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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
IMAGINÁRIO E EXPERIÊNCIA NO ESMERALDO DE
SITU ORBIS DE DUARTE PACHECO PEREIRA
(SÉCULOS XV-XVI)
Elby Aguiar Marinho
Orientadora: Profa. Dulce Oliveira Amarante dos Santos
Goiânia
2008
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ELBY AGUIAR MARINHO
IMAGINÁRIO E EXPERIÊNCIA NO ESMERALDO DE
SITU ORBIS DE DUARTE PACHECO PEREIRA
(SÉCULOS XV-XVI)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de
Goiás, para obtenção do grau de Mestre em História.
Área de concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de pesquisa: História, memória e imaginários
sociais.
Orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante
dos Santos
Goiânia
2008
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(GPT/BC/UFG)
Marinho, Elby Aguiar.
M338i
Imaginário e experiência no Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte
Pacheco Pereira (séculos XV-XVI) [manuscrito] / Elby Aguiar
Marinho. – 2008.
133f.
Orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Fa-
culdade de Ciências Humanas e Filosofia, 2008.
Bibliografia: f.130-133.
1. Pacheco Pereira, Duarte, 1460-1533 2. Descobertas geo-
gráficas portuguesas 3. Imaginário I. Santos, Dulce Oliveira
Amarante dos II. Universidade Federal de Goiás, Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia III. Título.
CDU: 910.4(469)
ELBY AGUIAR MARINHO
IMAGINÁRIO E EXPERIÊNCIA NO ESMERALDO DE SITU
ORBIS DE DUARTE PACHECO PEREIRA (SÉCULOS XV-XVI)
Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História, nível Mestrado, da
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, ___________ em
de de , pela Banca Examinadora constituída pelos
seguintes professores.
Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos / UFG
Presidente da Banca
Prof. Dr. Carlos Roberto F. Nogueira / USP
Examinador
Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves / UFG
Examinadora
Noé Freire Sandes / UFG
Suplente
AGRADECIMENTOS
Em especial à professora Dulce, pela orientação, estímulo e dedicação.
À professora Ana, pela amizade, dicas e o empréstimo de livros.
Às pessoas queridas
e familiares
que contribuíram de diversas formas.
Duarte Pacheco Pereira não foi unicamente um homem de armas:
como alguns antigos varões da Grécia e Roma, manejou ao mesmo
tempo a pena e a espada. Além de valoroso soldado e de experimentado
navegador, foi também um distinto cosmógrafo, como prova o valioso
roteiro que dele nos ficou sob o título um pouco enigmático
de Esmeraldo de Situ Orbis
Souza Viterbo (1898)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................................9
CAPÍTULO 1. Trajetória biográfica, momento histórico e perfil da obra...................................20
1.1 - Duarte Pacheco Pereira na expansão marítima portuguesa.........................................21
1.2 - Esmeraldo de Situ Orbis: estrutura, temáticas e fontes................................................37
CAPÍTULO 2. Maravilhoso, natureza, mitos e etnografia no Esmeraldo de Situ Orbis.............55
2.1 - A presença do maravilhoso na natureza.......................................................................55
2.1.1 - A visão da natureza para o navegador.................................................................57
2.1.2 - A influência e o distanciamento dos bestiários medievais..................................58
2.1.3 - O maravilhoso nas concepções geográficas da estrutura da Terra......................71
2.2 - Mitos.............................................................................................................................73
2.2.1 - Mitos antigos e africanos.....................................................................................73
2.2.2 - Mito político português.......................................................................................76
2.3 - Etnografias e a luta contra os muçulmanos..................................................................83
CAPÍTULO 3. O conceito de experiência na descoberta de novos mundos................................98
3.1 - Tensões entre o conhecimento prático e o teórico universitário..................................98
3.2 - Heranças e inovações..................................................................................................104
3.3 - A experiência no Esmeraldo de Situ Orbis................................................................109
3.4 - O debate com os antigos.............................................................................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................126
FONTES IMPRESSAS..............................................................................................................130
REFERÊNCIAS.........................................................................................................................130
RESUMO
Palavras-chave: experiência, imaginário, navegação.
Duarte Pacheco Pereira foi um navegador e explorador português que, além de
grandes feitos no processo de expansão marítima, escreveu uma obra extraordinária e símbolo
desse processo: o Esmeraldo de Situ Orbis. Esta tinha como objetivo servir de roteiro na
navegação da costa africana aos pilotos portugueses. Porém, diversos são os temas abordados
pelo autor e numerosas são as análises históricas que podem ser feitas.
Ele vivia em uma época de transição entre o mundo medieval, com restrições às
viagens pelo Oceano Atlântico, e o mundo moderno, que revelava regiões e povos jamais
imaginados. Enfim, presenciou um rico momento de mudanças, de choques, de continuísmos e
de formações de imaginários sociais, determinados por diversas concepções antigas e medievais,
por várias outras trazidas pelas descobertas e pelos interesses que permeavam a construção de
sua obra. Tudo isso o preparava para o que via e para o que iria ver, construindo e tornando
compreensível o seu mundo.
Mas, se de um lado o imaginário social influenciava as suas interpretações e a sua
escrita, de outro, as experiências das explorações garantiam seu argumento de autoridade. Isso
foi de grande importância para o processo de formação do pensamento moderno, uma vez que as
viagens evidenciavam a supremacia do conhecimento empírico sobre o conhecimento da
autoridade, valorizando a atitude humana no conhecimento direto da natureza.
ABSTRACT
Key-words: experience, imaginary, navigation
Duarte Pacheco Pereira was a great portuguese navigator who, besides having done
great things on the process of maritime expansion, also wrote an extraordinary work which
symbolizes this process: Esmeraldo de Situ Orbis. Such work had the objective of serving as an
itinerary for the navigation of the african coast by portuguese navigators. Nevertheless, several
are the themes approached by the author and many are the historical analyses that can be
developed from his work.
He lived during a time of transitions from the medieval way, with restrictions to the
journeys through the Atlantic Ocean; to the modern world, which uncovered regions and nations
ever imagined. Finally, he witnessed a time of changing, shocks, of continuousness and social
imaginary formations, determined by various medieval and ancient conceptions, and many others
brought by the navigation discoveries and interests that permeated the construction of his book.
All the elements mentioned had the purpose to prepare him for t what he would see and what he
was seeing; building and making the world more comprehensible.
However, if from one side the social imaginary ruled his interpretations and his
writing; from the other side, his exploration experiences guaranteed his authority argument.
Those factors were of great importance to the formation process of the modern thinking, as the
journeys made evident the sovereignty of the empiric knowledge over the authority knowledge,
increasing the value of human attitude on the direct knowledge of nature.
INTRODUÇÃO
Esta dissertação propõe-se a realizar novas leituras históricas de uma obra clássica da
época da expansão marítima portuguesa: o Esmeraldo de Situ Orbis,
1
do navegador Duarte
Pacheco Pereira (1460-1533). Ela se denomina um livro de cosmografia e marinharia, sendo um
testemunho do pioneiro desenvolvimento português na arte da navegação no período da segunda
metade do século XV e primeira metade do século XVI.
O Esmeraldo de Situ Orbis constitui uma obra-síntese de um largo conjunto de obras
anteriores relacionadas ao processo de expansão marítima da época,
2
tais como crônicas,
descrições de regiões distantes, roteiros,
3
regimentos de navegação,
4
diários de bordo
5
e livros de
marinharia,
6
os quais formam, todas juntas, o que a historiografia vem chamando de literatura de
viagem.
7
1
As referências a essa obra ao longo deste trabalho serão representadas pela sigla ESO.
2
Muito provavelmente, as primeiras relações de viagens foram feitas no mar pelos escrivães do Infante D. Henrique
(1394-1460). Nesses livros de bordo eram anotados diversos dados de caráter geográfico, rumos, léguas percorridas,
nomenclaturas locais ou impostas, trocas comerciais realizadas com indígenas e diversos outros dados relevantes da
viagem. Tais anotações eram feitas dia-a-dia, seguindo os progressos das viagens de acordo com os acontecimentos,
o que os fazia tomar a forma de diários. Tais temas (novidades geográficas e étnicas) exerciam grande atração sobre
os viajantes, cientistas e aventureiros, cujos relatos de observações e aventuras eram recebidos com grande
curiosidade na Europa.
3
Trata-se de livros que indicam como se devem navegar determinadas rotas anteriormente percorridas por seus
descobridores, cujas notas sobre os percursos iam sendo ampliadas e especificadas pelos navegadores seguintes.
4
Tratava-se de um conjunto de regras práticas que indicavam diversos procedimentos de observação e de cálculos a
serem seguidos pelos navegadores no cotidiano de suas viagens. A cada um desses conjuntos de regras dava-se o
nome de “regimentos”, que eram seguidos pelo assunto tratado, como, por exemplo, Regimento das léguas”,
“Regimento do Sol” ou “Regimento do Norte”.
5
Registros, relativamente regulares, dos dados de navegação de uma embarcação que apontam rumos, observações
astronômicas, características geográficas, aspectos meteorológicos e todas as informações consideradas importantes
para o cumprimento da condução do navio e de posteriores viagens pela mesma rota. Alguns inclusive, em fins do
século XV e início do XVI, além da simples notação descritiva do mundo que era revelado, traçavam alguns
comentários acerca das distantes terras e de suas diferentes populações.
6
Esta designação é usada apenas para classificar um grande corpo de textos do século XVI que compilam regras de
navegação e roteiros. Tratam-se basicamente de cadernos de apontamentos de notas e comentários de caráter
utilitário, reunidas pelo piloto ao longo de sua vida de viagens, segundo suas aprendizagens e experiências. São
exemplos de um momento em que a expressão dos conhecimentos práticos e sistematizados era o que mais valia, ou
seja, provam o início da navegação oceânica, evidenciando a maneira como os navios de Portugal cruzaram o
Atlântico, o Índico e chegaram ao Extremo Oriente.
7
Além do Esmeraldo de Situ Orbis, outros importantes exemplos dessa literatura são: o Roteiro da Primeira Viagem
de Vasco da Gama (1498) atribuído a Álvaro Velho, a Carta a D. Manuel sobre o Descobrimento do Brasil (1500),
de Pero Vaz de Caminha, o Roteiro do Mar Roxo (1540), de D. João de Castro, A Verdadeira Informação do Preste
João das Índias (1540), do Padre Francisco Álvares, o Tratado das Cousas da China (1570), de Frei Gaspar da
Cruz, o Itinerário da Terra Santa (1593), de Frei Pantaleão de Aveiro, a Etiópia Oriental (1609), de Frei João dos
Santos e o Itinerário da Índia por Terra (1611), de Frei Gaspar São Bernardino.
10
Tal obra pertence, por um lado, a esse gênero amplo da literatura de viagem, que
remonta à Antiguidade, contemplando sua principal característica que é a descrição das regiões
exploradas e dos povos nelas encontradas. Por outro lado, imprime a marca pessoal do navegador
Duarte Pacheco Pereira, que traduz o imaginário social de Portugal nesse momento de transição
do mundo medieval para o moderno. Assim, o autor transforma em narrativa seus aprendizados e
suas vivências acerca das várias viagens marítimas e explorações em terras africanas e orientais
das quais participou em nome da Coroa portuguesa. Sua condição de escrita é bem ampla e
híbrida, unindo exploração, aventura e aplicação e desenvolvimento de conhecimentos objetivos.
Ocorria em Portugal, no início do período quinhentista, um clima de mudança em
decorrência dos descobrimentos marítimos e de seus resultados, com reflexos não entre os
escritos de homens dedicados às ciências e às técnicas, como é o caso de Duarte Pacheco Pereira,
mas também entre poetas, prosadores e historiadores. Havia um sentimento de consolidação de
uma obra inigualável de conquista do mundo e que para sempre saberiam dominá-lo, sendo o
Esmeraldo de Situ Orbis um extraordinário fruto e exemplo de todo esse processo histórico
(ALBUQUERQUE, 1987).
Seu texto foi escrito no momento posterior aos das viagens que vivenciou graças a
uma encomenda feita pelo rei D. Manuel (1469-1521), que as descrições físicas da natureza e
das regiões habitadas serviriam para auxiliar as pessoas que posteriormente passariam pelas
mesmas regiões atravessadas pelo autor. Sobre a obra original, esse rei considerou tão valiosas
suas informações náuticas, geográficas e econômicas que jamais permitiu que ela fosse tornada
pública, atitude esta bem típica da política de segredo do período. O documento era, de fato, tão
precioso que uma cópia foi contrabandeada em 1573 para a Espanha por um espião italiano,
Giovanni Gesio, que o rei Filipe II mantinha a seu serviço na embaixada espanhola em Lisboa.
Por este seu trabalho, Gesio foi muito bem recompensado.
8
Isso é explicado por estar a capital do
reino na vanguarda das inovações técnicas da ciência náutica naquele período. Vivia infestada de
espiões, principalmente espanhóis e italianos, que escarafunchavam todos os cantos para
descobrir os segredos que permitiram aos portugueses construir um império que ia do Oriente ao
Brasil.
8
O recibo do pagamento dos seus serviços encontra-se hoje na biblioteca do mosteiro de Escorial, próximo a Madri.
11
Em sua escrita, Duarte Pacheco Pereira assume posições em relação às narrativas e
aos relatos de viagens anteriores (para as mesmas regiões percorridas, no caso), em que ocorrem
divergências e emaranhamentos por causa de diversas perspectivas intelectuais, religiosas e
sociais sempre em mutação. É por isso que nenhuma obra de viagem é totalmente original, pois
toma sempre como base outras narrativas em sua construção,
9
que determinam o observado e o
que se escreve acerca do mundo. Para o caso do Esmeraldo de Situ Orbis, como veremos
posteriormente, o recurso aos textos de autoridades antigas foi usado pelo navegador para
persuadir seus leitores, fazendo com que se creia em sua obra, indicando o que naquelas é falso
ou mítico. Assim, seu livro é validado por ser sério, pois ele viu realmente e achou o contrário do
que fora afirmado anteriormente, devendo, assim, os seus destinatários acreditarem nele. Porém,
em outros momentos, o que traoutro quadro de discussões, o navegador realiza a mesma coisa
dos autores que critica, contando mitos ou repetindo os erros dos antigos (HARTOG, 1999 e
2004).
O autor foi uma importante personalidade de seu tempo. Não por causa de sua
obra, mas pelas diversas atividades que exerceu ao longo do governo de quatro reis
impulsionadores das viagens marítimas e das explorações nos continentes africano e asiático: D.
Afonso V (1448-1481), D. João II (1481-1495), D. Manuel I (1495-1521) e D. João III (1521-
1557). Destacou-se como grande combatente e estrategista em terra e no mar, administrador de
possessões portuguesas, cosmógrafo, roteirista e explorador geográfico. Prova de sua
importância foram os ecos de seus feitos militares nas Índias, durante séculos, conforme se lê nas
linhas de cronistas ou da historiografia quinhentista portuguesa do Oriente.
É importante ressaltar também nesta introdução alguns relevantes comentários a
respeito da trajetória do próprio texto do Esmeraldo de Situ Orbis, sobre sua origem e as diversas
edições. O fato é que a partir de 1892, maiores análises começaram a surgir sobre Duarte
Pacheco Pereira e sua obra, que naquele ano fora lançada a primeira publicação integral da
obra.
10
Esta vinha acompanhada por uma notícia preliminar e biográfica feita pelo empreendedor
9
Um famoso exemplo é o de Cristóvão Colombo, que levava o livro de Marco Polo em sua viagem que culminou
com o descobrimento da América.
10
Algumas partes do Esmeraldo de Situ Orbis e respectivos comentários encontravam-se publicados, antes
mesmo de sua primeira edição em 1892, nos Annaes maritimos e coloniaes (1845), de Albano da Silveira Pinto, em
notas do Roteiro de D. João de Castro, de João de Andrade Corvo, na História de Portugal, de Pinheiro Chagas, nos
Padrões dos descobrimentos portuguezes em África, de Alexandre Magno de Castilho, nas Memórias sobre a
influencia dos portuguezes no conhecimento das plantas, de Conde de Ficalho (que aproveita pricipalmente as
diversas observações sobre a Costa da Malagueta existentes no Esmeraldo de Situ Orbis), no Panorama (1844), de
12
da publicação, Raphael Eduardo de Azevedo Basto, paleógrafo, conservador do Real Arquivo da
Torre do Tombo e membro da Comissão Colombina. Ele acrescentou também outros vinte e dois
documentos relativos direta e indiretamente à vida do navegador, os quais ajudam a esclarecer
vários episódios de sua vida. Essa edição foi fruto dos seus estudos e das comemorações do
quarto centenário da descoberta da América por Cristóvão Colombo, sendo produzida pela
Imprensa Nacional em Lisboa.
De longa data, esse editor trabalhava na cópia e revisão crítica dos dois
manuscritos conhecidos no século XIX do Esmeraldo de Situ Orbis, que era e continua
sendo desconhecido o exemplar original. O manuscrito mais antigo, com vários indícios de ser
uma cópia direta do original feita no início do século XVII, encontra-se na Biblioteca de Évora.
a outra cópia mais recente, da segunda metade do século XVII e anteriormente pertencente à
mesma Biblioteca de Évora, acha-se na Biblioteca Nacional de Lisboa. É o tipo da letra que os
fazem ser considerados de períodos afastados.
11
Aqui entramos em um terreno fértil de
discussões, que envolvem explicações sobre possíveis motivos desse seu desaparecimento, o que
seria contraditório, pois a obra seria de muita serventia aos navegadores portugueses, bem como
em relação à política de segredo do Estado português. Nesse sentido, podemos levantar também
a possibilidade de que o original, ou até mesmo as cópias, tenham sofrido intromissões,
acréscimos ou censuras das autoridades portuguesas ao longo dos anos.
A cópia mais antiga contém alguns erros por causa da leitura do original. Já a
cópia mais moderna, além de apresentar os mesmos erros da primeira, contém vários outros
advindos do pouco cuidado na transcrição. Mas, felizmente, tais erros não chegam, segundo seu
editor, a alterar o sentido do texto e nem põem em dúvida a veracidade do manuscrito original,
Rivara (bibliotecário, da Biblioteca de Évora) e na Noticia sobre manuscritos iluminados portuguezes, de Ferdnand
Denis.
11
Raphael Basto, em sua nota preliminar, que antecede a disposição dos quatro livros do Esmeraldo de Situ Orbis,
julga que a primeira cópia do manuscrito, a da Biblioteca de Évora, pertencera ao bispo do Porto, D. Rodrigo da
Cunha (1577-1643), que uma menção a esta obra é presente em um catálogo feito em 1627 dos seus livros. a
segunda cópia, de letra mais moderna, apresenta em seu final uma nota, feita por outra mão e de letra ainda mais
recente, afirmando ser este manuscrito uma cópia possivelmente feita a partir do exemplar pertencente ao dito bispo
do Porto. Posteriormente, ela foi comprada pela Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1867. Raphael Basto também
julga ser este segundo manuscrito o mesmo apontado pelo catálogo da Biblioteca de Évora em uma nota de 4 de
setembro de 1844, que afirma ter sido um manuscrito do Esmeraldo de Situ Orbis retirado por ordem de uma
portaria do ministério do reino, de 24 de agosto também de 1844, não lhe sendo posteriormente restituído.
13
que a Bibliotheca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado (1682-1772),
12
afirma ter existido na
livraria da casa dos marquezes de Abrantes.
Dentre os vários estudiosos é concepção comum a crença na não existência de outras
cópias. Para o próprio Joaquim Barradas de Carvalho (1981), maior historiador do Esmeraldo de
Situ Orbis, é certo o manuscrito de Lisboa ser uma cópia do de Évora, sendo este o mais próximo
da escrita do navegador. Outras edições importantes da obra em exame foram as realizadas por
dois estudiosos portugueses, Epiphanio da Silva Dias (1905) e Damião Peres (1954). Importante
também foi a tradução para o inglês, feita em 1937 por G. H. T. Kimble, em Londres.
13
Nesta dissertação, utilizamos três edições impressas do Esmeraldo de Situ Orbis. A
primeira, fonte de todas as citações deste trabalho, é uma publicação da Academia Portuguesa de
História.
14
Fato interessante é que esta vem acompanhada por uma erudita introdução e um vasto
quadro de anotações históricas de Damião Peres. A segunda foi a publicação crítica e comentada
de Joaquim Barradas de Carvalho, sendo esta fruto de sua tese de doutoramento. A terceira
edição é a já referida de Raphael Eduardo de Azevedo Basto. As duas últimas serviram de
contraponto para a comparação e correção de alguns poucos termos de pequena nitidez ou de
difícil compreensão. Além disso, foram valiosas por sempre trazerem introduções com biografias
de Duarte Pacheco Pereira e informações sobre a trajetória de sua obra, além de diversas e
curiosas notas explicativas.
Neste momento introdutório, faz-se necessário também uma abordagem sobre os
conceitos centrais que foram utilizados neste trabalho, sendo estes o de imaginário social
15
e o de
12
Publicou entre 1741 e 1758 esta obra que reuniu as informações sobre a bibliografia portuguesa e um pouco da
biografia de seus autores. Também é conhecido pela grande reunião de livros e gravuras que realizou para D. José I
após o incêndio que arrasou a Biblioteca Real no terremoto de 1755. Esta coleção veio para o Rio de Janeiro com a
transferência da corte portuguesa em 1808, sendo uma das principais riquezas da atual Biblioteca Nacional.
13
O mérito de Duarte Pacheco Pereira como cosmógrafo, porém, só depois é que veio a angariar o devido
reconhecimento. Isto graças aos trabalhos de Joaquim Bensaúde em seu livro L’astronomie nautique au Portugal à
l’époque des Grandes Découvertes, de 1912, e de Pereira da Silva em sua História da colonização portuguesa do
Brasil. Daí em diante, Duarte Pacheco Pereira é citado e analisado pelos melhores trabalhos de historiadores de
Portugal e da expansão marítima.
14
Trata-se de uma edição comemorativa do quinto centenário do Descobrimento da Guiné, elaborada pelo
Ministério do Ultramar - anteriormente denominado Ministério das Colônias reeditada em 1988 com o patrocínio
da Secretaria de Estado de Negócios Estrangeiros e da Cooperação.
15
É importante agora, antes de maiores abordagens ligadas ao imaginário que nos servirão como base para a
interpretação da obra, a tomada por uma posição teórica de análise. O debate se da em torno do conceito de
imaginário social. Este foge do conceito de imaginário coletivo, por este último termo trazer uma idéia de totalidade
a um mesmo grupo social. Imaginário social é encarado como campo de experiência humana, que não conta de
toda uma totalidade. Apesar dos historiadores citados ainda utilizarem o conceito de imaginário coletivo, que bem
interpretados enriquecem as reflexões aqui presentes, já fica explicitada a nossa posição perante os estudos do
imaginário.
14
maravilhoso. Estes termos trazem uma aproximação muito grande entre si, que o segundo não
deixa de ser uma das manifestações do primeiro, que foi um instrumento importante nesta nova
abordagem sobre o Esmeraldo de Situ Orbis, levantando novas questões sobre o documento e
suas entrelinhas.
A historiografia atual vem admitindo a necessidade de reconstituir a história das
sociedades, relacionando seu imaginário ao seu campo de vida concreta, que seus limites são
muito arbitrários. No cotidiano das sociedades, ocorrem sempre miragens de sociedades
consideradas perfeitas, que permitem sua própria reflexão como também dão a esperança de
construção de uma nova realidade. Outras miragens, sendo conscientes ou não, ajudam a suportar
a realidade objetiva, aliviando as dificuldades da vida. Em outro extremo, no imaginário das
sociedades, existe uma forte presença de seu cotidiano, por meio do exagero ou da inversão de
suas características, da projeção de alguns de seus desejos ou da negação de seus medos
(FRANCO JR., 1992).
Mas tais imagens, ou miragens, não são apenas aquelas relacionadas às produções
artísticas e iconográficas, mas também se referem àquelas relacionadas às imagens mentais,
constituídas pelo desencadear da história, que se formam e se transformam. Tais imagens são
repassadas pela tradição, aparecem em palavras e em temas, circulam entre as civilizações e
sociedades, sendo fenômenos sociais e coletivos ao longo da história (LE GOFF, 1994).
O imaginário se faz presente nas complexas mediações entre a concretude da vida das
pessoas, individual ou coletiva, e as imagens sobre si mesmas e seu mundo, fazendo mediações
entre o pensado e o vivido, entre o coletivo e o individual, algo sempre encontrado nas linhas do
navegador.
Por isso que o imaginário social é, em si, elemento de transformação e de atribuição
de sentido às coisas. Como sistema de idéias e imagens, o imaginário é o outro lado da
concretude da vida cotidiana. Não é concebível em um vazio de idéias, pois, mesmo agindo com
o maravilhoso e o extraordinário, um manusear com dados da natureza encarada por Duarte
Pacheco Pereira.
Assim, o conceito de imaginário social proporciona um diferente patamar
epistemológico para o estudo da história e das diferentes vivências humanas. Mas é necessário
termos consciência da limitação de seu conhecimento, que ao historiador elas chegam apenas
por meio dos filtros da produção e da forte influência dos imaginários nos documentos das
15
diferentes épocas, sendo o Esmeraldo de Situ Orbis um interessante exemplo. Como este
conceito foge a grandes definições, ele nos permite atravessar fronteiras e fugir das
compartimentações, que nos guia a outras vivências escondidas pelas divisões convencionais
da História.
Além disso, é fato que todos os documentos históricos, de uma maneira ou de outra,
sempre trazem uma parte de imaginário social, quer em sua forma, quer em seu conteúdo. É
assim, pois, que o pergaminho, a escrita ou a tinta exprimem uma imaginação da cultura, do
poder e da sociedade de diferentes épocas e lugares. O imaginário social trazido pelo escrito não
é o mesmo das palavras ou das imagens ou dos monumentos. Muitas vezes também, os
documentos artísticos e literários importantes para o estudo do imaginário social não fornecem
informações relativas aos elementos da história tradicional (acontecimentos, instituições, grandes
personalidades etc.). Faz-se necessário, assim, perceber a especificidade de cada documento,
que eles não podem falar sobre aquilo para o qual não foram produzidos, sendo, pois, em si
próprios, uma construção histórica. Conseqüência importante disso tudo é o fato de que o estudo
do imaginário social presente em um dado documento relativo a uma determinada sociedade
propicia irmos ao fundo de sua consciência e evolução histórica (LE GOFF, 1994).
Aqui se lida com os últimos momentos do mundo medieval europeu, carregado de
mitos e diversas concepções tradicionais, que vagarosamente ainda serão reproduzidos,
transformados ou derrubados pelo olhar empírico de Duarte Pacheco Pereira. O Esmeraldo de
Situ Orbis está repleto de relatos e opiniões do explorador sobre suas viagens e sobre a história
de Portugal, girando em torno de perspectivas do imaginário social e projetando realidades
concretas. Isso porque a sociedade portuguesa era e continuou sendo por muito tempo ainda
uma sociedade cujo imaginário social e religioso determinava a maior parte das reflexões e das
explicações sobre si mesma, como também das sociedades e das regiões que lhe eram distantes e
muito diferentes. E para esses dois casos, a obra do navegador nos proporciona uma rica leitura
para a compreensão desse período. Nesse sentido, ao longo dos capítulos que se seguem, seja de
maneira direta ou indireta, a análise do imaginário social contribuirá para a compreensão da obra
do navegador, ou seja, ele funcionará como uma via de explicação da sociedade portuguesa em
transformação rápida por causa do processo da expansão marítima. Transformação esta provinda
tanto de novos elementos trazidos ao imaginário social como também da modificação constante
de elementos antigos, mas ainda presentes.
16
Seja vindo por meio de descrições de sua experiência direta, do imaginário social que
o cercava, daquilo que escutou ou daquilo que lhe interessava, seu texto apresenta concepções
partilhadas (por ele, pelo rei e por seus leitores) sobre as características das sociedades
encontradas em suas viagens. Por isso, não podemos negligenciar a presença de fortes
influências do imaginário social na obra em exame, pois, nesta, a idéia do que é ser o outro e
também do que é ser português é algo imaginário, repassado por Duarte Pacheco Pereira, que
não realiza uma reprodução tradutora, mas criadora. Apesar de ele sempre justificar sua escrita e
suas descrições pelas suas experiências diretas, por ter visto, muito do que está escrito sobre o
mundo natural, divino e humano e sobre as culturas, retrata as formas de visões imaginárias do
mundo dos europeus daquele período. O navegador recepcionava tais situações e as descrevia
segundo esse imaginário social, que, com certeza, determinava muito do que via e escutava.
Maravilhoso é o outro conceito-chave desta dissertação. Este é uma das
manifestações do imaginário medieval europeu, que ainda persistia em alguns sentidos, mas em
processo de mudança constante no início do mundo moderno. Este guarda também algumas
especificidades que nos são valiosas em relação a termos próximos, como o fantástico e o
sobrenatural, que o maravilhoso tem a grande vantagem de ser um termo medieval, cuja
história e sentido situam-se entre o miraculoso e o mágico. Tal conceito pertence principalmente
ao vocabulário da literatura, sendo justamente por esse motivo que, no âmbito do imaginário
social, sua situação reforça-se em relação à religião, ao pensamento e à sensibilidade, nas artes e,
obviamente, nas manifestações literárias, como no caso da literatura de viagem. Mas foram nos
séculos XII e XIII que os domínios do sobrenatural no ocidente medieval apareceram com maior
nitidez, manifestando-se em três sentidos: magicus (está relacionado ao sobrenatural maléfico,
satânico), miraculosus o maravilhoso cristão, em que o milagre é apenas um elemento) e o
mirabilis (é o que entendemos por maravilhoso e o que usamos neste trabalho). Em relação a este
último, do qual a natureza era repleta, a palavra maravilha somente apareceu no anglo-saxão e
nas línguas românicas quando as línguas vulgares ganharam força e se tornaram também
literárias. Além disso, o Oriente era o grande depositário do maravilhoso, pois ele era o
verdadeiro estrangeiro para os europeus, desde a época dos gregos e dos romanos (LE GOFF,
1983).
Desde o mundo antigo, com manifestações na época do navegador, como poderemos
comprovar com o estudo do Esmeraldo de Situ Orbis, se uma narrativa de viagem pretendesse
17
ser encarada como fiel entre seus leitores, ela devia conter partes dedicadas às maravilhas e às
curiosidades. Tendo seu lugar na narrativa, o maravilhoso figurava no elenco dos métodos da
retórica da alteridade, mesmo porque o autor da obra não podia deixar de utilizar-se da
maravilha, que o público a esperava. Se a omitisse, o navegador destruiria o seu crédito, uma
vez que existia um postulado no imaginário social que determinava que os territórios distantes e
suas respectivas populações tinham maravilhas e curiosidades. Assim, o maravilhoso
apresentava-se como mais uma tradução da diferença entre o aqui e o distante, sendo mais um
elemento da narrativa etnográfica (HARTOG, 1999).
O maravilhoso liga-se ao olho do viajante, que ele viu com seus próprios olhos, o
que garante verossimilhança ao seu relato. Era o viajante que avaliava se tal região era de fato
extraordinária, dando um efeito de seriedade à sua narrativa, pois o maravilhoso traz consigo um
forte componente de sobrenatural, bem diferente do estranho, que se dissolve pela simples
reflexão, ou do fantástico, que hesita entre explicações naturais e sobrenaturais. Desse modo, a
concepção medieval do mundo é a de um todo não-divisível, encarado como criação divina,
sendo a origem do incompreensível atribuída a Deus ou às forças diabólicas, de acordo com sua
carga de positividade ou negatividade. Assim, o mundo transcendente existe de fato, não
havendo espaço para dúvidas acerca de sua capacidade de presença no mundo natural (existente),
ou seja, não lugar para aquela hesitação exigida pelo fantástico, concedendo grande espaço e
força para o maravilhoso (LE GOFF, 1983; FIGUEIREDO, 1997).
Mas, ao mesmo tempo, no caso da obra e da época de transição do navegador, novas
concepções e novos conhecimentos já indicavam detalhadamente as localizações, as situações, os
objetivos e realizavam uma datação histórica, aproximando os novos escritos do mundo
empírico, começando a quebrar o poder do maravilhoso e indicando mutações nas sociedades.
Esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, busco salientar a vida
do navegador e seu momento histórico, além de delinear melhor sua obra como exemplo de
literatura de viagem. No segundo, o centro das discussões se dará pelo conceito de imaginário
social. Por meio deste conceito, levantamos várias questões complementadas com as diversas
análises do terceiro capítulo, que evidenciam os avanços, e também continuísmos, de
conhecimentos advindos das experiências de Duarte Pacheco Pereira em suas explorações,
mostrando assim como o Esmeraldo de Situ Orbis é uma obra que representa as interessantes
transformações do mundo medieval para o moderno.
18
O primeiro capítulo inicia-se com a trajetória biográfica do autor, relacionando-a com
o contexto histórico da segunda metade do século XV e início do XVI na Europa. Esta é muito
importante para os objetivos deste trabalho, pois é da trajetória de vida do navegador que
surgiram suas leituras relacionadas aos conhecimentos de navegação e todas as suas experiências
e atividades ultramarinas que possibilitaram a construção de seu livro. Na segunda parte, o que
se almeja é uma análise mais específica da estrutura, das temáticas e das fontes do Esmeraldo de
Situ Orbis. Isso ocorrerá por meio das análises acerca do período de vida em que Duarte Pacheco
Pereira a redigiu, dos assuntos abordados, do valor empregado na experiência, de seus objetivos
e da encomenda da obra feita por D. Manuel, dos avanços científicos desenvolvidos e dos
diversos dados de navegação apontados, da decifração do título, da datação de sua elaboração e
sua classificação, além do estilo e posição de escrita do navegador.
O segundo capítulo traz como grande perspectiva de estudo várias instâncias em que
o imaginário social e o maravilhoso influenciam as percepções e a escrita de Duarte Pacheco
Pereira, algo inédito no estudo sobre o Esmeraldo de Situ Orbis. Logo no início, diversas
análises são feitas sobre a influência do imaginário na descrição e opinião do navegador sobre a
natureza, em que o maravilhoso advindo desta determina sua visão acerca do mundo e das
diferentes regiões encontradas. Numa segunda etapa, vemos a continuidade em sua escrita,
apesar deste viver em um momento histórico de descobrimentos e desmistificações, da crença em
mitos característicos de antigas manifestações culturais e imaginárias européias e, o que lhe é
peculiar, da aceitação de mitos pertencentes às diferentes sociedades com as quais mantivera
contato nas regiões ocupadas pelos portugueses ao longo dos descobrimentos. Em seguida, ainda
dentro dessa temática do mito, Duarte Pacheco Pereira torna-se um meio de reprodução,
fortalecimento e popularização do mito político ufanista de Portugal, que era legitimado pela
certeza de que Deus estava ao lado dos lusitanos. Fechando o segundo capítulo, são realizadas
interpretações das interessantes referências e caracterizações feitas pelo navegador sobre as
diferentes sociedades com as quais ia se deparando e sobre o constante choque com os
muçulmanos que enfrentava em suas explorações. Estas interpretações dizem respeito à visão do
outro apresentado pelo navegador, algo típico e um dos principais e mais atraentes temas (tanto
naquela época como hoje para os estudiosos interessados) das obras da literatura de viagem desse
período.
19
no terceiro e último capítulo, o interesse maior é entender o conceito de
experiência para o navegador. Apesar de essa discussão ser bastante recorrente na historiografia,
e até mesmo, em alguns sentidos, estar saturada de análises, aqui procuraremos enveredar por um
caminho próprio. Contando com interpretações que se relacionam, influenciam e são
conseqüência dessa discussão, analisaremos o choque na formação do quadro intelectual
português entre os conhecimentos advindos da prática das navegações e a sua não-aceitação pela
universidade, as mudanças intelectuais que buscavam o conhecimento quantitativo em
detrimento do qualitativo na época de Duarte Pacheco Pereira, além de seu debate com os
autores antigos a partir dos diferentes critérios de argumentação em seu discurso.
20
1. TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA, MOMENTO HISTÓRICO E PERFIL DA OBRA
Personagem contraditório, como só as há nas contradições de um mundo que acaba e
de outro que começa.
Joaquim Barradas de Carvalho
Para uma boa compreensão acerca do Esmeraldo de Situ Orbis e de todas as
instâncias interpretativas que aqui serão elaboradas sobre ela, torna-se de grande importância a
nossa compreensão sobre a trajetória de vida de Duarte Pacheco Pereira e do momento histórico
europeu que possibilitará o aparecimento de sua obra. O documento aqui trabalhado foi expresso
em uma dada época por razões precisas, sendo que poderemos usá-lo se entendermos o seu
lugar e a sua função no sistema de sua sociedade de origem.
O objetivo é salientar questões pouco trabalhadas ou feitas de maneira muito
superficial pela historiografia. Uma detalhada biografia abre as análises, por meio do que se
conhece pelas pesquisas anteriores historiográficas e genealógicas, pela busca e interpretação de
documentos relativos direta ou indiretamente à vida do navegador e, principalmente, pelos seus
próprios e constantes depoimentos ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis. Assim, traça-se a
origem e trajetória de sua família e de seus principais ancestrais, evidencia-se o pouco que se
conhece de suas atividades na infância e a origem de seus conhecimentos ligados à navegação,
suas atividades de navegador e explorador geográfico, de administrador, estrategista e de
defensor militar de distantes regiões e possessões portuguesas. Além de tudo isso, serão descritas
as particularidades de sua vida pessoal, as características das relações próximas que manteve
com os reis portugueses e toda a fama que seu nome angariou, séculos depois, em citações de
diversos historiadores, cronistas e literatos.
Desse modo, nosso foco central de análise será relativo ao século XV. Tanto sobre o
período histórico anterior ao nascimento do navegador, ou seja, a primeira metade do século XV
com alguns rápidos retornos aos séculos XIII e XIV, necessários para a compreensão das
estruturas do período que formou as bases mentais que caracterizaram o momento de vida do
navegador quanto de sua segunda metade, período em que Duarte Pacheco Pereira acumulou
21
diversos tipos de conhecimentos e realizou grande parte de suas experiências marítimas e
explorações.
Fechando esse primeiro capítulo, a segunda parte apresentará as interpretações
acerca da estrutura, das temáticas e das fontes do Esmeraldo de Situ Orbis.
1.1 - Duarte Pacheco Pereira na expansão marítima portuguesa
Da província da Lusitânia, onde é situada a muito antiga e excelente cidade de
Lisboa, metropolitana de nossa pátria, donde nós Duarte Pacheco, autor, somos natural.
Duarte Pacheco Pereira
O navegador pertence à linhagem nobre e antiga dos Pachecos, descendendo deles
muitas famílias ibéricas. O primeiro nome constatado em Portugal é o de D. Fernando Geremias,
natural da Galiza, onde sua esposa, D. Mayor Soares, fundara o mosteiro de Ferreira próximo da
vila de Lemos. Seu filho Payo Fernandes fora rico-homem do rei D. Afonso Henriques (1109-
1185), participando da batalha de Ourique (1139) e do cerco de Lisboa (1147). Desta família, em
sétima geração, descendeu Lopo Fernandes Pacheco, senhor de Ferreira d’Alves e meirinho-
mor
16
do infante D. Pedro (1320-1367), além de embaixador do papa Benedito XII. Seu filho,
Diogo Lopes Pacheco, também senhor de Ferreira d’Alves, foi um dos implicados no assassinato
de Inês de Castro (1320-1355), indo para Castela, de onde posteriormente retorna para servir na
Batalha de Aljubarrota (1385), quando consegue recuperar seus bens e virar conselheiro do novo
monarca D. João I, Mestre de Avis (1383-1433). Já o filho deste último, João Fernandes
Pacheco, pelos seus serviços prestados nas Batalhas de Trancoso (1385) e Aljubarrota, teve
confirmado por D. João I a posse dos bens de seu pai e fora nomeado guarda-mor
17
deste rei e
alcaide-mor
18
de Santarém.
João Fernandes Pacheco teve um filho ilegítimo, Gonçalo Pacheco, criado do
Infante D. Henrique e tesoureiro-mor da Casa de Ceuta. Por sua vez, o filho de Gonçalo Pacheco,
16
Cargo administrativo existente ao longo da Idade Média e Moderna. Nomeados pelo rei, estes eram seus
delegados nos diferentes territórios onde realizavam a fiscalização e a administração da justiça.
17
Oficial que comandava vinte arqueiros ou alabardeiros da casa real.
18
Trata-se de cargo nomeado pelo rei, cuja função era o governo de um castelo ou de uma província.
22
João Pacheco, recebera uma bolsa real
19
para patrocinar seus estudos. Além do acesso ao estudo,
João Pacheco chegou a ser capitão de uma armada na luta contra os turcos no Oriente, de onde,
ao se refugiar em Tanger,
20
acaba sendo morto pelos mouros. É da união de João Pacheco com
Isabel Pereira que nasce Duarte Pacheco Pereira, num ambiente familiar ligado às viagens
marítimas (BASTO, 1892).
Em relação aos seus primeiros anos de vida e juventude pouco se sabe. Tudo se
limita a algumas poucas referências existentes no Esmeraldo de Situ Orbis. Afirmando por duas
vezes ser natural de Lisboa (Capítulo 23 do Livro I e Capítulo 4 do livro IV)
21
e ter presenciado a
tomada de Arzila
22
e a conseqüente ocupação de Tanger em 1471 (Prólogo do Livro II), conclui-
se que seu nascimento ocorreu pouco depois de meados do século XV (BASTO, 1892). Mas não
deve ter sido nos primeiros anos da segunda metade desse século, uma vez que, em 1455, a coroa
concedeu a seu pai, João Pacheco, aquela importante bolsa de estudos quando este ainda era
jovem. No Esmeraldo de Situ Orbis, notamos elogios a D. Afonso V
23
entremeados com a
descrição dos episódios de Arzila e Tanger, onde o navegador fez sua aprendizagem de guerra
quando ainda era adolescente:
E este virtuoso príncipe [refere-se a D. Afonso V], por serviço de Deus,
passou, em pessoa, além do mar, em África, com grande frota e gente,
onde, por força de armas, tomou aos Mouros a vila de Alcácer Ciguer
24
19
Esta consta na Chancelaria de D. Afonso V (1432-1481), 1. 15, f. 30v, segundo Damião Peres, na notícia
biográfica da reedição do Esmeraldo de Situ Orbis da Academia Portuguesa da História de 1988. Porém, Damião
Peres não cita que tipo de estudo esta bolsa patrocinara e nem onde ocorrera. Mas pressupõe-se que tais estudos de
João Pacheco se relacionem com conhecimentos ligados à navegação, que fora com ele que seu filho, Duarte
Pacheco Pereira, teve os primeiros contados com a cosmografia e a náutica.
20
Cidade localizada no norte africano, atualmente pertencente ao Marrocos, bem próxima do Estreito de Gibraltar e
da costa sul portuguesa.
21
É importante ressaltar que era comum entre os escritores portugueses dos séculos XV e XVI, caso de Duarte
Pacheco Pereira, utilizar o pronome “nós” segundo técnicas antigas de argumentação e legitimação do discurso. Este
pronome era usado não para eventos em que os autores haviam participado junto com outras pessoas, mas
também para eventos em que não necessariamente estivessem presentes, referindo-se, assim, simbolicamente ao
conjunto de todos os portugueses. Por isso, muitas vezes somos levados a dúvidas sobre a real participação de
Duarte Pacheco Pereira em alguns dos acontecimentos narrados em sua obra, o que gerou vários problemas em suas
primeiras biografias, já que esta problemática só foi percebida por historiadores mais modernos. Mas para o caso da
indicação de Lisboa como sua cidade natal as dúvidas são mínimas, visto que a citação ocorre por duas vezes ao
longo do livro, como já mostrado na epígrafe deste capítulo.
22
Outra região conquistada pelos portugueses no norte da África, hoje no Marrocos.
23
Esteve no poder de Portugal entre 1438 e 1481. Tinha apenas seis anos de idade quando D. Duarte morreu, tendo
sua mãe, D. Leonor, como regente. Posteriormente, as cortes passaram a regência do reino ao Infante D. Pedro,
duque de Coimbra e seu tio, que entregou o governo quando da maioridade de D. Afonso V em 1448.
24
Al-Kasr al-Kebir (Alcácer-Quibir) foi uma região conquistada pelos portugueses dos mouros no Marrocos.
23
no ano de Nosso Senhor de 1458, em dezenove dias do mês de Oitubro;
e despois, no ano de 1471 anos, em vinte e quatro dias do mês de
Agosto, tomou aos mesmos mouros, por força de armas a vila de Arzila,
na qual grande mortandade de Mouros foi feita; e com este medo tôdolos
moradores de muita antiga e forte cidade de Tanger fugiram e a
deixaram só; e este excelente príncipe a mandou tomar e povorar. As
quais cousas todas vimos, com outros muitos grandes feitos, que é
escusado escrever em tão baixo estilo de tão alto príncipe. (ESO, p. 124)
A aprendizagem das coisas do mar também lhe viria cedo, pois aprendera as
primeiras noções com seu pai, lendo vários tipos de obras da literatura de viagem, que
circulavam entre os navegadores em Portugal. A sua juventude, assim, foi ocupada com estudos,
o que se pode perceber na seguinte passagem do Esmeraldo de Situ Orbis: “Lícito é a nós dizer
as cousas desta Etiópia
25
pois as vimos, as quais primeiro que as praticássemos, pelo que se lia
delas em alguns dos escritores, nos eram graves de crer” (ESO, p. 145), que o estimulariam às
atividades de explorador geográfico e cosmógrafo, nas quais viria a se destacar.
O século XV europeu, no qual nasceu e se formou Duarte Pacheco Pereira, pode ser
enquadrado tanto em uma época de transição, repleta de crises e de diversos desenvolvimentos
do mundo medieval para o moderno, quanto na época do chamado Grande Renascimento. Mas
uma indefinição, em nossa perspectiva, surge dessas grandes delimitações temporais. Seja com
respeito ao sentido de transição, seja em relação ao Renascimento (que também não deixa de ser
a concretização de diversas transições entre o mundo medieval e o moderno), é certo que os
processos históricos variaram muito ao longo do tempo e também por toda a Europa. Apesar de
essa concepção apresentada parecer muito lógica, seus reflexos são muito importantes para que
atendam nossos interesses de compreensão do momento histórico do navegador.
A Idade Média portuguesa fora muito diferente se comparada à de outras regiões
européias, seja pela peninsularidade de seu território, pela longa ocupação islâmica e o forte
catolicismo, seja pela precoce formação de sua monarquia ou pelo seu desenvolvimento
científico e tecnológico ligado às matérias relativas às navegações. Conseqüentemente, sua
passagem para a modernidade apresentou diversas peculiaridades que, no presente trabalho,
25
Etiópia, ou Etiópias, significava nesta época, entre os portugueses, o continente africano e a parte mais a oeste do
continente asiático. A diferenciação, ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis, é feita pelo autor, chamando de Etiópia
Inferior (Baixa) o continente africano e de Etiópia Superior as regiões asiáticas.
24
serão apontadas nas características culturais presentes na perspectiva e nos interesses de escrita
de Duarte Pacheco Pereira.
É inegável o aparecimento de enormes catástrofes e de crises de proporções
gigantescas nas estruturas sociais e econômicas (fome, peste, guerras) nos séculos XIV e XV,
após uma relativa estabilidade e prosperidade sentida até o século XIII na Europa, tal como trata
a historiografia tradicional. Mas é preciso reconhecer que tais problemas em nada eram
desconhecidos do homem medieval. Ao mesmo tempo, esses séculos foram também períodos de
muitos progressos e novidades, inclusive com várias delas se perpetuando por longos períodos de
tempo, tal como teremos a oportunidade de demonstrar com o caso de Duarte Pacheco Pereira
(LE GOFF, 2007; WOLFF, 1988).
A estes fatores soma-se o fato de que o regresso e a valorização do antigo eram
presentes no século XIII, com o surgimento das universidades e com a leitura de Aristóteles
(384-322 a.C.). A difusão da alfabetização e da leitura não esperaram Gutenberg, a perspectiva
era presente na pintura e na óptica em fins daquele século, época também em que o indivíduo
começava a se impor. Em nível religioso, as ordens mendicantes promoveram mais mudanças no
cristianismo do que o Concílio de Trento (LE GOFF, 1994).
26
Sendo assim, neste trabalho parte-se da idéia de que não houve um corte brutal
entre Idade Média e Idade Moderna. Só aos poucos, por meio de um longo processo de transição,
é que surgia nas sociedades ocidentais uma tomada de consciência sobre a modernidade
nascente. Um bom exemplo que comprova o fato de que esta descontinuidade não ocorreu é vista
no próprio desenvolvimento do pensamento racional. Este começou a se fermentar na Idade
Média, com suas concepções de na ordem do mundo. Essa concepção de ordem da natureza
surgiu do modo pelo qual a Igreja medieval havia colocado na Europa a idéia de providência
minuciosa de um Deus racional. Assim, torna-se muito estreita a noção de que somente a partir
26
O Renascimento foi um processo brilhante, mas superficial. Isso, pois, em história não ocorrem renascimentos,
mas sim transformações, que ao longo de muito tempo se esconderam atrás da idéia de regresso à Antiguidade. Os
Renascimentos foram, assim, característicos da Antiguidade até o fim da primeira metade do século XIX, época esta
em que a modernidade foi definitivamente assumida. Os Renascimentos seriam: o Carolíngio (VIII- IX), o do século
XII, o “Grande Renascimento” que na Itália começou entre os séculos XII e XIV e se difundiu pela Europa entre os
séculos XV e XVI, e os Renascimentos dos séculos XVIII e XIX relativos à arte, à teologia e à literatura. Enfim, o
Renascimento não assinalou o final da Idade Média, mas foi um processo que ao longo dela ocorreu por várias
vezes, sempre em busca de uma autoridade na antiguidade. Além disso, o próprio “Grande Renascimento” não
apresenta uma datação precisa, variando entre os espaços em até quatro séculos, sem falar que nesse mesmo
contexto ocorreram outros numerosos fenômenos muito significativos.
25
do século XVII mais especificamente com as teorias clássicas de Isaac Newton (1642-1727)
a Europa teria alcançado o paradigma clássico da ciência (FALCON, 1977; LIMA, 1989).
A idéia corrente de que o Renascimento caracterizou-se pelo regresso a fontes da
Antiguidade, principalmente nas artes e nas letras, devido à falsa concepção de que tais obras
tivessem caído em total esquecimento durante toda a Idade Média, com o grande triunfo do
obscurantismo e de crenças simplistas assentes em nada de real e em superstições advindas das
Escrituras e da Igreja, é um erro. Erro que já há um bom tempo não está mais sendo seguido e do
qual foi prova o próprio navegador.
Na verdade, a cultura medieval sempre se nutriu dos feitos dos gregos e dos
romanos. Sem dúvida, o cristianismo e a cavalaria enriqueceram a cultura Ocidental, o que não
implica que se tenha marginalizado as heranças clássicas, que continuaram a ser admiradas e
inspiraram diversos escritos, reflexões e atitudes intelectuais. Os clérigos ocidentais não
esperaram os sábios judeus, árabes ou o exílio dos gregos de Constantinopla em 1453, para se
iniciarem no estudo dos textos antigos, apesar de que os homens da Idade Média cultivavam
certamente os seus próprios registros de emoção (HEERS, 1994).
Além de tudo isso, nunca ocorrera um interesse unânime pela Antiguidade nos
séculos do Renascimento. Um exemplo pode comprovar essa afirmação: a falta de interesse de
conservação, por parte dos italianos, dos antigos monumentos e das construções romanas,
destruídas ou usadas como materiais de construção em cidades que seguiam novos modelos
urbanísticos. Ao lado disso, o fato de não se caracterizar esse período como um momento de
total libertação das crenças tradicionais. Como mencionado antes, era tradicional a
admiração pelos autores e artes antigas, além de que a liberdade de costumes conseguida nesse
período não excluiu a fidelidade ao cristianismo. Sendo assim, podemos concluir que esse longo
período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, que culminou, ou que já se
constituía, no Renascimento, foi, na verdade, mais uma etapa do longo processo de valorização
do conhecimento experimental, no qual Duarte Pacheco Pereira foi um importante nome.
Em seu período, adotou-se a postura de não mais se fazer a simples contemplação
das espécies, essências e ordens do mundo, mas, sim, desenvolver-se atividades que se valiam da
observação da natureza para superá-la, ordenando-a de maneira diferente, livre e renovada, na
qual o artífice humano, com virtude e engenho, se lançava em seus impulsos construtivos. O
significado da ação humana não era mais encarado como contemplação de algo dado com o
26
triunfo da lógica teológica, com espaço apenas para uma história ideal e eterna, com o homem e
sua obra fora das discussões, mas praticando uma atividade produtiva.
Prova disso são as atividades promovidas por Duarte Pacheco Pereira. Ao longo de
todo o reinado de D. João II, seus serviços ultramarinos foram numerosos e importantes,
podendo-se citar sua participação nas descobertas das costas africanas e na fundação da feitoria-
fortaleza de São Jorge da Mina
27
em 1482, acontecimento que é descrito em detalhes na seguinte
passagem do Esmeraldo de Situ Orbis:
Convém que digamos como o Sereníssimo Príncipe, rei D. João de
Portugal [...] mandou fazer do primeiro fundamento o castelo de S. Jorge
da Mina; o qual, por mandato deste magnânimo príncipe o edificou
Diego de Azambuja, cavaleiro de sua casa e comendador de Alter
Pedroso da Ordem de S. Bento, no primeiro dia do mês de Janeiro de
Nosso Senhor Jesus Cristo de mil CCCC e oitenta e dois anos, levando
em sua companhia nove caravelas com outros tantos capitães, homens
mui honrados, de que o dito Diego de Azambuja era capitão-mor; e assim
levou duas urcas, naus de quatrocentos tonéis cada uma, com muita cal e
pedraria lavrada e assaz outra artilharia para esta obra fazer. E posto que
entre os Negros desta terra e a nossa gente houve muita diferença sobre o
fazer desta fortaleza, por a não quererem consentir, enfim a seu pesar se
fez, onde com muito serviço e diligencia se acabou o que então foi
necessário para recolhimento e defesa de nós todos.
28
(ESO, p. 142)
Isso nos faz concluir que, durante os anos seguintes do reinado de D. João II,
Duarte Pacheco Pereira, que fora nomeado cavaleiro da casa desse rei por seus importantes
serviços prestados,
29
era um dos capitães de grande confiança, tal como eram Diogo de
Azambuja, Bartolomeu Dias e Diogo Cão nas viagens de descobertas do grande litoral africano.
27
Iniciando como um castelo-feitoria portuguesa em 1482, logo deu origem a uma povoação. Seus objetivos eram o
controle sobre o comércio do ouro, a realização de batismos e também servir de base de apoio aos navegadores, na
costa ocidental africana, que rumavam ao Oriente. Localizava-se onde hoje é o país de Gana, no Golfo ou Costa da
Guiné.
28
Maiores e mais detalhadas análises sobre esta descrição da fundação da feitoria-forteleza de São Jorge da Mina
ocorrerão no segundo capítulo deste trabalho.
29
Ignora-se a data em que esta honra lhe foi conferida. O título de cavaleiro da casa real remonta aos títulos
nobiliárquicos medievais que tinham por objetivo estabelecer uma relação de vassalagem entre o nobre que o
recebia e o rei. Posteriormente, e se encaixa o caso português nos tempos de Duarte Pacheco Pereira, surgiu o
costume de o rei agraciar pessoas com este título devido estas terem prestado importantes serviços aos interesses do
país.
27
Porém, para Joaquim Barradas de Carvalho (1991), o navegador não participara das
tomadas de Arzila e de Tanger, e nem participara junto com Diogo de Azambuja da fundação de
São Jorge da Mina. Conclui que são certas apenas as expedições ordenadas por D. João II e D.
Manuel I às costas da África, não permitindo, porém, as informações existentes fixar exatamente
o número nem as datas dessas expedições, além de não haver nenhuma indicação sobre as
regiões da África que pôde visitar, com exceção das costas de Senegal e a Costa do Benin.
Em contrapartida, o mesmo tipo de narrativa é usado por Duarte Pacheco Pereira
tanto nos episódios que Carvalho afirma não ter o navegador participado quanto naqueles que
afirma ter participado. A seguir, as citações sobre a navegação das costas africanas confirmadas
por Carvalho:
E, por não alargar mais a matéria, deixo de dizer as particularidades de
muitas coisas que este glorioso príncipe [D. João II] mandou descobrir
por mim e por outros seus capitães em muitos lugares e rios da costa da
Guiné,
30
dos quais, em tempo do Infante Dom Henrique e d’el-rei Dom
Afonso, a costa do mar somente era sabida, sem se saber o que dentro
neles era. (ESO, p. 12)
Estas suas explorações às costas africanas e interior das terras guineenses são
também confirmadas na obra Décadas da Ásia, de João de Barros (1496-1570). Na Década I
(1552), João de Barros, ao relatar a volta de Bartolomeu Dias da descoberta da passagem do
Cabo da Boa Esperança em 1488, aponta que este encontrara Duarte Pacheco Pereira muito
doente na Ilha do Príncipe.
31
Não tendo condições de continuar a descoberta dos rios da costa
ordenada pelo rei, Duarte Pacheco Pereira fazia algum resgate de ouro e outras especiarias
quando acabou se perdendo, sendo salvo com parte da antiga tripulação pela frota de Bartolomeu
Dias, o qual, após uma escala em São Jorge da Mina, levou-o de volta ao reino (BASTO, 1892).
Esse tipo de exploração feita por Duarte Pacheco Pereira, que não se resumia
apenas ao litoral, salientava uma novidade trazida pela política de D. João II. Este não se
contentava em ser informado apenas sobre as costas, queria também desbravar e conhecer o
30
Costa da Guiné designava, no tempo das navegações portuguesas, toda a extensa área do litoral noroeste africano,
onde hoje situam-se países como Senegal, Costa do Marfim, Libéria e Benin.
31
Ilha do arquipélago de São Tomé e Príncipe localizada no Golfo da Guiné, próxima do litoral de Gabão.
28
interior. Seus interesses não podem ser resumidos apenas na busca do lendário Preste João
32
e do
ouro, mas entendidos como a primeira tentativa européia de penetração e conhecimento do
interior do continente africano em vel de Estado, o qual contou com o trabalho do navegador
(COELHO, 1996).
Outro ponto interessante é o discutido por Alfredo Pinheiro Marques (s.d.), que
questiona sobre quando teria iniciado a navegação astronômica, demarcando-a no último quartel
da segunda metade do século XV. Em 1485, foi ordenado por D. João II a realização de um
levantamento hidrográfico (que, por sinal, fora o primeiro na história das navegações
portuguesas) no Golfo da Guiné por Duarte Pacheco Pereira e pelo físico (médico) judeu Mestre
José Vizinho.
33
Seus resultados foram visíveis logo na cartografia posterior com a melhoria das
indicações das latitudes nos mapas. Nas cartas quatrocentistas de Pedro Reinel e Jorge de Aguiar,
as correções de latitudes ao longo do Golfo da Guiné e no sul são claras. Correções muito
32
Sua existência pode ser constatada em diversas lendas medievais, que chegaram a dar localização para seu reino
na África, na Índia e até mesmo na Pérsia. A partir do século V, acreditava-se que ele era descendente do rei Davi e
encarregado de vigiar fortes portais de ferro na região do Cáucaso, onde viviam trancafiados vinte e dois povos
impuros que teriam sido presos por Alexandre Magno. Posteriormente, passou-se a acreditar que, por detrás dos
mesmos portais, estariam também as dez tribos desaparecidas de Israel, o que fazia a humanidade depender
diretamente de Preste João para não ser destruída antes do tempo. Preste João também era vinculado a outras figuras
bíblicas, o que reforçava sua condição messiânica, como com o rei-sacerdote Melquisedec (que era encarado como
uma prefiguração de Cristo) e com os Reis Magos. Após certo tempo, ele passou a representar uma grande
possibilidade de auxílio na derrota definitiva dos infiéis no Oriente e na conseqüente libertação da cidade sagrada de
Jerusalém. Isso, pois, Preste João teria derrotado recentemente os reis dos Medos e dos Persas e avançado com o seu
exército a fim de levar auxílio a Jerusalém que era ameaçada pelos muçulmanos, tendo, contudo, esbarrado no rio
Tigre por falta de embarcações para a travessia, sendo, por fim, forçado a regressar ao seu país. É nesse contexto que
se pode melhor entender sua procura como uma das motivações das navegações dos portugueses, que teriam um
grande trunfo em sua política externa, sendo ordenadas diversas expedições pelo Infante D. Henrique, por D. João II
e por D. Manuel I, que se concentravam no litoral africano e na exploração de seu interior. Porém, sabe-se hoje que
o conceito medieval de “Preste João” fundia e confundia diversas tradições e informações relativas a três núcleos de
cristãos distintos e de várias entidades e realidades políticas: o reino cristão-monofisita da Abissínia ou Aksum, as
comunidades cristãs-nestorianas da Ásia Central e os grupos nestorianos espalhados pela Índia.
33
Além de médico na corte do Príncipe Perfeito, seus trabalhos e estudos foram de grande importância no campo da
náutica. Vários exemplos podem ser dados, dos quais alguns aqui serão apresentados. Foi Mestre José Vizinho que
traduziu, do hebraico para o latim e o castelhano, o Almanach Perpetuum, de autoria de Abraão Zacuto, um dos mais
famosos textos com tabelas preparadas por astrólogos para uso na navegação astronômica em fins do século XV. O
fato de essa obra ter sido impressa no ano de 1496, ou seja, pouco tempo após a introdução da técnica de impressão
em Portugal, ilustra bem a importância posta na divulgação das informações nela contidas. Esta importância é ainda
realçada pelo fato de os textos traduzidos por Vizinho serem os únicos textos não hebraicos saídos da oficina do
impressor, também judeu, Abraão Samuel Dortas. A importância de Mestre José Vizinho também aparece na
possibilidade e melhoria da navegação no hemisfério sul. Nos primeiros tempos da navegação astronômica, os
navegadores usavam o quadrante e observavam a estrela Polar. No entanto, conforme se navegava rumo ao sul,
aquela estrela ia ficando cada vez mais baixa, desaparecendo quando se cruzava o Equador. Uma alternativa seria
utilizar o Sol, visível todos os dias, pelo menos nas águas praticadas pelos portugueses. Mas a utilização do Sol
como referência não substituiu tão facilmente a estrela Polar, já que os navegadores não conseguiam observar
diretamente o Sol por muito tempo por meio do quadrante. Quem solucionou este problema foi Vizinho, adaptando
o astrolábio (um instrumento usado há muito tempo pelos astrólogos) aos navegadores, permitindo que estes
medissem a altura do Sol sem ser necessário olhar diretamente para ele.
29
melhores, por sinal, do que as presentes em outras cartas contemporâneas estrangeiras, como a
de Martellus. Também no Planisfério de Cantino de 1502 se notam mudanças, ao não se ver
desenhado o meridiano graduado, mas sim o Equador e os Trópicos e a grande correção das
latitudes africanas. Para esse autor, esses resultados deveram-se ao levantamento hidrográfico
realizado por Duarte Pacheco Pereira a mando de D. João II (CANAS, 2008).
O navegador era reflexo dos progressos ocorridos durante os séculos XIV e XV,
que só foram possíveis graças a uma profunda transformação intelectual interpretativa. Tais
progressos trouxeram fortes debates, inquietações e dramas entre esses homens, pois eram
ligados a uma moral tradicional e espectadores de mudanças de concepções sobre o mundo e
testemunhas de extraordinárias novidades.
Nesse contexto, destacavam-se as pessoas relacionadas às atividades urbanas. Seu
modo de vida e suas atividades supõem um conhecimento adquirido em escolas e na prática do
trabalho. Nos séculos XIV e XV surgiu entre esses homens, tanto pelo prazer quanto pela grande
necessidade, o hábito dos estudos separado das concepções da Igreja. Duarte Pacheco Pereira
torna-se assim um bom exemplo. Ele é fruto do meio urbano. Além da prática constante em suas
ações, o navegador tinha a necessidade de comprovar o que via, negando ou confirmando
concepções antigas.
A atitude diante da realidade e o método começavam a mudar. A filologia estava
livre de preconceitos, contestando as autoridades, ensinando os homens a ler com seus próprios
olhos. Mas a ler não com suficiência prepotente, mas com humilde reverência, absorvendo o
sentido sincero e puro das leituras, sem deformações. Agora o homem pronunciava sua própria
palavra, ultrapassando a natureza, ordenando novos cursos e estabelecendo novas ordens por
meio do seu engenho e liberdade. A natureza deixava de ser uma divindade sacrossanta que
podia apenas ser venerada, estando agora disposta a entregar-se a quem queria compreendê-la
(GARIN, 1989).
É importante perceber que o navegador está justamente no início desse processo de
valorização da atitude humana. Suas experiências lhe permitiam enquadrar-se a todo esse
processo de conhecimento empírico e direto da natureza que ganhava força. Em situação oposta,
quando estas mesmas experiências lhe faltavam, o imaginário antigo e medieval o abraçava por
completo. Tal como poderemos comprovar, foram ações de homens como Duarte Pacheco
Pereira que se estabeleceram as bases intelectuais do homem moderno e da sociedade
30
contemporânea. As viagens evidenciavam a limitação teórica dos antigos, reforçando a
necessidade de novas perspectivas e representando a primeira aplicação consciente das ciências
astronômica e geográfica. Nesse contexto, deu-se a vitória do conhecimento empírico sobre o
conhecimento da autoridade, em que exploração geográfica, saberes de navegação e cartografia
representaram o campo humano em que as descobertas científicas e a técnica estavam ligadas
antes mesmo do culo XVII, tido pela historiografia geral como período de advento da ciência
moderna logo ao final de todo os progressos científicos formulados ao longo do Renascimento.
No ano de 1490, Duarte Pacheco Pereira se encontrava em Lisboa integrando a
Guarda do Monarca, pelo que recebia 1550 reais mensalmente, entre os meses de janeiro e junho.
No período final do reinado de D. João II, a sua competência em matéria de geografia e de
cosmografia, bem como a sua experiência de navegador, fez com que figurasse entre os membros
do grupo técnico que acompanhou os embaixadores da delegação portuguesa encarregada de
discutir e estabelecer com os castelhanos os termos do famoso tratado de Tordesilhas. Este
extrapolou os âmbitos geográficos e coloniais, que eliminou durante alguns anos os problemas
entre Portugal e Castela, além de ter ocorrido sem a interferência do papa, apesar de suas
tentativas, tornando-se assim, um fato inédito na Cristandade, sendo a primeira vez que dois
países assinavam um acordo sem o conselho e consentimento da Cúria Romana
(ALBUQUERQUE, 1987).
A grande importância desse tratado nos leva a uma maior compreensão acerca do
enorme cuidado que D. João II teve para escolher os seus enviados. Todas eram pessoas de alta
confiança, de grande autoridade e sabedoria, tal como Rui de Sousa e seu filho João de Sousa,
Aires de Almada e o escrivão Estevão Vaz.
34
Essa embaixada era acompanhada, como era o
costume na época para missões mais solenes, por uma comitiva formada por fidalgos, com
pessoas como D. Garcia de Albuquerque e Pêro Moniz. Para completar a competência da
delegação, foram como testemunhas, também assinando o tratado em 7 de junho de 1494, João
Soares de Sequeira, Rui Leme e Duarte Pacheco Pereira, todos cavaleiros da casa real de
Portugal.
34
Rui de Sousa fora fidalgo do Conselho Real, guarda-mor de D. João II, alcaide-mor do Castelo de Pinhel e senhor
de Beringel e Sagres. Seu filho, João de Sousa, era almotacel-mor (oficial municipal responsável pela ficalização,
taxação e distribuição dos alimentos) de D. João II. Aires de Almada fora desembargador real e Estavão Vaz,
além de escrivão, era secretário de D. João II.
31
Porém, o navegador teve um papel muito importante nas negociações. Não só era de
confiança e componente da guarda pessoal de D. João II, mas era um dos maiores cosmógrafos e
navegadores de seu tempo. Os cosmógrafos que então trabalhavam para os Reis Católicos
podiam até ser muito conhecedores da literatura geográfica e cosmográfica dos antigos, mas, por
outro lado, Duarte Pacheco Pereira era um desenvolvedor de novos conhecimentos, cujo saber se
fundava em longas e trabalhosas experiências pessoais, diferente dos primeiros (CORTESÃO,
1990).
A demarcação de caráter científico foi baseada na criação de um meridiano, em que
a determinação da latitude por meio de rumos e alturas dados por observação de bússola e
das longitudes dados por astrolábio e pela observação da Estrela do Norte ou do Sol ao meio-
dia eram essenciais. Daí, D. João II ter convocado Duarte Pacheco Pereira, visto que ninguém
da delegação espanhola era tão sabido dessas coisas quanto ele.
Em relação às suas atividades durante o reinado de D. Manuel, principalmente nos
primeiros anos, ficam entre a espetacularidade e a controvérsia, o que vem dando combustível a
inflamados debates historiográficos sobre uma possível viagem Atlântico-Ocidental, passando
pelo Brasil em 1498, a possível influência dessa viagem no desenho do Mapa de Cantino de
1502 e de sua discutida participação na frota de Pedro Álvares Cabral.
A propósito de sua viagem secreta de 1498, da qual Joaquim Barradas de Carvalho
(1991) não tem dúvidas sobre sua ocorrência, mas que na verdade se tem indicações muito
enigmáticas no Esmeraldo de Situ Orbis, tinha como objetivo o reconhecimento das regiões
situadas para além da linha de Tordesilhas. Tal expedição partiu do arquipélago de Cabo Verde e
teria conduzido à descoberta do Brasil em alguma região entre o Maranhão e o Pará. Mas a
viagem não teria terminado por aí. A suposta descoberta ocorrera entre os meses de novembro e
dezembro de 1498, quando o navegador, ainda acompanhando a costa norte, teria chegado
também à foz do rio Amazonas e à ilha de Marajó.
Seu nome não se encontra relacionado na lista dos capitães que acompanharam a
frota de Pedro Álvares Cabral ao Brasil e à Índia em 1500. Uma única menção a ele em relação a
Cabral, algo também enigmático e que não encontra respaldo no Esmeraldo de Situ Orbis, é a
ordem de Cabral, na Índia, para que Duarte Pacheco Pereira aprisionasse a nau do rei de
Cochim.
35
Esse episódio consta em Damião de Góis (1502-1574), na sua Crônica de D. Manuel,
35
Futura colônia portuguesa que se localizava no litoral ocidental indiano.
32
citado por Raphael Basto (1892). Sendo assim, para este estudioso, o navegador esteve na frota
de Pedro Álvares Cabral, opinião totalmente contrária à de Joaquim Barradas de Carvalho
(1991).
Com o caminho para as Índias conhecido, o rei D. Manuel preparou uma nova e
poderosa armada para implantar o seu poderio e assegurar os interesses portugueses naquela
grande região, sendo um dos experimentados navegadores escolhidos, novamente, Duarte
Pacheco Pereira. Este fora capitão de um dos navios (nau Espírito Santo) da esquadra de
Francisco e Affonso de Albuquerque, que partiu do rio Tejo no dia 6 de abril de 1503.
Graças a esse episódio que surgiu sua memorável façanha militar da defesa de
Cochim, lembrada desde as estrofes de Os Lusíadas, no qual Luís de Camões (1524-1580) trata-
o como “Grão Pacheco” e chama-o de “Aquiles Lusitano”,
36
até os mais importantes cronistas e
historiadores portugueses. Provas desse feito são também a carta de 1509 do escrivão Álvaro
Vaz endereçada ao rei D. Manuel, dando-lhe conta dos sucessos nas Índias, e o próprio Duarte
Pacheco Pereira, também em uma carta a D. Manuel, na qual se queixa de sua difícil situação,
por dispor de tão pouca gente e deter poucos recursos (BASTO, 1892).
O episódio deu-se da seguinte maneira. O rei de Cochim, aliado dos portugueses,
era ameaçado por um rival comum a estes, o samorim de Calicute. Quando Afonso de
Albuquerque regressou em janeiro de 1504 a Portugal, deixou em Cochim Duarte Pacheco
36
No Canto X de Os Lusíadas, em diversas passagens e estrofes, existem referências às atitudes heróicas de Duarte
Pacheco Pereira.
“E canta como se embarcaria/ Em Belem o remedio deste dano,/ Sem saber o que em si ao mar traria,/ O gram
Pacheco, Achilles lusitano:/ O peso sentirão, quando entraria,/ O curvo lenho, e o fervido oceano,/ Quando mais
n’agoa os troncos, que gemerem,/ Contra sua natureza se metterem” (Estrofe XII).
Na obra aqui usada de Os Lusíadas, que se trata de uma edição portuguesa de 1930 (ver nas referências
bibliográficas maiores informações), existem notas feitas por José Agostinho, que explica com riqueza de detalhes e
interpretações esta estrofe XII do Canto X: “E Tétis cantava que em Belém (praia do Restelo, Lisboa) havia de
embarcar o grande Duarte Pacheco Pereira, chamado o Aquiles lusitano, e que havia de ser o remédio dêste
(daquele) dano (o de o Samorim assolar os territórios do rei de Cochim) e isto sem Pacheco saber o valor que em si
mesmo traria ao mar (que traria por mar, sem supor que assinalados serviços vinha prestar). Quando ele entrasse na
nau, o curvo lenho (a mesma nau) e o férvido (encapelado) oceano haviam de sentir-lhe pêso (como se o pêso do
corpo dum herói sse proporcional ao seu heroismo), quando (na ocasião em que) os troncos da nau (os mastros)
gemessem, metendo-se na água (mergulhando nela), contra a sua natureza (que os fazia flutuar em vez de
mergulharem tão profundamente), os mastros gemeriam ou rangeriam, com toda a nau, sob o pêso do herói)”.
Outras considerações bastante interessantes também podem ser levantadas acerca dessa estrofe em relação ao
navegador, já que podemos notar a influência da mitologia grega nas linhas de Camões. Segundo este, tal como
Aquiles, Duarte Pacheco Pereira é o herói central do espetacular episódio narrado. Além disso, por ser Aquiles filho
da divindade marítima tis, nessa comparação com Pacheco, este é encarado como um autêntico e invencível
homem do mar, onde também sempre busca a glória.
33
Pereira como capitão-mor dos mares da Índia, com reduzido número de soldados e pequena força
naval responsável por sua guarda. No regimento deixado por Albuquerque, foi lhe recomendado
que se limitasse apenas à defensiva, para que o samorim de Calicute não ultrapassasse a região
de Cochim, evitando-se a luta. Mas quando as forças do samorim atacaram, compostas por
milhares de soldados e mais de cem embarcações, a vitória ficou com os portugueses graças à
genialidade estratégica do navegador. Este aproveitara da característica insular do território de
Cochim, onde dispondo muito bem suas forças, acabou obrigando a retirada dos inimigos,
episódio este que consolidou o predomínio português no Oriente. Fato interessante é que o
próprio rei de Cochim, muito agradecido, lhe ofereceu diversos presentes, como um brasão com
armas e o título de dom.
Depois de exercer os cargos de capitão-general da Armada de Calicute e de vice-rei
e governador do Malabar na Índia, Duarte Pacheco Pereira retornou a Lisboa no verão de 1505,
na frota de Lopo Soares, cuja nau-capitânia lhe fora dada em comando, sendo recebido com
grande triunfo e ganhando grandes provas de consideração real pelos seus feitos. O rei D.
Manuel concedera a ele a raríssima honra de ficar ao seu lado na procissão comemorativa que
percorreu as ruas de Lisboa, da Catedral até o Mosteiro de São Domingos, onde ocorreu missa
solene e pregação em honra de seus feitos. Recebera também, naquele momento, o título de dom,
coroas de reis no escudo de suas armas e pensões para si e seus descendentes (CARVALHO,
1991).
Este costume de acompanhar o rei era comum nas festas e cerimônias públicas
vinculadas ao poder nas monarquias européias. Nestas, a maior proximidade ao rei garantia
maior glória, honra e reconhecimento à importância da pessoa agraciada. Tal acontecimento
acabava também legitimando a escrita do navegador, que se tornou uma importante
personalidade daquele tempo em Portugal.
Em Lisboa e por todo o reino, as suas proezas nas Índias foram exaltadas.
Considerações foram enviadas ao papa e a diversos reis da cristandade. Foi como uma espécie de
herói que, nesse ano (1505), com cerca de cinqüenta anos de idade, acatou o pedido de D.
Manuel para escrever o Esmeraldo de Situ Orbis. Na visão deste rei, a produção de Duarte
Pacheco Pereira (que lhe dedicou a obra) seria de grande importância para os interesses
portugueses nas viagens marítimas, que ele contava com um grande acúmulo de experiências,
34
conhecimentos nas mais variadas áreas da navegação e grande capacidade de escrita e explicação
quando começou a se dedicar à redação de seu livro.
Contando com uma considerável estabilidade de vida, o navegador iniciou a
redação em agosto de 1505, interrompendo-a nos primeiros meses de 1508. Possíveis motivos
dessa interrupção, apesar de que nada seja até o presente momento comprovado, poderiam ser as
queixas existentes nos Capítulos 8 e 9 do Livro II acerca dos trabalhos mal remunerados, das
enfermidades adquiridas ou aos murmuradores que só criticavam e nada faziam. Vê-se no
Esmeraldo de Situ Orbis:
Ainda que dous agravos tenhamos recebido na descrição desta Etiópia,
dos quais o primeiro é o tempo que gastámos na prática destas
províncias e terras, que tantas enfermidades e trabalhos mal pagos nos
tem custado, nem por isso leixaremos de dizer (o segundo agravo que
cabe no compor desta obra) acerca do que nestas terras vimos, que sem
muita fadiga se não pode leixar de fazer; e portanto convém que sigamos
a ordem desta costa e das cousas que dentro nos rios vão, testemunhando
o que vimos. E o nosso testemunho é verdadeiro. (ESO, p. 151)
Pois tomámos tão pesada carga em escrevermos quanto benefício os
Príncipes passados tem feito aos reinos de Portugal no descobrimento
desta Etiópia, que dantes a nós era de todo incógnita, esta mesma razão
obriga darmos fim à obra começada, ainda que os murmuradores,
mordedores e maldizentes não cessem seguir seus danados costumes, os
quais são prasmadores de bem feito e nenhuma cousa boa sabem fazer.
Mas nós seguiremos a nossa obra e eles, de sua inveja, ficarão
quebrantados. (ESO, p. 154-155)
Mas o navegador não se limitou apenas ao trabalho pedido por D. Manuel I, ao qual
se refere no Prólogo do Livro I. Grande conhecedor das costas africanas, afirmado por ele
próprio em diversas ocasiões ao longo do livro, resolve fazer um roteiro completo, começando as
descrições desde o Estreito de Gibraltar e das descobertas realizadas desde os tempos do Infante
D. Henrique.
Percebemos em sua escrita que a visão das coisas e do mundo evoluía, sendo a
curiosidade cada vez mais despertada e estando sempre à espera de mais um aperfeiçoamento.
Homens como ele apreciavam as representações exatas, buscavam uma idéia mais correta do
35
tempo, do espaço e dos diferentes povos. O Esmeraldo de Situ Orbis torna-se, assim, uma visão
mais exata do mundo e de suas características geográficas, populacionais e mentais, na
perspectiva do homem ibérico. O livro é pautado no método empírico, bem diferente dos relatos
de viagens e mapas da Idade Média, mas muito influenciado pelas suas concepções imaginárias e
distante ainda dos que viriam nas décadas posteriores.
Com todas essas influências e novas manifestações imaginárias ocorrendo, os
homens buscavam meios mais eficazes para a obtenção de riquezas, apesar de viverem em um
mundo cristão cujos princípios eram outros. Duarte Pacheco Pereira vivenciava em sua
consciência, ainda atrelada às diversas proibições tradicionais, angústias e preocupações como
conseqüência das novidades espantosas que encontrava, o que nos faz entender melhor suas
nítidas posições ainda tão ligadas ao imaginário social medieval e também determinadas por
todas as revelações trazidas pelas viagens.
Outro feito militar importante, buscando o encerramento desta primeira parte, foi
o comando de uma frota para busca e combate do corsário francês Mondragon em 1508, logo
após a interrupção de sua redação do Esmeraldo de Situ Orbis. Os ataques e corso a navios
portugueses que vinham das Índias, recorrentes entre o arquipélago dos Açores e a costa
portuguesa, era, há muito tempo, motivo de reclamação de D. Manuel I à corte francesa. Em 18
de janeiro de 1509, perto do Cabo Finisterra,
37
as duas frotas se defrontaram, ficando a vitória
com os portugueses. Um navio inimigo foi afundado e os outros três capturados e levados a
Portugal, fazendo dos sobreviventes prisioneiros, entre os quais se encontrava o próprio capitão
do corsário francês. Em 1511, Duarte Pacheco Pereira também viria a comandar outra armada de
guerra, só que agora para o socorro de Tanger, que estava sendo atacada pelos exércitos do rei de
Fez.
38
De 1505 até 1520, com exceção da busca ao corsário Mondragon e do socorro a
Tanger, não se tem notícia de sua volta ao mar, concluindo-se que havia permanecido no reino.
39
Foi nesse período que se casou com D. Antônia de Albuquerque, filha do secretário de D.
Manuel, Jorge Garcez, e neta de Duarte Galvão, secretário de D. João II. A data desse casamento
37
Umas das pontas mais ocidentais da Península Ibérica, na Galiza.
38
Hoje é uma das mais importantes cidades do Marrocos, localizada na região centro-norte de seu território.
Fundada em 808, na época de Duarte Pacheco Pereira, Fez fora a capital de um dos reinos muçulmanos mais
poderosos do norte africano, o Reino de Fez.
39
A respeito, podem ser citadas como provas: o seu casamento (os dotes por ele recebidos a partir de 1512), um
mandato de 1516 no qual recebeu a importância da sua moradia como cavaleiro fidalgo da Casa Real (que informa
também que se encontrava doente na corte) e uma nota no livro de moradias que recebeu no ano de 1519.
36
é situada logo após o retorno de Duarte Pacheco Pereira de Tanger, com probabilidade de ter
sido a partir de 1512, quando ele começou a receber as várias prestações do dote régio de
120.000 reais da noiva, que lhe foram pagos de maneira irregular até 1515.
Em 1519, recebeu o cargo de capitão de São Jorge da Mina, executando suas
atividades lucrativas até 1522, ou seja, durante três anos, validade habitual das nomeações para
cargos públicos naquela época em Portugal. Foi substituído por D. Affonso de Albuquerque (o
filho), ao qual entregou a capitania, tal como lhe foi ordenado pela carta de nomeação do
sucessor, datada de 4 de julho de 1522 (BASTO, 1892).
Com o fim de sua estadia em São Jorge da Mina, Duarte Pacheco Pereira recebeu
uma severa ação disciplinar ocasionada por queixas sobre delitos, cometidos por ele, em seu
mandato, contra a Metrópole. Voltou preso para Portugal por ordem de D. João III (1502-1557),
acusado de contrabando de ouro, apesar de que ainda se desconheçam os reais motivos dessa
surpreendente ação real. Algumas suposições o levantadas por Carvalho (1991). Para este
autor, a sua punição pode ter ocorrido em conseqüência de irregularidades por ele cometidas, por
ter sido vítima de velhas inimizades pessoais, às quais faz alusão no Esmeraldo de Situ Orbis, ou
ainda por estas duas razões ao mesmo tempo. O fato de o navegador ter sido um fiel integrante
do grupo político ligado a D. Manuel, também pode o ter feito cair em desgraça no novo
contexto político de D. João III.
O fato é que ele esteve preso por anos, o que vem gerando, desde Damião de Góis,
Camões e até historiadores contemporâneos, debates sobre a ingratidão dos reis portugueses para
com aqueles que lhes deram vitórias e conquistas, além de discussões sobre uma possível miséria
a que o filho, a mulher e o próprio Duarte Pacheco Pereira, no final de sua vida, teriam passado.
Mas sabe-se que ele regressara de São Jorge da Mina com uma razoável riqueza em
jóias, que entregou à Casa da Mina. Estas lhe foram devolvidas em parte, em 1525, após a sua
libertação e isenção de culpa pela Coroa, recebendo a parte faltante de 300 reais posteriormente.
Também recebera 39.000 reais em 1524, além de que, a partir deste mesmo ano, passou a contar
com uma pensão real de 50.000 reais, vigente até 1533.
40
Quando morreu em 1533, em idade avançada, não devia viver em miséria. Muito
provavelmente, nem a sua esposa nem seus filhos também chegaram a passar necessidades. Uma
40
Tal informação consta na carta de mercê ao seu filho, segundo Damião Peres na introdução da edição de 1988 do
Esmeraldo de Situ Orbis utilizada neste trabalho.
37
prova disso é que imediatamente após a morte de Duarte Pacheco Pereira, seu filho, João
Fernandes Pacheco, passou a receber uma pensão, também concedida pelo rei, de 20.000 reais
anuais até 1576, quantia inclusive maior que a paga a Camões. Mais tarde, esse filho tornou-se
comendador de São Salvador do Banho da Ordem de Cristo e fez parte da casa de D. João III.
Quando foi servir em Safim,
41
por vontade do rei, sua e passou a receber essa pensão real.
Como essas pensões, às vezes, eram pagas com atrasos consideráveis, a mãe e os filhos puderam
conhecer embaraços financeiros que os forçaram a contrair empréstimos. São tais embaraços as
possíveis causas dos relatos de Damião de Góis e Camões sobre dificuldades que tiveram
passado (CARVALHO, 1991).
buscando uma conclusão, a lenda de Duarte Pacheco Pereira continuou a ser
narrada após a sua morte. Como citado anteriormente, os primeiros a elaborá-la foram os
cronistas e historiadores do século XVI, como Fernão Lopes de Castanheda (?-1559), João de
Barros, Gaspar Correia (1495-1561), Damião de Góis e Jerônimo Osório (1506-1580). Seus
escritos tornaram-se panegíricos ao contar as proezas do navegador nas Índias. Como heranças
dessas crônicas, ainda no século XVI, vêem-se em Os Lusíadas, como assinalado, e em Pêro
de Andrade Caminha, que compôs em sua honra partes de sua Poesias. no século XVII,
Jacinto Cordeiro usa-o como tema de sua comédia em castelhano, Próspera e adversa fortuna de
Duarte Pacheco Pereira, publicada em 1630, e Vicente Cerqueira Doce dedica-lhe um poema
em dez cantos, do qual não ficou nenhum vestígio. Por fim, no século XVIII, António Diniz da
Cruz e Silva consagra-lhe menção em sua Odes Pindáricas (CARVALHO, 1991).
Enfim, Duarte Pacheco Pereira é um exemplo de indivíduo nobre incorporado à
máquina militar e administrativa do Estado. É ao mesmo tempo cavaleiro e mercador, um técnico
de navegação e um excelente guerreiro quando necessário, além de grande escritor.
1.2 - Esmeraldo de Situ Orbis: estrutura, temáticas e fontes
O Esmeraldo de Situ Orbis foi escrito na maturidade de Duarte Pacheco Pereira.
Representa o resultado de grande estudo teórico pela leitura das mais conhecidas obras de
41
Cidade marroquina que fora dominada pelos portugueses entre 1508 e 1541.
38
Geografia e Cosmografia de seu tempo, tanto de autores clássicos quanto de autores mais
modernos. É também resultado de vasta experiência e críticas pessoais, o que lhe autorizava
avaliar os conhecimentos dos antigos.
Esta obra traz também grande originalidade, tanto no conteúdo quanto na forma, em
relação a outros trabalhos da literatura de viagem de seu período. Isso, pois, além de tentar fazer
as pessoas verem e saberem o que não viram por si mesmas, o navegador em muitos momentos,
combina o relato histórico com narrativas romanceadas, fugindo do simples discurso didático,
criando um estilo dinâmico e repleto de exotismo. Por toda a obra, uma prosa corrente informa
sobre referências econômicas e históricas, além de trazer descrições de povoações e costumes de
diferentes populações, de diversos mitos e lendas, além de relatos sobre características
geográficas, climáticas, de fauna e flora, tão diferentes a um olhar europeu acostumado com
outras paisagens.
Um louvor é, por toda a obra, feito à experiência, que é “madre das cousas, nos
desengana e de toda a dúvida nos tira” (ESO, p. 20). Como prática, “a experiência nos ensinou a
verdade de tudo o que adiante dissermos” (ESO, p. 205), ou que a prática nos tem mostrado a
verdade” (ESO, p. 186).
Interessante apontar também que, tal como em outras obras da literatura de viagem,
o Esmeraldo de Situ Orbis traz, antes da disposição dos livros internos e de seus respectivos
capítulos, um grande e detalhado sumário. Este é chamado por Duarte Pacheco Pereira de
“Tábua das matérias” e informa sobre os locais e assuntos abordados, tendo como objetivo
facilitar a consulta dos leitores (ESPIG, 2002).
no Prólogo do Livro I, o navegador afirma que fora a pedido do próprio D.
Manuel que elaborou este seu “livro de cosmografia e marinharia” (ESO, p. 14), momento que
também aproveita para explicar a estruturação de sua obra em cinco livros:
E porque Vossa Alteza me disse que se queria nisto fiar de mim, porque
tanto preparei fazer um livro de cosmografia e marinharia [...] o qual
livro será partido em cinco livros; e no primeiro, se dará do que
descobriu o virtuoso Infante Dom Henrique, e no segundo, do que
mandou descobrir o excelente rei Dom Afonso, e no terceiro, do que isso
mesmo fez descobrir o sereníssimo rei Dom João [...] o quarto e o quinto,
em que pendem vossos gloriosos feitos [se refere aos feitos de D.
Manuel], que são mais em quantidade e maiores em qualidade que os de
39
todos outros príncipes, o primeiro destes livros começará do dito Ilhéu da
Cruz
42
em diante, e fará fim no cabo de Guardafune
43
que está na entrada
do sino Arábico, e o segundo irá da entrada do sino Arábico até o sino
Pérsico,
44
e dali em diante por toda a Índia; e assim são os ditos cinco
livros; e neles se tratará segundo aqui irá prometido. (ESO, p. 14-15)
Como em outras obras do período, no Esmeraldo de Situ Orbis aparece um modelo de
escrita e de legitimação de discurso das várias e diferentes obras da literatura de viagem advindo
do mundo clássico, as quais exerceram grande influência até o mundo moderno. Isso, também, é
percebível logo no prólogo, no qual o navegador aponta o importante objetivo de seu livro, que é
o de perpetuar na memória
45
de seu povo as excelentes ações de seu glorioso rei, além do grande
proveito que ela teria para as navegações e o comércio de Portugal:
[o Esmeraldo não seria apenas] necessário para proveito desta
navegação e comércio [de Portugal], mas ainda para ficar uma eterna
memória e lembranças a nossos sucessores e vindouros, por onde
possam saber vossas excelentes [aí Duarte Pacheco está se referindo a D.
Manuel] façanhas dignas de gloriosa imortalidade. (ESO, p. 15)
País dedicado aos descobrimentos, às explorações e às conquistas, Portugal tivera
grande quantidade de nautas. Nesse contexto, o autor assumiu a tarefa de escrever um roteiro das
novidades encontradas, para que seu registro se constituísse num manual de estudos aos
navegadores e exploradores de seu país:
Muitas mortes de homens tem custado o descobrimento [...] [onde ele se
propõe] escrever toda esta terra [costas da África] com seus portos,
42
Ilha localizada na costa sul do continente africano na área do cabo da Boa Esperança.
43
O cabo de Guardafui é o mais oriental do continente africano, localizando-se no atual litoral da Somália, bem
próximo da Península Arábica.
44
Refere-se às regiões da costa sul dos atuais países do Irã e Paquistão.
45
É grande a semelhança em mostrar os objetivos da obra e o valor da memória feita por Duarte Pacheco Pereira,
por exemplo, com a que Heródoto (484-420 a.C.) faz em seu livro. Na História, vemos:
Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os
vestígios das acções praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as
grandes e maravilhosas ações dos Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem
ignoradas: desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra
uns aos outros (HERÓDOTO, Livro I, 1950, p. 5).
40
angras, rotas e graus, por não sairmos da ordem desta matéria e por se
saber a costa e ribeira do mar em qualquer tempo que for necessários a
nossos sucessores, quando lhes cumprir. (ESO, p. 173)
E, verdadeiramente, ele consegue dispor todos os assuntos apontados ao longo da
obra. Porém, em relação ao primeiro livro, muito mais é mostrado. É nessa parte que o autor
apresenta muito de suas idéias a respeito da experiência, além de emitir opiniões próprias sobre
vários assuntos ainda enigmáticos, como o da nascente do rio Nilo e a veracidade de algumas
determinações bíblicas, além de suas descobertas de melhor navegabilidade em regiões já
conhecidas na época do Infante D. Henrique.
Outro aspecto a ser ressaltado é o relativo ao quinto livro. Este não chegou a ser
escrito, embora o navegador estivesse imbuído da missão de repassar tudo aquilo que havia
conhecido e presenciado, conforme se no final do último capítulo do quarto livro, em que
promete a redação futura do quinto livro. A seguinte passagem é esclarecedora de seus
propósitos:
Novo trabalho se nos oferece, havermos de escrever o que novamente
mandou descobrir o Sereníssimo Príncipe el-rei D. Manuel, nosso senhor,
do rio do Infante em diante, toda a Etiópia sob-Egito e a Felice Arábia
com a Pérsia, e a multidão das coisas dos opulentíssimos reinos da Índia,
com as vitórias neles havidas. E assim, seguiremos nosso propósito nesta
tão trabalhosa jornada, da qual a experiência nos ensinou a verdade de
tudo o que adiante dissermos.
46
(ESO, p. 205)
Mas sua vontade de executar um trabalho nobre, de ter uma missão, é idéia
constante em toda a construção da obra, que pretende abordar diversas grandezas do mundo:
Escrever o sito do orbe, com a grandeza de toda a terra e do mar, as ilhas,
as cidades, as fortalezas, animais, com todas as outras coisas que nele
são, tanto é longa como difícil matéria e de elegância não capaz, e a
46
Assim, podemos perceber que, apesar de seu objetivo inicial, demonstrado ainda no prólogo da obra sobre fazer a
descrição da navegação e das costas da África e da Ásia, Duarte Pacheco Pereira não consegue cumprir todo o
prometido, que o quinto livro, que, como vimos, trataria das regiões indianas, não chegou a ser escrito. Isso será
bem perceptível nas citações do Esmeraldo de Situ Orbis feitas ao longo desta dissertação, já que a grande maioria
acaba por tratar de temas relativos apenas à África.
41
ordem dela assaz entrincada, a qual, pela quantidade de tamanho corpo,
impossível é ser particularmente sabida, mas, pela admiração de tão
excelente coisa, muito digna de ser escrita e praticada. (ESO, p. 18)
Mais ao final da obra, após uma longa redação, não falta a Duarte Pacheco Pereira o
agradecimento a Deus, além da certeza do cumprimento de tão importante feito para a navegação
das costas africanas:
Tanto favor temos recebido do Senhor, de que todo o Bem procede, que
nos deu tempo e saber para podermos acabar esta obra por nós
começada! E não com pouco trabalho até aqui escrevemos este tão
trabalhoso caminho, que mais grave, do que parece, foi de descobrir. Os
anos e dias da vida dos nossos Príncipes que isto mandaram fazer e seus
tesouros, não despenderam em vão, pois alcançaram o fim desejado.
E por que em todo tempo se possa particularmente saber a navegação
desta Etiópia a sua costa, é razão que não deixemos nosso propósito, para
cumprirmos com nossa promessa. (ESO, p. 181)
O livro é preenchido com numerosas citações de distâncias e posicionamentos
geográficos, detalhes de rotas e cuidados necessários para a navegação em áreas perigosas. O
interessante é que estes ensinamentos eram mais detalhados e insistentes em relação às áreas que
o navegador melhor conhecia, ou seja, a costa africana até a linha do Equador e as ilhas afro-
atlânticas.
Inovações referentes à astronomia náutica, contidas na obra, eram inéditas e
importantes. Alguns dos maiores exemplos foram a simplificação dos cálculos da medição da
latitude por meio da altura do Sol e a grande aproximação da medida do grau de extensão dos
círculos máximos, na qual se diminuiu a três as seis regras executadas até então para cada
operação, obtendo o valor de 18 léguas marítimas (106,56 km) na medição do grau terrestre, a
mais exata de seu tempo. A importância desse resultado é de apresentar apenas quatro por cento
de erro em relação à medida exata hoje sabida, ao mesmo tempo em que os erros aceitáveis entre
pilotos e cosmógrafos daquele período variavam entre dez e sete graus (a medida mais utilizada
pelos navegadores no século XVI somava apenas 17,5 léguas 103,6 km enquanto Cristóvão
Colombo avaliava o grau em 84 km!). Curiosidade é que a bem mais correta medida de Duarte
42
Pacheco Pereira chegou a ser usada ao longo da primeira metade do culo XVI, mas sendo
abandonada sem explicação, só foi definitivamente adotada em Portugal em fins do século XVII.
As aproximações surpreendentes à realidade nas medições apresentadas fazem
valorizar a perícia náutica portuguesa da época dos descobrimentos. Um erro de seis a doze graus
referentes a todo o Atlântico é algo surpreendentemente insignificante, levando-se em
consideração os processos empíricos ainda rudimentares do século XVI para se calcular as
longitudes, que só terão medições exatas nos tempos modernos.
Em nenhum outro documento mais antigo do que o Esmeraldo de Situ Orbis
encontram-se tantas latitudes de Portugal e da África com medidas tão próximas às atuais, o que
faz supor que sejam estas também as coordenadas mais antigas.
Mas algo muito enigmático e que até os dias atuais vem causando acaloradas
discussões entre os estudiosos refere-se ao próprio nome da obra: Esmeraldo de Situ Orbis.
Sobre esse tema, o trabalho que mais nos causou confiabilidade em suas explicações
determinativas de interpretação foi o de Joaquim Barradas de Carvalho (1968). Em seu artigo,
ele expõe que o título divide-se em duas partes: Esmeraldo e de Situ Orbis”. Sobre esta
última, todos os autores vêm concordando que se trata de uma referência ao título da obra do
geógrafo Pompônio Mela (século I),
47
que lhe é idêntico, referindo-se a um estudo e uma
descrição dos lugares da Terra. a respeito da palavra Esmeraldouma incalculável discussão
historiográfica, em busca de sua decifração, tem ocorrido ao longo dos anos, sem se conseguir
chegar a uma unanimidade de opinião.
Joaquim Barradas de Carvalho (1968), depois de relatar diversas outras tentativas
de explicação, tenta colocar um fim na questão. Sua argumentação inicia-se com a proposta feita
por Epiphanio da Silva Dias, cuja hipótese de explicação da origem do título da obra de Duarte
Pacheco Pereira poderia sair do título de outro livro de Geografia e História natural muito
conhecido em seu tempo: Pedra preciosa das maravilhas e Pérola das coisas memoráveis, do
escritor árabe Ibn al Wardi.
48
Para Epiphanio da Silva Dias, não seria impossível que Duarte
Pacheco Pereira tenha intitulado seu trabalho com o nome de uma pedra preciosa, a esmeralda,
47
Autor da famosa obra geográfica De Situ Orbis escrita durante a década de 40 do século I. Nela, refere-se à
caracterização de territórios e populações da Europa, da Ásia e também da África, sendo uma das primeiras obras
com análises puramente geográficas respaldadas em dados cnicos. Foi um dos escritores mais lidos no período
renascentista.
48
Umar ibn Muzaffar ibn al-Wardi escreveu aquele tratado de Geografia e de História natural na primeira metade do
século XIV.
43
empregando a palavra não com a terminação portuguesa ou castelhana, mas com o vocábulo
italiano “smeraldo”.
Porém, Barradas de Carvalho (1968) não aceita como suficiente a hipótese de
Epiphanio da Silva Dias, ponderando, todavia, que talvez possa conter alguma parcela de
verdade. Nesse sentido, pode-se tentar compreender que, tal como Ibn al Wardi, Duarte Pacheco
Pereira teria intitulado sua obra com o nome de uma preciosidade, no caso, a esmeralda, tendo
preferido a forma em italiano (“smeraldo”) devido a sua terminação em “o”, letra que, ao final de
palavras em língua portuguesa, indica em geral nomes masculinos, como o próprio nome de
Duarte Pacheco Pereira. Tal explicação, para Joaquim Barradas de Carvalho, pode ser aceita por
causa de sua grande simplicidade. Mas algo lhe pede uma maior validação que explique a
preferência do navegador pela forma italiana. Essa explicação torna-se verossímel ao se analisar
as fontes mais utilizadas por ele: o De Situ Orbis, de Pompônio Mela, e a História natural, de
Plínio (23-79).
49
Sendo assim, o Esmeraldo de Situ Orbis é, pois o De Situ Orbis dos tempos
modernos, destinado a substituir o De Situ Orbis da Antiguidade, no caso o De Situ Orbis, de
Pompônio Mela.
Outro problema relacionado à obra é o de sua datação. O navegador não chegou a
indicar a data de elaboração de seu livro. Porém, com observações relativas aos vários fatos
históricos por ele relatados ao longo dos capítulos, tem sido possível aos estudiosos indicar
aproximadamente datas extremas para sua redação. Destes, o que realizou uma datação mais
convincente foi Jaime Cortesão.
50
Em suas leituras da obra, ele observa que a concepção
geográfica do globo terrestre em Duarte Pacheco Pereira o que é bem claro, pois o navegador
retrata em seu livro lugares e acontecimentos ocorridos apenas no continente africano e em
algumas regiões ocidentais da Ásia mostra-se anterior à chegada de navegadores portugueses
ao Oceano Pacífico. Além disso, a reclamação de Duarte Pacheco Pereira em relação a trabalhos
mal remunerados “Ainda que dois agravos tenhamos recebido na descrição desta Etiópia, dos
quais o primeiro é o tempo que gastamos na prática destas províncias e terras, que tantas
49
Plínio, o Velho (23-79), foi um naturalista romano. Escreveu a Historia Naturalis, uma coletânea acerca das
diversas ciências antigas distribuídas em 37 volumes. Duarte Pacheco Pereira utilizou-a por meio de uma tradução
italiana de Cristophoro Landino publicada em Veneza entre 1476 e 1481, em que é muito freqüente, nos capítulos
referentes às esmeraldas (Livro XXXVII, Capítulos VI e VII), o emprego da forma italiana “smeraldo”.
50
Em seu capítulo intitulado “Influência dos Descobrimentos dos Portugueses na História da Civilização”, no
volume IV, p. 228, da História de Portugal organizada por Damião Peres. Tal referência é feita pelo próprio Damião
Peres em sua introdução e em suas anotações históricas da edição do Esmeraldo de Situ Orbis utilizada neste
trabalho.
44
enfermidades e trabalhos mal pagos nos tem custado” (ESO, p. 151) não pode ter sido feita
após o seu rentável casamento em 1512 ou pouco antes. Outras evidências vão ainda demarcar
melhor a data da obra. O término da redação ocorreu no reinado de D. Manuel, como mostra a
dedicatória no prólogo do livro, que assim diz:
Princípio do Esmeraldo De Situ Orbis, feito e composto por Duarte
Pacheco, cavaleiro da Casa D’el Rei Dom João o segundo de Portugal,
que Deus tem, deregido a o muito Alto, Poderoso Príncipe e Sereníssimo
Senhor Rei Dom Manuel nosso Senhor, o primeiro deste nome que
reinou em Portugal. (ESO, p. 9)
Ainda nesse sentido, Jaime Cortesão atentou-se ao que é dito no terceiro capítulo do
livro quatro. Neste, Duarte Pacheco Pereira fala sobre estarem fundadas quatro fortalezas
portuguesas nas terras do Índico e a serem mandadas ao Oriente “armadas de vinte e cinco e
trinta naus” (ESO, p. 199-200), declarações que só poderiam ser feitas, historicamente, até 1508.
Isso, pois, até a data da morte de D. Manuel (1521), eram dezessete o número de fortalezas
portuguesas no Oriente e as maiores armadas enviadas por ele às Índias foram as de Vasco da
Gama (1502), de vinte e quatro naus, e a de D. Francisco de Almeida (1505), de vinte e oito
naus, sendo que nos períodos seguintes, o número de naus por frota decresceu, raramente
chegando a atingir quinze embarcações. Enfim, os quinze primeiros capítulos foram feitos nos
últimos meses de 1505, sendo o restante possivelmente redigido entre 1507 e 1508.
O estilo e a linguagem do Esmeraldo de Situ Orbis era o que de mais correto se
fazia no início do século XVI. Com máxima clareza, as grandes questões cosmográficas e as
notícias sobre as regiões recém-navegadas são apresentadas, levando conhecimento ou retirando
dúvidas existentes entre os exploradores daquele período e deixando diversas e preciosas
informações aos estudiosos até a atualidade.
Sobre sua posição de escrita, o último trecho citado também nos é revelador de
importantes características. Nele, percebemos que Duarte Pacheco Pereira foi convocado à
produção dessa obra, tendo sua escrita sido legitimada pela sua situação de cavaleiro da Casa
Real desde os tempos do rei D. João II. Temos aqui o caso de um sujeito social assumindo seu
lugar em uma perspectiva de discurso enquadrado pelo interesse nacional da navegação,
submetendo-se às normas e aos padrões específicos de seu grupo, como o sentimento de
45
pertencimento ao cristianismo, à história de seu país e ao louvor a seus reis, entre outros fatores.
Com sua escrita, o navegador conseguia tornar o mundo cognoscível e compreensível ao
pensamento dos portugueses de sua época.
Toda sua linguagem cortês é marca também de sua sociedade e época de escrita. Tal
linguagem, como não poderia deixar de ser, é característica de todo o livro. Tratamos de uma
sociedade mergulhada em uma forte religiosidade católica e no poder centralizador de seus reis.
Não existia ainda uma maneira livre de escrita, necessitando-se seguir uma série de cânones,
além de que não se pode esquecer o fato de que Duarte Pacheco Pereira escrevia a pedido do
próprio rei, caracterizando esse movimento entre a esfera pública e a privada.
Também podemos perceber neste pequeno trecho que D. Manuel, como também era
o caso de outros reis do período, preocupava-se em notificar a todos o seu grande poder, além de
exibir sua majestade, já que as aparências não eram suficientes. Várias linhas são dedicadas à sua
glória e também à de seus antecessores ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis, sempre tendo seus
feitos vangloriados e seus nomes engrandecidos pelo navegador (GUENÉE, 1981).
Sendo assim, com uma variedade tão grande de temas, fica difícil a um observador
mais apressado classificar o livro. Uma proposta mais geral, que é a mesma escolhida neste
trabalho, vem de Luís Filipe Barreto (1989), que o enquadra na literatura de viagem. Outra
proposta também ampla vem da tipologia adotada por Joaquim Barradas de Carvalho (1968), que
a identifica como um roteiro, ou seja, um tipo de escrita que mescla características de outros
gêneros, tais como as crônicas, as descrições de viagens, os diários de bordo, além de todo o seu
arcabouço técnico para a atividade de navegação.
Além dessas, existe a do próprio Duarte Pacheco Pereira. Como visto em citação
anterior, este o classifica como livro de cosmografia e marinharia, que tem vários objetivos,
como o de servir de manual e registro aos navegadores de seu país para proveito da navegação e
do comércio, evitando a continuidade de tantas mortes no processo de expansão marítima, além
de deixar para a memória dos portugueses os grandiosos feitos de D. Manuel.
Mas, acima de tudo, o Esmeraldo de Situ Orbis traz muitos aspectos interessantes
que o transformam em um livro bem complexo, uma vez que contém grande multiplicidade de
características de diversos tipos de obras pertencentes à literatura de viagem, dos séculos XV e
46
XVI. E é sobre estas características e um pouco sobre as possíveis fontes utilizadas pelo
navegador, já que chega a ser impossível identificar todas elas, que trataremos agora.
51
Ao referir-se a vários acontecimentos históricos, mesmo de maneira rápida, Duarte
Pacheco Pereira escreve com uma lógica muito semelhante às crônicas medievais, com especial
referência à Crônica dos feitos de Guiné (1453), de Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), a única
crônica conhecida relativa aos descobrimentos marítimos do século XV. A grandiloqüência e o
olhar de desprezo do conquistador são traços comuns que podem ser constatados no Esmeraldo
de Situ Orbis e na Crônica dos feitos de Guiné (CARVALHO, 1967). Além de tudo isso,
percebe-se também panegíricos dedicados ao Infante D. Henrique, a D. João II e ao rei D.
Manuel I, em honra e agradecimento aos seus feitos em relação ao desenvolvimento do processo
de expansão marítima portuguesa, tal como nos revela o trecho abaixo:
Porque as cousas dinas de memória nom devem ficar em esquecimento
sem muita culpa dos escritores, portanto convém que façamos lembrança
daquele senhor, que por seus altos merecimentos por glória sempre deve
viver. Porque entre os nascidos das mulheres, singularmente enviado por
divina virtude, em seu tempo se não levantou tão excelente barão como
o Sereníssimo Príncipe el-rei D. João o Segundo de Portugal, que Deus
tem; e como quer que o fim da bem-aventurança está nas virtudes de que
ele sempre teve inteira parte, estas tem dada gloriosa imortalidade a sua
excelente fama. (ESO, p. 165)
Tudo isso nos permite concluir que a obra do navegador contém características de
um livro de história e de crônica.
De início, a legitimação da obra exige uma autenticação que ele faz pela
reivindicação da história dos portugueses, que a valida. Duarte Pacheco Pereira fala de uma
posição cultural e histórica específica, em que busca recuperar uma “verdade” do passado por
meio da unicidade da história e da cultura partilhadas entre os portugueses. Para analisar a
associação da história portuguesa em sua escrita, selecionamos o próximo trecho ilustrativo:
51
Neste estudo, foi de grande ajuda a leitura de Joaquim Barradas de Carvalho em uma obra interessantíssima, que
prova a grande erudição do autor: As fontes de Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”, de 1967 (ver
referência completa no final deste trabalho). Nela existem riquíssimas comparações entre o texto do Esmeraldo de
Situ Orbis e as diferentes fontes utilizadas pelo navegador, caracterizando-se como um ótimo trabalho investigativo
para leitores interessados. Mas como este assunto não constitui um dos temas a ser aprofundado neste trabalho, que
busca apenas, nesta parte, entender a temática da obra, tais fontes serão apenas citadas.
47
Da província da Lusitânia, onde é situada a muito antiga e excelente
cidade de Lisboa, metropolitana de nossa pátria, donde nós Duarte
Pacheco, autor, somos natural, por mandado e licença do Sereníssimo
Príncipe el-rei D. Manuel, nosso senhor, o primeiro deste nome que nos
ditos reinos reinou, em suas frotas e naus costumamos navegar as
Etiópias Baixas de Guiné e assi as Altas, que os opulentíssimos Reinos
da Índia são chamados; nas quais cousas precedemos tôdalas gerações
(ESO, p. 83-84) (o grifo é nosso).
Além de se rotular como natural de Lisboa, uma cidade tida como excelente por ele,
o navegador define Portugal por meio da sua história de navegações, pioneira do processo de
expansão marítima. Os conterrâneos de Duarte Pacheco Pereira tomavam sua consciência de
pertencimento a Portugal por essa vitoriosa história. Esta mantinha o orgulho de seu povo e lhe
recordava sua trajetória gloriosa, sendo o Esmeraldo de Situ Orbis um dos resultados de tão
maravilhoso processo.
Uma primeira fonte utilizada pelo autor que confere à obra característica de livro de
história é a transcrição de um trecho da carta de Jerônimo Munzer
52
a D. João II. Esta carta foi
escrita em Nuremberg, no dia 14 de julho de 1493, e traduzida do latim para o português por
Mestre Álvaro da Torre, sendo impressa no final da coletânea de textos conhecida como
Regimento de Munich. Em um dos trechos dessa epístola, lê-se o seguinte:
os de Ethiopia quase bestas em semelhança humana alienados do culto
divino dispam por sua industria sua bestialidade e venham a guardar a
religiam catholica. (LEITE, 1959, apud CARVALHO, 1967, p. 25)
Em um trecho do Prólogo do Livro I do Esmeraldo de Situ Orbis, nota-se a grande
semelhança:
52
Médico, geógrafo e cartógrafo alemão (1437-1508) da cidade de Nuremberg, muito conhecido por suas viagens
pela Europa e pela redação da “Crônica Schedal”. A pedido do rei D. João II de Portugal, ajudou no estudo e na
busca de uma rota via Oceano Atlântico para o Oceano Índico. Esteve na corte portuguesa em 1494.
48
e ele foi o princípio e causa que os Etiópios, quási bestas em semelhança
humana, alienados do culto divino, dês então muita parte deles à santa fé
católica e religião cristã são trazidos. (ESO, p. 11)
Na coletânea citada acima se encontram, além dessa carta de Jerônimo Munzer, o
Regimento do astrolábio e do quadrante e o Tratado da esfera, de Sacrobosco (1195-1236),
escritos em português. Tal coletânea teve sua impressão feita pelo alemão Hermão de Campos.
Porém, este teria iniciado seus serviços em Portugal após 1509, ou seja, depois da escrita do
Esmeraldo de Situ Orbis. É possível concluir assim que Duarte Pacheco Pereira teve
conhecimento da carta de Jerônimo Munzer antes dessa impressão.
Antes de se saber da existência do Regimento de Munique, já era de conhecimento a
existência de uma coletânea muito parecida na Biblioteca de Évora, chamada vulgarmente de
Regimento de Évora. Esta possui um regimento de navegação análogo à coletânea de Munique,
porém escrito de maneira mais objetiva, a mesma tradução portuguesa do Tratado da esfera, de
Sacrobosco, e, no final, a mesma tradução da carta de Jerônimo Munzer ao rei D. João II. Ela foi
impressa por German Galhardo, posteriormente à de Munique, aproximadamente entre 1516 e
1517, sendo a maior prova disso o fato dos dados do seu regimento de navegação serem
nitidamente posteriores ao da coletânea de Munique.
Sendo assim, percebe-se que a fonte utilizada por Duarte Pacheco Pereira foi
mesmo a coletânea de Munique e não a de Évora, mas é possível que não seja a edição do único
exemplar até agora conhecido, mas uma edição anterior ou até mesmo a sua forma manuscrita
(CARVALHO, 1967).
Outra identificação de fonte de conteúdo histórico utilizada pelo navegador
relaciona-se a um texto de Valentim Fernandes (?-1519), impressor e tradutor de origem alemã
que viveu vários anos em Lisboa (de 1495 a 1518). Ele escreveu a Epístola sobre a tralladaçam
do livro de Marco Paulo, tornando-a impressa em 1502, ou seja, alguns anos antes da redação do
Esmeraldo de Situ Orbis ser iniciada. O fato é que em dois trechos dessa obra que tratam sobre
os portugueses ultrapassarem os feitos de Alexandre, o Grande, e dos romanos, sendo o primeiro
no Prólogo do Livro I e o segundo no Capítulo 3 do Livro IV, Duarte Pacheco Pereira faz
considerações sobre o mesmo tema que o seguinte trecho da epístola de Valentim Fernandes:
49
Onde fica Alexandre Magno com seu capitam Onesecrito. Onde os
virtuosos Romãos com o seu mandato que fizerom que nenhuma
passasse as colunas de Ercules pera que nom fossem privados do título
da sua monarchia. Passou vossa senhoria [D. Manuel I] nom digo
soomente toda a nea equinocçial mas ajnda aos ultimos fins de
ocçidente e começo de oriente ate as terras do gram cham onde ja
começa de soar vosso poderoso nome. (PEREIRA, 1922, apud
CARVALHO, 1967, p. 31)
No Prólogo do Livro I do Esmeraldo de Situ Orbis, constata-se:
E, entre tôdolos príncipes oucidentais da Europa, Deus somente quis
escolher Vossa Alteza [no caso, D. Manuel] que este bem soubesse, e
recebesse e possuísse os tributos dos reis e príncipes bárbaros do
ouriente, os quais Roma, no tempo de sua prosperidade, quando
mandava uma grande parte do orbe, nunca assi os pôde haver nem fazer
tributários, mas, contrariando sempre sua sobjeição, lhe mataram Marco
Craso, capitão muito esforçado, com vinte mil homens e dez mil cativos
de seu exército; e agora, por uma virtude divinal e graça especial, Vossa
Alteza manda tudo, sendo o caminho de vossos cavaleiros posto tanta
avante pelas terras e índicos mares e asiáticas ribeiras, como onde
reluziram os feitos do grande Alexandre; dos quais os ímpetos de suas
passadas com as portuguesas armas e frotas, que, por vosso mandato e
virtude, tã grandes feitos fazem, acrescenta vossa gloriosa fama [...].
(ESO, p. 13)
E no Capítulo 3 do Livro IV, percebe-se:
E quem bem considerar tamanhas cousas como estas, muita parte dos
famosos feitos de Alixandre Maugno e dos Romanos ficam muito abaixo
em respeito desta santa e grande conquista. (ESO, p. 201)
A propósito desse assunto, podemos concluir que, como muitos textos da vasta
literatura relacionada aos descobrimentos trazem esse mesmo tipo de reflexão, tais idéias deviam
ser muito populares nesse período da redação da obra em estudo.
Sobre o poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) uma única citação foi feita em todo
o trabalho de Duarte Pacheco Pereira, sendo esta de uma escrita muito livre da tradução das
50
Geórgicas. Para este caso, muito provavelmente, o autor do Esmeraldo de Situ Orbis não teve
contato direto com a obra do poeta romano (CARVALHO, 1967).
No final do Prólogo do Livro I do Esmeraldo de Situ Orbis, o trecho referente a
Virgílio é o seguinte:
E, feitas estas cousas, com outra que Vossa Alteza [D. Manuel] manda
comprir, poderemos ver vós dizer o que disse Vergílio por César
Augusto: “Tu és governador do grande mar, e todos honram as tuas
grandezas, e a ti sirva a última Tile”.
53
(ESO, p. 17)
Duarte Pacheco Pereira, provavelmente, apropriou-se desse trecho das Geórgicas
por meio da leitura de um texto ainda desconhecido pelos historiadores ou simplesmente por
ouvi-lo ser dito, já que essa exortação era muito conhecida e repetida em sua época.
Uma carta do Infante D. Henrique a Gil Eanes (século XV) sobre sua missão de
ultrapassar o Cabo Bojador, da qual saiu vitorioso, é transcrita e acompanhada de vários
comentários e elogios ao empenho do infante e de vários navegadores ao longo do Capítulo 22
do Livro I. O mesmo assunto, também extraído dessa carta, aparece no Capítulo 9 da Crônica
dos feitos de Guiné, sendo ainda desconhecida a fonte da qual se inspiraram tanto Duarte
Pacheco Pereira quanto Gomes Eanes de Zurara. Mas as semelhanças entre essa obra e o
Esmeraldo de Situ Orbis sugerem mais discussões, o que nos leva a insistir na comparação das
duas.
Um tema a mais dessa aproximação diz respeito à erudição em Duarte Pacheco
Pereira, manifesta na citação a outros autores ao longo de sua obra. Mas como ainda veremos,
em sua maioria, tais autores nem chegaram a ser lidos diretamente pelo navegador, sem
considerar que, em muitas partes de seu livro, em que as influências de outras obras são nítidas, o
autor não chega a identificar suas fontes (CARVALHO, 1967).
Além de tudo isso, como outra característica, o Esmeraldo de Situ Orbis aproxima-
se do gênero da crônica. Seu autor sempre enuncia e justifica o conteúdo de sua escrita, tal como
pôde ser observado em uma citação anterior do Prólogo do Livro I.
53
No texto latino das Geórgicas citado por Carvalho, encontra-se: “An deus immensi venias maris: ac tua nautae /
Numina sola colant: tibi seruiat ultima tyle”.
51
Mas a complexidade da obra oferece ainda muitos desafios para análise. As já
citadas descrições sobre os círculos e as coordenadas terrestres, da maneira para o cálculo das
latitudes, do curso e da declinação do Sol, das estrelas e das marés em relação às fases da Lua
tornam o Esmeraldo de Situ Orbis um livro com características de roteiro e regimento de
navegação.
Como roteiro, ela sofre certamente influências de vários outros existentes em sua
época. Um exemplo desse aspecto pode ser observado no Capítulo 7 do Livro II:
E algumas aldeias, árvores e sinais nesta costa, de que alguns livros
de marinharia fazem menção; mas a conhecença de tais sinais e lugares é
difícil de conhecer, e por isto o não escrevo. (ESO, p. 147)
Dos livros dedicados à marinharia conhecidos possivelmente pelo navegador sabe-
se da existência apenas do Livro de Rotear, de autor desconhecido, e que se encontra no
Manuscrito de Valentim Fernandes.
Acerca dos regimentos de navegação, aos quais Duarte Pacheco Pereira
possivelmente teve acesso, são conhecidas apenas duas obras anteriores ao Esmeraldo de Situ
Orbis: o Regimento de Munique e o Regimento de Évora.
Sobre esse ponto, é interessante ressaltar que, além dos roteiros e regimentos de
navegação, o Esmeraldo de Situ Orbis se serviu, principalmente, da vasta experiência do autor
adquirida nas navegações. É essa experiência que torna o Esmeraldo de Situ Orbis uma obra
valiosa pela sua contribuição na área, acrescentando o peso da novidade e da originalidade.
Porém, isso não anula a vasta tradição anterior dos regimentos e roteiros.
Em outra perspectiva, existem diversas observações sobre a geografia geral das
costas africanas, com citações constantes de diversos autores: Homero (século VIII a.C.),
Estrabão (64 a.C.-24 d.C.),
54
Plínio, Pompônio Mela, Ptolomeu (85-165), Alfragano (século
IX),
55
Vicente de Beauvais (1190-1264),
56
Jacob Perez de Valência, Sacrobosco,
57
e até mesmo
54
Autor da Geographia, tratado monumental composto por 17 livros relativos à descrição dos diversos lugares e
povos do mundo conhecido em sua época. Além de geógrafo, foi também historiador e filósofo.
55
Abu'l-Abbas Ahmad ibn Muhammad ibn Kathir al-Farghani foi um astrônomo árabe do século IX.
56
Pertenceu à Ordem dos Pregadores e foi confessor oficial da família de Luis XI. Escreveu a monumental
Speculum Maius, obra de característica enciclopédica para qual se nutriu de diversos autores antigos, como
Aristóteles, Plínio, Hipócrates e Avicena.
52
de trechos da blia (aceitando-os ou afastando-os, por meio de seu conhecimento ou
desconhecimento dos territórios).
Exclui-se totalmente a possibilidade de o navegador ter lido diretamente Homero e
Alfragano, além de muito provavelmente não ter lido diretamente as obras do geógrafo e
cientista alexandrino Ptolomeu, de Estrabão, de Jacob Perez de Valência e de Vicente de
Beauvais, mesmo que para estes casos não seja tão nítido como são os de Homero e Alfragano.
Oito citações da Bíblia são feitas, do Antigo e do Novo Testamentos, sendo as três
últimas utilizadas sem que o autor indique a fonte de suas palavras. Mas, como vimos
anteriormente, para algumas regiões que Duarte Pacheco Pereira não podia afirmar muita coisa
por não tê-las conhecido diretamente, seu criticismo desaparecia e ocorria a aceitação dos textos
sagrados (CARVALHO, 1967). Podemos notar essa sua atitude na seguinte passagem, em que o
navegador discute a questão da proporção entre água e terra na constituição do planeta,
referindo-se ao Livro do Profeta Esdras, do Velho Testamento:
Ainda nos fica por dizer em quanta parte dela a terra é maior que a
áugua; como somente a áugua ocupa a sétima parte dela, segundo se
mostra no quarto livro do profeta Esdras, no capítulo sexto, que diz
assim e no terceiro dia mandastes as áuguas ajuntar na sétima parte da
terra, verdadeiramente as seis partes secastes; assi que a áugua é posta
na sétima parte da terra e as seis partes dela são descobertas pera a vida
da natureza humana e dos outro animais, e assi é rezão que o creiamos.
(ESO, p. 21-22)
Em treze circunstâncias são notáveis as influências do Tratado da esfera de
Sacrobosco na redação do Esmeraldo de Situ Orbis, apesar desse autor e sua obra serem citados
apenas uma única vez.
Quanto à História natural de Plínio, a segunda fonte mais importante do livro, são
vinte e sete trechos de influência clara, sendo que apenas dezessete vezes o nome do autor, ou de
sua obra, é mencionado.
57
Astrônomo inglês que estudou em Oxford e lecionou matemática na Universidade de Paris. Sua famosa obra, o
Tratado da esfera, foi publicada em 1230. Nela, trata da esfericidade e do lugar no espaço do planeta Terra,
tornando-se de leitura obrigatória nas diversas universidades européias ao longo dos quatro séculos seguintes. É
importante salientar também os recentes estudos do brasileiro, físico especialista em história da ciência, Ricardo
Martins, professor da Universidade de Campinas que tem se destacado nos estudos acerca da produção de João
Sacrobosco.
53
Ainda sobre os conhecimentos geográficos, o De Situ Orbis, de Pompônio Mela, é a
fonte mais utilizada e mais importante da obra de Duarte Pacheco Pereira, sem falar da
apropriação de seu título. Em trinta passagens do Esmeraldo de Situ Orbis percebe-se a
influência de sua leitura, sendo, em muitos casos, uma cópia muito próxima ou fiel de Pompônio
Mela feita pelo navegador, que, na maioria dos casos, não faz a devida citação do autor e da obra
consultada.
Tal como ocorrera com a leitura de Sacrobosco (um exemplar em português) e de
Plínio (um exemplar em italiano), Duarte Pacheco Pereira usou uma edição castelhana de
Pompônio Mela. Isso demonstra ser o navegador um fraco latinista, que preferiu edições em
línguas vulgares para as suas principais fontes (CARVALHO, 1967).
Sacrobosco, Plínio e Pompônio Mela são, assim, as principais fontes para o
Esmeraldo de Situ Orbis. Muito do que o navegador afirma sobre seus princípios de experiência
não saem exclusivamente de suas navegações, mas das obras desses autores. Porém, se estão
incorporadas em seu trabalho é porque o navegador as aceita, como logicamente é visto,
incluindo-as como parte de suas concepções e argumentações.
Uma última questão controversa, como conclusão desta parte, diz respeito aos
dezesseis espaços deixados em branco ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis, nos quais se
observa apenas as palavras aqui mapa”. O que eles poderiam indicar? O fato da existência
conhecida de apenas duas cópias do século XVII contribui para a dificuldade em se resolver esta
questão. Segundo vários estudiosos e de acordo com a nossa análise, a frase aqui mapaé de
responsabilidade do copista do século XVII e se relaciona a simples desenhos de regiões
costeiras que deveriam existir no original, o que fez muitos historiadores afirmarem
erroneamente que o Esmeraldo de Situ Orbis era também um Atlas. O fato de, em dois desses
casos, o texto em nada fazer alusão aos mapas, indica também que esses não eram importantes
para a obra.
Duarte Pacheco Pereira alardeia seus conhecimentos eruditos ao citar diversos
autores ao longo de sua obra. Mas, como vimos, muitos deles nem chegaram a ser lidos
diretamente, sem mencionar que em vários casos a influência de outras obras é nítida, porém,
sem citação explícita. O fato é que o navegador devia sofrer algum sentimento de inferioridade
por não se sentir como um humanista, no sentido tradicional de sua época, tentando mostrar o
54
que não era fingindo leituras que não havia feito, pelo menos de primeira mão, e apoiando-se em
clássicos escritos em língua vulgar.
Todavia, isso também determina o seu lugar na história da cultura, ou seja, de um
homem de ação e de desenvolvimento de novos conhecimentos, de um humanista, que um
humanista prático. Foram homens como Duarte Pacheco Pereira que contribuíram de maneira
mais eficiente para o processo de formação do pensamento e da futura ciência moderna.
O caso de Duarte Pacheco Pereira pode ser comparado com o de Leonardo da Vinci
(1452-1519), seu contemporâneo. Ele afirmou que a experiência é a mestra das coisas no
mesmo ano em que o navegador terminava a sua obra, que tantas vezes nos mostra ser a
experiência a madre das cousas, sendo também um fraco latinista e um estudioso de enorme
contato e observação da natureza (CARVALHO, 1967).
Agora, uma nova época determinada pela burguesia começava a se impor por meio
do comércio, das navegações e dos prenúncios da ciência moderna. Em meio a tudo isso, o
interessante é constatar que Duarte Pacheco Pereira é uma figura que caracteriza exatamente um
momento de transição. Ele foi ao mesmo tempo um nobre e servidor dos reis, explorador e
navegador, funções estas que o ligavam às atividades que impulsionariam a burguesia e
ajudariam a formar o mundo moderno.
55
2. MARAVILHOSO, NATUREZA, MITOS E ETNOGRAFIA NO ESMERALDO DE
SITU ORBIS
E é cousa maravilhosa como a grande natureza proveu
a tôdalas cousas necessárias.
Duarte Pacheco Pereira
Duarte Pacheco Pereira vivia em um momento de transição, de choque, de
continuísmos e de formação de novos imaginários sociais que diversas concepções medievais
ainda determinavam, várias outras trazidas pelos momentos de descobertas de diferentes
territórios e culturas e pelos interesses que permeavam a construção de sua obra. Com base nessa
lógica é que ocorrerão todas as discussões deste segundo capítulo, por meio de análise de várias
instâncias, nas quais o imaginário social e o maravilhoso influenciavam as interpretações e a
escrita do navegador.
2.1 - A presença do maravilhoso na natureza
Interessantes são as descrições e opiniões de Duarte Pacheco Pereira acerca da
natureza e da geografia das distantes regiões que explorava. Nestas, vemos o reflexo de diversas
situações em que o maravilhoso torna-se tema central em vários momentos do Esmeraldo de Situ
Orbis, já que o imaginário social determinava com grande força o que o navegador presenciava e
interpretava. Os distantes territórios, simultaneamente geográficos e imaginários, eram para os
portugueses tanto regiões a serem conquistadas e exploradas quanto locais altamente simbólicos,
cheios de medos, sonhos, desejos e lendas.
Tais temas maravilhosos e curiosos eram de suma importância para obras da
literatura de viagem que pretendessem ser fiéis, já que o público as esperava. Se o navegador não
as abordasse, ele destruiria o seu crédito, uma vez que existia um postulado na Europa (desde a
56
Grécia Antiga) que determinava que os territórios distantes tivessem maravilhas. Assim, estas se
apresentam como mais uma tradução da diferença entre o aqui e o distante em obras do gênero,
tal como ocorre no livro em estudo.
O que comprovava para os leitores a presença das maravilhas era o olho e o ouvido
do viajante. Quando Duarte Pacheco Pereira diz que viu com os próprios olhos ou então que
escutou de pessoas que viram, como poderemos comprovar em passagens citadas e analisadas de
sua obra mais adiante, ele demonstra ser verdadeiro para seu público e que o maravilhoso existe.
Tal comprovação era possível, pois o mundo do navegador ainda era muito influenciado pela
oralidade, apesar dos desenvolvimentos em vários campos do conhecimento e da tipografia
naquele período. O ver e o ouvir valiam como conhecimento, a palavra ainda valia, tendo em
vista que o discurso oral ainda não era tão desvalorizado pelo escrito (HARTOG, 1999).
Três abordagens surgem, basicamente, destes temas no Esmeraldo de Situ Orbis: a
própria idéia, ou idéias, que o navegador possuía sobre o conceito de natureza; as interessantes
descrições dos mais variados animais
58
das terras conhecidas por ele e pelos exploradores
portugueses, nas quais percebemos toda uma complexidade por aparecerem descrições tanto de
animais verídicos quanto de maravilhosos, o que guarda grandes relações, em alguns sentidos, ao
que era feito nos famosos bestiários medievais; e, por fim, a sua concepção sobre a estrutura do
planeta, que é muito bem exemplificada, como logo será demonstrado, pela análise de suas
partes cobertas por terras e por oceanos.
Importante salientar também que, mesmo estando na passagem para o mundo
moderno, Duarte Pacheco Pereira ainda usa o termo “maravilha”. É claro que não o utiliza por
dezenas de vezes e com uma carga máxima simbólica, como na Idade Média ou em relatos de
viagens anteriores, porém, em numerosos momentos, o sentido de maravilhoso para regiões
distantes surge com notável força, aliado a outros momentos de fortes interpretações baseadas
em suas experiências empíricas. Enfim, essa ocorrência nos dá mais uma evidência para entender
o navegador como um autor de transição, inserindo-se na passagem do mundo medieval para o
moderno.
58
Diferente do que ocorre com a fauna, o navegador não se dedica muito à descrição da flora das regiões exploradas.
Por isso, optamos por não abordar esse assunto neste trabalho.
57
2.1.1 - A visão da natureza para o navegador
São quatro os momentos, ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis, em que o autor
utiliza-se diretamente da palavra “natureza”.
59
Dois interessantes momentos seguem agora:
E é cousa maravilhosa como a grande natureza proveu a tôdalas cousas
necessárias, porque sendo este deserto [na terra de Guardafui] de areia a
qual corre muito com a força dos ventos, nele estão umas ilhas de
penedos com alguma terra a três e quatro guas umas das outras [...]
[locais estes onde] se acolhem aquela gente salvagem. (ESO, p. 90)
Interessante perceber que a menção à natureza, o que ocorre igualmente por toda a
obra, sempre a referem como uma maravilha de grande majestade a que tudo determina ou a
todos ajuda. Neste primeiro trecho, vemos a descrição de uma região, que mesmo sendo
desértica, sofre uma interessante ação maravilhosa da natureza que faz existir espaços com terra
fértil (oásis) que permitem a sobrevivência da população local.
Muitos Antigos disseram que, se alguma terra estivesse ouriente ou
oucidente com outra terra, que ambas teriam o grau do Sol igualmente, e
tudo seria de uma qualidade. E quanto a igualeza do Sol é verdade; mas
como quer que a majestade da grande natureza usa de grande variedade,
em sua ordem, no criar e gerar das cousas [...]. E se disserem que estes
daquém são negros [população africana] porque andam nus e os outros
são brancos [população do Brasil] porque andam vestidos, tanto
privilégio deu a natureza a uns como a outros, porque todos andam
segundo nasceram; assi que podemos dizer que o Sol não faz mais
59
Duas abordagens, que se complementam, serão feitas acerca das posições de Duarte Pacheco Pereira sobre a
natureza. Estamos apresentando a primeira neste momento, que se caracteriza pela grande influência do imaginário
na construção de suas concepções acerca da natureza. A segunda abordagem ocorrerá no próximo capítulo, que
evidenciará a influência das experiências diretas de exploração do navegador (e no valor que emprega a elas) em
suas concepções acerca da natureza. O que ocorre em sua escrita é uma forte relação entre heranças e inovações. As
heranças como, por exemplo, era o imaginário que o cercava, determinavam o seu mundo. Porém, quando ele tinha a
oportunidade de conhecimento direto pela experiência das navegações e explorações, sempre inovava apresentando
depoimentos mais próximos da realidade empírica, como não poderia deixar de ser. Temos aqui mais uma evidência
de que o Esmeraldo de Situ Orbis é uma excelente obra para compreendermos as permanências e mudanças na
passagem do mundo medieval para o moderno.
58
empressão a uns que a outros. E agora é pera saber se todos são da
geração de Adão
60
. (ESO, p. 161)
Neste segundo trecho, ocorre um diálogo de Duarte Pacheco Pereira com os autores
antigos. Aquele, por fim, concorda com respeito ao Sol mas afirma diferenças nas qualidades das
regiões ocidentais e orientias, que em sua majestade a natureza usa de grande variedade no
criar e gerar das coisas. Isso é exemplificado pela descrição das populações negras africanas e
indígenas brasileiras, que possuem uma cor da pele clara ao olhar do navegador. Apesar dele
citar uma possível explicação dada por outras pessoas (que a diferença na cor da pele proviria da
uns andarem nus e os outros vestidos), acaba mostrando que o Sol não causa diferentes
impressões às duas populações, pois ambas vivem constantemente sem roupa, afirmando
novamente a variedade em todas as coisas aplicada pela natureza. Interessante perceber o
comentário feito ao final dessa passagem. Na última frase o autor se pergunta se os negros
africanos e os indígenas brasileiros têm a mesma origem em Adão, dúvida que deveria lhe gerar
uma grande confusão, evidenciando como esta grande variedade da natureza, que ele tinha o
privilégio de comprovar diretamente, contradizia as antigas verdades religiosas.
2.1.2 - A influência e o distanciamento dos bestiários medievais
No livro em exame (como em outras obras anteriores e do mesmo período de
descrições de viagens, regiões e povos), Duarte Pacheco Pereira era determinado em sua escrita
por estruturas cognitivas e quadros lógico-matemáticos dados aprioristicamente, que ditavam o
que iria ver. Via muitas vezes o que estava preparado para ver, e não o que lhe deparava.
60
Os dois outros momentos em que o navegador utiliza-se da palavra “natureza” são: “[...] e porque são duas
Etiópias, bem é que se saiba como esta primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Oucidental, na qual é certo e
sabido que nunca nele em algum tempo morressem de pestilência; e não tão mente tem este privilégio que lhe a
majestade da grande natureza deu, mas ainda [...].” (ESO, p. 95); “E tornando ao rio de mbia: nele muito
grandes cavalos-marinhos, maiores que bois, de tôdalas colores que os cavalos terrestres costumam ter [...]. E estes
sempre andam no rio, principalmente nos lugares baixos onde lhe a áugua pela barriga, e também no alto quando
querem; e, assi, saem em terra a pacer erva e dormir ao sol; e assi da áugua como da terra os proveu a majestade da
grande natureza.” (ESO, p. 107-108)
59
Os relatórios e as suas impressões acerca das distantes regiões sofriam uma enorme
influência simbólica dos observadores europeus, cuja cultura e cujo imaginário social eram
carregados de mitos (PINTO, 1992).
Sem perder esse ponto de vista, é interessante destacar uma série de relações entre a
escrita do navegador e a cultura medieval dos bestiários, mostrando tanto os pontos de
distanciamento como os de aproximação.
Ele é um escritor do início do século XVI, apesar de tratar de suas viagens e leituras
ao longo da segunda metade do século XV. Os bestiários tiveram seu apogeu em séculos
anteriores, em contextos bem distantes do experimentalismo vivido pelo navegador. Em outra
perspectiva, não se pode esquecer, novamente, que o Esmeraldo de Situ Orbis é produto de uma
época de transição.
Em vários momentos, entre as descrições geográficas, comerciais e populacionais, o
autor registra diversos animais que habitavam as regiões africanas, sendo justamente esse seu
conjunto de descrições uma das marcas que o colocam como um escritor em transição da Idade
Média para a Moderna. Com efeito, a maior parte das descrições dos animais traz sérias
aproximações com a realidade africana, apesar das marcas de estranhamento nas linhas do
navegador. Porém, em outros momentos, suas observações passam para narrações maravilhosas
de seres extraordinários.
É justamente nessa posição dupla que repousa a riqueza do Esmeraldo de Situ Orbis
em relação aos bestiários medievais. De um lado, ainda confirma a existência de seres
maravilhosos, porém, por outro lado, a obra é uma prova inconteste da perda de força dos
bestiários na explicação da natureza pelo ganho de força da experiência no processo de
navegações portuguesas, que desmistificava concepções maravilhosas reinantes ao longo da
Idade Média e fornecia bases para o começo da zoologia dos tempos modernos.
Os bestiários medievais eram conjuntos de textos que utilizavam os mais variados
animais como imagens ou metáforas dos seres humanos ao longo desse período. Isso garantia aos
homens certo distanciamento em relação a si mesmos, o que permitia perceberem as intenções
moralizantes e críticas expressas neles. Revelavam-se como um reflexo das atitudes e dos
comportamentos humanos, servindo assim para orientação sobre o que não se devia fazer em
detrimento da moral e dos bons costumes. Posteriormente, os animais ganharam autonomia em
60
relação às fraquezas humanas que representavam, passando a ter caracterizações positivas da
vida e da natureza.
Não era cil para o homem medieval vencer as tentações de seu lado bestial, lado
este que lhe era revelado pelos bestiários. Estes lhe mostravam suas características animalescas,
que o amesquinhavam perante a divindade.
61
Segundo os santos patrísticos, o que distinguia os
animais dos homens era a sua violência sem objetivos, que os transformavam em seres
irracionais, diferentes dos homens dotados de razão. Não foi por acaso que o livro mais lido e
copiado depois da Bíblia, ao longo da Idade Média, foi o Physiologus (FONSECA, 2003).
Este nome adveio do pseudônimo do seu autor anônimo, o “Naturalista”, sendo
conhecido em séculos posteriores como Bestiário ou Livro de bichos. Seu original em grego data
provavelmente do segundo século de nossa era, provindo dos círculos cristãos de Alexandria,
importante centro cultural e de estudos nos primeiros séculos da era cristã. O Physiologus
original tinha 49 capítulos, com alguns dedicados a pedras preciosas e plantas, com nenhuma ou
poucas lições devotadas às descrições. Tais moralizações aparecidas posteriormente foram
acréscimos do autor ou dos copistas. Séculos depois, as novas versões do Physiologus tratavam
somente de animais, surgindo assim os bestiários. O original grego perdeu-se, porém a obra foi
traduzida para várias outras línguas (árabe, armênio, etíope, coptia). Mas foi a tradução ao latim
a proporcionadora da enorme difusão de sua rica tradição, haja vista que, por séculos, este foi o
único idioma escrito e usado por todos os letrados, os quais em sua esmagadora maioria por todo
o continente europeu, eram constituídos de clérigos (WOENSEL, 2001).
Nesses manuais de história natural, tanto animais reais quanto maravilhosos, tidos
como verdadeiros naquele período como o dragão, a serpente, o unicórnio, a sereia e a fênix
eram descritos por seus autores clérigos em busca de uma devota lição na catequização e
moralização dos leitores. Muitos exemplares manuscritos ainda existem, variando em relação ao
elenco e às qualidades dos animais. Esses códices (manuscritos encadernados) geralmente ricos
em ilustrações coloridas foram produzidos entre os séculos IX e XIV, nos principais centros
culturais da cristandade, em latim e, posteriormente, em vernáculo.
61
Pretensamente científicas, os bestiários reservavam, entretanto, o termo besta aos animais violentos e governados
pelo instinto, já que eram acostumados à liberdade da vida na natureza. se ligava o conceito medieval de
separação entre a natureza humana e a animal. Este conceito fundamentava-se na passagem bíblica (Gênesis 1: 28)
que afirmava a superioridade humana, já que Deus havia ordenado a Adão e Eva e aos seus descendentes que
tivessem o domínio sobre todos os seres que se movem sobre a terra.
61
A forte religiosidade medieval não permitia aos europeus olharem além do
horizonte se não fosse por meio das lentes de Deus. A própria natureza, obra divina, era
depositário dos exemplos vivos de ensinamentos e de moral. Os casos de criaturas fabulosas ou
anômalas serviam aos objetivos doutrinários por evidenciarem o grande poder divino, por sua
própria vontade indesvendável ao homem. A natureza era vista como o lugar, ao superar o
indireto conhecimento livresco, revelador do conhecimento de Deus e dos seus mistérios
(FONSECA, 2003).
Chegamos assim em um ponto delicado das reflexões sobre o Esmeraldo de Situ
Orbis. Diferente do que ocorria ao longo da Idade Média, cujos bestiários buscavam a
compreensão da natureza por meio do conhecimento de Deus e vice-versa, a maioria das
descrições reveladas acerca da natureza provinha da experiência do navegador, daquilo que havia
diretamente comprovado ou escutado de outras pessoas. Fica claro então este grande ponto de
distanciamento, muito natural para o período de escrita de Duarte Pacheco Pereira. Um bom
exemplo para percebermos como suas descrições são diferentes das produzidas pelos bestiários,
tanto pelo método baseado na observação quanto por não possuir nenhuma pretensão moralizante
ou religiosa, se dá com a caracterização do hipopótamo:
E tornando ao rio de Gâmbia: nele muito grandes cavalos-marinhos,
maiores que bois, de tôdalas colores que os cavalos terrestres costumam
ter; e a feição de seus corpos é como de bois, e as unhas dos pés e das
mãos, fendidas como bois, e o pescoço, rostro, comas e orelhas e ancas,
como cavalo; e tem dous corninhos ou dentes de dous palmos cada um,
de grossura de um braço de homem pelo colo. E estes sempre andam no
rio, principalmente nos lugares baixos onde lhe a áugua pela barriga,
e também no alto quando querem; e, assi, saem em terra a pacer erva e
dormir ao sol; e assi da áugua como da terra os proveu a majestade da
grande natureza. (ESO, p. 107-108)
Nos bestiários mais recentes, o hipopótamo figurava com destaque. Era
caracterizado como um animal híbrido e algumas vezes entendido como um peixe, por viver
sempre na água, com forma de cavalo, cascos fendidos de boi e dentes de javali. O interessante é
que muitas dessas idéias – e até mesmo os termos – são idênticos aos usados por Duarte Pacheco
Pereira, sem este, porém, chegar ao ponto de entendê-lo como um peixe, tal como os bestiários
mais recentes o fizeram, algo esperado em seu caso, que teve a oportunidade de conhecê-lo,
62
apesar de não o chamar pelo nome que hoje o identificamos. Seu costume de viver tanto na água
como também na terra é explicado pela ação da natureza, que em sua grandeza e majestade podia
criar tão diferente, mas verídica, espécime. Interessante apontar também a influência em seu
discurso das técnicas argumentativas da literatura de viagem que vinham desde a Antiguidade,
tanto na maneira de descrever o animal quanto na forma de legitimar a sua escrita, que o
navegador, como viajantes anteriores, viu diferentes animais.
62
A própria maneira de descrever os animais no Esmeraldo de Situ Orbis faz-se de
forma bem diferente do que ocorre nos bestiários. Nestes, tanto os animais reais quanto os
maravilhosos eram representados segundo um procedimento comum. Primeiro, vinha sua
descrição física e habitual, seguida depois pela descrição simbólica, de suas características e
atividades, de cunho moralista, relacionado à doutrina religiosa. Muitos traziam ilustrações, fator
este que contribuía para sua grande popularidade, ajudando a melhorar a definição dos animais
descritos de uma forma muito cifrada ou muito surpreendente para a população, por serem
desconhecidos, exóticos ou de existência totalmente fantasiosa. Cada animal transmitia uma
lição de moral, mesmo sendo necessário como acontecia na maioria dos casos uma alteração
da realidade. Como conseqüência disto, as verdades que as ciências naturais podiam mostrar de
modo lógico e real acabavam ficando marginalizadas.
Em contrapartida, como não há a preocupação com a transmissão de lições de moral
no Esmeraldo de Situ Orbis, neste não aparece a pretensão de alteração da realidade observada, o
que indiretamente acabou contribuindo para o processo de desenvolvimento das ciências
naturais.
O elenco de criaturas que formava os bestiários modificou-se muito pouco ao longo
do tempo. Uma explicação vem do fato de eles serem alheios a quaisquer possíveis descobertas
científicas na zoologia, algo compreensível pelos seus propósitos ideários. Não tratavam os
animais em uma perspectiva científica, mantendo seu alto valor na dogmática cristã.
62
É grande a semelhança da descrição do hipopótamo feita por Duarte Pacheco Pereira, por exemplo, com a que
Heródoto fez sobre os que encontrou no Egito. Na História vemos:
Os hipopótamos que ali encontramos com o nome de Papremito, são sagrados, não o
sendo, contudo, no resto do Egipto. É um possante animal de pés e focinho achatados,
dentes salientes e possuindo crina e cauda semelhantes às do cavalo, relinchando como
este. É tão grande quanto o maior dos bois, e seu couro é tão espesso que, depois de
seco, podem-se fazer dardos com ele. (HERÓDOTO, LIVRO II, 1950, LXXI)
63
Justamente o contrário observa-se na descrição sobre o crocodilo, no Esmeraldo de
Situ Orbis:
Também neste rio [rio de Gâmbia] muitos e grandes lagartos, que
alguns deles tem vinte e três e vinte e quatro pés da ponta do seu rabo
até o focinho; e estes andam na áugua, e saem em terra quando querem
criar, onde põem ovos debaixo da areia muito maiores que de patos; e ali
se criam e saem destes ovos, da grandura de um palmo, e logo se vão ao
rio, onde se criam acabadamente. Estes são animais nocivos e comem os
homens e bois e vacas [...].
Outras muitas cousas há no rio de Gâmbia, que leixo de dizer por não ser
amigo da proluxidade, ainda que ela não traz vício se tem bom modo de
satisfazer. (ESO, p. 107-108)
O crocodilo era também um animal muito citado nos bestiários. A convicção de que
eles comiam homens era também antiga. Os bestiários afirmavam que ao comer um ser humano
o crocodilo lacrimejava, o que originou a expressão “lágrimas de crocodilo”. Sua crueldade era
evidenciada junto com a sua hipocrisia: supostamente anfíbio, vivia na terra durante o dia e, à
noite, na água. Essa duplicidade de vida era associada ao do pecador, que adora Deus durante o
dia e cai na luxúria à noite. Acreditava-se também que, em seus intestinos, existia a crocodilea,
substância de forte poder medicinal, e que suas fezes tinham valor terapêutico: serviam como
produto de beleza ao serem aplicadas como ungüento no rosto.
No Esmeraldo de Situ Orbis, a situação torna-se bem diferente na verdade, bem
próxima de concepções importantes da zoologia. Duarte Pacheco Pereira caracteriza muito bem
as dimensões do crocodilo, o seu costume de viver tanto na água quanto na terra, o fato de fazer
seus ninhos na areia e, até mesmo, informa o tamanho dos filhotes e o seu ato instintivo de
buscarem a água logo após o nascimento. Ainda repete o fato de eles se alimentarem de seres
humanos, informação hoje não mais aceita (somente em caso de acidentes, que os seres
humanos não se encaixam na cadeia alimentar dos crocodilos), podendo ser isto um pequeno
reflexo do imaginário do navegador, ainda influenciado pelas visões maravilhosas dos bestiários.
Assim, nos é revelada outra característica bem interessante do Esmeraldo de Situ
Orbis: a de um livro que trata de História natural, de modo bem simplificado, ainda muito
influenciado por concepções imaginárias, mas já a alguns passos das obras mais completas e
complexas do conhecimento científico moderno. Não possui o rigor que mais tarde as obras
64
sobre zoologia irão apresentar, trazendo ainda pretensões parecidas às descrições de animais
feitas no mundo antigo, tal como nos livros de História natural de Aristóteles (Historia
animalium) e de Plínio (Historia naturalis), como também descrições próximas as dos bestiários
(de animais reais das diversas faunas ou animais maravilhosos e exóticos). Trata-se, portanto, de
um livro com características de História natural surgido em um vasto contexto de mudanças
socioeconômicas e culturais no fim da Idade Média para início da modernidade, que já vinha
dando aberturas para novas posições intelectuais desde alguns séculos anteriores.
Vários sinais marcam esse processo de transição vivido pelo próprio navegador.
Um exemplo simples é o fato de que, na grande maioria das vezes em que animais são descritos
ou simplesmente citados, eles são efetivamente verídicos, apesar de muitos parecerem estranhos
e serem descritos como tais por ele, sendo apenas por três vezes que relatos maravilhosos
ocupam linhas de seu livro.
A Idade Média, quando a natureza e todas as suas maravilhas grandiosas enchiam
as pessoas de dúvidas, medo e curiosidade, começava a ficar para traz diante dos olhos de
navegadores e exploradores como Duarte Pacheco Pereira.
Mas o que se precisa entender aqui é o que se passava em sua mente de explorador.
Muitos mistérios e lendas que envolviam o Atlântico ou a natureza durante os séculos anteriores
haviam sido derrubados diante de seus olhos. Para homens como ele, o que ainda permanecia
trazendo conteúdos maravilhosos era justamente o desconhecido ou o pouco conhecido. Nesse
caso, estamos referindo-nos ao continente africano, às suas populações, às suas culturas, ao seu
comércio, às plantas e aos animais. Tudo isso marca a escrita com um efeito de estranhamento,
tornando-a típica ao longo do livro. Ao descrever animais maravilhosos, o navegador fica
envolto no misterioso, no desconhecido e, por isso, no ameaçador e sobrenatural.
As transformações nos próprios bestiários começavam também a refletir as grandes
mudanças caracterizadoras do final da Idade Média. Com o surgimento da tipografia em fins do
século XV, surgiam diversos bestiários impressos destinados ao grande público. Mas estes não
eram simples transcrições dos manuscritos, pois incluíam animais do folclore e do meio
doméstico, já manifestavam um certo espírito de observação crítica, traziam conselhos práticos e
informações úteis para a população, mantendo, porém, o tom moralizador. Outra grande
diferença, que deve ser resaltada, é que os animais míticos não figuravam mais em suas páginas
(WOENSEL, 2001).
65
Mesmo antes, com o Renascimento do século XII (período das grandes catedrais,
dos burgos e das universidades) e com o surgimento do espírito humanista, os bestiários
moralizantes e devotos começavam a desaparecer. Coleções de animais exóticos em casas reais e
de nobres faziam com que os ilustradores tomassem cada vez um maior contato empírico com os
temas que retratavam nos bestiários, mostrando um crescente naturalismo em substituição à
original fantasia que caracterizava as versões mais antigas, diminuindo o seu conteúdo
imaginativo. Porém, sua tradição ainda foi mantida durante o Renascimento dos séculos XV e
XVI, só que agora tendo como principais fontes os autores clássicos.
Com o renascimento científico, quando os responsáveis pelo conhecimento
reconheciam a necessidade de métodos mais objetivos de análise e de observação, várias crenças
medievais sobre a natureza e os animais começaram a ser revistas. Nessa transição de um quadro
imaginário mais maravilhoso para um mais fundamentado no empírico, foi muito importante o
papel dos viajantes. Sobre este tema, um caso clássico foi o de Marco Polo. Ele revelara com
suas viagens que não existiam várias das fabulosidades antes atribuídas às regiões orientais onde
esteve. Mas tais repentinas desmistificações não eram o que a cultura popular, mesmo em fins da
Idade Média, queria admitir de maneira rápida. Daí o fato das viagens fictícias de Sir John
Mandeville, relatando raças humanas monstruosas nas regiões orientais, ter alcançado mais
repercussão e interesse no imaginário social e na atenção popular do que os mais verídicos
relatos de Marco Polo (FONSECA, 2003).
Enfim, ao mesmo tempo em que as viagens traziam as desmistificações, a
população ainda resistia em um imaginário social mais antigo. Porém, esse apego ao mundo
maravilhoso começa a mudar quando focamos a figura de Duarte Pacheco Pereira em suas duas
dimensões que se completam, bem típicas de seu momento de escrita: uma primeira com a
persistência de características do imaginário medieval (algo que naturalmente se modifica a
longo prazo) e outra transformadora, graças ao poder da desmistificação advinda da observação.
É por isso que, junto com as descrições de animais verídicos, ocorrem também a
descrição de animais exóticos, fictícios e fabulosos no Esmeraldo de Situ Orbis, os quais contam
com o aval do autor:
E nesta terra [se trata do reino de Tucurol, região do rio de Çanagá]
muito grandes cobras de 20 pés em longo, e mais, e muito grossas; e,
66
além destas, outras cobras tão grandes que tem um quarto de légua de
longo, e a grossura e olhos, boca e dentes, respondem à sua grandeza; e
destas há i muito poucas, as quais tem tal natureza que, como são
tamanhas como digo, logo se saem das alagoas onde se criam, e vão
buscar o mar; e por onde levam seu caminho muito dano fazem; e as
aves como a vem ir, são tantas sobre ela, que a picam, que é cousa que
se não crera, porque a carne destas cobras é tão mole que se não pode
mais dizer, e tanto que entram no mar todas se desfazem na áugua. E
estas ralamente parecem, porque de dez em dez anos, e mais, se acontece
ver uma destas. E isto é duro de crer a quem não tem a prática destas
cousas como a nós temos. E assi, neste rio tão grandes lagartos que
andam na áugua, que muitos deles tem vinte e dous pés de longo, e com
tão grandes bocas que enguliriam um homem folgadamente. (ESO, p.
99)
Depois dessa pequena leitura, várias análises e indagações podem ser feitas. Teria
essa narração se baseado mesmo no que ele viu ou no que ele escutou da população local? Com
poucas dúvidas, podemos admitir que o segundo animal trata-se de um crocodilo, cujas
características (tamanho, força e agressividade) foram sempre bem conhecidas. A despeito disso,
é lógico que para Duarte Pereira Pacheco, um dos primeiros europeus de sua época a ver um
animal desses, o estranhamento era exorbitante.
em relação à primeira descrição, além do fato de nosso explorador contar o que
escutou da população local, o que torna mais difícil à nossa compreensão é o fato de ele afirmar
que viu tão incrível espécime de cobra. Como ele mesmo confirma, é difícil crermos em um
relato como esse, que não participamos de suas explorações, o que surpreende Albuquerque
(1983) ao se lembrar das famosas máximas sobre o valor da experiência afirmadas tantas vezes
ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis. Mas também podemos hoje, em pleno século XXI,
concordar que tal animal, segundo as descrições, realmente nunca existiu. Tal descrição poderia
ser originada de alguma perspectiva do imaginário ou de outra manifestação qualquer da cultura
local africana não muito bem esclarecida por Duarte Pacheco Pereira, mesmo porque este não era
o seu objetivo. O que podemos concluir, por hora, é apenas que tal imaginário deveria ser muito
corrente na cultura local da população da região explorada pelo navegador, que acabou por
aceitá-lo completamente como verdadeiro, mas a falta de documentos escritos produzidos por
essas culturas torna inviável a continuidade dessa parte da discussão. Outra oportunidade de
explicação, mais segura, vem da possibilidade de o navegador ou de seu informante terem
67
interpretado mal o que escutaram, provavelmente pelo seu deficiente conhecimento das diversas
línguas africanas.
Mas, de grande relevância e que não se pode esquecer, é o quadro mental ibérico do
final da Idade Média do qual Duarte Pacheco Pereira é testemunha. O choque sentido pelos
primeiros exploradores diante do desconhecido vinha de encontro a muitas características
impostas pelo imaginário medieval que ainda se fazia forte nesse início da era moderna. De outro
lado, tudo o que era totalmente diferente do que na Europa já se ouvia dito ou pensado, criava
mais sentimentos e deslumbramentos perante o maravilhoso, já que estes despertavam nas
pessoas o sentimento da admiração, algo muito constante no Esmeraldo de Situ Orbis, e que
contribuía na criação ou na modificação de antigos imaginários (FONSECA, 2007).
A presença do maravilhoso ao longo da Idade dia, e nos arriscamos a afirmar
que essa análise também serve para a época de vida do navegador no período de transição para a
Idade Moderna, era algo corriqueiro, comum e normal
63
. Portanto, na sociedade em que ele se
criou, todos estes seus relatos são fruto do seu normal cotidiano. São relatos extraordinários, mas
não absurdos (LE GOFF, 1983).
Para o caso do Esmeraldo de Situ Orbis, as descrições maravilhosas serviam
também, em sentido mais amplo, para vangloriar os feitos portugueses. Tal como suas narrativas
sobre as batalhas contra muçulmanos e africanos, as doenças adquiridas ou todas as dificuldades
enfrentadas durante as viagens e conquistas, as narrativas maravilhosas serviam para dar maior
valor aos portugueses, tornando-os mais nobres devido a todos os seus feitos e realizações,
objetivo evidente que perpassa a obra. A valorização da conquista e a glorificação do
conquistador por meio de todas as dificuldades enfrentadas eram também uma característica do
próprio imaginário social medieval, que repercutia nas palavras do autor.
O desconhecido africano, quando encarado, trazia uma clara posição de
distanciamento em relação ao que de fato deveria existir. Esse forte estranhamento impedia a
63
O maravilhoso cristão europeu da Idade Média, além de toda a herança antiga que recebe, surgia, em parte, por
meio de seus milagres. Estes se davam pelo arbítrio de Deus e pelo intermédio dos diversos santos, característica
esta que lhes proporcionava regularidade. Dependendo do tipo de milagre ocorrido ou a ser solicitado, se sabia
qual santo havia intermediado ou se devia solicitar, conhecendo-se também o que iria ocorrer. Enfim, tudo isso
levava a uma racionalização do maravilhoso na sociedade cristã medieval, já que este perdia algo de essencial, a sua
imprevisibilidade. Ocorria, assim, uma desumanização do universo mental durante a Idade Média. Este se
direcionava para um universo de monstros, de bichos, vegetais e minerais, já que se dava uma recusa do humanismo,
devido à forte concepção cristã medieval de que o homem era feito à imagem e semelhança de Deus. Por tudo isso,
era grande a força dos bestiários durante todo o período medieval, o que ainda perduraria por um bom tempo,
certamente com transformações, como se pode observar em relação às suas influências no Esmeraldo de Situ Orbis.
68
construção de um detalhado conhecimento geográfico e também da fauna e flora, o que é
absolutamente compreensível. Pelo fato de os europeus terem se afastado do Mediterrâneo por
causa das perturbações das conquistas turcas, somente a partir do século XV que a Europa vai
olhar mais para o Atlântico, sendo que, primeiramente, para a África. Mas a imagem africana era
ruim entre os europeus desde a Antiguidade, sendo acentuada mais ainda na Idade Média. Os
africanos eram considerados feios, tendo o continente povoado por monstros e enormes
serpentes, em oposição ao Oriente, repleto de maravilhas, embora tivesse também os seus
monstros (LE GOFF, 2007).
As raízes dessas concepções em relação à África, que pode ser notado a todo o
instante na obra em exame, remontam aos textos bíblicos, aos grandes nomes da Antiguidade, ao
imaginário medieval, às concepções científicas da época do navegador, tudo isso somado à sua
própria experiência quando teve contato com diferentes povos e regiões. Exploradores como
Duarte Pacheco Pereira acabavam tornando-se fontes riquíssimas no que se refere à formulação
de novos imaginários sobre terras distantes e constituindo exemplos de como estes se
comportavam tanto na dimensão do desconhecido como do adverso, do incomum e do
ameaçador.
A África, por ser ainda pouco conhecida, era constantemente associada à idéia de
medo. Era um espaço do incógnito e da aventura. Um espaço onde o navegador se encontrava
consigo mesmo, por causa de seu esforço de superação dos obstáculos das viagens, das
dificuldades do comércio, da luta contra os mouros e na ampliação dos domínios portugueses.
Percebe-se nisso tudo o funcionamento do imaginário social a partir da experiência pessoal do
narrador, que conseguia observar um ser tão fabuloso como a serpente descrita anteriormente.
Ele é um claro reflexo do momento de transição no qual vivia. Tal como um Marco
Polo ou um Sir John Mandeville, Duarte Pacheco Pereira usa o argumento da observação, sendo,
porém, ainda normais relatos como o que fez sobre a cobra.
A visão desses viajantes era sempre insuflada por histórias e relatos antigos e do
próprio período medieval, verídicos ou fantasiosos, de outros viajantes que retornavam de
distantes regiões desconhecidas. Apareciam ao lado de descrições dignas de credulidade, relatos
de seres de extraordinária existência, o que é compreensível pelo aspecto de curiosidade e
fantasia da imaginação como supridora do desconhecido enfrentado e posteriormente narrado por
homens como esses. Nesse sentido, os efeitos percebidos e gerados por viajantes famosos, como
69
Marco Polo e Sir John Mandeville, são também constatados em Duarte Pacheco Pereira. Enfim,
havia tanto um nível de veracidade advindo das observações e desmistificações quanto uma
continuidade de crenças em seres e lugares maravilhosos com clara influência do que era
apresentado em relatos antigos e nos bestiários. Seus seres extraordinários acabaram não
alimentando o imaginário social, mas também a realidade livresca, cosmográfica e cartográfica.
A crença na existência de monstros era muito difundida. Eles eram reais para as
pessoas, independentemente se eram vistos ou não pelos navegadores e viajantes. Na Idade
Média, o monstro era encarado da mesma maneira que qualquer outra criatura, ou seja, como
uma criação e manifestação divina. Mas uma manifestação diferente, ambígua, pois se não fosse
assim seria simplesmente um animal comum, o que acarretaria a perda de sua monstruosidade. O
monstro era fruto do espaço onde surgia, sendo esse espaço um lugar desconhecido e, por isso,
diferente e maravilhoso.
Desse modo, o monstro se tornava, em relação ao período de transição entre a Idade
Média e a Idade Moderna e que se faz presente no Esmeraldo de Situ Orbis, uma via de acesso
ao próprio conhecimento do mundo e da natureza. Por ser um enigma, ele conseguia fazer as
pessoas refletirem, ou seja, buscarem uma solução aos mistérios e às novidades que encaravam.
Por amedrontar, acabava sendo curioso, interessante e estimulante. Era um fator de
descobrimentos ao confundir e explicar, limitar e abrir novos horizontes e perspectivas para um
explorador como Duarte Pacheco Pereira (FONSECA, 2007).
Fechando este segundo ciclo de interpretações acerca do maravilhoso nas
descrições da natureza pelo navegador, seguem dois últimos exemplos de descrições de animais
antes abordados pelos bestiários, mas que agora eram analisados com base nas observações
diretas de Duarte Pacheco Pereira:
Nesta serra há muitos alifantes e onças e outras muitas desvairadas
alimárias que nesta Espanha nem em toda Europa não há. Também
há’qui homens salvages, a que os Antigos chamaram Sátiros, e são todos
cobertos de um cabelo ou sedas quási tão ásperas como de porco; e estes
parecem criatura humana e usam o coito com sua mulheres como nós
usamos com as nossas; e em vez de falarem, gritam quando lhe fazem
mal. E porque estes andam na maior espessura desta serra, poucas vezes
os podem tomar, senão em sendo moços pequenos. Muitas outras cousas
se poderiam dizer deles que, por não fazer longo sermon, leixo de
escrever. (ESO, p. 118)
70
Nesta terra [região do Beni] uns homens selvagens que habitam nos
montes e arvoredos desta região aos quais chamam, os negros do Beni,
“òsá”; e são muito fortes, e são cobertos de sedas como porcos. Tudo
tem de criatura humana, senão que, em lugar de falar, gritam. E eu ouvi
já de noite os gritos deles e tenho uma pele de um destes salvagens.
Nesta terra muitos elefantes, dos quais os dentes, a que chamamos
marfim, muitas vezes compramos; e assi muitas onças e outras
alimárias de diversas espécies; e assi aves de tão desvairados modos das
da nossa Europa, que, quando no princípio do descobrimento desta terra,
os que isto viram e das tais cousas contavam não eram cridos, até que a
prática dos que depois foram fez dar crédito a uns e a outros. (ESO, p.
150)
São vários os animais citados: elefantes, onças, aves e macacos, os quais são
tratados por Duarte Pacheco Pereira como “homens selvagens”. É certo que qualquer pessoa que
hoje veja um macaco encontre nele um comportamento semelhante ao dos seres humanos.
Porém, ele vai além, chegando a afirmar que tudo tinham dos humanos, sendo apenas o fato de
não falarem, e sim de gritarem, a diferença.
Tal técnica de escrita é bem comum em todas as descrições de animais feitas pelo
navegador. Ele constrói a figura dos animais para seus leitores por meio do desvio do que eles
viam na Europa, por meio de elementos conhecidos por eles. Para o caso dos “homens
selvagens”, os elementos conhecidos apresentados pelo navegador são a aparência e gestos
humanos e o “cabelo ou sedas” de porco, apesar de os macacos não serem e não terem nada
disso.
Uma primeira explicação para que Duarte Pacheco Pereira tenha encontrado tanta
semelhança entre homens e macacos vem da clara surpresa que ele demonstra sentir ao tratar dos
animais africanos. Chega a afirmar que são vários e desvairados, sendo que deles não existe nada
parecido na Europa. A visão dos macacos e de seus gestos tão próximos aos dos humanos com
certeza o deixava perplexo. Além de tudo isso, o macaco também era um animal há muito tempo
tratado pelos bestiários. Nestes, o nome latino do macaco, símia, derivava de similitudo, advindo
de sua enorme semelhança em relação aos homens, sendo representado diversas vezes fazendo
atitudes destes. Assim, muito tempo antes dos descobrimentos e dos contatos europeus com o
71
continente africano, por meio dos bestiários, os macacos eram vistos com grande semelhança
em relação aos humanos, já existindo um conhecimento prévio sobre esses animais na Europa.
A parte final da segunda citação vai de encontro à questão da autoridade da
experiência. O navegador afirma que, por serem tão “desvairados” os animais africanos, os
primeiros relatores de sua existência, no momento dos descobrimentos, eram desacreditados. A
situação mudaria quando vários outros viajantes, também por meio da experiência,
comprovassem tudo aquilo que fora visto anteriormente.
Enfim, é notável a riqueza das manifestações do imaginário presentes no Esmeraldo
de Situ Orbis, com ricas heranças do imaginário social medieval europeu, bem como com
transformações advindas pelo olhar desmistificador da experiência, apesar deste último ser bem
mais forte na maior parte da obra.
Tal situação é característica do longo processo de transição que ocorrera na Europa
em nível geral nessa época. Um processo cheio de recrudescências na passagem para a Idade
Moderna. Isso pelo menos até fins do século XVII, quando a crença em animais fabulosos
começou a desaparecer da Europa. No século XVIII desapareceria por completo (FONSECA,
2003).
2.1.3 - O maravilhoso nas concepções geográficas da estrutura da Terra
Partindo para o último tema de interpretação desta parte sobre o maravilhoso na
descrição da natureza por Duarte Pacheco Pereira, trataremos agora de suas concepções acerca
da estrutura terrestre. Estas envolvem tanto a aceitação do imaginário antigo e medieval quanto a
desmistificação de conteúdos da Bíblia e de autores clássicos, graças à sua vasta experiência
tanto na navegação como na exploração dos mais variados territórios, como pode ser observado
na seguinte citação:
Nunca os nossos antigos antecessores, nem outros muito mais antigos
doutras estranhas gerações, puderam crer que podia vir tempo que o
nosso oucidente fora do ouriente conhecido e da Índia pelo modo que
agora é [pelos portugueses]; porque os escritores, que daquelas partes
72
falaram, escreveram delas tantas fábulas, por onde a todos pareceu
impossível que os indianos mares e terras do nosso oucidente se
pudessem navegar. (ESO, p. 195)
Portugal enfrentava o choque entre um longo imaginário social europeu contrário às
navegações atlânticas (algo exemplificado pelo medo de monstros, de grandes abismos, da “terra
queimada” e diversos outros perigos para a navegação) e o seu conseqüente enfrentamento por
interesses econômicos, políticos e religiosos, o que resultava numa nova situação de construção
de outros imaginários sobre a natureza. Ambas as situações do imaginário social participam
igualmente das realizações e transformações históricas desse período, pois possuíram sua
trajetória e tinham funções enquanto perduraram ou levaram à formação de outros. Enfim, a
realidade que Duarte Pacheco Pereira vivia e tratava em sua obra era fruto desse rico momento
de transição histórica e de mudança de imaginários.
Assim, no seguinte trecho, vê-se como o autor concebe, interpreta e demonstra a
estrutura do mundo no tempo em que vivia:
os filósofos [...] disseram que a terra toda é cercada pelo mar [...] e
alguns dos Doutores modernos [...] quiseram mostrar, por autoridades da
Sagrada Escritura e suficientes razões contrárias aos antigos, como a
terra é muito maior que tôdalas águas, e elas todas jazem metidas dentro
na sua concavidade e fundura e são cercadas pela mesma terra. [...] e isto
é conclusão que se não deve negar. E, por que se mais claramente se
mostre a verdade, notemos o primeiro capítulo do Gêneses que diz
assim: ajuntem-se as águas. Enquanto disse e mandou que este
julgamento fosse feito em um lugar, bem parece que a terra não é
cercada pelo mar [...]. E além do que dito é, a experiência, que é madre
das cousas, nos desengana e de toda dúvida nos tira [...] [por meio das
viagens realizadas, percebe] que esta terra d`além [mar] é tão grande, e
desta parte d`aquém temos Europa, África e Ásia, manifesto é que o mar
oceano é metido no meio destas duas terras e fica médio-terrano; pelo
qual, podemos dizer que o mar oceano não cerca a terra, como os
filósofos disseram, mas antes a terra deve cercar o mar, pois jaz dentro
na sua concavidade e centro. (ESO, p. 18-21)
O navegador mostra o quanto a identificação da Terra em relação às suas partes de
terra e água passou por constantes mudanças ao longo da história. Com o transcorrer do texto,
concebe suas posições particulares a esse respeito, identificando o pensamento português de sua
73
época. Porém, ele encontra-se em uma encruzilhada: mostra-se ainda bastante preso à autoridade
bíblica, considera-se seguidor dos Modernos e afasta-se dos filósofos antigos. Identifica-se
também, e principalmente, pela forte crença no conhecimento advindo da experiência, posição
original que tanto o caracteriza por toda sua obra e que vai ganhar um grande espaço nos
ambientes científicos europeus a partir de então.
Hoje, podemos perceber que a visão do autor, mesmo baseada em sua experiência,
era equivocada. Ele afirma, diferentemente da situação do planeta, que os continentes são
maiores do que os oceanos, que estes se localizam no centro e concavidade daqueles. Essa
interpretação é totalmente compreensível se analisarmos que, na data da redação do Esmeraldo
de Situ Orbis, nenhum navegador, seja a mando do Portugal ou da Espanha, conhecia a
navegação do oceano Pacífico, o que derrubou definitivamente conclusões como a que Duarte
Pacheco Pereira no fragmento citado.
Novamente, temos heranças e inovações. Mesmo apoiado nas experiências das
viagens e explorações, o navegador ainda se enganava acerca da estrutura do planeta. Isso
ocorria pela falta do total conhecimento do mundo e pela grande influência ainda das concepções
e crenças bíblicas e medievais. Tudo isso preenche sua obra de interpretações maravilhosas sobre
a natureza, mais uma prova da interessante história das manifestações imaginárias na passagem
do mundo medieval para o moderno.
2.2 - Mitos
2.2.1 - Mitos antigos e africanos
Uma característica das sociedades humanas desde os seus primeiros tempos é a
criação de sociedades imaginárias que superem carências da vida concreta. Os desejos e as
aspirações sociais, expressos em formas literárias, imaginárias ou artísticas, tendem a substituir o
banal e o conhecido pelo ausente ou pelo desejado. Os mitos são exemplos destes casos, estando
em alguns momentos presentes direta ou indiretamente na escrita de Duarte Pacheco Pereira, tal
74
como teremos oportunidade de observar em alguns trechos. Uma boa razão explicativa para este
fato é de serem os mitos fenômenos arraigados nas culturas orais, algo muito forte no imaginário
da sociedade desse navegador na transição da era medieval para a moderna.
O mito, especificamente, é uma narrativa que se refere a uma ordem do mundo
anterior à atual. Ultrapassa particularidades locais, destinando-se a explicar uma lei orgânica na
natureza das coisas ou os temas e problemas da ordem total do mundo. Não são necessariamente
sempre religiosos, mesmo quando trazem uma intervenção dos deuses. Muitos, porém, como é o
caso dos presentes no Esmeraldo de Situ Orbis, estão fortemente ligados a personalidades
divinas e a religiões. A narrativa aparece apenas como um suporte, desenvolvendo no decorrer
do tempo uma ambição profunda, se expandindo numa contemplação mística da realidade que
exprime (GRIMAL, 2005).
Dessa forma, o mito pode ser encarado como um tipo de lenda, das quais figuram
entre outros os ciclos heróicos, as novelas, as lendas etiológicas, os contos populares e as
anedotas. A diferença básica entre as lendas e a literatura é que as primeiras são encaradas como
verdadeiras por suas respectivas sociedades. É desta forma que aqui será entendido em relação às
concepções de Duarte Pacheco Pereira, ou seja, que este acreditava efetivamente em tais relatos
mitológicos que acrescentava ao seu texto.
Em uma época de resistência milenar de vários mitos e estórias extraordinárias, um
caso interessante e muito recorrente desde a Antiguidade é o da possível existência das minas do
rei Salomão. Um longo trecho do livro trata esse episódio, tema sobre o qual o próprio navegador
afirma ter usado como fonte a Sagrada Escritura:
e não sentindo [D. Manuel] nem estimando as grandes e grossas
despesas que se nisto fezeram, se descobriu e navegou alguma parte
daquela Etiópia sob-Egipto que, das primeiras idades a nós, sempre foi
de todo incógnita, onde por vossos capitães foi descoberta e novamente
achada a grande mina que alguns cuidam ser de Ofir, que agora por
nome novo Çofala é chamada, donde o sapientíssimo rei Salomõ houve
quatrocentos e vinte talentos de ouro, segundo se mostra no terceiro
livro dos Reis, capítulo nove, e no segundo livro de Paralipomenõ,
capítulo oitavo, no fim, com o qual fez o sacro templo de Jerusalém [...].
(ESO, P. 13)
75
É notável que os desejos e as aspirações pelo encontro das antigas minas do rei
Salomão, tão expressas em diversas obras e lendas ao longo da história, fazem parte das
influências do imaginário bíblico no Esmeraldo de Situ Orbis. Isso, porque, a Bíblia era uma
referência bem recorrente, além de uma série de mitos e simbologias que circulavam no contexto
português na perspectiva oral.
Diversos são também os autores ligados à ciência citados pelo navegador, desde os
da Antiguidade Clássica até os do período medieval, além dos discursos, em sua maioria
maravilhosos, das populações africanas com as quais ele tinha contato em suas viagens de
exploração. Enfim, tudo o que lemos no seu livro, logicamente, não sai apenas de suas
concepções imaginárias e empíricas. O que temos trata-se da materialização de um encontro de
tudo aquilo, seja no âmbito científico, religioso ou do imaginário social, presente em sua escrita e
que vinha perpassando, com grandes ou pequenas mutações, a história. Por isso, uma fonte
escrita para um historiador é o resultado não de um trabalho autoral único e singular, mas de
relações intertextuais do momento de sua concepção (FRANCO JR., 1998).
O Esmeraldo de Situ Orbis é depositário de uma complexa rede de heranças que
passam constantemente pela interpretação do navegador, que as aceita, modifica-as ou até as
desacredita. Essas heranças se impõem a uma sociedade, pois ela as recebe e nunca as cria, o que
obriga a sociedade a aceitá-la, a modificá-la ou a rejeitá-la, tanto no plano individual quanto no
coletivo (LE GOFF, 1983).
64
Uma citação pode exemplificar o que foi expresso agora. Trata-se de uma
abordagem sobre a fundação de Tanger. Com tal propósito, é citado Pompónio Mela e o discurso
da população local africana contemporânea à época da escrita de Duarte Pacheco Pereira, os
quais, juntos, mesmo com toda a disparidade na perspectiva de fontes para o navegador,
concordam em relação a um tema mitológico.
E diz Pompónio Mela, autor muito antigo, no seu primeiro livro da
Cosmografia, que Tíngi foi edificado pelo Gigante Anteu que pelejou
64
Isso é forte na sociedade cristã, que tal religião se difundiu por regiões que trazem patrimônios culturais ricos e
bem antigos, dentre eles o fantástico e o maravilhoso. Como essas heranças continuaram, elas se fizeram presentes
diante do cristianismo por todo o tempo. outros exemplos de conteúdo fantástico e maravilhoso que enriqueciam
a cultura medieval eram a crença em gigantes, anões, fadas, animais imaginários (unicórnio, dragão), seres metade
homem e metade animal (lobisomem), o maravilhoso bíblico (Paraíso, Arca de Noé, Torre de Babel, travessia do
Mar Vermelho, Apocalipse), bruxaria e heresias.
76
com Hércules, e que no muro, da parte de fora, tinha pendurado um
muito grande escudo, coberto de couro de alifante, o qual, por sua
grandeza, era disposto a nenhum uso; sòmente criam os moradores desta
terra que o mesmo Anteu trazia este escudo nas batalhas. (ESO, p. 54)
No próximo trecho, podemos perceber que o autor não é influenciado apenas pela
visão ibérica. Tal situação ocorre devido ao fato de o navegador, em alguns momentos da obra,
abordar casos relacionados aos imaginários existentes entre as populações que ia conhecendo em
suas viagens. Isso proporciona outra característica muito interessante ao livro, tornando-o uma
rara fonte sobre as manifestações culturais dos povos africanos que quase não puderam deixar
vestígios, que não possuíam escrita e rapidamente tiveram sua cultura suplantada pela dos
europeus. Havia também o jogo entre relação e descompromisso com as realidades vivenciadas
por tais povos.
E este castelo de Almancora dizem que os leões o despovoaram e
destruíram, porque comeram tanta gente dele, que alguma pouca que
ficou fugiu e foi viver em outras partes. (ESO, p. 59)
Os mitos fazem-se presentes constantemente na consciência do navegador, sendo
uma possibilidade de visão do mundo e de outras formas de existência humana, uma vez que
todo o arcabouço imaginário seu e de outras sociedades se fazem presentes antes de qualquer
formulação lógica de explicação (MELLO, 2003).
2.2.2 - Mito político português
Em uma sociedade de catolicismo tão exacerbado como a de Portugal, na passagem
do século XV para o XVI, Duarte Pacheco Pereira e sua obra são meios de reprodução,
popularização e fortalecimento do mito político ufanista de Portugal. Isso é notável na obra em
exame por meio dos constantes elogios dos feitos de seus grandes reis, na certeza da realização
das vontades de Deus, nas recorrentes manifestações das glórias conseguidas pela sua brava
77
gente e pelos exploradores voltados às conquistas, nas vitórias contra o infiel e na catequização
de diversos povos na defesa dos interesses católicos.
Os dois trechos citados que agora seguem são exemplos de casos perceptíveis desse
imaginário social que aceita que Deus esteja ao lado dos portugueses e em sua defesa, para que a
vontade divina de cristianização do restante dos povos do mundo seja atendida pelos lusitanos.
Os negros desta terra [região de Anda, terra que fica entre o castelo de
São Jorge da Mina e a fortaleza de Axem] se mantêm de milho e de
pescado e inhames, e de algumas carnes, ainda que são poucas. Andam
nus da cinta pera cima [...]. E são gentio; e prazerá a Nosso Senhor que
cedo os fará cristãos. (ESO, p. 140)
Temos acima a descrição de uma população africana que, por suas características, é
interessante ao deus cristão, servindo de argumento para a expansão portuguesa, já que
legitimava suas conquistas. Por bem ou por mal, os europeus acreditavam que as mais variadas
populações, até mesmo escravizadas, mais cedo ou mais tarde, ficariam agradecidas por terem de
abandonar suas crenças e serem obrigadas a abraçarem a oportunidade dada à sua salvação pelo
cristianismo, visto que seria para o seu próprio bem. Mas também podemos fazer um
questionamento que novamente associa ações concretas originadas de perspectivas imaginárias.
Até que ponto esse antigo imaginário de salvação cristã determinou também uma vontade real
por dominação política e exploração econômica? Influenciados fielmente por isto ou pensando
também nos dividendos econômicos que surgiriam, o fato é que os portugueses dominaram esses
povos, no qual não podemos dissociar desse exemplo a relação de limites entre atitudes concretas
e projeções imaginárias (PINTO, 1992).
O mesmo percebe-se na próxima passagem. Um naufrágio acometeu o navio dos
flamengos na volta de sua viagem de exploração a regiões que Deus e os papas haviam reservado
às ações portuguesas.
65
Porém, a interpretação que Duarte Pacheco Pereira faz desse naufrágio
não é tão simples. Para ele, o que acometeu os flamengos foi uma punição divina, devido a seu
desrespeito às vontades de ação dos portugueses.
65
O fato de outros europeus não poderem navegar para a África ou Índia entrava em contradição com a antiga
prática do direito romano que reservava a liberdade dos caminhos aos proprietários de territórios afastados. Porém,
segundo a noção lusitana, como nenhum outro povo europeu possuía terras em tão distantes regiões, não tinham
qualquer direito de navegar pelos novos mares abertos pelos portugueses.
78
E no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1475 anos se armou, em
Frandes, um navio de Framengos, com um piloto castelhano e algumas
mercadorias, os quais se atreveram ir resgatar à Mina primeiro, sete ou
oito anos, que o castelo de S. Jorze fosse feito; e como quer que
resgatassem cinco ou seis mil dobras e não temendo as graves
excomunhões dos Santos Padres sobre este caso outrogadas aos reis de
Portugal, que outra nenhuma geração lá não fosse senão os Portugueses
por licença dos ditos reis, assi como os ditos Framengos não temeram as
defesas do Pastor da Santa Madre Igreja, assi lhe deu Deus mau fim;
porque, da torna-viagem da dita mina, vieram ter tanto avante como esta
praia dos Escravos, e, como o vento então fosse calma, eles surgiram
pelas vinte e cinco braças e, como quer que em toda esta costa este
fundo é sujo, a pedra lhe cortou de noite a amarra e, ventando o vento do
mar, deu com este navio na dita praia na costa onde se perdeu; e ali
comeram os Negros trinta e cinco framengos que no dito navio iam; e
isto soubemos depois pelos ditos negros e por Pedro Gonçalves Neto que
o outro ano ali foi por capitão de um navio, que quási todo o ouro que os
ditos framengos traziam resgatou com alguma parte dos vestidos deles.
(ESO, p. 133-134)
Mesmo tento chegado antes dos portugueses e perdido toda sua tripulação, para o
autor a palavra divina acabou sendo cumprida. Apesar da disputa contra outros europeus, toda a
riqueza em ouro e tecidos africanos ficou mesmo, no final das contas, com os lusitanos, que a
recuperaram com o navegador Pedro Gonçalves.
Essas situações, que exemplificam a certeza da proteção e do apoio divino,
compõem uma das maiores e mais influentes manifestações determinantes do imaginário social e
assim das ações políticas portuguesas, tanto do presente do navegador com o rei D. Manuel
como também de seu futuro, tal como mostra suas constantes idealizações para a continuidade da
trajetória de glórias do povo português.
Tudo isso é bem perceptível na seguinte passagem do Esmeraldo de Situ Orbis, que
traz a vida do Infante D. Henrique (figura central da expansão portuguesa) como excelente
modelo de administrador dos interesses portugueses, nobre figura da corte e virtuoso cristão:
Foi o terceiro filho de el-rei D. João da gloriosa memória [...] e da rainha
D. Filipa [...]. E no tempo de sua mocidade, sendo ele com el-Rei, seu
padre, na tomada da grande cidade de Cepta que, por bravo combate
79
contra os Mouros [...] o Infante exercitou ali tão esforçadamente a
fortaleza de seu coração, que outro algum cavaleiro, neste feito de
armas, a ele foi igual, segundo temos sabido por aquelas pessoas que na
tomada desta cidade foram, que verdadeiro testemunho disto deram. No
qual lugar mereceu o excelente grau do estado militar que lhe então foi
dado [...]. E passados alguns anos [...] ele fez no cabo de S. Vicente [...]
a sua vila de Terça Natal, situada sobre a angra de Sagres [...] onde se
apartou em sua casa das fadigas e das maldades deste mundo. E viveu
sempre tão virtuosa e castamente que nunca conheceu mulher nem
bebeu vinho nem foi achado em outro vício que de reprender fosse,
trazendo continuamente cilício a redor de suas carnes [...]. E como quer
que os virtuosos barões amigos de Deus e de limpo coração, inimigos da
cobiça, nunca são desamparados de graça do Espírito Santo, jazendo o
Infante uma noite em sua cama, lhe ceio em revelação como faria muito
serviço a Nosso Senhor descobrir as ditas Etiópias; na qual região se
acharia tanta multidão de novos povos e homens negros, quanta do
tempo deste descobrimento atégora temos sabido e praticado [...] e que
destas gentes muita parte delas haviam de ser salvas pelo sacramento do
santo Baptismo; sendo-lhe, mais, dito que nestas terras se acharia tanto
ouro com outras tão ricas mercadorias, com que bem e abastadamente se
manteriam os reis e povos destes reinos de Portugal, e se poderia fazer
guerras aos infiéis inimigos da nossa santa católica [...] e, assi, são
bem-aventurados os Reis de Portugal que suas vezes sobcederam, e em
tanto lograram a glória, riquezas e honra destas conquistas e comércio,
com paz e acrecentamento, enquanto, com caridade e sem aspereza,
servindo Nosso Senhor, delas bem usaram. (ESO, p. 77-79)
Várias reflexões podem ser feitas desse rico trecho do Esmeraldo de Situ Orbis. A
primeira, e muito bem conhecida e discutida dentro da historiografia, aborda todo o imaginário
de ação do mundo cristão ibérico que desencadeou, entre outros fatores, a luta e a vitória contra
os muçulmanos de Ceuta. Portugal, país vitorioso, passaria, a partir daquele momento, a ter
como missão histórica a luta contra os infiéis. Para enfatizar mais ainda essa situação, o próprio
D. Henrique passava a ser o responsável pela ação política de descobrimento e domínio das
Etiópias, visando atender as vontades do Espírito Santo.
O Infante, que ainda moço participara brilhantemente da tomada da cidade de Ceuta
e tornara-se assim um nobre guerreiro, recebera uma revelação solicitando-lhe a descoberta das
regiões africanas e asiáticas, servindo assim à vontade de Deus. A revelação afirmava que toda a
força divina e as riquezas existentes nas ditas Etiópias serviriam não para Portugal manter
seus reis e abastecer seu povo, mas também na sua fervorosa luta contra os muçulmanos e no
80
batismo de diversos povos. Dessa forma, podemos concluir que este caso da revelação demonstra
como o imaginário cristão português atua como real força de dominação e expansão religiosa,
política e econômica no processo de expansão marítima, que estavam legitimados por Deus,
que foi transformado em um elemento de apoio dos seus interesses.
Assim, a matriz civilizacional portuguesa era a da comunidade cristã, que se abria
ao exterior sempre disposta a congregar os mais variados povos. Para salvar as almas destes, era
legítimo o uso da força, pondo em xeque as crenças dos mouros e gentios africanos, que era
inquestionável que a única verdade era a dos cristãos. Mas tal abertura não era inocente, pois
estava presente na tradição ecumênica da Igreja como também na lógica do domínio. O objetivo
era unir os povos sob o cristianismo,
66
por meio do encontro (como na busca do reino perdido do
Preste João) ou da criação de aliados contra os muçulmanos, além da obtenção de bases para os
navios que buscavam riquezas na África e na Índia. É claro que toda essa bagagem cultural
influenciava enormemente o imaginário social português.
Na escrita do navegador, podemos perceber que somente um virtuoso barão como
D. Henrique, que vivia afastado dos problemas e maldades do mundo, em constante castidade e
distante de todos os tipos de vícios, poderia receber aquela enunciação divina solicitando os
descobrimentos. Como nossa posição historiográfica de abordagem dos acontecimentos passados
nos indica que tal enunciação não surgira de um fato empiricamente comprovável, nos resta
avaliar o tanto que é grande a influência do imaginário religioso na sociedade portuguesa. Isso
nos faz perceber a grande articulação entre o mundo material e o psicológico das coletividades
que têm suas condutas e perfis assim determinados, mesmo que tudo provenha de casos e
experiências individuais exemplares.
Mas as interpretações desse rico trecho do Esmeraldo de Situ Orbis ainda guardam
maiores possibilidades de análises. D. Henrique
67
acaba sendo transformado em um mito político
66
Todos esses povos seriam salvos e poderiam se aproveitar dos benefícios do comércio português, segundo a lógica
destes. Porém, nunca deixavam de serem nações bárbaras, sem engenhosidade nas ciências ou artes mecânicas, e
mesmo que tivessem uma civilização, esta nunca se assemelharia a dos portugueses, já que as leis e os costumes
destes eram sempre superiores. Prova disso é a não colocação em nenhum momento de uma referência às opiniões
ou à resistência destes povos por Duarte Pacheco Pereira. Este era um admirador das leis e do império romano,
como é percebível em diversas citações do Esmeraldo de Situ Orbis, em que a qualidade de bárbaro para os outros
povos garantia a utilização de meios brutais pelos civilizados, além de que tudo era justificado também pela
salvação da alma.
67
Uma ressalva deve ser feita. Apesar de D. Henrique nunca ter assumido o cargo de rei de Portugal, em nossos
estudos (que compartilham da mesma opinião de diversos autores que analisaram mais profundamente tão complexa
personalidade) conclui-se que sua figura era vista pelos portugueses da época como a de uma grande personalidade
81
e em um príncipe ideal não para todo povo português, mas também para seus reis, que, pelo
discurso do navegador, eram bem-aventurados por herdarem toda a glória e riqueza conquistada
pelo Infante. A tradição em torno de um grande líder exigia que ele praticasse as indispensáveis
virtudes privadas que a Igreja cobrava a qualquer bom cristão, o que lhe permitiria alcançar a
santidade. Mas o Infante ia além disso, sendo bom exemplo o uso do cilício e o seu
desconhecimento do ato sexual com mulheres. No caso de fortes líderes, era sempre muito difícil
separar o homem público do privado, fazendo com que suas virtudes privadas fossem necessárias
ao bom cumprimento de seu ofício e na obtenção do respeito da sociedade. Percebem-se
também, nessa figura emblemática do Infante, que ele não se dedicava apenas a longas orações,
mas colocava em prática qualidades que são também divinas: a fortaleza, a sapiência e a
bondade. Quando todas se entrelaçavam, sua virtude real por excelência apareceria, ou seja, a
sabedoria prática voltada ao futuro, o que orientava o príncipe numa ação para o fim claramente
definido da expansão, como mostra claramente a escrita de Duarte Pacheco Pereira. É visto como
um líder realizado, pois conseguira implementar as empresas do reino português. Apesar de não
dever ter, muito provavelmente, tantas qualidades na prática, aparentava tê-las para sua
sociedade, o que já era suficiente (GUENÉE, 1981).
Podemos também identificar na caracterização de D. Henrique elementos de forte
intenção política que acabaram criando uma lenda entre a população. É em um contexto como
este que uma história exemplar e um mito político fundador surgem para a legitimação do poder,
muito perceptível para o caso do apogeu da história portuguesa, ocorrido na época das grandes
navegações e que teve como um dos maiores promovedores, se não o maior, a figura do Infante.
Este é visto como o iniciador de todo esse processo, devendo ser por isso reconhecido entre a
população portuguesa, saindo daí seu elogio não só no Esmeraldo de Situ Orbis, mas em diversas
obras portuguesas do período que legitimavam a dinastia portuguesa.
O contexto maravilhoso em que é envolto o Infante D. Henrique acaba tornando-se
um excelente instrumento de poder para D. Manuel e para os seus sucessores. Era relativamente
normal o fato de as dinastias européias criarem origens míticas para justificar sua força e política,
o que, para o caso de Portugal, era de suma importância devido serem, na maior parte das vezes,
ações realizadas em terras longínquas com retorno financeiro apenas de longo prazo, por isso não
de decisões políticas. Isso nos permite fazer uma parte de sua análise, segundo o que se observa no Esmeraldo de
Situ Orbis, encarando-o também como uma real entidade política.
82
perceptíveis facilmente entre a população, que também era muito reduzida em seu número pela
perda constante de homens nas viagens, guerras de conquistas e estabelecimento de colônias.
Pensando em outro aspecto dessas discussões na obra, o trecho que segue aborda
um tema recorrente por todo o Esmeraldo de Situ Orbis:
[o Esmeraldo de Situ Orbis não seria apenas] necessário para proveito
desta navegação e comércio [de Portugal], mas ainda para ficar uma
eterna memória e lembranças a nossos sucessores e vindouros, por onde
possam saber vossas excelentes [aí Duarte Pacheco Pereira está se
referindo a D. Manuel] façanhas dignas de gloriosa imortalidade. (ESO,
p.15)
Nesse caso, percebe-se que a gloriosa história portuguesa, pautada pelas
navegações, é transformada em algo útil aos interesses políticos de um de seus maiores
promotores, o rei D. Manuel. Perante a figura e aos pedidos desse é que Duarte Pacheco Pereira é
posicionado em relação ao campo social em que atua. Nas entrelinhas, percebe-se a idéia por
certo objetivo real de promoção. O caso acima citado é apenas uma das várias passagens da obra,
como anteriormente foi apontado, em que o rei D. Manuel, bem como seus antecessores, é
enormemente elogiado e levado à imortalidade por suas grandes façanhas. Tal constância nos faz
acreditar que esse tipo de discurso promovia uma propaganda política real. Esta teria como
motivação não apenas a promoção pessoal do rei, mas também o afastamento e ofuscamento de
quaisquer opositores e a doutrinação da população à legitimação e ao respeito completo ao poder
de seu rei.
Contando com a tipografia, que tornava a informação e a propaganda mais intensas,
D. Manuel atingia uma grande parcela da população, além de circular no meio dos humanistas e
dos práticos, como era o caso dos navegadores, parcela esta muito importante para os interesses
políticos e econômicos do país. Esse era o sentido prático da propaganda nas monarquias do final
da Idade Média e no início da Moderna: fazer o rei presente em diferentes lugares e em
diferentes épocas. Tal fenômeno ocorria pelo fato de os reis estarem convencidos da importância
da propaganda, aproveitando em larga escala vários tipos de humanistas e suas manifestações
artísticas e de pensamento que iam sendo postas ao serviço real. O Esmeraldo de Situ Orbis é um
bom exemplo desse caso (GUENÉE, 1981).
83
D. Manuel conseguia pela propaganda em uma obra como a do navegador enfatizar
as idéias e as crenças que deveriam dominar o espírito de seus súditos. Apesar do livro existir
para atender às necessidades expansionistas portuguesas, o próprio Duarte Pacheco Pereira é
claro ao afirmar que sua obra ia além dos interesses da navegação e do comércio. Ele seria um
marcador das excelentes façanhas de D. Manuel na memória do povo português.
Percebe-se assim como o imaginário social e os interesses na construção do mito
político português da época do navegador manifestavam-se também em escritos de objetivos
mais técnicos, tal como no Esmeraldo de Situ Orbis.
Mas para concluir esse assunto, um importante comentário acerca de um ponto
controverso precisa ser feito. Apesar de ser um objetivo de Duarte Pacheco Pereira promover o
nome e os feitos de seus reis na memória do povo português, não nos é possível afirmar que isso
realmente ocorreu no período logo após sua escrita. Diferente da imagem e da lenda do
navegador que perduraram por muito tempo, como já afirmado antes, seu livro não foi publicado
e ficou desaparecido por muito tempo, provavelmente pela política de segredo de Portugal, que
buscava esconder seus conhecimentos técnicos nas áreas da navegação de países concorrentes.
Mas o mesmo não podemos dizer do que se deu após a primeira publicação do Esmeraldo de Situ
Orbis, em 1892. Depois desta, o navegador também passou a ser uma das referências sobre as
técnicas de navegação e os feitos dos reis portugueses entre os séculos XV e XVI para a ciência
da História e para o nacionalismo do povo português.
2.3 - Etnografias e a luta contra os muçulmanos
Em toda a extensão do Esmeraldo de Situ Orbis, Duarte Pacheco Pereira faz
referências a costumes, crenças, religiosidades, características físicas, economia, organização
familiar, militarismo e estrutura política de diversos povos das regiões africanas (principalmente)
e asiáticas, geograficamente importantes para a navegação ou para os interesses colonialistas de
Portugal, além de várias referências, com críticas diretas e comentários sobre as desavenças com
povos islâmicos. O autor acaba por fazer uma etnografia de diversos povos com os quais
manteve contato direto ou indireto, sendo que esses por meio de relatos que escutava.
84
Em sua narrativa, procura traduzir o que é o outro, fazendo com que seu leitor, seu
destinatário, acredite no outro que ele constrói, ocorrendo uma retórica da alteridade, cheia de
procedimentos e regras. Nesse sentido, várias marcas de enunciação são usadas para persuadir
seu destinatário, que o navegador viu ou ouviu diversas situações sobre vários povos, tendo
assim total credibilidade para escrever seus relatos.
Ao fazer o inventário dos povos e dos territórios longínquos, o narrador ordena o
mundo e traduz o outro em termos do saber compartilhado pelos portugueses. O olhar lançado
sobre os outros povos é frio, sem o objetivo de conhecê-los intimamente, por meio, por exemplo,
do domínio de suas línguas. Duarte Pacheco Pereira fala somente com portugueses ou com
intérpretes da região que compreendem o português. Sendo assim, sua etnografia guarda,
logicamente, grandes diferenças em relação à ciência atual. Ocupando-se constantemente da
descrição de vários povos e culturas, essa não ocorre em uma perspectiva neutra, mas é
enormemente influenciada por seu imaginário social.
Tais descrições não são simples e diretas. Como o autor descreve o momento
privilegiado da descoberta, bem diferente das maiores relações ocorridas no momento da
colonização, tudo ainda está suspenso em mistério. Surpresas o chocavam constantemente no
encontro com outras humanidades, explicando todo o seu estranhamento diante de tão diferentes
povos. Sua escrita, como a de diversos outros viajantes dos culos XV e XVI, reflete as idéias
preconcebidas européias que determinavam o conhecimento e as imagens, carregadas do
maravilhoso presente no imaginário social, projetadas aos continentes e povos africanos e
asiáticos. A judaico-cristã na existência de um Deus único e na unidade do gênero humano
influenciou na dificuldade de compreensão do outro e de suas diferentes culturas, surgindo daí a
missão glorificante de levar a esses povos a cristianização. Uma classificação binária e
assimétrica ocorre, estando de um lado os portugueses e do outro todos os outros povos não-
cristãos. A ausência de características cristãs em outros povos e em outras regiões indica um
espaço diferente no relato de suas viagens, que se torna operatória e manejável apenas para os
portugueses (HARTOG, 2004).
Porém, uma grande ressalva deve ser feita. Muitas vezes, e isso vale mais para esta
primeira seqüência de trechos do Esmeraldo de Situ Orbis a serem analisados, o olhar de Duarte
Pacheco Pereira faz muitas descrições de particularidades dos povos africanos que nos ajudam
enormemente no conhecimento dessas grandes e diferentes populações. Em muitas passagens,
85
sem sombra de dúvida, a caracterização do outro tende à sua discriminação por ser distante das
concepções européias ou limitadas pelo estranhamento, mas em outras partes isso se faz em
escala menor, sendo assim muito importante para o seu conhecimento.
E as gentes que nestas Etiópias habitam, são negros, e tem os cabelos
curtos e crespos feitos como frisa de pano [...].
A outra Etiópia Superior começa no rio Indo, além do grande reino de
Pérsia, do qual a Índia este nome tomou; e o seu lito e costa do mar se
dilata e estende... léguas. E estes são negros, mas não já em tanta
quantidade como os da Etiópia Baixa, e têm os cabelos corredios e
compridos como os dos homens brancos. (ESO, p. 96-97)
O primeiro parágrafo aborda a população africana no sentido de serem fisicamente
muito diferentes em relação aos europeus, pois aqueles, além de negros, possuem cabelos curtos
e crespos. no segundo parágrafo, os habitantes também são de pele escura, porém, possuem
certas características próximas aos europeus e distantes dos povos africanos, que se trata de
população asiática (Etiópia Superior).
68
Presenciamos aí uma forma de dizer o outro pela comparação, já que isto permite ao
navegador mostrar algo desconhecido aos seus compatriotas, reunindo o mundo que se conta e o
mundo em que se conta, passando de um para o outro. A comparação estabelece semelhanças e
diferenças que têm efeito, que sempre o segundo termo pertence ao saber compartilhado na
sociedade dos portugueses, tal como ocorre na comparação dos cabelos crespos com frisas de
pano ou então na comparação dos cabelos compridos e corredios com o dos homens brancos.
Duarte Pacheco Pereira tenta mostrar algo sobre o outro para seus destinatários, ao
colocar coisas que eles conheçam no movimento de comparação, estando a originalidade das
obras da literatura de viagem como o Esmeraldo de Situ Orbis, uma vez que faz o destinatário
ver como se ele estivesse lá. os traços não capturados pela comparação, como poderemos ver
nas próximas citações, acabam por se apresentar como algo extraordinário, sendo esta não-
possibilidade de captura uma das formas que assegura a alteridade (HARTOG, 1999).
Em outra passagem:
68
Estes seriam os ancestrais dos atuais paquistaneses e indianos, entre outros povos daquela região.
86
À ordem da obra convém dizermos da natureza da gente desta Serra
Leoa e do seu modo de viver.
69
E a maior parte dos moradores desta
terra por um nome são chamados Boulões, e é gente belicosa que poucas
vezes estão em paz. Estes chamam ao ouro ‘enloão’, e a áugua ‘men’. E
algumas vezes se acontece estes negros comerem outros homens, ainda
que isto não usam tão comumente como se usa em outras partes desta
Etiópia. E estes todos o idólatras e feiticeiros, e por feitiços se regem
em tal maneira que aos oráculos e aos agoiros sem dúvida se lhe dão.
[...].
Estes negros tem os dentes limados e agudos como de cão. [...].
Tôdolos negros desta terra andam nus senão quanto cobrem as partes
inferiores e membro de geração com um pano de algodão. (ESO, p. 117-
118)
A população de Serra Leoa é vista como belicosa e voltada a feitiçarias, além de
possuírem dentes diferenciados (talvez pelo desgaste natural provocado pelo seu tipo de
alimentação ou então feito intencionalmente por motivação estética) e ter o hábito da nudez, que
acaba os caracterizando melhor e surpreendendo o navegador. Interessante perceber também que
Duarte Pacheco Pereira traduz duas palavras de sua língua típica: justamente o ouro, muito
provavelmente devido às ambições comerciais portuguesas; e a água, que com certeza era algo
sempre procurado por exploradores que ficavam por meses e até anos envolvidos em suas
viagens. Já a grande novidade deste trecho, bem como do próximo, é o registro do canibalismo.
Na próxima citação também um fato que é bem difícil de se notar em fontes
históricas desse período. Um elogio é feito à população do reino do Congo por produzirem
melhores tecidos do que os manufaturados na Itália. Uma especificidade desse autor que percebia
isso devido aos interesses comerciais portugueses, apesar de não deixar de descrever em detalhes
o estranho hábito do canibalismo:
Neste reino do Congo se fazem uns panos de palma, de pelo como
veludo, e deles como lavores, como çatim velutado, tão fermosos que a
obra deles se não faz melhor, feita em Itália. E em toda a outra Guiné
não há terra em que saibam fazer estes panos senão neste reino do
Congo [...]
69
Interessante perceber que em vários momentos Duarte Pacheco Pereira afirma não ser objetivo de sua obra a
descrição das mais variadas populações que se encontram no caminho para as Índias, mas, como podemos perceber,
o contrário sempre ocorre, sendo esta mais uma forte característica da literatura de viagem.
87
Estes são negros como os de Congo [a da província de Anzica], e são
ferrados na testa ou fronte, em roda, maneira de caracol. E as mais das
vezes tem guerra com Manicongo; e qualquer homem que morre na
guerra, ora seja dos seus ora dos alheios, logo o comem, e assi comem
qualquer outro que é doente em tal extremo que lhe parece que pode
morrer. (ESO, p. 177)
o próximo relato, além de tratar de uma das fontes de obtenção de ouro, faz
descrição de uma maravilhosa população, segundo a interpretação do navegador:
E duzentas léguas além deste rio de Mandinga está uma comarca de terra
onde muito ouro, a qual chamam Toom; e os moradores desta
província tem rosto e dentes como cães, rabos como de cão, e são negros
e de esquiva conversação, que não querem ver outros homens. E as
gentes de uns lugares [...] vão a esta terra de Toom comprar o ouro por
mercadorias e escravos que lhe levam; os quais, no modo de seu
comércio, tem esta maneira: todo aquele que quer vender escravo ou
outra cousa, se vai a um lugar certo pera isto ordenado a ata o dito
escravo a uma árvore e faz uma cova na terra, daquela cantidade que lhe
bem parece; e, isto feito, arreda-se afora um bom pedaço, e então vem o
rosto de cão, e se é contente de encher a dita cova de ouro, enche-a, e se
não, tapa-a com a terra e faz outra mais pequena, arreda-se afora. E
como isto acabado, vem seu dono do escravo e aquela cova que
fez o rostro de cão, e, se é contente, aparta-se outra vez fora: e tornado o
rostro de cão ali enche a cova de ouro. E este modo tem em seu
comércio e assi nos escravos como nas outras mercadorias; e eu falei
com homens que isto viram. E os mercadores Mandingas vão às feiras
de Bètu e de Bambarraná e de Bahá comprar este ouro que hão daquela
monstruosa gente. (ESO, p. 107)
Neste trecho, Duarte Pacheco Pereira faz descrição de um povo africano que se
assemelharia, em sua visão e na dos homens de quem ele escutou o episódio, aos cachorros.
Nunca poderemos saber como eram na realidade. Muitas coisas poderiam ser ditas para tentar
explicar tal situação maravilhosa, como, por exemplo, que sua aparência animalesca poderia
provir de seu tipo de vestimenta ou ornamentação típica. Mas, enfim, isso seria somente uma
suposição, que uma descrição como essa que evidencia práticas e pessoas abomináveis, ao
olhar europeu, é mostrada pelo navegador como se fosse simples e corriqueira.
88
Mas tentemos entender a perspectiva do explorador. No meio de tantos relatos
espetaculares, esse apenas seria mais um, contando, com certeza, com o seu aval. Breves
contatos permitiam apenas imagens superficiais e falaciosas sobre o outro, muito mais pautadas
na criatividade do imaginário social e nos preconceitos etnocêntricos do que num estruturado
conhecimento determinado pelo diálogo e pelo contato cotidiano, algo impossível na época
abordada.
Além de ser um reflexo, o navegador contribuiu, com suas descrições e
julgamentos, para a construção de uma imagem de espanto, carregada de etnocentrismo, sobre os
mais variados povos africanos e asiáticos, que atravessa os séculos. Isso, pois, o imaginário
social consegue colocar em contato tempos diferentes, entre um passar histórico lento, como é o
da cultura, com as rápidas transformações políticas, geográficas e de contatos entre diferentes
povos ocorridos na época dos descobrimentos. Enfim, o imaginário torna possível percebermos
na escrita desse explorador as suas influências e o que ele influenciaria, perspectivas às vezes
ocultas e que passariam despercebidas sem tal olhar.
Na longa transcrição que segue, diversos detalhes a respeito da construção da
feitoria-fortaleza de São Jorge da Mina são evidenciados pelo navegador:
E temos sabido que em toda a Etiópia de Guiné, depois de ser dada
criação ao mundo, este foi o primeiro edifício que se naquela região fez;
na qual casa Nosso Senhor acrescentou tão grandemente o comércio, que
em cada um ano se tira dali [...] cento e setenta mil dobras de bom ouro
fino; e muito mais em alguns anos se resgata e compra aos Negros que
de longas terras este ouro ali trazem [...]. E estes levam desta casa muitas
mercadorias assi como lambens, que é a principal delas, de que no
noveno item do quarto capítulo deste segundo livro falamos, e pano
vermelho e azul, e manilhas de latão, e lenços e corais, e umas conchas
vermelhas que antre eles são muito estimadas, assi como nós
estimamos pedras preciosas [...]. Esta gente até’gora foram gentios e
alguns deles são feitos cristãos; [...] Mas esta terra é muito doentia de
febres e razoadamente morrem aqui os homens brancos. [...] Em cada
um ano arma El-rei nosso senhor, por ordenança, doze navios pequenos
que vão carregados de mercadorias, os quais a este Reino trazem o ouro
que o feitor de Sua Alteza resgata; e isto além de três e quatro naus,
que também lá manda, carregadas de mantimentos, vinhos e mercadorias
que são necessárias. Os mercadores de que atrás falamos, que a este
castelo trazem o ouro, o trazem asnos nem outras bestas pera levarem
as mercadorias, que compram em maior preço a terça parte, e mais, do
89
que valem nestes Reinos. E estes escravos são comprados pela nossa
gente que o Sereníssimo Rei em seus navios manda duzentas léguas
além deste castelo, em uns rios onde está uma muito grande cidade a que
chamam o Beni, e dali os trazem. (ESO, p. 142-144)
Algo interessante a ser ressaltado no trecho é a concepção acerca de São Jorge da
Mina demonstrada pelo autor. Esta feitoria-fortaleza não era apenas um posto português na
África. Era uma forte marca da presença econômica, militar e cultural portuguesa. Muitas vidas,
esforços, guerras e despesas foram empregados em sua construção. A minoria de portugueses
necessitava de uma construção fortificada, pois se sentiam ameaçados pelos povos não-europeus,
em grande maioria, que viviam no mesmo espaço ou que poderiam vir a atacá-los. O que ocorre
é uma repressão pelo afastamento, tanto dos membros portugueses como do outro que não
poderia entrar em contato mais íntimo com os lusitanos. São Jorge da Mina era o elemento
concreto que permitia a coesão dos portugueses naquela determinada região africana, por meio
do cristianismo, do sentimento de pertencimento a Portugal, da luta contra o infiel, além de todos
os interesses econômicos e políticos.
A complexidade social, que no caso do Esmeraldo de Situ Orbis refere-se ao
encontro dos portugueses com sociedades africanas, leva à formação de agrupamentos de
pessoas diferentes que se apresentam umas às outras como pessoas estranhas. Nesse contexto, as
diferenças, as complexidades e as estranhezas sustentam a resistência à dominação que, no livro,
é ilustrada pelo europeu se fechando na fortaleza para se defender da ameaça do outro. Para
manterem sua pureza, os portugueses necessitavam, pelo menos no primeiro momento da
ocupação (fundação da feitoria-fortaleza), se segregar para manterem sua unidade na defesa de
seus interesses contra o outro, que sai prejudicado em sua imagem e existência, que são os
portugueses os invasores e é um português, Duarte Pacheco Pereira, que relata o episódio
segundo seus interesses. É assim que, em ambientes complexos ou não-familiares, os indivíduos
tendem a classificar tudo o que não conhecem como estranho, como uma ameaça, julgando a
situação de maneira instantânea, fechando-se inteiramente (SENNETT, 1997).
Chama-nos a atenção também a possibilidade da existência de alguns silêncios, de
forma geral, na escrita do navegador. Em muitos casos são obscuros os reais interesses
comerciais portugueses por meio da constante reflexão acerca da necessidade da cristianização,
90
tal como Coelho (1996) aborda para o caso de João de Barros.
70
O navegador não relata a difícil
situação de abandono que seus irmãos portugueses ficavam por diversos meses e até anos em
distantes regiões, protegidos apenas pelo poder e pela tecnologia de seus navios, artilharias e
fortificações.
71
Por fim, também são completas as omissões sobre os desregramentos dos
religiosos e de todo um conjunto de homens que se africanizavam, algo que logicamente
ameaçava a união e a força dos portugueses nos distantes territórios, além de ser altamente
negativo a um dos vários objetivos da obra, que era o de fortalecer e engrandecer os grandes
feitos portugueses. São com exemplos como esses que percebemos os silêncios da história,
que as sociedades funcionam também se calando sobre as partes ameaçadoras de si mesmas.
O contato com o outro é desagradável e perigoso, pois coloca em risco as defesas
arraigadas, as normas e a cultura dos portugueses. Tal relação explica a necessidade da
construção da feitoria-fortaleza e os silêncios sobre os prováveis portugueses desertores. Se um
de seus membros tomasse contato com as sociedades rivais (vistas como desordeiras, indignas de
confiança e indisciplinadas), um sério perigo ao grupo dos portugueses começaria a configurar-
se. Assim, a auto-imagem e a estima de Duarte Pacheco Pereira estão ligadas apenas às opiniões
dos membros de seu grupo, estando susceptível à sua pressão, que determina, restringe e delimita
o que se deve escrever ou não.
Mas os portugueses na África não buscavam, após certo momento inicial de
ocupação, tal como o analisado quando da construção de São Jorge da Mina, isolar-se
perpetuamente. O Esmeraldo de Situ Orbis torna explícita a evidência que os portugueses, em
nome de seus interesses, enfrentavam outros povos, combatendo-os. Mesmo sendo minoria, sua
maior capacidade tática e bélica
72
permitiam-lhes sentirem-se mais fortes e taxar os outros como
desorganizados e fracos. Estes não seriam apenas silenciados. O grande objetivo era a
70
Executou vários cargos adiministrativos importantes, como o de capitão de São Jorge da Mina e de tesoureiro da
Casa da Mina, possuiu duas capitanias hereditárias no Brasil, além de se destacar como historiador e gramático.
Entre suas importantes obras se destacam a Gramática da Língua Portuguesa (1540) e as Décadas da Ásia
(publicadas entre 1552 e 1563). Resultado de um antigo pedido feito por D. Manuel I, esta obra narra os feitos
portugueses na Índia, onde aparecem os constantes discursos acerca da necessidade de cristianização dos outros
povos.
71
Obras que abordaram este tema eram conhecidas algum tempo como pertencentes ao gênero da epopéia
portuguesa. Hoje, porém, a partir de outra perspectiva, fala-se em Portugal de “história trágico-marítima”.
72
O domínio de táticas novas de guerra foi a chave para a conquista e o duradouro domínio português na África e no
Oriente. Diferente das guerras terrestres medievais, onde a maior capacidade de resistência em longos conflitos
levava à vitória, as conquistas militares portuguesas no além-mar deveram-se a ofensivas rápidas, onde predominava
sua maior capacidade bélica e tática.
91
dominação, com a conversão ao catolicismo, à cultura européia e ao fim dos isolamentos, desde
que baseado no interesse português.
Os portugueses não eram tão esplêndidos e os africanos e muçulmanos, por sua vez,
não eram tão cruéis e desorganizados como Duarte Pacheco Pereira relata. Este é reflexo e
constituidor de um imaginário social que define direitos, deveres e hierarquias, inibe conflitos
sociais, propõe sentido, controla a vida coletiva e espaço ao exercício do poder. Tais
descrições do outro são resultado de uma relação de força entre as concepções impostas pelos
detentores de poder (os portugueses) sobre a posição de aceitação ou resistência que cada
comunidade produz (africanos, muçulmanos e asiáticos), não existindo práticas ou estruturas que
não sejam produzidas ou influenciadas pelo imaginário com o qual os indivíduos e grupos dão
sentido ao seu mundo. Uma lógica ufanista deveria ser associada à existência portuguesa, bem
diferente do que se queria mostrar em relação às outras sociedades inimigas dos seus interesses
(FALCON, 2000).
Um ótimo exemplo é este relacionado à fundação da feitoria-fortaleza de São Jorge
da Mina. Percebem-se as várias indisposições que os portugueses enfrentaram com os negros
nativos para conseguirem sua edificação, como as mercadorias tão simples e baratas aos olhos
dos europeus para os nativos tornavam-se objetos de grande valor, mercadorias que eram de
interesse apenas dos portugueses e doenças que os acometiam.
Como discutido anteriormente, são vários os passos do livro em que o navegador
expõe desavenças e severas críticas aos povos africanos e islâmicos que se tornavam empecilhos
aos objetivos portugueses, vistos como pessoas melhores, dotadas de coesão grupal, com
virtudes compartilhadas somente por seus membros, justificando inclusive a luta contra povos
diferentes. Mesmo constituindo uma minoria, os portugueses são o grupo detentor de poder.
Como mais um português, que com o poder da escrita, Duarte Pacheco Pereira estigmatiza o
mais fraco como pessoa de menor valor humano, sem um carisma grupal distintivo, atribuído a si
mesmo pelo seu forte etnocentrismo. Essa estigmatização torna-se uma arma nas disputas por
poder para os portugueses, além de um meio para mantê-lo, o que explica os constantes choques
culturais, militares e econômicos.
A seguinte passagem traz uma rica exemplificação da situação comentada
anteriormente:
92
E todos estes quatro lugares, Cepta, Alcácer, Tânger e Arzila, são destes
reinos de Portugal e de sua Coroa Real, porque vai ora em noventa anos
que Cepta foi tomada por força de armas aos Mouros por el-rei D. João,
o primeiro deste nome, da gloriosa memória, vosso visavô; e os outros
três por el-rei D. Afonso o quinto, vosso tio, de quarenta e sete anos pera
cá pelo mesmo modo, também por força de armas, aos Mouros os
tomou. Dos quais sempre se fez áspera guerra a estes inimigos da nossa
santa católica, a qual Vossa Alteza [D. Manuel], de bem melhor, com
muitas vitórias, cada vez faz mais multiplicar. (ESO, p. 56)
É notável neste trecho práticas de significação que produzem conteúdos suficientes
para a legitimação de relações de poder contra o inimigo de fé. Ao se identificar um inimigo
comum, no caso o muçulmano, não só se exclui o que é perigoso, mas também se unem todos
aqueles que são cristãos para os mesmos objetivos e com as mesmas atitudes, algo bem
característico das ações expansionistas e colonizadoras portuguesas no pós-Guerra de
Reconquista.
Sobre os costumes e os modos de vida das populações muçulmanas, destacamos o
fragmento:
E a gente desta terra toda fala a ngua dos Mandingas, e são macometas
que guardam a lei ou a seita de Mafona; são vestidos de camisas de
algodão azuis, e ceroulas do mesmo pano. São gente de muitos vícios,
tem as mulheres que querem, e a luxúria antre eles totalmente é comum;
são muito grandes ladrões, bêbados e mentirosos e ingratos; e tôdolos
males que há-de ter um mau, eles os tem. (ESO, p. 108)
Este trecho é claro em nos mostrar que Duarte Pacheco Pereira nunca conseguiria, e
nem poderia, ser fiel na retratação de seus contatos com os muçulmanos e na descrição de seus
costumes. Isso, porque, sua obra foi concebida no contexto do imaginário social ibérico anti-
islâmico, perspectiva esta que, sem sombra de vidas, valoriza e autoriza todo o etnocentrismo
e favorece as críticas que o navegador levanta contra tais povos. Sem falar que muitas dessas
descrições acentuam mais suas características ruins, segundo as concepções culturais ibéricas,
bem como são percebidas por ele de forma limitada, graças à constante luta contra o infiel.
93
Dessa forma, eles são ladrões, bêbados, mentirosos, ingratos e vivem em completa
luxúria, ou seja, possuem todos os males condenáveis. Esta inversão é uma das maneiras mais
eficazes que o navegador encontra para estabelecer a diferença, mostrando o outro como o
inverso de si, tornando a descrição fácil de se apreender entre os portugueses (HARTOG, 1999).
Na seguinte seleção de citações, a temática central mostrada e discutida pelo autor
gira em torno de uma ação muito ridicularizada e estranha aos olhares europeus: a circuncisão.
Por ser este um costume de povos de outras religiosidades, críticas e depreciações são feitas a
todo o momento aos muçulmanos, por causa dessa prática no continente africano:
E porá em campo o rei de Jafolo dez mil de cavalo e cem mil de pé. E
toda esta gente anda nua, senão os fidalgos e homens honrados, e se
vestem de camisas de pano de algodão, azuis e ceroulas do mesmo pano;
e toda esta gente, com a do grande reino de Mandinga e Tucurol e outros
negros, todos são circoncisos e macometas, os quais adoram na bulra da
seita de Mafoma. Esta gente toda é viciosa, de pouca paz uns com os
outros, e são muitos grandes ladrões e mentirosos, que nunca falam
verdade, e grandes bêbados e muito ingratos, que bem que lhe façam não
no agradecem, e muito desavergonhados que nunca deixam de pedir.
(ESO, p. 97)
E a gente que nesta terra habita [região do rio Grande] são Gogolis e
Beafares, e são sujeitos a el-rei dos Mandingas. E estes são muito negros
de color, e muitos deles andam nus e outros vestidos de panos de
algodão [...].
Esta gente tem muita abastança de arroz, milho e inhames e galinhas e
vacas e cabras. E quási todos estes são macometas e a Mafamede
adoram, e são circuncisos; é gente em que não há vergonha nem medo
de Deus. (ESO, p. 111-112)
E tôdolos negros do rio Grande até Serra Leoa, e dali por diante, são
gentios idolatras; e são circoncisos sem saberem razão porque atal
circoncisão fazem e costumam; sòmente dizem que o fazem por
andarem limpos, e outros dizem que não fariam geração se se não
circoncisassem, outros que assi o costumaram seus padres. E crera da
causa principal e razão porque cem neste error, é como quer que os
Jafolos, Mandingas e Tucurois são macometas, e por causa da sua lei são
circoncisos [...]. (ESO, p. 116)
94
Vários costumes locais são evidenciados, destacando-se os diferentes alimentos
consumidos, as estranhas vestimentas e, como já comentado anteriormente, a circuncisão, sobre a
qual o navegador busca ao final motivos e explicações de sua adoção entre esses povos. Esses
são vistos como sujos, sempre em constante guerra e, por serem muçulmanos, são
desavergonhados, não agradecem a ajuda dos portugueses e, diferente destes, não têm medo de
Deus.
O próximo trecho mostra bem essa visão de um incontestável cristão contra todos
aqueles que não seguem a sua fé:
assi que tem Fez, em toda a sua reibeira e costa de mar, duzentas e dez
léguas. A qual terra é muito fértil de pão e carnes e outros fruitos, com
muita pescaria do mar. E pode pôr o rei de Fez, em campo, cem mil de
cavalo. E as mercadorias que nesta terra há, é muito trigo e cevada e mel
e cera e tâmaras e anil e coirama e pilitaria e muitos e bons cavalos, com
outras cousas de grande preço que cada dia se compram e trazem a
estes Reinos. E as mercadorias que nesta terra há, que no reino de Fez
tem valia, é prata e panos vermelhos e azuis, verdes, roxos e amarelos; e
quanto mais finos, tanto tem mor valia. Também compram holandas e
lenços finos e outros lenços grossos a que chamam bordates; e tôdolo
gênero de armas e ferramenta compraram pela míngua que delas tem,
mas, por serem defesas pelos Santos Padres de Roma e por leis de
vossos reinos que se não vendam a infiéis, nenhuma pessoa se ousa
fazer. E tudo o que atrás é dito é a soma do reino de Fez e sua potência e
calidade de cousas que nele há; e a felicidade de sua gente é crerem na
abusão de seita de Mafona, que cuidam, verdadeiramente, ser
messegeiro de Deus, enviado e este indocto vulgo pera a remissão de
seus pecados; o qual tôdolos vícios e desonestidades pera o corpo
ensinou, e das virtudes da alma nenhuma doutrina lhe deu, porque toda a
sua principal tenção foi destruir, de todo, o que é grave de crer e
trabalhoso de obrar; e fàcilmente outorgou aquelas cousas a que os
viciosos e miseráveis homens soem a ser incrinados, maiormente os de
Arábia de cuja província Mafona foi natural, que sempre estudam em
luxúria, gula e rapina. E por esta preversa gente ser inimiga de nossa
santa católica, e os reis destes reinos, do tempo del-rei D. João da
gloriosa memória pera cá, lhe fezerem sempre áspera guerra e lhe
tomaram os quatro lugares, segundo é dito no terceiro item dos quatro
capítulos deste livro. (ESO, p. 73-74)
Parece-nos claro que tudo o que o muçulmano faz e o que é distanciam-se dos
hábitos e das verdades dos cristãos. Estes, no caso os portugueses, são sempre os detentores da
95
verdadeira e possuidores da força militar para sempre reprimir seu inimigo bárbaro, ao qual
em nada se assemelham.
Um determinado conjunto de regras, comportamentos e crenças é colocado como
norma de conduta entre os portugueses na escrita do navegador. É por meio dessa avaliação que
ele mensura as outras sociedades, que acabam recebendo uma enorme carga de negatividade,
sendo entendidas como de comportamento estranho, vexatório e exótico.
Apesar de acontecer contra as vontades dos muçulmanos, fortalezas e atividades de
explorações econômicas portuguesas sempre são bem-sucedidas. Muitas mercadorias provindas
dos infiéis, mesmo sendo muito especiais e valiosas, sofrem, pelo menos neste discurso do
navegador, restrições à aquisição portuguesa, já que as leis papais e do reino português as
proibiam. Isto se torna algo bem contraditório, uma vez que, mesmo sendo bem declarada a boa
qualidade dos produtos, vemos um exemplo em que o etnocentrismo supera os interesses
econômicos. Os portugueses precisavam dominar e reprimir os muçulmanos, que, em sua
visão, Maomé lhes teria ensinado somente vícios e desonestidades. Isso revela um
desconhecimento completo dos dogmas islâmicos pelo navegador, situação que em nada é
estranho na escrita de um ibérico que ainda respirava a Reconquista e agora promovia a
expansão cristã.
Os muçulmanos dominaram por vários séculos o território que formaria o Estado
português. Inclusive, este teve seu início marcado pela expulsão do elemento muçulmano, que
não sairia tão rapidamente do imaginário social. Eles não deixaram de ser um empecilho aos
interesses lusitanos pela continuidade de seu afastamento,
73
pela vontade da conquista de novos
territórios africanos e de toda a necessidade de expansão da católica. Por isso, o conflito e a
estigmatização do muçulmano são características centrais nesse período marcado por um forte
etnocentrismo.
E para encerrar essa discussão segue a última citação da obra:
[Interessante o que diz sobre os habitantes da região da Mauritânia, que
são chamados de Mauros] e, por corrupção do vocábulo, nós a todos
universalmente por Mouros os nomeamos.
[...] e diz Plínio, no seu terceiro livro da Natural História, capítulo
primeiro, que, por a Europa ser mais excelente que tôdalas outras partes,
73
Só que agora no norte africano próximo ao território português.
96
ela nos o criador dos povos vencedores das gentes; e o seu sito e
assento é muito mais fermoso que tôdolos outros. E alguns antigos
escritores disseram que, por Europa ser de tanta bondade, estimaram que
fosse não a terça parte da terra, mas a metade dela. Nem devemos
duvidar que de cidades, vilas e fortalezas cercadas de muros, e outros
sumptuosos edifícios, Europa precede Ásia e a África, e assi as precede
de muita e melhor frota de naus melhor aparelhadas e armadas que
tôdalas outras partes. E não podem negar os Asiáticos e Africanos que
toda a abastança das armas e polícia dela, com outras muitas artilharias,
Europa possui, e, sobretudo, os mais excelentes leterados em tôdalas as
ciências que o orbe em si tem, com outras muitas cousas de vantagem de
todo o circuito da redondeza.
E porque sua excelência é tanta que em poucas palavras se não podem
compreender, nos pareceu melhor o calar que pouco escrever. (ESO, p.
27-28)
Neste ponto, podemos desenvolver outras reflexões sobre a concepção eurocêntrica
e sua conseqüente atitude etnocêntrica, tão antiga que, como se no livro, remonta aos autores
clássicos da Antiguidade.
Além disso, o próprio Esmeraldo de Situ Orbis, como observado, por se inserir
em uma época de encontros e choques culturais, é tanto um reflexo quanto uma força
promovedora do longo processo de construção e manifestações do eurocentrismo e do
etnocentrismo.
Tal concepção forjou a população européia, herdeira das formas de pensamento da
civilização greco-latina. As estruturas mentais e culturais dos europeus já traziam de longa data a
percepção da diferença e o direito à defesa de sua manutenção como atitude de sobrevivência.
74
Os gregos constituíram uma cultura etnocêntrica, que em sua opinião justificava a superioridade
de sua civilização na originalidade de suas formas de pensar. Sendo assim, os ibéricos, um dos
povos herdeiros desse legado, acentuavam essa concepção cada vez mais ao se fechar em si
próprios por causa da ameaça islâmica, fortalecendo o cristianismo como ideologia de
resistência. Mas esse caminho a o século XV nada teve de linear ou pacífico, em que o
74
Isto já era algo manifestado em Heródoto, Estrabão e Aristóteles, que começaram a idealizar e a justificar
racionalmente a alteridade. No Liceu, Aristóteles já discutia as primeiras oposições entre bárbaros e helenos,
validando assim a conquista de territórios pelos gregos. As mesmas questões serão legitimadas por Heródoto e
Estrabão, e sua corrente geográfica descritiva, mostrando oposições e instrumentos mentais que permitissem a
separação.
97
eurocentrismo passou por constantes processos de mudanças e transformações até chegar a sua
forma no Portugal de Duarte Pacheco Pereira (PINTO, 1992).
Não dúvidas de que uma ligação legítima aos escritos de Plínio e de outros
autores clássicos são incorporados ao Esmeraldo de Situ Orbis, tendo também grande relação
com a tradição européia, já muito antiga, de sempre recorrer às auctoritates. Tudo isso não é
apenas uma simples reiteração feita pelo navegador, mas uma mesma e antiga posição
eurocêntrica e etnocêntrica que se transforma.
O etnocentrismo era inevitável na época das grandes viagens marítimas, mesmo
porque ainda não existiam estruturas mentais para se pensar o contrário. Assim, antes de serem
físicas, as fronteiras foram culturais, fazendo com que os lusitanos se opusessem a outras
cosmologias e religiões, o que gerava os confrontos.
Os portugueses de Duarte Pacheco Pereira não conseguiam aceitar as diferenças
culturais dos outros povos, levando ao trágico resultado da imposição política e comercial
violenta, ao preconceito e à desqualificação das outras etnias, nivelando os mais diferentes povos
a uma igualdade vil, rotulada como selvagens ou sem cultura. Os portugueses, como em citações
anteriores do Esmeraldo de Situ Orbis, por exemplo, não chegavam a perceber que os diversos
povos tinham diferentes critérios de valor atribuído aos mais variados produtos e, por isso,
reivindicavam para si maior aptidão comercial e cultural, sendo incapazes de compreender outros
modos de vida, algo que naturalmente era impossível nos séculos XV e XVI.
Não temos mais Grécia ou Roma na luta contra os bárbaros, mas ainda temos uma
luta travada, em outras diretrizes, por Portugal contra o negro, o estranho, o muçulmano e contra
todos aqueles que demonstravam resistência à sua vontade de expansão. Duarte Pacheco Pereira
ainda mostra uma poderosa Europa que é a região mais formosa do mundo, lugar dos homens
mais fortes, berço e assento de todo o conhecimento verdadeiro. Liderada pelo grande povo
português, tão elogiado pelo navegador, percebemos a continuidade da antiga posição
eurocêntrica. Juntamente com esta, ele é um reflexo de toda a história, da linguagem e da cultura
ibérica para produzir não o que sua sociedade é, mas o que quis se tornar diante de si mesma e do
outro, tanto por suas características afins como por tudo que lhe é diferente.
98
3. O CONCEITO DE EXPERIÊNCIA NA DESCOBERTA DE NOVOS MUNDOS
E assi seguiremos nosso prepósito nesta tão trabalhosa jornada, da qual a experiência
nos ensinou a verdade de tudo o que adiante dissermos.
Duarte Pacheco Pereira
Neste último capítulo, o objetivo central é compreender o conceito de experiência
em Duarte Pacheco Pereira. Para isso, diversas interpretações que se relacionam, influenciam e
são conseqüência dessa discussão serão traçadas, para que ao final possamos entender o local
importante do navegador na história da formação do pensamento e da ciência moderna, a partir
do que ele foi reflexo e do que desenvolveu em sua época e lugar de escrita.
3.1 - Tensões entre o conhecimento prático e o teórico universitário
Muito frutífera é a discussão sobre a origem dos conhecimentos dos autores
clássicos e do medievo que chegaram ao navegador. Uma explicação mais rápida e simples
apontaria que a universidade em Portugal seria a responsável pela difusão desses saberes e que
até mesmo ela se inserira no processo de desenvolvimento científico que culminou, séculos
depois, na ciência moderna. Mas a verdade é que as coisas não se deram desta forma.
Conhecimentos práticos como os desenvolvidos pelos navegadores não eram aceitos facilmente
pelas universidades ainda muito presas a concepções tradicionais, além disso, as traduções dos
clássicos chegaram à Península Ibérica também por outras vias. Por tudo isso, Duarte Pacheco
Pereira torna-se um personagem central na formação do quadro intelectual português, entre o
choque dos novos conhecimentos trazidos pelas descobertas e a tradição universitária.
As universidades surgem em fins do século XII em Paris, Oxford e Bolonha e
difundiram-se por todo o continente europeu até o século XV, configurando-se como locais
reconhecidos por seu saber. Diferente das escolas monásticas ou catedrais, as universidades eram
99
studia generalia, possuindo estado jurídico específico fundado por uma autoridade universal, um
Imperador ou o Papa. Contribuíram para a unificação da cultura latino-cristã e para a difusão do
conhecimento, graças à permissão concedida aos docentes de ensinarem em qualquer local, ao
grande deslocamento dos estudantes e ao uso do latim como instrumento de comunicação culta,
o que tornava as universidades medievais espaços onde as idéias circulavam rapidamente. O seu
método escolástico, baseado na lectio, na quaestio e na disputatio, marcaria profundamente a
cultura européia, sendo prova disso a compreensão de vários filósofos modernos, como, por
exemplo, Descartes, que é possível se nos remontarmos aos textos daqueles autores que estes
detestavam (ROSSI, 2001).
Mas infelizmente, em relação ao caso português, a verdade é que muito pouco ou
nada se sabe a respeito da atividade científica e dos métodos de estudo da Universidade de
Lisboa nos séculos XIV e XV. Muitos estudiosos do reino procuravam em outros países os
cursos que Portugal não lhes oferecia. Os teólogos eram mais atraídos para Paris, enquanto os
juristas e estudiosos das humanidades para Bolonha,
75
na Itália (MARTINS, 1997).
Tal deficiência de conhecimento aponta não uma maior dificuldade em nossa
compreensão do século em que o navegador realizou suas experiências e formulou suas
concepções, mas, por outro lado, informa sobre a menor importância da universidade para a
construção do conhecimento científico em Portugal.
Por ser seu quadro de estudos lacunar e fragmentado, é inegável concluir que a
universidade portuguesa teve um papel modesto em comparação ao que ocorria na Itália e na
Europa do Norte. A situação portuguesa, porém, não é a única. Sendo um espaço internacional,
somente as universidades freqüentadas por estudantes e professores de diversos países
desempenhavam um importante papel na formação de quadros intelectuais e políticos em seus
respectivos países e na Europa como um todo. Durante essa época de estudo aqui abordada, a
universidade portuguesa nunca foi um espaço internacional, permanecendo com influência mais
regional (MATTOSO, 1997).
75
O humanismo italiano e sua renovação intelectual e artística trouxeram influências para várias universidades
européias, apesar de seus princípios serem muito diferentes dos que determinaram a formação destas. Seu objetivo
de estudo não era a descoberta da verdade pela razão, mas a procura da harmonia e do belo com o apoio da
sensibilidade pessoal. Como era grande o número de estudantes portugueses em universidades italianas ao longo do
século XV, era comum o seu regresso e conseqüente trabalho como professores nas universidades portuguesas. Com
isso, é gico concordar que traziam grandes influências humanistas, sobre o que, inclusive, a historiografia muito
pouco conhece em relação aos destinos dos Estudos Gerais.
100
Mas um ponto importante que precisa ser abordado é que o humanismo científico
da universidade portuguesa foi anterior ao seu humanismo literário e ao artístico, colocando bem
cedo à disposição de eruditos e estudiosos da ciência um grande número de obras no país.
Exemplos importantes para Portugal, divulgados em latim, português e até em outras línguas
foram Plínio, Pompónio Mela, Dioscórides (40-90), Estrabão, Galeno (129-199), Macróbio
(século V) e Avicena (980-1037). Paralelamente, circulavam também autores medievais hebreus
e árabes, como Massahala (séculos VIII-IX), Alfragano, Ibn Safar, Azarquiel (1029-1100), Ibn
Ezra (1092-1167) – todos eles astrônomos.
Porém, o processo evolutivo desse humanismo científico iria tomar posteriormente
aspectos que limitariam, contraditoriamente aos seus inícios, o desenvolvimento científico com a
justificativa implícita de que os conhecimentos o poderiam ultrapassar os saberes dos tratados
clássicos. Cultivando sobretudo a língua, o humanismo em Portugal imitava os clássicos e os
modelos italianos, estudando a filosofia grega e a escolástica. E vai ser justamente com esses
humanistas “ortodoxos” que a ciência encontraria suas principais barreiras, mesmo tendo
contribuído em vários domínios. Uma tendência conservadora tomava aqueles que não
ultrapassavam as fronteiras da bem conhecida Europa, que acabavam por se colocar contra
qualquer divergência com as obras clássicas que aparecesse em resultado das experiências
marítimas. Por outra via, os homens das viagens e das explorações se defrontavam com
realidades distantes e com muitos dados inesperados, evidenciando erros nos grandes clássicos
(ALBUQUERQUE, 1987).
A modéstia da universidade portuguesa também se evidenciava por não possuir
prédios próprios, ser uma corporação de estudantes, e não de mestres, que pagavam parte do
ensino e da organização escolar, não havendo também uma aglomeração de estudantes
estrangeiros.
Não se separavam as faculdades como subdivisões administrativas do Estudo Geral,
tão importantes futuramente e que existiam na maioria das universidades européias desde o
século XIII. Somente a partir do século XV encontram-se vestígios claros dessa divisão, que,
porém, não indica grande influência nas estruturas da universidade.
Mesmo com vários privilégios e aumento de rendimentos dados pelos soberanos
portugueses, foi somente no início do século XVI, após a construção do Esmeraldo de Situ
Orbis, que elas atingiriam certa solidez, com o interesse pelas ciências positivas (naturais) e com
101
o aumento do número de intelectuais estrangeiros recebidos pela corte (MATTOSO, 1997;
OLIVEIRA, 1997).
Uma possível exceção é a carta de doação de 12 de outubro de 1431 do Infante D.
Henrique. Tal documento cita gramática, lógica, retórica, aritmética, música, geometria, filosofia
natural e moral. Estas artes liberais não são dispostas como o começo de seu ensino, mas tem o
objetivo de reforçar a sua importância. Isto se explicada pelo claro interesse de D. Henrique no
desenvolvimento e na fundamentação da ciência náutica, que é inegável a vinculação daquelas
disciplinas aos cálculos matemáticos, à geometria e à astronomia. Além disso, foi criada a
cadeira de astrologia no curriculum das Artes por determinação do Infante que, mesmo com seu
caráter não científico, contribuiu para o conhecimento do céu e para o desenvolvimento de
instrumentos náuticos e de tábuas que forneciam coordenadas sobre os astros.
Mas, ao mesmo tempo em que essa carta de doação indica uma aproximação entre
as universidades e as navegações, sua relevância não foi tão grande ao se constatar que, mesmo
com a criação de uma cadeira de astronomia por D. Manuel, esta não fora ocupada por
marinheiros conhecedores da prática. Diferentemente do que se poderia imaginar, os pilotos e
cartógrafos recebiam seus conhecimentos em aulas para eles ministradas nos armazéns da Índia
(VALENTIM, 2007).
Na verdade, é no próprio contexto histórico da Península Ibérica, em fins da Idade
Média, que se podem encontrar as explicações para o desenvolvimento científico necessário para
o início das navegações, já que o restante viria apenas com a experiência das próprias viagens.
Portugal foi condicionado em sua evolução por quatro fatores de grande
importância: a presença muçulmana, a maturidade precoce das línguas peninsulares, a debilidade
da universidade e o papel excepcional dos judeus. Com isso se explica o surgimento de uma
ciência de característica prática, distante das perspectivas teórica e escolástica das universidades
européias. Prova disso são os próprios estudos sobre o processo das viagens marítimas
portuguesas. Estas apontam a existência de uma cultura científica portuguesa na primeira
metade do século XV,
76
muito influenciada por estes fatores condicionantes (PACHECO, 1997).
76
Alguns exemplos: o conhecimento do Tratado da esfera, de Sacrobosco, comprovado pela sua presença em
Alcobaça e por ter sido citado no Livro de montaria, de D. João I e no Esmeraldo de Situ Orbis; a divulgação de
tratados astrológicos, como o Lybro de magyka, de Juan Gil, e o Libro complido en los judizios de s estrellas, de
Aly Aben Ragel.
102
Vale salientar também as características das obras que compunham as diferentes
bibliotecas do reino, que podem evidenciar os possíveis caminhos que estas percorreram até
chegar às mãos de diversos práticos como Duarte Pacheco Pereira. Nas livrarias monásticas e
particulares portuguesas do século XV, predominavam obras de origem medieval, mas havia
também sinais de interesse por obras clássicas. Alguns exemplos de autores encontrados nesse
contexto, como na biblioteca de D. Afonso, foram: Homero, Aristóteles, Plínio, Cícero (106-43
a.C.), Virgílio, Salústio (86-34 a.C.), Ptolomeu, Valério Máximo (século I a.C.-século I d.C.),
Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Flávio Josefo
(37-103), Tácito (55-120), Suetónio (69-141) e Dante (1265-1321). Exemplos medievais são:
Isidoro de Sevilha (560-636), Petrarca (1304-1374), Boccaccio (1313-1375), Pier Paolo Vergerio
(1498-1565). Também não faltam a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja, filósofos cristãos,
além de teólogos e diversos outros autores religiosos.
notícias sobre a livraria da universidade do século XV e início do XVI são
poucas. É lógico que esta tinha a sua própria biblioteca, além dos mestres possuírem seus
próprios manuais e tratados, alguns ainda manuscritos e outros impressos, uma conseqüência
inclusive, no caso destes últimos, da difusão proporcionada pela tipografia
77
na Itália, na França
e na Alemanha, que cedo começou a publicar grandes textos clássicos no próprio grego e no
latim (ALMEIDA, 1999; MARTINS, 1997).
Desde o século XIV uma nova realidade marcava as universidades européias com o
divórcio entre os seus saberes e a sociedade em geral. Isso porque os saberes detidos pelos
grupos ligados às práticas mecânicas e técnicas, como os de artesãos, construtores, relojoeiros e
navegadores, conseguiam cada vez mais importância e reconhecimento pela sociedade do que os
provindos das academias. Tal fenômeno ocorria por causa dos saberes técnicos proporcionarem
sempre maior capacidade de respostas aos novos desafios surgidos na sociedade, que atravessava
grandes transformações. Outra grande prova dessa separação é a farta literatura ligada às
77
O aparecimento da tipografia veio acelerar de diversas maneiras a circulação das idéias científicas, restritas
anteriormente quando o suporte da informação ainda era baseado na escrita manual e seu meio de divulgação era a
oralidade. Uma enorme quantidade de livros agora era disponibilizada, tanto em número quanto em variedade de
obras, surgindo como algo revolucionário que ao mesmo tempo substituía os complexos textos sem pontuação.
Johannes Gutemberg e sua técnica desenvolvida no século XV possibilitaram a edição da Bíblia em 1456, técnica
esta que continuaria sem alterações até o século XIX. Já em 1480 existiam tipografias em mais de 110 cidades
européias, sendo que em 1500 o número subiria para 286, com 20 milhões de exemplares em circulação, e no século
XVII subiria para cerca de 200 milhões. Sua importância chegou ao próprio Duarte Pacheco Pereira, que, como
vimos no primeiro capítulo, muito provavelmente usou edições impressas de autores clássicos.
103
viagens. Esta era escrita, em sua esmagadora maioria, por pessoas que não tinham formação
universitária, algo característico da modernidade valorizadora do conhecimento prático, tal como
ocorrera no caso do Esmeraldo de Situ Orbis.
No início do mundo moderno, as universidades ainda se mantinham presas a formas
de ensino e aprendizagem esgotadas, resistindo às inovações intelectuais e à modernidade
filosófica e científica (VALENTIM, 2007).
Na Península Ibérica, tudo o que se recebia com atraso de outras regiões da Europa
combinava-se com a antecipação de tudo o que se produzia internamente de pioneiro. Tal
situação tornava-se de difícil assimilação pelos homens letrados, os quais, tendo regressado de
várias universidades estrangeiras, não conseguiam se divorciar de uma perspectiva mental
livresca e separada da realidade prática. Conseqüência direta foi o desenvolvimento separado das
correntes de escrita nacional portuguesa e a de importação. A produção ligada às novidades da
expansão marítima chocava-se com a hegemonia universitária, que a colocava numa condição
menor de expressão cultural. Prova disso foram os estatutos manuelinos, que vigoraram até 1544,
por aproximadamente quarenta anos. Seu plano de estudo e sua prática rotineira de ensino se
caracterizavam por certo imobilismo, ou seja, pela não-aceitação nas universidades da nova
dinâmica científica e cultural trazida pelos Descobrimentos.
É por isso que as novidades em Portugal apareceram somente com os manuscritos
feitos pelos próprios protagonistas das viagens e das explorações. É nessa vontade de
transformação que Duarte Pacheco Pereira se destaca. De uma concepção estática para uma
dinâmica de inteligência humana, por uma experiência a ser realizada, que era empírica e
pessoal.
Assim se verificava a capacidade humana de demonstrar o mundo e conhecer seus
mistérios, mudando a própria concepção de pessoa. Abria-se caminho para a teorização
antropocêntrica, característica de um novo humanismo, que não se restringia somente à imitação
dos antigos, mas que rumava ao Renascimento com a criação de uma consciência de indivíduo
autônomo, confiante em sua capacidade criadora e conquistadora.
Novidades lançadas por práticos eram rechaçadas, por alheamento ou
incompreensão, pelos humanistas livrescos universitários, podendo partir daí uma hipótese para
explicar os possíveis motivos que fizeram com que autores como Duarte Pacheco Pereira não
tivessem uma devida e larga divulgação pela imprensa, invenção fundamental de difusão do
104
humanismo, o que poderia também ser outra possível explicação para o desaparecimento de sua
obra durante séculos
78
(MENDES, s.d.; ALBUQUERQUE, 1987).
Porém, é digno de nota o fato de que os navegadores e pilotos escritores tinham em
sua formação o humanismo, concepção então dominante. Eles próprios eram humanistas, mas de
um grupo ligado às explorações – do grupo dos práticos.
Mas, é claro, que esses exploradores portugueses não podem ser vistos como
homens de cultura superior, de formação acadêmica regular ou como verdadeiros naturalistas.
Em seus relatos nota-se a surpresa que muitas vezes é ingênua diante de lugares, pessoas ou
animais, cuja existência, por eles desconhecida, atraia-lhes a curiosidade. Grande parte do que
descobriram, sobretudo em relação à fauna, foi uma descoberta para sua falta de
conhecimento (DIAS, 1982).
Tudo isso contribuía decisivamente para o Renascimento e a formação do novo
espírito crítico na Europa, possibilitando ao homem sua interferência ou correção de qualquer
idéia errônea que circulava, tal como o navegador começou a fazer.
3.2 - Heranças e inovações
As antigas concepções que afirmavam ser a Idade Média um longo período de
estagnação das atividades intelectuais estão superadas. Nela ocorreu uma grande quantidade
de revoluções intelectuais, além de diversos desenvolvimentos tecnológicos muito importantes e
influentes em sua época, tais como a construção de enormes catedrais, moinhos de vento, o uso
do arado e a invenção do estribo. A idéia de barbárie e escuridão é agora apenas um mito
78
Mas é importante salientar que isto não vale para todos os casos. Em alguns destes o humanismo teve importante
papel na divulgação, fora de Portugal, das novidades das viagens marítimas. Vários humanistas de outras partes da
Europa se deslocaram para Portugal em busca de novas informações acerca dos descobrimentos, tal como ocorreu
com os alemães Martim Behaim e Hieronymus Münzer. Em outra via, humanistas portugueses levaram informações
sobre as navegações a outros círculos eruditos portugueses, como foram os casos de Pedro Margalho e de Damião de
Góis. Para países estrangeiros partiam também bolsistas portugueses em busca de estudos nas universidades
européias, além de importantes obras portuguesas que eram traduzidas, sendo alguns exemplos a de João de Barros
para o italiano, de Fernão Lopes de Castanheda para o espanhol e de Garcia da Orta para o latim. O interesse
europeu pelos descobrimentos se revela também em cópias das obras de D. João de Castro, Américo Vespúcio e do
próprio Duarte Pacheco Pereira (há notícias de que no final do século XVI uma pia do Esmeraldo de Situ Orbis
chegou à Espanha) que correram a Europa.
105
construído pelos humanistas do século XVI e seus seguidores, algo que interessantemente não
ocorre na escrita de Duarte Pacheco Pereira, que, além de utilizar diversos autores clássicos,
também utiliza outros que se destacaram no medievo.
Também é fato que a Idade Média nunca perdeu total contato com a cultura
clássica. Prova disso foram os dois renascimentos nela ocorridos: um entre os séculos VIII e IX,
denominado Renascimento Carolíngio, e outro, mais amplo, entre os séculos XII e XIII, que veio
acompanhado pelo renascimento urbano e comercial, pelo aparecimento das universidades e pela
tradução de diversas obras clássicas (ALBUQUERQUE, 1983).
Tais traduções foram de grande importância ao servir de base para a proliferação
dos conhecimentos clássicos nos séculos posteriores, já que importantes obras eram traduzidas
para o latim a partir dos originais gregos ou de outras traduções árabes. Essa primeira onda de
tradutores preocupava-se com as obras em si. Já no movimento dos séculos XV e XVI a
preocupação com o culto das línguas clássicas passava para muitos a ser paralelo ao maior
interesse pelo conteúdo da obra. E é justamente este momento que se reflete na escrita do
navegador. São de traduções como essas que surgirão as traduções para as línguas vulgares tão
utilizadas por ele. Além disso, suas concepções e seus debates com todo o conhecimento antigo
constituem prova da grande preocupação com o conteúdo dessas obras, aceitando-as ou
refutando-as ao longo das novidades trazidas pela expansão marítima (ALBUQUERQUE, 1987).
No século XIII, uma nova forma de pensamento (uma mudança intelectual)
buscava o conhecimento quantitativo em detrimento do qualitativo antes reinante, levando a
inovações tecnológicas que permitiram aos europeus conquistarem grande parte do mundo ao
longo do século XVI. Neste, a Europa Ocidental constituía a região do globo que mais pensava
quantitativamente, tornando-se líder na ciência, na tecnologia, nas navegações, nos armamentos,
na burocracia e na prática comercial, além de desenvolver grande beleza estética nas artes.
Compreender esse processo de transformações e desenvolvimentos nas diversas áreas de
conhecimento é entender toda a transição, ou seja, o momento intelectual do navegador. Este
fora herdeiro de diversas mudanças ocorridas ao longo de alguns séculos, que são muito
importantes neste estudo, que busca compreender o seu importante lugar e conseqüentemente
dos homens de sua época no processo de desenvolvimento intelectual europeu, que culminará
com o advento da ciência moderna no século XVII.
106
O mundo no pensamento medieval era humanamente compreensível, mas não era
essencialmente uniforme. Como a sua previsibilidade derivava de Deus, não chegava, porém, a
ser caótica. É por isso que o simbolismo era muito forte nesse contexto, que era mais fácil
conseguir explicações por essa concepção do que por uma descrição abstrata. Os europeus dessa
época buscavam explicações conclusivas e satisfatórias, já que seu universo era de qualidades e
não de quantidades.
Algumas mudanças tiveram importante participação na viragem dessa perspectiva
qualitativa para a quantitativa, como a ascensão do comércio, do Estado e da erudição. Mas fora
no contexto social das cidades que as grandes transformações ocorreram. Estas deixavam de ser
locais apenas de relações comerciais e tornavam-se também lugares de intercâmbios intelectuais,
surgindo as primeiras universidades e a figura do intelectual, considerado, a partir dos culos
XII e XIII, um homem que segue uma profissão, ou seja, semelhante a qualquer outro e
responsável por elaborar e transmitir as artes liberais (CROSBY, 1999; ROSSI, 2001).
Uma burguesia alfabetizada e mais perita em números do que a nobreza e o clero,
em fins da Idade Média, ganhava espaço. Eram estes cambistas, comerciantes, advogados,
escribas e técnicos em diversas áreas, tais como navegadores. O antigo modelo qualitativo perdia
espaço. As antigas explicações não correspondiam mais com as necessidades agora presentes,
não dando mais sentido, confiabilidade e nem reduzindo as incertezas sobre tantos territórios e
sociedades descobertas. Uma nova visão sobre o mundo surgia vagarosamente por meio de
heranças e das experiências realizadas no período de transição entre a Idade Média e a Moderna,
diferenciando-se na quantificação dos fenômenos físicos, na precisão e na matemática.
No medievo, e também entre alguns renascentistas, o espaço era hierarquizado,
visão reforçada ainda pela teoria ptolomaica, sendo óbvio que a Terra, por ser o centro de tudo e
onde caía tudo o que tinha peso, era diferente do restante da criação.
Mas agora o espaço passava a ser homogêneo e mensurável, ou seja, passível à
análise matemática, podendo ser compreendido pelos seres humanos. Um bom exemplo foi o da
estipulação do Tratado de Tordesilhas, no qual, como visto no primeiro capítulo, a participação
de Duarte Pacheco Pereira fora de grande importância. Neste tratado, Portugal e Espanha
precisavam dividir todo o mundo fora da cristandade, em terras estranhas e ainda nem
conhecidas ou exploradas, passando inclusive por longas áreas marítimas. A solução foi o uso da
medição em graus, o que nos evidencia não a grande capacidade de mensuração, mas prova
107
também a confiança dos europeus renascentistas na homogeneidade da superfície terrestre,
mesmo em áreas inimagináveis. Assim, os ibéricos (e principalmente os portugueses)
mostravam-se capazes de analisar corretamente o mundo na teoria, que o faziam na prática
antes mesmo dos demais europeus.
O visual, a experiência e o manipular das diversas questões da realidade cotidiana
foram prova da grande mudança mental do período de vida do navegador. Saía-se de uma
sociedade onde o principal canal de autoridade era o ouvido, orientado para as Escrituras e os
Padres da Igreja, para outra onde a orientação maior advinha dos olhos, destacando-se os
relojoeiros, os desenhistas de mapas, os navegadores e os artesãos, os quais demonstravam a
possibilidade humana na compreensão do universo. Os portulanos e os conhecimentos e mapas
antigos não eram mais suficientes para a navegação em águas desconhecidas, diferentemente
do que ocorria nos mares fechados europeus. Agora, os navegadores arriscavam suas vidas
confiando nas bússolas e em instrumentos novos para eles, como o astrolábio, o quadrante e o
esquadro. Tal aparelhagem somada ao acúmulo de experiência, além de ainda uma boa dose de
palpites, é o que possibilitava o desbravamento do mundo por eles (CROSBY, 1999).
Nesse novo espaço, agora sem fronteiras, o homem ganhava uma nova consciência,
passando a ser conhecedor e dominador da natureza, protagonista de sua própria história. Mas
não se pode esquecer que o processo de expansão marítima foi apenas um dos eventos que
trouxeram novas concepções de vida na Europa Ocidental. Os homens promoviam a derrubada e
a transformação de pressupostos antigos e a construção de diversos outros por todo um processo
dinâmico da história (DIAS, 1982).
Nesse momento, iniciou-se a generalização da atitude experimental que corroborou
com o processo evolutivo que forneceu importantes bases para o desenvolvimento da ciência
moderna no século XVII. Em Portugal, fora o Esmeraldo de Situ Orbis o primeiro texto a se
encaixar nesse processo. Ele é uma prova de que as transformações revolucionárias do
pensamento não ocorrem de forma imediata, que a rejeição de uma antiga concepção de
pensamento não se ao mesmo tempo de sua substituição por outra, mas por meio de um
processo descontínuo, cheio de continuísmos e avanços, ocorrendo ao longo de séculos.
Dava-se na sociedade portuguesa, a partir de meados do século XV, fortes
transformações culturais marcadas pelos primeiros passos do pensamento moderno. O
108
dinamizador de tal processo era a busca por resoluções de questões do cotidiano sem respostas,
daí se concentrando no campo do conhecimento empírico (ALMEIDA, 2001).
Mas é importante esclarecer também que diversas especificidades relacionadas à
história portuguesa levaram-na a certos desenvolvimentos e avanços muito importantes que
trouxeram não o processo de expansão marítima, mas a própria formação de uma
intelectualidade científica, sendo Duarte Pacheco Pereira um importante nome. O seu livro foi
expresso neste período por razões precisas, podendo ser compreendido e interpretado ao
entendermos o seu lugar e a sua função no sistema de sua sociedade de origem.
Nessa época, a ciência em construção em Portugal ainda se apegava muito ao
tradicional, fato característico de seu momento de transitoriedade, que não ultrapassava os
parâmetros do olhar empírico. Isso porque, no período anterior, diferentes paradigmas eram
instituídos. O paradigma islâmico, com todas as heranças clássicas e contribuições originais,
entrou na Península Ibérica entre os séculos XI e XII, sendo sucedido pelo paradigma
mediterrânico de meados do século XIII em diante. no século XIV, outros modelos de maior
aplicabilidade eram o aristotélico, o euclidiano, o ptlomaico e o boeciano. Porém, estes quatro
eram agentes de tradição científica, não sendo, pois, capazes de responder aos novos dinamismos
culturais do período. Já o islâmico e o mediterrânico, que se somaram ao judaico,
79
foram os
responsáveis pelas inovações, trazendo rupturas em fins do século XV, representando algumas
das bases das novas idéias de transformação da cultura portuguesa e evidenciando o complexo
quadro de conhecimentos existente.
É importante salientar que somente a experiência provinda das atividades no mar
foi a origem de um conhecimento original dos portugueses, sendo o utensílio de passagem do
dado ao resultado, que as descobertas exigiam um grande esforço de compreensão e fortes
mudanças das estruturas mentais herdadas pelos ibéricos (ALMEIDA,1999 e 2001).
Prova disso é a escrita de Duarte Pacheco Pereira. Nela, o mar aparece como fonte
de conhecimento e de agregação comunitária portuguesa no início dos tempos modernos. A
perplexidade tomava os portugueses ao conhecerem regiões que nenhum mapa ou saber
consagrado autorizavam existir. Foi penosa a libertação da autoridade dos antigos, fazendo com
79
Presentes na Península Ibérica, os judeus constituíram-se como mais uma fonte de conhecimentos científicos
clássicos e indo-árabes. Também foram eles os responsáveis pelas transferências culturais proporcionadas pela
Escola de Tradutores de Toledo e pela difusão e criação de diversos tipos de saberes (por exemplo: médicos, das
mais variadas áreas técnicas e, até mesmo, náuticos) em Portugal até o final do século XV.
109
que as respostas encontradas aos novos desafios cotidianos viessem do conhecimento empírico,
que, sobretudo, não foi suficiente para fundar a ciência moderna, mas foi de grande importância
no processo de sua formação.
3.3 - A experiência no Esmeraldo de Situ Orbis
Ao longo do Esmeraldo de Situ Orbis, por seis vezes, o navegador faz alusão direta
à importância da experiência para a construção de um conhecimento digno de validade. Além
disso, a justificativa de escrita e boa parte de sua obra são pautadas segundo esta lógica. Também
é válido salientar, logo de início, que a palavra experiência é bem antiga e possuiu, e ainda
possui, diferentes significações nas diferentes épocas e lugares. Porém, para Duarte Pacheco
Pereira, esta se liga mais à idéia de observação empírica, diferente da posição científica moderna,
que a considera na perspectiva da experimentação, apesar de o mesmo termo (experiência) ser
usado nestes dois casos.
No que se refere ao conceito de experiência presente na obra, o trecho abaixo é
ilustrativo:
Primeiramente, é de notar como aqui é o princípio dos Etiópios e
homens negros [...] [em cuja região] é certo e sabido que nunca nele em
algum tempo morressem de pestilência; e não tão sòmente tem este
privilégio que lhe a majestade da grande natureza deu, mas ainda temos,
por experiência, que os navios em que pera aquelas partes navegamos
[...] nenhuns homens dos que neles vão, desta infirmidade morrem, posto
que desta cidade de Lisboa, sendo toda deste mal, partam e neste
caminho alguns aconteçam de adoecer e outros morrer; como na Etiópia
são, nenhum dano recebem. (ESO, p. 95-96)
Parece claro que o grande critério usado pelo navegador para legitimar o que diz é o
da experiência de vivenciar e observar diferentes situações e regiões. Essa compreensão lhe
garante crédito para descrever as características dos territórios distantes, como é o caso da
110
Etiópia e seu privilégio, concedido pela natureza, da inexistência da peste, mal que afligia
Portugal.
Em outros momentos o autor procura sempre fornecer diversas características,
medidas levantadas por ele mesmo e também os nomes impostos às distantes regiões pelos
primeiros exploradores portugueses. Tudo isso nos indica uma operação de tradução do
navegador, que conduz o espaço diferente aos seus leitores, além de demonstrar o domínio
lusitano sobre esses lugares.
Quando todos esses conhecimentos baseados em suas experiências são transmitidos
ganham a forma de instruções náuticas, guia de viagem e manual para o conhecimento das
distantes regiões e de diferentes povos. Tal demonstração de conhecimento por parte do
navegador, típico da literatura de viagem, torna-se, assim, uma garantia de seriedade junto aos
seus leitores (HARTOG, 1999).
Uma vez que, infelizmente, não é identificada ainda a fonte do navegador para seu
tão utilizado conceito de experiência, cabe-nos conjeturar que se o navegador o utiliza com
tamanha veemência é porque, logicamente, acredita em sua eficácia para suas viagens e para a
elaboração de suas concepções entre os séculos XV e XVI.
80
O fato é que, nessa época, o
conceito de experiência, exceto para D. João de Castro (1500-1548),
81
não ultrapassou os
significados relacionados ao conjunto de vivências influenciadoras do caráter e do
comportamento das pessoas e a elaboração cognitiva acerca de determinados dados
anteriormente conhecidos.
As observações de navegadores e exploradores portugueses que tornavam as suas
experiências válidas para fazer inferências corretas podem ser comprovadas também em diversos
outros documentos portugueses da literatura de viagem dessa época.
82
Nestes se observa a busca
constante por observação e descrição exata, como no traçar das rotas ou na análise de animais, da
vegetação, dos minerais e dos seres humanos até então desconhecidos, que iam sendo
80
Nem todos os autores portugueses do quadro das navegações usaram esse conceito com a mesma ênfase e o
mesmo alcance. A defesa da experiência pelos homens do mar diminuía o trabalho de gabinete, acadêmico,
prejudicando a articulação dialética entre teoria e prática, entre a hipótese e a experimentação, bases estas nas quais
a ciência moderna irá se fundamentar.
81
Fora reflexo dos avanços realizados no período de Duarte Pacheco Pereira, promovendo maiores
desenvolvimentos rumo ao conhecimento científico moderno.
82
Alguns exemplos: a Carta de achamento, de Pêro Vaz de Caminha (1450-1500), a Notícia do Brasil, de Gabriel
Soares de Souza (1540-1592), os roteiros de Vasco da Gama (1469-1524) e de D. João de Castro, a História da
Província de Santa Cruz (Lisboa, 1576), de Pero Magalhães Gândavo (?-1579), a Etiópia Oriental (Évora, 1609), de
Frei João dos Santos (1570?-1625?), além, é claro, do Esmeraldo de Situ Orbis.
111
sucessivamente encontrados. O Esmeraldo de Situ Orbis constitui, assim, um excelente exemplo
de tudo isso (SEIXO, 2008).
A experiência que o navegador tanto enaltece é relativa apenas ao conhecimento
empírico resultante do cotidiano. Não se trata ainda da experimentação
83
e da observação
sistemática e metódica, base do conhecimento científico posterior, feita com o objetivo de
verificação. Mas sua preferência pelo saber que vem das coisas, contra o saber livresco, é um
avanço.
Além disso, não existem sinais de contatos seus com teóricos medievais que
apontavam a importância da experiência, como Roger Bacon, Teodorico de Friburgo, Pedro de
Maricourt, Roberto Lincolnense, Guilherme de Ockham, Nicolau de Autrecourt, R. Grosseteste
ou o português Pedro Hispano. Ainda no século XIII, eles já afirmavam a importância da
observação direta, além do fato de usarem a palavra “experiência” em seus trabalhos,
evidência de que tal situação não era uma novidade no período em exame (VALENTIM, 2007).
Nada também nos indica uma apreensão da importância da experiência através das
aulas ou dos livros dos mestres italianos, especialmente da Universidade de Pádua, para onde as
idéias e os processos científicos oxonienses e parisienses tinham-se transferido desde o século
XV. Duarte Pacheco Pereira é um prático, e, como prático, reage diante de uma ciência afastada
da realidade e, muitas vezes, em contradição com ela. Não se exclui, contudo, que algum eco
desse pensamento tivesse chegado até ele, podendo tê-lo alcançado por meio de livros que, sem
dúvida, entraram no studium de Lisboa (DIAS, 1982).
A cultura das viagens, no plano institucional, era parte integrante do Estado
imperial-colonial português, levando ao sucesso o conhecimento empírico. O Estado português
era um dos maiores interessados na busca de conhecimentos imediatos, com respostas concretas
e rápidas aos problemas imperiais que surgiam (como os de concorrência, econômicos ou de
exploração e determinação de regiões e rotas), o que privilegiava o conhecido, ou seja, o
83
A experimentação é a experiência feita com o método científico moderno. Consiste na montagem de uma
estratégia concreta a partir da qual se organizam diversas ações observáveis direta ou indiretamente, de forma a
provar a plausibilidade ou falsidade de uma dada hipótese ou de forma a estabelecer relações de causa e efeito entre
fenômenos. Além de ocorrer por meio dos sentidos, a experimentação (experiência científica) ocorre por meio do
uso de todo um aparato experimental (material a ser utilizado), de instrumentos de medição, de um procedimento
(seqüência de atitudes e medidas a serem feitas pelo experimentador) e de um relatório que descreverá
detalhadamente todo o processo, chegando a uma conclusão. As observações (controladas e sistemáticas) realizadas
de todo esse processo, são também passíveis de reprodução pelos cientistas. Enfim, refere-se ao aspecto quantitativo,
caracterizada pela matematização do real, pelas análises laboratoriais e pelas leis universais A introdução desse
método experimental na ciência moderna é atribuída a Roger Bacon e Galileu.
112
empirismo. Como conseqüência dessa noção, destacava-se a sabedoria do mar (área de
conhecimento técnico, científico e filosófico) entre os portugueses. Essa área de conhecimento
tornou-se um dos poucos momentos em que a cultura portuguesa projetava-se e estava regulada
ao ritmo dinâmico do resto da cultura vanguardista da Europa daquele período. Sendo assim,
podemos analisar o programa de investigação de Duarte Pacheco Pereira, baseado na
experiência, em quatro complexos problemáticos.
O primeiro é o dos fundamentos do saber, que se estrutura pela oposição entre
teoria e prática. No navegador, vê-se uma forte acentuação da importância da prática para a
evidência do existencial-empírico, levando a uma desconsideração quase total do teórico. Essa
sua posição é típica das navegações portuguesas, momento de forte aplicação de um
conhecimento técnico e prático. Este se manifestava na capacidade de adaptação, transformação
e utilização do saber tradicional, fenômeno claramente notado nos instrumentos de navegação,
nas próprias embarcações e na generalização da ordem, regra e precisão em todas as atitudes
práticas, o que limitava o erro e ampliava o acesso ao conhecimento verdadeiro. Tudo isso
resultava em uma regularização necessária à prática da navegação, na determinação das
características das costas e em todas as medidas expressadas pelo navegador. Sobre esse assunto,
constata-se no Esmeraldo de Situ Orbis:
E além do que dito é, a experiência que é madre das cousas, nos
desengana e de toda a dúvida nos tira; e por tanto, bem-aventura
Príncipe [D. Manuel I], temos sabido e visto como no terceiro ano de
vosso reinado do ano de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e
oito, donde nos Vossa Alteza mandou descobrir a parte oucidental,
passando além a grandeza do mar oceano, onde é achada e navegada
uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas ajacentes a ela,
que se estende a satenta graus de ladeza da linha equinocial contra o
pólo ártico [...] é grandemente povoada [...] e tanto se dilata sua
grandeza [...] que de uma parte nem de outra não foi visto nem sabido o
fim e cabo dela [...] assim que temos sabido que das praias e costa do
mar destes Reinos de Portugal, atravessando além todo o oceano
direitamente a oucidente, ou a loeste segundo ordem de marinharia, por
trinta e seis graus de longura, que serão seiscentas e quarenta e oito
léguas de caminho, contando a dezoito léguas por grau [...] é achada
esta terra [..] [onde] é achado nela muito e fino [pau] brasil com outras
113
muitas cousas de que os navios nestes reinos vem grandemente
carregados.
84
(ESO, p. 20-21)
São notáveis, no trecho anterior, importantes momentos de valorização do
conhecimento prático e técnico pelo navegador. Este descreve bem as características geográficas
do litoral do território explorado no ocidente, além de relatar detalhes acerca de sua população e
de suas riquezas. Além disso, percebe-se sua constância em informar a localização espacial e o
caminho a ser seguido a partir de Portugal por meio de conhecimentos advindos da marinharia,
ou seja, da experiência da navegação, com o apontamento das coordenadas e da distância a
serem percorridas.
O segundo complexo problemático refere-se às vias do saber. Tal problemática
destacou-se muito no período renascentista, marcada pela oposição entre razão e sentidos, ou
entre entendimento e experiência. Para o navegador, o conceito de experiência sobre o
existencial e o visual imediato é predominante. O conhecimento racional é encarado como uma
imitação reprodutiva das coisas, sendo o saber verdadeiro baseado na correlação dialogal entre
razão (teórica) e experiência (sensorial-empírica), mas que é dominada pela última. Um bom
exemplo é a próxima passagem relativa aos perigos da navegação na região das ilhas de Cabo
Verde, onde sempre ocorriam perigosas tempestades. Diversas recomendações e precauções a
serem tomadas pelos navegadores são apontadas pelo autor, que conhecia bem a região e sabia
de suas ameaças, relatando inclusive a ocorrência de tragédias anteriores:
E na travessa deste gólfão de cabo Verde por diante se deve ter grande
aviso e vigia de dia e de noite, porque nele muito grandes travoadas
que trazem consigo maravilhosa força de vento; e compre que na hora
que virem algum relâmpago ou fuzil ou bulcão negro, amainem suas
velas até passar a força do tal vento, porque se isto não fizerem, cousa é
que pode acontecer, a nau em que topar, se perder, como por mau
recado se perderam outras [...] E assi seguiremos nosso prepósito nesta
tão trabalhosa jornada, da qual a experiência nos ensinou a verdade de
tudo o que adiante dissermos. (ESO, p. 205)
84
Este trecho é parte do discutido momento do Esmeraldo de Situ Orbis em que Duarte Pacheco Pereira relata uma
viagem que teria realizado ao Brasil no ano de 1498 a mando de D. Manuel I.
114
O terceiro destaca-se na idéia de verdade. A verdade para o navegador, o
conhecimento verdadeiro, é uma reprodução imediata das coisas, em que erro é o afastamento
dessas coisas, uma limitação informativa que se corrige pela experiência existencial e visual.
Mas a verdade e sua respectiva experiência não são uma mera imitação reprodutiva. A verdade é
resultante do ato de fazer experiência do eu empírico, ou seja, um saber fazer operativo sobre a
realidade, tal como é exemplificado no final da passagem anterior.
o quarto e último complexo problemático enquadra-se no choque, também
característico do Renascimento, entre os antigos e os modernos. Os desencontros eram cada vez
maiores no pensamento científico entre a tradição e as novas certezas surgidas no período.
Grandes erros e equívocos iam sendo percebidos e superados nos quadros do saber clássico-
medieval. As novas concepções fundaram uma nova ideologia processual do saber, do
conhecimento do mundo e da importância da técnica, evidências da crise dos paradigmas
tradicionais. Mas é importante salientar que o navegador, apesar de perceber os equívocos dos
antigos, não realiza um corte total com esse saber, porém é clara a sua consciência de que os
antigos não possuem mais total autoridade sobre todo o conhecimento (BARRETO, 1989, 2006 e
2007).
Suas atividades exigiam medida exata e espírito de precisão, ou seja, uma
linguagem respaldada pela verificação empírica e comprovada pela matemática, em que se
destacava a utilização da numeração arábica, que ainda estava em seus inícios entre os séculos
XV e XVI na Europa. Em oposição, existia o caso português, que a conheceu de forma um pouco
antecipada por causa da sua introdução na Península Ibérica pela ocupação islâmica. Porém, a
utilização da numeração arábica não ocorreu por toda a sociedade portuguesa naquele período,
mas apenas nas áreas da literatura de viagem e da literatura científica, tendo se generalizado nos
demais ambientes sociais portugueses apenas no século XVII, com o início do desuso da
numeração romana.
É interessante notar que os autores das áreas da literatura de viagem e da literatura
científica eram todos de origem portuguesa ou então nascidos e educados fora do reino, vindo
depois escrever em Portugal, atraídos pelas atividades comerciais e marítimas. No caso das
pessoas envolvidas nesse último campo, é que o emprego dos algarismos arábicos começou a se
dar em larga escala. Já em relação aos primeiros, foi Duarte Pacheco Pereira o primeiro a utilizar
o novo estilo de numeração, que foi o único de todos os autores portugueses de seu período a
115
empregar mais algarismos arábicos do que números luso-romanos (24,5% de algarismos
arábicos, 0,3% de luso-romanos e 75,2% por extenso) (CARVALHO, 1981).
Com isso, um grande contraste ocorre ao se comparar as obras da literatura de
viagem e científica com obras de qualquer outro gênero. Cronistas e historiadores desse mesmo
século XVI, tais como João de Barros, Gaspar Correia e Damião de Góis, trazem todos os seus
dados numéricos ainda em forma luso-romana ou por extenso. Tal situação explica-se pelo fato
de tanto os autores estrangeiros quanto Duarte Pacheco Pereira estarem ligados às atividades
comerciais, de expansão marítima e científica, justificando o amplo uso da numeração arábica,
visto que necessitavam de sua maior praticidade e exatidão.
O autor em exame era um nobre e servidor do rei, mas, em decorrência de sua
profissão de navegador e de sua ampla experiência de contato com territórios e povos jamais
vistos, mantinha relações próximas com atividades que foram propulsoras da burguesia nascente.
Além disso, trazia também a experiência do sensível como critério para a verdade em detrimento
das autoridades, sendo o personagem mais significativo dessa nova abordagem. Foi, assim, um
evidente reflexo da nova cultura e de um novo gênero de vida (costumes, profissões, economia e
política) que surgiam em Portugal.
É interessante salientar também que, no contexto português, apenas uma geração
após Duarte Pacheco Pereira fez a experiência deixar de ser a mãe de todas as coisas para
originar algumas concepções mais próximas da experimentação, ou seja, a de um fenômeno
provocado para ser observado. Somente nesse momento posterior é que a simples experiência
empírica passou a ser corrigida pela razão e pelo entendimento, que o conhecimento sensível
passa a dar espaço ao conhecimento inteligível, surgindo a distinção entre experiência do mundo
e o conhecimento do mundo.
Porém, foi também o ambiente dos navegadores e homens de ciência a eles ligados
o meio que proporcionou essa maior aproximação rumo ao pensamento moderno, tendo como
nomes mais notáveis D. João de Castro e Pedro Nunes (1502-1578). Enfim, o mesmo meio onde
se difundiu o largo uso dos algarismos arábicos e deu-se importância à experiência, no qual
Duarte Pacheco Pereira foi o primeiro a se destacar.
O avanço provocado por essa posterior geração de escritores portugueses foi
enorme, possibilitando que se delineassem novas idéias rumo à experimentação, mesmo esta
palavra nunca tendo aparecido. Nesta situação, foram encontrados oito exemplos de emprego
116
com o matemático Pedro Nunes e dez com o cnico D. João de Castro. Também nos cronistas
de viagens às Índias, Fernão Lopes de Castanheda, Gaspar Correia e João de Barros, todos em
1550, a mesma situação se manifesta. É inclusive com Pedro Nunes e D. João de Castro que
ocorre, pela primeira vez, a diferenciação entre razão e experiência. O primeiro afirma, em
1532, que existem coisas que não se podem compreender pelos sentidos, mas somente por meio
da razão. D. João de Castro, no seu Tratado da esfera, afirma que muitas conclusões tiradas
dos sentidos são enganosas, precisando sempre que estas sejam corrigidas pela razão, ou seja, é
necessário que os sentidos obedeçam ao entendimento racional. Percebe-se assim que tais
conclusões foram muito além das que ocorrem no Esmeraldo de Situ Orbis, mas também que são
conseqüência direta do desenvolvimento científico de suas concepções sobre a importância da
experiência empírica.
Mas alguns avisos sobre o perigo de anacronismo na escrita de D. João de Castro e
de Pedro Nunes devem ser apresentadas. Aquele, no capítulo posterior ao que havia enfatizado a
necessidade de correção da experiência empírica pela razão, demonstra a imobilidade da Terra,
desprezando a razão e enfatizando apenas, como critério de verdade, os dados vindos dos
sentidos. Tal figura, assim, apresenta contradições típicas do período. Mesmo diferenciando
experiência de razão (idéia digna de Descartes ou de Galileu) é, contraditoriamente, seguidor de
concepções de Sacrobosco e Aristóteles (CARVALHO, 1981).
85
Somente no século XVII é que o conceito de experiência (experiência científica ou
experimentação) e a própria idéia de ciência moderna alcançaram os pressupostos aceitos até a
contemporaneidade. A experiência passava a ser entendida como o conhecimento adquirido por
meio do exercício de capacidades, não ensinado por outros, baseados na observação
repetidamente realizada, ou como um fenômeno realizado com o objetivo de provar
conhecimentos, em que certos princípios e certas regras deviam ser seguidos para que resultados
corretos fossem conseguidos. Conseqüentemente, a atividade científica moderna fundou-se na
observação desses fenômenos, espontâneos ou intencionais, repetidos e realizados com regras
racionalmente estabelecidas, que só são possíveis pela experiência (NOGUEIRA, 1990).
Todas essas características ainda não apareciam nas concepções do Esmeraldo de
Situ Orbis e nem no momento português de atuação de seu escritor, mas foram uma
85
Uma hipótese de compreensão para a ocorrência desse anacronismo é que as traduções feitas por D. João de
Castro sobre as idéias de Sacrobosco e Aristóteles poderiam servir como disfarce para que ele fugisse do censor da
Inquisição, que não chegara a ler as suas linhas revolucionárias.
117
conseqüência direta de atitudes como as dele, somadas, é claro, com as de outros grandes nomes
surgidos em outras situações pela Europa.
Em suma, a introdução do conceito de experiência como critério de verdade não foi
assim, como vimos, a grande novidade das navegações portuguesas, mas sim a concepção de que
é por meio da experiência que o conhecimento deve ser primordialmente adquirido. É esta a
grande herança e o lugar na história, do longo processo de desenvolvimento da ciência moderna,
de Portugal e de Duarte Pacheco Pereira. Sua experiência é ainda muito distante da
experimentação e da observação sistemática de caráter metódico, tendo muito de empírico e de
conhecimento vindo da prática, mas sendo precioso em mostrar a desvalorização do saber
teórico.
Enfim, o conhecimento científico do navegador foi um meio utilizado para a
passagem do dado ao resultado, constituído pela síntese de vários legados tradicionais somados
às novas descobertas e experiências, alargando a compreensão do mundo e preparando o homem
europeu para as futuras descobertas científicas.
3.4 - O debate com os antigos
As viagens de descobrimentos contribuíram para que a visão de novas terras
colocasse também em crise a idéia de superioridade dos autores antigos. Navegadores
enxergavam o contrário do que filósofos gregos e padres da Igreja afirmaram sobre a
inabitabilidade das regiões tórridas, sobre a navegação nos oceanos, sobre a impossibilidade de
ultrapassar as colunas de Hércules e sobre as características e existência de Antípodas (ROSSI,
2001).
No período de D. João II e de D. Manuel, a geografia africana e asiática sofreu uma
revolução. Climas, rios e montanhas, pessoas e produtos, desertos e oásis iam sendo mais bem
conhecidos ou descobertos.
A aceitação da obra de Ptolomeu pelos navegadores lusos deu-se apenas até a Costa
da Guiné. A partir desse local, porém, a prática da navegação em constante direção sul não
confirmava a teoria do geógrafo antigo, pois o que se ia encontrando pelos navegadores era um
118
continente africano que rumava ao Oriente até se encontrar com o Índico (ALBUQUERQUE,
1991). Isso negava diretamente, pela prática, a idéia de um Atlântico como mar fechado pregado
por Ptolomeu, característica essa que nos remete diretamente à obra de Duarte Pacheco Pereira:
Ptolomeu escreve, na pintura de suas antigas tábuas de cosmografia o
mar Índico ser assim como uma lagoa, apartado, por muito espaço, do
nosso mar oceano oucidental [Atlântico] que pela Etiópia meridional
passa; e que entre estes dous mares ia uma ourela de terra, por
impedimento da qual, para dentro daquele golfão Índico, por nenhum
modo, nenhuma nau podia passar. Outros [autores] disseram que este
caminho era de tamanha quantidade que, por sua longura, se não podia
navegar, e que nele havia muitas sereias e muitos outros grandes peixes e
animais nocivos, pelo qual esta navegação se não podia fazer [...] e como
quer que a experiência é madre das cousas, por ela soubemos
radicalmente a verdade, porque o nosso César Manuel [...] mandou
Vasco da Gama [...] descobrir e saber aqueles mares e terras com que
nos os Antigos punham tão grande medo e espanto. E indo, com muito
trabalho achou o contrário do que os antigos escritores disseram. (ESO,
p. 195-197)
Mas as discussões travadas pelo navegador não se limitam apenas ao debate com
Ptolomeu, e muito menos podem ser resumidas a severos ataques seus aos autores antigos. Essa
problemática guarda outras interessantes abordagens e mostra também diferentes
posicionamentos assumidos por ele em relação a essa questão.
Aos escritores da navegação era necessário humildade e coragem para negar
conhecimentos de autoridades antigas, como Aristóteles ou Ptolomeu. Enfim, o que faziam era
quase uma heresia. Duarte Pacheco Pereira, por diversas vezes, não poupa os autores antigos
quando os seus conhecimentos tornam-se opostos ao que as experiências diretas de suas viagens
e explorações lhe proporcionavam conhecer. Nesse sentido, as seguintes passagens servem de
exemplo para elucidar as questões relacionadas a esse assunto:
Toda a costa do mar, que vai desta serra de Fernão do até o Cabo de
Lopo Gonçalves, que são oitenta léguas, é muito povorada e de muito
arvoredo [...].
E neste mar há muitas e grandes baleias, e outros muitos peixes.
E esta terra [no caso, Duarte Pacheco Pereira fala da terra de Fernão do
Pó] é muito vizinha do círculo da equinocial, da qual os Antigos
119
disseram que era inabitável, e nós, por experiência, achamos o contrário.
(ESO, p. 158-159)
É claro que, por meio da experiência, o navegador consegue comprovar que uma
região, que anteriormente era tida por inabitável pelo grande calor, é, na verdade, habitável, além
de apresentar uma grande diversidade de vida marinha e grandes matas em suas costas. Já na
próxima passagem, o autor continua debatendo o mesmo assunto, acrescentando, porém, o forte
argumento das navegações e das experiências realizadas durante muitos anos pelos portugueses,
que lhe autorizava identificar os erros dos antigos:
A experiência nos faz viver sem engano das abusões e fábulas que alguns
dos antigos cosmógrafos escreveram acerca da descrição da terra e do
mar, os quais disseram que toda a terra que jaz debaixo do círculo da
equinocial era inabitável, pela grande quentura do Sol. E isto achamos
falso e pelo contrário: porque adiante do rio do Gabão [...] é achado um
promontório baixo e delgado [...] o cabo de Lopo Gonçalves [...] [que]
pontualmente jaz debaixo do círculo da equinocial; e nesta terra há muita
habitação de gente, os quais são negros, que em nenhuma parte do
mundo pode mais haver; e a experiência nos tem ensinado, porque, per
muitos anos e tempos que esta região das Etiópias de Guiné temos
navegadas e praticadas [...]. (ESO, p. 160)
Estas citações nos remetem à análise da climatologia, em que começamos com
Aristóteles. Ele dava grande importância à inclinação dos raios solares em relação à superfície da
Terra, concepção que teria grande valor até o século XVI. Segundo Parmênides, discípulo de
Aristóteles, a Terra era dividida em duas zonas frígidas polares, duas zonas temperadas e uma
zona tórrida equinocial. Nestas, a vida seria possível nas zonas temperadas, haja vista o
enorme frio das primeiras e a destruição de tudo pelo fogo na zona tórrida, não permitindo,
portanto, que fossem regiões habitadas. Foram estas as fontes das idéias acerca do “mar
tenebroso” e da “terra queimada”, logo abaixo da linha do Equador, todas negadas por
navegadores como Duarte Pacheco Pereira (PEIXOTO, 1996).
Na seguinte passagem, ainda dentro dessa discussão, o navegador espanta-se com o
erro gritante das teorias de Pompônio Mela, Sacrobosco e Plínio. Estes afirmavam ser a região da
Guiné inabitável pelo grande calor, mas, ao mesmo tempo, reconheciam ser a região indiana
120
grandemente povoada, o que o navegador afirma ser contraditório, uma vez que, tal como a
Guiné, a Índia também pertence à região equinocial, que de seu lado oriental. Enfim, se a
Guiné não podia ser povoada em decorrência do extremo calor solar, a Índia também não
poderia, que as duas são atravessadas pela linha do Equador. Ocorre um erro de
interpretação dos antigos, algo imperdoável ao experiente navegador:
Pompónio Mela, no princípio de seu segundo livro e assi no meio do
terceiro de Situ Orbis, e mestre João de Sacrobosco, Ingrês, excelente
autor, na arte da astronomia, no fim do terceiro capítulo de seu Tratado
da Espera, cada um destes em seu lugar, ambos disseram que as partes
da equinocial eram inabitáveis póla grande quentura do Sol; donde
parece que, segundo sua tenção, aquela tórrida zona por esta causa se não
podia navegar, pois que a fortaleza do Sol impedia não haver i habitação
de gente; o que tudo isto é falso. Certamente temos muita e muita razão
de nos espantar de tão excelentes homens, como estes foram, e assi Plínio
e outros autores que isto mesmo afirmaram, caírem em tamanho erro
como neste caso disseram, porque eles todos confessam a Índia ser
verdadeiramente ouriental e povorada de gente sem número. E como assi
seja que o verdadeiro ouriente é o círculo da equinocial, que por Guiné e
pela Índia e com a maior parte dela tem vizinhança, craramente se mostra
ser falso o que escreveram; pois debaixo da mesma equinocial tanta
habitação de gente, quanta temos sabida e praticada. (ESO, p. 196)
Como o navegador testemunhara diretamente tais regiões e vivenciara as situações,
não ocorre separação entre ver e dizer em sua escrita, comunicando-se plenamente. Descrever é
ver e fazer ver, além de saber e fazer saber, pois ele mostra que é sábio e, assim, crível
(HARTOG, 1999).
Mas Duarte Pacheco Pereira também tinha a correta convicção de perceber que, no
campo da observação direta, uma conciliação com os autores antigos podia ter êxito, tendo em
vista que estes não tiveram o privilégio de conhecer tão distantes regiões como os portugueses, o
que é notável no próximo fragmento:
Mas como quer que os antigos escritores não soubessem esta província
nem a praticaram como a nós temos praticado [aí Duarte Pacheco
Pereira se refere à Plínio, mais especificamente ao primeiro capítulo do
quinto livro de sua Natural História, e a Ptolomeu, em seu livro “De
Situ Orbis, que escreveram sobre o Monte Atalante, que se situa na
121
África], portanto não é maravilha caírem em error [...] [onde as
descrições reais relativas ao Monte Atalante] são muito desviadas da
feição e outras cousas que os antigos escritores do Monte Atalante
disseram. (ESO, p. 75-76)
Nesta mesma linha de raciocínio de não poder cobrar conhecimento de um autor
se este não teve oportunidade de obtê-lo – segue agora um trecho sobre sua posição particular de
evitar dar pareceres acerca de regiões em que ele não pode ter uma experiência direta:
Convém que digamos a diferença que no correr da costa do cabo das
Palmas em diante [...]. E isto deve observar qualquer piloto que nestas
partes for [...]; e isto entendido não poderá errar, posto que não conheça
a terra pela maneira que a nós agora conhecemos pela prática que, de
muitos anos, acerca disto temos.
Passado a cabo das Palmas, adiante oito léguas está um rio que nome
de S. Pedro [...]. E por não termos dele prática o não costumamos
navegar de sua boca pera dentro; por isso leixaremos de escrever o que a
nós é incógnito, posto que o lito ou costa do mar, per muitos anos e
tempos, a tenhamos bem sabida. (ESO, p. 136)
Quando conhece a navegação de alguma região, Duarte Pacheco Pereira a explica
bem, justificando que faz isso por ter a prática da região. Porém, quando não conhece uma
determinada área, afirma nada poder dizer sobre o que lhe é desconhecido, não podendo, desse
modo, transmitir nenhuma informação sobre uma dada região por dela não ter tido a experiência
necessária.
No entanto, outra rede de abordagens merece crédito. Apesar das severas críticas
aos antigos em alguns momentos, elas não são profundas e nem decisivas em muitos outros,
limitando-se a reticentes reparos. Embora sustente que a verdade partiria da oportunidade de
realizar experiências diretas, o próprio Duarte Pacheco Pereira não se mantinha a todo o
momento nesse padrão de argumentação e de análise.
Outros padrões de argumentações surgem em sua escrita, apesar de ele não as
deixarem explícitas, tal como faz com a questão da experiência. Mesmo que isso nos pareça
contraditório, para o navegador, um escritor de literatura de viagem em uma sociedade e cultura
situadas entre a medievalidade e a modernidade, tão repletas de ricos imaginários, tal situação
era comum.
122
Por isso, em outros momentos, ele acabava concordando com as errôneas descrições
dos antigos acerca de regiões ou povos sobre os quais não pode ter a devida confirmação
experimental, ou, então, recepcionava como verdadeiras histórias fabulosas de narradores, que o
levavam a enganos extraordinários. Algumas dessas situações serão agora demonstradas por
meio de citações e suas respectivas interpretações em busca dessas outras argumentações de
Duarte Pacheco Pereira (ALBUQUERQUE, 1987).
De início, retomemos aquele trecho sobre o comércio de ouro e de escravos,
envolvendo as pessoas que Duarte Pacheco Pereira afirma terem rosto de cão:
E duzentas léguas além deste rio de Mandinga está uma comarca de terra
onde muito ouro, a qual chamam Toom; e os moradores desta
província tem rosto e dentes como cães, rabos como de cão, e são negros
e de esquiva conversação, que não querem ver outros homens. E as
gentes de uns lugares [...] vão a esta terra de Toom comprar o ouro por
mercadorias e escravos que lhe levam; os quais, no modo de seu
comércio, tem esta maneira: todo aquele que quer vender escravo ou
outra cousa, se vai a um lugar certo pera isto ordenado a ata o dito
escravo a uma árvore e faz uma cova na terra, daquela cantidade que lhe
bem parece; e, isto feito, arreda-se afora um bom pedaço, e então vem o
rosto de cão, e se é contente de encher a dita cova de ouro, enche-a, e se
não, tapa-a com a terra e faz outra mais pequena, arreda-se afora. E
como isto acabado, vem seu dono do escravo e aquela cova que
fez o rostro de cão, e, se é contente, aparta-se outra vez fora: e tornado o
rostro de cão ali enche a cova de ouro. E este modo tem em seu
comércio e assi nos escravos como nas outras mercadorias; e eu falei
com homens que isto viram. E os mercadores Mandingas vão às feiras
de Bètu e de Bambarraná e de Bahá comprar este ouro que hão daquela
monstruosa gente. (ESO, p. 107)
Este trecho trata da descrição de uma atividade comercial com características que
chegam ao nível do maravilhoso, para as quais o navegador dá totais créditos, apesar de explicar
que não presenciou tão instigante episódio, justificando que dele teve informação por meio de
pessoas com quem conversou. Mesmo não tendo a experiência direta do episódio comercial
apresentado, Duarte Pacheco Pereira ouviu falar dele. É claro que isso torna o seu relato um
pouco menos crível e persuasivo, que ele se informou sobre o fato. Mas, mesmo assim, a
produção do saber. Da mesma forma que ocorre conjunção entre o ver e o saber, entre a
experiência e o conhecimento, ocorre também conjunção entre ouvir e o saber. Isso porque o
123
ouvir traz também a dimensão que o autor relata fielmente o que ouviu, não podendo, portanto,
ser considerado um mentiroso. Assim, os destinatários não são obrigados a acreditar no conteúdo
das palavras do narrador, como este também não.
Semelhante a esse episódio, no próximo trecho o autor garante a presença de sal em
jazidas no deserto do Saara, afirmando mesmo ser “muito bom e alvo”, pois o vira “em Lisboa
na casa da Mina”, apesar de não conhecer diretamente a sua extração:
E neste deserto [Saara] umas salinas donde tiram muito sal [...] E é
muito bom e alvo, e eu o vi em Lisboa na casa da Mina, onde se fazem
os tratos da Guiné, o qual ali trouxeram de Arguim. E deste deserto
levam os Alarves muitos camelos carregados deste sal para a feira de
Tambucutu, donde por ele hão muito ouro. (ESO, p. 91)
na seguinte citação, constatamos um interessante depoimento em que o
navegador toma como verdade a tradicional opinião de Ptolomeu sobre a nascente do rio Nilo,
sendo mostrado um tido espírito de aceitação contrastando com o forte criticismo de outras
partes:
O rio Nilo nos montes da Lua nace, além do círculo da equinocial, contra
o pólo antártico, e daí corre; os quais montes, segundo a descrição de
Ptolomeu e o sito em que põe o nascimento do Nilo, em trinta e cinco
graus de ladeza da mesma equinocial contra o mesmo pólo, as serras
fragosas do promontório da Boa Esperança devem ser [...]. (ESO, p. 23-
24)
Mesmo comprovando diversas situações que fugiam das interpretações dos autores
clássicos por meio da observação direta, em muitas outras situações o navegador não conseguia
fazer o mesmo. São evidentes, em relação a este assunto, suas posições acerca da nascente do rio
Nilo. Como ele nunca tivera contato direto com esse rio, aceitava totalmente as conclusões
antigas, deixando de lado suas posições acerca da necessidade da experiência que ele tanto
enfatizava para si e para seus leitores em diversas linhas de sua obra.
Aparece assim o terceiro critério de argumentação do navegador. Além do ver
(experiência direta) e do ouvir, quando nenhuma dessas possibilidades é alcançável, Duarte
124
Pacheco Pereira busca o conhecimento das autoridades, algo comum na legitimação de discursos
desde a época antiga. Como não poderia deixar de ocorrer, a descrição apresentada sobre a
nascente do rio Nilo está, como hoje se sabe, após diversas explorações, errada
86
(HARTOG,
1999).
Para fechar as exposições de trechos do Esmeraldo de Situ Orbis, a próxima citação
contém um sério erro interpretativo cometido pelo autor. Interessante perceber que o mesmo tipo
de erro que ele comete foi identificado e criticado pelo próprio navegador em relação às
interpretações de Pompônio Mela, Sacrobosco e Plínio, como vimos em outra passagem citada
anteriormente. Para este caso, a situação torna-se bem grave em sua escrita, tendo em vista que
ele participou de viagens que os antigos não tiveram possibilidade de realizar:
E desta ilha de Santiago [pertencente ao arquipélago de Cabo Verde] [...]
os fruitos não se dão [...] senão de regadio, porque aqui não chove senão
três meses no ano, Agosto, Setembro, Outubro [...]. E estas ilhas são
estériles porque são vizinhas ao Trópico de Câncer, e tem muito pouco
arvoredo por causa de nelas não chover mais dos ditos três meses. (ESO,
p. 102)
Duarte Pacheco Pereira afirma que a ilha de Santiago é estéril por se localizar
próxima ao trópico de Câncer. Erro exorbitante, que, por experiência própria, deveria saber
plenamente que essa situação de esterilidade não ocorria nas áreas atravessadas por esse mesmo
trópico na Índia e na América, por exemplo, mas totalmente aceitável para o seu período de
escrita.
Enfim, nas várias abordagens, percebemos a riqueza de escrita do período histórico
que o navegador é prova. Em um primeiro momento, podemos até achar contraditório Duarte
Pacheco Pereira afirmar que pela experiência se chega à verdade e algumas páginas depois
tornar legítimas posições antigas. Mas, na verdade, comprovamos no Esmeraldo de Situ Orbis a
influência de pensamentos antigos e medievais se confluindo com o conhecimento empírico
86
Apesar de diversas opiniões contrárias, a teoria mais forte seguida atualmente indica o nascimento do rio Nilo no
lago Vitória, localizado entre os países de Uganda, Quênia e Tanzânia. Até sua chegada na região de Cartum (capital
do Sudão) é designado como Nilo Branco, momento em que se conflui com o Nilo Azul, advindo da Etiópia.
Posteriormente, ainda no Sudão, recebe o seu último grande afluente (dentre vários outros menores), o rio Atbara,
advindo do planalto abissínio (Etiópia).
125
acerca de novos e distantes territórios, o que ajudou, sem dúvida, a formar uma das bases para o
rico pensamento moderno.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Duarte Pacheco Pereira teve importante participação nas grandes contribuições
proporcionadas pelas viagens marítimas portuguesas das costas do continente africano até o
Índico. As viagens tornavam clara a limitação teórica dos antigos, ocorrendo a supremacia do
conhecimento empírico sobre o conhecimento da autoridade, permitindo o reconhecimento
hidrográfico e a exploração das costas, das ilhas, dos rios e dos territórios próximos. Diferentes
meios físicos, populações e costumes, flora, fauna, recursos naturais e possibilidades comerciais,
além de vasto e detalhado conhecimento dos sistemas de correntes marítimas e de ventos no
Oceano Atlântico, na linha do Equador e no Hemisfério Sul, foram feitos. Ouro, prata, pedras
preciosas, cobre (para a artilharia, moedas e sinos), ferro (para diversas ferramentas e novas e
poderosas armas), pimenta, canela, têxteis, porcelana, pescarias, escravos, açúcar, movimento
planetários de animais e plantas foram alguns exemplos dos objetivos das viagens e explorações
que faziam os lucros comerciais atingirem até cinqüenta vezes o valor investido.
As atitudes do navegador foram reflexos de suas atividades e de seu momento
histórico, ou seja, do início do processo de valorização da atitude humana no conhecimento
direto da natureza. Mas esse momento, mesmo por ser inicial, ainda permitia que quando o
experiente navegador não contasse com o conhecimento direto, pudesse se apoiar nos
conhecimentos antigos, além de seguir os próprios cânones da literatura de viagem da
Antigüidade. Isso se explica por ele viver em uma época de transição, choque, continuísmos e
formação de imaginários entre a grande força que diversas concepções antigas e medievais ainda
determinavam, várias outras trazidas pelos momentos de descobertas de diferentes territórios e
culturas e pelos diversos interesses que permeavam a construção de sua obra. Percebemos, assim,
duas dimensões que o completam: uma primeira com a persistência de características do
imaginário social (algo que naturalmente se modifica a longo prazo), e outra transformadora pelo
poder da desmistificação advindo da experiência.
O Esmeraldo de Situ Orbis reflete toda essa diversidade, sendo o resultado da
compreensão, do autor, de certas regiões visitadas por tê-las vivenciado mais ou da sua
incompreensão acerca de outras, devido a fatores influenciadores mais específicos, como a força
127
de interesses, a rápida passagem, o forte etnocentrismo, além de toda a riqueza do imaginário
social (RICCI, 2004).
Esse imaginário social determinava muitas vezes o que o navegador via e, inclusive,
preparava-o para aquilo que iria ver nos diferentes povos e nas distantes regiões, ajudando a
construir o seu mundo, que era ao mesmo tempo material e mental. Ele formulava uma visão e
um sentimento de pertencimento aos seus leitores em sua escrita, conseguindo tornar o mundo
cognoscível e compreensível aos seus pensamentos, criando uma imagem dos portugueses como
também de outros povos.
Para Duarte Pacheco Pereira, a Europa era a região mais bela do planeta e o lugar
da e de todo o conhecimento verdadeiro. Em virtude da liderança portuguesa na conquista do
mundo, percebe-se em sua escrita a continuidade da antiga posição eurocêntrica e etnocêntrica,
que o contrário seria difícil de ocorrer. Colocando-se contra outras estruturas sociais e
religiosas, ele produzia não o que sua sociedade era, mas o que queria tornar-se diante de si
mesma e do outro, tanto por suas características afins como por tudo que lhe era diferente nas
diversas sociedades por ele encontradas e descritas. Territórios além das fronteiras imaginárias
do mundo eram percorridos, tornando-se ele mesmo um marco de fronteira, que ficava entre
os dois lados, a conhecida Europa e os confins do mundo, sendo o intermediário e o tradutor
entre essas duas partes. Movido pela curiosidade acerca da diversidade do mundo e da
descoberta do estranho, preocupava-se sempre em realizar anotações sobre as diversas situações,
muitas vezes, inclusive, sem demonstrar grande espanto diante das maravilhas que presenciava.
A conseqüência, assim, é a presença e a força do maravilhoso em vários momentos
do livro. Tal situação, aliada ao ainda não completo conhecimento empírico do mundo, fazia
com que as heranças e as inovações andassem juntas na obra do navegador. Mesmo apoiado por
suas experiências das viagens e explorações, ele ainda se enganava acerca da estrutura do
planeta. Este contava com a presença do maravilhoso na natureza, com sociedades e animais
extraordinários, além de oceanos menores do que continentes, por exemplo, o que prova a grande
influência das manifestações imaginárias em sua escrita, nesse período da passagem da era
medieval para a moderna.
No momento histórico de transição em que vivia Duarte Pacheco Pereira, os
fenômenos humanos e naturais também começavam a dispensar os antigos atributos da ordem
transcendente, ou seja, a universalidade, a eternidade e a imutabilidade. Agora, o navegador
128
lançava-se na irreversibilidade do movimento e na instabilidade das mais variadas situações,
dependendo cada vez mais da sua capacidade de intervenção e interpretação. A natureza perdia
diante de seus olhos toda uma sólida camada de símbolos que a cobria e dificultava seu
conhecimento empírico.
Um explorador como ele ficava atônito ao se deparar com regiões que nenhum
saber antigo autorizava. Mas, por meio da união e transformação de vários legados tradicionais
com as descobertas proporcionadas pelas experiências, respostas iam sendo encontradas aos
desafios cotidianos e ampliava-se a compreensão do mundo (REICHEL, 1999).
Entendendo a ciência como resultado de um longo processo, e não como progresso
(FREITAS, 2005), as realizações do navegador foram, assim, de grande valor cultural no
processo histórico de desenvolvimento do conhecimento científico. Por defender que é por meio
da experiência que o conhecimento deve ser primordialmente adquirido, sua contribuição se
torna inegável nesse período da complexa formação do homem moderno entre os séculos XV e
XVI. Ele vivera suas experiências ultramarinas e teve contato, direto ou indireto, com diversos
autores clássicos, do medievo e até mesmo de origem islâmica, ainda no século XV, retratando-
os em sua obra, a qual foi redigida no início do século XVI, século que ainda o mobilizaria em
diversas atividades e missões.
O Esmeraldo de Situ Orbis é, assim, o relato de uma vida feito por quem a viveu, de
um homem importante tanto para as explorações quanto para as atividades nobres relacionadas
aos interesses de seus reis: D. Afonso V, D. João II, D. Manuel I e D. João III, os reis
empresários.
87
Duarte Pacheco Pereira, como podemos comprovar, foi um agente e uma
testemunha da formação do império ultramarino português no período de apogeu da história
lusitana. Ajudou a implantar e a defender os interesses e as forças portuguesas por uma extensa
área de cerca de 20.000 km, que ia desde Lisboa, passando pela América do Sul, até o Extremo
Oriente, por onde espalhavam-se cidades, feitorias e fortalezas lusas. Enfim, além de todas as
suas contribuições nos campos de conhecimentos da navegação e da experiência, o navegador foi
um personagem central nos interesses desses monarcas, ao contribuir para o acesso às tão
87
Apesar de serem abundantes os capitais estrangeiros, os reis portugueses eram os maiores empresários,
empregadores, investidores e distribuidores das riquezas do vasto império. Ao mesmo tempo, eram eles que
arriscavam e suportavam os custos das viagens, conquistas, fortalezas e soldados. Caso algum navio carregado de
especiarias fosse perdido, o grande prejuízo era do rei, que os mercadores portugueses e europeus tinham seus
lotes assegurados na Casa da Índia.
129
cobiçadas riquezas das Índias, fazendo crescer a receita do Estado e de diversos mercadores
portugueses e estrangeiros (COELHO, 2001).
Assim, procuramos entender as contribuições e os grandes reflexos culturais de que
o Esmeraldo de Situ Orbis é prova desse cativante e acelerado período de transformações
intelectuais e fortes choques e criações de concepções e imaginários, uma vez que é esse o
propósito estrutural do historiador, saber em que sentido os escritores antigos empregavam suas
palavras – voz das idéias – em sua época e lugar (HANDLIN, 1993).
Concluindo, esperamos que este trabalho tenha chamado a atenção e possibilitado
interessantes temas de discussão e estudo ao olhar de seus leitores acerca de uma obra que
achamos muito interessante: o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira.
130
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