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A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO CONSELHO DE
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DE
VITÓRIA: PROMESSA OU REALIDADE?
JULIANA IGLESIAS MELIM
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM POLÍTICA SOCIAL
MESTRADO EM POLÍTICA SOCIAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
VITÓRIA
SETEMBRO DE 2006
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A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO CONSELHO DE
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DE
VITÓRIA: PROMESSA OU REALIDADE?
JULIANA IGLESIAS MELIM
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Política
Social da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Política Social.
Aprovada em 18 de setembro de 2006 por:
________________________________________
Prof. Dr. Izildo Corrêa Leite – Orientador, UFES
________________________________________
Profª. Drª. Vania Maria Manfroi, UFES
________________________________________
Profª. Drª. Luciana Ferreira Tatagiba, UNICAMP
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
VITÓRIA, SETEMBRO DE 2006
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Melim, Juliana Iglesias, 1981 –
A participação popular no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente
de Vitória: promessa ou realidade? / Juliana Iglesias Melim – 2006
Orientador: Izildo Corrêa Leite
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas.
1. Política Social 2. Participação Política 3. Conselho de Direitos da Criança e
do Adolescente. I. LEITE, Izildo Corrêa. II. Universidade Federal do Espírito
Santo. CCJE. III. Título
4
Dedico este trabalho
a todas as crianças e adolescentes que ainda clamam por justiça social, e
à Fabiola Xavier Leal, pela amizade e cumplicidade.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me concedido a força e o bom humor necessários para superar os
desafios e chegar até aqui.
Aos meus pais, “Zé Melim e dona Regina”, pela pessoa em que me formei, pelo
amor, cuidados e apoio em todos os momentos. Agora vocês já podem assistir à
televisão!
Ao meu irmão, Flávio, amigo de todas as horas, pelas bobagens que fizemos juntos
quando eu estava uma “pilha de nervos”.
Aos meus avós, Chica e Antônio (in memorian), Alaíde e Zezinho, que mesmo sem
entenderem muito bem a complexidade da profissão que escolhi, se orgulham e
torcem por mim. Agradeço as lágrimas sinceras nos momentos de conquistas.
Ao Paulo Cesar, que esteve do meu lado nas horas que chorei e que sorri. Agradeço
pela paciência, pelo amor e pelas vezes que me tirou da frente do computador.
Ao meu orientador, Izildo C. Leite, pelo compromisso, pelo olhar atento e pelas
importantes contribuições para a realização deste trabalho.
Um agradecimento especial aos professores do Mestrado em Política Social por
terem, com suas aulas, aguçado ainda mais a minha curiosidade científica. Também
devo grandes agradecimentos às professoras Maria Lúcia Teixeira e Vania Manfroi
pelo apoio em todos os momentos dessa trajetória.
Aos meus ex-professores do Departamento de Serviço Social da UFES, e agora
colegas de profissão, por serem meus maiores exemplos profissionais e por terem
me acolhido nessa “doce aventura” que é a docência.
6
Aos meus alunos, pelo carinho, respeito e incentivo. E principalmente por me darem
a certeza de que meus sonhos e minha luta por uma nova sociedade permanecerão.
Agradeço ainda aos alunos do NECA, Dryelle, Fábio, Monya, Priscila e Tatiana, pela
ajuda mais do que essencial na realização e transcrição das entrevistas que dão
vida a este trabalho e pelo compromisso na luta por dignidade e garantia dos direitos
das crianças e adolescentes.
Aos conselheiros e conselheiras que participaram desse estudo e que com seus
depoimentos me emocionaram diversas vezes, tornando a realização do trabalho
algo prazeroso e enriquecedor.
À Secretaria Executiva do CONCAV, pelo apoio e disponibilidade para que eu
pudesse acessar os documentos necessários para o desenvolvimento da pesquisa.
Às grandes e inseparáveis amigas que fiz nesses anos do mestrado, Elisângela e
Fabíola. Agradeço imensamente pelos bate-papos, almoços e rocks. Agradeço
também pelo companheirismo que tornaram os momentos difíceis (que não foram
poucos) mais amenos! “O que será de mim? O que será de nós?” Já descobri essas
respostas: seremos pra sempre verdadeiras amigas!
Aos demais amigos, “ESTOU DE VOLTA!!!”
7
LISTA DE SIGLAS
ABNT – Associação Brasileira de Normas e Técnicas
ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais
ACES – Ação Comunitária do Espírito Santo
AI – Ato Institucional
ALN – Aliança de Libertação Nacional
APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Vitória
BID – Banco Internacional de Desenvolvimento
CAOCA – Casa de Acolhimento à Criança e ao Adolescente
CEB’s – Comunidades Eclesiais de Base
CESAM – Centro Salesiano do Menor
CMP – Central dos Movimentos Populares
CONANDA – Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
CONCAV – Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
8
CPV – Conselho Popular de Vitória
CRIAD – Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente
CUT – Central Única dos Trabalhadores
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
ES – Espírito Santo
FEBEM – Fundação Estadual de Bem Estar do Menor
FEES – Federação Espírita do Espírito Santo
FIA – Fundo para a Infância e a Adolescência
FMI – Fundo Monetário Internacional
FONACRIAD – Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas Públicas
Fórum DCA – Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de
Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
FUNABEM – Fundação Nacional de Bem Estar do Menor
INAM – Instituto Nacional de Assistência a Menores
Inamps – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Nacional
LBA – Legião Brasileira de Assistência
MARE – Ministério da Administração e Reforma do Estado
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
9
MNMMR – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social
MST – Movimento Sem-Terra
NECA – Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente
ONG – Organização Não-Governamental
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PC do B – Partido Comunista do Brasil
PDT – Partido Democrático Trabalhista
PPS – Partido Popular Socialista
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados
PT – Partido dos Trabalhadores
SAM – Serviço de Atendimento ao Menor
SC – Santa Catarina
SEMAS – Secretaria Municipal de Ação Social, Trabalho e Geração de Renda
SEMCET – Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo
SEMCID – Secretaria Municipal de Cidadania e Segurança Pública
10
SEME – Secretaria Municipal de Educação
SEMEC – Secretaria Municipal de Cultura
SEMESP – Secretaria Municipal de Esportes
SEMMAM – Secretaria Municipal de Meio Ambiente
SEMUS – Secretaria Municipal de Saúde
SEPLAN – Secretaria Municipal de Planejamento
SP – São Paulo
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
UNE – União Nacional dos Estudantes
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
11
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1: PERÍODO DE FUNDAÇÃO DAS ENTIDADES QUE
PARTICIPARAM DO CONSELHO....................................................................
142
GRÁFICO 2: NÚMERO DE GESTÕES QUE AS ENTIDADES
PARTICIPARAM DO CONCAV – 1993-2004................................................ ..
144
GRÁFICO 3: EXPERIÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO DO CONSELHEIRO EM
MOVIMENTOS SOCIAIS..................................................................................
149
GRÁFICO 4: FORMA DE INDICAÇÃO DO CONSELHEIRO NA
ENTIDADE/SECRETARIA...............................................................................
152
GRÁFICO 5: DISCUSSÃO DA PAUTA DAS REUNIÕES DO CONSELHO
COM A ENTIDADE/SECRETARIA...................................................................
155
GRÁFICO 6: MEIOS QUE O CONSELHEIRO UTILIZAVA PARA O
REPASSE DAS DISCUSSÕES/DELIBERAÇÕES DO CONCAV.....................
155
GRÁFICO 7: FREQÜÊNCIA DOS CONSELHEIROS NAS REUNIÕES –
GESTÃO 1993-1995.........................................................................................
159
GRÁFICO 8: FREQÜÊNCIA DOS CONSELHEIROS NAS REUNIÕES –
GESTÃO 1995-1997.........................................................................................
159
GRÁFICO 9: FREQÜÊNCIA DOS CONSELHEIROS NAS REUNIÕES –
GESTÃO 2002-2004.........................................................................................
160
GRÁFICO 10: CONSELHEIROS QUE RELACIONARAM
ESPONTANEAMENTE O CONSELHO COM A IDÉIA DE DEMOCRACIA......
165
12
RESUMO
A trajetória das políticas sociais brasileiras de atendimento à criança e ao
adolescente não nos deixou um legado de glórias no que se refere à cidadania
dessa parcela da população. Apenas em 1990, após a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente é que estes passaram a ser considerados sujeitos de
direitos. Dessa forma, na tentativa de consolidar este novo paradigma o Estatuto
também prevê mudanças na gestão das políticas sociais. Uma dessas mudanças é a
institucionalização dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, órgãos
públicos, paritários, deliberativos e responsáveis por formular as políticas voltadas
para a infância e a adolescência. A presente dissertação consiste em um estudo
sobre o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente do município de Vitória
(ES), envolvendo três gestões específicas: 1993-1995, 1995-1997, 2002-2004. Tem
como objetivo verificar se a participação política desenvolvida no Conselho é
compatível com o espaço formalmente instituído para tal participação e, em caso
negativo, compreender as razões da “defasagem” encontrada. Para tanto, foram
utilizadas como técnicas de coleta de dados: a pesquisa documental e entrevistas
semi-estruturadas em profundidade. Para análise dos dados utilizou-se a análise de
conteúdo. O Conselho foi enfocado a partir da perspectiva de democratização dos
processos decisórios na sociedade brasileira, marcada por uma cultura política que
quando não limitou, restringiu completamente a participação popular dos espaços de
decisão política. Assim, a análise foi estruturada considerando os seguintes
aspectos: a composição do Conselho, a representação dos conselheiros, o objetivo
da inserção das entidades no Conselho, a relação do conselheiro com os usuários
que representa, a relação da sociedade civil com o poder público, a visão dos
conselheiros sobre democracia, participação e sobre a criança e o adolescente
usuários das políticas formuladas pelo Conselho. Os resultados encontrados nos
permitem afirmar que embora o Conselho seja uma possibilidade de maior
participação popular na direção das políticas sociais e, por conta disso, um espaço
onde podem se manifestar possíveis movimentos de contra-hegemonia dos setores
populares, a participação que historicamente se desenvolveu no locus do presente
estudo ainda encontra uma gama considerável de limites para se consolidar
enquanto tal. Dessa maneira, o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente
de Vitória ainda não conseguiu cumprir, de maneira ampla, a “promessa” de
democratização e de maior participação popular no debate em torno das políticas
sociais voltadas para as crianças e adolescentes do município. Tem sido desafio
para o Conselho a consolidação da democracia e da participação na elaboração da
política, a efetiva autonomia dos conselheiros e das entidades da sociedade civil, a
presença dos usuários no processo decisório, a representação de interesses
coletivos e conseqüentemente a formulação de políticas sociais universais e
garantidoras de direitos.
Descritores: Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, Participação
Política, Conselho de Direitos.
13
ABSTRACT
The trajectory of the Brazilian social policies of attendance to the child and the
adolescent in them did not leave a legacy of glories as for the citizenship of this
parcel of the population. But in 1990, after the promulgation of the Statute of the
Child and the Adolescent is that these had passed to be considered citizens of rights.
Of this form, in the attempt to consolidate this new paradigm the Statute also
foresees changes in the management of the social policies. One of these changes is
the institutionalization of the Council of Rights of public, on the same level,
deliberative and responsible the Child and the Adolescent, agency for formulating the
policies come back toward infancy and the adolescence. The present dissertação
consists of a study on the Council of Rights of the Child and the Adolescent of the
city of Vitória (ES), involving three specific managements: 1993-1995, 1995-1997,
2002-2004. It has as objective to verify if the participation politics developed in the
Council is compatible with the space formal instituted for such participation and, in
negative case, to understand the reasons of the “joined imbalance”. For in such a
way, they had been used as techniques of collection of data: the documentary
research and interviews half-structuralized in depth. For analysis of the data it was
used content analysis. The Council was focused from the perspective of
democratization of the power to decide processes in the Brazilian society, marked for
a culture politics that when he did not limit, completely restricted the popular
participation of the decision spaces politics. Thus, the analysis was structuralized
considering the following aspects: the composition of the Council, the representation
of the council members, the objective of the insertion of the entities in the Council,
the relation of the council member with the users who represents, the relation of the
civil society with the public power, the vision of the council members on democracy,
participation and on the using child and the adolescent of the policies formulated for
the Council. The results found in allow them to affirm that even so the Council is a
possibility of bigger popular participation in the direction of social politics e, on
account of this, a space where possible movements of against-hegemony of the
popular sectors can be disclosed, the participation that if developed in locus of the
present study still finds many limits to consolidate itself while such. In this way, the
Council of Rights of the Child and Adolescent it of Vitória not yet obtained to fulfill, in
ample way, the “promise” of democratization and bigger popular participation in the
debate around the social policies come back toward the children and adolescents it
city. The consolidation of the democracy and the participation in the elaboration of
the policies, the effective autonomy of the council members and the entities of the
civil society, the presence of the users in the power to decide process, the
representation of collective interests has been challenge for the Council and
consequently the formularization of universal and warranting social politics of rights.
Describers: Policies of Attendance to the Child and the Adolescent, Participation
Politics, Council of Rights.
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................
16
1 ENTENDENDO A PESQUISA....................................................................
23
1.1 Procedimentos metodológicos e relevância do estudo......................
24
2 DEMOCRACIA E PARTICPAÇÃO: UM CONVITE AO DEBATE .............
31
2.1 As várias faces da participação .........................................................
32
3 VERSÃO BRASILEIRA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ........................
63
3.1 As limitações históricas da participação popular ..............................
64
3.2 Democracia e participação na gestão pública brasileira ..................
80
3.3 Conselhos gestores: um balanço bibliográfico..................................
91
4 INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA, POLÍTICA SOCIAL E PARTICIPAÇÃO
POPULAR .....................................................................................................
103
4.1 O despertar do sentimento da infância ...........................................
104
4.2 Pelas mãos de quem? As políticas sociais brasileiras de atenção à
criança e ao adolescente ...........................................................................
114
5 NO CENTRO DAS DECISÕES: O CONSELHO DE DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DE VITÓRIA ..........................................
130
5.1 O conselho e a realidade do município de Vitória ............................
131
5.2 Mais do que uma mera descrição da realidade do CONCAV:
análise dos dados .........................................................................................
140
5. 2. 1 - Composição e representação dos conselheiros no CONCAV ..
140
5. 2. 2 – Objetivos da inserção das entidades no CONCAV ..................
145
5. 2. 3 – O conselho e a relação representante – representado: o olhar
dos entrevistados ..........................................................................................
148
5. 2. 4 – A atuação e a relação do poder público com a sociedade civil:
entre o conflito e o consenso ........................................................................
157
5. 2. 5 – Democracia e participação na ótica dos conselheiros .............
164
5. 2. 6 A criança e o adolescente são? Os usuários das políticas
pela visão dos conselheiros...........................................................................
170
5. 2. 7 – A participação do usuário no Conselho: uma alternativa
l?
174
15
viável?............................................................................................................
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................
178
6 REFERÊNCIAS ..........................................................................................
185
APÊNDICES
198
16
INTRODUÇÃO
Uma conjuntura de crise econômica e efervescência dos movimentos sociais fizeram
da década de 1980 o cenário propício para o debate, a elaboração e a promulgação
da Constituição Federal de 1988, que inaugurou na legislação brasileira os princípios
da descentralização e da municipalização das políticas públicas e estabeleceu a
participação da população na gestão e controle dessas políticas.
Todo esse movimento então ocorrido na sociedade brasileira também contribuiu
para reascender a esperança por democracia e participação popular nos espaços de
decisão política. Nessa direção, a chamada “Constituição cidadã” instituiu a criação
de conselhos de políticas e de direitos, órgãos paritários e deliberativos no âmbito
das políticas sociais,
1
que trazem em si a promessa de democratização e de maior
participação da população na gestão da coisa pública.
Essas mudanças marcam, ao mesmo tempo, no plano legal, a possibilidade de
rupturas com uma cultura política que historicamente foi permeada por práticas
assistencialistas, paternalistas e autoritárias, bem como freqüentemente marcada
pela hegemonia das elites econômicas na direção política do País.
A institucionalização dos conselhos gestores de políticas sociais também aponta
para a superação de uma história que, quando não restringiu, excluiu
completamente a presença popular nos processos decisórios, sem falar nos longos
anos de ditadura militar no Brasil.
Entretanto, passados mais de dez anos de existência desses conselhos, é hora de
questionarmos como está a participação política nesse espaço. Será que os
1
No presente trabalho, entendemos a política social como a define Behring (2000, p. 36): “[...] o significado da
política social não pode ser apanhado nem exclusivamente pela sua inserção objetiva no mundo do capital nem
apenas pela luta de interesses dos sujeitos que se movem na definição de tal ou qual política, mas,
historicamente, na relação desses processos na totalidade”. Dessa forma, consideramos que a política social está
inserida no centro da tensão entre economia e política, atendendo, ao mesmo tempo, embora de formas diversas
e em graus bem diferenciados, às duas classes fundamentais da sociedade capitalista — inserida, portanto, no
contexto da luta de classes.
17
conselhos conseguiram cumprir a “promessa” de democratização e maior
participação popular na cena política brasileira?
Essa discussão aponta para uma temática fundamental da política social,
configurando um objeto passível de ser analisado cientificamente. A participação
popular na formulação e no controle das políticas sociais pode contribuir para
democratizar o Estado e consolidar políticas públicas universais e garantidoras de
direitos, que responderão às reais demandas sociais. Neste trabalho, em que se
analisa um caso específico — o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente
de Vitória (CONCAV) —, procura-se ver em que medida aquilo que existe
potencialmente se concretiza em termos práticos.
Conselhos como esse são considerados uma das principais inovações democráticas
no campo da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente. No campo da
atenção à população infanto-juvenil, constituem peças-chaves para o funcionamento
de uma rede de atendimento com ações integradas, que reflete o espírito
democrático da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990). Também são fundamentais para fazer valer os direitos da
parcela da população às quais dizem respeito, podendo promover rupturas com um
passado recente de práticas repressivas e assistencialistas que marcaram a
trajetória das políticas sociais brasileiras de atendimento à criança e ao adolescente.
Além disso, os conselhos se apresentam enquanto espaço essencial para a
elaboração de políticas que contribuam para a transformação da realidade de
milhares de crianças e adolescentes vítimas das diversas expressões da questão
social,
2
como a desnutrição, a precariedade de serviços públicos básicos como a
educação e a saúde, as diversas formas de violência (física, sexual etc.), o
abandono e o trabalho infantil, entre outras.
2
Compreendemos a questão social conforme Iamamoto (2000, p. 59), para quem aquela não deve
ser entendida “[...] exclusivamente como desigualdade social entre pobres e ricos, muito menos como
‘situação social problema’, tal como historicamente foi encarada pelo Serviço Social, reduzida a
dificuldades do indivíduo. O que persegue é decifrar, em primeiro lugar, a gênese das desigualdades
sociais, em um contexto em que a acumulação de capital não rima com eqüidade. Desigualdades
indissociáveis da concentração de renda, de propriedade e de poder, que são o verso da violência, da
pauperização e das formas de discriminação ou exclusão sociais. Mas decifrar a questão social é
também demonstrar as particulares formas de luta, de resistência material e simbólica acionadas
pelos indivíduos sociais à questão social”.
18
Apresentar essa face da questão social no Brasil também nos permite considerá-la a
partir do espectro de sua relação com a democracia e a participação popular. Todas
as mazelas citadas mobilizam diferentes atores sociais a se organizarem
socialmente para debater e efetivar ações no campo da garantia de direitos das
crianças e dos adolescentes. Dessa maneira, os conselhos são espaços importantes
para que as diversas forças sociais se manifestem na cena pública, contribuindo, em
grau maior ou menor, para a formulação de políticas inovadoras e de cunho
transformador, dependo da correlação de forças então existente.
Diante desse novo desenho político, é fundamental aprofundar, de forma crítica, os
estudos sobre os conselhos, apontando seus limites, mas também não perdendo de
vista sua importância enquanto espaço potencial de participação popular e
possibilidade de uma nova direção da vida política, na perspectiva de sua
democratização.
Meu interesse em estudar essa questão é fruto de um percurso iniciado em 2002,
quando da minha inserção no projeto de iniciação científica intitulado “Gestão
pública e subjetividade nas políticas de infância e adolescência nos municípios de
Vitória e Serra”. Tal projeto envolveu dois eixos de análises: um que estudou as
políticas públicas desenvolvidas no campo de atendimento à criança e ao
adolescente, e outro que investigou o papel dos conselhos municipais na gestão e
no controle das políticas sociais no período de 2002 a 2003.
Assim, fiquei responsável por desenvolver a pesquisa referente ao segundo eixo,
aprofundando essa questão no que mais tarde veio a ser a minha monografia da
graduação em Serviço Social, cujo título foi “O Conselho de Direitos da Criança e do
Adolescente em Vitória: um estudo sobre o seu papel na gestão de políticas sociais”
(MELIM, 2004).
O desenvolvimento daquela pesquisa também culminou com a minha inserção, com
estagiária de Serviço Social, no Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente
(NECA) da Universidade Federal do Espírito Santo, o qual tem como objetivo
promover a produção e a divulgação de conhecimentos, realizar pesquisas e prestar
19
assessoria e capacitação para sujeitos que atuem no campo da criança e do
adolescente.
Todo esse envolvimento contribuiu para um maior conhecimento sobre as questões
relativas à população infanto-juvenil e, especialmente, sobre os Conselhos de
Direitos.
Dessa forma, tais estudos me possibilitaram afirmar que, embora se percebesse um
esforço do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória (CONCAV)
para elaborar um Plano de Ação que fosse implementado pelo poder público, o
Conselho não tinha, naquele momento (2002-2003), um papel decisivo na gestão
das políticas sociais do município (MELIM, 2004).
O que se apresentou como preocupante foi o tipo de participação que se configurava
naquele espaço. A representação personalizada, o distanciamento de
representantes relativamente aos segmentos representados, a falta de autonomia
dos conselheiros e das entidades da sociedade civil, a insuficiente capacitação
técnica e política, juntamente com estratégias do poder público (representantes
ilegítimos, ausências freqüentes nas reuniões, cortes de recursos solicitados pelo
Conselho ao poder executivo municipal) para não priorizar o Conselho na
formulação das políticas, contribuíram para que este não provocasse grande impacto
nas diretrizes estratégicas das secretarias municipais nem se legitimasse enquanto
locus de atuação da sociedade civil organizada na definição de uma nova direção
das políticas sociais (MELIM, 2004).
Diante desses resultados, a pesquisa que embasa o presente trabalho é uma
proposta de continuidade dos estudos iniciados na Iniciação Científica. Desse modo,
esta dissertação consiste numa análise do Conselho de Direitos da Criança e do
Adolescente no município de Vitória, procurando aprofundar a reflexão sobre o seu
potencial democrático e participativo.
Assim, algumas questões nortearam este estudo: Por que, embora haja instâncias
formais de participação, esta ainda não é vivenciada plenamente? Quais elementos
20
levam as propostas participativas a não saírem do plano teórico? Como vem se
configurando a participação política nesses espaços tidos como democráticos?
Se somarmos aos conselheiros não-governamentais todo o contingente de
ONGs, entidades e movimentos envolvidos com a qualificação e
capacitação técnica e política desses conselheiros, veremos que há uma
grande concentração de energia e investimento nesses espaços
institucionais dos conselhos, o que justifica um olhar mais detido sobre eles
(TATAGIBA, 2002, p. 48).
Portanto, o objetivo geral do estudo é verificar se a participação política
desenvolvida no Conselho é compatível com o espaço formalmente instituído para
tal participação e, em caso negativo, compreender as razões da “defasagem”
encontrada.
A investigação se inscreve na linha de pesquisa do Mestrado em Política Social
nomeada “Políticas Sociais, Subjetividade e Movimentos Sociais” e foi realizada no
Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente do município de Vitória, Espírito
Santo, concentrando-se em três gestões específicas, que compreendem os anos
1993-1995, 1995-1997 e 2002-2004.
Utilizamos uma abordagem teórica que nos abriu caminhos para realizarmos
sucessivas aproximações à realidade, compreendendo os fenômenos de uma
maneira totalizante e buscando a processualidade histórica e contraditória das
categorias estudadas.
Assim sendo, passamos agora a desenhar a estrutura do presente trabalho, que se
apresenta dividido em cinco capítulos. No primeiro, apresentamos a delimitação e a
relevância do objeto de estudo, bem como os procedimentos metodológicos
utilizados no processo de construção deste trabalho. Ali, apontamos as técnicas
utilizadas e os desafios de localizar os conselheiros de direitos que são os sujeitos
desta pesquisa.
No segundo capítulo, temos uma discussão sobre os diversos sentidos atribuídos à
democracia e à participação popular no âmbito de diversas teorias sociais. Iniciamos
esse capítulo abordando o sentido original do termo “democracia” ainda na Grécia
21
Antiga, passando por autores que apresentam uma abordagem liberal do tema e
outros que empreendem a discussão marxista sobre a democracia e a participação
popular. O intuito desse capítulo é mostrar a polissemia desses termos e destacar
que, embora apresentem grandes diferenciações quanto à forma e níveis de
abrangência da participação popular, todos os autores estudados consideram a
participação da população como característica central para uma experiência ser
denominada democrática.
No terceiro capítulo, chamamos a atenção para a complexa relação entre o Estado e
a sociedade civil, traçando os limites históricos da participação popular no Brasil.
Para tanto, dentre os autores tomados como referências, encontram-se Álvaro de
Vita, Florestan Fernandes e Carlos Nelson Coutinho, entre outros. Mostramos como
a formação social brasileira foi configurando uma relação entre Estado e sociedade
fundada no paternalismo, na apropriação do espaço público por interesses privados
e no autoritarismo. Ressaltamos também, a inovação democrática trazida pela
Constituição Federal de 1988, descrevendo o papel, o funcionamento e os limites
dos conselhos diante da conjuntura de ofensiva neoliberal, que defende a
minimização da intervenção do Estado na área social, além de fomentar a idéia e
incentivar a prática de uma participação gerencial da sociedade civil, que opera
muito mais no âmbito da execução do que da formulação de políticas sociais.
No quarto capítulo, propomos uma incursão pela trajetória das políticas sociais
brasileiras de atenção à criança e ao adolescente. Abordamos historicamente as
concepções de criança e de adolescente e a forma pela qual tais concepções
direcionaram as ações nessa área. Buscamos também apresentar o momento
histórico de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, pela
primeira vez na história do País, reconhece a cidadania desse segmento da
população e estabelece mudanças na política de atendimento correspondente,
determinando, na forma de lei, a criação de Conselhos de Direitos como órgãos
responsáveis por formular democraticamente as políticas sociais.
Toda a discussão feita no quarto capítulo foi fundamental para a redação do quinto
capítulo, no qual apresento e analiso os dados empíricos da investigação,
descrevendo e articulando diversos recortes das falas dos conselheiros com as
22
categorias teóricas trabalhadas anteriormente. Ainda no mesmo capítulo, analisamos
os dados referentes ao perfil das entidades da sociedade civil que participaram do
Conselho durante o período a que se refere este estudo, bem como o entendimento
que os conselheiros têm de democracia, de participação, do conselho, do papel de
conselheiros, da criança e do adolescente usuários das políticas sociais, entre
outros. Posteriormente, demonstramos como a participação política vem se
desenvolvendo no Conselho e como ela tem se apresentado enquanto possibilidade
de radicalização da democracia e de constituição de uma contra-hegemonia.
Por fim, apresento as considerações finais, momento em que procuro pensar em
desdobramentos que os resultados obtidos na pesquisa podem ter para a
formulação democrática de políticas sociais. Apresento também algumas estratégias
para promover o fortalecimento político do Conselho.
23
CAPÍTULO 1:
APRESENTANDO A PESQUISA
“De nada valem as idéias sem homens que possam pô-las em prática”
(KARL MARX).
24
1.1 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E RELEVÂNCIA DO
ESTUDO
Concordamos com Minayo (2002, p. 17), para quem “ciência se faz com teoria e
método”. A teoria entendida enquanto construção científica, janela através da qual
olhamos para a realidade e nos aproximamos do objeto que desejamos conhecer
melhor. “E estes caminhos de aproximação sempre são estradas por onde passam
as linhas teóricas e as abordagens da realidade, seja pela experimentação, seja pela
observação: são os métodos. Não é possível fazer ciência sem método” (MINAYO,
2002, p. 17).
Nessa perspectiva, o método se apresenta como via de acesso, ou seja, a forma
planejada para conhecer alguma coisa. Assinala, portanto, um percurso escolhido
entre tantos outros possíveis.
Além disso, ciência também se faz com criatividade. Criatividade essa que é do
pesquisador e que diz respeito à sua capacidade reflexiva e também de análise e
síntese teórica. Corresponde à memória intelectual do pesquisador, a seu nível de
comprometimento com o objeto e a sua capacidade de exposição lógica (MINAYO,
2002).
Entender a pesquisa enquanto teoria, método e criatividade é afirmar que o
pesquisar não se restringe a mera aplicação de técnica. A criatividade separa o
técnico do pesquisador, fazendo com que o pensar e o agir científico se tornem um
verdadeiro passeio da alma.
3
A pesquisa se apresenta, então, como um fazer que vai muito além das técnicas,
como uma prática artesanalmente construída que remonta a história, os processos
de transformações dos fenômenos, e estabelece a mediação dos diversos conceitos
na perspectiva da totalidade.
3
Cf. CHAUÍ, (1994).
25
Assumida essa perspectiva, partimos do pressuposto de que o método é uma
relação necessária entre o investigador e a realidade social que será pesquisada.
Assim, os fundamentos da pesquisa têm por base o método crítico-dialético, que tem
como núcleo constitutivo as categorias de mediação, totalidade e contradição. Dessa
forma, “a compreensão dialética da realidade pressupõe a perspectiva da totalidade;
uma totalidade complexa constituída de outros complexos, atravessada pela
negatividade, a qual tensiona as relações entre seus ‘elementos’ constitutivos”
(PONTES, 2002, p. 81).
Neste aspecto, retomamos a processualidade histórica e contraditória do processo
de participação popular no Brasil e, particularmente, nos espaços institucionais de
participação (no caso, o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente).
Observamos essa questão na relação contraditória e tensa entre o capitalismo e a
democracia, principalmente a partir dos anos 1990, no Brasil.
Posto isso, é importante compreender a categoria mediação. Para tanto, tomaremos
como referência a observação feita por Pontes (2002, p. 78), para quem as
mediações são apresentadas como “expressões históricas das relações que o
homem edificou com a natureza e conseqüentemente das relações sociais daí
decorrentes, nas várias formações sócio-humanas que a história registrou”.
A utilização desse referencial configura um verdadeiro desafio, pois nos exige
compreender os processos históricos que estruturam a sociedade capitalista,
considerando as condições gerais do modo de produção, bem como apontar as
forças sociais, políticas e culturais de dissolução desta ordem social, considerando
as lutas de classes e as diferenças entre suas concepções e práticas (PONTES,
2002).
Dessa forma, podemos dizer que nossa abordagem é qualitativa. A escolha dessa
abordagem se deu principalmente pelo fato de que a abordagem qualitativa trabalha
com o significado atribuído pelos sujeitos aos fatos, relações e fenômenos sociais,
além de possibilitar tanto as interpretações e práticas quanto as interpretações das
práticas (ASSIS; DESLANDES, 2002).
26
Na abordagem qualitativa, segundo Minayo (2000, p. 105), a “interação entre o
pesquisador e os sujeitos pesquisados é essencial”, na medida em que ajuda o
pesquisador a confrontar-se diretamente com o seu objeto, na plenitude da vida real,
e subsidia sua construção teórica.
Como estratégia para iniciar a investigação, foi realizado um encontro com a
Secretaria Executiva do CONCAV, com vistas a solicitar sua contribuição para o
desenvolvimento do trabalho, além de permissão para estudar os documentos do
referido Conselho e para levantar os nomes e telefones dos conselheiros que dele já
haviam participado.
Posteriormente, foi realizada uma pesquisa documental no CONCAV, em que
pudemos levantar informações relativas à lei de criação do Conselho, seu regimento
interno, as atas de suas reuniões e as listas de freqüência. Isso foi fundamental, pois
oportunizou o conhecimento da história do Conselho e a definição dos sujeitos da
pesquisa.
A partir da leitura desses documentos, definimos que os sujeitos da pesquisa seriam
os conselheiros governamentais e não-governamentais com maior e menor
freqüência nas reuniões realizadas durantes as gestões 1993-1995 (primeira gestão
de funcionamento do CONCAV), 1995-1997 (gestão de realização da 1ª Conferência
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) e 2002-2004 (gestão analisada
durante a Iniciação Científica). De acordo com essa decisão, teríamos uma amostra
constituída de quatro conselheiros com maiores freqüências e quatro com menores
freqüências, totalizando oito por gestão, sendo quatro representantes do poder
público e quatro representantes de entidades da sociedade civil.
Os contatos iniciais com os conselheiros foram feitos por telefone. Entretanto,
deparamo-nos com uma série de contratempos para a realização das entrevistas. A
primeira foi realizada com o conselheiro que presidiu a gestão inicial do CONCAV.
Além de ter contribuído com sua entrevista, ele também foi informante-chave para
que nós localizássemos alguns conselheiros com os quais a Secretaria Executiva do
CONCAV não tinha contato.
27
Foi difícil convidar os conselheiros que menos freqüentaram as reuniões para
participarem da pesquisa. Em alguns casos, aqueles que freqüentaram
pouquíssimas vezes as reuniões do CONCAV sequer eram lembrados pelos demais
conselheiros entrevistados. Além disso, alguns conselheiros não quiseram participar
da pesquisa e, por isso, foram substituídos por outros que vinham imediatamente na
seqüência, de acordo com os critérios já expressos nesse trabalho.
Também precisa ser destacado que algumas entidades participaram em mais de
uma das gestões analisadas no presente estudo, e com o mesmo representante.
Nesses casos, o conselheiro foi entrevistado uma única vez. Outro fato curioso
ocorreu com um conselheiro que, numa gestão, representou um segmento e, em
outra, outro segmento.
Com todos os problemas apontados, foram entrevistados dezesseis conselheiros:
sete representantes do poder público e nove representantes da sociedade civil.
A coleta de dados iniciou-se com uma pesquisa documental no CONCAV. Essa
modalidade de pesquisa consistiu em identificar, organizar e analisar os documentos
oficiais do Conselho, possibilitando a identificação de seu processo histórico de
formação, o grau de freqüência dos conselheiros, os principais temas discutidos nas
reuniões e as atividades realizadas nos períodos pesquisados.
O estudo dessa documentação foi essencial para desenharmos a história da criação
desse espaço no município de Vitória, a movimentação social necessária para tanto,
as concepções dos atores envolvidos quanto à realidade das crianças e
adolescentes e, ainda, as ações realizadas.
As atas mostraram a dinâmica de funcionamento do Conselho, os temas ali
discutidos, as correlações de forças, a menor freqüência do poder público nas
reuniões, a baixa capacidade deliberativa do Conselho e as principais frentes de
atuação do Conselho.
Além da pesquisa documental, utilizamos também a técnica de entrevistas semi-
estruturadas em profundidade. Para tanto, fizemos uso de um roteiro previamente
28
elaborado (APÊNDICE A), que nos possibilitou colher dados significativos, visto que,
nesse tipo de entrevista, o pesquisador conta com certa liberdade para adaptar suas
perguntas a determinada situação, podendo alterar a ordem das questões e fazer
outras perguntas, para além daquelas propostas no roteiro.
Segundo Minayo (2000, p. 109), a entrevista é considerada um instrumento
privilegiado de coleta de dados, pois torna a fala:
[...] reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos, e, ao
mesmo tempo, possui a magia de transmitir, através de um porta-voz [o entrevistado], as
representações de grupos determinados em condições históricas, sócio-econômicas e
culturais específicas.
As dezesseis entrevistas realizadas foram gravadas e transcritas na íntegra, o que
facilitou muito o processo de análise dos dados assim obtidos. Para a realização
dessas entrevistas e a posterior divulgação de suas informações, sendo observada a
garantia do anonimato, todos os conselheiros participantes assinaram um termo de
consentimento (APÊNDICE B), que esclarecia os objetivos e procedimentos
metodológicos da pesquisa.
Para a análise dos resultados, utilizou-se a análise de conteúdo. Essa técnica
possibilitou que se extrapolasse o conteúdo escrito, atingindo um nível mais
profundo de compreensão de seus sentidos, significados, contextos e circunstâncias
(BARDIN, 1977). A escolha dessa forma de análise se deu pela flexibilidade de seus
procedimentos, levando-se em conta as características do objeto.
Tendo como base o referencial teórico utilizado, elencamos algumas categorias de
análise do conteúdo comunicado, tais como: objetivos de inserção das entidades no
Conselho, participação política, democracia, Estado e sociedade civil, criança e
adolescente, função do conselheiro, caráter do conselho, representação de
interesses coletivos.
29
A riqueza dos dados coletados permite apreender a amplitude e a complexidade das
falas dos conselheiros, quando damos destaque a alguns trechos das falas.
Buscamos apresentar a visão de um número significativo dos participantes,
mostrando conflitos e contradições, como também posições semelhantes e
consensuais entre eles.
Adotamos como procedimento ético manter o CONCAV e os entrevistados
informados de todos os objetivos e processos metodológicos da pesquisa. Também
é importante salientar a fidelidade aos autores aos quais recorremos e a aplicação
das normas técnicas de redação e formatação regulamentadas pela Associação
Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT).
Outra postura ética que nos comprometemos a adotar é a devolução dos resultados
obtidos pela pesquisadora aos sujeitos participantes do estudo. Assim, após a
conclusão deste, os dados serão repassados ao CONCAV, com o objetivo de
colaborar para a proposição de mudanças efetivas na formulação das políticas
sociais para a criança e o adolescente.
Por tudo o que foi apresentado, podemos dizer que a investigação é relevante por
razões de duas ordens, intimamente relacionadas, a saber: científica e social.
Cientificamente, a investigação: a) propiciou um estudo sobre participação política
procurando, entre outras coisas, conhecer a dimensão subjetiva da prática dos
conselheiros, isto é, o que “internamente” move as suas ações; b) possibilitou uma
análise profunda de um caso particular de espaço formalmente constituído de
participação popular; c) poderá contribuir para o domínio de temáticas mais
abrangentes (participação em conselhos em geral, formas de participação política
popular etc.).
No que se refere à relevância social do presente trabalho, e por conseqüência de a,
b e c, acima, ele poderá servir de subsídio para diversas gestões públicas,
possibilitando que os sujeitos envolvidos nesse processo repensem a sua
participação e seu papel de agentes públicos, com vistas a construir uma agenda
pública condizente com os interesses e necessidades da coletividade.
30
[...] a ciência deve estar a serviço de toda a humanidade; a ciência deve
contribuir para o conhecimento mais profundo da natureza e da sociedade;
a ciência deve contribuir para a qualidade de vida e para criar um ambiente
saudável para as gerações presentes e futuras (MINAYO, 2002, p. 25).
A importância deste estudo situa-se exatamente na busca de compreender mais
profundamente a dinâmica interna do Conselho de Direitos da Criança e do
Adolescente, a participação política, seus momentos de avanços e fortalecimento,
seus limites e seus desafios.
Enfim, desejamos que nas próximas páginas os leitores possam encontrar, além de
dados e reflexões, uma grande quantidade de informações e análises capazes de
apoiar a consolidação de um diálogo verdadeiramente produtivo entre diversos
atores sociais, na busca pela efetivação de direitos e, portanto, pela transformação
social.
31
CAPÍTULO 2
DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO:
UM CONVITE AO DEBATE
“O que me mantém vivo é a chama do socialismo que está dentro de mim”
(FLORESTAN FERNANDES).
32
2.1 – AS VÁRIAS FACES DA PARTICIPAÇÃO
A ampliação das experiências participativas no Brasil, principalmente a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988, reascende em nosso país o debate
sobre as teorias democráticas e sobre o sentido da participação popular. A criação
de espaços que possibilitam a participação política e que renovam a promessa de
democratização da sociedade – especialmente os Conselhos Gestores, o orçamento
participativo, os congressos da cidade – tem se apresentado como um importante
mecanismo para a configuração de um novo desenho de gestão pública, visto que
trazem, na forma da lei, a idéia de transparência, descentralização, controle
democrático e participação popular.
Nesse contexto, “participação popular” tem sido uma expressão utilizada de formas
diversas, tanto no âmbito da agenda dos neoliberais quanto entre os setores
progressistas, nos discursos tanto da direita quanto da esquerda partidária. A
participação é aclamada por todos os cantos do País, obscurecendo e diluindo os
diferentes sentidos que lhe dão sustentação (DAGNINO, 2004). “Como resultado
dessa ‘confluência perversa’, o princípio da participação se afirma e consolida como
ideário hegemônico indiferente às intencionalidades dos atores e às suas diferentes
filiações político-ideológicas” (TATAGIBA, 2003, p. 2).
[...] o fato da [sic] participação estar atualmente inserida no discurso e na
prática de diferentes atores que disputam espaços no cenário das políticas
públicas torna-se crítica e indispensável uma análise mais detida sobre os
reais significados e funções que ela pode assumir num projeto de
sociedade (GRUPO DE ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO
DEMOCRÁTICA, 1998/1999).
Tendo em vista, portanto, que os conselhos gestores despontam no cenário
brasileiro enquanto “lócus” potencial de participação das classes populares e de
possível radicalização da democracia, devemos atentar para os sentidos que são
atribuídos à participação pelos atores que participam efetivamente desse processo –
os conselheiros. Esses sentidos vão influenciar diretamente a maneira prática pela
33
qual eles realizam suas atividades no conselho. Por isso, é fundamental
observarmos a complexidade e a multiplicidade de significados que os termos
“democracia” e “participação” expressam no âmbito das teorias sociais.
Poucos termos assumiram tamanha polissemia como “democracia”. Provavelmente,
isso se deve a que esse termo surgiu e se desenvolveu — e ainda continua se
desenvolvendo — de forma estritamente articulada à idéia de participação popular.
Considerar essa articulação nos permite identificar, ao longo da história da
democracia, uma variedade de teorias que tentam explicá-la. O termo “participação”
tem sido empregado por muitos autores, dos clássicos aos liberais, passando pelos
teóricos do socialismo, que se propõem estudar a democracia, apresentando
sentidos bem diferentes quanto ao sentido e abrangência do termo. Desse modo, é
importante resgatarmos a idéia original do termo “democracia” para observar o
primeiro sentido adquirido pela participação ainda na Grécia Antiga.
Clístenes é considerado o fundador da democracia ateniense na Grécia Antiga. Esse
legislador introduziu, no século VI antes da era cristã, reformas democráticas
baseadas no princípio da isonomia, o que levou a que todos os cidadãos livres,
independentemente de sua situação financeira, passassem a ter os mesmos direitos
políticos. Nesse contexto histórico e geográfico, a polis (cidade) se apresentava
como espaço privilegiado da vida dos homens. Assim, ser cidadão
4
emergia como
única possibilidade de participação na esfera pública, em que os assuntos que
diziam respeito à coletividade eram discutidos e decididos de acordo com as
opiniões dos homens gregos livres. Dessa forma, estes eram considerados os
homens políticos — únicos portadores do direito à participação política num contexto
de democracia direta.
4
Histórica e etimologicamente, cidadania é uma palavra que vem de “cidade”, sendo esta
compreendida no sentido clássico de sociedade política (civitas, para os antigos romanos, ou polis
para os gregos antigos), na qual os cidadãos, ou seja, os membros livres daquela sociedade, se
articulavam e participavam da vida pública, visando o interesse coletivo. Nessa democracia, havia
clareza quanto ao termo “cidadania”, porque só se admitia como cidadão o membro ativo, que
participava da vida pública. Aquele que não era ativo (o escravo, a mulher, o estrangeiro, por
exemplo) simplesmente não era considerado cidadão. A concepção de cidadania como participação
ressurgiu com muita força na Revolução Francesa. Para Rousseau, a principal diferença entre o
cidadão passivo e o ativo era justamente a participação em todos os assuntos que diziam respeito ao
interesse comum. Entretanto, a idéia de cidadania que passou a predominar, com a modernidade, foi
a de uma democracia estritamente ligada à representação da nação (BENEVIDES, 1994).
34
A concepção de homem político, no seu sentido pleno, foi formulada por Aristóteles:
“O homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e
aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer
parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem” (ARISTÓTELES, 1988, p.
13). Aqui temos o cerne da teoria clássica da democracia, segundo a qual esta é
reconhecida enquanto governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos
aqueles que gozam dos direitos de cidadania. Portanto, distingue-se da monarquia,
como governo de um só, e da aristocracia, como governo de poucos (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 2004), se tomarmos os termos com base em suas
origens etimológicas. Reconhecida sua cidadania,
5
o cidadão passava a pertencer à
comunidade política, tendo responsabilidade jurídica e administrativa no que se
referia às questões relacionadas ao bem comum — ao âmbito do espaço público.
Nesse contexto, e ainda que com todas as restrições apontadas, a democracia
ateniense desenhava os primeiros contornos de uma democracia direta baseada no
autogoverno, na igualdade política, na liberdade, na justiça, na participação do
cidadão comum, no controle da ação dos governantes e na prestação de contas das
ações de governo.
Esse conjunto de características envolve aspectos de natureza diversa, como
valores, fins, meios e instituições: a Boulè
6
e a Assembléia, onde se definiam as
propostas apresentadas pelos cidadãos. Esses espaços foram criados pela reforma
de Clístenes como tentativa de ampliar os espaços de decisões e possibilitar maior
controle do governo (MOSSÉ, 1997).
O sistema de funcionamento da democracia ateniense implicava uma série de regras
de participação, como a igualdade de oportunidades, a consciência da cidadania e o
pagamento pela sua participação.
5
Entretanto, na democracia ateniense, nem todos os homens gozavam dos direitos de cidadania. O
espírito da democracia ateniense restringia a participação dos indivíduos que não possuíam o status
de cidadão. “Nesse mundo os estrangeiros são bárbaros (não falam grego), os escravos não têm
natureza humana, as mulheres e as crianças detêm um estatuto diferenciado, e jamais conseguirão a
humanidade plena” (CORTIZO, 2003, p. 30).
6
Boulè: era o conselho; órgão principal da democracia ateniense, formado por quinhentos membros
escolhidos por sorteio. A Boulè preparava as sessões da Assembléia, redigindo os decretos, além de
mais tarde desempenhar o papel de corte suprema da justiça (MOSSÉ, 1997).
35
Em primeiro lugar o povo dá um salário aos que se reúnem na Assembléia,
uma dracma
7
para as sessões ordinárias, nove óbolos para a assembléia
principal de cada pritania
8
. Os juízes recebem três óbolos, os buleutas
9
cinco óbolos, mas o que são prítanes
10
recebem um óbolo suplementar
para a sua alimentação [...] (MOSSÉ, 1997, p.120).
Já a consciência da cidadania se manifestava na obediência às leis, reconhecida
pelos tribunais como a garantia da democracia e em nome da qual os atos do
governo não poderiam ser desobedecidos.
A democracia ateniense perdurou por longo período, até que, em 330-326 a. C,
instaurou-se uma crise econômica na região. Nesse período, Atenas vivenciava um
momento de alta dos preços dos gêneros alimentícios e de escassez de trigo.
Os especuladores aproveitam-se para aumentar artificialmente os preços,
agravando ainda a situação dos mais pobres. Foi nessa ocasião que
honrarias particularmente importantes foram concedidas aos metecos
[aqueles que vivem à margem – pobres] que favoreciam o abastecimento
da cidade. Mas essas medidas eram apenas um paliativo insuficiente, e
pode-se imaginar que a agitação continuou em Atenas, durante esses anos
conturbados. E isso era agravado pelas paixões políticas que, por um
instante aplacadas, adquiriram um novo alento (MOSSÈ, 1997, p. 124).
Nesse contexto de crise econômica e guerras políticas por conquistas de territórios,
Atenas recebeu uma guarnição macedônica. Essa guarnição conseguiu aprovar um
decreto que reconhecia a plena cidadania apenas aos cidadãos com alguma fortuna,
dando fim ao princípio de isonomia inaugurado por Clístenes. As instituições
democráticas perderam seu poder de decisão, passando a se configurar como um
simulacro de democracia. As massas empobrecidas ou migraram para outras
cidades ou passaram a viver na mais profunda indigência. Assim, pouco a pouco, a
democracia ateniense foi perdendo o seu espaço na história da Antigüidade, sendo
que essa forma de governo só será retomada na Idade Moderna (MOSSÉ, 1997).
No entanto, para finalizar esta breve discussão sobre a origem da democracia, é
oportuno lembrar que, desde o seu princípio, a democracia foi contestada pelas
classes dominantes — as reformas de Clístenes, em larga medida, corroíam as
7
Dracma: unidade monetária. Uma dracma valia seis óbolos, sendo que o óbolo era menor unidade
monetária (MOSSÉ, 1997).
8
Pritania: presidência da Boulè (MOSSÉ, 1997).
9
Beleutas: membros da Boulè (MOSSÉ, 1997).
10
Prítanes: membros da presidência da Boulè (MOSSÉ, 1997).
36
bases da dominação social da antiga aristocracia, acostumada a dirigir os rumos da
vida política grega. O espaço que as classes populares poderiam ocupar
preocupava, em grande medida, as classes dominantes. O processo de aceitação da
democracia por essas classes se deu na medida em que, num novo contexto de
maior presença popular na vida política, aquele segmento percebeu a democracia
como uma forte aliada na dominação dentro de um sistema classista, visto que as
classes dominantes podem, utilizando-se do discurso democrático, determinar
limites e formas de controle da participação das classes populares (SILVA, 2003).
Essa questão ficará mais nítida com o surgimento do Estado Moderno burguês e a
nova concepção de democracia que gradualmente emergiu – a democracia liberal. O
surgimento do Estado moderno se caracterizou por um longo e perturbado processo
caracterizado por discussões teóricas em torno dos limites do poder político a partir
da função e do conteúdo dos direitos e da participação dos cidadãos na vida política.
“A democracia e o liberalismo demoraram para unir-se. Mas depois de realizado o
casamento, se acharam um par exclusivo” (VIEIRA, 1992, p. 65).
A idéia original de democracia como governo do povo ou da maioria em nada
combinava com os ideais liberais que consagram as liberdades individuais, a
liberdade de contrato, baseada no racionalismo, no individualismo e na não-
interferência do Estado no setor econômico. Nessa sociedade moderna, o mercado
e suas leis passam a ser vistos como a “mão” que governa a sociedade,
determinando as suas condições de desenvolvimento e as relações sociais
existentes.
O antagonismo entre o liberalismo e a democracia foi enunciado por Benjamin
Constant (1767-1830), que mostrou a diferença entre os objetivos da liberdade
ateniense e a liberdade moderna. Observa-se que, de acordo com a idéia original da
democracia, trata-se de distribuir o poder político e, de acordo com as idéias liberais,
é preciso limitar esse poder.
O objetivo dos antigos era a distribuição do poder político entre todos os
cidadãos de uma mesma pátria: era isso que eles chamavam de liberdade.
O objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas: eles
chamam de liberdade às garantias acordadas pelas instituições para
aquelas fruições (CONSTANT, 1965, p. 252).
37
Para os liberais, a participação direta de todos os cidadãos nos processos decisórios
limita a liberdade individual, visto que o indivíduo deve, num regime de democracia
direta, se submeter às decisões e à autoridade da maioria.
Assim, a noção de democracia que será sustentada pelo liberalismo está
diretamente articulada com a idéia da suposta igualdade de oportunidades
sobressaindo-se aqueles que têm maior capacidade individual, conforme podemos
observar na citação abaixo:
É a idéia de que os indivíduos se colocam no livre mercado, cada um com
sua capacidade e seu esforço, concorrendo em função de interesses e de
aspirações. O mercado e sua lei fornecem e regulam o valor das pessoas e
das coisas. Como o liberalismo, a democracia liberal está alicerçada no
capitalismo [...] acompanhando as vicissitudes e seguindo o destino da
economia de mercado (VIEIRA, 1992, p. 70).
Dessa forma, a desigualdade social e a dominação de classe podem ser admitidas,
desde que a igualdade da cidadania seja assegurada. Assim, a instituição do
sufrágio universal é que vai igualar todas as pessoas, comprovando a igualdade da
cidadania, mesmo que não exista igualdade social.
Outra característica da democracia liberal é a predominância do sistema partidário
para se alcançar o poder político. Os direitos políticos se configuram, então, na
possibilidade do indivíduo de participar enquanto eleitor ou membro do Estado. A
participação popular se resume ao direito de votar e ser votado.
Essa idéia, além de ir de encontro ao núcleo original do conceito de “democracia”,
também era contrária às idéias sustentadas por Jean-Jacques Rousseau.
Nesse contexto, podemos dizer que, mesmo considerando-se todas as contradições
do modelo ateniense de democracia direta, boa parte dessa concepção foi
resgatada por Rousseau, na medida em que este entendeu que a participação do
cidadão é o meio de se garantir o autogoverno e a soberania popular.
Na concepção de Rousseau, a principal característica do cidadão é a sua prática
participativa na vida política. Assim, participar das decisões é materializar o
38
autogoverno. Participando da vida política, o indivíduo consegue diferenciar os seus
interesses privados dos interesses públicos.
Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral.
Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado
e não passa de uma soma das vontades particulares. Quando se retiram,
porém, dessas mesmas vontades, os excessos e as faltas que nela se
destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral
(ROUSSEAU, 1951, p.228).
O fundamental nessa concepção é compreender que, com base na participação, o
cidadão passa a obedecer às decisões que foram tomadas. Logo, a participação
comportaria uma dimensão educativa. O debate público sobre as questões que
afetam diretamente a vida dos cidadãos seria a maneira pela qual cada indivíduo
aprende a democracia. De forma direta, a participação familiarizaria o indivíduo com
os procedimentos democráticos e o aprendizado das ações políticas democráticas.
Nascimento (2005, p. 196) expressa bem o pensamento de Rousseau.
Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de
elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a
essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação
de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é,
uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em
particular ou de um grupo de indivíduos.
Todavia, por mais que essa concepção venha ao encontro da idéia original do termo
“democracia”, baseada na participação direta dos cidadãos na cena pública, é
importante destacar as próprias considerações de Rousseau sobre certa
impossibilidade da democracia direta em maior escala.
Rousseau [...] também estava convencido de que uma ‘verdadeira
democracia jamais existiu nem existirá’, pois exige, acima de tudo, um
Estado muito pequeno, ‘no qual seja fácil ao povo se unir’; em segundo
lugar, ‘uma grande simplicidade de costumes’; além do mais, ‘uma grande
igualdade de condições e fortunas’; por fim, ‘pouco ou nada de luxo’
(BOBBIO, 1994, p. 33).
Além de apresentar o problema do tamanho do Estado e do grande número de
cidadãos, o autor ora considerado também salienta: “[...] não se pode imaginar que
permaneça o povo continuamente em assembléia para ocupar-se dos negócios
públicos” (ROUSSEAU, 1951, p. 90). É justamente nesse aspecto que surgem as
39
principais críticas à teoria clássica da democracia e a idéia da democracia
representativa.
No final do século passado, contra a democracia, entendida exatamente
em seu sentido tradicional de doutrina da soberania popular, se formulou
uma crítica que pretendeu, ao contrário, fundar-se exclusivamente sobre a
observação dos fatos [...]. [Segundo essa crítica] a soberania popular é um
ideal-limite e jamais correspondeu ou poderá corresponder a uma realidade
de fato, porque em qualquer regime político, qualquer que seja a ‘fórmula
política’ sob a qual os governantes e seus ideólogos o representem, é
sempre uma minoria de pessoas [...] aquela que detém o poder efetivo
(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 325).
Schumpeter cunhou o modelo “democracia de equilíbrio” ou “elitista/pluralista”, que
surge como uma crítica às teorias anteriormente apresentadas. Uma das críticas
apontadas por Schumpeter a tais teorias diz respeito a certa desconfiança com
relação à idéia de bem comum, que, para ele, reduzia e homogeneizava a noção de
povo, não levando em conta a heterogeneidade de valores e interesses manifestos
numa sociedade. De acordo com esse modelo, a democracia é entendida enquanto
um método de produzir decisões políticas, através do qual o direito de tomar
decisões se origina na competição pelos votos dos cidadãos, ou seja, “é aquele
acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos
adquirem o poder de decisão através da luta competitiva pelos votos da população”
(SCHUMPETER, 1984, p. 336).
A obra Capitalismo, socialismo e democracia, de Schumpeter, publicada em 1942,
teve grande impacto no período pós-Segunda Guerra Mundial, contribuindo para
legitimar ideologicamente as “democracias” inglesa e norte-americana. Essa
contribuição é expressa na referida obra:
Numa democracia, como já se disse, a função primária do eleitor é produzir o
governo. Isso pode significar um conjunto completo de funcionários [...] a produção
de um governo significa, na prática, decidir quem será a pessoa na liderança. [...]
Apenas numa democracia o voto do eleitorado faz isso diretamente — nos Estados
Unidos (SCHUMPETER, 1984, p. 341).
Para esse autor, a sua teoria resolveria os principais problemas da teoria clássica da
democracia, que se baseava na proposição de que o povo tinha sempre uma opinião clara e
racional sobre todas as questões que pudessem surgir no cenário político de uma sociedade.
Para Schumpeter, o papel do povo é “produzir um governo, ou melhor, um corpo
40
intermediário que, por sua vez, produzirá um governo ou um executivo nacionais”
(SCHUMPETER, 1984, p. 336).
Nessa concepção, a participação é expressa segundo um mecanismo de mercado,
em que os indivíduos que votam são consumidores de bens políticos e os políticos
são os empresários. Assim, o modelo schumpeteriano reduz a democracia ao
governo de uma elite e a participação popular é expressa somente pelo voto, ou
seja, a participação popular consiste em escolher entre os competidores, que se
apresentam no mercado político como os mais qualificados para governar.
É importante observar que esse modelo apresenta uma visão restrita da capacidade
política dos indivíduos das classes populares. Essa visão respaldava a idéia
segundo a qual esses indivíduos não teriam condições de participar dos processos
de tomada de decisão, já que as condições e vocações para essa atividade eram
exclusivas dos grandes empresários, visto que essa prática fazia parte do seu
cotidiano. Assim, diante da exclusão das classes populares da vida política no seu
sentido mais amplo, é possível afirmar que, nesse modelo, a relação entre o Estado
e a classe dominante define o alcance da democracia. Nesse modelo de
democracia, o cidadão “é titular de direitos e liberdades em relação ao Estado e a
outros particulares — mas permanece fora do âmbito estatal, não assumindo
qualquer titularidade quanto às funções públicas” (BENEVIDES, 1994, p. 8).
Conseqüentemente, Schumpeter afirma que a democracia direta não é possível
porque nem todos os membros da sociedade estão no mesmo patamar de
desenvolvimento cultural. Existem os líderes e os seguidores; os que não estão
interessados e os que são mal-informados. Segundo o autor, os objetivos da
sociedade devem ser planejados pelos líderes — por uma elite que seja
politicamente atuante, que possa se voltar ao estudo dos problemas sociais
relevantes e seja capaz de compreendê-los (CARNOY, 1994).
Dentro desse debate, outros autores se propuseram problematizar o termo
“democracia”, como foi o caso de Robert Dahl. Sua discussão converge com o
modelo schumpeteriano, na medida em que concorda com a idéia segundo a qual a
41
sociedade é constituída por indivíduos consumidores de bens políticos. Além disso,
advoga que esses indivíduos se associam em diferentes grupos a fim de
potencializar formas de expressar e garantir os seus interesses. Esses grupos são
denominados por Dahl de “grupos de interesses”, tendo como exemplos os
sindicatos, os grupos religiosos e as associações comunitárias.
Dahl defende essa forma de democracia alegando que ela apresenta algumas
conseqüências desejáveis para o desenvolvimento de uma sociedade. Primeiro,
evitaria a tirania, visto que a presença dos grupos de interesses conteria a
concentração de poder em uma elite fixa, e também controlaria a tirania dos próprios
grupos de interesses, na medida em que estes competiriam entre si pelos bens
políticos oferecidos pelas empresas que concorrem ao Estado. “O potencial da
participação está relacionado à capacidade do grupo de interesse em mobilizar seus
recursos de poder e de participar com vantagens do mercado competitivo de bens
públicos” (SILVA, 2003, p. 15).
O modelo elitista/pluralista também garantiria aos cidadãos uma série de direitos
fundamentais que os sistemas não-democráticos não concedem e não podem
conceder; asseguraria aos cidadãos uma liberdade individual mais ampla do que
qualquer alternativa viável; ajudaria a proteger os interesses fundamentais das
pessoas; proporcionaria uma oportunidade máxima para os indivíduos exercitarem a
liberdade de autodeterminação — ou seja: viverem sob leis de sua própria escolha;
promoveria um grau relativamente alto de igualdade política e, por fim, os países
com governos democráticos tenderiam a ser mais prósperos que os países com
governos menos democráticos (DAHL, 2001).
No entanto, para alcançar todas essas conseqüências positivas da democracia, tal
como a entende Dahl, este autor ressalta a importância de algumas condições
básicas para a existência de um regime politicamente democrático. Para ele, a
democracia depende de noções mais amplas de igualdade e justiça. Para tanto, as
eleições devem ser livres, justas e freqüentes, o sufrágio deve ser universal, os
cidadãos devem ter o direito de se candidatar aos cargos eletivos e deve haver
liberdade de expressão, informação e associação (DAHL, 2001).
42
O aspecto da igualdade política, dentro dessa perspectiva, pode ser resumido na
forma do sufrágio universal, que permite a consideração de todas as preferências
individuais, visto que cada indivíduo corresponde a um voto.
De acordo com a concepção de democracia formulada por Dahl, para decidir no
âmbito do processo democrático, ou seja, para votar, é necessário que todos tenham
acesso à educação, à informação e à discussão pública. Isso requer que sejam
oferecidas oportunidades iguais e adequadas para que cada indivíduo possa
descobrir e avaliar, em tempo hábil, quais são as suas preferências em relação ao
resultado final da decisão (COSTA, 2002). Desse modo, somente as pessoas que
tenham um claro conhecimento das questões políticas podem participar do processo
decisório dentro do grupo. Assim, os grupos de interesses só poderão opinar sobre
os assuntos acerca dos quais tenham um bom entendimento e neles interferir,
delegando, com seu voto, o poder de decisão para outros mais capacitados. Nas
palavras de Dahl (2001, p. 84), essa questão fica evidente: “certamente não
podemos pressupor que todas as pessoas sejam invariavelmente os melhores juízes
de seus próprios interesses”.
Dessa forma, o modelo elitista/pluralista proposto por Schumpeter e por Dahl tem
como base a democracia representativa, que se apresenta como única forma viável
diante da impossibilidade de todos os cidadãos participarem efetivamente da vida
política de um país. Essa impossibilidade se faz devido ao grande número ou à
grande dispersão geográfica de indivíduos numa nação, e a única solução viável
para essa impossibilidade é que os indivíduos elejam seus funcionários mais
importantes. “A lei do tempo e dos números: quanto mais cidadãos uma unidade
democrática contém, menos esses cidadãos podem participar diretamente das
decisões do governo e mais eles têm que delegar a outros essa autoridade” (DAHL,
2001, p. 125). Assim, o voto se apresenta como a maior e melhor possibilidade de
todos os indivíduos se manifestarem.
Para Dahl, é visível a relação entre o desenvolvimento da democracia e a existência
de uma economia capitalista de mercado. Dahl afirma que, nessas sociedades, nas
quais a economia é predominantemente de mercado, a democracia tem melhores
condições para se ampliar. Nessa lógica, o “capitalismo de mercado” é o condutor do
43
desenvolvimento econômico e este, conseqüentemente, é favorável à democracia.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento econômico beneficia a todos, na medida em
que contribui para a redução da pobreza e a melhoria dos padrões de vida dos
indivíduos. Além disso, o desenvolvimento econômico gera excedentes que
possibilitam o investimento estatal em áreas como a educação, contribuindo, assim,
para a promoção da cidadania “instruída e educada” (DAHL, 2001).
O capitalismo de mercado também é favorável à democracia por suas
conseqüências sociais e políticas. Ele cria um grande trato intermediário de
proprietários que normalmente buscam a educação, a autonomia, a liberdade
pessoal, direitos de propriedade, a regra da lei e a participação no governo. As
classes médias, como Aristóteles indicou, são os aliados naturais das idéias e das
instituições democráticas. Por fim, talvez o mais importante: descentralizando
muitas decisões econômicas a indivíduos e a firmas relativamente independentes,
uma economia capitalista de mercado evita a necessidade de um governo central
forte e mesmo autoritário (DAHL, 2001, p. 185).
Não obstante, esta concepção mercadológica do processo democrático, pautada na
competição e no individualismo, e que se materializa na relação de oferta e procura
entre políticos-empresários e cidadãos-consumidores, tem recebido inúmeras
críticas.
Macpherson (1978) tece uma série de questionamentos ao modelo anteriormente
descrito. Para ele, o único nome que definiria com clareza o modelo schumpeteriano
deveria combinar os termos equilíbrio, elitista e pluralista. Primeiro, porque o modelo
tenta mostrar um possível equilíbrio entre a procura e a oferta de bens políticos.
Segundo, porque confere o papel de condutor da política a grupos auto-escolhidos
de dirigentes e, por fim, porque parte do pressuposto de que a sociedade a que se
deve adequar um sistema político democrático é uma sociedade plural, formada por
indivíduos com muitos interesses, que os levam, ora a associarem-se a um grupo,
ora a outro (MACPHERSON, 1978).
Macpherson aponta dois grandes suportes do ‘modelo’: o pressuposto de que as
demandas da cidadania são um dado fixo ou fixável e que, para manter a
‘funcionalidade’ do sistema, é estimulada a apatia política dos cidadãos, apatia
reforçada pelas desigualdades econômicas e sociais que deixam nas mãos da elite
econômica todo o poder político. Finalmente, o ‘modelo’ se apóia (ou cria-a) na
ilusão da soberania do consumidor quando, numa economia oligopólica, o mercado
produz e
controla as demandas. Na base do modelo político encontra-se o modelo
econômico keynesiano, da intervenção e parceria estatal, com a ‘finura’ de seus
artifícios a tornar a ordem capitalista invulnerável (CHAUÍ, 2003, p. 139).
44
Analisando mais detidamente o modelo elitista de democracia, podemos apontar as
as considerações que se seguem. O próprio princípio da igualdade de condições é
incompatível com o modo de produção capitalista, visto, por exemplo, que os
partidos políticos possuem quantias diferenciadas de recursos para financiar suas
campanhas, o que pode fazer com que o partido que detenha mais recursos exerça
maior pressão na decisão do eleitor-consumidor. Além disso, numa sociedade
capitalista, os partidos que não questionam a própria manutenção do capitalismo
tendem a contar com mais apoio em termos de recursos financeiros, os quais, por
sua vez, estão majoritariamente nas mãos daqueles que mais se beneficiam com
essa forma de organização social.
O fato de delegar a função de liderança apenas para os membros da elite evidencia
a opinião negativa de Schumpeter em relação às capacidades políticas das classes
populares. Assim, a possibilidade de participação se torna algo meritocrático, que
envolve, no âmbito da liderança, apenas aqueles indivíduos que conseguiram
desenvolver as suas capacidades e aproveitaram as oportunidades oferecidas pelo
mercado político. O ponto central do alcance da participação política está no
indivíduo e não nos processos estruturais que influenciam, em larga medida, as
ações de dominação ou autonomia política.
Isso significa dizer que, de acordo com tal ponto de vista, os indivíduos pertencentes
às classes não-detentoras dos meios de produção demonstram certa incapacidade
para as atividades pertinentes à administração pública (MACPHERSON, 1978).
Nesse contexto, Macpherson propõe um novo sentido para o termo “democracia” —
por ele denominado democracia participativa. Esse modelo foi pensado a partir do
cenário de mobilizações políticas que manifestavam, na década de 60, o
descontentamento com os regimes do Leste Europeu. Nesse período, a palavra de
ordem era a luta por maior participação política na definição das agendas públicas.
O modelo de funcionamento da democracia participativa exigiria a democracia direta
na base e uma estrutura representativa nos outros níveis. Desse modo, os teóricos
dessa modalidade de democracia apontaram a necessidade de um conjunto de
45
condições sociais que seriam indispensáveis para a viabilização dessa forma de
democracia.
Primeiro, seria necessária uma mudança cultural no pensamento e nas práticas
políticas. Os indivíduos deveriam superar a visão de meros eleitores-consumidores e
se enxergar enquanto cidadãos capazes de decidir e usufruir das suas decisões.
Também seria preciso resolver o problema da desigualdade social e econômica,
visto que a existência dessas desigualdades impossibilitaria a participação político-
partidária e manteria a ordem vigente. Desse modo, é pertinente estimular formas
mais ampliadas de participação política dos cidadãos, como a criação de
associações de moradores, conselhos de trabalhadores, mobilizações por melhorias
na qualidade de vida etc. Por fim, apresenta-se como condição fundamental para a
prática da democracia participativa reconhecer as conseqüências negativas do
capitalismo e os danos gerados pela não-participação política (MACPHERSON,
1978).
Portanto, a democracia participativa se estruturaria na forma piramidal, com
democracia direta na base e democracia por representação em cada nível situado
acima da base.
Assim, começaríamos com a democracia direta ao [sic] nível de fábrica ou
vizinhança — discussão concreta face a face e decisão por consenso majoritário, e
eleição de delegados que formariam uma comissão no nível mais próximo seguinte,
digamos, um bairro urbano ou subúrbio ou redondezas. [...] Assim, prosseguiria até
o vértice da pirâmide, que seria um conselho nacional, e conselhos locais e
regionais para questões próprias desses segmentos territoriais. [...] O que é
necessário, em cada estágio, para tornar democrático o sistema, é que os
encarregados das decisões e formulação dos problemas, eleitos desde os níveis
inferiores, sejam responsabilizados em relação àqueles que os elegeram sob pena de
não reeleição (MACPHERSON, 1978, p. 110).
Ao propor uma nova concepção de democracia, Macpherson pretende apresentá-la
como uma possível alternativa tanto aos modelos liberais (visão mercadológica do
processo participativo) quanto ao modelo marxista (de uma nova sociedade sem
classes). Na verdade, pretendia mostrar que uma democracia que envolvesse a
participação das classes populares, combinando a participação direta com
instrumentos da democracia representativa, era possível no interior das sociedades
capitalistas. No entanto, é preciso ressaltar que, de acordo com esse autor, é
46
necessário reconhecer as conseqüências negativas do capitalismo, Assim, a
democracia participativa poderia ser pensada como um fator que, ainda que em
conjunto com outros, poderia levar a outra forma de organização social.
Além disso, o mesmo autor destaca que a idéia de democracia participativa
pressupõe o aumento da eficácia política e se apresenta como prática educativa, em
que o desenvolvimento humano será possível através da atuação nos processos
participativos.
Pateman (1992), ao estudar os mecanismos de participação no espaço de trabalho e
suas articulações com a política nacional, concluiu que a participação desenvolve
atitudes de cooperação, comprometimento e integração. “Em sua análise está
presente a concepção de participação como prática educativa, por meio do qual se
formam ‘cidadãos’ voltados para os interesses coletivos e para os assuntos da
política nacional” (SILVA, 2003, p. 19).
Sendo educativa a participação, ela seria capaz de estimular um processo de
superação cultural da visão cidadão-consumidor e se apresentaria como peça-chave
para romper com a dominação socioeconômica. A prática participativa inaugura, de
acordo com Macpherson, um novo contexto caracterizado pela vinculação direta
entre participação cidadã, mudança de consciência política e redução das
desigualdades sociais.
A seguir, utilizo-me de Chauí (2003) para tecer uma síntese do modelo proposto por
Macpherson.
De forma resumida, podemos dizer que, nesse modelo, o poder dos dirigentes se
torna legítimo pelo fato de as bases serem consultadas periodicamente, sendo
enfatizadas as vontades das maiorias. As condições requeridas são a cidadania e a
eleição. O processo eleitoral pressupõe a competição entre os diversos indivíduos,
partidos, grupos e as diversas posições. Aqui, a condição postulada é a existência
de associações. A competição eleitoral requer liberdade de opinião e publicização
dessas opiniões, sendo condição primordial a existência de uma opinião pública
como fator de criação da vontade geral. A consulta periódica às bases garante a
47
expressão das minorias e o respeito às decisões da maioria, o que protege a
democracia contra o risco de manutenção de um único grupo no poder.
No modelo da democracia participativa, é fundamental a existência de divisões
(maioria/minoria) e de parlamentos. O judiciário, neste caso, é a potência política
que viabiliza a integridade dos cidadãos diante dos governantes e, ainda, protege o
sistema de uma possível tirania, sendo a constituição a lei máxima, à qual todos
estão submetidos. As condições primordiais são a existência dos direitos público e
privado, a lei como defesa contra a tirania e a favor da liberdade dos cidadãos.
Não obstante, deve-se ressaltar que o conteúdo liberal da participação política das
classes populares se mantém ainda que nas propostas de democracia participativa,
visto que não ocorrem mudanças significativas nos modos de entender o indivíduo
— que continua sendo o consumidor de bens públicos — e as próprias
desigualdades sociais, que continuam sendo naturalizadas.
A democracia participativa inova ao ampliar os espaços de atuação para
além da escolha do governo e ao colocar na agenda política formas de
autogestão ou de democracia direta, mas conserva o interesse de controle.
De certa forma, não rompe com a noção de que a política deve ser para os
‘especialistas’ ou de que as classes populares só estão aptas a participar
se forem ‘educadas’ de modo a não oferecer riscos ao poder das classes
dominantes (SILVA, 2003, p. 20).
No entanto, novas influências vão ampliar a arena de discussão sobre a democracia liberal.
Habermas apresenta um significado de democracia em que os cidadãos são considerados
capazes de formar juízos através da assimilação de informações e do debate entre diversas
visões de mundo. Esse modelo de democracia, chamado democracia deliberativa, pressupõe
um processo de comunicação dialógica entre indivíduos de condições sociais mais ou menos
iguais que se reúnem para formar, através da argumentação e do debate, uma vontade
coletiva.
[...] a democracia deliberativa advoga que a legitimidade das decisões
políticas advém de processos de discussão que, orientados pelos
princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da
48
autonomia e do bem-comum, conferem um reordenamento na lógica
do poder tradicional (LUCHMANN, 2002, p. 2).
Logo, a constituição de um espaço público para decidir as questões relativas à coletividade,
em que todos possam participar, também é uma questão que permeia a obra de Jürgen
Habermas.
Habermas (1984) considera a esfera pública o espaço capaz de propiciar a concretização dessa
forma de democracia. Esse espaço envolveria os mais diversos atores, cada qual defendendo
os seus mais diversos interesses. Assim, de acordo com o autor, a esfera pública seria a
instância máxima de deliberação e legitimação do poder político.
É importante pontuar que o conceito de esfera pública, na obra de Habermas, toma por base a
ascensão da burguesia, expressando a idéia de um espaço de mediação entre a esfera privada
(restrita aos interesses da burguesia) e o poder público (HABERMAS, 1984).
Entretanto, em estudos posteriores, Habermas amplia o campo de influência do seu conceito,
afirmando que qualquer tema de interesse público, quer seja da burguesia, ou de outros
grupos, como a classe operária, precisa ser condicionado ao debate coletivo. Assim, seria
possível transformar vontades individuais ou de grupos em vontade geral, e essa vontade geral
deveria ser construída de modo racional. Aqui, o elemento determinante é o argumento
racional e não a coerção, ou o poder.
A democracia deliberativa se materializaria em uma associação governada através da
discussão e da deliberação pública de seus membros. Isso quer dizer que um ponto central da
democracia deliberativa, enquanto possibilidade de soberania dos cidadãos, se refere ao ideal
de justificação do exercício do poder político de forma coletiva a partir da discussão ampliada
entre indivíduos livres e iguais. Assim, para o exercício da democracia deliberativa, é
fundamental a criação de espaços institucionalizados que possibilitem a discussão coletiva e
pública, visando deliberar sobre o interesse da coletividade, sendo de responsabilidade desses
49
cidadãos reunidos decidir, a partir do processo cooperativo e dialógico, sobre as questões
prioritárias, realizando a co-gestão das políticas públicas.
A concepção formal de democracia deliberativa é dada por cinco proposições: a associação
é permanente; seus membros compartilham a visão de que as regras de sua associação
garantem um padrão legítimo de deliberação e escolha, conseqüentemente compartilham
do compromisso de agir e deliberar dentro dos limites institucionais cujas normas foram
aceitas através da discussão e argumentação razoável; a livre deliberação entre iguais é a
base da legitimidade; a democracia deliberativa é pluralista no sentido de que seus
membros têm preferências, convicções e ideais diversos em relação à sua vida privada
(COSTA, 2002, p. 107).
Assim sendo, Cohen (1999) estabelece três princípios básicos para o exercício da livre
discussão racional entre cidadãos iguais. Primeiro, o princípio da inclusão deliberativa,
caracterizado pela idéia segundo a qual todos os cidadãos são detentores dos mesmos direitos,
independentemente de sua posição social, política, religiosa, cultural e econômica. Segundo, o
princípio do bem comum, que se refere à possibilidade de um consenso coletivo acerca das
questões sociais prioritárias. E, por fim, o princípio da participação, aqui entendida pela
garantia de direitos iguais de participação, envolvendo o direito de votar, de se associar, de se
expressar politicamente, de ser eleito para um posto público, e pela garantia de oportunidades
iguais para o exercício da participação política.
A articulação desses princípios proporciona, de acordo com Cohen (1999), uma concepção de
democracia deliberativa que combina processos com resultados, e que faz as expressões “pelo
povo” e “para o povo”, próprias do ideal de democracia, de fato terem sentido.
Por fim, é importante ressaltar a vinculação dos modelos de democracia apresentados com a
estrutura econômica do modo de produção capitalista.
50
A concentração do poder econômico e o desenvolvimento de novos tipos de organizações
políticas, como resposta a isso, têm suscitado sérias questões sobre o significado da
democracia nas sociedades capitalistas, tanto nas sociedades avançadas como no Terceiro
Mundo. Qual é a relação dos aparatos do Estado com os cidadãos que eles supostamente
representam? (CARNOY, 1994, p. 60).
Compreender essa questão exige o entendimento da origem liberal do Estado Moderno,
através de um suposto contrato social entre os homens.
11
Compreender os modelos de
democracia descritos requer o esforço de enxergar o Estado como uma esfera neutra e acima
das classes sociais fundamentais da sociedade capitalista. Os adeptos da democracia liberal
advogam a imagem de um Estado a serviço do povo, responsável por garantir o bem comum.
Desse modo, será a contribuição da teoria marxista que nos possibilitará uma crítica mais
consistente aos modelos liberais de democracia.
Antes de abordar essa teoria — o que é feito a seguir —, é importante ressaltar que a categoria
“democracia” desperta grande polêmica e apresenta diferentes visões e questões em suas
produções teóricas, inclusive no campo marxista.
[...] nas suas diferentes versões, o ideal democrático representa um elemento integrante e
necessário, mas não constitutivo. Integrante porque uma das metas que se propuseram os
teóricos do socialismo foi o reforço da base popular do Estado. Necessário, porque sem
este reforço não seria jamais alcançada aquela profunda transformação da sociedade que os
socialistas das diversas correntes sempre tiveram como perspectiva. Por outro lado, o ideal
democrático não é constitutivo do socialismo, porque a essência do socialismo sempre foi a
11
Cf. GRUPPI, (1980).
51
idéia de revolução das relações econômicas e não apenas das relações políticas, da
emancipação social, como disse Marx, e não apenas da emancipação política do homem
(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 324).
Dessa forma, antes de qualquer discussão, é importante ressaltar o caráter classista da origem
do Estado Moderno, conforme nos aponta o legado marxista.
12
O Estado capitalista não
aparece, na teoria marxista, como uma força exterior à sociedade, tampouco como a realidade
da idéia da moral, como pretendia Hegel. É um produto da sociedade capitalista dividida em
classes antagônicas.
Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses antagônicos,
contrários, não se entredevorassem e não devorassem a sociedade
numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se
colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o
conflito nos limites da ‘ordem’. Essa força que sai da sociedade,
ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o
Estado (LENIN, 1980, p. 225).
É comum a Marx, Engels e Lenin a visão de Estado — no capitalismo — como um
instrumento de dominação pela classe burguesa, que defende não o interesse universal, mas,
sim, os interesses dessa classe determinada, na tentativa de reproduzir as relações de produção
próprias do capitalismo. Assim, de acordo com esse conceito “restrito” de Estado, este é
concebido como um “comitê executivo da burguesia”, sendo necessário apenas numa
sociedade de classes. Dessa forma, numa sociedade sem classes, essa dominação seria
desnecessária, sendo desnecessária, portanto, a própria existência do Estado. “A democracia,
12
A natureza de classe do Estado é identificada em todos os teóricos marxistas, inclusive naqueles
que, como Gramsci, ampliaram dialeticamente a concepção de Estado, proposta inicialmente por
Marx e Engels, enxergando-o não apenas como um instrumento de dominação pela classe
dominante, mas também enquanto um espaço de luta pela contra-hegemonia.
52
em uma sociedade comunista, seria parte da ausência de classes (igualdade) da sociedade”
(CARNOY, 1994, p.195).
O ponto de partida para essa compreensão está em Marx e Engels no período 1843-1850.
Marx demonstra que a origem do Estado está nas relações sociais concretas e, diferentemente
de Hegel, que concebe o Estado como a esfera da universalização dos interesses, Marx aponta
que essa esfera resulta da divisão da sociedade em classes opostas. Assim, o Estado, no
capitalismo, passa a ser definido como um instrumento de dominação da classe burguesa, que
defende não o interesse universal, mas, sim, os interesses de uma classe determinada.
Desse modo, é em O manifesto comunista, publicado em 1848, que Marx e Engels apresentam
a essência daquele que, posteriormente, será conhecido como conceito restrito do Estado,
sendo este entendido como um “comitê da burguesia” para a opressão da classe proletária, e
no qual o domínio seria exercido fundamentalmente através da coerção.
As palavras de Coutinho (1996, p. 19) deixam clara a concepção de Estado de classe
sintetizado por Marx:
[...] o Estado deixa então de lhe aparecer apenas como a encarnação formal e alienada do
suposto interesse universal, passando a ser visto como um organismo que exerce uma
função precisa: garantindo a propriedade privada, o Estado assegura e reproduz a divisão
da sociedade de classes (ou seja, conserva a ‘sociedade civil’) e, desse modo, garante a
dominação dos proprietários dos meios de produção sobre os trabalhadores diretos.
Marx e Engels sustentam que o Estado resulta da divisão da sociedade em classes
antagônicas; logo, a divisão societária é pressuposto para a existência do Estado. De acordo
com esses clássicos, a esfera estatal tem o papel de reproduzir essa divisão, fazendo com que
os interesses burgueses dominantes sejam aceitos como interesses gerais da sociedade. Isso é
53
possível devido ao monopólio legal da violência nas mãos do Estado. Repressão e coerção
possibilitam a manutenção do Estado como um instrumento de dominação pela burguesia.
Reafirmando essa concepção, Lenin não reconhece a possibilidade de nenhum aparelho ou
instituição do capitalismo permanecer na nova sociedade. Quando muito, a democracia seria
apenas uma etapa no caminho para o socialismo, algo que deveria ser eliminado no momento
em que se instaura a “ditadura do proletariado”. É importante deixar claro que, para Lênin,
não há uma contraposição mecânica entre democracia e ditadura: para ele, a democracia
burguesa é sempre uma ditadura da burguesia sobre o proletariado e, por sua vez, a “ditadura
do proletariado”, embora se constitua numa ditadura sobre a burguesia que acaba de perder o
poder, é, para a classe que então ascende ao poder, essencialmente democrática.
Assim, a passagem para o socialismo exige a destruição do velho aparelho de Estado.
Nesse contexto, é possível observar certa contradição conceitual no debate sobre democracia
política desenvolvida pelos leninistas, visto que a política de transição do capitalismo ao
socialismo não é muito clara, exceto no que se refere à extinção da classe burguesa como
força social e a conseqüente extinção do Estado burguês (CARNOY, 1994).
Contrária à posição leninista, Rosa Luxemburgo (1961) acredita que alguns elementos do
Estado de classe, como a liberdade de expressão, liberdade de imprensa e alguns aspectos da
democracia burguesa, poderiam se manter na sociedade sem classes. Para Rosa Luxemburgo,
a questão não era rejeitar a democracia, mas, sim, atribuir-lhe um conteúdo social novo
(COUTINHO, 2000).
Decerto, muitas das liberdades democráticas em sua forma moderna (o reconhecimento dos
direitos civis, o princípio da soberania popular etc.) tiveram nas revoluções burguesas —
ou, mais concretamente, nos amplos movimentos populares do Terceiro Estado contra o
despotismo absolutista — as condições históricas de sua gênese; e outras tantas (como o
54
direito de associação, o sufrágio universal e igual etc.), embora conquistadas pelas lutas
populares em oposição à burguesia, puderam se desenvolver e consolidar no quadro da
ordem capitalista. Para o materialismo histórico, contudo, não existe mecânica entre gênese
e validade (COUTINHO, 2000, p. 21).
É importante destacar que, já em 1895, depois da morte de Marx, Engels começa a teorizar
sobre um processo de ampliação da teoria do Estado.
[...] Engels vê agora que a dominação de classe não se manifesta apenas através da
coerção (como ‘poder opressivo’), mas resulta também de mecanismos de
legitimação que asseguram um consenso (resulta também de um ‘pacto’, de um
‘contrato’) (COUTINHO, 1985, p. 28).
Essa ampliação da concepção de Estado só é possível a Engels mediante as crescentes
transformações da sociedade de sua época.
Utilizando tão eficazmente o sufrágio universal, o proletariado praticara um método
de luta inteiramente novo que se desenvolve com rapidez. [...] Participou-se das
eleições para as diversas dietas, conselhos municipais e juntas de trabalho,
disputando-se com a burguesia cada posto em cuja designação do titular participava
uma parcela suficiente do proletariado. Ocorreu, então, que a burguesia e o governo
chegaram a ter mais medo da atuação legal que da atuação ilegal do partido
operário, mais temor aos êxitos das eleições que aos êxitos da rebelião (ENGELS,
1980, p. 102).
É com essa nova possibilidade do consenso que o Estado deixa de ser concebido somente
como um poder organizado a favor da burguesia. Muito embora os interesses estatais ainda
sejam grandemente — e, mesmo, predominantemente —articulados aos interesses burgueses,
Engels começa a observar o nascimento de instituições originárias das lutas operárias (como é
o caso dos partidos políticos de massa) no âmago do Estado, capazes de assegurarem uma
mudança no papel deste último.
Esse caráter consensual preconizado por Engels aponta, ainda que primariamente, para a
ampliação do conceito de Estado, melhor sistematizado por Gramsci.
55
Conforme Coutinho (1989, p. 74), “Gramsci não inverte nem nega as descobertas essenciais
de Marx, mas ‘apenas’ as enriquece, amplia e concretiza, no quadro de uma aceitação plena
do materialismo histórico”.
Não obstante, é preciso pontuar que tanto Marx e Engels quanto Lenin viveram em uma época
de ínfima participação política popular, na qual as forças operárias agiam na clandestinidade
frente à ordem burguesa vigente, o que é fundamental para se compreender sua concepção
restrita de Estado.
Gramsci, ao contrário, desenvolve seus estudos num momento histórico e num espaço
geográfico onde já se percebe uma maior socialização da participação na vida política e no
interior do Estado. Nesse momento,
[...] a luta política já não mais se trava entre, por um lado,
burocracias administrativas e policial-militares que monopolizam o
aparelho de Estado e, por outro, exíguas seitas conspirativas que
falam em nome das classes subalternas; nem tem como cenário
principal os parlamentos representativos apenas de uma escassa
minoria de eleitores proprietários. A esfera política ‘restrita’ que era
própria dos Estados oligárquicos, tanto autoritários como liberais,
cede progressivamente lugar a uma nova esfera pública ‘ampliada’,
caracterizada pelo crescente protagonismo de amplas organizações de
massa. É a percepção dessa socialização da política que permite a
Gramsci elaborar uma teoria marxista ampliada do Estado. Mas, cabe
lembrar que se trata de uma ampliação dialética: os novos elementos
aduzidos por Gramsci não eliminam o núcleo fundamental da teoria
56
‘restrita’ de Marx, Engels e Lênin (ou seja, o caráter de classe e o
momento repressivo de todo poder de Estado), mas o repõem e
transfiguram ao desenvolvê-lo através do acréscimo de novas
determinações (COUTINHO, 1985, p. 58-59)
Na obra de Gramsci, destaca-se a noção de hegemonia. Portelli (1977) ressalta que,
antes dos Cardenos do Cárcere, essa noção era praticamente deixada de lado na
literatura marxista. “Gramsci compreendeu que o domínio de uma classe sobre a
outra não depende apenas do seu poder econômico ou da força física mas
principalmente de persuadir a classe dominada a compartilhar dos valores sociais,
culturais e morais da dominante” (JOLL, 1977, p. 8). Isso significa que uma classe
poderá estabelecer a sua liderança intelectual e moral antes mesmo de deter o
poder político.
A luta pela hegemonia não será realizada apenas no nível das esferas econômica e
política, mas se travará também no nível da instância cultural. A elevação cultural
das massas é extremamente importante para que elas possam libertar-se da
pressão ideológica das velhas classes dirigentes e assumir a direção político-
ideológica. Pode-se dizer que, quando Gramsci fala da hegemonia como direção
intelectual e moral, afirma que esta direção possui um aspecto cultural que manifesta
a capacidade de alcançar o consenso e de estabelecer uma base social. A conquista
da hegemonia se dá no âmbito da correlação de forças sociais, políticas e militares,
ou seja, se dá no processo de relação entre estrutura e superestrutura, objetividade
e subjetividade, singularidade e universalidade (SIMIONATTO, 1999).
O aspecto cultural da hegemonia não indica uma primazia superestrutural. A
concepção de hegemonia remete à dialética das relações entre infra-estrutura e
superestrutura, às formas de movimento do bloco histórico. Dessa forma, é no
âmbito da sociedade civil que as classes objetivam exercer sua hegemonia,
buscando formar alianças que possibilitem a materialização dos seus projetos
através da direção e do consenso. Entretanto, mesmo destacando a importância da
direção cultural e ideológica, Gramsci não se afasta da base classista de tal direção:
57
“Se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, de ter
seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo
essencial da atividade econômica” (GRAMSCI, 1966, p. 31).
O conceito-chave para compreendermos o pensamento político de Grasmci será o
de sociedade civil. Esse autor inova e amplia a interpretação de Marx,
13
na medida
que entende que a sociedade civil:
[...] ‘é o espaço onde se organizam os interesses em confronto, é o lugar onde se
tornam conscientes os conflitos e as contradições’. [...] Em outros termos, a
sociedade civil compreende o conjunto de relações sociais que engloba o devir
concreto da vida cotidiana, da vida em sociedade, o emaranhado das instituições e
ideologias nas quais as relações se cultivam e se organizam (SIMIONATTO, 1999,
p. 66).
Todavia, deve-se destacar que Gramsci não se afastou do seu pressuposto marxista e
continuou mantendo na base econômica o fator decisivo do processo histórico, considerando
que infra-estrutura e superestrutura não são esferas independentes, mas, que na verdade, se
relacionam dialeticamente. Assim, não é possível afirmar que exista uma posição dualista e
maniqueísta entre sociedade civil e Estado, no sentido de que a sociedade civil estaria
permeada de valores positivos e o Estado encarnaria os valores negativos da sociedade. A
sociedade civil localiza-se na superestrutura, mas sofre determinações da infra-estrutura e,
portanto, está dialeticamente vinculada ao Estado e até mesmo ao mercado.
Coutinho (1985, p. 60) sintetiza as concepções de sociedade civil e sociedade política em
Gramsci. A sociedade civil,
[...] designa um momento ou esfera da ‘superestrutura’. Designa o conjunto das
instituições responsáveis pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos, de
ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, as
organizações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições
de caráter científico e artístico, etc.
13
A sociedade civil é considerada por Marx como o conjunto da estrutura econômica e social de um determinado
período histórico (SIMIONATTO, 1999, p. 66).
58
Já a concepção de sociedade política “[...] designa precisamente o conjunto de aparelhos
através dos quais a classe dominante detém e exerce o monopólio legal ou de fato da
violência; trata-se assim dos aparelhos coercitivos do Estado” (COUTINHO, 1985, p. 60).
O aparelho de coerção estatal assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não
consentem nem ativa nem passivamente, mas que é constituído por toda a
sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais
fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, 2002, p. 1519).
Mesmo concedendo um tratamento relativamente autônomo para a sociedade civil e a
sociedade política no que diz respeito as suas funções e materialidade, Gramsci também se
preocupa em apresentar um momento unitário entre ambas, como veremos adiante.
Ambas as esferas (sociedade civil e sociedade política) podem manter ou modificar uma
determinada ordem econômico-social, servindo aos interesses de uma também determinada
classe social.
A discrepância entre as duas esferas está na maneira pela qual cada uma mantém ou modifica
determinada ordem, promovendo ações transformadoras ou conservadoras.
No âmbito da ‘sociedade civil’, as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja,
buscam ganhar aliados para os seus projetos através da direção e do consenso. Por
meio da ‘sociedade política’ – que Gramsci também chama de ‘Estado em sentido
estrito’ ou, simplesmente, de ‘Estado-coerção’ — ao contrário, exerce-se sempre
uma ‘ditadura’, ou, mais precisamente, uma dominação fundada na coerção
(COUTINHO, 1985, p. 61).
Não obstante, além dessa diferença funcional, sociedade política e sociedade civil também
possuem uma materialidade particular, pois a “sociedade política” se apoiará nos “aparelhos
coercitivos do Estado”, nos quais o controle se expressa pelas burocracias executivas e
policial-militar, enquanto que a “sociedade civil” terá como base os “aparelhos privados de
hegemonia”, ou seja, estruturas coletivas organizadas que detêm certa autonomia em relação à
“sociedade política”.
59
Em outras palavras: a necessidade de conquistar o consenso ativo e organizado
como base para a dominação — uma necessidade gerada pela ampliação da
socialização da política — criou e/ ou renovou determinadas objetivações ou
instituições sociais, que passaram a funcionar como portadores materiais
específicos (com estrutura e legalidade próprias) das relações sociais de hegemonia.
E é essa independência material — ao mesmo tempo base e resultado da autonomia
relativa assumida agora pela figura social da hegemonia — que funda
ontologicamente a sociedade civil como uma esfera própria, dotada de legalidade
própria, e que funciona como mediação necessária entre a estrutura econômica e o
Estado-coerção (COUTINHO, 1989, p. 78).
Embora traçando essas importantes diferenciações quanto à funcionalidade e à materialidade
da sociedade política e da sociedade civil, Gramsci se preocupa também em mostrar que
ambas apresentam um momento unitário.
E, em outro local, ele [Gramsci] explicita melhor ainda a dialética (unidade na
diversidade) entre sociedade política e sociedade civil. ‘A supremacia de um grupo
social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e
moral’. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que tende a ‘liquidar’
ou submeter também mediante força armada, e é dirigente dos grupos afins ou
aliados. Nesse texto, o termo supremacia designa o momento sintético que unifica
(sem homogeneizar) a hegemonia e a dominação, o consenso e a coerção, a direção
e a ditadura’ (COUTINHO, 1989, p. 78).
Esse momento unitário mostra uma certa inter-relação dialética entre sociedade civil e
sociedade política. É correto afirmar que esta relação ocorre especialmente em períodos de
crise, nos quais o Estado pode se utilizar da força para manter a ordem, como também pode se
utilizar dos aparelhos privados de hegemonia na tentativa de obter o consenso e legitimar os
seus atos.
Esta cisão pode ser superada, dando lugar a uma unidade intelectual moral. A passagem
progressiva do governo econômico ao governo político, ou seja, a passagem de um Estado de
forma econômico-corporativa ao Estado integral passa pelas formas do exercício da
hegemonia, pela formação de uma nova consciência e pela perspectiva de “extinção e
dissolução do Estado na sociedade regulada” (GRAMSCI, 2002).
Partindo das considerações precedentes, é possível afirmar que Gramsci define o Estado como
sociedade política + sociedade civil, ou seja, o Estado é uma “hegemonia revestida de
60
coerção”. Pensar o Estado em seu sentido amplo nos remete à compreensão de que o Estado
não é uma esfera impermeável às lutas de classes, mas é atravessado por elas.
Gramsci considera que essas tendências que unificam sem homogeneizar hegemonia e
dominação, ou consenso e coerção, existem em qualquer forma de Estado moderno. O que vai
diferir é o caráter mais consensual ou mais coercitivo existente em cada formação econômico-
social. Esse caráter vai depender, sobretudo, do grau de autonomia existente entre sociedade
política e sociedade civil.
Isso posto, faz-se necessário abordar, em suas linhas gerais, os conceitos de
Ocidente e Oriente, tal como foram cunhados por Gramsci.
Gramsci apresenta dois tipos de sociedade: as orientais e as ocidentais, concepções que não
estão vinculadas ao aspecto geográfico, mas a diferenciações sócio-históricas, indicando
diferentes tipos de formações sociais nas suas dimensões políticas, econômicas e culturais. As
sociedades denominadas orientais caracterizam-se por apresentar o Estado em sua forma
restrita, e nelas a sociedade civil ainda não se fortaleceu e se encontra bastante atrelada à
sociedade política, apresentando-se de forma “gelatinosa e primitiva”. Por outro lado, as
sociedades nomeadas ocidentais demonstram certa estabilidade na relação entre o Estado e a
sociedade civil, esta se caracterizando por ser forte e relativamente autônoma em relação à
sociedade política. Nesse caso, o Estado que se apresenta é aquele de caráter amplo.
Nas formações orientais, o que está em jogo é a conquista imediata do Estado. Nesse tipo de
formação, a luta de classes assume, em seu momento decisivo, o caráter de ataque frontal ao
poder, ou seja, uma ‘guerra de movimento’. No Ocidente, tal processo se daria, segundo a
visão gramsciana, de maneira inversa. O embate deve acontecer em torno da conquista da
hegemonia, que corresponde à sociedade civil. Este processo, denominada por Gramsci de
‘guerra de posição’, encerra em si um processo de luta para a conquista da direção político-
ideológica e do consenso dos setores mais expressivos da população, como caminho para a
conquista e conservação do poder. A ‘guerra de posição’ supõe o consenso ativo, ou seja,
organizado e participativo. Gramsci irá apontar que a expansão da hegemonia das classes
populares implica a conquista progressiva de posições, através de um processo gradual que
61
possibilitará a alteração da correlação de forças e terminará por impor a ascensão do novo
bloco hegemônico (SIMIONATTO, 1999).
Diante dessa argumentação de Gramsci, torna-se evidente a possibilidade de uma classe que
ainda não detém a dominação no plano político já deter a hegemonia no plano ideológico.
Essa possibilidade era negada na concepção “restrita” do Estado em Marx.
As idéias da classe dominante — dizem Marx e Engels — são em todas as épocas
dominantes; ou seja, a classe que é a potência material dominante da sociedade é,
ao mesmo tempo, a sua potência espiritual dominante. A classe que dispõe dos
meios de produção material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios de
produção intelectual (MARX; ENGELS, 1972 apud COUTINHO, 1985, p. 67).
Entretanto, a partir do momento em que Gramsci entende a sociedade civil como uma esfera
relativamente autônoma e portadora de uma legalidade própria, torna-se possível observar a
existência de entidades culturais – jornais, sindicatos, revistas, partidos e até mesmo algumas
instituições que foram historicamente ligadas ao sistema capitalista (igrejas, escolas, etc.) -
que expressam os anseios e até mesmo as ações políticas das classes subalternas. Assim, é
possível obter o domínio ideológico (hegemonia) dessa classe, ou seja, sua “direção
intelectual e moral”, antes mesmo de ela se transformar em condutora do poder político.
Dessa forma, a teoria do Estado ampliado formulada por Gramsci nos possibilita
considerar como viáveis a conservação e o desenvolvimento, numa sociedade
socialista, dos organismos democráticos existentes na sociedade civil, os quais, em
larga medida, vêm assegurando a luta organizada contra a classe dominante. “Para
Gramsci, é fundamental a superação do Estado enquanto órgão de coerção e
manutenção dos privilégios e desigualdades. A democratização das suas funções é
ponto essencial e imprescindível” (SIMIONATTO, 1999, p. 73).
É a partir dessa reflexão que o elemento Estado-coerção vai exaurindo-se pouco a
pouco e se afirmam elementos cada vez mais numerosos de sociedade regulada (ou
Estado ético ou sociedade civil). Em outros termos, as funções de domínio e coerção
62
vão sendo substituídas pelas de hegemonia e consenso, e a sociedade política vai
sendo reabsorvida pela sociedade civil (GRAMSCI, 2002).
Tudo isso nos permite compreender a grande diferença entre a doutrina liberal e a
socialista no que diz respeito à democracia: o entendimento do processo de
democratização do Estado.
Na teoria marxista-engelsiana, para falar apenas desta, o sufrágio
universal, que para o liberalismo em seu desenvolvimento histórico é o
ponto de chegada do processo de democratização do Estado, constitui
apenas o ponto de partida. Além do sufrágio universal, o aprofundamento
do processo de democratização da parte das doutrinas socialistas acontece
de dois modos: através da crítica da Democracia apenas representativa e
da conseqüente retomada de alguns temas da Democracia direta e através
da solicitação de que a participação popular e também o controle do poder
a partir de baixo se estenda dos órgãos de decisão política aos de decisão
econômica, de alguns centros do aparelho estatal até à empresa, da
sociedade política até a sociedade civil pelo que se vem falando de
Democracia econômica, industrial ou da forma efetiva de funcionamento
dos novos órgãos de controle (chamados ‘conselhos operários’), colegial, e
da passagem do autogoverno para a autogestão (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2004, p. 324-325).
Isso deixa claro que a democracia socialista não se constituirá numa mera
continuação da democracia liberal. Para além disso, o novo conteúdo social da
democracia socialista deverá contribuir para a criação de condições sociais e
econômicas mais favoráveis ao enriquecimento de gênero humano, fazendo com
que toda uma classe participe da elaboração de uma nova concepção de mundo e
de um projeto radical que “envolva toda a vida do povo e coloque cada um,
brutalmente, diante da própria responsabilidade inderrogável” (GRAMSCI, 2002, p.
816). Ao mesmo tempo, é importante dizer que deve ocorrer a criação de novas
organizações políticas. Assim, é possível afirmar que, mesmo no socialismo, podem
acontecer situações que apenas a democracia política
14
será capaz de resolver,
demonstrando ações mais favoráveis à libertação da humanidade (COUTINHO,
2000). Nesse sentido, é imprescindível reforçar a participação política organizada do
conjunto da cidadania. Temos aqui a defesa da “grande política”,
15
que, segundo
interpretações gramscianas, diz respeito às questões ligadas à fundação de novos
14
A democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados. Nessa tendência, existe a
possibilidade de que ela abra a perspectiva do socialismo (GRAMSCI, 1966).
15
A grande política se distingue da pequena política, que compreende as questões parciais e
cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida, em decorrência de lutas
pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política (GRAMSCI, 2002, p. 21).
63
Estados, com a luta pela destruição, defesa, conservação de determinadas
estruturas orgânicas econômico-sociais.
A sociedade civil se apresenta, então, como uma possibilidade de espaço em que as
classes populares podem se organizar de baixo para cima, transformando-se no que
pode ser chamado de “sujeitos coletivos”. Assim, a democracia poderá se constituir
como um instrumento de luta contra o capitalismo. Isso não quer dizer que se travem
reformas progressivas na sociedade de classes, mas, sim, um processo de rupturas
efetivas na arena da correlação de forças em favor das classes populares no campo
estratégico do Estado. Nesse contexto, a participação na vida política se configura
como uma prática de aprofundamento da democracia, que poderá ou não abalar o
capitalismo, conforme se estabelece a correlação de forças entre as classes.
“Só uma sociedade sem classe — uma sociedade socialista — pode realizar o ideal
pleno da democracia. Ou, o que é o mesmo, o ideal da soberania popular, e, como
tal, da democracia” (COUTINHO, 2000, p. 158-159).
* * *
A partir da breve passagem, que acabamos de fazer, pelos diversos autores que
dissertam sobre a democracia e o sentido da participação, tal como esta é
compreendida em cada perspectiva, é possível afirmar que, embora apresentem
grandes diferenças quanto à forma e ao nível de abrangência das práticas
participativas, os estudos sobre a democracia sempre apresentam a participação
popular como característica fundamental de um modelo democrático de governo.
Assim, a história do conceito “democracia” tem sido a história de como são
percebidos os processos sociais que configuraram os modos pelos quais a
participação popular desenvolve-se nas coletividades politicamente organizadas.
Toda reflexão sobre a democracia acompanha o permanente movimento da
participação, os critérios para estabelecer o seu conteúdo, as classes e frações de
classe que nela estarão presentes, os modos e as condições por meio das quais a
participação vai se materializar. Desse modo, cabe, agora, buscarmos identificar a
versão brasileira de democracia, identificando a polissemia do termo “democracia” e
64
as práticas participativas existentes em nosso país até a institucionalização dos
conselhos gestores enquanto espaços potenciais de participação popular.
65
CAPÍTULO 3
A VERSÃO BRASILEIRA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
"Se você treme de indignação perante uma injustiça no mundo, então
somos companheiros" (CHE GUEVARA).
3. 1 - AS LIMITAÇÕES HISTÓRICAS DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
Analisar o espaço que a participação popular tem ocupado nos discursos e práticas
democráticas do Brasil contemporâneo implica uma compreensão da formação
social do País e dos limites históricos que ela enfrentou para se materializar na
prática cotidiana das classes populares brasileiras.
66
Tendo como referência as análises gramscianas, Coutinho (2003) apresenta a noção
de “revolução passiva” como central para interpretarmos a formação social brasileira.
Considerar essa categoria de análise nos faz compreender que o País experimentou
os seus processos de mudanças e de modernização capitalista (transformação dos
latifúndios em empresas capitalistas agrárias, urbanização, internacionalização do
mercado interno etc.) sem realizar uma “revolução democrático-burguesa” ou de
“libertação nacional”.
Nesse sentido, todas as opções concretas enfrentadas pelo Brasil, direta ou
indiretamente ligadas à transição para o capitalismo (desde a Independência política
ao Golpe de 1964, passando pela Proclamação da República e pela Revolução de
1930) encontram-se uma solução ‘pelo alto’, ou seja, elitista e antipopular
(COUTINHO, 1989, p. 121).
Se essas transformações aconteceram “do alto para baixo”, sem a participação das massas, e
se “pelo alto” significa através do Estado, estamos diante do que Gramsci categoriza como
“revolução passiva”. Nesse processo, a ação do Estado é direcionada pelo acordo das frações
das classes economicamente dominantes e com a exclusão das forças populares. Também é
característica da revolução passiva a utilização continuada dos aparelhos coercitivos do
Estado na regulação das relações sociais.
Coutinho (1989) chama a atenção para duas causas-efeitos da revolução passiva que foram
apontadas por Gramsci: por um lado, o fortalecimento do Estado em detrimento da sociedade
civil ou, mais concretamente, o predomínio das forças ditatoriais do domínio em detrimento
das forças hegemônicas; por outro lado, a prática do transformismo
16
como modalidade de
desenvolvimento histórico que implica a exclusão das classes populares.
Para compreendermos melhor essa e outras questões relativas à formação social
brasileira e aos processos de participação política das classes populares, é
necessário considerar outros aspectos que também são de grande relevância. A
trajetória da participação popular no Brasil não pode ser entendida sem que se
considere o legado de um passado colonial e escravista e um presente marcado
16
O transformismo é considerado um processo orgânico que traduz uma política da classe dominante
de recusar qualquer compromisso com as classes populares, atraindo seus chefes para agregá-los à
sua classe política (COUTINHO, 2003).
67
pela subordinação em relação às economias dominantes no mundo atual. A falta de
autonomia, ou a existência de uma autonomia muito limitada, sempre marcou as
relações sociais, econômicas, políticas e culturais das personagens presentes na
história brasileira: o senhor de terras, o índio, o escravo, o sertanejo, o fazendeiro
capitalista, o empresário urbano, o lavrador, as classes médias, o operariado urbano
e rural (VITA, 1997). Nesse contexto, pode-se afirmar que a exclusão das forças
populares dos processos de decisão política foi próprio da formação social brasileira.
Conforme Netto (2001, p. 18-19), a socialização da política, na vida brasileira,
[...] sempre foi um processo inconcluso – e quando, nos seus momentos
mais quentes, colocava a possibilidade de um grau mínimo de socialização
do poder político, os setores de ponta das classes dominantes lograram
neutralizá-lo. Por dispositivos sinuosos ou mecanismos de coerção aberta,
tais setores conseguiram que um fio condutor costurasse a constituição da
história brasileira: a exclusão da massa do povo no direcionamento da vida
social.
Pode-se observar, ao longo da história brasileira, que alguns aspectos que
contribuíram para limitar ou cercear a participação popular na vida política tiveram
suas origens ainda na sociedade colonial.
Se voltarmos ao período do Brasil colônia, veremos que a sociedade brasileira se
organizou em torno da produção de bens agrícolas que complementasse a pauta de
exportações da metrópole. Nesse cenário de subordinação econômica,
17
a fazenda
se configurou como o espaço primordial para a constituição da vida social no Brasil.
Nela encontramos as principais personagens do processo histórico brasileiro.
O senhor de terras comandava todos os outros indivíduos que viviam nas suas
fazendas. A propriedade e a posse da terra asseguravam que seu poder fosse
ilimitado e direcionavam as relações de dominação entre uns e outros (VITA, 1997).
17
A sociedade e a economia brasileira nascem como um capítulo da lenta transição do feudalismo
para o capitalismo na Europa Ocidental. As mudanças econômicas e sociais nesse período foram
direcionadas pela burguesia comercial européia, que encontrou na expansão comercial a melhor
maneira de prosperar economicamente. Nesse contexto, o controle do comércio mantido com a
colônia surge como peça-chave e é por essa via que a sociedade brasileira entra no mundo ocidental
(VITA, 1997).
68
Nas relações entre senhores e escravos, a violência era por demais
evidente para poder ser ocultada ou atenuada. [...] Já entre os homens
livres,
18
as relações de dominação eram bem mais complexas e menos
visíveis — embora a violência da imposição da vontade do mais poderoso
não fosse, talvez, menor (VITA, 1997, p. 47).
Essa relação de dominação irá fazer com que, no seio da sociedade brasileira, se
torne comum a prática do “favor”. Pautada num sentimento moral de fidelidade e
lealdade, a prática do favor articulava as relações entre os latifundiários e os homens
pobres livres. Esses valores morais eram compartilhados por ambas as categorias
sociais, visto que o agregado
19
mantinha sua sobrevivência graças ao senhor que
permitia que ele ficasse em suas terras e as conservasse. “Para o dominado, sua
própria sobrevivência era uma dádiva do mais poderoso, que deveria ser recebida
com gratidão” (VITA, 1997, p. 50). Dessa forma, o agregado se sentia na obrigação
de retribuir tamanho favor, e existiam muitas formas de manifestar essa gratidão:
Prestando ao fazendeiro trabalho gratuito ou em troca de uma
remuneração insignificante [...]; pegando em armas para defender seu
senhor em lutas pela terra, em vinganças de crimes cometidos contra a
honra e nas disputas pelo poder local. Já durante a República, [...] a
obrigação fundamental do agregado passava a ser o voto em candidatos
apoiados pelo fazendeiro (VITA, 1997, p. 50).
É fundamental pontuarmos que a autoridade do fazendeiro não se mantinha apenas
pelo uso da violência ou da sua posição social, mas, acima de tudo, porque o
dominado reconhecia essa autoridade como legítima. “Para que uma relação social
que é necessariamente desigual possa se manter, não basta a vontade do mais
poderoso: é preciso, também, que aqueles que se encontram inferiorizados
acreditem que as coisas devam ser assim e não de outro modo” (VITA, 1997, p. 41).
Outro aspecto que faz parte da cultura política brasileira e que também teve sua
origem no início da nossa formação social é o compadrio, ou apadrinhamento. O
homem pobre buscava no batismo de seus filhos a possibilidade de se tornar
18
Esta população, em geral, era formada por mestiços e era livre por dois motivos: porque não era
escrava e porque não era proprietária de terras. Logo, essas pessoas, por não ter meios próprios
para se sustentar, viviam na mais completa dependência dos latifundiários (VITA, 1997).
19
Os agregados eram homens pobres e livres que mantinham sua posse em terras do senhor e
dependiam do favor deste último para conservá-la (VITA, 1997).
69
protegido por uma pessoa rica e influente, que normalmente era o fazendeiro de
quem era agregado.
O apadrinhamento determinava compromissos de ambas as partes: do padrinho e
do afilhado. Ao afilhado cabiam as mesmas atribuições e valores morais que tinham
os agregados. No que se refere ao padrinho, este deveria se comprometer e
viabilizar um futuro melhor para o seu afilhado.
De acordo com Franco (1976), a forma mais econômica de o padrinho cumprir as
suas obrigações era conseguir um cargo público para o afilhado. Assim, este
conseguia um emprego na administração pública graças à influência do seu
padrinho e, por isso, tinha a obrigação de retribuir esse favor, apoiando o padrinho
sempre que necessário.
É importante salientar que, sempre que o fazendeiro se sentia ameaçado em seus
negócios, ele era levado a trair o seu compromisso de fidelidade e lealdade com os
seus agregados.
Sempre que colocado em situação crucial para seus negócios, o
proprietário de terras deu prioridade a estes, embora com isto lesasse seus
moradores e assim interrompesse a cadeia de compromissos sobre a qual
se assentava, em larga medida, o seu poder. Diante da necessidade de
expandir seu empreendimento, nunca hesitou em expulsá-los de suas
terras (FRANCO, 1976, p. 99).
Esse antigo mandonismo dos proprietários de terras no Brasil recebeu uma nova
roupagem com a instauração da República. A autoridade do pai e do senhor era tão
poderosa que foi transferida para os espaços públicos e acabou fornecendo a
diretriz através da qual se formaram as concepções de poder, obediência e respeito
em nossa sociedade. Ganha destaque nesse cenário a figura dos coronéis. Agora a
troca de favores dava-se principalmente através do voto. “Sempre um grande
fazendeiro ou, às vezes, um grande comerciante, passava a negociar uma nova
mercadoria: o voto” (VITA, 1997, p. 55). A relação de subordinação e dominação
70
obrigava todos os dependentes do coronel a votarem no candidato que ele apoiasse.
Era o voto de cabresto.
20
Essa relação se mantinha basicamente porque
São [...] os fazendeiros e chefes locais que custeiam as despesas do
alistamento e da eleição. Sem dinheiro e sem interesse direto, o roceiro
não faria o menor sacrifício nesse sentido. Documentos, transporte,
alojamento, refeições, dias de trabalho perdidos, e até roupa, calçado,
chapéu para o dia da eleição, tudo é pago pelos mentores políticos
empenhados na sua qualificação e comparecimento. [...] É, portanto,
perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça à orientação de
quem tudo lhe paga, e com insistência, para praticar um ato que lhe é
completamente indiferente (LEAL, 1978, p. 35-36).
O controle do voto pelos coronéis contribuiu para a manutenção do domínio político das
oligarquias brasileiras. Estas eram famílias poderosas, quase sempre de latifundiários, que
controlavam o poder econômico e político nas suas regiões. Esse controle do poder público
pelas oligarquias dependia do voto do eleitor, razão pela qual a figura e o poder dos coronéis
eram tão expressivos. Apoiando as oligarquias, os coronéis conseguiam usufruir de alguns
privilégios, como a garantia da nomeação de parentes, afilhados ou agregados em cargos
públicos, ou, ainda, a utilização de recursos públicos conforme os seus interesses. Essa
identidade comprova que “os governos municipais sempre serviram ao interesse privado das
elites locais. E estas elites produziram e aprimoraram instituições por meio das quais fazem
valer seu interesse de minoria em detrimento das necessidades da maioria” (BAVA, 2003, p.
15). A essência desse sistema se configurava na seguinte forma:
[...] da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do
oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação
estadual, carta branca ao chefe local governista em todos os assuntos
relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do
lugar (LEAL, 1978, p. 50).
Assim, as oligarquias ocupavam cada vez mais os espaços públicos, valendo-se do
suposto interesse geral para atender os seus próprios interesses particulares,
20
Deve-se ressaltar que, até a Constituição Republicana de 1891, a escolha dos dirigentes políticos
do Brasil era realizada através do voto censitário. Nessa situação, os eleitores são qualificados em
função da sua renda, ou seja, os indivíduos que não atingiam a renda mínima exigida não eram
considerados eleitores. E, mesmo após a extinção do voto censitário, a participação popular
manifestada através do voto continuou sendo limitada, visto que só podiam votar os homens
alfabetizados e com idade superior a 21 anos (VITA, 1997).
71
pautadas nos laços pessoais que vão permear a relação do Estado com a sociedade
civil até os dias correntes.
O clientelismo aparece como elemento articulador da vida política brasileira. A
conquista eleitoral dependia do uso competente dessa relação, que se caracterizava
pela concessão de proteção, cargos oficiais e outros favores, em troca de lealdade
pessoal e política. Nessa perspectiva, os detentores de posições públicas não
faziam distinção entre os domínios do público e do privado. O coronelismo da
Primeira República apresentava claramente essa “confusão”, fazendo com que não
houvesse critérios transparentes nos quais as ações públicas se fundamentassem.
[...] a própria gestão política se constitui num assunto de interesse
particular, e as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere
vinculam-se a seus ‘direitos pessoais’ e não a interesses objetivos. É esse
o critério que se adotaria, então, para a escolha de indivíduos que
exerceriam as funções públicas. A confiança pessoal que merece cada
candidato se sobrepõe, dessa forma, às suas capacidades próprias
(HOLANDA, 1995, p. 146).
A troca de favores expandiu seu âmbito da esfera privada, em que existia havia
muito tempo, para a esfera pública. O Estado passou, então, a girar em torno de
interesses particulares e dos grupos políticos que preservaram o clientelismo e o
assistencialismo. Nossa cultura política é permeada pelo rebaixamento dos direitos
em favores. Os direitos são concebidos como dádivas, favores concedidos pelos
poderosos. Os direitos encontram-se na tensão das relações de dominação
transferidas do domínio privado para o interior das relações civis (GRUPO DE
ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, 1998-1999).
Essa forma de relacionamento entre o Estado e a sociedade brasileira,
principalmente as classes populares, que, em larga medida, permaneceram até aqui
excluídas ou cooptadas no processo de decisão política do País, inspirou o novo
paradigma político-cultural que se tornou dominante a partir de 1930:
21
o populismo.
21
Os anos 30 também foram marcados por uma das maiores crises econômicas mundiais, com a
queda da produção capitalista, desemprego, quebradeiras de bancos e firmas. É nesse contexto que
a maior parte do mundo capitalista assiste à passagem do Estado Liberal de Direitos para o Estado
Social de Direitos – constituindo o que veio a se chamar de Welfare State. A constituição desse
Estado não se deu ao acaso. Uma ordem de fatores possibilitou o seu surgimento. Dentre eles,
72
Essa modalidade de legitimação carismática teve início ainda no período do governo
Vargas, entre 1937 e 1945, mas se desenvolveu efetivamente durante o período
liberal-democrático que vai de 1945 a 1964.
[...] O populismo personifica um estilo político sustentado pelo clamor das
lideranças e pela exaltação apaixonada das massas. Na relação ambivalente, em
troca do apoio popular, o político é obrigado a ceder parcialmente diante das
reivindicações, mas, por outro lado, pela centralidade mitificada de sua figura,
mantém o controle das manifestações e das reivindicações (CHAUÍ, 1988, p. 19-
23).
Com o fim da “política do café com leite” e a vitória do movimento de 30,
22
novas
características vão marcar o Estado brasileiro, que passa a ser controlado por forças
sociais bastante diversas. Nele, passam a compartilhar o poder tanto as velhas
oligarquias rurais como as forças sociais urbanas que ascendiam.
As oligarquias, principalmente as de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul, mantinham forte influência na política nacional, mas iam pouco a
pouco perdendo terreno para uma classe social que se fortalecia cada vez
mais: a burguesia industrial. Esta pouca ou nenhuma participação teve nos
acontecimentos de 1930, mas o Estado pós-1930, guiado pela mão forte de
Vargas, desenvolveu uma política industrializante, que teve como
conseqüência o fortalecimento dessa classe (VITA, 1997, p. 187).
É nesse quadro de mudanças na direção da vida pública que uma outra personagem
ganha destaque no cenário político nacional: a classe trabalhadora.
destacam-se: o fim da Segunda Guerra Mundial e a conseqüente prosperidade econômica do pós-
guerra — a “fase de ouro do capitalismo”, a “ameaça” do comunismo, a guerra fria e o fortalecimento
da capacidade de organização e de mobilização da classe trabalhadora. Nessa nova fase do
capitalismo, o Estado passa a ser o regulador e provedor de benefícios e serviços sociais, sendo
sustentado pelo seguinte tripé: extensão dos direitos sociais, universalização dos serviços sociais e
política de “pleno emprego” (BEHRING, 2000). Deve-se destacar que a articulação dessas
intervenções representou, em decorrência da correlação de forças, um acordo de classes com a
participação do Estado, do patronato e dos trabalhadores, o que não aconteceu na experiência
brasileira (FALEIROS, 2000). No Brasil aconteceu o que Oliveira (1990, p. 68) denomina de
“regulação truncada” ou “mal-estar social”. As estratégias intervencionistas não surgiram através de
pactos entre as classes que concorriam ao poder, mas foram, de um modo geral, implementadas por
uma elite conservadora, sem a participação da cidadania e das classes subalternas. Países
periféricos como o Brasil desenvolveram o regulacionismo estatal sem a universalização dos direitos
políticos e sociais da cidadania (ABREU, 1999).
22
“A ‘República dos fazendeiros de café’ – a República Velha – teve seu fim com a chamada
Revolução de 30. Esse movimento inaugurou uma nova era no desenvolvimento econômico, social e
político brasileiro. Foi realizado por oligarquias até então excluídas do poder, como a gaúcha, liderada
por Getúlio Vargas, e pelos ‘tenentes’ — a jovem oficialidade do Exército que combateu o domínio
oligárquico durante boa parte da República Velha” (VITA, 1997, p. 186).
73
Ainda durante a República Velha, a classe operária já se organizava,
23
reivindicando
aumentos salariais, redução da jornada de trabalho para oito horas diárias, direitos
trabalhistas, entre outros. No entanto, os governantes consideravam toda essa
movimentação como “caso de polícia”, que deveria ser reprimido pela coerção e pela
violência.
A estratégia populista era outra, visto que, para a manutenção no poder, era preciso
conceder alguns direitos trabalhistas que vinham sendo reivindicados pelos
trabalhadores. Foram regulamentados a duração de oito horas da jornada de
trabalho, o descanso semanal remunerado e o direito de férias para algumas
categorias.
Todavia, por trás dessa aparente abertura do Estado, encobriam-se outras questões.
O populismo pautou-se fortemente nas relações personalizadas com as lideranças
políticas, como estratégia para exercer o controle e a tutela sobre a participação
popular, tanto que, aspectos fundamentais das liberdades democráticas do ponto de
vista do movimento operário — como o direito de greve, a independência das
organizações sindicais e a liberdade para os partidos de trabalhadores — nunca
foram reconhecidos plenamente pelo Estado.
A característica do Estado brasileiro, muito própria desde 1930, não é que
ele se sobreponha ou impeça o desenvolvimento da sociedade civil: antes,
consiste em que ele, sua expressão potenciada e condensada [...], tem
conseguido atuar com sucesso como um vetor de desestruturação, seja
pela incorporação desfiguradora, seja pela repressão, das agências que
expressam os interesses das classes subalternas. O que é pertinente, no
caso brasileiro, não é um Estado que se desloca de uma sociedade civil
‘gelatinosa’, amorfa, submetendo-a a uma expressão contínua; é-o um
Estado que historicamente serviu de eficiente instrumento contra a
emersão, na sociedade civil, de agências portadoras de vontades coletivas
e projetos societários alternativos (NETTO, 2001, p. 19).
23
Tivemos em 1906, a realização do 1º Congresso Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro; em 1907 aconteceram
greves operárias no Rio de Janeiro e em São Paulo, reivindicando jornada diária de 8 horas. É desse mesmo ano
a criação da lei que autoriza a criação de sindicatos profissionais. Em 1917 — mesmo ano da Revolução Russa
—, ocorreu em São Paulo uma greve geral que paralisou 70 mil trabalhadores e, em 1922, foi fundado o Partido
Comunista do Brasil, que, em 1927, foi declarado ilegal (MANFROI, 2000).
74
O Estado pós-1930 mostrava, assim, duas faces para a classe trabalhadora: uma
que controlava com veemência os movimentos mais rebeldes e independentes, e
outra, a do “pai dos pobres”, que proporcionou aos trabalhadores alguns direitos
trabalhistas e o sindicato, muito embora este se encontrasse sob controle estatal. Foi
essa segunda face que fez com que o populismo conquistasse prestígio entre a
maioria dos trabalhadores e também um forte domínio sobre eles (VITA, 1997).
Nesse cenário, falava-se explicitamente em “substituir a luta de classes pela
colaboração de classes” (FALEIROS, 2000, p. 45).
Essa situação fica evidente nas palavras de Brant (1982, p. 81), ao falar da
ambigüidade das leis trabalhistas instituídas.
[...] As diversas leis trabalhistas promulgadas a partir da década de 30, em
especial a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, procuravam
enquadrar as organizações sindicais em uma estrutura que garantisse seu
controle pelo governo e limitasse o confronto direto entre patrões e
empregados. Ao mesmo tempo, a legislação trabalhista cumpria um papel
supletivo no impedimento da atuação política autônoma dos trabalhadores.
Essa ambigüidade também se manifestou na forma pela qual passaram a ser
pensados os direitos sociais, pois, ao mesmo tempo em que serviam de instrumento
de controle do Estado sobre os trabalhadores, também representavam a conquista
da luta histórica destes, configurando a chamada cidadania regulada. A cidadania
regulada tem suas raízes, “não em um código de valores políticos, mas em um
sistema de estratificação ocupacional e que, ademais, tal sistema de estratificação
ocupacional é definido por norma legal” (SANTOS, 1987, p. 68). Em outras palavras,
a cidadania regulada nos remete à idéia de que são cidadãos todos aqueles que se
encontrem inseridos em qualquer uma das ocupações definidas e reconhecidas por
lei.
Observa-se novamente, na história brasileira, as limitações para a participação
popular, visto que a idéia de cidadania passa a ser associada apenas aos
trabalhadores urbanos e formais. Permaneciam, assim, fora do pacto populista, os
trabalhadores urbanos sem vínculos formais na esfera do trabalho, os assalariados
75
agrícolas, os camponeses, que continuaram privados dos direitos sociais e do direito
de voto.
Nesse cenário, foi possível ao Estado e às elites manterem sob controle a
participação política das classes populares, que quase sempre apoiavam o regime
vigente. Essa adesão pode ser explicada por alguns fatores, como: a origem rural
das classes trabalhadoras urbanas, habituadas às relações personalistas e
mandonistas dos coronéis, e a não-consciência de classe ou a ausência de
consciência política (VITA, 1997).
Além desses aspectos, a falta de separação entre o público e o privado marcou não
apenas a apropriação do público pelos interesses privados, mas também as relações
sociais que são entendidas como uma continuação das relações privadas, com a
superposição do poder pessoal, social e político, que normatiza as relações de
clientelismo, paternalismo e troca de favores como práticas comuns e usuais. Nessa
relação, a participação política real passa a ser percebida pelas classes subalternas
como uma arena privilegiada das elites. Essa distância entre a participação política e
a maior parte da sociedade está intimamente articulada a essa tradição privatista e
excludente, característica da forma pela qual a participação popular foi construída no
Brasil.
No entanto, apesar de todas essas características da cultura política brasileira, não
se pode pensar que as classes populares simplesmente tenham se mantido na
passividade:
[...] enxergar no comportamento político popular apenas seu conformismo
à dominação imposta pelas classes dominantes (no caso, através da
manipulação populista) significa fechar os olhos para o mais importante.
Significa não enxergar o que essa mesma prática das classes populares
carrega de insatisfação, de rebeldia e de potencial para operar
transformações nessa sociedade (VITA, 1997, p. 201).
Quando a participação política popular ameaçou ultrapassar os limites da
manipulação populista e colocou em xeque, no começo da década de 1960, o poder
das classes dominantes, estas não hesitaram em desfazer a forma de dominação
76
que denominamos populismo. Convocaram as Forças Armadas para assumirem a
direção do Estado brasileiro e para excluir, com repressão e coerção, as classes
populares da cena pública. A intervenção militar contou, assim, com o apoio das
classes dominantes em suas diversas frações: “dos ‘arcaicos’ latifundiários ao
‘moderno’ empresariado, tanto ‘nacional’ como associado ao capital estrangeiro”
(VITA, 1997, p. 214).
A partir de então, além de termos um Estado tecnocrático, com características autoritárias e
centralizadoras, a edição de vários Atos Institucionais (AIs) freou as movimentações
populares. O AI nº 1 suspendeu os direitos políticos dos cidadãos; o AI nº 2 extinguiu os
partidos políticos, criando a ARENA, situacionista, e o MDB (Movimento Democrático
Brasileiro), formalmente oposicionista. O AI nº 3 estabeleceu eleições indiretas para os
governos estaduais e o AI nº 5 colocou o Congresso Nacional em recesso e cassou
parlamentares (ARNS, 1985).
Era a ditadura sem disfarces. “O resultado de todo esse arsenal de Atos, decretos, cassações e
proibições foi a paralisação quase completa do movimento popular de denúncia, resistência e
reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a clandestina” (ARNS,
1985, p. 62).
O regime militar, desta forma, significou um total rompimento com o populismo, cortando o
diálogo entre o Estado e as parcelas subalternas da sociedade civil.
24
As ações militares
proibiram as organizações sociais destas parcelas da população, prenderam líderes populares e
cassaram os políticos apoiadores das massas.
24
Nesse contexto de relações do Estado com a sociedade, sem legitimidade política o bloco militar-
tecnocrático-empresarial no poder procurou obter apoio social da população com certas medidas
sociais. Foram implementados durante o regime o Ministério da Previdência e Assistência Social com
a incorporação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), a Fundação para o Bem-Estar do Menor
(FUNABEM); o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps); o Banco
Nacional de Habitação. Não obstante, todas essas ações não se constituíram num projeto universal
de cidadania. Era a continuidade de um modelo fragmentado e desigual de incorporação social da
população em estratos de acesso, que visavam favorecer grupos privados, conquistar clientelas,
impulsionar certos setores economicamente influentes (FALEIROS, 2000).
77
Manifestar-se-á na sociedade brasileira uma perversa combinação entre a tradicional
democracia restrita — em que apenas as classes dominantes participavam efetivamente da
direção política do País — e a orientação modernizadora de um governo centralizador, um
Estado forte. É um Estado que irá manter as estruturas e a participação política para aqueles
que detêm o poder econômico. Nesse cenário, o Estado é utilizado para “criar e manter uma
dualidade intrínseca da ordem legal e política, graças à qual o que é oligarquia e opressão para
a maioria submetida, é automaticamente democracia e liberdade para a minoria dominante”
(FERNANDES, 1981, p. 350).
Foi no ano de 1969 que o governo editou o AI nº 14, que determinava pena de morte ou
prisão perpétua para os “subversivos”. Assim, a ditadura gradativamente conseguiu, através
de prisões, torturas, execuções e exílios, enfraquecer as iniciativas populares. Havia, de fato,
um desprezo pelas organizações ligadas às classes populares, consideradas eternamente
incapazes de se autogovenar. Isso fez com que o Estado brasileiro perdesse até mesmo a
ambigüidade do seu papel e dos direitos políticos e sociais já destacados neste texto.
Sob o controle das Forças Armadas, o Estado brasileiro perdia toda ambigüidade
que o caracterizara na vigência da democracia populista e se apresentava cruamente
como um instrumento da dominação burguesa. A revolução burguesa no Brasil
prosseguiria agora sob o lema ‘segurança e desenvolvimento’, que poderia ser
traduzido por ‘acumulação de capital e repressão’ (VITA, 1997, p. 214).
Todo esse contexto adverso à participação popular fez com que, gradativamente, emergisse na
sociedade brasileira uma luta pelos anseios populares, pela abertura política e pela anistia.
Reagindo à história de tutela, subordinação e controle, os movimentos sociais foram, aos
poucos, afirmando sua autonomia diante do Estado e dos partidos políticos.
Segundo Netto (2004), não se trata de “novas formas de participação popular”, mas da
organização de classes e camadas da sociedade civil que, historicamente, não tinham
conseguido articular e viabilizar formas de participação política. Abria-se, com esse
movimento, a alternativa democrática.
Contribuíram para esse processo a vitória do MDB nas eleições de 1974, as greves
dos operários do ABC, os movimentos contra a carestia, de custo de vida, o
78
movimento estudantil [expresso principalmente pela União Nacional dos
Estudantes – UNE], as comunidades de base. A Igreja progressista também teve um
papel preponderante. Do ponto de vista econômico, a recessão do capitalismo
internacional que levou a maior parte da população à pauperização com o arrocho
salarial, a alta da inflação, o aumento da dívida externa e o fracasso do milagre
econômico (MANFROI, 2000, p. 78).
Esses acontecimentos ofereceram a conjuntura necessária para que se superassem as relações
privatistas entre o poder público e os sujeitos sociais, rompendo com a troca de favores e
caminhando para a busca de instituição de direitos publicamente reconhecidos.
Três matrizes discursivas alimentaram o debate acerca da participação política dos
movimentos sociais deste período: as Comunidades Eclesiais de Base, o marxismo dos grupos
de esquerda dispersos e o novo sindicalismo (SADER, 1988).
O trabalho das Comunidades Eclesiais de Base abriu a possibilidade da participação
dos cidadãos na vida da coletividade, propiciando, assim, a existência de espaços
de reivindicações.
As experiências das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) possibilitaram a
expressão de novos valores, com a passagem do pedido do favor para o direito,
estabelecendo relações de solidariedade e confiança. ‘É a partir dessa sociabilidade
primária que seus membros efetuam uma reelaboração das experiências cotidianas
de existência, com categorias para criticá-las e referências para ações visando
transformá-las’ (SADER, 1988, p. 163).
Com a ditadura militar e todos os seus instrumentos de repressão, os grupos de oposição ao
governo foram em grande parte desarticulados, o que fez com que o marxismo dos grupos de
esquerda dispersos inovassem na forma de aproximação com as massas. Isso aconteceu,
principalmente, pelas vias da educação popular, das associações dos moradores, dos grupos de
fábricas e das oposições sindicais.
Os discursos marxistas que influenciaram o período foram ‘principalmente os que
falavam do funcionamento do capitalismo, da exploração da classe operária, das
suas formas de luta, das experiências da sua história’. As formulações do marxismo
entraram, através da esquerda dispersa, junto às pastorais católicas, ‘lugares
políticos onde se reelaboraram as experiências populares’, porque o discurso
79
construído pelas pastorais não deu conta da compreensão da sociedade capitalista
(SADER, 1988, p. 178).
Já o novo sindicalismo surge como reação à estrutura sindical limitada, criada durante o
governo de Getúlio Vargas. É a partir dos anos 70 que alguns grupos de sindicalistas
começaram a questionar essa estrutura sindical, buscando construir uma representação mais
autêntica e forte, capaz de dar voz aos anseios da classe trabalhadora.
A greve aparecia como afirmação coletiva de que aquela multidão de trabalhadores
era, sim, capaz de demonstrações de ‘fé’ e de ‘grandeza’. Não estavam, pois,
desafiando as autoridades, mas, até pelo contrário, mostrando-lhes que eram
capazes de mobilizar-se por grandes causas. [...] as experiências vividas pelos
trabalhadores ganhavam uma dimensão histórica (SADER, 1988, p. 193).
Essas três matrizes discursivas foram se articulando, promovendo alianças importantes entre
os movimentos que contribuíram para a desmontagem do regime militar e a abertura política.
Nesse contexto, deve-se considerar também a crise de legitimidade do governo e a crise
econômica que se seguiu ao suposto “milagre econômico”.
[...] a partir da crise do 'milagre econômico’, tornada evidente em 1974, [a ditadura
militar] entrou progressivamente em colapso, como demonstram as derrotas
sofridas pela ditadura nas eleições parlamentares de 1974, 1978 e 1982. Ela perdeu
rapidamente as bases de consenso, não somente entre as camadas médias, mas
inclusive entre alguns segmentos da burguesia monopolista que a haviam
anteriormente apoiado com decisão. No contexto dessa profunda crise de
legitimação, os aparelhos da sociedade civil puderam de novo voltar à luz,
hegemonizados agora por um amplo arco de forças antiditatoriais, que ia da
esquerda socialista aos conservadores ‘esclarecidos’ (COUTINHO, 1979, apud
PEREIRA, 2001, p. 135).
É no início dos anos 80 que temos o último general-presidente — João Baptista Figueiredo —
e o início do processo de abertura política em nosso país.
Também nessa década evidenciam-se as manifestações pela redemocratização do País, tendo
como grande marca a campanha pelas “Diretas Já”, em 1984, que mobilizou milhões de
pessoas e culminou, cinco anos mais tarde, com a realização de eleições diretas para
presidente da República.
80
A vitória de Tancredo Neves e seu vice, José Sarney, assinala o processo de transição para o
regime formalmente democrático. Com a morte de Tancredo, Sarney assume a presidência, no
ano de 1985.
Após a abertura política houve também a legalização do PCB, atualmente PPS, do
PC do B, a criação do PSB (Partido Socialista Brasileiro, liderado por Miguel
Arraes), do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados), que é uma
dissidência de uma tendência do PT, a Convergência Socialista. Foi criada a CUT
(Central Única dos Trabalhadores); foi articulado o MST (Movimento
Sem-Terra),
a ABONG (Associação Brasileira de ONGs) e a CMP (Central dos Movimentos
Populares), todos englobando diversos tipos de movimentos sociais (MANFROI,
2000, p. 85).
As mudanças nos contextos político e ideológico assinalaram uma nova configuração das
relações entre Estado e sociedade. Grande parte dos movimentos sociais passou a observar o
Estado como um interlocutor, rompendo com a perspectiva anti-Estado, que lhes era
característica durante o regime militar.
[...] se durante o regime militar deram plena vasão à sua face expressivo-disruptiva,
em franca negação do Estado e rejeição da institucionalidade política, com o
restabelecimento do regime democrático realçaram sua face integrativo-corporativa,
requerendo tanto a ampliação da função provedora do Estado como, também, novos
formatos de participação democrática visando romper o corporativismo pontual das
demandas locais (DOIMO, 1997, p. 140).
Desse modo, várias entidades e movimentos sociais se mostraram dispostos a
negociar com o Estado a nova legislação brasileira. Dessas negociações, vale
ressaltar que resultou a inclusão de determinados direitos sociais e conteúdos
democráticos na nova Constituição, como fruto da articulação de parcelas da
sociedade civil.
Passado o tempo de posse e a instalação do novo governo, Sarney compromete-se a
convocar a Assembléia Nacional Constituinte. O clima em torno da futura
constituição mobilizou diferentes setores da sociedade civil e política: a elite
hegemônica, os setores populares, as instituições religiosas, as organizações
educacionais, das áreas de saúde e dos meios de comunicação, entre outros
(PEREIRA, 2001, p. 132).
81
Deve-se observar, quanto a esse momento, e retomando os conceitos de Gramsci, o
fato de que o contexto de negociações em torno da Constituição envolveu diversos
atores sociais (movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, categorias
profissionais, instituições religiosas) em torno de um objetivo comum — a
democratização do País. No sentido gramsciano, esses pactos entre diferentes
segmentos somente são possíveis em momentos conjunturais em que interesses
comuns são estabelecidos na busca da hegemonia, numa tentativa de ampliação do
Estado.
Nesse contexto, o Estado passou a ser reconhecido como esfera potencialmente
garantidora de direitos, e boa parte dos movimentos sociais, antes contrários à
institucionalização política, viu-se diante de uma nova possibilidade de participação
nos processos de decisão do País. Essa possibilidade inaugura uma nova relação
entre sociedade política e sociedade civil, especialmente no que diz respeito à
participação via Conselhos Gestores na formulação de políticas sociais.
O fato, porém, é que o Estado capitalista se ampliou: ele não é mais um simples
‘comitê executivo da burguesia’ (como Marx e Engels o definiram em 1848), já que
foi obrigado a se abrir para as demandas provenientes de outras classes e camadas
sociais; com isso, tornou-se a expressão, como diria Poulantzas, da ‘correlação de
forças’ existente na sociedade, ainda que sob a hegemonia de uma classe ou fração
de classe (COUTINHO, 2000, p. 38-39).
A institucionalização de espaços que propiciam, potencialmente, a participação
real
25
da sociedade civil no cenário político também aponta para a possibilidade de a
sociedade civil participar diretamente das decisões, buscando o interesse público.
De acordo com os princípios constitucionais criados em 1988, a sociedade, estando
mais próxima do Estado, poderia executar um papel mais efetivo de definição e
controle das políticas públicas sociais, configurando, assim, uma lógica mais
democrática, que vai além da participação eleitoral. Pela primeira vez na história
25
Entendo a participação política como participação real, que, conforme Dallari, é “aquela que influi
de algum modo nas decisões políticas fundamentais” (1985, p. 92). Para Raichelis (2000, p. 43), essa
participação “implica a constituição de sujeitos sociais ativos, que se apresentem na cena política a
partir da qualificação de demandas coletivas, em relação às quais exercem papel de mediadores”.
82
brasileira, a sociedade civil é convocada, na forma da lei, a participar dos processos
de decisão política, discutindo e deliberando políticas sociais.
3.2 - DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO NA GESTÃO PÚBLICA
BRASILEIRA
A democracia e as questões relacionadas ao processo democrático têm se
constituído, no caso brasileiro, na essência das reivindicações políticas ao longo dos
anos. A partir das mudanças no contexto histórico, inaugurado nos anos 80 já após
o regime militar, ressurgem na cena nacional os debates sobre a democratização da
sociedade.
Como vimos, os anos 80 marcam, no Brasil, o processo de construção democrática
das relações entre o Estado e a sociedade civil, com a promessa de envolver
também as classes populares. A Constituição Federal de 1988, além de comportar a
criação de novos direitos sociais, inclusive os diretos de crianças e adolescentes,
também cria condições formais para que se organize, de forma descentralizada e
participativa, a gestão pública.
Diante da crise do Estado, do agravamento da questão social e da luta pela
democratização do país, a busca por novos espaços de participação da
sociedade civil, consubstanciou-se, entre outros aspectos, pela definição
no texto constitucional de instrumentos ativadores da publicização na
formulação e na gestão das políticas públicas. Estimulou-se a definição de
mecanismos de transferência de parcelas de poder do Estado para a
sociedade civil e foram induzidas mudanças substantivas na dinâmica
dessas relações (RAICHELIS, 2000, p. 36).
A Carta Magna de 1988 deu nova forma à organização do Estado brasileiro,
redesenhando o papel do governo federal, dos estados e dos municípios. Nessa
83
nova relação entre as esferas governamentais, o âmbito federal passou a assumir
prioritariamente a coordenação das políticas sociais, enquanto os municípios
passaram a ter maior autonomia para implementar as suas próprias ações. A
descentralização político-administrativa, prevista na Constituição como princípio
democrático da gestão das políticas sociais, refere-se a uma articulação entre as
três esferas governamentais, de modo que os governos federal e estaduais devem
exercer um papel primordial de co-responsáveis tanto no financiamento quanto na
regulamentação e na implementação das políticas sociais, de forma que todos os
prestadores de serviços sociais do município (ONGs, associações, prefeitura etc.)
estejam articulados coletivamente nos processos de formulação e execução dessas
políticas.
A discussão sobre os direitos inscritos na Constituição [...] contribuiu para
fazer emergir a consciência dos direitos do trabalhador no bojo das lutas
sociais. Contribuiu também para a construção de um novo pacto federativo
com a descentralização de responsabilidades para os níveis estadual e
municipal e maior aporte de recursos para eles, sem, contudo, compensar
todas as responsabilidades a eles atribuídas (FALEIROS, 2000, p. 50).
O desenho das atribuições das esferas estatais no que diz respeito à implementação
de políticas sociais se configura, a partir da Constituição Federal de 1988, da
seguinte forma:
QUADRO 1
ATRIBUIÇÕES DAS EFERAS DE GOVERNO QUANTO ÀS POLÍTICAS SOCIAIS
ESFERA ATRIBUIÇÕES
Federal
Formular, com a participação da
sociedade, dos estados e dos
municípios, a política nacional;
estabelecer as normas gerais de
funcionamento da política nacional e
prestar assistência técnica e financeira
aos estados e municípios.
84
Estadual
Formular, com a participação da
sociedade, dos municípios e da União, a
política estadual, coordenando estes
esforços em âmbito estadual, executando
as ações do Estado e prestando
assistência técnica e financeira aos
municípios.
Municipal Formular, com a participação da
sociedade, a política municipal,
articulada com as políticas estadual e
nacional, executando projetos e ações
que materializem as diretrizes de tais
políticas.
Fonte: Brasil, 1988.
Existe uma compreensão de que o município é o espaço privilegiado para a
concretização das necessidades dos seus cidadãos. É também no município que há
uma maior possibilidade de que os movimentos sociais organizados pressionem o
poder público para a implementação de políticas públicas que atendam, de fato, às
suas demandas.
Desse modo, considera-se que a descentralização favorece a ampliação da
democracia e da participação popular, como reação ao autoritarismo, ao
mandonismo e à centralização que tanto marcaram historicamente os processos
decisórios no Brasil.
A concretização da relação entre descentralização e aprofundamento da democracia
pode ser feita desde que alguns princípios sejam levados em consideração, tais
como o controle do governo por parte dos cidadãos, a participação popular e o
processo de educação para a cidadania.
Não obstante, é importante ressaltarmos que o processo de abertura democrática foi
imediatamente seguido da emergência da ideologia e das práticas neoliberais em
85
grande parte das administrações públicas. Temos, nesse contexto de ofensiva
neoliberal, o embate entre o projeto conquistado por parcela importante da
sociedade civil, que reforça a idéia de um Estado ampliado e de defesa de direitos
sociais, e, de outro lado, o projeto neoliberal de “Estado mínimo”
26
e de solapamento
dos direitos conquistados.
Para Anderson (1995, p. 9), o neoliberalismo é uma doutrina que ataca ferozmente
“qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciando-
a como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também
política”. As políticas neoliberais foram e são fundamentalmente políticas que
agudizam ainda mais as desigualdades sociais já existentes. O neoliberalismo pode
ser entendido, em grande parte, como uma atualização histórica do velho
liberalismo, que visa decompor e deslegitimar as formas institucionais do movimento
operário em luta para restaurar o projeto hegemônico do capital (BRAGA, 1996). O
velho liberalismo era anterior a várias conquistas populares de direitos, enquanto
que o neoliberalismo busca dar fim a esses direitos conquistados.
Nessa perspectiva, o predomínio do neoliberalismo no mundo começou a configurar-
se no final da década de 70, quando a eleição de governos conservadores como
Margaret Thatcher, em 1979, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos,
em 1981, marcaram essa afirmação. Emerge na tentativa de reagir teórica e
politicamente ao modelo de desenvolvimento baseado na intervenção estatal.
Entretanto, as bases do neoliberalismo datam de muito antes, quando F. Hayek
publica, em 1944, O caminho da servidão — que retoma o pensamento econômico
liberal de Adam Smith e a filosofia de Locke: liberdade de mercado e individualismo
—, e em 1962, quando Milton Friedman lança Capitalismo e liberdade. Embora
26
A “minimização do Estado”, tão propalada pelos adeptos do neoliberalismo, não se refere, na
prática e de fato, ao conjunto dos gastos estatais. Ela se aplica, em primeiro lugar, aos gastos com o
social, mas não aos dispêndios do Estado que são de interesse do capital. A esse respeito, afirma
Leite (1998, p. 61) “[...] os gastos globais do setor público não se têm reduzido e — mais grave —
vêm sendo cada vez mais monopolizados pelos mais poderosos segmentos do ‘mundo dos
negócios’”.
86
nenhum dos dois autores integre a corrente de pensamento neoliberal, tiveram
grande influência sobre ela.
Tendo por base o ideário neoliberal é que, a partir da crise dos anos 70,
27
renega-se
o Estado Providência, de origem keynesiana, e o neoliberalismo ascende como
forma predominante de conter as crises e promover o “desenvolvimento”.
Durante toda a década de 80, assistiu-se a uma enorme expansão desse tipo de
perspectiva por causa da revitalização do liberalismo como reação política-
ideológica à crise dos anos 70, da ineficácia do Estado em controlar essa crise, da
funcionalidade e adequação do neoliberalismo para a classe dominante e,
evidentemente, da derrocada do socialismo real (CARCANHOLO, 1998, p. 16).
Para o os adeptos do neoliberalismo, as raízes da crise estavam profundamente
ligadas ao poder do movimento sindical e operário e ao aprofundamento da
democracia, que, por meio de pressões, levavam cada vez mais o Estado a intervir
na economia, fazendo aumentar em muito os gastos sociais, provocando,
supostamente, a destruição dos lucros das empresas e a inflação.
Para solucionar a crise — que era do capital, e não do Estado, como afirmam os
neoliberais —, o remédio era claro:
[...] manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos
sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas
intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de
qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a
contenção de gastos com o bem-estar e a restauração da taxa ‘natural’ de
desemprego. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis para incentivar os
agentes econômicos (ANDERSON, 1995, p.11).
Assim, a bandeira levantada pelos neoliberais diz respeito à redução do Estado, ou
Estado Mínimo para os gastos com as expressões da questão social, contrariamente
ao Estado intervencionista de inspiração keynesiana, além de defender o
desemprego estrutural como forma de regulação social. Yasbeck (1995, p. 11)
27
A crise dos anos 70 foi caracterizada pelo aumento da inflação e da recessão nos países que
desenvolviam as estratégias keynesianas do Estado Providência.
87
complementa esse quadro ao afirmar que “sob a crise do Welfare State se radica
também a crise do pensamento igualitário e democrático”. Na perspectiva neoliberal,
a ação do governo deve ser simplesmente a de legislar e arbitrar, criando um
ambiente propício para a supremacia do mercado. Assim, é o mercado que
“condiciona, limita e determina as ações individuais” (CARCANHOLO, 1998, p. 22).
No que se refere à ofensiva neoliberal nos países do denominado Terceiro Mundo,
de industrialização tardia, como o Brasil, os objetivos dessa ideologia são os
mesmos dos países desenvolvidos. O que muda são as conseqüências, haja vista
que, nestes últimos, há uma classe trabalhadora bem organizada, com uma histórica
gama de conquistas e a consolidação de direitos sociais, além de uma opinião
pública mais esclarecida, o que faz com que a implementação do projeto neoliberal
apresente mais rapidamente alguns limites e suas conseqüências sejam mais
amenas.
Diante da crise estabelecida a partir da década de 1970, os países da América
Latina vivem um retrocesso social.
A queda vertiginosa dos salários e o crescente aumento do sub e desemprego na
América Latina [...] leva ao reconhecimento unânime de que houve nesses anos um
retrocesso social dramático; o problema revela-se no empobrecimento generalizado
da população trabalhadora e na incorporação de novos grupos sociais à condição de
pobreza ou extrema pobreza. Observa-se simultaneamente uma redução
considerável dos gastos sociais, o que indica uma redução dos serviços sociais
públicos e dos subsídios ao consumo popular, contribuindo para deteriorar as
condições de vida da maioria absoluta da população, incluindo amplos setores das
camadas médias (LAURELL, 1995, p. 151).
É a partir do Consenso de Washington que os paises do Terceiro Mundo recebem o
receituário neoliberal como “única alternativa” para superar a crise, a inflação, os
desequilíbrios externos e o aumento dos déficits públicos, sendo possível, assim —
afirma-se —, o seu desenvolvimento e a sua capacidade de se manterem
competitivos no mundo globalizado.
28
28
Para Carcanholo (1998, p. 16), “o desenvolvimento do processo de internacionalização do capital
define o que se chama de globalização da economia [...] crescimento das atividades internacionais,
das firmas e dos fluxos comerciais; ampla mudança da base tecnológica, fazendo com que alguns
88
O Consenso de Washington aconteceu em 1989 e reuniu membros dos organismos
de financiamento internacional (Fundo Monetário Internacional – FMI, Banco
Mundial, Banco Internacional de Desenvolvimento – BID), funcionários do governo
americano e economistas dos países de industrialização tardia, na tentativa de
restaurar as condições para a liberdade do mercado.
De acordo com Carcanholo (1998, p. 25), as recomendações do Consenso
evidenciam seu caráter neoliberal e abrangem dez áreas: “disciplina fiscal,
priorização dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira, regime
cambial, liberalização comercial, investimento direto estrangeiro, privatização,
desregulação e propriedade intelectual”.
O neoliberalismo passou a ditar o ideário e o programa a ser executado pelos países
capitalistas, contemplando as transformações produtivas, privatizações aceleradas,
enxugamento do Estado, políticas fiscais e monetárias, sintonizadas com os
organismos mundiais de hegemonia do capital, como o Fundo Monetário
Internacional (FMI). Todo esse receituário de ações subordinam o Estado, a nação,
o povo aos ditames do capital mundial, impossibilitando as formas de soberania
popular ou instituições de interesse público. O Estado se apresenta como uma
fortaleza para a economia, mas se caracteriza frágil para o social.
No que se refere ao bem-estar social, “os neoliberais sustentam que ele pertence ao
âmbito privado. [...] O Estado só deve intervir com o intuito de garantir o mínimo
necessário para aliviar a pobreza e produzir serviços que os privados não podem ou
não querem produzir” (LAURELL, 1995, p. 163). Nesse contexto, todas as políticas
sociais anteriores devem ser submetidas a cortes, reduções e limitações, para que
se realize a contenção do déficit público, meta principal das ações neoliberais.
Dessa forma, as políticas sociais brasileiras, que historicamente não haviam
autores chegassem a denominá-la de Terceira Revolução Industrial; reordenamento dos mercados,
com maior importância da Ásia; intensificação da circulação financeira, caracterizada pela expansão
na mobilidade e na intermediação do capital internacional; predominância das trocas ditas intra-
setoriais; reorganização dos grupos industriais em redes de firmas. [...] Apresenta-se a globalização
como fenômeno natural e irreversível e, a partir daí, as políticas neoliberais como as únicas capazes
desregulamentar os mercados, propiciando às nações um lugar privilegiado no trem da história”.
89
apresentado o caráter de extensão dos direitos sociais e políticos e universalização
dos serviços públicos sociais, sofrem um novo ataque em sua forma e conteúdo.
Assim, as estratégias neoliberais para reduzir a ação governamental no terreno do
bem-estar social terão como elemento articulador a privatização. “A privatização do
financiamento e da produção de serviços; cortes dos gastos sociais, eliminando-se
programas e reduzindo-se benefícios; canalização dos gastos para os grupos
carentes; e a descentralização em nível local” (LAURELL, 1995, p. 163). A
privatização:
[...] atende ao objetivo econômico de abrir todas as atividades econômicas rentáveis
aos investimentos privados, com o intuito de ampliar os âmbitos de acumulação, e
ao objetivo político-ideológico de remercantilizar o bem-estar social. Porém, atingir
tais objetivos sem sobressaltos políticos que ameacem o seu cumprimento impõe a
necessidade de se legitimar ideologicamente o processo de privatização e de gerar
as mudanças estruturais necessárias. É nesta lógica que se inscrevem as outras três
estratégias (LAURELL, 1995, p. 163).
Essa privatização seletiva só é garantida na medida em que se consegue criar um
mercado para tais serviços, o que, por sua vez, acontece apenas mediante a
fragilização dos serviços públicos, tidos como insuficientes e de má qualidade. Essa
deficiência dos serviços públicos se dá primeiramente pelos cortes nos gastos
sociais, o que é justificado pela crise fiscal.
29
[...] Visto desse ângulo, significa um desfinanciamento das instituições públicas; tal
desfinanciamento causa seqüelas de deterioração e de crescente desprestígio das
instituições públicas, as mesmas que ajudaram a criar a demanda ao setor privado e
a tornar o processo de privatização socialmente aceitável (LAURELL, 1995, p.
168).
A retração dos gastos estatais com o bem-estar também aponta para a focalização
das políticas sociais, cada vez mais direcionadas exclusivamente aos mais pobres.
Os adeptos do neoliberalismo argumentam que o Estado não pode se
29
O neoliberalismo apresenta uma explicação para a crise fiscal. Mas esta também pode ser
estudada a partir de uma perspectiva marxista, como é o caso de O’Connor (1977). A explicação
neoliberal afirma serem os gastos supostamente excessivos com o bem-estar os causadores da crise.
Entretanto, a crise deve-se principalmente à questão da dívida pública, provocada por mudanças nas
relações econômicas no plano nacional e também mundial (CARCANHOLO, 1998).
90
responsabilizar por todas as pessoas, pois é necessário poupar recursos para
desenvolver programas para as pessoas em situação de pobreza absoluta. Deve-se
ressaltar, porém, que a focalização perde de vista a perspectiva de cidadania e de
direitos sociais, quando prevê o atendimento a apenas uma parcela da população,
restando às demais obterem seu atendimento por meio do mercado, o que reforça,
assim, o caráter meramente assistencialista do Estado.
Esses fatos permitem afirmar que os programas contra a pobreza têm na América
Latina um objetivo oculto: assegurar uma clientela política em substituição ao
apoio popular baseado num pacto social amplo, impossível de se estabelecer no
padrão das políticas neoliberais (LAURELL, 1995 p. 173).
No final dos anos 90, o resultado da política neoliberal é alarmante. Presenciaram-se
o crescimento da pobreza e da exclusão social, o desemprego estrutural, a
precarização das relações de trabalho, a desregulamentação dos direitos
conquistados e o aprofundamento das desigualdades sociais, com uma enorme
concentração de renda e de riqueza no mundo.
As promessas do neoliberalismo foram cumpridas apenas em parte. Se houve
controle da inflação e retomada das taxas de lucro, fundadas no crescimento do
desemprego e na queda da tributação, não houve, contudo, uma reanimação do
capitalismo, com taxas de crescimento estáveis, como no período anterior. Isso
porque “a desregulamentação financeira levou a uma verdadeira explosão de
operações especulativas. [...] o aumento do desemprego levou ao aumento da
demanda por proteção social [...]” (ANDERSON, 1995, p. 29).
Em se tratando do caso brasileiro de adoção do receituário em questão, vemos que
o País viveu o impacto neoliberal de forma retardatária, e isso se deve a alguns
aspectos de ordem política, como a crise do regime militar e a ofensiva democrática
popular iniciada nos anos 80.
Nessa disputa, a idéia de descentralização pode apresentar um sentido distinto
daquele previsto na Constituição, conforme salientado anteriormente, atendendo aos
91
ideais neoliberais de gestão pública, como uma forma de o Estado se afastar cada
vez mais das soluções dos problemas sociais.
[...] a descentralização da implementação das políticas sociais tem levado, em
alguns casos, ao puro formalismo, devido à forte tradição centralizadora do governo
federal, à tendência à padronização, que não considera as diferentes realidades
apresentadas pelos estados e municípios, ou seja, tratam os desiguais como iguais, e
à não efetivação de transferências de recursos da União e dos estados para os
municípios, compatíveis com as demandas apresentadas pelo nível local (CUNHA;
CUNHA, 2002, p. 16).
Para Stein (1997), o não-autoritarismo não significa necessariamente
descentralização. Para a autora, esse recurso pode ser usado tanto como
instrumento de participação como, também, pode encobrir a face obscura de um
regime autocrático, caracterizando-se como um mecanismo de reforço ao aparelho
de dominação.
Em alguns casos, pode acontecer o que Sposati e Falcão (1990, p.17) denominam
de “prefeiturização”.
[...] enquanto relação governo-povo, a descentralização se conforma ainda pelo
grau de presença da sociedade civil e, principalmente, pelas representações locais e
regionais. Quando estas são representativas da população local e reconhecidas por
sua capacidade de decisão, pode-se dizer que há efetiva descentralização do poder
do Estado. Caso contrário, ocorrerá o que ainda observamos em nosso país, ou seja,
apenas uma desconcentração ou deslocação das ações do governo federal e estadual
para o âmbito municipal, o que se pode denominar de ‘prefeiturização’ onde [sic] o
poder de governo e gestão é vetado nas instâncias internas do Estado.
De acordo com a Constituição de 1988, a descentralização deve ser guiada pelos
princípios da democratização e da participação popular, contribuindo para fortalecer
o controle da sociedade civil sobre as ações estatais e a consolidação da
democracia em nosso país, rompendo com a tradicional centralização e exclusão
das classes populares dos espaços de decisão política.
Dessa forma, a descentralização não pode ser compreendida necessariamente
como uma refundação da ordem democrática. Para tanto, são necessárias algumas
92
condições para que ela viabilize, de fato, os princípios que a direcionam. “[...] torna-
se imprescindível a garantia do acesso universal às informações necessárias para a
gestão; a garantia de que, nos conselhos de direção, os segmentos menos
poderosos tenham assento; e que os processos de gestão e tomadas de decisões
sejam transparentes” (STEIN, 1997, sp).
Não obstante, a ideologia neoliberal também ataca outros conteúdos democráticos
previstos na Constituição Federal de 1988. Nesse cenário de ofensiva neoliberal,
Estado e sociedade civil modificam-se nas suas esferas próprias e nas suas
relações. O princípio da participação popular nos processos de decisão política — de
formulação de políticas públicas — ganha novo sentido na perspectiva neoliberal,
que “avança em direção ao nosso passado” desconsiderando as classes populares
da direção social e política do País.
Veremos a diante, com maior profundidade, o embate entre o sentido da
participação popular expressa pela Constituição e o significado dessa participação
defendida pela lógica neoliberal que domina a sociedade brasileira.
3. 3 – CONSELHOS GESTORES: UM BALANÇO BIBLIOGRÁFICO
O cenário político inaugurado pela Constituição também preverá mecanismos de
participação e controle da sociedade civil sobre as ações públicas, desafiando o
Estado, em suas três esferas, a romper com a sua tradição centralizadora e
excludente de direção política e social. Nesse contexto, podemos concordar com
Nogueira (2004, p. 121), que afirma:
93
[...] a gestão participativa associa-se a um Estado mais aberto à dinâmica social,
mais democrático e mais competentemente aparelhado para auxiliar as
comunidades a se autogovernarem — um Estado que seja um parâmetro de sentido
para os interesses, um recurso ético-político de fortalecimento e de organização da
sociedade civil.
O artigo 14 da Constituição de 1988 garantiu a iniciativa popular como iniciadora de
processos legislativos. O artigo 29 instituiu a participação dos representantes de
associações populares no processo de organização das cidades. Outros artigos
estabelecem a participação das associações civis na implementação das políticas
sociais. Sendo assim, a Constituição conseguiu incorporar novos elementos
culturais, originários da sociedade, na institucionalidade emergente, criando espaço
para a potencial materialização da democracia participativa.
Os mecanismos instituídos foram: o plebiscito,
30
o referendo,
31
os projetos de
iniciativa popular
32
e o orçamento participativo,
33
além da criação de conselhos
gestores de políticas sociais, que permitem a participação de novos atores no
processo decisório.
O princípio da participação popular inscrito na Constituição de 1988, pela primeira
vez na história brasileira, marca legalmente a inclusão das classes populares nos
processos de decisão política e, com isso, além de possibilitar a inserção de novos
atores, também favorece a inclusão de novos temas para serem discutidos no
espaço público. À medida que se ampliam os atores envolvidos na política, novas
demandas também vão emergir para ser discutidas e novos arranjos políticos serão
possíveis.
30
Referendo é uma forma de consulta ao cidadão sobre um tema de importância efetivamente
grande, que ocorre quando o povo é chamado a manifestar-se sobre uma lei após ela ter sido
elaborada e aprovada pelos órgãos competentes do governo nacional.
31
O plebiscito também é uma consulta direta ao cidadão, em que ele se manifesta sobre um assunto
de extrema importância, porém antes que uma lei sobre o tema seja estabelecida.
32
A iniciativa popular é o direito que os cidadãos brasileiros têm de apresentar projetos de lei para
serem votados e eventualmente aprovados pelo Congresso Nacional. Para os cidadãos apresentarem
um projeto de lei, é necessária a assinatura de 1% dos eleitores do País (cerca de 1,2 milhão),
distribuídos em pelo menos cinco estados brasileiros.
33
O orçamento participativo se caracteriza por ser uma tentativa de reversão das prioridades de
distribuição de recursos públicos em nível local, através de uma fórmula técnica de determinação de
prioridades orçamentárias que privilegia os setores mais carentes da sociedade.
94
Diante de tantas possibilidades de participação popular e de um novo
direcionamento das ações estatais, é fácil concluir que esse sentido e esse destaque
dado à participação popular na formulação e no controle das políticas públicas
tendem a ser fortemente contestados pelas elites que tradicionalmente
predominaram com as suas organizações e práticas na vida política do País. Assim,
discorremos, a seguir, sobre os sentidos da participação popular em disputa no
Brasil atual e os principais desafios encontrados por essa participação,
especialmente a participação via Conselhos Gestores — âmbito de interesse
especial para o presente trabalho.
Os Conselhos Gestores surgem trazendo em si a esperança de avanço da
democratização da sociedade e de mudanças na forma de planejamento e execução
das políticas sociais no Brasil. A participação popular aparece, pela primeira vez na
história brasileira, como um instrumento capaz de imprimir uma nova lógica na
gestão pública, sustentada pela democracia, pela transparência e pelo controle
democrático da sociedade civil sobre as ações públicas. “Apontam para a
possibilidade de soluções dos problemas da cidade por meio da construção de uma
nova cultura política democrática e um novo desenho nas relações Estado e
sociedade civil” (BAVA, 2003, p. 13). Carvalho e Teixeira (2000, p. 8) definem
claramente o que a institucionalização dos conselhos vem a representar em nossa
sociedade:
Os conselhos são espaços de co-gestão entre Estado e sociedade que vêm se
contrapor a uma tradição autoritária e excludente que caracteriza os espaços de
decisão política no Brasil, onde muitas vezes prevalecem barganhas políticas,
interesses privados e relações clientelistas. São formas inovadoras de gestão pública
que permitem o exercício de uma cidadania ativa,
34
incorporando as forças vivas da
comunidade à gestão de seus problemas e à implementação de políticas públicas
que possam solucioná-los.
34
De acordo com Maria Vitória Benevides (1994, p.15), “a cidadania ativa distingue-se da cidadania
passiva (aquela que é outorgada pelo Estado, com a idéia moral do favor e da tutela), pois institui o
cidadão como portador de direitos e deveres, mas, essencialmente, criador de direitos para abrir
novos espaços de participação política”. “A cidadania compreende o reconhecimento dos indivíduos e
coletivos como sujeitos na construção da história, pela participação política, pelo exercício da
autonomia e pela garantia que lhes é dada, num Estado de Direito [...]” (FALEIROS, 2000, p. 43).
95
Ao prever a participação da sociedade nos processos decisórios, o Estado abre
espaço para o controle e a pressão democráticos da/sobre a coisa pública. Assim, o
Estado vai se transformando, em termos formais, de ‘comitê da classe dominante’
em espaço potencial de acesso da população aos serviços públicos.
Pode-se afirmar que os conselhos são canais de participação que propiciam,
potencialmente, o diálogo direto entre sociedade civil e Estado, diálogo por meio do
qual este último deve ver na primeira um interlocutor legítimo. Assim, os conselhos
são, para Gomes (2000, p. 24), “um espaço de fazer política, de disputar projetos, de
correlação de forças, mas [...] essencialmente um espaço de interlocução e
negociação”.
Essa concepção dos conselhos, como lócus de discussão e decisão política
ampliada, tem sua origem no contexto de lutas das classes subalternas pela
hegemonia e na constituição de um novo poder. Essa concepção foi se
corporificando à medida que as organizações e mobilizações das massas iam se
desenvolvendo no decorrer da história.
Passaremos, então, ainda que de maneira sucinta, a discorrer sobre algumas
experiências conselhistas ocorridas em outros países que não o Brasil e em
momentos que não a atualidade.
Tivemos como primeiras experiências nessa área os Conselhos da Comuna de Paris
(1871) e os soviets na Rússia, em 1905 e 1917. Também temos o espaço dos
conselhos nos locais de trabalho, como os Conselhos de Fábricas na Itália (1919),
além de outras experiências conselhistas que aconteceram, após a Segunda Guerra
Mundial, no Leste Europeu e na região dos Bálcãs.
No caso dos conselhos de direção das organizações revolucionárias, Teixeira (2000,
p. 99) afirma que sua “abrangência de ação era ampla e eles se colocavam como
organização alternativa de poder – todo poder aos soviets”.
96
Já os conselhos de fábrica, de acordo com o mesmo autor, surgem das assembléias
operárias e sistemas de representação nas fábricas, “expressando um poder efetivo
dos operários enquanto ‘produtores’ com ação econômica e política [...] não apenas
como instrumento de defesa dos interesses operários, mas como germe de um novo
tipo de Estado”.
No caso do Brasil, os conselhos surgem, primeiramente, na segunda metade da
década de 70, durante o período de crise do regime militar. Deve-se destacar,
então, os conselhos populares, que apresentavam uma estrutura informal e eram
mantidos por movimentos sociais, como os Conselhos Populares de Saúde na zona
leste de São Paulo, o Conselho Popular do Orçamento em Osasco (SP), a
Assembléia do Povo em Campinas (SP) etc. Também se destacam, nessa época, as
primeiras experiências de participação popular nas administrações públicas
municipais, como foi o caso de Lages (SC) e Boa Esperança (ES).
Essas experiências serviram de exemplo para que a Assembléia Nacional
Constituinte incluísse o princípio da participação popular nos processos de decisões
políticas, na Constituição Federal de 1988.
Os formatos dos Conselhos brasileiros variam conforme estejam vinculados à
implementação de ações focalizadas, através de conselhos gestores de programas
governamentais (merenda ou alimentação escolar, ensino fundamental, crédito), ou
à elaboração, implantação e controle de políticas públicas, através de conselhos de
políticas setoriais, definidos por leis federais para concretizarem direitos de caráter
universal (saúde, educação, cultura). Há também os conselhos temáticos,
envolvidos não apenas com políticas públicas, ou ações governamentais, mas com
temas transversais que permeiam os direitos e comportamentos dos indivíduos e da
sociedade (direitos humanos, violência, discriminação contra a mulher, o negro
etc.). Também começam a surgir, em alguns municípios, organismos mais gerais,
de participação mais ampla, envolvendo vários temas transversais, como o
Conselho de Desenvolvimento Municipal e o Conselho de Desenvolvimento
Urbano (TEIXEIRA, 2000, p. 102).
Vamos nos ater aos Conselhos de Políticas, visto que este trabalho se propõe
estudar o Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória, que se
enquadra nessa categoria. Os Conselhos de Políticas são reconhecidos legalmente
enquanto espaços públicos de captação de demandas e negociação de interesses
97
entre diversos grupos sociais, favorecendo, assim, a ampliação da participação de
indivíduos com menos acesso ao aparelho do Estado (TATAGIBA, 2002).
Os Conselhos Gestores de Políticas Sociais passam a ser, de acordo com a
Constituição de 1988, espaços obrigatórios nas três esferas do poder estatal, visto
que são considerados indispensáveis para o repasse de recursos federais para os
estados e municípios, sendo, portanto, um instrumento fundamental para a
consolidação da descentralização e da democracia.
Esses Conselhos se caracterizam por ser órgãos públicos, paritários, deliberativos e
que formulam políticas e realizam o controle social, coordenando e fiscalizando o
desempenho das instituições governamentais e não-governamentais que compõem
a rede de serviços da política setorial à qual eles se referem.
[...] os conselhos constituem-se em instâncias de caráter deliberativo, porém não
executivo; são órgãos com função de controle, contudo não correcional das
políticas sociais, à base de anulação do poder político. O conselho não quebra o
monopólio estatal da produção do Direito, mas pode obrigar o Estado a elaborar
normas de direito de forma compartilhada [...] em co-gestão com a sociedade civil
(MOREIRA, 1999 apud TATAGIBA, 2002, p. 50).
Conforme mencionado, os Conselhos são órgãos paritários, ou seja, comportam, em
mesmo número, representantes do Estado e da sociedade civil, como mecanismo
para garantir o equilíbrio na tomada de decisões. “A representação governamental
nos conselhos é feita, em geral, por agentes públicos titulares de cargos de direção
na administração direta ou indireta, por responsáveis pelas áreas das políticas
sociais, e por outros que atuem nas áreas afins, por indicação do chefe do Poder
Executivo” (MOREIRA, 1999 apud TATAGIBA, 2002 p. 50). No que se refere aos
representantes da sociedade civil, a escolha apresenta algumas especificações de
acordo com a política setorial que ele atende e conforme a lei que criou o conselho
de que se trate. Normalmente, esses conselheiros são escolhidos por seus pares,
em assembléia própria, que envolve entidades e organizações não-governamentais
prestadoras de serviços, de defesa de direitos, de estudos e pesquisa, associações
98
de usuários, sindicatos, entre outras. Os representantes são eleitos através do voto
dessas entidades.
Neles [nos conselhos] se fazem representar organizações da sociedade
civil e agências do Estado, portadoras de interesses e valores não apenas
distintos, mas por vezes antagônicos. Esta pluralidade não se relaciona
apenas à dicotomia Estado/sociedade, mas se reflete também nas
clivagens internas aos referidos campos. A pluralidade na composição, em
vez de um obstáculo — como alguns estudos têm sugerido — é, ao
contrário, o elemento que responde pela natureza pública e democrática
desses novos arranjos deliberativos (TATAGIBA, 2002, p. 54).
Também é importante destacarmos que a atividade de conselheiro é considerada de
relevância pública, visto que ele é reconhecido, em lei, enquanto um agente público.
Por esse motivo, a sua função não deve ser remunerada e a sua liberação deve ser
concedida pela entidade/secretaria em que atua, sempre que as atividades
conselhistas assim o exigirem.
Quanto ao funcionamento dos conselhos, cada um deles tem como competência
elaborar o seu regimento interno, que deve ser aprovado em plenária e submetido à
apreciação do chefe do Poder Executivo da sua área de abrangência, o qual o
sanciona por meio de decreto. As decisões do conselho devem se apresentar sob a
forma de decretos e devem ser publicadas no Diário Oficial. As reuniões devem ser
abertas, o que define o seu caráter de órgão público — qualquer cidadão tem direito
de voz, mas apenas os eleitos possuem o direito de voto.
Outro elemento importante para que o conselho seja, de fato, um espaço público e
democrático é a publicização dos debates e decisões tomadas no seu interior. Por
isso, é essencial compreendermos o conceito de publicização, uma vez que está
diretamente articulado às novas relações entre Estado e sociedade civil e às novas
formas de participação popular.
O conceito publicização funda-se numa visão ampliada de democracia,
tanto do Estado quanto da sociedade civil, e na implementação de novos
mecanismos e formas de atuação, dentro e fora do Estado, que dinamizam
a participação social para que ela seja cada vez mais representativa da
99
sociedade, especialmente das classes dominadas (RAICHELIS, 2000,
p.63).
Se todas essas características fazem dos Conselhos um espaço que possibilita
novas formas de participação política, que nos remetem tanto à questão do poder e
da dominação — tão presentes em nossa história — quanto à questão do consenso
e da hegemonia — visto que, ao prever a participação das classes populares, se
apresenta enquanto um espaço de configuração de uma possível contra-hegemonia
—, é preciso questionarmos até que ponto essas possibilidades estão se
concretizando em práticas políticas realmente democráticas e inéditas.
Passada a euforia em torno da “Constituição Cidadã”, é o momento de se avaliar se
os princípios democráticos ali inaugurados realmente se transformaram em ações
práticas do cotidiano dos cidadãos. Observamos, através de um balanço
bibliográfico, que muitos desafios são impostos aos novos arranjos institucionais
democráticos. Apontaremos, a seguir, alguns desses limites.
Além dos desafios impostos pela cultura política brasileira, que, como vimos, excluiu
ou limitou ao máximo a participação popular nos processos decisórios, hoje vivemos
uma conjuntura econômica e política que ataca todo conteúdo democrático embutido
na Constituição de 1988.
Se é verdade que os anos de ditadura cobram seu preço e a cultura política autoritária pesa
como referência, mais recentemente a adesão sem limites do governo federal à doutrina
neoliberal teve um enorme impacto sobre as nossas instituições públicas e a vida em
sociedade, e comprometeram profundamente a qualidade de nossa democracia e as
possibilidades de se lutar por um outro modelo de desenvolvimento, uma nova sociedade.
Vivemos num momento em que nossa sociedade se regula pela lógica do mercado: impõe-
se um padrão de sociabilidade individualista, privatista, competitivo, concorrencial, que
desrespeita o interesse público e a ética democrática. O egoísmo, o autoritarismo e a
100
violência se impõem como elementos que estruturam a vida social. A democracia e a
cidadania como valores não encontram espaço dentro desta lógica (BAVA, 2003, p. 18).
A citação acima demonstra a atual conjuntura brasileira de valorização dos
instrumentos de concorrência e da “livre iniciativa”, típicos de uma cultura mercantil
hegemônica de caráter neoliberal. Já apontamos que foi nos anos de 1990 que a
política neoliberal passou a se impor, efetivamente, nas administrações públicas
brasileiras.
35
A partir da presidência de Fernando Collor, desencadearam-se mais
fortemente as iniciativas para reduzir os gastos estatais que não aqueles de
interesse do capital e concretizar a ruptura com o passado intervencionista,
característico do modelo da industrialização substitutiva de importações e do
desenvolvimentismo dos governos militares.
A partir dos anos 1990, o Brasil adentrou num período marcado por uma
nova ofensiva burguesa, mais uma vez adaptando-se às requisições do
capitalismo mundial. É um momento histórico com características
diferentes do pós-64. Mas, certamente, configura-se como uma contra-
reforma social e moral, na perspectiva de recompor a hegemonia burguesa
no país. A dominação burguesa foi arranhada no processo de
redemocratização [...] (BEHRING, 2003, p. 113).
Essas estratégias foram aprofundadas no primeiro governo do presidente Fernando
Henrique Cardoso, que priorizou reformas constitucionais, o que, por sua vez,
possibilitou a reestruturação da ordem econômica (baseada nos ditames do
Consenso de Whashington) e, sobretudo, a refundação das relações entre o Estado
e a sociedade.
A reforma administrativa
36
executada pelo MARE — Ministério da Administração e
Reforma do Estado, criado no governo de Fernando Henrique Cardoso, sob a
35
“Mas a verdade é que foi a ditadura que começou o processo de dilapidação do Estado brasileiro,
que prosseguiu sem interrupções no mandato ‘democrático’ de José Sarney” (OLIVEIRA, 1998, p. 24-
25).
36
De acordo com Behring (2003, p. 146), está em curso no Brasil não uma reforma, mas uma contra-
reforma. A autora afirma que há uma apropriação indébita do termo reformista: “Mesmo que o termo
reforma seja apropriado pelo projeto em curso no país ao se auto-referir, partirei da perspectiva de
que se está diante de uma apropriação indébita e fortemente ideológica da idéia reformista, a qual é
101
direção do ministro Luiz Carlos Bresser Pereira —, levou adiante um projeto de
redefinição drástico de administração pública implantada por Vargas. “Para ele
[Bresser Pereira], o Brasil e a América Latina foram atingidos por uma dura crise
fiscal nos anos 1980, acirrada pela crise da dívida externa e pelas práticas de
populismo econômico” (BEHRING, 2003, p. 172).
De acordo com esta visão, o Estado brasileiro sofre do mal da ineficiência,
sendo preciso, portanto, purificá-lo de suas disfunções burocráticas,
buscando alcançar o modelo de administração pública gerencial, que nada
mais é do que uma transposição das práticas bem sucedidas da
administração de empresas para o setor governamental (GRUPO DE
ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, 1998 – 1999, p.
86).
O objetivo da reforma, então, é a substituição de uma burocracia baseada no
modelo racional-legal weberiano (Reforma Burocrática) por uma nova modalidade de
administração pública do tipo gerencial que viabilizasse a disciplina fiscal, a
privatização e a liberalização comercial. A diferença entre uma e outra forma de
administração se fundamenta em dois princípios: 1) a administração pública
burocrática busca o controle dos processos, enquanto a gerencial, o controle dos
resultados; 2) para a administração pública gerencial, o interesse público não pode
ser confundido com interesse próprio do Estado, como ocorre com a administração
pública burocrática (BEHRING, 2003).
A reforma proposta por Bresser Pereira apresentou como objetivos: a curto prazo,
facilitar o ajuste fiscal, particularmente nos estados e municípios; a médio prazo,
tornar mais eficiente e moderna a administração pública.
Ao Estado cabe um papel coordenador suplementar. Se a crise se localiza
na insolvência fiscal do Estado, no excesso de regulação e na rigidez e
ineficiência do serviço público, há que reformar o Estado, tendo em vista
recuperar a governabilidade (legitimidade) e a governance (capacidade
financeira e administrativa de governar). A perspectiva da reforma é
garantir taxas de poupança e investimento adequadas, eficiente alocação
de recursos e distribuição de renda mais justa. O lugar da política social no
destituída de seu conteúdo progressista e submetida ao uso pragmático, como se qualquer mudança
significasse uma reforma, não importando seu sentido, suas conseqüências sociais e direção
política”.
102
Estado social-liberal é deslocado: os serviços de saúde e educação, dentre
outros, serão contratados e executados por organizações públicas não-
estatais competitivas (BEHRING, 2003, p. 173).
Nesse projeto, a participação política popular ganha um novo sentido e aparece
como um mecanismo promotor da solidariedade entre governantes e governados,
que contribuem para aliviar e agilizar as ações governamentais. Simionatto (1998)
destaca que, nos anos 1990, há uma inversão do processo vigente nos períodos
populistas, em que as classes hegemônicas faziam concessões aos setores
populares. Hoje, o Estado, em nome das elites econômicas, impõe sacrifícios às
classes populares, as quais, muitas vezes, consentem em favor da hegemonia
burguesa.
De acordo com a “reforma”, o Estado deve se apresentar enquanto um Estado
democrático, mesmo que esta proposta seja extremamente instrumental e
reducionista da democracia. Sendo assim,
[...] esse Estado deve ser também democrático, já que ‘as classes
dominantes não necessitam do uso da força para se apropriar de uma
parte considerável do excedente social’ e a democracia deve existir como
meio de acesso ao poder político, bem como a divisão desse mesmo poder
pelas classes dirigentes (BEHRING, 2003, p. 174).
Nogueira (2004) ressalta que, na década de 90, o Brasil consolidou e organizou
institucionalmente seu compromisso com o regime democrático. Todavia, não se
edificou um sistema politicamente democrático, não houve mudança substantiva dos
hábitos democráticos e não se rompeu efetivamente com as práticas que
caracterizam a nossa cultura política.
Nesse contexto, a participação se apresenta com um conteúdo gerencial, ou seja, a
sociedade civil poderá interferir, administrar e colaborar com as ações públicas
estatais e, em alguns casos poderá substituir o Estado na implementação de
determinadas políticas sociais. Tatagiba (2003, p. 16-17) explica claramente em que
se configura a participação gerencial:
103
[...] no modelo democrático gerencial, o estabelecimento dos acordos ou a
mobilização para a ação conjunta não resulta necessariamente — embora possa vir
a ocorrer, dentre outros motivos, pela pressão dos grupos convidados à participação
— de um debate prévio e informado acerca das alternativas postas à definição do
problema e das formas de intervenção. O que está em jogo não é a definição
compartilhada do que deverá ser, em cada caso, considerado interesse público, mas
a disposição de cada ator ‘realizar a sua parte’, ‘oferecer sua contribuição’,
disponibilizar seu tempo e criatividade para ‘reunir esforços’ visando à solução de
um problema, que só pode ser resolvido ‘com a contribuição solidária de todos’.
[...] Uma experiência participativa bem sucedida é aquela em que os atores sociais
aceitam dividir com o governo, depois de sensibilizados para tanto, as
responsabilidades pela execução das políticas, podendo inclusive assumir
diretamente os custos de sua implementação.
Podemos afirmar que o tema da participação popular está, atualmente, inserida no
discurso e na prática de diversas forças políticas que disputam a hegemonia no
cenário brasileiro. Por isso, devemos considerar que realmente presenciamos um
movimento que luta por novos espaços democráticos e pelo fortalecimento dos já
existentes, com vistas a legitimar a participação real dos cidadãos na direção política
do País. Mas também, existe um movimento que utiliza o mesmo argumento da
redefinição das relações entre o Estado e a sociedade civil, visando à diminuição
das intervenções estatais nas expressões da questão social. Esse movimento
reforça a idéia da participação gerencial e, “neste quadro, caberia às agências
autônomas e às organizações sociais, constituídas a partir da sociedade civil, a
execução das políticas [...] Nesta divisão de atribuições, não há referências à
participação da sociedade civil no planejamento e formulação destas políticas”
(GRUPO DE ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, 1998 – 1999,
p. 87).
Apresentados os resultados do balanço bibliográfico dos conselhos gestores no Brasil,
partiremos para a discussão da trajetória das políticas sociais no campo da criança e do
adolescente, marcando o momento em que a participação popular ganha destaque no
planejamento dessas políticas.
104
105
CAPÍTULO 4
INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA, POLÍTICA SOCIAL
E PARTICIPAÇÃO POPULAR
"Há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto" (MILTON
NASCIMENTO).
4.1 - O DESPERTAR DO SENTIMENTO DE INFÂNCIA
A história social e cultural que marca o mundo ocidental e, em particular, o Brasil,
não apresenta um passado de glórias em relação ao modo de pensar e agir no que
diz respeito à atenção às crianças e aos adolescentes, principalmente às crianças e
adolescentes pobres.
106
Conhecer e analisar essa história facilitará a compreensão dos avanços e
implicações que temos hoje em relação à implementação do ECA e de uma gestão
partilhada da política de atendimento. Buscar na história as origens do passado para
avaliar o presente e — quem sabe? — projetar o futuro pode ser um bom caminho
para permitir uma mudança de paradigma, em um momento histórico e cultural no
qual as representações sociais e políticas podem ser reconstruídas em direção à
formas mais democráticas de participação. Para tanto, vamos recorrer à história e
apontar o momento em que a infância e a adolescência passam a ser reconhecidas
na sociedade ocidental.
As análises de Ariès (1981) nos fazem compreender a infância como uma
construção social e cultural e ter clareza de que os modos de representá-la
transformaram-se ao longo da história e se apresentaram de maneiras diversas
segundo os diferentes grupos sociais. O autor realiza, nessa obra, uma análise
aprofundada sobre as representações da infância, perpassando todo o período que
vai da sociedade medieval até a modernidade.
Na sociedade medieval, o sentimento de infância não existia. Isso significa que não
havia a consciência das particularidades infantis, as particularidades que distinguem,
essencialmente, a criança do adulto.
Essa mentalidade fica expressa, especialmente, na análise que o autor faz da
representação da criança através da arte: “Até por volta do século XII, a arte
medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa
ausência se devesse a incompetência ou a falta de habilidade. É mais provável que
não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (ARIÈS, 1981, p. 17). Essa
constatação permitiu ao autor acrescentar que, do ponto de vista da vida real, e não
apenas no de uma transposição estética, a infância era um período curto, logo
ultrapassado e cuja lembrança era logo perdida.
107
Esse modo de pensar as crianças direcionou as formas de tratamento em relação
aos pequenos. As crianças eram consideradas e conseqüentemente tratadas como
“adultos em miniatura” (ARIÈS, 1981). Por essa razão, assim que a criança tinha
condições de viver sem a presença da mãe ou da ama (por volta dos 7 anos de
idade), ela ingressava no mundo dos adultos e não se distinguia mais destes.
37
As crianças eram tratadas com descaso, sendo que a maior parte das mães
entregava seus recém-nascidos a amas-de-leite. A renúncia ao aleitamento era
justificada, muitas vezes, pela fraqueza de algumas mães. Outras apelavam para a
estética, afirmando que perderiam a beleza, tendo ainda a seu favor a ordem moral e
social vigente.
A amamentação nos séculos XVII e XVIII era considerada repugnante e ridícula, um
ato que inferiorizava as classes abastadas. No entanto, esse pensamento também
penetrou nas classes populares, que procuravam pelos mercados e pelas ruas amas
que pudessem amamentar seus filhos. A maior diferença quanto a essa prática entre
pobres e ricos é que os últimos, com a ajuda de um médico, selecionavam as amas
com aparência saudável, bonitas e calmas. As classes populares, ao contrário,
sequer examinavam a saúde ou o leite dessas mulheres. Comuns a ambas as
situações são os relatos literários de maus tratos, falta de higiene e mortalidade
infantil.
Acrescente-se a isso o uso de narcóticos e aguardentes para fazer a criança dormir e
ficar tranqüila. Muitas morreram por uma dose excessiva. Mas, se suportasse tudo
isso, a criança ainda teria que passar por outra prova terrível: a sujeira e a falta de
higiene. Às vezes, passam-se semanas sem que suas roupas ou palha sobre a qual se
deita sejam trocadas (LINS, 1997, p. 97).
Ressalte-se que o que predominou até o final do século XVIII foi um sentimento de
indiferença por parte dos pais em relação a esses acontecimentos. A própria
mortalidade infantil era considerada banal, compreendida como um acidente
corriqueiro que o nascimento de um próximo filho poderia reparar.
37
A inserção da criança no mundo adulto dava-se mediante a adoção do mesmo padrão de vida,
incluindo a realização de atividades, forma de vestir-se, participação em jogos e no trabalho.
108
As crianças eram menosprezadas, consideradas um grupo de segunda categoria,
“uma espécie de adulto em miniatura, um ser imperfeito que precisava sair deste
estado infantil para merecer algum respeito” (WEBER, 1998, p.23).
Nesse momento histórico, a socialização das crianças não se dava no interior da
família e sequer era controlada ou assegurada por esta:
As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas, portanto,
fora da família, num ‘meio muito denso e quente’, composto de vizinhos,
amigos, amas e criados, crianças e velhos, mulheres e homens, em que a
inclinação podia se manifestar mais livremente. As famílias conjugais se
diluíam nesse meio (ARIÈS, 1981, p. 10).
O contexto descrito aponta que o sentimento de família, conforme valorizado nos
dias correntes — os sentimentos entre pais e filhos e entre marido e esposa — não
eram tão fundamentais para a manutenção do equilíbrio e da existência da família. A
família era muito mais moral e social do que sentimental (ARIÈS, 1981).
Contudo, de acordo com Ariès (1981), o fim do século XIX assinala um período de
grandes mudanças na socialização e no sentimento em relação à infância.
Tais mudanças podem ser compreendidas a partir de duas abordagens que se
relacionam e que contribuíram para o despertar do sentimento pela infância. Pode-
se dizer que ambas as abordagens foram determinantes para que a infância saísse
do anonimato.
A primeira abordagem se refere à influência da escolarização na formação moral e
espiritual das crianças (o que acontece sob a orientação dos educadores e
sacerdotes tanto católicos quanto protestantes).
A instituição escolar marcará uma grande mudança na forma de representar e agir
com relação à criança. Se, durante a Idade Média, a educação das crianças se
dava através da aprendizagem junto aos adultos, com a abertura da escola às
crianças, essa instituição se tornou um instrumento de iniciação social que
109
determinava a passagem da infância para o mundo adulto (ARIÈS, 1981). A escola
passa, cada vez mais, a se tornar um meio de isolar as crianças do mundo dos
adultos.
A sociedade passa a compreender que a criança necessita viver uma fase
diferenciada do adulto. Por isso, a instituição escolar desenvolverá um regime
especial de educação antes de a criança se integrar ao mundo dos adultos.
Até então, as escolas eram reservadas a um pequeno número de clérigos e
misturavam as diferentes idades dentro de um espírito da liberdade de costumes.
Durante muito tempo, a escola permaneceu indiferente à repartição e à distinção das
idades, pois seu objetivo principal era a formação moral e social. Sendo assim,
recebia de maneira indiferente as crianças, os jovens e os adultos, precoces ou
“atrasados”.
Essa indiferença da escola pela formação infantil não era própria apenas dos
pensadores retrógrados. É importante notar que os humanistas do
Renascimento a compartilhavam com seus inimigos, os escolásticos
tradicionais. Assim como os pedagogos da Idade Média, eles confundiam
educação com cultura, e estenderam a educação a toda a duração da vida
humana, sem dar um valor privilegiado à infância ou à juventude, sem
especializar a participação das idades (ARIÈS, 1981, p.101).
Dizer que um menino estava com idade para ir à escola não significava,
necessariamente, que se tratava de uma criança. Ia-se para a escola quando se
podia, ou muito cedo, ou muito tarde. Sendo assim, nem todas as crianças
passavam pela escola. Para elas, permaneciam os antigos hábitos da precocidade
da Idade Média.
38
A divisão que se fazia entre as crianças que iam para a escola e
as que cedo ingressavam no mundo dos adultos não correspondia a sua condição
38
As crianças eram enviadas para casas de pessoas estranhas após os 07 ou 09 anos de idade e lá
permaneciam por quase dez anos. Nessas casas, elas trabalhavam como aprendizes,
desempenhando funções domésticas, principalmente servindo à mesa. Esse trabalho, em casas de
estranhos, tinha por objetivo a aprendizagem de boas maneiras. As crianças eram enviadas por seus
pais às casas alheias ao mesmo tempo em que estes recebiam em suas casas outras crianças. Além
disso, era freqüente que essas crianças, quando maiores, não mais retornassem para as suas casas.
No caso das meninas, elas nunca iam à escola. Para elas, os hábitos de precocidade e de uma
infância curta mantiveram-se inalterados. A partir dos dez anos, as meninas já eram consideradas
mulheres. Desse modo, sua aprendizagem era basicamente a doméstica (ARIÈS, 1981).
110
social. Apesar de a população escolar ser constituída, principalmente, por filhos de
burgueses, juristas e eclesiásticos, nela havia também filhos de camponeses e
artesãos, assim como havia filhos de nobres que não freqüentavam a escola
(ARIÈS, 1981).
No entanto, essa situação não perdurou por muito tempo, e a condição social
passou a marcar o espaço da educação. A escola passa a ser dividida por um
sistema de ensino duplo, que seleciona de acordo com a classe social. O ensino
secundário (mais longo) para os burgueses, e o ensino primário (mais curto) para os
pobres (ARIÈS, 1981).
Foi nessa nova configuração do sistema escolar que a idéia de disciplina se edificou
e logo se estendeu para toda a sociedade. Apresentavam-se novos princípios de
comando e hierarquia. A disciplina escolar terá sua origem na disciplina religiosa e,
mais tarde, a própria família também foi entendida como um ator importante no
aperfeiçoamento moral das crianças, incorporando a disciplina como central na
educação da infância e da juventude.
Assim, a evolução da mudança na educação significou, também, uma preocupação
dos pais de estarem mais próximos dos filhos. “A substituição da aprendizagem pela
escola exprime também uma aproximação da família e das crianças, do sentimento
da família e do sentimento da infância, outrora separados. A família concentrou-se
em torno da criança” (ARIÈS, 1981, p.101).
A extensão da freqüência escolar também significou uma mudança na forma de as
famílias se relacionarem com as crianças. Como já salientado neste trabalho, até o
final da Idade Média, a família era muito mais uma realidade moral e social do que
sentimental.
39
Todavia, a expansão da preocupação escolar com a moral das
crianças correspondeu também a uma preocupação dos pais em vigiar seus filhos
39
Nos meios mais ricos, a família se baseava na prosperidade do patrimônio e na honra do nome.
Para os pobres, a família não correspondia a nada além da instalação do casal no seio de um meio
mais amplo (ARIÈS, 1981).
111
mais de perto, visando treiná-los para resitirem melhor às tentações do mundo
adulto. Dessa forma, a família passou a se concentrar em torno da criança.
40
Áries (1981) e Badinter (1985) afirmam que a família, enquanto grupo privado, vai
surgindo, no Ocidente, ao lado da infância a ser protegida e preservada dos perigos
do meio. Com o surgimento desse novo sentimento, as crianças começam a receber
nomes próprios, a saber quantos anos têm, assim como os pais passam a
considerar importante saber quantos são os seus filhos. Há um reconhecimento da
especificidade deste período da vida, expresso pelos novos lugares que lhes são
determinados nos cômodos das casas, na dimensão dos móveis, nas atividades que
lhes seriam proibidas. Há também um lugar entre os saberes, justificando uma
medicina especializada, uma pedagogia que lhes seja própria. Isso contribuiu para
consolidar representações de crianças separáveis das de adultos, fortalecendo a
família como unidade distinta, lugar de proteção e isolamento onde os filhos devem
ser educados.
Além disso, outro aspecto, de grande importância, contribuiu, concomitantemente,
para a passagem da família social e moral da Idade Média à família moderna. A
mudança no modo de produção — transição do feudalismo para o capitalismo —
exigiu que a infância passasse a receber maiores cuidados. Do ponto de vista dos
interesses dominantes na sociedade capitalista, era importante que as mães
cuidassem da saúde e da educação dos seus filhos, visto que isso poderia garantir a
sobrevivência da futura mão-de-obra necessária para a manutenção do novo
sistema
41
(BADINTER, 1985).
A aparição do sentimento da infância nasce no contexto burguês e sustenta a
mudança de inserção da criança na sociedade. No quadro de uma economia
mercantil em fase de expansão, e dentro da qual cada um deveria participar num
40
Um exemplo dessa mudança foi que o velho hábito de enviar os recém-nascidos para as casas das
amas passou lentamente a se modificar. Com a centralidade da criança no seio familiar, a ama é
quem irá se deslocar e passar a morar com a família.
41
É no capitalismo que as preocupações e cuidados com a infância ganham mais ênfase, visto que
era indispensável que a formação dos infantes fosse coerente com os valores do novo sistema —
baseado no lucro, no livre comércio e no reconhecimento do trabalho enquanto valor moral.
112
processo aberto de troca de bens e de compra e venda de força de trabalho, a
família de tipo antigo, fundada na autoridade paterna, numa noção alargada de
linhagem e no dever de conservação do patrimônio, começa, então, sobretudo no
território social da burguesia, a ceder rapidamente lugar à família conjugal, dentro da
qual a criança e o jovem se transformaram num investimento, num capital que era
preciso valorizar, e que ampliava ou diversificava as outras formas de patrimônio. O
crescimento demográfico e a concentração urbana iriam acentuar as condições
desta transformação (BADINTER, 1985).
O Emile (1762), de Jean-Jacques Rousseau, sintetiza essa nova abordagem da
criança, vista como portadora de potencialidades em devir e de um valor intrínseco,
cuja natureza e necessidades era preciso empenhar-se em conhecer. O apego à
criança e a suas particularidades não se exprime mais pela diversão ou o brincar,
mas pela responsabilidade da família em cuidar da saúde e da educação dos
infantes. Cabe à mãe amar, alimentar seus filhos e educá-los conforme a nova
ordem econômica que se desenvolvia (LINS, 1997).
Ariès (1981, p. 189) salienta que esse processo deu-se lentamente e se restringiu
durante muito tempo “[...] as classes abastadas, dos homens ricos e importantes do
campo ou da cidade, da aristocracia ou da burguesia, artesão ou comerciante”.
Somente a partir do século XIX esse sentimento vai se expandir a todas as camadas
sociais e se impor hegemonicamente à sociedade. A família passa a se configurar
como um espaço cada vez mais fechado e que se volta cada vez mais para os seus
membros, reforçando a idéia de espaço privado e contribuindo, juntamente com as
transformações na educação, para o surgimento de uma nova concepção de
infância e adolescência que passa a ser adotada na sociedade moderna.
Essa nova concepção inaugura a idéia de maior subordinação e dependência das
crianças aos adultos, colocando a necessidade de fortalecimento da família para
garantir a proteção dos infantes. Aliada a essa nova função social da família,
113
também será reforçada a intervenção da sociedade e do Estado para oferecer às
crianças escolarização, assistência e proteção. Todavia, deve-se ressaltar que todo
esse processo de reconhecimento das particularidades infantis vai acontecer
inserido na concepção de preservar a criança, porém disciplinando-a.
Ressalte-se que, nessa nova ordem, também se passou a entender a pobreza de
uma maneira diferente. A situação de pobreza alterou-se nesse momento de
transição, na sociedade ocidental, por dois principais fatores: a derrocada do
feudalismo e o cercamento dos campos, que transformaram, em grande medida, os
modos de vida e de trabalho da população. Desse modo, o surgimento do
capitalismo, o avanço do livre comércio e a mercantilização da força de trabalho
transformaram a pobreza coletiva predominantemente rural em pobreza urbana, algo
individual, muito embora comum à grande maioria das pessoas (LEITE, 2002).
Isso fez com que a forma de se representar a pobreza também se alterasse. Durante
a Idade Média, a pobreza era vista como algo natural e resultado da vontade
divina.
42
Sendo a pobreza fruto da vontade divina, ela também será aspecto
fundamental do que Castel (1998) denomina “economia da salvação”. Nesse
contexto, a doação de esmolas será o elemento condutor para a salvação dos
pecadores.
[...] a caridade representa a via por excelência da redenção e o melhor
investimento para o além. [...] Estabelece-se um comércio entre o rico e o
pobre, com vantagens para as duas partes: o primeiro ganha a sua
salvação graças à sua ação caridosa, mas o segundo é igualmente salvo,
desde que aceite sua condição (CASTEL, 1998, p. 65).
As referências utilizadas por Leite (2002) apresentam outro elemento que também
contribuía para a naturalização da pobreza e a não-contestação do mundo
estratificado rigorosamente entre ricos e pobres. Esse novo elemento diz respeito ao
42
O pensamento cristão medieval que direcionava as representações da pobreza baseava-se na
seguinte afirmação: “Incumbe à graça de Deus conceder riqueza e força, ou condenar à debilidade e
à pobreza: ao homem não resta senão aceitar humildemente a condição que lhe tiver sido atribuída”
(GEREMEK, 1989 apud LEITE, 2002, p. 7). “[...] a pobreza fazia parte da ordem natural das coisas,
da natureza física, de uma economia débil, de uma natureza humana que era frágil e falível”
(HIMMERLFARB, 1988 apud LEITE, 2002, p. 7).
114
fato de que “os pobres, durante a Idade Média, não eram desfiliados, não se
encontravam desenraizados de seu próprio meio social” (LEITE, 2002, p. 8).
Essa filiação social fazia com que os pobres, mesmo vivendo nas mais precárias
condições de sobrevivência, mantivessem-se nos seus locais de origem. Isso
porque: “[...] a conjunção do fato de estar colocado sob a proteção de alguém
poderoso [...] e do fato de estar inscrito em redes familiares ou da mesma linhagem
e de vizinhança da comunidade de habitantes garantia uma proteção máxima contra
os acasos da existência” (CASTEL, 1998, p. 50).
Entretanto, todo esse cenário será modificado durante a longa transição do
feudalismo ao capitalismo. Será com a modernidade pré-industrial que surgirá uma
nova modalidade de pobreza, uma pobreza móvel. Com o cercamento dos campos e
a emergência do modo de produção capitalista, um grande número de indivíduos
passou a migrar em busca de trabalho onde quer que isso fosse possível. Rompiam-
se, com isso, os tradicionais laços sociais e os indivíduos passaram a se desligar
dos seus locais de origem, apresentando-se desenraizados espacial e socialmente
(LEITE, 2002).
Assim, a pobreza passa a ser considerada como capaz de desordenar o mundo,
visto que, então, se constituía como uma pobreza móvel. Por isso, as situações de
pobreza e miséria passaram a ser encaradas como um problema que precisava ser
combatido. Os pobres passam a ser vistos como um problema, diferentemente do
que tinha acontecido na Idade Média, porque, por um lado, eram, em geral,
forasteiros, indivíduos vindos de outras localidades, sem vínculos com os habitantes
da localidade em que passavam a morar; por outro lado, eram em grande número,
concentrando-se em espaços geográficos relativamente pequenos; por fim,
diferentemente do que tinha ocorrido na Idade Média, a partir da modernidade pré-
industrial os pobres freqüentemente não tinham um lugar pré-definido na sociedade,
e aqueles que não conseguiam um posto trabalho passaram a ser chamados
“vagabundos”, sofrendo as penalidades correspondentes (LEITE, 2002).
115
Com a Revolução Industrial, as situações de pobreza passam a ter uma causa
evidente: a pobreza passa a ser entendida como fruto de um sistema que não
absorvia toda a força de trabalho disponível, que tem o mercado e não os indivíduos
enquanto prioridade.
43
No caso de crianças e adolescentes pobres, o pensamento não foi diferente. Se a
família não era capaz de prover o mínimo necessário para a sobrevivência e o
ajustamento dos infantes, cabia à classe dominante e aos governantes adotarem
algumas medidas que garantissem a manutenção da ordem. Seguem, nesse
contexto, os primeiros ensaios de políticas sociais, combinando assistência aos
necessitados e repressão violenta contra os indivíduos tidos como vagabundos
(LEITE, 2002).
Essas formas de combater a pobreza passaram a reservar aos pobres o trabalho
forçado, a reclusão e diversos tipos de castigo.
44
Todas as intervenções visavam
manter a “paz social”, visto que o empobrecimento massivo era percebido pelas
classes dominantes como uma fonte de perigo, que trazia como conseqüência a
degradação moral dos indivíduos por ele atingidos (LEITE, 2002).
A partir desse entendimento, logo se estendeu pela sociedade capitalista a idéia da
criminalização da pobreza. A sociedade capitalista rapidamente considerou a
pobreza como um fenômeno perigoso para o equilíbrio social, estabelecendo uma
relação “natural” entre miséria e delinqüência.
Assim, não deve causar surpresa a freqüência com que era utilizada a
expressão ‘classes perigosas’, constantemente em referência às ‘classes
laboriosas’. [...] Os perigos que as classes dominantes viam nas ‘classes
laboriosas’ eram das mais diversas ordens (LEITE, 2002, p. 18).
43
Com o capitalismo torna-se visível “[...] uma acumulação da miséria equivalente à acumulação de
capital. Por isso, o que num pólo é acumulação de riqueza é, no pólo contrário, isto é, na classe que
cria seu próprio produto como capital, acumulação de miséria, de tormentos de trabalho, de
escravidão, de despotismo e de ignorância e degradação moral” (MARX, 1973 apud LEITE, 2002, p.
16).
44
Esse caldo de ações que combinou assistência e repressão será mais bem exemplificado quando
analisarmos a trajetória das políticas sociais para as crianças e adolescentes no Brasil.
116
Todo esse contexto fez com que os pobres, e especialmente as crianças e
adolescentes pobres, se transformassem em objeto de maior atenção e intervenção
do Estado, dos filantropos, médicos, higienistas, educadores, juristas, etc.
Veremos, a seguir, como essa situação se manifestou no caso brasileiro.
4.2 - PELAS MÃOS DE QUEM? AS POLÍTICAS SOCIAIS
BRASILEIRAS DE ATENÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE
O Brasil importou - e com grande atraso histórico - os valores e a cultura européia no
modo de pensar e tratar as crianças, principalmente no que se refere às crianças
pobres. Tanto a escolarização quanto a emergência da vida privada instalaram-se
com grande atraso em comparação com a Europa. Esse atraso deu-se em função do
próprio processo de desenvolvimento do País, apoiado, inicialmente, no antigo
sistema colonial e, posteriormente, numa industrialização tardia (DEL PRIORI,
2000).
Desse modo, é possível observar, já no início da colonização, uma certa
desvalorização da infância. A criança não era foco de atenção especial. Elas não
eram percebidas nem ouvidas. Nem falavam nem delas se falava (RIZZINI; PILOTTI,
1995).
Mantinha-se, na sociedade brasileira, a idéia de uma infância curta e que também
apontava os sete anos como a idade da razão. Outro aspecto que permanecia era o
fato de a família continuar sendo uma realidade moral e social muito mais do que
sentimental. Isso significa que a noção de intimidade foi, durante longo tempo, muito
precária no Brasil.
117
Os lares monoparentais, a mestiçagem, a pobreza material e arquitetônica
que se traduzia em espaços onde se misturavam indistintamente crianças e
adultos de todas as condições, a presença de escravos, a forte migração
interna capaz de alterar os equilíbrios familiares, a proliferação de cortiços
no século XIX e de favelas no século XX são fatores que alteram a noção
que se pudesse ter no Brasil, até bem recentemente, de privacidade tal
como ela foi concebida pela Europa urbana e burguesa (DEL PRIORI,
2000, p. 11).
No entanto, o segmento social infantil pobre e/ou abandonado já se apresentava
enquanto um problema, que, por isso, necessitava da intervenção das classes
dominantes e do Estado.
Pode-se afirmar que as primeiras iniciativas de intervenção relativas à criança foram
quase todas de caráter religioso (RIZZINI; PILOTTI, 1995). Entretanto, algumas
dessas ações não atingiam as crianças negras, que permaneciam como propriedade
do seu senhor.
As intervenções assistenciais brasileiras reproduziam a lógica do combate à pobreza
européia, na qual eram comuns o trabalho forçado, os castigos violentos e a
reclusão.
Uma revisão da história da assistência à infância no Brasil, desde o período colonial,
mostra-nos que toda prática assistencial voltada para crianças pobres pautava-se no
trabalho. As crianças índias eram catequizadas enquanto aprendiam a trabalhar; os
pequenos escravos, desde muito cedo, passavam a servir aos seus senhores; as
crianças abandonadas recebiam “proteção” das Santas Casas de Misericórdia até os
sete anos de idade e depois eram entregues para o trabalho; as crianças órfãs eram
destinadas aos asilos, onde aprendiam a desenvolver o “sentimento de amor ao
trabalho” (RIZZINI; PILOTTI, 1995).
Essa noção de assistência à infância baseada no trabalho estende-se ao período
republicano, mesmo com o advento de mudanças, quando a filantropia entra em
cena através dos higienistas
45
e filantropos.
45
“Assim como ocorrera em alguns países europeus, foi a questão sanitária-higienista que propiciou,
no Brasil, o despertar para as precárias condições de vida de amplos segmentos da população
118
Deve-se ressaltar que, assim como ocorreu no início do capitalismo europeu, aqui no
Brasil, mesmo em se tratando de uma industrialização tardia, a criança passou a ser
vista como futura mão-de-obra para a indústria, e a capacidade de trabalho se
apresentou, de acordo com a ideologia vigente, como o único bem da população
empobrecida. Por isso, a centralidade do trabalho nas ações sociais para os pobres
continuará ainda no período republicano. Era preciso incutir a disciplina do trabalho
nas crianças, objetivando a “proteção da sociedade” contra “futuros” delinqüentes
ociosos.
Também se mantiveram a aplicação de castigos violentos e as péssimas condições
de vida em que as crianças eram submetidas. Exemplos dessa situação não faltam
na história brasileira de “atenção” à criança e ao adolescente. A resistência à
catequese era capitulada na lei portuguesa como motivo suficiente para o uso da
força; as crianças escravas, além de submetidas a freqüentes castigos, morriam com
facilidade, devido às precárias condições em que viviam seus pais; nas Rodas dos
Expostos
46
, a mortalidade era elevada em função da falta de condições adequadas
de higiene, alimentação e cuidados em geral (RIZZINI; PILOTTI, 1995).
A reclusão também será uma constante característica das ações voltadas para as
crianças e adolescentes brasileiros. Os asilos, bem como as demais instituições de
internação que existiam — Colônias Correcionais, Patronatos Agrícolas, Institutos
Públicos
47
—, conforme relata Rizzini (1997), eram casas situadas longe das
cidades, inclusive em ilhas, nas quais se colocavam dezenas de crianças de 7 a 8
anos que passavam a ser educadas numa instrução quase que exclusivamente
religiosa, vivendo sem higiene e muitas vezes em ambientes escuros e sem
vivendo nos centros urbanos impulsionados pela indústria. [...] A propagação das doenças
relacionava-se diretamente às catastróficas condições de higiene às quais estava submetida grande
parte da população. [...] A denúncia realizada pelos sanitaristas abriu caminho para a própria
intervenção sobre a pobreza” (VALLADARES, 1991, p. 84-85).
46
Dispositivo instalado na parede lateral ou frontal das Santas Casas de Misericórdia, que consistia
num cilindro que unia o interior da Santa Casa à rua. Era aberto num de seus lados, onde a criança
era depositada, para, em seguida ser girado sobre o próprio eixo, levando o infante para dentro dos
muros, quando então o expositor tocava uma sineta para avisar à rodeira que uma criança havia sido
exposta (RIZZINI; PILOTTI, 1995).
47
Considero que todas essas instituições podem ser classificadas como “instituições totais”, na
acepção que Goffman (2005) dá a esta expressão. São instituições com tendências de “fechamento”.
“Seu ‘fechamento’ ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo
externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico — por exemplo,
portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. A tais
estabelecimentos dou o nome de instituições totais [...]” (GOFFMAN, 2005, p. 16).
119
ventilação. Essas crianças eram pessimamente alimentadas, sujeitas a castigos
severos, dos quais o mais suave era o suplício da fome e da sede. O trabalho era
tido como a forma de se evitar que os asilos se tornassem viveiros de parasitas.
O isolamento dos desajustados em espaços educativos e corretivos
constituía estratégia segura para a manutenção ‘pacífica’ da parte sadia da
sociedade. O propósito de classificar os diferentes e confiná-los em
espaços de segregação e de isolamento afinava com a modernidade do
País, que renegava seu passado escravista e trilhava o caminho da
civilização pela negação permanente da barbárie que se apresentava sob a
forma de diversidade irresponsável e caótica. Tratava-se, antes de tudo, de
conferir ordem a uma população multifacetada e disforme (ADORNO, 1990,
p. 9).
É nesse contexto que surgem as polícias das famílias, com o discurso de que
existiam para o bem dos infantes. Essas polícias tinham o poder de entrar nas casas
e intervir na moralidade da família. A pobreza ou a orfandade justificava a retirada da
criança do seu lar e de sua comunidade (RIZZINI; PILLOTI, 1995). A história do
controle social formal da infância como estratégia específica constitui um exemplo
paradigmático de construção de uma categoria de indivíduos para quem a proteção,
muito mais que constituir um direito, consiste numa imposição. Uma proteção que
será concebida apenas na medida das distintas variações da segregação, que, na
melhor das hipóteses, reconhece a criança como objeto de compaixão, mas nunca
como sujeito detentor de direitos.
Essas práticas se perpetuaram até que, em 1927, criou-se uma legislação específica
para a infância brasileira — o Código de Menores Mello Mattos.
48
Pela primeira vez,
foram criadas, em forma de lei, diretrizes para o “cuidado” com a infância
empobrecida. Entretanto, essas diretrizes eram apenas relacionadas ao
internamento das crianças, reforçando as práticas anteriores
49
(RIZZINI; PILLOTI,
1995).
48
O termo “menor” era utilizado para se referir às crianças e adolescentes pobres, abandonados ou
autores de ato infracional, e expressava claramente a idéia de “diminuído socialmente” (RIZZINI,
1997).
49
O Código de Menores Mello Mattos perdurou por sessenta anos, quando, em 1979, sofreu uma
reformulação, que introduziu na lei a Doutrina da Situação Irregular — situação essa que era
entendida como aquela em que se encontrava a criança privada das condições essenciais à sua
subsistência.
120
Com o Código, ganhava ênfase a figura do Juiz de Menores, que tinha como
atribuições julgar, administrar e buscar soluções sócio-assistenciais. Também
aparece a figura do Comissário de Menores, que era uma espécie de polícia para os
adolescentes. Eles procuravam os infratores, não para solucionar ou prevenir
infrações cometidas, mas para retirá-los do convívio social (RIZZINI; PILLOTI, 1995).
“Uma imagem de medo [por parte da “sociedade”] que se espelhava em verdadeira
caçada aos ‘comportamentos periféricos’ objeto de intimidação policial, de sanção
judiciária, de ação filantrópica” (ADORNO, 1990, p. 9).
Somente nos anos 40 o governo inaugura uma política mais nítida de atendimento à
infância pobre, criando órgãos federais responsáveis por planejar e gerir as ações
para essa parcela da população. A política para a infância passou a ser centralizada
na esfera federal de governo. Surge, nesse período, o Serviço de Atendimento ao
Menor (SAM), que passa a ser responsável pela orientação e sistematização dos
serviços assistenciais realizados nos patronatos agrícolas e nos institutos públicos.
O SAM encaminhava os menores, após uma triagem, para esses espaços de
internamento.
Conforme a lei nº 3.799, de 05 de novembro de 1941, cabia ao Serviço de
Atendimento ao Menor:
a) sistematizar e orientar os serviços de assistência a menores desvalidos e
delinqüentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares;
b) proceder à investigação social e ao exame médico-psico-pedagógico dos
menores desvalidos e delinqüentes;
c) abrigar os menores, à disposição do Juízo de Menores do Distrito Federal;
d) recolher os menores em estabelecimentos adequados, a fim de ministrar-
lhes educação, instrução e tratamento sômato-psíquico, até o seu
desligamento;
e) estudar as causas do abandono e da delinqüência infantil para a
orientação dos poderes públicos;
121
f) promover a publicação periódica dos resultados de pesquisas, estudos e
estatísticas (RIZZINI; PILLOTTI, 1995, p. 277).
As instituições oficiais e particulares que atendiam aos “menores” enviados pelo
SAM mantiveram as experiências mais condenadas na assistência a crianças e
adolescentes. A vigilância e os castigos corporais eram práticas comuns nas
instituições. A prática da vigilância determina que todos façam o que foi claramente
indicado como exigido, sob condições em que a infração de uma pessoa chega a
salientar-se diante da obediência visível dos internos com os funcionários das
instituições. A vigilância também quer dizer que os internados das instituições totais
têm todo o dia determinado, o que, para eles, equivale a dizer que todas as suas
necessidades essenciais precisam ser planejadas (GOFFMAN, 2005).
Nessas instituições, a autonomia e a individualidade dos sujeitos eram, a todo o
momento, negadas. Os padrões do vestuário, das rotinas e das atividades realizadas
reforçavam essa idéia. Já no que diz respeito às práticas de violência, era comum
uma “série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu”
(GOFFMAN, 2005, p. 24). A violência física era tamanha, que chegava a assumir
proporções de escândalo público, dada a extrema violência de surras que levavam
os internos à morte. Os maus tratos ainda se davam através da péssima qualidade
da alimentação, da superlotação, da falta de higiene, da precariedade das
instituições e da exploração sexual (RIZZINI; PILLOTI, 1995).
Desse modo, eram freqüentes as fugas dessas instituições, devido às péssimas
condições em que se encontravam. Levando em consideração essas condições, o
então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria, defendeu a fuga dos
“menores” e, ao julgar o pedido de habeas corpus de um adolescente internado no
SAM, disse: “[...] Fez ele muito bem. Fugiu a uma sucursal do inferno. Todos os
internos do SAM deveriam fazer o mesmo, pois, fora dele, sua recuperação seria
muito mais provável [...]” (RIZZINI; PILLOTTI, 1995, p. 284). Nesse cenário de
violência de todo tipo, o SAM passou a ser conhecido como “Sem Amor ao Menor”.
122
Além da violência, também foram comuns nessa instituição denúncias de corrupção,
que envolviam seus funcionários. A corrupção atingia o Serviço em todos os níveis,
desde o Ministério da Justiça até as instituições de atendimento.
Após tentativas de reformar o Serviço, o projeto de um novo órgão — o Instituto
Nacional de Assistência a Menores (INAM) — foi apresentado pelo Presidente da
República ao Congresso Nacional em 1955. O Projeto pedia a extinção da figura do
Diretor do SAM e a criação de uma diretoria e um conselho,
50
sendo este último
formado por representantes da comunidade. Quanto aos objetivos e à estruturação
do Instituto, não se diferenciava dos do SAM. Havia somente a preocupação em
delinear com clareza suas finalidades e dar-lhe maior autonomia, pois o Serviço era
subordinado ao Departamento Administrativo do Ministério da Justiça, não tendo
autonomia sobre as questões de infra-estrutura do órgão, tais como: material,
pessoal, obras, contratos, pagamentos e prestações de contas.
Após a entrega ao Congresso do Anteprojeto de Lei que transformaria o Serviço de
Assistência a Menores (SAM) em Instituto Nacional de Assistência a Menores
(INAM), foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar
irregularidades ocorridas no SAM. No entanto, essa CPI não apresentou resultado
que ameaçasse a existência do Serviço. Não obstante, seis anos depois, com a
realização de uma sindicância para novamente apurar as irregularidades no SAM, foi
proposta sua extinção, sendo para isso nomeada uma comissão para elaborar o
anteprojeto de criação da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e
as Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor (FEBEMs), anteprojeto esse
aprovado em 1
o
de dezembro de 1964 e transformado na lei n.º 4.513 (RIZZINI;
PILLOTTI, 1995).
Mudavam-se os nomes, mas as práticas e as representações continuavam as
mesmas: as crianças e adolescentes pobres ainda eram os “menores” da sociedade
e, por isso, a violência praticada contra eles era aceita por muitos segmentos
sociais.
50
Pela primeira vez na história da assistência brasileira à crianças e aos adolescentes, surge,
formalmente, a idéia de constituição de um conselho composto por representantes da comunidade
para gerir, em conjunto com o Poder Público, uma instituição pública. Entretanto, essa idéia não
vingou, na prática.
123
O sistema FUNABEM/FEBEMs tinha como meta oficial proteger a
criança/adolescente dos "desajustamentos" sociais e da marginalização, visando
integrá-la e ressocializá-la na vida em comunidade. A função da Fundação era:
Art. 5: Formular e implantar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, mediante o
estudo do problema e planejamento das soluções, a orientação, coordenação e
fiscalização das entidades que executem essa política (Lei 4.513 apud RIZZINI;
PILOTTI, 1995, p. 300).
As práticas internas da instituição reproduziam a lógica do regime militar vigente na
época: repressão, confinamento e violência. Assim, a internação mostrou-se mais
uma vez como um sistema degradante e que agravou a situação de milhares de
crianças/adolescentes brasileiros, produzindo e reproduzindo entre eles a
marginalidade. A questão da assistência à infância passou, com tantas outras
coisas, para a esfera de competência do governo militar. Este via na questão social
e, no interior desta, na questão do “menor”, um problema de segurança nacional,
julgando-o, portanto, objeto legítimo de sua intervenção e normalização. As
intervenções se apoiavam no discurso da “prevenção da marginalização do menor”
(RIZZINI; PILOTTI, 1995), reforçando, novamente, a criminalização da pobreza, tão
presente na trajetória das ações de combate a pobreza no mundo ocidental.
Com a extinção do SAM, a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor apresentou-
se como sua antítese, isto é, como uma instituição autônoma, administrativa e
economicamente, e que afastava o fantasma da burocracia e da corrupção que tinha
caracterizado o SAM.
Eram incumbências do órgão:
I – Realizar estudos, inquéritos e pesquisas para desempenho da missão
que lhe cabe, promovendo cursos, seminários e congressos, e procedendo
ao levantamento nacional do problema do menor;
II – Promover a articulação das atividades de entidades públicas e
privadas;
III – Propiciar a formação, o treinamento e o aperfeiçoamento de pessoal técnico e
auxiliar necessários a seus objetivos;
IV – Opinar, quando solicitado pelo Presidente da República, pelos
Ministros de Estado ou pelo Poder Legislativo, nos processos pertinentes à
124
concessão de auxílios ou de subvenções, pelo Governo federal, a
entidades públicas ou particulares que se dediquem ao problema do
menor;
V – Fiscalizar o cumprimento de convênios e contratos;
VI – Fiscalizar o cumprimento da política de assistência ao menor, fixada
por seu Conselho Nacional;
VII – Mobilizar a opinião pública no sentido da indispensável participação
de toda a comunidade na solução do problema do menor;
VIII – Propiciar assistência técnica aos Estados, Municípios e entidades
públicas ou privadas que solicitarem (Lei 4.513, apud RIZZINI; PILOTTI,
1995, p. 300).
A FUNABEM era o órgão central, de caráter normativo e encarregado de repassar
recursos. E, para que houvesse este repasse, era necessária a criação de
organismos locais. Desse modo, foram criadas, nos estados brasileiros, as
Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor – FEBEMs.
Entretanto, a proposta da FUNABEM, de atendimento à criança e ao adolescente
considerados menores, através de campanhas preventivas e descentralização de
suas atividades, não obteve bons resultados. Pelo contrário: era crescente o número
de internações. Diante desse quadro, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de
Inquérito, que ficou conhecida como a CPI do Menor. A CPI funcionou como um
laboratório de pesquisas e busca de soluções para os problemas relacionados ao
“menor” (RIZZINI; PILOTTI, 1995).
A CPI apresentou, em 1976, um diagnóstico revelando que havia no Brasil cerca de
25 milhões de “menores” carentes e/ou abandonados, ou seja, 1/3 da população
infanto-juvenil. As crescentes urbanização e migração e, conseqüentemente, o
incremento populacional contribuíram para o aparecimento, ao redor das cidades,
dos “cinturões de pobreza”. Diante desse quadro, cabia ao órgão competente —
neste caso, a FUNABEM — a implementação do Plano Nacional de Bem-Estar do
Menor. No entanto, até aquele momento, a Fundação não apresentava condições
para solucionar essa questão, que encontrava as suas raízes na péssima
distribuição da riqueza produzida socialmente. O relatório ainda constatou que as
FEBEMs também não dispunham de recursos suficientes para enfrentar a questão, o
que confirma o caráter de descaso que foi dado às políticas sociais brasileiras
(RIZZINI; PILOTTI,1995).
125
Ao final da CPI, foi apresentada ao Presidente da República a recomendação para a
criação do Sistema de Proteção do Menor, implicando na criação de um Ministério
Extraordinário coordenando os demais órgãos envolvidos, e que teria apoio
financeiro de um Fundo Nacional de Proteção do Menor, com autonomia
administrativa e financeira e cuja função seria mobilizar a comunidade em relação ao
assunto. Estimulava-se, assim, uma ação integrada entre governo-empresa-
comunidade no sentido de promover “o recolhimento dos menores abandonados que
perambulam pelas ruas das nossas principais cidades — principalmente nas regiões
metropolitanas, densas de marginalização social” (RIZZINI; PILOTTI, 1995, p. 315).
No entanto, esse projeto não foi concretizado. A FUNABEM permaneceu no
atendimento à “questão do menor” e, após reforma ocorrida em 1974, a Fundação
passou a ser subordinada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS).
Dessa forma, podemos pontuar algumas características que marcaram a história das
políticas sociais brasileiras relativas à infância e à adolescência, em que
predominava como produção simbólica a respeito dos indivíduos dessas faixas
etárias a concepção segundo a qual se tratava de delinqüentes e abandonados.
Destaca-se a criminalização da pobreza — a criança pobre era tida como um futuro
marginal em potencial e, por isso, era preciso reprimi-la e corrigi-la pela violência. As
práticas de internação eram priorizadas e a força de trabalho era tida como único
bem que a criança pobre possuía. Logo, nessas instituições, crianças e
adolescentes eram submetidos ao trabalho forçado. As ações foram, historicamente,
marcadas pela ênfase na esfera privada e no recuo das funções públicas do Estado.
Quando este passa a ter um papel mais marcante nessa área, reforça as ações
compensatórias e não-preventivas, centralizando a formulação das políticas na
esfera federal de governo. O assistencialismo evidenciava a clara segmentação da
população e a não-cidadania das crianças pobres.
Essa situação começa a mudar somente com o processo de derrocada do regime
militar, quando, paulatinamente, a infância e adolescência passaram a fazer parte da
agenda da luta por direitos na sociedade brasileira.
126
O processo de redemocratização da sociedade brasileira levou à instalação da
Assembléia Nacional Constituinte e à possibilidade de se estabelecer uma outra
ordem social, em novas bases, o que fez com que esses movimentos se articulassem
para tentar inscrever na Carta Constitucional direitos sociais que pudessem ser
traduzidos em deveres do Estado, através de políticas públicas (CUNHA; CUNHA,
2002, p. 13).
Como vimos, a promulgação da Constituição Federal de 1988, também conhecida
como Constituição Cidadã, foi fruto de um contexto de lutas, reivindicações e
mobilizações de diversos segmentos da sociedade, e marcou um novo
direcionamento político e social em nosso país, de tal modo que as demandas
populares passaram a ter a possibilidade de se manifestar no interior do Estado.
Este período foi marcado pela implementação da Carta Constitucional que
normatizou os direitos e deveres da sociedade brasileira. A Constituição de 1988
trouxe vários avanços, pois incluiu a defesa dos direitos das mulheres, índios,
negros, crianças e adolescentes, entre outros.
No âmbito da criança e do adolescente, a Constituição, em seu artigo 227,
normatizou preceitos que possibilitaram a regulamentação do Estatuto da Criança e
do Adolescente.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL,
1988).
É correto afirmar que, já no início da década de 80, várias mudanças ocorreram nas
formas de pensar e atender à infância e à adolescência, o que envolveu movimentos
sociais, fóruns, etc. Segundo Doimo (1997, p. 140),
[...] quanto aos direitos civis, destaca-se o Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua (MNMMR) que, já em seu primeiro encontro, em 1986, congregou
127
500 meninos de rua de todo país para analisar a conjuntura e declarar as suas
necessidades e expectativas, preparando terreno para a elaboração do Estatuto da
Criança e do Adolescente, a fim de codificar os direitos dos menores [sic] e definir
as responsabilidades dos adultos e do Estado.
Também data da década de 80 a criação do Fórum Nacional Permanente de
Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
— Fórum/DCA.
Destacam-se como objetivos desse Fórum:
a) Conquistar para a criança e o adolescente o lugar que de direito lhe cabe na
consciência e sensibilidade dos homens e mulheres do nosso tempo.
b) Contribuir para as transformações das determinações econômicas, dos
condicionamentos políticos, sociais, jurídicos e culturais, responsáveis pela atual
situação da infância e da adolescência no Brasil.
51
Outras ações aconteceram no Brasil, seguindo o desejo de mudança na realidade
vivenciada pelas crianças e adolescentes. Tivemos os movimentos “Criança e
Constituinte”, promovido pelo Ministério da Educação, e a campanha “Criança:
Prioridade Nacional”, que recolheu aproximadamente 250 mil assinaturas de apoio à
inclusão de um artigo na Constituição Federal de 1988 que tratasse dos direitos das
crianças e adolescente em todo o País. No contexto internacional, destacaram-se,
no mesmo período, o Ano Internacional da Criança (1979) e a Convenção dos
Direitos das Crianças (1989), marcos importantes para as inovações nos direitos
desse segmento.
Assim, a Convenção dos Direitos das Crianças direcionou a elaboração do Estatuto
da Criança e do Adolescente, que teve como atores envolvidos: entidades da
sociedade civil articuladas no Fórum DCA, dirigentes e técnicos governamentais
através do FONACRIAD (Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas
Públicas para a Criança e o Adolescente) e a Frente Parlamentar pelos Direitos da
Criança.
51
Carta de princípios do DCA. In: Relatório das Principais Atividades Desempenhadas (1988–
1989). Mimeo.
128
Promulgado em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº
8.069, revoga o antigo Código de Menores — que era centrado na repressão e
discriminação da infância pobre — e traz inovações, na medida em que introduz a
Doutrina da Proteção Integral.
Esta doutrina afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade
de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor
prospectivo da infância e da juventude, como portadoras da continuidade do seu
povo, da sua família e da espécie humana e o
reconhecimento de sua
vulnerabilidade, o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção
integral por parte da família, da sociedade e
do Estado, o qual deverá atuar através
de políticas específicas para o atendimento, a
promoção e a defesa de seus direitos
(COSTA, 1993, p. 21).
Dessa maneira, o Estatuto mudará a concepção de criança e adolescente que até
então permeava sua intervenção nesse campo. A concepção histórica de “menor”
abandonado e delinqüente é questionada e ele passa a ser considerado sujeito de
direitos — visto que vive em um Estado Democrático de Direitos —, em condição
peculiar de desenvolvimento —,
52
já que ainda está em processo de
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social —, além de passar a ser
encarado como tendo prioridade absoluta.
53
Ao revogar o velho paradigma representado pelo Código de Menores, o Estatuto
oferece condições legais para que aconteça uma verdadeira mudança, tanto na
formulação das políticas sociais para a infância e a juventude como na estrutura de
funcionamento dos organismos que atuam nesse campo. De fato, o avanço na
52
Isto significa que, além de todos os direitos de que desfrutam os adultos e que sejam aplicáveis à
sua idade, as crianças e adolescentes têm ainda direitos especiais decorrentes do fato de que: ainda
não têm acesso ao conhecimento pleno de seus direitos; ainda não atingiram condições de defender
seus direitos frente às omissões e transgressões capazes de violá-los; não contam com meios
próprios para arcar com a satisfação de suas necessidades básicas e, por se tratar de seres em pleno
desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e sociocultural, a criança e o adolescente não podem
responder pelo cumprimento das leis e demais deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma
maneira que os adultos (COSTA, 1993).
53
A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c)
preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de
recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção à infância e à juventude (BRASIL, 1990).
129
legislação direcionará uma nova forma de relação entre o Estado e os usuários das
políticas sociais. Com a implantação da nova lei, o padrão de relacionamento
deixará de ser vertical, centralizado, manipulador, clientelista e sonegador da
criatividade e da iniciativa dos destinatários — padrão que, historicamente, sempre
marcou no Brasil a relação entre as classes populares e o ramo social do Estado.
Assim, o Estatuto também introduzirá algumas mudanças no conteúdo, no método e
na gestão das ações destinadas à criança e ao adolescente.
No âmbito do conteúdo, as mudanças referem-se ao acréscimo de novos direitos
para a infância e a juventude e envolve tanto os direitos individuais (vida, liberdade e
dignidade) quanto os coletivos (econômicos, sociais e culturais).
A introdução da Doutrina de Proteção Integral implicará em enormes mudanças na
essência da formulação das políticas sociais, que passam a abranger: as políticas
sociais básicas, como educação, saúde, habitação, lazer, profissionalização e
outras, consideradas direito de todos e dever do Estado; as políticas de assistência
social, voltadas para o atendimento compensatório a todos que dela necessitem; as
políticas de proteção especial, que envolvem as crianças e adolescentes em
situação de risco pessoal e social; e as políticas de garantias, que atendem às
crianças e adolescentes envolvidos em conflitos de natureza jurídica. O conjunto
articulado dessas ações configura o que denominamos de Sistema de Garantias de
Direitos. “Como se vê, os destinatários da nova legislação não são mais apenas ‘os
menores em situação irregular’, mas todas as crianças e adolescentes do Brasil,
para os quais o Estatuto tem o valor e sentido de uma verdadeira Constituição da
Infância e da Juventude” (COSTA, 1993, p. 39).
Mudanças de tal amplitude no conteúdo da concepção de criança e adolescente e
das políticas sociais correspondentes também vão exigir uma nova visão de
métodos, técnicas e organização dos programas de atendimento a essa parcela da
população. A mudança de método, segundo Costa (1993, p. 21), “aponta na direção
130
da superação do assistencialismo como princípio definidor das relações entre os
pobres e o ramo social do Estado, ou seja, as políticas e programas governamentais
voltados para o atendimento de suas necessidades”.
Entende-se que todo trabalho social destinado a essa população deve estar
baseado na noção de cidadania e emancipação. Isso significa que a criança e o
adolescente não poderão mais ser tratados como objetos passivos da intervenção
da família, da sociedade e do Estado. As ações devem ter caráter emancipatório,
capaz de transformar as crianças e adolescentes em sujeitos históricos capazes de
manejarem seu próprio destino, respeitando suas potencialidades e limitações em
cada fase do seu desenvolvimento pessoal e social.
Quanto às mudanças no campo da gestão, o ECA está em consonância com a
Constituição Federal de 1988, na medida em que estabelece dois princípios básicos
para a política de atendimento à infância e à adolescência: a descentralização
político-administrativa e a participação da população por meio de suas organizações
representativas. Para Sposati (1995, p. 93) “a atenção à criança e ao adolescente a
partir do Estatuto da Criança e do Adolescente passa a exigir uma nova forma de
gestão que construa a proteção integral e o direito geracional da criança e do
adolescente”.
Dessa maneira, o Estatuto apresenta uma nova relação do trabalho social entre
União, estados e municípios, estes últimos passando a ter maior autonomia para
implementar e executar suas políticas. Assim, cabem “a coordenação e as normas
gerais à esfera federal, a coordenação e a execução às esferas estadual e
municipal, bem com às entidades beneficentes e de assistência social” (BRASIL,
1988).
No que se refere à participação da população na formulação e fiscalização das
políticas sociais, tanto a Constituição quanto o Estatuto abrem espaço para a criação
dos conselhos gestores de políticas públicas, o que, no caso da criança e do
131
adolescente, corresponde aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente.
“Agora, pela Constituição e o Estatuto, a cidadania organizada está convocada a
participar em instâncias até aqui privativas dos homens públicos, dos dirigentes de
políticas, dos chamados homens de Estado, como a formulação das políticas e o
controle das ações em todos os níveis” (COSTA, 1993, p. 41).
132
CAPÍTULO 5
NO CENTRO DAS DECISÕES: O CONSELHO DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE DE VITÓRIA
“Todos os homens do mundo na medida em que se unem entre si em sociedade,
trabalham, lutam e melhoram a si mesmos” (GRAMSCI).
5.1 – O CONSELHO E A REALIDADE DO MUNICÍPIO DE VITÓRIA
133
Historicamente a decisão das ações no campo da criança e do adolescente esteve
restrita às elites ou a tecnocratas, que, distantes da realidade da maioria da
população, não conseguiram formular uma política de direitos universais para a
criança. Tampouco era essa a preocupação existente. Como foi apresentado, até os
anos 80 as práticas pretendiam conter os “menores”, isolando-os, segregando-os e
disciplinando-os para o trabalho subalterno.
As ações assistenciais voltadas para esse segmento não se pautaram, efetivamente,
pelos princípios de justiça e cidadania e menos ainda foram formuladas a partir da
partilha de poder com os atores que atuavam na área da criança e do adolescente.
Será com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente que esse
processo ganhará novos contornos e conteúdos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado para regulamentar as conquistas
em favor da infância e da juventude, obtidas na Carta Constitucional [...]. Ele é a
concretização dos direitos inscritos na Constituição Federal de 1988 no artigo 227
que elenca os direitos fundamentais de defesa da infância e da juventude (COSTA,
1993, p. 20).
Conforme descrito anteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que se
refere à mudança de gestão das políticas de atendimento a essa população, prevê a
participação popular na formulação e no controle social
54
das políticas para as
crianças e adolescentes. Dentro desse marco conceitual e legal da política social,
inicia-se o reordenamento institucional na perspectiva de mudanças, sobretudo com
a implantação dos Conselhos Tutelares
55
e dos Conselhos de Direitos da Criança e
do Adolescente.
54
A expressão “controle social” é empregada aqui para indicar a participação da população na
elaboração e fiscalização de políticas públicas.
55
O Conselho Tutelar se constitui em um dos mais importantes institutos para a política de
atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, na medida em que é “um órgão colegiado,
composto por cinco pessoas da coletividade, escolhidas de conformidade com a lei de cada
município, e que possui como atribuições, entre outras, o atendimento às crianças e adolescentes
cujos direitos tenham sido ameaçados ou violados; à criança a quem tenha sido atribuída a prática de
134
Os conselhos devem ser criados por lei federal, estadual e municipal, conforme
preconiza o artigo 88 do Estatuto. Assim, existem o Conselho Nacional de Direitos
da Criança e do Adolescente (CONANDA – Lei nº 8.242/91), os Conselhos
Estaduais e, no plano municipal, os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e
do Adolescente.
A União determina como condição necessária para o repasse de verbas para os
municípios a existência dos conselhos. Convém destacar que essa determinação
federal pode contribuir para que o conselho seja um mero instrumento para a
concentração de recursos no município, não viabilizando valores democráticos nem
a participação dos cidadãos, visto que o gestor pode criar o conselho em lei, sem
que exista o seu real funcionamento.
Todavia, essa não foi a experiência do município de Vitória, no Espírito Santo. Nesse
caso, podemos dizer que a demanda da população pela participação fez com que o
Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória (CONCAV) fosse criado
não apenas na letra da lei, mas também como possibilidade de efetivação de uma
gestão democrática, em que a sociedade civil pudesse se firmar como um ator
realmente participante da elaboração das políticas municipais voltadas para as
crianças e adolescentes.
Desde o período de abertura democrática brasileira, já havia, no Espírito Santo, uma
Comissão Pré-Constituinte formada por técnicos, membros de instituições religiosas,
movimentos sociais, funcionários públicos etc., que tinha como objetivo discutir e
articular forças e idéias que promovessem a inclusão, na Constituição Federal de
1988, de um artigo relativo à criança e ao adolescente.
Também já existia, no âmbito municipal, um fórum de entidades que debatia as
questões direcionadas a modificar a concepção discriminatória e o atendimento
ato infracional, e o atendimento aos pais ou responsáveis por crianças e adolescentes em risco
pessoal e social – arts. 136 e 101, I a VI, ECA” (PONTES, 1993, p. 26).
135
repressivo destinado à infância e adolescência pobre no País. Esse mesmo fórum,
depois de que o artigo 227 foi consagrado na Constituição, passou a discutir e
propor ações e direitos que contribuíram para regulamentar o que veio a ser o
Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse momento, o fórum já discutia as
formas que o Conselho de Direitos deveria assumir e quem poderia atuar nesse
espaço, futuramente.
Destacam-se, no processo de formação do conselho de Vitória, intensas mobilização
e participação da sociedade civil organizada, representada por associações de
moradores, pastorais da Igreja Católica, conselhos profissionais, movimentos de
defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Toda essa mobilização, aliada ao fato de que a criação do conselho passou a ser
condição legal para o repasse de recursos do governo federal para o município,
criou uma pressão que contribuiu para a implantação do Conselho no município de
Vitória. Com isso, o Estado, através do governo federal, também contribuiu para que
o CONCAV fosse criado. Outro fator que contribuiu para tanto foi a direção do
executivo municipal, de cunho esquerdista e democrático, naquele período.
56
Observa-se, no caso do município de Vitória, que a criação de espaços de
participação está intimamente relacionada aos processos de reivindicação e luta
pela conquista da hegemonia gestados no âmago da sociedade civil, que
conseguiram se firmar durante o período de abertura democrática. A análise de
instituições como os Conselhos encontra-se, então, “situada no interior da
contradição social e é permeada, interna e externamente, pelos processos de luta de
diferentes segmentos da sociedade civil pela hegemonia das ações no âmbito dessa
política social” (MARTINS, 2004, p. 193-194).
Foi em 1991, com a Lei Municipal 3.751/ 91 — alterada pela Lei 4.174/ 95 —, que se
autorizou o funcionamento do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
56
No momento em que se apresenta a lei de criação do Conselho Municipal, estava à frente do poder
executivo o prefeito Vitor Buaiz, então filiado ao Partido dos Trabalhadores.
136
Adolescente e a criação do Fundo para a Infância e a Adolescência. Em 1992, o
CONCAV começou a funcionar sob a forma de um conselho provisório, que teve
como principal função fortalecer, adequar conforme diretrizes do ECA e articular as
entidades que atuavam na área da criança e do adolescente no município. Apenas
em 1993 o Conselho realizou as suas primeiras eleições e iniciou, de fato, o seu
funcionamento, discutindo planos de ação e apresentando propostas para o Poder
Executivo Municipal.
Considerando as características históricas da política de atenção à criança e ao
adolescente, o fato de o Estatuto ter sido promulgado em 1990 e que a lei de criação
do conselho municipal data de 1991, tem-se a indicação de um avanço rápido no
processo de organização do sistema descentralizado e participativo, visto que o
Conselho passa a funcionar efetivamente em 1993.
Fica criado o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de
Vitória (”CONCAV”), órgão deliberativo, formulador da Política de Atendimento e
controlador das ações, em todos os níveis, vinculado administrativamente à
Secretaria Municipal de Ação Social, observada a composição paritária dos seus
membros, nos termos do art. 88, inc. II, da Lei Federal nº 8.069/ 90 (VITÓRIA,
1991).
Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente caracterizam-se como
órgãos públicos, paritários e deliberativos, que devem formular a política de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente e fiscalizar o desempenho das
instituições governamentais e não-governamentais que compõem a rede de serviços
e atenção à infância e à adolescência.
Constata-se, assim, que o Conselho de Direitos assume dupla finalidade: 1) a
elaboração das políticas que assegurem o atendimento dos direitos da criança e do
adolescente e 2) o controle da execução dessas políticas.
A primeira finalidade, na prática, implica dizer que todo projeto de governo que
vise — exclusivamente ou não — o atendimento dos direitos da criança e/ou
adolescente deve contar com a aprovação prévia do Conselho de Direitos para a sua
execução, sob pena desta [sic] ser sustada pela justiça por ocorrer
137
inconstitucionalidade formal. [...] Quanto à segunda finalidade que é o controle na
execução das políticas públicas que atendam os direitos infanto-juvenis, sua
existência é devida ao fato de não ser o Conselho de Direitos o órgão executor de
seus projetos, [a ele cabe] controlar as políticas que elaborou (PONTES, 1993, p.
20 - 22).
Para tanto, o CONCAV tem a sua estrutura organizacional constituída por uma
diretoria, composta por presidente, vice-presidente e secretário geral. Os integrantes
dessa estrutura mudam a cada dois anos, quando se dá a eleição para escolher os
novos representantes da sociedade civil. Ressalte-se que, durante uma gestão (dois
anos), o presidente é vinculado ao poder público e o vice-presidente é oriundo da
sociedade civil, sendo que, na gestão seguinte, essa estrutura se inverte.
O Conselho, de doze membros, é composto de forma paritária, sendo seis deles
ligados ao Poder Executivo Municipal e seis vinculados a entidades de atendimento
à criança e ao adolescente que estejam atuando no município há pelo menos dois
anos, além de devidamente registradas no Conselho.
Sendo o município a esfera privilegiada de atendimento às crianças e adolescentes
no Brasil, ele possui autonomia para definir como o Conselho será composto. Não
obstante, é necessário que se preservem, em quaisquer condições, os critérios de
representatividade institucional, isonomia e paridade (MARTINS, 2004). Dessa
forma, o CONCAV poderá ser composto por membros que se enquadrem nos
critérios do texto da lei.
Os membros representantes do Poder Público Municipal serão o titular e o seu
respectivo suplente dos órgãos públicos responsáveis pelas ações de Educação,
Saúde, Ação Social, Planejamento, Cultura, Esporte e Meio Ambiente. Os 6 (seis)
membros e seus respectivos suplentes, representantes das Entidades comunitárias
de defesa, atendimento, estudos e pesquisas dos Direitos da Criança e Adolescente,
serão eleitos em Assembléia Geral das Entidades, realizada a cada 2 (dois) anos e
convocada oficialmente pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente, da qual participarão, com direito a voto, delegados,
um de cada uma
das Entidades Comunitárias, regularmente inscritas no Conselho de que trata este
artigo, garantida a representação de Associações de Adolescentes, com capacidade
civil relativa, legalmente constituída (Art. 5º, Inc. I, II, Lei Municipal nº3.571/ 91).
138
O CONCAV possui uma Secretaria Executiva, para assessorar e coordenar suas
atividades. O Conselho se organiza internamente da seguinte forma: plenário
(reunião conjunta de todos os conselheiros), diretoria e Secretaria Executiva.
A confirmação e a expansão da idéia de que as políticas sociais básicas são
fundamentais para assegurar a proteção integral levam os Conselhos de Direitos a
assumirem a tarefa de operar uma nova linha de ação, com vistas a articular um
sistema de garantias de direitos, envolvendo todas as instâncias legais instituídas
para enfrentar as sistemáticas violações sofridas por crianças e adolescentes.
Na tentativa de consolidação do novo paradigma estabelecido pelo Estatuto, os
Conselhos se apresentam como um mecanismo importante para assegurar os
direitos fundamentais das crianças e adolescentes. O Conselho assume a tarefa
regente para que o direito reconhecido em lei deixe de ser
uma doutrina e uma
questão teórica, para se legitimar na sociedade por meio de seus mecanismos de
elegibilidade, fortalecidos pelos Conselhos Tutelares, pelos Fundos da Criança e do
Adolescente, pelos órgãos operadores da justiça e por fóruns da sociedade civil que
integram o Sistema de Garantias. Tem como objetivo implementar a política de
atenção a essa população enquanto ação integrada, uma vez que as políticas
correspondentes necessitam de se articular às demais políticas setoriais para
contemplar a normativa da proteção integral.
O Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente tem uma tarefa intersetorial.
Ele não elabora a política de Assistência Social para a infância, mas é responsável
pela política de proteção integral da infância que tem um corte intersetorial e
atravessa todas as áreas da política (VOLPI, 2000, p. 33).
Para tanto, o Conselho de Direitos possui algumas competências que Pontes (1993,
p. 29) classifica como: competências conscientizadoras, modificadoras e
administrativas.
Dentre as competências conscientizadoras, é de responsabilidade dos conselhos
promover a divulgação dos direitos e garantias da criança e do adolescente,
139
promover a articulação entre os órgãos governamentais e as instituições da
sociedade civil que atuam na questão da criança e do adolescente, acompanhar os
casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes, visitar delegacias de
polícia, hospitais, entidades de internação, centros de triagem, unidades de
acolhimento e demais estabelecimentos, públicos ou não, onde possa ser
encontrada criança ou adolescente (PONTES, 1993).
No que se refere às competências modificadoras, cabe aos Conselhos estabelecer
as normas para o registro das entidades de atendimento, governamentais ou não,
que planejam e executam programas de proteção e socioeducativos destinados a
crianças e adolescentes, mantendo o registro das inscrições e suas alterações e
comunicando-as ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária, além de promover o
reordenamento institucional dos órgãos do Poder Público de atendimento dos
direitos infanto-juvenis, opinar sobre a proposta que define o percentual de dotação
orçamentária às políticas públicas, gerir o Fundo para a Infância e a Adolescência e
elaborar proposta de alteração na legislação em vigor para o atendimento dos
direitos de crianças e adolescentes (PONTES, 1993).
Também é atribuição dos Conselhos presidir o processo de escolha dos membros
do Conselho Tutelar e elaborar seu próprio regimento interno, que deve conter, entre
outras coisas, as atribuições dos conselheiros e a forma de deliberação das
reuniões. Essas são as competências administrativas dos Conselhos (PONTES,
1993).
Para cumprir todas as suas funções, vincula-se ao Conselho de Direitos o Fundo
para a Infância e Adolescência (FIA), cujos recursos somente podem ser destinados
de acordo com os critérios estabelecidos pelo Conselho.
Fundos são ”produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam a realização de
determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”
(art. 71 da Lei Federal nº 4.320/ 64). Ou seja, Fundos são parcelas de recursos financeiros
140
reservados para determinados fins especificados em lei, os quais devem ser alcançados
através de planos de aplicação elaborados pelo respectivo gestor, sujeito obrigatoriamente
ao controle interno e do Tribunal de Contas (TÓLIO, 1992, p. 5).
Dessa forma, o FIA é um fundo especial destinado a ações na área da criança e do
adolescente. A base legal do FIA está nos artigos 88, 154, 214 e 260 do Estatuto da
Criança e do Adolescente. No caso de Vitória, o fundo foi criado pela Lei Municipal
nº 3.751/ 91, alterada pela Lei Municipal nº 4.174/ 95.
O FIA é um fundo específico, para ser necessariamente aplicado no âmbito da
política de atendimento aos direitos, uma vez que não se destina à cobertura das
políticas sociais básicas e nem das políticas de assistência social. Estas deverão ser
asseguradas por verbas orçamentárias próprias, aplicadas de acordo com o
parágrafo único do artigo 4º do Estatuto, que garante à criança e ao adolescente a
destinação privilegiada de recursos públicos.
Em Vitória, o CONCAV é que gerencia o FIA. É o Conselho que delibera como
aqueles recursos serão gastos. Contudo, o Fundo está vinculado ao Tesouro do
Município, bem como ligado administrativa e burocraticamente à Secretaria de Ação
Social, que autoriza a liberação de recursos para ações na área da criança e do
adolescente mediante deliberação do Conselho. Dessa forma, o que se observa é
que o Conselho possui autonomia política para gerir o Fundo, mas a gerência
administrativa fica a cargo da prefeitura.
Os recursos do fundo são provenientes de fontes diversas. O orçamento municipal
pode ser uma delas, e se soma a outros recursos vindos de doações (pessoa física:
6% do imposto devido – lei 9.532/ 97; pessoa jurídica: 1% do imposto devido –
decreto 794/ 93, lei 9.532/ 97). Outra fonte de recurso advém de multas e
penalidades determinadas pelo Juiz da Vara da Infância e da Juventude de acordo
com o que é previsto nos artigos 228 e 258 do Estatuto. Também são fontes de
141
recursos os convênios, as doações de governos e organismos nacionais e
internacionais, doações de bens, receitas de aplicação no mercado financeiro etc.
O essencial para o bom funcionamento do fundo é que o conselho de
direitos possa, a partir de uma profunda análise da situação de crianças e
adolescentes de sua área de abrangência, estabelecer prioridades, formas
de obtenção de recursos etc. A partir daí o conselho deve fixar os critérios
de utilização desses recursos (PONTES, 1993, p. 41).
O diagnóstico das condições de vida das crianças de determinada localidade é um
instrumento de fundamental importância para o funcionamento do Conselho, pois é a
partir dele que se estabelecerão prioridades de políticas sociais destinadas à
infância do município.
Todavia, até o ano de 2004 a elaboração do diagnóstico do município e do seu plano
de ação ainda não era algo muito claro para os conselheiros, visto que estes
apresentaram respostas complemente diversas quando questionados sobre a
elaboração do diagnóstico e do Plano Municipal (MELIM, 2004). Um instrumento
utilizado pelo CONCAV para ampliar a discussão desses dois elementos tem sido a
realização das Conferências Municipais de Direitos das Crianças e Adolescentes. As
conferências permitem a participação da população, e não apenas das instituições
que têm assento no Conselho, na discussão e deliberação das prioridades para a
área. Bravo (2002) indica que as deliberações das conferências devem ser
entendidas enquanto norteadoras da implantação das políticas e, assim, podem
influenciar diretamente os debates travados nos conselhos.
Desse modo, a sociedade, atuando nos conselhos, começa a desenhar uma nova
forma de relação com o Estado, no sentido de que, potencialmente, democratiza os
processos decisórios, publiciza as decisões e promove a transparência das fontes e
aplicações dos recursos, visto que o gerenciamento do Fundo é realizado de forma
partilhada entre Poder Público e sociedade civil.
Cabe questionar, agora, como vêm se configurando historicamente a participação e
a construção do processo democrático no interior do CONCAV, para verificarmos se,
142
nesse caso, a institucionalização de espaços considerados democráticos viabiliza,
de fato, a participação real dos cidadãos. Também veremos quais fatores
influenciaram, ao longo da história do Conselho, a participação dos conselheiros.
5. 2 – MAIS DO QUE UMA MERA DESCRIÇÃO DA REALIDADE DO CONCAV
O que nos apontam as análises das entrevistas realizadas para a construção deste trabalho?
Como seus autores representam os diversos aspectos que envolvem o “ser conselheiro?”
Quais sentidos deram ao Conselho de que participavam? Como percebiam as crianças e
adolescentes para quem deveriam formular políticas sociais?
Logo a seguir, buscaremos dar conta dessas e de outras questões que se revelaram ao longo
da pesquisa de dados primários, expondo, de maneira pormenorizada, os resultados de nossa
análise dos dados obtidos através de entrevistas realizadas com 16 conselheiros que
participaram do CONCAV nas gestões estudadas neste trabalho. No entanto, antes disso, é
necessário apresentar ao leitor algumas informações sobre a composição do Conselho e sobre
como nele se dá a representação.
5. 2. 1 - COMPOSIÇÃO E REPRESENTAÇÃO DOS CONSELHEIROS NO CONCAV
Conforme mencionado, para uma entidade ter assento — com poder de voto — no CONCAV,
ela precisa estar registrada no Conselho como entidade voltada à defesa, ao atendimento ou a
estudos e pesquisas relativos aos direitos da criança e do adolescente, além de ser eleita por
uma assembléia de entidades também registradas.
57
57
No que refere às secretarias representantes do Poder Público, estas são definidas de acordo com a
Lei que cria o Conselho. Durante as gestões estudas neste trabalho, participaram do CONCAV as
seguintes secretarias do executivo municipal: Secretaria Municipal de Ação Social (SEMAS),
143
Dessa forma, as entidades que tiveram assento no CONCAV durante as gestões analisadas
neste trabalho se apresentam no quadro abaixo:
QUADRO 2
ENTIDADES QUE PARTICIPARAM DO CONCAV
GESTÃO ENTIDADES
1993 – 1995
Conselho Popular de Vitória (CPV),
MNMMR, Pastoral do Menor, Federação
Espírita do Espírito Santo (FEES), Paróquia
Santo Antônio, Obra Social Nossa Senhora
das Graças.
1995 – 1997
MNMMR, Pastoral do Menor, Casa do
Garoto Capixaba, CPV, FEES, Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
2002 – 2004 Ação Comunitária do Espírito Santo (ACES),
APAE, Pastoral do Menor, Casa de
Acolhimento à Criança e ao Adolescente
(CAOCA), Centro Salesiano do Menor
(CESAM), MNMMR.
Fonte: Documentos do CONCAV
No que se refere aos anos de fundação de tais entidades, a investigação mostra que 46% das
instituições da sociedade civil foram criadas na década de 80, momento de redemocratização
do País, em que se abria a possibilidade de universalização dos direitos sociais, de ampliação
do conceito de cidadania e de interferência da sociedade no aparelho estatal. Esse período
também marcou contestações mais evidentes à concepção até então dominante de criança e
adolescente, considerados “menores”, e à forma pela qual eram atendidos. Aquelas entidades
assumiram, na década de 80, um papel central no Espírito Santo, denunciando a violência
Secretaria Municipal de Educação (SEME), Secretaria Municipal de Saúde (SEMUS), Secretaria
Municipal de Planejamento (SEPLAN), Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMAM),
Secretaria Municipal de Cultura (SEMEC), Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo
(SEMCET), Secretaria Municipal de Esportes (SEMESP), Secretaria Municipal de Cidadania
(SEMCID).
144
sofrida por crianças e adolescentes e pressionando o poder público para que fossem
viabilizadas políticas sociais que promovessem a cidadania dessa população e garantidos seus
direitos. Sem contar que toda essa movimentação da sociedade civil também favoreceu a
criação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse contexto, é notório que as entidades
criadas na década de 80 se apresentam enquanto entidades de defesa de direitos, como o
MNMMR, o CPV, a Pastoral do Menor. Algumas dessas entidades, com mais de vinte anos
de atuação no município de Vitória (FEES, CPV, MNMMR, Pastoral do Menor, Paróquia
Santo Antônio, Obra Social Nossa Senhora das Graças e APAE), foram essenciais para a
incorporação do artigo 227 na Constituição Federal de 1988 e para a criação e a promulgação
do Estatuto da Criança e do Adolescente, na medida em que já desenvolviam ações de defesa
de crianças e adolescentes ou já lhes prestavam atendimento diretamente. A participação
histórica dessas entidades é de fundamental importância para o desenvolvimento da política
municipal de atenção àquela faixa etária da população, visto que, em suas trajetórias,
podemos observar seu comprometimento com os interesses coletivos e democráticos.
GRÁFICO 1
PERÍODO DE FUNDAÇÃO DAS ENTIDADES
QUE PARTICIPARAM DO CONCAV
9%
0%0%0%
18%
0%
46%
27%
1921 - 1930
1931 - 1940
1941 - 1950
1951 - 1960
1961 - 1970
1971 - 1980
1981 - 1990
1991 - 2000
Fonte: Vitória, 2001.
Com um percentual de 27% encontram-se as entidades criadas na década de 1990, cujo perfil
se enquadra na prestação de serviços sócio-assistenciais, ou seja, que atendem diretamente a
um público-alvo específico de crianças e adolescentes: CESAM, CAOCA e ACES. Foram
criadas num contexto de ofensiva neoliberal, em que o Estado brasileiro se retrai ainda mais
no trato das expressões da questão social, transferindo para a sociedade civil aquilo que seria
de responsabilidade estatal nessa área.
145
A pesquisa também revela que outras entidades criadas antes da década de 1990, como
APAE, Obra Social Nossa Senhora das Graças, Casa do Garoto Capixaba (extinta), Paróquia
Santo Antônio e FEES possuem uma atuação histórica no município, realizando ações onde o
poder público esteve ausente. Essa constatação reafirma que a presença das iniciativas da
sociedade civil no âmbito da execução das políticas sociais no Brasil não é algo recente,
próprio da década de 1990.
Todavia, será nessa década que essa intervenção ganhará o seu traço mais perverso, pois, na
medida em que o Estado transfere para a sociedade civil funções que até então eram suas,
pode acabar comprometendo a atuação dela nos conselhos. As “parcerias” firmadas entre o
poder público e algumas entidades prestadoras de serviços
58
são realizadas, basicamente,
através de convênios mediante os quais são repassados recursos para o pagamento de pessoal,
compra de equipamentos, material, espaço físico, entre outros. Recebendo recursos públicos,
o representante da entidade pode sentir-se pressionado a se colocar numa posição meramente
consensual, aceitando a direção dada pelo grupo hegemônico no Conselho, mesmo que essa
postura venha a ferir os princípios mais coletivos e democráticos que, em tese são defendidos
pela entidade.
59
Entretanto, essa fragilidade da participação da sociedade civil não se limita apenas às
entidades criadas nos anos 1990. As demais também são afetadas pela relação conservadora
do Estado com a sociedade, que é reconfigurada a partir da década de 1990. Isso porque o
Conselho é um espaço em que se manifestam as relações sociais e, portanto, todas as
entidades estão inseridas nesse contexto contraditório e no qual se dá uma específica
correlação de forças.
Outro aspecto a destacar é que 58% das entidades que participaram do CONCAV
têm extração religiosa, diretamente, ou são financiadas por Igrejas. Muito embora a
Igreja Católica seja hegemônica (Pastoral do Menor, Paróquia Santo Antônio, Obra
58
Na gestão 2002-2004 do CONCAV, cinco das seis entidades da sociedade civil possuíam algum
tipo de “parceria” com a Prefeitura Municipal (MELIM, 2004).
59
Voltaremos a essa questão mais adiante.
146
Social Nossa Senhora das Graças, Casa do Garoto Capixaba, CESAM e CAOCA),
também devemos ressaltar a presença da Federação Espírita do Espírito Santo no
Conselho, durante as gestões analisadas. Esse fato também aponta para a
continuidade da atuação da Igreja na área social, a qual, como vimos, data da
chegada dos jesuítas ao Brasil, passando pela criação das Santas Casas e
instituições de atendimento para a criança e o adolescente. “A presença da Igreja
assegurou uma continuidade histórica quanto aos estilos de atuação e valores
60
em
toda uma área das entidades sem fins lucrativos no Brasil” (LANDIM, 1993 apud
SALES, 2004, p. 222). Muito embora seja preciso salientar a existência do espectro
da esquerda católica – algo relativamente recente na história brasileira -, cuja
capacidade de formulação, visão crítica da realidade e protagonismo na cena
política do País são enormes, também é preciso destacar que, “assim como o
Estado, as igrejas não ficaram imunes, em função do seu grande poder e
penetração social e cultural, à influência do clientelismo, a manipulações políticas e
a corporativismos no passado e no presente” (SALES, 2004, p. 222).
A participação continuada no CONCAV não se refere apenas às entidades de cunho
religioso. Observando o quadro que indica as instituições que tiveram assento no
Conselho, vemos que muitas ocuparam esse espaço por mais de uma gestão. Assim
sendo, traçamos um gráfico que apresenta o número de gestões em que essas
entidades participaram do CONCAV, aí considerando também as gestões 1998-2000
e 2000-2002.
60
Dentre tais valores e estilos de atuação, destacam-se: forte personalização, valorização do
altruísmo, da abnegação, da caridade, além de muito freqüentemente apresentar uma postura
repressiva, conservadora e autoritária.
147
GRÁFICO 2
NÚMERO DE GESTÕES QUE AS ENTIDADES
PARTICIPARAM DO CONCAV - 1993-2004
2
3
3
3
2
1
1
2
4
1
1
CPV
MNMMR
Pastoral do Menor
FEES
Paróquia Santo Antônio
Obra Social Nossa Senhora das Graças
Casa do Garoto Capixaba
CESAM
APAE
ACES
CAOCA
Fonte: Atas do CONCAV
Considerando que até 2004 tinha havido cinco gestões no CONCAV, é possível
afirmar que não houve uma grande rotatividade de entidades no debate e na
formulação de políticas sociais relativas à criança e ao adolescente, muito embora,
até aquela data, existisse um número aproximado de quarenta instituições atuando
com populações daquelas faixas etárias, no município (VITÓRIA, 2001). Esse ponto
será melhor compreendido quando observamos os motivos que levaram algumas
dessas instituições a buscarem participar do Conselho.
5. 2. 2 - OBJETIVOS DA INSERÇÃO DAS ENTIDADES NO CONCAV
De acordo com a pesquisa realizada, as entidades representadas no CONCAV
tiveram sua inserção nesse espaço em virtude de várias motivações: a própria
história de luta pelos direitos da criança e do adolescente no município que as
entidades em questão já haviam construído, a defesa dos interesses dos
segmentos sociais que representam, sua contribuição para modificar o desenho das
políticas municipais para a criança e o adolescente, o fato de a participação no
Conselho ser uma forma de acessar recursos públicos para a realização de suas
atividades.
148
A inserção de instituições no Conselho como conseqüência de sua participação nas
lutas sociais dos anos 80 aponta a valorização do CONCAV enquanto espaço de
construção de direitos e de formulação de políticas inovadoras, que rompessem com
o atendimento repressivo que marcou a história brasileira na área da criança e do
adolescente. Nesse contexto, quando os entrevistados foram perguntados sobre os
motivos que levaram suas entidades a se candidatarem a um assento no Conselho,
tivemos, dentre outras, as seguintes respostas:
[...] foi uma questão quase que natural. Pois nós havíamos participado da
elaboração de todo processo de criação pela Câmara Municipal. [...] Ninguém
poderia ver o Conselho sem a nossa presença [...]. Era a mesma coisa de ir ao
Vaticano e não ver o Papa. [...] (ENTREVISTA nº 13 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
[...] tínhamos todo um movimento pela defesa dos direitos das crianças e
adolescente. Por isso, achamos que o Conselho era um espaço onde essa luta
poderia ser continuada. [...] (ENTREVISTA nº 2 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
[...] nosso objetivo maior era lutar por garantia dos direitos de todas as
crianças e adolescentes. E esses direitos se garantem lá no Conselho [...]
(ENTREVISTA nº 9 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Deve-se destacar que essas falas que apontaram a inserção histórica das entidades
na luta pela garantia de direitos são, em grande medida, dos conselheiros que
participaram da gestão de criação do CONCAV, o que também indica a importância
que a institucionalização do Conselho teve para esses sujeitos que havia algum
tempo vinham pressionando o poder público, através de denúncias e reivindicações
no campo da criança e do adolescente. No momento em que o Conselho é criado,
ele surge não somente como grande possibilidade de diálogo entre Estado e
sociedade civil, agora com poderes formalmente iguais na definição de políticas
sociais, mas também como esperança de construção de uma nova realidade para a
infância e a adolescência.
Entretanto, há também o objetivo de representar um segmento específico, o que
reflete a velha cultura da vontade corporativa. Nos depoimentos dos entrevistados, a
preocupação maior é com os interesses particulares e privatistas das entidades. A
permeabilidade dos interesses particulares nos espaços públicos também não é algo
149
recente na história política brasileira, como foi mostrado no segundo capítulo deste
trabalho, e ainda vem permeando as relações dentro do CONCAV.
Vejam-se, a esse respeito, os excertos de entrevistas apresentados a seguir.
[...] nós temos aqui um grande trabalho com os menores. [...] e o conselho era um
espaço que a gente tinha para defender o interesse aqui do bairro [...] tanto que
a gente conseguia muita coisa mesmo através desse conselho (ENTREVISTA nº 6 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] nós queríamos representar as instituições que possuem inserção do
adolescente no mercado de trabalho formal [...] (ENTREVISTA nº 4 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] A gente entrou nessa questão de ver a educação, saúde, pra brigar por aí, pras
crianças com deficiência [...]. (ENTREVISTA nº 7 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
A fragmentação da área de criança e adolescente prejudica a construção coletiva e
democrática de políticas sociais que garantam a Doutrina da Proteção Integral para
aqueles segmentos da população. Na medida em que a criança e o adolescente são
pensados a partir da sua inserção em determinada instituição que presta certo
serviço, não é possível que as políticas e os debates travados no Conselho
contemplem todas as crianças e adolescentes, conforme prevê o Estatuto. A defesa
de interesses particulares pode gerar competição entre entidades pelos recursos
públicos, o que fragiliza a compreensão da totalidade das ações. Essa questão foi
salientada por alguns conselheiros, quando se referiam a outras entidades que não
aquelas que eles próprios representavam.
[...] a minha entidade não precisava de recursos do poder público para se manter,
mas algumas outras só queriam estar no Conselho para estar perto da
secretária e barganhar alguma verba [...] (ENTREVISTA nº 1 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] a gente foi com aquele propósito que nunca tínhamos perdido, e mesmo que nós
recebêssemos recursos para tocar nossa entidade, a gente não mudaria, porque é
papel do governo repassar os recursos... Os recursos não são dele. Algumas
entidades confundiam isso. Procuravam o Conselho para ser “amigas” do poder
público (ENTREVISTA nº 11 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
150
[...] os lugares no Conselho passaram a ser disputados como espaços de projeção
pessoal, entendeu? Espaços de projeção de algumas entidades [...]
(ENTREVISTA nº 13 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Ter acesso ao fundo público muitas vezes é fundamental para o funcionamento das
entidades que atendem diretamente a população infanto-juvenil. O maior perigo de
esta ser a principal motivação de algumas entidades procurarem o conselho é
justamente a possibilidade de se ferirem os princípios da participação democrática
na formulação e no controle das políticas, visto que sua inserção pode se configurar
numa participação homologatória das ações e projetos do poder público, sem
questionamentos e debate político. No entanto, a relação entre os interesses
particulares e as “parcerias” entre o poder público e a sociedade civil serão
abordados em maior profundidade quando tratarmos das relações entre essas duas
esferas no CONCAV.
Em resumo, podemos afirmar que os objetivos de inserção das entidades no
CONCAV apontam para dois aspectos contraditórios, inerentes aos espaços
coletivos e heterogêneos. Temos a presença de objetivos coletivos, que envolvem a
defesa de interesses mais amplos e, por isso, mais democráticos, e objetivos
definidos a partir de interesses mais particulares e, por isso, mais restritos,
representados por entidades que estão preocupadas, em grande medida, com a sua
prestação de serviço, sendo que o que tem mobilizado a sua participação é a
possibilidade de acessar ou continuar acessando recursos públicos relativos à área
de criança e adolescente.
[...] o desafio vem sendo a modificação da sociedade civil, no que se refere
à construção de alianças em torno de pautas realmente coletivas,
transcendendo a realização de interesses particularistas e corporativistas,
sendo, então, interpelada ao exercício de mediações sociais e políticas
para o atendimento de demandas populares (RAICHELIS, 2000, p. 66).
Concordando com a autora citada acima, a pesquisa realizada aponta a presença de
objetivos conflitantes no interior do CONCAV, o que vem demonstrar que as
entidades mais preocupadas com a defesa de interesses coletivos apresentam
enormes desafios para estabelecer alianças capazes de garantir a construção
democrática das políticas sociais e promover a luta por uma nova hegemonia ou
direção moral e cultural dentro do Conselho.
151
5.2.3 - O CONSELHO E A RELAÇÃO REPRESENTANTE -
REPRESENTADO: O OLHAR DOS ENTREVISTADOS
Os Conselhos Municipais de Direitos são compostos por representantes
governamentais e não-governamentais com distintas visões sobre o que são tais
Conselhos e qual a função dos conselheiros. Parte importante deste trabalho é
compreender como os conselheiros percebem e representam o Conselho e a sua
própria atuação. As reflexões aqui apresentadas envolvem tanto os conselheiros
representantes do executivo municipal, nas diferentes gestões, quanto os
representantes das organizações da sociedade civil. Para melhor situarmos as
diversas concepções, faz-se necessário traçar um breve perfil desses conselheiros,
identificando sua participação em movimentos sociais e seu envolvimento com
questões ligadas à criança e ao adolescente.
61
GRÁFICO 3
EXPERIÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO DO CONSELHEIRO EM
MOVIMENTO SOCIAIS
17%
33%
4%
17%
4%
4%
4%
17%
Movimento comunitário
Comunidades Eclesiais de Base
Partido político
Movimentos de defesa de direitos da criança e do adolescente
Movimento estudantil
Movimento negro
Outros
Não possui experiência anterior à participação no Conselho
Nota-se que a experiência de participação em movimentos sociais, já antes do
ingresso no Conselho, é predominante entre os conselheiros. Apenas 27%
indicaram não possuir experiência anterior em nenhum tipo de movimento social,
enquanto 73% dos entrevistados responderam que já participavam de algum
61
Nesta questão, o conselheiro enumerou a participação em mais de um movimento social.
152
movimento social. Dentro desse percentual, é predominante, envolvendo 33% dos
conselheiros, a participação em movimentos da Igreja Católica, como as
Comunidades Eclesiais de Bases e as pastorais sociais. Retomamos aqui à
hegemonia da religião católica no interior do Conselho. Mesmo conselheiros que não
representam entidades ligadas às iniciativas católicas já participaram de movimentos
oriundos dessa Igreja.
A participação em movimentos comunitários e movimentos de defesa de direitos das
crianças e adolescentes também apresenta um percentual considerável. Cada uma
dessas formas de participação comporta 17% dos conselheiros entrevistados. No
que se refere à participação em movimentos de defesa de direitos, o movimento
mais citado foi o MNMMR. Dois conselheiros representantes de outras instituições
afirmaram que também participam desse movimento.
Outro aspecto a ser destacado é o fato de a maioria dos conselheiros ter um
histórico de envolvimento com questões ligadas à criança e ao adolescente. Esse
envolvimento aconteceu em esferas diversas nessa área: pelo trabalho na Igreja
com crianças, pela prática profissional — professores, assistentes sociais,
psicólogos, pedagogos —, pelos estudos durante a graduação, pela inserção em
pesquisas nesta área.
Considerem-se, a esse respeito, os seguintes excertos de entrevistas:
Eu participava de um movimento da Igreja [...] e a gente já se deparava com
problemas de meninos de rua [...] por isso começamos a desenvolver um projeto
junto com a Igreja Católica (ENTREVISTADO nº 1 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
Desde que me formei, logo entrei no trabalho na escola pública, e meu trabalho na
escola pública sempre foi voltado para a questão da defesa e de denúncia, de
denunciar as questões que estavam erradas [...] (ENTREVISTA nº 12 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] meu envolvimento se dá desde a época da graduação em Psicologia na
Universidade Federal, onde eu participava de um estágio que era com crianças com
deficiência [...] (ENTREVISTA nº 4 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] em 1988, eu entrei na UFES, acho que em 1990 eu fui participar de um projeto
de pesquisa sobre a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente [...]
153
aí nós começamos a participar efetivamente do movimento (ENTREVISTA nº 2 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Esse envolvimento anterior com as questões ligadas à criança e ao adolescente se
apresenta como importante, pois favorece a formulação de políticas mais
condizentes com a realidade daquela parcela da população, visto que tais
conselheiros possuem uma relevante experiência de trabalho que pode contribuir
para um conhecimento mais abrangente da realidade do município, embasando a
escolha de áreas prioritárias para a intervenção do poder público.
Dessa maneira, podemos constatar, a partir da fala dos conselheiros, uma
correspondência entre as ações e funções citadas em quase todas as entrevistas,
ou seja: os conselheiros têm uma concepção global do papel do Conselho.
Os Conselhos são espaços estratégicos de participação coletiva e de criação de
novas relações políticas entre governos e cidadãos, proporcionando um processo de
interlocução permanente, com o objetivo de formular políticas públicas a partir do
debate democrático entre o poder público e a sociedade civil, e essas questões
também foram apontadas pelos entrevistados. A análise dos dados coletados nos
mostra uma intensa relação, no discurso dos conselheiros, entre os seguintes
termos e expressões: conselho, democracia, partilha de poder, debate coletivo,
formulação de políticas e fiscalização das ações — o que, por sua vez, demonstra,
por parte dos conselheiros, uma boa compreensão de quais são as funções desse
lócus de participação. Observem-se os seguintes trechos de transcrições de
entrevistas:
[...] o conselho surge a partir de uma demanda social da sociedade. [...] O papel do
conselheiro é discutir as políticas públicas e fiscalizar o município
(ENTREVISTA nº 1 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] o conselho é um espaço muito rico, de muita discussão (ENTREVISTA nº 12 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] o conselho, acho que traz essa novidade do poder público sentado na mesa
em pé de igualdade com a sociedade civil, com os mesmos direitos e com o
mesmo poder (ENTREVISTA nº 9 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
154
[...] o conselho municipal é um espaço político e democrático, aberto, onde
diferentes entidades se relacionam, discutem, debatem e formulam a política para o
município executar [...] (ENTREVISTA nº 5 – REPRESENTANTE DO PODER
PÚBLICO).
[...] o conselho é um caminho para a formulação das políticas que são
importantíssimas para toda a sociedade (ENTREVISTA nº 15 – REPRESENTANTE
DO PODER PÚBLICO).
Diante desse cenário, cabe ao conselheiro participar efetivamente dos processos de
formulação e controle democráticos das políticas municipais. Para tanto, é
necessário que ele se perceba enquanto um agente público na defesa de interesses
coletivos.
O integrante de um Conselho é portador de um mandato, de uma delegação
atribuída pelo segmento que lhe coube representar. Vimos que o processo de
escolha das entidades da sociedade civil é diferente daquele que ocorre no caso do
poder público. Enquanto a escolha das entidades da sociedade civil passa por uma
eleição direta que envolve as entidades registradas no Conselho, a lei que cria este
último define quais secretarias do poder executivo estarão ali representadas. Depois,
cada entidade e secretaria indica seus respectivos representantes titular e suplente
para o Conselho. No caso das secretarias municipais, de acordo com a legislação do
município, o titular é obrigatoriamente o Secretário da pasta.
As entrevistas realizadas revelam que 62% dos conselheiros do CONCAV foram
indicados pelos presidentes e/ou diretores das respectivas entidades ou, em se
tratando dos conselheiros governamentais, foram indicados pelos secretários. 19%
dos entrevistados se auto-indicaram, visto que faziam parte da diretoria de suas
entidades. Apenas 13% dos conselheiros foram eleitos a partir de uma assembléia
que envolvia todos os membros que trabalhavam na instituição.
155
GRÁFICO 4
FORMA DE INDICAÇÃO DO CONSELHEIRO NA
ENTIDADE
13%
62%
19%
6%
Assembléia
Presidente/
diretoria/
secretário
Membro da
diretoria, que se
auto-indicou
Não se lembra
Os conselheiros justificaram suas indicações afirmando que alguns fatores levaram
seus dirigentes a tomarem essa decisão: a própria trajetória de engajamento em
questões relativas à criança e ao adolescente, a falta de interesse de outros
funcionários da instituição e o fato de assumirem cargos na instituição ou secretaria
de direção de projetos para a criança e o adolescente.
Sobre o assunto, podem ser consultados os excertos de entrevistas reproduzidos a
seguir.
[...] Na verdade, as coisas acabam acontecendo pelo meu próprio envolvimento na
causa. Tive o reconhecimento da Secretária, pois eu sempre fui uma pessoa que
estudou a causa e que tinha um envolvimento de militante também [...]
(ENTREVISTA nº 5 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] Com a falta de interesse das pessoas e da própria secretária e pelo fato de
eu estar sempre buscando os espaços de reuniões, acabei sendo escolhida
naturalmente, indicada [...] (ENTREVISTA nº 12 – REPRESENTANTE DO PODER
PÚBLICO).
A indicação para o conselho era justamente porque eu coordenava a divisão de
esportes e eu coordenava todos os projetos da área de criança e adolescente
[...] (ENTREVISTA nº 14 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] na época, a equipe de direção achou conveniente que uma das coordenadoras
fosse titular e a outra suplente [...] (ENTREVISTA nº 4 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
156
Mesmo havendo justificativas para a indicação de um conselheiro sem que haja um
processo de eleição mais amplo e democrático, uma questão ainda se faz
pertinente: o que significa a representação nos casos desses conselheiros?
Entendemos que um conselheiro deve representar muito mais do que a sua própria
entidade. Os representados vão além da direção da entidade. Trata-se, acima de
tudo, de crianças e adolescentes, atendidos ou não por esta ou aquela instituição.
Para Benevides (1981, p. 239) “representar é tornar presente algo que não está de
fato presente”. A participação no conselho significa que tanto os conselheiros
governamentais quanto os da sociedade civil devem dar visibilidade e edificar
coletivamente o interesse do segmento que está representando.
Segundo Raichelis (1998, p. 41), “a representatividade implica a constituição de
sujeitos sociais ativos que se apresentem na cena política a partir das suas
demandas coletivas, em relação as quais os representantes exercem papel de
mediadores”.
Entretanto, presenciamos no CONCAV um dos principais limites da democracia
representativa, que é a predominância da representação de interesses particulares
sobre a representação política, ou seja, os interesses particulares sobrepondo-se
aos interesses coletivos. Já apontamos que a motivação de algumas entidades para
buscarem participação no conselho é a possibilidade de acessar fundos públicos ou
a defesa dos interesses do seu segmento específico.
Isso pode gerar um certo insulamento do conselheiro em relação a sua entidade
como um todo e, conseqüentemente, um distanciamento do coletivo que ele
representa. A representação fica personalizada, o que dificulta a capacidade de
verbalizar demandas mais amplas e estabelecer alianças que transformem as
necessidades dos usuários em propostas políticas a serem incluídas na agenda
pública do município.
Mesmo quando os conselheiros são eleitos por meio de assembléias nas suas
entidades (o que acontece com 13% dos entrevistados), também há obstáculos para
resolver o problema da representação. As pautas das reuniões não costumam ser
157
discutidas de forma mais coletiva no interior da instituição na qual o conselheiro está
inserido, o que faz com que ele participe do debate “representando a si mesmo”,
sem o respaldo político de um movimento mais organizado. Dessa forma, sua
participação tende a ficar cada vez mais personalizada.
Os gráficos que se seguem mostram que 56% dos entrevistados não discutem a
pauta com as entidades/secretarias que os indicaram e, conseqüentemente, o
repasse das discussões ocorridas no CONCAV é feito predominantemente em
reuniões com a diretoria ou com o secretário responsável — pois, no caso das
secretarias municipais, a presença dos representantes suplentes nas reuniões é
mais comum do que a participação dos titulares, que são os secretários.
62
GRÁFICO 5
DISCUSSÃO DA PAUTA DAS REUNIÕES DO
CONSELHO COM A ENTIDADE/SECRETARIA
19%
56%
25%
Sim
Não
As vezes
62
Adiante, trataremos desse aspecto mais detalhadamente.
158
GRÁFICO 6
MEIOS QUE O CONSELHEIRO UTILIZAVA
PARA O REPASSE DAS DISCUSSÕES/
DELIBERAÇÕES DO CONCAV À
ENTIDADE/SECRETARIA
50%
25%
19%
6%
Reunião com a diretoria/ secretário
Assembléia geral
Relatórios
Não havia repasse
Um número reduzido de conselheiros, dentre os entrevistados (19%), afirmou que
discute a pauta com toda a equipe que trabalha na instituição, enquanto que 25%
destacaram que às vezes discutem a pauta com a diretoria, quando há algum ponto
que diz respeito à sua área específica de atuação. Essa prática reforça o
comprometimento com/a defesa dos interesses particulares da sua entidade ou
secretaria no espaço de interesses coletivos que se espera que seja o Conselho. O
trecho a seguir, extraído da transcrição da fala de um conselheiro, mostra
claramente essa situação.
[...] quando tinha uma decisão que dependia da ação de todos da secretaria, do
conjunto da secretaria, era discutido com as chefias [...] (ENTREVISTA nº 14 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Quanto ao repasse das discussões/deliberações, o relatório é o meio menos
utilizado pelos conselheiros (19%). A Assembléia geral é um meio ainda pouco
utilizado, com índice de 25%, o que vem demonstrar a dificuldade que os
conselheiros têm de efetivar um processo mais participativo na condução das suas
decisões. As dificuldades de realizar a discussão prévia e posterior dos assuntos
abordados no Conselho também se expressam na fala dos próprios conselheiros:
Era como eu te falei: não fazia diferença se discutisse a pauta ou não. Tanto que
eu fazia os relatórios e não tinha retorno [...] (ENTREVISTA nº 12 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
159
Não, não eram [discutidas]. Não havia preparação, porque aquilo era o nosso
cotidiano [...]. Na verdade, o Conselho era quase como uma outra estrutura da
secretaria. Então, não tínhamos que nos preparar para o Conselho. Era a nossa
própria rotina [...] (ENTREVISTA nº 10 – REPRESENTANTE DO PODER
PÚBLICO).
[...] Sempre que tinha reunião, eu tinha que ter uma horinha com o Padre. Eu
tinha que estar com ele, falar tudo que a gente fez [...] (ENTREVISTA nº 6 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] aqui eu não discutia [...] as pessoas não querem saber [...]. Eu comecei a levar
as coisas do Conselho para a reunião técnica [...], mas você via nitidamente a falta
de interesse. [...] o presidente falava: “Isso é coisa de assistente social!”
(ENTREVISTA nº 7 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Diante dos resultados identificados, podemos afirmar que há a predominância de
uma representação que se restringe à pessoa indicada e, quando muito, aos
secretários e diretores das instituições, não contando com o respaldo de uma
articulação social que desse peso político à sua participação. Observam-se, assim,
um prejuízo para a qualidade do debate travado na arena de conflitos que é o
Conselho e o enfraquecimento da pressão sobre o poder público para que sejam
garantidos os direitos da infância e da adolescência.
Sendo assim, o Conselho, que, na sua essência, foi criado para se constituir numa
estratégia de democracia de massas, como possibilidade de fortalecimento da
sociedade civil num país que sempre excluiu as classes populares dos processos de
decisão política, estaria, quando muito, limitando-se a ser um exemplo de
democracia puramente representativa, sem que os representantes sequer
estabeleçam um contato mais direto com as bases que representam.
[...] o que deveria ser uma instância participativa virou uma instância
representativa com um certo insulamento da base que elegeu o
representante eleito. Em alguns casos o representante não discute
necessariamente com a sua entidade o que está defendendo nas plenárias
ou nas reuniões deliberativas dos conselhos, muito menos com o conjunto
da sociedade que teoricamente representa (VOLPI, 2000, p. 28).
Essa lógica transverte o caráter democrático do conselho em mais uma forma de
manifestação do corporativismo e das relações privadas nos espaços públicos,
fazendo com que a participação política, em termos da capacidade dos atores
influenciarem o processo decisório, encontre grandes obstáculos. Entretanto, é
sempre importante ressaltar a existência de posicionamentos difernciados nesse
160
espaço, que realizam, mesmo com dificuldades, movimentos de resistência e
pressão em favor dos interesses coletivos das crianças e adolescentes.
5.2.4- A ATUAÇÃO E A RELAÇÃO DO PODER PÚBLICO COM A
SOCIEDADE CIVIL: ENTRE O CONFLITO E O CONSENSO
A sociedade brasileira viveu uma longa história de autoritarismo, privatização do
público e privilégio das classes dominantes. Somos uma formação social que
historicamente limitou ou impediu a emergência dos conflitos e das contradições
econômicas, políticas e sociais. Isso não quer dizer que os conflitos e as
contradições tenham sido ignorados, mas, sim, que eles sempre representaram,
para as classes dominantes, o perigo, a crise e a “desordem” e, por isso, foram
geralmente tratados com base na repressão policial e militar e com o desprezo das
elites (CHAUÍ, 2004).
A sociedade organizada, quando expõe conflitos e contradições, é percebida como
“perigosa” para o Estado e para o funcionamento do mercado (pois, para o pleno
funcionamento deste, é necessário que se oculte a divisão da sociedade em classes
sociais). A esse respeito, afirma Chauí (2004, p. 92): “a classe dominante brasileira é
altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como
expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados
e/ou antagônicos”.
A pesquisa que realizamos permite afirmar uma clara postura do poder público com
vistas a frear os processos mais democráticos e os debates de projetos dentro do
CONCAV. Essa postura se apresenta como um obstáculo para a democratização e
para que haja uma absorção da sociedade política pela sociedade civil, de modo a
limitar a eficácia dos aparelhos de coerção. Pelas falas dos conselheiros, podemos
demonstrar como tem sido, ao longo da história do Conselho, a atuação do poder
público e da sociedade civil.
161
A sociedade civil com muita sede, de ver, de fazer, de acontecer [as políticas
sociais] e o poder público pagando pra ver [...] (ENTREVISTA nº 12 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
A sociedade civil procurava sempre valorizar mais o erro do poder público do que
o acerto [...]. Não eram reuniões fáceis de se participar (ENTREVISTA nº 10 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] A prefeitura era a cabeça ali [...] (ENTREVISTA nº 6 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
[...] a gente tentava fazer uma coisa legal, mas esbarrava na falta de participação
do poder público (ENTREVISTA nº 7 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE
CIVIL).
Nossa! O poder público absorve, talha, ele atravanca, naquela época ele
atravancava [...] a sociedade civil, devido a esse atrelamento de verbas, de recursos
para tocar a entidade, não era livre [...] (ENTREVISTA nº 11 – REPRESENTANTE
DA SOCIEDADE CIVIL).
O governo não estava preparado para receber a participação da população. Por
outro lado, a sociedade civil não estava totalmente preparada para participar [...]
(ENTREVISTA nº 1 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] a atuação da sociedade civil era muito mais marcante [...] não posso falar da
mesma forma do poder público [...] às vezes tinha que se esperar pelo quorum
[...] (ENTREVISTA nº 4 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Algumas das falas reproduzidas acima indicam um certo esvaziamento do Conselho,
devido à não-freqüência de representantes do poder público nas reuniões
63
. Esse
fato foi observado também a partir das análises das atas das reuniões, já que
quantificamos as listas de presença nas plenárias. Os dados correspondentes são
apresentados nos gráficos a seguir.
63
Observa-se, nos gráficos que vêm logo a seguir, uma freqüência mais efetiva, em todas as gestões,
da Secretaria Municipal de Assistência Social, dentre os órgãos do poder público representados no
CONCAV.
162
0
5
10
15
20
25
30
GRÁFICO 7
FREQÜÊNCIA DOS CONSELHEIROS NAS REUNIÕES -
GESTÃO 1993-1995
(total de 29 reuniões)
CPV
SEMAS
MNMMR
Pastoral do Menor
SEME
FEES
Obras Pavonianas
SEMUS
SEPLAN
SEMMAM
SEMEC
Obra Social N. S.
0
5
10
15
20
25
30
GRÁFICO 8
FREQÜÊNCIA DOS CONSELHEIROS NAS REUNIÕES - GESTÃO 1995-1997
(total de 32 reuniões)
SEMAS
MNMMR
Pastoral do Menor
Casa do Garoto Capixaba
SEMMAM
CPV
FEES
APAE
SEMUS
SEME
SEMCET
SEPLAN
0
5
10
15
20
25
30
GRÁFICO 9
FREQÜÊNCIA DOS CONSELHEIROS NAS REUNIÕES -
GESTÃO 2002-2004 (total de reuniões: 28)
MNMMR
Pastoral do
Menor
ACES
CESAM
CAOCA
APAE
SEMAS
SEMUS
SEME
SEMESP
SEMEC
SEMCID
163
Observa-se, de acordo com os gráficos acima, uma maior freqüência das entidades
representativas da sociedade civil nas reuniões do CONCAV, em todas as gestões
analisadas neste estudo. Dessa forma, o Conselho passa a ser referenciado como
um espaço da sociedade civil, o que, em grande medida, desqualifica seu caráter de
espaço público e de partilha de poder.
Mesmo quando os representantes do poder público estão presentes, verificamos
que a participação maior é de suplentes. Por outro lado, algumas vezes esses
suplentes não têm autonomia para responder pelo conjunto das secretarias às quais
são vinculados. Dessa forma, não têm poder para garantir, nas suas secretarias, as
negociações e deliberações firmadas no Conselho, enfraquecendo também a
autonomia deste órgão, que acaba dependendo de uma decisão final dos
secretários. A substituição dos titulares pelos suplentes contribui para esvaziar o
poder do CONCAV, ou no mínimo, atrasa o ritmo dos trabalhos, visto que os ditos
representantes não possuem autonomia no momento das deliberações, remetendo
as decisões aos titulares, assim adiando o debate e as respostas para as questões
colocadas em pauta. Observem-se, a esse respeito, os seguintes trechos de
entrevistas:
[...] os conselheiros do poder público muitas vezes não respondem pelo conjunto da
secretaria. É como se eles fossem mais um em mais um conselho da cidade
(ENTREVISTA nº 3 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] um dia, a secretária me chamou pra dizer que eu não estava fazendo a defesa
dos interesses do município. Então, eu falei que estava ali em função da criança e
do adolescente [...] Então, ela me destituiu desse lugar [...] (ENTREVISTA nº 12 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Não se trata de uma questão apenas local, considerando-se a seguinte afirmação
feita por Raichelis (2000, p. 205):
[...] a consideração de que os conselhos são instâncias de interesse quase
que exclusivo da sociedade civil traz como conseqüência a sua
desqualificação como espaço público, na medida em que o outro, o
interlocutor governamental, peça-chave de legitimação desse espaço como
mecanismo de articulação e negociação entre governo e sociedade civil,
nem sempre está presente e, quando está, sua intervenção não é revestida
de representatividade.
164
A falta de autonomia não é algo presente apenas na representação dos conselheiros
governamentais. A capacidade de sustentar opiniões e negociar interesses de forma
democrática também tem se apresentado enquanto um obstáculo para a participação da
sociedade civil. Isso porque, como já foi mencionado diversas vezes neste trabalho, é comum
a realização de “parcerias” entre o poder público e entidades da sociedade civil com
representação no CONCAV. Nas entrevistas com vários conselheiros, pudemos observar que
essa relação tem dificultado a concretização de embates mais diretos entre as duas esferas ali
representadas, como se evidencia nas falas reproduzidas a seguir.
Algumas entidades da sociedade civil, devido a esse atrelamento de verbas, de recursos para
tocar a entidade... Não eram livres [...] (ENTREVISTA Nº 11 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
[...] a Prefeitura tinha algumas parcerias. Nessas parcerias ela liberava verbas e alguns
representantes da sociedade civil entendiam isso como um favor da Prefeitura e que por isso
eles deveriam ser obedientes à Prefeitura [...] (ENTREVISTA Nº 9 – REPRESENTANTE
DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] Na época eu conseguia brigar, cobrar, em grande parte devido a minha independência.
[...] o que não acontecia com todo mundo, porque muitos representavam entidades
conveniadas ao poder público, o que dificultava no enfrentamento (ENTREVISTA Nº 1 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
No que se refere ao confronto de idéias e projetos no interior do CONCAV, a pesquisa revela
visões diferenciadas sobre o conflito. Uma parte dos entrevistados afirma que ali não existe
espaço para o conflito, pois a relação entre os conselheiros é amistosa, respeitosa, além de
apresentar a idéia segundo a qual não há projetos diferenciados de atenção à criança e ao
adolescente, quando comparados aqueles oriundos da sociedade civil e aqueles apresentados
pela prefeitura. Observem-se, a esse respeito, os seguintes trechos de entrevistas:
Eu achei que a relação era bem entrosada, bem entrosada. Tanto era que a prefeitura que
estava dando apoio pra nós aqui [...] (ENTREVISTA nº 6 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
Era uma relação amigável, as pessoas não se batiam, tinham respeito [...] (ENTREVISTA nº
12 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
165
[...] muitas relações foram estabelecidas, a partir da nossa relação no conselho. Até mesmo
em nível de amizade pessoal [...] (ENTREVISTA nº 4 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
[...] Havia muita colaboração [...] Não tínhamos conflitos, mas sim uma articulação [...]
(ENTREVISTA nº 16 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
No entanto, outra parte dos conselheiros entrevistados considera que o CONCAV é um
espaço de conflitos, de vocalização de demandas e interesses heterogêneos, inseridos no
contexto de uma sociedade de classes, como o demonstram os seguintes excertos de
transcrições de entrevistas:
[...] Era uma luta política de defesa de idéias e pontos de vista [...] (ENTREVISTA nº 14 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] nesse conselho se brigava muito, os conselheiros eram fortes e fizeram o poder público
recuar várias vezes (ENTREVISTA nº 11 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] havia um conflito muito grande entre a sociedade e o poder público. E também entre
membros da mesma esfera, ninguém ali tinha que pensar igual (ENTREVISTA nº 13 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] o poder público não participava muito, mas em dia de decisão vinha com uma tropa de
choque (ENTREVISTA nº 1 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
A democracia em movimento dá-se na manifestação do conflito, na disputa, nos esforços de
aparecimento e visibilidade, no confronto de falas e projetos de sociedade, na contestação dos
argumentos. Por isso, a essência da política é o conflito. A política e a democracia não
pertencem ao âmbito da harmonia. Configuram-se em desvios, rupturas, perturbação da
ordem e da dominação (SALES, 2004).
Todavia, o discurso dos representantes de algumas entidades compartilha com a ideologia
neoliberal e a cultura política tradicional brasileira a valorização de uma “participação” que
enfatiza a parceria, a solidariedade e a colaboração entre as classes no enfrentamento das
166
expressões da questão social, o que reitera a valorização da participação gerencial, no sentido
em que já foi apresentada neste trabalho. A participação efetiva e autônoma na construção das
políticas sociais fica, então, fragilizada, visto que, nesse caso, a sociedade civil não contribui
com novas propostas e apenas acata a direção dada pelo poder público.
No discurso e ação dos governos neoliberais, jaz subliminarmente a defesa do
consenso de massas para o enfrentamento dos problemas locais e nacionais, que
reitere leituras abstratas e a-históricas da realidade social, sem responsabilidades
públicas e políticas definidas. Retórica do consenso que pressupõe a adesão e
submissão ao pensamento único (RAMONET, 1998 apud SALES, 2004, p. 212).
A fragilização do conflito no Conselho também reforça uma tendência muito comum no
cenário brasileiro: aquela que considera que a política é o espaço e atividade de especialistas,
ou seja, indivíduos extraídos de frações das classes dominantes.Essa tendência juntamente
com a relação de “parceria” e do consenso também fragmenta a luta das entidades que
defendem direitos mais coletivos e universais. As entidades são colocadas como co-
responsáveis nas ações junto ao Estado, o que propicia a minimização do Estado frente às
expressões da questão social. Tem-se a continuidade da privatização do público, sua
dissolução e sua redução a interesses privados (OLIVEIRA, 1998).
A cooptação também aparece de forma evidente na fala de alguns conselheiros, como
podemos ver a seguir:
[...] a prática era de cooptação mesmo. Eu lembro, por exemplo, que eu era oposição e
houve tentativa de cooptação, de me chamar para virar prefeitinho da minha região [...]
(ENTREVISTA nº 1- REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Eu não podia bater de frente com tudo que o poder público colocava. Às vezes, ficava
rezando para que alguém questionasse, pois eu temia que minha entidade fosse retalhada
posteriormente (ENTREVISTA nº 7 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Os instrumentos de dominação e manutenção da hegemonia estatal vão desde o esvaziamento
das reuniões, ou a ausência a elas, ou, ainda, a indicação de conselheiros sem poder de
decisão, passando pelas “parcerias”, até a tentativa de cooptação direta de indivíduos mais
comprometidos com a coletividade que estão representando. Também se observa uma postura
167
passiva por parte de algumas entidades, que se aproveitam dessas relações, delas visando tirar
algum benefício.
Essas visões traduzem o processo histórico de constituição de uma sociedade e um Estado
autoritários, com enormes dificuldades de incorporar as demandas de outras classes que não
as dominantes. Também expressam a contradição existente no Conselho, compreendido como
um espaço tanto do consenso quanto do conflito, dada a existência, além de interesses
conservadores, também de um movimento interno que trabalha buscando a transformação da
realidade de crianças e adolescentes e a inovação das políticas sociais nessa área, garantidas
em seu caráter público e universal.
5.2.5 - DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO NA ÓTICA DOS CONSELHEIROS
No início do presente trabalho, demonstramos o quão polissêmico é o termo
democracia. Todavia, mesmo apresentando sentidos bem divergentes e até mesmo
antagônicos, quanto à forma e ao nível de abrangência das práticas participativas,
os estudos sobre a democracia sempre apresentam a participação popular como
característica fundamental de um modelo democrático de administração pública.
Veremos, a seguir, se essa relação entre democracia e participação existe no CONCAV e
quais sentidos são atribuídos a esses termos pelos conselheiros.
Cabe observar que um reduzido número dos conselheiros entrevistados (31%) manifestou, de
modo explícito, e sem que tenham sido interrogados a esse respeito, o entendimento de que o
Conselho é um instrumento democrático.
[...] o Conselho é fundamental para o desenvolvimento da sociedade. Amplia a democracia,
amplia a participação, amplia o debate [...] (ENTREVISTA nº 14 – REPRESENTANTE DO
PODER PÚBLICO).
168
[...] a gente sempre acreditou que o conselho deveria ser um espaço democrático, aberto [...]
(ENTREVISTA nº 4 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] eu vejo o conselho hoje ainda como um espaço político democrático [...]
(ENTREVISTA nº 5 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] o conselho municipal é um espaço democrático, aberto, onde diferentes entidades se
relacionam [...] (ENTREVISTA nº 3 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] ninguém podia abrir mão do conselho naquele momento [...] era a democracia que tanto
tínhamos lutado (ENTREVISTA nº 2 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
GRÁFICO 10
CONSELHEIROS QUE RELACIONARAM
ESPONTANEAMENTE O CONSELHO COM A
IIA DE DEMOCRACIA
31%
69%
Sim
Não
Essa questão nos remete ao entendimento que os conselheiros têm de democracia. A pesquisa
aponta que poucos conselheiros, quando indagados sobre o que é democracia, relacionaram-
na diretamente com a participação, como acontece nos seguintes trechos de entrevistas:
[...] é garantir a oportunidade de todos, de participar, dos direitos [...] (ENTREVISTA nº 12
– REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] é a possibilidade da participação de diversos atores, tanto da sociedade civil, quanto
governamentais [...] (ENTREVISTA nº 4 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
169
[...] entendo que seja a participação mesmo da população, contribuindo na construção de
uma sociedade mais justa, mais igualitária [...] (ENTREVISTA, nº 14 – REPRESENTANTE
DO PODER PÚBLICO).
A grande maioria dos conselheiros definiu a democracia enquanto sistema no qual existe a
possibilidade de realizar determinadas ações e defender determinadas idéias com liberdade.
Outros também atribuíram à democracia o sentido de garantia de direitos dentro da sociedade.
Considerem-se, a esse respeito, os seguintes excertos de transcrições de entrevistas:
[...] é a possibilidade de expressar opiniões, lutar pelas suas propostas com liberdade
(ENTREVISTA nº 1 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVL).
[...] eu reputo como sendo o respeito aos direitos alheios, sejam eles maiorias ou minorias
[...] (ENTREVISTA nº 13 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] todo mundo será ouvido e o que a maioria desejar, será executado [...] (ENTREVISTA
nº 10 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Democracia, eu acho que é você discutir, você chegar num denominador comum [...]
(ENTREVISTA nº 7 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Democracia é onde uma pessoa escuta a outra, onde não se leva nada pronto, onde se
constrói conceitos, onde se debate conceitos já construídos [...] (ENTREVISTA nº 5 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] democracia é você ter direito de fala [...] (ENTREVISTA nº 11 – REPRESENTANTE
DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] democracia é quando, de fato, todos têm direitos respeitados e garantidos [...]
(ENTREVISTA nº 9 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
[...] eu acho que é ver garantidas as mínimas condições de cidadania [...] (ENTREVISTA
nº 8 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Pode-se observar que, diferentemente do que consideram diversas teorias sociais, a fala dos
conselheiros não atribui uma relação direta entre democracia e participação. Não obstante,
170
deve-se apontar que o fato de a democracia estar relacionada com algumas ações a serem
realizadas pelos atores sociais pode deixar subentendida a necessidade da existência de uma
prática de participação, de modo que tais ações possam se viabilizar.
Dessa forma, quando, durante as entrevistas realizadas, os conselheiros foram questionados
sobre o que entendiam por participação, emergiram respostas que podem ser divididas em
dois principais eixos: num deles, a participação aparece de forma mais decisiva no processo
da discussão política e na formulação das ações, — isto é, mais próxima do que deve ser a
participação num conselho gestor de políticas sociais; no outro, a participação se aproxima do
modelo gerencial, ou seja, é pensada como ocorrendo no âmbito da execução das políticas
dentro da lógica de afastamento estatal das intervenções sociais. Podem ser observadas, sobre
esse assunto, as falas reproduzidas abaixo:
[...] participar, é se manifestar, é se colocar, e acima de tudo, se posicionar, a favor ou
contra. [...] é você abrir a boca [...] (ENTREVISTA Nº 5 – REPRESENTANTE DO PODER
PÚBLICO).
Participar, pra mim, é contribuir. No caso do Conselho, é ter coragem de expressar o que
você pensa na tentativa de construir ações diferentes, políticas diferentes [...]
(ENTREVISTA Nº 9 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Participar está relacionado ao motivo pelo qual nós estamos nos reunindo. [...] é travar uma
discussão no campo das idéias para a formulação de políticas públicas e para o controle
das ações. [...] (ENTREVISTA Nº 10 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Participar tem a ver com a oportunidade do voluntariado. [...] gosto muito do que a Dona
Ruth Cardoso dizia na Comunidade Solidária: que ser voluntário é você emprestar seu
tempo e seu talento para uma ação, por uma causa [...] (ENTREVISTA Nº 8 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Participar não é só ficar discutindo. É também se mexer, fazer alguma coisa prática. Eu
participo desse jeito! (ENTREVISTA Nº 6 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Participar é você estar disponível para qualquer ação, principalmente para o trabalho
operativo [...] (ENTREVISTA Nº 16 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
171
O conflito entre essas duas formas de entender a participação se manifesta no interior do
CONCAV, fazendo do Conselho uma possibilidade maior ou menor de ampliação do Estado,
dependo a correlação de forças estabelecida num momento considerado. De acordo com a
primeira visão, podemos identificar um maior entendimento de que a vontade coletiva, o
interesse público e a elaboração de políticas que atendam às demandas sociais devem ser
construídas a partir do conflito de opiniões e projetos defendidos pelos diferentes atores
sociais de modo a ampliar os serviços públicos e efetivar os direitos que estão expressos na
legislação.
Já a segunda visão reforça o discurso tendencioso de uma possível solidariedade entre as
classes e entre os atores sociais participantes do Conselho. A parceria da sociedade civil com
o poder público torna homogêneas as idéias e propostas e faz com que o direcionamento das
ações continue a ser dado pelo poder público, que detém a hegemonia nesse espaço. Dessa
maneira, o Estado não se abre para as demandas da sociedade, e as políticas permanecem
fragmentadas e a sociedade civil, despolitizada. “[...] a sociedade é chamada a compartilhar às
responsabilidades pelas questões sociais, a discussão sobre o voluntariado é um exemplo
disso, mas não para compartilhar a decisão acerca das prioridades políticas” (TATAGIBA,
2003, p. 16). Permanece a visão segundo a qual a formulação de políticas públicas é uma
atividade essencialmente técnica, vazia de conteúdo e debate político coletivo. “Para o povo a
participação no ‘terceiro setor’, o governo para o capital” (MONTAÑO, 2002, p. 237). Com
isso, a correlação de forças fica desfavorável para os setores populares presentes no Conselho.
[...] a função social da resposta às refrações da ‘questão social’ deixa de ser, no
projeto neoliberal, responsabilidade privilegiada do Estado, e por meio deste do
conjunto da sociedade, e passa a ser agora de auto-responsabilidade dos próprios
sujeitos portadores de necessidades, e da ação filantrópica, ‘solidária-voluntária’,
de organizações e indivíduos. A resposta às necessidades sociais deixa de ser uma
responsabilidade de todos (na contribuição compulsória do financiamento estatal,
instrumento de tal resposta) e um direito do cidadão, e passa agora, sob a égide
neoliberal, a ser uma opção do voluntário que ajuda o próximo, e um não-direito
do portador de necessidades, o ‘cidadão pobre’ (MONTAÑO, 2002, p. 22).
O embate entre esses dois olhares sobre a participação também traz à tona diferentes
significados de democracia: um deles a apresenta com caráter mais participativo, e faz do
Conselho uma possibilidade de espaço no qual as classes populares venham a se organizar de
172
“baixo para cima”, fortalecendo a organização popular e a socialização da política o outro
liga-se a uma orientação mais liberal, baseada no elitismo e na participação representativa.
Outro aspecto analisado diz respeito aos fatores que, segundo os conselheiros entrevistados,
dificultaram ou facilitaram sua participação quando integraram o Conselho. Quanto aos
aspectos mais freqüentemente apresentados como aqueles que dificultavam a participação,
selecionamos os trechos de entrevistas que se seguem:
O que dificultava era o volume de tarefas que eu tinha que realizar na época [...] não
tínhamos a quantidade de profissionais suficiente para atender as demandas e aí eu tinha
essa dificuldade de disponibilidade de tempo para me dedicar às atividades do Conselho [...]
(ENTREVISTA Nº 14 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] o número reduzido de educadores fazia com que eu me desdobrasse para realizar várias
funções, várias atribuições. [...] a sobrecarga de trabalho na instituição é um dificultador,
pois temos que largar algumas coisas para participar do Conselho e acabamos sendo
cobradas, em alguns momentos, pela instituição (ENTREVISTA Nº 4 – REPRESENTANTE
DA SOCIEDADE CIVIL).
O excesso de trabalho [...] (ENTREVISTA Nº 8 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE
CIVIL).
Os trechos acima nos permitem realizar uma reflexão sobre as políticas sociais brasileiras,
especialmente na área da criança e do adolescente. No caso dos representantes do poder
público, fica evidente como a ofensiva neoliberal tem promovido o desmonte do aparelho
estatal. A falta de concursos públicos e o predomínio de formas precarizadas de contratação
de profissionais sobrecarrega o trabalho daqueles que já estão atuando nessa esfera. Isso faz
com que aqueles que são indicados pela secretaria para assumir o Consselho enquanto agente
público se vê envolto por tantas atividades, que sua participação no Conselho pode não ser
priorizada ou não ser tão qualificada quanto poderia ser, caso não houvesse sobrecarga de
trabalho.
Problema semelhante também envolve os representantes das entidades da sociedade civil que
atuam na contradição entre ser indicados pela entidade para participarem do Conselho, mas
173
nem sempre sendo liberados de seu trabalho para cumprir as funções estabelecidas pelo
CONCAV.
Não obstante, um número considerável de conselheiros ressaltou que não tinham nenhuma
dificuldade quanto a sua participação. É o que fica evidente nos seguintes trechos das
entrevistas:
Nenhum [problema para participar], até porque eu não ficaria num lugar onde a minha
participação não pudesse ser plena [...] (ENTREVISTA Nº 10 – REPRESENTANTE DO
PODER PÚBLICO).
Não. Graças a Deus nesse Conselho nada me impedia de participar [...]
(REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Não. Eu não tinha dificuldades (ENTREVISTA Nº 1 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
Nenhum! (ENTREVISTA Nº 5 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Essas respostas mostram uma contradição nas falas dos conselheiros, que, em outros
momentos das entrevistas apontaram alguns limites da participação conselhista, como a falta
de autonomia de algumas entidades, a ausência dos representantes do poder público nas
reuniões, a defesa de interesses particulares por algumas entidades, não conseguindo
relacionar esses elementos à forma como a sua participação se desenvolveu no espaço do
CONCAV.
5.2.6 – OS USUÁRIOS DAS POLÍTICAS PELA VISÃO DOS CONSELHEIROS
174
Quando traçamos a história das concepções e práticas relativas às crianças e adolescentes no
Brasil, pudemos identificar que o modo pelo qual a sociedade percebia a criança e o
adolescente direcionou uma série de ações voltadas para o atendimento àquelas parcelas da
população.
O presente trabalho aponta um predomínio de ações voltadas especialmente para as crianças
pobres, abandonadas e delinqüentes, então denominadas “menores”. A idéia de criminalização
da pobreza também reforçava a implementação dessas ações, na tentativa de evitar que
aquelas crianças se tornassem potenciais marginais no futuro e ameaçassem a ordem social
instaurada. Podemos afirmar que a concepção de criança e adolescente tidos como “menores”
promoveu uma triste história de práticas violentas e repressoras que não garantiam (muito
pelo contrário!) a cidadania desses pequenos sujeitos. Todavia, com a promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, temos, ainda que no plano legal, uma mudança radical
de paradigma. Com essa lei, todas as crianças e adolescentes, independentemente da classe
social em que estão inseridas, passam a ser reconhecidas como sujeitos de direitos que devem
ter suas particularidades respeitadas por ainda estarem em fase de desenvolvimento físico,
mental e social.
Graças a essa mudança de concepção, o Estatuto também preconiza transformações na
política de atendimento, transformações essas que buscam efetivar a nova concepção
estabelecida. O corpo da lei coloca para sociedade a obrigatoriedade de se criarem novas
formas de atendimento, por meio das quais sejam respeitados a cidadania e o protagonismo da
população infanto-juvenil.
Assim sendo, com a pesquisa realizada também procurou-se saber qual a visão dos
conselheiros sobre as crianças e adolescentes. Quando questionados sobre quem eram as
crianças e adolescentes usuários das políticas formuladas pelo Conselho, observamos uma
clara continuidade histórica de ações voltadas apenas para os segmentos mais pobres da
população. Se, antes do Estatuto, isso representava uma preocupação em controlar e
disciplinar os pobres, na tentativa de adaptá-los à ordem capitalista vigente, hoje também
temos a própria diretriz neoliberal defendendo a focalização nas intervenções a serem
realizadas no campo social. Assim, qualquer análise sobre esse assunto precisa considerar
175
duas concepções antagônicas e que direcionam formas de intervenções também diferenciadas
de enfrentamento da questão social no que concerne à criança e ao adolescente. De um lado,
temos o que preconiza o Estatuto da Criança e Adolescente, que inaugura a Doutrina da
Proteção Integral em substituição à Doutrina da Situação Irregular, conforme já apresentamos
neste estudo e, de outro, temos o neoliberalismo, que prevê cortes nos gastos sociais e a
diminuição do déficit público. Configura-se, no âmbito do Conselho, o embate entre, de um
lado, uma proposta amplamente inovadora (o ECA) no que tange à defesa dos direitos das
crianças e adolescentes, colocando-os como sujeitos de direitos e dando-lhes prioridade
absoluta, além de estabelecer um sistema articulado de ações (Sistema de Garantias), e, de
outro lado, propostas neoliberais de focalização, ou seja, intervenções voltadas apenas para o
atendimento daqueles que vivem na pobreza extrema.
[...] as políticas deveriam ser para todo e qualquer adolescente [...] (ENTREVISTA Nº 8 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Deveriam ser todas as crianças e adolescentes [...] (ENTREVISTA Nº 14 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] São todas as crianças e adolescentes precisados [...] (ENTREVISTA Nº 10 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
[...] Quando se falava em problema de criança e adolescente, se falava em criança carente
[...] (ENTREVISTA Nº 13 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
As crianças e adolescentes usuários das políticas feitas no Conselho são os que estão na
casa-abrigos, são os meninos de rua [...] (ENTREVISTA Nº 11 – REPRESENTANTE DA
SOCIEDADE CIVIL).
As políticas discutidas no Conselho são para as crianças e adolescentes em situação de risco
pessoal e social [...] (ENTREVISTA Nº 4 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Na pauta sempre estavam as crianças mais pobres, que estavam passando por algum tipo de
problema social [...] (ENTREVISTA Nº 15 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
176
Com a permanência dessa visão, presenciamos um grande desafio para a efetivação do
Estatuto, que deve atender a todas as crianças e adolescentes.
Mesmo conselheiros que disseram que as políticas formuladas pelo Conselho deveriam ser
para todas as crianças e adolescentes ressaltaram, por outro lado, que, devido à própria
conjuntura em que o País se encontra — de agravamento da pobreza e da violência — e à
fragilidade das políticas sociais básicas — que não conseguem promover o atendimento de
forma universal —, algumas crianças sofrem mais com as mazelas da questão social, o que
acaba fazendo com que o Conselho priorize a formulação de ações que busquem resolver ou
amenizar a situação dessas crianças, em particular.
Vejamos, sobre esse assunto, os seguintes excertos das transcrições das entrevistas:
[...] as políticas deveriam ser para todo e qualquer adolescente [...], mas, acaba que as
políticas ficam para as organizações que nos procuram e as instituições que nos procuram
são aquelas que trabalham com os jovens empobrecidos (ENTREVISTA Nº 8 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Naquela época, a política atingia a todos, mas, com certeza, atingia muito mais a população
carente [...] (ENTREVISTA Nº 1 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Deveriam ser todas as crianças e adolescentes [...] a política não deveria ser focalizada [...],
mas o fato é que as crianças que estão inseridas em programas de enfrentamento à pobreza
apresentam uma demanda emergencial para a formulação de políticas públicas [...]
(ENTREVISTA Nº 14 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Nota-se que, historicamente, a política de assistência social foi a mais discutida pelo
CONCAV. Isso fragiliza a efetivação da Doutrina de Proteção Integral, que deve envolver
todas as políticas setoriais (saúde, educação, esporte, cultura, lazer, etc.), acabando por
reforçar a continuidade de duas categorias distintas: o “menor” e a criança: “menor” aqui
designando toda a infância pobre, e opondo-se ao conceito de “criança”, definida como aquela
que vive numa família burguesa. Essa segmentação contribui para que o Conselho não
consiga formular uma política de direitos universais para crianças e adolescentes. A mesma
visão também afeta a implementação de ações mais inovadoras e democráticas no que diz
177
respeito à participação do adolescente no espaço do Conselho, visto que fica comprometida a
perspectiva de cidadania e o reconhecimento do outro enquanto sujeito político, capaz de
estabelecer uma relação direta com os desafios sociais.
5.2.7 – A PARTICIPAÇÃO DO USUÁRIO NO CONSELHO: UMA ALTERNATIVA
VIÁVEL?
Enquanto, no período da ditadura militar, a proposta de participação popular ganhou maior
destaque enquanto estratégia de oposição ao poder estatal, com o processo de democratização,
novos contornos políticos foram dados à relação entre o Estado e a sociedade civil,
resignificando o processo de participação, que então desponta como possibilidade de disputa
de interesses e projetos colocados na arena política e social. Essa nova possibilidade de
participação propicia a presença, nos espaços decisórios do País, de segmentos que dele foram
historicamente excluídos.
No caso particular do Espírito Santo, a voz desses adolescentes muitas vezes foi calada pela
violência e pelo extermínio. A história também nos conta que, mesmo com o processo de
abertura democrática, esses segmentos, muito embora tendo reconhecida oficialmente sua
cidadania, não foram efetivamente convidados a participare a se posicionarem quanto à
discussão e formulação de políticas sociais, ficando os adultos responsáveis por falar pela
criança e pelo adolescente.
O que está em jogo, em última instância, é o tema da democracia e da cidadania [...]
Ninguém que fale de infância, do ponto de vista do paradigma da proteção integral,
deixa de falar em democracia. Mas são poucos aqueles que, falando de democracia,
falam de infância (MENDEZ, 1997, p. 29-30).
178
De fato, essa é uma questão de extrema relevância no âmbito das políticas sociais, visto que o
envolvimento dos adolescentes nos espaços democráticos de deliberação política, como o são
os Conselhos de Direitos, pode possibilitar a transformação do Estado, a superação de seu
caráter autoritário e socialmente excludente.
Inserir o adolescente na vida política, trazendo-o para dialogar, tomar decisões e influenciar a
atuação do poder público incentiva a construção de um projeto democrático-popular e a
organização dos adolescentes enquanto força política transformadora.
De acordo com as entrevistas realizadas, um número expressivo de conselheiros afirmou
concordar com que a participação dos adolescentes no Conselho contribuiria para o
conhecimento das demandas sociais específicas dessa população e para a elaboração de
políticas que alterem qualitativamente a estrutura da sociedade em favor das classes
populares. Vejamos os trechos de entrevistas apresentados a seguir:
Acho que seria muito importante ouvi-los. [...] Ninguém melhor do que eles para mostrar ou
para apontar para a gente o que é deficitário, o que é necessário (ENTREVISTA Nº 4 –
REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Os adolescentes devem participar, com certeza, e nós temos o compromisso de propiciar essa
participação de forma responsável e autônoma [...] (ENTREVISTA Nº 16 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
A participação dos meninos seria um grande avanço para o fortalecimento da democracia
[...] (ENTREVISTA Nº 8 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Eu sou defensora da participação dos adolescentes no Conselho [...] (ENTREVISTA Nº 5 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Tenho trabalhado bastante para isso [a participação dos jovens nos conselhos [...] não só
aquele que está em alguma instituição de atendimento, mas todos os jovens [...]
(ENTREVISTA Nº 3 – REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Todavia, é necessário salientar, que mesmo representando um número pequeno de
conselheiros, existem aqueles que acham que essa participação não seria possível, por conta,
179
principalmente, de uma série de limites colocados à própria participação dos adultos
representantes das entidades, como se pode ver no que segue:
Ele [o adolescente] poderia participar, vamos dizer, como ouvinte. Porque existem alguns
problemas: um seria a manipulação. A manipulação do adolescente não seria nem um passo,
seria menos do que um passo. [...] Outro problema é que a visão dele ainda não é uma visão
completa das coisas [...] (ENTREVISTA Nº 13 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE
CIVIL).
Acho que não. Acho que a participação tem que ser de uma pessoa com uma certa idade, com
estudo, né? (ENTREVISTA Nº 6 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Muito embora esse posicionamento seja minoritário entre os conselheiros entrevistados
(apenas dois do total), sendo expressivamente maior o número de conselheiros favoráveis à
participação do adolescente, mesmo estes conselheiros ainda não conseguem expressar como
se configuraria tal participação, ressaltando a necessidade de se pautar o debate e buscar
experiências positivas e respostas coletivas para essa questão, como se pode observar nas
falas transcritas que vêm a seguir:
Na verdade, achamos todos importante a participação do adolescente. Mas ainda não nos
debruçamos de fato para fazer. [...] Por onde vamos começar? Vamos pegar as entidades?
Quais crianças e adolescentes? [...] (ENTREVISTA Nº 5 – REPRESENTANTE DO PODER
PÚBLICO).
A gente ainda não tem clareza de como fazer isso, de como seria essa representatividade [...]
(ENTREVISTA Nº 9 – REPRESENTANTE DA SOCIEDADE CIVIL).
Talvez pudéssemos criar um fórum dos adolescentes do município [...] mas, será que temos
condições pra isso? Temos disponibilidade pra isso? [...] (ENTREVISTA Nº 14 –
REPRESENTANTE DO PODER PÚBLICO).
Discutir a maneira como aconteceria essa participação é fundamental para que os adolescentes
não sejam encarados apenas como conselheiros a mais no Conselho. Entretanto, sendo esse
espaço uma arena de conflitos e negociações, o adolescente não ficaria imune a esse processo.
Todavia, a atenção deve ser dada para valorizar a crítica e as proposições desses adolescentes,
dando voz ativa para esses atores. Os adolescentes também não podem ser entendidos apenas
180
como inseridos numa entidade, mas sim de forma mais abrangente, sendo, como tais,
incorporados à direção do Estado.
Não podemos imaginar políticas públicas universais e de qualidade se elas não incorporam os
atores mais diretamente interessados devendo essa incorporação acontecer até mesmo nos
momentos de deliberação. Algumas experiências inovadoras já têm marcado o campo da
formulação de políticas para as crianças e adolescentes.
64
As Conferências nacional, estaduais
e municipais são exemplos que merecem destaque, nesse âmbito.
As Conferências são eventos que devem ser realizados periodicamente para discutir e traçar as
diretrizes de implantação das políticas. Portanto, devem influenciar os debates travados nos
Conselhos. Essas Conferências envolvem um número maior de atores ligados à área da
criança e do adolescente e, por isso, possibilitam um debate mais ampliado, que não se
restringe às entidades que têm assento no Conselho.
Por isso, concordamos com Singer (1998), segundo o qual as Conferências devem ser
realizadas partindo-se do princípio de que as pessoas são sujeitos ativos. Por isso, o debate
aberto a toda sociedade nas Conferências parte do pressuposto de que elas devem ser sujeitos
ativos das políticas que os atingem.
As Conferências dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes inovam na medida em que,
paralela à Conferência dos adultos, acontece a Conferência das crianças e adolescentes, que
discutem os mesmos temas e definem prioridades e alternativas de intervenções na realidade
social, tal como o fazem os adultos. Ao final das Conferências, ambos os segmentos etários
apresentam suas discussões e propostas numa plenária unificada e, assim, estabelecem uma
agenda comum.
64
Todavia, ainda são necessários mais estudos para avaliar essas práticas.
181
Dessa maneira, podemos considerar que a participação institucionalizada nos Conselhos deve
dar continuidade a esse movimento maior realizado nas Conferências, além de agregar outras
formas de organização social (movimentos culturais, esportivos etc.). A institucionalização
não deve substituir os movimentos sociais ou tampouco limitá-los a uma participação
meramente formal, visto que, dessa maneira, corre-se o risco de enfraquecer tais instâncias
(BRAVO, 2002).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Só há um meio de sair desse imobilismo, o qual consiste em aprender a conviver
com a democratização da sociedade civil, do Estado e das demais instituições-
chave. Deixar correr a revolução democrática [...] Depois disso a história
encontrará outro percurso, sem precisar curvar-se à retórica, ao delírio e ao
arbítrio dos donos do poder (FLORESTAN FERNANDES).
A primeira preocupação deste estudo foi verificar se a participação política no Conselho de
Direitos da Criança e do Adolescente do município de Vitória tem sido compatível com o
espaço formalmente instituído para tanto.
Foi nossa intenção contribuir para o conhecimento das muitas variáveis sociais, econômicas e
políticas que explicam o desenvolvimento da participação política no Brasil até o momento
recente.
182
Durante nosso percurso, constatamos que há elementos suficientes para sustentarmos a
principal idéia deste trabalho: a de que, embora consideremos o Conselho uma possibilidade
de maior participação popular na direção das políticas sociais e, por conta disso, um espaço
onde podem se manifestar possíveis movimentos de contra-hegemonia dos setores populares,
a participação que historicamente se desenvolveu no locus do presente estudo ainda encontra
uma gama considerável de limites para se consolidar enquanto tal. Dessa maneira, o Conselho
de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória ainda não conseguiu cumprir, de maneira
ampla, a “promessa” de democratização e de maior participação popular no debate em torno
das políticas sociais voltadas para as crianças e adolescentes do município.
Observamos a existência de uma tensão entre, de um lado, a conquista corporificada na
criação do Conselho e no reconhecimento legal do direito à participação da sociedade civil,
com o mesmo poder de decisão dos representantes governamentais, e, de outro lado, a
despolitização dessa participação, tornando-se esta gerencial e funcional à manutenção da
ordem, o que, por sua vez, abafa a existência do conflito e das contradições de interesses entre
classes. Isso porque a lógica gerencial que tem permeado o espaço do Conselho define que a
participação da sociedade está limitada à aprovação e/ou execução das ações sociais já
estabelecidas pelo poder instituído.
Nesse contexto, a despolitização da participação se configura como uma estratégia de controle
da classe dominante sobre aquelas organizações da sociedade civil que historicamente
representaram e lutaram por interesses mais coletivos e democráticos. Essas organizações
tentam resistir bravamente, buscando desencadear processos de lutas sociais que pressionam e
buscam obrigar o Estado e o mercado a absorver certas demandas sociais e incorporá-las
como função do Estado.
No início deste trabalho mostramos a relação que diferentes autores estabelecem entre a
democracia e a participação popular. Identificamos que uns e outros defendem tanto formas
como níveis de abrangência diferenciados para essa participação. Assim, a relação entre o
Estado e a sociedade civil será mais ou menos democrática conforme o sentido que é atribuído
à democracia e à participação popular.
183
Seguimos, ao longo do trabalho, concordando com a reflexão gramsciana a esse respeito,
entendendo que a ampliação do Estado será mais ou menos possível conforme o movimento
histórico da luta de classes e, no caso do Conselho analisado, conforme venha ali a se
estabelecer a correlação de forças.
Mostramos que a democracia política encontra grandes limites para se consolidar em
conjunturas em que não existe a democracia econômica. Dessa forma, a participação da
sociedade no poder envolve a participação popular na propriedade e no consumo, ou seja, na
clássica propriedade dos meios de produção (CASANOVA, 2002). Caso contrário,
tenderemos fortemente a continuar nossa triste história de exclusão, subordinação e negação
da cidadania dos/aos setores populares.
Viu-se também como a formação social brasileira contribuiu para que o desenho das relações
entre o Estado e a sociedade civil ganhasse traços de conservadorismo, autoritarismo e
assistencialismo, e que, na melhor das hipóteses, quando o Estado incorporou algumas
demandas das classes trabalhadoras, o fez sob a forma populista, paternalista e clientelista. Os
setores populares, na maioria das vezes, ou foram completamente excluídos, ou controlados
pelo poder instituído, quando de sua participação nos processos de decisão política. Toda essa
trajetória nos deixou um legado político antidemocrático e antipopular, que hoje “dá as mãos”
à ideologia neoliberal, defensora de um Estado mínimo para o trabalho, para o tratamento da
questão social, e máximo para o capital, favorecendo a elaboração de políticas sociais cada
vez mais fragmentadas e focalizadas na extrema pobreza. Nota-se a implementação de
esforços — de cariz neoliberal e totalitário — de destituição da fala e anulação da política
pelo bloco que esteve e permanece no poder (SALES, 2004).
Também observamos que a Política de Atendimento voltada para a Criança e o Adolescente
transitou de ações de caráter repressor e disciplinador para ações de tutela e caridade, sendo
reconhecidos formalmente os direitos e a cidadania da população infanto-juvenil apenas em
1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O avanço prático da
legislação esbarra no contexto descrito no parágrafo anterior. A Política de Atendimento
preconizada pelo Estatuto oscila entre o direito formal e a violação cotidiana desses direitos,
enfrentando batalhas diárias para radicalizar a cidadania daquele segmento da população.
184
Embora o Estatuto defina uma nova relação entre o Estado e a sociedade civil, através das
mudanças inauguradas na gestão das políticas, como a criação dos Conselhos de Direitos,
constatamos que, no caso de Vitória, essa relação ainda é permeada por estratégias
antidemocráticas de cooptação, participação infreqüente dos representantes do poder público
nas reuniões e defesa de interesses particulares em detrimento da demanda do coletivo
infanto-juvenil. Vale dizer, nessa direção, que essas estratégias estão associadas ao viés
autoritário e excludente da cultura política
65
brasileira, o qual historicamente sempre
concebeu o exercício do poder de modo centralizador e personalista (SALES, 2004).
No que se refere ao debate das políticas para as crianças e adolescentes, vimos um predomínio
de visões que relacionaram os usuários dessa política com a situação de pobreza, o que fere a
própria legislação que destaca que o seu conteúdo diz respeito ao conjunto das crianças e
adolescente, independentemente da classe social a que pertençam.
A inclusão do princípio da participação popular na formulação e no controle das políticas foi
um avanço da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente. O
Conselho se apresenta enquanto um espaço importante, mas não o único para a radicalização
da democracia. Todavia, conforme já apresentado, encontra-se ameaçado, principalmente no
atual cenário de ofensiva neoliberal.
Os Conselhos, expressão dos anseios dos movimentos sociais na década de 1980, encontram-
se hoje num contexto completamente adverso à democracia em seu sentido mais direto,
relacionado a participação real (DALLARI, 1985) dos setores populares.
Mesmo frente a essa conjuntura adversa, tivemos, no município de Vitória, uma intensa
mobilização e articulação dos movimentos sociais em favor dos direitos da criança e do
65
“[...] definimos cultura política como a construção social particular em cada sociedade do que conta
como ‘político’. Desse modo, a cultura política é o domínio de práticas e instituições, retiradas da
totalidade da realidade social, que historicamente vêm a ser consideradas como propriamente
políticas (da mesma maneira que outros domínios são vistos como propriamente ‘econômicos’,
‘culturais’, e ‘sociais’). A cultura política dominante do Ocidente foi caracterizada como racionalista,
universalista e individualista” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 26).
185
adolescente, movimentos esses que já vinham participando de debates e discussões em torno
da Constituição e do Estatuto. Vimos que toda essa movimentação contribuiu para a criação
do Conselho Municipal de Direitos.
A participação dessas entidades — que se envolveram em todo esse momento de luta por
interesses populares e coletivos — no Conselho acaba, hoje, esbarrando no conjunto das
demais entidades que estão voltadas aos seus particularismos. Defender o caráter público da
política, fortalecer nos Conselhos o debate democrático dessas políticas, buscar a
radicalização da democracia — tudo isso significa remar contra a maré, enfrentar obstáculos
econômicos, políticos e culturais seculares e atuais do Estado e da sociedade brasileira. Não
se trata de uma tarefa simples.
Mas, se essa é a realidade encontrada no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de
Vitória, será que esse espaço ainda carrega em si a promessa e o potencial de democratização
e maior participação popular?
Acreditamos que uma democratização pura e simplesmente instituída não resolve os
problemas estruturais uma sociedade. A grande questão é não entender a democracia apenas
como a simples refundação da ordem democrática, e sim como um exercício cotidiano
exercido por todos os cidadãos.
Acontece que uma coisa é conceber a democracia como um método para a
formulação e tomada de decisões no âmbito estatal; e outra, bem distinta,
imaginá-la como uma forma de vida, como um modo cotidiano de relação
entre homens e mulheres que orienta e que regula ao conjunto das
atividades de uma comunidade. Estou aludindo ao contraste entre uma
democracia governada e uma democracia governante, isto é, genuína
(NUN, 1989, p. 61).
Ao valorizarmos a democracia, não aderimos a uma visão minimalista a seu respeito. Sua
análise não pode deixar de lado questões fundamentais como conflito social, a luta de classes,
o capitalismo e as desigualdades (BORON, 1994).
186
A consolidação da democracia se encontra, então, numa relação mais densa, que não se esgota
nos processos eleitorais nem se limita a estratégias de conquista do Estado. Antes, requer a
criação de condições sociais, culturais, econômicas, administrativas e políticas necessárias à
institucionalização de direitos sociais e econômicos, além de pressupor, principalmente, a
participação da sociedade e também a sua transformação (SALES, 2004).
Nessa perspectiva, a democracia precisa ser resgatada enquanto valor universal (COUTINHO,
2000), abandonando-se o seu sentido meramente formal e estritamente relacionado à
instrumentalização burguesa.
Diante dessas proposições os Conselhos devem ser entendidos como espaços contraditórios,
de disputa entre projetos. A análise crítica desse espaço deve instigar a construção de uma
intervenção transformadora, estabelecendo estratégias de enfrentamento à institucionalidade
burguesa. As classes populares, os usuários das políticas, precisam se apropriar daqueles
órgãos, promovendo a articulação de vários atores em torno das demandas coletivas.
A participação no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente pressupõe uma atuação
crítica-propositiva, no sentido de mudar a agenda do governo municipal e avançar na
inovação das políticas públicas. A Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente deve
ser definida a partir do embate de interesses divergentes, na arena de conflitos existentes no
Conselho.
Partindo dessa consideração, apontamos algumas estratégias que podem contribuir para o
fortalecimento político do Conselho e a viabilização de uma gestão democrática e
participativa:
Faz-se fundamental a existência de um fórum de entidades, capaz de
controlar e respaldar as ações do Conselho, para que este se torne legítimo
frente ao Estado e politicamente forte. As entidades que atuam no Conselho
precisam promover o debate ampliado das questões suscitadas nesse
espaço, exercendo uma representação social que não seja personalizada e
187
sim subsidiada por debates mais amplos, capazes de expressarem não
apenas as demandas dos segmentos que representam e garantirem o debate
democrático dentro do próprio Conselho.
A articulação com os demais conselhos setoriais do município, com o
Conselho Estadual e com os Conselhos de outros municípios também se faz
recomendável, na medida em que poderá propiciar uma ação integrada e
verdadeiramente articulada, assim reforçando a concepção de Proteção
Integral e do Sistema de Garantias preconizado pelo ECA.
Não basta o Conselho ser paritário apenas numericamente. Sua paridade
também deve ser política, ou seja, paridade na representação – igualdade
nas possibilidades de afetar o resultado da deliberação (TATAGIBA, 2002).
Também se faz necessário viabilizar condições para a participação dos
adolescentes com poder de voto no âmbito do Conselho. Além disso, os
conselheiros precisam fortalecer a articulação com suas bases e com os
movimentos sociais que atuam em prol da democracia e da cidadania.
Para que tudo isso se viabilize, é imprescindível a efetiva capacitação do
conselheiro, no sentido de legitimar sua representação enquanto agente público.
Ressalte-se que, para o pleno funcionamento do Conselho de Direitos, qualquer
ação deve levar em conta, acima de tudo, a busca pela efetiva materialização do
Estatuto da Criança e do Adolescente e o processo de construção da democracia.
Finalizamos este trabalho resgatando novamente Gramsci (2002): olhando a
realidade de maneira crítica e, por isso, com certo pessimismo, mas reforçando o
otimismo da vontade, considerando que é possível firmar um movimento diferente
dentro do Conselho.
A transformação radical da sociedade em que vivemos se apresenta como nosso
maior horizonte, que move os nossos estudos e as nossas lutas por uma nova
sociedade mais justa e igualitária. Frente a isso, devo expressar o meu lamento por
188
aqueles que, diante de tantos ataques e poucas vitórias, se convenceram pelo
discurso determinista e imobilista.
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202
APÊNDICES
APÊNDICE A
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Dados de identificação
Nome:
Ano em que participou do Conselho:
Entidade que representava:
203
1 – Fale um pouco sobre o seu envolvimento com a questão da criança e do
adolescente:
2 – Você participava de algum movimento social? Se sim, qual? Quando se deu
essa participação?
3 – Que razões levaram a sua entidade a se candidatar ao assento no Conselho?
4 – Por que razão você foi escolhido(a) para representar a entidade?
5 – Como você via o Conselho e o seu papel de conselheiro?
6 – O que significou, para você, participar do Conselho?
7 – Como você avalia a sua participação naquele momento?
8 – Para você, o que é democracia?
9 – O que você entende por participação política?
10 – Existiam, a seu ver, alguns fatores que dificultavam a participação? Se sim,
quais eram eles?
11 – Quais fatores eram favoráveis a sua participação?
12 – Como você percebia a atuação do Estado e da sociedade civil no Conselho?
13 – Como era a relação entre as duas esferas?
14 – Como era o envolvimento da sua entidade/secretaria nos assuntos do
Conselho? Havia algum tipo de preparação anterior à reunião? As discussões eram
repassadas para a entidade?
15 – Para você, quem são a criança e o adolescente usuários das políticas sociais?
16 – Você imagina alguma forma de esses usuários participarem das decisões do
Conselho?
17 – Isso era possível na época em que você foi conselheiro?
APÊNDICE B
Termo de consentimento
Senhor (a):
Através deste termo de consentimento, venho solicitar sua participação em uma
pesquisa que tem por finalidade conhecer o desenvolvimento da participação política
dos conselheiros no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Vitória.
Esse estudo servirá de subsídio para diversas gestões públicas, possibilitando que
204
os sujeitos envolvidos nesse processo repensem a sua participação e seu papel de
agentes públicos, no sentido de construir uma agenda pública condizente com os
interesses e necessidades da coletividade.
Caso concorde em fazer parte dessa pesquisa, ser-lhe-ão feitas perguntas sobre o
tema citado, e sua entrevista será gravada para facilitar a análise dos dados. Fique à
vontade para esclarecer, a qualquer momento, as suas dúvidas. Ao final, os
resultados da pesquisa serão divulgados, preservando a identidade dos
entrevistados.
Este estudo faz parte de uma dissertação de mestrado, realizada pelo Programa de
Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) da Universidade Federal do Espírito
Santo.
Atenciosamente,
Juliana Iglesias Melim
Assistente Social/ mestranda do PPGPS
Dr. Izildo Corrêa Leite
Orientador e professor do PPGPS
Assinatura do participante: __________________________________________
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