Florence, orientadora. II. Título.
CDU: 806.90
__________________________________________________________________
Catalogação: bibliotecário Alexandre Chow – CRB 10/1681
2
DEDICATÓRIA
Aos meus pais Vilson Gonçalves Calixto
(póstuma) e Neusa Marli Lima Calixto, iniciadores
de tudo, que sempre acreditaram e continuam
acreditando em mim. E a minha companheira de
vida, Izandra Alves, grande responsável pelo início,
pelo meio e pelo final dessa caminhada.
3
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Telissa Furlanetto Graeff, que me
abriu as portas da UPF e à Profª. Drª. Florence
Carboni, pela paciência, pelo respeito e pelo
incentivo.
4
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em
pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo.
Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não
nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e
escreve-se
na pedra.
(...)"
Carlos Drummond de Andrade
5
ABSTRACT
Le discours unique dans les livres scolaires de portuguais langue maternelle
Le point de départ de ce travail est une certaine préoccupation par rapport au
silenciement de beaucoup d’élèves de portugais lorsqu’on leur demande d’interpréter
certains textes. Dès les premières années d’étude, lors des premiers contacts avec la langue
écrite, beaucoup de ces sujets voient leur histoire et leur langue ignorées par certains
professeurs. Les discours qui prédominent en classe sont presque toujours ceux du
professeur et du livre scolaire, qui, pour sa part, tend à reproduire ceux des classes
dominantes. Ces discours sont prédominants non seulement dans l’activité dénommée
‘interprétation de texte’, mais aussi dans d’autres activités liées au cours de portugais.
Progressivement, un “discours unique” occupe l’espace de la classe, de l’école, de la
famille et de la société.
Comme les divers savoirs, les différentes histoires, la polissémie du discours
sont constamment ignorés dans la classe de portugais, par doses homéopathiques, les futurs
citoyens sont amenés à se taire, à n’entendre que le discours et le savoir des autres, à obéir,
à ne pas percevoir l’intradiscours et l’interdiscours, à accepter le non-dit. Consciemment ou
non, certains professeurs de portugais finissent ainsi par rendre service à l’ordre établi.
L’objectif de ce travail est celui d’explorer ces idées, dans une perspective
empruntée à l’Analyse de Discours, montrant combien certains professeurs de portugais,
s’appuyant sur le livre scolaire, réalimentent les divers non-dits.
Mots-clés: discours, livre scolaire, silenciement.
6
RESUMO
O discurso único nos livros didáticos de português
O ponto de partida desse trabalho é uma nossa preocupação em relação ao
silenciamento de muitos alunos, quando, nas aulas de português, são solicitados a
interpretarem certos textos. Desde os primeiros anos de estudo, na ocasião dos primeiros
contatos com a língua escrita, muitos desses alunos vêem sua história e sua língua
ignoradas por alguns professores. Os discursos predominantes nas salas de aula são quase
sempre os do professor e do livro didático que, por sua vez, tende a reproduzir os das
classes dominantes. Esses discursos são predominantes não apenas na atividade
denominada ‘interpretação de texto’, mas também em outras atividades ligadas à disciplina
de português. Progressivamente, um “discurso único” passa a ocupar o espaço da sala de
aula, da escola, da família e da sociedade.
Como os diversos saberes, as diferentes histórias, a polissemia do discurso
são constantemente ignorados na aula de português, em doses homeopáticas, os futuros
cidadãos são levados a ouvir apenas o discurso e o saber dos outros, a obedecer, a não
perceber o intradiscursos e o interdiscurso, a aceitar o não-dito. Consciente ou
inconscientemente, alguns professores de português acabam assim prestando um serviço à
ordem estabelecida.
O objetivo desse trabalho é de explorar essas idéias, na perspectiva da
Análise de Discurso, mostrando o quanto os professores de português, ao se apoiarem no
livro didático, realimentam os diversos não-ditos.
Palavras-chave: discurso, livro didático, silenciamento.
7
CONSIDERAÇÕES INICIAIS _____________________________________________ 8
1. A EDUCAÇÃO FORMAL A SERVIÇO DOS INTERESSES DO ESTADO ___ 10
1.1 Breve retrospectiva da educação no Brasil.____________________________________ 10
1.1.1. A educação jesuítica __________________________________________________________ 11
1.1.2. A educação no período pombalino________________________________________________ 13
1.1.3. A educação no império. ________________________________________________________ 14
1.1.4. A educação no século XX ______________________________________________________ 16
1.2. O livro didático __________________________________________________________ 26
1.2.1. A função do livro didático ______________________________________________________ 26
1.2.2. Breve histórico do livro didático no Brasil _________________________________________ 28
1.3. O ensino de português ____________________________________________________ 31
1.3.1. Os PCN e o ensino de português _________________________________________________ 31
1.3.1. A estrutura dos PCN __________________________________________________________ 32
1.3.2. Os PCN e as críticas ao ensino de língua portuguesa__________________________________ 34
1.3.3 Como os PCN tratam o texto ____________________________________________________ 36
1.3.4. Os PCN e uma breve reflexão sobre a linguagem verbal_______________________________ 40
1.3.5. O profissional enquanto intermediário da educação __________________________________ 41
1.3.6. Considerações finais sobre os PCN _______________________________________________ 47
2. A LINGUAGEM VERBAL: FENÔMENO MULTIFACETADO _______________ 48
2.1. A "língua" de Saussure ___________________________________________________ 48
2.2. O caminho para o estudo da língua em uso ___________________________________ 52
2.2.1. Caminhando com a teoria da enunciação___________________________________________ 54
2.3. A sedução pelo formalismo ________________________________________________ 57
2.4. A sedução pela variação ___________________________________________________ 58
2.5. Quando o objeto é o discurso_______________________________________________ 63
2.5.1. O sujeito e o assujeitamento_____________________________________________________ 65
2.5.2. A formação discursiva e a influência de Althusser ___________________________________ 66
2.5.3. O interdiscurso e o intradiscurso _________________________________________________ 67
2.6. A visão marxista do círculo de Bakhtin ______________________________________ 70
3. O DISCURSO ÚNICO NA ESCOLA ______________________________________ 76
3.1. Escola, língua e discurso dominantes ________________________________________ 77
3.2. A compreensão de texto. Considerações teórico-metodológicas___________________ 81
3.2.1. Texto, sentido e discurso _______________________________________________________ 82
3.2.2. O(s) sujeito(s) do discurso escolar ________________________________________________ 84
3.2.3. Procedimentos metodológicos ___________________________________________________ 86
3.3. Análise das propostas dos livros didáticos ____________________________________ 86
3.3.1. LD: Português: Dialogando com textos ___________________________________________ 86
3.3.2. LD: Linguagem: criação e interação ______________________________________________ 97
3.3.3. LD: Português: idéias & linguagens _____________________________________________ 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS_____________________________________________ 114
BIBLIOGRAFIA _______________________________________________________ 118
8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando começamos a exercer nossas atividades como docente de língua
portuguesa junto aos alunos da 8ª série do ensino fundamental de escolas públicas e
particulares, fomos surpreendidos pelo silenciamento dos discentes frente às diferentes
propostas de interpretação de texto presentes nos livros didáticos.
Independentemente do assunto que o texto trate, o silenciamento parece ser a
resposta mais concreta, mais “certa” e ao mesmo tempo mais cômoda, pois os alunos
estão habituados a, em seguida, receberem a “resposta” pronta da tarefa solicitada. Muitas
foram às vezes em que nossos alunos disseram: “professor, leia no livro, a resposta está aí”,
“Porque perdermos tempo com estas coisas, a minha resposta nunca está certa mesmo”, etc.
Preocupados com esta situação em que a “preguiça” mental toma conta de
nossos alunos, partimos em busca das razões que levam a esse comportamento. Muitas
foram as conversas informais com nossos colegas e muito decepcionantes foram as
justificativas que eles apresentaram para esse comportamento: “Não se preocupe, a timidez
é própria da adolescência”, “São um bando de preguiçosos, não querem nada com nada”,
“Este mundo está perdido, ninguém quer pensar mais”, etc.
Ao decidirmos seguir uma profissão dentro da área da educação,
principalmente na atividade de docente, entendíamos que as habilidades de observação, de
formulação, de raciocínio e de testagem de hipóteses, ou seja, a independência de
pensamento, são elementos necessários para a formação de um cidadão crítico, mas ao
começarmos a desenvolver nossas atividades profissionais, observamos, para nossa
surpresa, que é justamente na formação desse cidadão crítico que nosso sistema
educacional tem se mostrado particularmente falho.
O estudante brasileiro, e porque não dizer o professor brasileiro, tende a ser
submisso à autoridade acadêmica. Tende a acreditar que a verdade se encontra pronta e
acabada no livro e no pensamento daqueles que detêm esta autoridade. Talvez venha desta
visão a idéia de que educação é uma transmissão de conhecimento, é a passagem de uma
9
idéia pronta e acabada, ignorando que a beleza da educação está no desenvolvimento das
habilidades e na procura do conhecimento.
O presente trabalho está dividido em três partes. Na primeira, fizemos uma
incursão rápida pela história da educação no Brasil, começando pelos jesuítas, visto que
temos dificuldades em encontrar documentos e até mesmo livros que nos falem da
educação entre as comunidades nativas antes da chegada dos portugueses. Num segundo
momento, nossa incursão foi pela linguagem verbal como objeto multifacetado dos estudos
lingüísticos, onde apresentamos o que consideramos ser as principais teorias lingüísticas e
suas implicações no modo de abordar as aulas de português. Na terceira parte de nosso
trabalho, sobretudo norteados pelos conceitos teórico-metodológicos da Análise do discurso
(AD), analisamos a proposta e as atividades de alguns compêndios escolares,
principalmente na atividade denominada “interpretação de texto”, visto que são
precisamente as falhas na realização desta atividade que nos levaram a investir nossas
energias neste trabalho.
10
1. A EDUCAÇÃO FORMAL A SERVIÇO DOS INTERESSES
DO ESTADO
1.1 Breve retrospectiva da educação no Brasil.
O homem se distingue fundamentalmente dos demais animais pelo trabalho.
O trabalho é ação transformadora, dirigida de forma consciente e a partir da qual o homem
produz sua própria existência, baseado em suas necessidades. Essa ão transformadora é
social, nunca solitária. É importante não confundir o trabalho do ser humano com a
atividade de animais como formigas, abelhas, castores, etc., pois este tipo de ação é
determinado pelo instinto e é idêntico na espécie. Tampouco se deve confundir com a ação
de outros animais, como por exemplo, o macaco, que pode encontrar diferentes soluções
para alcançar uma banana que está longe do seu alcance.
O homem é um ser histórico, suas ações e pensamentos mudam no tempo, a
partir das diferentes dificuldades a serem vencidas. Isto ocorre não na vida coletiva,
como também na vida pessoal. O trabalho transforma o modo de pensar, de sentir e de agir
do ser humano, de modo que nunca permanece o mesmo ao final de uma atividade. Desse
modo, pode-se dizer que, pelo trabalho, o homem se produz, ao mesmo tempo em que
produz sua própria cultura. O homem é o resultado desse processo em movimento da
construção da cultura e de si próprio. É impossível pensar em uma natureza humana com
características eternas e universais. Também não um modelo de ser humano a que cada
um deveria se adequar.
A partir das relações que os homens estabelecem entre si, criam-se modelos
de comportamentos, de instituições e de saberes. O aperfeiçoamento desses modelos é
possível pela transmissão de conhecimentos adquiridos através das gerações e da
assimilação de comportamentos valorizados em uma determinada cultura, em um
determinado povo, em uma determinada época. Nas sociedades atuais, essa transmissão de
conhecimentos se dá através da educação formal.
11
Com o objetivo de relacionar a educação formal ou escolar, no Brasil, com a
transmissão do modo de vida, de pensar e de agir próprio das classes dominantes, o
presente capítulo limitar-se-á a apresentar um quadro geral da educação no Brasil, a partir
do momento que os portugueses chegaram a este território, mais especificamente com a
chegada dos primeiros jesuítas, em 1549.
1.1.1. A educação jesuítica
Foi somente a partir de 1549, com a chegada do governador-geral Tomé de
Souza, acompanhado por diversos jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega, que teve
início o processo de criação de escolas elementares, secundárias, seminários e missões, que
se espalharam pelo Brasil até o ano de 1759, quando os jesuítas foram expulsos da então
colônia portuguesa pelo Marquês de Pombal.
Nestes 210 anos, eles promoverão uma ação maciça na catequese de índios,
educação dos filhos dos colonos portugueses, formação de novos sacerdotes e da elite
intelectual, além do controle da e da moral dos habitantes da nova terra, conforme nos
relata Vanilda Paiva: “aqui chegados, começaram os jesuítas a organizar classes de ‘ler e
escrever’ destinadas às crianças, as quais limitavam-se à catequese e alfabetização,
servindo a alfabetização aos objetivos de introdução da língua portuguesa e ensino de
catequese” (Paiva, 2003: 66).
Neste período a educação começa, de certa forma, a ser destinada à “elite”.
Com o objetivo de preparar novas gerações de aliados, os padres jesuítas, por não terem
condições de “alfabetizar e catequizar” todos os meninos nativos desta terra, optam pelos
filhos dos caciques, pois “com tal medida não somente a influência dos meninos sobre os
adultos se fazia diretamente sobre os detentores do poder tribal, como também ficavam
protegidos os núcleos de colonização portuguesa dos ataques dos indígenas” (Ibid.: 66).
Em 1553 chega ao Brasil José de Anchieta, que aprende a língua tupi-
guarani e, no ano de 1595, organiza a primeira gramática da nova colônia portuguesa
denominada A arte da gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Segundo
Carboni e Maestri, “no século XVI, os jesuítas sintetizaram alguns falares tupis do litoral,
dando origem à chamada ‘língua geral’” (Carboni & Maestri, 2003: 17).
12
No início, as primeiras escolas reúnem os filhos dos colonos e dos índios,
mas a tendência da educação jesuítica é a separação entre os “catequizados” e os
“instruídos”. A ação sobre os índios se resume na cristianização e na pacificação, tornando-
os dóceis para o trabalho. Com os filhos dos colonos portugueses, porém, a ação tende a ser
mais efetiva, exercendo-a além das habilidades elementares de ler e escrever.
As influências mais marcantes da educação jesuítica são: a tradição religiosa
do ensino e a formação da burguesia e das classes dirigentes. A base do ensino é
predominantemente clássica, valoriza-se a literatura e a retórica, desprezando o estudo das
ciências e a atividade manual. A atividade humana é totalmente desprezada, já que a
estrutura econômica da colônia permitia essa visão, uma vez que esta estrutura econômica
era totalmente agrícola e a mão-de-obra era escravizada, pois “o regime de escravidão e as
condições sociais do conjunto da sociedade não propiciavam um interesse especial pelo
ensino” (Paiva, 2003: 68).
A formação da elite colonial, predominantemente intelectual e universalista,
esteve afastada das principais conquistas científicas da Idade Moderna
1
. Além disso,
durante esse largo período de tempo entre a chegada dos jesuítas (1549) e sua expulsão por
Pombal (1759), aumentou a distância entre os “letrados” e a maioria da população
analfabeta. No entanto, ao analisar o modo como se produziram e se institucionalizaram, na
história do Brasil, o sentido e os referentes da palavra analfabeto, Mariza Vieira da Silva
(1996: 152) mostra que enquanto durou a ordem escravocrata, a instrução e sua
exteriorização não eram critérios de seleção, classificação e identificação social. Isso
aconteceria mais tarde, após a independência e, sobretudo, com o fim da escravidão e a
chegada da República, quando surgiu a possibilidade de extensão de ensino não apenas aos
filhos da classe dominante.
Havia outros motivos para o não-desenvolvimento educacional da colônia.
Em meados do século XVIII, as idéias iluministas circulavam pela Europa e,
conseqüentemente, chegavam a Portugal. Existia um grande temor de que estas idéias
liberais européias chegassem ao Brasil, uma vez que estavam alcançando outros territórios
americanos e promovendo movimentos de emancipação, como a própria independência das
terras de São Domingos, atual República do Haiti, em 1804. Para Paiva “a intenção de
1
Segundo os Historiadores a Idade Moderna começa em 1453, com o fim do império bizantino.
13
manter a colônia culturalmente isolada aparece, aí, como um fato que atingia tanto a
educação popular quanto a educação das elites” (Ibid.: 69).
1.1.2. A educação no período pombalino
Em 1759, com a expulsão dos jesuítas, que tiveram seus bens confiscados,
muitos livros e manuscritos importantes foram destruídos, mas nada foi reposto. O Marquês
de Pombal só reiniciou a reconstrução do ensino uma década depois.
Somente em 1772 é que as primeiras providências mais efetivas são levadas
a efeito: a coroa se encarrega de organizar a educação, começando a implantação do ensino
público oficial, nomeando professores e estabelecendo planos de estudo e inspeção.
Enquanto os jesuítas preocupavam-se com o proselitismo e o noviciado, Pombal pensava
em reerguer Portugal da decadência em que se encontrava frente às demais potências
européias. Enquanto a educação jesuítica tinha por objetivo servir aos interesses da fé,
Pombal pensava em organizar uma escola para servir aos interesses do Estado.
Pombal criou as “aulas régias”, ou seja, aulas autônomas e isoladas, com
professor único e uma não se articulando com as outras. Os professores eram mal
preparados para a função, visto que, na sua maioria, eram improvisados e mal pagos. Suas
nomeações eram por indicação e sob concordância de bispos e estes mesmos professores,
tornavam-se “proprietários” vitalícios de suas aulas régias. Mas a influência jesuítica não
terminou com a saída dos jesuítas: muitos mestres formados pela Companhia continuaram
uma ação pedagógica muito semelhante à dos jesuítas. Neste período, apareceram também
escolas de carmelitas, beneditos e franciscanos, tentando preencher o vazio deixado pelos
jesuítas.
Porém essa época não se caracterizou somente por ações negativas. Em
1776, no Rio de Janeiro, foi criado um curso de estudos literários e teológicos, e em 1798,
foi criado o Seminário Olinda, pelo governador interino e bispo de Pernambuco, Dom
Azeredo Coutinho. O Seminário de Olinda "tinha uma estrutura escolar propriamente dita,
em que as matérias apresentavam uma seqüência lógica, os cursos tinham uma duração
determinada e os estudantes eram reunidos em classe e trabalhavam de acordo com um
plano de ensino previamente estabelecido" (Piletti, 1996: 37).
14
A conseqüência da decisão de Pombal em desmantelar o sistema jesuítico
foi que no início do século XIX a educação brasileira estava reduzida a praticamente nada e
essa situação só iria mudar com a chegada da família Real, em 1808.
1.1.3. A educação no império.
Como acabamos de ver, o Brasil principiou o século XIX com um sistema
educacional quase inexistente, pois todas as mudanças realizadas sempre tenderam a
resolver problemas imediatos, nunca encarando a educação como um todo e foi somente
com a chegada da família real portuguesa que ocorreram modificações no panorama
educacional brasileiro, pois “tornou-se necessária a organização de um sistema de ensino
para atender à demanda educacional da aristocracia portuguesa e preparar quadros para as
novas ocupações técnico-burocráticas” (Paiva, 2003: 70).
Mesmo assim, durante todo esse século, a educação arrastou-se de forma
desorganizada e desagregada. Entre o ensino primário e o secundário não havia pontes ou
articulações, eram dois mundos que se orientavam, cada um na sua direção. Eram as
exigências do ensino superior que determinavam a escolha das disciplinas do ensino
secundário, já que não havia currículo e a escolha das disciplinas era aleatória.
Com a declaração da independência do país, em 1822, foi outorgada pela
primeira vez uma constituição brasileira. Essa constituição, inspirada pela constituição
francesa, de cunho liberal, previa, em seu artigo 179, a “instrução primária e gratuita para
todos os cidadãos”. É importante registrar que, antes desta data, um projeto elaborado pelo
General Francisco de Borja Stockler, a pedido do Conde de Barca, ministro de D. João VI,
fora rejeitado pela coroa. Tal projeto “recomendava também a transmissão de
conhecimentos indispensáveis aos agricultores, operários e comerciantes através do ensino
nos ‘Institutos’, colocando-se assim como a primeira sugestão oficial de organização de um
sistema de ensino popular no Brasil (...)” (Ibid.: 70).
Como sugerido, a independência trouxe à tona a necessidade de maior
atenção à instrução elementar, pois a participação de brasileiros nas atividades do império
fazia-se necessária e “tornara-se uma tarefa importante preparar quadros para a burocracia
do novo Estado independente; surgem os cursos jurídicos e, em seguida, impulsiona-se o
ensino secundário com a criação do Colégio Pedro II” (Ibid, 70).
15
Na tentativa de superar a falta de professores, um ano após a independência,
foi instituído o “Método Lancaster”, que consistia em um aluno treinado (decurião)
ensinando um grupo de dez alunos (decúria). Em 1826 um decreto institui igualmente
quatro graus de instrução: pedagogias (escolas primárias), liceus, ginásios e academias, mas
“as primeiras determinações legais no império pouco afetaram, de imediato, o ensino
elementar (...). No Parlamento pedia-se uma estatística da instrução e propunha-se a
autorização para o governo criar escolas” (Ibid.: 71). No ano de 1834, o ato adicional à
constituição dispunha que as províncias passassem a serem responsáveis pela administração
do ensino primário e secundário e essas províncias “carentes de recursos pouco puderam
realizar em favor da instrução popular, que se desenvolveu precariamente durante todo o
Império e grande parte do período republicano” (Ibid.: 71–72).
Se a intenção era facilitar o acesso de diferentes contingentes populacionais
à educação, tal feito não foi atingido e mais uma vez a educação brasileira se perdeu,
obtendo resultados pífios. A educação elementar se expandiu de forma irregular e limitada
e “as elites adotaram como prática o estudo individual com preceptor em suas próprias
casas; a educação do povo não era sentida como uma necessidade social e econômica muito
forte” (Ibid.: 73).
O ensino secundário era predominantemente ministrado por professores
particulares, em aulas avulsas, sem unidade ou fiscalização. Com o tempo, formaram-se os
liceus provinciais que nada mais eram do que o resultado da reunião de aulas avulsas no
mesmo prédio. Eram muitas as críticas à baixa qualidade do ensino, com professores
improvisados, incompetentes e, devido aos baixos salários, obrigados a exercerem outras
atividades ao mesmo tempo.
No final do século XIX, a iniciativa privada organizou-se e foram fundados
importantes colégios, sobretudo católicos (inclusive de jesuítas, que retornavam oitenta
anos após a sua expulsão) e alguns protestantes, mostrando uma tendência diferente do
resto do mundo, onde a educação se laicizava cada vez mais.
Em 1889, com o fim do Império e o surgimento da República, a então
predominante ideologia católica começava a enfrentar a oposição do positivismo e da
ideologia liberal leiga. No campo educacional, o positivismo aumentou a luta pela escola
pública, leiga e gratuita. Os principais seguidores de Comte eram Benjamin Constant, Luís
16
Pereira Barreto, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Mesmo assim, as esperanças de
mudanças no quadro educacional não ocorreram e a situação continuou precária,
considerando, sobretudo, o fato de que o ideário positivista não tinha como prioridade a
superação das desigualdades sociais e culturais, via ascensão da classe proletária.
1.1.4. A educação no século XX
Do espólio do Império restaram um conjunto de instituições públicas para a
formação das elites e uma série de debates promovidos pelos republicanos liberais sobre a
estruturação de uma educação nacional, com a esperança da criação de um sistema em que
a educação popular fosse considerada um requisito fundamental, vista como sinônimo de
liberdade e riqueza, antônimo de pobreza e despotismo. Os constantes e acalorados debates
sobre a educação popular tiveram como resposta apenas a “proclamação” de sua
importância e a aprovação do projeto de criação de universidades, sem que seja seriamente
questionada a “necessidade ou finalidade de Universidades em um país destituído de
educação elementar... o que veio apenas legalizar uma situação de fato a omissão do
poder central em relação à educação popular”. (Xavier, 1980: 61-63).
Neste período de transição, onde parte da elite intelectual aderia aos ideais
do liberalismo burguês, foi atribuída à educação a tarefa heróica de promover a
reconstrução da sociedade. As propostas educacionais do século anterior intensificavam-se
neste século com a implantação das escolas públicas, que visavam unicamente sanar as
necessidades do mercado de trabalho, já que a indústria e o comércio começavam a
desenvolver-se aceleradamente. O desenvolvimento da escola esbarrou em dificuldades de
toda ordem, de modo que, ao lado de escolas pioneiras, conviviam escolas tradicionais e
antiquadas.
Com a expansão da indústria e do comércio houve uma ampliação de
profissões técnicas e dos quadros burocráticos necessários à administração e organização
dos negócios.
1.1.4.1. A educação na primeira república (1889- 1929)
Assim que a República foi proclamada, adotou-se o sistema federativo de
governo e, conseqüentemente, a descentralização do ensino. A primeira Constituição da
17
República, em 1891, reservou à União o direito de criar instituições de ensino superior e
secundário nos estados e prover a instrução secundária no Distrito Federal. Aos estados
competia atender e legislar sobre a educação primária, além do ensino profissional (na
época correspondia às escolas de nível médio para moças e às escolas técnicas para
rapazes). O sistema dual (uma escola para o rico e outra para o pobre), herança do regime
anterior, estava consagrado. A distância entre a educação da classe dominante (escolas
secundárias, acadêmicas e superiores) e a educação do povo (escola primária e escola
profissional) era cada vez maior.
Com a emergência de novas classes sociais: a massa formada pelos
agregados rurais, pelos pequenos artesões e pelos comerciantes da zona urbana começou a
ser substituída por uma camada de militares, os quais detinham um grande prestígio; por
uma camada média de intelectuais; por uma camada, pequena ainda, de burguesia
industrial, pelos ex-escravos apenas libertados do cativeiro e por todo um contingente de
imigrantes, que se ocupavam da lavoura ou das profissões liberais urbanas. Desta forma
“todo esse complexo organismo social não podia comportar-se em instituições de caráter
simplista” (Romanelli, 1999: 42) e a pressão não tardou a provocar uma ruptura e a
instituição da escola, alicerçada no princípio da dualidade social, foi aos poucos tendo sua
base comprometida pelo crescimento e desenvolvimento de complexas e diferentes
camadas sociais.
Surgia assim, em 1891, a reforma Benjamin Constant, que tinha como
princípios norteadores a liberdade e a laicidade, além da gratuidade do ensino. As
influências das idéias positivistas de Auguste Comte no currículo escolar foram grandes e
esse ensino passou a ser também formador de alunos para o ensino superior, mas não
abandonava a característica de “preparador ao superior”. Possuía também a intenção de
substituir a predominância literária, presente até então nos currículos escolares, por uma
abordagem mais científica. Esta reforma foi muito criticada pelos positivistas da época,
pois mesmo que Benjamin Constant fosse um positivista, esses entendiam que esta reforma
não respeitava os princípios pedagógicos de Comte uma escola que privilegiasse a busca
do que é prático, útil, objetivo, direto e claro, uma escola que favorecesse a ascensão das
ciências exatas - e o que ocorreu foi o acréscimo de matérias científicas às tradicionais,
tornando o ensino enciclopédico.
18
A falta de uma estrutura institucional e do apoio político de parte da elite,
que entendia que as reformas propostas por Constant eram uma ameaça à formação da
juventude, impediu a sua execução. Mas este insucesso foi apenas uma amostra dos limites
e das frustrações de uma República que começava a nascer. Por mais que desanimasse os
republicanos, “a nova cara política era mais parecida com a cara real do país e era por ela
que se tinha que dar início à nova jornada. Uma das fraquezas das elites vitoriosas é a sua
incapacidade de reproduzir novas elites adequadas para novas tarefas. Elas são as primeiras
vítimas de seu próprio êxito” (Carvalho, 1980: 183).
No ano de 1900, o percentual de analfabetos no Brasil chegava a oitenta por
cento, distribuídos principalmente entre as classes populares, sobretudo formadas de ex-
cativos. Mas, até o final do Império, o analfabeto não era considerado “inútil”, visto que
esta era a situação da maioria da população brasileira e a instrução não era condição para
que o indivíduo participasse da classe dominante e das principais atividades do país. Como
ressaltamos, é “somente quando a instrução se converte em instrumento de identificação
das classes dominantes (que a ela têm acesso) e quando se torna preciso justificar a medida
de seleção é que o analfabetismo passa a ser associado à incompetência” (Paiva, 2003: 93)
o que vai perdurar, infelizmente, até os dias de hoje.
As ingerências governamentais seguintes representaram passos e
contrapassos no crescimento da estrutura educacional. A Lei orgânica Rivadávia Corrêa, no
governo do marechal Hermes da Fonseca, em 1911, retomou a orientação positivista,
pregando a liberdade de ensino e possibilitando a oferta de ensino por escolas não oficiais.
Logo a seguir, em 1915, com a reforma de Carlos Maximiliano, o ensino no Brasil voltou a
ser de competência do governo central. O Colégio Pedro II foi reformado e foi
regulamentado o ingresso nas escolas superiores. Em 1925, no governo de Arthur
Bernardes, ocorreu a reforma Rocha Vaz, cujo mérito maior foi buscar estabelecer, pela
primeira vez, um acordo entre a União e os estados para a promoção da educação primária.
É importante salientar que estas reformas, além de fracassadas, representavam posições
isoladas das administrações políticas e, em nenhum momento, foram orientadas por uma
política nacional de educação, por uma política que visasse atingir a todos os segmentos da
sociedade nos diferentes lugares habitados do país, limitando-se na maioria das vezes ao
19
Distrito Federal, o que acabou contribuindo para a perpetuação do modelo educacional
herdado do período colonial.
Na década de 1920, “os avanços da psicologia no início do século, com suas
conseqüências sobre a pedagogia, começam a ecoar entre nós através das idéias da Escola
Nova” (Ibid.: 113), que propunha um modelo escolar onde as escolas deixariam de ser
meros locais de transmissão de conhecimentos e tornar-se-iam pequenas comunidades e
que tinham como principais características: a educação integral (intelectual, moral, física);
a educação ativa e a educação prática. Estas escolas eram uma tentativa de superação da
escola tradicional excessivamente rígida, magistrocêntrica e preocupada com a
memorização dos conteúdos. No entanto, somente a demanda para a ampliação da oferta de
ensino de elite (o médio e o superior) às classes médias em ascensão foi atendida pela
União. Difundiu-se assim a ideologia da ascensão social pela escolarização e “verificamos,
portanto, que em termos de realizações concretas pouco se fez pelo ensino elementar nas
primeiras décadas republicanas, embora em outras áreas como no ensino secundário e
superior, e sobretudo no ensino pedagógico, técnico e profissional – tenha se observado um
ligeiro desenvolvimento” (Ibid.: 95).
1.1.4.2. A educação no Estado Novo
Após a Primeira Grande Guerra (1914 – 1918) se prenunciavam novos
tempos para o país: com a crescente industrialização e urbanização – esta última devida, em
grande parte, à substituição das importações, em razão da guerra –, formava-se uma nova
burguesia que exigia o acesso à educação, mas retomando os valores da oligarquia,
aspirando a uma educação acadêmica e elitista e não técnica. O operariado começava a
fazer pressões para um mínimo de escolarização. A situação era grave, que na década de
20 o índice de analfabetismo atingia 80%.
Em 1931, Francisco Campos, assumiu a direção do recém-criado Ministério
da Educação e Saúde e promoveu a reforma do ensino secundário e universitário. Tendo
empreendido, na década de 20, as reformas da escolanovista em Minas Gerais, ele imprimiu
essa tendência renovadora no país. Pela primeira vez, ocorria uma ação planejada visando
uma organização em nível nacional.
Com a Constituição de 1937, que refletia as tendências fascistas do governo,
o impacto de algumas conquistas foi atenuado, sobretudo quanto ao dever do Estado como
20
educador, sendo a ênfase deslocada para a sugestão da liberdade da iniciativa privada.
Neste período ditatorial, o movimento renovador entrou em recesso.
Durante a ditadura Vargas, o então ministro Gustavo Capanema empreendeu
a reestruturação do ensino secundário e o ensino profissional sofreu alterações
consideráveis. O país passava por grande desenvolvimento industrial e, devido à guerra, a
importação de técnicos estrangeiros encontrava-se comprometida. A solução nacional foi a
criação de dois tipos de ensino profissional: um mantido pelo sistema oficial e outro,
paralelo, mantido pelas empresas privadas. Esta reforma foi elitista e conservadora.
O curso secundário foi novamente reestruturado, passando a ser formado
pelo ginásio de quatro anos e pelo colegial de três anos, dividindo-se esse último em curso
clássico e científico. no ensino profissional, houve alterações consideráveis. Em 1942,
foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI – e, em 1946, o Serviço
de Aprendizagem do Comércio SENAC. A população de baixa renda, ansiosa por se
profissionalizar, encontrou nesses cursos a condição ideal, mesmo porque os alunos eram
pagos para estudar. Daí o êxito dessa iniciativa particular.
As transformações que ocorreram na vida política do país também atingiram
a educação. Este período apresentou fases bastante diferenciadas. Num primeiro momento,
ao assumir o governo provisório, Vargas abrangia em seu programa de “reconstrução
nacional” a difusão intensiva do ensino público, principalmente o ensino técnico-
profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de incentivos e uma colaboração direta
com os Estados, pois “o governo toma a iniciativa da construção dos Liceus Industriais nos
Estados, reforma o ensino comercial e industrial” (Paiva, 2003: 123-124).
a reforma do ensino primário só foi regulamentada por lei após o Estado
Novo, em 1946. Trazia diversas novidades: criou o ensino supletivo de dois anos, o que
colaborou para a diminuição do analfabetismo, pois atendeu aos adolescentes e adultos que
não receberam escolarização; estipulou a necessidade do planejamento escolar; previu
recursos para a implantação da reforma; foi dada atenção à necessidade de estruturação da
carreira docente, bem como à remuneração condigna do professor. Apesar do otimismo
trazido pela nova lei, a realidade mostrava-se diferente. As dificuldades enfrentadas eram
muitas e o número de professores leigos aumentava ano a ano.
21
O regime “fascista” de Vargas via a educação como um dos meios de
propagar suas idéias entre a juventude do país. As reformas propostas só foram promovidas
a partir de 1947, quando Vargas já não estava mais no poder. Mais uma vez, a educação foi
relegada a um segundo plano pelo estado brasileiro, visto que “a falta de pressa com a qual
o governo procedeu demonstra que, apesar de sua intenção de utilizar a educação como
veiculo de difusão ideológica, a ação pedagógica através do sistema formal de ensino não
era vista pelo governo central como um instrumento de ação política muito importante”
(Ibid.: 150-151).
1.1.4.3. A educação na Nova República
O período entre 1945 e 1964 caracterizou-se pelo populismo sobretudo
depois da volta de Vargas ao poder em 1951 e foi marcado pelo otimismo resultante da
esperança de um desenvolvimento acelerado. Nesse período, houve uma nova mudança do
modelo econômico porque o desenvolvimentismo, que até então era marcado pelo
nacionalismo, começou a entrar em contradição com o início da internacionalização da
economia, resultante da invasão das multinacionais, a partir do governo de Juscelino
Kubitschek (1956-1961).
Baseando-se nos ideais emanados pela Carta Magna de 1946, o Ministro da
pasta da Educação e Saúde Pública do governo Dutra

Clemente Mariani, criou uma
comissão com o objetivo de elaborar um anteprojeto de reforma geral da educação
nacional. Esta comissão, presidida pelo educador Lourenço Filho, conhecido sobretudo por
sua participação no movimento dos pioneiros da Escola Nova e por ter colaborado com o
Estado Novo de Getúlio Vargas, era organizada em três subcomissões: uma para o Ensino
Primário, uma para o Ensino Médio e outra para o Ensino Superior.
Em novembro de 1948 este anteprojeto foi encaminhado à Câmara Federal,
dando início a uma luta ideológica em torno das propostas apresentadas. Num primeiro
momento as discussões estavam voltadas às interpretações contraditórias das propostas
constitucionais. A seguir, após a apresentação de um substitutivo do Deputado Carlos
Lacerda, as discussões mais marcantes relacionaram-se à questão da responsabilidade do
Estado quanto à educação, inspirados nos educadores da velha geração de 30, e a
participação das instituições privadas de ensino.
22
Nessa época, a maioria das escolas particulares de nível secundário ainda
pertenciam tradicionalmente às congregações religiosas, que possuíam um ensino
ministrado de forma a favorecer a classe privilegiada. Então, os religiosos católicos
passaram a assumir o debate, argumentando que a escola leiga apenas instrui, não educa,
opondo-se a um pretenso monopólio do Estado. Os religiosos defendiam a liberdade das
famílias na escolha da melhor educação para seus filhos. Posicionados do outro lado,
estavam os antigos “pioneiros” da educação, que recebiam o apoio de intelectuais, líderes
sindicais e dos estudantes, sendo iniciada a Campanha em Defesa da Escola Pública.
Os debates tinham como pano de fundo o anteprojeto da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional LDB, que levaria treze anos para se transformar em lei.
Quando foi publicada, em 1961, como Lei 4.024/61, estava ultrapassada. Essa lei não
apresentava mais a eficácia do anteprojeto original, prevalecendo as reivindicações da
Igreja Católica e dos donos de estabelecimentos particulares de ensino no confronto com os
que defendiam o monopólio estatal para a oferta da educação aos brasileiros. Esta foi a
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e, de certa forma, alterou a
estrutura de ensino, permitindo a equivalência dos cursos e, portanto, a adaptação na
passagem de um para outro.
Nesta mesma época, foram criados o Conselho Federal de Educação CFE
e os Conselhos Estaduais de Educação CEE, permitindo a representação das escolas
particulares. Isto tornou inevitável a pressão e o jogo de influências no sentido de obtenção
de recursos.
Na década de 60, aparecem os primeiros movimentos de educação popular.
A composição ideológica variava de grupo para grupo, havendo influência tanto marxista
quanto cristã. Entre os principais grupos, é pertinente destacar o CPC (Centro Popular de
Cultura), que surgiu por iniciativa da UNE (União Nacional dos Estudantes); o MCP
(Movimento de Cultura Popular), que surgiu por iniciativa da prefeitura de Recife; e o
MEB (Movimento de Educação de Base), criado em 1961 pela CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil).
O golpe militar de 1964 teria reflexos imediatos sobre a educação. Já no
início a ditadura colocara fora da lei as organizações consideradas subversivas, como a
UNE. Em seu lugar, foram permitidos apenas o DA (Diretório Acadêmico), restrito a cada
23
curso, e o DCE (Diretório Central dos Estudantes), para cada universidade. Foi eliminada a
representação de âmbito nacional e proibida qualquer ação política; nas escolas de nível
médio, os grêmios foram transformados em centros cívicos, sob a direta orientação do
professor de Educação Moral e vica, cargo que deveria ser ocupado por pessoa “de
confiança” da direção da escola.
1.1.4.4 A educação no e após o regime militar
No ano de 1968, marcado mundialmente pela revolta estudantil iniciada em
Paris, a ex-UNE, que continuava agindo na clandestinidade, realizou, em outubro, um
congresso no interior do estado de São Paulo (Ibiúna). Cerca de novecentos estudantes de
todo o Brasil foram presos e interrogados.
A reação da ditadura foi violenta: em novembro desse mesmo ano foi
apresentada a lei da reforma do ensino superior; em dezembro foram promulgados o AI-5
(Ato Institucional 5) e, em fevereiro de 1969, o Decreto-Lei nº 477, que proibia a
professores, alunos e funcionários das escolas toda e qualquer manifestação de caráter
político.
As reformas da educação impostas pela ditadura não revogaram a LDB/61,
mas realizaram atualizações e alterações diversas. Enquanto a Lei 4.24/61 tinha sido
elaborada a partir de um amplo debate com a participação da sociedade civil, as Leis s
5.540/68 e 5.692/71 foram impostas autoritariamente por militares e tecnocratas,
imprimindo à educação uma tendência tecnicista. Estas reformas foram fruto de um acordo
entre o MEC (Ministério da Educação e Cultura) e a USAID (United States Agency for
International Development), passando o Brasil a receber dos Estados Unidos assistência
técnica e cooperação financeira para a implantação da reforma.
Desenvolveu-se, assim, uma reforma autoritária, vertical e domesticadora,
que atrelava o sistema educacional ao modelo de desenvolvimento econômico dependente,
imposto pela política econômica estadunidense para a América Latina.
Esta reforma almejava a formação de mão-de-obra barata, de meros
executores, não de pesquisadores, o que mantinha nossa dependência em relação aos países
desenvolvidos. A introdução de disciplinas sobre civismo significava a imposição da
ideologia da ditadura, adubada pela extinção da filosofia e diminuição da carga horária de
história e geografia. A relação escola-comunidade reduzia-se à interferência do setor
24
empresarial nas escolas, visando à captação de mão-de-obra, assim como à influência na
estrutura escolar, burocratizando e hierarquizando as relações dentro da escola.
Entre as inovações que a Lei 5.692/71 trouxe para o ensino básico estava
a ampliação da obrigatoriedade escolar de quatro para oito anos, o que se tornava letra
morta, uma vez que não existiam recursos materiais e humanos para atender à demanda. A
tão desejada profissionalização não ocorreu, que os professores eram mal formados, as
escolas não ofereciam infra-estrutura adequada para as exigências dos cursos, sobretudo nas
áreas de agricultura e indústria. Não havendo profissionalização, foi lançado no mercado
um “exército” de mão-de-obra barata.
as escolas particulares, principalmente aquelas destinadas à formação da
elite, não se submeteram à lei, mas organizaram um “programa oficial” que atendia apenas
formalmente às exigências legais. Na verdade, o trabalho efetivo em sala de aula achava-se
voltado para a preparação para o vestibular, o que reforçava o seu caráter propedêutico.
Sendo assim, o dualismo foi reforçado. Agora, de forma mais grave, pois a elite estava mais
bem preparada e passou a ocupar as vagas das melhores universidades públicas do país.
Por volta de 1980, o amplo fracasso da implantação da reforma estava
largamente reconhecido e a Lei 7.044/82 dispensava as escolas da obrigatoriedade da
profissionalização, voltando a ênfase para a formação geral. estava em curso o lento
processo de “democratização” e começavam a serem “reconquistadosos espaços que a
sociedade civil perdera com a ditadura.
Em 1985, os militares deixaram o poder e foi nomeado o primeiro presidente
civil, embora muitos remanescentes da ditadura se mantivessem no poder até os dias de
hoje. No decorrer dos trabalhos da Constituinte de 1987/88, a questão referente à escola
pública foi um dos focos de acirradas discussões. Muitos foram os confrontos e pressões,
inclusive das escolas particulares, desejosas de manter o acesso às verbas públicas que a
Constituição anterior lhes garantia.
Os principais pontos da nova Constituição em relação à educação eram:
gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; ensino fundamental obrigatório
e gratuito; extensão do ensino obrigatório e gratuito, progressivamente, ao ensino médio;
atendimento em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos; o acesso ao ensino
obrigatório e gratuito enquanto direito público subjetivo e, conseqüentemente,
25
responsabilidade da autoridade competente em caso de não-oferecimento ou de oferta
irregular do ensino obrigatório pelo poder público; valorização dos profissionais do ensino,
com planos de carreira para o magistério público; autonomia universitária; aplicação anual
pela união de ao menos 18%, e pelos estados, Distrito federal e municípios de no mínimo
25% da receita resultante de impostos na instrução pública. A Constituição previa também
que a distribuição dos recursos públicos assegurasse prioridade ao atendimento das
necessidades do ensino obrigatório nos termos do plano nacional de educação; que os
recursos públicos fossem destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas
comunitárias confessionais ou filantrópicas desde que comprovassem finalidade não
lucrativa; que a lei estabelecesse o plano nacional de educação visando à articulação e ao
desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do poder
público que conduzam à erradicação do analfabetismo, à universalização do atendimento
escolar, à melhoria da qualidade do ensino, à formação para o trabalho, à promoção
humanística, científica e tecnológica do país.
Esta Constituição é que deu as diretrizes para a nova LDB (Lei de Diretrizes
e Bases da Educação), que entrou em vigor em 20 de dezembro de 1996, promulgada pelo
então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Aqueles que trabalham com educação sabem o quanto estamos longe de
atingir a tão desejada educação popular; o quanto foi e é difícil para que a regulamentação
da carreira do magistério seja efetivada, para que os professores possam exercer a profissão
com dignidade; e o quanto as escolas públicas tem que recorrer a expedientes como
quermesses e Associações de Pais e Mestres a fim de arrecadar dinheiro para reformas ou
atendimento de outras necessidades.
Em 1998, com o auxílio de importantes intelectuais brasileiros, foram
elaborados pelo então Ministro da Educação e do Desporto, Paulo Renato Souza, os
Parâmetros Curriculares Nacionais PCN. Estes parâmetros, segundo o próprio ministro,
têm como objetivo “servir de apoio às discussões e ao desenvolvimento do projeto
educativo de sua escola, à reflexão sobre a prática pedagógica, ao planejamento de suas
aulas, à análise e seleção de materiais didáticos e de recursos tecnológicos e, em especial,
que possam contribuir para a formação e atualização profissional”. (PCN, 1998: carta
dirigida ao professor).
26
1.2. O livro didático
1.2.1. A função do livro didático
O livro didático pode ser avaliado corretamente dentro do contexto do
sistema educacional brasileiro. Isto pode parecer óbvio, mas existem correntes críticas que
assumem uma postura de franca exasperação diante do livro didático, criticando-o de forma
isolada, como se este fosse o responsável por quase todos os males da educação no Brasil.
Ora, o livro é tão-somente um instrumento de trabalho do professor e é útil ou inútil à
medida que o professor sabe escolher melhor o livro que vai utilizar e que sabe utilizá-lo
bem.
No processo ensino-aprendizagem, o livro didático é, ao lado de outros
veículos, um meio de comunicação através do qual o aluno recebe a mensagem escolar.
Todo processo de comunicação implica em um emissor, um receptor, uma mensagem e um
veículo de comunicação. O emissor, no caso da sala de aula, é o professor, mas no caso do
livro didático, é o autor daquele material; o receptor é o educando; a mensagem é o
conteúdo transmitido; e o veículo, neste caso, é o próprio livro didático.
O emissor principal no ensino escolar é o professor, pois ele é o responsável
pela transmissão de um determinado conteúdo a uma determinada turma de alunos.
Obviamente ele faz uso do livro didático para auxiliá-lo nesse processo de comunicação.
Na maioria das vezes, chega a fazer do conteúdo dos livros didáticos o seu próprio
conteúdo, que concorda com o que está escrito nele e orienta os educandos para que se
apropriem daqueles conteúdos. Existem professores que nem dão aulas, orientam os alunos
para que estudem exatamente o que está no livro, admitindo que o que está ali exposto é
tudo o que querem transmitir, fazendo da mensagem do livro a sua própria mensagem e
assumindo como posição e entendimento próprios os que estão nas páginas do livro.
Sendo assim, o autor do livro assume o papel de emissor principal do
conteúdo escolar e o professor, por tabela, assume aquela mensagem como sua. Não
obstante, existem professores que, corretamente, tomam o livro didático como um material
exclusivamente auxiliar do seu processo de ensino, assumindo uma posição crítica frente
27
aos conteúdos ali expostos, despertando nos seus alunos o senso crítico necessário para se
ler qualquer coisa. Nesse caso, o livro é o veículo de comunicação do autor, o auxiliar do
professor no processo de ensino e o auxiliar do aluno no processo de aprendizagem. Em
ambos os casos, o livro didático é uma peça importante no processo de comunicação do
ensino escolar.
Nos livros didáticos há conteúdos ideológicos: em relação à mulher, ao
negro, ao índio, etc. É preciso aprender a identificá-los para assumir um posicionamento
crítico em relação aos mesmos. O professor deve estar atento aos textos didáticos e utilizá-
los de forma crítica para que não faça seus alunos se apropriarem de conteúdos e de
perspectivas ideológicas. Tem que lembrar que uma mensagem nem sempre é verdadeira
apenas por ela estar escrita e publicada.
Como existe um problema grave tanto de estrutura do sistema educacional
quanto de formação dos professores, como vimos no ponto anterior, o livro didático acaba
transformando-se em muleta. É o caso, por exemplo, dos livros do professor com as
propostas de interpretação de texto. As editoras são empresas que fabricam produtos que
têm um mercado definido, com expectativas e demandas definidas. E a maior demanda
isolada provém fundamentalmente do governo, principalmente do Ministério da Educação,
que adquire, através do FNLD, o material didático para as escolas de ensino fundamental.
Na condição de maior consumidor de livros didáticos, o governo federal
teria amplas condições de induzir a melhoria do produto que compra, seguindo as mais
elementares regras de mercado. No entanto, não o faz. O PNLD, até hoje, tem-se
caracterizado como um grande comprador de serviços gráficos, e não como um agente de
desenvolvimento do material didático. O grande esforço do PNLD é voltado para a compra
do maior número de exemplares pelo preço mais barato, pois isso é o que importa para a
distribuição demagógica, a granel, dos livros para as escolas.
Esse sistema tem uma virtude básica, que é a da escolha pelo professor. Mas
essa virtude está também na raiz dos principais problemas. Professores despreparados
escolhem livros ruins; professores mal-pagos abandonam a carreira e seus sucessores, em
inúmeros casos, não querem trabalhar com o livro escolhido pelo antecessor e jogam fora o
material recebido; estruturas educacionais completamente viciadas, sem currículos
corretamente estruturados e adaptados às circunstâncias locais, induzem à escolha de livros
28
também inadequados. Essa é uma realidade amplamente conhecida e que exige mudanças
profundas e radicais.
A qualidade do livro didático no Brasil está ligada à qualidade do ensino que
se proporciona à população, com tudo o que isso implica desde a estruturação de currículos
adequados até a política de formação de professores e de sua remuneração e condições de
trabalho.
1.2.2. Breve histórico do livro didático no Brasil
2
Em 1929, o Estado criou um órgão específico para legislar sobre políticas do
livro didático, o Instituto Nacional do Livro (INL), o que contribuiu para dar maior
legitimação ao livro didático nacional e, conseqüentemente, auxiliou o aumento de sua
produção. Em 1938, durante o chamado Estado Novo, por meio do Decreto-Lei
1.006/38, de 30/12/38, o Estado instituiu a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD),
mostrando sua primeira política de legislação e controle de produção e circulação do livro
didático no País.
Com o fim da ditadura varguista, em 1945, o Decreto-Lei 8.460/45, de
26/12/45 consolidou a legislação sobre as condições de produção, importação e utilização
do livro didático, restringindo ao professor a escolha do livro a ser utilizado pelos alunos.
Em 1966, um acordo entre o Ministério da Educação (MEC) e a Agência Norte-Americana
para o Desenvolvimento Internacional (USAID) permitiu a criação da Comissão do Livro
Técnico e Livro Didático (COLTED), com o objetivo de coordenar as ações referentes à
produção, edição e distribuição dos livros didáticos. O acordo assegurou ao MEC recursos
suficientes para a distribuição gratuita de 51 milhões de livros no período de três anos.
Assim, garantindo o financiamento do governo a partir de verbas públicas, o programa
revestiu-se de um caráter de continuidade.
Em 1970, por meio da Portaria 35/70, de 11/3/1970, o Ministério da
Educação implementou o sistema de co-edição de livros com as editoras nacionais, com
recursos do Instituto Nacional do Livro (INL). Em 1971, o Instituto Nacional do Livro
(INL) passou a desenvolver o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental
2
As informações contidas nesse subcapítulo foram retiradas do seguinte endereço eletrônico:
http://www.fnde.gov.br/home/index.jsp?arquivo=/livro_didatico/livro_didatico.html#historico
29
(PLIDEF), assumindo as atribuições administrativas e de gerenciamento dos recursos
financeiros até então a cargo da COLTED. A contrapartida das Unidades da Federação
tornava-se necessária com o término do convênio MEC/USAID, efetivando-se com a
implantação do sistema de contribuição financeira das unidades federadas para o Fundo do
Livro Didático.
Em 1976, pelo Decreto nº 77.107/76, de 4/2/76, o governo assumia a compra
de boa parte dos livros para distribuí-los a parte das escolas e das unidades federadas. Com
a extinção do INL, a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) passava a ser
responsável pela execução do programa do livro didático. Os recursos provinham do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e das contribuições das contrapartidas
mínimas estabelecidas para participação das Unidades da Federação. Devido à insuficiência
de recursos para atender aos alunos do ensino fundamental das escolas blicas, boa parte
das escolas municipais foi excluída do programa.
Em 1983, em substituição à FENAME, foi criada a Fundação de Assistência
ao Estudante (FAE), que incorporava o PLIDEF. Na ocasião, o grupo de trabalho
encarregado do exame dos problemas relativos aos livros didáticos propunha a participação
dos professores na escolha dos livros e a ampliação do programa, com a inclusão das
demais séries do ensino fundamental.
Em 1985, no fim do regime militar, com a edição do Decreto 91.542, de
19/8/85, o PLIDEF deu lugar ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que trazia
diversas mudanças, como a indicação do livro didático pelos professores e a reutilização do
livro, implicando a abolição do livro descartável e o aperfeiçoamento das especificações
técnicas para sua produção, visando maior durabilidade e possibilitando a implantação de
bancos de livros didáticos. Também se estendeu a oferta aos alunos de e séries das
escolas públicas e comunitárias e ficou excluída a participação financeira dos Estados,
passando o controle do processo decisório para a FAE e garantindo o critério de escolha do
livro pelos professores.
Em 1992, durante o governo do presidente Fernando Collor, a distribuição
dos livros ficou comprometida pelas limitações orçamentárias e houve um recuo na
abrangência da distribuição, restringindo-se o atendimento até a série do ensino
fundamental. Em julho de 1993, a Resolução FNDE 6/93 vinculava recursos para a
30
aquisição dos livros didáticos destinados aos alunos das redes públicas de ensino,
estabelecendo-se, assim, um fluxo regular de verbas para a aquisição e distribuição do livro
didático.
Em 1995, de forma gradativa, voltou a universalização da distribuição do
livro didático no ensino fundamental. Neste mesmo ano, foi estipulado que os livros
didáticos contemplassem as disciplinas de matemática e língua portuguesa; em 1996, a de
ciências e, por último, em 1997, as de geografia e história. Em 1996, iniciou-se o processo
de avaliação pedagógica dos livros inscritos no PNLD/1997, quando passaram a serem
classificados em quatro grandes categorias: a) excluídos: os que apresentam erros
conceituais, indução a erros, desatualização, preconceito ou discriminação de qualquer tipo;
não-recomendados: aqueles nos quais a dimensão conceitual se apresenta com
insuficiência, trazendo impropriedades que comprometem significativamente sua eficácia
didático-pedagógica; recomendados com ressalvas: livros que possuem qualidades mínimas
que justifiquem sua recomendação e que, mesmo apresentando problemas, podem, sendo
esses problemas levados em conta pelo professor, não comprometer sua eficácia; e
recomendados: livros que cumprem corretamente sua função, atendendo satisfatoriamente
não só a todos os princípios comuns e específicos, como também aos critérios mais
relevantes da área.
Em fevereiro de 1997, com a extinção da Fundação de Assistência ao
Estudante (FAE), a responsabilidade pela política de execução do PNLD foi transferida
integralmente para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O
programa foi ampliado e o Ministério da Educação passou a adquirir, de forma continuada,
livros didáticos de alfabetização, língua portuguesa, matemática, ciências, estudos sociais,
história e geografia para todos os alunos de a séries do ensino fundamental. Em 2000,
foi inserida no PNLD a distribuição de dicionários da ngua portuguesa para uso dos
alunos de a séries. Em 2001, pela primeira vez na história do programa, os livros
didáticos passaram a ser entregues no ano anterior ao ano letivo de sua utilização. Os livros
para 2001 foram entregues até 31 de dezembro de 2000.
Em 2001, o PNLD ampliou o atendimento de forma gradativa aos alunos
portadores de deficiência visual que estão nas salas de aula do ensino regular das escolas
públicas, com livro didático em Braille. Em 2002, com o intuito de atingir, em 2004, a meta
31
de que todos os alunos matriculados no ensino fundamental possuam um dicionário de
língua portuguesa para uso por toda sua vida escolar, o PNLD deu continuidade à
distribuição de dicionários para os ingressantes na série e atende aos estudantes das e
séries. Em 2003, o PNLD distribui dicionários de ngua portuguesa aos ingressantes na
série e atendeu aos alunos das e séries, alcançando o objetivo de contemplar todos
os estudantes de a séries do ensino fundamental com um material pedagógico que os
acompanharia continuamente em todas suas atividades escolares.
Em 2004, a Resolução FNDE 38/03, de 23/10/2003, criou o Programa
Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM), com o objetivo de distribuir livros
didáticos das disciplinas de matemática e língua portuguesa em 2005. Inicialmente, o
programa era experimental (projeto-piloto) e atendia aos alunos da 1ª série do ensino médio
matriculados em escolas públicas das regiões Norte e Nordeste. Como podemos notar, hoje,
existe a definição de uma política para o livro didático no Brasil, o que implica
tratamento do setor mais diretamente vinculado ao processo educativo.
1.3. O ensino de português
1.3.1. Os PCN e o ensino de português
Os Parâmetros Curriculares Nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental, quanto à definição dos critérios para a avaliação da aprendizagem da língua
materna, estabelece, entre outros, o seguinte: o aluno deverá “atribuir sentido a textos orais
e escritos, posicionando-se criticamente diante deles (espera-se que o aluno, a partir da
identificação do ponto de vista que determina o tratamento dado ao conteúdo, possa
confrontar o texto lido com outros textos e opiniões, posicionando-se criticamente diante
dele.).” (PCN, 1998: 95).
É do conhecimento de todos, educadores ou não, que os alunos que
concluem o ensino fundamental e ingressam no ensino médio não possuem estas
habilidades. Pelo menos é que apresenta o Inep no seu relatório denominado Qualidade da
Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da série do Ensino
Fundamental - 2003 quando diz que “no período de 1995 a 1997, a média da proficiência
em Língua Portuguesa caiu em torno de seis pontos; de 1997 a 1999, a queda foi ainda mais
32
significativa quase 20 pontos e, em 2001, sobe 2,3 pontos. Ou seja, o leve aumento na
proficiência média ocorrido em 2001 não pode ser caracterizado como uma melhoria
efetiva na qualidade do ensino, isto porque os alunos cujo desempenho médio varia de 200
a 299 não adquiriram habilidades de leitura compatíveis com a série(os grifos são
nossos).
Uma das questões que mais preocupam os professores de língua portuguesa,
nos dias atuais, é a falta de capacidade que determinados grupos de alunos apresentam
quando solicitados a interpretarem um texto. São comuns, em todas as áreas do
conhecimento, as queixas em relação à dificuldade que os alunos encontram para responder
determinados questionamentos. Na maioria das vezes, a dificuldade está no fato de não
entenderem a própria pergunta.
Estas dificuldades seriam conseqüência das propostas dos PCN? Ou será que
os professores não estão preparados para trabalharem essas propostas? Ou será que o livro
didático, o suporte da grande maioria dos profissionais em educação, não fornece os
elementos necessários para desenvolver estas habilidades? Ou será que a escola não é
atraente o suficiente para que a intermediação do aprendizado se realize? São
questionamentos que exigem uma reflexão por parte de todos aqueles que estão ligados à
educação.
1.3.1. A estrutura dos PCN
Os PCN para o ensino da língua portuguesa estão divididos em duas partes.
Na primeira, é apresentada a área de língua portuguesa e são discutidas questões sobre a
natureza da linguagem, o ensino dessa disciplina (objetivos e conteúdo) e a relação entre
texto oral-escrito e gramática. Na segunda parte, os PCN abordam a questão do ensino da
língua portuguesa nos terceiro e quarto ciclos, com os objetivos e conteúdos específicos
dessa fase, divididos em prática de escuta de textos orais, leitura de textos escritos, prática
de produção de textos orais e escritos e prática de análise lingüística.
Do ponto de vista didático-pedagógico, os programas curriculares nacionais
apresentam uma proposta de trabalho que valoriza e incentiva a participação crítica do
aluno diante da sua língua, buscando trazer à sala de aula as variedades de uso comuns a
qualquer linguagem. Eles propõem a produção e a escuta de textos pertencentes à
33
linguagem oral; a leitura e a produção de textos escritos e a análise lingüística dos
diferentes gêneros em que se organizam esses diversos textos. A grande novidade nos
parece ser a inclusão dos textos orais no ensino de ngua, que não é comum
encontrarmos tais textos nos livros didáticos, e muito menos professores que façam uso
deles. Outro aspecto fundamental dos PCN é a importância dada aos textos produzidos
pelos próprios alunos. Estes, uma vez analisados em sala de aula, mostram aos próprios
alunos que eles também são produtores de textos e que a gramática não é algo tão abstrato,
permitindo que eles façam uma reflexão sobre língua e linguagem, comparando textos orais
e escritos dos mais variados gêneros, o que facilita o domínio da linguagem nas diferentes
situações de uso.
A prática de escuta de textos orais / leitura de textos escritos, de produção de
textos orais e escritos e de análise lingüística formariam um tripé em cima do qual sustenta-
se o ensino de língua portuguesa, funcionando como um bloco na formação dos alunos.
Nesse trabalho, interessam-nos particularmente as sugestões referentes à segunda parte,
mais especificamente a leitura de textos escritos. Mesmo assim faremos uma pequena
incursão nas demais sugestões, que consideramos de relevância, dentro do objetivo que
temos de explorar os PCN e ver o quanto suas idéias ou ideais influenciam na “construção”
do livro didático de língua portuguesa e o quanto contribuem para a edificação do “discurso
único” da classe dominante dentre as demais classes sociais.
O texto dos PCN começa pela apresentação da área de língua portuguesa,
destacando que a discussão acerca da necessidade de reorganização do ensino fundamental
no Brasil é antiga. O eixo desta discussão no ensino fundamental centra-se, principalmente,
no domínio da leitura e da escrita pelos alunos, responsável pelo fracasso escolar que se
expressa com clareza nos dois funis em que se concentra a maior parte da repetência: na
primeira série (ou nas duas primeiras) e na quinta série. No primeiro, pela dificuldade de
alfabetizar, no segundo, por não se conseguir levar os alunos ao uso apropriado de padrões
da linguagem escrita, condição primordial para que continuem a progredir.
(...) O ensino de Língua Portuguesa orientado pela perspectiva
gramatical ainda parecia adequado, dado que os alunos que freqüentavam a escola
falavam uma variedade bastante próxima da chamada variedade padrão e traziam
representações de mundo e de língua semelhantes às que ofereciam livros e textos
didáticos.(p. 17).
34
É exposta de forma rápida a dificuldade enfrentada pelos alunos, quanto ao
componente curricular língua portuguesa, onde, segundo o texto, tradicionalmente, o ensino
da mesma baseava-se tão somente no ensino da chamada gramática padrão, ignorando as
diferentes variações lingüísticas dos diferentes grupos sociais que freqüentavam a escola.
Nunca é demais lembrar que esses grupos eram formados na sua grande maioria pela classe
média e pela classe alta, que, como vimos, em boa parte da história do Brasil, as classes
“baixas” tinham pouco acesso à escola.
1.3.2. Os PCN e as críticas ao ensino de língua portuguesa
Os PCN mostram que foi somente na década de 80 que o ensino de língua
portuguesa sofreu críticas mais consistentes. As pesquisas produzidas por uma lingüística
emancipada da tradição normativa e filológica e o avanço dos estudos introduzidos pela
variação lingüística e psicolingüística permitiram avanços nas áreas de educação e
psicologia da aprendizagem.
Entre as críticas mais freqüentes que se faziam ao ensino
tradicional destacavam-se:
- a desconsideração da realidade e dos interesses dos alunos;
- a excessiva escolarização das atividades de leitura e de produção de
texto;
- o uso do texto como expediente para ensinar valores morais e como
pretexto para o tratamento de aspectos gramaticais;
- a excessiva valorização da gramática normativa e a insistência nas regras
de exceção, com o conseqüente preconceito contra as formas de oralidade
e as variedades não-padrão;
- o ensino descontextualizado da metalinguagem, normalmente associado
a exercícios mecânicos de identificação de fragmentos lingüísticos em
frases soltas.
- a apresentação de uma teoria gramatical inconsciente uma espécie de
gramática tradicional mitigada e facilitada. (p. 18)
Embora o texto insista em usar os verbos no pretérito, fortes são as razões
para acreditarmos que este ensino continua o mesmo, que a maioria dos professores de
língua portuguesa traz como “referência” um ensino dito “tradicional” (quando
freqüentaram o ensino fundamental e o ensino médio, mantiveram contato com este
componente curricular através do “método tradicional”) e a grande maioria nem manteve
contato com a lingüística. Todos nós sabemos o quanto é caótica a situação financeira da
35
maioria dos professores, obrigados a terem uma carga horária exagerada, inviabilizando
qualquer possibilidade de atualização. É certo que os “novos” professores, os que
adquiriram a habilitação para ministrarem esta disciplina trazem estes novos
conhecimentos, mas muitos ainda barram na resistência dos mais antigos. Visto que a
comodidade é mais fácil.
O texto dá continuidade à crítica do ensino de português:
Pode-se dizer que hoje é praticamente consensual que as práticas devem
partir do uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas habilidades
lingüísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões da escrita, sempre
considerando que:
- a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a
decodificação e o silêncio;
- a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a interlocução efetiva, e
não a produção de textos para serem objetos de correção;
- as situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensar sobre a
linguagem para poder compreendê-la e utilizá-la apropriadamente às situações e
aos propósitos definidos.(pgs. 18 e 19).
Onde será que existe esse consenso? Na escola brasileira? Acredito que não.
As razões dessa nossa perplexidade foram expostas anteriormente. Não estamos
criticando a proposta do texto e, muito menos, a ação dos professores. Nossa perplexidade
diz respeito à realidade de “consenso” que é trazida pelo texto, talvez com o objetivo de
“induzir” os professores a mudarem o seu modo de agir em sala de aula. Mas todos nós
sabemos que o problema vai muito além do simples consenso.
Os PCN também tratam do que chamam de “Ensino e natureza da
linguagem”
(...) Considerando os diferentes veis de conhecimento prévio, cabe à
escola promover sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito
anos do ensino fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes
textos que circulam, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos
eficazes nas mais variadas situações. (p. 19)
Este realmente é o sonho de todo o profissional da educação, que os alunos,
se não todos, pelo menos a grande maioria, adquiram esta capacidade de interpretar os
diferentes textos que circulam em seu mundo. Mais do que interpretar, que eles possam
identificar os diferentes discursos “escondidos” nestes textos; que sejam capazes de
perceber que a maioria dos textos trabalhada pelos livros didáticos brasileiros nada mais é
36
do que o discurso único que domina o pensamento ocidental nos dias de hoje. Essa
discussão será o objeto específico do último capítulo deste trabalho.
Continuam os PCN sobre o “Ensino e natureza da linguagem”
Linguagem aqui se entende, no fundamental, como ação interindividual
orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza
nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos
momentos de sua história. (p. 20)
O conceito de linguagem, aqui, é bem abrangente. E a pergunta é: como
explorar as práticas sociais através de práticas lingüísticas, tomando os textos e as práticas
de ensino dos livros didáticos sem promover exclusões, visto que o grupo de alunos é bem
heterogêneo e as diferenças culturais são muitas e, conseqüentemente, prevalecem a
linguagem, a ideologia e os valores da classe dominante, os quais são reforçados todos os
dias, seja pela mídia, seja pela escola. Dentro deste item, mais duas colocações: uma
sobre uma síntese do que seja linguagem e outra sobre um conceito de língua que
entendemos ser importante destacar. Estes “conceitos” falam por si só:
Em síntese, pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e
intenções, se estabelecem relações interpessoais anteriormente inexistentes e se
influencia o outro, alterando suas representações da realidade e da sociedade e o
rumo de suas (re) ações. (p. 20)
(...), língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que
possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é
aprender não somente palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas
apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos
quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. (p. 20)
1.3.3 Como os PCN tratam o texto
Nos PCN, o conceito de texto é o seguinte: “um texto é um texto quando
pode ser compreendido como unidade significativa global. Caso contrário, não passa de um
amontoado aleatório de enunciados” (p. 21). Se levarmos em consideração a realidade da
grande maioria dos brasileiros, ou melhor, dos brasileiros que freqüentam a escola no
último ciclo do ensino fundamental, perceberemos que texto, como conceituado acima, não
existe. Os próprios dados apresentados pelo Inep no seu relatório denominado Qualidade
da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da série do Ensino
Fundamental - 2003 confirmam essa deficiência: “no período de 1995 a 1997, a média da
proficiência em Língua Portuguesa caiu em torno de seis pontos; de 1997 a 1999, a queda
37
foi ainda mais significativa quase 20 pontos e, em 2001, subiu 2,3 pontos. Ou seja, o
leve aumento na proficiência média ocorrido em 2001 não pode ser caracterizado como
uma melhoria efetiva na qualidade do ensino, isto porque os alunos cujo desempenho
médio varia de 200 a 299 não adquiriram habilidades de leitura compatíveis com a
série” (os grifos são nossos).
Observemos o que diz o texto dos PCN sobre “Aprender a ensinar língua
portuguesa na escola”:
O primeiro elemento dessa tríade o aluno é o sujeito da ação de
aprender, aquele que age com e sobre o objeto de conhecimento. O segundo
elemento o objeto de conhecimento são os conhecimentos discursivo-textuais e
lingüísticos aplicados nas práticas sociais de linguagem. O terceiro elemento da
tríade é a prática educacional do professor e de escola que organiza a mediação
entre sujeito e objeto do conhecimento.
(...) saber que a escola é um espaço de interação social onde práticas
sociais de linguagem acontecem e se circunstanciam, assumindo características
bastante específicas em função de sua finalidade de ensino. (p. 22)
Os parâmetros colocam o aluno como o primeiro elemento da tríade, com o
que concordamos plenamente, pois sem aluno não escola e muito menos necessidade de
aprendizagem. O segundo elemento seria o objeto de conhecimento, no nosso caso a língua.
Aí, talvez, encontre-se uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo professor. Na grande
maioria dos casos a distância entre a “língua” do professor e a “língua” do aluno é grande.
Nem que seja porque muitas das palavras que o professor usa não fazem parte do
quotidiano do aluno e vice-versa, dificultando a aprendizagem da língua. Isso ocorre
principalmente quando o professor provém de uma classe social distante da do aluno. O que
acaba sendo o elemento mediador entre essas diferentes linguagens” deveria ser o livro
didático. No entanto, em geral, este está mais próximo da linguagem do professor do que da
do aluno, o que acaba desestimulando este último.
A escola, principalmente a escola das periferias, não consegue, ou melhor,
não conseguiu até hoje ser este elemento de mediação. Muitas vezes, ela está fechada para
os anseios e as necessidades da comunidade que a cerca, visto que, a maioria de seus
professores é de outras comunidades e o interesse pelas necessidades “lingüísticas” das
comunidades em que estão inseridas deixam muito a desejar, pelo fato dos profissionais em
educação não conhecerem essas variedades lingüísticas e pela sua incapacidade em aceitá-
las.
38
Baseados nestas dificuldades, os PCN sugerem o que denominam de:
“Condições para o tratamento do objeto de ensino: o texto como unidade e a
diversidade de gêneros
Toda educação comprometida com o exercício da cidadania precisa
criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva.
(competência discursiva refere-se a um “sistema de contratos semânticos”
responsável por uma espécie de “filtragem” que opera os conteúdos em dois
domínios interligados que caracterizam o dizível: o universo intertextual e os
dispositivos estilísticos acessíveis à enunciação dos diversos discursos.
(...) Sobre o desenvolvimento da competência discursiva, deve a escola
organizar as atividades curriculares relativas ao ensino-aprendizagem da língua e
da linguagem.
Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza
temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este
ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser
tomada como objeto de ensino. (p. 23)
A proposta é excelente. Todo profissional da educação deveria ter este
objetivo: o exercício da cidadania. É do consenso de todos que o exercício da cidadania
passa pelo conhecimento da língua. Primeiramente pelo conhecimento da sua própria
língua, ou melhor, de suas próprias variações, depois e, somente depois, pelo conhecimento
da variedade padrão. A língua é, foi e sempre seinstrumento de dominação. É necessário
que o “futuro cidadão” domine a variedade padrão, mas sem discriminar nem abandonar
sua própria variedade, da de sua família, de sua região. É com este conhecimento que ele
terá competência comunicativa para buscar os seus direitos como elemento ativo na
sociedade.
1.3.3.1. A seleção de textos
Este capítulo dos PCN um destaque especial aos diferentes gêneros
textuais. Vejamos:
(...), é preciso priorizar os gêneros que merecerão abordagem mais
aprofundada.
(...) é preciso que as situações escolares de ensino de Língua
Portuguesa priorizem os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem. Os
textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem
favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e
39
abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os
mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada. (p. 24)
Aqui começa a haver uma certa confusão. Num primeiro momento, os
PCN falam em buscar os textos comuns às comunidades de onde provêm os alunos, de
preferência utilizando os gêneros comuns a estas comunidades. A seguir, propõem que se
trabalhe com “textos que caracterizam o uso público da linguagem”, isto é os artigos de
jornais e revistas de grande circulação no país, que na sua grande maioria são inacessíveis a
grande parte dos alunos, além de trazerem o “discurso único” comum a grande parte da
mídia hegemônica nacional.
Um pouco mais à frente, os PCN reconhecem esta realidade:
Textos escritos
(...)
Para boa parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único
espaço que pode proporcionar acesso a textos escritos, textos estes que se
converterão, inevitavelmente, em modelos para a produção. Se é de esperar que o
escritor iniciante redija seus textos usando como referência estratégias de
organização típicas da oralidade, a possibilidade de que venha a construir uma
representação do que seja a escrita estará colocada se as atividades escolares lhe
oferecerem uma rica convivência com a diversidade de textos que caracterizam as
práticas sociais. É mínima a possibilidade de que o aluno venha a compreender as
especificidades que a modalidade escrita assume nos diversos neros, a partir de
textos banalizados, que falseiem sua complexidade.
(...), a seleção de textos deve privilegiar textos de gêneros que
aparecem com mais freqüência na realidade social e no universo escolar, tais como
notícias, editorias, cartas argumentativas, artigos de divulgação científica, verbetes
enciclopédicos, contos, romances, entre outros. (p. 25-26)
Agora perguntamos: por que estes textos devem ser selecionados entre os
diferentes meios de circulação nacional? Por que não podem ser selecionados dentro da
realidade das diferentes comunidades? Por que o padrão de escrita (notícias, editorias,
cartas argumentativas, artigos de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos,
romances, entre outros) têm que ser o da classe dominante? Por que não podem ser textos,
dentro dos diferentes gêneros propostos acima, produzidos pela própria comunidade em que
os alunos estão inseridos? Por que não usar o texto do jornal do bairro, do poeta do bairro,
da opinião do bairro?
40
Nossa opinião é que, somente respeitando estas diferenças, estaremos
despertando no aluno o interesse pela sua ngua e, aí sim, poderemos introduzi-lo na
variedade padrão, na literatura reconhecida como tal pelas classes dominantes. A grande
dificuldade está na falta de tempo da grande maioria dos professores, que, para
conseguirem sobreviver, precisam trabalhar em diferentes escolas e em múltiplos horários.
Nessas condições, o aluno mantém contato com a variedade dita padrão, que é a preferência
dos livros didáticos brasileiros distribuídos pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).
Agindo assim, estamos contribuindo para que o “discurso único”, presente na grande
maioria dos textos, alastre-se pelas diferentes comunidades de nosso país, como veremos no
último capítulo.
Os PCN sugerem outra forma de “trabalhar” os textos literários na escola:
É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar
presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como
pretexto para o tratamento de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais)
que não aqueles que contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer
as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das
construções literárias. (p. 27)
Qual professor está preparado para trabalhar esta “profundidade” dos textos
literários? Qual escola oferece condições para que este trabalho seja desenvolvido? A
proposta é boa, mas muito distante da realidade da escola brasileira. E também longe da
realidade das universidades brasileiras, que preparam os futuros professores.
1.3.4. Os PCN e uma breve reflexão sobre a linguagem verbal
Dentre as implicações da questão do desenvolvimento da competência
comunicativa dos alunos, o texto defende que: “a aula deve ser o espaço privilegiado de
desenvolvimento da capacidade intelectual e lingüística dos alunos, oferecendo-lhes
condições de desenvolvimento de sua competência discursiva”(p. 30). Que competência
discursiva seria essa? Qual discurso queremos do aluno? O seu ou o nosso? O discurso da
sua comunidade lingüística ou o discurso da classe dominante?
A resposta a estas questões parece estar na incapacidade da escola de formar
leitores, embora este não seja o seu objetivo maior, e na incapacidade de formar usuários
41
competentes da escrita padrão, mesmo sendo este o objetivo maior. Para isto basta vermos
os índices já expostos neste mesmo trabalho.
Analisemos alguns dos objetivos gerais da disciplina de língua portuguesa
para o ensino fundamental:
Analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o próprio,
desenvolvendo a capacidade de avaliação dos textos. (p. 33)
(...) significa compreender que tanto o ponto de partida como a
finalidade do ensino da língua é a produção/recepção de discursos. (p. 34)
No próximo capítulo deste trabalho mostraremos qual discurso a escola
analisa, com que olhos ela o faz e, conseqüentemente, que discurso ela possibilita ou exige
que o aluno produza.
1.3.5. O profissional enquanto intermediário da educação
Quanto aos critérios para seqüenciação dos conteúdos, vejamos o que dizem
os PCN:
A seleção e priorização deve considerar, pois, dois critérios
fundamentais: as necessidades dos alunos e suas possibilidades de aprendizagem.
Estes, articulados ao projeto educativo da escola que se diferencia em função das
características e expectativas especificas de cada comunidade escolar, de cada
região do país -, devem ser as referências fundamentais para o estabelecimento da
seqüenciação dos conteúdos. (p. 37)
(...) Compreender um texto é buscar as marcas do enunciador
projetadas nesse texto, é reconhecer a maneira singular de como se constrói uma
representação a respeito do mundo e da história, é relacionar o texto a outros textos
que traduzem outras vozes, outros lugares. (p. 40)
Como priorizar as necessidades fundamentais do aluno se o livro didático
trabalha com textos que muitas vezes trazem “problemas” fora da realidade das
comunidades em que a escola está inserida? Como trazer textos que vivenciam a realidade
do aluno se, muitas vezes, a escola, o professor e o aluno não possuem condições
financeiras para reproduzirem estes textos? Continuamos presos aos textos do livro didático
e ao discurso da classe dominante. Com a proposta dos conteúdos a serem desenvolvidos
pelas comunidades escolares, conclui-se a primeira parte dos PCN.
42
A segunda parte começa apresentando “o aluno adolescente e o trabalho
com a linguagem”. Destacamos alguns excertos que achamos interessantes para o objetivo
do nosso trabalho: “Trata-se de um período da vida em que o desenvolvimento do sujeito é
marcado pelo processo de (re)constituição da identidade, para o qual concorrem
transformações corporais, afetivo-emocionais, cognitivas e socioculturais” (p. 45). O texto
parte do princípio de que os alunos que freqüentam este ciclo estão dentro da faixa etária
desejável, ou seja, entre 13 e 15 anos. Para “colaborar” na (re) constituição dessa
identidade, usamos entre outros meios, a leitura e a interpretação, que entendemos como
“certa”, sugerida pelos textos dos livros didáticos. Não pretendemos afirmar que toda
interpretação deve ser aceita, mas que existem várias leituras possíveis e que elas devem ser
realizadas pelos alunos e, principalmente, incentivadas pelo professor.
Continua o texto sobre o mesmo assunto:
Para significativa parcela da sociedade brasileira, já na adolescência
impõe-se a necessidade de trabalhar, seja para assumir objetivamente
compromissos e responsabilidades do mundo adulto, seja para experimentar a
possibilidade de dispor de bens de consumo para os quais grande apelo social,
por meio da mídia e da divulgação do modus vivendi da classe média.
(...) é preciso considerar o fato de que os adolescentes desenvolvem um
tipo de comportamento e um conjunto de valores que atuam como forma de
identidade, tanto no que diz respeito ao lugar que ocupam na sociedade e nas
relações que estabelecem com o mundo adulto quanto no que se refere a sua
inclusão no interior de grupos específicos de convivência. Esse processo,
naturalmente, tem repercussão no tipo de linguagem por eles usada, com a
incorporação e criação de modismos, vocabulário específico, formas de expressão
etc. São exemplos típicos as falas das “tribos” grupos de adolescentes formados
em função de uma atividade (surfistas, skatistas, funkeiros etc.). p. (46)
Os autores do texto esqueceram de lembrar que a escola, através do
professor e do livro didático, principalmente por intermédio de seus “textos únicos”,
também colaboram para incentivar este consumo, enquadrando todos os jovens como um
único grupo, ignorando suas diferenças econômicas, sócias, culturais e lingüísticas.
Portanto, se estes jovens possuem um “espaço” para atuarem na sociedade, os únicos
espaços “lembrados pelo texto são os espaços comuns à classe média e à classe alta
brasileiras. Se a mídia explora estas “linguagens do adolescente” para incentivar o consumo
e até mesmo certos comportamentos, por que os professores e a escola o podem utilizar
estas “linguagens próprias das comunidadespara incentivarem a cultura própria de cada
43
bairro e de cada região do país? Por que precisamos trabalhar em cima de uma cultura
única, de uma idéia única, de um discurso único? Voltamos a insistir no fato de que, para
que isso se realize, é necessário que os governos invistam mais nos professores, que
ofereçam uma remuneração digna para que estes profissionais possam se enquadrar dentro
das exigências e necessidades das comunidades nas quais atuam.
Mais adiante o texto reconhece a importância do profissional em educação
como mediador no processo de aprendizagem:
Nas situações de ensino de língua, a mediação do professor é
fundamental: cabe a ele mostrar ao aluno a importância que, no processo de
interlocução, a consideração real da palavra do outro assume, concorde-se com ela
ou não. Por um lado, porque as opiniões do outro apresentam possibilidades de
análise e reflexão sobre as suas próprias; por outro lado, porque, ao ter
considerações pelo dizer do outro, o que o aluno demonstra é consideração pelo
outro. (p. 47)
Aqui são trazidas colocações importantes, que acreditamos todos os
profissionais em educação conhecem, mas que nunca é demais lembrar.
Continua o texto:
Nesse processo, ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é
necessário que se possa dispor tanto de uma descrição dos elementos regulares e
constitutivos do gênero quanto das particularidades do texto selecionado, dado que
a intervenção precisa ser orientada por esses aspectos discretizados. A discretização
de conteúdos, ainda que possa provocar maior distanciamento entre o aspecto
tematizado e a totalidade do texto, possibilita a ampliação e apropriação dos
recursos expressivos e dos procedimentos de compreensão, interpretação e
produção de textos, bem como de instrumentos de análise lingüística. (p. 48)
Notemos o quão importante é esta proposta, o quanto ela traz de “inovador”
dentro das propostas até então apresentadas. Contudo, como tudo tem um “mas”,
perguntamos mais uma vez: nossas universidades preparam os futuros professores para que
possam trabalhar esta realidade dentro da sala de aula? A escola e a comunidade escolar
estão prontas para aceitarem esta “forma de trabalhar”? Como um profissional em
educação, que trabalha de 40 a 60 horas por semana e que possui classes com a média de 40
alunos, poderá realizar este trabalho?
44
Observemos o que os PCN propõem como objetivos do ensino de ngua
portuguesa:
No processo de leitura de textos escritos, espera-se que o aluno:
(...)
- desenvolvendo sua capacidade de construir um conjunto de expectativas
(pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da função do texto),
apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre gênero, suporte e universo
temático, bem como sobre saliências textuais recursos gráficos, imagens, dados
da própria obra (índice, prefácio, etc);
- confirmando antecipações e inferências realizadas antes e durante a leitura;
- articulando o maior número possível de índices textuais e contextuais na
construção do sentido do texto, de modo a:
a) Utilizar inferências pragmáticas para dar sentido a expressões que
não pertençam a seu repertório lingüístico ou estejam empregadas de forma não
usual em sua linguagem;
b) Extrair informações não explicitadas, apoiando-se em deduções;
c) Estabelecer a progressão temática;
d) Integrar e sintetizar informações, expressando-se em linguagem
própria, oralmente ou por escrito;
e) Interpretar recursos figurativos tais como: metáforas, metonímias,
eufemismos, hipérboles etc.;
- delimitando um problema levantado durante a leitura e localizando as fontes de
informação pertinentes para resolvê-lo;
+ seja receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativas, por meio
de leituras desafiadoras para sua condição atual, apoiando-se em marcas formais do
próprio texto ou em orientações oferecidas pelo professor:
+ troque impressões com outros leitores a respeito dos textos lidos, posicionando-
se diante da crítica, tanto a partir do próprio texto como de sua prática enquanto
leitor;
+ compreenda a leitura em suas diferentes dimensões o dever de ler, a
necessidade de ler e o prazer de ler;
+ seja capaz de aderir ou recusar as posições ideológicas que reconheça no texto
que lê. (p. 49-51)
Os objetivos são excelentes, mas a escola pública no Brasil está muito longe
de atingi-los. Sabemos muito bem que muitos alunos concluem o ensino fundamental sem
serem capazes de interpretar um texto por mais simples que seja. Sabemos também que, na
maioria das vezes, os profissionais em educação são obrigados por seus “superiores”
(diretores, supervisores, que também são professores) a literalmente “empurrarem” estes
alunos para as séries seguintes, mesmo que o processo de aprendizagem não tenha se
completado, visto que um dos objetivos da educação blica no Brasil têm sido os
números. O número de alunos que concluem o ensino fundamental tem que ser alto para
que os índices de qualidade de vida no Brasil sejam elevados. Mais uma vez a questão
política-econômica está se sobrepondo à questão social-pedagógica.
45
Vejamos as propostas para o que o texto chama de processo de analise
lingüística:
No processo de analise lingüística, espera-se que o aluno:
- constitua um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento da linguagem e
sobre o sistema lingüístico relevantes para as praticas de escuta, leitura e produção
de textos;
- aproprie-se dos instrumentos de natureza procedimental e conceitual necessários
para a análise e reflexão lingüística (delimitação e identificação de unidades,
compreensão das relações estabelecidas entre as unidades e das funções discursivas
associadas a elas no contexto);
- seja capaz de verificar as regularidades das diferentes variedades do Português,
reconhecendo os valores sociais nelas implicados e, conseqüentemente, o
preconceito contra as formas populares em oposição às formas dos grupos
socialmente favorecidos. (p. 52)
As propostas finais são excelentes. Elas são o “sonho” de todo profissional
em educação, cuja “missão” é trocar informações sobre a língua com os seus alunos. Mas,
mais uma vez, os PCN expõem o objetivo final e não apresentam os meios para atingi-lo.
Ignoram a realidade da educação brasileira, pelo menos a realidade da sala de aula da
escola brasileira.
Mais adiante o texto apresenta a proposta para o trabalho com textos orais e
com textos escritos. Como a proposta deste trabalho é direcionada para o texto escrito,
destacamos apenas o que consideramos importante dentro de nosso objetivo. O texto traz o
que chama de “conceitos e procedimentos subjacentes às práticas de linguagem”:
Antes (...) e de leitura de textos escritos (...), são sugeridos alguns
gêneros como referência básica a partir da qual o trabalho com os textos unidade
básica do ensino precisará se organizar, projetando a seleção de conteúdos para a
prática de análise lingüística.
(...). Nesse documento foram priorizados aqueles cujo domínio é
fundamental à efetiva participação social, encontrando-se agrupados, em função de
sua conciliação social, em gêneros literários, de imprensa, publicitários, de
divulgação científica, comumente presentes no universo escolar.
(...), em função do projeto da escola, do trabalho em desenvolvimento e
das necessidades específicas do grupo de alunos, outras escolhas poderão ser feitas.
(p. 53)
Pelo que podemos observar, existem gêneros textuais que os PCN
consideram fundamentais para a efetiva participação social. O texto só não especifica
porque estes gêneros o tão fundamentais. Nem específica quem e quais critérios foram
46
utilizados para determinar estes gêneros como “fundamentais”. Aliás, falta fundamentação
teórica dentro dos próprios PCN do que seja gênero textual; não fica claro se os
pressupostos são os bakhtinianos ou os da lingüística do texto. Essa indefinição autoriza a
suspeitar que o critério possa ser o discurso da classe dominante presente nestes gêneros.
Vale a pena lembrar que outras escolhas “poderão ser feitas”, mas os
gêneros eleitos pela classe dominante como fundamentais devem permanecer. Não estamos
aqui dizendo que estes gêneros não devam ser conhecidos pelos alunos, mas sim lembrando
que a escola deveria partir dos gêneros comuns à comunidade onde está inserida para
chegar, a seguir, aos demais gêneros. assim teremos um aluno interessado em adquirir o
domínio da língua padrão, assim poderemos formar um cidadão consciente. A partir do
momento em que colocamos outros gêneros como fundamentais, outros textos como mais
importantes, estamos ignorando e discriminando a realidade de muitos alunos. Estamos
contribuindo para a evasão escolar, pois aqueles que não se “submetem” estão fora dos
padrões estabelecidos pela classe dominante e, portanto, resta-lhes juntarem-se a multidão
de excluídos.
Observemos agora a visão que os PCN trazem sobre a leitura de textos
escritos:
A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem
etc. o se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por
palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação,
inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses
procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar
decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de
esclarecimentos, validar no texto suposições feitas. (p. 69)
A idéia que o texto nos passa sobre a leitura de textos escritos é aceitável. Os
conhecimentos do assunto, do autor, da linguagem do texto são importantes, mas insistimos
neste ponto: para a maioria dos alunos a realidade apresentada pelo livro didático, que é o
grande suporte do professor de língua portuguesa, está muito distante da sua realidade.
Continuam os parâmetros sobre o mesmo assunto:
(.),o professor deve preocupar-se com a diversidade das práticas de
recepção dos textos: não se uma notícia da mesma forma que se consulta um
dicionário; não se um romance da mesma forma que se estuda. Boa parte dos
47
materiais didáticos disponíveis no mercado, ainda que venham incluindo textos de
diversos gêneros, ignoram a diversidade e submetem todos os textos a um
tratamento uniforme. (p. 70)
A observação sobre a diversidade das práticas de recepção é oportuna. É
fácil perceber que muitos textos são tratados do mesmo modo, independentemente dos
gêneros a que pertencem. Mas como tratar estes gêneros de forma diferente? Mais uma vez,
esbarramos nos problemas levantados anteriormente: excesso de carga horária, excesso
de alunos, lacunas na preparação pelas universidades, etc. Como assinalamos, os livros
didáticos passam por uma “comissão de triagem”, responsável por sua indicação. É lícito se
perguntar quais interesses defende este “seleto grupo”?
1.3.6. Considerações finais sobre os PCN
Como podemos observar até aqui, a idéia dos PCN, num todo, não é ruim.
Mas duas críticas parecem inquestionáveis:
1. A linguagem e a estrutura do texto em si atrapalham a leitura e
compreensão dos temas abordados. A linguagem nem sempre é clara, sobretudo para um
público leitor constituído de professores que, como vimos, não tem sempre a necessária
preparação. Quanto à estrutura, ela não é uniforme: como exemplo, poderíamos citar os
objetivos das práticas de análise lingüística, que são muito simples e em número reduzido.
2. Os conceitos lingüísticos pertencem a linhas teóricas diferentes, mesmo
que haja um evidente predomínio de teorias ligadas ao texto (análise do discurso e
lingüísticas textual) e à sociolingüística. O problema não está nestas teorias, mas na
confusão que muitas profissionais da educação fazem, por desconhecerem os pressupostos
teóricos que norteiam estas linhas. É comum, entre professores de língua portuguesa
desatualizados, a convicção de que valorizar a variação lingüística significa aceitar tudo o
que o aluno produz, considerar tudo o que o aluno diz como certo, não oferecendo
condições de crescimento para o mesmo. Muitos professores também consideram que na
interpretação de texto, aceita-se qualquer coisa que o aluno escreva. Por mais absurdas que
pareçam, estas interpretações existem e dificultam bastante a discussão sobre as idéias
contidas nos PCN.
48
Independentemente das diferentes opiniões e interpretações, a verdade é que
os PCN abriram e abrem um novo espaço para a discussão sobre o ensino de ngua
portuguesa. Seu principal mérito é alertarem o professor da sua importância em auxiliar o
aluno no desenvolvimento da sua competência comunicativa.
2. A LINGUAGEM VERBAL: FENÔMENO MULTIFACETADO
A complexidade da linguagem verbal determinou que o olhar científico
sobre ela tendesse a ser sempre um pouco parcial. Por exemplo, a “lingüística” inaugurada
por Saussure, teve falhas em relação ao tratamento teórico do uso da ngua e à construção
de um instrumento científico capaz de dar conta do “discurso”.
As teorias lingüísticas, isto é, o "discurso sobre a língua", tanto em relação à
perspectiva escolhida para estudar o objeto língua, tanto quanto em relação à(s) escolha(s)
metodológica(s), devem ser compreendidas sócio-historicamente e em relação ao ambiente
epistemológico dominante, sobretudo no que diz respeito ao olhar dos lingüistas sobre as
relações entre linguagem verbal, sociedade e ideologia.
Estas teorias lingüísticas, influenciadas socialmente e ideologicamente, têm
também implicações sociais importantes. Elas têm um papel social e são utilizadas pela
ideologia no poder. Como veremos a seguir com as teorias de Saussure, que, de alguma
forma, legitimaram o uso da língua padrão e deram sustentação ao trabalho infértil, na
escola, sobre a língua como algo morto.
2.1. A "língua" de Saussure
Os grandes conceitos que Ferdinand de Saussure desenvolveu a respeito da
linguagem verbal servirão como elementos fomentadores de nossa discussão. Isso porque
Saussure teve uma importância fundamental em nossa formação acadêmica. Mesmo que
nossos professores não tivessem consciência disso, foi dentro de uma visão estruturalista e
de uma tradição gramatical que fomos alfabetizados durante os onze anos de educação
49
básica, que as diferentes disciplinas foram trabalhadas e desenvolvidas, principalmente a
disciplina de Língua Portuguesa, dentro desta abordagem. Estudávamos a língua portuguesa
somente em seu aspecto formal, como “algo morto”, imóvel, separado do texto e da
contextualização verbal, sobretudo separado das necessidades reais de comunicação.
No Curso de Lingüística Geral, doravante CLG, por necessidades
metodológicas, Saussure estabelece algumas dicotomias. A primeira, entre língua e fala,
baseia-se numa outra, a de sincronia/diacronia. A sincronia é o estudo do funcionamento
da língua enquanto sistema, num determinado momento, que pode ser tanto do presente
quanto do passado. Na diacronia, o objeto de estudo é a relação entre um determinado fato
e outros anteriores ou posteriores. Saussure especifica que a relação entre os elementos da
língua é estrutural, sistêmica, na sincronia. Na diacronia, essa relação deixa de ser
sistêmica para tornar-se histórica, nos limites do que a diacronia possibilita, já que a
diacronia somente permite observar os fatos da língua em eixos como o da linearidade e da
sucessividade.
Saussure deixa claro que a prioridade deve ser no estudo sincrônico. Ele
entende que o falante nativo não tem consciência da sucessão dos fatos da língua no tempo.
Para a consciência de quem utiliza a língua como instrumento de comunicação e interação
na sociedade, essa sucessão não existiria. A única realidade palpável que se apresenta de
forma imediata seria a do estado sincrônico da língua. Também, segundo Saussure, a
relação entre o significante e o significado é despótica e estará constantemente sendo
atingida pelo tempo, daí a necessidade de o estudo da língua ser necessariamente
sincrônico.
Mas prioridade não quer dizer exclusividade, pelo menos é o que o lingüista
suíço nos deixa transparecer quando diz: “A cada instante, a linguagem implica ao mesmo
tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual
e um produto passado” (Saussure, 2003: 16). Portanto, a língua sempre será sincronia e
diacronia em qualquer momento de sua existência.
Uma outra oposição essencial do funcionamento sincrônico das línguas
evidenciado por Saussure é a que existe entre os dois eixos paradigmático e sintagmático.
As relações sintagmáticas entre as unidades lingüísticas têm como base o “caráter linear da
língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo”. (Ibid.:
50
142). Quando colocado dentro da cadeia sintagmática, um termo passa a ter valor em
virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede, ou a ambos,
visto que um termo não pode aparecer ao mesmo tempo em que outro, que seu caráter é
linear.
Por outro lado, fora do plano sintagmático “as palavras que oferecem algo
de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam
relações muito diversas” (Ibid.: 143). São elementos que se encontram na nossa memória
de falante. O paradigma é uma espécie de “banco de dados” da língua, um conjunto de
elementos suscetíveis de aparecer num mesmo contexto lingüístico. Sendo assim, as
unidades do paradigma se opõem, se uma está presente, as outras estão ausentes.
A língua, na visão saussuriana, funciona sincronicamente e com base em
relações opositivas (paradigmáticas) no sistema e contrastivas (sintagmáticas) no discurso.
Saussure preocupou-se somente em saber o modo como as línguas funcionam
despreocupando-se com o modo como elas se modificam, ou seja, deu preferência ao
estudo sincrônico, que serviu como ponto de partida para a Lingüística Geral e para o
chamado método estruturalista de análise da língua.
Mas mesmo no sincrônico, Saussure não levou em conta a variação, inerente
às línguas, deixando o fenômeno da variação por conta da fala. No CLG, afirma-se que: “a
linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o
outro” (Ibid.: 16). A linguagem seria, portanto, a capacidade natural de usar uma língua e,
essa, por sua vez, “constitui algo adquirido e convencional” (Ibid.: 17). Como se pode
observar, para Saussure, o que é fato da língua (langue) está no campo social; o que é ato
da fala ou parole (discurso)
3
situa-se na esfera do individual.
Como acervo de unidades significativas, a língua seria “o conjunto dos
hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compreender”
(Ibid.: 92). Ou seja, ao mesmo tempo em que vê a língua como o instrumento utilizado
pelos seres humanos para comunicarem-se, Saussure ignora as circunstâncias em que esta
comunicação ocorre, pois o Curso também afirma que a língua é “uma soma de sinais
3
Saussure nunca falou em "discurso", que, mais do que na esfera do individual, situar-se-ia na esfera do
conteúdo a ser transmitido e que tradicionalmente ficou fora da lingüística.
51
depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos
idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos” (Ibid.: 27).
Como veremos a seguir, quando abordaremos as teorias lingüísticas de
Bakhtin/Volochinov, Pêcheux, Austin, Benveniste e outros teóricos, que nem todas as
palavras “são depositadas” no cérebro de cada indivíduo. As mesmas palavras podem ter
diferentes significados, ou, pelo menos, diferentes referentes, em diferentes situações de
uso.
Se, para Saussure, a língua constitui-se de “um produto social”, um todo
organizado, um conjunto de convenções, de elementos organizados entre si, mesmo que ela
não esteja completamente no cérebro de ninguém, mas sim no conjunto de todos os
cérebros da sociedade, pois “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si
só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de
contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (Ibid.: 22), a fala constitui-se de
atos individuais, o que a torna múltipla, imprevisível, irredutível a um sistema. Todo ato
lingüístico individual é ilimitado, incapaz de ser organizado em um sistema.
Por conseguinte “o estudo da linguagem comporta duas partes: uma,
essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do
indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte
individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive a fonação e é psicofísica” (Ibid.: 27).
Aqui fica clara a posição do CLG, para quem a língua deve ser estudada fora de seu
contexto social e fora de seu contexto de uso. Isso acaba invalidando o estudo da língua,
que não permite compreender sua verdadeira origem enquanto produto social, nem as
variações e transformações que seu uso determina. Saussure, ao estabelecer uma diferença
entre o individual e o social, ignora totalmente que, como será mostrado a seguir por
Bakhtin/Volochinov, a relação entre estes dois elementos, social e individual, se de
forma recíproca, ou seja, o individual existe na sua interação com o social e o social
existe com as diferentes interações entre os diferentes indivíduos.
Para Ferdinand de Saussure, a língua, tomada sincronicamente, seria algo
estável e imutável, algo submetido a uma norma introjetada na consciência individual
enquanto que os atos da fala nada mais seriam do que simples deformações dessas formas
normatizadas - mesmo que Saussure nunca utiliza essa última palavra. Mesmo se, ao
52
estabelecer a dicotomia língua-fala e ao caracterizar a "língua" como algo sincronicamente
imutável e homogêneo, o objetivo de Saussure fosse apenas metodológico, o CLG acabou
tratando a "língua" como algo “morto”. Como conseqüência disso, a lingüística
estruturalista acabou ignorando as variantes lingüísticas não padrão, classificadas como
fenômenos de "fala", não dignos de serem estudados, e, portanto, acabou ignorando os
saberes lingüísticos de inteiros grupos sociais que praticavam essas variantes. Em razão da
assinada influência que essas teorias lingüísticas tiveram no decorrer do século 20, ao
menos em parte do chamado Ocidente, o estruturalismo em Lingüística tendeu a incentivar
a escola a ignorar os diferentes saberes lingüísticos dos seus freqüentadores. A língua
“morta” passou a ser a única variedade lingüística aceita. Ao ignorar as diferentes
produções discursivas, nos diferentes ambientes, a sociedade em geral, a escola em
particular acabou contribuindo para o afastamento da grande maioria dos indivíduos da
escola e, conseqüentemente, para que estes indivíduos tenham uma aversão muito grande a
tudo o que diz respeito ao estudo da língua.
Do mesmo modo, nas interpretações mais comuns do CLG, estes mesmos
atos de fala individuais explicariam as mudanças da língua, na medida em que, em razão da
opção de separar o estudo sincrônico do estudo diacrônico, no momento em que muda uma
unidade da língua, todo o sistema da língua mudaria, que todas as unidades da língua
são solidárias uma da outra, formando uma estrutura.
Alguns anos após a publicação póstuma do CLG (1916), no livro Marxismo
e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochinov apresentou uma crítica do modelo teórico de
Saussure, mostrando que sua principal fraqueza foi de não compreender que as línguas
funcionam (até mesmo na percepção dos falantes) não como sistemas imutáveis, nem como
sistemas fechados e autônomos, mas, ao contrário, como sistemas flexíveis, em constante
mutação.
2.2. O caminho para o estudo da língua em uso
Em 1955, numa série de 12 palestras proferidas na Universidade de Harvard,
o filósofo inglês John Langshaw Austin formulou a teoria dos “atos da fala”. Esta teoria
53
teve como ponto de partida uma crítica ao positivismo lógico, então dominante na escola de
Oxford, onde Austin atuava, segundo o qual o sentido de um enunciado é função de suas
condições de verdade.
Austin mostra que, se fosse assim, não haveria sentido nos enunciados nos
quais não se possa averiguar se aquilo que é dito é verdadeiro ou falso. Pondo em causa
esta pretensão, Austin observa que muitos dos enunciados que proferimos não podem ser
submetidos à prova da veracidade, uma vez “que ao se emitir o proferimento está se
realizando uma ação, o sendo, conseqüentemente, considerado um mero equivalente a
dizer algo” (Austin, 1990: 25). Continua sua exposição afirmando que, apesar disso, este
tipo de enunciado não deixa de ter sentido.
Surge assim, segundo Austin, a distinção indiscutível entre enunciados
“constativos”, que podem ser submetidos à prova da sua veracidade, por se referirem a algo
que existe independentemente da ocorrência da sua enunciação, e enunciados
“performativos”, que não podem ser submetidos à prova da veracidade, uma vez que aquilo
a que se referem depende justamente do fato de serem enunciados. Para o filósofo escocês,
“o proferimento exteriorizado é a descrição verdadeira ou falsa da ocorrência de um ato
interno”. (Ibid.: 27).
Na continuidade desta distinção, Austin procura esclarecer as regras que dão
sentido aos enunciados performativos. Afirma que “quanto mais consideramos uma
declaração, não como uma sentença ou proposição, mas como um ato de fala (a partir do
qual os demais são construções lógicas), tanto mais estamos considerando a coisa toda
como um ato”. (Ibid.: 35). Após demonstrar que a natureza performativa de um enunciado
não depende de sua forma gramatical nem do valor semântico dos verbos utilizados, Austin
acaba por formular regras às quais um enunciado deve obedecer para adquirir valor
performativo.
Numa nova fase, quando reelabora sua teoria, Austin afirma que quando
falamos, realizamos três modalidades de atos: atos locutórios, atos ilocutórios e atos
perlocutórios. Ato locutório é o próprio fato de falar, de realizar uma fonação, um
acontecimento sempre novo que fazemos existir cada vez que produzimos um conjunto de
sons, em conformidade com determinadas regras gramaticais, com um determinado sentido;
atos ilocutórios são os que realizamos ao efetuarmos um ato locutório, ao dizermos
54
qualquer coisa, e atos perlocutórios são os que realizamos pelo fato de dizermos qualquer
coisa. Assim, por exemplo, Está chovendo é um ato locutório, a realização de determinados
sons organizados de acordo com as regras da língua portuguesa, que tem como valor
ilocutório produzir uma afirmação e que, proferida em determinadas circunstâncias pode
ter, entre outros possíveis, o efeito perlocutório de dar a entender que o locutor pretende
levar o alocutário a abrir o guarda-chuva e realizar indiretamente um pedido para o fazer.
Os trabalhos de John Austin foram o ponto de partida para a Pragmática, que
estuda a relação entre a estrutura da linguagem e seu uso. Segundo Fiorin: “O estudo do uso
é absolutamente necessário, pois palavras e frases cuja interpretação pode ocorrer na
situação concreta de fala”. (Fiorin, 2003: 166). A Pragmática preocupa-se com o uso da
linguagem em geral, sendo o seu objeto a produção e a interpretação completa dos
enunciados, em situações verdadeiras de uso. Busca solucionar como as interpretações
levam em consideração não somente a ngua, mas também o contexto. Ou seja, a
Pragmática preocupa-se em explicar o uso real da língua.
Segundo Fiorin (2002: 52) “A finalidade última de todo ato de comunicação
não é informar, mas é persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado”, ou seja, em
todo momento em que há uma comunicação está explicito ou implícito o fato do enunciador
tentar persuadir o enunciatário, que todo ato de comunicação é um complexo jogo de
manipulação.
Em âmbito escolar, essa abordagem não é levada em conta. Ao trabalhar
com determinado texto presente no livro didático, o professor, consciente ou
inconscientemente, tende a ver nesse texto uma simples informação, sem buscar os
elementos não explícitos e sem ver nele os aspectos ilocutórios e perlocutórios.
2.2.1. Caminhando com a teoria da enunciação
A teoria da enunciação obtém impulso na França com a obra do lingüista
Émile Benveniste, o qual propunha um estudo sobre a subjetividade na língua, tratando-a
como ato produtor do enunciado e vinculando-a à noção de enunciação. Benveniste
55
descreveu a língua como o fundamento das relações intersubjetivas que ocorrem no
discurso
4
.
Com a Lingüística da Enunciação, intensificou-se o interesse pelo discurso,
uma vez que, colocando a língua em funcionamento, esta mesma língua fica livre do
fechamento e da imobilidade da estrutura. Nas teorias da enunciação, a linguagem não é um
instrumento externo de comunicação e transmissão de informação, mas uma forma de
movimento entre os agentes do discurso.
No capítulo denominado “Da subjetividade na linguagem”, no primeiro
volume de Princípios de lingüística geral, Benveniste questiona o conceito de linguagem
descrita como instrumento de comunicação. Segundo ele, falar de instrumento, referindo-se
à linguagem, é opor o homem a sua própria natureza. As características da linguagem, sua
natureza imaterial, seu conteúdo, seu funcionamento simbólico impedem que ela seja
comparada a um instrumento, pois se assim fosse, poder-se-ia dissociar o homem da
própria linguagem. Para Benveniste a “linguagem está na natureza do homem que não a
fabricou” (Benveniste, 1995: 285), é na linguagem e pela linguagem que o homem se
constitui como sujeito” (Ibid.).
Segundo Benveniste, a subjetividade é “a capacidade do locutor se propor
como ‘sujeito’, definindo-se como a unidade psíquica que transcende a totalidade das
experiências vividas que reúne e que assegura a permanência da consciência” (Ibid.: 286).
A subjetividade é analisada por Benveniste em estudo sobre a categoria da pessoa, em que
foram descritos os pronomes EU/TU como indicadores que marcam a presença do sujeito
na língua: “os pronomes pessoais não remetem a um conceito nem a um indivíduo; diferem,
assim, do status de outros signos da linguagem. A realidade a que remetem é a realidade do
discurso” (Ibid.: 288). A terceira pessoa ocupa uma outra posição na teoria de Benveniste:
refere-se a um objeto fora da alocução; existe e se caracteriza em oposição à pessoa “EU”
do locutor que, ao enunciá-la, situa-a como não-pessoa. Portanto, faz parte de um discurso
enunciado por EU.
Para a Lingüística da Enunciação, o sujeito é o ponto de referência e os
pronomes pessoais, além de marcarem a subjetividade na linguagem, também representam
4
O termo ‘discurso’ não tem aqui o mesmo sentido que terá em outras correntes da linística, como, por
exemplo, na Análise de Discurso, inaugurada por Pêcheux.
56
o eixo principal do qual dependem outras palavras com o mesmo status, palavras estas
indicadoras do fenômeno da dêixis e que organizam as relações temporais e espaciais em
torno desse mesmo sujeito. Embora o TU seja complementar e indispensável, na relação, é
o EU que tem ascendência sobre o TU.
Benveniste entende que a enunciação manifesta a linguagem como um modo
de ação, é uma relação do locutor com a língua, apropriando-se dela e colocando-a em
funcionamento. Para concretizar essa ação, o locutor “está equipado” de um aparelho de
funções para influenciar de alguma maneira o comportamento do alocutário. Tal
“equipamento” comporta mecanismos como: asserção, intimidação, interrogação e
modalidade. Ao utilizar o mecanismo denominado modalidade, o enunciador mostra como
ele considera seu próprio enunciado, ou seja, ao utilizar modalizadores como os advérbios
“talvez”, “provavelmente”, “porventura”, “acaso”, o enunciador deixa transparecer que o
seu enunciado não está inteiramente assumido, que a proposição está limitada a uma certa
relação entre o enunciador e seu discurso. Nessa condição, o locutor, ao perceber que o
conteúdo de sua enunciação pode ser validado, mas não é ele quem valida, faz uso da
modalidade. Ele não assume a posição entre certo ou errado, deixando ao alocutário a
decisão de ser, ou não, validada a enunciação. Sendo assim, vemos que este mecanismo
possui um valor intersubjetivo.
Portanto a subjetividade descrita por Benveniste implica intersubjetividade,
pois correlação no par EU/TU, que no processo de enunciação, ao delimitarmos um
EU, delimitamos também um TU. A condição do diálogo é então característica da pessoa e
é a intersubjetividade que enseja o uso da língua, ou seja, a subjetividade é a capacidade
que o locutor tem de se propor como sujeito em uma relação de convertibilidade entre o EU
e o TU.
Se para a Lingüística da Enunciação, a enunciação é o ato individual de
colocar a língua em funcionamento, ou de transformá-la em discurso, ela fica, na
perspectiva de Benveniste, circunscrita ao espaço do subjetivo e do individual. Esta
dimensão individual e subjetiva atribuída ao discurso vai ser, como veremos a seguir,
contestada pela Análise do Discurso (AD) que tem como objeto o discurso, considerado
como uma instância integralmente histórica e social.
57
2.3. A sedução pelo formalismo
No final da década de 50, paralelamente às idéias de Austin, novos rumos
para a Lingüística são dados por Noam Chomsky através de sua gramática gerativa.
Chomsky desloca a atenção dos estudiosos do objeto pronto, da língua como atividade
realizada, para o processo de produção. Elege como objeto de estudo a geração de frases e
não a sua descrição.
Segundo Carlos Mioto, “o que permite ao falante decidir, então, se uma
sentença é gramatical ou não, é o conhecimento que ele tem e que tem o nome técnico de
competência. Quando o falante põe em uso a competência para produzir as sentenças que
ele fala, o resultado é o que chamamos tecnicamente de performance (ou desempenho). O
papel da nossa teoria, tal qual a concebemos, é descrever e explicar a competência
lingüística do falante, explicitando os mecanismos gramaticais que subjazem a ela”. (Mioto,
1999: 22 e 23).
Essa teoria entende a gramática como um modelo de competência do falante
ideal num contexto ideal, na qual as regras gramaticais definem a homogeneidade do meio
lingüístico. Sugere que a capacidade para produzir e estruturar frases é inata ao ser humano.
Para Chomsky e os gerativistas, não temos consciência desses princípios estruturais assim
como não temos consciência da maioria das nossas outras propriedades biológicas e
cognitivas.
Noam Chomsky acredita que a linguagem é predisposta no cérebro dos
indivíduos, que as regras que comandam a linguagem são inatas, biologicamente universais
e que ela distingue os homens dos demais animais. Detém-se ao mentalismo, não se
detendo a função comunicativa da linguagem, o que deixa claro que o lingüista
estadunidense preocupou-se primeiramente com o conceito de gramática. Segundo ele
“A linguagem humana está baseada numa propriedade elementar
que parece também ela ser biologicamente isolada: a propriedade da infinitude
discreta, que em sua forma mais pura é exibida pelos números naturais 1, 2, 3, (...).
As crianças não apreendem esta propriedade; se a mente não possuísse já de
antemão os princípios básicos, não haveria quantidade de evidência capaz de
provê-los. Do mesmo modo, nenhuma criança precisa aprender que existem frases
com três palavras e frases com quatro palavras mas não com três palavras e meia, e
que esse número pode ir aumentando sem ter fim.” (Chomsky, 1997: 50).
58
Para Chomsky, segundo Leandro Ferreira: “gramática seria o estado estável
da faculdade de linguagem representada na mente / cérebro; e língua, o conjunto finito de
sentenças que essa gramática pode gerar” (Leandro Ferreira, 1999: 131), portanto, conhecer
uma língua seria ter na mente a representação dessa língua.
Podemos observar a parcialidade da teoria chomskiana nos diferentes níveis
em que ele dividiu a língua: um considerado primário (sintático) e o segundo nível
fonológico. No nível sintático, estariam as combinações das palavras (unidades
significativas) e no nível fonológico, os sons, que por si só não possuem nenhuma
significação.
Tanto Saussure como Chomsky reduziram a linguagem a um nível sensório
mensurável, priorizando o objeto de forma empírica em detrimento do sujeito falante
histórico-social, abstendo-se de explicar os fenômenos extralingüísticos. Ambos aderiram à
fixação de um sistema lingüístico homogêneo, dedicando-se ao estudo de regras abstratas:
língua em Saussure e competência em Chomsky.
Estes conceitos, quando adotados pela escola, geram relações pedagógicas
hierárquicas e verticalizadas, pois instrumentalizam a relação professor-aluno e reificam o
sujeito, excluindo este mesmo sujeito de participar das construções do sentido, no nosso
caso, o sentido do estudo da língua.
2.4. A sedução pela variação
Enquanto Estruturalismo e Gerativismo consideravam a variação como
produto livre e individual, várias pesquisas de campo, realizadas em países e regiões
plurilíngües, demonstravam quanto o estudo da variação lingüística fosse essencial.
Em 1966, numa reunião ocorrida na UCLA (Universidade de Los Angeles),
vinte e seis lingüistas, entre eles Labov, reuniram-se com a idéia de apresentar uma
alternativa à Lingüística formal, de tipo chomskiana, cada vez menos humana e menos
social. A maioria destes estudiosos não tinha como objetivo maior uma revisão radical da
Lingüística estruturalista, tinham tão somente o objetivo de reivindicar o acréscimo de uma
59
dimensão social a estes estudos. Dentro deste contexto formal surge a Sociolingüística.
Uma das maiores expressões da denominada Sociolingüística é William Labov, que
pesquisou as variações lingüísticas a partir de um ponto de vista social e elege a
heterogeneidade da língua como a questão primeira da Lingüística.
Para Labov, algumas variações lingüísticas são resultantes da fala de
subgrupos e possuem regras implícitas. Esta fala caracteriza as relações sociais
estabelecidas entre os membros desse subgrupo, sendo o que o diferencia das demais
classes sociais e de outros subgrupos. Já outras variações lingüísticas estilísticas se
caracterizam pela adequação do falante ao contexto em que se estabelece a expressão
lingüística. As investigações de Labov propuseram-se, sobretudo, a investigar a relação
entre linguagem e estrutura social, com a finalidade de captar o valor social que é atribuído
à linguagem.
Ao mostrar que o dialeto não-padrão é tão completo quanto o padrão, a
Sociolingüística desmistificou o preconceito social em relação a dialetos não-padrões e
propôs um olhar mais amplo e mais dinâmico sobre a linguagem. Labov critica a noção de
variação livre e individual, compreendida na lingüística formal como mecanismo eventual.
Para ele, a variação se como expressão da posição que o falante ocupa no meio social,
demonstrando que, na prática, a homogeneidade da língua inexiste.
Uma das contribuições mais essenciais de Labov foi ter mostrado que a
variação é determinada pelas regras construídas pelo coletivo e incorporadas
inconscientemente pelos falantes. Por ser resultante da cultura de um determinado grupo, a
variedade lingüística também identifica o falante. Como já assinalado, em termos de
estrutura, complexidade e logicidade, os dialetos não-padrões e o dialeto padrão apresentam
os mesmos valores.
O objeto da Sociolingüística é o estudo da língua em seu contexto social,
isto é, em situações reais de uso. O ponto de partida é o conjunto de pessoas que interagem
verbalmente e que compartilham a mesma língua. Os indivíduos relacionam-se por meio de
redes expansivas diversas e que determinam seu comportamento verbal por um mesmo
grupo de regras. Estas redes expansivas são os diferentes contatos que o indivíduo mantém
com os diferentes grupos sociais nas diferentes situações de uso da língua.
60
Segundo Faraco, Labov estabelece “como um ponto essencial da
investigação histórica localizar o fenômeno sob mudança tanto no contexto estrutural
(interno) quanto no contexto social (externo)” (Faraco, 1991:39), ou seja, a língua deve
também ser analisada e estudada dentro de uma determinada estrutura, considerando-se as
diferentes influências e transformações que esta mesma língua sofre dentro dessa mesma
estrutura.
A Sociolingüística européia, sobretudo também se interessa pela
"variação diamésica", isto é, em relação ao meio empregado para a comunicação entre
outras, a distinção entre falado e escrito e suas possíveis implicações didáticas no
chamado fracasso escolar. O novo “cidadão” em fase de alfabetização sofre o preconceito
daqueles que teriam a obrigação de apresentar-lhe as diferentes formas de falar, de
escrever, de comunicar-se, mostrando que nenhuma se sobrepõe a outra. Privilegiar a
linguagem falada, sobretudo no ensino fundamental permite entrar em questões geralmente
evitadas no estudo da língua materna, tais como as variações e mudanças, dois pontos de
extrema relevância. Noções como “norma”, “padrão”, “dialeto”, “variante”, “sotaque”,
“registro”, “estilo”, “gíria” podem tornar-se centrais no ensino de língua e ajudar a formar a
consciência de que a ngua não é homogênea nem monolítica. (Santipolo 2002: 107 et
passim)
A linguagem falada é muito mais usada do que a escrita. No dia-a-dia da
maioria das pessoas, a fala ocorre com muito mais freqüência que a escrita: é assim no
trabalho, em casa, na rua. No entanto, as instituições escolares tendem a privilegiar a escrita
e ignorar a fala. O mais grave é que isto não representa uma contradição. Ao contrário,
trata-se de uma postura consciente, da escola, dos professores e dos pais dos alunos,
ideologicamente determinada.
Segundo Marcuschi:
“a fala (enquanto manifestação da prática oral) é adquirida naturalmente em
contextos informais do dia-a-dia e nas relações sociais e dialógicas que se instauram
desde o momento em que a mãe dá seu primeiro sorriso ao bebê. Mais do que a
decorrência de uma disposição biogenética, o aprendizado e o uso de uma língua
natural é uma forma de inserção cultural e de socialização” (Marcuschi, 2003: 18).
61
Portanto, apesar do contato com a linguagem oral ser muito anterior ao
contato com a escrita, esta última é a forma ensinada e prestigiada em nossas escolas.
Nessas condições, é natural que, ao descobrir a escrita, o aluno encontre dificuldades de
manifestar-se.
A linguagem verbal – oral e escrita – é um dos sistemas simbólicos que mais
separa os que dominam dos que são dominados. Em muitos casos, ela é utilizada como
elemento de distinção, determinando a “posição” dentro da pirâmide social, sendo que as
práticas que fogem aos “padrões” estabelecidos pela classe dominante não são aceitas e
muito menos contextualizadas dentro dos diferentes bancos escolares. Essa “violência
pedagógica” da qual falavam Bourdieu e Passeron acaba afastando, total ou parcialmente,
grande parte dos alunos, o que termina reforçando o caráter de distinção social da
linguagem.
O livro didático de língua portuguesa preferência aos textos escritos no
chamado “português padrão” e ignora totalmente a linguagem oral. Estes dois fatores por si
só contribuem para o afastamento da grande massa de excluídos dos bancos escolares.
O que temos na nossa cultura lingüística é uma divisão bem nítida. De um
lado a norma-padrão, um ideal que se baseia em formas do português escrito nos jornais,
livros, revistas e ensinado nas escolas, tido como “referência”. Do outro lado, o conjunto
das diferentes variedades lingüísticas do português falado pelo povo brasileiro nas
diferentes regiões do país e nas diferentes classes sociais, realizações concretas que
constituem o nosso vernáculo.
A distância é muito grande entre a “língua vernácula” e o que é considerado
como modelo da “língua portuguesa”. A maioria do povo brasileiro fala um “português”
muito distante daquele que é ensinado pelas escolas e as escolas, através de seus
professores e dos livros didáticos, insistem em “ensinar” uma língua que não é falada no
país, o que cria uma grande aversão das pessoas a tudo que diz respeito à língua materna.
Nesse contexto, tudo leva a crer que a escola trata a passagem da oralidade
para a escrita como a passagem do caos para a ordem, quando na realidade é a passagem de
um tipo de ordem para outro. A visão dicotômica da relação entre fala e escrita não mais se
sustenta. O certo é que a escrita não representa a fala, seja qual for o ângulo sob o qual a
62
observemos. Justamente pelo fato de fala e escrita não se recobrirem é que podemos
relacioná-las, mas não em termos de superioridade ou inferioridade. Fala e escrita são
diferentes, mas as diferenças não são polares e sim graduais e contínuas. São duas
alternativas de atualização da língua nas atividades sócio-interativas diárias.
que fala e escrita são diferentes, como a escola pode sustentar-se e, ao
mesmo tempo ser atraente, trabalhando a escrita “padrão” como a única forma aceita e
ignorando totalmente os diferentes dialetos e variações de seus alunos nas diferentes
regiões de nosso país, que possui dimensões continentais?
Só teremos uma escola atraente a partir do momento em que estas diferenças
forem respeitadas e trabalhadas dentro da própria escola. No dia em que os textos
produzidos e analisados não forem somente os impostos pela classe dominante (que utiliza
e produz a “variedade padrão”) através do livro didático e do professor, que é mais um
instrumento inconsciente a serviço do sistema dominante.
O mito do “bom falar” persiste até os dias de hoje, marginalizando seres
humanos com piadas preconceituosas, mostrando uma total ignorância quanto às variações
lingüísticas, intrínsecas a todas as línguas. Ao trazer em si a manifestação de uma
identidade social e cultural, a oralidade, de certa maneira, assusta. O mais paradoxal é que
a norma culta encontra legitimação até mesmo na consciência desses grupos sociais
subalternizados e marginalizados, que, ao não encontrar respaldo do que aprendem na
escola, acabam por acreditar que sua língua é uma “língua de pobre”, uma “língua de
marginal”, uma “língua de preto”.
É necessário que o professor explique, com base em teorias lingüísticas
consistentes, a origem e o funcionamento das variantes lingüísticas estigmatizadas, que
mostre as diferentes normas gramaticais que regem cada uma delas. Isso deixará claro que
as formas alternativas não são erradas, não são confusas, não são marginais, não são
incoerentes, isto é, que também são formas com as quais é possível expressar-se de modo
claro, bonito, condizente com as diversas situações e as diversas funções da interação
verbal. assim conseguiremos formar cidadãos conscientes, cidadãos que se aceitem com
suas diferenças lingüísticas, que se respeitem e que tratem num mesmo patamar de
igualdade as diferentes variações.
63
Muitas são as contribuições que a Sociolingüística trouxe pra o crescimento
e evolução da Lingüística, mas, infelizmente, estas inovações pouco chegaram ou ainda não
chegaram à maioria das salas de aula de nosso país. O descaso e o desrespeito com as
diferentes variações, que não são poucas em nosso país, onde a maioria dos professores de
língua portuguesa prioriza a variante dita padrão, em detrimento das variantes dos
diferentes grupos sociais que freqüentam as diferentes escolas de nosso país tem
contribuído muito para o afastamento (seja temporário ou permanente) de nossos alunos da
sala de aula e, conseqüentemente, aumentado de forma alarmante o analfabetismo funcional
em nosso país.
2.5. Quando o objeto é o discurso
No final da década de 1960, na França, surge uma posição teórica que busca
pensar a relação entre o lingüístico e o chamado extralingüístico, como uma relação
histórica e constitutiva do processo lingüístico e que entende o discurso como um efeito de
sentido entre interlocutores, como algo carente de uma origem, marcado pelos já-ditos, mas
ligado a um sujeito.
O maior representante desta linha de pensamento é Michel Pêcheux, que
sempre deixou clara sua relação com a lingüística estruturalista de Ferdinand de Saussure e
com o materialismo histórico, representado principalmente pelo pensamento de Louis
Althusser. A influência do materialismo histórico no domínio da lingüística consistiria em
colocar uma série de questionamentos sobre os próprios objetos desta ciência e de suas
relações com outros domínios científicos.
Daí, para Pêcheux (1997), surgem noções elementares e opostas. A primeira
seria a noção de alicerce lingüístico, enquanto conjunto de estruturas morfológicas,
fonológicas e sintáticas. Aparelhado de uma relativa autonomia, o sistema lingüístico seria
regido por leis internas, como as de concordância, que determinariam o sistema de
produção do discurso nos sistemas sociais. A segunda noção seria a de processo
discursivo/ideológico, que se desenvolve sobre os alicerces dessas leis internas, pois
64
“Dizemos que esses dois elementos (a um só tempo, fenômenos lingüísticos e
lugares de questões filosóficas) pertencem à região de articulação da Lingüística
com a teoria histórica dos processos ideológicos e científicos, que, por sua vez, é
parte da ciência das formações sociais: [...] o sistema da língua é, de fato, o mesmo
para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário,
para aquele que dispões do conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse
conhecimento. Entretanto, o se pode concluir, a partir disso, que esses diversos
personagens tenham o mesmo discurso: a ngua se apresenta, assim, como a base
comum dos processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela na
medida em que, como mostramos mais acima, os processos ideológicos simulam os
processos científicos”. (PÊCHEUX, 1997, p. 91).
A preocupação basilar de Pêcheux é inscrever o processo discursivo em uma
relação ideológica de classes e jogos de poder.
A AD constitui um modo de se pensar o político e o histórico como próprios
do processo de significação do dizer, constitutivo do sujeito. Para a AD, o discurso
constitui um objeto integralmente lingüístico e integralmente histórico, ou seja, a
exterioridade não se apresenta como um exterior a que a linguagem deve ser
correlacionada: ela faz parte do que é próprio da linguagem e de seu funcionamento.
Reconhecendo a origem da ciência da linguagem em Saussure, de quem era
um leitor muito atento, Pêcheux apóia-se criticamente no ponto de origem da ciência
lingüística para construir a noção de discurso. Como vimos anteriormente
5
, Saussure
construíra um novo objeto, que ele denominara língua, que ele definira como um sistema e
como único objeto possível dos estudos lingüísticos, excluindo a fala desse campo. Ou seja,
para ele, a língua, sendo sistêmica e objetiva, ela se oporia à fala, que é concreta e variável
de acordo com cada falante e, conseqüentemente, subjetiva.
para Pêcheux, se a língua for pensada como um sistema, ela “deixa de ser
compreendida como tendo a função de exprimir sentido, ela torna-se um objeto do qual
uma ciência pode descrever o funcionamento” (Pêcheux, 1997b: 62), verificando que a
oposição língua/fala não poderia se responsabilizar pela problemática do discurso. No
entanto, para solucionar o problema, ele não procura extinguir esta oposição, e sim refletir
sobre a fala, ponto da oposição menos desenvolvido por Saussure. Coloca o discurso “entre
a linguagem (vista a partir da lingüística, do conceito saussuriano de langue) e a ideologia”.
(Henry, 1997: 35).
5
Cfr. Ponto 2.1
65
Na visão de Pêcheux, a constituição do discurso ficou assim deslocada para
o entrecruzamento da estrutura da língua com o acontecimento, como conseqüência da
mudança de ângulo da estrutura para o acontecimento. Isso permitiu a percepção de lugares
enunciativos plurais no fio do discurso, dentro da perspectiva de que a heterogeneidade
enunciativa é constitutiva do discurso.
2.5.1. O sujeito e o assujeitamento
O primeiro momento do percurso teórico de Pêcheux, na obra publicada em
1969, denominada “Análise automática do discurso”, também denominada AAD69, possui
como característica a exploração metodológica da noção de maquinaria discursiva
estrutural, concebendo o procedimento de produção discursiva como “uma máquina
autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina
os sujeitos como produtores de seus discursos” (Pêcheux, 1997a: 311). O sujeito acredita-se
agente de seu discurso, mas é apenas assujeitado, apoio para a produção desse discurso.
Na concepção de Pêcheux, existe um sujeito-falante que é o resultado de um
processo histórico-social e que sofre influências ideológicas, as quais transformam e
marcam seu discurso. Os analistas franceses defendem a idéia de que, ao passar de um
ambiente para outro, o sujeito assume os discursos institucionais possíveis conforme o seu
trânsito. Esse processo de adaptação discursiva recebe o nome de assujeitamento.
Esse sujeito assujeitado é então aquele que se apropria de um discurso
preexistente e faz uso dele a partir de regras também preexistentes, o que nos faz supor que
não existem textos individuais ou discursos originais. Nessa perspectiva, o sujeito sofre um
reducionismo, enquanto integrante de uma situação de comunicação, pois, por um lado,
sofre o processo de assujeitamento, assumindo os temas e as estruturas próprias de uma
instituição, assim como as próprias estratégias comunicativas inerentes a esta estrutura; por
outro lado, seu texto também assume idéias, vocabulários e estruturas preexistentes, ou
seja, se moro em um bairro onde predominam a miséria e o analfabetismo no meu
cotidiano, passo a assumir o discurso dos explorados mesmo que eu estude, porque me
identifico com os moradores do bairro, com os marginalizados, com os excluídos. Portanto,
66
ser assujeitado em cheux é passar da condição de indivíduo a sujeito, a partir de uma
inscrição em lugares sociais e falar desde estes lugares.
A partir do momento em que o sujeito deixa de ser sujeito e passa a ser
assujeitado e o texto deixa de ser texto e passa a ser intertexto, o que resta são estruturas
definidas, mais ou menos imutáveis e não criativas. Isso determina que não se possa
analisar o discurso fora das instituições porque é nelas que ele é mais fortemente marcado.
Desde o primeiro momento, a AD evita “qualquer metalíngua universal
supostamente inscrita no inatismo do espírito humano, e toda suposição de um sujeito
intencional como origem enunciadora de seu dizer” (Id.Ib.: 311). Contudo, foi só a partir do
refinamento e, conseqüentemente, da postulação do primado da alteridade, que o sujeito do
discurso passou a ser compreendido como um sujeito atravessado pelo inconsciente.
2.5.2. A formação discursiva e a influência de Althusser
A teoria marxista da ideologia, de Althusser, teve uma influência muito
grande nos trabalhos de Pêcheux. Nessa teoria, Althusser destaca a autonomia relativa da
ideologia de uma base econômica e a sua significativa contribuição para a reprodução ou
transformação das relações econômicas. Ele afirma que a ideologia ocorre em formas
materiais, ou seja, não é no campo das idéias que as ideologias existem, mas no campo das
instituições, das relações de produção. Esta mesma ideologia atua através da constituição
das pessoas como sujeitos sociais, fixando-os em posições-sujeito e dando-lhes, ao mesmo
tempo, a ilusão de serem agentes livres. Esses processos ocorrem em várias instituições
como a família, a justiça, a escola etc., que são, segundo o autor, elementos do ‘Aparelho
Ideológico do Estado’.
Para Pêcheux, formação discursiva (FD) é aquilo que, a partir de uma
determinada posição do sujeito, numa determinada conjuntura, resultante da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito. As FD estão posicionadas em complexos de formas
discursivas relacionadas, mencionadas como interdiscurso (a memória do dizer, o saber
discursivo) e os significados específicos de uma formação discursiva são determinados pela
relação entre o exterior e o interdiscurso, mas os sujeitos não estão conscientes desta
definição externa, reconhecendo-se como fonte dos significados de uma formação
discursiva, quando são, na verdade, seus efeitos.
67
Com a introdução do conceito de formação discursiva, Pêcheux coloca em
cheque a noção de máquina estrutural fechada, “na medida em que o dispositivo da
formação discursiva está em relação paradoxal com seu ‘exterior’: uma FD não é um
espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente ‘invadida’ por elementos que vêm de
outro lugar” (Id.Ib.: 314). Pêcheux define FD como:
“aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada
numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que
pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um
panfleto, de uma exposição, de um programa, etc).” (Pêcheux, 1997: 160).
As influências de Althusser luta de classes e ideologia ficam evidentes
nesse conceito de Pêcheux, principalmente no que se refere à interpelação do sujeito pela
ideologia. Para Pêcheux a FD é uma unidade dividida, heterogênea em sua forma
constitutiva. No interior de uma mesma FD coabitam vozes dissonantes que dialogam,
opõem-se, aproximam-se, divergem, pois uma FD é essencialmente freqüentada por seu
outro. Esse “outro” da formação discursiva é justamente o interdiscurso, aliado ao
intradiscurso. É pertinente reconhecer a heterogeneidade das FD e entender que no interior
de uma FD acontecem deslocamentos de sentidos.
2.5.3. O interdiscurso e o intradiscurso
No segundo momento do percurso teórico de Pêcheux, com a agregação dos
conceitos de formação discursiva e interdiscurso, um afastamento teórico em relação ao
momento anterior, passando a serem objeto de estudo as relações entre as máquinas
discursivas estruturais. O interdiscurso seria um conjunto de discursos de um mesmo
campo discursivo ou de campos distintos, em épocas diferentes.
É importante trazer à luz a noção de pré-construído proposta por Pêcheux
(1999: 163 – 164) como um dos elementos do interdiscurso, o que corresponde a enunciado
proveniente de discursos anteriores, outros, como se esse elemento estivesse sempre-já-
, resultante da interpelação ideológica, segundo a qual a realidade oferece, determina e
impõe seu sentido sob a forma da universalidade. Outro elemento do interdiscurso
lembrado por Pêcheux corresponde às articulações justamente por possibilitar uma relação
68
do sentido pré-construído, com um sentido a ser elaborado. Para Pêcheux, o pré-construído
“remete simultaneamente àquilo que todo mundo sabe, isto é, aos conteúdos de pensamento
do sujeito universal suporte da identificação e àquilo que todo mundo, em uma situação
dada, pode ser e entender, sob a forma das evidências do contexto situacional” (Id., 1997:
171).
Desta maneira entendemos que o pré-construído corresponde a uma
construção anterior, exterior, a um enunciado já-dito, produzido em outro lugar. Ao
participar do gesto interpretativo, o sujeito está preocupado com o sentido do discurso e o
pré-construído é um elemento que possibilita a edificação do sentido. É o interdiscurso que
determina o efeito de encadeamento do pré-construído. A noção de interdiscurso designa o
exterior de uma FD. É o lugar onde o sentido é edificado pelo sujeito através da recordação,
do esquecimento, do silêncio e da incompletude. É o puro-já-dito, o interdito do discurso. É
a partir do interdiscurso, de uma FD, que poderão ser analisadas as formas de
assujeitamento.
Juntamente com o interdiscurso o intradiscurso que, segundo Pêcheux
(1999: 167), enquanto fio do discurso do sujeito, é um efeito de interdiscurso sobre si
mesmo. É ele que nos consenti buscar o discurso dos outros pela memória discursiva, pois
entendemos que tanto o intradiscurso quanto o interdiscurso fazem parte de uma cena
discursiva sócio-histórica-ideológica. É o intradiscurso e o interdiscurso que nos remeterão
à rede completa das FD as quais todo dizer está inserido e que nos darão o caminho para
entendermos a exterioridade discursiva. É na dimensão vertical (interdiscurso) que se
coloca o saber da FD e na dimensão horizontal (intradiscurso) que os elementos desse
saber linearizam-se. O intradiscurso está relacionado àquilo de que estamos falando naquele
momento real, em determinadas condições e, de certa forma, está ligado à materialidade
lingüística.
O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito
significa em uma determinada situação discursiva. Tudo o que se disse sobre um assunto
e seus correspondentes estão, de algum modo, significando ali, interpelando os sujeitos.
Todas essas opiniões ditas por alguém, em algum lugar, em outros momentos, mesmo
muito longínquos, têm um efeito sobre o que é dito em algum lugar e trazem diferentes
pressuposições. Dentro dessa perspectiva, os elementos do interdiscurso, que Pêcheux
69
(1999) denomina pré-construídos disfarçam o assujeitamento do sujeito-falante, embora ele
acredite, sob o aspecto de uma autonomia, ser a fonte de seu discurso. Contudo, o sujeito
nada mais é do que o suporte.
Partindo desse referente aprofundamos a questão relacionada à ilusão
subjetiva do sujeito que - segundo Pêcheux (1997: 168–169) - se concretiza por dois tipos
de esquecimento. No esquecimento de 1 de natureza inconsciente e ideológica o
sujeito se coloca como origem do seu dizer, o sujeito falante tem a ilusão de estar na fonte
de sentido e de que o seu discurso começa nele. Apesar disso, o seu dizer não tem origem
nele, uma vez que o sujeito se caracteriza pela dispersão de outros sujeitos e retoma
sentidos preexistentes. Nesse esquecimento, o sujeito rejeita, apaga, inconscientemente,
qualquer elemento que represente o exterior de sua FD, ou melhor, o que ele diz tem o
sentido que ele deseja, realçando assim a autoridade absoluta e autônoma do sujeito. Nesse
esquecimento é que se inscreve o assujeitamento do sujeito. Vejamos o que nos fala
Pêcheux sobre esse esquecimento:
“caracterizamos como esquecimento 1, inevitavelmente inerente à prática
subjetiva ligada à linguagem. Mas, simultaneamente, e isto constitui uma outra
forma deste mesmo esquecimento, o processo pelo qual uma seqüência discursiva
concreta é produzida, ou reconhecida como sendo um sentido para um sujeito, se
apaga, ele próprio, aos olhos do sujeito.” (Pêcheux & Fuchs, 1997: 168 – 169).
O esquecimento de 2 que está inserido na ordem da enunciação se
caracteriza por um funcionamento do tipo pré-consciente/consciente. O sujeito, na seleção
entre o falado e o não falado, não possui um controle total e deixa deslizar significados
indesejáveis. Por esse esquecimento, o sujeito confia que o que diz só pode significar
aquilo, pode ser dito daquela forma, com aquelas palavras e não com outras, o que
denota a onipotência do sentido. Nesse deslumbramento, que é denominado ilusão de
transparência dos sentidos ou ilusão referencial, o sujeito estabelece uma relação entre
coisas e palavras, entre pensamento, linguagem e mundo. Endossamos tais afirmações com
as palavras de Pêcheux, para o qual o esquecimento é “a fonte da impressão de realidade do
pensamento para o sujeito (eu sei o que eu digo, eu sei do que eu falo)” (Pêcheux, 1998:
176).
70
Esse esquecimento, de natureza pré-consciente, pode ser retomado para
informar aquilo que se queria dizer. Quando o sujeito reformula o seu dizer, retoma-o para
explicar adequadamente o que disse. Faz isso de forma consciente, utilizando-se de
estratégias discursivas, por meio de famílias parafrásticas. Essa operação faz com que o
sujeito tenha a ilusão de que o discurso reflete o conhecimento objetivo da realidade.
Pêcheux afirma que “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro,
diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente para derivar para um outro” (Pêcheux,
2002: 53), o que é significativo para a AD, pois o sentido não é compreendido como uma
unidade fixa, já que é histórico.
Na visão de Orlandi “as ilusões não são ‘defeitos’, são uma necessidade para
que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção dos sentidos(Orlandi, 2001: 36).
Assim, é necessário olhar também para as várias posições que os sujeitos-professores
assumem nos seus dizeres sobre os textos propostos para interpretação dentro do livro
didático, o que aponta para a incompletude e a diversidade, que é condição da linguagem,
visto que tanto o discurso como o sujeito e o sentido não estão totalmente prontos, mas
estão em constante movimento, se (re) significando de muitas maneiras, o que nos permite
dizer que o sujeito pode ocupar rias posições enunciativas no decorrer de seu discurso.
Partindo desse ponto de vista, a noção de sujeito uno, todo poderoso, homogêneo,
cartesiano, dono de seu dizer e do seu agir, defendido por algumas teorias lingüísticas, é
posto em cheque.
2.6. A visão marxista do círculo de Bakhtin
Quatro ou cinco décadas antes de cheux, o círculo de Bakhtin criticava
a visão estruturalista da linguagem verbal como sistema de signos e afirmava que o signo
lingüístico seria a materialidade específica da ideologia. Bakhtin-Volochinov via a
linguagem como um produto social e o sujeito como um elemento participativo e atuante no
processo comunicativo, mas numa condição de constante interação com a linguagem e com
a sociedade.
71
Na introdução à versão francesa do livro Marxismo e filosofia da linguagem,
Marina Yaguello afirma que o círculo “valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma
sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da
comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais” (Bakhtin, 2004:
14).
Para o rculo, o signo e a situação social estão ligados de forma
indissolúvel e a palavra é o signo ideológico por excelência. É ela que veicula de maneira
privilegiada a ideologia e o signo é, por excelência, vivo e móvel, com vários significados,
mas a classe dominante tem necessidade de torná-lo único, reificando-o e,
conseqüentemente, desvalorizando as suas variantes.
A palavra é a mediadora entre o social e o individual. Ao aprender a falar, o
ser humano também aprende a pensar, na medida em que cada palavra é a revelação das
experiências e valores de sua cultura. Desse ponto de vista, tem-se que o verbal influencia
nosso modo de percepção da realidade, cabendo a cada um assumir a palavra como
manutenção dos valores dados ou como intervenção no mundo.
Segundo as idéias do círculo, é através da palavra em uso que as idéias de
uma determinada classe social são absorvidas, internalizadas e repetidas pela outra classe
social, ou seja, a palavra é instrumento de domínio de uma classe sobre a outra, geralmente
das classes economicamente beneficiadas sobre as classes economicamente
desprivilegiadas. Bakhtin (Volochinov) continua ainda “A palavra não é somente o signo
mais puro, mais indicativo; é também um signo neutro” (Ibid.: 36), ou seja, a palavra não é
somente um conjunto de sentidos, é também neutra em relação a qualquer função
ideológica determinada. Aceita qualquer carga ideológica. Em situação de uso, é um espaço
de produção de sentido. Dela afloram as significações que, conseqüentemente, se fazem no
espaço criado pelos interlocutores em um contexto sócio-histórico dado. Por esse espaço
gerador de sentido é controlada, selecionada por meio dos mecanismos sociais.
A palavra, em sua condição de signo, é adquirida no meio social. A seguir,
interiorizada pelo sujeito, retorna ao meio social por meio do processo de interação, numa
forma diferenciada, ou seja, ela é dialeticamente alterada devido às colaborações
ideológicas que marcam as condições de produção. Segundo Volochinov “As palavras são
tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações
72
sociais em todos os domínios” (Ibid.: 41). Portanto, como afirma o próprio Bakhtin
(Volochinov) “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (Ibid.: 46).
Em razão desses condicionamentos sociais e históricos que determinam
tanto os sujeitos quanto às palavras, somente o acontecimento enunciativo dará o
significado da palavra que, muitas vezes, será diferente do significado registrado no
vocabulário; o significado é construído no processo de contato social. Assim, a palavra é
constituinte tanto da consciência quanto do desenvolvimento humano, pois “está presente
em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (Ibid.: 38) e o “signo
ideológico exterior, qualquer que seja sua natureza, banha-se nos signos interiores, na
consciência. Ele nasce deste oceano de signos interiores e aí, continua a viver, pois a vida
do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado de compreensão, de
emoção, de assimilação, isto é, por uma integração reiterada no contexto interior” (Ibid.:
57).
É a partir da palavra que o sujeito se compõe e é composto, porque “a
língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida”
(Ibid.: 96). É nas diferentes relações sócias que o ser humano vai formando o seu modo de
pensar e de agir. É através da palavra e de seus diferentes significados e significantes que a
evolução do pensamento vai acontecendo, que “a palavra está sempre carregada de um
conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (Ibid.: 95).
O professor de língua materna, principalmente na questão da leitura e
interpretação de textos em sala de aula, ao reprisar a “interpretação” constante dos manuais
didáticos está, consciente ou inconscientemente, reproduzindo as idéias e o modo de agir e
pensar das classes dominantes. Toda e qualquer evolução do pensamento do aluno estará
condicionado a esses saberes implícitos.
Precisa-se abandonar a noção de codificação e decodificação que
oportunidade a uma assimilação de língua como sendo um código fechado. Para o círculo
“Todo o signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior” (Ibid.: 58).
Toda a palavra traz marcas culturais e sociais, aí está o seu valor polissêmico
e dialógico, que “A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da
interação viva das forças sociais” (Ibid.: 66), e é através dessa mesma palavra que os
sujeitos vão ter o primeiro despertar de suas consciências.
73
Ao abrir mão da “leitura de mundo” de seus alunos em detrimento da
“leitura de mundo” do autor do livro didático, o professor está contribuindo para que os
saberes e as marcas culturais e sociais de seus alunos sejam apagadas e esta “interação viva
das forças sociais” tenha como discurso único e verdadeiro o discurso do livro didático, o
discurso que de alguma forma representa o pensamento hegemônico presente em nossa
sociedade.
A linguagem não é sistema fixo e abstrato, por isso permite ao sujeito falante
abrir brechas, construir outros pontos de vista, romper o cerco do sentido já dado. Daí o
processo de reflexão e refração. Essa “brecha” é importante, é ela que o professor deve
explorar, é esta “brecha” que fará um aluno participativo, um aluno que se sentirá
respeitado e valorizado, um aluno que não abandonará a escola, um cidadão que saberá
ouvir e fazer-se ouvir.
Todo enunciado concreto possui duas partes: uma aludida, percebida ou
expressa através das palavras e uma não aludida, que são os julgamentos de valor, as
emoções individuais, mas que são atos sociais regulares e essenciais. Sendo assim, por trás
do individual e do sujeito, há o coletivo, o social. Para Bakhtin, o eu se realiza
verbalmente com base no coletivo. O que faz essa circulação social é a força valorativa
manifestada através do enunciado e de seu recurso entonativo. A entonação é elo mediador
entre o discurso verbal e o contexto extraverbal.
Segundo Volochinov “A entoação sempre está na fronteira do verbal com o
não verbal, do dito com o não dito. Na entoação, o discurso entra diretamente em contato
com vida. E é na entoação sobretudo com o falante entra em contato com o interlocutor ou
interlocutores: a entoação é social por excelência. Ela é especialmente sensível a todas as
vibrações da atmosfera social que envolve o falante.” (Volochinov: 1926). Portanto,
qualquer texto é expressão e resultado da interação social de três participantes: o falante
(autor), o interlocutor (leitor) e o tópico da fala (herói). Dessa forma, o discurso verbal é
social, não se enquadra dentro de uma lingüística abstrata e nem se origina
psicologicamente de uma consciência individual. É essa essência sociológica que ao
discurso verbal o significado artístico. Sua forma e sentido são determinados pela interação
social, onde o enunciado se estabelece dinamicamente entre seus participantes.
74
É no diálogo que o círculo de Bakhtin percebe o humano e o coloca como
orientação para a humanidade do outro, numa entrelaçada rede de relações sociais intensas
e permanentes, modelada por um arquétipo que opera com uma base dialética de pensar,
muito reverso aos modelos hegemônicos do mundo acadêmico que investiga as realidades
humanas.
Percebe-se que o termo dialógico é compreendido não apenas como um
instrumento formal ou no sentido de estratégia para resolução de conflitos. Para Bakhtin o
diálogo “... no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é
verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra
diálogo num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas
colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (Bakhtin,
2004: 109). Apresenta-se, portanto, como um grande encontro de vozes e entonações
diferentes: entre pessoas, entre textos, entre autores, entre disciplinas escolares, entre vida e
escola, enfim, em todas as instâncias da linguagem, inclusive no discurso interior que
também manifesta vozes de forma entrecruzada, complementada, em oposição, em
confronto, em contínuo movimento, sempre relacionado a uma atividade humana com juízo
de valor.
Vê-se, por esse argumento, que para o circulo de Bakhtin é impossível uma
formação humana sem alteridade, onde o outro não seja o delimitador e o construtor do
meu espaço de atuação no mundo, constituindo-me ideologicamente e me dando
acabamento.
O círculo de Bakhtin procurou dar uma ênfase à linguagem como atividade
social. Na visão do círculo, cada sujeito, como parte da sociedade a que pertence, teria
então o seu papel enquanto agente modificador na atividade social. Mesmo admitindo que
no discurso de um sujeito possam estar presentes outros discursos anteriores, a forma do
círculo de Bakhtin de analisar o processo de apropriação do discurso alheio pressupõe um
sujeito ativo e atuante, capaz de fazer escolhas e estabelecer estratégias.
Portanto, o círculo atribui ao sujeito responsabilidade pelo uso que este faz
da linguagem. O sujeito é um agente dentro do processo discursivo, capaz de interferir,
aprimorar ou até modificar o discurso social.
75
Estas idéias de Bakhtin (Volochinov) a respeito da linguagem verbal, se
estudadas e aprofundadas dentro das escolas formadoras de profissionais da educação, e
posteriormente aplicadas por estes mesmos profissionais quando no exercício da docência,
contribuirão muito para que o ensino de ngua materna evolua, ou que pelo menos a
aversão à língua materna, com que a maioria dos alunos sai das escolas, seja atenuada.
76
3. O DISCURSO ÚNICO NA ESCOLA
A luta entre as classes sociais não se somente no campo econômico e
político. Ocorre também no campo lingüístico. E nesse campo, ela ocorre em dois veis:
em nível da língua e em nível do discurso. Do ponto de vista das variações formais da
língua, Gnerre propõe que “uma variedade lingüística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os
seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações
econômicas e sociais” (Gnerre, 1998: 6–7). Na maioria das sociedades, a língua prestigiada
tende a ser a da classe dominante. A primazia de uma classe impõe-se também pela
primazia de sua variedade lingüística.
A escola recebe falantes das diversas variedades lingüísticas. Essas
diferentes variedades, na grande maioria das vezes, não são respeitadas e nem reconhecidas
pela escola. Essa reconhece tão somente a variedade lingüística dita padrão, que representa
o grupo social detentor do poder econômico.
É extremamente complexa a relação entre a sociedade e as línguas e
variedades de línguas que nela são faladas. Bakhtin (Bakhtin 2003: 118 et passim) lembra
que, na história da humanidade, a linguagem humana nasceu da organização social do
trabalho e da luta de classes, mas que também as línguas, em constante movimento,
continuam seguindo o desenvolvimento da vida social. As dinâmicas lingüísticas numa
sociedade dependem das relações que os seus membros estabelecem entre si, além de
contribuírem a produzir e viabilizar essas relações.
Além de diversas variedades lingüísticas, dentro de uma mesma língua
nacional também coexistem diversos discursos sociais. A escola é um dos locais em que as
diversas variedades lingüísticas e os diversos discursos sociais convivem. Infelizmente,
essa instituição, na maioria das vezes, tende a ignorar esta diversidade. A variedade
lingüística que é aceita pela escola é a variedade dita padrão, o que de certa maneira já inibe
a ação e até mesmo o conhecimento dos diversos discursos sociais, acabando por privilegiar
o discurso estabelecido pela classe dominante e submetendo o olhar das crianças e dos
adolescentes a uma visão crítica pré-estabelecida pelos adultos.
77
Estas ações da escola não são questionadas pelos diferentes segmentos
sociais, pois como nos mostra Zandwais:
“Assim, à semelhança da massa da argila e das esculturas que se modelam para
produzir determinados efeitos, o sujeito proletário aceita os ‘benefícios’
educacionais que lhe são ofertados, sem entender que o caráter de uniformidade
nacional conferido à educação não coincide com um ideal de ação para a
transformação da realidade já sedimentada, mas com o ideal de massificação e
preservação das relações hegemônicas do estado frente aos interesses populares”
(Zandwais, 2003: 36- 37).
O caráter essencialmente social das línguas deve igualmente ser visto no fato
que dinâmicas como comunicar e dominar são partes inerentes ao processo de
conhecimento, que toda a produção de conhecimento sobre o mundo é mediada pela
linguagem verbal. Se considerarmos as línguas no contexto das práticas humanas, devemos
compreendê-las como instrumentos de comunicação, conhecimento e dominação. Partindo
deste raciocínio, a questão que se deve colocar na perspectiva da realização das práticas
educativas é: a serviço do quê e de quem o desenvolvimento da linguagem deve estar
colocado?
3.1. Escola, língua e discurso dominantes
Como vimos no capítulo 1, tradicionalmente, a escola tem representado os
interesses do Estado-nação e, conseqüentemente, da classe dominante. O Estado-nação
sempre tendeu a impor a variedade lingüística da classe dominante como a única correta e
aceita e as classes subalternizadas sempre tenderam a aceitar essa imposição. Para Gnerre
“Assim como o Estado e o poder são apresentados como entidades superiores e ‘neutras’,
também o código aceito ‘oficialmente’ pelo poder é apontado como neutro e superior, e
todos os cidadãos têm que produzi-lo e entendê-lo nas relações com o poder” (Gnerre,
1998: 9).
Dentro da instituição escolar, a luta no campo lingüístico não tem parado aí.
Podemos também observar, ao longo da história, que, através de um discurso único, a
escola tendeu a apresentar, como sendo universal, a ideologia da classe dominante,
78
representada pelo Estado e legitimadora do Estado. Nossa hipótese é que, sobretudo por
intermédio do livro didático e de seus textos “devidamente” escolhidos, os modos de vida,
de comportamento, os valores éticos, as visões de mundo etc da classe que detém o poder
são impostos e ensinados como universais. Para Gnerre:
“Na variedade padrão, então, são introduzidos conteúdos ideológicos,
relativamente simples de manipular, já que as formas às quais estão associados
ficam imobilizadas favorecendo, assim, quase que uma comunicação entre grupos
de iniciados que sabem qual é o referente conceitual de determinadas palavras, e
assegurando que as grandes massas, apesar de familiarizadas com as formas das
palavras, fiquem, na realidade, privadas do conteúdo associado (Gnerre, 1998:
20).
Como já assinalado, quando chega na escola, a criança traz a variedade
lingüística do grupo social com o qual ela convive e a escola tende a lhe apresentar uma
variedade lingüística única e, em muitos casos, diferente da com a qual ela estabeleceu suas
relações sociais e construiu seu pensamento até então. Mas a criança também chega na
escola com as visões de mundo, os valores éticos, as aspirações, as práticas culturais etc.
dominantes no seu grupo social. Nossa experiência como professor tem nos mostrado que a
escola tende a ignorar esses saberes e a apresentar à criança valores, visões de mundo,
práticas culturais próprios da classe social dominante. Ou seja, ao chegar à escola, a criança
começa a manter contato com um “mundo” tendencialmente diferente do seu, um “mundo”
que irá impor suas idéias, seus valores, além de suas variantes lingüísticas. Com o passar do
tempo, a grande maioria das crianças oriundas de "mundos" subalternizados, distantes do
"mundo" representado pelo sistema educativo, irá abandonar a escola.
Ao agir dessa forma, a escola tem se mostrado incompetente para a
educação dos alunos pertencentes às camadas populares, acentuando e justificando
desigualdades sociais. Ao não compreender de forma suficiente o papel da variação
lingüística e dos diferentes discursos sociais no processo de ensino-aprendizagem, a
instituição escolar passa a ver como cidadão de segunda categoria o aluno que não utiliza a
variação padrão e que não reproduz o discurso oficial. Nesse sentido, a escola tem sido
intransigente com as diferenças dialetais e discursivas, trabalhando com a variedade padrão
79
e com o discurso social oficial, isto é, com o ela considera certo e errado, não abrindo
espaço para o diferente.
Tradicionalmente, a linguagem utilizada na escola tende a subestimar os
conflitos de classes, a silenciá-los, a fazer parecer que tudo está bem, gerando
discriminação e fracasso. Variantes lingüísticas e discursos socialmente estigmatizados,
usados por alunos provenientes de camadas populares, provocam preconceitos lingüísticos
e sociais, resultando em dificuldades de aprendizagem. O respeito à fala e à formação
discursiva
6
do aluno implicaria em ensinar a variedade padrão como apenas uma das
possibilidades de uso da língua nacional, adequada a determinadas situações, sem reduzi-la
à única forma possível e aceitável, além de possibilitar ao aluno o contato com os diferentes
aparatos de conhecimentos sócios-políticos necessários para compreender e produzir
enunciados complexos, referentes a esferas políticas, culturais, estéticas etc. do mundo real.
Além da escola, a ideologia dominante conta com outros agentes de
propagação, entre eles, a mídia. Portanto, paradoxalmente, a criança que abandonou a
escola e isso vai se dar em boa parte por ela ter abandonado a escola e não ter adquirido,
como assinalamos no parágrafo anterior, o mínimo de "instrução" necessária para tornar-se
um cidadão consciente, lingüisticamente e discursivamente competente irá “adaptar-se”
ao modo de vida, de pensar e de agir das classes dominantes, inclusive na questão da
variação lingüística, acreditando” que seu grupo, com seu modo de falar, é “inferior” e
que, portanto, tem que se manter subordinado e disciplinado dentro dos padrões
considerados normais. Gnerre enfatiza que “A começar do nível mais elementar de relações
com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso
ao poder, (...)” (Ibid.: 22).
Como apontamos nos parágrafos introdutórios desse capítulo, para
abordar a linguagem verbal na perspectiva das práticas educativas, é preciso entendê-la
também enquanto prática que estrutura as relações e o agir humano, numa relação dialética.
A variedade lingüística e o discurso dominante refletem o modo de pensar dos grupos
sociais dominantes. Ao escolher trabalhar com essa variedade lingüística e com esse
discurso, a escola tende a transmitir para seus alunos, através do professor e do livro
didático, nada mais que esses modos de pensar e esses valores. Partindo dessa premissa, a
6
Cfr. capítulo 2.
80
escola está ignorando formas lingüísticas e formas de pensar o mundo próprias das
comunidades de seus alunos, saberes comuns a todos aqueles que vivem em determinadas
regiões e em determinados grupos sociais.
Quando a escola desqualifica a língua, o modo de agir e o modo de pensar
das diversas comunidades onde está inserida, ela acaba criando obstáculos ao acesso dos
alunos oriundos dessas comunidades ao poder político e ao poder econômico, também os
exclui do poder simbólico, isto é, do poder de falar e compreender plenamente a fala dos
outros, nas produções lingüísticas quotidianas e, sobretudo, nas esferas políticas e da
criação ideológica em geral que têm a língua como principal veículo. Desse modo, a escola
contribui para a manutenção do status quo de desigualdade que caracteriza a sociedade
atual.
No caso da sociedade brasileira, ao reproduzir um discurso único, a escola
contribui para a manutenção de diferenças sociais cada vez mais alarmantes, contribui de
forma decisiva para que a distância entre os que “possuem mais” e os que “possuem
menos” seja cada vez maior. Assim, “passar forçosamente as pessoas através do túnel da
educação formal significa fornecer a elas alguns parâmetros para reconhecer as posições
sociais e fornecer um mapa de estratificação social com alguns diacríticos relevantes para o
reconhecimento de quem é quem (...)” (Ibid.: 1998).
A heterogeneidade das escolas brasileiras, em termos de infra-estrutura
disponível, atua como um dos mecanismos que reforçam a desigualdade, principalmente no
que tange à distância entre a escola pública e a escola particular. Outro fator que contribui
negativamente no aproveitamento escolar é a distorção idade-série. Estimativas efetuadas
com base no censo de 2000 demonstraram que estão retidos no ensino fundamental cerca de
8,5 milhões de alunos com 15 anos ou mais de idade, os quais já deveriam estar cursando o
nível médio. É necessário lembrar que o fenômeno da distorção idade-série não deve ser
apontado como causa de um problema educacional, pois se trata mais da conjugação de
problemas intra e extra-escolares do que de um fator gerador de baixo aproveitamento.
Apesar do professor ser um dos principais mediadores desse processo de
imposição de saberes, temos consciência que é da combinação das diferentes FD’s à qual
ele pertence e dos diferentes já-ditos que ele assimilou desde a infância, que o professor
constrói o seu discurso, principalmente acerca da necessidade das classes subalternizadas se
81
adaptarem à língua e ao discurso dominantes para poderem ascender socialmente, de onde
ele pensa provir uma veracidade inquestionável que é repassada para seu método. Essas
experiências anteriores são caracterizadas pelos esquecimentos conceituados por Pêcheux
(1997), por experiências pessoais, acadêmicas e profissionais, que determinam o dizer e o
fazer do professor.
A Análise de Discurso de linha francesa, assim como as teorias elaboradas
pelos membros do Círculo de Bakhtin a respeito da relação entre a linguagem verbal e a
ideologia norteiam nossa convicção de que, no saber legitimado socialmente, através do
ensino, há o predomínio de uma ideologia que determina um padrão de professor, de
ensino, de conceitos e de metodologias a serem utilizados na escola. Este padrão contribui
para que a classe dominante permaneça no poder e tende a impedir que se formem cidadãos
conscientes e participativos.
O livro didático contribui parcialmente para a permanência desse saber
legitimado socialmente. É o que mostraremos a seguir com a análise de alguns textos
propostos para interpretação em três livros didáticos que se encontram entre os mais
distribuídos nas escolas gaúchas.
3.2. A compreensão de texto. Considerações teórico-
metodológicas
Uma das grandes preocupações que nos levaram a realizar este trabalho é o
descaso, a despreocupação que os discentes tendem a demonstrar frente às atividades de
interpretação de textos propostas em sala de aula. Nossa experiência e o próprio formato
adotado pela maioria dos manuais de professores, com sugestões de respostas às perguntas
sobre interpretação de textos têm nos mostrado que, em sua grande maioria, os alunos,
sobretudo de escolas públicas, estão condicionados a não debaterem os assuntos propostos
pelos textos que introduzem os capítulos no livro didático. Na maioria das vezes, a escola
tende a ignorar a opinião e o saber desses alunos e, quando ela os escuta, suas visões de
mundo e suas opiniões, que nada mais são do que o reflexo do modo de pensar e agir de
seus grupos sociais, acabam direcionando a opinião sobre o texto proposto para a “sugestão
de resposta” que está presente no manual do professor.
82
Ao agir assim, a escola está contribuindo, de forma consciente ou
inconsciente, para que o discurso implícito no LD seja reproduzido e passe a ser único.
Como já assinalado, nossa hipótese é que esse discurso único é sempre o discurso da classe
economicamente dominante e é o que tentaremos demonstrar a seguir. Com essa hipótese,
partimos para a análise dos textos e das respectivas propostas de interpretação de textos de
diferentes livros didáticos. Os critérios que utilizamos para escolher esses livros foram:
) terem sido aprovados pelo MEC
) estarem entre os mais solicitados pelas escolas públicas do Rio Grande
do Sul.
3.2.1. Texto, sentido e discurso
Segundo Orlandi: Um texto é uma peça de linguagem em um processo
discursivo bem mais abrangente e é assim que deve ser considerado. Ele é um exemplar do
discurso”. (Orlandi, 2001: 72). A AD não tem como objetivo o atravessamento” do texto
para encontrar sentido do outro lado. Partindo do princípio de que a linguagem não é
transparente, o questionamento da AD é “como” os textos significam. A AD produz
conhecimento a partir do texto, porque esse tem materialidade simbólica e significativa,
tem espessura semântica. A incompletude é constitutiva do discurso e os sentidos se
constituem sempre na relação entre o lingüístico e o histórico. É apenas ilusoriamente que o
sujeito produtor de linguagem acredita poder chegar a um sentido único e verdadeiro, pois
segundo Orlandi: “o que existe, é um sentido dominante que se institucionaliza como
produto da história: o literal” (Orlandi, 1987: 144).
Pêcheux (1999) também enfatiza que, na compreensão de um texto, que
veicula determinado discurso, cada sujeito promove uma relação deste discurso em
formulação com o interdiscurso ou memória discursiva, ou seja, com todos os dizeres que
já foram, de fato, ditos. Pêcheux afirma que:
“A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os implícitos' (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao
próprio legível” (Pêcheux, 1999: 52).
83
Portanto o interdiscurso, produto de enunciações anteriores, é um rastro de
memória que constitui o sentido do discurso, o interdiscurso trabalha como aquilo que
acontece quando um elemento do passado é suscetível de se inscrever na leitura da
seqüência, vindo a restabelecer os implícitos de que a interpretação necessita para se
concretizar. Em princípio, o restabelecimento dos sentidos implícitos, pré-construídos
ocorre de forma natural, sem que o falante tenha consciência dessa operação discursiva.
Deste modo, em seu discurso, o sujeito fala uma voz sem nome, consideravelmente
atravessada e levada ao sabor da ideologia e do inconsciente. Esta competência de saber
restabelecer os sentidos implícitos ou pré-construídos, que não é ensinada, produz
significativos e importantes efeitos também nos discursos produzidos, o que vem sendo
ignorado sistematicamente nas aulas de língua portuguesa. Partindo dessa premissa, uma
leitura discursiva, que considera o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que
é dito de uma maneira e o que é dito de outra maneira, objetivando entender e escutar, na
materialidade do que foi dito, o que não foi dito, considerando essa ausência como algo
significativo, poderia contribuir para a formação de um sujeito atuante e participante não só
na sala de aula, mas também, e, sobretudo, na sociedade.
Mais especificamente, a memória discursiva permitirá - na infinita rede de
formulações presentes no intradiscurso
7
de uma FD o aparecimento, a rejeição ou a
transformação de enunciados que pertencem a FD’s posicionadas historicamente. Sendo
assim, o discurso significa por sua inscrição e significação a uma dada FD constituída de
acordo com a história e não pela intenção do enunciador, visto que, quando nascemos, o
discurso está em processo, sendo nós que entramos e nos ajustamos nesse processo.
Portanto, a incompletude da qual falamos acima é condição e característica da linguagem.
Os sujeitos, os sentidos e os discursos nunca estão prontos, nem muito menos concluídos.
Já que um discurso é sustentado por outros - no caso, o discurso do professor
é sustentado pelo discurso do autor do LD, que por sua vez é sustentado pelo discurso de
outros autores, dos quais selecionou os textos - e aponta para o futuro, os sentidos são
produzidos a partir de posições. Nesse conjunto, a memória discursiva é conjeturada a
partir de um momento sócio-histórico, fazendo que o sujeito mude de uma situação
empírica para uma posição discursiva. É na relação discursiva que as palavras constituem
7
Cfr. capítulo 2.
84
as diferentes posições e assim fazem de fato, algum sentido. Vale observar que este sentido
não está nas palavras, mas antes delas e depois delas, meramente porque palavras remetem
a palavras.
Os sentidos estão permeados e atravessados pelas suas próprias relações com
uma FD característica e com uma memória discursiva. Conseqüentemente, não existe
sentido em si, ele nasce de colocações de caráter ideológico, fazendo com que as palavras
mudem de sentido de acordo com as posições em que são enunciadas, percebidas a partir do
exterior do discurso. Partindo desse princípio, entendemos que, enquanto participante de
uma situação de comunicação, o sujeito sofre um enorme reducionismo e,
conseqüentemente, o processo de assujeitamento se realiza, uma vez que o sujeito assume
não o vocabulário e as estruturas próprias de uma instituição, mas também as estratégias
comunicativas essenciais a ela, e por outro viés, seu texto também assume vocabulário,
idéias e estruturas preexistentes.
3.2.2. O(s) sujeito(s) do discurso escolar
Para a AD, o sujeito se constitui através da linguagem verbal e dos discursos
por ela veiculados, que carregam marcas do processo ideológico, do modo de pensar, de
agir e de se expressar de determinada classe social. Para Bakhtin
8
, o sujeito é visualizado
como elemento participativo e atuante do processo comunicativo, como um elemento que
está em constante interação com a sociedade e com a linguagem e, ainda dentro dessa linha
de pensamento, a linguagem que é entendida como um produto social (e não
institucional) - e o sujeito são agentes do meio social, acabando, esse sujeito, por também
ser um fator de interação. Ao dar destaque à linguagem como atividade social, Bakhtin
entende que a significação é resultado de uma ação social, o que sugere que os signos são
mutáveis, já que a sua essência estaria ligada com um fazer social que não é permanente ou
inalterável, mas sim um procedimento continuado do qual toda a sociedade participa.
No discurso do professor e do autor do LD coabitam, no mínimo, duas FD’s:
uma primeira proveniente de sua formação pessoal, marcada sócio-ideologicamente, onde
estão presentes juízos de valor, convicções políticas, étnico-religiosas, sócio-culturais etc. e
uma outra proveniente de sua formação escolar e profissional, ou seja, a consciência de
8
Cfr. Capítulo 2.
85
autoridade e do imaginário do papel ideal do professor. Esse cruzamento de FD’s do
professor, na maioria das vezes, conduz a um silenciamento dos discentes, a uma total
subordinação ao discurso do professor, sem a possibilidade de interlocução, o que contribui
para que o entrecruzamento de saberes e conhecimentos acumulados socialmente não
ocorra.
Tal acontecimento anuncia uma situação que remete a um conceito
conhecido pelo professor, portanto, um discurso socialmente aceito e legitimado, atribuindo
validade e confiança aos seus conhecimentos, palavras, decisões e ações e fazendo com que
seus alunos incorporem o valor persuasivo das verdades das suas palavras. Pela nossa
experiência, pensamos poder emitir uma segunda hipótese, de que, para o autor do LD e,
conseqüentemente, para a maioria dos professores, a opinião do aluno é pouco relevante,
excluindo qualquer possibilidade de participação desse aluno na interpretação e
compreensão dos textos propostos pelo LD, visto que a fala do professor está presente
quase todo o tempo, e o aluno também, de forma inconsciente, promove a idéia de
consenso, harmonia, homogeneidade, aceitando tudo o que procede da escola.
Nossas experiências em sala de aula, como aluno e como professor, levam-
nos a crer que o professor não percebe que o seu ensinar nada mais é do que a reprodução
de conhecimentos impostos ao longo de sua formação como aluno e como profissional da
educação, pois seu agir, quase sempre, segue basicamente uma abordagem não-reflexiva,
um ensino essencialmente mecânico e de reprodução de conteúdos. Ele instrui e interpreta a
partir de teorias que acredita dominar, um saber alicerçado em valores e crenças assentadas
em sua formação profissional, de vida e, por conseguinte, ideológicas e históricas,
determinantes de suas decisões, metodologias, atitudes e falas.
O LD, na condição de aparelho de auxílio no trabalho do professor, compõe
um conjunto de ferramentas, cumprindo um papel de difusor do conhecimento. A educação
enquanto pratica social faz uso deste aparelho. Contudo, com maior ou menor grau de
penetração, o livro didático, através de seus conteúdos, reflete a concepção de mundo de
quem o organizou, ou seja, vem “recheado” pelas FD’s, pelos “já-ditos” dos autores do LD,
que por sua vez selecionaram textos que trazem as FD’s e os “já-ditos” de seus autores, que
por sua vez... Desse modo, o LD não está isento dos aspectos político-ideológicos, que
atrelam idéias e valores e que, em relação ao real, podem não suprir as necessidades
86
específicas da comunidade educativa no qual é adotado, além de transmitir padrões
culturais que perpetuem a relação de dominação entre as classes sociais.
3.2.3. Procedimentos metodológicos
A análise dos LD dar-se-á da seguinte forma:
1) A escolha dos textos, dentro dos diferentes livros didáticos escolhidos para este
trabalho, restringiu-se a temas que, de alguma forma, interessavam ao pesquisador.
2) Os textos serão examinados na ótica da AD, visto que entendemos que estes textos
juntamente com outros que não foram analisados, contribuem para que certos
discursos únicos sejam reforçados junto aos diferentes alunos que mantêm contato
com estes livros e, conseqüentemente, com seus textos.
3) Mostraremos que o modo como a compreensão de textos é conduzida por estes LD
nem explora realmente os discursos que estes livros produzem, e que esta
interpretação reduz-se a reproduzir o discurso único dominante.
3.3. Análise das propostas dos livros didáticos
3.3.1. LD: Português: Dialogando com textos
O primeiro material analisado é Português: Dialogando com textos, série,
de autoria de Beatriz Marcondes, Lenira Buscato e Paula Parisi. Beatriz Marcondes é
licenciada em língua portuguesa e pós-graduada em lingüística pela FFLCH/USP. Atua
como professora de língua portuguesa e de orientação para os estudos da rede particular de
ensino de São Paulo. Licenciada em língua portuguesa e pós-graduada em didática pela
FE/USP, Lenira Buscato é professora de língua portuguesa na rede particular de ensino de
São Paulo. Paula Parisi, que está se doutorando nas áreas da Lingüística e da Educação pela
FE/USP, é assessora e capacitadora de professores de língua portuguesa na rede pública e
particular de São Paulo. Esse material foi publicado em 2003, pela editora Formato
Editorial Ltda.
Na apresentação do livro, as autoras falam da importância e da necessidade
do livro didático como elemento norteador da prática pedagógica em sala de aula e do que
87
elas denominam o “tripé”, que não pode não ser levado em conta no ensino de língua: o
desenvolvimento das competências comunicativa, gramatical e textual.
As autoras apresentam como princípios norteadores da escolha dos textos “o
desenvolvimento, nos alunos, de diferentes competências de leitura: ler para aprender uma
informação; ler para compreender; ler para interpretar; ler criticamente, sobretudo textos
que circulam pela mídia com alta carga de informações implícitas; ler pelo prazer de ler”.
(Marcondes, Manual do Professor, 2003: 10 e 11). Isto é, aparentemente, uma proposta
relativamente coerente com os princípios teóricos da AD, que diferencia os processos de
interpretação e compreensão e enfatizam o fato que os textos da mídia caracterizam-se pelo
implícito. No entanto, a partir de nossas observações posteriores, parece-nos que as autoras
não respeitarão, pelo menos nas propostas de interpretação de textos, estes “princípios
norteadores”.
Mais adiante, ainda dentro das propostas norteadoras, as autoras “justificam
a escolha dos diferentes textos: “é inevitável que a ênfase recaia sobre a literatura, pois é
papel do livro didático oferecer aos alunos textos que revelam um olhar diferenciado sobre
o mundo, filtrado pela exploração estética de recursos da língua” (Ibid.: 11). Através de
alguns recortes observaremos como esse olhar diferenciado sobre o mundo é explorado
pelas autoras. Não pretendemos fazer uma análise exaustiva dessas propostas de
interpretação, pois optamos por escolher alguns recortes de propostas de interpretação que,
sobre o nosso olhar, parecem de certa forma contribuírem para que o pensamento único seja
reforçado junto aos estudantes brasileiros e porque não dizer junto aos profissionais em
educação.
Texto 1
A república dos Argonautas
Anna Flora
Eu morava em um bairro chamado Vila Madalena. Nos anos 70 algumas
ruas ainda eram de terra, todas com nomes bonitos: Girassol, Córrego das Corujas,
Harmonia, Simpatia, Fidalga, Purpurina, Cardeal Arcoverde, Original. Nós
andávamos no bairro à vontade; não era como hoje, que os pais ficam com medo
quando a gente sai sozinho.
Na esquina da rua Fradique Coutinho com Aspicuelta havia uma loja
que vendia de tudo: revistas, jornais, álbuns de figurinhas, vassouras, gibis. Quando
a turma ganhava mesada, ia direto para lá. Uma vez meu irmão comprou vinte e
seis pára-quedistas de plástico.
Mais em frente, na rua Inácio Pereira da Rocha, tinha uma pinguela e
um riozinho. A gente atravessava quando ia para a casa da dona Mábile, que era
88
costureira e morava na rua Padre João Gonçalves. Esse passeio era muito legal,
porque nos dias de chuva a rua virava uma lama só. Eu adorava o terreno baldio
que ficava em frente, cheio de pés de amora.
Dona Mábile fazia roupas muito bem, mas eu sentia pena dela.
Trabalhava feito doida para pagar os estudos do filho que morava em Paris. Ela
aceitava qualquer serviço, desde roupa de be até vestido de noiva. Eu achava
estranho uma costureira tão pobre ter um filho em Paris: por que ele não estudava
aqui mesmo?
Na rua Mourato Coelho ficava uma loja de tecidos. O dono era seu
Jorge. Ele era narigudo e de olhos verdes. O filho dele, o Jorginho, narigudo e de
olhos azuis. O Jorginho, na Semana Santa, fazia papel de Cristo na procissão da
igreja do Calvário. Eu adorava entrar na loja e sentir o cheiro dos tecidos novos.
Muitas vezes ia para cheirar. Anos depois, o armarinho foi transformado em
um bar que ficou conhecido como Bar da Terra.
Outro lugar rbaro era o armazém da dona Dirce, na rua Simão
Álvares. A gente enfiava os braços nos sacos de arroz e feijão... Uma delícia!
Mesmo quando eu já estava com treze anos ainda sentia vontade de afundar a mão
nas lentilhas, mas me controlava um pouco porque todos diziam que eu era
mocinha.
No entanto, eu ainda gostava de muitas coisas de criança, como essa de
brincar nos sacos da mercearia, colocar barquinho na enxurrada, jogar mamona ao
alvo, organizar circo na rua... Ah! Tinha também o seu Manoel, que vendia banana
no caminhão e anunciava: Bananerô, bananerô”.
Na esquina da rua Mourato Coelho com Aspicuelta moravam o Chico e
o Paulo, que desenhavam muito bem. Nós estudávamos no mesmo colégio, o
Machado de Assis. Às vezes, saindo da escola eu via não sei se o Chico ou o Paulo,
e logo depois, na pracinha, eu encontrava não sei se o Paulo ou o Chico. Eles eram
gêmeos, e eu comecei a distingui-los porque à medida que foram crescendo um
foi ficando mais hippie do que o outro.
Na Aspicuelta ainda havia um barzão ou uma padaria, o me lembro
mais, onde os velhinhos jogavam dominó. Eles tomavam conta do lugar como se
fosse a casa deles. Até o dono muitas vezes deixava de atender freguês para jogar
uma partida.
Na Vila moravam vários casais portugueses. Eles costumavam construir
nos quintais uma outra casinha para os filhos. Mais tarde, essas casinhas passaram
a ser alugadas para os novos moradores que foram chegando.
O bairro parecia cenário do interior. Nossos vizinhos da direita eram
dona Natália e seu Antenor. Os dois vira e mexe, no meio de qualquer conversa,
fosse o assunto que fosse, sempre falavam do filho eu estudava medicina..
No lado esquerdo morava Maria Amélia, que tinha uma sanfona, o rosto
cheio de espinha e – coisa mais careta eu achava – esperava marido.
Em frente ficava a casa do seu Ângelo, que era barbeiro. Nas noites de
Natal ele tocava sax para os moradores, saía distribuindo música de porta em porta.
Seu filho estudava contabilidade e ele achava o máximo que o rapaz estivesse no
Mackenzie, um colégio particular. Eu sentia uma coisa meio estranha quando o seu
Ângelo elogiava a contabilidade como uma profissão segura, porque o elogio não
combinava com o seu outro lado tocador de sax. Pena que música ele ó fazia uma
vez por ano!
Eu não sabia bem por quê, mas aquelas pessoas eram parecidas com as
ruas da vila: todas muito simpáticas mas estreitinhas, para cada desejo um
paralelepípedo... Às vezes essas impressões me pareciam besteira, coisa de criança.
mais tarde, com Magro, é que percebi que minha intuição tinha razão de ser.
Vejas só:
O Luís, filho do seu Jarbas, estudava engenharia mas gostava de
tocar guitarra. O seu Jarbas ficava preocupado, onde se viu engenheiro
guitarrista? Aí o Zé Luís só ensaiava na casa do Edu Bolão. E a rua inteira
89
comentava quando a Marisete desfilava de minissaia, e eu achava lindo, porque ela
era manicure, usava umas unhonas vermelhas, tinha as pernas bonitas e saía na
escola de samba da rua Fidalga.
Os meninos e meninas da turma na maioria pareciam-se com os pais:
Renato queria seguir a profissão do avô, Maria Camila ia fazer escola normal,
Paulinho ia escolher uma carreira que desse dinheiro.
Nada contra quem gosta da mesma profissão do avô ou quem prefira
lecionar. E ser bem-sucedido todo mundo quer, não é? O lance é que eu sentia uma
coisa dentro de mim que não combinava com eles. Eu não sabia bem o que
desejava, mas não era aquela vidinha de tocar guitarra escondido do pai. Era bom
fazer parte da turma, mas às vezes apertava...
Que nem daquela vez quando a Amelinha fez quinze anos e todas as
meninas da rua acharam a festa ma-ra-vi-lho-sa. Assim que entrei no salão da ACM
e vi minhas amigas vestidas de branco, cheias de rendinhas, e aqueles caras de
fardinha e as flores cor-de-rosa, e o tule rosa-choque e as velas com florzinhas, e os
meninos suando nos fraques e a maquiagem das meninas derretendo no calor, eu
disse para mim: “Chiii... eu não vou me adaptar”.
Outra ocasião em que a “coisa esquisita” me bateu fundo foi esta: todas
as meninas da turma usavam cabelão. Naquele tempo a moda era cabelo bem liso e
comprido, de preferência loiro. O meu era castanho e crespo toda a vida. Então a
gente puxava o cabelo da esquerda para a direita, punha bastante grampo. Enrolava
na cabeça toda e essa tortura chamava-se touca. E dormia-se de touca, e na manhã
seguinte soltava-se o cabelo e ele estava duro e liso feito palha. Tinha umas loucas
que alisavam o cabelo com ferro de passar roupa para ir mais pido, mas a esse
ponto eu nunca cheguei.
Pois bem. Uma manhã eu tinha desentoucado a touca, estava bela e
formosa na aula de geografia, quando o japonês que sentava atrás de mim colou
chiclete na minha nuca e eu tive que cortar o cabelo bem curtinho. O que chorei na
cama você nem queira saber. Todos passaram a me chamar de Joãozinho. Eu fingia
que não ligava porque senão a turma ia pegar mais ainda do meu pé, mas por
dentro me sentia horrorosa.
Um dia fui visitar minha prima Lena. Ela era mais velha do que eu, com
um cabelão liso, e me disse uma coisa que me deixou de queixo caído:
- Antecipando a moda, hein?
- Não é moda eu disse fazendo bico. foi o Yoshida. Eu acho
medonho
- Imagina!... ela comentou. Cabelo curtinho e crespo vai ser a
próxima onda do verão, você não sabia?
E me mostrou na revista a foto de uma moça que usava o cabelo muito
mais curto do que o meu e era linda. Em cima da foto estava escrita uma frase que
eu não entendi nada, mas que tinha uma força...: A BELA ATRIZ DO
ACOSSADO AMA O LÍDER DOS PANTERAS NEGRAS.
E a moça sentada numa moto abraçava um negrão bonito com cara
brava e jaqueta de couro. O rosto dela era parecido com a Vênus do biscuit da
cristaleira da vovó, mas pelo olhar a gente logo via que ela tamm devia ser
daquelas que não se encaixavam na turma.
Aí, por uns instantes, a coisa esquisita que volta e meia eu sentia não me
pareceu tão esquisita assim... Então era isso... A beleza do avesso podia ser muito
mais bela sem precisa dormir de touca nem usar madeixas duras de Rapunzel.
Como vocês podem ver, cabelo também era uma questão de cabeça...
Junto com esse lance da Bela do Acossado foram me acontecendo
outros. Dei para sonhar com uma lua que tentava atravessar o tronco oco de uma
árvore. vinha uma chuva e todos os objetos do meu quarto ficavam com cheiro
de terra.
Naquele mês de julho acordei feliz da vida. Era início das férias, eu
podia passear pelo bairro o dia inteiro e fazia um céu azul de papel crepom.
90
Andando pelo quarteirão, tudo estava em seu devido lugar: as árvores, as casas, o
sapateiro na sapataria, dona Dirce no armazém, seu Jorge no balcão.
Aos poucos, veio vindo uma brisa suave que foi aumentando,
aumentando... fazendo os ipês forrarem as ruas de pétalas amarelas. Durante dois
dias o ar ficou impregnado com perfume de jasmim. Seu Ângelo olhou
vagarosamente o céu, as árvores e comentou: “Gozado, você está sentindo esse
cheiro? Jasmim não dá no inverno...”
Na manhã seguinte, Magro chegou.
Junto com ele vieram Pedro, Mário, Vicente, Zeca e Carlos. Alugaram a
casa grande da esquina da Fidalga, pintaram cada parede de uma cor, desenharam
um arco-íris na porta, pregaram uma placa na entrada: REPÚBLICA DOS
ARGONAUTAS.
Nunca mais a Vila Madalena nem eu seríamos as mesmas.
A república dos argonautas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.
15-20.
(Marcondes, 2003 unid. 1 – p. 14 - 19).
Recorte 1:
1. No parágrafo do texto, a narradora começa contando das ruas do bairro em que morava. Depois de
enumerar os nomes das ruas, ela faz uma comparação entre o presente e o passado.
a) Transcreva para o caderno o período que contém essa comparação. s andávamos no bairro à
vontade; não era como hoje, que os pais ficam com medo quando a gente sai sozinho
9
.
b) O que essa comparação sugere sobre os dias de hoje? Que hoje em dia há menos segurança nas ruas
do que em 1970, naquele bairro de São Paulo.
c) A partir de seu cotidiano, você concorda com essa observação da narradora? Justifique sua opinião.
Resposta Pessoal.
(...)
3. Ao comentar sobre dona Mábile, no parágrafo, a narradora ressalta que achava estranho uma costureira
tão pobre ter filho estudando em Paris.
a) Que hipóteses você faria diante da pergunta proposta no final do parágrafo? Resposta Pessoal.
Professor: oriente os alunos para que apontem hipóteses para a pergunta feita pela narradora. A
próxima pergunta fornecerá algumas pistas para eles.
b) Pensando que a história contada pela narradora se passa por volta de 1970, converse com os colegas
e com o professor sobre a hipótese mais aceitável entre as levantadas por vocês. Evidentemente,
pensando no contexto político brasileiro dos anos setenta, respostas mais adequadas que outras.
Referências posteriores ao capítulo em questão dão conta de que o rapaz teria ido para Paris a fim
de fugir da repressão política, muito forte ainda naquele período. Ou seja, por ser um rapaz “cheio
de idéias”, como afirma dona Mábile no capítulo 3 do livro, provavelmente ele não pôde
permanecer no Brasil e teve de se exilar.
4. Depois de descrever os vizinhos de bairro – os velhinhos que jogavam dominó, os casais portugueses, dona
Natália e seu Antenor, Maria Amélia, seu Ângelo -, a narradora faz uma observação curiosa sobre essas
pessoas.
a) Que observação é essa? “Eu o sabia bem por quê, mas aquelas pessoas eram parecidas com as
ruas da vila: todas muito simpáticas mas estreitinhas, para cada desejo um paralelepípedo...”
b) O que você entende que a narradora quis dizer com a observação? Resposta pessoal. É desejável que
o aluno perceba a estreiteza da visão de mundo dessas pessoas, ou seja, elas não enxergam muito
além dos limites da família os das convenções sociais. Eram como as ruas do bairro: estreitas e
limitadas. Pode-se pensar também que a marradora pontos de aproximação entre os desejos
daquelas pessoas e os paralelepípedos (enquadrados, limitados, rígidos, parecidos).
(Ibid. p. 19 - 20).
9
Nessa parte de nosso trabalho, dentro dos diferentes recortes, iremos destacar em itálico as respostas
propostas pelas autoras no manual do professor.
91
O primeiro texto proposto para interpretação é A República dos Argonautas,
de Anna Flora. Segundo as próprias autoras, o gênero desse texto é o de “relato de cunho
memorialístico” (Ibid.: 17). A escolha desse texto tem como proposta introduzir o debate
sobre “as relações que o individuo constrói com o lugar onde vive: seu bairro, sua cidade”
(Ibid.: 17). A obra intitulada “República dos Argonautas” trabalha os anos conturbados da
ditadura militar e é uma narrativa das memórias ficcionais de uma garota que em 1979
tinha catorze anos e morava na Vila Madalena, em São Paulo. É um romance juvenil em
que um fragmento recente da história de nosso país ganha a palpitação feliz e desarmada de
uma encantadora adolescente.
No Brasil, as relações do indivíduo com o lugar onde vive: seu bairro, sua
cidade, principalmente para as crianças, estão cada vez mais distantes. As crianças que
vivem nos bairros pobres de cidades brasileiras praticamente desconhecem locais de lazer.
As pessoas que convivem não possuem parques, praças, cinemas, teatros, etc. Se os
possuem, a utilização desses meios de lazer fica comprometida pela inexistência de
segurança para os habitantes desses bairros. Aliás, freqüentar praças e parques é um
privilégio de poucos, somente daqueles que moram em cidades muito pequenas ou daqueles
que moram em bairros dotados de segurança particular.
Em particular, dentre as diferentes leituras que poderíamos fazer do texto de
Anna Flora, entendemos que ele traz o tema da violência. Contudo, as autoras do LD não
exploram ou tentam explorar as razões dessa violência. Por que, nos dias de hoje, essa
violência está cada vez maior. Não questionam as diferenças sociais, cada vez mais
alarmantes, entre os que possuem muito e os que não possuem nada. Não levam o aluno a
refletir sobre o porquê de tanta violência e o porquê de tanta distância entre as diferentes
camadas sociais.
No recorte 1, as perguntas propostas pelas autoras do LD enfatizam que, ao
não explorar e desconstruir determinados elementos do texto, a compreensão proposta
contribui para que as idéias implícitas e pré-construídas existentes no texto mais
especificamente, as idéias de “violência” ou “segurança” sejam reforçadas no
inconsciente do aluno. Ou seja, através das perguntas e das respostas induzidas –, que
enfatizam apenas alguns aspectos do tema que o texto propõe explorar, o discurso de Anna
Flora, que agora se apresenta como o discurso das autoras do LD, passa a ser, dentro e fora
92
da sala de aula, o discurso do aluno. Por exemplo, no primeiro parágrafo do texto 1
reproduzido acima, que se propõe relatar as memórias do narrador que datam do início da
década de 70, a idéia da violência é trazida quando a narradora diz: “Nós andávamos no
bairro à vontade; não era como hoje, que os pais ficam com medo quando a gente sai
sozinho”. As razões que permitiam que uma pessoa andasse sozinha pelas ruas do bairro
nos anos 70 e que não se possa mais fazer o mesmo hoje, não são levantadas em nenhum
momento pela proposta de interpretação de texto, levando o aluno a entender esse
comportamento como algo fazendo parte da ordem natural, como algo que não deve ser
questionado ou debatido, como algo que deve ser aceito como normal no comportamento
atual de nossa sociedade.
As autoras do LD não exploram, por exemplo, o conteúdo referencial da
palavra “violência”, que tende aqui a limitar-se aos referentes que se institucionalizaram, da
violência física - roubo, estupro etc. –, ficando fora a corrupção, o não-respeito dos direitos
humanos mínimos, etc. promovidos pelas classes no poder. Portanto, é reforçado o
interdiscurso de que a violência é promovida por aquelas pessoas que fazem parte das
classes menos favorecidas economicamente. A violência que é praticada todos os dias com
a exploração do trabalho, com a prostituição, com a corrupção, com a falta de ética e tantas
outras que poderiam ser citadas não é mencionada, uma vez que essa violência, na grande
maioria das vezes é patrocinada pela classe social que detém o poder econômico.
Em outro momento desse mesmo texto, quando a narradora faz alusão aos
vizinhos de sua casa diz: “os dois vira e mexe, no meio de qualquer conversa, fosse o
assunto que fosse, sempre falavam do filho que estudava medicina”. O discurso de que o
curso de medicina de um filho é necessariamente motivo de orgulho para os pais e de que é
somente através do curso de medicina ou da profissão de médico que pessoas de classes
humildes podem almejar o sucesso econômico, é trazida de forma implícita para dentro do
texto. Outro discurso é também implicitamente destacado na narrativa: o da importância
social de se freqüentar certas escolas particulares: “seu filho estudava contabilidade e ele
achava o máximo que o rapaz estivesse no Mackenzie, um colégio particular”. Ou seja, o
motivo que fazia com que o pai se orgulhasse do filho, não era a possível profissão de
contador, mas o fato de ele freqüentar uma escola particular, passando a idéia de que a
escola pública não oferecia e não oferece um ensino de qualidade, de que o sucesso em
93
determinadas profissões está relacionado à escola que freqüentamos e não à capacidade ou
aptidão que possuímos para certas atividades, o juízo de que aprendemos na escola
particular.
Texto 2a:
HOJE É DIA DO TRABALHO
Você curte o seu emprego? O folhateen acompanhou o dia-a-dia
de cinco jovens que ganham a vida de maneiras diferentes.
Gabriel Gaiarsa
Da Reportagem Local
Nome: Andréa de Oliveira
Idade: 19
Profissão: catadora de lixo
Salário: R$150,00/ mês
Frase: “Queria ser empregada doméstica, mas não encontro emprego”.
Aterro sanitário de Carapicuíba. São onze horas da manhã, e a temperatura é de
quase 30 graus. Cheiro insuportável, e moscas tão grandes que parecem ter saído de
um filme de ficção científica. Entre os enormes caminhões que quase atropelam os
menos atentos, correm crianças, jovens, adultos e velhos, à procura daquilo que foi
considerado inútil, velho ou podre pelos moradores de uma das maiores metrópoles
do mundo.
O local é popularmente conhecido por Lixão de Carapicuíba. Em meio a esse caos,
circula Andréa de Oliveira, 19 anos.
Andréa nasceu na favela do Porto, vizinha do Lixão. Desde pequena, fez do local o
seu “jardim”. Aos sete anos, começou a trabalhar catando lixo. Sua rotina é
procurar papelão e plástico na imundície que os caminhões descarregam. Chega ao
lixão às seis da manhã e não volta para casa antes das sete da noite.
Andréa se posiciona perto da caçamba do caminhão que acaba de chegar, e disputa
com os outros as embalagens e caixas. Depois, junto o papelão que conseguiu num
monte e vende tudo no final do dia. Cada grupo tem seu próprio monte, e ninguém
de outro grupo mexe. “Se outra pessoa roubar, dá problema”, diz ela. É a lei do
Lixão.
Com os R$150 que faz por mês, a garota sustenta o filho de três anos e ajuda a
mãe, com quem mora. Aos domingos, sua única folga na semana, cuida da criança
e sai para se divertir.
“Meu filho nunca vai pisar aqui. Quero que ele estude e tenha tudo o que eu não
tive”.
Andréa diz que gostaria de ser empregada doméstica, mas que não consegue
emprego. “Trabalhar aqui é muito sofrido, mas pelo menos é honesto. É melhor que
sair por aí roubando os outros”.
O filho passa o dia com uma vizinha, enquanto a mãe garante o sustento da casa.
“O pai dele era um folgado, não queria saber de trabalhar. Um dia me cansei e botei
o vagabundo pra correr”.
Quando sobra um tempinho, ela desafia os garotos no fliperama, onde gasta cerca
de R$20 por mês, e vai dançar nos bailes a região. o freqüenta shopping centers
e não se lembra da última vez em que foi ao cinema. Em casa, não tem TV, um
rádio, onde escuta seus grupos de rap e pagode favoritos. “Gosto do movimento
hip-hop. Eles falam sobre coisas que nós vemos no nosso dia-a-dia”.Seu grupo
preferido é o Faces da Morte.
94
Andréa está namorando um rapaz que também trabalho no lixão, mas não quer nem
ouvir falar em casamento. “Sou muito nova, e os homens são muito folgados.
faltava arrumar mais um para sustentar”, brinca.
Apesar da rotina dura, Andréa está sempre sorridente. “Queria fazer medicina para
ajudar os outros. E meu sonho mesmo é conhecer Nova York”.
(Ibidem, unid. 3 – p. 88 e 89)
Texto 2b:
WEBMASTER DEDICAVA AS
FÉRIAS AO TRABALHO
Augusto Pinheiro
Da Reportagem Local
Nome: Csongor Gyuricza
Idade: 22
Profissão: webmaster
Salário: “Já comprei um carro, pago o meu aluguel e minha faculdade”.
Frase: “Nunca precisei procurar emprego, sempre fui convidado”.
Aos 16 anos, quando estava no último ano do colégio, Csongor Gyuricza, mais
conhecido como “Bart” (porque já teve o cabelo espetado como o personagem dos
“Simpsons”), passava as férias trabalhando para um provedor da Internet. E não se
importava de perder os dias de descanso.
“Desde os 14 anos, sempre fui louco por computador, queria aprender tudo.
Comecei com estagiário e acabei efetivado. Mesmo no período de aulas, eu
acordava todos os dias às 6h e fazia uns trabalhos em casa”.
Hoje, todo o esforço foi recompensado: o rapaz é um webmaster de um grande
provedor. Ele cuida da parte técnica dos sites, criando e reformulando páginas e
implementando novidades gráficas.
Com o trabalho ele já comprou um carro, foi morar sozinho e banca a faculdade de
ciência da computação na Unip.
Csongor (o nome é húngaro) retornou o curso este ano: já havia começado na PUC-
SP, mas resolveu largar para se dedicar apenas ao trabalho. “Não estava
conseguindo conciliar”.
“Bart” afirma que tudo o que sabe aprendeu na prática e que isso ajuda bastante na
universidade. Mas nem por isso ele deixa de recomendar o curso superior: “Sem o
diploma, o empregador sempre vai ter uma desculpa para pagar menos. Não é todo
mundo que consegue ser bem-sucedido nessa área sem uma faculdade”.
Antes de entrar no atual emprego, ele foi webmaster da Globo Cabo, empresa que
oferecia acesso à Internet pelo sistema de TV a cabo. “Nunca procurei emprego.
Sempre fui convidado”.
A rotina é puxada, mas ele não dispensa as baladas. “Bart” acorda às 8h30, resolve
assuntos particulares (limpeza do apê, compras, etc.) e chega ao trabalho às 9h30.
larga o trampo às 19h. 30 e sempre chega atrasado às aulas, que começam às
19h.
Às 23h, já em casa, senta em frente ao computador e navega por uma hora na
Internet, para se atualizar. “Às vezes, dá para sair, gosto muito de tecno, então vou
às boates U-Turn e Lov.e. Não sou frhak ou nerd, tenho vida social.
Para completar, o webmaster, de 1,80m, tem uma “carreira paralela” de modelo.
“Esporadicamente, quando tempo, faço editoriais de moda e desfiles, mas não é
muito a minha cara.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 1º de maio de 2000. Folhateen.
(Ibidem, unid. 3 – p. 89)
95
Recorte 2:
2. Embora o texto não apresente especificamente todos os motivos que teriam levado Andréa a catar lixo, é
possível tirar algumas conclusões.
a)
O que você imagina que levou Andréa a exercer essa atividade? Andréa diz que gostaria de ser
doméstica, mas não consegue emprego. Os alunos podem inferir, embora isso não esteja explícito,
que a garota trabalha no Lixão por falta de oportunidade e por necessidade de sobrevivência.
(...)
8. Andréa e Bart trabalham muitas horas por dia.
a) Em vez de declarar seu salário à reportagem, como fez Andréa, o que faz Bart? Ele revela que, com
o seu salário, comprou um carro e consegue se manter sozinho, pagando o próprio aluguel e as
mensalidades de sua faculdade.
b)
O que essa declaração dá a entender sobre o salário de Bart em relação ao de Andréa? Provavelmente
ele recebe muito mais por seu trabalho do que Andréa.
c) Ao observar as atividades exercidas por Andréa e Bart e a remuneração que recebem por elas, o que
você conclui? Resposta pessoal. Parece importante a seguinte percepção: apesar de ambos os
jovens serem muito dedicados ao trabalho, um deles em virtude de sua formação e qualificação,
das oportunidades que teve, entre outros fatores recebe muito mais pelo que faz de que o outro,
que teve outras circunstâncias de vida.
(Ibidem, unid. 3 – p. 90 e 91).
Outro texto proposto dentro da obra analisada é uma reportagem sobre
jovens trabalhadores, publicada na Folha de São Paulo. A primeira entrevista, de Gabriel
Galarsa, é com Andréa de Oliveira, catadora de lixo. A segunda, de Augusto Pinheiro, é
com Csongor Gyuricza, o ‘Bart’ cuja profissão é webmaster
10
.
As autoras do LD trazem para discussão o tema do trabalho, através do
trabalho de jovens. Com o gênero reportagem, elas mostram a realidade de dois jovens
representantes da sociedade do sudeste brasileiro, com o discurso implícito do
“malsucedido” e do “bem-sucedido”. Esse discurso acompanha-se de outro, de que só pode
ser “bem-sucedido” aquele que estuda. Aqueles que não estudam, que não freqüentam a
escola, estão “pré-destinados” a serem fracassados, a passarem dificuldades. Além disso,
nesse discurso está implícito o discurso de que em nossa sociedade existe espaço para
aqueles que se esforçam desde cedo. As autoras entendem que esforço é freqüentar a
escola, é estudar, é trabalhar em profissões valorizadas.
Não nem mesmo, por parte das autoras do LD, uma tentativa de
contextualizar essa convicção dentro da realidade brasileira atual, onde nem todos têm as
mesmas oportunidades de acesso à escola, onde muitos jovens são obrigados a abandonar a
escola se é que chegam a freqüentá-la –, para ajudarem suas famílias, visto que muitas
10
Segundo o próprio texto, um webmaster cuida da parte técnica dos sites, criando e reformulando páginas e
implementando novidades gráficas.
96
vezes a necessidade obriga-os a trabalhar ou até mesmo a pedir esmolas. Não é questionada
nem mesmo a qualidade da escola pública que é oferecida a essas crianças.
Em nenhum momento, dentre os diferentes questionamentos que o texto
propõe, são levantadas as circunstâncias que levaram Andréa a ser catadora de lixo e Bart a
ser um webmaster. O porquê de tantas diferenças sociais. A questão racial também não é
levantada. Nem as razões que levam a sociedade a valorizar mais determinadas profissões
em detrimento de outras. Ou por que tem que haver tanta diferença entre a remuneração de
um webmaster e a de um catador de lixo?
Na primeira reportagem, através da reprodução de algumas falas da
entrevistada, o repórter reforça o objetivo de sua reportagem, o que será também explorado
pelas autoras do LD através da interpretação de texto proposta, ou seja, o discurso de que
somente a escola e o estudo podem trazer uma vida confortável e segura: “Meu filho nunca
vai pisar aqui. Quero que ele estude e tenha tudo o que eu não tive”. Em outro trecho da
reportagem, os temores da classe dominante, quanto ao comportamento das classes
subalternas é reforçado, no momento em que o autor da reportagem utiliza-se da memória
discursiva de Andréa: “Trabalhar aqui é muito sofrido, mas, pelo menos é honesto. É
melhor que sair por roubando os outros”. Ou seja, está reforçado o discurso da
necessidade de trabalhar, mesmo que não haja emprego; de encontrar sempre um modo
considerado honesto de sobreviver; de não questionar, não pensar sobre o que leva os
outros a terem oportunidades e você não; de não questionar o que é honestidade, o que é
justiça, de modo a garantir uma vida sacrificada, mas tranqüila.
Esta primeira reportagem é encerrada com uma fala da entrevistada que vale
a pena reproduzir: “Queria fazer medicina para ajudar os outros”. O discurso de que o curso
de medicina é aquele que permite “ajudar os outros” é mais do que intradiscurso, é um
saber cristalizado na memória discursiva e que acaba funcionando como senso comum. No
texto analisado anteriormente, já havíamos chamado a atenção para o fato de os pais
sentirem orgulho pelo filho freqüentar a universidade de medicina, o que de certa forma
provoca um silenciamento do que realmente acontece no contexto atual. As palavras
“medicina” e “médico” estão relacionadas interdiscursivamente ao bem e, junto às classes
subalternizadas, também encontramos o intradiscurso da riqueza, do respeito e do status
social. Este discurso está baseado em um “emissor” e um “receptor” determinados
97
ideologicamente, contribuindo para que a sociedade valorize demais a profissão de médico
em detrimento de outras profissões, que faça com que os profissionais da medicina recebam
uma remuneração muito superior à dos profissionais da educação, por exemplo.
A segunda reportagem começa com um título bem sugestivo: “Webmaster
dedicava as férias ao trabalho”, ou seja, trabalhe sempre, o sucesso seatingido com
trabalho, não com lazer. O descanso da mente e do corpo é necessário somente para aqueles
que não querem crescer economicamente. Os direitos que os trabalhadores conquistaram
depois de muita luta é o que mais atrapalha o seu sucesso financeiro, portanto, trabalhe.
Mais adiante essa idéia é reforçada com um comentário do repórter: “Hoje, todo o esforço
foi recompensado: o rapaz é um webmaster de um grande provedor”. O interdiscurso da
relação mágica entre esforço e recompensa é forte. O aluno, ao manter contato com este
texto, passa a achar natural que um webmaster tenha uma recompensa maior do que um
catador de lixo, mas não é capaz de fazer a mesma relação entre a valorização de um
profissional da educação ou de outra profissão qualquer, menos valorizada do que as que
são relacionadas ao mundo da informática. Se você deseja ter sucesso na sociedade, esse
sucesso virá através do trabalho. A sociedade reconhece como verdadeiros cidadãos
àquelas pessoas que trabalham, pois “com o trabalho, ele comprou um carro, foi morar
sozinho e banca a faculdade de ciência da computação na Unip”.
O discurso de que o sucesso financeiro poderá vir através da escola é
reforçado através da memória interdiscursiva do próprio entrevistado: “sem o diploma, o
empregador sempre vai ter uma desculpa para pagar menos”. Se você não estudou, não
interessam as razões e muito menos a qualidade e a importância de seu trabalho, você está
predestinado a receber uma remuneração pequena, a não ser valorizado, a ser mais uma
figura descartável dentro do mercado de trabalho: ali o interdiscurso da importância de
se ter um diploma superior, que faz com que tudo isto pareça natural.
3.3.2. LD: Linguagem: criação e interação
O segundo LD a ser analisado é Linguagem: criação e interação: série,
de autoria de Cássia Leslie Garcia de Souza e de Márcia Paganini Cavéquia. Cássia Leslie
Garcia de Souza é professora graduada em Português e Literatura de Língua Portuguesa e
pós-graduada em Língua Portuguesa, ambas pela Universidade Estadual de Londrina e
98
Márcia Paganini Cavéquia é professora graduada em Português e Literaturas de Língua
Portuguesa; Inglês e Literaturas de Língua Inglesa e pós-graduada em Metodologia da Ação
Docente, todas pela Universidade Estadual de Londrina. No manual do professor, no item
denominado “orientações ao professor”, uma das propostas é o que as autoras chamam de
“estudo do texto”. Segundo as autoras:
esta seção é composta de: exercícios de interpretação que, gradativamente,
contribuem para a construção do sentido do texto, abrangendo questões de
conteúdo, estrutura e análise do discurso (inferência, crítica, extrapolação,
antecipação, transformação, situação-problema), análise de recursos expressivos e
coesivos do texto, questões interativas e intertextuais.
(Souza & Cavéquia, 2005: 8).
Continuando a leitura das orientações ao professor, o que também nos
chama a atenção são os conceitos que nos são apresentados sobre leitura. Para Souza &
Cavéquia “o verdadeiro ato de ler é um processo de atribuição de sentido ao texto, isto é, a
partir de conhecimentos que já possui, o leitor interage com o texto, construindo um
significado” (Ibidem, p. 16). As autoras, ainda na mesma página, afirmam que “formar
leitores proficientes deve ser um dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa. A
capacidade de ler criticamente garante ao indivíduo condições de interferir no meio em que
está inserido, podendo, inclusive, transformar a realidade” (Ibidem).
Vejamos agora como estes conceitos são trabalhados dentro das propostas de
interpretação dos textos escolhidos.
Texto 3
MOMENTO DO TEXTO 1
A pequena e fictícia cidade de Sucupira não possuía um cemitério, de
modo que os habitantes precisavam enterrar seus mortos nas cidades vizinhas. Com
a promessa de construir um cemitério na cidade, Odorico Paraguaçu foi eleito
prefeito. Mas eis que surge um novo problema: mais de um ano após sua
construção, o cemitério ainda não havia sido inaugurado, pois nenhuma morte
ocorrera na cidade desde então. Pressionado pelos adversários políticos, que o
acusavam de empregar indevidamente os recursos públicos, Odorico empenha-se
em resolver o problema.
Leia a seguir um trecho da qual faz parte essa personagem.
O BEM-AMADO
Terceiro Quadro
99
Odorico um exemplar de A Trombeta, o jornaleco local. Seu rosto
revela profunda indignação.
Odorico (Resmunga, enquanto lê.) Patife!Canalha!(Amarrota o
jornal violentamente e atira-o ao chão. Põe-se a andar
nervosamente de um lado para o outro, e por fim senta-
se à sua mesa, parecendo a ponto de ter um colapso.)
Dorotéa (Entra quase marcialmente.) Bom-dia, senhor prefeito.
Odorico Bom-dia.(Levanta-se de um salto.) A senhora leu a
gazeta?
Dorotéa Ainda não.
Odorico Esse patifento desse Neco Pedreira me chama de
demagogo esbanjador dos dinheiros públicos... me xinga
de tudo quanto é nome.(Apanha o jornal.) Leia a
senhora mesma, leia.
Dorotéa Que retrato é esse que ele botou na primeira página?
Odorico È um retrato que tiraram de mim durante a construção
do cemitério. Tem um ano, já.
Dorotéa (Lendo.)´´Odorico, o pastor de urubus.``
Odorico Que é que eu faço com um mau-caratista como
esse.Dona Dorotéa?Que é que eu faço? Já pensei em
arranjar dois jagunços e mandar dar uma surra...
Dorotéa Isso me parece contraproducente; vai fazer dele um
herói e aumentar a venda do pasquim. Além do mais, o
senhor teria que mandar surrar muita gente. A oposição
está ganhando terreno dia a dia. E o que Neco escreveu
n A Trombeta é mais ou menos o que os nossos
inimigos dizem por aí.
Odorico Eu sei. È um movimento subversivo procurando me
intrigar com a opinião pública e criar problemas á minha
administração.Sei, sim. È uma conspiração. Eles não
queriam o cemitério. Desde o princípio foram contra. E
agora que o cemitério está pronto caem em cima de
mim, me chamam de demagogo, de tudo,
somentemente, porque aconteceu o que não devia
acontecer. Ou melhor: porque não aconteceu o que
devia acontecer. Como se estivesse culpa!
Dorotéa Seja como for, é uma situação horrível, que precisa ser
resolvida.
Odorico Mas resolvida como?
Dorotéa O senhor sabe que pode contar comigo para tudo.
Apesar...apesar de minha situação pessoal não ser
também das melhores. Há seis meses que não recebo e o
grupo está sem dinheiro até para comprar material
escolar.
Odorico E todo mundo acha que a culpa é do cemitério.È
verdade que a receita municipal baixou um pouco: não
obstantemente, estamos agora livres da humilhação de
enterrar nossos mortos no cemitério dos outros.
Dorotéa Acho que o senhor tem uma saída: inaugurar o
cemitério.
Odorico Inaugurar como? Se há um ano não morre ninguém nesta
terra?!
Dorotéa Inaugurar sem defunto mesmo.
Odorico Era uma desmoralização. Depois da gente ter anunciado
aos quatro ventos que a inauguração ia ser com o
primeiro enterro,era passar o recibo de inutilidade do
100
cemitério;era dar razão á oposição, que diz que é
dinheiro jogado fora.Não, inaugurar campo-santo sem
defunto é o mesmo que batizar navio em terra firme.
Não tem graça.
Dorotéa Menos graça tem ainda o que a mara Municipal está
preparando.
Odorico Que é?
Dorotéa Soube hoje que vão pedir esse tal de impeachment.
Odorico me disseram. Querem votar o meu impedimento.Mas
isso eles não vão conseguir. Não vão conseguir.
Dorotéa Acho que um meio de evitar:arranjar um defunto
qualquer e inaugurar o cemitério. Não se podia comprar
um?
Odorico pensei nisso.Mandar buscar em Salvador. se
vendem cadáveres para estudo na Faculdade de
Medicina.
Dorotéa Pois então!È a solução!
Odorico Mas muito perigosa. A oposição ia descobrir, com toda
a certeza. E nem é bom imaginar o que iam dizer de nós.
Dorotéa Não há ninguém doente na cidade?
Odorico Em estado de dar esperança, parece que ninguém. Em
todo caso, mandei o coveiro fazer uma verificação.
Dorotéa Quase todo ano sempre um veranista que morre
afogado.
Odorico Este ano o mar está que é uma lagoa. Nunca vi tanto
azar.
Dorotéa Então, que vamos fazer?
Odorico Sei lá,Dona Dorotéa,sei lá. Passo dia e noite pensando
nisso e não encontro jeito. È uma situação deverasmente
embaraçante.
(...)
Dias Gomes. O Bem-Amado, Rio de Janeiro, Ediouro, s/d.
(Souza & Cavéquia, unid. 4, p. 84 - 86).
Sobre o fragmento escolhido “O Bem-Amado - Terceiro Quadro” de Dias
Gomes, acima reproduzido, retirado da unidade 4, que as autoras qualificam como texto
teatral, fizemos um recorte de quatro perguntas.
Recorte 1:
1) Em relação ao fragmento lido responda:
a) Qual é o fato desencadeador da história? Uma notícia de jornal sobre o prefeito Odorico e a
indignação dele ao lê-la.
b) Qual teria sido o tempo de duração dessa cena? Menos de uma hora.
5) O texto é iniciado pela rubrica: “Odorico lê um exemplar de A Trombeta, o jornaleco local.”
a) O que se pretende com o uso do termo jornaleco? O uso do termo jornaleco dá pistas de que se trata
de um jornal sem muita importância
b) O que o nome do jornal sugere? O nome “A Trombeta” sugere que o jornal divulga as notícias com
alarde.
8) Quanto ao prefeito Odorico, o que se pode dizer dele como político e administrador público? Pode-se dizer
que o prefeito o demonstra ser um bom político e administrador blico, pois, para construir o cemitério
(o que supostamente lhe renderia prestigio e votos), deixou de pagar o salário dos funcionários e de repassar
a verba para que o grupo escolar pudesse ser abastecido com o material necessário. Além disso, os meios
que Odorico utiliza para resolver os problemas não são muito éticos/lícitos.
101
12) Para você, qual a intenção do autor ao escrever esse texto? Possível resposta: Criticar a falta de caráter
de certos administradores do dinheiro público.
(Ibidem, p. 88).
Observando, através do recorte 1, alguns questionamentos levantados sobre
o texto, entendemos que as autoras do LD limitam-se a explorar o texto de forma
superficial. Essas perguntas limitam-se a explorar a intenção do autor ao trabalhar a sua
obra – na pergunta número 12 do recorte acima, isso fica bem claro – além de contribuírem
para o silenciamento sobre questões importantes que envolvem a vida na nossa sociedade.
Na questão número 5, quando as autoras “sugerem” a resposta, reforçam o intradiscurso de
que jornais que criticam os governantes e seus governos estão numa condição “inferior” aos
demais meios de comunicação; que a função para a qual foram criados, a de somente dar
notícias, sem dar opiniões, está sendo desrespeitada. A oportunidade que o texto oferece
para que as diversas administrações públicas de nossas cidades, de nossos estados e de
nosso país sejam avaliadas não é explorada. A discussão que poderia ser instigada sobre as
causas que levam uma pessoa como Odorico a eleger-se prefeito de uma cidade não são
exploradas na proposta de “estudo do texto”.
No nosso entendimento, “explorando” o texto dessa maneira, fica muito
difícil que o aluno torne-se um cidadão crítico e participativo e que tenha o seu “desejo”
pela leitura despertado, contrariando a proposta inicial apresentada pelas autoras no manual
do professor. Ao ignorarem o intradiscurso presente no termo jornaleco, que é justamente o
jornal que critica o governo municipal, desperdiçam a oportunidade de analisar o papel da
mídia na vida política. Ao fazer referência a jornaleco, todo o intradiscurso de jornal sem
importância, sem repercussão, mal redigido, de pequena circulação e, portanto, sem
importância é reforçado na memória discursiva: o discurso de que todos aqueles jornais ou
meios de comunicação que denunciam as falcatruas políticas não são órgãos merecedores
de crédito. Somente os jornais de grande tiragem, os jornais que defendem os interesses da
classe dominante, os jornais que justificam as ações “injustificáveis” de determinados
governos é que devem ser prestigiados.
Texto 4
MOMENTO DO TEXTO 1
102
Maria Macária de Assis, a personagem da história a seguir, nasceu no
século XX na antiga Nossa Senhora do Livramento, Bahia. na velhice, ela relata
lembranças de juventude, época em que era perita na arte da capoeira.
A dança da vida
Bahia, 1889
Sempre digo que sou uma pessoa de sorte. Na vida tive tudo o que
desejei, como aprender a escrever, em português e francês. No sertão da Bahia, nos
arredores de Nossa Senhora do Livramento, poucas são as mulheres letradas e, se
forem negras como eu nem pensar. Creio que nasci abençoada por Maria, como
dizia minha mãe, e filha de Iansã, como dizia meu avô.
Agora que minha vida está por terminar, alegro-me com minhas
lembranças. tenho oitenta e seis anos.Sinto-me cansada ao caminhar. Mas
minhas mãos são ágeis, minha vista é boa e passo os dias recordando e escrevendo.
Quem sabe meus netos se interessem pelo que tenho a contar...
Quando eu era menina, as pessoas me diziam que era muito mimosa.
Sinhá Quitéria, que todos chamavam de sinhá Viúva, ordenou que eu trabalhasse na
casa-grande, Deixei a senzala e comecei a dormir no porão com as outras mucamas.
Mas, na verdade, passava a maior parte das noites em claro, cuidando de meu
sinhozinho.
Nunca esqueci a primeira vez em que o vi. A pele tão branca, os olhos
fundos e delicados, os cabelos castanhos, encaracolados e longos. Ele sorriu para
mim, gostou do meu jeito. Passava o dia acamado.Sofria do pulmão. O peito chiava
e ele sentia muita fraqueza. Às vezes tossia a noite inteira.
Mas nos dias em que estava disposto, ele era muito divertido. Vendo
como eu adorava os livros encadernados que viviam na sua mesinha-de-cabeceira,
sinhozinho resolveu me ensinar a ler. para que eu lesse histórias para ele. Foi
uma alegria. Aprendi tudo num instante.
Sinhá Quitéria sempre me dizia que não deixasse meu sinhozinho por
um minuto sequer. Mas ela nem precisava dar essa ordem. Até hoje continuamos
juntos. Só vamos nos separar quando a morte vier.
Mas, como estava dizendo, nas noites em que ele sofria, eu quase
morria. Não suportava vê-lo assim. Foi por isso que, certa madrugada, eu o
convenci a fugir do quarto. Abri as cortinas que viviam fechadas e saímos os dois
pela janela. Foi assim que levei meu querido Pedro Manuel de Assis, meu amado
sinhozinho, para meu avô examiná-lo.
Meu avô nascera em Angola; conhecia as ervas e os segredos da
cura.Foi uma noite inesquecível. Quando nos aproximamos da senzala, vi que a
roda de capoeira havia começado. Lembro-me ainda hoje do berimbau e das
cantigas cadenciadas.
Sinhozinho até parou de tossir. Não tirava os olhos da ginga, dos rabos-
de-arraia, das rasteiras, daquela dança mágica da vida. A lua estava cheia,a noite
clara e a luz da fogueira, os homens rodopiavam como se pertencessem a uma
constelação de estrelas negras, cortantes e mortais.
De repente sinhozinho me disse:
- Eu quero aprender capoeira, Maria Maçaria. Diga isso ao seu avô.
Vocês podem imaginar como fiquei apavorada. E se alguma coisa desse
errado? E se alguém descobrisse?
Mas quando meu avô fitou Pedro Manuel bem no fundo dos olhos
simplesmente respondeu:
- Você é filho de Xangô. Se eu o ajudar, você nos fará justiça e
descobrirá sua própria coragem.
Foi uma surpresa para mim. Nunca pensei que meu avô um dia aceitasse
ensinar capoeira a um branco. Sinhá Quitéria ficou desconfiada quando sinhozinho
103
lhe disse que passaria as tardes em companhia do velho João. Mas,como detestava
contrariar o filho, acabou permitindo.
E foi muito,muito divertido.Porque meu adecidiu que aprenderíamos
a ginga juntos. Mandava-nos engatinhar entre as árvores imitando gatos e
cachorros. Morríamos de rir dando rasteiras um no outro. Aos poucos fomos
aprendendo a dança e a compreender cada som do berimbau.
A luz do sol e o toque da terra devolveram a saúde a sinhozinho.A
chiadeira foi sumindo, o peito se desenvolvendo, as pernas firmando e finalmente
ele conseguia dormir á noite. Sinhá Quitéria ficou muito satisfeita com o
´´tratamento`` de meu avô, e nós começamos a ter regalias. Mas contente mesmo
ela ficou no dia da surra.
Nesse dia, sinhá Quitéria recebeu a visita de dona Raquel, uma mulher
muito antipática.Tinha nascido na Europa e detestava a Bahia. Seu filho era seu
orgulho: um moleque grandalhão que sempre gritava com as mucamas e adorava
matar passarinho. Na tarde da confusão eu estava muito cansada e derrubei c
quente em sua roupa quando fui servi-lo. Ele me deu um tabefe tão forte no rosto
que eu cai sentada no chão.
E antes que sinhá Quitéria pudesse dizer qualquer coisa, meu amado
sinhozinho já se levantara e segurava o menino pelo colarinho.
Dona Raquel deu uma risadinha maldosa.
- Seu filho está bem de saúde? perguntou para sinhá Quitéria.
Será que agüenta uma surra?
Mas a frase ficou perdida no ar, porque rapidamente sinhozinho levou o
menino para o meio do quintal. O grandalhão estava contente com a situação.
Louco para bater em alguém. Levantou os punhos como se fosse dar socos.
E sinhozinho começou a gingar. Ele se movimentava sem parar,
observando o adversário de soslaio. Depois sorriu levemente, cheio de esperteza e
mandinga.
Quando o grandalhão levou a primeira rasteira, dona Raquel levantou-se
indignada. Mas depois nem teve mais tempo de reclamar. Sinhozinho esquivou-se
dos socos e o atacou com o arrastão, depois aplicou-lhe a meia-lua, e assim o
grandalhão foi levando um tombo atrás do outro. A essas alturas alguém já tocava o
berimbau e uma roda havia sido formada em torno dos dois meninos. A cada
vitória de sinhozinho todos aplaudiam e davam risadas. Ele tomava cuidado para
não ferir o grandalhão de verdade. Queria quebrar aquele orgulho. Mas isso
quem fez foi a própria sinhá Quitéria. Pois quando a briga acabou e dona Raquel
foi buscar o filho caído no meio do quintal, ela perdeu a compostura e gritou:
- Muito bem, Quitéria, você tem um filho valente. Ele luta como um
negro.
Sinhá Quitéria abraçou Pedro, que ria abraçado ao meu avô e respondeu
com toda a calma:
- É, Raquel, meu filho luta como um homem!
Nunca mais dona Raquel voltou à fazenda e muitas coisas mudaram
depois desse dia. Para mm e sinhozinho essa foi a primeira vitória. Passamos a vida
envolvidos em muitas lutas. A luta contra o preconceito, contra a pobreza, contra a
ignorância. E hoje, quando vejo nossos netos correndo por aí, acredito que
conseguimos várias vitórias. Mas essas são histórias muito longas e ainda levarei
dias para escrevê-las. E mesmo sendo uma velha guerreira, momentos em que
preciso descansar e, quem sabe, sonhar. Até mais tarde.
Heloisa Prieto. Heróis e guerreiras. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 1995.
Coleção Quase tudo o que você queria saber.
(Ibidem, p. 132 - 134).
104
A segunda proposta de interpretação de texto é de um conto de autoria de
Heloísa Prieto, cujo título é “A dança da Vida”. Heloisa Prieto é editora, professora,
roteirista e escritora premiada. Publicou vários livros e suas histórias trazem contos
folclóricos do mundo inteiro, especialmente do Brasil. Esse conto faz parte da obra
denominada “Heróis e guerreiras”, que apresenta uma seqüência cronológica de obras
exemplares do heroísmo, como, por exemplo, trechos do lendário livro de Myamoto
Musashi (herói das artes marciais do Japão medieval), lutas de capa e espada na França do
século XVII, a força da capoeira na Bahia do século XIX, o primeiro contato de um garoto
inglês com o surfe no Havaí na época de Jack London. Essas histórias são intercaladas com
muitas perguntas que dizem respeito à história do heroísmo e, em outro plano, também à
vivência dos leitores.
O discurso de Heloísa Prieto, no LD, passa a ser o discurso das autoras.
no primeiro parágrafo do texto, a narradora faz a seguinte asserção: “(...), poucas são as
mulheres letradas e, se forem negras como eu, nem pensar. Creio que nasci abençoada por
Maria, como dizia minha mãe, e filha de Iansã, como dizia meu avô”. A idéia de que a
educação letrada só é possível para as pessoas de cor branca e nunca para as pessoas de cor
negra e de que, se as últimas conseguirem atingir esse objetivo, será por graça e ajuda de
algum santo, jamais por sua capacidade, infelizmente, esta idéia está incutida no
inconsciente coletivo de nossa população e, nesse exemplo, o texto em questão ajuda a
reforçar este espectro. Também o discurso de que as mulheres pobres não têm direito ao
estudo, de que a responsabilidade para que elas adquiram esse direito é quase divina,
isentando da responsabilidade os governantes, é reforçada por este intradiscurso.
Recorte 2:
2) Em que espaços ocorrem os fatos dessa narrativa? Por que ele é significativo para a história? A história se
passa no sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento. O espaço é significativo para a
história pelo conjunto de condições culturais que ele apresenta, que envolvem as personagens na atmosfera
da narrativa;
8) Caracterize o narrador e o foco narrativo do conto lido. Comprove sua resposta com trechos do texto. O
foco narrativo está em 1ª pessoa, ou seja, o narrador é também personagem da história. Os seguintes trechos
comprovam essa afirmação: “sempre digo que sou uma pessoa de sorte. Na vida tive tudo o que desejei (...)”
e “Sinto-me cansada ao caminhar. Mas minhas mãos são ágeis(...)”.
10) Qual é o conflito do conto “A dança da vida”? o conflito desse conto é o atrito ocorrido entre o filho de
dona Quitéria e o filho de dona Raquel.
11) Qual é o clímax, ou seja, o momento de maior tensão desse conto? O clímax da narrativa é o momento em
que sinhozinho briga com o filho de dona Raquel.
105
17) “A dança da vida” é uma narrativa fictícia cujos fatos são verossímeis, isto é, poderiam ter ocorrido na
realidade. Sendo assim, qual a intenção da autora a criar essa história? A intenção da autora pode ter sido
retratar a época a que a história remete ou, ainda, valorizar a luta dos negros pela liberdade, além de
instigar a imaginação do leitor com uma interessante história.
(Ibidem, p. 137).
Como podemos observar nos questionamentos acima, as perguntas relativas
ao texto detêm-se a explorar os elementos do conto: espaço, foco narrativo, conflito,
clímax, verossimilhança. Tal atitude provoca um silenciamento sobre os discursos
materializados pelo texto, como, por exemplo, a situação dos negros no Brasil: como eram
tratados antes da abolição da escravatura e como são tratados hoje, o que realmente foi a
luta dos negros pela abolição e a permanência dessa luta até os dias de hoje.
Ao agir assim, ignorando estas questões e explorando somente os aspectos
formais do texto enquanto gênero literário, as autoras contribuem para que o silenciamento
sobre as questões raciais no Brasil seja reforçado. É alentado o intradiscurso de que o
racismo e o preconceito social não existem em nosso país e é desperdiçada a oportunidade
de fazer um comparativo entre as antigas senzalas e as atuais favelas, de questionar o
porquê de tanta discriminação social para com este ser humano que foi e ainda é
escravizado. As autoras do LD referem-se às condições culturais, sem especificar o
conteúdo referencial dessa expressão ou da palavra cultura, reduzindo a questão social ao
cultural. Na questão número 8, a segunda de nosso recorte, as autoras do LD fazem
referência ao narrador no masculino, quando de fato ele é uma mulher. Como em todas as
propostas de interpretação desta obra, as autoras limitam-se a explorar as características dos
diferentes neros textuais. As propostas detêm-se a ser mais uma preparação para o estudo
da literatura como disciplina escolar do que uma proposta de estudo dos diferentes
significados construídos através do texto.
3.3.3. LD: Português: idéias & linguagens
A terceira obra que nos propomos a analisar é Português: Idéias &
Linguagens, série, de Dileta Delmanto e Maria da Conceição Castro. Dileta Delmanto é
licenciada em Letras Português e Inglês –, mestre em língua portuguesa pela PUC-SP e
professora das redes estadual e particular de São Paulo. Maria da Conceição Castro é
licenciada em Letras pela Unesp e professora das redes municipal e estadual de São Paulo.
106
Um dos aspectos que nos chama a atenção no manual do professor, no item
denominado “a proposta” é quando as autoras dizem:
Considerando que ser usuário competente da língua é uma das condições para a
efetiva participação social, achamos que a finalidade do ensino de Língua
Portuguesa deve visar, posteriormente, ao desenvolvimento da capacidade de
produzir e interpretar textos orais ou escritos, à medida que estes auxiliem o
educando a ler o mundo em que vive, a analisar o que dele se diz e se pensa e a
expressar uma visão fundamentada e coerente dessa leitura e dessa interpretação.
(Delmanto, 2005: 3).
Perguntamos: por que o ensino de língua portuguesa deve visar,
posteriormente, ao desenvolvimento da capacidade de produzir e interpretar textos orais ou
escritos? O aluno ao chegar na escola não possui esta capacidade, ao menos no que diz
respeito a textos orais? Ele, aluno, seria incapaz de entender e de ler de diferentes formas os
textos orais e escritos? É somente na escola que ele adquire esta capacidade? Ou seria na
escola que ele adquiriria a capacidade de ler estes textos como as classes dominantes
economicamente desejam? O que seria essa visão fundamentada e coerente de leitura de
mundo? Seria a leitura do professor? A leitura do autor do LD? Ou seria a leitura dele
aluno, baseada na fundamentação do professor ou do autor do LD? Qual leitura de mundo
queremos?
Ao agirem assim, as autoras do LD geram uma série de questionamentos
como os que fizemos acima e tantos outros que não foram explorados. Ao tratarem o aluno
como um sujeito pronto a ser “manipulado”, elas ignoram sua memória discursiva,
acreditam ou tentam acreditar que o aluno está pronto para entrar “no mundo da leitura”, já
que quem possui o letramento são os professores e, conseqüentemente, a escola; são os
elementos capacitados a “auxiliarem” esse aluno na leitura fundamentada e coerente do
mundo.
Mais adiante, no item denominado “construindo e reconstruindo os sentidos
do texto”, as autoras propõem que “o sentido do texto depende também da habilidade do
leitor de interpretar as indicações do texto. Essa habilidade depende de uma série de
elementos como conhecimento de mundo, domínio de língua, crenças e opiniões,
conhecimento a respeito dos diferentes gêneros e tipos de texto utilizados”. (Ibid.: 6). Ao
afirmarem que a compreensão do sentido de um texto depende da habilidade do leitor de
107
interpretar “as indicações” do texto – indicação é ato ou efeito de indicar e indicar, mostrar
com o dedo, assinalar, designar, esclarecer, informar alguém sobre algo, instruir, orientar
etc. têm quase uma denotação intencional. Portanto, com essa palavra, consciente ou
inconscientemente, as autoras reproduzem a visão tradicional de um sujeito-escritor
consciente e não de um sujeito-escritor assujeitado ideologicamente.
Texto 5
Texto 1
O texto a seguir faz parte de um livro que reúne histórias
envolvendo personagens sem nome, que vivem insólitos destinos, em reinos e
aldeias distantes. Todas essas histórias parecem remeter a um mundo fabuloso,
existente apenas em nossa imaginação. Mas será mesmo?
Sem asas, porém
Dura aldeia era aquela, em que às mulheres não era permitido
comer carne de aves não fossem as asas subir-lhes ao pensamento. Dura aldeia
era aquela em que, apesar da proibição, voltando da caça ao final da tarde e sem
nada mais ter conseguido abater, o marido entregou à mulher uma ave, para que a
depenasse e a cozesse e fosse alimento de ambos.
E assim a mulher fez, metendo os dedos por entre as penas ainda
brilhantes, arrancando-as aos punhados, e entregando à água e ao fogo aquele corpo
agora morto, que a fogo e água nunca havia pertencido, mas sim ao ar e à terra.
Tivesse olhado para o alto por um minuto, tivesse detido por um
instante sua tarefa e levantado o olhar, e teria visto pela janela bandos daquelas
mesmas aves migrando rumo ao Sul. Mas a mulher só olhava para as coisas quando
precisava olhá-las. E não precisando olhar o céu, não ergueu a cabeça.
Cozida a carne da ave, regalou-se, engolindo os bocados sem
quase mastigar, firmou os dentes nos ossos, sugou o tutano. O marido não.
Repugnou-lhe a carne tão escura. Limitou-se a molhar o pão no caldo, na cozinha
que era quase toda a casa.
Mas uma inquietação nova começou a tomá-la. Interrompia seus
afazeres de repente, como nunca havia feito. Paradas breves, quase nada. Um
suspender do queixo, um vibrar de pestanas. Um alerta. Resposta do corpo a algum
chamado que ela sequer ouvia. A agulha ficava parada no ar, a colher suspensa
sobre a panela, as mãos metidas na tina. E a cabeça, cabeça que agora se movia
com delicadeza que só um pescoço mais longo poderia lhe dar, espetava o ar.
A mulher olhava então para quilo de que não precisava. E olhava
como se precisasse.
Só por instantes, a princípio. Em seguida, um pouco mais.
Demorando-se, olhou primeiro adiante. Adiante de si. E adiante
daquilo que tinha diante de si. Por uns tempos pousando o olhar nos móveis, nos
poucos móveis daquela casa e nos objetos em cima deles. Depois varando-os,
varando as paredes, olhou para a distância em linha reta. O que via, não dizia.
Olhava, sacudia num gesto suave a cabeça. E tornava a abaixá-la. A agulha descia,
a colher mergulhava na panela, as mãos afundavam na tina.
Talvez levada por aquele breve sacudir de cabeça, começou a
olhar para os lados. Olhava para o lado esquerdo, demorava-se, imóvel. E, súbita,
voltava-se para o lado direito.
108
Ninguém lhe perguntava o que estava olhando. O único olhar que
nela parecia importar para os outros ainda era o antigo, de quando olhava o que
era necessário.
E assim um dia aquela mulher para a qual ninguém olhava olhou
o céu. Sem que tivesse chovido ou fosse chover. Sem que houvesse relâmpagos.
Sem que sequer houvesse nuvens ou o tempo fosse mudar, ela olhou o céu.
Delicado fazia-se seu pescoço agora que o movimentava ligeiro
conduzindo a cabeça em suas perscrutações. Era um pescoço pálido, protegido na
luz por tantos anos de cabeça baixa. E sobre esse pescoço a cabeça como que se
estendia olhando para cima, com a mesma reta intensidade com que havia
começado varando paredes.
Olhava pois para o alto, quando um bando das aves passou sobre
a casa rumo ao Sul.
Há muito as folhas haviam-se banhado de cobre, o solo começava
a fazer-se duro no frio. E as aves de carne escura seguiam no céu em direção ao sol.
De a mulher olhava. E continuou olhando até que as aves
empalideceram na distância.
O vento batia os longos panos da sua saia, estalava as asas
franjadas do seu xale. Não, ela não voou. E como poderia? Saiu andando, apenas.
Escura como a tarde, acompanhando seu próprio olhar, saiu andando para frente,
sempre, sempre para a frente, rumo ao Sul.
(Marina Colassanti. Longe como o meu querer. São Paulo, Ática, 1997. p. 57-59.)
(Delmanto, 2005: 108 e 109).
Vejamos como funcionam estas perspectivas dentro das sugestões de
interpretação dos diferentes textos no decorrer da obra. O primeiro recorte que faremos
pertence à proposta da interpretação do texto “Sem asas, porém” de Marina Colasanti.
Maria Colasanti é jornalista, escritora e artista plástica. Nasceu na Etiópia, África. Veio
para o Brasil com a Segunda Guerra Mundial, aos onze anos. É formada pela Escola
Nacional de Belas Artes e dedicou-se por algum tempo à gravura, depois ingressou no
jornalismo, trabalhando como editora e jornalista. O texto “Sem asas, porém” faz parte da
obra intitulada “Longe como o meu querer”. Este livro reúne histórias envolvendo
personagens sem nome, que vivem insólitos destinos, em reinos e aldeias distantes.
A idéia de que as mulheres não devem olhar à sua volta com objetivos que
ultrapassem as funções que a sociedade machista estabelece para elas é reforçada, pois a
mulher, no texto, vai “adquirir” a capacidade de criar asas e voar a partir do momento
em que o homem permite que ela coma a carne de galinha, ou seja, o homem é o elemento,
é o elo que permite que essa mulher seja livre, tenha sonhos e ideais. Embora o texto queira
mostrar que a personagem em questão parte para o sul em busca de alguma coisa, ele
também passa a idéia de que aquelas mulheres que se atrevem a enfrentar os obstáculos
estabelecidos pela sociedade são mulheres sem rumo, sem destino, que têm um futuro
109
incerto, que não sabem o que estão fazendo, conforme o próprio texto: “Escura como a
tarde, acompanhando seu próprio olhar, saiu andando para a frente, sempre para a frente,
rumo ao sul” (Ibidem: 109).
Recorte 1:
1) “Dura aldeia era aquela”. Assim começa o texto.
a) Qual a característica singular da aldeia em que se passa a história? Nela não se permitia às mulheres comer
carne de aves.
b) Como se explicava essa proibição? Como você a entende? Não deveriam comer para que “as asas não lhe
subissem à cabeça” / (resposta pessoal. Sugestão: obedecendo, elas o teriam vontade de “voar com suas
próprias asas”).
c) O que aconteceu, certo dia, para que essa proibição fosse desrespeitada? Como o marido não conseguira
oura caça, entregou à mulher uma ave para ser preparada e servir de alimento a ambos.
2) Muita coisa se modificou a partir daí.
a) O que começou a acontecer à mulher a partir desse dia? Uma inquietação nova começou a dominá-la e ela
começou a olhar para tudo o que a cercava.
b) “Talvez levada por aquele breve sacudir de cabeça, começou a olhar para os lados.” Que diferença havia
entre esse novo olhar e a maneira anterior de olhar o que a cercava? Antes, a mulher olhava só para o que era
necessário. Agora, olhava para tudo o que a cercava, inclusive para “aquilo de que não precisava”.
c) Como você interpreta essa “mudança de olhar”? (Resposta pessoal). Espera-se que o aluno perceba que a
mulher começou a tomar consciência do que a cercava, a perceber como era sua vida ali.
3) Como você entende os trechos abaixo?
a) “A mulher olhava então para aquilo de que não precisava. E olhava como se precisasse”. A mulher apenas
cumpria suas obrigações, sem pausas, sem reflexões, sem momentos prazerosos.
b) “(...) na cozinha, que era quase toda a casa.” A vida da mulher era a cozinha, o dever, a obrigação.
(Ibidem: 110).
Observando as questões propostas para a interpretação do texto, vemos que
as autoras do LD limitaram-se a explorar questões superficiais, como as características da
aldeia; a proibição a que as mulheres estavam destinadas nessa aldeia e as modificações
pelas quais a mulher passou a partir do dia em que a proibição foi desrespeitada. Ao
apresentarem questionamentos, cujas respostas seriam de cunho pessoal, a oportunidade de
fomentar uma discussão sobre as diferentes “visões de mundo” que os alunos possuem
sobre as mulheres é desperdiçada, pois essas perguntas também são feitas de forma
superficial. Infelizmente, não parece haver interesse em fomentar o debate sobre as
dificuldades da mulher na sociedade de antigamente e muito menos na sociedade atual.
Dentro de nossas perspectivas, o texto seria ideal para fomentar o debate sobre as
desigualdades sociais, principalmente nas relacionadas com as diferenças sexuais. Com
certeza, muitos dos alunos teriam exemplos práticos de discriminação contra as mulheres
em suas casas e em suas comunidades. Seria o momento ideal para debater a origem dessas
110
diferenças de tratamento, o porquê do desrespeito para com as mulheres, principalmente
nas questões salariais e sexuais.
Texto 6
Um milhão de meninas-mãe
“A gravidez na adolescência é um desastre na vida de qualquer menina. A vinda do
filho inesperado significa, quase sempre, o abandono dos estudos e o ingresso
antecipado na vida adulta. Todo mundo conhece a história de uma moça cuja
juventude foi virada de cabeça para baixo pela maternidade imprevista. Menos
visíveis são os efeitos igualmente devastadores da paternidade precoce – pelo
menos para aquela minoria de rapazes que assumem o filho.” (Revista Veja, 20 jan
1999.)
Um milhão de adolescentes viram mães todos os anos no Brasil.
Sessenta por cento das meninas que engravidam, depois de um ano e meio voltam a
engravidar. As estimativas são do coordenador da Área Técnica de Atenção à
Saúde do Adolescente e do Jovem do Ministério da Saúde, José Domingues Júnior.
Ele esteve em Fortaleza, na semana passada, participando do curso sobre Saúde do
Adolescente para preparação de turmas do Programa da Saúde da Família.
O POVO - Qual o principal problema associado à adolescência hoje?
José Domingues – O principal problema hoje (...) é a questão da gravidez. Em 1999
foram feitos no Brasil quase 34 mil partos em meninas de 10 a 14 anos na rede
SUS (dados do Ministério da Saúde). E, aproximadamente, 700 mil partos em
meninas de 15 a 19 anos. Computando a rede privada e convênios, nós estimamos
que um milhão de adolescentes de 10 a 19 anos dão à luz todo ano no Brasil.
OPQual o perfil da adolescente grávida?
JD É óbvio que a gravidez hoje na adolescência está muito relacionada a uma
questão socioeconômica. Nas regiões mais pobres do país, nas periferias dos
grandes centros, nos bairros mais pobres, esta incidência é muito maior que nos
bairros de classe média. É óbvio que estas meninas também estão tendo as relações
mais cedo. A maioria destas meninas já está fora da escola ou tem defasagem muito
grande entre a idade cronológica e a idade escolar. Geralmente elas têm uma
expectativa de vida, um projeto de vida não muito audacioso. Com dificuldade de
inserção no mercado de trabalho, com pouca escolaridade, muitas delas acabam
optando por serem mães. A gente está preocupado porque cada vez mais aumenta a
taxa de gravidez em meninas cada vez mais novas. (...)
OP O senhor acha que a adolescência brasileira está se erotizando precocemente
e isso pode estar contribuindo para o aumento do número de adolescentes grávidas?
JD A nossa sociedade, o Brasil é muito erotizado. A gente tem uma televisão
eu não gosto de culpar a mídia, que pode ser boa e tem o seu papel – mas
infelizmente a gente tem alguns veículos que ajudam a determinar padrões de
erotização. Um outro que vem influenciando, que é biológico, é que a cada ano a
primeira menstruação da menina, a menarca, está vindo mais cedo.
OP A falta de educação também é um fator que influencia na educação sexual
precoce?
JD Sim. s somos um dos poucos países do mundo que não têm estruturada
uma educação sexual nem sei se este seria o nome - , mas orientações básicas
dentro da escola. Hoje você em alguns centros algumas escolas que m
introduzido essa questão. Discutir gravidez, discutir sexualidade, discutir métodos
anticonceptivos são ações importantes hoje que é preciso ter.
OP Existe relação entre a jovem da escola e a jovem mãe?
111
JD Existe um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), de
1998, que diz que na menina que tem de três a cinco anos de escolaridade, a taxa de
gravidez é dez vezes maior do que na que tem 11 anos de escolaridade.
OP Dentro desse contexto de violência e da iniciação sexual, o senhor acredita
que a adolescente viúva possa vir a se tornar um personagem comum na sociedade?
JD O grande problema hoje é a gravidez. O segundo problema, sem dúvida
nenhuma, é a violência. Para você ter uma idéia, em algumas regiões do país, a
Grande São Paulo, o Grande Rio de Janeiro e mesmo em torno de Brasília, o IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) tem mostrado a expectativa de vida
do jovem e do adolescente desempregado, de baixa escolaridade e que habita estas
regiões é pelo menos quatro anos mais baixa que a do outro adolescente qualquer.
E o problema é que a questão da violência, mesmo a gravidez, elas não são
questões específicas da saúde. Sobre a questão da viúva, o que a gente vê nos dados
é que (...) tem adolescentes viúvas. Mas muitas dessas adolescentes viúvas. Mas
muitas dessas adolescentes já são normalmente sozinhas... O que a gente não quer é
que esta menina passe a engravidar muito cedo. O que a gente tem é meninas (...)
com 18 a 19 anos, com dois a três filhos. E sim, numa situação de abandono
gera-se um problema muitorio. A gente tem trabalhado para que possa aumentar
o número de pessoas, através do programa de saúde da família, que trabalhem a
questão da adolescência. No que concerne à gravidez, o papel deles seria
instrumentalizar, orientar para que, se a adolescente tiver relação, use algum tipo de
método [anticoncepcional]. Se por acaso estiver grávida, para que esta gravidez
transcorra bem e que ela retome um projeto de vida depois que este nenê nascer.
passe a usar um método [anticoncepcional] e espace mais o número de filhos. O
que está acontecendo no Brasil é que a menina engravida, passa um tempinho e
engravida de novo. Então a média é que 60% das meninas que engravidam no
Brasil, dezoito meses depois (...) engravidam de novo.
(Jornal O Povo. Fortaleza, 21 maio 1999.)
(Ibidem, 134 a 135.)
Essa outra proposta de texto refere-se à questão da gravidez na adolescência.
O texto é uma entrevista publicada no dia 21 de maio de 1999, no jornal O Povo, de
Fortaleza, intitulada “Um milhão de meninas-mãe”
Recorte 2:
4) Além do fator socioeconômico, o que contribui para o aumento do número de adolescentes grávidas? A
erotização precoce, a deficiência de educação sexual, a falta de informação.
5) Comente a relação entre a jovem fora da escola e a jovem mãe. (Resposta pessoal). Espera-se que o aluno
aponte em seu comentário que, quanto mais baixo o grau de instrução, maior a incidência de casos de
gravidez precoce.
6) A violência tem contribuído para o aparecimento de uma nova personagem na sociedade brasileira. que
personagem é essa? Fale sobre isso. São as adolescentes viúvas jovens, geralmente pertencentes à
população de baixa renda, que engravidam cedo e logo são surpreendidas pela morte dos companheiros,
muitas vezes envolvidos com drogas.
(Ibidem, 137).
O recorte proposto acima mostra como a questão da gravidez na
adolescência é explorada pelas autoras do LD. Assim como o texto, elas também, em seus
112
questionamentos, em suas propostas de interpretação, contribuem para que não seja
explorado o silenciamento sobre a questão do alto índice de adolescentes grávidas,
principalmente entre as meninas pobres. A verdadeira razão que leva a que estas meninas
engravidem enquanto seu corpo ainda está em desenvolvimento é tratada como uma coisa
natural, como algo comum aos pobres, o que contribui para reforçar o intradiscurso de que
pobre só sabe fazer filho. Os padrões de erotização promovidos por alguns veículos de
comunicação de nosso país não são questionados, e sendo assim, eles são isentados dessa
responsabilidade. Afinal, quem assiste à televisão, quem ouve determinadas músicas no
rádio, tem que saber diferenciar a realidade da fantasia, o que é possível do que não é
possível. Ao agir assim, as autoras do LD, o professor de língua portuguesa e,
conseqüentemente, a escola estão contribuindo para que o silenciamento sobre estas
questões tão pertinentes da realidade brasileira não sejam debatidas, sejam silenciadas e
aceitas como naturais, como normais, que sejam inseridas no intradiscurso de toda a
sociedade.
O fator socioeconômico é citado, mas o que gera a diferença de renda
entre esses adolescentes em nenhum momento é trazido para a interpretação, o que
contribui para que o silenciamento sobre as questões da enorme diferença na distribuição de
renda em nosso país seja reforçado, fazendo com que estas questões pareçam naturais,
normais. Todas as perguntas limitam-se a tratar a questão da sexualidade superficialmente,
produzindo mais uma vez um silenciamento sobre a questão da erotização precoce em
nosso país. Portanto, a principal característica dessa interpretação é o “não-dito” – isto é, as
autoras também poderiam explorar o texto nesse sentido o silenciamento da mídia sobre
determinadas questões sociais, já que a reportagem em nenhum momento levanta este
problema.
No discurso do jornal “O Povo”, que no LD passa também a ser o discurso
das autoras do LD, ao asseverar que A gente está preocupado porque cada vez mais
aumenta a taxa de gravidez em meninas cada vez mais novas”, a responsabilidade da
gravidez precoce é transferida para as adolescentes, visto que a preocupação é do
entrevistado, é “da gente”, que as meninas, em nenhum momento da entrevista com o
“especialista” parecem estar preocupadas com essa questão, colocando “a gente” numa
parte da sociedade e “as meninas-mãenuma outra, contribuindo para que o silenciamento
113
sobre essa questão seja reforçado. Mais adiante, ainda na mesma entrevista, afirma-se que
existe “um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), de 1998, que
diz que na menina que tem de três a cinco anos de escolaridade, a taxa de gravidez é 10
vezes maior do que na que tem 11 anos de escolaridade”, ou seja, essas meninas ficam
grávidas precocemente porque não freqüentam a escola regularmente. Se assim fizessem,
este problema não existiria. As idéias contidas no texto servem para reforçar a opinião da
maioria da sociedade brasileira de que a culpa dos fatos relatados é das próprias
adolescentes, pois as escolas existem e elas não freqüentam porque não querem.
Os textos propostos para interpretação nos diferentes LD trazem a visão
daqueles que fazem parte da classe economicamente dominante. Ao selecionarem
determinados textos e ao tomarem determinados rumos nas atividades de compreensão dos
textos, como podemos observar na análise acima, os autores desses LD estão contribuindo
para que os não-ditos sejam reforçados junto a alunos e professores. Ao “incentivarem” os
silenciamentos, ao “reforçarem” os não-ditos: razões da violência, diferenças sociais,
circunstâncias que levam determinados grupos jovens da sociedade subalternizada a
submeterem-se as condições de sub-trabalho, os índices de erotização presente nos meios
de comunicação, o papel da mídia na vida política do país e da importância e a necessidade
da mulher na sociedade. Agindo dessa forma os LD acabam transformando-se num grande
“plano de aula nacional” para a manutenção dos ideais e dos valores das classes
economicamente superiores, não contribuindo em nada para o debate, para o crescimento e
para a formação de uma sociedade mais democrática e mais humana.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa experiência de cinco anos no magistério nos mostrou que, dentro de
nossa sociedade, principalmente na estrutura escolar, cristalizou-se a idéia de que o LD
funciona como um discurso de verdade. Em muitos LD, verifica-se, sobretudo nas
propostas de compreensão de textos, um número excessivo de perguntas de “interpretação”,
que, de algum modo, demonstra a preocupação do autor em abarcar tudo o que considera
essencial a ser compreendido e, conseqüentemente, guiar a leitura do aluno, restringindo
desta forma outras leituras possíveis. Essa “condução” da “compreensão” do texto tem o
poder de naturalizar os sentidos, de apresentar a “leitura” do autor do LD como certa e
verdadeira e única possível. Para a maioria dos professores de língua portuguesa o texto
tem um sentido e o aluno deve apreender esse sentido.
Lembramos que, para as teorias lingüísticas que enfatizam a língua enquanto
discurso, a leitura não é unicamente decodificação, o texto não é apenas produto. Essas
teorias entendem que o leitor não apenas apreende o sentido que supostamente estaria no
texto, mas atribui sentidos a ele, compreende o texto. A leitura deveria ser um momento
crítico de construção de um texto, um momento privilegiado do procedimento de interação
verbal, visto que é no texto que se desprende o processo de significação. No caso da escola,
esse processo passa basicamente pelo livro didático, que apresenta uma leitura pronta
para o aluno e para o professor.
O aluno deve refletir, mas o LD delimita a forma e a seqüência em que essa
reflexão deve ser orientada, preferencialmente obedecendo a uma suposta linearidade do
texto. Isso, com certeza, contribui para chegarmos à ordenação e unificação do sujeito, para
formarmos um sujeito respeitador das normas e convenções estabelecidas pela sociedade,
normas e convenções que representam os interesses da classe economicamente e
politicamente dominante, e que contribuem para reforçar a idéia de que o aluno e,
conseqüentemente, o futuro cidadão, é visto como o sujeito que deve ser guiado, a cada
passo, por um único caminho, criando a ilusão de que os sentidos podem ser domesticados.
Essa estrutura se repete a cada unidade e a atribuição de uma determinada ordem para a
“compreensão” dos textos é apresentada como natural, é o que podemos observar através
dos três livros que analisamos.
115
Durante todo o percurso de nossa análise observamos que nenhum dos LD
analisados traz como proposta de trabalho a leitura plena dos textos, isto é, uma leitura em
que o leitor chegaria à interpretação dos aspectos ideológicos do texto, das concepções que
muitas vezes estão embutidas sutilmente nele; uma leitura em que o leitor conseguisse
perceber que nenhum texto é neutro, que por trás das afirmações mais simples, das palavras
mais triviais, existe uma visão de mundo; que qualquer texto reforça idéias já sedimentadas,
que nenhum é neutro, no sentido de não tomar partido em relação a uma determinada
concepção das coisas. Instigado pelo professor, o aluno deveria perceber que a linguagem é
uma das formas de influenciar e de intervir no comportamento de outrem, que os outros
atuam sobre nós fazendo uso dela e que da mesma forma nós podemos atuar sobre os
outros.
Agindo dessa forma a escola contribui para que a educação democrática
fique cada vez mais distante de nossa realidade. Ao ignorar que cada um (no caso da aula
de português: professor e aluno) tem sua capacidade, seu potencial, mas que também é um
produto sócio-histórico e que, sua presença no grupo é fundamental para a formação de
cidadãos conscientes e políticos, estamos contribuindo para a formação de uma sociedade
cada vez mais injusta, cada vez mais repetidora dos discursos produzidos, cada vez mais
alienada e fazemos nossas as palavras de Zandwais:
“os compêndios escolares acabam por esfacelar toda e qualquer possibilidade de
trabalho com a ngua, enquanto uma materialidade empírica dotada de sentidos e,
portanto, capaz de refletir representações identitárias heterogêneas de sujeitos reais,
e não forjados, oriundos de contextos sociais distintos, e, por isso, investidos tanto
de interesses quanto de gestos de interpretação contraditórios, em face das
histórias/memórias que os significam e do modo como utilizam a língua para
simbolizá-las” (Zandwais, 2003: 35).
Para finalizar, gostaríamos de lembrar que esta pesquisa teve como foco
principal a análise e compreensão do discurso presente na aula de interpretação de textos de
língua portuguesa. Investigar os movimentos discursivos, que envolvem a atividade de
interpretação de texto pode ser fundamental para compreender as idéias e pensamentos
únicos que dominam os dias de hoje. A análise realizada também esteve limitada pela nossa
FD, sendo que outros pesquisadores poderiam destacar conflitos distintos dos apontados
116
nesta dissertação e desmistificar os movimentos discursivos sob outros prismas.
Eventualmente, poderemos, em estudos posteriores, realizar novas leituras e interpretações
dos dados analisados.
Observamos ao longo do percurso aqui traçado que, desde os primórdios de
nossa história, a escola foi criada e mantida para um pequeno grupo de privilegiados. Até
mesmo agora, neste século, quando o país atinge quase cem por cento de matrículas com
alunos na faixa etária de sete anos, nossa educação esbarra na qualidade que é ofertada a
esta população menos favorecida. Infelizmente, hoje, uma preocupação em matricular
alunos, sem que exista a mesma preocupação em oferecer uma escola pública de qualidade.
Através da política do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) o governo
federal faz chegar aos diferentes cantos de nosso país o livro didático (LD). Este livro
torna-se, para a grande maioria dos professores, o único suporte utilizado em sala de aula e
como já vimos anteriormente, esse livro nada mais é do que o elemento reprodutor do modo
de ver, de agir e de pensar da classe dominante, ou seja, dedica-se a reproduzir a estrutura
da sociedade de exploração e dominação, ensinando os alunos a ocuparem seus lugares
sociais pré-determinados.
A lingüística evoluiu e continua evoluindo, mas infelizmente esta evolução
não chega à sala de aula. Ao contrário de outras disciplinas como a biologia, a química e a
física, que rapidamente têm as novas descobertas incorporadas ao currículo escolar, os
novos conhecimentos desenvolvidos pela lingüística não recebem a atenção que merecem
da maioria dos profissionais que trabalham com o ensino de língua.
Como podemos observar, os diferentes conceitos lingüísticos o
apresentados pelos autores do LD, dentro do que eles denominam manual do professor.
Mas ao analisarmos as propostas de trabalho dentro desse mesmo LD, notamos que estes
conceitos não foram aplicados no desenvolvimento das diferentes propostas. Estas “novas
propostas” de ensino da língua, independentemente da preferência por este ou por aquele
conceito, contribuiriam e contribuem muito para a formação de um cidadão livre,
independente e crítico.
Permanecendo dentro desta política educacional de ensino de língua
portuguesa, a educação assume formas e conteúdos, cuja correlação espaço-temporal é
muito representativa no modo de vida e de ensinar da instituição escola. Trata-se de
117
relações e de interações sociais quase sempre presididas e orientadas por bases desiguais e
hierárquicas, onde predomina, por um ângulo, a dominação e a exploração do homem pelo
homem e, por outro, a mutilação da liberdade, da espontaneidade, da responsabilidade e da
criatividade dos indivíduos.
Uma relação e uma interação social estruturada entre os que sabem e os que
não sabem; entre os que decidem e os que acatam as decisões sobre as questões
educacionais e pedagógicas; entre os que detêm o poder de emitir ordens, controlar e punir
e os que obedecem; entre os que orientam e institucionalizam valores, ideais, ideologias e
crenças e os que são compelidos a assumi-los; enfim, entre os grupos sociais dominantes
que detêm o poder, o prestígio e a riqueza e os grupos sociais dominados.
118
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