Download PDF
ads:
O Matuto, de Franklin Távora
Fonte:
TÁVORA, Franklin. O matuto : crônica pernambucana. Rio de Janeiro : Garnier, 1902.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Incógnito a pedido do voluntário
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam
mantidas. Para maiores informações, escreva para <[email protected]>.
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar
de alguma forma, mande um e-mail para <parceiros@futuro.usp.br> ou <[email protected]>
O MATUTO
Franklin Távora
I
Pasmado é uma velha povoação, outr’ora aldeia de índios, duas léguas ao norte de Iguarassú, na estrada de
Goiana. É célebre por seus ferreiros, ou mais especialmente pelas facas de ponta que estes fabricam, as quais passam
pelas melhores de Pernambuco onde têm estendida e tradicional nomeada. Não há terra que se não distinga por usança,
defeito, qualidade ou particularidade local, que vem a ser o seu como traço característico, a sua feição dominante. Quem
passa por Tigipió, na estrada de Jaboatão, encontra a cada canto tocadores de viola que vêm alegres, e pé no mato pé no
caminho. Dos casebres do Barro o que logo se mostra aos olhos do viandante são mulheres metediças, com as cabeças
cobertas com flores, os cabeções arrendados e decotados, os seios quase de fora. Costumes dos povoados onde ainda
não tiveram grande entrada o trabalho e a instrução.
Passando-se por Goiana ouve-se daqui uma trompa, dali um baixo, adiante um pistom, além um trombone,
uma clarineta, uma flauta, um assobio, uma harmonia ou uma melodia qualquer, e não se vê sala nem corredor que não
tenha nas paredes uma, duas ou três ordens de gaiolas com passarinhos cantadores e chilreadores. Há ai o instinto
musico da Bohemia.
Quem atravessa Pasmado pela primeira vez, tem a ilusão de que todas as arapongas da mata próxima estão ali a
soltar seus estrídulos acentos. Mas logo vê homens tisnados batendo com o martelo sobre a bigorna, foles assopradores,
carvões ardentes e flamejantes. Então a ilusão muda. O que parece é que todas as forjas de Vulcano foram transportadas
para aquele imenso laboratório de instrumentos mais destruidores do que conservadores da vida e do sossego alheio.
Neste particular, o de ser largo e opulento mercado de armas malfazejas, talvez Pasmado só possa contar em
todo o império brasileiro uma rival – a côrte do sobredito império, na qual a navalha do capoeira disputa a primazia, em
gênero, numero e caso, á faca do matuto do norte. A côrte e a província neste ponto cortam-se bem. Uma não tem que
falar da outra. No que Pasmado se parece com todos os velhos povos, é em ter casas esburacadas; entulhos e matos pelo
meio das ruas; aqui uma baixa, ali um barreiro, onde, de inverno, coaxam os sapos dia e noite, respondendo á vozeria
desentoada dos seus semelhantes que moram nas moitas formadas por dentro dos largos, sem licença nem proibição da
municipalidade. A rua mais pública e principal da povoação é aquela por onde corre a própria estrada. Perto ficam os
olhos-d’água nativa onde os moradores vão prover-se da de que precisam, quando não aparam, por sua comodidade,
como costumam, em potes e gamelas a que cai das biqueiras da casa durante as chuvas. O certo é que, ou indo busca-la
nas fontes ou aparando-a na porta da casa, não curtem sede os moradores de Pasmado dias e noites, ainda de verão,
como curte a pobreza deste esplendida e orgulhosa cidade – primeira capital da América do Sul.
Em um rancho ou garapeira que se via algumas dezenas de passos antes da povoação, estavam reunidos, por
uma noite de 1706, á roda de um fardo de fazendas, vários matutos que voltavam do Recife, onde tinham ido vender
algodão. Entre eles havia dois almocreves das proximidades de Goiana, um por nome Francisco, o outro Victorino.
O rancho não era mais do que o prolongamento da garapeira, com a qual tinha comunicação interior. Era, como
são tais pontos, apenas envarado até meia altura e coberto de telhas. De um lado estava a longa manjedoura em que os
cavalos dos rancheiros passavam a noite aproveitando, de mistura com alguns pés de capim, cortados de tarde, os talos e
retraços que nela tinham deixado os cavalos dos rancheiros na noite anterior. Do outro lado o alpendre mostrava-se
inteiramente livre, como convinha, a fim de terem os hospedes espaço para as suas redes, que eles armavam de um
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
enchamel para outro, e donde a qualquer hora da noite podiam ver os seus animais alguns passos de distância, comendo
se havia o que, ou estudando como muitas vezes acontecia. O dono da garapeira, responsável pela segurança dos
animais, fechava as portas do puxado quando via os rancheiros recolhidos, e só reaparecia ai de madrugadinha para
receber destes a respectiva paga. Muitas vezes, estava ele ainda deitado quando ouvia uma voz que lhe dizia:
- Aqui fica o dinheiro, seu Ignacio.
Era a voz do rancheiro, o qual punha por baixo da porta a quantia devida. Nunca nenhum se ausentou sem ter primeiro
cumprido o seu dever, com a proverbial probidade do matuto e do sertanejo do norte.
No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de
algodão – eis em que ele consistia.
Todos tinham os pés nus, e quase todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portátil onde
traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para dar muitas voltas em torno da
cintura antes do laço final. Metida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha.
Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo oculto.
Já era noite, e dentro do rancho lançava crepuscular claridade o candeeiro de azeite, que pendia, por uma corda
corrediça, de um dos caibros da coberta.
Alguns dos rancheiros estavam com as mangas arregaçadas como se foram prestes para entrar em pugilato de
vida e morte.
E de feito não era de outro gênero o mister ou a luta que os ajuntara ali, uns de pé, outros inclinados sobre a
barriga, todos com as vistas concentradas na superfície do fardo, onde uma taboa se pusera para servir de base a dois
braços diferentes que nesse momento se alçaram e logo após se uniram pelas mãos, ficando firmes sobre os cotovelos.
Um dos pegadores da queda-de-braço chamava-se Manoel Francisco; o outro era o Victorino. A queda-de-braço era já
nesse tempo em grande uso entre os almocreves do norte.
Manoel Francisco era acaboclado, feio, baixo, grosso e reforçado; Victorino procedia de mulata e mameluco,
era seco,, nervoso e de semblante bem assombrado.
- Sustenta o motivo, Mané Francisco, senão Victorino te lambe – disse um dos circunstantes, quando viu os
braços inimigos se entesarem e ouviu o fardo ranger aos primeiros ensaios das duas forças que se experimentavam e
mediam para uma grande luta, posto que dentro de acanhada arena.
- Este braço que estão vendo – respondeu Manoel Francisco – tem botado abaixo enquanto o inimigo esfrega
um olho, muito curema rebingudo das ribeiras do Ceará e do Piauí.
- Agora é que havemos de ver ele para quanto presta, e se tudo isto o que você está dizendo não passa de uma
história, retorquiu Victorino. Quando quiser cair, diga.
- Se você é homem, mostre agora o seu talento – replicou Manoel Francisco, retesando o braço, como quem
queria entrar sem detença no momento decisivo.
Pegaram-se definitivamente os dois atletas.
O braço de Manoel Francisco dava dois do de Victorino; mas a resistência que encontrou neste, fez que não
passasse nem uma linha da posição em que de principio se colocara. Eram duas pirâmides pétreas, imóveis, inabaláveis,
uma talhada para competir com a outra na rijeza e na resistência.
A queda-de-braço tem graça justamente quando os lutadores medem forças iguais. Dá-se então o que é natural
de pleitos idênticos. Dividem-se as opiniões sobre a probabilidades da vitoria. Uns, levando em conta as condições
físicas dos combatentes, não hesitam em decretar, para o que lhes parece mais favorecido de tais circunstancias, as
honras da peleja; outros publicam que essas honras hão de caber, não a este mas àquele contendor, autorizados por
precedentes ou por outros muitos elementos de indução e convicção. Fora da arena dos pelejadores reais, forma-se uma
arena em que começam de porfiar os assistentes á pugna, discutindo, altercando, apostando cada qual pelo que supõe ter
por se mais probabilidades para o vencimento.
Foi o que se deu no rancho logo depois de se terem colocado defronte um do outro, ficando o fardo de permeio,
o Victorino e o Manoel Francisco.
Ao cabo de alguns minutos, que bastaram a trazer os contendores cobertos de suor pelo esforço despendido, e
antes deste pelo brio empenhado no jogo de honra, disse um dos rancheiros:
- Já você está sabendo, Mané Francisco, que o Victorino não é quem você julgava.
Ora que tem isso? retrucou o que se achava mais próximo do que acabava de falar. Ha de cair como os outros; não há
santos que o acudam.
- Deixe-se disso, Renovato, deixe-se disso. Você não vê que ambos eles são dois cabras de talento?
Sim, é verdade; mas você não dá o desconto. Olhe que Mané Francisco já tinha pegado com Damião e Thomaz, e a
todos botou por terra.
- Ele me botou, é verdade – acudiu Thomaz despeitado; mas de outra feita talvez não tenha a mesma felicidade.
Olhe como o braço já lhe está tremendo, batido por Victorino.
- Aquilo é um peneirado que ele sabe.
- Sustenta o motivo, Mané Francisco – gritou Damião ao que minutos antes o tinha derribado.
- A coisa está feia. O que cair para a aguardente.
- E o rancho.
- Está dito.
Caiu, caiu, Mané Francisco! Gritaram neste ponto muitas vozes, formando uma algazarra imensa, que repercutiu fora do
alpendre.
ads:
- Ainda não, ainda não – retorquiram outros no mesmo diapasão.
- Não foi mais do que uma negaça. Vejam lá como se levanta.
De feito o caboclo, depois de derreado quase inteiramente o braço, o levantara lentamente até á altura em que
se achavam no começo da luta: mas dai não passou.
- Quem vence? perguntou um, logo que viu novamente restabelecidas a indecisão e a duvida.
Nenhum vence – respondeu Francisco. Está visto que Mané Francisco e Victorino têm as forças iguais.
- Não, senhor. É preciso ir até ao fim. Um deles há de poder com o outro.
- Não, não; disseram alguns da opinião de Francisco. Têm as forças iguais, está acabado.
Eu não me levanto se Victorino não se levanta – disse Manoel Francisco a modo de contrariado por ter encontrado no
contendor força com que não contara. Eu não me levantarei senão depois da sua queda – respondeu Victorino sem se
alterar, antes com evidente serenidade.
- Levantam-se ambos, que já é tarde, e vem por ai o Valentão-do-Timbaúba.
O Valentão-do-Timbaúba! exclamaram os rancheiros, pondo-se de pé, inclusivamente os dois lutadores, que se
separaram e com a vista percorreram como sobressaltados todo o âmbito do alpendre.
- Quem disse que ele vem ai? perguntou Victorino.
- Digo eu – respondeu Francisco. Por isso é preciso estar preparado para o receber.
Se vier, há de encontrar gente. Somos onze. Não há de chegar um pedacinho dele para cada um de nós.
Pelo sim, pelo não – disse Thomaz – vou pôr nova escorva na minha espingarda. Vendo Thomaz encaminhar-se para o
lugar onde estava encostada a arma a que aludira, Francisco rindo, atirou-se dentro da rede e disse aos companheiros
ainda sobressaltados:
- Qual valentão, nem meio valentão! Rezem-lhe pela alma.
- Ele morreu?
- Morreu, sim senhor, e ficou bem morto.
- Você está gracejando, Francisco.
- Estou falando serio. Vou contar como o caso foi.
O Valentão-da-Timbaúba era um malfeitor que por aquele tempo cometi roubos e assassinatos na redondeza de muitas
léguas de Pasmado. Esta alcunha foi-lhe dada pelo povo. Seu nome era Valentim. Não teve a fama extensa do
Cabeleira, ao qual foi muito inferior na índole natural, na coragem e no físico; mas no pequeno teatro das suas façanhas
adquiriu tamanha celebridade, especialmente nos ranchos, que de seu nome e feitos ainda hoje restam ai lembranças
enlutadas.
Era mais ladrão do que assassino; usava primeiro o subterfúgio, o laço, a astucia, que a arma mortífera; mas,
quando a manha não bastava, ou quando era surpreendido antes do resultado em que pusera a mira, então o
encontravam facinoroso, cruel. Esfaqueava, matava, contanto que se apossasse do alheio que excitará a sua cobiça.
Era cabra-negro, magro, anguloso. Tinha os olhos vermelhos, as orelhas largas, o queixo fino, a barba
espalhada e carapinha. Havia nele alguma coisa do vampiro. Mas a voz, que aliás era áspera e estridente, ele adocicava
e abemolava por tal jeito que quem o não conhecesse, o teria por inofensivo e lhe daria esmola se ele a pedisse, o que
muitas vezes praticou para se disfarçar.
Em luta pessoal com outro valentão, recebera deste uma facada no olho direito. De outra vez levou-o ás portas
da morte um tiro que lhe desfechará sobre a perna esquerda certo sertanejo, a quem roubará objetos de valor, e de cujas
mãos conseguiu escapar, não obstante o ferimento. Resultou destes desastres ficar torto e coxo, o que se por um lado lhe
diminuiu as faculdades do movimento e da inspeção, lhe aumentou pelo outro os meios e pretextos de iludir e explorar a
credulidade dos transeuntes.
Morava ele em uma palhoça que distava três a quatro léguas de Maricota, obscura povoação que o forte
combate de que em 1848 foi cenário, entre as forças praieiras e as do governo, tornou ilustre e histórica.
Valentim levantará de intenção sua morada naquelas alturas para comodidade nos seus latrocínios.
O comboio que por ali passava duas ou três horas antes do pôr do sol, tinha de sujeitar-se a uma destas duas
alternativas: ou pedia rancho na própria casa do malfeitor e pagava caro a hospedagem, deixando de ordinário um
cavalo, uma saca de lã, uma barrica de açúcar ou de bacalhau, que no dia seguinte nenhum esforço, por maior que fosse,
era bastante a descobrir; ou ia descarregar adiante; á sombra de alguma arvore, e o tributo vinha a ser mais pesado ainda
do que o primeiro, visto que, por escusas veredas, o ladrão ia ter ao rancho, e em vez de um, trazia dois ou três cavalos,
duas ou três sacas, enfim muitos objetos de grande valor. Valentim vingava-se com usura de quem procurava escusar-se
ao tributo que ele cobrava no deserto.
É curioso o estratagema que ao principio usava para enganar a vigilância e a simplicidade dos rancheiros.
A’hora que conjeturava estarem todos já deitados, aparecia no pouso sorrateiramente e com voz melíflua e
vagarosa dizia estas palavras, que erambem pouco tempo tradicionais naqueles caminhos:
- Coitados dos comboieiros! Como estão enfadados!
Assim falando e repetindo sempre com razoáveis intervalos, estes fingidos e traiçoeiros dós, metia-se por entre as redes
dos rancheiros, muitas vezes passando de leve a mão esquerda por cima deles, enquanto com a direita apanhava muito
naturalmente as esporas ou a faca aparelhada de prata, a maca onde vinha o melhor fato e alguma vez jóias preciosas e
dinheiro, o relógio, que descansava sobre uma mala, o gibão novo que estava pendente do galho da arvore ou do punho
da rede.
Tal era aquele cujo fim trágico Francisco se propôs contar aos companheiros.
Para melhor ouvirem a narração, reuniram-se os matutos ao pé do narrador, uns fumando em cachimbos de
barro, outros comendo da matalotagem que traziam em mochilas de algodão ainda hoje em uso entre esta espécie de
gente por ocasião de suas jornadas.
II
Francisco principiou assim:
- O sol estava a sumir-se, quando ouvimos, já arranchados ao pé da oiticica ramalhuda, que fica adiante da casa
de Valentim obra de duas léguas, uns gemidos e uns queixumes que cortavam o coração a quem os escutava.
- Quem me socorre? Cristãos, filhos de Deus, acudi-me – dizia a voz: Ai que dor! Não tenho quem me meta a
vela na mão. Ai que morro neste mato sem ter quem me chame pelo nome de Jesus.
Seu sargento-mór João da Cunha, com quem eu vinha de Goiana, e que era o dono do comboio, - se por informações,
ou por prevenção, não o sei bem dizer, viu logo no afligido um velhaco; e quando, assim que chegou aonde nós
estávamos, arrastando-se com muito trabalho e gemendo sempre, ele lhe pediu, com voz sumida um lugar entre os
arreios para passar a noite junto de quem o pudesse ajudar na hora de morte, reconheceu no pobre o Valentão-da-
Timbaúba. Todos nós o reconhecemos também pelo olho furado e a perna quebrada.
- Estou pronto a consentir que você pernoite entre nós, mas há de ser com uma condição, - disse-lhe seu
sargento-mór. Valentim respondeu: Farei tudo o que vossa senhoria ordenar, contanto que me deixe morrer entre filhos
de Deus.
Você há de dormir amarrado pelas mãos do Francisco debaixo de minhas vistas no tronco desta oiticica.
- Ai meu senhor! tornou Valentim. Compadeça-se do pobre enfermo. A ninguém ofendi nesta vida para
merecer tanta crueza.
- Se não lhe serve a condição, vá morrer longe daqui enquanto é cedo.
A estas palavras de seu João da Cunha, Valentim afastou-se do lugar sem mais demora, gemendo mais do que dantes.
Todos nós fizemos tenção de não pregar olho essa noite, mas o enfado da viagem tinha vencido a todos algumas horas
depois. Só quem não dormiu foi seu sargento-mór, que para fazer crer que estava deitado, mandou pôr dentro da rede
dele um surrão carregado, e junto dela, entre duas caixas de fazenda, se sentou escondido como quem fazia tocaia a
veado, esperando pelo ladrão, com o bacamarte armado, por cima da caixa que lhe ficava na frente.
Quando foi lá pelas tantas, um vulto veio tomando chegada pé ante pé. Estava nu da cintura para cima. Tinha
as calças arregaçadas e trazia uma arma de fogo na mão. Quando o ladrão ia a por a mão no cabresto de um dos animais
que estavam comendo milho nos embornais defronte da oiticica, seu sargento-mór desabrochou-lhe fogo. Todo o rancho
acordou atordoado e ganhou mão das armas. Eu fui o primeiro que corri ao ponto onde estavam os animais. Faltava um,
e o ladrão tinha desaparecido. Seu sargento-mór ficou muito zangado com a perda do seu cavalo, e ainda mais por Ter
errado o tiro. Mas que se havia de fazer?
- Gosto de um cabra danado assim como o Valentim! disse um dos matutos que ouviam a
narração.
- É verdade, disseram outros. Fez o que quis, e acabou antes do amanhecer.
Sim, mas, quando amanheceu – prosseguiu Francisco – e se viu o rastilho de sangue que ele foi deixando pelo caminho
afora, seu sargento-mór mandou que eu e Mameluco, seu pagem de confiança, montássemos nos melhores cavalos e lhe
fizéssemos companhia, guiados pelo rastilho, em busca do Valentão.
O comboio seguiu para o sul, e nós tiramos para o poente. Pouco adiante o rastilho perdeu-se no mato; mas nós
entramos por ele, e fomos dar em um riacho.
Ai, bem na beira, debaixo de uma emburana, estava o cabra.
- Acaba de matar este negro! Disse seu sargento-mór a Mameluco.
Mas, não foi preciso fazer nada mais. Valentim estava morto.
Assim acabou o Valentão-da-Timbaúba. Podemos, por isso, dormir todos sem susto que ninguém mais nos há de vir
inquietar durante a noite. Tomando o conselho de Francisco, que, por sua idade e prudência, parecia exercer sobre os
companheiros legitima influencia, tranqüilos e serenos estes meteram-se em suas redes e pouco depois estavam
ressonando profundamente.
Como visse o rancho em silêncio, o velho Ignacio apagou o candeeiro e retirou-se a seus aposentos, não sem ter
primeiro fechado todas as portas, com excepção da de entrada, que de costume ficava sempre aberta para a qualquer
hora da noite se recolherem os viageiros que não podiam chegar mais cedo.
Não havia luar, mais a noite estava clara. As estrelas cintilavam com a luz suave que elas têm no deserto ou
nos lugares onde não há, para quebrarem sua branda claridade, as iluminações publicas.
Seriam nove horas quando de junto das cangalhas e cargas que estavam atiradas a um canto de rancho, rumor
suspeito se fez ouvir distintamente por Francisco a quem ainda o sono não tinha dado a respirar os seus deliciosos
narcóticos.
Francisco era prevenido, e armará a rede perto da entrada que estava livre. Ouvindo o ruído e tendo certeza de
que pela porta donde ele guardava, como cão fiel, a casa adormecida, não pressentirá entrar ai viva alma, sentou-se tão
cautelosamente como pôde na rede, e dai volveu vistas perscrutadoras ao lugar donde lhe chegavam os sons suspeitos.
Não fossem resultado a sua inspeção. Um vulto rastejava por entre os objetos lançados a esmo no fundo do alpendre.
Quem era? Por onde entrará quem quer que era?
Estas interrogações apresentaram-se logo no espirito do matuto, que por impressão de natural superstição
julgou ver na forma vaga e indecisa que se agitava sorrateiramente, senão o Valentão-da-Timbaúba, ao menos o seu
espectro ou a sua alma malfazeja.
O vulto semelhava um cão e, a uso deste animal, andava sobre quatro pés, posto que lentamente, acusando a
intenção de iludir, pela brandura dos movimentos, o sono dos incautos.
Francisco, depois de detida observação, convenceu-se enfim de que o desconhecido era vivente e arrastava
consigo um volume tirado da bagagem comum.
Então todos os espíritos, um momento esmorecidos e vacilantes, voltaram a Francisco por ventura mais fortes e
viris que dantes. Quem estava ali não podia ser senão um ladrão, um sucessor de Valentim no ignóbil e torpe oficio de
defraudar os inofensivos viageiros, justamente quando, em lugar ermo e estranho, mais direito tinham á boa
hospedagem dos moradores.
Desceu-se de manso e manso da rede, armou-se cum sua faca que ele tinha metido entre as pontas de uma ripa,
que vinha morrer no portal mais próximo, e em vez de ir no encalço do desconhecido quando este desapareceu por traz
de um montão de cangalhas, rodeou por fora a garapeira, e correu ao seu encontro do lado da cavalariça na altura em
que presumiu teria ele de sair.
Este não se fez esperar; e o matuto calculara com tanta exatidão a distancia que se metia entre se e ele, que foi
inclinar-se ao pé da própria abertura do envaramento por onde em menos de um minuto o estranho visitante poz a
cabeça de fora.
Cair-lhe então com as mãos sobre o pescoço, tendo a faca atravessada na boca, foi ação que Francisco obrou
em um abrir e fechar d’olhos.
- Damião, Victorino, seu Ignacio, acudam cá sem demora, que o cabra está pegado, e bem pegado! gritou o
matuto com quantas forças tinha em si.
Um tiro que se tivesse desfechado subitamente naquele ponto, não produziria tão grande arruido e sobressalto
como a voz de Francisco alterada pelo inopinado do acontecimento e pelo esforço usado contra o desconhecido.
Tontos do sono e da surpresa, apresentam-se os rancheiros prontamente no lugar da ação. Enquanto uns
rodeavam a casa, outros passavam do outro lado através das varas. Este vem com a faca descascada, aquele com a
pistola armada, seu companheiro com a catana, o outro com o facão, prestes todos eles a cair sobre o invasor.
Entretanto o ladrão, quase todo de fora, não obstante a força empregada por Francisco para o Ter seguro entre
os pés dos enchameis, debatia-se com tal violência e animo, que nas mãos de outrem que não fora Francisco, já teria
logrado escapar-se.
Senão quando apresenta-se o dono da garapeira, trazendo acesa a candeia da sua serventia. O ladrão já safo e
de pé lutava corpo a corpo com Francisco, despendendo hercúleos esforços a fim de fugir de suas unhas.
Quando a luz esclareceu o recinto do conflito, geral foi o espanto dos circunstantes.
Olhando para seu contendor, Francisco sentiu-se cobrir de vergonha e tristeza. Aquela luta ingente tinha sido
sustentada com ele por um rapazito que não representava mais de doze anos.
Entretanto estava ali um Hércules. Aquele braço teria botado abaixo os de Manoel Francisco e de Victorino
reunidos, visto que tinha podido com os de Francisco, que era apontado em todos os ranchos, desde Goiana até o
Recife, como o primeiro pegador de queda-de-braço daquelas alturas.
- Lourenço! Demônio! Ladrão sem vergonha! Exclamou enfurecido o velho Ignacio, os olhos postos no ator
principal daquela cena de desordem e escanlado. Quando quererás entrar no bom caminho, coisa ruim e desprezível?
Soltem-me. Quero ir-me embora – respondeu Lourenço, rugindo de raiva, e revolvendo-se entre os braços dos matutos a
quem Francisco o tinha abandonado logo que reconheceu nele os anos infantis que na escuridão o fizeram ter por forte e
varonil atleta.
Que menino! disse Francisco, correndo-o com a vista de cima a baixo. Tem força que nem um touro.
Assim é que eu gosto de ver um cabrinha bom – disse Victorino. Sem pau nem pedra está dando que fazer a todos nós.
De feito Lourenço atirava-se ora para um, ora para outro; investia contra este; atracava-se com aquele, por fugir do
circulo em que o tinham como encurralado os rancheiros.
- Isto é o demônio do Pasmado – acrescentou Ignacio. Não há por aqui quem não tenha o que dizer desta
perversa criatura. Eu, que sou eu, tenho-lhe respeito, porque, mais dia, menos dia, se não lhe tiverem mão, virá a melar
o Valentão-da-Timbaúba.
- Soltem-me, deixem-me passar, senão mato a um – disse Lourenço, já fatigado, mas cada vez mais enfurecido
da resistência que se opunha à sua vontade serpentina.
- Pega nele, Victorino – disse Francisco. Quero leva-lo comigo para casa. Quero ensina-lo hei de aproveitar-
lhes as forças no cabo do machado e da enxada. Há de dar para um perfeito homem do campo. Assim os pais estejam
pelo que eu quero.
- Pai foi coisa que ele não conheceu – observou Ignacio.
- E mãe? Perguntou Francisco.
A mãe era a Bilóca, falecida há dois para três anos. Esta oncinha, que já então tinha mostrado para quanto havia de dar,
quebrando as pernas dos cachorros a pedradas, furando com o espeto quente os porcos de casa a ver se lhes derretia o
toucinho, segundo ele mesmo dizia, e pondo carvões abrasados na rede onde dormia um irmão menor que veio a morrer
desta e de outras malindades, ficou depois da morte dela ao desamparo. Tantas tinha feito, que não houve aqui alma
caridosa que não temesse te-lo perto de si. O mais compadecido de todos os moradores, a velha Aninha, recolheu-o um
dia em sua palhoça. Pelo correr da noite acordou debaixo de labaredas. Lourenço tinha posto fogo na casa da velha.
Desde então todos fogem dele, até o vigário que ao principio foi muito por ele e lhe deu de comer e de vestir. Lourenço
vive agora vagando pelas ruas judiando com os animais, furtando e roubando, como vocês acabam de ver.
- Este menino só enforcado pagará o mal que tem feito – disse Damião.
Pois se ninguém o quer, levo-o eu comigo. Faço esta obra de caridade, e fico bem satisfeito com isso, porque ele suprirá
a falta que tenho de um filho para me ajudar. Queres ir comigo, Lourenço? Perguntou Francisco ao rapazito.
- Não vou com ninguém. Não sairei daqui.
- Hás de ir.
- Eu lhe mostro se vou.
- Eu te mostrarei se não vás – retorquiu o matuto.
E voltando-se para o velho Ignacio, acrescentou:
- Tranque-me o menino em sua casa enquanto amanhece. Pago-lhe o dobro do rancho.
Deus me livre – disse o velho. Se ele me cai dentro de casa tudo me arde como carvão em forja de ferreiro. Nem que me
dê cincoenta cruzados.
Se fazes gosto em leva-lo contigo, amarramos o rapaz em um enchamel, como seu sargento-mór queria fazer com o
Valentim.
Lourenço rugiu e disse:
- Soltem-me, porcos.
- Guarde-me o menino por esta noite, seu Ignacio – tornou Francisco. Pago-lhe bem.
- Peça-me tudo, menos isso. Ele em me achando dormindo, era capaz de sangrar-me.
- Pois não durma. Tenha-o debaixo das vistas para de madrugadinha restituir-mo
Como se calasse o velho, Francisco, tomando o seu silencio por aquiescência, fez sinal a Victorino e Damião
para que o conduzissem á garapeira.
Os dois matutos agarraram-no com quantas forças tinham; mas antes de chegarem á porta viram-se obrigados a
larga-lo, porque Lourenço a um tinha posto os braços em sangue, e sobre o outro desandará tamanho coice no
estômago, que lhe tirou o animo para levar a efeito a empresa.
- Vejam só, vejam só – acudiu o velho Ignacio. Não lhes disse? Lá dentro não me pisa esta fera. Nada. Nem
por Santo-Antonio. Se dois homens moços não podem com ele, que direi eu?
Querem saber de uma coisa? Inquiriu Francisco a cabo de um momento. Largo-me agora mesmo com ele por estes
caminhos. Vamos, Victorino?
- Agora de noite?
- Que é que tem? A lua não tarda a nascer. Olhe já o clarão dela por cima da mata. Vamos. Não percamos
tempo.
Em menos de um quarto de hora Lourenço estava atado com cordas pelas pernas na cangalha e em cima do
cavalo que o devia conduzir para longe do povoado.
- Adeus, adeus, minha gente, disse Francisco aos companheiros que ficavam no ponto. Até nos encontrarmos
outra vez por estas estradas.
- Faça boa viagem, Francisco, disse um deles. Mas fique certo de que você leva sarna para se coçar. Olhe, não
se arrependa.
- A criança é de estouro – acrescentou outro.
- Deus é quem sabe. Muita vez não há de ser assim.
Francisco saltou sobre a garupa do cavalo onde estava Lourenço, que só faltou arrebentar de fúria para a qual não há
qualificação possível.
Victorino, imitando o companheiro, montou no outro animal. Com pouco desapareceram na escuridão.
Francisco ia ruminando consigo em silencio estas idéias:
- Não tenho filho. Tratarei deste desgraçado que não tem quem por ele se doa. Farei conta que é meu filho.
Espero em Deus que me há de ajudar a fazer dele um homem que sirva a gente.
Sem saber explicar como nem porque, Francisco sentia-se satisfeito com o presente que levava á sua mulher,
não obstante os prantos e os uivos de que Lourenço ia enchendo o caminho no ultimo desespero.
III
Uma légua antes de Goiana, a estrada geral que vai do Recife á Paraíba, atravessa um lugar de presente
aumentado, mas ao tempo desta historia apenas formado de uma casa de barro, e duas ou três palhoças espalhadas não
longe dela, por dentro dos matos circunvizinhos, sem regular alinhamento, a uso das casas que, para assim escrevermos,
se improvisam nas entranhas das florestas.
A casa de barro ficava á embocadura da mata de Bujari, a qual por então tinha, não como hoje, meia légua, mas
quase uma de comprido. O lugar supramencionado, já nesse tempo aprazível e risonho, era alguns anos antes um como
prolongamento dessa mata, menos fechado – é certo - , mas não menos ermo e desabitado do que ela. De um cajueiro
velho que se mostrava, na beira do caminho, ao que saia da espessura, adveio-lhe o nome, que hoje designa o lugar, e
tem por se a autoridade da consagração do povo e do tempo.
Fizera-se subitamente a transformação daquela seção da floresta como nos contos antigos mudam as situações
ao puro querer de um gênio ou de uma fada. Eis como a coisa se deu.
Um matuto passando por ali, de jornada para Tejucupapo, ficou encantado pela amenidade e beleza da
situação. Do cajueiro para dentro estendia-se larga planície coberta de arvores meãs, sombrias e graciosas. Em arvores
semelhantes há algum tanto das donzelas faceiras e namoradas com que se arreiam os salões e que são as graças
mimosas do lar. Era o intermédio entre a espessura úmida e medonha, e a campina nua, fresca, monótona, que se seguia
á planície adornada com a vegetação moderada e pitoresca. Emgim era, em escala ascendente, a transição natural para a
mata virgem.
Na volta entendeu-se o matuto (que não era outro senão Francisco) com o senhor do engenho Bujari a quem as
terras pertenciam, e que consentiu em que ele levantasse casa de morada e abrisse roçado.
Francisco cortou madeiras, aparelhou-as e arrumou a casa ao pé do cajueiro. Havia barro perto. As palmeiras
mais formosas daquela zona estavam agitando suas longas folhas verde-negras na espessura vizinha. Enfim, em menos
de uma semana, aqueles que, de passagem para o Recife, tinham visto a casa apenas envarada ou encaibrada, vinham
encontra-la agora fechada e coberta; e os que, tendo passado por ali antes destes últimos, voltavam ao mesmo tempo
que eles da capital, ficavam admirados e satisfeitos de verem uma habitação nova e risonha, onde quinze dias atrás
tinham deixado a solidão e o mato fechado.
Esta novidade era obra das mãos abençoadas de Francisco, homem de trabalho e paciência.
Forte de constituição física; ajudado, senão animado, pela energia de seu espirito; afeito desde os mais verdes
anos a ganhar pela força de vontade, que era o seu primeiro dote natural, a vida honesta, os dias suados mas tranqüilos,
as noites sem remorso, o sono solto e largo, estava o matuto habilitado a levar efeito prodígios semelhantes, e outros
ainda maiores e mais admiráveis.
Francisco era semi-branco, corpulento, espadaúdo e de boa estatura. Tinha no semblante a expressão da
virilidade e da resignação do que luta quase incessantemente com a pobreza, e a vence a pouco, por ventura mais forte,
mas nunca invencível.
Os matutos podem dividir-se em diferentes espécies, mas as mais comuns são as dos lavradores e almocreves.
Os primeiros são os que dispõem de alguns meios, a saber, escravos, cavalos, terras, os quais sem darem para ter um
engenho ou, ao menos, para move-lo, por se sós habilitam o que os possuem, a cultivar a cana nas terras do engenho
alheio, posto que sujeito a dividir com o respectivo proprietário o açúcar apurado em cada safra. Os últimos são os que
se alugam com sua pessoa e seu cavalo para a condução de cargas, por ajustado frete. Os lavradores são matutos limpos,
que entram muitas vezes nos negócios íntimos do grande proprietário, merecem a estima deles, a pesam com seu
conselho na decisão dos interesses comuns. Aos almocreves já não sucede o mesmo. Paga-lhes o senhor de engenho o
salário, e eles retiram-se a seus casebres onde vão comer, com a mulher e com a ninhada de filhos que ordinariamente
contam, o escasso pão que lhes deram o cavalo magro e o trabalho puxado e cansado.
E pois o cavalo é, para assim escrevermos, a primeira riqueza do almocreve, visto que por ele é que vem a sua
sustentação e a de sua família; ter um cavalo é a primeira aspiração do pobre no mato. O almocreve não vota mais afeto
á sua mulher do que a seu animal. Por ele dá muitas vezes a vida. Para o reaver, se lho furtam, vai ao fim do mundo e
mata o ladrão.
Quando o almocreve, firmando-se pelos dois primeiros dedos do pé, sempre descalço, sobre a raiz da curva da
perna do seu cavalo, ganha de um pulo a cangalha, se ele está descarregado, ou a anca se o animal tem carga, considera-
se mais feliz e garboso do que um general de mil batalhas. A seus olhos aquela altura que o homem de pé atinge com a
mão, lhe parece superior a todo poder humano. Dai não teme o agente da autoridade publica, nem o golpe ou o tiro
mortal que lhe desfechem. Reputa-se inacessível a todos os males da terra. Entre suas pernas, querendo-o ele, o cavalo é
uma locomotiva que se perde na imensidade dos caminhos ou dos descampados; é a faisca elétrica que corre terra a
terra e desaparece, rompendo fechados e abatendo folhagens, na massa densa e sombria das selvas. O touro afasta-se, a
onça recua, para o deixar passar livremente na vertiginosa carreira.
De ordinário, porém, a marcha do animal do almocreve não sai do rojão de todo dia. Tendo sempre presente na
lembrança o muito que lhe custou ganhar o seu precioso bem, poupa-lhe as forças quanto pôde, e só em caso
extraordinário exige dele a corrida afanosa, os saltos súbitos, o galope, o cansativo esquipar.
Do numero dos almocreves saem os cantadores e os repentistas, que, não obstante as privações ordinárias de
sua vida quase errante, têm dias de consolação e regozijo.
Pelas festas do ano ajuntam-se na casa dos camaradas para cantar, dançar e beber.
A esses saráos campestres, conhecidos por sambas, não faltam as moças mais desembaraçadas das vizinhanças,
- fadas da roça, que com suas chinelas de marroquim, seus vestidos de chita ou de cassa de florões, nos lábios, que
estão a verter sangue e frescura, o riso vergonhoso e a promessa duvidosa, os cabelos enastrados de jasmins,
manjericões e malmequeres, dão alma a pastoris episódios, a curiosos melodramas e muitas vezes a tragédias medonhas
e fatais. Algumas delas mais desgarradas trazem os seios mal cobertos por vistosos cabeções de que pendem, não sem
acertadas combinações e fantasias, bicos e rendas bem feitas e elegantes.
Tais festas têm o seu lado bom e providencial, - fazem esquecer as magoas passadas e as privações presentes.
O primeiro e o mais proveitoso resultado delas é o seguinte: diminuem a estatística dos crimes graves e infamantes.
Pobres matutos!
Quantas vezes, ao ver-vos descalços, mal vestidos e mal passados, não senti apertar-se-me o coração com pena
de vós?! Esta pena redobrava sempre que, passando pela frente dos vossos casebres, eu descobria ai por mobília um
banco tosco, uma caixa grosseira, um pote de água suspenso entre os braços de uma forquilha enterrada no canto da
salinha, e por leito de dormida para vós e vossos filhinhos uma esteira ou um giráo de varas!
Então eu compreendia a razão por que em nossos encontros nos caminhos éreis vós os primeiros que tiráveis o
vosso chapéu e me salváveis com mostras de profunda humildade, sem saberdes sequer quem eu era. É que vós tínheis
sempre presente no entendimento a consciência da vossa pobreza e consequentemente vossa fraqueza. Esta consciência,
este aguilhão intimo, que nunca se embota, vos dava uma falsa idéia de superioridade de minha parte sobre vós. Pobres
criaturas sois vós, ó matutos, mais dignos de compaixão e amparo do que do riso mofador de que vos fazem alvo os que
na ignorância, na simplicidade e na miséria alheia acham assumpto para desenfado e divertimento próprio! Pobres sois
vós dobradamente: porque recebestes de vossos pais por herança esta lamentável condição, e porque não podeis deixar
em dote a vossos filhos condição diferente desta!
Francisco pertencia – é verdade – á classe dos almocreves; mas tinha seu cavalo, que não era qualquer, antes
pelo contrario, era passeiro, carregava baixo e esquipava tão maciamente que quem nele ia, levava a ilusão de que era
conduzido e embalado em uma rede.
Entremeava o oficio de almocreve com o de trabalhador de campo. Tinha mesmo plantações, posto que fracas.
Por felicidade sua casará com Marcelina, cabocla ainda nova das proximidades da Alhandra, trabalhadeira
poupona e ajuntadeira, que com as escassas economias de suas industrias ajudava o marido a achar a felicidade no seio
da pobreza, e guardava a idéia de libertar-se deste estado ás custas do seu esforço.
Tempos depois de mudado de Cruangi, onde ao principio morou, para o seu sitio do Cajueiro, nome que ficou
pertencendo não só ao sitio mas ao lugar de que Francisco foi o fundador, teve ele umas maleitas tremedeiras na força
de rigoroso inverno. A moléstia pegou-o desprevenido, sem vintém nem dez réis, como diz o povo – ilustre saibo que
versa a ciência da linguagem com autoridade e propriedade que lhe invejam os sábios de maior conta.
Mas durante ela nunca lhe faltaram remédios nem dietas: Marcelina supria as faltas e a casa com admirável
prontidão.
- Donde lhe veio dinheiro para tudo isto? Perguntou uma vez Francisco á sua mulher.
E os cestos que laço não haviam de dar dinheiro? Respondeu-lhe ela com graciosa e móvel expressão. Veja estas
rodilhas de cipó que comprei ontem. Chegam para uma dúzia de cestos. Logo que estiverem prontos, não há de faltar
quem os queira. Os outros, que pendurei da banda de fora, não levaram uma semana a ser vendidos.
- Ora, Marcelina, disse o marido com manifesto pesar. Para que se cansa tanto? Eu quero muito bem a meu
cavalo, mas vai um cavalo hoje, virá outro amanhã. Por isso sou de parecer que, em lugar de estar a trabalhar tanto para
a casa, veja antes se alguém quer comprar o pedrez. Ele está em boas carnes e pôde achar bom dinheiro.
- Quem? O seu cavalo pedrez? Vende-lo? Não, senhor, que você precisia dele para quando ficar bom. Você
mesmo bem sabe que um cavalo não vem assim tão depressa camo está dizendo. Não estamos ainda em ponto de vender
o nosso único bem para remir as nossas necessidades, Deus louvado.
- Deus mesmo havia sempre de ajudar-me a comprar outro.
Mas que necessidade temos nós de nos desfazermos do animalzinho? Só se eu estivesse doida o venderia. Deus me
livre.
Não tinha medidas o amor que Francisco votava a Marcelina, exclusiva possuidora do seu coração.
Os matutos não casam por mera conveniência. Suas uniões, ordinariamente precoces, não deixam por isso, em
regra, de ter o principal fundamento na estima reciproca daqueles que as contraem. Grandes desgraças têm procedido
das junções prematuras, mas no mato não constituem a regra geral. Ao reverso, tais junções são principio de moralidade
no lar e no povoado matuto, porque, despertando cedo no homem os afetos conjugais e paternais, enfreiam e moderam,
antes das erupções naturais dos primeiros anos, as paixões juvenis, que, quando de todo soltas, têm arrojos
inconvenientes e efeitos desastrosos.
A paixão que Marcelina inspirará a Francisco, se tinha serenado, como sucede a cabo de certo tempo a todos os
sentimentos, ainda aos mais veementes e exaltados, não arrefecera, antes se apurara com as mil retribuições do coração
da cabocla, nunca brandamente estremecido ou amorosamente agitado senão pelo matuto.
Mas a infelicidade é fatalmente na essência humana. Ainda no meio das mais intemeratas serenidades, a idéia
de poder ser de um momento para outro desgraçado punge o homem e o faz reputar as venturas por ilusões, cujo
principal efeito é aguar-lhe os gostos no melhor deles e entristece-lo, quando não na face – espelho da alma, na
consciência – centro de muitas suspeitas que nascem e morrem ignoradas do mundo, como os musgos interiores das
cavernas inacessíveis.
Marcelina podia ter a esse tempo de vinte e dois a vinte e cinco anos. O tipo caboclo estava nela representado
com opulência e genuinidade. Tez abaçanada, cabelos corridos e pretos, olhos rasos e grandes, cara cheia e redonda,
estatura abaixo da média, formas corretas, mãos e pés pequenos – eis o conjunto harmônico e admirável em que a raça
a mostrava revestida.
Quando Marcelina batia sua roupa no banco que ficava debaixo da meia-agua de palha levantada por Francisco
para resguardar do sol o poço algumas braças da casa de morada, os matutos, que passavam pelo caminho e a não
conheciam, cravavam nela olhares cúpidos, e alguns ás vezes de lá lhe atiravam xêtas que ele fingia não ouvir, ou a que,
se lhe parecia, dava em resposta um muxoxo ou um olhar de mofa e desprezo, pelos quais ficavam sabendo que a
matuta não era do pano que eles supunham.
Muitos deles só retiravam os olhos de sobre ela quando tinham de dar a volta da estrada ou entrar na mata. A
tazão era porque a saia, que Marcelina por essas ocasiões trazia a tiracolo pela enfiadura, lhe punha á mostra o principio
da perna – monumento de estaturia que deixava adivinhar, mas não descobria, os vendados tesouros da perfeição de que
a dotará, por especial capricho, a natureza, mãe tão pródiga para ela como mesquinha para tantas outras.
IV
Uma manhã Francisco, acordando, deu por falta da mulher.
Era muito cedo ainda para o serviço da casa, e fora estava chovendo. O mato, de seu natural sombrio e ermo,
desprazia antes do que convidava naquele momento a quem não fosse obrigado a busca-lo por grande negocio.
No começo da trilha que ia ter á lagoa de presente mudada em terreno de lavoura, mas neste tempo com
bastante água e oculta pelos matos que se levantavam, contornando-a em forma de semicírculo, no lugar onde acabavam
as terras plantadas de abacaxis por Francisco, viu ele atirados a uma banda sobre as ervas os socos grosseiros que sua
mulher usava em casa.
Pareceu-lhe claro que ela os tinha deixado ali para ter mais ligeiro e pronto o passo ao lugar aonde se dirigia.
Antes disso já tinha chamado por ela do lado da estrada; mas só teve em resposta o eco de suas próprias
palavras.
Tendo agora a prova de que ela tomará direção oposta, cruel suspeita atravessou-lhe, sem o menor fundamento,
o espirito, senão o coração, que sobressaltado transbordava inquietações e duvidas.
Sem olhar para seu estado de convalescença, Francisco, que viera da casa até ali abrigado da chuva pelas
folhagens das laranjeiras e dos cajueiros novos do sitio, não hesitou mais um só momento e meteu-se pela trilha, que se
lhe mostrava, agora mais do que nunca, em forma de serpente, pela planície afora. Não era grande a distancia que
separava a lagoa da parte roçada; por isso, dai a pouco se achou ele por traz da renque de arvores que circulava a lagoa e
pôde ter esta debaixo dos olhos, sem deixar a quem quer que fosse possibilidade para vê-lo.
Neste ponto parou Francisco, e poz-se a examinar com a vista de um lado para outro todo o espaço livre até
aonde podia chegar a sua inspeção.
Ninguém estava ali. Sobre a lagoa a chuva fina caia em forma de fumo ou de névoa espessa. Os sapos
coaxavam pela beira d’água, e os jaçanãs soltavam de dentro das moitas aquáticas suas risadinhas de som vibrante e
agudo; tudo o mais era imobilidade e silencio.
Não tendo mais para onde ir, Francisco em cuja imaginação exaltada pela fraqueza física e pelos súbitos
temores, se desenhavam cenas desesperadoras, não pôde acabar consigo que não chamasse novamente pela mulher.
A voz desprendeu-se-lhe irresistivelmente da garganta, e o som das palavras – Marcelina? Marcelina?
Repercutiu pela vasta solidão.
Imediatamente a seus olhos se mostrou uma visão cruel.
Acima dos juncos, que formavam vastos partidos dentro da lagoa, apareceu-lhe uma cabeça coberta com um
chapéu de palha. Um homem estava ali e Marcelina não podia achar-se longe. Talvez já estivesse de volta.
Francisco sobresteve um momento imóvel, como estatua; mas notando que o madrugador tão depressa
levantara a cabeça, como se abaixará e desaparecera no meio do juncal, mergulhou por entre as folhagens que o
ocultavam, e saiu da outra banda no animo de ir por dentro da água até ao ponto onde se sumira o desconhecido.
Quando ia a atirar-se na água, a cabeça reapareceu a seus olhos, e uma voz, reboando por cima das aningas e
dos juncos, foi levar-lhe aos ouvidos estas palavras, em grau de grito e em tom de repreensão:
- Que vem cá fazer, Francisco? Você quer morrer?
Era a voz de Marcelina.
Tanto bastou para que ele não avançasse mais um só passo. Fixando a vista com mais serenidade, reconheceu no
desconhecido sua mulher.
- E você que está fazendo ai metida, com esse tempo todo? Saia dai, que nem sabe os sustos que me causou
com sua ausência.
- Anda você sempre assustado, Francisco! Susto de que? Parece menino.
- Saia já, que eu não posso apanhar chuva.
Agora já não pôde apanhar chuva. Há, instantinhos podia até meter-se na água da lagoa. Parece menino este meu
marido. Já lá vou.
Momentos depois, Marcelina achava-se na margem, a saia a tiracolo, o chapéu de palha na cabeça, os pés
descalços, a perna de fora, sobraçando um alentado feixe de juncos.
- Então acha que só devo trabalhar nos cestos e na limpa dos abacaxis? perguntou ela ao marido, logo que se
achou em terra firme. Vim cortar estes juncos para fazer esteiras de cangalha. Estão dando muito em Goiana, segundo
me disse ontem o compadre Victorino, que até me encomendou umas de que precisa.
Livre do peso que lhe oprimia o coração como se fora uma montanha, não teve Francisco para sua mulher
demonstrações de desagrado nem rudes expressões, antes agradecido á sua solicitude, para a qual não havia solução de
continuidade; seu semblante fez-se de boa sombra, e até um risosinho meigo e terno ensaiou o matuto satisfeito com
esta nova manifestação do gênio essencialmente ativo e previdente daquela com quem repartia o peso da vida.
- Não estranho, Marcelina, disse-lhe ele brandamente. – que você, vendo-me no estado em que me acho, trate
de suprir as faltas da casa aumentando o seu esforço e trabalhando por você e por mim. Mas por que razão não me há
de dizer o que tem de fazer antes de entrar em obra? Que lhe custa isso? Se me tivesse dito o que vinha aqui fazer, eu
não teria saído de casa com risco de recair, estando já quase bom.
- Para que está dizendo isso? Se eu lhe dissesse que vinha cortar juncos na lagoa, você não me deixaria vir. Eu
bem o conheço, Francisco.
- Deixava. Porque não deixava? No que eu não vejo razão foi em esconder-se de mim, quando eu já a tinha
visto.
- Cuidei que não me tinha visto, senão eu tinha logo aparecido. Eu disse comigo: Francisco, não me vendo,
volta para casa, e deixa-me tempo de sair da lagoa nas costas dele.
- Que lembrança esta, Marcelina! Então as ervas não haviam de declarar-me a verdade?
Ora! Eu podia dizer-lhe que as tinha comprado ao Manoel da Hora, como disse quando você perguntou donde tinham
vindo os cipós.
- E então os cipós também foram cortados por você na mata virgem?
Está bom, Francisco; fiquemos nisso. Você tudo quer saber. Vamos já para casa; Deus queira que não lhe voltem as
malditas. Não satisfeito com apanhar esta chuva, ainda queria meter-se na água.
- Marcelina, você faz mal em andar assim só pelos matos. Para que faz isso, meu bem? As vezes aparecem por
estas bandas, malfeitores. Ali dentro havia até bem pouco um couto dos negros fugidos do engenho. Quem sabe se não
estão metidos lá ainda alguns que seu sargento-mór não pôde descobrir?
- Não se lembre disso, Francisco. Quem é que me há de ofender? Os negros? Eles não. Conheço todos e sei que
gostam de mim, porque compro algumas coisas que trazem de seus mucambos. Vamos já, que a chuva está
engrossando.
Assim falando, Francisco e Marcelina meteram-se por sob as folhagens, e com pouco estavam debaixo de
coberta enxuta.
De outravez achava-se Francisco muito a seu salvo, limpando o seu partido de abacaxis, quando ouviu fortes
bateduras na janela da casa.
Receando fosse alguma violência praticada pelos ditos negros, em quem ele, menos crédulo e simples do que
sua mulher, não tinha a menor confiança, poz no ombro a enxada com que estava trabalhando e que, em caso de
necessidade, serviria de arma contra os agressores, e tirou para a casa. Entrou ai agitado e perturbado.
- Hoje voltou muito cedo do serviço – disse-lhe Marcelina.
- Vim correndo ver que pancadas eram estas. Cuidei que, tendo-se você trancado com medo dos negros,
eles, não pensando que eu me achasse aqui por perto, estavam botando a porta abaixo. Você tem
lembranças, Francisco!
Eis a causa dos estrondos, que assustaram o almocreve.
De há muito Marcelina batalhava com o marido para que lhe arranjasse uma taboa, de que dizia ter
grande necessidade. Por esquecimento ou por não lhe sobrar tempo, o matuto estava ainda em falta para com ela.
Naquele dia Marcelina, que, quando tinha qualquer idéia que lhe parecia vantajosa, não descansava enquanto a não
punha por obra, lembrou-se de um meio de realizar sua intenção, sem ser preciso o concurso do marido.
Não a porta, mas a janela da casa achou Francisco fora do seu lugar; só os portais tinham ficado na mesma
posição que dantes. As dobradiças tinham sido mudadas para o batente inferior, a fim de que a porta, em vez de ser
aberta pelo lado, o fosse pela parte superior, e de modo que, cravado da banda de dentro no chão um pau que chegasse
ao nível do primeiro batente, formasse ela, descansando sobre a cabeça do dito pau, um como balcão que pudesse ser
visto por quem passasse pela estrada. O fim de Marcelina, realizando esta mudança, era ter onde expor aos viandantes
frutas, tapiocas e outros produtos do comercio domestico.
Esta pequena industria é muito praticada nos caminhos do norte. Quantas vezes, em minhas digressões pelas
províncias de Pernambuco e Alagoas, não tive ocasião de chegar-me, montado em meu cavalo, ao pé da janela ou do
balcão móvel da casinha pobre, onde se mostravam frutos frescos e sazonados, e de os comprar para neles me desalterar
do calor do sol e do cansaço da jornada!
Não levou a mal Francisco a alteração que a mulher fizera na obra das mãos dele, antes aprovou, com elogios,
a lembrança que lhe dava novo testemunho das faculdades industriais daquela que, como boa e fiel companheira, o
ajudava a tornar fácil e digna a aquisição do pão custoso da pobreza.
- Se me tivesse dito que a taboa que me pedia era para este fim, já eu a teria trazido da vila.
Gosto de fazer as minhas invenções sem dizer nada a ninguém, nem a você mesmo – respondeu Marcelina.
Vivia assim feliz, sem Ter coisa alguma que lhe causasse inquietação nem tristeza, aquele casal pobre, mas
honrado e discreto, só pedindo a Deus que lhes desse chuva e sol nos tempos oportunos, para que o milho, o feijão, a
mandioca, a macaxeira, as batatas, os abacaxis não morressem alagados ou queimados, e que não lhes mandasse
doenças graves que os privassem do trabalho, sua distração e prazer de todo dia.
Marcelina não ficava ai, levava ainda além o seu espírito empreendedor, a sua notabilíssima vocação para o pequeno
comercio.
Criava porcos, galinhas, patos e perus. Nos tempos de festa os porcos ou eram vendidos por bom dinheiro na
vila, ou ela os retalhava, e em sua casa expunha á venda a carne e o toucinho, sempre com tão boa cabeça que só lhe
ficava a porção que reservava para seu próprio uso. As vezes, desta mesma parte fazia o picado e o sarapatel para
vender aos matutos que eram perdidos por estas espécies de comidas.
Quando as criações estavam muito aumentadas, Francisco metia-as nas capoeiras, e ia vende-las em Goiana,
importante centro comercial de toda aquela redondeza, como o Recife já o era de todo o norte por aqueles tempos.
Voltava de Goiana trazendo parte dos gêneros apurada em boa moeda, e a outra parte empregada em fazendas para uso
da casa.
Enfim, a vida do almocreve, a vida do pequeno negociante das estradas e feiras, ninguém nem antes nem
depois daquelas duas criaturas tão irmãs e amigas uma da outra, compreendeu melhor do que elas, nem talvez tão bem
como elas, em suas especiais aplicações.
Causava a todos inveja e admiração a harmonia, a felicidade desses dois entes rudes, que dispensavam lições da gente
civilizada para viverem com honra e conveniência e que da beira de um caminho deserto, do pé de uma mata, sem
saberem ler nem escrever, davam edificativos exemplos de moral domestica, amor ao trabalho, e fé no Criador.
Não se pretende fazer nestas palavras a apologia da ignorância, nem a da pobreza, que são os dois maiores
males da terra; o que deste rápido esboço de dois caracteres puros e respeitáveis se aspira a inferir é que o bom natural
traz em se mesmo, como por instinto, a ciência da vida, e que o trabalho, ainda o mais humilde, é o primeiro meio de
suprir as faltas da fortuna e vencer os defeitos da condição.
V
Foi para esse ninho de modesta felicidade e de paz nunca perturbada, que Francisco levou consigo o trêfego
Lourenço, infeliz fruto de união reprovada, precozmente apodrecido nas dissoluções da povoação, pobre de instrução,
rica porém de misérias e maus exemplos.
Relatar aqui miudamente as maldades, os atentados cometidos pelo menino, entregue, até bem pouco tempo
atrás, á torpe licença; rememorar os esforços usados para o reprimir e corrigir, por Francisco e Marcelina, que desde o
dia de sua chegada não lhe faltaram com bons conselhos e as mais saudáveis lições de moral, fora longo e fastidioso
encargo.
Imagine uma criatura humana com entranhas de tigre; na mão o pau ou a faca prestes para ofender ou ferir a
quem estava perto, a pedra para atirar contra quem estava longe; sempre a saltar e a correr pelo caminho, a trepar nas
arvores novas, primeiro que nas arvores idosas por serem mais fáceis de quebrar-se com o peso do corpo as primeiras
do que as ultimas; imagine um ente essencialmente malévolo que cortava, por gosto de fazer mal, os gerumusinhos
ainda na erva, arrancava as batatas verdes, despedaçava os maturis, queimava as cercas, quebrava as pernas ás aves
domesticas que se achavam a seu alcance quando ele entrava em seu furor; enfim imagine o espirito mais diabólico, o
coração mais duro, a constituição mais forte aos doze anos de idade, que tereis, não o retrato tirado pelo natural, mas
apenas a miniatura de Lourenço quando chegou ao Cajueiro.
Ao cabo de um ano a luta continuada de dois sexos, dois gênios, duas idades diferentes, representadas por
Marcelina e Lourenço, tinha trazido notável alteração ao natural e aos costumes de ambos. Marcelina estava cansada de
lutar; as faces se lhe alquebraram; com pouco se irritava. Por felicidade, porém, Lourenço dava mostras de achar-se
menos duro, manos indiferente aos castos sentimentos, menos insensível aos afetos plácidos do lar, menos forte para
fazer mal, e já propenso ao trabalho e á pratica do bem.
Luta insana e titânica fora essa, mas tão gloriosa para a parte vencedora, como proveitosa para a vencida.
A mãe mais amorosa, paciente e discreta teria que invejar àquela mulher ignorante e rústica o esforço que, em
sua benevolência, empregava em domesticar o animo da fera metido no coração da criatura humana, que ela adotará por
filho.
Aquela mulher era digna do estudo das mães de família, e de ser por elas imitada. Era o modelo vivo da mãe
pobre, boa e virtuosa.
- É meu filho, dizia Marcelina consigo mesma. Porque não hei de ter para ele amor e brandura? Que tem que
me dê muito que fazer encaminha-lo para o bem? Muito custa a gente acertar com o bom caminho; mas querendo-se ir
por ele, ou tendo-se quem sirva de guia para ai, chega-se ao fim sempre. Hei de amolecer a natureza de pedra deste
menino; hei de o fazer bom, ainda que eu fique má e dura de coração contra minha vontade.
Quem souber que o maior desejo de Marcelina era Ter um filho, facilmente compreenderá os impossíveis que
ela vencia para fazer Lourenço digno dos seus afetos grandiosos.
As palavras que, no momento de chegar com Lourenço da povoação, Francisco dissera á sua mulher,
apresentando-lho, deram logo a esta a conhecer a grande obra em que tinha de empenhar suas gigantescas forças.
- Não pedias todo santo dia um filho a Deus? Pois aqui tens um que ele te enviou e está já em condições de te
fazer companhia e ajudar, quando eu não estiver na terra. Achei-o rasgado, sujo, desamparado, obrando ações feias, de
todos desprezado e odiado. Lembrou-me o teu desejo, compadeci-me da criança desviada do bom caminho, tomei-a
para nós, e aqui t’a entrego. Se aprender a trabalhar, a ajuntar, e a fazer bem, de muito nos poderá servir, porque é forte
como uma onça.
Lourenço estava hediondo. Os cabelos tinha-os imundos e crescidos, as unhas terrosas, os pés cortados das
pedras e dos vidros dos quintais e esterquilínios por onde de noite andava em busca do alheio.
Sobre o corpo, que sendo de cor branca, se apresentava enegrecido do pó e das imundices em que se espojava,
como cão, e sobre as quais dormia como porco, trazia, não roupa, mas pútridos e repugnantes andrajos.
- Onde achou você este menino? perguntou-lhe Marcelina, não sem espanto do que via e não esperava.
- Achei-o por ai além; não precisa saber onde. Toma-o á tua conta, limpa-o, trata dele.
Não tem pai nem mãe? Poderemos te-lo por nosso, sem risco de o perdermos ou de que alguém o venha tirar de nosso
poder quando já estiver não como bicho, mas como gente?
- Não tenhas receio de que haja quem o queira, Marcelina. Todo o Pasmado entregou-mo para ficar aliviado e
livre dele. Tu não sabes de quanto é capaz este menino endiabrado que nos está ouvindo sem dizer uma palavra sequer,
passado de raiva e em termos de arrebentar. Enfim, para encurtar a historia, basta que eu te diga que pelo que me fez em
tão curta jornada, tive muitos ímpetos de o ir deixar outra vez no lugar onde o encontrei aborrecido e temido por todos.
Não foi uma nem duas vezes que me arrependi da minha caridade e de me terem lembrado as tuas encomendações
sempre que eu saia.
- Não diga assim, Francisco. Ele há de ficar bondinho, com o favor de Deus. Você há de ver. Não há tanta
gente que nasce ruim e que pelo tempo adiante fica boa?
- Enfim, ai o tens. Foi o menino que encontrei, e agora agüenta-te com ele, que tem sangue no olho e cabelo na
venta.
Dias depois, Lourenço já apresentava aspecto diferente do que trouxera. Marcelina tinha feito para ele ceroula
e camisa nova, e principiou a sua obra de regeneração pela limpa do corpo.
Á tardinha, entrando Francisco com o feixe de capim que fora cortar na baixa para o cavalo, ficou admirado de
ver a mudança de Lourenço.
A limpa corporal tinha sido completa.
Desapareceu o cabelo sórdido e especado, que fora cortado rente, as rajás que desfiguravam a cara, as unhas
que se podiam comparar com as garras dos carcarás. Lourenço mostrava-se agora na realidade outro do que viera. O
banho geral que lhe foi dado por Marcelina o poz ao natural. A cara despojada da crosta terrena em que se envolvia,
como em mascara, atestava pela brancura que o menino era de boa origem. Os vasos azuis desenhavam-se sob a cútis
das faces, murchadas pouco antes, agora porém refrescadas pela ablução saudável, e como remoçadas pela pronta
reação que é natural da meninice.
Conheceu-se então que o menino não era feio. Tinha a fronte espaçosa, os olhos rasgados e negros mas de
desvairado brilho, efeito das insônias que curtia; aquilino o nariz; bem proporcionada a boca; fendido o queixo. Lia-se-
lhe porém no semblante móvel e no olhar sorrateiro, sem deixar de ser observador, a desconfiança, que é uma das
manifestações naturais de quem se afez a obrar ações reprovadas, a cuja pratica se não animaria, se lhe não fossem
propícios os esconderijos, as trevas, os ermos, que prometem a impunidade e quase a asseguram.
Mas Lourenço, posto que de todo solto desde os primeiros anos, não tinha certos vícios que rebaixam nas
cidades populosas a infância entregue a seu próprio e único alvedrio e direção. Ele era de índole mau, e cedendo ás
impreteríveis e fatais leis do instinto, fora arrastado inumeráveis vezes a cometer atos reprovados. Ignorante, porém, das
vilezas que os meninos aprendem nos colégios mal administrados, e que das mais puras e inocentes almas fazem
pacientes e propagadores do enredo, da mentira e de vergonhosos prazeres que desnaturam as mais fortes e viris
organizações, ele guardava ainda no coração intactos e como adormecidos os estímulos próprios do homem, que ainda
metido no charco das paixões, não lhes bebe a lama como a dos charcos bebem os animais.
As paixões de Lourenço davam para a briga, o roubo, e até para o assassínio, posto que nunca tivesse tirado
diretamente a vida de ninguém. Causava-lhe prazer destruir as animadas e as inanimadas criaturas, que não eram
bastantemente fortes para fugir ás suas arremetidas, ou resistir a seu gênio demolidor. Mutilava as arvores, por despoja-
las de uma parte de sua forma e faze-las defeituosas. Dava pancadas nos cães por ouvi-los soltar gritos de dor. Com o
padecimento mudo da arvore, e com o ruidoso do animal, ele se alegrava, porque era mau de coração; mas não usava
habitualmente a mentira, a traição, nem tinha outros vícios feios e sentimentos vis que revelam da parte de quem os
cultiva, animo fraco e no todo desprezível. Era o perverso da selva, duro, difícil, mas não impossível de vencer-se, e não
o das côrtes, nojento, infame e tão fácil de prostrar-se quão impossível de corrigir-se. Era o malvado ignorante,
arrebatado, e não o corruptor manhoso, cortês, polido, muito mais danoso do que o malvado, para o qual há prisões e
castigos; o corruptor entre em toda a parte impunemente, e com todos e com tudo comunica a sua perversão: suas
palavras adocicadas, os gestos insinuantes, os olhares, os sorrisos, os gracejos, os agrados, os serviços gratuitos, os
presentes abrem-lhe o espirito infantil, o seio da família crédula e até o coração do amigo confiante. Dentro em pouco,
de ordinário quando já não é tempo de atalhar o mal, sentem-se estes dominados da peçonha mortífera, e perdido no
conceito dos que tiveram bastante habilidade ou felicidade para evitar o contato com o envenenador.
O sitio de Francisco, pelo lado do sul, confinava com as terras onde o senho do engenho Bujari tinha umas
carvoeiras, que ficavam muito dentro. Não havia ai casa decente, mas uma palhoça ligeiramente feita, onde se abrigava
ele, quando vinha dar-lhes uma vista d’olhos. Para evitar que estranhos, aproveitando-se dos cajueirais, fossem fazer
carvão em sua ausência, tinha ali o senhor de engenho um casal de negros idosos, cuja ocupação não era outra que pôr
sentido nas terras, guarda-las de intrusos, tratar dos cajueiros existentes e plantar novos, afim de que se não
extinguissem os cajueirais.
Para se ir á palhoça, distante ainda menos de metade de um quarto de légua da estrada, tomava-se por um
estreito trilho que desta partia, dentre duas touceiras de capimassú, e se metia para dentro, ocultando-se pouco adiante
por traz das primeiras arvores da capoeira.
Um dia, já ao anoitecer, por ocasião de Marcelina entrar para acender a candeia, Lourenço, que passará a tarde amuado
sobre um tronco de macaibeira que jazia estendido ao pé da casa, largou-se pela estrada afora. Pouco adiante, no ponto
mesmo em que na estrada se encontrava a vereda, lobrigou ele ao longe Francisco, que tomava a casa. Deliberado a
fugir da companhia dos seus benfeitores, única intenção que o fizera apartar-se de casa, o menino, para evitar o
encontro com o matuto, enfiou pela vereda. Não sabia ele em que ponto ia ela morrer; mas parecendo-lhe que levava á
lagoa, donde tinha visto de tarde chegar Marcelina com um braçado de juncos, e donde se podia ir ao caminho geral por
um caminho particular que ela sabia, apressou os passos, e só parou quando, pressentindo gente perto da palhoça, três
formidáveis cães, açulados por Benedicto, molecote filho do casal de negros, lhe saíram ao encontro, não para o
receberem atenciosamente, como fazem com os de fora os moradores hospitaleiros, mas para o despedaçarem com
desabrido furor. Cercado de todos os lados, Lourenço mal se podia livrar dos temíveis defensores de escuso lar, quando
de dentro da palhoça correu ao lugar do conflito uma negra apercebida com um jagunço, em atitude de quem o queria
desancar.
- Quem é você? quem é você? – perguntou ela, sem fazer o menor gesto aos cães para que se acomodassem.
- Sei lá quem eu sou?! Respondeu com maus modos, Lourenço agitado e colérico da estranha e inesperada
recepção. Vi este caminho na beira da estrada e sem ter o que fazer, enfiei por ele, para saber onde vinha dar.
- É mentira sua – retorquiu a negra. Você veio atrás das minhas galinhas, e está agora dizendo estas coisas. E
eu que pensava que era a raposa que me estava dando no poleiro.
- Negra do diabo! Gritou Lourenço, cada vez mais zangado e irritado. Eu algum dia trepei no teu poleiro? O
que eu sinto é não trazer na mão uma vara para te enfiar pela boca a dentro.
- Acuda cá, Moçambique, acuda cá. Estou ás voltas com o ladrão das minhas galinhas – gritou a preta como
possessa, e movendo o jagunço contra Lourenço.
Os cães, entretanto, açulados por ela, e autorizados por este novo gesto hostil e agressivo, já mordiam o rapaz
pelas pernas como implacáveis inimigos, que de propósito se criam sem cortesia nem benevolência para maior
segurança dos lares confiados á sua guarda.
Quando Lourenço sentiu as primeiras dentadas dos terríveis animais, atirou-se desesperado á preta, na intenção
de lhe arrancar a arma, de que ele precisava, assim para se defender, como para castigar as ofensas que tanto dela como
dos seus companheiros tinha recebido; e teria realizado o seu pensamento, se a esse tempo não se achasse junto com
eles, trazendo um longo quiri, descascado ao fogo, o preto por quem a negra chamara em seu socorro.
O conflito tornou-se então sério. O menino, o molecote, a negra, o negro e os cães, tomando parte nele com o
empenho de ter cada um por se a vitoria, formaram pelo bracejar e revolver vertiginoso um novelo, uma onda rotatória,
um medonho redemoinho, do qual se levantava surdo rumor, produzido pelo respirar confuso, e abafado dos lutadores, e
pelo rosnar da rábida matilha.
Lourenço era forte, segundo sabemos. Mais de uma vez atirou para longe um cão, para uma banda o moleque,
para outra a negra. Mas os que ele assim afastava de ao pé de si, tornavam logo mais exacerbados ao ponto donde
tinham sido atirados, e prolongavam o conflito com fúria e esforço novos. Além disso, Lourenço achava-se desarmado,
o que diminuía consideravelmente a sua grande força física, incapaz para resistir ás dos inimigos, que eram gigantes em
comparação da sua, visto serem eles numerosos e terem, além das forças, instrumentos que contundiam, feriam e até
despedaçavam. Com pouco mais sentiu-se enfraquecer. O sangue escorria-lhe de diferentes pontos das pernas; os cães,
ensinados desde pequenos a dilacerar os timbus, as raposas e os maracajás – hospedes importunos do sitio, tinham-lhe
rasgado importantes vasos, e cortado com seus poderosos colmilho as carnes moídas das cacetadas. Lourenço estava
quase desfalecido, e só lhe faltava cair para ser de todo vitima e não se poder levantar mais.
Achava-se neste extremo apuro, e seus pés já iam resvelando na areia poida do terreiro da casa, aonde as
evoluções desordenadas do conflito tinham arrastado os que nele eram parte, quando, repentinamente, vencendo o
burburinho, voz forte e vibrante fez ouvir estas palavras:
- Negro! Negro! Moçambique! Temo. Queres matar meu filho?
VI
Os negros sobrestiveram espantados.
- É seu filho, seu Francisco? Perguntou Moçambique ao recém-chegado, que não era outrem que Francisco
mesmo.
- É meu filho, negro do diabo.
- Então, perdoa, seu moço. Ninguém sabia. Perdoa a Moçambique.
Francisco, sentindo falta de Lourenço, e atraído pelos primeiros latidos da canzoada, viera dar consigo no lugar onde a
sua benéfica intervenção não podia chegar mais oportunamente.
Lourenço estava muito maltratado. Chegando á casa, caiu de cama para não se levantar senão depois de um
mês. Nos primeiros dias não deram nada pela vida dele.
Este acontecimento, lastimável por um lado, foi pelo outro providencial, e, para assim escrevermos, acentuou a
obra de regeneração em que se empenharam aquelas duas almas que porfiavam para pôr no bom caminho o menino
perdido e infeliz.
Preso pelas mordeduras e contusões á cama, Lourenço a quem nunca em Pasmado acontecera desastre que com
este se parecesse, teve ocasião de fazer irresistível e fatalmente o juízo do seu procedimento desde o dia em que caiu na
laxidão das ruas, tabernas e ranchos. O senso intimo, até aquele momento obscurecido pela inexperiência e verdor dos
anos, começou a reagir contra as camadas que o impediam de lhe mostrar as trilhas do dever e da sã doutrina.
Marcelina, hábil e natural educadora, aproveitara-se do ensejo para aconselhar o menino, tomando lições do
acontecimento, a não se encaminhar senão para o trabalho e o bem.
- Que ias tu fazer, Lourenço, quando os cachorros e os negros caíram sobre ti? Ias perder-te. Deixavas aqui pai
e mãe, que olham por ti com amor e doçura; metias-te por esse mato a dentro, com risco de morreres de fome, de
doença ou de mordedura de cobra.
- O que eu queria era ganhar o caminho que vai dar em minha terra – respondeu ele. O negro e a negra não me
deixaram passar; mas eles hão de pagar-me este desaforo.
- E que ias ver em tua terra? Que foi que ela te deu? maus exemplos e maus costumes. Que ias tu achar lá? A
miséria, o sujo e o desprezo. No fim de contas serias recrutado e acabarias sabe Deus onde, com a farda nas costas.
- Cuida que eu tenho medo de ser soldado? Eu sou forte.
- Isso sei eu.
- E gosto de brigar e combater. Havia de vir uma guerra que eu mostraria para quanto sou.
Assim que assentasses praça te arrependias logo da asneira feita. Pensas que o soldado tem licença para andar a toda
hora por onde quer, como fazias tu antes de Francisco te trazer para o Cajueiro? Estás enganado. O soldado não tem a
menor liberdade; é pior do que negro de engenho; não pode dar um passo sem ordem do seu superior. És uma criança,
Lourenço; não sabes ainda o que é o mundo. Acomoda-te com os bons e busca ser um deles. Ajuda-nos a trabalhar e a
viver em nosso sossego, que o trabalho por pouco que dê á gente, é sempre proveitoso e traz alegria e paz.
Quando se levantou da cama, Lourenço dava mostras de melhorado do gênio trêfego que fora causa da sua
longa doença. Um grande fruto, quando outros se não pudessem apontar, tinha produzido o recolhimento forçado do
menino: saíra-lhe de todo do entendimento a idéia de volver ao povoado donde viera. Aos olhos de Marcelina, que
aprendeu sem que ninguém lhe ensinasse, a ler nas palavras e na fisionomia de quem com ela tratava, os íntimos
pensamentos e intuitos, nenhum indicio de melhora podia parecer mais favorável do que este. A fugida de Lourenço a
Pasmado era o que ela mais receava, e para tolher que semelhante desgraça viesse a suceder, ela liberalizava agrados e
carinhos ao menino, e com espertos cuidados vigiava sobre ele a toda hora. Nada lhe recusava, mas também não o
deixava pisar em ramo verde.
A estação veio em seu auxilio na construção da grande obra moral que tinha em mãos. Chegou dezembro. O
tempo estava enxuto, não obstante se mostrarem os campos borrifados das chuvas-do-cajú, nome que vem a tais chuvas
de serem elas muito favoráveis a esta fruta. As laranjeiras novas, que Francisco plantara de um e de outro lado da casa,
curvavam-se debaixo do peso das primícias do estio. Ao longe, para os fins do sitio, viam-se os abacaxis ostentando
garbosos, dentre suas touças louçãs, o distintivo que na ordem vegetal a todos lembrava a insígnia civil da realeza.
Era a melhor estação do norte. Pobres, remediados e ricos apercebiam-se, sem excepção, cada qual conforme
suas forças o ajudavam, para a festa do natal, época de folganças e divertimentos no campo, á sombra das arvores e dos
rústicos alpendres.
Em toda a vasta zona açucareira da província os engenhos começavam a tirar sua safra; o que ficava do outro lado da
mata, que sabemos – o engenho Bujari – tinha de botar dentro de uma semana.
O dia da botada não tem igual, pelo reboliço que o caracteriza, na grande propriedade.
Ajuntam-se parentes, amigos e conhecidos para acompanharem o proprietário na sua alegria, e participarem
das suas larguezas.
Francisco, a cujos bons sentimentos e qualidades devia o lugar que tinha diante do senhor de engenho, achou-
se presente com Lourenço á festa rural, que oferecia ao menino novo e indizível encanto.
Não obstante ser quase nômada na povoação, nunca dai saiu este para assistir a festas semelhantes nos
engenhos da freguesia pela distancia em que ficavam do lugar. De sorte que, penetrando agora com Francisco no
engenho Bujari, experimentou desconhecido prazer.
Um padre veio de propósito para dizer missa na capela e benzer a nova moenda, que se achava adornada com
ramos verdes, lembrança e fineza dos negros. Depois da benção, entregou ele ao senhor do engenho a primeira cana,
que devia ser moída aquele ano. O sargento-mór meteu-a entre os eixos da moenda, os negros açoitaram as bestas,
levantaram urras e vivas, vários moradores e convidados dispararam armas de fogo em sinal de regozijo, enfim encetou-
se a moagem.
Lourenço ficou ao principio admirado, perplexo perante aqueles acontecimentos inteiramente novos para ele;
dai a pouco, porém, já lhe faltou o tempo para beber do caldo de cana ainda quente, e mais tarde comer do mel-de-
engenho saindo da tacha, subir á almanjarra e açoitar os animais de companhia com os molecotes mais espertos.
Moços e moças formosas e elegantes, que tinham ido de Goiana á festa, faziam agradáveis digressões pelos
campos e outeiros próximos da propriedade. Alguns jovens pescavam no açude, enquanto outros se metiam pelos matos
a colher cajus e a passarinhar.
Lourenço ouviu de noite, de sobre as palhas da cana onde se deitara ao luar, defronte da casa-da-moenda,
melancólicas e saudosas harmonias, que lançavam ecos suavíssimos em sua alma.
Eram as toadas com que os negros respondiam da porta da senzala, de cima da bagaceira, da almanjarra, do
pátio da casa-de-purgar, aos regozijos da casa-de-vivenda, onde os toques ressoavam desacompanhados das altercações,
a que dá lugar o demônio do jogo, então bem menos conhecido do que hoje do fazendeiro nortista.
Parece que se prepara grande guerra à cana-de-açúcar no norte. Para levar a efeito este pensamento – o da
destruição da planta abençoada, servem-se do de cultivar com largueza o café no interior das províncias onde até o
presente se cultivou largamente a cana.
Não me leves a mal uma declaração que farei aqui, tocante à projetada revolução agrícola.
Entristeço-me, meu amigo, a qualquer indicio de que á cultura da cana se trata de substituir cultura de planta
diferente, seja muito embora esta da estatura e importância do café, ao qual desde pequeno me acostumei a votar
grandes afeições. A razão é porque a cana-de-açúcar me inspira intima e saudável paixão, que não sei explicar, mas que
tem em mim a extensão e a amplitude de uma elevada e pura estima. A meus olhos, ela não é uma planta, é um ente
magico e pitoresco. Vejo nela poesia e grandeza que irresistivelmente me levam a tributar-lhe culto do coração.
Causam-me profundas alegrias seus bastos ajuntamentos, seus partidos virentes, acamados, com suas folhas, ora
encurvadas, ora destendidas ao sopro dos ventos irados ou brincões. Essas folhas são como harpas gigantes,
melancólicas, ternissimas, que as virações fazem vibrar docemente e que despedem harmonias eólias.
A vista da moagem produz em mim gratas alterações, e traz-me saudades da infância, recordações veneráveis
dos tempos felizes em que, levando a vida entre a vila e os engenhos, entre a casa paterna e os painéis que a natureza
expõe gratuitamente aos que para ela têm os seus principais afetos e a sua primeira admiração, meu espirito adejava,
como os sanhaçus e os bentevis, por sobre as folhagens, mergulhado alternativamente já em luzes, já em sombras, mas
sempre enleado e passado de inocente contentamento.
Para o homem do norte o engenho de açúcar é o representante de imemoriais e gloriosas tradições.
Especialmente o pernambucano nasce vendo com amigos olhos aquelas grandes propriedades que são como os seus
castelos feudais. O engenho é o solar do norte. A nobreza do país principiou por ele; não conheceu outro solar. Ele
figura nas maiores paginas da historia daquela parte do vasto império. Sua importância é lendária, histórica e santa.
E querem agora que á cana-de-açúcar se substitua o café! Promovem a extinção do giganteo elemento que
produziu e perpetuou fortunas respeitáveis naquela grande região!
Aperfeiçoar os processos de cultura dessa planta ilustre, a que Pernambuco deve brilho e grandeza
imorredoura, é digno do progresso. O direito senão o dever de melhorar as condições da agricultura, do comercio, das
industrias, está acima de toda duvida; mas suprimir umnero de cultura que tem por se a consagração de muitos
séculos e elevou muitas gerações e opulentou a província, não me parece nem justo, nem acertado, nem econômico.
Voz secreta e consoladora, dissipando os meus temores, segreda-me que tu, ó planta benfazeja – estandarte da
independência e da riqueza do pernambucano, seja qual for a conspiração tramada contra ti, não hás de desaparecer das
nossas planícies, dos nossos outeiros, dos nossos vales e encostas, por onde estendes há três séculos tua folhagem
hospitaleira.
A botada tendo caído em um sábado, ficou Francisco com o menino para passar o Domingo.
De manhã muito cedinho, Lourenço achou-se de pé, contentando a vista no movimento que lhe oferecia a
novidade. Não se fartava de ver os negros passar com feixes de lenha e de bagaço para alentarem o fogo da fornalha. Ia
e vinha com eles, fazia-lhes perguntas sobre diferentes coisas que observava, mas não compreendia. Recebia as
explicações com visível prazer.
Norando que voltava aos partidos a buscar novos feixes de canas, um carro que acabava de ser descarregado á
porta do engenho, Lourenço saltou sobre a mesa dele e deixou-se conduzir aos canaviais de açúcar, coisa que, para bem
dizermos, só conhecia de nome.
Quando suas vistas adejaram por sobre aquele mundo de verdura, experimentou sua alma indizível impressão
de contentamento.
Eis o que o menino viu.
Formando um cordão, os negros estavam ali a cortar com afiadas foicinhas de mão as canas que outros iam
despojando das folhas e atirando no campo, assim privadas da sua verde plumagem. Grandes pilhas delas mostravam-se
do meio do imenso tapete de folhas. As hastes, pouco antes graciosas, estavam agora nuas e sem elegância. Sua formosa
roupagem cobria o seu leito de morte.
Na véspera tinha sido distribuído aos negros fato novo, que eles traziam ainda sobre o corpo, visto que a festa
emendara com o Domingo. Com suas ceroulas e camisas azuis, seus chapéus de palha de pindoba, tão novos como a
roupa, figuravam eles uma linha de soldados que derribava matos para assaltar fortificações inimigas.
Levando os olhos ao lado oposto ao de que vinha o corte, o menino só descobriu ai estendido mares de folhas
ondulantes. Eram os canaviais novos, que agitavam seus panos de verdura ao sabor das virações campesinas.
Lourenço voltou do engenho perdido por ele. A festa tornara-o expansivo e contador de historias, tudo o que
com ele se passara, e o que vira, foi referido circunstancialmente a Marcelina, não esquecendo o menino nem as quedas-
de-corpo que pegará com outros meninos na bagaceira.
- Se meu pai tivesse um engenho, a coisa havia de ser outra – dizia ele de quando em quando no curso da
narração.
- E porque não há de ter? inquiriu Marcelina. Se tu nos ajudares, no fim de alguns anos poderemos comprar
uma engenhoca, ou ao menos um torcedor. Do torcedor vai á engenhoca, e da engenhoca ao engenho. Tu bem vês que
todos nós trabalhamos. Onde está Francisco? Foi á vila vender abacaxis. Eu, como vês, estou fazendo minhas esteiras
para ele levar a quem as encomendou aqui adiante, na encruzilhada. Só tu não trabalhas ainda. E queres um engenho!
Sem trabalhares não hás de ter nem de comer nem de vestir, quanto mais engenho.
Pensando consigo só, Lourenço levantou-se sem dizer palavra, deu volta pelo sitio, e tornou á salinha da casa,
que era a oficina de Marcelina. Esta o viu arrastar um tamborete para junto dela e uma rodilha de cipós para junto de si.
Sentando-se no tamborete, o menino cortou os cipós pelo modo e medida que Marcelina lhe ensinou, e hei-lo a trabalhar
pela primeira vez depois da sua chegada ao Cajueiro.
Vendo-o exercitar tão vem a sua atividade espontaneamente, como tocado de celeste inspiração, Marcelina não
pôde suster as lagrimas. Lourenço, a seus olhos, acabava de dar testemunho de emenda, resultado da constância e
paciência com que ela o dirigia para o bem desde o dia de sua chegada.
Estava de feito ali uma conquista do seu esforço abençoado por Deus, inquebrantável esteio dos crentes.
VII
Uma manhã encaminhou-se Lourenço á mata, armado com um facão afim de cortar sambaquis de que
precisava para umas gaiolas, que lhe tinham encomendado. Este serviço ele o costumava realizar nas horas vagas.
Trabalhar já era uma lei de seu espirito. Adquirir meios de comprar um engenho foi idéia que nunca mais o
abandonou, antes constituiu a sua primeira e mais forte ambição. Por isso não perdia tempo, ou antes Marcelina o não
deixava perder.
Tinham já passado muitos meses depois dos primeiros acontecimentos referidos nos capítulos anteriores.
Colocado em novo centro e sujeito a novas leis morais, Lourenço avançava admiravelmente na requesta do bem,
despertando cada dia em seus pais, por seu procedimento , novas esperanças e sendo para eles origem de inefáveis
satisfações.
A transformação era obra das mãos deles, na qual se reviam não sem justo orgulho, como na fonte limpa,
outr’ora charco, se revê o que lhe tirou as imundícies.
Por isso Lourenço era já, não somente estimado mas acariciado pelos dois consortes, que o consideravam o
futuro esteio da casa, de seu natural fraca, o amigo e protetor deles, quando velhos, de seu natural forte.
A esse tempo não era a habitação de Francisco a única existente na estrada do Cajueiro. Obra de trezentas
braças para o sul via-se outra de melhor parecer, de paredes de pedra e coberta de telha. Pertencia a um padre que, tendo
por ali aparecido não se sabia como nem porque, fora convidado pelo sargento-mór João da Cunha para capelão do
engenho. O padre Antônio escolheu aquele local para sua residência, desprezando uma boa morada que o senhor do
engenho possuía dentro do cercado, e até a residência que lhe ofereceu na própria casa grande. Escolhido o local e feito
o prédio, o padre chegou-se a João da Cunha e lhe disse que de há muito cumpria o voto de só morar em propriedade
que fosse sua, e por isso lhe pedia declarasse por quanto vendia, com os respectivos terrenos, a casa feita. O sargento-
mór, que achará aquilo singular, e enxergará no ato inocente do padre um assomo de independência e altivez, não
querendo por vaidade própria da nobreza daqueles tempos ficar por baixo, declarou que lhe dava de mão beijada casa e
terrenos, e disso se lavrou termo.
O novo vizinho foi recebido com alvoroço pela família do Cajueiro. Quem era que por então não tinha em alta
estima o sacerdote da religião santa do Crucificado?
Francisco, saltando de contente, para me servir da frase do povo, dizia a Marcelina que dava mostras de sentir
dobrado prazer com a nova vizinhança.
- Bem-dita foi a hora em que abri meu sitio nesta estrada. Olhe lá como o Cajueiro está honrado. E daqui a
pouco já não haverá quem não queira vir levantar sua casa aqui por perto. Basta saber-se que o capelão de Bujari quis
antes morar no Cajueiro do que no engenho, para todo o povo correr para este ponto.
- É verdade, Francisco, é verdade, respondeu Marcelina. Temos agora bem perto de nós quem nos confesse e
unja em caso de morte, o que Deus tal não permita.
- E que gloria tenho eu de se dizer que fui eu que fundei o Cajueiro! acrescentou o matuto. Se ele não
prestasse, não havia de querer morar nele o capelão do engenho. O que eu quero é que a todo tempo se saiba que fui o
primeiro morador deste lugar. Seu padre Antônio já me fez esta justiça. Ainda ontem ele virou-se para mim, quando fui
á vê-lo, em sua casa nova, e me disse que eu que tenho olho para conhecer lugar de boa moradia.
Por muito tempo levaram os moradores velhos a praticar neste sentido do novo morador. Da casa passaram ao
homem físico, e do homem físico ao homem moral. Nada disseram dele na ausência que não pudesse ser dito na
presença. Ainda hoje a maledicência não é qualidade característica do povo; naqueles tempos ainda o era menos.
O que Francisco disse do padre, foi que sua palidez e sua magreza indicavam que ele perdia noites de sono no
serviço de Deus; Marcelina acrescentou que seus olhos pardos e como quebrados, seus sorrisos tristes, suas palavras
simples revelavam consciência limpa, desprezo pelo mundo e bondade de coração. Francisco ajuntou que já uma vez
em Olinda tinha visto um frade com o qual muito se parecia o padre Antônio, por sua estatura média, a cabeça grande, a
testa larga, o rosto comprido, as faces descarnadas. Enfim Marcelina, recordando-se de uma novena na igreja do
Senhor-dos-martirios, disse que a voz fraca e branda do sacerdote que fez ai uma pratica ao povo, era a mesma do padre
Antônio.
Nem o marido nem a mulher andavam longe da verdade. O padre Antônio tinha sido frade, e foi
provavelmente no tempo em que ainda o era, que se encontrou com ele o matuto. Um ano depois de secularizado, de
passagem para Paraíba, aposentou-se no convento do Carmo em Goiana, aonde o foi convidar para dirigir a novena dos
Martírios um negociante que o conhecia quando ele pertencia á recoleta do Recife. É natural que ai o tivesse ouvido
Marcelina.
Eles não estavam também longe da verdade no tocante ao moral do padre Antônio. Grande era a sua
humildade, publica a sua piedade, notória a sua benevolência, de que todos davam noticia no Recife, em Olinda, e na
Paraíba, donde viera para Goiana, fazia poucos meses. Com serem frades, gente de seu natural maldizente – estes sim
os do Carmo de Goiana que o conheciam, nada contavam dele que o desabonasse. Só um deles – vejam o que são frades
– explicava a secularização do padre Antônio dizendo que, realizando-a, não o fizera ele com outro fim que o de
desimpossibilitar-se para herdar muitos mil cruzados de uma tia solteirona que lhe votava grande afeição. O certo é que
a tia morreu, e o padre foi o único herdeiro da fortuna deixada.
O que o padre Antônio era, quais os seus sentimentos e dotes naturais, sua piedade, seu intimo ver-se-há
melhor pela presente narrativa.
Lourenço sentiu inclinarem-se para o sacerdote os seus afetos, e teve por ele instintivo respeito. Por sua vez, o
padre Antônio, que parecia saber já a historia do rapaz, não perdia ocasião de o encaminhar para a honestidade e a
virtude com a satisfação que enche o coração do varão reto quando se lhe depara a quem beneficiar.
Lourenço parecia tão mudado, seus sentimentos eram tão diferentes dos que trouxera da povoação para a
estrada, que dificilmente o padre Antônio acreditou tivessem sido praticadas pelo rapaz as feias ações atribuídas ao
menino.
- Como é possível que a gente se transforme de semelhante modo? Dizia ele uma vez a Francisco. Ainda se
tivesse recebido depois desses desatinos saudável educação...
- Pois é o que digo a seu padre – respondeu o matuto. Lourenço parecia ter o inimigo no couro. Eu nunca vi
menino tão endiabrado. Agora, quanto a ensino, o que ele recebeu foi o que lhe deu minha companheira; e parece que
não foi mau, porque o rapaz já está outro.
- Bom ensino foi o que lhe deu tua mulher, Francisco. As mulheres são muito próprias para isso. Quando elas
querem, ninguém tem melhores meios de endireitar as voltas de uma índole torta e defeituosa.
- Dai a pouco, o padre, como se tivera um pensamento súbito, uma resolução heróica, acrescentou:
- Quero prestar a vocês um serviço, que não é preciso me agradeçam, visto que tenho o dever de proceder
assim. Quero completar a obra que levaram tão adiante. Vou ensinar a Lourenço as primeiras letras. Lourenço, que já
está bom, ficará melhor. Que dizes?
- Ho, seu padre! retorquiu o matuto, cujo semblante pareceu iluminar-se do reflexo de prazer que lhe vinha do
intrínseco da alma. Não tenho expressões para agradecer a vosmecê tamanho beneficio. Quem me dera ver meu filho
lendo carta-de-nomes. Eu já me contentava com isso só, porque quem lê carta-de-nomes, pode chegar a ler um livro e
escrever umas regras no papel. Deixa o rapaz, por minha conta, Francisco. Hei de ensinar-lhe a ler e a escrever. Não é
preciso que te mostres desde já tão agradecido por um serviço que ainda não fiz, e que, se grande valor deve ter para
quem o recebe, nada custa a quem o faz; antes é seu dever presta-lo. Vai para tua casa e dize lá á tua mulher que todos
os dias logo cedo – comecemos segunda-feira – mande cá o rapaz a passar comigo algumas horas. Não é preciso mais.
- Seu padre...seu padre... Deus é que lhe há de pagar esta obra de caridade.
No dia aprazado, antes do menino entrar na casa do padre para receber a primeira lição, já Marcelina tinha levado
pessoalmente umas macaxeiras, uma galinha gorda e duas dúzias de ovos para almoço do ilustre vizinho, e jurado, com
a eloquência dos sorrisos e das lagrimas simultaneamente, gratidão eterna e infinita àquele que se mostrava tão bom e
generoso para a obscura criatura.
- Para que isto, Marcelina? Inquiriu o padre, quando ela lhe fez entrega do presente. Eu ensino de graça e não
por paga. Fica sabendo que ainda sem os teus mimos, hei de fazer este serviço ao pequeno. É obra de misericórdia
ensinar os ignorantes. Além disso, pelo meu sagrado ministério, tenho obrigação rigorosa de lançar nas trevas do
espirito infantil a pouca luz que tiver a meu alcance. Olha. Diz-me o coração que Lourenço ainda há de ser almotacê em
Goiana.
- Deus o queira, seu padre, Deus o queira.
E porque não há de querer? Lourenço já está bom. Hoje já é merecedor das bençãos do céu, e da proteção dos homens
de bem.
O que Lourenço poz por obra na manhã supramencionada, vem desmentir este conceito e palavras de seu
mestre.
Tendo vagado durante algum tempo em busca de sambaquis, por dentro da mata, foi ele dar em uma trilha que
lhe era ainda desconhecida. Tomou por ela, e, quando menos pensava, deu consigo em um cajueiral que se perdia de
vista. De um lado aparecia uma casa de palha, e por entre o arvoredo, em parte bastantemente destruído pelos machados
dos lenheiros, foi descobrindo imensos socavões, de alguns dos quais saiam ainda novelões de fumo negro. O rapaz
reconheceu que se achava nas carvoeiras onde tempos atrás lhe tinham ido tão mal as coisas.
De propósito, e por incessantes recomendações de Marcelina, ele tinha, desde essa fatal noite, evitado
digressões por aquele lugar, tão rico de belas paisagens e frescos e aprazíveis ermos. Agora, porém, inesperada e
involuntariamente achava-se de novo ali. Lembrou-lhe incontinente o que ai passara; pareceu-lhe ouvir a matinada dos
cães, e sentir nas carnes os dentes deles e o jagunço dos negros.
Eles levaram a sua avante – disse instintivamente consigo mesmo – porque eu estava desarmado. Se nos
encontrássemos agora, a coisa havia de ser outra muito diferente. Já sou homem, e trago o meu facão, que está bem
amolado. Eu havia de tirar a minha desforra.
Pincel fatal ou fatídico avivava em sua imaginação a cada passo, que dava o rapaz, as cenas do
sanguinolento episódio, que parecia de todo apagado de sua memória. Imediatamente os ferozes instintos de outr’ora
ressurgiram violentamente como línguas de serpente ou de fogo em seu cérebro, exigindo pronta vingança.
Sem mais refletir, Lourenço botou-se para a palhoça. Achou-a sem gente. Mas havia criação pelo terreiro, e
debaixo do pequeno alpendre viu ele vasilhas de serviço diário, sinal de que os negros ainda ali residiam.
Quando estava a olhar para uma banda e para outra, a ver se dava com algum dos antigos conhecidos,
descobriu ao longe um vulto acocorado á beira de uma das covas que apareciam no vasto tabuleiro de areia.
Encaminhou-se para ai, saboreando com antecipada sofreguidão o prazer da projetada vingança.
VIII
O vulto era o moleque, já então quase negro feito, que lhe tinha posto os cachorros em cima àquela fatal noite.
Lourenço reconheceu-o logo: nem foi preciso para isto esforço, visto que uma vez por outra o estava vendo, ora entrar,
ora sair do sitio.
- Que está você fazendo ai? perguntou ele, com voz de senhor arrogante e provocadora.
Benedicto voltou-se espantado, e por única resposta, vendo quem a ele se dirigia, proferiu estas palavras:
- Que quer saber? É da sua conta?
E com gestos e meneios de quem fazia pouco caso do visitante, deixou-se ficar na mesma posição
em que se achava, a saber, de cócoras á beira da cova, e de costas voltadas para o seu interlocutor.
Veja lá como fala – retorquiu Lourenço, aproximando-se. Não foi você quem me botou aqui há tempos os cachorros em
cima como se eu fosse alguma raposa au maracajá? Foi você mesmo, que nunca mais sua cara me saiu da lembrança.
- Fui eu mesmo – respondeu Benedicto. E que tem que fosse? É você meu senhor, ou meu pai para vir falar-me
assim? Ora vá fazer seus balaios e suas gaiolas, e deixe-me sossegado, que eu não faço conta de você.
- Este negro está enganado comigo, retorquiu Lourenço, como se dirigisse a terceiro. Então você acha que eu
havia de esquecer aquele desaforo? Eu não sou de Goiana, sou do Pasmado; e se faço gaiolas e cestos, é para não fazer
facas de ponta. Agora, quanto a dizeres, negro, que não me levas em conta, isto é coisa que é mais fácil de dizer do que
mostrar.
A esse tempo Lourenço achava-se já pertinho de Benedicto, e este estava de pé. As vistas de um cruzavam-se
com as do outro como floretes manejados por dois inimigos, peritos no jogo, e curtidos no rancor.
De repente o olhar de Benedicto se perturba, e ele, de negro, que era, faz-se fulo. Palidez mortal cobriu-lhe a
face, há pouco retinta como carvão. Tinha descoberto o facão, que Lourenço trazia e em cuja larga folha se refletia a
claridade do dia.
Lourenço aproximou-se mais do seu antagonista.
- Se és homem, disse ele, em atitude de quem estava mete não mete o facão no rapaz – repete as palavras que
há pouco disseste.
- Você então quer brigar comigo deverás? Ora deixe-se disso. O que passou está passado.
O que passou comigo não está passado, não, negro mofino e sem vergonha. Eu só sinto não encontrar também aqui os
outros dois tições – teu pai e tua mãe – para dar a vocês todos um ensino de mestre com a folha deste facão. Mas não há
de faltar ocasião.
Benedicto, que não era bom, encarou novamente com Lourenço, como quem sentia voltar-lhe o animo que
fugira um momento. Tinha-lhe lembrado um recurso, que ele passou imediatamente a pôr em pratica.
- Você diz tudo isto porque tem ai um facão na mão; se não fosse ele, não tinha barbas para o dizer. Mas ainda
estando com esse ferro e não tendo eu arma nenhuma, não faço conta de você, quanto mais meu pai e minha mãe. E
para que fique sabendo, de uma vez por todas, que eu não me lembro de suas valentias, vou dizer-lhe uma coisa: se tiver
o atrevimento de passar outra vez de noite por junto do poleiro, tenha certeza de que lhe hei de pôr os cachorros, como
fiz da outra vez.
Ainda bem não tinha Benedicto finalizado esta inocente ameaça, quando Lourenço atirava para longe o facão.
- Para te quebrar os beiços, negro, eu não preciso de arma.
Era o que Benedicto queria; seu adversário estava desarmado. Então investiu contra ele como fera. Aparentemente,
Benedicto representava ser mais forte do que Lourenço. As ceroulas azuis arregaçadas até aos joelhos, deixavam á
mostra pernas musculosas, que acusavam grande força física. O negro mesmo tinha consciência de sua robustez; do seu
tope nenhum morador de quatro léguas em redondo lhe era superior. Por isso, tendo lá para se que podia com Lourenço,
atirou-se sobre ele no pressuposto de o derrubar e pôr debaixo dos pés logo ao primeiro ímpeto.
Nunca porém uma falsa crença teve mais pronta e estrondosa desilusão. Agarrar-se com Lourenço foi o mesmo
que se agarrar com um touro bravo. Mal sabia ele que, além da imensa força física, de que nunca supôs possuidor, tinha
Lourenço meneios, jeitos e passos que o habilitavam a dar em terra com o mais corpulento animal. Em um instante o
trêfego rapaz atirou o negro, não sobre a areia, mas dentro da cova próxima, onde havia um abismo de fogo, parte ainda
em chamas, parte já em carvões, mas ainda vivos e ardentes.
E esta operação, rápida como passar de faisca elétrica, seguiu-se um grito nu de agonia, que atroou os ares.
Benedicto, que estava nu da cintura para cima, sentira no corpo, nas mãos, nos pés as dores trazidas pelo fogo.
Esse grito medonho e a vista que inesperadamente se apresentou aos olhos de Lourenço, produziram nele
súbita comoção. O impulso de fera, que o levara a atirar na cova o adversário, foi instintivo, inevitável, fatal: não lhe
deu tempo a refletir; tinha passado tão rápido como o pensamento, e em seu lugar estava agora a razão.
Lourenço correu a uma tora meio queimada que se via a um lado sobre a areia, e, pegando dele, e metendo-o
imediatamente na cova, como se o fizera em um poço para impedir que se afogasse aquele que aliás estava nadando em
puro fogo, gritou da beira da cova a Benedicto, com voz comovida:
- Pegue-se neste pau e suba por ele para não se queimar. Eu nem pensei no fogo que havia ai dentro.
Era ainda cedo e o casal de pretos, inquilinos da palhoça, o qual tinha ido á Goiana, a serviço do engenho, só
poderia estar de volta sobre a tarde ou talvez no dia seguinte.
Quando Benedicto disse isto a Lourenço, sentiu este ainda maior abalo. A situação afigurou-se-lhe então mais
difícil e penosa do que ao principio lhe parecera. Quem trataria do negro, que se revolvia, em gritos, já salvo do fogo,
mas preso das extensas queimaduras, sobre folhas secas á sombra de um cajueiro próximo? Era possível que ele ficasse
assim desamparado por todo esse tempo? E os gritos de dor que cada vez aumentavam mais, e o terror da situação que
se tornava mais pungente e cruel, como resistir a eles sem tratar de os remediar?
Lourenço ficou abatido um momento, mas logo tornou em se e disse á vitima dos seus maus instintos:
- Não grites, não chores, que vou chamar minha mãe para tratar de ti.
Esta inspiração, que transluziu como reflexo de prazer intimo, em seu semblante, pouco tempo antes anuviado pela
sombra do desgosto, rápida se desvaneceu, deixando em seu lugar no espirito do rapaz um sem numero de
interrogações, cada qual mais acerba e atroz.
- Que dirá minha mãe quando souber do que eu fiz? perguntava ele em silêncio a se mesmo. Para que tomei eu
esta vingança? Porque não esqueci de todo a ofensa passada? Minha mãe, meu pai, seu padre Antônio que já me quer
tanto bem, que idéia ficarão fazendo de mim d’ora em diante? Um me chamará mau, outro cruel, outro desumano,
coração de tigre. Minha mãe dirá que perdeu comigo seus conselhos; meu pai dirá que, em lugar de trabalhar, ando eu
fazendo mal aos outros sem me lembrar de que ele só me encaminha para o trabalho. E seu padre Antônio, oh meu
Deus, seu padre, que se mostra tão meu amigo, de que modo não me ficará tratando d’ora por diante? Ainda ontem ele
me fazia escrever esta passagem da Escritura: “Que homem haverá por acaso entre vós, que tenha uma ovelha, e que, se
esta lhe cair no sábado em uma cova, não lhe lance a mão para dai a tirar!”(S.Mat.cap.XII vers.11). Eu fui o primeiro a
atirar, por vingança e malvadeza, dentro de uma cova cheia de fogo, não uma ovelha, mas um meu semelhante! Ho meu
Deus! Como vai ficar descontente de mim seu padre Antônio por eu ter praticado um ato tão desumano.
Lourenço deitou a correr para que mais depressa chegasse o socorro ao aflito.
Quando Marcelina soube do que acontecera, foi ela própria com o marido e Lourenço buscar o negro queimado
para a casa do Cajueiro, a fim de tratar dele, visto que, morando longe da palhoça, não podia estar a tempo e a hora
prestando os serviços e cuidados de que precisava o doente.
Lourenço, quando punha os olhos neste, inclinava-os logo abatidos ao chão. O remorso, o desgosto, a vergonha
pesavam como anéis de chumbo em suas pálpebras.
- Para que fizeste isto, Lourenço, com o pobre rapaz? perguntou-lhe Francisco. Já me viste fazer alguma vez
coisa semelhante?
- Eu não fiz isto por vontade – respondeu ele. Não me pude conter quando o vi. Lembrei-me do que tinha
acontecido, e tive ímpetos de vingar-me. O ensino que vosmecê e minha mãe me deram, não pôde vencer em mim o
arranco que me atirou para aquele de quem eu guardava uma grande ofensa. Além disso, ele me maltratou de novo, e
me descompôs. Mas não foi por vontade, foi sem querer que eu o empurrei para dentro da carvoeira.
Era o mau natural, ainda não vencido de todo pelos edificativos exemplos e ensinos da família, o que tinha
levado o rapaz a praticar tão feio ato.
- Que havemos de fazer para castigar a Lourenço sem pau nem pedra? perguntou Marcelina a Francisco.
- Procura lá em teu juízo um meio, Marcelina. Eu não quero dar-lhe pancadas.
- Eu nunca lhe pus a mão senão para o acomodar ou limpar.
Pois vê lá o que se deve fazer. A ação foi ruim, e deve ter um castigo. Neste momento entrou a Quiteria, que
vinha saber como tinha o filho passado a noite.
- Olhe, sinhá Marcelina, disse a negra, o que mais sinto é meu filho perder tantos dias de serviço.
Que quer dizer isto? Inquiriu Marcelina. Pois a única ocupação dele não era botar sentido aos cajueirais?
- Esta era a obrigação que lhe deu meu senhor. Mas o tempo chegava para mais, e Benedicto já tinha ajustado
limpar as canas e a roça de um homem chamado seu Zeferino, que tem o sitio nos fundos da campina de meu senhor.
Marcelina refletiu um momento, ao cabo do qual tornou á preta:
- Quero dizer-te uma coisa, Quiteria. Se o ajuste está feito, não digas nada ao Zeferino, que eu mando uma
pessoa fazer o serviço. A paga fica pertencendo sempre a Benedicto.
Como é isto, sinhá Marcelina? Pois vosmecê me faz esta esmola, minha senhora? Oh! fico-lhe muito agradecida. E
quem é a pessoa que vai fazer o serviço em lugar de Benedicto?
- É Lourenço.
- Seu Lourenço?
- É ele mesmo. Não foi ele que o botou dentro da cova?
A negra nada mais disse, e Francisco, sabendo da resolução de Marcelina ou, antes do castigo de Lourenço, aprovou-o
com satisfação.
Quando Benedicto se deu por pronto, Quiteria e Moçambique o vieram buscar.
Traziam estampado nos semblantes o contentamento.
Tinham recebido os cobres do Zeferino, o qual só fazia gabar o serviço de Lourenço. Os negros agradeceram
pela ultima vez a bondade de Marcelina, e quando iam a sair, esta os fez parar e lhes disse:
- Quando Lourenço foi fazer a limpa no sitio de Zeferino, havia oito dias que Benedicto estava de cama, não é
verdade, Quiteria?
- É, sim senhora.
- Eu não quero que Lourenço fique devendo ao filho de vocês nem uma hora.
- Está tudo pago, está tudo pago já e repago, minha senhora – disse Moçambique.
- Não está; eu sei o que estou dizendo. O trabalho de meu filho nesses oito dias é aquele.
E indicou uma porção de cestos e esteiras de cangalhas que estavam amontoados a um canto da casa.
- Tudo isso pertence a Benedicto. Não me deixem uma só esteira, nem um só cesto; levem tudo. Vendam,
dêem, façam deles o que quiserem. Está completo o castigo de Lourenço. Com o seu próprio trabalho remiu ele a sua
culpa.
Lourenço que assistiu á solene entrega desses objetos, filhos das suas mãos, viu com lagrimas nos olhos eles
passarem do seu poder para o daquele cuja vida pusera em perigo, e a quem dera tanto que padecer.
Mas nada disse. Os olhos baixos, o semblante abatido, o coração abalado, compreendeu, do modo mais natural
e positivo, que todo mal que praticasse dali por diante a outrem, seria praticado consigo próprio, não resultando em
ofensa a sua pessoa, mas privando-o do resultado de sua atividade, que fosse necessário á respectiva indenização.
Nunca ele tinha compreendido tão bem, como nesse momento, que o homem que menos mal faz, é o que está
menos sujeito ao mal.
Quando os pretos saíram satisfeitos e agradecidos, Marcelina dirigiu estas palavras ao filho:
- Estás vendo, Lourenço? Trabalhaste dois meses inteiros para um moleque cativo.
- Foi porque vosmecê quis – disse ele, despeitado.
Não, foi porque assim devia ser. De ninguém te deves queixar senão de teu mau natural, de ti mesmo. Deus queira que
esta lição te aproveite. Lá se foi grande parte das tuas economias. Ficaste mais longe do que estiveste de poderes
comprar um engenho.
Lourenço respondeu:
- Trabalharei de dia e de noite, e em pouco tempo hei de recuperar o que perdi. Vosmecê há de ver.
- Deus permita que isto aconteça.
Nesse momento entrou o padre Antônio, a quem os negros tinham contado o que pouco antes se dera.
Venho dar-te os parabéns, Marcelina, pelo modo como castigaste teu filho. Aprovo muito esta teoria. A pena de
detenção corporal, quero dizer a prisão, não repara o mal que vem do crime. Traz um constrangimento, um sofrimento
físico ao delinqüente, mas é estéril, sem resultado. Com excepção do crime de morte, o qual nem pela pena de morte se
pode reparar, todos os mais crimes podem achar justa reparação no trabalho. Ao crime de morte mesmo é possível ás
justiças arbitrarem uma reparação razoável. Fizeste muito bem. e tu, Lourenço, não botes fora a lição, que de muito te
há de servir na vida. Trabalha e tem fé na Providencia.
IX
Pouco distante do Cajueiro tinha Victorino sua casinha em um alto entre dois vales, por um dos quais desciam
uns canaviais escassos que ai plantara, enquanto pelo outro apontava a roça graciosa que ele sempre trazia limpa e
parecia sorrir feliz a todos.
Não foi preciso que decorresse muito tempo para que Victorino e Francisco se aproximassem, e suas famílias
criassem relações. A família de Victorino compunha-se de sua mulher, por nome Joaquina, e de Marianinha e
Bernardina, filhas do casal.
Levado da simpatia natural que lhe inspiraram Francisco e Marcelina, convidou-os Victorino para padrinhos de
Marianinha, que contava por então seus três para quatro anos. Este novo laço veio estreitar mais as duas famílias
matutas, que já se sentiam presas por mutuas inclinações.
Por isso, era natural – e assim aconteceu – que na primeira ocasião Francisco levasse Lourenço á casa do
compadre, o qual já o conhecia da garapeira, e dele dera noticia circunstanciada aos seus.
Acharam ali o menino muito bonito, muito forte, e especialmente muito artista. Este ultimo dote de Lourenço
não obstou porém a que tivessem logo para ele vistas particulares o pai e a mãe de família. No mato ainda hoje se
contratam casamentos com grande facilidade e antecipação; ainda bem uma menina não se põe moça nem um menino
rapaz, quando os pais falam em uni-los pelos laços do santo matrimonio e assim que atingem a idade necessária, os
noivos são recebidos á face da igreja. O melhor é que essas uniões prematuras quase sempre produzem bons frutos.
Contrariamente sucede nas cidades e capitais adiantadas. Aqui não direi os casamentos assim contraídos, mas até
aqueles a que precederam longos noviciados, não são muitas vezes suficiente seguro de paz e felicidade no lar.
Poucos anos depois da apresentação de Lourenço em casa de Victorino, já Marianinha, que desde os primeiros
tempos sentira grande inclinação para ele, alimentava a esperança de ser sua mulher. Era isto o resultado das
conversações particulares na casa do forasteiro, das comentações e gracejos das meninotas das vizinhanças, enfim das
suposições dos conhecidos a quem não eram estranhas as relações das duas famílias.
Não tinha então Marianinha mais de doze anos, mas já pensava na falada união com tal constância e satisfação
que só com isso se considerava feliz. Lourenço era o passarinho verde dos seus sonhos infantis, a feiticeira imagem que
tinha o primeiro lugar nos seus brinquedos de bonecas, e lhe enchia o espirito de suavíssimo esplendor, de dia quando
ela trabalhava, de noite quando se entregava ás enganosas cismas da primeira idade.
Ao menino já não sucedia o mesmo que á menina. Se estava alegre e brincão, bastava falarem no casamento,
para que em seu rosto se mostrassem indícios de desprazer. Fugia, amuava-se, e só aparecia de novo dai a tempos.
Outras vezes vingava-se das finezas de Marianinha respondendo com demonstrações de pouco caso.
Eis o que aconteceu um dia em que se achou com Francisco em casa de Victorino, por ocasião de uma arranca
de feijão.
Os dois dias anteriores tinham sido empregados neste serviço. Em frente da casa viam-se os couros estendidos
sobre os quais Victorino, a mulher, as filhas, e seu sobrinho Saturnino tinham atirado a erva trazida ás braçadas da
plantação.
Com três tigelas de feijão mulatinho, uma do feijão branco e outra do preto que Victorino plantara pela várzea
que ficava do lado da casa e pelos pés dos altos que do outro lado a cercavam, esperava ele apanhar tantos alqueires que
lhe dessem para todo o ano. Parece que o calculo não ficou longe da realidade, visto que no serviço da arranca andaram
empregados durante dois dias todos aqueles braços.
Ao dar com os olhos sobre os grandes montes de vagens e ramas atiradas em cima dos couros, disse Francisco:
- Sempre cuidei que eu bateria primeiro o meu feijão do que você o seu, compadre Victorino. Vejo agora que
me enganei.
- É verdade, compadre Francisco.
- E boa apanha fez você. que putici! Dá bem seus dois alqueires.
- É quanto espero apurar.
- Mas parece que ainda era cedo para arrancar esta erva. Vejo ainda tantas vagens zarolhas entre as secas.
Nem por isso. Ele já estava estralando ao sol mesmo no pé.
- Como está a comadre? Como passam as meninas?
- Nenhuma quer morrer, não, meu compadre.
- Fazem elas muito bem.
- A comadre como ficou?
- Trabalhando com seus cestos.
Apareceu nesse momento Joaquina na porta da casa, as mangas do vestido para baixo, o cabeção de rendas á mostra, os
pés no chão.
- Por isso é que o dia amanheceu tão bonito. É porque o compadre Francisco tinha de aparecer hoje por aqui.
- Não presto mais para nada, comadre. Mas porém já fui um cabra mesmo pimpão. Muita mulata bonita já se
remexeu por mim ouvindo-me cantar ao som da viola, em noites de luar. Hoje deixo isso para esta mocidade que se está
enfeitando, para esses frangotes que como a nossa criação vão enchendo os nossos terreiros.
E apontou para Lourenço e as raparigas que nessa ocasião conversavam entre si. Estas não se demoraram a vir
cumprimentar o matuto. Marianinha chegou-se para bem parto dele, e, estendendo a mão direita, disse, corada e
confusa:
- Sua benção, meu padrinho.
- Deus te dê um bom marido.
- Isto é que é o mais custoso – observou Joaquina.
- Há de aparecer, há de aparecer, tornou Francisco.
- Também se há de ser algum vadio, algum preguiçoso que não tenha animo nem para peiar um cavalo,
melhor será que esteja ela solteira ai dentro de casa, acrescentou Victorino.
Neste tom correu a palestra ainda por alguns minutos, Lourenço conversando a maior parte do tempo com Bernardina, e
Victorino e Joaquina com Francisco.
Entretanto o dia ia crescendo, o sol subindo e o feijão estalando no terreiro: o que levou Francisco a dirigir esta
pergunta ao compadre:
- Para quando guarda bater o feijão?
- Estou esperando por meu sobrinho Saturnino, que ficou de voltar, mas ainda não chegou.
Ora! Aqui estou eu e o Lourenço para o ajudarmos. Eu não tenho que fazer hoje. Dei este salto até cá por distrair-me.
- Pois se você quer, vamos a isso.
Francisco chamou pelo pequeno. Para terem mais desembaraçados os movimentos, tiraram as camisas; assim – nus da
cintura para cima – ficaram inteiramente á vontade e conformemente ao costume do campo. Cada um pegou então do
seu cacete, e começaram a surrar a grande tulha que primeiro se lhes ofereceu á vista.
As mulheres, pelo sentimento de pudor que lhes é natural, especialmente no campo, não obstante lhes faltarem
as saudáveis praticas, presente da educação, tinham-se recolhido antes á sala da casa, e ai se entregaram a diferentes
gêneros de ocupações. Bernardina, sentada em uma esteira de juncos, e Marianinha em um couro de cabra, faziam
companhia, tendo cada uma entre as pernas sua almofada com vistosas rendas, a Joaquina que, pousada no chão, com as
pernas estiradas uma sobre outra, fiava em um fuso pastas de alvíssimo algodão que ela ia tirando de dentro do balaio,
onde trazia um montão delas abertas.
Dai a pouco Bernardina entrou a cantar para se umas letras matutas, enquanto sua mãe repetia os pés de um
bem-dito que de costume tirava sempre que se punha a fiar. Era lembrança da missão que um capuchinho fizera em
Goiana anos atrás. Marianinha guardava silencio. Ouvia com atenção as toadas das duas cantadeiras, porém mais
atentos do que os ouvidos tinha ela os olhos , que de quando em quando levava furtivamente da renda a Lourenço por
uma aberta da porta pela qual entrava com a imagem do rapaz um pedaço de céu azul.
O amor que Marianinha votava a Lourenço, vinha dos primeiros anos, mas já era ardente, continuado,
exclusivo. Nasceu no momento em que o menino foi apresentado á família. Remontemo-nos a esse momento. Victorino
tinha dado do menino as piores informações; mas sua filha o achou tão bonito que ficou escrava dele. Tinha ido
Victorino abrir um roçado dentro da mata que lhe ficava por traz da quadra de terra que o senhor do engenho lhe dera
para cultivar. Como não era muito grande o espaço concedido, da casa ouvia-se o ruído que, ao cair, produziam com as
folhas e as arvores derrubadas pelo poderoso machado foreiro. Ao ruído das arvores, ao ciciar das por entre a
folhagem de um pé de massaranduba que ficava de um lado da casinha, ao cantar dos chechéus poisados esse momento
sobre as bananeiras do quintal, Marianinha, que na ocasião de chegarem os hospedes, estava no terreiro brincando com
suas bonecas, sentiu que despertará novo sentimento em seu coração. Esse sentimento não se confundia com o que ela
experimentava minutos antes ouvindo os mesmos rumores e o mesmo canto; era diferente, posto que acompanhado do
mesmo natural cortejo.
A manhã estava esplendida. O sol aquecia, sem queimar, as plantas e os animais, vivificando-os. As vastas
sombras dos matos e dos oiteiros, projetando-se sobre o capinzal donde iam desaparecendo os últimos pingos da
orvalhada brilhante da noite, poder-se-iam comparar com as folhas fechadas de um livro imenso -–o livro da natureza.
Poucas horas depois essas folhas estavam de todo abertas, a luz patenteava nelas muitas belezas, que a sombra ocultava
antes, a saber, as moitas figurando ninhos virados, as flores inodoras, mas lindas, que costumam nascer pelos sopés das
montanhas, as rolinhas, de duas em duas – modelos da união dos dois sexos estreitada pelos laços do afeto natural,
modesto e sóbrio que Deus plantou no coração dos irracionais, e que só a razão, ou antes, a obliteração dela perturba na
espécie humana – depinicando silenciosas, a fazer voltas em sentidos opostos e a encontrar-se depois, como para
afirmarem mutuamente que nunca jamais se separariam, a não ser momentaneamente. Nenhuma dessas manifestações
da vida campestre, nem mesmo o conjunto de todas elas, tinha despertado no coração de Marianinha o sentimento
brando e indefinível que ela começou a conhecer dali por diante. Francisco e Lourenço não se demoraram, tiraram para
a mata a falar com Victorino; a impressão porém que a assaltou, quando ela viu pela primeira vez o menino, e que
depois, acrescentada pelas relações de amizade e pelo tempo, se agigantou a ponto de constituir-se um mundo, uma
imensidade, essa perdurou para sempre não só em seus olhos, enchendo-os de novos brilhos, mas em toda a sua alma,
povoando-a de nuvens rosadas e de paisagens verdoengas.
Eis porque Marianinha olhava agora ás furtadelas para o rapaz, achando graça particular no modo como ele
botava o cacete sobre a tulha do feijão.
X
Seriam dez para onze horas quando deram principio ao trabalho.
Com o calor e as cacetadas os caroços entraram a separar-se dos longos estojos. Duas horas depois um montão
de pó cobria grossa camada de sementes alvas e luzidias. Então os batedores suspenderam os cacetes e entraram para
descansar. Victorino foi direitinho a uma botija que estava sobre a mesa, e derramando aguardente dentro de uma
xícara, ofereceu o refrigerante licor ao compadre. Este não se fez rogar; de um trago enxugou a vasilha. A Lourenço,
que não bebera do espirito, ofereceu nesse momento Marianinha uma tijelinha com cajuada. A menina tinha preparado
com suas próprias mãosinhas este refresco. Já então se achava ai o Saturnino, que não podendo ver com bons olhos o
agrado, quis, com o pretexto de gracejar, toma-lo das mãos de Lourenço. Este porém entregou-o, sem a menor oposição,
ao sobrinho de Victorino, dizendo-lhe estas palavras:
- Tome para você. Não gosto de ponche de caju.
Marianinha, corando de contrariedade e confusão, voltou a trocar os bilros em sua almofada. Ela não queria mal ao
primo, mas desde esse momento começou a trata-lo com manifesta frieza.
Entrava a esse tempo na sala a Bernardina trazendo um pedaço de cana. Lourenço foi-se a ela, no momento
mesmo em que a menina o oferecia a Saturnino, e o arrancou da sua mão com surpresa. Esta violência irritou a moçoila
que sem hesitar se atirou ao rapaz, a fim de retomar a propriedade. Ele resiste. A resistência leva a rapariga a insistir
cada vez mais na sua resolução. Agarram-se os dois corpo a corpo. Agarrarem-se assim foi o mesmo que se abraçarem
naturalmente. Os cachos dos negros cabelos da matutinha roçam pelas faces do travesso rapaz. Com ou sem intenção,
conchega este aos seus seios os seios boleados da rapariguinha gentil e ofegante. Era já tempo de Saturnino interpor-se
e ele, compreendendo a gravidade da luta, não se fez esperar.
Separam-se logo os discordes, um deles – Lourenço – com o pedaço do doce fruto disputado, o outro
Bernardina – com as mãos vazias.
- A cana não é para você, Lourenço – disse ela, resmungando com raiva. Eu a guardei par Saturnino.
- Ora, deixe-se disso – respondeu o endiabrado rapaz. saturnino ainda achou pouca a cajuada que lhe dei? Se
quiser cana, vá corta-la na baixada. Esta é minha. Está doce que sabe já a açúcar.
Travou-se então um dize tu, direi eu que só teve fim quando os rapazes foram chamados pelos velhos para
continuar o serviço interrompido. Ao sair para o pátio, Lourenço, pondo os olhos casualmente em Marianinha, achou-a
pálida e séria como nunca a vira. A menina tinha a vista pregada na renda, como estava esta pregada na almofada pelos
espinhos de cardeiro que nela serviam de alfinetes, segundo era de costume por esses tempos entre os pobres.
Marianinha não teve mais para o seu noivo in peto olhares nem sorrisos nem atenções durante o restante do dia. Quando
á tardinha, levantado o papelão, que Joaquina lhe dera por tarefa, ela foi com sua mãe e irmã sessar o feijão na urupema
para o expurgar da areia e do barro original, a menina tinha no rosto a grave expressão que é própria não da filha mas da
mãe de família. O despeito e o ciúme mordiam pela primeira vez seu coração, antes merecedor do contentamento
inefável a que ela aspirava, do que do pesar profundo que ai tinham deixado os dentes envenenados destas duas
serpentes interiores. Assim se passou esse dia, que projetou sombria nuvem, em forma de espectro ou de ave agoureira,
na imaginação da pequena.
Tempos depois Francisco, levando em sua companhia Lourenço, fez nova digressão á casa do compadre.
Eram todos no roçado quebrando milho, que devia ser batido como fora o feijão.
- Sempre chego em ocasião de trabalho, compadre Victorino, disse Francisco.
- É verdade.
- A razão é porque meu compadre Francisco é muito trabalhador, observou Joaquina.
- Adeus, meninas.
- Sua bênção, padrinho, disse Marianinha.
- Boa tarde, seu Francisco, acrescentou Bernardina.
Lourenço deu o andar para onde estava esta ultima, e baixinho lhe perguntou:
- Lembra-se ainda do pedaço de cana? Está zangada comigo?
- Eu não, respondeu ela.
- Eu fiz aquilo somente para meter raiva a Saturnino.
- E você para que é mao, Lourenço?
- E você para que faz tantos agrados a ele?
- E você que tem com isso?
- Bernardina! Bernardina!
É melhor que vá se importar com Marianinha, que é sua noiva e mais dia menos dia virá a ser sua mulher.
0 semblante de Lourenço fechou-se subitamente. Mais depressa nuvem escura não cobre a face risonha de
estrela gentil e namorada.
- Está bom, disse ele com visível contrariedade. Eu não quero destas graças comigo.
E pois estavam conversando em vozes tão moderadas que ninguém podia ouvir o que diziam. Francisco, a quem não
pareceu muito agradável este colóquio, dirigiu-se nos seguintes termos ao filho:
- Ó Lourenço, vai ajudar ali a comadre, que mal pode com aquele braçado de espigas.
Em vez de levar a mal, o rapaz aceitou com as duas mãos o recurso, que se lhe oferecia, e foi prestar os seus serviços á
Joaquina, não só tomando sobre se parte da carga que ela trazia, mas quebrando o milho maduro que encontrou em suas
proximidades.
O aspecto do roçado era o mesmo que oferece qualquer destas plantações em ocasiões idênticas.
Em um ponto central via-se um montão de espigas secas. Junto delas estava Bernardina sentada sobre umas
palhas. Sua obrigação consistia em as ir descascando e prendendo depois, de duas em duas, pelo filete de palha, de
propósito deixado em cada uma para facilitar não só o trabalho da contagem senão também o da condução. Depois de
assim atadas, atirava-as para outro ponto, do qual tinham de ser levadas para casa.
O milharal, posto que na mór parte ainda de pé, estava quase todo seco. As espigas volviam-se para a terra que
alguns pés, dobrados pelos ventos fortes, beijavam com os pendões em sua maior parte despidos das flores de que se
compunham.
Quebrando aqui, ali, os frutos, foi-se Francisco metendo pelo roçado a dentro até chegar ao lugar onde estava a
filha mais nova de Victorino.
- Venho ajudar-te, Marianinha, disse ele.
A menina tinha sobre os ombros alguns atilhos, de sorte que parte das espigas lhe caiam por cima dos seios e parte se
derramava pelas costas.
- Para que tem esse trabalho, meu padrinho? Estamos já acabando.
- Como me acho aqui, quero perguntar-te uma coisa. Tu estás mal com Lourenço?
- Porque vosmecê pergunta isso?
Porque ainda há pouco vi todos falarem com ele, menos tu. Que é que houve entre vocês? Eu não gosto de
malquerenças.
A menina parou involuntariamente. Seu braço direito que nesse momento ela tinha alçado para uma espiga, descaiu
como se força oculta e desconhecida o fizera gravitar para a terra. Os olhos, vencidos pela mesma influencia, tendo
relanceado primeiro para o matuto, cravou-os ela irresistivelmente no chão.
Conhecendo que tocará em uma ferida encoberta, Francisco adiantou-se a diminuir-lhe o vexame.
Eu sei que tu gostavas do Lourenço até bem pouco tempo. Como é que aparece agora esta rixa?
Passado um instante, a rapariguinha respondeu, aceso o rosto em suave rubor:
- Mas ele não gostava de mim.
- Quem foi que te meteu isso na cabeça?
- Era preciso que alguém me dissesse o que eu estava vendo com os olhos?
- Engano teu.
- Não estou enganada, não senhor. Lourenço não se importa comigo.
E tu não queres mais bem a ele? Anda, fala. Eu bem sei que tu gostas do pequeno. Se és capaz, nega.
Tomada da maior confusão, Marianinha não soube o que responder.
- Dize o que te pergunto – insistiu o matuto. Eu guardo segredo. Não tenhas vergonha de mim.
- Eu não sei disso – retorquiu a menina, entre satisfeita e triste.
- Não sabes? Então quem é que há de saber?
A filha de Victorino caio novamente na mudez de há pouco.
- Deixa estar, Marianinha, tornou Francisco.
Lourenço há de casar contigo. Se não for por gosto, há de ser contra a vontade.
- Contra a vontade? Não, assim não – disse ela.
- E porque não há de ser por gosto?
- Eu sei... Ele não me quer bem, não. Se ele quisesse, me tratava de outra moda. Como é então que ele te
trata?
- Eu não sei dizer como é, não, meu padrinho. Eu só sei que Lourenço é mau e ingrato.
Triste e cabisbaixa, a menina poz-se a chorar. Era muito intensa a dor que feria seu coração. Não chores, pequena, disse
Francisco abalado. Hei de fazer que ele venha a casar contigo. Pede bem a Nossa-Senhora-da-Conceição que eu não
morra. Tanto farei que ele mesmo é que me há de pedir licença para dar este passo.
Secreto pressentimento, porém, dizia á menina, não obstante este formal compromisso do matuto, que nem o coração de
Lourenço nem sua mão lhe pertenceriam jamais.
Entretanto a esperança que tais palavras infundiram em seu espirito, entrou ai como luz serena e divina.
Momentos depois, voltaram todos para casa, conduzindo as mãos-de-milho. A uns derramavam-se espigas
pelas costas, a outros caiam os atilhos dos braços, ou das mãos. Marianinha, enquanto os demais tinham a atenção
concentrada na colheita, volvendo em torno de se seus belos olhos, há pouco cheios de lágrimas, agora repletos dos
fulgores do contentamento intimo, que se revelava, não por palavra mas pela luz do olhar meigo, pelo rápido sorriso,
pela irradiação suavíssima do semblante, tinha bem diversos pensamentos. Nas sombras crepusculares que começavam
a cobrir a solidão ela descobria encantos e primores naturais, que momentos antes, de caminho para o roçado, debalde
buscara na verdura da natureza, formosamente iluminada pelo clarão imenso do sol.
Nem com entrar em seu espirito acompanhada das sombras e dos mistérios do deserto tinha para ela menos
brilho e formosura a esperança.
XI
Numeroso foi o concurso de pessoas de alta e distinta jerarquia durante a noite da véspera e o dia de S. João de
1711 no engenho do sargento-mór João da Cunha.
Esta respeitável campanha compôs-se dos cavaleiros que diremos: os irmãos André Cavalcanti, Luiz Vidal e
Cosme Bezerra; Filipe Cavalcanti, capitão de ordenanças; Jorge Cavalcanti, sargento-mór honorário, e filho natural de
André Vidal de Negreiros, o restaurador da Paraíba; Martinho de Bulhões, que veio do engenho Itambé, onde morava
com seu sogro Matias Vidal, a quem o dito engenho pertencia, bem como todas as terras da povoação fundada por
aquele restaurador. Além destes apontavam-se outros muitos proprietários e autoridades de Goiana, mais ou menos
ligados, por laços de parentesco, amizade ou dependência particular com o senhor do engenho.
Foi uma festa que muito deu que falar, não tanto pelo brilho, como principalmente pela concorrência. Dos
principais nobres da vila não faltou nenhum. A posição social e política de João de Cunha; sua procedência ilustre; seus
haveres geralmente tidos por avultados asseguravam-lhe grande respeito da parte dos seus vizinhos.
Houve quem viu no importante ajuntamento, logo que ele se anunciou pela voz da fama, um pretexto para
tratarem em família e em secreto os nobres de Goiana dos seus interesses ameaçados pelos mascates do Recife. Nem era
mister grande penetração para fazer esta conjectura, depois do rompimento destes contra aqueles, rompimento que se
realizou em 18 de junho do ano apontado, de uma para duas horas da tarde.
Para que fique inteirado do necessário o leitor que não for muito versado no conhecimento das lutas políticas
de nossa terra nos tempos coloniais, indispensável nos parece examinarmos aqui, posto que de relance, a causa da
agitação dos espíritos na época em que se passou esta historia.
De que procedeu o sobredito rompimento? De quererem os negociantes do Recife que esta povoação passasse
a vila, e de o não quererem os nobres da cidade de Olinda. Qual a razão de quererem os negociantes do Recife e de não
quererem os nobres de Olinda que passasse a vila aquela provação, que aliás já tinha sido cidade no domínio holandês,
por suas vantagens naturais, posição física, e principalmente por ser porto de mar e oferecer fácil ancoradouro? A razão
era porque, sendo o Recife quase em sua totalidade habitado por negociantes portugueses, passariam estes a ter, com a
elevação da povoação a vila, preponderância no senado da câmara, e por seus votos poderiam reduzir a nada, visto que
o seu numero era grande, os nobres da cidade na taxação dos gêneros, na arrematação dos contractos, enfim na
governança que até então tinha sempre andados nas mãos da nobreza da terra. Um cronista, contemporâneo da guerra
dos mascates, escreveu sobre este ponto as palavras que trasladaremos para melhor compreensão do leitor. São as
seguintes:
< A dar-se ao Recife o termo que o governador queria, perdia a nobreza do país; porquanto, igualando-se os
nobres aos mascates, e sendo estes muito mais numerosos, vinham aqueles a ser excluídos nos pelouros dos lugares da
republica; perdiam as rendas publicas na arrematação dos contractos, porquanto, sendo os arrematantes os mascates, e
compondo estes o senado, perante quem se arrematavam, vinham eles a ser juizes e partes, e a seu salvo podiam arredar
da arrematação os nobres que quisessem lançar; perdia finalmente toda a população produtora, porquanto, competindo
aos almotacés taxarem os preços dos viveres, e sendo o almotacé do Recife mascate, seguia-se, como se seguiu, que os
gêneros conduzidos a mercado pelos matutos se taxassem em preço mui baixo, e os que vendiam os mascates
taberneiros se estimassem em subido preço>.
Por onde se vê que nem era de todo sem fundamento o ódio que nobres e mercadores se votavam mutuamente,
nem a guerra a que esse ódio deu lugar podia faltar em rebentar com a veemência e crueza que a caracterizaram. Enfim,
a luta era menos de fidalgos e peões do que da agricultura ameaçada de ruína, e do comercio que aparecia como tirano.
Não há luta mais fatal e terrível em seus resultados do que a em que se empenham dois princípios que devem constituir,
nas épocas normais, um só elemento de prosperidade publica, servindo cada qual de complemento natural do outro.
Estamos por isso muito distantes dos que nesse memorável movimento querem ver, antes um testemunho de ridículos
preconceitos, costumes e educação dominantes no século próximo passado, do que a séria colisão de interesses que
ainda em nossos dias podem trazer, achando-se em desacordo como então se acharam, resultados ainda mais tristes e
lastimosos.
Enquanto as pretensões dos mercadores não passaram de tentativas malogradas, mantiveram-se as coisas em
saudável equilíbrio. As pretensões, porém, de que é alma o interesse pecuniário ou a ambição de riquezas dificilmente
se resignam a completa renuncia. Quando menos se espera, elas fazem explosão, e só então se reconhece que o silencio
em que por algum tempo estiveram a modo de sepultados, não foi o silencio da morte, mas da concentração espiritual e
o do estudo dos meios de dar vitoria á dita ambição.
O governador a que alude o cronista na passagem sobremencionada, era Sebastião de Castro Caldas. Não foi o
primeiro que chegando a Pernambuco e deixando-se quase dirigir por seus conterrâneos mais exaltados na sua pretensão
capital, representara a el-rei a favor da criação da vila. Antes dele já o tinham feito alguns outros, inclinados sempre a
proteger os interesses dos seus patrícios. Nenhum, porém, o fizera com tão fortes razões como o novo governador,
homem de grandes espíritos, de animo ousado e tão dado á pratica de ator de despotismo que o próprio rei lhe
estranhará asperrissimamente, em data de 7 de outubro de 1709 o <Ter invadido a jurisdição dos ministros, soltado
presos, mandado tirar devassas, suspendido no procedimento dele despoticamente, abusado das regias leis e provisões e
cometido outros absurdos e excessos de grande prejuízo á boa igualdade da razão e em grande dano da justiça dos
povos de Pernambuco.>
É fama que pouco tempo depois de haver entrado no exercício do seu cargo, um negociante lhe foi dizer (não
se sabe se havia verdade ou enredo na historia do oficioso senhor) que alguns pernambucanos tinham jurado repetir com
ele, se metesse a tomar o partido dos do Recife na criação da vila, o mesmo que seus antepassados tinham praticado
com o governador Jeronimo de Mendonça Furtado no século anterior.
A isso respondeu Caldas: - Se são nobres e têm, segundo dizem, por se o popular da capitania, repitam o
procedimento dos seus maiores. O que eu lhes asseguro é que não hei de imitar Mendonça Furtado, e que,
desembainhada a minha espada, não a meterei novamente na bainha antes de embebida no coração do primeiro
conjurado.
Não aconteceu, assim porém. Levado do capricho pessoal, ou do interesse, ou do ódio, ou da vaidade de dar
mostras de ser capaz de arrostar com a oposição da nobreza de Pernambuco em peso, fez reiteradas instancias ao
ministério e ao rei para que se realizasse a elevação do Recife a vila. Esta elevação foi afinal ordenada pela carta regia
de 19 de novembro de 1709; mas, como se verificaram logo no ato da divisão de novo termo grandes vexames e
violências, irritaram-se mais os ânimos de parte a parte. Caldas respondeu á reação dos pernambucanos notáveis
mandando-os prender. Foram do numero dos presos Leonardo Bezerra Cavalcanti, seu irmão Manoel Cavalcanti
Bezerra, Luiz Barbalho, Afonso de Albuquerque e outros. O triste exemplo, produzindo impressão de terror em vários
agricultores, obrigou-os a deixar suas propriedades e ocultar-se foragidos nos bosques. Enquanto porém alguns se
retiravam aterrados, a reação concertava na sombra a sua desforra. Assim que pelas 4 horas da tarde de 17 de outubro de
1710, por ocasião de passar o governador pela frente de uma casa desocupada da Rua-das-aguas-verdes, um tiro lhe foi
dai desfechado, não tendo sido parte para que o não fizessem os dois mandatários obscuros o ir Caldas acompanhado e
guardado por uma escolta de 25 homens.
Longe de o chamar á razão, o tiro, que mais parece Ter sido aviso de prudência do que meio de dar cabo do
poderoso inimigo, visto que, se esta fora a intenção, não teriam posto na arma tão pequena carga que, não obstante ser
muito curta a distancia, a bala produziu unicamente no governador ligeira escoriação, serviu antes para o arrojar de uma
vez no caminho do atentado. Bastava Ter contra se suspeita de cumplicidade no nefando delito da Rua-das-aguas-verdes
para qualquer ser atirado a horrorosa prisão. O capitão André Dias de Figueiredo foi talvez preso como cúmplice,
unicamente por Ter por nome o mesmo que o do juiz ordinário que em 1666 intimou ao governador Mendonça Furtado
a ordem de prisão em nome do rei. Enfim, foram tantos os excessos do governador Caldas, agora mandando abrir
devassas, agora ordenando prisões indevidas; ora estabelecendo presídios, como fez em S.Lourenço-da-mata e em
Santo_Antão, ora determinando que o povo fosse desarmado sem ter em atenção sequer estar iminente a invasão
francesa, segundo acertadamente pondera o nosso cronista, que, antes do dia 5 de novembro, em que devia romper a
revolução, rebentou esta por ocasião de pretender o capitão João da Mota prender o capitão-mór de Santo-Antão Pedro
Ribeiro da Silva. Foi em 2 do dito mês que, em lugar de Mota prender Ribeiro quando este ia ouvir missa na matriz, o
sitiou ele em seu próprio presidio e o obrigou a capitular com a condição de não voltar ao Recife enquanto o povo, que
tratava de reunir-se, não descesse a atacar a vila novamente criada. Enfim, no Domingo (10 de novembro) uma multidão
passante de 2.000 matutos tomou o Recife, e como não encontraram ai o governador, foram aquartelar-se em Olinda,
senhores da situação. Caldas tinha fugido de véspera para a Baia sem Ter cumprido a sua promessa de embeber, antes
de partir, a sua espada em corações pernambucanos.
Foi logo chamado a tomar as rédeas do governo, visto vir apontado na carta regia que prevenia as vacâncias, o
bispo d. Manoel Alvarez da Costa que se havia retirado, em visita pastoral, para a Paraíba com o ouvidor dr. José
Ignácio de Arouche pouco simpático aos do Recife por não Ter querido convir na ampliação do termo. D. Manoel volta
a Olinda e assume o exercício do novo cargo em 15 de novembro. O primeiro ato do seu governo foi perdoar aos povos
a sublevação e o tiro dado em Sebastião de Castro Caldas.
Como era natural, o perdão irritou os parciais do governador Caldas, os quais, não só pelos ódios próprios, mas
também pelas reiteradas sugestões que lhes chegavam do mesmo governador para que, por sua vez, rompessem contra
os do outro partido, assegurando-lhes que o rei não deixaria de levar a bem semelhante serviço, não pensaram senão em
tomar estrondoso desforço. Ou porque acreditassem piamente no que escrevia Caldas, ou porque o seu ódio não tinha
outro objetivo que o de aniquilar a nobreza, a quem deviam tão grande revez, que os havia prejudicado em seus
interesses e em sua política, os europeus, que esposavam a causa da reação, alimentavam em silencio os seus projetos
de vingança e aparelhavam-se com sagacidade e tino para o rompimento formal. Neste intuito levaram muitos meses a
prover-se de mantimentos. A farinha, o feijão, o milho, o arroz, o açúcar, a carne, o peixe entravam todos os dias para
os seus armazéns, onde ficavam em bom recato. Finalmente, no dia 18 de junho, aos gritos de <Viva el-rei d. João V,
morram os traidores> puseram eles nas ruas a revolta, tomaram conta das fortalezas do Brum, Buraco, e Cincopontas, e
no pressuposto de restaurarem a perdida autoridade de Caldas, consideraram o bispo suspenso de suas atribuições e o
recolheram no colégio dos jesuítas. Nomeando um governo monstruoso, composto de João da Mota e de um preto
mestre de campo do Terço-dos-Henriques, obrigaram o bispo a assinar ordens que importaram em os assegurar na posse
da situação, assim violentamente roubada á legalidade.
Fosse porém qual fosse o verdadeiro motivo da reunião no engenho Bujari, o certo é que nunca em sua casa
reuniu João da Cunha tão numeroso concurso de pessoas escolhidas, com ser costume de longa data ajuntarem-se ai por
S.João moradores de conta do lugar.
Não só por ser poderoso, senão também por ser homem de resolução e de gênio arrebatado, era João da Cunha
muito temido em todo aquele termo.
Uma tradição de sangue dava a seu nome e família triste celebridade. Contava-se que varias pessoas, das quais
algumas por faltas muito leves, tinham sido mandadas matar por sua ordem e enterrar depois na bagaceira. Mais de um
negro tinha morrido nos açoites, e de um até se dizia que fora atirado vivo, não sabemos por que motivo, na fornalha do
engenho, onde morreu queimado.
Naqueles tempos tradições semelhantes, em vez de diminuírem o tamanho moral do herói dessas repugnantes
ilíadas, recomendavam aos povos os sanguinários Achiles, que por este modo se faziam conhecer e celebrizar.
Por isso todos tinham pelo senhor do engenho Bujari profundo respeito; e se seu nome não vem apontado nas
incompletas chronicas do tempo, como muitos outros, que não obstante pertencerem a notáveis sujeitos, ficaram
inteiramente esquecidos, a tradição ainda o não deixou desaparecer de todo no pó onde jazem sepultados os que por
circunstancias inexplicáveis não puderam sobreviver aos acontecimentos.
Recebendo a influencia do tempo, da educação, dos preconceitos inveterados e dos exemplos de todo o dia, a
mulher de João da Cunha, d. Damiana, que procedia, como seu marido, de troncos limpos, não lhe cedia a palma em
altivez, posto que de seu natural era branda e benévola.
Até a idade de 12 anos, D. Damiana morou, para assim escrevermos, em casa dos pais de João da Cunha. Sua
mãe era parenta muito chegada do casal fidalgo, e costumava passar tempos no engenho onde moravam.
Quando ela morreu, d. Damiana não contava mais do que 15 anos. O pai desta tinha falecido dez anos atrás.
Circunstancias especiais influíram diretamente para que, sendo ele um dos mais abastados agricultores do termo de
Goiana, só deixasse por morte á mulher um nome honrado e ilustre, herança que esta transmitiu mais aumentada, porém
ainda muito menos brilhante do que a recebera, á sua filha.
Dos cinco anos até casar-se pode dizer que a jovem senhora viveu á sombra do rico fidalgo, pai do João e de
Amador, de quem oportunamente se tratará. Por esse tempo João da Cunha já tinha contraído o seu primeiro casamento.
Enviuvando anos depois, contraiu o segundo com d. Damiana, que, já se achando presa á família pela gratidão que lhe
devia, entrava agora em suas relações intimas e começava a fazer parte dela por laços mais perduráveis.
O senhor de engenho achou em d. Damiana afeições duplas – as de esposa e as de filha. Sua mulher, que já
tinha para ele respeito, votava-lhe agora estima conjugal, que trouxe ao senhor de engenho uma reprodução da
felicidade que gozara na constância do primeiro matrimonio.
Quando d. Damiana punha sobre ele seus grandes olhos negros e ternos, João da Cunha sentia no intrínseco de
sua alma uma impressão de brandura, que era talvez o reflexo da benevolência da esposa penetrando na dureza natural
do coração do marido, como raio de luar em profunda e escura caverna.
Então o porco selvagem fazia-se escravo da juruti meiga e naturalmente elegante. Voltava-se todo para ele e
ficava como em contemplação ascética. Os cabelos abundantes e pretos, a rosto emoldurado em oval corretíssima, a
cútis morena, fina e rosada, o nariz levemente erguido na ponta, a boca representante de altivez e bondade ao mesmo
tempo, faziam de d. Damiana um como centro luminoso diante do qual o orgulhoso e duro João da Cunha sentia
deslumbramentos.
A influencia, porém, que a mulher exercitava sobre o senhor de engenho, não era absoluta.
Quando João da Cunha tomava uma resolução sobre objeto grave; quando seu orgulho exigia dela o
preenchimento de um dos seus caprichos, leis do seu caracter, nem o olhar, nem o sorriso, nem a meiguice, nem as
lagrimas dela venciam a dureza marmórea do espirito, que de outras vezes parecia de cera.
XII
O engenho Bujari estava situado em um ponto de que inteiramente se perdeu a memória. O que se sabe ainda,
pela tradição oral, é que, tendo ele ficado, pelo tempo adiante, todo em capoeira em conseqüência do longo desamparo,
veio a confundir-se com a mata virgem. O engenho que traz hoje esse nome, fundou-se muito depois do
desaparecimento do primeiro.
Nesse tempo – áureo período da vida do respectivo proprietário – era ele uma das mais importantes
propriedades rústicas de Goiana, e a sua situação uma das mais formosas do termo.
O tempo, na forma do costume, não respeitou as prendas naturais e ainda menos as obras de grosseira
arquitetura da grande propriedade de João da Cunha. No lugar onde foi a casa-de-vivenda – sobrado acaçapado de
telhado enegrecido, que, por muito alto no centro, era a primeira parte da casa que se via de longe acima dos matos,
com seis janelas quadradas, entre as quais se rasgava a porta, para onde se subia por uma escada de tijolos grosseiros –
existe hoje seguramente uma renque de sicupiras colossais, cuja folhagem enche os vãos das duas salas fronteiras – uma
reservada aos hospedes, a outra á família – agora desaparecidas. Mais para o centro, no lugar dos aposentos interiores,
floresce o amarelo, o páo-d’arco, o jatobá. Na casa-de-purgar, que devia ficar á esquerda, nasceram cedros, que se
mostram gigantes, cobertos de cipós, que, entrelaçando-se com a vegetação circunvizinha, formam galerias e abobadas
naturais, onde não penetra luz e se acoitam durante o dia aves noturnas e cobras venenosas. Á direita, no lugar da
capela, é agora uma elevaçãosita, de que se atiram aos ares uns sambaquis, umas maniçóbas, uns marmeleiros, umas
cabuatãs, cujos ramos e folhas se entretecortam e amigam. Por onde corria a rua dos negros, composta de vinte a vinte e
cinco casinhas de cada lado, vêm-se adjuntos de embiribas e jucás. A casa-da-moenda foi substituída por um grupo de
colossais angicos. Enfim a atividade da grande propriedade passou, para dar lugar á serenidade, ao sossego, ao silencio
majestoso e solene da mata virgem. As obras da arte substituíram-se as produções, desde as mínimas até as máximas, da
natureza. Ao viver do homem sucedeu o do bicho bravio. Assim são as coisas deste mundo. No topo de uma civilização
germinam latentes as raízes de uma barbaria.
Uma exceção destaca-se, para confirmar a regra geral, do circulo vicioso em que giram, após vidas, gerações,
progressos humanos, os seres, ou antes, as forças indestrutíveis da matéria. Por entre uns paus secos aqui, umas moitas
enredadas ali, umas arvores frondosas além, arrasta ainda a existência um ente contemporâneo de João da Cunha. Está
mais selvagem, porém mais vivo e belo.
Suas forças não diminuíram, antes aumentaram. Em suas faces há risos continuados. Não lhe alvejam na fronte
as cans da velhice. Esse ente é o rio Capibaribe-mirim, de que em 1711 passava por dentro do cercado do engenho
Bujari, um braço cheio e vigoroso, o qual se estendia então sobre limpo e arenoso leito, enquanto hoje só o caçador ou
algum viajor transviado o vê dilatar-se por entre matos e por baixo de frescas e amenas sombras. Semelhante ás cobras
que rastejam em suas margens, ele serpeai desconhecido e caracola, ora brando e vagaroso, ora barrento e assanhado,
atravessando os próprios pontos onde no século passado brincava com a luz do dia e recebia os beijos da franca viração
dos descampados. As águas, com que refresca essa parte central da mata banham, antes de chegar ai, as povoações
denominadas Mocós e Timbaúba, únicos pontos populosos por onde passam. Toda a restante região que elas percorrem,
é solitária e erma. O morador do centro civilizado fez-se quase exclusivo habitante da solidão e da floresta.
O negro André, carreiro do engenho, tinha descarregado, no pátio da casa-de-vivenda muito antes do anoitecer
do dia 23 de junho de 1711, vários carros de lenha destinada ás fogueiras de S. João. De dispor os grossos tóros de
angico e cajueiro tinham sido encarregados três ou quatro parceiros daquele carreiro, de propósito dispensados com
cedo do serviço diário para este fim.
No sobrado habitualmente silencioso, notava-se a animação, o bulício que acompanham fatalmente esta festa
popular.
Viam-se senhoras na sala dos hospedes. Algumas delas eram mulheres, outras eram filhas dos nobres
proprietários convidados para a reunião; e conversavam sentadas nas cadeiras de sola com pregaria que guarneciam a
sala e das quais ainda se vêm algumas, que são como as relíquias do tempo em que representaram grande adiantamento
da arte.
A mobília, não obstante ser de uma casa em que se professavam hábitos de nobreza e riqueza, não era de dar na
vista; ao contrario, pouco adiantava á que se encontra presentemente em alguns engenhos, donde grande parte dos
hábitos daquele tempo não desapareceu inteiramente. Além das cadeiras viam-se dois canapés, também cobertos de
sola, três ou quatro bancas de acaju, e uma grande cômoda de nogueira com muitas ordens de gavetas. Sobre as bancas
havia alfaias de prata e sobre a mesa estava assente um candeeiro grande do mesmo metal. Pendiam da parede,
fronteiros e na mesma altura dois quadros em que apareciam retratados o senhor e a senhora do engenho.
A sala das mulheres, aquele momento deserta, atestava melhor o gosto, a educação e a mocidade de d.
Damiana. Sobre cômoda de formas menos pesadas do que o da sala contígua, certamente obra de fora, em que se
procurara entalhar uns longes do gosto de Luiz XIV, via-se um rico santuário de jacarandá, que, estando aberto, deixava
ver por entre ramalhetes de frescas flores naturais, formosas e ricas imagens, adornadas com seda, ouro e pedras
preciosas. Por junto da parede corria um estrado coberto de damasco, e fronteiro a ele mostrava-se o bufete de especial
estimação da aristocrática senhora. Um tear ao canto, bancas de jacarandá de delicadas entalhas e sobre as bancas
garrafinhas e frascos de vidro e cristal completavam, com o grande espelho afixado na parede, a sala particular de d.
Damiana.
Ao acender as fogueiras achavam-se os homens, não na sala-de-visitas, mas no aposento imediato – espécie de
gabinete onde tinha João da Cunha cama para descansar, papeis, roupas e armas.
Á luz amarelenta de um candeeiro, colocado sobre uma secretária de forma de piano, lia o senhor de engenho,
para os amigos ouvirem, as ultimas regras de uma carta que recebera de André da Cunha, morador em Olinda.
<Eis o extremo a que chegamos. Os mascates em armas, senhores do porto, das fortalezas e agora do governo,
visto que tem o bispo guardado por 150 soldados e ás ordens deles, tudo podem contra nós, enquanto nós muito pouco
ou coisa nenhuma podemos contra eles. Se o bispo tivesse espirito, ou se o seu espirito fosse tão grande como é o seu
coração, certo as coisas presentes seriam para nós pequenas. Mas é fraco e entende pouco de estratégias e ciladas. Que
força se pode esperar de um governador que se deixou cair, por moleza, nas mãos dos seus próprios inimigos?>
- Que havia de fazer ele? inquiriu Matias Vidal. Aquele feixe de virtudes não é para semelhantes lutas.
- É isto exatamente o que escreve André respondeu João da Cunha.
E prosseguiu a leitura:
< Enfim o Recife está cercado de trincheiras, fortemente guarnecidas de gente e providas de munições de guerra.
< Como não tenho certeza de que esta vá Ter ás suas mãos, por isso que a todo canto a nobreza se está picando
nos espinhos da traição, finalizo, rogando a Deus se sirva olhar por nós e por nossas famílias ameaçadas de toda sorte de
calamidades, das quais a menos crua será a morte.
< Olinda, 19 de junho de 1711. – André da Cunha.>
- Meus amigos – disse João da Cunha dobrando a carta e metendo-a em um dos escaninhos da secretaria – foi
menos para tomardes parte no meu prazer do que na desgraça da pátria, que me pareceu mandar chamar-vos á minha
casa. Estão consternadoras para nós – os pernambucanos – as coisas publicas. Comandada a força militar por Miguel
Correa, Manoel Clemente, Euzebio de Oliveira e Antonio de Souza Marinho, mascates conhecidos como odientos por
todos nós, aos filhos da terra não nos resta, a meu parecer, outro recurso que o de lançarmos mãos das armas. Devemos
acudir com as nossas fabricas e moradores, ao lugar do perigo, e ai castigar a audácia dos rebeldes. Este recurso deve
ser usado sem perda de tempo. Dar pancada mortal na cabeça da cobra peçonhenta.
Não obstante ser mais forte João da Cunha em preconceitos de fidalguia do que em eloquência, dote que vem
do berço mas que a cultura acrescenta e apura, suas palavras ressoaram, como ecos de discurso divino, nos corações dos
amigos.
Entre estes viam-se alguns que eram mais bem versados em letras e em orações incendiarias do que o sargento-
mór.
Contava-se neste numero Cosme Bezerra dentre todos os que ali se achavam o mais ardente membro da
nobreza, e o que, por sua força de vontade e grandeza de espirito, maior nome deixou nas crônicas do tempo, porque,
degredado para a Índia em 1713, dai não voltou mais á sua pátria. Era juiz ordinário e capitão de ordenanças. Tinha a
presença atrativa e gestos largos e arrebatados.
Cosme Bezerra, que foi dos primeiros que reagiram contra os mercadores, como dos que sofreram as
conseqüências dessa reação, quis tomar a mão em seguida do sargento-mór; mas antecipou-se-lhe Manoel de Lacerda,
ex-alcaide-mór; emprego que devera a seus longos e distintos méritos.
- Estou de acordo convosco, disse Lacerda a João da Cunha. Querem grande e rude lição esses que só têm
recebido de nós hospitalidade e favores? Pois satisfaçamos á sua vontade. Não gosto de violências; mas quando
sagrados direitos andam em perigo, não olho a desastres nem espero pelo dia de amanhã. O fogo, o sangue, a morte não
me amedrontam, nem o receio de ser vitima na luta me retém no regaço morno da vida domestica.
- Demais, observou Cosme Bezerra, que estava impaciente por manifestar-se sobre o assunto, nas atuais
circunstancias a guerra é inevitável. Certo, os mascates a esperam. Se nós não formos leva-la a eles, hão de vir eles
traze-la a nós. Das fortalezas passarão ás estradas, e por estas virão Ter ás vilas mais importantes e enriquecidos, menos
pela grandeza do seu trabalho do que do nosso coração e da nossa complacência projetam sobre as ruínas da agricultura,
levantar em pedestais de ouro o seu comercio ilícito e plebeu. Quem julgar que eles ficam ai, engana-se. eles põem a
mira em completar a obra do desmoronamento pernambucano, derramando o sangue daqueles que com os nobres
portugueses, e não com a gentalha de Portugal, sustentaram no mar e nos campos de batalha a honra e o poder da lusa
monarquia. Hão de ir mais longe ainda, porque em seu bestunto supõem, e até o dizem, que somos tão selvagens como
os índios que eles destruíram ou escravizaram. Armarão ciladas a nossa honra, tentarão manchar nossas famílias. Em
seus tenebrosos plenos, tem mais lugar a idéia de enxovalhar do que a de destruir a fidalguia, que os admitiu em sua
terra, levada de dó pela miséria deles. E havemos de consentir em que esta baixeza sem nome se tente praticar ainda que
não passe da tentativa? De modo nenhum. Cá por mim estou prestes para a luta e entendo que é tempo de a travar com
esses vis e ingratos hospedes.
- Este pontos está fora de duvidas, acrescentou Filipe Cavalcanti. Mas o essencial é assentarmos nos meios de
ferir a batalha. Temos gente pronta para seguir á metrópole da capitania? Convirá seguirmos? Ou será mais prudente
esperarmos que de lá se nos peça o auxilio das nossas forças! A meu parecer são estes os pontos mais importantes e
graves da presente conjuntura.
- E que mais esperaremos? Inquiriu Jorge Cavalcanti. A luva está atirada, e embora nos venha de vilão,
cumpre-nos apanhá-la para castigarmos a vilania.
- A nobreza da capital, ajuntou Cosme Bezerra, está ameaçada. A tardança no socorro poderá trazer males
irremediáveis.
Estava neste ponto a discussão, quando Matias Vidal tomou a mão, e disse:
- Senhores, tudo o que acabo de ouvir de vossas bocas, parece-me inspirado pelo principio da própria
conservação de cada um de nós, pela dignidade da nobreza pernambucana, e pelo amor da terra de que os forasteiros
querem assenhorear-se. Mas quem nos afiança que não estamos já ameaçados também de perdermos as nossas vidas e
propriedades? Honroso seria corrermos imediatamente á capital, afim de reforçarmos a sua defesa; mas um dever que
me parece superior a todos, exige talvez a nossa presença no seio das nossas famílias. Teremos acaso tão seguros estes
penhores da nossa estima que possamos, sem risco, deixa-los entregues a se próprios, enquanto vamos auxiliar os
nossos parentes e amigos longe daqui? Certamente o plano dos forasteiros ficaria abaixo das suas ambições se nele
entrasse o pensamento de se hostilizar a nobreza dos arredores da vila de fresco criada. Tudo ao contrario faz crer que
eles conspiram contra a nobreza de toda a província, porque sem a destruição total dela não poderão ficar senhores de
todo país. Não moro na vila de Goiana, mas lá mesmo no meu mato soube que o ouro dos mascates andava por aqui nas
mãos de baixos comissários.
- Tendes razão, tendes razão – disse Manoel de Lacerda. O que dizeis é verdade.
Antes de montar a cavalo para vir a esta reunião, disse-me um dos meus lavradores que soubera terem sido distribuídos
em Goiana, donde chegava, 14,000 cruzados para a compra de gente que apoie a causa dos mercadores. Se isto é
verídico...
- É verídico – disseram muitos dos que se achavam presentes.
Se assim é, prosseguiu Matias Vidal, não será imprudência desampararmos nossas casas, que, privadas de nosso encosto
e sem nenhum meio de defesa, visto que teremos de levar conosco as nossas escravaturas, ficarão expostas a grandes
desgraças.
A estas palavras, que saíram fracamente dos lábios de Matias Vidal, como dentre duas pedras caem gotas de
água nativa, seguiu-se um momento de silencio. Nelas vinha um cunho de madura prudência que abatia e resfriava os
ímpetos e os éstos dos precedentes oradores. Aqui estava o pai de família, o agricultor, o matuto, sem exclusão do
patriota. A inspiração sensata, a lúcida intuição que adivinhava os perigos próximos, ao mesmo tempo que via os
remotos já descobertos, tomaram o lugar aos assomos da soberba de João da Cunha, da valentia de Lacerda, da ardência
de Bezerra, e apresentaram a solução natural do grave problema que os trazia ali reunidos.
- Ela é verdade – disse primeiro o ex-alcaide-mór, como quem caia em se e via agora de todo clara a situação
há pouco envolvida em densas trevas. Junto, em torno de nós, mandatários disfarçados espreitam os nossos passos para
os denunciarem aos mandantes, nossos inimigos.
- Que diz você a isto, irmão André? Perguntou Luiz Vidal a André Cavalcanti, que atento ouvira os vários
conceitos dos conferentes.
- Digo que o nosso primeiro empenho deve consistir em tratarmos da nossa própria defesa. Estou por isso
inteiramente de acordo com o parecer de Matias Vidal. Quem sabe se dentro de poucas horas não teremos de haver-nos
com revolta idêntica á do Recife?
- Nem devemos esperar coisa diferente – disse Jorge Cavalcanti.
- A que fim, senão a este, mandaram para cá os mascates o seu ouro? Observou José de Barros.
Ontem corria nas lojas e tabernas de Goiana – disse Manoel de Lacerda, que um motim se preparava contra a nobreza.
Antonio Coelho, cuja audácia todos nós sabemos, nunca se mostrou tão derramado em arrogancias e insultos. De noite
houve ajuntamento em sua loja, ajuntamento que só se desfez quando já era noite alta e depois de muitos urras, que
ressoaram nas vizinhanças. Certo está Antonio Coelho incumbido de dirigir o movimento.
- Bom será que o não percamos de vista, disse João da Cunha.
Hoje de manhã, passando eu pela frente de sua casa, vi-o fazendo gestos no balcão. Estava, ao parecer, ébrio; não tinha
curtido de todo o vinho que bebera na véspera, porque lhe ouvi palavras insultuosas que me iam lançando fora do
caminho da prudência.
- Que disse ele, Cosme Bezerra? Interrogou o sargento-mór.
Suas insolências tinham por objeto a vossa própria pessoa. <Hei de ensinar o João da Cunha; é tempo dele pagar o novo
e o velho. Hei de ir com minha gente revirar a bagaceira de seu engenho, para pôr á mostra a ossada do mascate que ele
mandou seus negros matar, só porque...>
- Porque?porque? perguntou o sargento-mór, tomado de súbita comoção, e fazendo-se lívido. Que historia
contou o vilão?
- Contou que o mascate tinha sido assassinado por se queixar de lhe não terem pago certa quantia.
João da Cunha, sem o querer, tinha-se levantado.
- Querem saber como foi o caso? A mulher de um morador chamou o labrego para lhe comprar não sei que
bugigangas, de que ele saiu pago. Mas como vinha tonto, depressa esqueceu-lhe que tinha recebido a respectiva
importância. Hei-lo que volta e começa de exigir novo pagamento; e porque ninguém saiu a dar-lhe mais dinheiro, a
todos chamou ladrões, sem exceção do senhor do engenho. Dois negros foram-lhe ao encontro e castigaram, sem que de
ninguém tivessem recebido ordem para isso, a ousadia do mascate. Este caiu e não se levantou mais. No outro dia
vieram dizer-me que amanhecera um homem morto na estrada. Foi então que soube do ocorrido. Castiguei os escravos,
e mandei sepultar o morto, não na bagaceira, mas na capela. Se o não sepultaram onde eu disse, não lhe fizeram
injustiça; os animais do campo enterram-se nos monturos. Mas deixemos a um lado esse vil mascate, e tratemos do que
nos deve merecer mais atenção. Que se deve fazer, meus amigos? Devemos ir ao encontro dos rebeldes, ou esperar que
eles nos venham buscar a nossas casas?
Após um momento, respondeu o ex-alcaide-mór:
- O que entendo que se deve fazer é cuidar, sem perda de tempo, de pôr em armas cada um de nós a sua gente
para o que possa acontecer.
- Sairemos ou ficaremos?
- Esperaremos prestes para dar-lhes lição tremenda.
Para andarmos seguros, parece-me conveniente que se mande um próprio, sem perda de tempo, a Olinda, a fim de
sabermos dos amigos se são precisos os nossos serviços. A sua resposta nos servirá de guia.
- Acho muito acertado este ultimo alvitre, indicado por Felipe – disse Cosme Bezerra.
- Pois bem, disse João da Cunha. Seja este o nosso primeiro passo.
A sala em que se achavam conferenciando sobre o grave assunto os principais vultos da nobreza de Goiana, tinha
janelas que caiam sobre o pomar. Distante deste algumas braças passava o rio, aquela noite aumentado pelas chuvas dos
dias anteriores. De seu natural escasso, volvia agora barrentas e volumosas águas que estavam lavando as estivas das
toscas pontes que o atravessavam.
Mal acabara de falar Cosme Bezerra, quando chegou á sala o ruído que produziam as águas cortadas por um
cavaleiro.
Em qualquer engenho nada é mais natural do que semelhantes rumores. Fosse porém porque se achavam
sobreexcitados os espíritos pelo objeto da conversação, fosse porque o rumor tinha o quer que era particular e estranho,
o certo é que João da Cunha julgou prudente chegar á janela, a fim de saber quem era que o produzia.
Ao clarão das fogueiras, de que a esse tempo já se atiravam aos ares longas línguas de fogo, reconheceu ele
quem chegava.
Voltou-se então para os circunstantes, que guardavam silencio, e lhes disse com certo tom de voz, em que não
seria difícil adivinhar três impressões diferentes – prazer, incerteza e ansiedade:
- Vamos Ter noticias frescas de Olinda.
Com pouco um matuto penetrou no aposento onde se estava celebrando a conferencia, e entregou a João da Cunha um
pacote de papeis.
O matuto era Francisco.
XIII
O S.João, do mesmo modo que o natal, é festa essencialmente popular e campestre. Cada uma destas duas
festas, com especialidade porém a primeira, leva vantagem á da páscoa , que, com ser comemorativa da ressurreição do
proto-martir, de quem só nos ficaram exemplos de humildade e singeleza, assumiu formas aristocráticas, e pertence hoje
mais ao palácio e á cidade do que á choupana e ao povoado.
O engenho Bujari dava em 23 de junho de 1711 testemunho desta verdade. Não havia casa de lavrador ou de
morador em que das 6 para as 7 horas da tarde o prazer não tivesse desabrochado entre risos e folgança.
João da Cunha, com ser de seu natural de poucos amigos, tinha em suas terras muitos lavradores e foreiros.
Alguns escolhiam, para se fixar, as terras do engenho Bujari, e havia razão para esta preferencia. João da Cunha era
ríspido, exigente e até poder-se-há dizer – mau. Mas tinha uma grande qualidade, que em certo modo atenuava os seus
grandes defeitos. Bulir com um morador do seu engenho era o mesmo que bulir com ele próprio. Excedia os limites da
defesa quando algum deles era ofendido. Tomava parte pelo morador em publico, ia pessoalmente aos juizes, para que
ordenassem o castigo do delinqüente, gastava do seu dinheiro com o pobre e sua família, enfim, deixava o papel de
tirano e representava ao vivo o de pai ou zeloso protetor. Por esta razão particularmente, e porque das magnificas
situações que se apontavam em derredor de Goiana onde os engenhos ainda não eram numerosos, as melhores lhe
pertenciam, muitos eram os seus moradores, entre os quais alguns abastados. Ao numero dos que o eram menos,
pertencia Victorino.
Na hora em que se discutiam, com a gravidade que vimos, os interesses das famílias goianistas de primeira
representação, Lourenço descavalgava á porta de Victorino.
Ai se estava festejando a noite com todo o entusiasmo e calor do estilo. As filhas do dono da casa faziam as
honras aos hospedes, de que já havia um bom numero no momento em que Lourenço penetrou na salinha.
Lourenço foi entrando, e foram eles logo oferecendo a ele espigas de milho verde quebradinhas meia hora
antes no roçado próximo e assadas na fogueira que iluminava o pátio e a frente da casa.
Joaquina não apareceu senão mais tarde. Estava na cozinha preparando a deliciosa canjica, que é o primeiro
prato das mesas grandes e pequenas do norte nessa noite de tão formosas e prazenteiras tradições.
Não o afamado bolo de S. João, que só nas mesas ricas ou ao menos abastadas costuma aparecer, mas uns
bolos de mandioca estavam assando no forno, e por terem sido feitos pelas duas filhas de Victorino mereciam a honra
de ser visitados por elas enquanto não ficavam no tom de apresentar-se.
Entre os hospedes apontavam-se mais de meia dúzia, que eram afamados tocadores de viola e guitarra. Alguns
deles temperavam já os seus instrumentos para dar principio ao samba.
No pátio, junto da fogueira, uns meninos descalços, de camisas compridas, rodeavam Saturnino, que, de
quando em quando, cantarolando e pulando de alegria, descarregava um clavinote, em honra do santo folgazão. A estes
tiros, soltados no terreiro, respondiam outros, também de armas de fogo, com que habitantes dos vales e da beira dos
caminhos davam noticias suas. Trocavam assim os vizinhos, através das distancias, seus cumprimentos e as
demonstrações do seu inocente prazer.
Aquele que nunca saiu da corte, onde os regozijos públicos se vestem de fitas, sedas, bandeiras, arcarias de
sarrafos pintados, iluminações graciosas, fogos de artificio, apresentando o conjunto vistosas cores, caprichosas formas,
elegantes perfis, não imagina que sem este aparato deslumbrante, e unicamente com a matéria prima que oferece a
natureza, possam preparar-se deleitosos momentos para os espíritos mais difíceis de contentar. Não é outra porém a
verdade. Ilumina-se com uma fogueira o pátio da casa, no qual se vê uma laranjeira florida, uma mangueira copada, um
cajueiro ramalhudo. Enche-se o pátio do riso argentino das crianças, do assobio dos moleques, dos sons da viola, das
saudosissimas toadas do matuto cantador, das harmonias melancólicas da gaita tocada pelo negro do engenho. Tanto
basta para que voe o tempo com a rapidez do raio e a satisfação das gentes de campo nada tenha que invejar a que
trazem aos habitantes das cidades as musicas de pancadaria, os fogos artificiais, os esplendores agradáveis a vista com
que celebram suas alegrias.
Meia hora não se tinha ainda passado depois da chegada de Lourenço, a casa de Victorino, quando nadava com
os demais em um mar de indescritível contentamento. Todos os de casa e até os de fora já tinham visto a sombra de suas
cabeças ao acender das fogueiras, sinal de que não morreriam aquele ano. Achando-se fora de duvida este ponto, não
havia razão para que a alegria não fosse a primeira senão a única expressão de todos os semblantes. Por isso uns
gracejavam, outros riam, outros tocavam seus instrumentos, e todos comiam e bebiam no seio da plenissima confiança
que caracterizava aquelas épocas como se foram todos membros da mesma família.
Marianinha porém, no meio do prazer imenso de que cada um tinha o seu quinhão, deixava-se tomar
naturalmente de ligeira sombra de tristeza, não obstante dever ser em verdade o seu quinhão de prazer muito mais
avultado do que o de qualquer dos convivas.
Não era verdadeiramente uma sombra de tristeza a que anuviava interpoladamente o seu rosto iluminado pela
suave pureza da juventude. Era, sim, a asa pardacenta de receio traiçoeiro ou de duvida intima a causa do intermitente
eclipse daqueles olhos negros e vivos, daquele sorriso franco e loução, daquela voz afinada pelas harpas dos sabiás e
dos curiós que cantavam ao nascer e ao pôr do sol nas ramalhudas pitombeiras do quintal.
Quando seus olhos se encontravam com os de Lourenço, a nuvem se adelgaçava e desvanecia como fumo, e o
brilho da face, antes escasso, parecia agora o de uma constelação. Se o filho de Francisco dirigia a Bernardina as
mesmas palavras, os mesmos gracejos que tinham feito reacender-se no rosto de Marianinha a graça, a vida
interrompida quando não eram outros mais languidos e ternos, nova interrupção vinha cortar ai a ventura recentemente
morta e logo renascida. Havia naquele coração de mulher o ciúme antes mesmo do amor; havia o receio de perder a
felicidade que aliás não existia senão no seu desejo, e na promessa que lhe fizera Francisco.
Marianinha de feito enganava-se. Toda ela era afetos por Lourenço; mas este não tinha para ela especiais
atenções.
Mas, fosse engano, ilusão ou infantil confiança, esse amor fantástico, ideal, impossível talvez enchia-lhe o
coração de suavíssimos fulgores, a alma de todos os perfumes e cânticos do paraíso terreal, de que ela tinha uma ligeira
noticia por ouvir, quando era menina, a historia do princípio do mundo a uma velhota das bandas de Nossa-Senhora-do-
ó. Quando na manhã seguinte ela foi achar murcho o dente d’alho que enterrara na horta ao acender da fogueira, o que
importava profético sinal de que Lourenço não casaria com ela, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Supersticiosa e
crédula, como é a mulher em geral e a filha do povo em particular, a pobre menina por um triz não deu consigo em
terra, tão grande foi o golpe que atravessou seu coração.
Não aconteceu já o mesmo a Bernardina. Para esta noite de S.João foi uma grande aurora sem intervalos. Suas
aspirações sendo menos altas, a sorte apressou-se em cercá-las de risonhos anuncios. Era de feito modesto o objeto
delas. Este objeto era Saturnino, o qual, posto não sentisse por ela grande inclinação, antes se inclinasse mais para
Marianinha, se sentia inevitavelmente arrastrado pela gentileza franca, pelos requebros feiticeiros, pelos ditos
engraçados, e especialmente pelos agrados da rapariga.
Sempre que Saturnino pensava em sua condição obscura – a condição do cargueiro, do almocreve sem eira
nem beira – não podia ser indiferente aos afetos de sua prima, a qual, quando por outra coisa não fosse, tinha o direito
de aspirar, por seus belos olhos, a um casamento mais vantajoso. Bernardina porém não encaminhava seus pensamentos
para o terreno árido e escabroso das condições sociais. Tinha amor a seu primo, e este amor apagava, no conceito dela,
as diferenças pessoais e nivelava a sua condição e a de seu primo. O certo é que o alho que ela plantara ao pé do de sua
irmã, amanheceu com o caule de fora e como pendoado; o nome que ouviu publicar no momento de se acender a
fogueira, principiava pela letra inicial do de Saturnino. E para coroar as suas esperanças, achou o grão de arroz que ela
meteu em um dos três pedaços em que dividira o bocado de feijão por ocasião do jantar, não no que tinha escondido na
soleira da porta do fundo não no do meio, mas no da frente. Não havia pois que duvidar. S. João dizia que ela se casaria,
não dai a três ou a dois anos, mas no próprio ano presente.
Seriam oito horas quando Joaquina começou a distribuir pelos hospedes, em tigelinhas de barro, a canjica saborosa.
Marianinha, esquecida do que lhe acontecera por ocasião de oferecer a Lourenço a cajuada, adiantou-se para o
servir, corada e tremula. Deste vez não houve formal recusa como da outra: Lourenço recebeu a tigela e esvaziou-a em
poucos instantes; mas, levantando-se imediatamente, pegou do chapéu, e encaminhando-se para a porta, disse:
Vou-me embora, minha gente. A festa está muito boa, mas vem muita chuva, e eu tenho ainda de levar minha mãe do
engenho para o Cajueiro. Entrei para me recolher da neblina, e ia-me esquecendo da minha obrigação.
Ó xentes! Disseram do lado umas rapariguinhas das vizinhanças que tinham chegado minutos antes. Já vai tão cedo?
Que é isso, Lourenço? Perguntou Victorino colando-se em frente do rapaz, como quem queria embargar-lhe o passo.
Estás gracejando, ou falas sério?
- Falo sério, seu Victorino. Vou-me embora.
- Ora, deixa-te disso. Hoje é noite de S. João.
- Por isso mesmo. Minha mãe está esperando por mim, e não é bonito que eu me deixe ficar aqui a divertir-
me quando ela está com os olhos no caminho para me ver chegar. E Francisco ainda não voltou da viagem
a cidade?
Até eu sair para a vila, ela não tinha chegado. Mas prometeu que havia de vir comer conosco milho assado hoje de
noite.
Pois então, se tens esta certeza, para que semelhante pressa? Assim que ele chegar, virá logo até cá.
- Ele não sabe que eu estou aqui.
- A comadre lhe há de dizer logo, e ele há de vir. Fica, rapaz. Precisamos de ti para cantares.
- Não posso, seu Victorino.
As filhas do almocreve, compreendendo o perigo em que se achavam, de perder tão boa perna para a folgança, como era
Lourenço, espontaneamente uniram seus pedidos ao do pai.
- Fique, Lourenço, fique, disse Bernardina.
- Deixe-se de escusas, acrescentou Marianinha timidamente.
Estas e outras instancias e intervenções determinaram afinal o rapaz a mudar de resolução, e a satisfazer aos rogos
gerais.
Tratou-se então de principiar logo o samba. Esta providencia era aconselhadas pelo interesse comum. Era o
meio de prender os hospedes a casa. Além disso não faltava nada para começar a dança. Uma das primeiras violas do
lugar – o Chico Pedro; uma das primeiras vozes – Lourenço; os melhores dançadores – Nicolau e Roberto, estavam
todos ali. Não faltava aguardente, nem milho verde, nem bolos. As raparigas mostravam-se bem dispostas, e algumas
até impacientes por verem formar-se a roda. A fogueira dava estalidos festivos. O tempo prometia limpar. O concurso
dos convidados engrossava cada vez mais. Enfim, em menos de um quarto de hora, bateu o pinho, e rompeu o samba de
gosto.
Lourenço, tendo tomado uma pouca da cana, temperou a guela e soltou sua grande voz ao pé do violeiro,
enquanto Bernardina, Mariquinha, as filhas da Bernarda, os sobrinhos do velho Cosme, o Manoel João, o Jacinto da
Luzia e muitos outros caiam na roda por sua vez, tripudiando, fazendo recortes e negaças com o corpo, atirando
embigadas na forma do imemorial estilo.
O canto de Lourenço era monótono como o dos sambistas em geral, mas a letra variava e tinha as graças
naturais das composições do povo.
Eis algumas das quadras com que o rapaz gratificou a companhia. Muitas delas ainda hoje em dia têm extensa
voga entre os matutos de Pernambuco, aos quais as ouvi mais de uma vez, jornadeando, entre fins de novembro e
princípios de dezembro, do Recife para Goiana nos meus tempos escolares. Elas pertencem exclusivamente ao povo, e
eu aqui as dou com a exatidão com que as recebi da grande musa que as produziu.
Minha mulata, eu tenho
Vontade de te servir;
De dia falta-me o tempo,
De noite quero dormir.
Vou-me embora, vou-me embora
Para minha terra vou;
Se eu aqui não sou querido,
na minha terra sou.
Quando eu me for não choreis,
Que são penas que me dais;
Deixai o chorar prá mim,
Que eu me vou, não venho mais.
Manjericão verde-escuro
Tem a folha miudinha;
Só em te ver eu te amo:
Que fora se fosses minha?
Passei pela tua porta,
Pus a mão na fechadura;
Eu falei, tu não falaste,
Coração de pedra dura.
Meu passarinho tão manso,
Das minhas mãos escapou;
Para mais penas me dar,
Penas nas mãos me deixou.
- Molha a guela, Lourenço, molha a guela com a patricia – disse neste ponto ao cantador o Ignacio
Macambira. A patricia é o vinho do pobre – acrescentou Chico – rosado.
E Victorino, despejando aguardente na xícara, que não estava quieta um só instante em cima da banquinha do canto da
sala, apresentou-a a Lourenço, que dela tomou um trago forte.
Mas como se sentia cansado, poucos versos cantou ainda, e concluiu pelo seguinte:
As convivências do mundo
São amparo da pobreza;
Enquanto o pobre convive,
Não se lembra da riqueza.
- Aqui está o lugar para quem quiser, minha gente, disse ele, sentando-se.
- Deste tão cedo parte de fraco?
- É enquanto tomo fôlego.
- Quem vem? Quem vem? perguntou o violeiro. Quem vem, venha logo, que o fogo está esfriando.
- Vai tu, Bernardina – disse Victorino.
- Muito bem, Victorino.
- Logo, logo, Bernardina.
A rapariga foi ocupar o lugar deixado por Lourenço.
XIV
A voz de Bernardina era volumosa e límpida. As mulheres invejavam a filha mais velha de foreiro este grande
dote que atraia os homens a ela e lhe dava o prestigio e o renome de uma sereia. Não sendo tão bonita, como a irmã, via
entretanto em roda como de se um sem numero de entusiastas e adoradores sempre que exercitava o seu divino
privilegio. Por isso, quando rapariga se encaminhou para o lugar que Lourenço deixara desocupado, surdo rumor,
indicio da curiosidade, se fez ouvir em todos os cantos do casebre. Seguiu-se-lhe porém logo profundo silencio.
Eis os versos que a matutinha cantou por entre aplausos repetidos e frenéticos:
Benzinho, quando te fores,
Escreve-me do caminho;
Se não achares papel,
Nas asas de um passarinho.
Assim, assim, Bernardina – disseram três ou quatro convivas, enfeitiçados do desembaraço, já conhecido, da filha do
dono da casa.
A rapariga, requebrando-se senhorilmente, prosseguiu relanceando os olhos para o namorado, que a esse
tempo, já tinha desamparado o terreiro e encostado a um canto o clavinote:
Da boca faze o tinteiro,
Da língua pena aparada,
Dos dentes letra miúda,
Dos olhos carta fechada.
Oh, que rapariga candeia! exclamou o Ignacio Macambira, sem poder conter o entusiasmo, acrescentado pela cana.
Bernardina prosseguiu:
Manjericão verde cheira,
Ele seco cheira mais;
Mulher que se fia em homem
Anda sempre dando ais.
Eu de cá e tu de lá,
Fica um rio de permeio;
Tu de lá dás um suspiro,
Eu de cá suspiro e meio.
Meu coração é de vidro,
Feito de mil travações:
Com qualquer coisa se quebra,
Não atura ingratidões.
Longo tempo levou Bernardina a cantar, ora variando, ora repetindo as letras ao paladar dos circunstantes.
No mais aceso do samba, quando não só se ouviam os sons das violas, mas também os ásperos rechinar das
costas da faca sobre a botija segundo praticam em ajuntamentos tais; quando os aplausos se manifestavam por meio de
gritos e gargalhadas estridentes; quando não se dançava só o cocô e o baiano, mas uma mistura de todas as danças
populares com o acréscimo da fantasia de cada um, escaldada pelos vapores espirituosos; quando enfim era tudo
algazarra, derriços pouco decentes, demonstrações menos dignas, apareceu um novo conviva no meio da multidão. Era
Francisco, o qual, depois da entrega das cartas no engenho, viera em busca do filho, pelo motivo que adiante saberemos.
Não podia o matuto chegar mais oportunamente àquele ponto. No momento exatamente em que ele se fez ver
por entre a matutada que enchia a salinha, sentiu Lourenço bater-lhe no ombro pesada mão, que o obrigou a voltar-se, a
fim de saber quem era que lhe fazia tão estranho cumprimento. O rapaz reconheceu o Tunda-Cumbe.
Em poucas palavras poremos o leitor a par deste sujeito, que tão importante papel desempenhou na Guerra-
dos-mascates. E para que o retrato venha com o cunho de severa autenticidade, preencheremos a nossa promessa
trasladando aqui as próprias palavras em que um cronista pernambucano o descreveu para conhecimento da posteridade.
< Este sujeito era um homem rústico e grosseiro, de idade já maior, que do reino de Portugal tinha há anos vindo para
esta terra, trazendo da sua, por divisa, uma grande cutilada no rosto, ou para que a se não desconhecesse, ou para que
por ela fosse conhecido; mas diziam que por usar do oficio de parteira, e para disfarçá-la de algum modo, conservava os
seus bigodes, ou mustachos, em tempo que ninguém fazia caso deles. Buscando meios de poder acomodar-se, fez em
Goiana assento de feitor, por seu salário em casa do sargento-mór Matias Vidal, a fim de no serviço dirigir os negros;
mas estes, conspirando-se contra ele em certo dia, lhe deram uma pista de pancadas que na etiópica língua chamam
Tunda, e o lugar onde lhe deram chama-se Cumbe. Como se fez o caso publico, por antonosia lhe chamavam o Tunda-
Cumbe, e sendo por este nome de todos conhecido, como quem faz do sambenito gala, quis do modo como era
apelidado, apelidar-se. Daí se foi para a freguesia da Várzea, e nela esteve com o mesmo exercício de feitor do Capitão
Lourenço do Cunha Moreno, e depois tornou para Goiana, e se fez almocreve de peixe, indo, com uma besta, a buscá-
lo pelas praias, e pelas portas dos moradores a vendê-lo: nesta ordem de vida se manteve até que sucedeu o levante do
Recife, em que tomou parte, que veremos.
- Então, menino cantador, disse o Tunda-Cumbe a Lourenço, com entono e arrogância mais de quem agredia,
do que perguntava – será certo que você está apaixonado pela Bernardina? Pois olhe, quero preveni-lo de uma coisa,
para que depois não vá você chamar-se ao engano. Sabe muito bem que todas as semanas, da Sexta para o sábado, ando
eu por estas bandas a vender o meu peixe.
- Sei, disse Lourenço, sem se alterar, com os olhos postos, como quem nisso tinha propósito, na funda cicatriz
do Tunda-Cumbe não tão oculta pelo espesso bigode, que se não pudesse deixar ver.
- Pois fique sabendo mais que aquilo é tainha que eu tenho contado há de cair, mais dia, dentro do meu caçuá.
- Você refere-se a Bernardina?
- A ela mesma é que me estou referindo, sim, senhor.
Pois eu também quero dizer-lhe uma coisa. Eu com ela nada tenho. Se canto e gracejo com a rapariga, é porque tenho
amizade na casa. Nela não tenho intenção de espécie nenhuma, porque, quando a gente não sente inclinação para uma
mulher, por muito que ela se derrengue para a gente, não passa tudo isso de divertimento sem maldade. Mas como diz
você que já conta com aquela tainha no seu caçuá, a coisa muda de figura.
- Menino – tornou o Tunda-Cumbe, você para Ter comigo esta linguagem, preciso fora primeiro que ou não
estivesse no seu juízo, ou não me conhecesse devidamente. Saberá acaso com quem é que está falando?
- Sei muito bem que estou falando com seu Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.
Pois então veja d’ora em diante como anda. Depois não vá dizendo que Santo Antonio o enganou.
- Você é que parece estar enganado comigo, retorquiu-lhe Lourenço, sentindo faiscar-lhe já os olhos. Eu há
muito tempo não faço uma das minhas, mas, em ocasião se oferecendo, não lhe hei de torcer a cara, e bem pode
acontecer quem para ficar você melhor assinalado, lhe vá eu deixar no queixo direito o golpe que lhe falta para fazer
parelha com o que lhe plantaram no outro queixo, quando você tinha o oficio de partejar na santa terrinha.
A violência desta represália deixou perplexo, e como espantado por momentos o Tunda-Cumbe, pouco
habituado, não obstante a tunda sabida, a ouvir cara a cara tão pesadas reprimendas.
Não conhecia ele o Lourenço senão de o ver uma vez por outra almocrevando, e pensou que com a simples
ameaça, sendo tão conhecido por seus feitos que, em abono da verdade, davam para um in-fólio, levaria logo o terror ao
animo do rapaz. o seu desengano foi formal, ou como quem procurava recursos e força dentro em se mesmo, Tunda-
Cumbe esteve um instante sem proferir palavra, dizendo porém mil coisas pelos olhos que não arredou de sobre a cara
de Lourenço.
- Não embatuque por tão pouco, acrescentou este como em acrescentamento do pouco caso em que revelara ter
o seu agressor. O que você disse está dito; não queira agora tornar atrás, que você seria mais desprezível do que a besta
em que costuma vender o seu peixe velho e moído, se recuasse depois desta avançada. Agora, de que eu sou capaz de
fazer o que prometi, você a seu tempo há de ter a prova. E para que fique logo conhecendo que eu não sou de caixas
encoiradas e que aonde vou não mando, veja lá como me ponho já a derreter com a filha de seu Victorino, mesmo aqui
nos seus bigodes.
Todo este dialogo, posto que faiscante e eriçado de perigos, não foi pressentido por nenhum dos circunstantes,
a não ser por Francisco. Este mesmo o não teria testemunhado se não fora a circunstância especial que diremos. Ao
chegar, talvez por fugir de ser convidado a cantar, se colocara por traz de umas esteiras, que tinham sido postas de pé
em um dos cantos do casebre. Foi daí que tudo viu e ouviu sem ser visto, oculto pela concorrência.
Lourenço, se bem o disse, melhor fez. Logo que se lhe ofereceu ocasião, caiu no meio da roda. Fez o seu
sapateado, deu meia dúzia de castanholas, atirou uma embigada na rapariga que lhe ficava mais perto, e foi colocar-se
ao pé do violeiro, fronteiro à Bernardina, que ainda estava deliciando os sambistas com suas graciosas vozes.
Quando Bernardina conheceu que Lourenço tinha ido colocar-se ali para alternar com ela as cantigas,
empalideceu, mas sorriu. O desafio lhe era agradável, posto que fosse mais forte do que ela o seu contendor. De seu
natural vaidosa e leviana, nunca recusou demonstrações de apreço a Lourenço, embora tivesse o coração quase todo
ocupado pela imagem de Saturnino.
Lourenço cantou este verso:
Boca de cravo da Índia,
Dentes de marfim dourado,
Quando meus olhos te viram,
Meu corpo fez um pecado.
Bernardina respondeu com est’outro:
Você vai prá sua terra,
Bem pudera me levar;
Prá saber que eu quero ir
Não carece perguntar.
Lourenço retorquiu:
Dei um nó na fita verde,
Dei-lhe a fita de presente;
Você fala, e não repara
Que estamos diante de gente.
Eis a resposta da rapariga:
Amores, quando te fores,
Antes de ir tira-me a vida,
Que eu não tenho coração
De ver a tua partida.
O desafio foi neste ponto interrompido por um rumor inesperado, idêntico ao que produz o arranco de onça por
entre a folhagem. Não uma onça, mas o Tunda-Cumbe tinha atravessado de um salto, causa do rumor, a primeira ordem
de pessoas que formavam o circulo, e achava-se ao pé de Lourenço, com a catana levantada contra o rapaz. Mas ainda
bem não erguia o braço armado, quando um homem, saído, como ele, violentamente dentre os circunstantes, se
interpunha entre o agressor e o agredido, tendo na mão fora da bainha a faca que trazia ao cós. O homem não era outro
senão Francisco.
Cessaram imediatamente as vozes dos cantores e instrumentos, e todas as vistas e atenções concentraram-se no
ponto do conflito.
- - Que ação é esta, seu Tunda-Cumbe? perguntou Francisco a Manoel Gonçalves. O que vosmecê fizer
a meu filho, terá feito a mim mesmo. O que eu quero é que me digam o motivo deste barulho, disse
Victorino apresentando-se.
É que este menino ainda não achou quem lhe desse o ensino de que precisa, respondeu Manoel Gonçalves.
- O que eu quero saber é o motivo do barulho, repetiu Victorino.
- Você o saberá quando for tempo. Palavra de Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.
Lourenço, que até então guardara silêncio, rugiu a meia voz:
Eu se não me for embora daqui, faço as todinhas e acabo ainda com muito sol. O sangue está a ferver-me.
Entretanto, o Tunda-Cumbe metera a catana na bainha, e Francisco tinha feito o mesmo com a faca.
Victorino virou-se para este ultimo, enquanto aquele se afastava dando a um e a outro a razão do seu
procedimento; e a meia voz perguntou:
- Viu você o principio da briga, compadre? Se viu, conte-me a historia como foi.
Para dizer a verdade, eu não sei bem a causa da contenda. Mas parece-me que a Bernardina anda no meio. Tenha
paciência, compadre, e perdoe o que lhe vou dizer. É preciso acabar com estes sambas em sua casa. Quem tem filhas,
não abre as suas portas assim a Deus e ao mundo.
- Eu não convidei o Tunda-Cumbe para o meu divertimento. Se ele entrou aqui foi confiado em ser nosso
freguês de peixe.
- Pois abra os olhos, que ele disse que a Bernardina é tainha que ainda há de cair no seu caçuá. E adeus, adeus.
Vamos, Lourenço.
- Pois ele disse isto, meu compadre? Ele não conhece Victorino.
Quando Francisco chegou com o filho à porta do casebre, achou aí da banda de fora o Victorino, o Tunda-Cumbe e um
pardo de Goiana que tinha o oficio de sapateiro. A este último dizia o Tunda-Cumbe as seguintes palavras:
- Diga a seu Antonio Coelho que fico entendido do recado, que me mandou por você e daqui a pouco lá estarei.
O pardo, por nome Lauriano, saiu, e o Victorino dirigiu-se nestes termos a Manoel Gonçalves:
Seu Tunda-Cumbe , eu quero dizer-lhe os meus sentimentos. A Bernardina é solteira, mas já tem noivo. Por isso escusa
andar vosmecê a fazer desordens na casa alheia por causa dela.
- Eu bem sei donde partem estas historias e por saber donde elas partem é que as suas palavras me entram por um
ouvido e me saem pelo outro. Se a Bernardina tiver de ser minha, não há de ser nem você nem seus parceiros que
tenham forças para o impedir. Não seja tolo, Victorino.
Dizendo estas palavras, Manoel Gonçalves ganhou a besta de um salto e tomou a correr, a caminho de Goiana.
- Que lhe disse eu, compadre? Observou Francisco, que chegara ao lado de fora ainda a tempo de ouvir as
últimas palavras do Tunda-Cumbe. Tome suas cautelas. Aquele malvado é traiçoeiro e está avezado a tirar moças
solteiras da casa de seus pais.
- Ele poderá tirar alguma das minhas filhas; mas para fazer isso será preciso que primeiro me tenha morto e
bem morto. Vou acabar já com esta festa.
Fosse, porém, que os espíritos estavam muito exaltados para atenderem às prudentes considerações do foreiro,
fosse que Victorino não quis desagradar àqueles que lhe honravam a casa com sua presença, o samba ferveu até o
amanhecer do dia, aos estouros intermitentes do bacamarte de Saturnino, e aos gritos de – Viva S. João – soltados pelos
diferentes sambistas, alguns apenas alegres, outros inteiramente entregues ao espírito vertiginoso da cana.
XV
Que razão teve Francisco para, apenas chegado da capital, ir em demanda do filho? Seria acaso para evitar que
o rapaz se deixasse envolver em algum distúrbio como aconteceu? Seria para fazê-lo sair da desordem, segundo fez, no
caso de já o achar colhido nas malhas dela?
A razão foi outra. Não temia Francisco os perigos do samba. Desde pequeno sentia paixão por este
divertimento, de que fora ardente cultor na mocidade. Grande parte dos versos com que Lourenço deliciara os festeiros
da casa de Victorino, ele os aprendera de Francisco, insigne cantador e repentista. A fama deste ultimo era tal que
muitos dos matutos daquelas vizinhanças andavam espreitando a ocasião de ir Francisco ao Recife para fazerem com
ele as suas viagens. É fácil a explicação deste procedimento.
Em sua companhia, as longas noites que tinham de curtir na travessa de muitas léguas de solidões quase
inteiramente inabitadas, eram suavizados pelos formosos cantares do matuto. Que soberbos serões não tiveram eles, ao
luar, as redes armadas debaixo das arvores, os cavalos pastando peiados em frente a pousada, a viola quebrando com
seus sons deleitosos a mudez da noite, e Francisco enchendo o deserto com as inspirações de sua musa soberana e as
harmonias de sua voz rica de ternura e de saudade!
Razão muito diferente teve o almocreve para procurar Lourenço.
As noticias da guerra, trazidas por ele da capital, eram de suma gravidade. Ele próprio tinha ouvido em Olinda
contar-se muito caso triste. Aí soube o que projetavam os mascates e os nobres. Com seus próprios olhos testemunhou
os aprestos para a guerra. Viu de perto a chama imensa que começara a incendiar a província. João da Cunha, lidas as
cartas, fez-lhe varias indagações, e com ele os amigos presentes, sobre o quetinha visto e sabia. Combinadas as
informações pessoais do morador com as noticias enviadas por Amador da Cunha, por André, e por outros, forçado lhe
foi reconhecer que, atirado o facho da revolução aos quatro ventos, dentro em pouco prenderia fogo a vila de Goiana,
para onde emissários particulares dos portugueses tinham sido adrede mandados, e na qual contavam eles parciais
poderosos de meios e valorosos de animo.
Entre estes apontavam-se Antonio Coelho, sujeito de grandes espíritos; Jeronimo Paes dinheiroso marchante,
não menos ardente do que o primeiro; Belchior Ferreira, rábula que, posto fosse filho da terra, bem como o meirinho
Romão da Silva que dele recebia diariamente lições incendiarias, destinadas a decidir a gentalha do lugar a tomar o
partido dos mercadores, fazia grandes entradas nos espíritos por falar em nome da liberdade do povo; Manoel
Gaudencio, alfaiate pernóstico, patranheiro e ambicioso, que aspirava a melhorar de oficio com a descida dos nobres e a
subida dos negociantes.
O principio, ou antes os interesses contrários aos que estes sujeitos, e outros de idênticos sentimentos e
intuitos, sustentavam eram representados pelos cavalheiros que já apontamos, isto é, pelos senhores-de-engenho e pelas
primeiras autoridades, assim civis, como militares da localidade.
Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates, antes uma luta travada por dois grandes princípios, do que
uma revolta filha de preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram não pouco para essa luta o
costume e o capricho antigo, inflexíveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundário do que
principal. A parte essencial e verdadeiramente dramática da ação, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das
sociedades modernas, como das antigas – ao comercio e a agricultura, princípios que, quando acordes em seu
desenvolvimento, trazem a properidade e riqueza dos povos, e, quando divergentes, o seu atraso senão o seu
aniquilamento.
As cartas de que Francisco foi portador, em substancia rezavam:
Que a guerra, declarada pelos forasteiros contra os pernambucanos e o governo legal, e já em principio de
execução, prometia ser de vida e morte, atentos os meios de que dispunham aqueles, e o empenho em que se mostravam
de aniquilar estes;
Que esses meios, eram imensos e consistiam não só em viveres acumulados durante os seis meses últimos nos
armazéns do Recife, mas também em grossas quantias com que eles habilitavam os seus confidentes nas localidades
mais importantes a propagar e alentar a premeditada hostilidade;
Que esta hostilidade era tanto mais digna de temer-se quanto a patrocinavam, dando toda a força que podiam
aos negociantes do Recife, o governador Caldas, da Baia, onde estava, e até alguns fidalgos portugueses, por exemplo d.
Francisco de Souza e seu filho d. João de Souza, que se achavam então no sul da província;
À influencia destes dois fidalgos já deviam os mascates a forte cooperação do coronel dos índios do Cabo, d.
Sebastião Pinheiro Camarão, parente do grande Camarão, que tanto brilhara na guerra holandesa. D. Sebastião Pinheiro
deixara seduzir-se por eles, bem como outros importantes moradores da freguesia do Cabo;
Que tinha Amador da Cunha (irmão de João da Cunha) recebido ordem do capitão-mór de Jaboatão para ir
com sua gente por certo ao Recife, segundo o acordo havido com os capitães-móres de Maranguape, Iguarassú, Várzea,
Santo-Antão, São-Lourenço, Nossa-Senhora-da-Luz, Ipojuca, Tracunhaem, Serinhaem e outras freguesias, afim de ver
se conseguia que se rendessem os revoltosos;
Que a ele, Amador, se lhe afigurava, pelos obstáculos conhecidos ou calculados, terem os pernambucanos
guerra para muitos anos, se Deus não conjurasse o medonho cataclismo que ameaçava devorar honras, fortunas e vidas.
Enfim, tanto as cartas de Amador, como as de André e outros, acordes em quase todos os pontos e noticias,
respiravam sobressaltos, inquietações e até desanimo. Havia porém no meio das trevas, que traziam, um ponto
luminoso, que em todos os corações projetou um raio de esperança. Era a noticia de que o bispo se tinha libertado, por
uma pia fraude, do poder dos mercadores.
O ódio, a ira, o receio, a impaciência e outros diferentes sentimentos tiveram por minutos perplexo e mudo o
senhor-de-engenho.
Quando estava para tomar parte nas reflexões que os outros, durante o seu silencio, iam fazendo sobre o objeto
da correspondência lida, umas das senhoras que se achavam na sala imediata, apareceu à porta do aposento. Era a
mulher de Matias Vidal.
- É então certo que os mascates se mostram fortes e insolentes? Perguntou ela ao sargento-mór.
- Quem vos disse tal, senhora d. Izabel? Retorquiu ele.
- As cartas que acabastes de ler, respondeu d. Damiana, aparecendo também. Daqui ouvimos toda a leitura.
- Infelizmente parece que vamos ter guerra para muito tempo.
- Que vos dizia eu ainda ontem, Matias? Disse d. Izabel, dirigindo-se ao marido.
- As guerras, observou Manoel de Lacerda, se trazem males, também trazem bens. Demos tempo ao tempo.
E levantando-se, encaminhou-se para a sala, aonde d. Damiana e d. Izabel retrocederam logo. Já aí estavam Cosme
Bezerra e Filipe Cavalcanti, que a ele tinham precedido e conversavam com outras senhoras presentes.
- Estes mascotes não estão em si, dizia d. Maria Bezerra a seu marido. Não querem ver que não podem levar
a melhor a nobreza da terra. Até os de Goiana, que não são muitos, hão de apresentar-se contra os nobres,
disse o alcaide-mor.
Também os de Goiana? Inquiriu com incredulidade a mulher de João da Cunha. A senhora d. Damiana duvida que o
façam? É porque ignora que os do Recife mandaram grossas quantias para cá comprar a gentalha que nos odeia.
Antonio Coelho, do balcão de sua loja, que considera um trono, só tem para os nobres injurias e desprezos. Belchior
Ferreira, de certo tempo a esta parte, monta guarda a horas certas todos os dias, em companhia de Romão, na botica do
Rogoberto, e leva horas a dizer maldades e aleives contra os senhores de engenho.
Não admira, Tras sempre a imaginação excitada pelo vinho que lhe dá a beber Antonio Coelho, os olhos encandeados
pelo ouro que lhe mostra, mas não lhe dá, Jeronimo Paes, disse Cosme Bezerra.
Tenha a senhora d. Izabel certeza de que dentro em pouco há de soar em Goiana o grito da rebelião. Quem sabe se a
este momento não estão tramando nos esconderijos dos seus armazéns, Antonio Coelho com seus sequazes, a destruição
de todos nós?
- Façam o que fizerem – observou a mulher do sargento-mór, Goiana não há de render-se a eles. Porque não
há de render-se?
- Não sabemos todos que Goiana é invencível porque todas suas igrejas têm as frentes voltadas para dentro
dela?
- É verdade – disse uma senhora, que até esse ponto assistira à conversação sem tomar parte nela.
- E d. Maria Bezerra acudiu em apoio da velha, confirmando o que dela ouvira. Abusões do povo, contestou
Cosme.
- Os antigos já o diziam, replicou d. Maria e os antigos não diziam senão a verdade. Minha avó contava-me
muitos casos de guerras, em que os que vinham a tomar Goiana ficavam destruídos ou presos nela, e nunca
a puderam dominar. Os santos das igrejas olham pelos moradores. Vão lá contar destas historias a Antonio
Coelho e a Jeronimo Paes, que hão de vê-los responder à crença do povo com risos mofadores. É porque
eles são dois refinados hereges, disse a velhota. E como hereges hão de acabar. Quem for vivo há de ver.
Talvez que nesta guerra mesma que eles preparam, venha o seu fim encoberto.
O crepitar das labaredas com que as fogueiras iluminavam todo o largo pátio do engenho; as detonações das armas de
fogo que de todos os lados estavam indicando quanto o S. João é estimado pelo povo, fizeram enfim inclinar para a
festa as atenções até então absorvidas nas tristes apreensões que o grave acontecimento suscitava.
Como se compreendessem a conveniência de auxiliar esta nova disposição dos espíritos, as escravas copeiras
entraram nesse momento na sala, conduzindo bandejas com bolos e doces, de que começaram a servir-se os hospedes.
Dentro em pouco a conversação, ainda presa por uma ponta à guerra, espalhava-se pela outra em vários
assuntos mais próximos e positivos. Praticou-se da abundância das chuvas, e do mal que tinham feito às canas e à roça;
da escassez da farinha; da carestia da fazenda.
A razão porque a farinha não aparece no mercado, observou Manoel de Lacerda, é porque os mascates se atravessam e
compram por atacado a que encontram. A razão do alto preço da fazenda é porque são eles os que a vendem.
Vai por estes dias à praça o engenho de Martins por execução que lhe move o Porto, disse Felipe Cavalcanti. Por um
ano que Porto levou a suprir o engenho de Martins, fez-se credor deste em avultada quantia. Absorveu-lhe três ou
quatro safras, e por fim, não contente com este resultado ainda, propôs-lhe ação em juízo e o obriga agora a dar o
engenho a pagamento. Entretanto, observou Cosme Bezerra, Porto está rico. O açúcar, que recebia do Martins, em
pagamento, a 400 réis a arroba, remetia a seus correspondentes na Europa à razão de 1$400.
- Só por este modo poderia ele abrir os dois importantes armazéns que estabeleceu no Beco-do-pavão,
observou Jorge Cavalcanti.
- E que é feito de Martins? Perguntou um.
- Está pobre, e é hoje meu lavrador, respondeu Matias Vidal.
- E não havemos de pegar em armas contra os mascates! Exclamou Cosme Bezerra.
Foi neste ponto interrompida a conversação pela entrada de Francisco e de Lourenço. Vendo-os, o sargento-mór
chamou-os ao gabinete onde minutos antes se celebrara em família a grave conferencia a que assistimos.
- Aqui está o rapaz, seu sargento-mór, disse Francisco, entrando no gabinete.
Estava impaciente pela tua volta. Dize-me cá. O rapaz poderá partir para a capital, ao nascer da lua?
- Quem? Eu? perguntou Lourenço.
- Tu mesmo, Lourenço.
- Posso partir já, assim o ordene vosmecê.
- Estás pronto de tudo?
- De tudo estou, porque nada tenho que aprontar.
- Se Francisco não tivesse chegado há pouco, ele é que havia de ir. A incumbência é de gravidade.
- E que tem que eu tivesse chegado há pouco? Perguntou o matuto.
- Estás cansado. Já não és menino para resistires a duas jornadas forçadas uma atrás da outra.
Perdoe-me vosmecê, seu sargento-mór. Muito me agrada fazer pessoa em meu filho. Mas se é somente por me supor
cansado da viagem que o escolheu, dê preferência a mim, para ir à cidade, eu devo dizer a vosmecê que estou mais
pronto do que ele para fazer a viagem. Faço de conta que tomei o rancho em Goiana, e que a minha parada é na Paraíba.
Lourenço é digno de toda a confiança dos homens de bem. mas é ainda muito moço, tem viajado pouco por esses
caminhos, e sem ele o querer, pode sair o seu serviço mal feito. Vosmecê entregue-me o que tinha para ele, que em
menos de uma hora já estou no caminho de Olinda. Só peço licença para ir ao Cajueiro dar um adeus à minha velha.
- Pois vai. Quando voltares, receberás as minhas ordens.
- Senhor, sim.
Dentro de poucos minutos, pai e filho estavam no Cajueiro; e quando a luz apontava por cima da mata, já aquele se
achava uma légua distante da vila, em direitura para a capital.
XVI
Lauriano tinha sua tenda na rua do Rosário, perto da loja de Antonio Coelho. Era, como quase todos os
sapateiros, paroleiro, indagador da vida alheia, e por isso sabedor de muita particularidade e segredo intimo. Seus
freqüentadores não tinham nem podiam ter para ele reservas.
Na dita tenda ajuntava-se o povo baixo da vila, que o vinho e o cobre do famoso mercador, por interesseira
generosidade dele, faziam simpatizar com a causa dos mascates. Para esta gente estava ela nas mesmas condições que a
botica do Rogoberto para o rábula, o meirinho e outros sujeitos de igual estofa. Era o club permanente da plebe. Aí se
discutiam com veemência e largueza os negócios da amiga e da inimiga parcialidade. Não raras vezes, no estreito
recinto desse singular parlamento, resolveram-se ofensas e defesas da máxima importância. O oficial de pedreiro, o
servente de obras, o aprendiz e o oficial de outros ofícios, vinham deixar na tenda as noticias que colhiam nas ruas, e daí
levavam as que os outros, seus iguais, tinham trazido para o ignóbil comercio em que eram práticos.
O Tunda-Cumbe fazia parte deste congresso ilícito. Então as repugnância reciprocas entre os portugueses e os
homens de cor do país não estavam tão afirmadas como depois vieram a ficar. Eram adina de fresca data os grandes
exemplos da fraternidade que em conjunturas gravíssimas ligara raças estrangeiras com raças e castas nacionais; aquelas
representadas por João Fernandes Vieira e outros, estas por Filipe Camarão, Henrique Dias e tantos índios, mulatos e
pretos que deixaram ilustres nomes esculpidos nas paginas da historia e glorificados pela tradição. Não é pois de
admirar que, vendido o seu peixe na vila, fosse o Tunda-Cumbe, não por obrigação mas por devoção, tirar a ferrugem
da língua na tenda do Lauriano, onde se reuniam outros mascates da sua laia.
Na antevéspera de S. João o Tunda-Cumbe tinha estado com o sapateiro e lhe havia dito que iria divertir-se à
noite seguinte em casa do Victorino. Em conversa familiar já revelara tempos antes as suas inclinações por Bernardina.
<Em toda esta redondeza por onde ando, dissera o vendedor de peixes ao de sapatos, não conheço rapariga que
tanto tenha bólido com o meu sentimento como a filha do Victorino.>
O tendeiro, que com os defeitos próprios da sua condição, trazia aliado o de instigador das ruins paixões, tantas
coisas lhe meteu na cabeça que o mascate saiu dali cheio da falsa idéia de que ninguém melhor do que ele tinha direito à
posse da rapariga. Àquela manhã, Antonio Coelho, passando pela porta de Lauriano, perguntara pelo Tunda-Cumbe.
Respondera-lhe o tendeiro que lhe seria fácil encontrar-se com o peixeiro à noite em um ponto, que sabia; e, como
farejou negocio importante, ofereceu-se para transmitir-lhe o recado que o mercador quisesse dar. Este contentou-se
com lhe pedir que dissesse, de sua parte, ao Tunda-Cumbe, que viesse falar com ele impreterivelmente em sua casa
àquela noite. Tunda-Cumbe, não obstante Ter grandes desejos de não deixar o samba senão depois de ausentes todos os
convivas, correu sem demora à vila, calculando que de semelhante chamado só lhe poderiam provir vantagens, atento o
estado das coisas na capital, do qual já tinham chegado as graves noticias à Goiana.
Os inimigos da nobreza, divertindo-se, como esta, ao menos aparentemente, e festejando com fogos enterrados
à frente de suas casas, com reuniões, danças, comes e bebes a noite do precursor do Messias, projetavam também
tenebrosas vinganças, seguindo, sem o saberem, os nobres, posto que o conjeturassem.
A morada de Coelho ficava por cima da própria loja. No vasto sobrado para isto destinado não faltava o luxo
que caracteriza a vida de larguezas e deleites que o comercio dá e tira com a facilidade natural do jogo das operações
mercantis. As extensas relações que tinha entre os agricultores, e a circunstancia de ser o negociante de mais nota do
lugar pelos meios pecuniários de que dispunha, obriga-lo-iam a essa vida fastosa, quando certa ambição de figurar e o
propósito de competir no lustre e grandeza com os primeiros fidalgos de Goiana não exigissem dele o tratamento
luxuoso que sustentava. Até certo tempo atrás, fora visto com bons olhos por esses fidalgos. Mais de um deles lhe dera
demonstrações de respeito e estima. Chegou-se a dizer que à influencia de alguns devia Coelho a nomeação de
sargento-mór com que o distinguira el-rei. Fosse porque fazia de se grande conta; fosse porque lhe parecera tempo de
firmar a sua posição ainda não de todo segura; fosse porque não pudera resistir às imposições do sentimento, deu
Coelho um passo que, produzindo completa e radical mudança em sua vida, converteu em hostilidade e ódios contra se
próprio as afeições e benevolências que tinham antes disso manifestado por ele os nobres da vila. Sabendo anos antes,
que d. Damiana, pela qual sentia grande afeto, estava para ser dada em casamento a João da Cunha, antecipou-se ele e
pediu-a para si. Foi-lhe peremptoriamente recusada; e não teve outra origem o eclipse da sua estrela, nem o ódio que
cavou entre ele e o sargento-mór o abismo insondável que os separava. Ao principio sentiu-se Coelho como curvado
debaixo do peso deste grande desastre; mas, por derradeiro, reacendendo-se-lhe a chama do forte animo, um momento
apagada pelo sopro da tormenta, o negociante ergueu a cabeça, fixou vistas altivas em seu altivo inimigo, e assentou de
lutar com ele e seus parentes e iguais, até que os vencesse ou caísse de todo exangue e morto. A esse tempo já se iam
manifestando as rivalidades que trouxeram como resultado a guerra. Coelho, em vez de procurar dissipá-las, foi o
primeiro que em Goiana as ateou e lhes deu vulto e desenvolvimento; de modo que, quando, pela criação da vila do
Recife, elas definitivamente fizeram explosão, à frente dos mascates apareceu ele, sedento de vingança, tomando para
se toda a responsabilidade e direção dos ódios insurgentes e tornando-se o alvo dos rancores da nobreza. Quando o
Tunda-Cumbe apareceu na sala, achavam-se aí com o dono da casa Jeronimo Paes, o português Manoel Rodrigues
(taberneiro), Belchior, Romão e outros. O assunto da conversação era a guerra, nem podia ser outro o que os reunisse
então. Mas aqui não se manifestavam apreensões e temores, como no engenho, entre os nobres. Aqui se tinha por segura
a vitoria, não obstante já se saber que o bispo se evadira e se achava exercitando o governo contra os mascates. - Que
importa isso? Inquiria Jeronimo Paes. As fortalezas, os arsenais, a milícia de terra e a milícia naval, os homens bons do
Recife e o povo são todos nossos. Em nossos armazéns temos gêneros acumulados para seis meses. Falava-se em que os
mazombos tencionavam sitiar a vila. Estúpido plano é este. Que mal nos pode trazer semelhante sitio, quando temos
livre o porto, por onde podemos comunicar-nos, não só com as outras capitanias, mas até com importantes localidades
do litoral de Pernambuco?
- Hão de cansar-se eles primeiro de nos guardarem, que nós de estarmos guardados por semelhante modo –
acrescentou um dos circunstantes. Dando com os olhos em Tunda-Cumbe, Antonio Coelho levantou-se e acenou-lhe
com a mão que o acompanhasse ao aposento contíguo. Aí chegados, Coelho ofereceu ao peixeiro uma cadeira, e dando
exemplo, disse-lhe:
- Senta-te, Manoel Gonçalves.
Este, a modo de admirado da intimidade que eqüivalia a uma honra, que ele estava longe de esperar, respondeu:
- Pode vosmecê dizer o que ordena. Ouvirei tão bem estando de pé, como se sentado estivera. Senta-te. O
negocio exige pratica longa.
Tunda-Cumbe sentou-se.
Por todos os de Goiana era o Tunda-Cumbe havido por meio mercador e meio bandido. Ninguém ignorava suas
relações com certos sujeitos de ruim fama, alguns dos quais se dizia serem associados ao peixeiro em criminosas
negociações. Havia quem soubesse que no lugar denominado Sipó tinham eles um como rancho, onde celebravam seus
conciliábulos.
- Mandei chamar-te, Manoel Gonçalves...
Aqui interrompeu Antonio Coelho, e um momento depois continuou:
Mas, antes de entrarmos no assunto, não será mau que desmanches um pedaço de bolo fresco e laves a guela com um
copo de vinho puro e velho, que há dias me chegou do Porto.
Assim falando, Coelho apontava para a cômoda de cedro, onde se viam, em salvas de prata, bolos de S.João de
diferentes tamanhos e formas, e em garrafas de cristal o vinho generoso a que aludira. Tenha paciência, seu Antonio
Coelho, - respondeu o peixeiro. Acabo de chegar agora mesmo do divertimento em que estava, quando o Lauriano me
deu o recado. Queira ter vosmecê a bondade de vir direitinho ao negocio, que eu fiquei de voltar ainda hoje ao dito
divertimento, onde tenho uma grande empresa que executar, se para isso não me faltar o tempo.
- Que empresa é essa?
Quebrar os dentes a um pé-rapado, por não terem mordido a língua dele na ocasião de me dizer meia dúzia de
liberdades que lhe hão de custar bem caro.
- Folgo em encontrar-te nestas boas disposições. Mas, para não dares passo em falso, trata primeiro de
organizar as tuas forças. Não tens tu vários amigos com quem te podes ajuntar a qualquer hora que seja necessário?
Tunda-Cumbe, não sem dar mostras de confusão e hesitação, inclinou a cabeça como quem respondia
afirmativamente.
- Pois bem, tornou o negociante. É da máxima conveniência que de hoje para amanhã reunas todos eles e à sua
frente trates de hostilizar por todos os meios imagináveis, não só o pé-rapado a quem queres quebrar os dentes, mas
tantos pés-rapados e mazombos quantos puderem cair em tuas mãos. Já deves saber o que resolveram os nossos
patrícios e amigos do Recife...
- Tudo sei.
É de nossa honra e de nosso interesse que o grito que eles soltaram na vila, acha eco em todos os pontos importantes da
província, especialmente em Goiana.
- E o governo está de nossa parte?
O governo! O governador, o legitimo, o verdadeiro governador de Pernambuco, Sebastião de Castro Caldas, este está
conosco. D. Manoel é simplesmente o governador da rebeldia. Deu força aos insurgentes, e está exercendo atribuições
que lhe não competem. Os que o sustentam e por eles são sustentados, tão criminosos são como ele. opuseram-se à
criação da vila, o que quer dizer que se opuseram à vontade e à ordem de el-rei; tentaram contra a vida do legitimo
governador, e o obrigaram a refugiar-se na Baia para escapar à morte; na ausência dele, tomaram conta do poder
tumultuaria e revolucionariamente; o bispo por infame covardia ou por indigna conivência, assumiu as rédeas do
governo e expediu perdão aos rebeldes e assassinos. Devíamos nós, leais vassalos de el-rei, ter por justo e legal o
infame perdão, quando as justiças do céu e da terra exigiam antes as cabeças dos rebeldes? Não, mil vezes não.
Acumulamos viveres, ajuntamos dinheiro para que nos não faltasse nada na ocasião do desforço. Julgando os nossos
amigos do Recife chegada esta ocasião, acabam de soltar o brado em favor da restauração da autoridade legal, vil e
traiçoeiramente conspurcada pelos que se apelidam nobres, quando outra coisa não são senão rebeldes e sicários. Assim,
todo leal português tem o dever de lançar mão das armas para derrubar o governo de d. Manoel e levantar novamente o
de Castro Caldas. Em favor desta empresa patriótica e gloriosa é que te proponho reunas todos os amigos que puderes.
O programa da luta é largo, mas resume-se nisto – destruir, seja por que meio for, qualquer força, qualquer bem, até a
própria vida de todos os fidalgos de Pernambuco.
- Tudo de que precisares, a saber, dinheiro, viveres, apoio, proteção ilimitada para ti e para os teus, a fim de se
preencher este plano salvador das nossas fortunas, das nossas vidas e do nome português, ser-te-há prontamente dado ou
feito, contanto que a represália não fique nem por um instante retardada. Posso confiar em ti e nos teus, Manoel
Gonçalves? Concluiu Antonio Coelho com gestos e expressão de quem estava de corpo e alma entregue a este
pensamento e por levá-lo a efeito subiria a todas as eminências e desceria a todos os abismos.
Antonio Coelho era de boa estatura. Tinha os cabelos pretos e corridos, os olhos rasgados e úmidos. Espadaúdo
e anafado, dir-se-ia que esse homem, uma vez sentado, não poderia levantar-se senão com auxilio de outrem. Nada
entretanto encontraria mais a verdade. posto que maciço de formas, era pronto nos movimentos. Sua agilidade tinha o
quer que fosse da eletricidade. Em seu semblante estavam esparzidos os toques de uma expressão particular que o
tornavam atrativo. Usava a palavra com veemência e mobilidade que interpretavam brilhantemente os caprichosos
raptos e oscilações de seu espirito, umas vezes lento e tardo nas operações, outras franco e arrebatado até a
inconveniência e a temeridade.
- Há então viveres e dinheiro bastante para serem distribuídos pela gente que eu ajuntar? Inquiriu o peixeiro,
como quem não queria ainda acreditar na formal promessa que acabava de fazer-lhe o negociante.
- Há tudo de que precisares para as mais arriscadas e custosas arremetidas contra a nobreza, disse a com
segurança Antonio Coelho, qual se fizesse um juramento solene. Além disso, acrescentou como por demais, o saque
entrará por muito na ordem dos meios de suprir qualquer falta que se não tenha podido prever.
- Eu quero ser franco a vosmecê. Tenho já comigo, não de hoje, mas de há muito, vinte camaradas valentes e
decididos. Se me autoriza a aumentar o número, dentro de pouco tempo terei uma companhia organizada. Autorizo-te a
organizares um batalhão. Pagarei a todos o soldo, e a ti aquele que costumam vencer os coronéis.
- Muito bem, respondeu o Tunda-Cumbe. Pode contar comigo. De hoje a oito dias teremos gente para tomar
Goiana.
- - Trata-se, não de tomar Goiana, que nossa é, mas de ir em socorro dos nossos amigos do Recife, que
estão ameaçados de um rigoroso sitio, posto pelos rebeldes de Olinda e das vilas mais próximas. Pois sim;
é para o que quiser. Sou pau para toda obra.
- Fica pois assentado que de hoje em diante andaremos de acordo nesta grande obra. Sim, senhor. Está
decidido.
- Em cado de necessidade, por quem poderia mandar chamar-te?
- Por Lauriano.
- Podemos confiar nele?
É um negro interesseiro, que odeia muito os nobres, porque de um deles foi escravo e provou muito bacalhão. Ele sabe
onde há de procurar-me, nos dias em que não costumo vir à vila.
Antonio Coelho deu algumas ordens ao peixeiro, assaz agradáveis para este, por serem acompanhados de
algumas moedas de prata.
Metido o dinheiro na algibeira do gibão velho que trazia, o Tunda-Cumbe retirou-se, levando consigo a
convicção de que desde o momento em que fora autorizado a acrescentear o seu séquito, era ele tão poderoso chefe
senão mais do que o próprio que a isso o autorizara.
XVII
Nos primeiros dias de julho, em lugar dos vinte malfeitores que dantes trazia mais ou menos ligados consigo,
contava o Tunda-Cumbe numero superior a duzentos; e por tal forma lhes havia imposto a sua autoridade, que a seu
grado os dirigia e movia tão bem como se foram puros autômatos.
Os insultos, as arrogancias, os furtos de cavalo, os roubos, as atrocidades de toda espécie começaram então a
aumentar de modo assustador. Hoje, era a casa de um foreiro assaltada, amanhã, era um negro do engenho castigado
cruelmente porque se tinha oposto a que tirassem a cana, a macaxeira, a galinha, a ovelha, que eles por fim sempre
tiravam.
Para a família do pobre não houve mais respeito nem segurança. Mulheres honestas e recolhidas, moças
solteiras que viviam honradamente sovre se ou em casa de seus pais eram raptadas sem o menor escrúpulo, e iam contra
a vontade delas, os olhos arrasados de lagrimas, cevar a brutal concupiscência de assassinos e ladrões, que, confiando
na impunidade prometida para eles por seus protetores, as deixavam ao desamparo, nos braços da devassidão, ou entre
as unhas felinas da miséria, depois de saciadas suas paixões reprovadas e vis.
Constituiu-se assim o Tunda-Cumbe dentro em pouco tempo o terror de todo o norte de Pernambuco, porque
para suas correrias ele não escolhia lugares nem conhecia limites; e publicar o seu nome montava publicar, não já o
nome de vinte ou duzentos facinorosos, mas o de quinhentos, afeitos a desrespeitar os homens sérios, a roubar a honra
das famílias fracas e a fazenda do proprietário pacifico, a matar o matuto que lhes resistia, a destruir e aniquilar homens
e coisas.
Pelo mesmo tempo outro caudilho truculento começou a representar no sul as mesmas tradições de saque,
sangue e morte que celebrizaram tão tristemente o Tunda-Cumbe. Era o índio Sebastião Camarão, de quem se dizia que
recebera três mil cruzados dos mascates para ser por eles, com seu séquito na guerra que se acendera. Este séquito,
composto em sua maior parte de homens que tinham dado inteiramente as costas à honra, à moral, à lei e a Deus,
chegou a ser muito numeroso e a contar quase o dobro do outro bandido. Os maiores criminosos do sul faziam parte
dele, razão porque nos lugares por onde passavam, nenhum principio ou interesse venerável ficava sem receber deles as
mais graves violações e ofensas.
De todos os senhores-de-engenho das cercanias de Goiana, o que servia de alvo ao ódio mais apurado do
Tunda-Cumbe era Matias Vidal de Negreiros. A razão é obvia.
Durante o seu almocrevar, quando sucedia passar, não por fazer negocio, mas por encurtar distancias ou evitar
grandes atoleiros ou rios cheios, pelo engenho de Matias, fazia o Tunda-Cumbe, rosnando como cão irritado, esta
acerba jura:
Hei de vingar-me algum dia neste vilão ruim do que me fizeram seus negros. O dia pareceu-lhe ter chegado duas
semanas depois da conferencia que tivera com Antonio Coelho, e para lá se encaminhou com cerca de sessenta dos seus
valentões no intuito de tomar a desforra longamente premeditada.
Quando chegou a Itambé seria meia-noite. Fazia brando luar. Tendo sido muito abundantes as chuvas aquele
ano, o mato fechara consideravelmente e quase tomara os cinco ou seis caminhos que iam ter na casa. Tunda-Cumbe
dividiu a gente em partidas iguais, cada uma das quais tomou a direção conveniente pelo caminho que lhe incumbiu
percorrer. A casa não poderia resistir a sessenta homens, que simultaneamente a atacassem por todos os lados; mas não
surtiu o plano o menor efeito, porque antes de chegados os atacantes ao ponto, diferentes tiros, partidos de dentro dos
matos e canaviais lançaram susto e pavor no animo daqueles que tomavam da surpresa ou emboscada a sua principal
valentia. Tunda-Cumbe, receoso de forças que não conhecia, ordenou a retirada.
Foi o caso que tendo Matias Vidal negros e moradores de sua confiança, devidamente espalhados por dentro do
mato, e empregados em vigiar durante a noite os caminhos, por sinais assentados antes tinham estes vigias dado aviso
da aproximação do bando aos outros negros e moradores, que correram sem demora a impedir o passo aos assaltantes.
De há muito suspeitava Matias que o Tunda-Cumbe, em oferecendo-se ocasião oportuna, não deixaria para mais tarde a
sua desforra. Todavia, não estaria preparado para frustrar tão facilmente este ataque inopinado, se outra razão o não
determinasse a ter prontos meios de debelar qualquer agressão, por forte e súbita que fosse. É a razão que diremos.
Assentado ficara entre os nobres em casa de João da Cunha, antes de dissolvido o ajuntamento aí celebrado na noite de
S.João, que, não obstante dever-se esperar, para resolução definitiva, por noticias e indicações formais das autoridades e
amigos da capital, prudente era que cada um dos proprietários presentes tratasse de organizar sem perda de tempo terços
defensivos, com seus moradores e escravos. Dado este importante passo, era fácil dentro em pouco tempo, no caso de
necessidade, mobilizar-se em Goiana uma grande massa de gente, que acudisse ao primeiro reclamo da capital, quer
para engrossar o cerco, se esta fosse a idéia predominante, quer para tomar de assalto o Recife e destruir o governo
constituído pelos mascates dentro nesta vila. Se não fossem reclamados socorros, nem por isso se perderia o que
estivesse feito, visto que, devendo-se ter por mais que provável que a reação se generalizasse mais dia menos dia, ter
cada um dos senhores-de-engenho junto de se seu contingente, era o mesmo que estar defendido em sua família e
propriedade. A demonstração pratica da excelência e sabedoria deste acordo, foi Matias Vidal o primeiro que a teve,
pelo que fica escrito.
Esta lição, porém, longe de encurtar, posto que fosse incruenta, os arrojos do chefe dos bandoleiros, o incitou a
investida ainda mais grave.
O dia seguinte sendo Domingo, apresentou-se ele muito cedo na vila, deliberado a praticar qualquer distúrbio,
que, produzindo escândalo, para logo desse lugar a que seu nome soasse como o de um diligente e fiel servidor dos
mascates, tanto em Goiana, testemunha do insulto, como no Recife, aonde logo havia de chegar a noticia dele.
Estava-se em 3 de julho. Os espíritos achavam-se por extremo excitados. Os parciais da nobreza, animados por
saberem que tinha ela por se o governador, já restituído a sua liberdade, não perdiam ensejo de exaltar a sua força e
ostentar o poder que dá a autoridade. Os parciais dos mascates não faziam por menos, publicando que sem dinheiro
comprariam os mais nobres da terra, inventando inumeráveis relações de comunidade entre os rebeldes proeminentes e
o governador geral do Brasil, d. Francisco de Souza, seu filho, e outros importantes vultos da Baia e de Portugal.
Varias eram as pessoas que na botica do Rogoberto matavam o tempo enquanto o sino da matriz não vibrava a
Segunda chamada para a missa conventual. Entre essas pessoas apontavam-se Jeronimo Paes e Belchior. Serviam de
assunto as ultimas noticias chegadas do Recife. Eis a substancia de tais noticias. D. Manoel, logo que se achou de novo
de posse da autoridade, mandou publicar na vila o edital pelo qual eram intimados os oficiais da milícia e os demais
moradores que estavam em armas a retirar-se das fortalezas com as respectivas guarnições, a fim de entrarem os povos
no sossego do costume, sob pena de serem havidos por traidores e inimigos da paz, e ficarem por isso sujeitos ao rigor
das leis. Não tendo querido, porém, os revoltosos aceitar estes avisos, e devendo-se por isso dar começo a procidencias
mais enérgicas, para as quais, por ser de paz e perdão o seu ministério, não se julgava o mais próprio, resolveu
encarregar do governo militar o ouvidor geral, dr. Luiz de Valenzuela Ortiz, o mestre de campo Christovão de
Mendonça Arraez e o senado da câmara de Olinda, que se compunha do coronel Domingos Bezerra Monteiro, capitão
Antonio Bezerra Cavalcanti e tenente Estevão Soares de Aragão.
O procedimento do prelado era considerado como covardia no congresso da botica. Belchior, para dar mais
autoridade a este juízo, recordava diferentes circunstancias passadas, a saber, a partida de d. Manoel para a Paraíba
quando desfecharam o tiro no governador Caldas; o ter-se deixado prender pelos mercadores no dia 18 do mês anterior;
e outras circunstancias que não são para o nosso caso. O bispo não é mais do que um vilão ruim, um desprezível
instrumento dos Cavalcantis que querem ter sempre curvados a seus pés, como têm os negros dos seus engenhos, os
povos de Pernambuco. Os mascates não precisam dele para castigarem a soberba e arrogância dessa nobreza de meia
tigela, que o que traz limpo em seu sangue deve a esses mesmos mascates; porque o que daí não procede, é cor da noite
de África ou cor do fogo das aldeias.
Palavras não eram ditas quando um filho de Jorge Cavalcant, que vinha montado em fogoso ginete, chegando-
se à porta da botica assim retorquiu, montado como estava, a Belchior com o calor e a imprudência dos primeiros anos:
- Vilões ruins são aqueles brasileiros desnaturados que se vendem ao ouro ou rendem às lábias dos
estrangeiros, cujo sentimento não é outro que o de revolverem a terra onde encontraram hospedagem. Esses, sim, são os
mais infames vilões que pisam na terra de Camarão e de Henrique Dias. Sua baixeza não se compara nem mesmo com a
dos que mordem a mão que deveriam beijar.
Replicou-lhe Belchior com quatro pedras na mão; o filho de Jorge treplicou, já com mostras de quem queria
usar o chicote que trazia. Quando o gesto indicou a intenção, quase todos os que estavam na botica, tomaram o partido
de Belchior, mas não tardou que varias pessoas das vizinhanças e da rua vieram em socorro do outro contendor.
Estavam justamente as coisas neste ponto, quando apareceu o chefe dos bandoleiros. Ao gibão surrado, aos
calções em diferentes partes serzidos e aos sapatões grosseiros com que costumava andar, tinham-se substituído casaca
e calções de veludo e sapatos de entrada baixa com fivelas. Trazia pendente um espadim que parecia novo, como o
chapéu de pluma e a roupa. Naqueles tempos já o habito fazia o monge. Tanto que o Tunda-Cumbe se apresentou
vestido com este apuro e galhardia, não foi preciso mais para que todos logo conjeturassem que grande transformação
se operara na vida do ex-peixeiro, e já alguns lhe tirassem o chapéu, como demonstração de respeitosa cortesia. Tal
houve que se afastou para que ele tivesse livre acesso ao ponto central do conflito. Muitos dos circunstantes explicaram
esta atenção, atribuindo-a a vir ele acompanhado de dez a doze valentões conhecidos, pouco tempo antes seus
companheiros, agora seus guarda-costas.
- Donde vem esta grandeza e este poderio a Tunda-Cumbe, que ainda não há um mês vendia bodiões e amorés
pelas portas? perguntou a meia voz um parcial dos nobres.
Respondeu-lhe no mesmo diapasão o companheiro:
- Dizem que tem ordem franca dos mascates para ajuntar gente, e do Recife lhe prometem a patente de coronel
em paga dos serviços, já vendidos a eles por bom dinheiro.
Entretanto o Tunda-Cumbe chegara ao ponto onde se dera o veemente bate-barbas. Achou somente aí o
Belchior. O filho do Jorge Cavalcanti tinha tomado já a direção da matriz, e com pouco descavalgava e entrava.
Entendendo Tunda-Cumbe que não devia perder aquela ocasião de dar a mostra do pano, puxou do espadim e
assentou-o de chapa sobre as costas de um sujeito que no canto da rua mais publica da vila exaltava a causa da nobreza
e desfazia na reação dos mercadores. Não foi preciso mais para que se desse novo conflito, que dentro de alguns
minutos redundou em serio motim. Houve muitas contusões, muitos ferimentos, muito sangue inutilmente derramado.
Estando ainda nas mãos da nobreza a autoridade e a força publica, pode-se dominar no fim de algum tempo a assuada.
O nome, porém, de Tunda-Cumbe e os dos bandoleiros mais violentos que com ele percorreram as ruas, espancando e
ferindo os adversários que encontraram desprevenidos e inermes, esses nomes, especialmente o de Manoel Gonçalves,
começaram desde esse momento a voar nas asas da fama, e poucos dias depois designaram celebridades que todos
entraram a respeitar e temer.
Uma semana depois, Goiana foi testemunha de novas cenas, mais graves do que as primeiras, as quais
chegaram a durar três dias.
Por ordem de João da Maia da Gama, capitão-mór da Paraíba, tão dedicado aos mascates que pelo senado da
câmara de Olinda foi apelidado em oficio de 26 de junho de 1711 - a pedra fundamental em que os do Recife se
levantaram e formaram o quimérico edifício e fabrica do industrioso levantamento - , veio Luiz Soares reunir-se com o
Tunda-Cumbe a fim de irem ao Recife com sua gente passante de oitocentos homens, levantar o cerco.
Achavam-se entre os da Paraíba, não só Joaquim de Almeida, espirito por assim escrevermos, inspirador do
capitão-mór João da Maia, mas também Pedro de Melo, um dos instrumentos da revolta sustentados pelo Almeida.
Tendo esta por base, para tornar uniforme o movimento, dar Goiana como unida à Paraíba, veio desta Pedro de Melo
eleito capitão-mór daquela. Feita a junção em Pedras-de-fogo, tomam posse com ele em Goiana os oficiais da nova
câmara, distribuem-se lugares aos mais esforçados cabos da rebelião, constitui-se enfim o governo da vila independente
do de Pernambuco. Pedro de Melo entra no exercício do seu lugar com toda a solenidade do estilo. Sai da igreja do
Carmo para a casa da câmara debaixo do palio, acompanhado dos camaristas, tão legítimos como ele, e dos frades
carmelitas, executores das ordens dos da recoleta do Recife. A vila, achando-se desguarnecida de força militar, visto
que a que havia tinha ido atacar o rancho do Sipó, no pressuposto de surpreender aí o Tunda-Cumbe, viu-se obrigada a
aceitar este desatino quase a portas fechadas. E o intruso e ilegítimo governo se consolidaria talvez, sustentado por
Maia, se logo depois da sua posse, em 14 de julho, não tivesse chegado a guarnição incumbida da diligencia e ao
mesmo tempo as forças legais mandadas de Olinda para impedir que seguissem os revoltosos e dissolver o governo
intruso. Estas forças vinham comandadas pelo ajudante Bernardo de Alemão e Mendonça, o qual se unira com o capitão
Bento Bezerra de Menezes, que comandava a companhia de Araripe, e com o ajudante Felipe Bandeira de Melo e os
que com ele estavam na ilha de Itamaracá. Posto que não eram numerosos, tendo feito junção com a guarnição da vila,
puderam por em violento e vergonhoso regresso todos os revoltosos Paraibanos.
No intuito de deixarem inteiramente serenados os espíritos dos pacíficos habitantes e restabelecida a ordem em
Goiana, fixaram-se essas forças no engenho do capitão Bento Correa de Lima, que ficava à vista da vila, e onde
estiveram por muitos dias.
O Tunda-Cumbe, sagaz e prevenido, tinha-se retirado com os seus ao valhacouto do Sipó, logo depois de
constituído o governo que teve tão efêmera existência, o que não concorreu pouco para o aumento dos créditos da sua
manha e penetração.
XVIII
Antes de chegar à Goiana, praticou em Pedras-de-fogo o bando que viera da Paraíba, capitaneado por Luiz
Soares, uma infame tragédia.
Essa povoação, da qual, por efeito de nossa viciosa divisão territorial, uma parte pertence à província da
Paraíba, e a outra parte a Pernambuco, já naquele tempo representava certo espírito de resistência ao elemento
estrangeiro, que depois da referida tragédia se acentuou e manteve até bem pouco tempo, segundo direi.
A principal família de Pedras-de-fogo em 1711 não se caracterizava por clara linhagem nem por haveres, mas
pelo numero de seus membros, pelo espirito de trabalho de cada um, pela harmonia que os trazia unidos uns aos outros,
e pela valentia que de qualquer deles fazia um leão.
Manoel do O’, sujeito tirante a pardo, natural de Nossa-Senhora-do-ó fora ainda muito novo estabelecer-se
com sua tenda de alfaiate em Pedras-de-fogo.
Esse lugar, que ainda hoje não é notável senão por sua grande feira de gados, a qual aí se faz semanalmente,
por então começava apenas a povoar-se. poder-se-ia compor de quinze a vinte casinhas, em sua maior parte cobertas de
palha.
O alfaiate casou-se com a filha de um mulato por nome José da Luz, que tinha na Rua-da-feira a casa de
morada e defronte desta a tenda de ourives. A união foi fecunda, cada ano nascia a Manoel do Ó um filho; de tal sorte
foram as coisas, que em 1710 a sua descendência se compunha de dez filhos e vinte e dois netos. Alguns destes já
taludos.
Não havia nenhum que não tivesse seu meio de vida. Alguns não o tinham muito decente e legitimo; não há
família numerosa em que se não aponte qualquer lepra. Em sua maioria, porém, eram os descendentes varões de Manoel
do Ó de regular procedimento e muito benquistos no lugar.
Posto que, como meio de levantar a gentalha a seu favor, os mascates fizeram publicar que a sua causa era a da
liberdade e da igualdade do povo contra a tirania constituída e os privilégios antigos da nobreza, meio a que deveram a
maior parte dos auxílios dos naturais da terra, Manoel do Ó, que não era tolo, convidado por Maia a aderir aos motins,
escusou-se, dizendo que nada tinha nem com os nobres, nem com os mascates, visto que era ele, como todos os seus,
mecânico, plebeu e homem de cor.
Tanto bastou para excitar o desagrado dos insurgentes, dos quais foram, dentro em pouco, tão positivas e
repetidas as hostilidades e arrogancias contra Manoel do Ó, que, ofendido este, ao principio simplesmente no seu
melindre de família, e por derradeiro na própria pessoa de um filho, certo dia, de um genro daí a pouco, e de um neto
semanas depois, resolveu declarar-se pela causa dos nobres; e uma das tentativas de Maia para fazer junção em
Goianinha com o bando do Tunda-Cumbe, a fim de se dirigirem ao Recife, foi frustrada por Manoel com sua
companhia de filhos, mais ou menos ligados com ele por laços particulares. Foi tão forte e acertada a oposição, que a
força mandada por Maia não pode passar sequer os limites da Paraíba.
Não foi só esta a única tentativa de junção malograda; nenhuma houve de 11 de julho para traz que surtisse
efeito. Manoel do Ó achava-se diante de todas com sua gente como barreira intransponível e fatal.
Estas e outras idênticas contrariedades exacerbaram por tal forma o capitão-mór da Paraíba que este assentou
de queimar o ultimo cartuxo para as fazer cessar de todo.
- Diga a esse negro Manoel do Ó, assim se exprimia ele uma vez a certo sujeito que tinha relações com o
alfaiate, que muito breve lhe hei de provar que O é o mesmo que zero; e a seus filhos José da Luz e Antonio da Luz,
diga igualmente que hei de mandar apagar as luzes de sebo de Pedras-de-fogo pelo meu escravo Euzebio, com tiros de
bacamarte.
Dito e feito. Em 10 de julho, quando menos se esperava no povoado, rompeu o fogo para as bandas da
Baixinha, lugar de Pedras-de-fogo que pertence à Paraíba. Tinham sido dados os tiros pela gente de Luiz Soares contra
uns sobrinhos do alfaiate que moravam desse lado.
Manoel do Ó, que não obstante a sua avançada idade tinha ainda grandes espíritos e não perdia de vista os
passos de Maia, saiu logo com sua gente; e pois na véspera de noite seu filho Anacleto do Espirito-Santo, que chegara
do Limoeiro, aonde tinha ido a destrocar uns cavalos, lhe dissera ter visto aí o Tunda-Cumbe, não pensou em proteger a
retaguarda, até porque, sendo muito numeroso o concurso dos agressores, toda a gente viu-se obrigada a empenhar-se
em lhe fazer frente.
Este foi o seu mal, porque momentos depois teve a retaguarda atacada por forças não menos numerosas que as
de Luiz Soares. Foi o caso que, tendo-se entendido Maia previamente por carta com Antonio Coelho e concertado com
ele o ataque ao obstáculo comum, não se fizera esperar do lado de Goiana o reforço do Tunda-Cumbe.
Vendo-se entre dois fogos o povo de Manoel do Ó, não houve esforço que não empregasse para romper
qualquer dos lados, nem atos de bravura que não praticasse, a fim de levar a melhor aos agressores. Tudo porém foi
debalde. Trinta homens não podiam triunfar de oitocentos.
A cabo de uma hora de peleja que não se pode descrever, Manoel com quase todos seus parentes estavam
destroçados e vencidos. Restavam unicamente da família as mulheres, dois filhos e três sobrinhos, que lograram
escapar-se quando reconheceram que a sorte das armas lhes era adversa. Estes, para não perderem a vida, ganharam o
mato.
Não se podem imaginar as atrocidades que, vendo-se senhores do campo, cometeram na povoação,
desamparada no mais aceso da luta, os bandoleiros desenfreados e sedentos.
Refugiaram-se no mato os homens feridos e as mulheres chorosas e consternadas que constituíam os últimos
restos da parentela de Manoel do Ó. Aí o seu ódio cresceu e radicou-se profundamente no coração de cada um dos
foragidos. Exagerados em seus desejos de desagravar-se, juraram na solidão da selva, testemunha da sua adversidade e
depositaria dos seus prantos, que se pudessem voltar com vida a Pedras-de-fogo, como lei de sua honra, não
consentiriam jamais que nenhum português se demorasse mais de vinte e quatro horas na povoação fundada pela ilustre
vitima cuja memória eles deste modo queriam honrar. Julgavam, jurando preencher esta promessa solene, que
cumpriam um preceito de alta justiça. Não era porém outro sentimento o deles, assim prometendo, que o sentimento da
vingança pessoal, sempre cego e injusto.
Transmitindo-se de pai a filho, de filho a neto, nem foi esquecida a tradição do morticínio nem ficou sem
preenchimento a promessa feita entre prantos e angustias há mais de um século.
Não há no que aí fica relatado, invenção de romancista. Até bem pouco tempo, logo que chegava qualquer
filho de Portugal a Pedras-de-fogo, era intimado de ordinário por moradores pertencentes às primeiras famílias, para
que dentro de poucas horas se retirasse.
Este exagero passou de todo. A civilização, polindo o brasileiro do interior, deixou-lhe inteiramente livres os
movimentos de natural generosidade e brandura, que constituem a parte essencial de seu gênio.
Enquanto estas cenas e outras semelhantes se passavam em diferentes pontos do termo de Goiana, acertadas
providencias eram dadas pelo governo da capital a fim de que elas não se reproduzissem.
Não sem razão inspirava aos nobres plena confiança o ajudante-de-tenente Francisco Gil Ribeiro. A galhardia e
a bravura militar de Gil eram tradicionais, e constituíam um dos mais ricos e ilustres patrimônios da gloria
pernambucana. Para descansar das fadigas da sua longa e trabalhosa vida, acolhera-se o ancião na sombra do lar
domestico. Afetos brandos, inclinações respeitáveis, tinham-se substituído às violentas explosões da paixão guerreira.
Estabelecera ele sua residência nas Salinas (hoje Santo-Amaro), à margem direita do Beberibe, entre cajueiros e
sapotiseiros pitorescos. Daí o foi tirar o governo, para lhe entregar o comando da fortaleza de Itamaracá, ameaçada de
cair no poder dos amotinados de Goiana. As noticias, porém, dos graves e sucessivos conflitos havidos nesta vila,
determinaram o governo a ordenar que o ajudante-de-tenente, à frente de quarenta homens, e acompanhado dos alferes
Carlos Teixeira e Francisco Alves, e do ajudante Felipe Bandeira de Melo, se dirigissem sem perda de tempo a
pacificar aquela localidade.
Ao entrarem na estrada geral do norte, um matuto que passava do Recife, vendo a força, recuou o cavalo, para
deixar livre o caminho. Parecendo suspeito a Gil este movimento de pura cortesia ou respeito, fez sinal a alguns
soldados que segurassem o matuto. Este, porém, que não era outro que Francisco, adivinhando a intenção, pôs-se a
respeitosa distancia, aos primeiros gestos dos soldados.
- Que idéia faz de mim, seu comandante? perguntou ele com serenidade. Pensará que sou pela mascataria? Pois
se pensa, está malenganado.
Ouvindo estas palavras, Gil, com gesto imperioso e grave chamou o matuto para mais perto de si; e lhe disse:
- Quem foi que te ensinou este recado para me iludires?
- Não quero iludir ninguém.
Cuidado com esta gente, senhor ajudante, disse Felipe Bandeira a meia voz a Gil. Parecendo simplórios, são finos e
manhosos.
- Mas quem lhe disse que eu sou pela mascataria? tornou Gil a Francisco.
Se é ou se não é, eu não posso jurar. Cá eu é que não sou nem serei por eles nem neste mundo nem no outro.
- Então, se eu tivesse necessidade de uma pessoa que me ensinasse os atalhos para chegar à vila sem ser
pressentido pelos nobres, não me prestava você de boa vontade este serviço tão pequeno?
- Saberá vossa senhoria que nem de boa nem de má vontade eu lhe ensinava os caminhos da vila para este fim.
Daqui mesmo destorcia para traz no meu castanho, porque para servir a tais indivíduos não há forças humanas que me
obriguem, nem dinheiro que me compre.
- Grande ódio tem você à esses homens que só cuidam em viver do seu trabalho.
Eu cá sei em que eles cuidam. Querem enriquecer à nossa custa. Vendem a fazenda pela hora da morte, agora os
gêneros da terra querem comprar por pouco mais que nada. Não fazem isto só com o pobre matuto, como eu; até os
senhores-de-engenho gemem entre as unhas deles. O que não tem o olho vivo, quando dá acordo de se está com as
terras, as canas, os negros de sua propriedade metidinhos todos dentro da gaveta do mascate, que faz os suprimentos e
adiantamentos. Muito francos em fiarem são os tais mascates, quando vêm que a pessoa a quem fazem seus
oferecimentos, tem bens de seus. Agora, quando a conta está bem aumentada, tomam tudo pela justiça, e ficam donos
de casas, escravos e fazendas do dia para noite. Se isto é ser bom, o inimigo leve esta bondade para si, que eu não a
quero nem de graça, quanto mais à custa do meu roçado, do meu cavalo e da minha casinha.
Tendo dito estas palavras, Francisco, chegou a espora que trazia no pé direito à barriga do castanho e virou
para o Recife. Não pode, porém, avançar muitos passos, porque Gil, pondo as pernas à sua cavalgadura, tomou-lhe logo
o caminho.
- Para onde vai? Venha cá. Estamos de acordo, e podemos ir juntos até Goiana. Você é muito desconfiado,
camarada, disse em tom de quem gracejava.
- Não me fiz por minhas mãos, respondeu Francisco. Foi assim que nasci da barriga de minha mãe.
- Mas não tem que desconfiar de mim.
- Meu senhor, a gente vê cara e não vê coração. Eu sei lá se vosmecê vem contra os mascates ou pelos
mascates...
- Pois você não está vendo a tropa?
- Que tem a tropa? Não podia ser deles?
- Então, você vem da capital e não sabe que eles estão cercados?
- Eu sei muito bem que eles estão cercados. Sou capaz de dizer até por quem.
- Diga lá.
Pois escute. Nas trincheiras levantadas junto do muro do S. Bento está a companhia do capitão Dionizio, e a dos
Estudantes, comandada pelo capitão Antonio Tavares; nos presídios do Varadouro, Porto-dos-padres, Porto-das-
lavadeiras, Carreira-dos-masombos e Tacaruna, estão o tenente José Tavares e o sargento-mór Domingos Freire; as
forças de S.Amarinho, Campina-da-cerca, Curtume e Santo-André são comandadas pelo padre Paulo; na Conceição,
Saco, Olaria e Arraial-da-boa-vista está o capitão Carlos Ferreira; na Barreta e no Arraial-dos-afogados está o
comandante João de Barros.
- Bem informado anda você da distribuição das forças do governo.
- Se eu passei por todas elas, porque tive de ir a Jaboatão.
- Mas então porque é que duvida se somos pelos mascates ou pelos nobres? Inquiriu Felipe Bandeira.
- Porque duvido? Então os mascates também não tem tropas na vila? Eles não podiam mandar gente por mar
do Recife para Itamaracá? Mas enfim, como vosmecês dizem que vêm por parte do governo, estou calado.
Eu não duvido da palavra dos homens.
A esse tempo a tropa, que um instante estivera parada, seguia já o caminho de Goiana. Gil, Felipe Bandeira e
os outros oficiais iam no couce. Francisco tinha metido o cavalo entre o de Felipe Bandeira e o de Gil.
XIX
Passado um momento, perguntou o ajudante-de-tenente ao matuto:
- Poderemos saber quem é você, camarada?
- Chamo-me Francisco dos Prazeres, e sou morador do engenho Bujari.
- A quem pertence esse engenho?
- A seu sargento-mór João da Cunha.
- Sei quem é.
Havemos de passar por dentro mesmo do engenho. Vou deixar vosmecês em Goiana, e volto ao Cajueiro, onde tenho
minha família. Há mais de mês não sei dela, nem nova, nem mandado. Quem sabe o que não terá acontecido à minha
mulher e a meu filho durante a minha ausência?
- Você vai encontrar todos em paz.
E se não encontrar, o Tunda-Cumbe é quem me há de pagar. Eu nunca matei ninguém. Trago uma faca de ponta aqui no
cós para me defender. Mas se o diabo do pé-de-chumbo tiver feito alguma das suas a gente que me pertença, não
pregarei olhos enquanto não lhe pregar primeiro a faca na barriga. Hei de tirar-lhe o couro como se faz aos bodes para
secar e dele fazer suador do meu cavalo.
Quando chegaram ao engenho Itapirema, em cuja capela estivera oculto em outubro do ano anterior para
escapar à prisão ordenada pelo governador Castro Caldas, o ouvidor de Olinda dr. José Inácio de Arouche, era quase
noite. O rio tinha tomado muita água e estava de nado.
- Como há de ser isso agora? Perguntou Gil, pondo os olhos naquele mar d’água, que se estorcia por baixo de
galerias de folhagens, estrepitoso e medonho. Para atravessarmos esta imensidade agora de noite, corremos o risco de
perder algum companheiro. É entretanto necessário passarmos hoje mesmo da outra banda; porque, antes que a alva
esclareça, devemos achar-nos na vila. Aliás poderemos chegar já fora de tempo.
- Eu já sei porque é esta pressa toda, disse Francisco.
- Porque é?
- É porque em Goiana se receia que da Paraíba passe a gente prometida aos mascates pelo capitão-mór. Eu
de tudo sei, seu comandante.
- Mas então vê lá se nos dás remédio a isto.
Porque não havemos de passar já? respondeu Francisco, saltando do cavalo à beira do rio, onde a tropa fora obrigada a
fazer alto. Há aqui um ponto onde o Itapirema dá vão. Mas está tudo encoberto e não se pode saber onde fica a trilha.
Quase meia hora gastou ele em procurar, sempre debalde, a oculta passagem. Com água, ora pela cintura, ora
pelos peitos, ora pela boca, percorreu uma extensão de cerca de vinte braças ao longo da margem. De uma vez caiu
dentro de um poço, de que só se salvou por ser forte nadador.
Estava já quase de todo escuro quando, exausto do muito lutar com o impetuoso elemento, que puxava com
extrema velocidade lhe pareceu ter dado com o vão desejado, que ele próprio já perdera a esperança de achar.
Veio à terra, muniu-se de um facão, e atirou-se novamente a nado para o meio do rio. Distante da margem
cerca de seis braças, um mulunguzeiro, cujo tronco o ímpeto da corrente retorcera e cuja folhagem redemoinhava
açoitada pelos novelões revoltos, foi o ponto negro para onde se dirigiu o matuto. Em torno da arvore desacompanhada
as águas fremiam vertiginosas, acusando de baixo delas abismo insondável.
- Eh, meu negro! Exclamou Francisco, dirigindo-se ao rio. Estás assobiando e gemendo? Não vês aqui o teu
amigo, famanaz do Cajueiro? deixa as tuas raivas para outros. Eu sou teu antigo conhecido. Faz-te de cera, coração.
- Assim gracejando deixou-se o matuto levar pela força da corrente, e quando à claridade duvidosa do
crepúsculo pareceu a todos os que da margem tinham os olhos postos nele, inevitável a sua perda, o
matuto barafustou na folhagem retorcida e apagou-se um momento da vista dos presentes. Morreu!
- Afogou-se.
Tais foram as vozes que partiram de diferentes bocas.
Súbito ouviu-se bater o facão sobre os galhos superiores do mulunguzeiro. Ninguém viu mais Francisco, mas todos
ouviram o rumor dos golpes da pesada arma, movida por sua mão possante contra o atleta vegetal que o Itapirema
trabalhava por engolir. Não se demorou muito que os golpes cessaram e uma sombra negra, passando rápida,
vertiginosa, como nuvem fatástica, aos olhos da tropa, sumiu-se no turbilhão. Era a ramagem do mulunguzeiro que
fugia, deixando aparecer nua, escalavrada, acima da superfície do rio, a parte superior da árvore, e no cimo desta o
destemido matuto.
Mas não estava completo o serviço. Francisco veio outra vez á terra, e tendo tirado um fuzil do saco vazio que
pendia do cabeçote da cangalha, encaminhou-se para uma macahibeira que a alguns passos aparecia solitária. Umas
folhas secas, que a tempestade tinha abatido aí, foram apanhadas pelo intrépido matuto, e com elas improvisou ele um
facho.
Então, voltando-se para a tropa disse:
- Vamos passar o rio. Eu vou na frente, feito guia. Com o homem ninguém pode, comandante. É o bicho mais
valente que eu conheço. Qual cobra, nem onça, nem rio, nem raio! Quando o homem é homem, fique certo que vence
pedras, água, o próprio fogo.
E meteu-se imediatamente no liquido elemento.
Quem souber o que é um rio cheio, nos caminhos do norte, especialmente o Itapirema, que pelo inverno
costumava arrebatar e ainda arrebata às vezes algumas vidas, ajuizará da coragem de Francisco e do serviço que
prestava. O rio roncava e estorcia-se ainda irritado e ameaçador. Mas a fúria que causava horror a quem um momento
atrás levara a vista ao mulunguzeiro, essa, com a ausência da folhagem, tinha diminuído, deixando que as águas
corressem mais livremente e menos arrebatadas que antes.
Levaram talvez um quarto de hora a romper o vasto mar, ora em linha reta na direção do norte, ora
contornando cotovelos de terra firme.
De repente uma luzinha apareceu como santelmo, na margem fronteira. Era o lume da casinha de um morador
do engenho.
- Estamos da outra banda, minha gente. Ali está a casa do Manoel Felix, onde poderemos tomar algum trago.
Acho-me todo resfriado.
Quando pisaram terra, Gil Ribeiro, aproximando-se de Francisco, dirigiu-lhes estas palavras:
- Obrigado, camarada. Você nos prestou um serviço que não tem preço.
- Ora qual, seu comandante. eu também estou doido por ver a minha gente.
A noite estava fria, mas clara. A solidão era profunda, e o mato, onde como fogos fátuos, luziam interpoladamente os
pirilampos, soturno e medonho.
Mas por entre arvores ramalhudas, moitas bastas, barreiras nuas, mostrava-se a estrada a todas as vistas,
figurando o leito arenosos de um riacho que secara.
O dia vinha rompendo, quando descobriram a massa sombria da mata de Bujari. O Cajueiro estava a menos de
cem braças, oculto por um cotovelo que formava a estrada.
Sentindo o coração pular-lhe de contente, Francisco virou-se para Gil:
- Seu comandante, vossa senhoria dá licença que eu vá adiante acordar minha mulher e meu filho? Estou que
não posso me conter.
- Pode ir, meu bom companheiro. Corra já. É natural a sua impaciência. A nossa casinha fica ali adiante, na
beira do caminho, à direita, continuou Francisco. A que fica a esquerda é a de seu padre Antonio. Até
logo, seu comandante.
Francisco esporeou o castanho, que, não obstante vir caindo de fome e enfado, se empinou, ainda debaixo das pernas do
senhor, naturalmente por ter sentido o cheiro da manjedoura de casa, e, contornando o cotovelo da estrada, desapareceu
quase de repente da vista dos que ficavam atrás.
- Estou cativo deste matuto, disse Gil, voltando-se para os companheiros.
- Este profundo amor da família, comandante, é um dos dotes naturais do nosso almocreve, disse Felipe
Bandeira.
- Bem sei. Em minha longa vida poucos tenho encontrado que desmintam este modelo. Mas o que acho
especial em Francisco é o desembaraço, a graça, a franqueza que põe em suas palavras e ações. É verdade,
disse o alferes Teixeira. Quase sempre os matutos se tornam bisonhos, quando se acham com pessoas a
quem devem respeito.
- Se tivesse meios, era capaz de obsequiar-nos com um lauto banquete. Assim parece. Mas... que vem a ser
aquilo, comandante? perguntou Felipe Bandeira, apontando para frente.
- Tinham dado a volta do caminho e entravam no Cajueiro. A casa do padre Antonio apareceu logo aos
olhos de todos, à esquerda, como dissera Francisco; mas no ponto onde se devia mostrar a casa deste, o
que eles viram foi um montão de cinzas, de que se levantavam ainda fumo e restos de chama por entre
algumas paredes, esburacadas e enegrecidas.
- O cavalo castanho, entregue de todo à fome que trazia, devorava, sem cavaleiro, a grama verde, que
guarnecia a estrada. Grande desgraça houve por aqui! exclamou Gil.
E atirou-se para diante da tropa e com pouco chegou ao pé das ruínas fumegantes.
- Francisco? Francisco? Chamou ele, sem poder dominar a sua comoção. Que foi isto, meu amigo?
O matuto, quase a queimar-se nos barrotes e caibros que ainda ardiam por entre o barro caído das paredes, revolvia com
um ferro de cova, semelhando visão fantástica, os paus e a terra abrasada. Ouvindo a voz de Gil, respondeu:
- Estou desgraçado, seu comandante. Puseram-me fogo na casa, como vê. Mas o que me aterra é pensar que
podem estar debaixo destes torrões minha mulher e meu filho queimados!
- Não há de ser assim, Francisco.
Marcelina! Lourenço! Exclamava de momento a momento o matuto, cavando e revolvendo sempre os entulhos eriçados
de lascas, algumas flamejantes, muitas reduzidas a carvão. Ninguém me responde, comandante. morreram todos!
Morreram! Estou sem mulher, sem filho, sem casa. Só me deixaram a miséria e o luto.
As feições do matuto mostravam-se desfiguradas. Por cima de suas faces de quarenta anos, que há pouco
pareciam de trinta, porque as refrescava o reflexo do jubilo intimo, obra da esperança que lhe assegurava veria ele com
brevidade os entes prediletos de sua alma, escorriam agora lagrimas lentas, e nelas se lia, em vez do prazer, a dor, a
aflição, o desespero. Foi fácil a todos os circunstantes conhecer a súbita mudança, porque a esse momento o dia estava
claro, e a aurora iluminava o céu e a terra com reflexos que nenhum pintor pode ainda reproduzir na tela.
Gil, sentindo a gravidade daquela crise, correu ao matuto, lançou-lhe os braços sobre os ombros, e disse-lhe em
face:
- Então, que é isso, Francisco? Estás a chamar a todo instante por teu filho e tua mulher? Não vês que não
podem estar aqui?
- Mas então onde estão eles, comandante? Na casa do padre Antonio não há ninguém. Já cansei de bater na
porte. Ninguém me falou de dentro. Oh! Meu Deus! Por aqui andou de certo o Tunda-Cumbe. Malvado!
Malvado! Tu me pagarás.
- Isto, sim, disse Gil, conhecendo que a loucura um momento iminente ia fugindo, espancada pelo
sentimento da vingança, que acordara enfim, para salvá-lo, no coração do matuto. Havemos de vingar-nos
desses perversos, que queimam as casas pacificas e levantam ranchos para novos salteadores. Não
percamos tempo. Salta no teu cavalo. Quem sabe o que não estarão praticando a esta hora na vila os
infames bandoleiros. Vamos, Francisco. Quero-te a meu lado.
O matuto saltou sobre o castanho. Tinha os olhos e as faces em fogo. Na respiração sentia calor de fornalha. Da
mão, em vez do chiqueirador de buranhém que trazia, pendia agora uma catana fora da bainha.
Mas de momento a momento ia repetindo, como de se para si:
- Lourenço, Marcelina, que terá sido de vocês? Coração, tu estás a anunciar-me uma desgraça sem nome.
Deus se lembre de mim, Deus se lembre de mim!
XX
Eis o que tinha acontecido no Cajueiro, ao escurecer do dia anterior.
Lourenço, que depois do que se passara no samba esperava a cada momento ser ofendido por Tunda-Cumbe ou
por algum dos seus sequazes, vendo entrar um vulto desconhecido no caminho das carvoeiras, pegou da espingarda de
Francisco, e, sem que Marcelina soubesse, encaminhou-se par aquele ponto.
Detrás da palhoça dos negros existia uma cova imensa, em que um homem podia meter-se até aos peitos. Com
as ultimas chuvas tomara ela muita água, e se convertera em barreiro, donde os sapos estavam a essa hora soltando suas
monótonas toadas. O rapaz avançou para ela por baixo das ramas rasteiras dos cajueiros. Na parte mais funda a água
deu-lhe pela cintura. Lourenço pouco se importou com isto. O que ele queria era saber quem era o vulto e o que ia fazer
ali. Eis o que viu e ouviu.
Estavam dentro da palhoça, com os habitantes do costume, um negro do serviço domestico de João da Cunha
por nome Germano e o Pedro de Lima, cabra destemido do séquito de Tunda-Cumbe, braço direito deste, para assim
escrevermos, que deixou nome na historia da guerra, pelas – extorsões, mortes, roubos e outras desenvolturas que
cometeu em Goiana, de que fora o terror.
No momento em que Lourenço pode enxergá-los através das palhas da choupana, estava Pedro de Lima, a
frente voltada para o casal de negros e o Germano, justamente a dizer-lhes estas palavras:
- É certinho o que digo; podem crer que terão vocês sua liberdade. Guardarei todo o segredo.
Lourenço compreendeu logo, por estas palavras, que o cabra prometia aos negros a alforria a troco de um levante contra
João da Cunha.
- Então, então, Germano, que dizes a esta proposta? perguntou Moçambique ao negro da confiança do
sargento-mór. Pois a liberdade é coisa que se engeite?
- A liberdade é boa coisa, e eu a não engeito, assim ela venha, respondeu Germano. Mas se os outros parceiros
não quiserem aceitar a proposta, e meu senhor vier a saber que eu é que andei nisso, quem me livrará de ir ao carro ou à
fornalha?
- És um pateta, moleque, disse Pedro de Lima. De hoje até amanhã hei de dar no engenho de teu senhor. Se
acontecer o que eu cá espero, amanhã de manhãzinha o chumbo assobia nas urupemas de sua casa e a faca trabalha nas
banhas da barriga dele. Se os negros que ele lá tem consigo prontos para dar e apanhar, faltarem na hora do apuro, não
haverá santos que o livrem de ir direitinho para a bagaceira, servir de pasto aos urubus.
- Mas aí é que está a historia, observou Germano. Eu sei lá se eles querem faltar ou não?
Negros safados são todos vocês. Não prestam nem para tratar de libertar-se. Não sabem nem ao menos deixar a senzala,
onde andam curtidos de fome e sono, pela mata virgem. Negros de patente eram os dos Palmares. Aqueles sim. Foram
quarenta os que primeiro meteram a cabeça no mato; daí a pouco já eram não sei quantos mil. Vocês são ao pé de
duzentos e têm medo do chicote do feitor. Vai, Germano, falar a João-Congo, a Thomaz, a Januario e a Jacinto. Se eles
não tiverem coragem para a tragédia, faze tu o que te vou dizer.
- Diga lá.
Quando o engenho for atacado por nós, corre a botar água dentro dos canos das armas de fogo. Isto é coisa muito fácil,
e que tu podes fazer sem ninguém saber, nem ser preciso que alguém te ajude neste serviço.
Germano nada disse, e, pelos modos, deu mostras de que dentre diferentes alvitres indicados pelo audaz
bandoleiro, era este o que mais lhe quadrava. Mas súbito, com gesto de quem tinha tomado uma resolução decisiva,
assim falou a Pedro de Lima:
- - Sabe que mais, seu Pedro de Lima? Eu não faço a meu senhor isso que vosmecê propõe. Ele para
mim é bem bom senhor. Até minha senhora, que é uma soberbona, essa mesma já uma vez me prometeu
alforia. Pateta! Estás com medo, moleque ruim.
Este moleque é assim mesmo, disse Quiteria. Promete as coisas e não faz. Quer e não quer. Tem medo do bacalhau –
disse o cabra despeitado. Não tem agora medo de minha faca, ou do bacamarte de Gonçalo Ferreira. Eu só digo uma
coisa: encontrando-te diante de mim, no momento do ataque há de ser para ti a minha primeira facada ou o meu
primeiro tiro.
- Não se zangue comigo, seu Pedro de Lima, disse Germano com certa expressão e revirado de olhos, para
dar a entender ao mulato que ele tinha intenção reservada. Pois se eu visse Germano metido na dança, eu
também me metia nela, disse Moçambique.
Estás ouvindo? Olha lá o que perdemos. Eu porém não quero que ninguém me acompanhe contra a vontade. Nunca
pensei que não aceitasses a minha proposta. Quando te vi passar de tarde para esta banda, eu logo conheci que vinhas ao
sitio das carvoeiras, e disse comigo: ‘Vou falar com Germano para ver se ele quer, a troco da sua liberdade, prestar-nos
um servicinho. Eu estava na mente de que havia de te chamar para nós; mas, como não queres, nem por isso te farei
mal. O que eu disse há pouco foi gracejo. De ti, pobre negro cativo, o que eu tenho não é ódio, é pena. E adeus. Perdi
meu tempo e minhas razões. De outra feita talvez a coisa já não seja assim’.
- Eu também me vou embora, que já é tarde; disse Germano. Adeus, tio Moçambique. Com Deus amanheça, tia
Quiteria.
- Vai-te embora daí que tu não prestas senão para chotear de jaqueta de galão atrás de teu senhor, abrir-lhe as
porteiras para ele passar, e limpar as botas dele quando vêm cheias de lama – respondeu Moçambique.
- Você também de que serve? Perguntou Germano despeitado. Não é também escravo dele, como eu sou? Não
é mais que a gente se levantar contra seu senhor! Mestre Moçambique, sabe que mais? Vá contar a outro as suas
valentias, que eu nelas não creio, e tanto caso faço delas como dos latidos de cachorro velho, carregado de rabuje, que já
não morde, porque nem dentes tem.
- Está bom, está bom, vai-te embora, meu pimpão – disse o Moçambique. Amanhã, tu me dirás quem é o
cachorro velho que não morde. Talvez que a esta hora tu estejas na ponta da faca de Pedro de Lima, e eu na mata
virgem.
Germano deu o andar para a vereda, onde já entrara Pedro de Lima, que saíra antes dele.
Adiante, debaixo de um cajueiro, um vulto estava parado. Era o matuto.
- Eu bem te endendi, Germano. E para saber todo o teu pensamento, aqui fiquei à tua espera.
- Quando é que vão atacar o engenho?
- Para te falar verdade, eu não sei bem quando há de ser o ataque.
Mas vamos cá saber uma coisa, seu Pedro de Lima: como posso Ter eu certeza de que serei livre se fizer o que vosmecê
propõe?
Não há duvida que tudo há de ser conforme te digo. Pois queres melhor certeza do que a nossa vitoria? Olha cá. Se
vencermos a nobreza, o governo passará a ser outra vez dos mascates, e passando a ser dos mascates o novo governo,
está bem visto que todos aqueles escravos que nos tiverem ajudado a dar com o governo da nobreza em terra, terão em
recompensa a sua liberdade.
- E se, em lugar de darem a eles a liberdade, os mascates ficarem com os negros na escravidão, não virá tudo a
dar no mesmo?
- Mas se eu te afianço que tu pelo menos ganharás a tua alforria, que mais garantia queres do que minha
palavra? Não duvides da promessa. Ajuda-nos a dar um ensino de mestre a esses senhores soberbões, e eu te asseguro
que não te hás de arrepender. Pois sim, seu Pedro. Eu, como confio na sua palavra, estarei pronto, quando chegar o
momento, a molhar as armas. Mas, olhe: todo o meu serviço não passará disso, porque eu não quero historias comigo.
- - Nem eu exijo outro serviço além deste. Ficarei com ele muito satisfeito, e ele só será bastante para te
forrares. Então, fica assentado isso mesmo, não é verdade?
Isso mesmo. E eu vou já dizer ao Tunda-Cumbe a tua promessa, que é para não haver duvida. Os dois tinham
chegado à beira da estrada.
- Ah! Esqueci-me do saco de batatas que Moçambique mandava lá para casa. Volto a buscá-lo.
Separaram-se, Germano para tornar, como disse, à palhoça dos negros, Pedro de Lima para tomar à direita a direção da
mata.
Quando eles desapareceram, saiu do mato um vulto com passo sorrateiro e cauteloso. Era Lourenço, que por entre o
arvoredo os havia seguido, amparado pelas folhagens, quase ombro a ombro com eles, sem que o vissem. Ele
entretanto, que também os não vira, ouvira, sem perder uma palavra sequer, toda a conversa que tinham tido os dois
conjurados desde a palhoça até a beira do caminho.
Marcelina estava na porta da casa.
Vendo o filho com a espingarda, as primeiras palavras que para ele teve foram estas:
- Que anda fazendo pelo mato a esta hora, Lourenço? Nem sabes que susto acabo de ter.
- Que foi que aconteceu, minha mãe?
- Passou por aqui mesmo, há instantinhos, um homem que, depois de passar, ficou ali de pé a olhar para cá e
a fazer jeito de quem queria saber ou ouvir alguma coisa de cá de casa. Sabe quem era? Pedro de Lima.
- Pedro de Lima, aquele malvado?! Virgem-da-Conceição. Entra Lourenço, que quero fechar logo a porta.
Ele que anda por aqui a esta hora, fazendo bem não é. Quer saber o que estava fazendo o cabra?
- Fala baixo, que ele ainda pode estar por ai. Mas o que foi?
Uma das suas. Mas o pior foi o que fez o ladrão do moleque, o Germano. Em vez de ser pelo senhor, prometeu ser pelos
mascates e botar água dentro das armas, quando o engenho for atacado. Que negro ingrato e perverso! Tive desejos de
lhe dar um tiro na cabeça, quando lhe ouvi as traidoras palavras. Mas eu nunca atirei em ninguém.
- Virgem Maria! exclamou Marcelina. Pois querem atacar o engenho?
- Foi o que disse Pedro de Lima. Germano não tarda a passar por aqui. ah! Ali vem ele.
- E que queres fazer? Queres dizer-lhe alguma coisa?
- Quero, sim senhora.
- Vai para dentro, que eu falo ao moleque. Ele a mim há de atender mais do que a ti.
- Ainda bem não tinha Lourenço entrado, quando o negro passava pela frente da casa trazendo o saco de
batatas nas costas. Se não me engano, é Germano que vai aí, disse Marcelina em voz alta, a fim de ser
ouvida. Sou eu mesmo, sinhá Marcelina, respondeu o negro. Quer alguma coisa?
- Eu logo vi que tu ainda havias de andar por aqui. Porque diz vosmecê isso?
- Se não vais com muita pressa, dá-me cá uma palavra.
O negro parou à porta da casa.
-Senta-te nessa pedra que te quero dizer uma coisa.
- A pedra está muito quente eu oiço mesmo de pé o que tiver de me dizer. Pois olha; nessa pedra mesma
esteve ele sentado, há pouquinho.
- Ó xentes! Ele quem, sinhá Marcelina?
- Anda cá. Pois tu não sabes quem podia ser? O Pedro de Lima.
- Seu Pedro de Lima?! perguntou o negro subitamente alterado. Ó xentes! Seu Pedro de Lima!
- Então, ele não andou por estas beiradas ainda agorinha? Quererás negar?
- Ele andou, é verdade, respondeu Germano, entre aterrado e tremulo.
- E que coisas te disse ele?
- Pois vosmecê sabe o que ele me disse?
- Chega-te para perto de mim, que eu não te quero botar a perder, Germano.
O negro aproximou-se, com passo tardo, porque em cada pé começou a sentir o peso de uma arroba, depois que ouvira
as ultimas palavras da cabocla.
- Queres saber o que foi?
- Diga, sinhá Marcelina.
Ele esteve contigo na palhoça de Moçambique, e falando-se aí sobre os motins que tem havido na vila e a revolta dos
mascates do Recife, tu te ofereceste a botar água dentro das armas de teu senhor, para elas não pegarem fogo, quando o
bando de Tunda-Cumbe atacasse o engenho.
Não se pode imaginar a impressão de medo, dor, arrependimento e cólera, que estas palavras produziram no espirito do
negro.
Sem o querer, caiu-lhe do ombro o saco, e ele próprio, para sustentar-se de pé, teve de apoiar-se no ferro de
cova que trazia em uma das mãos.
- Ora, dize-me, Germano, prosseguiu Marcelina: isto era coisa que tu dissesses àquele malvado? Podias tu
prometer semelhante traição contra teu senhor, que te estima, e que, até já tem, por vezes prometido forrar-te? És um
escravo indigno de ter liberdade.
O negro não respondeu. Triste, cabisbaixo, imóvel, não sabia o que dizer à cabocla.
Esta prosseguiu:
- Pois não seria muito mais bonito que, em vez de seres traidor e ingrato a seu sargento-mór, fosses o primeiro
a defendê-lo na hora do ataque? Não terias tu muito mais segura a tua alforria, se, quando Pedro da Lima partisse contra
seu sargento-mór, tu partisses contra Pedro de Lima, e com a foice, o facão, o chuço ou o bacamarte impedisses que ele
fizesse mal a teu senhor ou á tua senhora?
Germano não era um negro bronco.
Ouvindo estas palavras, percebeu que nelas se lhe oferecia uma porta para sair da situação cruel e desprezível a
que fora arrastado.
Então soltou-se-lhe a voz, que estava presa.
- Eu quero contar a vosmecê a historia como foi. Seu Pedro de Lima foi quem me fez esta proposta, com a
promessa de minha liberdade. Vosmecê bem pode saber que todo cativo deseja ficar livre, ainda que seja muito bem
tratado por seu senhor, como sou eu na escravidão. Eu prometi fazer isso que ele disse, mas depois que ouvi suas
palavras, estou arrependido; e posso jurar que não cumprirei a promessa que fiz a seu Pedro.
- Estarás tu dizendo a verdade, Germano?
Eu sou negro, sinhá Marcelina, mas não minto. Pode vosmecê crer que estou muito arrependido da minha ruim ação.
Só uma coisa lhe peço: é que não vá dizer isso à minha senhora.
- Se eu quisesse fazer mal, já tinha corrido para lá a meter-lhe tudo no ouvido. Mas tu sabes que eu tenho bom
coração. Antes quis aconselhar-te do que fazer-te a cama, mesmo porque esperava que mudasses de parecer. Tu estás
muito moço; não te apresses que hás de Ter a tua liberdade, não pela mão de Pedro de Lima, ou do Tunda-Cumbe, mas
pela mão de teu senhor mesmo. Vai-te embora descansado, que nada por minha boca se há de saber do que temos
conversado. Pela boca de Pedro de Lima é que eu não respondo.
O negro levantou o saco, pô-lo novamente no ombro, e disse:
- Pela boca dele, sinhá Marcelina, respondo eu. o que ele acaba de fazer comigo, há de pagar-me com língua de
palmo e meio.
- Olha bem, não te vais espetar em alguma tragédia. O cabra é malvado e traiçoeiro.
Ele é cabra, e eu sou negro, mas porém se ele não andar muito ligeiro, eu passo-lhe o pé adiante. Ele não sabe com que
negro está pegado. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Ainda bem Germano não tinha entrado na mata, quando
novo vulto se mostrava na estrada, do lado oposto.
- Não te recolhas já, Marcelina, disse o vulto de longe.
Quem falava era o padre Antonio.
- É vosmecê, seu padre? perguntou a cabocla admirada.
- Que será isso? disse Lourenço aparecendo. Seu padre por aqui!
- Vocês admiram-se, hein? E não deixam de ter sua razão.
Os três tornaram para dentro da casa. Marcelina, que foi a ultima a fazê-lo, encostou a porta de baixo, pois a sala era
muito pequena, e daí mesmo, com os olhos na estrada e nos outros dois interlocutores, alternativamente, fez-se toda
ouvidos. O padre então sentou-se em um tripeça, ao pé da mesinha da sala, enquanto Lourenço, de pé, com as mãos
sobre o espeque onde descansava a porta da janelinha, quando estava aberta, esperava impaciente que o sacerdote
quebrasse os selos do mistério que o levava ali.
- Venho pedir-te um serviço que, na ausência de teu pai, só tu me poderás prestar, Lourenço.
- Vosmecê não pede, manda, seu padre, respondeu o rapaz.
- Como tenho de fazer uma viagem esta madrugada para fora de Goiana, quero que vás agora mesmo ajudar
o José a arrumar as minhas malas. Olha. Põe tudo o que é meu dentro delas. Deixa só o que absolutamente
não puder ir.
- Se vosmecê quer, vou eu, disse Marcelina. Lourenço não sabe fazer bem estas coisas.
- Sabe, sabe, respondeu o padre. Demais eu tenho que te falar. Vai, Lourenço.
Quando se acharam sós o padre Antonio e Marcelina, disse aquele a esta:
- Marcelina, venho fazer-te uma confissão tão verdadeira e sincera como se a fizesse a um padre do Senhor.
- Uma confissão! Quem sou eu para merecer tanta honra e confiança?
- O que tu és, bem o sei eu. Tu és merecedora de honras e distinções muito mais altas do que esta, porque
em ti a virtude fez sua morada, e a honestidade dá seus saudáveis frutos. Todos os elogios da terra ficariam
ainda aquém do teu merecimento. O lar domestico ainda não encontrou nem encontrará jamais quem o
represente melhor do que tu o representas.
- Seu padre está exagerando.
- Não estou, não. Há quatro anos que moro no Cajueiro. estou por isso habilitado a conhecer as tuas
qualidades, a saber os teus sacrifícios, a admirar a rara beleza de tua alma. Mas venhamos já ao que
importa. De duas partes se compõe a minha confissão. Começarei pela segunda. Estou-me vendo em uma
colisão cruel. Avalia por ti mesma. Não viste entrar hoje em minha casa o sargento-mór?
- Vi, sim senhor.
Veio pedir-me, antes impor-me, que eu partisse hoje até amanhã para Goianinha, a fim de, por meio de praticas
publicas, chamar ao partido dos nobres o povo que se declarou e tomou armas pelos mascates. Se o pedido fosse
exclusivamente dele, eu acharia logo meios de escursar-me, posto que são muitos os obséquios e as atenções que me
prendem ao sargento-mór. Mas infelizmente não é assim; e o sargento-mór foi portador de uma carta em que o bispo
suplica que eu vá pacificar os ânimos daquele povo, e de lá siga até os limites da Paraíba com o mesmo fim. Alguém no
meu caso recusaria este favor ao seu prelado e ao seu amigo? Ninguém. Pois eu acabo de recusar, quando já estava
determinado a praticá-lo. Sabes porque recuei? Escuta lá, Marcelina. Não viste hoje de tarde sair de lá de casa um frade
carmelita?-
- Não vi, mas Lourenço me disse.
Era o prior do convento do Carmo. Veio de propósito – vê lá tu como as coisas se ajuntam – com uma carta, antes
ordem da recoleta do Recife, exigindo que eu sem perda de tempo me dirija a Paraíba, a fim de levantar os ânimos do
capitão-mór João da Maia, que começam a resfriar. Esta providencia foi resolvida pelo padre João da Costa, a quem
devo grandes benefícios, e pelos Drs. Ferreira Castro e Mendes de Aragão, conselheiros do governo dos mascates. Não
contentes com incumbir-me deste gravíssimo mister, exigem que eu me ponha a caminho de hoje para amanhã. Neste
sentido recebi, à entrada da noite, nova carta de frei José de Monte Carmelo, que Antonio Coelho me mandou trazer por
Pedro de Lima. entre as três e as quatro horas da madrugada hão de estar por aqui os meus companheiros de jornada à
Paraíba. Oh, que colisão cruel, Marcelina?
- E seu padre vai fazer este serviço aos mascates? Perguntou a cabocla.
- Eu deixo o Cajueiro, mas, aqui em particular, que ninguém nos ouça, devo dizer-te: não vou nem para
Paraíba, nem para Goianinha. Vou para... Nem sei para onde vou eu. Vou fugindo de mascates e de
nobres.
- Mas, meu Deus, como há de ser isso? Pois vosmecê nos deixa assim?
Nem uns nem outros têm razão, Marcelina. São exagerados ambos em suas paixões. Cegou-os a vaidade, o interesse, o
capricho condenável. Deviam estimar-se e auxiliar-se mutuamente como dantes; mas não; hostilizam-se, como se
fossem dois povos bárbaros e inimigos, como se não tivessem laços comuns – a mesma nacionalidade, a mesma
religião, a mesma língua, as mesmas leis. Porque é que brigam eles? Por um pedacinho de governo? Por uns vinténs de
mais ou de menos? Por uma vila? Mas em uma terra imensa, como esta, que ainda por muitos séculos há de ser um
mundo universo, onde poderão aposentar-se todas as nações da Europa, brigar por uma vila, por um engenho, um
armazém, uma loja, um assento no senado da câmara, é dar testemunho de ter o entendimento obscurecido pelas trevas
da ignorância ou da loucura. Querem destruir-se os dois loucos? Pois destruam-se, como querem; eu é que não hei de ir
meter-me entre eles dois. Ambos são meus irmãos; mas como não posso nem mesmo com um só deles, quanto mais
com ambos juntos? O recurso que tenho é deixá-los pegados até que, pela dor física, pelo sangue derramado, pela fome
criem ambos medo à luta e volte um para a loja e o outro para o engenho a tratar, já com as paixões castigadas e o juízo
claro, dos seus interesses particulares. O padre inclinou a cabeça, como quem meditava, e, passado um momento,
voltando-se para Marcelina, disse-lhe com evidente desprazer e tristeza:
- Vou passar ao segundo ponto de minha confissão.
- Seu padre pode falar, que eu estou ouvindo com toda a atenção, respondeu a cabocla.
E sentou-se para escutar melhor.
XXI
O padre prosseguiu assim a sua confidencia:
- Abro o livro da minha vida sacerdotal para ler a triste e vergonhosa historia que te quero confiar. Custa-me
por extremo volver a folha negra em que está escrita, além desta historia, a minha própria condenação.
Mas fio que serás indulgente para os culpados. Na juventude, Marcelina, são veementes e cegas as
paixões, a carne obra como tirana; a fantasia, mais tarde estrela de branda luz, não passa então de chama
afogueada – ilumina, mas queima. Quando chega a idade madura, e o entendimento, como magistrado
intimo, examinando, apreciando e julgando os atos da mocidade, descobre os montões de cinzas a que o
fogo da paixão juvenil reduziu sentimentos e princípios respeitáveis, e por baixo dessas cinzas fundos
abismos e tenebrosas sepulturas; quando a razão, já educada pelos anos e fortalecida com o conhecimento
exato das coisas, transmite à consciência suas severíssimas leis, e exige o preenchimento delas, a frágil
personalidade humana não tem para sua defesa outra voz além desta: ‘Perdão, ó homens! Perdão, ó Deus!’
Presta atenção, Marcelina. É chegado o momento do terrível sacrifício. Vou enfim abrir a teus olhos o
lugar mais recôndito do meu coração. Não te aterres com o espetáculo, nem digas a ninguém que debaixo
das cinzas de minha velhice se aninha uma serpente que me prende, como anel de fogo, ao inferno.
- - Seu padre! exclamou a cabocla, profundamente abalada. Juro-lhe que lhe guardarei segredo até à
morte. Houve aqui há anos uma terrível epidemia de bexigas desde o Recife até à Paraíba. Morreu gente
sem conta por esses povoados e estradas afora. Tu hás de estar lembrada.
- Ainda me lembro dessa peste. Se eu estive às portas da morte...
Pois bem. Por esse tempo achava-me eu no convento de Iguarassú, donde, por ordem do bispo, parti para Tres-ladeiras,
a fim de prestar os socorros espirituais à pobreza, que estava aí morrendo no maior desamparo e impenitência. Uma
noite de muita chuva, tenho ainda na memória bem frescos todos os passos, especialmente os primeiros do meu erro,
quando eu voltava de um sitio aonde tinha ido ouvir de confissão um moribundo, senti-me de repente assaltado de
tremedeiras tão fortes que não sei como não vim do cavalo em terra; estava pesteado. Felizmente, alguns passos adiante,
havia uma casa na beira do caminho, e dentro dela vi lume aceso. Pedi agasalho, o qual não se fez esperar. As
moradoras, que me conheciam de ver-me passar todo dia pela porta, acolheram-me com as maiores atenções. Era uma
mãe com sua filha, ambas viuvas. Não só durante o período agudo da enfermidade, mas durante a convalescença, que
foi longa, nunca resfriou o zelo delas. A filha era nova e mui gentil. Enfim, Marcelina, quando voltei um mês depois à
minha casa, levava comigo dois inimigos cruéis, uma paixão e um remorso. O primeiro destes inimigos pude vencer,
pretextando cansaço e fraqueza, e voltando ao convento; o segundo porém nunca mais saiu de minha consciência; há de
baixar comigo à sepultura. Só Deus sabe, Marcelina, se esse crime não chamou sobre minh’alma a condenação eterna.
- Deus tem sempre o perdão para os bons.
E eu fui bom? Fui pusilânime e réprobo. Tempos depois, dentro de minha cela, recebi uma carta. Aquela que me fizera
cair e que eu arrastara em minha queda, tinha sido mãe e pedia-me que olhasse por ela e pelo filho. A velha tinha
falecido, deixando a filha só no mundo, com o testemunho vivo do meu crime. Nos primeiros tempos olhei de longe
pela infeliz e pelo fruto do nosso amor fatal; mas sabendo depois que ela se havia desmandado em sua vida, faltou-me
generosidade para continuar-lhe os meus auxílios. Todavia, eu não perdia de vista esses entes com os quais o destino me
prendera por inquebrantáveis cadeias. Quando ela se mudava de uma terra para outra, como muitas vezes aconteceu, eu
achava sempre no novo lugar pessoa de minha confiança a quem recomendar a criança que, rendendo a homenagem
devida à decência, eu dizia ser ligada comigo por parentesco remoto. Essa pessoa era o vigário ou outro qualquer
sacerdote. Um dia recebo uma carta em que o vigário da freguesia, onde a mulher e o menino estavam ultimamente
residindo, me informava da morte da mãe e do abandono do filho. A carta fora retardada, de sorte que quando me
chegou às mãos, mais de um ano tinha decorrido depois de sua data. Sendo-me então mais fácil tomar o menino à minha
conta, não só pelo falecimento daquela que a ele tinha melhor direito do que eu, mas pela minha secularização, corro ao
ponto em que o devia encontrar, impaciente por ver e conhecer aquele que na forma de espinho eu trazia
incessantemente na consciência. Oh que amargas desilusões não foram as minhas, quando aí cheguei! O menino tinha
no lugar as mais tristes tradições que se podem imaginar, e, para cúmulo do meu desgosto, mão desconhecida o tirará
violentamente, posto que com satisfação de todos os moradores.
- Meu Deus! Que está dizendo, seu padre? inquiriu Marcelina, abalada e confusa destas noticias, que caiam em
seu espirito na forma de raios de luz.
- Tu sabes o resto, Marcelina.
- Eu, eu?
- Sim. Não te lembras do que fiz quando, de volta do engenho, entrei em tua casa?
- Já me não lembro, seu padre.
- Pois lembro-me eu. chamei Lourenço para junto de mim, meti-o entre as minhas pernas e abracei-o . Ah!
era a primeira vez que eu via meu filho. Seu filho! Pois Lourenço é seu filho, seu padre! exclamou a
cabocla, fazendo gestos e meneios, que acusavam intenso e súbito prazer. Oh! meu Deus, como eu sou
feliz!
As lagrimas saltavam dos olhos dela, mas não eram desacompanhadas; o padre também chorava.
- Feliz foi Lourenço, feliz fui eu, disse ele. se não foras tu, alma privilegiada, mãe perfeita, honra das mulheres, brilho
do lar, se não foras tu, o que seria desse menino que vivia como animal imundo na povoação condenada? Mas... estou
ouvindo o rumor de passos. É talvez Lourenço que se aproxima. Mudemos de assunto. Não te esqueças, Marcelina, do
que me prometeste. Não reveles a ninguém a minha fealdade moral. Ninguém saberá o que vosmecê acaba de contar,
menos Francisco. Francisco? Tens razão. A Francisco, primeiro instrumento da Providencia para a mudança radical do
destino de Lourenço, podes e deves referir toda esta historia. Agora uma ultima palavra. Retiro-me deste lugar sem
saber para onde vou. Se eu vier a morrer antes de terminada esta guerra, que me aparta de vocês contra a minha
vontade, logo que tiveres noticia, faze Lourenço senhor do seu próprio segredo e entrega-lhe este papel, que ele deve
apresentar às justiças. Não é meu testamento, é a doação que lhe faço, de meu sitio e de todas as terras que me
pertencem.
- O padre Antonio entregou a Marcelina o papel a que se referira. Era tempo. Lourenço entrava para
dizer que seus serviços já não eram necessários no sitio.
- - Por derradeiro, quero dar-te um conselho, Marcelina, disse o padre levantando-se. Ao que parece,
está projetado um ataque ao engenho. Devem passar por aqui os assaltantes, e natural é que tentem algum
desacato a vocês, por se vingarem das relações que Francisco mantém com o sargento-mór. Por isso
prudente me parece que não pernoitem aqui por estes tempos. No engenho, onde há mais força, deve haver
mais segurança. Seu padre tem razão, respondeu Marcelina.
- Mas no engenho é que eles têm sede, observou Lourenço.
- Pois façam o que lhes parece melhor, tornou o sacerdote.
- O melhor é irmos para a casa grande enquanto é cedo, disse a cabocla.
- Verdade seja – acrescentou o rapaz – que eu devo estar junto de Germano, para ver esse negro o que faz.
Vosmecê bem sabe porque é que eu digo isto, minha mãe.
- Está acertado. Vamos já.
- Adeus, Marcelina. Deus te abençoe, Lourenço, disse o padre Antonio, limpando a furto duas lagrimas que
lhe apontaram nos olhos, e encaminhando-se para a estrada.
- Daí voltou-se para dizer: - Escuta de lá, Lourenço. A chave da casa, na ocasião de sair, mando por debaixo
da porta. Quando voltares do engenho, achá-la-has da banda de dentro. Senhor sim.
Uma hora depois Lourenço e Marcelina tomavam para o Bujari. Não se meteu muito que o padre Antonio com seu
escravo José deixou como eles a estrada, seguindo porém diferente direção. Era madrugada velha quando entrou pelo
Cajueiro o Tunda-Cumbe com sua gente. Pedro de Lima bateu com o coice do bacamarte sobre a porta da casa de
Francisco, e como daí ninguém lhe respondeu, foi ele o primeiro que pôs fogo nela. Outros bandidos o imitaram,
tomados da volúpia feroz que caracteriza os celerados. A casa do padre foi poupada por ser de quem era. Mal sabiam
eles que poucas horas antes tinham voltado daí, inteiramente frustrados em sua expectativa e sem poderem explicar o
fato que profundamente os contrariaria, dois parciais dos mascates mandados por Antonio Coelho com todo o
necessário para acompanharem o padre à Paraíba.
Ao clarão do incêndio, penetraram os malvados na mata, caminho do engenho, supondo que iam surpreender o
sargento-mór. Este porém, advertido desde muitos dias atrás por diferentes circunstâncias, suspeitas e até boatos, tinha-
se passado àquela tarde para o sobrado que costumava ocupar, quando festas publicas ou negócios particulares exigiam
a sua estada temporária na vila. Marcelina e Lourenço, não tendo encontrado a família na casa grande, foram reunir-se
com ela em Goiana.
O sobrado estava situado no quarteirão fronteiro à igreja do Carmo. Ficava olhando para o cruzeiro de pedra
que aí se vê e do qual se diz que em seus alicerces se acha enterrado grande tesouro destinado pelo instituidor à
reedificação do convento, se suceder que venha a cair em ruínas.
Esta tradição existia já em 1711 porque, por ocasião de um dos oitos motins de que, durante a guerra dos
mascates, foi teatro Goiana, um bando da gente do Tunda-Cumbe atirou-se ao cruzeiro, e a uso dos vândalos, que tudo
destruíam, mutilou parte da larga e solida peanha, sobre a qual ainda hoje se mostra assente a cruz, e fez profundas
escavações, afim de ver se davam com o cabedal oculto. Não se sabe se a sua expectativa foi satisfeita ou iludida. Neste
ponto a tradição anda adiante.
Com o sargento-mór tinha ido para Goiana grande parte da escravatura; o restante ficara no engenho para o
guardar e defender, sob as ordens de alguns moradores, entre os quais se apontava o Victorino, cuja intrepidez era por
todos conhecida. A mudança fora súbita.
Quando a coluna invasora chegou ao engenho, já era aí esperada; e por isso foi recebida com todas as honras.
A defesa tinha sido bem organizada por Victorino e seus companheiros. A casa grande semelhava uma cidadela
fortificada. Mas, infelizmente, o animo que sobejava nos moradores, faltava nos escravos. Enquanto aqueles faziam
prodígios de valor, estes defendiam as entradas frouxamente. Dentro em pouco tempo conheceram os assaltantes,
superiores aos assaltados não só em numero, mas no manejo das armas, que a praça não tardaria em cair debaixo do seu
poder. Cônscio desta verdade, o Tunda-Cumbe chamou de parte o Padre Lima e o Gonçalo Ferreira, deu-lhes ordens à
puridade, e, pondo as pernas ao cavalo, desapareceu por entre uns canaviais que do lado direito vinham morrer no
cercado. Victorino, que de uma das janelas tinha debaixo das vistas o movimento inimigo, viu aos primeiros clarões do
amanhecer, tomar o caminho de sua casa o chefe da quadrilha.
Não foi preciso mais para compreender a intenção do bandido.
A honra de suas filhas, único tesouro, único dote delas e principal orgulho da família, afigurou-se-lhe, não sem
razão, ameaçada de iminente desastre. O almocreve esqueceu o sobrado pela palhoça. Naquele estava uma fortuna de
grande valor, consistente em jóias, moveis e outros muitos objetos preciosos; nesta havia a pureza de duas graciosas
donzelas, que representavam a seus olhos anos de trabalho, de sacrifícios, e de bem querer. Em seu coração, em sua
alma, tinham muito mais peso os risos gentis, as graças meigas, o amor modesto, de Marianinha e Bernardina, do que
toda a prata, todo o ouro, todos os brilhantes de João da Cunha e de d. Damiana. Victorino desceu a modo de impelido
por sopro de tempestade, montou em seu cavalo, que, por cautela, retivera amarrado no vão do sobrado, e por uma
aberta que fez na cavalariça pode ganhar os canaviais sem ser visto pelos assaltantes.
Antes de chegar à casa, encontrou-se com Joaquina que já vinha, como louca, em procura dele.
- - Corre, corre, Victorino, que talvez ainda pegues o malvado, o Tunda-Cumbe, que nos vai roubando a
nossa filha, gritou a pobre mulher, os cabelos desgrenhados, as faces cobertas de lagrimas, e no semblante
os traços violentos do maior desgosto que ela tinha sentido até esse momento na vida. Eu tudo vi da casa
grande, disse ele. Miserável!
E logo acrescentou, descobrindo umas cinquenta braças adiante de se o Tunda-Cumbe, já a perder-se de vista, pela
veloz corrida do cavalo, por entre o mato com a Bernardina atravessada sobre as pernas:
- Ou tu me matas, ou tu morres!
- Ah! minha filha, minha querida filha! dizia Joaquina, carpindo-se na sua grande aflição. E onde está
Marianinha? Ó Marianinha? chamou a agoniada mãe.
Dentre umas moitas emergiu então a alguns passos de Joaquina a rapariga, por quem ela acabava de chamar. Os matos
tinham-lhe rasgado a coberta em que se envolvera na ocasião de fugir com medo do malfeitor.
Vinha chorando, e estava pálida, triste, tremula. Do grande susto o coração parecia querer sair-lhe pela boa. Ela
semelhava rolinha espantada por tiro de caçador.
- Minha mãe! minha mãe! Que desgraça foi esta?
- Não podia ser maior, minha filha.
- Não fale assim, que ainda pode ser pior, minha mãe!
- Olha. Lá vai o malvado com tua irmã.
E Joaquina apontou para uma baixada, onde nesse momento apareceu o Tunda-Cumbe.
- E lá vai meu pai, lá vai meu pai já a pegar seu Manoel Gonçalves. Oh meu Deus! Que é que me está
dizendo baixinho, minha mãe?
- Nada, Marianinha. estou rezando, para que Deus se lembre de nós neste cruel transe.
De repente, aquela mãe e aquela filha, como se tivessem a mesma impressão e a mesma idéia, ou se deixassem vencer
pela mesma força intuitiva e fatal, deram alguns passos violentos para diante, com os olhos, para não escrevermos o
coração, a alma, postos nos dois cavalheiros que corriam na baixada. Ambas tinham visto o que ia na frente, voltar
arrebatadamente o animal e esperar o segundo; tinham visto este atirar-se para aquele com sua arma de fogo em uma
das mãos e na outra o facão desembainhado; tinham ouvido a detonação de um tiro, á qual se seguira uma nuvem de
fumo que envolveu os dois contendores.
Mas não se meteu muito que as mulheres recuaram espavoridas, levantando alto brado de dor, que atroou todo o
deserto. O Tunda-Cumbe acabava de desaparecer no mato com sua presa, enquanto Victorino ficava caído na baixada,
estorcendo-se nas convulsões da morte.
XXII
O engenho, que ainda defendido por Victorino, teria de render-se às armas numerosas e práticas dos agressores
, não podia, na ausência dele, sustentar-se a não ser por poucos momentos.
De feito não era ainda de todo claro o dia, quando as portas da casa grande abalada em seus fundamentos
caiam a poder de machados e por cima delas entravam em borbotões os malfeitores impacientes pelo saque.
Este foi feito com desabrimento incrível. Aquela malta de homens perdidos que, no rancho do Sipó, explorados
pelo chefe, se haviam acostumado a odiar os nobres e a cobiçar os seus haveres, deparava enfim, depois de esforços e
tentativas malogradas, ocasião oportuna para matar a sede de vingança e ouro que os abrasava. Para quase todos havia
sabor especial nesta negra vitoria. A casa, que destruíam, saqueavam e humilhavam, era propriedade de João da Cunha,
dentre os nobres o mais odiado, por ser talvez o mais poderoso e vingativo deles. Por isso destroem e aniquilam o que
não lhes excita a ambição ou não podem conduzir em seus sacos. Moveis preciosos são jogados das janelas ao pátio,
onde se despedaçam. Cada queda, cada destruição serve de objeto a indecentes motejos e dá lugar a indignos
comentários. Enfim, longe iríamos se quiséssemos descrever as cenas aviltantes e lastimáveis que dentro de horas se
representaram na aristocrática vivenda do sargento-mór.
Tinham eles dado com o deposito dos vinhos – a rica adega do fidalgo – e já se entregavam aos deliciosos
espíritos, quando, trêmulos e aterrados, entraram correndo alguns dos espias que, por ordem do Tunda-Cumbe, estavam
vigiando nos cantos mais importantes do cercado.
- Fujamos, fujamos, que ai vem uma grande força.
- Bem se dizia que ela havia de vir – disse Pedro de Lima.
- Vamos a seu encontro – gritou Gonçalo Ferreira.
- Não, não – replicou Pedro de Lima. ganhemos o mato sem demora. Quando tiver passado, iremoa atrás
dela, que ficará entre dois fogos – o nosso, pela retaguarda, e o de Luiz Soares pela vanguarda. Luiz
Soares a esta hora, se entrou pelo Tanquinho, já deve estar senhor da vila. Faremos a junção e
queimaremos os pés-rapados um por um.
- Está dito.
‘Sair’ foi o grito que irrompeu de todos os peitos.
Ao grito seguiu-se o exemplo.
A força, como o leitor já deve ter compreendido, era a que Gil Ribeiro comandava.
Vendo da estrada abertas as portas e janelas do sobrado, espalhados pelo pátio os moveis, alguns dos quais, formando
pequenos adjuntos, eram nesse momento presa das chamas, não pode Francisco acabar consigo que não fosse de perto
verificar este lastimoso espetáculo.
Quando esbarrou na frente da casa e reconheceu a terrível verdade, uma idéia lhe atravessou o cérebro, iluminando-o
como relâmpago. Esta idéia lhe dizia que a sua casa tinha sido abandonada por Lourenço e Marcelina, como o engenho
lhe pareceu que o fora por João da Cunha.
- Eles não morreram. Estão todos no sobrado. Oh meu Deus! Permiti que assim seja.
Estas palavras consoladoras, que lhe saíram irresistivelmente dos lábios, foram como as primeiras manifestações de
nova alma que lhe entrara no cérebro. Voltou imediatamente à estrada e se incorporou outra vez na tropa que já corria a
marche-marche para a vila, por ordem de Gil.
Pedro de Lima não se enganava. Desde o amanhecer achava-se Luiz Soares com suas forças em Goiana e dava ai que
fazer à nobreza.
Nesta vila lavrava a anarquia, ora mais, ora menos, extensamente desde 3 de julho, data do primeiro motim.
Não menos de oito foram eles, numero que se elevará a muito mais, se aos movimentos das ruas, em certo modo
organizados, juntarmos as disputas particulares, os desforços pessoais, as afrontas e os desagravos feitos em publico,
enfim todos os conflitos naturais de duas forças políticas que se hostilizam a todo o transe no pressuposto de aniquilar-
se mutuamente.
Além destas circunstancias comuns a todas as guerras civis, uma circunstancia especial tornava mais perigosas
e freqüentes as agressões e as represálias em Goiana – a de serem os goianistas ardentes assim nas lutas da razão, como
nas do sentimento.
De data imemorial é a terra de Nunes Machado, de Arruda Câmara e de tantos outros vultos eminentes, foco de
faculdades viris fácil de acender-se, difícil de apagar-se. Filha legitima do Recife – vasto laboratório, em que fermentam
as paixões populares sem intermitência, ainda que fria serenidade pareça algumas vezes indicar enfraquecimento ou
sono da grande alma pernambucana que tem ai a sua sede, Goiana sempre representou conspícuo papel nas agitações da
província.
Conhecedores da influencia, não só comercial, mas também política da vila, puseram os mascates particular
empenho em tê-la de seu lado; e neste pressuposto fizeram dela sua segunda praça forte, ou o principal ponto dos seus
recursos e forças, depois da capital.
Logo que no Recife se fez sentir a falta de viveres, foi de Goiana que trataram de os enviar para os sitiados.
Um óbice porém apresentou-se imediatamente, o qual muito deu que pensar aos insurgentes – a rixa em que estavam
com os habitantes de Goiana, os da Ilha, rixa que tem sua natural explicação, que é a seguinte:
De Itamaracá sede de uma capitania independente de Pernambuco, por doação que a Pero Lopes de Souza
fizera por carta de 1º de setembro de 1534 d. João III, fora mudada a câmara para Goiana em 1685. Despeitados,
começaram desde então os moradores de Itamaracá a ter para os de Goiana o sobr’olho carregado, e não perdiam
ocasião de lhes dar mostras do seu desagrado. Altos empenhos a favor da ilha, se não foram falsas informações movidas
secretamente contra a vila, deram lugar a expedir-se em data de 20 de novembro de 1709 ordem regia, determinando
voltasse para aquela a câmara que de lá saíra. Este ato veio converter em novos ódios ressentimentos antigos. Por isso
não foi preciso, para que os da ilha tomassem o lado do governo, isto é, o da nobreza, mais do que saberem que Goiana
se amotinara contra ele. Não podendo porém a primeira competir com a segunda, e havendo até suspeitas de que, para
impedirem que fossem tomadas pelas autoridades da ilha os gêneros remetidos pelos mascates para o Recife, tentavam
estes apossar-se dela, encarregaram os governadores militares o ajudante-de-tenente Gil Ribeiro de ocupar o Forte-de-
Orange. O ajudante ai esteve até que partiu, por nova ordem, para Goiana, segundo vimos.
A pacificação desta vila era na realidade empresa que exigia animo e espíritos fortíssimos. Nunca estivera tão
acesa ali a fogueira das paixões partidárias, como nos últimos dias que precederam ao da chegada de Gil Ribeiro. A
nobreza, em conseqüência da voz, que correra dias antes, de que o bando de Paraíba, de passagem para o Recife,
tomaria em Goiana larga desforra das anteriores represálias, entendeu em fortificar-se, posto que sem ostentação, visto
como os seus recursos não eram grandes, nas mais importantes embocaduras.
Nesse tempo a vasta campina que hoje se interpõe entre a ponte de Goiana, na Rua-do-rio, e o ancoradouro das
barcaças, denominado Porto-da-conceição, era um sitio ocupado por Jorge Cavalcanti, no qual tinha ele grandes olarias.
A casa de morada ficava no centro das terras. Do mirante punha-se debaixo das vistas toda a volta do rio Goiana que
vinha do Porto-da-conceição, passava pela frente da campina e ia morrer, como ainda hoje, no lugar onde se vê o
trapiche, que há poucos anos serviu de casa de teatro.
Não estava então obstruindo o rio. Barcos e sumacas chegavam até ao pé das casas da rua e ai recebiam ou
deixavam os seus carregamentos.
Com o pretexto de fortalecer as barreiras para o embarque de tijolos e louça, mandou Jorge Cavalcanti levantar
em vários pontos estacadas de pau-a-pique. Por trás das estacadas vastas tulhas de barro, e pela frente, no espaço da
margem que ficava descoberto, largos e traiçoeiros fojos, eriçados de mortíferos espeques, davam a esta posição as
vantagens da primeira fortificação da nobreza, visto que cortava quaisquer inimigas comunicações da Paraíba com a
vila pelo rio.
Do lado do norte eis em que condições se achava a defesa.
Nas terras que ainda se denominam – Tanquinho – tinha o ex-alcaide-mór Manoel Cavalcanti de Lacerda sua
casa de morada, a qual ficava na beira da estrada que vinha da Paraíba.
O ex-alcaide-mór sem hesitar um só momento aproveitou-se dessa importante posição. Não somente
concentrou ai seus recursos, mas também mandou levantar ao longo da estrada e por dentro dos matos, trincheiras
singulares, que grandes danos deveram causar aos assaltantes, se eles por ai tivessem feito a sua entrada. Mas não foi
isto o que aconteceu, e assim destas amplas defesas, como das de Jorge Cavalcanti, que não o eram menos senão mais,
como vimos, não se disparou um só tiro contra os da Paraíba, visto que, de tudo informados, não obstante serem
grandes as cautelas tomadas e o segredo mantido sobre tais fortificações, cortando por diferentes caminhos, entraram na
vila por onde não eram esperados como adiante veremos.
Cosme Cavalcanti ocupava o sobrado que ainda existe do lado direito, no fim do Beco-do-pavão e que dá para
a Rua-do-meio.
Chamou para junto de se e lhe entregou o comando de varias ordenanças, que estavam de prontidão no
pavimento térreo do sobrado, o alferes Diogo de Carvalho Maciel, o qual tão brilhante nome deixou por seus feitos
nessa guerra. Felipe Cavalcanti, que morava na Rua-da-Soledade, e José de Barros na Rua-das-porteiras tinham também
consigo gente armada, e só esperavam qualquer indicio de rompimento para caírem sobre os inimigos.
Guarnecia a cadeia o ilustre capitão Antonio Rabelo, que, por ocasião dos primeiros motins, fora destacado
pelo governo para auxiliar na vila a defensão das autoridades e dos moradores pacíficos; e a todos inspirava a maior
confiança.
João da Cunha trazia a sua gente no vasto armazém que ficava por baixo do sobrado por ele ocupado. Varias
caixas de açúcar, que a esse tempo ainda ai se viam, porque tanto que se trocaram as primeiras hostilidades, cessaram as
transações entre os agricultores e os comerciantes, haviam sido colocadas por trás das portas da frente, de modo que
pudessem servir de trincheiras com avançada para o Pátio-do Carmo.
Estava sujeito a especiais perigos o ponto ocupado por João da Cunha, em conseqüência de se achar fronteiro
ao convento, que era, para assim escrevermos, o quartel-general dos mascates, sendo por estes os frades, graças à
influência dos da recoleta. No convento achavam-se recolhidas armas e munições mandadas de Recife para serem
distribuídas pelos amotinados.
Eram estas as condições da defesa dos nobres em Goiana. Volvamos agora rápida vista-d’olhos sobre as dos
seus adversários.
O plano destes era realmente tenebroso, e não ficava a dever ao da nobreza.
João da Maia, não obstante se mostrar mais moderado em sua ardência contra os senhores-de-engenho, do que
ao principio, escrevera na véspera o Antonio Coelho:
‘Amanhã há de estar logo muito cedinho ai Luiz Soares com seu terço, passante de quinhentos homens.’ O
próprio Luiz Soares mandara dizer a Jeronimo Paes por seu parente Joaquim Silverio:
‘Espere por mim com minha gente para almoçarmos. Queremos panelada gorda e bom vinho.’ O Tunda-
Cumbe a quem Antonio Coelho escrevera aconselhando-o a que entrasse ao mesmo tempo que Luiz Soares a fim de ser
decisivo o golpe que se desfechasse sobre a nobreza, respondera dizendo que não faltaria.
Por volta das cinco horas da tarde do dia anterior ao da entrada de Gil, justamente quando em sua casa fazia
Antonio Coelho com Jeronimo Paes o computo das forças, que deviam no dia seguinte tomar Goiana, entrou na sala um
pardo, escuro, corpulento, mal encarado, por nome Bartolomeu. Era o mestre de uma barcaça de Antonio Coelho,
circunstancia a que talvez devia a particular confiança que nele tinham os principais negociantes da vila.
Ao parecer, sua chegada não era esperada, visto que deu lugar a revelarem surpresa, posto que agradável, os
dois amigos.
- Já de volta, Bartolomeu! exclamou Antonio Coelho. Prósperos te foram os ventos.
- Cheguei há poucas horas, respondeu o barcaceiro.
- Então? Inquiriu Jeronimo Paes. Foste feliz na viagem? Chegaram ao Recife sem novidade os viveres que
mandamos?
- Por força, respondeu Bartolomeu com segurança.
- É um herói, disse Coelho.
- Não foi sem perigo que cheguei ao meu destino. Da ilha tentaram cortar-me a marcha da embarcação. Mas
eu fiz-me no largo com tão boa hora, que ainda me procuram supondo-me fora da barra, quando eu já fui e
já aqui estou. E que novas nos trazes? Boas ou más? Interrogou Coelho.
- As novas mais importantes devem vir nestas cartas – disse o barcaceiro, entregando ao negociante um
alentado maço de papel.
Coelho rasgou com violência o envoltório que reunia em um só volume a sua correspondência, e pôs a devorá-la.
Entretanto Jeronimo Paes não cessava as indagações sobre o estado do Recife e dos seus habitantes sitiados.
- O que eu sei dizer é que a fome dentro da vila é de meter horror, - disse o barcaceiro. Dá-se um vintém por
uma espiga de milho e não se encontra. Não há carne de espécie nenhuma. De farinha não havia nem um caroço antes
de eu lá chegar. Um papagaio já serviu de galinha para caldo de um doente. O forte da população é o marisco-pedra,
tirado nas coroas quando a vazante as descobre. Mas vosmecê não sabe que perigo corre o que lá os vai apanhar. Mais
de cinquenta negras mariscadeiras tem caído no poder dos pés-rapados que fazem o cerco da vila. Muito pescador de
marisco tem morrido de tiro.
- E porque não rompem o cerco? Para que servem os que estão dentro? Onde está o animo dessa gente?
Que faz Mota? Oh que gente! Que gente!
A coisa não é tão fácil como parece. Seu governador João da Mota tem metido a cabeça muitas vezes para romper o
cerco; mas os pés-rapados são muitos; têm toda a vila rodeada de corpos de guarda. Dormem ainda menos do que tetéu.
Estão sempre alerta.
- E que tem feito d. Francisco e o Camarão? Acham cedo ainda para avançar contra os sitiantes?
Ainda não puderam ser bons em nada. Os pés-rapados cada dia fazem uma das suas pelos caminhos e engenhos onde
vão topando gente contraria. Se o cerco durar mais um mês, a vila entrega-se; porque à fome ninguém resiste. Fome tem
cara de herege patrão.
Não há de ser assim – disse Coelho, atirando sobre a mesa junto à qual estava sentado, as cartas que acabava de ler –
não há de ser assim. Em poucos dias nós os de Goiana havemos de romper o assedio e levantar nas ruas do Recife,
livres de qualquer embaraço a autoridade real, agora vilmente abatida pelos rebeldes, já que os de lá não dão acordo de
si. Aí tendes, Sr. Paes o que me escrevem Mota, Correia Gomes e Simão Ribeiro, acrescentou dirigindo-se a Jeronimo
Paes. Lede. Quando acabardes, mandai levar ao provincial esta carta do padre João da Costa.
E voltando-se para o barcaceiro, perguntou-lhe como por encher o tempo:
- Que mais, Bartolomeu?
Na botica do Rogoberto estava muito povo reunido agora mesmo. Dizia um que seu João da Cunha tem a fabrica e os
moradores na vila para em caso de necessidade saírem armados contra os mascates. Dizia outro que Antonio Coelho e
seu Jeronimo Paes não têm armas nem dinheiro para dar ao povo que os quiser acompanhar ao Recife.
- Qual foi o infame pé-rapado que aventurou semelhante aleivosia?
- Quem estava dizendo isto era o Ricardo.
- Ajustaremos já estas contas, disse Paes. Irei à botica para o desmentir, falarei ao povo. Isso não se atura.
Hão de ver para quanto presto.
- Sim, sim, meu amigo. É da maior conveniência opor à mentira o desmentido. Ireis à botica sem falta, não é
assim, Sr. Paes?
- Irei. Porque não? Irei já, agora mesmo – disse o marchante, levantando-se para sair.
- Antes de irdes, quero lembrar-vos uma providencia. Bem sabeis, Sr. Paes, que sem dinheiro não se fundam
reinos. Vinde comigo até cá dentro. Acompanha-nos, Bartolomeu. Quero que vejas com teus próprios
olhos as coisas quais são, a fim que possas com segurança saber quanto são infames os que nos irrogam
faltas e fraquezas que não temos.
- O pavimento inferior era repartido em duas metades. Para a da frente, na qual estava a loja com todas as
suas dependências, entrava-se pelo lado da rua; para a outra descia-se por uma escada que comunicava
com o primeiro andar por dentro de um gabinete secreto. Coelho, Paz e Bartolomeu atravessaram esse
gabinete, desceram a escada e chegaram ao pavimento, que se esclareceu à luz de um candieirinho de prata
de que se munira Coelho quando teve de descer. O vão ocupava uma quinta parte do prédio. Não tinha
portas nem janelas, nem sequer frestas. Era um como túmulo, sem nenhuma outra comunicação com o ar e
o mundo, a não ser a que se prendia à escada. Espalhados pelo chão viam-se alguns caixões de pinho, e
encostados a um canto objetos que reluziam. Coelho levantou a tampa de um desses caixões para que o
barcaceiro visse o seu conteúdo. Que é que estás vendo, Bartolomeu? perguntou ele a modo de desvairado.
- Armas de fogo, patrão.
- É verdade; são armas. Foste tu mesmo que as trouxeste, supondo que trazias ferragens para o engenho que
estou construindo. São trezentas espingardas e duzentos bacamartes. Aquilo que reluz dali do canto são
espadas, catanas e parnaíbas. Já vês que Ricardo não passa de um mentiroso, um desprezível vilão. Agora
subamos.
Subiram.
Ao penetrarem no gabinete, onde se escondia a escada, Coelho indicou ao barcaceiro um animal de tamanho
descomunal, deitado aos pés da cama de seu uso.
- Que te parece isto, Bartolomeu? perguntou Coelho.
- Um grande cachorro. Oh que monstro!
- É o meu defensor. Ele agora está dormindo. Aproxima-te. Tens medo? É um cão que só tem dentes para os
ladrões.
- O barcaceiro, em vez de se aproximar, afastou-se. Coelho e Jeronimo sorriram. Não fujas. O animal é
benévolo e inofensivo. Pega neste candeeiro e encosta-te bem a mim para o poderes ver de perto. Ficarás
sabendo o que ele vale. Não sem receio, Bartolomeu fez o que mandara o mascate. Este meteu então no
canto de um dos olhos do animal adormecido um pequeno objeto que tirara do bolso. Houve um como
movimento na fera, o que fez o barcaceiro recuar amedrontado. Não fujas, Bartolomeu. Estou aqui.
Aproxima-te.
- Aos olhos de Bartolomeu mostrou-se então um sonho, uma visão deslumbrante e incrível. O animal tinha-
se aberto pelo ventre de banda à banda; e naquela sobre a qual estava deitado, o que o barcaceiro descobriu
foram dobras em pequenas tulhas, formando carreiras pelo longo vão. Ó xentes! exclamou Bartolomeu
maravilhado. Quanta moeda, quanto ouro! Meu Deus! Pois é esta a burra de seu Coelho?!
Todo este dinheiro, disse o negociante, ganhei-o eu pela minha industria nesta terra. Devo acaso à terra ou ao meu
trabalho, as minhas economias? Devo-as ao meu trabalho; a terra não dá dinheiro. Os preguiçosos não serão capazes de
o ajuntar, ainda que morram de velhos no país mais fecundo e rico do globo. Dizem que esta terra é deles. Não há tal. O
mundo é da humanidade. Povos que vivem hoje em um ponto, podem viver amanhã em outro com o mesmo direito.
Assim os homens que trabalham. Pois bem, todo este cabedal, adquirido com o suor do meu rosto, será aplicado em
defesa da autoridade real e do interesse do povo, a que os nobres tencionam antepor o seu bem estar, a sua rebeldia. Mas
não percamos tempo, Sr. Paes, disse ao marchante, pegando de um açafate e atirando dentro nele algumas das
tulhasinhas de dobrões, que se viam enfileiradas no ventre do cão de bronze. Eis a minha idéia. É preciso desfazer
imediatamente, com dinheiro, as invenções de Ricardo. Correi à botica do Rogoberto, meu amigo e Sr. Paes. Falai do
despotismo da nobreza, da covardia do bispo, da estupidez do bispo e dos nobres. Discorrei com o fervor que vos é
natural, sobre igualdade, fraternidade e liberdade. O povo é perdido por estes sentimentos. Espraiai-vos em
demonstrardes a conveniência de acabar-se com o cerco do Recife, o qual impede de saírem os nossos produtos, que
têm bom preço nas praças estrangeiras, e de entrarem os produtos estrangeiros de que precisamos. Acrescentrai que a
fome e a nudez hão de chegar dentro de pouco tempo aos campos e aos sertões. Talvez que, estimulados ou advertidos
por vossas palavras, muitos dos que vos escutarem queiram pegar em armas contra o juiz ordinário, o sargento-mór,
enfim contra as autoridades atuais que tiveram quase todas por origem monstruosa rebeldia. Se o povo se mostrar
deliberado a pegar em armas...
- E porque não se há de mostrar? interrogou Jeronimo Paes.
Tendes razão, tendes razão. Enfim deixo o resto por vossa conta, Sr. Paes. Bem sabeis que o povo de Goiana deve pegar
em armas de hoje até amanhã contra os que se dizem nobres. É indispensável que isto aconteça. É absolutamente
necessário que a excitação publica, em vez de se moderar, vá por diante cada vez mais. Ajudados por ela, os amigos,
que esperamos, poderão penetrar facilmente na vila e assenhorear-se dela. Acharão os ânimos preparados para a grande
empresa.
Estas palavras levaram, como eletricamente, a exaltação, a vertigem ao animo do marchante já de se ardente.
Dou-vos minha palavra que em menos de uma hora havemos de Ter o povo solto pelas ruas em procura de nobres para
amarrar, como se foram caranguejos.
A modo de alucinado, Jeronimo correu imediatamente de escadas abaixo, fazendo tinir as moedas dentro do açafate, e
dizendo em altas vozes:
- São rosas que me caíram do céu. Cheguem-se a mim, que hão de ver como são bonitas e cheirosas estas flores
consoladoras.
XXIII
Jeronimo Paes mostrava Ter quarenta anos. As soalheiras que apanhava em suas freqüentes jornadas para
Pedras-de-fogo a comprar gado e para o Recife a recendê-lo, tinham-lhe dado ao moreno do rosto e das mãos o trigueiro
carregado que o fazia parecer homem de cor. Trazia o cabelo cortado rente e a barba inteira.
Esta era negra, espessa e algum tanto hirsuta. Em seu rosto liam-se a energia, a firmeza e a tenacidade do
tribuno. A fronte, estreita no alto, alargava-se para os olhos, que eram pequenos, mas vivos e avermelhados. O nariz
tinha o quer que era do bico da arara.
Jeronimo enviuvara meia dúzia de anos depois de casado. Ficaram-lhe três filhos, a saber Justino, Miguel e
Victor, os quais ao tempo desta historia viviam com certa folga de meios, que eqüivalia à abastança, ou melhor à
independência. Além destes, já senhores de si, tinha Jeronimo em sua companhia a caçula, por nome Josefa. Em casa
chamavam-lhe Zefinha.
Não era ela nem fei nem bonita, nem alta nam baixa, nem muito morena nem muito clara. Era um todo correto,
proporcionado e como feito de propósito para existir justamente na burguesia. Tinha os cabelos corridos e acastanhados,
os olhos pretos e algum tanto caídos, o sorriso engraçado, mas sem o colorido, sem o reflexo indefinível que acusa
louras esperanças, sonhos purpurinos, anelos vagos mas não de todos cegos, férvido sentimento em quem o sorri.
Sua instrução era vulgar, e a falta dos conhecimentos morais, necessários à mulher por honra sua e segurança
do lar que possa ser chamada pelo destino a formar mais tarde, ela a supria com o admirável bom senso e imensa
brandura de coração, que a tornavam a primeira prenda da família.
A preocupação principal de Jeronimo Paes, depois de ver seus três filhos casados, vivendo cada um do seu
negocio, era achar um homem limpo que quisesse casar com Zefinha.
Um Domingo, em que à porta do sitio que tinha nas proximidades do Poço-do-rei, Jeronimo esperava pela filha
para ir à missa na Soledade, passou pela frente da casa Antonio Coelho. Como já se conheciam e eram até afreguesados,
o marchante tirou conversa com o negociante e o teve preso ao pé de se até que Zefinha apareceu. Seguiram então os
três para a vila, e juntos ouviram a sua missa, que teve para o jovem português e a cachopa goianista, particular, posto
que vaga delicia.
Zefinha voltou apaixonada. Sentiu durante todo o dia e ainda no seguinte certo bem estar, certa inquietação,
certa harmonia, que lhe tiraram a vontade de comer e o sono.
Com o jovem português não se deu o mesmo. De noite já não lhe lembravam outras feições, outros feitiços,
que os de d. Damiana, cuja imagem ele trazia permanentemente em seu olhos.
Desse dia por diante começou Jeronimo a aproximar-se mais vezes de Coelho. Primeiro vieram os presentes,
depois as visitas, e por fim os convites para almoços ou jantares em sua casa. Dentro em pouco estavam amigos.
Mas ao passo que o marchante não poupava finezas nem esforços para prender definitivamente o negociante,
lançava-lhe este outras contas muito diferentes. Gostava de Jeronimo, não desgostava de Zefinha, mas seu ser moral
revoava em torno da imagem da jovem senhora de engenho, como em torno de rosa gentil e delicada, revoa,
absorvendo-lhe o saudável cheiro, namorado beija-flor. Quando Jeronimo dizia consigo estas palavras: ‘Como não
havia de ser feliz Zefinha se casasse com Antonio Coelho!’ monologava este de se para se do seguinte modo: ‘Damiana,
Damiana, meu amor, meu bem, minha vida, minha alma, que será de mim dentro em pouco tempo, se sorte propicia não
vier arrasar a muralha que nos separa? Ah! eu não posso viver sem ti, delicia cruel de minha existência, doce fatalidade
que fizeste de mim escravo e desgraçado!’
Não foi preciso muito para que Zefinha compreendesse que os sonhos de Coelho, seus pensamentos, suas
ambições afetivas tinham por objeto outra mulher. Mas, por infelicidade, já sentia ela por ele todos os estremecimentos
que revelam a existência da paixão. Herpe, corrosivo, o amor infeliz alastrava suas vesículas peçonhentas pelo coração
virgem da rapariga, envolvendo-o em camada de fogo que o abrasava. Ela sentia o rapaz nos olhos, na fantasia, na luz,
na sombra, entre a costura e a agulha, entre o sorriso e as lagrimas, entre a esperança vã e o desengano previsto ou
adivinhado. ‘Ele não quer saber de mim’ dizia Zefinha em seu entendimento. E chorava tristemente. Mas se Coelho
aparecia, já ela sorria de novo, não porque volvesse a acreditar, como nos primeiros tempos que o português retribuía o
seu afeto, mas porque sua doce imagem lhe trazia o prazer que fugia quando ele se ausentava. A poder do esforço,
Zefinha mostrou-se aparentemente senhora de sua paixão. Sem indiferenças despeitosas, sem contentamentos
exagerados, ela conseguiu levar ao espirito de seu pai e ao do próprio Coelho a convicção de que, se não era feliz,
também não era desgraçada; que sobre o lago azul dos seus afetos pairava a calma da inocência; que por ai não
sopravam os vulcões que revolvem o céu de anil da mocidade, e são antes lavas abrasadas do que sopros de tormenta.
Para chegar a tamanho resultado a moça pôs em contribuição toda sua energia, que nunca fora tão grande nem
tão bem sucedida. Aquela natureza, a modo de morna e indolente, acendeu-se para a luta, e com suas próprias forças
pode triunfar de se mesma. O espirito dominou tiranamente o coração. O bom senso impôs silencio ao desprezado afeto.
Poucas lutas interiores já foram maiores em uma mulher ignorante e de vulgar condição do que a sustentá-la nesse
asfixiar de um amor imenso que morria às mãos de quem o devia ameigar e chegar bem ao seio, como fazia às rolinhas
gentis de casa. Pelo proceder da filha veio Jeronimo a conhecer que seus desejos e esperanças estavam longe de ser
preenchidos. O descontentamento, o pesar trouxe a frieza, não a quebra das relações de amizade que o prendiam ao
negociante. Esta frieza durou pouco, porque de certo dia em diante Coelho, fazendo-se mais assíduo em casa do
marchante, reanimou, por seu modo de tratar Zefinha, no espirito do pai dela a quase de todo extinta esperança. Se para
Ter explicação desta rápida e inesperada mudança o marchante houvesse podido penetrar no espirito de Coelho, teria
achado aí a seguinte ordem de idéias: Despeitado com João da Cunha, voltava-se para Jeronimo, fazia-o entrever a
possibilidade de vir ele Coelho a casar com Zefinha, e por este meio chamava para seu lado o primeiro elemento de
hostilidade aos nobres de Goiana, o dito Jeronimo, que por seus sentimentos francamente populares, era o homem mais
próprio para levantar as massas e encaminhá-las ao fim que lhe aprouvesse.
Fosse que, desconhecendo a política tortuosa e dissimulada que certos homens, práticos em explorar as paixões
alheias, usam no seu próprio interesse, se prestava de boa fé ao calculo do jovem europeu; fosse que obedecia
simplesmente a impulsos do seu coração, votado ao povo por quem era capaz de derramar a ultima gota do seu sangue;
fosse que só tinha em mente, concorrendo com todos os auxílios possíveis a Coelho, penhorá-lo pela gratidão, a fim de
tornar fácil a retribuição dos seus serviços com o desejado consorcio, o certo é que Jeronimo se identificou com a causa
dos mascates fervorosamente, arrastando após de se seus filhos, amigos, afeiçoados, o próprio povo, segundo se vê pela
história.
O que se pode considerar fora de duvida é que Antonio Coelho não tinha grande empenho no aniquilamento da
nobreza, mas no de um nobre, João da Cunha, nem pensava verdadeiramente em outra mulher que não fosse d.
Damiana. Completemos com algumas palavras mais o esboço desse caracter, que vem na historia da guerra a par com o
de Jeronimo Paes.
Tendo chegado ao Brasil de pequena idade, cedo revelou Coelho particulares propensões para a vida
comercial, pelos progressos que fez. Quando João da Cunha o conheceu, era ele caixeiro em um dos armazéns do
Recife. Ou por suas feições e maneiras atrativas, ou por seu talento que talvez fosse ainda mais atrativo do que as
feições, o certo que o senhor-de-engenho, simpatizando vivamente com ele, convidou-o para recebedor de seus açucares
em Goiana, convite que o jovem Antonio aceitou, atentas as vantagens prometidas pelo sargento-mór. Ali os seus
serviços cedo atraíram-lhe tantos créditos que em poucos anos Coelho foi geralmente estimado na vila, e conhecido no
Recife; teve entrada nas principais casas comerciais destes dois centros; enfim tratou de estabelecer-se por sua conta.
Revelando suas intenções a João da Cunha, em vez de se opor a elas, o senhor-de-engenho fez que ele as realizasse
logo, e a este efeito lhe prestou os necessários auxílios.
Coelho teria por então seus vinte anos. Era elegante e bem parecido. Tinha sedução no olhar, e graça especial
na conversação. Sabia de cor paginas de Palmeirim-da Inglaterra e as repetia tão possuído das gentilezas namoradas que
enchem a obra de Francisco de Moraes, que mais valia ouvi-las ao moço português do que as ler no próprio autor.
Sentindo particular predileção pelos nobres em cujas relações se ufanava de aparecer ligado, foi pouco a pouco
ascendendo da esfera opaca onde principiara a vida, às alturas douradas em que calculava colocar-se definitivamente
como um dos astros que formavam a constelação. Seus dotes pessoais granjearam-lhe as inclinações das jovens damas e
a benevolência dos cavalheiros de seu conhecimento. Por então d.Damiana, solteira ainda, passava temporadas, como já
se referiu, em casa de João da Cunha. Era muito nova mas trazia já em torno de se um circulo de adoradores em cujo
numero Coelho soube aparecer tão conspicuamente que, passados alguns meses, os outros bateram em retirada,
deixando-o senhor exclusivo do campo. É porém de notar que nem a idade de d. Damiana nem os costumes da época
deram lugar a que ela tivesse conhecimento ou sequer suspeita dessa luta travada entre os primeiros jovens assim
agricultores como comerciantes da vila. Contavam-se por sua raridade as reuniões familiares que se efetuavam na roda
do ano ainda nas casas ricas; e mesmo nessas reuniões era tão respeitoso e cortês o trato entre os cavalheiros e as damas
que, para assim escrevermos, o amor, ao contrário do que hoje acontece em nossos salões, mais se fazia adivinhar do
que declarava. Todavia, por ocasião de uma festa do orago da freguesia, em que houve cavalhadas e fandango, na qual
se achou d. Damiana, pode Coelho fazer-lhe protestos de amor, que, em sua mente, foram por ela bem aceitos. Mas veio
logo o desengano com a recusa que o leitor sabe. Sendo até ai um dos primeiros amigos da nobreza e seu comensal,
converteu-se Coelho em seu acérrimo inimigo. O ódio que começou a votar a João da Cunha, foi tanto mais intenso e
profundo quanto tinha ele para se que nenhum outro, a não ser o senhor-de-engenho, poderia triunfar de seu triunfo. O
golpe que a desgraça vibrara em seu afeto, o fez ainda mais injusto para com aquele que lhe dera a mão no principio da
carreira. Coelho assegurava que d. Damiana fora constrangida a renunciar à afeição que consagrava a ele, e casara com
o sargento-mór, não mais livremente do que fizera a dita renuncia. Minúcias são estas em que escrupuliso entrar. O
coração da mulher assemelha-se à gruta profunda e inacessível: quem empreende descer-lhe ao fundo, corre vários
riscos, sendo o primeiro deles o de dar com estranhos reptis não classificados ainda pela fisiologia. A verdade é que o
mercador nunca mais pode apagar do coração a imagem suavíssima de d. Damiana. Fora aquele o seu primeiro amor. O
objeto dele insculpira-se-lhe por tal modo na alma, que fazia parte integrante do seu ser o olhar, o sorriso, o gesto, a voz
da gentil dama. Há paixões fatais que acompanham toda a vida aqueles a que se apegaram como a Nesso a túnica
fatídica. O negociante era vitima de uma paixão semelhante. Às vezes a chama incessante abrandava; a vida agitada
costuma trazer este efeito aos sentimentos; mas bastava encontrar suas vistas com as da senhora-de-engenho, para que
logo sentisse reacender-se-lhe mais intensamente o fogo, um momento diminuído ou serenado. Enfim a idéia de a
possuir – não importava quando – nunca mais o deixou, e essa ilusão, esse desconhecido que vagamente lhe prometia a
felicidade, alentava a labareda que ele trazia como deliciosa chaga no coração, iluminava-lhe a fantasia como estrela
que fulge em canto de céu prenhe de tempestades. O barcaceiro deu o andar para descer após o marchante, mas foi
atalhado pelo mercador que lhe disse:
- Fica, Bartolomeu. Quero perguntar-te uma coisa: Em caso de aperto, amanhã ou depois, terás animo para
te fazeres à vela novamente em direitura ao Recife?
- Agora mesmo abro as asas à Borboleta e largo-me por estes mares afora; assim o patrão ordene. Eu sou
pau para toda obra. Conjeturo que amanhã a esta hora não exista mais um nobre em Goiana a não ser
amarrado com boas cordas. Mas, como é preciso contar também com o mal, e não unicamente com o bem,
ordena a prudência que tenhamos prontos os meios de escapar-nos aos inimigos se a eles pertencer a
vitoria. Ora, nenhum outro se me afigura mais pronto nem mais eficaz do que a viagem pelo rio.
- Vosmecê tem razão. Montado na Borboleta, só por um oculo poderão ver-me os pés-rapados. E as olarias
de Jorge Cavalcanti?
- Que tem elas?
- Tem bocas de fogo sobre o rio.
- Taparemos essas bocas de fogo com as balas dos nossos bacamartes. Tens então animo para passar em
frente às trincheiras, Bartolomeu?
Porque não, seu Coelho? Vosmecê não conhece ainda este cabra com quem está falfando. Ora escute: Nesta mesma
viagem, de que acabo de chegar, mandaram-me, quando eu ia, da fortaleza de Itamaracá um chuveiro de balas, que a
outro que não fora o Bartolomeu teria feito perder a tramontana. Mas eu peguei na cana-do-leme da Borboleta e fiz com
ela tais cortes e recortes por cima das ondas que nem uma tainha seria capaz de a ganhar. Eram balas de uma banda e da
outra, pela popa e pela proa; mas dentro só o que caia eram as escumas dos mares que ela atravessava como jangadinha
do alto.
Pois bem, Bartolomeu, disse Coelho a cabo de alguns minutos de silencio em que, ao parecer, estivera meditando sobre
grave assunto. Fica assentado que dormirás hoje a bordo da Borboleta, e de lá não virás à terra senão por ordem minha.
Vai ver tua mulher e teus filhos, que deves estar impaciente por abraçá-los. Às nove horas recolhe-te à embarcação.
acharás já ai todas as provisões e munições necessárias para a viagem.
- Mal tinha o negociante terminado estas palavras quando se fez ouvir do lado de fora descomunal ruído de
povo, retinir de armas, rumor de passos de cavalo. Quase no mesmo instante as portas da loja se fecharam
com estrondo, e logo após os caixeiros de Coelho corriam pelas escadas acima amedrontados e confusos.
Que é isto? Que quer dizer isto? Inquiriu o negociante, vencendo sua surpresa, ao que primeiro penetrou
na sala.
- A casa está cercada, e ai vem o juiz ordinário com ordenanças e oficiais do seu juízo.
No mesmo instante uma voz que soou aos ouvidos de Coelho como eco das gemonias infernais, fez ouvir a
seguinte intimação:
- Da parte d’el-rei, componde a casa, que vimos fazer uma diligencia.
A esse tempo Cosme Bezerra assomava na porta da sala.
Trajava calções e casaca preta, meias de seda amarela, sapatos com fivelas douro. Trazia chapéu com pluma branca, e
espada pendente do talim.
XXIV
Coelho foi ao encontro de Cosme Bezerra, e com irritante altivez que as circunstâncias atuais até certo ponto
justificavam, rompeu o silencio que se seguira à intimação:
Da parte d’el-rei, que quereis em minha casa ao lusco-fusco e com este aparato de força, senhor juiz?
Usais de um direito que pertence à justiça – o de interrogar – respondeu Cosme Bezerra com afetada serenidade que lhe
era muito custosa de manter. Mandais distribuir armas e dinheiro pelo povo a fim de derrubar as autoridades legais, e
vos admirais de ter a justiça em vossa porta.
- O que se diz é o contrario, retorquiu Coelho, sem diminuir sua arrogância. Diz-se que nós os portugueses, e
os que nos acompanham, nós os fiéis súditos d’el-rei nosso senhor, não temos nem dinheiro nem armas com que rebater
a rebelião da nobreza.
- Pouco importa às justiças saberem se tendes dinheiro. Falei-vos em dinheiro, porque em dinheiro se fala
pelas ruas da vila, Sr. negociante.
- Chamai-me mascate, já que não quereis chamar-me sargento-mór, título que não podeis tirar-me.
- Título que a nós deveis.
- Devo-o a el-rei, não a vós.
Não vim a praticar convosco. Vim a saber se de feito tendes armas defesas que destinais aos populares por vós
comprados para executores ostensivos de vossos tenebrosos desígnios.
Se tenho armas! Exclamou Coelho. Se eu armas tivesse, não as deixaria passar senão depois de morto, das minhas para
as vossas mãos. De armas precisamos nós para defender a verdadeira autoridade, vilamente ultrajada por uma nobreza
que na rebeldia supõe consistir a sua maior força e o seu primeiro brasão.
Em nome da lei, mascate! Gritou Cosme em tom de quem impunha silencio. Sois apontado como perturbador da ordem,
protetor de rebeldes, e um deles. À frente de todos os motins que há dois meses perturbam o sossego desta vila, todos
vos vêem comprando os venais, desencabeçando os ignorantes, encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os
desordeiros por habito e condição. Os homens bons estão já cansados de aturar as vossas provocações, a autoridade de
ser desrespeitada, as famílias fracas de receber insultos e violências dos malfeitores a que estendeis a mão cheia de
ouro. É tempo de espezinhar a cascavel que tanta peçonha mortal tem vazado de sua boca imunda; e como o melhor
meio de aniquilar a cobra é atacá-la em seu próprio covil, pareceu à autoridade competente que a vossa casa seja
corrida, e de vosso crime se tire a devassa, se chegar à certeza de que sois criminoso.
O direito, que vos arrogais, de violar o meu asilo domestico, nem o achais na lei, nem eu o reconheço senão como filho
do vosso violento natural, de todos conhecido. O testemunho de que não sou criminoso está em sujeitar-me ao vosso
desatino. Outro fora eu, que já me teríeis pago a vossa ousada. Correi, correi à minha casa. Este procedimento condiz
com a fidalguia de que rezam os vossos encardidos pergaminhos. Quanto a dizerdes que sou rebelde e amotinador, cego
seja para sempre aquele que ousar afirmar que primeiro se insurgiram contra a legalidade os mascates que os nobres.
Cosme voltou as costas ao negociante, como quem não levava em conta suas acerbas ironias e rudes exprobrações.
A verdade, porém, é que elas o feriam, como pontas de punhais acerados no coração. Os beleguins cumpriram
o seu dever, e o próprio juiz, não podendo vencer o despeito hostil e apaixonado, encaminhou-se ao interior da
habitação.
A esse tempo Bartolomeu, que ainda não pudera descer, chegou-se a Coelho e lhe disse à puridade:
- Quer sair, patrão? Atiro-me daqui ao soldado, que ali está de guarda na porta, e quando ele menos esperar,
estará sufocado entre as minhas mãos. Então vosmecê poderá descer com seus caixeiros, ganhar a rua e desaparecer por
trás dessas moitas de jerobebas que cobrem os fundos da igreja. Eu lhe guardarei as costas. Pode ir descansado.
Pensas que eu poderia realizar o que estás indicando? Olha. A rua está cheia de gente. A casa está cercada. Ali embaixo
vários soldados espreitam quem entra e quem sai. Mas porque me ausentaria eu? Que crimes cometi para fugir?
- É que as armas, que estão lá embaixo... tornou o barcaceiro a meia voz.
Duvido que as encontres tu mesmo que comigo as viste, quanto mais ele. e se queres ter a prova do que te digo, vai à
escada por onde há pouco descemos ao subterrâneo.
Sem dizer palavra, o barcaceiro encaminhou-se ao gabinete, atravessou-o e chegou ao ponto indicado.
Desciam o juiz, beleguins e soldados. Verificou então por seus próprios olhos o que lhe dissera o negociante. A
escada fazia uma volta para a direita e ia dar na loja, não no esconderijo. Bartolomeu ficou um instante confuso.
Lembrava-se que por ali descera para o subterrâneo, por uma volta que a escada fazia à esquerda: mas, essa tinha
desaparecido como por encanto, sem deixar o menor vestígio por onde se pudesse descobrir o segredo.
Quando Cosme volveu à sala, Coelho foi a seu encontro, e com expressão de mal disfarçado ódio, lhe disse:
Não achastes nem uma adaga, nem um arcabuz no meu armazém. Voltastes em branco. Pois bem. eu vos asseguro,
senhor Cosme Cavalcanti, que dentro em pouco tempo a nobreza de Goiana há de saber para quanto prestam as armas
dos mascates, que as têm e de fina tempera.
- Ah! Eles as têm?
- Eles as têm, e tenho-as eu próprio a meu alcance.
Melhor, melhor. Servirão para atravessar ou degolar os mesmos que as guardam em seus esconderijos.
- Veremos qual de nós se engana, respondeu Coelho.
- Veremos, veremos, mascate – disse Cosme descendo com seu séquito.
Os olhos de Coelho despediam insólito brilho. Na face que a ira fazia subitamente contrair-se e dilatar-se, havia certos
tons de ferocidade felina.
Miseráveis! Exclamou ele quando ainda o juiz não tinha descido de todo a escada. São ineptos na própria hostilidade
com que pretendem impor seu ridículo poderio.
Então, voltando-se para um dos caixeiros:
- Vai já, já, em procura de Jeronimo Paes – disse. É preciso que ele me fale sem perda de tempo.
- Patrão, precisa de mim? perguntou-lhe Bartolomeu.
- Hoje não, amanhã, talvez. Podes sair. Espera. Quando passares pela porta do Lauriano, dize-lhe que venha
falar-me agora mesmo.
Coelho deu alguns passos pela sala, penetrou no gabinete, voltou e logo após tornou a tomar para o interior. Antes de
transpor a porta que dava para o quarto secreto, parou e perguntou ao segundo dos seus caixeiros se havia ainda
soldados pela rua. Quando o rapaz tomava para a sacada, entrava na sala Luiz de Gouveia, mulatinho musico, de
violento e desvairado patriotismo. Vinha acompanhado por diferentes homens do povo, trazia as feições demudadas, os
cabelos revoltos.
Que novos ultrajes e atentados nos vens anunciar, Luiz? Inquiriu o negociante, antes que o musico falasse.
Um atentado nefando. Seu Jeronimo Paes acaba de ser ferido de um tiro de pistola, que lhe dispararam da rua, quando
estava falando.
Eu esparava por isso, tornou o negociante. É natural que ao ultraje se seguisse o assassinato. Mas enganam-se. supondo
aniquilar-nos, não fazem mais do que apressar a sua própria queda.
- Mas que mais esperamos, Sr. Coelho? Interrogou Luiz. Não será ainda tempo de armar o povo e atirá-lo
contra os fidalgotes? Havemos de morrer às mãos deles, e só então nos meterão nas mãos as armas?
Vamos com isso, senhor, vamos com isso. O povo não pede senão armas, não quer senão ir contra os
nobres. E há muito povo pelas ruas?
A vila inteira está nas ruas. O tiro desfechado irritou todos os ânimos. Homens e mulheres correram à botica a saber o
que tinha sucedido. Se apanham o assassino, fazem-no em postas. Dizem que é um escravo de João da Cunha.
- Há de ser, há de ser. Não tem ele mandado fazer tantas mortes? Não é useiro e vezeiro nesse oficio? Não é ele
o gran senhor desta herdade, e não somos nós seus servos? Mas que a façam bem feita, porque se assim a não fizerem,
com seu sangue serão lavados os insultos e agravos com que todo o dia nos batem às faces.
Coelho foi interrompido neste ponto por uma voz rouca e tremula, que partia do meio da rua.
- É a voz de Jeronimo – disse ele.
Todos correram à sacada.
- Ali vem ele – disse o musico.
Querem a perturbação, o sangue, a morte? Dizia o marchante. Pois hão de ter todas estas calamidades. Sou o procurados
do povo de Goiana. Ainda há pouco vos dizia eu que da nobreza só tínhamos que esperar desdens e despotismos. Agora
já posso acrescentar que temos também que esperar o assassinato às escurinhas e traiçoeiramente. Não me mataram;
apenas feriram-me no ombro; mas a morte dos que defendem os direitos do povo e a autoridade real, essa eles a têm
decretado como meio de consolidarem o seu poder, filho da violência e do artificio. São réus de crime de primeira
cabeça. Ah! o que nos fazem – tenham certeza – não o botam em saco roto.
Antes de ser ferido pelo tiro que lhe foi disparado por mão até hoje desconhecida, Jeronimo Paes tinha já encaminhado
parte do povo para o movimento insurrecional.
Quando chegou à botica, ainda estava ai o Ricardo perorando em favor da nobreza. Ricardo era um rapaz de
condição obscura, que à proteção de um nobre devia certo emprego de que vivia. Não tendo podido completar a carreira
sacerdotal, que encetara em vida do pai, viu-se obrigado, por morte deste, a voltar à Goiana onde esperava por ele a
família acéfala.
Jeronimo não teve para ele a menor cortesia na linguagem, e muito menos no gesto.
- Tuas palavras são suspeitas, rufião – disse ele ao rapaz, rudemente, mostrando-lhe um punho cerrado. Cada
uma delas representa uma das migalhas com que teu protetor te matou a fome, dando-te o emprego que tens. Disseste há
pouco que não temos nem armas nem dinheiro. Enganas-te, vilão. Em nossos armazéns temos armas para levantar a vila
inteira contra a nobreza sem freio que jurou aniquilar-nos. Quanto a dinheiro, olha daí, e dize lá se já viste rosas tão
bonitas como estas que me caíram das alturas.
Assim falando, Jeronimo Paes fez saltar as dobras ao ar e as aparou com o açafate.
Ao sonido das moedas, um sem-número de mãos se estendem para sua banda, e diferentes vozes dizem à
porfia:
- Dê-me uma rosa.
Uma ao menos dessas rosinhas amarelas, seu Jeronimo Paes. Cosme Cavalcanti, a quem foram logo levar a declaração,
imprudentemente feita por Jeronimo, de que havia armamento nos armazéns dos mascates, corre a cercar a casa de
Coelho que vareja, segundo vimos.
Entretanto Jeronimo, no ardor da exaltação e calculando o efeito da sua generosidade, distribui, pelos que lhe
parecem mais dignos do presente, uma por uma, as dobras tentadoras.
E ao mesmo tempo que com a mão as distribui, segreda com os lábios quase à puridade, ao que as recebe:
Quando sair daqui vá a casa de Coelho, José. Não deixes de ir, Antonio. Vê lá o que fazes, Martinho. Ele tem
que falar a vocês acerca de uma diligencia importante e rendosa. Não faltes, Justino, nem tu, Jacinto; nem tu Sebastião.
Todos estes sujeitos respondiam afirmativamente e embolsavam a moeda.
O ouro dá calor e eloquência; dos tímidos faz audazes, dos prudentes temerários. A corrupção é feia, mas
eficaz no momento; que tem que depois semelhe chaga podre, nojenta, mortal? Quando o tiro feriu o marchante, todos
aqueles que tinham na algibeira uma rosa, tomaram imediatamente parte pelo ofendido e em altas vozes pediram armas
para o desagravarem. Era mais o cheiro da flor do que o impulso da indignação natural o que lhes dava esta animação.
- Armas, armas, meu amigo, eis as primeiras palavras de Jeronimo quando entrou em casa de Antonio Coelho.
Armas ao povo! Ele as pede; ele as quer. A vila é por nós.
Em menos de meia hora Goiana estava nos braços da anarquia. As paixões populares, exacerbadas e açuladas
por Jeronimo Paes, por seus filhos, que correram em seu favor tanto que souberam do acontecido, por Belchior – o
rabula, Manoel Gaudencio – o alfaiate, Romão da Silva – o meirinho, Manoel Rodrigues – o taverneiro, e por outros
conhecidos e desconhecidos parciais, desafogavam em gritos, ameaças, insultos.
O sinos e os tambores deram logo sinal de rebate.
Dos moradores, uns, manifestado o motim, correram a tomar parte nele; outros, já escarmentados das
violências praticadas por ocasião dos motins anteriores, fugiam, como podiam, com suas famílias, para fora da vila;
outros, não tendo para onde ir, ou receando por pé na rua com tanto povo revolto, se deixavam ficar em suas casas,
resolutos a defender-se ou a resistir se acaso fossem atacados pelas turbas. Dos que se atiravam na vertigem muitos não
o faziam tendo a mira em outro alvo que o de ser sua casa respeitada pelo saque – epilogo negro de quase todos os
motins populares.
Gritos contrários começaram a ressoar de pontos diferentes.
Daqui se ouvia este:
- Vivam os mascates! Morram os nobres!
D’acolá já era est’outro:
- Viva a nobreza de Goiana! Viva a nobreza de Pernambuco! Morra pé-de-chumbo.
Os adjuntos donde partiam estes últimos gritos, eram menos numerosos e menos densos. Dir-se-ia que estavam ainda
em formação ou que tinham medo de formar-se. ressoavam à porta de fidalgos conhecidos e daí não se alongavam
muito.
Quando algum forte bando se aproximava deles, as manifestações diminuíam ainda mais. Era medo, desdém,
ou prudência?
- Silencio, escravos! Respondiam de cá os mais exaltados.
Os de lá não retorquiam.
E o dragão popular passava revolto, espumante, vertiginoso, cuspindo injurias e obscenidades contra os que considerava
seus adversários, e pensando no desforço pessoal e no roubo publico.
XXV
Cosme Bezerra voltou a esquina, acompanhado de ordenanças e parciais, entrou na Rua-da-matriz e foi
descavalgar no Pátio-do Carmo, à porta de João da Cunha.
- Ufa! Ufa! O ladrão do mascate é insolente, mas não tem armas, por mais que diga que tem. E onde as teria ele
que me escapassem? Não houve escaninho que não batessemos.
Tais foram as palavras que dirigiu às pessoas que se achavam reunidas na sala de visitas do senhor-de-
engenho, onde fez a sua entrada já com luzes acesas.
Então contou miudamente tudo o que acabava de acontecer, e de que ai já tinha chegado vaga e confusa
noticia.
Estavam presentes os principais nobres do lugar, que para esse ponto se haviam encaminhado às primeiras
manifestações da desordem, como para a casa de Coelho haviam corrido os principais negociantes. E cumpre notar
antes de tudo que Coelho interiormente estava satisfeito com as circunstancias que pareciam colocá-lo no mesmo plano
do senhor-de-engenho e fronteiro a ele. ‘Se ele é sargento-mór, também eu o sou – dizia o negociante em sua mente
escaldada pelo ódio e pelo despeito. Se o cercam seus amigos, a mim também me cercam os meus no momento difícil.
Se projeta aniquilar-me, eu de há muito jurei reduzi-lo a cinzas. O futuro há de decidir qual dos dois ficará com a vitoria
de seu lado.’ Por onde se vê que o alvo em que o português tinha as vistas era singular, único – João da Cunha.
Já não eram os mesmos os intuitos deste – abrangiam o mais vasto teatro. Esquecido inteiramente da origem
principal do ódio com que o distinguia o mercador, ele explicava a oposição dos mascates atribuindo-lhes ambições de
mando e fortuna. Nunca lhe passou pela imaginação que pudesse o amor contrariado dar inspiração e impulso àquele
movimento.
A seus olhos Coelho era mais um instrumento dos mascates do Recife, instrumento cego e habilmente
manejado por eles, do que uma mola importante, uma força de seu natural independente e vivaz do estranho artefato que
perturbava a sociedade goianista. A verdade entretanto era justamente o contrario do que julgava o fidalgo. A ação de
Coelho no movimento hostil à nobreza partia de se mesmo. A não ser esse amor contrariado, o moço português estaria
ao lado dos nobres, como estiveram durante a guerra vários portugueses, por exemplo Martinho de Bulhões, genro de
Matias Vidal.
Em verdade, seus sentimentos casavam-se mais com os daqueles contra os quais movia seus recursos, do que
com os sentimentos daqueles com quem aparecia identificado tanto para a ofensa como para a defesa. A nobreza
semelhava ainda então uma arvore de extensas raízes que penetrava profundamente no solo das sociedades, e cuja
folhagem tinha a majestade das grandes alturas e das vastas sombras; a democracia era planta rasteira, sem raízes, sem
ramas; era vegetação de vida duvidosa, incipiente; prometia, mas não assegurava assumir as proporções gigantes, com
que um século depois sombreou o solo da pátria e abrigou as instituições a que este império deve a sua grandeza e o seu
renome. Mas Coelho não tinha melhor motivo. O senhor-de-engenho julgava indigno e ingrato aquele que aliás fora
atirado na luta pelo amor imenso e pelo despeito feroz.
Em casa de João da Cunha estavam sobressaltados não sem razão os espíritos. As noticias aterradoras que de
momento a momento chegavam; os gritos dos magotes de povo que passavam, vociferando pela frente do sobrado ao
principio desordenadamente, logo após organizados para o acometimento e a pilhagem; o rebate dado pelos sinos e
pelos tambores; as famílias que fugiam amedrontadas e como sem saberem caminho nem carreira; os soldados que
corriam, acudindo aos toques dos clarins; enfim, todo o medonho cortejo de circunstancias que se prende ao furor e à
anarquia das turbas, e que são como o colear, o sibilar, o bote, a dentada e a peçonha de enorme reptil, solto, mas
assanhado em espaço estreito, não podiam gerar no animo de quem se via, como os que ali se achavam, ameaçados de
ser o alvo único da ferocidade da insurreição, impressões diferentes dessas.
João da Cunha e Cosme Bezerra, compreendendo a gravidade do momento, trataram logo de assentar nos
meios de conjurar o cataclismo, que ameaçava engolir fortunas e vidas preciosas.
- O melhor meio – disse Cosme – é reunir as ordenanças e mandar varrer as ruas a panos de espada e a tiros de
arcabuz.
- Não, não – disse Filipe Cavalcanti. Nem todos os que enchem as ruas são desordeiros. Procedendo assim, a
força publica arrisca-se a ferir famílias inofensivas que fogem da anarquia, e até muitos que são por nós.
- Entendeis então que de outro modo tereis restabelecido o sossego publico? Enganai-vos. Em momentos
semelhantes ao presente, quem se deixa guiar pelo coração corre o perigo de morrer às unhas inimigas. O raciocínio, a
justiça, o sentimento de humanidade devem estar na ponta da espada, na boca do clavinote, nas patas dos cavalos. Que
dizeis, Luiz? perguntou Cosme voltando-se para seu irmão Luiz Vidal, que, de pé, olhava, com mostras de quem tinha o
espirito ocupado em acertar com o verdadeiro caminho, ora para o capitão de ordenanças, ora para o sargento-mór.
- - Em verdade não vejo outro meio de combater a insurreição, respondeu Luiz Vidal. Entendo, porém,
que não há necessidade de levar-se a repressão ao extremo que vós indicais. A força publica deve
apresentar-se imediatamente nos pontos em que a perturbação se mostrar mais veemente e ameaçadora;
mas deve haver particular empenho em que sua presença sirva antes para serenar os espíritos do que
exaltá-los ainda mais, e muito menos para proceder a excessos que possam trazer o sangue e a morte.
- - Com quem estou metido! exclamou Cosme. Que dois filósofos humanitários! Observasse eu estes
preceitos de refinada brandura, que amanhã Goiana em peso estaria nas garras de Antonio Coelho e de
Jeronimo Paes, e cada um de nós teria o seu gasnete entre as unhas do Lauriano, do Bartolomeu ou de
outros vis instrumentos do ódio português. Basta, meus amigos; dispenso os vossos conselhos. Olá,
Matias? Gritou ele a um soldado, que da porta da sala assistia, sem tugir nem mugir, como era seu dever, à
conversação dos nobres senhores. Corre já à casa, e dize ao alferes Maciel que espere por mim com toda a
força que lá tem sob suas ordens. Põe nova carga nas minhas pistolas e mete-as nos meus coldres.
- Luiz Vidal, tendo ouvido estas ordens do irmão, deu o andar pela sala e voltou ao ponto em que se
achava um minuto antes. Faço-vos companhia, Cosme, disse ele.
- Muito folgo de o saber. Eu também vou, disse João da Cunha, encaminhando-se para a porta. Pois não hei
de acompanhá-los? Não é o lugar dos cavalheiros o seio quente da família quando a pátria está em perigo.
Chegando à porta que dava para a escada, o sargento-mór chamou:
- Ó debaixo? Venha cá um de vocês.
Um negro apareceu logo após.
- Onde está Germano?
- Foi chamar Moçambique e Benedicto.
- E vocês estão todos aí?
- Estamos todos, sim senhor.
- Sela o meu cavalo.
Entretanto, d. Damiana chegara-se para onde estavam Cosme, Luiz Vidal e Filipe Cavalcanti e com eles conversava
sobre os sucessos vistos e previstos.
- - Ides também percorrer as ruas, Sr. João da Cunha? Perguntou ela ao marido que, dada a ordem,
tornara a seu lugar. Meu dever impõe-me este procedimento.
- Não sei se seria mais prudente não vos expordes às iras dos vossos inimigos. Penso, ao contrário, que devo
ir ao encontro deles a fim de os castigar. Mas é que em vossa ausência podem vir atacar o sobrado,
observou Filipe Cavalcanti.
- Meus escravos estão aí para defendê-lo. Não nos há de faltar nem pólvora nem bala.
- E não há de ser só a escravatura que o defenda. Eu também sei pegar de uma espingarda e dispará-la, disse
graciosamente a jovem senhora-de-engenho.
- Bonito, prima! exclamou Cosme Bezerra, sorrindo. Quisera estar de parte a ver a galhardia desta valente
amazona.
Não façais pouco em mim, Sr. Cosme, respondeu d. Damiana. Bem me conheceis. Se entrardes na sala das mulheres,
ficareis admirado do armamento que lá existe. Há mais de uma semana não tinha eu no engenho outra ocupação que
fazer cartuchame. Podeis pois levar tranqüilo vosso espirito. Na casa de João da Cunha só penetrará mascate depois que
Damiana da Cunha tiver exalado o ultimo suspiro.
A gentileza com que a senhora-de-engenho dizia estas palavras não se descreve, nem se imagina sequer. Outros
fossem aqueles a quem ela se dirigia nesse momento, que teriam por vã e ridícula bravata essa afirmação a que a
autorizava o conhecimento intimo do quanto valia o seu animo. D. Damiana era de feito perita em atirar desde os
quatorze para os quinze anos. Manhãs inteiras levava ela por junto das capoeiras próximas do cercado do engenho a
passarinhar por distração. Mais de uma aposta ganhou a parentes seus com quem atirara ao alvo. As detonações das
armas de fogo, longe de amedrontá-la, levantavam seus espíritos. Sentia nelas certa voluptuaria harmonia que lhe trazia
deleite. Naquela forma juvenil, graciosa e fresca havia ânimos viris, que se impunham à vontade e condição feminil
como leis fatais e impreteríveis. Enfim, era tradicional esta qualidade da mulher do sargento-mór, e lhe acarretara entre
o povo certa alcunha, com que as más línguas supunham injuriá-la. Chamavam-na – a Escopeteira. Longe, porém, de se
dar por ofendida, a mulher de João da Cunha não perdia ocasião de mostrar praticamente que esta alcunha lhe era
agradável e que a ela tinha indisputável direito.
- Bem sei quanto valeis, senhora prima, tornou Cosme. Mas é que difere muito atirar em rolinhas e sanhassús
de atirar em salteadores afeitos a torcer o corpo às balas e aos mais mortais golpes.
- Seja como for, Sr. Cosme. Guardem os negros o baixo da casa, que eu guardarei o alto. Mas receio por meu
marido, porque sei quanto o odeiam os mascates e a plebe.
- Nada o há de ofender. Demais, vamos apenas dar uma volta pelas ruas mais agitadas, disse Luiz Vidal.
E estaremos dentro em pouco tempo de volta, acrescentou João da Cunha. Como a esse tempo estavam
prontos os cavalos, desceram a montá-los os cavaleiros presentes. Antes de sair, João da Cunha entrou no
armazém.
- Todos estão ai, Roberto? Perguntou ele, Roberto era o feitor. Todos, menos Germano, que ainda não
voltou do engenho.
- Tem cuidado, Roberto, enquanto volto.
Senhor sim. Não há de acontecer nada. Nesse momento, de um bando que passava pela frente do sobrado,
partiu um grito insultuoso, que veio ferir o senhor-de-engenho no coração:
- Morra o assassino! Morra a escopeteira !
João da Cunha, a modo de gelado de cólera, mal pode ir ter com os amigos que à porta da casa punham os pés nos
estribos.
- - Conhecestes aquela voz, Sr. João? Perguntou-lhe, já montado Cosme Bezerra, mal podendo conter a
raiva que o assaltara. Há de ser de algum vendido ao dinheiro de Coelho ou de Paes.
- É a voz desse rábula infame que imagina fundar em Goiana uma republica ateniense.
- Quem? O Belchior?
Ele mesmo, esse velhaco, essa pústula do foro, que vive especialmente de promover a alforria dos negros dos engenhos
para passar as unhas no magro cobre deles e fazer pirraça aos senhores. ninguém ainda se inculcou tão amante da
liberdade, tão independente, tão probo como ele: a verdade, porém, é que ele não passa de um saltimbanco audaz, um
charlatão formado em tretas e torpezas que despertam nojo. Mal acabadas estas palavras, novo bando que vinha nas
pisadas do primeiro, parou diante da casa e repetiu o pregão, que ainda soava aos ouvidos dos fidalgos:
- Morra o assassino! Morra a escopeteira!
- Quereis saber, Sr. Cosme? disse subitamente o sargento-mór. Ide vós a vosso destino, que eu fico. Há de
vir terceiro grupo parar em frente de minha casa, e é preciso que eu esteja presente para dar-lhe a resposta
que merecem. Roberto, Roberto? Gritou João da Cunha da porta que punha em comunicação o armazém
com a entrada. Carreguem as armas e venham colocar-se todos vocês em seus postos. Ao terceiro insulto
quero ouvir soar o fogo.
- Os cavaleiros partiram, enquanto o sargento-mór, quase fora de si, subia para junto de sua mulher. Por
seu gosto estaria nas ruas, promovendo a reação ou a contrarevolta. Mas compreendia que naquele
momento não lhe era licito arredar-se de casa. Preste atenção, Sr. João da Cunha, disse-lhe d. Damiana,
chegando a uma das janelas da sacada onde estava o marido. Não ouvis ruído de pancadas contra as portas
na Rua-direita?
- Estou ouvindo. Quem sabe se já não é o saque?
- O saque!
- Quando a plebe se solta, é aí que vai parar. Mas onde está e o que tem feito desde a tarde Antonio Rabelo
com sua força? Oh não poder eu sair!
Enquanto assim falava o senhor-de-engenho, Cosme corria à Rua-do-meio a tomar o comando da pequena força que se
achava sob as ordens do alferes Maciel. Seus grandes espíritos não se compadeciam com a reação morna e frouxa. De
caminho, ele descavalgava aqui para dar uma ordem, ou combinar uma providencia; arrojava-se acolá temerariamente
sobre os adjuntos e impunha-lhes que se desfizessem. Se era atendido, passava; se não era, empregava meios indiretos
de o ser. Esses meios eram a brandura, a persuasão, a ameaça. Faltava-lhe gente para desempenhar satisfatoriamente o
papel que teve nesse, como nos principais motins de Goiana; mas todas as faltas supria admiravelmente sua intrepidez
por todos reconhecida de há muito e glorificada depois pelo historiador.
Logo que tomou o comando da força, encaminhou-se com ela à cadeia, para onde tinham ido Luiz Vidal e
Filipe Cavalcanti a reunir-se com Antonio Rabelo, receosos de que os amotinados tentassem soltar os presos.
Antonio Rabelo foi de parecer que se não procurasse dissolver os ajuntamentos.
- Onde temos nós gente suficiente para dissolver essas multidões numerosas, Sr. Capitão? Perguntou ele a
Cosme. Guarnecem a cadeia dezesseis praças unicamente. Se daqui arredarem o pé, o povo levantado virá abrir as
prisões, e aumentará com os criminosos o seu numero e a sua ferocidade. Vós não tendes ai convosco mais de vinte
ordenanças. Julgais que com tão pequena força poderemos bater os rebeldes e ficar senhores do campo?
- Basta uma corrida forte e violenta sobre os inimigos, para que, cobrando medo, se dispersem.
- Estais enganado. Eles são muitos e não lhes faltam armas. Armas? Não as têm.
Têm-nas, Sr. capitão., têm-nas. Reparai nos que passam. Haveis de ver cada um com seu arcabuz. Os mascates fizeram
e fazem larga distribuição delas por seus asseclas. O que me espanta é que ainda não se tenham lembrado de vir atacar
este posto, tão fraco quão arriscado.
Mal tinha Antonio Rabelo acabado estas palavras, quando uma massa negra começou a aparecer no principio da rua.
Deus queira que eu me engane. Mas, ao que parece, vem ali gente para nos dar que fazer toda esta noite – disse Antonio
Rabelo.
E logo mandou dobrar as guardas, e à frente da cadeia estendeu o restante da força.
- Quereis ir ao encontro do bando, Sr. capitão? perguntou Diogo Maciel, impaciente por atirar-se ao tumulto onde mais
tarde praticou atos de distinta bravura. - Não; agora não enfraquecerei este ponto com a minha ausência. Os rebeldes
vêm direitinhos para cá.
De feito, não tomaram eles outra direção.
O bando, passante de cem homens, vinha preparado para entrar em fogo e era capitaneado por Jeronimo Paes e
seus filhos. Sua intenção era a que já tinha sido prevista – a de soltar os criminosos.
Obra de cinquenta passos antes, Antonio Rabelo intimou-lhes que passassem de largo.
Jeronimo Paes, sem se importar com esta voz, deu ainda alguns passos para diante. Rabelo mandou distribuir
cartuchos e carregar. Então a multidão fez alto a respeitosa distancia.
- - Que querem, bandidos? Perguntou fora de se Cosme Bezerra, mal podendo suster as rédeas ao
cavalo, pela cólera que o tomava. Bandido sois vós – respondeu Jeronimo Paes.
- A esta voz, Cosme pôs as pernas ao cavalo, cravou-lhe as esporas com movimento nervoso e atirou-se para
a frente da multidão. Quando parou a três passos de Jeronimo Paes, trinta bacamartes tinham as bocas
voltadas para ele. A seu lado tinham arrancado como arrastados no ímpeto vertiginoso da sua carreira,
Diogo Maciel à esquerda, Filipe Cavalcanti e Luiz Vidal à direita, e atrás deles cerca de dez ordenanças
bisonhas, mas animosas.
- - Podeis assassinar-me – disse Cosme. É o mais que podeis fazer, porque é só o que sabeis,
miseráveis. Mas ainda que corra perigo a minha vida, como se me achasse diante de feras bravias, nem por
isso hei de deixar passar sem oposição a vossa rebeldia. Quem fala em rebeldia! disse Jeronimo. Rebelde
és tu, mazombo infame! disse para Cosme um dos filhos de Jeronimo.
E cinquenta, oitenta, cem vozes gritaram:
Tu é que és o rebelde, tu é que és o perturbador da ordem. Fora, fidalgos! Fora. Quando esta alarida serenou, ouviu-se a
voz de Cosme Bezerra. Tinha todos os tons de cólera mal sofreada.
Goianistas, goianistas, gera em mim extremo pesar este vosso procedimento! Eu não falo aos mascates, falo a vós, povo
de Goiana, que meia dúzia de estrangeiros ingratos tem desnorteado e pervertido.
- - Cala-te, cala-te, mazombo. Não te queremos ouvir. Sai de nossa presença, se não te queres
arrepender. Infame canalha! Exclamou fora de se Cosme Bezerra, desembainhando a espada, e dando
mostras de quem queria investir. Cosme, contende-vos, disse Filipe Cavalcanti, entrevendo os perigos que
levantava contra se por suas palavras e gestos o capitão das ordenanças.
Seu aviso já não produziu o efeito saudável. O magote atirou-se sobre todos eles como vara de porcos do mato salta
sobre imprudente caçador. Alguns tiros foram disparados, mas nenhuma morte se seguiu a eles. Os que pretendiam tirar
a vida ao destemido capitão, cedo tiveram a prova de seu engano, vendo Cosme de espada nua abrindo caminho por
entre a multidão. Seu cavalo, esse tinha sido derrubado pela descarga.
Cerca de dez minutos durava já a luta desigual de treze homens contra cem, que os queriam enlaçar, quando ao
lado do Carmo apareceu uma mó de gente que corria para o ponto do conflito. Era uma parte da escravatura de João da
Cunha que, com ele à frente, vinha a socorro dos parentes e amigos. Os tiros tinham servido ao senhor-de-engenho de
aviso da luta próxima. Acompanhavam-no o feitor e outros moradores. Lourenço ficara com Germano, já então no
sobrado e o restante dos escravos no armazém, guardando a casa.
No momento em que este auxilio chegou a Cosme, o conflito já tinha tomado feição diferente. Como a
intenção principal da multidão era abrir as portas da cadeia, a fim de saírem com os criminosos, dois mascates, Braga e
Bernardino, ai recolhidos por delitos comuns, ela atirou-se em peso contra as entradas. Cosme, Felipe, Maciel e os
demais que tinham resistido ao furacão insurrecional, agora, escapos de seus novelos, serviam, com Antonio Rabelo e
sua brava guarnição, de baluartes inexpugnáveis ante os quais se quebravam as investidas dos insurgentes. Achando
seus parentes e amigos salvos, João da Cunha, que estava impaciente por tomar parte na luta, veio colocar-se ao lado
deles. Tornou-se assim quase impossível aos revoltosos lograrem o seu principal intento. Mas isto os não dissuadiu
dele. Colocados em frente da cadeia, vociferavam contra os sustentadores da ordem. Alguns jogavam projeteis imensos
e mortais sobre os que defendiam o importante passo. Garrafas vazias, grandes seixos da rua iam a mude batere
despedaçar-se nas portas e grades, impelidos pelas mãos dos amotinados. Seus estilhaços continuados feriam os
impávidos defensores.
De repente um homem, que vinha das bandas do Carmo, procura a cadeia. Alguns dos amotinados, suspeitando
nele um mensageiro da nobreza, atravessam-se diante dos seus passos. Loucos que foram esses! Um jagunço enorme,
que o desconhecido manejava tão facilmente como se fora delicado espadim, prostrou dois deles por terra sem sentidos.
Corre então a seu encontro maior numero, que não tem sucesso melhor. O desconhecido não é muito alto, nem muito
corpulento. Mas sua força muscular faria inveja à mais possante fera. Quando seu braço descarrega a arma, semelha este
troço de mármore e abate a seus pés os maiores obstáculos.
Ele atira-se de ombro sobre um dos mais alentados de formas e dá com ele em terra. Consegue, enfim,
derrubando e ferindo os que pretendem cortar-lhe a passagem, chegar ao pé do sargento-mór.
- Lourenço! Que vens fazer aqui? Alguma novidade por lá?
- Vim chamar vosmecê a toda pressa. Do lado do rio dirigem-se para o sobrado forças numerosas. No
sobrado se diz que são as forças de Luiz Soares. Luiz Soares! exclamou o sargento-mór.
- Luiz Soares! repetiram Felipe e Cosme Bezerra.
- E que faremos agora? Inquiriu João da Cunha.
- Sabendo do que havia, Antonio Rabelo aproximou-se e disse-lhes:
- Podeis ir, senhores. Eu defenderei o meu posto até exalar o ultimo suspiro. Pois bem. partiremos a cortar-
lhe a vanguarda – disse Cosme a Antonio Rabelo. Mas ao vosso lado, senhor capitão, ficará o alferes
Diogo Maciel. Tende certeza de que estareis bem acompanhado.
Com as espadas nuas nas mãos, os fidalgos afastaram-se, formando uma mó impenetrável.
Alguns dos do bando de Jeronimo Paes, que lhes saíram ao encontro, caíram ao peso da terrível massa de Lourenço, o
qual ia na frente abrindo caminho temerariamente.
Seguiam após eles as ordenanças de Cosme Bezerra e os escravos de João da Cunha.
Penosa, mas rápida, tinha corrido a noite.
Raiava, enfim o dia 23 de agosto de 1711, que ficou sendo memorável nos fastos de Goiana.
XXVI
Não tinha ainda amanhecido de todo, quando as balas dos assaltantes já sibilavam pelas urupemas do sobrado
de João da Cunha, como pelas enxárcias de navio no alto mar esfuziam as lufadas de atroz procela.
Porque fora esse o lugar escolhido para as primeiras honras do assalto? Porque, em vez de correr
imediatamente à cadeia, forçá-la, quebrar-lhe os ferrolhos, soltar os sentenciados, tinha Luiz Soares tomado para o pátio
do Carmo, deixando entrever a intenção de atacar a habitação do fidalgo antes do que qualquer outro ponto?
A resposta é fácil. Antonio Coelho sabia a hora precisa em que Luiz Soares teria de entrar na vila. Sabia o
lugar onde essa entrada devia efetuar-se: era aquém do Tanquinho, e quase fronteiro ao oitão da igreja do Senhor-dos-
martirios. Tomando essa direção, escapava às trincheiras de Manoel de Lacerda, como aconteceu.
O negociante, tanto que viu aproximar-se o momento, montou a cavalo e para lá se encaminhou, seguido de
cerca de cem homens. Este troço era composto em grande parte de europeus. Era o corpo de sua especial confiança.
Coelho o denominava seu estado-maior. Partiram da Rua-de-rosario, ao mesmo tempo que a multidão capitaneada por
Jeronimo se dirigia para o lugar onde estacionou.
Quando a gente de Luiz Soares, rompendo os últimos matos, saiu na Rua-dos-martirios, que não era então mais
do que o caminho do Tanquinho, achou já ai para o receber o estado-maior dos mascates.
Vendo o comandante da tropa, Coelho correu a ele, chamou-o de parte e falou-lhe à puridade. Quando a cabo
de alguns minutos se separaram, estava assentado o plano do ataque. Luiz Soares devia levar suas primeiras investidas
contra a frente da casa do sargento-mór, enquanto o negociante a atacaria pelo lado oposto. Entre dois fogos, o soberbo
fidalgo cairia no poder dos inimigos sem grande custo, e tanto bastaria para que cessasse a resistência, visto que
nenhum dos outros, nem Cosme nem Filipe, nem Jorge Cavalcanti, nem Manoel da Lacerda, em uma palavra nenhum
deles tinha gente para fazer frente a seus adversários. Então tudo tornar-se-ia fácil. O povo já estava solto; a vila
abandonada por mais da metade dos habitantes pacíficos; seguir-se-ia a revolta como se seguiu. As tropas invasoras
engrossariam com os subsídios que desse a insurreição, e tomariam sem perda de tempo o caminho do Recife, a fim de
romper o cerco.
Estas foram as razões que publicou Coelho para autorizar o seu plano. Ele porém tinha a sua razão particular
em querer que prevalecesse este a outros planos indicados pelo destemido Paraibano. O leitor já sabe qual ela seja.
Acabar com João da Cunha era o seu fim, a sua preocupação de todo o instante. Acabado ele, poderia finalizar a guerra,
que ele não teria por isso pesar nem descontentamento.
No momento em que, dando a volta da rua, descobriram os fidalgos, aos primeiros clarões da manhã, a vasta
multidão, superior a seiscentos homens, uma idéia assaltou incontinenti o espirito de Bezerra. Com sua lúcida previsão
a que devia tantos sucessos felizes no período de agitação de que se trata, concebeu logo ele um projeto de oposição.
- Um cavalo já para Lourenço.
E voltando-se para o rapaz, disse-lhe:
- Tu me acompanharás. Não preciso de mais ninguém.
- Aonde tencionais ir, Cosme? perguntou Filipe Cavalcanti.
Vou a Jorge Cavalcanti, que já pode abandonar a sua fortificação, visto que as forças inimigas, a que ele pretendia
impedir a entrada, já estão tomando conta da vila. Lourenço correrá ao Tanquinho a dizer a Manoel de Lacerda que
venha em nosso socorro. Com a gente que cada um destes amigos tiver junta, bateremos esses bandidos. Só o que
desejo me façais, João da Cunha, é que sustenteis a resistência até que eu chegue. Bastam-me cinquenta, quarenta, vinte
goianistas da gema para levar estes salteadores a panos de espada, este canalha a patas de cavalo. Em menos de dois
minutos, Cosme e Lourenço, tomando pela Rua-do-meio, corriam à desfilada. O momento era decisivo.
Chegando à sala, Filipe Cavalcanti, Luiz Vidal e João da Cunha deram com um espetáculo novo e singular.
Cada uma das mulheres que ai se achavam – eram oito, a saber d. Damiana, Marcelina e seis mulatas escravas –
mostrava-se aparelhada para travar a luta homérica. A capitoa era a mulher do sargento-mór. Seu espirito belicoso
tinha-se comunicado a todas as outras, excetuada Gertrudes, velha que a amamentara e que a um canto da sala tremia de
medo. Sobre os bufetes, as mesas, os estrados viam-se açafates cheios de cartuchos, obra das suas mãos e das de
algumas de suas mucamas durante os dias e as noites anteriores.
- Que é isto, senhora? perguntou o sargento-mór à sua mulher, tanto que seus olhos leram na face dela a
expressão da energia intima, reflexo do seu sangue e do seu orgulho.
- De que vos admirais? Mandei trazer para a sala as armas e munições que estavam nas camarinhas. Será ainda
cedo para aparecerem?
-Cedo não é, disse o sargento-mór. Mas é que em mãos de uma dama e de escravas elas se me afiguram postas
com muita antecipação. Em ocasiões como esta, e em havendo ainda homens, as mulheres não devem usar outras armas
que os seus rosários.
- Tem vosmecê razão, seu sargento-mór, disse a velha. Eu cá por mim não posso entender-me com armas de
fogo. As minhas armas são d’água – são as lagrimas. As de fogo, quando alguma vez as tenho, como agora debaixo das
mãos, já me parece que vão estourar e despedaçar-me.
Gertrudes tinha de feito nesse momento a mão posta sobre o cano de um mosquete, que estava a seu lado sobre
o estrado. Mal acabara de falar, um estrepito estranho e inesperado rebentou perto dela. A anciã recuou espavorida.
Pareceu-lhe que se confirmava seu receio. Dera causa ao ruído uma bala inimiga que, batendo no espelho da sala, o
pusera em farelos.
- Credo! Virgem santíssima! Exclamaram quase ao mesmo tempo as mulheres.
D. Damiana tinha corrido para junto do marido, como quem queria defendê-lo.
-Correis aqui perigo de vida, disse Felipe Cavalcanti. O meu parecer é que vos retireis ao interior da casa, onde
estareis mais resguardadas das balas perdidas. Ide aí encomendar nossas vidas a Deus, e pedir para as nossas armas a
vitoria.
A senhora-de-engenho não quis parecer obstinada. Deu o andar para dentro com sua antiga aia, Marcelina e as
mucamas. É, porém, certo que seus espíritos, alvoroçados com a eminência do perigo, não se deixaram lá ficar, antes
vieram emparelhar-se a João da Cunha, vigiando sobre ele, estremecendo por sua existência, a qualquer detonação, a
qualquer vibração suspeita de lhe ser ofensiva.
Quando se acharam sós, correram os três fidalgos às urupemas a examinar o aspecto do campo inimigo.
- Estais vendo, Felipe? Inquiriu Luiz Vidal.
- Que quereis dizer?
- Aquela mó de gente de negro que se move do lado de lá do cruzeiro?
- Estou vendo. São frades, ao que parece.
- São os próprios frades do convento – disse João da Cunha – que distribuem armas e munições pelos
matutos esfarrapados e imundos. Oh! os frades, os frades do Recife e de Goiana têm tido grande parte
nesta guerra!
Tendo dito estas palavras, o senhor-de-engenho deu o andar para descer.
- Para onde ides? perguntou-lhe Luiz Vidal, carregando o mosquete de que lançara mão.
- Vou mandar subir para cá a metade dos negros. Precisamos dar logo sinal de nós, rompendo o fogo sobre
aqueles magotes ferozes. Prudência, amigo, prudência! Observou Filipe. Vede bem não vá esta provocação
decidi-los a acometer logo o sobrado.
- Que tem que venham? Tenho forças bastantes, não só a resistir-lhes, mas a batê-los.
- Não estareis enganado? Demais não será mais acertado nada tentarmos contra eles, antes de chegarem os
reforços que Cosme foi buscar? Se aquela gente toda, reunida com a que está na frente da cadeia, vier
assaltar-nos, achais que poderemos ficar vencedores?
- Só por milagre, ajuntou Luiz Vidal. Mas olhai que a força inimiga, Filipe. Não compreendeis aquela
manobra, ordenada por Luiz Soares?
As forças deste caudilho tinham-se dividido em três grandes pelotões. O do centro, formando uma extensa linha ao
longo da praça, parecia querer adiantar-se até ao cruzeiro, e de feito se encaminhou para ai; os das extremidades, mais
numerosos e compactos, desceram, correndo a marche-marche a tomar as embocaduras, ao norte e ao sul da rua.
Claro está o plano do caudilho, disse o sargento-mór. Atentai nele. A linha do centro manterá sobre nossa frente
incessante fogo, enquanto as outras duas, ganhando os lados, vêm reunir-se com ela no ponto comum, que não é outro
senão as nossas portas. Houve um momento de silencio. Os fidalgos, por trás das rotulas, olhavam para um lado e para
outro, como quem estava estudando as posições inimigas. Enfim Luiz Vidal voltou-se para o senhor-de-engenho e lhe
disse:
- Não percamos mais um momento. As forças aí vêm. Se não resistirmos, em dez minutos estaremos no poder
dos rebeldes. Descei, descei, e mandai a gente para cá. O forte dela deve ficar lá em baixo. Cá em cima precisamos
unicamente de quem saiba carregar e descarregar sua arma. Lá em baixo requerem-se ânimos viris. Será lá o nosso
posto de honra.
João da Cunha desceu e tornou logo. Vinham com ele o Roberto e mais dez negros.
- Vês aquela linha de homens que ali vem avançando e atirando para cá? Perguntou o sargento-mór,
indicando ao feitor a parte da força que era comandada pelo próprio Luiz Soares. Estou vendo, sim senhor.
- Sobre ela devem ser feitas todas as pontarias. De lá debaixo, quero ver cair aqueles alteadores atravessados
pelas balas dos meus escravos. Senhor sim, disse Roberto.
Os negros foram distribuídos pelas janelas. Pelos interstícios das urupemas introduziram os canos dos bacamartes, e
espararam a voz de – fogo. O sargento-mór, tanto que viu as armas abocadas na direção conveniente, ordenou uma
descarga. Queria por seus próprios olhos ter uma prova, antes de descer ao outro pavimento, do valor e da disciplina da
sua gente.
No mesmo instante um só e infernal estampido encheu o âmbito da sala, e foi revoando pelos aposentos e salas
imediatas. A casa, em que predominava a pesada alvenaria daqueles tempos, estremeceu, não obstante, como se fora de
taipa de sebe, desde os fundamentos até ao teto, de cujo estuque se desagregaram partículas calcinadas. Dir-se-ia que ali
o mundo acabava de ter uma das suas medonhas comoções, um desses terríveis cataclismos que se resolvem no
aparecimento de mais um vulcão, na abertura de mais um abismo. Misericórdia! Misericórdia! Gritaram dentro algumas
mulheres aterradas. Quando iam descendo, ouviram os fidalgos o estrondear de uma forte descarga do lado de fora. Era
a resposta que os da rua davam aos do sobrado. Era mais do que uma simples resposta; era principalmente intimação,
feita pelo fogo, a que se rendessem, senão a acerba ameaça de que dentro em pouco tempo não passariam de vencidos e
prisioneiros.
A luta estava terrivelmente travada. Em alguns minutos ninguém mais pode entender-se. a mosquetaria atroava
os ares com suas vozes assustadoras. As descargas sucediam-se incessantemente umas às outras. Contra os paredões e
muralhas de solida e antiga fortaleza não batem com mais fúria as balas de canhões inimigos do que as dos mosquetes
dos matutos contra as paredes, as portas, as janelas do sobrado do sargento-mór em que eles consideravam encastelado
o despotismo, o orgulho e a maldade de um senhor feudal.
- Germano? Germano? Chamou o sargento-mór, ao penetrar no vasto aposento em que tinha o grosso de sua
tropa. Onde estás, moleque? Não vês que as portas da entrada se acham desamparadas? Para a frente, demônios!
João da Cunha trazia na cava do colete um punhal, no cós dos calções uma pistola, e na mão esquerda um
clavinote curto. Por cima do gibão de seu uso corria-lhe, cingindo-o, o talim, donde lhe pendia uma espada de ponta
direita. Do ombro esquerdo para o quadril direito caia transversalmente uma correia lustrosa na qual se via segura uma
patrona cheia de cartuchos fabricados por sua mulher. Trazia na cabeça chapéu de palha de largas abas. Com o trigueiro
do rosto contrastava a barba grisalha, com o longo nariz aquilino os olhos pequeninos e redondos, como os de pomba.
Em sua fisionomia liam-se sentimentos encontrados e violentos: a temeridade para avançar, a firmeza para resistir.
À voz do senhor, Germano chamou os outros e tornou com eles para as portas. Por trás destas tinham sido
colocadas diversas caixas-de-açúcar com dobrado fim – amparar as entradas e dar aos atiradores posição sobranceira.
Subiram às caixas os negros, e nos pequenos olhais, acinte feitos nas portas por ordem do sargento-mór,
puseram eles as bocas das armas.
Então o sargento-mór deu ordem para atirar. As pedras bateram nos fuzis, algumas escorvas arderam, mas nem
um tiro soou.
João da Cunha, espantado, surpreso, olhou sucessivamente para os negros e para os dois fidalgos. Rápida
lividez passou pelas faces destes últimos. Uma só idéia, uma suspeita cruel que lhe atravessara o cérebro, fez chegar ao
rosto deles a sombra de sua asa negra.
Puseram os escravos novas escorvas nos mosquetes, que levaram novamente aos orifícios das portas. À voz de
– fogo! – as escorvas arderam, mas, como da primeira vez, nenhuma arma disparou seu tiro.
Fora de si, o sargento-mór vai cair de um pulo junto de Germano, enquanto Filipe Cavalcanti e Luiz Vidal,
desembainhando suas espadas, se colocam em atitude ameaçadora diante dos outros escravos.
- Negro infame, quero saber o que têm estas armas. Confessa a verdade, senão te atravesso da outra banda.
João da Cunha parecia uma visão infernal. Todos os músculos do rosto, as mais delicadas linhas de seus
olhos despediam duras e mudas ameaças, que falavam mais claro do que seus gestos e expressões
violentas. Senhor, as armas estão molhadas, respondeu Germano. Não fui eu que as molhei, foi ele; mas já
pagou.
- Molhadas as armas! exclamou Filipe. Traidores!
- Ele quem? Ele quem? Dize já quem foi o autor deste crime.
- Moçambique.
Eis o que se tinha passado depois da subida do Roberto e dos seus companheiros para o andar superior.
Moçambique chegou-se a Germano e lhe disse:
- Que esperas, moleque? Daqui a pouco o branco vem chamar-nos para o sobrado, e nós levamos as armas
enxutas. Bota logo água dentro delas.
- Cala a boca, tio Moçambique. Estás doido? Água dentro das armas! Para que fim?
- Ah! Tão depressa te esqueceste da promessa que fizeste a seu Pedro de Lima?
- Eu nada prometi, Moçambique, eu nada prometi do que você está inventando ai.
- Pois já te não lembras da conversa que tiveste ontem de tarde no mucambo?
E que prometi eu, negro velho tonto? Melhor será que você cale sua boca. Calou Moçambique a boca um momento,
mas seu espirito embrutecido, seu interesse, que sua ignorância o fazia supor muito bem amparado pelas promessas de
Pedro de Lima, alteou dentro em sua mente cada vez mais as vozes falazes e persuasivas. O negro deu uma volta, como
para disfarçar a intenção serpentina, dirigiu-se ao canto onde estavam encostadas as armas, e começou a esvaziar no
cano de cada uma o coco, que enchia no pote d’água destinada a matar-lhes a sede.
Germano deu pela operação, no momento precisamente em que Moçambique molhava o ultimo mosquete.
Correr ao negro velho, tomar-lhe a arma da mão, exprobra-lo, foram atos que o moleque praticou em um
momento.
- Tio Moçambique! Você sempre fez o que queria?! exclamou na realidade aterrado Germano.
- Fiz o que tu prometeste, mas não tiveste coragem para fazer, respondeu Moçambique. Negão safado! Tu
ouviste eu prometer alguma coisa?
Ouvi, sim. E se tu quiseres agora negar, eu tudo contarei ao senhor – disse Moçambique, dando mostras de querer
envolver em sua queda o parceiro.
Germano era fino. Viu de um lance d’olhos todo o horror da situação, toda a imensidade do seu infame procedimento.
Compreendeu que se o senhor-de-engenho saísse daquele aperto e viesse a ter conhecimento do que se passara no
mucambo, a forca seria o seu fim, se não fosse a morte nos açoites. Então lembrou-lhe uma idéia, única que o podia
salvar do abismo à borda do qual cambaleava mais morto do que vivo. Era destruir a única testemunha da sua entrevista
com Pedro de Lima. Morto Moçambique, estaria ele livre da responsabilidade que o negro queria repartir com ele, e
poderia até, se a vitoria pertencesse aos mascates tão completamente como figuraria Pedro de Lima, exigir deste o
preenchimento da promessa feita. Tanto que esta ordem de idéias se acentuou bem em sua mente, para o que não foi
preciso mais do que um instante, o moleque puxou resolutamente do facão que consigo trazia, e com ele traspassou o
parceiro.
Tendo contado pela rama esta fatal acontecimento a João da Cunha, Germano para dar inteira autoridade ao
que dizia, indicou o canto do armazém onde se achava morto, dentro de uma poça de sangue ainda quente, o negro que
punha sentido nas carvoeiras.
O sargento-mór soltou então o moleque, dizendo-lhe estas palavras:
- Em recompensa da ação que praticaste, Germano, dou-te a liberdade. Do ora por diante já não és meu
escravo, mas meu amigo. Estás forro.
- Eu forro, eu livre senhor! exclamou, duvidoso ainda o negro, como quem não podia acreditar fosse senhor do
sumo bem a que aspirava desde que tivera o uso da razão, mas cuja posse só em sonho considerava possível.
Estás livre. Palavra de João da Cunha. As lagrimas saltaram dos olhos do moleque, mas uma sombra, escurecendo-lhe o
espirito e aguando o contentamento inefável que o repassava, volitou diante dos seus olhos. Esta sombra tinha a forma
de um espectro agoureiro e medonho. Parecia com o negro morto, mas não era senão o remorso, porque, em
consciência, o moleque se reconhecia traidor e assassino.
Nesse momento Roberto apareceu no armazém.
- - Pólvora, senhor, queremos pólvora – disse ele. acabaram-se todas as munições que havia lá em cima.
E que fazem os inimigos? Interrogou Filipe Cavalcanti.
Avançam, respondeu Roberto. Estão já batendo nas portas. Pólvora, Germano! Gritou o sargento-mór. E uma idéia
sinistra, semelhante à sombra do inferno, atravessou seu espirito atribulado. – Se Moçambique molhou a pólvora, que
será de nós?- pensou ele.
Germano corre ao barril que primeiro se lhe mostra. O sargento-mór, sobressaltado, impaciente por saber
imediatamente a sorte que lhe estava reservada naquele tremendo apuro, correu após o moleque. Germano para diante
do barril, abre-o com arrebatamento nervoso, e voltando-se imediatamente ao sargento-mór que tinha os olhos postos
nele, exclama:
- A pólvora está molhada, senhor!
Molhada! Molhada! Exclamam quatro vezes ao mesmo tempo, quatro vozes que se confundiram na mesma angustia, e
que pareciam um só grito de maldição e de horror. Eram as vozes de João da Cunha, Filipe Cavalcanti, Luiz Vidal e
Roberto.
Para se certificar, o sargento-mór meteu suas próprias mãos dentro do primeiro barril, do segundo, de todos
eles. Retirou-as cobertas de uma camada espessa e úmida, semelhante à lama da rua, que se lhes aderira. Não havia
mais que duvidar. O tremendo drama caminhava rapidamente à sua ultima cena.
Mas Germano, que não gritará, que não se surpreendera com esse grande desastre, parecia não obstante haver
ele penetrado mais profunda e dolorosamente do que nos outros. Havia nisso o efeito de uma lei fisiológica, senão
moral. Fora ele, ele próprio quem tinha derramado água nos barris, logo depois da morte de Moçambique. Então nem
sequer lhe passara pela imaginação a idéia de ser alforriado por seu senhor. pensava porém no que lhe dissera Pedro de
Lima. Para justificar-se perante João da Cunha, se este vencesse, tinha ele o seu procedimento com o parceiro; matara-
o: não podia dar melhor prova de sua lealdade. Para aparecer diante do bandido com direito a ser livre, necessário lhe
era algum fato de grande alcance, cuja responsabilidade pudesse atribuir a se próprio, no caso de saírem vencedores os
estrangeiros, em nome de quem o cabra prometia essas grandes recompensas. Eis porque pusera água na pólvora.
Mas a inesperada generosidade do senhor tornara-o perplexo, confuso, sem saber o que fazer. O remorso, o
arrependimento, o pesar, a dor abafada e temerosa o tiveram por um momento fora do uso das suas faculdades.
Germano não era mau negro. Tinha sido até ao momento de se entender com ele o Pedro de Lima, muito dos seu
senhores. Ainda depois nós o vimos como arrependido em conseqüência das reflexões que lhe fizera Marcelina.
Desencabeçado, porém, em nome da liberdade, atirara-se naquele escabroso despenhadeiro a modo de fatalmente.
Vendo agora de perto os resultados de sua perfídia; conhecendo-se assassino, sem ter nunca pensado sê-lo;
vendo seus senhores sujeitos aos duros azares que a vitoria dos contrários poderia trazer; vendo a ele próprio sem ação,
sem meios para afastar todos aqueles horrores, vencer todas aquelas cruéis fatalidades, encher o grande abismo que
ameaçava engoli-los, enfim reparar aquela imensa desgraça de seu natural irreparaval, só faltou ao negro completar o
seu martírio mudo e imponderável, cortando com suas próprias mãos o fio da existência a que um momento se haviam
rasgado horizontes cor de rosa, logo após convertidos em profundas e infernais escuridões. Ó liberdade, quanto
pareceste dolorosa nesse transe ao pobre escravo, vitima da natural ambição de te possuir!
O estampido de uma nova descarga, abalando violentamente todos os espíritos, veio como reacender a perdida
veemência do de Germano. Sua impetuosidade etiópica rebentou pujante, como a catadupa que jorra subitamente de
solo frio e pedregoso.
O negro tivera uma inspiração grandiosa, digna da heroicidade romana. Pondo-a em pratica, reabilitava-se
perante sua própria consciência e dava manifesto testemunho ao senhor-de-engenho da sua gratidão. ] - Senhor,
senhor, - disse ele a João da Cunha, tendo na mão desembainhado o facão com que tirara a vida a Moçambique – a água
molhou as armas e a pólvora, mas não molhou o facão de Germano. Ainda que estivesse molhado, era agora a ocasião
de o enxugar nos corações dos mascates. Se senhor dá licença, vou esperar os inimigos da banda de fora com meus
companheiros.
- Quantos estão aqui?
- Dezenove, respondeu Germano.
Não, agora somos trinta, respondeu ao pé do sargento-mór o Roberto, que descera. Nesse momento nova descarga soou
na sala do sobrado. João da Cunha, espantado, perguntou a Roberto:
- Quem é que ainda atira lá em cima? Não estão vocês todos cá embaixo?
De feito, todos os negros, que Roberto capitaneava, achavam-se com os outros no armazém.
- É a senhora d. Damiana, com as negras.
- Que loucura! E onde acharam munições? Onde acharam munições?
- Lá em cima. A senhora d. Damiana tinha muitas dúzias de cartuchos guardados. Cada um de nós tem já a
patrona cheia.
- Graças, meu Deus! exclamaram os fidalgos. Mas então porque desceram, porque abandonaram seu posto?
perguntou o sargento-mór.
- Foi ela que nos mandou para baixo. Ela disse que havia mais necessidade de nós cá embaixo onde nenhum
tiro se disparava, do que lá em cima. E a senhora d. Damiana teve razão – disse Filipe Cavalcanti, que,
tendo ido olhar pelos olhais, voltara correndo ao lugar onde estas coisas se passavam. Acudam todos. Os
bandidos batem-nos à porta. Uma descarga agora contra eles deve ser de grande proveito para nós.
Correram todos os que tinham as armas carregadas. Um estampido imenso ecoou dentro do vasto armazém. No chão da
rua caíram vários dos assaltantes – muitos feridos, alguns mortos. Era o primeiro sinal de vida que dava de se para o
lado de fora o armazém.
Tomando por estratégia o silencio que até então ai reinara, recuaram os assaltantes amedrontados, mas não o fizeram
tão prontamente que ficassem logo fora do alcance de novos tiros disparados do sobrado, desta vez mais certeiros do
que das outras. Novas perdas contou a força invasora.
Quando cessou de todo o estrondo da ultima descarga, uma voz vibrou nos ares, forte e pujante, por entre as
exclamações de dor dos feridos. Partia ela do cruzeiro e parecia dirigir-se aos do sobrado.
Mulheres ímpias, mulheres ímpias, que atirais contra a cruz do redentor, vede lá não venhais rasgar as veias
sacrossantas daquele que em espirito está aqui pregado nela. Ergueram-se todas as vistas ao ponto donde tais
palavras caiam.
Um vulto vestido de negro destacava sobre a larga peanha do cruzeiro. Estava de pé, o braço esquerdo passado em torno
da haste pétrea, enquanto o direito destendido parecia acompanhar e completar a direção e o eco de sua voz. A cara
branca e macilenta, o perfil negro e esguio, a voz fina e vibrante davam aquele vulto certa aparência majestosa e
patética. O que sobressaia nele, cercando-o de uma como virtude misteriosa e fatal, era o animo terso, a temeridade a
modo de barbara, a fé passiva e animal que o fizera levantar-se diante das balas inimigas, que em torno de se cortavam
o fio de muitas vidas. Esse vulto, esse espectro, esse animo que excedia a medida humana, era um membro da
Companhia-de-Jesus. Era o padre Henrique Celini. Fora mandado expressamente do Recife para pregar contra os nobres
e a favor dos mercadores. Seu nome devia figurar depois na carta monitoria em que o bispo cometia ao Padre Manoel
Lopes todas as necessárias faculdades a fim de que ‘notificasse certos clérigos para aparecerem em sua presença, e os
corrigisse da escandalosa missão de andarem seduzindo os ânimos dos que os ouviam a seguirem por seleta e segura a
nova doutrina sustentada pelos conjurados do Recife, com a qual agitaram o povo e deram tanto abalo a toda a terra.’
Apenas ouviu as primeiras palavras do jesuíta, o sargento-mór correu à sala superior. As balas paraibanas tinham
deixado ai traços medonhos. Viam-se nas paredes, por entre superficiais escoriações, profundos ferimentos. Parte do
estuque do teto estava por terra. Das rotulas algumas se mostravam despedaçadas, outras com imensos rombos por onde
do pátio se via grande parte do que se fazia na sala. A frente da casa poder-se-ia comparar com a careta de um homem
vesgo e desdentado.
D. Damiana, de pé por trás de uma das rotulas mais destruídas, olhava para o pregador por um dos rombos, no momento
em que seu marido entrou na sala. As outras mulheres imitavam a senhora-de-engenho das outras janelas. Vinde ouvir,
Sr. João da Cunha, vinde ouvir o pregador – disse ela. Ainda está falando ai essa sombra do inferno? Perguntou ele,
lançando as vistas para o pátio, por cima do ombro da mulher. E rapidamente levou ao rosto o clavinote, como quem o
queria desfechar sobre aquele novo sustentador da desordem e da destruição que aludiam a sua posição e o seu poder.
Mas no mesmo instante sentiu-se apertado entre dois braços fortes, roliços e deliciosos. Sentiu uma macia mão
pegar-lhe do pulso e obrigá-lo a abaixar a arma. Ouviu uma voz terna, aflita, plangente pedir-lhe que não atirasse.
Não atireis, não atireis, Sr. João da Cunha, sobre o padre. Seria um grande pecado. Atreveis-vos a dizer-me estas
palavras, senhora? exclamou o fidalgo. O que ali está não é um padre, um ministro de Deus. É o espirito de Satanás. É
um perverso que deve cair atravessado por uma bala. Peço-vos também eu que não atireis, seu sargento-mór – disse-lhe
outra voz ao pé de si. João da Cunha voltou-se e deu de face com Marcelina, que dava mostras de quem ia ajoelhar-se.
Alongando os olhos algum tanto mais, viu todas as mulatas na mesma atitude, acusando sua fisionomia os mesmos
sentimentos manifestados pela senhora-de-engenho e pela cabocla. A forte guarnição que até aquele momento
mantivera nutrido e mortífero fogo sobre os invasores; desamparava as posições, abaixava as armas à voz de um padre;
e quando ele trovejava contra elas próprias, corriam medrosas a impedir, com suplicas e prantos, que lhe tirassem a
vida.
O jesuíta entretanto prosseguia assim a sua terrível jaculação.
- Atirastes sobre a cruz do redentor. Estais por isso condenadas às profundas dos infernos. Suspendei,
suspendei, filha de Satanás, a vossa impiedade. A maldição de Deus pesará eternamente sobre vós, se ousardes levantar
ainda armas infernais para o lado onde está o símbolo da fé e da religião católica. Batei nas faces, mulheres ímpias. Pedi
misericórdia a Deus. Misericórdia! Misericórdia! Exclamaram irresistivelmente todas as mulheres presentes. E suas
mãos ainda quentes dos canos das armas, flagelaram, a modo de impelidas por oculta e fatal força, as faces há pouco
afogueadas, agora pálidas, senão lívidas.
Um dos traços característicos daqueles tempos era a fé cega no padre e na sua doutrina. O sentimento religioso
confundia-se com a superstição e dela recebia a influencia que ainda em nossos dias alenta no lar do rico e do pobre, do
pequeno e do grande, crenças deletérias e hábitos fatalissimos. D. Damiana, educada no seio da família católica, ao
paladar da fé antiga – misto de sombra e luz, como a nuvem que no deserto guiava o povo de Israel – sentia-se fraca
diante do sacerdote, não obstante ter-se mostrado um momento antes brava, senão temerária, diante das forças e das
armas rebeldes, porque ela estava acostumada a ver no padre o representante de Deus na terra; a considerar suas
palavras como sentenças do código divino.
Mas o sargento-mór, que já não pensava assim, ergueu o clavinote e disparou-o. A bala foi bater nos pés da
cruz, e arrancar uma lasca de pedra. No mesmo instante uma fila de sangue vivo escorre do lugar onde a bala deixara
profunda e alongada ferida. Viram todos o sangue descer pela pedra. Era o do padre Henrique, cujo corpo caíra
traspassado aos pés do cruzeiro.
- Meu Deus, que horror! Exclamou d. Damiana. Estamos perdidos. Deus não há de ser mais por nós.
E inclinou sobre as mãos, pequenas de mais para ocultarem o horror que lhe vinha do intimo, o rosto
desfigurado e abatido.
O senhor-de-engenho, como se sua própria obre tivesse excedido a medida da sua intenção, teve por momentos
os olhos, pasmos e desvairados, sobre o traço vermelho que descrevera um como hieróglifo ou símbolo infernal na
pedra secular do símbolo santo.
Nesse momento diziam da rua:
- O tiro, que o matou, veio do sobrado onde estão a mulher e as negras do malvado. Sim, sim, veio de cima;
veio.
- Foi a escopeteira que atirou.
- Foi ela, foi ela. Morra a escopeteira!
- Morra, morra. Ao sobrado, ao sobrado! Gritaram os frades em torno do cadáver do jesuíta. Ao sobrado!
respondeu a multidão.
XXVII
O sobrado foi fortemente atacado, mas à força exterior opuseram os que estavam dentro dele heróica
resistência, impossível de descrever-se.
Nos últimos momentos os negros, dirigidos por Germano, tinham-se batido quais feras. Prometera-lhes o
sargento-mór a liberdade a todos, e tanto bastou para que os guaribas lutassem como se foram leões.
Mas Germano devia ser punido da sua perfídia. Defendendo a facão e a chuço com os parceiros uma das portas
que os invasores tinham logrado romper, ele caíra traspassado de golpes. Com o sangue e a vida resgatara a culpa.
Tanto que considerou perdida a esperança de salvação, o sargento-mór pediu a Filipe Cavalcanti e a Luiz Vidal
que pusessem a salvo sua mulher.
- E porque não nos salvaremos todos? Inquiriu um deles. Roberto podia resistir com os negros que restam,
ainda alguns minutos. Teremos tempo de ganhar a cavalariça. Tomaremos os animais e ficaremos fora do alcance dos
malvados.
- Desamparar a minha casa seria uma covardia, que eu nunca havia de perdoar-me, disse o sargento-mór. Ide
vós. Correi, correi, senhores. Salvai-me Damiana, e não vos importais comigo. Hei de resistir até à minha derradeira.
Talvez que nesse entrementes chegue Cosme.
Mal tinha acabado estas palavras que poderiam considerar-se inspiradas pela intuição do momento final,
quando as outras portas que ainda estavam de pé, caíram debaixo do peso dos machados e alavancas fortemente
vibrados pela turba sedenta de vingança. Na primeira linha dos atacantes viam-se, movendo os terríveis instrumentos,
diferentes frades carmelitas, que assim entendiam dever ressarcir a perda do jesuíta.
À vista desta cena extrema, não havia mais que hesitar. Os dois fidalgos, dois sós, porque João da Cunha ficava
embaixo, resistindo ainda, lutando sempre, atiraram-se de escada acima a fim de tentarem a fuga, com a senhora-de-
engenho, pelos fundos do sobrado, única comunicação para uns casebres com frente para a Rua-do-meio. Mas qual não
foi o seu espanto e tristeza, quando se encontraram com as mucamas de d. Damiana que, espavoridas e chorosas,
corriam de escada abaixo pedindo socorro?
Uma malta, não inferior a cinquenta homens, entrando justamente pela parte da casa por onde Felipe e Luiz
tencionavam escapar-se, tinha já tomado o andar superior. A senhora?! Onde está a senhora?! perguntaram os fidalgos,
passados de impaciência e aflição indescritível.
- Não sei – responde uma das escravas.
- Fugiu, responde outra.
- Trancou-se por dentro em um quarto, - acrescenta a terceira.
- Negras do diabo! exclamou Luiz Vidal.
E atira-se com Felipe, desesperado, agoniado, na direção que levava. A indignação e o vexame faiscavam-lhes dos
olhos. Mas do topo da escada não passaram eles. Parte da multidão veio ao seu encontro e embargou-lhes o caminho.
- Afastai-vos miseráveis! gritou Luiz Vidal. Vou a salvar uma dona honrada. Para o lado, vilões! Para o lado.
- A quem vais tu salvar, mazombo infame! perguntou-lhe o sujeito que vinha na frente da onda.
Os fidalgos reconheceram o que lhes dirigira este apodo acerbo. Era o Belchior.
- Será uma escopeteira? perguntou outro sujeito em quem eles reconheceram Manoel Rodrigues – o taverneiro.
- A escopeteira! A escopeteira! articulou o terceiro com ares de mofa. Está nas unhas do nosso comandante, o
bravo Antonio Coelho.
Quem assim falava era o alfaiate Manoel Gaudencio.
Coelho, de feito, entrando no sobrado do momento em que de fora ainda se pedia o coração, a cabeça de d.
Damiana em paga da vida do frade, correu à senhora-de-engenho e disse:
- Senhora, senhora minha, se não vos entregais em minhas mãos, mata-vos a multidão!
E dizer-lhe estas palavras foi o mesmo que tomar pela mão a senhora-de-engenho, atravessar com ela por entre o seu
próprio séquito, acomodando os mais exaltados e exigentes, com a promessa de que ela pagaria a sua culpa às justiças, e
desaparecer por onde havia entrado na casa do sargento-mór.
Irritados pelo pouco caso e mofa que mostravam os invasores, os fidalgos precipitam-se contra eles, resolutos a
abrir caminho por cima de cadáveres. Seus golpes não conseguem mais do que ferir alguns mascates. Acende-se logo
pronta e terrível represália. Tomam-nos às mãos, arrebatam-lhes as armas, descarregam sobre eles pancadas e cutiladas,
assacam-lhes mil impropérios.
Então já as duas multidões, pondo-se em comunicação pela escada, formavam um só corpo, uma como
serpente imensa, irrequieta, assanhada, que se esfregava pelas paredes, sacudia-se pelas salas, sumia-se pelos quartos a
dentro, penetrando nos pontos mais secretos da casa do fidalgo, enquanto este desarmado, ferido, coberto de baldões,
via-se com seus próprios escravos entre os primeiros cabos da força de Luiz Soares, e era apontado por ele, que não
ocultava a sua satisfação, como o seu primeiro troféu.
De todas as que estavam na casa de João da Cunha, só uma pessoa pode escapar-se com sua liberdade. Foi
Marcelina, que correra, não por fugir, senão por acompanhar d. Damiana, no momento em que com ela rompia Antonio
Coelho por entre os seus partidários.
- Hei de ir com ela até ao infinito! Dizia a cabocla correndo após a senhora-de-engenho. Não hei de perder de
vista a pobre senhora. Meu Deus! Como tudo se mudou!
Mas a Coelho não fazia conta ser acompanhado por essa terrível testemunha, e cedo achou um meio de afastá-
la de suas pisadas, por mais que a senhora-de-engenho pedisse depois que a deixasse passar. Para penetrar no quintal do
sobrado, tinha Coelho feito caminho por um dos casebres que abriam sobre a Rua-do-meio. O mascate estugou os
passos, atravessou o casebre, e, quando se achou com sua presa na rua, trancou pelo lado de fora a porta. Marcelina não
era mulher a quem semelhante obstáculo cortasse a carreira em que ia. Mas quando, desimpedida a saída a poder de
esforço e violência, ela passou da outra banda, Coelho e d. Damiana tinham desaparecido.
- Pobre senhora! exclamou a cabocla em lagrimas. Que não fará com ela o bárbaro?
Seriam então oito horas da manhã. O dia, risonho e esplendido, apareceu aos olhos da cabocla como a carranca de um
malvado. A viração, que brincava com as folhas dos mamoeiros dos quintais, soou a seus ouvidos como a ameaça de
um assassino, o riso infernal de um demônio.
Marcelina tinha até certo ponto razão deixando formar-se em seu espirito esta ilusão mentirosa.
Era geral o destroço, lúgubre o espetáculo que seus olhos descobriram na rua. Homens de feia catadura
passavam carregados dos despojos da noite. Outros agora é que iam a colher os frutos que sabe a pilhagem descobrir no
meio do desamparo, e por entre as lagrimas dos aflitos. Dos armazéns, onde alguns senhores-de-engenho tinham
recolhidos seus açucares, saiam sujeitos maltrapilhos arrastando sacos e caixas, que deixavam pelas calçadas rastilhos
brancos ou amarelados. Vários troços da força de Luiz Soares, tanto que fora conhecida a vitoria, espalhavam-se
derrubando as portas de novos armazéns, invadindo as casas de famílias afeiçoadas à nobreza que tinham fugido para
pontos desconhecidos, e daí tirando tudo o que tentava sua cobiça e podia aprazer à sua voracidade. Essas hordas
passavam impunemente, sem que ninguém se atrevesse a ir ao seu encontro; porque os próprios grupos que na véspera
se tinham organizado em favor dos nobres e durante a noite haviam sido em muitos pontos obstáculo ao saque,
desfizera-os a noticia de que o sobrado do sargento-mór, que era como a praça-forte dos nobres, fora tomado pelo
partido contrario. A plebe tomara conta da vila e levava por diante a sua obra de destruição e rapina. Enfim, o que
Marcelina tinha diante dos olhos era o saque em toda sua hediondez – o saque, serpente de vasta guela e insondável
estômago, que tudo engole, viveres, jóias, moveis, roupas, e o que não lhe apraz ingerir, despedaça, destróe, inutiliza,
como faz a enchente de um grande rio quando inunda um ponto habitado.
Marcelina vagou sem norte, tendo o juízo em quase completa confusão, pelas ruas cheias de figuras sinistras, e
de vozes e ruídos ingratos. Lembrou-se de Lourenço e de Cosme Bezerra. ‘Que será feito de meu filho?! Quem sabe o
que não lhe terá acontecido? E seu Cosme que foi buscar gente e nunca mais apareceu?’
Estas interrogações tinham resposta fácil. Cosme, quando vinha com os poucos trabalhadores e escravos de
Jorge Cavalcanti, encontrou-se com o bando de Tunda-Cumbe – aquele mesmo que saqueara o engenho Bujari, e foi
batido. Voltou então, com Jorge Cavalcanti, derrotado e ferido. Mas ainda assim dirigira-se ao engenho Jacaré, a fim de
ver se decidia o respectivo proprietário, até então indeciso, a tomar o partido da nobreza e a vir em auxilio da vila com
sua fabrica e agregados. Quanto a Lourenço, tendo preenchido a comissão que o levará ao Tanquinho, lembrou-se de
correr ao engenho Bujari, a fim de chamar a gente que ai ficara. Mal sabia ele o negro drama de que tinha sido teatro a
risonha propriedade de sargento-mór.
Andando sempre sem destino, ora para um lado, ora para o outro, por fugir das turbas revoltas que não cessava,
em seu frenesi, de botar abaixo portas, roubar o que lhe aprazia, despedaçar o que não falava à sua ambição, quando
Marcelina deu acordo de se estava no oitão de uma igreja. Era a da Misericórdia. Seriam nove horas. No lugar, como se
deserto, passavam com intervalos, maltas de homens, vociferando, gritando, muitos deles já nos braços da embriaguez.
De repente, ela viu vir correndo a marche-marche, pela Rua-das-porteiras, em procura do oitão da igreja, onde
ela se sentara, uma longa fileira de soldados, os pés nus, as calças arregaçadas. Capitaneavam-nos dois cavaleiros.
- Virgem Maria! exclamou ela, tomada de novo horror. Aonde irá isso parar! Goiana hoje arrasa-se, acaba-se
de uma vez.
Supondo que era novo reforço de bandidos, correu a meter-se dentro de um fechado de arbustos que havia a
um lado do oitão. A pobre mulher estava possuída de terror. Em todos via inimigos.
Abaixou-se quanto pode, e nesta posição ficou imóvel, quieta, rezando baixinho a Magnificat.
Quando estava nisso, passou por junto da moita o bando sempre a correr. Não falavam. Parecia mudos. Todos
corriam apressados. Adiante ia um oficial e atrás outro, acompanhado de um paisano. Estes três vinham a cavalo.
Súbito uma voz soou aos ouvidos da cabocla.
- Veja, seu ajudante. Olhe como corre o povo solto lá embaixo.
- Estas palavras tinham sido ditas pelo paisano ao militar, apontando o que as dissera para o largo das
Portas-de-Roma.
- Elas produziram em Marcelina o efeito de um choque elétrico. Tinha reconhecido a voz de Francisco.
- Marcelina não se pode Ter mais oculta uminstante. Correu de dentro dos arbustos, gritando:
Francisco, Francisco, foi Nossa-Senhora que te botou por aqui.
Não se pode descrever o prazer que tomou o matuto. Saltar do cavalo abaixo e correr, louco, delirante ao encontro de
sua mulher foram atos que ele praticou a modo de impelido por uma mola magica. Apertou-a entre os braços extasiado.
Por cima de suas barbas que iam pintando, mas ainda negras, desceram-lhe duas lagrimas nitentes. Sobre seus lábios
crestados perpassou sorriso de inefável contentamento.
- Marcelina, meu amor, que andas fazendo por aqui só, escondida? Estás com medo dos mascates, já sei. Ah!
Marcelina, Deus se lembrou de mim. Vim fugindo dos facinorosos. Os mascates estão senhores de toda a vila. Seu
sargento-mór, tenho que já o mataram. As forças de Luiz Soares atacaram o sobrado e levaram tudo a ferro e a fogo.
Nós resistimos, mas por fim não pudemos mais, e demos os braços.
- sei de tudo, Marcelina. Lá embaixo soubemos logo do que havia. Esta tropa, que estás vendo, vem de
Itamaracá por ordem do governo de Olinda para acabar com os mascates. Eu vinha fora de mim, minha
mulher. Nem tu sabes o que fizeram os ladrões, ao passarem pelo Cajueiro. Que fizeram eles?
- Queimaram a nossa casa, mulher, a nossa casinha, que nunca lhes fez mal.
A nossa casinha! Que dizes tu, Francisco? Pois esses endemoniados chegaram a queimar a nossa moradinha de casa?
Oh meu Deus! Cada um havia de Ter sua parte nessa desgraça geral?! Até o nosso suor havia de pagar pelos males dos
outros?! Mas isso não há de ficar assim. Deus há de castigar esses malvados, essas feras malfazejas!
- E que novas me dás tu de Lourenço?
- Anda ai mesmo pela vila com seu Cosme, lutando com os mascates. Mas a minha casa, a minha casinha
tão bonitinha! Tudo queimado e destruído! Ah! malvados do inferno! A luz há de faltar a vocês na hora da
morte.
- E as lagrimas arrasaram os olhos de Marcelina, que tinha nas faces palidez mortal, nos olhos a
expressão de profunda e entranhável dor. Não chores, mulher. Foi-se uma, faz-se outra casa. E a minha
caixa teria ardido também?
- Qual caixa?
- A nossa caixa, aquela onde tu guardavas o dinheiro. Se não a tiraste antes, ardeu também. Tudo lá estava
em cinzas.
- Ah Lourenço, lá se foi a tua fortuna. Era na caixa que eu tinha guardado o papel que me deu seu padre
Antonio no momento da despedida. Que papel era esse?
Vamos ao Cajueiro, Francisco. Talvez ainda se possa salvar alguma coisa. Tem paciência. Agora não é possível o que
queres. Vou aqui servindo de guia à tropa. Mas se queres ir, vai. Aqui te deixo o cavalo, coitado! que já não pode andar
de enfadado. Vê como vais, Marcelina. Se vires alguém que te possa ofender, mete-te no mato. Eu hei de dar contigo
onde estiveres. Vou direitinho à minha casa. Mas antes que me esqueça, quero dizer-te uma coisa: vê se podes descobrir
sinhá d. Damiana que seu Antonio Coelho prendeu e levou consigo para entregar à justiça. Pobre senhora!
Francisco alcançou logo adiante a tropa, enquanto Marcelina, tendo arregaçado as saias, saltara sobre a cangalha e
pusera o cavalo para trás.
A tropa que Francisco tinha guiado não era senão uma parte das forças comandadas pelo ajudante-de-tenente.
Tinha este planejado, antes de entrar na vila, formar um como cerco que avançasse das ruas de fora para as de
dentro, a fim de apertar e sufocar a insurreição, de modo que ela não tivesse por onde escapar.
Obedecendo a este intuito, Gil Ribeiro dividiu as forças em duas colunas, e, ficando com a mais forte, entregou
o comando da outra ao ajudante Filipe Bandeira com o alferes Carlos Teixeira. Ele fez a sua entrada pelo lado do
ocidente, e um quarto de hora depois entrava no Pátio-do-Carmo pelo lado do rio. Ao mesmo tempo a coluna
comandada pelo ajudante Filipe Bandeira, e habilmente encaminhada por Francisco, desembocava ai pelo Beco-do-
limoeiro. As forças inimigas estavam ainda no Pátio-do-Carmo, tendo à sua frente Luiz Soares, Gonçalo Ferreira, e os
mais importantes mascates, seus parciais.
João da Cunha, Luiz Vidal e Filipe Cavalcanti, eram conduzidos à cadeia por Jeronimo Paes no momento em
que as duas colunas desembocaram no pátio. Eles deviam ficar ali ocupando o lugar dos criminosos que a multidão
ainda não tinha podido soltar, em conseqüência da tenaz resistência de Antonio Rabelo. A demais nobreza, menos
Cosme Bezerra, Jorge Cavalcanti e Manoel de Lacerda que já se achavam de volta novamente à vila para bater os
invasores, tinha fugido para o mato. Todavia Gil encontrou já uma nova reação principiada contra os amotinados.
Grande numero de cidadãos pacíficos, indignados com a cena do saque, tinham-se armado, e começavam a bater os que
continuavam a praticá-lo. De sorte que alguns pontos, por onde passaram as duas colunas, as receberam com vivas
demonstrações de contentamento.
Enfim, seriam dez horas da manhã quando o ajudante-de-tenente atacou os revoltosos. O povo é vário como as
ondas. Não foi preciso muito para que, operando-se o quase fatal reviramento, logo se declarasse pelos vencidos.
Rompeu vivíssimo fogo de uma parte sobre a outra. Mas os matutos bisonhos, cansados e quase famintos que
constituíam as forças de Luiz Soares, não podiam resistir por muito tempo às forças frescas, adestradas no manejo das
armas e impacientes por darem tremenda lição, que trazia Gil.
Luiz Soares, em pouco tempo convencendo-se de que a sua estrela atingia o ocaso, tratou da retirada.
Esta operou-se por dentro do próprio convento do Carmo. Os frades, ainda desta vez com as armas nas mãos,
protegeram a causa dos estrangeiros.
Mas não foi pequeno o numero dos mortos e feridos que deixavam os que fugiam com medo de sua própria
sombra.
No mais aceso do combate, Francisco correra a soltar os três fidalgos que eram conduzidos por um troço
dirigido por Jeronimo Paes e seus três filhos.
- Eu nunca matei ninguém, meus senhores – disse Francisco ao bando. Mas para salvar esses homens, mato e
morro; faço tudo, contanto que lhes de a liberdade.
Miguel, ouvindo estas palavras decisivas, partiu contra ele com o facão, e Victor imitou-o. A esse momento
estavam já com o matuto algumas pessoas de Goiana, que descarregaram terríveis golpes sobre os agressores.
Aproveitando a confusão, Francisco consegue chegar-se aos prisioneiros e cortar-lhes as cordas que lhes prendiam os
pulsos. A um dá o facão, a outro a arma de fogo. Então eles investem terrivelmente. Pareciam feras soltas das jaulas.
Em poucos instantes Jeronimo cai como morto; tinha sido alvo de golpes tremendos a que não pode resistir. Os filhos,
porém, ainda que feridos, levantam o procurador do povo (Jeronimo Paes dava-se esta denominação) e fogem com ele.
João da Cunha quer persegui-los, mas de repente para, como se o mundo lhe desabara aos pés, tanto que ouviu estas
vozes de Francisco:
- Seu sargento-mór, os mascates estão vencidos. Mas o principal para nós está ainda por fazer. Sinhá d.
Damiana.
- E que é feito da senhora d. Damiana?
- Que é feito? Está no poder do principal dos mascates. Quem? Antonio Coelho?
- Sim, senhor.
- Oh! não me digas isto, Francisco. E eu ainda aqui. vamos, corramos. Mas aonde iremos? Para onde
correremos?!
Para a casa do mascate. Correram os fidalgos e o matuto como loucos pela rua afora. João da Cunha levava o inferno no
coração. Aquela triste nova dava-lhe a esgotar as fezes do cálix de amargura que bebia desde a véspera. Em toda a sua
vida nunca sentira tão profunda, tão desumana dor penetrar-lhe a alma.
Todas as portas, tanto as inferiores como as superiores, estavam hermeticamente fechadas. Do lado de dentro o
silencio era profundo. Tudo indicava que na casa não havia viva alma.
A João da Cunha, perdido em cogitações e incertezas, só faltava desesperar.
- Meu Deus, meu Deus, que hei de fazer? Onde irei descobrir o infame? Onde irei achar minha infeliz mulher?
Estiveram um momento curtindo silenciosos, de pé, a modo de privados do exercício da razão, aquela angustia
sem nome.
Súbito uma detonação, que parecia partir do interior do sobrado, veio ressoar do lado de fora.
- Estão ai, estão dentro. Matou-a o malvado, exclamou o sargento-mór. Adivinho tudo. Quis violentá-la, ela
resistiu e ele matou-a. Mas eu o matarei também. Matarei o vilão.
Lívidos, como cadáveres, atiraram-se à porta que lhes pareceu menos resistente. A coices de arcabuz,
conseguem metê-la dentro. Voam de escadas acima como quatro sombras, quatro espectros fantásticos. A claridade do
dia chegava ao interior da casa como luz crepuscular; mas aos olhos deles o que se apresentava eram trevas profundas.
Francisco foi o primeiro que abriu uma das portas, e João da Cunha o que se atirou para o interior da casa, que não
conhecia. O cheiro da pólvora e a nuvem de fuma ainda ondulante indicaram a direção que eles deviam tomar. Chegam
enfim ao dormitório do negociante. Uma voz enfraquecida fez ouvir então estas palavras:
- Não me matem, não me matem.
Aos pés do leito havia um vulto sentado e outro estendido.
- Por Nosso-Senhor-Jesus-Cristo, não acabem comigo.
- Quem és tu, miserável? Perguntou o sargento-mór.
- Era Bartolomeu, o barcaceiro. Contou tudo. Tinha estado na véspera com o negociante. Tinha concertado
esperar por ele na Borboleta; mas tendo visto os dobrões que o negociante inadvertidamente lhe mostrara,
projetou logo apossar-se deles furtivamente. Esteve na barcaça até a hora em que a sorte pareceu ser pelas
armas dos mascates; mas tanto que soube da entrada da tropa do governo, correu ao sobrado, calculando
que Coelho seria morto, ou ao menos preso. Chegando ai, fechou-se por dentro para afastar qualquer
suspeita, e forçou a burra. Quando a tampa cedeu à violência, um tiro partiu de dentro, e o feriu acima do
ventre. Era o tiro que eles tinham ouvido. Em vão procurou o dinheiro que o tinha tentado. O que
encontrou foi uma pistola presa ao cofre por oculto aparelho, ali posto intencionalmente para a fazer
disparar sobre quem o violasse. E a Borboleta?
Deve de estar ainda no porto à minha espera. Os quatro amigos atiraram-se imediatamente fora do aposento e ganharam
a rua em violenta carreira para o porto.
XXVIII
A enormidade e a iminência do perigo abateram o grande animo da senhora-de-engenho, a qual, percebendo
levantar-se diante de seus olhos o vulto horripilante da morte, não escolheu meios de fugir a esta fúnebre visão, e
deixou-se arrastar sem resistência e como sem consciência pelo mercador.
De feito, ela ouvira centenas de vozes pedir do lado de fora a sua cabeça em resgate do crime que fora aliás
praticado por seu marido; vira a casa tomada pelos amotinados, resolutos a não terem para ninguém, e muito menos
para ela, se não fosse o negociante, a menor contemplação; conhecera enfim que sua vida, posto que à sombra da
proteção dele, não se podia considerar ainda de todo segura. Então não hesitou, não refletiu. Pegou da mão que se lhe
estendia. O instinto da própria conservação impõe-se como uma fatalidade. D. Damiana não podia mostrar-se superior a
essa lei absoluta e impreterível.
Para Coelho a crise tinha chegado à solução natural e única. João da Cunha, uma vez nas mãos dos inimigos,
não haveria sair delas com vida. E o homicídio, previsto pelo mercador, não esteve longe de ser cometido nos primeiros
momentos depois da prisão do senhor-de-engenho; mas interpôs-se uma circunstancia, menos filha do acaso do que da
clemência com que o céu quis vir a seu socorro. Os filhos de Jeronimo Paes assentaram não lhe tirar a vida senão depois
de perdida a esperança de um resgate em dinheiro, por então muito em voga.
Coelho não pensou mais senão em efetuar a sua viagem para o Recife. Ai esperaria a ultima palavra dos
acontecimentos, que para ele não era duvidosa. Ai realizaria o seu sonho. Mas para que este resultado não estivesse
sujeito ao mínimo contraste, urgia deixar Goiana. Demais, as turbas achavam-se exacerbadas e podiam ter o capricho
feroz de preencher a sua vingança derramando o sangue de infeliz senhora. enfim, apresentando-se todas estas idéias ao
espirito do negociante, correu ele à casa, meteu em se todo o ouro que tinha em segredo no cofre, e dizendo a d.
Damiana que a ia recolher em lugar onde o povo não pudesse suspeitar seu homizio, encaminhou-se com ela em
direitura para a Rua-do-rio.
D. Damiana não votava desafeição a Coelho. Ele tinha sido, por assim escrevermos, seu companheiro de
infância, e tanto bastava para que a seus olhos o jovem europeu não aparecesse senão como um amigo, ou um irmão. É
verdade que, mais tarde, distancia maior se estendera entre eles dois, filha da desigualdade de condição que naqueles
tempos tanto predominava nas relações sociais e de família. Mas as tradições da primeira idade, que, como os
hieróglifos dos egípcios e os caracteres cuneiformes dos persas, que tem atravessado as eras e dizem idéias tão
duradouras como as pedras em que existem entalhados, não se apagam, senão com a morte, da imaginação ou, melhor,
do coração onde se gravaram e donde dizem a todo tempo a sua muda e eloqüente linguagem, essas tradições extintas e
sempre vivas prendiam irresistivelmente a gentil senhora-de-engenho, pelo passado, ao jovem português, como na
escritura comum, o traço de união liga o verbo com o pronome, e de duas vozes diferentes faz uma só.
Em sua consciência mais de uma vez protestou contra certas manifestações do desdém de João da Cunha para
com o negociante; e, conquanto, melhor do que ninguém, ajuizasse da profundeza do abismo que entre eles cavara a
fatalidade, nem por isso negava a Coelho certas atenções, aquelas que, pela própria fidalguia dos seus sentimentos,
entendia que devia ter para o antigo amigo da casa. Nunca deixou sem retribuição os cumprimentos e as saudações do
mercador, nem lhe recusou falas respeitosas, por ocasião de se encontrarem. Seu natural espirito de justiça levava-a até
a justificar os profundos ressentimentos de Coelho, quando compreendeu a verdadeira causa deles. ‘ Ele cuidava – dizia
d. Damiana consigo mesma – ele cuidava que poderia casar comigo. Julgava que, tendo entrada em nossas relações,
estava habilitado para prender-se à família por laços que só o parentesco e a igualdade de condição podem criar. ‘
Tais eram as idéias e os sentimentos de d. Damiana. Por isso, sentindo a gravidade do momento, ela não
escrupulisou acompanhar o negociante, única tábua de salvação que nos cruzados mares da súbita adversidade lhe
aparecia como instrumento do céu.
E antes de passarmos adiante, justo é que deixemos bem claro este ponto essencial da presente narrativa:
Coelho não era indigno da confiança que, por força das circunstancias atuais, ou por influencia irresistível de
circunstancias anteriores e remotas, depositou nele a jovem fidalga. O amor que ele lhe consagrava, era sublime e puro;
tinha origem imediata no sentimento, não nos sentidos. O português estava na flor dos anos, e seu caráter não se tinha
poluído ainda no trato das relações sociais. Nessa época da vida e com esta circunstancia, o amor é mais do que um
sentimento, é uma virtude. Tende sempre a elevar-se, e nunca a rebaixar-se. O negociante amava em d. Damiana um
ente, uma criatura, um composto de qualidades corporais e imateriais, não unicamente uma feitura plástica, uma forma
física, não obstante se acharem coligidas nessa forma todas as perfeições que ele sonhava para o seu ideal. Sua
aspiração não se limitava à posse do olhar, do sorriso, do carinho dessa criatura; ele aspirava, não menos do que a isto,
ás suas perfeições morais, à parte imaterial da pessoa humana, a essa porção do ser que não é a figura corporal, o
arredondado dos contornos, o donaire do talhe, o aveludado da face e da mão, o colorido da cútis, a vibração da voz,
mas, mostrando-se intimamente ligada com todas estas prendas não se confunde com elas, e sem se deixar ver, porque
não é visível, deixa-se adivinhar, conhecer, sentir na bondade, na dedicação, na conformidade com o sentir da pessoa
que lhe é idêntica nas inclinações, nos gostos, no estado espiritual que lhes é comum.
Certamente ele imaginava ser feliz ao lado dessa existência seleta, dessa alma que constituía a essência dos
seus desejos, das suas vaidades, do seu nobre orgulho; mas essa felicidade ele nunca a imaginou de outra forma. Por
isso, tanto que viu entre suas mãos o tesouro longamente apetecido, a única idéia que lhe passou pela mente foi a de que
cessara enfim o seu tormento e começara, pelo gozo dos bens sonhados, o resgate dos males curtidos; a idéia de,
prevalecendo-se das circunstancias, sujeitar o ente querido e alcançado ao papel de instrumento de paixões menos
dignas, essa ele não a teve então, porque não a tivera nunca. No coração do jovem português havia o afeto generoso do
amante, não os ardores animais do barregão.
Cortando pelas ruas exteriores, dando rodeios, atravessando becos desertos, Coelho chegou com a senhora-de-
engenho ao embarcadouro. A Borboleta era a única embarcação surta no rio.
Como a revolta se concentrara, deste lado a vila aparecia quase deserta. O dia estava em seu começo, mas
assim as casas de morada como as de negocio mostravam-se fechadas; e só por intervalos passavam pela frente delas os
magotes que andavam exercitando o ignóbil oficio da rapina. Vamos embarcar, senhora – disse Coelho, descendo a
margem, onde então se viam grandes mangues de basta e estendida folhagem.
- Embarcar? inquiriu a senhora-de-engenho, não sem surpresa. Embarcar para onde, Sr. Coelho?
- Senhora, o momento é grave, e não me dá lugar a refletir sobre a escolha do porto de salvamento. Correremos
á mercê das águas e dos ventos, e, uma vez longe dos perigos que vos ameaçam, pensaremos então com serenidade
sobre esse objeto.
- Que estais dizendo? tornou d. Damiana, mais pálida, e porventura mais abalada do que estava antes.
Talvez só nesse momento a sua desgraça se lhe desenhou tal qual era na imaginação, até então tolhida e
obscurecida pelo terror que, por mais próximo da morte, devera ser maior e mais intenso.
- Tencionais então levar-me para fora de Goiana? perguntou ela, com tremula e quase chorosa voz.
- Certamente, minha senhora, certamente. Goiana neste momento tem para vós sentimentos de madrasta, não
de mãe. Não ouvis aqueles tiros, aqueles ruídos sinistros, aquele vozear confuso e medonho? Eles indicam que o povo é
o triunfador, que os mascates estão senhores da vila...
- Já sei, já sei tudo isto – interrompeu ela freneticamente.
- Pois bem. O povo é exigente, e vinga-se neste momento dos nobres. Vosso marido, senhora minha, deve já
ter acabado às mãos dos populares. Pois se ele acabou, acabarei tantém eu – disse a senhor-de-engenho
soluçando.
- Não, isso nunca. Já não pertenceis nem a vós, nem a ele, observou Coelho.
- E a quem pertenço então? perguntou ela com altivez.
- O destino confiou a mim a vossa guarda, e hei de salvar-vos, ainda que a troco do meu sangue.
Sem meu marido, senhor, não quero a vida. Senhora d. Damiana! exclamou Coelho com entranhável amargura que lhe
estalara nos lábios como se fora vesícula de fel.
É o que vos digo, Sr. Coelho – repetiu a gentil senhora com a firmeza que indica as profundas convicções. Só agora,
continuou ela, só agora compreendo todo o horror da minha situação. Porque fugi eu? Porque não me deixei matar pelo
povo, ao lado de meu marido?
- Porque a sorte tinha já assentado que vós devíeis sobreviver a ele, talvez para completar uma existência que
vegeta entre as luzes e as sombras do mundo, sem experimentar outras impressões que não sejam as que as sombras,
não as luzes, despertam – respondeu o jovem negociante em tom sentido. Mas para que falais ainda – continuou logo,
como quem se reanimava ao calor de uma inspiração súbita – para que falais ainda em – uma existência que já deve
pertencer ao passado? A esta hora, senhora minha, deveis estar viuva, isto é, livre.
- Sois cruel, Sr. Coelho! – retorquiu com voz amargurada a mulher do sargento-mór. Porque trazeis ao meu
espirito este fúnebre pensamento? Houve um momento na minha vida em que cheguei a supor que em vosso coração
existia um sentimento fidalgo.
- Que quereis dizer, Sra. d. Damiana? interrogou o negociante.
Que pensei que, não obstante o rancor que tendes ao Sr. João da Cunha, e que vós explicais atribuindo-o à contrariedade
de certo afeto que vos inspirei, não hesitaríeis um só momento em salvardes do acabamento o objeto desse rancor, se a
salvação dependesse de vós e eu vo-la lembrasse com as lagrimas nos olhos, como agora faço. Vejo, porém, Sr. Coelho,
que o vosso ódio é maior do que o vosso amor, e que só a minha desgraça, esta sim não tem medida nem limite na terra.
- Pensáveis então, senhora... – retrucou o português – Que pensáveis vós? Dizei francamente a vossa idéia.
- Ah! Quereis ouvir-me? Pois bem, senhor, escutai. O que eu pensava era muito natural, e não era impróprio de
vós nem de mim. Pensava que, em vez dos sentimentos ferozes que tendes mais de uma vez manifestado, deveríeis ter
para meu marido antes benevolência e atenções respeitosas.
- Esqueceis, Sra. d. Damiana, que nenhum homem que se prezasse dignamente, beijaria jamais a mão do algoz
que lhe houvesse afogado as mais caras esperanças, que lhe tivesse destruído uma felicidade irreparável.
- Vós é que esqueceis, Sr. Coelho, o passado que devíeis ter bem presente na memória. A meu marido deveis,
não a desgraça, mas a posição de que soubestes fazer-vos digno. Sua mão generosa e amiga indicou-vos o caminho para
a vossa independência. Por muito tempo não tivestes nesta vila outra proteção, outro amparo, outro pai além de João da
Cunha. A vossa entrada nas primeiras casas, a estima que para vós tiveram os mais ricos e os mais nobres de Goiana, a
quem as devestes principalmente, Sr. Coelho, quando éreis sem relações, sem nome, e sem haveres? Não vos lembro
estas causas por magoar-vos, mas por ver se desperto em vosso coração o nobre sentimento que sempre conheci em vós
antes do fatal desastre que levantou uma muralha entre vós e meu marido – o sentimento da gratidão.
- Sra. d. Damiana, vossas palavras trazem-me terror e confusão, disse o jovem europeu, a modo de atordoado.
Seu espirito nadava em um mar de hesitações.
- Que esse sentimento acorde enfim, senhor. É talvez tempo ainda de produzir sua ação consoladora. Não vos
importeis comigo, importai-vos com o homem que um dia vos tratou como se fosseis seu filho. Correi e livrai-o do
furor dos vossos parciais. Porque tanto ódio? Porque tanta vingança?
Não pode continuar este singular dialogo, que prometia chegar a um desenlace talvez patético e imprevisto.
Bem perto dos dois interlocutores soaram vozes confusas e retintim de armas. O chão estremeceu, batido por um sem-
número de pés que precipitada carreira movia em direitura ao rio.
Afigurou-se então aos fugitivos uma visão sinistra, um desfecho medonho.
- É o povo que vem em vossa procura, Sra. d. Damiana. não percamos um só momento. Salvai-vos, senhora,
salvai-vos enquanto é tempo.
Eles tinham chegado ao pé de uma das arvores que da margem estendiam sua grande copa sobre o rio.
Perto desta arvore levantava-se um armazém, feito de tábuas, onde se fazia o embarque dos açúcares, e o desembarque
dos gêneros importados pelas barcaças, quando a maré estava cheia e elas podiam ficar ao nível da estiva do armazém,
do lado que entrava pelo rio sobre solidas estacas. Nesse momento a maré cheia dava ao rio a sua natural plenitude, e a
Borboleta, livrando-se sobre as águas banzeiras que acusavam a aproximação da preamar, estava em comunicação com
o tosco trapiche por meio de uma prancha que para ele partia do embono de bombordo. Coelho, sem perder mais um
instante, arrastou d. Damiana contra a vontade dela para dentro do armazém, e, todo preocupações e temores pela sua
salvação, indicou-lhe a Borboleta, que aparecia no fim da estiva. - Correi, senhora, entrai na barcaça, mandai atirar
dentro da água a prancha, e ordenai, em meu nome, que sigam incontinenti rio abaixo. Nada temais, que eles daqui não
hão de passar. Contê-los-hei.
Disse, e retrocedeu acesso em brio, mas pálido como um cadáver. Seu olhas fuzilava. Os músculos,
obedecendo às impressões nervosas, experimentavam súbitos estremecimentos. A terra parecia fugir-lhe sob os pés, ao
mesmo tempo pesados e céleres. - Meus amigos – gritou ele, alguns passos distante do trapiche, dirigindo-se ao magote
que vinha para seu lado, até onde quereis levar o vosso desforço? A lição satisfaz. A nobreza está vencida em Goiana.
tratemos agora de ir vencê-la no seu reduto principal – em Olinda. Não percamos tempo.
- Então, do bando que corria com as armas nuas reluzindo ao sol, um grito partiu, e não foi preciso mais,
ouvindo-o, para que o chefe dos mascates compreendesse que se enganara e que seus dias, esses, sim,
estavam contados. Ainda falas, mascate infame?!
Seguiu-se uma cena, só própria de canibais, mas que os excessos das paixões humanas estão reproduzindo todos os dias,
ainda nos centros da mais adiantada civilização. Vários soldados da tropa que chegara, e que se haviam reunido aos
fidalgos e a Francisco, ao saberem que eles vinham em demanda do negociante, de catanas desembainhadas se atiram
sobre ele e covardemente o degolam.
Ao darem de face com este repugnante espetáculo, os fidalgos estacam horrorizados. Só um deles, a cabo de
um momento de confusão, que se diria antes remorso, pode proferir estas palavras:
- E minha mulher? Onde está ela? Onde está a senhora d. Damiana?
Na Borboleta – lembrou Luiz Vidal. Corramos. Mas eis que perto deles soa um grito, que não só traz a tranqüilidade,
mas descomunal prazer ao espirito de todos.
- Aqui estou, minha gente. E vós salvo, Sr. João da Cunha! Foi Nossa-Senhora-do-rosario quem vos salvou.
Os fidalgos apertaram em seus braços a senhora-de-engenho, a cujo encontro fora Francisco o primeiro que
correra.
- Em poucas horas tudo estará acabado e pacificado – exclamou o sargento-mór. Os mascates serão vencidos,
os populares hão de ter uma rude lição.
- E até os frades também hão de ter a sua, para não serem tão audazes e metidos nas coisas do mundo –
acrescentou Luiz Vidal. E Antonio Coelho? interrogou d. Damiana, que ainda ignorava o trágico fim do negociante.
Deste estamos livres. Hei-lo ali morto, degolado – respondeu o sargento-mór, apontando para o cadáver que a poucos
passos se mostrava rodeado pela mó de soldados, agora ocupados em apanhar o ouro, que, na ocasião de cair, se lhe
entornara das algibeiras.
- Morto! Morto! Fostes cruéis, senhores! Exclamou como alucinada a senhora-de-engenho. Quem praticou
tamanho latrocínio? Oh meu Deus! Que horror!
- Não foi nenhum de nós – responderam Francisco e Filipe ao mesmo tempo.
Não foi nenhum de nós, repetiu o sargento-mór, fitando na mulher seu olhar inflamado e a modo de pasmo. Mas eu o
mataria, se fosse eu o primeiro a encontra-lo. Era um espirito danado.
- Engana-vos. Era uma alma generosa, um bom coração; era um mártir – respondeu d. Damiana em lagrimas.
Ele ia a salvar-vos, Sr. João da Cunha, supondo em perigo a vossa vida. Oh! meu Deus, por que razão as grandes
criaturas não se hão de entender melhor e formar uma companhia só na terra? Mas fujamos daqui. Não posso ter os
olhos nesta desgraça que me esmaga.
E a senhora-de-engenho foi a primeira que deu o exemplo da retirada.
Era tempo de se ausentarem todos desse ponto deserto, porque Luiz Soares, batido fortemente pelo ajudante-
de-tenente Gil Ribeiro, pelo ajudante Felipe Bandeira e pelo capitão Antonio Rabelo, demandava esse lado para
escapulir-se com sua gente. Conseguiu-o, com mais quinhentos, entre Paraibanos e portugueses.
Enfim, segundo anunciara o sargento-mór, algumas horas depois Goiana estava pacificada.
Mas era contristador o aspecto que apresentava, como facilmente se imagina. O saque tinha deixado nas casas
vestígios profundos de sua passagem fecunda em ruínas e desastres. O sangue manchava a terra, berço de tantos heróis
ilustres e afamados. No Pátio-do-Carmo, de mistura com vários cadáveres pertencentes aos invasores, viam-se alguns
das forças legais, e muitos da escravatura de João da Cunha.
Jeronimo Paes, os filhos, Belchior, e outros proeminentes vultos do partido vencido tinham sido presos, e daí a
três dias seguiam para Olinda, no meio da tropa vitoriosa de Gil Ribeiro. Paes mal podia consigo. Recebera durante a
luta nove tiros, e inumeráveis cutiladas na cabeça.
Conta-se que, por ocasião de lhe darem na prisão a noticia da morte de Coelho, dissera ele o seguinte, formais
palavras:
- Se desta não morrer, hei de vingar-me ainda de João da Cunha. O que ele devia a Antonio Coelho há de pagar
a mim, quando tivermos de ajustar as nossas contas. Estão muito anchos com o sucesso, esses infames mazombos. Já
pensam que os mascates se acabaram de uma vez. Estão enganados. Hei de ver ainda João da Cunha e Cosme Bezerra
correrem as ruas de Goiana, amarrados com cordas pelas minhas mãos, como se fossem negros fugidos.
Estas palavras foram proféticas. Mas não antecipemos acontecimentos que tem lugar próprio na continuação
desta historia.
Diz-se que Zefinha faleceu a cabo de algumas semanas, depois do lastimoso fim de Antonio Coelho, e da
prisão do pai e dos irmãos. Atribuem seu falecimento à profunda impressão que produziram nela tão estranhos e cruéis
golpes.
Porque não havia de ser assim?
Era uma excelente alma a rapariga.
XXIX
Lourenço tinha tirado para o engenho à desfilada, e antes de chegar ai nuvens de fumo já lhe tinham indicado o
que ele suspeitava, pelo que fora vendo ao sair da vila. Em seu trajeto do Cajueiro para esta, os bandoleiros de Pedro de
Lima tinham posto fogo nos canaviais, e casas fechadas ou desamparadas, que ardiam agora como se a terra por ali, na
combustão primitiva, lhes houvesse comunicado o incêndio.
- Não há que duvidar - disse o rapaz. Andaram por aqui os ladrões. Estiveram no engenho, e quem sabe o que
por lá fizeram?
Como tinham cortado quase por dentro do mato os bandoleiros, pode o rapaz chegar ao Cajueiro sem com eles
se encontrar; e cedo testemunhou com seus próprios olhos, dando de face com a casa de Vitorino, o estrago, o
desbarato, as ruínas, que ai deixara a horda sem freio.
Das portas algumas tinham sido arrancadas, outras postas por terra. Só as janelas estavam nos seus lugares.
Lourenço não pode fugir de entrar, não obstante sua pressa em chegar à casa grande. O estado interior da
habitação do almocreve não era mais animador do que o seu estado exterior. Tamboretes, caixas de madeira, giraus de
varas, potes, estavam despedaçados e destruídos. Lia-se ali só perversidade, porque nesses moveis e vasilhas ninguém
suspeitava a existência de objetos que pudessem tentar a cobiça, e explicar até certo ponto a sua violação ou
arrombamento. E para onde teriam fugido as mulheres? inquiriu de se para se o matuto. Ao montar de novo, o espirito
cheio de pesar e incertezas, lançou Lourenço as vistas casualmente ao chiqueiro, onde Joaquina tinha o cevado, que
devia dar uma fartadela à família no dia de S.Thomé. A sangueira, que cobria o chão desde o chiqueiro até a meia-agua
de palha, a cuja sombra as mulheres lavavam a sua roupa, fazia certo que o cevado passara pela execução capital antes
do dia aprazado, e que se tinham aproveitado dele, não a família, que devia encher de alegrias, mas os salteadores e
assassinos. O banco de lavar roupa, coberto de sangue, e aos pés dele uns restos de palha queimada indicavam que ali
mesmo se praticara o cruento sacrifício.
Triste e colérico ao mesmo tempo, Lourenço prosseguiu o caminho.
Adiante apareceu-lhe a casa de Manoel das Dores, matuto muito pegado com Victorino, de quem se dizia
contra-parente. Este sujeito era solteirão do lugar. Vivia muito metido consigo mesmo, e só uma vez ou outra surgia
sem ser esperado em casa dos vizinhos.
Ainda de longe o rapaz reconheceu que por ali passara também o devastador soão. As portas, às escancaras,
deixavam à mostra a destruição efetuada dentro. Não havia ficado ai pedra sobre pedra. Pela estreita sala viam-se
espalhadas esteiras e roupas velhas. O chão fora revolvido à ponta de espada ou de ferro-de-cova. Praticando assim, os
salteadores deixavam manifesta a sua intenção. Tinham procurado dar com o mealheiro em que se dizia guardava o
velho a pratinha que podia ajuntar.
- Oh meu Deus! Não vejo ninguém. Onde se meteu esse povo? Nem morador nem negro do engenho! Parece
que todos fugiram para o mato com medo dos ladrões.
Estas palavras escaparam dos lábios de Lourenço como uma dor que não cabia no coração.
Adiante da casa do velhote, era a de Sabino, em cuja companhia morava Saturnino. Do lado de fora, ao pé da
porta da frente, via-se um volume imóvel, no meio de uma poça de sangue, por cima do qual esvoaçava um enxame de
moscas. Era o cão de Sabino, que por ser fiel defensor da morada de seu senhor, e ter feito fortes e repetidas investidas
sobre os assaltantes, para impedir que entrassem, recebera uma bala, que o deixou por terra, com a cabeça aberta e a
língua a nadar sobre sanguinolento escumeiro.
Começou a impressionar-se Lourenço com esta solidão, este deserto cruel em que só se lhe deparavam indícios
de atrocidades e carnificinas, de fraqueza e terror.
Tinha já descoberto o oitão da casa grande e ia passar para ela por entre a capela e o pomar, quando um vulto
se lhe apresenta do lado dos canaviais. Afirmando a vista, reconheceu Marianinha.
Correu para ela tomado de súbita alegria. As antigas reservas e aborrecimentos não lhe lembraram nesse
momento. A presença da moça fora como um raio de luz que atravessara as densas sombras que enchiam o espirito do
rapaz.
- Você por aqui, Marianinha?! Estou cansado de ver solidão, estragos e sangue. Onde está sua gente? Não ouço
nenhum rumor, nem vejo ninguém na casa grande. Que quer dizer isto?
- A primeira resposta da moça foram as lagrimas. Depois, em rápidas palavras, ela contou toda a
desgraça, ou antes a serie de desgraças de que o engenho fora teatro momentos antes.
- Ouvindo a fúnebre narração, Lourenço não soube o que dizer por alguns instantes. Ficou a modo de
privado, do uso da razão. O pesar, a cólera, o desejo de vingar-se o tiveram entre o idiotismo e a loucura.
O estado melindroso de suas faculdades aumentou ainda mais, quando ele soube que no engenho não havia
ninguém com quem contar para ir em socorro dos que estavam precisando dele na vila. Alguns corpos sem
vida era só o que restava das forças que tinham ficado para defesa da casa grande. Os negros que no
combate não tinham caído mortos ou feridos, esses haviam fugido para o mato, determinados a não
voltarem segunda vez para a escravidão.
- Para contar o acontecido, Marianinha parara ao pé da ingazeira centenaria que se levantava de um dos
lados do caminho, e que com outras formava uma como galeria por cima do braço de rio que cortava por
dentro do cercado. Foi ai, na sombra e no retiro, que davam mais solenidade ás suas palavras, mais
gravidade a seus prantos, que ela desfiou o rosário dos episódios de que tinha conhecimento. Quando
chegou ao da morte de Victorino, a pobre rapariga entrou a chorar como louca.
- - Vamos para fora, Marianinha, disse Lourenço, vencendo a custo sua comoção. Quero ver sua mãe.
Vamos, sim, disse a moça. Eu tinha vindo em busca de Saturnino para ajudar minha mãe...
- Ajudá-la a que...?
Você vai já saber, Lourenço – respondeu a moça, deixando-se banhar cada vez mais em suas aflitas lagrimas. Do lado
de fora da galeria, à luz livre da manhã, luz graciosa e tépida que parecia um sorriso de noiva, luz que patenteava os
mínimos acidentes da natureza, pode Lourenço ver melhor Marianinha.
Trazia ela os cabelos revoltos, avermelhados os olhos de muito chorar, crestada a macia pelúcia das faces, que
não obstante mais acesas se mostravam de natural rubor. Mas esses olhos, posto que chorosos, tristes e afligidos, eram
ainda tão matadores, tão ternos, que parecia concentrarem em se toda a suavíssima beleza, esparzida pelas várzeas,
pelos vales distantes, na luz que caia do céu como chuva de ouro, nas flutuações da folhagem, na frescura das vastas
sombras, atiradas como leitos de paz e tranqüilidade no meio da solidão rica de esplendores e cantos.
Entraram na capela pela portinha da sacristia.
Ao penetrar na estreita e sombria nave, o espetáculo que a Lourenço se mostrou, foi o seguinte:
No meio da igreja, ao lado de um monte de terra fresca, jazia um cadáver; era o de Victorino. Entre esse
cadáver e o monte, uma mulher tirava do chão onde estava abrindo uma cova, pás de terra, que atirava sobre a que havia
fora. Era Joaquina.
Lourenço quase a não conheceu, tão demudado estava o resto da infeliz. A dor envelhecera-a em poucas horas.
A dor tem mais violência e rapidez na sua obra do que o próprio tempo.
- Joaquina só se deixava ver da cintura para cima. A outra parte do corpo estava metida na cova. Os
cabelos, em sua maior parte embranquecidos pelas necessidades usuais da vida do pobre, e agora pelo
sopro da adversidade que lhe enrelegara os últimos alentos, caindo sobre as faces murchadas e macilentas,
davam-lhe uma feição que gerava vexame em quem a via.
- Sem dizer uma palavra sequer, Lourenço que aprendera de Marcelina a Ter para os cadáveres pias
demonstrações, ajoelhou-se aos pés do corpo de Victorino, rezou em silencio sua oração, e, erguendo-se,
aproximou-se de Joaquina, tomou-lhe a pá das mãos e pôs em lugar dela a prosseguir o ultimo trabalho
que o morto exigia dos vivos na terra. A mãe e a filha, mudas e taciturnas, acompanharam com suas
lagrimas as que o rapaz verteu, abrindo o leito final do seu vizinho, amigo de seu pai e quase seu parente, a
quem votava estima e prestava respeito.
- Chegou enfim o momento de ser entregue à sepultura o corpo do finado. O pranto das mulheres
redobrou. Marianinha fazia exclamações de cortar o coração. Joaquina carpia-se inconsolável, envolvendo
com o nome do marido o da filha mais velha que lhe fora arrebatada momentos antes da perda do
primeiro. A mão tremula, o braço hesitante, começou Lourenço a impelir para dentro da cova, depois de se
haver sumido nela para sempre o seu mudo habitador, com a pá que lhe pesava como barra de ferro, a terra
acumulada nas bordas. A tristeza era profunda, solene o momento, indescritível o espetáculo. Que será de
mim sem meu marido? exclamou Joaquina soluçando.
Que será de mim sem meu pai? acrescentou Marianinha, desfazendo-se em lagrimas e suspiros. Lourenço tinha
posto na cova a ultima pá de terra.
Sua mão descaíra sobre o cabo do instrumento.
Por impulso irresistível de espirito, ele voltou-se para as mulheres, ouvindo aquelas palavras, e disse-lhes:
- E onde estão os outros filhos de Deus? Onde está meu pai? Onde está minha mãe? Onde estou eu? Deus é
Deus em toda a parte, e quando tira um arrimo ao necessitado, já tem posto outro diante dos olhos dele.
Ouvindo estas palavras, Marianinha sentiu descer-lhe ao intimo do coração um como bálsamo reparador e
divino. Ergueu os olhos ao rapaz. estavam inundados de um clarão suave. Havia ali talvez um agradecimento que lhe
dirigia pela doce esperança que, depois de tantas contrariedades, penas e agonias, muitas delas ocasionadas por ele
próprio, ressurgia agora, posto que banhada em prantos, no solo crestado, que de repente se tornava fresco e fecundo ao
calor dessa bendita consolação.
Nesse momento ouviram bater a porteira do engenho, e logo após o estrepito das pisadas de um animal que
corria à toda a brida. Lourenço lança-se à porta da igreja, a fim de ver quem era o cavaleiro, e dá com olhos em
Marcelina.
O conforto no coração de Joaquina e de Marianinha aumentou com a chegada da cabocla, e especialmente
depois que souberam que Francisco estava na vila, e que os mascates naquele momento deviam ter já perdido a mão.
Lourenço quis voltar imediatamente a Goiana, mas Marcelina não consentiu que o fizesse, dizendo-lhe que em
pouco tempo Francisco se acharia com eles.
De feito, não se meteram duas horas que o matuto se reuniu à família, trazendo a importante nova da vitoria.
Para Marianinha a vitoria maior foi a que o matuto exprimiu nestas palavras:
Não chores, Marianinha. Perdeste teu pai, mas ali tens teu marido. E indicou Lourenço que, com os olhos pregados na
imagem do Crucificado, se mostrava nesse momento diante do altar, inteiramente alheio ao que se falava a seu lado.
Eis em que estava absorvido o rapaz.
Quando viera de Goiana horas antes, encontrara caído, entre a casa de Victorino e a de Manoel das Dores, um
bandoleiro de Pedro de Lima à sombra de uma arvore. O malfeitor tinha passado a noite em claro, e na adega do senhor-
de-engenho fora do que mais entraram pelo vinho generoso, o qual, dando-lhe na fraqueza, o impossibilitou para
preencher o seu oficio naquele dia. Em uma das mãos tinha ainda um saco, de que marejava sangue.
Lourenço saltou do cavalo abaixo, tirou o saco das mãos do dono que estava ressonando, e abriu-o para ver o
que continha. Era a cabeça do cevado de Joaquina, com que o salteador tencionava aumentar o almoço que por eles
devia estar esperando, segundo calculava, em casa de Coelho ou de Paes.
Teve então o rapaz a idéia de tomar uma vingança original. Com cordas do seu cavalo suspendeu por baixo dos
braços o bandido ao alto da arvore. Ligou um pé ao outro, para que não tivesse meios de passar as pernas no tronco, e
desprender os braços, que atou pelos pulsos na altura da cabeça da vitima, porém afastados. Enfim o todo figurava uma
crucificação.
Planejava Lourenço queimar vivo o infeliz. Além de ser de seu natural mau, acabava de ver os males trazidos
pela horda de que o malfeitor fazia parte, à inofensiva propriedade de pessoas de seu conhecimento e estima.
Apanhara-o mesmo com o roubo na mão, praticado na casa a que mais se sentia preso por gratos elos dentre todas as
casas das vizinhanças. Enfim, vinha da vila trazendo o coração repleto de fel e chama pelo que ai faziam desde a noite
anterior os companheiros do malfeitor. Por tudo isso não hesitou em levar a efeito a abominável inspiração do seu ódio
e da sua maldade. Quem o visse então, o acharia outro do que era. A brandura de coração, obra de Marcelina, tinha
cedido o lugar, que não era ainda exclusiva propriedade sua, à paixão animal, que o acompanhava do berço. A educação
pode muito, quando ajudada de muitas lições e exemplos e ao cabo de tempo bastante, converter, pelo processo que em
fisiologia é ainda um mistério, o espinho original em rosa filha do artificio, da delicadeza e da perseverança.
Como tinha pressa, Lourenço deixara ai bem segura a sua presa, calculando sujeitá-la ao repugnante suplicio
depois de vencidos os inimigos.
Agora, porém, casualmente erguendo as vistas ao crucificado, lembrara-lhe a crucificação, de que um momento
o tinham feito esquecer-se os últimos acontecimentos.
Francisco aproximou-se do rapaz, bateu-lhe no ombro e perguntou-lhe a causa do seu enleio.
- Vosmecê não viu suspenso na gameleira do caminho o cabra que matou o porco de sinhá Joaquina? tornou
ele.
- Vi, sim. Sabes quem era? Leonardo, sobrinho de Gonçalo Ferreira. Quem foi que lhe fez aquela crueldade?
Coitado! Por um pouquinho não morreu.
- Pois eu estava agora mesmo pensando em ir acabar de matar aquele ladrão, aquele assassino.
- Quem? Tu, Lourenço?
- Eu mesmo, sim senhor.
- Não digas isto. Estás já um homem e deves pensar melhor. Até onde quererás levar o teu mal natural?
Mas então eu não devia ter feito o que fiz? o ladrão não botou portas abaixo, não pôs fogo nos canaviais e nas casas dos
outros, não tirou o que não era seu?
- Fez tudo isso, mas tu não és juiz, não és Deus para julgar os homens.
Eu pensei – replicou o rapaz com ironia – que qualquer homem podia por suas mãos vingar-se de um malfazejo, matar
um malvado que tivesse tirado a vida a muita gente. Estás enganado. Nem eu te quero para palmatória ou espada do
mundo. Sabes o que fiz quando vi o pobre gemendo e esperneando, pendurado, sem saber o que fazer para soltar-se?
subi-me ao pau, cortei as cordas e disse a Leonardo que corresse, que fugisse para não cair no poder dos soldados do
ajudante-de-tenente. Foge dessas maldades, Lourenço, foge delas. Deus não há de permitir, por esta hora em que estou
falando, que pratiques ainda ações como essa. Olha. Eu te quero para bom, e não para mau. Quero-te para servires de
arrimo aos teus na velhice. Quero-te para casares com esta pobre menina, que hoje mais do que nunca precisa de quem
olhe por ela, e que está morrendo de te querer bem.
E indicou a filha de Victorino.
Lourenço, que tivera os olhos postos no chão durante todo o tempo em que Francisco discorria com tão boa
moral, levou-os à cova, a Marianinha, ao Crucificado, ao templo – morada de Deus, seja o templo católico, judaico,
chinês ou árabe – e não disse nada.
Marianinha cruzou os dela, ainda rasos de lagrimas, com os do rapaz, e enrubesceu.
Mais corada não se mostra fresca rosa de maio, aljofrada pelo orvalho da madrugada.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo