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A rua da Conceição é desconfiada, como que tem sempre o olhar à espreita,
a navalha à mão, o pé ligeiro pronto para saltar e fugir. Não fala — murmura,
cochicha, em gíria arrevesada. E maltrapilha e zambra, arrasta andrajos e oscila.
A praia de Santo Cristo tem o aspecto sadio de uma varina, criada
livremente, à fresca e salitrada aragem marinha, diante da vaga, sempre a coser os
panos das velas, abrindo-as ao vento ou compondo as malhas das redes que um
repelão mais forte do peixe, no mar fundo, rompera em noite farta. A sua linguagem
é rude como o fragor da onda na rocha, o seu olhar é límpido e seguro como o do
mareante; tresanda à maresia. A sua força é a do vagalhão. Calma, tem o encanto
da água serena em noites de luar, mas quando se insurge alvoroçada, quando se
põe de pé, brandindo facas agudas e croques, remos e velhas bancadas de canoas
roídas pela onda, esquecidas junto às dunas, apodrecendo ao tempo, tem a fúria
irreprimível do mar tempestuoso.
A rua Haddock Lobo, com o seu ar repousado e feliz de velha senhora
abastada, que dormita à sombra de árvores, entre crianças gazis e flores
recendentes, digerindo, em sossego beato, sem cuidados, sem achaques, é calma e
transmite ao espírito suavíssima idéia de descanso espiritual e de corpo, no
imperturbável silêncio das suas aléias no frescor das suas finas águas correntes.
A rua do Ouvidor é trêfega. Durante o dia toda ela é vida e atividade,
faceirice e garbo; é hilare e gárrula; aqui, picante; além ponderosa; sussurra um
galanteio e logo emite uma opinião sisuda, discute os figurinos e comenta os atos
políticos, analisa o soneto do dia e disseca o último volume filosófico. Sabe tudo — é
repórter, é lanceuse, é corretora, é crítica, é revolucionária. Espalha a notícia, impõe
o gosto, eleva o câmbio, consagra o poeta, depõe os governos, decide as questões
à palavra ou a murro, à tapona ou a tiro e, à noite, fatigada e sonolenta, quando as
outras mais se agitam, adormece. Ouve-se apenas o rumor constante dos prelos
nas oficinas dos jornais. É a rua que digere a sua formidável alimentação diária para,
no dia seguinte, pela manhã, espalhar pelo país inteiro a substância que compõe a
nutrição do grande corpo, cada parte para o seu destino. Para o cérebro: as idéias
que são os incidentes políticos e literários e as descobertas científicas, essas ficam
com a casta dos intelectuais; o sentimento para o coração, que é a mulher; essa tem
o romance e a esmola, o lance dramático e a obra de misericórdia; o movimento dos
portos e das gares para o ventre e para os braços do povo que devora e do
comércio que abastece e o resíduo que rola, parte para os cemitérios, parte para os
presídios mortos e condenados. Outros que analisem a carta completa da cidade, eu
fico nesta exposição.
Anselmo seguiu pensando no encontro. No largo de S. Francisco todos os
quiosques conservavam-se apagados. Tomou pela rua do Teatro, também escura.
Os respiradouros do S. Pedro brilhavam, homens debruçados às janelas fumavam,
passavam senhoras despindo capas. Num hotel ressoava a harpa de um pequeno
italiano e a rabequinha da irmã desafinava dolorosamente como se, a custo, àquela
hora da noite, depois de todo um dia de afã, de hotel em hotel, de esquina em
esquina, arranhado insistentemente pelo arco, o instrumento, irritado, recusasse o
som.
No largo do Rocio era grande o movimento. Os cafés regurgitavam — era o
povo dos domingos: o operário, o caixeiro, o marujo, aproveitando, com ânsia, o dia
de folga. Vinham do campo, chegavam dos subúrbios fartos, alegres; uns que
haviam apostado, com felicidade, nas corridas; outros que se haviam banqueteado,
num canto rústico de arrabalde, à sombra da latada verde e iam acabar a noite no
teatro, aplaudindo atrizes, cobrindo o palco de flores, rindo, saciando um desejo