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Por sua progressão e conseqüente marcha para o desfecho, tem o soneto alguma
semelhança com a obra dramática, desde que se considerem os dois quartetos como a
exposição, o primeiro terceto como núcleo e o último como remate. (Dorchain apud
Moisés, s/d, p. 84).
Após o exemplo de um poema longo (Monólogo de uma sombra) e de um curto (O
morcego), vejamos agora um exemplo de um outro poema longo: As cismas do destino. Um dos
momentos mais significativos de Augusto dos Anjos, As cismas do destino – poema já
mencionado nesta pesquisa em algumas ocasiões – adquire progressivamente, ao longo de alguns
anos, a forma final que seria publicada no Eu. Já em 1908, a publicação em periódico de suas
primeiras quadras provoca fortes impressões iniciais.
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Os versos do poema ilustram “o destino
do homem cansado, sofredor e decadente, presa dos vícios na alma e no corpo” (Carvalho apud
Magalhães Júnior, 1978, p. 185). O exame de As cismas do destino requer uma aproximação
traz uma ambientação inicial, mas em tom bem distinto (menos condensado) daquele empregado por Augusto em O
morcego. Talvez porque, não obstante “morcego” e “bruxa” pertencerem ao mesmo domínio simbólico (vôo
noturno, impureza demoníaca), a bruxa drummondiana seja habitante imemorial do quarto do poeta, enquanto que o
morcego de Augusto surge para devassá-lo, para violentar seu repouso breve e suspeito. Se o poeta do Eu quer
expulsar a pauladas o invasor, tendo em vista sua presença indesejada e assustadora, Drummond acolhe a “presença
agitada” da bruxa enquanto algo interditado que se apresenta “exalando-se de um homem”. Ambas as figuras,
morcego e bruxa, são avaliadas em sua porção de humanidade (pelo que de humanidade lhes falta e lhes é próprio):
em Drummond, a bruxa “não é vida humana”, ainda que seja “confidência”; em Augusto, o morcego nasce de um
ventre desconhecido, mas é humano enquanto “Consciência”. Há, contudo, uma marcante distinção, quase
ilustrativa da distância que separa a índole poética dos autores: em Drummond a bruxa não é vista (“E sinto a
bruxa”) como “simplesmente” bruxa, mas como “ruído”, sinal de “vida”; em Augusto o morcego é a “Consciência
Humana”, esse “feio parto” que tudo quer ver e que é, ao mesmo tempo, intensamente visto (“E olho o teto. E vejo-o
ainda, igual a um olho, / Circularmente sobre a minha rede!”), ainda que sua invasão seja paradoxalmente
“imperceptível”, sutil.
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Comportamento usual adotado não apenas por Augusto com o intuito de divulgar sua poesia, a publicação de
trechos de poemas e poemas inacabados em periódicos deu vazão às primeiras experiências que culminariam no Eu,
em 1912. Vale lembrar que, a rigor, segundo Moisés (2001, p. 77), o termo “periódico” não se aplicaria no Brasil até
1808, ano da publicação do poema augustiano. Referindo-se a períodos anteriores a 1808, a expressão é empregada
livremente em outros momentos deste estudo, como mero sinônimo de divulgação impressa de distribuição
irregular, embrião do futuro “periódico”. Especialmente sobre As cismas do destino, Magalhães Júnior (1978)
dedica-lhe todo um capítulo de sua obra, cujo conteúdo inclui um exame das variantes. Na ocasião, o intérprete
destaca o longo comentário do poeta e folclorista José Rodrigues de Carvalho, cujas primeiras linhas são:
Acabo de ler as “Cismas do destino”, de Augusto dos Anjos. Qual a impressão que me
ficou, não sei, tal o turbilhão de secretas emoções que me dominam. Há através
daqueles versos, rijos, confusos, frios e ilógicos, às vezes, a consciência misteriosa de
um mundo artístico e filosófico, que eu pressinto existir, mas que não me é dado
estudar (Magalhães Júnior, 1978, p. 183-184).