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UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - MESTRADO
LEITURA E COGNIÇÃO
Sandra Regina Tornquist
A OBRA POÉTICA DE CARPINEJAR: RELAÇÕES COM REGIMES,
DOMINANTES E MODALIDADES DO IMAGINÁRIO
Santa Cruz do Sul, janeiro de 2009
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35
Sandra Regina Tornquist
A OBRA POÉTICA DE CARPINEJAR: RELAÇÕES COM REGIMES,
DOMINANTES E MODALIDADES DO IMAGINÁRIO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Mestrado Área de Concentração em Leitura
e Cognição, Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Norberto Perkoski
Santa Cruz do Sul, janeiro de 2009
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COMISSÃO EXAMINADORA
Titulares
Dr. Norberto Perkoski
Orientador
Drª. Sandra Regina Simonis Richter
Drª. Ana Maria Lisboa de Mello
Bibliotecária : Muriel Thurmer - CRB 10/1558
T685o Tornquist, Sandra Regina
A obra poética de Carpinejar : relações com regimes, dominantes e modalidades do
imaginário / Sandra Regina Tornquist ; orientador, Norberto Perkoski. - 2009.
167 f.
Dissertação ( Mestrado ) – Universidade de Santa Cruz do Sul, 2009.
Bibliografia.
1. Poesia sul-rio-grandense História e crítica. 2. Carpinejar, 1972 Crítica e
interpretação. 3. Imaginário. I. Perkoski, Norberto. II.
Universidade de Santa Cruz do
Sul. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDD: RS869.109
Àqueles que amo e que dão sentido à minha vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela força e proteção constantes.
Aos meus pais, batalhadores incansáveis e exemplos de vida, para quem as palavras não
são suficientes para expressar minha gratidão.
Ao professor Norberto, orientador exigente e exemplo profissional, pelas inumeráveis
lições com que me brindou ao longo de nossa convivência.
Ao meu irmão, cunhada, colegas, professores e amigos, pelo carinho, apoio e
compreensão.
A todos que estiveram ao meu lado durante esta caminhada, meu eterno
reconhecimento.
6
Mal assombrada não é só uma alcova,
Nem só uma casa –
O cérebro em corredores sobrepassa
Lugares concretos
.
Emily Dickinson
7
RESUMO
A presente dissertação analisa a manifestação do imaginário, enquanto origem das criações
humanas, na obra de Carpinejar, poeta gaúcho que vem alcançando crescente reconhecimento
tanto em nível nacional quanto internacional. Na realização deste estudo, considera-se a
poesia como uma forma de manifestação do imaginário responsável pela produção de um tipo
singular de conhecimento, que favorece o desenvolvimento integral do indivíduo. Os
conceitos de imaginário e imagens poéticas adotados estão embasados nos posicionamentos
de estudiosos como Gaston Bachelard, Michel Maffesoli e Gilbert Durand, sendo utilizadas
prioritariamente as caracterizações deste último, ressaltando-se a associação das imagens aos
regimes diurno ou noturno e às dominantes postural, digestiva ou cíclica. Também a proposta
de Jean Burgos quanto às modalidades de estruturação do imaginário que retoma a
classificação de Durand, com vistas à sua aplicação ao texto poético – é utilizada neste estudo,
na medida em que ajuda a esclarecer aspectos pertinentes das obras de Carpinejar. A partir
desses conceitos teóricos, é realizada a análise de poemas de sete obras do autor, publicadas
entre 1998 e 2008, ressaltando-se sua qualidade literária e apontando-se o predomínio da
dominante cíclica do regime noturno do imaginário e da modalidade de progresso em relação
ao fluir temporal, indicando a sua aceitação.
Palavras-chave: poesia, imaginário, imagens poéticas, Carpinejar
8
ABSTRACT
The present dissertation analyzes the manifestation of the imaginary, as origin of the human
creations, in the works of Carpinejar, a poet from Rio Grande do Sul State, who has been
gaining increasing recognition in the national and international levels. In the realization of this
study, the poetry is considered a way of manifesting the imaginary responsible for the
production of a singular way of knowledge, which favors the complete development of the
individual. The concepts of imaginary and poetic images adopted are based in the thinking of
scholars such as Gaston Bachelard, Michel Maffesoli and Gilbert Durand, been mainly
utilized the characterizations of the last one, highlighting the association of images to the
diurnal and nocturnal regimes and the postural, digestive or cyclic dominants. Also, the
proposal of Jean Burgos to the modalities of imaginary structuring which retakes Durand’s
classification, in view to its application to the poetic text is used in this study, in a way that
it helps to clarify pertinent aspects in the works of Capinejar. From these theoretical concepts,
the poem analysis of seven works of the author, published between 1998 and 2008, is done
showing its literary quality and pointing out the predominance of the cyclic dominant in the
nocturnal regime of the imaginary and the progress modality in relation to the time flow,
indicating its acceptance.
Key words: poetry, imaginary, poetic images, Carpinejar
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
1 IMAGINÁRIO E IMAGEM ............................................................................................. 14
1.1 Elucidando conceitos ....................................................................................................... 14
1.2 Regimes, dominantes e modalidades do imaginário .................................................... 19
2 IMAGINÁRIO E CONHECIMENTO ............................................................................. 23
3 RELAÇÕES ENTRE LEITURA, POESIA E CONHECIMENTO .............................. 32
3.1 O papel da leitura na vida do ser humano .................................................................... 32
3.2 As especificidades do texto poético ................................................................................ 35
3.3 A leitura de poesia como produção de conhecimento .................................................. 38
4 A TRAJETÓRIA POÉTICA DE CARPINEJAR E SEUS VÍNCULOS COM O
IMAGINÁRIO ...................................................................................................................... 42
4.1 As solas do sol: a escritura sob a perspectiva de um louco .......................................... 42
4.2 Um terno de pássaros ao sul: o apelo ao retorno do pai ............................................... 55
4.3 Terceira sede: a antecipação da velhice ......................................................................... 71
4.4 Biografia de uma árvore: paradoxos conciliados .......................................................... 85
4.5 Cinco Marias: o olhar feminino e múltiplo ................................................................. 103
4.6 Como no céu e Livro de visitas: uma obra dupla ......................................................... 117
4.6.1 Como no céu ................................................................................................................ 117
4.6.2 Livro de visitas ............................................................................................................. 131
4.7 Meu filho, minha filha: a visão da figura paterna ...................................................... 142
CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 160
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 165
10
INTRODUÇÃO
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
Manoel de Barros
O texto poético atua de forma envolvente, levando o leitor a um estado de fruição
diferente do propiciado por outros tipos de textos. Também o conhecimento obtido através dos
textos poéticos é de caráter diferenciado, pois ele não se deixa sujeitar a uma interpretação
fechada e restrita, em sua leitura “manifestam-se forças que não passam pelos circuitos de um
saber” (BACHELARD, 1993, p. 6). Igualmente singular é a função da poesia, que ultrapassa o
nível informativo e convida o leitor a demonstrar apurada sensibilidade e capacidade de
assimilação, o que muitas vezes não acontece quando quem não está habituado a deixar-se
levar pelo imaginário e pelas imagens poéticas apresentadas.
Fabrício Carpinejar, filho dos escritores Maria Carpi e Carlos Nejar, é um poeta que tem
se destacado no cenário da poesia nacional na atualidade. Suas produções são carregadas de
subjetividade e imagens que permitem múltiplas interpretações, mas pedem ao leitor um forte
pacto de leitura. Aquele que se deixa envolver pela poesia de Carpinejar sente que esta atinge o
imaginário, entendido aqui como “conjunto de imagens e relações de imagens que constitui o
capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 1997, p. 18).
Este é o objetivo do estudo proposto: verificar como o imaginário se manifesta na poesia
de Carpinejar, qual o regime e a dominante, conforme conceituação de Gilbert Durand, mais
fortemente explorados em suas obras, através das imagens poéticas, bem como,
complementarmente, qual a modalidade de estruturação do imaginário predominante,
considerando-se as formulações de Jean Burgos, o que se justifica pela contemporaneidade dos
estudos acerca do imaginário, pela crescente divulgação das obras do referido poeta gaúcho e
pelo ainda reduzido acervo de trabalhos desenvolvidos focando a análise de seus livros. Cabe
salientar que este estudo é uma continuidade e um aprofundamento do trabalho monográfico O
imaginário em “Biografia de uma árvore”, de Carpinejar (2004), realizado pela autora durante
o período de graduação em Letras na Universidade de Santa Cruz do Sul.
11
No primeiro capítulo da fundamentação teórica, são inicialmente apresentados os
conceitos de imaginário e imagem poética adotados, com base nos posicionamentos, entre
outros, de estudiosos como Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Michel Maffesoli e Jean
Burgos, em contraposição a outras visões existentes. A seguir, é apresentada a classificação
das
imagens poéticas feita por Gilbert Durand e posteriormente reformulada por Jean Burgos,
visando à sua aplicação específica ao texto poético. Nessa parte do trabalho serão apresentados,
portanto, os subsídios através dos quais serão analisadas as obras de Carpinejar, a fim de
verificar como o poeta explora as imagens e se é possível identificar em seu trabalho criador
uma aproximação maior com algum grupo de imagens. Cabe destacar que a análise se
embasará prioritariamente nos estudos de Durand, adotando a perspectiva de Burgos apenas de
forma complementar, para apontar os posicionamentos adotados nas obras em relação à
temporalidade, quando esse aspecto for relevante.
no segundo capítulo do estudo, aponta-se o imaginário como uma forma de
conhecimento que vem alcançando prestígio ao longo dos últimos anos, em diversas áreas do
saber, mostrando ter influência marcante mesmo em campos vistos como altamente racionais e
objetivos. Para indicar essa crescente aceitação do imaginário como fonte de saber, utiliza-se
principalmente a obra Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações e práticas
hermenêuticas (2003), composto por artigos escritos por estudiosos de renome internacional
em diversas áreas. Nesse sentido, as referências a pesquisas sobre o imaginário em diversos
campos do conhecimento vêm confirmar a pertinência da realização do presente trabalho,
ressaltando a relevância desse tema também para o estudo do texto poético.
Concluindo a fundamentação teórica, no terceiro capítulo apontam-se relações que se
podem estabelecer entre leitura, poesia e conhecimento, abordagem que se justifica uma vez
que este estudo busca mostrar também que a leitura do texto poético propicia uma forma
singular de conhecimento, que se dá, prioritariamente, pela exploração do imaginário. Assim, é
feita uma retomada do posicionamento de diversos autores quanto à importância da leitura na
vida humana e quais as formas de conhecimento que são ativadas por esse ato. Partindo dessa
visão mais geral do papel da leitura, passa-se ao texto poético em particular, visando mostrar
que este faz um uso diferenciado da linguagem, exigindo do leitor uma forma especial de
envolvimento. Sintetizando o que foi afirmado a respeito da singularidade do texto poético,
aponta-se, com base em diversos estudiosos, o destacado papel da leitura desse tipo de texto na
12
produção de conhecimento, tratando-se de uma forma especial de saber, diferenciada do
científico e objetivo, mas de grande importância para a constituição do ser.
Passando ao capítulo destinado à análise das obras do poeta, este está dividido em sete
partes, que correspondem aos sete livros de poemas publicados por ele entre 1998 e 2008,
quais sejam: As solas do sol (1998), Um terno de pássaros ao sul: poemas (2000), Terceira
sede: elegias (2001), Biografia de uma árvore: poemas abandonados (2002), Cinco Marias
(2004), Como no céu / Livro de visitas (2005) e Meu filho, minha filha (2007). Vale ressaltar
que das duas primeiras obras foram publicadas edições revistas, respectivamente, em 2005 e
2008, sendo estas últimas as utilizadas neste estudo, considerando-se o desejo do poeta de
alterar a versão original. É necessário mencionar também que o recorte feito para a análise não
inclui a antologia das quatro primeiras obras de Carpinejar, Caixa de sapatos (2003), nem as
publicações de outros tipos de texto por parte do escritor.
Após as análises individuais de cada livro com suas peculiaridades, é feita uma avaliação
do conjunto das obras, visando perceber se há o predomínio de uma forma específica de
manifestação do imaginário e quais os motivos para esse predomínio, caso constatado. Como
resultado desta dissertação, pretende-se enriquecer os estudos acerca da obra do poeta gaúcho e
apontar possíveis vínculos a serem estabelecidos entre sua poesia e o imaginário,
contemplando, assim, a proposta da linha de pesquisa Texto, Subjetividade e Memória,
desenvolvida no Mestrado em Letras - área de concentração Leitura e Cognição - da
Universidade de Santa Cruz do Sul, que tem por objetivo a articulação da leitura a processos
cognitivos e suas relações com a subjetividade e a memória, através dos vínculos com o
autoconhecimento, o imaginário e a emoção.
Vale referir também que estudos sobre o imaginário, vinculados a diferentes campos do
saber, vem ganhando espaço no Brasil nas últimas décadas, o que pode ser notado, inclusive,
pelo crescente número de grupos de pesquisa cadastrados junto ao CNPq nesta área. Nesse
sentido, merece destaque o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário, da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), oficialmente formado em 1992, mas que conta
com um grupo de pesquisadores que atua desde 1975 em pesquisas vinculadas ao tema,
constituindo-se o pioneiro nos estudos na área, no Brasil. O referido Núcleo realiza
regularmente Ciclos de Estudo, de abrangência internacional, sobre o imaginário. Além deste,
destacam-se também no país o Centro de Estudos do Imaginário, Culturanálise de Grupos e
Educação (CICE), da Universidade de São Paulo (USP), o Laboratório do Imaginário Social e
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Educação (LISE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Centro Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisa do Imaginário, da Universidade de Rondônia (UNIR), o Grupo de Estudos
sobre Imaginário e Cotidiano, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), entre outros, que
são exemplo da crescente preocupação dos pesquisadores brasileiros com o tema.
No Rio Grande do Sul, podem ser destacados os estudos desenvolvidos pelo Núcleo de
Tecnologias do Imaginário, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Imaginário (NIPI), da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, igualmente, pelo Grupo de Pesquisa Estudos
Poéticos, da Universidade de Santa Cruz do Sul, sendo que o trabalho de bolsista desenvolvido
anteriormente pela autora desta dissertação junto a este último contribuiu para a escolha do
tema aqui abordado.
Nesse momento inicial, cabe ainda apresentar algumas informações sobre o autor das
obras que serão analisadas. Fabrício Carpi Nejar, que uniu os sobrenomes de pai e mãe para
formar seu nome artístico, é formado em Jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela
UFRGS, tendo defendido a dissertação Teologia do traste: a poesia do excesso de Manoel de
Barros, em que abordou a obra do poeta mato-grossense, com a qual seus textos poéticos
mantêm vínculos de proximidade.
Atualmente, além de escritor, Carpinejar atua como jornalista e professor universitário,
tendo publicado, além das obras poéticas, um poema numa coleção de minilivros, 30 segundos
(2002), pela Era o Dito Editora, uma obra sobre a capital gaúcha, Porto Alegre e o dia em que
a cidade fugiu de casa (2004), para a série Paralelepípedos da Editora Alaúde, uma obra
infanto-juvenil, Filhote de cruz credo (2006), um livro de máximas e aforismos, Diário de um
apaixonado: sintomas de um bem incurável (2008), e dois livros de crônicas, O amor esquece
de começar (2005) e Canalha! (2008).
Além de reconhecimento no Brasil, a obra do poeta vem recebendo também crescente
aceitação internacional, confirmada pela publicação de livros em alemão, italiano e francês.
Ressalte-se ainda que poemas de Carpinejar vêm sendo publicados também em antologias e
revistas do México, Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Índia, Austrália, entre outros países,
e que a antologia Caixa de sapatos (2003) foi publicada em Portugal, pela Editora Quasi.
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1 IMAGINÁRIO E IMAGEM
1.1 Elucidando conceitos
O imaginário é caracterizado de diferentes formas ao longo da história, por diversos
pesquisadores e vertentes de estudo. Gilbert Durand, ao fazer a retomada de alguns conceitos,
aponta a extrema desvalorização do imaginário durante um considerável período histórico.
Nesse sentido, o estudioso destaca que a psicologia clássica considera o imaginário “a louca da
casa” (1997, p. 21), Alain o vê como “a infância da consciência” (p. 21) e Sartre, embora tenha
feito “um esforço para descrever o funcionamento específico da imaginação”, acaba impondo
“uma total desvalorização do imaginário” (p. 24). Já para Comte e Marx, “o imaginário e seus
trabalhos situam-se bem ‘à margem’ da civilização, tanto na idade ‘teológica’ do primitivismo
humano, quanto na superfície da insignificância superestrutural” (DURAND, 1999, p. 46). O
imaginário e suas imagens seriam, portanto, um subproduto da razão ou ainda uma
manifestação inferior da consciência, devendo ser desprezados por quem busca o conhecimento
e a verdade.
Maffesoli também reconhece que, numa visão popular, “opõe-se o imaginário ao real, ao
verdadeiro. O imaginário seria uma ficção, algo sem consistência ou realidade, algo diferente
da realidade econômica, política ou social, que seria, digamos, palpável, tangível. Essa noção
de imaginário vem de longe, de séculos atrás” (2001, p. 74-75). Percebe-se, assim, que a visão
popular tende a considerar o imaginário um sinônimo de fantasia ou ilusão.
Ainda conforme essa visão, a imaginação é considerada suspeita de ser “amante do erro e
da falsidade” (DURAND, 1999, p. 28) e a imagem é caracterizada, por estudiosos como Sartre,
um “signo degradado” (DURAND, 1997, p. 29). Nessa perspectiva, a imagem estaria numa
situação de inferioridade em relação ao signo, por não ter a mesma objetividade deste.
Michel Maffesoli, fazendo um comparativo entre a modernidade e a s-modernidade,
declara que, naquela, “o desenvolvimento tecnológico tinha, duravelmente, desencantado o
mundo. na pós-modernidade nascente, a tecnologia favorece um real reencantamento do
mundo” (2000, p. 53). Por meio das tecnologias, num primeiro momento, a humanidade
voltou-se demasiadamente para a razão e a objetividade, no entanto, mais recentemente, a
15
própria tecnologia tem contribuído para a (re)valorização da imaginação e do imaginário.
Nesse sentido, o referido estudioso destaca que atualmente se pode “falar de (re)nascimento de
um ‘mundo imaginal’, ou seja, de uma maneira de ser e de pensar perpassadas pela imagem,
pelo imaginário, pelo simbólico, pelo imaterial. A imagem como ‘mesocosmo’, isto é, como
meio, vetor, elemento primordial do vínculo social” (p. 53).
A posição adotada no presente estudo difere da visão depreciativa do imaginário e das
imagens, própria do pensamento ocidental acerca da verdade e da gica binária do verdadeiro
ou falso, e busca o “reencantamento do mundo”, referido por Mafesolli, seguindo na linha dos
estudos de pensadores como Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Jean Burgos, e, claro, do
próprio Michel Maffesoli, sendo que os posicionamentos dos referidos estudiosos serão
apresentados na seqüência.
Durand lembra que, no século XIX, Baudelaire coroou a imaginação como a “rainha
das faculdades” (1999, p. 28), mas a grande reviravolta de valores em relação ao imaginário
ocorreu no século XX, principalmente a partir do Círculo de Eranos (Ascona, Suíça), um grupo
de estudos interdisciplinar de análise multicultural, científica e filosófica, formado por autores
como Gaston Bachelard, Carl Gustav Jung, Mircea Eliade, Henry Corbin, o próprio Gilbert
Durand, entre outros, que estavam “interessados no estudo de uma hermenêutica das imagens,
dos símbolos, do sagrado e dos mitos no imaginário nas culturas” (ARAÚJO; BAPTISTA,
2003, p. 13).
Gaston Bachelard, estudioso com relevantes contribuições para essas reflexões, declara
que a imaginação é “a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, [...] a
faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não mudança de
imagens, união inesperada de imagens, não imaginação, não há ação imaginante(1990, p.
1, grifado no texto). Esse estudioso considera ainda que pela imaginação o homem “abandona
o curso ordinário das coisas” (p. 3) e atinge uma vida nova, diferente de sua realidade
cotidiana.
Cabe aqui fazer algumas ponderações sobre imaginação e imaginário. Gaston Bachelard
dedicou-se prioritariamente ao estudo da imaginação, entendida conforme o conceito
apresentado acima. Já Gilbert Durand prioriza o estudo do imaginário, embora em suas obras,
em alguns momentos, os dois conceitos se tornem muito próximos. Este pesquisador,
avançando a partir dos estudos de Bachelard, caracteriza o imaginário como “conjunto de
16
imagens e relações de imagens que constituem o capital pensado do homo sapiens, [...] o
grande denominador fundamental onde se vem encontrar todas as criações do pensamento
humano” (1997, p. 18), conforme já foi mencionado na introdução deste trabalho.
Sintetizando as caracterizações desses dois estudiosos, pode-se considerar a imaginação
como um processo e o imaginário como produto, fruto da imaginação. Neste trabalho, será
adotada essa perspectiva, sendo que o aspecto mais explorado será o imaginário com suas
imagens.
Vale destacar, nesse sentido, que a imaginação e o imaginário são ponto de origem do
conhecimento e não algo que afasta o humano do saber, como algumas correntes sugeriram no
passado. Percebe-se, assim, uma reviravolta em relação à importância atribuída ao imaginário:
de uma visão altamente depreciativa e desvalorizadora passa-se a uma outra, que o reconhece
como origem primeira da criação e do conhecimento humanos.
Ainda de acordo com Durand, o imaginário é a fonte “de onde todos os medos, todas as
esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio
anos que o homo erectus ficou em na face da Terra” (1999, p. 117). Ele se constitui,
portanto, em um dos diferenciais do humano em relação aos demais seres existentes; através
dele o homem se transporta para além de sua realidade concreta e imediata.
Maffesoli acrescenta um dado novo aos estudos quando sugere que o imaginário é
“algo que ultrapassa o individual e impregna o coletivo ou, ao menos, parte do coletivo” (2001,
p. 76). O estudioso justifica essa posição alegando que “o imaginário estabelece vínculo. É
cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser
individual” (p. 76). Mesmo que o indivíduo diga “meu imaginário”, estará sempre se referindo
a algo que o ultrapassa e que é próprio de um grupo, no qual esse indivíduo se encontra
inserido.
Embora admita que “cada sujeito está apto a ler o imaginário com certa autonomia”,
Maffesoli reforça que “na maior parte do tempo, o imaginário dito individual reflete, no plano
sexual, musical, artístico, esportivo, o imaginário de um grupo. O imaginário é determinado
pela idéia de fazer parte de algo” (2001, p. 80). Tendo por base esse posicionamento, o referido
estudioso caracteriza o imaginário como “uma força social de ordem espiritual, uma construção
mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável” (2001, p. 75). Devido a
17
essas características, o imaginário foi por muito tempo desvalorizado pelo racionalismo, que
buscava a objetividade, a concretude e a razão.
Luiz Costa Lima, retomando o posicionamento de Wolfgang Iser, traça um comparativo
entre o sentido e o imaginário, declarando que o imaginário “tem o caráter de difuso, ao passo
que o sentido (Sinn) se torna sentido por seu grau de precisão. O difuso do imaginário contudo
é a condição para que seja capaz de assumir configurações diversas, o que é sempre exigido se
se trata de tornar o imaginário apto para o uso” (1984, p. 197).
Voltando a utilizar os conceitos de Bachelard, percebe-se a relação que o estudioso
estabelece entre imaginário e imagens. Segundo ele, “em sua vida prodigiosa, o imaginário cria
imagens, mas apresenta-se sempre como algo além de suas imagens, é sempre um pouco mais
que suas imagens” (1990, p. 2). Nesse sentido, a imagem se caracteriza por um “súbito realce
do psiquismo” (BACHELARD, 1993, p. 1), representando a “dádiva de uma consciência
ingênua” (p. 4), e não fruto de um passado. É ainda Bachelard que, apoiando-se em Shelley,
afirma que a imagem permite criar aquilo que se vê (1988, p. 14).
Também relacionando imagem e imaginário, e reiterando a posição de Bachelard,
referida acima, Maffesoli frisa que “a existência de um imaginário determina a existência de
conjuntos de imagens. A imagem não é o suporte, mas o resultado” (2001, p. 76).
A pesquisadora brasileira Maria C. S. Teixeira igualmente destaca a importância do
imaginário que, segundo ela, é um mapa através do qual o ser humano e se orienta no
mundo, pois o real não passa de uma construção imaginária. Quanto à relação imaginário e
imagem, a autora vale-se dos estudos de Durand para afirmar que:
o imaginário não é um simples conjunto de imagens que vagueiam livremente na
memória e na imaginação. Ele é uma rede de imagens na qual o sentido é dado na
relação entre elas, as quais organizam-se de acordo com uma certa lógica, uma certa
estruturação, de modo que a configuração mítica do nosso imaginário depende da
forma como arrumamos nele nossas fantasias. É dessa configuração que decorre o
nosso poder de melhorar o mundo, recriando-o cotidianamente (TEIXEIRA, 2003, p.
604).
Assim, ao contrário do que afirmavam estudiosos defensores da primazia do pensamento
racional, o imaginário e suas imagens não são subprodutos da razão, muito pelo contrário, é
esta que se insere no universo imaginário.
18
Cabe aqui também uma caracterização de mbolo, no sentido que é entendido neste
trabalho, uma vez que este é um termo interpretado de maneiras muito diversas, por diferentes
estudiosos e áreas do conhecimento. Para Gilbert Durand, “a imagem simbólica é
transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para sempre abstrato. O
símbolo é, portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto; ele é a epifania de
um mistério” (1988, p. 15, grifado no texto). Um símbolo seria, assim, uma imagem que se
cristalizou, sendo reconhecida por um grupo, embora não tenha um sentido único, pois,
conforme Durand, “o símbolo remete a alguma coisa mas não se reduz a uma única coisa
(1988, p. 60, grifado no texto).
O referido autor ainda complementa seu posicionamento afirmando que “o conhecimento
simbólico é definido triplamente como pensamento para sempre indireto, presença figurada da
transcendência e compreensão epifânica” (1988, p. 24). O conhecimento simbólico é, portanto,
distinto do conhecimento racional e objetivo, mostrando-se sempre subjetivo e não totalmente
revelado, pois remete ao incognoscível, ao transcendente.
Ainda sobre o símbolo, René Alleau enfatiza que um símbolo não significa: evoca e
focaliza, reúne e concentra, de forma analogicamente polivalente, uma multiplicidade de
sentidos que não se reduzem a um único significado, nem apenas a alguns” (2001, p. 9, grifado
no texto). Reforça-se, assim, a idéia de que o símbolo se distancia do signo por não remeter a
um sentido único, direto e objetivo.
Mas longe de ver esse afastamento da razão como um fator negativo, Alleau considera o
símbolo essencial na vida humana, como se percebe pela seguinte afirmação:
A realidade não exige que a reduzamos aos limites do nosso pensamento: convida-nos
antes a fundir-nos na ausência dos seus. Assim, a palavra sempre velada do símbolo
pode precaver-nos contra o erro mais grave de todos: o da descoberta de um sentido
definitivo e último das coisas e dos seres (2001, p. 19).
Percebe-se, assim, que os símbolos estão vinculados às imagens e ao imaginário. Tanto é
assim que Durand, ao propor uma classificação das imagens, apresenta conjuntos de símbolos
para os diferentes regimes e dominantes.
19
1.2 Regimes, dominantes e modalidades do imaginário
Em seus estudos acerca do imaginário, Gilbert Durand identifica dois regimes da
imagem: o diurno e o noturno, os quais podem ser entendidos como estruturas gerais que
caracterizam um agrupamento de imagens. O estudioso declara que os regimes “não são
agrupamentos rígidos de formas imutáveis” (1997, p. 64), mas, pelo contrário, que estão
sujeitos a sofrer alterações a partir das pressões históricas e sociais. Nesse sentido, ele retoma
Bachelard, que alerta que “as imagens não se deixam classificar como os conceitos. Mesmo
quando são muito nítidas, não se dividem em gêneros que se excluem” (1991, p. 229). Cabe
ressaltar, portanto, aceitando as considerações de Bachelard e Durand, que as associações e os
agrupamentos propostos neste estudo não têm o objetivo de fazer uma classificação gida da
obra de Carpinejar, mas apenas de salientar alguns aspectos marcantes e recorrentes nas
mesmas, até porque, como afirma Octavio Paz “classificar não é entender. E menos ainda
compreender. Como todas as classificações, as nomenclaturas são instrumentos de trabalho. No
entanto, são instrumentos que se tornam inúteis quando queremos empregá-los para tarefas
mais sutis do que a simples ordenação externa” (1982, p. 17-18). É nesse sentido que se
ressalta a riqueza e a pluralidade do texto poético, que ultrapassa qualquer tentativa de
enquadramento redutor.
Durand propõe também uma tripartição funcional, relacionada aos regimes citados. Essa
tripartição consiste na associação de imagens a dominantes reflexológicas, conforme segue: a
dominante postural, "com os seus derivados manuais e o adjuvante das sensações a distância
(vista, audiofonação)" (1997, p. 443, grifado no texto), está vinculada à realeza e relacionada
com o regime diurno da imagem; a dominante de descida digestiva, "com os seus adjuvantes
cenestésicos, térmicos e os seus derivados táteis, olfativos, gustativos" (1997, p. 443, grifado
no texto), se vincula à alimentação e está associada ao regime noturno, da mesma forma que a
dominante copulativa, de caráter cíclico, "com os seus derivados motores rítmicos e os seus
adjuvantes sensoriais (quinésicos, músico-rítmicos, etc)" (p. 443, grifado no texto), que é
vinculada aos gestos rítmicos relacionados à sexualidade.
Conforme Durand, o regime diurno é o “regime da antítese” (1997, p. 67) e pode ser
definido como “trajeto representativo que vai da primeira e confusa glosa imaginativa
implicada nos reflexos posturais, até a argumentação de uma lógica da análise e do ‘fugir
daqui’ platônico” (p. 190, grifado no texto). o “regime noturno da imagem está
constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo” (p. 197). O referido pensador
20
sintetiza os dois regimes afirmando que “o pensamento solar nomeia, a melodia noturna
contenta-se em penetrar e dissolver” (p. 224), ou seja, o regime diurno caracteriza-se pela
distinção e o dualismo, enquanto o regime noturno, nas suas duas dominantes, está vinculado à
subjetividade, caracterizando-se pela reunião, conciliação e penetração.
Referente às imagens vinculadas a cada regime e dominante, o autor esclarece que:
O Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a
sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação; o
Regime Noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica, a primeira
subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e
digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do
ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do
retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos (DURAND, 1997, p. 58, grifado no
texto).
Esses conceitos de Durand servirão de base para a posterior análise das obras de
Carpinejar, sendo complementados, quando conveniente, com os estudos de Jean Burgos, que
passam a ser apresentados na seqüência, e em relação aos quais vale destacar que serão
abordados a partir da releitura feita por Ana Maria Lisboa de Mello. Essa pesquisadora faz uma
síntese bastante pertinente das contribuições de Durand, Bachelard e Burgos (entre outros
estudiosos) acerca de imaginário e poesia, o que justifica a adoção de seu trabalho como mais
uma relevante referência para este estudo.
Jean Burgos, apoiando-se nos estudos de Gilbert Durand sobre o agrupamento das
imagens em regimes e dominantes, busca desenvolver uma aplicação das teorias do imaginário
ao texto poético. Para isso, propõe uma formulação diferenciada para os regimes do imaginário
identificados por Durand, embora se valha das divisões estabelecidas por este.
Em seus estudos, Burgos considera que a imagem é “a melhor formulação possível de
uma realidade ausente da qual é inseparável e à qual atribui sentido” (1982, p. 83).
1
Segundo
esse estudioso, deve-se considerar também que, embora a imagem seja sempre uma epifania,
uma aparição nova, ela deve ser considerada dentro do contexto em que atua. Portanto, são as
linhas de força, ao longo das quais se formam e deformam as imagens, que guiam a
organização do texto poético.
Levando em conta a importância dada pelo referido estudioso ao contexto para a
compreensão das imagens, percebe-se que, quando se encontram inseridas texto poético, as
1
“la meilleure formulation possible d'une réalité absente de laquelle elle est inséparable et avec laquelle seulement
elle prend sens”.
21
imagens são potencializadas, abrindo-se para novas possibilidades de sentido. A leitura do
texto poético, portanto, não é arbitrária ou indeterminada, mas encontra-se indissociada de um
campo circunscrito pelo texto, formado pelas linhas de força que o guiam.
A partir da representatividade dessas linhas de força, também denominadas esquemas
2
,
nos poemas e considerando a classificação de Gilbert Durand para os regimes do imaginário,
Jean Burgos propõe três modalidades de estruturação dinâmica da linguagem poética, que
seriam resultantes da resposta à questão do fluir temporal, da brevidade da vida. Conforme
afirma Ana Mello, apoiando-se no referido estudioso, “as imagens estão presas aos verbos,
explicitando um movimento (ação), um processo ou estado e, desse modo, a modalidade de
estruturação do imaginário que o texto revela” (MELLO, 2002, p.101). Assim, a ação e o
contexto expressos pelos poemas, através dos verbos empregados e do posicionamento adotado
nas obras de Carpinejar se constituem em elementos que são considerados nesse estudo,
visando identificar uma possível aproximação das obras do poeta com uma das modalidades
delineadas por Burgos e retomadas por Ana Mello.
A primeira dessas modalidades seria a de “conquista do tempo”, que “responde a uma
atitude de revolta frente ao tempo cronológico e à degradação que implica” (BURGOS, 1982,
p. 156)
3
. A escrita de revolta, decorrente dessa modalidade, seria “uma escrita do espaço pleno
ou em vias de sê-lo e uma escrita que tenta se imobilizar no presente” (p. 157)
4
, impedindo,
assim a passagem temporal. Essa modalidade, por suas características, se aproxima do que
Gilbert Durand caracterizou como a dominante postural, vinculada ao regime diurno do
imaginário, a qual Ana Mello, retomando o referido estudioso, afirma ser composta por
imagens que “expressam uma luta contra a passagem temporal e contra a morte que se afigura
como um destino aterrorizante” (2002, p. 15).
Conforme a classificação de Burgos, a segunda modalidade de estruturação dinâmica do
imaginário é de negação ou “recusa do tempo”. A atitude que corresponde a essa modalidade é
a de construção e busca por refúgios bem como “a delimitação progressiva de espaços dentro
do espaço e de espaços novos dentro daqueles, como se a construção e o reforço de espaços
privilegiados, cada vez mais reduzidos, pudesse tornar finalmente possível parar a degradação
2
O conceito de esquema adotado por Jean Burgos é retomado da filosofia de Kant, a exemplo do que também é
feito por Durand.
3
“répond à une attitude de révolte devant le temps chronologique et la dégradation qu’il implique”.
4
“une écriture de l’espace plein ou en voie de l’être et une écriture cherchant à s’immobiliser dans le présent”.
22
do tempo” (BURGOS, 1982, p. 127).
5
A escrita de negação é, assim, “escrita do refúgio; escrita
do espaço conquistado [...], escrita que procura esvaziar o tempo” (p. 160).
6
A essa modalidade
se relaciona a dominante digestiva, do regime noturno do imaginário, que Ana Mello,
novamente retomando Durand, afirma caracterizar-se por imagens “de ‘negação’ do tempo,
tentando ignorá-lo, mas, ao mesmo tempo, empreendendo a busca de um espaço livre da
temporalidade” (2002, p. 15).
Por fim, a terceira modalidade de estruturação do imaginário é a de progresso: “Esta
modalidade de estruturação corresponde a uma atitude radicalmente diferente das duas
precedentes, [...] é uma atitude positiva que aceita, ou ao menos finge aceitar, o inevitável
desenrolar cronológico” (BURGOS, 1982, p. 165).
7
Por outro lado, por meio da repetição
cíclica, ela encontra uma forma de abolir a força do tempo e alcançar a eternidade. A escrita
assume o espaço do profano que é “progressivamente valorizado e sacralizado, pela
valorização mesma do tempo” (p. 166)
8
e este, em seu caráter circular, assume força criadora.
Voltando novamente aos estudos de Durand, percebe-se que essa última modalidade se
relaciona com a dominante cíclica, vinculada ao regime noturno do imaginário. Essa
dominante é apontada por Mello como sendo “de aceitação ou inserção no tempo, vendo-se a
repetição cíclica ou o fluir temporal como um eterno presente, cujas mudanças são formas de
permanecer” (2002, p. 15). Note-se como a referida autora faz uma releitura da obra de
Durand, permitindo uma aproximação mais clara entre os regimes e dominantes propostos por
este e as modalidades criadas por Burgos em relação ao imaginário e ao texto poético.
Os estudos de Gilbert Durand, com a classificação dos conjuntos de imagens em regimes
e dominantes, terá papel basilar na análise das obras poéticas de Carpinejar, que serealizada
na segunda parte deste trabalho. De forma paralela e pontual, será utilizada a proposta de Jean
Burgos para a aplicação das referidas teorias ao texto poético, retomada sob a perspectiva de
Ana Mello, a fim de revelar o posicionamento adotado em cada obra em relação ao fluir
temporal, quando isso for pertinente. Não se procederá, porém, a análise particularizada dos
verbos, uma vez que isso não está contemplado entre os objetivos deste estudo e mostra-se
extremamente complexo, considerando-se o volume de poemas analisados.
5
“la délimitation progressive d’espaces dans l’espace, et de nouveaux espaces à l’intérieur de ceux-ci, comme si
l’édification et le renforcement d’espaces privilégiés, de plus em plus réduits, devaient permettre enfin de se
mettre à l’abri du temps dégradant des horloges”.
6
“écriture de refuge; écriture de l’espace aménagé [...], écriture cherchant à évacuer le temps”.
7
“Cette modalité de structuration correspond pour sa part à une attitude radicalement différente des deux
précédentes, […] elle est attitude positive qui est, ou plutôt semble être, acceptation de l’inéluctable déroulement
chronologique”.
8
“progressivement valorisé, et sacralisé, par la valorisation même du temps”.
23
2 IMAGINÁRIO E CONHECIMENTO
Ao contrário das correntes de pensamento que opõem imaginário e razão ou
conhecimento, Durand propõe a vinculação entre esses dois campos, quando declara que “não
ruptura entre o racional e o imaginário, pois o racionalismo não passa de uma estrutura,
dentre muitas outras, polarizante própria do campo das imagens” (1988, p. 77). Essa posição é
reforçada pelo autor quando afirma que
se os homens se podem ‘compreender mutuamente através do tempo da história e da
distância das civilizações, se os mitos, as literaturas e, inclusivamente, os poemas
podem ser universalmente traduzidos, é porque toda espécie homo sapiens possui um
patrimônio inalienável e fraterno que constitui o império do imaginário. (DURAND,
1996, p. 69)
Muito além do potencial racional, no humano essa faculdade de criar e recriar a
realidade, a que Castor Bartolomé Ruiz denomina “sem-fundo humano” (2003, p. 32) e que
nada mais é do que o imaginário, que o referido autor caracteriza como “um manancial criativo
que (re)sente o mundo de forma criadora; um mistério que emerge de nós na forma de criação
[...] e que transforma o húmus insignificante da natureza em mundo humanizado” (p. 24,
grifado no texto). O imaginário seria, portanto, aquilo que torna o mundo humano diferenciado
da natureza em geral, que faz o homem viver em uma realidade outra em relação aos seres que
o cercam.
Ana Maria Lisboa de Mello, apoiando-se em estudiosos como Henri Corbin e Gaston
Bachelard, ratifica essa posição, declarando que "a função imaginária é inerente ao ser humano
e está em perene atividade, de tal forma que atua sobre os comportamentos, sobre as criações e
altera as formas de vida" (2002, p. 18). Dessa forma, se atua sobre as criações e modificações
da sociedade, então o imaginário é conhecimento, em sua origem e expressão. Não é, porém,
conhecimento trabalhado, lapidado com estudos e pesquisas, como o conhecimento científico.
Comparado a este último, o imaginário é antes, como o caracteriza Barthes "desconhecimento"
(1988, p. 101).
A poesia insere-se como manifestação dessa forma diferenciada de conhecimento, tendo
por características fundamentais "a sua plurissignificação e a sua 'atualização' em cada ato de
leitura, momento em que o imaginário do autor se entrelaça com o do leitor e o de ambos a
outros momentos da cultura e aos respectivos imaginários de outros homens" (MELLO, 2002,
24
p. 20). A criação poética tem, nesse sentido, a capacidade de despertar no leitor imagens,
evocar símbolos e estimular o desprendimento do pensamento lógico e objetivo.
Referindo-se também à poesia, como forma de manifestação do imaginário, Durand
declara que ela surge como “um modo literário que tem como resultado um reforço da
linguagem, seja através de redundâncias fonéticas e métricas, seja por ‘desintegração’ dos
grupos de palavras utilizados habitualmente” (1996, p. 42). Enriquecendo a linguagem, a
poesia, através de suas imagens, enriquece também o conhecimento humano, embora
represente uma forma de conhecimento diferenciada do saber científico e utilitário, como foi
mencionado anteriormente.
A poesia de Fabrício Carpinejar, abundante em imagens, revela esse caráter de
enriquecimento lingüístico e cognitivo por meio da transformação e reforço da linguagem,
merecendo, por isso, um estudo mais aprofundado a partir dos conceitos de imaginário
apresentados, o que será feito na segunda parte deste trabalho.
Mas não é apenas na poesia que o imaginário se manifesta e tem alcançado
reconhecimento, pelo contrário, diversas áreas de estudo têm se revelado influenciadas por ele.
Nesse sentido, cabe ressaltar o relevante papel desempenhado pelas reflexões empreendidas a
partir dos anos 30 pelo referido Círculo de Eranos, através de encontros anuais no mês de
agosto, em que se procurava:
sintetizar e harmonizar, no quadro de um fecundo e fecundante diálogo entre as
disciplinas e a partir da análise comparativa-contrastiva de práticas e procedimentos
simbólicos, teorias e métodos de inspiração antropológica, filosófica, sociológica,
histórica, psicológica e literária (ARAÚJO; BAPTISTA, 2003, p. 13).
A partir das contribuições do Círculo de Eranos, começaram a surgir e a se consolidar,
por diversas partes do mundo, vários grupos interessados no estudo do imaginário, em geral
identificados como “Centros de Pesquisa do Imaginário”, contribuindo para o desenvolvimento
de trabalhos relevantes vinculando esse tema a diferentes áreas do saber. É o que se pode
perceber, por exemplo, pela obra Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações e
práticas hermenêuticas, coordenada por Alberto Filipe Araújo e Fernando Paulo Baptista, em
que diversos pesquisadores mostram como o avanço dos estudos relacionados ao imaginário
tem enriquecido as abordagens de campos muito diversos, alguns deles por muito tempo tidos
como estritamente racionais e objetivos.
25
Conforme declara Hélder Godinho, “o imaginário [...] é, assim, lugar privilegiado para o
surgimento da significação e não só literária” (2003, p. 144). O referido autor estabelece uma
conexão entre literatura e imaginário, afirmando que “a valorização das imagens numa
determinada obra ou autor (ou mesmo época) depende do universo imaginário dessa obra ou
autor (ou dessa época) que atualiza a sistematicidade anterior numa particularização [chamada]
mitoestilo” (2003, p. 146, grifado no texto).
A mitoestilística a que se refere o autor difere da mitocrítica proposta por Durand, na
medida em que esta “procura encontrar o mito ou mitos condutores que remetem a obra para
discursificações do imaginário consagradas (mitos do herói, da alternância cíclica, etc) e que
integram a obra na memória do imaginário cultural que a antecedeu” (GODINHO, 2003, p.
146-147), enquanto aquela busca verificar como o imaginário cultural
se particularizou num corpo de significação vivo e pessoal. Para conseguir isso, deve
fazer um levantamento das imagens mais pregnantes e recorrentes de uma obra e ver
como as suas repetições isomórficas criam consistências sistemáticas que dão uma
Forma que vivifica a matéria imaginária (GODINHO, 2003,
p. 147).
Pelo estudo empreendido por Hélder Godinho, percebe-se que o imaginário é também
associado ao tempo, não é algo estanque ou imutável, mas, pelo contrário, está em constante
atualização, em conformidade com as alterações da própria sociedade. Durand revela que “os
conteúdos imaginários (sonhos, desejos, mitos) de uma sociedade nascem durante um percurso
temporal e um fluxo confuso, porém importante, para finalmente se racionalizarem numa
teatralização(1999, p. 96, grifado no texto). Assim também pequenas mudanças locais vão
repercutindo de forma a se cristalizarem e possibilitarem a formação de novos conjuntos de
imagens em nível coletivo.
Um exemplo a ser citado é o da internet e demais tecnologias da comunicação. Michel
Maffesoli, ao referir-se ao tema, destaca que “o imaginário é alimentado por tecnologias. A
técnica é um fator de estimulação imaginal. [...] o imaginário, enquanto comunhão, é sempre
comunicação. Internet é uma tecnologia da interatividade que alimenta e é alimentada por
imaginários” (2001, p. 80). Assim, se por um lado as tecnologias da comunicação agem sobre o
imaginário, elas também são fruto do imaginário, ocorrendo, assim, uma forma de troca, ou ao
menos uma forma diferenciada de propagação deste.
Retomando a relação entre literatura e imaginário, vale destacar que, de acordo com
Godinho,
26
no estudo de uma obra literária, deve ser dada toda a atenção [...] ao estudo do jogo
das imagens que a obra põe em relevo através do seu sistema de significação interno.
As imagens devem ser entendidas como elementos do real (casa, aldeia, mulher, etc) a
que o jogo do universo imaginário (sistema interno) coerência numa significação
consistente ao longo da obra que, devido a esse jogo consistente e sistemático, as abre
para um excesso de sentido pelo qual a obra se abre ao lugar-outro que a torna lugar
de “aparecimento” da dimensão estética e, no caso da obra literária, a torna literária
(2003, p. 144, grifado no texto).
Quando assim compreendidas, as imagens de uma obra literária “dizem uma ausência e
vão assim obrigando à procura de um significante ou de um sentido ausente, movendo para
além delas próprias, obrigando o silêncio a dizer-se” (GODINHO, 2003, p. 144, grifado no
texto). Dessa forma, acrescenta-se ao sentido primeiro da imagem um outro, que se revela
no conjunto da obra e é o que a torna mais rica, mais significativa.
A referida autora Ana Maria Lisboa de Mello considera que “a pluralidade de leituras
possíveis do texto” poético se justifica pelo fato de que “as forças que determinaram a
organização da escrita e garantiram o seu desenvolvimento progressivo [...] são selecionadas e
revificadas de acordo com as estruturas do imaginário do leitor” (2002, p. 99).
9
A autora adverte, porém, como também o faz Burgos, que a leitura não é
indeterminada”, uma vez que é guiada por esquemas ou linhas de força que geram a associação
entre as imagens; portanto, “o leitor atualiza as potencialidades do texto” (MELLO, 2002, p.
99). A palavra esquema, mencionada acima, é entendida neste contexto como “uma
generalização dinâmica e afetiva da imagem” (p. 98), sendo retomada a partir dos estudos de
Kant, o que, aliás, foi referido anteriormente em relação ao emprego que Durand e Burgos
dão a esse termo. Conforme defendem Burgos e Mello, no texto poético, são os esquemas que
“conduzem o processo de organização e funcionamento textual” (MELLO, 2002, p. 99), em
outras palavras, são os referidos esquemas que fazem com que a interpretação dos poemas não
seja totalmente vaga e imprecisa.
Relacionando o imaginário a outra área do saber, no caso, a Psicologia, Yves Durand,
discípulo do seu homônimo Gilbert Durand, defende que “a psicologia – tal como o imaginário
(por definição) está relacionada aos processos simbólicos que constituem uma especificidade
dos seres humanos” (DURAND, Yves. 2003, p. 170). Segundo o referido autor,
9
Quando Ana Mello refere o “imaginário do leitor”, considera-se, neste estudo, o imaginário coletivo de que o
indivíduo se encontra impregnado, observando-se o posicionamento de Maffesoli, anteriormente citado.
27
o imaginário e a psicologia têm em comum o fato de se basearem simultaneamente
nestas duas grandes categorias que são o biológico e o cultural. Qualquer teoria do
imaginário se inscreve (mais ou menos explicitamente) entre um substrato biológico
(pulsional, reflexológico, por exemplo) e um ambiente simbolizável (sociocultural e
igualmente ‘natural’) e nenhuma abordagem psicológica de um comportamento
poderá ocultar o seu duplo enraizamento biológico e cultural (p. 170-171).
Relativo à proximidade que existe entre imaginário e cultura, pode-se afirmar que esta
não se reduz àquele e vice-versa. Nas palavras de Maffesoli, o imaginário, em relação à
cultura, “tem certa autonomia. Mas, claro, no imaginário entram partes de cultura. A cultura é
um conjunto de elementos e de fenômenos passíveis de descrição. O imaginário tem, além
disso, algo de imponderável. É o estado de espírito que caracteriza um povo” (2001, p. 75).
Nesse sentido, Maffesoli dá a entender que o imaginário ultrapassa a cultura na medida em que
tem um “algo mais”, que não se consegue definir ou explicar.
Armando B. Malheiro da Silva e Jean-Pierre Sironneau, em artigo intitulado “Imaginário
e história”, apontam que o historicismo, baseado no racionalismo ocidental e na tentativa de
uma “reconstrução do passado num sentido positivista, ‘objetificando’ o motivo da
investigação histórica” (2003, p. 157), desvaloriza o passado. Assim sendo, o historiador da
atualidade
atento às manifestações do imaginário humano e social está agora obrigado a proceder
a releituras dos documentos, ainda que considerados exauridos, submetendo-os a uma
vasta e renovável bateria de perguntas, como também passa a valorar fontes
habitualmente negligenciadas os textos literários, a iconografia, o cinema, a tradição
oral, etc. Dado que o imaginário está presente em toda a parte conclui-se facilmente
não existir uma única fonte dispensável ou inutilizável! (SILVA; SIRONNEAU, 2003,
p. 165).
Note-se, portanto, que os estudos do imaginário trouxeram uma nova visão para a
história, que tende a tornar-se mais rica e complexa a partir da reflexão sobre o imaginário das
diferentes épocas, sendo que a literatura, por tanto tempo quase que totalmente desconsiderada,
passa a ser vista como rica fonte de dados para compreender os acontecimentos históricos.
Assim, reforça-se a idéia anteriormente posta de que as obras literárias também carregam a
marca do imaginário de uma época e de um povo específicos e devem ser analisadas levando
em conta esse aspecto.
Refletindo sobre a relevância do imaginário para a formação da criança e, portanto, para
a pedagogia, Bruno Duborgel frisa que a pedagogia do imaginário opõe-se “à pedagogia
saturada pelas exigências do imperialismo positivista e à pedagogia do ‘vácuo’ que, ligada à
ideologia difusa da espontaneidade criativa, condena o imaginário infantil a extrair das suas
28
próprias reservas os recursos do seu desenvolvimento” (1992, p. 298). Em defesa da pedagogia
do imaginário, o autor destaca que,
se é verdade que a imaginação é figuração do sentido, produção [...] de um entrançado
de onde se designam e se ajustam reciprocamente a ordem dos ‘deuses’, a ordem dos
sonhos, a ordem das coisas, do universo, dos seres e do homem, não é menos verdade
que a interpretação desse sentido e os atos da sua elaboração devem incitar uma
pedagogia do imaginário (DUBORGEL, 2003, p. 215).
Através dessa nova forma de encarar a formação da criança, esta é estimulada e
“habituada a cultivar a produtividade do sentido figurado que define talvez o dinamismo do
psiquismo imaginante” (DUBORGEL, 2003, p. 216), contrapondo-se, portanto, à formação
castradora da expressão infantil e que impõe a repetição do modelo adulto. Uma criança que é
estimulada a valorizar a produção ao nível do imaginário possivelmente se tornará também um
adulto mais aberto para a riqueza e multiplicidade das imagens, possibilitando a superação das
restrições impostas pelo pensamento positivista.
Abordando a “sociologia do imaginário”, o estudioso das áreas de Antropologia e
Sociologia, Jean-Pierre Sironneau, destaca que esta “coloca o imaginário e o mito no centro da
constituição da ordem social e conduz o historiador ou o sociólogo a não se contentar com um
empirismo demasiado superficial na observação das sociedades” (2003, p. 233). Para tanto, é
necessário “estabelecer uma correspondência entre as instituições e a base mítica que preside à
sua elaboração e à sua manutenção” (SIRONNEAU, 2003, p. 233). Dessa forma, compreende-
se que a criação de instituições tem uma origem não totalmente racional e objetiva, tendo por
base algo mais profundo, não claramente descritível, que é o imaginário.
Também Cornelius Castoriadis destaca a presença do imaginário nas mais diversas
instituições, declarando:
Além da atividade consciente de institucionalização, as instituições encontraram sua
fonte no imaginário social. Este imaginário deve-se entrecruzar com o simbólico, do
contrário a sociedade não teria podido “reunir-se”, e com o econômico-funcional, do
contrário ela não teria podido sobreviver (1995, p. 159, grifado no texto).
Quanto à relação do simbólico com a existência das instituições, é ainda Castoriadis
quem afirma que estas “não se reduzem ao simbólico, mas elas podem existir no simbólico,
são impossíveis fora de um simbólico em segundo grau e constituem cada qual sua rede
simbólica” (1995, p. 142). Por questão de clareza, cabe salientar que Castoriadis utiliza o termo
instituição de forma bastante abrangente, referindo-se por meio dele a “uma organização dada
29
da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião” (1995, p. 142), para
citar apenas alguns exemplos dados pelo próprio autor.
Outra área em que os estudos do imaginário têm se mostrado relevantes é a política.
Escrevendo sobre o tema, Jean-Jaques Wunenburger, Diretor Associado do Centre de
Recherches sur l'Imaginaire et la Rationalité da Universidade de Bourgogne, declara que o
imaginário é “um fator dinâmico que pode facilitar o projeto político do viver-bem juntos”
(2003, p. 240).
Da mesma forma que a criação de instituições não pode ser entendida como algo
totalmente racional, a institucionalização do poder político também revela surgir “antes de
mais como um jogo coletivo, um teatro, que gira em torno de uma entidade invisível,
imaterial” (WUNENBURGER, 2003, p. 243). Assim, “em vez da vontade nua de um homem
em particular, o imaginário político exibe uma escala de autoridades humanas hierárquicas, e
nenhuma delas pode considerar-se um começo absoluto que lhe é negado no invisível” (2003,
p. 243).
No referido artigo, Wunenburger aborda ainda as imagens de povo, de autoridade
política, de pátria, entre outros, que constituem o imaginário dos cidadãos nos mais diversos
Estados em torno do mundo, revelando a grande importância desse fator não-racional na
constituição das sociedades. Sem esse aspecto imaginário, que leva à obediência das normas e
à organização do grupo, não haveria sentimento de patriotismo, de defesa da nação e,
finalmente, de pertencimento a um grupo.
Na conclusão do seu artigo, Wunenburger adverte que “a falta de racionalidade facilita as
manipulações cínicas, mas a desculturação simbólica, característica das nossas sociedades
contemporâneas, corre o risco de suscitar investimentos selvagens, como demonstra a
exploração do imaginário dos povos por parte dos totalitarismos” (2003, p. 262). Assim, nota-
se a necessidade de equilíbrio entre as funções ditas racionais e o imaginário, a fim de
possibilitar o desenvolvimento harmonioso das sociedades.
O mesmo autor também escreve um artigo sobre “Imaginário e ciências”, áreas
aparentemente opostas, uma vez que a ciência, desde o início da Idade Moderna, é considerada
por muitos como fruto exclusivo dos processos racionais e de métodos rigorosos. No entanto,
Wunenburger mostra que isso não é verdadeiro, uma vez que
30
as imagens intervêm em cada etapa do itinerário científico, demonstram fatos, jogos
de hipóteses, modelações e interpretações, e finalmente difusão de resultados da
pesquisa. A imagem não é apenas tolerada enquanto complemento, mas pode, de
acordo com determinadas condições, participar no próprio trabalho de construção de
uma verdade (2003, p. 266).
Percebe-se que, ao contrário do que pregavam (e ainda pregam) o extremo racionalismo e
a objetividade científica, algo de não palpável e quantificável sempre esteve presente nos
estudos, guiando pesquisas, possibilitando a criação de hipóteses, enfim, estimulando os
pesquisadores a desenvolverem suas atividades, reforçando, assim, o posicionamento
anteriormente apresentado e defendido neste trabalho, de que “o racionalismo não passa de
uma estrutura, dentre muitas outras, polarizante própria do campo das imagens” (DURAND,
1988, p. 77).
Wunenburger aponta ainda para o fato de que “a história das ciências contemporâneas
permitiu igualmente assistir a uma reorganização da própria racionalidade científica, que inclui
doravante modos de pensamento, lógicas que eram consideradas não-científicas e que eram
mesmo criadas por conhecimentos poéticos” (WUNENBURGER, 2003, p. 277). O autor
acrescenta ainda que esta “evolução redistribui as categorias e as fronteiras e lugar a uma
racionalidade complexa onde imaginário e racionalidade não são de imediato antinômicos”
(p. 277).
Cabe citar, por fim, as relações estabelecidas por Carlos H. do C. Silva entre imaginário e
filosofia. O autor esclarece que mesmo “o que pareça um discurso travejado pelo mais austero
formalismo lógico logo se manifestará pleno de hiatos e ressaltos intuitivos ou duma
construtividade que apela para tal presença do imaginário ao nível das formas reiterar-se-ia,
esquemáticas, - do pensamento” (SILVA, C. H. C. 2003, p. 316, grifado no texto).
Compreende-se, portanto, que por trás do discurso filosófico sempre um “embrião”
imaginário que lhe dá origem e que o sustenta.
O estudioso considera também que, “no âmbito da experiência pensante, o imaginário
serve ainda de cifra para uma essencial decifração, justamente das situações-limites, dos
limiares fronteiriços que abrem a reflexão filosófica para do que se pensava serem os seus
mesmos limites” (SILVA, C. H. C. 2003, p. 331-332, grifado no texto).
Concluindo sua reflexão acerca das relações entre imaginário e filosofia, Carlos Silva
admite que fica “por pensar o tempo [de] latência, o ajuste rítmico do imaginário célere e
31
emocionalmente muito vibrátil com as delongas, as hesitações e os tempos de duração lenta do
pensamento” (2003, p. 335, grifado no texto). Inegável é, porém, que aquele (o imaginário)
atua de alguma forma sobre este (o pensamento), e isso já vinha sendo demonstrado através das
referências feitas anteriormente a trabalhos vinculados a outras áreas do conhecimento.
Dessa forma, percebe-se o imaginário como algo inerente ao humano, que afeta e
transpassa todos os setores da vida deste, não podendo ser apreendido na sua integralidade,
uma vez que não é algo palpável, mas, como propõe Maffesoli, “uma atmosfera”, uma força
atuante, “perceptível, mas não quantificável” (2001, p. 75).
32
3 RELAÇÕES ENTRE LEITURA, POESIA E CONHECIMENTO
3.1 O papel da leitura na vida do ser humano
A leitura é tema de constantes e variados estudos e reflexões na contemporaneidade e tem
se revelado cada vez mais como um processo aberto e plural. Ao contrário do que se defendia
no passado, percebe-se atualmente que os textos não possuem um sentido único que deve ser
decodificado igualmente por todos os leitores proficientes, mas são diferentemente
interpretados por cada leitor.
Através da obra Tipos de texto, modos de leitura, as pesquisadoras Graça Paulino, Ivete
Walty, Maria Fonseca e Maria Zilda Cury contribuem para a compreensão da pluralidade do
ato de ler. Elas abrem a primeira parte do livro fazendo uma reflexão sobre a etimologia do
verbo ler, explicando que, “numa primeira instância, ler significava enumerar as letras; numa
segunda, significava colher e, por último, roubar” (PAULINO et al, 2001, p. 11-12). É
enquanto subversão das normas que a leitura interessa ao presente estudo, pois é quando
alcança esse nível que a leitura se torna um processo plurissignificativo e o leitor consegue
interpretar e significar criativamente a obra que lê. Em outras palavras, a leitura como ato de
roubar “vai se construir à revelia do autor, ou melhor, vai acrescentar ao texto outros sentidos,
a partir de sinais que nele estão presentes, mesmo que o autor não tivesse consciência disso”
(p. 12-13).
Luiz Antônio Marcuschi também defende a leitura como atividade criativa:
ler e compreender um texto são vistos como processos ativos, criativos e
reconstrutivos. Envolvem uma atividade tanto decodificadora como criadora, em que
se vai de uma sugestão textual a universos construídos com bases nas experiências e
vivências socioculturalmente determinadas (MARCUSCHI, 2001, p. 11).
Um texto é, portanto, uma base, a partir da qual cada leitor “constrói” sua leitura
particular. Essa afirmação é especialmente válida para os textos literários, embora não deixe de
ser aplicável a textos pretensamente diretos e objetivos como os veiculados em jornais, revistas
e informativos em geral.
33
Ângela Kleiman, referindo-se ao caráter individual que assume a leitura, destaca que
durante o ato de ler são ativados os conhecimentos lingüístico, textual e de mundo do leitor. A
ativação desses conhecimentos é essencial para que se possa “chegar ao momento da
compreensão, momento esse que passa despercebido, em que as partes discretas se juntam para
fazer um significado” (2004, p.26). É importante notar que as partes discretas a que se refere
Kleiman são individuais, pois cada indivíduo possui um domínio diferenciado da língua, e
principalmente uma vivência, um conhecimento de mundo que é singular e irrepetível. É por
isso que se pode afirmar que cada leitura de um texto é única e, conseqüentemente, o número
de interpretações corresponderá ao de leitores, ou melhor ainda, de leituras do texto.
Essa posição é confirmada na já referida obra Tipos de texto, modos de leitura, em que as
autoras afirmam que, “ao ler, um leitor ativa seu lugar social, suas vivências, sua biblioteca
interna, suas relações com o outro, os valores de sua comunidade” (PAULINO et al, 2001, p.
22).
Cabe então abordar um pouco mais detidamente os principais elementos que intervêm na
atividade de leitura. Na composição do chamado conhecimento prévio, entram em jogo vários
tipos de saber, podendo-se considerar como o primeiro deles o “conhecimento lingüístico, isto
é, aquele conhecimento implícito, não verbalizado, nem verbalizável na grande maioria das
vezes, que faz com que falemos português como falantes nativos” (KLEIMAN, 2004, p. 13).
Nele estão contidos o conhecimento das regras da língua, a pronúncia, o vocabulário e seu uso.
Por isso, ele é fundamental no processamento do texto.
Além do conhecimento lingüístico, também o conhecimento textual é indispensável no
ato de leitura. Este se refere aos “diversos tipos de texto, e de formas de discurso” (KLEIMAN,
2004, p. 17) que são usados pelo autor de acordo com os objetivos que este pretende alcançar
por meio de seu texto. O leitor deve ser capaz de perceber essas diferenças no discurso, se
quiser compreender o que lê. Essa idéia é confirmada por Kleiman quando afirma: “Quanto
mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto maior sua exposição a todo tipo de texto, mais
fácil será sua compreensão” (p. 20).
Uma terceira forma de conhecimento prévio relevante no ato de leitura é o conhecimento
de mundo, “que pode ser adquirido tanto formalmente quanto informalmente. O chamado
conhecimento de mundo abrange desde o domínio que um físico tem sobre sua especialidade
até o conhecimento de fatos como ‘o gato é um mamífero’” (p. 20). Esse conhecimento de
34
mundo, adquirido durante toda a vida, é acessado no ato de ler. Kleiman explica esse processo
da seguinte maneira: “Para haver compreensão, durante a leitura, aquela parte do nosso
conhecimento de mundo que é relevante para a leitura do texto deve estar ativada, isto é, deve
estar num nível ciente, e não perdida no fundo de nossa memória” (p. 21, grifado no texto).
Sintetizando o papel do conhecimento prévio na leitura, Kleiman destaca que ele é
“essencial à compreensão, pois é o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe
permite fazer as inferências necessárias para relacionar diferentes partes discretas do texto num
todo coerente” (p. 25, grifado no texto).
A inferência, mencionada acima, é outro tipo de conhecimento que precisa ser produzido
durante o ato de leitura para que ocorra a compreensão ou interpretação. Dell’Isola afirma que
a capacidade de gerar informações novas a partir de informações dadas, que caracteriza a
inferência, é parte essencial do processo de leitura e compreensão de textos, pois a informação
é parcialmente dada de maneira explícita por eles, “grande parte da informação textual é
obtida apenas por implicação. Essa parte implícita de representação é a inferência” (2001. p.
51).
As inferências, portanto, não são algo presente no texto, ocorrendo, pelo contrário, na
mente do leitor, durante a leitura. Nesse sentido, “o leitor traz para o texto um universo
individual que interfere na sua leitura, uma vez que extrai inferências determinadas por
contextos psicológico, social, cultural, situacional, dentre outros” (DELL’ISOLA, 2001, p. 44).
Também o imaginário, anteriormente caracterizado, contribui para o processo inferencial
e, por conseqüência, para a atividade interpretativa, na medida em que alimenta e é alimentado
pela cultura. Por outro lado, é importante notar também como a leitura age sobre o imaginário
e todo o conjunto de conhecimentos do homem. A leitura desempenha um papel relevante na
constituição do imaginário, na medida em que permite a formação de novas imagens que irão
compô-lo e enriquecê-lo, possibilitando ao leitor ultrapassar as barreiras impostas pelas
condições sociais ou culturais.
A leitura também “é conhecimento, tanto se a tomarmos na perspectiva do processo,
como na da informação obtida” (OLMI; PERKOSKI, 2005, p. 15). Assim,
o ato da leitura, em sentido amplo, é visto como indispensável a todo o indivíduo que,
pertencendo a uma civilização letrada, reivindique o direito à cidadania. É preciso ler
35
os jornais, a sinalização de trânsito, os documentos legais, os textos religiosos, etc.
Ler, nessa situação, é tarefa cotidiana, pois quase nada mais se faz sem a leitura.
Quem não está excluído dos bens culturais que a sociedade contemporânea tem a
oferecer (p. 15).
Dessa forma, mais uma vez, fica clara a riqueza da leitura, sua importância, que é ao
mesmo tempo social, que, como afirmado acima, é essencial para a convivência na
sociedade contemporânea, e individual, pois traz conhecimentos e benefícios que repercutem
individualmente em cada leitor.
Norberto Perkoski, focando especificamente a leitura do texto poético, apóia-se em
Gaston Bachelard para afirmar que a leitura deste tipo de texto produz “fenômenos
entrelaçados à imagem, à imaginação e ao devaneio. Tais fenômenos geram um conhecimento
que ultrapassa a racionalidade, relacionando-se a uma apreensão outra, atingindo o
inconsciente e a emoção do leitor” (2005, p. 120). Essa visão sobre a poesia será retomada
mais detalhadamente na seqüência, na abordagem do texto poético e suas especificidades.
Muito ainda poderia ser mencionado a respeito da leitura e seu papel essencial na vida do
homem, mas os aspectos citados são suficientes para demonstrar o quanto ela se constitui num
processo rico e plurissignificativo, devido aos conhecimentos, experiências e vivências
individuais com que cada leitor se apropria de um texto e a conseqüente multiplicidade de
conhecimentos que ele produz.
3.2 As especificidades do texto poético
O texto poético é de natureza diferenciada de outros textos, não somente devido à sua
estrutura, mas também devido ao seu trabalho singular com a linguagem. Gilbert Durand como
foi citado, considera o texto poético responsável por uma inovação e renovação da
linguagem. Ressalta ainda que diferenças entre a verdade poética e a verdade científica e
utilitária, e que “a gica do poeta não é a do sico, ela é, talvez, mais lógica do ser do que
do conhecer” (1996, p. 17).
Paul Valéry, enfocando a relação da poesia com a linguagem, afirma que “a Poesia é uma
arte da Linguagem; certas combinações de palavras podem produzir uma emoção que outras
não produzem, e que denominamos poética(1999, p. 197, grifado no texto). Nesse sentido, o
36
que torna um texto poético não é prioritariamente sua forma, mas suas imagens, seu ritmo.
Octavio Paz reforça essa idéia ao declarar que “ritmo, imagem e significado apresentam-se
simultaneamente numa unidade indivisível e compacta: a frase poética, o verso. O metro, pelo
contrário, é medida abstrata e independente da imagem” (1982, p. 15).
Para o referido estudioso, mesmo sem apresentar compromisso com a verdade científica
e objetiva, a poesia é “conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é
um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro” (1982, p. 15).
Octavio Paz apresenta ainda conceitos pertinentes sobre o que seja a poesia e o poema.
Uma vez que já foi referida a compreensão do autor sobre a poesia, merece ser citada agora sua
caracterização de poema: “Um poema é uma obra. [...]. O poético é poesia em estado amorfo; o
poema é criação, poesia que se ergue” (1982, p. 17). Quando assim entendido, “o poema não é
uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem. O poema é um
organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância são a mesma coisa”
(p. 17).
Ainda utilizando as palavras de Octavio Paz e sintetizando a compreensão do autor sobre
o que sejam o poema e a poesia, vale mencionar as seguintes afirmações: “o poema é via de
acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão
tempo, ritmo perpetuamente criador” (1982, p. 31).
Esse caráter inovador e libertário da poesia também foi percebido e explorado por outros
estudiosos, como é o caso do já citado Gaston Bachelard, que defende que ela surge como “um
fenômeno de liberdade” (1989a, p.11). Para ele, “deve-se reconhecer que a poesia é um
compromisso da alma” (p. 6) e que as imagens poéticas que a compõem são “dádiva de uma
consciência ingênua” (p. 4), conforme já se mencionou anteriormente, quando se definiu o
conceito de imagem adotado neste estudo.
Quando entendida dessa forma, “a imagem vem antes do pensamento” (BACHELARD,
1993, p. 4, grifado no texto). A formação de imagens seria, assim, um fenômeno
essencialmente criativo e criador, anterior ao processo de racionalização. É isso que Bachelard
destaca ao afirmar que “a imagem poética ilumina com tal luz a consciência que é vão
procurar-lhe antecedentes inconscientes” (1988, p. 3). Note-se que o estudioso frisa sempre a
37
anterioridade da imagem e, conseqüentemente, da imaginação, em relação ao pensamento
racional.
Durand assume posicionamento semelhante, também defendendo que a imagem antecede
o pensamento. Segundo ele, “as heranças de palavras são heranças de imagens” (DURAND,
1996, p. 136). A palavra seria a racionalização da imagem e, portanto, apenas se apresentaria
depois desta.
Vera Lucio Felicio também corrobora com esse pensamento, destacando que "a
imaginação funciona como a condição da possibilidade de conhecimento" (1994, p. 5). A
autora frisa que "ciência e poética são 'inversas' e 'complementares', isto é, a constrição
racional tem como contrapartida a 'felicidade da imagem' no onirismo literário" (1994, p. 28,
grifado no texto). O ser humano é constituído pela necessidade de ambos: poesia e razão,
estando eles vinculados, apesar de serem aparentemente opostos.
Tomada como fenômeno anterior ao pensamento racional, “a imagem diz o indizível: as
plumas leves são pedras pesadas. que retornar à linguagem para ver como a imagem pode
dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer” (PAZ, 1982, p. 129). As
imagens poéticas possuem, assim, uma lógica diferente daquela do conhecimento
racionalizado, uma lógica em que as palavras assumem um sentido novo. Voltando a referir
Bachelard, cabe mencionar que ele considera, em relação a esse aspecto, que “a imagem
poética, em sua novidade, abre um porvir de linguagem” (1988, p. 3).
É novamente Octavio Paz quem destaca que a poesia realiza uma atividade paradoxal: “a
experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, a palavra a exprime. A imagem
reconcilia os contrários, mas essa reconciliação não pode ser explicada pelas palavras exceto
pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo” (1982, p. 135). Sintetizando o uso que o poema faz
da linguagem, Paz considera que “o poema é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser
até o extremo” (1982, p. 135).
Também focando a relação da poesia com a razão, Jorge Larossa lembra que “nos
diálogos platônicos, a poesia é constantemente recriada e interpelada pela razão, mas o curso
do pensamento deixa-se também constantemente interferir e desviar pela poesia” (2004, p.
121). Ela é, portanto, uma criação que realiza um constante jogo entre o racional e algo que o
38
ultrapassa: o imaginário. Esse jogo é, aliás, próprio do humano, como já foi demonstrado
anteriormente.
Huizinga, referindo-se igualmente à relação entre poesia e razão, destaca que aquela
afasta-se um pouco desta, revelando-se algo “para além da seriedade, naquele plano mais
primitivo e originário a que pertencem a criança, o animal, o selvagem e o visionário, na região
do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso” (1971, p. 133). Adaptando a posição de
Huizinga ao que se defende nesta dissertação, pode-se sintetizar a afirmação do estudioso
considerando que a poesia se manifesta em espíritos mais predispostos a aceitar a ação do
imaginário, afirmação que encontrará eco na análise que será apresentada posteriormente.
É, pois, considerando o caráter criativo e (re)criador da poesia, através das imagens
poéticas, que se propõe o estudo da obra poética de Carpinejar, enfocando-se prioritariamente o
ponto de vista do leitor, o que justifica a abordagem feita sobre a leitura. Por fim, antes de
passar à análise das obras, cabe dedicar algumas palavras à relação entre a leitura do texto
poético e o conhecimento.
3.3 A leitura de poesia como produção de conhecimento
Com base no que foi apresentado até aqui sobre a leitura e a poesia, percebe-se que os
dois conceitos estão vinculados ao conhecimento. O que se propõe, agora, é fazer uma reflexão
sobre o caráter desse conhecimento, com base nos posicionamentos de diversos estudiosos do
tema.
Ana Mello, retomando Friedrich, afirma que "a linguagem poética realiza tarefa
paradoxal: expressa e, ao mesmo tempo, encobre o significado" (2002, p. 49). Esse
posicionamento aproxima-se daquele de Paz, apresentado anteriormente, e revela que é ao
deixar o significado nem totalmente dado, nem inteiramente encoberto, que a poesia mobiliza o
imaginário do leitor, pois lhe deixa espaço para interferir e criar seu próprio sentido para cada
poema.
Barthes destaca a importância do texto literário em geral, dentro do qual se inscreve o
poético, assinalando que, se todas as “disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma,
39
é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento
literário” (1979, p. 18). Assim, a poesia, com suas imagens, seria origem de conhecimentos, da
mesma forma que o imaginário o é, conforme já foi mencionado.
A pesquisadora Vera Lucia Felicio defende essa posição, considerando que "duas vias
de acesso aos homens e às coisas: de um lado, a ciência e a técnica, através de uma 'cidade
científica', de outro, a da poesia e da imaginação, que nos libertam das referências da memória,
a fim de descobrir homens e coisas” (1994, p. 3, grifado no texto).
Abordando o caráter libertário da poesia, e da literatura como um todo, em relação à
linguagem, Barthes destaca que ela proporciona “um logro magnífico, que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” (1979, p. 16).
Com essa afirmação, o autor reforça a posição anteriormente citada de Durand, bem como a de
Versiani, para quem a poesia é “renovação lingüística” (2003, p. 51) e, por isso, gera
conhecimento.
Retomando mais uma vez as considerações de Bachelard sobre a poesia, cabe destacar
aqui que para esse estudioso “o poema é essencialmente uma aspiração a imagens novas.
Corresponde à necessidade essencial de novidade que caracteriza o psiquismo humano” (1990,
p. 2, grifado no texto). A poesia não é, portanto, produto supérfluo, pelo contrário, mostra-se
essencial à vida humana e realiza tarefa singular: “coloca o homem fora de si e
simultaneamente o faz regressar ao seu ser original: volta-o para si. [...] A poesia é entrar no
ser” (PAZ, 1982, p. 138).
Bachelard explica em suas obras a ação que o poema, através das imagens poéticas,
produz sobre o leitor, utilizando os termos repercussão e ressonância para referir os diferentes
momentos dessa ação. Num primeiro momento, segundo o autor, ocorre a repercussão, a
imagem poética atinge a alma do leitor, toca-o profundamente. Em seguida, produzem-se as
ressonâncias, que seriam uma espécie de efeito gerado pela repercussão dispersando-se “nos
diferentes planos da nossa vida no mundo” (BACHELARD, 1993, p. 7).
Nesse sentido, “é depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias,
repercussões sentimentais, recordações do nosso passado. Mas a imagem atingiu as
profundezas antes de emocionar a superfície” (1993, p. 7). Sobre o par repercussão-
ressonância, autor declara ainda que
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a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência. Na
ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A repercussão
opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso ser. A multiplicidade
das ressonâncias sai então da unidade de ser da repercussão. Dito de maneira mais
simples, trata-se aqui de uma impressão bastante conhecida de todo leitor apaixonado
por poemas: o poema nos toma por inteiro. [...] A exuberância e a profundidade de um
poema são sempre fenômenos do par ressonância-repercussão (p. 7).
Luiz Costa Lima, apoiando-se em Schlegel, considera que "o princípio de toda poesia é
"suspender (aufheben) o curso e as leis da razão previsora (vernünftig denkenden Vernunft) e
devolver-nos à bela confusão da fantasia, ao caos originário da natureza humana" (LIMA,
1984, p. 101). O caos referido pelo autor, porém, não é algo negativo, mas o fruto da criação
ainda não amputada pela razão, a criação livre, no sentido amplo da palavra.
Durand, referindo-se especificamente à poesia contemporânea, define-a “como uma re-
evocação pelo verbo de um ‘sentido’, senão mais puro, pelo menos mais autêntico, conferido
às palavras do grupo social” (1996, p. 50). O pensador reforça, assim, aquilo que foi afirmado
pouco, defendendo que a poesia usa a linguagem de forma criativa e inovadora, renovando-
a, atribuindo-lhe novas significações, bem como possibilitando ao leitor o contato com
imagens que toquem o imaginário, enriquecendo-o.
A poesia de Carpinejar se insere nessa realidade, dando sentidos novos a palavras de uso
corriqueiro e gerando combinações inusitadas. Em Carpinejar, como em muitos poetas
contemporâneos, sucede, como o afirma Durand e como também foi mencionado neste
trabalho, “um outro regime do imaginário, mais 'noturno', onde se reanimam, pela consciência
do século XX, a intimidade da libido, o regresso ao equilíbrio, ao repouso, antídoto vital da
nossa civilização trepidante” (1996, p. 51, grifado no texto). A poesia seria, em certa medida, o
complemento ou a contrapartida necessária para a sociedade demasiadamente voltada à razão e
à objetividade. Nesse sentido, cabe citar ainda uma vez uma afirmação de Bachelard, para
quem o leitor, ao predispor-se a aceitar a singularidade do texto poético com suas imagens,
“conhecerá a imaginação em sua essência, porque a viverá em seu excesso, no absoluto de uma
imagem inacreditável, signo de um ser extraordinário” (1988, p. 197). Esse excesso, essa
superação da medianidade mostra-se, assim, essencial quando se refere o texto poético. O
próprio Carpinejar destaca, em uma de suas obras, que a poesia (e a literatura como um todo)
necessita de conteúdos que superem a normalidade, porque “As pessoas que são justas, /
discretas, comportadas, / netos ao colo, casos arquivados, / não rendem literatura. / A impureza
emociona.” (2004, p. 43).
41
Diante dos posicionamentos apresentados, é possível perceber que o texto poético se
constitui em uma rica fonte de conhecimento, o qual não é meramente reprodutivo, mas, pelo
contrário, é criador e criativo, permitindo a inovação e a renovação da linguagem, e mostrando-
se fundamental na constituição do ser.
É considerando esse papel fundamental desempenhado pela poesia que se realiza na
seqüência a análise da obra de Carpinejar, frente a qual é importante que o leitor assuma seu
papel como responsável por um ato recriador, através do qual ele significa a multiplicidade de
imagens poéticas presentes em cada poema.
42
4 A TRAJETÓRIA POÉTICA DE CARPINEJAR E SEUS VÍNCULOS COM O
IMAGINÁRIO
Para analisar as obras poéticas de Carpinejar, é fundamental considerar algumas
particularidades das mesmas, como a existência de um fio condutor, uma espécie de tema em
cada livro, o que faz com que seus poemas estejam de certa forma interligados, formando, no
conjunto, uma espécie de história, ou seja, nas obras um fundo narrativo, que ressalta o
sentido dos poemas no todo, embora eles também possam ser lidos e interpretados
isoladamente. Percebe-se, inclusive, que algumas obras dialogam entre si, demonstrando
pontos de contato, como o sujeito lírico, que é o mesmo em dois livros, e datas que se repetem.
Cabe mencionar ainda o trabalho com paratextos, como epígrafes, e textos em prosa
introduzindo os poemas, o que também remete ao gênero narrativo e revela que a relação entre
prosa e poesia é forte nas obras de Carpinejar, e que seu trabalho poético é diferenciado.
A análise das obras buscará apontar características que se destacam na trajetória poética
de Carpinejar, identificando imagens que se repetem, temas recorrentes, posicionamentos
marcantes, visando reunir, assim, elementos que permitam a associação predominante de cada
um dos livros com uma das dominantes e um dos regimes propostos por Durand, bem como,
com uma das modalidades identificadas por Jean Burgos.
4.1 As solas do sol: a escritura sob a perspectiva de um louco
A obra que lança Carpinejar no cenário da poesia nacional traz, em seu título, um
paradoxo, que aproxima o mais rasteiro, aquilo que toca o chão, ou seja, a sola, ao que está
mais elevado, o sol. Essa união inusitada prepara o leitor para o universo à parte que o livro irá
instaurar, convidando-o a firmar um pacto de leitura e aceitação dos acontecimentos, mesmo
que sejam incoerentes. Assim, Carpinejar, como bem expressa Antonio Carlos Secchin, coloca
o leitor “à beira (ou no âmago) de um universo expressamente vocabular” (In: CARPINEJAR,
2005b, primeira orelha do livro). Note-se, que o poeta inova na linguagem, fazendo cumprir,
desde o título, um dos papéis do texto poético, conforme exposto na revisão de literatura desta
43
dissertação, função essa que é o emprego e a combinação criativos das palavras, afastando-as
de seu uso e significado habituais.
Na epígrafe geral do livro, Carpinejar mostra seu ponto de vista sobre o significado e a
função das histórias: “Conto histórias / não para fazer dormir / meus filhos. / Conto histórias /
para acordá-los” (2005b, p. 5). Explicita-se nesses versos a visão do poeta sobre a função da
literatura, como não sendo de simples distração, mas, pelo contrário, de formação do ser. Sua
poesia vai revelar essa visão, gerando inquietação no leitor, “acordando-o” para a pluralidade
de imagens poéticas e fazendo-o refletir sobre o que elas possam lhe insinuar ou revelar.
Se o título do livro é paradoxal e perturbador, no sumário encontra-se outra surpresa, a
inversão da ordem, com a indicação das páginas de início das dez partes da obra, denominadas
“colinas”, começando de trás para frente, ou seja, da cima colina, que inicia na página 117,
para a primeira, que inicia na página 11, o que remete à idéia de inversão da ordem natural. Ao
apontar primeiro o que encerra a obra e, seguindo a seqüência, deixar para o final o que a
inicia, o poeta pode sugerir uma aproximação entre os extremos, como ocorre em um ciclo, em
que início e final estão fundidos, indistinguíveis.
O sumário, porém, não apenas indica as partes de que está composta a obra, antes e após
essa indicação consta a expressão “SOLARIZAÇÃO DOS MORTOS”. Assim, toda a estrutura
de abertura do livro leva a uma associação com a dominante cíclica do regime noturno do
imaginário, pois também a idéia transmitida pela expressão citada revela uma tentativa de
conciliação dos contrários, própria da referida dominante, uma vez que a morte, popularmente
relacionada com o apagamento da luz ou o escurecimento, nesse caso está vinculada com o
astro mais representativo da claridade: o sol.
Quanto à organização interna da obra, cabe ressaltar que na página de abertura de cada
parte encontra-se a indicação de que colina se trata, além do título da mesma e, em quatro
delas, também epígrafes. Após a página de abertura, em todas elas uma prosa poética,
uma espécie de introdução aos poemas, que traz informações sobre o sujeito lírico,
apresentadas por um observador externo não identificado. Assim, na parte introdutória da
primeira colina é apresentado Avalor, que é o eu-poético da obra e que voltará a aparecer em
produção posterior de Carpinejar. Ele vai sendo caracterizado ao longo do livro, revelando-se
um sujeito atípico. Aqui vale destacar que através do eu-lírico se reforça a idéia de que a obra
não tem compromisso de se assemelhar à realidade, ao mundo exterior a ela. O poeta cria um
44
mundo à parte e o leitor é chamado a aceitar as especificidades desse espaço e de seus sujeitos
para penetrar nos poemas.
Cabe apresentar algumas características do eu-poético, reveladas ao longo do livro, antes
de iniciar a análise do conjunto de poemas no seu todo. Nesse sentido, a descrição inicial que
se tem de Avalor é que “aparentava idade para morrer, carecia da idade de viver sua morte”
(CARPINEJAR, 2005b, p. 13). Na expressão “viver sua morte”, se percebe um recurso que
será recorrente nessa obra e em outras de Carpinejar, o paradoxo, a contradição extrema que o
sujeito lírico busca conciliar, aproximar, o que se percebeu também no título e no sumário.
Esse recurso ajuda a envolver o leitor, tirando-o da monotonia, do cotidiano. O impacto
causado pela exploração de oposições na forma de paradoxos, antíteses e oxímoros é elemento
essencial das obras do poeta, constituindo-se em uma das marcas de sua poesia, como ficará
claro pelas análises que seguem.
Quanto à origem de Avalor, se destaca que ele se tornou um desconhecido aos seus:
“Suas palavras perderam o uso. Estranho entre os seus e íntimo entre os estranhos” (p. 49).
Essa referência ao sujeito lírico sugere que ele não esteja no uso de suas faculdades racionais
consideradas normais, o que vai se confirmando em colinas posteriores; na sexta, por exemplo,
ele aparece procurando “fiador para alugar sua memória e assim absolver as mornas mágoas. A
lembrança afeminava o trajeto. Despossuía o mundo. Não cumpria a morte que desejava,
porque o desejo estava cumprido desde que partira” (p. 73).
Através desses comportamentos, ele vai revelando não estar preso ao mundo da razão.
Seu próprio nome indica que é alguém desprovido dos valores da sociedade normal, pois não
expressa nada, mas ao mesmo tempo está carregado de significação sobre a essência desse
indivíduo. Note-se que o neologismo “avalor” difere de desvalor, pois, enquanto este último
remete ao negativo, à perda de valor, aquele sugere a ausência de qualquer tipo de valor, seja
ele positivo ou negativo.
10
Ao definir o nome do eu-lírico, Carpinejar o faz de forma a indicar
por esse elemento que o sujeito da obra não é comum, o que se constitui em motivo para
fazer o leitor se preparar e atentar para o inusitado que irá encontrar nos poemas.
Na nona colina, a inadaptação de Avalor ao mundo da razão torna-se evidente:
10
O nome Avalor remete, também, a um cavaleiro da obra Menina e moça ou saudades, de Bernardim Ribeiro.
Ele, Avalor, aparece na terceira parte dessa novela, em capítulo intitulado “Amores de Avalor (segundo amigo)
por Arima”.
45
Desconhecia o vexame da crença. Não responderia ao apelo externo. Aprendeu a se
deslocar parado. Nos dados biográficos, nunca largou o hospício. E os apontamentos
listavam apenas o vegetar dos cílios e a gradação dos antibióticos. Ocupado pela
inércia, descobriu o talento de vadiar a verdade (p. 107).
Enfim, revela-se que o sujeito rico vivia num hospício, era, portanto, um louco, o que
viria a justificar suas atitudes atípicas e até os versos desconexos da obra. Esse fato permite a
associação entre ele e o sergipano Arthur Bispo do Rosário, que passou 50 anos internado
como esquizofrênico, mas cujas obras alcançaram posteriormente reconhecimento
internacional. Essa associação entre Avalor e Arthur Bispo do Rosário será reforçada
posteriormente, quando analisada a obra Biografia de uma árvore.
Pelo trecho da nona colina citado acima, percebe-se que Avalor une os opostos, como
aparece em “aprendeu a se deslocar parado”
11
, afirmação que revela a união da imobilidade
com o deslocamento. Essa imobilidade ligada ao movimento pode ser associada à leitura,
através da qual o leitor, valendo-se das imagens poéticas presentes na obra que lê, pode superar
as restrições espaciais e construir outros mundos sem sair do lugar. Bachelard ressalta, nesse
sentido, que “é pela superação da realidade que a imaginação nos revela nossa realidade”
(1991, p. 280, grifado no texto).
Por fim, na décima colina parece estar sugerida a morte de Avalor em: “O relógio ficou
cego às 23:30” (CARPINEJAR, 2005b, p. 120). Esse trecho, que encerra a prosa poética de
introdução aos poemas, sugere o fim da caminhada errante do eu-lírico, por sua morte, apesar
de ele lutar contra esta e não reconhecer-se nessa situação, como fica claro em: “Poderia ser
depositado em qualquer fenda, que continuaria estrangeiro em sua morte” (p. 119). Talvez aí se
justifique a citada expressão que abre o encerra o sumário: “Solarização dos mortos”, como
tentativa de não aceitar o obscurecimento, as trevas e impor a claridade como forma de
resistência.
Pela abordagem feita, fica claro que Carpinejar se vale de um sujeito atípico para criar
poemas carregados de imagens inusitadas, rompendo com o uso padrão da linguagem e
acrescentando significados novos às palavras, por suas combinações pouco convencionais. Na
seqüência, serão apresentadas algumas dessas combinações e se buscará apontar nas imagens
poéticas uma possível preponderância de uma das dominantes e um dos regimes do imaginário,
11
É possível estabelecer uma associação entre a expressão “deslocar parado” com o seguinte trecho de um poema
de Manoel de Barros, poeta cujas obras revelam ter influência na produção poética de Carpinejar: “Mano Preto
perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado? (BARROS, 1997, p. 11).
46
conforme a proposta de Gilbert Durand. Igualmente, se buscará verificar se a obra se inscreve
prioritariamente em alguma das modalidades de escrita definidas por Jean Burgos.
Pelo título e pelo sumário, já referidos, a hipótese inicialmente adotada é que a
dominante mais explorada seja a cíclica, vinculada ao regime noturno, que irá transparecer
também no comportamento do eu-lírico, referido na prosa poética de abertura da primeira
colina, em que ele está em diálogo com Carítias, um barqueiro que, pelo contexto, pode ser
associado a Caronte, o famoso barqueiro dos mortos da mitologia grega. Nessa conversa,
Avalor assume: “Minha personalidade estava indecisa entre o cavanhaque e a barba.” (p. 13),
afirmação que, associada a outras, como a de que ele estava “afogado no vôo do naufrágio.” (p.
13), ou ainda que percebia “Nos peixes, a garganta das aves.” (p. 13), revela uma mistura de
elementos distintos que é incorporada pelo sujeito rico, podendo-se depreender seu desejo
de aproximar as diferenças, vencendo oposições aparentemente irreconciliáveis.
A união de elementos contrários é, aliás, uma marca de Avalor; como já insinuado
anteriormente, transparecendo também no apelo ao deslocamento na imobilidade, como
indicado em relação à casa: “Todos percebiam sua descida parada.” (p. 13). Esse paradoxo
pode remeter à sua relação com a família, uma relação que ao longo da obra irá se revelando
como desgastada, fria, o que é sugerido pelo trecho citado, em que por trás da aparente
estabilidade se revela o dissolvimento.
Sobre sua personalidade, nos poemas da primeira colina, Avalor põe em dúvida sua
própria existência ao afirmar: “Dorme que ainda não sou real. / Não te mantenho acordada.” (p.
15). Assim como põe em dúvida sua concretude, ele também se declara alimentado pelo que
está latente, pelo que não se concretizou: “Vivo das palavras / que não me recordo inteiras. /
Recolho o vazio das garrafas, / artefando asas / com os restos de mel e cevada.” (p. 16). O
vazio, o esquecido e o ilógico são os focos de interesse do eu-poético, valorizando aquilo que o
ser humano em sua normalidade tenderia a ignorar. Nesse sentido, cabe relembrar a afirmação
de Huizinga, para quem a poesia se encontra justamente para além da racionalidade e da
seriedade convencionais.
Também vale ressaltar que a incompletude a que se refere o eu-lírico é uma marca do ser
humano, que vive do que ainda não alcançou, do que não está feito. O homem é um ser em
construção constante, do qual Avalor é um modelo levado ao extremo, causando, talvez por
isso, a resistência alheia, sendo até mesmo considerado louco, por não saber medir, ou melhor,
47
controlar racionalmente a intensidade de sua busca. A própria linguagem poética é prova dessa
incompletude constante, pois ela consegue ultrapassar o discurso cotidiano e atribuir sentidos
sempre novos, plurais e inesgotáveis às palavras.
A singularidade do sujeito lírico o leva a afirmar que percebe o mundo de forma distinta,
o que está sugerido no verso: “Não coincidimos / os olhos.” (p. 18). A diferença em relação ao
padrão, o faz sentir-se solitário, excluído: “Tua elegância me isolava.” (p. 19). Apesar de seu
comportamento atípico, ele também é afligido por questionamentos universais, como o sentido
da existência: “A vida é uma trégua / ou o fim dela?” (p. 19). Conforme já observado acima em
relação ao sentimento de incompletude, talvez seja justamente por levar seus questionamentos
ao extremo que ele seja julgado como louco.
Retomando o título da obra, Avalor declara: “As solas do sol / pisavam os olhos” (p. 21),
versos que remetem ao poder dos raios do sol de fazerem fechar-se os olhos de quem se atreve
a olhá-lo. Trata-se de uma agressão sem dor, que concilia os contrários da imponência do sol
que subjuga a tudo e a todos à sua luz e calor, mas que é igualmente nção, pela claridade e
aquecimento que gera. A imagem apresentada pelo eu-lírico reflete um sentimento de
sofrimento, de opressão, podendo-se depreender que ele se sente subjugado por algo que lhe é
superior.
Na prosa poética que introduz os poemas da colina intitulada “Adega do sono”, Avalor
aparece invertendo a ordem usual de pensamento: “Ele deixou de pensar no relevo que pisava
para pensar nas pisadas que criavam o relevo.” (p. 27), o que indica que, por suas ações, ele
cria o seu próprio caminho, não se deixando moldar pelo que lhe é externo. A relação das
pisadas com o relevo pode ser entendida como a vivência de qualquer humano, no sentido de
que ele tem a dupla possibilidade de se adaptar ao mundo em que vive ou então de criar o
mundo, através de seus atos. Considerando o que foi defendido anteriormente sobre o papel da
poesia na vida humana, pode-se afirmar que esta contribui para permitir que o leitor, a exemplo
de Avalor, seja capaz de criar o seu espaço, pensar nas pisadas com as quais molda o relevo
que toca.
As excentricidades do sujeito lírico o levam a afastar-se ou sentir-se afastado daqueles
que o cercam, principalmente de uma figura feminina que pode ser identificada como a
companheira dele, para quem afirma: “Sempre teu corpo / cumprindo a falta do meu.” (p. 30).
Percebe-se um afastamento, a disparidade entre os dois, fazendo com que eles se vejam como
48
estranhos: “Um rosto conhecido / usou o desconhecido / do teu rosto.” (p. 31). A oposição
expressa nesse poema revela que, apesar dos traços familiares, a mulher é uma desconhecida
para Avalor, ele nunca a conheceu realmente, pois a aparência exterior mostra-se insuficiente
para ele, que deseja ver o íntimo, aquilo que a move.
Passando à terceira colina, encontra-se um paradoxo logo no título: “Neve da chama”.
Gelo e fogo são unidos, causando estranhamento no leitor. E a união de opostos continua na
epígrafe, de autoria de Mário de Sá-Carneiro: “Manhã tão forte / que me anoiteceu.” (p. 33). A
apresentação impactante dessa terceira parte da obra reforça no leitor a predisposição a sair do
lugar-comum e a aceitar o aparentemente desconexo, o que, aliás, vai acontecendo
progressivamente desde o início da obra, na medida em que se percebe que Avalor é um
indivíduo marcado por atitudes pouco racionalizadas, dominado pela função imaginária. Vale
recordar aqui o que foi afirmado no referencial teórico sobre a relação do imaginário com as
diferentes áreas do saber, em que se notou como diferentes estudiosos demonstram haver a
necessidade de equilíbrio entre as funções imaginárias e as racionais. O sujeito lírico, porém,
abre mão desse equilíbrio para apresentar uma profusão de imagens.
Na prosa poética dessa colina se refere o encontro de Avalor com um ser semelhante a
ele, tomado por uma forma diferenciada de pensamento, e conciliando, quando não
confundindo, diferentes sensações e sentimentos. Esse indivíduo é também fisicamente atípico:
“um homem sem as mãos, debruçado nas rochas. Raspava o afresco com os cotovelos.
Permanecia vivo por acidente, obcecado em silenciar a pintura. Ele dizia: ‘Estou surdo de tanto
ver.’” (p. 35).
Nos poemas dessa colina, cabe destacar dois versos que revelam a atitude de Avalor
frente ao mundo e a percepção do poder deste: “O mundo me decifrava / enquanto eu me
escondia.” (p. 41). Por mais que ele tente se ocultar, o mundo acaba revelando-o. Essa
afirmação pode ser associada ao que foi declarado anteriormente em relação à opressão
causada pelo sol ao eu-lírico, levando a entender que a imensidão externa o oprime e sufoca.
Essa atitude é oposta à visão geral de que é o homem quem desvenda o mundo. Avalor,
contrariando mais uma vez o usual, é que se sente explorado por aquilo com que convive;
insignificante diante da grandeza do mundo, ele não encontra meios de resistir à observação e
ao julgamento externos.
49
A desvinculação e a tentativa de ocultação ao mundo externo aparecem ainda em outro
momento em que o eu-lírico se insinua estranho também a si mesmo: “Estava longe do corpo /
para me sentir em casa. / Pátria é onde não estamos. / Eu cresci mais do que podia. / O
excedente se fez exílio.” (p. 43). Ao declarar que cresceu demais, ele possivelmente não se
refere ao corpo físico, mas ao seu estado psicológico que saiu do controle e foi, como afirma,
exilado, por ser considerado nefasto. Invertendo o sentido da palavra “pátria”, ele torna
familiar o que é desconhecido ou está ausente, distorcendo os sentidos convencionais.
Também a quarta colina apresenta uma oposição no título: “Solidão a duas vozes”,
remetendo possivelmente a como o eu-poético se sente frente às pessoas próximas,
especialmente sua companheira, que é a figura mais freqüentemente referida por ele na obra.
Na verdade, a expressão que título a essa colina indica que ambos estão sós, apesar de
aparentemente juntos, não há união, nem cumplicidade. Nesse sentido a imagem poética
permite fazer aquilo que declara Octavio Paz, ou seja, dizer o indizível (1982, p. 129), pois
dificilmente se demonstraria de forma mais intensa o sentimento de afastamento e solidão que
o casal sente lado a lado.
Na prosa poética que abre a quarta colina, a antítese volta a aparecer logo no início: “O
pampa é uma montanha sem descida.” (CARPINEJAR, 2005b, p. 49). A referência ao pampa
pode ser um indicativo da origem do eu-poético e também uma influência do imaginário
coletivo de que está impregnado o poeta, uma vez que Carpinejar é do sul e em diversas de
suas obras posteriores o lugar mencionado também será o pampa.
A imagem da árvore é explorada nessa quarta parte do livro, sendo referida na abertura,
pela expressão “explosão da árvore” (p. 49), e também nos poemas seguintes. No primeiro, seu
tamanho é comparado a algo que é engolido: “Obedecia a rapidez do sangue. / Antes de
apodrecer a luz, / engolia a altura de árvore.” (p. 51). Usualmente, a imagem da árvore é
associada à elevação, à verticalidade, devido à sua altura, mas ela é também um ser que une os
diferentes elementos desde as profundezas da terra, por suas raízes, passando pela superfície,
por seu tronco, e chegando às alturas, por seus galhos, folhas e frutos. No caso do verso citado,
pode-se interpretar que a imponência da árvore (ou do ser que esta representa) é destruída por
um gesto do eu-poético, como se este ignorasse ou se contrapusesse aos apelos racionais de seu
interlocutor.
50
No poema seguinte torna-se mais clara a identidade da pessoa-árvore referida por Avalor;
trata-se novamente da mulher amada: “Eu te vi dormindo ao meu lado, / suspiro da planura./
Eu lia tua nudez dormindo / mais do que o livro.” (p. 52). O ato da leitura se faz presente nesse
poema, revelando que não apenas livros podem ser lidos, mas também as pessoas, por seus
gestos e atitudes. Assim, o eu-lírico explora a mulher amada enquanto esta dorme, buscando
decifrá-la, conhecer sua história, numa possível tentativa de compreensão e superação do
afastamento.
A relação com a árvore aparece ainda em “Balançava os ouvidos / em tua altura de
árvore. / Faria rédeas da forca / em tua altura de árvore.” (p. 54). Ao comparar a altura da
mulher com a de uma árvore, ele pode estar tentando estabelecer uma distinção entre eles
(Avalor e a amada), ressaltando a imponência, o racionalismo e a superioridade dela, frente à
fragilidade dele.
Nos poemas da quinta colina, “Salmos do fogo”, Avalor faz uma rememoração da
infância, em que volta a citar o sul, reforçando a idéia anteriormente expressa sobre sua origem
e a possível expressão do imaginário de que se encontra impregnado o poeta. Nas recordações
aparecem personagens da história do eu-lírico: “O avô deixava a manada de bois / confinada ao
humor / das frutas.” (p. 63); além do avô, também o irmão aparece nas lembranças, sendo
referido no seguinte poema: “Às costas do tanque, / o irmão derretia / formigas no pote de
manteiga. / Ficavam encadernadas, / rezas empilhadas / na cera da igreja.” (p. 64). A
brincadeira deste irmão de Avalor pode ser associada à de outra criança, esta referida no Livro
sobre nada, de Manoel de Barros, em que se ensina que “para infantilizar formigas é pingar
um pouquinho de água no coração delas.” (1997, p. 29), o que revela a intertextualidade
presente no livro de Carpinejar.
As memórias de infância se sucedem ao longo dos poemas, com certo ar de nostalgia,
numa recordação criativa e pouco atenta aos fatos tais como realmente aconteceram, revelando,
em certa medida, a aceitação da passagem temporal por parte do eu-poético, aproximando-se,
assim, da modalidade de escrita do progresso, conforme a classificação de Jean Burgos. Mas,
como este estudioso declara, a aparente aceitação da passagem temporal, traz em si uma forma
de superação da mesma, pela circularidade do tempo, expressa no verso: “Minha infância ainda
é cedo.” (CARPINEJAR, 2005b, p. 61). Ao rememorar acontecimentos da infância, o sujeito
lírico os atualiza, trazendo o verbo “ser” para o presente, superando a distância temporal que o
afasta daquele período.
51
Apesar das recordações de infância sugerirem certa nostalgia daquela época, na sexta
colina, que tem por tulo “Moleiro”, o sujeito rico irevelar que existem ressentimentos
ainda não curados. Assim, não apenas as lembranças agradáveis são atualizadas, mas também
as dores atravessam o tempo e chegam ao presente.
Vale referir, em relação ao texto de abertura dessa colina, uma demonstração de que o
eu-lírico se encontra afastado da realidade, existindo no limite entre a esfera terrena e a morte,
conforme sugere o encontro que tem com o “guardião em vigília na fronteira das coisas
inominadas” (p. 73). Esse encontro remete à idéia de travessia da vida para a morte e a fala
final desse guardião é um indicativo nesse sentido: “Aqui não como atravessar sem negar a
morte. Nunca vi ninguém morrer conformado.” (p. 73). Esse comentário do guardião aponta
uma atitude de revolta frente à passagem temporal, que corresponde à modalidade de conquista
do tempo, proposta por Jean Burgos em relação à linguagem poética. Note-se, porém, que a
atitude de Avalor é diferenciada, pois ele concorda e até mesmo insiste em atravessar a
fronteira da morte, num gesto que se aproxima muito mais da modalidade do progresso, em
que a passagem cronológica é aceita e existe a tentativa implícita de superar a finitude da vida
através da circularidade do tempo.
A excentricidade marca o eu-lírico desde a infância, sendo que sua bagagem de vivências
também é diferenciada: “Eu me resguardava / debaixo da cama. / Juntava os carretéis, / a caixa
de sapatos, / as cinco marias, / os bonecos de madeira. / Minha mala estava pronta / desde a
infância.” (p. 77).
12
Por esses versos, percebe-se que o eu-poético esperava desde criança uma
viagem, que pelo contexto da obra é a da morte. São significativos nesse sentido os elementos
que ele põe na mala para levar consigo: objetos infantis, em geral considerados inúteis para o
adulto.
Vale ressaltar igualmente que aquilo a que se chama na obra de memórias de infância de
Avalor são na verdade criações de sua mente na idade adulta, rememorações sem
compromisso com a fidelidade aos fatos. As experiências da infância são “repintadas” com as
cores com que ele o mundo como indivíduo adulto, embora desprovido das funções
racionais ditas normais.
12
Dois dos elementos citados nesses versos tornam-se, posteriormente, nomes de obras de Carpinejar: “Caixa de
sapatos”, que vem a ser a antologia das quatro primeiras obras do poeta, publicada em 2003, e “Cinco Marias”,
título atribuído à quinta obra, publicada no ano seguinte.
52
O primeiro dia da semana título à sétima colina e, na prosa poética que abre
“Domingo”, Avalor sua avó, numa situação que remete à idéia de encontro em outro plano,
após a morte. Eles não se falam, não se tocam, ela, aliás, nem o neto, o que pode levar à
conclusão de que o encontro não passou de uma invenção da mente dele ou então que ele
conseguiu atravessar a fronteira da morte, referida na colina anterior, e agora reencontra a avó
fora da vida. O próprio retorno à infância, pelas recordações, pode significar a travessia da vida
para um espaço fora do tempo que é a morte. Nesse espaço o eu-poético pode rever, à sua
maneira, suas vivências do plano terreno, mostrando uma superação do tempo, que aproxima a
experiência apontada pelos poemas da modalidade de progresso.
Assim, na sétima colina, são novamente lembranças da infância que predominam,
aparecendo nesses poemas várias pessoas do círculo familiar do eu-lírico e situações absurdas,
como: “As garças capinavam / as águas. // A saliva das aves / movia o motor / do riacho.” (p.
85). Nota-se como o poeta aproveita a figura que criou em sua obra para expor associações
desprovidas de verossimilhança, aceitas pelo leitor devido ao pacto firmado na leitura e por ter
como emissor desses versos um eu-poético que não tem pleno domínio das funções intelectuais
e recria memórias à sua maneira.
Passando à oitava colina, intitulada “Osso à mostra”, encontra-se a epígrafe de autoria de
Eugenio Montale, poeta italiano de reconhecimento internacional: “São necessárias muitas
vidas / para fazer uma outra.” (p. 91). Ela aponta para o enfoque desta parte da obra, que é a
relação entre vida e morte. No texto inicial, Avalor aparece questionando: “Terei que morrer
para reaver a vida em mim? / Ou me afastar como um indigente para ser lembrado por aquilo
que não fiz?” (p. 93). Nesses questionamentos revela-se a aproximação dos contrários por parte
do eu-lírico, sugerindo a necessidade de realizar uma ão para atingir o seu oposto, atitude
que se aproxima das características vinculadas à dominante cíclica do regime noturno do
imaginário. Igualmente, ao sugerir que a morte propicia o retorno da vida, o questionamento de
Avalor indica a proximidade de seu comportamento à modalidade de progresso ou aceitação do
tempo, pois ele aceita o desenrolar temporal, mas busca meios de superá-lo, conforme propõe
Burgos. Assim, a morte como caminho para reaver a vida e o afastamento para proporcionar
lembranças que não correspondem à realidade são perturbações que afligem o sujeito lírico que
se encaminha para a morte. Aliás, notam-se nas diferentes colinas idas e voltas da vida para a
morte e vice-versa, reforçando a idéia de circularidade, de eterno retorno.
53
Mais adiante, Avalor aparece sendo levado para a noite, associada imaginariamente à
morte. No entanto, o valor da escuridão é invertido, transformando-se em luminosidade: “O
escuro é luz agradável. O excesso de escuro é manhã.” (p. 93). Essas frases podem ser
associadas ao imaginário popular cristão de que após a morte corporal a alma é conduzida a
uma região de luz, o paraíso celeste. A inversão de luz e escuridão reforça novamente a
aproximação dos opostos, criando imagens impactantes, que convidam ao abandono do
pensamento corrente e ao mergulho no universo imaginário.
A proximidade da morte desperta também a religiosidade, manifesta por possíveis
orações feitas pela vida de Avalor, o que está sugerido nos versos: “As velas se aproximavam /
para xingar / e devolver / as promessas.” (p. 102). Note-se, porém, que Avalor altera o sentido
das velas de súplica a xingamento, buscando impor seu desejo. Enquanto o mundo externo luta
pela salvação da vida do eu-poético, este não demonstra maior resistência à morte, pelo
contrário, parece aceitá-la, uma vez que é inevitável, sentindo-se insultado por aqueles que
torcem por sua recuperação e salvação.
A nona colina tem por título “Cedo demais para avisar um sonâmbulo” e seu texto inicial
mostra Avalor confinado a um hospício, o que simboliza a perda acentuada de suas funções
intelectuais. Aos olhos do mundo, ele estava reduzido praticamente a um estado vegetativo,
mas fazia uso de suas criações imaginárias para “se deslocar parado”, conforme mencionado na
parte inicial desta análise.
Os poemas dessa colina refletem a confusão mental de Avalor. Assim, o primeiro traz a
seguinte imagem da noite: “A noite urinava / nas paredes / do quarto.” (p. 109). A escuridão
ganha atributos humanos e vem invadir o quarto do eu-lírico; uma vez que este não pode mais
sair para explorar a noite, esta é que invade o espaço dele, invertendo as posições de ator e
cenário. Note-se que através da criação dessas imagens, ele supera a imobilidade que lhe foi
imposta e consegue usufruir da liberdade imaginária.
Avalor também contraria o senso comum de buscar o céu e a eternidade, afirmando:
“Abandonar o paraíso, / a única forma / de não esquecê-lo.” (p. 113). Essa declaração remete à
velha máxima de que o homem valor às coisas depois que as perde. Viver no paraíso
seria, com o passar do tempo, uma rotina que geraria a desvalorização desse espaço precioso.
Cabe notar, mais uma vez, como o discurso do sujeito lírico se aproxima da idéia da morte,
54
que o paraíso, conforme a cultura cristã, é o espaço para uma vida após a experiência terrena,
destinado àqueles que praticam o bem.
Por fim, na décima colina, intitulada Olaria”, são apresentados aqueles que,
possivelmente, foram os últimos momentos do eu-lírico. Na prosa poética inicial, descreve-se
que “Avalor caminhou em si o que não suportaria fora. Queimou os atalhos da vivência. [...]
Encontrou-se no extravio. Podia ser depositado em qualquer fenda que continuaria estrangeiro
em sua morte.” (p. 119). Com essa descrição, confirma-se que ele realmente é um não-
adaptado à sociedade racionalista, suas buscas e anseios são diferenciados. Ao sentir-se
estrangeiro em sua morte, ele nega uma crença imaginária que associa o enterro à volta à
origem, o que reforça, de certa forma, sua diferenciação ao restante da humanidade, invertendo
também a busca pela morte manifesta anteriormente. Assim, nesse momento, a atitude de
Avalor é diferenciada e se aproxima da dominante postural e da modalidade de revolta frente
ao fluir temporal.
Ainda no texto inicial, há uma citação do que parece ser uma (última) fala de Avalor, em
que ele menciona novamente a mulher amada, parecendo estar sugerido que esta o teria
matado. “Arrisquei tudo o que eu não era. O limo folheava os contornos da nuca. Do quadril ao
pescoço, avançavas o fio elástico da foice. As unhas afundavam a pele ao rumor do osso.” (p.
119-120). A violência está sugerida pela foice, que perpassa o eu-poético do quadril ao
pescoço e pelas unhas que “afundavam a pele”. Como conseqüência desse ato violento, “Eu
arfava ervas, musgo, urina do mato. Não havia consciência a sangrar naquele momento. Pálido,
pão dormido. O relógio ficou cego às 23:30.” (p. 120). A cegueira do relógio pode ser aqui
relacionada à morte, quando deixa de valer o tempo cronológico. O desaparecimento do tempo
é também uma forma de indicar sua superação, desejo que o eu-lírico poderia levar oculto sob
a aparente aceitação do fluir temporal, expressa na maior parte do livro.
Na seqüência figuram os quatro poemas finais da obra, em que não mais aparece
explicitamente a figura de Avalor. No primeiro, uma referência à destruição: “As asas do
veleiro / enterravam / o vento na água.” (p. 121). Vale notar nesse poema que as velas,
chamadas de asas, destroem aquilo que as move e alimenta.
A obra é encerrada com um poema de apenas dois versos: “A chama estava de pé, / e as
sombras, lacradas.” (p. 124). A interpretação desses versos finais depende de cada leitor, eles
são muito abertos, como em geral toda essa obra. Uma possibilidade de interpretação é
55
relacionar a chama com a razão, associada à dominante postural do regime diurno do
imaginário, por estar “de pé”, enquanto as sombras seriam os bens válidos para Avalor e as
imagens contraditórias unidas nas falas dele ao longo de toda sua caminhada descrita na obra,
as quais podem ser associadas ao regime noturno, pela busca constante de conciliação. Assim,
aparentemente a razão prepondera sobre a falta desta, mas vale notar que as sombras não foram
exterminadas, apenas estão presas, lacradas, e podem ressurgir a qualquer momento quando
alguém ousar romper seu lacre. Um exemplo desse rompimento ocorre em Biografia de uma
árvore, obra em que Avalor reaparece como sujeito lírico e seus valores são retomados em
forma de biografia, conforme se perceberá em análise posterior.
As solas do sol confirma-se, portanto, como o próprio título indica, uma obra repleta de
imagens contraditórias, que o eu-lírico vai aproximando, conciliando em seu discurso. Ele é
um indivíduo considerado atípico por suas idéias e comportamento, os quais se vinculam,
predominantemente, conforme expresso ao longo desta análise, à dominante cíclica do regime
noturno do imaginário, de acordo com a conceituação de Gilbert Durand, e à escrita que finge
aceitar a passagem temporal visando superá-la, correspondente à modalidade de progresso em
relação à estruturação do imaginário, conforme a proposta do estudioso Jean Burgos. As idéias
de circularidade e retorno são recorrentes na obra, bem como o apelo às recordações, o retorno
à infância, o que ratifica a aproximação proposta às referidas dominante e modalidade.
4.2 Um terno de pássaros ao sul: o apelo ao retorno do pai
Um terno de pássaros ao sul: poemas
13
é a segunda obra de Carpinejar, tendo sido
publicada em 2000 e posteriormente revista para nova edição em 2008, em comemoração a
uma década do lançamento da obra inaugural do poeta, analisada anteriormente. Nesse livro
são exploradas estrofes de três versos polimétricos, distribuídas em conjuntos de quatro por
página, exceto na página final, composta por uma estrofe de três versos e uma de apenas um,
rompendo com a estrutura, tanto no que se refere ao aspecto formal quanto ao conteúdo, como
se verá posteriormente. O tema central da obra é a retomada do passado pelo eu-poético,
focando sua relação com o pai. Diferentemente do primeiro livro, este não está dividido em
13
Embora não esteja entre os objetivos deste trabalho buscar traços autobiográficos nas obras analisadas, mostra-
se imprescindível referir que esta traz algumas marcas da história pessoal de Carpinejar, conforme ele próprio
admitiu em entrevistas concedidas na época da publicação. A vinculação entre o pai real e o da obra está,
inclusive, no ofício de escritor.
56
partes, é um todo, uma rememoração única, um diálogo com o passado, um apelo à volta do pai
ao pampa, ao lar, à vida do filho. Assim, ao longo da obra algo semelhante a um monólogo
por parte desse filho, que é o eu-lírico, numa busca de reconciliação com o pai que é muito
mais interna, psicológica, do que concreta, como se ele buscasse reconstruir sua história pela
imaginação, transformando o homem que o abandonou no pai que desejava ter.
14
Logo no primeiro verso desse extenso poema se encontra o apelo “Volta ao pampa, pai”
(CARPINEJAR, 2008, p. 7), que será repetido periodicamente ao longo da obra. As imagens
poéticas presentes nos poemas são densas e convidam o leitor a penetrar num mundo outro que
não o da concretude real, mas antes o das memórias recriadas ou, como propõe o estudioso
Gaston Bachelard, deformadas pelo sujeito lírico.
O apelo deste, porém, ecoa sem resposta, como ele relata de forma inusitada em:
“Arremesso o balde ao poço / e estala a corda nas estreitas // paredes do teu corpo. / Não
seiva a puxar do fosso, / a sede lavou todo nome.” (p. 7). As imagens desses versos remetem à
idéia de que, mesmo encontrando aquele a quem chama de pai, o eu-poético não recebe aquilo
que procura, pois a figura paterna só existe, conforme projetada, na mente do filho.
Na gina seguinte prossegue a (des)construção da imagem do pai pelo eu-lírico, sendo
que nos versos: “A chama engana sua altura / ao pavio que a sustenta.” (p. 8), a chama pode ser
associada à esperança, construída imaginariamente e que é muito maior do que aquilo que a
origina. Assim, pode-se deduzir que a imagem que o filho tem da figura paterna supera aquilo
que o pai efetivamente tem a oferecer. O referido estudioso Gaston Bachelard, em A chama
de uma vela, ressalta que a imagem da chama eleva o sonho do sonhador “ao ponto mais alto.
É que o fogo torna-se luz. [...] A chama é tão essencialmente vertical que aparece, para um
sonhador do ser, estendida em direção ao além, em direção a um não-ser etéreo” (1989b, p.
62). Assim, ao comparar a imagem que produzira do pai com a chama de uma vela, o filho
reconhece que o idealizara em excesso, refletindo na imagem criada o pai que gostaria de ter,
muito mais do que o pai real. Essa atitude, conforme o referido estudioso, é comum àquele que
se deixa guiar pelo imaginário, colorindo as lembranças de forma criativa, tornando belos na
memória momentos que não necessariamente o foram.
14
O foco da obra remete, assim, em certa medida, a Carta ao pai, documento escrito por Kafka com o intuito
frustrado de entregá-lo ao seu pai, mas que acabou tornando-se uma obra de valor literário internacionalmente
reconhecido. Em sua carta, Kafka, como o eu-poético de Um terno de pássaros ao sul, busca uma forma de
melhorar sua relação com a figura paterna; ele, porém, tem o pai próximo, sentindo-se subjugado ao poder dele,
enquanto na obra de Carpinejar o filho busca o retorno do pai distante.
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Nas atitudes desse pai se percebem contradições, como a exposta nos versos: “Viajas
com o olhar do regresso, // chegas com olhar da despedida” (CARPINEJAR, 2008, p. 8). Os
comportamentos antitéticos marcam sua imagem, que pode, conseqüentemente, ser vinculada
ao regime diurno da imagem, caracterizado por Durand como regime da antítese. Razão que se
opõe à inocência, conforme sugerido nos versos subseqüentes: “O dia recusa a inocência, / tem
gosto de sol nos cabelos.” (p. 8). A razão pode ser entendida como equivalente à luz do dia,
enquanto a inocência, a imaginação e o devaneio associam-se à noite, à escuridão.
O comportamento do eu-poético também é marcado por ambigüidades, atos atípicos,
diferenciados do convencional, o que resulta num uso criativo da linguagem, como pode ser
percebido pelas associações inusitadas apontadas ao longo da obra e também por inovações,
como a presente nos versos: “Volta ao pampa, pai, / estamos amor-tecidos / na água tensa // do
charco.” (p. 10). A hifenização de “amor-tecidos” possibilita uma dupla interpretação: a da
palavra sem o hífen amortecidos”, que pode indicar o entorpecimento, a perda do vigor e da
força do grupo familiar devido à ausência do pai; ao mesmo tempo, a palavra hifenizada pode
ser entendida como tecidos de amor, cheios de amor, reforçando o sentimento do filho que
espera pelo pai.
Em seu apelo e busca pela volta paterna, o eu-lírico vida e atitudes humanas a seres
inanimados, que agem de forma a contribuir com a criação de um ambiente acolhedor: “O
avental da cerração / prepara o café, coando / o canto cerrado do galo. // O moinho exercita /
sua cauda com a umidade / que sobeja na palha do fumo. (p. 11). As imagens poéticas
presentes nesses versos revelam a manifestação do imaginário coletivo em que se insere esse
filho, o que transparece em suas memórias e projetos. Aqui se retoma a expressão imaginário
coletivo no sentido apontado no referencial teórico deste estudo, conforme caracterização de
Michel Maffesoli; dessa forma, as imagens do moinho, do café coado, da cerração, do canto do
galo compõem o clima de acolhida ideal para o eu-poético, por serem imagens que o tocam,
que são representativas no imaginário do grupo em que se insere.
O filho revela conservar a imagem do pai de maneira criativa, através de uma atitude
contraditória de esquecimento da figura real: “O esquecimento te manteve / corado e
apreensivo, / um animal acuado // na manta do cansaço, / devendo suas mortes / e sabendo que
a vida // é escassa para quitá-las.” (p. 13). O pai é comparado a um animal acuado, por dever
suas mortes, expressão que pode ser compreendida no sentido do esquecimento ou então da
morte simbólica devido à ruptura com o filho. O afastamento do filho e os demais erros
58
cometidos pelo pai são demasiadamente graves para poderem ser quitados em vida, por isso,
ele estaria constantemente ameaçado e apreensivo. A idéia de várias mortes contrapõe-se à
escassez da vida, assim, pode-se identificar no pai o desejo de fixar-se no presente fugaz,
tentando adiar o pagamento de suas dívidas, através da morte. Revela-se uma tentativa de
negação da passagem temporal, por traz da qual se percebe o medo da destruição que ela pode
engendrar.
A imagem do filho como carente e saudoso do pai ganha um aspecto diferenciado
quando ele reconhece: “Nasci vingativo, / negando / o que deveria perdoar, // omitindo / o que
deveria mencionar, / exagerando para soar falso // o que de verdade sinto. / Falsifiquei-me para
que fosses / próximo do real.” (p. 14-15). Esses versos ressoam os de Fernando Pessoa, quando
afirma que “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor /
A dor que deveras sente.” (1999, p. 164) e revelam o eu-poético como um indivíduo com
atitudes vinculadas ao regime noturno do imaginário, conciliando opostos e aparentes
contradições. Esse filho cria uma imagem falsa do pai, a fim aproximá-lo do seu ideal, isto é,
atribuindo-lhe as atitudes e o comportamento que julga serem os adequados.
A união de opostos fica expressa ainda quando o filho se reconhece semelhante ao pai
que o abandonou: “Ao escapar de tua figura / me tornei igual. / Tudo está perdido, então // tudo
é necessário.” (CARPINEJAR, 2008, p. 15). Tentando fugir às atitudes paternas, o filho acaba
tornando-se semelhante a ele, assumindo também seus defeitos. Ele associa essa incorporação
de aspectos negativos à perda total, mas é pertinente observar que, ao contrário da visão
pessimista de que após tudo estar perdido nada mais é necessário ou suficiente, ele reforça que
no momento da perda total, “tudo é necessário”. A quebra na leitura, gerada pela divisão desses
dois últimos versos, gera uma tensão, uma ambigüidade quanto ao significado, destacando,
num primeiro momento, a perda absoluta, para ressaltar, em seguida, a necessidade de tudo
nesse momento.
A hipótese de que o eu-lírico (re)inventa seu pai imaginariamente é confirmada nos
versos: “Te alcancei / com a imaginação.” (p. 18). Na ausência visível do pai, o filho constrói
uma imagem dele como gostaria que fosse. A figura criada não é fiel à realidade, uma vez que
pela imaginação ele pode, conforme foi referido anteriormente com base em Bachelard, mudar
as experiências vivenciadas e transformá-las positivamente, pois, como também destaca o
referido estudioso, “as imagens poéticas são operações do espírito humano na medida em que
nos aliviam, em que nos soerguem, em que nos elevam” (1990, p. 42, grifado no texto).
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Como conseqüência da transformação que engendra em relação à figura do pai, o filho
declara: “Não sei o que procuro, / mas quem me procura. / Volta, pai, memorizei // o que não
foi falado.(CARPINEJAR, 2008, p. 19). O eu-lírico admite não saber efetivamente o que
busca, reconhecendo que o pai que ele quer encontrar não é o real, aquele que o abandonou.
Por outro lado, ele sabe que alguém também o procura, mas a identidade deste não é revelada,
ao menos nesse momento da obra. Cabe observar a atitude paradoxal do eu-poético de guardar
o que não aconteceu, os não-ditos, aquilo que possivelmente ele desejava ou esperava ter
ouvido e nunca ouviu. Em relação a esse aspecto, vale ressaltar que o silêncio, nas obras de
Carpinejar, traz uma forte carga significativa, nunca é um vazio, mas sempre está prenhe, nele
tudo pode estar latente, o silêncio “fala” tanto ou mais que o discurso.
Nos versos: “Lado a lado, caminhamos, / separados pelas andanças // que cada um
desenha / em seus pensamentos.” (p. 19-20), o enjambement produz uma ambigüidade, pois ao
ler “separados pelas andanças”, depreende-se que pai e filho escolheram caminhos diferentes,
mas os versos posteriores complementam essa declaração, revelando que a separação é mais
mental do que física, introduzindo uma nova possibilidade de compreensão da obra: a distância
entre pai e filho pode não ser concreta, mas relacional, os dois vivem vidas paralelas, que não
se tocam, não se cruzam e é buscando vencer esse afastamento que o eu-poético faz seu apelo.
Nesse sentido, vale notar que conceitos como o de proximidade e distância são, por
vezes, rompidos na obra, como ficou demonstrado nos versos citados acima e pode ser
percebido também em: "Forço a solidão de estarmos / lado a lado, // tomando coragem / para
dizer: / vamos voltar?" (p. 22). A idéia de solidão apesar da proximidade destaca o sentimento
persistente do sujeito lírico de sentir-se abandonado pelo pai, embora em muitos momentos sua
presença seja mencionada. O apelo "vamos voltar?" é ambíguo, pois pode remeter tanto a um
deslocamento físico quanto ao retorno às relações interrompidas ou frustradas, o que, aliás, se
constitui em tema recorrente da obra.
A hipótese de um afastamento mais afetivo do que espacial permite que se vincule essa
relação àquela existente entre Kafka e seu pai, que aquele descreve na mencionada Carta ao
pai, na qual o filho reconhece que o difícil relacionamento não é culpa de nenhum dos dois,
fato de que também tenta convencer a figura paterna, para tornar possível “não uma nova vida
que para isso estamos ambos velhos demais -, mas uma espécie de paz” (KAFKA, 2008, p.
21). Talvez, a exemplo do que buscava o escritor alemão, o eu-lírico de Um terno de pássaros
60
ao sul também busque apenas uma relação mais harmoniosa e afetiva com o pai que se mostra
frio e indiferente.
Os constantes avanços e retornos são outra marca do regime noturno que pode ser
identificada na obra de Carpinejar, assim, se há pouco o eu-poético e seu pai apareciam
próximos, na seqüência, aquele afirma: "Descobri tarde: / tua única residência / é distanciar-se
da casa." (2008, p. 23). A distância seria para o pai o seu estado natural; a casa, usualmente
símbolo de acolhimento e segurança, não o é para ele.
A própria caracterização do ser humano é singular na obra: "o homem permanece / uma
pronúncia inacabada." (p. 26). Através de uma metáfora com a linguagem, o eu-lírico sugere
que o homem nunca está completo, mas em contínua construção. Essa metáfora também se
aplica ao próprio eu-lírico que busca constantemente um pai idealizado, que não encontra na
figura paterna real.
Leitura e escrita são elementos que aparecem de forma recorrente na obra, com
valorizações e sentidos diferentes. Em determinado momento, o sujeito lírico rejeita o valor
dos clássicos e enfatiza também o pouco efeito proporcionado pelo estudo: "Pouco crescemos /
no que aprendemos, / o sabor // de um livro antigo / está em jovem / esquecê-lo." (p. 30). Essa
atitude parece contrapor-se à do pai, que se insinua um leitor e estudioso exímio. Para desafiá-
lo, o filho desfaz a organização do universo de leitura daquele: "Eu alterei / a ordem do teu
ódio. / Fiz fretes de obras // na estante. / Mudava os títulos / de endereços // em tua biblioteca”
(p. 30-31). Nota-se nessa atitude o desejo do filho de afrontar o pai, numa tentativa de chamar
sua atenção, de tornar-se mais importante do que os livros.
A reação paterna é descrita na seqüência, reforçando o apego deste por suas obras: “e
rastreavas, ensandecido, / aquele morto encadernado // que ressuscitou / quando havias
enterrado / a leitura, // aquele coração insistente, / deixando uma cova / aberta na coleção. //
Sou também um livro / que levantou / dos teus olhos deitados." (p. 31). Pelos versos citados,
nota-se que a desordem feita pelo sujeito lírico é uma forma de este marcar presença,
perturbando o racionalismo e a ordem que caracterizam o pai. Ao considerar-se também um
livro, o filho se apresenta ao pai como uma história que este não tem como apagar e que
aguarda para ser lida, conhecida, decifrada. Cabe frisar que, se por um lado o eu-lírico se
considera um livro para o pai, por outro, também busca na linguagem escrita algum retorno
deste: "Em tudo o que riscavas, / queria um testamento." (p. 32).
61
A importância da leitura e da escrita na vida dessa família é de tal modo intensa que é
possível identificar a personalidade de cada um por seu comportamento ante um texto. O pai é
seguro, firme, objetivo: “Sublinhavas de caneta, // visceral, / impaciente com o orvalho, / a
fúria em devorar as idéias, // marcando estacas / na linha inimiga." (p. 33-34). Ele não sublinha
a lápis, portanto, não pretende apagar suas marcas e tem sede de dominar o conhecimento,
como se este fosse um inimigo a vencer, o que mais uma vez reforça a idéia anteriormente
expressa de aproximação das atitudes do pai ao racionalismo, ao pensamento binário. Já o
sujeito lírico é inseguro, aparentemente vulnerável: "Desnorteado, / um cão / entre a velocidade
// e os carros. / Descia o barranco úmido / de tua letra, // premeditando / os tropeços.” (p. 33).
Distinta tanto do pai quanto do filho, a mãe, até então não apresentada na obra, mostra-se
submissa e calma: "A mãe remava / em tua devastação, // percorria os parágrafos a lápis. / O
grafite dela, fino, / uma agulha cerzindo // a moldura marfim. / Calma e cordata, / sentava no
meio-fio da tinta, / descansando a fogueira / das folhas e grilos." (p. 34-35). Diferentemente do
pai, a mãe usa o lápis, é menos agressiva na sua sede de conhecimento e parece seguir
discretamente os caminhos abertos pelas leituras do marido. A atitude pacífica e pouco
impositiva dela pode justificar o fato de não ter sido mencionada anteriormente pelo eu-
poético, não recebendo destaque maior na obra, por mostrar-se passiva frente aos gestos fortes
e autoritários do marido.
O afastamento do pai faz o eu-lírico assumir uma atitude contraditória, manifesta por
meio de versos que exploram a ambigüidade gerada pelo enjambement para permitir uma dupla
leitura: "Sei que amadureci longe de ti / e isso me absolve // de condenar-te." (p. 36-37). A
leitura dos dois primeiros versos sugere a absolvição do eu-poético, mas o verso seguinte, que
se encontra em outra página o que reforça a quebra, a parada na leitura revela que a
absolvição se refere ao julgamento paterno, o filho se absolve do dever de condenar ou perdoar
o pai, justamente por ter vivido longe deste.
O eu-lírico também considera que o pai contou com uma proteção especial quando
deixou o lar: "Quando vagaste em meia-idade / pela selva escura, contavas // com a escolta de
vaga-lumes." (p. 37). Esses versos estabelecem contato com o trecho inicial do “Canto I”, da
Divina Comédia: “Ao meio da jornada da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me
embrenhado em selva tenebrosa” (ALIGHIERI, 1979, p. 25). Nesse trecho da obra de Dante, a
expressão “meio da jornada da vida” é esclarecida pelo tradutor em nota de rodapé como
62
fazendo referência ao período em torno dos 35 anos, enquanto “selva tenebrosa” é identificada
como “alusão ao período de desregramento” (p. 25). Esses dados ajudam a compreender os
versos citados da obra de Carpinejar e apontam que a inspiração do poeta é alimentada pelas
grandes obras da literatura mundial, que contribuem para o enriquecimento das imagens
criadas por ele.
Voltando à análise dos versos citados, percebe-se que, apesar da vida desregrada, o pai
do sujeito lírico conta com uma espécie de proteção superior, indicada pela expressão “escolta
de vaga-lumes”, o que, aliás, também aparece na Divina comédia, uma vez que Dante tem
como protetor e guia, durante a travessia pelo Inferno e pelo Purgatório, o poeta Virgílio,
enviado do limbo por Beatriz, amada de Dante em vida, mas que, já falecida, habita o paraíso.
Nesse período de ausência do pai, assinalado pelo verbo "vagaste", que pode ser tanto um
afastamento físico, quanto a indiferença afetiva, o eu-poético busca manter o contato, através
dos objetos que aquele deixou: "Quando vagaste em meia-idade // pela selva escura, fiquei / a
conversar com tuas camisas, / aprumando boinas // que afogavam os cabelos. / Tinha sete anos
ao certo / e uma lua vadia disputando // corridas comigo.” (CARPINEJAR, 2008, p. 38-39).
Diferentemente do que ocorre na maior parte da obra, no trecho citado o eu-lírico faz uma
referência a tempo, revelando a idade que tinha quando o pai o abandonou (espacial ou
emocionalmente).
Na ausência paterna, o filho busca-o entre os objetos que ficaram para trás, a fim de
conservar alguma forma de contato e reavivar as lembranças: "Vestia tua camisa / copiando o
ritmo / dos teus traços, // a respiração copiosa, / sendo meu próprio / e definitivo pai." (p. 40).
Assim, ao procurar o pai entre os objetos que este deixou para trás, o eu-lírico vai criando uma
imagem e transformando-se naquele que busca, o que permite uma associação com versos que
aparecem em momento anterior da obra, em que ele declarava: “Não sei o que procuro, / mas
quem me procura.” (p. 19). Pode-se sugerir, assim, que a imagem do pai vai ao encontro do
filho, na medida em que é este que a cria e alimenta. Ainda referindo a incorporação da figura
paterna pelo filho, em outro poema, ele ultrapassa o tempo e assume a idade do pai: "Sou a
idade do que respiro. / Sou neste instante a tua idade. / A eternidade de uma ausência." (p. 51).
Nessa declaração se percebe que não há tempo que possa determinar a espera do filho: ela pode
ser de alguns meses ou muitos anos, independente disso, a sensação é de perda, de algo que
será sempre sentido, mesmo que a ausência seja superada.
63
O sujeito lírico revela ser uma pessoa marcada por alternâncias de comportamento, o que
o leva a sugerir a inversão do apelo, ou seja, ao invés de ser ele a pedir o retorno do pai, é
aquele quem invoca o filho em: “Por que me chamas / se estás completo?" (p. 41). Esse
suposto chamado do pai denuncia uma incompletude mal disfarçada por parte dele, que pode
ser percebida pelos versos: "Tua risada denuncia / o desespero. / As respostas vieram // antes
das perguntas." (p. 42). Sob o aparente racionalismo do pai, o eu-lírico identifica o desespero,
que é interpretado pelo filho como a falta de coragem do pai para retornar, voltar ao pampa,
que simboliza o lar e representa também a família.
Assim, a criação de uma imagem desvinculada da realidade não parece ser exclusividade
do eu-lírico, pois ele alerta que também o pai cria uma personagem e oculta os verdadeiros
sentimentos, o que é ressaltado nos versos: "Teu corpo embarcou / em outro corpo,
extraviaram/ a data de postagem. // Quem te conhece pela fama, / não te conhece ainda, /
apenas a projeção // do que inventaste em vida." (p. 48-49). Semelhante a uma correspondência
perdida, o pai é um indivíduo do qual não se sabe o conteúdo, conforme sugerem os quatro
últimos versos citados.
Em relação à sua terra de origem, o eu-poético revela também não conhecê-la
integralmente, apresentando uma visão parcial, incompleta, através de uma seqüência de
metáforas: "O pampa é armadura do mar, / vejo o gatilho da espuma. / O pampa é o repuxo
do céu, // vejo as naus encalhadas. / O pampa é a natureza enervada, / vejo a praia
aterrada do Guaíba.” (p. 54). Pelo uso reiterado da expressão "só vejo", o filho expressa que
também o pampa não se revela plenamente a ele, bem como o faz o pai, apenas parte do pampa
se mostra, ou o eu-lírico apenas consegue apreender parte da imensidão de sua terra. Note-se,
ainda, que ele explora tanto o elemento terrestre quanto o aquático em sua referência ao lugar
de origem, mencionando o Guaíba, rio símbolo da capital gaúcha. Da mesma forma que não
alcança por seu olhar toda a imensidão do pampa, ele também não visualiza a integralidade do
rio que marca suas lembranças, ele só vê sua “praia aterrada”.
Cabe frisar mais uma vez como o texto poético de Carpinejar traz a marca de sua origem,
pois na obra de lançamento do poeta o pampa era o espaço referido. Neste segundo livro,
isso ocorre de maneira ainda mais explícita, pois esse espaço está presente no apelo mais
importante da obra e que perpassa toda ela, acrescentando-se, ainda, outras referências
espaciais, como a do Guaíba. Em relação ao pampa, o sujeito lírico faz ainda a seguinte
afirmação: “O pampa é o nosso delírio, / fingir que somos do interior // e parecer mais puros.”
64
(p. 55). Percebe-se que até o espaço é aproveitado como recurso, como forma de causar uma
impressão falsa, nesse sentido, ele se vale da imagem coletivamente aceita do pampa,
insinuando que o povo gaúcho tende a idealizar esse espaço, ignorando os aspectos negativos,
as alterações causadas pela evolução e a passagem temporal, numa atitude que mostra bem o
caráter coletivo do imaginário, conforme mencionado no referencial teórico desta dissertação.
Voltando a focar a relação pai e filho que marca a obra, merece ser referida a metáfora
que este cria para descrever seu relacionamento com aquele: “Por mais que uma vela / seja
vizinha de outra chama, // por mais que uma vela / seja seguida pela caravela de sopros, / por
mais que uma vela // segure a barra do vestido na ascensão, / a vela é sempre solitária, / uma
forma da luz ser indigente.” (p. 56-57). A metáfora da chama já fora usada em parte anterior da
obra, referindo, naquele momento, a imagem que o filho projetara do pai e que ultrapassava
aquilo que na verdade ele era. Nessa nova referência a essa imagem, ele compara a si e ao pai à
chama, pois, como ela, os dois não se misturam, cada um segue seu caminho de forma solitária.
Bachelard também reforça, em uma de suas obras, a solidão associada à vela, declarando,
inclusive, que “a chama é um mundo para o homem só” (1989b, p. 12). Assim, pai e filho
nessa obra são como chamas que, mesmo quando postas em contato, não se unem, seguindo
cada qual seu próprio percurso.
A obra também traz indícios de que o sujeito lírico não é o único filho do pai que partiu,
ele é integrante de um grupo, conforme indica o emprego do coletivo de lobos. Pelo emprego
dos verbos “farejar” e “perseguir”, presentes nos versos transcritos a seguir, deduz-se que esse
grupo procura pelo pai, tenta refazer seus passos para encontrá-lo: “A matilha dos filhos //
fareja o sonho inacabado, / perseguindo tua lapela castanha, / o açúcar do linho, // olor de café
aquecido.” (CARPINEJAR, 2008, p. 58-59). Note-se a suavidade e doçura do que é
perseguido, expresso nos dois últimos versos citados, o que se mostra contraditório, se for
considerado que quem está sendo perseguido é o pai que abandonou o lar. Uma possibilidade
de interpretação para essa aparente incongruência é que os filhos buscam encontrar o pai que
não tiveram, a figura paterna de seus sonhos ou que foi construída imaginariamente, conforme
o eu-poético revela em vários momentos ao longo da obra.
As atitudes do eu-lírico em relação ao pai são, conforme referido, contraditórias, o que
fica reforçado pela alternância de acusações e defesas apontada a seguir. Primeiramente, o filho
ressalta como buscou preservar a imagem do pai na família: “Foste minha religião, // meu
terreno baldio. / Desviei diálogos da mãe, / forjei cenas, colecionei álibis, // criei senhas. Juro
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que montei / a retaguarda de tua resistência. / De na esperança da varanda.” (p. 60). Por
esses versos, ele demonstra ser o filho que buscou justificar o pai, apesar de toda a dor que este
lhe causara com a partida. Entretanto, o sujeito lírico, também acusa o pai de não ter se
dedicado à família, relegando-a a segundo plano: “Quando nasceram os filhos, / amaste teus
escritos. / Quando nasceram os netos, // amaste teus cachorros.” (p. 61). Note-se que há sempre
algo mais importante para o pai do que o grupo familiar, o que leva o filho a interrogar:
“Quando vamos coincidir?” (p. 61). nesse verso a expressão de uma esperança de
reconciliação que, aliás, motiva toda a obra. As contradições citadas indicam a dupla situação
vivida pelo eu-poético: por um lado, ele sofre com a realidade que vivenciou, marcada pelo
abandono paterno, o que lhe inspira revolta e crítica, por outro, ele alimenta o desejo íntimo de
trazer o pai de volta para o lar.
A força do imaginário coletivo insinua-se também na função ou posição que o filho julga
correspondente à figura paterna dentro de uma família, e que ele deseja que seu pai reassuma:
"Volta ao pampa, pai, // retoma a ânsia de águia, / o posto aéreo da alma / a endurecer a colcha
das penas // em escudo medieval do ninho." (p. 63). O desejo do filho é que o pai volte a ser a
autoridade e o protetor do lar, mas esse desejo é expresso por meio de um jogo de palavras e
imagens opostas. Nesse sentido, vale referir que os elementos associados à imagem de um pai
ideal remetem ao regime diurno, podendo-se destacar a superioridade e a elevação, indicadas
pela referência à “águiae também pela expressão “posto aéreo”, bem como o aspecto da
defesa, associado às armas, símbolos da dominante postural, e que estão representadas nos
versos citados pela imagem do “escudo”. Dessa forma, ao referir-se ao pai, o eu-poético revela
buscar alguém diferente de si mesmo, pois procura nele razão, autoridade e superioridade,
características ele, enquanto filho, não possui.
A lógica de uma única morte é também contrariada pelo eu-lírico, que aponta mortes
plurais do pai em: "Ninguém fechou tuas pálpebras // nas antigas mortes.” (p. 66). Esses versos
remetem a outros, presentes entre as páginas iniciais da obra, nos quais o filho afirmava que o
pai devia suas mortes e que a vida dele era escassa para pagá-las; essa referência a várias
mortes sugere o caráter circular da existência, pois sempre um renascimento após cada
morte, que pode ser entendida, neste caso, relacionada às perdas, aos erros e sofrimentos
vividos pelo pai, um indivíduo extremamente só, conforme sugere a ausência de qualquer
companhia, mesmo no momento da morte, indicado acima.
66
Se para morrer muitas vezes é preciso nascer sempre de novo, o eu-lírico relata que
também o renascimento do pai é um ato solitário e não esperado: "Entraste clandestino em
vários / nascimentos" (p. 66). A referida vinda ao mundo por mais de uma vez é um dos
elementos associados à dominante cíclica, vinculada ao regime noturno da imagem, o que se
justifica uma vez que o renascimento representa o ciclo de vida que se renova.
Para tentar compreender o pai, o eu-poético invade as memórias de infância dele,
assumindo posição atemporal, pois efetivamente não tem como saber o tratamento que a
família dispensou àquele quando era criança. Essa atitude atemporal do filho revela que não
preocupação com a cronologia na obra, o tempo é constantemente ultrapassado e retomado, ou
seja, passado, presente e futuro se mesclam através de lembranças e projeções.
Nessa viagem ao passado, para conhecer as experiências de infância do pai, o eu-poético
percebe a negatividade dos parentes mais próximos: “Os avós foram estranhos na amargura. /
Teu pai estocava dívidas, / tua mãe armazenava doenças." (p. 67). A frieza e formalidade são
também aspectos destacados: “Comer calado, silenciar o barulho / dos talheres. Não tremer o
cristal, / não encarar a sepultura, // conter a corrente de ar da voz.” (p. 68). Esses versos
revelam a forma de criação desse pai que, educado de maneira fria e rígida, não soube
comportar-se de outro modo com os próprios filhos, acabando por abandoná-los. Considerando
as vivências do pai, o eu-poético aceita a impossibilidade de aquele ser como o filho gostaria
que fosse: “Não brincaste contigo, / não brincarias comigo.” (p. 70). Haveria, assim, na atitude
do pai o fruto do que vivenciara, sendo-lhe impossível oferecer e demonstrar o que ele próprio
não conhecera.
Cabe também observar como o eu-lírico refere uma doença mortal de seu pai: “Padecias
de algo incurável, / duro de se recitar na receita // cursiva, que cobrava / atenção redobrada / na
leitura dos remédios." (p. 73). A gravidade da doença leva o pai do eu-poético a uma atitude de
preparação e de criação de todo um contexto de morte, conforme fica evidenciado nos
seguintes versos: "Já lapidavas // o prefixo da lápide. / Escondido no porão, / no túnel, no
calabouço, // no assoalho, nas frinchas / carecedoras de bulas. / Até emergir // o epitáfio
perfeito / da tosse dos rascunhos.” (p. 73-74). A lápide é um elemento que traz a morte de
forma concreta para o poema, presença que é reforçada na seqüência, pela declaração de que o
pai, por seu comportamento, conseguiu superar a morte em sua morbidez: “Eras mais
mórbido// do que a morte - / ela não aceitou disputar / o colo da árvore // com outro corvo.” (p.
74-75). Fica implícito nesses versos que o pai, por seu comportamento de total aceitação da
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morte e construção de um ambiente propício a ela, acaba afastando-a, superando a doença
aparentemente incurável.
Ainda em relação ao comportamento do pai durante a doença, o sujeito lírico usa uma
inversão do tempo cronológico, que pode remeter à atitude daquele, que também invertia o
tempo, ao ocupar-se da morte antecipadamente: "Lembro como se fosse amanhã. / Quando
despontava // um verso de madrugada, / saías mansamente do leito, / enrolado na maldade, //
macia do lençol." (p. 75). A criação literária era, como apontado em outra parte da análise,
algo que acompanhava este pai, assim como a leitura e o estudo, mas, na doença, a expressão
por meio da escrita de poemas parece ganhar força e se constitui em um ritual fechado,
solitário, como, aliás, é a maior parte da vida desse homem, pelo menos sob a perspectiva do
eu-poético.
Vale destacar a aproximação de contrários proposta pelo sujeito lírico em: "Volta ao
pampa, pai. / Menti ganhando tempo // para amadurecer a verdade." (p. 81-82), versos em que
mentira e verdade parecem tocar-se, estar conectados. A mentira se constitui, para o eu-
poético, um artifício para poder processar a verdade, compreendê-la. Note-se que novamente é
empregado o recurso do enjambement para produzir uma ambigüidade, uma leitura dupla,
sendo que a quebra que separa o verso “Menti ganhando tempo” em uma página e o “para
amadurecer a verdade.” em outro, reforça também a idéia que o primeiro desses versos
expressa.
No apelo à volta do pai, o eu-lírico orienta este a não olhar para trás: “Volta sem volver
atrás” (p. 83), sugerindo que um vacilo pode ser o suficiente para interromper o retorno. Esse
pedido remete ao mito de Orfeu, segundo o qual, após perder a sua amada Eurídice, o poeta e
músico resolve resgatá-la do mundo dos mortos, e consegue a autorização para trazê-la de
volta, com a condição de que não se volte a ela até alcançar a luz do dia. Quando está quase
alcançando o objetivo, ele não resiste e acaba voltando-se para trás, “Eurídice ainda uma
vez, mas a amada bem depressa se tornou uma sombra e se esvaiu, dessa vez para sempre”
(GUIMARÃES, 1996, p. 239). A ordem de não voltar o olhar para trás também aparece na
passagem bíblica referente à destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, em que os anjos do
Senhor ordenam a (ou Lot) que saia da cidade de Sodoma com a esposa e as duas filhas o
mais rápido possível e que ninguém olhe para trás. A esposa dele, porém, “olhou para trás e
virou estátua de sal” (BÍBLIA A. T., 1986, p. 46).
Esses exemplos revelam a presença da
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intertextualidade na obra; textos consagrados têm sua essência aproveitada para o
enriquecendo do texto poético.
Em outra passagem da obra, o filho também reconhece que a separação do pai era
necessária para uma maior aproximação entre os dois, o que é explicitado de forma paradoxal
nos versos: “Crescemos para nos separar; // separados, nos alcançamos.” (CARPINEJAR,
2008, p. 84). Fica sugerido aí que o afastamento entre pai e filho possibilitou a eles se
compreenderem melhor e aceitarem o que perturbava um no outro.
O encontro de pai e filho, desejado ao longo da obra, parece marcado, mas possivelmente
não seja um encontro físico, mas realizado através do texto poético, que os assemelha:
"Cercaram o relógio / com o esteio do pêndulo. / A luz letrada // moldou nosso encontro / e
isso é o que importa." (p. 90). A imagem do relógio introduz a noção de tempo, de encontro
agendado, enquanto a “luz letrada” associa-se à linguagem escrita, sugerindo a possibilidade de
o encontro entre pai e filho dar-se através do que escrevem, de suas produções literárias.
Por outro lado, como a inconstância é uma marca tanto do sujeito lírico quanto da figura
paterna, como revela o verso "moramos no vento" (p. 89), tudo é instável nessa relação,
inclusive os projetos, o que fica claro nos versos: "Nossa coerência // é estar mudando. / A
chama desmaiou /e a levamos nos braços. // Tivemos a coragem / de superar o começo, / não
transformar a filiação // em carta de guerra, / imitação da treva." (p. 90-91). O filho demonstra,
dessa forma, ter compreendido que sua relação com o pai não é a convencional, mas nem por
isso é necessariamente ruim. A superação dos conflitos iniciais parece dar força para que esse
filho possa ver a relação com o pai de outra forma, o que é sugerido pela chama levada nos
braços, que remete ao simbolismo que Durand atribui ao fogo que, ao destruir, propicia a
regeneração. Dessa forma, a relação entre pai e filho é renovada e sugere-se, inclusive, a
amizade entre eles: "Nossa amizade // é mais um gole da gaita, / um golpe no tambor. / Nossa
amizade // é estar névoas adiante / do que somos." (p. 92). A relação deles parece, assim,
transcender os vínculos de parentesco, constituindo-se em algo difícil de definir ou delimitar,
conforme sugere a palavra “névoas”.
Ao afirmar, "Só é mortal // o que não vimos." (p. 92), o sujeito lírico remete à superação
do tempo através da memória, insinuando que tudo o que foi visto não é mais mortal,
permanece vivo por ela. De certa forma, é isso que ele vem demonstrando ao longo da obra,
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pois é por meio de memórias recriadas que ele vai relatando seu relacionamento com o pai e
conseguindo superar alguns traumas decorrentes do afastamento em relação a este.
A vinculação das atitudes do filho à dominante cíclica fica evidenciada ainda nos
seguintes versos, em que ele revela ter escolhido seu pai, o que se dá, como foi apontado,
através da recriação: “Mergulho os calcanhares / a empurrar / a barca do ventre, // e circundas o
vazio, / os ciclos do som, / conciliado com a verdade, // pai maduro / de minha escolha, /
navegando // a paternidade das águas." (p. 93-94). “Circundar” e “ciclos” são termos próprios
da referida dominante e a presença do verbo “conciliar” na seqüência reforça a proximidade
com a mesma, que se caracteriza por buscar unir os contrários, neste caso, pai e filho, aliás, é
este que, em idade adulta, escolhe o pai, elege-o, num ritual que simula um nascimento.
Nos versos “Estamos amor-talhados, / contemporâneos das cinzas // que anulam a
distância.” (p. 94), sugere-se que tanto pai quanto filho estão fora da realidade, aparentemente
mortos, como indica a expressão “contemporâneos das cinzas”. Nessa existência fora da
concretude do real, não distâncias e ambos estão talhados de amor, como indica “amor-
talhados” (feitos ou moldados pelo amor), termo que remete ao “amor-tecidos”, presente em
verso de parte anterior da obra. Em ambas as ocorrências, o hífen que divide o termo favorece
a dupla leitura e merece ser referida a manutenção da parte anterior “amor” e a mudança da
segunda parte, “tecidos” e “talhados”, esses dois últimos termos se opõem, uma vez que algo
que é tecido é maleável, enquanto o vocábulo “talhado” remete a um elemento sólido, duro,
marcado de maneira permanente. Assim, se num primeiro momento o eu-lírico revela marcas
flexíveis do sentimento que o une ao pai, ao aproximar-se o fim da obra ele reconhece que
essas marcas são mais fortes, que nada pode apagá-las sem causar destruição.
Rompendo com a estrutura adotada ao longo de toda a obra, na página final aparecem
somente quatro versos, divididos em uma estrofe de três e outra de apenas um: "Antes de
dormir, / o soluço dos pés. / Antes de dormir. // Volta ao pai, pampa." (p. 95). O verbo
“dormir” nos referidos versos pode ser entendido como uma metáfora do fim último, mas o
apelo antes do momento derradeiro se inverte e agora quem precisa voltar é o pampa para o pai
e não este para aquele. Uma possibilidade interpretativa para o verso final da obra é a de que,
não conseguindo trazer o pai de volta ao lar por seus apelos, o eu-poético tente despertar nele o
desejo de retorno pelas lembranças. Ao “pampa”, entendido como sinônimo do lar, é atribuída
a tarefa de ativar as recordações íntimas mais amadas do pai. A esperança que o eu-lírico põe
nesse verso conclusivo é, portanto, que o pai recrie lembranças prazerosas de seu passado e
70
sinta-se impelido a retomar aquela vida, uma vez que o apelo do filho não foi suficiente nesse
sentido.
Um terno de pássaros ao sul traz como uma de suas marcas principais a força imaginária
recriando a realidade, o que se percebe nas atitudes do eu-poético e em suas memórias,
reiventadas de forma a torná-las mais agradáveis, comportamento que vem confirmar o
posicionamento de Bachelard, para quem toda imagem é positiva(1991, p. 214, grifado no
texto), ou seja, assume o papel de superar a realidade concreta para possibilitar o alcance de
uma situação melhor, a qual o referido estudioso afirma ser “a nossa realidade” (p. 280, grifado
no texto). Durand também defende o papel positivo do imaginário, ao afirmar que este “não
se manifestou como atividade que transforma o mundo, como imaginação criadora, mas
sobretudo como transformação eufêmica do mundo, como intellectus sanctus, como ordenança
do ser às ordens do melhor” (1997, p. 432, grifado no texto). Assim, em última instância, é
apelando ao imaginário e às imagens amadas que o sujeito lírico busca (re)criar a figura
paterna e trazer o pai para o pampa idealizado pelo imaginário.
Nesse sentido, vale mais uma vez assinalar a diferença entre pai e filho, aquele
extremamente preso à objetividade, aos fatos concretos, buscando controlar com precisão e
frieza a sua vida, enquanto o eu-poético revela-se marcado pela subjetividade e pela tentativa
de recriar a realidade por sua imaginação.
Outro aspecto da obra que merece destaque é o desapego à cronologia, pois através de
avanços e retornos o eu-lírico assume idades diferentes, consegue acompanhar a infância de
seu pai, assumir a idade deste, e até mesmo alcançar a eternidade. Segundo Durand, os
avanços, retornos e a inversão temporal são marcas do regime noturno do imaginário,
especialmente da dominante cíclica, que pela imagem do círculo remete à idéia da “totalidade
temporal e do recomeço” (DURAND, 1997, p. 323).
Vale referir ainda a pluralidade da morte e o conseqüente renascimento também plural
que o sujeito lírico atribui ao pai, o que pode ser associado à dominante cíclica, conforme a
proposição de Durand, e igualmente à escrita de aceitação da passagem temporal, proposta por
Burgos, uma vez que, inscrevendo-se na temporalidade, embora aceitando a morte e
assumindo-a como inevitável, o eu-lírico aponta a sua superação, pelo renascimento. Pode-se
interpretar essas mortes como os acontecimentos negativos, as atitudes paternas que não
71
correspondem aos anseios do filho e que este enterra, colocando em seu lugar memórias
recriadas positivas, que permitem um renascimento do pai como figura amada, idealizada.
4.3 Terceira sede: a antecipação da velhice
A terceira obra de Carpinejar tem no título a indicação de que a produção poética se
constitui numa sede, numa necessidade do poeta, interpretação que se justifica se for
considerado que esse é o terceiro livro publicado por ele, estabelecendo-se a relação entre a
sede e a criação literária. Essa associação é reforçada pelo texto que antecede as dez elegias
que compõem a obra, o qual aborda as razões de sua existência, revelando um esforço para
compreender o vínculo entre realidade e literatura.
Além da relação com a criação literária do poeta, outra interpretação do título associa-se
à fase da vida que é explorada no livro: a velhice, também denominada terceira idade. Nesse
sentido, a referida fase traria uma sede diferenciada, entendendo-se a expressão nesse contexto
como uma necessidade insatisfeita, uma carência que se deseja saciar, a qual o eu-lírico vai
revelando ao longo da obra.
No já referido texto que antecede as dez elegias, o sujeito lírico afirma que o conteúdo do
livro não tem compromisso com a realidade e questiona esse conceito: "Aqui nada é real. Mas
o que é real? / A literatura ou o que escapa da escrita?" (CARPINEJAR, 2003, p. 9). Essa
declaração revela que a literatura não tem compromisso com a verdade e a realidade, mas com
a modalidade singular de conhecimento que propicia, que se revela fundamental para a
constituição do ser, conforme já foi apontado no referencial teórico desta dissertação.
A seqüência desse texto inicial revela que a pessoa do autor não é o sujeito da obra,
fazendo a separação entre os dois, mas mostrando que um está no outro, complementando-se:
"A vida relatada, não sendo minha, é mais minha sendo do outro. / O menor acontecimento está
ligado ao maior, como um bordado. / E, esticando um fio, desfiaremos o conjunto." (p. 9). Ao
usar a metáfora do bordado para simbolizar a obra e também a vida, o sujeito lírico mostra que
tudo está interconectado e mesmo as imagens aparentemente incongruentes que em
determinados momentos aparecem nos poemas têm sua função no conjunto da obra.
72
Cabe destacar ainda em relação a esse texto inicial, que nele é indicada a data de
publicação da obra, uma data futura, insinuando que a literatura de qualidade não é datada,
ultrapassa os limites temporais, revelando-se, assim, uma forma de imortalidade: "O livro é de
2045, escrito aos 72 anos. / Como posso ter morrido antes, decidi antecipar a velhice." (p. 9).
Percebe-se nesse trecho o enfoque à terceira idade, um período da vida que o eu-lírico antecipa
para melhor analisar e explorar em seu texto. Dessa forma, ele vive além de seus dias, por datar
sua obra com um tempo por vir, convidando também o leitor a embarcar numa viagem para o
futuro, através da leitura. Aqui vale destacar a exploração do imaginário, a capacidade de o ser
humano lançar-se para além de seu tempo, colocando-se em situações que nunca vivenciou
efetivamente, capacidade que a leitura tende a aguçar de maneira especial.
Antes de iniciar a análise das dez partes que compõem a obra, cabe ressaltar sua
denominação. Tratam-se de elegias, que, conforme conceituação, são “composições de tristeza
e de luto” (TAVARES, 1978, p. 282), comportando ainda a expressão de sentimentos
melancólicos. Assim, a classificação dada por Carpinejar aos poemas escritos é um indicativo
do conteúdo expresso nos mesmos. Cada uma das dez elegias será, portanto, considerada neste
estudo como um único poema.
Destacando a terceira idade, que menciona no texto de abertura da obra e com a qual
foi sugerida uma relação no título, o sujeito lírico inicia a "Primeira elegia", enfatizando o que
julga serem marcas características desse período, pelo menos para ele: "Só na velhice conheci o
brio / de viver com vagar. / O rosto não tem mais residência, move-se a cada / sorvo das
sombras. // Há mais terra debaixo da pele que a terra onde piso." (CARPINEJAR, 2003, p. 13).
As vivências agregam experiência, mas isso não significa imobilidade ou rigidez, pelo
contrário, indica uma flexibilidade cada vez maior, expressa por "o rosto não tem mais
residência", verso que também pode ser vinculado ao envelhecimento constante. Merece
destaque também a questão da terra (vinculada à obra anterior, em que o filho pede ao pai que
volte à sua terra, o pampa): o eu-poético sente que seu lar, seu chão estão muito mais nos
sentimentos que leva dentro de si do que nos objetos e lugares concretos.
A reflexão sobre o autoconhecimento também aparece no início da obra, apontando no
sentido de que leva muito tempo para que o ser humano se conheça ou se decifre por inteiro:
"Atravessei o século e ainda não me percorri. // Qual a senha que transporto? / Serei
contrabando de Deus, que vai quieto dentro, / receoso de se pronunciar?" (p. 13). Ao questionar
a si mesmo sobre a razão de sua existência, o eu-poético menciona Deus, mas estabelecendo
73
com este uma relação o de subordinação, pelo contrário, o criador é que estaria encolhido,
tímido, no interior daquele. Essa atitude revela um posicionamento não convencional que o
sujeito lírico vai assumir ao longo da obra: "Condiciono os amores a uma expectativa / Mas é
justamente ela que me impede de ser real. // Tornei-me o diário de uma viagem cancelada."
(p.13). Dessa forma, percebe-se que ele se julga irreal, algo não concretizado, como também
ocorre na obra de lançamento de Carpinejar, em que Avalor declara não ser real, por não
manter a companheira acordada (2005b, p.15).
Uma das características da literatura é desprender o leitor da realidade cotidiana, o que
ocorre de maneira muito forte nesta obra, pois o sujeito lírico, descontente com o que dispõe,
deixa de viver o que é real, revelando-se inadaptado: "Não disponho de mapa / que me
centralize, guia que indique meu paradeiro." (CARPINEJAR, 2003, p. 14). Trata-se de um
deslocado frente ao real, insubordinado às limitações impostas pela existência. Ao agir dessa
forma, ele se torna, conforme expresso em verso anterior, “o diário de uma viagem cancelada”,
ou seja, suas realizações e alegrias são apenas criações imaginárias, previsões, desejos que não
chegaram a ser concretizados.
A insatisfação com a vida mediana e com o cumprimento das tradições acentua-se
através de interrogações: “Será que a ambição não me permite ser o que sou? / Ou realmente,
distraído com o que levo, / não leio os sinais, os mínimos indícios / de uma vida maior que a
lealdade aos costumes? (p. 15). Através das dúvidas apresentadas, ele aponta que o excesso de
ocupação pode levar à falta de percepção das reais potencialidades da vida.
A caracterização do eu-lírico ganha alguns dados nos versos seguintes, em que ele
demonstra ser casado e ter filhos, mas estar insatisfeito também com essa situação, a qual
aceitou mais para cumprir com as convenções sociais do que por seu real desejo: "Ao
conversar com minha filha, às vezes me dói / a responsabilidade de conduzir sua inocência. /
Se ela soubesse o desaviso da encruzilhada, / que aceitei uma trilha ao léu, entrei numa rua, /
no casamento, pela idéia de seguir o fluxo." (p. 16). Nesses versos se retoma a idéia expressa
anteriormente de “lealdade aos costumes”, o que indica que por um período de sua vida o eu-
poético apenas deixou-se levar, cumprindo com as tradições como se não houvesse outra forma
viver, no entanto, ao sentir-se inadaptado à situação vivenciada, ele assume atitude contrária e
alerta: “Não me empurrem mais, não vou por onde não sei. / Deixa-me pensar o corpo, deixa o
corpo me pensar." (p. 16). Após um período de submissão aparentemente irrefletida aos
padrões, expressa-se um desejo de ser levado pelo impulso, obedecendo aos apelos de seu
74
próprio corpo e não mais às imposições externas, dados que são fundamentais para
compreender as atitudes do eu-lírico ao longo da obra.
Na "Segunda elegia" se encontra reforçada a contradição que marca o sujeito lírico,
manifesta inicialmente pela afirmação: "Ser inteiro custa caro. / Endividei-me por não me
dividir." (p. 19). Ele se nega a criar falsas aparências para agradar aos que o cercam e sente,
como conseqüência disso, o peso da cobrança de não ser conforme o esperado. Note-se ainda a
oposição expressa pela idéia de dívida justamente por não se dividir, revelando que a
manutenção da integridade pessoal gera uma conta a pagar com o que é externo.
As recordações, que são um aspecto de destaque nas obras de Carpinejar, são buscadas
pelo eu-poético, a fim de comprovar suas vivências: "Parto em expedição às provas de que
vivi. / E escavo boletins, cartas e álbuns / - o retrocesso da minha letra ao garrancho. // O
passado tem sentido se permanecer desorganizado. / A verdade ordenada é uma mentira." (p.
19). Os elementos escolhidos para comprovar a existência têm vínculo com a escrita, o
conhecimento e também com a imagem, enfim, com as produções do eu-lírico, pois ele não se
contenta em provar sua existência por documentos, ele quer mostrar que fez algo ao longo de
sua vida, para isso vai em busca de registros. Ainda conforme esses versos, organização e
verdade se opõem, pois a verdade não se planeja, apenas a mentira pode ser programada.
Ao destacar: “O que ansiava achar não acho / e esbarro em objetos despossuídos de
lógica / que me encontram antes de qualquer pretensão.” (p. 19), o sujeito lírico reforça a idéia
de vivência que privilegia o sentimento e o contato físico à racionalidade. Por viver dessa
forma, porém, aparentemente ele não realiza grandes feitos, o que é sugerido pelo verso: “O
que fiz cabe numa caixa de sapatos." (p. 19). No entanto, se for considerada sua tendência a
valorizar os restos, as criações dele que cabem numa caixa de sapatos
15
podem assumir um
valor positivo, sendo engrandecidas para ele, embora sejam possivelmente insignificantes para
quem o cerca.
Alguns dos feitos do eu-lírico que cabem na caixa de sapatos são citados na seqüência:
"Colecionava talhos de madeira, bonecos / adornados com a ponta miúda do canivete. /
estava um dos sobreviventes, desfocado, / vizinho das medalhas escolares / e dos parafusos
condoídos de ferrugem." (p. 20). Assim, são coisas aparentemente sem valor que constituem os
15
Cabe ressaltar novamente que Caixa de sapatos é o título da antologia das quatro primeiras obras do poeta, o
que permite que se estabeleça um paralelo no sentido de que também suas criações poéticas cabem num espaço
restrito, embora tenham um valor que não se pode medir em termos concretos.
75
feitos exaltados por esse indivíduo atípico, que reconhece nessas pequenas coisas a sua
imagem, a ponto de declarar: “Um auto-retrato não seria tão fidedigno.” (p. 20), ou seja, a
imagem dele é reflexo daquilo que criou ou guardou de suas lembranças do passado.
O recurso do questionamento é utilizado pelo eu-poético como forma de despertar a
reflexão e analisar o passado. Assim, sobre a transição que leva à saída da infância, ele se
interroga: "Quantas foram as miudezas que não combinavam / com o conjunto e, na falta de
harmonia, / abandonei no depósito da infância?" (p. 20). Note-se o uso da expressão “depósito
da infância” para referir a lembrança daquele período, como se ela se constituísse pelo acúmulo
de várias coisas, idéia que é reforçada na seqüência: "Somos o desperdício do que estocamos. /
Não aprendemos a desaprender. / Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante." (p. 20).
Nesses versos o eu-lírico revela uma forma de egoísmo, que faz o homem reter muito mais do
que necessita, identificando-se nos excessos acumulados.
A afirmação contraditória: “Não aprendemos a desaprender” pode ser aceita como uma
referência à resistência a abandonar velhos hábitos, sem distinguir o útil do inútil, o válido do
dispensável. A tendência a reter aplica-se também à linguagem, representada pela palavra, que
também não seria transmitida, no sentido de que o que é dito continua pertencendo ao falante,
cada indivíduo tendo a sua fala, enquanto forma particularizada de expressão.
A exemplo do homem, aquilo que o cerca também tem a tendência de reter: "O porão
tem vida própria e respira / o que jogamos fora. / O que refugamos na ceia volta a nos
mastigar." (p. 21). A casa, representada nesses versos por seu porão, tem vida e se alimenta
daquilo que seus habitantes rejeitam. A escolha desse cômodo mostra-se significativa, uma vez
que o porão é considerado “a princípio o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências
subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas”
(BACHELARD, 1993, p. 36-37, grifado no texto). Pela imagem de escuridão a ele associada, o
porão se constitui num espaço onde se tem receio de ir e onde “o homem as sombras
dançarem na muralha negra” (p. 38). Pode-se estabelecer uma relação entre essa afirmação de
Bachelard e a vida própria atribuída pelo eu-poético a esse espaço. No porão é projetado aquilo
que o homem dispensa ou deseja ocultar, mas que acaba voltando-se contra ele.
A “Terceira elegia” começa com a apresentação de imagens aparentemente desconexas,
incoerentes: "Enrolo a lona de estrelas, / escoa a vegetação represada nas calhas. / Ecoa a
estranheza, límpida. / A seiva sobe do solo e me contamina de profundezas." (CARPINEJAR,
76
2003, p. 25). Aliando elementos normalmente separados e até antitéticos, como o céu,
representado pelas estrelas, e o solo ou mesmo o subsolo, o sujeito lírico aproxima seu discurso
da dominante cíclica do regime noturno. Cabe ainda destacar como ele segue explorando os
ambientes mais profundos, pouco representados pelo porão e agora indicados pelas
profundezas do solo de que ele assume estar contaminado, o que possibilita uma associação
com o posicionamento de Bachelard acima referido, para afirmar que o eu-lírico mostra-se, por
meio desses versos, fortemente influenciado pela irracionalidade, por pensamentos obscuros.
Reforçando a idéia apresentada no início da obra, o sujeito rico relata uma série de
projetos de sua vida que foram frustrados e que contribuem para que ele se considere “o diário
de uma viagem cancelada” (p. 13): "Regulei minha biografia com a idade das promessas. / Aos
vinte anos, teria feito isso; aos trinta, aquilo; / no limiar dos galhos e rebentar do sumo, /
consagraria as etapas anteriores.” (p. 25). A idéia de que toda a vida do eu-lírico estava
programada, com as conquistas projetadas e datadas, mas não efetivadas, é confirmada na
seqüência: “Previ e não vinguei, como aquele feto em formol / exposto em laboratório." (p.
25).
Mudanças de comportamento, avanços e retornos são características da dominante
cíclica do regime noturno do imaginário que transparecem nessa obra através de atitudes do eu-
poético, que ora se mostra inadaptado à realidade, ora impressiona a si mesmo por seguir à
risca o comportamento esperado: "Me impressiono com a capacidade de acatar / o que me
deram, à revelia de juízos. // Estive sempre de no ônibus, espremido entre o ferro / da
cadeira e o rumor dos passageiros. / Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos.”
(p. 26-27). Essa atitude retoma a apontada na “Primeira elegia”, em que ele também afirmara
ter-se sujeitado passivamente, durante um período de sua vida, aos costumes e
convencionalidades que lhe eram impostos, o que se contrapõe à atitude de desprendimento e
inadaptação às tradições e padrões sociais, demonstrada em outros momentos.
Um clima de mistério envolve a identidade de uma pessoa procurada e esperada pelo eu-
lírico na "Quarta elegia". Ele mostra-se atento a todos os sons, objetos e imagens que possam
revelar a presença dela: "Tenho uma desaparecida. Ao separar a polpa das cortinas, / aguardo a
pronúncia do portão, impassível, aguardo a carta, / o envelope com a letra trêmula de uma
vela./ Guardo a fome, o prato velado, viúvo no linho da mesa. / Disfarço o pranto. Levanto a
voz que logo desmaia." (p. 31). O olhar pela janela, a espera do barulho do portão ou a chegada
da carta simbolizam a crença no retorno, a ansiedade da volta, sentimentos contrapostos ao
77
sofrimento causado pelo afastamento, indicado pela falta de fome, as lágrimas, a voz
embargada e sem força.
A dúvida sobre a identidade da pessoa desaparecida é mantida, havendo apenas alguns
indícios que podem conduzir a leitura. Pode-se deduzir que se trata de uma pessoa próxima,
pois ele guarda uma recordação dela: "Tenho uma desaparecida, uma foto na carteira, /
preservada como um bilhete premiado." (p. 32). Também fica insinuada certa intimidade entre
o eu-poético e a pessoa ausente, devido ao conhecimento que ele tem dos caminhos percorridos
por ela antes do desaparecimento: “Refaço teu roteiro preferido, as ladeiras / se espreguiçando
no rio, o chalé da praça XV, o museu, / o viaduto da Borges." (p. 33). Merece ser referido que
os locais mencionados pelo eu-poético existem na realidade na cidade de Porto Alegre-RS, o
que pode ser interpretado como uma expressão do imaginário de que está impregnado o poeta,
como já ocorreu em outros trechos de obras de Carpinejar.
Retomando uma comparação proposta em As solas do sol, na "Quinta elegia", o sujeito
lírico reflete sobre o papel do fogo e se compara às cinzas que sobram da destruição
engendrada por este elemento: "O que o fogo já leu de cartas. É o derradeiro confidente. /
Recolhe os rascunhos, o que escondemos no fojo. / Desfia os amantes, os desafetos, os crimes.
// A sina do fogo é soprar cinzas. Nossa sina é sobrar nas cinzas." (p. 37). O fogo assume papel
essencial, por conhecer a intimidade dos homens, aquilo que eles pretendem ocultar. Ao
queimar, ele tem poder transformador, convertendo sentimentos e desejos em cinzas, mas
também podendo simbolizar a regeneração, representativa da dominante cíclica do regime
noturno do imaginário, conforme afirmação de Durand, já referida anteriormente. Após enfocar
o caráter transformador do fogo, o eu-poético assume que também ele tem essa característica:
"Sou capaz de aniquilar um amor / para ver o que repousa em seu fundo." (p. 37), dessa forma,
ele também busca as sobras, as cinzas do sentimento e não sua integralidade.
Carpinejar, apesar de produzir uma poesia que apresenta uma multiplicidade de imagens,
valoriza também o silêncio, que é referido em suas obras como carregado de significado,
abrangendo o que não pode ser expresso pela palavra. Nesse sentido, cabe ressaltar o verso “O
silêncio constrange, tudo pode estar incluído nele.” (p. 38), que reflete a idéia de que o não
dizer significa mais do que a palavra pronunciada, pois traz o potencial latente. Essa afirmação
do sujeito lírico é seguida por: “Sem repartir a solidão e o entendimento, / não duração que
se estenda.” (p. 38), que indica a necessidade do silêncio, mas também da solidariedade e da
compreensão para que se possa manter uma relação.
78
Ao fazer novamente um apelo à pessoa desaparecida que procura, o eu-lírico, no início
da “Sexta elegia”, confronta idéias opostas: o conhecido e o desconhecido, o esquecimento e a
afirmação da memória, reforçando a idéia de conciliação de contrários, própria do regime
noturno da imagem: Onde estás? Residindo no desconhecido / ou resistindo em meu
conhecimento? // O paraíso é a paz ardente, renúncia terrena, / terra esquecida. / Ainda que não
me lembre, legarei memória.” (p. 43). Note-se que ele não consegue definir se aquela que
busca ainda está nele ou se partiu, revelando que ele desconhece a si mesmo.
A conciliação de opostos é levada ao extremo pelo eu-poético, que não teme recorrer a
ofensas e sentimentos negativos para atrair aquela que busca: “O jogo de cena contenta os
casais que ensaiam seus papéis. / Não a nós, aprumados na contenda. / Nossos corpos foram
moldados à discordância. // A mesma proximidade que mata, salva.” (p. 45). Ele demonstra
não estar disposto a viver de aparências, preferindo a discórdia, a briga ou mesmo a separação,
uma vez que, conforme indica no último dos versos citados, a proximidade pode tanto produzir
o bem quanto o mal, estando ambos conciliados na mesma relação, da mesma forma que morte
e vida provêm do mesmo meio, têm a mesma origem.
Retomando as exortações, o eu-lírico aponta caminhos para o entendimento com a
companheira: “Que não me aborreças / com pormenores de relações passadas. / Que eu não
mexa em tua correspondência, / não reviste tua bolsa. / Que seja homem de uma única mulher,/
como uma banda de um único sucesso, / como um poeta de um único livro.” (p. 46). São
explicitadas, aí, as condições de cada um para a consolidação do relacionamento, sendo que a
fidelidade aparece como um ponto essencial. Contrariando, porém, a expectativa de que essa
série de cuidados promova a reconciliação, o final da elegia revela que o sujeito lírico está
sozinho: “Que eu entenda ainda que tarde, agora sem ti, // Deus improvisa.” (p. 46). As
orientações apresentadas perdem o sentido pela ausência da companheira, que pode ser
entendida como causada pela morte, constituindo esta o improviso de Deus. Assim, quando
acreditava ter encontrado a solução para a reconciliação, o eu-lírico perde a companheira de
maneira definitiva.
A aproximação entre homem e árvore, já presente na primeira obra de Carpinejar, volta a
aparecer em Terceira sede; as semelhanças com o vegetal, nessa obra, são relacionadas à
companheira do eu-poético, pelas descrições íntimas presentes nos versos: “Teu corpo
arvorava nos lábios indecisos ou nos cabelos? / Na encosta da cinta ou nas dunas dos seios? /
79
Quando começavas a te revelar? No desejo apetecido / ou na fome de um filho? / Como definir
se a luz deitou as vestes?” (p. 49). Novamente, o recurso utilizado na tentativa de comunicação
é o questionamento, o eu-lírico busca respostas, ao invés de apresentar certezas. O sentimento
de insegurança é marcante principalmente quando ele refere sua condição após a perda da
mulher, pois não sabe como preencher o vazio causado pela ausência dela: “Acostumado à
extensão das raízes, não sobrevivo no vaso dos pés. // Passei a vida aprendendo a respeitar teu
espaço. Como povoá-lo / após tua partida?” (p. 49).
Outra aproximação reiterada nos poemas de Carpinejar é a que se estabelece entre a
leitura e o ser humano; no livro que está sendo estudado, o que é lido pode ser interpretado
como a própria vida, que esta ninguém lê integralmente: A obra convence pelos
fragmentos, ninguém a inteira.” (p. 50). Posteriormente, o sujeito lírico refere a leitura
associada ao corpo da mulher amada: “Vou começar / e concluir a leitura em ti, minha mulher./
És a página que dobrei para retornar, o manuscrito / que nunca acordei de completo. / Contraio
as pupilas, / viajas clandestina nos poemas que virão.” (p. 50). Metaforicamente, o objeto de
leitura, no caso do eu-poético, é, portanto, a mulher amada, seu corpo, sua vida que, ao
contrário das demais obras, ele se propõe a ler por inteiro e ainda quer ajudar a escrever, por
fazer parte dela. A leitura assume, assim, uma amplitude superior à usual, revelando que não
apenas textos escritos podem ser lidos, o corpo também possui uma linguagem que pode ser
decifrada, decodificada no relacionamento.
É importante ressaltar que, para o eu-lírico, a morte provoca a separação corporal, mas as
lembranças mantêm vivo algo da pessoa que parte, o que produz um sentimento de melancolia
ou mesmo de revolta, como ocorre com ele: “Os mortos são ingratos, não morreram em nós. /
Os mortos vão nos vivendo em vão. // Extinta a chama da pele, a alvorada me vencerá / e
qualquer falha será rio e riso de alvura, / penumbra à comoção das cigarras. // Essa morte, não
posso contê-la, / é a última chance para te servir. / Orgulha-me o volume da queimadura.” (p.
51). Sugere-se, assim, que a morte física não apaga as lembranças da pessoa morta, esta
continua a existir na memória. Ciente de que não como trazer quem deseja de volta, o eu-
poético vê a morte como saída, como única chance de rever aquela a quem perdeu. Afinal, pela
expressão utilizada, a morta o vive, vive por ele, mas é uma forma de vida vã, pois não permite
o reencontro. Por outro lado, vale destacar que, ao afirmar a possibilidade de reencontro após a
morte, ele aponta uma forma de vencer a temporalidade e a separação, numa atitude que pode
ser vinculada à modalidade de escrita de aceitação do tempo.
80
Na ausência da companheira, a escrita assume papel de superação das dores, ou de meio
para transferi-las de si para o papel: “Não escrevo para me expor, mas para transpor o escrito, /
reavivar a natureza-morta. As palavras, como pêras, / perecem ao toque. E é tarde para não
mastigá-las. // Palavras e palavras, destruíram as que me dariam significado. / Mudei de
endereço e nenhum sinônimo me localiza.” (p. 51). Note-se que as palavras escritas são
consideradas mortas, mas sempre passíveis de adquirirem vida nova. Pode-se inferir ainda que,
explorando a linguagem, o eu-lírico busca uma maneira de trazer de volta aquela que
fisicamente não mais está ao seu alcance. Considerando-se que pouco ele expressava o
desejo de ler o corpo da mulher amada, reforça-se a associação entre esta e a palavra, podendo-
se interpretar que a destruição das palavras que dariam significado ao sujeito lírico representa a
morte de sua companheira.
Alguns trechos da obra são de tal modo dúbios, ambíguos, que se torna difícil precisar o
que o eu-poético quer revelar. Assim, os versos iniciais da “Oitava elegia”, sugerem a vivência
de uma situação próxima à morte, mas relatada de forma confusa, truncada: “Quase atingi meu
extremo. Não há registros / e prontuários médicos. Com a mão apertando firme / a maçaneta do
casaco, a alça de prata, desisti, / deduzindo o que havia dentro. // Nenhuma profecia me
amparou, os anjos não me cercaram.” (p. 55). Uma interpretação possível para esses versos é o
suicídio, planejado mas não realizado pelo eu-lírico, daí não haverem registros médicos, nem
seres celestiais cercando-o. Como conseqüência, ele afirma a seu respeito: “Sou um quase, a
efígie não sorteada da moeda, / o naipe de um blefe, o que silencia de vergonha, / o acuado pela
enxaqueca, o que circunda amuado / a roda de capoeira.” (p. 55). Por essa seqüência de
imagens, ele indica o quão fraco e desprezível se considera por não ter tido a coragem de
acabar com a própria vida.
Por outro lado, ele também reconhece que não é um indivíduo fácil de ser compreendido:
“Não me abrevio a um universo explicado.” (p. 55), sugerindo, assim, que possivelmente
aqueles que o cercam não podem entendê-lo, ao que acrescenta, em outro poema, que ele
mesmo põe em dúvida sua personalidade: “Desconfio que não seja como me acostumei.” (p.
57). Ao questionar seu verdadeiro ser, ele cria hipóteses, inicialmente supondo que algo a
seu respeito que a família não deseja que ele descubra: “Desconfio que me escondem algo.” (p.
57). Na seqüência, porém, ele mesmo tenta ocultar sua história, conforme expresso nos versos:
“Na posse de um documento importante, ponho num canto secreto / que não recupero, tão
secreto que era. / Enterro para esquecer, esqueço para guardar.” (p. 57). O esquecimento é a
forma de ele guardar aquilo que julga importante, revelando uma atitude antitética, oposta à
81
normalidade, que retoma o comportamento do filho em Um terno de pássaros ao sul, que
esquece o pai para melhor conservar a imagem que criou dele.
Imaginando que não é aquele que acreditava, o sujeito lírico incorpora a identidade
desconhecida e assume defeitos que vincula a ela: “Meu duplo ocupou o lugar, um ente
vocacionado a errar, / que bebia além do vício, amava com os punhos fechados. // Meu duplo
ocupou o lugar e era eu, aceitemos, era eu.” (p. 59). Através desse duplo que introjeta, o eu-
poético sente-se impelido a reconhecer uma tendência para atitudes negativas. Clément Rosset,
filósofo francês, consagra uma obra inteira ao tema do duplo e propõe que o sentimento de
dupla personalidade gera uma angústia, cujo fundamento deve ser procurado no temor “de eu
mesmo não ser aquele que pensava ser. E, mais profundamente ainda, de suspeitar nesta
ocasião que talvez não seja alguma coisa, mas nada” (1988, p. 66). O eu-lírico assume,
portanto, nos versos citados, que é na verdade este outro, e não aquele que representava
anteriormente, ou seja, o duplo é seu verdadeiro “eu”.
Assumindo ainda sua personalidade negativa, o eu-lírico desafia a quem o quiser julgar:
“Fui o que não direi, o que ninguém dirá, um desvio / de sobrancelhas. // Cometi impulsos e
vacilos, impurezas / e fantasias de homicida. Quem não as teve? / Que atire a pedra e será tijolo
em meu muro.” (CARPINEJAR, 2003, p. 59). Percebe-se que ele se julga um ser desviante da
regra, embora essa inadaptação ao padrão possa ser representada por algo tão ínfimo como um
“desvio de sobrancelhas”. A referência a impulsos e vacilos, remete ao desejo de suicídio,
insinuado anteriormente, que ele contrapõe agora a “fantasias de homicida”, revelando que o
desejo de matar a si e a outros faz parte de sua personalidade, embora ele não tenha a coragem
de cometer os atos efetivamente, apenas de criá-los pela imaginação. O último desses versos
citados, que remete a uma passagem bíblica, aponta novamente para a tendência do eu-poético
de transformar o que lhe ocorre, o que vê, enfim, aquilo que o cerca.
Reiterando a dor da ausência da companheira, ele reconhece ter perdido também a si
próprio: “Não sei o peso do meu corpo sem contar / com a medida do teu. / Deslembrarei, não
mais confirmas o que vejo. / Depois de tua perda, sou eu que não existo.” (p. 60). A separação
da companheira parece constituir uma marca para o apagamento de uma personalidade do eu-
poético e a manifestação de outra, fazendo referência ao duplo caráter dele, mencionado em
versos anteriores. Na ausência da parceira, ele não se reconhece mais, sente-se perdido, no
entanto, em mais uma atitude paradoxal, ele também revela um lado positivo no afastamento:
“Descrever-te é invadir um mistério. / A distância nos enobrece.” (p. 61). A separação permite
82
a ele perceber que não conhece a parceira e que é justamente a distância e o mistério que a
envolvem que a tornam especial e a valorizam.
Na “Nona elegia”, o eu-lírico enfoca a infância, como um período saudoso. Logo nos
primeiros versos, ele relembra seu local de nascimento: “A morada em que nasci ondula no
ouvido, demorada. / A água-furtada congela, a tesoura da cordilheira / poda as uvas e o cristal
da vide. O quintal estende os uivos / pela vizinhança.” (p. 65). Lembranças da casa de origem
se misturam à criatividade, formando imagens poéticas significativas, que são estendidas ainda
por outros versos, para culminarem em uma estrofe de um único verso, em que o sujeito lírico
revela-se tomado por sua morada primeira: “A morada em que nasci me habita.” (p. 65). Essa
inversão de posição entre morada e morador pode ser entendida devido às lembranças felizes
que este guarda dos momentos que viveu naquela. Bachelard, ao estudar o simbolismo da casa
natal, destaca que para evocar o apego de um indivíduo por ela, “o sonho é mais poderoso que
os pensamentos. São os poderes do inconsciente que fixam as mais distantes lembranças”
(BACHELARD, 1993, p. 35). Assim, as imagens de infância são mais marcadas pela recriação
imaginária do que pela evocação fidedigna dos acontecimentos.
Na seqüência, o eu-lírico revela que não tem controle sobre suas lembranças: “Recordo o
que posso, não o que preciso. / Amarrar os cadarços nas canelas, entortar colheres no solo, /
criar chuva sacudindo a copa das árvores.” (CARPINEJAR, 2003, p. 66). Esses são fatos
simples, mas que marcam o período de infância como extremamente agradável e divertido. Ao
lado dessas recordações felizes, ele mantém na memória também as tristezas e decepções:
“Recordo o que posso, não o que preciso. / A primeira vez que vi alguém chorar foi a avó / e
ela abanou negativa. Minha falhou / ao tentar remover o cisco de seu olho.” (p. 66). A
percepção do sofrimento e a tentativa frustrada de oferecer ajuda fazem o sujeito lírico
experimentar a impotência, pois a causa do sofrimento não é externa.
Na última página da “Nona elegia”, o sujeito lírico revela seu despreparo para a situação
da morte: Imaginava a morte lírica, a córnea forrada / de ervas, a lua laminando a barba de
abelhas. / Quando é física, nenhum vocábulo ou pensamento é novo. / Empenhamos a mesma
prece desde os imigrantes, / o mesmo grito afoito, o mesmo rito das gaivotas.” (p. 68). Em
contraposição ao que ele imaginara, sua morte se mostra igual a todas as outras, não lhe
trazendo o encantamento que encontrava nos poemas. Assim, ele percebe que não reação
diferenciada a apresentar nesse momento extremo, a atitude dele é ainda a mesma manifesta
por diferentes gerações ao longo de séculos.
83
em relação à degradação causada pela idade e pela doença, ele ousa afirmar: “A morte
nos conserva.” (p. 68). Essa declaração paradoxal sugere que o adeus definitivo permite
esquecer as decepções e conservar da pessoa morta somente as melhores recordações.
Enfim, na “Décima elegia”, o eu-lírico se dedica a abordar mais intensamente a fase final
da vida, a velhice, e para isso vale-se da repetição da expressão: “Só na velhice” em todas as
páginas, como recurso para destacar as particularidades desse período. Assim, num primeiro
momento, ele destaca: “Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia. / O exílio é na carne. //
Esmorece o esforço de conciliar a verdade / com a realidade. / A neblina nos enterra vivos.” (p.
71). O sofrimento se revela como marca dessa fase e o humano não se reconhece no próprio
corpo, uma vez que a fragilidade que lhe é própria fica realçada, ganha dimensões maiores e as
perspectivas diminuem progressivamente, conforme sugere a metáfora da neblina.
O eu-poético também reconhece que na velhice o ser humano abre mão dos excessos,
não precisa mais carregar bagagem, pois seu destino, a morte, dispensa acessórios: “Só na
velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco. / O suspiro é mais audível que o clamor. //
Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.” (p. 72). A referência ao suspiro pode
ser uma alusão ao momento da morte, o último suspiro, que é mais significativo que qualquer
grito ou clamor, que possa ocorrer posteriormente. Diante da série de mudanças e degradações
que marcam a velhice, o sujeito lírico alerta: “Convém dispor de cautela e se despedir aos
poucos.” (p. 73). Cabe ressaltar que ao longo da obra ele vai apontando, por diversos
momentos, elementos vinculados à morte para, nesta parte final, assumir uma predisposição
natural para enfrentar essa situação inevitável. Ele demonstra, portanto, nesse momento, aceitar
a passagem temporal, embora padeça com as conseqüências que ela acarreta. Pode-se sugerir,
assim, a vinculação do posicionamento do eu-lírico com a modalidade de progresso,
representada pela escrita que manifesta a aceitação da passagem temporal.
Em outra estrofe, uma metáfora aproximando as pessoas de idade avançada a edições
raras: “Só na velhice o receio de folhear edições raras / e rasgar uma gina gasta pelo
manuseio.” (p. 74). O receio de rasgar uma folha de uma edição rara se compara, na velhice, à
morte: as pessoas de idade, assim como as folhas gastas pelo uso, são frágeis e podem perecer
ante um toque mais violento.
84
Na seqüência, aparece um verso intrigante, que se refere, possivelmente, à luta, entendida
como sofrimento provocado pela perda de alguém próximo: “O luto não é trégua e descanso,
mas a pior luta.” (p. 74). De modo diverso da atitude de aceitação da própria morte, expressa
pouco, o eu-lírico não aceita a morte alheia com passividade, pelo contrário, a considera
uma luta, causada pela dor da separação. Esse verso remete a outros presentes na primeira obra
de Carpinejar, em que Avalor questionava: “A vida é uma trégua / ou o fim dela?(2005b, p.
19).
Numa espécie de despedida, o sujeito lírico faz um mea culpa: “Lamento ter sido
indiscreto / com minha dor e discreto com minha alegria.” (CARPINEJAR, 2003, p. 75).
Novamente, há a aproximação de opostos, caracterizando uma atitude relativamente comum de
dar mais ênfase aos sofrimentos do que à felicidade, o que, de certa forma, também foi marca
dessa obra, revelada inclusive pelo tipo de composições poéticas que a constituem, as elegias.
Assim, nas páginas finais, o tom é de desculpas por parte do eu-poético pela carga melancólica
com que carregou seu discurso.
Reafirmando mais uma vez que está chegando ao fim da existência, ele declara: “Só na
velhice a mesa fica repleta de ausências. / Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite /
após arrebentar-se em música. / Creio na cerração das manhãs. / Conforto-me em ser apenas
homem.” (p. 75). As ausências à mesa significam, provavelmente, as pessoas que já partiram, e
a metáfora da corda produz uma imagem significativa sobre o desgaste imperceptível, mas que
leva ao limite da vida, após produzir o seu melhor. Ao referir a crença na cerração, que pode
ser vinculada à neblina citada anteriormente, ele expressa a sujeição à restrição visual causada
por esse fenômeno que encurta o horizonte, da mesma forma que o avanço na idade reduz as
expectativas, afunila o leque de possibilidades, encaminhando o indivíduo para o fim último. O
verso final do trecho citado confirma a aceitação pelo eu-poético de sua condição mortal, com
todas as fragilidades que ela acarreta. Assim, após a resistência demonstrada ao longo da obra
perante a morte, no final, ele parece aceitá-la, conforme também foi indicado há pouco.
A última página da obra, composta por uma estrofe de apenas dois versos, reforça a
proximidade do comportamento adotado pelo sujeito lírico à dominante cíclica do regime
noturno da imagem, devido à conciliação dos opostos, bem como a vinculação da escrita com a
aceitação da passagem temporal como forma de superá-la, por meio da circularidade do tempo.
Ao afirmar: “Envelheci, / tenho muita infância pela frente.” (p. 76), ele une o fim e o início da
vida, com a morte representando um novo começo. O estudioso Hans Meyerhoff destaca que
85
“o movimento do tempo em direção à morte é também a condição de nascimento e
renascimento” (1976, p. 61), afirmação que se harmoniza com a atitude do eu-lírico que se
insere na temporalidade buscando ultrapassá-la pela circularidade do tempo, pelo renascimento
após a velhice e a morte.
Retomando a obra como um todo, percebe-se que atitudes de resistência e aceitação da
morte se contrapõem, como é característico no humano. A perda alheia, especialmente de um
ente querido, tende a reforçar uma atitude de revolta, devido à separação gerada, no entanto,
com o envelhecimento e a percepção de que a própria morte se aproxima, a crença em um
renascimento serve de esperança de renovação após o sofrimento e ameniza o desconforto da
certeza da partida que se aproxima, o que permite a associação da obra prioritariamente à
dominante cíclica, vinculada ao regime noturno do imaginário.
Um paratexto significativo e que chama a atenção do leitor são as ilustrações que
constam nas páginas de abertura de cada elegia. Constituídas sempre por um único objeto sobre
um fundo que se assemelha ao olho de um furacão, elas podem incitar várias possibilidades
interpretativas, mas nenhuma certeza, algo que é, aliás, típico da poesia; ela sugere, insinua,
mas dificilmente impõe um único sentido.
Uma associação possível a respeito dessas ilustrações é a aproximação dos objetos
ilustrados com imagens vinculadas à terceira idade, o que se constata principalmente a respeito
da bengala, dos óculos, do cachimbo e do guarda-chuva. Quanto à espiral em forma de olho de
um furacão, percebe-se que ela fica em segundo plano, sendo sua cor fraca, meio apagada, o
que permite uma associação à lembrança não necessariamente muito clara do passado, mas
transformada pela imaginação, conforme sugere Bachelard, para quem “a imaginação aumenta
os valores da realidade” (1993, p. 23), tornando a recordação não a simples reprodução de
acontecimentos, mas uma ação criativa.
4.4 Biografia de uma árvore: paradoxos conciliados
Em Biografia de uma árvore: poemas abandonados, Carpinejar retoma o eu-poético
Avalor, que aparecera na obra de lançamento do poeta, As solas do sol, e vale-se, ainda, de
outro recurso anteriormente adotado, o avanço no tempo. Conforme realizado em Terceira
86
sede, ele usa o deslocamento temporal, sendo que o ano indicado na obra é novamente 2045.
Esses elementos em comum entre as obras revelam que o poeta busca dar uma continuidade a
seus escritos, com um livro complementando o outro, mas sem que isso impeça a leitura
independente. O próprio poeta confirma, em entrevista
16
publicada em seu site, essa visão de
suas cinco primeiras obras como um conjunto, uma seqüência, com certo enredo.
O subtítulo da obra sugere ao leitor uma aproximação dos escritos com o que é deixado
de lado, relegado a segundo plano ou descartado. A poesia dessa obra tem, assim, um vínculo
com coisas que muitas vezes não são percebidas no dia-a-dia, por sua simplicidade e aparente
irrelevância, mas que o eu-poético aborda de maneira especial, iluminando-as, dando-lhes uma
importância renovada. Também nesse sentido, a obra de Carpinejar se relaciona com a de
Manoel de Barros, pois este poeta prioriza as coisas simples, irrelevantes e o nada, como
aponta o título de uma de suas obras, Livro sobre nada.
Biografia de uma árvore se divide em três partes, todas levando o nome da obra como
um todo, acompanhado pela autorização de diferentes sujeitos. A primeira parte é a “Biografia
de uma árvore (autorizada pelos pássaros)”, a qual apresenta uma espécie de laudo sobre a
(in)sanidade de Avalor, assinada por um médico, o Dr. Ossian, em 23 de outubro de 2045. A
segunda parte, e também a mais extensa, composta por nove conjuntos de poemas, é a
“Biografia de uma árvore (autorizada pelas raízes)”, em que Avalor vai se manifestar de forma
mais intensa, através do que ele denomina a “orelha de uma árvore”, objeto que entrega ao Dr.
Ossian em sua consulta, alegando que guarda a voz de Deus. Por fim, a terceira parte é a
“Biografia de uma árvore (autorizada pelos frutos)”, que se constitui dos versos que Avalor
bordara durante a vida em um paletó usado, escritos que ele denominava Novíssimo
Testamento. Este se constitui de um poema longo, cujos versos se assemelham a uma série de
preceitos para conciliar as oposições apresentadas na segunda parte da obra.
As três partes do livro se opõem e se completam, de forma a mostrar a biografia da
árvore sob diferentes prismas, unindo os três níveis o subterrâneo, pelas raízes, a superfície,
pelos frutos, e o ar, pelos pássaros. A obra se constitui num conjunto unitário que, conforme se
buscará mostrar ao longo da análise, vincula-se à dominante cíclica do regime noturno do
imaginário, devido à aproximação de visões opostas, que se complementam.
16
Entrevista concedida a Linaldo Guedes, do Correio das Artes, disponível no blog do poeta:
www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br.
87
Na primeira parte de Biografia de uma árvore, Dr. Ossian
17
apresenta Avalor como “poeta
de origem desconhecida” (CARPINEJAR, 2002, p. 9), a quem atendeu em seu consultório, e
cujas atitudes descreve numa espécie de laudo, dando a entender que ele não tem pleno
domínio de suas funções intelectuais. Note-se que Dr. Ossian representa a racionalidade,
enquanto Avalor é símbolo daquilo que está aquém e além do racional, a subjetividade, a
imaginação, a criatividade, às vezes beirando a loucura.
A identificação da primeira parte da obra como autorizada pelos pássaros estabelece uma
aproximação entre Dr. Ossian e a dominante postural do regime diurno a imagem; ele é aquele
que se impõe, tem autoridade, conhecimento, poder, valendo-se disso para julgar Avalor. Este,
por sua vez, contrapõe-se ao médico em seus comportamentos, revelando-se ligado, como
indicado, à subjetividade, devido à sua função (poeta) e também à sua disfunção intelectual. O
valor simbólico do pássaro, a que o Dr. Ossian é vinculado, contribui para consolidar essa
visão desse médico como um ser voltado à razão, uma vez que Chevalier e Gheerbrant, em seu
Dicionário de símbolos, declaram que “o vôo dos pássaros os predispõem [...] a servir de
símbolos às relações entre o céu e a terra [...]. O pássaro é a representação da alma que se
liberta do corpo, ou apenas o símbolo das funções intelectuais” (1999, p. 687). Considerando o
que foi citado, pode-se reconhecer que a expressão “pássaros”, quando referente ao Dr. Ossian,
tem seu valor associado às funções racionais.
Esse médico, porém, descreve Avalor também comparando o rosto deste a um pássaro.
é preciso observar que a aproximação dá-se em outro sentido, talvez mais vinculado à idéia de
libertação da alma em relação ao corpo e relação entre terra e céu, o material e o transcendente.
Dr. Ossian, ainda ao descrever o eu-lírico, aponta que ele possui características e atitudes que
revelam certo grau de insanidade: “Tinha um olhar de louco, o mesmo olhar que atinge as
pessoas quando estão com fome.” (CARPINEJAR, 2002, p. 9).
Avalor é peça-chave para se compreender a aparente confusão de imagens da obra, as
quais se justificam por ele ser um visionário, conforme também referido em As solas do sol,
obra de lançamento de Carpinejar, anteriormente analisada. O eu-poético, como referido na
análise daquela obra, pode ser associado ao sergipano Arthur Bispo do Rosário, interno da
colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, por 50 anos, diagnosticado como esquizofrênico e
17
O nome Ossian faz referência a um poeta clássico, do século V a. C., cujos poemas o escocês James
Macpherson dizia traduzir do gaélico, a fim de alcançar prestígio. As obras que eram na verdade produções do
próprio Macpherson cultivam a oralidade da linguagem, o apego à natureza e aos sentimentos, características
essenciais do movimento romântico, originado a partir dessas obras (EVANS, 1976, p. 386-387).
88
que teve sua obra descoberta na década de 80, sendo que esta atingiu repercussão internacional.
Suas obras eram compostas por objetos velhos, aparentemente sem utilidade, entre eles um
manto repleto de bordados, que pode ser comparado ao “casaco todo bordado de frases” (p. 9)
de Avalor. Outra característica em comum entre o sergipano e Avalor é que aquele também
acreditava comunicar-se com Deus, embora buscasse cumprir à risca as ordens da divindade,
enquanto o eu-lírico se compraz em desafiá-lo, conforme se perceberá no decorrer do estudo.
A segunda parte da obra apresenta-se dividida em nove conjuntos de poemas em que é a
voz do próprio Avalor que se manifesta. Ao longo desses poemas será freqüente a ocorrência de
contradições e também o questionamento a Deus pelo sujeito lírico, fato que se revela
contraditório se for considerado que esta parte da obra constitui a “orelha de árvore” que
contém a voz divina.
Quanto ao título, vale destacar que ela vem autorizada pelas raízes, elemento mais
subterrâneo da árvore, podendo-se sugerir que é nela que Avalor irá expor-se mais
intensamente, revelando aquilo que vem de suas profundezas. É importante notar, porém, que
ele não fala de si, mas de suas relações e daquilo que observa no espaço que o cerca. Nesse
sentido, cabe ressaltar que o foco do eu-poético, à parte as afrontas a Deus, são coisas simples,
acontecimentos ínfimos e destituídos de valor, como se pode perceber, inclusive, pelos títulos
dos conjuntos de poemas, como “Fome dos insetos” e “Folhas do pátio”, por exemplo.
O primeiro conjunto de poemas de "Biografia de uma árvore (autorizada pelas raízes)" é
"Ouvidos de orvalho", título que se mostra significativo se considerado que esta parte da obra é
a "orelha de uma árvore", conforme Dr. Ossian menciona na parte anterior. Pode-se também
associar o título desse conjunto de poemas a uma apurada sensibilidade auditiva, sugerindo que
seus versos exigem ou são provenientes de uma escuta atenta, sensível.
No poema inicial, Avalor contrapõe a atemporalidade à limitação terrena: "Na eternidade,
ninguém se julga eterno." (p. 15). A essa despreocupação com a passagem temporal se opõe o
perigo do esquecimento e a finitude da vida: "Aqui, nesta estada, penso que vou durar / além
dos meus anos, que terei / outra chance de reaver o que não fiz. / Se perdoar é esquecer, me
espera o pior: / serei esquecido quando redimido.” (p. 15). A esperança do eu-lírico para
superar a finitude é não ser perdoado, atitude que se opõe ao usual desejo de salvação e que ele
reforça ainda na seqüência: “Não me perdoes, Deus. Não me esqueças. / O esquecimento
jamais devolve seus reféns.” (p. 15). Por esse comportamento, ele expressa, através de uma
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aparente aceitação da temporalidade, o desejo de ultrapassá-la, característica que marca a
modalidade de progresso, conforme caracterização de Burgos.
Fazendo o contraponto a essa esperança de superação do tempo, ele admite: “A claridade
não se repete. A vida estala uma única vez.” (p. 15). Esse verso final revela-se contraditório em
relação à posição expressa pouco pelo eu-poético; agora ele frisa que não segunda
chance, o humano não tem a oportunidade de refazer o caminho, cada instante é irrepetível e,
cedo ou tarde, o esquecimento o tomará por refém, idéia que é mantida ainda na seqüência:
"Não há como recuar depois de arder alto. / Fui lançado cedo demais às cinzas.” (p. 16). Avalor
nota que não caminho de volta para reviver experiências passadas e lamenta ter perdido o
vigor muito cedo, o que é expresso pela palavra "cinzas".
A resistência do sujeito lírico à conversão e a sujeição apenas pela imposição e pela força
são enfatizadas nos versos: "Minha conversão é pelo medo, / orando de joelhos diante do
revólver, / sem volver aos lados, / na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.” (p. 16). Revela-
se a agressividade da divindade, que chega ao extremo do assassinato no último verso desse
poema: "Derramado em Deus, junto meu desperdício.” (p. 16). Como pecador, o eu-lírico paga
pelos excessos cometidos. Aliás, os poemas dão mostras desse excesso: pluralidade de
imagens, metáforas e ambigüidades.
A atitude de questionamento a Deus, e a interpelação provocativa que levam o eu-poético
aos excessos podem ser percebidos ainda em versos como: "Não importa se te escuto / ou se
explodes meus ouvidos de orvalho: / morre aquilo que não posso conversar?(p. 18). Merece
destaque a agressão expressa por "explodes meus ouvidos de orvalho", em que se opõe a
violência do termo “explodes” à fragilidade de “ouvidos de orvalho”, expressão que título
ao conjunto de poemas. Manifesta-se aí a agressividade divina ante a fraqueza humana.
Como vem sendo notado na análise das obras anteriores de Carpinejar, a reflexão sobre a
escrita e a leitura transpassa as criações poéticas do escritor; em Biografia de uma árvore não é
diferente, como se percebe pela declaração de Avalor: “Escrevo para ser reescrito.” (p. 19).
Nota-se que ele não tem necessidade de impor seu pensamento, de tornar sua escrita definitiva,
pelo contrário, demonstra uma visão circular da existência, que possibilita o retorno ao que foi
feito anteriormente Por outro lado, no verso que encerra o poema, ele destaca: “Depois de
morto, tudo pode ser lido.” (p. 19), verso que gera uma ambigüidade em torno da palavra
“morto”, que pode se referir tanto ao autor quanto à obra. Esse verso final também pode ser
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associado ao próprio título do livro, uma vez que muitas biografias são escritas sobre pessoas
já falecidas, tornando, geralmente, seus feitos mais valiosos.
Numa conexão com a obra anterior, Terceira sede, Avalor relata o sofrimento de
envelhecer e ver as pessoas próximas partir. Nesse sentido, em uma afirmação paradoxal, ele
expõe sua visão a respeito da atitude de Deus de tirar a vida: “Tua violência é a suavidade.” (p.
20). Mais uma vez ele destaca a agressividade da divindade, mas agora esclarece que ela se
de modo sutil, brando; assim, o que seria, pela fé, alívio do sofrimento, a ida para o paraíso
celeste, é para ele uma agressão.
O segundo conjunto de poemas dessa parte da obra tem por título um paradoxo: “O sol
ainda é noite”, que mescla luz e trevas, como se aquela se manifestasse nestas. A
aproximação de opostos não se restringe ao título, que ao leitor uma chave para ler os
poemas da seqüência, os quais se apresentam carregados de imagens que aproximam termos
que se opõem ou que invertem a seqüencialidade lógica, como se percebe no poema de
abertura: “Meus pais estão no futuro, / ainda não nasceram. // Nascer antes pouco é / diante de
quem parte primeiro. / Herdei os traços de meu filho.” (p. 23). A inversão cronológica proposta
nesse poema destaca a efemeridade da vida, de forma especial ao referir que a anterioridade do
nascimento é menos significativa que a da morte. Note-se que o eu-lírico elimina a rigidez da
ordem temporal, contrariando a sucessão em termos de genealogia, como meio de superação do
tempo. Ele age de maneira ambígua, aceitando a fugacidade da vida, mas buscando formas de
superá-la.
Comparando-se a uma árvore, ser biografado na obra, Avalor revela uma singularidade:
“Minha estatura é de uma árvore incendiada, / uma árvore que anda para os lados / desbastando
as brasas. / Com vergonha de sua altura / e vertigem para recolher as sobras.” (p. 25). A árvore,
normalmente símbolo de ascensão e verticalidade, assume outra função neste caso, pois ela
“anda para os lados”, crescendo em todas as direções. Esse vegetal diferenciado a que o eu-
lírico se compara, ganha atributos humanos e sente vergonha por sua atipicidade, mas não
consegue recolher-se ao comportamento padrão. Durand destaca que a “consumição da
madeira pelo fogo é provavelmente um rito da regeneração do vegetal” (1997, p. 331). Assim,
ao considerar-se uma “árvore incendiada”, o eu-poético pode estar se referindo à sua
transformação em relação ao comportamento esperado de um indivíduo normal.
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O eu-lírico concilia uma série de sentimentos opostos, mas reconhece que não atingiu a
perfeição: “Não consegui ser absoluto na farsa, / íntegro na maldade, / paciente na pressa. /
Misturei as verdades com as mentiras. / Mas a verdade, essa, / não aceita companhia.”
(CARPINEJAR, 2002, p. 27). Revela-se, aí, a mistura de sentimentos e atitudes próprias do
humano e que Avalor tenta levar ao extremo. Os dois versos finais, porém, indicam que a
verdade não aceita meio-termo, não pode ser misturada com a mentira. Justifica-se, dessa
forma, que ele se valha da última, crie personagens e represente papéis perante as outras
pessoas e, especialmente, diante de Deus.
O terceiro conjunto de poemas tem por título “Fome dos insetos” e apresenta
considerações do sujeito lírico acerca de suas relações interpessoais. O primeiro poema desse
conjunto traz uma reflexão sobre a vida a dois, revelando, na estrofe inicial, a progressiva
aceitação dos hábitos do parceiro dentro de um relacionamento e como o que é julgado defeito
em certo momento pode ter seu valor invertido no caso de uma separação, justamente por ter
sido introjetado anteriormente: “As manias são vistas como defeitos. / Depois, traços da
personalidade. / Com a separação, transformados em virtudes.” (p. 31). O relacionamento
também é visto como algo incorporado pelo casal na segunda estrofe: “Calcificado, o ouro não
derrete mais. / A aliança é um osso no dedo.” (p. 31). No entanto, como aponta a parte final
do poema, a assimilação dos hábitos do outro o significa que amor, a justaposição não
corresponde à união e complementação que se espera de um envolvimento afetivo: “Ter se
acostumado um com outro / não significa que avançamos. // Somos residências geminadas / se
correspondendo pelos muros.” (p. 31). O sentido desses versos pode ser associado à “solidão
de estarmos / lado a lado” (2008, p. 22) manifesta em Um terno de pássaros ao sul, pelo filho
em relação ao pai ausente.
Assumindo a postura de vegetal, o eu-poético reconhece que após o auge da beleza e da
vitalidade do verão, vem a devastação do outono, que faz caírem as folhas das árvores,
deixando-as nuas. Mas a árvore que é Avalor não mantém apenas o tronco nu, ele mesmo cai
como as folhas e lhe cabe repousar sobre o solo: “O verão terminou com o bocejo do oceano, /
tenho uma longa devastação pela frente: // dormir no chão, a relva encrespada, / a coberta de
frutas e folhas / e os pés maiores que a fome dos insetos.” (CARPINEJAR, 2002, p. 32). Os
versos citados revelam o reconhecimento por parte do eu-lírico de que seu tempo de vigor
passou e que lhe resta enfrentar as dificuldades do envelhecimento e a degradação a ele
relacionada. A expressão “dormir no chão” pode, inclusive, ser aproximada da morte, quando o
corpo é (re)integrado à terra, como as folhas que caem das árvores.
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Voltando a fazer uso de oposições, Avalor declara: “Meu rigor é ser invisível. / Visitei
cidades não estando nelas. / Fui corrompido pela pureza.” (p. 35). O segundo verso enfoca uma
característica comum em Carpinejar: o deslocamento parado, a visita imaginária, que se torna
possível devido à invisibilidade atribuída ao eu-poético, fazendo com que não seja notado por
onde passa. O emprego da inversão de valores em “Fui corrompido pela pureza” reforça a idéia
de oposição à ordem estabelecida. Por ser considerado louco, o eu-lírico tem a liberdade de
inverter o valor da conversão de algo positivo em degradante.
Embora o jogo de sons não esteja entre os elementos mais freqüentes da poesia de
Carpinejar, em determinados momentos ele explora com muita propriedade esse recurso, como
pode ser percebido no título do quarto conjunto de poemas, em que aparece a aliteração do /v/
em: “Vidro de vozes”, produzindo um som que lembra um eco. Esse título remete, de certa
forma, ao aprisionamento da voz, o que pode ser relacionado aos poemas da seqüência, em que
Avalor aparece preso, com medo da liberdade e de suas conseqüências, como pode ser
percebido em: “Estou tão nervoso que fico calmo, / tão confuso que tenho discernimento. / A
liberdade não me convence / a sair do quarto.” (p. 39).
Note-se como perduram as antíteses que unem os extremos do nervosismo com a calma,
da confusão com o discernimento. Embora se afirme livre, Avalor está imobilizado pelo medo.
Por outro lado, ele destaca: “Minha imobilidade não é desistência. / Resisto como um móvel /
indesejado no cômodo, / que destoa do alarido familiar, / disfarçando sua existência precária /
com mantas e panos cortinados.” (p. 39). Esses versos indicam que ele insiste em seu
comportamento diferenciado; mesmo que seja por meio do silêncio, ele impõe sua presença no
grupo familiar, que não pode ignorá-lo, embora o julgue louco.
Para seguir o caminho que escolheu para si, o sujeito lírico revela que precisa recusar a
crença na humanidade e ignorar o que esta diz a seu respeito. Apesar de ter feito isso, ou
justamente por não contar mais com o conceito exterior, ele admite não reconhecer a si mesmo:
“Estranhei-me ao limite da vivência.” (p. 40). A partir do momento em que ignora os conceitos
externos a seu respeito, Avalor precisa criar uma imagem de si mesmo e é ao tentar fazer isso
que ele percebe que não se conhece.
Em outro poema, Avalor aparece aflito: “Escutar minha respiração / é conviver com o
terror. / Ligo alto o som do rádio, da tevê e / persiste o timbre agudo, vacilante dos pulmões. /
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Tomo o vidro de vozes e retiro o rótulo, / apagando os sinais do veneno.” (p. 42). Nota-se pelos
versos um conflito entre o que ele sente e aquilo que lhe é externo, representado no poema pelo
rádio e a TV; esses sons externos sufocam, ou melhor, tentam ocultar a forma de Avalor ver o
mundo. As vozes da mídia, representadas na estrofe pela expressão que dá título a esse
conjunto de poemas, querem impor-se sobre o eu-lírico, ensinando-lhe o que dizer, dando-lhe a
fala correta como um remédio, mas que ele percebe como um veneno.
O quinto conjunto de poemas intitula-se “Folhas do pátio”, remetendo diretamente à
árvore, que é o tema da obra, o ser biografado. As folhas caídas são objetos a que não se
costuma atribuir importância maior, no entanto, nos poemas desse conjunto, Avalor irá tratar de
maneira especial de objetos como esses, pouco valorizados, que muitas vezes passam
despercebidos no dia a dia. Assim, no poema de abertura, ele cita algumas manias e hábitos
corriqueiros sem importância aparente para, no verso final, afirmar: “Nem toda carga que levo
é sumo.” (p. 47), indicando que as cargas do ser humano vão além das necessidades.
Numa memória da formação de sua personalidade, Avalor admite: “Metade do que sou
inventei na infância; / a outra metade, a infância tratou de inventar.” (p. 48). Ele reconhece que
criou parte de sua história enquanto criança, mas também sabe o quanto aquilo que lhe
aconteceu foi fundamental em sua formação. A esse respeito, Bachelard afirma que “toda a
nossa infância está para ser reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-
la na própria vida de nossos devaneios de criança solitária” (1998, p. 94). Ao afirmar que parte
do que ele é foi inventado pela infância, Avalor confirma o que é proposto por Bachelard, pois
se assume como alguém que recria sua infância através do devaneio.
A incorporação de uma segunda personalidade, manifesta em Terceira sede, reaparece
agora utilizada por Avalor como recurso de inovação constante: “Troco a pele de barco. /
Conheço-me o suficiente a ponto / de não me repetir.” (CARPINEJAR, 2002, p. 50).
Contrapondo-se ao que declarava em outro momento, ele agora afirma seu autoconhecimento,
mas num sentido atípico, visando ser diferente a cada momento. Essa mudança é característica
da dominante cíclica, a qual é marcada por constantes avanços e retornos, conforme sugerido
pela própria noção de ciclo, algo que, à medida que vai avançando, retorna ao ponto inicial. A
duplicação reaparecerá posteriormente na obra como forma de fuga, como tentativa de enganar
a Deus: “Enquanto te espero, / ajeito a imagem / que criei para te confundir.” (p. 64).
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Avalor, por sua singularidade, sente-se capaz de incorporar diferentes personalidades,
como aponta acima. Mas ele também assume formas variadas, na primeira parte da obra, por
exemplo, o Dr. Ossian o havia comparado a um pássaro, agora é o próprio sujeito lírico que
assume essa condição ao declarar: “Pairo no ar ao silenciar meu canto. / O vôo sai da garganta,
e não das asas.” (p. 51). Esses versos sugerem que ele se desloca pelas palavras e não
fisicamente, através das palavras ele pode assumir formas variadas e chegar aos lugares mais
longínquos, sem efetivamente se locomover.
Analisando sua trajetória de vida, Avalor percebe ter sido diferente dos demais desde a
infância. Nesse sentido, inicialmente se compara aos familiares: “Meus irmãos colecionavam
selos, moedas, / borboletas e revistas. / Eu, silêncios.” (p. 53). A singularidade do eu-poético
voltará a ser ressaltada no primeiro poema do sexto conjunto, quando ele mostra sua exclusão
pelos colegas de escola: “Na escola, zombaram de minha pronúncia torta, / ameaçaram-me
com canivetes no recreio.” (p. 57). O próprio título desse conjunto é significativo da situação
vivenciada por ele: “Reserva de chuvas”, sugerindo algo que se mantém à parte, acumulado, o
que, pelos poemas, representa Avalor, mantido afastado do grupo e recebendo as ofensas numa
aparente passividade, mas tramando, na verdade, sua vingança. Mas até esta é de um tipo
diferente, é uma vingança pela linguagem e não pela força física: Assisti a covardia crescer,
aquietado no fundo da sala. / Durante anos, contive o veludo áspero da pata, / a soleira da pata,
a vogal da pata. / Preparei a vingança pelas palavras” (p. 57). A agressividade fica manifesta
até mesmo pela aliteração do /p/, que sugere violência, mas a escolha pelas palavras pode ser a
forma encontrada por ele de melhor combater aqueles que o maltratavam, pois tem consciência
de que esta é sua arma mais forte.
Apesar dessas recordações desagradáveis vinculadas à infância, o sujeito lírico
demonstra também certa nostalgia ao lembrar desse período, como se percebe em: “A brisa se
mistura aos cheiros das lembranças. / É como se eu estivesse regressando. // Posso brincar lá
fora?” (p. 53). Mas ele sabe que este retorno à infância é efetivamente impossível e que apenas
a imaginação lhe permite essa viagem. É o que se nota nos versos finais do poema: “Como dói
a porta fechada por dentro. / Não ter para onde ir é uma forma de sempre chegar. (p. 53). Na
certeza de não poder retornar efetivamente, ele se satisfaz em voltar à infância apenas pelas
lembranças inventadas, recriadas, conforme sugerido anteriormente.
Ainda referente à infância, percebe-se que, se por um lado Avalor é rejeitado por irmãos e
colegas, por outro, em relação a Deus ele revela seu lado traiçoeiro e desafiador, usando
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folhas da Bíblia para enrolar cigarros: “Roubei o zimo, enrolei o papel seda / dos versículos
para fumar tuas promessas. / Pisei em teu rosto com a luz suja de um livro.” (p. 58). Observe-
se que é novamente a linguagem o recurso utilizado para manifestar a revolta contra Deus. É
por extrapolar os limites, como admite em: “Todos meus erros descendem do excesso, / não da
penúria.” (p. 58), que esse indivíduo revela suas culpas. A linguagem é o meio de fazer o que
fisicamente ou pela força ele não consegue, as palavras dão-lhe a liberdade de agir como
quiser, o que acaba levando-o a cometer infrações.
Não abandonando seu tom provocativo, ele chega a inverter a importância de Deus e do
homem, como se aquele precisasse desse: “Deus, será que tua água / vem da sede do homem? /
Será que nossa sede é potável?(p. 59). Ao que ele complementa afirmando a semelhança
entre os dois (Deus e homem): “As diferenças nos assemelham, / o único vizinho do mar é o
abismo. / Estou extremamente perto / e morro distante. / Moro numa morte emprestada.” (p.
59). As semelhanças se estabelecem, para o eu-poético, justamente por aquilo que se opõe, é
porque divergências que se percebem as semelhanças. A aproximação de dois seres
considerados tão diferentes como Avalor e Deus vem reforçar a associação de Biografia de
uma árvore à dominante cíclica do regime noturno do imaginário, conforme classificação
proposta por Durand.
Considerando o despreparo para a morte, já mencionado em outros momentos, o eu-lírico
faz um apelo à divindade no sétimo conjunto de poemas, intitulado Um perfil pela janela”:
“Não me apanhes em trânsito. / Não apresses o julgamento.” (p. 63). A esse pedido se segue o
reconhecimento do medo da partida: “Há o temor de partir durante as refeições, / dormir
morrendo, morrer dormindo, / sem digerir a vida.” (p. 63). Esse temor reflete no desejo de fuga
do eu-poético, que ganha concretude pelo embalo de uma cadeira de balanço: “Enquanto te
espero, / embalo a cadeira de balanço / como uma charrete na sala. / As narinas são as
parelhas;/ as sobrancelhas, rédeas soltas.” (p. 65). Ele utiliza o movimento da cadeira para
sugerir o galope na tentativa de fuga da divindade. Mas ele sabe que isso é inútil e demonstra
seu medo do amanhecer, que pode ser associado ao pensamento racional, em que terá de aceitar
a finitude da vida: “A luz tem sabor de treva.” (p. 65). A antítese entre luz e trevas sugere que
mesmo com a chegada do dia, Avalor continua vendo trevas, ou seja, não saída aparente
para ele e seu desejo de permanência, revelando-se, aí, em certa medida, a revolta do sujeito
lírico contra a degradação causada pela passagem temporal.
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No oitavo conjunto de poemas, intitulado “Indolência do musgo”, Avalor continua em
seu diálogo com Deus, revelando, cada vez mais, a proximidade da morte e intensificando as
reflexões sobre ela. O já referido tulo remete a um ser insensível, apático, mas ao mesmo
tempo escorregadio e, por isso mesmo, perigoso. O musgo, nesse sentido, equivale ao eu-lírico
que, indiferente à grandeza e ao poder divinos, cria seu mundo e ameaça a ordem estabelecida,
mostrando-se deslizante e buscando formas de escapar às imposições superiores.
Avalor inicia o primeiro poema do conjunto declarando: “Sei o quanto / um boi mal
guiado / causa estragos na plantação.” (p. 73). Esses versos sugerem os prejuízos causados pelo
seu desvio da norma, o que ele reforça na seqüência: “Desperdicei o direito / de permanecer
calado. / Tenho talento para me denunciar.” (p. 73). Ele se reconhece como diferente do padrão
e incapaz de disfarçar essa singularidade, denunciando a si mesmo, o que reforça a afirmação
anteriormente citada de que seus erros descendem do excesso.
Em sua falta de medida, o eu-lírico rejeita até mesmo a piedade divina, conforme
expresso no verso: “Rejeitar teu amparo me confortava. / Eu era a vala espumosa do rochedo, a
esponja / verde do precipício, a indolência do musgo.” (p. 73). No último dos versos citados,
Avalor reconhece ser ele mesmo o musgo que, apesar de sua insignificância, sente-se capaz de
afrontar o poder divino. Ao retomar a expressão que tulo ao conjunto, ele explora seu
sentido de elemento escorregadio, inseguro, apontado acima.
No entanto, contrariando a tendência à autodelação, pouco depois ele afirma: “Prosseguir
mentindo / é o jeito que encontrei / de viver aproximado da realidade.” (p. 73). Por um lado, o
eu-poético assume ter talento para se denunciar, por outro, julga necessário continuar
mentindo, reforçando a característica de aproximação dos opostos, própria de Avalor, que
vem sendo apontada ao longo dessa análise.
Se por um lado Avalor não teme rejeitar a piedade divina, por outro, ele assume que a
morte se constitui em um acontecimento que o incomoda e que não poderá evitar: “A morte me
perturba, / terei o sofrimento / de não corrigi-la / antes de ser publicada.” (p. 75). Refletindo
sobre o pós-morte, ele questiona: “Apagado em laje fria, / quem trocará a minha roupa de
cama? // Acordarei impessoal, / desprovido do alarme das pálpebras? // Até quando serei o que
compreendo?” (p. 75). Revela-se o medo humano da morte, carregado de uma interpretação
distinta, própria do eu-lírico em que vale ressaltar o movimento das pálpebras, automático no
indivíduo vivo, mas que cessa com a morte.
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Avalor, em outro momento, revela ter contrariado as expectativas a seu respeito pelo
desejo de poder fracassar: “Casar, ter filhos e assumir um emprego fixo / fora o máximo
exigido de mim, / não é o máximo que poderia exigir. // Fundei meu mundo para contar / com a
possibilidade de afundar nele.” (p. 76). A inversão das expectativas e a construção de um
projeto de vida singular visam simplesmente ao fracasso, não ao recomeço, conforme se
percebe em: “Não recomecei, o começo / é carregado de despedida. / O texto atravessa muitas
mortes / até virar testamento.” (p. 77). Note-se como ele volta a aproximar idéias opostas, neste
caso, o começo e a despedida, sugerindo que já ao iniciar algo se carrega o peso do adeus. Nos
versos finais, ele estabelece uma comparação com o texto, que também tende a passar por um
processo de revisão e reescrita antes de assumir sua forma final, adequada para ser apresentada
ao leitor.
No encerramento desse conjunto, Avalor, dialogando com Deus, reforça seu
posicionamento como ser que reúne os opostos em si: “Deus, estou te ouvindo, / mas não sei
como pedir licença / para tudo o que vivi. // Sou apenas o que posso perder, / o segredo que
nasce do atrito / entre o penhasco e as ondas. // Avançar uma página / é retornar ao princípio.”
(p. 81). O eu-lírico revela-se, assim, indeciso entre aceitar o transcendente e conservar as
vivências. Ele afirma constituir-se apenas do que é passageiro e mesmo dispensável.
Contraditório, ele se considera fruto do impacto violento entre água e rocha, acreditando que
avançar é voltar ao começo, como se sua vida fosse um roteiro circular, com início e final
unidos, inseparáveis. Em relação à obra, pode-se ler os versos da estrofe final como se cada
nova página e cada poema fossem um recomeço.
O último conjunto de poemas de “Biografia de uma árvore: autorizada pelas raízes”, tem
por título “A insônia dos sapatos”, remetendo à idéia de andar incessante, caminhada sem fim,
que é uma característica manifesta por Avalor ao longo da obra e, de maneira especial, nesta
parte. No primeiro poema, ele busca diferenciar-se dos mortos, pela indisciplina: “A disciplina
é dos mortos. / Vivo desorganizado. // Para que transcender? / O divino em nós tarda em se
humanizar.” (p. 85). Note-se na segunda estrofe o questionamento quanto ao desejo de
transcendência, através da qual Avalor ressalta a dificuldade humana, e a dele em especial, de
incorporar o divino ou se aproximar deste, visando à salvação.
A resistência à morte e à conversão é expressa ainda em outro poema, em que Avalor
indica que mesmo após partir, ele permanecerá contrariando o desligamento total desta vida:
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“Passarei daqui para teu lado, / aguardando a terra de olhos abertos, / guardando a terra de
olhos abertos, / dado a terra com olhos abertos. // Não partirei por inteiro. / Uma
incompreensão / ou desavença ficará. / Alguém vai me resistir / na respiração alta do sangue.”
(p. 89). Nesse sentido, vale ressaltar a representatividade da expressão “olhos abertos”,
repetida por três vezes, reforçando a idéia de resistência, desejo de permanecer e
inconformismo frente à morte, podendo esse comportamento ser associado à modalidade de
revolta e à dominante postural, indicando que a obra possui momentos de tensão e que, embora
a dominante cíclica seja predominante, seu oposto também aparece, representando um
contraponto, uma espécie de pano de fundo. A idéia de não partir por inteiro, exposta na última
estrofe, pode ser interpretada sob o ponto de vista das lembranças que permanecerão, mesmo
que seja para marcar o caráter atípico do sujeito lírico.
Ele reforça sua resistência a acolher a proteção divina ao declarar: “Compreender é estar
ocupado da morte. / Não sou unânime para te dizer sim. / Dissidências me governam.” (p. 91).
Ele não entende a divindade e reforça que a compreensão plena se pela morte, por isso,
enquanto vivo, ele revela sua confusão em relação à fé e à crença no poder de Deus.
Comparando o final de um dia ao fim da vida, Avalor explica como se sente em relação a
esse momento, tornando clara sua dificuldade de aceitar a finitude: “Entardeço sem ênfase. /
Não sei fechar um livro / ou vedar uma frase. // As confissões são inventadas. / Meus
personagens foram maiores / do que o enredo.” (p. 93). Ao encerrar uma obra, portanto, ele
sente perder algo de si, assim, também o que ele diz e faz não tem compromisso com a
verdade, são invenções, criadas para os personagens que ele se atribui. Esses versos também
podem ser aproximados a uma das características das obras de Carpinejar, que é abrir
possibilidades, sem preocupação com o fechamento ou as conclusões; o poeta trabalha com a
criação de caminhos possíveis, e não com a construção de um roteiro único.
Encerrando a segunda parte da obra, o eu-poético numa atitude extremamente ousada e
desafiadora, demite a Deus. Esse gesto, no entanto, pode tanto ser sério ou não passar de uma
brincadeira: “Deus, peço tua demissão por justa causa. / Não saberás se falo sério ou se estou
rindo. / Vou indo. Na incerteza, o réu é sempre absolvido.” (p. 95). Considerando que Avalor
cria personagens, pode-se imaginar que Deus é para ele mais uma de suas invenções, que pode
ser manipulada livremente. No entanto, visando isentar-se de uma responsabilidade maior, o
eu-poético faz uma observação, indicando que pode estar apenas brincando e, na falta de
99
certeza, tanto de Deus, quanto do leitor, ele é sempre poupado da condenação, até porque,
como Dr. Ossian já alegara, não usufrui do pleno funcionamento de suas faculdades racionais.
A terceira parte da obra é intitulada “Biografia de uma árvore (autorizada pelos frutos)”,
sendo estes representados pelo filho de Avalor, que, em uma prosa poética, narra um pouco
sobre o final da vida do pai, preparando o leitor para o “Novíssimo Testamento”, constituído
pelos bordados do eu-poético. Esse filho, no entanto, não sabe muito sobre seu pai, pois, este
“viveu longe mesmo perto” (p. 99), o que reforça a idéia desenvolvida ao longo da segunda
parte da obra de que Avalor criara um mundo à parte, mantendo-se indiferente aos apelos
daqueles que o cercavam, conforme ele mesmo afirma em seus poemas. Essa última parte de
Biografia de uma árvore é a que tem relação mais próxima com a produção do artista Arthur
Bispo do Rosário, citado no início dessa análise, e que criou obras com objetos em desuso,
rejeitados, enfim, restos que normalmente seriam jogados na lixeira. Segundo ele, suas obras
eram fruto de um pedido de Deus para que conservasse exemplares de cada coisa antes da
destruição do mundo. Entre as obras desse artista estava também um manto bordado de frases
que segundo ele continha os ensinamentos divinos, o que permite estabelecer-se uma relação
com Avalor, que conservava um “casaco todo bordado de frases” (p. 9), ambos são tomados
por excentricidades, julgados loucos, mas ao mesmo tempo dotados de um inegável espírito
criativo.
Referindo-se ao “Novíssimo Testamento”, o filho de Avalor, cujo nome não é citado,
revela a dedicação dispensada pelo pai a essa tarefa, o medo de perder seus escritos ou, como
ele também referia na segunda parte da obra, “que Deus o inundasse de esquecimento” (p. 99),
através da morte. Merece referência a data desse comentário do filho de Avalor sobre o pai,
mencionando sua morte, pois é de apenas um dia após o laudo do Dr. Ossian, sobre o estado de
saúde mental do eu-poético. Essa proximidade de datas remete o leitor à idéia de
despreocupação com a cronologia, uma vez que o filho não parece escrever o comentário logo
após o falecimento do pai, o que é sugerido principalmente pelo verbo “lembro”, no relato do
filho sobre como cobriu o rosto paterno “com o paletó de seus versos” (p. 99). Vale notar ainda
a última frase da prosa poética escrita pelo filho: “Era o início da Terceira Guerra” (p. 99),
sugerindo que a morte de Avalor serviu de marco para despertar a violência.
Chegando ao “Novíssimo Testamento”, nota-se que ele se constitui de indicações para o
bem viver, em que o eu-poético vai retomando diversos poemas da segunda parte da obra para
indicar soluções para os problemas criticados. É como se naquela parte da obra ele tivesse
100
exposto as situações que encontrava em sua vida e no “Novíssimo Testamento” ele indicasse
caminhos para superá-los. Será feita, na seqüência, uma análise buscando revelar algumas das
prescrições de Avalor para erros expostos por ele anteriormente.
Entre os versos iniciais, ele ensina a acolher o elogio dos defeitos” (p. 100), como
solução para a aceitação entre o casal, possibilitando a vida em comum e não apenas a vivência
lado a lado, como casas geminadas, mas se essa impressão se impuser, o eu-lírico ainda orienta
a “reverenciar o muro que nos permite imaginar uma vida / diferente da nossa” (p. 100) e, por
fim, “comemorar o que desconhecemos um do outro” (p. 102). Note-se nessas recomendações
como Avalor busca atribuir valor positivo a coisas usualmente desvalorizadas ou mesmo
consideradas negativas, como seria o caso dos defeitos, que apenas o são dependendo do
prisma com que são encarados.
Em relação ao problema do autoconhecimento referido na segunda parte da obra, o eu-
lírico indica que é necessário “trocar mensalmente a terra do rosto” (p. 100), sugerindo a
renovação constante, visando ao revigoramento. Se perante essa mudança constante, a
compreensão pessoal se torna mais difícil, Avalor propõe “conhecer-te na medida em que me
ignoro” (p. 100). Assim, o conhecimento do parceiro seria, numa relação, mais importante que
a atenção a si próprio.
Se os erros são inevitáveis, como o sujeito lírico demonstra por suas próprias ações ao
longo de “Biografia de uma árvore (autorizada pelas raízes)”, então ele recomenda repetir os
erros para decorar os caminhos” (p. 100). Esse verso reforça o que vem sendo afirmando ao
longo deste trabalho sobre o eu-poético, no sentido de mostrar que ele contraria a ordem
estabelecida. Enquanto o padrão seria aprender com os erros para evitar repeti-los no futuro,
ele recomenda justamente persistir no caminho que é julgado incorreto. Para isso, ele sente
que, por vezes, é necessário afastar-se da coletividade, não ser um dos seus, como ele insinua
em “Meu rigor é ser invisível” (p. 35) e retoma no “Novíssimo Testamento”, quando
recomenda “desaparecer na visibilidade” (p. 100).
Logo nos primeiros poemas da segunda parte da obra, Avalor se queixara por ter sido
“lançado cedo demais às cinzas” (p. 16), sofrimento para o qual ele encontra como solução
“ressuscitar a brasa das cinzas” (p. 100), deixando implícita a idéia de renascimento,
renovação, permitindo a associação com a dominante cíclica e a modalidade de progresso, que
se vincula à escrita que se insere no fluir temporal.
101
Para resolver a incongruência dos versos que sugeriam o nascimento dos filhos antes dos
pais, o “Novíssimo Testamento” apresenta a possibilidade de “nascer póstumo” (p. 101). Sendo
essa inversão possível, também a fusão de dia e noite se torna realizável, conforme sugerido no
título do segundo conjunto de poemas da “Biografia de uma árvore (autorizada pelas raízes)” e
reforçado na recomendação de Avalor para se “ouvir o sol de noite” (p. 101).
Em “Biografia de uma árvore (autorizada pelas raízes)”, e eu-poético referia suas
diferenças em relação aos irmãos, mas no “Novíssimo Testamento” ele ensina a “descobrir o
irmão mais velho no silêncio do caçula” (p. 101), o que insinua que este aprende no silêncio
com as atitudes do outro.
Em relação à produção literária, Avalor também uma lição, recomendando: “procurar
minha voz em outros autores” (p. 101), numa referência à intertextualidade, à influência que
leituras anteriores têm na produção de um autor e como esta se constitui de uma mescla de tudo
o que o escritor vivencia, lê, ouve e vê. Assim se justifica o que fora afirmado anteriormente
sobre as diversas mortes por que tem de passar um bom texto, pois a cada vez que morre, ele
também renasce com um novo autor ou uma nova obra. Ainda sobre aquilo que escreve, e eu-
lírico reconhece a necessidade de “entender que meus livros são parecidos comigo / (demoram
a fazer amigos)” (p. 102), sugerindo que algo do autor permanece em seus escritos e estes nem
sempre conquistam apreciadores logo na primeira leitura; o encantamento pode vir com o
conhecimento mais aprofundado.
Se na segunda parte da obra há um momento em que Avalor evoca lembranças da
infância, demonstrando desejo de retornar àquele período, no “Novíssimo Testamento” ele
reafirma a necessidade de “conservar a imagem da casa quando criança” (p. 102). Essa imagem
referida pelo eu-poético não é necessariamente o retrato fiel da construção, mas aquilo que o
imaginário permite recriar, conforme foi afirmado anteriormente, com base no posicionamento
do pensador Gaston Bachelard.
Anteriormente também foi dada grande ênfase ao desejo de permanência, ao
inconformismo diante da morte. Essa atitude do sujeito lírico se mantém em suas instruções,
em que ele orienta a “morrer tentando não morrer” (p. 102). A resistência, pela permanência de
olhos abertos mesmo após a morte, e a esperança de permanecer ao menos devido a uma
incompreensão, são confirmados por Avalor na parte final da obra. Assim, mesmo a
102
compreensão não é entendida pelo eu-lírico como sinônimo de concordância e ele ensina a
“compreender sem concordar” (p. 102).
Por fim, vale destacar mais um verso bastante significativo sobre a proposta de Avalor
em que ele recomenda “falir na memória preservando a imaginação” (p. 102). É preferível para
ele perder a objetividade e a exatidão das funções racionais, mantendo a criatividade e
inventividade. Essa é a lição que ele deixa pelo “Novíssimo Testamento” para que se atinja o
extremo da morte com a serenidade de ter vivido com intensidade, enfim, para que se possa, a
exemplo dele, morrer rindo (p. 99).
Pelo estudo desenvolvido, pode-se perceber que as imagens presentes em Biografia de
uma árvore aproximam-se prioritariamente da dominante clica do regime noturno da
imagem, uma vez que recorrência constante à aproximação de termos opostos, visando sua
harmonização. Além disso, também foi possível perceber que, ao longo de sua caminhada,
Avalor passa por constantes avanços e retornos, o que é outra marca da referida dominante.
Da mesma forma, é possível notar uma aproximação das imagens da obra com a
modalidade de progresso, proposta por Jean Burgos, considerando-se que apesar de buscar
constantemente uma forma de superar a morte, o eu-poético não nega sua existência, nem tenta
se enclausurar no presente, pelo contrário, ele enfrenta o desafio da passagem temporal. A
própria afirmação de Avalor de que não partirá por inteiro e que ao menos “Uma
incompreensão / ou desavença ficará.” (p. 89) é significativa da idéia de vitória sobre a morte.
Outro elemento que se repete no livro, demonstrando a renovação dos ciclos e,
conseqüentemente, a renovação da vida, é a inversão temporal e a idéia de várias mortes e
(re)nascimentos. Alguns exemplos nesse sentido podem ser encontrados em: “nascer póstumo”
(p. 101); “meus pais estão no futuro” (p. 23); O texto atravessa muitas mortes / até virar
testamento.” (p. 77); “Avançar uma página / é retornar ao princípio.” (p. 81), reforçando,
assim, a associação entre a obra e a dominante cíclica, vinculada ao regime noturno do
imaginário, e ainda a modalidade de aceitação da passagem temporal, que carrega implícito o
desejo de superação do tempo, o que é alcançado, na obra, através da circularidade, do eterno
retorno.
103
4.5 Cinco Marias: o olhar feminino e múltiplo
Inovando em relação ao ponto de vista adotado nos livros anteriores, em Cinco Marias,
Carpinejar assume a perspectiva feminina e fala através de cinco mulheres, as cinco Marias,
que são, na verdade, mãe e filhas. Suas vozes se alternam na obra, sem que se possa identificar
com clareza quem é quem, não identidade individual, elas formam um conjunto, como é
expresso no início da obra: “Éramos quatro irmãs, cinco Marias. / Não havia um nome
composto / que nos diferenciasse.” (CARPINEJAR, 2004, p. 14).
O discurso das cinco se mistura, expressando seus sentimentos e suas visões de mundo,
como se elas estivessem escrevendo um diário coletivo. A figura do pai e esposo é referida em
alguns momentos, mas como alguém afastado, ausente. A trama adquire seu sentido pleno
quando, após os poemas, se lê uma pretensa notícia de jornal em que as cinco Marias, como
também eram conhecidas em sua cidade, são acusadas de enterrar o pai e esposo no pátio da
casa, apresentando todas elas certo desequilíbrio em relação a suas funções racionais, sendo
verificada na e, inclusive, uma amnésia temporária, pois esta não recordava a morte do
marido e alegava, junto com as filhas, ter enterrado apenas a biblioteca deste.
Os poemas constituem, assim, a transcrição do diário coletivo que as cinco teriam escrito
durante o período de dois meses que permaneceram trancadas, sem contato com a sociedade,
após enterrarem o homem da casa, justificando-se a confusão e dispersão de imagens pelo
próprio estado de espírito dessas Marias. Note-se que elas não o mataram, a morte dele fora de
causa natural; elas apenas o enterraram sem comunicar nada a ninguém, como forma de mantê-
lo próximo, mesmo após a morte.
Cabe ressaltar ainda que o nome do morto era conhecido para os leitores da obra
anterior de Carpinejar, trata-se do Dr. Ossian, o mesmo que caracterizara Avalor como louco,
constituindo a voz da razão que se manifesta na “Biografia de uma árvore (autorizada pelos
pássaros)”. É curioso observar que as datas nas duas obras são muito próximas: em Biografia
de uma árvore, Dr. Ossian assina a avaliação do estado de saúde mental de Avalor em
23/10/2045; em Cinco Marias, a data de publicação da notícia sobre a localização do corpo
do médico é 31/10/2045, gerando um conflito, pois o cadáver estaria enterrado dois meses.
Essa aparente falta de verossimilhança reforça o que foi afirmado nas análises anteriores
sobre o descompromisso das obras de Carpinejar com a realidade, a veracidade e a fidelidade
104
ao tempo cronológico. Apesar de constituírem uma seqüencialidade e estarem intencionalmente
relacionadas, conforme afirmação do próprio poeta, em entrevista publicada em seu blogger
18
,
as obras têm uma relativa independência, como também ocorre com os poemas que as
compõem, que não precisam, necessariamente, ser lidos em seqüência.
No início do livro, antes dos poemas, uma referência ao jogo de cinco marias, numa
espécie de epígrafe, que pode auxiliar na compreensão da obra durante a leitura: “Jogar as
cinco marias no chão. / Escolher uma delas, que será / arremessada ao alto, enquanto pega-se /
uma das quatro, sem tocar nas demais.” (p. 07). O discurso das cinco Marias também é jogado
de forma dispersa na obra e o leitor vai procurando identificá-las, o que se constitui em tarefa
difícil, uma vez que quase não há marcas que as distingam, principalmente no que se refere às
irmãs. O próprio fato de não terem identidade individual perante a sociedade sugere a
dificuldade de reconhecer quem é quem.
No primeiro poema da obra já se percebe a voz de um eu-poético feminino, que expressa
seu desejo de vida, mesmo frente à promessa de eternidade: “Os mortos envelhecem / na
eternidade. / Não os invejo. / Tenho dentes para morder. // Diante do prado, / ardo imensa.” (p.
13). A degradação representada pelo envelhecimento não cessa com a morte, na visão desse eu-
lírico e, portanto, ele prefere a concretude da vida. A idéia de continuidade após a morte,
mesmo que seja do envelhecimento, remete ao ciclo, algo que não termina, associando-se,
dessa forma, à dominante cíclica do regime noturno do imaginário, como também ocorre com a
imagem do fogo, representada nos versos citados pelo verbo “ardo”. Este elemento, conforme
já apontado em outra análise, ao mesmo tempo em que consome aquele que incendeia, também
tem caráter transformador, regenerador.
A referência ao pai sugere o abandono do lar por ele, causando o sofrimento da família,
especialmente da mãe: “Ele havia desaparecido. / A mãe não se lembrava / do seu
esquecimento. / Madrugada incerta, / os vaga-lumes superavam / o arrasto da migração.” (p.
14). Numa declaração contraditória, o sujeito rico une lembrança e esquecimento, buscando
revelar que a mãe apagara da memória o referido acontecimento, o que é reforçado pelo verso
“madrugada incerta”, dando a entender que o fato ficou perdido num passado longínquo. Esses
versos encontrarão eco na notícia publicada no final da obra, em que se constata a amnésia
18
Informação referente à entrevista concedida pelo poeta a Linaldo Guedes, do Correio das Artes, disponível em:
www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br. Acesso em: 12 dez. 2008.
105
temporária da mãe, explicação racional para a doença insinuada de forma poética no trecho
citado.
Mesmo a mãe tendo, aparentemente, esquecido a ausência do marido, as filhas percebem
que algo a marcou: “Cinzas, seus olhos mistos, / distantes da brasa para se recompor. / Foi uma
explosão suave, / um punhado de terra na madeira.” (p. 15). O oxímoro que marca a união dos
opostos em “explosão suave” é significativo da reação materna, que buscava manter a
aparência de normalidade, ocultando a destruição interna.
O poema seguinte também é significativo da reação que a partida do pai causou no lar:
“Como uma surdez súbita, / o silêncio barulhava. / Quando ficamos surdos, / escutamos tudo,
menos o silêncio.” (p. 16). Em versos que aproximam os opostos da surdez e da audição, se
revela o vazio incômodo causado pelo desaparecimento do pai e a tentativa das cinco Marias
de ocultar esse vazio, de ignorar esse silêncio.
À aparente submissão à ausência do homem da casa se opõe uma reação impulsiva: “Os
nervos saltaram: / - Seja impura, a pureza é violenta. / Os homens nunca vão entender.” (p. 17).
A orientação, que quase assume o tom de imposição, pode provir tanto da mãe que, revoltada,
espera que as filhas ajam de forma diferente, quanto destas, que vendo o sofrimento materno
procuram mostrar a ela que sua atitude não alcançará os efeitos desejados.
Outra reação provocada pelo afastamento do pai é a destruição daquilo que faça lembrar
dele. A mãe, possivelmente tentando aliviar o sofrimento, “Exigiu que derrubássemos / os
livros da estante./ Não poderíamos reagir, / a respiração atormenta a bússola. / - Nada é
definitivo. Nem a memória. / A imaginação desloca as lembranças / e depois não as
encontramos.” (p. 18). Os livros talvez constituíssem a marca mais característica do pai e com
a destruição destes, também a memória dele seria apagada. A esperança da mãe é ocultar os
elementos que geram a lembrança e, assim, dar lugar a uma recriação menos dolorosa do
passado. Bachelard, em seus estudos sobre a imaginação, destaca, conforme referido em
outros momentos, que sua função não é criar imagens, mas transformar ou “deformar” as
imagens fornecidas pela percepção. Assim, consegue-se estabelecer uma aproximação entre os
versos citados e a afirmação de Bachelard, pois as memórias são modificadas criativamente
pela imaginação, e os fatos não podem ser reencontrados, tais como aconteceram, na
recordação.
106
As filhas contam o ritual de enterro da biblioteca, e nesses versos vários elementos
lembram a morte e o funeral de uma pessoa, como se percebe em: “Um livro não lido pesava
como um morto. / Arrastamos a mortalha pela sinuosidade / da escada, / As curvas da casa, o
pano turvo das folhas. / Passamos a cavar o rancor do chão. / O receio de fisgar alguém
submerso, / improvisado na morte.” (p. 20). Os dois últimos versos geram inquietação e
reforçam a relação da cena com uma situação de morte. A suspeita é encontrar, no chão onde se
vai enterrar a biblioteca, um morto, um corpo oculto. Além disso, o primeiro verso poderá, no
final da leitura da obra, ser relacionado com a morte do pai, sendo este caracterizado como um
“livro não lido”, enterrado junto com a biblioteca. A metáfora sugere que a figura do pai era
estranha ao grupo de mulheres, como se ele nunca tivesse se revelado para que elas
verdadeiramente o conhecessem.
Na ausência da figura paterna, a casa das cinco Marias assume uma identidade totalmente
feminina, transformando inclusive a divindade: “Em casa, Deus era feminino.” (p. 23). Com
esse olhar marcadamente feminino, as Marias traçam a distinção entre a escrita do homem e da
mulher: “O homem escreve como quem grita. / A mulher escreve baixo, em prece.” (p. 24).
Essa afirmação revela que mesmo no discurso divergências entre os sexos, eles assumem
atitudes opostas.
Observada pelas filhas, a mãe é descrita como descuidada com a própria aparência: “Ela
conspirava contra sua beleza. / Usava roupas gastas, / os vestidos antigos. / Culpada pela
sensualidade / que acentuava as curvas. / Adiou conjuntos novos / com a desculpa que lhe
fariam mal.” (p. 25). Nota-se um apego ao antigo, ao passado e certo sentimento de culpa por
ainda ser atraente, apesar da ausência do marido. Parece que ela tenta se manter vinculada
àquele que partiu. Por outro lado, reconhecendo que não pode voltar no tempo, ela também
busca chegar logo à velhice, abrindo mão de sua beleza e juventude: “Substituiu o orgulho
pelas novenas. / Não resistiu à velhice, / facilitando-lhe o ingresso. / Ajeitava as mechas por
descuido. / As parreiras cicatrizaram / seus cabelos.” (p. 25). No desejo de atingir a velhice,
mas, ao mesmo tempo, de voltar ao passado, manifesto pela mãe, pode-se reconhecer o caráter
de avanços e retornos característico da dominante cíclica do regime noturno do imaginário.
Uma das filhas reconhece a culpa, não apenas da mãe, mas do grupo, trata-se, porém, de
algo paradoxal, pois ela declara: “Éramos culpadas pela inocência, / ancestrais do mesmo
crime.” (p. 29). Esse sentimento se justifica se retomada a afirmação da mãe em um verso
citado anteriormente, de que “a pureza é violenta” (p. 17). Em Biografia de uma árvore
107
também aparece essa inversão do valor da pureza em “Fui corrompido pela pureza”
(CARPINEJAR, 2002, p. 35), sendo essa uma obsessão do poeta, possivelmente visando
chocar o leitor e possibilitar a ele uma visão diferenciada.
A Maria-mãe referindo-se a si mesma, julga poder conciliar em si os opostos:
“Amadureci a covardia em sarcasmo. / Posso rir do sofrimento. / Mistérios existem para
simular profundidade. / Sou rasa, fútil.” (CARPINEJAR, 2004, p. 34). Acostumada ao
sofrimento, ela se autoriza a revertê-lo em riso e é capaz de assumir a própria futilidade,
renunciando a uma pretensa profundidade. Referindo o poder diante da vida e da morte e
contrariando o pensamento comum de que esta é inevitável, ela afirma: “Posso adiar a morte, /
nunca o nascimento. / É impossível cortar a semente.” (p. 34). A vida mostra-se mais forte e
inevitável que a morte, esta poderia, de alguma forma, ser evitada, o que remete aos versos
anteriormente citados, que referiram a não resistência da mãe à velhice, sugerindo que ela
poderia ter evitado o envelhecimento e a morte.
O poema seguinte expressa a relação estabelecida pelas Marias entre a noite, a morte e as
memórias: “Noites acumuladas / formam trevas. / O que dói é nossa / morte memoriada, / os
animais perecem / e logo esquecem / o que viveram. / Atravessamos a dor / com as
lembranças.” (p. 35). A dor e o sofrimento são marcantes no humano devido à sua capacidade e
tendência a recordar. As lembranças seriam o elemento que não permite que o humano pereça
integralmente, como ocorre ao animal. se encontra outra justificativa para a afirmação do
poema anterior, de que a morte pode ser evitada, pois o humano pode se manter vivo na
memória.
Conforme afirmado anteriormente, a obra de Carpinejar também tem tendência a
explorar o insignificante e dar valor ao que usualmente é rejeitado. Neste livro em específico, a
mãe incorpora esse papel e, conforme relato de uma das filhas, guarda lugar para aquilo que
usualmente seria rejeitado: “A mãe orquestrava a horta. / reservava espaço para ervas daninhas/
e seu alfabeto de moscas. / Não mexia na ordem de Deus. / Louvada seja / a esmola de uma
hortaliça.” (p. 38). Ao invés de combater as ervas daninhas, a mãe lhes reserva um lugar,
acreditando que elas devem integrar a criação, a ordem divina.
Bachelard em seus estudos sobre o simbolismo da casa e seus aposentos, ressalta a
importância dos mesmos para a imaginação. Nesse sentido, cabe notar que a cozinha
caracteriza-se como um cômodo especial na morada das cinco Marias: “A intimidade vinha da
108
cozinha, / peça que não esfriava, / estábulo do feno / e da pobreza necessária. / As brigas e as
confidências / gravitavam naquele círculo / de tijolos à vista.” (p. 39). Pelo caráter de
acolhimento desse espaço, ele cria um ambiente que remete à dominante digestiva,
considerando-se as caracterizações propostas por Gilbert Durand. É também a cozinha que
revela a ausência do sexto membro da família: “A mesa oferecia seis lugares, / nenhum encosto
a mais. / Nunca trocamos de posição. / Herdei uma cadeira de vime.” (p. 39). Também os dois
versos finais do poema são significativos quanto à importância da cozinha para o
compartilhamento de momentos em família: “Ali, a linguagem / tirava suas vestes.” (p. 40). A
metáfora da linguagem despida pode ser interpretada como liberta de todo tipo de subterfúgios
e imprecisões, uma linguagem direta, clara, em suma, a franqueza total.
A inversão de valores é também uma das marcas que vem se repetindo nas obras
analisadas, aparecendo novamente nos versos: A honestidade é antipática. / As pessoas que
são justas, / discretas, comportadas, / netos ao colo, casos arquivados, / não rendem literatura. /
A impureza emociona.” (p. 43). É a inadaptação às regras sociais, ao considerado bom e
perfeito, que mobiliza o humano, ser predisposto à imperfeição e, como tal, sensível àquilo que
revela sua fraqueza. Note-se também a reflexão sobre o conteúdo da literatura, apontado como
aquilo que ultrapassa a medianidade. Seu papel é tirar o humano do lugar comum e lançá-lo
numa realidade outra, apresentando a quebra de regras, o inusitado, enfim, algo que surpreenda
e comova.
O comportamento esperado no relacionamento a dois ganha contornos especiais na visão
das Marias, que também nesse aspecto invertem valores: “As confidências ofendem. / O casal
esgota cedo a estranheza. / Busca se destruir perfeitamente. / A traição é uma intimidade / mais
estável que o casamento. (p. 47). Compartilhar confidências, atitude normalmente vista como
de aproximação, é considerada negativa, justamente por acabar com a estranheza de um em
relação ao outro, que seria um elo de atração. a traição é paradoxalmente tomada como um
ato de aproximação e não como resultante do afastamento entre o casal.
Focando o relacionamento com seu marido desaparecido, a Maria-mãe relembra
momentos felizes: “Ao andar contigo, / eu ria à toa, / a música tinha / nossa respiração. /
Como uma cordilheira, / a tempestade sobrevoava / a esponja do verde, / sem derramar
relâmpagos. / Ao andar contigo, / eu me invejava.” (p. 49). A relação descrita parece de perfeito
entendimento, nenhuma ameaça parece capaz de abalar essa união, o que se contrapõe a
passagens anteriores da obra, em que o pai é pouco mencionado e a mãe tem necessidade de se
109
livrar de tudo o que a faça lembrar dele. Avançando nas lembranças, porém, delineia-se o
motivo que provocou a mudança do sentimento: “Pega de surpresa / pela tua indiscrição, / vejo
que convivi todo o tempo / com morcegos no forro do telhado. / Tolero o que desconheço.” (p.
51). A indiscrição pode ser neste poema uma referência à traição, a qual a mulher tolerou
enquanto não descobriu; assim se justifica também a referência anterior a essa atitude, como
uma forma de intimidade.
Uma das Marias, ao descrever a si mesma, reconhece duas características marcantes, a
sua aproximação às coisas simples e o desejo de avanço no tempo: “Não fui gerada para a
grandeza, / barro que não será escultura, / ramo de ninhos sonâmbulos. / Quando criança,
queria ser adulta. / Quando adulta, queria ser velha. / Quando velha, queria morrer.” (p. 50).
Percebe-se, aí, primeiramente, o reconhecimento nas coisas simples e a indiferença à grandeza,
além disso, nota-se a aceitação da passagem temporal e, mais do que isso, o desejo de avançar
rapidamente de uma fase a outra. Esta escrita aproxima-se, assim, em certa medida, da
modalidade do progresso, proposta por Jean Burgos, e pode ser associada à mãe, levando-se
em conta os comportamentos anteriores desta.
Uma das filhas acusa a mãe como forma de compartilhar com ela um sofrimento que não
é explicitado na obra: “Incriminei a mãe para não sofrer sozinha. / Ela aparou as feições,
sustentou a prole, / preparou estoque na despensa para um dia gastar, / aproveitou as garrafas
vazias para encilhar o muro. / Capaz de adulterar os fatos / para me poupar da crueldade. / Sua
proteção me deixou vulnerável.” (p. 56). A figura materna é acusada por uma ausência que não
é a dela, mas possivelmente a do pai e essa atitude é justificada pelo desejo da filha de dividir
sua dor de alguma forma. A mãe, por seu turno, é apresentada como a protetora, que assume o
cuidado para com as filhas, o que, porém, mostra resultado inverso do que seria esperado, por
torná-las suscetíveis àquilo de que as buscava proteger.
Em outro poema, uma das mulheres, possivelmente a mãe, reconhece que falhou por não
ter demonstrado reação diante das situações que enfrentou: “Deveria ter brigado mais, /
respondido às agressões, / sangrado mais, / esperneado e puxado os cabelos, / gritado palavrões
e socado o ar. / No acúmulo da poeira, /as gavetas trincaram.” (p. 60). Justamente por ter aceito
tudo passivamente, por ter evitado o confronto, ela sente que se quebrou aquilo que buscava
proteger e a imagem da poeira que trinca as gavetas é significativa nesse sentido, revelando a
agressão causada por aquilo que não foi dito, pela discussão e pela briga não concretizadas.
110
A dificuldade de adaptação à realidade também é tema de poema na obra, sendo
explorada por uma das Marias, que ressalta: “Viver requer a disciplina de ser invisível. / Todos
querem aparecer.” (p. 62). A invisibilidade, própria do espírito que supera a morte, para quem
tem a crença na ressurreição, é indicada como característica fundamental aos vivos, sugerindo
possivelmente a questão da discrição, à qual se opõe o desejo humano de ser visto, conhecido,
enfim de aparecer, como expressa o próprio poema. O eu-lírico reconhece também sua
dificuldade de aceitar o envelhecimento, visto como uma forma de violência, e revela guardar
uma raiva que o acompanha desde o nascimento, mas não explica a que ou a quem se refere
esse sentimento, gerando uma dúvida não respondida: “O mundo não é feito sob minha
medida. / Nada envelhece sem alguma violência. / Nada altera a raiva com que nasci.” (p. 62).
Esses versos indicam uma revolta por parte do eu-poético, devido à destruição engendrada pelo
tempo, atitude que se aproxima da modalidade de conquista do tempo, segundo caracterização
de Jean Burgos.
A oposição à religiosidade é outra marca recorrente nas obras de Carpinejar e que
também é explorada em Cinco Marias, como se percebe pela rememoração do período de
infância por uma das irmãs: “Freqüentava a igreja na manhã dos domingos. / O que fazia na
capela escura, / enquanto o dia aberto, ensolarado, / convidava-me à escadaria e aos morros? /
A luz não se ajoelhava. / Meus pecados não sabiam que eu existia. / Rezar pareceu-me um
sacrifício, / a espiral do peixe a seco, / contorcendo-se no banco de uma missa, / pedindo que
não chovesse à tarde. / Deus falava uma língua adulta.” (p. 65). A ida à missa revela-se um
compromisso penoso para o sujeito lírico que desejaria estar se divertindo. Os gestos e todo o
clima da igreja mostram-se desprovidos de significado para ele, que não acreditava no sentido
do que fazia ali. O verso final torna mais forte a impressão de distanciamento entre quem fala e
Deus, a linguagem de ambos não é a mesma, eles não se entendem.
Uma das filhas, ao caracterizar a mãe, o faz de modo paradoxal, assimilando-a ao mesmo
tempo ao divino e ao demoníaco: “Nas fendas do rochedo, / celebrava tua figura. / Acendia
uma vela na outra. // Minha mãe, / anjo de todos os demônios.” (p. 67). Em oposição à falta de
religiosidade indicada pouco, aqui uma das filhas mostra-se devota, mas à figura materna,
que concilia bondade e maldade em sua personalidade. O verso “anjo de todos os demônios”
pode ser interpretado ainda no sentido de que as filhas (entre elas a que assume o discurso
nesse verso) da Maria-mãe eram seres negativos, a quem esta, em sua bondade, protegia.
111
Se por um lado a mãe merece devoção, por outro, é importante observar que a imagem
do pai ausente é negativa, ele representa um indivíduo que não desperta carinho nas filhas, mas
antes resistência e até asco, de maneira especial por uma possível tendência ao alcoolismo:
“Meu pai carecia / de medida ao vinho. / Segurava o cálice / pelas bordas. / Seu suor
comprimia / álcool em minha testa. / Eu afastava seu beijo, / aquele beijo. // Não importava a
safra / poderia ser a melhor, / ela azedava em sua veia.” (p. 71). A memória do pai é a de
alguém cujo toque provocava a degradação do que era tocado. Esse poema revela, assim, que o
pai era um estranho naquele lar de mulheres.
Esse pai também é caracterizado, posteriormente, como despreparado para o cuidado das
filhas, incapaz de preparar-lhes sequer uma refeição e desfrutá-la com naturalidade: “Meu pai
largou as boinas, os paletós, / o futuro usado, as canetas nos bolsos. / A única vez em que
jantou / com as filhas, tive compaixão. / Preparou sanduíches / e arrumou a mesa. / Não achava
a gaveta dos talheres.” (p.78). Nota-se a falta de hábito de preparar alimentos e a inexperiência
de adequar a arrumação da mesa com o tipo de refeição. Mas o desconforto do pai na situação
a sós com as filhas vai além: “Ele não levantou a testa / naquela noite. / Suava vésperas. / A
realidade sugere / mais do que suporto.” (p. 78).
O nervosismo do pai se justifica na seqüência, quando se esclarece também o porquê do
jantar com as filhas sem a presença da mãe, ausência que é questionada pela filha no poema:
“Onde ela estava?(p. 78). A dúvida é respondida na seqüência: “O pai escondeu a voragem,
os indícios, / o delito. Em segredo, / havia internado a mãe em sua clínica. / Não informou os
parentes e os amigos.” (p. 79). A ausência da mãe se explica por sua internação, realizada pelo
marido médico e justificada pelo desejo dele de “enterrá-la viva. / Atestou que era louca, /
imprópria ao banho. / Ela era sua sanidade. / Ela era sua sanidade. / Ela era sua sanidade.” (p.
79). Nota-se nas atitudes do pai o desejo de aprisionar a esposa, afastá-la do convívio social.
Ao justificar a internação como decorrente da loucura, ele deixa transparecer a própria
insanidade, sugerida pela repetição três vezes do verso: “Ela era sua sanidade.” O gesto
posterior da Maria-mãe de enterrá-lo no jardim de casa pode ser interpretado, nesse sentido,
também como uma espécie de vingança.
Em determinado momento, uma das Marias confessa seu despreparo para lidar com
determinadas situações, como a despedida: “Não sei me despedir / da vida, do trabalho, / dos
pais.” (p. 73). Esses versos se aproximam de uma afirmação de Avalor em Biografia de uma
árvore, em que ele assume sua dificuldade em “fechar um livro / ou vedar uma frase.”
112
(CARPINEJAR, 2002, p. 93), revelando uma tendência à incompletude, a deixar as situações
em aberto, comum a esses dois sujeitos. Ainda em um poema posterior, uma das Marias
demonstra seu gosto pelo que não está concluído: “Fazer as coisas pela metade / é minha
maneira de terminá-las.” (CARPINEJAR, 2004, p. 109).
O apego à realidade e à concretude é percebido no discurso de uma das filhas, quando
assume: “Aliso as sobrancelhas, / o grito do café inaugura o dia, / meu rosto não concluiu / os
traços de minha mãe, / mergulho na incoerência, / na simpatia pelos gagos / e seu excesso de
impostura. / Não temo baratas, aranhas, / fósseis e os pequenos animais / do Antigo
Testamento.” (p. 76). Receptiva a atitudes, situações e pessoas diversas, esta Maria-filha
apenas mostra resistência ao que ultrapassa o plano da objetividade: “Meu nojo é com quem /
se esconde na transcendência.” (p. 76). Essa afirmação reforça o anseio pela vida e seus
acontecimentos concretos e palpáveis.
A superação de distâncias sem o efetivo deslocamento constitui-se numa possibilidade no
nível dos poemas, sendo explorada, por exemplo, na declaração de uma das Marias: “Não
preciso do mar / para ir longe. Exercito / distâncias no quarto.” (p. 77). O eu-poético sente-se
capaz de distanciar-se sem sair do lugar, através do pensamento, da imaginação, conciliando,
assim, o próximo e o distante, o deslocamento e a imobilidade, o que permite a vinculação
desta atitude à dominante cíclica do regime noturno da imagem. Comportamento semelhante
fora apresentado também em As solas do sol, numa referência a Avalor, que aprendera a “se
deslocar parado” (CARPINEJAR,
2005b, p. 107).
Os versos antitéticos: “Somos o que não temos. / O que temos, perdemos de ser. (p.
80) sugerem que o humano é constituído por aquilo que lhe falta, ou seja, é o desejo que o
move. Ao atingir um objetivo, o homem já não está mais satisfeito com ele, quer mais. Por essa
característica de estar sempre além daquilo que tem e, portanto, conciliar os opostos de ter e
ser, sugere-se uma aproximação natural do ser humano com a dominante cíclica do regime
noturno do imaginário.
No entanto, em outro poema, uma das Marias destaca a força da morte, alertando que
essa não aceita moldes, é sempre imprevista e indiscreta: “Desistam de planejar o desfecho. /
Não morremos com nobreza. / Toda morte é um vexame. / Não nascerei de novo, / a morte é
que se renova.(p. 82). Contrapondo-se à visão religiosa de renascimento espiritual, a Maria
que assume o discurso frisa que é a morte que se repete, ou melhor, se renova, sendo, portanto,
113
superior à vida, impondo-se sobre esta. Essa atitude pode ser vinculada à modalidade de
revolta frente à passagem temporal, pela descrença na transcendência e pelo medo do fim
aterrador que a morte representa. Assim, nota-se que há na obra momentos de tensão entre
comportamentos vinculados a diferentes modalidades de estruturação do imaginário.
Em um discurso, que parece ser de uma das filhas, revela-se a lembrança de um passado,
vivido no interior, trabalhando no campo: “Acordávamos cedo / para ajudar na plantação. / Pior
que superar o inverno, / levantar o hálito das cobertas, / chutar a geada com as sandálias, /
escutar o lamento da coruja / era resistir ao bocejo da semente.”(p. 87). A referência ao frio, à
geada remete à idéia de que o local mencionado possa ser o sul do Brasil, como ocorre em
obras anteriores de Carpinejar, revelando, de certa forma, a imagem de interior própria do
imaginário de que o poeta se encontra impregnado.
Ainda sobre as lembranças, uma das Marias destaca que apenas é recordado aquilo que
não foi integralmente vivido: “Lembro do que não vivi / o suficiente para esquecer.” (p. 87).
Esses versos sugerem que aquilo que foi aproveitado em plenitude não tem necessidade de ser
recordado, pode ser relegado ao esquecimento, mas o que ficou incompleto exige a lembrança.
Também se pode estabelecer uma relação com a transformação do passado pela imaginação.
Ainda sobre recordações, em outro poema, uma das Marias parece invadir a vida alheia e sofre
ao retomar memórias que não são suas: “Evocava, chorando / recordações que não eram
minhas. / O lamento enrugava as telhas.” (p. 91). Novamente pode-se sugerir a infidelidade
aos fatos pela recriação das memórias, que passam a não ser reconhecidas.
Esse eu-poético também avalia a relação das crianças com a linguagem, destacando a
flexibilidade delas e o desapego às convenções, mostrando-se capazes de inverter a
normalidade, a ordem prevista, conforme expresso em: “As crianças não dependem / de um
nome para nomear. / Com os tornozelos, / arrastam a relva das sílabas. / Calçam sapatos
trocados, / um de cada par.” (p. 91). Se as crianças podem brincar com as palavras, após ter
atingido a maioridade, o sujeito lírico passa a desconfiar delas: “Na maioridade, virei minoria. /
Sacrifiquei a confiança das palavras.” (p. 91). Sugere-se aí o reconhecimento de que as
palavras não são suficientes para traduzir tudo o que se pensa e sente.
O pai, homem desaparecido da casa dessas cinco Marias, é recordado por uma das filhas
pela sua frieza e indiferença: “Quando discutíamos, / o pai dizia: / - Nada a declarar. // E minha
vida segue / sendo a declaração do nada.” (p. 97). Sugere-se que a filha sentia na atitude do pai
114
a desconsideração em relação a ela e seus problemas; como conseqüência, certo
ressentimento no tom dos versos ao sugerirem que a vida dela é a “declaração do nada”.
Abordando a questão do divórcio, uma das Marias traça um paralelo com o
arrombamento, pelas ausências que causa: “Separar-se é ter a residência invadida. / Conferir
peças na sala, armário, / carteira, com pouca noção exata / do que foi embora. / Olhar
desconfiado / aos objetos que viram / e nada dizem. // Separar-se, uma porta / arrombada por
dentro.” (p. 101). A imagem da porta arrombada por dentro é significativa no sentido de
demonstrar que, na separação, a invasão parte de dentro para fora.
No poema seguinte, uma das filhas revela que passou a assumir diferentes funções no
grupo familiar após a partida do pai: “Lentamente, / tornei-me pai, / irmã, prima, / uma família
inteira, / a escutar o fardo / de conviver / com a filha / que eu era.” (p. 102). A filha assume as
múltiplas perspectivas, a fim de compreender a visão que a família tem dela; ao mesmo tempo,
a incorporação dessas diferentes figuras pode ser interpretada como forma de preencher os
vazios, a falta efetiva dos parentes, principalmente do pai.
Apontando sua distinção em relação aos heróis, no poema seguinte uma das Marias
afirma: “Os heróis se calam / antes de contar / o que realmente viveram. / Os heróis se calam, /
não eu.” (p. 105). Nessa declaração se revela a ausência de pudor em contar sua história, a
despreocupação em parecer banal ou pouco responsável. Assim, na seqüência, ela conta
pequenos momentos de sua rotina: “Divido as cebolas na tábua, / divirto-me com o
sofrimento,/ assusto o almoço / com minha risada, / enumero os cabides no armário, / arte inútil
que me fixa / até o sol baixar.” (p. 105). Nota-se a ocupação com coisas desprovidas de
valor, insignificantes, indicando que não preocupação em atingir grandes feitos, pelo
contrário, basta-lhe preencher o tempo com atividades sem importância.
Essa atitude é justificada na seqüência pela afirmação dessa Maria de que a vida não é
feita de grandes heroísmos, pelo contrário, “Viver é despreparo. / Ao apanhar um pacote, /
outros escorregam. / Sento na calçada, / desolada com a comida espalhada, / faltando-me a
calma da chuva. / Salvo um dia triste de cada vez.” (p. 106). Os versos “Ao apanhar um
pacote,/ outros escorregam.” remetem ao próprio jogo de cinco marias, em que apenas um dos
saquinhos é apanhado a cada jogada, enquanto os demais não são tocados. Além disso, o verso
final indica o estado de espírito dessa Maria que reconhece os limites impostos pela vida.
115
Numa reflexão sobre a existência e o valor das coisas, as Marias ensinam: “Chega um
momento / em que somos aves na noite, / pura plumagem, dormindo de pé, / com a cabeça
encolhida. / O que tanto zelamos / na fileira dos dias, / o que tanto brigamos / para guardar, de
repente / não presta mais: jornais, retratos, / poemas, posteridade. / Minha bagagem / é a roupa
do corpo.” (p. 110). Os objetos perdem o valor, pois este também muda e, no final da vida, o
que vale é apenas o instante, pois o futuro é incerto e o passado já foi vivido à sua maneira, não
podendo ser recuperado. Também em Terceira sede é explorado o termo “bagagem”,
caracterizando as cargas levadas pelo ser humano e que são aliviadas na velhice, quando não há
mais grandes projetos, nem preocupações quanto ao futuro.
Em outro poema, a atitude da Maria-mãe de livrar-se dos objetos que lembrem o
casamento mostra-se insuficiente para apagar as lembranças: “Vendi o vestido de noiva. / Vedei
o álbum de casamento. // A memória não aceita suborno.” (p. 112). A idéia contida nesses
versos é que os objetos materiais podem ser deixados de lado, mas o que é interno não se deixa
vender ou apagar, fica marcado.
A casa, espaço em que transcorre a vida das cinco Marias, é comparada a um túmulo, o
que adquire seu sentido pleno apenas no final do livro, na notícia de jornal que segue os
poemas. Ao declarar: “Em nossa grade, / um epitáfio: / Cuidado com o cão.” (p. 113, grifado
no texto), elas insinuam que seu lar está morto, sem vida e o mais marcante é a frase usada
como epitáfio, uma frase que indica o perigo, a violência, concentrada na imagem do cachorro
e no alerta para que o visitante tome cuidado, de preferência, mantendo-se afastado, o que era
desejado pelas Marias, que ficaram trancadas em sua morada, sem contato com outras pessoas,
por dois meses.
Fazendo uma análise sobre si mesma, uma das Marias, possivelmente a mãe, compara o
que ela foi e o que agora é, chegando à conclusão que “Eu fui o que não sou. / Depois que
inventaram o inconsciente, / a verdade fica sempre para depois.” (p. 115). Essa Maria utiliza o
inconsciente como meio de não se comprometer com a verdade, ele serve como desculpa para
atitudes pouco coerentes, como a que vai ser revelada ao final da obra, ou seja, o enterro do
marido no jardim, que ela vai negar, alegando ter ocultado apenas a biblioteca dele.
O antepenúltimo poema revela uma ação bastante atípica: “Suspendo os afazeres, /
compelida a desabotoar a blusa / e esvaziar o leite / dos não-nascidos.” (p. 116). Essa atitude,
provavelmente também da Maria-mãe, sugere o ato de extrair o leite para amamentação dos
116
filhos que ela não teve. A esses versos, é possível associar os do poema seguinte, que apresenta
a metáfora da morte como apagar da luz: “Educado, o sangue / apaga a luz ao sair.” (p. 117).
Aproximando o sentido dos dois poemas, pode-se entender a morte como as vidas negadas de
nascer, as quais são representadas pelo sangue menstrual, que é sinal da inexistência da
gestação.
Por fim, o último poema, de apenas dois versos, remete à notícia da seqüência, em que o
corpo do marido de uma e pai das outras quatro Marias é encontrado enterrado no quintal da
casa, tendo sido ocultado por estas junto com a biblioteca. Assim, o livro mencionado no
poema pode ser uma alusão ao corpo que, para que não aparecesse, foi posto sob a terra:
“Coloco pedras no livro. / Ele não sobe com a água.” (p. 118).
A notícia que consta no final da obra como tendo sido publicada no Diário do Sul é
inventada pelo poeta, de forma a fornecer a versão da sociedade para aquilo que as cinco
Marias contaram, em forma de poesia, em seu diário coletivo. Nota-se a oposição da visão
racional e objetiva do texto jornalístico à visão poética e subjetiva daquelas cinco mulheres.
A mescla de várias vozes ao longo da obra, identificada como um diário coletivo, produz
uma dispersão do foco, com temas que aparecem em um momento e são retomados em outros,
sob diferentes pontos de vista, gerando a impressão de avanços e retornos (ou retornos
regulares), que Gilbert Durand associa à dominante cíclica do regime noturno do imaginário.
Nesse sentido, mostra-se significativa, ainda, a tentativa de conciliação de contrários, seja na
personalidade, no comportamento ou nos fatos que sucedem às cinco Marias.
Cabe ressaltar também que predomina no comportamento dessas cinco mulheres a
aceitação e a inserção na temporalidade, manifesta até mesmo pela invocação da morte, bem
como pelo desapego a um período específico da vida, sendo passado, presente e futuro jogados
livremente no discurso.
Dessa forma, confirmam-se a dominante cíclica e a modalidade de progresso, como
forma de manifestação principal do imaginário em Cinco Marias, livro com o qual Carpinejar
declara encerrar um “ciclo romanceado”, através do qual ele afirma ter buscado contar uma
história, romanceado um conteúdo impróprio para esse fim
19
. Resta analisar as duas obras
19
Dados baseados em entrevista concedida pelo poeta a Linaldo Guedes, do Correio das Artes, disponível no
blog: www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br. Acesso em: 12 dez. 2008.
117
posteriores e que não se inscrevem nesse ciclo, para verificar se também nelas se confirma o
predomínio das mesmas dominante e modalidade.
4.6 Como no céu e Livro de visitas: uma obra dupla
A sexta obra poética de Carpinejar é, na verdade, duas. Ela contém Como no céu e Livro
de visitas, sendo que este último começa de trás para a frente, sua capa é a quarta capa do livro
e é folheando de trás para a frente que se sua leitura. As duas obras são aparentemente
independentes, embora ligadas pelo elemento material, o livro, por isso, a análise das obras
também será feita separadamente, embora se busque apontar aquilo que as aproxima, visando
entender os motivos da dupla publicação em um único livro.
4.6.1 Como no céu
A análise será iniciada por Como no céu, em que o enfoque principal recai sobre os
relacionamentos, especialmente os afetivos e conjugais, os quais não irão remeter somente ao
aspecto positivo e de felicidade, sugerido pelo título, embora ele seja predominante.
A obra já inicia com certa incógnita, pela afirmação da necessidade de morte da mãe para
o nascimento do filho homem: “Todo homem / antes ou depois de se revelar, / é filho de um
parto / onde sua mãe morreu.” (CARPINEJAR, 2005a, p. 7). Sugere-se um desdobramento
do complexo de Édipo, o homem, para sua auto-afirmação como tal, necessitaria romper os
vínculos com a mãe. A estrofe final reforça essa suposição: “Alcançar na terra / o que o ventre
cedia / de água, vento e córneas.” (p. 7), indicando que a conquista de seu espaço exige do
homem suprir por conta própria aquilo que a mãe antes provia.
Mas se a separação da mãe é essencial ao homem, a obra também revela a importância de
outra mulher para ele: a companheira. Referindo-se a ela, o eu-poético analisa a flexibilidade
do corpo, que se adapta às diferentes situações, distendendo-se para carregar os filhos e
voltando a retrair-se após o nascimento destes: “Agora, vejo minha mulher / ao meu lado, seu
corpo / já passou pelos filhos, / os filhos passaram pelo seu corpo, / a pele reluziu, dilatou-
118
se,/ voltou ao estado / de contenção e apuro, / e aos poucos se mantém / recolhida como um
carretel / e sua corda de amanhecer.” (p. 8). Em relação à relativa constância do corpo
masculino, o da mulher é ao que parece mutante, ajusta-se de acordo com as necessidades,
voltando, posteriormente, à forma original.
Quanto à relação com a companheira, ele admite ter sido escolhido por ela, notando-se
por suas palavras a construção de uma relação sólida, duradoura, insinuada pelo verso que se
repete: “Ela escolheu envelhecer comigo.” (p. 9). Destaque-se igualmente que o eu-poético não
atribui a escolha da amada necessariamente ao amor; ele levanta, pelo contrário, diversas
possibilidades: “Pode ter sido compaixão pela / minha falta de jeito, / acaso ou um acidente /
dos cabelos lisos. / Ela escolheu envelhecer comigo. / Pode ter sido amor, / simpatia ou alguma
/ perda fora de mim / que despertou suas perdas. / Pode ter sido a idade que pedia um marido, /
sei lá, o marido pedia uma idade.” (p. 9). Ele abre um leque de possibilidades, sem preocupar-
se com o real motivo de sua união com a parceira.
A felicidade de ter sido o escolhido é retribuída com a atenção que dedica a ela,
preocupando-se com os sentimentos que desperta na amada: “Será que ela está feliz / ou se
esconde na trégua / em que não nos falamos?” (p. 10). Percebe-se nessa dúvida o receio do eu-
poético em não estar satisfazendo aquela que está ao seu lado. Mas estar bem com a
companheira, para ele não é estar em paz, pelo contrário, ele afirma: “Eu rezo para não ter paz /
no corpo dela.” (p. 10). Aí se revela que o desejo do eu-lírico não é o sossego, mas a
manifestação constante das emoções. Contraditoriamente, porém, ele afirma não ter coragem
de tocar a parceira: “Não me aproximo. Não a toco. / Sua solidão é exigente / e quer tudo.
Menos a sabedoria / para se explicar.” (p. 10). Note-se a subserviência à mulher amada, o
respeito a todos os seus gestos e atitudes, idéia que é reforçada também nos versos: “Eu não
altero o ritmo / de sua quietude.” (p. 11), sugerindo até uma forma de veneração.
Contrapõe-se a esse respeito extremo, o desejo do sujeito lírico de invadir aquilo que a
amada não lhe revela “Não quero pensar o que ela pensa, / quero pensar o que ela não deseja
pensar, / o que renega estar pensando, mas que / existe apesar dela.” (p. 11). Assim, ele
demonstra o desejo de saber tudo sobre a parceira e, apesar de ser aparentemente submisso a
ela, também a controla, por conhecê-la profundamente. Essa união dos opostos da submissão e
do domínio é uma característica que pode ser vinculada à dominante cíclica do regime noturno
da imagem, permitindo a aproximação inicial do comportamento do sujeito lírico com essa
dominante.
119
A conseqüência do desejo de domínio da amada é o ciúme que é manifesto em versos que
apresentam a metáfora dos olhos dele como cães ferozes: “Minhas pupilas, dois cães / raivosos
em sua cintura, / esticando o pescoço negro / e tremendo as estrelas. / Se não tivesse o portão,
eles avançariam? / Ou estão habituados a latir? / De que raça são meus olhos? / Serão
domésticos / quando não protegem a casa?” (p. 11). Manifesta-se nesses versos um tom de
agressividade, sugerindo que o ciúme que sente da amada é algo que chega a tornar o eu-lírico
irracional, embora o desejo seja sempre a proteção, como um cão que cuida do lar.
A passagem temporal, tema recorrente nas obras de Carpinejar, é encarada como
responsável por perdas e pela morte, o que o eu-poético indica de forma compreensiva, como
sendo algo natural. Assim, ele projeta o que ocorrerá com ele e a companheira: “Nossos filhos
vão crescer e casar, / as visitas deixarão de avisar. / Tu te separas lentamente / dos móveis e da
reposição das gavetas. / Tu te abandonas com tamanha perfeição / que não haverá fim ao corpo.
/ Não deixarás pistas da carne. / Não subirás novamente a terra / por curiosidade. / Estás
plenamente fora / cada vez mais dentro.” (p. 13). Destaque-se como o eu-poético percebe a
incorporação da morte pela companheira de forma antitética, aproximando presença e ausência,
sugerindo que ao sair de um mundo ela se introduz em outro.
Merecem referência, ainda, os dois versos finais do poema, que revelam a inversão da
ordem cronológica: “Tu, avó de tua mãe, / voará ficando.” (p. 14). Esse tipo de inversão já
apareceu em Biografia de uma árvore, bem como em Cinco Marias, apontando a superação da
noção de tempo, que também se aplica ao paradoxo do verso final, que alia o movimento do
vôo à imobilidade, remetendo à idéia de que a parceira do eu-lírico encontrará outra forma de
seguir a vida: se o corpo vai permanecer imóvel abaixo da terra, há a esperança de que o
espírito continue livre para prosseguir viagem. Essa visão se aproxima da proposta de Jean
Burgos em relação à modalidade de progresso, devido à aparente aceitação do fluir temporal,
que esconde o desejo de superação do mesmo, pela circularidade da vida.
Fazendo o contraponto ao excesso de amor e cuidados demonstrado para com a parceira,
o sujeito lírico a critica por não corresponder aos exageros praticados por ele: “O que adianta
transbordar / se não dás conta do mínimo?” (p. 15). Percebe-se uma diferença de atitude
entre o casal, a intensidade da vivência da relação é distinta. Outro aspecto ressaltado quanto
ao relacionamento com a companheira é o anulamento de um deles no casamento: “Nossas
viagens giravam / em torno do que esquecemos de pôr na mala. / Com o casamento, deixamos
120
algo para trás. / Temos uma vida inteira a definir / quem de nós ficou em casa.” (p. 20).
Iniciando pela lembrança da discussão corriqueira em torno dos objetos esquecidos na
organização de malas para uma viagem, ele avança para traçar um paralelo com o casamento,
em que, segundo ele, um dos parceiros precisa se anular para manter o relacionamento vivo.
Uma falta de controle ou medida para os atos parece atrapalhar o eu-lírico, que afirma:
“Modifico a infância ao avançar. / Esqueço a data ao preencher o cheque. / Uso chapéus dentro
de casa. / Deveria ser preso por atravessar / uma praça ensolarada e não sentar. / Atravessar
uma vida sem atalhar pela praça.” (p. 23). o reconhecimento inicial de que a passagem
temporal faz alterarem-se as lembranças de infância, que são recriadas pela imaginação,
conforme se mencionou anteriormente. A isso, o eu-poético alia a referência a algumas
particularidades, acabando por condenar-se por não usufruir o suficiente das coisas simples,
como um dia de sol em uma praça. Ao explorar esses pequenos prazeres, Carpinejar se
aproxima, de acordo com o que foi afirmado anteriormente, a Manoel de Barros e Arthur
Bispo do Rosário, artistas que buscaram a valorização do que usualmente seria ignorado e
menosprezado.
Ainda em relação à companheira, ele revela esforçar-se mais por ela do que por si:
“Cogitei desistir de mim, / mas não de ti.” (p. 24), julgando os dias de ausência da amada
carregados de negatividade: “Os dias em que / não estava contigo / são criminosos.” (p. 24).
Devido a essa supervalorização do relacionamento, até uma saída sem avisar causa receio: “Eu
me assustava / quando partias sem nada dizer. / Mais assustado ficava / quando regressavas
sem nada dizer.” (p. 26). O silêncio mostra-se ofensivo ao eu-poético, que parece buscar
constantemente uma confissão da companheira, conforme fica reforçado nos versos: “Botavas
o prato e a comida na mesa, / em obrigação ofendida. / Comia tuas confissões / com os talheres
trocados. / os ouvidos se mexiam.” (p. 26). Sugere-se que toda a atenção dele está
concentrada em ouvir na fala dela algo que denuncie um erro, um deslize.
Apesar desse sentimento negativo, o eu-poético considera a relação com a companheira
tranqüila: “Nosso amor não teve tormentas, / navegação crispada, / não se aventurou no fundo,/
tampouco foi caseiro como o açude.” (p. 28). Pela descrição feita, o relacionamento parece ser
pacato, sem maiores conflitos e brigas, mas também sem grandes arroubos de emoção e
paixão: “Não chegamos a ser rio / permanecemos arroio, / riacho obediente para as aves / que
aproxima as pernas / e não separa as margens.” (p. 28).
121
O eu-poético também revela que seu casamento foi conseqüência de uma falha de
interpretação por parte da companheira, que ele não se preocupou em corrigir: “Pedi um copo
de água / e entendeste / como proposta de casamento. / Não me desmenti.” (p. 30). Assim, a
versão dela passa a ser a correta e permite a concretização da vida a dois. Por outro lado, ele
reconhece inconvenientes causados por ter sido erroneamente interpretado e não ter buscado
corrigir os enganos: “Não ter sido compreendido / condenou-me a assumir verdades / que
desconhecia, filhos que / que não eram de minha boca, / compromissos que não quis ir.” (p.
31). Nota-se uma falta de coragem de assumir uma posição firme, ele parece ser sempre vago
em suas falas e atitudes, abrindo margem para interpretações diversas, como se reforça na
seqüência: “Ao longo da fala, / abri correspondências alheias. / A ausência de clareza / me
perturbou a viver de favor / em meu corpo.” (p. 31). A imagem final do corpo como
emprestado assinala que nem todas as ações que realiza são reconhecidas pelo sujeito lírico, ele
não se assume como dono e responsável por seu corpo.
Um aspecto a destacar nos poemas é a relação da morada com a vivência a dois, que
pode ser sentida, por exemplo, na associação da reforma da casa à crise conjugal. A mudança
de uma estrutura representaria uma quebra na organização do casal, causando atritos pelos mais
diversos motivos: “O casamento superou / três reformas na casa. / Foram três crises / de cólera
e insanidade. / Prestávamos atenção ao que / não fora arrumado, / desprezando o que fora feito.
/ Começavam a surgir falhas / e defeitos que não se percebiam, / não estavam no orçamento, /
não seriam solucionados.” (p. 34). Nota-se bem como na comparação com a reforma da casa se
revela o desgaste da relação, em que cada parceiro passa a ver apenas os erros e defeitos do
outro. Assim, para superar a crise, a solução foi o esquecimento: “Para preservar o quarto, /
vendemos a casa / ao esquecimento.” (p. 34). É possível associar o quarto preservado ao amor
do casal que foi mantido, a “casa vendida ao esquecimento” pode ser associada a todos os
hábitos, atitudes e demais diferenças entre eles, que precisaram ser superadas.
A reflexão empreendida pelo eu-poético em relação ao tempo, demonstra a aceitação da
passagem do mesmo, mas com a certeza de que ele não age sobre a totalidade do ser: “Há algo
que o tempo não toca. / O tempo não está decidido no rosto, / mas na forma como se escapa do
tempo. / Quanto maior o desespero em fugir, / maior será a velhice.” (p. 37). O efeito do tempo
seria, assim, definido pela forma de reação de cada indivíduo; quanto maior a serenidade,
menor o estrago. Mesclam-se, assim, nesses versos, a inserção na temporalidade e a revolta
contra o tempo, e o eu-lírico revela que a atitude do humano é que define as conseqüências que
serão sentidas.
122
Nota-se, na obra que está sendo analisada, a recorrente realização de ações pouco
convencionais ou racionalizadas, freqüente também em outros livros do poeta. Entre suas
manias, o eu-lírico cita: “Completo as palavras cruzadas / com a ajuda dos resultados. / Leio
um livro / que não é lançamento. / Roubo a cerveja separada / para a visita. / Assisto a um
filme no escuro. / Telefono sem pretexto. / Os bolsos de meu casaco / formam meu diário. /
Não sofro de pudor / e desfalco minha pobreza. / Esforço-me agora / para desaprender.” (p. 40).
Note-se nesses gestos uma tendência de inverter o convencional, o que é especialmente
reforçado nos dois versos finais, revelando a intencionalidade do eu-poético em esquecer o que
é tido como padrão ou adequado e fazer as coisas à sua maneira.
Fazendo uma auto-análise, o sujeito lírico nota como mudou sua percepção de si mesmo:
“Grande parte / de minha vida me odiei. / Hoje essas épocas / são as que eu mais me gosto.” (p.
42). Note-se que, fazendo uma avaliação retrospectiva, ele inverte os sentimentos e aprecia
aquilo que um dia detestou. Ainda fazendo sua auto-avaliação, ele reconhece: “Tenho
dificuldades / para cumprir o que me prometi. / Não ninguém para cobrar. // Nem para falir/
sei fazer sozinho, / Dependo de ti como fiadora.” (p. 43). Realça-se a dependência dele em
relação à companheira, que se dá inclusive no que se refere a acontecimentos negativos.
Em outro poema, o sujeito lírico revela haver diferenças entre ele e a companheira,
sugerindo que ele é mais inocente que ela: “Cuido para não repetir / o que não aconteceu. / Tua
malícia / é a minha pureza. / Te abraço e recebo / a véspera de uma tempestade.” (p. 44). Note-
se o paradoxo expresso pela idéia de repetir o que não ocorreu, o que leva a deduzir que ele
tende a repetir as mesmas ações. A descrição da companheira mostra-a como maliciosa, intensa
e misteriosa, sendo que o uso do termo “tempestade” é significativo da densidade e
imprevisibilidade dessa mulher.
Para caracterizar a relação estabelecida com a companheira, o eu-poético afirma que não
basta o registro, a relação apenas se mostra plena no contato do casal: “Minha mulher / não é
seu nome e uma data / inscritos na aliança. / Minha mulher é o sabão seco / ao redor do anel. /
Quando andamos de mãos dadas, / a aliança faz espuma.” (p. 49). Pelos dois versos finais
pode-se depreender que a relação só é efetivada pelo contato físico, nenhum contrato ou
registro pode descrevê-la ou representá-la plenamente. Quanto à caracterização da mulher
como sabão, essa pode ser compreendida como uma forma de indicar que ela é mutável, seu
123
estado varia, depende do contato para transformar-se, o que, aliás, foi apontado no primeiro
poema da obra.
Ainda sobre a relação a dois, o sujeito lírico assinala que unir apenas as mãos não é
suficiente: “Não basta entrelaçar as mãos, / andamos de pés dados de noite. / De leve, empinar
o peito do / na sola feminina, ensolarada, / um outro lençol no lençol.” (p. 50). O eu-lírico
poetiza a intimidade com a companheira, em cada gesto e toque, ressaltando a importância da
proximidade dos pés, que assegura a tranqüilidade do casal. Note-se o verso “na sola feminina,
ensolarada”, que se aproxima do título da obra de lançamento de Carpinejar: As solas do sol,
revelando que o poeta vai retomando temas e termos ao longo de suas produções.
O sujeito lírico até aponta uma técnica para reavivar o sentimento e a intensidade da
relação: “Nos separamos para tirar férias. / Em cada reconciliação, / entrava em teu corpo /
como se tudo fosse novo / e impossível de brincar / em uma tarde.” (p. 56). Nota-se a
abordagem da intimidade do casal, com o eu-lírico afirmando agir de forma a considerar cada
reconciliação como uma relação nova, como se ainda não conhecesse o corpo da parceira.
Em determinados momentos ao longo da obra, o eu-poético indica que nem tudo o que
refere como sendo sua história é verdadeiro, ele cria e incorpora acontecimentos e vivências
que não são seus. É o que demonstra nos seguintes versos: “Roubo teu passado para abastecer/
minha memória escassa e estreita. / Sou obrigado a me inventar / para competir com o que
viveste.” (p. 57). Ele justifica suas invenções como necessárias para impressionar a
companheira. Mas no poema seguinte ele parece reconhecer que esse tipo de atitude
prejudica o relacionamento: “De tanto olhar para o chão / depois dos erros de relacionamento,/
estabeleci uma intimidade / involuntária com as lesmas, / caracóis e besouros.” (p. 58). A
insatisfação com a própria história e os problemas conjugais acabam afetando a auto-estima do
eu-lírico, conforme ele demonstra na seqüência: “Ao me confessar, pioro a estima. / Se
estava de mal com as minhas virtudes, / termino de mal com os meus pecados.” (p. 58). Note-
se que ele inverte os valores positivo e negativo, afirmando ficar entristecido primeiro com
suas virtudes e só em situações extremas com seus erros e faltas.
Uma nova inversão de valores é sugerida pela associação da infância e da velhice com a
violência e a negatividade. O eu-poético assevera: “Não me venha dizer que a infância é pura e
bela, / ela assassina a ternura tanto quanto a velhice.” (p. 65). Note-se que no lugar da usual
124
valorização das fases inicial e final da vida como as mais repletas de gestos de afetividade e
inocência, ele propõe o contrário, a agressão, manifesta pelo termo “assassina”.
Por seu comportamento, o eu-poético insinua que a vivência do amor deve ser carregada
de intensidade e fervor, o que, porém, não significa necessariamente conhecer tudo do
companheiro, pelo contrário, o eu-lírico indica ter aceito não conhecer integralmente a
companheira, julgando a existência de certos mistérios como necessária: “Eu me conformei /
em reservar alguma coisa / de ti para saber depois. / Um pouco de nosso amor / será póstumo. /
É recomendável / não descobrir todos os segredos.” (p. 67). Note-se que deixar algo encoberto
sobre a companheira é uma forma de conservar o amor para além da vida, uma forma de
superar a morte, atitude que pode ser vinculada à modalidade de progresso, cuja escrita revela a
aceitação da passagem temporal, demonstrando uma forma de superar o limite da vida, pela
aceitação deste.
Em relação à crença em um poder superior, o eu-poético demonstra a diferença entre ele
e a companheira: “Duas fés rezando religiões diferentes. / Mesmo intrigado / com o assunto /
de tamanha devoção, / não quero interromper teu Deus.” (p. 69). Os versos sugerem a inversão
das posições, sendo Deus o devoto à companheira do sujeito lírico, e não o contrário. Essa
hipótese ganha força no poema seguinte, em que é atribuído à companheira o poder de
ressuscitar os mortos: “Ressuscitas os mortos / de acordo com as necessidades.” (p. 70). Ao
comparar a amada a uma entidade divina, ele insinua que ela se encontra num plano mais
elevado que ele, justificando de certa forma a veneração que demonstra em relação a ela em
certos momentos da obra.
Às descrições idealizadas se opõem, no entanto, críticas, como a implícita nos seguintes
versos: “Tua resistência em assimilar / vem da arrogância de ensinar.” (p. 70). Se por um lado a
companheira tem poderes divinos, por outro, está limitada justamente por julgar-se superior.
Nessas atitudes se revelam as diferenças do casal, que são enfocadas mais especificamente na
seqüência: “Peço para ser enterrado, / pedes para ser cremada. / Doaste os órgãos. Não doei
nada.” (p. 70). As perspectivas distintas e os desejos relacionados ao destino de seus corpos
após a morte podem revelar, por parte do eu-poético, o apego ao físico, que deseja conservar
mesmo após morto, o que não ocorre com a mulher, que aceita desfazer-se da materialidade.
Em outro poema, o sujeito lírico mostra que tende ao esquecimento e a repetir os erros
passados: "A consciência não me fez prevenido. / O que fui em mim ainda será." (p. 74). Note-
125
se a união de passado e futuro, indicando a retomada de fatos já ocorridos, como se a vida dele
fosse um ciclo, em que as coisas se repetem periodicamente, o que já foi sugerido
anteriormente nesta análise.
Sobre a verdade, o eu-lírico afirma que esta não precisa ser dita e repetida, e que, quando
é assim, fica descaracterizada: "Uma verdade que insiste / em ser repetida não é verdade." (p.
76). Somente a mentira tem necessidade de defesa e repetição e, contrariamente ao que se
poderia imaginar, é justamente isso que o eu-poético esperava da companheira: "Torci pela tua
traição, / teu abandono de casa, / que me abandonasses por um estranho. / Por que não me
deste/ motivos para te odiar? / Era o papel que eu sabia de cor." (p. 76). A atitude assumida por
ele contradiz tudo o que se espera de um indivíduo apaixonado, ele quer que a parceira o
abandone ou que lhe motivos para odiá-la, sentimento que insinua nutrir, ao menos
mentalmente.
Em uma reflexão sobre a relação que se estabelece entre autor e obra, o eu-poético deixa
claro que o escrito não corresponde ao vivido, pelo menos não integral ou necessariamente:
"Penso ter vivido o que escrevi / e deixo de viver porque está escrito. / Minha letra não torna
meu / aquilo que anotei." (p. 81). Da mesma forma que a obra não é o retrato fiel das vivências
do autor, ela não é propriedade dele. Após concluída, ela torna-se um objeto sem dono, de que
cada leitor se apropria no ato de leitura.
Uma característica de Carpinejar que tem se destacado ao longo deste estudo é a
retomada de alguns elementos de uma obra em outra. É o que se percebe nos seguintes versos
que remetem à Biografia de uma árvore: "Meu ouvido é uma árvore / em tua voz." (p. 84). Na
referida obra anterior do poeta, a segunda parte, intitulada "Biografia de uma árvore
(autorizada pelas raízes)", se constitui dos poemas daquilo que Avalor, sujeito lírico do livro,
julga ser "a orelha de uma árvore" (CARPINEJAR,
2002, p. 9), sugerindo uma aproximação
entre o eu-lírico das duas obras.
Anteriormente, o eu-poético manifestava o ciúme que sentia da companheira,
comparando seus olhos inclusive a cães raivosos, agora, porém, ele muda de comportamento e
afirma suportar as traições dela sem reagir ou manifestar qualquer atitude de revolta: "Minha
caridade tolerava / teus amantes / como reencarnações atrasadas." (2005a, p. 87). Nota-se que
ele parece incorporar uma atitude de conciliação dos contrários, jogando com os sentimentos e
atitudes dele e dela, não mantendo uma regularidade.
126
Valorizando as conquistas difíceis e demonstrando, assim, a importância da
autovalorização, o sujeito lírico declara: "As montanhas são respeitadas / porque ninguém
chega rápido até elas. / Eu me facilitei, e me esqueceste." (p. 90). É curioso notar, no último
verso, que ele afirma que a companheira o esqueceu, um dado novo, que até este momento
se havia insinuado a vida a dois, compartilhada. Outra possibilidade interpretativa é que ele se
posiciona em diferentes épocas ao relatar sua relação. Essa possibilidade deve ser considerada,
pois no poema seguinte ele aparece novamente ao lado da parceira, recordando que enfrentou a
mãe para viver esse relacionamento: "A mãe gritou: / - Ou ela ou eu? / Uma vez por mês, / eu a
visito no asilo / com uma bandeja / de doces preparada pela minha mulher / e leio As mil e uma
noites / para fazê-la dormir." (p. 91). Note-se que a causadora do rompimento entre mãe e filho
é quem prepara agrados para a sogra, enviada a um asilo. Destaque-se igualmente a referência
do eu-poético à obra que para a mãe, criando a impressão de que, da mesma forma que a
personagem da história, ele precisa entreter a mãe, para não ser vitimado por ela.
Se no início da obra o sujeito lírico admirava a flexibilidade do corpo feminino, nos
versos que se seguem ele também se mostra flexível, ao menos quanto ao comportamento:
"Adaptei-me. / Não consegui ser motivo / de escândalo, vítima / do ódio e da vingança, / não
sofri nenhuma doença ria, / o atestado médico não passou de um dia, / não me cuspiram no
rosto, / não me deserdaram, / não me apedrejaram, / não tive nome estranho. / Adaptei-me /
incompetente / até para a desgraça." (p. 95). Note-se, porém, que a adaptabilidade e a
medianidade são vistas por ele como negativas, sendo que o fracasso se torna, paradoxalmente,
um ideal não atingido.
Em outro poema, se reforça a hipótese, exposta pelo próprio eu-lírico em momento
anterior, de que ele inventa sua história: "Para a morte, sofro de um problema. / Não estou todo
em um único lugar." (p. 96). Não estar por inteiro no mesmo lugar pode ser entendido como
uma referência às várias personas que ele cria para si, fazendo com que até a morte possa ser
inventada. O problema seria, nesse sentido, saber quem estaria morrendo. Por essa atitude, o
eu-poético demonstra uma sutil tentativa de superar o tempo, fingindo aceitar a morte para
ludibriá-la e, por fim, superá-la.
Entre as características do eu-poético, destaca-se que ele é uma pessoa fechada,
desejando amigos sinceros, mas mostrando-se sisudo demais para acolher e estimular essas
amizades: "Careci de uma amizade fiel, / uma amizade de infância, / minha solidão de
127
nascença / não se abriu com a convivência." (p. 99). O desejo de maior abertura, receptividade
e extroversão ganha destaque na afirmação: "Sair de mim me alegraria, / tomar ar, encher-me
da esperança / de que minha vida não é comigo, / que ela não me ofendeu e entendi errado, /
como um sedado que não / completa seus pensamentos, / soma insuficiências e segue adiante."
(p. 99). Esses versos revelam a ânsia do sujeito lírico de ter uma vida diferente da sua, de poder
ignorar as decepções e não insistir na reflexão sobre elas, o que tem se mostrado uma
característica insistente na obra.
No entanto, ele considera não merecer o pesar alheio, mas talvez justamente por isso
lamentar-se quando só: “Não sou homem de ser chorado, / mas homem de chorar em segredo, /
rindo de si. (p. 101). Os versos finais revelam a antítese do choro e do riso, que o sujeito lírico
concilia, ironizando de certa forma a própria fragilidade e sofrimento. A inversão do valor da
tristeza e da alegria aparece ainda nos seguintes versos, em que o eu-lírico busca o sofrimento
como se fosse algo positivo: “Quisera me contentar em ser triste. / Deliciosamente triste, /
tristemente anônimo.” (p. 103).
Retomando o enfoque no relacionamento, o eu-poético mostra que se submeteu aos
desejos e caprichos da companheira, questionando-se posteriormente se esse comportamento
foi o adequado: “Nunca mais raspei a barba / desde que te conheci. / Avisaste que meu rosto /
fica menos agressivo. / Deveria ter feito o contrário? / Negar o que pedes / e me mostrar
insubmisso?” (p. 105). Mas se por esse questionamento ele supõe que deveria ter imposto
respeito à mulher, na seqüência, ele toma uma atitude que apenas reforça sua tendência a fugir
do perfil sério, respeitoso, pedindo à companheira: “Não beijes a minha testa. / Que seja a
orelha, o nariz, / o queixo. / A testa, não. / Sinal excessivo de respeito. / Um pouco mais / e me
chamas de pai / junto com os filhos.” (p. 106). Fica claro pelo final do poema que o eu-poético
deseja o carinho de mulher e não de filha ou amiga.
O sujeito rico também relata uma obsessão da companheira por sapatos, à qual ele
compara a compulsão do próprio pai por livros, “Teus sapatos tomam o quarto. / Teus sapatos
são as paredes do quarto, / como os livros / eram as paredes de meu pai” (p. 107), o que remete
a Um terno de pássaros ao sul, em que o filho relata que o pai dispensara maior atenção aos
seus escritos e livros do que a ele (filho), e a Cinco Marias, em que mãe e filhas chegam a
enterrar a biblioteca junto com o corpo do esposo e pai, acreditando ser tudo uma única e
mesma coisa.
128
O desejo da companheira de separar-se do eu-lírico é admitido por ele em outro poema,
em que revela que suas viagens irritam-na justamente pelo retorno: “Condenas meu excesso de
viagens. / Eu parto pensando / na euforia do retorno, / nos filhos batendo palmas, / nas
lembranças adquiridas / às pressas no aeroporto / e o teu rosto severo / me perdoando / por
insistir em voltar.” (p. 111). Enquanto os filhos comemoram o retorno do pai, devido aos
presentes que recebem, à parceira cumpre aceitar cada retorno, quando este não era seu desejo.
Voltando a analisar erros no relacionamento, o sujeito lírico reconhece que ter deixado de
viver experiências anteriores àquela que compartilha com a parceira foi algo negativo para a
relação: “Desculpa pelas mulheres que não amei / e me complicaram para chegar a ti, / pelas
festas que não dancei / ciscando o copo de uísque,” (p. 113). O mea culpa do eu-poético
perante a companheira se estende a outros aspectos, revelando a necessidade dele de apresentar
e se desfazer de todas as suas culpas e erros que possam ter comprometido a felicidade a dois.
Após o pedido de desculpas, ele mostra-se aliviado, mas, ao mesmo tempo, disposto a cometer
novamente os mesmos erros: “Minhas veias estão mais verdes, / visíveis a céu aberto. / Deito a
árvore nas asas do mar. / Eu me desculpo / para fazer de novo. (p. 113-114). Destaca-se aí uma
característica que pode ser associada à dominante cíclica do regime noturno, através da
tendência à reincidência, o retorno aos erros.
A obra é encerrada com o eu-poético fazendo um jogo de comparações, mostrando
semelhanças e diferenças entre ele e a companheira. São mais de cinco páginas em que se
reforçam várias peculiaridades dos parceiros, numa alternância constante entre “eu” e “ela”.
Logo no início das comparações se nota a diferença entre ambos pela cor: “eu sou verde,
ela azul” (p. 115). Essa indicação de cor pode ser aliada a elementos como a terra, com suas
plantas de tons esverdeados, e o céu ou o mar azulados, ou então simplesmente a um gosto
maior por esta ou aquela tonalidade. O eu-poético chega a sugerir uma oposição extrema entre
ele e a companheira, quando afirma: “Eu sou da meia-noite, / ela é do meio-dia” (p. 115),
versos que reforçam as diferenças de personalidade entre os dois.
Até para produzir poesia o casal é diferente: “quando distraído, eu faço poesia atenta, /
quando atenta, ela faz poesia distraída;” (p. 116). A atenção dada ao ato de produzir poesia é
um diferencial entre ambos, que se reflete no que é criado, a atenção gera o seu oposto e vice-
versa, como se a poesia sugerisse a complementaridade.
129
Mas as diferenças do casal acabam sendo incorporadas e aceitas, de certa forma, em: “eu
não sei fazer churrasco, / ela faz de conta que não precisa” (p. 116); “eu falo sem parar, / ela
ouve sem dormir” (p. 117); “eu compro jornal, / ela é quem lê” (p. 117); “eu me visto sem
olhar, / ela corrige o que não vi” (p. 117). Esses são apenas alguns exemplos da aparente
aceitação das características alheias, principalmente por parte da mulher, que ao longo da
obra aparecia como compreensiva com as peculiaridades do parceiro. Essas características de
cada parceiro são retomadas através das figuras da redundância e do eufemismo: “Eu sou
redundância, / ela é o eufemismo” (p. 116), enquanto o eu-lírico se julga repetitivo, insistente,
sua companheira se mostra compreensiva e sempre preocupada em suavizar as situações,
amenizar os problemas.
Ao longo das comparações, o sujeito lírico também se mostra mais frágil que a
companheira, em versos como: “minhas mãos o menores do que as dela” (p. 115), e ainda:
“ela não fica doente, / eu adoeço quando estou nervoso” (p. 117), em compensação, ele mostra-
se mais centrado em situações negativas: “eu fico calmo na tristeza, / ela explode de raiva” (p.
118). Mas até nessa particularidade a figura feminina demonstra personalidade mais forte e
agressiva que o eu-poético.
Comparando as atitudes em relação às recordações com cômodos de uma casa, o eu-
lírico revela que também nesse aspecto é distinto da companheira: eu tenho um porão de
lembranças, / ela tem um sótão; / eu entro nas recordações pelos fundos, / ela entra pela frente”
(p. 118). Esses versos sugerem a tendência do sujeito lírico de ocultar suas memórias, deixá-las
no nível mais baixo possível, acessando-as com temor e insegurança, enquanto a companheira
valoriza suas recordações, dá-lhes destaque. Bachelard, em A poética do espaço, opõe “a
racionalidade do teto à irracionalidade do porão” (1993, p. 36), associações que se encaixam às
personalidades da mulher e do eu-lírico, respectivamente.
Uma síntese do que se vem afirmando acima sobre as atitudes dos dois é indicada nos
versos: “eu sou obcecado, / ela é cautelosa; / eu sou perfeccionista, / ela é comovida; / eu
improviso, / ela planeja” (CARPINEJAR, 2005a, p. 119). Nota-se uma oposição entre razão e
emoção, esta caracterizando o eu-lírico e aquela a mulher, o que é invertido na afirmação de
que ela é comovida e ele perfeccionista, sugerindo que, de certa forma, cada um traz em si
também um pouco do seu oposto.
130
Quanto à crença em Deus, se durante a obra o eu-poético se mostra pouco crente, aqui ele
afirma sua fé: “eu acredito em Deus, / Deus acredita nela; / eu rezo ao sair de casa, / ela reza ao
chegar” (p. 119). A mesma idéia de Deus como devoto da companheira, expressa em outro
poema, volta a ser focada, sugerindo que ela é um ser superior, até em relação à divindade,
quiçá comparada ao sujeito lírico. Mas ela também ora, embora as orações do casal ocorram
em momentos distintos, ele reza ao sair de casa, ao ter de enfrentar o mundo, e ela ao chegar,
sugerindo-se que a oração dela é para suportar a relação conjugal.
A distância entre o casal é enfatizada ainda em “eu escalo árvores, / ela rega relâmpagos”
(p. 120). Enquanto ele se esforça para subir, ela se mostra acima das nuvens, olhando tudo com
superioridade. As diferenças do casal, porém, não são suficientes para separá-los, pelo
contrário, são, como afirmado, uma forma de mantê-los mais unidos, complementando-se,
de forma a que se entendam afetivamente. As diferenças permitem que o casal viva afastado da
monotonia, conforme indicado nos versos finais da obra: “nenhuma noite é como as outras, / as
outras noites são dias inventados; / nossa risada se bate no escuro.” (p. 120).
Cabe ressaltar, por fim, que ao longo dos poemas ocorre um jogo em que o eu-lírico
passa o enfoque dele para a companheira, desta de volta para ele ou então para a relação do
casal; não uma expressiva seqüencialidade de poemas referindo-se a apenas um deles, pelo
contrário, prevalece esse jogo, que permite notar diferenças, semelhanças e complementações
de um pelo outro. Essa atitude de idas e retornos é uma marca da dominante cíclica do regime
noturno do imaginário, que, portanto, mostra-se predominante na obra.
Quanto à atitude em relação ao fluir temporal, nota-se que não há na obra grande
preocupação com esse aspecto, mas quando ele aparece, predomina a aceitação, a inserção na
temporalidade, como pôde ser percebido na referência feita pelo eu-poético à incorporação da
morte pela sua companheira, através da qual ela estaria “plenamente fora / cada vez mais
dentro” (p. 13) da vida, ou seja, submissa à morte e apta a vencê-la pela circularidade do
tempo.
131
4.6.2 Livro de visitas
Esta é uma obra que começa literalmente de trás para frente. Publicada junto com Como
no céu, ela ocupa a segunda metade do livro, mas iniciando da quarta capa para o início. Seus
poemas mostram estar vinculados, ou seja, uma unidade de tema na obra, como também
ocorre nos livros anteriores de Carpinejar.
No caso de Livro de visitas, o leitor tem a impressão de estar diante de uma auto-análise
ou diário, uma exposição pessoal por parte do eu-poético que alterna memórias do passado,
acontecimentos do presente e projeções para o futuro.
A obra apresenta como epígrafe um poema de dois versos, de autoria do próprio
Carpinejar, em que se revela a visão das ruas como uma continuidade das casas: “A rua é tão-
somente / uma casa destelhada.” (CARPINEJAR, 2005a, p. 6), o que é significativo em relação
ao foco dos poemas, que irão apresentar as vivências do eu-lírico não apenas no espaço
limitado da casa, mas irão explorar rememorações mais amplas e frágeis, como sugere a
expressão casa destelhada. Nesse sentido, as visitas, referidas no título, passam a ser todas as
lembranças, memórias e projeções que lhe ocorrem.
Curiosamente, o primeiro poema do livro tem um tom de despedida por parte sujeito
lírico: “Não voltarei para fechar os olhos. / Acenei, sem notar se era timidez ou despedida. /
Fiquei parado, sem casaco para me colocar, / sem trabalho para voltar, / uma faca sem cabo, /
com a lâmina terrivelmente à mostra.” (p. 7). A partida está insinuada pela negação da volta e
pelo aceno, sendo que se pode suspeitar inclusive da morte, pela ausência de movimento e a
exposição do eu-lírico sem que ele possa se proteger. Ao se comparar a uma faca sem cabo, ele
se mostra incompleto, falta-lhe o suporte, algo que permita controlar seus movimentos,
insinuados como agressivos, pela imagem da “lâmina terrivelmente à mostra”.
Essa inversão da ordem do livro, que começa apresentando uma despedia que pode ser
associada à morte do eu-poético vincula-se à própria estrutura física da obra, cuja leitura inicia
de trás para frente. Assim, ao longo dos poemas, será possível perceber que o eu-lírico se
movimenta livremente no tempo, usando verbos tanto no passado, quanto no presente, não
havendo compromisso com a temporalidade.
132
Após o clima inicial de despedida, o sujeito lírico começa a se revelar, através de alguns
gostos e atitudes: “Não sou de pulseiras, colares, broches. / Deixava besouros e formigas
atravessarem / as fatias rasas de minha mão. / Abria o costado do crucifixo, / raspava com o
canivete / a madeira, tal pele dos pés no inverno, / e passava a guardar pontas do grafite.” (p.
8). A negação ao gosto por bens materiais no primeiro verso se opõe ao prazer no contato com
a natureza. A isso ainda complementa o hábito estranho de depredar o crucifixo para guardar
grafite, uma atitude que insinua certa descrença em Deus, que fica mais explícita no último
verso do poema: “Deus foi o porão de meu lápis.” (p. 8). O eu-poético reduz a divindade a um
objeto e cabe destacar a associação deste a um porão, a parte mais inferior de uma casa,
enquanto na visão popular Deus está sempre elevado, acima da humanidade. Pode-se associar o
porão, também, como o faz Bachelard, à irracionalidade, considerando-o “o ser obscuro da
casa, o ser que participa das potências subterrâneas” (1993, p. 36-37, grifado no texto), o que
reforça a idéia de inversão do valor da divindade. Essa visão depreciativa em relação a Deus
mostra-se recorrente nas obras de Carpinejar, embora o sujeito lírico de cada obra tenda a
alternar momentos de crença e oposição.
A agressividade aparece como uma das características do eu-lírico, que transparece
quando ele evoca memórias de infância: “Eu chamava atenção quando brigava na escola. /
Emergia em fúria. / Os amigos se reuniam para que esfolasse / o rosto deitado em minha
frente,/ arrebentasse o alfabeto do nariz, / a bater pesado, a ser expulso.” (CARPINEJAR,
2005a, p. 9). Ele, porém, reconhece que a violência não lhe trouxe o retorno esperado e que
aquilo que ele julgava na época de infância uma imposição de respeito, uma imagem positiva
diante dos colegas, era na verdade uma forma de intimidamento, que os mantinha próximos a
ele muito mais por medo do que por sincera amizade: “Demorei a perceber que o respeito / que
eu ganhei não era diferente do medo.” (p. 9).
Deixando as lembranças de lado e voltando ao presente, o sujeito lírico demonstra certa
ânsia retraída em sair da vida, a fim de, contraditoriamente, aprofundar-se nela: “Domino o
impulso de sair / para fora da vida / para entrar cada vez mais nela.” (p. 10). Note-se o
paradoxo de entrar e sair da vida, que permite estabelecer uma ligação inicial da obra com a
dominante cíclica do regime noturno do imaginário, devido à exploração dos contrários como
complementares. O eu-poético expressa, dessa forma, sua necessidade de contemplar a vida de
fora, para melhor aproveitá-la.
133
Apresentando mais algumas características pessoais, o eu-lírico declara: “Não conto
meus pesadelos ao acordar. / Não termino mais uma frase inteira.” (p. 11). Esses versos
sugerem a tendência dele ao silêncio, ao ocultamento dos sentimentos, o que ele justifica na
seqüência pela dificuldade em relação ao diálogo: “O começo de uma conversa é difícil /
Depois mais difícil se torna / quando ela aconteceu / sem começar.” (p. 11). A incompletude é
um traço revelador desse indivíduo, o que remete ao eu-poético de outras obras de Carpinejar,
conforme apontado nas análises anteriores.
Também a inversão de valores é um recurso explorado em outros livros do poeta, que
volta a figurar neste, como se percebe pelos versos: “Tentei cumprir todos os vícios, / participei
de reuniões de todos os anônimos, / de drogas, bebidas, perdulários.” (p. 14). Ao invés de
evitar os vícios, o eu-poético sente quase que uma obrigação de desenvolvê-los, ainda que seja
para expor-se ao tratamento posteriormente. Mesmo ao tratar-se, ele assume postura
diferenciada, que mescla crítica e egoísmo: “Nas terapias de grupo, / fui o síndico das dores. /
Cobrava condomínio das lembranças. / Elas faliram e eu permaneci.” (p. 14).
Fazendo uma primeira referência à família, o eu-poemático indica seu afastamento em
relação a ela: “Desapareço das fotos da família. / A família é como o câncer. / Isolam-se os
primos. / Os tios brigam pela herança. / Um tronco é sacrificado a cada ano. / As festas não são
celebradas juntas.” (p. 16). uma insistência no apontamento de aspectos negativos da vida
familiar, que geram um contexto pesado, de afastamento e desafeto. O poema é concluído com
uma referência ao casamento, como uma tentativa de salvar o indivíduo do mal da família, mas
este impregnou o novo casal, fazendo-o iniciar por conseqüência um novo câncer: “Agrega-
se um sobrenome no casamento / e não adianta, o mal já está espalhado.” (p. 16). Há uma visão
pessimista transpassando o poema, transmitindo um sentimento de profunda decepção do eu-
poético com seus parentes mais próximos.
Ao ressaltar a tendência dos objetos de serem valorizados apenas por sua utilidade, o eu-
poemático retoma a idéia da faca quebrada, apresentada logo no início do livro, de forma a
sugerir sua associação com esse objeto, como se também ele estivesse incompleto e não se
enquadrasse no padrão: “Um guarda-chuva presta se usado. / Ninguém lembra dele com o
tempo limpo. / Ninguém recoloca na gaveta / uma faca sem cabo.” (p. 18). Deduz-se, assim,
que ele se sente excluído pela sua incompletude, que realça seu lado negativo, de acordo com o
que foi referido anteriormente.
134
Uma das características que fica evidente na obra é a mudança de enfoque, o que o eu-
lírico assume como marca pessoal: “Mudo de assunto de repente, / imitando os gatos. / Sofro o
pânico de perder / meu filho de vista. / Minha vida à vista.” (p. 18). Mesmo dentro dessa
estrofe nota-se uma mudança de foco, embora se possa sugerir uma aproximação entre a
tendência do eu-poético de emendar diferentes assuntos e o medo da morte inesperada,
sugerido na seqüência. Essa estrofe também traz um dado novo sobre o eu-poético: ele tem um
filho, em relação ao qual demonstra seu zelo, um índice que faz um contraponto ao
comportamento que foi apresentado anteriormente por ele em relação à família.
A companheira do eu-poemático é referida em um poema que destaca o distanciamento
entre o casal: “Minha mulher dorme quando chego em casa. / Eu me acordo quando ela
parte. / Nos finais de semana tenho esperança.” (p. 21). Por esses versos, se insinua a frieza da
relação, embora se note a preocupação da mulher com o bem-estar do companheiro,
aguardando a chegada dele, para então adormecer. A esperança de romper com essa rotina
concentra-se nos finais de semana, quando fica sugerido o convívio maior e a vivência mais
intensa do relacionamento. No entanto, ele indica, em outro poema, que sua personalidade é
um empecilho para a vivência harmônica nos momentos de folga: “Sou muito dividido / para
me reunir no domingo / em família.” (p. 26). Por considerar-se múltiplo, ele alega não
conseguir centrar-se para a reunião familiar de final de semana, um motivo que explica seu
afastamento desse grupo, que inclui até mesmo a companheira.
Se anteriormente ele afirmara a falência das memórias, na sequência ele mostra clareza
ao rememorar o passado: “A lembrança mais remota é a mais alegre.” (p. 27). Nota-se uma
inversão do valor atribuído às recordações, as quais ele passa a evocar numa seqüência de três
poemas, em que enfoca prioritariamente passagens referentes à infância, como a que segue:
“Não tínhamos bola para o futebol. / Roubava o carpim da gaveta do pai. / Amarrávamos
papéis, panos e trapos.” (p. 29). Esses versos sugerem certa pobreza na infância do eu-
poemático, dada a ausência da bola. Os versos que fecham o poema revelam como a
criatividade superava a ausência do objeto adequado, o que pode ser percebido também como
referência ao presente, como meio de superar as carências: “Sempre brinquei com a lembrança/
da coisa mais do que a coisa em si.” (p. 29). A lembrança neste caso assume o papel de projetar
sobre a realidade aquilo que se deseja, característica que Bachelard atribui à imaginação, que,
segundo o estudioso, “deforma” os fatos reais, para torná-los mais prazerosos, como foi
apontado em outros momentos neste trabalho. Essa vinculação entre memória e imaginação é
135
confirmada pelo eu-poemático quando afirma: “Em toda minha vida, / emprestei memória à
imaginação.” (p. 30).
Em relação à companheira, ele se revela um indivíduo inseguro, desejando sempre saber
mais sobre ela do que é revelado: “Não é nenhuma vantagem / conhecer teus hábitos. / O que é
visível não é meu.” (p. 34). Interessa a ele conhecer na companheira aquilo que ela busca
ocultar. Por outro lado, ele julga o diálogo entre eles dispensável: “Poderíamos conviver
mudos, / enlaçando as gaiolas somente / em dias cheios de brisa.” (p. 35). Reforça-se a
tendência ao silêncio por parte do eu-poético e percebe-se a individualidade atribuída a cada
um dos parceiros, indicada pela imagem das gaiolas. Assim, ele sugere a partilha apenas dos
dias amenos, de harmonia, evitando os conflitos.
A relação com a companheira, aliás, mostra-se contraditória; se anteriormente ela foi
referida como fria, em outro poema o beijo se constitui num momento de suspensão, difícil de
definir: “Minha mulher toma meus lábios / como uma esponja de selos, / inclinando-se com um
tremor, / entre o sopro e a saliva. / Um movimento que é e não é. / Um nascimento treinado.”
(p. 38). O carinho da companheira vai além, gerando sensações distintas: “Ela deita em meu
colo, / uma praça no morro. / O alvoroço dos cabelos cresce / com a respiração próxima. / O
cheiro doce que parece amargo / e vou abrindo com as unhas / as tranças da chuva, as labaredas
do linho, / escoando as calhas de tuas pálpebras.” (p. 38). Parece haver um conflito interno no
eu-poético, acostumado a atitudes de resistência e agressividade, mas que perante os carinhos
da mulher sente-se seduzido, sem saber se resiste ou se deixa envolver.
A agressividade anteriormente assumida pelo eu-lírico é convertida em medianidade, e
ele afirma ser um homem sem atitudes extremas, nem ações que lhe valham algum
reconhecimento: “Não enfrentei guerras / que deflagrassem se sou / de esquerda ou de direita, /
se conservo ou se empurro meus aliados. / Careço de motivos para me enquadrar. / O máximo
que dirão: foi um homem bom, / como um cordeiro que engrossou a lã.” (p. 42). Note-se como
ele inverte as afirmações sobre sua personalidade, julgando-se agora pacífico e bondoso, algo
semelhante ao que ocorre em Como no céu, em que o sujeito lírico também afirma não ter
enfrentado grandes desafios, depois de referir conflitos, fracassos e rejeições.
Dando orientações sobre o relacionamento conjugal, o eu-poético frisa a importância da
distância: “Qualquer casamento / oferece a chance de ir embora. // Os casais deveriam trocar
cartas, / mandando notícias / de onde estão e quando vão se curar / da proximidade.” (p. 47), o
136
que também fora frisado na obra que se encontra unida a esta, ocupando a primeira parte do
livro. Nela, o afastamento permite ao casal reconciliar-se, atribuindo valor renovado à relação.
Além dessa atípica técnica de relacionamento entre casais, o eu-lírico do Livro de visitas
confessa ter sentido, por vezes, o desejo de matar a companheira, como se esse fosse um gesto
de carinho levado ao extremo: “Eu ardo com voracidade. / Descobri a verdadeira delicadeza /
no extremo da repulsa. // Quantas vezes quis matar minha mulher, / apertá-la com a suavidade
de uma carícia, / massagear sua garganta e privá-la / do motor do pulso?(p. 48). Nota-se que
carícia e violência se aproximam a ponto de se fundirem, tornando o eu-poético semelhante a
um homicida. O verbo “ardo”, que se refere ao sujeito lírico, remete ao fogo que, conforme
apontado anteriormente, tem caráter regenerador.
Nesse sentido, o eu-lírico se consome para se transformar, se renovar na relação, o que se
reforça na seqüência, quando ele afirma que a morte da companheira representa também a
morte dele, seguida pelo renascimento: “Matamo-nos e ressucitamos estranhos. / Matamo-nos,
não adquirimos / outro modo de amar. / A hostilidade nos excita.” (p. 48). Deduz-se por esses
versos que se trata de uma morte metafórica, uma espécie de morte necessária para permitir
amar melhor, pela necessidade anteriormente expressa pelo eu-poético de afastamento entre o
casal. Vale destacar a conciliação dos opostos de agressividade e delicadeza, atitude que indica
uma aproximação à dominante cíclica do regime noturno do imaginário, assim como a morte e
o renascimento podem ser vinculados à modalidade de aceitação da passagem do tempo. Cabe
observar, por fim, que o poema é encerrado sugerindo a inocência dos gestos do casal, como se
seus atos não passassem de brincadeiras inconseqüentes de crianças: “E nos abraçamos como
crianças / que não sabem o que fazem.” (p. 48).
A tendência do eu-poético de inverter o esperado é reforçada nos versos: “O que me
negavam, / eu cumpria. Arrependo-me / de ter trocado o desejo / pela curiosidade. O desejo /
escuta, a curiosidade fala.” (p. 53). Note-se como as atitudes dele se aproximam do caráter de
avanços e retornos que caracteriza a dominante cíclica, vinculada por Durand ao regime
noturno da imagem, pois, ao afirmar ter trocado a audição pelo discurso, o eu-poemático
contraria aquilo que ele vem demonstrando ao longo da obra, que é uma tendência ao silêncio.
Outro elemento explorado de forma recorrente nas obras do poeta é o contato com livros,
objeto que, inclusive dá título à obra que está sendo analisada, e que aparece em um poema que
relata o hábito incomum cultivado pela família do sujeito lírico de guardar recordações de seus
antepassados em livros, gesto que o leva a buscar a identificação com eles através da leitura.
137
Compreender a obra que guarda a recordação de um familiar morto seria compreender a este e,
conseqüentemente, conhecer melhor a si próprio: “Na minha casa, / os mortos não repousavam/
nas mesas e gavetas, / mas dentro dos livros. / Antes de morrer / todos escolhiam / uma obra
predileta / para deixar sua imagem / entre as páginas. // Não lia para aprender. / Queria
encontrar meus familiares, / os parentes na palavra, / formar uma fileira de sons.” (p. 63). Os
livros, aliás, revelam-se companheiros do eu-poético desde a infância, trazendo-lhe as imagens
dos familiares falecidos, à maneira de álbuns de fotografias: “Meninas trocavam santinhos /
na primeira comunhão. / Eu me abastecia dos antepassados. / Todo livro era um álbum de
retratos. (p. 64).
Se através dos livros o sujeito lírico conecta-se aos familiares mortos, ele também refere
a sua própria experiência de morte, paradoxalmente vinculada ao nascimento: “Aos trinta e três
anos / de minha mãe, / dei um firme no pescoço / com o cordão umbilical./ Nasci com uma
morte experiente.” (p. 68). Percebe-se que o eu-lírico inicia a vida com tendência a conciliar
os contrários, o que vem a fortalecer os nculos dos poemas e da obra como um todo com a
dominante cíclica do regime noturno da imagem.
Mantendo o foco na relação vida e morte, o eu-poético sugere que o fluir temporal é
marcado por um constante esforço, comparado ao trabalho numa máquina de costura: “O
relógio funciona / como uma máquina de costura. / Os pedais pressionados / pela engrenagem
dos dedos, / aceitando mortalhas por encomenda.” (p. 69). O passar do tempo vai costurando,
conforme sugerido pelo poema, a própria morte. A idéia do tempo como destruidor, como algo
que leva à morte, remete à modalidade de revolta frente ao fluir temporal. No entanto, na
segunda estrofe desse poema, essa visão negativa é alterada e a morte passa a ser vista, de certa
forma, como algo positivo: “O futuro não insulta os mortos. / Terei posses quando enterrado.”
(p. 69). Dessa forma, ela pode ser associada a uma conquista e, conseqüentemente, passa a
estar vinculada à modalidade de progresso, representada pela escrita de aceitação da passagem
temporal.
Voltando a referir a relação com a companheira, o eu-poemático revela o conhecimento
do corpo dela, bem como de seus gestos e atitudes: “No silêncio de minha mulher, / todos os
quartos estão ocupados. / Mais entendo quando menos sei / da nudez dela.(p. 71). O silêncio
da companheira não representa, portanto, um vazio, pelo contrário, indica ocupação. Também o
conhecimento sobre o corpo da parceira parece antitético, pois, segundo o eu-lírico, não
envolve um saber racionalizado, seria um entendimento pela emoção e pelo contato físico, que
138
exclui o saber racional.
Em outro poema, o eu-lírico declara ser intempestivo, agindo sem pensar ou atribuindo
demasiada importância e gravidade aos problemas e arrependendo-se depois: “Aviso: é a
última vez. / Limpo a zoeira da visita, pago a conta. / Encaderno as sobras que foram minhas. /
E a raiva pede que voltem. // Voltem / e me aceitem em seu bando.” (p. 73). Note-se a
referência a “visita”, termo que permite uma associação com o título da obra. Os visitantes
causam ria no eu-poemático, mas é esse mesmo sentimento que gera o desejo de retorno
daqueles ou daquilo que foi expulso, que pode remeter tanto a pessoas, quanto a lembranças e
acontecimentos que em determinado momento o eu-lírico deseja esquecer, mas depois volta a
evocar.
A uma série de atitudes pouco convencionais demonstradas pelo eu-lírico ao longo da
obra se une também a mania de dar identidade a tudo que o cerca: “Quero dar nome. // O que
não tem nome / é enterrado como indigente. // Não posso aceitar, quero dar nome.” (p. 79).
Esse gesto contraria a desavença anteriormente expressa entre o eu-poético e a linguagem,
reforçando os indícios sobre a tendência dele à contradição. Outros comportamentos incomuns
do eu-lírico, bem como sua inadaptação às regras sociais, são enfatizados por ele em um poema
em que se reforça a tendência dele a conciliar os opostos: “Fico caseiro em trânsito. / Tranco-
me fora de casa. // Sou complicado para as tarefas simples / e simples diante das complicadas. /
Desisti de explicar / como chegar a determinada rua. / Tenho o desvio como dom. / Ando
colado aos corredores, / esperando ser sugado por uma porta.” (p. 80).
Se anteriormente ele afirmava ser influenciável pelo não-dito, neste poema ele volta a
frisar a importância da ausência do discurso: “Presto atenção ao que não foi dito. / Preencho o
que não lembro com assobios. / Simples, previsível, falível. / Ajudo-me a cair.” (p. 80). Note-se
que a queda, normalmente evitada pelo humano, é buscada pelo eu-poético, que se esforça para
tal, não deixando apenas ao destino a tarefa de proporcionar-lhe derrotas. Nesse aspecto, ele se
assemelha a Avalor que, em Biografia de uma árvore, afirma ter criado o seu “mundo para
contar / com a possibilidade de afundar nele.” (CARPINEJAR, 2002, p. 76), e recomenda
“repetir os erros para decorar os caminhos” (p. 100), reforçando a comunicação entre as obras
do poeta, que vem sendo apontada ao longo das análises.
Em outro poema, ao fazer uma auto-avaliação, o sujeito lírico demonstra tendência a
destruir algo para poder recriá-lo à sua maneira: “Fui duas palavras desfeitas / para formar
139
outra. / Fui dois casamentos desfeitos / para formar outro. / Fui dois livros desfeitos / para
formar outro. / Fui dois amigos desfeitos / para formar outro. / Fui dois empregos desfeitos /
para formar outro. / Não respeito os escombros.” (CARPINEJAR, 2005a, p. 82). Encontra-se
implícito um inconformismo ou uma não sujeição ao que é imposto, a fim de criar um
espaço novo, moldado por ele a partir do que destrói, ao que se alia a imaginação, pela
recriação daquilo que se apresenta à percepção. Cabe ressaltar ainda nos versos citados a
referência a dois livros transformados em um, o que corresponde ao que ocorre na obra, que
concilia Como no céu e Livro de visitas no mesmo suporte, transformando o que seriam dois
livros em apenas um, mas que se apresenta de forma difereciada, podendo ser lido tanto da
forma usual quanto de trás para a frente.
Retomando novamente atitudes expressas em obras anteriores, o eu-poético afirma sua
presença em lugares que nunca visitou: “Deixo pistas / em lugares / que não estive.” (p. 88). O
paradoxo da presença em locais onde não esteve pode ser associado ao verso de Biografia de
uma árvore, em que Avalor destaca ter visitado cidades não estando nelas” (CARPINEJAR,
2002, p. 35), remetendo também à idéia de deslocamento parado, capacidade atribuída também
a Avalor, mas apontada na primeira obra de Carpinejar.
Sugerindo seu desejo de submissão irrefletida a imposições externas, o eu-poemático
afirma que prefere não ter opções, para não correr o risco de falhar na escolha. assim ele
não será recriminado por possíveis erros. De qualquer forma, parece que ele está sempre pronto
para fugir, no caso de alguma acusação: “Não quero ter escolhas para escolher errado. / Sou o
que não será cobrado. // Meu armário é a mala entreaberta.” (CARPINEJAR, 2005a, p. 93). Se
por um lado ele se mostra covarde e propenso à fuga, por outro ele declara ter uma segunda
personalidade dentro de si, que o leva a mentir, como forma de autodefesa: “Alguém dentro de
mim / mente para me proteger.” (p. 94). No entanto, essa segunda personalidade o deixa
confuso sobre seus atos, não sabendo em quem acreditar: “Não sei quem tem razão / sobre
meus desastres.” (p. 94). Por fim, na estrofe final, ele afirma que a confissão não é própria da
vida: “Quando estamos próximos de dizer / é que não estamos mais aqui.”(p. 94).
Na lembrança de tempos passados, quando costumava sair para festas, o eu-poético
demonstra que já naquela época tinha a consciência de que seria um solitário, que não
compreenderia a si mesmo, como ele expressou anteriormente: “Voltava das festas a pé, /
seguindo a suspeita / que viveria sozinho. / Eu não cheguei até mim.” (p. 98). Assim como não
é dono de si, por não conhecer-se integralmente, o eu-poético reconhece que também não é
140
dono de sua casa ou esposa, conservando apenas a memória deles como seus: “Acordo e tenho
a memória da casa, / não a casa, / a memória da mulher, / não a mulher.” (p. 99).
Voltando a demonstrar seu caráter de conciliação dos opostos, o eu-poético inicia um
poema afirmando: “Custa muito ensaio ser espontâneo.” (p. 101). Esse paradoxo sugere que a
atitude natural do ser humano seja fingir, representar um papel. Se a espontaneidade é um
esforço, a descoberta da verdade não traz a alegria e a satisfação esperadas, conforme ele
declara na sequência: “Passei a vida buscando a verdade. / Quando a encontrei, não mudou
nada. / Era mais um morto para carregar.” (p. 101). Encerrando esse poema, o eu-lírico
contraria a posição adotada anteriormente de não conhecer a si mesmo, ao afirmar: “Podes
apagar a escrita, / eu me leio no escuro.” (p. 101). Esses versos sugerem que ele não precisa de
registros para se reconhecer, nem necessita do conhecimento racional para se expressar e
entender, nesse sentido, a escuridão referida no último verso pode ser associada à ausência da
razão no autoconhecimento.
Referindo-se aos limites pessoais, como alguém que os vivenciou, o eu-poemático
declara: “Quem chega ao seu extremo / não disfarça. / Desvio os olhos, / nunca a respiração. //
A queda é uma árvore que volta.” (p. 102). O extremo não aceita disfarces, nele a essência se
revela plenamente, saindo do controle do indivíduo. A chegada ao limite pode levar à queda,
que representa, nesse caso, a morte, que é comparada a uma árvore que decresce, que volta à
terra, ou seja, a morte seria um retorno à origem, reforçando a idéia de circularidade da vida,
que é sugerida pela modalidade de progresso e também pelo regime noturno do imaginário,
apontados respectivamente nos estudos de Jean Burgos e Gilbert Durand.
Chegando ao último poema da obra, percebe-se a desvalorização que o eu-poético faz da
alegria ante o sofrimento: “O sofrimento se esquece. Vida fecha ferida. / Não perdôo a alegria.”
(p. 104). O sofrimento, na percepção do eu-lírico, é apagado com o tempo, a alegria é
inesquecível, por isso associada a uma ofensa não perdoada, que também não é apagada da
memória. Da mesma forma que em Biografia de uma árvore Avalor afirmava que seria
“esquecido quando redimido” (CARPINEJAR, 2002, p. 15), no final desta obra percebe-se
novamente a associação do perdão ao esquecimento.
A segunda estrofe desse poema permite uma dupla interpretação, pois, ao afirmar: “A
mulher me separou para viagem. / Arrastei os despojos na estrada pedregosa, / pasto e
pássaros,/ um osso servindo ao sol.” (CARPINEJAR, 2005a, p. 104), o sujeito lírico pode tanto
141
estar indicando que a companheira, ao conquistá-lo, levou-o ao desconhecido, quanto que ela o
expulsou de casa, deixando-o sem rumo. Esta segunda possibilidade interpretativa parece se
impor, devido à impressão de desamparo causada pelos versos citados.
O verso que encerra a obra traz a revelação do posicionamento que o eu-poético vem
insinuando aos poucos ao longo dos poemas: “Eu não penso, acredito.” (p. 104). A recusa ao
racionalismo e a atitude de se deixar levar por uma crença “cega” reforçam a aproximação dele
às características que marcam o regime noturno do imaginário. Nesse sentido, a crença dele
não se associa à religiosa, mas à imaginação, através daquilo que ele (re)cria e (de)forma a
partir do que vê, conforme Bachelard frisa em seus estudos a respeito da imaginação criadora.
Os avanços e retornos recorrentes em suas atitudes e a conciliação de opostos são marcas
do eu-lírico que indicam o predomínio do discurso vinculado à dominante cíclica do regime
noturno na obra, o que é reforçado ainda pela negação do racionalismo e pela aceitação da
passagem temporal, com a crença de superação da morte por algo que a ultrapasse, que pode
tanto ser uma outra vida, a transcendência ou o legado deixado pela memória. Essa inserção na
temporalidade também permite associar as atitudes do eu-poético à modalidade de progresso,
pois sob a aparente adaptação dele às etapas da vida se percebe, em alguns momentos, a crença
na superação da fugacidade da existência terrena.
Também o recurso da recordação, através do qual o eu-poético atualiza lembranças de
forma criativa ao longo da obra contribui para a associação da mesma à modalidade de
progresso e à dominante cíclica, vinculada ao regime noturno do imaginário, pois permite uma
retomada dos acontecimentos e a conseqüente superação da temporalidade.
Refletindo sobre os motivos que levaram Carpinejar a unir estas duas obras em apenas
uma, nota-se que, aparentemente, elas são independentes. No entanto, apresentam pontos de
contato, entre eles, o relacionamento conjugal, que é explorado em ambas, sendo apontados
tanto o lado positivo quanto as dificuldades e diferenças entre os parceiros, o que parece ser
feito sob perspectivas diferentes nas duas obras, remetendo à própria estrutura dos dois livros,
que são lidos a partir de pontos distintos. Assim, Como no céu, de forma geral, apresenta uma
visão mais positiva da vida e das relações afetivas estabelecidas pelo eu-poético, enquanto em
Livro de visitas transparece o inverso, a observação dos mesmos acontecimentos e sentimentos
tomados num ponto de vista mais negativo, pessimista. A união dos dois aspectos permite ao
142
poeta fazer algo que ele demonstra apreciar, considerando-se a criação de eus-poemáticos os
mais distintos, que é fazer a análise da experiência existencial a partir de diferentes focos.
4.7 Meu filho, minha filha: a visão da figura paterna
A última obra de Carpinejar a ser analisada neste estudo é Meu filho, minha filha (2007),
em que é assumida postura oposta a de Um terno de pássaros ao sul, livro no qual o eu-poético
era um filho fazendo um apelo ao pai; no livro de 2007, o eu-lírico escreve sobre os filhos,
expondo a difícil situação de viver ao lado do menino e, ao mesmo tempo, longe da menina.
Ao referir-se aos poemas, no comentário da quarta capa do livro, em que também aparece
em foto com os dois filhos, Carpinejar afirma haver um forte vínculo entre essa obra e sua
experiência pessoal como pai e filho de pais separados:
Tenho um filho comigo e uma filha longe. Meus poemas buscam entender a dor e a
alegria dessa criação difícil, desafiadora.
Uso a linguagem que um dia desejei ouvir de meus pais, também separados. Não
acredito que o silêncio ou uma imagem seja melhor do que a palavra. O silêncio
começa depois da palavra. É uma recompensa por ter dito, não uma desculpa para não
tentar (CARPINEJAR, 2007, contracapa).
Carpinejar revela, assim, que esta obra poética é um misto de diário e roteiro de viagem,
construído a partir das experiências vividas e daquilo que deseja para seus dois filhos. O sujeito
lírico da obra assume não ter uma receita para garantir a felicidade de ambos os filhos, o que
está próximo e a que está longe, manifestando sua insegurança, como se perceberá pela análise,
mas sempre num profundo desejo de acertar, de ser o pai que um dia sonhou ter.
Apesar do forte vínculo que esta obra apresenta entre poeta e eu-lírico, será utilizado o
último termo, como vem sendo feito nas demais análises, visando evitar a confusão indesejada
entre autor e obra, preservando a distância necessária entre a produção poética e a vida, pois o
que é colocado naquela não necessariamente acontece nesta, a criação literária não tem
compromisso com a verdade empírica.
Ao longo da obra, o eu-poético vai intercalando poemas que tem por título: “MEU
FILHO COMIGO”, em que o enfoque é a relação de pai e filho que vivem juntos, próximos; e
outros que levam o título “MINHA FILHA SEM MIM”, em que se enfatiza o relacionamento
143
construído com aquela que não está sempre presente, cujo contato é restrito, limitado. Percebe-
se, assim, desde o início, a manifestação dos opostos que o sujeito lírico tenta unir, conciliar: o
filho e a filha, o próximo e a distante, o que efetivamente acontece mais ao final da obra, em
que o título muda, primeiro para “MEUS FILHOS JUNTOS” e, por fim, para “MEUS FILHOS
SEMPRE”, indicando que a paternidade está além das distâncias, a relação com os filhos
ultrapassa os limites espaciais.
Retomando outra característica comum nas obras de Carpinejar, na dedicatória, ele
ultrapassa o tempo, dedicando o livro aos netos ainda não existentes, que os filhos ainda são
crianças. Pode-se associar essa atitude àquela de Terceira sede, em que o eu-poético antecipa a
velhice. Agindo dessa forma, assegura-se o legado àqueles que virão, considerando-se que a
duração da vida não pode ser controlada ou prevista.
Como epígrafe, é utilizada a seguinte citação de Milton Hatoum: “Sou menos do que
uma voz” (p. 7), o que vem a sugerir algo sobre a auto-avaliação do eu-lírico em relação a seus
filhos e o reconhecimento do papel fundador da palavra, por nomear, instaurar o novo. Esse pai
não assume papel de autoridade, mas de aprendiz, de companheiro, daquele que quer e precisa
aprender a ser pai na medida em que os filhos aprendem a ser filhos. Para isso, não pode
assumir a voz do comando, precisa dispor-se a ouvir, a sussurrar quando necessário e a
dialogar.
No primeiro poema sob o título “MEU FILHO COMIGO”, o sujeito lírico se intriga com
o gosto do filho de deitar-se no chão, procurando compreender o que ele busca por meio desse
contato, incompreensão que é expressa da seguinte maneira: “Não entendo por que / deixas a
cama / dos teus três anos. // O que procuras no tapete / verde que não tenha sido limpo?” (p. 9).
Há no terceiro verso citado, a referência à idade desse filho, três anos; trata-se portanto de uma
criança em fase de descoberta do mundo, curiosa por ver e aprender. Mas o pai, cuidadoso e ao
mesmo tempo inseguro preocupa-se com o conforto e a segurança do filho, alertando-o:
“Cuidado, filho, o chão alucina.” (p. 10). O alerta para o filho reflete também uma experiência
vivenciada pelo pai, que busca manter a atitude protetora ante a criança que se deixa guiar
pelo desejo de vivenciar o novo, o desconhecido. Nesse sentido, a situação reflete a experiência
de aprender e reaprender os limites, própria da relação dos pais com seus filhos em fase de
desenvolvimento.
144
Assim, nota-se que o pai também deseja aprender com o filho, quer escutá-lo, como
demonstra ao perguntar: “O que pretendes me dizer?(p. 10), bem como ao pedir: “Meu filho,
fala alto, / meu ouvido está no fim, / já não escuto a minha infância, // já não sei pensar com os
símbolos, / as metáforas e os sinais.” (p. 10). Esse pai reconhece, assim, ter uma linguagem
diferente daquela do filho, demonstrando o anseio em compreendê-lo. Vale destacar que ele
não impõe seu discurso, pelo contrário, reconhece sua limitação por ter esquecido a linguagem
infantil, por ter deixado o espírito de criança adormecer dentro dele, sentindo-se por isso
afastado daquilo que o filho tenta lhe mostrar, no entanto, ele se esforça e pede a ajuda do
menino para buscar entendê-lo.
Ele confessa que a idade produz modificações, justificando-se perante o filho, como
forma de fazê-lo compreender o porquê das mudanças que o fizeram esquecer a linguagem
infantil, através da qual o outro agora se comunica: “Tive que ocupar espaço em mim / mesmo
não acreditando. / Tive que me entreter // para não me expor. / Tive que ser o que não lembro /
para não doer na volta.” (p. 11). O emprego da expressão “tive que” indica que o eu-poético foi
obrigado a mudar, a assumir papéis, a adaptar-se, para evitar o sofrimento. Esses versos
mantêm relação com a educação do indivíduo, que vai sendo levado a adaptar-se às regras de
bom convívio social, perdendo ou ao menos retraindo suas características pessoais iniciais.
Na convivência com o filho, o sujeito lírico destaca a observação atenta daquele e sente-
se perturbado pela responsabilidade de educá-lo: “Quisera aplacar o incômodo / de que
dependes de minha resposta.” (p. 12). Esses versos tornam explícita a insegurança paterna, que
teme a difícil tarefa de ser exemplo e educar o filho, o que também aparece na obra Terceira
sede, em que o sujeito rico manifestava a dor de ser responsável pela condução da filha. Para
conseguir orientar o menino, o pai inicia pelo contrário, buscando compreender a este, como já
foi referido anteriormente e como ele reforça ao declarar: “busco entender o que me mostras.”
(p. 12).
O eu-lírico também ora, pedindo um bom sono para o filho, ao mesmo tempo em que
insinua que este se aproxima dos anjos, podendo suplicar-lhes a proteção ao pai: “Antes de
dormir, te beijei na testa / e rezei: ‘Dorme com os anjos e pede // para os anjos passarem depois
em meu sono!” (p. 12-13) O pai suplica ao filho e não por ele, como se este tivesse o poder de
estabelecer contato com seres superiores.
145
O filho observa os pais, buscando conhecê-los profunda e detalhadamente, como se
percebe em: “De repente, deitaste para olhar teus pais, / aproveitando a porta entreaberta.” (p.
15). No entanto, quem fantasia em excesso não é ele, mas o pai, o eu-poético, que reconhece:
“Eu é que imagino excessivamente, / imagino que me interpelas / enquanto somente dormes. /
Imagino o que não cresceu // para compensar o que abandonei.” (p. 16). Note-se que o eu-
poético exagera na preocupação em relação ao filho, atribuindo a este uma capacidade além de
sua idade, chegando ao ponto de encontrar nele referências e aconselhamento, o que é
demonstrado na seqüência: “Meu filho, meu filho, te encontro / de noite com os olhos
enfunados, sábios, // não choras de perdido e de fome. / Os cabelos arregalados de espigas. /
Não pedes leite, colo, aconchego. // Estás inteiro me reunindo. / É como se me aconselhasses
sem falar. / Tu e eu na noite como nunca antes.” (p. 16). Esse pai assume também a posição de
aprendiz, deixando o filho guiá-lo, orientá-lo e conduzi-lo na noite, que pode ser
compreendida, neste caso, como o mundo da imaginação, opondo-se à luz, à claridade do
mundo da razão em que o adulto vive.
A mistura dos papéis de pai e filho é ainda o tema da última estrofe, em que o eu-poético
a torna explícita: “És meu filho e o pai que não tive, / ou o filho que ainda não nasceu / e tem o
tempo livre para visitar o ventre.” (p. 17). Ressalte-se nesses versos a multiplicidade de papéis
que o pai atribui ao filho, um ser em que o pai reconhece sua própria capacidade de fabular
livremente, que se encontra como que adormecida na idade adulta. Mas é bom ficar atento
porque, na verdade, é o pai que fabula pelo filho, projetando nele toda a pluralidade de criações
que como adulto ele mesmo não pode atribuir a si.
No primeiro poema referente à filha, o pai muda sua postura, devido, possivelmente, à
convivência mais restrita que mantém com ela. Pela forma como inicia o poema, o sujeito
lírico demonstra que ela é questionadora, esperando dele respostas para perguntas complexas,
que ele nem sempre consegue responder: “Não sei quando a criança pára / de enxergar anjos ou
de cumprimentá-los. / Por uma obediência natural // ao esquecimento, ou só depois? / Para não
sofrer com os acidentes do invisível, / que é demasiado sofrer // com o que se aprende no
visível. / Essa é uma resposta que te devo.” (p. 19). No poema em que apresentava a relação
com o filho, o sujeito lírico citava a comunicação, o entendimento do menino com os anjos, no
entanto, não tendo acompanhado o crescimento da filha, ele não sabe explicar como se perde
esse laço, esse vínculo que une o humano ao divino.
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Esse pai também busca na filha algo de si mesmo, alguma marca que tenha ficado, apesar
da distância: “Ficamos alguns dias do mês, / as férias, e reparo em teus gestos / para descobrir
algo do meu temperamento no teu.” (p. 19). A observação da filha, porém, parece revelar-lhe
os hábitos dela que não correspondem ao que ele teria lhe ensinado, no caso de uma
convivência mais intensa: “Eu não te eduquei, o te corrigi em seqüência, / sou o pai que vai
voltar tarde. / Tudo o que ensino / não tem uma segunda-feira // e uma terça-feira para
permanecer, / Esquecemos de continuar, de finalizar / a frase, o assunto e a partitura.” (p. 19-
20). Revela-se nesses versos um sentimento de incompletude na relação com a filha, o
constante sentimento de não conseguir dar seqüência à relação, voltando, a cada período de
afastamento, ao estágio inicial, com ambos agindo com certa insegurança.
A cobrança da filha faz o eu-lírico sentir-se acuado, julgado por ela devido à ausência
dele e a conseqüente inexistência de uma estrutura familiar. Assim, eleacusações implícitas
nos gestos dela, um simples objeto que ela segure já se constitui numa denúncia, como ele
demonstra em: “Te aproximas de mim / a segurar um objeto antigo. // Um objeto que denuncia/
a casa que não tiveste. Não descobri / a forma ideal de convivência, // muito menos o que
gritar/ para chamar tua atenção.” (p. 21). Esses versos revelam também que este pai não sabe
ao certo como lidar com a filha, o afastamento em relação a ela faz com que ele não a conheça
o quanto desejaria.
Apesar de seus esforços, o eu-poético percebe na filha uma semelhança maior com a mãe
e certa resistência frente a ele, manifesta por seu comportamento ao receber os carinhos
paternos: “Na hora em que me beijas, / viras o rosto lentamente, / a escapar da barba. //
Herdaste de tua mãe até o medo da barba. / Herdaste os medos dela com lealdade. / Não
herdaste meu medo de não ser compreendido.” (p. 21-22). A aversão da filha ao pai é reforçada
pelo ato de limpar-se do contato com ele: “Esperas me afastar para limpar meu beijo. / As
costas dos teus braços estão sujas de minha boca.” (p. 22).
A reação da filha em determinadas situações é de desafio ao pai, como expresso em:
“Ergues teu queixo em afronta.” (p. 22). E novamente na seqüência, em que também o pai
demonstra ficar à beira do descontrole: “Ameaço que vou te bater. / Com o desequilíbrio,
provocas: / - Bate, bate, bate! // Recuo a fivela dos dedos, / recoloco o cinto nos lábios, os
freios. / Se revido, sou violento. Se me calo, sou omisso.” (p. 22-23). Nota-se que o sujeito
lírico sente-se perdido, sem saber como lidar com a filha, não querendo agredi-la, nem mesmo
por suas palavras, mas também não querendo perder a autoridade sobre ela, nem deixá-la
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controlar a situação. Diante da complexidade da relação, ele se pergunta: “Como me defender
do que nasceu de mim?” (p. 23). Nota-se assim que a distância entre pai e filha fez perderem-se
vínculos e tornar-se difícil o controle daquela que ele ajudou a gerar.
Inseguro de como agir, o eu-poético reconhece, porém, que não pode pedir à sua filha
que compreenda a situação atípica de sua criação: “Não há como pedir que entendas a
verdade./ A verdade é passar / fome ou frio na linguagem.” (p. 24). uma privação na
linguagem, ou seja, a abundância do discurso não é suficiente para explicar à filha o porquê da
separação dos pais; os motivos de ela ter de viver dividida entre os dois ultrapassam o limite do
que pode ser dito.
A resistência da filha é uma marca recorrente na obra, manifesta em forma de teimosia e
no desejo de contrariar o pai, mesmo quando este conquista a simpatia dos amigos e colegas
dela: “Quando brinco com as crianças // e faço palhaçada, elas se divertem, / menos tu,
encabulada pela maneira / como converso de igual para igual. // Tantas vezes ouvi tua
vergonha / explicando aos colegas, / com os olhos virados para cima: // ‘Meu pai é louco’.” (p.
25). O pai parece, assim, não corresponder ao padrão construído na mente da filha e desejado
por ela, incomodando-a com seus gestos divertidos e descontraídos, provavelmente pouco
comuns entre os pais dos demais estudantes. Ante a acusação da filha de que ele é louco, o
sujeito lírico a interroga: “Louco por quem? perguntaste?” (p. 25). Ao que ele mesmo
responde, recriminando a não aceitação dele por ela: “Não aceitas meu amor, // entendes o fim
das frases. / Não aceitas que não tenha amado tua mãe. / Eu traí a família que criaste.” (p. 25).
O pai sugere, assim, que a atitude rebelde da filha se deva à destruição do lar por ele, ela sente-
se traída pela rejeição dele à esposa, rompendo o laço familiar que ela construiu.
Mas esse pai tenta demonstrar à filha que o amor vai além do que é concreto,
ultrapassando a separação física: “Amar é suportar o que não pode ser visto. / Põe o casaco. As
coisas que não aconteceram / não fracassaram, escolheram outros passados.” (p. 27). Há nesses
versos a tentativa do pai de mostrar à filha que nem tudo pode ser como planejado por ela, o
que não significa que a história de vida dela seja menos importante ou tenha menos valor.
No início do poema foi referido o caráter questionador da filha, a cujas perguntas o pai
nem sempre era capaz de responder. Ao chegar ao final do mesmo, o eu-poético enfatiza que
prefere o questionamento à ausência dele: “Tuas perguntas não me assustam, // o que me
assusta é tua falta de perguntas. / Estarei te devendo uma explicação. / Como a do anjo que não
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pára // de chegar perto de ti / e que não enxergas, / por obediência natural ao esquecimento.”
(p. 28). Percebe-se a vinculação do final do poema com o seu início, como se o eu-lírico
fechasse um ciclo, voltando ao princípio. A filha inicia questionando o pai sobre quando a
criança perde a capacidade de ver os anjos e demonstra, ao final, estar ela mesma cega a
eles. O pai, porém, não tem a resposta para dar à filha, pois vive afastado desta e não
acompanhou suficientemente seu crescimento para descobrir o momento em que ela relegou ao
esquecimento sua capacidade de conviver com o invisível.
Iniciando outro poema sobre e para o filho, o sujeito lírico relembra sua infância e conta
para o menino que foi privado de alguns dos hábitos comuns entre as crianças: "Não aprendi a
assobiar / e a fazer bolas com a boca. / Teu pai foi uma criança // involuntária nos livros. / Não
aprendi a pescar / e a fazer pipas. / Teu pai foi uma criança / involuntária nos telhados." (p. 29).
As opções oferecidas ao eu-lírico não correspondem às usuais, e ele, mesmo contra a vontade,
constrói uma infância atípica, marcada mais por leituras do que por brincadeiras.
Mudando o enfoque para a infância do próprio filho, o eu-poético reconhece que também
ele vive a complexidade da vida separada da irmã: "No domingo, tua irmã se despedia/
acompanhada da mãe que não é a tua. / Corres para a janela para vê-la no trem. // Gritas seu
nome / disposto a não desistir cedo. / Insistes para que ela volte. // Levantas teu boneco no
desespero / e ofereces o brinquedo como sacrifício." (p. 31). O filho, ainda pequeno, não
compreende as razões que obrigam a irmã a viver afastada dele e tenta, à sua maneira, trazê-la
de volta, convencê-la a ficar, oferecendo até os brinquedos favoritos, na tentativa de mantê-
la por perto.
Em outro poema dedicado à filha, o eu-poético reforça as diferenças entre os dois,
assinaladas pelas críticas dela: “Corto tuas unhas e reclamas / que aparo muito rente da pele. /
Desculpa, tudo o que vivi foi rente à pele.” (p. 33). O modo de agir do pai é, assim, um reflexo
de tudo o que ele viveu, de suas experiências que o levaram ao extremo, fragilizando-o, mas
para a filha é difícil compreender essas motivações. A expressão “rente à pele”, que indica a
vivência do pai aproximada dos limites, é retomada em verso posterior, referindo-se então à
linguagem, indicando que também na fala ele tende a se exceder, a não se controlar: “Desculpa,
corto as palavras // muito rente da pele.” (p. 35).
Apesar da resistência da filha, o pai mostra-se persistente no desejo e na busca de
conquistar seu lugar na vida dela: “Mas tua obsessão não será maior // do que a minha
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paternidade.” (p. 34). Ao que ele completa, pedindo à filha ao menos um espaço nimo, o
qual ele pretende garantir, mesmo contrariando as opiniões alheias: “Eu te alfabetizei e foste /
me tirando o espaço entre as linhas./ Guarda-me apenas uma fresta. // Não importa o que os
adultos falam, / serei o pai da insistência. / Até onde posso ir para te resgatar?” (p. 34). Esse
questionamento final mostra a insegurança do pai, o temor de, em sua busca pela conquista da
filha, ultrapassar os limites, o que remete novamente à expressão “rente à pele”.
Entre suas experiências mais doloridas, o sujeito lírico cita a visita do oficial de justiça
cobrando-lhe a pensão da filha: “Deixei de ser pai e virei a pensão de tua mãe. / Não esqueço o
dia em que um oficial de justiça // bateu à minha porta a cobrar / o que já concedia
naturalmente.” (p. 36). A dor de ser julgado, de ser cobrado judicialmente quanto aos deveres
para com a filha representa um sofrimento intenso, reforçado na seqüência pelos versos: “No
papel timbrado, teu nome contra o meu. // O nome que escolhi contra o meu. / O nome que
sonhei contra o meu. / Fui teu primeiro réu, sem que tu soubesses.” (p. 36). Nota-se, por esses
versos que a oposição entre pai e filha inicia involuntariamente, contra o desejo de ambos, mas
vai ganhando cada vez mais força posteriormente.
No poema seguinte, dedicado ao filho, o eu-poético inicia fazendo um jogo de opostos
que introduz uma espécie de mea culpa, em que assume ter se perdido na infância e não ter
aproveitado a chance de redimir-se de seus erros: “Um dia é do galo, outro dia é do corvo. /
Um dia é da seca, o outro é da enchente. / Um dia é do ódio, o outro é da reconciliação. // um
dia é da fartura, o outro é da escassez. / Esperei a chance de confessar / e passei do momento.”
(p. 38). Note-se que ele separa um tempo para cada coisa, expressando de certa forma a
influência do pensamento binário, não conciliando os opostos. No entanto, ele orienta o filho a
não cometer os mesmos deslizes: “Meu filho, não sejas avaro com as palavras como eu. / Tenta
usar as que não têm sentido. / Faze perguntas à toa: // ‘Por que as frutas e as flores não
aparecem juntas na macieira?’/ ‘Por que a noite fica violeta depois das cigarras?’/ Eu te divirto
sem querer.” (p. 38). Com suas orientações atípicas, o eu-lírico reconhece entreter o filho e o
que deveria ser sério ganha o sentido de brincadeira.
Ao voltar sua atenção novamente para a filha, o eu-lírico a alerta que a infância dele
não está presente, ou ao menos não tem mais o vigor da infância dela e que, conseqüentemente,
ele se conforma com menos, não é mais tão audacioso em seus desejos, ao que se opõe a
inquietude dela: “O silêncio te perturba. / Não cessas sequer um instante, / acordas falando,
reclamando, // atrasada para o café.” (p. 43-44). Essa atitude da filha é compreendida pelo pai
150
como um apelo a um novo nascimento, agora desejado, programado, para o qual o pai pede seu
tempo, tentando explicar sua demora em gerá-la: “És um parto prematuro / descontente por vir
cedo. // Reinvindicas o parto natural agora. / Ainda vou te gerar, os homens / demoram mais
para engravidar.” (p. 44).
Essa nova gestação, a fim de assumir melhor e com maior naturalidade a paternidade,
não é tarefa fácil para o eu-poético, que reconhece repetir as falhas e as tentativas de acerto:
“Eu te extravio, controlo / os ânimos dos familiares, / faço as pazes, entusiasmo minha
mulher,// convenço teus avós e teu irmão / a não brigar, pago o resgate, / te abraço com vigor //
e te extravio novamente. / Pai separado está sempre / à espera de uma ligação.” (p. 44-45).
Note-se que toda a família é envolvida nessa espécie de gestação psicológica, mas o eu-lírico
reconhece que o erro é inerente ao pai que vive longe, à espera do contato da filha.
Em outro poema, o eu-poético utiliza sua dificuldade de livrar-se dos objetos antigos
como forma de confessar à filha o medo que sente de ser esquecido ou substituído, como eles:
“Os objetos se empenham ao pior. / Quebram pela metade, / deixando-me indeciso com o
destino. // Nunca a destruição é perfeita. / Minha tolerância pode ser preguiça. / Ou o medo de
ser também substituído. (p. 53-54). A referência ao medo de ser desprezado cabe bem à filha,
que ele tem medo de perder, devido ao afastamento existente entre eles.
Recordando novamente sua infância e comparando-a com a dos filhos, o eu-lírico julga
que a daqueles é mais restrita, enfatizando que ele teve muito mais espaço para realizar suas
brincadeiras e mesmo para manter-se afastado dos pais, o que seus filhos não têm a chance de
fazer, por estarem reclusos a um apartamento, com espaço limitado: “Não tantos terrenos
baldios. / não há tantos pátios ou quintais. / Meus filhos moraram em apartamentos toda a vida.
// Não tinham para onde fugir de mim. / Não tinham uma reserva de invisibilidade. / Um
canteiro para guardar confidências // e fazer experiências com formigas.” (p. 57). Por essa
convivência constante, por vezes forçada, ele percebe um desejo maior nos filhos de se afastar
dos pais, o que ele podia realizar mesmo estando em casa, na sua morada de infância, que era
bem maior que o apartamento onde vive, tinha pátio e vários espaços que poderiam servir de
esconderijo, num momento de solidão. Assim, ele afirma sobre os filhos: “Sempre próximos de
uma apreensão, / sempre ao alcance de um chamado antigo, // sempre com vontade de sair
mais do que voltar. / Eu já me abastecia de saudade / dos pais dentro de casa.” (p. 57).
151
Assumindo uma postura que pode ser associada à dominante cíclica do regime noturno, o
eu-poético contraria o que expressara anteriormente, quando referia a filha como um parto
prematuro, explicando, em outro poema também dedicado a ela, que buscou ser pai cedo para
liberar-se do compromisso de filho, da necessidade de prestar contas aos pais, uma tarefa
julgada como pesada, que acarreta dor e sofrimento: “Treinei para ser pai. / Queria ser logo pai/
para deixar o encargo // de ser filho. O castigo / de ser filho. O trabalho / insalubre de ser filho,
// de me explicar a cada / fracasso.” (p. 69). Ele assume, assim, atitude contraditória e revela
que também ele teve dificuldade de compreender os pais, o que o aproxima da filha, que resiste
às tentativas de aproximação dele.
A paternidade, nesse sentido, foi para ele um alívio, embora tenha também exigido dele
habilidades de criança que ele havia perdido: “Ser pai veio / como uma aposentadoria / por
tempo de serviço. // Não esperava que me devolvesse / a infância quando / não sabia mais
brincar.” (p. 70). Sem se dar conta, ele vai perdendo as características que buscara preservar,
afastando-se do controle paterno; ao assumir o papel de pai, nota que também ele já incorporou
a seriedade e uma responsabilidade que não lhe permitem mais agir como criança.
Ressaltando a tendência dos sujeitos criados por Carpinejar de desafiar a divindade e
contrariar a busca de salvação, o eu-lírico, em poema dedicado ao filho, sugere o seu caminho
para atingir a salvação: O inferno ficou debaixo da terra. / Como é possível estar no paraíso /
sem mexer na horta? // Sem cavar e arrancar os inços, / sem arregaçar as alfaces, sem perseguir
/ os bichos. Ou soprar os carvões dos tomates.” (p. 75). O eu-poético explora a necessidade do
humano de mesclar a bondade e a maldade, paraíso e inferno, pois ambos o constituem, se
conciliam nele. Assim, ao declarar: “A salvação depende / mais em mexer na terra / do que
subir aos céus.” (p. 75), ele sugere que são os atos terrenos, humanos que trazem realização às
pessoas e não o seu isolamento na busca do invisível, atos que mais uma vez sugerem a
conciliação de opostos, próprios da dominante cíclica.
para a filha, ele dedica um poema em que demonstra seu receio em relação a uma
crença que não seja gerada pela dor, como se algo positivo tivesse sempre que surgir do seu
inverso: “Demorei a aceitar / uma confiança / que não venha da dor. // Uma confiança que
parta da alegria / sem a inveja da alegria alheia.” (p. 77). Por esses versos se reforça o que
fora demonstrado no poema anterior, isto é, a característica humana de unir os opostos, bem e
mal, precisando-se de um para reconhecer o outro.
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Esse pai também afirma seu prazer em ver os desenhos dos filhos, reconhecendo-os mais
nesses traços do que em suas fotografias, o que ele justifica afirmando: “A infância é bela
quando ilegível.” (p. 79) Esse verso traz a visão do eu-poético de que a infância não é um
período que deva ser explicado, justificado, ele deve manter seus mistérios, suas fantasias.
Através das criações dos filhos, ele tenta conhecê-los, compreender seu comportamento e
personalidade, ao seguir seus traços: “Reviso com as mãos / as falhas do traço, as farpas do
lápis, // as armas levantadas da tribo.” (p. 81).
Ao longo da obra, o eu-lírico recorre às memórias do carinho que dedicou à filha para
tentar uma reaproximação. Com esse intuito, ele cita as aventuras que empreendeu com ela
para roubar frutas nos vizinhos, demonstrando cumplicidade e confiança mútua: “Vamos
roubar frutas // enquanto a vizinhança dorme. / Sou tua escada mais discreta / e me carregas
para abreviar os galhos. // Subimos no breu da amoreira a colher / pretinhas – assim chamamos
as amoras. / O porão é um cão dormindo. // Enchemos a borda da camisa / com tantas
pálpebras, a lona leve / das pequenas jóias. Corremos // feito loucos pela lomba. / Excitados
com a amizade / que o furto oferece.” (p. 91-92). Todo esse ritual de colheita das frutas, porém,
foi esquecido pela filha com a separação, parecendo não ter deixado as mesmas marcas que as
frutas deixaram nas roupas: “Ainda guardo tuas camisas manchadas; / tua mãe reclamava das
nódoas invencíveis. / O sangue das árvores não sai. // Esforço-me para te lembrar disso. / Pois
a amora não tem semente, / como o pai na memória da filha.” (p. 92). Fica claro, assim, o medo
paterno do esquecimento, refletido em suas atitudes constantes para fazer a filha recordar os
bons momentos vividos juntos.
Por parte do filho, o eu-poético percebe a busca de apoio, expressa inclusive na repetição
constante do chamado “pai”, que ele, porém, não interpreta como efetivamente voltado a si,
conforme demonstra em: “Ao me chamar de pai / estás te chamando. / o sou eu, apesar de
me confundir // e atender na maioria das vezes.” (p. 85). O sujeito lírico considera o chamado
do filho uma forma de este revelar a si mesmo suas descobertas, utilizando o pai como canal,
atitude que este último tenta fazer o filho perceber, declarando-lhe: “Queres dizer uma
descoberta para ti, // através de mim, eu apenas ouço. / Pai é teu jeito de não cansar / o próprio
nome.” (p. 86). Exprime-se, assim, a necessidade da criança de se orgulhar das próprias
descobertas; sendo que este filho escolheu o pai como sua imagem, a quem conta os feitos,
como se fosse a si mesmo.
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Reforçando o aspecto de inquietude da filha, apresentado anteriormente, o eu-poético
menciona a aversão dela aos dias de chuva: “Minha filha não nasceu / para dias de chuva. / Ela
se irrita ao viver em roda, // revisar as gavetas, / consultar os livros. / Ela cansa de olhar a
janela, // de olhar a porta, / de olhar a conversa, / de simplesmente olhar.” (p. 87). A
imobilidade perturba a menina, que se torna agressiva quando se reclusa a um espaço
pequeno: “Em dias de chuva, minha filha / provoca o irmão, a e, a avó, o cachorro. // Em
dias de chuva, / não se livrará das obrigações / de arrumar a cama e o armário. // Em dias de
chuva, / minha filha não suporta a casa / do tamanho do seu quarto.” (p. 87-88). Percebe-se a
inadaptação a ambientes fechados, que restrinjam a liberdade e que imponham regras ou
obrigações; a filha confirma, assim, um gênio rebelde, não sendo as atitudes agressivas para
com o pai um caso isolado.
Até um passeio na praça vazia com o filho vira poesia, tendo como foco a solidão do
menino, que não tem com quem brincar, o que pode ser interpretado como uma sutil referência
do sujeito lírico à filha ausente: “A praça vazia, / a ventania anda de balanço, / as pombas são
mendigos barbudos, // o escorregador está de pernas cruzadas. / Não há crianças para dividir os
gritos. / Meu filho sobe na gangorra, // equilibro o outro lado. / Meu braço direito é o irmão /
mais velho de sua solidão.” (p. 97). O eu-poético refere todo um ambiente de ausências que
envolve o filho, em que inclusive o escorregador aparece em posição de descanso e o vento
assume atitude de criança ao se balançar, o que reforça o sentimento de falta de companhia,
que a presença do pai não é suficiente para suprir, pois o que a criança deseja nesse momento é
encontrar companheiros infantis para dividir as travessuras.
Para o eu-lírico, ouvir a voz de seus filhos é o maior consolo, o que reflete seu anseio de
tê-los por perto e de preferência juntos, o que transparece na referência a uma espécie de vazio,
demonstrada quando um deles está só, como no caso do poema anterior. A presença dos filhos
é mais importante ao pai até mesmo do que a voz divina: “A voz das crianças na sala / me
acalma, / mais do que a chuva, // mais do que o rádio, / mais do que a voz de Deus / se ele
existisse em nossa freqüência.” (p. 99). Estes últimos versos reforçam o posicionamento desse
pai como questionador da existência e das ações de Deus, o que, aliás, como já foi salientado, é
recorrente nas obras de Carpinejar.
Em outro poema, o eu-poético aborda a reflexão do filho pequeno sobre a velhice do pai,
sem coragem de mencionar a morte: “Meu filho me questiona / quando ficarei velhinho. / ‘Vai
demorar?’ // ‘Vai demorar?’ / Ele não tem coragem de falar / sobre a morte. A minha morte. //
154
Nem menciona para não ter / que dividir seu quarto com ela. / Com a morte. A minha morte.”
(p. 105). O questionamento do filho demonstra o desejo de dominar o tempo, de saber até
quando gozará a companhia do pai, mas ao mesmo tempo ele tem medo da resposta e evita
mencionar o nome desse acontecimento. Por isso, utiliza a velhice como uma espécie de
eufemismo, para saber o que deseja, o que é expresso em: “A velhice é onde termino / para
meu filho. Como avô. / Pai do pai. Pela ordem das cadeiras.” (p. 105).
No poema seguinte, o eu-lírico expressa temor de voltar à infância, apesar de vir
demonstrando ao longo da obra uma boa interação com os filhos nas brincadeiras destes: “Eu
não me arrisco a voltar / para a infância. / Já foi difícil sair dela uma vez.” (p. 107). Talvez seja
justamente seu vínculo com o período infantil, expresso pela dificuldade de controlar as
atitudes impensadas e o comportamento que mais ênfase à imaginação que à razão, que o
levem a temer um retorno. Assim, o medo de voltar à infância não representa a não
identificação com ela, pelo contrário, é a certeza de que se identifica com ela e o medo de não
mais conseguir reassumir a postura esperada de um adulto.
Buscando ter com a filha a mesma sintonia que demonstra para com o filho, o sujeito
lírico transforma-se de acordo com as necessidades da menina, assumindo os mais diversos
papéis, conforme expressa em: Minhas mãos não são mãos. / Mas pente, quando ajeito teu
cabelo / no portão da escola. Mas relógio, // a controlar tuas refeições. / Mas faca, a fatiar o pão
na mesa. / Mas gancho, a segurar teu casaco // para que corras no parque.” (p. 111). Apesar de
todo o esforço feito, o eu-poético reconhece que não consegue comparar-se à mãe, não
acompanha a eficiência desta: “Pai troca / as mãos pelos pés de propósito, / sempre atrasado
em comparação à mãe.” (p. 111).
Referindo-se ao seu primeiro casamento, bem como à separação, o eu-lírico reconhece
que estes refletiram mais o desejo de compreender os pais separados, do que uma realização
visando à própria felicidade: “Eu me casei cedo / para defender a mãe / abandonada pelo pai. //
Eu me separei cedo / para me aproximar do pai / criticado pela mãe. // Não fiz nada / por mim
antes / dos vinte e cinco anos.” (p. 113). Sugere-se assim que ele sentia a necessidade de viver
a experiência dos pais para compreendê-los, para tornar-se mais próximo deles, e
posteriormente poder criar sua própria vida. A tendência de repetir os erros, seja dos outros ou
os próprios, já foi manifesta em Biografia de uma árvore, numa atitude que se aproxima da
dominante cíclica do regime noturno do imaginário, devido à idéia de retorno e repetição,
própria dessa dominante.
155
Voltando a atenção novamente à filha, o eu-poético refere sua mudança de
comportamento, a necessidade de ocupar um espaço mais amplo, por sentir que não cabe
mais no lugar que lhe era suficiente no passado: “Reclamas da estreiteza do guarda-roupa. /
Tuas calças deslizam dos cabides. / Tua cama está diminuta como uma janela fechada. // Os
pés ultrapassam as cobertas / e brincam de sombras com as paredes. / Desejas colocar uma
estante rosa // com os livros da escola. / Não toleras os papéis do irmão na mesa. / Já ensaias a
independência, o conflito.” (p. 115). Nota-se pelos versos que a adolescência já se insinua na
filha e que com ela se reforça o temperamento rebelde e agressivo que é uma marca da
menina demonstrada ao longo da obra.
Diante das mudanças, o pai reconhece que não como reverter a situação, pela
impossibilidade de fazê-la voltar a satisfazer-se com o espaço restrito do colo: “Não o que
fazer. Como regressar / ao tempo unânime / em que pedias colo para dormir?” (p. 115). Note-
se a mudança drástica que ocorre na menina, e em qualquer pessoa que passa da infância à
adolescência: o que era segurança e proteção passa a ser visto como aprisionamento, invasão
de privacidade, sufocamento da liberdade. Isso fica claro nos versos da seqüência: “Empilhas
fotos na vidraça, / espalhas as camisetas para provar, / não posso entrar sem bater. // Se
comento a mudança, / avisas para cuidar dos meus problemas. / Teu quarto é tua casa
crescendo. // Teu apartamento de solteira / caminhando, obcecado, / para fora de minha vida.”
(p. 116). O desejo de privacidade da filha que deixa de ser criança traz presente ao eu-poético
que ela também se tornará independente e deixará de fazer parte de maneira tão efetiva da vida
dele para construir a dela, como ele fez um dia e relatou anteriormente.
Dando seguimento ao tema do espaço presente no poema anterior, no da seqüência o
sujeito lírico revela que enquanto os filhos crescem e ocupam um lugar cada vez maior, ele vai
se encolhendo, se retraindo, abrindo mão de seus aposentos na casa para que os filhos possam
espalhar-se, ocupar o espaço desejado, até de forma exagerada. Assim, a casa que tinha a
aparência do eu-poético passa a ter as feições dos filhos: “Enquanto os quartos das crianças
crescem, / os meus cantos diminuem. / O escritório cederá à soberania da sacada. // Não se terá
um aposento para se ler concentrado. / As bolas estarão debaixo do sofá. / A cama será
invadida por lâmpadas e sirenes. // A mesa acumula têmperas e riscos. / Minha casa é
progressivamente - / o porta-retrato dos filhos.” (p. 117). Note-se como se contrapõe o
crescimento dos filhos, manifesto pela expressão quartos, ao apequenamento do pai,
representado por “cantos”. Assim, o ambiente adulto passa a ganhar outras cores e
156
organização, exprimindo as feições dos filhos que crescem. Bachelard, ao estudar A poética do
espaço, ressalta o valor dos cantos como “refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a
imobilidade” (1993, p. 146). Ao declarar que seus cantos estão cada vez mais reduzidos, o eu-
poético expressa também que sua privacidade e o direito de permanecer na imobilidade, no
silêncio vão sendo progressivamente substituídos pelas atividades dos filhos, descaracterizando
o espaço criado por ele, mas sem que isso lhe pareça negativo.
Sobre o relacionamento entre os irmãos de mães diferentes, o eu-poético orienta o filho
com insistência: “Não chama nenhum dos meus filhos / de meio-irmão.(p. 121). E interroga,
para mostrar ao menino que não há justificativa para usar essa expressão: “Que metade é essa /
apartada de sua inteireza? // Qual é o complemento que falta / para que o sangue seja legítimo?
/ Será bastarda a perna esquerda ou a direita? // Qual é o braço falso? Aponta-me os traços
fingidos. / O que fugiu do nascimento para acusá-los de incompletos?” (p. 121). O pai toma
intencionalmente a expressão ao pé da letra para demonstrar que a filiação não pode ser
partida, parcial, ela é sempre uma doação integral, o que fica evidenciado na parte final do
poema: “O ventre não se repete. / Não chama nenhum dos meus filhos / de irmão emprestado.//
Eu não emprestei, eu dei à vida, / não reclamo de volta. / Não pai por partes, nem mãe por
porções.” (p. 122). Fica claro por essa declaração do eu-lírico seu desejo de demonstrar que a
separação do casal não ocasiona uma diminuição do amor aos filhos, bem como não deve
representar o afastamento ou o preconceito entre os irmãos.
Referindo-se novamente à filha, o eu-poético demonstra a ela que compreende sua
tendência à desordem e à inconstância, comportamentos que aprendeu da mãe, como o pai
declara na primeira estrofe do poema: “Não te culpo pela carência de ordem / e de capricho.
Para seguir tua mãe, / trocaste sete vezes de endereço.” (p. 123). As mudanças contínuas fazem
a menina parar em frente da máquina de lavar, assistindo ao seu funcionamento e
possivelmente vendo refletida a sua vida. Também nessa atitude o pai se compadece e
compreende a filha: “Eu te entendo quando tomas o travesseiro do quarto / e repousas os olhos
diante da máquina de lavar. / Escorada na parede, as pupilas envidraçadas. // Não como te
afastar da televisão inventada, / Lavas morosamente as dores. / As roupas se afogam, até
cansar. // Durante horas, observas a redoma girando: o ciclo delicado / entre voar e nadar, entre
a gaivota fugindo e o peixe capturado. / Era teu momento de abrir as mãos e ler o lar.” (p. 123-
124). Pelo verso final fica mais clara que aquela atitude funciona como uma espécie de catarse,
em que a filha projeta sua vida em algo externo acompanhando o movimento circular que vai
transformando a roupa suja em limpa, pelo qual ela vai também aliviando-se de suas dores. É
157
significativo, nesse sentido, o uso da expressão “abrir as mãos”, que se associa à abertura de
um livro, e do verbo “ler” referindo-se à situação vivenciada em família; a leitura ultrapassa,
assim, o sentido de decodificação de textos escritos e abrange a noção de interpretação e
compreensão da existência.
Após evocar mais uma vez memórias do tempo em que ainda vivia com a filha, tendo-a
constantemente perto de si e dividindo com ela momentos de descontração, o eu-poético
reconhece que este foi o período mais descompromissado da vida de ambos: “teus primeiros
anos foram nossas férias. // Enquanto estava contigo, não me explicava. / Tudo em seguida é
remorso e desculpa.” (p. 128). Concentrando sua felicidade no período da infância da filha que
compartilhou com esta, o pai conserva as lembranças dessa época, recusando-se a aceitar a
passagem temporal: “Para mim, tens uma única idade, / a idade de teus cabelos cacheados. /
Uma única idade entre todas as que vieram depois. // Uma única idade, proibida das miudezas/
da escola e da residência. Tu não mudas. / Não escuto tuas frases borbulhando a boca.” (p.
129). Nessa afirmação, que se contrapõe a declarações anteriores sobre as mudanças da filha ao
longo do tempo e sobre o despreparo do sujeito lírico na época do nascimento dela para
assumir a responsabilidade de pai, ele explicita o desejo íntimo de conter o tempo para
reconquistar o carinho da filha. Ao encerrar o poema, ele retoma, porém, a atitude de mesclar
passado e futuro, numa forma de aceitar o tempo, mas, ao mesmo tempo, tentar superá-lo, o
que corresponde à modalidade de progresso, conforme a conceituação de Burgos: “Nossas
lembranças são pressentimentos.” (p. 129). Evocar o passado mostra-se, assim, uma forma de
antecipar o futuro, indicando que a vida é um ciclo, em que se volta sempre ao princípio e os
atos se repetem periodicamente, o que também permite a vinculação à dominante cíclica do
regime noturno do imaginário.
No penúltimo poema da obra, percebe-se uma mudança, pois se até o momento se
intercalava um poema para cada filho, este é dedicado à união dos filhos, trazendo por título
“MEUS FILHOS JUNTOS”. Nele o eu-lírico vai reconhecer o amadurecimento que os filhos
lhe trouxeram, uma mudança positiva, conforme ele declara ao refletir sobre o assunto: “Penso
nos filhos / e sou mais homem. / Não amadureceria por mim, // amadureci para criar meus
filhos. / Amadureci porque era jovem / e não podia deixar minha menina sem um pai. // Não
poderia me deixar sem um filho. / Perdi minha adolescência, / mas ganhei todas as fases da
vida dela.” (p. 133). A maturidade não vem, portanto, como um mérito pessoal, mas como um
aperfeiçoamento necessário para tornar-se um bom pai e um homem mais completo.
158
Analisando ainda as perdas e os ganhos da paternidade prematura, ele destaca que,
diferentemente do que os amigos acreditavam, foi por ter se tornado pai que ele conseguiu
concretizar os projetos pessoais: “Amigos amaldiçoavam que era loucura, / que iria estragar
meu futuro, / que sacrificaria as festas e o namoro, // anularia as chances de viajar. / Fui pai
antes do diploma. / Fui pai antes do casamento. // Fui pai antes de trabalhar. / Mas eu me
formei, eu trabalhei / justamente porque era pai.(p. 133-134). O eu-poético associa, assim, o
nascimento dos filhos a uma transformação positiva dele próprio.
Ao contrário do que muitos possivelmente falavam, o sujeito rico destaca, a respeito da
filha: “Ela não complicou minha vida, / ela resolveu minha vida. // Ela não me retardou, /
cumpri finalmente o que adiava.” (p. 134-135). As atitudes dele são inversas às esperadas, ele
sentiu-se fortalecido e incentivado pelo que aqueles que o cercavam acreditavam que o
enfraqueceria. Os filhos, principalmente a menina, nascida quando ele era bastante jovem,
fizeram-no descobrir sua força interior, desconhecida até então.
A paternidade também fez o eu-poético compreender as atitudes dos próprios pais e
repetir os gestos que não suportava neles, conforme ele demonstra ao afirmar: “Ponho as
franjas deles para o lado esquerdo, // repetindo o gesto que odiava de minha mãe. / E como
amo o que odeio.” (p. 135-136). Nessa expressão paradoxal fica reiterada, mais uma vez, a
mudança do eu-lírico, o qual, na seqüência, revela ter orgulho das marcas que a paternidade lhe
deixou: “eu me orgulho das queimaduras do leite.” (p. 136). Percebe-se que ele aprendeu a
valorizar as pequenas coisas, o que reflete no conteúdo dos poemas de toda a obra, que não
abordam grandes acontecimentos, bem pelo contrário, buscam na rotina, nos acontecimentos
que poderiam ter passado despercebidamente, o conteúdo de sua homenagem aos filhos, de sua
demonstração de amor e desejo de mantê-los sempre por perto.
Cabe ressaltar ainda o reconhecimento do sujeito lírico de que ele também tornou-se um
filho melhor devido à paternidade, possivelmente por ter passado a compreender melhor os
gestos de seus pais ao ver-se repetindo-os, o que, aliás, foi mencionado acima. Assim ele
conclui o poema afirmando: “Sou mais homem devagar, / sou mais filho.” (p. 137). O termo
“devagar” remete à paciência, à capacidade de desfrutar os momentos mais intensa e
inteiramente, que é trazida pela paternidade.
A obra é encerrada pelo poema intitulado “MEUS FILHOS SEMPRE”, cujo próprio
título revela a importância que o eu-poético atribui a eles e a constância de sua dedicação. Nos
159
versos desse poema, ele compara os filhos a uma obra, possivelmente a maior e melhor, que ele
tem ânsia de ler logo, de conhecer de forma integral, mas que sabe que não poderá apreciar
completamente: “Quando leio meus filhos, / conto as páginas que faltam / para o final do
livro.// Por mais que me apresse, / não estarei aqui / para completar a leitura.” (p. 139). Aqui
ganha espaço novamente a exploração da idéia de leitura como algo que ultrapassa a
decodificação de textos escritos, sendo as pessoas, seus gestos e comportamentos também
passíveis de serem lidos, no sentido de buscar-se a sua compreensão, através daquilo que
revelam, bem como através do que mantêm oculto ou apenas insinuam.
No poema de encerramento da obra, citado acima, fica clara a atitude do eu-lírico de
inserção na temporalidade, de reconhecimento da efemeridade da vida, o que permite uma
vinculação dessa atitude à modalidade que manifesta a aceitação da passagem temporal,
embora no poema não se explicite a intenção de superar o tempo, o que é alcançado, porém, na
obra como um todo, pela recordação, pela retomada da infância pelo eu-poético, ao
acompanhar a trajetória dos filhos. Na verdade, esse pai se conforma com a idéia de ver nos
filhos um livro que ele não conhecerá integralmente, mas ao qual deu origem, ajudando a
escrever as primeiras páginas, assim, se não lhe for possível superar o tempo para acompanhar-
lhes toda a trajetória, sabe, porém, que viverá além de seus dias por aquilo que eles
conservarem dele.
Esta é, possivelmente, a obra de Carpinejar com menor número de imagens desconexas,
soltas, sem um sentido mais claro, o que se justifica, em parte, por ser uma obra que envolve
também referências a crianças, o que já requer um trabalho de adequação, ou seja, percebe-se
certa adaptação do nível da linguagem ao foco do livro, à relação entre pai e filhos.
O uso de uma linguagem menos carregada de imagens vagas, de difícil interpretação,
tende a favorecer a identificação do leitor com as cenas e os acontecimentos referidos, sendo
também propícia para despertar ressonâncias e devaneio, caso quem se deixe envolver.
Assim, ela se torna significativa na medida em que refere vivências muito próximas da
realidade, levando o leitor a reconhecer-se no que lê e a viver melhor a partir do lido.
160
CONCLUSÃO
Fabrício Carpinejar é um poeta contemporâneo que adota uma forma singular de escrever
poesia; suas obras tendem a explorar de forma muito intensa imagens complexas, dúbias, de
difícil compreensão. Além disso, ele tangencia, conforme mencionado no início do capítulo de
análise das obras, o gênero narrativo, devido à presença de um fio condutor que une os poemas
de cada livro, e de um sujeito lírico que expressa em versos sua personalidade e história de
vida. A qualidade desse trabalho diferenciado desenvolvido pelo poeta tem rendido a ele
reconhecimento nacional e internacional como um dos grandes nomes da poesia brasileira
neste século XXI.
Os poemas do autor impactam os leitores pela presença de elementos paradoxais, que são
apresentados e, prioritariamente, conciliados nos versos. Nesse sentido, vale referir que por
meio da conciliação de contrários, se revela a influência da dominante cíclica, vinculada ao
regime noturno do imaginário, mas tendo como contraponto a dominante postural, vinculada
ao regime diurno. A presença desses opostos permite afirmar que, embora um dos regimes e
uma das dominantes possam ser identificados como predominantes, os outros tendem a
também se fazer presentes, de forma complementar.
Entre os aspectos que se sobressaem, a partir das análises realizadas, está a atitude de
questionamento a Deus adotada pelo eu-poético em diversas obras e situações, em especial em
Biografia de uma árvore. Essa atitude revela que existe a crença no ser divino, mas o seu poder
é posto em dúvida, muitas vezes sendo atribuído mais à confiança humana do que à
divindade em si. Os supostos milagres seriam, portanto, um ato de superação do homem, que
partem da descrença deste em seu próprio potencial, atribuindo-o a outro, a Deus. Este, em
alguns momentos, passa a ser interpretado como uma criação do imaginário humano, como
forma de explicar o que não se pode atribuir ao conhecimento racional, objetivo.
Nesse sentido, a crença em Deus como ser atemporal, capaz de dar também ao homem a
vida eterna, relaciona-se a um segundo tema recorrente nos livros de Carpinejar, que é a morte,
a qual o eu-poético das diferentes obras tende a aceitar, mas, de alguma forma, visando superá-
la. Notam-se, ao longo dos poemas, diferentes tipos de atitude, ora ele se revolta frente à
certeza da morte, ora aceita-a (chegando mesmo a buscá-la), sendo esta a atitude predominante,
como se percebe, entre outras, em Terceira sede, o que permite a associação proposta ao longo
161
das análises entre os textos poéticos de Carpinejar e a modalidade de progresso ou de aceitação
da passagem do tempo.
O deslocamento cronológico é outra característica recorrente nos poemas de Carpinejar,
que se alia aos temas anteriormente mencionados para permitir a superação do tempo, o que
vem a complementar a associação dessa escrita com a modalidade de progresso e também com
a dominante cíclica do regime noturno do imaginário, devido à crença na superação do tempo
através de retornos cíclicos. Ao longo das obras, constata-se uma utilização freqüente de
deslocamentos temporais, não havendo uma significativa preocupação com a cronologia, o que
resulta na mistura de passado, presente e futuro, contribuindo para a constituição de obras
desvinculadas de um período específico. Os próprios indivíduos que aparecem nesses textos
poéticos tornam-se atemporais, assumindo papéis invertidos, como ocorre, por exemplo, em
Terceira sede, em que o eu-poético antecipa a velhice, e em Biografia de uma árvore, em que
o filho nasce antes de seus pais.
Outro recurso que contribui para o deslocamento livre no tempo é o apelo à recordação,
pois através dela, o sujeito lírico de cada livro avança e retrocede em sua história de vida,
sendo a infância o período que ganha maior destaque se for considerado o conjunto das
publicações. A exploração da rememoração é um recurso que contribui para a associação da
obra de Carpinejar à dominante cíclica do regime noturno do imaginário e à modalidade de
progresso, pois possibilita a retomada dos fatos, da história de vida do eu-poético e, dessa
forma, garante um meio de superar a temporalidade.
Da mesma forma que o tempo é ultrapassado e retomado, as distâncias também o são nos
livros do poeta, o que se confirma pela repetição da idéia de deslocamento parado, pela
conciliação de proximidade e distância, pela visita imaginária a lugares efetivamente
desconhecidos, entre outros elementos que se fazem presentes nos poemas estudados.
A troca de posições entre familiares, referida anteriormente, leva a outro tema que se
repete: a família, nas figuras de seus mais diversos componentes: pai, mãe, companheiro(a),
filhos, irmãos. Nesse sentido, é importante notar como o eu-poético varia a posição adotada nas
diferentes obras, ora ele é filho referindo-se ao pai (Um terno de pássaros ao sul), ora pai
referindo-se aos filhos (Meu filho, minha filha), em outro momento ele assume a postura
feminina, representando cinco mulheres ao mesmo tempo (Cinco Marias), em outro, seu foco é
o de um apaixonado que volta seu discurso à companheira (Como no céu / Livro de visitas). A
162
esses papéis se acrescenta ainda o de louco, claramente assumido pelo eu-lírico em duas das
obras (As solas do sol e Biografia de uma árvore), e o de velho, que avalia a caminhada e
aponta a fragilidade que marca esse período da existência (Terceira sede). Essa pluralidade
enriquece os textos poéticos, revelando a visão de mundo a partir de diferentes perspectivas. O
poeta mostra-se, assim, capaz de assumir pontos de vista distintos, deixando aflorar a
capacidade de se transportar para fora de si, o que também é significativo no sentido de
ultrapassar o tempo e a própria personalidade, podendo ser vinculado tanto à dominante cíclica
do regime noturno da imagem quanto à modalidade de progresso, no que se refere à
estruturação do imaginário em relação à temporalidade no texto poético.
Vale referir ainda o recorrente apontamento do eu-poético como um ser atípico,
inadaptado às regras de convívio social. Isso não se aplica somente às duas obras em que é
efetivamente considerado louco, pois também nas demais uma tendência a ressaltar nele um
comportamento que não corresponde ao padrão. Ele revela, pelo menos em algumas atitudes,
uma tendência aos extremos, ao exagero, uma atenção demasiada ao que é socialmente
desvalorizado, enfim, ele demonstra dar vazão a criações imaginárias não racionalizadas ou
pouco racionalizadas, do que resultam imagens desconexas, intrigantes e polissêmicas. Essa
profusão de imagens agrega valor aos poemas, pois, como o eu-lírico sugere em Cinco Marias,
é preciso ultrapassar a medianidade para fazer literatura.
Ao longo das obras percebe-se também a reflexão sobre os atos de escrita e leitura,
principalmente este último, que é tomado num sentido amplo, podendo revelar personalidades
e permitir um conhecimento mais aprofundado do outro, que é “lido”, decifrado pelo eu-
poético.
Quanto às imagens mais freqüentes nas obras de Carpinejar, merece ser destacada a
árvore, que é, inclusive, biografada em um dos livros. Ela é, em geral, associada ao humano, o
que inicialmente remeteria à razão, à realeza e à elevação, no entanto, isso não corresponde às
atitudes do eu-poético nos livros. Quando vinculada ao racionalismo, a árvore tende a
relacionar-se a outra figura, que não o eu-lírico; quando associada a este último, ela ganha
características especiais, revelando-se atípica, buscando conciliar ou reunir em si posições
diversas como céu e terra, razão e imaginação, o que a vincula à dominante cíclica do regime
noturno do imaginário. Vale destacar que a árvore, por estar vinculada a essas últimas
características mencionadas, aparece na obra de Gilbert Durand entre os arquétipos
substantivos que caracterizam a referida dominante.
163
Outra imagem repetida nas obras de Carpinejar é a do fogo e dos elementos a ele
associados. A chama também é inscrita por Durand entre os arquétipos substantivos
relacionados à dominante cíclica do regime noturno, por seu simbolismo em muitas culturas,
vinculada ao seu caráter de regeneração, proporcionando uma vida nova àquilo que consome.
Conforme apontado, Carpinejar realiza, de forma sistemática em suas obras, a
aproximação de aspectos que se opõem, o que se constitui em um recurso expressivo que
enriquece a sua poesia e a torna mais intrigante e envolvente. Essa aproximação dos contrários
é também uma característica da dominante cíclica, vinculada ao regime noturno da imagem, o
regime que favorece o devaneio, a liberdade de imaginação.
Gaston Bachelard, por sua vez, destaca, quanto à conciliação de opostos em textos
poéticos, que, “às vezes, imagens realmente diversas, que se julgam serem hostis, heteróclitas,
dissolventes, vêm se fundir numa imagem adorável” (1999, p. 160). Essa afirmação aplica-se
de forma pertinente à poesia de Carpinejar, que apresenta uma verdadeira profusão de imagens
opostas que são aproximadas ou conciliadas pelo poeta, formando versos carregados de
significado e beleza.
Saliente-se, também, nesse sentido, o jogo de palavras, significados e imagens poéticas
que é feito ao longo das obras. Às vezes, por mais de uma página, se encontram apenas
imagens dispersas, dispostas aparentemente de forma desconexa e aleatória pelo eu-lírico.
Nessa reunião de termos que parecem incompatíveis, os objetos podem ganhar vida e os
humanos receber características que não lhes são próprias. Essas seqüências de imagens
tendem a inquietar e instigar o leitor, levando-o a uma reflexão pouco habitual na vida
cotidiana, despertando-o para novas imagens que enriquecem o imaginário e contribuem para
uma visão mais poetizada da existência. Não conseguir atribuir um sentido exato às imagens
não é, no caso de um poema, algo negativo; pelo contrário, é próprio da poesia deixar um
espaço aberto para interpretações sempre novas. Conforme afirma Gaston Bachelard, “a
verdadeira poesia é uma função de despertar” (1989a, p. 18), e é isso que se percebe nas obras
de Carpinejar, o anseio de acordar o leitor, lançá-lo para além da obviedade.
No entanto, as escolhas do poeta não são gratuitas, ele aproveita os mais diversos
recursos e combinações ao produzir seus poemas; no título das obras, por exemplo, em duas se
percebe um jogo de números: Terceira sede é o terceiro e Cinco Marias é o quinto livro do
164
autor. As obras também se comunicam entre si, com poemas e versos que reiteram
posicionamentos de um livro para outro, ou que avançam em reflexões precedentes, como se
apontou ao longo das análises. Toda essa forma especial de construção das obras produz um
efeito também distinto, dando certa unidade aos escritos, o que é confirmado pelo próprio
Carpinejar em relação aos cinco primeiros livros, acerca dos quais declara, como foi
mencionado durante as análises, que compõem um “ciclo romanceado”.
Na sexta e na sétima obras, os pontos de contato continuam, embora se note que o poeta
inicia um novo ciclo, a dispersão de imagens desconexas diminui, da mesma forma que os
vazios textuais se modificam, possivelmente por uma maior proximidade dos poemas com o
discurso cotidiano. Assim, ao longo da trajetória do poeta, percebe-se uma alteração na
linguagem que, nas primeiras obras, é extremamente complexa, densa e, ao chegar às
publicações mais recentes, torna-se progressivamente mais simples, direta e com menor
incidência de imagens de difícil compreensão, revelando alterações de comportamento de
Carpinejar em relação ao seu fazer poético.
Para finalizar, cabe reconhecer a importância do trabalho desse poeta gaúcho na medida
em que, através de seus poemas, ele revitaliza a função imaginária de seus leitores, proporciona
a renovação da linguagem e o encantamento por ela, estimulando também o desprendimento da
racionalidade e objetividade para permitir uma elevação do ser, uma experiência singular de
deleite e conhecimento amplo de si e do mundo à sua volta. Através das singularidades de cada
obra e seu respectivo eu-poético, Carpinejar revela ao leitor um mundo novo, inscrito,
conforme se buscou apontar pelas análises realizadas, num regime prioritariamente noturno da
imagem, que permite o afastamento da realidade e o mergulho no íntimo do ser, não para fugir
do tempo, mas, pelo contrário, para, aceitando-o, buscar sua renovação, sua transformação
positiva.
Resta, ainda, salientar que, além dos elementos internos que ajudaram a confirmar o
predomínio da dominante citada, o comportamento do próprio poeta em relação às suas
criações revela-se cíclico, na medida em que ele revisita suas publicações, modificando-as, o
que já ocorreu com as duas primeiras. Nesse sentido, a análise contrastiva das edições originais
com as revistas constitui-se em possível tema para estudos futuros, o que, sem dúvida,
contribuirá para uma visão mais ampla da obra desse poeta.
165
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