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Universidade da Amazônia
A Conquista
de Coelho Nettode Coelho Netto
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal
CEP: 66060-902
Belém – Pará
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2
A Conquista
de Coelho Netto
AOS DA CARAVANA
Entre os celtas, nos tempos rijos e sanguinários, quando, pelas agrestes
montanhas, dia e noite, atroavam buzinas roucas conclamando os guerreiros para a
defesa da pátria ou para a partilha dum gamo, enquanto as facas iam talhando a
selvagina, ao clarão rubro da fogueira, os file, com os olhos no céu, correndo os
dedos ágeis pelas cordas da harpa, recontavam os feitos dos heróis, as
beneficências dos gênios e as maravilhas excelentes da terra farta e amável.
Os file eram a "memória" da raça.
Porque ainda não surgira o artista imortalizador que gravasse na pedra
eterna ou inscrevesse na folha destrutível a tradição nacional, os file guardavam na
memória, transmitindo, de homem a homem, não só os hinos improvisados pelos
bardos como as lendas do gênio popular, e a história, conservada nesses
monumentos orais, ia dum a outro, como a chama dum círio passa a outro círio.
Dividiam-se os file em dez categorias, desde o oblairo, que apenas sabia
sete histórias, até o ollam que repetia de cor trezentas e cinqüenta.
Este livro, amigos meus, é mais vosso do que meu, porque na sua
composição entrou apenas a minha memória. Como o ollam venho contar aos que
surgem a odisséia da nossa mocidade.
Triste, triste foi a nossa vida posto que, de longe em longe, como um raio de
sol atravessando nuvens tempestuosas, o riso viesse palidamente à flor dos nossos
lábios. Mas chegamos, vencemos... Deus o quis! E, se ainda não tomamos de
assalto a praça em que vive acastelada a indiferença pública, já cantamos em torno
e, ao som dos nossos hinos, ruem os muros abalados, e avistamos, não longe, pelas
brechas, a cidade Ideal dos nossos sonhos.
Mas no dia em que nela pudermos entrar vitoriosos, pisando a verde, macia
e cheirosa folhagem, indo repousar à sombra das árvores, perto da frescura e do
murmúrio da água, nesse dia, reunidos pela saudade, sacrificaremos, com religioso
sentimento, aos manes dos que ficaram adormecidos à sombra dos ciprestes.
É vosso todo este livro, meus amigos. Eu vim seguindo a caravana que a
Musa precedia, cantando, como Minam, à frente de Israel, no êxodo. Vim seguindo e
apanhando pelo caminho saibroso e seco as gotas de sangue, as gotas de lágrimas,
as estrofes sonoras, os arrancados soluços e os suspiros que deixáveis e, durante a
marcha, só três vezes paramos, com as liras caladas, os olhos lacrimejantes, para
guardar na terra santa os que caíam.
Já lá vão quinze anos de sonhos e de sofrimentos!
Eis-nos acampados diante da cidadela e que temos nós? Que tesouro
possuímos depois de tão árduo combate? Temos ainda, e só, a moeda com que nos
lançamos à aventura: Esperança, e alguns louros na fronte: os primeiros cabelos
brancos. Enfim...! Já é muito não havermos perdido a Esperança.
O ollam vai falar. Sursum corda!
C.N.
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CAPÍTULO I
A manhã tépida, rosada e ressoante — porque os sinos badalavam
festivamente em todos os campanários iluminados pelo sol magnífico dum sábado
de verão — tinha para Anselmo um encanto novo. Seus vivíssimos olhos pardos,
fulgurantes como os dos tigres, filtravam, através das lentes do pince-nez, a alegria,
toda espiritual, que lhe ia na alma. Errando pelo céu muito azul, repousando na copa
frondosa das árvores do parque onde cantavam, à compita, cigarras e passarinhos,
deslizando pela verdura macia dos tabuleiros, boiando nas águas quietas, lisas,
espelhentas dos lagos, raro em raro frisadas pelas palmouras dum cisne, que ia
airosamente da margem à ilha, tão sereno como se vogasse ao som da correnteza,
não viam seus olhos senão a casa para onde o levavam ansiosamente os passos
sôfregos, do outro lado do parque, perto dos Bombeiros.
Que lhe importava o esplendor da manhã se outro maior lhe estava
reservado além daquelas grades, num retiro maravilhoso de Arte, povoado de
mármores divinos, como um templo?
Ali, sim! Dilataria a alma sequiosa e seus olhos teriam a desejada visão
duma oficina sagrada. O soalho, de caprichoso e miúdo mosaico de madeira,
encerado, luzidio, devia ser forrado por um largo tapete de altas felpas moles,
semeado de flores, por entre as quais ninfas, graciosamente nuas, andassem
fugindo aos egypans, não porque os temessem, senão para que, demorando a
posse, mais os desejos neles inflamassem.
Nas paredes preciosos e raros gobelinos, panos da Ásia, de seda e ouro,
com deuses truculentos e aves abrindo caudas imensas resplandecentes, oculadas
de ouro. E telas de artistas célebres sóbrias; bronzes e mármores, panóplias de
armas autênticas, uma severa biblioteca de madeira negra sabiamente abastecida, a
mesa, vasta e pesada, manuelina; cadeiras altas como faldistórios e, acima da
mesa, suspenso do teto por uma grossa corrente de velhíssima prata, a lâmpada
serena das meditações.
Assim imaginava Anselmo a casa de Ruy Vaz, à qual se dirigia pela primeira
vez.
Conhecera o romancista na rua do Ouvidor, dias antes, e ia vê-lo na
intimidade do gabinete, nas suas vestes maneiras de trabalho.
Ia penetrar esse ádito em que habitava o escritor que ele seguia de longe,
enamoradamente, quando o via passar na multidão com grandes olhos femininos,
de longas, sedosas e curvas pestanas, sempre enevoados de sonhos, cofiando o
bigode negro, num andar rápido como se sempre fosse à pressa anotar uma idéias,
registrar uma observação, rematar uma página, esboçar um romance, consultar uma
nota. E tinha revoltas violentas vendo a indiferença da multidão que nem sequer
abria alas ao autor de tantas e tão soberbas páginas humanas.
Seguia e, se fosse a uma apetitosa aventura de amor, discreta e arriscada,
sorver extasiadamente o primeiro beijo criminoso, enlaçar, com ânsia, o corpo
branco e fragrante, molemente lânguido, da mulher amada, não levaria o coração
tão sobressaltado. Quando passou o portão deteve-se um momento ao sol,
hesitante. "Mas àquela hora o romancista devia estar almoçando..."
Uma corneta soou gravemente, em notas prolongadas e o dobre de um sino
passou rolando nos ares lúcidos. Meio-dia!
Atravessou a rua e, de olhos altos, consultando as placas, parou diante de
um largo portão que, abrindo sobre um pátio ladrilhado, dava ingresso à casa, de
dois altíssimos andares.
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Um homem barbado, em mangas de camisa e descalço, varria
preguiçosamente a entrada, com a cabeça derreada, um olho fechado para evitar a
fumaça do cigarro que lhe rolava, úmido, nos beiços. Anselmo abordou-o:
— Não mora aqui o senhor Ruy Vaz? O homem cuspiu para um lado a ponta
do cigarro e, levantando a cabeça hirsuta e ruça de poeira, encarou o estudante com
indiferença:
— Quer falar ao senhor Ruy Vaz?
— Sim.
— É por aqui, a terceira porta. E, enristando a vassoura, indicou uma
passagem estreita ao lado da escada que levava aos pavimentos superiores. Com a
direção indicada, Anselmo dirigiu-se a um corredor cimentado onde amareleciam
pontas de cigarros, ao longo do qual corria uma banqueta de tinhorões que o calor
escaldante da hora amolecia. Seguindo, metia os olhos indiscretos por todas as
janelas, surpreendendo interiores modestos: camas desfeitas, mesas abarrotadas de
livros, malas aos cantos. Em um deles um estudante, em camisa, com as pernas
nuas, curvado diante de um lavatório de ferro, fazia o laço da gravata ao espelho,
enquanto outro, moreno, de óculos, ia e vinha alarmando o silêncio com um vozeirão
tormentoso à medida que escovava, com fúria, o casaco que sustentava nas mãos
suspenso pela gola:
A vindima eis terminada
É beber, toca a beber!
Mentalmente Anselmo concluiu a copla da opereta:
Boa pinga preparada
Vai provada agora ser.
Justamente chegava diante da janela que arejava e iluminava o retiro
espiritual do romancista. Deteve-se e o sangue, violentamente sacudido pelo choque
duma grande surpresa, estuou-lhe no coração.
Ó sonho! Ruy Vaz ali estava, não como um deus no santuário venerável,
mas homem, simples homem, modesto e pobre, entre móveis reles, de calças de
brim, camisa de cetineta aberta no peito, curvado sobre a bacia do seu lavatório de
vinhático escovando os dentes com fúria.
Ao centro da sala a mesa acumulada de livros e de papéis, duas estantes de
ferro, a cama ao fundo e as paredes nuas, tristemente nuas como as da cela de um
monge.
O estudante, passada a primeira impressão, sentiu-se mais à vontade.
Aquela singeleza ascética tornava o homem mais acessível, humanizava o deus e,
repentinamente, como nesse relâmpago cerebral dos moribundos que revêem a vida
inteira no transe extremo da agonia, Anselmo lembrou-se dos grandes escritores:
Camões, seguindo lentamente as ruas de Lisboa na fria, nevada tristeza das
manhãs de inverno, estendendo a mão gloriosa e forte da pena e da espada à
caridade; Cervantes, encolhido num cárcere, com um cantil e um pão; Shakespeare,
sofreando os cavalos das seges à porta dos teatros e, mais próximo, o dulcíssimo
Lamartine acabrunhado e esquecido; Balzac decompondo o cérebro para abrandar
os credores que o perseguiam implacavelmente; Murger acabando na triste sala
dum hospital e.
— Oh!
— Bom-dia!
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— Entra. Vendo-o, Ruy Vaz precipitou-se para a porta arrastando chinelas e
convidou-o descerimoniosamente: Entra... Então? Ofereceu-lhe uma cadeira.
Anselmo, porém, repousando o chapéu sobre a mesa, ia sentar-se em outra, mas o
romancista opôs-se:
— Essa, não! Joga muito, é o meu navio. E a cadeira das sensações de
aventura e um edificante exemplo dos funestos resultados do vício. Serve para dar-
me a ilusão das grandes viagens pelos mares fortes e, ao mesmo tempo, previne-
me contra as bancas. Joga tanto que até perdeu os fundos. Que há de novo? Está
um dia magnífico para um passeio ao campo. Atulhou de fumo um cachimbo,
repoltreou-se na sua cadeira de trabalho, esticou as pernas, cruzou os pés e ficou-
se baforando.
Anselmo achava-o íntimo demais. A sua mobília não era das mais preciosas,
isso não era, mas o talento dava-lhe direito a uma restiazinha de orgulho; era,
entretanto, de tão lhana franqueza, de tão simples camaradagem... Ainda orgulho,
pensou o estudante. O romancista, notando-lhe a timidez e o vexame, queria pô-lo à
vontade. Magnânimo, isso sim; magnânimo como um leão.
— Vim interromper o seu trabalho, disse Anselmo tomando da mesa uma
espátula de osso.
— Não, por hoje tenho a minha conta. Ia agora justamente fazer o meu
pequeno passeio à chácara. Quer vir?
Pois não. Saíram seguindo para o fundo da casa. O que o romancista
chamara pomposamente, imaginosamente "chácara" era um terreno bravio, que
fora, em tempos mais prósperos, jardim cheiroso e de trato. Um caramanchel, sobre
o qual alastrava, viçosa, a verde folhagem de uma passionaria, fazia uma arcada
rústica dando passagem para esse canto isolado e mudo de meditação e entulho.
Ao centro, sitiado pelo mato daninho, velho tanque escalavrado e seco, com um
outeirinho ao meio de onde subiam, largas e duras, as folhas de ferro de uma planta
que, outrora, esguichara a água sussurrante por um bico insinuado entre as hastes
derreadas e enferrujadas. Um banco forrado de conchas, com assento de mosaico,
escaldava ao sol, junto ao muro; outro fronteiro, resguardado pela ramada frondosa
dum tamarindo, com muita erva em torno e, derrubado, meio oculto pelas ervas, um
hércules de louça, fendido e enegrecido, com a pele do leão sobre os ombros, um
coto da massa ao punho, em atitude contemplativa, jazia em esquecimento triste.
Os olhos alcançavam os fundos das casas vizinhas: janelas abertas à luz,
chaminés fumegando, mulheres debruçadas falando para os quintais; e, de instante
a instante, cortava fundamente o silêncio o grito de uma araponga, metálico como a
pancada sonora e ressoante do malho na bigorna. Sentaram-se os dois e Anselmo
pôs-se a falar saudosamente da terra amada e longínqua, berço de ambos,
província farta que é um celeiro e um Parnaso onde, com a mesma exuberância,
pululam o arroz e o gênio; terra de algodão e de odes donde; com ingrata
indiferença, emigram os fardos para os teares da América e os vates para a rua do
Ouvidor; terra das líricas, terra das palmas verdes, terra dos sabiás canoros.
O romancista ouvia a facúndia do patrício, fumando com a impassibilidade
de um turíbulo, os olhos altos como se seguisse um sonho. O silêncio de êxtase em
que ficou foi interpretado pelo estudante como uma prostração de saudade.
Ele fora despertar na alma do patrício a nostalgia que o tempo consumidor
havia esmaecido, lembrando-lhe a terra nativa onde lhe haviam corrido os dias da
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infância, onde haviam rolado as suas primeiras lágrimas. Céus que seus olhos
lânguidos tanto namoraram nas doces manhãs cheirosas quando, das margens
remotas dos grandes rios vinham, em abaladas, brancas, sob o azul macio, as
garças peregrinas; campos de moitas verdes onde, nas arroxeadas tardes
melancólicas, ao som abemolado das flautas pastoris, o gado bravio, descendo das
malhadas, em numeroso armento, junto, entrechocando os chifres aguçados, mugia
magoadamente quando, por trás dos serros frondosos, lenta e alva, a lua subia
espalhando pela terra morna o seu diáfano e pálido esplendor; frescas ribeiras,
sonorosas onde o mururu expande o seu aroma, à noite; serras e alcantis agrestes,
sítios do alto sertão, cabanas hospitaleiras das estradas, noites de idílio, noites de
festa... Ah! Tabaroas morenas de olhos negros, colos que cheiram como baunilhais,
bocas que recendem mais que bogaris... Ah! Minha terra! Cantilenas de amor junto à
fogueira, balsas vogando rio abaixo, ao sabor da corrente... Ó tempos nunca
esquecidos! Ah! Minha terra!
Dois pombos passaram no ar batendo as asas.
— Em que pensa? — perguntou Anselmo.
— Na minha terra. Enfim... que hei de fazer se o coração entende que,
apesar de tudo, hei de ter saudades dela.
— Apesar de tudo... Tem então alguma queixa?
— Se tenho alguma queixa?! Da terra, não: dos homens, muitas. Depôs o
cachimbo e, miudamente, em narração sentida, recapitulou a sua história de
sofrimento e heroísmo. Primeiro no comércio, vida acabrunhadora e rude, toda
material. De manhã, à hora dormente d'alva, quando ainda, com a luz dourada que
nasce, brilha a pálida estrela, de pé, os olhos mal abertos, lá ia varrer os cantos da
casa, espanar o balcão, os móveis e arrumar à porta as amostras. Depois todo um
longo dia a servir, entre o tédio dos fregueses e a grosseria dos patrões, ganhando
apenas o alimento escasso que parecia ser dado como esmola. À noite, num quarto
abafado sobre uma enxerga, com uma candeia lúgubre, enquanto os companheiros,
extenuados, roncavam trovejantemente abalando o tabique, entregava-se à furtiva
leitura. Lia, lia sem ouvir os sinos da Sé que, no silêncio adormecido, gravemente
anunciavam as horas. Lia, mas com que receio, estremecendo ao menor ruído,
preparando-se para soprar a candeia a fim de que o não apanhassem em flagrante
de tão nefando crime. E os galos cantavam, rompia a manhã. Cerravam-se-lhe,
então, as pálpebras. Mas um dos companheiros, que dormira balordamente a noite
toda, ia arrancá-lo ao leito impelindo-o para a vassoura com o pulso acostumado às
arrobas dos fardos.
— Eh! Molenga! Quem sabe se temos aqui um filho de morgado!
Só aos domingos dava um pulo à casa e, com o rosto no colo maternal,
soluçava, sentindo uns dedos brandos e carinhosos andarem-lhe pelos cabelos e,
de vez em quando, um beijo na fronte. Mas quando os lábios fugiam, no ponto em
que soara o beijo, lágrimas ficavam.
Mas quis Deus que o livrassem do tormento — lá foi aos estudos e, à
medida que no Liceu escutava a palavra lenta de Sotero, o mestre amigo que sabia
de cor Horácio, Ovídio e Virgílio, no atelier de um artista passava as horas de folga
familiarizando-se com o desenho: estirando as primeiras linhas, contornando
imagens, debuxando academias, entre esboços de telas, estudos, manchas, até
que, um dia o mestre, dando-lhe tintas, uma tela nova e liberdade, escancarou a
porta larga do atelier que abria para um terreno amplo, mostrou-lhe a Natureza, a
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esplêndida e viva Natureza na sua agitação alegre, num esplendor de cores, numa
harmonia de sons e disse-lhe: trabalha! Foi nesse dia de deslumbramento que ele
sentiu no coração o surto artístico. Era a vida. Trabalha!
E, maravilhado, dilatando os olhos e lançando-os livremente pelas
aveludadas relvas, pelas frondosas copas do arvoredo, pelas águas claras que
fugiam e pelo céu alto, magnífico, de um azul forte, sem mancha de nuvem, tomou
dos pincéis e, febrilmente, com enlevo, foi transportando a Natureza, tal qual a via
ao ar livre, sem sentir o ardor cáustico do sol que lhe dourava a cabeça ardente. De
quando em quando ouvia a voz animadora e simpática do velho mestre: "Trabalha!"
Ele não precisava que lhe dissessem — era com ânsia que ali estava,
possuído, num delírio, como se receasse que a tarde viesse rápida e apagasse
aquelas cores admiráveis que eram as galas da terra e as maravilhas do espaço.
Ainda uma vez, porém, a sorte foi-lhe ingrata e adversa. Uma manhã, desolada
manhã!
Os sinos dobraram de espaço a espaço, lúgubres, e, rápida, correu a notícia
da morte do pintor.
Tinha em tão alta consideração o mestre que não se contentou com os
ofícios fúnebres que celebraram em duas ou três igrejas, com órgão, mas,
culturalmente, porque lhe faltava quem, com resignação, se prestasse a ser vitimado
com um golpe de faca, à maneira gaulesa, sobre a laje branca e fria do túmulo do
artista, tomou dum metro de tela e, rebuscando na história do mundo um episódio
que lhe fornecesse farta mortalha, achou a revolução francesa que, prodigamente,
lhe cedeu a hóstia desejada.
Pôs-se então a pintar com abundância de vermelhão da China. Escolheu
uma rua da velha Paris, apertada e sombria. As casas, altas, de quatro e cinco
andares, desaparecem sob o acúmulo de mortos, porque há cadáveres até ao alto
das goteiras. Aqui, os pés de um patriota; ali, a cabeça de uma criança; além o
ventre estripado de uma mulher; e, saindo da hecatombe, hirto como um fueiro, o
braço de uma das vítimas ameaçando a tirania. O fundo do quadro ablativo, de
perspectiva trágica, é um coágulo de sangue, expressão, em rubro, do anunciado
jour de gloire.
O quadro tem gênio, o que o mata é o zarcão hemorrágico. É um necrotério.
O autor tinha vinte anos e, nessa idade, quem faz questão de mais ou de menos
mortos? Ele queria o grandioso e atirou à tela toda a população da França
espatifada, a população da França e gente das colônias, porque há lá um pé,
certamente da Martinica, muito em destaque no sarapatel heróico.
Exposto o quadro foi tão grande o espanto que a cidade ficou deserta como
um cemitério e os mortos foram transferidos para o gabinete do artista, onde
esperam o juízo final.
Por esse tempo andavam-lhe no cérebro umas idéias novas e um impulso
novo levava-o a outros exercícios mais intelectuais que o do pincel. Em abandono
desolado, sem o conforto do mestre, refugiou-se no seu gabinete donde, como um
profeta vingador, vivendo em cenóbio para fugir aos vícios torpes do mundo e às
seduções do pecado, mandava, em largas páginas, nervosamente escritas à luz
serena da Moral, a terrível e fulminante "polêmica" contra os padres que, de batina
arregaçada e solidéu relambório posto à banda, com ares devassos e desabridos de
capadócios, iam anuviando as almas simples com pregações obscuras quando a
quaresma fúnebre chegava, enchendo a cidade de melancolia e dum cheiro insípido
de incenso.
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A clerezia uivou e uivaram as classes conservadoras. O jovem demagogo
era olhado com asco pela gente pacata e as velhas, se, por acaso, viam-no passar,
caminho do jornal, que era o oráculo de onde ele anunciava os crimes dos intrujões
de sotaina, que tocavam para o arrabalde, em noites claras, com mulherio e vinhaça,
bebendo e folgando até à hora em que o sol os devia trazer humildemente,
santamente, aos confessionários, as boas velhas, se o viam passar, procuravam,
trêmulas e aflitas, as contas dos seus rosários e pediam a graça de Deus para
aquele espírito endemoniado.
A celeuma foi grande e redobrou de violência quando, inesperadamente, ele
atirou ao meio pacato, como uma bomba, o seu primeiro romance, libelo formidável
contra o preconceito. As famílias bradaram, o comércio rugiu, a clerezia esbravejou
e um jornalista dos mais conspícuos, ferreteando-o com a vilta de "zote", conjurou-o
a deixar "a vidinha peralvilho de escritor indo, de preferência, para a foice e o
machado. Já que tanto amava a natureza e não acreditava na metafísica, nem
respeitava a religião, tendo entusiasmo apenas pela saúde do corpo e pelo real
sensível ou material, que se fosse a cultivar as terras ubérrimas". E clamava,
terminando: "À lavoura, meu estúpido! À lavoura! Precisamos de braços e não de
prosas em romances." E, conceituosamente, em rasgo de sabedoria, perorou: "Res
non verba." E o jornal em que saíram estas palavras tinha, no cabeçalho, em
grandes letras gordas, o preclaro e sugestivo título de: Civilização.
Apesar dos acirrados vitupérios da crítica e dos esconjuros indignados do
beatério o livro teve saída: em menos de um mês esgotaram-se mil volumes e, na
capital, um brado uníssono saudou triunfalmente o romancista que, desde então,
não teve outro pensamento senão o de transportar-se ao Rio de Janeiro, com o
produto da venda do seu livro maldito.
E fez-se de rumo para o Rio, a cidade ideal dos que têm na alma uma
aspiração. E como ele a divisava através da fantasia! Uma cidade suntuosa, culta,
intelectual e nobre, onde os artistas eram olhados com admiração e respeito, como
em Florença, no tempo dos Médicis, quando, diante de Cosme, o Magnífico, Miguel
Ângelo animava com o seu cinzel vital os mármores impassíveis e fazia irradiar a
tela com a magnificência grandiosa das suas tintas.
Logo que saltou no cais com as malas e a tela sanguinolenta que recebera,
para todos os efeitos, o título de A Barricada, sentiu grande peso no coração e os
olhos foram-se-lhe saudosos pelo mar imenso. Vago pressentimento de infortúnio
punha-lhe densas névoas na alma, mas a grande luz animava-o — reconhecia o
céu, reconhecia o sol, eram os mesmos, que lhe importava o resto?
Se, por vezes, combalido, o seu espírito cedia à tristeza e ao desânimo,
como a voz espectral do velho Hamlet, correndo subterrânea e soturna bradava aos
de Elsenor: Jurai! Subia do fundo da sua memória a voz meiga e animadora do
mestre: — Trabalha!
E foi o espírito amado que o apresentou. Não quis estrear com a pena,
preferiu o lápis, e fez-se desenhista de um jornal ilustrado.
Mas a vida começou ingrata e árdua. Quantas noites de desalento! Quanta
amargura! Quanta saudade! E, nem sequer o colo da velha mãe para repousar a
cabeça, nem os seus beijos, nem os seus carinhos... De longe em longe, uma carta
trazendo a bênção; e era só.
E se uma doença o prostrasse?! Quem havia de ficar à sua cabeceira como
ela ficava, noites e noites, de olhos abertos, solícita e acariciante? Mas a voz do
mestre levantava-lhe o ânimo:
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— Trabalha!
Deixou o lápis, molhou a pena e, noites longas, num quarto pobre, que era
como a gruta dos ventos, enchendo tiras e tiras, concluiu outro romance e, desde
essa época, ora num alto sótão, ora ao rés do chão, suspendendo A Barricada a
centenas de paredes, correu a cidade com as tintas secas na palheta, com os fios
dos pincéis endurecidos, seguindo a grande Alma do povo nas suas ruidosas
alegrias, nos seus inconsolados sofrimentos.
Entrava na oficina do operário, subia às pedreiras e, enquanto a broca ia
furando o granito, sob a radiação vivíssima do sol, auscultava o coração do homem
rude. Ia aos mercados, aos quartéis e, à noite, disfarçado, de blusa e tamancos, um
gorro à cabeça, o cachimbo à boca, penetrava as estalagens confundindo-se com os
que fervilham nesses formigueiros de almas; sentava-se à mesa das tavernas
lôbregas, fazia-se das farândolas e assim, mergulhando nesses oceanos, trazia as
pérolas que encravava nas páginas dos seus livros. Era essa a sua história.
Anselmo, que ouvira extasiado, quando o romancista terminou disse, com inveja de
todos aqueles sofrimentos:
— Sim, mas venceu! Hoje descansa e tem um nome glorioso. Ruy Vaz sorriu
reacendendo o cachimbo e Anselmo, pondo-se de pé, exclamou:
— Pois eu agora é que vou começar a viver.
— Das letras?!
— Sim.
— Dize então, e dirás melhor e com mais acerto: vou começar a morrer.
— É possível, será um suicídio, mas não posso com o Direito. O Corpus
Juris é o meu pesadelo. Tenho horror a tudo aquilo. O Oriente, o luminoso Oriente!...
A Grécia com os seus deuses e com os seus heróis, a Índia com os seus mistérios.
Isso sim! Sinto-me arrastado para essas idades. Amo o antigo e esse entranhado
amor faz com que eu acredite na metempsicose. Eu fui grego, pelejei nas
Termópilas...
— E apanhaste um golpe na cabeça que te levou uma aduela.
— Palavra de honra! Afirmou convencidamente o estudante e, assomado,
pôs-se a discorrer e, enquanto referia episódios clássicos de Homero, de Hesíodo,
de Xenofonte, Ruy Vaz, que lhe mirava os sapatos muito lustrosos, perguntou:
— Qual o teu número?
— Meu número? 128.
O romancista ergueu-se violentamente.
— Como?! 128...! Não são tão grandes os pés dos versos do Rodrigues.
Falo do teu calçado.
— Ah! Pensei que se referia ao meu número de matricula: 38.
— Trinta e oito. Então somos gêmeos. É também o meu. Levantou-se e,
depois de lançar um novo olhar aos sapatos do estudante, convidou-o:
— Vamos! O sol começa a abrasar. E caminharam vagarosamente para o
quarto onde o criado, como um ciclone, atirava furiosas vassouradas levantando
uma nuvem de poeira.
Tiveram de esperar um instante ao ar. Logo, porém, que o criado deu por
terminada a limpeza, entraram e Ruy Vaz foi ao lavatório fazer uma ligeira ablução
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e, enquanto mergulhava as mãos espalmadas, batendo na água com a volúpia de
um cisne acalmado, o estudante, de cócoras, examinava as estantes passeando os
olhos pelas lombadas dos livros, atirados ao acaso em mistura incongruente e
confusa: a Manon, de Prévost, estava apertada entre decrépitos volumes de
Helvécio e um massudo relatório do ministério do império; Homero, numa intangida
brochura, tinha familiarmente ao lado um volumete: Urzes e flores, dum Mendes, de
Araraquara, contemporâneo e piegas.
Era assim em todos os raios — a douta filosofia acotovelada pelo
romantismo ridente; a religião com os seus mistérios da vida superior e as suas
consoladoras promessas de eternidade e bem-aventurança esbarrava com as duras
palavras cépticas de Schopenhauer e de Hartmann, e Musset, meigo e amoroso,
gasto do muito uso que dele havia feito toda uma geração de sentimentais, dormia
sobre um atochado volume de Anaes da câmara dos deputados do ano de 1851.
— Tens alguma coisa urgente a fazer na cidade? — perguntou o romancista
enxugando as mãos.
— Não. Por quê?
— É que eu preciso dos teus sapatos.
O pasmo do estudante não passou despercebido ao autor de A Barricada.
— Imagina a minha situação. Tenho um caso de amor, amor fino; o meu
lunch de hoje vai ser um fruto proibido. É uma dama da élite: loura, de olhos azuis,
uma cabecinha de Botticelli. Vive a bocejar entre os sessenta anos gelados e
impertinentes do marido e a ferrenha catadura do avô reumático, que enche a casa
de gemidos quando a não abala com os roncos. Esse lírio formoso espera-me hoje
às 3 horas da tarde, enquanto o marido discute no Senado uma prudente medida de
salvação nacional e o avô toma o seu choque elétrico. A ocasião é das mais
favoráveis. Dá-se, porém, o caso grave de eu não ter, no momento, calçado idôneo.
As mulheres têm o olhar curioso e essa então, que é pudica, no primeiro instante
baixará os olhos e dará pelos meus sapatos, que começam a descambar em
alpercatas. Tenho ali um par de botinas, mas apertam-me como credores, e tu
compreendes que um homem que vai para tão arriscada fortuna deve ir preparado
para todos os casos, principalmente para correr. Imagina que morre um senador e
suspendem a sessão ou que, por excesso de umidade não funciona a máquina
elétrica, como hei de eu, com os pés entalados, fugir à cólera do marido ou à fúria
do avô? Um é bravio na oposição, deve ser tremendo em se tratando da honra
doméstica; o avô foi revolucionário, viu muito sangue, e feroz. De mais, as minhas
botinas (falo-te como a um irmão) têm um vício inveterado que me faz perder um
tempo precioso sempre que delas me sirvo. Tenho os minutos contados, devo seguir
diretamente, aladamente se possível for, para Laranjeiras e, se eu as puser nos pés,
sei que vou ter à secretaria de Agricultura.
— Como?!
— É uma história. Empresta-me os sapatos e, às cinco, estou aqui com eles.
— Pois não. Mas a história...?
— Ah! Falando, Ruy Vaz, para não perder tempo, ia vestindo-se. A história é
simples. Já pensei em escrevê-la com o título: A psicologia das botas. Há botinas de
primeira mão, ou antes: de primeiro pé, e há botinas sabidas. Sabido é o calçado
experiente que já serviu a outrem, e por velho, passou à tripeça do remendão que
lhe pôs uma tomba e uma sola, vendendo-o por preço cômodo aos que vivem a
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esperar sapatos de defuntos. Não penses que te quero chamar defunto, nem
contava hoje contigo. A felicidade vem sempre inesperadamente. As sabidas
guardam os hábitos do primeiro dono. Se serviram a um militar forçam os pés ao
ritmo da marcha; se foram de um amanuense levam-nos à secretaria e assim por
diante; é macabro, mas é verdadeiro. Tive um par de botas que me arrastava
sempre para as praias, para as casas de armas, para as farmácias, para os trilhos
dos bondes. Preocupado com essa contumácia dei-me ao estudo do caso e
convenci-me que o primeiro dono fora um desgraçado que tinha mania do suicídio.
Essas que agora possuo foram, com certeza, na primeira encarnação, de algum
empregado da secretaria de Agricultura. Os teus sapatos são novos?
— Comprei-os ontem.
— Ah! Então são puros, não estão ainda viciados. Vou com eles como se
levasse nos pés as asas de Mercúrio. Dá-me-os. O estudante, meio desconfiado,
tirou os sapatos e mergulhou os pés nas desbocadas chinelas do romancista.
Rápido, Ruy Vaz calçou-os e pôs-se de pé radiante.
— Então, servem?
— Ora! Estou como no Paraíso! Não há como a gente ter o mesmo número
e é maravilhosa a exatidão das matemáticas. Grande coisa o algarismo! Mas fez
uma careta: — Diabo, o teu 38 é caixa baixa, tem pouca altura. Tens o pé muito
seco, isto é mau. O pé é a base do homem, deve ser forte. Enfim... como o calor
dilata os corpos e todo eu ardo em ansiedade... até logo! Tomou a bengala, acendeu
um cigarro e estendeu a mão ao estudante:
— Olha, tens aí poetas e filósofos. Sobre a mesa há o volume de odes de
um vate goiano, se quiseres dormir. O fumo está aqui nesta velha faiança. Até logo!
Se vier alguém não estou em casa, podes mesmo dizer que fui para Petrópolis ou
para São Paulo, embarca-me para onde quiseres. Até logo! Já à porta, voltou-se: Se
queres fazer exercício de idílio apurando a ternura, das quatro em diante costuma
aparecer a uma janela dos fundos daquela casa, que tem a parede blindada de
zinco, uma menina ruiva, arrepiada, de olhos chorosos que se presta pacientemente
a ouvir declamações: Vai lá para o banco da chácara. Franziu de novo o nariz,
torcendo o pé: Diabo! Decididamente tens o pé muito seco... e isto está me
incomodando deveras. Até logo, às cinco. E foi-se.
CAPÍTULO II
Anselmo ficou a meditar sobre a estranha Psicologia das botas e sobre o
destino dos seus sapatos. Já os via penetrando, com discrição, a câmara da
entediada e loura dama. Já os via afundados nos felpudos tapetes, já os via
aconchegadinhos às sandálias bordadas da amorosa, falando-lhes em segredo,
perto do leito, enquanto os donos...
Ah! O dono dos sapatos era ele e ali estava só, com duas velhíssimas
chinelas nos pés, entre livros, diante de uma mesa carregada de papéis onde reluzia
a pasta do escritor, bojuda e larga. Que havia de fazer para não sentir as horas
lentas e caladas que iam passar? Tirou o casaco e o colete e, senhor da casa,
sentiu uma pontinha de despeito, mas recompôs o espírito alvoroçado com um
argumento fino e justo: "Sim, se lhe emprestei os sapatos ele confiou-me a casa
que, se não vale pelos móveis, duma deplorável banalidade, muito merece pelo que
há ali naquela pasta atochada, preciosa como um tesouro e por aquela soberba
Barricada que, se agora as aranhas profanam, mais tarde há de ser disputada com o
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mesmo furor artístico com que hoje os milionários se batem a moedas por um palmo
de tela da Renascença." Sentou-se à mesa, tomou um volume, abriu-o ao acaso, e
leu:
Une nuit que j'étais prês d'une affreuse Juive,
Comme ou long d'un cadavre, un cadavre étendu,
Je me pris à songer...
Eram versos de Baudelaire. Apesar de os conhecer, deixou-se levar por
eles, embalado no ritmo das estrofes, seduzido pela sonoridade das rimas, mas, de
quando em quando, desviava-se-lhe o espírito: a transcendente Psicologia das botas
perseguia-o e os seus sapatos como que lhe passavam por diante dos olhos
animados, fugindo numa névoa para a câmara cheirosa de uma mulher loura, que
surgia dentre sedas e linhos, esplêndida de graça e nua como a Vênus quando
nasceu do mar, enrolada em rendas de espumas, à luz do sol da Hélade divina.
Levantou-se bocejando e, mole, sob o influxo dormente do silêncio e do sol
que espalhava um suave narcótico no ar, atirou-se à cama com o Baudelaire e leu
até que o livro aberto lhe caiu sobre o peito e os olhos se lhe fecharam
languidamente.
Que horas seriam quando despertou? Vinha perto a noite. A brisa era fresca,
a luz era branda. Sons de flauta passavam no ar. Seria o rouxinol? Não, não era o
rouxinol nem era a cotovia, mas um vizinho melómano que soprava o tubo. Ergueu-
se, foi lavar o rosto e, revendo-se ao espelho, lançou à própria imagem esta
interrogação preocupada: "Por onde andarão os meus sapatos?" Escurecia.
Começava a entediar-se quando bateram à porta discretamente.
— Quem é?
— Sou eu, disse alguém com preguiçoso vagar. Foi à porta, entreabriu-a e
distinguiu um vulto imenso de mulher. Como lera a Géante, de Baudelaire, atribuiu a
aparição daquela monstruosidade à sugestão da leitura. Mas a aparição movia-se,
coçava o queixo e falou:
— Sinhá mandô sabê vosmicê cum passô e si vai lá...
— Sinhá! Quem seria a solícita criatura?! Alguma formosa mulher, sem
dúvida; talvez a musa reinante do romancista. E que lhe havia de mandar dizer?
— Olha, dize-lhe que estou passando mal. Torci um pé justamente quando
me vestia para ir jantar. Como vai ela?
— Ela tá boa. Então vosmicê não vai?
— Não posso. Dize-lhe que estou impossibilitado de sair.
— Sim, sinhô. E a imensa mulher moveu-se na sombra pesadamente e foi-
se. Quem será?! — pensou de novo Anselmo olhando tristemente para os pés,
como um pavão. Sinhá!?..
Mas... por onde andarão os meus sapatos!? E, conjeturando, debruçou-se à
janela, já aflito, vendo chegar a treva sem que, ao menos, tivesse à mão, para
alumiar o aposento, uma reles candeia. Como, porém, o almanaque anunciava para
a noite seguinte lua cheia contava com a presença clara do astro.
Efetivamente uma luz pálida foi-se desdobrando e branqueando os muros,
entrou pela janela, foi até ao fundo do quarto pondo uma fronha alvíssima no
travesseiro do leito e uma piedosa mortalha sobre os mortos de A Barricada. O
corredor cimentado ficou mais branco que o mármore e os grilos, enlevados,
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cantaram nas frinchas dos muros enquanto os morcegos, trissando, passavam no ar
sossegado que os jasmins abertos perfumavam.
Anselmo começava a sentir as exigências do estômago, o ventre tirânico
mandava-lhe recados ao cérebro.
— Acordou a jibóia! disse, como se falasse à lua. Efetivamente a jibóia
acordara e a tempo, valha a verdade, visto como o primeiro repasto fora às onze da
manhã e, como era verão, dos dias longos, era justo que, a horas tão adiantadas da
tarde, tendo digerido, ela reclamasse nova ração. Mas como havia ele de acudir à
fome se não se podia mobilizar preso, como estava, pelos pés?
Entrou em cólera surda invectivando o romancista e ia já transpondo o
terreno vil da injúria quando ouviu passos arrastados e reconheceu a alentada
mulher, que vinha, de novo, pelo corredor, anunciada por alegre retinir de louças,
precedida de suave aroma de guisados, mais grato que o dos jasmins abertos.
Era ela, a desconforme criatura, e trazia uma bandeja coberta por uma
toalha alva como o luar. Deu com ele à janela e, sem falar, sorrindo, passou a porta
e depôs sobre a bojuda pasta a abastecida bandeja.
— Sinhá mandô dizê qui vosmicê não arrepare... Mas cumu vosmicê disse
qui não podia sahi móde o seu pé...
— Oh! fez ele descobrindo, com veneração, a bandeja, é muito amável. Sim,
era amável a misteriosa dama e devia ter um cozinheiro perito.
A sopa era dourada e recendia. Por certo lá ao alto, no luminoso e calmo
espaço, todo cheio do esplendor do astro, chegou o perfume porque a lua, dividida
em partículas como uma hóstia, veio boiar nos olhos que cintilavam, como ardentias,
sobre a superfície da sopa tão dignamente contida em uma tigela de porcelana da
China. Havia uma fritada, um triângulo fofo e louro, incrustado de camarões, tendo
no vértice uma gorda azeitona de Elvas; um prato de cabidela, fatias sangrentas de
roast-beef, entre folhas tenras de alface, ladeadas por duas lascas de fiambre de
uma cor de rosa macia; pão, vinho, dois damascos em calda, num pires, e uma
grossa talhada de queijo.
A jibóia torcia-se com ânsia, atirando botes como se quisesse abocanhar de
uma vez tudo quanto havia. O aroma punha-a em desespero inenarrável. Mas
Anselmo como que se comprazia com o suplício da besta íntima, sorvendo
voluptuosamente o perfume dos pratos e regalando os olhos com aspecto sedutor
das iguarias.
Ó ciência difícil dos temperos! Ó arte sutil da ornamentação dos pratos. Um
roast-beef, sem o recamo da alface, é como a mulher sem meias. Que delícia! Quem
diria que ele havia de sair do leito para aquele delicado festim: De cubiculo recta in
triclinium ire! Assim dizia Anselmo no coração enquanto a boca ia-se-lhe enchendo
d'água.
A lua foi a companheira que teve, alegre e sóbria companheira, e a mulher,
sentada pacientemente à porta, pôs-se a sussurrar um canto enternecido em que
falava de amores, enquanto ele sorvia a colheradas a sopa que era um delicado
polme de ervilhas sabiamente temperado, com leve sabor de paio e uns longes
suaves de cravo-da-índia, Depois foi a fritada, depois a galinha e só ficaram na
bandeja migas de pão, ossos de frango, um caroço de azeitona, dois de damascos,
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a casca recurva e roxa do queijo e palitos, o mais passou sofregamente ao bojo da
jibóia que se enroscou de novo para digerir sossegada.
Só faltava o café, o café e a dama que bem merecia uma página de Arte,
uma longa e rendilhada apologia, não dos seus dotes plásticos e de espírito, mas do
seu fino paladar, tão nobremente recomendado por aqueles pratos rescendentes.
Mas para o cozinheiro, como para o anfitrião, vale mais que todas as palavras, que
podem não ser sinceras, a prova irrefutável dos ossos esburgados.
Sim, um elogio rasgado diz menos, e com menor expressão, do que quatro
ossinhos lisos, chuchurreados, no meio do prato raspado. Pensou em atirar ao
corredor os restos do banquete, mas não: queria que a generosa dama e o sábio
cozinheiro vissem, com orgulho, que tudo havia comido, com escrupulosa gana, não
deixando senão o que de todo lhe fora impossível engolir, como ossos e caroços.
Esgotou a garrafa e, saciado, num bom humor de fartura, foi rebuscar no colete uns
níqueis e deu-os à estupenda mulher que, à luz branda do luar, parecia menos
aterradora e pesada. Oh! a delícia da saciedade!
— Deus lhe pague!
— Pede-lhe antes que me traga os sapatos. A mulher não entendeu e,
guardando as moedas cautelosamente no seio, que era um outeiro em volume,
tomou a bandeja e foi-se levando os ossos e novecentos réis. Anselmo acendeu um
cigarro e debruçou-se à janela, enlevado na beleza da noite e, com os olhos no céu,
pôs-se a recitar baixinho:
Le mal dont j'ai soulfert s'est enfui comme un rêve,
Je n'en puis comparer le lointain souvenir
Qu'à' ces brouillards légers que l'aurore soulève
Et qu'avec la rosés on voit s'évanouir.
Era a primeira estrofe da "Noite de Outubro" de Musset e ia aos versos da
Musa:
Qu'aviez-vous donc, o mon poète!
quando Ruy Vaz apareceu no corredor. Anselmo sentiu a alma dilatar-se.
— Fui além da hora. Ah! meu amigo, se não fosse lembrar-me que estavas
aqui descalço teria passado a noite a desfolhar malmequeres. Esplêndida criatura!
Atirou o chapéu sobre a mesa e respirou desafogadamente, Divina mulher! E tu?
Como te foste? Leste as odes?
— Não: reli Baudelaire, dormi até a noitinha e, como estava com o estômago
em condições de Deus poder reproduzir o milagre da criação do mundo, fiz de Elias
aceitando um jantar que me caiu do céu.
— Eis aí um hotel que ainda não me forneceu pensão. Mas sem frase: —
Onde jantaste?
— Aqui. O luar foi a toalha; jantei sobre a tua mesa de trabalho.
— Mandaste vir de algum hotel?
— Não. Apareceu-me a Providência, não como ao profeta sob a forma de
um corvo — mas disfarçada em exuberante mulata...
— Vê lá! Não tenha o demônio armado uma cilada ao teu estômago.
Também a Santo Antão foi servida uma mesa lauta e todavia...
— Não, a mulata veio em nome de uma misteriosa mulher saber se
aparecias hoje.
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— Uma mulata monstro?! Uma mulata em dois volumes?! a Januária! A
Januária da Elvira! exclamou o romancista.
— Não
sei; eu tinha fome e não tinha sapatos.
— E pediste jantar...?
— Não; nada pediste. Digo assim porque a mulata tomou-me por ti, no
escuro; disse apenas que não contasse contigo porque, havendo torcido um pé,
estavas impossibilitado de sair. Devo o jantar à sagacidade da mulata. Retirou-se
tornando, pouco depois, com uma bandeja opípara. Entendi que não te ficava bem
fazer cara a tão saborosos e perfumados pratos e tratei-os com a deferência de que
eram dignos.
— Essa agora!
— Estás preocupado...?
— Com razão. Essa mulher, essa nefanda Elvira, é uma pérfida; traiu-me e
com o meu alfaiate e eu tinha jurado cortar de uma vez para sempre o fio que nos
ligava e agora...
— Acho que fazes mal. Uma mulher que janta como essa deve ser excelente
menagére. Não a conheço senão através da sua cozinha; não sei se é loura, se é
morena, se tem os olhos pretos ou garços, juro, porém, que tem em casa um
admirável cozinheiro.
— Um coração volúvel como uma nota de mil réis. Enfim, o mal está feito;
não quero interromper a tua digestão... e está aberto o precedente para os dias
nefastos. Começas bem, não há dúvida. Outros andam atrás de jantares e a ti vêm
os jantares, e com sobremesa. Hás de dar-me o segredo do teu talismã. Podes ir
longe, principalmente se subires mais um ponto no calçado; tens o pé
demasiadamente seco, é um Ceará. Devolvo-te os sapatos. Anselmo calçou-os
imediatamente e, vendo que o romancista procurava alguma coisa debaixo da cama,
riscou um fósforo.
— Obrigado. Cá estão eles. Arrastou um par de veneráveis botinas, nas
quais os pés desapareceram como por encanto e respirou. O bom filho à casa torna.
Não há nada como a liberdade. Como me sinto bem na largueza... Nem parece que
estou calçado.
Anselmo vestiu-se e, vendo que o romancista passava a escova nos cabelos
e retorcia os bigodes, perguntou:
— Vais sair?
— Vou ao Sant'Ana. Tenho lá uma peça, quero ver se o Heller resolve
alguma coisa. Por que não vens? Está uma noite linda e fresca.
— Posso ir.
— Então vamos. Estamos na hora e tenho ainda de passar no meu
charuteiro para apanhar uns colarinhos. Fecharam a janela e a porta e saíram.
Foram seguindo devagar, à luz da noite, sob a carícia do ar, fino e tépido
como um hálito humano.
O parque era uma extensa massa de verdura onde o luar punha reflexos de
prata. As casas abertas recebiam a brisa e exalavam bafios quentes de forno.
Passavam bondes apinhados, carros rodavam lentamente e os lampiões, em alas,
estendiam reticências de ouro ao longo das ruas. Nos hotéis cheios havia um
confuso rumor de vozes, tinidos de copos. Às mesas, de sórdidas toalhas,
chalravam os trabalhadores, em mangas de camisa, os pés em grossos tamancos,
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soprando para o ar viciado densas baforadas de fumo. Era a gente sadia e forte da
labuta brutal: homens de bíceps hercúleos, abaçanados das soalheiras, que
repousavam estirando as pernas depois de bem repastados; eram os colonos que
se reuniam, como em ágape fraternal, recordando a pátria, com pilhérias fortes de
mesa à mesa e grandes obscenidades que faziam estourar gargalhadas.
Os caixeiros iam dum a outro com o parati, diziam a sua chalaça e, como
havia intimidade entre esses homens, a pretexto de pândega, trocavam-se murros,
mas ninguém se revoltava — era um divertimento heróico como de leões que,
depois de haverem esquartejado a presa, a golpes de garras, nas clareiras desertas,
perto das límpidas águas, rugindo, rolando, com as fauces rubras de sangue,
brincam amigavelmente enquanto as fêmeas fartas, deitadas de flanco, os olhos
semicerrados, deixam-se sugar pelos cachorrinhos.
Mais adiante, à porta de uma taverna, castanhas estalavam ao fogo e, junto
ao balcão, sentado numa saca, um lazzarone, o cachimbo nos beiços, ia tirando da
sanfona os sons da Mandolinata. O rumor crescia confuso: apitos de bondes,
gargalhadas, estouros de garrafas, rodar pesado de carroções que se recolhiam e,
no alto, sempre a paz maravilhosa da noite estrelada.
Quando chegaram ao largo do Rocio, Anselmo fez uma observação sutil
citando Herôdoto. Em Babilônia havia, ao menos, um subúrbio sagrado onde
avultava, entre cedros e loureiros, o templo de Mylitta, ainda assim o historiador
clama contra a vergonha Que diria ele se, revivendo, viesse, tantos séculos depois,
olhar a prostituição que aqui transborda e vai invadindo, como um vírus, todas as
artérias da cidade? Lá, ela estava confinada, aqui expandiu-se — é um polvo que
lança os tentáculos a toda parte. Não há uma rua em que se não encontre a aranha
emboscada na sua teia.
— Estás moralista, disse Ruy Vaz, sorrindo. As mulheres, debruçadas às
janelas, entre as cortinas, algaraviavam. O olhar, penetrando, dava imediatamente
com os leitos muito lisos, muito alvos, ao fundo dos quartos entreabertos e
iluminados. Não contentes com a exposição dos corpos ainda chamavam os
transeuntes, atiravam-lhes botes e era em toda a ala, nos pavimentos térreos e nos
sobrados, um rinchavelhar devasso de centenas de criaturas e aquilo lembrava uma
cena de mercado oriental onde acudiam piratas levando mulheres de todos os
países, expondo-as nuas, apregoando-lhes a beleza, obrigando-as a falar, a cantar
para que os azevinheiros, que as andavam examinando, não só lhes vissem as
formas sensuais, como também lhes ouvissem o timbre fresco e cantante da voz.
Umas fumavam; outras, já velhas, encarquilhadas, tristonhas, recaídas sobre
o umbral, com a cabeça derreada, os olhos no céu, pareciam enlevadas e
maquinalmente chamavam os que passavam perto, estendiam com vagar a mão,
mas logo quedavam vendo-se desatendidas e baixinho, de novo elevando os olhos,
repunham-se a cantar.
Pensavam, talvez, na pátria que haviam deixado, iludidas pela falácia do
rufião. Pensavam nas suas pobres cabanas, nas aldeias geladas... Reviam-se na
infância, levando o gado aos montes ou seguindo com a foicinha o bando dos
ceifeiros para os campos de trigo ou de feno, nos dias alegres do outono. Pensavam
nas noites tristes de bravio inverno, noites de vento e de neve quando, junto à brasa
viva da lareira, os seus velhos parentes falavam da miséria pedindo a Deus um dia,
ao menos, de sol para que os pequenos pudessem ir à orla da floresta recolher um
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pouco de lenha, que não havia para mais de uma noite e, quando a não houvesse,
que seria deles, pobres velhos! E que seria das míseras crianças!
Pensavam e o peito subia-lhes em arfar angustioso... É que haviam visto,
muito longe, alguém, alguém que, quando virgens, tanta vez saíram a esperar numa
volta do caminho, quando o sino soava a hora crepuscular; alguém a quem haviam
jurado amor e a quem haviam traído deixando-o pelas promessas enganosas do
homem que as fora arrancar, para sempre, à felicidade e à honra.
Ah! mas era preciso viver... Gente passava. "Vem cá! Olha..." diziam
molemente as desgraçadas com leve tremor na voz.
Outra, sentada numa cadeira de balanço, cochilava e, pela janela
entreaberta de uma casa, Anselmo viu, não sem espanto, outra, em camisa, braços
nus, pernas nuas, indo e vindo disfarçadamente, a abanar-se.
— Que cinismo...! Rapazes paravam às portas, chalaceavam e, de repente,
fugiam a rir perseguidos por uma saraivada de impropérios e, como há uma forte
solidariedade entre essas mercenárias, de janela a janela a indignação corria e
todas, enfurecidas, injuriavam os que haviam, por troça, irritado a companheira que
ainda esbravejava indignada, ao longe.
E vagaroso, os braços para as costas, o cigarro nos beiços, o soldado da
ronda passeava sem dar atenção à balbúrdia, surdo às obscenidades que explodiam
ao longo daquela feira torpe. Ruy Vaz parecia indiferente a tudo. Ia de olhos baixos,
sem dar atenção aos reclamos indecorosos que lhe atiravam as mulheres.
— Isto aqui, meu amigo, é mais perigoso do que o caminho que levava ao
sítio encantado onde havia a árvore que cantava, o pássaro que falava e a água
amarela. Deve-se passar por esta calçada com os ouvidos atochados de algodão
para que nos não suceda o que sucedeu aos irmãos da princesa Parizada, que
foram transformados em pedra.
— Não é preciso recorrer às Mil e uma noites para buscar um modelo de
energia. Temos aqui a polícia, mais indiferente aos escândalos
do que Ulysses à voz
das sereias ou do que a tal princesa ao clamor das pedras.
Espera aqui um instante. Haviam parado diante de um charuteiro. Ruy Vaz
entrou deixando Anselmo à porta. O estudante lançou os olhos pela praça. Duas
filas de tíburis reluziam à fulguração do luar. Sons de música vinham de longe, em
ondulações, ora brandas, ora fortes, conforme as variações da brisa. Cocheiros
discutiam na calçada; passavam famílias à pressa, caminho dos teatros. Quando
Ruy Vaz saiu com um embrulhinho, Anselmo estava distraído, de olhos perdidos,
cantarolando.
— Vamos?
— Vamos. Seguiram para a rua do Espírito Santo, iluminada pelas grandes
rosáceas dos teatros. Ao fundo o Recreio resplandecia como a entrada de um
templo. Um homem esgoelava-se anunciando "empadinhas de camarão!" e os
cambistas assaltavam os que apareciam oferecendo bilhetes, garantindo que na
casa não havia número que prestasse.
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À porta do Sant'Ana uma multidão apertava-se. Discutia-se e os cambistas
investiam como pobres em adro de igreja, empurravam-se, injuriavam-se. Anselmo
deteve-se um momento diante do bilheteiro; Ruy Vaz, porém, tomou-o pelo braço:
— Não, vem comigo; não precisas bilhete. Vamos.
O estudante sentiu uma pancada forte no coração àquela frase "Não
precisas bilhete..." e admirou o romancista. Grande influência do homem! Diante
dele, a um gesto breve da sua mão, abriam-se todas as portas, mesmo as dos
teatros tão avaramente guardadas. Grande homem! Pudesse ele fazer o mesmo!
Entrava gente, aos apertões: senhoras pelo braço dos maridos, sorrindo, com ânsia
de se aboletarem, receosas de que já houvesse começado o espetáculo.
Quando Ruy Vaz se adiantou, muito grave, Anselmo coseu-se com ele e,
apesar da confiança que depositava no prestígio do grande homem, pálido, temia
ser repelido pelos dois cérebros — um ruivo, de pêra, outro velho, gordo, de óculos,
que espiava atentamente quantos entravam acumulando os bilhetes na perna gorda.
O romancista fez o estudante passar à frente e, como o ruivo fizesse um
gesto como a pedir o bilhete, ele tocou-lhe com familiaridade o ombro dizendo
apenas:
— Vem comigo. Tanto bastou para que o deixassem passar. Poderoso
Sésamo! Vem comigo! Tão simples palavras faziam com que se acomodassem os
exigentes porteiros, tão severos em questões de entradas e de senhas. Ao ver-se no
pátio do teatro, Anselmo sentiu a alma dilatada como se houvesse saído de uma
prisão e respirou desafogadamente.
— Agora sim...
— Que é?
— Pensei que os homens opusessem alguma dúvida.
— Comigo! exclamou orgulhosamente o romancista. Ora qual! Caminharam
e, como enfrentassem com o tablado coberto onde, em torno das mesas, uma
multidão alegre fervilhava, um rapaz moreno, de pince-nez, pondo-se de pé com o
chapéu levantado acima da cabeça, a toda altura do braço, disse solenemente:
— Saúdo a literatura indígena! e avançando, encolhido e curvado, pôs-se a
estalar sonoramente com a língua no palatino; depois, enristando a bengala, deu
uma volta nos calcanhares mostrando a multidão que o cercava e, em voz cheia de
desprezo, bramiu:
— Vou começar a catequese noturna dos tupinambás. Sou o missionário do
espírito, o Anchieta desta taba! E, de novo, fez estrondar a língua atirando uma
bengalada a uma das mesas:
— Garçom! Uma Einbeck... vamos! E hirto, o sobrecenho carregado, fitou os
olhos no caixeiro, rugindo.
Ruy Vaz dirigiu-se ao moreno e, vendo que Anselmo guardava atitude
reservada, interrogou-o como em segredo:
— Não conheces o Neiva?
— De nome, há muito tempo!
O romancista fê-lo avançar e apresentou-o:
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— Anselmo Ribas... Paulo Neiva. Os dois rapazes trocaram um aperto de
mão e o moreno ofereceu um lugar à mesa que ocupava, onde outros bebiam entre
nuvens de fumo. Ruy Vaz era intimo de todos e o Neiva foi apresentando o
estudante:
Isto aqui é uma sucursal do Parnaso, com uma dependência mais lucrativa:
a carne seca, dignamente representada pelo nosso correto amigo Victorino Motta, o
bem-aventurado.
Um gigante, nédio e rubro, com um ventre quase esférico, sorriu estendendo
a mão, gorda e mole como a luva de um esgrimista. O Duarte, rapazinho magro,
pálido, com um ricto que lhe dava à fisionomia uma expressão hilariante; o Lins,
baixinho, muito moreno, olhos apertados e oblíquos como os dum chim, bigode
negro e ralo escorrendo-lhe pelos cantos da boca. Sentaram-se. Ruy Vaz, a pretexto
de ir falar ao Heller, pediu um minuto e desapareceu na multidão. O Neiva,
irrequieto, lançava os olhos um e para outro lado, desfechando sátiras, analisando
os que passavam, à pressa. A campainha retiniu e o povo precipitou-se para o
recinto ficando apenas alguns rapazes à mesa, entre cocottes, derriçando.
— Sabe ler? — perguntou abruptamente o Neiva dirigindo-se a Anselmo,
enquanto o garçom ia enchendo os copos com a cerveja que o Motta mandara vir. O
estudante sorriu vexado.
— Coragem, meu amigo! — bradou o Neiva; há vergonhas maiores. É poeta,
aposto?! Antigamente era a lira o símbolo dos poetas, agora é o pince-nez... Que
gênero?
— Ensaio-me na prosa, disse timidamente Anselmo. O Neiva ergueu-se
violentamente como impelido por uma mola e encarou-o:
— E tenciona viver das letras? — perguntou assombrado. O estudante
encolheu os ombros com resignação e o outro irrompeu: — Pois meu amigo, aceite
os meus pêsames. E, inclinando-se, rugiu ao ouvido de Anselmo: — Cure-se! Não
vá para um convento, vá para o hospício. Cure-se enquanto é tempo. Neste país
viçoso a mania das letras é perigosa e fatal. Quem sabe sintaxe aqui é como quem
tem lepra. Cure-se! Isto é um país de cretinos, de cretinos! Convença-se. É a Frigia
do tempo de Midas: só vence quem tem orelhas. Olhe, se eu me debruçasse a um
dos camarotes desta barraca e bradasse: "Que se conservem neste recinto os que
sabem gramática", o teatro ficava vazio. Letras, só as de câmbio, convença-se.
Olhe, temos aqui um exemplo. Estão conosco dois poetas e um carne seca,
compare-os! Os poetas são lívidos, o carne seca, tressua ádipe e saúde. Por que?
Porque o carne seca, que é aqui o nosso amigo Motta, tem todos os regalos: come
como uma traça, bebe como um abismo, dorme como a Justiça e gasta como o
diabo que o carregue! Ah! meu amigo, para temperar a vida, que é um prato difícil,
não bastam os louros da glória. Olhe o nosso Motta: é o leão e nós? Somos os
chacais.
— Sim, mas somos as lâmpadas.
— Lâmpadas!? Candeeiros ignóbeis, ainda assim o azeite é o nosso oleoso
Motta. Tornou a Anselmo: Moço, empregue-se; vá para o comércio. A carne seca é
a base da riqueza das nações. Não se fie em períodos, mande à fava o estilo e atire-
se, de faca em punho, às malas de carne seca se quer engordar, se quer ter
consideração neste país. Um pai de juízo não deve mandar o filho ao colégio: a
carta do ABC é subversiva. Para o armazém, para os tamancos! Olhe o nosso Motta:
assina de cruz e tem mais de trezentas apólices, não sei quantos prédios, dois
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armazéns, três comendas, mais de vinte amantes e uma pança que é ó hemisfério
da fartura. O Motta sorriu. Empregue-se!... Mas avançou empertigado, com o chapéu
erguido: Vive la France! Passava uma rapariga loura e esbelta. Dando com o Neiva
acenou graciosamente com o leque e ele, numa voz formidável, rouquejou:
Avez-vous lu Manon Lescaut, madame?
— Non, j'connais pas d'bêtises, disse a cocotte e ele, tornando à mesa,
tomou o copo e sussurrou: — É verdade, ninguém se conhece.
A orquestra atacou a abertura. O Motta, esbaforido, pediu licença e levantou-
se. O tablado ficou deserto. Apenas um velho cabisbaixo, trincando um charuto, ia e
vinha lentamente. ao longo da passagem. O Lins, porque estava entorpecido,
levantou-se para dar um giro e foi arrastando uma perna entrevada, batendo com a
bengala. Os três deixaram-se estar e, como o Neiva soubesse que Anselmo era do
Norte, suspirou saudoso lembrando-se do seu Ceará, o seu amado Ceará, dos
verdes mares bravios.
— Ah! meu amigo, quando me lembro da minha terra dói-me o coração. Isto
aqui é vasto e tem mais civilização, mas não vale o nosso Norte, não vale! As
nossas noites, as nossas florestas, o encanto daquela vida que tem ainda um vago
sabor paradisíaco, a simplicidade daqueles costumes! E suspirou: — Sou um
homem ao mar! Soçobrou a galera do meu futuro e aqui ando a braçadas aflitas do
oceano da imbecilidade a ver se consigo alcançar algum porto. As velas que vejo
são como esta urca que daqui zarpou, o Motta: dão-me um pouco de repouso, mas
logo abandonam-me e lá vou eu nadando, nadando até que me sorva uma vaga
mais forte. Sou um homem ao mar! E, depois de um trago, concluiu com desalento:
— De mais a mais tenho uma rêmora que me tolhe os movimentos, é o coração.
— O senhor esteve na Faculdade de Medicina? — perguntou Anselmo.
— Sim, estive. Saí da vida, não pela porta da morte, senão da própria vida:
foi o parto a minha morte. Morri de parto. Anselmo pasmou e o Neiva, muito calmo,
disse:
— Vai ver. O meu lente, porque me não via com bons olhos, entendeu que
me devia argüir sobre a obstetrícia inteira apresentando-me todas as dificuldades
que podem surgir a um parteiro no momento complicado. Enquanto pude fui
resolvendo: faria isto, faria aquilo, etc.... Veio, porém um caso tão intrincado que
estive a propor a laparotomia, mas tive uma inspiração, feliz e lisonjeira para o lente:
disse: "Num caso desses eu mandava, a toda pressa, chamar V.Exa...." O homem
zangou-se; fui reprovado. Longe, porém, de entristecer-me, senti grande alívio na
alma à idéia de que nunca concorreria para a desventura de um ser, trazendo-o a
esta vida imbecil e insípida na qual só vencem os medíocres. Garçom, um fósforo!
Está quente! E tenho ainda de ir ao Recreio encontrar a mulher amada. Estrugiu o
coro da opereta e o Duarte, que o sabia de cor, pôs-se a cantarolar tamborilando na
mesa. Iam caindo em melancolia, mas uma rapariguinha esguia e morena que
entrara, vendo os rapazes, dirigiu-se para o tablado e, muito meiga, batendo de leve
nas faces do Neiva. recriminou-o:
— Então é assim que você me esperou?
— Decididamente quando Eros nasceu a gramática ainda estava em
substância informe. Passou-lhe o braço pela cinta e, com os olhos nela, disse: —
Mas és tão bonita, minha cabocla, que os solecismos na tua boca parecem pérolas
de estilo. Subitamente, carregando a fronte, em voz estentórica, simulando fúria:
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— Diga-me, senhora... Quem era aquela montanha de suíças e óculos à
cuja sombra gorda, a senhora ceava ontem no Bragança? Fale!
— Era um home, explicou dengosamente a rapariga, sentando-se.
— Um home... Deliciosa! E, inclinando-se, em tom infantil: — Dá beijoca a
Neiva? Dá? Os lábios encontraram-se e o boêmio segredou a Anselmo, tocando na
boca: — Já tenho um pretexto para ir amanhã ao escritório do Silva Araújo. Só então
lembrou-se de apresentar a rapariga: — Olha, minha cabocla, apresento-te o meu
amigo Anselmo Ribas, escritor. Vou logo dizendo a profissão para que não percas
tempo com ele. Que vais tomar?
— Qualquer coisa.
— Não é bebida.
— Ora! escolhe você mesmo.
— Ah! queres que eu escolha? Atirou uma bengalada à mesa e trovejou:
— Garçom! Mercúrio para quatro! Houve uma estrepitosa gargalhada; a
própria rapariga, que não compreendera o dito, riu, dando com o leque leve
pancadinha no ombro do boêmio. O caixeiro serviu duas garrafas de cerveja.
Neiva bebeu sofregamente: tinha pressa, não podia deixar a mulher amada
morrer de ansiedade no pátio do Recreio e despediu-se azafamado. A rapariga
ergueu-se também.
— Até logo! Justamente terminava o ato numa explosão de palmas. O povo
escoou para o jardim. Encheu-se o tablado e os caixeiros atropelavam-se, acudindo
aos berros, às bengaladas que estalavam nas pequeninas mesas de ferro. Caíam
bancos e, na passagem apinhada, cruzavam-se cocottes faceirando, respondendo
aos galanteios com muito langor nos olhos e muitos requebros de quadris.
Estouravam garrafas, subiam vozes confusas, entrecortadas de risos num zoar
atordoador de colmeia atacada.
— Vamos dar uma volta? convidou o Duarte bocejando.
— Vamos; concordou Anselmo. E os dois levantaram-se caminhando
molemente, acotovelando mulheres que tresandavam a essências. Mas a
campainha ressoou de novo e começava o segundo ato, quando o Duarte,
atristurado, com a bengala às costas, depois de haver falado, com muitos suspiros,
de um amor infeliz que o havia de levar ao suicídio ou a Fernando, pôs-se a recitar
baixinho, enquanto, em lento andar, percorriam a passagem deserta e a multidão ria
às escâncaras das pilhérias do Vasques, uma poesia cheia de luar e de rouxinóis,
com um pastor triste e pastora arisca que eram ele a divina criatura que o trazia
amofinado obrigando-o àquelas devassidões noturnas. Que tal?
Anselmo comparou-o a Musset.
— Ah! Musset! Musset!...
Vous qul volez là-bas, légères hirondelles...
Mas mastigou o verso imediato e, enternecido, de olhos no chão, cantarolou:
Bacalhau feito na brasa
Com cebola de Linhães,
Tudo se encontra na casa,
Na casa do Guimarães...
O estudante lançou ao poeta um olhar esgazeado.
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— Que é isto?
— É o hino da bacalhoada. Não conheces a casa do Guimarães? Bacalhau,
vinho verde, papas à portuguesa, iscas e dispepsias?
— Não, não conheço.
— Ah! meu amigo, é o meu Lethes. Ali é que vou procurar esquecimento
para as minhas mágoas. Aquela ingrata dá comigo em todas as tascas e pocilgas
desta cidade. Estou ainda curando-me de uma indigestão que apanhei por causa
dos olhos dela. Ah! O amor! O amor...
... feito na brasa
Com cebola de Linhães...
Mas Ruy Vaz apareceu brandindo a bengala, colérico.
— Decididamente é melhor ser calceteiro ou condutor de bonde do que
homem de letras em um país como este.
— Que houve? — perguntou o Duarte.
— Ora! a minha peça. O senhor Heller entende que devo arranjar umas
coplas e um jogo para a comédia. Uma comédia de costumes, que joga com cinco
personagens... O homem quer, a todo transe, que venham negros à cena com
maracás e tambores, dançar e cantar. Imaginem vocês: um antropologista puxando
fieira e uma senhora, que vive a cuidar a sua árvore genealógica como quem cuida
de uma roseira, que mostra, com enfunado orgulho, os retratos dos avós a quantos
freqüentam a sua casa, a cortar jaca desabaladamente. É ignóbil! Revolta! E querem
teatro...
— E tu?
— Eu! Não cedo uma linha! A peça já está em ensaios e há de ir como a
escrevi: sem enxertos. Diz ele que o público não aceita uma peça serena, sem
chirinola e saracoteios... Mas que tenho eu com o público? Cruzou os braços e,
ferrenho, encarou o estudante como se ele fosse a representação do próprio público
ignaro que exigia aquelas misérias. Não hei de estar a fazer concessões
vergonhosas simplesmente porque o nosso público, saturado de vícios, entende que
o teatro deve ser como um templo devasso. Isso não!
— Mas a peça cai, observou prudentemente o Duarte.
— Que caia! Que o diabo a leve para o fundo do porão, mas não cedo!
Saíram os três. O romancista remoía a sua indignação e, como se precisasse do ar
da noite sempre pura, numa necessidade de agitação, frenético, irascível,
resmungando, propôs um passeio. O luar seduzia. Que belo seria poder ficar uma
hora à beira-mar, lançando os olhos pela vastíssima planície, toda de prata e
trêmula, sentindo a aragem salitrada, ouvindo as cantilenas dos que partiam nos
barcos, ao sopro amável da brisa, desdobrando as redes! Ou, sob um caramanchel,
em subúrbio tranqüilo, em plena natureza, ouvindo os grilos, ouvindo as rãs, ouvindo
o gado, o murmúrio dum fio de água e o sussurro do arvoredo galvanizado pela
claridade, fulgurando e cheirando. Que belo!
— Onde queres ir? — perguntou o Duarte afagando a idéia romântica de
uma subida à Tijuca para verem, do alto, resplandecer a aurora.
— Sei lá! Pararam hesitantes em meio do largo. Tílburis moviam-se
lentamente; de quando em quando um partia à disparada. A ronda passava
vagarosa; os animais caminhavam como sonâmbulos, maquinalmente, a cabeça
baixa e os soldados, derreados, iam como embebidos na luz magnífica que o astro
branco vertia.
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O S'adt Coblenz, a Maison Moderne, o Caboclo regurgitavam iluminados; às
portas, grupos discutiam aos berros, agitando bengalas e, mais adiante, o Príncipe
Imperial transbordava. O povo enchia o saguão e despejava-se amontoadamente
espraiando-se em direções diferentes. E as luzes do frontão do teatro extinguiram-se
subitamente ficando a rua em treva. Rodavam carros abertos; bondes enchiam-se e,
de longe, vozes diferentes anunciavam com furor "Empadinhas de camarão".
— Mas para onde vamos? — perguntou de novo o Duarte. Não havemos de
ficar aqui plantados, que isto até nos pode abalar a reputação.
— Pois sim! — murmurou o romancista lançando distraidamente os olhos
para o monumento que avultava, muito negro, ao luar, com a imensa estátua
dominando o largo. Anselmo aventurou, desejoso de fazer uma grande volta pela
cidade àquela hora fresca e sossegada:
— Se tomássemos um bonde?
— Prefiro uma sopa, disse o romancista. Em vez de irmos à Tijuca vamos ali
ao Coblenz que está mais à mão. Quando se tem o estômago vazio não há luar que
valha um bife com batatas fritas. Vamos ao Coblenz! Mas o Duarte fez uma careta
explicando: que não podia com a cozinha alemã; detestava aquela casa, mais os
seus guisados. Não podia tomar ali um copo de cerveja sem lembrar-se de Sedan. Ó
Alemanha cruel! Preferia a Maison Moderne que lhe dava a impressão de Paris. O
romancista fitou-o:
— Quanto deves à Alemanha?
— Eu! — e espalmou a mão no peito. Uma miséria: creio que duas ceias e...
— E então por isso que não queres entrar?
— Não, mas o meu alfaiate costuma aparecer por ali. Aquilo é uma casa
macabra: à noite é um cemitério, tantos são os cadáveres.
— Pois, meu amigo, estamos incompatibilizados. Tu não podes ir ao
Coblenz porque ceaste duas vezes... e o teu alfaiate aparece, eu não posso ir à
Maison por motivos idênticos. Como havemos de fazer?
— Separemo-nos.
— É com grande pena, mas não há remédio. Até amanhã.
— Até amanhã. E o Duarte estendeu a mão a Anselmo oferecendo-lhe a
casa: — Moro em Botafogo para a estatística e outros efeitos sociais, mas resido à
rua Teófilo Ottoni, no armazém de vinhos de meu pai. Quando quiser fazer de
filoxera apareça por lá: há cama, mesa e cento e tantas pipas. Boa-noite! E foi-se
recitando:
"Vous qui volez là-bas, légères hirondelles..."
— Agora nós, disse Ruy Vaz. Vamos ao Coblenz fazer um lastro. Dizem os
médicos que, em tempo de epidemia, é um perigo andar-se com o estômago vazio
e, como a febre grassa pavorosamente e eu tenho muito amor à vida e sou grande
observador dos boletins higiênicos, vou trincar um bife. Não tenho fome, é como se
fosse tomar uma cápsula de quinino.
Entraram e o romancista, sentando-se a uma das mesas, encomendou uma
sopa a l'oignon e um bife à baiana e, enquanto preparavam os pratos, foi
discorrendo:
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— Grande é a incapacidade dos homens que nos dirigem. Se eles sabem
que a febre amarela ataca de preferência os que têm o estômago vazio por que, em
vez de andarem com fumigações, não estabelecem hotéis públicos, grandes hotéis
profiláticos, nas praças, acabando, de vez, com essa ignomínia das farmácias? Não
te parece?
— Sim, é lógico. Servido, pôs-se a tomar a sopa vagarosamente,
saboreando, depois atirou-se ao bife e comia quando o Lins surgiu, muito risonho,
arrastando a perna rija, a brandir a bengala:
— Isto acaba mal! — exclamou em voz engasgada que parecia vir do fundo
do peito. Plantou-se diante da mesa e, rindo, com o rosto todo encarquilhado,
repetiu: — Isto acaba mal! Anselmo ofereceu uma cadeira e o poeta, todo encolhido,
perguntou:
— Pode-se pedir alguma coisa ou estamos em maré baixa?
— À vontade! — disse o estudante. Ruy Vaz, que ficara indeciso, com um
pedaço de pão entre os dedos, trincou descansadamente, e o poeta, atirando uma
palmada ao ombro do estudante, sempre a rir, meneando com a cabeça, elogiou-o:
— Tem muito talento! O caixeiro acudiu: Cerveja! esgoelou o Lins e atirando
os braços para o ar: Muita cerveja! Eu hoje quero beber e, pungido, com uma grande
expressão de dor: Estou muito triste. Imaginem vocês o meu gato! Fui encontrá-lo
morto hoje de manhã. Um gatinho que era um encanto. Tão meigo que nem aos
ratos fazia mal. Vocês não gostam de gatos? Rompeu a rir e, num berro atroador,
atirando o busto sobre a mesa, estendendo os braços, encharcando as bordas do
punho no molho do bife, repetiu a pergunta: — Vocês não gostam de gatos?
— Que é isso, Lins? — observou baixinho o romancista e o poeta, depois de
o fitar espantado, olhou em volta dizendo:
— Que tem? Então eu não posso falar das minhas mágoas? Eu gosto muito
dos animais. E furioso, tentando erguer-se, com o punho ameaçador, rugiu: — Perto
de mim ninguém faz mal a um bicho, não admito! Agarro por uma perna e faço
assim... Fez o gesto violento de quem torce e concluiu: — Ainda que seja... o
imperador da China. Não admito! Mais calmo, porém, tornou ao assunto: — Então
vocês não gostam de gatos? Miau! Miau! Chamfleury, Baudelaire, Gautier eram
doidos por eles. Um angorá, heim?
— O teu era angorá? — perguntou Ruy Vaz.
— O meu? Qual nada! Era um gato muito ordinário que só me dava trabalho.
Morreu! — disse juntando as mãos e elevando beatamente os olhos. Imaginem
vocês... um gato que comia duas vezes ao dia. Ao ver a cerveja que o caixeiro trazia
rompeu a rir apresentando o copo. Bebeu um gole e repetiu com os bigodes brancos
de espuma: — Estou muito triste. Imaginem vocês: uma menina loura, muito loura,
dona dos mais belos olhos azuis que tenho visto... uma figurinha de keepsake!
Leonor, chama-se Leonor, imaginem vocês! Suspirou e sorveu novo trago. Hoje
estou disposto a beber, bebo tudo... Não gosto de conhaque, pois bebo! Mas
imaginem vocês, os mais belos olhos azuis que tenho visto! Uma menina loura,
loura! Atirou um murro à mesa:
— Ofereci-lhe em um soneto a minha mão de esposo. Sim, porque é uma
mão de artista; espalmou a mão para que Anselmo examinasse; ofereci-lhe, porque
ela é mulher para viver sobre sedas e veludos, cercada de todos os carinhos,
ouvindo versos líricos. É uma mulher divina, digna de um de nós, de todos nós!
Palavra de honra e... imaginem vocês. Sacudiu um gesto indignado: — Isto não é
vida, isto não é sociedade! Ah! Paris! Paris..
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— Mas a menina...? — perguntou Ruy Vaz. O poeta encarou o romancista
sorrindo e, de repente, derreando a cabeça, batendo com a bengala:
— Ah! Sim; eu queria fazê-la feliz... Imaginem vocês, tenho talento, posso
fazer uma mulher feliz. Não posso?
— Sim, podes, disse Ruy Vaz.
— Pois ela não quis: vai casar com um taverneiro. Isto não é vida! Eu ainda
faço uma desgraça. Mais cerveja! — reclamou.
Quando saíram o Lins, sempre risonho e oscilando como um pêndulo,
propôs um passeio ao campo. Gostava da natureza àquela hora silente, tão
favorável à meditação. Iriam para o arvoredo, sonhar.
— Não achas melhor sonhar na cama? — perguntou Ruy Vaz.
— Qual cama! Detesto esse móvel. O sono é uma fraqueza indigna dos
homens de espírito. O sono é o resultado de uma anemia cerebral e, para as
anemias, os médicos aconselham os tônicos e os exercícios. Eu já tenho os tônicos,
vamos agora à outra medicação. Um poeta não dorme; o poeta é vidente e o vidente
deve estar sempre com os olhos abertos. Rompeu a rir, logo, porém, muito sério,
atirando uma punhada que o levou, no ímpeto, de encontro à parede, rugiu: — Eu
queria andar. À noite é que a gente caminha à vontade porque as ruas estão
desertas. Detesto a multidão! — e cuspiu enojado. A multidão é ignóbil! Não há
como a solidão para um homem de talento. Vamos a Niterói: há ali muita poesia e eu
tenho ainda uns restos de 1632... podemos fazer a travessia.
— Tiraste a sorte grande? — perguntou Ruy Vaz.
Eu?! Deus me livre! Saiu ao Capitão Negro. Eu escrevi os versos fazendo
a apologia da sorte do quiosque. Ganhei vinte mil réis. Vocês não leram os versos
na Gazeta? Estão bem bons para o preço. Há apenas uma rima pobre demais para
um poema da fortuna; rimei, imaginem vocês, rimei estrela com vela. O e estrela não
faz boa liga com o de vela, um é grave, outro é agudo, mas também, por vinte mil
réis, não posso estar a escolher rimas milionárias. Mergulho a mão no saco e o que
sai é magnífico. Demais vela e estrela dão luz, ambas são luminosas. A vela é a
estrela da terra, a estrela é a vela do céu, disse com ênfase. Mas o diabo é que eu
empreguei o verbo. Vamos ou não a Niterói?
— Eu não vou, disse Ruy Vaz. Anselmo declarou que sentia bastante não
poder acompanhar o poeta, mas tinha grandes afazeres no dia seguinte, precisava
acordar cedo.
— Gente fraca! — disse ele com desprezo. Pois eu vou. Boa-noite! E, muito
desequilibrado, entrou na Maison Moderne. Ruy Vaz e Anselmo seguiram.
A cidade dormia. Começavam a varrer as ruas. Densa nuvem de poeira
empanava o brilho dos lampiões e, dentro dessa bruma espessa, de um tom
alourado, moviam-se homens cantando e atirando vassouradas: carroças rodavam
parando de quando em quando. Raras mulheres, debruçadas às janelas,
cochilavam. Tílburis passavam à disparada e os dois, em passos apressados,
seguiam cosidos aos muros, com os lenços à boca. Apitos trilaram ao longe e, com
estrépito sonoro, os soldados da ronda passaram a toda brida através da poeira
como cavaleiros fantásticos. Vinham rapazes cantando em vozeirão atroador.
Livrando-se da poeirada, os dois moderaram o andar e Ruy Vaz, queixando-
se da vida que levava naquela casa, onde mal podia trabalhar, à falta de conforto,
quis saber onde morava o estudante. Estava provisoriamente em um cômodo, no
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Estácio de Sá, mas pretendia tomar todo o segundo andar de uma casa na rua
Formosa, que lhe oferecera uma velha viúva por preço vantajoso, com pensão. O
romancista deteve-se e, encarando o estudante, perguntou:
— Conheces os cômodos?
— Conheço: sala de frente com duas janelas para a rua e uma para o
telhado, alcova, sala de jantar, outra alcova e um mirante sobre o telhado.
— E pensão?
— Sim, com pensão.
— Por quanto?
— Eu tratei para dois: duzentos mil réis.
— Isso é um achado! E se morássemos três? — aventurou o romancista.
— Posso falar à viúva.
— Para quê? Depois de lá estarmos fala-se: é questão de mais um talher à
mesa. Tens mobília?
— Alguma.
— E o outro? Quem é?
— Um estudante de Medicina, meu amigo, primo deste Duarte.
— Um alto, magro, de olhos tristes: Toledo, creio.
— Esse mesmo.
— Conheço muito. — um excelente rapaz. Vamos viver magnificamente.
Quando fazes a mudança?
— Vou amanhã falar à mulher e, depois de amanhã, pretendo estar
instalado, mesmo porque ando com idéias de trabalho. Tenho uma peça pronta e um
romance esboçado.
— Depois de amanhã que dia é?
— Sábado.
— Magnífico! Vai lá falar à mulher e depois de amanhã mudamo-nos. Vozes
atroaram o silêncio e uma célebre trepidação de rebanho em marcha fez com que os
rapazes parassem colando-se à parede e logo dois campeiros surgiram, a cavalo,
estalando chicotes, cantarolando e, em seguida, uma boiada a trote, os animais
muito juntos, em bolo, silenciosos. Os grandes chifres entrebatiam-se e homens
atiravam os cavalos à calçada ou passavam por entre os mansos animais,
bradando, como nos campos: "Ehôo!... toca! Junta... êeh!" E a manada seguia e
perdeu-se na poeira dourada de onde apenas vinham os gritos dos guieiros.
— É o bife.
— Para onde vai isso?
— Para Niterói, creio eu. Um bêbado resmungava cambaleando, às
guinadas. Ouviram tinidos de campainhas e uma tropa de burros desfilou,
sacolejando serões, a caminho do mercado.
Vou-me embora... Vou-me embora!
É mentira, não vou não...
Se eu vou m'embora, faceira,
Deixo aqui meu coração.
Cantava languidamente o tropeiro escarranchado na bestinha viageira,
puxando a récua.
— Pleno sertão.
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— É verdade. No Campo estava um quiosque aberto; o romancista
aproximou-se e, falando, com intimidade, ao homem, pediu uma vela. Encostados às
grades do parque dois sujeitos discutiam chuchurreando o café em canecas de
louça e uma negra, andrajosa e trôpega, com o peito ossudo descoberto, vacilando
tropeçar na barra enlameada do vestido, com a baba a escorrer-lhe da boca, ia de
um a outro mastigando palavras, atirando gestos moles, risonha, de olhos quase
fechados.
— Vamos?
— Vamos. Seguiram. À porta da casa o romancista despediu-se:
— Então até amanhã.
— Sim, até amanhã, no Cailtau, às três, para combinarmos.
— Ó diabo! — exclamou Ruy Vaz procurando e escarafunchando nos
bolsos.
— Que é?
— Não comprei aldraba.
— Que aldraba?
— Uma bomba. É com uma bomba que bato à porta, porque o meu senhorio
entende que devo recolher-me às oito da noite e ordena aos criados que me deixem
ficar à porta até a hora d'alva, batendo. Com o estouro da bomba no saguão é
pronto: acodem logo. Hoje já sei que vou ver a aurora. Até amanhã, ou antes: até
logo.
— Até logo! E Anselmo ia seguindo quando ouviu estrondo formidável como
de um desabamento; voltou-se assustado: Que é isso?
— Estou acordando o Cérbero. E, com uma grande pedra, o romancista
batia fazendo estremecer o pesado portão. O estudante já ia longe e ainda ouvia as
tremendas pancadas que ressoavam longamente no silêncio.
Cabisbaixo, cigarro à boca, Anselmo caminhava a passo, contente daquele
triunfo. Abrira-se-lhe, enfim, a porta ebúrnea do ideal, ia entrar na ventura, na grande
vida espiritual, entre artistas: poetas e prosadores, estatuários, músicos, pintores, a
legião augusta dos que eternizam o sonho... Sombras andavam-lhe em torno —
rapazes e raparigas, lá iam em surdo deslize, passavam, perdiam-se. Bem os
conhecia, eram eles: Rodolfe, Marcel, Coline, Schaunard, ouvia o riso de Mimi, a
tosse de Francine, o alarido alegre do café Momus. E seguia alheado do real,
através do silêncio, raro em raro encontrando um soldado, um ébrio aos cambaleios
ou retardatários que recolhiam sonolentos.
O luar, sempre branco, caía sobre os telhados e, quando ele chegou à casa,
mergulhada numa grande paz de sono, subiu ao sótão, abriu largamente a janela e,
alongando os olhos, pôs-se a contemplar as fitas de luzes que se estendiam como
círios de uma procissão interminável que andasse pela cidade em penitência. Mas o
sonho foi-se tornando maior, em grandioso crescendo: era a festa triunfal da sua
vitória: a cidade esplendia, o céu irradiava. E, ouvindo o confuso rumor que chegava
de longe, na aragem, como a ressonar da cidade imensa, dormindo sob o lençol do
luar, parecia-lhe o marulho longínquo dos que vinham, com luzes, arrancá-lo
daquela mansarda para a apoteose.
Galos cantaram. Lançou um último olhar à cidade e ao céu e recolheu-se.
Embaixo, no silêncio da casa, um relógio lento bateu três horas.
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CAPÍTULO III
Três dias depois já estavam instalados no segundo andar da casa da rua
Formosa, com independência e ordem.
A sala, recebendo luz por duas largas janelas da frente e por uma outra que
abria sobre o telhado vizinho, era clara e alegre, com um papel idílico reproduzindo,
de alto a baixo, nas quatro faces, o encontro de amor de um pajem e de uma dama
entre ramos de árvores sangüíneas, à beira de uma lagoa muito azul onde nadava
um cisne, tudo isso sobre um fundo de campos perdidos com uma choupana e
rebanhos. Era romântico.
Ruy Vaz e Anselmo tomaram a sala; Toledo, concentrado e casmurro,
escolhendo a alcova recôndita da sala de jantar, arranjara, diante da cama esguia, a
sua mesa de trabalho, sóbria e honesta, com os seus graves compêndios de
Anatomia, vários ossos, um castiçal de louça, o tinteiro, o pote de fumo e, na parede
caiada, muito juntos, os retratos do pai e da mãe encimados por uma gravura na
qual se via Beethoven, de olhos extasiados, sonhando entre pautas e anjos com
harpas e flautas, a face na mão, o cotovelo sobre o teclado de um órgão.
A sala tinha aspecto. As duas mesas, fronteiriças, um canapé, repousando
sobre surrado tapete onde havia estampada uma cena de serralho, a estante alta,
de Anselmo, atochada de livros, duas outras de Ruy Vaz numa desordem de
brochuras de vários tamanhos, quatro cadeiras e, ao centro, larga e convidativa
cadeira de balanço com estribo para os pés.
A Barricada teve o lugar de honra na parede entre dois originais preciosos
representando um burgo-mestre e um pescador, telas que o romancista, com muito
acatamento, atribuía a Rembrandt pelo tom obscuro que cercava as cabeças
serenas dos flamengos. E um velho relógio acompanhava o trabalho com o seu tic-
tac monótono, quando não caía em silêncio à falta de corda.
Falou-se em uma empanada para as janelas a fim de que a luz não entrasse
tão vívida na sala, mas razões fortes de ordem econômica fizeram com que
desistissem de tal idéia. Na alcova emparelhavam-se duas camas e, entre elas, o
lavatório de vinhático, uma maravilha! Na sala de jantar a mesa de pinho solitária e
lustrosa. À hora das refeições cada qual tomava a sua cadeira e levava-a de rastos
pelo corredor, onde havia um socavão para jornais e ratos.
Dona Ana dirigia a casa ajudada pela filha: Vidinha, morena de dezessete
anos, de olhos negros amendoados, cabelos fartos, sempre soltos, rolando pelos
ombros até ao colo muito rijo, e pelas costas, chegando à cinta delgada; era a
alegria da casa.
O Lins dava-lhe a alcunha expressiva de Míle. Cotovia, porque eram as suas
gargalhadas que despertavam os rapazes.
Leonor, negrinha esgalgada, espevitada e zarelha, de colo murcho; órfã,
trazida de um recolhimento e João, o filho mais novo da viúva, rapazelho sardento,
muito obsceno de linguagem, que trazia a casa em constante alvoroço respondendo
à mãe com insultos, atirando-se à irmã às dentadas, numa ferocidade canina,
perseguindo a negrinha indecorosamente.
Às vezes traziam-no à casa ensangüentado e imundo das brigas que tivera
na rua. Andava sempre armado com um velho canivete que escondia no papo da
camisa e descalço, cigarro nos beiços, abalava em farândolas para as praças, para
os morros, numa vida devassa e vadia.
Se a mãe o prendia ficava a fazer exercícios de capoeiragem no corredor,
cantando dobrados, a gingar, como fazia à frente dos batalhões, com uma gíria
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sórdida e gestos desempenados. A velha, entanto, trazia a casa asseada. Ela
própria, descalça, com as saias arregaçadas, os braços nus, esfregava o soalho; a
negrinha, trepada em uma escada, lavava as vidraças. Vidinha cuidava da louça e
trabalhava com disposição, contanto que, à tarde, à hora em que tirava os papelotes
e vestia os seus casacos enfeitados, a mãe a deixasse debruçada à janela, muito
lânguida e faceira, trocando sinais com um amanuense da vizinhança, moreno, de
óculos, o rosto picado de bexigas. Tinha fama no quarteirão e, à noite, grupos de
rapazes postavam-se na calçada fronteira e, escandalosamente, atiravam beijos,
mas Vidinha, para não perder o amanuense, batia com a janela, numa indignação
pudica e rompia em impropérios, às vezes atirava cusparadas desprezíveis,
mandava o João correr à pedra os galanteadores ou chamava Dona Ana que surgia
à sacada iracunda, mostrando vassouras, ameaçando desancar o bando, cobrindo-o
de insultos vis e subia ao segundo andar, esbaforida e colérica, para pedir aos
rapazes uma reclamação nos jornais contra aquela calaçaria para que um dia ela se
não deitasse a perder, quebrando a pau a costela de um daqueles
desavergonhados.
A vida entre os rapazes corria tranqüila e farta. As refeições, a tempo e
abundantes, eram gabadas sem reserva pelos inquilinos do segundo andar. Terrinas
imensas de sopa, pratarrazes de carne: o arroz sempre corado, subia num alguidar;
o assado era uma posta solene e ainda verdejavam saladas e frutas. O café
recendente era saboreado no mirante, à fresca.
Era Leonor quem servia à mesa muito delambida, fugindo aos beliscões,
posto que andasse sempre a esfregar nos rapazes o seu corpo magro de efebo,
tresandando à cozinha. Ao menor aceno, porém, ameaçava:
— Não brinca! Eu me queixo ao juiz de orfe... Veja lá... E saía, com uma
pilha de pratos, chuchurreando muxoxos.
Podia-se trabalhar folgadamente posto que, à distância de alguns passos,
noite e dia, andassem locomotivas em manobra: trens que chegavam, trens que
partiam e as velhas máquinas manobreiras, como cuidadosas donas de casa, indo e
vindo, esbaforidas, dispondo os comboios que deviam subir para os subúrbios ou,
em mais estirada corrida, para além das serras.
Carroções enormes, carregados, passavam pela rua rangendo, aos
solavancos sobre as pedras mal dispostas; às vezes caíam em covas, as rodas
chafurdavam, ficavam engasgadas nos buracos e os cocheiros, saltando das
boléias, frenéticos, bradando, atiravam chicotadas aos animais que, sangrando, aos
arrancos, tentavam safar o veículo sobrecarregado enquanto homens aos urros,
agarrados aos raios das rodas, ajudavam com esforço.
Ao lado, numa oficina de carros, ressoavam malhos. Em frente, certa menina
ruiva e vesga, muito serelepe, da manhã à noite martirizava inexoravelmente um
piano fanho. Eram pregões de quitandeiros, alarido de mulheres e burburinho de
farândolas. Por vezes gritos intercedestes confirmavam as atoardas de um crime:
história de uma louca que estortegava, esbravejava em fúria seqüestrada em
cárcere privado.
À tarde o rumor crescia: trens corriam abarrotados, caminhões vazios iam
aos trancos, com estridor de ferragens; bondinhos passavam cheios. Os rapazes
refugiavam-se no mirante e, sob a doçura do céu azul, onde a luz esmaecia,
fumavam, conversavam, espairecendo os olhos por aqueles telhados vermelhos,
vendo, à distância, a massa de verdura do parque da Aclamação, o grande
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quadrilátero do quartel e torres de igrejas, o zimbório da Candelária e os morros
esmaltados de casas, alvas no verdor do arvoredo denso.
Aqui, ali, à derradeira irradiação do sol, uma clarabóia cintilava. Baixando os
olhos, viam os quintais com os coradouros coalhados de roupa, cordas vergando,
outras atesadas por bambus e, quase por baixo do mirante, o pátio da oficina de
carroças, cheio de toros de madeira, rodas em pilhas, um banco de marceneiro sob
uma coberta de zinco.
Sons vibrantes de cometas, às vezes de marchas e dobrados, vinham de
longe na doçura da tarde. Apareciam estrelas, luzes apontavam nas ruas. A noite
caía rápida, e a cidade iluminada resplandecia como uma vasta planície crivada de
vaga-lumes.
Recolhiam-se. Só o Toledo ficava muito triste, à noite triste, cantando
baixinho, com melancolia, o olhar perdido em cismas. Saíam para os teatros, para a
palestra no Garnier ou no Deroche ou ficavam à vontade falando do futuro, formando
planos literários — um grande livro de Arte que despertasse a indiferença do público
mazorro, uma obra forte, feita com amor e talento, a forma muito trabalhada, a
análise muito minuciosa; um livro magistral de estilo que passasse o oceano e fosse
ao estrangeiro dizer da Pátria e dos seus artistas.
Ruy Vaz, porém, tinha, por vezes, grandes desalentos: entendia que a língua
portuguesa era um cárcere.
— Para que morrer sobre as páginas de um livro se ele nunca chegaria ao
conhecimento universal, por mais nobres que fossem os seus conceitos, por mais
sutil e arguta que fosse a sua psicologia, por mais que lhe repelissem a forma? Não
valia a pena. A língua portuguesa é ingrata e avara: guarda os seus mais belos
poemas como um usurário esconde os seus tesouros. Anselmo, porém, sempre a
rebuscar nos clássicos novos termos, tinha assomos de entusiasmo e proclamava o
seu vernáculo o mais belo, o mais rico, o mais soante. E lia altissonantemente
estrofes de Camões, trechos de Bernardes, de Fernão Mendes, de Lucena, os
sermões e as cartas de Vieira, apontando as belezas e os grandes recursos dos
mestres, e ia assim formando o seu vocabulário.
Só o Toledo, sempre sorumbático, parecia indiferente àquelas pesquisas
literárias. Olhava e, se o estudante saltava mostrando nas páginas dum clássico um
adjetivo sonoro e expressivo, sorria o seu olhar morno tinha alguma coisa de
enternecida piedade, se lhe parecesse ridículo, digno de lástima, contentamento tão
grande por tão fútil descoberta. Levantava-se suspirando e, vagaroso, de mãos nas
costas, arrastando os passos, ia-se pelo corredor a mascar o cigarro, ou de cabeça
baixa, cantarolando trechos de óperas.
Como em todas as venturas da vida há sempre um "mas" impertinente, a
adversativa do período sereno dessa existência amável era o banheiro.
A casa não possuía essa dependência indispensável à higiene e ao gozo.
Dona Ana esfregava as suas banhas flácidas, de tempos a tempos, em imensa
bacia de ferro onde Vidinha, aos sábados, com algumas gotas de água Florida e
sabonete Windsor, tirava as gorduras do corpo alambreado.
Leonor, quando começava a tresandar, era impelida para o tanque e a bica
golfava grandes jorros sobre as costas da negrinha, que tiritava clamando contra a
barbaridade e pedindo que a mandassem para o recolhimento. Logo, porém, que se
enxugava, a cólera caía e, satisfeita e inodora por algum tempo, saía a anunciar a
barrela com justíssimo enlevo e restos de sabão na carapinha. Só o João se
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conservava a respeitável distância da água, esbravejando e referindo-se à falecida
avó com descabida infâmia quando a mãe investia com a vara para o levar à barrela.
Os rapazes, logo que se instalaram, fizeram uma representação em forma à
viúva reclamando um banheiro. Dona Ana achou "muita exigência" e fez-se surda,
indo para a cozinha resmungar contra o "luxo dos fidalgos".
Ruy Vaz e Anselmo, vendo que ela desatendia, desceram uma manhã, às
dez horas, quando Leonor esfregava no tanque e Vidinha arranjava os vasos de
violetas à janela da sala de jantar. Despiram-se atirando a roupa para a corda e,
nus, cantarolando, auxiliaram-se mutuamente revezando-se ao regador que um
derramava sobre a cabeça do outro, trepando, o que fazia de aquário, sobre uma
tina emborcada para que a água jorrasse do alto.
Leonor, em grande pânico, aos gritos, fugiu bradando o escândalo: "Que os
moços estavam nus em pêlo, tomando banho no quintal." Vidinha debruçou-se à
janela e rompeu a rir. Dona Ana acudiu e, vendo os dois inquilinos como anabatistas
que se batizavam, uivou enfurecida contra a pouca vergonha.
Anselmo, porém, com a cabeça branca como um casulo de algodão, o corpo
enfocado de espuma, de pé na tina, pronunciou um discurso demonstrando as
excelências da água fria para a limpeza do corpo e para a resistência moral dizendo,
na peroração, que se ela não desse imediatas providências, todos os dias àquela
hora fúlgida, desceriam do Empino com as toalhas e o sabonete e, núcegos como
dois atletas gregos, fariam a ablução indispensável.
Dona Ana vociferou invocando o pudor de Vidinha, a inocência de João, a
candura de Leonor e a sua viuvez, mas no dia seguinte mandou vir da venda uma
grande pipa, serrou-a e, suspendendo a um barrote um pequeno reservatório com
chuveiro, mandou anunciar aos do segundo andar que podiam tomar banho com
decência, mas que haviam de pagar o banheiro, porque ela não estava disposta a
sustentar os luxos de ninguém.
E a cuba foi estreada, com alarido e cantos e, como o sítio do banheiro era
escuro e infestado de bichos, desciam sempre com uma vela, e a hora do banho,
por causa da lanterna e da tina, foi chamada com propriedade, "a hora de
Diógenes".
O Lins aparecia freqüentemente a horas altas da noite e, da rua silenciosa,
bradava para que lhe fossem abrir a porta. Entrava pé ante pé para não despertar a
Cotovia e o Dragão e, vestindo um imenso robe de chambre do Toledo, estirava-se
no canapé, com a cabeça sobre dois dicionários, e dormia como um justo alarmando
a casa com os seus tremendos pesadelos.
De tempos a tempos o Duarte mandava um garrafão de vinho e ia também
bebê-lo. Os jantares tinham, então, a grandiosidade de banquetes, trocavam-se
brindes. Lins ia ao mirante com um copo cheio e bebia ao astro noturno e à
maravilha das constelações; nas noites taciturnas, sem lua, bebia a S. Sebastião, o
padroeiro da cidade ou a alguma mulher formosa e, mesmo uma noite, como
enchesse o copo oito vezes, bebeu aos seus credores.
O trabalho progredia. Ruy Vaz acumulava observações para um romance de
análise, estudo sutil de mulher; Toledo estudava os ossos do crânio e Anselmo
terminava uma opereta quando se declarou a epidemia do amor.
Vidinha, graciosa e bela, parecia ter esquecido o amanuense e arrancava do
peito recravados suspiros andando pela casa triste, com o croché entre os dedos,
penteada, engomada, de meias e, à noitinha, debruçada à janela da sala de jantar, à
hora em que, do mirante, os rapazes contemplavam os astros, cantava com muito
sentimento:
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Quando eu morrer não chorem minha morte...
O Lins achava-a encantadora com aqueles ares melancólicos de Ariadne
esquecida, falando de morte; e pensava em desposá-la.
É digna de um artista de raça. É mulher para ter um templo feito com
alexandrinos imperecíveis. Mulher nervosa, mulher ardente... só mesmo para um
artista como eu. Sinto-me capaz de a fazer feliz. E travavam-se duetos estranhos no
escuro: Vidinha embaixo, debruçada à janela, a suspirar:
Quando eu morrer não chorem minha morte...
e o poeta do mirante, com o comprido robe de chambre de rastos, a recitar
Camões:
— Se me vem tanta glória só de olhar-te
É pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te
Grão pago de um engano é desejar-te...
Mas Vidinha, logo que ouvia o poeta, retirava-se atirando bem alto, para que
ele ouvisse, uma frase de ferino desprezo:
— Diabo do capenga não se enxerga! Não era ele então o preferido? Quem
seria pois? Anselmo? Ruy Vaz? O sombrio Toledo? Duarte? Mistério! Os rapazes
interrogavam Leonor, davam-lhe gorjetas procurando subornar a negrinha para que
denunciasse o segredo que trazia contristada a formosa morena. A negrinha
entesourava as moedas e respondia sempre com inflexível teimosia: "Não sei... Não
sei..."
O amor fervia em todos os corações. Lins, desprezado, mas não desiludido,
agarrava-se ao velho prolóquio: "Quem desdenha quer comprar..." e dava tratos à
Musa escrevendo copiosas e alambicadas líricas nas quais cantava a criatura
indiferente que o torturava. Uma manhã, à "hora de Diógenes", descia Anselmo para
o Cranium, que era o sítio tenebroso do banheiro, com a toalha ao ombro, o castiçal
e o sabonete quando, na escada, encontrou Vidinha. Trocaram um olhar afogueado
e as faces da menina coloriram-se, indício infalível de que o coração se lhe havia
sobressaltado.
— Bom dia, Vidinha.
— Bom dia, respondeu ela de olhos baixos, agarrada ao corrimão.
— Estás zangada comigo? — perguntou baixinho o estudante.
— Zangada com o senhor! Por quê? Hom'essa... Olharam-se e iam, talvez,
sair os grandes segredos do coração da donzela quando uma voz estrondou no alto
da escada:
— Passa pra cima, descarada! E o senhor fique sabendo que eu não quero
cenas aqui em minha casa. Os senhores pensam uma coisa e ela é outra.
Vidinha, assomada, respondeu:
— Não me amole! — e enfarruscou, alisando o corrimão.
Anselmo, melindrado, repeliu a insinuação.
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— Que pensa a senhora de mim?! Julga que eu estava aqui a dizer
galanteios à sua filha? Está enganada. Eu perguntava simplesmente se a Gazeta
havia chegado. Não é verdade, Vidinha?
— É, sim.
— Eu sei! Os senhores são bons, mas a mim é que não embaçam. Eu bem
sei como o diabo as arma. Anda pra cima, Vidinha.
— Não vou!
— Sem vergonha! Ficaram as duas discutindo e o estudante desceu
indignado, mas convencido de que era o venturoso. Na manhã seguinte, porém, Ruy
Vaz subia do Cranium quando encontrou a menina. Dona Ana estava à porta
comprando verduras e sorte que o romancista pôde dilatar o encontro.
— Adeus, belezinha. Ia fazer-lhe uma carícia no rosto, mas Vidinha repeliu
energicamente a mão atrevida.
— Eu não gosto de lambanças, sabe?
— Que é isto? Então é assim que se trata o queridinho?
— Queridinho quê, seu bobo!
— Ah! Não sou eu o queridinho? Então por que anda você mexer comigo?
— Mexendo com o senhor? Eu! O senhor está sonhando...
— Ah! Estou sonhando? Pois sim.
A menina fez um momo e disse abandonadamente:
— Eu dos senhores só quero o descanso.
— Má! — atirou-lhe em face o romancista.
— Mau é o senhor.
— Eu? Por quê?
— Não sei...
— Diga!
Ela encarou-o sorrindo e, com um meneio gracioso da cabeça, em voz
expressiva e mole:
— O senhor é tolo! Nossa Senhora!... É melhor que tire fiapo do bigode, que
até parece um cabelo branco.
Ruy Vaz apresentou a face, muito terno:
— Tira, meu anjo. Eu não vejo... E Vidinha, com um muxoxo, foi com dois
dedos delicadamente, tirou o fiapo e mostrou-o ao romancista; e ele, trêmulo:
— Então eu sou mau?
— É, sim... Mas os tamancos de Dona Ana abalaram a casa.
— Olha mamãe! — disse ela assustada e Ruy Vaz precipitou-se, escada
abaixo, o caminho do Cranium. Mas da cena capital foi herói Toledo, o casmurro. Os
companheiros haviam saído, era quase noite, ele estava só no mirante quando
Vidinha, debruçada à janela, disse:
— Que tristeza, meu Deus!
— Como? — inquiriu o misantropo.
— Que tem o senhor que anda tão triste?
— Nada, sou assim mesmo.
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— Qual? Não creio: o senhor tem alguma coisa que não quer dizer à gente.
Paixão, com certeza...
— Eu? Não tenho tempo para essas coisas, Dona Vidinha.
— Faço idéia...! Os mais sonsos são os piores.
Houve um silêncio e Toledo já não se lembrava de Vidinha quando ouviu:
— Boa noite!
Respondeu como em sobressalto:
— Boa noite, Dona Vidinha
E ela, em voz trêmula e surda, ajuntou:
— Sonhe comigo... e desapareceu. O anatomista ficou atordoado,
assombrado como se, lá da altura, a lua, muda e branca, lhe houvesse perguntado
pela família.
Foi num dia borrascoso de aguaceiro e vento, dia insípido de tédio, que Ruy
Vaz contou, com requintes de vanglória, o seu encontro com a menina dando-se
pelo preferido, mas Anselmo referiu o episódio da escada e Toledo narrou a cena
teatral do mirante. Os três, pasmados, romperam a rir.
Toledo, porém, disse com lástima e sabedoria: "Que era uma doente..." Ruy
Vaz declarou: que era um caso. A pequena atirava-se a todos para apanhar um,
indiferentemente. Não havia amor, senão astúcia e interesse. Toledo entendia que o
melhor era darem a perceber que a estimavam, sem intenção, para que se
desvanecessem as idéias absurdas que ela afagava com prejuízo do futuro, porque
estava talhada para ser a esposa fiel do amanuense. Mas Anselmo, com os olhos
fuzilantes, protestou enérgico:
— Isso não! Pois a pequena presta-nos tão alto serviço intelectual e
havemos de desprezá-la? Isso nunca! Vidinha é um excitante e um alvo. O coração
precisa de um ponto de mira, meus amigos. Os marinheiros guiam-se pelas estrelas,
os poetas não podem trabalhar sem um ideal qualquer. Vidinha presta-se
magnificamente.
Toledo ponderou com gravidade:
— Tomem cuidado! Essa menina é um perigo.
— Qual perigo! E, sem darem atenção aos conselhos do macambúzio, Ruy
Vaz e Anselmo continuaram a cultivar a flor de alambre dirigindo-lhe frases
incandescentes e ela a mandar-lhes flores, anéis de cabelo, marcadores de livros e,
quando saíam, avisada pela negrinha, subia em visita curiosa ao segundo andar,
corria os quartos, arranjava as mesas e, uma noite, ao deitar-se, Anselmo descobriu
debaixo do seu travesseiro um lenço perfumado a Kananga que a menina ali havia
escondido, para atordoá-lo, sem dúvida. O estudante dormiu com o trapo apertado
ao coração e teve sonhos deliciosos.
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Ruy Vaz, ouvindo os estrondos e suspiros do companheiro, começava a
recear quando um incidente providencial fez com que o estudante evitasse o abismo
que o atraía com lenços perfumados e cantares langorosos à janela da sala de
jantar.
CAPÍTULO IV
Anselmo, que havia concluído a opereta, obteve do Heller, graças à
apresentação de Ruy Vaz, um domingo para a leitura. Com o manuscrito debaixo do
braço, o coração em grande alvoroço à idéia de um ruidoso sucesso que, de golpe,
lhe atirasse o nome para a glória, entrou no jardim do Sant'Ana.
O empresário teve uma grande e enfadada surpresa ao como se vê-lo se
não contasse com aquele sacrifício, mas dissimulando, ofereceu-lhe um banco no
tablado, pedindo um instante para dar certas ordens. Anselmo sentou-se orgulhoso,
certo de que o Heller fora reunir a companhia para a audição dos três atos da sua
opereta que tinha o misterioso título de A Profecia. Mas o empresário tornou,
instantes depois, resignado e só, e, tomando um dos bancos, sentou-se, dizendo em
voz aveludada e com um sorriso de mártir:
— Podemos começar. Anselmo, ainda esperançado, lançou um olhar
comprido para o fundo do teatro, através da platéia deserta e lúgubre, mas o palco
estava vazio e escuro, em arcabouço, com os bastidores encostados em pilhas, uma
grande concha, rutilante de malacacheta, tirada por dois cisnes e uma velha árvore
que, na mágica, então preferida do público, esgalhava-se dando passagem à fada
Primavera, uma artista italiana, grossa de corpo que, todas as noites, era
delirantemente aclamada por um grupo de admiradores. Não havia viva alma.
Resolveu-se a principiar a leitura. Desenrolou o manuscrito e o Heller, vendo a
primeira página, fez uma observação lisonjeira:
— Bela letra! — sua?
— Sim, senhor. O empresário, arregalando os olhos, acenou com a cabeça
admirativamente. Em verdade a caligrafia era magnífica: o título dos atos em
caracteres góticos, a descrição dos cenários e as rubricas em fino cursivo à tinta
carmim, e toda a escrita uniforme, sem uma emenda, sem uma rasura, limpa e igual.
Anselmo começou e, logo às primeiras frases, o Heller, abichornado pela
temperatura tépida da hora sonolenta, cerrou os olhos. A cabeça ia-lhe descaindo
lentamente; ele, porém, logo a afirmava, olhando quebrantado, com a mão à boca
para esconder os bocejos.
Ia começando o segundo ato quando uma atrizinha apareceu muito tesa, em
passo miúdo, rebolindo-se, com a sombrinha acolhida entre os braços sob o colo.
Fazendo leve cumprimento ao estudante inclinou-se para dizer alguma coisa ao
ouvido do empresário que, de olhos altos, ia respondendo: "Sim... Sim... Sim..."
Enquanto ela falava Anselmo, que acendera um cigarro, olhava-a e admirava-a.
Clara, de olhos garços, pequenos, irônicos, mas de inexcedível vivacidade brejeira,
lábios carnudos, cabelos castanhos e colo farto, que ondulava maciamente.
— É uma peça nova? — perguntou lançando um olhar ao manuscrito.
— Sim, disse o Heller.
— Há algum papel para mim? Anselmo afirmou:
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— Há a princesa ou, se a senhora preferir, a fada. A atriz inclinou-se sobre o
original, que o estudante deixara aberto na mesa, examinou-o, tomou-o nas mãos e,
com um sorriso que dava ensejo a que o jovem autor visse duas filas de dentes
admiráveis, exclamou enlevada:
— Com efeito! Que letra! Linda letra, heim, Jacinto?
— É verdade, concordou o empresário sonolento.
— Tão certa! Parece impressa. Sim senhor! Esta não precisa ser copiada
para o ponto. O senhor escreve sempre assim?
— Sempre; afirmou o estudante.
— É admirável! E ajuntou: Quem tem tão linda letra deve escrever coisas
admiráveis. Com licença... Se permite que eu ouça algumas cenas da sua peça... Há
muito que começou? Que calor, heim? Em que ato está?
— No segundo.
— O primeiro não é mau, resmungou o Heller: tem vida.
— Vamos lá, disse a atrizinha chegando a cadeira para junto do estudante e,
sempre com os olhos nele, risonha, ouvia. Ia Anselmo lendo uma grande e enfática
invectiva quando se pôs a gaguejar, perturbado: sentira leve pressão no pé e,
instintivamente, lançando um olhar interrogativo à atriz, viu que ela o fitava
enternecida, com os olhos semicerrados e lânguidos. Quase ao terminar o segundo
ato uma voz bradou do palco estentoricamente:
— Ó Jacinto! O empresário, ajustando o pince-nez, levantou a cabeça:
— Que é?
— Anda cá!
— Com licença. É um momento.
— Pois não. Ficaram os dois e o Heller ia ainda perto quando a atrizinha, em
tom ardente e discreto, com a cabecinha inclinada, murmurou:
— Que olhos tem você, menino...! Ele sorriu tímido. Fazem mal à gente,
palavra; ajuntou. Olharam-se e ela, sorrindo, tornou mais forte a pressão do pé.
— Você é estudante?
— Sou.
— De Medicina?
— Não: de Direito; estudo em S. Paulo.
— Ah! S. Paulo! — disse ela de olhos em alvo, como se aquele nome lhe
trouxesse suaves e saudosas recordações. Inclinou-se sobre a mesa e Anselmo
sentiu-lhe o contato dos joelhos. Ela examinou o frontispício do manuscrito e, lendo
"Anselmo Ribas..." perguntou:
— É teu nome?
— É...
— Que idade tens?
— Dezoito anos. Encarou-o risonha, mordiscando o beiço e exclamou de
novo:
— Mas que olhos! Você deve ser um homem terrível! Quem é a tua amante?
— Minha amante? Não tenho.
— Não tem!? — fez ela com espanto compadecido: Pobrezinho! De repente,
sacudindo uma penugem que pousara na lapela do casaco do estudante, perguntou:
— Vens logo ao teatro?
— Posso vir.
— Então espera-me depois do espetáculo. Onde moras?
— Na rua Formosa.
— Só?
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37
— Com dois outros rapazes: Ruy Vaz e um estudante de Medicina.
— Ah! Moras com Ruy Vaz?
— Moro.
— Bonito rapaz aquele, heim?
— É... Levantou-se, tomou a sombrinha e, estendendo a mão breve ao
estudante, enquanto lhe apertava os dedos, disse:
— Então até logo. Olha, espera-me junto do botequim. Vamos cear e
depois... riu derreando a cabeça, piscando os olhos. Até logo; e, erguendo a voz:
Jacinto, adeus, hein!
— Adeus! Já à porta, acenou com os dedos um adeus a Anselmo, depois,
apontando o balcão do botequim fechado: Ali!
— Sim, disse o estudante.
— Até logo! — e atirou-lhe um beijo. O estudante, surpreendido com esse
rápido incidente de amor, mal pôde concluir a leitura. Já não se preocupava com os
proventos nem com o sucesso da opereta, pensando apenas no encontro noturno
com tão formosa rapariga, mas a idéia da ceia aterrou-o. Como havia de a levar a
um hotel se toda a sua fortuna reduzia-se a uma velha nota de cinco mil réis? Não
havia de conduzi-la a uma tasca para empanturrá-la de iscas e de vinho verde, nem
era gentil levá-la a bonde para casa. Mulheres como aquela estavam habituadas a
iguarias finas, a champanhe e não se moviam senão em carruagens macias. Como
se havia de arranjar para aparecer decentemente à atriz que ficara magnetizada
pelos seus olhos felinos?
O empresário aceitou a peça prometendo montá-la logo que tivesse ensejo e
Anselmo saiu radiante, feliz nas letras, feliz no amor, antegozando as duas delícias
— a noite próxima, sonora de beijos, e o êxito de A Profecia... logo que houvesse
ensejo. Quando chegou à casa narrou miudamente a aventura. Ruy Vaz, que
conhecia a atriz, quis dissuadi-lo.
— Não te metas com essa mulher, é o diabo. É um escândalo de saias: faz
rolos, tem ataques, suicida-se uma vez por mês, um horror! Arranjaste uma
complicação, vais ver. Essa mulher vem desorganizar a nossa vida. Estamos aqui
tão bem, trabalhando tranqüilamente e vai-se tudo por água abaixo. Já estou a vê-la
revolvendo papéis, folheando livros, espalhando notas ou esperneando ali no tapete
descomposta, com os tais ataques. Não penses que há despeito da minha parte,
falo assim porque conheço a fundo essa ventoinha. Acho melhor que não a tragas
para cá.
— Mas se ela quer vir..
— Quer vir! Ora! Quer vir! Mas para onde, se dormimos no mesmo quarto?
— Por isso não: eu falo ao Toledo.
— Pois sim, hás de ver o resultado. É até capaz de fazer-nos perder esta
casa, onde estamos tão bem. É assim! Quando começo a pôr ordem na vida... zás!
E foi-se para a janela resmungando.
O Toledo cedeu o quarto sem a mínima objeção; apenas retirou da parede
os retratos do pai e da mãe e pôs uma vela nova no castiçal. O estudante
conseguiu, com alguma lamúria, arrancar dez mil réis ao misantropo para as
grandes despesas da ceia.
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38
O dia parecia a Anselmo infindável e, impaciente, às sete e meia da tarde,
com quinze mil réis no bolso e a alma radiante, caminhou trauteando a "Canção de
Fortúnio" em direção ao Deroche para fazer hora.
Lins lá estava chuchurreando chopes e ouvindo as bravatas de um alentado
barbaças que era paginador num jornal. O homem narrava, roxo e inflado, suando,
um feito de mocidade. Andava uma noite em serenata, com outros, lá para as
bandas da Cidade Nova, quando dois policiais, por birra, lhes tomaram o passo
proibindo, com descomposta linguagem, o zangarreio e o descante. Com boas
palavras tentaram persuadi-los de que não eram vadios, mas homens pacíficos, de
trabalho, que se divertiam ao luar da noite morna, mas os polícias, julgando, pelas
falas mansas, que eram poaias, insistiram na proibição e, sem mais aquela, foram
desembainhando os rifles. Ele então, em furor de louco, atirou as manoplas à barriga
dos intangidos soldados, suspendeu os dois e muito tempo, no ar, esteve a bater um
contra o outro até que os sentiu moles; encostou-os, então, a um muro e foi-se
pacatamente, fumando. Soube, mais tarde, que os dois policiais, recolhidos de
manhã, com as caras amassadas e rubras como dois grandes tomates, estiveram
entre a vida e a morte durante um mês, no hospital, bradando, no delírio da febre,
contra um gigante, alto como uma torre e armado de cavaquinho, que os esmagava.
O gigante era ele. A voz trovejante do paginador, saindo dentre as barbas densas,
era soturna e temerosa como a de um oráculo vindo de versuda brenha em
escachôos, ecoando. Lins ouvia-o entre assombrado e descrente e pedia mais
chopes.
Quando Anselmo entrou o poeta apresentou-o ao paginador que possuía o
nome beato de Santos e o colosso, tomando na prensa da destra a mão fraca do
estudante, para dar demonstração da sua força, apertou-a. Anselmo, porém, não se
deu por sentido, posto que se lhe enchessem os olhos de água.
O Deroche estava quase deserto; além do poeta e do gigante só dois
alemães, cachimbando e cervejando, calados como autômatos, recomeçavam
partidas de dominó. Anselmo lançava, de instante a instante, os olhos ao relógio
moroso. Como lhe pareciam lentas aquelas horas! Que noite vagarosa! Lins não
podia acompanhá-lo, ia escrever uma crônica para um jornal de província. Já o
caixeiro lhe havia posto diante dos olhos, entre os copos vazios, o tinteiro e um
caderno de papel. Anselmo foi-se. A rua do Ouvidor, sem movimento, tinha o
aspecto desolado de viela abandonada. As ruas do Rio de Janeiro, como as de
Paris, segundo Balzac, têm qualidades e vícios humanos: há ruas estróinas e há
ruas pacatas, ruas ativas e ruas negligentes, ruas devassas e ruas honestas, umas
cujos nomes andam constantemente em notas policiais, outras que são citadas nas
descrições elegantes.
A rua do Senhor dos Passos é imoral e imunda, a sua linguagem é torpe, o
seu vestuário indecoroso, as suas maneiras insólitas, o seu cheiro nauseabundo, é
uma rua que se enfeita com alecrim e arruda e embebeda-se com cachaça, tem
hábitos vis de xadrez e de tasca. Por mais que se arreie vê-se-lhe sempre a
imundície e a pústula; por mais que se esfregue sente-se-lhe sempre o fortum.
A rua Sete de Setembro é uma delambida rameira que estropia a língua do
país e escandaliza a moral; o seu colo tem placas, os seus lábios mostram a
devastação fagedênica, o seu hálito envenena. Tais ruas são como essas flores
noctilucas que só desabotoam à noite e expandem o seu aroma; durante o dia
caladas, entorpecidas modorram em flácido e derreado abandono, bocejando.
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A rua da Conceição é desconfiada, como que tem sempre o olhar à espreita,
a navalha à mão, o pé ligeiro pronto para saltar e fugir. Não fala — murmura,
cochicha, em gíria arrevesada. E maltrapilha e zambra, arrasta andrajos e oscila.
A praia de Santo Cristo tem o aspecto sadio de uma varina, criada
livremente, à fresca e salitrada aragem marinha, diante da vaga, sempre a coser os
panos das velas, abrindo-as ao vento ou compondo as malhas das redes que um
repelão mais forte do peixe, no mar fundo, rompera em noite farta. A sua linguagem
é rude como o fragor da onda na rocha, o seu olhar é límpido e seguro como o do
mareante; tresanda à maresia. A sua força é a do vagalhão. Calma, tem o encanto
da água serena em noites de luar, mas quando se insurge alvoroçada, quando se
põe de pé, brandindo facas agudas e croques, remos e velhas bancadas de canoas
roídas pela onda, esquecidas junto às dunas, apodrecendo ao tempo, tem a fúria
irreprimível do mar tempestuoso.
A rua Haddock Lobo, com o seu ar repousado e feliz de velha senhora
abastada, que dormita à sombra de árvores, entre crianças gazis e flores
recendentes, digerindo, em sossego beato, sem cuidados, sem achaques, é calma e
transmite ao espírito suavíssima idéia de descanso espiritual e de corpo, no
imperturbável silêncio das suas aléias no frescor das suas finas águas correntes.
A rua do Ouvidor é trêfega. Durante o dia toda ela é vida e atividade,
faceirice e garbo; é hilare e gárrula; aqui, picante; além ponderosa; sussurra um
galanteio e logo emite uma opinião sisuda, discute os figurinos e comenta os atos
políticos, analisa o soneto do dia e disseca o último volume filosófico. Sabe tudo — é
repórter, é lanceuse, é corretora, é crítica, é revolucionária. Espalha a notícia, impõe
o gosto, eleva o câmbio, consagra o poeta, depõe os governos, decide as questões
à palavra ou a murro, à tapona ou a tiro e, à noite, fatigada e sonolenta, quando as
outras mais se agitam, adormece. Ouve-se apenas o rumor constante dos prelos
nas oficinas dos jornais. É a rua que digere a sua formidável alimentação diária para,
no dia seguinte, pela manhã, espalhar pelo país inteiro a substância que compõe a
nutrição do grande corpo, cada parte para o seu destino. Para o cérebro: as idéias
que são os incidentes políticos e literários e as descobertas científicas, essas ficam
com a casta dos intelectuais; o sentimento para o coração, que é a mulher; essa tem
o romance e a esmola, o lance dramático e a obra de misericórdia; o movimento dos
portos e das gares para o ventre e para os braços do povo que devora e do
comércio que abastece e o resíduo que rola, parte para os cemitérios, parte para os
presídios mortos e condenados. Outros que analisem a carta completa da cidade, eu
fico nesta exposição.
Anselmo seguiu pensando no encontro. No largo de S. Francisco todos os
quiosques conservavam-se apagados. Tomou pela rua do Teatro, também escura.
Os respiradouros do S. Pedro brilhavam, homens debruçados às janelas fumavam,
passavam senhoras despindo capas. Num hotel ressoava a harpa de um pequeno
italiano e a rabequinha da irmã desafinava dolorosamente como se, a custo, àquela
hora da noite, depois de todo um dia de afã, de hotel em hotel, de esquina em
esquina, arranhado insistentemente pelo arco, o instrumento, irritado, recusasse o
som.
No largo do Rocio era grande o movimento. Os cafés regurgitavam — era o
povo dos domingos: o operário, o caixeiro, o marujo, aproveitando, com ânsia, o dia
de folga. Vinham do campo, chegavam dos subúrbios fartos, alegres; uns que
haviam apostado, com felicidade, nas corridas; outros que se haviam banqueteado,
num canto rústico de arrabalde, à sombra da latada verde e iam acabar a noite no
teatro, aplaudindo atrizes, cobrindo o palco de flores, rindo, saciando um desejo
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refreado durante uma longa semana no quarto estreito do armazém ou no cubículo
da oficina.
Rapazolas passavam em turmas com grandes ramos ao peito, chuchando
imensos charutos, fazendo algazarra. E triste, encostado a uma esquina, com uma
pequenita sonolenta ao lado e um cão estirado aos pés, um velho cego, de
compridas barbas brancas, com um realejo suspenso ao pescoço, tendo sobre a
tampa um pires, voltava maquinalmente a manivela, moendo a Marselhesa.
Anselmo parava à porta de todas as casas, espiava e via um povo diferente
do que ali costumava aparecer nos dias comuns. Nem um só dos rapazes: era uma
gente nova, desconhecida, como se houvesse chegado de longe, caminhando, logo
ao pisar a terra, em grande necessidade de expansão e de movimento, para as
casas de prazeres onde bebesse e, calmamente, seguramente, comentasse os
perigos de que saíra, os sustos que havia sofrido, as privações por que havia
passado.
O homem das empadinhas urrava desesperado: "Empadinhas de camarão...
estão quentes!" e, à porta do teatro, o povo apinhava-se, apertava-se, avançando
arrastadamente, comprimido. Entrou.
O porteiro ruivo pediu-lhe o bilhete; ele, porém, lembrando-se do que lhe
havia dito Ruy Vaz, atirou, com orgulho, o título de um jornal e passou.
Havia enchente. O jardim fervilhava e era um rumor confuso de vozes altas,
estrondosas gargalhadas, estouros de garrafas. Cocottes, às duas, às três, de braço
dado, iam e vinham; na platéia e nas torrinhas, era um bater estrepitoso de pés e de
bengalas. Na orquestra os músicos afinavam os instrumentos quando a campainha
retiniu e houve como uma inundação de luz e um grande "oh!" encheu o teatro com
a expansão de todas aquelas almas ansiosas.
Subiu o pano. Anselmo, junto à orquestra, entalado entre os curiosos, muito
espichado, procurava descobrir Amélia, mas a atriz não havia ainda aparecido, o
coro apenas vozeirava. Rompeu uma salva de palmas... Seria ela? esticou-se: não,
era o Vasques, todo de amarelo, com um girassol à cabeça. Mas uma pancada
metálica de gongo vibrou sonoramente, espiou e sorriu, com o coração à boca. Era
Amélia, de fada, iluminada por um jorro de luz, num carro tirado por dois cisnes.
Vestia túnica recamada de pedrarias, à cabeça o diadema encimado por uma estrela
que cintilava, em punho a vara mágica, braços nus, as pernas no maiô muito justo,
coturnos nos pés... Divina!
Ele esforçava-se por conseguir tomar a frente ao grupo para que ela o visse,
mas não podendo vencer a barreira humana, resignou-se a ficar em pontas de pés,
angustiado, suando, a ouvir, com delícia, as palavras proféticas que ela ia dizendo
aos da corte do rei, um monarca pançudo e ridículo, que caminhava aos saltinhos
agarrado aos ministros... E com outro estrondo metálico Amélia desapareceu.
Que mais tinha ele a fazer ali naquela espécie de lugar? Retirou-se, com a
mão no bolso, apalpando o dinheiro, receoso de que algum gatuno astuto o levasse,
deixando-o desprevenido para a ceia.
No jardim encontrou o Duarte, a rir, num grupo de mulheres. Chamou-o à
parte e, narrando-lhe a aventura em que estava empenhado, pediu o seu auxílio,
mas o poeta estava in albis, tinha apenas o níquel da passagem. Olharam-se; de
repente, porém, o autor das Boêmias disse com segurança:
— Espera-me aqui. Vou ver uns casos. E foi-se. Anselmo, posto que
ardesse em sede, não se atrevia a tocar no dinheiro que reservava avaramente para
a ceia. Foi ao balcão e, não sem vexame, pediu um copo de água. Começava o
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terceiro ato. O estudante já estava resignado à sua fortuna módica, quando o Duarte
reapareceu esbaforido:
— Ah! meu amigo, que trabalhão! — e passou-lhe um rolinho
sorrateiramente, segredando: Tens aí dez. Mas não te metas mais em complicações
aos domingos. O domingo é um dia impossível: as nossas carteiras não aparecem,
ficam repousando nas chácaras, de paletó branco e chinelas. Faze tudo quanto
quiseres da segunda-feira ao sábado e descansa ao domingo, porque o Senhor
mandou e porque não há meio de arranjar-se um níquel. Suei para conseguir essa
miséria: tive de ir à rua da Candelária recorrer a um amigo. Felizmente encontrei-o à
porta tomando fresco.
— Achas que com vinte e cinco posso fazer alguma coisa? — perguntou
Anselmo.
— Isso é uma fortuna, homem de Deus! Podes até mandar abrir meia
garrafa de champanhe e comprar um maço de cigarros para mim. Vou contigo.
— Tu! — exclamou o estudante aterrado.
— Tens ciúme?
— Não, não é ciúme, mas a quantia... para três.
— Mas eu vou justamente para garantir-te. Fico a teu lado e, se vir
aproximar-se alguém com cara de canja ou de grogue... porque eu, pela cara, sei o
que os manos farejam, dou o brado, compreendes? Fico de guarda e, mesmo,
sendo necessário, podes deixar-me como refém.
— Então sim.
— Olha, acabou. Efetivamente o povo saía em massa. O estudante respirou
e foi postar-se junto ao botequim que os caixeiros fechavam. Apagaram-se todos os
bicos de gás, o pano de boca subiu e o palco apareceu nu e sombrio. Começaram a
sair os atores e Anselmo, sempre que via aparecer, ao longe, uma mulher, movia-se
como para ir-lhe ao encontro, mas o Duarte detinha-o:
— Não! Não é. E, intimo dos artistas, dirigia cumprimentos a todos que
passavam: "Adeus, Chico! Boa noite, Guilherme! Como vai isso, Lisboa? Bravos à
comadre."
— Aí vem ela...! disse, por fim. Era Amélia, muito tesa, com o seu passo
miúdo e sacudido. Encaminhou-se para o botequim e, com meiguice, roçando pelo
estudante como uma gata amorosa, perguntou: "Se ele havia aturado aquela
estopada...?"
— Por tua causa... murmurou ele apaixonadamente e ela, lânguida:
— Hei de pagar-te o sacrifício.
O Duarte curvou-se dizendo em tom irônico:
— Muito boa noite, senhora duquesa!
— O Duarte! Estavas aí? Se fosses cobra.
— Não mordo, madame.
— Nem eu sou mordível, respondeu ela a rir e, tomando o braço de
Anselmo, muito aconchegada, sussurrou:
— Fazes muito empenho em cear?
— Eu? Se quiseres. Estou por tudo.
— Então vamos para casa.
— Isso não! — exclamou o Duarte; vamos festejar o himeneu com uma
Einbek gelada, já que não podemos regar o epitalâmio a champanhe.
— Pois vamos, disse Anselmo passivamente.
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— Eu entendo que vocês devem tomar uns ovos quentes e um cálice de
Porto. Eu cá sou assim: não embarco para Citera sem levar copiosas provisões. A
viagem é longa e fatigante.
— Pois vamos tomar uma garrafa de cerveja. Mas eu não como, jantei tarde,
disse Amélia.
— Como vai o Moreira? — perguntou o Duarte.
— Não me fales nesse idiota! É um homem impossível: chora, vive sempre
ajoelhado a meus pés, a beijar-me as mãos. Ridículo! Eu gosto de homem,
homem...! De maricas não venhas! — exclamou em tom brejeiro. Entraram na
Maison Moderne e Anselmo ainda insistiu por um pouco de foie gras, uma salada de
arenques com vinho do Reno. Amélia fez um momo: "Aceitava apenas um copo de
cerveja para não se fazer rogada."
Estavam os dois enlevados, enquanto o Duarte dava conta de um picadinho
à baiana com farofa, quando uma voz rouca estrugiu:
— Correto!
— Olha o Neiva, disse Amélia voltando-se. Era efetivamente o boêmio.
Vendo o grupo, dirigiu-se à mesa, e arrastando uma cadeira, pediu, num berro:
— Porto! Depois, muito terno, sorridente: Então que é isto? Que armação é
esta? Temos amores?
— Já viste olhos mais ardentes do que os deste menino, Neiva?
perguntou Amélia.
— Não, nunca vi... Mas que tenho eu com isto? Pensa você que sou fiscal
da iluminação do amor? Pôs-se de pé, ameaçador e trágico: Menina, cuidado! Este
meu amigo é um Otelo de paletó saco!
— Mas eu não sou Desdêmona.
— Isso sei eu. Tu és como a Misericórdia: estás sempre de braços abertos.
Honesta como fiel de balança. E, com os olhos imensos, a cabeça enterrada nos
ombros, rugiu: Fazes muito bem! Saltou para o meio da sala repetindo: Fazes muito
bem! E, chegando-se à atriz: O amor tem asas para voar... volúvel! Volúvel! Nada de
ficar amarrada a este ou àquele sujeito. Amar é desejar; depois de saciado o desejo
vem o tédio e, quando o tédio chega... só o divórcio.
— Pensam assim os inconstantes como tu, disse a atriz. O Duarte, cruzando
o talher, tomou um sorvo de cerveja e, depois de limpar os beiços, suspirou:
— Só eu não sou amado! Se me impressiono por alguma menina, no dia
seguinte é pedida em casamento. Eu sou o Himeneu.
— Qual Himeneu. Jetabore é que és.
Ou isso. Comecei a amar uma viúva com todas as veras da alma, com todo
o fogo do coração, pois...
— Vai casar, adiantou Anselmo sorrindo.
— Não, nasceu-lhe um filho.
— Como! — exclamaram os três.
— Ora, como! Vai perguntar ao marido.
— Então é um filho póstumo?
— É verdade! O homem antes de morrer... É assim, hei de sempre encontrar
um tropeço no meu caminho.
— Por que não tiras privilégio dos teus namoros?
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— Já pensei nisso. Garçom, mais cerveja! Anselmo lançou um olhar
apavorado ao Duarte que, percebendo, disse calmamente:
— Descansa homem; estou aqui com o prumo. O Neiva, fazendo uma
careta, repeliu o copo enjoado.
— Não bebes mais? — perguntou Amélia.
— Não, filha; aqui onde me vês estou saindo do dique. Ceei ontem em casa
da Melanie e foi um estrupício! Só hoje, às duas da tarde, achei a minha cabeça. Ah!
Vocês não imaginam: eram umas vinte mulheres e belas! Divinas! Encantadoras e
estúpidas como a Vênus de Milo. Havia lá uma Hortênsia, de Guaratinguetá,
deliciosa! Quando viu as alcachofras rompeu a rir, dizendo que aquilo nem parecia
repolho e pediu queijo para os espargos tomando-os por macarrão. Um encanto!
— E as outras? — perguntou Anselmo.
— Tudo besta! Foi entre a ignorância e a beleza que passei a noite e estou
cheio de solecismos e de pecados. Já li uma página purificadora e agora... Tomou
um ar beato, espalmou a mão no peito, baixou a cabeça e murmurou: Pretendo
amanhecer no Castelo para purificar-me no seio de um capuchinho. Depois da
confissão atiro-me ao Gibert. Bem com Deus e com o Gabiso, este é o meu
programa. Bramiu: A mitologia está errada! Vênus teve dois filhos gêmeos: Amor e
Mercúrio. Estirou-se, amolecido:
— Estou morto! Mas logo, sungando o corpo, dirigiu-se a Anselmo:
— E você previna-se, meu amigo: saia dos braços dessa criatura e mergulhe
num Jordão de iodureto.
— Não é preciso, disse Amélia erguendo-se irritada.
— Quê? Estás zangada? Neiva está brincando. Então Neiva não pode
brincar...?
— Sim, mas eu não gosto de brincadeiras dessas..
— Está bem, rasgo a receita. Adeus! Vou dar um dedo de prosa ao
Vasques. Até amanhã! Foi-se.
— Vamos? — convidou Amélia.
— Vamos.
— Eu fico, disse o Duarte. Sejam muito felizes. E, como o caixeiro
apresentasse a nota, ele segredou ao estudante:
— Então? Viste como se manobra? Ainda podes almoçar e jantar amanhã,
com vinho. Adeus!
— Boa noite! E os dois saíram aconchegados.
Anselmo propôs tomarem um carro. Amélia, porém, preferiu o bonde e
foram, como um casal de noivos, muito juntos, extasiados, de mãos unidas, fazendo
protestos de amor até a morte.
CAPÍTULO V
A casa estava em silêncio. A candeia, diante da escada, espichava uma
chama comprida e fumarenta alumiando os primeiros degraus, o resto do lance
perdia-se na escuridão e foi aí, nesse tenebroso e arriscado sítio, que o primeiro
beijo longo selou o juramento passional feito no bonde. Ruy Vaz e Toledo dormiam a
sono solto quando os dois atravessaram a sala em passos surdos, a caminho do
quarto do misantropo. Anselmo ia riscando fósforos pelo corredor por onde os ratos
fugiam atropeladamente.
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Oh! Essa primeira noite, desde que um sopro extinguiu a luz! Ó ardentíssimo
Bartriari. Ó pensador Babravia e tu, voluptuoso brâmane Vatsyayana, autor dos
shastras fesceninos; e tu, Ovídio; e tu, Propércio, vós todos quantos cantastes o
delírio erótico em estrofes mais estimulantes do que a decocção afrodisíaca da
Uchala ou do que o mel do Hymeto, doce e rejuvenescedor, que admiráveis páginas
daríeis se pudésseis, de um canto, velando, como velaram Anselmo e Amélia, ouvir
as entrecortadas palavras trêmulas, ouvir os beijos alucinados e...
Se conhecêsseis a qüinquagésima estrofe do 8
o
canto do poema do Ariosto:
"Tutti le vie, tutti li modi tenta;
Ma quei pigro razzon non peró salta:
Indarno li fren gil scuote e lo tormenta;
E non puó far que tenga la testa alta.
Alfin presso alla donna s'addormenta.
..........................................................."
Imaginai o oposto dessa miseranda cena entre o eremita e Angélica, na
praia; imaginai e tereis o que aquelas paredes graves da alcova ascética do triste
não viram, mas ouviram, se, em verdade, as paredes têm ouvidos.
Depois dessa noite febril, Anselmo, como se houvesse perdido a noção do
seu destino, esqueceu os livros à poeira e à traça, esqueceu sobre a mesa
desordenada as primeiras tiras do romance, que tão interessadamente começara
por uma larga descrição da vida rural com muita bucólica, sob um sol abrasado,
entre cabanas e matas virgens, louros canaviais e águas fugitivas e os dias, ou
passava-os molemente estirado na cama, a repousar da noite esperando a noite, ou
ia gastá-los em casa de Amélia, muito lúbrico, enquanto Ruy Vaz, em excitada febre
de trabalho, mal aparecia aos amigos e o Toledo, com todos os ossos do crânio na
cabeça, passava à coluna raquidiana, passeando pelo corredor com vértebras na
mão e vértebras nos bolsos.
Amélia mudava-se paulatinamente para a rua Formosa. Alta noite, um tílburi
parava à porta e Toledo, o paciente anatomista, era despertado para ceder o quarto
e, sem queixa, com os retratos respeitáveis e o seu lençol, transferia-se para a cama
de Anselmo; e a atriz instalava-se. Já no mirante, ao sol, vestidos tufavam-se, meias
de seda rolavam pela casa; nos cabides, juntamente com os paletós e as calças,
havia camisas e saias rendadas, um chapéu, cercado de plumas, enfeitava, como
um ornato extravagante, a mesa do autor de A Profecia e, nos róis de Anselmo
apareciam, na promiscuidade das ceroulas e dos colarinhos, calças de senhora,
saias brancas, camisas e outros panos adjacentes.
Pelas paredes eram sem conta os retratos da atriz em diferentes peças: ora
de fada, ora de pajem, ora de escrevente. Aqui, com ares régios de soberana; ali,
risonha, mostrando os dentes, numa garridice de soubrette e um, maior que todos,
no qual era vista deitada sobre um divã, olhos semicerrados, fumando. Ruy Vaz
achava aquilo imoral e o Toledo, para que os seus progenitores não aparecessem
em companhia tão desbragada, trazia os dois retratos no bolso recatadamente.
Dona Ana, encontrando uma manhã Amélia no corredor, plantou-se de mãos
à cinta no patamar trincando os beiços e, logo que a atriz desapareceu, esbravejou
com todo o poder dos seus pulmões.
— Que não queria gente daquela laia na sua casa, aquilo não era zungu!
Que os sem-vergonha vissem que ela tinha uma filha solteira. E jurou que, se
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encontrasse outra vez a sirigaita, agarrava a pelo gasnete e atirava-a da escada
abaixo. Anselmo, melindrado, quis descer para fazer calar a viúva, mas Ruy Vaz
acalmou-o:
— Que vais fazer, desgraçado? A mulher tem razão. Pensas que é pela
moralidade da casa toda essa cólera? Estás enganado — é pela decepção. Para
Dona Ana, Amélia não é uma devassa: é uma rival da filha. Ela contava contigo para
Vidinha e, como vê a rapariga entrar e sair, vocifera desesperada compreendendo
que ela vai desviando um partido. Eu já tinha percebido as intenções da velha,
calava-me porque entendo que nunca se deve matar uma ilusão, que é a matéria-
prima da esperança. Pensas que esses alguidares de arroz, esses pratarrazes de
ensopado, esses assados, mais altos do que o Himalaia, e esses lagos de consomê
e esses outonos que enchem as fruteiras e tudo mais que vem das cozinhas de
Mme. Gargamela são por conta da minguada mensalidade que lhe damos? Engano:
são engodos, são como presentes de núpcias, é a corbeille com batatas, é um
trousseau de cebolada, é o enxoval do estômago, o morghengabe adiantado. Ela
seduz o ventre, suborna a pança. A mulher quer prender-nos pela boca, é uma
pescaria em regra. Vamos comendo a isca que é excelente em qualidade e em
tempero e não nos preocupamos com o anzol. Compreendes: ela sabe dos meus
amores com Elvira, já a viu entrar aqui mais de uma vez e a Elvira é mais tapageuse
do que a Amélia; ela sabe que o Toledo só ama os pais e os ossos do seu
esqueleto... contava contigo e, justamente quando temperava com mais ciência os
escabeches e vestia com mais luxo a filha, eis que lhe surge o contratempo. É
mesmo para uma mãe de família perder a cabeça, pensa bem. Que te custa fazer
um sacrifício...?
— Casar com Vidinha! — exclamou o estudante aterrado.
— Eu matava-te! Nunca! Casar... nunca! Contemporizar... sempre. Namora...
que custa? Olha que estamos magnificamente instalados. Pensa no futuro! Não
encontramos no Rio de Janeiro, pelo preço, casa como esta, apesar do Cranium... e
dessa noiva de... Dâmocles. Pensa um pouco. A precipitação é má conselheira.
Olha Safo: precipitou-se de um rochedo e foi o que sabes. Pensa.
Ouvindo os sábios conselhos de Ruy Vaz, Anselmo já se dispunha a
recomeçar o flirt com Vidinha quando, uma madrugada, por volta das duas horas, a
rua despertou ao rumor de tremenda matinada. Era um alarido atroador: cantavam a
Marselhesa, levantavam vivas. Janelas entreabriam-se receosamente, vizinhos
sonolentos espiavam intrigados.
Ruy Vaz, ouvindo da cama, deixou-se estar debaixo dos lençóis julgando, a
princípio, que era alguma manifestação que se recolhia, mas subitamente saltou
descalço, em camisa, assustado. Arrombavam a porta e, da rua, gritavam por eles
numa fúria, como se houvesse incêndio no prédio. O estudante saltou também da
cama e correram ambos à janela. Estavam à porta dois carros e um grupo de
homens e de mulheres com velas em mangas de papel. Logo que os viram aparecer
os da rua prorromperam em vivas! E atiravam-se à porta. Ruy Vaz murmurou:
— Estamos perdidos! Efetivamente... Dona Ana, descalça, com uma vela,
entre Vidinha e Leonor, em fraldas de camisa as três, rompeu o alarido no patamar
da escada:
— Súcia de vagabundos! Não abro! Vão bater no diabo que os carregue,
pelintras! Isto aqui é uma casa de família. É porque não tenho um apito. Mas as
pancadas na porta redobravam e o vozeirão enchia a rua:
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Allons enfants de la Patrie,
Le jour de gloire est arrivé...
— Vai buscar um apito, João. Eu mostro a essa súcia. Corja!
— Ah! Mamãe, choramingou Vidinha, é melhor abrir... Eles estão furiosos,
são capazes de fazer alguma coisa. Vai abrir, Leonor.
— Eu não! Pois eu hei de ir assim em fraldas de camisa para eles me
agarrarem? Deus me livre! Começou um Zé pereira formidável à porta, que tremia
ameaçando ceder, apesar da tranca. Dona Ana irrompeu falando para o segundo
andar:
— Rua! Não quero um só aqui! Rua! Isto não é estalagem, seus
vagabundos! Rua! Rua! Mas Ruy Vaz, o conciliador, desceu dois degraus. As
mulheres, ouvindo os passos do romancista, fugiram espavoridas bradando — que
estavam em camisa!
— Não faz mal, disse ele tranqüilamente, descendo: estamos em família.
Mas fecharam-se as três na sala de jantar e Dona Ana bramiu através da porta:
— Rua! Amanhã mesmo!
— Ouça, Dona Ana, disse o romancista, muito calmo.
— Não quero saber de histórias. Rua! Estou farta! Não dou mais comida!
Arranjem-se!
— Isso é natural, Dona Ana. Ouça-me.
— Qual natural! Entreabriu a porta e, mostrando pela fresta o seu imenso
nariz, esgoelou: O senhor acha que uma pouca-vergonha como essa é natural? Que
hão de dizer os vizinhos? Que isto aqui é uma casa de deboche e que eu e minha
filha somos vagabundas como essas que estão aí. Não! Rua! Amanhã mesmo...
Ponham os cacos lá fora! Não dou mais comida...! Quero alugar a minha casa a
gente séria.
O rumor ia em crescendo formidável. Uma mulher pôs-se a berrar:
Minha bela Florentina
Sol de amor que minh'alma ilumina...
— Mas ouça, Dona Ana... O romancista tentou abrir a porta, mas a viúva
rugiu:
— Eu estou em menores... Saia para lá homem!
— Ouça, Dona Ana. Realizou-se hoje o ensaio geral da minha peça e os
rapazes querem fazer-me uma manifestação. Está por demais ruidosa, concordo,
mas é natural... Todas as manifestações são, mais ou menos, ruidosas. O caráter da
manifestação, quando é sincera, é o ruído. Não se zangue. De repente a tranca caiu
com estrondo e uma horda arremessou-se para a escada com luminárias bradando:
"Viva Dona Ana! Viva a dinamite que é o princípio da igualdade humana...!
Vivaa!" E uma voz espremida esganiçou: — Vii... mas não concluiu. Ouviu-se o
espoucar de uma garrafa nos degraus da escada.
— Desastrado! Como é que abres mão da felicidade? — exclamou o Neiva
vendo o Lins estupefato diante dos cacos da garrafa, com os pés num córrego
espumante.
— É a primeira vez que o vinho me desce aos pés, disse o poeta
lastimosamente. E o bando precipitou-se em tumulto, escada acima.
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Era uma invasão. Rompia a marcha Anselmo que fora abrir a porta dando os
braços à Amélia e a uma rapariga tímida que atordoada, com um sorriso imbecil nos
lábios descorados. Seguiam-se o Neiva, com um grande embrulho; o Lins com uma
bojuda garrafa; Duarte com um pão, grande como uma massa de sílex e dois outros,
Crebillon, conterrâneo de Anselmo e de Ruy Vaz, ruivo, de cavanhaque flamejante,
portador de duas garrafas, e o Martins, ex-colega de Anselmo em S. Paulo, de
óculos escuros, com uma valise.
Chegando ao patamar atroaram a casa com um hurra! que fez saltar de um
canto, espavorido, o gato venerando de Dona Ana, que se pôs a miar arranhando à
porta da sala de jantar.
Ruy Vaz, vendo a corte, saiu-lhe ao encontro para pedir compostura, mas ao
darem com ele, os noctâmbulos irromperam em saudações frenéticas, mostrando os
presentes e não houve meio de convencê-los de que estavam em um quarteirão
pacato, em casa de uma família de hábitos patriarcais, às duas horas da manhã. O
Neiva berrava como um energúmeno, comandando a expedição, e foram pelo
segundo lance da escada com estridor. Ao alto estava o Toledo enrolado no robe de
chambre, com uma vela, alumiando. O Neiva bradou:
— Bravos ao Hamlet! E o Lins levantou um viva ao "Farol da civilização!"
Logo que chegaram à sala, depondo os embrulhos, enquanto o Duarte, desfazendo
um pacote de velas, distribuía uma iluminação profusa, aproveitando igualmente os
cotos que haviam trazido resguardados em mangas de papel, o Lins fazia questão
do robe de chambre do Toledo e Amélia punha-se à vontade. Ruy Vaz quis
conhecer o motivo daquela manifestação noturna e o Neiva, tomando a palavra,
explicou, facundo:
— O Acaso, que é o título com que a Providência passeia incógnita entre os
mortais, fez com que nos reuníssemos hoje na Maison Moderne. A Fortuna
dispensara-nos vários dons da sua cornucópia abundante e o bom-humor foi o arco
de aliança que nos uniu. Tomamos conta da mesa maior, que foi franqueada a
quantos apareciam famintos ou sedentos. A sala parecia, mal comparando, um
quartel de eleitores em dia de eleição. A cozinha e a adega passaram por nós em
procissão pantagruélica. Foi uma festa digna de Sardanapalo. À falta de assuntos
para brindes, como fazia parte do grupo o nosso precioso Crebillon, glória do Norte,
travamos uma luta como a de Watburgo, tomando por tema o cavanhaque
flamejante do valente abolicionista e correram rios de Bourgogne, rolaram catadupas
de Champanhe. À meia-noite surgiu o Martins que aí está de guarda-pó no braço e
valise à mão, procurando a matalotagem que encomendara, porque vai hoje para o
Friul Paulista. Tomamo-lo e a ceia foi por diante. Já empanzinados, lembramo-nos
de vocês e houve um clamor geral, um clamor altruísta, digno de Comte: "Pobres
homens! Enquanto aqui nos banqueteamos copiosamente, eles dormem sem ceia,
num quarteirão obscuro da rua Formosa. Façamos uma carga e parta-mos para
esse retiro... Eles terão um alegre sonho, o Martins, a dois passos da estação,
poupará o dinheiro que reserva para o tílburi e nós outros veremos o rosto cor de
rosa da aurora quando ela vier correr o reposteiro da noite diante do sol." Como não
há prazer completo sem mulheres, arrancamos a Amélia às garras de um
comendador lascivo lembrando-lhe os juramentos de fidelidade e mostrando-lhe o
caminho do dever honesto e raptamos esta "sabina" pudica, que está em caminho
do escritório do Silva Araújo. Viemos cantando e rindo e aqui estamos nesta bastilha
feroz. Tenho dito.
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Mal o Neiva terminou a sua oração, o Duarte pôs-se a desfazer os
embrulhos e apareceram lascas de fiambre, fatias de mortadela, ostras e camarões
recheados; pimentões rolaram sobre a mesa e um fornido roast-beef reluziu
gorduroso, cercado de farofa, como uma pirâmide num areal revolto. Havia três
copos, dois foram oferecidos às damas e o terceiro foi posto à sorte cabendo ao
Lins. Mas onde estava ele? Roncos tremendos vinham da alcova da sala. O poeta,
enrolado no robe de chambre, como uma múmia nas suas tiras, dormia com a
bojuda garrafa aconchegada ao seio.
Puseram-se à mesa, mas com tão estrondosas gargalhadas que Dona Ana
recomeçou os bramidos na escada protestando contra o escândalo, ameaçando
com a polícia. Crebillon, torcendo o cavanhaque rutilante, propôs uma descida ao
primeiro andar, comprometendo-se a trazer a senhoria e a filha. Era curado, as
cobras não lhe faziam mal, podia, sem receio, lidar com a jararaca. Ruy Vaz,
afagando as mãos grosseiras da jovem "sabina", prometia-lhe amor eterno e um
chapéu. Anselmo fazia uma cena de ciúme com Amélia por causa do comendador,
enquanto o Duarte, sempre dado às musas, completava um soneto entre as
vitualhas, quando Neiva, Crebillon e Martins desceram solenemente para buscar
Dona Ana e Vidinha. Mas a viúva correu a trancar-se na sala de jantar arrastando a
mesa para junto da porta, a bradar: que iria para a janela pedir socorro se
continuassem. Vidinha soltava agudíssimos gritos invocando santos e João explodia
em obscenidades e ameaças. Os três desistiram da empresa e, quando subiram, o
Duarte recitava ao Toledo o soneto que concluíra e mais ninguém havia na sala.
Pasmaram e Crebillon, assomado, quis dar uma busca na casa quando um grito
horrível repercutiu no corredor e a "sabina", lívida e trêmula, com os olhos enormes
e as roupas em desordem, apareceu na sala, rolando, sem forças, sobre o canapé.
Acudiram com vinho mas a pobre rapariga tremia com os olhos na porta que abria
para o corredor, batendo os dentes, num pavor inenarrável.
— Esta mulher viu alguma coisa séria, disse Crebillon sisudamente e o
Neiva, com o copo nos lábios da "sabina", enquanto ela bebia, tocando com os
dentes um trêmulo no cristal, afirmou:
— Coisa muito séria! Para um susto como este! E indagou: Mas que foi?
Que viu você lá dentro? Não me consta que esta casa seja mal-assombrada.
— É! — exclamou ela.
Mas Ruy Vaz entrou indignado:
— Ora, seu Toledo, por mais que eu diga que não deves andar com aquele
estafermo de um lugar para outro, é escusado. Aí tens... Não é a primeira peça que
me prega o tal arcabouço.
— Que estafermo? Que arcabouço?...
— O esqueleto. Imaginem vocês: um esqueleto, de paletó saco, sentando
diante da mesa com ares de quem vai compor um poema macabro. Isto é até
profanação...
— Eu não o sentei nem tampouco o vesti.
— Está sentado e de casaco, afirmou a "sabina". Está sentado, muito teso,
com as pernas esticadas e os braços na mesa. Parece até que está escrevendo.
— É a mão do finado, disse o Neiva e a "sabina" continuou:
— Eu fui em cima dele no escuro e, tateando, senti a dureza dos ossos,
depois uma coisa redonda, lisa, gelada que parecia uma melancia. Desconfiada,
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pedi ao senhor Ruy Vaz que riscasse um fósforo e, quando ele riscou... Nossa
Senhora! Escondi o rosto nas mãos, aterrada. Por que não mandam enterrar aquilo?
É de seu pai?
— Não, senhora, aquilo é a base da ciência.
— Que ciência! Aquilo é osso de defunto. Ainda se fosse de algum parente
seu, mas não sendo... Deus me livre de ter uma coisa daquelas no quarto, perto de
minha cama. Até era capaz de vir uma noite dormir comigo! Cruzes!
— Isso não, cabocla, disse o Neiva: o esqueleto deu baixa. Àquele é que tu
não apanhas. Contenta-te com a carne, filha, não queiras ainda roer os ossos.
— Deus me livre de voltar aqui!...
Eram dez horas da manhã, o sol entrava em grandes jorros pela sala
quando o Duarte, espreguiçando-se, bocejou alto; vendo, porém, a luz, ergueu-se de
um salto do monte de jornais que lhe haviam servido de leito, bradando pelo Martins:
— Levanta-te! São horas! Olha que perdes o trem! Procurou pela sala, que
estava numa desordem lamentável. No canapé dormia o Neiva com a cabeça sobre
dois grossos relatórios. Crebillon roncava espichado na cadeira de balanço e o
Toledo, com a cabeça repousada nos braços, sobre a mesa, parecia de pedra. E o
Martins? Havia desaparecido. Teria ele passado a noite em claro para não perder o
trem, escapando-se sub-repticiamente à hora? O Duarte alarmou a casa e todos
despertaram amarrotados, com escancarados bocejos.
Sendo a descida ao Cranium mais arriscada para as damas do que foi, para
os argonautas, o desembarque em Colchos, considerados, com o devido respeito, o
pulso masculino da viúva e a fúria que nela tomou a feição ameaçadora de loucura,
constituiu-se um corpo de proteção que, em caso de necessidade, reagisse
energicamente defendendo as costelas delicadas de Amélia e os delgados braços
da "sabina". Por decência, porém, não querendo que se reproduzisse a cena
indecorosa do areópago, sem os nobres intuitos que levaram Hipérides a desnudar
Frinéia, a falange, que tinha no Lins o seu Tirtéu, ficou à distância enquanto o
fragilíssimo sexo desbesuntava as carnes pecadoras.
Depois de Eva foi içado o Lins porque, com a perna mais rija do que o braço
da figura principal de A Barricada, não podia galgar as bordas da cuba. E
seguidamente, um a um, com trabalho, aspergiram-se todos com as gotas avaras do
reservatório. Refrescados, esperavam pacientemente que Leonor, como de
costume, subisse para estender a toalha, mas as horas iam passando lentas sem
que a negrinha aparecesse. O Lins foi examinar a chaminé — fumegava, mas era
tão tênue o fio de fumo que o poeta, em grande desânimo, atirando-se a uma
cadeira, balbuciou:
— Não é possível que tenhamos bife. Pela fumaça calculo o almoço que lá
estão cozinhando em dois pratos minguados. E Ruy Vaz suspirou:
— Dona Ana cumpre a palavra: estamos sitiados pela fome. Que havemos
de fazer?
— A guarda rende-se, mas não morre à míngua! — exclamou o Neiva.
Vamos depor as armas. Quem há de ser o parlamentar?
— Eu vou! — disse Anselmo.
— Não! — bradaram todos, aclamando Ruy Vaz, por ser o mais prudente e o
mais conceituado. Ruy Vaz resignou-se e desceu. Em cima os rapazes ficaram
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catando migalhas da ceia e, quando o romancista apareceu, avançaram todos
perguntando com ansiedade:
— Então?!
— Nada, meus amigos! Inflexível como a espada de Rolando.
— Mulher sem entranhas! — rugiu o Neiva. Nem parece mãe! E agora? Que
se há de fazer?
— Vamos a um hotel, propôs Crebillon. — Quotizemo-nos e a caminho para
a primeira baiúca que tenha um fogão. O Neiva opôs-se, espichando-se no canapé:
"Não saía, estava sem forças. Mandassem vir o almoço, concorria com alguma
coisa. Sair, nunca! Preferia acabar como Ugolino roendo o crânio do esqueleto."
Correu a espórtula e Crebillon teve de entrar com a maior parte, sendo ainda, por
um capricho da sorte, obrigado a ir ao primeiro hotel da vizinhança encomendar o
repasto.
Amélia e a "sabina" encarregaram-se de arranjar a mesa e, à falta de toalha,
estenderam um lençol de linho que o Toledo desencafuou das profundezas da
canastra.
Quando o almoço apareceu, numa lata, à cabeça de um negro, romperam as
exclamações e Crebillon eleito, por unanimidade, presidente da mesa, ocupou a
cabeceira. Foi durante o almoço que ele, indignado com o procedimento da viúva,
mulher de maus bofes, propôs organizar uma "república" modelo, em prédio de
aparência, em bairro nobre, com todo o conforto e uma adega. Adiantaria o dinheiro
para a instalação e tomaria a seu cargo a administração. Como o negro portador do
almoço tinha uma fisionomia simpática e sisuda, Ruy Vaz lembrou baixinho ao futuro
presidente da república ideal:
— Quem sabe se não temos neste africano grave um excelente
cozinheiro...? Crebillon lançou um olhar perscrutador ao negro, que, de pé, os
braços caídos ao longo do corpo, acompanhava o almoço prestando-se gentilmente
a ir rapar os pratos no mirante para que servissem a outras iguarias:
— Sabes cozinhar, rapaz? O negro, timidamente, sussurrou: Que arranjava,
menos mal, um bife e ovos e fazia canjas. A sua especialidade, porém, era o vatapá.
— Muito bem. Queres ser o nosso cozinheiro? O africano sorriu, torcendo as
franjas do pano que lhe servia de rodilha. Quanto queres ganhar? Crebillon falava
num tom cheio de tanta soberania que o negro não se achou com coragem de impor
preço: deu de ombros, confiado na generosidade do seu futuro patrão.
— Bem, ficas desde já ao nosso serviço. Como te chamas?
— João de Deus.
— João de Deus! O nome é místico, disse Anselmo; talvez nos ponha em
boas relações com a Providência. E, de pé, com solenidade:
— João de Deus, toma: bebe à tua fortuna! E passou-lhe um copo de vinho
que o negro engoliu avidamente. Terminado o almoço os ossos foram todos atirados
à área, o que provocou um rugido de Dona Ana. À tarde saíram, ficando de guarda à
casa o fidelíssimo africano.
Enquanto Crebillon procurava a sonhada casa de aparência, em bairro
nobre, a vida foi um suplício no segundo andar. Nem a vassoura, ao menos. Dona
Ana mandava para sacudir a poeira do soalho e, como a bolsa não tinia, todo um
longo dia escoou sem que os três fizessem passar alguma coisa pela boca, a não
ser o fumo dos cigarros. Só o esqueleto, livre da contingência da fome, não
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suspirava. O próprio João de Deus, não farejando almoço pediu licença para ir fazer
uns carretos que havia tratado e saiu.
— Ah! Não torna mais! — suspirou Anselmo quando viu o negro
desaparecer, com a rodilha e uma fome de náufrago; mas enganou-se porque, à
noite, cedo, lá estava ele, farto e fiel.
Para que não desconfiasse da abstinência Ruy Vaz levou-o ao mirante e,
misteriosamente, fez uma preleção religiosa, explicando-lhe as razões secretas
daquele sistema:
"Observavam um rito antigo, de muita severidade, que impunha, como
principal sacrifício, o jejum, de quando em quando, para moderar os ímpetos da
carne." E o romancista, com argumentos sutis, mostrou ao negro como a carne
(sobretudo a fresca) conduz ao pecado e ao crime quando não é sofreada
prudentemente. Falou dos ascetas, citou Gringoire e Santo Antão, Murger e S.
Paulo, o eremita Elias e o Dr. Tanner e o negro, convencido, admirava aquelas
almas temperadas de fé e de resignação que resistiam, com tanto fervor, às
exigências da matéria. Anselmo tinha surdas revoltas vendo que, em todas as
casas, as chaminés fumegavam.
— Mas que tens tu com o fumo dos lares? — perguntou Ruy Vaz.
— Detesto-o!
— És o único. Os poetas celebram a espiral que sobe dos telhados como
uma prece demandando a altura.
— Sim, os poetas celebram quando têm o estômago saciado. Põe-me aqui
um poeta faminto a olhar todos esses tubos que falam de ensopados, de omeletes,
de frituras e de bifes com batatas, e hei de ver a estrofe que lhe sai dos lábios. Há
de sair uma invectiva... Isso tantalisa! Saber a gente que em todas essas casas
come-se, que em todas elas há almoço e jantar...
— E dores e remorsos e angústias.
— Ora! Infamíssima criatura! — murmurou entre dentes, pensando em Dona
Ana. À noite, porém, já desanimados, dispunham-se a fazer uma desgraça quando o
Toledo apareceu com um embrulhinho oloroso, oferecendo timidamente aos
companheiros.
— Que é? — perguntou Ruy Vaz lançando um olhar de desprezo ao
presente.
— Fígado frito.
— Ora! Fígado frito... Sem pão, aposto?
— Com farinha.
— A farinha faz mal, está provado. Enfim... Queres, Anselmo?
— Eu não sei se o fígado me faz bem: tenho uma hepatite...
— Ora, dentada de cão cura-se com o pêlo do mesmo cão.
Similia similibus curantur, ajuntou o Toledo.
— É exato. E empanturraram-se. Tarde, João de Deus apareceu estafado e
abarrotado: lavara uma casa na vizinhança e comera uma feijoada completa. Teve
horríveis pesadelos no corredor — sonhou com um esqueleto, fardado e de mitra,
equilibrando-se em uma bola que ia e vinha, pesada e ansiante, sobre o seu
estômago. Acordou arquejando e o Toledo diagnosticou um ameaço de congestão,
fazendo com que o negro saísse ao mirante com um dedo na goela para aliviar-se.
João de Deus urrava e, de manhã, com uma enxaqueca feroz, teve de levar uma
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carta de Anselmo a um fabricante de águas gasosas que respondeu com muita
lamúria, referindo-se às dificuldades da vida e à concorrência das águas
estrangeiras que inundavam o mercado, comprometendo-lhe a fonte de renda.
Estava a liquidar, concluía, desejando venturas ao estudante. Todas as venturas e
nem uma xícara de café ao menos! Foi então que decidiu sair atrás do Acaso. Mas
era domingo, o Acaso não aparecia e, se o Toledo, sempre cuidadoso, não
houvesse recorrido a um primo, homem que tinha cozinha em casa, levando um
bom pedaço de assado e quatro almôndegas num papel pardo, esse triste dia talvez
houvesse sido último da vida de Anselmo, que já se dispusera a estourar o crânio,
se tivesse um revólver... a estourar o crânio, talvez não, mas a vender o revólver
com certeza.
CAPÍTULO VI
E assim passaram lentas duas semanas avaras. Todos os dias, como
oração matinal, injuriavam Crebillon que lhes havia mentido e pediam a cólera dos
céus para Dona Ana, a inflexível, depois reuniam-se em conselho discutindo meios
de conseguir almoço e, como era mais difícil arranjá-lo para todos, tomava cada qual
o seu destino, despedindo-se à porta da rua, com tremuras na voz e os olhos
úmidos. Toledo, porque tinha o primo, dirigia-se logo para Santa Teresa subindo a
montanha penosamente, ao sol, certo, porém, de que ia regalar o estômago com os
acepipes do parente, que tinha orgulho em possuir um cozinheiro perito e magníficos
charutos. Ruy Vaz seguia a pé para as Laranjeiras e, tonificado pelo bom ar da
manhã, saudável e aperitivo, empurrava o pesadíssimo portão do palacete do
visconde de Montenegro.
Era um sombrio prédio entre velhíssimas árvores copadas, cujos ramos altos
faziam uma abóbada impenetrável ao sol. As paredes, pintadas de um verde
amarelado, pareciam cobertas de limo. Os canteiros esquecidos estavam invadidos
pelo mato, as aléias eram úmidas e tinham placas lutulentas, de um aveludado fino.
Velho negros, encolhidos pelos cantos, cochilavam preguiçosamente e, dia e
noite, como em Scylla, era um uivar dolorido e longo, porque o visconde, grande
amador de montarias, quando descia da sua fazenda, em Pinheiros, para passar no
Rio os curtos invernos, trazia as suas trelas famosas que davam trabalho a dois
negros e a um veterinário, sempre bêbedo e armado de lanceta, contra o qual os
animais investiam, apavorados, quando o viam aparecer cambaleando.
Dois cavalos de sangue, altos e esgalgados, passeavam pelas aléias
levados por um moço de estrebaria que os preparava, havia anos, para disputarem o
grande prêmio, posto que o fidalgo já estivesse resolvido a metê-los nos varais do
carro.
Nesse casarão, que tinha a gravidade claustral de um mosteiro antigo,
dormindo um sono pacato à sombra quieta do arvoredo, vivia o visconde durante os
meses chamados de inverno. Casto e sóbrio desde que, na Alemanha, ganhara
certo mal que o trazia constantemente pelos consultórios e sempre a bradar contra
as mulheres, observava rigorosa dieta, não indo além da canja, do frango e de um
regrado copo de Bourgogne. Era um asceta elegante.
Para que o não vencesse a sedução demoníaca, atordoava-se à mesa, que
era lauta e franca. Não queria ouvir rumor de saias; as próprias negras, que
passavam como fugitivas sombras pelos imensos corredores reboantes, colhiam
cuidadosamente os vestidos para que nem roçassem nas tábuas enceradas. O
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fidalgo detestava a mulher, tinha horror ao feminino, à sua mesa só homens
apareciam e tantos que, dois expeditos copeiros, alípedes e solícitos, eram
constantemente reclamados de um extremo a outro e acudiam com as imensas
travessas e com as terrinas incomensuráveis. Não raro um conviva desconhecido
fartava-se e saía sem ter trocado uma palavra, sem mesmo saber a qual daqueles
homens, que chalravam e devoravam, devia a fineza de tão delicado almoço e o
visconde, achando aquilo patriarcal, ficava satisfeito, ria, chupando, com ares
saciados, a asa loura do frango.
Ah achava Ruy Vaz conforto e fartura. Entrava de fronte alta e os convivas
acatavam-no, porque o visconde o considerava, não o dispensando à mesa,
querendo-o sempre perto para as tremendas discussões.
O visconde era lido em Cantu e discutia, com ardor, a história, tendo grande
simpatia pelos tiranos. Luiz XI era o seu homem. À mesa a sua opinião era como um
oráculo. Luiz XI era o homem da mesa e como, entre os comensais, havia um
dotado de excelente voz de barítono, não raro o nome do rei carola era
retumbantemente apregoado em uma ária escrita expressamente por um músico
misterioso para o possante cantor. Só Ruy Vaz condenava o companheiro fiel de
mestre Jacques Coictier. O visconde rugia, espumava; o casarão retumbava e os
criados, tremendo, juntavam-se à porta, curiosos daquela desusada cena.
Purpúreo, brandindo a carcaça do frango, o fidalgo citava opiniões e Ruy
Vaz invocava autores. Às vezes tornava-se necessária a intervenção de amigos para
que os dois homens chegassem a um acordo, ficando, porém, o visconde na sua
frase: que Luiz XI era o seu homem e insistindo Ruy Vaz em dizer que ele não
passava de um grandíssimo patife.
E o visconde adorava o romancista, justamente porque nele encontrava um
adversário. Sucedia-lhe com as opiniões o que a Polícrates sucedia com a fortuna —
nunca era contrariado, como o tirano nunca teve desejo que não fosse satisfeito. E o
fidalgo revoltava-se, tinha cóleras surdas, não podia sacudir a poeira que pousado
sobre a sua erudição, tinha de roer em silêncio o seu frango.
— Homero foi uma besta! — exclamava o visconde; e a mesa em coro:
"Uma veneranda besta!"
— Shakespeare foi um plagiário! — e o uníssono dos quarenta talheres: "Foi
sim, senhor!"
Era horrível. Ruy Vaz indignava-se:
— Besta! Homero...? Besta é quem o chama. E travava-se a rezinga, mas o
visconde sentia-se aliviado, aquilo fazia-lhe bem. Ruy Vaz era um homem bem
diferente do barítono. Ah! O barítono...! Certa vez, depois do jantar, sentindo-se o
visconde indisposto, chamou-o e disse-lhe:
— Ó coisa, dá umas voltas aí pelo parque, correndo, para ver se faço a
minha digestão, que está hoje morosa. Contava o fidalgo com um protesto enérgico,
mas desiludiu-se vendo o cantor atirar-se, pelo parque, às pernadas, como um
gamo, bufando, perseguido pelos cães. E o visconde, triste quando o viu roxo e
gotejando como um chuveiro, chamou-o:
— Obrigado, meu amigo. Sempre me fez bem essa corrida. Hás de fazer
agora o mesmo todos os dias depois das refeições. Os médicos recomendaram-me
exercícios. E o barítono, esfalfado, ofereceu-se para fazer mais algumas voltas se S.
Exa. quisesse.
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Ruy Vaz, não — era um amigo leal e um adversário teimoso como convinha.
Anselmo, esse, sem amigos influentes, lançado no grande desconhecido,
passeava com orgulho a sua fome. Enquanto o estômago se lhe contraía, em rodas
literárias, no fundo obscuro dos cafés, discutia os dramas de Shakespeare, os
poemas de Byron, a prosa sonora e rútila de Flaubert, a fina argúcia de Balzac e o
sentimentalismo de Musset.
Em torno dele andavam os caixeiros conduzindo pratos que exalavam
suavemente e ele, lançando os olhos para as mesas próximas, só via gente comer e
aquelas mandíbulas pareciam trincar-lhe o coração. Eram tenros churrascos,
entrecostos com batatas; era o rim, era a costeleta, eram ovos e o generoso vinho
que passava com um grugulejo por aquelas voracíssimas goelas... Ah! Como ele
continha os ímpetos sanguinários! Engolia em seco e continuava:
... Quando foi representado o drama Romeu e Julieta, Shakespeare... E o
estômago a pensar em costeletas enquanto o espírito rememorava episódios da vida
acidentada do poeta de Stratford. Consolava-se com certo desvanecimento
lembrando-se de quantos, no começo da vida literária, haviam sofrido as mesmas
torturas e em climas ásperos, tiritando, tarantulamente, à neve. Ele ao menos, tinha
a benignidade do clima paradisíaco, sem invernias que o encarangassem ou
congelassem, como acontecera aos soldados de Napoleão na Rússia, e tinha a
esperança de vencer grandes prélios literários, impondo-se à Pátria e ao mundo com
os períodos da sua pena.
Datam dessas duas famintas semanas os primeiros cantos do
"deslumbrante" poema em prosa: Guanabara, mito da criação do mundo americano
segundo a tresloucada imaginação de Anselmo.
Num domingo, à tarde, reunindo os companheiros no mirante, o autor
procedeu à leitura do poema magnífico, estrondoso de adjetivos. Lins comparou-o à
Teogonia de Hesíodo, Duarte colocou-o a par da Divina Comédia. Ruy Vaz,
entretanto, desafinou no coro encomiástico, emitindo um juízo severo, que foi a
condenação da obra-prima.
Quando Anselmo terminou a leitura, o romancista, acendendo um cigarro,
ponderou:
— Acho o teu poema por demais cerebrino; não é propriamente uma
concepção, é um delírio intelectual ou antes: não é o produto de uma emoção
estética, é a resultante mórbida de uma superexcitação. Em palavras mais claras: o
teu protagonista, esse Anhangá merencório, subiu do abismo do teu estômago. Um
bife com petits pois bastava para fazer desse revoltado o mais pacífico dos anjos. O
cérebro, meu amigo, é escravo do estômago. Do nada só pode sair o nada, disse o
velho Lear a Cordélia. A crítica, mais tarde, quando analisar o teu poema, se tiveres
fome bastante para o concluir, há de dizer, com azedume, que eras um pessimista
da casta biliosa dos Schopenhauers, sem perceber que a tua filosofia sinistra não
veio de uma interpretação sistemática, Senão de uma fome implacável e
desesperada. Lê Epicuro e aprende os segredos do bem viver. O teu poema tem
belezas, mas atordoa.
— Achas que não presta?
— Não, acho-o superabundante: tem a desconexão de um delírio
— E se eu retocá-lo?
— Come primeiro. Antes de tomar o buril procura um talher; em vez do pó de
diamante, atira-te à farinha seca. Come. Com a digestão tranqüila estou certo de
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que hás de ver as agudas arestas do teu poema. Vai a um frege! A inanição alucina.
Não tomes por inspiração o que é apenas desvairo de inanido. Vai a um frege.
— Sim, isso é bom de dizer. Como queres que eu vá a um frege, se nem
cigarros tenho?
— Eu tenho, toma; ofereceu o Toledo.
— Grande coisa o talento! — exclamou Anselmo atirando uma baforada ao
ar.
— Grande coisa! — repetiu Ruy Vaz.
Toledo arregalou os olhos e meneou com a cabeça.
O céu estava cor de chumbo. Nuvens grossas, pesadas, rolavam com
lentidão, amontoando-se; um vento morno soprava e, como se não bastasse aos
pulmões, tinha-se uma sensação abafada de asfixia como se aquela abóbada viesse
caindo pouco a pouco, sufocando, oprimindo.
Nuvens de poeira encobriam a cidade sob um véu denso. Pombos voavam
atordoados, fugindo à tormenta próxima. Os silvos das locomotivas vibravam com
maior intensidade. E surdos, longínquos, ameaçadores, trovões roncavam.
A Tijuca estava nublada, nuvens fluíam em névoa tênue como fumo
esgarçado e a montanha ia aos poucos desaparecendo como se o céu houvesse
baixado sobre ela.
Coriscos zebravam a densidão do espaço e escurecia rapidamente em
crepúsculo sinistro. O ar tornava-se mais pesado, rarefazia-se, posto que, de ponto
em ponto, em revoluteio, uma tromba de poeira espiralasse.
Vinham, de muito longe, os sons de um sino. Pelos quintais mulheres
recolhiam, à pressa, a roupa que espadanava nas cordas. A cidade foi
desaparecendo encoberta por uma bruma pesada que vinha avançando rápida.
Toledo, com os olhos alongados, estendendo a mão, anunciou:
— Aí vem a chuva.
Ouvia-se como um ruflo e, quase no mesmo instante, grossas gotas bateram
nos telhados secos, depois a chuva caiu a jorros, com rumor e um cheiro forte de
terra ardente subiu.
Os rapazes precipitaram-se para a sala borrilados e um formidável trovão
estrondou reboando longamente. Rajadas violentas batiam nos vidros, invadindo a
sala. O vento rugia.
Toledo, mais cuidadoso, correu a descer as vidraças da sala da frente e a
tempo porque já andavam papéis voando.
Dona Ana, em baixo, bradava à Leonor, que limpava o ralo do quintal para
que as águas não empoçassem e a escuridão fez-se mais densa, alumiada, de
quando em quando, pelos lívidos relâmpagos.
As gárgulas jorravam com ímpeto, a rua começava a encher-se quando
Anselmo, encostando o rosto aos vidros empanados pela chuva, pôs-se a pensar na
terrível noite que lhe estava reservada. Como havia de ficar sem uma xícara de café,
ao menos, e adoentado, febril, sentindo tamanha fraqueza que as pernas tremiam-
lhe e um suor viscoso ressumbrava-lhe das mãos?
Olhava, mas não via aquela torrente que desabava do céu, não via os
córregos que rolavam precipitados e imundos pelas sarjetas, não via os homens
que, de calças arregaçadas, com as pernas atafulhadas na água lodosa, iam e
vinham sob o aguaceiro violento.
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Pensava nos tempos felizes em que vivera acariciado entre a mãe e o pai,
velhos ambos: ela, cantarolando baixinho modinhas sertanejas, à luz do lampião,
enquanto cerzia a roupa branca, lavada e cheirando a ervas da campina; o velho,
estirado no canapé, enrolando a barba, a pensar nos afazeres do dia seguinte. A um
canto, sobre uma cadeira, o gato doméstico, um gordo maltês, dormindo
tranqüilamente e ele, com os livros abertos, a tomar notas, mas já perseguido pela
imaginação, já arrebatado por essa sedutora, que, numa página de história antiga,
como se animasse as letras dos livros, fazia saltarem exércitos de bárbaros,
mostrava cidades em chamas, dava uma vida de sonho a todas as passagens
descritas concisamente pelos historiadores.
— Ah! Tempos idos! Então não conhecia a fome nem julgava que pudesse
um dia conhecê-la. Nada lhe faltava: tinha a cama Sempre feita, os seus livros
sempre em ordem, o melhor prato à mesa e, se lhe achavam o pulso um pouco
agitado, se lhe sentiam a fronte mais quente, quantos cuidados, e que sobressaltos:
a mãe aflita, o pai indo ver o médico, e tudo quanto queria, até aquela caixa de
música que lá estava calada, sobre a sua mesa, que lhe fora dada, para distraí-lo,
quando uma febre o prostrou na cama.
Ah! Tempos... E via-se ali sozinho, com fome, com febre e sem esperança
de poder sair, porque o mesmo Deus parecia querer martirizá-lo com aquela
tormentosa noite de aguaceiro e raios.
Quando se retirou da janela tinha os olhos úmidos. Borrifos da chuva,
talvez...
VII
Uma manhã, inesperadamente, Crebillon surgiu com a chave da casa que
encontrara e, como os rapazes ainda rolavam na cama, pensando no carinho
desigual com que o bom Deus distingue os seus filhos na terra, dando a uns
milheiros de apólices e a outros esquecendo em miséria, o futuro presidente, já com
os ares despóticos de um Rosas, manifestou-se em palavras duras contra a
preguiça, mãe de todos os vícios.
Os rapazes ouviram calados. Desceram ao Cranium e, depois de rápida
fricção, galgaram os degraus, vestiram-se à pressa e saíram levando, como lacaio, o
resignado João de Deus, que os não deixava senão à hora das refeições, porque
não se podia habituar com os apertados jejuns, embora soubesse que eram garantia
de bem-aventurança.
Crebillon, caminhando para o bonde, falava das suas constantes idas e
vindas pelo Catete à procura de um prédio que reunisse as condições
indispensáveis a uma república modelo, como a de Platão, até que lhe indicaram
essa esplêndida vivenda principesca de onde havia saído, dias antes, um barão,
homem de gosto e fortuna.
Toledo, curioso, pediu informações sobre a casa que iam habitar, mas o
intrépido abolicionista rosnou ufano, torcendo a pêra flamínia, com sorriso vaidoso:
— Só te digo que é um palácio!
Era na rua de Santa Cristina. Quando Crebillon parou diante da casa de
aspecto nobre — seis janelas de frente em cada pavimento, abrindo, as do superior,
para uma sacada corrida de complicado gradil dourado, os rapazes, boquiabertos,
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pasmados, tiveram a mesma significativa exclamação surdamente murmurada e
João de Deus sorriu, afagando o ventre sumido.
A porta, que parecia de bronze e pesada como o glorioso metal das
imortalizações, girou docemente e o vestíbulo apareceu deslumbrante. Era de
pequenos ladrilhos de mármore, em estrelas. As paredes, alvas, tinham enrediças
de ramos, corimbos florentes finamente pintados e dois medalhões nos quais, sem
demora, Ruy Vaz percebeu uma entrada da barra do Rio de Janeiro e uma vista do
Reno romântico, castelos e vinhas e um rebanho com o seu pastor à sombra de
ruínas negras. E soltos, voando na alvura lisa e luzida, pássaros de cores
variegadas.
Acima da padieira da porta envidraçada dois velhos de imensas barbas
derramadas, nus, as pernas estiradas, encostados a ânforas que jorravam para um
lado e outro golfões de água espumante. Eram dois rios mitológicos. Ruy Vaz
apenas achou defeito no ventre de um dos patriarcas fluviais. Realmente era
desmedido, e se não fossem as barbas copiosas da figura, bastava aquela
monstruosa pança para designar-lhe o sexo. Mas Anselmo achou natural:
— Um rio deve ter barriga d'água.
Crebillon achou o "rio" indecoroso. O pintor, ao menos por decência, devia
ter espalhado juncais que ocultassem aquela deformidade. Passaram adiante
ganhando o corredor, onde a luz era escassa, e só viam portas abrindo para
gabinetes e alcovas, mas, alcançando a sala de jantar, ficaram deslumbrados. Era
imensa! Quatro janelas olhavam para o jardim, folhagens balouçavam-se,
inclinando-se indiscretamente como se quisessem penetrar aquela basílica de
regalo, aquele santuário do ventre, onde podia, à vontade, ser servido um banquete
a cem pessoas em mesa extensa, florida e rútila de baixelas.
O teto era de madeira fosca, com entalhes preciosos. As paredes pintadas:
eram aves, enfiadas de peixes, lebres e pacas sangrando, pencas de frutas, racimos
e açafates de flores sobre as quais pairavam borboletas.
O soalho era de mosaico de madeira e, encravado na parede, com uma
carranca feroz de bochechas cheias como um Euro, havia um lavabo de mármore.
O ar que bafejava a sala, cheirava suavemente a jasmim.
— Aqui pode a gente comer! — exclamou Anselmo. As próprias paredes
encarregam-se de despertar o apetite. Que delícia e que aroma!
Crebillon avançou solene, mostrando com a bengala o grande braço do gás,
com oito açucenas azuis.
— Isto é que não vai bem aqui; e ajuntou: A casa é boa, ainda assim precisa
de certos retoques artísticos. Este gás, por exemplo, vai fora. Esta sala está a pedir
um lustre para vinte ou trinta velas; vinte chegam, aqui ao centro. Agora vejam lá
vocês se concordam: A mobília de canela ou de imbuía...
— Por que não há de ser de carvalho? — emendou Ruy Vaz.
— Aí vem você com o carvalho! Para que havemos de recorrer ao
estrangeiro quando temos as mais belas madeiras do mundo? Que diabo! Vocês
não são patriotas... É por estas e outras que nunca seremos autônomos, havemos
de ser sempre um protetorado europeu. Carvalho... Não senhor: canela ou imbuía,
estilo grego. Ou monta-se a casa com gosto ou então...
— Pois seja, concordou Ruy Vaz.
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— Imbuía ou canela, continuou Crebillon. Aqui, o bufê... Ali, o guarda-prata...
Acolá, os trinchantes. Duas dúzias de cadeiras... Que acham?
— Sim, duas dúzias, concordou Anselmo.
Nos cantos podem ficar uns cache— pots com palmeiras, dracenas. Eu
detesto o encerado inglês, mas se vocês fazem questão...?
— Não, dispensa-se o encerado. Com um soalho como este é até
profanação.
— Também acho. Então está pronta a sala de jantar. Ah! Sim, precisamos
escolher uns panos claros para as janelas e portas. Isso vê-se depois. Vamos
adiante.
Passaram à copa ladrilhada. Era vasta, com um armário e duas pias de
mármore.
A cozinha lembrava a de um castelo feudal. No forno do fogão, novo e
brunido, com os metais muito reluzentes, caberia um novilho inteiro. Era uma peça
solene, digna de um comentário, com uma complicada rede de tubos amarelos e
torneiras, bocas de todos os tamanhos, caldeiras, uma infinidade de minúcias que só
poderiam ser entendidas por um mestre perito que, a ciência rara de queimar uma
omelette au rhum, reunisse a sabedoria de mecânico.
João de Deus, depois de examinar detidamente o monstro, passeando em
torno dele, abrindo e fechando torneiras, escancarando pesadíssimas portas que
davam aos olhos a vertigem do abismo, confessou que não entendia "aquela
geringonça". Mas Crebillon, sempre austero, avançou para mostrar ao negro como
se operava. Olhou, deu volta e, de repente, lembrando-se de alguma coisa, saiu em
passos ligeiros. Tornou, porém, logo depois e, abrindo, com muita convicção, uma
torneira recuou encharcado e, certamente, a casa teria sido inundada se João de
Deus, afrontando o esguicho, com risco de apanhar uma bronquite, não houvesse
estancado o jorro.
De novo Crebillon investiu e foi distorcendo todos os registros que encontrou
e, logo, um cheiro ativo de gás espalhou-se pela casa. Crebillon riscou um fósforo,
atirou-o ao tubo, deu um pelo prudente e houve a explosão. O monstro ficou
iluminado como um edifício público em dia de festa nacional. Os rapazes aplaudiram
com entusiasmo e João de Deus, aterrado, recuou do fogão como de coisa satânica.
— Vêem vocês? Temos aqui o gás, que é a essência do coke. Não
precisamos de carvão nem de lenha. Podemos cozinhar um boi com a maior
brevidade e limpamente.
Deixaram o monstro, menos João de Deus que ficou encarregado de fechar
os registros, e passaram a examinar a cozinha, também ladrilhada até meia parede.
Duas grandes pias defrontavam-se.
— Aqui tem os seus domínios, mestre João de Deus, disse Crebillon. O
negro ouvia comovido, de olhos baixos. Você tem boné e avental?
— Não, senhor.
— Pois é preciso mandar fazer.
— Certamente, concordaram unânimes os do segundo andar.
— Isto não é cozinha para mangas de camisa. E é preciso trazê-la sempre
muito asseada, entendeu?
— Sim, senhor.
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— Bem. Vamos agora ver o banheiro, meus amigos. Vocês vão ver! Eu acho
perigoso...
— Perigoso!? — exclamou Anselmo.
— Sim, isto é: não para mim, porque sei nadar.
— Também eu, disse Anselmo.
— E eu, ajuntou Toledo.
— Mas tu não sabes, Ruy Vaz?
— Eu? Não sei.
— Pois meu caro, aceita o meu conselho: não entres no banheiro sem salva-
vidas — é como a bacia do Prata, meu amigo, vais ver. Vamos.
Seguiram e João de Deus, já exausto, continuava a torcer os registros. do
fogão monstruoso.
Impressionados pelas palavras de Crebillon, os rapazes atravessaram um
estreito paço de mármore alguergado e pararam diante de uma porta branca.
— É aqui! — disse Crebillon, com profundo respeito e, lentamente, foi
impelindo a porta como se quisesse dar, aos poucos, a impressão magnífica da
maravilha. Os rapazes invadiram o recinto e houve um significativo silêncio.
Também de mármore enxadrezado era todo o piso e o vasto aquário, largo e
profundo, com uma calha à altura de dois metros, duas torneiras de cobre e a
rosácea imensa, no teto de ripas embrechadas. Duas maçanetas de louça matizada
giravam na parede marmórea para a distribuição das águas altas. Três janelas, com
persianas, coavam uma luz serena e o frescor das lajes e das águas ocultas
espalhavam-se no ambiente, dando uma sensação regalada de inverno.
Tudo era branco e o asseio casava-se com o conforto. A beleza era geral,
não havia que criticar. Os cabides, de nítido metal, reluziam e, a um canto, fechada,
uma caixa lustrosa de quando em quando interrompia o silêncio com um burburinho.
Crebillon quis mostrar a perfeição daquela utilíssima dependência, mas para
que não lhe sucedesse sair, como da cozinha, com as roupas encharcadas, bradou
pelo africano que acudiu à pressa parando à porta, fascinado pelo fulgor dos muros
alvos.
— João de Deus, distorce-me uma daquelas bolas... Mas toma cuidado com
a água que vem por ai abaixo.
O negro, alongando o braço com grande medo, pôs-se a torcer a maçaneta.
Houve um ronco estupendo, um ronco de tromba em mares largos e logo, da
altíssima calha, um gorgolão de água despenhou-se impetuosamente, espalhando
uma névoa sutil. Crebillon, apesar da voz formidável que o distinguia, valendo-lhe a
antonomásia de Stentor, teve de bradar para que fosse ouvido, tão fragoroso era o
rolar das águas soltas pela beiçorra da calha, caindo estrondosamente nas lajes.
— Vêem vocês? Parece Paulo Afonso. E os três concordaram assombrados.
Agora a outra, João.
O negro, aterrado, deu volta à outra maçaneta e foi um desabar de chuva
como no dilúvio.
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A mania das águas alucinava o abolicionista que entrou a urrar, sapateando,
brandindo a bengala:
— Abre agora as torneiras, João!... As torneiras!
Mas o negro não ouvia, via apenas a boca imensa, o ar furibundo e os
gestos desabalados de Crebillon. Aproximou-se curvado e o abolicionista bramiu:
— Abre as torneiras, com todos os diabos!
E quando, por todos os vazadouros, a água volumosa, correu inundando o
aquário, Crebillon pôs-se a afagar a pêra e parecia o próprio Deus olhando satisfeito
e vingado a queda dos golfões tremendos que alhanaram o mundo, com remissão
apenas da família do patriarca e das espécies recolhidas na arca.
O aquário transbordava quando Crebillon avançou muito grave e deu um
safanão à corrente do escoadouro enquanto João, de olhos apertados, ia fechando
as torneiras e torcendo as maçanetas. Ficaram apenas gotas lentejando e as águas,
como depois de aplacada a cólera do Altíssimo no cataclismo universal, começaram
a baixar afunilando-se à altura da válvula. Houve um sorvo por fim e o banheiro
ficou, de novo, vazio e resplandecente, extasiando o grupo.
— Então!? — indagou o presidente encarando os rapazes.
— É uma delicia! Sim, senhor!
— Não há melhor no Rio, afirmo! E todos menearam a cabeça,
concordando. Vamos agora ao jardim.
Desceram por uma escada de granito e, chegando ao ar livre, à claridade
límpida do sol, que luzia quente, lançaram os olhos pelos canteiros relvados, de
graciosas formas geométricas sobre o saibro branco e rútilo das aléias.
Eram inúmeras as roseiras encostadas a espeques, filas de caladios
diversos, begônias, cravos, magnólias, gardênias, dálias, uma araucária esguia,
várias palmeiras ornamentais e quatro figuras de louça, sobre pilastras, figurando as
estações. A Primavera era uma graciosa e linda rapariga que sorria toucada de
flores, pisando flores; o Outono era um ceifeiro moço com uma paveia de trigo aos
pés, a foice ao ombro, os olhos no céu, satisfeito e feliz; o Estio era outra donzela,
formosa e jocunda, que festejava uma borboleta pousada no seu ombro nu e o
Inverno, metido entre árvores, era um velho tristonho, barbado e ferrenho, curvado
sobre um cajado, com o gabão muito enrolado em volta do corpo magro e transido.
Sobre as figuras simbólicas as opiniões divergiram: Crebillon gabou-as com
entusiasmo, Ruy Vaz achou-as "pulhas". Ao fundo, formando um bosque aceitoso,
velhas árvores frondosas faziam sombra a uma barra fixa e a um trapézio.
— Temos aqui a ginástica, a educação física. Ao sair do banho uma flexão,
uma sereia, depois o almoço, o trabalho... uma delícia, heim? Isto é sempre melhor
do que o pardieiro da rua Formosa, confessem.
— Ora! — exclamaram os três. Contra o muro era o galinheiro, parte
coberto, parte ao tempo, cercado de arame, com os poleiros caiados e um tanque
para os palmípedes; ao lado a casa do cão coberta de zinco e, bem ao centro do
jardim, o aviário de arame em forma graciosa de chalé com o seu repuxo que era, ao
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mesmo tempo, bebedouro. Crebillon, colhendo uma rosa e fincando-a na botoeira,
disse, passeando um olhar pelo jardim:
— Isto não dispensa um jardineiro, o João de Deus não pode cuidar ao
mesmo tempo do fogão e das flores...
— Naturalmente.
— Não pode, repetiu pensativo. Vou ver um homem que entenda de plantas,
até porque pretendo ter as minhas orquídeas e os meus tinhorões de escolha. Não
podemos dispensar o jardineiro Vou ver também se arranjo um cão das ilhas, são os
melhores para os quintais: não há ladrão que lhes escape. Tive um que, certa noite,
tendo um patife penetrado em minha casa, quando foi para saltar o muro, o animal
atirou-se-lhe às pernas.
— E matou-o!? — perguntou Anselmo.
— Não, mas pregou-lhe um susto que o desgraçado esteve muito tempo
entre a vida e a morte.
— Quem te disse?
— Ninguém, eu imagino. Era um cão! Vou ver se encontro um igual para
aqui. Para o galinheiro uma meia dúzia de galinhas de raça, uns gansos de Tolosa
ou de Emdben, uns patos mandarins, uns perus. Para o aviário mando vir aves do
Norte: mutuns, guarás, garças, jacamins; não, jacamins para o galinheiro. À tarde
vem a gente aqui para fora no seu paletó branco saborear o café, ouvindo os
gaturamos e as patativas, os gansos, os galos e gozando o perfume das flores. Que
tal?
— É magnífico!
— E podem vocês trabalhar à vontade. Aqui nada falta: têm, de um lado
Santa Teresa e do outro lado o esplêndido panorama da cidade. Não é aquela rua
acanhada e sórdida, com aquele silvar constante de locomotivas e com aquela
mulher sempre a rezingar e aqueles quintais imundos e aquela gente tresandando a
suor e a cachaça, nada disso. Aqui a vizinhança é nobre, gente da élite. Vocês
podem julgar pelas casas — e ajuntou com mistério: Já que toquei neste ponto, devo
dizer que a moralidade aqui deve ser escrupulosamente observada: nada de
escândalos, isto é um bairro de respeito.
— Vê-se logo.
— Bem, vamos agora lá acima.
Tornaram pelo mesmo caminho e, atravessando a sala de jantar e o
corredor, subiram por uma larga escada iluminada por uma clarabóia, alcançando o
pavimento superior. Não eram quartos, eram salões e todos com janelas. O da
frente, que tinha o teto de estuque e dourado, abria para a sacada as suas quatro
janelas. O soalho encerado, reluzia. Eram oito quartos, oito imensidades admiráveis
e dois salões. Ruy Vaz chegou a aventurar que não seria mau estabelecer-se ali
dentro uma linha de bondes para facilidade da comunicação entre os aposentos, um
elevador para a ascensão e um telefone para uso interno. Era o infinito. Crebillon,
modesto, escolheu o menor quarto, ao fundo, com duas janelas para o jardim e larga
vista da montanha e de grande parte da cidade e do mar, muito azul coalhado de
barcos, sem falar nos fundos das casas vizinhas: jardins, terraços e janelas que
deixavam entrever interiores faustosos — câmaras, gabinetes, salas de jantar. Foi
nesse aposento que se decidiu fazer a mudança no dia seguinte, mas logo surgiu
uma dificuldade: não havia dinheiro para as carroças.
— Eu mando as andorinhas, disse o generoso Crebillon. Quantas?
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— Uma e meia.
— Uma e meia? Duas, homem; duas andorinhas. Que mais?
— Mais nada.
— E vocês já escolheram os aposentos?
— Já. Anselmo e Ruy Vaz haviam tomado, para trabalhar, a sala da frente
do pavimento superior e dois quartos incomensuráveis. Toledo ficou com a sala
central e um quarto contíguo.
— Mas, com o que temos, esta casa vai ficar como um deserto com
pequeninos oásis, disse Ruy Vaz.
— Ó senhores! — exclamou Crebillon, não se incomodem com a casa. Pois
eu não disse que vou escolher a mobília? Então! Até não sei se seria melhor que
vocês vendessem os cacarecos. Em todo caso eu trato primeiro lá de baixo: sala de
visitas, sala de jantar, vestíbulo, os dois quartos, depois subo. Vão ver como isto fica
um brinco. Que é do João de Deus? Ó João de Deus!
O discreto africano estava no corredor e tanto que ouviu o berro do
abolicionista correu com a toalha inseparável, que era o travesseiro em que
repousava a cabeça, a rodilha com que saía ao ganho e o lenço com que enxugava
o suor abundante do seu carão de azeviche.
— João, veja hoje mesmo o boné e o avental, porque amanhã começa o seu
trabalho. Vou mandar vir a bateria da cozinha e a louça. E olhe lá! Nada de assobios
aqui, ouviu?
— Sim, senhor, murmurou o negro, de olhos baixos.
— Estamos então combinados; amanhã, não é verdade?
— Sim, amanhã!
— Mandas as andorinhas? — perguntou Ruy Vaz.
— Está visto: duas?
— Duas.
— E quanto ao senhor João de Deus fica conosco por... Pensou, alisando a
pêra, com os olhos nos bicos dos sapatos, erguendo altivamente a cabeça fulva,
ajustou: sessenta mil réis, que dizes?
O negro encolheu os ombros e Ruy Vaz, afagando-o, disse:
— É um achado, meu amigo. Nos tempos que correm, sessenta mil réis,
casa e comida... uh!
— E podes escolher um quarto lá em baixo, João. Tens um magnífico, perto
da sala de jantar. Queres?
O negro sorriu enlevado.
— Bem, estamos tratados. Vamos.
Desceram. Crebillon trancou as portas e ganharam a rua. Havia gente pelas
janelas das casas vizinhas e Crebillon, ufano, repetiu, acendendo um charuto:
— Vai ficar um brinco, garanto.
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Chegando ao começo da rua de Santo Amaro, despediu-se; "tinha de ir à
casa de um velho parente, na Gávea". Os futuros palacianos, sempre seguidos de
João de Deus, desceram para a cidade, a pé, sem almoço, sob uma soalheira
cáustica.
CAPÍTULO VIII
No dia seguinte, às quatro da manhã, todos de pé e alegres começaram a
encaixotar os livros e, às nove, pararam à porta as duas andorinhas. Dona Ana,
avisada pelo filho, quis embargar a mudança, mas os carregadores não atendiam e,
placidamente, iam descendo os trastes que ficaram folgados nas duas imensas
carroças.
João de Deus já se preparava para tomar um lugar à boléia, quando o
Toledo apareceu com o esqueleto embrulhado num lençol, confiando-o
ao negro
para que o levasse cuidadosamente. O africano, que não via com bons olhos aquele
despojo de finado, fez uma careta significativa, entendendo que era melhor escondê-
lo no bojo de um dos transportes, mesmo para que a polícia, alarmada, não fosse
acompanhando a mudança na suspeita de um crime. O anatomista, porém,
convenceu-o com palavras brandas:
— Não, João, tem paciência!... Não quero perder o esqueleto. Na carroça,
com os solavancos, pode haver fratura de algum osso e lá se vai o meu precioso
manequim. Tem paciência, leva-o contigo. Isto é a minha enxada, João. Isto é que
me há de dar o pão para a boca. Toma cuidado, meu velho.
O negro submeteu-se e, enrolado o esqueleto, lá foi ele para a boléia muito
rijo e, com a ossada sobre as pernas, parecia, mal comparando, o Anúbis egípcio
com uma múmia ao colo.
Na sala deserta, por onde voavam esparsas folhas de papel garatujadas,
reuniu-se o conselho para resolver se deviam despedir-se da viúva ou sair
sobranceiramente sem palavra. Anselmo opinou pela retirada sobranceira. Ruy Vaz,
porém, grato aos antigos acepipes, grato aos passados tempos de fartura e paz,
quis levar à viúva os seus agradecimentos e, como o Toledo concordasse, houve
maioria e os três desceram e foram bater à porta da sala de jantar, mas Dona Ana
rugiu furente: "Que fossem para o diabo!", e ganiu uma praga cruel.
Seguiram, então, apartando-se daquela casa sem adeus. Da rua lançaram
um saudoso olhar à sacada e viram Vidinha, com o rosto formoso encostado à
vidraça, seguindo-os com um olhar de melancolia. De repente, porém, João
irrompeu, de cigarro à boca, franziu a cara numa careta e sacudiu um gesto vil.
— Peralta! — disse baixinho o Toledo mas Anselmo, indignado, com os
olhos relampejantes, pálido de fúria, estacou ameaçador:
— Eu vou quebrar a cara daquele patife!...
— Estás louco, homem? Vamo-nos embora! E o João dançava na sacada
com acenos indecorosos e caretas horripilantes.
Antes de tomarem rumo foram ao café e Anselmo, para fazer lastro, engoliu
três empadas e um copo de leite e, reconfortados, como na véspera havia caído do
céu uma nota de vinte mil réis, foram os três repousadamente, a bonde, descendo
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na rua Santo Amaro. Quando chegaram, já as andorinhas despejavam os trastes
com grande pasmo dos vizinhos que viam tanta velharia e tão desencontrados
móveis entrando para aquele prédio nobre e de tão alto preço, de onde havia saído
a família de um fidalgo, seguida de uma dezena de andorinhas que, ainda assim,
foram poucas para levar os finos erables, os magníficos jacarandás, o precioso
carvalho florejado, as raras perobas tigre, o pau rosa, o ébano, um retumbante Erard
e cristais, bronzes, mármores, estofos, tapeçarias e a baixela e a faiança e os
quadros, porque, depois de haverem desfilado lenta e longamente os transportes,
que rangiam atestados, homens ainda desceram carregados e até a primeira hora
da noite, tendo a mudança começado com os brilhos suaves da manhã, como de
uma cidade que a peste ou a guerra houvesse ameaçado, foi um constante transitar
de gente: negros com chocalhos e brancos e mulatos, homens de várias terras,
falando várias línguas, arquejando, curvados sob pesos inauditos, ladeira abaixo, em
passo rítmico e seguro.
Quando o tapete, que representava a voluptuosa cena do serralho, foi
estendido no vastíssimo salão do pavimento superior, usa dos homens das
andorinhas apresentou a Ruy Vaz o recibo. O romancista guardou-o, o homem,
porém, não se moveu coçando a cabeça empastada, com os olhos muito abertos,
um cigarro mole ao canto da boca.
— Que é? Está entregue, pode ir.
— É que... é que ainda não está pago o serviço, murmurou com um sorriso
parvo.
— Como! Não está pago?
— Não, senhor.
— Pois volte com o recibo, porque a pessoa que tratou lá deve ir pagar.
— Não dá alguma coisa para matar o bicho? — murmurou o homem em tom
pedinte.
— Não, respondeu Ruy Vaz sisudamente — sou da sociedade protetora dos
animais.
O carroceiro lançou um olhar rancoroso ao romancista, tomou o papelucho,
meteu-o no bolso profundo e, dando volta nos calcanhares, rosnou: "Às ordens..." e
desceu. Ruy Vaz mandou João de Deus trancar as portas e começou a arranjar a
casa.
Toda a mobília não dava para encher um dos quartos e a casa imensa ficava
desoladamente vazia, apesar de haverem os rapazes espalhado, com sabedoria, as
cadeiras e as estantes.
— Não se sacia este monstro! — rosnou Ruy Vaz desesperado. Estão aqui
os móveis de três homens e nem parece. E um abismo!
O tapete no salão era como uma pequenina ilha na imensidade do oceano.
João de Deus tomou conta de um dos quartos do primeiro pavimento, pousou a
rodilha no chão liso e, como estava esfalfado, estirou-se e dormiu. Os rapazes
desceram e como queriam provar todas as delicias da casa, foi Anselmo para a
barra fixa, Toledo pendurou-se no trapézio, enquanto Ruy Vaz estudava o estilo das
pinturas da sala de jantar.
Já a tarde roxa caía quando, sem esperança de que aparecessem os
preciosos móveis de Crebillon e a louça e o trem da cozinha, resolveram mandar à
venda buscar ovos e pão para que João de Deus arranjasse uma omelete rápida,
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mas o negro lembrou ponderosamente que não havia frigideiras nem pratos,
propondo umas sardinhas de Nantes.
As razões do negro foram julgadas procedentes: optaram pelas sardinhas e,
quando as latas apareceram abertas, cada lata acompanhada de um pão louro e
trepidante, houve alegria no grupo. E porque não chegara a mesa de imbuía, a
grande mesa dos futuros banquetes, foi sobre o fogão monstruoso e de pé, como os
israelitas comiam o cordeiro da Páscoa, molhando o pão no azeite, que os quatro
devoraram silenciosamente, enquanto uma cigarra cantava na araucária e as
magnólias abriam-se com suave aroma.
Quatro longos, ansiosos dias passaram sem notícia de Crebillon. Aflitos, os
rapazes dispersavam-se todas as manhãs indo aos pontos que o abolicionista
costumava freqüentar mas ninguém informava; o próprio charuteiro nada adiantou
sobre o mistério. E a casa, imensa e nua, à noite iluminada profusamente, parecia
um palácio maldito, despovoado e silente onde, a horas altas, com tinidos de ferros
e uivos, espectros vinham purgar crimes sobre tesouros escondidos nas muralhas
grossas ou sob o soalho forte.
Mas João de Deus encarregou-se de afugentar os duendes, não com
hissopes e rezas, mas com um gato, magro e gafento, que entrou num saco,
miando, e foi despejado no salão, desaparecendo em seguida. Mas como não
cessava de miar ora debaixo fogão, ora no banheiro, ora no corredor, calaram-se os
rumores e o assombramento desapareceu.
Uma tarde, já cintilavam estrelas, os rapazes digeriam no jardim uma gorda
feijoada que haviam saboreado no hotel do G. Lobo, à rua do General Câmara, casa
de modesta aparência e módica, onde um homem podia empanturrar-se com
quinhentos e oitenta, sobremesa inclusive, quando João de Deus, sobressaltado,
anunciou a mudança de Crebillon.
Posto que achassem a hora imprópria para a entrada de tão preciosos
móveis, abalaram à pressa chegando ao corredor justamente quando o abolicionista,
com o seu vozeirão atroante, recomendava a um homenzinho "que tivesse cuidado
com os trastes", encarregando João de Deus de ir ao pavimento superior mostrar o
quarto ascético que se reservara. Dando com os rapazes respirou esbaforido,
limpando o suor da fronte.
— Ó homem, onde te meteste? — perguntou Ruy Vaz.
— Ah! Meu amigo: sou um ressuscitado. Vamos lá para o jardim enquanto
arranjam o seu quarto.
— E os outros móveis? — perguntou Anselmo.
— Vêm depois. Se estou a dizer que sou um ressuscitado.
— Mas que houve? — indagou com interesse o Toledo.
— Que houve, heim?! Quase me vou desta para a melhor.
— Como?
— Vamos lá para o jardim; preciso de ar.
Caminharam. Na sala de jantar Crebillon reconheceu que aquilo não podia
continuar como estava e perguntou como se haviam arranjado.
Imagina! Sem nada em casa.
— Sim, mas vamos pôr isto em ordem amanhã mesmo. Amanhã...?! elevou
os olhos, alisou a pêra e disse com desgosto:
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— Amanhã não é possível, tenho um negócio de madeiras. Depois de
amanhã.
— É domingo.
Na segunda-feira então.
— Mas o teu caso... lembrou Ruy Vaz.
— O meu caso... Ah! Meu amigo, se eu não fumasse charuto era hoje
cadáver. Estava frito! Devo a vida a um charuto.
— A um charuto...?
— A um charuto, é verdade! Os rapazes encararam-no esgazeados. Vamos
para o jardim. Isto aqui é uma estufa. A um charuto... E há imbecis que combatem o
fumo. Se eu não fumasse, ah!
Desceram ao jardim e, à falta de bancos, sentaram-se na relva tépida. Só
Crebillon, de pé, ia e vinha, narrando:
— Ouçam vocês, e pasmem. Tenho um amigo na Bocaina, Simas
Fontainha, um gigante, que negociou em negros e possui hoje uma fortuna que os
herdeiros calculam em oitocentos contos, parte em dinheiro, parte em terras
magníficas de lavoura e gado. Esse homem, que orça pelos sessenta anos, com
todos os dentes e sem um fio de cabelo branco, é um dos mais intrépidos caçadores
que tenho conhecido, e eu caço desde os quinze anos, tenho caçado em todas as
florestas do Brasil, desde o Amazonas até o Prata, como no hino. Sempre que o
Fontainha pretende fazer uma surtida, manda-me aviso, porque, diz ele, não há
quem atire como eu. Atiro regularmente, isso atiro! — afirmou com orgulho, alisando
a pêra, e, de olhos altos, vendo passar um morcego, fez um parêntesis. Num cavalo
à rédea solta mato andorinhas no vôo, andorinhas ou morcegos, conforme a hora.
Isso é nada para mim. Mas voltando ao caso. Justamente no dia em que aqui estive
com vocês, chegando à casa, encontrei uma carta de Fontainha. Cá está ela! tirou
do bolso profundo a carta atribuída ao Nemrod da Bocaina e pôs-se a fazer a leitura
com um vozeirão trovejante:
"Crebillon. Anda por aqui uma onça terrível, que me tem levado a flor dos
rebanhos: é um carneiro por noite, às vezes novilhos. Pus a minha gente em campo
e já lhe descobriram o paradeiro. Vem dai, quanto antes, para ajudar-me a dar cabo
da fera, senão fico sem uma vaca de leite. Não é pela vaca, mas pelo leite. Bem
sabes que não posso dispensar o meu topázio pela manhã, mungido pelas minhas
próprias mãos, no curral. Se a onça levasse as vacas e deixasse os uberes eu não
iria incomodar-te pedindo o teu poderoso auxílio e a tua pontaria, mas vão-se
também as tetas e eu não estou em idade de ser desmamado. Vem. Conto contigo."
Dobrando a carta, atafulhou com ela no bolso interior da calça e continuou:
Devo grandes obséquios a Simas Fontainha. Tratava-se, não de um simples
divertimento, mas da salvação da fortuna do meu amigo. Não hesitei. Fiz uma
pequena bagagem, encerrei no estojo a minha espingarda inglesa e, às cinco da
manhã, seguia eu para a estrada de ferro que me deixou na Cachoeira de onde, a
cavalo, parti para as terras devastadas do meu amigo. Quando passei a porteira
houve um grande clamor no terreiro da fazenda: "Está morta a cotó! Está morta a
cotó!" E o numeroso bando dos caçadores veio ao meu encontro, saudando-me com
delírio. Simas tinha lágrimas nos olhos e, quando me apertou nos braços, senti que
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tremia aquele homem extraordinário que, com um murro da mão canhota, aos vinte
e cinco anos, derrubou dois touros.
— Dois! — exclamou Anselmo.
— Sim, dois: um, o que levou o murro, outro porque estava atrás do primeiro
e foi por ele esbarrado tão violentamente que caiu como se o houvesse fulminado
um raio. Não prometi grande coisa, mas disse: "Fontainha, meu amigo, a onça que
peça a Deus que eu não lhe ponha os olhos em cima." Como é ela?
— É uma onça sem rabo.
— Sem rabo? Amanhã será mais do que isso — será uma onça sem
cabeça. Corto-lhe a cabeça com uma bala!
— Com uma bala!?
— Com uma bala! Pois então? Achas impossível? — perguntou a Ruy Vaz.
Pois, meu amigo, é só questão de pontaria. Eu, com uma boa espingarda, faço o
que quero. Não digo que corte a cabeça, mas derrubo a onça e depois é só um talho
de faca. Pensam vocês que é coisa do outro mundo cortar a cabeça a uma onça? É
facílimo; questão de calma. Mas vamos ao caso. Fontainha, levando em conta a
viagem fatigante que eu fizera, marcou a caçada para a noite seguinte, mas eu
protestei logo, com energia:
"Não senhor, há de ser hoje mesmo, vamos ao antro!" O meu amigo quis
ainda argumentar, mas eu fui inflexível: "Há de ser hoje mesmo." Meti-me num
banho morno, devorei duas costeletas e, às onze horas, com o luar, partimos para a
serra com vinte e tantos cães. Éramos dezoito ao todo, dezoito homens ferozes.
Fomos seguindo os passos relentados do cavalo do guia, e, para a madrugada,
chegando a uma estreita garganta, senti o meu cavalo estremecer e logo um dos
cães partiu galgando umas rochas e desapareceu. Estávamos junto de uma grande
árvore e olhávamos na direção que havia seguido o cão, quando o vimos reaparecer
murcho, farejando os caminhos; os outros andavam longe. Vendo eu que ainda não
havíamos encontrado a fera, acendi um charuto e dei o sinal de partida...
Mas tu fumas quando caças, Crebillon?
— Eu fumo sempre. Já os nossos cavalos iam caminhando quando o cão
investiu contra a grande árvore, ladrando, ganindo furiosamente, a arranhar o tronco
como se quisesse subir por ele acima. "A bicha está ali!" — disse um dos homens e
tornamos todos, pondo cerco à grande árvore. Levantando os olhos, e procurando
ver por entre as folhas, descobri a fera entre os altos ramos. Os olhos luziam-lhe
como duas brasas e o meu cavalo tremia que era uma vergonha. Ainda assim levei
a arma à cara e pum! A onça veio abaixo...
— Morta?
— Qual morta! Viva como um alho... Pois se o meu cavalo tremia que era
um horror. Ah! Meus amigos, que berro! O cavalo empinou e eu senti as barbas do
animal no meu rosto. Estou morto! — disse com os meus botões, mas sem perder a
calma, soprei uma baforada de fumo, e foi a minha salvação! A onça começou a
tossir e a espirrar dando-me tempo para arrancar dos coldres a garrucha e, sem
precipitação, encostei-lhe o cano da arma à fronte e disparei. O animal rolou
pesadamente na terra. Era um monstro! Aí têm vocês toda a minha aventura. A
quem devo a vida?
— Ao charuto, sem dúvida.
— Ao charuto! E dizem que o fumo faz mal.
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— E quando chegaste da Bocaina? — perguntou Ruy Vaz.
— Ontem à noite.
— E ainda haverá por lá alguma onça?
— Não, aquela era a última.
— Bem, então agora podes cuidar da casa.
— Sim, posso. Encarou o romancista e exclamou: Que diabo! Parece que
vocês desconfiam de mim!
— Não, ninguém desconfia de ti, Crebillon. Mas deves compreender que é
um suplício vivermos em uma casa como esta sem uma cadeira e com esse
soleníssimo fogão apagado. Confiamos em ti, mas...
— Mas quê?
— Nada...
— Pois na próxima segunda-feira os senhores terão aqui os trastes. Eu só
tenho uma palavra.
Era noite fechada. João de Deus já havia iluminado a casa quando os
rapazes entraram e subiram ao pavimento superior para ver os preciosos móveis do
presidente. Crebillon não parecia muito disposto a mostrar os seus haveres, tinha
certo pudor querendo adiar para o dia seguinte a exposição, mas Ruy Vaz forçou a
entrada e, no quarto, o romancista pasmou da sobriedade:
— É isto, Crebillon?
— Sim senhor, nada mais.
— Nem cama, ao menos?
— Nunca me deitei em camas. Nasci em rede e em rede hei de morrer.
A rede oscilava entre a porta e a janela. Havia uma pequena mesa de pinho
envernizado, duas cadeiras, uma canastra e vários embrulhos que Crebillon
começou a desfazer resmungando:
— Vocês têm a mania do fausto... pois, meus amigos, não há como a
modéstia. O luxo excessivo entibia o caráter e amolece o físico. Lancem vocês um
olhar ao passado e hão de ver que as nações começam a enfraquecer à medida que
se vão tornando suntuosas: Babilônia caiu com o devasso Nabonahid. Sempre vivi
assim detestando a pompa e sou um forte, sou um homem! Acho que o luxo deve
ser comedido — uma boa sala de jantar, um salão deslumbrante, mas no quarto de
dormir um duro grabato ou uma rede, nada mais. As camas enfraquecem e
depravam. Aqui está a minha mobília: a rede, a mesa em que somo parcelas e
escrevo à família, duas cadeiras, a minha espingarda inglesa, os couros das feras
que tenho abatido, um gogó de macaco...
— Gogó de macaco! Para que diabo queres gogó de macaco?
— Para a minha asma. Quando me vem o acesso bebo um d'água pelo
gogó e fico logo curado.
— E aquele couro que ali está, perto da mesa; é de alguma fera?
— É de cutia. Uma cutia levada dos diabos, que matei no Desengano.
Persegui-a durante todo um dia a cavalo, com vinte e quatro cães e só ao cair da
noite consegui matá-la à beira de um açude.
E, à medida que ia desfazendo embrulhos e pacotes, complicadamente
enleados, contava a história de cada um dos objetos que expunha à admiração do
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grupo. Eram peles curtidas, presas de onças, colmilhos de caititus, bicos de tucanos,
cascos de tartarugas, garras de rapaces, caveiras de monos e uma vértebra de
baleia que era o seu banco predileto; várias facas e um ferro de lança enferrujado e
roído. Quando tomou entre os dedos essa antigalha épica, disse com solenidade:
— Isto que vocês vêem foi achado no campus ubi Troya fuit! É o espículo de
uma sarissa grega, talvez da que foi de Agamenão ou de outro qualquer dos chefes
que sitiaram e arrasaram a cidade de Príamo. Um inglês ofereceu-me quatro mil
libras por este ferro e teria elevado a oferta a dez mil, se eu não lhe houvesse dito
que não me desfazia deste objeto nem que ele me oferecesse a própria Inglaterra
com todas as suas colônias.
Anselmo arregalou os olhos admirando a preciosíssima peça e quis vê-la de
perto, tomou-a e só achou aspereza e ferrugem, mas recordando Homero, lembrou-
se de que aquele pedaço de ferro velho talvez houvesse pertencido ao filho de
Peleu, talvez houvesse atravessado o corpo de Heitor e, enquanto Crebillon ia
mostrando aos outros vários objetos curiosos, o autor de A Profecia, à luz do gás,
revolvendo entre os dedos o ferro da lança, recapitulava a Ilíada, rapsódia a
rapsódia, ouvindo não somente o armistrondo e o alarido como a voz dolorosa de
Cassandra que profetizava e os gritos e o guaiar de Hécuba infeliz.
Ruy Vaz, posto que não fosse indiferente ao ferro clássico, preferia, em vez
dele, um simples contador ou outro qualquer móvel de mais utilidade. O ferro era
precioso, mas não enchia os grandes vácuos da casa. Mas como Crebillon havia
prometido não quis enfezá-lo mais e, deixando-o com o seu museu de antigüidades,
estirado na rede, em ceroulas, com o cachimbo nos beiços, contando a Anselmo
uma terrível caçada nas matas bravias do Piauí, foi trabalhar no seu novo romance,
que era a vida fantástica de um padre vítima de uma empusa, como Menipo que foi
salvo miraculosamente por Apolônio.
Na manhã seguinte, ainda havia névoas, e já Crebillon bradava por João de
Deus para que lhe arranjasse café.
O negro subiu receoso e trêmulo para dizer que não havia nada em casa —
nem chaleira, nem xícaras. Crebillon achou impossível que não houvesse coisas tão
insignificantes e perguntou como se haviam arranjado os moços nos outros dias
para tomar café? João de Deus balbuciou:
— Eles não tomam café.
— É a eterna falta de ordem. Assim, meus amigos, começamos mal, disse
Crebillon bem alto para que os rapazes ouvissem do quarto. Assim começamos mal.
Sem ordem não arranjamos nada. Não há lá em baixo uma garrafa? O negro
afirmou: que havia na dispensa. Pois lave-me bem uma garrafa, vá a um botequim
ali na rua do Catete e traga-ma cheia de café. Café fresco, viu? Se não for fresco
volta.
— E xícaras? — ousou perguntar João de Deus.
— Xícaras... ainda mais essa. Pois traga três xícaras e quatro pães com
manteiga. Vá depressa; tome o dinheiro.
Os rapazes ouviam o diálogo do presidente e do negro.
Só, passeando descalço ao longo do corredor, Crebillon resmungava:
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— É isto. Quando eu digo que a ordem é tudo, clamam que impertinente,
que me quero impor como mandão e não sei mais, e é isto. Metem-se em uma casa
como esta sem uma chaleira, ao menos. Assim não é possível. E queixam-se depois
da sorte — porque não podem trabalhar, que são infelizes, e... patati e patatá. Três
homens dentro de um palácio sem uma chaleira. Assim não é possível.
Ruy Vaz, que tudo ouvira, saiu ao encontro de Crebillon, no corredor:
— Que é isto, homem?
— Que é isto! Pois vocês nem uma chaleira têm!
— Não!...
— Isto é demais!
— Também acho.
— Vocês hão de viver sempre em dificuldades.
— Sem chaleira?
— Não é sem chaleira, é sem ordem.
— Eu penso como tu.
— Pensas como eu, pensas como eu, e se eu quis tomar café tive que
mandar João de Deus a um botequim com uma garrafa, quando possuímos o
primeiro fogão da América do Sul.
— Que culpa tenho eu disso?
— Que culpa tens?
— Sim, que culpa tenho?
— Já sei que me vens com a lenga-lenga da mobília.
— De certo. Conheces perfeitamente as nossas condições. Quando nos
propuseste a mudança, disseste que tomavas à tua conta a montagem da casa, da
cozinha à sala de recepção. Que fizeste? Foste caçar a cotó na Bocaina.
Ofereceste-nos as andorinhas e não as pagaste, fazendo-me passar por um vexame
indizível e ainda vens bradar irritado por que não há chaleira? Como queres que
haja chaleira se nada trouxeste?
— Mas hei de trazer.
— Pois bem: quando trouxeres haverá.
— Pois sim, mas sem ordem nada se faz. A minha questão é de ordem.
— Bem sei... a mobília que venha que a ordem há de aparecer. Que nos
pediste tu? Silêncio e moralidade. Isto em silêncio é um túmulo, os próprios ratos,
que faziam rumor à noite, já não aparecem porque o gato faminto não lhes dá
tréguas. Quanto à moralidade, meu amigo, a Elvira e a Amélia pedem a todos
noticias nossas e ninguém as dá, porque ninguém sabe onde moramos. Bem vês
que vamos cumprindo à risca o contrato que celebramos, entanto de mobília... nem
um pires.
— Há de vir.
— Deus te ouça!
João de Deus interrompeu a discussão aparecendo com a garrafa e um
embrulho que tiniu quando foi pousado sobre uma janela.
— Que é isto? — perguntou Crebillon apalpando o embrulho.
— Pão e canecas de folha. As de louça quebram muito, disse o previdente
negro.
— Pois havemos de tomar café em canecas de folha, como Cucravos?
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— Que tem...? — disse Ruy Vaz.
— Não fazes questão?
— Não, desde que o café esteja quente.
— Está fervendo, afirmou João de Deus.
— Então não faz mal. Há quatro canecas, não'?
— Sim, senhor.
— Então vá chamar os doutores.
Logo que chegaram, Toledo e Anselmo, que não contavam com aquela
agradável surpresa, tiveram a sua reação e, por um momento, foi esquecida a nudez
da casa. Mas no melhor do gozo a campainha retiniu estridente e João de Deus
subiu a anunciar o homem das andorinhas.
— Que se há de fazer?
— Vai lá dizer que não há ninguém em casa, João. O negro hesitou, Anda!
— Eu já disse que o senhor estava aí.
— Como! Pois vai dizer que te enganaste, que quem está em casa és tu.
— Eu não posso dizer isto. O homem é capaz de querer brigar.
— Ah! Ele briga? É valente? Então manda-o cá em cima que eu o arranjo.
Manda-o!
João de Deus ficou hesitante, retorcendo um lustroso boné de seda que lhe
dera o Toledo enquanto Crebillon, arregaçando a manga da camisa, com uma afiada
faca pernambucana, pôs-se a raspar lentamente os pêlos do braço esquerdo, mais
guedelhudo do que o de um gorila.
De repente, numa resolução, pôs-se nu, fechou a carranca, rangendo os
dentes e rugiu ensaiando ferocidade.
— Muito bem. Voltou-se para o negro, que pasmava boquiaberto. — João,
vai buscar o esqueleto. Vamos! João de Deus escafedeu-se. Agora, ouçam vocês.
Não estou disposto a aturar um tipo que nos vem, todos os dias, importunar por uma
miséria de vinte mil réis. Se eu os tivesse, dava-lhos, mas toda a minha fortuna
reduz-se a 4$600. Com argumentos de convicção nada conseguiremos, portanto,
para evitar uma cena ridícula à porta do palacete, vou empregar os recursos
supremos. É necessário que esse sujeito não torne à nossa porta...
— Que vais fazer, Crebillon?
— Vou fazer uma cena tremenda com o esqueleto do meu rival. Justamente
João de Deus aparecia com a ossada nos braços e Crebillon sentou-a em uma das
cadeiras diante da porta. Quando eu romper aos berros é bom que vocês aparentem
desgosto e tristeza, lamentando o meu estado, mas de longe. E deixem-me com o
homem. Vai, João. Manda-o cá em cima.
A campainha retiniu desesperadamente.
— E se o meco não acreditar na farsa, Crebillon?
— Dou-lhe os 4$600 por conta.
— E se ele não aceitar?
— Esgano-o! O negro ia saindo quando Crebillon o chamou: Ouve cá, João.
Hás de dizer ao homem, para preparar-lhe o ânimo, que estou na minha crise,
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compreendes? O patrão está hoje na sua crise nervosa. É bom que o senhor não se
aproxime muito. Entendeste? Crise nervosa.
O negro repetiu, torcendo o boné lustroso:
— Crise nervosa...
— Isso! Vai com Deus.
O negro desapareceu. A campainha retinia sem descontinuar. Quando as
escadas rangeram Crebillon, reconhecendo o inimigo, pôs-se a saltar no quarto, nu,
ululando e brandindo a faca que reluzia. João de Deus não se atreveu a aproximar-
se, mostrou ao homem o quarto e ficou à distância respeitável esperando o
desenlace da cena. Crebillon rugia sempre e o homem olhava, esgazeado, as
imensas salas desertas que apenas o sol ornava e o vozeirão tremendo do
abolicionista enchia atroadoramente.
— Ah! Miserável! Grandíssimo biltre! Pensas que estou saciado? Ainda não!
A morte não basta! Vou agora esconder os teus ossos... Quero ver no Juízo Final a
cara da tua carne quando os anjos do Senhor tocarem a reunir... Hás de procurar os
ossos debalde. Vou escondê-los no forro da casa... Lá em cima!
O homem, ouvindo palavras tais, andava com os olhos de um lado para
outro como se procurasse alguém, quando Ruy Vaz apareceu demudado,
preocupado, metendo os dedos pelos cabelos e, dando com o carroceiro, perguntou-
lhe se queria alguma coisa.
— Sim senhor: vim receber a conta da mudança.
— Ah! Sim... Mas em que dia veio o senhor!
Crebillon urrava, sapateava, atirava botinas ao chão e falava insanamente
em Juízo Final, em Clube dos Fenianos, em angu de preta mina, em Angélica da
Costa...
— Ah! Meu amigo, está ouvindo?
— Sim, senhor. O preto disse-me que o patrão está algum tanto
incomodado.
— Incomodado? Está perdido, irremediavelmente perdido. Já mandamos
uma comunicação ao Hospício para que o venham buscar. Está impossível. Voltou-
lhe a crise.
— Ah...
— Ele julga-se a Via-Láctea e diz que veio parar na terra porque um homem
perverso, esse tal que ele injuria...
— O homem está lá?
— Não, quem está lá com ele é o esqueleto.
— O esqueleto do homem...?
Não houve tempo para mais explicações. Crebillon saia do nu, arrastando o
esqueleto e brandindo a faca. O carroceiro, logo que o viu, fez menção de fugir, mas
Crebillon dando com ele, pôs-se a ranger os dentes, a arregalar os olhos e era
horrível de ver-se-lhe o carão purpúreo com a pêra ruiva que a chama invertida de
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um grande círio. Sem tirar os olhos do homem, encostando o esqueleto à parede, foi
passando a lâmina da faca no braço nu e, feroz, agachado, avançava pé ante pé. O
homem estava lívido e tremia quando Ruy Vaz, querendo interceder por ele, com
uma seriedade imperturbável, falou a Crebillon:
— Ouve, Thomaz, ouve... Sou eu, teu amigo. Então não me conheces?
— Este não é o Serafim? O dono dos ossos? É ele mesmo... Ah! Miserável,
que fizeste de Maria Angélica? Onde está Maria Angélica? Pensas que me
escapas? Olha, os teus ossos já estão ali, agora o resto... Eu preciso da tua carne
para cobrir o esqueleto que está com frio. Ergueu os braços e uivou: Ah! Maria
Angélica...! Vais ser vingada! Serafim está aqui! Vou picá-lo em bocadinhos... Em
bocadinhos, Maria Angélica, em bocadinhos!
De repente, dando um salto feroz, ia deitar a mão ao homem e tê-lo-ia
alcançado se ele não deitasse a correr, precipitando-se escada abaixo, aterrado.
Crebillon acompanhou-o até o patamar, brandindo a faca e urrando os nomes
misteriosos de Serafim e de Maria Angélica, mas a porta bateu com violência e João
de Deus, que fora espiar o homem, subiu a anunciar que ele havia desaparecido.
— Deste estamos livres. E foi o esqueleto que o aterrou.
— Similia similibus curantur, disse o Toledo saindo do quarto para apanhar a
ossada libertadora. E o dia passou-se todo em comentários alegres. Para a tarde,
porém, com o roxo e melancólico crepúsculo e com a fome, a alegria foi-se
dissipando e a casa tornou-se um palácio de suspiros.
Os dias corriam e Crebillon ia protelando a compra dos móveis até que, uma
noite, recolhendo-se muito cedo e à pressa, anunciou nova viagem à Bocaina para
dar cabo de uma corda de porcos que devastavam a roça de milho de Fontainha. Os
rapazes revoltaram-se, o próprio Toledo, sempre brando, teve um assomo de
energia. Onde iriam eles arranjar trezentos e cinqüenta mil réis, que em tanto
importava o aluguel mensal do palacete?
E Ruy Vaz falou por todos:
— Tem paciência, Crebillon, deixa lá os porcos, vamos cuidar de coisas
mais sérias. Tu não hás de querer que soframos aqui um vexame. O fim do mês está
aí e, além das muitas vergonhas que curtimos calados, queres ainda que sejamos
expulsos desta casa, onde nos meteste seduzindo-nos com promessas de
tranqüilidade e fausto? Eu já sou vítima de comentários vis aí pelas vendas.
— Tu?!
— Eu, sim. João de Deus que o diga.
— Mas que comentários? Por que a casa não tem mobília?
— Em parte, ou antes — é essa a razão porque, se tivéssemos mobília, não
traríamos as janelas sempre fechadas como as trazemos. Mas queres saber? Como
o Toledo sai quase sempre de manhã e só torna à noite, como tu, e eu sou o único
que sai às duas da tarde, afrontando os olhos da vizinhança, porque Anselmo
espera sempre a Providência em casa, sabes que dizem mim? Que sou um marido
terrivelmente ciumento, que saio deixando minha mulher trancada. E o interessante
é que descrevem essa criatura vítima do meu desmarcado zelo: loura, de olhos
azuis, pálida, muito infeliz e, quando desço, ouço vozes rancorosas: "Lá vai ele!...
Olha o carrasco!..." Tudo por quê? Porque não temos mobília e trazemos a casa
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constantemente fechada. A fama que essa falta de trastes me vai granjeando não é
das mais agradáveis e ainda queres que nos sujeitemos as injurias de um senhorio?
Tem paciência... Deixa os porcos do mato em paz e, se não podes mobiliar a casa,
dize francamente porque há mesmo trato de arranjar um quarto e transfiro-me. Aqui
não podemos ficar, num casarão, grande como uma cidade, com duas cadeiras,
várias antigüidades e três canecas de folha.
— Eu já disse que trago os móveis.
— Há um mês que nos prometes e, até hoje, só nos tens as três canecas
citadas.
— Mas querem vocês que eu roube? Hei de roubar? — clamou
desesperado. Se eu agora não tenho dinheiro, como querem traga mobílias?
— Mas, então, por que nos iludiste, Crebillon?
— Ora! Eu tinha algum dinheiro, mas como não dava para despesa,
empreguei-o em bilhetes de loteria. Saíram brancos. Ando infeliz, que queres? Ando
infeliz. Eu tinha vontade de fazer alguma coisa, mas a sorte foi-me adversa, aí tens.
— Ah! Querias arranjar móveis com a loteria?
— Então?
— Pois sim... E vais aos porcos?
— Vou. Não posso deixar Fontainha sozinho, com uma corda de caititus. Tu
não sabes o que é uma corda de caititus.
— Não sei nem faço grande empenho em saber. Mas decidamos: onde
queres que deixemos a chave da casa?
— Que casa?
— Desta.
— Pois vocês querem sair?
— Certamente. Amanhã mesmo.
— Por que?
— Porque o fim do mês está aí e nós não temos vintém.
— Mas eu tenho carta de fiança, homem de Deus.
— Embora, estamos decididos.
— Ah! Se estão decididos... Querem voltar para uma espelunca igual à da
rua Formosa?
— Talvez, desde que nela possamos trabalhar.
— E não podem trabalhar aqui?
— Não.
— Que falta?
— Tudo.
— Tudo! Já sei... Decididamente vocês não nasceram para a ordem. Quem
diz que em uma casa como esta não se pode trabalhar, meu amigo.
— Mas que temos nós aqui? Não podemos comer aqueles peixes, aquelas
lebres e aquelas admiráveis frutas que estão, em pintura, na sala de jantar.
— Vocês não têm comida em casa porque não querem. Não têm o fogão?
Não está aí o João de Deus?
— E o resto?
— Manda-se vir da venda.
— Quem paga?
— Arranja-se um caderno.
— Sim, arranja-se um caderno... E depois?
— Depois? Deus é grande!
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— Ah! Deus é grande. Pois, meu caro Crebillon, apesar da imensidade de
Deus e de todo o conforto desta casa, se vais aos porcos da Bocaina.
— Vou, não posso abandonar um amigo como Fontainha.
— Pois então, quando voltares, procura a chave da casa no teu charuteiro.
— Pois sim, disse o abolicionista imperturbavelmente E vocês para onde
vão?
— Havemos de achar um quarto.
— Um quarto para todos?
— Para os que quiserem.
— Pois eu vou aos porcos, é uma questão de amizade. Por outro não iria,
mas tratando-se do Fontainha não hesito.
— Então estamos combinados, fica no charuteiro a chave.
— Sim, no charuteiro. E não te esqueças de deixar o teu endereço, porque,
enfim, não nos apartamos brigados.
— Não.
— Eu já esperava esse movimento. Vocês não podem viver sem as
raparigas e como eu exigi moralidade...
— Sim, muita moralidade. Guerra à carne, a de vaca inclusive.
— Sim, sim, isso agora é a desculpa. Têm razão, são rapazes, é natural que
amem.
— E que almocemos, pelo menos.
— Pois sim. Então no charuteiro?
— Sim, no charuteiro.
— Mas vocês hão de arrepender-se. Banheiro e fogão como os desta casa
vocês não encontram nesta cidade.
— Quanto ao banheiro posso emitir o meu juízo: acho-o excelente. Sobre o
fogão nada adianto: não lhe conheço os préstimos.
— Pois é uma peça sem rival.
— Pode ser, mas prefiro um simples fogareiro de espírito, desde que tenha
na trempe uma frigideira a rechinar. Bem, adeus. Boa viagem.
— Obrigado. No charuteiro, heim?
— Sim, no charuteiro.
Tornando à sala, enfurecido, Ruy Vaz comunicou aos companheiros a
resolução inabalável do presidente:
— Pois que vá aos porcos e ao diabo! — rugiu Anselmo, eu é que aqui não
fico mais um dia.
— Nem eu! — disse o Toledo. Estou magro, tenho sofrido muito. Vou para a
casa de meu primo. Ele tem insistido comigo para que ocupe um chalezinho do
jardim. Tenho relutado, porque não gosto de dever favores, mas também com a vida
que levo, dentro em pouco estou tísico. Não vale a pena.
— Pois. eu amanhã, bem cedo, vou ver o cômodo que há ao lado, na casa
dos alemães, disse Anselmo.
— Há algum cômodo? — perguntou Ruy Vaz.
— A sala da frente e um quarto.
— Toma-se. E o preço?
— Não sei.
— Vamos
mandar João de Deus indagar?
— Sim, vamos. Se servir-nos podemos fazer a mudança amanhã mesmo.
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— Serve com certeza. João de Deus! Ó João de Deus!
João de Deus, que andava melancólico, sempre encolhido pelos cantos, a
alisar o lombo do gato que era a única criatura que, naquele imenso palácio, vivia
regaladamente, engordando, porque não lhe faltavam ratos, não em casa, dali
haviam eles desertado, cansados de esperar que se enchesse a despensa, como
dantes, nos dias prósperos do titular, mas na vizinhança, apareceu lento e mole e,
sem anunciar-se, ficou à espera na porta, mudo e cabisbaixo, retorcendo o boné
lustroso. Ruy Vaz ia de novo bradar por ele, quando o viu naquela atitude
desconsolada de mártir, com os olhos no soalho.
— João, vai aqui ao lado e pergunta ao homem em que condições aluga os
aposentos que tem.
O negro saiu silenciosamente e os rapazes, que a cólera alucinava,
atiravam-se a Crebillon atribuindo-lhe todos aqueles dias de miséria negra e vazios,
porque nem trabalhar podiam, com idéia de que teriam conforto e abastança,
esperando, a todo o instante, a chegada dos móveis e dos víveres, sem que nada
viesse, obrigando-os a trazerem a casa modestamente fechada para que os vizinhos
não vissem a nudez vergonhosa dos salões, que já começavam a tressuar umidade.
Ruy Vaz, que não desestimava o presidente, conhecendo-o do Norte,
defendeu-o, aceitando parte da responsabilidade:
— Eu devia prever tudo quanto se tem dado porque conheço Crebillon. É um
sonhador, meus amigos: tem a alma de D. Quixote. No Norte a sua fama é grande,
todos lhe conhecem a história, que tem lances heróicos, porque esse visionário
possui um coração excelente. Foi rico, herdou terras pingues de cereal e pasto. Com
elas recebeu escravos, mas não querendo desmentir a tradição de humanitário, que
o seu procedimento anterior havia criado, porque, antes que aqui surgissem
abolicionistas, já Crebillon andava em jangadas desviando negros para o Ceará e
escrevia nos jornais contra os "senhores", que o tinham como demagogo e várias
vezes assalariaram capangas, que ele teve de repelir a tiro e à faca, libertou todos
os negros certo de que, depois de tão espontânea generosidade, eles não o
abandonariam.
Enganou-se. Em menos de um mês, não tinha em casa uma crioula que lhe
fizesse o jantar, sendo forçado a tomar camaradas para que as terras não fossem
invadidas pelo mato daninho e os rebanhos não aberrassem à falta de pastor.
Depois, com idéias de beneficiar as terras, vendeu todo o gado e comprou
maquinismos complicados, que ficaram ganhando ferrugem ao tempo por não haver
quem os montasse, porque o dinheiro era escasso.
Desesperado, então, vendeu o sítio com tudo que nele havia e, abotoando-
se com o dinheiro, desceu à capital, onde fez correr o anúncio de um jornal
tremendo, que seria redigido por ele e por outros parciais das suas idéias, jornal
republicano, abolicionista, anticlerical e nativista, com o retumbante título de A
Bomba.
Vinte números estouraram escandalosamente na capital. Uma noite, porém,
sujeitos armados e mascarados, justamente quando as páginas desciam para o
prelo, invadiram as oficinas afugentando os poucos homens que nelas havia e,
derramando petróleo, lançaram fogo a tudo.
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Na manhã seguinte, do escritório e oficinas de A Bomba, só havia cinzas e
chumbo derretido; a mesma máquina estava desconjuntada e inútil. E Crebillon,
quando chegou à sua tenda de trabalho, lançando os olhos pelas vigas
carbonizadas, trepou ao balcão, que ainda fumegava e, heróico, sublime com a pêra
relampejando, anunciou à multidão que A Bomba, como a Fênix da fábula, havia de
renascer das cinzas. Efetivamente, três dias depois, explodia de novo o terrível
jornal, saindo de um escritório, que o resistente panfletário guarnecera
belicosamente como uma praça de guerra.
No artigo com que ressurgiu enumerou os apetrechos que armazenara. A
lista enchia meia coluna larga e desentrelinhada, e continha de tudo, desde o
montante pesado até o cartucho de dinamite; desde a lança até o cacetete e havia
um pequeno canhão com que ele contava arrasar a cidade, se a farândola tornasse
a ameaçá-lo no seu reduto.
— A polícia, que não podia permitir esse arsenal, porque o alarmando a
população, ia provocando um êxodo, intimou-o a entregar as armas. Crebillon
resistiu e a autoridade teve de invadir o escritório, onde apenas encontrou, fechado
numa gaveta, um velho revólver e, resmungando a um canto, com o cachimbo nos
beiços, um negro cambaio que era o virador do prelo. Crebillon sofreu um golpe rude
quando soube que a polícia lhe havia varejado a casa antes que ele houvesse
transportado para o escritório as velhas armas que adquirira.
A notícia do encontro do revólver e do preto velho foi ironicamente
comentada pela imprensa conservadora e pelo povo e Crebillon, sem a lenda,
sentiu-se desanimado para prosseguir na sua campanha regeneradora. Reunindo,
então, a fortuna começou a percorrer os sertões do Brasil.
Subiu o Amazonas, penetrando, com a sua carabina e seis índios do
Madeira, selvas nunca trilhadas pelo homem civilizado e descendo, ora por mar, ora
em ubás, pelos rios largos, chegou ao Rio de Janeiro de onde seguiu para o Sul,
atravessando a região fria e desabrigada do minuano.
Lá teve amores e lutas, abalou com uma senhora que lhe anelava o
cavanhaque e tocava Schubert em cítara e perdeu-a no Paraguai, de febre. Ainda
conserva o retrato e um dente dessa criatura formosa que se chamava Diana.
Desgostoso, pensou em fazer-se monge, mas a idéia de raspar o viçoso e
flamejante cavanhaque, que ele chama a sua "estalagmite", fez com que, em tempo,
recuasse do claustro e começou a negociar em tudo. Foi a sua última loucura
porque, em pouco tempo, ficou reduzido, sendo obrigado a viver de escritas
comerciais, com uma miserável retribuição que não lhe dava para ostentações,
obrigando-o a andar retraído, equilibrando a despesa, sem amores, sem aventuras,
sem carabinas, sem cães.
É um sonhador. Estou certo de que, se tivesse alguma coisa, não se limitaria
a trazer o que inventariou no seu programa, mas muito mais. Infelizmente, porém,
está esgotado, sem vintém. Passa fome conosco, mas sempre a arrotar grandezas.
Pensam vocês que esse Fontainha existe? Puro sonho. Nunca houve na
Bocaina onça cotó nem porcos do mato, mas para que o havemos de vexar com o
sarcasmo da nossa incredulidade? É o prazer do pobre homem contar aventuras
terríveis: que matou, que esfolou, que fez e aconteceu... Conta com graça, que mal
nos pode vir disso? Bem sei que nos transtornou a vida, mas não me revolto,
lastimo-o. Mais do que nós vai ele sofrer. É um tropical influenciado vivamente pelo
sol, homem de miragens, visionário — acompanharia D. Quixote de bom grado,
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suportando penúrias e tormentos com mais entono heróico do que o próprio
cavaleiro andante.
É preciso aceitá-lo tal qual ele é. Eu, que o conheço, quero que vocês o
tratem com acatamento. Agora, por exemplo, ele está como um enfermo, sofre
porque começa a entrar no real, vê que não pode cumprir a sua palavra e espanta-
se de a haver dado e intimamente está, talvez, perguntando a si mesmo: "Mas como
fui eu prometer a estes rapazes mobília e manutenção se estou a tinir?" E sabem lá
vocês o sofrimento que isto é? Nada ganhamos com mau humor. Temos de sair,
saiamos em paz e alegres para que o pobre Crebillon não sofra.
— E não tenho queixa dele, disse o Toledo.
— Nem eu, ajuntou Anselmo.
— É um cerebrino, que culpa tem, coitado? Diz que vai amanhã aos porcos
na Bocaina... Com certeza não tem no bolso um tostão para ir à cidade. Conheço-
o... Acendeu um cigarro e, só então, deu pela demora de João de Deus. E João de
Deus que não vem!
Da sombra partiu, muito lenta, a voz enfraquecida do negro.
— Estou aqui.
— O rapaz, andas misterioso. Então?
— O homem aluga por oitenta mil réis a sala da frente e um quarto grande.
— E as condições?
O negro baixou os olhos e balbuciou:
— Não tem, não, senhor.
— Dinheiro adiantado ou carta de fiança?
— Não perguntei não, senhor.
— Pois sim.
Anselmo, que não tirava os olhos do negro, vendo que ele palpava a testa e
apertava-a, perguntou:
— Estás sentindo alguma coisa, João?
— Eu? Vou amanhã para a Santa Casa, resmungou, retirando-se
lentamente, com a mão à fronte.
— Que diabo terá João de Deus?
— Ora! Que há de ser?
CAPÍTULO IX
Na manhã seguinte, fresca e luminosa manhã, depois do banho, o último
sob o jorro copioso da calha que rivalizava com Paulo Afonso, Ruy Vaz e Anselmo,
vestindo as calças menos surradas, foram bater à casa vizinha. Quem lhes havia de
aparecer? Uma mocinha loura, alva e franzina. Duas rosas ornavam-lhe as faces
duma pele acetinada e tênue, sob a qual como que se via o sangue circular em
retículas azuis. Os olhos, duas turquesas, pensativos sob as compridas pestanas
curvas, tinham uma entristecida melancolia e pareciam lavados em lágrimas. Os
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cabelos eram de ouro e brilhavam em duas tranças fartas, o colo cheio ondulava e a
voz era lenta e doce como o som das citaras.
Descerrou a pequenina boca fresca e sangüínea e, firme, com o seu avental
imaculado, perguntou: "Se queriam alguma coisa?" Anselmo, arroubado, já
cantarolava o:
Salve dimora casta e pura!
Foi Ruy Vaz, mais frio e resistente ao amor, quem respondeu:
— Sim, senhora. Desejamos ver os cômodos anunciados.
Gretchen acenou de leve com a formosa cabeça, onde havia mais ouro do
que em todo o Reno, no tempo dos deuses, e grave, em passo sutil e airoso, chegou
a uma porta, deu volta à chave convidando, com um gesto cheio de divina
majestade, a entrarem. Ruy Vaz passou primeiro e Anselmo seguiu-o com o coração
abrasado. Não viu o estreito corredor sombrio, nem o quarto acanhado, nem a sala
que tinha o papel desprendido, voando ao vento e buracos pelos cantos e placas de
zinco pregadas no soalho esfregado. Ruy Vaz examinava como um mestre de obras,
elevando os olhos da barra ao teto, de onde a pintura esborcinada, escorchada se
destacava em lâminas. Anselmo via tão só a face branca e as rosas, os olhos azuis
e as tranças, a boca breve e rubra e o colo que arfava. Estava longe, andava em
Goethe, pelo Fausto...
Salve dimora casta e pura...
Ruy Vaz trincou o bigode e, pondo os olhos negros no rosto puríssimo da
moça, ponderou, sorridente:
— É caro...!
Ela, muito séria, encolheu os ombros e foi abrir as janelas. O sol entrou
iluminando a sala, pondo uma grande alegria nos aposentos e brilho nos cabelos de
Gretchen. A aragem fresca levou o cheiro de umidade deixando um leve aroma de
rosas.
— Caro não é, disse Gretchen, como espantada.
— Não é, concordou Anselmo.
— Com café de manhã...? — aventurou Ruy Vaz e ela, sorrindo, com muita
vivacidade e um fulgor novo nos olhos:
— Si, si... com café de manhã.
— E o banheiro? — perguntou o romancista.
— Si, disse ela, no quintal; banheiro do chuveiro; elevou o braço e fez
graciosamente o gesto de quem puxa uma corda.
— E as condições?
— Como queira. Não faz questão.
— É a senhora quem aluga?
— Não, papai. Mas ele não está. E encarando Ruy Vaz:
— O senhor não mora aqui ao lado?
— Sim, senhora. Tomamos esta casa para um amigo que se casou no
Norte. Ele devia chegar até o fim do mês. Anteontem, porém, telegrafou-nos
comunicando-nos que resolvera passar a lua-de-mel nas margens do Reno, no
castelo de um parente da mulher.
— Nas margens do Reno? — exclamou Gretchen maravilhada.
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— Sim, senhora: nas margens do Reno.
— Muito bonito! — disse ela abrindo os olhos serenos.
— Muito bonito. A senhora compreende que dois rapazes num casarão
como esse...
— Ah! Si... si... Seu nome?
— Ruy Vaz.
Ela repetiu lentamente, sonoramente:
— Ruy Vaz. E o senhor?
— Anselmo Ribas.
Gretchen sorriu e, como nada mais tivesse a perguntar, ficou a brincar com
uma das tranças.
— Bem; então podemos fazer hoje a nossa mudança? — disse Ruy Vaz.
— Sim, senhor. E, tirando do bolso do avental uma pequena chave,
entregou-a ao romancista dizendo com um sorriso adorável: Só tem uma.
— E basta, respondeu ele. Então até já. Deu alguns passos para o corredor,
mas voltou-se amável: A senhora...?
E ela, compreendendo, avançou a cabecinha, com um dedo no colo farto:
— Meu nome?
— Sim, senhora.
— Carlota.
Anselmo estremeceu lembrando-se de Werther. E, quando estendeu a mão
a Carlota, sentiu um frêmito percorrer-lhe o corpo, que vibrou de amor. Carlota! E,
saindo, cantarolava apaixonadamente:
Salve dimora casta e pura.
Quando entraram no palácio João de Deus, macambúzio, passeava
lentamente pelo corredor e o gato ia e vinha miando, a esfregar-se-lhe nas pernas.
— João de Deus, tem paciência, estamos com a corda na garganta, e só tu
nos podes salvar.
— Eu? Ah! Seu doutor, eu estou que não posso comigo. É para ir à cidade?
— Não, mais perto: aqui ao lado com os nossos trastes.
— Carregar!!?
— Sim, João, tem paciência.
O negro tirou uma ponta de cigarro detrás da orelha e, com um suspiro, foi
subindo as escadas vagarosamente. Os dois rapazes desceram ao jardim e
Anselmo, encostando-se à barra fixa, suspirou, melancólico, como se previsse
desgraças:
— Ah! Meu caro Ruy... essa casa é um perigo.
— Perigo? Perigo por quê? — e o romancista ia catando as rosas e as
gardênias do jardim que a erva crescida asselvajava.
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— A mocinha impressionou-me. Viste que lindos olhos? Não lembra a
Margarida?
— Que Margarida?
— Do Fausto...
— Ora! Tu sofres de amor crônico, crônico e literário. Na primeira mulata que
te aparece vês Sacuntala. Já andaste a pensar em uma Haydéa que cozia para o
arsenal; viste uma Morna na Praia Formosa; escreveste um conto à Miranda e agora
estás suspenso dos olhos de uma Margarida que aluga cômodos. Isso é doença.
— Mas que queres?
— Quero que não me aborreças com os teus amores. Olha, se vais para lá
com idéias de idílio, estás arranjado: os alemães são ferozes. Já é tempo de
tratarmos da vida a sério.
— Eu vou escrever e vou ver se o Heller monta A Profecia.
Qual Profecia! Cuida de outra coisa.
— Achas, então, que ele não monta a minha peça?
— Garanto. A literatura dramática, dramática é um modo de dizer e literatura
é eufemismo, mas admitindo a expressão, a literatura dramática entre nós está
monopolizada por um pequeno grupo. Nem Shakespeare, se ressurgisse,
conseguiria impor-se aos empresários. A tua peça há de morrer no arquivo. Cuida
de outra Coisa. Que fizeste do romance?
— Não sei. Com o primeiro capítulo João de Deus andou tapando fendas
nos vidros, em casa de Dona Ana; Amélia cortou o segundo para fazer papelotes...
— Por que não escreves contos? Tens tantas idéias.
— Mas quanto pode dar um conto?
— Um conto? Nada.
— Então não pagam?
— Não. Se queres ganhar alguma coisa emprega-te como noticiarista, mas
vê lá: não digas que fazes literatura.
— Mas isto não é país! — rugiu Anselmo.
— É a terra afortunada, meu amigo. Quem nos governa é um monarca
letrado que traduz Petrarca e Byron e comenta Platão no original.
— Mas de que hei de eu viver então?
— Sei lá!
— Mas tu ganhas.
— Ah!, Sim: escrevo um romance de seiscentas páginas e vendo-o por
oitocentos mil réis. Achas que vivo...? Que lindas rosas, heim?
— Lindas, concordou Anselmo distraído. Mas tornando logo ao assunto:
— E se eu fosse pedir colocação num jornal...?
— Tens empenhos?
— Não.
— Então, meu amigo...
Ruy Vaz, com um esplêndido ramo de rosas, encaminhou-se para a sala de
jantar deixando Anselmo no jardim, preocupado, a pensar na vida que lhe aparecia
temerosa e nos olhos doces de Carlota, azuis como dois pequeninos céus cheios de
esperança, com um Deus em cada uma das pupilas.
— Vem daí, homem. João de Deus já nos está mudando.
— E não é que estou apaixonado mesmo!? — murmurou o estudante
encaminhando-se lentamente para a sala de jantar.
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CAPÍTULO X
João de Deus, sempre gemendo, ia passando os trastes para casa de
Gretchen e, ao meio dia, já estavam armadas, no quarto acanhado, as camas de
Anselmo e de Ruy Vaz e as duas mesas, o divã e as cadeiras guarneciam a sala no
meio da qual foi estendido o tapete com a cena lúbrica do serralho.
Toledo quis ver a instalação dos companheiros e achou-a confortável,
sentindo, porém, não poder acompanhá-los, porque, como estava em vésperas de
exame, ia, com o seu esqueleto, para a casa do primo, habitar o chalezinho que lhe
fora oferecido com a comida, à sombra quieta do pomar.
Crebillon não aparecia. Teria ido, como dissera, dar cabo dos monadíssimos
porcos que devastavam a roça de Fontainha? Eles não podiam ficar em conjecturas
à porta do quarto do abolicionista — tinham de arranjar os novos aposentos e
despediram-se da casa com a tristeza com que Boabdil abandonou Granada.
Adeus, salões incomensuráveis, largos e desafrontados como planícies!
Adeus, vastíssimos e arejados quartos! Adeus, sala de jantar que faria as delícias de
um voluptuoso Apício! Adeus, fogão monstruoso e flamejante; adeus, cachoeiroso
banheiro, jardim redolente, adeus! O negro, fidelíssimo e resignado, no momento em
que os dois rapazes despediram-se, pigarreou comovido.
— João, não te esqueças de nós; aparece de vez em quando porque no dia
em que a sorte nos sorrir, tu, que tão dedicadamente nos acompanhaste nos tempos
amargos da desventura, hás de participar do sorriso da fortuna. Por enquanto não
podemos demonstrar generosamente a nossa gratidão, mas não vêm longe os dias
prósperos: confia e espera.
João, de olhos baixos, ouviu sem palavra e, como os rapazes lhe
estendessem as mãos, o pobre negro ficou tão lisonjeado que, apesar da enxaqueca
e da fome, sorriu desvanecido.
— Adeus, Toledo.
— Adeus, Anselmo. Adeus, Ruy.
— Aparece.
— Sim, hei de aparecer. E abraçaram-se.
— Ficas à espera de Crebillon?
— Não, mudo-me amanhã. João de Deus toma conta da casa.
— Eu? — exclamou o negro aterrado. E se o dono vier?
— Não há perigo, João.
— Não, nhonhô, eu tenho muito medo de negócios com a polícia. Para
acompanhar vosmecês, estou pronto, mas para ficar aqui sozinho, isso não.
— Quem sabe se tens medo de almas do outro mundo?
— Eu! Não, senhor: tenho medo da polícia. Sozinho, não senhor. Com
vosmecês tudo está direito, mas comigo, um pobre preto velho... O homem chega aí,
bate língua e me atira no cosmorama. Deus me livre! Sozinho, não!
— Então com quem há de ficar a chave?
— Fica na venda.
— Isso não.
Para pôr termo à discussão Toledo resolveu demorar mais dois dias na casa
à espera de Crebillon e, depois de novos abraços, trazidos até à porta da rua pelo
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anatomista, pelo negro e pelo gato, os dois partiram saudosamente para a casa
contígua.
Arranjando as estantes Ruy Vaz começou a fazer considerações literárias.
— Vê tu, se um de nós fizesse aparecer num romance esse misterioso João
de Deus, a crítica havia de bradar contra a inverosimilhança, porque, deixa lá! Esse
negro é fantástico.
— Está ali um famoso idiota ou um santo.
— Um santo, Anselmo, um virtuosíssimo santo.
— Receberá ele os sessenta mil réis do ajuste?
— Sessenta mil réis! Crebillon não daria isso por toda a costa da África.
— Pobre João de Deus!
— Paupérrimo!
Bateram à porta do corredor. Anselmo foi abrir: era Carlota com uma salva
na qual fumegavam cheirosamente duas xícaras de café. Anselmo sentiu violenta
pancada no coração como se houvesse estourado um dos vasos vitais e, trêmulo,
muito agradecido, tomou a bandeja das mãos delicadas de Carlota; ela, porém, para
poupar-lhe o trabalho, relutou e, entrando, consentiu apenas que ele retirasse a
xícara que lhe cabia indo, ela mesma, oferecer a outra a Ruy Vaz.
O romancista, que estava de cócoras arranjando os últimos raios da estante,
ergueu-se alvoroçado, e, chuchurreando o café, que estava delicioso de gosto e de
aroma, dirigia amabilidades a alemã, confessando que começava a achar
encantador o aposento e propício ao trabalho com aquele silêncio imperturbável da
rua e da casa.
— Os senhores são estudantes?
— Não, senhora: jornalistas. Dizemos jornalistas porque no Brasil o nosso
mister não tem ainda classificação. Somos forçados a tomar de empréstimo à
imprensa um título de apresentação. Em verdade nada temos de jornalistas:
fazemos romances e contos e lá de vez em quando um folhetim.
— Ah! Fazem romances?
— Sim, senhora.
Carlota lançou a Ruy Vaz um olhar cheio de incredulidade.
— Como são os seus romances?
— Naturalistas.
— Ah! E o senhor também? empertigou-se:
— Não, senhora; eu sou romântico.
— Ah! Romântico... Aqui os senhores podem fazer muitos romances.
— Pois não.
— Bem, até logo.
— Até logo, miss.
Carlota tomou a bandeja com as duas xícaras escorropichadas e foi-se
graciosamente, deixando um leve perfume na sala e no corredor.
— É amável, heim?
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— Amável! Pois sim. Pois não percebeste que essa gentileza foi um
pretexto!
— Pretexto... para quê?
— Para ela fazer o inventário dos nossos haveres, que são a fiança dos
oitenta mil réis mensais. Pensas, talvez, que a pequena quer começar o flirt com um
de nós? Estás enganado — o que ela quer é garantir-se. Enquanto falava, os seus
lindos olhos azuis; mais avaros do que dois judeus, iam examinando
minuciosamente os móveis, os livros, os quadros e tudo mais que aqui há e
pesando, como conchas de balança, o valor de cada objeto. Ah! Meu amigo, essas
criaturinhas românticas não têm alma de Jéssica, têm a usura de Shylock. Onde
pensavas que existia amabilidade, só havia ronha e muita! Naquele peito farto não
há coração: há uma bolsa. Garanto-te que essa suavíssima Carlota saiu daqui
sabendo, melhor do que nós, o que há nesta sala e naquele quarto. Não te fies em
olhos azuis nem em vozes que lembram citaras — essas criaturinhas são feitas de
ganância e de hipocrisia. Sob essa aparência mística de anjos rafaelinos, há almas
asquerosas e repugnantes como as figuras de Goya.
— E tu que és pessimista!
— Enganas-te: adoro a vida e agradeço-a a quem ma deu. Nunca me
ouviste blasfemar, nunca me ouviste pedir a morte desesperado e enfarado do
mundo — acho a criação maravilhosa, mas, meu caro, mestre Epicuro entendendo
que o prazer é a base de todo o bem, não desconheceu a dor, não suprimiu as
perfídias nem negou a existência do mal. A grande ciência do viver está justamente
em saber a gente joeirar o seu trigo e escolher os frutos que deve saborear, para
que lhe não suceda achar veneno onde só queria encontrar o sabor delicioso.
A rosa é uma maravilha de composição, é a forma, é a cor, é o aroma, mas
se a colheres estabanadamente, podes espetar-te nos espinhos que a defendem;
sábio é o que a obtém sem mágoa. Eu não falo mal de Gretchen, mostro apenas
que ela tem espinhos, porque tenho grande prática da vida... e conheço as rosas.
Hás de ver. Estás enamorado, quem te leva é o coração. És como um cego que vai
guiado por um infante; hás de sentir a pancada quando ele levar-te pelos labirintos
estreitos. Pensas, com certeza, que ela está, como a sunamita, a enlanguescer de
amor...? Pois sim. Mete dinheiro na bolsa para o fim do mês. Mete dinheiro na bolsa.
Anselmo amuou. Não podia acreditar que criatura tão formosa e delicada
fosse capaz de representar o indigno papel de arroladora de móveis. Via-a meiga,
amável, carinhosa, mas, infelizmente, não durou muito a ilusão.
Dois dias depois de se haverem instalado, à tarde, puseram-se os dois a
discutir o entrecho de uma revista de ano, porque Ruy Vaz entendia que era inútil
trabalharem numa peça emocional, como queria Anselmo, um drama forte no qual
jogassem paixões e aparecessem, sobre um fundo da vida social, caracteres
minuciosamente estudados.
— Meu amigo, façamos uma revista. Não temos empresário nem público
para a Arte. Onde entendes que deve entrar, com sutileza, o escalpelo da análise,
metamos um ruidoso adufe; em vez do diálogo brilhante, demos um rondó brejeiro;
em vez do lance dramático arranjemos um jongo, e teremos aplausos e o principal.
O nosso teatro não é o que pensas. Leste nos críticos teatro é uma escola de Arte e
de moral... isso não diz conosco. A barraca de Nicolo Musso, de que fala Hoffmann,
onde representou Salvador Rosa, valia mais do que qualquer dos nossos teatros,
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que não são outra coisa mais do que casas bufas e de erotismo disfarçadas sob
lantejoulas.
Quais são os nossos primeiros atores? São os que mais impressionam pela
dicção, pelo gesto adequado e comedido, pela sobriedade da expressão, pela
naturalidade? Não, são os mais palhaços, os mais grotescos. Tal, é grande porque
deforma o rosto em máscara de sânie; aquele outro faz delirar a platéia com uma
frase decomposta, com um gesto indecoroso ou com um meneio impudico.
Colaboram com os autores, os libretos são apenas indicações, a obra teatral é feita
no palco. O escritor dá o esqueleto sobre o qual os atores atiram a imundície a que
chamam "graça" e, com razão, porque o povo ri. As nossas primeiras damas, quais
são elas? São as que melhor interpretam? Não, são as mais bem feitas e as que se
desnudam com mais impudor. Quando ouvires dizer, tu que ainda não conheces os
segredos e a gíria dos bastidores: "Fulana é a artista de mais talento dos teatros",
convence-te de que a citada estrela é a mulher de pernas mais grossas e não faz
questão de as mostrar ao público lascivo. As ovações delirantes são feitas à nudez,
as flores que juncam os palcos vão com direção aos leitos. E as artistas conhecem
tão bem o seu público que não dão um passo em cena que não seja requebrado e
garantem as peças com saracoteios. Quando anunciarem a queda de uma dessas
moxinifadas, que dão aos seus autores o título de "laureados", podes dizer, com
certeza, que os interpretes estavam reumáticos e por isso não puderam
desconjuntar-se.
O teatro nacional assenta sobre as cadeiras das mulheres. A nossa arte é
uma saturnal com fogos de bengala e jongo. O jongo é tudo. Estamos
como os de
Israel em Faran — desanimados e desprovidos. Deixemos a Arte, que é a deusa
única e verdadeira, e adoremos o bezerro de ouro que é uma infâmia. Sejamos
romanos em Roma. Vamos escrever uma revista.
Assim falava Ruy Vaz quando bateram à porta. Era Crebillon, ia despedir-se.
Entrou um momento sem tirar o chapéu, lançou um olhar aos tristes aposentos e
exprobrou:
— Deixarem um palácio por este tugúrio... Francamente?.
— Mas aqui temos paz.
— E lá também teriam se houvesse ordem.
— E louça...
O abolicionista falou da sua caçada e, despedindo-se, ofereceu a casa em
que se havia aboletado — na rua da Assembléia, por cima de um armazém de
víveres. Vivenda principesca.
Correram serenos os primeiros dias. Anselmo abrasava-se em amor pela
meiga e loura Gretchen, que enchia a casa com a sua voz cristalina, quando, uma
manhã, Ruy Vaz, que se havia levantado muito cedo para corrigir as provas de um
romance, que vendera ao Garnier, vendo que ele não aparecia, chamou-o da sala
anunciando-lhe o sol. O estudante não respondeu. O romancista, impressionado, foi
ao quarto. Anselmo, muito encolhido, voltado para a parede, ardia em febre.
— Tu estás com febre, homem.
— Sinto-me muito mal; dói-me todo o corpo, não posso mover este braço.
— Mas que é?
— Linfatite.
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— Como diabo foste arranjar isso?
— Sei lá. Não conheces por aí algum médico?
— Conheço. Queres?
— Sim.
— Vou ver se encontro o Teixeira.
O estudante tiritava e encolhia-se, enquanto o romancista preparava-se para
ir ao banho.
— Queres que diga lá dentro que estás doente?
— Sim; é bom; pode acontecer-me alguma coisa.
— Qual! Isso passa com uma xaropada qualquer.
— Não é tão fácil assim. Já estive entre a vida e a morte com um acesso
destes. É coisa séria e dói como o diabo!
— Pois eu falo à Gretchen, à tua Gretchen.
— Sim.
E o romancista, tomando a saboneteira, atirou a toalha ao ombro e seguiu
para o banheiro.
Logo que o romancista saiu, Anselmo que, nesse tempo, andava
extasiadamente pelas sagas, todo enlevado no amor ideal de Carlota, pôs-se a
compor um poema como o de Tristão. E, para que nada lhe perturbasse o doce
sonho, nem a visão, nem o ruído, voltou-se para a parede fugindo ao real para
isolar-se no imaginário. Estava ali como o valente guerreiro depois da luta tremenda
com Morolt. A dor que sentia não era a de um abcesso que se ia formando, senão a
de uma ferida ganha no estupendo duelo em que se empenhara com o monstro,
mas, dentro em pouco, ela surgiria com o bálsamo paregórico, ela, a divina Isolda,
Isolda cuja voz abrandava a cólera das vagas, Isolda que fizera, com temeridade,
com que ele aparelhasse uma nau e saísse ao mar afrontando tormentas e a
desigual peleja com o gigante que era o terror e o flagelo da Irlanda.
Era tão suave aquele idílio espiritual que operava como um sedativo. As
dores iam cedendo e ele sentia um bem estar geral de corpo e de alma enquanto
devaneava, fugindo à realidade. Mas o romancista reapareceu, esfregando a cabeça
desesperadamente:
— Estás melhor?
— Ora! Pensas então que isto vai assim? Olha o cordão linfático; voltou-se
e, arregaçando a manga da camisa, mostrou o braço nu, empolado e rubro.
— Ó diabo! — exclamou Ruy Vaz. Isso até parece aneurisma. E deu-se mais
pressa em vestir-se, impressionado com o que vira.
— Falaste lá dentro?
— A pequena saiu com o pai. Está lá a velha, a Babel, confundindo línguas e
cerzindo meias. Não falei, porque estou certo de que pioravas se aquela nixe viesse
fazer-te companhia. Bem, agora fica tranqüilo um instante enquanto vou, num pulo,
À Rua da Glória ver o Teixeira. Acendeu um cigarro e, da porta quarto, perguntou à
meia voz: Tens dinheiro?
— Nada... E tu?
— Ora! Isso é que é o diabo. Tu não podes ficar sem remédios e inanido.
Como há de ser? Também para perder o dia na cidade à caça de uns cinco ou seis
mil réis magros e tu aqui abandonado não me parece razoável.
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— Olha, leva o meu Musset ao Cunha.
— Quanto pode dar o Musset?
— Não sei. Se queres leva também Os Miseráveis.
— Acho melhor. E que queres da cidade?
— Cigarros.
— Não, para o estômago.
— Sei lá! Não tenho apetite. Traze café.
— Bem, mas o essencial é o médico. Até já.
Ruy Vaz foi à estante de Anselmo, tomou os dois poetas, fez um embrulho e
partiu.
Só, o enfermo tornou ao sonho, mas não com a mesma tranqüilidade nem
com o mesmo gozo, porque outra visão surgia, por vezes, fazendo desaparecer a
meiga Isolda: era o casal unido dos velhinhos: ele morto, ela longe!... Ah! Se eles o
vissem naquela extremidade, em tamanho abandono, sem ter à cabeceira uma
pessoa amiga que dele cuidasse, que lhe refizesse o leito, que lhe chegasse aos
lábios escaldados o copo de água fresca, que pensasse na hora dos remédios, que
lhe preparasse a dieta! Entanto a mãe, sempre que praticava a caridade, dizia:
"Deixem-me dar aos que precisam... Tenho um filho, não sei que há de ser dele
neste mundo... Assim, se ele, algum dia, tiver fome ou frio, Deus há de deparar-lhe
alguém que lhe faça o mesmo que agora faço"... E ele ali estava sozinho, talvez
perto da morte, sem uma pessoa que lhe pusesse na mão a vela que ilumina a
sombra derradeira, sem uma pessoa que lhe ouvisse a última palavra, só, numa
casa estranha, entre gente estranha.
E julgava-se vítima da injustiça dos homens. Sentia que não era um nulo,
tinha grande confiança no seu espírito e como que pasmava de que o não julgassem
como merecia. As idéias fervilhavam-lhe no cérebro. Ali mesmo, sob aquela
formidável pressão moral, moral, sentia-se como um gênio e via as suas "criações"
desfilarem aereamente, vindo de todos os lados, baixando do teto, surgindo dos
cantos, saltando das paredes e ouvia um sussurro de vozes à distância, mas tudo se
desfazia, sumia-se. Tornava ao real, com a sensação de alívio de quem atravessa
um túnel e, depois da asfixia subterrânea, ganha, de novo, o pleno ar, a luz dos
campos.
Voltou-se no leito doridamente. Um relógio soou. Que horas seriam? A sede
começava a abrasá-lo. Passando a língua pelos lábios sentiu-os secos, gretados.
Ergueu-se com sacrifício, o braço encolhido, encheu o copo e bebeu avidamente,
conservando-se um de pé, defronte do espelho, a mirar-se.
Achou-se desfigurado, muito pálido, os olhos cavados, o cabelo crescido e
hirsuto; apalpou as pomas das faces passou a mão pela fronte derreando o cabelo
e, lentamente, tornou ao leito, mas uma sinistra idéia no espírito.
Estirando-se, passou e repassou a mão pelos ossos das pernas, moveu a
rótula, abarcou as coxas, tomou entre dois dedos o ápice dos ilíacos, depois, de
uma a uma, as costelas, tocou os ossos da face e das têmporas, circulou as órbitas
afundando o indicador, por fim pôs-se a arrepelar o couro cabeludo como se
quisesse sentir todo o esqueleto.
Era a morte — ela ali estava, debaixo daquela camada de carne que mal a
encobria. Teve medo, sentou-se no leito lançando olhares vagos, procurando ouvir
rumores, num grande e ansioso desejo de viver. E como que lhe ia faltando o ar, o
ambiente refazia-se. Ergueu-se, atafulhou os pés nas chinelas e saiu para a sala.
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A luz reanimou-o, respirou largamente, livremente e lançou os olhos às
estantes procurando um livro, mas bateram à porta. O coração teve um sobressalto,
e, comovido, ergueu-se da cadeira onde se havia deixado cair e, pé ante pé,
sutilmente, encaminhou-se para o parto; deitou-se e cobriu-se. Bateram de novo,
falou então:
— Entre.
Era Carlota. Não o vendo na sala, a menina deteve-se perguntando: Se
podia entrar.
— Entre, miss. Estou de cama.
— Está doente?! — exclamou ela penalizada.
— Bem doente.
— Que tem?
— Não sei Meu companheiro foi chamar um médico. Entre.
— Ela atreveu-se, vagarosamente, como em receio: vendo-o, porém,
deitado, acreditou avançando então até o leito impressionada. Estava mais linda que
nunca. Os cabelos brilhavam-lhe como se neles houvesse um pouco do sol que
andava lá fora dourando as árvores; os olhos pareciam mais azuis, os lábios tinham
mais cor e evolava-se-lhe um tal perfume do corpo que, mesmo à distância como
ficara, lá chegava ao enfermo beneficamente o delicioso aroma. Olharam-se algum
tempo. Ele esteve para falar-lhe do seu amor, propondo desposá-la, mas o ar
sereno, frio, indiferente da jovem desconcertou-o.
— Tem febre?
— Muita, miss.
— Mas o médico vem, não é?
— Vem. Meu companheiro foi buscá-lo.
— Então... sorriu e disse, com um leve acento: Não há perigo. Se o senhor
fosse estrangeiro, isso sim! Mas brasileiro, não há perigo. Com licença.
— Pois não, miss.
Saiu para a sala. Anselmo ouvia desvanecidamente o roçar leve da vassoura
e o farfalho dos papéis varridos, depois as cadeiras arrastadas e as surdas
pancadas do espanador nos móveis, até que ela apareceu de novo à porta do
quarto:
— Dá licença?
— Pois não.
Tomou a bacia, despejou-a no balde, segurou-o pela alça e, com o jarro na
outra mão, saiu em passos leves. Outra vez só, ele empenhou-se em uma luta
íntima dialogando com um outro eu prudente e covarde que lhe abrandava e
arrefecia os estos passionais.
"Ora! Que tem? Falo, digo-lhe a verdade: não pode zangar-se. Que mal há
nisso? Se fosse uma proposta infame, mas... dizer-lhe que a amo muito e muito,
consultá-la antes de pedi-la ao pai?" "E se ela revoltar-se?" "Revoltar-se por quê?"
"Mas admitamos que se revolte..." "Não há razão para isso..." "Ora, não há razão...
Não é em um quarto de um leito, que um homem faz propostas de casamento a uma
menina... "Mas se eu estou doente..." "Espere. Não é decente. Não é correto..."
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"Correto... pois falo...! Que pode acontecer? Se ela tomar a mal e queixar-se ao pai,
digo tudo, caso e está acabado..." "Pois sim..." "Pois sim mesmo..."
Mas o balde tilintou no corredor.
— Dá licença?
— Pois não, miss.
E Carlota entrou, pôs em ordem o lavatório, substituiu a toalha e, enquanto,
de costas, fazia, às pressas, a cama de Ruy Vaz, Anselmo, com os olhos nas
tranças louras, dialogava com o outro eu tímido e vitorioso:
"Então? Por que não lhe falas agora? Fala!..." "Falo mesmo..." Mas não
ousou sair do silêncio e foi Carlota quem o quebrou:
— E o senhor não come?
— Não sei ainda, miss; se o médico permitir..
— Pois sim. Nós podemos arranjar alguma coisa, não será bem feita, mas
como o senhor não pode sair...
— Muito obrigado.
A campainha tiniu e soaram passos fortes no corredor da entrada.
— Parece que está aí o seu companheiro com o doutor. Bem, então, se
precisar alguma coisa..
— Sim, miss.
— Até logo... Estimo as suas melhoras.
— Miss... sussurrou o enfermo, mas era tarde. Ruy Vaz bradava do corredor:
— Então! Como vamos? Oh! Miss...
— Diabo! Justamente quando eu ia dizer-lhe tudo!
O Teixeira, médico e filósofo, era um belo homem, moreno e atarracado, de
espessos bigodes negros, olhos vivos, gestos largos. Entrou descerimoniosamente,
pisando forte e Anselmo, que mal o conhecia, sentou-se para recebê-lo.
— À vontade. Então que há?
Ruy Vaz apareceu com uma cadeira, mas o médico já se havia sentado à
beira da cama, enquanto Anselmo arregaçava lentamente a manga para mostrar-lhe
o braço. Ele curvou-se e examinou com cuidado, tocando o cordão que cedia
molemente ao tato.
— Dói?
— Muito, doutor!
— É a primeira vez que tem isto?
— Não senhor; tive em criança, mas não assim com esta violência.
— Neste mesmo braço?
— Sim senhor.
— Teve febre?
— Tive.
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Tomou o pulso e ficou um instante atento; depois, voltando-se para Ruy Vaz,
que se conservava de pé junto ao leito:
— Tem ainda alguma, mas pouca. Isto não tem valor. Vou fazer uma receita.
Levantou-se e, enquanto lavava as mãos, perguntou: Também é poeta?
— Não, senhor: estudo Direito.
— Qual estuda! — contrariou Ruy Vaz. Abandonou a academia no terceiro
ano para fazer literatura. É mais um para a fome.
O médico meneou com a cabeça e esticou o beiço desanimadamente:
— Ah! Meu amigo, a literatura, entre nós, não dá para o charuto. O nosso
povo não lê por indiferença e por indolência, nem tem ainda o espírito preparado
para compreender a obra da Arte. O que ele quer, por enquanto, é o maravilhoso:
está ainda no período infantil do deslumbramento. Quais são os romances
preferidos? São os de complicado enredo, os magnificentes, os emaranhados que
não passam de ampliações de contos de fadas para crianças grandes. Não há ainda
o critério estético; não sei se posso dizer assim. O leitor não se preocupa com a
substância nem com a forma; a inverosimilhança é o seu ideal, quanto mais irreal
melhor. Dê o senhor a um homem um bom estudo de caracteres e uma fábula bem
lantejoulada que ele não hesitará um momento. Se os senhores quisessem tentar o
gênero Ponson, isso sim... mas psicologias... hum! Voltou-se para Ruy Vaz,
caramunhando: Agora, eu te digo: também não vou muito com as tais psicologias. A
ciência tem o seu lugar no real; o romance faz-se de sonhos e, até para o equilíbrio
intelectual, acha necessária a discriminação — a cada um o que lhe cabe: ao sábio,
a investigação; ao poeta, a fantasia. Cada macaco no seu galho. Eu, por exemplo,
depois de um livro científico gosto de repousar em uma página de Dumas ou de
Mery, como depois de umas horas de trabalho no meu gabinete, sinto-me bem no
meu jardim, olhando as flores, ao fresco da tarde. É um alívio. Não posso com as
tais psicologias, são quase sempre falsas — os autores não estudam caracteres,
fazem-nos para as situações que imaginam. Há coisas absurdas... Por exemplo... Ia
demonstrar a existência das "coisas absurdas", mas Ruy Vaz puxou-o pela manga
do casaco:
— Não; tem paciência: vem receitar primeiro. Quando começas com a
literatura, não te lembras de mais nada. Ainda, que o rapaz está aí que não pode.
— Espera, homem; pediu o médico pachorrentamente.
— Não, temos muito tempo, receita primeiro.
— Não há pressa; já estou melhor, disse Anselmo.
— Isso não é nada. Levantou-se, deu um puxão ao colete e, coçando o
pescoço, com a cabeça derreada, repetiu: Pois é isto: no Brasil ninguém Vive de
letras, isto é um país sem tradição, sem fastos. Quer saber? O Brasil começou
escravo, ganhou a liberdade e fez-se traficante e comboieiro, depois atirou-se a um
balcão de negócio, não teve tempo de aprender a ler: é um analfabeto milionário. É
possível que os netos venham a interessar-se pelas coisas intelectuais, mas por
enquanto, meu amigo, só há uma preocupação — o café. Qual é o homem de letras
que, entre nós, vive exclusivamente da pena? Qual é? Nenhum...
— Mas vem receitar, homem! — insistiu Ruy Vaz.
— Já vou. Nenhum... E não é por falta de talento, aqui há tanto talento como
em França, ou mais! Confirmou atirando um gesto violento: Ou mais! O senhor vê
por aí rapazolas, sem exame de português, fazendo versos que espantam. Meu
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sobrinho, o Alceu... tu conheces, Ruy... é um menino! Tem quatorze anos... pois
escreve poesias que admiram. Aquela que ele publicou, a propósito do 28 de
Setembro. Cravou os olhos em Ruy Vaz. Não te recordas...?
— Sim, sim...
Não satisfeito com a afirmação do romancista, o médico, unindo o polegar e
o índex, numa voz melíflua, pôs-se a recitar pausadamente, balançando o corpo,
fazendo sentir as rimas:
Salve! emérito visconde
Que hoje nos meus versos lembro,
Pai dessa lei de Setembro
Que os ventres santificou,
Salve! herói...
E por aí vai. Não te lembras? Vai agora fazer exame de português. É o que
eu digo: no Brasil há talento de sobra... Encaminhou-se para o lavatório e pôs-se a
remexer como se procurasse alguma coisa.
— Que queres?
— Vocês não têm por aí uma tesourinha de unhas?
— Tem cá fora.
— Pois é como eu digo. Forme-se, o senhor está no terceiro ano, pouco
falta; forme-se, tire o seu diploma e depois, nas horas vagas, escreva o seu soneto,
a sua quadra, mas ouça a palavra de um experimentado: não queira viver de
literatura: o verso não paga a casa nem corre no armazém. Olhe o Alceu... Eu acho
que ele tem talento, mas estou sempre a dizer ao pai: "Acaba com essa mania do
pequeno enquanto é tempo, antes que se torne um vício, porque depois, meu
amigo..." Mas não, acham graça... Dá em poeta e hão de ver o bonito. Vamos lá à
receita.
— Ora graças a Deus! — exclamou Ruy Vaz.
— Homem, deixa-me prosar um bocado, também não é só Medicina. Isto
não é nada. Amanhã está pronto. Vem uma pomada e uma poção para tomar aos
cálices. Amanhã ou depois está pronto.
— E se eu piorar, doutor?
— Qual piorar! Isto não é nada. Em todo o caso, amanhã dou um pulo aqui...
e trago-lhe os versos do Alceu, quero a sua opinião. O pequeno tem jeito, vai ver.
Versos no gênero dos de Castro Alves, sabe? E recitou soturnamente:
É a hora das epopéias,
Das ilíadas reais...
Conhece? Pois amanhã trago-lhe os versos. Mas nada disso, nada disso:
forme-se primeiro, tire a sua carta e depois publique quantas poesias quiser. Antes
disso, nada. Noutro tom: É bom conservar-se na cama, ouviu...? Coma pouco e
tenha o braço em repouso. Vou fazer a receita. Consultou o relógio: O diabo! Que é
do papel?
— Cá fora.
— Tenho de ir ainda a Laranjeiras. Saiu para a sala e, pouco depois, tornou
com o chapéu e o guarda-chuva: Até amanhã; eu passo aqui. Tem ainda febre, mas
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pouca... Vêm também umas cápsulas de quinino. Isto não é nada. Pode tomar o seu
leite, pode comer o seu bifezinho com batatas e... forme-se, aceite o meu conselho,
depois de formado, então, faça o que lhe der na cabeça. Até amanhã. Se houver
alguma novidade mande-me um recado à casa.
— Obrigado, Teixeira! — disse Ruy Vaz acompanhando-o.
— Ora, obrigado... Quando sai o teu livro?
— Não sei ainda.
— Tu é que vais vivendo, heim?
— Pois não.
— Adeus! Vou ainda a Laranjeiras. Até amanhã.
— Até amanhã.
— Que homem gárrulo! — exclamou Anselmo vendo Ruy Vaz aparecer com
a receita.
— É extraordinário! Esse Teixeira é tudo: filósofo, músico, político, poeta... O
tal menino Alceu de que ele falou, que é um tipo acabado de cretino, é o seu testa
de ferro. Quando o Teixeira quer impingir alguma das suas composições, apela para
o pequeno. Eu conheço-o! Durante a minha moléstia ouvi todo um drama do menino
Alceu. É um caso!
Oito dias depois Anselmo estava restabelecido, mas não pôde gozar a
delícia da convalescença, porque o alemão rosnava pelo corredor, achando longa a
demora do pagamento. Carlota, carrancuda, fazia a limpeza dos aposentos sem
pronunciar palavra Estavam, de novo, sitiados. Uma manhã, muito cedo, Ruy Vaz
levantou-se e começou a vestir-se apressadamente.
— Onde vais tão cedo, homem?
— Vou tomar banho. Estamos aqui, como Paris em 70: sitiados pela
Alemanha. Sempre que vou ao banheiro o alemão agarra-me e pede-me, numa
língua medonha, o mês da casa, porque estamos quase com o segundo vencido.
Não estou para isso. Vou tomar o meu banho por ai, descansadamente, num
banheiro magnífico.
— Onde?
— Por aí. Que diabo! O que não falta são casas vazias.
— Sim... E depois?!
— Como depois? Pois não percebes?! Levo daqui a toalha, o sabonete e o
pente, peço a chave para ver a casa, tranco-me, corro ao banheiro, regalo-me, torno
à venda, entrego a chave, tomo informações sobre o senhorio e aí está. Queres vir?
— Vou. Também não tenho coragem de falar ao alemão e coro diante de
Carlota. Saíram.
A vida, porém, tornava-se cada vez mais apertada e difícil. Para não
encontrarem o alemão, entravam tarde, pé ante pé, e saíam cedo. Ruy Vaz, por fim,
extenuado, instalou-se no palacete do visconde de Montenegro, retirando, a pouco e
pouco, os livros, os quadros flamengos, A Barricada e outros pequenos objetos.
Anselmo, só, ia curtindo a fome.
Uma noite, muito enfraquecido, pôs-se a procurar nas estantes desfalcadas
alguns livros que lhe pudessem dar qualquer coisa: só restavam romances e alguns
poetas ingleses. Lembrou-se, então, da caixa de música... Se a empenhasse?
Estava perfeita, podia dar dinheiro — tomou-lhe o peso, era grande, mas como tinha
um níquel, podia levá-la no bonde até à rua Gonçalves Dias e dali, nos braços, à
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casa de penhores. Decidiu-se e, não ouvindo rumor na casa, estando a família à
mesa, saiu, pé ante pé, com o precioso fardo e, alcançando a rua, apressou o passo
receoso de que o vissem.
Na cidade correu imediatamente à travessa de S. Francisco, embarafustou
por um dos compartimentos e, repousando a caixa de música, propôs o penhor por
três meses. O homem, muito sisudo, fez um momo rosnando: Que aquilo não valia a
pena.
— Está perfeita?
— Pois não.
Ele pôs-se a examinar, deu corda. As molas perras rangeram, mas o cilindro
girou e a ária da Jolie parfumeuse tilintou alegremente naquele canto mal alumiado.
No cubículo contíguo uma velha resmungava.
Anselmo teve uma grande emoção ouvindo aquela ária alegre que lhe
recordava os doces tempos da vida tranqüila, no seio da família. As noites calmas,
quando o velho pai, estirado no canapé, enquanto a mamãe cosia à luz do lampião
de querosene e o gato resbunava pela sala, mandava vir a caixa de música e
adormecia ouvindo as peças que se sucediam vivamente: Les Porcheron... Ainda...
Ó doce tempo!
O homem teve de perguntar duas vezes:
— Quanto quer?
O estudante, com os olhos úmidos, andava pelo passado, revendo a ventura
para o sempre perdida.
— Quanto quer?
— Veja quanto me pode dar.
— Eu não costumo receber estas coisas... Enfim: vinte e cinco mil réis,
serve?
Ele sentiu um sobressalto, mas emendou:
— Trinta.
— Não; mesmo ela precisa de uma limpeza em regra. Vinte e cinco.
— Vá lá...
O homem encheu a cautela entregando-a a Anselmo com o dinheiro depois
de lhe haver apresentado à assinatura um livro.
Saindo para a noite alegre, fresca e estrelada, procurou imediatamente um
hotel e repastou-se, suando copiosamente, seguindo para o teatro saciado e feliz.
Representava-se a mesma mágica em que Amélia aparecia, de fada. Foi vê-la à
caixa e houve um longo idílio — ela muito queixosa, ele inventando explicações.
Vendo o Heller pediu notícia de A Profecia. O empresário nem se lembrava da peça
que tinha tal título e foi necessário insistir para que ele exclamasse:
— Ah! Sim. Há de ir... há de ir...
— A peça tem elementos, senhor Heller.
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— Pois não: há de agradar, com uma boa música. Mas, de cabeça erguida,
pôs-se a bradar: Olhem essas bambolinas!
Saindo, encontrou o Pedroso, seu antigo condiscípulo. Houve uma cena
efusiva. O Pedroso arrastou-o para uma mesa, mandou vir cerveja e, bebendo,
falaram dos destinos que haviam seguido. O Pedroso era professor, lecionava
Português, Aritmética e Geografia. Estava em Catumbi com o irmão e um
companheiro. Vivia bem, era feliz. Anselmo explicou os seus infortúnios e o outro,
muito franco, ofereceu-lhe a casa, podia ficar com ele até achar colocação — era
uma boemia, mas vivia-se. Anselmo encolheu os ombros. Ao fim do espetáculo,
despedindo-se de Pedroso, foi para a Maison Moderne esperar Amélia. A atriz
apareceu e Anselmo foi-lhe ao encontro.
— Vem cear comigo.
— Não posso.
— Por quê?
— Se me tivesses falado mais cedo...
— Com quem estás?
— Com uma besta que me persegue há mais de um mês. Queres amanhã?
— Não.
— Então quando?
— Nunca mais! Boa noite.
— Estás zangado?
Ele não respondeu — seguiu muito firme, indignado com o procedimento
daquela mulher que fora, a bem dizer, a causa da sua infelicidade. No corredor,
ouviu a voz roufenha do Neiva e as gargalhadas do Lins que ceavam no jardim, ao
ar livre. Retrocedeu, não estava disposto para a troça, sentia-se acabrunhado,
queria o isolamento, o silêncio, a noite larga e muda. Saiu. Soprava uma viração
suavíssima, mas era grande o tumulto de gente e de veículos. Luziam lanternas, um
grande burburinho atroava a praça, as luzes dos botequins e das brasseries
assoalhavam as calçadas.
Um homem passou por ele cantando; longe trilavam apitos e, à porta do
Coblenz, um rapazola embriagado, com o chapéu à nuca, a bengala erguida
ameaçadoramente, cambaleava.
Anselmo sentia-se fatigado, mas não tinha ânimo de recolher-se à casa,
lembrando-se do alemão. Que lhe havia de dizer de manhã quando ele lhe batesse
à porta do quarto? E Carlota?
No largo de S. Francisco ouviu o relógio da torre bater uma hora. Deteve-se
indeciso. Por fim, resoluto, encaminhou-se para o Ravot. Dormiria no hotel e, de
manhã, escreveria ao alemão "deixando-lhe os móveis em pagamento, pedindo
apenas que lhe mandasse, pelo portador, os livros e a mala de roupa".
Subindo a escada do hotel lembrou-se do oferecimento do Pedroso. Iria
morar com ele até arranjar alguma coisa... O criado levou-o por um longo corredor
escuro. Num quarto aberto uma mulher, em camisa, estirada na cama, com uma
perna nua pendente, fumava voltada para a porta; e havia gargalhadas, vultos
brancos passavam ao fundo.
Quando o criado mostrou-lhe o quarto, entrou, despiu-se e, diante da cama
estreita, à luz minguada da vela, que ardia tristemente, interrogou-se de novo: "Mas
que havia de fazer?" e, de um jato, acudiu-lhe ao espírito o plano da sua grande
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obra: uma série de romances nacionais que começasse no descobrimento do Brasil
e terminasse... faltava-lhe o grande final, a luminosa apoteose.
Via a terra virgem, as galeras, a grande cruz da primeira missa, a gente
selvagem e a maruja belicosa da Lusitânia. Via o explorador varejando os sertões,
via as missões, depois as bandeiras ávidas e as guerras de disputa ensangüentando
a Pátria; os picões de Holanda e da França e as naves portuguesas, as igaras
tamoias, o tráfico africano; depois as cidades suplantando as florestas, o ouro e os
diamantes atraindo aos sertões o mundo ambicioso e os primeiros mártires e a
primeira corte. Depois os heróis da independência e o primeiro imperador e o
segundo e os dias modernos... Mas como acabar? Onde o grande episódio...?
Acendeu um cigarro, deitou-se e, soprando a vela, ficou ainda tempo
pensando no último volume dessa grande série sem, entretanto, achar o final que a
pudesse encerrar com uma apoteose magnífica.
CAPÍTULO XI
Três dias depois, realizando o que havia imaginado, Anselmo instalava-se
em casa de Pedroso. O professor recebeu-o com alegria e, como ele levava apenas
a canastra e alguns livros, tendo deixado o mais com o alemão, não houve
necessidade de modificar a disposição móveis, que eram poucos. Viviam na
pequena casa, além de Pedroso, o macambúzio Alfredo que, sendo irmão do
professor, parecia-se tanto com ele como com o terceiro, um hóspede, o Raul, rapaz
de vinte anos, que era uma montanha de carne. Com uma decidida vocação para o
teatro estreara, aos dezoito anos, na Fênix Dramática, com o Galvão, fazendo
pequenos papéis com discrição e suor à ufa.
Lembrava-se, com orgulho, de um "salteador" que interpretara com tanto
talento que o empresário, depois da primeira récita, para animá-lo, disse:
— Raul, não fosse a tua corpulência e irias longe no teatro, mas assim, filho,
com tanta enxúndia, cansas depressa.
Efetivamente cansou; ou antes: desanimou. A gordura caminhava com
tamanha pressa pandeando-lhe o ventre, enchendo-lhe as coxas e os braços que,
se uma peça lograva fazer carreira, à vigésima representação Raul era forçado a
recorrer ao alfaiate para que lhe alargasse as roupas. Retirado do teatro, com o qual
o toucinho o incompatibilizara, vivia melancolicamente, engordando e recitando
monólogos pela casa, quando não ia para a cozinha aguar o ensopado ou salgar a
sopa.
Mas a alma era grande e, não raro, rebentava-lhe dos olhos em ternura
lacrimosa ou expluia-lhe do peito largo em suspiros estéticos sobre algum papel
tonitruante de tirano, em peça truculenta. Sentia-se-lhe na melancolia do olhar a
nuvem de um pensamento triste que se poderia traduzir livremente nesta
lamentação: "Que grande artista se perde neste jacá de toucinho..." Em verdade, era
um jacá e atochado.
Pedroso conhecera o Raul na caixa da Fênix, quando por lá andara
enamoradamente, com grandes ramos de rosas, seguindo os passos de uma atriz.
O professor tinha também certa "queda" para o palco. Não fossem delicados
escrúpulos: a família, os alunos... e teria aceitado um convite que lhe fez o Galvão
no tempo do idílio, mas o macambúzio Alfredo chamou-o à ordem salvando-o, em
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tempo, de uma queda fatal no conceito do público e na comparsaria. Consolava-se
fazendo "galãs" em teatrinhos particulares. Era melífluo, ajoelhava-se, com muita
expressão, aos pés das damas, rente da caixa do ponto para falar com segurança
do seu amor. Alfredo era circunspecto — estudava ciências exatas, não fumava,
recolhia-se muito cedo e evitava os olhares das mocinhas da vizinhança. Comiam
em casa: o Raul cozinhava por economia e, à mesa, os companheiros, gratos,
ouviam a história dos seus triunfos no teatro da rua da Ajuda.
Anselmo, posto que não tivesse os cômodos que sonhara, viveu com certo
conforto, dormindo à sombra do Raul que roncava como um vulcão.
Foi nesse homizio que ele fez os seus melhores estudos literários. O Raul,
que o admirava, ficando em casa enquanto os dois irmãos iam explicar os
substantivos e os teoremas, metia-se num canto com um maço de comédias e lia,
rindo às gargalhadas, enquanto Anselmo, de papo para o ar, devorava
Shakespeare, Dante, Ariosto e quantos poetas lhe caíam nas mãos, por empréstimo,
porque os seus livros estavam lidos, relidos e vendidos.
À noite, às vezes, serenatas passavam pela rua silenciosa enfurecendo os
cães que investiam e Pedroso, sempre jucundo, abria as portas da casa ao grupo ou
seguia com ele a percorrer o bairro adormecido. Anselmo nem sempre o
acompanhava, preferia ficar preguiçosamente em casa lendo ou palestrando.
Raramente descia à cidade. Refazia-se física e espiritualmente preparando-
se para o grande dia em que tencionava aparecer sobraçando os originais do
primeiro volume da grande série.
Os rapazes falavam do seu sumiço, faziam conjecturas e ele continuava
tranqüilamente os seus estudos.
Ruy Vaz, instalado definitivamente no palacete do visconde, engordava e
tinha quase concluído o seu romance. Um incidente, porém, alvoroçou o estudante:
o Alfredo, sempre taciturno, descobriu, uma manhã, na fronha alva do travesseiro,
uma mancha de sangue e, como houvesse na família vários casos de tuberculose,
ficou alarmado decidindo, desde logo, mudar-se para o campo onde houvesse ar
puro e árvores e, com precipitação, não querendo dar tempo à moléstia, meteu-se
num trem e foi correr os subúrbios achando uma casa modesta, de feição
campestre, com muito terreno arborizado e uma cacimba, em Cascadura, numa
larga estrada quase deserta que levava aos montes.
A mudança foi feita num dia. Anselmo, à lembrança de viver em tão
arredado sítio, hesitou antes de permitir que a sua canastra fosse despachada, mas
Raul e Pedroso convenceram-no, falando-lhe do silêncio do campo, propício à
meditação e ao estudo, bom ar saudável, da água excelente, dos saborosos frutos e
Anselmo deixou-se levar, não prometendo demorar-se porque tencionava arranjar
um lugar na imprensa que, ao menos, lhe desse para casa e comida.
A casa era realmente pitoresca. Toda branca na verdura de um pomar e
única na estrada areenta onde andavam soltos carneiros, cabras e grandes cevados
grunhidores. Nas dimensões era um cacifro.
Raul reclamou contra as portas estreitas. Sempre prosperando em banhas,
receava que, uma manhã, acordando, fosse obrigado a demolir a parede do quarto
abrindo brecha para passar. Comiam em um hotelzinho, onde a gente da Estrada de
Ferro costumava fazer os seus regabofes. De manhã, saindo em grupo, iam a um
quiosque para o café. À noite dirigiam-se à estação para conversar e viam chegar e
partir os trens e, quando os expressos silvavam, ao longe, paravam agarrados às
colunas, com os olhos além, até que, na grande sombra, luzia o olho imenso da
locomotiva, e vinha crescendo, crescendo, ouvia-se o rumor e o chiado, e rápido,
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repentino, o comboio passava levantando um grande vento. Mal se avistavam vultos
brancos e lá ia ele curveteando, era uma luzinha que fugia como um vaga-lume e
desaparecia na sombra. Logo, porém, outro comboio chegava lentamente, parando
junto à estação, à espera de passageiros e outro vinha da cidade, bufando. Saía
gente, a locomotiva, desengatada, parda veloz para a manobra no virador e os
empregados iam examinar os carros, batendo-lhes nos eixos. Na plataforma
iluminada reuniam-se rapazes, moças passeavam, e uma velha negra, aleijada,
cochilava a um canto diante de uma bandeja, apregoando, de instante a instante,
com uma voz triste, cocadinhas e balas. Anselmo achava aquilo hediondo.
A vida insípida e monótona enchia-o de tédio e desalentava-o. Da manhã à
noite era o mesmo, invariável espetáculo da natureza campestre, a mesma vida de
rusticidade. Se chegava à janela, os olhos encontravam apenas a estrada larga e
deserta, branca, escaldando ao sol. De quando em quando, um homem que descia
da sua roça, na vertente dos morros, sozinho, cantando ou com a bestinha lenta
carregada, ou negras que tinham ido às compras e tornavam aos seus casebres
com embrulhos, o cachimbo nos beiços, descalças, levantando uma poeira fina e
dourada
E ali ficava horas e horas, sob a ardência da luz, bocejando, sonolento e
mole, ouvindo os silvos dos trens que passavam ao longe. Nos fundos, era a larga e
verde planície cultivada, dividida em hortas e quintais. Laranjais de um verde forte e
metálico, carregados de frutos, milhos louros, canaviais que sussurravam num mar
verde e irrequieto. Um cheiro forte de seiva subia da terra morna. Aves andavam
cacarejando e mariscando nos monturos e a uniformidade da paisagem dava uma
impressão fatigante à vista, enfarada de arvoredo e de ervas rasas, onde não
aparecia um vulto humano, como se o mesmo sol fosse o único encarregado da
lavoura daquelas terras fecundas, que se estendiam dilatadamente perdendo-se
num horizonte azulado de montanhas.
Anselmo vivia vegetativamente como aquelas árvores fortes que ali estavam
agarradas à terra, sugando-a. Mas o que, em verdade, o prostrava era, por assim
dizer, a própria fecundidade. Justamente ele estava como aquelas árvores, cujos
ramos roçavam o solo vergados ao peso dos frutos; sentia a inadiável necessidade
de expansão, o seu espírito começava a produzir exuberantemente, as idéias caíam-
lhe do bico da pena como caem dos galhos os frutos maduros, mas a sua atividade
espiritual, que se ia esperdiçando, dava-lhe grande tristeza. Tarde, às vezes, não
podendo conciliar o sono, enquanto os companheiros dormiam, abria a janela à noite
silenciosa e, debruçado à mesa, lia e escrevia e, quanta vez o sol o encontrou
absorvido na leitura ou rematando páginas. Um dia resolveu descer. Não podia mais
com aquela vida amolentadora e estéril. Pedroso tentou dissuadi-lo propondo-lhe
alguns discípulos.
— Não, vou arranjar trabalho. Sinto-me morrer aqui. Esta inércia acabrunha-
me, não posso mais. Preciso trabalhar...
— Mas para onde vais?
— Não sei, hei de arranjar um jornal. Que diabo! É impossível que não haja
um lugar para mim. E que não haja! Aqui não fico... não posso, apodreço!
Pedroso encolheu os ombros resignado e Anselmo, resmungando, foi vestir-
se.
— Vais sem almoço?
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— Vou.
— Almoça primeiro, homem.
— Não.
— Que coisa! Até parece que vais daqui ofendido. Houve alguma coisa
contigo?
— Não, nada.
— Então?
— Não posso com isto, Pedroso. Estou ficando neurastênico. Há ocasiões
em que tenho vontade de chorar.
— Por quê?
— Sei lá, à toa. É este silêncio, é esta monotonia, é tudo isto que me enfeza,
que me irrita. Demais, já é tempo de começar a fazer alguma coisa. Se continuo aqui
apodreço. Preciso ir.
— Mas não vais zangado conosco?
— Zangado, por que? Vou para não morrer de tédio. Não posso ficar aqui a
olhar milhos que amadurecem e galinhas que chocam. Há mais de seis meses que
ando nesta vidinha lânguida de fainéant. É tempo de reagir.
— E se não achares emprego?
Com grande confiança ele afirmou:
— Hei de achar!
— Mas vens dormir aqui?
— É possível.
— Bem. Já que insistes não quero contrariar-te. Mas a quem vais falar?
— Ao Patrocínio.
— Já o conheces?
— De vista.
— Por que não arranjas uma apresentação?
— Qual apresentação! Vou e falo. Se me quiser aceitar, muito bem; se não
quiser, melhor.
— Qual! Tu tiveste algum aborrecimento, Anselmo.
— Não tive, palavra.
Raul, que acompanhara toda a cena sem intervir, sussurrou humildemente:
— Comigo não foi.
— Ó senhores, pelo amor de Deus, que mais querem vocês? Estou
aborrecido, mas é disto! E, avançando impetuosamente para a porta, mostrou, num
gesto largo, a paisagem quieta, ao sol, e as cabras que iam lentamente com as crias
ao longo da estrada deserta e sem sombra. Isto é que me enfastia, é esta coisa
reles... Preciso sair daqui, senão estouro. É hediondo tudo isto. Hediondo!
O silvo de uma locomotiva atravessou os ares mornos. Anselmo tomou o
chapéu:
— Adeus.
— Então até logo.
— Até logo.
— Não vais zangado?
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— Não vou, homem.
— Palavra?
— Palavra. Adeus, Raul! E, tomando a bengala, como a casa distasse
muitos metros da estação, deitou a correr pela estrada poente ao sol dourado e
quente da manhã gloriosa.
CAPÍTULO XII
Chegando à cidade, ao influxo da grande vida, resfolegou desafogadamente.
Saía como de um balseiro ganhando a corrente impetuosa de caudaloso rio que o
levava para o além, no curso formidável e irredutível das suas águas e seguiu com a
multidão, no enxame fervilhante dos que se encaminhavam pressurosos para o
trabalho, à luz alegre de um sol vivo de janeiro.
Para chegar mais depressa ao seu destino, tomou o primeiro bonde que
descia, cheio. Estava desconfiado, tímido como se entrasse em país estranho.
Parecia-lhe que comentavam a sua pessoa e pôs-se a evitar os olhares, vexado.
Devia ser por causa do cabelo muito crescido, que lhe chegava ao colarinho. Passou
a mão pela nuca disfarçadamente, mas ninguém lhe prestava atenção E o bonde
rodava rápido.
No largo de S. Francisco a multidão atarantou-o. Esperou que o povo
escoasse e seguiu atordoado para a rua do Ouvidor. No
escritório da Gazeta da
Tarde, perguntando por Patrocínio, Um homenzinho magro, de olhos miúdos, fez um
aceno preguiçoso com a cabeça como a dizer-lhe que subisse.
Empurrou a porta gradeada e passou, subindo à redação. Um rapaz alto,
vesgo, caído sobre a larga mesa central, consultava uma coleção de jornais, outro
revia notas, de pé diante de uma secretária. Ambos voltaram-se ouvindo-lhe os
passos.
— Senhor José do Patrocínio?
— Está ocupado, disse o vesgo. Quer alguma coisa da redação?
— Desejava falar com ele mesmo.
— Está escrevendo o artigo. Em todo o caso entre... É ali ao fundo, uma
salinha.
Agradeceu e encaminhou-se. Subiu dois degraus que levavam à salinha
indicada e deteve-se surpreso. O jornalista estava diante de uma pequena mesa,
terminando o almoço. No chão jazia uma lata aberta e, sobre a mesa, ao lado dos
pratos, a pasta, os livros, um maço de tiras, cigarros. Dando com Anselmo, o
jornalista passou rapidamente o guardanapo nos beiços e, sorrindo, estendeu-lhe a
mão.
— Ah! Meu amigo, desculpe-me. Estou hoje nos meus dias de trabalho, nem
tempo me sobra para almoçar... depois, nos hotéis perde-se tanto tempo! Mandei vir
isto e aqui, neste refúgio onde me escondo dos cacetes, fiz o meu almoço. Derreou-
se na cadeira de mola: Cesário! Traze daí uma cadeira. Então, que há de novo?
Como vamos de versos?
— Não faço versos.
— Ah! Pois não... Pensa que não leio? Sei dividir o meu tempo, meu amigo,
também nem só de política vive o homem, sentenciou. Também leio. Com licença.
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Levantou-se, impaciente, foi à sala da redação e voltou com uma cadeira. Isto aqui é
assim. O meu criado sou eu. Sente-se. Ofereceu cigarros e, muito amável, cruzando
as pernas, tornou, desmanchando um cigarro:
— Então...? Que há de novo?
— Vim pedir-lhe um lugar na redação da Gazeta, se for possível.
— Se for possível...? — exclamou.
— Posso escrever umas crônicas ligeiras, um ou outro artigo...
— Quê! Um ou outro...?! Você vem mas é substituir-me, isto sim!... Eu
mesmo preciso de um homem que me descanse porque, com essa história do artigo
diário, nem tempo me sobra para cuidar dos interesses da folha. Chego de casa às
oito da manhã e aqui fico até às duas da tarde enchendo tiras e aturando um mundo
de importunos. Agora com você aqui a coisa vai ser outra... olá! Escrevo o artigo,
entrego-te a folha e vou cuidar da vida. Inclinou-se e, atraindo Anselmo, disse-lhe,
como em segredo: Isto é jornal para dar uma fortuna, mas eu não posso fazer nada,
estou preso... Tendo, porém, um homem que queira trabalhar comigo, que queira
trabalhar...! — repetiu arregalando o. olhos e concluiu: fazemos fortuna! Você quer
trabalhar?
— Quero.
— Pois vamos fazer uma folha. Quando começas?
— Amanhã.
— Está feito. Onde estás morando?
— Em Cascadura.
— Que é isso, homem de Deus!?
— Que quer? Tenho lutado com as maiores dificuldades. Estou lá com
amigos.
— Não, mas precisas descer.
— Vou ver um cômodo.
— E a questão do dinheiro? Anselmo sorriu dando de ombros. Não, é
essencial — um homem de talento como você precisa de dinheiro. Eu, com o bolso
vazio, sou incapaz de escrever uma linha. Isto de fingir indiferença pelo dinheiro é
esnobismo. Por enquanto não te posso dar muito, mas... duzentos mil réis, servem?
— Perfeitamente.
— Vê lá!
— Perfeitamente.
— Bem, eu mesmo vou escrever a notícia da tua entrada para Gazeta. Tu
tens talento... Eu não me engano. Lembras-te daquela noite no Príncipe Imperial?
— Dois dias depois da minha chegada de S. Paulo.
— Que discurso!
— Qual! Foi uma explosão de entusiasmo.
— Sim, uma explosão... Foi o melhor discurso da noite. Fiquei assombrado,
tanto que perguntei ao Sena quem eras e foi quem me apresentou. Não te lembras?
— Lembro-me.
— Então? Tens muito talento. Vais fazer um carreirão. O diabo é a
Cascadura...
— Mudo-me.
Um rapaz apareceu à porta e Patrocínio, encarando-o, perguntou:
— Que é?
— O artigo...
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— Tem muita pressa? Pois eu não tenho. Quando estiver pronto irá. Olhe,
leve daqui esta louça e diga lá ao Silva que não me mande mais bifes como o que
veio hoje. Tornou a Anselmo:
— Então amanhã...?
— Amanhã. A que horas...?
— Às nove. Basta que estejas aqui às nove.
— Muito bem. Então até amanhã. Levantou-se e o jornalista, lançando-lhe
os olhos à cabeça, perguntou: Você fez algum voto?
Anselmo, compreendendo, disse:
— De pobreza.
— Que diabo! Parece que trazes contigo todas as matas dos subúrbios.
Corta esse cabelo. Estás sem dinheiro, não é? Anselmo sorriu. Ah! Queres fazer
cerimônia comigo? Estás arranjado. Tirou do bolso uma nota e entregou-a a
Anselmo sem olhar. Estamos então combinados: amanhã...
— Às nove.
— Vou escrever a notícia e, com um forte aperto de mão:
— Vamos fazer uma fortuna!
— Até amanhã.
— Até amanhã. Olha o cabelo.
— Vou já ao cabeleireiro. E, com o coração aos pulos, Anselmo desceu as
escadas.
Fora, deteve-se algum tempo à porta, indeciso, vendo a gente subir e descer
na faina do trabalho ou lentamente, lançando olhares curiosos às vitrinas, com
grandes pausas, os desocupados que faziam a sua volta elegante, com ostentação
e garbo. Depois lançou-se à rua, seguindo para um cabeleireiro. À entrada, porém
vendo a sala cheia, recuou tímido. Não tinha ânimo de sentar-se diante de tanta
gente, com uma viçosa cabeleira de nabi.
"Não, corto lá em cima..." disse descendo as escadas. Logo à porta
encontrou o Neiva com um rapaz moreno, ereto, muito grave num terno que tinha
todas as cores do íris e um chapéu branco que começava a ser cinzento, gravata
azul, salpicada de ouro, em grande laço fofo que se derramava, com escândalo,
sobre o peito, bengalão, ou antes, cajado e sapatos fuscos. O ar era o de um
diplomata, mas o terno... O Neiva abriu os braços exclamando:
— Salve! Onde tens andado, homem de Deus?! Que é feito de ti? Amélia
anda inconsolável. Creio até que já se cobriu com um crepe.
Anselmo contou a sua odisséia e o moreno, sempre firme como um poste,
enrolando um cigarro, perguntou:
— É o senhor Anselmo Ribas?
— Sim, senhor.
— Não se conhecem?! — exclamou o Neiva.
— Não.
— Ora! Pois então vamos ali ao Cailtau, quero fazer a apresentação em
regra.
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102
Caminharam e, ao chegarem à escura confeitaria, o Neiva, batendo em uma
das mesas, encomendou três grogues. Sentou-se e, alongando o pescoço, rompeu
a rir com grande espanto dos dois rapazes.
— Que é? — perguntou o moreno.
— Que diabo têm vocês na cabeça?
O moreno estava nas mesmas condições em que se achava Anselmo: as
cabeleiras desafiavam-se.
— Eu só corto os cabelos no dia em que me empregar, porque então
poderei comprar um travesseiro.
— Pois eu vou cortar hoje a minha grenha, porque estou colocado. Podem
dispor de mim na Gazeta da Tarde.
— E de mim urbi et orbi, disse o moreno.
— Mas, que diabo, ainda não fiz a apresentação. Este senhor que aqui está,
açafroado e firme nos seus princípios, é Fortúnio, de Maceió, poeta lírico em
disponibilidade. Morria de tédio na província quando, vendo um paquete prestes a
levantar ferro para o Rio, resolveu meter-se a bordo. Como sabe de cor todos os
versos que tem escrito, como Bias, não se preocupou com a bagagem. Na Bahia
comprou duas laranjas e, a bordo, nem ele sabe como (proteção de Apollo
Musagetes), nunca lhe pediram contas. Fez-se amigo de todos e, chegando ao
Faroux no bote de uma família, encaminhou-se para a rua do Ouvidor com as duas
laranjas.
— Que eram lindas! — exclamou o moreno.
— E vendeu-as no O braço de ouro por mil réis.
— E com esse dinheiro comecei a minha vida.
— E onde foste morar? — perguntou o Neiva.
— Na rua do Regente, com uns amigos de Alagoas.
— E ainda mora lá? — perguntou Anselmo.
— Não, agora não moro. As casas custam um horror.
— O senhor tem um soneto...?
— O Lenço. Já sei que vem falar do verso:
Pando, enfunado, côncavo de beijos...
— Justamente.
— É isso!... Tenho publicado não sei quantos sonetos e só me falam desse...
— É belo!
— E o senhor? Que faz? Quando pretende publicar o seu volume?
— Quando Deus quiser.
Falavam quando Patrocínio apareceu afogueado, rindo. Dando com os
rapazes, arrastou uma cadeira e sentou-se à mesa, respirando cansado:
— Ah! E você ainda não deitou abaixo a floresta! — disse vendo os cabelos
de Anselmo.
— Parte, tornou o Neiva, o cabeleireiro disse que Roma não se fez em um
dia. Ele volta amanhã para concluir a derrubada.
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Patrocínio sorveu um gole e, depondo o copo, disse recostando-se
molemente:
— Leiam a Gazeta amanhã: Sansão faz a sua estréia.
Fortúnio, placidamente, alisando as calças, perguntou:
— Queres um soneto, José?
— Não, não quero... Este idiota...! Pois então eu rejeito versos teus?
— Não sei.
— Dá cá o soneto, deixa-te de luxos.
— Vou escrevê-lo, espera. E, chamando o caixeiro, pediu uma folha de
papel, pena e tinta. Enquanto escrevia, Patrocínio dirigiu-se ao Neiva:
— Se esses rapazes quisessem, que esplêndido jornal podíamos nós agora
fazer, heim? Imagina! Tu, com a direção da reportagem; este, com a crônica literária;
Fortúnio com a crônica mundana e eu com o artigo e o noticiário.
— O noticiário! Tu? Estás louco! — exclamou o Neiva.
— Como louco?
— Pois és lá homem para fazer notícias, José?!
— Como não? Para mim são as duas coisas sérias do jornal: o noticiário e a
gerência. O artigo de fundo não é mais do que uma grande notícia desenvolvida.
— De acordo, mas queres encher o jornal com artigos de fundo?
— Não, mas quero a notícia feita com talento. É preciso que a local
emocione. O público tem necessidade de choques violentos. O melhor jornal é o que
mais comove, isto é: o que explora, com mais habilidade, o emocional. Queres ver?
Lê o mesmo fato em dois jornais. Aqui a coisa resumida e seca: "Estando ontem a
trabalhar no andaime do prédio em construção à rua tal, número tantos, perdendo o
equilíbrio veio abaixo o pedreiro fulano, morrendo instantaneamente. O cadáver foi
recolhido ao necrotério." Está aí tudo — o desastre, as conseqüências do desastre,
o destino que teve a vítima. Pensas que isso basta ao leitor? Estás enganado. A
notícia, para agradar, deve ser escrita nestes termos. E, inclinando-se sobre a mesa,
Patrocínio, passando o dedo pelo mármore, como se escrevesse, exclamou:
GRANDE DESASTRE! em letras garrafais... Agora o caso, com todos os temperos:
"Quando, ao romper da manhã de ontem, fulano de tal, homem laborioso e
honesto, que só via Deus no céu e a família na terra, saiu de casa contente
pensando nos filhinhos que haviam ficado adormecidos, mal podia suspeitar, o
infeliz, que nunca mais tornaria àquele lar e aos carinhos dos seus, porque a morte
insidiosa já o esperava no próprio posto do trabalho. A fatalidade..." — por aí além,
em tom patético. A descrição da queda com uma onomatopéia para o bater do corpo
na calçada, o esfacelamento do crânio, os miolos salpicando os paus do andaime,
os olhos esbugalhados. Depois o necrotério, a chegada da viúva com os filhinhos, o
enterro, o luto e a miséria no lar. Finalmente, em remate, um comentário sobre a
fatalidade. Não imaginas como uma coisa dessas impressiona.
Fortúnio, que terminara o soneto, entregou-o a Patrocínio que o leu alto, com
entusiasmo, estendendo a mão espalmada ao poeta:
— Obrigado! Mas continuando: o jornal substitui a berma do Pnix e a arena;
se nele são discutidas as grandes questões sociais, nele também devem aparecer
as grandes cenas vibrantes. O povo é bárbaro e, como não tem mais as lutas
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sangrentas, satisfaz-se com as descrições trágicas: o assassínio de um homem,
num canto de estrada, sendo descrito com talento, agita mais a massa do que a
notícia seca da derrota de um exército. Mas os meninos não querem compreender
assim, entendem que o noticiário é humilhante e fazem cara quando se lhes pede
uma notícia. Pois serei eu o noticiarista. Deixem-me com a gerência e com o
noticiário que, em menos de um ano, ponho aí um jornal como o New York Herald.
Queres tomar conta da reportagem?
— Tomo.
— Palavra?
— Palavra, homem!
Mas um sujeito aproximou-se e chamou o jornalista à parte. Estiveram algum
tempo conversando, de pé. De repente o Neiva bramiu:
— Então, José!
— Já vou, espera um instante. Olha que essa despesa está paga.
O Neiva voltou-se para Anselmo:
— Então vais trabalhar com o Zé do pato?
— Vou.
— Fazes bem. Ele é o hierofanta. Considero-o o primeiro homem do Brasil.
Sei que há outros mais eruditos: ele, porém, é o mais fecundo, é o de maior cérebro.
Dá-me a impressão de uma selva virgem. É um espírito onde apenas trabalhou
rudemente o machado do lenhador. Os artigos dos outros que por aí há são bem
feitos alguns, outros detestáveis, sem bom senso e sem gramática, mas eu refiro-me
apenas aos que podem resistir à análise; têm forma, mas não emocionam como os
deste bruto. Posso chamar-lhe bruto porque Esquimó chamava a Demóstenes — o
monstro. Mas é isto: os outros artigos são como a colheita de um campo
intensivamente cultivado, são paveias; os do José, não: são como imensos
jequitibás que vêm possantemente arrastados do fundo da selva virgem. São
colossos cheios de seiva que passam fragorosamente, mas, dentre a folhagem
verde, saem gorjeios de ninhos que vêm presos aos ramos e pios de aves que voam
acompanhando a árvore que era, por assim dizer, a sua cidade. É a minha
impressão.
Num artigo de José há imagens para vinte artigos. Ele não trabalha com as
dinamizações: é um nababo de matéria-prima. Basta isto: a campanha
abolicionista... Pois é um diabo que, há não sei quantos anos, escreve sobre este
tema: o senhor e o escravo — sempre com uma imagem nova e magnífica de
esplendor. Fere todos os assuntos: entende de câmbio, discute a política
internacional e as filosofias, é católico e faz conferências sobre budismo;
farmacêutico, trava polêmicas sobre mecânica com os engenheiros, dá planos
estratégicos, escreve romances, sermões, panegíricos, libelos, é eleitor e tem voz de
barítono. Não é um homem, é uma complicação genial. Para mim ele é quem há de
personificar a época tremenda que atravessamos. Desse caos negro é que há de
sair a luz. Se o José não tivesse nascido no Brasil, se tivesse nascido em Paris, por
exemplo, seria uma celebridade universal. É um bruto! Garçom, outro grogue! Você
não bebe? Fortúnio estava triste, de olhos baixos. Queres mais um grogue?
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— Não. Vou comer uma empada.
— Ainda não almoçaste?
— Almocei ontem.
— Por que não disseste, homem? Eu tenho aqui.
— Também eu, disse Anselmo.
— Então jantarei. Antes, porém, vou tirar este peso da consciência; e meteu
os dedos pela gaforinha.
— Vamos
juntos, convidou Anselmo.
— Ao mesmo cabeleireiro! — exclamou o Neiva. Vocês entulham o salão.
— Uma empada, disse Fortúnio, em segredo, a um dos caixeiros.
— Vais comer empadas agora? Olha que perdes o apetite.
— Quem me dera! Ainda que o perdesse ele havia de voltar na manhã
seguinte, como o anel de Polícrates. Depois, eu tenho um vermute magnífico.
— Qual?
— A fome. Quem tem fome tem apetite.
— Bem, vamos sair. Que é do José?
Patrocínio havia desaparecido. O Neiva levantou-se justamente quando o
caixeiro entregava a Fortúnio uma empadinha espetada num palito.
— Agora tenham paciência; deixem-me comer em paz.
Os dois esperaram e, logo que o poeta mastigou o último bocado,
encaminharam-se para a porta: Fortúnio, sempre ereto, como se tivesse o rei na
barriga, quando tinha apenas um grogue e uma empadinha de tostão. O Neiva
despediu-se.
— Perdão. Não te esqueças do meu almoço de amanhã, disse o poeta.
— É verdade. Passou-lhe disfarçadamente uma nota e seguiu.
— Até logo!
— Até logo.
— Vais ao teatro?
— Pois onde hei de ir?
— A qual?
— A todos.
— Então encontramo-nos.
— Com certeza.
— Até logo!
— E nós agora? Vamos cortar as tranças.
— Sim, vamos. Temos ali na rua Gonçalves Dias.
— Não, nada de ostentação. Vamos à rua 7. Há um cabeleireiro que faz
abatimento quando se corta em porção, como nós. O diabo é que eu fico sem
travesseiro. Enfim! E encaminharam-se para a rua 7.
Jantaram juntos, no Renaissance, e, às sete horas da tarde, Fortúnio seguiu
para a rua de Riachuelo despedindo-se de Anselmo que ficou na cidade, dissipando
em livros, na rua de S. José, o dinheiro que lhe havia dado o Patrocínio.
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CAPÍTULO XIII
Foi nessa noite que, por intermédio do Freitas, um satírico baiano, ele
conheceu Octavio Bivar. Desciam a rua do Ouvidor quando encontraram o poeta
diante de uma vitrina admirando os braceletes que faiscavam nos escrínios de
veludo. O Freitas atirou-lhe uma palmada ao ombro. O poeta voltou-se
repentinamente, espantado, dando, porém, com o amigo, tranqüilizou-se:
— Que fazes aí?
— Admiro. E tu, como vais?
— Bem. Conheces aqui o Anselmo?
— De nome.
— Este é o Bivar, o homem que ouve estrelas. Vamos tomar alguma coisa.
— Podemos ir.
— No Deroche.
— Não, aquilo é impossível; não se pode estar à vontade. Vamos ao
Gambrinus, é uma bodega honesta e desconhecida ainda.
— Na rua 7?
— Sim.
Dirigiram-se pausadamente para a cervejaria e, logo que se abancaram, o
Freitas atirou-se aos tremoços pedindo ao poeta que recitasse alguma coisa. Bivar
desculpou-se: andava atropelado, não tinha tempo para escrever um verso, uma
vida de cão, perseguido por um senhorio inclemente. Podia recitar qualquer coisa
antiga...
— Pois sim. O Julgamento de Frinéia, por exemplo. Conheces, Anselmo?
— Não.
— Uma coisinha, disse o poeta, pigarreando.
Voltou a cadeira, fincou o cotovelo na mesa, lançou um olhar pela casa e,
com os dedos enfeixados, disse solenemente, em tom profundo, balançando o
corpo:
Mnezarete — a divina e pálida Frinéia —
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxiteles,
De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.
...................................................................
Os olhos imensos do poeta saltavam à flor do rosto e rolavam num êxtase
divino. Soerguia-se, como que uma força misteriosa o levantava, por vezes, e a sua
voz, cava e lenta, tinha um quer que fosse de profética como se viesse de um ádito
oracular. O Freitas, embevecido, dava com a cabeça, cerrava os olhos e mastigava
tremoços. Anselmo fitava o poeta com admiração. Ao fundo da casa dois homens,
em mangas de camisa, falavam alto. O Freitas não se conteve, voltou-se com um
"psiu!" e os homens começaram a sussurrar — só a voz do poeta rolava, profunda e
grave, num turbilhão de rimas sonorosas.
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— Admirável! — exclamou o Freitas quando o poeta, com um gesto largo,
repetiu as palavras de Hiperides, arrancando dos ombros da hetera a túnica que lhe
encobria o corpo maravilhoso:
"Pois condenai-a agora!"
Não ficaram, por certo, mais maravilhados do que os dois rapazes, os velhos
austeros do Areópago.
— Soberbo! — exclamou o Freitas reclamando mais cerveja. Anselmo ficou
algum tempo a olhar o poeta, sem dizer palavra, arroubado.
— Agora, o senhor: recite-nos alguma coisa.
— Isto não faz versos, disse, com desprezo, o Freitas. É só prosa chilra.
— Faz muito bem. A prosa; se não tem a nobreza do verso, é mais ampla; o
pensamento move-se livremente no período sem os apertos da métrica, sem a
preocupação monótono da rima. A prosa! A excelsa prosa! Não imagina como eu
amo a prosa, acho-a até mais difícil do que o verso. A prosa marmórea de um
Flaubert, de um Saint-Victor... oh!
— Preferes, então, a prosa ao verso?
— Prefiro.
— E por que não fazes, de preferência, prosa?
— Hei de fazê-la.
— Ora, qual!
— Hás de ver.
— Tu és poeta e hás de ser sempre poeta, quer queiras, quer não.
— De acordo, mas poesia não quer dizer rima, poeta não é o que faz
estrofes. Há por aí muito animal que faz versos impecáveis e que tem tanto de poeta
como eu tenho de cantor de árias. A estrofe é um excipiente, é um meio de
expressão, é a plástica. O sentimento é tudo.
— A propósito de poetas: disseram-me que assassinaste aquele poeta que
andava contigo?
— Que assassinei...!?
— Sim...
— Perdão... Eu conto o caso. Esse poeta, que era o meu algoz, foi jantar
comigo e comeu desbragadamente. Só havia um prato, mas abundante: bacalhau. O
homem empanturrou-se e, à sobremesa, que constou de uma penca de bananas,
recitou-me o famoso soneto: Dor! que termina por um terceto abracadabrante:
Africana sem fim a marchar sem chapéu
Cheia de mágoa e dor a mãe tonitruosa
Uiva como uma cobra através do escarcéu...
Quando ouvi tais coisas tive ímpetos de o esganar, confesso, mas contive-
me, fui prudente. O homem, porém, depois do jantar, acompanhou-me e quis dormir
comigo. Foi. Às duas da manhã acordou ávido, pedindo água. Eu, que estava morto
de sono, disse-lhe que não tinha água no quarto. Ele uivou: "Que morria!" Para
livrar-me do monstro, disse-lhe, então: Vai ao banheiro, abre-o e bebe no chuveiro...
Disse e voltei-me para a parede recaindo no sono. De manhã o homenzinho estava
a estourar: arfava, urrava, vociferava:
Africana sem fim a marchar sem chapéu...
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Foi transportado para a casa da família em carro e curou-se. Ainda, depois
disso, ouvi o soneto tremendo. Ele morreu depois, de uma febre. Era hediondo!
Levantaram-se. A noite negra ameaçava.
— Parece que vem muita chuva. Parece.
— Vou já para casa, adeus! Vocês ficam ainda por aqui, não?
— Ficamos, disse Anselmo. Com uma noite destas não me atrevo a ir para a
Cascadura.
— Está em Cascadura?
— Estou, mas desço amanhã. Não posso morar tão longe trabalhando em
um jornal da tarde. Entrei para a Gazeta.
— Ah!
— Bem, adeus, rapazes! — disse o Freitas.
— Adeus! E nós?
— Vamos dar uma volta por aí. Adoro esta cidade à noite.
Seguiram lentamente. Fulvos relâmpagos fremiam encandecendo o céu.
Raros transeuntes, pressentindo a tempestade, apressavam o andar. De espaço a
espaço uma rija lufada levantava colunas de poeira; batiam janelas e rumores
longínquos de trovões rolavam surdamente.
— Em que jornal trabalha? — perguntou Anselmo rompendo o silêncio.
— Eu? Não trabalho em jornais. Considero a imprensa uma indústria
intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de idéias originais e
retalha-as para o varejo do dia a dia. Quando vejo um poeta ou um prosador a fazer
notícias, tenho piedade. Que diria você se encontrasse o Dalou, o grande Dalou, em
casa de um marmorista da rua da Ajuda, com um gorro de papel à cabeça, talhando,
no mármore industrial, anjos funéreos para as sepulturas de Catumbi? É ignóbil! O
jornalismo está para a Arte como um desses anjos bojudos de cemitérios estão para
o Laocoonte. Eu, se me metesse a fazer notícias, enlouquecia. Sinto-me incapaz, a
local aterra-me. Tentei, uma vez, redigir a mais simples das notícias: um caso banal
de polícia. Pois, meu amigo, saiu-me um substancioso artigo político. Quem pode
compor um período perfeito numa sala de redação, interrompendo-se, de instante a
instante, para acudir à reclamação de um sujeito que pede providências contra a
falta d'água? É hediondo!
— Pois eu vou trabalhar na Gazeta.
— Vai escrever crônicas...
— Não sei ainda.
— Não faça notícias; a notícia embota. Ataque as instituições, desmantele a
sociedade, conflagre o país, excite os poderes públicos, revolte o comércio, assanhe
as indústrias, enfureça as classes operárias, subleve os escravos, mas não escreva
uma linha, uma palavra sobre notas policiais, nem faça reclamos. Mantenha-se
artista: nem escriba nem camelote. Havemos de vencer, mas, para isto, é necessário
que não façamos concessões. O redator não quer saber se temos ideais ou não:
quer espremer. Quanto mais suco melhor. O prelo é a moenda e lá se vai o cérebro,
aos bocados, para repasto do burguês imbecil e, no dia em que o grande industrial
compreende que nada mais pode extrair do desgraçado que lhe caiu nas mãos
sonhando com a glória literária, despede-o e lá vai o infeliz bagaço acabar
esquecidamente, minado pela tuberculose.
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Um homem de talento que se mete em jornais suicida-se. Já se vê que não
me refiro aos agitadores da opinião, aos que fazem o fluxo e o refluxo das marés
sociais, esses não têm outro campo senão o jornal. Os políticos que escrevem sobre
a emoção efêmera do momento não devem fazer livros. O livro fica, o jornal passa e
raramente deixa vestígio. O artigo do dia mata o artigo da véspera, a opinião de hoje
prevalece, a de ontem morre, mas com o artista consciencioso, não. Demais, meu
amigo, egoísmo antes de tudo: o jornal é o redator político, o mais... que vale? Fica-
se sempre à sombra, por mais que se faça. Não vale a pena. O trabalho de um ano
no jornal não vale uma página requintada de um livro de Arte.
— Mas que se há de fazer?
— Escreva livros.
— Para quê, se não há quem os edite?
— Escreva contos, fantasias, crônicas.
— Não pagam. Fazem ainda grande favor quando os publicam.
— Pois, meu amigo, que me venham pedir versos ou prosa de graça. Quer
saber? Os culpados da depreciação literária são os próprios literatos: Alencar vendia
os seus romances ao Garnier por quatrocentos mil réis. Quantas edições tem O
Guarani? Está ainda na primeira e é conhecido em todo o Brasil. O editor fez com o
romance o milagre de Tiberíade: multiplicou-o. Se houvesse fiscalização a coisa
seria outra.
Chegaram ao largo do Rocio justamente quando caíam as primeiras gotas
grossas da chuva. O povo corria, metendo-se pelas casas. Tílburis passavam à
disparada e a chuva ruflava, tocada pelo vento áspero, que atirava bátegas das
lojas.
— Que tempo! — exclamou Bivar levantando a gola do casaco.
— Para onde vamos nós? Se fôssemos à Maison? Estamos encharcados.
— Queres afrontar a rajada?
— Vamos.
— Então vamos.
Encolhidos, rente das casas, saltando sobre os jorros das gárgulas, foram
apressadamente até a rua da Carioca e detiveram-se na esquina, indecisos, sem
ânimo de atravessar a rua. Já pelas sarjetas rolavam córregos grugrulhando nos
ralos dos escoadouros. Relâmpagos flamejavam e os trovões, mais próximos,
reboavam num canhoneio incessante.
— Um! Dois!... E Bivar atirou-se, a grandes pernadas, atravessando a rua
seguido de Anselmo.
A Maison transbordava. Os dois, escorrendo, relanceavam olhares
pesquisadores quando ouviram um "psiu" e logo descobriram Patrocínio, num grupo,
a uma das mesas do centro.
— Eh! Cheguem-se ao Ararat.
— Ora! Apanhamos esta carga de água nas costas.
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Eram do grupo o Lins, o Neiva, Ruy Vaz, o Duarte e um rapaz alto e claro,
de olhos miúdos e espessos bigodes negros, muito reluzentes; largo feltro desabado
escondia-lhe a fronte.
— Conhecem o Luiz Moraes? O grande poeta republicano? Anselmo Ribas,
Octavio Bivar.
O poeta dos grandes bigodes entendeu a mão aos rapazes e resmungou
uma amabilidade. Sentaram-se. Os caixeiros substituíam os copos e as garrafas.
Patrocínio estava com a palavra.
— Falávamos do jornal...
— Novos planos?
— Novos e verdadeiros. Dizia eu que se pudesse contar com todos vocês
faria o primeiro jornal da América do Sul. Com dois anos de trabalho estávamos
todos ricos, fretávamos um vapor e partíamos para a Europa.
— E a abolição, José?
— A abolição está feita. E questão para mais uns meses.
— Pois sim!
— Pois sim? Mas que há de fazer o governo constrangido, como está, pela
opinião pública? O Norte já se manifestou e o Sul há de acompanhá-lo. Demais,
meu amigo, o escravo já não é um submisso, é um revoltado. Nas fazendas cada
negro é um combatente e o êxodo aí vem. Quando começar o abandono da terra,
não um a um, mas aos bandos, ostensivamente, em face dos senhores que não hão
de querer jogar a vida, que há de fazer o governo? Mandar contra os que defendem
um direito sagrado a tropa armada? Não! E ainda que mande: conheço o exército,
sei que nenhum soldado se prestará a exercer o ofício miserável de capitão-do-
mato. A abolição é uma questão vencida.
— Deus queira!
— Depois da abolição a república, rosnou Moraes.
— A república! — exclamou o Lins, assombrado.
— E por que não? A república, sim! — afirmou o poeta assomado. Quer
você que continuemos com um rei de burla e com uma freira melomaníaca? Está
enganado. Pego em armas, se for preciso.
Ora, Luiz... ia a dizer o Neiva, contrariando o poeta; ele, porém, atirou um
murro à mesa e, erguendo-se, com os bigodes arrepiados, os olhos fuzilantes,
bufou:
— Pego em armas e em você também, pelo cós das calças, está ouvindo?
Em você mesmo!
Ruy Vaz interveio:
— Que é isto? Já vocês começam.
O Neiva levantou-se, distribuiu apertos de mão:
— Boa noite... boa noite. E encaminhou-se para a porta.
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— Pois não! Este senhor entende que há de sempre impor a sua opinião.
Onde ele está ninguém mais fala. Pego em armas! Que tem ele com isso? E se me
aparecer pela frente, quando estiver defendendo os direitos do Homem, prego-lhe
uma bala no fígado.
— Mas Luiz...
— No fígado, já disse. Em política e em Arte sou intransigente. Mas o Neiva
voltou:
— Se não estivesse chovendo tanto eu mostrava. Sentou-se.
— Mostrava... mostrava o quê? Homem, você não me aborreça.
— Mas quê é isto, gente...
— Ó Luiz, pelo amor de Deus, deixa-me em paz.
— Pois é isto! Não me contrarie. Tome a sua cerveja muito quieto e deixe-
me cá com as minhas idéias. Eu sou pior que Cimourdain. Estendeu o braço sobre a
mesa e, com uma voz cavernosa, disse: — Prestigio a lei! Mas esta gente não
estuda. Fala-se em evolução e ficam todos embasbacados. Leiam Spencer.
Mas o Patrocínio conseguiu desviar a conversa para a literatura, e, à meia
noite, tendo cessado a chuva, quando se levantaram, o Neiva, muito misterioso, de
braço com o Moraes, oferecia-se para levantar uma barricada na rua do Ouvidor,
esquina do largo de S. Francisco e o poeta respondia:
— E lá me hás de achar com as armas na mão.
— Correto! Então está feito?
— Está feito, por que não? E pôs-se a cuspinhar.
— Para a vida e para a morte!
— Para a vida e para a morte!
E despediram-se. Anselmo seguiu só para o hotel, pensando nas palavras
de Bivar: "Não faça notícias, a notícia embota."
Uma lua sinistra rolava entre grossas nuvens e as goteiras pingavam
lentamente.
CAPÍTULO XIV
Anselmo estreou na imprensa com um piedoso artigo sobre os velhos
negros. Antes de o mandar para a tipografia quis ouvir a opinião do Patrocínio. O
jornalista, às últimas frases do escrito patético, atirou-se ao escritor aos beijos,
sagrando-o em presença do vesgo que redigia o noticiário, cujas notas um magro
repórter ia cavar nas delegacias trazendo-as esparsas pela camisa, nos punhos, no
peito porque, com a precipitação, nem tempo lhe sobrava para procurar papel.
Anselmo esperou, com ânsia, o jornal e, quando o primeiro rolo apareceu no
escritório, avançou, sôfrego, para o balcão, tomou uma folha e saiu triunfante indo
para o Pascoal ler aos do grupo, os "períodos dourados".
Justamente nesse tempo a campanha abolicionista chegara à sua maior
intensidade. À luz do sol, nas ruas, concitava-se à revolta. Para os lados da Gávea,
em frente ao mar livre, no Leblon, havia um quilombo mantido pela Confederação
Abolicionista e, no escritório da Gazeta da Tarde, que era o grande homizio de
Chan, negros e negras, sentados melancolicamente, fumavam esperando que lhes
dessem destino. Eram constantes os conciliábulos, falava-se em furtos de escravos;
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e gente de todas as castas prova os redatores denunciando crimes de escravagistas
despeitados. A polícia punha em campo os seus esbirros mais sagazes mais
atrevidos capoeiras para desfazerem as reuniões e interromperem as conferências
espavorindo o povo.
Patrocínio, convidando outros chefes da propaganda, resolveu um grande
comício no Politeama, à noite. Todos os jornais abolicionistas anunciaram e, no dia
aprazado, à tarde, um homem misterioso apareceu na redação para prevenir o
intrépido jornalista: "que uma grande malta estava assalariada para invadir o teatro
no momento em que o primeiro orador aparecesse na tribuna".
Patrocínio transmitiu o aviso aos companheiros e à noite, com estandartes,
seguiram todas as sociedades abolicionistas para rua do Lavradio.
O imenso barracão regurgitava quando assomou à tribuna Quintino
Bocaiúva, calmo, dirigindo-se ao povo em frase sóbria e ponderada.
Repentinamente, porém, uma grita, à porta, alvoroçou o auditório. Eram os
capoeiras comandados por Benjamin.
Aos gritos da malta respondeu o povo com assuada tremenda. Anselmo
estava em um dos camarotes da entrada e, num ímpeto, tomou uma cadeira
arremessando-a no meio da farândola. Foi o sinal da luta. O povo avançou em
coluna e começou o combate.
Navalhas reluziam, tiros estrondavam, cadeiras entrebatiam-se, partindo-se
no ar, violentamente arremessadas. Em pouco os destroços formaram alta barricada
por trás da qual o povo continuava a defender-se heroicamente. Anselmo, já rouco,
bradava contra a infâmia. De repente, empunhando um pé de cadeira, atirou-se
arrojadamente do camarote caindo no meio do grupo a desancar, apouco. Vários
populares seguiram-lhe o exemplo temerário e, na estreita passagem, travou-se uma
luta tremenda sendo os capoeiras repelidos.
Só então apareceu a polícia azafamada, atirando os cavalos sobre o povo.
Houve protestos, ameaças: por fim, na platéia, uma voz bradou possantemente:
"Abaixo o rapa-côco! Morra o escravocrata!" E um clamor tormentoso de duas mil
vozes furentes atroou "Morra!" Mas vários "psius" silvaram. Voltaram-se todos para a
tribuna: Quintino Bocaiúva, calmo, ereto, alisava a barba. Palmas estrepitaram e, o
orador, retomando serenamente o fio do discurso, continuou a demonstrar que a
causa dos escravizados, que todo o Brasil adotara, havia de vencer, embora a
polícia, pactuada com os fazendeiros, procurasse, por meios criminosos, sustar a
marcha vitoriosa da idéia. Seguiu-se com a palavra José do Patrocínio que lançou
um repto à monarquia: "Ou cede à vontade do povo ou cai. Citou Quinet,
reproduzindo a imagem do oceano que se vai impondo a pouco e pouco, subindo
degrau a degrau, ameaçador e sinistro e, terminando, anunciou, para muito breve, a
Redenção da Pátria Brasileira."
À saída, como circulasse o boato de que a malta estava à porta armada,
para desfeitear os oradores, o povo reuniu-se e desfilou arregimentado, levantando
vivas aos heróis da noite.
Anselmo, com as roupas retalhadas, sem chapéu, vociferava e, diante do
edifício da Polícia, levantou um — morra! desesperado que, por felicidade, não lhe
saiu da garganta, tão rouco estava.
Na redação, onde ficaram um momento repousando, Patrocínio e outros
chefes abolicionistas, comentaram a bravura do escritor: "Não o julgavam tão
valente..." Anselmo estava alucinado: "Queria ir à Polícia! Queria encontrar o
Benjamin para quebrar-lhe a cara." E fulo, suado, esbaforido, com os olhos
coruscantes, brandindo a bengala lascada, rugia:
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— Parto-lhe a cara! Se é homem também eu sou! Parto-lhe a cara! Num
salto ágil quis ganhar a porta. Detiveram-no a tempo, ele, então, aos arrancos,
falando para o povo que enchia o escritório, contou os seus feitos abolicionistas.
— Também acoitei escravos! Estão aqui oito que mandei de S. Paulo... e hei
de acoitar. Canalhas! Parecia louco.
— A escravidão é um roubo! — esgoelou um velhote agitando o guarda-
chuva.
— Apoiado! — bradaram todos e o velho, inspirado, pôs-se a esganiçar do
meio da turba, espichando a cabeça, sacudindo em uma das mãos a cartola e na
outra o guarda-chuva:
— Patrocínio, teu nome há de ficar gravado no Panteon da História do Brasil.
Tu és a nossa esperança... Não desanima, Patrocínio, meu velho, e, no dia em que
for necessário um homem para combater a teu lado, conta comigo! O Januário,
Patrocínio... O Januário calafate! O guarda-chuva e a cartola dançavam acima
cabeças e o velhote, frenético, energúmeno, já rouco, urrava: Conta comigo... E
estertorou: "Viva José do Patrocínio... gente!" Todos bradaram. "Oôôôh!" Mas a
reunião começava a tornar-se inconveniente. Gritos sediciosos rompiam por vezes:
"Morra o carrasco!... Viva a República!" Patrocínio dirigiu-se povo pedindo calma.
Vários vivas atroaram e a multidão foi escoando até que recaiu o silêncio. A patrulha
passeava rua abaixo, rua acima.
— Menino, você é uma fúria!
Anselmo procurava compor o casaco estraçalhado.
— O diabo é que não tenho outro casaco e perdi o chapéu.
— Não tens outro casaco?
— Não.
— Quem não tem roupa não se mete em camisa de onze varas, disseram.
— Oh! És tu, Lins?
— Sou eu. Venho oferecer-te o meu braço forte.
Num rápido olhar Anselmo compreendeu que o poeta não estava em estado
de lhe oferecer socorro.
— Amanhã mando levar um casaco à tua casa, disse o Patrocínio.
— E um chapéu, ajuntou Anselmo.
— Queres tomar um tílburi?
— Acho melhor.
— Toma. Tenho aqui pouco, mas chega. Não estás ferido?
— Não.
— Então vai.
— Até amanhã. Olha o casaco.
— Não há dúvida.
À porta, o Lins, agarrado ao braço de Anselmo, oscilava, risonho e baboso,
oferecendo-lhe o braço forte:
— Estou danado! Sou capaz de agarrar um permanente por uma perna e
bumba! Abaixo do cavalo! Não imaginas! Quando eu tinha quinze anos derrubava
touros a murro. Estou danado! Perdeste o chapéu?
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— Perdi.
— Queres o meu?
— O teu? E tu...?
— Eu? Já estou de touca, não faz mal. Rompeu a rir, às guinadas,
pendurado ao braço de Anselmo. É isto: não posso comer feijoada, fico logo assim.
— Foi então a feijoada que te pôs nesse estado...?
— Foram os pertences. Vendo, porém, que Anselmo encaminhava-se para o
meio do largo, fez um esforço e deteve-o: Onde vais?
— Vou tomar um tílburi.
— Qual tílburi! Vamos tomar outra coisa: um conhaque, por exemplo.
— Não, não posso. Olha como estou. Queres que me vejam assim roto?
— Que tem? Há razões gloriosas. Eu hoje estou danado! Vou dormir
contigo. Há espaço na tua cama?
— Pois não.
— Então vou. Não posso dormir no meu quarto: é cada mosquito que parece
um frango. Quando ouço a zoada vou devagarinho com a mão, agarro o bicho pelas
pernas e zúquite! Dou com ele na parede e esborracho-o. Vamos tomar alguma
coisa.
— Não, Lins; estou fatigado. Vamos ver se o cocheiro nos leva no mesmo
tílburi.
— Eu não peso nada. Posso ir ao colo.
Felizmente Anselmo encontrou um cocheiro amável. Mas que trabalho para
acomodar o Lins!
— Para onde vamos?
— Rua do Riachuelo.
— Olhe, cavalheiro, vá devagar porque a rua está jogando muito.
Decididamente não posso comer feijão. Estou danado! Que morro é aquele alto?
— Onde?
— Ali! Não estás vendo as luzes?
— Que morro? Que luzes? Não vês que são estrelas?
— Estrelas?! É verdade! Estrelas... Mas como o céu é alto, hein...! Que
horror! Mais devagar, cavalheiro. Queres saber? Há dias, quando eu voltava para
casa, às cinco da manhã, encontrei um cavalo de tílburi deitando fumaça pelo nariz.
O seu cavalo fuma, senhor? Mais devagar... Homem, tu moras na rua do Riachuelo
ou na estação do Riachuelo? Parece que estou andando desde o princípio do mês.
— E tu pesas, Lins!
— Não sou eu, filho, é a cabeça... Uma feijoada completa, imagina!
— Aí! Pare.
Que trabalho para descer o Lins e para deitá-lo, que trabalho!
CAPÍTULO XV
Uma tarde, terminado o trabalho da redação, Anselmo descia a rua do
Ouvidor quando se sentiu agarrado por um pulso formidável. Voltou-se
impetuosamente e deu com Luiz Moraes, sempre carrancudo:
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— Onde vais?
— Não tenho destino. Estou arejando o cérebro.
— Dize-me cá: Fortúnio falou-me de uns contos teus que foram rejeitados
por certo jornaleco.
— Sim, não são propriamente contos: são umas ligeiras fantasias. Por quê?
— Eu te digo. Vamos aqui um instante. Tenho de esperar o Artur. Já
conheces o Artur?
— De vista.
— Excelente rapaz e magnífico poeta. Seria um dos primeiros líricos
americanos se, por vezes, não rebaixasse a lira a violão zingareando chulas para o
populacho. Um poeta não deve descer à multidão, a multidão é que deve subir ao
Parnaso para ouvi-lo. Tomarias a sério Petrarca ou Musset tocando na orquestra
para ritmar o passo bambo de uns tantos saltimbancos? Não, por certo. A arte é
hierática. O poeta é sacerdote: oficia para o coração e o Artur não é só um poeta, é
um grande poeta: natural, correto, suave e brilhante. Acho que não devia escrever
para o teatro. Ficasse nos sonetos.
— Il faut vivre, mon ami.
Ora! Il faut vivre! E eu? Não estou aqui? E Deus me livre de escrever uma
linha para o teatro, não que deteste a literatura dramática, mas não temos
intérpretes. Um poeta não deve descer à imbecilidade erótica do maxixe. Faça
versos honestos, escreva poemas, isso sim. Vamos tomar alguma coisa.
Entraram na Maison Rouge. A casa era sombria e lúgubre como uma adega.
Estava deserta; tomaram uma das mesas e Anselmo, puxando uma cadeira, disse
em tom sentencioso:
— Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, disse o Cristo.
Ao povo dá ele as revistas, à Arte dá os esplêndidos versos que tanto exaltas.
— E com razão porque são admiráveis. Mas eu fico indignado quando ouço
um bom verso estropiado por um palhaço. Um alexandrino na opereta! Sabes que
me lembra? Um leão das montanhas com a sua juba dourada, virando cambalhotas
num circo ou correndo cavalgado por um macaco. O verso alexandrino é nobre, fez-
se para os lábios de um Leconte e não para a boca desdentada de um histrião de
feira.
É natural que a Sarah recite as estrofes do grande "Impassível", mas um
clown que declamasse Bhagavat faria estourar de riso um frade de pedra. Senhor,
poeta é poeta! Só então o Moraes viu que o caixeiro estava de pé, junto à mesa,
esperando ordens: Homem estavas aí...? Está bem; não perdeste o teu tempo,
sempre ouviste alguma coisa aproveitável. Dá-nos cerveja.
E, cuspinhando, continuou:
— Tenho dito ao Artur: Que diabo! Tu que tens tanto talento por que não
deixas essa borracheira de teatro? Escreve versos, que os fazes admiráveis, lida
com a tua musa delicada e abandona de vez esse rancho de cabotinos... Mas o
homem está viciado. O escritor habitua-se com o meio que o aplaude e, para o não
perder, vai cedendo à larga, até que um dia nivela o seu espírito com o da gente
ignóbil e adeus! Foi-se! Perdido. E como o homem que se vicia com a morfina. Há
glórias afrontosas, eu penso assim. O Artur é homem para ser aplaudido por nós, e
prefere ao nosso julgamento o barbarismo idiota das platéias. Vício.
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— Mas que há de ele fazer se os nossos teatros não aceitam peças
literárias? Consta-me que ele tem uma tradução magnífica de Molière, em verso.
— Uma não, várias.
— Então...
— Mas escreve revistas.
— Para ganhar.
— Faz mal! Um poeta como ele não transige.
— Mas... E sobre os contos?
— Ah! Sim. Vamos fundar uma revista literária. Temos aí homem que está
entusiasmado e quer tentar a aventura... Vai ganhar dinheiro, afirmou o poeta
torcendo os fartos bigodes. Estamos resolvidos a trabalhar de graça nos primeiros
tempos, mas depois ele há de entrar com o cobre... O caso é este: Resolvemos, o
Artur e eu, fazer um jornal novo, com idéias novas... Nada de antigualhas, e
queremos arrebanhar todos esses rapazes que andam por aí cheios de talento, mas
repelidos, porque ninguém quer tentar a experiência. Aqui é assim — só têm talento
os de um certo grupo da rua do Ouvidor. Ali estão os romancistas criadores, os
poetas incomparáveis, os mestres da crítica... Uma súcia de bestas que vive num
elogio recíproco, escancarando as mandíbulas em hiatos encomiásticos, ao coxear
dos versos cambaios ou ao chirinolar do período fanhoso e vazio do primeiro mu que
zurra. Uma cáfila! Vamos cair sobre a súcia a golpes de talento. E havemos de
desbaratá-la, porque não vale nada. Gente que não lê, gênios sem sintaxe, águias
com penas de ganso. O Artur está disposto a começar a razia. Vais ver o estouro e
eu quero os teus contos.
— Pois não.
— Publico-os e fico à espera da crítica. Também se vier algum, dou-lhe
tamanha tunda que ele nuca mais se mete em coisas de Arte.
— Que título tem a revista?
— Vida Moderna. Vai sair magnífica, hás de gostar.
— Você e o Artur?
— Eu e o Artur.
— Pois trago amanhã os contos.
— Quantos tens?
— Cinco ou seis.
— Pois traze todos amanhã e vais ver como se desmantela uma igrejinha.
Conto com pouca gente, mas sou como Gedeão: nada de fracos na falange, nada
de exércitos de Xerxes — um pugilo de espartanos. Eles lá têm gente a valer... Mas
que gente! Enfim, trazes amanhã sem falta?
— Sem falta.
— O jornal deve sair no sábado.
— Trago amanhã.
Anselmo ia levantar-se quando apareceu o Artur. Gordo e sangüíneo, o rosto
largo, expressivo, apresentava-o como um perfeito exemplar dos filhos da Provença
dourada do Brasil, que é o Maranhão, terra de sonhadores, onde as lendas pululam
e a poesia é a linguagem comum dos que vivem nos campos largos, à grande luz do
sol, ou ao pálido luar sem névoa. Os olhos vivos pareciam guardar ainda um pouco
de cintilação dos dias equatoriais, a fronte vasta, os cabelos negros, violentamente
atirados para trás, reluzindo com brilho próprio. Sentou-se acaçapado, olhando por
cima das lentes do pince-nez de tartaruga que lhe escorregava do nariz. De quando
em quando erguia a cabeça com ímpeto, como se o ar lhe faltasse, com a mão
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espalmada derreava os bigodes ou alisava os cabelos. Moraes balançava a perna,
passando o índex pela mesa.
— Então?
— Aqui estou. Que há de novo?
— Está tudo feito.
— Falaste ao Lombaerts?
— Para quê? Pois ele não te disse que podíamos mandar originais?
— Sobre o formato do jornal, sobre a escolha das gravuras?
— É ilustrado? — perguntou Anselmo que se havia conservado calado.
— Ilustrado. Homem, vocês não se conhecem ainda.
O Artur encarou Anselmo.
— Anselmo Ribas, foi companheiro de casa de meu irmão.
— Pois não. Trocaram um aperto de mão.
— Vem trabalhar conosco, disse o Moraes, acrescentando: Tem talento.
Mas vamos ao caso. Estás disposto a abrir luta?
— Acho que não convém.
— Ora! Não convém... Mas, seu Artur, nós havemos de deixar que um
bando de imbecis viva por aí, com muita empáfia, inculcando-se diretor do
movimento intelectual? Sujeitos sem valor, rimam baboseiras e escrevem uma prosa
mais chata do que o diabo?
— Que temos nós com isso?
— Que temos?! Se não aparecer um homem de coragem que se ponha à
dominação da grei dos turiferários ficamos reduzidos a quê, faça favor de dizer, a
quê? Não, senhor: vou ser implacável. Se tivessem talento, muito bem, mas são
todos uns nulos, sem originalidade, sem estilo e pretensiosos como tudo. Chefes...!
Ora pelo amor de Deus!
— Mas, Luiz, eu não te entendo. Combates agremiações literárias, achas, e
com razão, que a coterie esteriliza...
— É indecente!
— É indecente, e alicias um grupo, organizas uma coterie, respondes ao mal
com o próprio mal. É esquisito. Vamos trabalhar sem idéias preconcebidas; nada de
lutas. Para que nos havemos de indispor com os rapazes que não nos fazem mal?
Não há razão...
— Pois eu rompo! E começo pelo chefe: derrubado o bonzo vem abaixo o
pagode. Seu Artur, eu não sou literato de catálogo — estudo e não ando por aí a
apregoar que os meus versos são os mais belos da língua portuguesa e aqui
ninguém os faz melhor, nem aqui nem lá... nem lá! Entanto estou calado, não ando a
esmolar elogios. Se aparecem artigos nos jornais a meu respeito são escritos
espontaneamente pelos que se impressionam pelo meu verso. Por que não fazem
eles o mesmo? Não! E um nunca acabar de elogios, é um Te-Deum laudamus que
não tem fim. Rompo! Rompo e esbodego aquilo tudo!
— Faze o que entenderes: eu não concordo.
— Pois concordo eu.
— Ah! Sem dúvida: hás de concordar contigo. Mas vamos a saber: já tens o
artigo?
— Que artigo?
— De apresentação?
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— Qual artigo de apresentação: digo duas coisas: os intuitos literários do
jornal e nada mais.
— Pois é isso.
— E tu?
— Eu dou a crônica, um soneto...
— Podias dar um trecho da tua revista.
— Como? Pois não te cansas de dizer que devo abandonar esse gênero e
queres dar, no primeiro número do jornal, um trecho da ignomínia?
— Perdão, eu digo mal das revistas, mas elogio incondicionalmente o teu
verso. Aquele monólogo do Prólogo é um primor. Não concordo com as cantorias,
isso não, mas dou o justo valor à obra da Arte.
— Bom, estamos combinados.
— Perfeitamente.
Artur voltou-se para Anselmo:
— Em que jornal está escrevendo?
— Na Gazeta da Tarde.
— Faz uns folhetins aos sábados. Tem talento, mas abusa muito do adjetivo
e tem a mania do Oriente.
— É a coqueluche literária.
— Mas vicia.
— Não, é um meio fácil de fazer vocabulário: ensaio-me no descritivo para
ganhar vigor, colorido e ductilidade.
— Não, você é exuberante, é excessivo. Senhor, o ideal do artista deve ser
a simplicidade. Há a simplicidade-pobreza, que facilmente se reconhece e há a
simplicidade-distinção; e é mais fácil ser sóbrio do que ser abundante. A idéia só se
manifesta num termo, o resto, versas. Mas vocês não entendem assim: para
exprimirem a coisa mais comezinha deste mundo deitam abaixo dicionários, é uma
mania. O Artur levantou-se: Já vais?
— Já, tenho ainda a minha seção.
— Então não queres romper?
— Não, não vejo motivo.
— Ah! Não vês?
— Não vejo. E uma agressão injustificável.
— Pois sim.
O Artur levantou-se, ofereceu a casa a Anselmo e, despedindo-se do
Moraes, disse sorrindo:
— Então estás decidido a demolir?
— A arrasar!
Ainda o Artur não havia desaparecido, quando Anselmo se pôs de pé,
resolutamente:
— Adeus! Não me posso demorar mais. Tenho um amigo à minha espera.
— Quem é?
— O Estêvão.
— Que Estêvão?
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— O pintor.
— Ora! Deixa o pintor, vamos conversar.
— Não posso; e já vou tarde.
— Que horas são?
— Três e meia.
— Chii! Adeus! Até amanhã. Olha os contos.
— Não esqueço.
Saiu apressado porque, efetivamente, prometera estar às três horas com o
pintor para ver a sua última composição.
CAPÍTULO XVI
O atelier era na rua General Câmara, um pardieiro sombrio e lôbrego. Subia-
se por uma velhíssima e desconjuntada escada que rangia e estalava, ameaçando
ruir. Ao alto tomava-se um corredor onde nunca havia entrado raio de sol, direito aos
aposentos do artista negro.
Na sala, iluminada por duas janelas, tinha ele o cavalete e o banco. As
paredes estavam literalmente cobertas de trabalhos: eram telas de gênero, algumas
em moldura, esboços a carvão, manchas, desenhos, caricaturas, vários estudos do
natural, entre os quais uma expressiva cabeça de lazarone. Mas o que atraía os
olhares era a grande quantidade de frutas: abacaxis, mangas, algumas descascadas
mostrando a polpa dourada, racimos de uvas, pencas de bananas, cachos de
ameixas, corbelhas de morangos, cajus, melões, melancias, todos os dons de
Pomona ali estavam esplendidamente copiados. O Lins costumava dizer, quando ia
ao atelier do artista: "Vou hoje à quitanda."
Quando Anselmo entrou, o pintor, de pé no meio da sala, cujo soalho
desaparecia entulhado de papéis, contemplava o quadro que terminara.
— Cá estou.
O pintor voltou-se surpreendido e, dando com o rapaz, avançou sorrindo, de
mãos estendidas. Estava em mangas de camisa, descalço.
— Oh!
— Já não contava comigo?
— Não, contava.
A sala tresandava a terebintina. Um gato gordo, deitado sobre larga pasta
atochada, lambia as patas preguiçosamente.
— Está aqui a obra, disse o pintor timidamente. Era uma grande tela de um
metro: frutas — enorme cesto transbordante: mangas, abacaxis, laranjas, uvas,
pitangas. As cores eram admiráveis e sentia-se a pubescência dos pêssegos, as
pitangas eram como grossas gotas de sangue — uma maravilha! Anselmo teceu os
mais vivos elogios ao artista.
— Magnífico! O Lins já me havia falado.
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— Ah! O Lins é muito meu amigo. Anselmo sentou-se no tamborete diante
da tela e o artista continuou, sorrindo: O Lins, grande pândego! Já me pregou uma
peça...
— Que foi?
— Ora! Troça. Encomendaram-me um quadro — o Lias estava passando
uns dias comigo, depois da cena em casa do Madeira. Tratei de escolher as frutas.
Como o amador era inteligente e rico escolhi o que havia de melhor: pêras, uvas,
mangas, marmelos, metade de um melão que arranjei, por muito favor, num hotel
conhecido, figos e por aí... Fiz um embrulho cuidadoso e trouxe tudo para a casa.
Como era tarde não quis começar o trabalho e saí para jantar. Levaram-me ao
teatro, andei em pagode até às tantas! Quando cheguei à casa já o Lins dormia
profundamente. Acordando, tratei de ver se as frutas haviam sido tocadas pelos
ratos e achei apenas os marmelos e duas talhadas de melão. Eu não tinha mais
vintém... Imagine! Fiquei desesperado. Despertei o Lins.
— Foste tu que comeste as minhas frutas?
— Hein?
— As frutas.
— Comi ontem.
— Ora, Lins... Eram os modelos.
— Que modelos, homem?
— Para o meu quadro.
— Eu logo vi que eram frutas de quadro porque as mangas sabiam
horrivelmente à tinta a óleo.
— E agora? Como há de ser?
— Não pintes frutas: apodrecem depressa. E voltou-se para a parede.
— E como te arranjaste?
— Fui ao amador e pedi que me adiantasse alguma coisa para comprar
outras frutas. Comprei e o Lins, logo que as viu, muito guloso, pediu-me que, ao
terminar o trabalho, não me esquecesse de lhe dar os modelos. Terrível!
— E o caso do Madeira?
— Não conhece?
— Não.
— Esse é mais sério. Custou-lhe uma sova.
— A quem? Ao Madeira?
— Não, ao Lins.
— Como?!
— O Madeira é um velhote alegre que costuma festejar o S. João com
fogueira e comeizana, no seu chalé da rua dos Coqueiros. Tem em sua companhia
uma irmã solteira, dama quarentona, de muita virtude. Pelo que ela diz: está solteira,
não por falta de noivo, mas porque fez voto de castidade: apareceram-lhe vários
partidos, alguns vantajosos e ela sempre firme no seu voto. Vive com o irmão e com
a cunhada. O Lins foi levado a uma das tais festas de S. João à casa do Madeira e
portou-se galhardamente. Ali pelas tantas da noite, se o não agarrassem, teria
saltado a fogueira, apesar da perna dura e da vinhaça: estava como louco.
Saíram todos os convidados, ele foi o último a despedir-se. Na ocasião de
retirar-se, não conhecendo bem o chalé, em vez de tomar pela porta da rua, meteu-
se por outra. Fechada a casa, quando a irmã do Madeira, em camisa, recolheu-se
ao leito, deitou-se em cima de um homem. Um grito de pavor e de pudor ofendido
alarmou a casa — acudiram todos: o Madeira com uma bengala nodosa, a mulher
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com uma vela e a pequenada berrando. A pobre senhora, trêmula e pálida, olhava
assombrada, encolhida, tiritando a um canto. Quando o Madeira entrou, o Lins
estava sentado na cama, também assustado.
— Que é isto, senhor? — urrou o Madeira indignado. Pois eu recebo-o na
minha intimidade, com toda a delicadeza, para o senhor ultrajar uma senhora
respeitável, que podia ser sua mãe?
— Ultrajar?! Como? Eu ultrajei! Eu não ultrajei... não me lembro!
— Não se lembra?! Com que intuitos procurou o senhor este leito cândido?
— Eu não procurei nada, eu achei.
— E com que intenção se deitou?
— Eu? Sei lá!
— Ah! Não sabe? Pois sei eu. E o Madeira vibrou a bengala. O Lins,
sentindo a bordoada, levantou-se de um salto:
— Espere! Não bata! Não bata! Espere, eu explico-me. Não bata assim, eu
sou seu hóspede...
— Então explique-se.
— O senhor disse que eu ultrajei a senhora...?
— Sim, senhor!
— Pois não briguemos por isso: se eu ultrajei, caso. Disse-me o velho
Madeira que custou a conter o riso, mas para manter a força moral, agarrou o Lins
por um braço e levou-o até à porta da rua. A pobre senhora ficou de cama e mandou
rezar uma missa em ação de graças por ter escapado com o seu voto incólume.
— É fantástico!
— Isso não é nada. O Lins tem casos interessantíssimos: é a vida mais
cheia de peripécias cômicas que conheço. Sabe que ele anda agora apaixonado...?
— Por uma menina, uma vizinha.
— Sim, que tem a perna direita como ele tem a esquerda. Diz ele que vai
casar para estabelecer o equilíbrio.
Riram, mas Anselmo levantando-se, lançou um olhar de inspeção às
paredes do atelier e, plantando-se no meio da sala, perguntou:
— Então já se pode viver da pintura no Brasil?
O pintor encarou-o com espanto e baixando a cabeça, sorriu tristemente.
,
— Não entremos nesse particular, meu amigo. Se alguém vive de quadros
no Brasil não é propriamente o artista, é o dourador. Vou contar um fato significativo
e perfeitamente característico. Um dos homens que, entre nós, passam por
entendidos em Arte, encomendou-me um quadro para a sua galeria, mandando-me,
num envelope, um barbante que era a medida da tela e explicava: "Faça-me o
quadro pela medida que aí vai, nem mais, nem. menos, porque é o espaço que
tenho na parede." Comecei o trabalho e confesso que não fui de todo infeliz... se as
frutas não eram como as do Paraíso nem por isso mereciam ser atiradas ao lixo.
Envernizada a tela, mandei um aviso ao homem que, três dias depois, apareceu
aqui. Mostrei-lhe o trabalho. Ele, com um ar entediado, pôs o pince-nez e, sem dar
atenção à tela, fitou-me o olhar sobrecenho:
— Mas não está pronto.
— Sim, senhor.
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— Como! E a moldura?
— Ah! O senhor queria que eu pintasse a moldura?
— Não que a pintasse, queria uma moldura dourada de um palmo. Não veio
a medida?
— Não, senhor, talvez tenha ido para a casa do Vieitas.
— Ah! Bem... E, sem mais preocupar-se com o trabalho, contando as notas,
insistiu: E o senhor cingiu-se à medida?
— Estritamente: nem mais nem menos. Aí tem o senhor. Para o homem o
que ali estava eram um metro e 75 de pano, nada mais. Quem vive de Arte? Dois ou
três favorecidos e não os de mais talento. O Firmino Monteiro, que é um esforçado,
não consegue colocar os seus quadros e é um artista de merecimento, talvez o mais
consciencioso dos nossos pintores históricos. O seu Vercingetorix lá está enrolado,
a um canto do atelier, porque não há um homem que tenha uma parede bem larga
para a formosa tela. Estou certo de que se o meu amador a visse mandaria retirar
uns quatro ou cinco legionários dos que acompanham, à presença de César, o
Chefe dos cem vales, para encravar a tela entre outras, disparatadamente. As
minhas frutas estão entre a cópia de uma batalha, de Detaille e uns touros, de um
pintor inglês. Por cima uma marinha do De Martino e, por baixo, uma gouache: o
Rialto. Não há gosto artístico — o quadro é uma ostentação. Não há quem diga:
Tenho aqui um original de fulano. Dizem todos: Estão aqui tantos contos de réis.
Infelizmente esta é a verdade. É possível que venhamos a ter um público que dê
apreço à obra de Arte, por enquanto temos apenas vaidosos que entendem tanto de
pintura como eu entendo o grego. Agora, já que ferimos este ponto, vamos à
verdade: Também não temos Escola. Aquilo que há ali na travessa das Belas Artes
é um Asilo de mentecaptos. O governo, querendo proteger uns tantos homens,
nomeou-os para as diferentes cadeiras do ensino artístico e, sob a cúpula daquela
casa silenciosa, durante os dias lentos do ano, uma turma de rapazes desenha
academias. Raramente ali aparece um modelo. Não há quem se lembre de haver
feito uma excursão ao campo, de sorte que os rapazes, habituados ao exercício
passivo da cópia, naquela penumbra sonolenta das salas, quando chegam ao
grande ar, em face da natureza forte, cercados da luz viva, ficam encandeados e
são incapazes de transmitir à tela a menor impressão de água, de céus, de campos
ou de arvoredo. Uma folha que se agite basta para os desnortear, os olheirões de
água dão-lhes vertigens, os matizes de uma campina deixam-nos assombrados, e o
governo continua a manter aquele mosteiro de Apolo de onde saem apenas
copiadores. Se um rapaz tem decidida vocação para a Arte faz como o Castagnetto
— rasga a matrícula, mete-se num bote e, águas em fora, com as suas telas e os
seus pincéis, uma merenda frugal e a caixa das tintas, vai pintar ao sol, sobre as
águas, trazendo-nos, ainda com o cheiro das brisas salitradas do mar largo, essas
esplêndidas marinhas, ou faz como Parreiras que, de quando em quando, abala
para a floresta de onde volta sobraçando uma porção de estudos do natural. Há
verdadeiros talentos na Academia, mas murcham logo que se habituam àquele meio
merencório e sombrio onde há apenas cabeças pagãs estampadas em papier
maché e bustos de gesso, que são verdadeiras ignomínias. O público, que vai às
exposições anuais daquela casa, porque entende que Arte é o que lá está, não pede
senão coisas que se pareçam com aquilo. A Academia é a mais terrível inimiga do
artista.
— E afinal, como vive?
— Eu? Assim. Aqui pinto, aqui durmo; saio apenas para comer, quando é
possível. Agora, felizmente, tenho dois discípulos: um dá-me o jantar...
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— E outro o almoço...?
— Não, o outro paga-me.
— Então não vive exclusivamente dos frutos do seu trabalho...
— Homem, dos frutos fica-me a casca, que é amarga.
— E esse novo quadro?
— Está vendido.
— Bem?
— Nem por isso: calculo em duzentos a duzentos e vinte mil réis.
— Como isso?
— Eu digo. Sabe que estive à morte, com uma congestão pulmonar..
— Quando?
— Há uns seis meses.
— Não sabia.
— Pois estive por um fio. Estava sem vintém; pedi a um amigo que me
vendesse algumas telas pelo preço que encontrasse. Mas... que deu isso? Um
quadro de um metro, falo agora como o amador, foi vendido por cento e cinqüenta
mil réis e as receitas sucediam-se. Já não havia meio de aviá-las quando o meu
companheiro lembrou-se de pedir um pequeno crédito ao farmacêutico, tomando a
responsabilidade da dívida, caso eu falecesse. O homem é generoso, aceitou. Logo
que me restabeleci fui entender-me com ele sobre as condições do pagamento:
"Olhe, disse-me, faça-me uma coisinha para a minha sala de jantar e ficamos quites.
Agora não vá fazer um quadrinho para crianças, mesmo porque eu sou curto de
vista. Faça-me alguma coisa que se veja de longe." E... aí tem.
— Mas isso é uma infâmia! — bramiu Anselmo.
— Uma infâmia? Podia ter sido pior.
— Ah! Mas eu vou escrever um artigo! Arraso o boticário! — exclamou
Anselmo tomando o chapéu e a bengala. Arraso o boticário...!
— Pelo amor de Deus! Não faça tal! Eu sou um homem doente!
— Mas é uma infâmia! É uma exploração!
— Que se há de fazer?!
— É verdade! E estamos numa cidade artística, capital de um império!
— É para ver.
— Bem, adeus, Estêvão!
— Adeus! E obrigado. E, indignado, Anselmo desceu as escadas
lentamente, receoso de que aquela ruinaria desabasse.
CAPÍTULO XVII
Chegando à rua do Ouvidor encontrou Fortúnio macambúzio, a mascar um
charuto, encostado à porta da Maison Rouge.
— Que é isso, homem? Estás fúnebre.
— Estou com a morte na alma; e suspirou profundamente: Ai!
— Mas que tens? Fala...
— Recebi uma carta do Norte... Sou um grande desgraçado! Arrancaram-me
a alma! Atirou a ponta do charuto à sarjeta e, com os olhos úmidos, fitando, com
desprezo, o resto do trabuco que fumegava: E ainda há quem defenda a indústria
nacional... Está um homem com o coração alanceado, compra um charuto baiano
para distrair-se e dão-lhe uma espiga daquela ordem. Coitado de mim!
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— Mas que dizia a carta? Tens algum enfermo na família?
— Não. Eu te digo, vou contar-te a verdade, mesmo porque preciso
desabafar senão estouro, estouro, palavra de honra. Estou até aqui! — e pôs um
dedo na garganta. Tudo irrita-me — a alegria do céu, a alegria da terra. Eu digo
como Job: maldito seja o dia... Que suplício! Um homem com o coração dolorido,
com a alma despedaçada, obrigado a estar aqui contemplando a alegria dos felizes.
Se eu pudesse agarrava toda essa gente e esganava. Ah! Não poder eu fazer com
as minhas lágrimas um dilúvio... Ai!
— Mas conta-me a tua tristeza.
— Conto mesmo. Valha-me Deus!
— Tu não estás muito direito, Fortúnio!
— Como não estou direito?!
— Parece-me que o teu mal..
— É todo moral...
— ... e de espírito.
— Ah! Espírito... Pensas que andei pelas baiúcas. Seja tudo pelo amor de
Deus! Pois vou contar-te. Vamos. Quero que me ouças religiosamente.
— Como se fosse o teu confessor.
— Não! — exclamou empertigado; não admito confessores, sou ateu. Meu
confessor é o meu amigo. Entraram. Uma garrafa de Guiness...
— Vais tomar cerveja preta?
— Vou. Estou de luto: só como feijão e não bebo bebidas brancas. Já
amaste, Anselmo?
— Já.
— E sofreste?
— Muito!
— Então podes compreender a minha dor. Ouve: quando saí de Alagoas
deixei minha alma com uma linda moça. Ah! Não imaginas! A morena mais bela que
Deus pôs no mundo. Antes de partir, chamei-a e disse-lhe: "Fulana, este meio é
muito acanhado para as minhas aspirações, vou tentar a vida em outra parte, vou
fazer fortuna para poder oferecer-te, com a mão de esposo, os gozos que só a
riqueza dá. Somos ambos jovens. Tu, se me tens amor, como dizes, posto que
venhas a sofrer saudade, não me esquecerás. Eu serei teu e, pensando em ti,
redobrarei de esforços para abreviar o meu retorno. Se me prometes esperar, parto
contente e, por aquela estrela clara, que nos olha do céu, juro que, em breve, estarei
a teus pés depondo, não só minha alma como o fruto do meu trabalho." E ela,
Anselmo, a pérfida, que é muito versada em romances de cavalaria, iludiu-me com
palavras doces e com lágrimas falazes: "Por que não te hei de esperar? Não era
maior que o meu o amor das damas de outrora que juravam fidelidade aos
cavaleiros empenhados na guerra santa. Muitas, porque os seus noivos não
tornavam, fiéis ao juramento feito, vestiam a estamenha e encerravam-se nos
claustros. Queira o Senhor que eu não seja forçada a seguir esse destino, mas por
aquela estrela juro, meu Fortúnio, que, se por mal do nosso amor, não tornares ou
por morte ou porque me hajas esquecido, seguirei o caminho triste de um mosteiro
e, na minha cela solitária, direi tanto o teu nome que os próprios muros hão de
decorá-lo. Se entendes necessária a partida parte, e que o bom Deus te guie, o meu
amor irá contigo. E vai! Certo de que, à tua volta, hás de encontrar-me fiel ao que
prometo."
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Foi isso no quintal de minha casa, perto da cerca. Selamos essa promessa
com um beijo e parti. Não lhe podia escrever; ela, porém, lendo os meus versos,
revia-se em todos eles porque, até hoje, outra não foi a inspiração de minha alma e,
por um amigo fiel, mandava-lhe recados. Aqui, bem sabes que faço pela vida,
procuro acumular fortuna — porque eu não desembarco em Maceió senão com
muito dinheiro! — mas ainda não consegui ajuntar o pecúlio conveniente. Por
enquanto nada tenho.
— Nem casa.
— Nem sapatos, só tenho busto porque, enfim, o meu casaco é quase novo:
mas hei de ter calças finíssimas e o resto e, quando tiver... então sim! Dirigiu-se ao
caixeiro: Outra garrafa de Guiness. E continuou: Eu confiava nas palavras
fementidas da ingrata e, muita noite, com os olhos no céu, contemplando os astros,
pedi às estrelas mensageiras que lhe falassem em meu nome. Mas também não sei
para que há estrelas no céu que nem para um recado servem. E confiava quando
hoje me veio ter à mão esta carta de minha irmã anunciando-me o próximo
casamento da ingrata.
— Vai casar?!
— Vai casar e com um inimigo meu. Duas afrontas! Vê como sou
desgraçado! Lastima-me!
— E agora?
— Sinto não ter asas. Ah! Se eu pudesse ir a Maceió amanhã, bem cedo.
Que escândalo...! Primeiro ia ter com ela, e atirava-lhe em rosto as suas palavras
hipócritas, dizia-lhe horrores, humilhava-a, depois então ia ajustar contas com o
patife. Dava-lhe tal tunda, Anselmo, tal tunda! Que ele nunca mais se havia de
lembrar de pedir moças comprometidas. Mas não tenho asas, nem vintém. Juntou
as mãos e, com os olhos altos, suspirou: Mas Deus é grande!
— E que pretendes fazer?
— Vou andar, andar por aí até não poder mais.
— Queres que te acompanhe?
— Não, vou só. Preciso estar só com minha alma. Adeus! És feliz: não
amas. Ai!
Levantou-se, acendeu um cigarro e encaminhou-se para a porta. Lá estava o
Neiva, num grupo, rugindo, e, mal avistou os rapazes, levantou a bengala:
— Hoje, no Lucinda, a postos!
Eu não vou, disse Fortúnio.
— Por quê? Estás incomodado? — perguntou o Neiva com interesse e
meiguice.
— Sou um desgraçado! — e foi-se lentamente rua abaixo, fumando.
— Que tem ele? — perguntou o Neiva a Anselmo.
— Paixão.
— Ah! Também dá para isso? Está arranjado. Logo, porém, mudando de
tom: À noite, no Lucinda. Conto contigo.
— É hoje a entrega da jóia?
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— Sim, é hoje. E não tenho concorrente. Ah! Todas as noites eu lá estava
pedindo a um e a outro. Dei excelência a muito sevandija, mas tenho dois mil e
tantos cupons. Não faltes.
— Não falto.
Tratava-se da entrega de um adereço, avaliado em oitocentos mil réis, ao
freqüentador do teatro que mais cupons de entrada apresentasse. O Neiva, desde a
primeira noite, mal jantava, corria para o Lucinda e, postando-se junto à tábua de
anúncio, pedia a todos os espectadores que entravam o cupão que o porteiro havia
destacado. Aos conhecidos dizia intimamente: "Dá cá o bilhete para a minha
coleção." Aos desconhecidos dirigia-se com cortesia senhoril, de chapéu na mão:
"Boa noite cavalheiro... Se V. Exa. não faz grande empenho em guardar esse
papelucho ceda-mo." "Pois não..." diziam quase todos, muitos porque ignoravam a
utilidade do destacado, outros porque não contavam com a prometida jóia. Raros
resmungavam, negando. O Neiva, então, empertigava-se e fulminava o avaro com
uma sátira.
Dias antes da contagem dos cupons já era certa a vitória do Neiva, "único
campeão que se apresentara para disputar o adereço".
O teatro regurgitava quando Anselmo entrou. Estava toda a "boêmia" a
postos. De um lado e de outro da platéia, nas alas da feira que ali fora exposta em
barracas onde havia a jóia, o brinquedo, a perfumaria, o charuto, a seda,
verdadeiros mostradores que anunciavam grandes casas das ruas comerciais do
Rio, o povo apertava-se com um zunzum incessante.
Noite quente, de luar. No jardim, a palmeira solitária tinha a folhagem triste
prateada e, em torno do seu tronco enfezado, sob as estrelas vivas, ao ar tépido,
bebia-se avidamente, com algazarra. As cocottes batiam com os leques nas mesas
de ferro, tiniam copos, estouravam rolhas e da platéia apinhada vinha um hausto
quente de fornalha.
A uma das mesas o grupo, unido para aquela prova suprema da tenacidade
do companheiro, bebia. Mas o pano subiu. O espetáculo correu sem interesse,
porque todos esperavam o momento da "jóia".
Foi no intervalo do segundo para o terceiro ato que Furtado Coelho, em cena
aberta, anunciou que ia fazer entrega do adereço a quem maior número de cupons
apresentasse. Houve um silêncio largo e, de repente, o Neiva saiu dentre os
bastidores sobraçando um grosso embrulho. Desatou o barbante que o apertava e,
estendendo a mão com solenidade, disse:
— Eis aqui o fruto das minhas economias. Depois, voltando-se para a
platéia, acrescentou: Creio que não há concorrentes?! Houve uma estrepitosa
gargalhada e o artista, tomando o escrínio, abriu-o para que fosse vista a jóia e,
abraçando o boêmio, fez a entrega prometida. Nova gargalhada irrompeu. O Neiva,
porém, muito grave, dirigiu-se a Furtado Coelho e, logo às primeiras palavras que
pronunciou, todo o público entrou a agitar-se, surpreso.
"Meu caro Furtado. A pilhéria de um mês tem hoje o seu remate.
Assiduamente, quer jorrassem aguaceiros, quer a inclemência da canícula entrasse
atrevida e indebitamente pelas horas da lua fria, muitas vezes enfermo, todas as
noites eu aqui estava, de chapéu na mão, recolhendo os cupons que o generoso
público, com raríssimas e indignas exceções, me entregava. Reuni dois mil e tantos,
não sei bem o número porque a paciência foi curta para tamanha soma, e sou agora
o possuidor do adereço que foi pelos peritos avaliado em oitocentos mil réis. Não o
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quero para mim: não tenho colo para colares, nem punhos para pulseiras e, se me
quisessem furar a orelha para ornamentá-la com pingentes, eu bradaria pela polícia.
Enquanto nos divertimos há os solitários que não tiveram o afago maternal, há os
anônimos do berço que não conhecem os prazeres do mundo e vivem, como
penitentes, guardados pela caridade, no limbo que se chama o orfanato. A jóia que
conquistei, a rir, destino-a à órfã que mais se distinguir pela virtude e pela aplicação
até ao fim do corrente ano. Que o prazer de muitos, proporcionado pelo teu talento,
meu velho Furtado, concorra para a alegria de uma criança infeliz. E tu mesmo
Podes encarregar-te de dar o devido destino ao prêmio que conquistei com o suor
do meu rosto e com muita zumbaia e algumas descomposturas. Tenho dito."
Furtado Coelho, comovido, estreitou o boêmio ao peito e todo o povo, de pé,
saudou com uma prolongada salva de palmas, tão generoso quão inesperado
procedimento. Fora, porém, quando o abraçaram, o Neiva irrompeu:
— Eu conheço a cabilda em que vivo! Estava tudo de orelha em pé e
rosnava-se que eu, mal recebesse a jóia, correria direitinho para o Leitão ou para o
Cahen. Estão enganados! — bramiu com a bengala erguida. Eu não seria capaz de
perder as trinta noites de um mês ouvindo declamações enfáticas, humilhando-me
diante da imbecilidade para pagar-me uma ceia. Fiz esse grande sacrifício à estética
e ao meu orgulho para dar uma lição a esta horda. Pensava que eu ia beber, não é?
Pois sim... Garçom, um grogue a crédito. E sentou-se a uma das mesas,
esbravejando, furioso, assomado, a brandir a bengala. Anselmo apartou-se do grupo
e, chegando ao fundo, junto ao balcão, deu de face com Fortúnio, sempre triste,
mordendo os lábios. Duas grossas lágrimas rolavam-lhe pela face morena.
— Ai! Ai!
— Que é isso! Pois ainda estás assim?
— Como queres que eu esteja firme se sou tão desgraçado! — e desatou a
chorar. Só então Anselmo percebeu que a dor abalava tanto o poeta que ele mal se
podia ter de pé.
— Ó Fortúnio, tu não estás firme.
— Como queres que eu esteja firme se perdi o esteio do coração!
— Só o conde de Matozinhos poderá salvar-te, dando-te uma passagem
para o Norte.
— É verdade... Ai! Ai!
Mas terminara o espetáculo, o povo saía atropeladamente e Anselmo
convidou o poeta:
— Vamos, anda daí. Onde estás morando?
— Não sei, não me perguntes. Não sei nada. Sou um desgraçado!
— Mas onde dormes?
— Eu não durmo: meu coração está tão agitado que me não deixa dormir.
Valha-me Deus! Uma menina que se criou comigo, tão falsa!
— Deixa, homem; não te preocupes: há um Deus no céu...
— Qual Deus...! O que há é um grande patife em Maceió, mas palavra de
honra! — eu ainda parto-lhe a cara. Ele casa, casa porque, enfim, já estão correndo
os proclamas, mas o casamento há de custar-lhe caro.
Saíram. Anselmo queria, à viva força, levar o poeta para o Ravot; ele,
porém, resistia:
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— Não, tem paciência, preciso de ar; se entro num quarto de hotel sufoco.
Ah! Como eu compreendo o Otelo...! E não haver um Shakespeare para mim!... Vou
tomar uma canja, depois atiro-me por essas ruas até cair estafado. Quero que ela
saiba que morri nas ruas, como um cão! Há de ter remorsos, e, no dia do
casamento, quando estiver nos braços daquele grandíssimo sem-vergonha, há de
ver-me lívido, abrindo o cortinado para dizer-lhe quatro coisas bem duras e com uma
voz...!
Entraram na Maison. O poeta, apesar do sofrimento moral, engoliu, com
apetite, uma canja, um espesso churrasco, dois ovos quentes, uma talhada de
queijo, vinho, café e conhaque; depois convidou Anselmo para uma partida de bilhar
que se prolongou até às quatro da manhã. Foram os últimos a sair da casa, e na
rua, ao luar, Anselmo, que sentia os olhos ardidos, propôs de novo que fossem para
o Ravot.
— Qual! Eu agora hei de ver o sol: vou para o Boqueirão. Vou confiar as
minhas mágoas ao mar. Quero que as brisas levem um dos meus suspiros àquela
ingrata.
— Enfim, já agora... É quase dia. Pois vamos!
No grande silêncio soavam fortes os passos lentos dos dois. Ao longe os
combustores apagavam-se como se a treva viesse devorando, uma a uma, todas
aquelas gotas de ouro. Turmas de italianos desciam a caminho do mercado com os
cestos pendentes dós paus e oscilando como duas conchas de balanças; alguns
cantavam, outros riam ao ar fresco da manhã nascente.
Todas as casas fechadas, apenas um botequim, com uma luz triste e baça
como de vigília, tinha as portas abertas e um negro, de calças arregaçadas,
despejava baldes de água pelo soalho, enquanto um caixeiro sonolento ia
empilhando cadeiras sobre as mesinhas de mármore.
Uma carroça pesada, rangendo, passou vagarosamente tirada por um touro
robusto, cheia de capim que se levantava nos ângulos em pontas e, sobre os
molhos, deitado, ia um homem cantando. Os dois seguiam calados, embebidos em
pensamentos diversos, quando ouviram uma alegre cantilena, à maneira singela do
campo nortista.
— Ai! Ai! — suspirou Fortúnio. Quem me dera a minha terra!
— Ora! A tua terra...! Por que vieste?
— Sei lá!
— Vieste atraído pela vida. Que diabo querias fazer em Maceió? Nós temos
muita saudade da terra em que nascemos, por chic: a prova é que nenhum de nós
pensa em tornar aos penates natais. A vida é aqui, meu amigo. Também eu tenho
saudade do meu sertão, mas que poderia eu fazer se lá vivesse? Estava em plena
natureza, nos campos gordos, vendo o gado e vendo as culturas, trabalhando como
um campônio. A esta hora, junto do alpendre da casa, o cavalo de sela escarvando
a terra e eu, com uma malga de café no bucho, o rebenque enfiado no punho, pronto
para partir a galope, pelos campos, ouvindo o mugir dos touros, aspirando o aroma
das silvas e ao sol violento idas e vindas do algodoal à malhada, da malhada ao
algodoal, até à hora da tarde, para recolher-me estafado à minha rede e procriar
bestamente como os rebanhos, como a terra, dando filhos com a mesma
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regularidade com que o algodoeiro dá o algodão, o arroz dá a sua espiga e a ovelha
põe em terra o anho. É hediondo! Aqui não.
— Ora, aqui não! E que diabo fazemos nós aqui?
— Trabalhamos.
— Morremos de fome e de fadiga porque nem cama temos.
— Mas havemos de ter.
— Na Santa Casa de Misericórdia.
— Qual Santa Casa! Então não esperas vencer?
— Eu, não. Que público temos nós? Pensas que se prepara um povo em
dez ou vinte anos? Qual! Havemos de viver sempre como vivemos. Quando vierem
os cabelos brancos, se a morte não tomar a frente ao tempo, aquela estrela que lá
está no céu há de ver-nos como agora nos vê: caminhando sem destino e rimando
sonhos.
— Não há de ser tanto assim.
— O Brasil nem daqui a cem anos compreenderá a obra de Arte.
— Ora!
— Ora?! Queres fazer uma aposta?
— Para daqui a cem anos? Não. Espero não viver tanto.
— Dizem que a população do Brasil é de treze milhões.
— Mais ou menos.
— Pois bem: doze milhões e oitocentos mil não sabem ler. Dos duzentos mil
restantes, cento e cinqüenta lêem apenas jornais, cinqüenta lêem livros franceses,
trinta lêem traduções, quinze mil lêem a cartilha e livros espíritas, dois mil estudam
Augusto Comte e mil procuram livros brasileiros.
— E os estrangeiros?
— Não lêem livros nacionais.
— Ora, não lêem.
— Não lêem! Isto é um país perdido.
Chegaram ao Largo da Carioca. Em torno de um quiosque iluminado
homens apinhavam-se e discutiam alegremente chuchurreando café. Uma negra,
sentada nos degraus do chafariz, apregoava, em voz lamentosa, prolongando muito
as palavras: "Miiingau de ta... pioca... tá... quentinho, freguês." Homens dormiam
estirados na pedra, de papo para o ar. Dois cães corriam polo largo perseguindo-se.
Longe, em tons finos, vibrantes, uma corneta soava.
O dia raiava. Uma luz tênue vinha caindo do céu largo e puro e, como se um
véu se fosse afastando da terra, descobrindo as casas e as montanhas, tudo ia
aparecendo indistintamente, vagamente a princípio.
Chilros
vibravam no ar. Passavam, chalrando, os banhistas que se dirigiam à
praia, aos casais, famílias completas, com cestas, os olhos ainda empapuçados de
sono. Os bondes desciam cheios, transbordavam no largo; subiam quase vazios.
Na esquina da rua de S. José um pequeno, ajoelhado na calçada diante de
uma pilha de jornais, dobrava folhas, às pressas, amontoando-as, e a casa da
Ordem, alta, enorme, como uma imensa e formidável muralha, tinha ainda uma luz,
a claridade passava por entre as frinchas da persiana de uma das janelas: alguém
que morria, talvez.
E no alto, muito branco, como um castelo antigo no seu rochedo, o mosteiro
dormia.
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Seguiram e, quando chegaram ao Boqueirão o céu, ao longe, estriado
sangüineamente, estava cor de bronze. Na praia branca, o mar liso, metálico,
rutilava.
Uma multidão chapinhava na areia úmida que guardava a pegada funda até
que a onda, subindo preguiçosamente, a desmanchava. Havia barracas de lona
como brancas pirâmides, mas a maioria dos que mergulhavam vinha já pronta nas
roupas de flanela dos estabelecimentos balneários.
As senhoras, sorrindo, esfregando as mãos, iam timidamente para o mar
que mandava à praia as suas ondas como para buscá-las, curvavam-se, tomavam
nos dedos um pouco de água, como se se benzessem naquela imensa pia verde e,
friorentas, dando-se as mãos, entravam, aos saltinhos, quando a onda rolava cheia,
espumosa, desdobrando-se na praia com suave marulho.
Cabeças apareciam longe e gente saía gotejante, gente entrava a correr e
todo o mar fervilhava de banhistas. Ao longo da praia e no terraço do Passeio
apinhavam-se curiosos. Um bote negro, remado lentamente, bordejava. Tresandava
a maresia. De repente Anselmo gritou:
— Olha, Fortúnio! Era o sol, o grande, o magnífico, o esbraseado sol
americano que subia. O céu estava encandecido, era de ouro líquido, e, quando o
disco do astro, imenso e translúcido, fulgindo como uma patena polida que girasse
vertiginosamente, apareceu acima dos montes longínquos de Niterói, houve uma
chuva mirífica e dourada, todas as eminências foram polvilhadas, o espaço e as
águas ficaram como Dane na hora amorosa do lentejo do ouro; mesmo para o fundo
a serra, acidentada de Teresópolis que, de tão azul, quase se confundia com o céu,
teve a áurea bruma da manhã triunfal. E o sol subia, a luz alastrava. A água
voluptuosa tornou-se mais lânguida. Gaivotas cruzavam-se contentes e o Pão de
Açúcar e os fortes ficaram sobre um mar de ouro.
A luz chegou às árvores do Passeio e as folhas, galvanizadas, rebrilharam, o
mesmo bote fúnebre, negro, que ia e vinha com a lentidão de um esquife, teve a sua
orla de luz e refletiu-se na água espelhenta e mansa.
Os que se banhavam pareciam incrustados na superfície serena e rútila das
águas vastas e longe, enorme e escuro, fumegando, com uma bandeira trêmula
solta às brisas, um paquete saía sereno, sem oscilação, fechado, em direitura à
barra por onde vinha entrando, rebocado, um brigue, de velas ferradas, os mastros
secos, vagaroso e pesado.
A alegria do céu comunicou-se aos que nadavam e gritos alegres vinham do
mar, e sempre a sair gente ansiosa para a onda: velhos, senhoras, crianças. Uma
menina aleijada desceu ao colo de um banhista, esperneando, aos gritos, e, diante
desse rumor de vida, nessa azáfama jucunda, Fortúnio, com os olhos no paquete,
suspirou:
— Ah! Pudesse eu ir ali!
— Ora qual! Deixa-te disso, homem! Olha para aquele sol, admira aquela
beleza e dize se é possível que Deus estrague tão formosa auréola numa terra
destinada à miséria e ao abandono. Uma pátria que tem este sol há de ser grande
por força. Viva a nossa terra, deixa lá, homem! A nossa manhã há de vir, descansa.
E os dois, extasiados, ficaram a olhar o astro deslumbrante que remontava
majestosamente.
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CAPÍTULO XVIII
O primeiro número de A Vida Moderna, apesar das esperanças de Luiz
Moraes, não conseguiu abalar a alma do povo. O poeta contava com um êxito
ruidoso porque os jornais, anunciando o aparecimento da publicação, haviam
mencionado, como garantia do seu valor literário, os nomes laureados dos
redatores, mas debalde os garotos rouquejavam apregoando o hebdomadário,
debalde faziam ver a gravura terrífica da primeira página, o povo passava
indiferente, discutindo valentia de potros de raça, discursos altiloqüentes de
deputados ou escândalos, sem dar ouvidos à atroada dos pequenos que iam e
vinham, com os jornais, desanimados.
À tarde desapareceu da circulação a notável revista, sendo substituída pela
Gazeta de extração mais fácil. Moraes, cofiando os espessos bigodes, desceu a rua
do Ouvidor, contando não encontrar um só número da folha na qual havia dado
prodigamente todos os sonoros versos de um poemeto e achou um negro triste, à
esquina da rua dos Ouvires, já em voz, quase derreado, murmurando, com
desfalecido esforço: "A Vida Moderna..." Assomou-se e, sacudindo o tíbio pregoeiro
pelos ombros, disse-lhe furente:
— Grita, homem! Berra! Estás aí com uma voz de recém-nascido que
ninguém ouve! Não comes? O negro abriu muito os olhos, e balbuciou surpreso:
Que ninguém queria...
— Qual ninguém quer! Estás mais morto do que vivo. Grita! Com tal
intimação o negro resolveu fazer um escarcéu atroador e, escancelando a boca,
soltou tamanho berro que o próprio poeta, atordoado, apressou o andar para não
ensurdecer.
Encontraram-se todos na Maison Rouge: Ruy Vaz, Fortúnio, Anselmo,
Patrocínio. E Moraes recebeu os aplausos entusiásticos pela sua vitória,
principalmente depois que recitou o poemeto estampado na revista. Patrocínio, com
os olhos em alvo, confessou que nunca ouvira versos de tal quilate: "Era a
imaginação de Hugo trabalhada pelo cinzel de Leconte." E, no fundo lôbrego da
casa, que era o cenáculo da boêmia, o poeta da Tarântula declarou solenemente,
como um áugure que, dentro em pouco, o Brasil, analfabeto e ignaro, seria um país
de grandes luzes porque as liras, vibradas como a de Orfeu na Trácia agreste,
haviam de agitar as almas, conclamando-as para a vida intelectual.
— Meus amigos, se não temos aqui a tríplice Hecate com as suas
sacerdotisas truculentas, temos a ignorância que é um pouco pior. Comecemos a
campanha, tenhamos a audácia de Orfeu, que o Ideal seja a nossa Eurídice. O
artista é um iniciado, deve ter a coragem da sua crença e, se for preciso, façamos
como o grande hierofanta que, de lira em punho, atravessou o campo dos trácios
chegando corajosamente à presença temerosa de Aglaonice para dizer-lhe em face
todas as verdades, embora lhe custasse a morte, como lhe custou, mas,
sucumbindo, não deixou de ser a representação espiritual da primitiva Grécia.
Nós somos os precursores — alhanemos o caminho para os que vêm. Eu
não descorçôo, tenho como certa a vitória. Que diabo! Pois então este povo há de
viver eternamente chafurdado na ignorância? Não, senhores! Abram escolas,
eduquem a infância, ponham a criança em contato com os heróis da pátria,
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apontem-lhe os episódios gloriosos da nossa história, dêem-lhe os poetas
vernáculos e o homem do futuro não será francelho como esses que por aí andam
algaraviando "Bonjour, comment ça va?" e dizendo disfarçadamente, apesar dos
diplomas e dos anéis inúteis: "Me dê isso, me dê aquilo... quero que faça-lhe" e
outras sandices idênticas. Nem vendedores há neste país...! Encontrei um negro
apregoando A Vida Moderna com uma vozinha tão fraca, tão tênue, que o diabo
parecia estar nas últimas. Dei-lhe tamanho safanão que ele foi parar no meio da rua
e berrando como uma locomotiva. Energia! — é o que eu digo. Sem energia nada se
faz.
Fortúnio, passando os dedos pela penugem do buço, sempre cético, disse
displicente:
— Isto há de ser sempre o que é. O povo não tem tradições e, sobretudo, é
a gente mais melancólica do mundo. Você vê um grupo de brasileiros é fúnebre,
parece que estão sempre discutindo Um enterro.
— Ou segredando pornografia, acrescentou Ruy Vaz.
— Ou falando mal da vida alheia, ajuntou o Neiva.
— Nem tanto, corrigiu Patrocínio. Nem tanto. Há brasileiros de espírito.
— Ora, brasileiros de espírito... Quais são? Aponte-os!
— Nós, por exemplo...
— Ah! Sim... Mas nós não entramos em conta.
— Perdão, interveio o Moraes. Já vocês começam com as discussões fúteis,
tratemos de coisas sérias.
O Neiva inclinou-se sobre a mesa:
— Eu tenho uma comunicação a fazer.
— Se é pilhéria.
— Não é pilhéria, homem.
— Que é? — perguntaram todos.
— Vocês, em tempos, pensaram em fundar um clube literário.
— Aí vem a mania.
— Perdão, não é mania; ouçam primeiro. Eu estou organizando as bases de
uma sociedade artística e literária. Não temos um centro de reunião, não temos uma
sala onde possamos conversar um minuto em intimidade. Vem um estrangeiro aqui,
é uma vergonha: temos de recebê-lo em um botequim ou em um hotel, se há
dinheiro. Somos tantos, reunamo-nos e, contribuindo cada um com uma quota
mensal, podemos ter perfeitamente uma sala para discussão de teses, palestra,
recepção de confrades, etc. Tenho em vista o primeiro andar de um prédio magnífico
na rua do Hospício. Aluga-se aquilo, instalamo-nos e, à proporção que for entrando
dinheiro, iremos dando expansão ao clube até que, com o tempo, possamos editar
as obras dos sócios. Conto com uns vinte e tantos membros, tenho os nomes aqui
na minha lista. Que dizem?
Patrocínio achou a idéia excelente e todos aplaudiram, ficando
imediatamente convocada a primeira reunião para a quinta-feira próxima. O título
"Grêmio de Letras e Artes" proposto pelo Neiva foi aceito sem discussão.
Patrocínio e o Neiva despediram-se: o primeiro tinha reunião na
Confederação Abolicionista, o segundo ia mandar arranjar a casa, encarregando o
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Teixeira de entender-se com o senhorio. Ruy Vaz pouco se demorou tendo um
negócio com o Garnier. Ficaram os três: Fortúnio, Moraes e Anselmo.
Anselmo estava macambúzio, de cenho carregado, silencioso e, recaído
sobre a bengala, que metera debaixo do braço, balançava a perna com desalento.
Fortúnio atirava baforadas para o teto e o Moraes, preocupado, tamborilava no
mármore da mesa.
— Que diabo! Vocês estão tristes, disse por fim o poeta da Tarântula. Que
tens, Anselmo? Já brigaste com o Patrocínio, aposto! Anselmo resmungou. Homem,
também não fazes outra coisa. Quantas vezes tens saído da Gazeta? Mais de vinte.
O José já sabe — quando lhe apareces enfarruscado, anunciando que vais deixar a
folha, ele pergunta logo quanto queres, e está a questão liquidada. Se precisavas de
dinheiro por que não falaste enquanto ele aqui estava?
— Não se trata de dinheiro.
— Então que há?
— Divergência política, aventurou Fortúnio.
— Qual política! Bem me importa a mim a política. Aquele gerente da Gazeta
julga-me, ao que parece, um menino de doze anos. Se lhe peço dinheiro vem
sempre com cinco mil réis, dez, quando muito. Estou com os sapatos neste estado,
já não têm sola, o casaco é uma nódoa, o chapéu é isto; não tenho meias, não tenho
camisas, devo dois meses de casa. Que diabo! Assim não há talento, não há estilo,
não há nada que resista.
— É o que eu digo, rosnou Fortúnio.
— Mas não te pagam? — perguntou Moraes.
— Aos pingos: não é um gerente, é um conta-gotas.
— E que vais fazer?
Vou tomar conta do Diário Ilustrado. O Henrique Steel vai deixar a
redação e os proprietários convidaram-me.
— Aquilo dá alguma coisa?
— Sei lá.
— E quando começas?
— Talvez amanhã.
— Já disseste ao Patrocínio que ias deixar a Gazeta?
— Já.
— E ele?
— Pôs-se a rir.
— Homem, queres um conselho? Fica na Gazeta e não vás atrás de
promessas enganadoras. Esse Diário Ilustrado não vive um mês.
— Como não vive!?
— Não vive. Qual é o teu programa político?
— Eu sou oportunista.
— Qual oportunista! Tu não és nada.
— Ou isso.
— Ou isso.
— E é com tais idéias que vais escrever artigos de fundo?
— Qual artigo de fundo! Isso é chapa. O jornal vive muito bem sem artigo de
fundo. Tenha ele noticiário variado, uma parte literária, esporte e charadas e vai
longe. Hás de ver.
— Pois sim.
— E tu, Fortúnio?
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— Eu? Eu vivo perfeitamente. Tenho a cidade por menagem, que mais
quero? Isso de comer e dormir só me preocupa quando tenho fome ou sono. Faço
os meus versos e escrevo-os em qualquer mesa de café, tenho como alampadários
as estrelas do céu, amo todas as mulheres belas, a rua do Ouvidor é a minha sala
de visitas; o meu quarto só Deus conhece! Vivo muito bem.
— E se adoeceres?
Fortúnio encolheu os ombros e atirou uma baforada.
— Que diabo! Vocês não pensam...
— Felizmente! Que seria de nós se pensássemos?
— Pois eu acho que devias procurar alguma coisa.
— Queres que me empregue no Pascoal? Queres que me faça condutor de
bonde ou que vá rolar fardos na Alfândega?
— Não digo isso, mas podias arranjar lugar num jornal.
— Ora, Luiz, eu sou brasileiro e tu sabes que os nossos jornais sãos
empresas estrangeiras criadas com o intuito prático de explorar comercialmente o
sentimento público, com discrição ou às escâncaras. Um jornal é um escritório de
comissões... de idéias. Quando leio um estirado artigo tratando das glórias da pátria,
invocando a alma da nação, com muita retórica e muita hipocrisia, tenho vontade de
rir porque penso imediatamente nesses prestidigitadores que algaraviam para iludir
o público enquanto preparam as sortes, enquanto fazem os passes. Qual imprensa
brasileira, qual história! Meu amigo, Portugal está com o grito do Ipiranga
atravessado na garganta, ele não nos perdoa a independência e, como não se pode
assenhorear da terra, apodera-se do espírito do povo. A escravidão é muito pior.
Agora não é o território que pertence à Lusitânia, é o povo que se sente oprimido
pelo reinol, dono da imprensa, e por isso mesmo, senhor da opinião pública. Ele faz
a política como faz o câmbio e, para que vejas o cúmulo, basta que eu te diga que
há empresários que mandam contratar jornalistas em Portugal para virem dirigir a
opinião brasileira. Vivemos sob a tutela de feitores. Aqui só há um jornal brasileiro: é
a Gazeta da Tarde...
— Estás exagerando.
— Estou exagerando...? Mostra o exagero. Eu sei por que falo. Não, deixem-
me com a minha liberdade. Prefiro dormir debaixo da ramaria de uma árvore da
minha terra a ouvir increpações de um sapateiro qualquer que, por haver
enriquecido, na tripeça, entendeu fazer-se proprietário de folha. Deixem-me cá com
as minhas idéias, podem parecer ridículas, mas são sinceras.
— Que diabo! Vocês estão hoje azedos.
— Eu não, disse Anselmo.
— Nem eu, ajuntou Fortúnio.
— Olha, o Anselmo vai dirigir um jornal e não consta que ele tenha nascido
na outra banda.
— Sim, vai dirigir... Mas quais são os proprietários do jornal? Dois
comissários de café, portugueses.
— Mas que ódio é esse a Portugal, homem de Deus?
— Perdão, eu não tenho ódio algum, estimo e admiro Portugal, mas como
brasileiro não devo deixar sem protesto a intervenção do estrangeiro na vida
nacional. Você não vê um francês intrometer-se conosco, nem um inglês, nem um
alemão — é só o português.
— Mas há as afinidades de origem, a língua, os costumes.
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— História, homem! É que quem foi senhor entende que há de sempre
dominar, esta é a verdade.
— Estás bilioso.
— Não estou tal.
— Estás. Vamos sair. A tarde está linda.
— Não, eu despeço-me. Vou ver um patrício. Até amanhã.
— Não queres jantar comigo?
— Não.
— Olha que lá em casa só o vinho é português, mas excelente.
— Perdão, pensas que sou inimigo dos portugueses? Não há tal, já expliquei
a minha opinião. Que farias tu se um hóspede começasse a dar leis em tua casa?
— Quebrava-lhe a cara.
Riram-se todos e, sem mais explicações, apartaram-se.
CAPÍTULO XIX
Anselmo estava in albis e, como pretendia passar a noite trabalhando,
porque tencionava dar começo a um romance para o rodapé do Diário Ilustrado,
deteve-se na esquina da rua Uruguaiana farejando um jantar. Mas os jantares não
passeiam na rua do Ouvidor e, certo disso, o futuro redator-chefe foi subindo
vagarosamente, desacorçoado, quando, no largo de S. Francisco, ao dar com a
estátua do patriarca, que o sol crepuscular polvilhava de ouro, teve uma inspiração
feliz:
"É verdade! Por que não hei de ir jantar em uma casa de jogo? Fortúnio
come regaladamente e declara que as tavolagens têm os primeiros cozinheiros
desta cidade. Que mal há nisso? Vou; não jogo, mesmo porque não tenho vintém,
como e ponho-me a andar antes que a polícia me apanhe na batota. O diabo é que
não conheço ninguém... Se ainda pudesse encontrar o Lins... Mas onde?!" Resolveu
procurar o poeta no Castelões, mas só achou o Neiva, na última mesa, diante de
uma papelada esparsa, a tomar notas.
— Salve! O boêmio fitou-o com os olhos piscos, sem pince-nez.
— Oh! Senta-te. Bebes?
— Não.
— Sabes? O nosso Lins está à morte.
Anselmo deu um salto na cadeira.
— Como?! Se ainda ontem estivemos juntos.
— Pois, meu amigo, já está sem fala. Estou chegando da casa dele. Nem
me reconheceu.
— Mas que tem?
— Sei lá! Congestão ou coisa assim. E, pondo o pince-nez, bramiu com os
olhos rutilantes: Extravagâncias! Vocês não me querem ouvir. Vivo aqui a bradar,
como um João Batista, contra as extravagâncias e todos pensam que estou a fazer
pilhéria. Seu Lins é um homem fraco, doente, pois ontem, à noite, em vez de tomar o
seu conhaque do costume, entendeu que devia experimentar um sorvete. Sorvete!
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Neste país...! O resultado aí está: não escapa. Os médicos não têm esperança de
salvá-lo.
— Então é grave...?
— Se estou a dizer que já perdeu a fala.
— Vou vê-lo.
— Deves ir.
— Onde mora ele?
— Fora de portas; nos confins da rua do Senador Pompeu.
— E eu vinha aqui procurá-lo para ir com ele a uma casa de jogo.
— Hein?! Vais jogar?
— Qual jogar! Não tenho um vintém: ia jantar.
— Ias à ficha de consolação.
— É verdade.
— Janta comigo, queres?
— Onde?
— Ali defronte, no Londres.
— Pois vamos.
— Mas espera um instante, deixa-me arranjar esta papelada... Posso morrer
de uma hora para outra e não quero comprometer umas tantas senhoras que me
amam. Estou agora com seis complicações: duas no largo do Rocio, uma na rua do
Lavradio, outra na rua do Riachuelo, ainda outra no Daury e uma senhora
honestíssima em Paula Mattos...! Ah! Meu amigo, só a minha paciência, só a minha
paciência! A de Paula Mattos, então, é uma fera! Quando apareço tarde desaba em
cima de mim como uma avalanche, e são beijos, e são lágrimas e são dentadas. Um
desespero! Tenho o corpo como um mapa-múndi. Sou um homem tatuado pelo
amor. Ontem fui ao cabeleireiro e o homem esfregou-me a cabeça com uma loção
não sei de que, pois, meu amigo, quase me matam, as seis! Foi um trabalho para
convencê-las de que eu saíra de um salão de cabeleireiro e não da câmara de uma
rival, e à noite, estava amassado, triturado... um horror! Não te metas com mulheres
ciumentas, mira-te neste espelho e, arregaçando a manga do casaco, mostrou o
braço manchado, denegrido. E isto não é nada, se visses o resto choravas; é um
horror! Mas que hei de fazer? E a despesa? Uma quer frutas, outra quer camarotes,
outra reclama um leque. A de Paula Mattos anda a perseguir-me por causa de um
chapéu que viu na Douvizy e seu Neiva que cave! Já ando atordoado, não sei mais
como arranjar dinheiro. Toma alguma coisa.
— Vou tomar um Xerez.
— Olha um Xerez aqui!
— E o Grêmio, Neiva?
— Vou tratar disso. Hoje mesmo decido a questão da casa. Já amanhã
poderemos instalar-nos. Era uma necessidade. Em toda a parte os homens de letras
têm um centro onde se reúnem. Aqui, não: ou a rua do Ouvidor ou o botequim. É
uma vergonha. E querem que haja solidariedade. Vamos levar isso a efeito: é uma
idéia que nos pode trazer magníficos resultados. Atirou a mão espalmada à coxa do
companheiro: Seu Anselmo, nós somos uma potência. Se nos uníssemos, se não
andássemos em eterno sismo provocado pela vaidade, porque cada qual se julga o
maior, o pontífice das letras, já teríamos feito alguma coisa, entanto não valemos
nada. Uma das causas da decadência literária, talvez a principal, é esta maldita rua
do Ouvidor. Vocês mal saem do banho frio, ainda molhados, engolem, às pressas, a
xícara de café e correm para aqui e aqui passam os dias bebericando, elogiando-se,
discutindo sonetos e crônicas ou farejando cocottes. Que diabo! Não é assim que se
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faz um artista... Trabalhem, dêem algumas horas ao livro, façam alguma coisa a
sério, deixem este maldito vício da rua do Ouvidor.
— E tu?
— Perdão, eu não sou escritor, nem me apresento como tal — eu sou um
folhetinista oral: a rua do Ouvidor é o meu rodapé. Eu faço com a palavra o que
vocês fazem com a pena, com a diferença, porém, de que eu estudo e vocês
espreguiçam-se, bocejam inertemente.
— Tu estudas?
— Não faço outra coisa. Os meus livros andam encadernados em cheviotes,
em flanelas, em sedas; há alguns brochados: são os miseráveis. Cada tipo dá-me
um folhetim, cada vida, a mais simples, dá-me assunto para falar uma hora. Vivo a
dizer verdades. Bem sei que a minha obra é precária, mas há de ficar o benefício.
Falo: a minha enxada está aqui e, espichando a língua, tocou-a com o indicador.
Levantaram-se e seguiram, caminho do hotel. Justamente Anselmo chegava
à porta quando esbarrou com o Lins que entrava, com um grande charuto encravado
nos dentes.
— Que é isto! Tu aqui?!
— Então! Onde querias que eu estivesse?
— O Neiva disse-me, há pouco, que estavas à morte, sem fala...
— Sem vintém é que estou, desde ontem.
— Mas não estiveste doente?
— Qual doente! Não tenho nada, nem ceroulas... Estou aqui sem ceroulas. É
uma vergonha!
— E com os sapatos num estado...
— Um homem de espírito não olha para os pés, murmurou o poeta.
Anselmo levantou os olhos e desatou a rir:
— Onde foste buscar esse chapéu, Lins?
— Sei lá! Apareceu-me na cabeça hoje de manhã. Era um velho chapéu de
palha, de grandes abas, crivado de furos. E o boêmio explicou: Creio que serviu de
alvo em alguma casa de tiro. Mas assim é bom, o ar penetra livremente e, como os
médicos recomendam que se deve trazer sempre a cabeça fresca, estou contente
com esta peneira. O Neiva, que havia parado a conversar com um patrício, deu um
salto para a calçada quando viu o poeta.
— Tu! Donde vens? Tu és o Lins?!
— Em carne e osso.
— Pois não morreste?
— Não, como vês.
— Nem esteve doente, disse Anselmo. E tu afirmaste que o havias visitado e
que ele estava sem fala.
— É exato. Mas eu sou capaz de jurar... Eu não estive ontem em tua casa,
Lins?
— É possível; não garanto, porque lá não fui.
— É extravagante...!
— É macabro!
— Pois eu ontem estive contigo, por Deus! Estavas agonizando, sem fala.
Pensou: Onde jantei eu ontem, Francisco? Ah! No Daury... Então foi sonho.
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— Com certeza.
— E tu? Que fizeste ontem?
— Homem, para dizer a verdade, não sei. Acordei hoje às 9 da manhã em
casa de uns estudantes, na rua do Núncio. Não me interrogues: sou um poço de
discrição.
— Queres jantar conosco...?
— Vá lá. Entraram.
— Pois olha, eu já tinha começado a recolher uns cobres para mandar rezar
a missa do sétimo dia.
— E arranjaste alguma coisa?
— Seis mil e que...
— Pois vamos beber essa missa e vê se tiras depois para um Te-Deum em
ação de graças pelo meu restabelecimento... e bebe-se também o Te-Deum.
Sentaram-se à mesa e iam começando a jantar quando Fortúnio apareceu
rindo a bandeiras despregadas.
— Que é isso, homem?
O poeta sentou-se e contou, por entre gargalhadas, a "noite" do Duarte.
Havia falecido uma das suas muitas apaixonadas — menina loura, de olhos azuis,
quinze anos, com o doce nome de Carmen. Exaltado, o Duarte, para sopitar a
grande dor, atirou-se à adega paterna e, durante três dias, encafuado entre os
canteiros, bebeu e chorou desesperadamente. Na noite da véspera, inconsolável,
resolveu ir visitar a noiva que se finara e abalou para o cemitério de S. João Batista
conseguindo penetrar no Campo Santo.
Errou muito tempo entre túmulos sem acertar com o que escondia o formoso
corpo da donzela até que, por fraqueza das pernas, rolou sobre um deles
abraçando-se com a cruz. E começou a soluçar, blasfemando contra Deus, pedindo
a morte e, tanto fez que, nem ele mesmo sabe dizer como, arrancou a pesada cruz
do sepulcro saindo com ela como uma relíquia. Tomou o bonde, mas um soldado,
desconfiando do fardo, que o poeta mal sustentava nas mãos, interpelou-o:
— Quem é o senhor?
— Eu sou o homem mais desgraçado deste mundo, camarada.
— Onde vai com essa cruz?
— Vou levá-la ao Calvário... e desabou sobre a praça chorando
inconsolavelmente. Diz ele que o soldado ficou comovido, mas nem por isso o
deixou ir em paz: convidou-o a acompanhá-lo até à estação e lá o Artur, em pranto,
contou a cena noturna: Que efetivamente penetrara no cemitério e que arrancara a
cruz do túmulo da sua amada para crucificar-se quando a saudade fosse muito forte.
E o caso vem hoje contado na Gazeta, sob o título Profanação e o Artur viu, com
pasmo, que a cruz era do túmulo de um comendador.
O Convidado de pedra... É ele?
— Anda por aí indignado.
— E o processo?
— Qual processo! A família meteu-se no caso. Mas é doido!
— Inteiramente. Já jantaste?
— Não.
— Janta conosco.
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— Não, estou comprometido.
— É caso de amor?
— Não, qual amor... Não tenho tempo para essas coisas. Vou jantar com um
carnavalesco que me pediu um puff.
— Ah! Bem. Amanhã, à noite, primeira reunião do Grêmio.
— Lá estarei. E já marcaste o dia da dissolução?
— Como da dissolução? Então não acreditas que possamos manter um
centro de palestra?
— Não acredito.
— Por quê?
— Porque conheço o meio.
— Pois há de viver.
— Duvido muito. Nós não temos espírito de associação.
— Mas é necessário que tenhamos.
— Não dou dois meses ao Grêmio.
— Uma aposta! — bradou o Neiva dando um salto.
— Apostemos!
— Cem mil réis!
— Está feito.
— Não dura um mês?!
— Não dura um mês, repetiu Fortúnio tranqüilamente, e, sem mais dizer,
estendeu a mão aos rapazes e saiu.
CAPÍTULO XX
No dia seguinte, às onze horas da manhã, sem almoço e sem esperança de
encontrá-lo, Anselmo assumia o posto honroso de redator-chefe do Diário Ilustrado
com um repórter, o Franco, e um contínuo, o Maia. O escritório era na rua da
Uruguaiana, um sobrado novo, com duas janelas de frente, claro e arejado.
Anselmo, muito grave e sisudo, conferenciou com os proprietários da folha
sobre o programa político que devia traçar no artigo de fundo e sobre as idéias
financeiras que havia de propugnar. Quanto à política percebeu que os homens
entendiam que a monarquia era o ideal, que o imperador era o único monarca
decente do universo, que S. Cristóvão era a suprema corte, que a princesa era uma
santa e o conde d'Eu, um sóbrio. Das idéias financeiras nada percebeu porque os
homens falaram tanto em cambiais, em estoques, em avos e em outras coisas
estranhas ao seu ouvido que ele saiu do gabinete tão alheio a tudo como se
acabasse de conversar com dois japões. Todavia comprometeu-se, com muita
gravidade, a promover a alta do café e a cimentar o trono com a lógica formidável da
sua pena. Os proprietários saíram satisfeitos e Anselmo passou à sala da redação
para distribuir o serviço. O Franco, de mãos nos bolsos, passeava pela sala,
fumando. Anselmo chamou-o:
— Seu Franco, o senhor tem alguma coisa?
— Não tenho nada, disse o repórter continuando a passear. Estou fazendo
horas para ir às secretarias.
— Quem vai à polícia?
— O moleque. O moleque era o Maia. Eu não tenho botas de sete léguas.
Mande o moleque. Que custa? As notas estão prontas. Eu cá não vou.
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— Mas vai às secretarias?
— Sim senhor, posso ir. E, à noite, aos teatros.
— E redige as notícias?
— Deus me livre! Não faltava mais nada! Por sessenta mil réis. Ora! Não
redijo nada. Quem quiser que redija, eu não.
Anselmo exacerbou-se e, de pé, franzindo a fronte, com a espátula em
punho:
— Mas afinal: que faz o senhor?
O Franco voltou-se.
— Que faço? Vou à secretaria do império, vou a secretaria da fazenda, vou
à secretaria da justiça, vou à secretaria da guerra, vou à secretaria da marinha, vou
à secretaria das obras públicas, vou à secretaria dos estrangeiros, vou à câmara
municipal... ao diabo! E então? Pensa o senhor que sou de ferro? Isso não! Com o
senhor Steel éramos dois, eu e o Reis; agora sou eu só para tudo... Isso não! Então
paguem mais. Saio daqui estrompado para ganhar sessenta mil réis. Não está
direito. Mande o moleque. Que fica ele fazendo aqui? É um vagabundo que passa
os dias cochilando e chupando balas; que vá. Eu não vou, já disse, nem que me
rachem.
Anselmo, mais calmo, resolveu entender-se com o Maia e chamou-o. O
continuo era gago e, para dizer uma palavra, contorcia a face, escanzelava a boca
como em acesso epiléptico.
— Seu Maia, você sabe ir à policia?
— Se... e... e... i... e sim se... nho... o... o... or...
— Não sabe outra coisa, um bêbedo como esse, rosnou o Franco.
O Maia lançou-lhe um olhar feroz.
— Então dê um pulo até lá e veja se há alguma coisa.
— À noite, aconselhou o Franco. É melhor que ele vá à noite, porque traz
tudo de uma vez.
— Eu vou... ô... vou sem... empre à noi... te, disse o Maia.
— Pois então à noite. Mas não se esqueça.
— Nã... o es... que ... e... ço nã... o... se... e... nhor.
— Pode ir.
O Maia retirou-se e o Franco, puxando uma cadeira, repoltreou-se diante da
mesa de Anselmo.
— Então é o senhor só que vem fazer o jornal?
— Eu só.
— E agüenta?
— Não sei, vou ver.
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— O senhor não agüenta. Olhe que esta folha come matéria que não é
graça. A gente escreve, escreve, escreve e, quando pensa que tem muito, meu
amigo, nem meia coluna. Vai ver. Sem um companheiro o senhor não faz nada.
— Quem sabe!
— Vai ver. Ah! Eu sei bem como se faz um jornal.
— Também eu.
— Pois não parece. O senhor arria... Se não chamar um companheiro não
faz nada. Depois, meu amigo, quando a gente trabalha e vê cobre ainda vale a
pena, mas aqui...?!
— Não pagam? — perguntou Anselmo sobressaltado.
— Ora! Uma ninharia. Eu ganho sessenta mil réis: e o senhor?
— Duzentos.
— Não é dinheiro.
— É pouco, concordo, mas, em todo o caso, já se vive.
— Qual! Um homem não vive decentemente no Rio de Janeiro com menos
de quinhentos mil réis. Quanto pensa o senhor que eu gasto por mês? Pensa que eu
vivo com esse cobre magro que levo daqui? Pois sim... Eu regulo gastar
quatrocentos a quinhentos mil réis. Ah! Faço a minha feriazinha todas as noites: vou
a um bico, vou a outro e pingando aqui, pingando ali, arranjo a minha feriazinha. Se
eu só contasse com o jornal estava bem aviado.
— O senhor joga?
— Jogo, não por vício, por necessidade: sustento minha mãe e uma irmã. Só
de casa pago quarenta mil réis e, com vinte hei de dar de comer a duas pessoas e
roupa e calçado e botica, mais uma coisa, mais outra? Atirou uma cusparada por
entre dentes, silvando. Faço a minha feriazinha e vou arranjando a vida. Não vale à
pena ser jornalista no Brasil, não vale, repetiu meneando com a cabeça
desoladamente. Gosto aí de uma moça, queria casar, mas tenho lá coragem de
pedir a menina com essa bagatela? Eu, não! Quando casar quero que minha mulher
apareça, não há de andar como muitas que conheço, isso não. Estou aqui
esperando negócio melhor. Vim para a imprensa porque pensei que isto era outra
coisa, mas logo que ache um empregozinho aí numa secretaria, mosco-me. Fincou
os cotovelos na mesa e, com as mãos no rosto: O senhor não se dá com o ministro
do império?
— Não.
— Mas conhece alguém que seja boa cunha para ele?
— Não, não conheço.
— É o diabo! Se eu arranjasse um lugarzinho de amanuense... Não digo que
deixasse a imprensa, não, porque, enfim, isto é uma cachaça. Podia, de vez em
quando, escrever o meu folhetim, o meu sonetozinho... mas contando com o
ordenado certo no fim do mês. Deixe lá! Não há como a gente ser empregado do
governo. No fim do mês o cobre está cantando e isso é que serve.
— E o senhor escreve folhetins?
— Não sabia?
— Não.
— Escrevo; e faço versos. Tenho aqui um soneto, se quer. E meteu a mão
no bolso fundo do casaco.
Tirou um papelucho amarelado, abriu-o lentamente, pigarreou e leu, com
grandes gestos largos:
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À CONSTANÇA
Constança morena tu és a aurora
Do meu porvir magnânimo e sublime.
Se o meu verso o meu amor exprime
Eu deixo aqui o meu verso, senhora.
Ontem de tarde quando a carpidora
Pomba rola, mais débil do que o vime,
Cantava a sua balada, ai! eu senti-me
Capaz de acompanhá-la pelos campos afora.
Porque a vida é dor, loura criança
E eu choro tanto por ti que o meu peito
Já está seco assim como o Saara.
Olha para mim, ó pálida Constança!
Vê como estou por dentro todo desfeito
Diz à minha dor duma vez: Ó dor, pára!
Dobrou o papelucho e, fitando Anselmo com ar triunfante, perguntou:
— Então, que tal?
— E o número de sílabas? E o conceito?
— Conceito! Para que isso?
— Pois não é uma charada novíssima?
O Franco bufou:
— Que charada! Trate sério. Pois eu vou lá fazer charadas à minha noiva,
seu...? É um soneto e está muito bem feito. Não vejo por ai quem faça melhor.
Agora, se não quer publicar é outro caso.
— Tem uns versos quebrados.
O repórter pôs-se de pé, como afrontado e, arrancando o soneto que havia
descido ao bolso profundo, repetiu, com espanto:
— Versos quebrados... Onde?
— Leia lá.
E o Franco com ênfase, declamou:
Constança morena tu és a aurora
— Hum...
— Hum como? Então este verso está quebrado? Onde está a quebradura?
Constança morena tu és a aurora
— Vamos adiante.
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Do meu porvir magnânimo e sublime.
— Voltou-se intimativo:
— Também está quebrado?!
— Não, mas é imbecil. Porvir magnânimo e sublime é asneira.
— Asneira...! Ora tire o cavalo da chuva. Então eu não sei português!
Asneira, porque...! Vamos ao dicionário. Ó Maia, que é do dicionário português? O
Maia esticou o beiço e bateu com uma das mãos na outra. É, já foi para o sebo...
Pois se houvesse aqui um dicionário eu mostrava.
Se o meu o verso o meu amor exprime
Diga que está também errado; e pôs-se a contar pelos dedos:
"S'o meu verso meu amor exprime..."
Ficou pensativo, depois disse:
— Tem nove, falta uma. Baixou os olhos, de repente, erguendo a cabeça,
exclamou: Mas espere, há um que tem onze, tira-se-lhe uma e passa-se para este e
fica tudo arranjado.
— E... disse Anselmo que já havia lançado o título do artigo de fundo, em
letra caprichosa e esbelta: Caveat!
— Vai escrever o artigo?
— Sim, vou.
— Então eu vou dar um giro; posso apanhar alguma noticiazinha fresca.
Olhe, hoje há uma primeira. O senhor vai?
— Vou.
— Eu posso ir, se quiser... e faço a notícia.
— Obrigado; eu vou.
O Franco foi debruçar-se à sacada e ficou a cantarolar. Por fim, resolvido,
tomou o chapéu e saiu recitando:
Constança morena tu és a aurora
Do meu porvir magnânimo e sublime
Anselmo dedicou-se de coração ao jornal. Morava na rua Marquês de
Abrantes, numa pensão nobre, em companhia do Steel, o antigo redator do Diário.
Levantava-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para a cidade, sentando-se
imediatamente à mesa de trabalho. Escrevia o artigo de fundo, a Boemia, romance
au jour le jour, a crônica do dia, redigia o noticiário e todas as seções; corrigia as
notas que o Maia trazia da polícia e ainda passava os olhos pelas notícias do
Franco, cuja ortografia era das mais complicadas. À noite estava derreado. Mas com
que prazer, na manhã seguinte, abria o jornal e revia o seu trabalho, emoldurando a
gravura central que ele sempre acompanhava de algumas palavras explicativas.
Os proprietários, entretanto, não pareciam satisfeitos, porque o jornal não
tinha venda e era um trabalho para o agente conseguir um anúncio. O Franco,
sempre a protestar contra a miséria: — "que não havia talento possível com aquela
pingadeira", aparecia, às vezes, à noite, resmungando, com a papelada numa
confusão horrível e, acumulando as notas, monologava:
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— Qual! Quando não se está de sorte é isto... O meu número! O meu
número!... Se eu tivesse feito o meu jogo tinha estourado a banca. Mas é isso,
quando não se está de sorte...
Depois o diabo daquele cabula a chorar, a chorar. Detinha-se, cravava os
cotovelos na mesa, e, com as faces nas mãos, ficava olhando perdidamente: Três
vezes! Parece incrível! E eu no pequeno! Pedaço de burro! É bem feito. Mas qual!
Quando não se está de sorte é assim mesmo. Estão aqui as notas.
— Houve alguma coisa?
— 0 29...
— Foi preso? — perguntou Anselmo julgando que ele se referia ao idiota
que escandalizava a rua do Ouvidor com os seus impropérios.
Mas o Franco amuou:
— Qual preso! Deu três vezes e eu no 8.
— Ah! Na roleta...?
— Sim, mas não jogo mais, nem uma ficha. A roleta é um jogo besta. Afinal
qual é a ciência da roleta? Nenhuma, é só questão de sorte. Há três dias que não
ganho um vintém, é só perder, perder. Vou dar com o basta!
— Foi às secretarias?
— Fui; pois não estão ai as notas? Não houve nada. Amanhã sim, há
despacho.
— Bom, vamos trabalhar.
— Eu vou dar uma volta pelos teatros.
Saiu. Às dez horas o Maia ia ao Diário Oficial e à meia-noite, quando o
paginador, saciado, declarava que o jornal estava pronto, Anselmo saía lentamente,
tomava um copo de leite no Java e ia cochilando no bonde até a porta de casa e, às
vezes, passando pelo quarto dó Steel, ouvia palavras sussurradas, risinhos,
estrépitos de beijos e lembrava-se de Amélia com voluptuosa saudade, mas tanto
que repousava a cabeça no travesseiro adormecia pesadamente como um cavador.
Apesar de todos os esforços, o jornal não lograva impor-se ao favor público
e, quinze dias depois de haver Anselmo assumido á redação, os proprietários, vendo
que o café continuava a baixar, zombando dos artigos violentíssimos do redator-
chefe, resolveram "suspender a cesta", como disse, com muito pitoresco e muita
resignação, o Franco, quando recebeu o saldo.
Voltaram os dias difíceis. Forçado a abandonar a casa da rua Marquês de
Abrantes, onde se achava tão confortavelmente instalado e podendo dispor do
magnífico guarda-roupa do Steel, que era janota e franco posto que, algumas vezes,
franzisse o nariz encontrando na rua do Ouvidor as suas calças cobrindo as pernas
magras do companheiro, Anselmo partiu à aventura como o moço Perceval, não à
conquista do santíssimo cálice, mas em busca de um teto e de uma sopa que o
resguardasse da intempérie e lhe saciasse a fome.
A boemia parecia haver emigrado — só o Neiva e o Lins apareciam. Ruy
Vaz anunciava um romance. Havia também abandonado, não por gosto, o palacete
das Laranjeiras, o amorável e penseroso arvoredo e os jantares pantagruélicos e
vivia num sótão modesto com a sua musa e um cachimbo. Fortúnio também andava
afastado. Bivar, com idéias científicas, ia, de quando em quando, dar uma vista de
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olhos ao anfiteatro e compunha poemetos. O Duarte, sempre apaixonado, contava a
toda gente os seus infortúnios. O Moraes e o Artur laboravam. A Vida Moderna, em
luta aberta com a Semana, saía aos sábados, tremenda, com a sua gravura
pantafaçuda e os formidáveis artigos do poeta da Tarântula.
Estava travada a batalha, e, uma tarde, como se encontrassem dois grupos
num botequim, correu copiosamente o caldo de cana que foi o hidromel do festim
espiritual, e, diante dos burgueses aterrados, poetas de um e do outro partido
recitaram, como em Wartburgo quando os bardos, tendo à frente o grande Wolfran,
empenharam-se na grande luta lírica.
O Moraes, assomado, lembrava aos do seu bando o que deviam recitar e
Fortúnio, com uma voz branda, disse uns versos repassados de melancolia, o
Alberto respondeu-lhe com um soneto admirável. Moraes ergueu-se e os
alexandrinos fortes da Guerra atroaram com o fragor de catapultas. Outro poeta
bucólico veio trazendo por uma rechã, ao romper do dia, um carro de bois rangendo
aos solavancos e Anselmo frenético, com os olhos despedindo raios, arregaçando
as mangas do casaco, despejou sobre a mesa a sua cornucópia helênica e, de
mistura com pastores que sopravam syrinx, saíram hoplitas e deuses, hetéros e
pallakai, filósofos e poetas, Eschylo às voltas com Aristeu, Menandro de braço com
a lúbrica Lycenion, Laís e Minerva, as bacantes e as coéforas, as eumenides e as
tesmofórias e às cinco e meia da tarde, encharcados de caldo de cana, abalaram
triunfalmente os daquele Parnaso onde havia um moinho de café e um homenzinho,
corcunda como Thersito, que apregoava bilhetes de loteria.
A vitória ficou indecisa, mas o Moraes, querendo dar uma batalha decisiva,
no número seguinte da Vida Moderna, atirou-se, com a fúria de um Ajax, sobre um
dos grandes poetas do outro lado e desancou-o.
A resposta seria violenta se houvesse saído, mas o jornal contrário apareceu
calmo, sem referir-se à questão, e os da Vida Moderna entoaram o péan da vitória.
CAPÍTULO XXI
Por esse tempo o Grêmio de Letras e Artes, que já havia conseguido reunir
no seu seio oito sócios dispostos a tudo, anunciou a segunda sessão. À noite, onze
letrados assinaram o livro de presença e o presidente declarou que ia dar começo
aos trabalhos. Fez-se um grande silêncio e foi lida a ata da sessão anterior. Logo em
seguida um poeta de Niterói, já avô, pediu a palavra e, desatando um grande
embrulho, anunciou a leitura de um poema.
Um calafrio percorreu a sala. Vagarosamente, o relógio da Torre de S.
Francisco bateu oito badaladas quando o venerável poeta disse, com uma voz
circunspecta e o gesto sóbrio de quem vai tomar uma pitada: Canto primeiro...! Às
dez e meia da noite, num silêncio fúnebre, o gênio, depois de haver engolido dois
copos de água gelada, anunciou: Canto segundo. O Lins dormia profundamente;
Duarte, recostado, fazia castelos; Moraes arrancava fios do bigode; o presidente
estava sucumbido, um dos secretários havia abandonado a mesa e, ao fundo, o
Teixeira, empoado de caspa como se tivesse sobre os ombros um arminho,
passeava resmungando. À meia-noite a voz do poeta anunciou: Canto terceiro. Era
demais!
O Neiva deu um salto feroz:
— Heim! Canto terceiro!? Não! Você está enganado.
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O Moraes rugia e Fortúnio, muito calmo, estirou os braços bocejando.
— Vou-me embora! — disse o Moraes.
— Faltam apenas quatro cantos, explicou timidamente o poeta.
— Quatro cantos! — exclamou o Neiva. E o cavalheiro pensa que eu não
tenho trabalho para ficar aqui até depois de amanhã às suas ordens? Ora, meu
amigo.
— Mas eu estou com a palavra.
— O senhor está com a palavra e eu estou caindo de sono.
— Senhor presidente, decida: Os meus dignos consócios entendem que a
hora vai muito avançada.
— A hora está correndo... para fugir do poema, disse Fortúnio.
E o poeta continuou:
— Peço a V. Exa. que me garanta a palavra para a sessão seguinte.
— Não apoiado! — exclamou o Neiva e outros bradaram:
— Não apoiado!
— Como não apoiado? É do regimento...
— Qual regimento. Para um caso como este só um regimento de polícia.
Peço a palavra, Sr. Presidente.
Mas o presidente dormia e foi necessário que um dos secretários o
sacudisse para que ele desse atenção ao Neiva que gesticulava, trepado em uma
cadeira.
— Tem a palavra o Sr. Francisco Neiva.
— Sr. Presidente, peço a V. Exa. que suspenda a sessão. É mais de meia-
noite, as nossas famílias já devem estar alarmadas, e eu estou com fome. Não jantei
ainda, saí da Ilha das Flores e vim logo para aqui. Mas se soubesse que havia uma
cilada, palavra de honra: não me apanhavam.
— Cilada?!
— Pois não, Sr. Presidente: três cantos de um poema maior do que a
paciência de um santo. É necessário que V. Exa. ponha cobro a tais escândalos. Se
começam a fazer pilhéria como a de hoje, não dou nada pelo grêmio. Eu serei o
primeiro a pedir demissão... Ah! Não há dúvida!
— Eu não sabia que os senhores não gostavam de versos.
— Perdão, gostamos de versos, mas detestamos essas coisas que o senhor
fez com o propósito criminoso de destruir a obra do nosso esforço.
— Como?!
— Como!? Dando cabo da paciência dos sócios. Olhe, ali naquele quarto há
dois dormindo a sono solto, aqui dormiram todos, menos eu porque queria ver até
onde ia a sua coragem: foi até ao canto segundo e iria ao décimo se não
protestássemos. Ora, meu amigo, ao menos por condescendência...
— Vá ser poeta assim para o diabo! — rosnou o Moraes.
— Meia resma de papel!
— Mas eu pedi licença.
— Pediu licença para ler um poema, mas não disse que era um absurdo,
uma cacaria métrica.
— São alexandrinos.
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— Alexandrões! Há versos ai que têm mais pés do que uma escolopendra.
Senhor Presidente, meus senhores, boa noite!
Diante da disposição do Neiva o presidente suspendeu a sessão.
Para Fortúnio e Anselmo o Grêmio foi uma instituição providencial: não lhes
deu glórias literárias, mas que sonos magníficos ali dormiram os dois! Certa noite,
depois de uma tumultuosa sessão, como chovesse a cântaros, foram os dois
entender-se com o Teixeira, chamado o "mar Cáspio", título alusivo à carambina que
lhe caía da cabeça branqueando-lhe o casaco, para que lhes permitisse ficar em um
dos quartos, que era chamado o arquivo e onde apenas havia jornais, um
almanaque de Laemmert e uma Igta pequena a um canto. O Teixeira, que era o
zelador do Grêmio, não o queria ver transformado em albergue noturno e
resmungou. Mas os dois boêmios, com argumentos fortes e pondo-se logo à
vontade, convenceram-no. O arquiteto saiu recomendando o maior cuidado e que
não acendessem cigarros com os preciosos autógrafos que havia na pasta.
— Não há dúvida, Teixeira: dormiremos tranqüilamente e, se não houver um
terremoto, hás de encontrar amanhã a casa como nola confias e Deus no céu levará
ao teu ativo dois sonos repousados que vão dormir um poeta e um prosador.
— E de manhã, quando saírem, puxem a porta.
— Puxaremos a porta, Teixeira. Vai com Deus!
— Até amanhã.
— Até amanhã.
Sós, com todo o gás da casa aceso, sentaram-se nas cadeiras dos
"imortais" e Fortúnio, acendendo um cigarro, estirando as pernas, rompeu o silêncio.
— Ora muito bem. Já é alguma coisa a literatura: fornece hospedagem.
Graças ao nosso talento temos uma casa para dormir. Verdade é que não há cama,
mas também Roma não se fez em um dia. Contentemo-nos com o quarto, amanhã
virá o resto.
— Mas, a propósito, onde vamos dormir...?
— No chão.
— Com este frio!?
— Temos ali jornais, podemos forrar o soalho com jornais.
— E para nos cobrirmos?
— O Jornal do Commercio é um magnífico lençol.
— Então vamos arranjar isso, porque eu estou a cair de sono.
— E eu também, disse Fortúnio: passei ontem uma noite de cão.
— Onde?
— Na praia de Botafogo.
— Em casa de quem?
— Numa estação de policia.
— Foste dormir em uma estação!?
— Fui, não: levaram-me.
— Por quê? Que fizeste?
— Eu? Nada, mas o Duarte é louco. Era uma hora da madrugada, íamos os
dois pela rua de S. Clemente, quando o Duarte viu uma barrica abandonada. Quis
fazer de Diógenes e pôs-se a rolar a barrica e teria ido com ela ao Jardim Botânico
se um soldado não lhe embargasse o passo. Nós, para dizer a verdade, não
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estávamos muito direitos e começamos a discutir com a polícia e o resultado da
discussão foi o homem zangar-se ameaçando-nos com o rifle. Diante da atitude
bravia do permanente, Duarte, que não é mole, espalhou-se e atirou tal cabeçada
que o soldado virou de pernas para o ar e nos... é por aqui! Mas o homem levantou-
se e, apitando, lançou-se desesperadamente atrás de nós e, quando íamos tomando
um bonde que passava, fomos agarrados. Ah! Meu amigo, que noite! Na estação
protestei, quis resistir, mas havia tantas espingardas... Quando me pediram o nome
tive uma esperança e disse com arrogância:
— Fortúnio, jornalista. Mas o cabo rosnou: "Hum! É a mania de todos... Já
apareceu aqui um que disse que era Fagundes Varella, outro que era o barão de
Cotegipe e estava numa mona que não se lambia. Pois sim... Meta os homens no
xadrez!" E lá fomos de cambulhada. Vociferei, jurei vingar-me, agarrei-me às grades,
mas tive que resignar-me e fiquei com o Duarte entre uma negra bêbeda e um
italiano feroz, que rangia os dentes e jurava por todas as madonas do Paraíso. Noite
medonha! Às três horas entrou um sujeito que fora encontrado tentando arrombar
um quiosque. Que lamúria! Esse não esteve calado um segundo. "Aí está, um
homem vai com o seu dinheiro procurar alguma coisa para comer e vem um
camarada dizendo que a gente está arrombando o quiosque... Eu, ladrão! Seja tudo
pelo amor de Deus! Ai! Ai! E ainda por cima trazem a gente para um chiqueiro
destes, cheio de pulgas... Isto até faz mal. É por estas e outras que há tanta febre
amarela no Rio de Janeiro, pois não limpam o xadrez como é que a gente há de ter
saúde? Um homem sai daqui direitinho para o Caju. Ai! Não é pela prisão... Quantos
homens importantes têm sido presos? O Tasso... E o Tasso era um poeta supimpa!
Eu só me zango porque me tomaram por gatuno. Há muita injustiça neste mundo de
Deus! Um homem velho, doente, arrombando quiosques..." Depois implicou com o
italiano que, cochilando, caía sobre ele: "Chega pra lá, mussiú..." E, de uma vez,
atirou tamanho murro repelindo o dorminhoco que, se um soldado não acudisse,
teria havido uma cena terrível, talvez sangue. Por fim, cansado, adormeci. Mas de
manhã, quando tivemos de subir à presença do delegado, entre praças, no rol dos
vagabundos, pela praia de Botafogo... Ah! Anselmo, quase morri de vergonha.
Bondes passando, gente conhecida... Um horror! felizmente o subdelegado conhecia
o Duarte, depois de muitos conselhos, mandou-nos em liberdade, mas eu fiquei sem
quinze mil réis que levava.
— Furtaram-te?
— O escrivão pediu-mos sob promessa de liberdade. Estou morto.
— Vamos dormir.
Estenderam os jornais, um ficou com o almanaque de Laemmert e, cobrindo-
se com as largas folhas do Jornal do Commercio, adormeceram profundamente
sobre a imprensa da capital.
Acordaram com o rumor das carroças que desciam a rua, aos trancos.
Fortúnio estirou os braços preguiçosamente e saiu em exploração pela casa, com
esperança de encontrar um banheiro; mas apenas existia uma bica avara e os dois
resignaram-se a uma fusão ligeira, dizendo Anselmo, com mau humor, sacudindo a
água do rosto, como quem sacode o suor:
— Bem se vê que esta casa foi construída pelo Teixeira. O monstro é tão
entranhadamente patriota que, apesar de viver no Brasil há trinta e cinco anos, ainda
tem no corpo terra de Portugal. Vejam isto — um prédio, com pretensões a palácio,
sem banheiro.
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Voltando ao quarto rasgaram as camas e os lençóis e Anselmo teve
curiosidade de ver o que havia na lata.
— Há ali alguma coisa, Fortúnio; vamos ver?
— Cuidado! Talvez sejam ossos de algum parente do Teixeira.
— Se forem ossos põe-se ali um epitáfio. Vou ver... E, sem mais hesitar,
abriu a lata, lançando aos ares uma exclamação ruidosa.
— Que é? Ouro?
— Roupa branca, meu amigo! Roupa branca: uma camisa, um par de meias,
ceroulas e dois lenços... Ó maravilhoso achado! Eu devia hoje mudar o meu linho e
foi Deus que me inspirou.
— Pois queres vestir a roupa do Teixeira, homem?!
— Certamente.
— Mas desapareces e vai ser um trabalho para eu encontrar-te. É uma
loucura.
— Qual loucura! Antes de mais nada a limpeza. Bem vês que a minha
camisa está ganhando uma cor neutra, porque não é branca nem cinzenta e esta é
alva como a inocência. O diabo é a gola. Ora! Ao menos andarei folgado. E, atirando
para um canto a camisa neutra, vestiu a do Teixeira que recendia suavemente a
erva de S. João. Mas a gola...! Se Anselmo baixava a cabeça ia-se-lhe o queixo pelo
abismo, se a levantava aparecia-lhe metade do peito. "Mas o ar penetrava
livremente... era como se estivesse nu..." — disse o boêmio arregaçando as mangas
compridas. Valente pescoço, sim, senhor! Valente pescoço!
— Anselmo, tira essa camisa, está indecente.
— Qual indecente! Uma camisa que cheira como o mês de Maio. Ó inveja,
bem te conheço.
E vestiu as ceroulas. Fortúnio não se conteve — desatou a rir vendo o
companheiro naquelas amplas bombachas. As meias cobriam-lhe o pés e ainda
sobraram, como etc., etc., duas pontas indefinidas.
— O pé do Teixeira vale bem os versos do Silva. As meias parecem
folhetins... com o "continua". Tanto melhor: quando estiver suja uma metade calço o
resto.
— Não são meias, são inteiras.
— Em compensação, os lenços são magníficos.
— Mas tu pretendes sair assim, Anselmo?
— Por que não?
— Estás hediondo.
— Mas limpo.
— Procura um espelho.
— Qual espelho! O meu espelho é a consciência. Vamos tomar café. Se eu
desaparecer na camisa, puxa-me.
— Não olhes para baixo.
— Por quê?
— Por causa da gola: podes ter a vertigem do abismo.
— Descansa — olharei para diante.
Contendo o riso, Fortúnio saiu com o companheiro. Na rua várias pessoas
olharam, com espanto, a imensa gola por onde o vento entrava uivando como por
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um túnel. Mas o boêmio, de cabeça alta, seguia para o Java, onde fez um almoço de
assobio em companhia de Fortúnio.
Às duas horas estavam no Pascoal, discutindo a literatura do Norte, quando
o Teixeira rompeu, fulo de ira:
— A minha roupa, senhor Fortúnio. Pois os senhores pedem-se o Grêmio,
transformam-no em hospedaria e, ainda por cima, carregam a minha muda de
roupa?
— Perdão, disse Fortúnio sisudo, eu não tenho a sua roupa.
— Eu não sei quem a tem, o caso é que ela desapareceu da lata. Então está
com o outro.
Anselmo, que vira entrar o Teixeira, alteou a voz, falando dos russos, mas o
arquiteto interrompeu-o:
— Minha roupa! Vendo a imensa camisa, reconheceu-a imediatamente e, de
braços cruzados, meneando com a cabeça, exclamou: Ora, seu Anselmo... pois
você!
— Que é?
— Que é! É a minha camisa que o senhor tem no corpo.
— É tua?
— De quem há de ser?
— Pois olha, não sabia.
— Ah! Não sabia? Pois saiba então. A camisa, as meias, as ceroulas, tudo
que o senhor tem no corpo.
— Perdão: as calças são minhas, o colete, o casaco, a gravata, o chapéu, as
botinas...
— Eu falo da roupa branca.
— Branca é um modo de dizer: amarela, porque está encardida. Tens uma
lavadeira detestável.
Não sei, vamos ao Grêmio porque eu preciso da roupa. Quem o alheio
veste...
— No Grêmio o despe, concluiu o boêmio, e fleumaticamente: Mas eu não
dispo.
— Como não despes? Então pretendes ficar com o que é meu? Achas que
devo andar com um colarinho amarfanhado e você aí muito janota...
— Janota com esta gola? Ora seja tudo pelo amor de Deus! Teixeira, deixa-
me com a roupa. Eu quero devolver-te lavada pela minha lavadeira, que é uma
artista.
— Mas eu não quero! — rugiu o arquiteto.
Das outras mesas já olhavam curiosamente quando o Patrocínio e o Moraes
decidiram intervir na questão, responsabilizando-se, o primeiro pela camisa e por um
pé de meia; o segundo, pelas ceroulas e pelo outro pé de meia. E o Teixeira foi
convidado para a mesa tomando furiosamente uma cajuada, enquanto o queixo de
Anselmo aparecia e desaparecia no abismo do colarinho.
Quinze dias depois o Grêmio de Letras e Artes, esperança do Brasil literário,
fechava as portas depois de renhida discussão, que ia degenerando em pugilato. Os
ilustres fundadores do grande cenáculo saíram pesarosos e convencidos de que,
entre homens de letras, não há espírito de associação.
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— "Não coadunam, dizia o louro secretário, homens de talento não fazem
liga, é escusado. Um poeta e um romancista podem engalfinhar-se, ligar-se é que
não. Isso nunca!"
E durante um mês, aos jantares, não apareceu proposta alguma para
fundação de clubes literários.
Fortúnio e Anselmo sentiram profundamente, porque perdiam uma casa
magnífica, posto que o Teixeira, escarmentado, não quisesse mais permitir dormidas
no santuário do espírito. Resignaram-se e atiraram-se ao mundo com coragem e fé.
Uma manhã, Anselmo rondava os cafés lançando olhares compridos,
quando o Neiva apareceu esbaforido:
— Ó homem! Madrugaste?!
— Não dormi.
— Como, não dormiste?
— Não, passeei: fui a Botafogo a pé, fazer horas.
— Deves estar estafado.
— E louco por uma xícara de café.
— Vamos tomar. Entraram no lava e o Neiva, servindo-se de açúcar, disse
de repente: Homem, queres uma impressão?
— Preferia um par de sapatos.
— Isso agora é difícil.
— Dize lá.
— Vem comigo a bordo. Vou receber a primeira leva de retirantes.
— Os cearenses?
— Sim.
— É hoje?
— É agora. O paquete está entrando.
— A que horas poderemos estar de volta?
— Às duas. Se queres, decide-te.
— Vou. O diabo é que perco a hora do almoço.
— Almoçaremos a bordo.
— Mas... haverá ainda alguma coisa? Um navio que vem do Ceará...
— Ó homem, avia-te!
— Vamos lá. Seguiram.
CAPÍTULO XXII
O Neiva, muito loquaz, pôs-se a falar dos patrícios que vinham nesse êxodo
triste, tocados pela fome.
— Pobre gente! É o sertanejo da minha terra, é o rústico do meu campo
cearense, é o caboclo serrano, é toda a população do grande centro flagelado. Vais
ver que miséria. Deus não se compadece do meu Ceará. De vez em quando é isso
— um sol tremendo que bebe toda a água dos rios, que seca todas as fontes, e
começa o abandono da terra. Quem anuncia a calamidade é o gado arribando das
várzeas adustas com o "choro" lamentoso que se ouve à distância como um
prantear da natureza sacrificada. Parece que é a própria terra que geme e clama
misericórdia. Depois é o homem que, vendo mirrar a sua roça e não encontrando
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gota de água no açude árido, fecha a porta da cabana e emigra. Oh! A retirada...! O
gado vai caindo exausto pelos caminhos e os corvos baixam sobre os bois magros e
acabam-nos a bicadas, devorando-os em vida. O homem, mais resistente, caminha
afundando os pés na areia adusta, com a cabeça ao sol, cantando para suavizar a
marcha dolorosa. E são velhos trôpegos que mal podem mudar um passo, mulheres,
crianças e moças virgens, sertanejinhas formosas, abandonados, caminhando sem
ver um oásis, através da esterilidade inclemente.
Se um pântano aparece ao longe, precipitam-se atropeladamente, ajoelham-
se à beira d'água morta e bebem, arrancam a taboa e envenenam-se. Alguns
morrem e ficam apodrecendo nos caminhos; outros, com desânimo, deixam-se cair à
sombra escassa de uma árvore sem folhas e sucumbem à míngua ou devorados
pelas onças. E quanta tristeza nas cantilenas! Este, lembra a sua casinha de palha,
entre os milhos; aquele, fala, com saudade, da sua roça, do lugar em que nasceu,
de onde saiu pela primeira vez, expulso pelo sol. E o clamor, que é assim que eu
chamo ao canto dos retirantes, o hino magoado dos banidos, ecoa de quebrada em
quebrada lamentavelmente.
Mas, meu velho, mais cruel que o sol é o coração do homem. Esses infelizes
são explorados na sua miséria. A virgem, quando chega à primeira vila, aparece
logo o libertino propondo um punhado de farinha a troco da sua pureza, e a
desgraçada, que tem fome, entrega-se, às vezes, perto dos pais moribundos, diante
dos pequeninos irmãos, que olham espavoridos.
— É infame!
— É uma miséria! Mas que queres? É assim. Eu queria que me mandassem
dirigir o serviço no Ceará e eu que encontrasse um desses patifes! Arregalou os
olhos e bufou colérico, com os punhos cerrados: Esganava-o, palavra de honra!
Esganava-o! Vais ver a miséria.
Haviam chegado ao cais Pharoux. Catraieiros avançaram de chapéu na
mão, oferecendo botes:
É para o nacional? Temos ali a Maria Flora, patrão... Olha o Ventania... É
para o francês? Quer um bote, patrão? Eu tenho toldo. Podemos ir à vela... E
assediavam-nos, falavam ao mesmo tempo, disputando os dois rapazes. E o Neiva,
muito calmo, sem lhes dar atenção, bradou diante do mar:
— Lá está ela! Ali vem! Irrompeu então contra os homens. Pois os senhores
não me vêem embarcar aqui todos os dias? Não sabem que tenho lancha? Não me
conhecem? E empertigado, ameaçando com a bengala: Enquanto eu não vier um
dia disposto a fazer uma limpeza neste cais isto não endireita. Os catraieiros
retiraram-se cabisbaixos e o Neiva, rugindo, acompanhou-os algum tempo com o
olhar chispante. Depois voltou-se para o Castelo: Lá está o sinal do paquete.
Vamos, está aí a lancha. E caminharam para o embarcadouro.
Como deviam entrar dois paquetes, já assinalados no Castelo, era grande o
movimento de embarcações no mar — botes que iam à vela ou a remo, lanchas que
partiam sulcando fundo as águas. A baía fulgurava toda em chispas, ao sol.
Gaivotas circulavam no ar puro, grasnando. Os dois tomaram a lancha que logo se
pós em marcha, demandando o navio que entrava, lento e negro, vagaroso, pesado.
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— Pobre gente! — exclamou o Neiva com a mão em pala diante dos olhos
encandeados. Parece que vem ali um pedaço da minha terra infeliz, o meu Ceará
amado. Por que há de o Senhor causticar aquela bendita região dos palmares? É
uma praga! Parece que o Ceará foi escolhido pelo sol para vítima. De tempos a
tempos, bumba! Lá vem a seca e é isto que estás vendo — o Sertão a emigrar, a
fugir diante do incêndio e da aridez.
O paquete avançava majestoso e a lancha ia passando entre um cruzador e
um pontão quando sons agudos de corneta retiniram, depois apitos e um escaler foi
baixando dos turcos sobre o mar onde começou a balouçar-se graciosamente.
— Belo navio, disse Anselmo.
— É a Guanabara.
— A minha carreira...
— O homem, pois gostas disso?
— Da marinha? Não estou ali a bordo porque meus pais entenderam que eu
tinha vocação para médico. Fui mesmo à escola, mas no anfiteatro, diante do
primeiro cadáver, o meu estômago protestou com tanta energia que resolvi
abandonar o escalpelo e o esqueleto e atirei-me à balança e à espada. Ah! Meu
amigo, o mar...! Não imaginas como adoro o oceano!
— Pois eu detesto-o.
— Enjoas?
— Não, a bordo devoro como um escrivão de cartório. Mas deixa lá! Não há
como a terra firme: pisa-se em cheio. Isso de saber a gente que está à mercê do
vento e da vaga não é comigo. Shakespeare já disse: pérfida como a onda e eu já
me vi com água pela barba, em uma viagem.
— Naufragaste?
— Quase! Fomos sobre uma pedras e não te digo nada... que horror! Mas
sabes o que mais pena me causou? Foi ver lançarem ao mar um precioso
carregamento de conhaque... caixas sobre caixas. Eu quis protestar com uma
objeção razoável. "Comandante, se continua a dar bebidas ao oceano então é que
ele nos arranja alguma com a ressaca..." Mas o homem estava tão grave no seu
posto de responsabilidade que retirei o conselho e meti-me no beliche chorando o
desperdício. Nada como a terra firme, sempre há mais segurança. Em terra só
naufragam empresas. Isso de ir um de nós para as areias alimentar as sardinhas
não é nada sedutor. Não há como um homem sair da sua casa barbeado, vestido,
em um caixão de primeira com os seus parentes e amigos para o cemitério. Sempre
a gente sabe onde está... e pode ter a sua coroa no dia de finados.
— Ora, isso é uma preocupação fútil.
— Como preocupação fútil? Não acho. Eu é porque não tenho dinheiro; mas
logo que arranje um cobrinho, compro quatorze palmos de terra em S. João Batista
e mando edificar o meu mausoléu, tão certo como estarmos nesta lancha ronceira.
— Para que quatorze palmos?
— Porque eu conto com a família que há de querer morar comigo, mesmo
algum amigo, terá casa às ordens.
— Pois eu preferia descer ao fundo do mar.
— Pois meu caro, se para lá fores não contes comigo para acompanhar-te o
enterro. Ó patrão, esta lancha não anda. Parece que não saímos do mesmo lugar.
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O paquete passava enorme, sereno. À proa uma multidão apinhava-se —
homens, mulheres, crianças alongando olhares para a terra desconhecida.
O Neiva pôs-se de pé e, com o chapéu na mão, bradou:
— Salve, Ceará! E logo, visivelmente comovido, pôs-se a falar como se
pudesse ser ouvido: Cearenses, está aqui o Neiva, vosso irmão, vosso patrício que
vos veio esperar. O Neiva! E o paquete seguia para a bóia. A lancha partiu então, a
toda a força, acompanhando-o e o Neiva, sempre de pé, bradava: Cearenses, aqui
estou eu! Aqui estou eu!
— Vem cheio que nem um ovo, disse um dos homens da lancha.
— Gente feia! — exclamou outro.
— Feia, mas honrada, protestou o Neiva.
— Parece chim.
— Que chim?!
— É sim, seu Neiva.
— E eu? Eu tenho alguma coisa de chim?
— Vosmicê não.
— Pois eu sou cearense.
— Mas vosmicê não é arretirante, lá dos cafundós.
— Quais cafundós! Um homem daqueles vale por dez de vocês!
— Que esperança! Farinha seca não engorda. Aquilo é gente!? Barriga só.
— Pois sim. Vão lá vocês meter-se com um daqueles caboclos.
— Ora, seu Neiva! Era num tempo só... Tudo aquilo junto não dá para a
brincadeira de cinco de nós.
A âncora mergulhava e a lancha avançou, manobrando atracar à escada de
bombordo.
Subiram. O paquete estava literalmente tomado pelos retirantes. Era uma
população que ali vinha apertada, constrangida, chorando o mesmo infortúnio. A
proa úmida tresandava, redes cruzavam-se: umas estiradas, nas quais mulheres
cadavéricas, macilentas, tostadas pelas grandes soalheiras dos campos largos, em
mangas de camisa, com as aduelas dos peitos apontando, fumavam
nostalgicamente, de olhos ao longe, perdidos num sonho. Velhos abaçanados,
escaveirados, cabelos hirsutos, chapéu de coco à cabeça, a camisa de madapolão
desabotoada, deixando ver os bentinhos e os amuletos pendurados do pescoço,
com as mãos cruzadas nos joelhos, não se moviam como se não houvessem
chegado ao termo da viagem. Rapagões sacudidos, faca à cinta, na bainha de
couro, falavam em ritmo dolente de canto, num tom interrogativo. Mocinhas púberes,
de olhos lindos, tez macia e rosada, cabelos de um negro de azeviche, mal
levantavam as pálpebras timidamente, acotovelando-se. Crianças nuas, ventrudas
como gnomos, rebolavam-se no chão; pequenitos de mama dormiam em esteiras,
ao sol, nus, as mãozinhas na boca.
A um canto, sobre um rolo de cabos, um velho cego cantarolava e uma
robusta rapariga cor de azeitona, de lábios grossos e sensuais, muito dengosa, fazia
crivo com a almofada ao colo.
Havia um rumor indistinto: eram risadas, cantilenas, suspiros, gritos, choros,
pragas. Uma viola gemia escondida. Mas dominava o grande zumbido da colméia a
grasnada ruidosa dos papagaios que os retirantes traziam como lembrança da terra.
O Neiva ia de um a outro grupo, falava, interrogava, querendo saber de onde
eram, se haviam sofrido muito, se a seca ainda era grande e os infelizes, como se
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logo, à primeira vista, houvessem nele reconhecido um patrício, uma vítima, talvez,
do mesmo flagelo, cercavam-no com simpatia e confiança. Os que estavam longe
avizinhavam-se de chapéu na mão, respeitosamente, narrando as suas desgraças.
O Neiva afagava as crianças, animava os moços e as raparigas:
— Vocês aqui estão muito bem: a terra é boa, a gente é boa, ganha-se muito
dinheiro. Depois, é o mesmo Brasil. Vocês não são brasileiros?
Um velho, com uma longa camisa que lhe descia aos joelhos por cima das
calças, acenou com o dedo negativamente:
— Nhôr não.
— Como! Então você não é brasileiro, velho?
— Cearense té morrê! — disse atirando uma cusparada por entre os dentes.
— Então o Ceará não é uma província do Brasil, velho?
— Iche! Ceará é dele só... té morrê. E foi-se resmungando
convencidamente. Té morrê.
O Neiva rompeu a rir e perguntou:
— Até morrer, heim?
— E o velho, de longe, sacudiu a cabeça, repetiu:
— Té morrê!
Uma mocinha mais desembaraçada interrogou o boêmio:
— Mecê é nortista?
— Cearense! Cearense da gema.
— Logo vi! Só gente do norte é que fala ansim.
O velho, como se houvesse sido interrogado, resmungou novo: Té morrê!
— Lá está ele.
Um caboclo pôs-se a assobiar uma cantilena de vaqueiro. Com que
melancolia o infeliz ia rememorando o tempo feliz na terra natal: a cavalo campina
fora, a vara de ferrão em punho, tocando os marroás atrevidos.
— Eh! Patrício...! Você era vaqueiro?
O caboclo acenou com a cabeça que sim, e continuou a assobiar. Anselmo
apartou-se querendo ver miudamente aquele quadro sinistro de miséria. O navio
lembrava a jangada da Medusa: os homens, com raras exceções, tinham
fisionomias espectrais, como se viessem de urna longa tortura. Junto à amurada
descobriu uma velhinha encarquilhada, encolhida nos andrajos, o cachimbo nos
beiços, olhando a fito. Parecia uma bruxa em evocação.
— E! Velha! A megera meneou com a cabeça tristemente, como se o
saudasse. Você veio só, minha velha? Ela acenou negativamente. Veio com seu
marido? Ela riu num pincho... Com seu filho?
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— Muié... disse ela.
— Sua filha?
— Hen-hen.
— Que é dela?
— No má... eles botaram no má.
— Morreu?
— Hen-hen...
— De que, velha?
Encolheu os ombros e repetiu:
— Botaram no ma.
— E você não tem mais parentes aqui?
— Nhôr não.
— Nem conhecidos?
— Nhôr não.
— Está só?
— Nhôr sim.
— Como te chamas?
— Maria Nazareth.
— De onde és?
— De Sobrá.
— Que idade, velha?
— Não sei... não sei mais. Oie, idade tá aqui, moço. E puxou uma falripa
branca.
Adiante estava um pequenote de pernas finas, quase nu, com um cachimbo
nos beiços e uma mulher nova, sentada na rede, com o peito descoberto,
amamentava um monstrengo encarquilhado.
Deslizando sobre a lama escorregadia que, em espessa camada, empastava
o navio, Anselmo foi seguindo lentamente, detendo-se diante dos grupos, a olhar, a
interrogar.
Junto à amurada uma família olhava a cidade, ao longe, muito branca,
reverberando ao sol com o casario acumulado, as torres agudas das igrejas hirtas
como que espetando o céu e o fundo de montanhas em recortes irregulares, sob
uma pulverização de ouro. Como que vinha na brisa o grande rumor da vida
agitadíssima daquele pandemônio, misterioso para os sertanejos que chegavam dos
campos e das serras, tendo deixado a grande e rude natureza agreste.
No mar também era incessante o movimento de botes e de lanchas. Faluas
corriam a todo o pano, outras passavam arrastadas pelos rebocadores. Um grande
transatlântico saia partindo o mar, deixando um fundo sulco nas águas lisas, que
logo inchavam em ondas, nas quais subiam e baixavam os leves botes mercantes.
Os couraçados, quietos como ilhas, pareciam embandeirados: era a roupa da
maruja que secava à proa, e as grandes barcas como casas errantes, cruzavam-se
serenas em caminho para Niterói e outras para a Corte. E eram silvos e uivos e dos
botes que atracavam ao paquete subia gente ansiosa. Um empregado da Alfândega,
de boné, falava ao comandante e um velha mulher, que entrara com grande
espalhafato, ia e vinha atordoada, fazendo momos de nojo, a olhar de esguelha os
miseráveis que recordavam a terra, abandonada.
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Terra simples, mas bem mais formosa para eles do que a grande cidade que
aparecia além alvadia, luminosa, de uma grandeza imponente.
Anselmo deteve-se junto da família rústica e um velho, tipo patriarcal,
fisionomia bíblica, longa barba a descer-lhe do rosto macilento ao peito côncavo,
dando com ele, sorriu, fazendo um leve aceno de cabeça:
— Deus salve a vosmicê. Que coisa é aquela ali, moço? Aquilo no meio das
casas que parece um ovo, mal comparando.
— É a Candelária.
— Cumu é, mái? — perguntou curiosamente, com os olhinhos muito vivos,
uma rapariguinha já púbere, dirigindo-se à velha cabocla que, de cotovelos fincados
na amurada, o rosto nas mãos, olhava perdidamente.
— Eu sei, muié...
— O moço está falando.
— Apois... E continuou na mesma posição contemplativa. — É uma igreja,
explicou Anselmo.
— Ahn...
— Igreja? — perguntou a rapariga.
— Sim.
— É igreja, mãi.
— É sua filha? — perguntou Anselmo.
— Nhôr sim, esses todos; e unzinho ficou lá. E os olhos da filha elevaram-se
para o céu, como se o pequenino filho perdido lá andasse pela altura azul.
Cantavam perto uma cantilena melancólica. Ó noites serenas luar do Norte,
ó ameníssimos serões nas serras, ó descantes varandas, enquanto o gado recolhido
muge! Que saudade! uma voz atroou:
— Vamos, gente! Nada de choro! Isto aqui é a nossa terra, somos todos
irmãos. Toca a embarcar. Vivo! Vivo! Anda, velho! Vocês nem parecem do Ceará,
terra de jangadeiros. Onde se viu um cearense ter medo do mar? Vamos! Vamos!
Era o Neiva.
O boêmio guiava como pastor o grande e infeliz rebanho humano. Já haviam
chegado os batelões que deviam transportar a leva para a ilha das Flores. Os
rebocadores faziam ruído espadanando, e a negralhada chacoteava dos batelões,
rindo da pobre gente que descia aos rebolões pela escada oscilante do navio,
apinhando-se nos transportes, como animais. As mulheres, sobraçando trouxas,
rezingavam dando safanões nas crianças que seguiam receosamente, quase de
rastos. Os homens levavam as cargas: canastras, cofos, redes enroladas, gaiolas de
pássaros, a viola. E todos falavam, gritavam uns pelos outros, procuravam-se com
ânsia. Às vezes, do meio da escada, tornavam ao navio, gritando:
— Mariazinha! Eh, muié... caminha! E lá iam a correr precipitadamente, e o
Neiva sempre a animá-los:
— Vamos! Vamos! O outro tem de atracar. Vivo com isso. Nada de choros;
ninguém vai morrer. Vamos! E o rebanho infeliz descia chapinhando na lama do
convés, onde havia detritos imundos, trapos, cascas de frutas e trouxas sórdidas.
Vamos! Não há tempo.
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Por fim o batelão cheio, entupido de gente, tão sobrecarregado que as
bordas iam quase rentes de água, começou a mover-se lentamente, arrastado por
um rebocador e do meio sinistro daquele povo, que o sol inclemente havia banido da
terra natal, como de um só peito, foi subindo, dolentemente, uma cantiga sertaneja.
E o batelão seguia. Os de bordo acompanhavam-no com os olhos entristecidos. E o
canto magoado foi crescendo, tornando-se mais forte, mais forte, enchendo os ares,
e, sob o azul do céu, na mansidão daquelas águas lisas, por muito tempo não se
ouviu outro ruído. Os próprios catraieiros indiferentes calaram-se escutando, com
piedoso interesse, a canção do êxodo, hino triste do campo abandonado, lírica
suave da terra que além ficara, canto do monte e do campo, doce e rústica poesia
que lembrava o para sempre perdido, a doce província das palmas verdes, dos
verdes mares, inclemente e sempre amada.
E lá ia, já longe, o batelão, o canto, porém, parecia estar ali perto, dentro do
navio... e estava! Porque os que haviam ficado, esperando que atracasse o outro
batelão, filhos da mesma terra, vítimas da mesma dor, repetiam, como em eco, a
mesma cantilena.
Ah! Seu Anselmo!... — disse apenas o Neiva com a voz presa e os olhos
arrasados de água.
CAPÍTULO XXIII
A idéia da abolição ia ganhando terreno: a palavra "escravocrata" tornou-se
um labéu, até fazendeiros faziam garbo em dizer-se abolicionistas e, quase
diariamente, chegavam cartas do interior e notícias que eram publicadas nos jornais,
precedidas de comentários lisonjeiros anunciando que fulano ou beltrano libertara
todos os seus escravos, conservando-os na fazenda como colonos.
Com a partida do imperador para a Europa, começando a regência da
princesa Isabel, logo correu que o monarca, compreendendo que a idéia republicana
começava a impor-se, ameaçadora e forte, deixara a filha no poder com instruções
para que assinasse o decreto que o povo, do Norte ao Sul, reclamava, julgando que,
assim, criando uma corrente simpática, manteria a dinastia ameaçada pela temerária
propaganda republicana que tinha em Silva Jardim o principal campeão.
Aos domingos o povo enchia o "Recreio", onde os mais ardentes
abolicionistas iam protestar do palco e dos camarotes em discursos inflamados
contra o cativeiro reclamando, com ameaças ao trono, a abolição imediata e
incondicional.
Patrocínio, com a sua palavra, fogosa, em reptos de eloqüência, fazia a
descrição da vida infeliz dos escravos. "Nos verdes pastos ubérrimos andavam as
ovelhas com as suas crias, as mães negras entanto, eram separadas dos filhos, que
ficavam vagindo no fundo das senzalas enquanto as miserandas, com os peitos
pojados e os olhos inundados de lágrimas, ao sol inclemente, zurzidas pelo vergalho
do feitor, iam capinando as ruas dos cafezais. O esposo negro sofria calado todas as
injúrias, até a desonra. Alguns, mais violentos, arremetiam armados caindo sobre os
miseráveis que os infamavam e, ensangüentados, fugiam para as brenhas, onde
levavam vida selvagem, de feras, encurralados em cavernas; outros buscavam a
morte e, as vezes, quando as turmas seguiam para o serviço, estacavam perto de
uma árvore de onde pendia, oscilante, o corpo de um parceiro.
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Nos 'troncos' gemiam vítimas; e muitos caminhavam arrastando algemas
pesadas e, com gargalheiras, como galés, trabalhavam pela frutificação, fecundando
a terra que iam regando com suor e lágrimas."
Quantas vezes era a palavra flamejante do tribuno cortada pelos apartes dos
secretas, que se metiam entre o povo para perturbar o propagandista com assuadas
e ameaças. Quase sempre, porém, eram repelidos à bengala, à pedra, às vezes à
bala, abandonando o teatro diante da fúria da multidão e o orador, serenando o
tumulto, continuava, anunciando para muito breve "a grande misericórdia".
Todos os moços acompanhavam-no: Octavio Bivar, Luiz Moraes, Fortúnio,
Neiva, Ruy Vaz, Anselmo e Pardal que chegara do Recife com dois romances, uma
gravata sangüínea, idéias explosivas e a carta de bacharel.
Era um tipo romântico de mosqueteiro, um d'Artagnan de olhos azuis, pele
branca e macia, mãos delgadas, cabelos louros, violentamente atirados para trás,
bigodes impertinentes, espichados em duas pontas finas, compridas e rijas e a
mosca que ele retorcia amiúde, rindo sarcasticamente, em rinchavelhada irresistível,
riso percuciente, satírico que valia por uma vaia quando irrompia da platéia ou do
fundo de um camarote.
Era ousado e, como brandia a bengala nodosa, esgrimindo, tinham-no por
espadachim, um cavaleiro de Eon, e temiam-no.
Era um anjo, dizia o Neiva: — O Pardal anda a provocar duelos e quer
sangue, quer devastação, tem fome de fígados humanos, pois mostrem-lhe aí um
velho enfermo ou uma criancinha com frio e hão de ver como se desfaz em lágrimas.
É até capaz de empenhar os bigodes.
Pardal não ia às conferências sem o seu revólver e uma faca na cava do
colete. Todos falavam, o povo já os conhecia: eram os discípulos do Messias da
raça negra.
Entre os artistas a idéia tinha fanáticos. Os Bernadelli eram dos mais
entusiastas. No teatro: Dias Braga, Vasques, Guilherme de Aguiar, Arêas, Galvão,
Peixoto, Mattos, Eugênio de Magalhães, Maia, Ferreira, André, Castro, Suzana,
Oudin, Balbina, Clélia. Entre os músicos Pereira da Costa, Miguez, Tavares,
Nascimento, a doce Luíza Regadas, alma meiga, o rouxinol da propaganda e
Francisca Gonzaga, a maestrina.
O Amazonas já se havia libertado. Não se contava mais um escravo nas
margens do rio-mar e o Ceará, seguindo o exemplo da sua irmã do Norte, concluiu,
num dia, a obra intrépida dos jangadeiros, iniciada nas águas pelo valoroso caboclo
Nascimento.
Na serra paulista, entre as grandes árvores, crescia o quilombo de
Jabaguara, engrossado diariamente por bandos foragidos que chegavam dos mais
longínquos municípios da terra dos Andradas.
Era impossível sustar a marcha triunfante da idéia que vencera as represas.
A tropa confraternizava com o povo e, nas duas câmaras, era grande a maioria dos
abolicionistas a cuja frente destacava-se, como a de um Apolo, a válida e simpática
figura de Joaquim Nabuco.
Patrocínio, desligando-se, com saudade, da Gazeta da Tarde, havia fundado
a Cidade do Rio chamando Anselmo, que andava em disponibilidade, sem casa e
sem botinas, escrevendo contos e fantasias à mesa dos cafés, jantando, nem
sempre, parcamente, na rua Nova do Ouvidor, onde, de quando em quando, havia
lautos banquetes, com discursos, a 500 réis por boca, duas moringas de água
inclusive.
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Esse hotel módico e discreto, pelos grandes e inolvidáveis serviços que
prestou à literatura, às Artes e ainda ao funcionalismo, merece menção especial e
honrosa.
Dava almoços e jantares a quinhentos réis. Mas que almoços! E que
jantares! O primeiro prato era: um começo; o segundo: uma continuação; o terceiro:
um último. Enquanto os Ugolinos devoravam ouviam os caixeiros que, em mangas
de camisa, vociferavam: "Dois começos...! Olha três últimos...! Duas
continuacões...!" Não eram abundantes os pratos nem saborosos, mas nutriam, e
tanto bastava. Como havia um gabinete reservado eram ali realizados, de tempos a
tempos, suntuosos festins.
Em certa ocasião, sendo a fortuna do grupo limitada e havendo-se um dos
convivas excedido em libações, Fortúnio lembrou-se de substituir com água da
Carioca a quantidade de outra água que havia sido ingerida; mas o caixeiro, dando
pela fraude, protestou e exigiu o que não havia, porque todos os poetas juntos não
valiam 220 réis. Houve larga discussão e uma bengala ficou como refém nas mãos
do hoteleiro, representando um extraordinário de seis cálices. Ruy Vaz, que não se
podia habituar com aquela casa sórdida, freqüentada pelo que havia de pior na
cidade, rejeitava os convites que lhe faziam os companheiros.
Não, ao Quinhentão não vou. É detestável, repugnante, cheira à graxa.
Depois aqueles caixeiros irritam-me os nervos — de tamancos, imundos, sempre a
bradarem continuações, como folhetins encarnados. Prefiro ficar in albis. A mesa
para mim não é apenas o comedouro, deve ter algum encanto aprazível à vista. Os
olhos também comem, comem os ouvidos, o nariz come e o tato igualmente. Não
dispenso a baixela, os cristais, as flores e gosto de sentir nos dedos uma toalha
lustrosa e um guardanapo liso... O guardanapo ali tem a cor de um esfregão, a
toalha parece um pano de açougue; as moscas vêm comer com a gente à mesa e,
às vezes, com tanta gana, que nos entram pela boca, e lá ficam.
— Oh! Não é tanto assim, Ruy Vaz!
— Como não é tanto assim? Aquilo é horroroso!
— Como sabes?
— Por informações. Um amigo meu, que ali jantou, comeu tais imundícies
que, no dia seguinte, teve de ir ao escritório de um médico lavar o estômago com
sabão.
— As feijoadas são excelentes, Ruy Vaz. Já uma vez comi chispes
maravilhosos!
— Eram pés de algum dos caixeiros.
— Ora... hás de lá ir comigo.
— Eu?
— Tu, sim.
— Estás enganado.
— Pois eu vou todos os dias.
— Tu? — perguntou Ruy Vaz com espanto.
— Então?
— A que horas almoças?
— Às dez.
— Ah... — fez o romancista. Pois só te digo que é uma imundície. Prefiro a
fome.
— Pois eu não.
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Uma manhã, como de costume, entrou Anselmo no Quinhentão. Às mesas
os fregueses habituais devoravam: caixeiros de casas vizinhas, em mangas de
camisa, sem gravata, mastigando com fúria, operários, estudantes. Ouvia-se o
rechino das frigideiras e as moscas voejavam pousando em enxames, nas toalhas,
no chão, e atirando-se à boca dos que comiam, como abelhas que investissem a
aivados.
Anselmo, para não ser visto da rua, procurava sempre uma das mesas do
fundo e, dando as costas à porta, empanturrava-se, ouvindo as chalaças dos
caixeiros e as estrondosas gargalhadas do dono da casa, tipo acabado de Sileno,
ventrudo, com uma papada roxa que se lhe derramava pelo colarinho, dando uma
impressão de sórdida fartura. Quando ria toda a casa atroava. Anselmo ia sentar-se
quando, olhando para um dos ângulos, rompeu a rir vendo Ruy Vaz inclinado, a
devorar, com grande convicção e apetite, um último, que era o clássico bifezinho
tênue, com três batatinhas mirradas. Caminhou e, diante da mesa do romancista,
cruzando os braços, perguntou:
— Que é isto? Tu? Ruy Vaz levantou a cabeça e, dando com o
companheiro, sorriu sem vexame. Então, sempre te resolveste?
— Ah! Meu amigo, eu faço tudo pela Arte. Senta-te. Vens almoçar?
— Sim, venho.
— Pois aqui estou. Decididamente não se pode amar a Verdade. Se o
público soubesse quanto custa ser naturalista pagava os meus romances a peso de
ouro. Vou às estalagens apanhar em flagrante a grande vida de tais colméias e, para
que a gente não se perturbe com a minha presença, visto-me de carregador, meto-
me em tamancos. Subo às pedreiras, penetro, com risco de vida, as reles
tavolagens, passo horas e horas entre a gente tremenda dos trapiches, converso
com catraieiros e, finalmente, venho comer nesta baiúca, como vês.
— Mas, então, não foi por fome?
— Qual fome! Eu podia ter ido almoçar ao Globo, mas ando acompanhando
um tipo.
— E onde está ele?
— Comeu e saiu. Para que não desconfiasse, porque ele já deve ter notado
que o sigo, pedi um almoço e pus-me a comer... maquinalmente.
— Quiseste também fazer um estudo do bife que aqui se dá?
— Homem, não estás muito longe da verdade. E queres que te diga? Não é
tão mau como eu imaginava. É pequeno, uma amostra, mas passa. Tenho comido
piores em hotéis de primeira ordem.
— As aparências iludem.
— Estou convencido. Vou agora provar o chá. Que tal?
— Hediondo e tóxico!
— Já agora... E, chamando o caixeiro com superioridade: Arranja-me um
chá, com pão quente.
— Pão quente é extraordinário.
Ruy Vaz pasmou e, depois de encarar o caixeiro, que se pôs a torcer a
toalha imunda:
— Extraordinário, heim!? Extraordinário és tu! E pão frio...?
— Ah! Pão ao natural?
— Ao natural?! Que diabo é pão ao natural?
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— É pão que não vai ao forno.
— Homem, esse é que é extraordinário. Pois há aqui um pão que não vai ao
forno?
— Para ser aquecido. Ora! O senhor está caçoando! Vá lá, diga de uma vez:
Quer ou não o pão torrado?
— Não, quero ao natural, sou naturalista. Francamente, Sr. Anselmo, isto é
hediondo! É medonho! E almoças e jantas nesta casa? Quem é o teu médico?
— Não tenho.
— Pois quem come em alfurja como esta deve sempre ter um médico à
cabeceira.
Anselmo sentou-se e, almoçando, expôs a Ruy Vaz o plano de um romance
que tencionava publicar na Cidade do Rio: O Rei Fantasma, cuja ação se
desenvolvia num reino imaginário da África.
— Por que não deixas essa mania de orientalismo, homem?
— Gosto.
— Ora, gostas... Trata de aplicar o teu espírito ao meio. Podes fazer obra
magnífica sem sair da tua terra. Tens natureza, tens almas, que mais queres?
Preferes lidar com títeres a lidar com homens. Nunca farás um livro verdadeiro,
sentido, farás sempre obra convencional. Deixa em paz os deuses gregos e as
odaliscas turcas, não te preocupes com os templos da Hélade nem com os
minaretes de Stambul: põe-te em relação com a natureza da tua pátria. Tens um
campo vasto de explorações — desde o sertão, quase virgem, até a rua do Ouvidor,
que é o círculo central das almas brasileiras. Deixa-te de Oriente.
— Mas o romance está quase pronto.
— Pois publica-o. Mas fica nesse, não escrevas outros.
— E os contos?
— Também os contos. Queres assuntos deliciosos para contos admiráveis?
Estuda o povo. A alma moderna é mais sofredora do que a antiga e a Dor é um
manancial inesgotável. Deixa-te de ninfas e de faunos, trabalha com homens.
Queres saber a razão por que muitos escritores preferem o orientalismo? Porque é
mais fácil fazer a pompa do que a verdade: são como o discípulo de Apelles. Manda
à fava essa mania e trata de fazer obra sentida.
Anselmo começava a irritar-se com essa observação que lhe soava aos
ouvidos com a insistência de um remorso. Diziam-lhe todos a mesma coisa.
Protestou:
— Que diabo! Vocês falam tanto contra a mania do orientalismo e admiram
Salammbô.
— Perdão, Salammbô não é apenas uma obra de ficção: aquela tela
deslumbrante é feita com verdadeiros fios de ouro. Há ali, a par do quadro histórico
de uma civilização, um largo estudo de caracteres. Salammbô tem alma. Hamilcar
vive, Spendius é uma figura palpitante e o povo de bárbaros, assim como a gente
púnica, não é um ajuntamento de títeres. Há naquela obra lapidária uma alma forte
que vitaliza os tipos. Ainda assim, apesar de mestre Flauberv haver trabalhado
aquele mármore africano com o mesmo escrúpulo com que Fídias burilava as suas
figuras imortais, prefiro à grandeza deslumbrante do rútilo poema a simplicidade de
Mme. Bovary. Lança os olhos à obra de Balzac. Tudo nela é humano, desde
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Eugenie Grandet e o Pêre Goriot até o Le lys dans la vallée. Tu mesmo, no dia em
que começares a lidar com almas, hás de convencer-te da verdade. Vê a obra do
que copia uma academia como se amesquinha diante de um estudo do natural.
Posso falar-te assim porque conheço ambos os processos, sei quanto custa
transportar para o livro uma alma surpreendida na grande vida e quanto é fácil fazer
obra maravilhosa. Experimenta.
— E tu, por que escreves páginas de ficção?
— Por desfastio. Tenho uma válvula de expansão de sonhos.
— Pois é o que se dá comigo. A minha faculdade essencial é a imaginação.
Vivo a sonhar, as idéias pululam no meu cérebro e sinto que são as sementes
antigas que se fazem floresta. Comecei a estudar em livros orientais. Foram as Mil e
uma noites a obra que mais funda impressão deixou em meu espírito quando se ia
formando, depois as histórias que me contavam nos serões tranqüilos e, finalmente,
as leituras. Eu procurava, de preferência nos poetas, as descrições da vida levantina
— em Byron o D. João, A noiva de Abydos, o Giaour; em Gautier o seu grande
mundo fantástico; em Flaubert Salammbô e assim sucessivamente. A minha
imaginação, assim fecundada, foi-se desenvolvendo nesse meio e hoje sinto que, se
deixar o Oriente, fico como um homem que, trazido vendado, se achasse, de
repente, como por encanto, num intrincado labirinto de onde não pudesse sair por
desconhecer os meandros.
É possível que, mais tarde, consiga livrar-me do que chamas a minha mania,
mas deixa-me extravasar. É necessário que eu alije de mim todos os sonhos para
poder empreender nova carreira. Por enquanto é impossível e não quero contrariar
as tendências do meu espírito. Demais, quer-me parecer que se pode fazer obra
verdadeira com o cenário faustoso. Um homem, pelo fato de andar vestido com uma
cabala de seda oriental e de trazer à cinta alfanje e turbante à cabeça, não deixa de
ser homem. Gautier vivia em Paris vestido à oriental. A alma é como a luz: pousa em
toda a parte.
— Mas queres convencer-me de que podes descrever a vida de Bassora ou
de Cacheimira como descreverias a vida do Rio Janeiro? Podes fazer o estudo
sincero de um homem de Bombaim como farias de um dos sujeitos que
encontramos a todo nas ruas? Podes analisar a alma de um pária?
— Posso.
— Como?
— Imaginando.
— Ah! Imaginando... E por que não hás de descrever vendo a dor triste de
um homem que sofre a teu lado, cujo pranto vês cair gota a gota, cujas lamentações
escutas? Não achas que assim farás obra mais completa, mais viva, mais
duradoura?
— No fundo do sonho há sempre a verdade.
— Preferes então sonhar?
— Prefiro.
— Pois meu amigo, acho que fazes mal.
— Pode ser.
— Queira Deus que te não arrependas.
— Não me hei de arrepender.
— Veremos.
— Pois sim.
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— Bem, vamos sair. O hotel começa a tornar-se insuportável.
— Para onde vais?
— Para a Cidade do Rio.
— Estás outra vez com o Patrocínio?
— Como secretário da folha.
— Então, até logo. Vou retocar umas páginas. Adeus.
— Adeus, Ruy Vaz
CAPÍTULO XXIV
A Cidade do Rio tornou-se "o estuário do gênio indígena" como bramia o
Neiva atirando bengaladas ferozes às mesas dos cafés.
Para o órgão da propaganda abolicionista afluía a flor da inspiração. Luiz
Moraes era assíduo, ora entrava levando uns formidáveis alexandrinos, que
ressoavam tonitruosamente como carros de guerra; ora, a pedido do Patrocínio,
sentava-se a uma das mesas e escrevia o artigo de fundo, com mais imagens do
que uma igreja, reclamando, em nome do coração e em nome da Justiça e... de
Spencer, a liberdade dos que sofriam. Octavio Bivar, ou mandava uma das suas
poesias finamente buriladas ou, com a pena incandescida, rendilhava sátiras.
Pardal, sempre irônico, enchia tiras e tiras com os seus paradoxos ou bradava por
sangue e fígados com a mesma calma com que, no Londres, à tarde, pedia o seu
absinto. Fortúnio, Duarte, o próprio Ruy Vaz, sempre atarefado, parando um
instante, escrevia algumas linhas rápidas sobre a questão palpitante ou sobre um
livro que aparecia, aproveitando o ensejo para expor a sua estética, defendendo o
naturalismo.
A Vida Moderna, apesar das grandes esperanças dos seus redatores,
desaparecera da circulação e a "alma literária", como dizia o Luiz, andava errante,
esvoaçando estonteada pelo sarçal do jornalismo mercenário como a ave que
perdeu o ninho, piando aqui uma elegia, chilreando além um ditirambo, sem abrigo
certo, peregrina e dorida.
Patrocínio, sempre sonhando, depois de pronto o jornal, procurava os
rapazes à hora do vermute e, arrebatado, expunha os seus planos maravilhosos:
— Rapazes, vamos fazer a Cidade do Rio. Aquilo não é meu, é nosso... e é
uma mina! Aquele jornal é uma mina! Tudo está em saber explorá-lo. Que diabo!
Não basta ter talento, é preciso também um pouco de senso prático. Andam vocês
numa vida de eterna contingência: Um, não tem sapatos, como o Fortúnio que, há
dias, recordava, com saudade, o tempo em que descia as escadas a correr sem
receio de que as solas lhe ficassem nos degraus, porque não eram cosidas com
barbante, como agora. Outro, Bivar, anda com um chapéu de palha que parece uma
cesta de compras. Anselmo apareceu-me com umas calças cor de telha que quando
ele as tirava, ficavam de pé no meio do quarto como se fossem de barro. Entanto, se
vocês quisessem trabalhar comigo, em um ano... em um ano não digo, mas em dois,
levantávamos uma fortuna e abalávamos para Paris. Ali, ali sim! Ali poderiam vocês
cultivar a grande Arte. Paris é uma cidade, não é esta choldra onde a gente, aos
vinte anos, tem a cabeça branca e aos trinta é ruína, a cair. Começo a sentir-me
cansado, já não sou o mesmo homem. Há ocasiões em que fico debruçado à mesa,
com a pena sobre o papel, a rabiscar, a rabiscar, e nada de sair o artigo...
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— Ah! Mas quando sai, exclamou o Moraes bambaleando-se, quando sai é...
como o corpo de bombeiros.
Houve uma gargalhada estrepitosa, porque o Moraes, juntando o gesto às
palavras, derrubou copos, garrafas e teria estourado um sifão se Ruy Vaz não
acudisse ligeiro.
Foi em uma dessas palestras que Patrocínio revelou o seu grande segredo:
"Tinha resolvido o problema da direção dos balões."
— Já sei que vocês vão sair daqui comentando as minhas palavras com
pilhéria. Pois meus amigos, é a verdade: tenho o segredo de Dédalo.
— As asas de cera.
— Perdão, não ria. Falo sério e vocês não têm o direito de duvidar da minha
palavra, porque ainda não dei provas de loucura ou de imbecilidade.
— Então vai tudo agora pelos ares?
Patrocínio não respondeu a Anselmo e continuou:
— Tenho estudado a questão com empenho e posso exclamar: Eureka!
Trabalho lentamente, porque aqui no Rio de Janeiro não há um fundidor que execute
um molde perfeito. Dá-se-lhe um desenho e o bruto faz coisa inteiramente diversa. E
a gente que se lembre de protestar. Vocês sorriem? Pois sim... Eu hei de rir lá de
cima quando, depois do meu banho frio e de um cálice de conhaque, sair daqui no
meu balão, às seis da manhã, para almoçar, às onze, em Lisboa.
O sonho empolgou-o e o intrépido propagandista, o destemido tribuno, o
polemista audaz pôs-se a falar com enternecimento, inclinando-se para que as suas
palavras não saíssem do círculo dos amigos que, impressionados, já não sorriam,
ouvindo, com enlevo, a narração maravilhosa do grande homem:
— Imaginem vocês a coisa nos ares, nós todos na barquinha, porque
havemos de ir todos...
— Só se for uma das barcas Ferry, adiantou Fortúnio.
— Espera, homem... A ascensão, bem? E foi levantando as mãos e batendo
o espaço com elas como se fossem duas asas. Rápido, jogou o braço e, inclinado,
surdamente, explicou: Depois, ganhando a linha desimpedida, a vasta e livre estrada
aérea, voando, voando, voando, vendo a terra como um nevoeiro, como a viu
Menippo, o mar como uma mancha lúcida, depois as brumas inferiores, brumas,
brumas, brumas e nós, como deuses, navegando em nuvens, numa celeridade
vertiginosa, fazendo versos ao grande vácuo, falando onde só os trovões atroam,
rindo onde só riem as madrugadas e orvalhando a terra vil com champanhe... Heim?
Que dizem vocês? E quando chegarmos a Paris, diante do mundo pasmado e
ouvirmos, nos Campos Elíseos, as aclamações do povo magnífico da cidade por
excelência... Vocês não pensam nisso? Que diabo! Vocês não têm sangue! Não têm
nervos...!
— É belo, não há dúvida, disse Fortúnio, mas receio que nos aconteça o
mesmo que aconteceu a Faetonte.
— Qual Faetonte! Faetonte era uma besta! Você então não toma a sério a
minha idéia?
— Como não tomo?
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— E se visses o balão não entravas nele?
— Conforme: amarrado e com garantia de vida.
— Pois eu vou. Vou e vocês hão de ficar aqui de boca aberta, torcendo-se
de inveja. Faço a volta do mundo em uma semana e depois...
— Depois...?
— Depois, descanso. Tenho a minha obra. Achas pouco a conquista do
espaço?
— Eu não acho pouco: acho muitíssimo!
— Então por que ris?
— Não estou rindo.
— Watt também passou por louco.
— Mas ninguém te julga louco.
— Nem eu admito. Afirmo que resolvi o problema e, dentro em breve, vocês
terão a prova. Um dia, acordando, hão de vocês ver um pontozinho fugindo no
espaço, fugindo, fugindo e, quando perguntarem, aterrados, à gente do observatório:
"Que meteoro é aquele que vai pelos ares fora vertiginosamente?" ouvirão dos
sábios as palavras solenes: "É o Patrocínio que está passeando em balão. Vai jantar
no Cáucaso." E então... rira bien qui rira le dernier. E com esta, meus amigos, até
logo. Tenho hoje uma conferência no Club Tiradentes. E saiu justamente quando
entrava Montezuma, o velho, o amável Montezuma, o grande historiador do Rio da
Prata, portador do althéa providencial.
CAPÍTULO XXV
Montezuma, oficial de marinha reformado, apesar dos cabelos brancos e da
feição venerável de patriarca, conservava no coração todo o viço dos vinte anos.
Alma que se não regelava, longe de agregar-se às neves da ancianidade, chegando-
se aos homens do seu tempo, que andavam curvados, entristecidos, à espera do
vencimento da letra da vida, buscava a companhia dos rapazes, vivendo nela muito
à vontade e com estos nada inferiores aos do mais ardente boêmio.
Como o Timon de Luciano andara com Pluto e com a Miséria, sendo íntimo
de ambos: esbanjara milhões e tivera dias sem lume, longe da pátria, em terras
sopradas pelo minuano.
A história da sua vida, narrada miudamente, daria um copioso romance de
aventuras, qual mais extraordinária, umas felizes, outras desastrosas. Vogara nas
águas do Sul governando um navio carregado de gêneros e outro transformado em
hospital, que ardeu sobre as águas paraguaias quando os nossos guerreiros
desafrontavam a bandeira que os guaranis de Lopez ousadamente ultrajaram. Foi
ele quem, a 11 de Junho, tendo a notícia da vitória do Riachuelo, saiu a anunciar o
feito pelas terras do Prata, transmitindo a nova ao Brasil com abundância de
hipérboles. Íntimo de todos os grandes homens das Repúblicas do Sul, falava dos
ditadores como de companheiros de noitadas. Empenhara capitais em revoluções,
comprometera-se em golpes de Estado e, depois de haver dissipado milhões, vivia
das suas glórias, não como o misantropo de Atenas, encolhido e bilioso, mas
sonhando com empresas complicadas, sempre a somar milhares.
Homem de casos análogos e de sátiras, tinha sempre uma anedota a
propósito e um comentário cáustico para todos os acontecimentos políticos.
A mulher era a sua intemperança e raro era encontrá-lo sem "uma senhora
virtuosíssima, esposa, viúva ou filha de um amigo do Rio da Prata".
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Com essas Penélopes Montezuma aparecia no Pascoal e gastava
largamente, não em linho para que fiassem honestamente, mas em sedas, em
carros, em champanhe.
Muito amigo dos rapazes, além de outras virtudes, possuía um talismã
inestimável: o althéa. Era um guarda-chuva de cabo branco que, nos momentos
precários, passava das mãos do seu dono para o prego. Às vezes entretido em
grupos políticos, Montezuma discutia, com azedume, questões financeiras quando
sentia que lhe puxavam o guarda-chuva. Era algum dos boêmios.
— Estás com fraqueza pulmonar? Queres o chazinho de althéa? E, rindo, lá
o entregava e o rapaz corria ao Hoffmann que, por conhecer intimamente o "objeto",
dava os cinco mil réis, que era tudo quanto conseguia arrancar o precioso talismã.
Quantas e quantas vezes, sob aguaceiros torrenciais, Montezuma, encolhido em
algum vão de porta, lamentava o seu guarda-chuva:
— É isto! Tenho um guarda-chuva que é um tapa-misérias. Nem sei em que
prego está... E, se via um dos rapazes, ia imediatamente perguntando: Foste tu que
penduraste o althéa?
— Não.
— Quem foi?
— Não sei.
— Nem sabes em que casa está?
— Não. E bem necessitado ando eu dele.
— E eu! Vou tirá-lo amanhã.
— Olha, se o tirares e se não chover, empresta-mo porque estou precisado
de uma gravata.
— Pois sim. E lá ia o Montezuma encharcado, à procura do homem que
havia empenhado o guarda-chuva providencial.
Estimado por todo o grupo o velho boêmio, que era incapaz de negar auxilio
a quem o procurava, só era avaro das relações femininas. Se alguém se aproximava
"das honestas senhoras", que ele ocultamente protegia, abespinhava-se,
declamando grandes moralidades e saía furioso, com desabalados gestos: "Que não
havia respeito! Pessoas de tão reputada virtude não mereciam a menor
consideração."
Como uma personagem de lenda Montezuma andava quase sempre a tinir.
Um dia, porém, irrompia a notícia de que havia comprado carruagem e parelhas
caras e, efetivamente, à tarde, gente acudia à rua Gonçalves Dias para ver o homem
tomar o landau e bater para Botafogo com muitos embrulhos e vários pince-nez no
nariz. Dias depois reaparecia com o althéa, murcho, contando que vendera a
equipagem e que viera a pé da praia de Botafogo ao Catete, para pedir a um velho
amigo dez tostões para o bonde.
Nesse tempo, porém, andava ele em boas relações com a Fortuna: a sua
carteira mal fechava, engorgitada de cédulas e ele sabia de cor o número das
apólices que possuía.
Vendo os rapazes aproximou-se e, logo de longe, como Anselmo afastasse
uma cadeira, declarou que não se queria sentar. Andavam pessoas acompanhando-
lhe os passos e tudo quanto fazia era sabido em casa, de sorte que vivia em
constante guerra civil. Era forçado a retrair-se para que não se desse com ele o caso
de... fulano, que tanto alvoroçara Montevidéu em mil oitocentos e tantos. E, para
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contar o caso, sentou-se, pediu um vermute e esqueceu-se da guerra civil, pondo-se
a falar do imperador com irreverência:
"Que era um velho mentecapto que vivia a quebrar versos e a espiar os
astros para fingir de poeta e de sábio. Neto de Marco Aurélio... Neto de D. João VI, o
suíno, isso sim." Profetizou a abolição com energia: "Ou vem ou escangalhamos
essa caranguejola em dois tempos. A América deve ser livre. Olheim para as
Repúblicas do Prata, vejam como nadam em prosperidade, sem precisar de
escravos para as suas culturas. Isto é uma vergonha! Confesso que, às vezes, tenho
pejo de dizer que sou brasileiro. Pois havemos de viver sempre no último plano, e
por quê? Porque temos um rei de burla. Está enganado: ou acaba com a escravidão,
realizando a vontade do povo, ou vai passear; não precisamos de figura de proa na
nau do Estado. Sou republicano, não de hoje. Já na escola de marinha escrevia
manifestos republicanos. Posso lá com isso! Sinto não ter fortuna, senão... ah..."
Mas apareceu à porta uma das "senhoras virtuosíssimas", acenou com o leque a
Montezuma e o velho, muito comovido, pondo mais um pince-nez no bico, despediu-
se para receber dignamente a dama "viúva de um ilustre comodoro".
O grande acontecimento dessa época foi, sem dúvida alguma, o
estabelecimento da cozinha na Cidade do Rio. Atendendo às queixas dos redatores,
que viviam lívidos e magros, mal nutridos no sóbrio Quinhentão, Patrocínio resolveu
realizar um dos seus ideais que era ter a mesa das refeições ao lado das mesas de
trabalho, de modo que os seus prestimosos auxiliares, mal pingassem o ponto final
no artigo, subissem a curta escada que levava à sala dos repastos, quente como
uma fornalha e sem luz.
A mesa era vasta e ocupava toda a sala. Um cozinheiro, mestre perito em
adubos, homem de alto poder inventivo em matéria de iguarias, tomou conta do
fogão e, nas suas vestes rituais, amplo avental e o competente boné, apareceu, num
radioso dia de março, tresandando à cachaça e bambo. Foi justamente no dia em
que se inaugurou, com urras! e um peru de forno, a prestimosa inovação.
Anselmo quis escrever um estirado artigo, muito burilado, proclamando a
generosidade do redator-chefe, vários poetas rimaram sonetos, a alma lírica
expandiu-se largamente com o aroma sedutor dos refogados. Nessa apetitosa
manhã a inspiração nobre não surgiu do cérebro, mas da cozinha que perfumava
toda a casa.
Ao meio-dia, descendo o último original, Patrocínio, muito grave, recebendo
os representantes dos jornais, convidou-os para o primeiro almoço.
Passaram todos à sala que havia sido ornamentada vistosamente e as
cadeiras foram todas ocupadas. No centro da mesa uma dourada maionese rutilava.
Era um prato digno do triclínio de Apício, não só pela beleza com que o mestre o
dotou, mas pelo cheiro que dele se desprendia, que era de pôr em risco de pecado o
mais abstinente monge da Tebaida.
Os frios foram desprezados todos os olhos, como os dos Argonautas,
estavam voltados para aquele Pactolo saboroso de sorte que, quando o copeiro, que
era o mesmo servente da redação, começou a servir, houve um alegre sussurro
entre os convivas, cujos olhos faiscavam. E, bravamente, com famosa gana, a
maionese foi atacada ficando um dos revisores com a boca cheia de água porque,
por imperícia do copeiro, na distribuição nada tocara ao infeliz que teve de se
contentar com três douradas e oleosas sardinhas de Nantes. Houve depois um peixe
admirável e, seguidamente, as carnes e por último o peru, que arrancou aplausos.
Ao estouro do champanhe, Patrocínio, muito comovido, taça em punho, explicou, em
brinde magistral, o motivo daquela inovação:
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"Senhores: instituindo os almoços e os jantares da Cidade do Rio não tive
em mente concorrer com o Jornal do Commercio que era, até hoje, o único órgão
brasileiro que fornecia comida aos seus redatores. Não! Quis apenas dar o bem-
estar aos meus companheiros de trabalho e, como entendo que a primeira condição
para que um espírito produza é a saciedade do estômago tomei um cozinheiro e, ao
lado da oficina tipográfica, estabeleci a despensa.
Saco vazio não se põe em pé, diz a sabedoria popular. Com fome não há
talento. É preciso que haja carvão na fornalha para que se gere vapor na caldeira.
Quanto tempo perde um redator em andar procurando hotel? Que riscos tremendos
corre a vida de um desses rapazes, que são a glória futura da nossa pátria,
entregando-se aos cozinheiros mercenários dos hotéis à la carte, onde a limpeza é
um problema e a virgindade dos vinhos tão suspeita como a da Rússia imperatriz
famosa?! Não, com a cozinha em casa tenho certeza de que todos os gêneros são
de qualidade e os vinhos serão analisados cuidadosamente por meu compadre, o
ilustre químico Campos da Paz. Este é o primeiro passo.
Começo a reforma pela cozinha e espero poder, em breve, ver realizado o
meu grande e nobre ideal. Dentro em pouco os redatores da Cidade do Rio terão
coupé, palacete e o edifício do meu jornal será o primeiro da América do Sul. Para
isso, porém, é necessário que todos me auxiliem, porque a glória e o conforto que
procuro não são para mim somente, todos terão a sua parte." Houve alarido e
palmas.
Anselmo, magnificamente repostado, prometeu concorrer com o seu talento
para o brilho da folha e manutenção da respectiva cozinha e Octavio Bivar,
enternecido, fez o mesmo protesto. O mestre cozinheiro foi aclamado com delírio por
quantos haviam saboreado as finas iguarias que ele, com tanta arte, recamara de
folhas tenras e temperara com sabedoria incomparável.
Instalada a cozinha, o perfume dos guisados atraiu à Cidade do Rio, que se
tornou o Hymetto das abelhas líricas, toda a poesia perambulante. Às onze horas
começava invariavelmente a entrada, como no castelo de Wartburgo, não para o
repto poético, mas para a manducação: e, ao meio-dia, tendo Patrocínio terminado o
artigo de fundo, dirigiam-se todos para a mesa, e quanto folhetim foi ali improvisado
entre um prato e outro!
O jornal dava apenas para a boca e mal, às vezes sem vinho. Anselmo
andava farto, mas com os pés em petição de miséria e o Oliveira estava tão
atrasado com a lavadeira, que, em certa ocasião, puxando um punho diante de
Fortúnio e pedindo um lápis, o poeta perguntou pasmado:
— Para quê?
— Para tomar uma nota.
— Onde?
— Aqui no punho.
— O filho, pede antes um giz.
Ah! O pobre Oliveira, Oliveira, o troglodita, que morava em uma verdadeira
caverna, em Paula Mattos: era o "speleo" da imprensa. Dele contava Ruy Vaz que,
tendo mandado à lavagem química, no S. Mauncio, um paletó cor de castanha,
quando o foi buscar, com a cautela, recebeu apenas os botões... porque o mais
dissolvera-se na lixívia. Pobre Diógenes que trazia no corpo o azeite da sua
lanterna. Fortúnio, sempre que o via, com as calças enlameadas, o paletó poeirento,
o chapéu como um canteiro, dizia-lhe compadecido:
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— Que a terra te seja leve!
Mas havia alegria e Patrocínio, pressentindo próxima a vitória da sua idéia,
trabalhava empenhadamente para a batalha definitiva.
Efetivamente alguma coisa andava no ar. A princesa governava fragilmente,
pensando mais em sermões e nos acordes do violino do White do que nos negócios
do Estado e os republicanos solapavam o trono invectivando a regente.
Patrocínio, entanto, domando a sua pena tremenda, aparava os golpes que
eram vibrados contra a princesa pelos republicanos que, com Silva Jardim à frente,
começavam ostensivamente a propaganda, na tribuna e na imprensa. Contra o
redator da Cidade do Rio avançava toda a legião, ele, porém, como se não sentisse
os golpes, continuava sereno, impassível, pregando o seu programa, como se
apenas escutasse o lamento dos escravos, tão alto, que não lhe deixava ouvir o
rumor do tumulto dos novos combatentes que o injuriavam.
Uma manhã, porém, Anselmo invadiu a sala particular do redator-chefe, com
um número de O Paiz, onde Silva Jardim havia publicado um artigo, violento e
injurioso, no qual Patrocínio era tratado de traidor.
— Já leste este artigo?
— Que artigo...?
— Do Silva Jardim.
— Quem é?
— Homem, falo sério.
— Que diz ele?
— Um pavor. E deves responder.
— O filho, tenho hoje tanto trabalho!.
— Mas queres deixar tais acusações de pé?
— Que acusações!? O homenzinho entende que sou um infame, deixemo-lo
com a sua ilusão. Atualmente não me pertenço: José do Patrocínio não é um
homem, é uma causa. A minha pessoa não vale a minha idéia. Que me insultem à
vontade, orgulho-me disso. Olha que tenho dado assunto, hein?
— Então não respondes?
— Não. Vou escrever um artigo sobre o quilombo de Jabaguara.
Curvou-se, tomou a pena, mas, de repente, aprumando-se, rugiu:
— Não respondo! Insultem-me! Ameacem-me! Tenho o meu programa
traçado e não será a pena romba desse merovíngio que me há de fazer abandonar o
roteiro. Justamente quando se vem anunciando a grande aurora é que eles querem
que eu, esquecendo e abandonando um trabalho quase concluído, vá cuidar de
outro. Não faltava mais nada! República numa pátria escrava! Que rosne! Que
vocifere, tenho mais que fazer. E sentou-se.
— Queres que eu diga alguma coisa?
— Nada; nem uma palavra.
E, placidamente, continuou a escrever o artigo.
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CAPÍTULO XXVI
Uma tarde, já Anselmo havia "encerrado o expediente" do jornal e passeava
pela rua do Ouvidor, o seu jardim, admirando a "mancenilha humana" quando o
servente da Cidade do Rio, que o procurava em todas as confeitarias, entregou-lhe
uma carta do Neiva, com a nota de urgência. Abriu e leu, comovido, estas palavras
rápidas e tristes: "O Lins está agonizando. Vem!" e o endereço do moribundo.
Anselmo ficou um momento hesitante. Talvez fosse pilhéria do incorrigível
boêmio, mas... se fosse verdade? Desceu a rua e encontrou o Duarte que subia
carregado de embrulhos.
— Sabes? O Lins está agonizante, disse-lhe ex-abrupto.
— Como?! Não é possível! Quem te disse?
— O Neiva. Escreveu-me. Está aqui a carta.
— Não creias, homem; é troça. Ainda anteontem estive com o Lins numa
cervejada. Não creias.
— Que horas são?
O Duarte arrancou do bolso um monstruoso relógio de níquel e, consultou-o,
dizendo:
— Cinco mil e quinhentos.
— Heim?
— Cinco mil e quinhentos.
— Que história é essa?
— É simples. Este relógio custou-me doze mil réis, a mil réis por hora, assim
eu, em vez de dizer, como toda a gente: São quatro, são duas horas, dou o preço
correspondente ao tempo, que é dinheiro, como sabes. Em vulgacho são cinco e
meia.
— Pois eu vou à casa do Lins. Pode ser verdadeira a comunicação do Neiva
e não quero ficar com um remorso eterno. Queres vir comigo?
— Não posso, tenho uma irmã que faz anos hoje. Não vês como vou aqui
carregado? Em todo o caso, se houver alguma coisa, manda-me um recado ao largo
dos Leões, onde vivo, atualmente, como Daniel.
— Então, adeus!
Apartaram-se. Anselmo desceu a rua para tomar o bonde que o devia deixar
à porta da casa do Lias, à rua Senador Pompeu. Era uma casa assobradada, bateu.
Uma mocinha veio recebê-lo e, tanto que o viu, posto que não o conhecesse,
acenou convidando-o a entrar e perguntou com uma vozinha branda:
— O senhor vem ver meu primo?
— Sim, senhora.
— Entre.
Levou-o pelo corredor sombrio. Na sala de jantar já o gás estava aceso.
Havia gente conversando surdamente em torno da mesa redonda alegrada por um
vaso de flores. Burburinhou um sussurro de vozes e Anselmo, sempre guiado pela
mocinha, passou a outro corredor, entrando em um quarto, cuja porta ela abrira
conservando-se fora.
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Numa cama de ferro, ao fundo do quarto triste, sem móveis, iluminado por
um bico de gás, agonizava, anquilosado, o poeta paraibano. As mãos cruzadas
sobre o peito magro, as faces cavadas os olhos fundos, movendo-se sinistramente,
eles apenas, em toda a imobilidade rígida daquele corpo, como se fossem os
primeiros vermes que se houvessem alojado nas órbitas e andassem a roer em
silêncio. O resto de vida refugiara-se-lhe nas pupilas negras, último reduto da alma,
de sorte que eram os olhos que falavam, que sorriam, que perguntavam, que
respondiam, que vertiam lágrimas dizendo adeus para o sempre, despedindo-se
pelo coração que batia ainda, lentamente, flébil.
Agonizava quando Anselmo entrou e o Neiva, soluçando, com a vela na
mão, tomou-lhe o braço, puxou-o para o peito de modo que ele pudesse empunhar o
círio alumiador da última hora.
Vendo Anselmo fez um gesto desanimado, trincando os lábios e, mostrando,
com um olhar, o companheiro que acabava. Fora houve um surdo rumor de passos,
gente chegava à porta como para ouvir o sarrido da dispnéia e o soluço final do que
atravessara a vida atordoando a agonia com o estrépito das gargalhadas. Num
derradeiro esforço o moribundo volveu os olhos para Anselmo, parando-os, fitos
nele. Veio um resto de luz à tona, mas foi, aos poucos, minguando, minguando até
que as pálpebras caíram como duas tampas de esquife.
Nem um frêmito: extinguiu-se preso na paralisia. Alguns soluços quando
correu a notícia; vozes abafadas, passos leves, segredos. Vieram os círios que
põem quatro lágrimas de fogo junto aos mortos, veio a água benta com um ramo de
alecrim num vaso de cristal.
Um Cristo de bronze, secular, gasto de muitos beijos, foi pousado à
cabeceira do poeta. Neiva e Anselmo guardaram o corpo do companheiro, vestiram-
no chorando. Os de casa pareciam desafogados, choravam por obrigação: deixavam
a gota crescer nos olhos até que se precipitava pelas faces, punham-na, então, em
evidência para que vissem que sabiam ser delicados, que conheciam as regras
convencionais do sentimento, como depois provaram indo à missa e vestindo o luto.
Eram oito horas da noite quando o Neiva, atarantado, chamou Anselmo ao
vão de uma janela para falar-lhe em segredo, porque os parentes do poeta
suspiravam no quarto, esfregando os olhos secos.
— Não saias daqui; eu vou aos teatros. À meia-noite virei render-te.
Anselmo recuou assombrado:
— Pois vais aos teatros hoje!?
— Então, homem? Que queres? Vou arranjar algum dinheiro para comprar
duas ou três coroas: uma por mim, outra por ti e outra pela imbecilidade humana.
Que os idiotas prestem, ao menos, este culto a um poeta que teria sido genial se
nascesse em outra terra. Até já.
Tomou o chapéu e, em pontas de pés, deixou a câmara fúnebre. A casa
encheu-se, porque toda a vizinhança quis ver "o moço". As velhas chegavam ao leito
de mãos cruzadas, um ar muito compadecido, a cabeça inclinada; ficavam um
instante a mirar o cadáver, aspergindo-o com água benta e voltavam para o grupo,
onde se discutia política e a vida livre de certa vizinha. Anselmo sentia-se mal
naquele meio e, como ninguém lhe dirigia a palavra, procurava afazeres, ora
espevitando os círios que crepitavam, ora arranjando a roupa com que haviam
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vestido o poeta, tão ancha, amarfanhada em gelhas no corpo raquítico, roupa de
esmola, talvez de um tio, gordo e baixo que ia e vinha pelo corredor escarrando
forte. A noite ia alta: os que faziam quarto ao morto conversavam francamente, com
exceção do velho gordo que roncava numa cadeira de vime, de pernas abertas, a
cabeça caída, as mãos papudas enclavinhadas no ventre rotundo, quando o Neiva
entrou, de leve, com um embrulhinho e, depois de haver contemplado o cadáver,
chamou Anselmo à parte sussurrando-lhe:
— Tens aqui uma porção. Come porque esta gente nem uma xícara de café
é capaz de oferecer.
Anselmo, retirando-se, foi devorar deixando o boêmio à cabeceira do Lins,
muito comovido, a enxugar lágrimas teimosas. Inesperadamente houve um tinir de
louça e uma negrinha entrou na câmara mortuária com uma bandeja oferecendo
café. O Neiva sussurrou a Anselmo:
— Teriam eles ouvido a minha observação?
— Talvez.
— Melhor. Que diabo! Não podemos passar toda a noite a fazer cruzes na
boca. Nem parecem nortistas. No Norte oferecem-se ceias lautas aos que fazem
quarto. E aqui mesmo, já apanhei uma indigestão em casa de uns minas no dia da
morte de um deles. Foi um banquete, meu amigo! Um verdadeiro banquete! E aqui...
nem um biscoito.
— Arranjaste para as coroas?
— Se arranjei! E já encomendei flores, flores em profusão; devem trazê-las
aqui. Descansa: o nosso Lins não fará figura triste, isso não. Eu estou aqui!
O sono não conseguiu vencer os rapazes que viram nascer a luz coando-se
pelos vidros baços da janela. O Neiva, então, sentindo-se mole, convidou Anselmo
para o Ravot:
— Vamos tomar a nossa ducha para resistirmos. Estou esbarrondado. Há
seis noites que não durmo.
— E eu! — exclamou Anselmo apanhando o chapéu e, sem se despedirem,
foram saindo cautelosamente, deixando o morto desacompanhado, porque só uma
criança estava junto dele e dormia profundamente, estirada no chão, com um braço
passado pela cabeça.
Eram quatro horas da tarde, linda tarde de Setembro quando o corpo do
poeta foi conduzido ao coche pelos boêmios. As coroas levadas pelo Neiva faziam
desaparecer a da família do morto, feita de saudades roxas, mas tão fanadas, que o
Duarte, indignado, murmurou:
— Isto até parece de aluguel.
O saimento não foi numeroso: quatro carros apenas acompanharam a S.
João Batista o eterno enamorado. À beira da cova o Neiva, rompendo em soluços,
despediu-se do amigo e o Duarte, com um pranto sincero, pediu ao finado que o
viesse buscar, porque já estava enfarado da vida imbecil. Um velhinho abeirou-se da
cova, pigarreou como se preparasse a garganta, os coveiros encostaram-se às pás,
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esperando o discurso, mas o velhinho meneou com a cabeça e retirou-se. A sineta
tinia.
— Vamos, meus amigos; convidou o Neiva. Houve um rufo sinistro que se
foi tornando soturno e abafado e a terra tomou posse do corpo amado. No carro
Anselmo e o Neiva travaram uma discussão transcendente:
— Eu não temo a morte, disse Anselmo, o que me apavora é a idéia de
morrer, é a certeza em que estou de que hei de acabar. O que me aterra é a
sensação angustiosa do momento. Não penso na morte, penso na vida. Queres ver
a coisa? Está claramente exposta em um sonho que me persegue. Vejo-me no
fundo de um poço tenebroso, frio, lutando, debatendo-me, sem ar até que encontro a
ponta de um cabo — agarro-o aflito e começo a guindar-me, mas, com o atrito das
mãos, o cabo começa a esgaçar-se, a delir-se... Chegam-me aos ouvidos vozes,
avisto a luz do sol, fraca e longínqua, sinto o perfume das flores. Já à borda do poço,
vejo que o cabo está por um fio tenuíssimo — mais uma flexão e tudo estará
perdido.. E ouço e sinto a vida... Ah! O instante horrível deve ser esse: a espera,
sentir o estalar dás últimas fibras do cabo, estar à beira da luz e dentro da treva. À
queda é uma vertigem, mas antes da queda, o momento da resistência da fibra mais
forte...
Tenho passado muitas e muitas noites em claro a pensar nesse drama
sinistro. A saudade da vida é que me assombra: o acabamento deve ser rápido,
muito rápido.
— Não concordo contigo, disse o Neiva, não concordo.
— Como não concordas?
— Não... Medo da morte não tenho, porque sou católico — o Além não me
aterra, o que me tortura é a idéia da destruição vagarosa, gradativa. Explico-me.
Para mim a morte é como a lenta extinção de uma fogueira; desaparecem as
labaredas, mas ficam as brasas, faíscas percorrem os troncos carbonizados,
apagadas as faíscas fica a cinza quente, ainda é vida. A morte parcial... o
aniquilamento das células... hum! Imagina um pobre corpo imóvel a extinguir-se:
aqui um fato que se apaga no braseiro da memória, ali outro, mas crepitando ainda
uma saudade e terrível, como uma formiguinha presa num recipiente
hermeticamente fechado, a correr aflita de um lado para outro, a última idéia no
corpo morto, a idéia ambiciosa de viver, descendo pelos nervos, do cérebro à sola
do pé, subindo ao coração, indo ao fígado, aos pulmões, ao baço, aos rins, aos
intestinos e achando em tudo o frio e o silêncio. A ânsia de fugir... Ah! Meu amigo,
dessa sobrevivente é que eu tenho medo! Até que ela acabe, até que sucumba no
grande frio mudo... Ah!...
— Pois é isso justamente o fio tênue do cabo, disse Anselmo: é o "instinto"
que luta até...
— ... não poder mais! — exclamou o boêmio, com um arrancado e
desesperado suspiro. E atirando os braços bradou: — Com todos os diabos,
mudemos de assunto. Falemos da vida, das coisas da vida, do esplendor da vida. E
o carro chegou ao Largo da Carioca justamente quando os sinos dobravam as Ave
Marias!
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CAPÍTULO XXVII
Foi com a violência inesperada de uma erupção vulcânica que irrompeu na
Câmara o projeto de lei extinguindo a escravidão. Discutido com a urgência fogosa
dos propagandistas, que o reputavam uma "necessidade nacional", venceu
impetuosamente a primeira represa, subindo ao Senado onde foi acolhido com
simpatia quase unânime.
Os mais ferrenhos oposicionistas, que haviam procurado travar a
propaganda, sentiram-se mesquinhos diante da massa avassaladora que se
impunha ameaçando, com energia, o próprio trono. O projeto da Câmara tinha, a
bem dizer, a feição ostensiva de um ultimatum e os senadores mantiveram a toga
suspensa.
Cândido de Oliveira, requerendo que a 3
ª
discussão e subseqüente votação
fossem excepcionalmente feitas no domingo, 13 de Maio, precipitou o desfecho. A
certeza da vitória pôs o povo em alvoroço. Os representantes da imprensa reuniram-
se no Club de Esgrima para discutir o programa dos festejos comemorativos, todas
as associações convocaram os seus membros, e, no dia do pronunciamento do
Senado, a cidade amanheceu festiva. Às janelas de algumas casas tremulavam
bandeiras. O povo afluía às imediações do Senado ocupando as ruas adjacentes,
enchendo o parque, como um exército sitiante. O sol dardejava rijo sobre a multidão;
as copas dos chapéus de sol moviam-se como carapaças que flutuassem, lenços
agitavam-se. As janelas do Senado estavam entupidas e foi necessário que a tropa
interviesse para vedar a entrada no recinto.
Esperava-se com a alegria da certeza e, com o correr das horas, mais
engrossava a multidão. Havia gente nas moitas, nas grades do parque, pelos
telhados, acolhida à sombra de chapéus de sol; muito longe mesmo, nos telhados
das casas, moviam-se vultos. Homens agarravam-se aos lampiões, outros subiam
pelos postes telefônicos. Era a cidade ansiosa que alongava os olhos para o templo
de onde devia ser lançado o misericordioso perdão sobre os cativos de África.
Os bondes, parados em longa fila, traziam curiosos sobre a tolda; carros
detinham-se intimados pelo povo. Os próprios soldados refreavam os animais na
impossibilidade de vencer a massa compacta.
Repentinamente estrugiram brados no interior do recinto e um homem
apareceu à janela afogueado gesticulando e clamando. Um pombo branco fugiu por
uma das janelas, tatalando as asas, atordoado; outro, outro, outro e outro e voaram
todos em direção ao parque que, com a sua verdura viçosa, resplendia ao sol.
O povo, como se visse naqueles animais inocentes um símbolo das almas
que se haviam libertado ganhando, como eles, a largueza vasta das terras e dos
espaços, prorrompeu em palmas e em vivas. O rumor estupendo abalou os espaços
e, em vários pontos, em clangor triunfal, fanfarras atroaram.
O povo ondulava ovante e mais de vinte mil bocas, em uníssono,
aclamavam; iam chapéus ao ar, lenços palpitavam e, aos arrancos impetuosos,
foguetes rasgavam os ares espoucando na altura. Súbito uma detonação abalou os
ecos O povo conteve, por momentos, a alacridade; outro estampido longínquo —
eram os fortes e os navios saudando a Redenção da Pátria.
O entusiasmo recrudesceu chegando às raias do delírio. Mas à porta do
Senado apareceu um estandarte, outros foram saindo — eram os guiões do exército
benemérito e o povo recebia-os como se, efetivamente, eles voltassem gloriosos de
campos cruentos de batalha. E, de tranco em tranco, asfixiado, rouco, a gesticular,
chorando e rindo, vinha um homem de bronze por entre o tumulto, de braço em
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braço como um ídolo que todos quisessem veneradamente tocar e sentir — era
Patrocínio.
E fez-se a desfilada em direção ao Paço da cidade onde a princesa regente,
que descera de Petrópolis, esperava os triunfadores.
A notícia, comunicando-se aos pontos mais extremos da cidade, trouxe à rua
o povo feliz e o trajeto foi lento e difícil — ia-se por entre muralhas humanas, sob
uma chuva de pétalas, à luz radiosa de um dia lindo e amável.
O decreto foi assinado afluindo o povo à rua do Ouvidor, onde já aflavam
bandeiras em triunfo, fazendo uma abóbada policrômica, como numa cena de lenda
oriental.
O dia passou-se em delírio. Bandos percorriam as ruas, cantando. Saíram
serenatas e grupos de negros com os seus maracás e os seus reco-recos e, a luz de
archotes, começaram os carpinteiros a martelar construindo coretos ou fincando
postes para a ornamentação.
No dia seguinte, cedo, Anselmo, que andara na véspera com o povo,
apareceu na Cidade do Rio. Logo ao entrar ouviu a voz de Montezuma, que discutia
acaloradamente com o paginador. O dono do althéa gesticulava frenético:
— Isso não! Pois justamente no dia da vitória é que vocês querem
abandonar o homem?
— Mas, Sr. Montezuma, que posso eu fazer? O senhor compreende: os
rapazes têm família e, aqui entre nós, é natural — duas quinzenas e vamos entrando
na terceira.
— Ora! Duas quinzenas... A mim devem mais de cinco mil contos. Tenha
paciência, vá falar aos rapazes para que façam a folha.
— Que é, Montezuma? — perguntou Anselmo.
— Greve. Não querem trabalhar porque têm na casa duas quinzenas. Se eu
tivesse adiantava, mas a minha fortuna aqui está: $640 e dois gasparinhos. Logo
hoje!... Mas a folha há de sair, custe o que custar. Vou ver se arranjo alguma coisa.
Vai lá dentro e improvisa um discurso, trata de chamar aquela gente à ordem, eu
vou por aí. Hoje há de ser difícil, mas em todo o caso... Até já.
— Até já.
Montezuma saiu gesticulando, furioso; mas deteve-se à porta e, voltando-se,
dirigiu-se ao gerente melancólico, que cochilava encostado à parede, com um braço
esticado sobre o balcão.
— Ó homem, tu não mandas enfeitar o jornal?
— Enfeitar o jornal... com quê, senhor Montezuma? — perguntou desolado.
— Com quê?! Com bandeiras e galhardetes, homem de Deus.
— Bandeiras e galhardetes... Mas onde vou eu buscar essas coisas?
— Também vocês não têm nada, que diabo!
— Infelizmente...! — suspirou o desgraçado, recostando-se de novo à
parede com resignação. Mas o paginador reapareceu radiante e dirigiu-se a
Montezuma:
— Os rapazes fazem o jornal.
— Ainda bem.
— Mas é necessário que o senhor Anselmo não escreva muito.
— Não há aí encalhes? — perguntou o secretário.
— Temos um conto.
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— De quem?
— Não sei; está composto há mais de um mês.
— Dê o conto. Que mais?
— Uma poesia daquele poeta de S. Gonçalo... uma que fala em Nossa
Senhora fugindo para o Egito.
— Isso não. Que mais?
— Há ainda umas coisinhas. Eu vejo. Basta que o senhor escreva um
artigozinho de umas três tiras; com o noticiário e os ministérios, a folha fica pronta.
— E sai?
— Já se vê.
— Então estamos arranjados. Agora vou dar umas voltas para ver se
consigo as tais quinzenas.
— Uma ao menos, senhor Montezuma.
— Vou ver. E, com desabalados gestos, Montezuma partiu, falando só, com
dois pince-nez escarranchados na penca.
Anselmo subiu disposto a escrever um artigo monumental dando as suas
impressões, mas diante das tiras alvas, como se uma nuvem lhe houvesse
subitamente toldado o espírito, sentiu-se incapaz e, fincando os cotovelos na mesa,
com o olhar disperso, ficou-se a fumar. Apesar da hora a rua começava a encher-se
e a gente que passava discutia; alguns detinham-se diante do jornal, entravam no
escritório e saíam à pressa, à cata de novidades. Anselmo viajava no país azul do
sonho quando se sentiu agarrado por um pulso formidável. Voltou-se e deu com os
olhos no poeta da Tarântula.
— Ah! Moraes, vieste salvar-me. Estou morto de fadiga. Escreve aí umas
linhas.
— E eu! Pensas que tenho estado inerte? Já fiz para cima de vinte
discursos. Estive com o Bivar, está sem voz. Mas que belo, heim? — exclamou o
poeta com entono. Que vitória...! A conquista do talento, heim? Decididamente não
há arma como esta! — e empunhou uma caneta com orgulho. Sim, senhor! Arrastou
uma cadeira, sentou-se e, diante das tiras, exclamou de novo: Bela coisa!
— Pois sim, pois sim, mas escreve.
— Que diabo queres tu que eu escreva?
— Escreve sobre isso mesmo — a conquista do talento.
— Isso dá um artigo de duas ou três colunas. Queres?
— Não, filho; sê sóbrio, estamos ameaçados de greve. Sê breve e forte.
— Pois sim. E pôs-se a escrever balançando a perna. De repente, porém,
uma voz rouca bradou na rua: "Viva José do Patrocínio! Viva Joaquim Nabuco!"
Anselmo correu à janela, palpitante. Estava uma multidão diante do escritório e um
mulato gordo, esbaforido, atirando o chapéu ao ar, fazia enorme algazarra. Anselmo
desceu e, rompendo o povo, chegou ao homem que logo avançou, rouco,
encharcado de suor e apertou-o nos braços, gritando com fúria: "Viva José do
Patrocínio! Viva a Cidade do Rio! Primeiro jornal do mundo!" E, sem mais,
arregaçando as mangas do casaco surrado, subiu para o balcão e, com grande
esforço, arrancando as palavras, pôs-se a falar:
"Cidadãos, não há mais escravos no Brasil. Aqui agora todo o mundo é livre,
não há negro nem branco, há brasileiros..."
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Rugiram: Apoiado! E o orador, entusiasmado com o acorçoamento do povo,
pôs-se nas pontas dos pés e, cada vez mais rouco, continuou:
"Ontem era o castigo: era a mãe arrancada ao filho, o filho arrancado à mãe,
uma patifaria, uma pouca-vergonha...! Súcia de vagabundos que queriam viver à
custa dos desgraçados. Pois agora que vão trabalhar... Cidadãos, a nossa pátria
estava manchada... (Apoiado!...) a nossa pátria estava manchada, mas de hoje em
diante, podemos dizer com orgulho que somos brasileiros, porque já não há
escravos em nossa terra. Viva José do Patrocínio...! Viva Joaquim Nabuco...!" E
saltou do balcão.
Dando com os olhos em Anselmo o mulato adiantou-se e, posto que o
secretário não o conhecesse, não se revoltou com a intimidade com que foi tratado:
— Passa um cigarro. Ah! Não imaginas como estou: não tenho voz, a
camisa está como uma papa, mas também ontem berrei como um danado. Que
pensas? Eu cá não conto com desgraça, sou homem! Se grimparem comigo, ahn!
Mas passou, hein? E atirou uma palmada ao ombro de Anselmo.
— Por quantos votos? — perguntou um sujeito magro.
— Sei lá de votos! Sei que passou e se não passasse voava a quitanda: os
cabras estavam dispostos. Meti lá a minha gente e aquilo era só um grito.
— E o José?
— Que José?
— O Patrocínio...
Sei lá. O cabra fica hoje sem costela. Ontem andava no ar que nem o
Blondin. A gente só via a cabeça e os bracinhos do preto... Mas é homem, deixem
lá! Homem mesmo! E sacudiu-se urrando: Viva o grande abolicionista José Carlos
do Patrocínio!
O povo correspondeu com delírio.
— Qual! Quando eu digo... Há aí alguma coisa que se beba? Estou zarro.
Viva Joaquim Nabuco! Diabo! Esta gente não presta. Vou ver a minha cabralhada,
quero fazer hoje uns bonitos nesta cidade. Olhe! Eu não tenho nada com isso, sou
mulato, mas nunca fui escravo, é preciso que se note; mas sou brasileiro, não queria
a minha pátria manchada, ahn! Isso é que é.
Luiz Moraes, tendo concluído o artigo, despediu-se para almoçar e Anselmo
esquivava-se ao mulato gordo quando Montezuma, amarrotado e gotejante, abrindo
o grupo dos populares, apareceu no escritório com gestos largos e um embrulho:
— Então, Montezuma?
Consummatum est. Patrocínio está imortal e aqui está o dinheiro. Suei!
Agora, antes de fazer o pagamento, eu devia desafivelar uma descompostura das
minhas, porque o procedimento dos tais senhores tipógrafos não tem classificação.
Vamos lá para cima contar isto. E você, homem, disse, dirigindo-se ao gerente,
sempre acabrunhado, mova-se, trate de arranjar algumas bandeiras e flores. É
preciso que o jornal apareça digno.
— Mas como, senhor Montezuma? Tenho seiscentos réis em caixa. E uma
desgraça... Mas que hei de fazer?
— Levante-se, tenha energia. Eu, no Rio da Prata, fiquei uma vez sem um
níquel, pois, meu amigo, não descorçoei: pus-me em campo, furando a vida, e, à
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tarde, estava com o bolso cheio de duros e rodando em Palermo. Mova-se, vá aqui
ao Alves sirgueiro e peça umas bandeiras, alugue-as, compre-as; vá depois à
Rosenwald e diga-lhe, em meu nome, que venha enfeitar a sala de trabalho do José.
— Bandeiras de que país, senhor Montezuma?
— De todo o mundo: brasileiras, portuguesas, russas, africanas, chinesas,
alemães, as que encontrar. Mas ande!... Mova-se!
— Vou calçar as botinas.
— Que botinas? Pois você está ao balcão sem botinas?
— Sim, senhor, por causa dos calos.
— Onde foi o Patrocínio descobrir este homem? Antes de ser gerente que
diabo era você...?
— Condutor de bonde.
— Ahn! E querem que este jornal ande para diante com um condutor ao
balcão! Pois sim! Vamos lá para cima.
E Montezuma avançou para a escada seguido de Anselmo, sempre a
resmungar contra os compositores e contra o gerente. Diante da mesa do Patrocínio
deteve-se meneando com a cabeça. De repente, resoluto, atirando o chapéu ao
divã, arregaçou as mangas e, ordenando a Anselmo que fechasse a porta, pôs-se a
rasgar os papéis que encontrava, pondo em ordem a mesa do herói.
— Montezuma, não rasgues os papéis. Olha que aí há coisas necessárias.
— Mais necessária é a ordem. Quer você que o povo que aí vem veja esta
vergonha? Não, senhor. Que é do servente?
— Deve andar por aí.
— Pois é preciso que ele passe uma vassoura nisto. Vai chamá-lo e vê lá se
esse condutor já foi ver as bandeiras e as flores. Um condutor na gerência de um
jornal!
Anselmo saiu e, quando tornou com o servente estremunhado, ainda
vestindo o casaco, Montezuma, de pé, admirava o trabalho que fizera e resmungava
contra o gerente:
— Ao balcão, sem botinas! Falta de vergonha! Num dia como o de hoje!
Então não está melhor assim?
— Parece.
— Parece não, está magnífico, tem aspecto. Vamos, homem, varra este
gabinete.
— Já foi varrido.
— Como já foi varrido?!
— Sim, senhor, de manhã.
— Pois não vês que está cheio de papéis?
— Mas eu varri.
— Pois varra outra vez. E leve aquela cesta lá para dentro. Sempre
atarantado, Montezuma desfez o pacote e notas rolaram sobre o canapé. Vá chamar
o paginador. Que venha cá em cima. Já tinha um maço contado e amarrado. E pôs-
se a contar as outras notas.
— Estás rico, Montezuma?
— Rico, heim?... Foi uma campanha para arranjar dois contos de réis. Tudo
fechado. Enfim... Vamos agora ver se enfeitamos isto. O gerente já foi?
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— Creio que sim.
Vivas atroavam e, através do altissonante clamor do povo, distinguia-se o
nome de José do Patrocínio.
— Está fresca a redação. Pois o José sabia disso e por que não mandou
arranjar convenientemente o jornal? Que me falasse, que diabo! Se me houvesse
dito, ontem mesmo, com dois homens, eu punha esta casa como um brinco. Mas
não, é tudo para a ultima hora. Está fresca...
O paginador apareceu em mangas de camisa, radiante.
— O senhor Montezuma chamou-me?
— Sim, estão aqui as quinzenas — isto é: uma quinzena; vou ver se posso
arranjar a outra para amanhã. Que esperem, eu também espero; todos esperam. E a
folha?
— Está pronta.
— Pois é pô-la na rua.
— Já está rodando.
— E o gerente?
— Saiu.
— Ora graças a Deus! Que é do servente?
— Estou varrendo. O senhor não mandou varrer?
— Sim, mas depressa! Que diabo! Estás dormindo em pé!
— Eu não sou máquina.
— Bem vejo que és um pedaço de idiota, mas anda com isso.
O homenzinho resmungou e Montezuma ia dar uma ordem, quando o povo,
que se havia ajuntado diante do jornal, prorrompeu em vivas. O grande velho ficou
atordoado: ia e vinha com o pacote de notas, gesticulando, sem saber que fizesse,
quando, da rua, começaram a bradar por alguém. Voltou-se impetuosamente para
Anselmo; ia dizer-lhe alguma coisa, mas resoluto, avançou para a sacada, sendo
recebido com uma prolongada salva de palmas. Pigarreou e, gesticulando
desabaladamente, sempre com o pacote de notas na mão direita, disse:
— Meus senhores... Depois, voltando-se, chamou o secretário, que ria a
bom rir, vendo-o naquela entalação: Toma conta deste dinheiro enquanto eu digo
duas palavras ao povo.
Entregando o pacote declarou, muito rouco, atirando os braços como se
nadasse:
— O Patrocínio não está e eu... em nome da Cidade do Rio, só posso
dizer... Pigarreou, passou o lenço pela fronte, fez um aceno de adeus e disse
naturalmente com os olhos no La Paix: Como vais, Coutinho?... Depois, lembrando-
se do discurso, concluiu-o: Viva a Liberdade!
O povo aclamou-o delirantemente e Montezuma, recolhendo-se, depois de
agradecer, perorou vitorioso:
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— Isto é assim... A gente diz duas coisas e está acabado. O povo não há de
ficar aí a ver navios.
Mas a onda, que avançava compacta, atroava os ares com uma grita
estertorosa. Anselmo chegou à janela comovido. A rua estava apinhada, densa e
fervilhando, e todos os olhos fitavam a tabuleta do jornal que fora o reduto da
abolição. O dia, muito azul, concorria para a imponência da festa e o povo, frenético,
agitava-se com um sussurro perene. As bandeiras balouçavam-se, estouravam
foguetes, vivas estrugiam.
Da janela de O Paiz um redator, purpúreo e suado, arengava. Mas o povo
reclamava a presença de Patrocínio e foi necessário que Anselmo, comovido,
repetisse o que já havia dito Montezuma — que o chefe da propaganda não se
achava presente. Mas o entusiasmo ia-se comunicando. Logo que o secretário,
terminando sua explicação, levantou um viva à Pátria livre, unissonamente
respondido pelo povo, da janela do hotel La Paix, um mocinho de bigode ruivo bateu
as palmas e, assomado, começou um discurso retumbante, no qual, de mistura com
deuses da mitologia grega, passou à figura ensangüentada de Marat, cantaram
"jandaias em frondes de carnaúbas", deslizaram igaras, rebentaram grilhões. Como
o orador tinha magníficos pulmões o povo, que não se preocupava com a forma e
muito menos com a substância das orações, contentando-se com palavras que
explodissem, rompeu em aplausos delirantes e, em seguida ao mocinho, outro
começou adiante e, em pouco, em todas as janelas da rua do Ouvidor braços
agitavam-se convulsivamente como se todos os moradores da apertada passagem
houvessem enlouquecido.
Por fim, do meio da rua, apertados, constrangidos, agoniados, oradores
começaram aos berros furibundos, fazendo a apologia do grande libertador, pedindo
uma estátua, outros contestando, "que não! não havia necessidade de estátua,
porque o vulto do grande homem havia de ficar no coração dos brasileiros e nas
páginas da história".
Grandes e descabeladas hipérboles jorravam da boca dos tribunos, roxos de
calor e de entusiasmo e o povo sempre a aplaudir com frenesi, batendo palmas.
Montezuma, entusiasmado, queria, a todo o transe, fazer outro discurso; ia e vinha
ao longo da sala com derramados gestos e o nariz carregado de pinces-nez, quando
o Neiva irrompeu trovejando:
— Temos uma pátria! E atirou o chapéu sobre uma das mesas.
— O Neiva, vens a propósito. Vê se nos salvas.
— Que há?
— Dize da janela duas coisas ao povo, implorou Montezuma.
— Estou estafado. Venho falando desde o Largo de São Francisco até aqui.
Deixem-me descansar um momento.
Da rua começaram a reclamar o Neiva, aos gritos; e o boêmio, levado aos
empurrões por Montezuma, apareceu à janela sendo recebido com uma salva de
palmas. O discurso que pronunciou, inspirado na religião, foi vivamente aplaudido. Ia
ele perorando quando, pela travessa do Ouvidor, uma grande massa precipitou-se e
Montezuma, com a sua carga de lentes, reconheceu, no meio do povo, José do
Patrocínio. Então, acenando com um lenço roxo, o bom velho, em lágrimas, pôs-se a
aclamá-lo.
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O povo, que enchia aquela parte da rua do Ouvidor, com risco de sufocar
alguns entusiastas, movendo-se aos recuanços, abriu alas ao herói.
Patrocínio vinha carregado e arquejante e, ao chegar à frente do seu jornal,
aclamado por todos os seus companheiros de trabalho, inclusive os compositores
que se apinhavam às janelas, não pôde conter as lágrimas.
O povo, vendo-o, prorrompeu em vivas e os populares que o carregavam,
asfixiados pela multidão, reclamavam caminho, aos berros.
Um velho negro ajoelhou-se e, de mãos postas, com o pranto nos olhos,
dirigiu-se ao libertador, e parecia que rezava diante de um santo.
Respeitoso silêncio permitiu que fosse ouvida a oração do infeliz:
"Nhô Patrucinu... Deus du céu bençôe suncê. Eu, pobre véio, já não se
importava co cativêro. Morte tá i módi libertá corpu di negru, cançadu di trabaiá, má
zêre, nhô: fio, fia, neto piquinino, esse sim, i parceru turu... rapaziada moça, esse
sim, vai pruvêtá liberdade. Nossinhô tá lá in cima; ele ha di óiá suncê, nhô Patrucinu.
Antonce não hai Deu nu ceu? Viva o sarvadô di nóis! Viva!" e o negro, trêmulo, foi-se
arrastando para beijar os pés do redentor da sua raça.
Patrocínio, porém, arrojando-se da charola humana, chegou-se ao negro,
apertou-o nos braços e, em pranto, enquanto o povo comovido parecia petrificado,
entrou correndo na Cidade do Rio.
Estava exausto e, quando viu os companheiros no patamar da escada, pediu
que o deixassem em paz:
— Pelo amor de Deus, meus amigos, já não tenho costelas, estou
macerado. Deixem-me!
— Não, tenha paciência.
E todos quiseram abraçar o valente propagandista que gemia.
A multidão bradava por ele e o herói, bambeando nas pernas, foi à janela
corresponder à manifestação que lhe faziam. As suas palavras roucas mal
chegavam aos mais próximos e, de longe, os que não o ouviam, bradavam,
agitavam lenços, e de um a outro extremo da rua, o seu nome estrondava.
Até à noite, de quando em quando reclamado pelo povo, apareceu à janela.
Fez discursos, levantou vivas, foi comprimido em braços, foi beijado. Se o viam na
rua rapazes avançavam, atirando-se-lhe aos botões da sobrecasaca e do colete,
disputando-os como relíquias. Às dez da noite — a cidade fulgurava iluminada -,
tendo de sair para jantar, pediu uma guarda.
— Venham comigo, pelo amor de Deus. Imaginem vocês que um homem
teve a idéia extravagante de pedir-me um fio de cabelo para um relicário. Se pega a
mania, pelam-me. Tenham paciência!
Para garantir a barba e os cabelos do herói formou-se um grupo que o
conduziu ao La Paix, onde foi servido o jantar. Logo à entrada os criados do hotel,
desfolhando rosas, fizeram tamanho alarido que os que comiam avançaram
pressurosos e, dando com o propagandista, foi tamanha a atroada que Montezuma,
receando ensurdecer, espalmou as mãos nos ouvidos, declarando que nem no
Paraguai ouvira rumor como aquele.
À mesa, mal havia tempo para levar-se à boca duas garfadas — de todos os
cantos surgiam oradores com taças de champanhe, e eram discursos em todas as
línguas: em inglês, em alemão, em italiano, em espanhol; houve um em turco e outro
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em grego e uma senhora, rubicunda e anafada, exprimindo-se em francês, fez
estalar nas bochechas do tribuno um beijo sonoro "au nom de la fraternité".
Explodiram urras! E como houvessem pedido uma omelette, o tostado apareceu,
enorme e trêmulo, com as iniciais de Patrocínio muito espoucadas e uma rosa
repolhuda espetada no meio.
Foi uma surpresa do maitre d'hótel que, por sua conta, muito generoso e
comovido, mandou abrir uma garrafa de champanhe e bebeu à la liberté, muito
rouco.
A retirada foi lenta e difícil. Havia gente de sentinela na escada e, quando
Patrocínio, derreado e com fome, porque mal "'dera tocar nos pratos, apareceu no
patamar, um rapazola esgoelou:
— Aí vem ele! E uma avalanche precipitou-se. E o mísero grande homem
foi, de novo, comprimido e beijado e, por maiores que fossem os esforços
empregados pelos companheiros para o arrancarem à turba, nada conseguiram.
Patrocínio foi rolando na multidão como uma rolha no oceano e desapareceu. Viam-
se-lhe, apenas, o braços que se debatiam aflitamente. Estaria agonizando? Pedindo
socorro ou aplaudindo? Mistério. O Neiva, lembrando-se da promessa que fizera,
dirigiu-se aos companheiros:
— Nós não podemos ficar aqui de braços cruzados quando o nosso chefe
corre tamanho risco. Se não acudimos imediatamente, levam-lhe os cabelos e a
barba. O povo está com delírio epilatório. Vamos! E, corajosamente, meteram-se
pela multidão.
Para caminharem da travessa do Ouvidor à Cidade do Rio foram
necessários dois aflitíssimos quartos de hora. Montezuma perdeu um pince-nez e
bramiu de cólera, defendendo
os cinco que lhe restavam. Anselmo, asfixiado, queria
usar da força e já estava disposto a fazer rolo para conseguir caminho, quando um
compositor, homem de músculos, meteu os ombros e, como um Hércules, foi
abrindo passagem, apesar dos protestos. Quando chegaram à Cidade do Rio a sala
da redação estava apinhada de gente ansiosa, que reclamava o redator-chefe. Os
rapazes pasmaram: Patrocínio não estava.
— Oh! — exclamou Montezuma.
— Oh! — repetiu o Neiva.
Anselmo balbuciou:
— Hom'essa! E todos, com terror, perguntaram: "Onde andará ele?"
O retranca, que tudo vira, declarou que o povo havia levado o chefe em
triunfo, rua acima.
— É necessário salvá-lo! — bradou o Neiva.
E Pardal, que surgira, segredou: "Que estava armado para o que desse e
viesse."
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— Mas como havemos de vencer esse mundo que enche a rua?
perguntou o velho. Estou moído, pisado, sem pernas, com um pince-nez só. Não me
atrevo.
— Mas havemos de deixar sozinho o desgraçado?
— Então? Eu não posso.
O Neiva, porém, atirando uma palmada ao peito, declarou com ênfase:
— Pois vou eu.... e hei de achá-lo!
Enterrou o chapéu na cabeça e ia já perto da escada, quando Anselmo
declarou que o seguia, jurando com solenidade: "Para a vida e para a morte!" Pardal
acompanhou-os.
— Para a vida e para a morte! — disse o Neiva; e desceram. Montezuma
ficou para fazer as honras da casa.
De vez em quando surgia uma leva, subia as escadas com fragor, dando
vivas a Patrocínio e, em cima, encontrava o velho. O intérprete dos sentimentos do
grupo não esfriava e, avançando uma perna, esticando um braço derramava a
eloqüência, entrecortada a urras pelo auditório. Montezuma ouvia com muita
dignidade e, para corresponder, dizia algumas palavras atirava violentas braçadas,
equilibrando o pince-nez que saracoteava. Isso começou às dez horas e até à meia
noite, sem descontinuar, subiram comissões com oradores. Montezuma, de pé, com
um fio de voz, roxo e hirsuto, foi respondendo, arrependido de não haver seguido
com os rapazes, porque já se sentia exausto e com a língua mais seca que a de um
papagaio.
Quando tornaram à redação Neiva, Anselmo e Pardal, acompanhados de
Patrocínio, encontraram o bom velho estendido em uma cadeira de lona, em
mangas de camisa, a abanar-se com um jornal.
— Que é isso, Montezuma!
— Estou liquidado! Vocês arranjaram-me bonita! Cheguem-se mais, porque
já não tenho voz: foi-se toda em eloqüência. Fiz para mais de quarenta e cinco
discursos! Eram tantas as comissões que, duma vez, subiram quatro com oradores e
então, imaginem vocês, tive de responder aos quatro. Fiz como os padres, no tempo
do cativeiro, quando tinham de batizar moleques — com um só discurso respondi a
todos, foi só o trabalho de mudar o rótulo. Mas estou morto... E o José?
De um canto saiu um gemido esganiçado: era o propagandista, rouco, que
explicava com um dedo na garganta, que estava sem voz.
— E tu não fizeste quarenta e cinco! — exclamou Montezuma.
Patrocínio tocou castanholas.
— Mais, homem!?
Novas castanholas de Patrocínio, seguidas de um assobio.
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— Então foi um horror!
Sinal afirmativo de Patrocínio.
Estavam nessa discussão, castanholada e assobiada, quando uns rapazes,
que haviam visto o jornalista entrar, invadiram o escritório, galgaram a escada e
começaram aos vivas e logo um orador, diante da porta fechada, desfechou a
primeira bomba:
"Prometeu, tu que roubaste o fogo sagrado da liberdade para alumiar a alma
escura do cativo..."
Patrocínio caiu de joelhos, de mãos postas, como uma vítima. Montezuma
vestiu o casaco, correu para a janela gesticulando desesperadamente. E o povo na
rua prorrompeu em aclamações e palmas. Debalde o bom velho apertou a garganta,
espichou o pescoço, explicando, com uma complicada mímica, que estava
esgotado. O povo bramia, urrava, queria, a todo o transe, um discurso. Montezuma,
desalentado, voltou-se para os companheiros:
— Como há de ser?
— Dize qualquer coisa.
— Como? Se não tenho voz.
— Com esforço.
E o velho pôs-se a rebuscar o pince-nez no bolso, achou um apenas,
acavalou-o na penca. O povo continuava a reclamar, ele fez um gesto solene,
espalmando a mão — que esperassem, abriu a boca e começou a tossir. Tossiu,
descansou e disse o que lhe veio à cabeça adubando a facúndia com as palavras
liberdade, reabilitação, misericórdia, hegemonia. Foi um delírio e da multidão saiu
uma voz aguda e vibrante. Era outro orador.
Montezuma exaltou-se, enfureceu-se e, atirando grandes braçadas, declarou
colérico:
— Não! Agora é demais! Não respondo...!
O "órgão" da comissão que subira, ululava à porta e Anselmo, que fora
nomeado para representar a folha, ouvia impassível. Quando o homenzinho,
afogueado, suando em bicas, deu por finda a arenga, o secretário respondeu: mas
querendo dizer quatro palavras, foi alongando o discurso, arrastado pelo
entusiasmo.
O Neiva, vendo tamanha prolixidade, indignou-se.
— Ora, estão vendo seu Anselmo! Pois não é que o homem está
esperdiçando discursos. Em vez de poupar, porque vamos ter trabalho como o
diabo, está a esticar a oração, e vai longe. Vou arrancá-lo.
— Não, deixa.
— E se vier outra comissão?
— Que se arranje.
— Mas é que o povo fica mal habituado. Já o tínhamos na dose das quatro
palavras e agora vem esse Demóstenes com uma enxurrada de períodos. É um
desperdício!
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Foram necessários meios violentos para que o Neiva se contivesse
estava possesso. Felizmente Anselmo pôs remate ao discurso. Estalaram palmas.
Montezuma e Patrocínio respiraram. Mas não foi longa a tranqüilidade: os rapazes
começaram a bradar: "Queriam ver o grande homem, queriam abraçar Patrocínio" e
foi mister dar-lhes caminho. A onda precipitou-se, invadiu o gabinete.
Patrocínio, muito mole, ergueu-se e, passivamente, deixou-se abraçar por
vinte e tantos moços robustos, que o apertavam com entusiasmo, que o levantavam,
sacudiam. E o mísero, risonho, guinchando, com muita emoção: "Obrigado!
Obrigado!", soltava gemidos, de quando em quando, como se lhe estivessem a
afundar as costelas.
Tudo parecia ter acabado quando um dos moços arremeteu, estirando o
braço e bradou:
— Patrocínio, és um novo Cristo...
— Estamos perdidos, sussurrou Montezuma.
Patrocínio tomou um ar resignado e o orador prosseguiu, comparando-o a
Jesus, dizendo, porém, que a cruz que lhe estava reservada não era a do suplício,
mas a da história.
O Neiva fez uma careta à comparação, mas o orador, que a percebeu, quis
explicar o seu pensamento, e embrulhou-se de tal modo que os próprios
companheiros, querendo salvá-lo, romperam em palmas, e, de novo, foi Patrocínio
apertado, beijado, levantado, sacudido; dando-se por muito feliz quando um dos
rapazes disse estrondosamente:
Vamos à redação d'O Paiz. Joaquim Nabuco e Quintino devem estar lá.
Vamos!
— Pois sim, disse baixinho Montezuma, guardando o pince-nez, vocês hão
de achar o Nabuco e o Quintino. Nem todos são tolos como nós.
Quando os rapazes, com um último viva estrepitoso, deixaram o escritório,
Patrocínio, derreado, gemeu:
— Não posso mais. Essa gente não vê que eu sou um pai de família...
— E eu! — esgoelou Montezuma. Só lhes digo que com outra noite como a
de hoje entisico. Estou com os pulmões em estado lastimável. Apre! Também tanto
não... Quarenta e seis! Nem no Paraguai!
CAPÍTULO XXVIII
Quando deixaram o escritório da Cidade do Rio, lentos, curvados como
enfermos, ainda erravam entusiastas e alguns tão desequilibrados que começavam
um viva numa calçada e iam terminá-lo na outra.
Sentados nas soleiras das portas, populares estafados faziam guarda às
botinas ou resmungavam cabeceando. Como em cidade que se prepara, às pressas,
para um assédio, em todas as esquinas havia montes de sarrafos e de tábuas;
homens subiam por escadas altas e à luz fumarenta e escura de candeias,
martelavam com fúria, cantarolando, assobiando.
No Largo de São Francisco um grupo, com violas e flautas, em zangarreio
jocundo, atraía a atenção dos retardatários; e como uma voz fanhosa, que acusava
zangurriana, levantasse um viva a José do Patrocínio, o abolicionista tremeu
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aterrado, e para que não fosse conhecido acolheu-se escondidamente aos
companheiros, assombrado, pedindo, em voz surda, que não o deixassem exposto,
o livrassem de mais um discurso e demais abraços. Passaram sem que os da
serenata vissem o tribuno. Junto, porém, ao pátio exterior da Escola Politécnica, um
noctâmbulo. reconhecendo-o, levantou o chapéu acima da cabeça e escancelou a
boca, mas não pôde gritar: Montezuma, furente como Ajax, agarrou-o pelo colete e,
com voz temerosa e rouca, ameaçou-o:
— Se grita, morre!
Mas o homem, de olhos esbugalhados, explicou que ia levantar um viva ao
grande brasileiro.
— Aqui não há grande brasileiro, não há nada. Só te digo que se gritas
morres...
— Então a gente não pode ter opinião?
— Não... Quarenta e seis! Sabes tu que são quarenta e seis discursos?
— Não, senhor.
— Pois sei eu que os fiz. Vai e lembra-te das minhas palavras: Nem um
viva...!
— Pois sim, senhor... Boa noite. E desculpe.
— Está desculpado.
O pobre homem afastou-se intrigado com aquela agressão. Caminhava;
mas, como se o entusiasmo o picasse, de quando em quando voltava a cabeça e
lançava um olhar ao grupo em que se achava o abolicionista. Perto da rua da
Conceição não se conteve — preparou-se para a corrida e, a plenos pulmões,
lançou aos ares sossegados um estrondoso: "Viva José do Patrocínio!" Montezuma
sapateou de cólera e quis sair em perseguição do recalcitrante, mas os amigos
opuseram-se. Felizmente ninguém ouvira o grito. Ao longe a serenata continuava,
lânguida.
— Queres saber, José? Acho melhor tomares um tílburi.
— Mas não há.
— Eu vou ver, disse Anselmo.
— E eu, ajuntou o Neiva.
— Então depressa.
Partiram os dois; e Montezuma ficou acompanhando o amigo e escondendo-
o.
Pouco depois dois tíburis chegavam à disparada. Patrocínio precipitou-se
para o primeiro, dizendo desafogadamente:
— Estou salvo!
— Boa noite!
— Dize antes: bom dia, emendou Anselmo, porque os galos começam a
cantar.
— Bom dia então. Até logo.
— Não venhas hoje à cidade.
— É melhor.
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— Eu, por mim, declaro que, enquanto houver festejos, não ponho os pés na
rua. Estou com a garganta em mísero estado. Deixa-te ficar em casa. Já fizeste a
grande obra; está a pátria livre; não queiras tu ser o cativo. Não venhas!
— Pois sim. Adeus!
E o cocheiro fustigou o cavalo, que partiu a galope. Pardal, que estava
fatigado e ameaçado de enxaqueca, despediu-se também.
Diante do outro tílburi ficaram os três, Neiva, Anselmo e Montezuma,
discutindo o grande fato. Montezuma, porém, não achava extraordinário o
acontecimento: parecia-lhe muito mais importante a sua eloqüência.
— Meus amigos, a libertação dos negros era coisa esperada, a campanha
havia de ter um desfecho, mas quarenta e seis discursos de improviso... ufa! No Rio
da Prata, em presença do Urquiza, numa festa política, fiz quatro brindes e todos
declararam, assombrados, que eu era um fenômeno. Os jornais comentaram, e, nos
salões, durante mais de um mês, o assunto das palestras foi a minha exuberância.
Que diriam aqueles homens se soubessem que, num dia e sem jantar, pronunciei
quarenta e seis discursos com imagens? É um absurdo.
— E eu? — exclamou o Neiva. Cheguei a fazer dois discursos a um tempo,
para andar mais depressa. E Patrocínio...?!
— Ah! Mas o Patrocínio tem o hábito da tribuna.
— O hábito não faz o monge, observou Anselmo.
— Aí vem você com os disparates. Vamo-nos embora. É tarde.
— Acho que é muito cedo. Começa a amanhecer. Se fossemos às ostras, no
Mercado?
— É uma idéia.
— Toca para o Mercado.
E os três, despedindo o tílburi, desceram a rua do Ouvidor, que começava a
enfeitar-se azafamadamente para a celebração da grande festa. E romperam a
cantar, roucos, de braço dado, seguindo a passos largos:
Alions enlants de la Patrie
Le jour de gloire est arrivé...
Um bêbedo, cambaleando, levantou um viva ao Brasil e começou a
algaraviar um discurso. Tiniram campainhas e, no silêncio da rua, a voz de um
tropeiro, que vinha tangendo a récua, rompeu afinada e dolente:
Eh! dona do xale branco,
Cumu é seu coração?
S'é máu, porque me buscou,
S'é bom, porque me diz não?
Eh! dona, eu não compreendo
Tamanha vacilação!...
— Deixemos passar a bucólica, disse o Neiva encostando-se à parede.
E a tropa, com um alegre tinir de campainhas, passou a trote lento.
Quando chegaram à rua Direita ainda havia sombra noturna. Italianos
seguiam em grupos com os cestos pendentes dos paus. Carroças rodavam
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vagarosas, parando aqui, ali. Os três tomaram pelo largo do Paço. Montezuma,
enfezado, resmungava:
— Que já não era homem para aquelas estroinices, estava com cinqüenta
anos, era tempo de tomar juízo. Que havia de dizer em casa quando aparecesse?
Contava com a guerra civil. Sempre que fazia alguma ao voltar caíam-lhe todos em
cima: a mulher e os filhos, e era uma grita de enlouquecer. E com razão. Um homem
como ele devia dar-se a respeito. Que diriam se o vissem, àquela hora da manhã,
batendo a calçada, em troça?
— Ora, Montezuma! Deixa-te de escrúpulos. A vida é isto.
— Pois sim.
Chegavam ao largo do Paço.
Ao fundo, no mar, confundindo-se com as estrelas, luziam faróis de barcos e
o relógio da companhia Ferry, iluminado, parecia uma grande lua muito baixa. Uma
carroça, atulhada de verdura, passava aos solavancos. Tiniam campainhas e, de
longe, no ar, vinha o cheiro acre da maresia. Cães rosnavam nos monturos. O
mercado acordava. As diferentes barracas enchiam-se e, à luz do gás, os
mercadores iam arranjando a hortaliça verdoenga, empilhando molhos de alface, de
agrião, de couves. Os repolhos rolavam nos cestos, os rabanetes e os nabos
confundiam-se e, constantemente, iam e vinham carregadores, com enormes cestos
acogulados: arriavam, descarregavam e iam, a trote, algaraviando e rindo. Bácoros
coinchavam, grasnavam patos, ganiam cães e os galos, pressentindo a manhã,
cocoricavam triunfantemente. Uma negra, sentada num tamborete, mexia, com
imensa colher de pau, a panelada de angu; outra adiante, cercada de negros e
pescadores, enchia canecas de mingau de tapioca, respondendo, com calma, aos
gracejos da freguesia. Nos açougues a carne sangrenta destacava-se: eram
metades de reses, carneiros e porcos estaqueados e, no cepo, os homens iam
esquartejando, espostejando a manchil e logo corriam aos ganchos espetando os
grandes quartos que ficavam oscilando e sangrando.
— Onde vamos nós?
— Às ostras.
— E já haverá?
— Como não? Há ostras como há médicos: a qualquer hora do dia ou da
noite, afirmou Montezuma. Eu conheço isto. Vamos ver o grego.
— Que grego...?
— Um que aqui há, do Pireu. Vende ostras quando não está na Detenção,
ou no júri. É homem que abre barrigas com a mesma facilidade com que Hércules
estrangulava leões. Dou-me com ele.
— Pois vamos lá ao grego.
Chegaram à praia justamente quando começava o leilão de peixe. As
canoas, enfileiradas na rampa, estavam abarrotadas de pescado. Uma multidão
fervilhava em volta, discutindo, berrando. Eram gritos, impropérios, pragas, ameaças
e, vencendo o rumor, a voz tonitroante de um alentado cabo-verde apregoava. Em
grandes cestos, em cambulhada na rampa, homens faziam escolha de ostras,
abriam-nas entalando-lhes o facão entre as valvas e, arranjando-as em tampas,
apregoavam: "Ostras frescas! Mariscos!"
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— Vamos ao grego. E Montezuma encaminhou-se para o sítio em que
estava o primeiro tabuleiro, mas deteve-se:
— Oh!
— Que é?
— Não é o grego. Querem ver que já está na Detenção?
Um homem alto, barbado, abria as ostras com um facalhão. Montezuma
abordou-o.
— Bom dia, patrício.
— Deus lhe dê bom dia.
— Sabe dizer-me se o grego ainda vive?
— O grego...? Vossoria quer falar do Alexandre...
— Não sei se é Alexandre: o grego.
— Sim, senhor: o grego, é como l'o chamam. Ah! Foi filado desde pelo
carnaval.
— Foi filado?!
— Sim, senhor.
— Está preso?
O homem, sempre a abrir as ostras, encolheu os ombros.
— Que quer vossoria... a polícia mete-se em tudo. A gente tem uma
quistãzinha com um camarada, às vezes intê amigo e, cando mal se precata, está aí
a patrulha com maus modos, azangando tudo...
— É verdade, apoiou o Neiva. Se não fosse a polícia não haveria tantos
conflitos como há. O elemento de ordem é o principal desordeiro.
— Tal e qual! Vossoria fala como um adbugado.
— Mas que houve com o grego?
— Que houve...? O que há sempre... Vossoria sabe, quem se mete com
mulher fica com um pé cá fora e outro lá dentro. O Alexandre, em vendo mulher, até
esquece o nome. Aqui assim ao lado ficava um rapazinho que tinha um diabo de
mulata que até fazia tonteiras, palavra de honra; a gente punha-lhe os olhos em
cima e aquilo era uma vez. Vossoria quer ostras? Estão frescas.
— Sim, queremos.
— P'ros três? Isto é um maná p'ro peito. Olhe, aqui vem todas as manhã um
moço doutor que esteve disinganado, porque a tísica lhe comeu um pulmão, lá nele.
Não tomou drogas, não Senhor, veio às ostrinhas e está que é um texugo: até
parece que tem agora quatro pulmões. Se algum dos senhores tem moléstia do
peito, não queira saber d'óleos de fígado, nem d'oitras mixórdias, atice-lhes... uma
ou duas dúzias d'ostras pela manhã e um calixto do bom, e diga-me depois se o
Timóteo tem ou não olho p'rá coisa.
— Chama-se Timóteo?
— De Azevedo e Almeida, p'rá servir a vossoria.
— Mas vamos ao caso do grego.
— Ah! Sim, ao caso do Alexandre... Mulheres, mulheres.
— O diabo são — disse sentenciosamente Anselmo.
— O caso foi o conseguinte. Os dois, o grego mal o mulato, fizeram-se de
boa amizade, sempre juntos, mas não era pelos olhos do mulato que o grego
andava perdido, que ele até, Deus não me castigue, tinha uma cara de desmamar
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crianças, o grego andava de olho mas era na cachopa, que era destorcida. E vai
daqui e vai dali um dia zás! O grego meteu-se em casa e começaram os presentes e
o homem ficou embeiçado duma vez, que até o serviço esquecia e, quando vinha à
banca, em vez de tratar da vida, punha-se a arrancar suspiros e até tratava mal a
freguesia. Estava virado duma vez. O mulato não dava pela coisa e a marosca já ia
adiantada. Uma manhã, foi o diabo que se meteu no meio, o mulato estava aqui
muito bem, a fazer o seu mercado quando, de repente, atirando a faca p'rá cima da
banca, chamou um companheiro, entregou-lhe o negócio e coriscou por aí fora que
nem um cão danado lhe tivesse ferrado os gravetos. Ainda me lembro que o Zé da
Terceira perguntou se ele fugia do arrecrutamento. Eu sabia do caso, mas nunca
pensei que o diabo do grego houvesse arranjado as coisas tão depressa. Eram onze
horas, mais ou menos, quando a notícia bateu no mercado — que o grego havia
esvaziado o bucho do mulato com uma língua de ferro.
— Por causa da rapariga? — perguntou Montezuma.
— Por minha causa não foi, isso garanto a vossoria. O mulato encontrou o
grego no quente e, como dói à gente gastar o seu dinheiro com uma traidora, o
rapazinho, queimado, desmunhecou com a navalha em cima do grego, que não
ficou partido de meio a meio porque o diabo tem santo. Saltou da cama e, ligeiro que
nem um raio, espetou o mulatinho, que ficou com tudo exposto e acabou sem ter
tempo de tomar o Cristo. O grego veio logo p'rá praia, meteu-se num bote e mandou
cortar para a ilha do Governador. Mas os manos foram dar com ele e lá o têm na
casa-grande até que o Senhor seja servido.
— O mulato morreu?
— Se morreu!? Pois vossoria queria que um homem naquelas condições
vivesse? Morreu e bonito.
— E a mulata?
— A gente sabe lá dessas criaturas? Anda por aí, hoje com um, aminhá com
oitro. Já me andou por aqui a fazer fosquinhas, mas eu não quero endrominas com
mulher que já puxou sangue. Que se arranje por lá com quem quiser. Comigo é que
não, não tenho estômago para essas coisas. Não há nada como a gente viver com o
que é seu, deixem lá.
— É casado?
— Casado? Eu! Não, senhor. Vivo como casado, mas sou independente.
Quando não me servir, boa noite! Passe muito bem e venha outra. Senhor doutor,
vou para os quarenta e tenho visto muita coisa. Dois homens não brigam senão por
mulher. Se vossoria vir um desgraçado com um palmo de ferro no corpo pode jurar
que foi por questão de mulher ou de jogo, que é outra coisa danada. Eu também já
estive para me perder, cheguei mesmo a meter na cava do colete o ferro, mas
Nossa Senhora alumiou-me e, em vez de fazer uma asneira fiz uma coisa de homem
de juízo — fui p'rá casa, agarrei a mulher pelo gasnete, dei-lhe um pontapé e
mandei-a com Deus. Foi logo p'r'uma rótula e ainda me escreveu cartas, pedindo
perdão e jurando que se havia de portar como uma santa; mas eu.. moita. Não, que
quem escapa duma queda não deve ir espiar o lugar donde esteve p'rá cair. Que se
arranje! Vai mais uma dúzia? Estão frescas e são de rocha. Eu cá não vendo ostras
de navio; não, que tenho consciência. Já um pobre senhor, por sinal que era médico,
escapou da morte por ter comido umas endiabradas, que vieram do casco dum
pontão. Eu cá posso garantir a minha fazenda.
— Estão boas.
— Ah! E saborosas. Afiou a faca na borda da tábua, e, com um sorriso, para
continuar a palestra, disse: Antonces agora não há mais escravos?
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— Felizmente! — disse Anselmo sorvendo uma ostra.
— Felizmente, diz vossoria muito bem. Eu é porque sou pobre, e não ia
oferecer um rico presente ao senhor Patrocínio. Grande homem! Aquele é como o
Pombal que acabou com os jesuítas. De homem assim é que nós precisamos. Era
uma vergonha, isso era! Um país rico como este não precisa de escravos. Eu digo a
vossoria: se fosse coisa da gente fazer com armas, eu mesmo, estrangeiro como
sou, saía p'ra rua e havia de fazer o meu filé. Porque, verdade, verdade, eu, com
ódio, sou homem p'ra mandar um freguês desta p'ra melhor, num tempo; mas, a
sangue frio, juro por Deus! Sou incapaz de bater num cão, num cão! Que até me
perco muitas vezes pelo coração, e quando lia a relação dos castigos que sofriam os
pobres negros, os fígados subiam-me à goela, palavra de honra. O senhor
Patrocínio ganhou o céu.
— Conhece-o?
— A quem? Ao Zé do Pato? Ora! Meu freguês. De vez em quando aqui vem.
Não come muito, é de pouco comer, meia dúzia d'ostras e já diz que tem p'ra o dia
todo.
Tomou um ar grave e, limpando as mãos a um pano sórdido, disse como se
jurasse:
— Agora ele pode vir aqui cando quiser; não lhe cobro vintém, sim, porque é
até vergonha cobrar dum homem como aquele.
— Apoiado! — afirmou o Neiva.
E Montezuma, receoso de que o homenzinho levado pelo entusiasmo,
quisesse improvisar um discurso, pagou e despediu-se:
— Às ordens de vossoria, Timóteo de Almeida.
— Sim, até outra vez.
Durante oito longos e agitados dias o povo festejou, com entusiasmo, a
promulgação da lei igualitária. Anselmo, que conseguira o dom da ubiqüidade para
poder gozar de todas as festas suntuosas e alegres que foram celebradas, como se
já se houvesse habituado àquela vida de atropelo, acordando com o silvo agudo da
máquina de uma fábrica, estirou os braços e bocejou com preguiça, deixando-se
ficar na cama, a olhar o papel do quarto, manchado de umidade.
— E agora, seu Anselmo? A campanha está vencida... Quererá ainda o
Patrocínio continuar com a Cidade do Rio? Com que programa? Enfim...
Levantou-se molemente, foi ao banheiro e, refrescado, vestiu-se e saiu.
A vida retomara o seu curso normal: pulsavam as grandes máquinas das
oficinas, caminhões rodavam carregados, turmas de crianças, com os sacos a
tiracolo, seguiam a caminho dos colégios. Reviviam os pregões dos vendedores
ambulantes. Nas esquinas o calçamento estava deslocado, havia pirâmides de
paralelepípedos e covas fundas; pilhas de sarrafos e panos sarapintados
atravancavam as calçadas — eram os restos dos coretos que os operários
desfaziam com pressa como bárbaros que destruíssem uma cidade. Escudos e
lanças eram levados em carroças e calceteiros andavam a reparar as ruas
esboroadas. Aqui, ali, às janelas, ainda esvoaçavam flâmulas esquecidas e
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bandeiras, muito espichadas e encolhidas, pendiam moles, como fatigadas. A cidade
tinha um ar morno de cansaço. A rua do Ouvidor, acamada de areia, era como uma
estrada fofa onde o rumor dos passos morria e toda a vida parecia decorrer, morosa
e derreada, de um bocejo cavo e lento, de tédio.
Entrando na Cidade do Rio Anselmo perguntou por Patrocínio. "Já ali
estivera, muito cedo, com um corretor", disse o gerente. Subiu. As salas estavam
ainda desarranjadas. Grandes ramos de flores murchas jaziam pelos cantos, em
abandono triste; bandeiras enchiam uma grande lata; do teto pendiam sanefas
esvoaçantes e corimbos e sobre a mesa central, entre jornais, havia uma corbeille
atufada de rosas dentre as quais passarinhos, de asas abertas, pareciam querer
fugir para o espaço luminoso.
Anselmo procurou umas tiras e, afastando velhos ramalhetes, que
entulhavam a sua mesa, pôs-se a escrever maquinalmente. Embaixo, na oficina, os
compositores chalravam. Justamente terminava a crônica e começava a rubricar o
noticiário quando Patrocínio apareceu esbaforido com o chapéu derreado à nuca.
Atirou-lhe uma palmada ao ombro e sentou-se à secretária procurando alguma coisa
nas gavetas.
— Então, José... Que vamos fazer agora?
— Heim? Escrevia, muito inclinado, de costas para o secretário.
— Qual é o teu programa?
— Que programa? Ergueu-se e, sorrindo, estendeu a mão: Dá cá um
cigarro. Perguntas qual é o meu programa?
— Sim. Conquistaste o teu ideal e agora...?
— Agora?... E, rindo, inclinou-se ao ombro do companheiro, dizendo-lhe ao
ouvido: Agora vou ali ao banco com esta letra arranjar dinheiro. Os rapazes estão lá
embaixo trabalhando e... Já almoçaste?
— Ainda não.
— Então espera-me no Globo, ao meio dia. Ia saindo, mas voltou-se: Olha,
manda limpar a redação que está imunda, ouviste?
E desceu as escadas precipitadamente.
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