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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
KITARENTSE
PESSOA, ARTE E ESTILO DE VIDA ASHANINKA DO OESTE AMAZÔNICO
PETER M. I. B. BEYSEN
2008
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2
KITARENTSE
PESSOA, ARTE E ESTILO DE VIDA ASHANINKA DO OESTE AMAZÔNICO
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural)
ORIENTADORA: PROF. DR. ELSJE MARIA LAGROU
CO-ORIENTADOR: PROF. DR. MARCO ANTONIO GONÇALVES
RIO DE JANEIRO
2008
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4
Beysen, Peter M. I. B.
Kitarentse:p Pessoa, arte e estilo de vida Ashaninka (do Oeste Amazônico)/
Peter M. I. B. Beysen – Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2008.
325f. : il.: 29,7 cm
Orientadora: Elsje Lagrou
Co-Orientador : Marco Antonio Gonçalves
Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – UFRJ/IFCS/ Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia, 2008.
Referências bibliográficas: f. 330-340, Glossário: f.: 340-342
1. Ashaninka. 2. estética. 3. antropologia da arte. 4.etnoarte. 5. corporalidade.
6. construção da pessoa. 7. estilo de vida. 8. agência. I Lagrou, Elsje II
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia. III. Título
5
Resumo
Esta tese aborda a estética minimalista dos Ashaninka do oeste amazônico a partir
dos objetos fabricados e sua relação com desenhos, corpos e temas míticos que se
organizam ao redor de dois grandes eixos em torno dos quais gira a cosmovisão Ashaninka:
a procura pela imortalidade e a fragilidade do amor. O belo consiste no equilíbrio entre o
pensar (o estilo de vida Ashaninka é marcado pela observação e pela reflexão) e o fazer,
onde a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o modo como se
constituiu a pessoa Ashaninka. É a força latente que se acarinha, constituindo esta o ideal
da estética da arte corporal.
Palavras chaves: Ashaninka, estética, antropologia da arte, etnoarte, corporalidade,
construção da pessoa, estilo de vida, agência.
Abstract
This doctoral thesis approaches the minimal art of the Ashaninka indians of the
Western Amazon, starting from their produced objects and the relation between those
objects and designs, bodies and mythical themes. All these items organize themselves
around two major axes that orient Ashaninka cosmovision: the search for imortality and the
fragility of love. Beauty consists in the balance between thought and action (the Ashaninka
lifestyle is marked by observation, meditation and reflection), where its history of warfare
always had a function as an ever present background for the manner in which the
Ashaninka self is created. The esthetic ideal of Ashaninka body art is the desired latent
hidden force.
Keywords: Ashaninka, Aesthetics, Anthropology of Art, ethnoart, body, personhood,
lifestyle, agency.
6
Comecei a viajar, não tanto pelo desejo de fazer pesquisas
etnográficas ou reportagens, mas por necessidade de distanciar-
me, de libertar-me e escapar do meio em que tinha vivido até
então, cujos preconceitos e regras de conduta não me tornavam
feliz...”
Pierre Verger
7
ÍNDICE
Agradecimentos, 9
Introdução, 11
Etnografia da cidade, 15
Etnografia das comunidades, 24
O dia na comunidade, 31
Capítulo 1. Dos objetos, da Arte: Uma introdução conceitual, 35
Dos objetos e suas significações, 35
Uma introdução conceitual a Antropologia da arte e a Etnoarte, 50
Capítulo 2. A construção do coletivo Ashaninka, 60
Aproximando: localização, população, língua, 60
História da guerra e da inimizade, 64
Capítulo 3. Kitarentse e seus complementos, 77
A Técnica de tecelagem, 77
Txoxiki, 90
Aximaierentse e kewotawontse, 115
Wanenka, 120
Tatanentse e matarentse, 124
A bandana, o xale e a bolsa, 131
Cachimbo, 138
Capuz, 142
Motivos kitarentse, 143
Capítulo 4 A despedida dos deuses e a odisséia contínua pela imortalidade, 156
Nomen est omen: Hananeri-Nawireri, 156
Tirando as “roupas” velhas, 158
Contar “histórias, 178
A mulher desobediente e o nascimento da morte, 182
Nawireri, contado por Hananeri, 188
Kamarãpi: sonhar contra o dilúvio e o fogo apocalíptico, 196
Controlar o fogo, 201
O deus que ficou: Inka, 203
Em busca da imortalidade: a odisséia de Hananeri para encontrar Inka/Inkra,
211
Ayahuasca, passeando com os deuses através do arco íris: ainda a busca pela
imortalidade, 215
Xawiri, o primeiro que bebeu ayahuasca e que virou imortal, 219
Sexo com cobras: ainda sobre o arco-íris, 227
8
Roupas pretas e a primeira Ashaninka que foi morar entre as cobras, 229
A origem da cobra e a origem da tecelagem, 238
Capítulo 5. Pusanga: amor e guerra, 262
A lógica da magia amorosa, 265
Amor Ashaninka: remédio e doença, 269
Pusanga: o amor e seus motivos, 294
Kompero e upempe,294
Konoyo: A devoração de pusanga, 300
O olhar da cobra, 305
Emoções encaixadas, 308
Tsipana, 313
Pusanga e pusanginari, 315
Uma conclusão: o poder das sereias na odisséia de Hananeri em busca da
imortalidade, 323
Bibliografia, 330
Glossário, 340
9
Agradecimentos
O agradecimento deveria ser uma pagina branca na tese: todos que apoiaram o autor
poderiam assim escrever seu próprio nome no lugar. Gostaria de agradecer tantas pessoas
com o risco de mesmo assim equecer alguns que resolvi manter a lista bem curta.
Percorrer um programa de doutorado não é algo que se faz ou que se consegue fazer
sozinho. No curso dos últimos anos, tive o privilégio e a emoção de contar com o apoio
incondicional de algumas pessoas para poder vencer cada etapa. Gostaria de agradecer
especialmente a minha orientadora Els Lagrou e o meu co-orientador Marco Antonio
Gonçalves: cada segundo, o tempo que vocês investiram em mim significa mais para mim
do que eu possivelmente poderia explicar. O mesmo vale para a fotógrafa e assistente de
pesquisa Sonja “Antaro” Ferson, minha esposa: todas as fotos nesta tese são da autoria dela.
Agradeço ao CNPq (Centro Nacional para Pesquisa) pela bolsa de doutorado. O
corpo docente do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do IFSC:
especialmente os professores Yvonne Maggie, Maria Rosilene Barbosa Alvim, Regina
Novaes, Maria Laura Viveiros de C. Cavalcanti e Emerson Giumbelli. Agradeço
igualmente o corpo técnico-administrativo Claudia de Jezus Vianna e Denise Alves da
Silva pelo apoio.
Para, entre outras coisas, a inspiração e as dicas valiosas: Elvira Luisa Belaunde,
Scott Head, Vania Cardoso, Anne-Marie Colpron, Rafael Bastos. Durante minha passagem
por Paris: Jean-Pierre e Bonnie Chaumeil do CNRS (Centre Nacional de Recherche
Scientifique).
Agradeço a equipe do Museu do Sambaqui (Joinville, SC) que me encaminhou no
rumo certo quando cheguei ao Brasil.
Aos colegas e amigos desta longa jornada: especialmente Mylene Mizrahi e Walter
Goldfarb, Pedro Paulo, Monica Dionísia e Theresa Domingues, Eliana Madeira e Maurício
Soares Leite. Adriana Romana corrigiu o copião desta tese em tempo recorde, por esta
ajuda generosa serei grato para sempre.
No Acre tive a honra de receber o apoio de lendas vivas como o líder dos
seringueiros, Antonio Macedo (atualmente na FUNAI de Rio Branco) e o pessoal da
FPEARE (Frente para a proteção etno-ambiental do Rio Enviro): Fransisco Meirelles e sua
10
esposa Theresa. Agradeço a sua filha Paula (por ter cuidado das minhas feridas infectadas).
Agradeço especialmente outra lenda viva, o secretário dos povos indígenas no Acre,
Francisco Pianko, ele mesmo um Ashaninka. Também meus agradecimentos ao seu pai
Antonio Pianko e sua esposa Piti e as irmãos Diene, Isaac, Bebito e Wenki Pianko, que me
receberam durante um mês no Rio Amonia. Sem o sinal verde de vocês este trabalho nunca
teria sido escrito.
Obrigado a todos que “fizerem a minha cabeça”, e, last but not least, aos Ashaninka
do Rio Envira que nos receberam em suas casas, que nos alimentaram e onde moramos,
entre idas e vindas, durante mais de um ano. Especialmente as pessoas das comunidades
Riozinho, Simpatia e Bananeira nas pessoas de Hananeri e Tenoria, Carijó e Horia,
Ateringa, Antxari, Raimundinho, Yomanoría, Xawio, Julieta, Tanta, Kokonya, Matxow,
Caxo, Matxontse, Tapi e Winoya: Que possam vencer qualquer guerra que achem
necessário enfrentar. Asheninka kameta!
11
However bitter the lessons of its history, the Amazon moves men to dream.”
(Brown and Fernandes 1991, p.54).
Introdução
Esta tese pretende apresentar a estética minimalista dos Ashaninka. Os Ashaninka,
como a maior parte dos artistas, não gostam de falar sobre sua arte (Geertz, 1983,
1998). E, tendo em vista que sua arte é sua vida, os Ashaninka não gostam de falar
sobre sua vida. Minha entrada neste universo foi marcada pelo silêncio, pelo que
fora apenas sugerido. Meu primeiro contato com sua estética aconteceu, portanto,
através da observação.
As pinturas corporais são pessoais e somente quem as fez sabe o que
significam. O mesmo vale para os motivos escolhidos para serem pintados nos
kitarentses, a roupa que marca seu estilo de vida. Minha chegada foi paulatina e
nada evidente. Os Ashaninka não recebem seus visitantes de braços abertos. Os
curiosos são testados antes de serem aceitos. E foi com discrição que fomos, aos
poucos, sendo permitidos nas suas vidas.
O estilo de vida Ashaninka é marcado pela observação e pela reflexão. As
reações interpessoais são, no dia a dia, muito contidas e raramente se escuta alguém
levantar a voz. A vida oscila entre dois extremos, o controle emocional cotidiano
versus o confronto emocional durante as festas do piarentse.
Todas as noites a família se reúne para meditar, para estabelecer contato com
os seres invisíveis através da concentração, para refletir sobre o dia seguinte e sobre
a vida. Homens, mulheres e crianças participam deste longo ritual de meditação.
12
Este ritual pode se iniciar antes do cair da tarde. Assim que se acende o cachimbo e
se começa a mastigar oxi ninguém mais profere uma palavra. Deste modo o ethos do
silêncio permeia grande parte do tempo passado com os Ashaninka.
Foi através de perguntas em torno dos objetos fabricados pelos Ashaninka
que me aproximei deles e de sua visão de mundo. Somente a partir do momento em
que seus mitos de origem me foram contados, os objetos começaram a me revelar
seu sentido. Aos poucos fui percebendo a relação entre objetos, desenhos, corpos e
temas míticos que foram se organizando ao redor de dois grandes eixos em torno dos
quais, por sua vez, gira a cosmovisão Ashaninka: a procura pela imortalidade e a
fragilidade do amor. Pode-se dizer que toda a arte Ashaninka trabalha estas duas
grandes questões: como chamar para perto de si a pessoa amada, e como vencer a
morte e adquirir longevidade, mantendo as doenças à distância.
Uma das espécies que mais agrega em torno de si estas duas capacidades
agentivas, a capacidade de atrair e a capacidade de rejuvenescer, é a cobra, ou
melhor, os diferentes tipos de cobra. Em suas artes e nos mitos de origem
respectivos, os Ashaninka valorizam e representam tanto a cobra constritora quanto
as espécies venenosas: a maior parte dos motivos gráficos remete a cobras, assim
como os diferentes enfeites que acompanham a roupa, o kitarentse, e que constituem
a pessoa Ashaninka.
A homogeneidade da estética cotidiana Ashaninka não deixou de chamar a
atenção de fotógrafos e estetas. Neste sentido, minha própria pesquisa revela um
cuidado extremo neste estilo minimalista, composto por roupas sóbrias e decorações
precisas.
Onde a arte faz parte de um sistema de cura xamanístico, diversos etnólogos a
caracterizaram enquanto uma espécie de “terapia estética”
1
. Entre os Ashaninka, em
lugar disso, podemos dizer que a arte se constitui em uma forma de “sedução
estética”.
1
Como é o caso dos Shipibo (Gebhart-Sayer, 1986), dos Kaxinawa (Lagrou, 2007) e dos
Waujá (Barcelos Neto, 2005).
13
A arte Ashaninka visa alcançar leveza e invisibilidade frente aos inimigos e
sedução frente àqueles que se quer atrair. O design da roupa, a pintura e
especialmente a fragrância de todos os itens utilizados no make up pessoal visam
capturar, agir sobre as pessoas no entorno. Por esta razão, cada detalhe de um
txoxiki, o colar, ou do cacho de sementes pendurado na cushma, cada desenho na
roupa ou no rosto conta, faz diferença. Igualmente, a execução das imagens importa
muito, tendo em vista que a imagem age em conjunto com a substância que a
veicula, e que a “cópiamantém ligação direta com seu modelo. Desta forma, se um
desenho de cobra for mal executado, a cobra virá morder o responsável pela cópia
infiel.
Veremos, assim, como a arte corporal reflete uma estética de poder. Uma
admiração que se incita, às vezes, pela beleza mais letal possível. No motivo de
kempiro iremos encontrar a essência da arte Ashaninka que cria o “belo” a partir de
uma superação do medo da morte. No caso deste povo, como veremos, o belo
consiste no equilíbrio entre pensar e fazer. A força latente que se acarinha representa
a estética ideal dos Ashaninka. A valentia está aí, guardada nos txoxiki, pronta para
usar, como também a cobra sempre ataca a partir de uma postura relaxada, obtendo
com isso mais velocidade e impacto.
Na introdução falaremos brevemente sobre a etnografia do povoado de Feijó
e das diferentes comunidades dos Ashaninka e sobre o ritmo de um dia na
comunidade. O primeiro capítulo introduz o leitor conceitualmente ao mundo dos
objetos e suas significações, trata da Antropologia da arte e Etnoarte, esboçando o
quadro de referência conceitual no qual esta tese se situa. O segundo capítulo trata
da construção do coletivo Ashaninka: partindo de informações sobre sua
localização, população e língua. Nele discorremos também sobre a história da guerra
Ashaninka e sobre como se pode entender a inimizade entre este povo. Veremos que
a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o modo segundo o
qual se constituiu a “pessoa” Ashaninka. Este estado de alerta se atualiza até os dias
de hoje, seja com relação à pressão dos índios arredios sobre seu território, seja com
14
a entrada das madereiras. No capítulo três analisamos os objetos que são descritos
para serem depois contextualizados e interpretados à luz da mitologia e exegese
nativa: o kitarentse, txoxiki, aximaierentse, kewotawontse, wanenka, tatanentse e
matarentse, a bandana, o xale, a bolsa, o cachimbo e a capuz. Esclarecemos também
alguns motivos do kitarentse.
O quarto capítulo aborda a atitude dos Ashaninka frente à doença e à
mortalidade. Notamos entre os Ashaninka uma ativa busca pela imortalidade para
qual existem diversos caminhos: a viagem iniciática para as terras altas em busca do
Inka, a troca de pele e o uso da ayahuasca. Ilustraremos as possibilidades de obter a
longevidade, explorando mais especificamente a odisséia de Hananeri à procura do
Inka, o deus que ficou. Esta odisséia foi motivo para a narrativa de vários mitos
relacionados ao tema. Veremos também como o próprio kitarentse revela o desejo
de trocar a pele, como o fazem as cobras imortais. A ayahuasca mostra outra
possibilidade, outro caminho, como narrado no mito de Xawiri, o primeiro homem
que bebeu ayahuasca e obteve a imortalidade. Exploraremos o papel do arco-íris
neste processo.
Veremos também como o “contar” dos mitos, em si mesmo, oferece um
“remédio”, estabelece uma ponte. Proferir narrativas tais são esforços de
comunicação respondidos ativamente pelos seres invisíveis. Depois de apresentados
os possíveis caminhos de cura frente à doença e à morte, veremos, no quinto
capítulo, o remédio para a doença mais grave da alma: o sofrimento causado pelo
amor. Tentaremos explicar a lógica da pusanga e o papel da arte corporal em tudo
isso. Veremos como emoções perigosas são “domadas” de forma artística, via a
mesma arte corporal.
15
Etnografia da cidade.
Tendo em vista que alguns Ashaninka passam até três meses por ano na
cidade, uma breve etnografia do povoado de Feijó
2
se torna necessária. Durante a
época da seca é possível chegar por terra da cidade de Rio Branco até Feijó. Para
todo o resto do ano conexão aérea, feita por um avião mono- ou bi-motor, de
Rio Branco até a cidade de Tarauacá. De é preciso atravessar o rio Tarauacá com
um barco de pequeno porte (por cerca de dez minutos), para continuar até Feijó
através uma estrada recentemente reaberta. Quase chegando à cidade de Feijó, se
atravessa mais um rio, o rio Envira.
Não sendo conectadas com outras cidades, vistas do alto, Fei e Tarauacá
parecem uma ilha
3
cercada por um mar verde de árvores. uma competitividade
saudável entre as duas pequenas cidades: organizam entre si campeonatos de
futebol, às vezes um campeonato entre o clube de kung-fu de Tarauacá e o clube de
karate de Feijó, mas o mais popular parece ser o campeonato de motocross. Os
habitantes gostam de comentar as vantagens e desvantagens das duas cidades. Feijó
tem a árvore de açaí
4
como mbolo de sua bandeira e se autodenomina “a cidade do
melhor açaí”.
Porém, os habitantes preparam seu açaí em casa e para se comer o ‘famoso
açaí’ é preciso caminhar para um bairro periférico onde as casas são feitas de
madeira. Lá se encontra a barraca “o rei do açaí”, bastante apreciada e freqüentada
pelos Ashaninka do rio Envira. A rua principal (onde as casas são de alvenaria) vai
do rio até o aeroporto (uma pista) onde também fica o cyber-café. Em outras
palavras, vai do rio para o resto do mundo. Fazendo este trajeto encontra-se o hotel
2
Feijó, localizada no Vale do Juruá, tem uma população 38.241 habitantes e dista 384 km
de Rio Branco (SEIAM, Sistema Estadual de Informações Ambientais).
3
Falei com vários habitantes que nunca saíram desta ilha, ao contrário dos Ashaninka e
outras etnias vizinhas tradicionalmente “nômades” da região.
4
O filho do ex-prefeito, por exemplo, está namorando a ex-miss Açaí. A miss Açaí é
escolhida anualmente durante o festival de açaí.
16
Bela Vista (com vista da varanda para o rio Envira), a igreja
5
mais antiga da cidade,
a praça e a prefeitura.
Muitas lojas
6
e o posto de gasolina (que vende principalmente óleo diesel
para os barcos) são propriedade de “Da Souza”, ex-candidato à prefeitura e de quem
uma propaganda política pendurada na casa de Hananeri, Ashaninka da
comunidade de Bananeira. Da Souza é, desta forma, possuidor de muitas
mercadorias cobiçadas e desejadas pelos Ashaninka, uma espécie de “chefe” de
Feijó e, por isso, é “naturalmente” um candidato elegível por eles. Candidato que
parece ideal
7
para os Ashaninka, uma vez que mistura ingredientes essenciais de sua
cosmologia: a beleza, o poder e o perigo.
Todas as vertentes da igreja estão representadas na cidade. Paradoxalmente,
entre elas encontram-se os bares, onde a única opção é beber cachaça normal ou
gelada, acompanhado por um tira gosto, geralmente bolinhos chips de milho. No
caminho encontram-se muitas “guaritas” (pequenas barracas) onde se pode beber
“mais uma dose extra”, caso o nível de álcool no sangue esteja baixando. As casas
que abrigam as sedes do CIMI e do Partido Comunista de Feijó encontram-se
próximas, ambas concorrendo para ganhar a preferência dos povos indígenas.
A população de Feijó é bastante heterogênea: brancos, vendedores
ambulantes Peruanos, indígenas de várias etnias
8
que andam com pinturas faciais
nas ruas em direção ao posto da FUNASA, OPIRE (Organização Para os Índios do
Rio Envira) ou FUNAI. Na escola, as crianças de Feijó têm acesso às cartilhas
indígenas (listas de vocabulário básicos das etnias vizinhas) para poder falar, por
exemplo, “bom dia” em uma das línguas da região.
5
A igreja foi ampliada durante o trabalho de campo, como também um novo aeroporto foi
construído fora da cidade.
6
Onde os Ashaninka parecem ter uma divida eterna.
7
Da Souza corresponde a certos elementos Ashaninka relacionados ao conceito de
kempiro, que explicaremos mais tarde.
8
Kaxinawa, Shanenawa, Culina e Ashaninka.
17
No centenário da fundação da cidade, os Feijoenses organizaram uma parada
em que eles mesmos representaram sua cidade: primeiro a fila dos militares e
policiais reais, depois a ala dos professores, dos nordestinos fundadores, dos
seringueiros, dos médicos e das enfermeiras, dos jogadores de futebol e, no final da
fila, os praticantes de motocross, bastante populares, sentados em suas motos. Até
mesmo os que estariam à margem da sociedade feijoense estavam ali representados:
engraxates e bêbados.
Os índios, por sua vez, eram representados o por eles mesmos, mas por
Feijoenses jovens que pareciam recém-chegados do Havaí, ostentando sarongues de
palha e bustiê de cocos. O interessante neste caso é que esses jovens realmente
visitaram a aldeia dos Shanenawá e encomendaram os saiotes de palha e os sutiãs
feitos de cocos: durante a parada representavam índios que estavam na aldeia
representando a imagem que os brancos m deles. Claramente, todos queriam se
entender: os brancos queriam produzir uma imagem fidedigna dos índios e os índios
queriam, por sua vez, agradar aos brancos produzindo sua própria imagem conforme
ela é imaginada pelos próprios brancos
9
.
Como numa tarde, quando fui convidado, juntamente com um vereador
Kaxinawa do Partido Comunista, para ir à casa do sobrinho de Pedro Bilo. Pedro
Bilo é conhecido como o grande matador dos índios da região. Num certo momento,
o sobrinho começa a contar uma história sobre o tio e, de repente, a esposa mais
velha do vereador disse: “eu conheço essa história, meu avô me contou isso.
Ambos, brancos e índios, naquele contexto, davam suas versões dos fatos em que
estiveram envolvidos. Mas faziam isso de modo antagônico, pois estavam de lados
opostos, embora em um clima muito amigável e por vezes jocoso
10
.
9
Quando a parada acabou, o adolescente Ashaninka que estava do meu lado observando-a,
perguntou:”então, isso era natal?”
10
Um exemplo de como se pode rir do que em outro contexto pode vir a ser motivo de
mútua incompreensão ou preconceito foi o seguinte comentário da esposa do vereador
kaxinawa naquela mesma tarde. Quando seu marido disse quantas mulheres ele tinha, a
18
Todas as manhãs uma feira perto do rio onde os Ashaninka podem pegar
água potável. Ao lado uma casinha de madeira, um restaurante onde Hananeri
gosta de comer um “prato feito” por cinco reais e cinqüenta centavos. As paredes do
casebre estão decoradas com imagens de santos, fotos de jornais e com um grande
relógio, ainda na embalagem de plástico.
Os Ashaninka mais velhos conhecem quase todo mundo na cidade pelo nome
próprio: afinal, quarenta anos os Ashaninka vendem feijão para os habitantes de
Feijó. Os Ashaninka não comem feijão, plantam somente para a venda. Ultimamente
o preço do feijão tem baixado muito, o que se tornou uma preocupação. Outra
importante fonte de renda para os Ashaninka são as aposentadorias e os salários dos
agentes de saúde e dos professores. Esses rendimentos parecem criar uma espécie de
hierarquia
11
dentro da comunidade. Segundo os Ashaninka, quando se ganha um
salário é mais fácil encontrar uma esposa.
Nas lojas de Feijó os Ashaninka do rio Envira compram produtos para caçar
(pólvora, chumbo e espoleta), pescar (linha, anzóis), óleo, leite em pó, sal, açúcar,
manteiga em lata, goiabada, nescau. Reclamam da comida na cidade: não comem
carne de boi, os peixes vendidos o são frescos. Desconfiam das conservas
12
pois
pensam que são feitas de carne humana pelo fato de um Ashaninka ter achado dentro
de uma lata uma unha humana, “então era verdade o que (os antigos) falaram
13
. Às
esposa começou a rir. Perguntei porque estava tão animada e ela falou apontando para a
região sexual dele: antigamente não ia sobrar mais nada”. Explica que antigamente era
costume, quando um chefe morria que as suas mulheres dividiam seu pênis no ritual
funerário (endocanibalístico). Quando tem muitas mulheres, não sobra mais nada.O riso
dela era tão contagiante que todos riram também.
11
Escutei um Ashaninka aposentado falar para seu filho de mais ou menos cinqüenta anos:
você é ninguém, você não ganha dinheiro.
12
Há uma pizzaria na rua principal e a pizza da casa tem como ingredientes a variedade das
latas existentes em Feijó: tudo é importado de Rio Branco, até frangos congelados chegam
de avião mono-motor.
13
rumores, desde os invasores espanhóis, sobre o uso de carne humana. Uma anciã
Ashaninka tinha medo de mim, alegando que eu poderia estar lá para tirar agordura” dela,
19
vezes parece que o dinheiro ganho é usado como numa sessão de potlach:
frequentam festas na praia do rio Envira onde se pode gastar todo o dinheiro com
prostitutas e cachaça. Brigas em botequins
14
são comuns e tive notícia de uma
Ashaninka que fora estuprada por brancos.
Uma tentativa para reduzir o gosto pelo álcool (no supermercado, o álcool
comum, chamado “cabeça azul” pelos ribeirinhos por causa da cor de sua tampa,
fica na mesma prateleira das cachaças) e as doenças sexualmente transmissíveis foi
feita por Moises Pianko (Ashaninka do Rio Envira) e sua ex-esposa Margarete
Kitaka Mendez
15
: instalaram uma cooperativa na comunidade de Bananeira onde
todos os Ashaninka e, também, os Culina podiam trocar artesanatos por facões,
cortes de tecido etc, de modo que não era mais preciso baixar para a cidade de Feijó
para obter estes produtos.
Com as visitas à cidade, a roça fica descuidada e menos caçadores na
comunidade. Isso já provocou privação alimentar. Recentemente Bebito Pianko,
irmão de Fransisco Pianko, foi falar com os Ashaninka do Rio Envira sobre o
problema. A idéia é transferir a coorporativa mais para baixo
16
e colaborar com os
Culina, igualmente uma etnia Arawak.
Foi na cidade que fiz o primeiro contato com os Ashaninka. Logo de manhã
vi da varanda do hotel, distante, um Ashaninka. Ele ou ela parecia de longe estar
vestido de kitarentse (a roupa Ashaninka). “Saí da varanda”
17
e fui sentar num banco
perto do rio, onde estavam os barcos dos Ashaninka . Não sabia o que fazer.
mesmo depois que eu era bem conhecido, ela continuava a suspeitar dos canibais
brancos”.
14
Um dos botequins recebeu o nome local de “Fura Bunda” por causa das facadas que se
leva facilmente no lugar.
15
Antropóloga que desempenhou um papel importante no processo de demarcação das
terras dos Ashaninka do rio Amônia.
16
O transporte de bens fica caro: da comunidade de Bananeira são duas semanas de
viagem.
17
Aqui brincando com a expressão clássica off varanda” e com a nova significação do
trabalho de campo para a antropologia.
20
Até então, a autorização para entrar em área indígena era útil e necessária
para a Policia Federal, OPIRE, CIMI, CPI, para a FUNAI de Rio Branco e para a
FUNAI de Feijó, mas a partir daquele momento percebia que era eu e eles”. Os
Ashaninka não gostavam da FUNAI, por várias razões, e aquele papel que me
autorizava fazer pesquisa entre eles, não queria dizer nada para eles. Enquanto
estava sentado no banco, aproximou-se “K.”, uma cafetina Peruana bastante jovem:
ela havia visitado Riozinho com Benjamin, um Ashaninka aposentado. Depois se
aproximou uma criança Ashaninka que deveria ter uns quatro anos. Chegava mais
perto e mais perto até o seu rosto quase colar no meu. Os adultos Ashaninka
observavam o acontecimento de longe.
Como reagir adequadamente? Não sabia o que a criança iria fazer. Ao final
ela pegou uma bala de sua boca e colocou na minha. Foi o primeiro contato. A partir
daí pude conversar com seu pai e começar lentamente uma relação com os
Ashaninka.
Subimos o rio Envira com Ateringa. Da comunidade Paroá até Coqueiro é
Terra Indígena dos Kaxinawa e Shanenawa (11 comunidades no total). Da
comunidade Coqueiro até o igarapé do Anjo é a terra dos Culina (8 comunidades no
total). Logo depois chega-se à primeira comunidade Ashaninka
18
designada Alto
Bonito (42 habitantes
19
).
Durante esta viagem, Ateringa soube da noticia da morte de sua mãe.
Ateringa ficou alguns segundos em silêncio e depois falou: um dia vou morrer
também”. Este modo de reagir e de agir no mundo era o primeiro sinal que percebia
do estilo de viver dos Ashaninka que descreverei ao longo desta tese. E pensar sobre
18
O total de habitantes Ashaninka no Rio Envira é de 382 pessoas. O tamanho da área
indígena (incluindo a área dos índios “isolados”) é de 245.800 hectares (Fonte: SEIAM,
Sistema Estadual de Informações Ambientais).
19
Fonte: Pólo Base de Feijó (FUNASA) que durante meu trabalho de campo fez um
levantamento.
21
a consciência Ashaninka sobre a mortalidade viria a se tornar o fio condutor deste
trabalho.
Permanecemos apenas por uma semana no Riozinho (42 habitantes): os
outros Ashaninka ainda lembraram vivamente que Ateringa tinha levado K, a
cafetina Peruana. Quem ele trouxe agora?”, disseram. Descobria, então, que
Benjamin era o nome português de Ateringa. O mais velho do Riozinho estava
viajando para o Rio Amônia, então não sabia se era possível decidir se poderíamos
ou não ficar no Riozinho.
Felizmente Hananeri estava nos esperando mais adiante, dois dias de viagem
subindo o Envira, como combinado em Feijó. Depois de uma semana pegamos uma
carona na canoa-rabeta de Chicão, peão da FPEARE. Passamos pelas comunidades
Ashaninka de Côco-Açu (76 habitantes), Santarém (22 habitantes) e depois de
pousarmos naquela noite fria
20
na floresta chegamos na comunidade de Simpatia (62
habitantes). estavam festejando, realizando um piarentse e, em razão disto, quase
a totalidade de seus habitantes havia bebido bastante caiçuma. A maior parte do
trabalho de campo foi realizada na comunidade vizinha, a de Bananeira (87
habitantes). A última comunidade Ashaninka rio acima é Sete Voltas (51
habitantes).
Durante a viagem caçam e pescam, conhecem cada curva, cada lago do rio.
Pedem aos ribeirinhos, que conhecem bem, para pegar frutas, mandioca e água
limpa. Às vezes recebem carne, ganham cachorrinhos etc. Os Ashaninka são
orgulhosos de sempre pedirem as coisas e nunca roubarem. “Às vezes esperam até o
dia seguinte para o dono chegar para pedir algumas goiabas”, lembra uma
funcionária do hotel, que cresceu rio acima. Ela lembra também que suas vizinhas
ficaram felizes quando os Ashaninka chegaram: “como era o nome daquele
Ashaninka, esqueci o nome dele, bonitão ele, todas acharam...”
20
Nesta época do ano existe a ‘friagem’, fenômeno metereológico típico desta região: as
frentes frias chegam dos Andes e duram às vezes até cinco dias. Durante a friagem, alguns
Ashaninka se esquentam à noite com um fogo embaixo da plataforma da casa.
22
A viagem é sempre algo muito animado. Durante o verão montam tapiris na
praia do rio. Podem construir um acampamento temporário em menos de vinte
minutos, incluindo aqui a mandioca fervendo no fogo.
23
24
Etnografia das comunidades.
As comunidades estão em constante transformação: houve um tempo em que
os seringueiros moravam entre os Ashaninka do Rio Envira. Os Ashaninka eram,
assim, obrigados a descer o rio em busca de novos locais, fato que cessou depois da
demarcação das terras. Onde hoje está a comunidade Ashaninka de Simpatia havia
uma moradia de brancos. Quando fui caçar com os Ashaninka, me mostraram a
antiga rota (imperceptível para nós) dos seringueiros através das cristas das colinas,
na floresta.
Com a chegada dos índios “isolados”, assassinados pelos madeireiros
fortemente armados no Peru, os Ashaninka deviam, por sua vez, baixar com a
instalação do FPERE
21
(Frente de Proteção Etno-ambiental do Rio Envira). A
FPERE tem justamente o objetivo de impedir que os Ashaninka subam o rio para
guerrear com os isolados, como já aconteceu no passado.
No final do trabalho de campo, o rio tinha subido rápido demais para a
surpresa dos madeireiros que começaram a fazer baixar as toras de mogno e
tambores de plástico com alimentos. Os Ashaninka de Sete Voltas encontraram
rastros ao lado do igarapé que eram dos “isolados”. No verão, quando a água baixa
muito permitindo que se ande pelo rio, a vigilância aumenta.
Sinais e relações talvez efetivas são constantes. Os Ashaninka estão sempre
prontos, mas sabem que os “isolados” quase sempre invadem as casas somente
quando estão desabitadas. Os índios isolados atiraram flechas e, certa vez,
seqüestraram uma criança Ashaninka.
Durante uma “vigilância/meditação” noturna, vi Hananeri sorrir. Na manhã
seguinte ele me contou que detectou uma imitação de um pássaro, feito pelos
“isolados”. Quando fui caçar com Tapi, ele detectou um estilo de quebrar raminhos
21
Ver a tese de mestrado A FUNAI entre os Campa e os Brabos” de Edviges Marta Ioris
(1996).
25
(para não perder o caminho na floresta densa) que não era dos Ashaninka. Voltando
para a comunidade de maneira mais silenciosa possível, Hananeri me dizia que os
Amauaca (como os Ashaninka chamam os “isolados”) com certeza estavam nos
observando: “eles te vêem, mas a gente não vê eles; é como as onças”.
Devo confessar que nessas situações de guerra” potencial e hostilidade os
Ashaninka são bastante confiantes em si mesmos. Apenas durante o verão procuram
não caçar sozinhos.
Quando fomos pescar com waka (veneno: bate-se as folhas num buraco, ver
foto acima), num igarapé entre a comunidade de Bananeira e Sete Voltas, um
Ashaninka contou que exatamente seu pai, junto com outros, matou vinte
“isolados”. Era também durante o período do trabalho de campo que Meirelles, da
FPERE, foi flechado na garganta enquanto pescava sozinho próximo ao posto.
Resta dizer que os Ashaninka admiram a arte corporal dos índios isolados, os
acham “bonitos”, o que revela algo sobre a própria arte corporal dos Ashaninka
como veremos: os “isolados” tem impressionantes colares de dentes de macaco.
Usam estes mesmos colares de dentes em torno dos braços, que parecem facas letais
em um combate corpo a corpo. Estão sempre pintados com urucum e jenipapo.
26
Com relação à ocupação desta região, outras mudanças importantes. A
comunidade de Alto Bonito mudou-se para a boca do rio Xaminawa, para poder
melhor fiscalizar os brancos que roubam caça. Está situada agora num barranco alto.
Ateringa o mora mais no Riozinho, mudou-se para a boca do rio. A comunidade
Sete Voltas está praticamente desabitada, pois muitos mudaram-se para a
comunidade de Hananeri, depois da morte da esposa de Carmelim.
As mudanças após as mortes são comuns e no caso Ashaninka são explicadas
pelo medo que se tem de peiari (alma). Grande parte da comunidade Bananeira
(Hananeri incluído) es se preparando (estão fazendo roça de mandioca lá) para
morar (rio abaixo) na “Califórnia”, com planos de inaugurar uma cooperativa de
artesanatos.
27
Habitações na terra alta e acampamento de praia
28
No Riozinho, os Ashaninka moram em vários grupos locais compostos por
famílias nucleares, como tradicionalmente ocupavam a região. No Alto Bonito,
todos moram juntos, em várias casas, ocupando a mesma terra alta. Na comunidade
de Simpatia as casas são alinhadas com o rio. Na época havia um rumor de que a
eletricidade chegaria em breve.
Na comunidade de Bananeira as casas estão, também, alinhadas com o rio, à
exceção de algumas que se encontram atrás da casa de Hananeri, sobretudo
construções com banheiro e vasos sanitários, chuveiros e etc. Estas “instalações”
29
estavam sem funcionar anos mas, curiosamente, no último mês de meu trabalho
de campo chegava alguém para reparar o banheiro, que funciona com um gerador
movido a óleo diesel, o que custa muito caro. também um boi que anda por entre
as casas e, com ele, duas vacas com sua cria.
Os Ashaninka de Riozinho são aqueles que não moram juntos, vivem
dispersos pela floresta. Os da Comunidade de Bananeira são aqueles que o têm
pasto para o boi. A comunidade é estrategicamente fundada em uma das curvas do
rio e/ou em uma terra alta para uma melhor observação. Estão sempre atentos para o
som produzido pelos motores dos barcos. Existem muitas trilhas que cortam as
curvas do rio, de modo que durante um certo trajeto se consegue andar mais rápido
pela floresta do que se poderia fazer em um barco. Sabem muito bem que os índios
“isolados” também conseguem fazer isso. Viajando rio acima estão sempre atentos
aos mínimos movimentos na beira do rio. Atentos e animados, ao mesmo tempo.
Ateringa (“fundador” de Riozinho), Karijo (o mais velho da comunidade de
Simpatia) e o falecido Irã (a “liderança” que morava na comunidade de Bananeira,
cujos filhos ainda moram) são irmãos. Hananeri (o agora mais velho da comunidade
de Bananeira) e Carmelim (mais velho da comunidade de Sete Voltas) são também
irmãos por parte de pai. As esposas de Hananeri (Tenoria) e Carmelim (Wawita,
recentemente falecida) são irmãs de Ateringa e Karijo.
A comunidade de Hananeri, onde permaneci a maior parte do trabalho de
campo, parece dividida em duas, talvez em função das vacas: uma cerca feita de
madeira que divide a comunidade. Todos dizem que é porque Hananeri não gosta
das vacas andando em volta de sua casa. Ao mesmo tempo, a cerca separa a casa de
Hananeri e as casas onde moram suas filhas das demais casas: a viúva de Irã com
seu filho Tanta e as duas irmãs casadas de Tanta. A casa mais distante de Hananeri
abriga seu filho Koconha, que habita próximo de uma trilha que vai dar em
Simpatia, onde mora a segunda esposa de Koconha.
30
Os Ashaninka moram em casas construídas a partir de plataformas apoiadas
em palafitas, sem paredes. Primeiro se constrói o esqueleto que sustenta o teto de
palha, depois a plataforma com a casca dura de uma árvore.
uma escada que acesso à plataforma. A altura da plataforma varia de
um a cinco metros. Cada família tem a sua própria roça. As roças são espalhadas em
torno da comunidade.
A comunidade “Bananeira”: casas com a quantidade de palefitas e a distância entre elas.
Lado esquerdo da cerca: a família de Hananeri. O rio Envira no norte.
31
O dia na comunidade.
Tomar banho (o rio está mais ou menos cinqüenta metros afastado das casas)
e fazer uma pintura facial enquanto se está olhando num espelhinho é a primeira
coisa que fazem quando acordam. Bem cedo os homens vão buscar lenha
22
na
floresta ou caçar. As mulheres o coletar mandioca, cada uma na sua roça. Os
outros se produzem corporalmente e esbanjam uma atitude positiva
23
ao visitar os
vizinhos ou simplesmente sentam-se em um banco virado para o sol que começa a se
levantar.
Comentam, regularmente, a noite anterior: os sons escutados, os animais
ouvidos e os sonhos. Come-se, freqüentemente, uma banana assada (jogada direto na
brasa) como entrada para a primeira refeição do dia. Quando a comida está pronta
(feita em panelas de alumínio, não produzem mais panelas de cerâmica), a família se
reúne em casa em torno do prato de alumínio ou em torno de uma folha de bananeira
na qual a mandioca e a carne
24
/peixe
25
é servido pela mulher. Chama-se,
eventualmente, os vizinhos: “Hame puia!” (vamos comer!).
Os homens e as mulheres comem separados, mas muito próximos uns dos
outros, de modo que a conversa é comum. Retiram a carne do prato, tiram um
pedaço e a colocam de volta novamente. Falam sempre atama (“obrigado”), tanto
para o homem, quanto para a mulher da casa, quando se deixa o círculo.
22
O fogo é considerado uma pessoa, “é gente”, queima e “tem a casa dele” (uma cozinha).
23
Trata-se de o mesmo entusiasmo (ver também Overing 1988, 1991) com o qual se tenta
convencer (mandar nunca!) alguém a trabalhar, a ajudar, por exemplo, dizendo que
muitas bananas maduras na roça, e que quem ajudar poderia levar para casa, que na roça
terá uma panela de bebida fermentada e etc. Se outro pergunta se pode acompanhar alguém
na sua roça, deixa-se sempre a possibilidade de escolha: “é você quem sabe.
24
Come-se, por exemplo, veado, porco-do-mato, anta, macaco, pássaros, tartaruga (também
os ovos), cotia, paca, jacaré, lagartos, larvas. O tabu alimentar depende do conhecimento
individual da cosmologia, mas ninguém come cobras e ninguém mata os pássaros
considerados “divinos” como, por exemplo o japo.
25
Curimatã (xima) é muito apreciado, assim como cardumes de peixes menores como
piaba, preparada na taboca.
32
Na polidez Ashaninka nunca se deve demonstrar que se tem fome. Os
homens comem pouco, pois dizem que para desviarem facilmente das flechas do
inimigo devem ser magros. Depois da comida, bebem uma cuia de água, mingau de
banana ou caiçuma (bebida fermentada de mandioca).
Carregando mandioca (em cima) e carregando um
porco da mata (a direito).
Após a primeira refeição do dia, a mais elaborada, os homens vão caçar ou
pescar com seus filhos e as mulheres vão trabalhar na roça com as filhas ou arrumar
a casa. Quando voltam novamente para comer, “às onze horas” (como aqueles que já
trabalharam para os brancos dizem meio brincando), tomam novamente um banho e
aplicam novas pinturas faciais. Este ritual é repetido à tarde.
Ao longo do dia comem frutas
26
e “nozes”. Não fazem farinha, beiju ou
qualquer tipo de massa. A qualidade da comida é a rapidez com a qual se prepara e o
26
Banana (paliantse), mamão (também preparado quente, no fogo), melancia, limão,
abacaxi, abacate, ingá, cana, milho, pupunha, palmito, pama (tipo de cabaça), orelha-de-
pau e muitas frutas da floresta.
33
ponto certo de moquear ou grelhar (não pode ser cru, nem com pedaços pretos
27
) e
nem com “muito gosto”. Para dar “gosto” à comida, usam, no máximo, uma folha
com a qual eventualmente enrolam um peixe e sal
28
.
Nada pode ser desperdiçado: se, por exemplo, a mea do porco-do-mato
estiver prenha, come-se igualmente o embrião, defumado na taboca. Se usaram
veneno e no dia seguinte ainda restam peixes flutuando no lago, irão comê-los,
mesmo que estejam em processo de “putrefação”. Para conservar carne e peixe os
salgam ou secam ao sol. Quando somente mandioca para comer, comem-na com
pimenta forte. A complementaridade é importante para o equilíbrio de uma boa
refeição: quando o homem não consegue caçar nada durante dois dias, as mulheres
começam a preparar a mandioca mal feita, meio crua ou servida fria. Isso
estimularia os homens a encontrarem caça mais rapidamente.
No final da tarde começa a meditação”
29
: sentam-se juntos em silêncio, de
preferência de frente para onde o sol nasce. Para os Ashaninka é o “silêncio” que
ensina. Cada movimento, cada som, cada ruído está sendo percebido enquanto se
fuma tabaco e se come oxi (folhas de coca vaporizadas na taboca) junto com cal
(uma “pedra” cozida e depois pulverizada) e um pedaço de cipó (txamairo) para
adoçar. São horas de silêncio a cada noite.
27
Quando algo se torna preto, queimado no fogo, dizem que a mulher está cozinhando
como uma Culina.
28
Tradicionalmente era retirado de minas de sal no Peru. Faziam grandes viagens para isso.
O sal é também considerado uma pessoa, “é gente”.
29
Como veremos, os Ashaninka são fortemente conscientes de sua postura corporal e
mental. Como a avó de Hananeri, a anciã da comunidade Bananeira no rio Envira, ensinou:
“Nos não nascemos sem pai (pawa) não. Tem nosso pai. Porque onde estamos agora é
embaixo. Onde ficávamos primeiro é em cima, em cima, em cima da terra, em cima do
céu. Por isso você tem que ouvir a conversa (meditação) todo dia de tarde, tem que pensar
maneiramente, que não pode brincar muito assim (sobriedade é a regra, e quando esta é
quebrada corre-se o risco de ser punido: uma doença ou uma cobra que vem morder a
pessoa), se brincar (...) às vezes vai tropeçar, uma doença, ou uma, qualquer coisa, né, às
vezes quando fica tropeçado né, vai tropeçar cobra, às vezes, ninguém sabe, está no
térreo, tu anda assim, aí cobra vem...é perigoso. Tá contando minha avó assim.”
34
Em algumas comunidades a troca de oxi é ritualizada: mantendo o silêncio,
oferece-se uma mãozada de oxi, sem deixar cair uma folha, pois caso isso ocorresse
revelaria que a pessoa está praticando adultério. Sempre tem que aceitar o oxi
oferecido e depois de um tempo o gesto é retornado. Isso se repete ao oxi acabar
(o mesmo é feito, também, com o tabaco). É um leve tocar de mãos, o que a
possibilidade de observar o outro de perto. A impressão que se têm é que a
comunicação neste silêncio é bastante intensa até mesmo maior do que se estivessem
falando.
Quando se vai dormir, cumprimenta-se todos os presentes na casa, às vezes
até mesmo os vizinhos: hamai
30
(cada vez seguido pelo nome de cada um dos
presentes que responde com um hé-hé afirmativo). Dorme-se no chão, na plataforma
da casa, bastante flexível, fazendo-se um “ninho” aconchegante com todos os panos
que se tem e sob um mosquiteiro.
30
Hamai quer dizer “vou dormir”.
35
Capítulo 1. Dos objetos, da Arte e suas significações: uma introdução
conceitual
Dos objetos e suas significações
... uma mulher que tece uma rede põe nela muito mais vontade de perfeição,
muito mais primor do que seria necessário para que cumpra sua função prática.
(Darcy Ribeiro, 1997)
Desejava estudar “arte onde não era provável encontrá-la. A bibliografia
existente sobre os Ashaninka demonstrava que não realizavam grandes festas, nem
rituais. Peter Gow relata que na visão dos Piro e Shipibo os Ashaninka o
possuiriam desenho e o autor confirma que “sistemas complexos de desenho” não
existiam entre os Ashaninka (Gow 1988: 19-32). Porém, quando vi pela primeira
vez as fotos dos Ashaninka, senti de imediato uma empatia estética para seu estilo
minimalista, sóbrio e enigmático.
Minha formação na graduação e no mestrado concentrou-se sobretudo em
estudos sobre História da Arte e Arte Étnica, estando especificamente ancorada no
material sobre a polinésia francesa e seu complexo guerreiro, expresso através dos
objetos de guerra sobre os quais repousam impressionantes investimentos estéticos.
Neste sentido, meu primeiro reflexo diante do conselho metodológico proposto por
Alfred Gell em seu livro sobre “Arte e Agência” (Gell, 1998), onde propõe excluir
completamente a apreciação estética dos trabalhos que pretendem se situar no
chamado campo da “Antropologia da Arte”, causou-me desconforto e dúvida. A
primeira reação seria a de duvidar se este procedimento o levaria justamente a
extrair a “vivacidade” da arte nos objetos produzidos, esta dimensão que está para
além das relações que estes mesmos objetos podem engendrar.
Eliminar a apreciação estética me parecia ignorar o efeito que aquilo que
36
chamamos “arte” produz nas percepções sensoriais. Seria, em minha percepção,
jogar “o bêbe fora, com a água do banho”. Isto é, desperdiçar a chance para
compreender ou pelo menos tentar entender o investimento estético nos objetos.
Contemplar aquilo que não produz necessariamente relações, socialidade ou agência
mas que, de algum modo, faz os Ashaninka felizes quando investem - esteticamente
falando - grande parte de seu tempo em produzir seu “corpo” e seus objetos.
Penso aqui em certas pinturas faciais que os Ashaninka fazem
intencionalmente para seduzir um(a) parceiro(a), nos comentários ouvidos de como
são, literalmente, “belas” aquelas pinturas, na importância de todo o jogo de
sedução, o uso da arte corporal para expressar seu próprio desejo e aumentar o
desejo no outro. O efeito da pusanga, o cheiro ao qual ninguém sabe resistir, a
música que tem a força de fazer retornar a esposa que te abandonou, o jeito de andar
e como isso provoca deliberadamente um som agradável vindo dos aximarentsi
(peça de semente à altura dos ombros). Todas estas são impressões sutís, difíceis de
serem descritas se não temos em mente uma atenção
31
estética que nos desafia a
compreensão.
A iniciação na antropologia me fez entender que o que Gell visava era antes
de mais nada mostrar como fruição estética e eficácia são inseparáveis e que era
preciso entender porque certas formas agem sobre e seduzem as pessoas, para além
da pura contemplação (Lagrou, 2003, 2007). Deste modo, neste trabalho, utilizo o
conceito de agência formulado por Gell, embora tratarei também de compreender o
sentido etno-estético dos objetos Ashaninka, em particular, o objeto primordial
Kitarentse. Sigo deste modo, mais a última que a segunda parte da obra de Gell,
porque no meu entender é a partir da atenção à forma que se chega à compreensão
de como a forma age sobre as pessoas (Lagrou, 2007). Procuro revelar que sua
31
Ver Lagrou (2007) para um aprofundamento do conceito de ‘atenção’ no sentido de
compreensão da arte e da estética.
37
materialidade
32
evoca um caminho de acesso a uma compreensão sócio-cosmológica
da arte e dos objetos no mundo Ashaninka.
O conceito de materialidade” desenvolvido por Daniel Miller (Miller, 1994),
quando aborda o uso do sari indiano, nos ajuda a pensar no kitarentse dos
Ashaninka. A materialidade do sari, assim como a do kitarentse nos permite
penetrar em mundos imateriais importantes que dão conta daquela materialidade.
O conceito de agência proposto por Alfred Gell parece ter um ótimo
rendimento quando se aborda a “arte” num sentido mais amplo, sobretudo quando
articulamos arte e cosmologia. Gell, ao reaproximar arte e magia, busca uma nova
definição de arte que conta justamente de seu aspecto agentivo, o que encontra
eco no que pode ser designado por “arte” para os Ashaninka. Neste sentido,
‘pessoas’ ou ‘agentes sociais’ são substituídos por “objetos de arte” e surge a ênfase
em “agência”, “intenção”, “causa”, “resultado” e “transformação”. Temas que
praticamente fundam a cosmologia Ashaninka e o modo como pensam seus objetos,
em especial o Kitarentse.
Se na teoria de Gell o index é a coisa física, visível, o “agente social” é aquele
que causa agência social, que faz com que eventos aconteçam. Portanto, para Gell
somente existiria arte quando ela está associada à agência: o index tem que ser visto
como o resultado e/ou o instrumento de “agência social”. O kitarentse seria o
“índice” por excelência para os Ashaninka, pois ao mesmo tempo em que é a coisa
física, o visível, o material, ele “causa”, produz agência e efeitos, engendrando o que
poderíamos designar como a “socialidade” Ashaninka e seu estilo de vida, os
princípios organizadores das relações com múltiplos domínios sócio-cósmicos.
Stefano Varese (Varese, 1968) descreve Nõnki como uma cobra monstruosa
para os Ashaninka. Será que temos entre os Ashaninka uma bela representação do
32
Para uma definição do sentido de materialidade aqui utilizado, que ultrapassa o sentido
material propriamente dito e é uma via de acesso a uma reflexão que integra vários níveis
(o social, o cosmológico etc), ver Miller (1994), Lagrou (2007).
38
feio, como nós tivemos no século XIX durante o Decadentismo, um estilo que
remete à época medieval, com sua “bela” representação do feio, como por exemplo,
os demônios, e como exemplificado por outros grupos ameríndios como os Yekuana
(Guss, 1989) e os Wayana (Van Velthem, 2003). Será que os Ashaninka são
meramente fascinados, maravilhados diante da monstruosidade das cobras, das
onças? O que aqui é uma “bela” representação do feio” que o torna fascinante
ou as cobras são simplesmente bonitas para os Ashaninka, de uma forma mais
direta?
Cobras – desenhos figurativos
39
40
Onça, desenho figurativo
Em torno da questão “se quem esculpia os monstros nas colunas ou nos
capitéis das igrejas românicas os considerava belos”, Umberto Ecco (2004: 12)
menciona que existe, todavia, um texto de São Bernardo que dá testemunho de como
os fiéis deleitavam-se contemplando-os. Ecco menciona a inexistência de textos para
tratar da mesma questão em relação à arte étnica.
Se não existem, de fato, textos, existem informantes e neste contexto muitos
Ashaninka me confessaram que apreciavam particularmente os desenhos das cobras,
sobretudo, porque estes desenhos servem para atrair o parceiro, para “enfeitiçar”
através de sua beleza, assim como o fazem os desenhos entre os Kaxinawa (Lagrou,
2007). O mesmo vale para a pele da onça, que é considerada extremamente bela,
embora estes animais, tanto a cobra quanto a onça se apresentem como ‘feras’
predatórias. Há, sobretudo, uma fascinação em torno do poder que esses animais
têm, são predadores dos seres humanos. Não acham belo o que é feroz como
também acham literalmente bonito o aspecto visual desses animais. Ultrapassando o
plano dos animais, mas ainda nos situando no plano da potência predatória, os
Ashaninka admiram a beleza das fardas dos policiais e de seus apetrechos, como
apitos e armas.
41
Aportamos aqui na sintética e potente conceituação formulada por Van
Velthem, que resume no próprio título do seu livro sobre a arte Wayana de forma
exemplar o significado complexo da arte ameríndia: “o belo é a fera(2003). Esta
expressão evoca o valor que a alteridade ganha neste sistema de signifcação: quanto
mais “feroz” for um animal, mais “belo” ele se torna. Para a autora, a valorização
visual e semântica se apóia justamente sobre uma correlação existente entre o
sobrenatural e os seres que estão imbuídos de suas características predatórias e
transformativas. Correlações tais, conforme são articuladas pelos Ashaninka, podem
advir das mais inusitadas fontes. Entre os Kaxinawa estes poderosos e perigosos
predadores vêm a ser simultaneamente os mais belos personagens existentes na
cosmologia, os Inka, deuses canibais, afins potenciais da vida pos-mortem, como o
são os deuses dos Araweté (Lagrou, 2007; Viveiros de Castro, 1986).
Jomanoria, Ashaninka do rio Envira, desenhou para mim a cobra kempiro, a
mais venenosa que existe, como uma sucessão de vários "x". Sua representação da
cobra parecia, a princípio, a mais minimalista possível e a mais fácil de ser
realizada. Mesmo assim, ele passou praticamente o dia inteiro a desenhar aquele
“x”, representando kempiro. Sua demora em produzir o desenho não advinha do fato
de não estar acostumado a desenhar em papel, mas porque se cometesse um erro ao
desenhá-la ele poderia morrer. A cobra kempiro viria mordê-lo. O mesmo desenho,
por exemplo, gravado num recipiente de xiko (cal para mascar coca) teria levado o
mesmo tempo. Este exemplo nos faz perceber como a arte minimalista dos
Ashaninka pode ter um significado tão denso.
Desta forma, seres como larvas de borboleta e mariposa, peixes e aves podem
manifestar seus instintos predatórios em um quadro sobrenatural relacionado à onça.
Vários mitos contam, como veremos a seguir, como uma larva virou onça, como um
peixe recebeu o desenho da pele de uma onça.
A larva xopa é uma das mais recorrentes nas representações Ashaninka e seu
desenho é freqüentemente encontrado nos kitarentse. A cauda do quatipuru, pelo seu
42
excesso de pelo, lembra a da onça e a mesma é atada aos panos para carregar bêbes.
O bico do tucano é dotado de uma agência de pusanga, isto é, é ao mesmo tempo
ligado ao poder da perfuração (flechas), à tampa do recipiente de xiko e ao cabo do
cachimbo, que representam bicos de aves.
Como veremos, a capacidade agentiva da arte corporal Ashaninka ganha sua
significação quando pode ser usada para “atrair” o sexo oposto. A arte Ashaninka
contém aspectos multisensoriais complexos instaurando um jogo visual, auditivo e
olfativo.
As aximarentsi, peças feitas com sementes dispostas como cachos, que se
aplicam ao kitarentse na altura dos ombros, são usadas pelas adolescentes com a
intenção de produzir um efeito auditivo que chame a atenção das pessoas. Andando
aos pulos, as adolescentes revelam uma intenção deliberada em produzir o ‘tilintar’
do aximarentsi, evocando mais uma vez uma possível associação com a capacidade
de sedução das cobras, animal que tem pusanga, a agência da sedução. Ainda
evocando o paralelo com as cobras e seu poder de sedução, as adolescentes estão
freqüentemente pintadas com motivos pictóricos faciais associados aos padrões
classificados como “cobra” que, ao se ligarem o cheiro sutíl da pusanga, segundo os
Ashaninka, produzem desenhos faciais hipnotizantes.
Um outro conceito crucial na compreensão do padrão sensorio-estético
Ashaninka é a sua concepção de beleza associada ao conceito de limpo”. As praias
são consideradas limpas, divinas (como o lugar onde moram os deuses). A pele
humana deve ser lisa, limpa, sem manchas e feridas. A pele dos jovens adolescentes
é considerada lisa, sem rugas.
Esta condição é considerada como própria das serpentes, que têm a
capacidade de serem eternamente "sem velhice". Expressa um ideal
estético/ontológico almejado para a vida toda, porém vivenciado no curto tempo da
juventude. O que faz das serpentes seres sempre jovens, que não envelhecem e, por
conseguinte, não morrem jamais, é a capacidade de trocar de pele, o que significa a
43
própria metamorfose. Além disso, na visão Ashaninka, as serpentes representam o
ideal estético não apenas pelas lisas membranas, mas igualmente pelos desenhos que
as recobrem
33
.
Peles lisas e pintadas representam o paradigma da beleza e da juventude e os
jovens fazem uso constante de uma ornamentação corporal específica, como um
meio de potencializar esse estado. São mais profusamente adornados do que
quaisquer outros indivíduos e carregados de uma atração erótica.
Sem defender a existência de uma noção transcultural de estética,o poderia
me furtar de, neste contexto, fazer algumas relações imediatas entre o significado
das cobras para os Ashaninka e algumas representações sobre a cobra na pintura
ocidental. Noto que, neste contexto, as cobras são usualmente apresentadas como
jóias ou objetos de adorno do corpo feminino. Para nos situarmos apenas na
renascença, a pintura de Piero di Cosimo (Chantilly, Musée Condé) oferece um
destes exemplos. Piero di Cosimo, em 1480, pintou Simonetta Vespucci com os
seios desnudos, ostentando um colar de serpente viva. A mãe de Alexander “o
Grande” é retratada no filme de Oliver Stone, nos anos 80, usando cobras vivas
como jóias em torno de seu corpo, enquanto diz para o jovem Alexander: "Nunca se
pode mostrar incerteza diante das cobras se não elas te mordem." Para não
mencionar a clássica imagem das Pin-up Girls”, com seus corpos nus, envoltos
apenas por uma cobra.
Estes exemplos não parecem tão distantes da concepção Ashaninka, pelo
menos quanto à posição formal da cobra em sua cultura e no seu aspecto de
visualidade. Tanto os aximarentse, (chocalhos de ombro) de uso feminino, quanto os
colares txoxiki, de uso masculino, são complementos indispensáveis do kitarentse e
estão indubitavelmente associados à cobra no aspecto sensorial de sua forma visual e
auditiva.
33
Observa-se fenômenos e respectivas classificações bastante semelhantes entre os
Wayana, descritos por Van Velthen (2003), e entre os Kaxinawa descritos por Lagrou
(2007).
44
Joanna Overing (1991), na sua definição de estética, amplia o uso deste
conceito, sugerindo sua extrapolação para outras esferas da vida ameríndia. Utilizo
esta forma singular de pensar e conceituar a estética como um guia importante para a
compreensão do estilo de vida Ashaninka.
Segundo Overing (cf. idem), o conceito de estética não é algo dotado de
natureza autônoma. É, antes, um conceito moral e político, que nos permite
compreender a socialidade ameríndia, uma vez que integra o conhecimento à
atividade produtiva. Estética, neste sentido, é beleza percebida como expressão de
valor moral e político, um conceito crítico importante para uma compreensão da
vida social cotidiana.
Neste novo contexto de conceituação estética, nada é mais apropriado do que
o conceito Ashaninka para se referir à “arte”, quando usam a mesma palavra
empregada para definir o “conhecimento”, lyorêka. Desta forma, longe de abordar a
produção artística Ashaninka stricto sensu procuro, seguindo os ensinamentos de
Overing, captar o seu “senso de comunidade”. E isto nada mais é do que
compreender seu estilo de vida em seus múltiplos aspectos sensoriais, como o
silêncio, o partilhar, o tecer, o “se pintar”, o “preparar” das pusangas. Tudo isso
enfatiza o aspecto olfativo e produz uma determinada concepção estética do mundo
reproduzida em pequenos, mínimos, mas não por isso menos significativos gestos e
intenções.
As pinturas faciais, muitas vezes, representam a folha cheirosa de uma planta
que possui pusanga. O desenho é feito com urucum (potote) misturado às próprias
folhas cheirosas. E, por sua vez, a própria lógica da pusanga expressa plenamente o
“senso de comunidade”: ninguém pode resistir à pusanga. Em um mundo Ashaninka
obcecado pelo “controle”, algo irresistível e incontrolável como a pusanga ajuda a
entender o complexo mundo dos acontecimentos e dos ventos, sobretudo nas trocas
incessantes de namorado(a)s e amantes. A pusanga controla a raiva, o ciúme. Esta
lógica facilita as separações que, na grande maioria das vezes, terminam silenciosas.
45
E o silêncio é um valor comunitário importante para os Ashaninka. Ele constitui seu
“modo de ser”, sua “pessoa”. A pusanga é um conceito que promove um
entendimento das coisas e ajuda a controlar as emoções potencialmente mais
explosivas e fortes contribuindo, assim, à harmonia ou ao que se pode designar
como o “senso da comunidade”.
Não são apenas os desenhos faciais que nos oferecem informações para
entender o estilo de vida Ashaninka. A parte do rosto na qual aplicam o desenho é
também de suma importância: é na testa ou fronte que o "pensar" está localizado; os
olhos são o espelho do pensar e a boca é o eco do pensamento. Foi neste sentido que
Wenki Pianko me disse a seguinte frase: "A cabeça inteira é parecida e está
relacionada com o mundo inteiro, e por isso somos capazes de sentir algo que
acontece numa outra parte do mundo".
O rosto, sendo o único lugar onde os Ashaninka se pintam - o resto do corpo
é coberto pelo kitarentse -, é preferencialmente coberto por um pano quando
adormecem. Hananeri explicou-me que depois das "correrias" que os brancos faziam
para obter escravos entre os Ashaninka, quando muitos brancos eram mortos nestes
confrontos, era necessário uma purificação no rosto. Para isso utilizavam plantas que
eram esfregadas contra a pele, até produzir sangramento. Neste contexto, o sangue
como memória do inimigo (Cf. Belaunde, 2005) devia sair do rosto do matador. O
matador era aconselhado a dormir de barriga para baixo e com o rosto voltado para o
chão, de modo que o pudesse ser reconhecido pelo o espírito do inimigo desejoso
de vingança.
Em algumas ocasiões, os Ashaninka cobrem o rosto por completo com a tinta
do urucum. Na percepção Ashaninka, esta pintura facial completa é usada como uma
camuflagem, algo para que não sejam percebidos. Esse estilo de “viver sem ser
percebido” é uma das funções ou "expressões" do kitarentse, a túnica longa dos
Ashaninka. Do mesmo modo que o silêncio ou o controle das emoções marca
profundamente este estilo Ashaninka de ser, onde a atenção é sempre concentrada
46
em atividades que associam à sua prática da vida diária, traduzida em múltiplas
formas de controle e organização.
A "festa" onde se bebe cerveja de mandioca não significa um estado de
comunitas ou um modo de sair do ordinário e do cotidiano. Pelo contrário, na festa
produzem-se e aprofundam-se relações sociais, discute-se politica. Em
contrapartida, até mesmo no ato de dormir uma ênfase na vigilância (temor do
ataque dos índios "isolados", dos peiari), na meditação, no planejamento para o dia
seguinte. Os Ashaninka o ostentam grandes rituais, mas essa meditação é tão
intensa que as atividades do dia seguinte são pensadas e organizadas durante a
mastigação da folha de coca - o silêncio que ensina. Assim, as tarefas diárias podem
ser vistas como tarefas que demandam sempre conhecimento e reproduzem
esteticamente o cotidiano enquanto “senso de comunidade”.
A “modelagem” do universo Ashaninka está diretamente relacionada à
capacidade “perspectiva” sobre este universo. Esta condição perspectivista dos
Ashaninka nos ajuda a compreender o significado de seus objetos, sobretudo do
objeto primordial desta tese, que é o Kitarentse, a túnica longa dos Ashaninka. A
cosmologia
34
Ashaninka apresenta vários elementos que poderiam ser classificados
como “animísticos” e muitos exemplos de uma percepção “perspectivista”.
As idéias Ashaninka sobre o cosmos poderiam ser usadas como uma
demonstração de uma habilidade imaginativa dos Ashaninka de “trocar de
perspectiva”. Lembramos aqui que Weiss, em 1969 (Weiss, 1969: 170-1),
descreve o mundo kampa como um mundo de aparências: o que é para nós terra
sólida é o efêmero céu para os seres que vivem no nível abaixo de nós. É um mundo
de aparências relativas, onde os seres diferentes vêem as mesmas coisas de uma
maneira diferente. Olhos humanos podem ver os bons espíritos na forma de raios
34
Gonçalves (2001) usa ‘cosmologia’ no seu livro “O mundo inacabado” como conjunto de
princípios, conceitos e categorias que orientam na interpretação modelar o universo.
47
de luz ou na forma de pássaros, enquanto eles se vêem na sua verdadeira forma
humana. Da mesma maneira a onça vê os humanos como animais de caça.
O perspectivismo é aquele aspecto do pensamento ameríndio que manifesta
sua “qualidade perspectiva”, é uma concepção segundo a qual o mundo é habitado
por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanos e não-humanos, que o
apreendem segundo pontos de vista distintos. Viveiros de Castro diz que:
“O estímulo inicial para esta reflexão são as numerosas referências, na
etnografia amazônica, a uma teoria indígena segundo a qual o modo como os
humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo deuses,
espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, fenômenos meteorológicos,
vegetais, às vezes mesmo objetos e artefatos é profundamente diferente do modo
como esses seres os vêem e se vêem.” (1996: 115)
Lagrou (2001: 105-106) nos lembra que, nos últimos vinte anos, alguns
autores chamaram a atenção para o caráter não-essencialista da visão de mundo
ameríndio. Segundo autores como Overing, Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro,
a inclinação filosófica ameríndia seria “nominalista” ao invés de “realista”. Neste
sentido, a introdução da noção de perspectivismo um passo além no processo de
compreender o significado das afirmações nativas. É ainda Lagrou quem define o
perspectivismo da seguinte maneira:
“Grosso modo, o perspectivismo indígena significa que o mundo (realidade)
que se depende de quem o vê; de onde se e com que intenção determinada um
ser olha para outro ser. Nesse sentido, o fenômeno da perspectiva, bem conhecido
pelos americanistas, pode ser colocado do seguinte modo: os animais se vêem como
humanos enquanto os humanos vêem os animais como caça; os humanos se vêem
como humanos e são vistos por determinados espíritos como caça.” (idem: 105)
48
Viveiros de Castro (1996: 120) nos informa que seu “perspectivismo” evoca a
noção de “animismo”, então recentemente recuperada por Descola (1992). Segundo
Viveiros de Castro, os modos de objetivação da natureza descritos por Descola se
inserem em um modelo de “ecologia simbólica”. O animismo é definido por
Viveiros de Castro (1996:121) como “uma ontologia que postula o caráter social das
relações entre os seres humanos e não-humanos: o intervalo entre natureza e
sociedade é ele próprio social.”
Viveiros de Castro procura demonstrar que categorias tais como “humano”,
“animal” e “alma” são categorias perspectivas para os ameríndios. O ponto de vista
define o lugar ocupado pelo sujeito. E do sujeito à “alma” não é mais que um passo
(Lagrou, 2001: 110). Possui alma quem é capaz de um ponto de vista. Se o que
define humanidade é a idéia de um sujeito com um ponto de vista, logo o que liga o
humano ao animal não é sua animalidade comum, mas uma mesma humanidade.
Inerente à capacidade de um ponto de vista é ter um corpo e este corpo, situado e
incorporado de agência, definirá como o mundo será percebido.
Gonçalves (2001: 27) chama a atenção para o fato de que os etnólogos, nas
últimas duas décadas, m destacando a importância da “construção do corpo” e da
“corporalidade”. Desse modo o autor explica que “o perspectivismo, nas suas
diversas formas, é herdeiro direto do desenvolvimento das discussões etnológicas
sobre corpo e corporalidade como instrumental conceitual e elemento-chave para se
entenderem as cosmologias ameríndias (...)
Gonçalves (2001: 29) cita Viveiros de Castro (1996) para dizer que, no
pensamento ameríndio e segundo uma das construções do perspectivismo, também
as almas têm substância, corporalidade, seguem a lógica das transformações
corporais e metamorfoses, são um tipo de corpo, são almas-corpos. Portanto, o que
cria a diferença no pensamento ameríndio é seu conceito de “corpo”, podendo-se
afirmar que os corpos diferenciam e as almas criam indiferença.
49
Neste sentido, conforme observa Viveiros de Castro, “é possível, por
exemplo, entender melhor por que as categorias de identidade individuais,
coletivas, étnicas ou cosmológicas exprimem-se tão freqüentemente por meio de
‘idiomas’ corporais, em particular pela alimentação e pela decoração corporal”
(Viveiros de Castro, 1996: 130).
Ainda neste contexto do perspectivismo e corporalidade, podemos perceber
que “o estilo de pensamento perspectivo implica uma constante consciência da
possibilidade de mudança de ponto de vista, conseqüentemente, mudando o olhar
sobre o mundo. Como é de se esperar, esta mesma atitude perspectivista pode ser
encontrada nos sistemas de desenhos amazônicos. A qualidade cinética de trocar a
perspectiva entre fundo e figura, quando se observa os padrões labirínticos típicos
(...) de muitas sociedades amazônicas (...) é um bom exemplo disso” (Lagrou,
2001:116).
Outra conseqüência do perspectivismo para a arte e para a percepção em
geral, como explica ainda Lagrou (2001: 119), é a tradicional oposição entre
aparência e essência ou entre realidade e ilusão que, a partir dessa nova
conceituação, passa a não fazer mais sentido.
50
Uma introdução conceitual à Antropologia da arte e à Etnoarte
“A inutilidade superficial de uma conversa sobre
arte parece corresponder a uma necessidade profunda de
falar sobre ela incessantemente.” (Geertz, 2002: 143-4)
Esta pequena introdução pretende ser tão somente um guia conceitual para
uma aproximação teórica ao objeto desta tese. A intenção aqui é fornecer um
percurso ao leitor que possa ser uma referência conceitual aos temas e questões
discutidos ao longo dos próximos capítulos.
Segundo Dias
35
(2000: 36-53), devemos partir da definição de arte da
perspectiva contemporânea ocidental, por uma série de razões. Primeiro, porque este
termo existe no discurso antropológico pela extensão de seu uso no Ocidente a
outras culturas. Depois, para não nos fixarmos em sentidos estereotipados e
anacrônicos da arte moderna e contemporânea. O autor (id.: ibid.), como antes dele
o fez Gell (Gell, 1996, 1998; Lagrou, 2003, 2007), parte, então, de três aspectos da
definição de arte: a teoria estética, as teorias comunicacionais e a teoria institucional.
Para a teoria institucional, arte é o que assim é designado pelos membros do
mundo da arte, aquele institucionalmente reconhecido. A teoria é útil para o estudo
das artes não-ocidentais, se considerarmos que permite entender que artefatos
“primitivos” tenham sido tratados como arte pelo mundo da arte ocidental. Porém, a
antropologia da arte não é o estudo dos objetos de outras culturas que os europeus
aceitaram como pertencente à categoria “arte”, nem se restringe à recepção da “arte
etnográfica” pelo público ocidental.
35
O trabalho de Dias (2000) é aqui utilizado por ser um guia e compilação das referências
contemporâneas sobre arte indígena apresentadas por autores que contribuíram
efetivamente para uma discussão conceitual sobre arte ameríndia como Vidal, Van
Velthen, Müller, Lagrou e Barcelos Neto.
51
Nas teorias comunicacionais, a arte é definida como uma atividade para dar
expressão visual a idéias complexas, a imagens mentais. Desde o seu início, a
antropologia da arte reconheceu que a comunicação de significados é uma
motivação importante na produção de objetos artísticos.
Na teoria estética (presente em muitas obras de antropologia desde o trabalho
pioneiro de Franz Boas, publicado em 1927, sobre antropologia da arte), a arte será
uma atividade orientada para a organização da forma das coisas, de que resulta um
objeto com qualidades de apelo visual (a beleza), capaz de estimular no expectador
um modo específico de visão - a experiência estética. Ao caracterizar a visão estética
como um modo fundamental da consciência humana, da relação de um sujeito com o
mundo, essa teoria da arte pretende fornecer um quadro conceitual aplicável
universalmente.
Entretanto, se para alguns as idéias de beleza e de excelência técnica
ocidentais não são questionadas, e se com base nelas são abordadas as artes
etnográficas, outros impõem matizes e adaptações para que se possa levar em
consideração os modos pelos quais esses objetos são vistos, sentidos e entendidos
por aqueles mesmos que os fizeram. Para estes, estética é uma categoria útil à
análise transcultural, conquanto ela seja tomada sob uma perspectiva relativizadora.
Os defensores do relativismo estético alargam o sentido de estética para além dos
critérios de beleza ocidentais. A capacidade de experiência será universal, mas
realiza-se sempre particularmente, segundo critérios estéticos que variam cultural e
historicamente. Neste contexto, interessam-se pelos modos como a visualidade, os
modos de ver os objetos são formados em diferentes contextos sociais.
Mais recentemente, com presença forte na antropologia da arte, surgiram
vários estudos de antropologia da estética. Neste novo contexto, a arte é englobada
pela estética, uma vez que a teoria estética pode aplicar-se a todas as classes de
objetos, que m outras funções além da apreciação estética. Esta vertente permiteria
tratar de objetos de sociedades onde não um sistema de arte autônomo e,
52
portanto, não objetos artísticos no nosso sentido do termo ou seja, objetos cuja
função primeira é servir à contemplação -, mas objetos artísticos com
especificidades culturais e históricas (Dias, 2000: 36-53).
Recusando a idéia de uma estética universal, pensa-se estética como a
capacidade humana de atribuir valores qualitativos a propriedades do mundo
material, e a sua tarefa é explicar as diferenças entre modos de ver de culturas
diferentes. Trata-se ainda de considerar as características objetivas do objeto, mas
dessa vez conforme as concepções que as pessoas, localmente, fazem delas, do
modo como o objeto funciona, como realiza o que é suposto realizar no seu contexto
social. Nesta visão, cada cultura possui uma estética específica. Mesmo que as
sociedades primitivas e outras não tenham estetas e nem críticos de arte, existem
escalas de julgamento ou, pelo menos, padrões a serem atingidos, propriedades que
devam ser criadas em um objeto para que ele seja “eficaz”.
Segundo Dias (2000: 44,45) se trata, então, da investigação desses discursos
estéticos particulares, destas etno-estéticas. A melhor forma para ilustrar a mudança
de ênfase no quadro teórico que acompanhou minha passagem de uma formação em
“história da arte” com uma especialização em “arte étnica” para a “antropologia da
arte” seria talvez através de um diálogo com a obra do antropólogo mais provocativo
em relação à antropologia da arte: Alfred Gell.
Ao se referir a Sally Price (1989), Gell (1998: 1,2) sintetiza a contribuição
que segundo ele poderia ser a própria ampliação da história da arte para o campo da
etnoarte. Segundo Price a etnoarte merece ser avaliada pelos próprios critérios
estéticos usados pelos produtores e a partir desta mediação ser incorporada ao
universo de arte freqüentado por expectadores ocidentais. A arte não-ocidental não
seria essencialmente diferente da nossa arte; cada cultura tem uma estética
específica para aquela cultura e a meta da Antropologia da Arte é definir as
características de cada estética para cada cultura. Precisamos contextualizar para
expandir a experiência estética além de nossa visão culturalmente determinada.
53
Contextualizar a arte, seja em um certo período, seja em uma certa cultura é
exatamente o que a história da arte faz. que a história da arte faz muito mais do
que posicionar as obras de arte em uma linha de tempo, a disciplina começa a ser
chamada de ciência da arte: para poder apreciar plenamente uma pintura medieval é
necessário ter uma visão bem ampla desta sociedade, não para poder decifrar a
extensa iconografia, como também entender a estética daquele período.
Do mesmo modo que a história da arte precisa da arqueologia para o caso de
contextos situados em períodos de tempo não mais acessíveis, o historiador da arte
especializado em etnoarte necessita de dados etnográficos e da antropologia para
“interpretar” a arte “do outro”. Neste sentido, o estudo da etnoarte encontra-se aqui
em uma área interdisciplinar, onde às vezes não é mais possível dizer se o campo de
estudo tende mais para a “História” da Arte ou para a “Antropologia” da Arte. Se
Gell é cético com relação a esta inter-disciplinaridade e defende uma abordagem
mais social que cultural, antropólogos americanos como Clifford (1988), Marcus e
Myers (1995) m nesta inter-disciplinaridade a vocação das humanidades e
“chamam a atenção para a simultaneidade e a interdependência do nascimento da
arte moderna e da antropologia enquanto disciplina. A antropologia teria dado aos
artistas a alteridade que procuravam para poder se opor ao establishment. Na visão
de Marcus e Myers, o dever da antropologia não seria o de se abster de qualquer
julgamento, mas o de se unir à vocação da arte moderna e contemporânea de ser o
motor de uma permanente 'crítica cultural'” (Lagrou, 2007: 39).
A necessidade da contextualização da arte do outro” é tão extrema que os
próprios termos “arte” e “estética” precisam, como veremos, ser redefinidos ou
ampliados, como propõe Lagrou (2002:7; 2005). Isso explica brevemente minha
passagem da Historia da Arte para a Antropologia da Arte. Discussões cosmológicas
sobre a concepção e organização do mundo nativo são indispensáveis para
“entender” a etnoarte. Principalmente quando se consideram sociedades onde o
único instrumento de acesso à visualização da beleza (propositalmente) oculta é uma
54
escuta que supõe uma lenta familiarização com a língua e com o rico imaginário que
surge nas narrações míticas e nos cantos rituais (Lagrou 2002: 12; 2005).
Aprender a percepção nativa e captar como o pensamento nativo concebe a
realidade parece necessário ao estudo da etnoarte. Uma contextualização neste
sentido encontra-se mais no domínio da Antropologia do que na Historia da Arte.
várias pressuposições sobre como deveria ser uma Antropologia da Arte.
O que seria Antropologia da Arte para Price é para Gell (1998: 2) Historia da Arte
ou teoria da arte. Segundo Price, se trata aqui de um modo de ver” um sistema
cultural. Enquanto segundo Gell tudo isso não tem qualquer relação com uma
Antropologia da Arte, porque tal programa é exclusivamente cultural e a
Antropologia é para Gell (idem: 4) uma disciplina social. A Antropologia da Arte
deve, então, se ater ao contexto social da produção de arte, sua rede de circulação,
recepção e etc.
Julgamentos estéticos são para Gell atos mentais interiores; objetos de arte,
por outro lado, são produzidos e circulam exteriormente no mundo físico e social.
Esquemas avaliativos são de interesse antropológico apenas quando fazem parte dos
processos sociais de interação.
O que a antropologia estuda, segundo Gell, o relações sociais e uma teoria
estética não pode existir independentemente do contexto social de suas
manifestações. Só poderia existir uma teoria antropológica da(s) estética(s) se a
teoria também explicasse porque agentes sociais produzem as respostas (que eles
têm) para certas obras de arte.
A meta da Antropologia é dar sentido à conduta humana no contexto das
relações sociais. O objetivo da Antropologia da Arte, conseqüentemente, é dar conta
da produção e circulação das obras de arte, como uma função neste contexto
relacional.
Podemos distinguir esta concepção de um programa que providencia um
55
“contexto” para a arte o-ocidental, para que esta possa ser entendida por um
público relacionado à arte ocidental (Gell, idem: 5).
Segundo Lévi-Strauss, o antropólogo o poderia se desinteressar da arte
justamente porque ela é uma parte da cultura. Para o autor, a arte constitui, em mais
alto ponto, essa tomada de posse da “natureza” pela “cultura”, algo como o protótipo
dos fenômenos que os antropólogos estudam (Lévi-Strauss apud Charbonnier 1961:
96).
Arte é uma forma especial de comunicação, um sistema de signos, diz ainda
Lévi-Strauss (idem: 76). Por esta razão, as idéias de Lévi-Strauss fazem parte,
segundo Dias, das teorias comunicacionais da arte, acima mencionadas.
A função da obra da arte é significar um objeto, estabelecer uma relação
significativa com um objeto (idem: 98). A arte é uma linguagem, mas não uma
linguagem qualquer (idem: 96). A arte é uma linguagem ‘em si’. O que o artista fala,
pensa não é importante, o que importa é o que ele faz. Não fosse assim, não haveria
necessidade de compor poemas ou música, ou pintar quadros. Ele escreveria livros
(idem: 100).
A arte é vista por Lévi-Strauss como um sistema significativo, ou um
conjunto de sistemas significativos, mas que fica sempre a meio caminho entre
linguagem e objeto (idem: 97). Para Lévi-Strauss (1962: 36), a arte fica a meio
caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico. O artista
se situa entre um ‘savant’ e um bricoleur’. Retornando à entrevista com Charbonier
(1961: 69-81), Lévi-Strauss menciona três diferenças entre a etnoarte e a arte
“ocidental”. A arte ocidental apresenta um representacionismo, academismo e um
individualismo pronunciado. Lévi-Strauss diz que um etnólogo se sentiria
perfeitamente em casa com a arte grega antes do século V e com a pintura italiana
até a escola de Sienna. não se tratava de sociedades onde a arte se tornou, em
parte, algo de uma minoria que nela busca um instrumento ou um meio de prazer
íntimo. Nas sociedades indígenas, ao contrário, a arte é um sistema de comunicação.
56
“Nossa” arte perdeu o contato com sua função significativa na escultura grega e a
função significativa na pintura italiana do renascimento.
Segundo Lévi-Strauss a escrita foi profundamente importante na “evolução”
da arte para uma forma figurativa. A escrita ensinou aos homens que era possível
não apenas significar o mundo exterior através dos signos, mas também tomar posse
deste mundo. A partir da escultura grega, ou na pintura do renascimento não
encontramos mais esse esforço de significação, essa atitude puramente intelectual, o
que é tão notável na etnoarte. Encontramos na escultura grega e na pintura do
renascimento uma espécie de prazer sensual de inspiração mágica, que ela se situa
na ilusão de que podemos não nos comunicar com o ser, mas nos apropriarmos
dele através da efígie. Lévi-Strauss chama esta atitude de possessividade perante o
objeto, uma maneira de se apropriar de uma riqueza ou de uma beleza exterior. É
nessa exigência desejante, nessa ambição de capturar o objeto em benefício do
proprietário ou mesmo do expectador, que se situa uma das grandes originalidades
da “nossa arte”.
Uma diferença notável entre as “artes” é a oposição entre a etnoarte, que visa
essencialmente a significação, e a arte ocidental, que visa a possessividade” (uma
minoria, amadores têm acesso ao consumo da arte), e que torna-se cada vez mais
representativa e menos significativa (para que haja ‘linguagem’, é preciso haver um
grupo maior, como nas sociedades indigenas). Outra diferença é a relação com a
tradição artística. Na etnoarte não encontramos essa preocupação. Em nossa
sociedade essa preocupação é maior. Aqui, é importante considerar se os grandes
mestres são seguidos (academismo) ou se uma ruptura foi feita. Uma última
diferença seria a distinção entre a pertinência ou não de uma forma de produção
artística individual ou coletiva. Na etnoarte, a distinção entre o individual e o
coletivo não seria tão importante como se mostra fundamental em nossa sociedade.
Nas sociedades indígenas reconhece-se com mais objetividade o papel da atividade
inconsciente na criação estética (Charbonier, 1961: 81-104). Voltaremos mais tarde
57
ao tema da ‘inspiração” recebida dos seres sobrenaturais ou sob a influência da
ayahuasca.
A grande diferença, ainda segundo Lévi-Strauss, seria a inexistência entre
povos indígenas da distinção entre arte e artesanato, conforme conhecemos na arte
ocidental. Na arquitetura e na moda, por exemplo, podemos encontrar domínios
intermediários entre a “pureza contemplativa” e a “mera funcionalidade”. Todavia,
na etnoarte jamais encontramos obras feitas para serem apenas contempladas. A
apreciação valorativa da arte pode estar exatamente no seu caráter temporário,
relacionado ao contexto.
O “sublime” e o “extraordinário” de certos objetos são enfatizados desde
Kant enquanto atributos que devem ser levados em consideração para que um objeto
seja passível de ser contemplado. Podemos entender que no mundo ocidental, a arte
indígena se encontraria no campo da chamada “arte decorativa”, em razão de ter
uma função utilitária ou um uso maracadamente cotidiano. Veremos que seria
demasiadamente simples catalogar a arte indígena enquanto arte decorativa, ou
como mero artesanato.
Por ter uma ligação tão forte com seu contexto, Lagrou (2002: 5; 2005)
enfatiza a lição metodológica tirada desta constatação: a impossibilidade de isolar a
forma do sentido, na arte Kaxinawa:
“(...) a ‘eficácia estética’ inclui mais que forma, mobilizando uma capacidade
semiótica ou comunicativa específica, assim como uma capacidade de agência, pois
tanto quanto expressam, tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de
maneiras muito específicas que precisam ser analisadas no contexto. Mais do que de
uma análise meramente representativa, precisamos, portanto, de uma análise de
agência dos objetos ou dos grafismos no contexto das interações sociais” (Lagrou,
1998; 2007).
58
Uma flecha kaxinawa decorada com desenhos poderia ser contemplada, por
exemplo, esteticamente em si, em uma vitrine, durante uma exposição em uma
metrópole. O mundo da arte ocidental poderia definir a flecha como uma obra de
arte’, que seus desenhos ultrapassam o mero funcional. Para nós uma flecha não
precisa ter desenhos para voar melhor. O que pensar quando temos a informação
etnográfica que, segundo os Kaxinawa, os desenhos na flecha transformam
justamente o artefato num objeto “capaz de agir” com eficácia? Entendemos que o
sentido muda a partir do momento em que colocamos uma peça em uma exposição.
Outro ponto é a inexistência do estatuto do artista enquanto gênio criador.
Existem exemplos de artistas conhecidos, mas ser artista não implica,
necessariamente, em uma especialização. Desta forma, muitas vezes cada membro
do grupo sabe criar obras de arte’”. Vale frisar, ainda, que a inspiração é quase
sempre atribuída aos seres não-humanos ou às divindades que aparecem em sonhos
e visões (Lagrou, 2002).
O mínimo que podemos dizer é que a arte ocidental e a etnoarte têm suas
diferenças. Mas, em lugar de concluir que por esta razão não existe estética nem
arte, poderíamos também dizer que, se todos os membros ativos têm acesso ao
processo de produção de objetos e à beleza resultante deste saber fazer,
impregnando o cotidiano de uma comunidade com um estilo particular, todo
membro desta sociedade é também um artista (Lagrou, 2005).
Neste caso, estaríamos usando uma definição mais ampla de ‘arte’, derivada
da palavra do latim ars, em uma significação anterior à especialização que a palavra
sofreu durante o Iluminismo (Severi em Lagrou, 2002). Este conceito refere-se à
capacidade consciente e intencional do homem de produzir objetos e ao conjunto de
regras e técnicas que o pensamento usa para representar a realidade e agir sobre ela.
E, seguindo Boas (1955), poderíamos dizer que todo controle de uma técnica traz
consigo a fruição do aperfeiçoamento da forma, em termos funcionais, ornamentais
59
ou expressivos (Lagrou 2002: 7; 2007).
Outra característica da etnoarte ameríndia, em harmonia com o que
colocamos anteriormente, é a centralidade da corporalidade e da pessoa. Lagrou
(idem: 7,8) enfatiza a importância do fato de que um grupo de antropólogos tenha
chamado a atenção para a existência de uma complexa linguagem simbólica em
torno de sua “fabricação” (Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro 1987). O corpo e
a pessoa são concebidos e esculpidos ao modo e ao estilo da comunidade. Lagrou
(2002: 8) destaca que praticamente toda a produção artística dos indígenas
brasileiros gira em torno da produção e decoração do corpo humano, onde ressaltam
especialmente a arte plumária, as pinturas corporais e as máscaras rituais, os
instrumentos para alimentar e hospedar este “corpo”, os utensílos para obtenção dos
alimentos e etc.
A pintura corporal pode desempenhar o papel de uma segunda pele e é usada
tanto no cotidiano como também em festas e rituais. Pode ser usada para adornar e
embelezar ou para mascarar e transformar quando outros “seres” são representados
(Lagrou idem 8,9).
A pintura corporal e a utilização dos adornos podem ter diferentes “funções”:
entre os Jê, como um código de leitura de distinções sociais, entre grupos
amazônicos, como os Kaxinawa e os Asurini, os mesmo materiais tendem a servir
de ligação com o mundo dos seres invisíveis. A pintura facial e corporal dos
Kadiweu, por outro lado, teria uma função ‘civilizadora’ segundo Lévi-Strauss:
quem não tivesse seu rosto pintado com estes desenhos se encontraria mais próximo
à natureza do que à cultura (Lagrou idem: 15,16).
60
Capítulo 2. A construção do coletivo Ashaninka
Aproximando: localização, população, língua
A produção bibliográfica sobre os Ashaninka é vasta e heterogênea, reunindo
conjuntos complexos de material histórico e etnográfico. Para fins desta tese optei
por não fazer um balanço crítico e uma incorporação extensiva de toda a bibliografia
disponível, uma vez que tal tarefa exigiria um exercício de comparação controlada
que ultrapassaria em muito os objetivos da tese. Concorrente a esta questão, o tema
de minha pesquisa entre os Ashaninka envolvendo arte e objetos não foi um tema
privilegiado por nenhum dos trabalhos que conheço sobre os Ashaninka até o
momento. Desta forma, penso que minha etnografia sobre o Kitarentse e todas as
implicações sócio-cosmológicas decorrentes deste objeto complementa e é
complementada pelas demais etnografias.
Utilizo o material bibliográfico Ashaninka de modo mais pontual e seletivo,
geralmente em notas comparativas. Entretanto, se faz necessário destacar neste
momento meus principais interlocutores bibliográficos, aqueles que me ajudaram, de
algum modo, mesmo que assumidamente implícito no meu texto, a desenhar uma
percepção da sociedade e do estilo de vida Ashaninka.
Varese (1968), a partir das minas de sal do Peru, procura abordar o encontro
das diversas etnias da região dando ênfase às trocas e viagens empreendidas pelos
Ashaninka. Weiss (1969) emprende um estudo pioneiro detalhado da cosmologia
Kampa no Peru, que se caracteriza por uma primeira organização temático-
etnográfica sobre os principais temas do pensamento Ashaninka.
Mendes (1991) emprende uma etnografia da festa de cerveja fermentada,
piarentse, observada na aldeia do Rio Amônia, relacionada à organização social. Seu
61
trabalho caracteriza-se por ser um estudo seminal e que introduz temas cruciais para
área de estudos Ashaninka. Ainda Mendes, publica na Enciclopédia da Floresta
(2002) um trabalho sobre classificação da fauna e da flora vistos da perspectiva dos
Ashaninka, chamando atenção para a importância da ‘cobra’ em suas etno-
classificações.
Brown & Fernandes (1991) fazem um trabalho de reconstrução da história
política com ênfase nos movimentos messiânicos, desde os primórdios das relações
entre os Ashaninka e os brancos a a participação dos Ashaninka nos conflitos
recentes no Peru envolvendo Exército peruano e os guerrilheiros. Espinosa (1993a,
1993b) analisa a importância da guerra e da concepção de violência para os
Asehninka do Peru. Pimenta (2002), que fez trabalho de campo no rio Amônia,
constrói uma etnografia ao remontar a noção de história e política para os
Ashaninka, no contexto das relações interétnicas. Lenaerts (2002) desenvolve um
trabalho sobre a significação da natureza para os Ashaninka do Peru, aportando
material considerável sobre os sistemas de classificação natural-sociocosmológica.
Leclerc (1997) aborda o xamanismo Ashaninka do Peru com ênfase na
classificação etno-botânica e no uso das plantas. Ioris (1996) pesquisa as relações
entre a agência de proteção aos índios e os Ashaninka, explorando o sentido das
categorizações de ‘índio brabo’, Ashaninka, regionais e Funai. Destacamos ainda os
trabalhos de Renard-Casevitz (1985, 1992, 1993) que abordam temas etnográficos
cruciais, como relações de troca dos produtos da selva e produtos manufaturados
entre os Ashaninka e o os Incas, mitologia e princípios cosmológicos que remontam
ao significado da alteridade para os Matsigenga do Peru.
No Brasil, os Ashaninka ocupam os rios Breu, Amônia e Arara, afluentes do
rio Juruá e Envira, tributários do rio Tarauacá. Em território peruano, encontram-se
às margens dos rios Apurimac, Ene, Perene, Tambo, alto Ucayali e Pachitea, assim
como em seus respectivos afluentes, como também no altiplano do Gran Pajonal
(Mendes 1991: 9). São um dos mais significativos grupos indígenas que se
62
encontram na bacia superior do Amazonas, sendo o mais extenso grupo cultural de
índios silvícolas do Peru. Segundo os dados do Instituto Socioambiental (1993), 813
Ashaninka moram no Acre e 55.000 (1999) no Peru
36
.
Vários nomes são dados aos Ashaninka: Kampa, Campa, Camba, Tampa,
Thampa, Komparia, Kuruparia, Campiti, Ande, Anti Chuncho e Chacscoso (Steward
e Metraux 1948: 537). Ashaninka aparece em espanhol como Asháninca. Outras
ortografias são Ashéninka e Ashaninga (Brown 1991: 219). No Peru são mais
conhecidos como Campa (idem: 2). Segundo Weiss (1969: 159), os bons espíritos
são chamados asháninka, como a própria autodenominação do povo e quer dizer
também “nossos amigos”, o que reflete a amizade ou até laços de parentesco, que
muitos dos bons espíritos eram originalmente membros do grupo Ashaninka.
Alguns nomes dos grupos anotados pelo franciscano Biedma em 1680 foram
dados por seu guia Conibo, Cayampay (Brown 1991: 17-18 apud Varese 1968).
Brown sugere que o termo “kampa” tenha sua origem em uma das línguas faladas
pelos guias dos Franciscanos. Seja qual for a sua origem, por volta de 1680 o termo
Kampa acabou por tornar-se a designação corrente para aqueles povos, afastando a
multiplicidade termos para designar os Ashaninka.
Renard-Casevitz (1992: 204), por exemplo, reserva o termo Ashaninka para
as províncias centrais no Peru, ela recorre a Kampa, na falta de outro termo que
possuísse uma extensão comparável, para designar a totalidade dos subconjuntos
arawak não-piro.
Ashaninka é ao mesmo tempo a autodenominação das gentes das províncias
centrais (Cerro de la Sal e Gran Pajonal) e um termo comum aos Kampa, o que
36
Segundo Varese (1968: 14) 20.000 Ashaninka estão morando no Peru, enquanto Weiss
(1969: 40) menciona 30.000 indivíduos. A Comissão Pró-indio/Acre, em 1981, fala de 58
Ashaninka vivendo no rio Breu .Os dados para 1985 indicam 324 Ashaninka situados nos
rios Amônia e Envira. Em um levantamento realizado por Mendes (1991:11), em 1989 os
Ashaninka eram 35 no Rio Breu e 226 no rio Amônia.
63
significa seu parentesco. O termo começa com a-, nós inclusivo, ou seja, nós e vós,
nossos vizinhos ainda desconhecidos, mas arawak como nós, e significa ‘nós’, ‘a
gente’. Entre os Nomatsiguenga, etnia do Peru, encontra-se a inicial no-, nós
exclusivo.
Nas fontes coloniais peruanas, os Ashaninka (como os outros povos da selva)
são referidos como Anti, termo Quéchua que denominava as regiões orientais, assim
como as cordilheiras de Carabaya-Vilcabamba. Assim, o termo Anti passou a
designar, por extensão, as densas florestas que as cobriam e os povos que as
habitavam (Mendes 1991: 13).
Segundo Pimenta (2002: 39) não existe consenso na literatura sobre a origem
dos Arawak naquela região. Assim, segundo Lathrap (1970:70-78), as populações
do tronco lingüístico proto-Arawak se concentravam originalmente no Médio
Amazonas, isso é, perto da atual Manaus. A partir de 3000 A.C. essas populações
iniciaram vagas migratórias sucessivas. Payne (1991), por outro lado, parte da
hipótese de que a região que concentra a maior diversidade lingüística é
provavelmente o lugar de origem de toda a família. Neste caso, o centro-norte do
Peru seria o berço da família Arawak, que se dispersou posteriormente, e os
Ashaninka atuais teriam permanecido próximos à sua origem (Pimenta, 2002: 39).
Segundo Mendes (1991: 18), o padre Constantino Tastevin (que visitou a
bacia do rio Juruá em 1906) foi o primeiro a mencionar os Ashaninka em terras
brasileiras. Os Ashaninka encontram-se hoje em localidades que marcam os limites
de ocorrência de seringueiras (Hevea brasiliensis) e onde o caucho é raro. Esta área
pode ter sido um refúgio a salvo dos caucheros peruanos e dos seringueiros
brasileiros. O avanço dos caucheros rumo ao interior pode ter feito com que parte
desta população recuasse para o leste.
Outra hipótese diz que os Ashaninka foram sendo trazidos por caucheros
peruanos, ou tenham sido atraídos por patrões brasileiros, empenhados em combater
os Amahuaka, seus inimigos tradicionais e habitantes daquelas regiões.
64
Os Ashaninka integram, ao lado dos Piro, Amuesha, Matsiguenga e
Nomatsiguenga, o conjunto dos Arawak pré-andinos. Os Ashaninka e os
Matsiguenga pertencem, ambos, como também os Piro, à família lingüística Aruak.
(d´Ans: 263, 264). Os Piro tinham uma influência política e cultural sobre os
Ashaninka, mas não existe uma compreensão lingüística entre eles. Esta
compreensão existe, por outro lado, de tal maneira entre os Ashaninka e os
Matsiguenga, que podemos considerar que falam uma língua comum, diversificada
apenas dialetalmente.
Segundo d’Ans (idem:164) esta afirmação contradiria as classificações
lingüísticas geralmente aceitas, que consideram o Ashaninka e o Matsiguenga como
duas línguas distintas. A divergência teria surgido de dados não muito corretos, pelo
fato de que os Matsiguengua foram conhecidos por brancos vindo da Serra Central
enquanto os Ashaninka teriam sido contatados por brancos vindo da região de
Cuzco. A falta de comunicação entre uns e outros fazia com que os Ashaninka e os
Matsiguengua fossem concebidos como duas etnias diferentes.
Nos últimos anos, os missionários do Instituto Lingüístico de Verão
apontaram novos dados lingüísticos que procuram demonstrar que a língua “Kampa”
se divide em três regiões dialetais: o “campa” (propriamente dito na classificação
antiga, onde o nome indica tanto os Ashaninka quanto os Matsiguenga ); o campa
Nomatsiguenka (falado por grupos até agora pouco conhecidos) e o campa
pajonalino (no Gran Pajonal). variações entre esses três dialetos “campa”, da
mesma forma que há diferenças entre o campa-Ashaninka e o Matsiguenga.
Por isso d’Ans conclui que uma língua Aruak pré-andina (que podemos
chamar de “Anti”, retomando o nome que os antigos Andinos usavam tanto para os
Ashaninka como para os Matsiguengas) e que esta língua se subdivide em quatro
regiões dialetais: Ashaninka, Machiguenga, Nomatsiguenka e Pajonalino.
65
História da guerra e da inimizade
“Eles têm uma consciência aguda de sua liberdade
pessoal e morrem para defendê-la.” (O franciscano Biedma
em 1686, pouco antes de ser executado por Kampa)
37
Os Ashaninka são situados na história das relações interétnicas (incluindo
aqui os brancos e as demais etnias da região) a partir das informações históricas
sobre guerra e inimizade, pois é através da guerra que uma possibilidade de coletivo
Ashaninka emerge e ganha visibilidade nos múltiplos discursos das fontes históricas.
Neste capítulo examinaremos justamente como este ‘coletivo’ Ashaninka é
construído no período de dois séculos, através das fontes históricas e tendo como fio
condutor a guerra e a inimizade.
Vários autores mencionam os Ashaninka como sendo um povo altamente
“guerreiro”. Bodley (1972: 220-223) alega que durante os 300 anos de influência
ocidental eles têm notoriamente resistido. O milênio que precede a chegada dos
Incas foi marcado pela existência de importantes focos culturais andinos. A cultura
huari
38
marca, segundo Renard-Casevitz (1992: 199), uma dupla virada: a da
urbanização nos Andes e a da ruptura colocada nos estudos andinos entre as “altas
civilizações” andinas e a “selvagaria” das terras baixas. Apesar desta ruptura nos
estudos andinos, sabemos que eles mantiveram relações econômicas, religiosas e
simbólicas entre si. Penas, peles, algodão e plantas sobem a sierra, enquanto o
metal, lã, etc. descem para a floresta. Segundo Renard-Casevitz (id.: ibid.), a coesão
do conjunto Arawak subandinos já existia neste tempo.
vizinhos do império huari, os Arawak subandinos tornaram-se também
vizinhos do império inca. As relações entre o império e o conjunto dos Arawak
subandinos, chamados de Anti pelos Inca, eram marcadas por relações de amizade.
37
Apud Renard-Casevitz 1992:206
38
A cultura huari atingeu seu apogeu entre 600 e 900 (Renard-Casevitz 1992: 199).
66
Isto porque os Incas entenderam que esforços para conquistar os “povos da selva”
seriam inúteis, por serem povos resistentes e guerreiros experientes em seu próprio
terreno, organizados em frações infinitesimais desdobradas em redes espalhadas por
imensos territórios de acesso difícil e cujo ecossistema os andinos não dominavam
(idem: 200).
Os ecossistemas locais requerem, da parte de eventuais conquistadores,
estratégias adequadas. Renard-Casevitz (1988: 67) alega que a federação multi-
étnica possuía estratégias eminentes, com reservas de armas, espiões, vigias. Frente
a esta flexibilidade estratégica, usando técnicas de guerrilha, os Incas e os Espanhóis
sofriam o peso dos modelos econômicos e militares e do centralismo estadual, pouco
adaptado a este meio e suas sociedades.
As relações de amizade entre o império e o conjunto dos Arawak subandinos
provavelmente auxiliaram os Arawak a manter e até a extender sua presença ao
longo da fronteira Inca, contra as investidas das sociedades amazônicas vizinhas,
especialmente dos grupos Pano. Por outro lado, a extensão do império nos Andes e
sua geopolítica nas fronteiras acarretavam reorganizações e intensificações das redes
comerciais e guerreiras do conjunto arawak. Isso era razão suficiente para que se
aliassem aos Pano
39
. Então, através do desenvolvimento das potencialidades
confederativas interamazônicas e meios de união guerreira, instauravam-se seus
modelos, como modos de organização permanentes (comércio) ou alternativos
(confederação militar) e reforçavam-se as tendências de integração interétnica (id.:
ibid.)
Pimenta (2002: 40, 42) chama a atenção para o fato de que os povos
amazônicos viam no seu vizinho uma sociedade organizada em cidades, um mundo
hierarquizado, negador da liberdade e incompatível
40
com o modo de vida na
floresta. Essas oposições não impedem, contudo, o estabelecimento das relações
39
Renard-Casevitz (idem:200) menciona também que, por outro lado, as relações com os
Inca eram também geradoras de rivalidades e ataques entre sociedades das terras baixas.
40
Ver também Clastres.
67
econômicas, políticas, xamânicas, terapêuticas e matrimoniais mencionadas por
Renard-Casevitz (1988:67).
No momento da conquista espanhola, diz Renard-Casevitz (id.: ibid.), as
redes comerciais e de guerra integravam todos os Arawak e os Pano ribeirinhos,
todos prontos para unir-se, enquanto amazônicos, contra as ofensivas provenientes
das terras altas.
A infiltração missionária no território Ashaninka iniciou-se em 1595, com
Juan Font e Nicolas Mastrillo, dois padres jesuítas, guiados por Juan Vélez (Brown
& Fernándes 1991: 15). Padre Font lamentou não ser possível fazer progresso com
os índios, principalmente porque encontravam-se espalhados pela floresta, sem
autoridade e nem líder.
O primeiro esforço missionário de caráter permanente veio do padre
Jerônimo Jiménez, um jesuíta que fundou uma missão em Quimirí (agora a cidade
La Merced), perto do Cerro de la Sal, um lugar de importância estratégica. A igreja
era rigorosamente contra a poligamia e, por conta da perda deste privilégio
41
, o líder
Andrés Zampati era a favor da morte de Jiménez, que de fato viria a ser assassinado
em 1637 no rio Perene, junto com um outro padre, Larios. Pedro Bohórques Gíron
deixou a pobreza de Andalucía para encontrar sua sorte no Peru, onde aterrorizou e
abusou da missão. Conseqüentemente, os Ashaninka fugiram de Quimirí. Naquela
época, as ordens Jesuíta, Dominicana e Franciscana disputavam entre si os
territórios das missões, muitas vezes por razões que em nada tinham a ver com
salvar almas (idem: 18-22).
Os Franciscanos tentam novamente em 1671, na época das famosas
expedições de padre Manuel Biedma (1673). Duas missões foram fundadas, mas no
final do século XVII tudo fracassou porque muitos missionários foram mortos.
41
Ver organização social.
68
Em 1709 os missionários voltam a tentar um estabelecimento. Desta vez
traziam consigo quantidades formidáveis de machados, o que, evidentemetne, atraía
os Índios. Os franciscanos continuavam a pregar contra a poligamia e às atividades
xamanisticas. Junto com a ocorrência de doenças trazidas pelos brancos, isso levou a
uma nova rebelião. Em 1737, o líder Ignácio Torote organizou a morte de um padre
e alguns índios convertidos. Depois atacou a missão em Sonomoro, matando três
padres, um noviço e alguns convertidos. Segundo Izaguire (1922: 87), padre Fray
Manuel Bajo perguntou, morrendo, porque ele fez isso e Ignácio teria respondido:
“Porque vocês estão nos matando cada dia com suas cerimônias e catecismos,
tomando nossa liberdade.” Derrotada a rebelião e feitas as campanhas de punição
pelos espanhóis, os franciscanos pensaram que um período de paz havia começado.
Mas, em 1742, os Índios fugiram em massa das missões para encontrar o Inca, a
quem chamaram Juan Santos Atahualpa Apu-Inca Huayna Capac (Brown e
Fernándes idem: 22-33).
Brown e Fernandes (1991: 36-43) se perguntam se Juan Santos mobilizou
uma crença de mudança total que existia entre os Ashaninka, ou se ele mesmo
fundou a crença milenar ou messiânica. De qualquer modo, a reação explosiva
contra a colonização tornou-se um modelo para futuros surgimentos (nos séculos
XIX e XX) de uma esperança e crença em uma mudança total da situação
Ashaninka.
Juan Santos Atahulpa teria recebido sua educação em Cuzco, provavelmente
em um seminário jesuíta. Teria viajado para a Europa e para missões na África.
Chegou no Gran Pajonal em março 1742 e queria expulsar os espanhóis e seus
escravos. Juan Santos considerou os negros como pessoas oprimidas, mas também
como matadores ocasionais de índios. Provavelmente em razão dos conhecimentos
táticos, das técnicas de combate e do uso de armas espanholas, sua participação na
rebelião foi admitida. Seu objetivo era restaurar o reino Inca com ele mesmo ao
69
comando, porque considerava-se o herdeiro legítimo, segundo também a vontade de
deus.
Juan Santos Atahualpa construíu um pequeno forte em Quisopango (Brown e
Fernandes idem: 36). Em 1743, tomou o controle da missão em Quimiró, que
contava com 2000 índios provenientes de diversos grupos (idem: 37). Quimiró fora
fortificada para um possível ataque dos espanhóis. Os rebeldes tinham contatos com
os índios do planalto e uma rede de espiões por todo o lado. Entre os seguidores de
Juan Santos houve também um grupo de 52 mulheres e viúvas do planalto,
conduzidas pela ex-escrava de dona Ana de Tarma.
Quando os espanhóis atacaram Quimiró, os índios rebeldes simplesmente
desapareceram na floresta. Mais tarde, os rebeldes ocuparam o povoado de
Huancabamba. Cortaram também o abastecimento de provisões dos espanhóis que
assediaram Quimiró. Logo em seguida os rebeledes retomam Quimiró e atacam as
tropas de reforço no rio Chanchamayo, com o próprio armamento apreendido em
Quimiró. Villa García escreveu para o rei em 1744, queixando-se dos Kampa que
achavam comida em qualquer lugar como também a madeira para fabricar suas
flechas, bordunas, lanças etc. (idem: 40-41). Em 1746, os espanhóis enviaram cerca
de 800 homens para o território rebelde, mas a campanha foi um verdadeiro
desastre.
Em 1752, o território dos Ashaninka, Amuesha e Piro foi totalmente
reconquistado pelos nativos e essa situação se manteve durante décadas (idem: 49).
Depois da expulsão, afirma Bodley (1972: 220-223), os Ashaninka mantiveram,
durante um século, contatos infreqüentes e hostis com “a civilização”. Na metade do
século XIX, a pressão de contato aumenta e a situação altera-se gradualmente. A
resistência dos Ashaninka foi minada quando a colonização recebeu a ajuda do
exército. Em 1851 o explorador Herndon achava os Ashaninka numerosos,
belicosos, e resolutos em impedir que estrangeiros penetrassem em seus territórios.
Os ataques dos Ashaninka mantinham o rio Perene virtualmente fechado para os
70
brancos. Prova disso é que o explorador polonês Wertheman foi continuamente
emboscado, enquanto descia o rio Perene e Tambo (Bodley, ibid.). Em 1869, a
cidade La Merced foi inaugurada e imigrantes europeus, chineses e peruanos
começaram a invadir a área e a reivindicar terras dos Ashaninka.
Pouco a pouco a colonização se apossa da Serra do Sal, empurrando os
Kampa para o Gran Pajonal (Renard-Casevitz 1992: 208). Com a perda do sal, os
kampa tinham perdido o controle do comércio interamazônico. Foi no Gran Pajonal
que Fitzcarraldo, segundo Casevitz, sendo acusado de espionagem para o Chile, em
1880, condenado à morte e salvo in extremis, refugiou-se durante algum tempo.
Jogando com o messianismo
42
, Fitzcarraldo conseguiu reunir uma verdadeira milícia
kampa-piro e promoveu correrias
43
intra-étnicas entre os Ashaninka, rompendo
assim a proibição da endoguerra (id: ibid.).
A partir do século XIX, a exploração da borracha foi causa de grande
extermínio de índios. Calcula-se que 40.000 Witoli foram exterminados entre 1900 e
1910, no Putamayo. As incessantes correrias com, como diz Renard-Casevitz (id.:
ibid.), seu assustador desperdício de vidas humanas, subiam cada vez mais os rios
para compensar as carnificinas ao norte e a leste, no Madre de Diós e na região do
Acre. As denúncias feitas pelos Matchiguenga e gravadas pela autora (idem:
209,210) acabam com qualquer mistificação romântica em relação a Fitzcarraldo: a
memória Matchiguenga fala sobre o desespero do cativeiro, sobre corpos cobertos
de gasolina e queimados vivos para iluminar as refeições campestres servidas por
Fitzcarraldo e etc.
42
Ver “cosmologia”.
43
Muitas correrias”, a caça de escravos, eram conduzidas pelos próprios Campa. Mas os
Piro e os Conibo eram talvez os mais notórios assaltantes na caça de escravos (Bodley
1972: 221). Mencionamos aqui brevemente a mistura de folhas de coca com um cipó e uma
pedra pulverizada, chamada choco, que é relacionada à guerra. Essa mistura era o único
alimento utilizado por eles na ocasião das expedições de guerra ou das “correrias”, durante
as quais era proibido o ato de cozinhar, pois a fumaça poderia trair a expedição. Essa
mistura, intimamente ligada aos valores masculinos e guerreiros, é usada nas caças de longa
distância ou nos períodos prolongados de escassez de alimentos (Gonçalves 1991: 92-93,
99).
71
Em 1891, uma concessão vasta de terra no alto Perene foi dada a uma
companhia inglesa (a Corporação Peruviana Ltda) para colonização e a produção de
café. No mesmo ano, a “Via Central” ou “trilha Pichis” foi inaugurada. Era uma
trilha para mulas, que ia da cidade de La Merced através do território dos Ashaninka
para Puerto Bermudez, no rio Pichis, conectado com Iquitos por barco a vapor no rio
Amazonas. Este caminho era muito usado, permitindo um sensível aumento da
imigração nesta região.
Bodley (1972: 222) explica que os Ashaninka começaram a perceber o valor
de suas terras, mas era tarde demais. Eles tinham a escolha de se retirarem mais
para o interior, onde a vida era incerta, ou se afogarem em dívidas por causa dos
novos proprietários de terras: nesse ponto, muitos escolheram a resistência armada.
O ataque mais espetacular dos Ashaninka foi o do cerco à missão do Pangoa,
em 1896. Outro ataque bastante conhecido é o assalto de 1913, em 6 pontos
diferentes ao longo da trilha “Pichis” (que ligava a região ao vale do Perene e à costa
peruana) por grupos de 40 a 200 Ashaninkas, armados com espingardas. Os índios
cortaram as linhas telegráficas e mataram cerca de 150 colonialistas. A trilha foi
temporariamente fechada.
Nas últimas décadas do século XX, a violência política no Peru envolveu os
Ashaninka. Sob a influência da revolução cubana de 1959, surgiu um grupo
Guevarista no Peru, o M.I.R. (Movimento da Esquerda Revolucionária), dirigido por
Luis de la Puente (Brown e Fernandes 1991: 89). Para o M.I.R. os Índios eram
campesinos ou até proletários rurais. Segundo Brown e Fernandes (1991: 95), a
esquerda não pode ser culpada por esta visão “equivocada”, que a antropologia
peruana ainda não havia desenvolvido uma tradição de trabalho de campo. Nos anos
‘50 e ‘60 não havia muitos dados disponíveis sobre como eles viviam e pensavam.
O comandante da coluna da guerrilha que fazia a fronte central do M.I.R.,
chamada Túpac Amaru, inspirou os Ashaninka a aspirar novas utopias. Chamava-se
Guillermo Lobatón Milla e era proveniente de uma família pobre de Lima, com
72
raízes afro-americanas, tendo estudado literatura e filosofia na Universidade de San
Marcos. Segundo Mario Vargas Llosa (in Brown & Fernandez, 1991), Guillermo era
um homem extraordinário, em quem se podia confiar cegamente. Grupos Ashaninka
e Nomatsiguenga juntaram-se à guerrilha e rias aldeias foram bombardeadas com
napalm e alvejadas através de helicópteros.
Brown e Fernandes mostram que o M.I.R. pode ser considerado como um
movimento romântico-idealista”, mas apontam que o movimento nem sempre foi
prudente e etc. Os movimentos que surgiram depois da derrota do M.I.R., como o
M.R.T. (Movimento Revolucionário Tupac Amaro, remanescente do antigo M.I.R.)
e o S.L. (Sendero Luminoso) parecem ter sido mais escondidos, cuidadosos e,
conseqüentemente, a informação sobre esses grupos é menos abundante. O S.L., por
exemplo, parece ser o primeiro movimento revolucionário no mundo que evitou
declarações públicas (Brown e Fernandes 1991: 202).
De qualquer modo, a fama guerreira dos Ashaninka foi disputada no Peru
tanto pelo governo quanto pela esquerda
44
. O governo forneceu armas para que os
Ashaninka pudessem se proteger contra rios invasores no seu território. Em
contrapartida, os Ashaninka eram levados a combater a guerrilha de esquerda. Por
sua vez, a guerrilha lhes oferecia armas, dizendo que o verdadeiro inimigo era o
estado, que havia vendido grandes partes da sua terra para as multinacionais. Sem
querer me pronunciar eticamente sobre este assunto, o que podemos concluir é que
esta guerra envolveu milhares de Ashaninka e que o discurso guerreiro ainda é
muito vívido e intenso entre eles.
Pimenta (apud Espinosa 1993b: 80-82) frisa que em 1990 cerca de 10.000
Ashaninka viviam sob o domínio da guerrilha, a grande maioria, em situação
escrava. Alguns Ashaninka colaboraram, outros organizaram a contra-ofensiva. No
44
Ver as memórias de Friar Mariano Gagnon (Warriors in Eden), Simon Strong (Shining
Path), Luis Arce Borja (“The Ashaninka and the peoples war” in Revolutionary worker),
Mary Powers (Reuters, 21 agosto 1993), Caretas (26 de setembro 1993), El Diário
Internacional (dezembro 1991), Washington Post (8 de setembro 1993.
73
dia 24.02.1989, 80 lideranças Ashaninka reuniram-se e anunciaram a criação do
“exército Ashaninka”. Segundo Pimenta (idem: 82), comunidades Amuesha
integraram as tropas que compunham-se de cerca de 30.000 Campa.
Outro fato que mantém o discurso guerreiro atual é a participação dos povos
indígenas na fiscalização do controle a invasões (de madeireiros, por exemplo) em
terras indígenas de fronteira. Como afirma Cavalcante “A atuação dos guerreiros
Ashaninka na fiscalização e controle de limites e bens da terra indígena tem sido
importante para evitar a presença de invasores” (Cavalcante, 2002: 69).
Em seus comunicados à imprensa, os líderes modernos das organizações
Ashaninka inscrevem suas ações em uma tradição cultural de luta iniciada por
ilustres antepassados, como o chefe Torote ou Juan Carlos Atahualpa.
45
Através de
novas formas de organização política representadas pelas associações indígenas
modernas, como disse Pimenta (idem 1983), os Ashaninka reelaboram os antigos
modelos de confederações guerreiras, usados com sucesso para conter o
expansionismo Inca ou Espanhol.
Steward e Metraux (1948: 535) mencionam a prática da guerra Ashaninka
enquanto predominantemente defensiva. Não sabemos se esta informação é
relacionada à paz interna, alegada por Renard-Casevitz, para quem, em relação à
guerra, os Ashaninka compartilham com os subconjuntos arawak o-piro um traço
cultural raro: a proibição da guerra interna. Esta proibição de vendeta e dos ataques
estende-se a todos os “Kampa”, sejam Ashaninka, Nomatsiguenga ou Matsiguenga e
até Amuesha.
A julgar pelos mitos, segundo Renard-Casevitz (1992: 204), essa paz interna
é mais antiga do que a época de Juan Santos Atahualpa
46
, sugerida por Izaguirre e
certamente se consolidou no tempo dos incas. Essa proibição ou, como descreve
45
Bodley (idem: 226) nota que, apesar das comunidades serem largamente espalhadas, os
Ashaninka eram notórios por poderem se reagrupar em torno de figuras carismáticas (poder
religioso e capacidade como guerreiros), para realizar operações militares.
46
Ver a “historia guerreira dos Ashaninka”.
74
Renard-Casevitz (idem: 205), forte restrição da agressão armada não atinge os Piro.
Como os grupos pano fluviais e interfluviais, estes, apesar de serem arawak,
praticavam a endo e a exoguerra. Nenhuma hostilidade é registrada entre os Kampa
até aproximadamente 1890, ou seja, até a época da borracha. Essa organização era
capaz de reunir, em alguns dias, de 1000 a 3000 guerreiros e, em algumas semanas,
de 4 a 5 vezes mais. O exército assim constituído, alega Renard-Casevitz (idem:
207), sabia se manter invisível, evitava os embates frontais, praticava a política da
“terra arrasada” e etc.
Sabemos que o treinamento para a guerra desempenha um papel importante
na educação da criança. Um menino Ashaninka é treinado desde muito cedo, pelo
pai e parentes próximos, na manipulação do arco e das flechas, sendo orientado
sobre a importância da agilidade e dos movimentos pidos para não ser alvejado
pelo inimigo. Aprende a usar uvenki (Cyperus ssp) e outras ervas “mágicas” para
tornar forte seu arco, fazendo dele um guerreiro invulnerável (Mendes, 1991: 77).
Tendo em vista a elaborada máquina de guerra dos Ashaninka, Mendes
(1991: 114) questiona esta não-agressão e acredita que também se treina tendo em
vista um inimigo próximo. Assim, desde muito cedo, crianças do sexo masculino
são treinadas para atividades guerreiras. Destreza e agilidade constituem
potencialidades que os meninos Ashaninka são incentivados a desenvolver. Nas
brincadeiras prediletas, flechas (sem ponto) são trocadas, sendo vencedor o grupo
que conseguir acertar primeiro, em partes mortais, todos os integrantes do grupo
adversário. Nas disputas individuais, como aquelas que os homens costumam
realizar em reuniões de piarentsi
47
, estes têm que demonstrar sua ligeireza e
agilidade em desviar-se de objetos que são arremessados contra seus corpos, em
geral pedaços de pau e de barro, pedras e outros. Valdez testemunhou a arte de se
esquivar durante uma viagem no rio Tambo, em 1906, com o Ashaninka Hohuate.
Eles passaram por um território inimigo e durante a batalha que se seguiu, Hohuate
47
Ver “organização social”.
75
ridicularizou seus inimigos dançando em frente à canoa, enquanto ele esquivou-se
das flechas com dificuldade (Brown: 64).
Mendes (idem: 115) descreve os Ashaninka como excelentes arqueiros que,
segundo contam, quando iam para a guerra não levavam flechas, mas somente o
arco. Esperavam que o inimigo lançasse todas as flechas, das quais eles apenas se
desviavam; quando as flechas do inimigo terminavam, apanhavam apenas uma delas
e o matavam. Os Ashaninka mostram-se orgulhosos de sua coragem, de suas
habilidades com arco e flecha, de sua rapidez e agilidade: qualidades resultantes de
um longo treino, cuja existência é, segundo Mendes (id.: ibid.), explicada por sua
inquestionável valorização social.
Mais uma prova da agilidade com a qual os Ashaninka se movimentavam
seria o relatório do Padre Amich, um franciscano, que notava que o uso da cushma
não combinava muito bem com arqueiros vigorosos. Apesar disso, nota que os
Ashaninka sabiam se movimentar fluentemente, sem rasgar uma vez sequer a roupa,
nos muitos espinhos no caminho (Brown, 1991: 24, 25).
76
O kitarentse e possiveis motivos de guerra:
Jomanorio desenhou um kitarentse com
vários desenhos, feitos de urucum misturado
com as seguintes plantas:
-Tsireniweki: Pontos pequenos e pretos nas
laterais: “(para) assoprar, o cara (o inimigo)
vê nada, a gente aproveita (mata o inimigo
enquanto ele é cegado)”.
-Kitowenki: a raiz desta planta é preta por
dentro (como no desenho): “para ser treinado
a ver melhor; para poder ver a flecha chegar
e se desviar dela.” O desenho é feito da
mistura de urucum vermelho, preto e
kitowneki.
-Parowenki: dois círculos grandes
circundando um círculo pequeno pintados na
parte superior do kitarentse. “Parece olho,
para ver tudo (durante a batalha), para não
ter medo, para ter coragem (para ter a
coragem de “ver tudo” e de não fugir dentro
de si mesmo)”.
77
Capítulo 3. Kitarentse
48
e seus complementos
A Técnica de tecelagem
Kitarentse é um termo Ashaninka que dificilmente poderia ser traduzido de
forma simples como ‘roupa’ ou ‘couro’, uma vez que pode assumir várias
definições, como a de “pele” e essempre referido à concepção de corporalidade e
todas as implicações derivadas desta noção, que parece ser central para o
pensamento Ashaninka. Ao longo deste capítulo exploraremos com muitos detalhes
os significados sociocosmológicos de kitarentse, sobretudo quando ele se associa a
noções de mortalidade/imortalidade. Neste momento, desejamos introduzir o leitor a
um aspecto mais técnico de sua materialidade, que nos parece essencial para a
compreensão dos demais aspectos que conotam sua forma material.
Em sua materialidade, o kitarentse divide-se em masculino e feminino. Os
kitarentses femininos nunca são tecidos com algodão pelas mulheres, mas são feitos
a partir de tecidos de algodão comprados nas lojas da cidade de Feijó. O tecido
comprado é, na maioria das vezes, o mais barato e vem com desenho. A filha de
Kokonha pintou no seu kitarentse, à altura dos ombros e no centro do peito, três
bolas de urucum. O tecido industrial tinha um desenho e ela pintou o seu motivo por
cima do motivo do tecido industrial. Pintou, ainda, mais duas linhas horizontais e o
kitarentse inteiro, várias vezes, com casca de arvóre.
48
Kitarense significa cushma, a roupa Ashaninka, um tipo de poncho fechado nas laterais
feito de algodão.
78
Caixa trançada para guardar o fuso Desenho da caixa trançada acentuando
o padrão cobra
Os kitarentse masculinos, em contrapartida, são tecidos pelas mulheres em
teares construídos especiamente para tal tarefa e são preparados por mulheres de
suas relações, podendo ser sua mãe, sua irmã ou sua esposa. O kitarentse se constitui
em dois retângulos de tecido que cobrem o corpo completamente e daí talvez
advenha a associação produzida pelos Ashaninka entre o kitarentse e ‘batina’.
Kitarentse também recebe o nome de cushma pelos regionais e é, sobretudo, o nome
corrente no Peru. Segundo informações disponíveis, a tecelagem é associada à
região andina e à América pré-colombiana, contando com registros remontando a
4.000 A.C. Ou seja, no período pré-cerâmico do Peru se encontram vestígios
arqueológicos de roupas e do uso da tecelagem em algodão.
Os retângulos são costurados no sentido vertical nas laterais, deixando espaço
para os braços, e no sentido horizontal, deixando espaço para o pescoço e cabeça. O
uso do kitarentse também difere conforme o sexo. As mulheres o vestem de modo
que a costura se posiciona nas laterais do corpo, produzindo o decote reto, enquanto
o homem o veste de forma que a costura é posicionada no meio do corpo,
produzindo naturalmente o decote ‘V’, marca diacrítica do kitarentse masculino.
Ter um kitarentse, para os Ashaninka, é algo essencial e desde a mais tenra
infância, quando a criança começa a andar, ela recebe seu primeiro kitarentse que
será trocado sucessivamente de acordo com seu crescimento. Crianças que não usam
79
o kitarentse e, portanto, andam nuas, o alvo de brincadeiras, quando as demais as
chamam de ‘amauhuaca’ como sinômimo de ‘índios arredios’.
Bolas de algodão Fiando o algodão
As mulheres aprendem formalmente a fazer o kitarentse no final da
adolescência, quando sentam-se ao lado de outra mulher, em geral a mãe, para
‘olhar’ como se faz e poder aprender. É um aprendizado lento que envolve,
sobretudo, a capacidade de observação, além da prática, quando a mestra estimula a
aprendiz a tomar parte no processo de tecelegem, ajudando concretamente a
produzir o kitarentse.
Do mesmo modo que a caça, o processo de fiar algodão não envolve apenas
técnicas de execução, mas sim conhecimento encorporado
49
. É neste sentido que a
tecelã pega uma planta de seu roçado para esfregar entre as mãos que é, segundo os
Ashaninka, “remédio para aprender a fiar algodão”. Do mesmo modo, um homem
toma remédio para ‘aprender a caçar’.
O contexto de aplicação destes remédios aponta para um duplo sentido. Em
primeiro lugar, para o saber ‘corporal’ de saber fazer algo e, em segundo lugar, para
49
Veja Lagrou (2207) e Kensinger, (1995) para uma discussão do conhecimento
encorporado entre os Kaxinawa.
80
a rara assimetria de nero observada entre os Ashaninka. Expliquemos: quando um
homem toca no fuso da mulher e quando a mulher toca no arco do caçador uma
espécie de ‘contaminação’ que induz a um estado que lembra o ‘panema’’(Galvão,
1961; Da Matta, 1977), descrito como o azar na caça nas comunidades ribeirinhas
amazônicas.
Desenho de teares
Antes do começar a tecer o kitarentse é preciso obter, em primeiro lugar, os
fios de algodão. O algodão não é uma matéria-prima fácil de ser encontrada em
abundância nas roças Ashaninka. Embora sua plantação seja sempre estimulada e
desejada, volta e meia, dependem de relações com os demais Ashaninka ou até
mesmo com os índios vizinhos, como os Culina, aos quais os Ashaninka do rio
Envira quase sempre recorrem para obter o algodão. Este é o caso de Xawio, que
trocou com os Culina um pequeno bracelete de missanga por uma cesta cheia de
algodão.
A retirada da semente do algodão é feita em grupo, normalmente durante a
noite, enquanto mastigam coca. Abre-se o algodão retirando suas sementes
81
alocando-os em um cesto. Cada floco de algodão apresenta em média um cacho que
tem de 6 a 8 sementes que são retiradas. O floco limpo é depositado sobre a perna,
para posteriormente ser batido na esteira trançada, com o auxílio de um pedaço de
madeira que serve com ‘pau de bater o algodão’. Bater o algodão produz finas
camadas homogêneas de cerca de 1 cm que são dobradas. A parte dobrada é batida
novamente e assim indeterminadamente arrumando-se os longos chumaços em zig-
zag. Ao final esfrega-se o chumaço de algodão com as mãos de modo a atingir a
forma considerada perfeita, quando está pronto para fiar.
Fuso e bola de algodão
O fuso compõe-se de uma haste de madeira de pupunha cortada e apontada
pelos homens e inserida em uma peça de barro perfurada no centro, sempre
confeccionada pelas mulheres, que serve de tortual. Assim, a confecção da haste
para o fuso é uma tarefa eminentemente masculina. Yanko foi quem produizu o fuso
para sua tia materna Xawio, porque esta iria confeccionar um kitarentse para ele. Os
fusos para fiar são abundantes e encontram-se espetados à palha do teto das casas.
Por exemplo, na casa de Tanta pude contar 13 fusos. Ajeita-se um pouco de fio de
algodão em torno do topo da haste de madeira para se ter um melhor apoio no
momento de fiar. Como forma de fixar o fuso para não deixá-lo correr para os lados,
fia-se em um recipiente, apoiado no kitarentse entre as pernas, estando-se sentado ao
chão. Neste recipiente xiko, o cal usado para misturar a folhas de coca, assim
como para ser aplicado às mãos no momento em que se torce o fuso, de modo que
não escorregue, facilitando, assim, o trabalho.
82
Identificado como o motivo da cobra kempiro.
A letra N e A e o motivo da cobra pusanginari.
Desenho em cuias, motivo cobra, que apóiam o fuso. Os mesmos motivos encontra-se nos
kitarentse e pinturas faciais.
Durante a confecção do fuso pelos homens, as mulheres o testam, percebendo
seu equilíbio e seu balanço, assim como a espessura adequada. Freqüentemente
fazem comentários, sugestões, dão dicas aos homens de como aprimorar a confecção
dos mesmos. Este fato demonstra por si a importância e a atenção que os
Ashaninka dão à arte do tecer, responsável pela confecção do objeto primordial de
sua cultura, o kitarentse.
83
Cesto com fusos e bolas de algodão
Mulher limpando o algodão
A mulher começa, então, a fabricação dos fios com o uso do fuso, geralmente
uma atividade feita durante a mastigação de coca, no período noturno. As mulheres
juntam dois fios para formar apenas um, com o intuito de produzir um fio mais forte
e que permita a confecção de um kitarentse durável. neste processo de
preparação determinadas associações entre a resistência do fio e seu processo de
confecção, que estão relacionadas a certas características agentivas associadas ao
84
algodão e ao fio. Se os fios se embaralham no momento de confecção das bolas com
dois fios de algodão para posteriormente serem refiados e tornarem-se resistentes,
isso quer dizer que o marido da tecelã vai encontrar outra mulher. Quando o fio se
quebra, de repente, durante o processo de fiar, diz-se que o algodão está preguiçoso,
isto é, não quer colaborar para o processo de confecção do kitarentse.
Em seguida, a mulher separa uma quantidade de fios para o tingimento, com
lama escura retirada de um igarapé próximo à aldeia. Obter um fio escuro ou
colorido
50
é crucial na produção do kitarentse, visto que são os fios escuros que vão
estabelecer os motivos, no próprio processo de tecelagem.
Desenho e foto de uma mulher tecendo
50
Hoje os Ashaninka utilizam também corantes industriais adquiridos na cidade para o
tingimento dos fios. Existe ainda um algodão naturalmente da cor marrom, que é utilizado
para tecer os motivos, não precisando assim de tingimento.
85
É importante esclarecer que são os motivos que estruturam a possibilidade de
confecção de um kitarentse. As mulheres detêm o conhecimento sobre os motivos,
que são todos referidos a elementos da natureza (arco-íris, larva, cobra, pássaro,
peixe, lagarto etc). A mastigação de coca é o momento privilegiado para a
organização mental do processo de confecção do kitarantse. Neste momento, a
mulher concebe abstratamente o motivo que irá ser aplicado ao kitarantse. Esta
abstração do desenho é a etapa crucial, momento inaugural da possibilidade do
kitarentse, uma vez que o motivo vai determinar a posição dos fios no tear e sua
armação para a produção do tecido. Antes de inciar o kitarentse, porém, é preciso
tomar as medidas da pessoa que será seu proprietário. Julieta tomou as minhas
medidas para fazer meu kitarentse. Um fio de algodão foi colocado embaixo de meu
pé e esticado até meu ombro, completando duas voltas. A medida de um kitarentse é
tomada de modo que seja maior do que o modelo, uma vez que a kitarantse tem a
função também de servir como ‘saco de dormir’ e mosquiteiro, permitindo que se
enrole o corpo todo, confortavelmente.
A partir deste momento, o processo de produção do kitarentse se desenvolve
em duas etapas. A primeira etapa consiste em dispor os fios em hastes de madeira
verticais (utilizando-se como base o esteio da casa), em que se desenrola quatro
grandes bolas de algodão, cujos fios contornam as hastes de forma a ir produzindo o
arranjo do motivo pretendido. Terminado o arranjo vertical dos fios, passa-se então
ao que pode ser realmente chamado de tear: substitui-se os paus rústicos que
prendiam verticalmente os arranjos dos fios por hastes lisas; a partir daí, a
composição como um todo ganha uma torção horizontal, dobrando o seu
comprimento.
Desta perspectiva, o tear é formado por cinco hastes móveis, sustentadas pelo
poste da casa e amarradas pela trama dos fios. A última haste é amarrada a uma pele
de jacaré ou veado, que serve de sustentação, quando presa às costas da tecelã.
86
87
88
Definindo os motivos para uma tipóia.
Fiando algodão na casa do fogo.
Pude observar que, em apenas quatro horas, Julieta tirou as medidas para
confecção do kitarentse que tencionava fazer, pensou o motivo, instalou o tear e
teceu aproximadamente cinco centímetros. Em onze dias o kitarentse estava pronto.
A sensação de demora na produção de um kitarentse parece advir do fato de seu
processo de prepação ser lento, sobretudo o trabalho de produção dos fios.
89
Há uma associação entre algodão e lua. Xawio diz que depois da lua cheia ela
fica preocupada, porque a lua vai desaparecer, virá a escuridão e este sinal pode
significar que algo de ruim pode acontecer. Disse que sua mãe (Tenoria) lhe ensinou
a espalhar algodão no terreno, justo no período em que a lua desaparece, para que o
céu abra novamente, espalhem-se as nuvens, deixando a lua visível novamente.
Observa-se o mesmo ato ritual de espalhar pedaços de borra incandescente no
terreiro para afastar as nuvens. Limpar o terreno diariamente e colocar a esteira no
terreno com os flocos de algodão serve para abrir o céu como as estrelas da terra que
Pawa vê lá de cima. Neste sentido, o ato de limpar a terra e colocar as ‘estrelas’ lá (o
algodão e as borras incandescentes) é como que produzir um reflexo no céu. Pawa
olha para a terra e vendo tudo estrelado e limpo diz: “vou fazer isso também, vou
limpar o céu e mostrar as estrelas e a lua novamente.”
Desenho impokiro – estrela (no papel e no rosto).
90
Outra relação entre fiar e os fenômenos naturais é percebida na proibição de
fiar quando está trovejando. Xawio dizia à sua filha Maria, quando trovejava: Pare
de fiar, quer perder tua mão? É como uma faca! Se você fica mais velho você vai ter
dor nas mãos como eu.” Todas as mulheres pararam de fiar e somente retornaram
quando pararam as trovoadas.
Txoxiki.
“A história da cobra vai muito longe, muito longe... (Jomanoria: 03.2006).”
O txoxiki, os grandes colares feitos com sementes, talvez seja o mais
importante complemento do kitarentse (em si representando a pele descamável),
porque reforça a mesma “incorporação” da pele da cobra e com isso, como veremos,
o desejo da imortalidade. Todos os tipos de txoxiki são ligados à cobra e, em
especial, os txoxiki sarioki (feito de sementes pretas). Igual à pele da cobra, as
sementes do txoxiki sarioki estão num constante estado de descascamento. Quando
as sementes descascam ficam foscas, ganhando novamente seu brilho, pelo uso
diário. Julieta falou literalmente que isso acontece “por causa, do contato com o
corpo, por causa do calor do seu corpo” demonstrando, assim, a importância do
corpo para o pensamento Ashaninka, o que designamos por embodiment,
literalmente.
Os Ashaninka chamam a atenção para a necessidade do “descascamento” das
sementes ser um processo “natural”. Quando descasquei algumas sementes do meu
próprio txoxiki sarioki durante um piarentse, Julietta advertiu-me para que não me
preocupasse com o momento em que as sementes se tornariam foscas, uma vez que
o processo de descascamento é assim mesmo. Pensei, erradamente, que o objetivo
do ‘descascamento’ era para que a semente obtivesse o mais rápido possível seu
brilho definitivo. Mas é justamente o processo em si mesmo, lento, que é
91
importante: sementes com cascas brilhantes, que aos poucos vão perdendo a casca,
renascendo, se renovando.
Assim como os kitarentse, os txoxiki estão num constante processo de
transformação. Na sucessão das cores, o branco (o kitarentse novo, a cor do
algodão), o vermelho (casca de iguano) e o preto (lama), o processo em si é,
também, importante. Uma chave para entender a importância do processo é o uso de
cores nos motivos do kitarentse, porque depois de cada banho com casca de iguano,
as cores dos motivos desaparecem gradualmente e, no final, não vão ter mais
importância. Por que, então, o esforço de pintar o fio, e às vezes mesmo gastar o
escasso dinheiro em tinta industrial comprada na cidade, quando a cor é a primeira
coisa que vai desaparecer?
O mesmo processo me foi explicado como a pele da onça preta, onde os
motivos são quase invisíveis. Neste sentido, acentua-se ainda mais a importância da
metamorfose em si, em todo o processo de transformação dos objetos e dos seres.
Desenhos txoxiki
92
Além do descascar, os txoxiki são ainda submetidos a outras mudanças: estão
sempre cheios de nós e é sempre necessário consertá-los. Durante uma piarentse,
quando dois homens estão amigavelmente discutindo, um pode quebrar a corrente de
um txoxiki do outro. Digamos que se trata de uma quebra ritualizada, durante uma
discussão tranqüila: admite-se o próprio erro e se dá a permissão ao outro de quebrar
uma corrente do “agressor”. Na maioria das vezes, aquele que teve uma de suas
correntes quebradas vai argumentar com aquele que quebrou até poder quebrar
também a sua corrente. Depois da quebra, dá-se um na corda quebrada. Os nós
nas correntes nem sempre apontam para a ocorrência de um ato ritualizado:
correntes quebram também quando as crianças brincam com os txoxiki dos pais,
quando os pais dançam e em outras ocasiões. Assim, os txoxiki o apenas vivem
mas ostentam marcas da história de vida de seu possuidor.
Confecção e uso do txoxiki:
93
94
Sementes (sarioki) usadas para confecção de txoxiki
Para Bebito Piãnko, da comunidade Apiwtxa do rio Amônia, os txoxiki
representam, em sentido lato, a “jibóia”. Ele informou que quando se começa a usar
um txoxiki é preciso continuar usando, não se pode parar de usar. Cado txoxiki
transmite um determinado poder que é descrito como uma ‘sensação diferente’. Os
Ashaninka dizem que é bom usar diferentes tipos de txoxiki. A pessoa se sente
melhor com um tipo de txoxiki do que com outro, dependendo do seu ser. É como se
cada txoxiki produzisse uma personalidade ou uma adoção de atitude.
95
A mesma coisa, segundo Bebito, pode ser dito do chapéu
51
, que transmite,
também, certo poder. Observa-se sobre estes objetos um tabu: mulheres não podem
tocar os txoxiki, nem os chapéus. Podem ajudar no processo de criação dos txoxiki
(um trabalho que exige colaboração, pois trata-se de enfiar inúmeras sementes), mas
depois, não podem mais tocá-los. A complexa interação do txoxiki (e do chapéu)
com o corpo e vice-versa constitui o que designamos como ‘processo de
embodiement’. Isto é, quando se começa a usar txoxiki é preciso continuar, uma vez
que ele está virando uma parte do próprio corpo daquele que o usa.
Txokiki tsuangiriki
A imagem que Raimundinho, da comunidade de Simpatia do Rio Envira,
descreveu (contando o mito que elaboraremos mais tarde) de um Ashaninka que
pegou a jibóia (depois de ter tido relação sexual com ela) em volta do braço e em
volta do pescoço “como um txoxiki”, é uma imagem prototípica que retorna
51
Veremos que tanto o uso do txoxiki como do chapéu é ensinado aos Ashaninka pela
mesma cobra kempiro.
96
freqüentemente nas sessões de ayahuasca como um “sonho bom” ou como pesadelo.
É através desta idéia de poder que podemos ter uma idéia do ideal da estética
Ashaninka, explorada a seguir a partir de três versões sobre a origem do txoxiki. Em
todas as três versões, kempiro
52
desempenha um papel preponderante.
Txoxiki kiritiski
A cobra kempiro, a mais valente de todas, ensinou aos Ashaninka o uso do
arco, o uso do chapéu e dos colares. Digamos que o chapéu e os txoxiki refletem
uma estética de poder, uma admiração por uma beleza letal”. Porém, o motivo de
kempiro é mais do que isso: é ao mesmo tempo uma prova da superação do medo da
morte. Quando se erra o motivo de kempiro, a cobra vai morder aquele que errou.
Assim, no motivo de kempiro encontramos a essência da arte Ashaninka.
52
A cobra bico de jaca, Lachesis muta.
97
Desenho de kempiro feito por Jomanoria. Desenhou o dia inteiro para não errar no motivo.
uma passagem no mito em que Jomanoria fala que “vamos virar kempiro
também” e logo em seguida acresecenta: “mas Ashaninka não é cobra não.” Os
Ashaninka querem adquirir tanto a beleza quanto a valentia de kempiro. A
admiração pela valentia e pela força de kempiro contribui para os Ashaninka achá-lo
especialmente bonito e é, certamente, uma das razões pelas quais eles acham
kempiro tão bonito. Entretanto, devo mencionar que também acham kempiro bonito
em si, tout court. Deste modo, a declaração de que “Ashaninka não é cobra não” não
parece querer exprimir a idéia de uma tentativa de separação dos homens e animais
no cosmos Ashaninka, mas apontar para o fato de que, afinal, os Ashaninka não
possuem a imortalidade.
O que os Ashaninka possuem é, neste sentido, a mesma valentia de kempiro e
sua arte corporal é prova direta desta constatação: a execução errada do motivo de
kempiro leva seu executante à morte. Assim, aquele que produz um artefato adorna-
se simbolica e visualmente com a idéia de superação do medo da morte. “Vamos
virar kempiro não expressa o desejo de atacar indiscriminadamente qualquer
pessoa, de ser um predador, mas sim de poder controlar a predação.
98
E, neste sentido, os Ashaninka sabem esperar o momento certo de atacar,
controlando a predação e seu potencial de agressividade. Isso ficou claro quando
Wenki Pianko falou sobre a ênfase dada à testa na pintura facial, querendo expressar
que ali reside “o pensar” caracterizado por dois pólos: o “escondido” (‘paciência,
autocontrole, meditação, camuflagem’) e a ação” (‘só pensar às vezes é fatal, é
preciso também agir para poder sobreviver’, disse Wenki).
Portanto, a estética ideal dos Ashaninka é a “valentia” que está lá, guardada
nos txoxiki, pronta para ser usada como a da cobra que ataca. Quando falarmos sobre
pusanga (magia sexual), veremos que o ideal é exprimir os olhos da cobra no
próprio olho, como forma de obter o próprio olhar da cobra. Observamos assim, que
a força reside em criaturas perigosas.
Katsimiri, professor da comunidade de sete voltas, pintou, por exemplo, a
representação de um peiari, a alma de uma pessoa morta no rosto.
Pintura facial de peiari. Nota-se a asimetria voluntária: três bolinhos na bochecha
direita e um só na bochecha esquerda.
99
Katsimiri falou que tinha visto uma pessoa morta (a esposa de Karmelim
havia morrido recentemente) e que aquela pessoa tinha exatamente esse desenho que
ele fez agora. “Um peiari,” ele disse, “é como um vento que te pega e morde.”
Sabendo que os Ashaninka tem um medo de peiari, porque desenhar isso no rosto?
Talvez seja a mesma razão porque usam a imagem de cobras e onças: a beleza do
perigo
53
.
Pensando no ideal “kempiroiano”, seria mais adequado falar em “coroa” ao
invés de “chapéu”, que o chapéu está, também, aberto em cima. Aliás, Benki
Pianko, do rio Amônia, disse certa vez com um leve sorriso: olha meu pai
53
Esta ‘beleza do perigo’ ou ‘o belo é a fera’ é o tema central da argumentação de Van
Velthen (2003) e nos lembra também as telas de William Blake e de Henri Fuseli, assim
como o roman noir (ou gothic novel) em que o vampiro não é uma personagem letal,
mas muitas vezes é descrito como aristocrático, sedutor, e, não podemos esquecer: imortal.
Também Mary Shelley’s Frankenstein trata sobre o desejo de superar a morte.
100
sentado com a coroa dele.Bebito falou ainda que, do mesmo modo que os txoxiki,
o chapéu tem relação com o poder.
Motivo do tatu (etsi konta)
Wewito Pianko com o motivo de kempiro no
chapeu.
Kempiro konta
Em cima, desenho que Tanta fez de
kempiro na areia.
Motivo (da cauda) do tatu (etsi konta)
101
Em cima, Diene Pianko com o motivo
de kempiro no chapeu.
Único chapeu encontrado no Rio Envira: etsi
konta.
Em cima, desenho que Tanta fez de kempiro na
areia.
Motivo das farpas de uma flecha:
kiriki.
Banderão da comunidade Rio Amônia usando
chapéu aberto com o motivo de um besouro
grande: tsirokene.
O mesmo motivo tsirokene encontra-se no
carimbo para a pintura facial (desenhado por
Wenki Pianko):
102
A ausência no Rio Envira de txoxiki com o motivo de kempiro e de chapéus
com kempirokonta aponta mais para um ideal oculto (mas fortemente presente) de
estética e de estilo de vida do que de um “abandono” de certas práticas artísticas.
Aliás, todos conhecem bem e mencionam o txoxiki de kempiro e o chapéu de
kempirokonta. Tecer o motivo com um fio de algodão preto entre as palhas da coroa,
ou enfiar as sementes do txoxiki na forma de kempiro é considerado mais difícil,
uma vez que é perigoso. Encontra-se, no Rio Envira, portanto, as incisões de
kempiro, mais fácil de aplicar, em vários recipientes.
Desenho kempiro
Vista a importância de kempiro para a arte Ashaninka (kempiro lhes ensinou a
fazer txoxiki, chapéu, desenhos e, nesta versão, também o kitarentse) segue-se agora
o mito na íntegra contado por Jomanoria:
“Aquele kempiro é o mais valente de todas as cobras. Uma vez um menino se
perdeu, ele tinha o tamanho desse aqui (apontou para um menino de 8 anos),
estava maior. Ele andou na mata, caçando, , saiu, na casa, na casa que, não tem
gente, não tem gente, não tem ninguém. tinha uma velhinha, que era a avó da
cobra. Tem muita casa, muita casinha, muita casa, muita casinha que é das cobras,
né. Muita casinha de todo tipo de cobra. Cada (tipo de) cobra tem uma casinha. Tem
uma casa da avó dele, assim, grande. Ela produz muito feijão
54
, arroz e todos as
comidas deles. Vai dar de comer a ele, macaxeira, batata, jerimum, milho, ingá,
goiaba, muita goiaba, tem muita fruta. E ela (a avó de kempiro) deu para ele tudinho
para comer, para dar para aquelas cobras todinhas (para todas as cobras que moram
54
O cultivo de feijão é algo particular entre os Ashaninka do Rio Envira. Cultivam feijão
não para consumo próprio, mas para a venda na cidade Feijó.
103
lá). de tarde ela saiu bem cedinho e chegava de tarde, cinco horas. Ele anda
todo canto. Por isso cobra anda todo canto na mata, tardinha ele vai para a casa dela.
E com flecha, flecha dele. Nós também aprendemos a flechar das cobras. Flecha, por
isso que temos flecha agora também, porque cobra ele usa flecha, arco, quando
morde gente, ele está dizendo
55
que está flechando, está flechando. Por isso que nós
flechamos também qualquer macaco, né, aí, porque nós antigamente, história da
cobra vai muito longe, muito longe. Depois saiu um menino, como eu estou dizendo,
lá, e saiu um homem e saiu. Aí, quando ele olhou na casa, disse, rapaz tem uma
casa aqui! Ele foi lá, não tinha ninguém. Aí, quando, a velhinha saiu lá: Rapaz, o
que você esfazendo aqui? Vem cá, venha logo!” Aí, ele correu para a velhinha.
“Rapaz, aonde tu vai?”(disse a velhinha). “Por aqui, pensava que era minha casa, eu
ando perdido,” (disse o rapaz). (A velhinha:) “Rapaz, e agora você não vai escapar
mais não, as cobras vão te pegar todinho, vão te matar. Agora tem outras coisas (que
a gente poderia fazer para dar um jeito), eu vou fazer muita comida para ele, para
que ele não te comer, não te matar.’ Então, tá. Aí, ela fez comida, tamanho desse
tambor, muito grande, cheio de comida: arroz, muita fruta e muito feijão. Aí, tinha
muito feijão, que eles apanhavam na casa. ela disse: “agora você, se esconde
aqui, você se esconde aqui. Aí, pegou uma gamela (canoa) par fazer piarentse, deste
tamanho assim, ela botou e ele entrou por dentro, né, aí, tampou com feijão dela,
todinho com feijão para não ver. Quando a cobra chegar, ele não não, mas ele
sente o cheiro da gente. Diz (a cobra) que a gente fede, igual carne, cozida, cheirosa,
estava com vontade de comer, é cheiroso
56
. Aí, quando era assim três horas,
começa a chegar aquela cobra pequenininha, miudinha, né, tem cobra deste
tamanhinho, é ele que chega primeiro. Aí, seis horas, chega aquele kempiro , né,
grande, kitarentse novo também, de kempiro, né, por isso que aprende, Ashaninka
aprendeu chapéu com ele, aprendeu fazer também, disse “vamos, virar kempiro
55
Entendemos esta capacidade de ão das cobras e de flecharem, como uma percepção
perspectivista da cosmologia Ashaninka em particular e ameríndia em geral (Viveiros de
Castro,1996; Lima, 1996).
56
Idem nota 55.
104
também”. Mas não é cobra não, Ashaninka não é cobra não. Ele viu, o cara que foi
lá, né, (o rapaz que andou na mata e perdeu o caminho) ele viu, né, e disse: ah, é
assim que a gente faz, né, e ele fez também, por isso que agora, fez chapéu com
pena de arara, né. Também kempiro txoxoki, lavrada que a gente faz, daí foi,
aprendeu no kempiro, aprendeu lá, nos também aprendemos. Por isso que nós
usamos, pois acha bonito, né, aquele... Agora, se fizesse errado, meu avô disse,
quando tu faz kempiro colar, né, quando tu não fez direitinho, aí, kempiro, ele vai te
morder. Ele te morde. É. Ele vai te pegar porque tu não acertou lista dele (os
desenhos da pele da cobra). É perigoso. Por isso que a gente aqui não faz chapéu,
porque pode errar, depois vai para a mata, vem kempiro e morde a gente. Tem medo
de fazer (Jomanoria ri com um pouco de vergonha. Confessar medo é incomum
entre os Ashaninka).
Aí, quando deu três horas começava chegar cobra pequena, né, chegou,
chegou, chegou. Aí, vieram outras cobras, maiores. Chegando. E quando chegou ele
sentiu cheiro, né. Rapaz, oh, mãe dele, minha avó, o que está cheirando aqui, que
cheirando, o que tu tem aí?-me para matar, para matar e comer, né. A avó: “Não,
pode comer aqui comida, esta é a comida que está cheirando, vamos comer, dava
comida para ele, comeu, cheirando, cheirando, até que encheu barriga. Essa comida
está cheirando, está muita boa. Comeu fruta, né, encheu a barriga, vai à casa dele,
vai deitar. Aí, ela disse para ele: “eu vou dizer alguma coisa: tem uma gente aqui
que chegou, saiu por aqui, mas tu não vai dizer para teu irmão não. Porque essa
gente aqui, vamos, vamos criar ele. Ele disse para ela: “então tá.” Mas mostra! Aí,
ela mostrou. (Ele) Ah, é tu?! o fica com medo, eu não vou te comer não. Entrou
de novo. Aí, chegou outras cobras. Ela deu também comida para eles. Eles não são
valentes, né. Aí, num instante, comeram, e avisou (ela) também (que tinha alguém).
Aí, todos o viram, para depois não estranhar. Depois ele viu e passou... Aí, todos
viram ele, para depois não estranhar. Depois ele viu e passou... Aí, vem aquele, toda
cobra que, cobra da mata, vem cobra do, o sei donde aquela cobra, tem cobra,
daquele inchado, inchado, fica inchada, parece, a gente bate ele e sss!!! Fica
105
inchado, valente, em nossa língua chama sambetakari, a gente bate ele, fica com
raiva estica, inchadinha ele (quando esta cobra fica com raiva, a cabeça engrossa).
Ela apresentou ele para todas as cobras. Aquela surucu de barranco, né, aquele que
morde mesmo, aquele valente, ele chegou também. “Me mostra, mamãe, meu avô, o
que que é, eu quero matar, eu quero matar eu quero comer!!” o sei o que... (avô:)
“não.” Dando comida para ele. “Come, come, come, come logo.” Ele comeu.
Depois: “Tem um cara aqui.” (Surucu diz) “Como é que tu diz que não tinha.” “Não,
tu ia matar ele, agora com bucho cheio tu não pode matar. (Surucu) “Então fica
mesmo, mas cuidado, vem outro, mais valente que eu.” Kempiro, né. chegou.
Quando (kempiro) escutou eles, kempiro, ele trouxe apito, para assoprar. Ele
assopra, assopra, aquele, ele faz de taboca, né, taboca, ele assoprou, parece
passarinho (onomatopéia: ssii,sssiii), assoprando flauta dele, né, assoprando flauta
dele: ”Fwiii, fwiii, fffwiii. Fwiii, fwiii, fffwiii.” Chegou bem pertinho e começou a
sentir o cheiro (daquele Ashaninka): Ah, minha avó, o que está cheirando aqui, me
apresente! Com flecha dele assim, apontando para flechar. “Rapaz, nada”, (disse
ela). Aí, começou chegar pertinho dele, levando comida para ele, levando comida
(para kempiro). (Kempiro) “Não, eu quero ver quem está aí, não sei o que, ele ficou
doido. Passou meia hora, rodando, rodando. Aí, disse: “quero ver se tem alguém, se
não tem ninguém aqui, eu quero ver.” Aí, tinha aquela formiga, nos chamou,
português, chama taioca, né, tem formiga que ferra a gente, que morde, né, que
morde gente, dói mesmo, nós chama na língua héia, fica assim um monte, aí, ele
bateu nele assim (no ninho daquelas formigas). Aí, saiu, espalhou para todos os
cantos. Procurar (as formigas iam buscar o rapaz escondido pela avó). Rodaram para
todos os cantos. Aí, ele ficou, não mexeu o (com as formigas em cima dele. Não
mexeu mais. Ele ficou dentro, (tinha) pessoal lá. Ele passou por cima dele, todos
na cara dele. Ele não mexeu não. Até que ele..., sai de novo, ficou um monte (de
formigas) de novo. (Kempiro) “Ah, tem ninguém não!!!” Ela: “Não te disse, é a
comida que está cheirando. Dava comida para ele. Ele comia, comia, comia, encheu
a barriga. Caiçuma para ele, goiaba para ele. Agora: vou.” E quando ele
106
chegou(...) ela conversou com ele (sobre o Ashaninka ali escondido.) Ela perguntou:
“Rapaz, tu não vai matar (ele) não?”. “Não, porque, me diga?!” (Ela): “Tem gente.”
“Tem?” “Tem.” “Como é que tu dizia antes que não tinha gente?” (Kokonha que
assiste a narração do mito começa a rir neste momento). “Ah, porque tu poderia
matar ele.” Porque ele kempiro flecha a gente é bastante venenoso, mate, ele faz
isso, come, come mesmo cobra. Aí depois, ele saiu: Cadê? Mostra! Aí, ele se
levantou, ficou lá. Aí, ele viu (o Ashaninka olhou para kempiro), em pé, né,
kitarente dele branco, txoxiki dele, todo lavrado. Com flecha dele, chapéu na cabeça.
(Jomanoria descreve a aparência de kempiro com muito respeito. O fato que ele tem
um kitarentse “branco” é muito enfatizado.) Disse (o Ashaninka): “Ah, é alto!”
Cobra grande. Disse: “Ah, agora sim, tu apresentou ele, tu o me falou antes dele,
né, tu não me disse antes, agora bom, certo, deixa aí.” Ele (kempiro) olhou
pertinho, passou, foi embora. Ele não olhou bem não, ficou com raiva aí. Aí, depois,
ele foi lá conversar mais com ele. Aí, mandou tirar roupa, né, todo, diz que, corpo da
gente é todo fedendo. E tem igapozinho de água assim. Ele joga ele dentro de água e
tira aquela pele todinha, sai. Aí, dá outro kitarentse para ele. fica cheirando como
ele. É. Diz que cobra sente a gente de longe. Aí, depois nosso parente Ashaninka
que foi lá, escapou, não morreu não. Ele comeu lá, ficou lá. E depois disse: “Agora
vou se embora.” Foi embora e saiu da aldeia. Cadê minha aldeia, sabe onde fica?
Aí, tá bem aí. Ai, pensou que era longe, ele foi, rodou, saiu no outro canto. Depois a
cobra apontou o caminho: “por aqui, eu vou te deixar.” Quando ele desceu, já estava
no caminho por onde passou (Kokonha ri, porque ele estava todo esse tempo perto
da aldeia dele), foi se embora para a casa dele. Quando chegou na casa dele, aí, ele
começou a trabalhar no txoxiki, chapéu e kitarentse também. aprendeu fazer
txoxiki e flecha. Flecha também. Aí, mais tarde, por isso que a gente tem flecha, tem
arco. Aprendemos com ele, porque antes, nós, quando deus estava aqui, não matava
xintori, o matava nada. Porque comia quando deus fazia, né, deus dava comida
para nós, , esse marikix, isso era nossa comida. Não podia comer carne, não
107
comia nada, comia aquele marikix, sangue de Maria (...) Aí, por isso agora,
história de kempiro é assim.”
Desenho de urucum kempiro:
No mito de kempiro vemos novamente a referência ao trocar de pele e à
imortalidade perdida. A cobra mandou “trocar de pele” e deu a própria pele de cobra
diretamente para o Ashaninka. Neste mito, o kitarentse é literalmente uma pele da
cobra. Interessante observar que a cobra kempiro fez isso para que o rapaz
Ashaninka não “fedesse, para cheirar direitinho”. O cheiro é algo crucial na
concepção de socialidade e no estabelecimento de relação social entre os Ashaninka,
como veremos ao abordarmos a pusanga. Neste contexto, ganhar o kitarentse
57
era a
possibilidade de ter o mesmo cheiro das cobras.
Quando perguntei a Jomanoria sobre o mito da aranha, que ensina para os
Ashaninka como fiar e fazer kitarentses, ele enfatizou que a aranha deixou o
kitarentse dela quando foi embora. Deixou a casca para trás”, uma imagem com
57
Lembramos aqui que pintado com lama, o kitarentse protege contra os ataques de cobras.
108
qual se é confrontado diariamente quando se habita uma casa Ashaninka: sempre
uma casca de uma aranha presa ao teto de palha.
Motivo aranha, que também pode ser associado às cobras:
Quando Pawa ainda vivia entre os Ashaninka, bastava comer coca, o sangue
(menstrual) de Maria, mas agora, com a perda do estado imortal, é preciso comer
carne e é kempiro que mune os Ashaninka de arco e flecha. A idéia de imortalidade
para os seres humanos deriva do mesmo processo de trocar de pele das cobras:
.”Agora, se Pawa não tivesse ido para cima, não aconteceria nada. Até ficar velho,
quando fica bem velhinho, já tirava, cairia a pele, né, tirava a pele e ficava
novinho de novo
Jomanoria continua sua narrativa:
“O primeiro, ele aprendeu a desenhar nas folhas da mata. Não tem sororoca?
Porque é onde começou a aprender pintura nossa. Depois formou folha. Tem
muita folha que se formou, pintura nossa. Começaram a desenhar primeiro para
poder desenhar kitarentse, né. Igual quando a gente desenha no papel, né. Aí, ficou,
formou folha e ficou lá, pintura. Também aquele pauzinho. Colocou desenho no pau,
aquele potote (pintura facial), né, desenho no pau assim, carimbozinho. Kempiro
ensinou desenhando folha e ensinou também fazer chapéu, como tirar arikuli,
aqueles cocos para fazer chapéu (a matéria usada para fazer um chapéu).”
Se os desenhos encontrados na natureza são feitos por kempiro, se são, por
exemplo, esboços dele para um kitarentse ou para carimbos, não poder-se-ia afirmar
109
que os Ashaninka se inspiram na natureza para produzir seus desenhos, uma vez que
“os desenhos da natureza” são produtos de personagens da cosmologia Ashaninka.
Carimbos para pintura com urucum e seu uso:
Motivo de kempiro.
Recipiente de urucum com
carimbos.
Na versão de Raimundinho, da comunidade de Simpatia, kempiro, a cobra
mais letal, é admirada por sua beleza. O que é introduzido nesta versão do mito do
txoxiki é a figura do pica-pau: ele aparecia como o primeiro a fazer o txoxiki. Depois
é que veio kempiro. As sementes do txoxiki são difíceis de perfurar
58
e o pica-pau é
percebido pelos Ashaninka como um animal que tem uma ‘cabeça forte’, motivo
pelo qual é admirado. Também por esta razão, sua figura é incorporada através das
“bandanas” que são usadas pelos Ashaninka para que tenham uma cabeça forte. O
beija-flor é outro pássaro que é bastante admirado por esta mesma qualidade do
pica-pau e, aliás, no mito foi único que conseguiu levantar a escada de Pawa.
Xomontse (beija-flor) é ao mesmo tempo o nome da pessoa na foto que está vestida
com um txoxiki kempirokonta e uma coroa kempirokonta.
58
Apesar do uso ser exclusivamente masculino, mulheres podem também ajudar a
confeccionar o txoxiki. Observei Julietta e Gregório trabalharem juntos na confecção de um
txoxiki : Gregório estava perfurando e Julieta enfiando as sementes.
110
Xomontse com o motivo de kempiro no txoxiki e no chapeu.
Vemos, assim, por duas vezes o motivo de kempiro associado a uma pessoa
que porta o nome Xomontse: uma das pessoas mais respeitadas na comunidade do
rio Amônia.
Vejamos, então a versão dada por Raimundinho: “Pica-pau era o primeiro
que ficou enfiando txoxiki. Aí, chamou a gente, aquele outro pessoal. Vamos embora
aprender! Aí, deus falou: “faça assim não, para enfiar assim não dá, vai dar muito
trabalho.” Primeiro colocava num vaso assim, naquele tempo não existia panela,
existia aquela cerâmica dos índios mesmo, de barro na qual colocava aquele txoxiki,
transformava todinho, todo feito, todo feito. Aí, não fizeram isso. Veio aquela cobra,
bico de jaca: “gente faz assim!” (Raimundinho comenta desenhando com os dedos
no ar: “aqui tu nunca viu um colar que faz assim, kempirokonta. Karijo: “Naquele
tempo, meu pai sabia fazer isso.”) A gente faz assim, falou a cobra. “Rapaz, falou
deus, não é para fazer assim. Se não, todo mundo vai trabalhar assim. Vai ter muito
trabalho. Assim colocando em cerâmica, amanhã está todo feito (automaticamente).
Aí colocando txoxiki, pode vestir o dia seguinte, saiu todo bonitinho. Aí, o,o,o, como
111
é? (Raimundinho falou a primeira vez “deus”, parece que estava procurando outra
palavra, agora, provavelmente “Pawa”). Falou. o respeitavam ele. Agora sim, vai
dar muito trabalho esse negócio, colar, para fazer kempirakonta. Vai dar muito
trabalho. Aí, falou (deus) para ele: “rapaz, não é para fazer isso. Porque está fazendo
isso? Vai dar muito trabalho. O povo vai sofrer para trabalhar. Aí, chegou e não
respeitava não (a cobra), porque, somos nós que vamos fazer, não é ele que vai
trabalhar, somos nós mesmos que vamos trabalhar. Aí, chegou ele, achou ruim e:
“agora tu fica agora, transformou em pica-pau e cobra também, tu vai virar cobra
agora, não quis respeitar, tu viu kempiraconta assim, bonita, aquela cobra, né.
virou pica-pau, voou e pronto”.
Na versão do mito de Hananeri, a cobra kempiro é o grande caçador que
manda em todos e que tem muitos txoxiki. O Ashaninka que achava seu txoxiki
bonito, ganhava um de kempiro e aprendia com ele como fazer o txoxiki. Na sua
narrativa, Hananeri chama atenção para os vários tipos de txoxiki, cada um
representando uma cobra:
“Quem fez txoxiki, aquela cobra, cobra... Tem gente que conhece ele, homem,
né... (um homem conheceu a cobra do qual aprendeu o uso do txoxiki). Primeiro, ele
está andando na mata e viu ele, assim, né, está puxando aquele txitxika, cipó, né,
para fazer aquela vassoura, né, puxava assim e ouviu um homem gritando: “deixe
meu cabelo!” “De quem é este cabelo?” Fecha teus olhos!” Fechou, viu com ele.
Disse: “para que é isso?” Disse: “não, aquele cabelo é do meu filho, , aquele
cabelo é do meu filho, tu pede comigo (antes de querer tirar o cipó para fazer uma
vassoura, sendo o cabelo do filho de alguém). Aí, tu sabe como fazer? Tu não vai
puxar assim, tu fica calado. Assim tu segura, tu diz (Hananeri faz um som com os
lábios dele), aí, quebra, né. Assim quebrando, está bom (ensinando o jeito certo para
tirar cipó).” tirava, está bom... Depois foi lá: “embora lá, o que (onde está) teu
filho?” Eu vou te dizer, eu vou chamar ele.” chamou ele. Viu um homem
(com), muito, muito txoxiki: “E o que é isso?” Isso é meu txoxiki.” “Como é teu
112
nome?” “Nada não, eu não tenho nome, sou gente mesmo. Eu mando com tudo, sou
eu caçador,” ele disse, “sou eu caçador.” “Ah, bonito! Tu me teu txoxiki aí?”
“Quer?” “Quero!” Ele tiravo txoxiki, “está aqui.” Aí, depois, eu vou dizer com você,
eu tenho muito txoxoki, ele (kempiro) disse, “eu tenho muito.” “Tem muito?”
“Tem!” (por isso está dando facilmente). (Hananeri) Tu sabe aquele bico de jaca,
não tem aquele grande, muito valente, né, bico de jaca. Aquele chefe dele é
saramanta, que vive em baixo da terra. Aí chefe dele. E, nós chamamos outro, nonki,
aquele grande. Assim, todo mundo, turma dele, tudo cobra menor, tudo turma dele.
Turma dele todinho, aquela cobra, né. Quem ensinou é o surucucu de barranco,
memeki, txoxiki dele, memeki, memeki... Tu sabe memeki? Mas aí, ele disse: “mais o
que (como) tu fez?” “Mais tem minha planta.” Aquele txoxiki, ele planta, foi ele que
plantou né. Aí: “eu vou ensinar (para) vocês, como fazer agora (como fazer um
txoxiki), porque tu Ashaninka, depois eu vou dizer meu nome, agora tu não conhece
mais comigo, eu estou morando mesmo aqui, ô.” “Está bom.” “Agora vou ensinar
para vocês como fazer.” ensinou, cortou memeki, enfia assim, com corda mesmo.
Enfiou. Passa urucum para ficar bonito. Passou. Aí, ele sabe outro, né. (...) “Ah..., tu
sabe comigo né, depois eu vou dizer comigo, né.” (Está ensinando vários tipos de
txoxiki). Aí, ele conversou com ele, contou com esse, esse para fazer txoxiki sarioki
(ensinou fazer um outro tipo de txoxiki feito de sementes pretas), com tudo, né, fazer
qualquer mais pretinho, qualquer mais branco, coral, essa cobra que matamos de
noite, coral. Aquele murumku, né, murumku ela está fazendo txoxiki. Murumku.
Não tem essa qualidade, né, pintada? Esse murumku, parece nós que ta aprendendo,
fazendo com txoxiki, outra qualidade né, outro (...) Aquele do surucucu de
barranco né, esse, né, txoxiki dele. Surucucu de barranco, aquele muito branco, né.
Aquele que a gente matou, coral né, coral aquele muruku, txoxiki dele né, txoxiki
dele, muruku... Aque do bico de jaca, aquele do sarioki com aquele do... txoxiki
outro, aquele branco, o tem branco?, né, é txoxiki dele. Ele está fazendo assim ô,
como aquele chapeu né, como aque do meu chapeu né, assim, enfia outra, enfia
outra,como aquela pulseira..., mulher né, ele está fazendo também, aquela cobra né,
113
por isso, nós estamos aprendendo. Quem ensinou é aquela cobra né, ensinou que,
txoxiki primeiro nascendo com txoxiki. Primeiro ele. Aquele do... cobra né. Está
fazendo com txoxiki. Está fazendo com txoxiki. Por isso nós estamos aprendendo
com todo mundo, até agora. Como aquele que está andando agora (Txion, garotinho
de quatro anos), ele vai aprender a fazer txoxiki , ele não vai esquecer, não pode
esquecer! Eu também não esqueço as histórias da minha vóvó, minha vóvó: deita,
escuta comigo. Todo mundo estava sentado. Todo mundo escuta, depois não
esquece comigo, eu estou contando a história né. Quem uso txoxiki é bico de jaca .”
Apresentamos agora a lista com os nomes dos diferentes tipos de txoxiki e das
cobras correspondentes que Hananeri mencionou:
1. Txoxiki koweki. Representando a kiratare mange (cobra). As sementes
parecem metades de feijões e são cheirosas.
2. Txoxiki kiritiski. Representando a cobra surucucu de barranco. Feito de
sementes na forma de pequenos cilindros de cor marrom clara. Às vezes aplica-se
urucum nas sementes.
3. Txoxiki sarioki: Representando a txengari mange (cobra preta). Sementes
na forma de bolinhos pretos que descascam.
4. Txoxiki memeki. Representando a cobra tsuangíríki (muruncu). Antônio
Piãko estava fazendo um enquanto eu estive no rio Amônia. Sementes brancas na
forma de bolinhas ovais que ficam marrom claro e vermelho pelo uso freqüente
(notamos aqui a importância da metamorfose). As sementes são de uma trepadeira,
difícil de conseguir. São cozidas para amolecerem e poderem ser facilmente
perfuradas.
5. Txoxiki petanawoki. Representando a cobra sambétákari.
6. Txoxiki mapitski. Não representa uma cobra.
114
7. Txoxiki xamaki. Representando a cobra xamakirongari. Sementes muito
cheirosas, parecem perfumadas (encontradas apenas no rio Juruá). Txoxiki
satsimatsiki (Português: cumaru). Para a coleta das contas é preciso trepar bem alto
na árvore. É o txoxiki que mais se vende na cooperativa no Rio Amônia e que tem
preço alto porque as sementes são raras.
8. Txoxiki kemperikonta: Bico de jaca, kempiro. Motivos na forma de XXX,
feitos de sementes pretas e brancas.
9. Txoxiki tsuangiriki: as sementes vermelhas são cozidas para serem
perfuradas com mais facilidade e o podem esfriar, senão endurecem novamente.
Dizem que este é um processo delicado. Tsoengariki: são as sementes parcialmente
pretas/vermelhas. Dificil de encontrar no Rio Envira, porque o nambu galinha as
come. Um txoxiki pode ser composto por vários tipos de sementes. Karijo da
comunidade de Simpatia falou sobre o txoxiki vermelho que ele me ofereceu de
presente, “aquele coral (cobra) está mais caro”. Esse último pode ser misturado com
sarioki (sementes pretas).
10. Txoxiki kitamakiri: feito de sementes brancas. Hananeri não sabia o nome
exato.
Para acentuarmos ainda mais a importância do txoxiki para os Ashaninka,
visualizemos os demais colares
59
que são usados também no dia-a-dia, mas que não
são essencialmente txoxiki:
59
Mesmo modelo é feito de miçanga.
115
As sementes podem ser esfregadas com urucum (como também é feito com os txoxiki).
Aximaierentse e kewotawontse
60
.
A verdade é que nunca vi um aximaierentse durante o trabalho de campo.
Segundo Hananeri parece muito com a kewotawontse (tipóia), porém é feito de cana
braba. O que me pareceu interessante em sua descrição é que Hananeri mencionou a
aximaierentse logo após narrar o mito sobre a origem do txoxiki, como se fosse uma
continuação natural:
“É mulher aximaierentse. Depois ela tirava aquela cana braba, keepia. Não
tem essa ‘gira’? Parece paxua. Tirando. Gente cozinha na água, para ficar bem, ela
vai fazer, dela, tu vai ver amanhã. Vou mandar minha mulher, para fazer
aximaierentse porque ela vira com kamatongee (surucucu de barranco). Toda
mulher assim, ô. Por isso, agora, Ashaninka, quando ele viu com ela, está usando
aquela aximaierentse, aí ela disse assim: tu faz também, tá (tinha dito a cobra).”
Mulher com tipóias
60
Tipóia.
116
Se o ideal da estética masculina gira em torno de kempiro (chapéu e txoxiki),
encontra na aximaierentse sua complementaridade feminina. Aqui trata-se também
de uma cobra muita venenosa e “valente”, a surucucu de barranco (Jararaca,
Bothrops atrox). A aximaierentse é uma atração ambígua: Julieta, filha de Hananeri,
estava muito empolgada em fazer uma aximaierentse, depois que ouviu o mito,
dizendo: “ninguém faz aximaierentse aqui o, depois de ter terminado kitarentse,
eu vou tirar (cana braba), vou fazer.No mesmo momento, conta como sua filha foi
mordida por kamatonge:
Motivo kamatonge na pintura facial e no desenho figurativo.
117
“um dia, a surucucu de barranco, kamatonge, ficou enrolada no barranco do
rio em baixo daquela planta que tem sementes brancas para fazer txoxiki. Minha
filha estava tirando txoxiki, por isso a cobra acordou, olhou para ela. Ela pisou no
rabo da cobra, num pedaçinho. A cobra mordeu. A minha filha não falou nada.
Eu estava tecendo. Depois começou a doer. Ela estava botando leite de banana. Veio
um vento, um vento forte. “Mamãe, esse vento, é a cobra, uma cobra me mordeu.” O
vento era a cobra, naquele momento começou a doer, a cobra estava assoprando. A
perna dela começava a tremer, chamamos papai que estava dormindo na rede: cadê
aquela cobra? Ficou enrolada. Dia seguinte fomos para FPEARE (...)” A mesma
situação se passou comigo enquanto coletava as sementes para fazer txoxiki, os
Ashaninka me disseram que a cobra poderia me morder uma vez que elas o os
“donos” das sementes daqueles objetos.
Tipóias:
118
Segundo Hananeri, a surucucu do barranco, kamatonge usa txoxoki meemeki,
kiriteki. Uma mulher que foi tirar ‘gira’ viu kamatonge usando aximaierentse. A
cobra disse: “agora faça também aximaierentse. Depois a mulher Ashaninka virou
kamatonge. Aximaierentse é feito de cana braba (‘gira’), parece ‘paxua’. Aquela
‘gira’ é a flecha das cobras. “Não parece uma flecha aquela ‘gira’?”, disse Hananeri.
E continuou: “Eu vou mostrar para vocês amanhã, tá, vou tirar, eu vi ‘gira’ no outro
lado (do rio) eu vou dizer, aqui flecha da cobra. Porque aquela cobra é muito
valente. Ela fica com raiva quando a gente vai corta-lá (‘gira’). Fica com raiva:
quem está cortando? Eu vou esperar para pastorar ele (pensa a cobra). Quando vem
de novo, ela morde a gente. Não é dente dela, é flecha.
119
120
Uso de tipóias por mulheres e meninas
Se a aximaierentse parece com kewotawontse (tipóia), talvez seu uso seja o
mesmo
61
: uma mulher pode carregar diferentes tipóias para ficar bonita”. Sendo
adolescente, é apreciado que se vista de vários panos sob o fundo do kitarentse.
Segundo Xawio e Julietta, usa-se a tipóia diagonalmente no torso, drapejada em
cima do braço, caso a mulher ainda não tenha filho, e embaixo do braço, se já tem
criança. As tipóias podem ser enfeitadas com sementes de pupunha. Essas sementes
podem conter, eventualmente, folhas de pusanga como veremos.
Wanenka.
As sementes de pupunha são também fixadas em cachos nos kitarentse
femininas, à altura dos ombros. Wanenka tsinani se diz quando uma mulher está
bonita com esses cachos de sementes de pupunha. As sementes, cortadas ao meio e
colocadas em cachos, parecem um conjunto de círculos, cada uma com um “ponto”
no meio, formado pelo nó do fio preto (untado com cera de abelha) de algodão, com
o qual as sementes perfuradas são atadas, o que se refere, segundo Katsimiro,
professor da comunidade de Sete Voltas, à tridimensionalidade da pele da onça
62
(manitsi). O mesmo vale para os tatanentse (ver abaixo), feito de pupunha. A
61
Julietta não chegou a fazer uma aximaierentse durante o trabalho de campo.
62
Círculos com um ponto no meio estão referidos à pele da onça. Encontramos a mesma
referência nas marcas produzidas pelas tatuagens feitas com fogo, obtidas pelo efeito da
ponta de um palito incandescente sobre a pele.
121
sonoridade das sementes é igualmente importante: às vezes as adolescentes
precipitam o seu som, o chacoalhar das sementes, apressando o passo, querendo
chamar a atenção das pessoas.
O uso do wanenka por mulheres e meninas
122
123
124
Tatanentse e matarentse.
O tatanentse é uma corda de algodão na qual estão fixados sementes de
pupunha, eventualmente misturadas com plumas. Essa corda está, por sua vez,
fixada no txoxiki. Deste modo, pode ser visto como um pendente do txoxiki. Se for
feito somente de plumas, é chamado “matarentse”.
A árvore de pupunha é considerada como a árvore da vida. No mito (que
descreveremos mais tarde), Iroli manda bater em sua própria cabeça e seu sangue
serve de tinta para que os pássaros, depois do banho, adquiram suas cores bonitas e
sua força vital. Depois, Iroli se transformou em árvore de pupunha. Do sangue de
Iroli nasceu também a planta urucum. Aqui, se observa, portanto, a ligação entre
sangue, pupunha e urucum, conotando força vital.
Um outro mito se refere também a este tema: o veado era um Ashaninka que
cortou pedaços da própria perna para fingir que caçou um animal. Ele pintava de
urucum a própria pele para camuflar de onde tirava a carne de suas pernas. Urucum,
neste contexto, toma o lugar de sangue, de carne. Quando descobriram seu segredo,
foi transformado em veado, um animal com pouca carne nas pernas.
Preparação do urucum para pintura facial.
125
Como o kitarentse e o txoxiki, o tatanentse está em constante transformação.
Tapi, por exemplo, achou duas plumas interessantes na casa de Julieta e as botou
espontaneamente no tatanentse dele enquanto estava conversando. Uma pequena
flauta de pan, um estojo de taboca para mel de tabaco, tudo que parece interessante
pode ser fixado neste pendente do txoxiki. Os Ashaninka narram a seguinte história
que realça a importância do tatanentse e sua atração: “Chegando em Kexiki no Peru
com um tatanentse/matarentse cheio de plumas do rio Envira, vinte mulheres irão
pular em cima de você e as arrancar. Elas não te deixam passar, você precisa dormir
com as filhas delas. Depois pode continuar sua viagem. Em Kexiki raramente
passam pássaros.Esta história, mesmo que exagerada pelos Ashaninka, demonstra
a atração que os tatanentse / matarentse exercem sobre as pessoas.
Confecção e uso do tatanentse:
126
Tapi com txoxiki, tatanentse e xale.
Os seguintes itens podem ser fixados no tatanentse: totsiroki (caracóis do
rio), asopi (baunilha, apreciada pelo cheiro e como afrodisíaco), kentori (pluma de
cor ruiva, com um topo preto) e outras plumas (xiwãki) como sari, sawaaw (arara),
kamiri (mutum) e kasanto (tucano). Durante uma viagem de barco, a plumária de
uma arara, por exemplo, pode ser incorporada em uma hora por umas quatro
pessoas: Katsimiri fez um matarentse; a esposa de Nawio atou plumas menores à
127
tipóia. As plumas são mais rapidamente incorporadas do que a carne dura da arara,
até que fique pronta para o consumo.
Depois de alguns dias, o tatanentse/matarentse já mostra sinais de que é
afetado pelos insetos. Durante uma viagem de barco mataram um papagaio. Desta
vez, Zahir fez um matarentse. Com a corda atada ao dedo do pé, ele untava o fio
com cera preta de abelha e depois atava a corda dando duas voltas em torno do cabo
dobrado da pluma. Zahir: matarentse é manitsi (onça). Como o txoxiki é cobra
63
. A
onça tem também um matarentse.” E segue-se sempre a mesma frase de referência:
Pawa ensinou isso para os Ashaninka para ficarem bonitos.” O matarentse seria,
segundo ele, o manitsi (onça) karinari. Um matarentse feito de plumas
pretas/brancas do kanari (cujubim) representaria um outro tipo de onça: tamari.
63
Segundo Zahir e Katsimiri, o txoxiki de Katsimiri seria a jibóia Jacorona, que vive na
água. Cada corrente do txoxiki tem partes brancas e pretas que se alternam. O txoxiki de
sementes vermelhas seria uma cobra que vive na terra enquanto a outra vive na água.
128
129
Quando Zahir falou que a onça tem matarentse, provavelmente estava
pensando na lagarta xopa
64
”. Como Jomanoria nos disse: Xopa é da onça. Da
onça, tem aquela outra que a gente chama na língua, xopa, xonki, hompa. Tem outro,
outras xopa, né, tem muita de xopa, né, txapitsi, herema, mata, tudo é criado da
onça, é tatanentse dele. Aquele não parece com ele? Tem lavradinho, tem muitos,
aquele xopa lavradinho, né, aquele também é tatanentse da onça. Onça, quando ele é
bem pertinho, né, e, ele começa a balançar a cabeça dele todo tempo. Balança,
levanta. E se tu brinca com ele, fazer brincadeira, brinca com ele... Aí, quando tu vai
na mata, você a onça, corre em cima de tu, ele está sabendo, brincou com aquele
tatanentse dele. Porque ele tem raiva quando a gente brinca com o tatanentse dele
(tatanentse é uma coisa séria). Aí, tem muito xopa também que, depois que
cresceram, ela pendura na folha, fica pendurada. Depois ele forma borboleta. Bem
vermelhinho, tem outra borboleta bem pintadinha. Diz-se que tudo é da onça.”
Com o conceito de xopa encontramos mais um elemento do estilo de vida
Ashaninka: o ideal da postura séria, uma atitude que exige respeito. Se alguém pensa
em xopa, pensa em o poder “brincar”, caso contrário, a onça pode matar. A arte
Ashaninka se refere aqui a uma ameaça de morte, a mesma encontrada no motivo de
kempiro (quem executa o motivo erradamente de kempiro, vai ser mordido pela
cobra). Explicaremos mais adiante a relação dos Ashaninka com a onça e seus
motivos.
64
Xopa é também um motivo freqüentemente encontrado no kitarentse.
130
Enquanto na narrativa de Jomanoria surge o pássaro como o primeiro usuário
da tatanentse, na de Hananeri surgem as cobras: Taweri, esse passarinho, ele era o
primeiro Ashaninka que usava uma tatanentse. Aquele peito que ele tem aí, aquele
todo vermelho, aquele, primeiro antiga é pena de tucano, né, pena dele grande, né,
cheio dele, é tatanentse dele. Por isso que a gente fez como ele. Aquele passarinho
todo que tem todo tatanentse dele quando era Ashaninka, formou e ficou assim. É!.”
Hananeri vê as diferentes cores das plumas usadas no tatanentse e matarentse
como originárias das cobras
65
: “Ela (cobra) usa, é cobra também, tudo virou com
tatanentse, aximaierentse, né. E também aquela do homem, também é cobra. Não
tem aquela cobra que está morando mais em cima? Em cima do pau (alto nas
árvores). Aquele tatanentse. Tem cobra preta, né, rabo dele (amarelo?), mais preto,
preto tudo, (o resto é preto). Rabo dele como aqui (aponta para algo amarelo),
igual como japu (um pássaro), pena de japu. Nós chamamos toringe (cobra
amarela); toda cobra (tem uma) qualidade, né, eu chamo toringe. A cobra encarnada
como urucum, eu chamo pototsengee. Não parece com urucum? Mas tem outra
qualidade, parece com papagaio, kientaonki (verde). Tem outro, azul, kosaw,
venenoso ele, se ele morde... Se ninguém sabe remédio, morre gente. Por isso
morreu a minha mãe. Kintaonki mordeu. Nome português dela é papagaio. Minha
mãe pensou que era uma formiga que tinha mordida ela, não sentiu dor não, olhou
de novo, cortou a cobra com teçado (facão). Eu estava cortando pau no Juruá
(trabalhando para madeireiros num outro rio enquanto isso aconteceu)...”
65
Embora não possamos aqui sugerir qualquer relação entre a arte corporal Ashaninka (na
combinação dos txoxiki com tatanentse e matarentse - uma cobra com plumas) e a imagem
de Quetzalcoátl, a serpente pássaro, deus Asteca, Maia e Tolteca, percebemos o quanto é
tentador e fácil propor estas associações.
131
A bandana, o xale e a bolsa.
Os três são de uso exclusivo masculino. A bandana é usada como um enfeite
que oferece força à cabeça. Hananeri comparou o uso da bandana com a cabeça do
pica-pau: este pássaro come um tipo de coca, de folha mais grossa, “é a comida de
pica-pau, ele tem uma cabeça forte”. Dois adolescentes com bandanas se juntaram
no caminho para um piarentse: Hananeri apontou para suas bandanas e falou: “igual
pica-pau.” Com a bandana iam “agüentar” muita bebida fermentada.
Antigamente, os homens Ashaninka tinham cabelos compridos e a bandana
tinha um uso prático. Segundo Hananeri, eles sofreram discriminações na cidade. Os
brancos olharam para os homens Ashaninka como mulheres: andando em um
“vestido” (kitarentse) e com cabelos compridos.
uma história contada por eles, em que um homem branco se aproximou,
dando presentes para um homem Ashaninka que não sabia falar português. Era sua
primeira vez na cidade. Um outro havia falado, “se alguém te diz algo, responde
com “sim”, balançando a cabeça”. A história chega a um ponto em que o próprio
Ashaninka fica excitado, de modo que, quando o branco descobre que ele é de fato
um homem, os dois correm e caem no barranco.
Os Ashaninka riem muito, todas as vezes em que esta história é contada. Ela
é apontada como responsável, segundo os Ashaninka, pela origem do novo corte de
cabelo masculino. O homem Ashaninka não entendeu porque ficou excitado e disse
na própria língua “assim não.” Depois deste episódio, o homem resolve cortar os
cabelos como uma forma de não ser mais confundindo como mulher pelos brancos.
Segundo os Ashaninka do rio Envira, no Peru ainda Ashaninka com cabelos
compridos, aqueles considerados como guerreiros mais temidos e corajosos.
Disseram, também, que não fazem mais tatuagens faciais porque sentiram vergonha
quando estavam na cidade e estas eram alvos dos olhares dos brancos (continuam
usando o kitarentse e pinturas faciais de urucum).
132
Desenhos de bolsas com o motivo de kompero (pássaro que tem pusanga)
Sofrem, também, outras influências na sua arte corporal advindas dos
brancos, como a consciência de que o IBAMA proíbe fazer tatanentse de penas de
arara, tucano etc para venda na cidade ou para exibir na cidade.
Certa vez, em Rio Branco, um Ashaninka que portava um colar feito de
pedaços pequenos de osso da costela de um porco-do-mato foi abordado por
policiais federais, que lhe perguntaram se eram dentes humanos. Os Ashaninka
ficaram tão chocados com a pergunta que tomaram o questionamento dos policiais
como uma proibição, não fazendo mais esse tipo de colar.
133
Homens com bandana
O xale (chamado por eles de “gravata”) é para obter e manter uma cabeça
bonita’, ‘na proporção certa’. Se não usar, segundo Jomanoria, “não fica direito”.
Zé, um Ashaninka da comunidade Sete Voltas, informou que uma das extremidades
da gravata servia para limpar a boca, quando se bebe caiçuma (piarentse), e a outra,
para limpar o resto do sêmen, depois uma relação sexual. Embora esta descrição
134
faça sentido na cosmologia Ashaninka (a bebida fermentada
66
é uma retribuição das
mulheres pelo sêmen (sangue) dos homens) nunca ouvi de nenhum outro Ashaninka
a confirmação desta função do xale.
Homens com xales:
66
Os homens dizem que as mulheres “assopram” a bebida. Não falam que “cospem” uma
raiz mastigada no recipiente onde fica a massa de mandioca cozida. “Assoprar” é o que os
deuses fazem nos mitos, quando abençoam alguém ou quando transformam algo.
135
A bolsa (tato) é feita, na maioria dos casos, com o que sobrou do pano tecido
dos kitarentses, por conseguinte os motivos são os mesmos. A alça da bolsa vai,
muitas vezes, até a altura dos txoxiki, isso quer dizer quase até os tornozelos. É um
estojo para o cachimbo, o recipiente de cal (xiko), recipiente com pasta de urucum,
de tabaco (xeri), espelho, pente etc. A bolsa associada à idéia de estojo ou de roupa
se confirma quando se diz que a bolsa é o kitarentse desses objetos.
Pente
Desenho facial um “espelho” feito por
Hananeri nas bochechas. É um desenho
facial antigo que ninguém aplica mais.
Homem usando bolsa
136
Bolsas em detalhe
137
Agora, descreveremos brevemente esses objetos: recipiente de xiko é feito de
uma cabaça com uma tampa, esculpido da madeira que representa o bico do pássaro
txowantse. O pássaro avisa quando o vento chega (como também a pressão” chega,
como um vento de ayahuasca, coca ou tabaco), “quando começa a enchente, né, e
quando fica alagada aqui, né. Aí, ele começa a descer, avisando que o vento vem,
grande vento. Grande mesmo. Quando aquela temporada chega, derrubando pau e...
ele que avisa pessoal. Porque é coisa dele, diz que é a força dele”. O pássaro que
avisa é ao mesmo tempo o autor do vento
67
. A representação do bico dele na tampa
de xiko é uma alusão a um grande poder, a estética ideal, como veremos mais tarde.
67
Como dizem também que os sapos chamam a chuva, fazem chover.
138
Desenho em recipiente de xiko, motivo cobra.
Recipiente de mel
68
, de tabaco, feito de taboca e com tampa feita de milho é
idêntico ao recipiente de urucum, no qual se guarda a pasta de urucum. Uma das
primeiras coisas que se faz quando se abre seu estojo de urucum na presença de
alguém é cheirar, controlar se tem ou não pusanga.
Cachimbo
O tabaco é relacionado à onça, porém a parte pontiaguda da base do
cachimbo está associada ao rabo do boto (para sonhar com mulheres/homens
bonito/as, nos quais o boto pode se transformar), ou pode representar o bico do japu,
o filho da ayahuasca (nunca se bebe ayahuasca sem fumar). A ponta da base tem
ainda uma utilidade prática: pode se enfiar o cachimbo na areia da praia do rio.
Representando o bico de um pássaro ou às vezes o rabo de uma raia tem,
assim, a conotação de perfurar o corpo para chegar lá onde se esconde a doença.
68
Mel de tabaco: cozinha-se folhas de tabaco até virar um xarope preto, muito forte. Usado
para aprender a curar com tabaco, assim como quando se queima o interior das bochechas
com xiko (cal), comendo coca ou quando se tem problemas de digestão.
139
Esculptura de palha de uma raia.
Quando se aprende a curar com mel de tabaco, fumando o cachimbo,
encontra-se a onça num certo momento e ela vai morder a cabeça do curador. Uma
visão terrível, mas que tem uma recompensa, caso se agüente a poderosa imagem-
sensação. Se o curador não tem medo e não grita, a onça se transforma numa linda
mulher que passa, então, a ensinar a curar (em um lindo homem para as mulheres).
Essa ‘mulher espiritualpassará a sempre a acompanhar o curador, aquele que teve
sua visão, e se a pessoa passar seu cachimbo para um(a) moço(a) que já teve
relações sexuais, a mulher-onça fica com ciúmes. Essa mulher espiritual’ precisa
ser nutrida através de tabaco. Quando não se fuma mais, o espírito vai embora.
O macaco capelão
69
é o único macaco de quem os ossos não servem para
fazer a haste do cachimbo. O capelão é também conhecido por ter muitas mulheres.
Talvez por isso seu osso não sirva para o cachimbo, pois o espírito do tabaco, a
esposa “onça’ fica com ciúme e “cheira” traição.
69
Segundo os Ashaninka, é um animal que mastiga também coca.
140
Quanto mais uma pessoa está acostumada ao tabaco, quanto mais fuma,
maior é o tamanho do cachimbo. O/a xeripiari (xamã, literalmente, sugador de
tabaco) tem, em conseqüência disso, o maior cachimbo. O cachimbo é considerado
um objeto carregado de agência, que alguns não conseguem sequer segurar um
141
cachimbo grande de um xeripiari. Contam anedotas de brancos que queriam fumar
do cachimbo deles e que fizeram suas necessidades nas calças.
Nas pinturas faciais encontra-se regularmente o motivo da onça. Onças são
animais poderosos que acabam, segundo Xawio, com qualquer alma. Se um
xeripiari quer eliminar uma alma (Xawio: “qualquer bicho, homem também”) ele
chama a onça. Às vezes, ele mesmo vira onça, nos seus sonhos. A onça pintada não
faz nada, somente a onça preta (cor poderosa, associada à cor do marimbondo, do
arco-íris e do uniforme dos policiais federais) morde. As demais onças são
medrosas, fogem quando vêem pessoas. Mel de tabaco é preto e é exatamente isso o
que se na da boca da onça: ainda preta de chupar mel de tabaco (o desenho na
pele dela). Algo que o beija-flor (xomontse) também faz, por isso é tão rápido e
forte, o único que pôde levantar a escada
70
de Pawa, quando foi embora para o céu.
Karijo disse literalmente: quando usa muito mel de tabaco, conhece onça.
Xamã pode chamar a onça para curar”. Mas não é sempre que se chama a onça
para curar. Aliás, se sonhar com uma onça, isso quer dizer que alguém te quer mal.
Quando alguém está mastigando coca (junto com piripiri), isso tem que
acontecer em total silêncio. Existe o perigo real dessa pessoa virar onça, quando
assustada. Karijo: mastiga-se piripiri, para aprender com manitsi (onça). Alí, ele
forma manitsi, se ele tivesse aprendido bem mesmo, ele formaria manitsi. Daqui ele
sai, daqui, vai na frente, é manitsti. Vai muito longe, pode passear no Meirelles,
chega aqui rapidinho. Vai descer lá em baixo e se ele quiser voltar, ele volta aqui.
Para os Ashaninka andar com onças” o acontece somente no nível
“espiritual”. Na comunidade de Coco Açu, por exemplo, mora uma Ashaninka que
sabe curar. Perto dela mora uma jibóia na água. Viram também várias onças que não
deixam rastros, impossível matá-las. Ela falou que está velha e não precisa mais
de homem. Ela aprendeu com tabaco e tem a onça dela. Coisa parecida acontece no
rio Amônia, onde havia uma viúva de um xeripiari, morando sozinha no outro lado
70
A escada de Pawa é frequentamente representada nas pinturas faciais e em uma esculptura de palha.
142
do rio. Perceberam por várias vezes uma onça por perto dela. Ela não liga para o que
as pessoas dizem. Diz-se que é a alma de seu falecido marido.
Pode-se aprender a curar doenças com o tabaco. Numa idade e nível mais
avançado, o aprender com tabaco funciona ainda como um remédio contra a solidão.
Fumando o cachimbo está se nutrindo esse espírito, a onça imaginária que sempre
anda ao seu lado.
As lagartas chamadas xonki foram um dia servidas como café da-manhã e
eram de repente chamadas “manitsi” (onça) por Txawamenko, um garoto de mais ou
menos oito anos, que estava comendo do mesmo prato. A lagarta come pauba e,
quando cai no chão, vira preta (novamente a cor preta). “Igual xopa, (ele)”, disse
Karijo. “Quando esse garoto passava de noite o cachimbo para mim, também disse
com o mesmo entusiasmo (para aprender com tabaco) manitsi”. Então, desde jovem
se está bem ciente disso e na vida diária há referências constantes a este fato.
Capuz.
O capuz é usado pelas mulheres para abrigar a cabeça do sol e, mais
especificamente, quando os cabelos são cortados. Isso acontece durante a primeira
menstruação, mas também depois, quando se usa o capuz para ‘acabar com a
preguiça’. Corta-se os cabelos na altura da coroa quando um ente querido morre. O
tipo de corte dos cabelos das mulheres é inspirado em txorito, a andorinha.
143
Antigamente, a reclusão relacionada à primeira menstruação era realizada dentro da
casa, quando a menina tinha seus cabelos cortados e, em seguida, tomava um banho
dado pela mãe. O que resta deste rito de passagem
71
é, hoje, apenas visível no uso do
capuz.
Motivos kitarentse
Vejamos alguns desenhos de kitarentse masculino e seus motivos:
71
O rito do passagem do menino é o de comer o coração cru do primeiro animal por ele
caçado, misturado com pimenta, para deixar sair o panema (má sorte na caça). Na verdade,
é feito um caminho de pimentas que vai da palma da sua mão, onde fica o coração do
animal, em direção ao ante-braço, braço superior, até chegar ao seu coração. A idéia é um
caminho de pimentas (associada à coragem e à agressividade, como veremos) de coração
para coração.
144
Motivo de kompero.
kitarentse masculino completo, com
referências aos padrões de pintura acima.
O decote em ‘V’:
145
De esquerda para direito: (1) Xopa: lagarto com poder de se transformar em onça. (2)
Xima: peixe (curimatã) entre duas linhas pretas grossas “para fazer bonito”. (3) Atxama
(lagarto). (4) Katsiri: lagarto comestível.
De esquerda para direito até o meio: (1) “Não tinha mais fio preto, por isso (o primeiro
motivo) fica só marrom. Assim mesmo.” (2) Atxama. (3) Duas vezes kompero
(pássaro). (4) Roiroitse ( pássaro; “a cabeça parece um chapéu.”
146
Motivos
72
kitarentse em detalhes:
Motivo de kompero
Motivo de xima
(peixe)
72
Motivos correntes: oye (arco-iris), xopa (lagarto), kompero (pássaro), xima (peixe),
mange (cobra), atxama (lagarto), kipari (peixe), tsirotse (peixe), ironoya (cobra), xarawa,
kempiro (cobra) etc.
147
Vejamos, agora, os kitarentse femininos:
kitarentse de Matxontse com explicação em
baixo:
1 A cobra ironoya
2 Estrela
3 Cobra
4 A primeira saída da lua
5 A cobra ironoya
6 “Assim mesmo”
148
Motivo de borboleta
Kitarentse de Kaxo com
motivo de atxama.
Desenhos de kitarentse e seus motivos:
Motivo de
inxateyaki (planta).
149
Motivo de txorãki, kosperki e inxateyaki.
Motovo da cobra kamatonge e pusanginari.
Motivo da cobra nonki.
Motivo de kori (peixe).
150
Motivos de kitarentse pintados na roupa de minha esposa, Antaro, uma blusa e uma
calça:
Blusa:
Calça:
Motivo da aranha
Processo de produção do desenho da
aranha.
151
Motivos kitarentse:
Em cima: motivo que imita
cestaria.
Motivo de espinha e gato da
mata.
Em cima: influência Kaxinawa
Em cima: influência
Yawanawa.
Desenho de caranguejo,
embaixo do motivo de
pusanginari.
152
Os desenho nas pernas
parecem uma
continução do
kitarentse, enfatizando
que o kitarentse é pele
também.
1. Desenho no dorso da cobra.
2. Mesmo desenho, desta vez com a
perspectiva lateral.
1. Desenho da jibóia.
2. Desenho do tatu (etsi)
3. Desenho de um caminho; trilha
153
Kitarentse com seu motivo em detalhe e na seqüência o processo de produção do desenho
Processo de produção do desenho do motivo da cobra pusanginari:
Frente:
Frente: motivo da cobra pusanginari
Verso: motivo da cobra pusanginari
154
Verso:
155
156
Capítulo 4. A despedida dos deuses e a odisséia contínua pela
imortalidade.
Nomen est omen: Hananeri-Nawireri.
O meu principal interlocutor Ashaninka chama-se “Hananeri”. As autoridades
brasileiras escreveram seu nome, em sua carteira de identidade, grafado como
“Bananeira”, que transformou-se em “Banana” nas ruas de Feijó. Os Feijoenses
conhecem “Banana” como um amante de cachaça e por sua estadia durante uma
noite na prisão local, quando foi detido em razão de uma briga na cidade que
confirmava, para os regionais, sua duvidosa reputação. Ninguém conhece seu
verdadeiro nome, até mesmo alguns Ashaninka o chamam de “Banana”.
Digamos que o seu pai “sabia colocar nome”, como os Ashaninka dizem: o
nome “Hananeri” se liga diretamente ao nome do rio mitológico subterrâneo
hananerial, cuja água fria é a fonte da juventude eterna, remédio contra a doença e a
morte.
Hananeri fumando seu cachimbo.
157
Talvez Hananeri use a cachaça como um tipo de ayahuasca
73
, cuja a
finalidade última é a busca por um caminho para o céu, para ficar aonde Pawa, o
deus solar, foi e onde ninguém morre. Pelo menos não era o único em busca de um
‘céu’ nesses bares à beira do rio Envira. Pode ser, também, que use a cachaça para
esquecer a sua real, embora mau-sucedida, odisséia para achar Inka/ Inkra
74
nas
montanhas do Peru, o único deus que ficou entre os Ashaninka
75
. A lembrança desta
viagem sempre traz um sorriso nostálgico para Hananeri: como se quase tivesse
conseguido obter a vida eterna!
O nome Hananeri é também foneticamente relacionado com Nawereri, o deus
subterrâneo. Essa relação me foi explicada durante um piarentse, uma festa de
“cerveja de mandioca”: Hananeri é relacionado a Nawereri, como o meu próprio
nome Mayaninka-Ninka o é com Mayaninka. O nome dado, de preferência, deve
soar um pouco diferente do que o nome original. Pela mesma razão e não para criar
um diminutivo em si, Hananeri deu o nome Teresinha para uma de suas filhas,
seguindo o nome de Teresa, a esposa de Francisco Meirelles, coordenador da
FPEARE da FUNAI. Desta mesma forma, o nome de Hananeri foi-lhe atribuído a
partir do nome Nawereri.
Após esta explicação, Hananeri insistiu em ser chamado Hananeri-Nawereri,
o deus do trovão, aquele que faz o dia nascer e morrer, que segura
76
a terra, que faz
florescer, o criador do algodão. Enfim, estamos longe da significação que liga este
deus com uma banana ...
Hananerial, o rio com a água fria que cura todas as doenças, está situado ao
lado da moradia de Nawereri. A frieza e o poder curativo de suas águas se devem à
presença da cobra. A cobra, na concepção Ashaninka, nunca morre, descasca do
73
Ayahuasca ou kamarãpi, na língua dos Ashaninka, bebida alucinógina.
74
Hananeri sempre mencionou os dois nomes Inka e Inkra e mais tarde um terceiro
Apinga” para indicar um e o mesmo deus.
75
Pawa, o deus solar, foi para cima, como também Kaxiri, a lua, enquanto Nawereri caiu
num buraco e ficou embaixo da terra.
76
Os movimentos subterrâneos de Nawereri resultam em terremotos.
158
mesmo modo que os Ashaninka quando mortos descascam, retirando os kitarentse
(lê-se: a pele deles), quando são cozidos pela lua e de cuja panela sairão renascidos.
Temos enfatizado, assim, o lugar do kitarentse no contexto da busca
Ashaninka por respostas sócio-culturais para fenômenos como doença e morte.
Veremos como esses conceitos ocupam um lugar central no mundo Ashaninka. As
respostas frente às doenças e à mortalidade são expressas em vários artefatos que
constituem o que pode ser concebido como a “Pessoa” Ashaninka, aquilo que
poderia ser a chave para a felicidade nesta sociedade, aquilo que, segundo
Malinowski (1985), devemos sempre examinar para chegar à ‘essência do ser’, a
saber, “o que faz as pessoas felizes”.
Retornemos, agora, ao conceito Ashaninka de “trocar a pele”.
Tirando as “roupas” velhas.
Antes de navegarmos, mais adiante, para a comunidade de “Bananeira”, meu
guia principal era Ateringa, o mais velho Ashaninka da comunidade Riozinho,
afluente do rio Envira. Ateringa contou a seguinte “história”:
“Vamos ver quem vai morrer primeiro! Ninguém comia nada. Uma cobra, um
caranguejo e uma tartaruga estavam sendo observados por Pawa
77
. Passado um mês,
depois mais outro, então Pawa estava espiando. Passaram quatro meses, cinco
meses. Depois do nono mês Pawa disse: ‘vou dar uma olhada, vou ver o que está
acontecendo com eles.’ Primeiramente, ele viu que quando mange, a cobra, ficava
com roupas velhas, simplesmente as tirava. Ficou menino de novo depois de tirar o
couro! Quando mange (a cobra), a gente chama, xaganake (mudou de pele), ele
bateu lá dentro, dentro da pele dele. O mesmo acontece com o caranguejo. Não tinha
dois cascos? Fizeram injani, sopa dele, tiraram suas pernas. Mas foi embora, caiu na
77
Pawa é o deus solar.
159
água, só a casca ficou. Quando fica velho, cobra tira couro, caranguejo, mesmo jeito,
nós chamamos caranguejo “oxero”.
Motivos mange – cobra
160
Eram três, mas não tem mais um outro que tira o seu couro o, a tartaruga
não sabe fazer aquilo. Por outro lado, a tartaruga aumentou, ganhou peso (e isso
durante o experimento de Pawa no qual eles não receberam comida...). Depois de
quatro, nove meses, Pawa escutou bater dentro da casca da tartaruga. Pawa disse
você vai virar mange, virou cobra. transformou o outro Ashaninka que tinha
caído na água, num caranguejo, oxero.
X
: motivo
78
da cobra pusanginari.
Tatuagens de Txepe, mulher Ashaninka da comunidade Simpatia motivo da cobra
(mange) na perna.
78
Outra tatuagem parecida que observei no braço de um homem: . Interessante é
que os Asheninka escrevem a letra “N” do mesmo jeito, se fosse em itálico.
161
Restou a tartaruga. Vou espiar, disse Pawa, a tartaruga não fez nada não, tu
sabe, não tira seu couro. o caranguejo e a cobra. Então quando se bate com um
pedaço de pau na tartaruga, ela morre nê. cobra, caranguejo e siri tiram o seu
couro, do resto ninguém tira couro. Não foi? Você sabe né? O caranguejo fica novo
de novo. Nenhum animal vive eternamente, só mange, a cobra. Não sei, depois Pawa
foi embora para o céu com a escada que tongiri (beija flor) levantou. Era meu pai
que contou a história assim, para entender os Ashaninka daquele tempo, contou que
o caranguejo, rasgando com barro, tirou o couro dele, caranguejo tira sua casca, mas
o resto dos animais não sabe fazer isso, não sabem como eles podem tirar as suas
roupas velhas. Só oyrontse, e a jibóia também e aquele tempo com jibóia, eu esqueci
o nome dele
79
.
Desenho feito por Ateringa de irinoya, a jibóia.
Agora konoio, a tartaruga, ficou lá, rapaz ficou magro ao final (Ateringa ri)!
Não morreu não! Não tem carrapato que mora dentro o casco dele! Ele chamou
tongiri (beija flor) mandou ‘vai buscar batata para mim!’. Ele tinha (Ateringa ri) a
batata dele que eram os carrapatos trazidos por tongiri. Ele vai comendo, comendo,
comendo, chamando o beija flor, traz batata para mim... Pawa o transformou em
konoio e aí ele o virou. Até agora né. Quando termina tudo, começa outra história.”
Durante a coleta de feijão encontrei a casca vazia de um besouro, chamado
kirengkiretse. Hananeri não contou que esse besouro “sabe quando faz verão”,
mas também que no auge do som contínuo e crescente que produzem, eles pulam
das suas peles e viram jovens de novo. “Saem jovens!”. Hananeri imita um velhinho,
79
Neste ponto de sua narração penso que Ateringa se referia à Nonki, a anaconda.
162
respirando com dificuldade e, de repente, deixa cair sua cabeça para um lado, como
acontece no fim do som crescente produzido pelos besouros, querendo demonstrar o
processo de mudança de pele e o princípio da imortalidade. E continua Hananeri:
“Aqueles besouros não morrem, rejuvenescem, como s fazemos quando
estamos com a lua. A gente é cozido até que a pele sai, deixamos o nosso couro, a
nossa batina (kitarentse)
80
e nascemos, novamente nus, num outro lugar. A história
da lua era uma história que meu pai contou.
Neste ponto, é importante frisar que as próprias categorias usadas por
Hananeri para expressar pele e kitarense, ‘couro’ e ‘batina’, acentuam o significado
de pele, do mesmo modo que as pinturas faciais.
Interessante é que Hananeri, depois de uma pausa, expressou sua dúvida em
torno da história que acabava de narrar: até agora, diz ele, não viu ninguém
retornando do caldeirão da lua, não sabia como isso acontecia precisamente e nem
onde os mortos iam renascer. Num outro momento, esclareceu que depois da tirada
do couro dos mortos na panela da Lua “estaremos super vivos, vivos de novo e desta
vez para sempre.
O caldeirão da Lua, onde os mortos estão sendo cozidos, é visível na meia-
lua, sendo ela mesma a representação do ‘caldeirão da lua’. As manchas visíveis na
lua cheia representam o personagem mítico, Aroxiri, que queria tocar a lua cheia,
quando ela parecia estar muito próxima da terra. O insucesso de Aroxiri fez com que
a lua o levasse consigo. Através das manchas da lua, a cada ciclo lunar, vê-se a
presença de Aroxiri. Na concepção Ashaninka, o sol tem um rosto ‘limpo’
81
se
comparado à lua, que tem o rosto manchado. Durante a noite da aparição da lua
nova, quando a lua torna-se visível novamente aparecendo como uma fina linha no
80
“Couro” e ”batina” estão misturados aqui. Assim como as pinturas faciais providenciam
uma segunda pele, o kitarentse (cushma, batina) pode ser também considerado uma
segunda pele.
81
“Limpo” é um conceito importante na estética Ashaninka e suas várias significações e
contextos encontram-se nos demais capítulos da tese.
163
céu, ela é interpretada como o chapéu da lua, na verdade, um pedaço do seu
chapéu, uma vez que Aroxiri o quebrou quando queria tocá-la.
Em uma noite de céu claro, Hananeri estava convencido de que iria chover,
porque a lua nova tinha aparecido. A forma da lua nova significa também para os
Ashaninka o momento que a primeira esposa da lua chora, derramando água sobre a
terra. O choro da primeira esposa da lua acontecera em decorrência de uma briga
com a lua, quando a esposa tentava convencê-la a não tomar os mortos da terra.
As notícias do rádio, que funcionava com energia solar, provavam, segundo
Hananeri, que a lua estava tomando seus mortos: um dia falou que duas pessoas
morreram na aldeia Doce Glória, no Peru. Outro dia, que morreu alguém na
comunidade de seu irmão. “Cada dia do mês é possível que alguém morra de
repente!”, exclamou. Deste modo, quando parece chover durante a lua nova, não é
chuva, o as lágrimas da primeira mulher da lua, são as lágrimas de alguém que
mostra compaixão com a condição humana dos Ashaninka, ou melhor, com a sua
condenação a serem humanos, condenados a morrer porque são deixados para trás
pela maioria dos deuses.
Adiante, quando apresentarmos o mito de Nawireri, veremos que não os
animais como a cobra, o caranguejo e um tipo de besouro têm o poder de
rejuvenescer, têm a benção de poder “descascar”, mas também estão incluídas nesta
condição algumas árvores. Como, por exemplo, a mulateira. Na época em que não
havia árvores
82
, Pawa mandou os Ashaninka cumprimentarem apenas a irmã dele, a
mulateira, que tem o poder de trocar pele, de rejuvenescer. Mas não resistiram, e
cumprimentaram também as outras árvores. Assim a mulateira “não soltou a poder
dela.” Mais uma chance para obter imortalidade que se foi. Jomanoria conta:
82
Interessante para a visão estética dos Ashaninka é que a época mitológica “sem árvores”
é considerada “limpa”. Quando referem-se ao Peru como se fosse uma terra divina, também
dizem que lá está “limpo”, era lá onde deus foi para cima, na montanha. A floresta é sempre
pensada como um lugar onde coisas estão apodrecendo.
164
“Deus tentou muito para nós, tentou várias coisas. Aí, porque antigamente, não tinha
pau (árvores), não existia mata, não existia mata, todo estava limpo quando Pawa
estava na terra. Todo limpinho, todo limpinho. Tinha muitas plantas com frutas, mas
não tinha mata assim, como agora. Tem mata, tem mulateira, tem muito pau, árvores
com alma (como kapirona, pawtaki, irioxi, komawo e hiriwateki) e tem sem alma
(buraino, tairi, xina, pasaw, kotsimi, santari, iopo). Aí, Pawa inventou algo para dar
aos Ashaninka mais uma chance para tasolentse (obter imortalidade). Ele disse
agora quando vier sua irmã, mulateira, né, dizendo boa tarde, tu pode responder
ela. Mas não responde esse pau que vem na frente, você não responde não. Fique
calado, não responde logo. Agora quando mulateira chega, responde ela. Aí, essa aí,
ela vai dar o poder dela, quando tu fica velinho, informa tirar aquele couro, ,
fica novinho de novo, fica novinho. Aí, tu fica bem velinho e estava bastante, aí, tira
de novo e fica novinho de novo. Como mulateira. Ela fica, quando chega friagem,
né, sai pele dela, fica bem novinha de novo, fica crescendo. Ia ficar nós, mas o
negocio é, parece que foi a pedido do demônio, né, aí, tem muita força dele, ele
mandou pau, né, arvore, todos pau, né, agora como tem, primeiro não tinha pau
como agora , né. Aí vem ele, não sei de onde, parece que onde o sol sente, ái vieram
eles, todos pau, chegaram, tinha aqui como casa, né, cidade, casa, aonde deus
subiu, né, ele diz que avisou para nós, era para fazer assim. Antigo né, quando tu
mulateira tu pode dar boa nela. Se ela dizer boa (tarde), irmão, aí, vai crescendo,
bom, ela vai soltar poder dela, para tu ficar, não morrer mais, nunca morrer,
quando fica bem velhinho, aí, fica novo de novo.
Mas não foi isso. chegou outro pau. Mulher disse: ”rapaz, quando chegar outros
pau como deus disse, vamos ficar totalmente calados. Vamos ficar todos calados,
vamos esperar mulateira chegar, aí, gente responde ela (mulateira). Aí, pau
espinheiro veio primeiro, né, chegou, vem boucada, muita gente, gente , gente,
pau aí, todo era gente. chegou como aqui: “Aí compadre, boa, boa, boa. Me
responde! E ele ali ficou calado, agüentou um momento, ficou calado. Mulher disse
165
para ele: “não responde não!” “Me responde! Eu também sou filhou de deus.” Ele...
passou. Lá veio outro, vem outro, todos pau (vários tipos de árvores).”
Jomanoria continua com um outro mito sobre a mulateira, onde a árvore é
uma mulher jovem, mas que tem a aparência de uma velhinha. Essa mulher de
aparência idosa possuía, na verdade, a fonte da juventude eterna, o poder de
descascar, que ela poderia compartilhar, se não fosse recusada. O mito parece
advertir para não se recusar tão rapidamente uma mulher mais madura
83
:
“Aí, outra história, né. Ele (Pawa) inventou outra coisa também, para ver se
ele consegue para gente ficar não fazer isso né (envelhecer e morrer). Aí, ele
inventou outra história, formou mulher, (que era na verdade) mulateira. Aí,
vieram os dois, irmão dela (da mulateira) e ela. Aí chegaram na casa, aí vieram, para
juntar com ele (o irmão ia junto para casar sua irmã, a mulateira. A sua irtinha a
aparência de uma velinha, mas que guardou consigo a receita para a juventude
eterna. Um poder que ela poderia compartilhar com seu parceiro, caso não fosse
recusada). Jomanoria continua: “aquela velha, bem velhinha, cabelo branco você
não mulateira quando solta aquela flor, né, bem brancinho, cabelo dela, parece
velinha, né, aí, com bastãozinho na mão. Aí, chegou irmão dela e trouxe ela para
aqui dizer: ”Olha, eu trouxe minha irmã para tu ficar com ela, para tu casar com ela.
Aí, esse cara o queria não: Eu quero mulher nova.” (Hananeri comenta: mas, ela
era nova, aparecia velha!) Aí, o outro:”não, essa é minha irmã, ela é nova, fique
com ela! Aí, cara não queria não: “Não quero não.” Aí, também, quando ele não
casou com aquela, por isso agora a gente, não prestou o, se tivesse ficado com
essa velinha, ela teria soltado o poder dela. Nunca mais pegaríamos doença, todo
o mundo viveria e poderia, custaria muito tempo, dois mil anos não morreria, más
83
O drama de “X”, uma mulher Ashaninka, por exemplo, que disse enquanto estava
passando a mão pelo rosto: “homens Ashaninka não querem mulher assim, com pele assim
(com rugas).” Por isso, X estava querendo se casar com um velhinho branco com koriki
(dinheiro) na cidade.
166
respondeu que não presta. Por isso que a gente morre muito. Acontece muitos
problemas.”
De todo modo, a cobra permanece como o exemplo prototípico para os
Ashaninka quando querem falar ou refletir sobre a imortalidade
84
.
Motvivos mange – cobra
O rio subterrâneo Hananerial é gelado e curativo justamente por causa da
jibóia (sankorenki, Boa). Hananeri enfatiza que “a gente não mata a jibóia, o pessoal
da FUNAI não conhece essa história, ‘vamos matar com o diabo, PAW!, é por isso
que não tem mais kurimatã (xima) por aqui! (um peixe do qual o gosto é muito
apreciado; é também um motivo pictórico recorrente na pintura dos kitarentse). Ela
é o “dono” dos peixes. Quando encontramos uma jibóia, a gente reza com ela: ‘eu
84
O mesmo tema dos animais que descascam e que não morrem pode ser encontrado entre
vários povos vizinhos como, por exemplo, entre os Kaxinawa (Lagrou 2007) que enfatizam
a imortalidade da cobra (jibóia-anaconda).
167
não vou te matar, mas em troca eu gostaria de ficar mais velho, então me um
pedacinho de seu coração de cobra..
Motivo pusanginari (cobra)
168
Motivo pusanguenari
A jibóia responde, movimentando a sua língua e dizendo: “Está bom, mas
então, não me mata
85
agora”.
Parece importante perceber que a concepção de imortalidade da cobra para os
Ashaninka esteja relacionada à morte causada por doença ou velhice e não por
predação. Isto aponta para um outro conceito importante para o universo amazônico,
no qual a predação está referida a processos de transformação derivados justamente
85
Quando os Ashaninka falam que uma cobra não morre, quando falam em imortalidade,
isso quer dizer que a cobra não morre de doença ou velhice. Matar parece ser um outro
conceito.
169
de uma condição possível de mortalidade de todos os seres, desencadeada por atos
intencionais de outros seres.
E Hananeri conclui: Quando tiramos o kitarentse, ah, aqui tem a pele de
jibóia. É nosso couro, é nossa pele.”
Observamos, assim, que em apenas uma frase Hananeri sintetiza que o
kitarentse está referida à significação de pele, de couro, do mesmo modo que
Hananeri se refere à belo kitarentse da onça, como sendo seu couro. Com um pouco
de sorte, essa pele, o kitarentse, tem a força do coração de uma cobra, quer dizer, o
poder de fazer rejuvenescer aquilo que recobre, que é o invólucro. O kitarentse, ao
mesmo tempo, exprime o desejo de se ter uma pele como aquela da jibóia, uma
‘pele’ que pode ser trocada e, simbolicamente, o que proteção ao seu portador
contra as doenças, o envelhecimento e a predação.
No plano cosmológico o kitarentse está relacionada à jibóia e à lua. Veremos,
mais adiante, que os txoxiki, os grandes colares que alcançam o tornozelo e que são
usados diagonalmente sobre o kitarentse, entre outros artefatos que ajudam a
constituir a Pessoa Ashaninka, estão também ligados à jibóia. Deste modo, o
conceito do poder e da imortalidade da cobra encontra-se também nos recipientes de
guardar o urucum, nos braceletes de miçanga, no desenho feito nos isqueiros, nas
pinturas faciais, nas tatuagens e etc.
Braceletes de miçanga, (aqui com motivo de farpas)
170
Desenho bracelete com motivo mange, cobra
As significações da jibóia oscilam contrastivamente entre o medo de ser
morta e sua valentia e destemor. Neste contexto, Hananeri nos fornece a seguinte
narração: “Antigamente quando morávamos no rio xinane, fomos pescar um dia.
‘He, tem um xempire (tartaruga da água)!’. Aquelas bolinhas de ar realmente
pareciam vir de uma tartaruga. Quando mergulhei e fiquei mais perto, vi que era
uma jibóia que estava deitada na areia, eu vi a língua dela sair da boca. ‘Oh, eu vou
te deixar em paz’. A jibóia estava tranqüilamente olhando como a gente estava
pescando e ela disse: ‘Ah, eles pegaram os peixes deles, agora podem ir embora’.
A jibóia é o dono dos peixes, lá onde tem muitos peixes, encontra-se a jibóia.
Motivo jibóia
171
Naquele dia, Hananeri, Tenoria e outros encontraram dois Kaxinawa na volta
para a casa e Hananeri reproduz a conversa que tiveram com os Kaxinawa:
“Kaxinawa: Vocês já têm peixe?
Ashaninka: Sim.
Kaxinawa : A gente vai também pescar.
Ashaninka: Cuidado com a jibóia!
Kaxinawa : Não faz nada, vamos matar ela.
‘A deixe em paz’, disse Hananeri, ‘A deixe!’. Depois ouviram gritos e gritos.
Está vendo! A mulher caiu e o homem fugiu. Naquele tempo tinha muita taboca e o
homem (enquanto estava fugindo) bateu a cabeça contra a taboca. (Depois bateu na
jibóia). Com um bastão (feito da taboca ‘encontrada’) apontado, mas isso não deu
certo, não perfurou a pele. A jibóia falou: ‘deixe-me em paz.’ A segunda vez eles
tinham batido na cabeça dela e a jibóia sentiu dor, foi atrás daqueles Kaxinawa, com
o rabo ereto
86
. A gente estava indo embora, mas deu para ouvir os gritos. A jibóia
não tem veneno, mas ela te enrola e enfia o rabo no anus, perfura assim com rabo o
coração, morre. Mata com seu rabo, perfura através do anus o coração. Aqui em
baixo da terra há também um rio, muito gelado: é o igarapé de Nawereri. O nosso rio
cura também. onde fica a jibóia, a água está profunda e fria. Quando
mergulhamos num posso grande e a água fica fria, estamos sabendo, aqui mora a
jibóia, esse rio tem dono: o caranguejo é a tesoura dele, e o curimatã (xima) (o nariz
do peixe, com o qual chupa lama, se parece com as narinas do porco-do-mato) é o
porco-do-mato dele, a tartaruga (xembiri) é seu banco para sentar, a “sarapó (?)” é o
pente dele. Então a gente sabe, esse rio tem dono, vamos mergulhar num outro
lugar.”
86
Para os Kaxinawa e outros grupos pano da região, a jibóia-anaconda é igualmente
considerada um ser poderoso a ser respeitado. A jibóia pode ser morta em contexto ritual
por homens para obter sorte na caça, por mulheres para obter habilidade na tecelagem com
desenho, mas nunca sem resguardo ou dieta. Nunca se deve matar a anaconda, a cobra
d’água que é considerada o “dono”, o chefe do lugar.(Cf. Lagrou, 2007).
172
A jibóia está freqüentemente presente na vida diária Ashaninka. Durante as
festas (piarentse) em que se consome grandes quantidades de cerveja de mandioca,
pude observar Tenoria (esposa de Hananeri) derrubando um balde com água em
cima da cabeça de um convidado que, sob o efeito da caiçuma, havia ficado
agressivo. A pessoa em questão, que gritava e gesticulava energecamente, de repente
se acalmou. Acalmar-se era a coisa mais improvável que poderia acontecer para
quem assistia a cena: a pessoa sob o efeito da caiçuma havia tomado uma decisão
que parecia ser irreversível: se vingar de um dos convidados da festa. Depois do
gesto de Tenória, a impressão que tive era de que ele parecia grato por aquele balde
de água fria, não esboçando reação em relação à atitude da mulher. Sua reação teve
implicações sócio-culturais: o gesto fôra interpretado como cura. Muitas vezes os
Ashaninka nos aconselharam a tomar um banho no rio, como eles próprios faziam,
quando o corpo estava esquentando com a caiçuma (cerveja de mandioca)”. No
contexto Ashaninka, a água fria é refrescante e curativa justamente pela presença da
jibóia nela. A cobra faz com que a água seja fria e que este seja um princípio
calmante ou curativo. Isto se opõe radicalmente ao sangue menstrual, que é quente,
queima e provoca raiva na jibóia, toda vez que uma mulher menstruada toma banho
no rio.
A raiva da jibóia pode ser visível pela sua aparição na forma de arco-íris no
céu e se manifesta na forma de “flechas”, uma chuva que provoca forte dor de
cabeça nos Ashaninka. Yanko, neto de Hananeri, ficou desacordado, sem
consciência, depois de uma queda da plataforma na casa em palafitas de Tanta.
Estava escuro e ele errou um passo quando queria botar o na escada. A queda lhe
produziu um galo enorme na cabeça.
Segundo os princípios da fisiologia Ashaninka, quando qualquer ser sofre
uma pancada na cabeça ou em qualquer parte do corpo, o sangue ‘viaja’ até o
coração, podendo causar a morte. Desta perspectiva, o caso de Yanko era
considerado muito grave. Assim, rapidamente jogaram água em seu rosto e era esta
173
água fria da jibóia que fazia com que ele pudesse “virar vivo de novo”. Quando a
mãe derruba água em cima do filho que estava sob o efeito da caiçuma, este gesto é
imediatamente associado a uma cura.
Hananeri, ainda neste contexto, narra o seguinte episódio: um dia uma pessoa
foi coletar uma fruta chamada pama, que cresce no alto da árvore. Um cipó seco se
quebrou no momento em que a pessoa se apoiava sobre ele, e ela caiu. E Hananeri
continua: Se eles não tivessem derramado água em cima dele, ele teria ter morrido.
Com a água ele virou vivo de novo. Sem água ele teria morrido”. Os Ashaninka me
deram também um valioso conselho: se eu matasse um macaco e ele ficasse
pendurado em cima, eu deveria deixar o macaco morto no alto, porque de outra
feita uma pessoa queria pegar um macaco morto, trepou num cipó e caiu. Como
ninguém levou água para ser derramada sobre ele, o homem acabou por morrer.
Hananeri conclui dizendo que “é sempre bom levar um pouco de água consigo.”
Certo dia começou a chover repentinamente. Hananeri então ordenou que as
crianças voltassem rapidamente para dentro das casas e elas imediatamente o
obedeceram. A luz era intensa e o dia bem claro fora, mas ao mesmo tempo,
chovia. Se as crianças tivessem ficado sob a chuva chorariam durante a noite.
Chovia porque a jibóia estava zangada: uma mulher menstruada foi tomar banho de
rio e seu sangue quente queimou um filho da jibóia. As flechas da jibóia caíam ali na
forma de chuva, que a criança ou o adulto podem sentir durante a noite. Este é o
momento por excelência da presentificação da jibóia no mundo Ashaninka,
momento quando surge o arco-íris (oye), quando a jibóia exibe seu kitarentse, sua
pele.
O arco-íris é, também, um motivo pictórico dos kitarentses dos Ashaninka.
Em outra ocasião, Hananeri disse que o arco-íris é chamado oejee nookeempietjeena
pelos xamãs e que não se trata da jibóia, mas de um amigo da jibóia, introduzindo,
assim, uma ambigüidade essencial ao pensamento Ashaninka que depende,
174
sobretudo, de testemunhos, de narrações, de acontecidos para que possa ser
expressado.
Ainda no mesmo contexto de significação da jibóia e do arco-íris, Hananeri
continua: “As pessoas mortas aprendem com o arco-íris, quando só há um pedacinho
do arco-íris visível, não presta. Assim os mortos sobem, param (porque o arco íris
está interrompido) e voltam de novo (para a terra). Se o arco íris é completo, está
bom.”
“O que os mortos aprendem com o arco-íris?”, perguntei. Hananeri disse:
“remédio. É algo que pajés conseguem ver quando estão bebendo cipó
(ayahuasca), o arco-íris vem com barco preto, o pajé vê isso e é chamado. O arco íris
lhe pergunta: qual remédio você quer? Reumatismo, febre... Engolir vidro branco
não é bom, (vidro) escuro é melhor, arpão (ferro) também é bom; ele (o arco íris)
tem um bolsinho (tato) pendurando dentro do corpo dele com todas essas coisas
(vidro, ferro etc.) dentro. Ele ensina curar. A lama preta com qual a batina
(kitarentse) está sendo pintada é também dele. É preciso ‘rezar’
87
se voo arco-
íris, ‘eu quero uma batina como você.
A batina do arco-íris é o ideal de beleza dos Ashaninka. Olhar para um
pedaço só, para um arco íris incompleto, não presta. Olhar para um arco-íris
completo sim, “assim desse jeito você reza de maneira certa.” Hananeri continuava
sentado, relaxado, no chão. Olhando para baixo fala baixinho com certo respeito e
desejo: “eu quero uma batina como você....
Aqui aparece toda a significação do kitarentse, evocando a idéia de
imortalidade e o desejo de Hananeri em adquirir o kitarentse da jibóia, sua ‘batina’
preta, sua possibilidade de renovação de pele, como fonte da eterna juventude.
87
Pede-se do seguinte modo para o arco-íris pintar o kitarentse, para que ele fique bem
preto: txaríne, pimpenaow pitongiri tandari éroka.Segundo Jomanoria não se pede nada
para o iguano (patstaki), com o qual pintam também o kitarentse. Agora, essa lama tem
que pedir, senão dono vai ficar com raiva, vai jogar doença para tu, né, aí, cai doente, é,
não dorme bem, fica todo arrepiado, é, tem que pedir para ele. Lama tem dono.
175
O dono da lama com a qual os Ashaninka pintam seus kitarentse é a cobra
arco-íris. Há, neste ponto, um contraste interessante entre a batina preta da cobra e o
arco-íris, que é o fenômeno natural multicolor. A lama preta com a qual se tinge o
kitarentse tem a função de proteger justamente o seu possuidor contra mordidas das
outras cobras. A cor preta para os Ashaninka está associada ao poder: os
maribondos, prezados pela sua coragem e pela qualidade de serem valentes, são
descritos como pretos, assim como a onça parda e os policiais federais. Os policiais,
com seus uniformes pretos, são integrados neste nível de classificação: valentes,
destemidos e usam “batina preta”. Por este mesmo motivo, as crianças gostam de
brincar de “federal” e os adultos colocam um apito nos seus txoxiki (colares) sendo,
portanto, mais uma referência (o apito) a objetos associados aos policiais. Hananeri
expressou o desejo de ter alguns policiais Ashaninka em sua aldeia, para intervir
nas brigas da comunidade, ‘mandar amarrar’.
Criança brincando de ‘federal’
O arco-íris viaja com um barco, também preto, para passar seu cachimbo
grande (atributo do pajé) àquele que está “aprendendo com ayahuasca”. O aprendiz
pode por três vezes sugar o cachimbo dele e pode ser convidado a entrar neste barco
preto para se tornar, assim, imortal, “lá em cima”, onde também mora Pawa.
176
Desenhos do ‘barco’ feito Jomanoria:
Desenho do espítito kamori
Kamori é um espírito que pode ser visto quando se bebe kamarãpi. Sua visão
‘treme no ar’, ajuda detectar doenças, diagnose, mora no inkiti (o céu). Também
pode ser desenhado como pintura facial. Esta é mais uma pintura facial que tem um
caráter particular: foi descoberta por quem a viu sob o efeito da bebida ayahuasca.
Neste sentido, este seria um contra exemplo para a percepção de arte indígena por
Lévi-Strauss: a arte não seria uma linguagem eminentemente social, mas apreensível
pelo indivíduo, neste caso, o pajé.
177
Quando se retira lama de um igarapé na floresta para tingir o kitarentse,
quando se pinta com a lama preta da cobra o pano do kitarentse, deve-se rezar
(rezar é literalmente “pensar a cabeça”) para o dono da lama: eu quero que o
desenho certo.A lama deve ser retirada apenas com a mão, para não ferir seu
‘dono’. o se pode usar faca ou qualquer instrumento cortante para sua retirada.
Reza-se se para a execução desejada e correta do desenho no kitarentse, de tal modo
que se pode pensar que existe na arte minimalista dos Ashaninka uma certa
inspiração referida ao mundo dos deuses, que envolve respeito e cuidado com a
relação com estes seres inspiradores do desenho.
Neste contexto, cabe uma evocação ao episódio em que Pawa, o deus sol,
sobe ao mundo celeste deixando Nõnki, a cobra, no mundo terrestre, mas atribuindo-
lhe a imortalidade. Algo semelhante ao que é narrado em um episódio mítico-real de
alguém que mergulhou no lago frio e viu como as cobras pintavam as ‘pessoas’ que
viviam embaixo, demonstrando de algum modo uma associação inequívoca entre
cobra, desenho, proteção e imortalidade.
As mulheres menstruadas ou grávidas não devem estar próximas da retirada
da lama no igarapé e nem mesmo do ato de pintar. Hananeri, querendo me explicar a
associação entre a proibição de proximidade das menstruadas e grávidas da lama e
da pintura do kitarentse, me pergunta: “Como ela ficou grávida? e reponde em
seguida: “alguém derramou sangue quente (esperma) nela e esse sangue quente
queima os filhos da jibóia. Quando uma mulher grávida olha para alguém que está
pintando o kitarentse, o desenho não dá certo, não fica como queremos.”
O que Hananeri quer enfatizar parece ser que a jibóia ajuda os Ashaninka a
compensar a mortalidade humana, seja com a água curativa, seja com o poder de
“trocar de pele”, que está diretamente relacionado com o kitarentse.
178
Contar “histórias”.
Veremos que outros artefatos que fazem parte do conjunto dos objetos que
compõem a arte corporal Ashaninka tematizam a mesma problemática: são
concebidos como uma compensação para os vivos do seu abandono pelos deuses,
quando os deuses fazem sua “despedida” da terra
88
. Deste modo, os colares (txoxiki),
as tatuagens de escorpiões
89
nos antebraços, que fazem com que o braço, mas
também a confiança, seja fortalecida, fique rijo como “ferro”, as “queimaduras da
onça” na pele, a pintura facial, um tipo de acupuntura praticado por Txonde que
um choque igual a um peixe elétrico, considerado uma cobra por muitos Ashaninka,
fumar, mastigar coca e até o banco que Hananeri construiu, posicionado
especialmente para ver o sol
90
nascer, m o siginficado de ganhar força de vida.
Adicione-se a isso o menosprezo dos Ashaninka pela fraqueza, outra categoria
central em seu estilo de vida que será descrito mais adiante.
1 Kitonero: escorpeão tatuado
no braço de Ateringa. A
cabeça fica a direito.
2 Outra tatuagem de Ateringa:
uma raia. A boca fica no
circulo. O poder do rabo
(furar) é um símbolo de força.
3 Tatuagem de Nerita.
Segundo ela uma aranha. Um
escorpeão as vezes é chamado
aranha...
4 Tatuagem de uma bala no
braço de Nerita. Algo
cheirosa, relacionado com
pusanga.
5 Tatuagem do rabo de um
escorpeão no braço de Tanta.
88
O tema do abandono e da despedida dos deuses parece ser uma constante na cosmologia
amazônica. Ver especialmente Viveiros de Castro, 1985 quando formula a percepção de
que os Araweté, os vivos, são os ‘abandonados’.
89
A tatuagem é feito de uma mistura com as cinzas do próprio rabo do escorpeão, é
literalmente um “incorporar”.
90
Pawa, o deus solar, mas também relacionado a Nawereri, que “faz o dia nascer e morrer”.
179
Enquanto Hananeri estava contando a história de Pawa que foi para cima”,
uma leve brisa agradável nos refrescou. “Pawa está assoprando
91
”, disse Hananeri,
com uma voz baixinha e respeitosa. Pawa estava achando bom, para minha sorte,
que Hananeri estivesse contando uma história”; essa brisa fazia com que
ficássemos saudáveis e fortes. E Hananeri prossegue em sua história:
“Minha avó contou essas histórias. Eu queria também contar isso para meu
menino (X, aproximadamente cinqüenta e cinco anos), ele estava aqui, mas acabou
de ir embora. Ele não me escuta. Eu era diferente, antigamente eu escutava minha
avó contando histórias enquanto eu estava deitado. Ela estava fiando algodão. ‘Você
ouviu’ ela perguntava. Ela disse também: ‘não me esquece..., eu estou contando para
você para que vopossa contar as histórias para seus filhos. Não esquece a história
de deus (dos deuses) para durar mais assim (para que você possa viver mais tempo,
porque deus gosta quando você conta as histórias, te dá uma vida mais longa). Como
era minha vovó, ela era velha, ela fiava algodão desse jeito (imitando o gesto), os
dedos dela ficaram rígidos. Ela trabalhava muito. Entre esses dois lados desses
dedos uma cobra tinha mordido ela. Ela morreu por causa de uma gripe, não tinha
remédio, ela foi se esquentar no fogo e tinha caído dentro do fogo. Eu chorei
92
muito. Cada dia ela me contava uma história: ‘vem cá, você não vai dormir agora,
entendeu bem!?’ Eu não ia brincar como essas crianças aqui agora, brincar de
futebol, ou andar por aí; eu ficava com a minha avó, deitado, olhando como ela
fiava, bonito, tecendo kitarentse, tudo. Minha avó morreu por causa de febre, foi
beber, se esquentou no fogo, vomitou e depois morreu. Pode aprender bem
93
,
também contando história, cadê eu, EU! o morre também nê? (tinha dito a avó
91
Assoprar: do mesmo jeito o pajé cura, com fumaça de tabaco.
92
Chorar: é muito comum que os Ashaninka falem que choraram, porém nunca vi ninguém
chorar, exceto algumas crianças. É uma das características que acentuam seu estilo de vida,
quando comparando, por exemplo, com seus vizinhos Culina, do rio Envira que, segundo
os Ashaninka, choram mais. O chorar dos Ashaninka teria a concepção de um chorar
interiorizado.
93
Como alguém pode aprender com kamarãpi (ayahuasca) para se tornar imortal, buscando
o caminho para o céu.
180
que estava com uma idade abençoada). ‘Contar histórias sobre deus não é
brincadeira não, porque ele escuta o que você conta’, disse ela. ‘Quem faz o dia
nascer é deus, quem faz escurecer é deus também, agora pode dormir, o que para
gente é quase como morrer, agora pode sonhar, pode pensar comigo, contar
histórias, contar histórias’. Ela achava que isso era bom para mim, né, para mim, né,
assoprando assim, como esse vento está aqui agora, está escutando como nós
estamos contando para vocês, agora ninguém ‘recebe doença’. Contar histórias, faz
com que você também recebe uma vida prolongada. Você pensa que deus está
longe, mas o é, ele está escutando, fica perto. Eu levei um corte profundo na
cabeça, tanto sangue saiu que eu queria dormir, tonto; a minha mãe: ‘Não dorme! Eu
não morro. Eu vou te contar, pensar com deus.”
Eu preciso pensar na minha avó agora (diz Hananeri). Não é longe (deus não
fica longe), isso, você não pode mentir contando a minha história errada não, minha
história é assim. Deus escuta enquanto você está contando a história: você não
mente não, minha história é assim.
94
Os contadores como Hananeri, Ateringa, Carijó e Jomanoria sempre
lembram-se da fonte de origem das histórias que contam. Lembram, como fez
também Ateringa, da avó que contava histórias, enquanto fiava algodão à noite,
muito tarde, todos deitados, o barulho de fiar e “a historia demorava, demorava...”.
E a avó sempre interpelava a audiência: “Está acordado ainda? Escutou? Um
dia vai ter que contar isso para seus filhos. Contar histórias não é brincadeira, se
você está mentindo (contando a história erroneamente) deus está ouvindo isso.” E a
todo momento reafirmava: “você ouviu bem, está escutando?”. Os ouvintes se
assustavam porque acordavam de repente, mas rapidamente deviam falar com
respeito e uma ponta de medo: “Sim, sim.
94
Levando a sério este pedido, tento reproduzir as frases da maneira mais fiel e direta
possível, através da transcrição mais literal possível das fitas gravadas.
181
Todos lembram-se com saudade do/a contador/a de histórias, revivem um
sentimento agradável de um estado de quase sono em que o ser se abandona nas
aventuras narradas. Este estado de prazer, de relaxamento durante a narração das
histórias faz com que os contadores muitas vezes bocejem e adormeçam logo após
ter contado a história.
A pessoa lembrada por ter contado a história para o filho ou neto que, por sua
vez, está contando o mito, neste caso, para o antropólogo, parece ser bastante
importante. Sempre mencionam
95
quem lhes ensinou a “história”, em quais
circunstâncias foi contada, como o(a) contador(a) era e como ele (ela) morreu.
A história não é contada de X para Y, para que Y se lembre de X, mas o
que é interessante é que contando histórias você ganha-se força vital, vidas extras. A
prova disso era a brisa agradável que Pawa assoprava enquanto Hananeri me
contava as histórias. Outra prova do poder revigorativo do ato de contar histórias era
a idade avançada da avó de Hananeri, aquela que contava as histórias para ele. Ela
dizia: “Está vendo, eu ainda estou viva, como eu estou contando você deveria
também contar”. É o vento divino que leva a(s) doença(s)
96
.
Pawa manda em forma de brisa sua benção quando conta-se um mito porque
as “histórias” contém informações valiosas, contam sua saga, explicam como a
morte chegou entre os Ashaninka, como Pawa foi para o céu, como Nawireri foi
para baixo da terra e como a jibóia e Inca/Incra ficaram entre eles. Temas centrais
que fundam a concepção de mundo Ashaninka e seu estilo de vida presentificado
nos objetos que integram o conjunto de sua arte corporal.
95
Tanto Hananeri, como também Cajiru, Ateringa, Jomanoria, Xawio, Kokonha...
96
Um sol vermelho traz doenças. Quando estava comentando o tempo com Kokonha ele
disse uma vez: “0 vento tem limpado o sol que depois não estava mais encarnado, o sol
virou “limpo” de novo. O vento tinha levado aquela fumaça.”
182
A mulher desobediente e o nascimento da morte.
O levantamento da escada de Pawa (Pawa ietojpiekietee) contra as nuvens
97
fez um barulho grande (onomatopéia: paw, paw) e algo parecido com chuva caiu do
céu. Foi proibido às mulheres olhar para cima, até que “tudo” tivesse caído do céu.
Porém, uma olhou para cima e de repente parou de chover aquelas pedras de gelo.
Em outra versão Hananeri vai dizer que “quando a escada de Pawa ficou quase reta,
bateu contra as nuvens e a água desceu. Pawa fez isso para fazer o rio Hananerial.
Aquela água parecia chuva, muito parecida com água mineral, gelada, da geladeira.”
E Hananeri continua: “E agora? tinha caído um pouquinho, o suficiente
para agüentar. Não sabia quantos anos, mas depois a gente ia morrer. Se aquela
mulher não tivesse olhado para cima, as pedras continuariam a cair e os homens se
tornariam imortais. E agora, como é que a gente vai fazer, disse Pawa, para fazer
vocês mais fortes...?
Neste contexto, Hananeri parece querer afirmar que quanto mais chovesse,
mais anos as pessoas viveriam, enfatizando que agora os Ashaninka teriam uma
expectativa de vida razoável, “o suficiente para agüentar”. O ‘agüentar’ tem a
conotação de suportar as dores existenciais, o peso da existência, quando se é
mortal.
Hananeri prossegue: que o homem perdeu sua imortalidade, temos que
arranjar algo com terra: deus mandou buscar barro, terra, segurou a terra nas mãos e
assoprou. Com essa terra deus disse: aqui é seu corpo, porque (vocês) não
agüenta(m) para viver mais né, para durar mais né, agora faço com terra.”
Foi justamente porque a chuva de água fria do céu foi interrompida pelo olhar
da mulher desobediente, água que ia garantir a imortalidade dos seres humanos, que
Pawa, desta vez, ia tentar fazer algo com a terra. E, deste modo, faz sentido a frase
97
É importante frisar aqui que, desta vez, Pawa foi omitido pelo narrador.
183
de Pawa proferida por Hananeri: “Está aqui seu corpo. Se morrer você fica aqui,
agora sua mãe é a terra, você vai ser enterrado. Fica aqui.”
Um outro episódio da narrativa de Pawa vai dar conta da diferença entre
homens e mulheres no contexto da imposição da mortalidade. O episódio se passa
quando a mulher deixou o homem passar à sua frente no caminho, em busca de
goiaba (komaxki). Pawa havia rigorosamente proibido tal coleta, mas a mulher
insistia de tal modo que convenceu o homem a ir na frente e, portanto,
desobedecendo novamente Pawa, a segunda chance para obter a imortalidade foi
perdida.
Mas, mesmo assim, Pawa aproveitou o episódio da coleta da goiaba para
produzir um outro efeito que engendraria a diferença sexual: “Pawa queria dar um
jeitinho... agora que a mulher tinha desobedecido seu simples pedido... Naquele
tempo as pessoas não tinham sexos. Bastava cuspir nas mãos e esfregar na barriga
98
.
Imediatamente você tinha uma criança”. Mas justamente durante o ato de coletar
goiaba, no exato momento em que a mulher “deixa passar o homem” em busca da
fruta, a mulher cai e neste acidente ‘rasga’ entre as pernas a vagina. Vemos, assim,
que a origem da morte se vincula diretamente à origem dos orgãos sexuais.
“Aquela chuva era fria mesmo, ninguém teria se tornado mortal se tivesse
chovido como fez ontem aqui, quando molhou tudo nesta casa todos teriam ganhado
imortalidade. Tasolentse! Ninguém morreria,” repete Hananeri, balançando
melancolicamente a cabeça, e continua: “Todo mundo poderia ter feito o que
quisesse, a gente não ia sentir fome, não seria preciso ir caçar. Você receberia o que
quiser. Vamos fazer peixe? Aqui está! Vamos comer. Nambu? Aqui está. A gente
não deveria trabalhar como agora. Também mandioca. Está aqui.
98
Interessante notar que, no mito de origem dos Kaxinawa, vizinhos dos Ashaninka, Nete,
mãe primordial dos primeiros humanos, cospe no próprio ventre para se auto-fertilizar
(Lagrou, 2007).
184
No trecho a seguir, o sentido de imortalidade se acopla para Hananeri ao
siginificado cristão que serve para enfatizar o modo de pensar dos Ashaninka sobre
a desobediencia e a imortalidade. Pawa, quando subiu, deixou a mulher
desobediente, aquela que olhou para cima quando a chuva celestial caiu, embaixo,
porém, levou sua irmã Maria para cima. Maria já tinha ido para cima, Cristo também
tinha ido para onde ninguém morre. De lá, Pawa ia olhar para os Ashaninka e
recomendou que todos poderiam beber a cerveja de mandioca direitinho’, sem
brigar, e comer a macaxeira que tinha ficado aqui em baixo para ser plantada. Todos
queriam ir junto com ele para não morrer, mas não puderam acompanhar Pawa.
Surge um episódio marcante na subida de Pawa que introduz um personagem
central no mundo Ashaninka: a cobra Nonki. Segundo Hananeri, “a cobra, Nonki,
não queria subir (junto com Pawa), (já que) ela sabia (viver para sempre, trocando
de pele). Pawa perguntou: e tu, filho? Eu fico aqui, disse Nonki. Está bom filho, tu
fica aqui.” Os demais queriam acompanhar Pawa mas o podiam, pois se
transformavam, por exemplo, kwanto (porco-espinho) e uru (um pássaro que
“limpa” o chão, com sua perna). Ficaram chorando muito e ainda hoje pode-se ouvir
o choro deles que rememoram o momento em que Pawa deixou este mundo e subiu
em sua escada. Pawa falou para o resto dos Ashaninka que iriam ficar nesta terra:
aqui está teu irmão, a cobra, ela não quer me acompanhar para o u, de vou dar
uma olhada para vocês, do mesmo modo que a cobra quer subir comigo eu vou olhar
para ela também”. E Hananeri, soprando em suas os, diz que quando a cobra
estiver velha ela faz mexiari, ‘tira seu couro’.
Quando Pawa pergunta para a cobra ‘e tu filho
99
?’ e a cobra responde que
“fica aqui”, surge um outro episódio que agrega a imortalidade a uma árvore. Neste
momento, Pawa diz : “traz tasolentse para não morrer, ninguém morre assim, para
mim, para me ajudar. Aquele pau, mulateiro, todas as espécies, kapirona
100
deviam
99
Ser “filho de deus” é, como veremos, um conceito imortante para os Ashaninka.
100
“muradeira” seria o nome regional.
185
ficar aqui, se você cai, você vira ferro, ninguém vai acabar com vocês. Do mulateiro,
só uma parte apodrece.E assim Pawa confirmava a imortalidade da cobra e atribuía
a condição de perenidade à árvore.
A narrativa passa a explicar a permanência de outros animais aqui na terra,
como é o caso do macaw paruacu, que tinha como característica tirar envira para
fazer armadilha para o nambu. Uma vez que no céu não é preciso fazer armadilhas,
que ninguém precisa comer lá, logo o macaw paruacu pode ficar na terra e o seu
cabelo é a envira.
Com o porco-espinho se passou um fato semelhante. Ele permanece na terra
porque no céu seus espinhos-flechas não o necessários, uma vez que não se atira
nos macacos com flecha. No céu apenas peixes grandes, o que coincide com a
preferência culinária dos Ashaninka. O rio do céu é descrito como um rio bonito,
igual ao daqui, e por isso, do mesmo modo que o rio de baixo, é designado
hananerial. Assim, o rio que corre embaixo da terra e no céu tem o mesmo nome.
Nawireri, a Lua, Incra, Iroli e a cobra ficaram com os seres humanos e
animais aqui embaixo. Antigamente o acesso ao céu estava aberto, e podia-se
ascender a este local através da escada, mas Hananeri comenta que ‘agora está
fechado’.
E hananeri conclui sua narrativa: “Se aquela mulher não tivesse olhado, a
gente teria também ganhado tasolentse, ninguém morreria, ninguém sentiria calor,
todo mundo se manteria vivo, todos os avós. Não era mais necessário tomar banho,
não seria necessário fazer sexo (os homens gastam sangue, ficam fracos).
Antigamente a gente não tinha órgão sexual, era igual a sapo.
O mito da ascensão de Pawa é o mais conhecido da cosmologia Ashaninka.
Entretanto, ele me foi contado a partir de sua temática que acentua a condição de
mortalidade dos humanos. Em outras narrativas observa-se que a narração do
186
mesmo mito põe em foco a cosmogonia, as transformações dos Ashaninka em várias
espécies da fauna e flora.
Nesta versão narrada por Hananeri, observa-se a insistência na dupla
desobediência da mulher em relação às ordens de Pawa. O que a narrativa parece
frisar é a ordem do acontecimento, do evento, quando sucessões de fatos banais
produzem a condição mortal do homem. O olhar fortuito da mulher para a chuva que
caía e o ‘passar a frente’ no caminho das goiabas transformam-se em produtores de
sentido da mortalidade ao mesmo tempo em que, mais uma vez, acentuam que por
muito pouco os Ashaninka não conquistaram a imortalidade. As mesmas, digamos
“tolices” ou pequenas desobediências’ são comuns em muitas narrativas
amazônicas e mesmo em outras tradições cosmológicas como a bíblica, por
exemplo, em que a mulher que olhou para trás virou uma pilastra de sal e outra
mulher desobediente e que pega a maçã põe involuntariamente fim ao paraíso onde
todos viviam felizes e para sempre
101
.
O que foi omitido neste mito contado por Hananeri é a razão que levou que
Pawa a ir embora. Um dos narradores do mito, Tanta, afirma que Pawa foi embora
porque ficou sozinho na terra: a lua foi para cima, Nawireri para baixo.
Existem muitas razões para a saída de Pawa, mas uma das versões me parece
particularmente significativa. Ateringa a explica do seguinte modo: um filho pediu
incessantemente coca para sua mãe, chamada Maria, esposa de Pawa. O filho ia toda
hora, de novo e de novo. A coca saía da vagina de Maria e quando ela não queria dar
mais para o filho porque tinha oferecido tanto, o filho se jogou violentamente
entre suas pernas e as rasgou. Pawa ficou tão furioso que foi embora para o céu. Na
sociedade Ashaninka, a cobiça e a voracidade não são “tolices” ou ‘atos fortuitos’ e
sim razões plausíveis para instalar não só a mortalidade na terra assim como a
sensação de dor, calor, fome.
101
Na tradição bíblica, no entanto, o pecado original de Eva não é interpretado como uma
tolice. Na cosmologia ameríndia, exemplos do absurdo da condição humana e de seus
deuses igualmente falíveis abundam (Overing, 2006, Belaunde, 2006, Lagrou, 2006).
187
Desnecessário dizer que na “versão” Ashaninka a cobra representa o papel do
“bem” no episódio da perda do paraíso. Exceto pelo aparecimento do nome de
“Maria”, essa versão apresenta poucos paralelos com as passagens bíblicas trazidas
pelos missionários que, aliás, se apresentavam no passado aos Ashaninka como
“filhos de deus”. “Filho de deus” é um conceito importante para os Ashaninka, que
acentua a idéia de imortalidade, pois o filho de deus é também imortal. Os
Ashaninka contam uma história de um missionário que chegou em sua aldeia
dizendo: “eu sou filho de deus...”. Ficou como hóspede ‘bem controlado’ e morreu
de fome: o mentiroso não era um filho de deus porque um filho de deus, como a
jibóia, não morre!”
Esta mesma narrativa lembra o mito contado acima por Ateringa, em que o
caranguejo, a tartaruga e a cobra eram observados para ver quem dos três morreria
primeiro, uma vez que a comida lhes foi propositalmente negada. Neste sentido, a
mortalidade é incompatível com a ausência de comida e com a necessidade da caça.
Talvez a odisséia de Hananeri para encontrar Inca/Incra seja responsável pela
versão da ascensão de Pawa aqui narrada por ele. A solidão de Tanta durante a
adolescência, causada pela morte precoce do seu pai pode igualmente ter
influenciado a narrativa.
Encontramos a mesma marca da individualidade na execução de desenhos e
motivos em diversos suportes. Como veremos mais tarde, esse valor dado à
experiência individual é uma característica central do estilo de vida dos
Ashaninka
102
.
102
Ver Gonçalves (2001, 2007) para a importância dos processos de individuação na
construção das cosmologias amazônicas.
188
Nawireri, contado por Hananeri
Os dois episódios contados a seguir por Hananeri evocam ao mesmo tempo
um modo especial de ressignificar seu próprio nome, refazendo as conexões
cosmológicas que deram origem aos humanos e aos deuses, o que coloca em
primeiro plano a desconexão entre deuses e homens e, num segundo momento,
procura afirmar a conexão entre os deuses e os homens quando ele próprio assume,
após a narração, que vai adotar novamente o nome Hananeri Nawireri. Esta
desconexão e conexão dos deuses e dos homens através dos nomes quer
efetivamente tratar do tema central da cosmologia Ashaninka e do momento
primordial de aquisição do kitarentse, que se constrói sobre a condição da
mortalidade e da imortalidade.
Como foi mencionado acima, o nome de Hananeri se relaciona com
Nawireri, personagem central na mitologia Ashaninka, sobretudo por ser o
responsável pelo advento da possibilidade de produção da bebida ayahuasca através
do cipó kamarãpi. Nas narrativas a seguir, ambas ligadas a Nawireri, veremos em
primeiro lugar, como surgem as transformações dos animais debaixo da terra, o
surgimento das plantas que têm raízes.
No primeiro episódio, Nawireri que morava em cima da terra, ao passear com
seu neto, cai em um buraco que seus parentes cavaram e, a partir de então, tem
acesso a outro mundo e a outra perspectiva, a do mundo subterrâneo, das raízes, dos
cipós e dos animais que vivem, como transformações de seus próprios parentes.
No segundo episódio, surge novamente o neto de Nawireri como protagonista e
acionador de sentido à narrativa, quando o sangue que sai de seu corpo através do
machucado em sua cabeça será a matéria-prima da pintura dos ssaros. Este é
também o momento em que os pássaros adquirem o seu próprio kitarentse, quando
se banham no sangue do neto de Nawireri. Aqui parece ser inequívoca a associação
entre a pintura com urucum do kitarentse Ashaninka e o sangue que tinje e produz a
189
roupa dos pássaros, conotando os mesmo significados: o de beleza, estando, por sua
vez, ligado ao estado “saudável”.
Neste momento, vale adiantar uma relação de oposição simbólica produtiva
no pensamento Ashaninka entre o urucum e sua associação ao sangue e à carne, e a
caiçuma, bebida fermentada de mandioca, ao sêmem. Deste modo, o urucum e o
sangue relacionados com a idéia de tinjimento, ganham toda a sua representação e
apresentação no próprio objeto kitarentse. O tinjimento do kitarentse, que é
primeiramente tecido em algodão branco, é posteriormente tinjido em um caldeirão,
com uma casca de árvore avermelhada, que se assemelha ao urucum.
Posteriormente, o kitarentse é (eventualmente) pintada com pasta de urucum, o que
lembra efetivamente o banho primordial dos pássaros em sangue e o momento em
que adquirem a beleza e a possibilidade de um corpo saudável.
Deste modo, o objeto kitarentse Ashaninka passa por duas etapas sucessivas
de tinjimento. A primeira, o seu banho com sangue”, que estaria ligado à idéia de
beleza e de corporalidade sã, apontando assim para a condição inelutável de que os
seres humanos são mortais, assim como os pássaros, sendo a próprio kitarentse o
símbolo máximo desta mortalidade e da forma de existência neste mundo
Ashaninka. O segundo processo de tinjimento do kitarentse é produzido com a lama
preta, da cobra jibóia, em que se acentua a cor preta do kitarentse, em uma
associação direta à idéia de imortalidade da cobra, sua capacidade de fazer mexiari,
a possibilidade de trocar de pele e de não morrer. Assim, o tema da
imortalidade/mortalidade surge com toda força e expressividade nestes dois
episódios que acentuam tanto a aquisição do kitarentse quanto a aquisição da
ayhuasca enquanto possibilidades, pelo menos teóricas, de retardar a morte, senão
de tentar negá-la, como é o caso do primeiro xaque bebeu do cipó e obteve a
imortalidade.
Primeiro episódio:
190
“Iroli estava plantando milho para oferecer a Nawireri, o avô dele: Eu vou
plantar milho para você comer, vovô. Está bom, meu neto. plantou. Depois,
alguém estava cavando um buraco para Nawireri - e ele estava perto de Nawireri-
saiu para olhar em que altura ele estava e dava para ver Nawireri. Todo mundo
veio, tatu, tatu canastra, passarinho, andorinha. Ah, eles viram Nawireri. Falaram
para Nawireri: O meu sogro (avô) es ficando aí! Você pode tomar caiçuma
(cerveja de mandioca) aí, está bom! Nawireri tomava e tomava. Quando estava sob o
efeito da caiçuma disse: Vamos embora, embora! Não vai agora não, fica mais um
pouco para beber. o, eu vou cuidar da minha casa, estou fechado (não tenho
tempo). Fique aqui com tua filha, eu vou andando. Está bom. Aí, foi para lá, para
cavar de novo (cavar o buraco no qual Nawireri ia cair). Disse assim: Quando eu
estou chegando perto com o meu buraco, diga a teu pai para se levantar, que ele
pode entrar dentro (do buraco). Quando está perto, a filha falou (para Nawereri):
Papai, levanta aí! Está bom? Está tonto? Levanta papai! Está bom filha. Quando
Nawereri ia se levantar, ele estava sentado assim (imita), quando ele queria se
levantar, aí, entrou, quebrou o teto: zjjjiiiuuuwww (onomatopéia). se sentou em
baixo (da terra): Eeehhhh rapaz! Porque filho? viu o kwanto, todo mundo (todos
os animais que estão morando embaixo da terra, ou melhor, Nawireri viu as pessoas
que estavam lá, cada um com as características dos animais nos quais seriam
transformados). Nawireri olhou (Hananeri assopra), vai virar tatu, tatu canastra, ele
está virando (transformando) todos os passarinhos que cavam por dentro (da terra).
Tatu (no estado humano) estava andando assim (imitando o jeito de um tatu
andando), virou bicho agora, paca também. Tudo
103
. E agora, como vamos fazer?
Traz corda de algodão, mandou para a filha dele. Minha filha, traz algodão para
mim, por favor! Me puxa para cima, eu não quero ficar aqui embaixo não. Me puxa
para cima. Naquele tempo, as cordas eram fortes, não quebravam não. Puxou,
103
A transformação do humano em animal começa pela capacidade agentiva (Viveiros de
Castro, 1996). Também entre os Kaxinawa, em caso de doença causada pelo animal
vingador que transforma o corpo da sua vitima, o processo de transformação se anuncia nos
espasmos faciais e corporais que acometem a vítima (Lagrou, 2007).
191
puxou, puxou, quase que Nawireri chegava lá, mas a corda quebrou. Mas eles
quebraram a corda de propósito, tinham feito algo com a corda. Como pode quebrar
assim? Tenta de novo!!! Tentaram de novo, de novo... A corda continuava
quebrando, eu vou ficar mesmo aqui. Então chegava tudo mundo. Eu quero ver
vocês! Chegavam murucum, mulateiro
104
, capoeira e aquele cipó, kamarãpi (suas
raízes ficam embaixo da terra). Eu vou virar (transformar) vocês, vira flor, vira
murucum, até cipó também: eu vou virar vocês em cipó
105
agora para beber a gente.
chamava os outros, a filha dele virou murucum. fechou a terra. Pronto. Está
fechado. Se Nawireri está falando em baixo da terra, está trovejando (segue uma
onomatopéia).”
Neste contexto de narração, Hananeri diz que quando volta de barco de Fei
- a cada dois meses, vai até a cidade receber sua aposentadoria -, solta foguetes,
como o trovão de Nawireri. Em seguida, Hananeri falou pelo rádio para todas as
aldeias Ashaninka conectadas que queria, a partir daquele momento, ser chamado de
Hananeri Nawireri, “oficializando” assim seu nome e refazendo a conexão entre os
homens e os deuses. Isto demonstra, mais uma vez, a capacidade agentiva de contar
histórias, a mesma capacidade que sua avó havia lhe ensinado. E, a partir deste
momento, a cada piarentse (festa com bebida fermentada de mandioca) Hananeri,
quando bebia e arrotava a cerveja, dizia a frase “ Nawireri, Nawireri, o trovão”.
Segundo episódio: “Aí chegava Iroli, o neto de Nawireri: cadê meu vovô? Ele
foi urinar no outro lado. Está bom, eu vou espiar meu avô e trouxe dois pedaços de
milho, para vovô comer, estão assados. Iroli chamou: nada. Perguntou de novo
onde estava o avô dele. Foi defecar lá! Iroli foi atrás dele: vovô? (onomatopéia:
rosnando, trovejando). Quem está falando? Há um tipo de pau (uma planta ou árvore
não especificada) que estava andando junto com Iroli e que estava enganando ele o
tempo inteiro. Vovô? Cadê vovô? Foi urinando por lá! De novo? Quantas vezes?
104
Mulateira: um espécie de árvore.
105
Cipó: o cipó alucinógeno. As palavras ayahuasca”, kamarãpie “daimi” são todas
usadas pelos Ashaninka.
192
sentou, deixava o milho, eu não estou achando vovô. Em lugar nenhum, fui para
lá, já fui para lá. Iroli estava triste: se vovô volta, diz que eu estou fazendo uma roça
e que queimou bem hè. Iroli ensinou para os Ashaninka a fazer roçado, por isso a
gente está fazendo. Plantou milho, está grande já, tudo que plantou virava
imediatamente maduro, de repente tinham frutas (Onomatopéia: rosnando,
trovejando). Está bom, eu não quero mais fazer roçado, está pronto. Sentou assim.
Chamava os outros, chamava papagaio: o buscar pau, todos os tipos (de pássaros
deviam buscar um pedaço de pau adequado), ta! (mandando)! Para que? Nada não,
eu mando, bate aqui com aquele pedaço de pau, na minha cabeça. Está bom? Está
bom. Embora, vamos buscar pau? E eles foram buscar... bateram Iroli, doeu. Vai
buscar os outros (pássaros), vamos esperar os outros, não bate agora não. Eu vou
avisar o outro pessoal lá, ? Convidou os outros (pássaros). Pá! Ele bateu assim
com a ponta (daquele pedaço de madeira). Bate! Isso não está doendo não? Dói não!
Ele bateu, enfiou, entrou dentro de Iroli, sangue, muito sangue, sangue como o diabo
(muito sangue). Mas não doeu. chegava arara e outros, papagaio não, só arara
mesmo, aquele que nós chama awe. Vamos passar (tomar um banho de sangue)
com nossa batina (kitarentse).”
Arara vermelha
193
Neste momento, Hananeri comenta: “Isso é parecido com jopotaki (a casca da
árvore com a qual os tecidos são tingidos)”. Parecia fazer uma relação conceitual
entre o sangue de Iroli e a vida, força, poder e beleza: “para tingir assim, esse
cushma, kitarense, né”.
E continua sua narrativa: A arara tirava a kitarense dizendo eu vou pintar
com o sangue de Iroli.’ Pode. ficou bonito, não viu aquela pena, foi sangue
daquele Iroli, foi sangue de Iroli. pintou veio outra arara, aquele que fica bonito.
Pintou duas vezes. Chegava arara canindé, três dias estão pintando, está virando
assim, não presta mais (igual quando se pinta com aquela casca de árvore, depois de
algumas vezes, a tinta não pega mais)
106
. Iroli falou assim: quem bateu assim em
mim, mañana (influência da língua espanhola) tu vai reparar comigo, está bom? Está
bom. Cuidado de deixar passar dois dias o! Vamos embora, vamos deixar Iroli,
vamos espiar depois amanhã. Embora. Esmorando no outro lado, está sentado aí.
virou pupunha, virou. Passaram dois dias. Tu vem amanhã, tu repara comigo.
Está bom. Vamos embora, espiar Iroli. o, ele falou hoje. Vamos deixar para
amanha. Ah, está bom. Vamos espiar, vamos. E viu como a pupunha cresceu de uma
arvore pequena, baixinha, para uma que fica madura. Outros estavam animados:
Iroli está madura, vamos comer, vamos comer. Quando ele chegava mais perto,
correu, correu (onomatopéia: “xxxuuuwww”). Ele trepou, aí correu. Outros também,
vamos, vamos comer! Treparam (mas não chegaram às frutas da pupunha porque a
árvore continuava crescendo). Primeira vez, a pupunha não tinha espinho. Ele correu
(cresceu), ficou maduro mesmo, corre até o céu. quebrou, “pang”, caiu embaixo
aqui, as sementes se espalharam. Por isso está nascendo pupunha para todos os
lados. Depois chegava txikwa (um pássaro), ‘- esse malvado’, (disse Iroli), ‘-
estragou a pupunha, né!’. Ele passou o dedo perto aonde estava a pupunha, passou
106
O mito que conta como vários pássaros, especialmente a arara, adquiriram as cores da
sua plumária ao banhar-se no sangue (e outros líquidos corporais) de um morto poderoso
(na maioria das vezes, um inimigo) é muito difundido na Amazônia. Ver, por exemplo,
Lévi-Strauss (mitológicas), Lagrou, para os Kaxinawa (2007) e Athila, para os Rikbaktsa
(2006).
194
com dedo. Aqui você quebrou, ‘- seu danado!’ Iroli estava ainda falando: tu vai virar
txikwa. Está nascendo aquele espinho da pupunha. Primeiramente não tinha espinho.
Se não tivesse passado, se não tivesse feito brincadeira, txikwo (Hananeri está
rindo), por isso cresceu espinho na árvore pupunha. Virou pupunha.
Quem mora na árvore de pupunha é o pássaro txuwa. A mãe de txuwa é a mãe
do cipó, da ayahuasca. Ela vem escutar a gente quando estamos tomando cipó. Ela
está vestindo umo kitarentse, vira gente nessas ocasiões.
195
Pupunhas e suas associações com as cobras
196
O mito de Iroli mostra que, assim como o urucum
107
, que tinge a pele de
vermelho, o kitarentse, a pele sobre a pele
108
, está conceitualmente relacionada ao
sangue (força, energia, beleza) através do jopotaki (a casca da árvore). Neste
contexto, o banho de sangue tem um efeito revitalizante, o mesmo que trocar de
couro com a ajuda da jibóia ou o de tomar um banho no rio Hananerial. O mesmo
efeito que observamos na narrativa mítica, quando uma arara velha, com o seu
kitarentse fino e desgastado, se sente muito bem depois do banho rejuvenescedor,
que fazia com que seu kitarentse ficasse novamente colorido e bonito.
Kamarãpi: sonhar contra o dilúvio e o fogo apocalíptico
Os deuses estão indo embora, o que fazer agora, sozinhos e na condição de
mortais? A resposta é kamarãpi. Nawireri foi morar embaixo da terra, mas criou (ou
melhor: transformou) o cipó alucinógeno para ajudar os mortais. Toma-se kamãrapi
sempre, para aprender. A planta pode ensinar várias coisas, intervir no mundo real,
comunicar-se com pessoas que estão distantes, aprender canções, adotar múltiplas
perspectivas e conhecer profundamente o habitat de animais, plantas e espíritos. O
uso prolongado da planta tem o objetivo explícito de aprender a curar doenças. A
“meta suprema” do uso de kamarãpi é a esperança de descobrir um caminho para o
céu e, conseqüentemente, seu usuário adquirir a imortalidade. Como é explicado no
mito de Xawiro, a primeira pessoa que obteve a imortalidade, o fez através do uso
da ayhuasca. Kamarãpi surge no mito como uma entidade muito poderosa e por isso
respeitada e temida por todos os Ashaninka.
Kamarãpi não mostra o caminho a todos, às vezes até “pune” as pessoas por
seus “pecados”, o que faz com que alguns Ashaninka jamais tomem kamarãpi. Para
compreender o poder de kamarãpi vale à pena esclarecer o significado de ‘pecado’
para os Ashaninka. Um ato pecaminoso seria, por exemplo, bater na esposa. O
107
Ver o mito sobre o Ashaninka que virou veado.
108
Em relação à “Segunda pele”: ver a jibóia.
197
adultério não é considerado um “pecado”. O significado de traição Ashaninka recai,
sobretudo, quando se trai a confiança do tabaco, da coca ou da kamarãpi. Isso
significa que a pessoa, ao usar uma destas substânicas, deve respeitar a regra básica
de não traição a estas substâncias, que é a da abstinência sexual. Os Ashaninka
explicam que a abstinência sexual realizada em função da ingestão destas
substâncias é justamente porque, do contrário, os homens estariam mantendo
relações sexuais com duas esposas (a substância coca, tabaco ou ayahuasca)
simultaneamente, do mesmo modo que as mulheres estariam copulando com dois
esposos. Nesse caso o/a esposo/a, sendo o tabaco, a coca ou a kamarãpi é
ciumento/a e pune a pessoa.
A abstinência diz respeito somente à duração do período durante o qual a
pessoa está sob o efeito da substância; nem antes e nem depois de sua ingestão. É
interessante notar que, durante a ingestão noturna da coca e do tabaco no interior da
casa, é comum que os mais velhos tenham como assistentes meninas virgens, que
preparam o cachimbo e o acendem, assim como providenciam as folhas de coca para
serem mastigadas. A ênfase para que sejam meninas virgens a manipular o tabaco e
a coca recai justamente sobre esta percepção de interdição sexual durante o consumo
destas substâncias, de modo a aplacar o ciúme do tabaco, da coca e do cipó.
O sentido de respeito à abstinência sexual durante a ingestão de ayahuasca
repousa, sobretudo, em “agüentar” as visões da ayahuasca, considerada a mais forte
e concentrada da região, pelas etnias vizinhas e pelos regionais. O destaque que
concedem a “agüentar está inteiramente integrado ao estilo de vida Ashaninka,
baseado em um desejo de negar a dor, o cansaço, a tristeza, a fraqueza. Por exemplo,
se alguém se assusta um pouco durante a ingestão da ayaIhuasca e “grita”
levemente, a pessoa pode ser interdita de tomar kamarãpi durante os próximos cinco
anos. Para agüentar as visões fortes, e nem sempre agradáveis, não se deve gritar,
desmonstrando ‘fraqueza’, mas deve-se cantar e ficar de pé.
198
Nos dois mitos que se seguem, os xamãs-heróis detém o dilúvio e o fogo com
a ajuda de kamarãpi, em duas situações extremas que ameçam extinguir a vida de
todos os Ashaninka.
E Hananeri continua:
“O que fazer agora (com a nossa mortalidade)? Nada não, vamos morar
mesmo assim. Não sei como faz agora deus, né, quem sabe é ele, subiu com tudo.
Agora, vamos fazer assim. Porque tem outro, virou kamarãpi, outro Ashaninka.
Vamos provar, vamos tomar como falou papai? Disse que pode tomar, pode beber
ela. Depois vo vai aprender a rezar. Qualquer doente, pajé, né, pajé, né. Quem
aprendeu, tomando muito bebendo muito daimi, todo dia, todo dia. Não pode
namorar, nem pode ter relação, qualquer casado não presta. quando aprendeu, aí,
vamos ter relação uma vez né. Não todo dia não. (...) kamarãpi não acha bom não,
não presta. Aí, ele disse: está bom, vamos tomar. quem aprendeu virou pajé,
né. ele dormiu, sonhou pra cá. Foi onde entra o rio, pra cá, chegava lá, deus
mandou caranguejo grande, vamos tampar lá, onde o rio, a água entra. Tampou o rio
né. Ô, fica preso! Está chegando. Está chegando. Eu estou nem... Aí sonhou pajé. Aí
ele mandou outro vovô dele. Vovô, todo mundo, eu vou avisar vocês para buscar
cipó, cipó. Vou fazer uma balsa. Para que? Aonde vai ficar, morar, vai alargar (o rio
vai ficar mais largo) muito, para cá, né. Vai largar agora. Quem disse? Eu sonhei, eu
sonhei. Está mentindo. O que tu pensa comigo?! Então vamos tomar cipó, vamos
aprender com cipó, eu não estou mentindo não, porque aquele cipó é filho de deus,
eu vi deus para cá. Mentira, disse alguém, eu não vou buscar cipó não. Eu vou
buscar sim, disse outro. Vai buscar. Cuidado, eu não minto não, vem, vem (o
dilúvio). Ele foi buscar muito cipó. Ele foi buscar muito cipó. Ele foi buscar muito
cipó. Ele buscando. Ele amarrando, ele está fazendo, pregando balsa dele. Tem
mulher grande né, botou, colocou casinha (na balsa), quebrou, pendurou
milho amarrado né, guardando muito milho para rancho dele, para comer né.
199
ele chegava. Chegava assim. Passa dia, passa dia. escutou... fica zoada (um som
zoando). Está vendo!
disse outro: não, eu não tenho medo o, eu vou trepar numa arvore.
Trepa...! Mas quando vai vazar (a água) vai (chegar) alta! Quando (a água) estava
chegando vem toda cobra (Hananeri gesticula), está perto de chegar (quando o
rio sobe de repente, quando está muito alto, sempre tem mais cobras chegando que
estavam perto do barranco). (A água) espantou todo o mundo: onça, tudo. Está
chegando a água. Oh! Está morrendo um pouco de gente; andando com canoa, mas
acabou logo com rancho né, morreu de fome, morreu todo mundo. Embarcava outro,
(...) pode ajudar, amarrando com cipó, outro trepou no pau, ele foi até, chegou
água, cobriu pau inteiro (chegava mais alto do que as árvores, inundando,
submergindo). Morreu lá. Deixe-me embarcar. Não, fique mesmo aí. vai este
pessoal. Chegava arara, cansada, aonde vai sentar? A balsa estava andando. Caiu
no meio do rio. Quando ele viu a casa (na balsa) dele, quase afundou. Chegando
barco. Ele tinha muita corda. A arara subiu pela corda, subindo, subindo, subindo,
subindo (aumentando o tom de voz, em cresciendo). pajé: como vamos fazer
agora? Vou espiar lá. Vou beber mel de tabaco
109
. Morreu gente de fome. Entrou
papagaio, comendo o milho dele né, está com fome né. Aí, depois, dormiu. Bebeu
mel de tabaco. Tenho que agüentar. Não vou morrer não! Ele está comendo
marikix
110
, bebendo mel de tabaco. Dormiu pedacinho. Não me acorde! foi dar
uma olhada e viu aquele assim, viu um grande, enorme caranguejo. Quando o
caranguejo o viu, queria pegar ele com a mão, tesoura dele. Ele voltou, como vamos
fazer agora? Vamos fazer um arpão, para matar ele, porque a água não podia passar
por ele (por causa do caranguejo que está tampando o buraco no qual o rio, do qual a
água corre com alta velocidade, desaparece para embaixo da terra). Jogou arpão,
acertou aqui (as costelas). De novo outro. Quebrou. Voltou. Vamos segurar corda,
vamos puxar, todo dia, não vamos dormir não! Que tal? Oh, matou caranguejo
109
Uma pasta preta de folhas de tabaco cozidas com gosto muito forte.
110
Marikix, as folhas de coca que vieram da vagina de Maria, esposa de Pawa.
200
grande, agora vai vazar, ninguém sabe , está vazando já, vamos puxando, puxou com
corda em cima da balsa. Puxou um bocado. Puxou um bocado. Puxou um bocado.
Puxou um bocado. Muitos dias. Puxou um bocada. Puxou um bocada. Puxou um
bocada. Puxou um bocado. Puxou um bocado. Morreu bocado de gente. Puxou
bocado. Puxou bocado. Puxou bocado. Puxou bocado. Puxou bocado. Puxou
bocado. Muitos meses já passaram. Cuidado. Ah, viu... Puxou, nada. Vamos esperar.
Puxou de novo, alguém alto como Mayaninka (refere-se à minha altura). Cuidado
para não dormir não. Quase morreu outro. Só sobraram duas pessoas, morreu filho
dele, com tudo né. Mulher dele e ele. Viu que está secando, amarrou goiaba grande e
ficou sentado na balsa. Todas as árvores estavam morrendo. Aonde vai para comer?
Não tem para ele comer. Voltou a olhar para o milho, pode matar ele. Depois secou.
E agora? Cadê para comer? Vai buscar macaxeira. Plantou lá, mas apodreceu. Está
quase morrendo de fome, procurando (...), vamos comer barro, lama. Ele foi para lá,
nada. Procurou, nada. Chorou, vamos todos morrer. Agora, onde é a macaxeira, para
comer? depois, quando chegou, a mulher dele estava chorando na balsa, bebendo
mel de tabaco. Chorou, chorou. Enviou outro, um grilo grande, gordo de 5 kilos:
quem está me chamando? Fecha teus olhos! Assim. Ela fechou. Porque? Estamos
procurando macaxeira. Aqui tem.
Está bom. Fecha teu olho. Fechou. Está virando gente né, barriga dele grande
assim, né. Tu quer macaxeira, né? Quero, estou com fome, morrendo. Está bom.
Então bate aqui na minha barriga. o quero não. Bate mesmo. Bate mesmo. Bate
mesmo. Bate logo, não é brincadeira não. Bateu só uma vez e saiu macaxeira assada.
Saiu macaxeira assada. Está aqui. Ela comeu. Ela comeu. Ela comeu. encheu
barriga? Bate de novo e leva para teu marido. (O marido:) Aonde você achou esta
macaxeira? Comeu,comeu, comeu. Tu vem de novo! Veio de novo. Quero
macaxeira crua para assar. Está bom. Caíram três, cruas. Quero assado. Está bom.
Caiu de novo. Como é teu nome? Não vou dizer agora não. Deixa para depois! Volta
logo! Voltou. Volta de tarde de novo, tá. Vou dizer meu nome. eu vou buscar
macaxeira. Viu ele bebendo, barriga grande: agora vou dizer meu nome, tá. Caiu
201
muito macaxeira. Bate de novo! Caiu muito macaxeira. De novo. Caiu dois pé:
manda teu marido
111
para plantar logo. Depois de manha vai aparecer grande já. Está
bom. Tu sabe comigo? Eu sou oletsee, o grilo. Eu estava baixando numa taboquinha,
entrei numa taboca, eu estava encostando-se à tua balsa. Quando você chegou aqui,
eu também cheguei aqui. Eu tinha pena de vocês, morrendo de fome. Eu guardei
macaxeira aqui (Hananeri aponta para a barriga dele). Por isso eu chamo oletse
matxari. Os antigos Ashaninka chamavam macaxeira oletse, oletse. Quem fez oletse
é o grilo. E virou grilo. Aquele preto, grande, que mora dentro de taboca, aquele
grande. Ele plantou, amanhã esgrande . Em dois dias tem batata. Vou plantar
de novo. Plantou. De novo.”
Controlar o fogo
O mito da origem do fogo segue o do dilúvio e remete igualmente ao poder
do sonho de quem tomou kamarãpi. O poder do pensamento de kamarãpi controla
dilúvio e o fogo. Neste momento parece importante nos determos no sentido do
sonho e da visão produzidos pela ingestão de kamarãpi para os Ashaninka. O que os
mitos parecem querer enfatizar, ou melhor, o que Hananeri quer acentuar através dos
mitos é a capacidade agentiva do sonho (visão), a partir da ingestão de kamarãpi.
Em uma manhã, Hananeri queria resolver algo que tinha visto no sonho e
para isso precisou dormir novamente, alertando que ninguém deveria acordá-lo. Esta
possibilidade de, através do sonho ou da visão, solucionar problemas essenciais da
condição humana - sobretudo, aqueles que atentam contra a durabilidade da vida na
terra dos mortais, como as doenças -, parecem apontar, mais uma vez, para a
condição de mortalidade dos Ashaninka e sua incessante luta para prolongar a vida
na terra. Deste modo, as situações prototípicas do dilúvio e do fogo universal
111
Plantar” pertence ao domínio masculino. Entretanto, os homens às vezes reclamam que
as mulheres não sabem plantar macaxeira, quando estas arrancam alguns raizes. Da
perspectiva masculina, se as mulheres soubessem plantar, os homens poupariam mais
tempo para eles.
202
conectam-se diretamente ao mundo das visões e dos sonhos induzidos pelo
kamarãpi. Sendo assim, o mito em si mesmo oferece um modelo de referência para
o controle da mortalidade/imortalidade e das potencialidades do kamarãmpi, como
possibilidade de sonhar e solucionar questões que ameçam a condição da
mortalidade.
Se para os Ashaninka a condição de mortalidade é de fato algo inelutável
desde que os deuses os abandonaram neste mundo, a conformação à mortalidade,
por outro lado, não parece ser um fato pacífico entre eles. O seu estilo de vida
demonstra uma luta incessante contra esta condição, luta esta que estaria encarnada
no objeto por excelência dos Ashaninka, o kitarentse, e toda a máquina simbólica
que este objeto coloca em operação.
Retomemos, agora, a narrativa do controle do fogo, proferida por Hananeri:
“Um ano depois vem queimando terra, queimando terra. sonhou. Vamos agora,
está quente demais, es serenando, aquela gasolina, vamos queimar todo mundo,
está queimando a terra. Aí chegou alguém. Quem sonhou era outro né: Oh,
queimando a terra, todo mundo... Qualquer gente, está namorando com prima né,
vamos fazer assim (gesto com as mãos de ter relações sexuais). Como es
mandando deus, ele está mandando, e planta banana, qualquer tipo. Planta com cerca
onde ele mora né, para cercar né. Não vai pegar fogo para queimar todo o mundo
né? Aí, (...) , queimando com terra, no outro lado aí, o rapaz, está queimando um
bocado lá, ninguém planta banana né, quem planta assim. Queimava um bocado. E
até agora. Viu que está queimando assim de repente né. Mandou ele outro agora:
quem namorou a prima pode urinar, urine aí. Vai apagar. Qualquer um que namorou
a prima dele vai urinar, quando chega aí, vai apagar. mandou: vai urinar. E
apagou.Vamos plantar de novo macaxeira para não acabar. Aí, plantou, foi para lá.
Bem, bocado de gente queimou, agora fica dois (muitas pessoas foram
queimadas). Como fazer agora? Vamos acabar tudinho? ele perguntou: como
fazer? queimou a terra e vamos fazer fogo, e fazer fogo, e criou sapo grande.
203
Sapo grande assim né. De manhã, quando fazer fogo, comeu né, comeu gente, fez
comida. De noite chegava sapo, engoliu o fogo. Espiou de manhã: cadê o fogo? Não
tem mais não! Agora? De novo, sapo comeu a noite seguinte o fogo. Não tem mais
fogo. Quem guarda o fogo é aquele curica. Eu chamo curica, nós chama txolito. Ele
guardou o fogo aqui (no corpo dele). chegava outro: Eu tenho meu fogo. Tu
sabe quem engoliu teu fogo? Foi sapo. Prova aí. Pega meu couro aí.
Não. Eu vou te dar fogo. Saiu brasa de fogo. Agora tu vai acender. Pau de
lenha, pegou fogo. Depois chegou o sapo de novo, engoliu. disse assim: Como
fazer agora? chegava o (macaco) cairara, aquele cairara é perigoso, tem fogo. Tu
viu, quando você pega fogo, vai descascar (a sua pele) aqui, queimadura. Foi aquele
fogo que estámos usando agora. Como faça assim, eu ainda posso fazer. Hananeri
explica como fazer fogo sem isqueiro: vamos primeiro tirar aquela flecha
[bunheira]
112
e vamos esquentar algodão para furar qualquer pau. Gente cortando
assim, Ucayali né, vai sair fogo, aí chamava: koxtxi, koxtxi, koxtxi... Saiu brasa de
fogo. Outro, o fogo antigo, não queimava não, por isso que o sapo estava comendo
(o novo fogo que eles tinham ganho de kairara). Engoliu. Fazendo fogo como os
antigos, eu chamo koxiri menki. ele fez fogo desta maneira. Tu vai matar sapo
agora tá! Fez logo, sapo chegou. Quando ele viu, engoliu, morreu. De manhã, sapo
grande, boca dele grande demais, engoliu um pedaço de pau, engoliu brasa de fogo.
Chegava outro sapo, a mulher dele. Engoliu também fogo. Morreu todos os dois. Por
isso, só fica sapo pequeno agora, né.”
O deus que ficou: o Inka
113
Se Pawa, o sol, e Kaxiri, a lua, subiram para o céu e Nawerire para baixo, o
deus Inka permaneceu na terra, o que renova a esperança do estilo de vida
112
Nome da madeira escrito foneticamente.
113
Hananeri também utiliza as denominações de Inkra e Apinga, para se referir ao deus
Inka. Utilizaremos, doravante, a designação de Inka.
204
Ashaninka em poder encontrar esse deus e adquirir a imortalidade. Nesta narrativa
de Hananeri é enfatizada a potência do Inka ao salvar os Ashaninka de uma
predação generalizada feita pela onça gigante, que acaba se transformando pela ação
do Inka em um peixe chamado bodó, que tem as marcas nos seus lábios do traço do
ser humano que a onça estava comendo no momento de sua transformação em peixe,
imposta pelo Inka.
Desenho figurativo de peixe
O mito sobre o fogo continua com um episódio onde a onça tem um papel
importante e onde o Inka/Inkra intervém para ajudar os Ashaninka. O tom
humorístico da passagem, onde se expressa a admiração pela beleza do kitarentse da
onça, enfatiza a importância da apreciação estética ao mesmo tempo em que aponta
o significado da onça enquanto uma entidade carregada de múltiplas significações
mitológicas: quando alguém aplica as “piro-tatuagens” (tatuagens produzidas com
fogo), tenta imitar a batina da onça, na própria pele.
Neste momento devemos fazer uma pequena digressão que nos reenvia ao
signicado da onça e suas associações com o fogo, tabaco, queimadura e gusano
(larvas) que remetem, por sua vez, a um aspecto essencial do estilo de vida
Ashaninka: a concepção de força e de “agüentar”.
Certa vez, presenciei uma criança desfiar uma folha de palmeira, retirando
sua haste pontiaguda para utilizar como instrumento de produção do que designo por
“piro-tatuagens” Ashaninka. O menino forçava a ponta da haste sobre a pele,
produzindo pequenos afundamentos, imprimindo pontos sobre a pele. Logo em
seguida, ele acende a ponta da haste, que funciona como um incenso com a ponta
205
incandescente, utilizado para justamente aprofundar as queimaduras nos pontos
previamente pressionados. Este ato produz o efeito de uma macha escura no centro,
formando um círculo concêntrico, um desenho que pode ser diretametne associado à
pele do peixe que recebe o nome de kuwana e que, por sua vez, é considerado o
“peixe que (tem) a pele da onça”:
Kitarentse feminina com motivo de kuwana.
Durante a aplicação da “piro-tatuagem”, o jovem realizava o pequeno ritual-
performance, que marca a essência do estilo Ashaninka de ser naquele pequeno ato:
a resistência a suportar a dor e a celebração da força. Ao mesmo tempo, o ato
ganhara proporções outras, pois apontava para a relação complexa entre a onça, o
fogo e a tatuagem, dando conta, assim, do profundo significado agentivo da mimese
para os Ashaninka. A imitação assume um valor essencial na estética Ashaninka,
que se traduz em uma “ética”, em um modo particular de ser onça, manitse.
Podemos ainda nos perguntar se a mimese da sua pele refere-se a uma prática
metonímica, querendo atrair para si a força da onça, ou diz respeito simplesmente ao
apreço estético da sua “batina”. Apesar de não ter recebido confirmação explícita a
este respeito, pode-se supor sem muito risco que assim como entre os Wayana (Van
Velthem, 2003) onde “o belo é a fera”, entre os Ashaninka a beleza remete à
capacidade agentiva da pessoa decorada que, através dos motivos assim como das
substâncias usadas para fabricá-los, ganha poder sobre os “outros”.
Relato ainda mais dois episódios ocorridos com o mesmo menino, que
ajudam a alargar a significação da onça para os Ashaninka. Quando eu fumava meu
206
cachimbo, este mesmo menino pedia para que compartilhasse com ele e, a cada vez
que me retornava o cachimbo, dizia a palavra manitse, onça. O mesmo se passou
quando comia gusanos (larvas que crescem em madeiras podres) e o menino dizia,
enquanto comia os gusanos, a palavra manitse, onça.
A relação da onça com o tabaco é explicada pelos Ashaninka quando eles
dizem que, com o tabaco, você aprende coisas, e aqui o aprendizado para os
Ashaninka está inevitavelmente ligado à condição de prolongamento da vida, de
tentativas de lidar com a condição de mortalidade. Em uma fase adiantada do uso de
tabaco, o usuário uma onça que tenta mordê-lo, predá-lo, mas quando resiste e
prossegue, esta onça se transforma numa linda mulher e, da mesma perspectiva, para
as mulheres, as onças se transformavam em um lindo esposo. O uso do tabaco seria
como que uma domesticação do poder da onça, que culmina com a sua
transformação em um esposo/a ideal, aquele/a que a pessoa passa a ter no momento
que fuma o tabaco.
O gusano, por sua vez, se liga diretamente a esta mesma siginificação da
onça. Os Ashaninka dizem que quando tem um gusano por perto ou quando estão
comendo gusano, não podem fazer piadas e falar tolices. Neste caso, o gusano se
transformaria em onça e viria se vingar daquele que ofendeu alguém. Do mesmo
modo, um importante motivo pictórico do kitarentse me foi descrito como gusano e
daí talvez advenha a sua significação de proteção e de força, associando diretamente
a onça à kitarentse.
Um outro episódio que denota esta associação entre onça e kitarentse, embora
não o faça de modo direto, põe em evidência a concepção do kitarentse enquanto
aquilo que atribui uma essência de humanidade ao ser humano, neste contexto, em
oposição à figura da onça. Hananeri quando foi a uma churrascaria em Feijó,
acompanhando o sertanista Meirelles, comentou com certo espanto que as pessoas lá
comiam carne com sangue e que os brancos pareciam onças que comem cru.
207
Neste contexto, relembremos aqui o mito Bororo, mito de referência das
Mitológicas em que o fogo e onça aparecem como elementos centrais. Em última
instância, pela posse do fogo ou por sua ausência, a humanidade definia-se como
‘não-onça’. No mito Ashaninka do fogo é o sapo que aparece como aquele que
rouba o fogo dos homens, comendo o fogo e privando-os da possibilidade de
cozinhar os alimentos. Neste contexto do mito Ashaninka é introduzido um terceiro
personagem que é o macaco (caiara), que será quem irá ensinar aos Ashaninka a
produzir o fogo, a partir justamente do algodão, coincidentemente, a mesma matéria-
prima para a fabricação do kitarentse.
Neste sentido, o algodão ocupa um lugar primoridal no processo da conquista
do fogo (leia-se, na sua domesticação) e na consquita da produção do kitarentse,
aquilo que se traduz enquanto a essência do ser humano e que o reenvia a complexas
relações com os múltiplos mundos cósmicos (do arco-íris, da ayahuasca, das cobras
o céu, a terra e o subterrâneo; os mundos de Pawa, de Nõnki e de Nawerire). E,
ainda, a uma última associação entre fogo, onça e kitarentse, que se faz quando a
onça afirma para os Ashaninka, segundo a narrativa mítica contada por Hananeri,
que ela obteve a sua belo kitarentse através do fogo, queimando sua pele e obtendo
seus desenhos.
Retornemos à narrativa de Hananeri:
“Queimadura, assim, queima a terra. Depois acabou a caiçuma, todo,
terminou com tudo, né? Agora está crescendo a onça grande, eu chamo korinto.
Muito grande, acaba com todo mundo, todo pessoal. Ele gritava como onça pequena,
manitsi. Korinto, muito grande, acaba com tudo mundo, tudo pessoal. Korinto é
muito grande, como um baracão, gritava. Quando chegava gente mais perto, acabava
com toda a gente. Chama korinto, porque gritou: kóri-kóri mmm (a voz super baixa).
Ele engoliu tudo. Tinha uma boca tão grande que podia engolir quatro pessoas de
uma vez. Ele vem para cá, ele vem para cá. tem outro tipo de pessoal: como
mata? Flechando? Não entra flecha não, ficou dura (a pele) assim, como fazer
208
agora? Como vamos matar? Tem outra sorte (tipo de pessoas), tem poucas pessoas,
está acabando (as pessoas estão mais uma vez acabando: a água, o fogo, o sapo
grande e a super onça), fazem uma escada, alta, grande. Vamos buscar pedra,
grande assim, pesa demais (muito pesado). Vamos subir com essa pedra em cima,
vamos dar (a pedra) para korinto. subiu com a pedra. Parece (que eram) vinte
pedras que ele estava botando em cima da casa dele. Aí escutou korinto gritando. Ai,
ele vai acabar com nós. Vamos ter coragem, embora. Foi lá, viu ele hmmmm
(onomatopéia). Pegaram a pedra, abriu a boca dele, engoliu pedra, outra, outra,
outra, outra. Depois baixou, até, quando ele está morrendo, pang! Cabelo, unha...
Depois que (korinto) estava podre, formaram-se onças pequenas, como estão
nascendo (hoje em dia). Como agora está crescendo onça mais pequena. Es
morrendo aquele (grande, korinto). Agora, ele viu com tudo, virou onça mais bocado
(menor). Não tem aquele bodó (peixe)? Bodó, aquele que está comendo com pau,
bodó, né. Agora, também, depois vira com tudo, depois acabou. Chegava outra onça,
muito valente também. Morde com todos (todo mundo). Pam, morreu. Ah rapaz,
está acabando a comunidade. Matou um bocado, vira (vem) outro, né. Chegava
outro: Inca. ele (Inca) disse com ele (para a onça): ‘Porque assim? Rapaz, está
acabando pessoal né, está acabando pessoal. Como fazemos agora? Não presta para
morar aqui, mata mesmo, melhor que vamos jogar ele (a onça) na água. Melhor.’
ele (Inca) chamou ele: ‘vem cá, porque tu está mordendo outro, teu parente?!
Mordeu com tudo, porque?’ ele (a onça) disse: ‘Nada não, porque estou com
fome, eu quero comer.’ Quer comer e tu come gente? Não, é bom, é bom a carne
dele. Chega, vem ca! ele (Inca) segurou né. segurou, mas tirou um pedaço
de gente né, e tampou aqui ó. Tu viu aquele bodó, parecido, não tem carne de
gente aqui? carne de gente, colocou ele, jogou ele na água, vira bodó, está
andando aí. Hm. Está agora, não tem mais agora para morder a gente. Por isso eu
não como esse
114
, é carne de gente, também, tu viu? Vamos ver quando alguém vai
114
O bodó se tornou um tabu alimentar para Hananeri, mas esta relação com o peixe bodó é uma relação individualizada, visto que
muitos Ashaninka da comunidade de Hananeri
comem este peixe.
209
pegar esse bodó, tem carne aqui de gente, porque Inka, ele colocou aqui, ele colocou
aqui.”
Hananeri, dando seqüência a sua narrativa, conta a história do homem que se
transformou em peixe-onça, em função do seu forte desejo por sua ‘batina’, a pele
da onça. Nesta história, percebemos claramente que o desejo de possuir uma pele
bonita como a da onça, ou do surubim, leva à transformação efetiva do corpo da
pessoa: a pele, a batina, é o corpo no sentido mais pleno atribuído pelos Ashaninka,
que se assemelha aqui a proposição geral formulada por Viveiros de Castro, onde o
corpo é tido enquanto “o feixe de afecções e disposições agentivas” (Viveiros de
Castro, 2002).
Surubim e motivos
Vejamos:
“Tinha mais uma onça, aquele do kaparari (surubim), pintado (a ligação entre
a onça e o peixe se pelo desenho). ele viu ele. Estava andando e perguntou:
Como é que você fez a sua batina para ficar pintado assim? Disse: Eu sou assim
mesmo. Tu não quer dar para mim? Eu não posso, como é que vou tirar? Eu acho
bonito. Depois ele enganou ele. Porque eu tenho meu amigo, aquele do... surubim,
onça também, onça. Come também gente, kaparari, come gente também. Por isso
210
está acabando (gente), muito valente esse kaparari, aí ele morde com tudo. Ele
chegava lá. Como vamos fazer agora? Vamos jogar na agua também, vamos jogar!
Jogaram na agua. Por isso a gente chama kaparari manitsotsee. Porque manitsi né.
Em outra história o homem desejoso da pele, da batina da onça, se queima:
“Aroxi, um heroi cômico, também achava o kitarentse da onça bonita: ele foi
para a mata e encontrou a onça. Onça está andando assim. ‘Hé, porque está andando
assim como um cachorro?’ ‘Que?’. Onça respondeu: ‘Que?’ ‘Rapaz, está bonita sua
batina’. Onça: ‘Eu estou queimando. Tu quer também? Então vai buscar lenha, faz
fogo e pula dentro.’ Quando o fogo estava pegando mesmo, a onça mandou
(Hananeri rindo): ‘pula, deita no meio. tua batina vai ficar pintadinha’. ‘Está
bom. Eu quero a mesma como você’.
A onça: ‘eu também estou queimada’! ele pulou, deitou, eiei!!! Queimou
tudo. foi embora a onça (Hananeri rindo). Acabou tudo, ficou cinza. Passaram
dias. Nawereri (disse): ‘vou espiar Aroxi, caele?viu ele. ‘Caramba! O que
está fazendo aqui?’. Ele viu a cinza, arrumou um pouco, assoprou: ‘Que é isso?’.
Aroxi: ‘aahh, aquele cunhado, onça’. ‘Para que é isso?’. ‘Eu estou pedindo batina
dele, disse de pegar lenha, tu vai pular em cima (Hananeri rindo); por isso eu
queimava, pensei que ia ficar vivo’. ‘Onça é assim mesmo, couro dele é assim
mesmo! Agora tu vai mais não...’ . (Hananeri:) Bom, acabou tudo. Agora a mata está
crescendo, está crescendo a mata. Agora... ainda está ficando, aquele do... (pergunta,
na língua Ashaninka, a Tenoria, sua esposa). Aqui, onde está montanha, bem alta (os
Andes), não como aqui, ouviu falar de “Madre de Dios”? Aqui montanha, muito
alta, não é como aqui não, aqui é muito baixo. Para ca, onde está morando Inkra
agora, montanha, grande, altura. Tudo para cá Juruá, Ucuyali, mais para cá, muito
longe né... Mas ainda tem Inkra, ainda tem lá, montanha, ainda tem, Inkra está
ficando ainda, Inkra está ficando ainda.”
211
Em busca da imortalidade: a odisséia de Hananeri para encontrar Inka/Inkra.
Hananeri, mais uma vez, rememora sua experiência pessoal com o deus Inka,
através das informações contadas por seu pai e das histórias que ouviu sobre o
momento em que o Inka deixa o lugar que os Ashaninka habitavam e se desloca para
o leste. Sua história introduz, assim, a possibilidade de encontro real com o Inka,
conforme será narrado mais adiante, no seu périplo em direção ao Inka. Vejamos
como Hananeri introduz a figura do Inka e esta possibilidade de encontro:
“Ainda está ficando aquele, Inka, Inka está ficando: ele não vai embora. Ele,
aquele tempo, meu pai, conhece. Papai ele conhece. Ele foi quando estava novo. Ele
foi. Ele viu ele! Tudo limpo assim, ele disse, ‘limpo assim’. Porque primeiro foi-se
embora lua também, né. Lua foi embora, disse: ‘Eu não quero ficar aqui. Eu também
vou embora, vou cuidar, vou alumiar vocês’. Ele deixou poste pra ver esse deus, né,
poste, para alumiar luz, para alumiar vocês, pra (lua): ‘Eu vou deixar minha mala
como aquele baú, né.’ Deixou lá. Ele disse ‘eu vou deixar minha mala’, virou pedra,
pedra mala dele, duro, duro mesmo, ainda fica ainda. Aquele, meu tio, morreu
agora, ele foi para lá, disse: ‘eu conheço, eu também pensei que era mentira,
conhece. Aquele Inkra Apinga ainda está respondendo (Hananeri emocionado,
gaguejando), falando quando quer rezar com ele, pode rezar com ele, pede o que tu
quer
115
. Pede qualquer coisa, está difícil para trabalhar, mais dinheiro, qualquer
coisa (Hananeri agitado). Ele vai responder! Não para ver a cara dele. Assim.
Tem terra assim nê, ficando, ele cobriu com terra nê, está sentado assim, não vai
reparar. Ele vai escutar. Quando chegou você, quando você vai dizer: ‘Apinga, eu
queria ficar feliz.’. Ele faz: ‘mmm, hmmm.’ Vamos espiar, cadê ele? Não pode
olhar. [Lá tem muita música]. Todo passarinho tem cantiga, tem cantiga muito, aí sai
musica lá. Sai. Por isso, quando Ashaninka está sob o efeito da caiçuma, canta né,
115
Este episódio de pedir o que se quer ou rezar para realizar um pedido, lembra o mesmo
procedimento que os Ashaninka utilizam quando do surgimentro da lua nova. O primeiro
que avista a lua nova pode rezar ou fazer um pedido, que este se realizará. Do mesmo
modo, a aparição de helicópteros no céu é um indicador desta possibilidade dos pedidos, o
primeiro a avistar o helicóptero da FUNASA, tem o diretito de fazer o pedido.
212
está acompanhando. Mas tem outra coisa, outra coisa pra assoprar, é flauta. Mas
ainda vai escutando, está batendo com pandeiro, tudo. Está tocando [kaïda] também.
Toca, todinha, mais ele toca... Quem ensinou para fazer caiçuma era aquele
pitsitsiro, (ensinou a fazer) aquele que é parecido com milho (existe caiçuma de
milho), né. Aquele passarinho bonitinho. Mas tem no Feijó (a cidade mais
próxima), estão pegando ele para guardar (numa gaiola). Eu chamo (aquele ssaro)
pitsitsiro”. Aqui está ainda, está gente para cá, (perto de Incra/Inca/Apinga)
tem gente, aí ele gosta tomar caiçuma, aí ele sabe fazer, aí pode, chega lá, aqui... alto
(os Andes, Peru), vai escutar: ‘Ií, jeièi, embora, tomar caiçuma!’ A gente vai lá, né,
passear, vai viu como ele caiçumada muito, pode tomar, pode assoprar, né, pode
cantar, canta qualquer, tua cantiga né, pode cantar tudo né. fica animado, ainda
está aí, está escutando, Inca. Inca está aí agora.”
Haneneri descreve sua viagem em busca do Inka como uma epopéia que
começa com a transposição de vários rios, dando a impressão da distância
percorrida e da aventura realizada, reforçada pelos gestos das mãos e dos braços,
que acentuam a quantidade de curvas do rio percorridas. Neste percurso vai
apontando os locais onde mora uma cobra enorme, onde há pedras lisas como
mesas, lugares considerados excelentes para se tomar ayahuasca.
Hananeri traça seus caminhos em direção ao Inka e no oitavo dia chega à
cabeceira do rio Breu, passando pelo rio Xinani e o rio Bóia. Depois de passar pela
boca do rio Breu, subindo mais e mais, chega até o Xipixka, na fronteira com o Peru.
Em território peruano, passa pelas aldeias de Vitória e Doce Glória. Deste último
ponto, segue rumo ao rio Juruá e seguindo o rio Wacapsteia chega, finalmente, ao
Ucayali, “um rio enorme”, enfatiza Hananeri. Hananeri, neste momento da narrativa,
desenha com sua saliva um mapa no chão da casa e diz que até as montanhas doPeru
213
são cinco meses de viagem:
Mapa da odisseia desenhada por Hananeri no meu caderno de campo. Os nomes dos
rios são escritos por me. Em baixo desenhou as moradias de Pawa (1), Nawereri (2), a Lua
(3) e Inka (4).
Conta sobre os costumes das outras aldeias Ashaninka no Peru, acentua suas
diferenças lingüísticas, porém enfatiza a cada momento que são Ashaninka, que
usam kitarentse. Conta sobre o comportamento das mulheres que, segundo ele,
tinham bem menos vergonha do que as mulheres às quais ele estava acostumado.
Segundo Hananeri, as mulheres das outras aldeias Ashaninka chegavam
214
surpreendentemente rápido, sentavam-se perto dele e queriam que ele ficasse
naquela aldeia. Hananeri dizia, contudo, que não podia ficar lá, pois não desistiria de
sua busca à terra do Inka. Durante a narrativa, expressou em vários momentos como
superou estes dilemas, repetindo a seguinte frase, como se ainda estivesse
convencendo a si mesmo de que não poderia ter ficado naquelas aldeias do Peru:
“Não, não posso, preciso viajar mais”.
Conta sobre as frutas diferentes que foi encontrando pelo caminho até chegar
à região onde não mais floresta, onde não há o que comer, onde não havia
macaco, nem tucano, nada. A fome fez com que ele retornasse e, com isso,
interrompia sua busca, tão perto de onde esperava poder obter a imortalidade. O
restante das informações que Hananeri deu sobre a região provém das histórias do
seu pai, que viajou mais longe do que ele. As histórias sobre estes Ashaninka que
moram no alto, longe, ganham proporções míticas, porque comem muito pouco,
quase não há nada para comer. Mas se um pássaro passa lá em cima, quase invisível,
conseguem matá-lo, com arco e flecha. Uma vez que estão acostumados em ver
pouca caça são treinados em acertar os poucos alvos que se apresentam. O fato de
comerem tão pouco faz com que eles possam voar. Desviam de flechas como
ninguém. São tão valentes que até outros Ashaninka devem anunciar sua chegada,
para diminuir o risco de serem flechados. Kexi seria o nome da região, os Ashaninka
de lá se chamam kexixatse.
Esta narrativa lembra uma história recente, em que os Ashaninka do Planalto
conseguiram afastar tanto o exército Peruano, quanto expulsar os guerrilheiros dos
seus territórios, com pouquíssimas armas de fogo. Pessoas de várias aldeias
comentaram que a caça é tão rara que se alguém levasse um pedaço pequeno de
carne seca ou até um osso com pouquíssima carne, este dom seria suficiente para
garantir seu sucesso com até vinte mulheres. Se chegasse com um tatanentse,
coberto de plumas de arara, tucano e etc., as mulheres literalmente te depenariam,
tão pouco são acostumadas à caça. Mesmo sendo parcialmente exagerado, este
215
relato nos permite entender a raridade dos bens e produtos da floresta entre os
Ashaninka do Peru. Isto acentua a importância da demanda destas aldeias por
produtos da floresta, o que foi o motor das viagens de troca entre os Inca do Peru e
os Ashaninka.
Ayahuasca, passeando com os deuses através do arco íris: ainda a busca
pela imortalidade
A partir de uma indagação minha sobre o arco-íris nos kitarentse, Hananeri
começou a produzir uma narrativa que desse conta desta associação. Começa
falando do desenho concreto designado oye (arco-íris) na cushma de seu genro,
Gregório. Hananeri associa diretamente o arco-íris, a ayahuasca e a busca pela
imortalidade:
“Gente estava batendo cipó, batendo (preparando ayahuasca). Pode tomar,
toma. Primeiro toma né e reza assim né, pode falar com ela, kamarãpi né, ficando
com deus: eu queria vocês, mamãe, vamos chamar ela mamãe (kamarãpi). Mamãe,
eu queria que vocês, você e papai deus, que vocês, eu queria ficar vivo demais, eu
não quero pegar doenças não, eu queria thasolentse (imortalidade) como vocês m,
tu me para mim, fala com deus para me ajudar, como Pawa está fazendo, está
vivo demais, está altura demais né. Aí, vamos tomar (Hananeri assopra). vamos
tomar. Quando está chegando (...) pode tomar outro, pode tomar. Gente, quando
quer aprender, aprender com kamarãpi para conhecer aquele arco-íris, qualquer
gente que tem coragem, homem mesmo, balançou o coração ô, porque bebo, bebo
demais. Quase para morrer (Hananeri imita pegando fôlego), se não agüenta vamos
lembrando, nos estamos bebendo com kamarãpi.
216
Desenho arco-íris (esquerdo) e estrela (direito).
Façamos uma pequena pausa na narração de Hananeri para agregarmos
alguns comentários que parecem pertinentes neste momento. Ter ‘coragem’, como é
mencionado na narrativa, é uma característica essencial entre os Ashaninka que
bebem ayahuasca. Interessante também é a experiência de beber ayahuasca
comparada com a de morrer: a idéia de beber é aprender a curar, e no melhor dos
casos, se tornar imortal.
Retornemos à narrativa: “Se saindo com coração (Hananeri imita caindo
morto), parecido morto, deixe! Tem outro, pajé né, xeripiari, vai dizer: ‘deixa’.
Porque já foi passear, passeando com deus.
Esta passagem merece outro comentário. Xeri quer dizer tabaco e xeripiari é
aquele xamã que come o mel de tabaco, categorias que se inserem no discurso de
Hananeri quando ele está tentando precisar o significado da Ayahuasca, o que
denota, por sua vez, uma associação direta entre tabaco e ayahuasca e, ainda
acrescentaria neste contexto, a folha de coca. Os Ashaninka com os quais convivi
não tomam ayahusca sem fumar o tabaco e mascar a coca. Em muitas outras partes
da Amazônia encontra-se uma especialização entre xamãs associados ao tabaco e
àqueles que utilizam ayahuasca em seus rituais. No rio Envira não uma divisão
clássica entre “tabaqueiros” e “ayahuasqueiros”: o tabaco e a ayahusaca, agregados
ainda à coca, fazem parte do mesmo campo de significação e são elementos que se
complementam e constituem mesmo a possibilidade de ocorrência do ritual da
ayahuasca.
217
Retomando a narrativa de Hananeri: “Vai passar duas horas durante a noite
deitado. chegando pajé e acende cachimbo dele, vou espiar ele, vai assoprando,
assoprando assim. Ah tá, ele está passeando aí, deixe, ele vai acordar. Depois
quando ele acorda, kamarãpi parece assentativo (faz uma comparação com bebida
alcoólica, assentativo como é chamada no Peru, uma bebida com a qual você vai
sentar ou com a qual a comida na sua barriga vai se sentar no lugar certo), aí pronto,
pode tomar de novo. Agora está passeando. quando ele está caindo, está
chegando tudo: como boto, jibóia, arco íris, está subindo com batelão (barco),
(bebendo por) três meses, está saindo para lá. Vamos tomar, vamos tomar, vamos
tomar. Não vai perder um dia né, não vai perder. Todo dia. Não vai estragar. Vamos
acabar com o cipó, está chegando, dona né. Vamos acabar toda, à noite, ninguém
come sal, ninguém come macaxeira quente, vamos comer frio, vamos cuidar, não
vai comer derrumada qualquer carne, derrumada com cinza (não se pode comer
carne que caiu nas cinzas do fogo). Nem pode comer assado também, é bom de
aguado (cozido na água). Bem limpinho né. Nem macaxeira assada, nem queimada,
não pode, faz mal. Ninguém come pimenta. vamos comer palmito de paxua,
paxiuba, aquele maçarão. Rapaz, não come muito carne não, não come carne de
queixada, não se come anta, veado, macaco... tem dente (nenhum animal com
dentes pode ser comido). Vamos comer mandim, molhe, bocadinho. Não come
muito não. Vamos comer macaxeira, assentativo, caldo,... cipó acha bom. Gente
comendo carne né, ahhh, muito apodrecendo. Vamos deixar. Vamos agüentar né.
Vamos agüentando. Beber todo dia. Qualquer homem casado, vamos faltar também
com a mulher, não vamos entrar (não pode ter relações sexuais.). (Para aprender a
curar com ayahuasca toma-se um cipó inteiro). Se está perto para terminar com cipó
né, com tudo né, aonde está nascendo com cipó (até a raiz). Bebendo, bebendo,
bebendo, bebendo. Até aqui, aqui terra, vamos deixar, vamos cortar para nascer de
novo nê. Pode tomar, toma bem pouquinho. Oi, está chegando aí, se qualquer cara
não agüenta, pode fazer assim né (imita assoprar no topo da cabeça). Quando aquele
navio vai chegar, batelão grande né. Aquele do cipó está falando com ela.
218
querendo vocês né, estou pedindo para conhecer comigo, aqui eu, tá, tu viu, sou
eu cipó tá, aqui meu filho, ta né. Ta chegando com vocês: chegando médico, ta
meu filho, pode falar o que tu quer, tu quer remédio bom, trouxe aqui doutor,
trouxe aqui doutor, aqui policial possível punir alguém com a ajuda de
kamarãpi), aqui outro, aqui... (...) Quando está aprendendo, vai aprendendo,
qualquer doença e pode mandar, vamos dormir, vamos viu com ela né, ela vai
mandar: vai medicando, eu queria ver se vocês aprenderam mesmo aí. Vai medicar
aquele que doente aqui. Vai ver o que ela tem. Você entrando com doutor aí,
tem remédio, para ela aí. Tem remédio aqui, guardado, pra cá, para (na
altura do peito do aprendiz de ayahuasca). guardado. Se qualquer gente, para
rezar né, assoprava, depois vamos chupar né, vamos tirar qualquer coisa doente, joga
para lá. Depois vamos andando. Pronto.”
O assunto do qual essa narrativa de Hananeri parece querer dar conta é que,
diante da impossibilidade de encontrar realmente com Inka nas montanhas do Peru,
não restava a Hananeri senão encontrar ou, pelo menos, ‘passear com os deuses’,
através do processo de aprendizagem da ayahuasca, como possibilidade de aceder a
esta ‘imortalidade’ ou, pelo menos, poder aprender a lutar contra as doenças,
tornando-se um curador, um xamã. Assim, sua narração conta o aprendizado
processual que está implicado no conhecimento sobre a ayahuasca e suas
potencialidades de cura das doenças. Hananeri conta os estágios porque passou e por
que passam aqueles que se iniciam na beberagem do cipó. A narração passa por
todas as interdições alimentares e sexuais, que antecedem a sessão de beberagem e
as visões subseqüentes, até o estágio avançado de aprendizado, quando se tem a
visão do barco grande, momento em que adquire o remédio que guarda em seu peito
e que pode curar as pessoas. Daí a comparação explícita entre o xamã e o médico,
que podem curar, ao saberem aplicar os remédios. Se a ayahusca é uma busca’ da
imortalidade para todos os Ashaninka, ela é para o xamã uma questão de
aprendizado e processo de conhecimento, uma forma de lidar com as doenças e com
os infortúnios que inistem em colocar os Ashaninka na condição de mortais.
219
A jibóia é o neto do arco-íris
116
, que é também uma cobra. A chuva do arco-
íris, aquela a que nos referimos acima como gelada e que envia suas flechas que
produzem dores de cabeça nos humanos, não parece gasolina?”, perguntou
Hananeri retoricamente. A comparação entre a chuva do arco-íris e a “gasolina” foi
uma boa escolha de Hananeri: junta de uma vez as cores do arco-íris (o óleo
diesel usado para o barco, quando cai na água tem um espectro de cores parecido
com o do arco-íris) com o aspecto do “poder queimar”. Aquela chuva é a flecha da
cobra arco-íris.
Xawiri
117
, o primeiro que bebeu ayahuasca e que virou imortal
Se na narrativa precedente Hananeri nos oferece um guia para o aprendizado
da ayahuasca, nesta ele nos conta como um xamã pôde alcançar a imortalidade neste
processo. Esta narrativa enfatiza que o xamã com seus filhos vão subindo para o céu,
conquistando a imortalidade tão almejada. Mas o mito não parece resolver este
problema sem dramatização pois, ao seu final, o xamã faz um apelo a sua esposa,
para que esta o acompanhe, para não ficar para trás, sozinha no mundo dos mortais.
116
Jomanoria sobre o arco-íris: “Nós chamamos ele oye, tem três nomes: oye, oyenki,
pitsitarenki e torenki. Aquele torenki tem um rabo meio amarelo, um pedaço do rabo
dele é amarelo. Ele forma também chuva, aquela chuva quando a gente , chuvendo com
sol, né, embaixo do sol a gente sol ainda, ta chovendo, nós chamamos oye: orenkaki.”
Agora oye mesmo, que levanta (a cobra) assim, que tem lista grande, que vai pertinho do
céu assim, que fica com lista, a gente chama oye. Ele, quando está se levantando assim, (a
gente) diz que está valente, ta ficando com raiva quando mulher está menstruando e
queimou ele. Menstruação da mulher é quente, parece fogo. Então ele se levanta para ver
aquela quem queimou ele. Agora, tem muita história de oye: às vezes pajé, né, quando está
tomando daimi, ele tem espírito chama ele, ajudar curar, ajudar buscar, as vezes ele pega
uma criança, aí, o espírito dele leva na lama, aí, menino vai cair doente, fica doente,
chorando muito, aí, pajé que aprendeu espírito dele, ele vai curar e vai..., aí, cura o menino.
Também, se uma mulher grávida passa em baixo do arco-íris, vai nascer uma filha. Se o
homem de uma mulher grávida passa em baixo do arco-íris, vai nascer um menino. Oye
forma também o trovão grande. Aquele estrondo é oye. Aquela nuvem grande, ela vem e
encosta com outra assim, ele (a cobra oye) vem também, né, passa em dia parece fogo. Aí,
derrete todinho e forma água.
117
Xawiri é o primeiro xamã Ashaninka que se tornou imortal bebendo ayahuasca. Xawio
é uma palavra derivada de Xawiri e é o nome de uma das filhas de Hananeri.
220
A questão evocada pelo xamã para sua esposa que não bebe ayahuasca
tematiza a oposição básica mortal/imortal, assim como acentua de forma
contundente a propriedade das relações conjugais e sua importância para o estilo de
vida Ashaninka. Assim, o xamã encontra-se diante do seguinte dilema: alcança a
imortalidade e sobe ao céu, mas de que adianta este estado se não tem sua esposa
consigo e ambos vão ficar sozinhos e separados, no céu e na terra. Esta tensão posta
pelo xamã parece querer dar conta da necessidade da ayahuasca ser consumida
coletivamente, como uma busca de aprendizado do caminho para a imortalidade, ao
mesmo tempo em que acentua a importância do estar casado na sociedade
Ashaninka.
Ter um parceiro/a parece ser algo crucial no estilo de vida Ashaninka e
movimenta um dos mais importantes complexos culturais de sua sociedade: a
pusanga’. Por ora basta definirmos pusanga’ como um conjunto de práticas de
encantamento, que envolve magia sexual e amorosa com a intenção explícita de
solucionar os problemas advindos das relações conjugais e amorosas entre homens e
mulheres. Mas vejamos agora a narrativa de Hananeri:
“Quando pawa estava subindo, ele viu aquele cipó. Naquele tempo era gente
né. Gente. Tem aquele que está como primeiro bebendo, aquele xeripiari primeiro,
Xawiri. Xawiri, ele era o primeiro que bebeu. Ele bebeu com cinco filhos. Não.
Quatro, cinco ele, Xawiri aqui, quatro filhos dele, homens né. ele disse: vamos
experimentar com o filho de deus, vamos tomar, vamos tirar, como se faz né. Tem
horoa, (Pawa) deixava também, faz também. Porque nos chamava com horoa? Esse
Pawa primeiro chamava com horiowa, horiowa. Nos chamava agora direto horoa’,
né.
depois tirava, mandava cozinhar. Quantas horas? Disse deus, vamos
cozinhar assim (Hananeri faz aquele gesto típico com a mão que aponta a trajetória
do sol. Em outras palavras, cozinhando o dia inteiro). Vamos tirar, vamos guardar,
vamos aguado (cozinhar em água) para tirar qualquer baguaçu né. Vamos tirar,
221
vamos cozinhar. Quando fica preto mesmo, aaahh, vamos deixar, forte mesmo
(a cor preta é sempre associada com força, nada diferente com esse aspecto da
ayahuasca). Depois. Ele passava... Assim. Só mulher dele, mulher dele não tomava,
ei to com sono. Disse: ‘embora’. Disse a mulher: ‘não, tomo não.’ chamava filho
dele: ‘He, filho, vamos tomar?’. ‘Embora papai. Eu quero tomar também’. ‘Vamos
ver se com (arco-íris?)’. Isso. Tomava com quatro filhos. Toda dia bebendo,
bebendo, bebendo, bebendo, bebendo, bebendo, bebendo. Dois meses, está
chegando: vento grande (há canções de ayahuasca onde se fala sempre sobre um
vento que está chegando, o momento onde o efeito do cipó se faz sentir), viu vento
grande. Mas ele embarcou, disse que avião né. Ele voou para né. ele foi.
Disse: ‘Embora meu filho, uma olhada no céu, agora. Vamos embora.’ ele
está cantando, fica animado né. ele cantando, cantando, cantando, cantando, todo
o dia. Aí chegava com avião depois. Ele bebeu toda a bacia. Aí ele disse: ‘Meu filho,
vamos terminar com a bacia, com tudo? ‘Eu agüento papai!’ (‘agüentar’, chamo
atenção mais uma vez para a centralidade deste conceito no estilo de vida
Ashaninka). ‘Está bom meu filho, vamos tomar! Primeiro eu bebo, tu acaba’.
Primeiro o pai dele bebeu, bebeu: ‘Está meu filho, pode tomar’. ele bebeu,
irmão dele bebeu também. Aí acabou. Embora cantar! Pode cantar quando, quando
chegava aí. ‘Bum (onomatopéia)’, foi-se embora. era a mulher dele, reparou,
ficava calada assim, ó. Cadê ele? viu com motsa (esteira) dele assim, deixando
assim. Viu assim. Tem aquela esteira, que nos fazemos aqui, deixava com tabaco
também. E cadê ele? Ela foi aonde ele defecou: foi já. Ele es chegando na
madrugada. Na madrugada ele está chegando. Escutou em cima que ele está
cantando aí. O que ele está fazendo aí? Escutou. Desceu, desceu. ele está
cantando. Descendo com filhos dele, todos os quatro. Chegando. Chegava mãe
deles: ‘aonde tu vai, meu filho?’. ‘Mamãe tu o vai perguntar não, ninguém
pergunta comigo.’ ‘Não meu filho tu conta para mim, eu estou com medo aqui.
ele disse assim, o Xawiri né: ‘Está vendo. Eu chamei vocês, embora tomar, agora
você, tu vai ficar. Eu vou embora no céu tá. Deus para mim, chama comigo, aí disse:
222
‘pode tomar vocês. conta agora teu irmão para ele tomar também. Para conhecer.
Tem que aprender né, aprender para conhecimento de vocês, comigo né. Aprender
para conhecimento de vocês, comigo né. disse xawiri: tomei. (Pawa): ‘Cade
tua mulher?’ Disse Xawiri: não toma não. Pawa: ‘Ela vai morrer’. depois quando
ele foi embora, está chegando vento grande. Está chegando, como aquele aqui (na
casa de Hananeri o vento derrubou uma panela) que estava levando panela aquele
dia. Está caindo com pau (árvores são derrubadas pelo vento). Está parecendo com
fazer roçado. escutou está zoando. Disse que “já vem o navio! Vamos embora ta.
Vamos embora.” quando chegava o vento, disse: embora, para lá, no terreiro (o
lugar “limpo’ em frente da casa). Está chegando às cinco horas de tarde. Vento
grande. Vamos embora, embora. disse a mulher dele: ‘aonde tu vai?’ ‘Nada não.
Vou embora (...) tem minha mulher lá.’ Não me deixa não. Está vendo, você
também não queria tomar, vou embora agora. Eu chamei você, embora tomar,
embora tomar...”.
Aí disse o filho dela: ‘mamãe, tu fica mesmo aqui, tu vai morrer aqui mesmo.
Eu não, eu não morro não. Vou voltando para cá. depois, chegava o vento,
chegando o vento, ele está andando com os quatro filhos dele. Chegava muito, paw,
acabou, perdeu, embarcou com tudo, filho dele. Passou vento para cá, ela vem
para cá, onde o sol está nascendo (ritual de cada manhã). Aí escutou. Ele está
cantando, ieieieie! olhou mulher dele e chorou, He, chega para mim, foi já.
Deixando tudo, mel de tabaco, cachimbo dele, tudo. ela olhou, ooo, esperou,
pensou que ele ia voltar. Não voltou não. foi embora. Levou com kamarãpi,
kamarãpi levou com ele, foi. Chorou. Ela foi para o irmão dele que perguntou:
onde está Xawiri? (Ela diz) Não sei, ele tomou como primeiro cipó, disse que foi
embora. (O irmão:) Foi mesmo. Porque tu não tomou também? (Ela:) Eu estava com
sono, eu queria dormir. (Ele:) Está vendo, tu não está chorando agora? (Ela:) Chorei,
chorei de noite. (Ele:) Não é preciso chorar, ele não morre não nê. foi embora,
já”.
223
Desenho de kamarãpi na testa de Wewito Pianko.
Esse mito nos reenvia à história de ascensão de Pawa, através do qual a
mortalidade é instalada na terra, quando Pawa leva consigo a imortalidade para o
céu. A ascensão de Xawiri visa escapar da morte da terra e ficar perto de Pawa. O
arco-íris, a jibóia e o trovão estão intimamente relacionados, no processo de
obtenção da imortalidade através de ayahuasca. Esses mitos não estão apenas em
um plano especulativo, como sendo histórias de antigamente ou dos antigos, mas
estão de fato vivos no dia-a-dia da vida Ashaninka. Prova disso é que, quando o
vento derruba árvores, os Ashaninka falam que Xawiri está passando com seu avião
(“vento grande dele).
Hananeri ainda outro testemunho da atualidade do mito no mundo dos
Ashaninka, ao narrar que quando estava na aldeia Simpatia “veio também o vento,
‘wooaw’ (onomatopéia), e parecia gente falando e zoava como um navio”. Hananeri
dizia “oo está aqui ó, ele, Ashaninka aqui, vamos espiar ele, vamos, embora,
vamos embora, hamee! Embora, espiar com gente. Aí, chegando com vento,
224
‘woaaaum, womm’, ele passou, está vendo nós assim. Xawiri es falando. no
outro lado, na altura de “sete voltas”, desceu.”
Ao vento associa outro fenômeno, o trovão, que acompanha o vento e se
chama tarisa. Alega que ele é muito forte também e que é gente, está atirando com
fuzil, como fazem os policiais. O trovão parece com o fogo, ‘paw paw’, parece com
foguete. Haneneri o descreve desta forma: “Ele está atirando, fica animado, está
perto, vai chegar ó, está chegando... Tem xeripiari (xamã) cuidando também, está
chegando na sua casa, está acompanhando com ele né, está acompanhando com ele
né, está chegando na sua casa. Está! Vou ficar animado.” Hananeri associa este
fenômeno de anunciar uma chegada e dos deslocamentos completados com barulho
forte, como algo que desse conta de um percurso quase divino realizado, como o do
tarisa (trovão) e do vento. Por isso completa sua explicação, com a seguinte
observação: “quando está chegando da cidade de Feijó, a gente lança também
foguetes”.
Esses mitos foram contados durante um piarentse (festa de bebida
fermentada) que durou três dias, quando surgiu o arco-íris no céu, o que me deu a
chance de indagar sobre o significado para os Ashaninka ‘daquele negócio colorido
no céu’, que apareceu bem definido no primeiro dia do piarentse. Neste novo
contexto, recebi a explicação de Txonde de que o arco-íris era a marca até onde o
próximo dilúvio ia chegar. O arco-íris, ainda segundo ele, seria formado por duas
cobras, uma deitada sobre a outra. No segundo dia do piarentse, Kokonha reafirmou
que o arco-íris era uma cobra dizendo que ela partia de um lado e estava indo para o
outro e que estava visitando o cunhado dela, que fica na lama preta. O filho de Tapi,
percebendo meu interesse pelo fenômeno, acrescentou que o arco-íris tinha o seu
próprio kitaretse.
Neste contexto, Kokonha passa o contar o seguinte episódio em que esteve
envolvido: quando ele caçava rio acima, começou a chover. Sempre chove quando o
arco-íris aparece. Kokonha foi pegar uma folha para se proteger da chuva e viu no
225
solo um buraco na lama, de onde apareceu aquela cobra. Ela estava lá, brilhando
como ouro, inteiramente preta. A cobra se levantou, bastante alta, saindo do buraco.
Kokonha tinha atirado nela, mas “aquele bicho não pegava chumbo não”. Pensou: eu
vou ficar quieto. Depois que ele atirou, o animal cresceu, ficou mais grosso e olhou
para ele. que a bala não penetrava na pele da cobra (havia algo especial nela) ele
não atirou uma segunda vez. Resolveu, então, ficar quieto. A cobra foi embora
lentamente. Quando ele voltou para casa, contou a história para seu pai e perguntou:
‘que animal era esse que não pegava chumbo?’. Hananeri disse para seu filho que
ele conheceu o animal e que o avô dele também encontrara uma vez uma cobra que
saiu pequena de um buraco e que ficou grande depois, enorme e muito grossa.
Hananeri lhe deu um aviso: ‘tem que deixar ela em paz’.
Quando entrevistava Matxontse, a mãe de Tanta, sobre os motivos dos
kitarentse, Matxontse dizia que pintou o arco-íris no seu kitarentse. Estava
entrevistando Matxonte na casa de Tapi, a mais alta casa da aldeia e por isso
podíamos ter uma visão clara do céu. Podíamos ver o arco-íris que estava ali
formado. Matxonte aponta para o arco-íris e depois para o kitarentse que estava
pendurado na trave da casa, fazendo uma associação explícita entre o motivo
pictórico de seu kitarentse e o arco-íris. Depois, ela falou simplesmente: “isso é
preto”. Matxonte gostava de brincar comigo de vez em quando, inventando motivos
pictóricos que compunham seu kitarentse, dizendo que existiam apenas dois motivos
provenientes de dois peixes diferentes e que os outros motivos eram pênis ... daí
começava a rir, denunciando sua piada. Mas desta vez Matxonte o estava
brincando. A cobra arco-íris’ ensinou os Ashaninka a pintar com lama preta nos
kitarentse femininos. O fio preto com o qual os motivos são feitos nos kitarentse
masculinos também são tingidos com a lama preta.
Neste contexto, fazia sentido a afirmativa de Matxonte, ‘isso é preto’, que nos
chamava atenção para o fato de que a compreensão do significado do kitarentse não
recaía na definição dos detalhes e padrões dos desenhos em termos representativos,
226
mas seu sentido era ‘apresentativo’, no seu aspecto preto. Isto é, na ligação de todos
os desenhos, os motivos, os fios tingidos com o arco-íris, com a lama, com a cobra e
com a concepção de imortalidade.
Todas estas experiências apontam para o fato de que cado kitarentse é
diretamente ou indiretamente relacionado ao o arco-íris. De fato, as linhas básicas,
que são sempre pintadas primeiro, parecem representar as linhas de cores do arco-
íris. O preenchimento é livre e inspira-se literalmente nas plantas e animais como o
peixe, mostrado por Tapi ou a concha, por Tanta.
Sendo o arco-íris um arco, tem uma parte vertical - as linhas masculinas - e
uma parte horizontal - as linhas femininas. A lama para pintá-lo é obtida através de
uma oração à cobra. Nenhuma mulher grávida ou na fase de menstruação pode
pintar, ou sequer olhar para quem está pintando.
Neste contexto, o kitarentse é, ele mesmo, um objeto vivo, que sofre
processos de transformação, da mesma forma que os corpos. Se o kitarentse começa
branco, passa pelo estado vermelho e chega em seu processo final ao estado preto,
quando é completamente pintado com lama preta. Esta é a última transformação do
kitarentse. Completamente preta, igual à cobra, o kitarentse é a própria pele da
cobra, garantia para os humanos de que podem trocar de pele, na tentativa de
obtenção de uma vida eterna. Ao mesmo tempo, o kitarantse é uma proteção contra
as mordidas de cobra. Deste modo, vemos, assim, uma indissociável relação entre o
kitarentse, a ayahuasca e as cobras, na incansável busca Ashaninka pela
imortalidade.
227
Sexo com cobras: ainda sobre o arco-íris
Uma outra narrativa que estabelece mais um significado possível para o arco-
íris é apresentada por Conconha e Hananeri, em que uma mulher menstruada,
quando toma banho de rio, ao invés de ser punida pela queimadura que provoca nos
filhos da cobra, inicia uma relação amorosa com a cobra. A cobra vem visitá-la no
seu mundo estabelecendo, desta forma, uma possível conexão entre este mundo
subaquático e o mundo dos Ashaninka, que se caracteriza, sobretudo, pelo
aprendizado dos motivos pictóricos que são aplicados em todos os suportes no
mundo dos Ashaninka. Vejamos o mito:
“Uma mulher na fase de menstruação foi tomar um banho no rio. Uma cobra
tinha se queimado, um amigo da jibóia falou: ô, você o pode fazer isso. A cobra
foi visitar ela. Ela veio de baixo da terra, da lama. Antigamente a gente não tinha
casas em palafitas, a gente dormia no chão mesmo. O chão da casa era terra mesma.
Então essa cobra veio através do chão namorar a mulher Ashaninka. A família dela
não estava contente com isso: você não vai namorar com um animal desses. A
família dela bateu nela. Por isso foram mandadas cobras para a casa dela. Mataram
tudo mundo. Só deixaram a filha que ia morar com a cobra viva.
Em outra versão deste mito, fornecida por Hananeri, ele acentua que foi neste
lugar das cobras onde a primeira mulher Ashaninka aprendeu a desenhar,
enfatizando que as mulheres cobras eram muito bonitas e estavam todas pintadas
com desenhos no corpo e no kitarentse. Continuando a narração:
“A cobra falou para a mulher Ashaninka que seu cunhado a queria matar,
porque ela tinha queimado ele com o sangue menstrual dela. Mas a cobra, do qual as
flechas eram feitas daquilo com o que os Ashaninka fazem colares, aquela cobra
falou de não matar ela (primeiro a cobra salva a mulher e depois que faz sexo com
ela). ‘Mas fala para suas irmãs que elas não podem mais tomar banho assim.
Naquele tempo ele se pintava de preto. Antigamente ele andava sempre de preto
(quando o arco-íris ainda era um Ashaninka e Pawa ainda estava aqui), kushma dele.
228
ele chamava: Pawa, como vou fazer agora? Pawa: ‘Não sei não, disse Pawa, ah,
vamos fazer isso: tu vira cobra dentro do barro. Ah, agora tu te chama oye (arco-
íris). Faz como teu irmão sempre pinta sua roupa todinha, disse Pawa’. Está bom,
falou oye e virou bicho, entrou no barro, na lama, fica morando dentro. Quando
ele sai passa para lá onde fica a outra (cobra).”
Neste contexto, surge um comentário de Xawio sobre o arco-íris, que nos
ajuda a precisar sua significação: quando o arco-íris está interrompido, significa que
as doenças m de cima, através da chuva. Neste momento, Xawio, temendo os
efeitos da chuva do arco-íris, chama sua filha Maria para dentro de casa. Xawio
também afirma que seria perigoso mesmo olhar para um arco-íris interrompido.
Xawio precisa ainda mais sua significação, ao me dizer que, quando o arco-íris está
completo, é sinal de que ‘ele está somente passeando e não acontece nada’.
É interessante observar a forma que o arco-íris assume através do desenho de
Xawio. Com os dois dedos indicadores, ela traça o arco-íris como um meio
retângulo, ao invés de acentuar seu arco donde surgem, assim, as linhas horizontais e
verticais. As linhas por excelência que estruturam o kitarentse.
O significado do arco-íris pode, ainda, ser expandido. Se em um caso pode
ser o lugar da imortalidade, da morada da cobra, dona da lama, pode em outro, ser o
seu reverso, o lugar perigoso, da desordem e da doença
118
. Um fato que presenciei
em um fim de tarde na aldeia, revela esta experiência dos Ashaninka com o arco-íris.
A floresta parecia mergulhada em uma luz rosa incomun, produzida pelo
efeito de dois arco-íris interrompidos que, embora afastados, se sobrepunham à
oeste, enquanto à leste o sol baixava de forma espetacular, acentuando ainda mais a
cor rosa púrpura que o céu apresentava. Dois fenômenos para o quais os Ashaninka
dão as costas, uma vez que ambos trazem má sorte e doença.
118
Ver especialmente Lévi-Strauss, nas Mitológicas volume 3; Gonçalves (2007) e Lagrou,
Townsley (e.o.) com relação ao material pano. No caso dos Kaxinawa, o arco-íris é o
caminho dos mortos, o caminho da lua, uma rede invertida, significando tanto o perigo da
morte quanto a possibilidade da vida.
229
É neste contexto que faz sentido a expresão de Xawio, que afirma que um
xeripiari (o xamã) pode chegar perto do arco-íris. Reforçando ainda mais o sentido
malévolo da coloração avermelhada do céu produzida pelos arco-íris ou pelo pôr do
sol, presenciei uma menina que jogava cinzas na direção da vermelhidão produzida
no céu, querendo, assim, neutralizar os malefícios e afastar as possíveis doenças.
Em outro mito, é um homem quem conhece o mundo da anaconda e de
kamarãpi, ao ser seduzido por uma linda mulher desenhada com jenipapo
119
. Este
mito me foi contado por Raimundinho, professor da comunidade Simpatia e
conhecedor do kanamarampi.
“A jibóia ensinou os Ashaninka a beber kamarãpi, a curar, a pintar com
jenipapo. O primeiro (a aprender) era uma anta. Antigamente todos os animais eram
Ashaninka (destaca Raimundinho). A anta foi para o lago. Viu cobra, jibóia. Achou
muito bonito; olhou como a jibóia tinha se pintado com jenipapo. Ahhh, é assim.
Falou pra ele. Depois foi buscar jenipapo (ana) e fez também. Assim os Ashaninka
aprenderam a pintar com jenipapo. Os outros Ashaninka foram olhar, mas ele não
estava mais (a jibóia). A jibóia ensinou também o surubim e outros peixes a se
pintar. Um segundo Ashaninka foi para lá e jogou pedaços de jenipapo no lago. Veio
uma jibóia, mulher ela. Eles fizeram sexo. Ahhh, é assim. Depois ele pegou a jibóia,
em volta do braço, em volta do pescoço (como o txoxiki). Assim, com a cobra nele,
assim ele foi para dentro da água com ela. Pareceu uma casa (em baixo da água).
Ele aprendeu a curar, aprendeu a beber kamarãpi. Por isso as pessoas vêem cobras
quando bebem kamarãpi.”
Roupas pretas e a primeira Ashaninka que foi morar entre as cobras.
“Os antigos contam”, diz Hananeri, “minha vóvó, sobre aquela primeira, ela é
bem conhecida, aquela primeira Ashaninka que foi viver entre as cobras. Ela estava
119
Este mito é muito recorrente entre os grupos pano (para os Kaxinawa veja Lagrou
(2007), para os Jaminahua Townsley (1988)).
230
procurando orelha de pau. Aí, quando viu uma cobra virando gente, disse que é
bonita ela”.
As cobras mulheres o bonitas e as mulheres adoram aplicar os desenhos da
cobra no rosto. A primeira Ashaninka que foi morar entre as cobras achou as cobras
“gente bonita”. Transformando-se em cobra, ela se tornou bonita. Transformando-se
em cobra, ela se tornou imortal.
Este mito conta como a cobra mulher, Hampitonki, esta cobrinha pequena que
vive na terra, é mãe, dona, de todas as cobras coloridas, enquanto seu esposo, Nonki,
a cobra preta gigante, que mora igualmente na terra, é pai de todas as cobras pretas.
As peles das cobras são seus kitarense. Hananeri comenta: “Eu chamo aquele pai (de
todas as cobras), Nonki, como chamei a minha filha. Nonki é o pai de todas as
cobras”. O gesto de Hananeri, apontando para seu próprio kitarentse, que é quase
preto, de tantas vezes ter sido pintado, estabelece o laço com o couro de Nonki.
Como mencionado acima, a cor preta do kitarentse protege contra a mordida
de cobras venenosas, os filhos de Nonki. Hananeri continua: “O nome da esposa dele
é Hampitonki. A minha avó contou isso. Uma Ashaninka viu ela; (não foi) agora
não, faz muito tempo né, (há) muito tempo ela viu ... mange (cobra)”.
A história da primeira pessoa a ir morar com as cobras me foi contada por
Hananeri da seguinte maneira:
“(Uma mãe) mandou (sua filha para a floresta). Lá ela viu (Hampitõki), foi na
casa dela, onde as cobras moram. foi para Ashaninka (ela foi). Ela virou
cobra também, trepou lá em cima, esperando a mãe dela. A mãe dela a tinha enviado
para a floresta e ficava preocupada. Cadê a minha filha? faz quatro dias que ela
foi embora. Ela esperava, esperava... Sera que minha filha morreu de fome na mata?
Eu vou atrás dela, não acho que morreria de fome, algo aconteceu. A mãe buscava,
buscava, mas não achava a filha, nem qualquer rastro dela. Ela também não estava
procurando por rastos de cobra e cobras não deixam rastros na mata.
231
Aí, depois, ela (a filha) foi dormir. No dia seguinte comeu nambu. Tu sabe
nambu? É aquele sapo (a filha se transformou em cobra que come sapo; o sapo é
o nambu da cobra). Aquela cobra gosta de engolir sapo, gia também, hu, hu
(onomatopeia). Aquele também, aquele também: bru, brrrwwwu, gia né. De manhã
comia nambu, ela matou muitos. Esse aguado, patraiska.
chegava, encostou, você quer ver seu sogro? (A) mãe de todas as cobras,
Hampitonki né, (o) marido dela (era) a cobra grande, (é) pai dele: aquele bico de
jaca e surucucu de barranco (são filhos dele). Todas as cobras pretas, a roupa delas é
preta como esta (Hananeri aponta para seu próprio kitarentse). Tem outras cobras
com outras cores, a dona delas é Hampitonki, a mãe de (todas as cobras), aquelas do
Hampitonki, né. ela disse assim: eu vou chamar teu sogro para ver vocês.
Cuidado para não se assustar porque ele não é exatamente pequeno, ele é muito
grande.
(Hampitonki) disse assim (aos seus filhos): “vou te mandar caçar”. Cada
dia, de manhã cedo, as cobras iam caçar. Mais tarde voltavam e sempre traziam
muito nambu, davam para Hampitonki, que parmenecia com a Ashaninka né.
Cada vez chegava outro filho que dava a caça a ela. Eles chegavam, chegavam e
davam. Tinham muitos filhos.
Agora veio o sogro. Ele chegava às seis horas. Ele ficou contando, disse que
ia trazer. Parecia aquela jibóia né, morando na mata, não no rio. Tem outro morando
aqui (Hananeri aponta para o rio). ele soprava (“hipnotizando” a caça, as
cobras têm seus truques mágicos para caçar, como os Ashaninka têm também
120
),
porque estava pegando o veado dele, aquela jibóia gosta de morder veado. Ele
engole tudo né, aí ele está carregando o veado nas costas dele (depois da ingestão do
animal inteiro, fica visível uma corcunda). Ele chegou e deu o veado (para
120
Ver também Deshayes para as técnicas de caça entre os Kaxinawa, onde é preciso saber
atrair, seduzir a caça. Ver Lagrou sobre o ritual da matança da cobra para adquirir desta o
poder de hipnose sobre a caça.
232
Hampitxonki), que falou para aquela Ashaninka: cuidado, não vai reparar ele. Vira
(se para o outro lado)
121
. Ela viu como ele estava andando.
Ele cheirava: “o que está cheirando aqui?”, perguntou. Hampitonki
respondeu: “isso é o meu urucum
122
, estamos passando urucum (no nosso rosto)”.
Ele cheirou novamente: (Hananeri imitando). Aquele que parece jibóia estava
cheirando: “Não, não, aqui!”
(Hampitonki responde): “-É o cheiro do urucum que eu estou passando!”
(Nonki): “- Não é não, eu conheço o cheiro de urucum”.
“- Presta atenção, vira gente, eu trouxe um Ashaninka para ”, (falou
Hampitonki).
“- Aah, tá, tá, vou virar mesmo” (respondeu Nonki). E virou (assumiu a forma
humana). Ele viu a Ashaninka e perguntou: “Você não tinha medo? Você não se
assustou?”
“-Sim, me assustei”.
“Aaahhh. Porque...eu estou virando aqui ô...”
Este mito, assim como o mito da chegada ao céu, onde se troca de pele na
panela da lua, estabele claramente o tema da transformação através da mudança de
roupa ou corpo. Aqui, a jovem Ashaninka se metamorfoseia em cobra pela
comensalidade com as cobras: a moça come, sem estranhar, o que as cobras comem:
um sapo é para ela um nambu
123
. Sua transformação, no entanto, ainda não está
completa, ou melhor, ela não tem consciência desta transformação. Por esta razão,
121
Esta recomendação feita à intrusa no mundo das cobras, invoca a etiqueta ashaninka de
recepção de parentes quando retornam de uma longa viagem. Assim, Julietta virou as costas
para o pai e esperou o momento de dirigir a palavra a ele, quando o viu chegar de sua
viagem a Feijó. Esta aparente indiferença contrastava com a ansiedade com que sua
chegada era aguardada.
122
Urucum usado aqui para “mascarar” o cheiro.
123
Esta questão da comensalidade, como manifestação de que o ponto de vista está no
corpo, ilustra bem a questão do perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996) presente na
mitologia ashaninka: o que para o ser humano é um sapo, para a cobra é um nambu. A
pessoa, comendo sapo como se fosse nambu, assumiu, deste modo, o ponto de vista da
cobra.
233
não pode olhar seu sogro chegando, para não estranhar seu corpo de cobra, e pela
mesma razão, para o meter medo na moça, Hampitonki pede a Nonki para assumir
sua forma humana.
Esse risco de estranhamento e o esforço de mediação entre seres
excessivamente diferentes aplicam-se, igualmente, à tentativa de Hampitonki de
desviar a atenção de Nõnki para o cheiro diferente (de gente? de caça?) que este
percebe ao entrar em casa. Sua esposa tenta convencê-lo de que se trata do urucum
que ela mesma passou no seu rosto, mas quando percebe que não consegue enganá-
lo, apela logo para sua dupla identidade: “Presta atenção, vira gente, eu trouxe um
Ashaninka para cá”, afirma, abrindo logo o jogo e apostando na sua capacidade de
mudar o corpo e o ponto de vista, evitando, deste modo, o impulso predatório de
Nonki, o caçador que cheira sua caça. Nonki reage de forma imediata, positivamente,
respondendo, Aah, tá, tá, vou virar mesmo e se transforma de forma instantânea.
Ainda brinca com a moça assustada:
Nonki”, segundo Anita do Rio Amônia.
“Você não tinha medo? Você não se assustou?” “Sim, me assustei!” e,
brincalhão, volta a exibir sua capacidade de transformação, assumindo novamente
sua forma de cobra: “Aaahhh. Porque...eu estou virando aqui ô...” As cobras são,
deste modo, os donos da capacidade de transformação corporal, um processo que
assusta seres humanos
124
.
124
Ver Lagrou (2007) sobre a jibóia/anaconda enquanto paradigma da transformação
corporal entre os Kaxinawa: “O desenho da cobra contém o mundo. Cada mancha na sua
pele pode se abrir e mostrar a porta para entrar em novas formas. Tem vinte e cinco
manchas na pele de Yube, que são os vinte e cinco desenhos que existem.”
234
Vale a pena neste contexto chamar a atenção para o papel mediador do arco-
íris e das cores no pensamento ameríndio
125
. Não nos parece ser uma coincidência o
fato de Hampitonki, figura mediadora por excelência, ser aquela que chama os
humanos para si para mostrar seu mundo. Ou seja, a cobra colorida, dona de todas as
cobras coloridas, enquanto seu esposo, grande, poderoso e predador, é preto. O preto
seria a concentração de todas as cores, enquanto o processo de revelação cromática
se no encontro. O caso da cobra/arco-íris é também ilustrativo neste sentido, esta
cobra é preta quando debaixo da água, mas se revela como colorida ao mostrar seu
cushma, o arco-íris.
Também entre os Kaxinawa, Yube, a anaconda, dono de todas as cobras, é
preta, não se seu desenho (em outras versões, ele é branco), ele é enorme, grande
demais para se movimentar, e vive na escuridão debaixo da água. Já a jibóia,
belamente desenhada e colorida, é a cobra da terra, a mediadora, que vem à luz para
mostrar o desenho invisível que se encontra também na pele preta de Yube.
Entre os Kaxinawa, enfatiza-se o encontro entre a luz e a escuridão do mundo
aquático (Lagrou, 2007). Entre os Ashaninka, contudo, vemos em um mito, o das
cobras que vivem na terra, a complementaridade preto/colorido representado pelo
casal, onde a cobra mulher colorida faz a mediação entre a visitante Ashaninka e seu
marido, ‘sogro’ da moça. Em outro mito, temos a simultaneidade da cor preta e
colorida de um mesmo corpo-cushma. Neste contexto é importante lembrar
novamente o fato do próprio kitarentse de todas as pessoas passar pelos vários
estágios transformativos: de branco, colorido (vermelho com desenhos) a preto.
Enquanto Hampitonki protege e acolhe, Nonki aparece no mito como exímeo
caçador, dono do kitarentse preto. Comentando a cena da caçada mencionada no
mito, Hananeri me explicou o modo particular de Nonki matar veados: “Quando o
veado corre, Nonki corre também, quando o veado se cansa, o amarra com o rabo
125
Vide Gonçalves: o cromatismo (no prelo).
235
dele. Se cansou, mete o rabo dele no cu do veado e perfura o coração. O fura, mata,
como ele sabe, né. Quando morto, o braço dele fica mole; ele (o) solta e vai engolir”.
Esta seqüência de imagens da cobra penetrando o ânus de sua vítima para
matá-la, este revirar de interior e exterior, onde o predador está primeiramente
dentro do corpo de sua vítima para depois de morto engoli-lo por inteiro, cobrindo
todo o corpo da vítima, como uma pele, invoca duas expriências iniciáticas com
ayahuasca, narradas por dois grupos vizinhos dos Ashaninka, respectivamente os
Piro e os Kaxinawa.
Entre os Piro, a experiência de náusea e pânico durante a ingestão da
ayahuasca é descrita exatamente nos mesmos termos que a cena de caça ao veado,
conforme descrita por Hananeri: a cobra enfia seu rabo pelo ânus até chegar à
garganta da vítima, causando náuseas e morte (mística). Entre os Kaxinawa, a cena
de pânico se refere ao ser engolido, inteiro, pela cobra, que vai aos poucos triturando
os ossos, no processo de ingestão (Lagrou, 2007).
“Nonki” segundo Hananeri: Com rabo perfurante (parte
esquerda).
Um belo dia me surpreendi ao encontrar Hampitonki, este personagem mítico,
no meio do roçado. Fui para o ‘centro’, como dizem na região, um lugar longe da
aldeia, na floresta. Xawio tem um roçado lá e fui brocar junto com o filho de
Koconha e Garoto. Brocar é perigoso por causa das onças, escorpiões e cobras.
Todos ficam bem atentos a qualquer mudança nos barulhos comuns da floresta.
Num certo momento, o filho de Koconha, que estava ao meu lado, recua um pouco.
236
Depois levanta, com o maior cuidado, uma pequena cobra. Ela era cinza com
losangos pretos no dorso. Com uma mão segurava a cabeça, a outra, a cauda.
Hampitonki”, ele falou, encostando a pequena cobra contra a testa. Depois a
colocou novamente num lugar seguro, com o maior respeito.
Esses três ou quatro segundos significavam para mim um relâmpago de
sentido e presentificação na vida cotidiana de uma mitologia sobre a qual Hananeri
havia me contado. Não imaginava que algum dia me encontraria cara a cara com
uma das mais importantes entidades da cosmologia Ashaninka. O filho de Koconha
estava rezando para a cobra. Xawio me explicou que ele estava lhe dizendo: “eu não
vou te fazer nada, então diga para teus filhos também que não me mordam”.
Esculptura de palha representando Hampitonki: cobra pequena e quando enlarga dá para ver
seus desenhos.
Hampitonki é a mãe de todas as cobras. Era Hampitonki em pessoa. Pensei
que era uma cobra jovem porque era tão pequena, mas eles me asseguraram que ela
já era adulta, era Hampitonki:
237
A cobra Hampitonki
Outro episódio mítico ligado a Hampitonki me foi narrado por Xawio. “Uma
garota teria ‘queimado’ a jibóia, porque tomou banho menstruada. Depois ela foi
para a mata e escutou alguém assobiando. Três vezes. “Quem é você?”, perguntou,
“Eu sou Hampitonki, mãe de todas as cobras, não tenha medo, eu não faço nada,
os meus filhos. Você não pode dizer para a sua mãe que você me viu, se não nunca
mais me verá novamente”. Quando foi para a casa, a mãe dela perguntou o tempo
inteiro e de novo e de novo onde ela tinha ficado. Cinco dias ela ficava perguntando,
até que a moça falou: “eu encontrei Hampitonki”. A mãe pensou que a filha dela
estava namorando alguém. O pai dela era xamã, (lembra Xawio). Depois ela ainda
foi para a mata, mas nunca mais encontrou Hampitonki. Hampitonki ficou com
vergonha porque ela tinha falado para a mãe sobre o encontro delas.”
238
A origem da cobra e a origem da tecelagem
A ‘origem da cobra’ e a ‘origem da tecelagem’ constituem um só mito,
representando episódios ligados através das aventuras amorosas de um
personagem, um grande caçador Ashaninka, acostumado a andar na mata, um
homem que fazia muitas flechas. O caçador morava sozinho com a mãe e caçava
para ela. Ele estava à procura de uma mulher que pudesse satisfazer seu desejo, mas
também resolver sua probreza’. O mito começa com um encontro amoroso gratuito
que tem conseqüências inesperadas. Depois de ter relação com uma mulher sapo que
o distrai durante a espera na tocaia, seu pênis começa a crescer de forma desmedida,
incontroladamente. Desesperado, volta para casa com o membro enrolado na cintura
e se esconde no alto da casa, com vergonha, sem coragem de sentar com sua mãe no
jantar.
No dia seguinte, volta para a floresta na esperança de encontrar uma solução
para o tamanho incomum do seu membro. Encontra uma mulher caranguejo que,
não sem chamar sua atenção para a relação inapropriada na qual tinha se metido com
a mulher sapo, propõe ajudá-lo. Ela corta o pênis com sua tesoura (um tipo de
castração benéfica), dando origem a uma cobra. O homem volta feliz à casa e torna a
pendurar sua rede no alto, de alguma maneira, procurando algo neste lugar da casa e
acaba finalmente encontrando a mulher aranha, descrita no mito como ideal de
beleza Ashaninka: pequeninha, gordinha.
A aranha, Atxomongiro, personagem que ensinará à sogra do herói a arte da
tecelagem, tem em comum com o grande caçador a arte de tecer sua armadilha.
Apesar da tocaia do caçador não constituir propriamente uma armadilha, o
esconderijo tecido de talos finos permite ao caçador manter sua presença oculta e
aproximar-se da vítima sem ser visto. No caso da aranha, por outro lado, a teia
constitui a própria armadilha e a finura de sua tecelagem a torna quase transparente e
invisível para sua vitima. Assim como a mulher carangueijo que não pede nada para
compensar seu ato de bondade com o caçador, a aranha aparce como uma
239
personagem gratuitamente generosa, que se retira da cena assim que sua sogra
aprendeu a arte. Somente nesta hora revela sua identidade de aranha e se retira da
cena.
Pintura nas costas de Atxomongiro. Desenhos de Jomanoria.
A longa, mas para nossos objetivos importante narrativa do homem que deu
origem à cobra e trouxe para os Ashaninka a arte da tecelagem me foi contada por
Hananeri como se segue:
“Ele foi fazer tocaia, tu sabe (o que é) tocaia, feito de corda. Todo dia ele vai.
Todo dia ele vai. Todo dia ele vai. Aí ele falou né, aí acabou roupa dele, todinha. Ele
não tinha mais roupa. Ele foi para a mata todo dia, aí cortou envira (tipo de grama) e
amarrou no pau (pênis) dele. Ele foi para e remeteu nambu. Remetendo,
remetendo (remedar, imitar). Ele chegava de noite e deu para a mãe dele. Ele comeu,
dormiu. Bem cedo na madrugada ele já foi para a mata, ele foi todo dia.
A mãe dele dorme assim (embaixo), ele dorme mais em cima,... Mais em
cima né. Porque aquela aranha gosta de ficar aí, aquela pequenininha, branquinha.
Não está saindo da bundinha dela uma cordinha? Parece linha, aquela mesma né, ela
anda por aqui, está olhando batina aqui né. Tu vai ver, ela está aqui, vou mostrar
mais tarde.
240
Os dias passaram, ele foi de novo, de novo. Primeiro ele encontrou aquele
sapo, que canta hu-, hu-, hu-..., que canta no verão. o aquele que canta hu-hu-
hu, só uma vez: hu-... Aí encontrou, ele foi para a mata né, ele está fazendo tocaia, aí
escutou ela dizendo “hu”. “Cala a boca!”, diz (está na tocaia, é preciso estar
silencioso), “Se for mulher (que está fazendo esse barulho) eu vou ter relação com
ela!” ele falou: “Escutou né?” Depois remeteu com (remendou, imitou) nambu.
Viu mulher né, está saindo mulher bonita, baixinha, gordinha. Saiu.
“- Quem está falando comigo?” (Disse ela).
“- Eu não falei não”.
“- Foi tu?”
“-Não”.
“-Tu quer ter relação comigo? Então embora!”
Aí, teve relação com ela né. Teve relação, crescendo o pico dele ô, rapaz,
cresceu muito, assim ô, por causa daquela gia”, em português se chama “gia”,
aquela sapa. Cresceu o pau (pênis) dele. Ô grande demais assim ô, ele enrolou
como um cinturão (cinto), assim né, muito mesmo aí. “Puta merda”. Chega de noite
na casa da mãe dele, entrou em cima, aí ele mandou a mãe dele:
“-traz comida!”
Ele está com vergonha né. Depois ele foi para lá, procurou de tudo
(procurou uma solução), foi por lá, por todo canto, pra lá, o que fazer né?
Chorou muito. (Hananeri apresenta expressão séria). Aí ele disse:
“- Como fazer agora? (palavrão). Está ainda crescendo, está crescendo aí.
(palavrão)”.
Ele foi para o igarapé e viu a mulher carenguejo, aquela que entra (num
buraco) na pedra, aquela branca (branco como a aranha). A mulher caranguejo
viu ele e disse:
“-Fecha teus olhos”. Ele viu aquela mulher (caranguejo). Ele segurou. Está
com vergonha.
“- Deixa comigo, eu ajeito tu aí”.
“- Como ajeita?
“- Eu ajeito tu aí”.
“ - Como ajeita ?
“ - Eu ajeito.”
“- (Palavrão).”
“-‘Porque tu teve relações com aquela mulher sapo “gia”? Não é gente o, é
sapo. Eu ajeito teu, tu deixa?”
241
“- Eu deixo.”
deixou. Soltou assim (deixou seu pênis enrolado cair no chão). Ela tem
tesoura grande, aquele carenguejo: “- Que tamanho você quer?” Aí cortou com
tesouro. Virou cobra. Virou cobra o pênis dele. Zumm (onomatopéia), correu. Está
ficando bom agora né. Agora virou cobra o penis dele. saiu e arrumou com ela
agora. Agora está bom.
Ela disse: “- Cuidado, tu não vai fazer brincadeira com sapo, não presta, não é
gente não, porque cresce demais teu pau”.
Disse: “- Está bom”.
voltou, remeteu- se com nambu galinha né. Depois matou, deu para a mãe
dele. Aí ele contou para a mãe dele:
“- Mamãe, eu vi aquele sapo, comi ela, meu pênis cresceu...”
“ - (Palavrão), porque você estava fazendo isso meu filho?”
“- Eu não sei não.”
Depois chegava, passou o dia, dormiu mais em cima. Depois de noite,
chegava meia noite, ele viu uma mulher mais em cima, pequena, gordinha, bonita.
Bonita, tem vestido dela assim, tem tatanense
126
dela também né. Sentou assim:
“- Levanta!” Ela disse.
“- Quem está falando?” Escutou a mãe dele que estava dormindo.
“- Você é muito pobre, tu não tem batina não?”
“- Tenho não”.
“ - Eu vi você na mata, eu estou acompanhando você”.
“ - Eu estou andando assim né, eu não tenho não, minha roupa acabou.”
“ - Eu tenho batina.”
“- Tu tem?”
“- Tenho.”
“- Então me dá para mim.”
“- Vou te dar, está bom?”
“ - Está.”
“Eu tenho muitas batinas, está guardado na minha mala. Agora tu fecha teus
olhos.”
126
Tatanense: o pendente que decora o txoxiki, pesado colar que cruza o peito do homem
por cima da cushma.
242
Acabou, não tem mais não (ela sumiu). Disse:
“-Vou buscar, está?
“- Aonde tu vai buscar?”
“- Está aí.”
“- Porque está guardando aí né, para ca?”
Depois:
“- Fecha teus olhos de novo.”
Ele viu muitas batinas: pintadas, brancas e..., aquela preta né.
“- Qual tu quer? Escolha aqui.”
Ah, ele vestiu, vestido bonito.
ela disse assim: - Cuidado para dizer nada, quando tu a tua e, tu
não vai mostrar para ela não, não agora. Está bom? Tu chega de noite, tu vai vestir
com ela, ta”.
“- Está bom.”
Depois ele foi para a mata de novo, arremetando nambu galinha né. Flechou
muitos. Aí chegava com todos os nambus, ele comeu, levou bocado:
“- Mamãe, eu vou levar nambu para comer lá.”
“- Leva!”
Perguntou: “- Quem está acompanhando você filho?”
“- Nada não, eu estou conversando aí sozinho eu.”
- Quem está falando? Parece mulher, disse a mãe.
“- Ah, aonde tem mulher?”, disse o filho. “Pareceu boca dela que está
falando.”
“Nada não.”
Depois subiu de novo, viu ela, perguntou (a mulher aranha):
“- O que disse tua mãe?”
Disse: “- Quem está acompanhando você? E eu disse:- nada não”.
“- Depois tu conta, eu vou lá também.”
“- Está bom.”
ele vestiu (o kitarentse). (Mulher aranha): “- Agora tu vai descer quando
está clareando. Vai levar tua cushma”.
“- Está bom.”
243
De manhã, ele estava esperando clarear, desceu. Perguntou para a mãe
dele: “- Mamãe, tem macaxeira? Eu vou levar para...”
Viu batina dele: “- Ei, aonde arrumou esta batina?
“- Nada não mamãe, nada não, não vai perguntar não, depois vou lhe dizer.”
“- Está bom meu filho, eu acho bonito você agora.”
Foi caçar. A mãe dele ficou pensando onde ele aranjou uma batina (tão)
bonita. Chegava tarde ele, chegava tarde mesmo aí. Deu para mãe dele. Amanhã vou
dizer tudo para você.
“- Está bom filho.”
“- Mamãe tu me dá uma (macaxeira) também para dar comida?”
“- Está aí.”
Escutou falando em cima: “- Pode comer”. Ela comeu.
Disse: “- Amanhã eu vou lá ta?”
“- Está bom.”
“- Eu vou levar um vestido para tua mãe também, tá?
“- Está bom.”
Disse: “- Porque tua mãe fia tão pouco? Eu fio todo o dia e a noite!”
(Hananeri comenta): Por isso, a mulher fia também de noite (como a aranha),
porque assim está andando mais rápido. Aí depois, saiu de manhã. Está tecendo...,
elas dois. (o caçador não estava lá). Aí ela perguntou:
“- Como é teu nome?”
“ - Meu nome? Eu não tenho nome não.” (Hananeri ri)
“ - Não, eu quero saber! De onde tu vem?”
“ - Nada não, daqui mesmo.”
disse o filho dela: - Ah, porque tu perguntou isso mamãe? Deixa ela, tu
não vai perguntar.”
“- Não, eu quero saber, quero saber.”
- Deixa ela. Ela vem para ensinar vocês, porque vocês são muito
preguiçosas demais”.
Aí ela mostrou: “- Aqui, batina para você”.
“- Aaaah!” Ela vestiu. “- Está aí.”
244
Porque este kitarentse (Hananeri pega no tecido do seu kitarentse), grosso
demais né, essa dela parecia com, muito fina, fina demais (= muito), bonita, bonita
assim né. (Kitarentse feito teia de aranha, transparente, leve).
ela disse assim: - Está bom, está bom. Eu vou ensinar para vocês agora,
está?”
tirava-se piripiri né. - Está aqui, para fiar assim ô”. Mas aí, depois
disse: “Tem remédio, piripiri né, mastigando com boca, fazendo (Hananeri cuspe
ritmicamente), tem também urucum para passar aqui, vamos trabalhar assim,
trabalhando meio de noite até a madrugada”.
Ela vai dormir. Então, duas bolinhas de algodão dessas, dão dez batinas,
dez. Depois a mãe já estava fazendo, ela aprendeu com ela (aprendeu com a mulher-
aranha). ele foi caçar né. Viu que a mãe dele está aprendendo, né. Aprendendo
assim. Uma batina ela está fazendo (botando na) maleta de cana, né.
“- Uma batina assim?” Disse “- Pode colocar, tu vai ver amanhã.”
Encheu muito mesmo aí. De manhã ela reparou:
“Oh, está cheio aí. Muita cushma. Muita cushma. Muita cushma.”
Bolinha assim, para duas batinas. Ela queimou pedra, aqui não tem pedra
não. Aquela, bem branquinha. queimava, para ficarem lisas as mãos, lisinho
assim, para não ficar cascado. Sabe remêdio dela também né, sabe remédio.
Remédio bom.
depois: “- Vou ensinar tua mãe. Quando ela aprendeu, vou contar meu
nome. Não conheço mais, já deixei tudo para ti mesmo (já ensinei tudo). Vou
andando, ainda vou ficando, aonde tu vai, mora, eu fico mesmo aí.”
Tu viu? (Hananeri para mim) Aranha pequena, branquinha, bem pintadinha
assim, aquela mesmo. Depois, passou uma semana. Depois, passou uma semana.
Depois, passou uma semana. Aprendeu quase tudo, faz essa batina né, faz batina
com tudo. Ela perguntou: “Agora já aprendeu?”
“- Já!”
“Como era, aquele dia, você estava perguntando para meu nome, agora você
está aprendendo, ensinei tudo, porque tu sabe, meu nome é aranha.”
virou aranha. Está andando aí. Aí, ela chorou com ela, está com pena
dela... Ela deixava, aprendeu, por isso, eu digo: quem ensinou era aranha para fazer
batina né, aranha.”
Atxomongiro, a pequena aranha branca, é presença constante e apreciada nas
casas Ashaninka. O motivo da teia de aranha não aparece nos kitarentse, pois estes
245
constituem, por sua própria técnica de tecelagem, verdadeiras teias de aranaha. O
motivo, no entanto, é recorrente na pintura facial. Wenki Pianko, do Rio Amônia,
desenhou o motivo no caderno de campo e explicou seu significado durante uma
festa de piarentsi. A teia de aranha seria o “símbolo da recepção de energias
positivas”, pela teia de aranha desenhada no rosto, a pessoa captura para si tudo que
há de bom.
O motivo pontilhado supõe uma leitura atenta e informada do observador que
deve, na sua percepção imaginativa(Lagrou, 2007), constituir um desenho que é
apenas sugerido. O que se vê são pontos desenhados no queixo, nos maxilares
partindo dos cantos da boca, partindo do nariz nas bochechas e nos maxilares, acima
dos olhos e acima das sobrancelhas. A partir dos pontos, deve-se traçar caminhos na
imaginação que ligam estes pontos, primeiro em linha horizontal, depois seguindo as
linhas circulares que ligam as linhas horizontais, constituindo, deste modo, uma teia
de aranha.
Esta teia é uma armadilha implantada para capturar energias. Funciona como
um foco que traz a informação para o rosto. Constitui-se, deste modo, enquanto um
instrumento de captura do que de bom em volta da face. Funciona ao modo de
um ‘dream catcher’, que não é, neste caso, pendurado acima da cabeça do sonhador,
mas desenhado no rosto atento da pessoa acordada. A teia de aranha dos Ashaninka
funciona de modo oposto aos motivos labirínticos apotropaicos dos hindus
analizados por Gell (1998), onde a captura do espírito pelo desenho protege e
impede a entrada. A teia, pelo contrário, permite a entrada de ‘energias’, ao modo,
aliás, dos Kaxinawa, onde o desenho funciona como filtro a deixar entrar cantos e
banhos medicinais no corpo do iniciando. No caso da teia de aranha dos Ashaninka
vemos também a lógica de um filtro que capta o que está em volta, ao modo que o
fazem os sentidos, olhos, nariz e boca, capturando sinais em torno de si.
Nos motivos da teia de aranha reproduzidos em baixo se realiza um recorte
surpreendente. O que se vê é uma faixa com linhas entrecruzadas, onde a teia apenas
246
se sugere, não se completa. A faixa faz um recorte num desenho invisível que
continua além do suporte, ao modo dos motivos kaxinawa (Lagrou, 2007). Este tipo
de motivo surge nos carimbos esculpidos na madeira. No primeiro desenho (1),
Wenki Pianko fez questão de enfatizar o ponto central da teia. Quando este desenho
é transposto para a pintura facial, o ponto central é igualmente desenhado.
(1)
Desenho da aranha nanimonkiroi, feito por Jomanoria.
Desenho feito por Wenki Pianko de um carimbo para pintura facial representando
uma teia de aranha.
247
Desenho de teia de aranha através de cama de gato.
Quando o motivo da ‘teia de aranha’ contém linhas, estas novamente não
completam o desenho. O olhar perceptivo precisa completá-lo. O desenho mostra
exatamente o que é preciso para na mente se continuar traçando as linhas quase
invisíveis de uma teia de aranha.
(2)
(3)
No desenho reproduzido acima, à esquerda (2), o tripé a dica de leitura,
mostra o ponto de costura da teia. No desenho à direita (3), temos a impressão de ver
sugerida a costura, o encontro das linhas. Com cada motivo de teia de aranha, se
refere a outra aranha.
248
(4)
O motivo reproduzido acima (4) é usado tanto por mulheres quanto por
homens, enquanto os outros motivos de teia de aranha o usados principalmente
por homens. A aranha que deu origem a este último desenho de teia vive na taboca e
possui ligação especial com os Ashaninka. Por esta razão as “energias” que ela capta
são especialmente benéficas. Num mito resumido por Wenki Pianko, que conta a
origem dos animais peçonhentos, esta aranha age como aliada dos Ashaninka.
Wenki Pianko desenhando as diversas pinturas faciais da aranha: a direito uma das pinturas
faciais representando uma teia de aranha.
Em citação reproduzida abaixo Pianko resume a filosofia da pintura facial
como a filosofia da vida Ashaninka. “Os olhos são o reflexo do nosso pensamento, a
boca é o eco e a testa é o próprio pensamento. Estas partes do rosto são sempre
marcadas em qualquer pintura facial”. A explicação de que o rosto e a cabeça o
como antenas que captam as coisas a acontecerem no mundo realça a importância do
249
“motivo da teia de aranha”, que sintetiza de forma clara a idéia da relação entre
percepção e ação:
“Nossa cabeça é como o mundo e o mundo é como nossa cabeça. A testa é o
pensar. O pensar é a calma, a ação, adrenalina, susto e a reflexão”. Os Ashaninka
sempre agiram para manter esses três em equilíbrio, disse Wenki Piãko durante o
piarentse na casa de Txoitxoi. O velho Oriasatse repetia com ênfase as palavras de
Pianko para os outros convidados. Wenki continua: “Assim os Ashaninka sempre
fizeram para defender o que é nosso. Sempre pensar, pensar, pensar não é bom. Tem
que ter ação também. Fazer. Sempre fomos guerreiros. Às vezes é melhor se manter
escondido. A calma. No mundo é também assim. Se o equilíbrio é quebrado, o
mundo faz sentir isso, advertências, avisos. Isso um susto e pessoas vão fazer
algo
127
. Pensar, refletir é muito importante, mas não se pode esperar demais para
fazer as coisas num caso desses. Nossa cabeça é como o mundo e o mundo é como
nossa cabeça. Se há algo no mundo acontecendo, os Ashaninka sentem, sabem disso.
Em qualquer lugar onde algo está acontecendo. Nosso chapéu, portanto, o pode
ser fechado, tem que ser aberto. Isso é o que quatro pajés me disseram”, disse Wenki
Pianko.
O pai de Wenki, Antonio Pianko, grande liderança do Rio Amônia, camparou
o chapéu a um redemoinho, enquanto Wenki falava em antena. Ambas as imagens
invocam a agência do chapéu que capta e canaliza, como um funil, as informações
do mundo no entorno.
Retomando o mito da origem da tecelagem, podemos ver como ele apresenta
o herói como ‘pobre’, por causa da ausência do kitarentse. O homem se sente pobre,
apesar de ser um exímio caçador e apesar do fato da mãe dele sempre ter macaxeira
pronta para ele comer quando volta da caça. O que faltava para fazer dele um
homem completo era o próprio kitarentse.
127
A extrema produtividade do susto é também enfatizada na cosmologia Pirahã, onde o
susto equivale à ação, resulta em concepção, engravidando a mulher. Quando um ataque
predatório não mata ele produz. (cf. Gonçalves, 2001)
250
Esta situação é bem resumida no trecho do mito onde o herói encontra
finalmente a mulher aranha: “Depois de noite, chegava meia noite, ele viu uma
mulher mais em cima, pequena, gordinha, bonita. Bonita, tem vestido dela assim,
tem tatanense dela também né. Sentou assim: “- Levanta!” Ela disse. “- Quem está
falando?” ... “- Você é muito pobre, tu não tem batina não?” “ Tenho não”.
Na relação com os “índios brabos”, o kitarentse funciona também como fator
distintivo de “civilização”. Opera a oposição “com” ou “sem” roupa, uma oposição
reconhecidamente válida em grande parte dos grupos peruanos que vivem próximos
aos Andes, como os Piro, Matsinguenga, Amuesha etc e que tem servido
historicamente para distinguir grupos indígenas ribeirinhos de outros grupos que
habitavam os inter-flúvios (Lathrap, 1970).
Aqui esta oposição se retomada na narrativa reproduzida abaixo sobre o
encontro com os “brabos”, grupos supostamente pano (mas que podem também ser
Mantineri, cf. Gow, comunicação pessoal, 2006), que andam “nus(somente com
um cinto segurando o pênis, assim como era o caso do herói da história). Na
classificação regional, os Ashaninka se encontram, deste modo, a meio caminho do
estado “civilizatório” e sabem se utilizar bem da ambigüidade desta classificação.
A cushma, que no encontro com os índios nus” marca a civilização” dos
Ashaninka, possuidores da arte da tecelagem, acaba marcando sua “indianidade”, no
encontro com os seringueiros na cidade. Deste modo, em um bar em Feijó, Hananeri
aponta para o fato de ser “pobre”, mostrando seu kitarentse.
Na metrópole, por sua vez, o mesmo kitarentse representará a maior
“autenticidade” dos Ashaninka frente aos outros índios que adotaram a roupa do
branco, por “falta” de roupa própria. Em conversa sobre a centralidade do kitarentse
na vida ashinanka, Francisco Pianko chamou atenção para seu valor não somente
simbólico mas efetivamente econômico: “Nossa roupa é a mais cara das que se
encontra em Marechal Taumaturgo: em Rio Branco um cushma custa 300 Reais (em
2008), somando-se os txoxiki, a bolsa e tudo mais, fica uma roupa bem cara”.
251
Interessante notar que vários povos da região se situam ainda a meio caminho
entre os Ashaninka e os “brabos”, por possuírem a arte da tecelagem sem usá-la para
fabricar cushmas, de uso cotidiano. Deste modo, entre os Kaxinawa e Culina, por
exemplo, as mulheres usavam saia, enquanto os homens usavam somente o cinto. A
cushma surge entre os Kaxinawa somente como roupa ritual. Com a introdução da
roupa do branco, no entanto, as mulheres kaxinawa deixaram de usar a saia, o que
não acontece entre as Culina.
O fato de termos em um mito a junção de dois temas intimamente ligados
convida à reflexão sobre o caráter “civilizatório” ou estético da introdução da roupa.
O herói está a procura de algo: de uma mulher para namorar?, para casar?, para fazer
kitarentse para ele? Estes temas andam evidentemente de mãos dadas. No entanto, a
primeira mulher que encontra, a mulher sapo, era bonita porém extremamente
perigosa: fez seu nis crescer de modo desmesurado. Este evento está na origem
das cobras. Esta explicação confirma a afirmação de Matxontse de que quase todos
os motivos representariam o pênis, enquanto a maior parte dos outros informantes
associa os motivos à cobra, por meio do arco-íris.
Se fossemos seguir o raciocínio de vi-Strauss, este mito seria uma
manifestação exemplar da lógica da passagem do estado de “natureza” ao estado da
“cultura”. O homem está à procura e namora primeiramente a mulher errada,
excessivamente diferente e, portanto, perigosa, o que faz seu pênis crescer ao ponto
de se tornar um verdadeiro transtorno. Não pode ser um acaso total que depois da
‘castração’, ou melhor, depois da redução ao tamanho “culturalmente apropriado”
do membro viril, ocorra a descoberta do kirarentse. Como veremos adiante, a
mulher ashaninka tentará seduzir o “brabo” tirando a cushma.
Outros mitos ameríndios visualizam o excessivo investimento no órgão
sexual dos seus heróis, através do tamanho desmesurado que este adquire. Deste
modo, entre os Piaroa, o irmão do Deus criador dos humanos, Wahari, ele mesmo
solteiro, namora as esposas de seu irmão, que adoram seu enorme pênis, que se torna
252
o brinquedo preferido das mulheres. Wahari se vinga e ‘castra’ seu irmão, reduzindo
o pênis ao tamanho natural, e dando origem à primeira menstruação.
Entre os Kaxinawa, outro personagem mítico, Nawa Paketawã, caracterizado
por suas aventuras amorosas transgressoras, tem seu grande conhecimento e
investimento no órgão sexual expresso no crescimento desmesurado dos seus
testículos. Estes testículos serão, por sua vez, seu tendão de Aquiles, quando os
pretensos genros rejeitados lançam flechas minúsculas nestes e, desta forma, o
matam.
Para o herói do mito ashaninka, o tamanho desmesurado do pênis enrolado no
pescoço incomoda, causa vergonha e funciona como índice de uma aventura
amorosa desastrosa ou inapropriada. Depois deste encontro, improdutivo em termos
sociais, mas produtivo em temos cósmicos, pois origem às cobras, surgem
encontros com seres protetores que o trazem a “cultura”, isto é, a medida certa das
coisas ashaninka: o tamanho do pênis, a roupa a cobrir o corpo “pobre”.
Apresentaremos, agora, alguns contextos em que aparece o kitarentse,
procurando ampliar seu significado. Comecemos com um rememorar do encontro
entre os Ashaninka e os índios isolados, que põe em relevo o significado do uso da
cushma, kitarentse. No contexto desta narrativa, a mulher Ashaninka, diante do
índio brabo, retira o kitarentse e se oferece sexualmente ao inimigo, temendo ser
flechada. Ficando também nua, se equivale ao índio brabo, anulando a diferença
essencial que o kitarentse produzia no início da interação. E, deste modo, nua pode
mesmo casar e se associar com o índio brabo, fazendo uma verdadeira aliança,
quando seu irmão a visita na praia onde habita. Vejamos em mais detalhe a
narrativa:
“Uma viúva estava dormindo na praia. Ela ouvia assobiar três vezes. Ela
estava pensando: isso é um caboclo brabo, o que fazer agora para não ser flechada?
Ela estava sozinha, vivia sozinha na praia, um pouco afastada da aldeia. Era viúva,
mais velha, ninguém a queria. Ela estava pensando assim. Quando ela viu o brabo,
253
tirava a cushma, e nua andou para ele, abriu as pernas, disse: vamos ter relação! O
brabo correu embora. A noite seguinte aconteceu a mesma coisa. Numa dessas
noites a mulher trouxe aipim cozido e botou no chão; ele comeu da mandioca (a
mulher estava amansando ele). A próxima noite ele trouxe mutum, porco da mata...
Ela grelhava a caça no fogo, como fizemos aqui em cima (numa expedição de
peixe). O caboclo ficava sentado e cantava a noite inteira para ela.
A irda viúva se aproximava e cheirou a carne. A viúva estava mentindo
que era ela que tinha matado os animais com o terçado dela. Ela dava um pouco de
carne para a irmã dela. A viúva Ashaninka e o caboclo brabo comeram juntos
daquela carne (comer junto significava casamento). Ela abriu as pernas e desta vez,
o caboclo queria sim... Através da irmã, o irmão soube do fato ocorrido e ia visitar a
irmã dele na praia. O caboclo brabo fala como os Kaxinawa, a palavra para
mandioca é a mesma, então eles se entenderam.
O caboclo viu o irmão da viúva se aproximando e fugiu (era brabo mesmo).
Depois o irmão falou: não, eu não vou te fazer nada. O caboclo abaixava o arco e
suas flechas e se aproximava. Eu não vou te fazer nada, disse o irmão, apontando
para o fuzil que estava escondido em baixo do kitarentse dele. Quando o caboclo viu
isso, ele correu, mas voltou mais tarde e perguntou para o irmão -ele tinha aprendido
a língua- se ele podia casar com a irdele. Ai, houve uma troca de mulheres, os
Ashaninka moravam e se casaram com os brabos e vice-versa, mas ele não podia
usar mais flechar nos Ashaninka. De acordo, tá bom.
Durante o inverno os caboclos brabos se foram e deixaram para trás as
mulheres Ashaninka. Eu não sei porque, talvez achem as mulheres que mostram
tudo, as nuas, mais interessantes do que mulheres com kitarentse. Os caboclos
brabos têm algo atado no pênis deles, mas as mulheres não usam nada. Nem tem
algo para atar né? (Hananeri ri).
Aquela mulher era a primeira que amansou um caboclo brabo. Depois quando
eles aprenderam um pouco a língua teve uma troca: três homens Ashaninka foram
254
para a mata. Contaram depois que tinham muitos caboclos brabos, uma aldeia
grande, muitos estavam andando por lá. Aqueles três Ashaninka tiveram medo,
porque alguns queriam matar eles. ‘Não’, disseram os outros caboclos que já tiveram
contato com os Ashaninka, que queriam um acordo porque estavam com medo de
estar diminuindo que os madereiros Peruanos estavam matando eles. Não faça
isso, se não os parentes deles vêm e vão matar todos nós se a gente mata esses três.”
apontamos anteriormente para o lugar central que o kitarentse ocupa no
modo de ser Ashaninka. Arriscaríamos dizer que o kitarentse não é apenas um estilo
de ser Ashaninka, mas é um estado do ser, no sentido das implicações sócio-
cosmológicas que estão contidas no kitarentse, não reduzindo, portanto, seu
siginificado à concepção de “roupa”. O kitarentse produz literalmente a diferença
Ashaninka no mundo. É a partir de sua apresentação/representação que se têm
acesso aos sentidos do que significa o ser e o estar naquele mundo. Em outras
palavras, o kitarentse denota uma identidade Ashaninka, mas não produz uma
identidade contrastiva simples, baseada neste sinal diacrítico que estabelece uma
diferença entre os Ashaninka, os outros índios e os brancos. Ao vestir o kitarentse as
pessoas se tornam’ ou ‘viram’ Ashaninka, apontando para esta possibilidade do
vestir como uma forma de se ter acesso a esta concepção de mundo. Exploremos
mais um pouco o uso do kitarentse e suas significações.
O dia em que meu kitarentse ficou pronto fui convidado a comer feijão na
casa de Tapi. Assim que cheguei lá, a mãe de Tanta, que estava presente, comentou:
Ashaninka Kamparia! Agora você é um da gente”. O mesmo episódio foi
presenciado quando observei que o Culina casado com uma Ashaninka vestiu um
kitarentse para se deixar tirar uma foto. Os Ashaninka riam e com ironia diziam:
“virou Ashaninka”.
Kokonha disse que quando Pawa estava cuidando de tudo, quando explicou
como fazer um kitarentse, os Culina e os outros índios não prestavam atenção, não
queriam fazer isso. Pawa, percebendo a desatenção dos demais índios disse: “Está
255
bom, vocês então vão morar atrás”. Kokonha conclui que, por este motivo,
existem por um lado os índios sem roupas, os nus, que moram dentro da mata e são
chamados ‘caboclos brabos’ e os Ashaninka, que usam o kitarentse e habitam as
margens dos rios.
Na cidade de Feijó, presenciei Hananeri a dizer em um bar a seguinte frase:
eu estou usando um kitarentse, porque eu sou índio, eu sou pobre.Neste contexto
Hananeri usava do atributo de estar de kitarentse para se definir como índio,
evocando daí a significação de ‘pobre’, desejando com isso beber cachaça de graça,
que deveria ser paga por alguns dos freqüentadores que estavam ali. Hananeri, ainda
comentando sobre a importância do uso do kitarentse como definidor de indianidade
na cidade de Feijó, diz que os outros dois Ashaninka vestiram o kitarentse, se
pintaram de urucum e se apresentaram para o governador do Acre, recebendo
dinheiro por isso.
Neste contexto, Hananeri queria, por um lado, enfatizar o respeito que os
Ashaninka recebiam dos brancos, quando usavam o kitarentse na cidade e, por
outro, acentuar este aspecto agentivo, por assim dizer, do próprio kitarentse, que
produzia relações sociais, socialidade e até mesmo dinheiro. Meirelles nos informou
que nos anos 70 os Ashaninka viajavam apenas uma vez por ano para Feijó, de
varejão (barco sem motor) para vender feijão. Meirelles comenta que ficava
impressionado como os Ashaninka eram uma atração na cidade, ressaltando a
importância da cushma como fonte da diferença e de beleza.
Chegava à aldeia de Hananeri um boato de que os Ashaninka tinham flechado
Meirelles, sertanista que era o responsável pela área de proteção etno-ambiental no
rio Envira, que proteção aos índios arredios na fronteira com o Peru. Diante desta
notícia, Hananeri comentou o episódio da seguinte forma: “eu não te contei sobre
aquela aranha (mito que narra como os Ashaninka aprenderam a fiar o algodão para
fazer o kitarentse).” Hananeri associa, assim, o aprendizado de fiar o algodão e,
conseqüentemente, a fabricação do kitarentse, ao ser “civilizado”, estabelecendo
256
assim uma gradiente de diferença entre os “índios brabos” - que andam nus - e os
Ashaninka. Queria afirmar, portanto, que as flechas disparadas contra Meirelles
provinham dos “selvagens”, que andam nus e estão no interior da mata. Em outras
palavras, o kitarentse era a prova de que os Ashaninka não haviam flechado
Meirelles.
A importância do kitarentse para a identificação Ashaninka nunca me foi tão
claramente apresentada. Gow (2006), por outro lado, relata o boato que corre na
fronteira entre o Peru e o Brasil de que índios Mantineri tirariam seus cushmas para
se tornarem temporariamente “brabos”, quando querem sitiar colocações de
seringueiros ou ribeirinhos.
Para os Ashaninka, o fato dos demais índios, vizinhos seus, adotarem as
roupas dos brancos não significa que usem “roupa”, no sentido Ashaninka do que
significa o kitarentse. Para os Ashaninka, os outros índios, quando vestem calças,
blusas e sandálias dos brancos, não estão vestindo algo comparável ao kitarentse,
pois os Ashaninka, ainda assim, os consideram nus. A significação de “estar nu”
deriva da oposição do que significa estar vestindo kitarentse.
Portanto para os Ashaninka do rio Envira, os Culina, os Kaxinawa e os
chamados índios isolados (regionalmente chamados de “caboclos brabos”) estão
sempre nus. E, paradoxalmente, na percepção dos habitantes de Feijó, os Ashaninka
seriam aqueles mais índios justamente por usarem sua roupa especial, o kitarentse,
fato que os faz mais índios”, em compração com aqueles que usam roupas de
branco. Do ponto de vista dos brancos, os Ashaninka seriam os menos civilizados
da região, justamente por usarem o kitarentse, enquanto do ponto de vista
Ashaninka, eles seriam os mais civilizados”, justamente pelo mesmo motivo, ou
seja, o uso do kitarentse.
257
Durante a primeira semana do trabalho de campo, Ateringa, da comunidade
Riozinho, já enfatizou que os Ashaninka eram “os únicos
128
com roupas bonitas na
selva”. Ateringa conta que um Ashaninka estava observando de modo escondido um
pássaro que estava empilhando algodão e que, em seguida, colocou dois palitos
129
em cima da pilha. Pronto, um pano foi feito. Depois o Ashaninka ia imitar
130
o
pássaro: empilhar tudo, dois raminhos e o pano foi feito. “Como na fábrica”, disse
Ateringa e continuou: a casa inteira ficava cheia de pano, era cortar como na
fábrica. Depois que ensinou, o pássaro foi para o céu.”
Quando os Ashaninka compram panos industriais, não apenas prestam
atenção à compatibilidade das linhas e desenhos, de acordo com a própria concepção
Ashaninka. Até mesmo a fabricação dos panos industriais, ou melhor, o modo
ashaninka de concebê-la, parece muito mais com a fabricação dos panos
“mitológicos” do que com o modo de fabricação tradicional: uma mímese completa.
Carijó conta uma versão do mito da origem do kitarentse (traduzido
simultaneamente por Raimundinho, o professor da comunidade de Simpatia) que
liga a aranha com o pássaro:
“Antigamente não tinha batina, a gente andava nua, (as genitálias) eram
amarradas com cintura e um cesto na cintura para tampar aquele negócio (pênis).
Mulher mesma coisa, andava nu, não tinha batina, não existia. Os filhos moravam
separados da casa dos pais, assim. Separado da casa, porque o filho da gente não
pode ver a e (nua), sabe. Aí, moram separados nas casas. Ele também morava na
casa dele. Sozinho. Andava nu, não pode nem andar assim, todo mundo com pai,
com mãe, todos nus, né. Aí, ele ficou sozinho na casa dele. Depois vai indo, passou
128
As mulheres dos ”Mandjiha” (Culina), por exemplo, tinham “algo pequeno”para
cobrir a região do púbis.
129
Os dois palitos poderiam ser uma referência ao tear.
130
Que os pássaros façam arte é bem deleuziano: uma espécie de pássaro na qual
variações na quantidade de penas azuis. Quanto menos este pássaro contém penas azuis,
quanto mais ele vai decorar, tecendo o seu ninho com elementos azúis para atrair uma
fêmea a nele colocar ovos.
258
tempo pensando como é que ele ia viver andando vestido, né. E antigamente tinha
aquele, como é, aquela aranha. Aí, ele ficou na casa sozinho, aí ele... e depois (a
aranha) gritou (chamou): ”Hé?! O que está fazendo aqui? (O rapaz responde:)
“Rapaz, eu estou triste aqui. Estou sem roupa, estou sem nada. Tenho nada para me
vestir. “Ahhh, sim...”, (respondeu a aranha), “Fecha os olhos!” , foi lá, foi pegar.
(A aranha disse:) “eu tenho aqui. (ele, o rapaz Ashaninka) fechou os olhos dele.
(A aranha) trouxe, arrumou a gente (um kitarentse). (A aranha:) “Ah, tu não tem
roupa não? (O rapaz) “Não, não tenho.” (A aranha) tirou roupa para ele. Tinha
maletinha, cesta dela. Tirou roupa, batina, né, colocou e deu para ele. Ele vestiu. Ele
vestiu e aí, o..., ele dividiu a mãe, pai, o batina. Vestiu, pronto. “Tu não pode dizer
nada não (sobre nosso encontro, tinha dito a aranha).” daqui a vinte dias pode
dizer algo (para os outros). (se conseguir isso, dizer nada sobre o nosso encontro
durante vinte dias) vou ensinar como fazer umo kitarentse. Antigamente não era
preciso tecer, nem fiar. pegava algodão, tirava o caroço e colocava na cesta.
Depois formou (se um kitarentse) todinho (sozinho), ficou tudo feito (de repente).
Agora muito trabalho. Tem que fiar, tem que tecer, tem que pintar, como é agora.
Antigamente não era assim. Era tirar o caroço do algodão, (a aranha) embrulhava
(como aranhas fazem com suas presas) todinho, enfeitava, colocava (na mala) e
manhã (seguinte) transformava tudo feito. Desenhado assim, todo ficou feito.”
Nota-se que nesta versão a aranha é também responsável pela pintura nos
kitarentse. Tanto para os Ashaninka quanto também para Deleuze
131
, a aranha sabe
“criar”. Os Ashaninka vão ainda mais longe: se uma aranha pega um inseto, ela
embrulha a presa e assim, a presa é transformada também em aranha. A presa “vira
um deles”, como Jomanoria explicou certo dia. Assim como fazem aos antropólogos
que trabalham entre e com eles: oferecem um kitarentse, o artefato por excelência da
131
Como aponta Manuel Delanda na sua conferência (2.5.2007) “The Philosophy of Gilles
Deleuze” na European Graduate School EGS.
259
identidade Ashaninka e nós nos transformamos (parcialmente, é claro) em um deles.
Se “embrulhar” com o kitarentse recebido évestir a camisa” dos Ashaninka. O que
se segue nesta versão do mito, explica porque a aranha foi embora e deixou os
Ashaninka novamente nus: não se pode levantar a voz para alguém e nem se pode
mexer nas coisas de outra pessoa. Era um passarinho quem ensinava novamente,
desta vez para uma criança, como enfiar e tecer. Karijo continua:
“Depois o rapaz (que estava tendo este caso com a aranha) foi caçar e a mãe dele
escutava chorar um menino em cima (no tecto da casa do filho dela). Tinha uma
cesta grande na qual aquela aranha permanecia, gente ficou dentro, ele aramou e
pendurou a cesta quando foi caçar na mata. Quando ele voltou, estava com fome. A
mãe dele chegava por perto, ele olhou assim e disse: ”mãe, o que você está fazendo?
Vai embora mamãe! Estou conversando sozinho aqui. Não tem gente aqui não.” Aí,
a mãe dele voltou mais tarde e olhou para cima: ”o que está pendurada em cima,
para que (serve) esta grande cesta lá? Talvez tenha gente em cima.” Aí, o pai do
menino brigou com a mulher dele: ”porque tu olhou lá? Você não pode mexer com
as coisas do outro,..., não pode. Deixa isso ali, tuas coisas estão aqui. A mulher
estava curiosa demais: Eu vou procurar quem está chorando naquela cesta grande lá.
Ela desatou aquela cesta, desarranjou todinho e ela abriu. Abriu e viu muita gente
sentado na cesta. gritou, disse “que aranha grande aqui!” O rapaz: como é, sumiu
todinho. sumiu, pronto, aí, cadê? O rapaz ficou só, como é (perguntando para a
palavra em português), aquela tela (ele queria dizer teia”, mas falando em Deleuze,
faria sentido; tem a ver com “criar”, como os Ashaninka também tecem motivos nos
kitarente ou desenhos com o jogo “cama de gato”), ficou aquela teia, não sabia
para onde ela (a aranha) foi, tinha mais nada. Ela desceu, como é? A aranha foi atrás
do marido dela, até encontrar ele quando foi caçar na mata. Encontrou ele e disse:
“Rapaz, tua mãe me assustou: ela gritou! Sumiu todinho, batina, sumiu todinho, não
tinha mais nada, nenhuma batina. Todo o mundo novamente nu. (A aranha) chegou
e disse: Tua mãe me assustou, gritou comigo, assustei, eu sumi. Agora não vou
mais aparecer para você não. Agora vai dar trabalho, essa batina tu vai fazer agora.
260
O pai falou ainda para a esposa dele: porque tu fez isso? Não era para isso acontecer
não, para mexendo nas coisas dos outros! E agora? Todos nus. Não tem mais jeito
não. Aqui tinha outra, chama pipira, assim, aqui tem xampipira. Aí, ele sabe fiar,
aquele, antigamente passarinho era gente. fiou aquele algodão. Foi menina para
aprender, criança para enfiar algodão, e aprender tecer. Quando chegou o pai do
menino que estava com a aranha ele disse para a mulher dele; cadê a roupa? Sumiu
todinho! Porque tu olhou naquela cesta em cima? Eu não mandei para olhar não,
não pode entrar na minha casa e mexer nas minhas coisas. eu, tem que respeitar
minha casa. Porque tu não quis entender? Vai indo e pensando como é que vamos
fazer. Aí teve aquele pipira, aí, para aprender a tecer. E foi ensinando tecer. Tecer aí.
Vai indo e vai aprendendo como está agora: fiar primeiro, vai dar trabalho, enfiar
primeiro e depois tecer. Depois pintar, tirar aquele casco de iguano, pinta, aí pega
aquele barro preto, para poder ficar bem preto.
Segundo Jomanoria, ampexi foi quem ensinou aos Ashaninka a fazer o
kitarentse. Ensinou um “remédio” (ampexi) para se acostumar a trabalhar com
algodão e para poder enfiar mais rápido: “aí, ela fez remédio para ela, passou na
mão dela e num instante ela ficou, parecia máquina, a mão dela, fazendo linha. Aí,
começou fazer corda e aí fizeram, e aí kitarentse.
Encontramos mais uma referência ao processo industrial de tecelagem,
“parecia máquina.”. Peermanece a pergunta sobre o porquê de apenas mulheres
usarem hoje em dia panos industriais, ao contrário dos homens, que continuam a
usar o kitarentse tecido “tradicionalmente”. Alegar que a razão para tal fora o desejo
das mulheres por um pano mais leve não é adequado aqui.
Quando pedem panos, desejam aqueles que tenham o algodão mais grosso
possível. E mesmo se considerarmos que o kitarentse mitológico foi feito pela
aranha, as mulheres Ashaninka, de fato, não gostam da transparência dos panos
industriais mais baratos. O fato é que os homens dependem das mulheres para que
possam andar adequadamente vestidos. Este é, obviamente, um elemento que pesa
261
na complementaridade dentro o casamento. Um homem que anda com um kitarentse
novo expressa que é amado e por isso acham tão grave quando, por exemplo, rasgam
acidentalmente um kitarentse novo.
Falando em ser amado, chegamos finalmente ao capitulo que trata da
pusanga.
262
Capítulo 5. Pusanga: amor e/é guerra
Pusanga pode ser definido como um tipo de magia que afeta a energia sexual
do outro/a, com a intenção de seduzi-lo/la. Quando tratamos sobre a imortalidade,
vimos que o pensamento Ashaninka enfatiza, a todo o momento, o desejo de estar
livre das doenças e da morte.
Menino e minina Ashaninka segurando a esculptura de palha chamada: o esconderijo do
tempo.”
Esta ênfase aponta positivamente para a forte vontade de viver dos
Ashaninka, evidenciada em seu estilo de vida, como nos gritos de alegria
132
que
proferem a cada manhã, ao nascer do sol, ou quando brincam de fazer “correrias”
atrás das moças solteiras. Sentam-se em um banco especialmente construído para
contemplar a aurora, como se recebessem uma “benção” do sol, virando o dorso
133
132
Os mesmos gritos, o mesmo entusiasmo que organizam o trabalhar junto, ver Overing
(1991) em relação aos Piaroa.
133
Quando bebem ayahuasca viram-se para onde o sol vai nascer.
263
para o pôr do sol, para o dia que se foi, esperando o outro dia que virá, meditando
sobre as coisas que irão fazer neste dia que se seguirá, desejando ter o controle total
sobre os planos e as ações neste mundo. Esse controle sobre as ações parece
expressar este “desejo de viver” Ashaninka que, em seu aspecto erótico, traduz-se no
conceito de pusanga, percebido como magia sexual.
O episódio de sedução descrito acima, quando a índia retira seu kitarentse
diante do índio ‘brabo’, pacificando-o, seduzindo-o, conquistando-o, pode ser lido
também sob a chave da pusanga, quando outras substâncias
134
entram em cena
produzindo uma agência no comportamento do outro. Nesse caso, não se trata
apenas de uma “expressão da vontade Nietzschiana” de viver, mas sim de querer,
literalmente, conquistar a própria vida, ativamente: “conquistando”, “amansando” e
“seduzindo” o “brabo”.
Os Ashaninka são regionalmente conhecidos por ter controle sobre a magia
da pusanga. De vez em quando, pessoas da cidade compram alguma substância
afrodisíaca produzida por eles. Hananeri conta que foi, ele mesmo, procurado por
um Feijoense, que lhe relatou seus problemas de impotência, demandando a ele uma
poção magico-curativa. Hananeri preparou, então, o elixir, produzido a partir de uma
casca de árvore. Advertiu seu paciente que ele deveria pagá-lo após o resultado
obtido, o que demonstra a confiança de Hananeri na eficiência da pusanga. O
homem pagou mais do que o combinado, trinta reais, e ainda deu de presente uma
garrafa de cachaça, tamanha era sua felicidade e confiança na pusanga preparada
pelos Ashaninka.
Neste sentido, os Ashaninka, ao confiarem inabalavelmente nos poderes da
pusanga, reafirmam uma lógica da magia, da conquista que determina as formas
como desenvolvem as relações sociais, o que pode ser descrito também como a
‘socialidade’ Ashaninka. Deste modo, não apenas os índios “brabosmas também
134
Pusanga pode ser usada diretamente na pele, misturada ao urucum, ou nos artefatos:
txoxiki, aximarentsi, thatani, tipóia e kitarentse.
264
os brancos e até mesmo as prostitutas de Feijó devem ser conquistadas”. No caso
das prostitutas, Hananeri diz que, mesmo pagando pelos serviços sexuais, elas
devem ser “conquistadas”, para que desejem fazer sexo com ele. A lógica descrita
por Hananeri expressa, definitivamente, o sentido da pusanga para os Ashaninka:
“porque essas duas jovens lindas prostitutas estão neste lugar justamente no
momento que eu também estou e querem alguma coisa comigo, um velhinho
feio?
Tive conhecimento de que algumas Ashaninka recebem dinheiro para prestar
serviços sexuais, em um botequim situado na beira do rio, em Feijó. Estas mulheres
ficam sentadas em seus kitarentse ou vestem simplesmente um mini-short. Este
contexto da prostituição feminina Ashaninka foi-me descrito como uma caçada. As
mulheres poderiam estar ali esperando “caça” ou aguardando por um “caçador”.
Esta metáfora da caça para ao ato sexual expressa o princípio da predação, explícito
no conceito de pusanga. As mulheres consideram que a aquisição de sêmen é
saudável
135
, como dizem, “vitamina”, que elas retribuem aos homens na forma de
caiçuma durante o piarentse
136
.
Partindo desta concepção do que significa uma relação sexual, um Ashaninka
me relatou o seu primeiro encontro sexual. A tônica de seu discurso não era sobre o
prazer ou a aventura, mas sim sobre o estado de fraqueza que lhe acometera depois
de tal aventura. Perdera muito “sangue”, ficando muito “fraco”. Alega ter quase
135
Esta questão sobre a “prostituição” das mulheres Ashaninka parece ser um destes temas
controversos nos debates sobre ética e Antropologia, que envolvem concepções complexas
sobre moralidade, saúde e transmissão de doenças. De todo modo, o problema das doenças
sexualmente transmissíveis afeta muito os Ashaninka do rio Envira, embora, felizmente,
ainda não tenha sido detectado casos de AIDS entre eles.
136
A saliva é a secreção feminina que está sendo retribuída para os homens (em troca de
seu sêmem) através da caiçuma. A caiçuma engrossaria o sêmem. Não se faz uma distinção
entre esperma e sangue, ambos também “acabam”. Preparando a caiçuma, as mulheres
assopram”, disse Jucelino literalmente, fazendo ou não a ligação com o assoprar dos
deuses (significando na maioria das vezes uma benção ou transformação). Se a caiçuma é
diretamente ligada ao sêmen, o assoprar das mulheres pode apontar para a ejaculação,
considerada também uma benção.
265
morrido, de tão significativa a quantidade de sangue perdido, sentindo fortes dores
de cabeça, durante os dias que se seguiram à experiência.
Esta lógica acentua que, muito embora a relação sexual possa colocar em
evidência o papel simultâneo do homem como presa/predador, ela aponta também
para uma assimetria importante entre homens e mulheres. Uma assimetria que diz
respeito ao papel de “presa” no ato sexual, associado à perda de sangue masculino, o
que faz com que este homem conclua “que somente poderia existir prostituição
feminina.
A lógica da magia amorosa
Para os Ashaninka, podemos dizer que a pusanga pode tanto facilitar uma
conquista amorosa como também um divórcio. Aquele que abandona seu parceiro
não é culpabilizado, uma vez que foi seduzido, isto é, alguém usou pusanga para
atraí-lo. Aquele/a que usou pusanga poderia ser acusado/a de “feitiçaria” por
aquele/a que é abandonado. Se cada abandono ou separação engendra uma reflexão
que envolve a lógica da pusanga baseada na “irresistibilidade” da sedução, podendo
derivar em acusações de feitiçaria (alguém enfeitiçou meu/minha pareceiro/a), os
Ashaninka não ignoram de todo a lógica da própria culpabilização do self pelo
abandono, podendo gerar questionamentos do tipo “ele foi embora porque me achou
feia/o, não gostou mais de mim pelo que eu sou.
A lógica da pusanga demonstra alguma vantagem, visto que ambos os
parceiros, e aqui reside uma diferença importante entre estas lógicas, podem usar o
argumento da irresistíbilidade” da pusanga, como razão de abandono. Isto é, algo
que está fora do meu controle, está além da minha vontade. Presenciei várias
separações durante o trabalho de campo, mas nunca ouvi qualquer discussão em voz
alta entre casais (exceto no contexto do piarentse). Por esta razão, considero que a
266
lógica da pusanga ajuda os Ashaninka, seja no plano existencial seja no plano de sua
vida social, na expressão de seu estilo de vida onde se valoriza o autocontrole”, o
“silêncio”, o estar “escondido”.
Deste modo, a lógica da pusanga expressa plenamente o “senso de
comunidade” Ashaninka
137
. Interessante observar que o conceito de pusanga
poderia, à primeira vista, atentar contra o senso da comunidade dos Ashaninka, ao
instaurar o evento, o acontecimento, desestabilizando a obsessão Ashaninka pelo
controle. Porém, posta como algo irresistível e incontrolável, a pusanga pode regular
socialmente a “tempestade e vontade” (“Stürm und Drang”
138
) dos amantes. A
pusanga controla o amor, transformado em raiva e ciúme, emoções consideradas
perigosíssimas ao ideal da proibição de endo-assassinato
139
.
Aliás, ter ciúme ao inimigo o direito de avançar: se seu parceiro mostra
ciúme frente aos avanços de um terceiro, isso conferiria, na concepção Ashaninka, o
direito a esse terceiro para começar o namoro sem pressão social negativa da
comunidade. Isso quer dizer que o ciúme é considerado perigoso para o senso de
comunidade, uma forma de punição e por isso o direito àquele(a) que é objeto da
disputa a possibilidade de escolha: permanecer com o ciumento(a), que é
considerado um perigo para a comunidade, ou ficar com aquele terceiro, que apenas
mostra interesse.
Xawio, uma mulher adulta Ashaninka, definiu o conceito de ciúme afirmando
que “índio é assim mesmo”. Parecia querer dizer que todos os Ashaninka
incorporavam, através da pusanga, a máxima do ciúme: “mesmo um ciúme que não
tem base na realidade pode matar aquele(a) que você mais ama”. Pusanga promove,
137
Ver Overing (1991 p. 7-34).
138
“Tempestade e vontade” marca os sentimentos de uma época na história da arte
(começo do culo XIX), que definia um estilo determinado pela idéia que se devia seguir
as emoções e as aspirações.
139
O que vale para a proibição da prática da endo-guerra entre comunidades Ashaninka,
vale ainda mais para a proibição do assassinato entre pessoas Ashaninka (ver Cassevitz
1991a).
267
então, um entendimento e controle potencial das emoções, contribuindo, assim, para
a harmonia comunitária. A pussunga, como um mediador de emoções perigosas, é
reforçada pela regra social de não poder ter ciúme. A carte blanche que é dada ao
rival quando o ciúme surge facilita um trânsito mais fluido entre pessoas, a troca de
parceiros. Assim, a gica do ciúme associada à pussunga parece atentar contra o
amor obrigatório e às obrigações sociais instauradas pelo ato amoroso, propiciando
uma sensação paradoxal, que poderia ser descrita como liberdade amorosa
determinada pela irresistibilidade da pusanga.
Algumas vezes pude eu mesmo perceber “o cheiro doce da pusanga” em um
homem ou mulher que a estava usando. Assim, a magia “escondida” da pusanga se
manifesta através do cheiro, justamente, para ser “descoberta”
140
. Cabe, então, à
pessoa que sente o cheiro da pusanga reagir ou não. Se alguém está olhando e rindo
para outra pessoa, o seu kitarentse ou sua pintura de urucum pode exalar o cheiro da
pusanga. Deste modo, a pusanga intensifica e facilita a expressão das intenções
amorosas, ao mesmo tempo que permite àquele (a) que foi objeto do efeito da
pusanga poder dizer que a pusanga foi usada secretamente.
Vejamos as concepções de Julietta e de Xawio sobre pusanga e ciúme: “se
seu xwitsi (pênis) o faz mais (faz um movimento com o indicador que se
desenrola), tem que ir para outra (mulher). Mulher também (isso vale também para a
mulher, quando não mais sente prazer durante a relação).” Xawio diz que “se
alguém tem ciúme de você, você deve pegar o homem dela, não tem outro jeito.
Você ainda não fez nada e ela sente ciúme, então tem que pegar o homem dela.
Índio é assim mesmo.”
A pusanga, estando associada à proibição do ciúme, se reflete diretamente no
modo de organização das aldeias Ashaninka. Segundo Ateringa, do Riozinho, o
modo de morar separado reduz a tentação diária de se apaixonar pelo/pela vizinho/a.
Dificulta as brigas, “porque talvez, mata!”. Deste modo, morar apenas com a família
140
Retomamos em breve essa possibilidade de entrar e sair de um mundo mágico.
268
nuclear associado à proibição de endo-guerra contribui, decisivamente, para
controlar as complexas e perigosas paixões humanas. Esta mesma explicação é
evocada pelos moradores de Riozinho (afluente do rio Envira) para justificarem sua
resistência ao novo modo Ashaninka de morar em conjunto, em aldeamentos
compostos de muitas famílias nucleares.
Retomamos aqui o que mencionamos acima quando evidenciávamos duas
lógicas que estariam em competição na atribuição do sentido da pusanga: a relação
da pussunga com o mundo mágico e a lógica da razão amorosa. Este foi o caso de
um Ashaninka que me confessou estar, naquele momento, questionando a qualidade
de sua relação amorosa: ele tinha uma linda esposa que era delicada, atenciosa e
jovem. Ele usou pusanga para seduzi-la e com ela tivera dois filhos. Seu
questionamento residia no fato de que, agora, estava ciente de que ela não o amava,
mas estava apenas enfeitiçada por ele, uma vez que fora objeto de sua pusanga (o
que causou, desta forma, sua união).
Este caso evidencia o atravessamento da lógica mágica da pusanga pela
lógica da razão (na falta de uma palavra melhor para expressar esta idéia ou
consciência sobre os efeitos também perigosos do encantamento produzido pela
pusanga). Este conflito de razões fez com este homem, atormentado pelo sentido da
relação amorosa para os Ashaninka, mantivesse um duplo vínculo com sua amada, o
que sinalizava o sentimento contraditório de sua relação amorosa: continuava
caçando para ela mas não coabitava mais com a esposa, mudando-se para uma casa
vazia da aldeia. Tomamos aqui uma expressão de Verger que parece exprimir esta
crise existencial deste homem Ashaninka: “a razão mata todas as coisas. Todas as
oportunidades do prazer, do relaxamento, do sentimento verdadeiro” (Pierre Verger,
apud Maggie 2001: 70).
O drama deste Ashaninka é, também, comparável ao vivido pelo personagem
principal do livro “Perfume” de Patrick skind. O homem produz o perfume
perfeito destilado das substâncias dos corpos de várias mulheres, de freiras a
269
prostitutas, para obter a fórmula que pode ganhar e arrebatar o amor das pessoas.
Quando finalmente consegue com seu perfume irresistível dominar o mundo,
adquire uma aguda consciência de que as pessoas não o amam verdadeiramente, mas
sim ao efeito de seu perfume. Essa consciência faz com que ele derrame todo o
perfume sobre si, mesmo pondo fim a sua própria vida, ao ser devorado pelo desejo
incontrolável de todos que cruzam seu caminho.
A mensagem do ‘Perfume’ parece ser a de que o amor in extremis pode levar
à morte. Reencontramos entre os Ashaninka uma ligação entre pusanga e predação.
Para os Ashaninka o maribondo encarna esta dupla relação: os ovos do maribondo
são misturados ao urucum e usados, desse modo, na pintura da guerra como modo
de obter mais energia agressiva, enquanto as cinzas do ninho misturadas com
“perfume” são utilizadas para obter várias mulheres/homens, uma vez que os
maribondos possuem muitas mulheres, sem que elas sejam ciumentas.
Foi neste contexto que Antxari, o agente de saúde da comunidade de
Simpatia, passa uma rmula de pusanga para uma enfermeira solteira: “queime um
ninho de maribondo, misture as cinzas com perfume e você terá um remédio forte
contra a solidão.”
Amor Ashaninka: remédio e doença
Pawa nos deu remédio para mordidas de cobra, de formiga, para caçar, para
amansar as mulheres, para tudo”, disse Antxari. Através do cheiro, tão central na
pusanga, pode-se tanto curar uma gripe
141
, como ganhar o amor de alguém.
Sucesso no amor e na guerra depende basicamente do “remédio” deixado por
Pawa. Esta confiança inabalável nos poderes da pusanga e dos remédios faz com
que Hananeri possa afirmar, sem hesitação, que consegue vencer na guerra e
141
Usam uma folha a que chamam “folha de cebola”.
270
namorar quem quiser. Neste sentido, envelhecer não parece estar diretamente ligado
ao processo biológico gradual e irreversível da perda das forças. Esta autoconfiança,
baseada na certeza da eficácia dos remédios, proporciona aos Ashaninka reduzir o
medo relacionado ao envelhecimento, à frustração da consciência da mortalidade. A
crença na magia de guerra e da pusanga possibilita enfrentar inimigos (nenhum
inimigo é forte demais) sem medo e se sentir jovem o suficiente para namorar até a
morte.
142
O conhecimento (aqui dos remédios) é transformado em sabedoria, uma vez
incorporado através da arte Ashaninka que seria a base da felicidade’. Vive-se e
age-se no mundo segundo o que se aprendeu. Age-se, conseqüentemente, segundo o
que se sabe. A pintura facial Ashaninka explicita esta concepção: capta as
informações através da cabeça, a captura das informações é intensificada através do
chapéu aberto, de cujas penas funcionam como antenas que vibram, com o menor
vento
143
. Segundo Wenki Pianko, do rio Amônia, o que deve ser acentuado na
pintura facial é a testa (o pensar), os olhos (a reflexão direta do conhecimento) e a
boca, sendo o eco do que se sabe.
É, justamente, através destes motivos da pintura facial e do kitarentse que
podemos situar a pussunga na corporalidade Ashaninka. Do mesmo modo que “os
artefatos não falam por si”, a pusanga também “não fala por si”. É necessário
contextualizá-la. Assim, apresentaremos alguns casos amorosos concretos
144
que
podem tornar ainda mais explícito o sentido de pusanga para os Ashaninka.
142
Esta vitalidade e energia deve mesmo ser demonstrada publicamente, como prova dos
efeitos dos remédios. Presenciei Hananeri mergulhando e querendo levantar sozinho um
batelão que estava parcialmente enterrado embaixo da água.
143
A mais leve brisa e os ventos são, para Ashaninka, sinais e sempre o objetos de
interpretação: ‘esse vento é a alma da anta que acabamos de matar’; ‘um parente falecido lá
no Peru’; ‘uma benção de Pawa porque estão contando um mito diretinho’; ‘pode ser
kamarapi que está dando uma olhada na comunidade’; ‘um alerta de que alguém está
chegando’.
144
Omitimos, neste contexto, os nomes verdadeiros dos Ashaninka e utilizamos apenas
iniciais de nomes fictícios.
271
Os “contextos” apresentados enfatizam a (re)conquista amorosa enquanto um
interesse que pode variar no tempo ou ser dividido igualmente para duas ou mais
pessoas, de modo que todos estão constantemente atentos em relação à pussunga
“do outro”.
Um exemplo que ilustra este estado de alerta é o narrado por ‘X’, uma
Ashaninka do rio Envira que foi se encontrar com seu ex-marido no rio Amônia. ‘X’
sonhava freqüentemente com seu ex-marido, fato que atribuía como responsável por
sua doença. Segundo ‘X’, ele estava usando pusanga. Quando o irmão de ‘X’
comenta o caso, usa a palavra “macumba”, afirmando que seu ex-cunhado fez
macumba contra sua irmã. ‘X’ fez a viagem ao Rio Amônia para dizer ao seu ex-
marido: “Porque você está fazendo isso comigo? Você agora tem outra mulher, o
está bom assim?” Ele pediu desculpas e prometeu “não fazer mais isso”.
Este exemplo demonstra a importância da pusanga para os Ashaninka, ao
tornar evidente o esforço despendido por ‘X’, em função da pusanga que pode tanto
seduzir como matar: a mulher baixa duas semanas de canoa até Feijó, de segue de
ônibus até Tarauacá (durante a viagem o pneu do ônibus fura, ela salta do ônibus e é
picada por um bicho não identificado). Chegando em Tarauacá, inicia a viagem para
Cruzeiro do Sul e depois até Marechal Taumaturgo para chegar, finalmente, no rio
Amônia, depois de quase um mês de viagem.
Neste próximo exemplo, quero esclarecer como emoções perigosas que
escapam à função mediadora da pussunga podem ser harmonizadas através do
piarentse, a festa de bebida fermentada em que se festeja a vida: brincam, dançam,
discute-se tópicos políticos e socio-econômicos.
A piarentse é o momento em que se recebe visitantes de outras comunidades,
quando se fica “perto”, momento por excelência para a pusanga deixar seus rastros.
Embora a literatura sobre os Ashaninka (Pimenta, 2002; Mendes, 2000) tenha
acentuado o lado político-econômico dos piarentse, quero aqui chamar a atenção
para a percepção dos piarentse como foco nevrálgico do que designo como
272
“socialidade erótica Ashaninka”.
Os homens sentados num lado da casa, as mulheres no outro, não enfatizando
a separação dos sexos, mas sua complementaridade e, no contexto da pusanga, eu
diria que homens e mulheres assim separados podem se “contemplar” melhor.
Durante um piarentse, “Y”, homem casado com uma Ashaninka do rio Envira, ao
brincar do jogo “cama de gato”, jogado freqüentemente durante a piarentse,
nomeava as figuras que iam surgindo a partir do entrelaçar do barbante: casa,
aranha, canoa, cobra etc.
Um dos desenhos designou como “vagina” e meu deu o exemplo de como
este desenho, formado pela trama do barbante, poderia ajudá-lo a atrair a mulher
com a qual gostaria de ter relações sexuais. Explicou-me que deveria soprar fumaça
de tabaco sobre o desenho e ao mesmo tempo dirigir o olhar para a mulher desejada,
sentada na fila imediatamente do outro lado. Isso deve ser feito o mais escondido
possível enquanto se está ‘aparentemente’ brincando. Duas vezes presenciei algo
parecido entre as mulheres, uma vez na comunidade de Simpatia e uma vez na
comunidade Bananeira: uma adolescente sem filhos pega emprestado um bebê de
uma parente/vizinha e simula dar o seio para a criança, enquanto olha para aquele
com quem gostaria de ter uma criança. Aliás, este tema é recorrente nas canções de
pusanga.
Desenhos com fios de algodão, ‘cama de gato’:
273
274
Durante o trabalho de campo, eu pude seguir detalhadamente o caso de “Z”,
homem Ashaninka da comunidade de Bananeira. “X”, uma mulher Ashaninka,
comentou em várias ocasiões o que se passou em torno de “Z”: segundo “X”, “Z”
tinha abandonado a sua primeira esposa porque ela “sabe” (tinha o conhecimento de)
como matar alguém. “X” sabia que a primeira mulher de “Z” tinha enterrado
“folhas’ embaixo da plataforma, no lugar onde “Z” agora costumava dormir com sua
segunda mulher. Era, segundo “X”, uma tentativa para matar “Z”. Enquanto sua
primeira esposa estava viajando para Feijó para se deixar tratar num posto da
FUNASA, “Z” começou uma relação com uma segunda mulher, na mesma
comunidade, dizendo para todos que a primeira ia concordar com isso. A primeira
mulher voltou da viagem e não aceitou a situação. Hananeri me informou que a
primeira mulher tinha usado as folhas indiretamente através de uma aliada, mas que
tinha aplicado essas folhas erradamente. A única coisa que a primeira mulher queria
era reconquistar novamente seu marido e para tanto deveria ter apenas tomado um
banho com essas folhas e depois passar perto dele.
De fato, havia aqui versões diferentes. Uma enfatizava a reconquista de seu
amor enquanto a outra acentuava que queria matar o ex-marido. Amor e morte
estavam lado à lado: remédio para amor associado a remédio para guerra e morte.
Hananeri complementa sobre o poder da pusanga, comentando sobre o caso de um
outro homem habitante de uma comunidade Ashaninka em outro rio: “Aquele na
outra comunidade tem três mulheres, você sabe disso, como você acha que isso seja
possível? Ele deixa um cheiro tão forte com a mulher que ela se lembra dele o tempo
tudo”.
Mas, continuando o caso de “Z”, entra em cena uma outra aliada (ela mesma
não podia ser vista com o mais sábio da comunidade) que desejava saber agora
porque as folhas que Hananeri tinha receitado não tinham provocado o efeito
275
desejado. Hananeri riu muito quando a aliada contou que tinha enterrado
145
as
folhas, no lugar de ter tomado um ‘banho de amor’.
Era uma suspeita que “X” expressava e que apoiava claramente a segunda
mulher de “Z”, filha do seu irmão. Mas não expressava isso abertamente, não
formulava uma acusação de feitiçaria. Durante as festas de bebida fermentada, “X” e
a primeira mulher de “Z” se cumprimentaram normalmente afirmando, assim, o
ethos Ashaninka do autocontrole, de que deve-se agir normalmente diante de uma
pessoa suspeita de elaborar planos de assassinato.
Parece que depois do banho de pusanga as coisas deram certo, pois “Z”
voltou para sua primeira esposa. “Z” carregava muita lenha para ela o que era um
bom sinal para os Ashaninka: um homem que de manhã não traz lenha para sua
mulher é um sinal de que algo está errado. Na maioria dos casos, este fato é
interpretado pelos vizinhos como sinal de que a mulher recusou-se a ter relações
sexuais com o marido na noite anterior.
Paixões são dificilmente controláveis e o autocontrole é um fator importante
no estilo de vida Ashaninka. Depois da volta de “Z” para sua primeira esposa, tanto
a irmã da primeira esposa, como as filhas de uma irmã de “X”, estavam preparando
um piarentse: o modo de acabar com o que restou das emoções perigosas. Até
aquele momento, tudo havia se passado em silêncio, expressão de valor comunitário,
do viver “escondido”, “invisível”.
Entre os Ashaninka, tanto o nascimento quanto a morte, assim como o
casamento (simplesmente comer junto: a mandioca dela com peixe ou carne dele) e
a separação (recusar comer a mandioca dela), acontecem de forma quase
imperceptível. O único fato perceptível no comportamento das pessoas, nesse caso
“Z”, foram as mudanças de casa: “Z” e sua primeira esposa moravam juntos em uma
casa que “Z” deixou para mudar-se para uma casa menor, a da segunda mulher,
145
“Enterrar objetos” se refere entre os Ashaninka a atos malignos, ver Santos Granero
(2004) em relação a este ponto e à acusação de crianças feiticeiras.
276
enquanto a primeira mulher estava viajando. Quando a primeira esposa voltou da
viagem e soube das intenções de Z”, ela mesma abandonou a primeira casa
demonstrando, assim, que não aceitou a segunda esposa: levou consigo apenas
alguns objetos da casa antiga e passou a morar com a mãe, enquanto construía ao
lado uma segunda casinha onde ia morar sozinha, mas não por muito tempo. Sob a
influência reguladora da pusanga, “Z” se mudou para aquela segunda casa.
Sempre é necessário se construir uma outra casa, o que marca
simbolicamente as passagens e as mudanças. As perdas provocadas pelo amor e pela
morte m essa característica em comum: deixa-se a casa onde alguém morreu.
Desta forma, “Z” e a primeira esposa nunca mais voltaram para a casa onde
moraram.
Queimando a casa
Alguns dias antes do piarentse que duraria quatro dias e noites, “Xvoltava
muito feliz da floresta: havia encontrado uma pusanga raríssima. Ela nos deixou
cheirar e realmente, o cheiro era suave, levemente doce, parecia bastante especial.
Quando eu pedi para cheirar mais uma vez, “X” começou a rir: vendo,
Mayaninka!(meu nome Ashaninka)”. Com isso queria brincar com minha esposa,
sugerindo que eu havia sido ganho por sua pusanga. O piarentse ia da praia (onde
a irmã da primeira esposa de “Z” tinha seu tapiri, a casinha provisória de praia, feita
de palha durante o verão quando o rio está baixo e as praias grandes) até a casa de
277
“P” e de lá para a casa de Hananeri.
Depois começaria o piarentse na casa da irmã de “X”, onde as filhas
prepararam a bebida fermentada. Não é sempre que um piarentse demora quatro
dias, geralmente termina após dois dias. São ainda raras as vezes em que o piarentse
toma as proporções que descreveremos a seguir, o que nos ajuda a precisar ainda
mais o estilo de vida e os valores comunitários Ashaninka contrastados com a vida
diária.
O que a pusanga não consegue solucionar, o piarentse resolve. A notícia
deste piarentse deve ter chegado aos ouvidos de “SR”, um ribeirinho branco que
vivera por anos entre os Kaxinawa. “SR” ia comparecer para fazer uma proposta de
casamento para “X”, uma Ashaninka. O rio Envira tem muitas curvas e por isso
pode-se escutar o motor de uma canoa quando esta ainda encontra-se bem distante.
“X” estava aparentemente informada que “SR” iria chegar a qualquer momento.
Com o primeiro som do motor, “X” e “T”, solteiras Ashaninka, começavam a
se enfeitar com determinação: todo o repertório da arte corporal Ashaninka entrava,
naquele momento, em operação. “X” havia expressado sua vontade em namorar
um branco velho que tinha uma bicicleta, pois os adultos Ashaninka não teriam mais
interesse em namorar com ela. Ela era tida por eles como uma mulher velha demais
e ela mesma dizia: olha para meu rosto, é velho! e não consegui ter filhos
próprios”.
“X” pintou borboletas em seu kitarentse e no de sua irmã. O barco estava
chegando cada vez mais perto e as irmãs, juntas, aceleravam a sessão de action-
painting, o que enfatiza por si a importância da “agência da arte Ashaninka”: não
queriam enfrentar pretendentes, mesmo sendo brancos, sem estarem devidamente
“produzidas”, segundo a arte corporal Ashaninka. Se produzir para encontrar
pretendentes parece ser, sem dúvida, algo universal. O branco, ao chegar de canoa,
ostentava uma camisa branca impecavelmente passada, o relógio, que ele sempre
guardava cuidadosamente em um saquinho plástico, estava agora em seu braço,
278
vestia um boné novo e limpíssimo.
Este cuidado especial e atenção com aspectos corporais não passou
desapercebido, mesmo em um encontro de estéticas que não pareciam ser
transculturais. A agência da beleza, desse cuidado especial, sinalizava que ambos
demonstravam atenção para este encontro. Por causa da rapidez, “T”, que estava
copiando as borboletas de “X”, esqueceu de pintar as antenas de algumas borboletas
no seu kitarentse. A escolha do motivo da borboleta fazia claramente parte da
agência da sedução.
Um mês depois, Jomanoria ia me contar que, quando uma borboleta pousa
numa parte do seu corpo, você receberá naquele lugar um beijo de alguém.
Borboletas significam também muita felicidade e saúde”. O que parece importante
nesta informação é que Jomanoria dizia que esta concepção sobre a borboleta
provinha dos ribeirinhos e que um dia os Ashaninka disseram: “-vamos fazer
também”, disse ele com um sorriso junto com o dar de ombros querendo significar
que poderia “funcionar”. Através do processo de mimesis, tomando o conceito
regional ligado à borboleta, “X” tentava expressar seu desejo transculturalmente.
Mas o desenho era tão bem apropriado dentro da arte Ashaninka que era demasiado
abstrato para ser lido por “SR” como borboletas. Talvez por isso, mas
provavelmente por causa da influência da escola, “X” desenhou meses depois uma
borboleta mais figurativa em papel.
Desenho figurativo de borboleta
279
Capuz com desenho de borboleta
Depois da sessão de pintura, “X” começou, também rapidamente, a enfiar
sementes de pupunha em sua tipóia. “T” a ajudou com isso e detectou em uma das
sementes de pupunha uma pequena folha enrolada de pusanga. Antes do barco
chegar, ambas estavam prontas para a visita, fingindo a maior tranqüilidade e
desinteresse, sentadas com os kitarense, nos quais os motivos da borboleta ainda
estavam molhados da lama fresca. Mesmo com seus corações acelerados, “SR” não
pode detectar nenhum interesse advindo da parte de “X”. Nesse caso, a arte corporal
Ashaninka ajuda a manter o estilo de vida baseado no autocontrole, uma vez que as
emoções já se encontram parcialmente nela.
“SR” não demorou muito na aldeia, porque o irmão mais velho de “X” era
contra a relação. Quem observava “X” diariamente podia perceber que, naquele dia,
ela parecia um pouco confusa. Mais tarde percebi que a pusanga na tipóia de “X”, se
não atraiu o branco, acabou tendo um efeito sobre outro índio, “tx”: “X”, agora,
usava o relógio de “Tx” como símbolo de que a pusanga estava atuando.
O piarentse estava começando e antes de meio dia eu havia bebido sete
cuias de caiçuma, que não pude recusar: o filho de C” se auto-declarou novamente
solteiro, a esposa dele tinha ido embora na semana passada (novamente em
“silêncio”): “dekatse tsinani (acabou, não tem mais mulher).” Ele me escolheu como
camarada para beber: nesse caso, oferece-se uma cuia que deve ser retribuída com
uma outra cuia, contendo exatamente a mesma quantidade que me foi dada. É um
beber acelerado.
280
Depois da oitava cuia, ele começava a me provocar. Quanto a mim, se tinha
algo que me irritava mais do que as picadas constantes dos borrachudos
146
(para as
quais eu tive que tomar oito injeções de penicilina) era a baixa qualidade musical
dos forrós “eletrônicos” que tocavam sem parar num gravador peruano que parecia
inquebrável. No ar sentia-se perigosamente o caos
147
amoroso ao fundo do
incansável refrão do forró: “um dedo está mexendo na sopa (enquanto as), duas
mãos (estão) cheias de peitos.”
146
Os borrachudos tinham despachado uma equipe de filmagem Japonesa. Chegaram
com uma frota de dez barcos, mas desistiram depois de alguns dias. O sertanista Meirelles
brincava dizendo que esses borrachudos conseguiam proteger os índios do rio Envira
melhor do que a FUNAI.
147
Ver Santos Granero em relação à idéia de caos entre os Amuesha (1991).
281
Mulher mastigando e batendo a mandioca para o preparo da caiçuma
A tensão central daquele piarentse era que “Z” tinha voltado para sua
primeira mulher porque esta não aceitou uma segunda. Z” tinha bebido muito e
parecia triste, sentado, cabisbaixo.
282
Preparando a bebida fermentada.
“Assoprando” o caiçuma.
283
Imagens do piarentse:
Trazendo água (inia) para preparar a
caiçuma.
284
285
Quando o piarentse acabava em um lugar íamos em conjunto para o outro e
assim se deu por quatro dias consecutivos. Na casa onde a irda primeira esposa
286
de “Z” havia preparado piarentse, a situação saiu do controle: começou fora da casa
uma espécie de luta controlada em que dois adultos seguram um na lateral do cabelo
do outro e movem as mãos e braços simultaneamente, com determinação. Pararam
subitamente e começam a dar, alternadamente, fortes cabeçadas um no outro. Era
um combate controlado, podia produzir sangue e contusão na testa, mas o que
parecia ser a essência desta luta ritual era permitir a fruição dos sentimentos de um
modo ritualizado. Depois da sessão ambos estavam rindo muito. São essas lutas
controladas que ajudam alcançar o ideal da proibição de endo-guerra.
Mulher bebendo caiçuma
Enquanto estavam dançando dentro da casa, caiu de repente a folha enrolada
de pusanga presa à semente de pupunha na tipóia de “X”, provavelmente porque
“T”, durante a confecção matinal em tempo acelerado, não a tinha amarrado
adequadamente. “N”, outra irmã de “X”, viu o ocorrido e, sem dizer nada e sem
287
demonstrar qualquer alteração no rosto, retornou a folhinha para a irmã, mas não
sem ter antes cheirado. “X”, notando que eu via toda a cena transcorrer, resolveu
tudo com uma brincadeira. Dirigiu-se a minha esposa “Antaro”, dizendo, enquanto
dava a folhinha para ela: “- esfrega isso no seu kitarentse e fala - chora Mayaninka.”
Antaro fazia isso e todas riram muito... “Agora Mayaninka vai chorar por ela”, dizia
“X” rindo.
Fala-se muito em “chorar
148
quando se trata de paixão e amor. Talvez
porque estejam cientes de que prazer e sofrimento andam lado ao lado, pensem o
amor como percepção melancólica, definido como le bonheur d’être triste. Em
outras palavras, o amor Ashaninka pode ser percebido como a felicidade de estar
triste.
A quase segunda esposa de “Z”, triste por ser abandonada e sob a influência
da bebida, começava a flertar com muitos homens e a situação começou a
“esquentar”. Repentinamente, ela demonstrou a intenção de bater primeira mulher
de “Z”. “X”, que pensava que a primeira esposa de “Z” a “fez doente” (acusação de
feitiçaria não declarada abertamente), desligou subitamente o toca-fita e foi embora
com a bateria
149
, que pertencia a seu pai, que viajara para Feijó.
A festa e a dança foram interrompidas pela falta de música. Alguém começa a
gritar: nada de fofoca, tem que beber direitinho: piree piarentse cameta!
Ao mesmo tempo, Nawio e Garoto estavam lá fora, provocando o único touro
da comunidade. Nawio tomando uma posição de defesa em frente ao touro gigante,
que abaixava e se preparava para um ataque, enquanto Nawio dava passos à frente,
aproximando-se cada vez mais do touro. Garoto passou como que voando em frente
a Nawio, dando uma tapa entre os cornos do touro e desviando-se de tal modo de
148
Nunca observei um Ashaninka chorando apesar de me falarem que choram
freqüentemente. A palavra uwaxeritantse quer dizer tanto “paixão” como “tristeza”.
Uwametaxirero seria a tradução para “amor”.
149
Escondeu a bateria, como descobri mais tarde, entre nossas mochilas, um lugar onde
ninguém iria procurar.
288
seu ataque, que naquele momento eu podia acreditar nas histórias relatadas sobre a
destreza corporal Ashaninka, que os permitia desviar das flechas dos inimigos.
Essas provas de bravura ou de resistência à dor, buscando seus limites são
comuns entre os Ashaninka. Bate-se com os nós dos dedos contra um poste de
madeira e quem conseguir fazer a marca mais profunda na casca é o ganhador.
Desde criança, treina-se não para a guerra, mas também para as lutas controladas
que ajudam a manter o ideal da proibição de endo-guerra: pai e filho que batem as
cabeças um contra os outros, mas afastam os dedos da mão do outro até um dos dois
falar “-ai”.
Por exemplo, Tanta puxou bem forte a orelha de seu filho de cinco anos,
depois, quando viu que isso não tinha nenhum efeito, puxou gradualmente seu pênis.
A criança não se abalou e deu um sorriso. Tanta fez um gesto de aprovação:
menino forte”. Talvez seja apropriado mencionar nesse contexto a ênfase que eles
expressam no “agüentar”, quando estão aprendendo com ayahuasca ou com o mel
de tabaco. Nestas ocasiões lutam contra os medos mais profundos, mas também de
forma controlada, que sempre podem ser ajudados quando se assopra seu corpo
com tabaco.
A gritaria estava aumentando dentro da casa e a caiçuma era derramada,
porque este não era o jeito certo de tomar piarentse. “X” saiu da casa sangrando nos
lábios e o olho da quase segunda esposa de “Z” estava completamente fechado. Foi
“T” quem bateu em X”, porque ele queria falar sozinho com “Z” e “X” se meteu,
recebendo por isso um tapa, segundo “C”, com quem “T” agora estava envolvido em
uma briga formal: batendo peito contra peito e tentando desequilibrar o adversário,
em usar os braços. Cada batida de peito era acompanhada por um grito.
Realmente sofrer uma agressão deste tipo, como aconteceu a “X”, é incomum
e vai completamente contra o senso comunitário Ashaninka. Se “X” ficar,
porventura, doente até sete dias depois do soco recebido, “T” seria o responsável
pela doença, segundo a concepção etiológica Ashaninka.
289
O piarentse acabou quando todos voltaram para suas casas. No caminho, a
filha mais velha de uma irmã de “X” surpreendeu “T”, a sua irmã mais jovem: “T”
foi arrastada pelos cabelos e depois teve sua cabeça batida contra o chão,
repetitivamente e com toda a força. Mesmo vendo a filha com o nariz sangrando, a
mãe não se intrometeu na briga. A irestava demostrando ciúmes. Na verdade,
“G” estava tendo um caso amoroso com ambas e estava consolando “T”, que de
agora em diante tinha todo o direito de começar algo com “G”, em função da
percepção do ciúme entre os Ashaninka, conforme já descrito acima.
“T” estava sangrando no nariz mas todo mundo, inclusive a mãe, a apoiava de
modo que as tentativas da irmais velha para reconquistar “G(estava numa rede
sem kitarentse chamando a atenção com risos e gritos) não deram certo: seis dias
depois do ocorrido, “G escolheu “T”. A razão para que ninguém tenha uma
sensação de remorso pela violência acontecida entre as irmãs foi a demonstração de
ciúme. Nesta situação a casa fôra, também, abandonada. Nem “G” nem a irmã mais
velha permaneceram na antiga casa. “G construiria outra, a alguns metros da
antiga.
Assim foi também o caso de “P”, mulher solteira da comunidade de
Bananeira. Um certo dia ela foi atrás de um homem da comunidade de Sete Voltas.
A mulher dele havia demonstrado ciúme em relação a “P”, nas vezes em que ele
freqüentava os piarentse de sua comunidade. “P”, por sua vez, era prometida para
“D”, que voltou para sua comunidade de Apiwtxa, no rio Amônia, e que nunca
voltou para “P”. Agora, “P” tinha decidido que havia esperado o suficiente. “P”
fora a amante de “Tx” (cuja esposa era levemente debilitada por causa de um
tombo). Segundo Hananeri, era a ‘capivara’ dele, numa alusão a uma vez que “Tx”
veio pedir emprestada a lanterna para caçar capivaras e na verdade queria encontrar
com “P”. Hananeri acrescentou que “P” havia pego um outro Ashaninka pelo
xwitsi (pênis), fazendo sweki sweki (onomatopéia para a masturbação), querendo
levar ele para a roça. Ele não queria.
290
Quando “P” foi finalmente para Sete Voltas (disse que foi “pescar”, mas
nunca mais voltou) Hananeri disse que a ‘capivara’ de “Tx” estava procurando outra
melancia.
Pensando agora nos possíveis efeitos do soco, “X” se lembrou depois em
casa, deitada na rede, enquanto eu limpava o sangue de seu lábio, de um ocorrido
com ela na comunidade de Santarém, quando um homem, sob o efeito da caiçuma,
gritou coisas para ela. “X” sonhou com ele e ficou depois com dor no joelho. Se as
palavras gritadas podem ter tal efeito, podia-se, então, imaginar os efeitos que teriam
um soco. “X”, deste modo, estava bem preocupada com o que iria acontecer, qual
seria a doença que ela poderia contrair em função do soco?
Ainda vestida com o kitarentse com motivos de borboleta, “P” cantou aquela
noite uma canção sobre “tristeza” no amor, uma canção que canta quando ela sente
saudade do antigo namorado. As frases que sabia traduzir eram as seguintes: “a irmã
não quer, então eu vou com a outra irmã (...)”, me um pouco de caiçuma, não
totalmente cheio (...).” Cantou outra canção com as palavras kompero
150
, e
pusanginari. Segundo ela é preciso falar contra as folhas de pusanga: “- eu quero
que você sonhe comigo, que você sonhe que estamos nos abraçando, que você pense
em vir para mim. É preciso dizer isso com uma voz muito baixinha contra as folhas.
Na manhã seguinte kompero vem cantar bem cedo. Aquele pássaro sabe o que está
acontecendo com a pusanga. O tucano sabe também”.
“X” pronunciou o desejo de aprender acurar pessoas” e está no caminho de
virar pajé. Ela aprendeu um pouco com o pai dela, mas pouco. Está, agora,
“trabalhando” com tabaco.
Oito dias depois do soco recebido no piarentse, “X” sentiu seu coração
quente e ficou preocupada, pois isto poderia ser o efeito do soco de “T”. Ela temia
que esse efeito “estava indo para baixo” (no corpo dela). Mais tarde, “T” não aceitou
o pedido de duelo de “C”: “- faz duas vezes que você bateu em uma irmã minha,
150
Kompero: pássaro. Um motivo freqüente nos kitarentse.
291
será que eu bati uma vez em uma irma de você? Se você quer bater, vamos ,
bate em homem, vem agora.“T” não compareceu mais ou não fora mais convidado
para os próximos piarentse.
Onze dias mais tarde, teria lugar outro acontecimento durante um novo
piarentse na casa de uma irde “X”: todos estavam sob o efeito da caiçuma, tanto
as duas irmãs que brigaram, como “Z”, sua primeira esposa e sua quase segunda
esposa, mas nada aconteceu. As emoções estavam todas sob controle, o senso
comunitário estabelecido em uma plataforma de uma casa em palafitas, de apenas 4
metros quadrados.
Vale ressaltar aqui que, no cotidiano, entre os intervalos dos piarentse, brigas
são inexistentes. As duas irmãs se encontram, por exemplo, no dia seguinte de modo
natural, não deixando transparecer que algo ocorreu durante o piarentse. Os que se
engajaram em lutas formais podem trabalhar lado a lado, juntos, no dia seguinte
fazendo uma roça.
No meio da noite do último piarentse que presenciei durante o meu trabalho
de campo, algo inesperado sucedeu: o toca-fitas peruano, aquele mbolo cromado
pendurado por uma corda de algodão na viga da casa, estava desligado. A primeira
esposa de “Z”, agora depois de semanas novamente reunida com “Z”, anunciava que
ia cantar. Todos estavam ainda sob a influência da bebida. “Z” ficou sentado, quieto,
pensando. A esposa começava a cantar e parava, pedindo mais uma cuia de bebida
fermentada. E ela cantava quando você vai para outra mulher, vopensou que
não ia mais lembrar de mim...”. Ela repetiu aquelas frases e as outras mulheres,
como também as meninas, cantaram, repetindo as frases no estilo ‘a capela’.
Depois de um tempo “Z” replicou, também repetindo e depois sendo apoiado
pelos homens. Mais tarde as frases especialmente improvisadas para essa canção por
ela e por ele não mais se alteraram, mas se entrelaçaram como em um dueto, mas
com sentido de duelo. Todas as mulheres e todos os homens apoiando os
protagonistas ‘a capela’. Mais uma luta controlada, agora se tratava de um conflito
292
passado, em que os sofredores das paixões eram apoiados. Era realmente um evento
em que a comunidade inteira dava força aos sofredores das paixões que pareciam
incontroláveis e que, agora, a comunidade dava forma, dominava seu conteúdo
perigoso.
Reafirmo aqui que os exemplos apresentados acima foram retirados de uma
seqüência de piarentse com a maior demonstração de violência controlada” que
presenciei entre os Ashaninka. Se assim o fiz, foi justamente para demonstrar como
os Ashaninka o “controlados”, no sentido de compreender que mesmo a seqüência
mais “barulhenta” serve para manter o ideal do “silêncio”.
Uma demonstração de domínio deste ideal do estilo de vida Ashaninka pode
ser percebido na relação entre “SV”, solteiro da comunidade de Sete Voltas, e uma
moça da comunidade de Riozinho, que ficaram por seis dias embarcados junto
conosco em uma embarcação que partira de Feijó. Somente após seis dias “SV
falou algo para a solteira de Riozinho, antes que ela desembarcasse. Ela respondeu
algo e ele ficou muito animado, voou para a proa, sentindo-se feliz e bem. Durante
seis dias não trocaram palavras, silêncio no qual aparentemente muito foi dito.
ficaram cuidando dos “corpos” deles (três pinturas faciais por dia, fabricando
matarentse etc.).
Ele investiu muito na relação, porque deixou o rádio dele tocar para ela o
tempo inteiro. E ele só tinha 4 pilhas. A partir do momento em que ela desembarcou,
desligou o rádio. Precisava “economizar”. Ele também, agora, começava a comer,
digamos, mais energeticamente. Fica claro que ele estava se contendo, que isso é
considerado algo admirável, aquele autocontrole em relação à comida. Passou
também a chamar ser cachorrinho em voz alta e etc.
Por isso também não demonstrou emoção, ao ver seu cachimbo cair por acaso
na água. Adorava fumar. Estava fumando o tempo inteiro durante a viagem. Na
verdade, o podia demonstrar emoções ou apego em relação aos objetos. Este fato
293
ficou claro para mim quando me agradeceu por ter mergulhado na água, com o
intuito de resgatar seu cachimbo. Mas o fez apenas após ela ter desembarcado.
“X” lembrou com entusiasmo de uma vez em que, no passado, disse “não” a
um candidato a namorado. Ela não queria, mas seu irmão usou um “remédio” e por
esta razão, ficou apaixonada pelo rapaz. A próxima vez em que não quiser um
candidato a namorado, pedirá a seu irmão para não interferir com “remédio”. Nota-
se, assim, a importância do irmão mais velho nos assuntos amorosos, tanto quanto a
possibilidade de uma terceira pessoa manipular uma relação amorosa através de
pusanga.
Era esse irmão de X” quem tinha uma segunda esposa na comunidade de
Simpatia, distante vinte minutos de canoa da comunidade de Bananeira, onde
morava sua primeira esposa. Com ele visitei várias vezes a outra comunidade e
nestas ocasiões falou-me sobre as vantagens e desvantagens de ter duas esposas:
quando tinha um piarentse em uma das duas comunidades, sempre havia uma casa e
uma esposa, com quem poderia ficar. A vantagem para as mulheres é que, em
função da complementaridade entre os sexos, o trabalho seria dividido entre si.
Por outro lado, sendo homem, precisa-se caçar em dobro. É sempre
necessário caçar dois porcos em cada caçada ao invés de apenas um. Este fato
gerava tensões em torno de “Z”: será que ele seria capaz de sustentar duas esposas?
Durante semanas o acompanhei em seus trabalhos para fazer um roçado na
comunidade de simpatia. As sucessivas viagens de canoa de uma comunidade a
outra eram, digamos assim, o preço que ele pagava por suas esposas morarem
separadamente. Durante as viagens, várias vezes vi botos rondando a canoa e pude
observar que os Ashaninka assimilaram a crença regional de que os botos podem se
transformar em mulheres ou homens lindíssimos(as), que tentam seduzir suas presas
para depois levá-las para baixo d’água.
294
Em um desses dias, enquanto cortávamos árvores menores com o auxílio do
facão, fomos obrigados a buscar um abrigo, por conta de uma chuva forte. Enquanto
esperávamos a chuva passar, o filho do irmão de “X” apontou com os lábios para
uma planta que estava crescendo ao lado do tronco: era pusanga. Sem ninguém por
perto - a comunidade ficava do outro lado do rio -, falaram muito baixinho, olhando
para trás, de vez em quando. O homem colocaria a planta nos seus txoxiki e
tatanentse.
Esfreguei, segundo suas instruções, a folha entre meus dedos: Agora joga
fora a folha.” Esperando ainda a chuva passar, falaram também sobre um outro tipo
de pusanga chamado txitxokixi: uma trepadeira, está coberta com cabelinhos finos,
coceira em sua esposa quando ela quer te abandonar, portanto ela não dorme à
noite, fica com pena de você e fica contigo”. Contou que a sua segunda esposa
queria abandoná-lo e ele tinha usado txitxokixi. Funcionou!”. Ele e seu filho
afirmaram isso fortemente, balançando a cabeça, mas ao mesmo tempo tomando
uma postura quieta.
Sob o efeito do txitxikixi, a esposa lhe disse: “- eu não sei porque estou
ficando, no fundo eu quero te abandonar. Olha para meu kitarentse”. Ele, então, lhe
respondeu: “ - não tem nada aqui”. Mas ele havia esfregado a pusanga sob a própria
pele. Ele, então, acrescentou: as mulheres também conhecem essa pusanga e a
escondem nas sementes delas”.
É interessante a atmosfera de segredo, conspiração, manipulação de uma
esfera mágica, por um lado e, por outro lado, um discurso racional em torno do uso
de pusanga. Do mesmo modo fortuito, “X” passou facilmente para o outro lado, o
lado aberto e não escondido da pusanga que, uma vez descoberta, por exemplo,
pode mudar de agência e ter como efeito enfatizar as emoções e os desejos da
pessoa, através da arte corporal.
A esposa de Kokonha suspeitou que ele tivesse usado pusanga. Talvez
tivesse cheirado, sentido algo. Nesse caso, quando se percebe que alguém está
295
usando pusanga, sabe-se, por exemplo, que esta pessoa deseja desesperadamente
manipular a qualidade do sono de outrem, para que o ser desejado fique acordado,
pensando, com pena de seu sutil “algoz”.
Visto que os Ashaninka mantém uma profunda aversão em serem
“mandados”, a pusanga permite que emitam seus desejos profundos, de uma forma
menos direta do que, por exemplo: “- fique comigo”. No final, é sempre você que
sabe” e que deve decidir.
Da mesma maneira, usam o modo indireto na forma cuidadosa de expressar o
desejo de chamar alguém para trabalhar junto com eles: “- eu vou trabalhar na roça,
minha mulher preparou um pouco de bebida fermentada que eu vou levar. Tem
tantas bananas maduras lá, se alguém viesse comigo poderia levá-las em vez delas
apodrecerem e etc.”). Quando o outro então pergunta se poderia ir junto, dizem
invariavelmente: “- é você que sabe.”
Posto deste modo, as relações deixam, pretensamente, uma margem de
liberdade. O mesmo se expressa nas relações amorosas.
Busca-se sempre sinais: sonhar com o rosto de alguém, de modo que fique
muito próximo ao seu, é um sinal de que aquela pessoa está usando pusanga. Deixar
cair folhas de coca é uma demonstração para os outros de que você está tendo uma
relação amorosa com outra pessoa:As folhas sabem disso, não gostam de brincar.
Se o fio de algodão quebra quando você tenta fazer um fio mais forte, a partir de
dois fios regulares, isto é um sinal de que o marido está traindo a esposa.
Também as mães o alertadas, quando suas filhas estão tendo um caso com
um homem. Uma irmã de “X” sonhou que um peiari, uma alma, veio pegá-la.
Parecia cachorro, mas não tinha ossos. Então é verdade o que eles dizem”, disse
ela, que eles não tem ossos. Agora eu vi (sonhos mostram a verdade). Ele pegou
meu braço, depois ficou nas minhas costas, queria pegar ele mas só senti carne.
296
Na noite seguinte, contei a “X” o sonho de sua irmã e seu comentário foi o
seguinte: Sabe o que é, vou te dizer, índia é assim, quando a mãe acha que a filha
está saindo com um homem, ela sonha com qualquer bicho. Uma vez que a filha
mesma vai dizer que está saindo com homem, isso para.
Pusanga: o amor e seus motivos
Kompero e upempe.
O passaro no arvore com o desenho tipico é o kompero. Vemos também uma tartaruga
(konoya, ao mesmo tempo o nome de quem fez o desenho), igualmente associado com
pusanga.
O motivo kompero, um pássaro que possui pusanga, é encontrado em vários
suportes e constitui um dos motivos mais recorrentes no repertório Ashaninka. Ele
pode ser tecido no kitarentse e também a alça das bolsas é, na maioria das vezes,
composta unicamente pelo motivo de kompero. No universo da pussunga, o conceito
297
do kompero está ligado ao tucano (upempe), cujo desenho, um motivo composto de
linhas, é encontrado na pintura facial.
Desenho feito por Wenki Pianko de uma pintura facial de kompero.
Com relação a estes motivos e os cantos dos pássaros a eles relacionados,
veremos primeiramente as explicações de Raimundinho, professor da comunidade
de Simpatia. Quando um homem está apaixonado por uma mulher, mas esta mulher
não o quer, ele pode cantar a canção de kompero. A canção faz com que a mulher
sonhe em abraçar o homem e ela vai acabar querendo fazê-lo, efetivamente.
“(O) cara gosta muito dela, né, fica triste, (o) cara gosta muito dela, né, aí
canta, né, aquela canção de kompero. Aí canta, aí tinha pusanga.(...) Às vezes (uma)
mulher que não gosta dele, às vezes o cara gosta dela e canta então essa canção de
kompero. Canta, canta, né, o espírito da gente vai espiar ela. Chega, a mulher
está dormindo, chega lá e o espírito da gente vai abraçar ela. Quando de manha ela
se levanta, aí, fica triste, e quando, ahhh rapaz, quero conhecer esse cara. E vem
o kompero cantando, vem sentar e cantar. Aí, quando ela escuta (kompero)
cantando, ahhh rapaz, ela fica pensando nele. Fica triste, fica... , estou doida para
conhecer esse cara, eu vou para onde ele está. (Depois do sonho positivo
envolvendo o homem, o pássaro kompero usa a pusanga dele para que a mulher
fique apaixonada pelo homem) Aí, a mulher vai até onde ele está, porque o
298
kompero tem o remédio dele, sabe. Agora, nós mesmos não sabemos mais,
esquecemos tudo, ninguém sabe mais.” (Raimundinho).
Este remédio, a pusanga forte de kompero, é conhecido por este pássaro.
Antigamente o ssaro era um Ashaninka, mas depois de sua transformação perdeu-
se o remédio. com a ajuda dele os Ashaninka ainda podem usar esta pusanga,
dita muito forte. A explicação de Raimundo nos revela como se pode comunicar e
interagir com o “espírito” através de um sonho. A mesma comunicação entre
pessoas distantes é também comentada quando se usa ayahuasca.
Jomanoria, professor da comunidade Bananeira, confirma a “história” de
kompero:
Tem história de kompero também. Como eu estava dizendo, antigamente
tudo era gente, aquele passarinho, tudo era gente mesmo. Tudo era gente. Kompero
era gente. Tudo. Kompero, ele vestiu, mudou o kushma assim, a lista, lavradinho,
né. A lista. Aquele rabo dele ero kitarentse, roupa dele!”. (Jomanoria)
É interessante notar que os Ashaninka não dizem, neste ponto, que se
inspiram na cauda do kompero para tecer este motivo no kitarentse. Afirmam, pelo
contrário, que ele tinha esse kitarentse no tempo em que ainda era gente. Este é
um exemplo onde cultura e natureza se dissolvem, como sugerido por Deleuze
quando fala sobre o devenir animal”, sobre os pássaros que decoram seus ninhos,
fazendo arte, e os animais que demarcam um território. Os Ashaninka, porém, vão
ainda mais longe. Jomanoria continua:
A gente faz remédio, né. Tu queres arranjar uma mulher, novinha (uma
mulher muito mais jovem do que você): primeiro conversa com ela e ela não te
quer. Ela não quer: “- não quero tu não.” Aí, ela não gosta (de ti) e vai embora. Aí,
o cara vai tirar remédio de kompero na mata. Tem uma folha (chamada) komperoxi.
299
Aí, faz o remédio. Tu tira, kompero (o pássaro) também, né, miolo de kompero. Aí,
mistura (os miolos do pássaro, a folha da planta com o mesmo nome e o urucum).
Às vezes com potote (urucum), mistura com potote e ele (kompero) também. De
tardinha você pode comer um pouquinho, pensando nela, qual menina tu quer, né.
Fica pensando, , pensa, pensa. Aí, no outro dia, quando tu passa nela, no
kitarentse dela, tu tira um bocadinho e tu bota no kitarentse dela e fica
cheirando. Fica cheirando. Fica cheirando. “O que está cheirando?” fica
cheirando, ela fica cheirando, ela fica pensando já, quem es passando remédio
para mi? Passa por aqui, ela fica doida aí. E depois..., ela fica doida, ela vai de
novo, mais tarde tu, aí fica com ela”. (Jomanoria)
Segundo Jucelino, da comunidade Coco Açu, para usar a pusanga do
kompero é preciso fazer primeiro um txoxiki, com o qual se vai para a floresta. se
canta a canção de kompero e, assim, ele vai se aproximar. Depois (Jucelino fecha os
olhos) você pensa e a pusanga fica em cima de você, no seu txoxiki.
Assim como o kompero, o tucano possui pusanga:
Mesma coisa com o kompero, mas o tucano (upempe) tem uma diferença: às
vezes quando uma mulher vai tomar piarentse assim, longe, tem mulher para cima
(subindo o rio). Quando os cara, quando tinha moças para lá e estavam procurando
agarrar ela e ela não me quer, , vamos fazer remédio para ela para poder me
querer. Faço remédio, pronto. Eu vou fazer uma dieta, vou passar um dia sem
comer, sem comer até três horas. Três horas amanhã eu chego, até 1 hora eu vou
comer, eu vou comer. Ali, mulher... O, o, tucano que vai para lá, a pussange,
pusanki vai para lá, toca bem cedo, quando 6 horas vai cantar. Vai cantar,
cantar... a mulher vai pensar: puta merda, o rapaz está para baixo. Tanto que eu
sonhei com ele aí. E quando ela estava sonhando, o tucano veio sentar nas costas
dela. Vai cantar. Depois vira gente. fica nosso cara. (O tucano se transforma, de
modo que ela vai poder ver nosso rosto). Aí, rapaz sonhei com ele, virou upempe,
300
depois virou gente. Aí mulher fica triste, fica pensando na gente. Rapaz eu vou atrás
dele. E vai buscar, pegou a canoa dela e foi embora para onde está o cara:
“Rapaz, eu estou com saudade de você, não sei o que tu me fez. Porque...upempe,
quando está chorando, está chamando ela ”. (Raimundinho)
Segundo Raimundinho, a diferença entre o tucano e kompero se situa no
poder de transformação do tucano, que toma o rosto da pessoa. A explicação de
Jomanoria confirma a informação de Raimundinho:
Tem a história e o canto do kompero, o canto dele, e do tucano também, tem
tucano, também é pusanga, tucano. Se você quisesse arrumar uma mulher, você
poderia tirar a língua do tucano, coloca a (língua) na mulher, no kitarentse dela e...
num instante vai arrumar mulher, arruma quatro, cinco (ri)”. (Jomanoria)
A receita de Jucelino é diferente. Pulveriza-se o bico de tucano, que é
misturado com o urucum utilizado para fazer o desenho de tucano. Vemos aqui uma
sobreposição crescente entre o modelo e a pia, onde a metonímia vem reforçar a
metáfora. Não apenas invoca-se a imagem do tucano, mas as próprias substâncias de
seu corpo que possuem pusanga são misturadas à tinta. Deste modo, o corpo do
animal com pusanga equivale à planta com pusanga, ambos possuindo a substância
ativa. As substâncias e os motivos são, por sua vez, associados ao poder do canto, do
sopro e do desejo expresso na letra do canto. É o canto que produz o sopro e veicula
o pensamento que faz com que a imagem do pássaro (que vem a ter a cara do
cantador) voe para o sonho da amada. A moça sonha com o abraço do
homem/pássaro e o sonho produzirá o forte desejo de repetir este encontro das
almas, desta vez, nos corpos. Jomanoria continua:
301
Quando, por exemplo, o homem está muito apaixonado por uma mulher que
não o quer, o homem vai cantar upempe, né. Aí, upempe é pusanga nosso, né, que
tem remédio da mata que chama upempexi. (Tem que) enrolar o cabelo da mulher
numa folha, que você coloca no seu txoxiki, depois canta-se a seguinte canção para
a mulher desejada: “Upempe, upempe katongo (tucano grande vai cantar em cima),
kijari, kijari kiringa (tucano pequeno vai cantar em baixo). Ela vai sonhar com
você: “Rapaz, aquele homem que sonhei, não sei, será que ele está fazendo remédio
para me agarrar?” Quando ela passa por perto de você, ela vai cheirar e então
você canta a canção.” (Jomanoria)
Aqui temos mais um exemplo onde o uso da pusanga desliza do lado oculto
de manipulação secreta do desejo do outro diretametne para a declaração aberta de
amor. Vemos, no entanto, que a declaração se segue mas nunca antecede a procura
da “vítima capturada”. A eficácia ritual confirma-se após a demonstração de seus
efeitos. Então, a moça que antes não queria, se surpreende ao descobrir que de
repente começou a desejar, a sonhar com o amante outrora rejeitado.
Este novo desejo é então interpretado como resultado da “agência”, da
pusanga do outro, suspeita que será confirmada pelo olfato: quando ela passa por
perto de você, ela vai cheirar e então (somente então) você canta a canção”. Ou
seja, se em um primeiro momento a declaração pode ser direta, depois de rejeitado
apela-se para meios indiretos que permitirão ao interessado expor-se por apenas uma
vez.
Nos casos de kompero e upempe, a pusanga ajuda a dar um segundo passo.
Assim, os dois pólos complementares da agência da pusanga em “expressar” e
“produzir” emoções servem para facilitar as intrigas do amor. Se você deixa que seu
perfume seja percebido e se, ainda por cima, canta a canção em frente a ela, a moça
nem precisa mais sonhar para saber de suas intenções. O pretendente somente se
exporá novamente deste modo, depois de ter percebido que a pusanga teve efeito,
302
trazendo a moça para perto, para cheirar, se certificar. A magia sexual possui, assim,
gradações sutis: pode provocar um amor irresistível em qualquer pessoa, todos os
tipos servem para arranjar uma ou várias mulheres”, mas a expressão das
intenções amorosas através da pusanga flutua. O alvo pode ou não estar explícito e
seu espectro vai do completamente oculto à declaração de amor aberta.
Konoyo: A devoração de pusanga.
Em uma segunda viagem a campo, durante nossa primeira noite na
comunidade de Simpatia, T, uma adolescente jovem, cantou:
Pimenta, pimenta (na língua portugesa) / Xoritso, xoritso / Kompero,
kompero / Alguém vai chorar (origalmente na língua Arawak, perdi a frase
original).”
Rompendo o silêncio meditativo da coca, a moça cantou quando foi dormir
em sua casinha, quase colada ao barracão de Karijo, onde ficávamos sentados. Sua
casinha era tão pequena que os outros diziam, brincando, que era “Culina”. Era
possível ouvir claramente que a moça cantava dentro de sua casa.
Em uma viagem de campo anterior, eu havia sido iniciado no peso cultural
desta palavra através do motivo do kompero no kitarentse, o que facilitou a
formulação de perguntas em torno do restante da canção. Tratava-se de uma lista de
tipos de pusanga ou afrodisíacos que a moça possuía, com o intuito de fazer alguém
“chorar”. A pimenta, um afrodisíaco usado na sedução, é ao mesmo tempo uma
substância que deixa a pessoa “valente”. É desta maneira que interpretei a proibição
de X, que me impediu de comer mais do que um pedacinho de pimenta em seu
roçado. A combinação de predação e sedução é igualmente evidente no caso da
análise do motivo da cobra. Na noite seguinte, T. cantou, no mesmo ritmo e
melodia, a mesma canção à qual foram acrescidos novos elementos:
303
Pimenta, pimenta / Kosaniri kontatxa (o que segundo Kapito, solteiro da
comunidade de Simpatia, significa na língua “Castiliano”: um jacaré que se vira no
seu dorso, pronto para fazer amor) / Konojo, konojo. (tartaruga)”
O simples acrescentar da palavra konojo (tartaruga) na mesma melodia, no
mesmo ritmo da canção de pusanga, reforçou uma suposição minha com relação à
tartaruga. A tartaruga era o único animal que vi sendo consumido com uma explícita
demonstração de gula pelos Ashaninka, uma clara exceção ao clássico autocontrole
demonstrado com relação à comida.
Nunca demonstram fome e sempre comem pouco para que possam desviar
melhor das flechas dos inimigos. Em um primeiro momento, pensava que a exceção
da tartaruga tinha meramente a ver com o gosto. Eles simplesmente adoravam comer
aquilo, o que não deixa de ser uma hipótese plausível, tendo em vista o alto apreço
pela carne de tartaruga na região
151
. Conhecendo aos poucos seu gosto, comendo
tudo o que eles comiam, entendi menos ainda por que devoravam tão energicamente
um konojo. O gosto me parecia muito pouco pronunciado, muito neutro. O sangue
cozido tem um gosto um pouco mais forte e salgado, mas nada de excepcional, ao
menos, para o meu paladar.
Subindo o rio, troquei sal e tabaco por um konojo na casa de Catarina, uma
Ashaninka casada com um Culina e a responsável pela introdução
152
do kitarentse
151
A tartaruga é um animal protegido pelo IBAMA. Su consumo é somente permitido às
populações indígenas e sua caça e venda são vedadas aos regionais. A carne de tartaruga é,
no entanto, considerada uma iguaria, tanto pelos regionais, quanto pelos indígenas da
região.
152
Segundo os Ashaninka, Catarina seria a responsável por esta revolução estilística. Os
missionários pregaram a vergonha de andar “nu”, oferecendo roupas de graça no começo e
foram embora. Daí em diante, os Culina precisavam comprar roupas, para as quais faltava
dinheiro. O kitarentse seria uma solução, podem fabricá-lo eles mesmos. No rio Envira
304
entre os Culina do Rio Envira. A tartaruga trocada rendeu-me informações preciosas
porque Katsimiri me ensinou a fazer um potote de uma tartaruga: pensa a cabeça
Mayaninka, teu rosto é o escudo (da tartaruga), como você vai desenhar?” Ele
mesmo nunca tinha desenhado o motivo da tartaruga no rosto... Ficou claro que no
estilo gráfico Ashaninka se poderia desconstruir e reconstruir elementos de qualquer
animal. Se poderia, por exemplo, combinar os pontinhos, situados na altura da
cabeça da tartaruga, com alguns losangos da casca.
Não o escudo do konojo rendeu informação, o simples fato de comê-lo na
praia do rio também. Ponki desenhou itoki konojo (ovos da tartaruga) como desenho
facial.
Txina com desenho facial
itoki”
Desenho facial antigo aplicado por Hananeri em me. Os
triângulos são tirados da tartaruga e os bolinhos em baixo
dos olhos são os ovos.
uma troca e colaboração crescente entre os Ashaninka e os Culina. Sendo também uma
etnia Arawak, Katsimiri comentou uma foto de um homem Culina ,vestido de kitarentse,
mas definitivamente com um outro estilo de vida, com outra postura corporal: essa foto
não presta não! Olha como ele está ficando, com as pernas separadas, abertas. Ashaninka
fica assim (reto, pernas juntas). Não está certo, melhor não tirar mais foto dele.Vemos
que, para os Ashaninka, a cushma é uma marca de identidade que é acompanhado por uma
postura corporal com uma estética própria, diferente da dos Culina. Nesta afirmação de
reprovação estética, vemos um Ashaninka querendo se diferenciar de um Culina
disfarçado’ de Ashaninka.
305
(ovos de tartaruga)
Katsimiri ficou também com seu potote de konojo. Sendo mais jovem e
solteiro, a interpretação da tartaruga era mais sofisticada. Ele comeu com grande
vontade um pedaço da tripa. É onde a tartaruga guarda a pusanga dele,” disse
Mono, um Ashaninka mais velho da comunidade sete Voltas.
Depois daquela cena de ‘devoração’, as pessoas começaram a brincar, os
casais iam para a floresta, atacando uns aos outros e rindo, enquanto diziam-se
frases sexualmente carregadas. Os desenhos eram quase um prelúdio para aquela
devoração de pusanga, de libido, de força vital. É um festival gastronômico em
várias sequências: primeiro se come o sangue cozido, depois o fígado e as tripas e,
finalmente, tira-se o que permaneceu no interior da casca. É um consumo de sangue
cozido para obter força vital, semelhante àquele que acontece indiretamente com a
beberagem de caiçuma.
306
Os Ashaninka me pediram para ensinar algumas palavras “Belgas”. Nenhuma
foi considerada o engraçada quanto a palavra schildpad”, que significa tartaruga
em Holandês.. Muito provavelmente, por conta do conceito cultural dado ao animal.
Quando me ensinava os nomes de animais e plantas, Ateringa, do Riozinho, me
contou que tartarugas fazem o mesmo som que as pessoas, quando fazem amor e
que elas podem viver por muito tempo sem comida, como narrado no mito. A
tartaruga é quase imortal. Não troca de casco, mas tem um poder, sabe “agüentar”. E
esta é mais uma qualidade que se deseja firmemente incorporar, junto à capacidade
de seduzir
153
.
Também o uso do urucum pode ser pensado desse modo, quando se coloca
urucum, por exemplo, numa queimadura. O mito do veado (veja acima) ilustra
muito bem que o urucum é também “sangue”. Tentei fazer a mesma ligação com a
casca da árvore com a qual pintam os kitarentse laranja/vermelho/marrom (fervendo
na panela parece sangue mesmo), mas parece que não conexão: é nossa tinta
responderam à minha indagação.
Jucelino comentou a importância da qualidade da pintura facial no uso de
pusanga:
Se sua mulher foi embora, você está triste. Então você faz um desenho
(facial) bem definido e ao mesmo tempo você usa pusanga no kitarentse. Se a
mulher volta, ela vai chorar, ela olha para você e tem que, e vai chorar.” (Jucelino)
O urucum misturado com pusanga é também aplicado na forma de bolinhas
no kitarentse: duas bolinhas na altura dos mamilos, uma no meio (sternum) e uma
153
Entre os Kaxinawa o jabuti representa, igualmente, força vital e resistência. Afirmam
que o jabuti tem um coração forte, huinti kuxi, expressão que se refere à resistência à dor e
à doença, garantindo longevidade, porque que ele tem muito sangue e é muito difícil de
matar (Lagrou, 2007).
307
bolinha extra entre as três pintadas. O urucum preto
154
que, segundo Hananeri, se
encontra mais na altura do rio Juruá, é conhecido por ser misturado à pusanga.
Assim, encontramos na mistura da cor preta com pusanga novamente a combinação
de poder/predação e sedução, sublinhada no conceito da cobra.
O olhar da cobra.
Segundo Jomanoria a cobra não possui pusanga:
Cobra tem, diz pessoal, para fazer pusanga, né, aí, para ficar pessoal
com medo (tawats) da gente, nê, quando ele quer falar com a gente, ele fica com
medo, fica assustado. Cobra tem, tudo mundo tem medo dele, né, e fica com medo.
Quando a gente faz pusanga de cobra, a mulher não quer mais tu não. Tudo mundo
tem medo. (Para fazer a pusanga da cobra, você) mata a cobra, tira o olho dele, e
coloca no olho da gente. E quando (as pessoas) conversam (com a gente): rapaz,
esse homem é valente!” Mas, não é valente não! É. Botou cobra no olho dele e
ficou, tudo mundo tem medo (riso forte).”
Por outro lado, uma aparência temível é às vezes desejada e procurada.
Jomanoria continua, fazendo ele mesmo a ligação com outras facetas da arte
corporal Ashaninka:
Como eu disse (o mito que acabara de contar), né, aquele menino que saiu lá
na casa da cobra, aprendeu a fazer colar assim, fazer txoxiki, trouxe semente (para
fazer txoxiki) para plantar, por isso a gente tem agora semente dela (da cobra),
também aquele, outras plantas trouxe para plantar, por isso que a gente tem agora
semente dela, também aquele, outras plantas trouxe para plantar, por isso que a
gente tira para fazer txoxiki. (Jomanoria)
154
Preto é associado ao estado “valente”. Seres de cor preta conotam esta qualidade, como
a cobra arco-íris, a onça preta, o maribondo, o Policial Federal e etc.
308
Enquanto Jomanoria enfatiza o lado poderoso, temível da cobra, outros a
associam diretamente ao mundo da pusanga
155
. Warenko da comunidade Coco Açu
afirma: “se pisar numa cobra, ela se levanta imediatamente. Pusanga.”
A cobra é muito potente e possui remédio contra impotência. Jucelino, que
tem um kitarentse com o motivo da cobra nonki, o pai de todas as cobras, a
receita: qualquer cobra, (tem que) cozinhar bem duro, faz um pó, beber. Misturar
com bebida.Esta alquimia afrodisíaca se explica à luz do mito de origem da cobra,
narrado acima, surgida a partir da transformação do pênis gigantesco do Ashaninka
que fez amor com um sapo, com a aparência de uma linda mulher.
Este mito estabelece de modo inequívoco a relação direta entre potência,
desejo sexual e a cobra. Foi o ato sexual com o sapo que causou o crescimento
desmensurado do membro viril do herói do mito e foi um pedaço deste membro que
se transformou em cobra. Matxow, uma adolescente da comunidade de Bananeira,
me afirmou que as pinturas faciais da cobra são para namorare que as outras são
assim mesmo”. Warenko e Hananeri corroboraram apenas com a primeira
afirmação: “o desenho, potote
156
, da cobra é para namorar.”
Vê-se aqui, novamente, a lógica do acúmulo da agência artística destes
índices do desejo, as pinturas faciais feitas com urucum: o próprio motivo da cobra
possuindo pusanga é executado com um urucum que foi misturado com pusanga.
155
Entre os kaxinawa, homens e mulheres podem ritualmente matar uma jibóia para com
ela fazer um pacto e dela obter as artes produtivas próprias do seu gênero: sorte na caça
para os homens e um olho para tecer com desenho, para as mulheres. As mulheres podem
ainda adquirir controle sobre sua própria fertilidade através do uso do sangue da cobra. A
jibóia controla os fluidos, o fluir do sangue na menstruação e na caça. A mulher que ingeriu
o olho da cobra possuirá ainda um poder de sedução enorme. O paralelismo entre atrair a
caça e o par pelo olhar hipnotizante da jibóia é muito claro para os Kaxinawa que, como os
Ashaninka, associam o fenômeno da sedução ao da predação (Lagrou, 2007).
156
Potote: pintura facial com urucum.
309
Onde reside o poder hipnótico, no próprio desenho de cobra feito por Caxo,
ou na substância por ela usada? Segundo Matxow, Caxo é a que melhor sabe
desenhar na aldeia: “é mais sábio”. Sabe mais ou pode melhor? Para os Ashaninka, a
arte, seu fazer, é, expressa conhecimento (ayórenko). Hananeri pediu a Caxo para
pintar o kitarentse de Antaro, minha esposa. O desenho escolhido foi igualmente o
desenho hipnotizante de uma cobra que Caxo havia visto na floresta
157
.
Matxow afirma que ela seduziu “I.”, da comunidade de Amônia, com um
potote de cobra e que o urucum era misturado à pusanga. Ela acrescentou que
cobras namoram melhor do que matontori (gato-do-mato). Sabem namorar melhor
justamente porque possuem pusanga.
Um dado interessante que vem reforçar esta associação entre sedução e
predação é que o desenho facial do gato-do-mato, chamado “olho do gato”, é
aplicado tanto para guerrear como também para seduzir. Josimar, da comunidade de
Simpatia, produziu uma pintura facial onde combinou os motivos de manitsi (onça)
com os de upempe (tucano). Notamos novamente a combinação de poder e sedução,
mas desta vez composto de motivos de dois animais.
Jucelino sorriu ao lembrar o desenho que fez quando encontrou sua esposa:
foi um desenho de onça, manitsi. O mesmo desenho, um potote de manitsi, decora
seu rosto fotografado na sua carteira de identidade. O que, segundo os Ashaninka, é
mais um potote para “brigar” vai além da predação, que Jucelino lembra ter
conquistado sua esposa armando-se do motivo do gato-do-mato. Notamos aqui uma
clara associação entre beleza e poder, beleza produz capacidade agentiva,
acendência sobre outras pessoas, capturando-as “para o bem ou para o mal” (Gell,
1998).
157
A ‘enciclopédia da floresta’ (2002) menciona o consenso em torno da capacidade da
cobra de hipnotizar sua presa. Outro fato biológico notável é que a anaconda, a maior cobra
da América latina, faz amor com mais de vinte parceiros ao mesmo tempo, produzindo uma
bola de cobras entrelaçadas.
310
Esta estética se combina perfeitamente ao ideal para guerreiros, que se
“adornam” com txoxiki de kempiro, a cobra Lachesis muta, uma das cobras mais
temidas do Novo Mundo
158
.
Até a lua, uma entidade masculina para os Ashaninka, contém esses dois
elementos. A lua vai pegar os mortos, predando, por esta via, o mundo dos vivos,
enquanto a lua nova aponta para o mundo de amor. Antxari disse“quem primeiro
(a lua nova) vai receber uma namorada. Eu tenho três mulheres. Para me não
importa mais. também uma bebida feita da casca de uma árvore, de cor
alaranjada, e que deve ser tomada durante a lua nova, para se tornar mais forte. Põki
viu primeiro a lua nova. No dia seguinte, pintou a lua em seu rosto (pinta-se também
a lua nos kitarentse).
Acontecimentos e intenções servem de inspiração para as pinturas faciais,
como também Zahir desenhou o trovão, quando uma tempestade estava no ar. Outro
mês, X pediu à lua nova para aprender a escrever. Ela precisava escrever cartas de
amor para o namorado branco em Feijó.
Emoções encaixadas.
Quando toquei a canção de T. (“pimenta, pimenta, kompero, kompero...”) que
havia gravado naquela noite, para poder analisá-la, quatro meninas adolescentes se
ofereceram, ou melhor, insistiram em cantar para o meu gravador. Eram canções
improvisadas com um ritmo e melodia preestabelecidos para encaixar seus desejos,
aventuras e dores amorosas. A canção de T. era repetida várias vezes. Canções
repletas de referências à pusanga que as fazia rir, soltar gritos alegres, segurar os
seios e esvoaçar os kitarentse como fazem também quando a “pressão” da
ayahuasca chega. No dia seguinte, todas ostentavam pinturas faciais
158
Segundo o guia de sobrevivência do S.A.S Britânica, 2001: 236.
311
elaboradíssimas. Descrevo o contexto aqui, porque suas reações nos permitem
entender o quanto as emoções o controladas e esteticamente canalizadas, neste
caso, através de suas canções. O que se segue é a tradução parcial de um canto por
C., irmão de uma das adolescentes. Parcial por causa do conteúdo: sempre aparecia
alguém, de quem o conteúdo devia ser escondido:
Aritake pirajena wawato vai chorar em outro canto wawato (arara que tem
pusanga).
Quando (ele) não vai querer, vou pegar aquela pusanga de genontse
(macaco) (folha pequena).
Vou pegar pusanga na mão e cheirar, assim o outro vai chorar.
Pusanga para colocar no seu pé.
Eu vou rasgar o kitarentse da outra. Vou rasgar o mosqueteiro também.
Vai chorar kompero.
Tucano vai chorar, vai espiar para ela.
Elas desejam um homem que está casado com outra ou que as abandonou.
Kompero, sawaw e upempe são chamados, a pusanga vai ser utilizada. Alguém vai
chorar. Às vezes, o tom é humorístico. Riam muito quando cantam que alguém
enfiou a cabeça no mosqueteiro delas, mas não entrou totalmente (para namorar),
enfiou a cabeça e foi embora”. Ou quando cantam que vão “baixar a calça” de um
homem. Outras vezes, a letra é mais eroticamente carregada: vou tirar meu
kitarentse, depois vou pegar ele.Ou, mais para aliviar sua dor, quando a canção
serve como remédio: “Alguém olhou para me, mas se casou com outra. Estou
escutando o “motoro” do barco, ele está indo embora...”
Pediram para tocar a fita de novo e de novo. Ficavam sempre ansiosas, tensas
e excitadas. As três adolescentes que cantaram alguns dias antes, estavam
312
claramente usando muita pusanga no piarentse que se seguiu. Era possível sentir o
perfume quando passavam. A magia sexual não estava nem um pouco escondida.
Além disso, elas anunciaram alguns dias antes as suas intenções, cantando.
A canção, ao mesmo tempo humorística e erótica sobre o jacaré, ressalta
esses mesmos aspectos encontrados no piarentse: Jomanoria afirma: Canta-se essa
canção quando o pessoal está tomando caiçuma, né, quando uma menina
deitada, assim, com peito para cima e com perna balançando, o cara canta, né,
do kozaniri, parece kozaniri kontatxa, peito para cima, né, ela balançando as
pernas... Aí começa a cantar (a canção sobre o jacaré que estava igualmente
balançando a perna desse jeito). Quando essa canção foi performada por Hananeri,
as mulheres riam muito e as crianças se mostravam interessadas, pedindo mais
explicações, enquanto já suspeitavam algo do conteúdo: o canto descreve uma fêmea
de jacaré que está deitada na praia do rio, peito para cima, as pernas abertas. Quando
o Ashaninka chega mais perto, o jacaré não está mais disposto a fazer sexo e
desaparece embaixo da água.
Quando hananeri está realmente sob o efeito da caiçuma, canta Um presito
(homem que adora ir atrás das mulheres) mariri sem fim. Hananeri canta ainda
outra canção de amor do piarentse. Sendo homem, ele canta bem alto a canção de
uma mulher. Hananeri explica: É usado pela mulher quando ela quer que um
homem pensa nela: o que tu faz?, tu não quer namorar comigo ?, então, tu vai
ver, depois tu vai pensar comigo, tu m de novo, voltando comigo, tu vai querer,
você pensou que não ia lembrar de me, não é? ... (esta canção lembra um pouco a
canção do piarentse, onde a comunidade inteira estava dando força aos sofredores,
em torno do caso de Z).
O piarentse é sempre encerrado com uma canção para Pawa: o sol se levanta
e Pawa está vendo como os filhos da mandioca estão festejando bem e que eles
fazem isso muito bem, explica Hananeri.
313
Outras pinturas remetem à outros desfechos da relação amorosa. A pintura
facial de majnto (um peixe) aponta para o fato de deixar o marido ou a esposa”. O
motivo usado para este fim se encontra na altura do rabo do peixe. Wenki Pianko
comenta: Se alguém pinta majnto, um peixe que nunca sai do lado da(o)
parceira(o) dele(a), no rosto o(a) outro(a) vai cantar:
Deixa teu marido porque eu quero te amar.
Deixa tua filha para trás, deixa tudo e vem para me.
Você é um cachorro, eu sou também um cachorro.
Você é um macaco, eu sou também um macaco.
Estou aprendendo a tocar tambor,
estou aprendendo a cantar,
agora é você que tem que vir para mim.”
A canção do falcão (mero), pássaro que possui uma visão muito aguda, fala
do perigo quando se começa um caso sem deixar primeiro o (a) parceiro(a). O falcão
deseja começar uma liaison com outro/a. Canta-se num tom meio chorado: cuidado
falcão, seu marido/sua esposa vai te ver.” Nos casos do mainto e mero, os homens
podem tocar flauta para que a esposa volte.
314
Desenho mainto
A borboleta, pimpetse, é outro motivo ligado ao amor. mencionamos as
borboletas pintadas no kitarentse de X. Segundo Jomanoria, as borboletas
expressam: muita energia, cheio de idéias, muita sorte, muita paixão”. Jomanoria
desenhou um tipo de borboleta chamada tampi e comenta: Tem muita borboleta
que a gente encontra na mata, né, bonita né, aquela é cheia de paixão, com
paixão, esse daí é o desenho da paixão.”
1. As tentáculos
2. “O olho da borboleta nas asas.”
3. “A perna dele.”
Além do uso do motivo na pintura do kitarentse e na pintura facial, a
borboleta integra também receitas de pusanga: “A borboleta só se alimenta de
315
flores. Se pega a flor com a qual a borboleta se alimenta e se deixa as flores secar.
Prepare isso com teu perfume, no seu urucum e ela vai te proteger, você vai ter
sorte, como ele, no desenho.
Pusanga remete ao cheiro doce de certas plantas e de flores. Assim como se
esfrega o seu txoxiki com uma folha de pusanga para que fique cheiroso, se pode
igualmente usar um papelzinho ainda cheirando de uma bala comprada na cidade. O
mesmo pode ser amarrado no pano de carregar ou na tatanentse, como também se
faz com a baunilha. Na mesma linha de continuidade entre a imagem e a substância,
vi uma tatuagem de uma bala no braço de uma mulher. A imagem da doçura gravada
na sua pele visava atrair mais doçura.
Tsipana
Demorou meses para que pudéssemos aprender algo mais sobre a pusanga.
Até então, a respostas evasivas às nossas perguntas não passavam de é assim
mesmo.” Uma das primeiras pessoas a me iniciar nos segredos da pusanga era
Julietta, que chegou um belo dia com duas folhas de tsipana (sororoca). A filha de
Julietta ostentava uma pintura facial que era claramente algo mais do que é assim
mesmo”. O silêncio era de tal tamanho que pensava em abandonar o “foco” da
pesquisa, em torno da arte corporal. Até que, no dia seguinte, quando fiquei sozinho,
Julietta veio me mostrar duas folhas de sororoca. Ela me explicou que sua filha,
como também Nawio, que tinha um desenho facial parecido, ficou com vergonha de
falar, justamente, porque pintaram as linhas da tsipana, planta que pode ser usada
como pusanga. A planta é queimada, triturada e o pó das folhas misturado ao
urucum utilizado para se pintar.
316
Folhas tsipana
Pintura facial de Tapi: tsipana (Segundo Tapi, a folha representada é pusanga.
Segundo outros Ashaninka tsipana não é pusanga.)
317
Pintura facial tsipana (sororoca).
Pintura facial tsipana:
318
Pusanga e pusanginari
Gostaria de reconsiderar, dentro do quadro conceitual deste capitulo, dois mitos,
que desta vez contados por Jomanoria e com tônicas diferentes. Onde Carijó sugeriu um
link entre o mito de origem das cobras e o mito de origem do kitarentse (tendo ambos os
mitos o mesmo protagonista), Jomanoria enfatiza um laço entre o mesmo mito de origem
da cobra (onde um homem solteiro é o protagonista) e, desta vez, o mito da origem dos
desenhos (faciais e nos kitarentse) ensinados pela cobra pusanginari (onde uma mulher
solteira é a protagonista).
Jomanoria contou os dois mitos, um imediatamente após o outro, apontando para a
inversão paralela Levi-Straussiana do gênero dos protagonistas e para a conotação sexual
paralela da cobra em ambos os mitos. No primeiro mito, o pênis origem a todas as
cobras e no segundo mito a cobra penetra a vagina de uma moça.
vimos como a cobra kempiro ensinou os desenhos (e o txoxiki e o chapéu) para
um homem Ashaninka, enquanto aqui a cobra pusanginari ensina os desenhos para uma
mulher. Na versão de Jomanoria sobre a origem das cobras destacam-se os desenhos no
dorso do sapo que são parecidos à cobrae que são esteticamente apreciados. Também
faz-se aqui uma alusão ao txoxiki, sendo um pênis enrolado em torno do pescoço. Neste
contexto não seria exagerado de pensar o txoxiki como um símbolo fálico, mbolo de
virilidade. A versão de Jomanoria enfatiza, ainda mais que a versão de Carijó, que as cobras
seriam muito parecidas com um pênis. A transformação do sapo (com um desenho parecido
com aquele da cobra) em uma anta (depois do coito) é também um elemento novo. É a
razão para que o pênis tenha crescido demasiadamente.
Quando fui caçar com Tanta ele esclareceu, jocosamente, porque a anta figura neste
mito: a anta tem de fato um pênis grande.
319
Outro elemento novo é que o avô do menino seria o pássaro que avisa aos
Ashaninka sobre a presença de cobras, o pássaro que controla também a agressividade (a
força) das cobras que aumentaram (se multiplicaram) muitodesde que foram originadas.
Jomanoria conta:
O passaro e a cobra.
320
A história da cobra, né, porque antigamente não tinha cobra. , era antes que
Pawa foi embora. Ainda existia poder, né, poderoso, né. Ainda era gente, aonde a gente ia
na mata e se tu conversa com ele assim e tu sabe cantando (e como os Ashaninka ainda
fazem, meditando com tabaco, coca ou ayahuasca) é possível comunicar com animais, se
“conhecer” a canção deles, se sabe “cantar”. Aí depois fica dizendo: “eu quero ver você.”
E forma homem. Mulher ou homem, né. você pode conversar com ele. Mesmo jeito
esse rapaz, (introduzindo a personagem principal do mito). Ele andava, andava,
buscando uma mulher, não achava mulher. Não tinha sorte para achar mulher, né. Aí. Ele
procurava para casar uma mulher. Ele andava na mata, caçava, ia para a casa dos outros
parentes, né, ninguém queria ele. Ninguém queria. ele foi, e agora , o que eu vou
fazer?” Ele subiu um pequeno igarapé e subiu para cima, subiu, subiu. Aí, subiu na terra,
terra grande, né. escutou aquele..., tem um sapo, sapo, parece gia, pequenininho assim,
parece com ele, né, peito dele é azul assim, lavradinho, riscadinho (Hananeri comenta na
história que Jomanoria está contando: ele tem desenho também, ele sabia). Parece cobra
também ele, desenho dele fica bem bonitinho ele. escutava ele, canta dele, ele canta (o
sapo): Hu! Hu! Bem miudinho. Parece aquele gia. Aí, o rapaz passou pertinho. Hu! Hu!
“Quem está cantando aí, se fosse uma mulher para me para transar com ela, aí seria bom!
Aí, ele estava com raiva (porque não estava achando nenhuma mulher), né, foi, quando
ia passando, escutou: (onomatopéia de um beijo). Chamando ele. Aí quando ele viu,
formou gente! Fecha os olhos! Fechou os olhos, aí..., era mulherzinha, pequenininha
assim...: ”porque tu estava dizendo (se fosse uma mulher seria bom) ?Não,” ele disse,
“escutei sapo cantando, eu chamei para...” Aí, eu, bom, se quiser, vamos.” “Então,
embora.” foi, conversou com ela disse rapaz, estava doido para transar, né.” Aí, ele
transou com ela. Aí, quando terminou, quando terminou ela formou numa anta. Rapaz,
quando saiu negocio dele, ficou grande assim, comprido. Ficou grande (o pênis), ficou
grande, cresceu, ficou grandão, assim, comprido. Aí, não podia mais sair da casa. Ficou
com vergonha para sair. pegou, enrolou pénis no pescoço dele, enrolou, né. não
podia sair, foi para a roçada arrancar macaxeira para comer, né. Não saiu mais, ficou
com vergonha, né, cresceu muito, né. Aí, ficou pensando: ”Agora, como é que vou fazer?”
Aí, ficou andando, andando na mata assim. Arrancava macaxeira e comia na mata. Agora
ele foi e subiu num igarapé pequeno. Foi na cabeceira. Ficou pensando: “E agora, como é
321
que eu vou corar? “Aí, tem aquele siri, no rio não tem, na cabeceira de um igarapé
pequeno. Ele entra em baixo das pedras, né. Aí, ele falou com ele. Chamou: “cunhado, sai
rapaz, vem me olhar, o que que eu tenho aqui. Demorou um pedaço, conversou de novo
com ele, chamava, aí, chamou três vezes e respondeu dentro: “quem está me
chamando?” “Sou eu cunhado, vem ver, eu queria conversar com você. Está bom. Espera
aí. Deixe me ajeitar um negocio aqui (disse o siri), ajeitou o negocio dele dentro, não
sei o que ele ainda devia fazer, né, ele saiu da porta dele, disse que era porta dele. Saiu e
quando olhava: “Iii, cunhado, o que tu tem?” Disse: “rapaz, eu transei com..., com
bicho,aí, formou anta e aí... Tu tem remédio para ajeitar esse aí? Tenho! Espera aí, eu vou
buscar o tesouro. Aí, saiu de novo com tesouro dele na mão, né, aquela boca dele, né,
parece tesouro, (Hananeri está rindo). foi. Cadê? Enrolado. Cuidado! Pode afastar
mais! Colocou assim, né. Pode jogar e... (Hananeri: Para saber o tamanho do pênis, que
tamanho tu quer?”) Agora tamanho, deste tamanho, né, todo mundo é deste tamanho
mesmo, né. Tem outro que sabe remédio para crescer mais, (rindo). Bem pequeneninho,
depois fica reto, né. Mediu. Aí. (rindo). Aí, mediu, cortou, “afasta mais.” Tá.”
Txxxiii (onomatopéia), correu cobra grande. Formou cobra. Aí, formou cobra. Agora
cortou, não doeu não, ele fez aquele pescoço, parece com ele, né, pénis da gente, não
parece cobra? Pénis todo, teu, parece cobra, cabeça dele, né, tu viu? Por isso que, ele,
ficou, fez cabecinho dele para parecer cobra. Aí, fez aquele buraco para poder urinar.
correu cobra, cobra se foi embora, aí, agora, por isso que cobra criou se. Criou se cobra, e
também avô dele para tomar conta, para não... Porque se ele (avô) não tivesse cuidado
com ele, toda vida ele ia matar, morder. Ia morder gente, muita gente, ia morder muita
gente de mordida de cobra. tem avô dele, tem avô dele, aquele passarinho que canta,
avô dele que canta: “pu, pu, pu, pu.” Passarinho, aquele avô dele. Cuidado dele, não vai
mexer. Assim como nós ,né, quando gente vai para a mata, vê ele, corre, né, escapando, vai
se embora também. Ele também fica com vergonha, quando a gente, encolhe a cabeça
dele, quando vem pertinho dele, vai se embora cobra. Aí, depois que ajeitou negocio
(pênis) dele, conversou: rapaz, você tem que ter cuidado agora. Porque essa cobra que
foi aí, ele vai se aumentar muito. Vai ter cobra pequena que subi na pau, tem jibóia
lavrada, a gente chama kempiro, kempiro. Tem outro, aquele surucu de baranco, também,
ele vai se formar todinho, toda aquele pênis, xiwitsi, vai formar todas as cobras. Agora,
322
por isso, a cobra, quando você a vê parece cabeça do pénis mesmo, né. Tu vai ver agora,
em todo canto vai ter. Vai ter muita cobra. Coisa verdade. Aonde você vai na terra, tem
cobra. Tem muitas cobras. Pois é, por isso que agora tem muitas cobras.
Logo em seguida, Jomanoria conta o mito do pusanginari: ao contrário do mito
anterior, o protagonista é desta vez uma mulher solteira que não consegue achar um
homem. No começo do mito, ela está sentada em uma “tocaia”, durante a fase de
menstruação, onde ela tenta atrair os homens através de seu sangue. A palavra “tocaia” é
somente usada na “caça” e inverte o sentido dado ao conceito “reclusão” (durante a fase da
menstruação). Antigamente as mulheres deveriam ficar nesta tocaia durante a primeira
menstruação para que o vento não entrasse na boca delas, para que os dentes não fossem
estragar logo, para ela não ficar valente ou com raiva do marido futuro, que ela não
bater na boca dele quebrando os dentes dele, né, e para não de repente ficar velha quando
ver um urubu. Num instante ela fica velha, não demora.” Interessante é que a moça que fica
em reclusão para não envelhecer, de repente, receberá a visita da cobra pusanginari que
traz consigo, como veremos agora, uma proposta para torná-la imortal.
Nesta versão, mencionam também que a cobra queria ensinar aos Ashaninka como
“trocar de pele”, criando “uma criança nela”. A mãe descobre “a cobra dela” e joga água
fervendo
159
nela, um gesto castrante da parte da sogra. Por isso e por uma dieta que não foi
seguida, os Ashaninka perdem, mais uma vez, a chance de obter a imortalidade. Fazer sexo
com a cobra é fazer sexo com o “filho de deus” que, portanto, não morre. A geração
seguinte iria herdar a imortalidade.
Perguntei a vários Ashaninka com relação à semelhança entre as palavras
pusanginari e pusanga: parece que eles não fazem uma ligação, pelo menos não
conscientemente. que a antropologia não trata apenas das coisas que as pessoas dizem
que fazem, mas também das coisas que de fato fazem, arriscamos aqui uma relação entre as
duas palavras e com isso já sugerindo uma possível conclusão.
No mito de pusanginari os Ashaninka perderam a chance de trocar a pele como as
cobras fazem mas, em contrapartida, aprenderam a desenhar. Entre outras razões, desenhos
159
O interessante é que a cobra se queima pela água fervente e não em razão do contato
com o sangue menstrual. Ao contrário, desta vez parece até ser atraída pelo sangue.
323
são sempre aplicados para se estar “bonito”, o que aponta para uma estética de sedução. Se
perderam com pusanginari uma chance de imortalidade, ganharam, por outro lado, a
capacidade de seduzir um parceiro/a através dos desenhos de pusanginari, com ou sem
pusanga. Essa sedução oferece a oportunidade de pelo menos esquecer por alguns instantes
a morte. Através da ayahuasca encontramos a mesma ligação entre a busca de imortalidade
(que é incerteza) e a beleza recebida (certeza). Como Hananeri explicou, kamarãpi
(ayahuasca, daimi) influencia sua aparência: “quando tomar kamarãpi, mulher virá bonita,
homem também.” Voltaremos a este assunto durante a conclusão. Jomanoria continua:
Ela ficou na tocaia. Aí, pusanginari, ele vem dentro da água assim, parece que ele
sentiu, né, sangue. Alí, ele fez um buraco aonde ela vai urinar, né. Aí, quando ele sentiu
que era mulher, ele fez um buraco e saiu onde ela estava. Onde estava menstruando,
saiu o negócio (sangue) quando ela estava dormindo, quando ela acordou viu um cara
dentro da mosqueteiro dela, na cama. Ela disse: rapaz de onde tu veio? Eu veio daqui
mesmo, respondeu ele. Aí, depois ela..., transou também com ela. Transou e fez um menino
na barriga. Ele disse a ela:” agora tu não pode dar milho como comida, porque quando
você dar milho ele vai quebrar todinho, arranca em pedaços, ficarão pedaços, morre.”
Aí, ela não dava milho, dava macaxeira para ele. Não dava mingau de milho, não dava
não. ela deixou, né, e quando foi, nasceu menino, aí, pai dele (a cobra) veio. Saiu
certinho, tinha um buraco assim, né, tem buraco onde ele ficava dentro. Ele fez um buraco,
né, ele entrou na vagina dela e ela sentiu, né, estava dormindo. E ela; quem está aí dentro?
Respondeu que era ele. Ele saiu e formou gente lá (se transformou em humano). Ela
conversava com ele, a mãe dela escutava ela conversando, . (A e dela estava se
perguntando) “- Rapaz, com quem ela está conversando?” Aí, ela não sabia que tinha um
homem dentro do mosqueteiro, na cama, né, aí, ela conversou, conversou até amanhecer e
dormiu. Mãe dela vem devagarzinho: - rapaz, o que você esta conversando?” “-
Nada,...”, (respondeu a filha). “- Não, eu escutei um homem conversando aqui dentro.”
Nada não.” Ela (a mãe) saiu. Ela já estava com barriga já grande do menino. Num
instante cresce. Num instante cresce (não é preciso esperar por nove meses). Tu não viu,
aquela cobra, filho de deus também, tu não viu quando a cobra está velha, ela tira a casca
dela, tira logo, fica novinha, né. Ele (a cobra) queria mostrar para os Ashaninka, né, para
324
ficar (imortal) também, quando está velho assim, para tirar também, vai cair no rio, tirar,
como cascando, né, fica novo, né. Pois é. Depois ela foi limpar a roçada, né. E ela pediu,
rapaz, não quero, que entrar dentro no meu mosqueteiro, na minha cama, não quero, não
deixa mange entrar dentro do mosqueteiro. Aí, ela pagou uma esteira e colocou em
cima, tampou, (o buraco para onde a cobra veio), kitarentse em cima. Aí, ela saiu, foi
limpar a roça. Aí, quando a mãe dela, ela sabe (suspeitava algo), né, quando levantou
aquele..., aí, ela viu uma cobra, grande, rapaz, um monte de cobras ficaram dentro
daquele buraco. (A mãe) ela disse: “- ahhh, esse daqui, vem daqui...” Ela foi, pegou água
quente numa panela de barro, antigamente não tinha panela de ferro, s chama txombo.
Aí, ela foi pegar água, aí, mandou tirar lenha e ferveu: “- vou matar cobra dela.” Pegou
água que estava fervendo, despejou dentro do buraco, cobra queimou, aí, a cobra correu,
entrou no buraco, foi-se embora, saiu no rio. Saiu no rio e subiu onde mulher dele estava
limpando a roça e subiu: - Rapaz, tua mãe me queimou agora, eu não vou mais lá agora.
Você não vai me ver mais.
Neste ponto, Hananeri interrompe Jomanoria para enfatizar o lado humorístico: “(a
cobra) ele saiu, ele saiu para olhar, está chegando a mãe dela, (enquanto que) pensava
que a mulher dele estava chegando. A mãe está chegando e queria reparar e quando abriu
assim, pensando que era a mulher dele, saiu (do buraco), reparou e levou com água
(Hananeri ri muito e as crianças também). Ai, foi, queimou a cara dele e foi embora.”
Agora a barriga, tem menino dentro da barriga: quando nascer, você não
milho para comer, não dá outras coisas, só macaxeira mesmo. Quando ela ganhou menino,
né, aí, sempre ela ia, ela viu ele (a cobra) em segredo; pode comer peixe e nambu, milho
não, faz mal para ele. Aí foi, no outro dia, quando ganhou nenê, ficou grande, num
instante, cresce, ficou grande. Tu não viu cobra? Cresce logo. Aí, mãe dele falou: eu deixo
seu neto aqui, quando acordar, me chama. Tá. Vou para a roçada mesmo. quando
chegou, o menino estava acordado, estava chorando. Estava com vontade de d comer,
estava com fome. Pegou mingau de milho, né, e foi comer e quando deu comida para ele,
botou na boca dele, engoliu, ááá, quebrou todo, todo aqui, ficou todo roladinho, com sua,
mudinha de carne... Aí, ela chamou (a cobra), filho dele: “- Vem por aqui, vem ver teu
filho!” Quando chegou, ficou pedaçinho dele, também orelha, cabeça dele. “- Eh,
rapaz, que comida tu deu?” “Dei milho.” “Ahhh, porque tu deu?” Aí, ela juntou (os
325
pedaços do filho) num vaso. Aí, tem lago, assim, pertinho, um lago. Ela chamou, gritou.
Respondeu pai dele. Rapaz, vem ver o menino. Aí, ele disse “rapaz porque tu deu milho, eu
sabia que tu ia dar milho para ele. Aí, ele ajeitou de novo e formou de novo. Aí, ficou com
raiva da mãe dela, né, e foi se embora. Depois, a mãe dela ficou também com raiva. Ela
(esposa da cobra) foi-se embora. Disse: - Vou também. E ele levou ela por perto do rio,
não veio mais. Aí, até agora, ta lá, como pusanginari e ele disse que, agora, pusanginari
dela, cushma dela, todo era pintado, né, cushma dele tudo pintado, cara dele pintado, por
isso que diz: pusanginari. Aí, a gente aprendeu pusanginari, não viu? Tem muita gente que
tem pusanginari, né, jenipapo, né, na cara. Foi pusanginari que ensinou para gente.
Aprendeu a fazer pusanginari”.
Uma conclusão: o poder das sereias na odisséia de Hananeri, em
busca da imortalidade.
Começamos esta tese com o tema da busca de Hananeri pela imortalidade e
finalizamos nossa exploração da estética da vida Ashaninka, com a busca pelo amor
consentido, cuja técnica consiste no uso apropriado de motivos, gestos, silêncios,
olhares e pusanga. O estudo da estética Ashaninka nos levou, deste modo, a uma
tecnologia do controle das emoções; das próprias emoções assim como das emoções
dos outros, principalmente daqueles cujo amor se deseja conquistar.
A arte do desenho e do perfume entre os Ashaninka encontra sua eficácia
estética na capacidade de afetar e modificar o desejo do ser amado. Deste modo,
seguimos à risca a recomendação de Malinowski de nunca deixa(r) escapar o que
as pessoas fazem para ficarem felizesO tema desta tese foi o de tentar entender o
que fazem os Ashaninka, em sua busca pela felicidade.
Na análise dos mitos e motivos que tratam sobre a busca da imortalidade,
encontramos remédios contra doenças e tentativas de transcender a morte, para
sermos levados enfim à cura da maior dor da alma, na concepção Ashaninka: as
dores do amor. Nesta conclusão, tentaremos demonstrar que é na própria figura de
326
Hananeri, protagonista desta incursão ao mundo vivido dos Ashaninka, que os temas
da imortalidade e da fascinação pelo amor se encontram, se debatem e se conciliam.
Hananeri é o prototípico asceta don juan Ashaninka.
Retornamos, então, ao começo, à imagem do Inka, procurado por Hananeri
em sua viagem pelo Peru. Jomanoria e seu pai nunca foram a Cuzco, mas têm
conhecimento sobre Inka, de ouvir falar e por causa de uma música que lhes foi
apresentada pela ayahuasca, uma música vinda de Cuzco.
Jomanoria conta:
Tudo mundo foi embora, Pawa para cima e Inka virou pedra, fica em
Cuzco. Inka ficou para trás e virou montanha para segurar a terra quando a terra
se movimenta. Ele fica na montanha, onde tem gato, onça e katairiki (onça
pequena). Eles não podem sair de lá, senão comeriam a gente. Os morcegos dão
comida para eles (tomando sangue). Em Cuzco ficam muitos espíritos”.
Sobre sua odisséia, Hananeri conta:
no Peru tem muito piripiri, mais do que aqui porque aqui tem pouca
gente. No Peru tem muitas comunidades e os de um rio vão matar o outro (o que
contradiz um pouco a proibição de endo-guerra, segundo Casevitz, algo que também
Mendez menciona). O ano seguinte o outro vai atacar. eles são muito valentes.
Se a gente passa por lá, nos matam. Não sei como meu pai fez para escapar. De
noite devagar, deitado na barriga na canoa, perto do barranco. Outros estavam me
chamando, vem beber caiçuma! A caiçuma deles é muito forte. Um copinho pequeno
é suficiente para sentir seu efeito. E as mulheres são mansas. Uma veio para
Hananeri e disse: “- tira teu kitarentse, eu vou te controlar.” Para checar aqueles
pontinhos vermelhos, mordidas de insetos, ela se deitou imediatamente ao meu lado.
Outra vez fui mijar e uma veio junto. Hé! Eu vou mijar, tu mija aqui tá! Outra noite
acordei e senti um braço em cima de mim: Hé, o que é isso? (Ela): - eu te esquentei
durante a noite, você não tem frio então? Outros são muito valentes, atiravam na
327
gente. Atiramos de volta, mas não para acertar neles. Sabem pular, tem cabelos
compridos, muito valente, ligeiro. Eles têm também kitarentse bonitos. Pano fino,
não grosso como nosso. A gente trocou um txoxiki por um kitarentse. Eles não têm
txoxiki lá, por isso que as mulheres vieram para mim
160
.”
Hananeri continua:
Elas também têm pusanga forte. Tinha uma mulher que chorou, a mãe
dela também. Ela queria que Hananeri se casasse com ela. O pai dela também.
Hananeri falou: “eu sou jovem demais.” Eles responderam: “a gente vai te dar
comida, você vai crescer.” Mas Hananeri tinha saudade da mãe dele, que estava
longe de lá. Mas pusanga que ela tinha! Cada vez que ela aparecia nos seus
sonhos, Hananeri chorava. Pusanga tão forte, que ele queria voltar. “‘ -Vamos
embora! Agora estamos longe’ (demais para voltar). Assim mesmo! elas estão
mansas, não como aqui. Eu fiquei no Juruá quando conheci Tenoria (esposa atual).
Mas depois (daquela experiência), eu não queria mais mulher, eu queria aprender
com tabaco”. Nota-se aqui a ligação entre o tabu sobre relações sexuais durante o
aprendizado com tabaco e uma má experiência, uma tristeza no amor.
Segue a história onde Hananeri aprendeu com tabaco. Na verdade, quase
tinha aprendido, sonhou bem, o tabaco havia perguntado a ele “- o que você
quer?”. Depois dormiu na praia com um tio dele que disse: - vem comigo, uma
mulher que está querendo...” “- Não, eu sonhei bem com tabaco”, Hananeri
respondeu. O tio disse: “- Vou te assoprar com meu cachimbo, assim não faz mal
não”. Ele mentiu! Quase morri! Voltei para casa e quando provoquei um pedaço
do meu fígado, minha mãe começou a chorar, eu ia morrer”.
160
Interessante aqui é pensar a miçanga neste contexto. Tudo o que fizeram antigamente
com sementes pequenas fazem agora também com miçanga, como os vi também fazer
txoxiki de miçanga. E a miçanga é o presente para dar à namorada. Durante um piarentse
brincavam também comigo: mipene ningetseki, hame amoretse (me miçanga e vamos
fazer amor)”.
328
Seu pai ficou com muita raiva quando ele contou o que havia se passado. O
expulsou de casa. “-Não faça isso não,” disseram Hananeri e sua mãe: “- não
para ver que ele está morrendo?No final, seu pai o curou. Hananeri acrescenta:
“no Peru ninguém consegue beber (achar o caminho para a imortalidade)
ayahuasca, as mulheres são mansas demais...”
Resumindo, Hananeri, em comparação com Odysseus, o tinha o “remédio”
apropriado para se defender contra as várias ninfas e sirenas e chegar, enfim, onde
desejava. Mas talvez essas ninfas lhe tenham dado, justamente, o único antídoto
contra a mortalidade. Afinal, escrever sobre pusanga simplesmente para mostrar que
ela “serve” para arrumar um(a) parceiro(a), em razão da necessária
“complementaridade” que existe no casamento Ashaninka, para que se possa comer
mandioca com peixe/carne ou em razão dos filhos dos quais se dependerá em uma
idade avançada, quando a morte ronda próxima e a chuva do arco-íris se deixa sentir
na forma de, por exemplo, reumatismo, não esgota a questão da intensidade
passional que a pusanga revela.
A intensidade do amor e do erotismo em torno da pusanga visa algo mais do
que estar simplesmente a serviço da “complementariedade” de gênero entre os
Ashaninka. Talvez a meta da pusanga esteja a serviço de um ideal superior à própria
complementaridade: a fuga da morte.
A estética Ashaninka é, sem dúvida, uma estética do amor e da sedução. Será
que os vândalos que rasgaram as letras “AR” da placa da loja onde se vende
“artesanato” Ashaninka em Rio Branco e que se chama “CASA DO (AR)TESÃO”
entenderam melhor que qualquer um o sentido profundo da estética deste povo?
Outra associação entre arte e erotismo me vem à mente. Trata-se da
introdução de um livro de arte onde se afirma que “o único antídoto para o homem
frente à sua mortalidade é erotic joy(prazer erótico)”. Uma introdução deste tipo
poderia perfeitamente se inspirar na imagem Ashaninka da tartaruga: humorística ao
mesmo tempo em que erótica e ligada à questão da nossa mortalidade.
329
Talvez a sedução tenha de fato impedido o avanço de Hananeri em sua busca
pela imortalidade. É possível também que Hananeri tenha encontrado justamente no
fracasso daquela busca, o único remédio realmente possível. Com ou sem a ajuda de
pusanga.
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340
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Peru, Lima.
341
Glossário
Significado dos principais termos Ashaninka usados no texto:
Ashaninka: Autodenominação do povo que pode ser traduzida como meus
parentes”, minha gente”. As vezes usam Asheninka”, a pronuncia do “a” e “e”
fica.
Kamarãpi: Ayahuasca. Bebida com propriedades alucinógenas obtida misturando o
cipó banisteriopsis caapi com a folha psychotria.
Kitarentse: Termo ashaninka para designar a cushma, o tear onde é confeccionada e
o próprio tecido.
Kushma: Palavra de origem quechua, usada para designar a vestimenta tradicional
dos Ashaninka. Poderoso símbolo de identidade étnica.
Pawa: Deus-Criador do universo. Divindade maior dos Ashaninka. Vive no céu
(inkite). Na terra, o sol é considerado a coroa de Pawa. O termo também pode ser
usado para pai.
Piarentse: Bebida fermentada de mandioca. O termo também designa o ritual onde
ela é consumida. O consumo dessa bebida é comum em várias regiões da Amazônia.
No Alto Juruá, ela é chamada de caissuma pelos brancos, no Peru de masato e caxiri
em outras regiões da Amazônia.
Pusanga: Magia sexual. Perfume.
Tasolentse: Imortalidade, os deuses.
Txoxiki: Colar masculino confeccionado com várias espécies de sementes nativas. É
usado a tiracolo em diagonal, com muitas voltas; geralmente, enfeitado com adornos
(thatane) que caem nas costas. Poderoso símbolo de identidade étnica.
Xeripiari: Xamã.
CONVENÇÕES
Utilizo a grafia dos termos Ashaninka em itálico baseado principalmente no alfabeto
Ashaninka do rio Amônia elaborado em 1994 pelo lingüista Wilmar da Rocha
342
d’Angelis.
LISTA DE ABREVIATURAS
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CPI Comição Pro Índio
FPERE Frente de Proteção Etno-Ambiental Rio Envira
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNASA Fundação Nacional de Saúde
RE Rio Envira
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