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CAPÍTULO IV
Segundo as tradições mais correntes e autorizadas o Cabeleira trouxe do seio
materno um natural brando e um coração benévolo. A depravação, que tão funesta
lhe foi depois, operou-se dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta
ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer os seus
belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a uma
máquina de cometer crimes.
Como é possível porém que se houvesse abastardado por tal forma a obra
que saiu sem defeito das mãos da natureza ? Como se compreende que uma
organização sã se tivesse corrompido ao ponto de exceder, no desprezo da espécie
humana, a fera cerval que se alimenta de sangue e carnes fumegantes, não por uma
aberração, mas por uma lei da sua mesma animalidade ?
É que a mais forte das constituições, ou índoles, está sujeita a alterar-se
sempre que as forças estranhas, que atuam sobre a existência, vêm a achar-se em
luta com suas inclinações. Por mais enérgicas que tais inclinações sejam, não
poderão resistir a estas três ordens de móveis das ações humanas — o temor, o
conselho e o exemplo — , que formam a base da educação, segunda natureza,
porventura mais poderosa do que a primeira.
No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo
vivo e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espírito de religião que a
caracterizava. Em contraposição porém a este salutar elemento de edificação, do
outro lado da criança achava-se Joaquim, não só naturalmente mau, mas também
obcecado desde a mais tenra idade na prática das torpezas e dos crimes.
Boa mãe era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastado pela
ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado a ser o
primeiro algoz do próprio ente a quem dera a existência ?
A mulher é tanto mais forte, e a sua influência direta e decisiva na formação
dos costumes, quanto mais puro é somente uma providência — sobretudo, ambiente
do meio social onde ela respira, e esclarecidos são os entes com quem coexiste.
Colocada em um tal centro, a mulher não é somente uma providencia — sobretudo,
uma divindade. As suas forças elevam-se à altura das potências de primeira ordem,
e ordinariamente são potências triunfantes, onde quer que seja o mundo moral, não
um caos, mas uma criação grandiosa e harmônica, em conformidade às leis da
estética cristã e às altas conquistas da civilização que possuímos. As suas
qualidades delicadas, fontes de grandezas ímpares, tornam-se porém nulas ou são
vencidas sempre que entram em luta com a ignorância, com o vício, com o crime.
Infelizmente para o Cabeleira, grande animo que poderia ter vindo a ser uma
das glórias da pátria se a sua bravura e a sua firmeza houvessem servido antes a
causas nobres que a reprovados interesses e cruéis necessidades, sua mãe dócil,
posto que ignorante, de bonitas ações, posto que nascida de gente humilde, não só
não pode exercitar no infeliz lar a ação benéfica que à esposa e mãe reservou a
natureza, mas até foi, como seu filho, uma vítima, não menos do que ele digna de
compaixão, um joguete dos caprichos e instintos brutais daquele a quem ela havia
ligado o seu destino, não para que fosse o seu tirano mas para que a ajudasse a
carregar a cruz da pobreza.
Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira não estava
destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os maus conselhos e os péssimos
exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai converteram seu coração,
acessível em começo ao bem e ao amor, em um músculo bastardo que só pulsava