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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PATRICIA PORCHAT PEREIRA DA SILVA KNUDSEN
GÊNERO, PSICANÁLISE E JUDITTH BUTLER
DO TRANSEXUALISMO À POLÍTICA.
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo para
a obtenção do título de Doutor em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa
São Paulo
2007
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PATRICIA PORCHAT PEREIRA DA SILVA KNUDSEN
GÊNERO, PSICANÁLISE E JUDITTH BUTLER
DO TRANSEXUALISMO À POLÍTICA.
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo para
a obtenção do título de Doutor em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa
São Paulo
2007
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Knudsen, Patricia Porchat Pereira da Silva.
Gênero, psicanálise e Judith Butler: do transe
xualismo à política /
Patricia Porchat Pereira da Silva Knudsen; orientadora Miriam
Debieux Rosa. -- São Paulo, 2007.
153 p.
Tese (Doutorado Programa de Pós-
Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica)
Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
1. Homossexualidade 2. Gênero 3. Psicanálise 4. Transexualismo
I. Título.
HQ76
FOLHA DE APROVAÇÃO
Patricia Porchat Pereira da Silva Knudsen
Gênero, Psicanálise e Judith Butler
do transexualismo à política
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo
para a obtenção do título de Doutor em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica
Aprovada em:___________
Banca Examinadora
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________Assinatura:______________________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________Assinatura:______________________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________Assinatura:______________________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________Assinatura:______________________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:______________Assinatura:______________________________________
RESUMO
Knudsen, Patricia Porchat Pereira da Silva. Gênero, psicanálise e Judith Butler – do
transexualismo à política. São Paulo, 2007. 153p. Tese (Doutorado). Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo.
Esse trabalho investiga a noção de “gênero” na obra da filósofa feminista americana
Judith Butler com o objetivo de lidar, no cotidiano da clínica, com pacientes que não se
enquadram nas categorias sexuais mais comuns. O conceito de gênero como “ato
performativo permite abordar o que Butler denomina de “gêneros nãointeligíveis”, ou
seja, a idéia de que não existe uma relação de coerência entre sexo anatômico, gênero,
desejo e prática sexual. Esse conceito me auxilia, ainda, na compreensão de questões
sociais da atualidade, como o casamento gay, a adoção de crianças por casais
homoparentais, mudanças na estrutura de parentesco e o surgimento de novas práticas
sexuais, assim como a manifestação de novas identidades transgêneros, drag queens ,
drag kings, butchs . Para compreender as idéias de Butler, demarquei dois campos teóricos
a partir dos quais visualizei melhor seu percurso: o do nascimento do conceito de “gênero”
na teoria da construção social e na psicanálise, com o estudo do transexualismo por Robert
Stoller, e, em segundo lugar, a utilização de “gênero” por feministas psicanalistas. Neste
segundo campo, “gênero” se transforma em categoria política. Esses dois campos
permitem distinguir, em Butler, o motivo que a leva a tomar os seres “abjetos” como
paradigma para se pensar o que é “gênero” e a questionar o campo epistemológico da
psicanálise, sua terminologia e algumas de suas categorias básicas de pensamento. Ela faz
a crítica de termos psicanalíticos que se alçam à condição de categorias transcendentais,
pretensamente imunes às transformações da sociedade, e que advogam para si o direito de
impor regras de inteligibilidade cultural. Acompanhando o debate entre Butler e
psicanalistas lacanianos acerca dos conceitos de “diferença sexual”, “simbólico” e
“parentesco”, constatei que suas principais críticas se dirigem ao estruturalismo de Lévi-
Strauss e à incorporação deste por Lacan. Dessa reflexão sobre o conceito de gênero e a
psicanálise é possível derivar uma postura ética e a necessidade de uma transformação
social para que se incluam todas as formas de gênero na categoria de “humano”.
Palavras-chave: Homossexualidade. Gênero. Psicanálise. Transexualismo.
ABSTRACT
Knudsen, Patricia Porchat Pereira da Silva. Gender, psychoanalysis and Judith Butler
from transsexualism to politics. São Paulo, 2007. 153p. Thesis (Doctoral). Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo.
This thesis examines the notion of “gender” in the work of American feminist
philosopher Judith Butler, in order to address, in the daily clinical context, patients that do
not fit in the usual sexual categories. The concept of “gender” as a “performative act”
enables addressing what Butler called “gender trouble”, i.e., the idea that there is no
coherent relationship between anatomical sex, gender, desire and sexual practices. This
concept is also used in this thesis in order to understand present day social issues, such as
gay marriage, child adoption by homosexual parents, changes in kinship structures and the
emergence of new sexual practices, as well as the manifestation of new identities
transgender, drag queens, drag kings, butches. In order to understand Butler’s ideas, this
thesis establishes two theoretical fields to make it easier to visualize their evolution: first,
the birth of the “gender” concept in social construction theory and in psychoanalysis, with
Robert Stoller’s study on transsexualism, and, second, the use of “gender” by feminist
psychoanalysts. In the latter, “gender” becomes a political category. These two fields
enable one to distinguish, in Butler’s work, the reason that leads her to take “abject” beings
as paradigm for discussing “gender” and to question psychoanalysis’ epistemology field,
its terminology and some of its essential thought categories. She criticizes psychoanalytic
terms as they strive to reach the status of transcendental categories, supposedly immune to
social changes and claiming the right to impose laws of cultural intelligibility. Observing
the debate between Butler and Lacanian psychoanalysts over the concepts of “sexual
difference”, “symbolic” and “kinship”, this thesis finds that her main critics are addressed
at Lévi-Strauss’s structuralism and its incorporation by Lacan. From this discussion on the
concepts of gender and psychoanalysis it is possible to infer an ethical stance and the
necessity of social transformation to include all gender forms into the Human “gender”
category.
Keywords: Homossexuality. Gender. Psychoanalysis. Transsexualism.
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................................... 9
Parte 1
1.Inventando “gênero”....................................................................................................18
1.1 Contribuições da teoria da construção social ............................................................18
1.1.1 O dimorfismo sexual .................................................................................................18
1.1.2 Sexualidade, homossexualidade e heterossexualidade...............................................20
1.1.3 A distinção sexo/gênero ........................................................................................... 22
1.1.4 A construção social ...................................................................................................24
1.2 Gênero e psicanálise ..................................................................................................26
1.2.1 Stoller, o transexualismo e a identidade de gênero...................................................30
1.2.2 A identidade de gênero nuclear e a identidade de gênero fundamental.....................33
1.2.3 Feminilidade e masculinidade....................................................................................37
1.2.4 Imprinting e feminilidade primária ...........................................................................39
2. Gênero, feminismo e psicanálise ............................................................................44
2.1 Feminismo e gênero ................................................................................................45
2.2 Feminismo e psicanálise ..........................................................................................48
2.3 A teoria social ..........................................................................................................50
2.4 Gênero e psicanálise.................................................................................................51
2.4.1 Gayle Rubin .............................................................................................................52
2.4.2 Nancy Chodorow .....................................................................................................56
2.4.3 Jessica Benjamin .....................................................................................................58
2.4.3.1 Gênero e a crítica da racionalidade: dominação x reconhecimento ........................59
2.4.3.2 A solução psicanalítica via Winnicott .....................................................................62
2.4.4 Emilce Dio Bleichmar: o feminismo espontâneo da histeria ..................................63
2.5 Breve resposta às feministas ....................................................................................66
2.6 Binarismo de gênero ................................................................................................67
Parte 2
3. Judith Butler: Sujeito e abjeto .................................................................................69
3.1 Gênero e sujeito .........................................................................................................69
3.1.1 Desconstruindo gênero...............................................................................................73
3.1.2 Breve ontologia..........................................................................................................75
3.1.3 Performatividade .......................................................................................................77
3.1.4 Estratégias de desconstrução......................................................................................81
3.1.5 Práticas parodísticas...................................................................................................82
3.1.6 Gênero como re-significação......................................................................................84
3.1.7 Corpo, sexo e gênero .................................................................................................85
3.1.8 A pulsão subversiva ..................................................................................................90
3.2 O abjeto como paradigma ..........................................................................................92
3.2.1 Dois casos ..................................................................................................................94
3.2.2 A questão transexual..................................................................................................99
3.2.3 Transformação do corpo e inteligibilidade...............................................................103
4. Críticas de Butler a Lacan e Lévi-Strauss ........................................................107
4.1 Os passos da resistência .............................................................................................107
4.2 A crítica ao transcendentalismo .................................................................................118
4.3 As diferenças sexuais .................................................................................................121
4.4 O argumento das normas simbólicas ..........................................................................125
4.5 Parentesco e simbólico ...............................................................................................132
4.6 Do sujeito ao humano .................................................................................................141
5. Conclusão: Gênero, uma categoria política .......................................................143
6. Referências Bibliográficas .....................................................................................150
INTRODUÇÃO
Quando estou diante de um paciente que se diz homossexual, masculino ou
feminino, com que noção de homem e de mulher eu trabalho? Certamente a mesma
pergunta valeria para um paciente heterossexual, mas vou me ater ao ponto de partida de
minha pesquisa: a clínica da homossexualidade. E antes que me embrenhe pelas
dificuldades de conceitualização do masculino e do feminino relativas a sexo, gênero,
anatomia e cultura, deixo claro que considero como um paciente homossexual, aquele ou
aquela que se denominam a si próprios de homens e mulheres em função de sua anatomia e
que também se auto-denominam como homossexuais a partir do desejo por alguém de
anatomia semelhante à sua. Mas a definição não pára aí. Ela apenas começa nesse ponto.
Trarei uma vinheta clínica
1
para ilustrar a dificuldade em se definir a homossexualidade.
Uma mãe, Léa, acompanha sua filha, Andréa, de vinte anos, à primeira entrevista.
A mãe havia insistido muito em estar presente. O contato telefônico fora feito por ela.
Dizia que a filha se havia envolvido com duas meninas durante uma viagem que fizera, que
fugira de casa e ficara cerca de vinte dias morando com elas até que a mãe fora bus-la.
Procurava ajuda e se a filha não se curasse, iria matá-la, dando-lhe veneno de rato. Diz que
a filha fez aquilo e que ela, a mãe, mesmo sendo muito católica, não mudaria de opinião
nem que o Papa viesse falar com ela. Sua filha precisava ser curada daquela doença. Sobre
as meninas com quem Andréa se envolveu, Léa diz: são pobres, adotadas, drogadas, com
problemas. “Já passei por isso na adolescência e já saí fora”. A mãe se retira e deixa
Andréa contar sobre seu envolvimento amoroso. Viajara a trabalho, era dançarina de um
grupo. Do palco chamou-lhe a atenção um rapaz que a olhava muito. Tinha belos olhos.
Trocaram telefones. Numa segunda viagem à mesma cidade, o rapaz a procurou depois da
apresentação, estreitaram a amizade, ele então lhe explicou que na verdade não era um
homem, mas sim uma mulher. Entre uma viagem e outra, o “rapaz” e ela haviam-se falado
durante um mês ao telefone. Andréa acreditava estar de paquera com este rapaz. Ele havia
se apresentado com nome de homem. Chegaram a trocar um beijo. Nessa segunda viagem,
quando Andréa faz sua “descoberta”, ele apresenta um “amigo” seu por quem Andréa se
interessa ainda mais e com quem começa um namoro. Ambos têm nome de homens.
1
Os nomes são fictícios.
Contam seus verdadeiros nomes, mas, tanto nos dias subseqüentes, em que Andréa fica
morando na casa do segundo “rapaz”, quanto na entrevista, ela refere-se a eles pelos nomes
masculinos. Relata como, para ela, se envolvera com dois rapazes. Com o segundo, Andréa
teve um relacionamento mais íntimo e fez um único comentário: “Quando ele tira a roupa,
aí a gente percebe que é mulher, porque tem peito.”
Podemos perguntar-nos uma série de questões, como por exemplo: o que a mãe não
suporta, a ponto de preferir ver a filha morta a estar envolvida numa relação homossexual?
Seria algo de sua própria homossexualidade? Para Andréa, que aparentemente se envolveu
primeiramente numa relação com um homem, não faz diferença que este “homem” seja
uma mulher? E, em seguida, ao trocar de “namorado” e fazer, então, uma escolha
consciente por uma menina que se transveste em rapaz, trata-se de uma escolha
homossexual? Quanto aos “rapazes”, como diz Andréa, ou “meninas”, como diz sua mãe,
poderiam ser chamados/as de homossexuais ou haveria indícios de serem transexuais em
função da escolha de um nome masculino, do modo de vestir e de se apresentar? Estaria
presente “neles” o desejo de mudar de sexo? Inúmeras outras questões poderiam ser
colocadas.
Stoller (1998) diz que não entendemos a homossexualidade. É uma palavra que tem
sido usada de tantas maneiras que, ...a menos que se diga claramente como ela é
empregada em um dado momento, os significados excedentes sufocam nossa
compreensão. Trata-se do desejo consciente erótico por pessoas do mesmo sexo ou da
prática de relações eróticas com uma pessoa do mesmo sexo, mas seu significado pode se
estender a dimensões inconscientes e a tipos de defesa. O possuidor de um impulso
homossexual às vezes é chamado de um homossexual e aí se confunde impulso com
identidade, doença e perversão, diz Stoller. Como avaliar se e quando a homossexualidade
é um aspecto da condição humana ou se é uma patologia? Stoller opta finalmente pela
posição de que não existe algo como a homossexualidade, portanto não pode haver uma
teoria unitária para a etiologia, dinâmica ou tratamento. Existem as homossexualidades,
assim como existem as heterossexualidades, e ambas se manifestam de maneiras diferentes
na etiologia, na dinâmica e na aparência. Não entendemos e não sabemos o que
“homossexualidade” quer dizer, a não ser em cada caso. E, acrescento eu, antes de ser
homossexual, trata-se de um homem ou de uma mulher. Ao menos, até agora tem sido
assim que as teorias e a psicanálise, entre elas, dividem os seres humanos.
Não foi por acaso que invoquei o nome do psiquiatra e psicanalista Robert Stoller
para falar sobre a homossexualidade. Foi ele quem introduziu a noção de “gênero” na
psicanálise há cerca de quarenta anos, mais precisamente em 1964, em seus estudos sobre
o transexualismo. Stoller cria a “identidade de gênero” ou “gênero”, como é mais usado,
para diferenciar o sexo, no sentido anatômico, da identidade, no sentido social ou psíquico.
Em que medida “gênero” contribui para a compreensão da homossexualidade? Em
minha pergunta inicial (com que noção de homem e de mulher eu trabalho na clínica da
homossexualidade?), a noção de “gênero” parece fundamental. Ela diz respeito à
percepção dos próprios pacientes como homens e mulheres, à minha percepção dos traços
que neles identifico como atributos de um estereótipo do feminino e do masculino, na
cultura da qual faço parte, e diz respeito, ainda, ao modo como cada autor constrói e utiliza
em sua teoria uma noção de homem e de mulher que servirá de substrato para a
compreensão dos casos clínicos. Se, por algum motivo, a homossexualidade pode
reivindicar alguma atenção maior do que a heterossexualidade em relação à noção de
“gênero”, é porque é uma presença constante na fala dos pacientes homossexuais o
sofrimento advindo da inadequação entre sua anatomia, seu gênero, seu desejo e sua
prática sexual, inadequação esta que resulta de uma predominância da heterossexualidade -
onde estes quatro itens aparentam uma concordância dentro da visão de mundo manifesta
na sociedade e, em grande parte, assimilada pelo próprio paciente. E ainda que o
sentimento de inadequação seja vencido, resta o confronto com a sociedade que
estigmatiza e por vezes, agride, em nome de um ideal de gêneros “inteligíveis”, aqueles
que, aparentemente “...mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero,
prática sexual e desejo. (Butler, 2003, p.38).
Fatores sociais que tomam vulto na Europa, nos Estados Unidos e também no
Brasil, como a questão do casamento gay, da adoção de crianças por casais homoparentais,
mudanças na estrutura de parentesco e o surgimento de novas práticas sexuais, assim como
a manifestação de novas identidades transgêneros, drag queens , drag kings, butchs - nos
fazem questionar noções tradicionais de gênero. Não há, a meu ver, como refletir sobre a
homossexualidade, sem levar em conta o contexto social e a formação das identidades de
gênero. Não há como isolar a prática psicanalítica das contribuições da antropologia, da
sociologia e da história. Corre-se o risco de a psicanálise demorar a compreender as
transformações que se operam na sociedade.
Em função de um projeto de pesquisa anterior a este, sobre a atividade de
“pegação” na homossexualidade masculina, realizei contato com alguns grupos da
comunidade gay de São Paulo, com o objetivo de realizar entrevistas e oferecer um
atendimento clínico aos interessados. Através de acordo estabelecido com grupos de
militância, recebi encaminhamentos de pessoas que se denominavam homossexuais,
bissexuais e também transexuais, embora, estes últimos, em menor número.
Decidi investigar a noção de gênero, acreditando que seria útil na minha clínica,
mas, igualmente, busquei construir ferramentas para averiguar que noção de gênero
informava os autores com quem trabalho. É fato notório que a discussão sobre a formação
do “sentimento” de ser homem ou ser mulher, que é uma das formas de se definir
“gênero”, já aparece em Freud e em outros psicanalistas no início do século XX, como
Karen Horney e Ernest Jones, mas o uso do conceito de “gênero” só aparece bem mais
tarde na psicanálise.
Robert Stoller já era uma referência para mim em relação ao conceito de “gênero”.
No entanto, uma das disciplinas cursadas durante a pós-graduação, ministrada pela
Professora Vera Paiva, me colocou em contato com a teoria da construção social e as
contribuições e questionamentos da antropologia, história e sociologia para a noção de
gênero. Posteriormente tomei conhecimento da utilização do conceito de gênero pelo
movimento feminista a partir dos anos setenta, de um campo de questionamento teórico
criado por psicanalistas feministas e, finalmente, conheci os trabalhos da filósofa
americana feminista Judith Butler.
Desde as investigações antropológicas de Margaret Mead, na década de trinta, a
categoria de gênero, como “divisão dos papéis sexuais”, foi acompanhada da questão sobre
a relação entre natureza e cultura e do debate entre posições essencialistas e universalistas,
no que diz respeito ao masculino e o feminino, e, por outro lado, posições construtivistas,
dando ênfase às contingências sociais, culturais e históricas na aquisição do gênero. Não há
posições teóricas homogêneas no debate sobre gênero. Partirei de uma definição geral de
“gênero” como um conceito que mostra como se constrói a relação entre o psíquico e o
social e, nesse sentido, se torna um instrumento para a análise das sexualidades e das
identidades. Gênero agrupa os aspectos psicológicos, sociais, históricos e culturais,
associados à feminilidade e à masculinidade, por oposição ao termo “sexo”, que designa os
componentes biológicos e anatômicos. Essa definição, construída a partir da leitura de
autores mais próximos ao pólo construtivista, servirá apenas de ponto de partida para
compreender as idéias de Butler. Outras definições aparecerão ao longo do trabalho.
Butler apresenta um conceito de gênero como “ato performativo”, que ficou
bastante conhecido a partir da publicação de seu livro Problemas de Gênero Feminismo e
subversão da identidade, em 1990.
2
Seu trabalho aborda o que ela chama de “gêneros não
inteligíveis”, ou seja, a idéia de que não existe uma relação de coerência entre sexo
anatômico, gênero, desejo e prática sexual. Essa definição diz respeito, principalmente,
àqueles que não se enquadram facilmente nas categorias sexuais mais comuns.
Seu conceito de gênero como “ato performativo” me interessou, na medida em que
ele esclareceu o modo como eu já olhava para certos indivíduos na minha clínica. Ao longo
deste trabalho, constatei a existência de outros autores, que em função de sua prática
clínica psicanalítica, recentemente se interessaram pelas idéias de Butler.
3
. Desses, alguns
trabalham com transexuais. Butler é uma autora que recebe atenção e causa polêmica em
certos meios psicanalíticos (Gallano, 2003; Braunstein, 2005; Sáez, 2004 e Roudinesco,
1998) e estabelece confronto direto, em seus artigos, com alguns de seus opositores
(Copjec, 1994; Zizek, 1999, Shepherdson, 2000).
Judith Butler, judia, leitora na adolescência de Spinoza e Kierkgaard, dedicou
grande parte de seus estudos filosóficos universitários a Hegel, à fenomenologia, incluindo
Merleau-Ponty, e à Escola de Frankfurt. Posteriormente interessou-se por Foucault,
Derrida, Deleuze, além de Freud e de Lacan. Como militante feminista, também se
debruçou sobre a psicanálise feminista, em especial sobre Júlia Kristeva e Luce Irigaray.
Tem uma inegável atração pela psicanálise, ao mesmo tempo em que lhe endereça severas
críticas. Questiona o campo epistemológico da psicanálise, sua terminologia, mas também
suas categorias básicas de pensamento. Em função de alguns conceitos, por exemplo,
questiona os pressupostos estruturalistas de Lacan, incluindo críticas ao próprio Lévi-
Strauss.
2
O nome no original é Gender Trouble Feminism and the subversion of identity, Routledge, New York. A
edição brasileira é de 2003, da Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
3
Arán,M. e Peixoto Junior, C.A., Subversões do desejo: gênero e subjetividade em Judith Butler, in
Cadernos Pagu, Unicamp, no prelo, 2007; Arán, M., A transexualidade e a gramática normativa do sistema
sexo-gênero, in Ágora, Rio de Janeiro, v. IX, n.1 jan/jun 2006, 49-63; Saraiva, E., Transcendendo o gênero:
travestis e transexuais, in Interdisciplinaridade em diálogos de gênero, Lago, M., e Grossi, M. (orgs.),
Editora Mulheres, Florianópolis, SC, 2004, pp.121-131; Dunker, C., Teorias da sexualidade em psicanálise,
2005.
Butler é normalmente identificada como uma teórica “queer”. A teoria queer, na
definição de Butler, se opõe a todas as demandas de identidade e insiste no fato de que
qualquer um pode se engajar nos diferentes ativismos, como, por exemplo, o ativismo anti-
homofóbico. Não são necessários marcadores de identidade para a participação política. Os
diversos movimentos em prol das identidades sexuais, dos direitos sexuais, em sua opinião,
têm como tarefa lutar contra normas e convenções que restrinjam as condições da própria
vida, como respirar, desejar, amar e viver. (Butler, 2004)
Ao ler sua obra, deparei-me com uma questão que, em Butler, me parece vir pela
via principalmente do feminismo, mas também pela via da convivência com os “gêneros
não-inteligíveis”. Butler conta que, em sua época de estudante, passava o dia na biblioteca
e, à noite, freqüentava um bar de lésbicas onde drags faziam performances. Em seus textos
freqüentemente menciona situações de violência vividas por pessoas que se enquadram nos
“gêneros não-inteligíveis”, alguns sendo conhecidos seus. De sua militância vem a idéia de
transformação da sociedade. Sua leitura me trouxe a seguinte questão: que noção de gênero
permite uma atitude mais ética em relação aos “gêneros não-inteligíveis” e, ao mesmo
tempo, pode apontar para uma ação social no sentido de uma transformação da vida dessas
pessoas que sofrem pela sua inadequação de gênero?
Butler, no entanto, tem um percurso muito extenso. Não seria possível, neste
trabalho, abordar os inúmeros assuntos de que trata. Decidi centrar minha pesquisa em sua
noção de gênero, acompanhar as polêmicas que essa noção causou e acompanhar o debate
que ela travou em relação a alguns conceitos psicanalíticos. Achei interessante destacar
que Butler também tem uma preocupação “epistemológica”, ou seja, revela em seu
trabalho que a noção de gênero é intrinsecamente relacionada a uma noção de sujeito.
Apesar de discutir “gênero”, o cenário dessa discussão comporta perguntas acerca da
determinação social do sujeito, assim como, da atitude ética do pesquisador e do clínico e,
ainda, de uma ação política com vistas à transformação social.
Nesse sentido, decidi mapear o lugar de onde partem algumas de suas questões.
Mapeamento incompleto, sem dúvida. Não posso dizer que tenha grandes conhecimentos
sobre o feminismo, seja o feminismo teórico, seja o movimento feminista, e o mesmo pode
ser dito sobre a antropologia, a sociologia e a história. Parto de minha experiência clínica,
que denomino de “freudiana”, mas que, em vista das circunstâncias tipos de pacientes,
mudanças na sociedade, questões éticas exige a reconstrução de conceitos e a abertura de
novos caminhos.
Elaborei uma espécie de “guia” para a compreensão do conceito de gênero de
Butler. Para isso busquei estabelecer, na primeira parte da tese, o que acreditei serem as
referências para a origem desse conceito. Procurei distinguir, no primeiro capítulo, o que
seriam as contribuições dos teóricos agrupados em torno do que se chama “teoria da
construção social”, suas questões e preocupações, tendo Foucault como um dos nomes
principais. Em seguida, expus a contribuição de Stoller sobre gênero. Apontei caminhos
que poderiam ser percorridos a partir dele, dentro da psicanálise, embora estes fujam ao
percurso butleriano. Isso pode ser lido como um apêndice ou, voltando à metáfora do
mapa, uma indicação de para onde levariam pequenas trilhas que saem do caminho
principal. Elas constam do mapa, pois podem ser do interesse de alguém. Embora as tenha
percorrido, não as observei com a mesma atenção que o caminho de Butler, não
“classifiquei as árvores”, não expus os detalhes; são trilhas que mantêm uma proximidade
com a idéia de “patologização” dos “gêneros não-inteligíveis”, o que se afasta totalmente
do modo como Butler constrói sua teoria.
No capítulo dois, selecionei algumas teóricas feministas que fazem uma reflexão
sobre “gênero”, cujas questões de alguma forma repercutem no trabalho de Butler. Não
realizei uma triagem dentro do extenso campo de convergência entre o feminismo e a
psicanálise. Tomei quatro autoras que trabalham explicitamente com o conceito de gênero:
a antropóloga Gayle Rubin e as psicanalistas Nancy Chodorow, Jessica Benjamin e Emilce
Dio Bleichmar. Todas elas levam em consideração o fato de que a psicanálise é uma teoria
informada pelo modo como as relações de gênero estão dadas na sociedade. Isso traz
conseqüências para o modo de pensar a aquisição dos gêneros e o modo de conceber a
relação entre eles. Algumas chegam a sugerir mudanças na organização social como forma
de modificar as relações entre os gêneros. No entanto, suas concepções são limitadas no
que tange aos “gêneros não-inteligíveis”. É possível perceber posições que, embora não
admitam, beiram por vezes uma concepção essencialista de gênero, com exceção de Rubin.
Como conseqüência, a homossexualidade e a transexualidade têm pouco espaço fora dos
parâmetros propostos pelas teorias tradicionais, que terminam por relegá-las ao campo da
patologia. Retomando a idéia do mapa, apesar de esta ser uma parte do caminho
atravessada por muitas trilhas, creio ter sido importante indicá-las, para estabelecer com
clareza a diferença entre essas pequenas variantes, e o caminho principal.
Na segunda parte da tese, me dedico às idéias de Butler. O capítulo três trabalha o
conceito de gênero como “ato performativo”, as diferentes acepções de sujeito que vão
aparecendo, imbricadas com a noção de corpo e com a de linguagem e o paradigma para se
pensar gênero, isto é, o “abjeto”. Butler toma como referência de gênero o próprio “gênero
não-inteligível”. Os casos de um hermafrodita, de um intersexo e as questões que cercam a
experiência transexual configuram pontos de partida para compreender o modo como
Butler constrói sua reflexão e problematiza alguns conceitos psicanalíticos.
Por último, o capítulo quatro traz um debate entre Butler e alguns psicanalistas
lacanianos, Charles Shepherdson, Slavoj Zizek e Joan Copjec, acerca dos conceitos de
“diferença sexual”, “simbólico” e “parentesco”. Butler discute as implicações, para o
conceito de gênero, do estruturalismo de Lévi-Strauss e da influência deste sobre Lacan.
De modo geral, as críticas dos teóricos de gênero e, entre eles, Butler, endereçadas
à psicanálise operam em dois níveis distintos: um primeiro nível que podemos chamar de
“político-ideológico” e, um segundo nível, que é teórico. Em primeiro lugar, uma crítica
aos termos que a psicanálise utiliza para falar do homem, da mulher e do sexo. Mas, se for
retirado o conteúdo interpretado comumente como moralizante e preconceituoso, ou ainda,
compreendido como parte de uma ideologia mantenedora de um determinado sistema de
poder e de controle, será que a teoria psicanalítica permitiria incorporar novas formas de
sexualidade, novos gêneros, que não se ativessem ao binarismo dominante em nossa
sociedade, sem cair na patologia?
Butler é uma autora difícil de acompanhar. Cita muitos autores e invoca muitos
conceitos de uma maneira que foge, talvez, ao rigor esperado de uma filósofa. Butler se
defende. Não se trata de uma filosofia nos moldes tradicionais, uma filosofia
institucionalizada. Trata-se de questionar o que a própria filosofia pode alcançar, que lugar
ela tem junto a outras disciplinas, como ela atinge questões contemporâneas relativas à
cultura, à política, aos movimentos sociais. Sua filosofia não se separa de sua militância:
militância feminista, militância homossexual, militância transexual, militância dos
intersexo. Como “queer”, embora ela mesma questione se pode ser chamada assim, não é
necessário ter qualquer uma dessas identidades para se aderir a um movimento político.
Pode-se simplesmente apoiá-los.
Fiz meu recorte de Butler com a intenção mencionada, a de encontrar instrumentos
para pensar a clínica dos “gêneros não-inteligíveis” e para decifrar os pressupostos
relativos a gênero, embutidos em autores nos quais busco subsídios teóricos para meu
trabalho. O mapa está à disposição. Obviamente outros mapas para a leitura de Butler são
possíveis. Optei por não abordar, nesse momento, suas idéias acerca da estrutura
melancólica da identidade de gênero, seus comentários sobre noções como “fantasia”,
“identificação” e tantos outros conceitos freudianos e lacanianos. Tampouco abordei as
idéias de Irigaray e de Kristeva, interlocutoras de vários momentos de sua obra. Trabalhei
basicamente a partir de seus livros: Problemas de Gênero, Cuerpos que importan,
Contingency, Hegemony, Universality e Undoing Gender. Haveria ao menos outros quatro.
Certamente o mapa poderá ser aperfeiçoado.
Por último, gostaria de comentar que a integração de campos disciplinares distintos,
apesar de me parecer extremamente necessária, no que diz respeito à compreensão dos
“gêneros não-inteligíveis”, é uma tarefa árdua. A leitura de textos de antropologia,
sociologia, história e filosofia, além da psicanálise, me lançou no que se costuma chamar
de interdisciplinaridade. Não obstante, essa parece ser a única forma de acompanhar
Butler, já que não me propus a adotar um ponto de vista estritamente psicanalítico e apenas
aceitar ou recusar aquilo que, em Butler, versava sobre a psicanálise. Meus interesses e
minhas questões foram para Butler, em lugar de ir para Lacan. Vislumbrei em Butler o
objetivo de manter o questionamento e a tensão que existem na definição de homem,
mulher, masculino, feminino e em todos os efeitos que advêm de qualquer cristalização
dessas definições, principalmente no tocante à sexualidade e a qualquer tentativa de regulá-
la.
Butler se preocupa com o direito de existência legítima dos transexuais, dos
transgêneros e, igualmente, dos homossexuais. Preocupa-se em descobrir como novos
modos de realidade podem ser instituídos, ou seja, o que faz parte da realidade e o que
“precisa” fazer parte dela. Em relação à noção de gênero, trata-se de um deslocamento da
patologia à política, isto é, do estudo do transexualismo por Stoller, à proposta política de
Butler. Butler parte sempre do singular, como se “escutasse” o “abjeto”, os “gêneros não-
inteligíveis”.
1. INVENTANDO “GÊNERO”
A construção do conceito de gênero será abordada, neste capítulo, por dois
caminhos distintos: o primeiro é o da teoria da construção social, que lança um olhar sobre
a história de modo a encontrar raízes e contextos do forjamento de alguns conceitos
importantes. O segundo caminho de compreensão de “gênero” é a descoberta feita pelo
psicanalista e psiquiatra Robert Stoller da “identidade de gênero” em seus estudos sobre o
transexualismo.
1.1 Contribuições da teoria da construção social
Para abordar o conceito de gênero é importante mencionar algumas questões que
foram levantadas, em sua maioria, por autores como Michel Foucault, Jeffrey Weeks e
Thomas Laqueur e que, a meu ver, ajudam a enriquecer a compreensão do alcance que
“gênero” possui quando usado para interrogar a psicanálise por Judith Butler. Estas
questões dizem respeito ao surgimento de alguns conceitos e idéias por ocasião do
nascimento da psicanálise. Temos assim a introdução do dimorfismo sexual, do
“dispositivo da sexualidade”, tal como concebido por Foucault, e da invenção da
“homossexualidade” e da “heterossexualidade”. A partir da teoria da construção social,
desenvolvida por Foucault e outros autores na década de 70, o olhar para as questões
relativas à sexualidade incluiu uma forte crítica à biologia, uma distinção entre sexo e
gênero e uma oposição às teorias essencialistas.
Devo adiantar que essas questões serão abordadas de maneira breve, como
pequenos tópicos. Não se trata de discuti-las, mas apenas de apresentá-las, de modo a
fornecer uma espécie de panorama para compreender elementos que fazem parte da teoria
de Butler.
1.1.1 O dimorfismo sexual
Segundo Laqueur (2001), é somente no século XIX que se vê surgir o dimorfismo
sexual e a idéia de um sexo oposto. No progresso na compreensão do corpo humano de
modo geral e na anatomia e fisiologia reprodutivas em particular, o hiato natural entre o
corpo e suas representações permite a existência de códigos de leitura que determinam a
compreensão das descobertas. Laqueur não nega as novas descobertas da ciência, mas
atenta para a influência recíproca entre aquilo que vai sendo descoberto e a forma de olhar
do cientista ou do biólogo influenciados por paradigmas vigentes. Refazendo a história dos
gregos a Freud, Laqueur constata mudanças fundamentais no modo como nós vemos a
relação entre o corpo masculino e o corpo feminino.
Até o século XVIII, o discurso dominante teria construído os corpos masculino e
feminino como versões hierarquicamente ordenadas de um único sexo. Esse modelo
hierárquico, mas de sexo único, interpretava o corpo feminino como uma versão inferior e
invertida do masculino. No século XIX, esse modelo é substituído por um modelo
reprodutivo que enfatiza a existência de dois corpos radicalmente diferentes, com uma
oposição radical das sexualidades masculina e feminina
4
. Isso repercutiu em termos de
gênero. Passa a haver uma diferença absoluta entre homens e mulheres: não mais um corpo
parcialmente diferente, mas dois corpos singulares, o masculino e o feminino. Podemos
dizer que a psicanálise vai se inserir nesse contexto, ou pelo menos, é herdeira dessa idéia
de que a percepção da diferença radical entre os corpos tem um papel de destaque na
construção da subjetividade.
A percepção da distinção radical entre os sexos e os gêneros, estabelecidos a partir
da “realidade” biológica da reprodução, concede importância aos genitais como marcas da
oposição sexual. Mas essa importância, segundo Laqueur, seria muito recente,
considerando-se a história da medicina ocidental.
Em relação ao dimorfismo sexual, a posição particular de Laqueur é a de que
existem corpos diferentes, existe um dimorfismo sexual, que se manifesta também na
aparência externa dos indivíduos, mas isso não significa que os corpos devam ser
compreendidos como opostos. No entanto, prevaleceu no século XIX uma maneira de
interpretar os corpos que os aprisionou no binarismo (de corpo e de gênero) através de todo
o século seguinte.
Na verdade, se o estruturalismo nos ensinou alguma coisa, foi que os
humanos impõem seu senso de oposição a um mundo de sombras contínuas de
diferença e semelhança. (...) eu não tenho resposta para como os corpos
determinam o que nós entendemos como diferença ou igualdade sexual.
(Laqueur, 2001, p. 30).
Mas posso ofereçer material que mostra como as poderosas noções
anteriores [no sentido histórico] sobre a diferença ou igualdade determinam o
que nós vemos e falamos sobre o corpo. (Ibidem, p. 32).
4
O modelo reprodutivo certamente ganhou ainda mais força com a teoria darwiniana, pela importância
concedida à reprodução das espécies.
Quero chamar atenção aqui, com o comentário de Laqueur, para o fato de que a
partir dos corpos se pode, sim, fazer leituras e classificações, mas a redução das diferenças
a uma oposição binária é proposta e instalada por determinados contextos históricos que,
com isso, inviabilizam a percepção das várias possibilidades corporais e de gênero. Quero
adiantar a hipótese de que Butler concorda com Laqueur quanto à redução imposta à
compreensão social dos corpos e dos gêneros, fazendo existir os “gêneros não-
inteligíveis”. Essa imposição de chaves de leitura para a inteligibilidade cultural resulta na
não-aceitação e mesmo na “invisibilidade” de muitos indivíduos.
1.1.2 Sexualidade, homossexualidade e heterossexualidade
A importância que atribuímos ao comportamento sexual, segundo Foucault (1976),
é “invenção” da sexologia do século XIX. Os sexólogos da época tentaram estabelecer
uma esfera especializada do conhecimento, buscaram descobrir as “leis da natureza”
que governariam o mundo sexual, atribuíram à sexualidade uma influência particular
sobre todos os aspectos da vida e delegaram ao corpo o poder de revelar uma verdade
última sobre o indivíduo.
Foucault e Weeks recusam a idéia de que o corpo expresse uma verdade
fundamental sobre a sexualidade. Para Weeks, a sexualidade tem tanto a ver com nossas
crenças, ideologias e imaginações, quanto com o nosso corpo físico. Os corpos não têm
nenhum sentido intrínseco e a melhor maneira de compreender a sexualidade é como um
construto histórico. (Weeks, 2000). Se considerarmos, então, o sexo e a sexualidade como
construções de sentido sobre os corpos, podemos entender melhor a investigação crítica
conduzida por Foucault, que os explicará como efeitos de uma formação específica de
poder. Butler, na esteira de Foucault, debruça-se sobre “gênero” como outro efeito de uma
determinada forma de poder. (Butler, 2003). Não se deve buscar as origens do gênero, uma
identidade sexual autêntica, ou a verdade fundamental do corpo ou do sexo, como se
estivessem escondidas por trás de um mecanismo de repressão. Pelo contrário, busca-se
descobrir as instituições, práticas e discursos, cuja origem é múltipla e difusa, mas que
produzem “gênero”, “sexo” e “sexualidade” como efeitos.
Foucault concebeu o “dispositivo sexual” a idéia de que a sexualidade não é algo
proibido ou reprimido, mas algo do qual se incita a falar, um terreno feito de discursos, de
escritura, de investigação, de confissão, de testemunho e de conhecimento - como parte
daquilo que ele chama de “sociedade disciplinar”, uma sociedade de vigilância e controle.
O poder no período moderno não é uma força negativa com base na proibição, mas uma
força positiva preocupada com a administração e o cultivo da vida. É o “bio-poder”. O
sexo é o pivô ao redor do qual toda a tecnologia se desenvolve.
5
Foucault aponta quatro unidades estratégicas que ligam, desde o século XVIII,
práticas sociais e técnicas de poder. Juntas, formam mecanismos específicos de
conhecimento e de poder centrados no sexo. Estas unidades são: a sexualidade das
mulheres, a sexualidade das crianças, o controle do comportamento procriativo e a
demarcação de perversões sexuais como problemas de patologia individual. Essas
estratégias produziram pessoas submetidas à observação e controle social, inventadas no
interior desse discurso. Não que essas práticas não existissem antes, mas elas passam a ser
especificadas através dessas características: a mulher histérica, a criança masturbadora, o
casal que utiliza formas artificiais de controle da natalidade e o “pervertido”,
especificamente o homossexual. (Foucault, 1976)
Destaca-se aqui a idéia do homossexual inventado como um sujeito passível de
controle. Ele também é fruto de um outro conjunto de diferenças sexuais baseado no senso
de oposição dos humanos: a “heterossexualidade” e a “homossexualidade”. Estes termos
foram criados em 1869, por Karl Kertbeny, um escritor austro-húngaro. Foram idealizados
em função de uma questão política na Alemanha: a revogação das leis anti-sodomitas.
Pretendia-se definir a homossexualidade como uma variante benigna da “sexualidade
normal”, termo usado também por Kertbeny. (apud Weeks 2000). A atividade sexual entre
pessoas do mesmo sexo biológico era tratada sob a categoria geral de “sodomia”, a qual
geralmente era vista não como a atividade de um tipo particular de pessoa, mas como
potencial em toda natureza pecadora. Em pouco tempo, as novas categorias são assimiladas
como dados que demarcam uma divisão entre as pessoas: há “heterossexuais” e há
“homossexuais”, havendo outro termo para aqueles que não se ajustam bem a essa divisão:
‘bissexuais”. Mas Weeks ressalta que outros historiadores mostram que não apenas outras
culturas não têm essa forma de ver a sexualidade, como também não a tinham as culturas
ocidentais até mais ou menos recentemente. (Weeks, 2000).
A demarcação de perversões sexuais como problemas de patologia individual,
como apontou Foucault, somada à invenção dos termos “heterossexualidade” e
5
Isso pode ser observado no capítulo 3, acerca dos casos de intersexos e de transexuais.
“homossexualidade”, aliadas ao afã científico de descobrir verdades fundamentais nos
corpos, tiveram seus efeitos. Surgiu a preocupação em categorizar práticas sexuais e
identidades sexuais e, a partir dessas divisões, criar definições. Produziu-se uma distinção
entre uma sexualidade normal e uma sexualidade anormal, como resultado dos esforços da
sexologia do final do século XIX e começo do XX. Essa distinção estabeleceu uma
hierarquia entre anormais com diferentes graus de anormalidade e normais.
Produziram-se explicações de ordem causal para as “anormalidades” e, em alguns casos,
“tratamentos” para as anomalias. A homossexualidade tornou-se uma categoria científica,
sociológica e psicológica. Levantou-se a hipótese de uma natureza exclusivamente
homossexual, com uma identidade a ela associada. (Weeks, 2000). Enquanto “identidade”,
a homossexualidade gerou um preconceito em relação à prática sexual relacionada a ela,
mas, igualmente, ao indivíduo como um todo, que passou a ser discriminado.
Sobre a história da homossexualidade, dirá Weeks (2001, p. 65): “antes do século
XIX a ‘homossexualidade existia, mas o/a homossexual não.”
1.1.3 A distinção sexo/gênero
Um grande debate que ocupou a atenção dos teóricos da construção social foi a
distinção entre “sexo” e “gênero”. Posições essencialistas, defendendo a eliminação do
gênero, sustentaram que as diferenças culturais são, de fato, naturais. Em reação a essa
posição, os construtivistas se dividiram. Mesmo advogando a idéia de que o corpo é um
construto histórico, como vimos com Foucault e Weeks, havia uma proposta, por parte de
alguns autores, de identificar o que haveria de natural no gênero. Havia teorias que usavam
o fato de a reprodução humana necessitar de um indivíduo do sexo masculino e um do
feminino para relacionar o gênero com a sexualidade. O fato de que para haver reprodução
da espécie são necessários dois indivíduos biologicamente diferentes falaria a favor de
diferenças sexuais como “material bruto” a partir do qual o gênero se constrói. Já os
construtivistas radicais diriam que essas supostas “diferenças naturais” são puramente
culturais. O sexo não teria qualquer conteúdo, pois sempre seria uma “leitura”, uma
“interpretação” cultural. Radicalizando, dir-se-á que não existem corpo, anatomia, dados
biológicos, que não sejam uma construção.
A biologia ocupou o centro de questionamentos por parte de Foucault, de Laqueur
e de algumas antropólogas como Henrietta Moore e, antes dela, Ortner e Whitehead.
O que é gênero, o que são homens e mulheres, que espécie de relações se
obtém ou se deveria obter entre eles todas essas noções não são simplesmente
reflexos ou elaborações a partir de “dados” biológicos, mas são produtos de
processos sociais e culturais. A própria ênfase no biológico é variável nas
diferentes tradições culturais; algumas culturas afirmam que as diferenças entre
machos e fêmeas são quase totalmente baseadas na biologia, enquanto outras
dão bem pouca ênfase às diferenças biológicas. (Ortner e Whitehead, 1981,
apud Moore 1997)
6
.
Por que recusar os “fatos biológicos” como óbvios e naturais? Porque, justamente
por serem “dados” ou “fatos”, são passíveis de interpretações variadas.(Errington apud
Moore, 1997, p.3)
7
Moore cita a posição de Errington que, de algum modo, mostra que não
há nenhum meio para abordar o sexo em qualquer cultura a não ser através de um discurso
do “Sexo”, isto é, uma construção particular dos corpos humanos. Moore será mais radical:
...a própria noção de sexo, de uma propriedade biológica ou de um conjunto
de processos biológicos, que existem independentemente de qualquer matriz
social, é o produto do discurso biomédico da cultura ocidental. Há um senso
fundamental de que, fora dos parâmetros e das esferas de influência desse
discurso biomédico, o sexo não existe. Em outras palavras, na maior parte das
culturas do mundo, onde o conhecimento nativo ou local reina supremos, não
existe sexo, apenas “Sexo”. (Moore, 1997, p.6).
Moore propõe a idéia de que, em última análise, não haveria distinção entre sexo e
gênero, porque ambos seriam socialmente construídos, um em relação ao outro. O conceito
ocidental de sexo é socialmente construído. Não se poderia argumentar que este modelo
particular do sexo “biológico” constitui em toda parte o “material cru” das construções de
gênero. Concordará com Foucault, para quem o sexo é um efeito, mais que uma origem, e,
longe de ser uma unidade essencial, é, enquanto categoria, o produto de práticas
discursivas específicas.
Foucault destaca a natureza mutuamente constitutiva dos discursos ocidentais da
sexualidade e da biologia. A compreensão de que o sexo como categoria unitária é algo
estabelecido através das práticas discursivas ocidentais implica que não se pode afirmar
que o conceito ocidental de sexo seja subjacente às construções de gênero em todo o
mundo. Enquanto conceito de análise, gênero deveria se libertar das suposições acerca
6
Ortner, S.; Whitehead, H. Introduction: accounting for sexual meanings. In: Ortner, S.; Whitehead, H.
(Eds.) Sexual meanings: the cultural construction of gender and sexuality. Cambridge: Cambridge University
Press, 1981.
7
Errington, S. Recasting sex, gender and power: a theoretical and regional overview. In: Atkinson, J.;
Errington, S. (Eds.) Power and difference: gender in Island Southeast Asia. Stanford: Stanford University
Press, 1990.
do “caráter dado” do sexo, como uma base para desconstruir o modelo ocidental de
relações de sexo e gênero.
Parece-me que essa discussão se enriquece quando abrimos mão de uma decisão
sobre “sexo” ser um conjunto de processos biológicos ou um produto do discurso
biomédico da cultura ocidental e atentamos para a sua construção pelo discurso enquanto
uma unidade artificial. Esta unidade, segundo Foucault, permitiu agrupar “...elementos
anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres, e permitiu fazer funcionar
esta unidade fictícia como princípio causal, sentido onipresente, segredo a descobrir em
toda parte. (Foucault, 1976)
Butler se apoiará nessa idéia de Foucault para mostrar que, assim como o sexo,
gênero é construído como unidade, como substância, como ser idêntico a si mesmo. O
resultado disso é que, ainda que gênero seja construído a partir de um “dado biológico
mínimo”, ou que seja pura construção, Butler ressaltará o esforço de enquadramento dos
diversos elementos que o compõem dentro de uma “matriz de inteligibilidade”. Sejam as
leis das teorias essencialistas, sejam as leis das teorias construtivistas, busca-se estabelecer
linhas causais de ligação entre o sexo biológico, o gênero construído culturalmente (no
caso do construtivismo) e a expressão de ambos através do desejo e da prática sexual. A
discussão sexo/gênero com Butler caminhará no sentido de uma recusa do debate entre
natureza e cultura, ou seja, determinações culturais versus determinações sociais, para uma
análise dos efeitos de uma prática de poder que regula as identidades sexuais.
1.1.4 A construção social
Muitas das idéias expostas acima pertencem a um campo teórico que se denomina
de teoria da construção social. Parte dos autores pertencentes a esse campo estavam
originalmente alocados numa área de estudos conhecida como Gays and Lesbian Studies.
Estes autores entendiam que aquilo que é relacionado aos sexos, gêneros e identidades
depende do contexto histórico, social e cultural em que se desenvolvem. No entanto, seu
primeiro movimento foi o de supor a existência de identidades gays ou lésbicas fixas e
involuntárias e, com isso, sair em busca de legitimidade e de direitos equivalentes aos
demais cidadãos. Em parte, esse grupo se tornou normativo, ditador de regras para a
comunidade homossexual, o que estimulou o surgimento de uma nova corrente de estudos
com a preocupação de desconstruir categorias naturalizadas como gay”, “lésbica”,
“homossexual” e “heterossexual. Esta linha ficou conhecida como teoria queer, teoria
“esquisita” (termo que serve também como xingamento ou forma de denominar alguém
como desviante ou anormal). Os estudos queer, nos quais podemos inserir Judith Butler
8
,
compreendem toda forma de comportamento como construção social e histórica. Apontam
para as estruturas de poder e dominação que estabelecem os padrões de aceitabilidade e
rejeição de identidades ou categorias sexuais. Há um certo consenso de que os estudos
queer giram em torno de alguns pressupostos como, por exemplo, o de que a sexualidade é
um “dispositivo”, o de que o corpo é fabricado por tecnologias precisas, o de que as
identidades de gêneros são performativas e o de que as práticas sexuais não-normativas
seriam formas de resistência simbólica e política. Veremos isso melhor na segunda parte
deste trabalho, com as idéias de Butler.
Foucault é o principal referencial quando se fala de construção social, embora não
se possa dizer que ele tenha criado esta teoria, que passou a influenciar grande parte dos
estudos sobre a sexualidade e a homossexualidade. Mary MacIntosh, Kenneth Plummer e
Jeffrey Weeks
9
- que citei acima -, são igualmente considerados nomes importantes nessa
área, contemporâneos a Foucault e não apenas inspirados por ele. Mas, com certeza, a
influência de Foucault foi grande. Sua aceitação na academia norte-americana se deveu
principalmente à possibilidade de historicizar categorias antes aceitas como naturais.
Havia um interesse especial nos Estados Unidos, na década de 70, em acolher as
idéias de Foucault. Os movimentos políticos de afirmação gays e lésbicos se encontravam
a pleno vapor. O episódio de Stonewall
10
ocorrera em 1969; com a organização dos
movimentos, reivindicou-se e foi conseguido que a homossexualidade saísse da
classificação psiquiátrica de doenças mentais em 1973. Os estudos gays e lésbicos, que
num primeiro momento aconteciam fora das universidades, passaram a ser incorporados
por estas. Desenvolviam-se pesquisas na comunidade gay relacionadas à prática sexual dos
homossexuais. .
8
Além de Problemas de Gênero (2003) e Cuerpos que importan (2002), podemos citar: Mary MacIntosh,
The Homosexual Role (1981); Gayle Rubin, Thinking Sex (1993); Eve K. Sedwick, Between Men: English
Literature and Male Homosocial Desire (1985) e Epistemologia del closet (1990); Annemarie Jagose, Queer
Theory -An Introduction (1997).
9
Weeks, J., Coming Out: Homosexual Politics in Britain from the Nineteenth Century to the Present. New
York: Quartet, 1977.
10
Em 27 de junho de 1969, a polícia de Nova York atacou um bar gay em Greenwich Village, chamado
“Stonewall Inn”. Esses ataques não eram raros, mas não costumava haver resistência por parte dos
freqüentadores. Naquela data houve reação, pois os gays decidiram lutar. Por várias noites houve seguidos
protestos nas ruas. Esse espisódio foi considerado o marco inaugural do movimento de liberação gay.
Podemos dizer que história, antropologia, sociologia e literatura se uniram nesse
esforço de desconstruir a categoria “homossexualidade” em sua suposta naturalidade.
Visaram não apenas “desnaturalizar”, mas perguntar sobre a forma mais adequada de
compreender os fenômenos relativos ao comportamento sexual e não permitir que eles
fossem objetos de práticas sociais de controle e normalização. Foucault, em A vontade de
saber (1976), lançou luz sobre a relação entre os valores morais e as teorias que, não
apenas classificavam os comportamentos sexuais, como também justificavam a
intervenção sobre eles.
Foucault criticou o modo tradicional de se conceber a sexualidade como uma libido
natural que tenta se libertar das restrições impostas pela sociedade. Ele argumentou que
desejos não são entidades biológicas pré-existentes, mas são constituídos no curso de
práticas sociais históricas específicas. Novas sexualidades são constantemente produzidas
e haveria uma descontinuidade entre sistemas sexuais baseados no parentesco e formas
mais modernas. A sexualidade não é biologicamente ordenada, o que não significa que as
capacidades biológicas não sejam pré-requisito para a sexualidade humana. Mas a
sexualidade humana não é compreensível em termos puramente biológicos.
Butler é herdeira de Foucault em muitos aspectos. Foucault analisou os sistemas de
conhecimento em seus efeitos de produção e poder. Busca ver que efeitos produtivos têm
determinados discursos no entrelaçamento social.
1.2 Gênero e psicanálise
Vamos agora apresentar o percurso do conceito de “gênero” dentro da psicanálise.
Cronologicamente, fizemos uma inversão. Freud, de alguma maneira, já se ocupava de
questões relativas a “gênero”, no início do século XX, embora não usasse esse termo. E
Robert Stoller, quando forja o conceito de “identidade de gênero”, o faz na década de 60.
Meu intuito, ao apresentar a teoria da construção social antes da psicanálise, foi o de
mostrar que é possível realizar a leitura das contribuições advindas da psicanálise com uma
chave de interpretação fornecida por elementos da teoria da construção social. Nesse
sentido, podemos entender questões como a do dimorfismo sexual, da sexualidade e da
homossexualidade como “invenções” que servem a uma determinada forma de poder, a da
distinção entre sexo e gênero como palco onde se debatem as “verdades biológicas” e o
discurso biomédico sobre o sexo. Mas se pode igualmente fazer uma leitura independente e
levar em consideração os pressupostos psicanalíticos per si.
Se compreendermos “gênero” num sentido clássico, como um termo que se refere à
rede de crenças, traços de personalidade, atitudes, sentimentos, valores, condutas e
atividades que diferenciam mulheres e homens, é necessário admitir que, embora Freud
não use a expressão “identidade de gênero”, ele já se ocupava desse assunto, na medida em
que procurava explicar o desenvolvimento da feminilidade e da masculinidade em homens
e em mulheres. A psicanálise freudiana pode ser interpretada como uma teoria sobre a
aquisição de gênero num momento em que ainda não havia sido proposta a separação entre
sexo e gênero por Robert Stoller. (cf. Rubin, 1975; Person e Ovesey, 1999) Textos
freudianos como A Dissolução do Complexo de Édipo (1924), Algumas Conseqüências
Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos (1925), A Sexualidade Feminina (1931)
e Feminilidade (1932). buscam nos esclarecer quanto à transformação, ou não, do menino
num homem masculino e da menina numa mulher feminina. Freud parecia ter claro que
esse não era um percurso natural e óbvio.
Enumeremos três críticas à tentativa de Freud de dar conta dessas questões. Karen
Horney (1924) e Ernest Jones (1927) (apud Person; Ovesey, 1999) se destacam como
primeiros críticos, contemporâneos a Freud. Em segundo lugar vem Stoller, na década de
60, criador do conceito de “identidade de gênero” e, logo depois dele, algumas autoras
feministas, vinculadas à psicanálise, que utilizam o conceito de gênero para mostrar que a
psicanálise, além de descrever a aquisição de gênero em nossa sociedade e deixar de
problematizar a hierarquia que se estabelece entre os gêneros, corre o risco de ser uma
teoria que favorece a reprodução dessa hierarquia e da relação de poder entre os gêneros. A
primeira e a segunda crítica serão vistas a seguir. A crítica feminista será examinada no
capítulo seguinte.
Segundo Person e Ovesey (1999), Horney e Jones priorizam a relação existente
entre a identidade de gênero e a percepção por parte da criança de seus genitais e das
sensações advindas destes. Masculinidade e feminilidade, para esses autores, seriam
construções paralelas, sem a anterioridade de uma em relação à outra. Consideravam que
Freud havia indicado a existência de uma anterioridade da masculinidade em relação à
feminilidade. Queriam mostrar que o paralelismo entre masculinidade e feminilidade se
sustentaria principalmente na correspondência que haveria entre desenvolvimento da
identidade de gênero e sexo biológico. Feminilidade e masculinidade estariam na natureza
e refletiriam uma heterossexualidade inata. A menina, por exemplo, desejaria o pênis
libidinalmente e não narcisicamente, no sentido de algo que poderia completá-la. A
feminilidade seria inata, assim como a escolha de objeto sexual. Ambas seriam ligadas a
fatores biológicos e à consciência de possuir uma vagina. Esta seria, em última instância, a
posição de Horney e de Jones, na visão de Person e Ovesey. (1999, p. 31)
Na perspectiva desses comentadores de Freud, a aquisição de gênero parece ocorrer
num entrelaçamento entre o substrato biológico e os avatares ocasionados pelo Complexo
de Édipo. Acreditavam que, em Freud, a masculinidade em ambos os sexos aparenta ser
um gênero inato ou natural, a partir do qual a feminilidade deveria se desenvolver. Já em
Horney e Jones, pode-se atribuir o gênero, tanto masculino quanto feminino,
predominantemente a disposições inatas. Esse debate se cristaliza até a chegada de Stoller.
Mas seria ingênuo pensar que, em Freud, as coisas se passavam de maneira simples.
Essa seria uma leitura reducionista da teoria freudiana. Afinal, além de tentar mostrar os
caminhos nada óbvios da aquisição dos gêneros, Freud parecia ter clara consciência da
dificuldade em se definir o próprio “conteúdo dos gêneros”, digamos assim, as noções de
“masculino” e “feminino”. Vale a pena abrir um parêntesis e lembrar duas passagens de
Freud acerca dos termos “masculino” e “feminino” na psicanálise. Ao comentar o fato de
a libido ser de natureza masculina, tanto em homens quanto em mulheres, e independente
de seu objeto ser um homem ou uma mulher, Freud acrescenta, em 1915, a seguinte nota
de rodapé aos Três Ensaios (1905):
É essencial compreender claramente que os conceitos de ‘masculino” e
‘feminino’, cujo significado parece tão inequívoco às pessoas comuns, estão
entre os mais confusos que ocorrem na ciência. É possível distinguir pelo menos
três usos. ‘Masculino’ e ‘feminino’ são usados por vezes no sentido de atividade
e passividade, por vezes num sentido biológico e por vezes, ainda, num sentido
sociológico. O primeiro destes três significados é o essencial e o mais útil na
psicanálise. Quando, por exemplo, a libido foi descrita no texto acima como
‘masculina’, a palavra estava sendo usada neste sentido, pois um instinto (Trieb)
é sempre ativo mesmo que tenha em mira um objetivo passivo. O segundo
significado, ou biológico, de ‘masculino’ e ‘feminino’ é aquele cuja
aplicabilidade pode ser mais facilmente determinada. Aqui, ‘masculino’ e
‘feminino’ são caracterizados pela presença de espermatozóides ou óvulos,
respectivamente, e por funções que deles procedem. A atividade e seus
fenômenos concomitantes (desenvolvimento muscular mais poderoso,
agressividade, maior intensidade da libido) estão, via de regra, ligados à
masculinidade biológica, mas eles não são necessariamente assim, pois há
espécies animais em que estas qualidades são, ao contrário, atribuídas à fêmea.
O terceiro significado, ou significado sociológico, recebe sua conotação da
observação de indivíduos masculinos e femininos efetivamente existentes. Tal
observação mostra que nos seres humanos a masculinidade pura ou feminilidade
não se pode encontrar nem num sentido psicológico nem num biológico. Todo
indivíduo, ao contrário, revela uma mistura dos traços de caráter pertencentes a
seu próprio sexo e ao sexo oposto e mostra uma combinação de atividade e
passividade, concordem ou não estes últimos traços de caráter com seus traços
biológicos. (Freud, 1972, p.226).
Percebe-se a aqui a plurivalência dos termos “masculino” e “feminino” - que, ao
mesmo tempo, definem primeiramente um organismo biológico (espermatozóides e
óvulos), em segundo lugar, fornecem descrições sociológicas (observação do
comportamento de indivíduos biologicamente machos e fêmeas) e, por último, dizem
respeito a um sentido específico na psicanálise, de atividade e passividade ligados à libido,
mas que se aproximam um tanto da definição biológica, dirá Freud. A divisão pura e
simples dos seres humanos em masculinos e femininos parece não dar conta da
complexidade que estes apresentam, já que não existe em estado puro uma coerência entre
sexo biológico, atividade/passividade e comportamento observável. Isso se complica ainda
mais quando Freud leva em consideração de forma mais direta a sexualidade e a escolha de
objeto.
Uma nota de rodapé do texto O Mal-Estar na Civilização (1929/1930) vem
acrescentar mais elementos acerca do assunto:
O homem é um organismo animal (como outros) com uma disposição
bissexual inequívoca. (...) O sexo constitui um fato biológico que, embora de
extraordinária importância na vida mental, é difícil de apreender
psicologicamente. Acostumamo-nos a dizer que todo ser humano apresenta
impulsos, necessidades e atributos instintivos tanto masculinos quanto
femininos, e, ainda que a anatomia, é verdade, possa indicar as características de
masculinidade e feminilidade, a psicologia não pode. (...) A teoria da
bissexualidade ainda está cercada por muitos pontos obscuros, e não podemos
deixar de sentir como um sério impedimento na psicanálise o fato de que ainda
não tenha sido descoberto um elo com a teoria dos instintos. Seja como for, se
considerarmos verdadeiro o fato de que todo indivíduo busca satisfazer tanto
desejos masculinos quanto femininos em sua vida sexual, ficamos preparados
para a possibilidade de que esses dois conjuntos de exigências não sejam
satisfeitos pelo mesmo objeto e que interfiram um com o outro, a menos que
possam ser mantidos separados e cada impulso orientado para um canal
específico que lhe seja apropriado. (Freud, 1974, p. 126-127)
As considerações de Freud acerca de gênero, ou seja, dos conceitos de “masculino”
e de “feminino”, aliados à teoria da bissexualidade, vão ao encontro da incoerência e da
descontinuidade apontadas na concepção butleriana de gênero. A coerência é esperada pela
sociedade, é o que leva a uma idealização dos gêneros “inteligíveis”, aqueles que mantém
coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Freud aqui mostra o contrário e,
nesse sentido, se aproxima de Butler. Os gêneros são, naturalmente, “gêneros não-
inteligíveis”. Mas guardemos também as diferenças: afinal, Freud opera com a idéia de que
há mesclas do feminino com o masculino. Butler quererá eliminar a dicotomia.
Mas, apesar de Freud estabelecer as bases para uma grande discussão acerca do
gênero na psicanálise, mostrando a dificuldade em se fazerem definições estáticas - já que
é complexa a relação entre natureza e cultura, entre o biológico e o social e de , além
disso, descrever por vezes uma ordem simbólica específica da psicanálise que se apóia
sobre o conceito de pulsão e, portanto, não se reduz ao que o senso comum entende como
sexo ou gênero, ainda assim como veremos no capítulo 4 - Freud oscila em outras
passagens de sua obra e deixa transparecer suas crenças morais e seu próprio “senso
comum” sobre o masculino, o feminino, o homem e a mulher e a sexualidade. Nessa hora,
suas idéias inovadoras, parece-me, correm o risco de se diluir numa moral cotidiana
preconceituosa. Como bem lembra Ferraz (2001, p.12) na questão da homossexualidade,
por exemplo, “..em se tratando de um tema tão profundamente ligado às nossas paixões e
às nossas crenças morais mais estruturantes, não é possível imaginar um discurso “puro” e
totalmente isento sobre as problemáticas da identidade sexual.” Apesar de, em certos
momentos de sua obra, defender que não se deve discriminar os homossexuais em razão de
suas práticas eróticas, Freud “...deixa escapar aqui e ali, alguns pequenos juízos
subliminares que conotam uma visão da homossexualidade como escolha sexual menor,
infantil, perversa ou neurótica, resultante de um conflito edípico mal resolvido ou de uma
misteriosa razão constitucional, quando a “quantidade” da disposição inata homossexual
supera a heterossexual”. (Ibidem, p. 12).
1.2.1 Stoller, o transexualismo e a identidade de gênero
Ao que tudo indica, “gênero” e “psicanálise” se encontram pela primeira vez numa
publicação de Robert Stoller (1964)
11
, psicanalista americano falecido em 1991
12
. Tratava-
se do campo da patologia. Segundo o próprio Stoller, J. Money e J.G. Hampson (1955) já
11
Stoller, R., A Contribution to the Study of Gender Identity, International Journal of Psychoanalysis, 45,
p.220-226., 1964. Stoller apresentara o conceito de “identidade de gênero” no Congresso Internacional de
Psicanálise de Estocolmo, em 1963. Seu trabalho discutia e generalizava as descobertas do projeto da UCLA
(Univ. Califórnia, Los Angeles), desenvolvido no Centro Médico para o Estudo de Intersexuais e
Transexuais.
12
Existem dois textos traduzidos para o português sobre o modo como a noção de gênero surgiu na
psicanálise: o de Emilce Dio Bleichmar e o de Person e Ovesey. (Bleichmar, E.D., O feminismo espontâneo
da histeria, Artes Médicas, Porto Alegre, 1988; Person, E. e Ovesey, L., Teorias Psicanalíticas da Identidade
de Gênero. In:: Cecarelli, P. R. (Org.) Diferenças Sexuais, São Paulo: Ed Escuta, 1999). No entanto, a obra
que introduziu a noção de gênero na psicanálise, Sex and Gender, de Robert Stoller, ainda não foi traduzida
e a edição orginal está esgotada.
haviam introduzido o termo “gênero” para falar do hermafroditismo, examinar conceitos
sexuais básicos e questões de mudança de sexo, mas esses autores faziam suas
investigações no campo médico.
13
A invenção do conceito de “identidade de gênero”, ou
“gênero”, como às vezes é usado por uma questão de simplificação, foi de Stoller, com a
observação e tratamento de pacientes transexuais (crianças) e seus pais. Em 1968, ele
publicou Sex and Gender, onde aprofundou o que havia sugerido quatro anos antes. Seu
objetivo principal era distinguir o sexo (no sentido anatômico) da identidade (no sentido
social ou psíquico). Em Sex and Gender, Stoller relata três casos de meninos entre quatro e
cinco anos que foram diagnosticados como transexuais. Não havia anomalias do ponto de
vista anatômico, não havia alteração genética, o fenótipo também estava de acordo com o
sexo masculino, mas havia, segundo o autor, uma identificação com o feminino, como, por
exemplo, adotar um vestuário feminino. Quando estavam brincando, esses meninos agiam
como se fossem meninas, assumiam apenas papéis femininos. Embora soubessem que
biologicamente pertenciam ao sexo masculino, esses meninos se acreditavam meninas. O
uso do termo “gênero” deveu-se à necessidade de trazer para o campo da psicanálise
freudiana uma ferramenta que permitisse a diferenciação entre sexo anatômico e identidade
sexual. Nos estudos de distúrbios de gênero, como no transexualismo ou no travestismo,
Stoller se dizia insatisfeito com a explicação da psicanálise clássica em termos apenas de
“ansiedade de castração”. Considerava este conceito “...excessivamente anatômico,
excessivamente despojado de conotações de identidade”. (Stoller, 1993, p.38).
Em nenhum momento devemos perder de vista que a entrada do termo “gênero” no
campo psicanalítico se deu pela via dos estudos sobre a patologia, principalmente do
transexualismo. Está suposto, nesse início, a expectativa de uma coerência entre o sexo
anatômico e o gênero. A não-coerência é atribuída à patologia. Conhecer esse momento
inaugural é importante para acompanharmos como este conceito se deslocará, “tomando
carona” no movimento feminista, em que é usado para questionar a desigualdade na
valorização entre homens e mulheres e, posteriormente, desembocando num conceito de
valor político que serve tanto para ajudar a formular as reivindicações feitas por grupos que
defendem a diversidade sexual, como para o questionamento da transformação da
sociedade de um modo geral.
13
Stoller é seguido de perto, em suas publicações na década de 60, por outro psicanalista, Ralph Greenson
(1966), que também se dedica a questões sobre a homossexualidade e a identidade de gênero. Mas o mérito
da introdução do conceito de “identidade de gênero” e de sua formalização é de Stoller.
Apesar de Stoller ser contemporâneo de feministas psicanalistas importantes que
trabalham com a noção de gênero na década de 70, como Nancy Chodorow (1978) (que o
cita em seu trabalho) e Juliet Mitchell (1974)
14
, seu trabalho parece não dialogar com as
preocupações destas. Stoller não abriu mão de sua “..contínua busca para compreender as
origens, o desenvolvimento, a dinâmica e a patologia da identidade de gênero
masculinidade e feminilidade” e investiu no estudo das perversões. Em 1985, fez uma
espécie de revisão de seus estudos sobre gênero, publicando artigos dos anos anteriores,
com o objetivo de “expor o pensamento atual a respeito da identidade de gênero
15
. Nesses
artigos, a preocupação com a patologia permanece.
Vamos nos deter um pouco sobre o conceito de “identidade de gênero” de Stoller
(1993, p.28). Este se refere:
...à mescla de masculinidade e feminilidade em um indivíduo, significando que
tanto a masculinidade como a feminilidade são encontradas em todas as
pessoas, mas em formas e graus diferentes. Isso não é igual à qualidade de ser
homem ou mulher, que tem uma conotação com a biologia; a identidade de
gênero encerra um comportamento psicologicamente motivado. Embora a
masculinidade combine com a qualidade de ser homem e a feminilidade com a
qualidade de ser mulher, sexo e gênero não estão, de maneira direta,
relacionados.
Até aqui podemos dizer que Stoller está de acordo com Freud. Mas é preciso
esclarecer o que significam masculinidade e feminilidade:
Masculinidade ou feminilidade é definida, aqui, como qualquer qualidade
que é sentida, por quem a possui, como masculina ou feminina. Em outras
palavras, masculinidade ou feminilidade é uma convicção mais precisamente,
uma densa massa de convicções, uma soma algébrica de “se”, “mas” e “e” não
um fato incontroverso. Além do fundamento biológico, a pessoa obtém estas
convicções a partir das atitudes dos pais, especialmente na infância, sendo estas
atitudes mais ou menos semelhantes àquelas mantidas pela sociedade como um
todo, filtradas pelas personalidades idiossincráticas dos pais. Portanto, tais
convicções não são verdades eternas: elas se modificam quando as sociedades
se modificam. (Stoller, 1993).
Uma vez separados sexo e gênero e uma vez definida a identidade de gênero como
uma convicção, Stoller descreve a forma como esta convicção é adquirida. A identidade de
14
Apesar de Julie Mitchell não ser uma das feministas cuja noção de gênero discutimos no capitulo 2, ela é
reconhecidamente um dos principais nomes que trabalham no campo do feminismo psicanalítico. Mitchell J.
Psychoanalysys and Feminism, New Yo rk: Pantheon Books, 1974.
15
Stoller, R.J. (1985) Observando a imaginação erótica, Rio de Janeiro: Imago, 1998.
gênero abarca um primeiro momento de desenvolvimento do que ele chama de “identidade
de gênero nuclear”, um primeiro passo em direção à identidade de gênero fundamental da
pessoa. Em torno dela se desenvolvem gradualmente a masculinidade e a feminilidade. O
sentido do sexo da pessoa, sua identidade de gênero nuclear, não implica em um papel ou
em relações objetais. A masculinidade ou feminilidade primordiais, o sentido de ser
homem ou mulher, estará estabelecido por volta dos dois ou três anos.
A identidade de gênero nuclear é resultante, segundo Stoller, do seguinte conjunto
de fatores (Ibidem, p.29-30):
1. Uma “força” biológica que se origina na vida fetal, comumente genética e que
emerge da organização neurofisiológica;
2. a designação do sexo no nascimento pelo médico e pelos pais;
3. a influência incessante das atitudes dos pais, especialmente das mães, sobre o sexo
daquele bebê e a interpretação destas percepções por parte do bebê, pela sua
capacidade crescente de fantasiar;
4. Fenômenos “bio-psíquicos”: efeitos pós-natais precoces causados por padrões
habituais de manejo do bebê condicionamento, “imprinting” ou outras formas de
aprendizagem que modificam permanentemente o cérebro do bebê e o
comportamento resultante;
5. O desenvolvimento do ego corporal: as qualidades e quantidades de sensações,
especialmente dos genitais, que definem o físico e ajudam a definir as dimensões
psíquicas do sexo da pessoa.
Stoller deixa claro que é somente nos casos de aberração que se pode observar
qualquer um destes fatores separadamente. Eles foram descobertos no “patológico” e não,
no “normativo”. A identidade de gênero pode ser congruente com a anatomia e o que a
cultura define como comportamento adequado para aquele sexo, ou pode ser distorcida em
relação a essa anatomia.
Não é meu intuito discutir ítem por ítem as afirmações de Stoller. Destaco duas
questões de sua obra que deram origem a reflexões por parte de outros autores acerca da
identidade de gênero: uma diz respeito à formação da “identidade de gênero nuclear”, com
o propósito de diferenciá-la de um segundo momento, a identidade de gênero propriamente
dita; a segunda questão é quanto à existência de uma feminilidade primária em vez da
masculinidade primária, atribuída a Freud.
1.2.2 A identidade de gênero nuclear e a identidade de gênero fundamental
Segundo a psicanalista Emilce Dio Bleichmar, pesquisadora na área de gênero,
“identidade de gênero” que compreende o núcleo da identidade e a identidade
propriamente dita vem na seqüência da “atribuição de gênero”. (Bleichmar, 1998, p.33).
A partir da rotulação do médico, a família tende a se posicionar de determinado modo em
relação à criança, envolvendo-a num discurso que reflete os estereótipos de feminilidade
ou masculinidade da cultura da qual faz parte. O “núcleo da identidade do gênero” ou
“identidade de gênero nuclear”, como propõe Stoller, que implica no sentimento de “ser
menina” ou “ser menino”, depois que se instala é praticamente inalterável e se distingue da
percepção de si como feminina ou masculino que, além de vir num momento posterior,
estaria em maior ou menor acordo com as expectativas dos pais e da sociedade.
Talvez seja interessante fazer aqui uma demarcação entre “identidade” e
“identificação” para esclarecer pontos que virão adiante. A identidade diz respeito à
formação do gênero, enquanto a identificação, em psicanálise, é comumente usada para
designar a atividade inconsciente, no processo edípico, de apropriação de aspectos de um
dos genitores.
Stoller concebe a identidade de gênero, seja nuclear, seja fundamental, como um
sentimento psíquico de ser homem ou de ser mulher, uma convicção construída em acordo
com a atitude dos pais e da sociedade, embora tenha mencionado a contribuição de uma
“força” biológica oriunda da vida fetal e o desenvolvimento do ego corporal a partir de
sensações genitais. Esta última não seria uma contribuição imprescindível.
Stoller sustenta que “o núcleo da identidade de gênero se estabelece antes da etapa
fálica, o que não quer dizer que a angústia da castração ou a inveja do pênis não
intervenham na identidade do gênero, mas que o fazem uma vez estruturada tal
identidade.” (Stoller, 1993, p.37). Bleichmar concordará com Stoller, afirmando que o
desenlace edípico incide sobre o desejo e não, sobre o gênero. Só existe a ameaça de
castração porque, no caso do menino, existe algo consolidado que se teme perder. A
estruturação de gênero pode ser pensada independentemente do conflito edípico. Nesse
sentido, a identificação edípica incidiria sobre o desejo e não sobre o gênero.
Voltando à nossa questão preliminar, exposta na introdução desse trabalho, por esse
viés “gênero” não contribuiria para a compreensão do desejo homossexual, na medida em
que este seria fruto do atravessamento do complexo de Édipo e não, de uma identidade
nuclear de gênero. O estabelecimento de identidades nucleares como “substâncias” é um
dos procedimentos condenados por Butler. Ele dificultará a compreensão dos gêneros que
não se enquadram como “inteligíveis”.
Bleichmar encontra uma brecha na teoria freudiana para explicar um dos
componentes da formação da “identidade de gênero nuclear”. Ela recorre ao termo
“identificação”, num sentido diferente da “identificação” que ocorre no processo edípico.
Trata-se agora de uma operação psíquica que dá conta da organização da identidade de
gênero num momento inicial. Stoller descreve este processo ao dizer que a primeira forma
de identidade de gênero advém da experiência de estar fundido com a mãe, de uma
simbiose com esta, de uma “identificação” pré-verbal. Bleichmar dirá que se trata da
identificação primária, direta e imediata, que Freud expõe no capítulo VII de Psicologia de
Grupo e Análise do Ego, baseada na similitude entre a criança e o pai, a quem a criança
considera como modelo a imitar. Dessa formulação de Freud se pode deduzir a existência
de uma identidade masculina na criança bastante precoce. (Bleichmar, 1988, p.43). Não é
uma ligação de ordem sexual, como a que desenvolverá em relação à sua mãe, uma catexia
de objeto num sentido edípico. A identificação primária permite a orrganização de um
ideal do gênero, que se toma como modelo. Apesar de Freud afirmar a ocorrência dessa
identificação com o pai, Bleichmar toma esse modelo freudiano como uma hipótese sobre
o modo de organização da estrutura inicial de relação das crianças com ambos os pais. As
relações de objeto que se estabelecem com os pais nesse mesmo período (que Bleichmar
denomina de relação ego-outro nas etapas oral e anal) não afetariam a identificação. São
relações coexistentes, as de objeto e as de identificação. Aos dois anos, a criança já teria
estabelecido claramente a diferença de gêneros do pai como homem e da mãe como
mulher. Mais tarde, como resultado do Complexo de Édipo, a criança poderá definir para
qual sexo dirigirá seu desejo, sua futura homossexualidade ou heterossexualidade, mas não
estará questionando seu gênero, que se estabelece solidamente num momento anterior.
(Bleichmar, 1988, p.46)
Tem-se a impressão de que, em Bleichmar, apesar de haver um peso grande
concedido àquilo que vem da sociedade como construção social do gênero (seja pela
atribuição de gêneros, seja pelos papéis de gêneros aprendidos e desempenhados, que ela
aborda como terceiro momento da identidade de gênero), parece haver a compreensão de
que a divisão em dois gêneros, com um adequado investimento de valorização narcisista de
cada um (o que ela chama de “masculinização do pênis” e “feminização da vagina”), seria
suficiente para expressar a mescla de masculinidade e feminilidade que existe no ser
humano. (Ibidem, p.53). Quase podemos dizer que a autora encontra na anatomia um certo
ideal de gênero. Nesse sentido, Freud, com sua definição de masculino e feminino, e
Stoller, com sua idéia de “convicção”, parecem ter mais abertura para a tensão que existe
no conceito de “gênero”.
A título de curiosidade, cabe aqui uma rápida exposição sobre as nomenclaturas
acerca da identidade de gênero. De acordo com Person e Ovesey, no âmbito da medicina
Money e pesquisadores a ele associados realizaram a distinção entre sexo e gênero nos
estudos sobre hermafroditismo. O primeiro passo para a diferenciação de gênero era a
autodesignação, pela criança, atribuindo-se o sexo feminino ou o masculino. Para não
confundir o sexo anatômico com o gênero, Money criou em 1955 o termo “função de
gênero”, que incluía tudo o que a pessoa dizia ou fazia para se mostrar como homem ou
mulher. Dizia respeito a comportamentos, sonhos, fantasias e também ao erotismo. Em
1965, precisou fazer uma distinção entre “função de gênero” e “identidade de gênero”, pois
havia uma diferença entre aquilo que a pessoa mostrava publicamente e aquilo que sabia e
compreendia acerca de si própria. Identidade de gênero é a experiência privada da função
de gênero, e função de gênero é a expressão pública da identidade de gênero.” (Money,
apud Person; Ovesey, 1999, p. 124)
Talvez seja um exagero de minha parte fazer a seguinte comparação, mas é como se
Money, dentro de sua perspectiva de estudos da patologia, nomeasse aquilo que Butler
apontará mais tarde como sendo “paródia”. A diferença, é que para Butler, a paródia é uma
“denúncia” (por vezes consciente, outras não) da exigência de coerência imposta pelas
matrizes de inteligibilidade de gênero.
Voltando a Stoller, ele se pergunta como, a partir da “identidade de gênero
nuclear”, se desenvolve a identidade de gênero fundamental da pessoa. Como, em torno
desse primeiro núcleo, se desenvolvem gradualmente a masculinidade e a feminilidade.
Stoller escreve num contexto em que a explicação dos comportamentos, em geral, tem
lugar no debate teórico entre o que ele chama de “teorias psicodinâmicas” (psicanalíticas) e
“teorias do aprendizado” (behavioristas). Stoller opta por uma combinação de teorias
behavioristas com a psicanálise. Conflitos pré-edípicos e edípicos e suas resoluções são
completados no desenvolvimento da criança em diferentes estágios de maturidade e
experiência, na medida em que estas interpretam com diferentes significados as atitudes
dos membros da família e de pessoas de fora desta. Estas atitudes se traduzem por sistemas
de recompensa e castigo, além de proibições, ameaças e comunicações confusas. Estas
atitudes podem modelar comportamentos masculinos e femininos em meninos e meninas.
1.2.3 Feminilidade e masculinidade
Stoller se propõe a realizar duas tarefas difíceis: quer ir além de uma definição de
feminilidade nas mulheres, que julga freudiana, caracterizada primordialmente pela inveja
do pênis e pela negação ou aceitação resignada da castração; e quer mostrar que a
masculinidade nos homens não é apenas um estado natural que precisa ser preservado, mas
se trata de uma conquista.
Stoller compreende a teoria freudiana do desenvolvimento da feminilidade e da
masculinidade de um modo que vai ao encontro da crítica de algumas feministas. Freud
priorizaria o sexo masculino, deixando às mulheres e à feminilidade um papel secundário.
(Stoller, 1993, p. 240). No entanto, segundo sua experiência clínica, a masculinidade não
seria o modo natural, original, da identidade de gênero em ambos os sexos, como pensava
Freud. Pelo contrário, a primeira forma de identidade de gênero advém da experiência de
estar fundido com a mãe, de uma simbiose com esta, de uma “identificação” pré-verbal.
Essa relação estimularia a feminilidade nas crianças e, por isso, precisa, no caso dos
meninos, ser combatida para que eles possam desenvolver a masculinidade. Curiosamente,
ao mesmo tempo em que critica a importância concedida por Freud ao homem e ao
masculino em sua teoria, alinhando-se assim com a crítica feminista, o pensamento de
Stoller pode ser objeto de ataque de um feminismo como o de Jessica Benjamin (1988). Na
opinião desta autora, como veremos no próximo capítulo, a visão de que a relação mãe-
bebê precisaria ser rompida, negada e desmontada para que o homem emerja em sua plena
masculinidade como indivíduo autônomo e independente afetivamente da mãe/mulher,
contribui para a desvalorização da mulher. Abordaremos essa idéia de Benjamin com mais
detalhes no próximo capítulo.
Podemos resumir da seguinte forma o papel da noção de “gênero” na crítica de
Stoller à teoria freudiana: Freud estaria convencido da superioridade dos homens em
relação às mulheres, por serem estes mais capazes do que elas de superar os obstáculos
relativos às diferenças anatômicas entre os sexos, isto é, lidam com a ameaça de castração
com mais sucesso do que as mulheres lidam com a inveja do pênis. No entanto, essa
convicção se apóia num equívoco. A teoria freudiana concede erroneamente um papel
primordial à ansiedade de castração e à inveja do pênis na determinação da identidade de
gênero. São justamente as experiências e observações de pacientes transexuais que
permitem a descoberta da identidade de gênero nuclear e modificam a teoria de Freud. Há
um estágio mais precoce no desenvolvimento da identidade, em que o menino e a menina
estão “fundidos com a mãe”. Este estágio permite vivenciar um sentimento que se torna o
fundamento da feminilidade. Esta seria anterior em relação à masculinidade. Stoller
inverte o sentido da construção de gênero em Freud, não em relação à escolha de objeto
(para ambos, menina e menino, a mãe é o primeiro objeto), mas em relação à identidade de
gênero. A menina encontra muito cedo a gratificação de ser mulher, enquanto o menino
terá que percorrer um caminho complexo em busca de sua masculinidade.
Sentir a si próprio como uma parte da mãe uma parte de estrutura de
caráter primeva e, portanto, profunda (identidade de gênero nuclear)
estabelece o fundamento para o sentido de feminilidade de um bebê. Isso coloca
a menina firmemente no caminho para a feminilidade na idade adulta, mas põe
o menino em risco de ter, em sua identidade de gênero nuclear, um sentido de
unidade com a mãe (um sentido da qualidade de ser mulher). Dependendo de
como e com qual intensidade a mãe permite ao filho separar-se, esta fase de
fusão com ela deixará efeitos residuais que podem ser expressos como
distúrbios da masculinidade. (Stoller, 1993, p. 35)
Bleichmar, apesar de ter levantado a hipótese sobre a identificação precoce com o
pai, baseada numa idéia freudiana, concordará com Stoller quanto à idéia de que o primeiro
e principal modelo de identificação é a mãe e que, portanto, será mais difícil para o menino
assumir um ideal primitivo do gênero
16
. A identificação com a mãe não promove uma
masculinidade. O menino tem de “des-identificar-se” com relação a ela.
17
Apesar de seu
objeto de amor não variar ao longo de sua evolução, o desenvolvimento de sua identidade
de gênero não é tão simples. A estrutura da relação dual mãe-filho e a identificação
primária e especular com a mãe são comuns a todos os meninos. Para se “des-identificar”,
ele necessita buscar ativamente a identificação com homens. Encontra também apoio na
socialização que lhe indica o que se espera de um homem. Atentemos novamente aqui, em
Bleichmar, para aquilo que está na base da crítica feminista de Benjamin, que veremos no
16
Bleichmar, op. cit., p. 47-48.
17
O termo “des-identificação” é cunhado por Greenson (1966) que, na esteira de Stoller, trabalha com
questões de identidade de gênero na terapia de pacientes homossexuais, travestis e transexuais.
próximo capítulo: idealiza-se teoricamente uma relação com a mãe e promove-se um
rompimento dessa relação, tendo como conseqüência a desvalorização da mulher.
De onde vem a feminilidade primária, pergunta-se Stoller? Se gênero se estabelece
independentemente da sexualidade, como quer acreditar Bleichmar, a idéia de Horney e de
Jones, da percepção, ou não, da vagina e dos impulsos e desejos a elas correspondentes
está fora de questão. Horney e Jones dão o mesmo peso para masculinidade e feminilidade
primárias, mas chamá-las de “inatas” e derivá-las de uma heterossexualidade inata
significa obscurecer o desenvolvimento complexo tanto do gênero quanto da sexualidade,
dirão Person e Ovesey. Já Stoller explica a feminilidade primária, mas, segundo os autores,
ao colocá-la em primeiro lugar no desenvolvimento de ambos os sexos, torna mais difícil a
compreensão de como se adquire a masculinidade. Ele sustenta sua formulação de uma
feminilidade primária no estudo do transexualismo, que em meninos pode ser observada já
no primeiro ano de vida, mas é preciso ver se suas premissas são corretas. Para Stoller, o
transexualismo é a pedra fundamental para o entendimento do desenvolvimento da
masculinidade e da feminilidade em todas as pessoas. (apud Person; Ovesey, 1999, p.
138) Mas Person e Ovesey destacam alguns pontos frágeis, a saber: Stoller não teria uma
base de dados confiável, trata o transexualismo como não-conflitivo, o que colidiria com a
opinião de muitos psiquiatras, e utiliza-se da noção de imprinting para explicar a
feminilidade primária.
1.2.4 Imprinting e feminilidade primária
Com relação ao mecanismo de imprinting, Person e Ovesey apontam três objeções:
não haveria evidência de imprinting em humanos; é um conceito que dá conta da escolha
de objeto e não da identidade (os patinhos seguiram Lorenz, mas não se sabe como eles se
auto-identificavam!); não se sabe exatamente o que estaria sendo impresso na psique do
bebê, ou seja, não se sabe o que constitui a feminilidade da mãe.(Person e Ovesey, 1999, p.
140). Segundo os autores, Stoller posteriormente aceita as críticas e substitui “imprinting”
por “fixação” sem, no entanto, modificar o conceito, mas apenas o termo utilizado
18
.
Convém salientar que, embora Person e Ovesey possam ter razão quanto a suas críticas,
Stoller nos alertou para o fato de que a “identidade de gênero nuclear” é formada por um
conjunto de fatores que somente podem ser vistos isoladamente em casos patológicos.
18
Stoller, R.J. Sexual Excitement: Dinamics of erotic life. New York:Pantheon, 1979.
Insisto nesta idéia, não para defendê-lo de uso talvez equivocado da noção de “imprinting”,
ou mesmo do fato de querer sustentar uma feminilidade primária tanto nos meninos quanto
nas meninas. Mas Stoller parece ter frisado bem que estão presentes na formação da
“identidade nuclear de gênero” as atitudes dos pais, especialmente das mães, sobre o sexo
daquele bebê e a interpretação destas percepções por parte deste através de sua capacidade
crescente de fantasiar, assim como o condicionamento e a aprendizagem ao lado do
imprinting, agindo sobre a sua psique em formação. Em outro momento (Stoller, 1998) o
autor parece dar muito destaque às histórias familiares dos transexuais, nas quais encontra
mães com forte desejo de terem sido homens e, por outro lado, pais ausentes.
O que Stoller chamou de imprinting vem sendo recuperado nos últimos anos em
sua relação com a imitação e a identidade de gênero. Apesar da crítica de Person e Ovesey,
o caminho aberto por Stoller em relação aos mecanismos responsáveis pela formação de
gênero parece ainda render frutos. Paulo C. Ribeiro retoma os estudos do psicanalista
Eugenio Gaddini, realizados na década de 50, sobre as relações entre a imitação precoce,
os processos de identificação e a aquisição da identidade de gênero.
19
Gaddini sustenta que
a percepção é ligada à imitação. A percepção, que estaria na origem da subjetividade do
lactente, seria uma auto-percepção, ou seja, uma percepção das próprias modificações
corporais, que providenciariam a formação de um eu-corporal. Mas estas modificações
corporais, por sua vez, seriam conseqüência de um processo de imitação involuntária,
mecânica, a partir de estímulos propiciados pelo adulto. De um modelo biológico em que
“imitar” implicaria em “perceber”, desenvolve-se um modelo psíquico em que aquele
mecanismo se torna um “imitar para ser”, estabelecendo um elo entre imitação e
identificação. Para Ribeiro, os estudos sobre a imitação precoce ajudam na compreensão da
identificação primitiva com a mãe apontada por Stoller como fundamental na formação da
identidade de gênero. A feminilidade primária em ambos os sexos, que Stoller descreve,
não deve ser considerada como um processo de identificação realizado pelo eu, “..mas
como um mecanismo de imprinting capaz de agir sobre o próprio cérebro ainda em
desenvolvimento.” Ribeiro admite o uso do termo “imprinting”, assim como Stoller, para
traduzir o que Stoller chama de “mecanismos não motivados pelo indivíduo”, através dos
quais a realidade externa encontra seu lugar no interior. Não é uma mera incorporação do
que Lorenz denominou de imprinting, pois nesse caso seriam cabíveis as críticas de Person
19
Ribeiro, P.C., Uma abordagem psicanalítica dos fenômenos de imitação precoce: questões preliminares,
IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais, 2005.
e Ovesey. Imprinting aqui diz respeito à imitação e aos processos caracterizados pela
passividade de um sujeito, ainda em vias de constituição, sobre o qual estes processos
incidem.
Por que aquilo que o lactente imita e recebe passivamente é chamado de
“feminilidade primária”? Aparentemente a resposta é simples: porque imitam algo que
vem de sua mãe e esta, por ser mulher, é feminina e transmite uma feminilidade. No
entanto, se podemos estabelecer um elo direto entre a imitação, a identificação e a
identidade de gênero, seria possível imaginar que os bebês que fossem cuidados por
homens teriam um desenvolvimento completamente distinto em relação a gênero? É este
tipo de raciocínio que leva a propostas como a de Rubin e de Chodorow quanto à possível
mudança das relações sociais, uma vez que se mexa nas estruturas de parentesco (Rubin,
1975) ou na substituição da mulher pelo homem na “maternação” (Chodorow, 1990).
Veremos isso no capítulo seguinte.
Mas em que realmente interferiria a postulação de uma feminilidade primária?
Segundo Stoller e em Bleichmar, ela poderia explicar a dificuldade na construção da
identidade de gênero no menino. No primeiro autor, explicaria o transexualismo. Na
segunda, apontaria as dificuldades enfrentadas pelos meninos na construção de uma
identidade masculina, na medida em que a identificação com a mãe não promove uma
masculinidade e eles terão como tarefa buscar ativamente uma “des-identificação” com
relação a ela.
Person e Ovesey estão em desacordo com esta idéia, pois acreditam que há tanto
uma feminilidade quanto uma masculinidade primárias, sem antecedência de uma em
relação à outra. Seriam construções paralelas. Os argumentos de Stoller seriam
insuficientes para, a partir dos casos de transexualismo, sustentar uma feminilidade
primária. Bleichmar, por sua vez, se apóia na teoria de Stoller.
Person e Ovesey terminam por fazer um comentário geral sobre a teoria da
identidade de gênero na psicanálise, que exponho a seguir. Há uma crítica à teoria de
aquisição de gênero em Freud, pois ele supõe que esta aconteça a partir do conhecimento
da diferença sexual. Freud trata da aquisição de gênero em termos de feminilidade e
masculinidade. Mas o “ser menino” ou “ser menina”, ou seja, aquilo que Stoller chamou de
“identidade de gênero nuclear” vem antes. A diferenciação de gênero seria observada ao
final do primeiro ano de vida e seria derivada de uma experiência de aprendizagem não-
conflitiva. A “identidade de gênero nuclear” é determinada predominantemente pela
atribuição do gênero, pela criação e não, por fatores inatos. É pela descoberta de seu
gênero e pela identificação com o genitor apropriado que as crianças são lançadas no
período edípico. Neste sentido, pode-se dizer que o gênero precede a sexualidade no
desenvolvimento, organizando a sexualidade e não, o contrário (Person e Ovesey, 1999, p.
146). Já a identidade de gênero propriamente dita, normal ou “aberrante”, é formada pelo
corpo, ego e socialização, e pelas relações objetais sexualmente normais ou “discrepantes”.
É nessa segunda etapa que se encontram os conflitos psicológicos.
20
A psicanálise não teria
como oferecer uma teoria global da identidade de gênero, pois não tem condições de
explicar a origem da identidade de gênero nuclear normal e livre de conflitos.
Diferentemente de Bleichmar, que se apóia numa hipótese freudiana de identificação
primária, Person e Ovesey não acreditam que haja condições de provar que o mecanismo
de identificação seja responsável pelo estabelecimento da identidade nuclear.
A idéia de que o gênero, uma vez estabelecido, organiza a sexualidade, merece
comentários. Os autores parecem supor aqui um caminho linear. Estabelece-se a identidade
de gênero nuclear, ela se consolida no período edípico de forma normal ou “aberrante” o
que já significaria sair da linearidade e organiza-se a sexualidade, isto é, o desejo e as
práticas sexuais coerentes ou discrepantes. Ora, Freud teve justamente o cuidado em
mostrar, através da noção de pulsão, que a sexualidade não cabe numa identidade, ou
melhor, numa atividade sexual que seja definida a partir de uma identidade de gênero. Se
retomarmos a citação de O Mal-Estar na Civilização (cf. p. 29), encontramos um Freud
que busca dar conta das diferentes expressões do desejo sexual em sua forma ativa e
passiva, masculina e feminina, tanto no homem quanto na mulher. No entanto, quando ele
teoriza sobre o Complexo de Édipo e, portanto, sobre a aquisição do gênero supostamente
em acordo com o sexo anatômico, a partir da constatação das diferenças sexuais, as
incoerências entre gênero e sexualidade são tomadas de modo a serem desvalorizadas e
“patologizadas”
21
. São esses impasses que, de certa maneira, são deixados para trás por
Butler quando ela recusa o binarismo de gênero construído sobre o dimorfismo sexual.
20
As aspas são nossas.
21
Apesar de Freud desenvolver a idéia de que ocorrem identificações com os dois genitores, o que nos
permite imaginar uma formação de identidade de gênero (identidade fundamental e não, nuclear) que não
coincida com o sexo anatômico, ainda assim, no conjunto de sua obra ele oscila quanto aos comentários que
faz acerca do que Butler nomeia como “gêneros não-inteligíveis”.
Tentamos traçar sucintamente como “gênero” entrou na psicanálise e como foi
usado para distinguir o sexo anatômico da identidade de gênero. Esta, por sua vez, se
configura como uma convicção que se adquire a partir de diversos fatores que vão do
biológico ao social. Se “gênero” serviu a Stoller para o estudo do transexualismo, ainda
que esta não seja a opinião de Person e Ovesey, aquele autor não parece convencido de que
a noção de gênero lhe tenha trazido qualquer esclarecimento sobre a homossexualidade,
como mencionei na introdução a este trabalho. “Gênero”, para Stoller, permitiu o
questionamento da teoria freudiana sobre uma masculinidade primária e auxiliou na
compreensão do transexualismo, bem como na compreensão da difícil tarefa dos homens
de conquistar a masculinidade. Já para Person e Ovesey, apesar de “gênero” não esclarecer
sus própria origem, ou seja, a formação da identidade nuclear como menino ou como
menina, o conceito, no geral, lança luz sobre a formação de identidades “aberrantes” e
sexualidades “discrepantes” por ocasião do período edípico. Por último, temos Bleichmar,
para quem “gênero” responde às dificuldades na construção da masculinidade e da
feminilidade. No caso desta última, no próximo capítulo tentarei esclarecer o papel que
Bleichmar concede à sociedade na desvalorização narcísica da mulher.
Retomando agora, em paralelo, “gênero” via psicanálise stolleriana e “gênero” via
construção social, que relações podemos estabelecer? Não resta dúvida de que os pontos de
partida de cada uma são distintos. Stoller estuda o transexualismo e Foucault (como
representante da construção social) revela a sexualidade e a homossexualidade como
“invenções” que servem a uma determinada forma de poder, além de denunciar a distinção
entre sexo e gênero como palco onde se degladiam as “verdades biológicas” e o discurso
biomédico sobre o sexo.
Butler dirige uma crítica àidentidade de gênero nuclear” por induzir a crença de
gênero como substância. Stoller, Bleichmar e Person e Ovesey, pode-se dizer, revelariam
aí uma certa dose de “essencialismo”, ainda que permitam influências sobre o gênero por
parte dos pais e da sociedade. Esse essencialismo também se mostra na certeza sobre o
significado do termo “feminino” e do termo “masculino”. Na identificação com a mãe,
dizem esses autores, trata-se de uma “feminilidade primária”. Há, nessa definição, um
deslocamento do biológico-reprodutivo para o psicológico/social.
A preocupação em se determinar a origem e a causa de supostas incoerências de
gênero, dificultando a inteligibilidade social, pode ser interpretada com Foucault como
parte do “dispositivo sexual”, que nada mais visa senão o controle do indivíduo e seu
enquadramento dentro de categorias sexuais pré-estabelecidas.
Por último, vale a pena comentar que, se Stoller considera o transexualismo como
chave para o entendimento do desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade, Butler
irá considerar a transexualidade que, removido o sufixo “ismo”, se torna possibilidade
em vez de doença como chave para a compreensão de “gênero”. É o que abordarei no
capítulo 3.
2. GÊNERO, FEMINISMO E PSICANÁLISE
Judith Butler é feminista, trabalha com “gênero” e dialoga com a psicanálise. Para
contextualizar suas idéias, que abordarei na segunda parte deste trabalho, darei continuação
ao mapeamento do campo no qual é possível enxergar raízes das questões que ela aborda.
Não me proponho a situá-la no contexto geral do feminismo, pois esta seria uma tarefa que
foge ao meu objetivo. No entanto, é possível avançar um mínimo de idéias que nos podem
orientar melhor. Butler, por exemplo, se considera atualmente como uma filósofa feminista
(Butler, 2004). Isso nos ajuda a esclarecer suas preocupações epistemológicas, que
veremos no próximo capítulo, como também a situa enquanto alguém preocupada com as
relações entre os gêneros, o poder e a transformação social. Enquanto feminista, encontra-
se no final do percurso de um movimento que começou pela “crítica à subordinação das
mulheres à hegemonia masculina no trabalho e na família, entre outros fatores”, no
“esforço de ampliação da participação da mulher nos diversos espaços sociais e político
(Grossi, 1998, apud Nuernberg, 2005, p. 50) e chegou ao questionamento sobre por que o
termo “mulher” não dá conta das mulheres. (Butler, 2003, p. 20). Se podemos enxergar no
feminismo um duplo objetivo, o de questionar o papel da mulher na sociedade e na relação
com o homem e, em segundo lugar, buscar uma transformação que visa melhorar a vida
das mulheres, em Butler, a expansão de “gênero” para a inclusão dos “gêneros não-
inteligíveis” levou a buscar objetivos semelhantes em esferas distintas. Poderíamos dizer
que se trata de questionar a relação entre a homossexualidade e a heterossexualidade e
buscar uma transformação que visa melhorar a vida dos que se incluem nos “gêneros não-
inteligíveis”. Uma de suas estratégias é a de problematização de alguns conceitos
psicanalíticos.
Dentro do feminismo é possível destacar algumas autoras, entre elas psicanalistas
feministas, que dirigem críticas à psicanálise, utilizando o conceito de “gênero”. A partir
dessas autoras e das questões que elas levantam, creio ser possível compreender melhor a
posição teórica de Butler.
2.1 Feminismo e Gênero
Para introduzir as relações entre feminismo e gênero, vou partir de uma definição
segundo a qual “gênero” consiste em uma
... rede de crenças, traços de personalidade, atitudes, sentimentos,
valores, condutas e atividades que diferenciam mulheres e homens. Tal
diferenciação é produto de um processo histórico de construção social,
que não apenas gera diferenças entre os gêneros feminino e masculino,
senão que, ao mesmo tempo, essas diferenças implicam desigualdades e
hierarquias entre ambos. Quando realizamos estudos de gênero,
colocamos ênfase na análise das relações de poder que se dão entre
homens e mulheres. (Burin, 1994, p.2).
“Gênero” tem uma história e se transforma dentro do campo feminista. Surge em
oposição a “sexo”, como um recurso para superar concepções que consideravam as
diferenças sexuais biológicas como fator fundamental na compreensão dos aspectos
constituintes do comportamento e da personalidade. Como mencionei na Introdução, não
existe um consenso sobre “gênero”. Para Scott (1995), o uso de “gênero” pelas feministas
deveria rejeitar as explicações biológicas e indicar as “construções sociais”. A definição
acima, de fato, atribui aos gêneros masculino e feminino um processo histórico de sua
construção, mas enfatiza a relação de poder entre os homens e as mulheres, descrevendo
desigualdades e hierarquias na relação. Esse uso de “gênero” foi crucial para levar adiante
as reivindicações feministas. No entanto, com o pós-modernismo, com os movimentos de
desconstrução e construção social e com o destaque dado à afirmação de Simone de
Beauvoir, nos anos quarenta, de que “não se nasce mulher, vem-se a sê-lo” - que tem valor
de origem mítica das definições de gênero no movimento e na teoria feminista -,
inevitavelmente o feminismo se deparou com a questão sobre o que se pretende dizer com
o termo “mulher”.
Diante dessa variedade de utilizações de “gênero”, como oposto a “sexo” na
explicação da personalidade e do comportamento, como categoria de análise das relações
de poder entre homens e mulheres e como interrogador do termo “mulher”, decidi recorrer
a uma guia para me embrenhar no campo feminista. Em meu auxílio apelei à bióloga e
socióloga Donna Haraway e ao seu “Gênero” para um dicionário marxista. (Haraway,
2004).
Segundo Haraway, antes de Gayle Rubin apresentar sua concepção de “sistema
sexo/gênero”, em 1975, e ainda na década de 70, se usava a expressão “estudos da
mulher”. Esses estudos tinham como foco a análise da divisão de trabalho, através das
categorias de público e privado, para investigar a restrição da mulher ao espaço doméstico.
Tratava-se de uma abordagem essencialista no uso da categoria “mulher”. Nesse contexto,
“gênero” é inicialmente usado de modo descritivo, dizia respeito às coisas relativas às
mulheres. Em certos meios, “gênero” era usado como sinônimo de “mulher”. Nos anos 80,
teóricas feministas, como, por exemplo, Marta Lamas (1986, apud Nuernberg, 2005),
recuperam o termo proposto por Stoller e inauguram os “estudos de gênero”. Incluiu-se, a
partir daí, a masculinidade como nova temática de investigação. No entanto, a inclusão do
estudo da masculinidade nas pesquisas sobre “gênero” não foi exatamente um “avanço”
para algumas feministas. Ao usar “gênero” para falar também de homens, corria-se o risco
de perder um uso de “gênero” que diria respeito à especificidade da opressão das mulheres
no contexto de culturas nas quais a distinção entre sexo e gênero é marcante. Não se
chegou a nenhuma decisão global. “Mulher”, “mulheres”, “gênero”, “relações de gênero”,
“estudos feministas”, “estudos da mulher”, “estudos de gênero”, são termos cujo uso oscila
conforme interesses mais acadêmicos ou mais políticos.(Haraway, 2004).
Haraway comenta a relação entre “sexo” e “gênero” como outro importante campo
de debate entre as feministas. Nem todas as teóricas aceitam a idéia de que o sexo não seria
uma substância estável, mas seria igualmente construído. Segue-se daí que trabalhar com a
noção de gênero não implica necessariamente em adotar uma posição construtivista nem,
muito menos, um construtivismo radical.
22
A noção de gênero, ainda que construtivista,
corre o risco de ser a de um gênero fixo e coerente. Ou, como diz Butler, um gênero
“inteligível”.
Para Haraway, todas as definições de “gênero” atuais partem de Simone de
Beauvoir. No entanto, a absorção da “identidade de gênero” de Stoller pelas feministas
teria produzido uma interpretação de certa forma “essencializante” da afirmação de
Beauvoir. Isto se deve ao próprio contexto em que se forjou o conceito de “identidade de
gênero”. Ele surge numa perspectiva de desenvolvimento do que Haraway denomina
“tecnologias de sexo e gênero” dentro da psicologia, da psicanálise, da medicina, da
biologia e da sociologia, que constroem a “mulher” (e também o “homem”), em centros e
clínicas médicas que pesquisam a identidade de gênero nos anos 60
23
. Essas “tecnologias
de sexo e de gênero”, que envolviam “..programas terapêuticos e de pesquisa sobre as
‘diferenças de sexo/gênero’ o que incluía cirurgia, aconselhamento, pedagogia, serviço
22
Cf. capítulo 1.
23
Haraway se refere a uma psicanálise que faz uma leitura instintualista de Freud.
social,....” seriam de cunho normalizante, terapêutico-intervencionistas, empiricistas e
funcionalistas, especialmente nos EUA. (Haraway, 2004, p. 10).
A “identidade de gênero”, segundo ela, tornou-se um paradigma que orientou a
discussão da política feminista dos anos 70 e 80 em torno do “determinismo biológico”
versus “construcionismo social”. O equívoco das feministas que adotaram o paradigma da
identidade de gênero para se trabalhar com a noção de “gênero” foi o de deixar de
interrogar a história sócio-política de categorias binárias, tais como sexo/gênero, no
discurso ocidental. “Gênero” teria perdido, dessa maneira, seu poder enquanto conceito de
análise e promovedor de transformação social.
24
Ao adotar o paradigma da identidade de
gênero, as feministas hesitaram em criticar a distinção sexo/gênero, pois esta lhes era útil
no combate aos determinismos biológicos utilizados contra elas. (Haraway, 2004, p. 11)
Ou seja, ainda que gênero seja cultural, podendo explicar certas coisas, em detrimento de
um puro determinismo biológico, permaneceu uma identidade essencial como homem ou
mulher em termos anatômicos. A biologia não foi questionada. A natureza não foi
questionada. Haraway é radical: o corpo não estava sendo questionado, não estava sendo
desconstruído. Parece-me fundamental lembrar aqui da formação de Haraway como
zoóloga e bióloga, anteriormente aos seus estudos sobre a mulher e sobre ciborgues. Trata-
se de uma bióloga propondo a desconstrução da natureza.
Assim, as feministas argumentaram contra o “determininsmo
biológico” e a favor do “construcionismo social” e, no processo,
tornaram-se menos capazes de desconstruir como os corpos, incluindo
corpos sexuados e racializados, aparecem como objetos de conhecimento
e lugares de intervenção na biologia. (Haraway, 2004, p.12).
Na adoção do construtivismo social, na adoção da identidade de gênero, Haraway
detecta um limite na atitude feminista. Não se admite a construção dos corpos e da
natureza. Nesse sentido, ela se aproxima de Laqueur
25
e de Butler. Ao transformar em
“natural” a natureza e o sexo e, ao manter a distinção entre sexo e gênero, Butler dirá que o
feminismo cria a idéia de uma identidade de gênero coerente, em última instância uma
24
A idéia de que “gênero” é uma categoria útil de análise histórica e promovedora de transformações sociais
está presente na definição de Joan Scott (1995), para quem ...gênero é um elemento constitutivo de relações
sociais nas diferenças percebidas entre os sexos; gênero é uma forma primeira de significar as relações de
poder”. Para Scott, a pesquisa histórica atualmente deve ter como objetivo ..destruir a noção de fixidez,
descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva à aparência de uma permanência atemporal na
representação binária dos gêneros. Esse tipo de análise tem que incluir uma noção do político, tanto quanto
uma referência às instituições e organizações sociais”. (Scott, 1995, p.11)
25
Cf. capitulo 1.
coerência heterossexual. (Butler, 2003) Na visão de Haraway e de Butler, essa coerência
serviria a uma parte das feministas que sustentam o antagonismo entre homens e mulheres
como núcleo de sua luta e de sua compreensão da sociedade. Em relação ao feminismo,
Butler tem uma crítica a fazer: ele carece de uma forma de falar sobre os gêneros não
coerentes, os “gêneros não-inteligíveis”.
2.2 Feminismo e Psicanálise
Apesar de a psicanálise feminista poder ser objeto de crítica semelhante de Butler, a
de que não existe nessas teorias, ao menos de maneira clara, uma forma de abordar os
“gêneros não-inteligíveis”, nem por isso deveremos omitir suas contribuições que,
acreditamos, estão presentes na obra de Butler.
Freud e Lacan foram objeto de crítica e reflexão por parte de algumas feministas,
que se encontravam tanto dentro quanto fora do campo psicanalítico. Um dos principais
nomes do feminismo que endereça à psicanálise questões que dizem respeito às
problemáticas envolvidas no conceito de “gênero” é o da antropóloga Gayle Rubin. Ainda
quando estudante de pós-graduação em Michigan, em 1975, Rubin escreve Tráfico de
Mulheres, um ensaio que versava sobre feminismo, psicanálise e marxismo e introduzia a
idéia de um “sistema sexo/gênero”. Este ensaio virá a influenciar muitos outros escritos
acerca desse tema, entre eles os de Butler.
No encontro entre feminismo e psicanálise, há autores que, como Jessica
Benjamin, sugerem que psicanálise e feminismo têm em comum o questionamento do
cenário social e a luta pela concepção de feminilidade e que ambos são produtos dos anos
fin-de-siècle. (Benjamin, 1988, apud Dimen, 2000, p.189). A história do encontro entre
feminismo e psicanálise não é apenas uma história de colaboração, mas é também uma
história de confronto, tendo como foco a sexualidade feminina, a explicação da aquisição
de gênero e o papel da psicanálise na reprodução da hierarquia entre os gêneros, resultando
na desvalorização do gênero feminino.
Freud fora inicialmente criticado por sua concepção de sexualidade feminina.
Numa carta de 1928 a Ernest Jones, ele disse que considerava a vida sexual da mulher
adulta uma espécie de ‘continente negro’”.(Peter Gay, 1988, apud Dimen, 2000). Ao
mistério do feminino se somava a idéia de que o clitóris era nada além de um instrumento a
ser manipulado para fazer funcionar a vagina. O desprezo pelo orgasmo clitoridiano e o
enaltecimento do orgasmo vaginal foram interpretados pelas feministas como uma forma
de a psicanálise se colocar a serviço da repressão da sexualidade feminina. Ela ajudaria a
organizar a sexualidade das mulheres para o prazer dos homens e, também, a serviço da
reprodução. Soma-se a isso a afirmação freudiana de que as crianças acreditam que existe
apenas o sexo masculino até o momento em que descobrem que a mulher é castrada, por
não ter um pênis: o campo estava armado para se travar uma guerra entre Freud e as
feministas.
Pouco tempo foi necessário para as reações. Dentro do próprio movimento
psicanalítico Karen Horney sugeriu que as meninas, desde cedo, têm sensações vaginais e,
portanto, nascem meninas. Haveria, no entanto, segundo Horney, uma negação da
existência da vagina culturalmente motivada.(1967, apud Dimen, 2000, p.187)
26
. As
feministas reivindicavam para si, e não para Freud, um maior conhecimento sobre a
anatomia feminina.
Uma segunda crítica a Freud, não de todo desvinculada dessa primeira, dizia
respeito à própria definição de mulher - e aqui entramos no campo da aquisição de gênero.
Já num momento posterior do movimento feminista, na década de 70, podemos destacar
uma análise de Gayle Rubin que será retomada logo adiante apenas como ilustração do
descontentamento das feministas com Freud. Sobre o modo como Freud “constrói” a
mulher, diz Rubin: Se a fase edipiana evolui normalmente e a menina “aceita sua
castração”, sua estrutura libidinal e a escolha de seu objeto agora estão de acordo com o
papel do gênero feminino. Ela se tornou uma mulherzinha feminina, passiva,
heterossexual.” (Rubin, 1993, p. 47)
27
. Além desse caminho, considerado normal, e da
possibilidade de reprimir a sexualidade e tornar-se assexuada, resta o tornar-se “masculina”
ou homossexual. Ela não pode ser simplesmente “mulher”. Dentro das possibilidades
colocadas por Freud, as mulheres estão numa posição de ser um grupo preparado
psicologicamente, desde a infância, para conviver com a própria opressão. (Rubin, 1993)
Mas, antes que nos embrenhemos nesse campo em que feminismo e psicanálise se
cruzam através da noção de gênero, é preciso dizer que um terceiro elemento aparece para
dar conta da questão da mulher e intervém sobre a noção de gênero. No final da década de
26
Horney, K. The denial of the vagina. In: Kelman, H. (Org.) Feminine Psychology, Norton, 1967, p. 147-
161.
27
1993 é a data da tradução do texto de Rubin para o português pela ONG SOS Corpo, de Recife.
60, a teoria social rompe a tensão polarizada entre o feminismo e a psicanálise quanto à
questão da mulher (Dimen, 2000).
2.3 A teoria social
A teoria social trouxe a idéia de que havia uma história da subordinação das
mulheres aos homens tanto no domínio público como privado, que deveria ser avaliada a
partir do poder visto como um fenômeno cultural e não, natural. O desejo e as teorias que o
analisavam e regulavam, e aí poderíamos incluir a psicanálise, podiam ser entendidos em
termos políticos. A psicanálise não escaparia à ideologia.
Teoria social, teoria crítica ou teoria social crítica (Haraway, 2004), todas elas são
usadas como sinônimas ou como pequenas variantes da “teoria crítica da sociedade”,
concepção da Escola de Frankfurt baseada em sua herança marxista. Psicanálise e
feminismo ganham com a teoria crítica da sociedade a preocupação em entender a cultura
como elemento de transformação da sociedade. Como funciona a sociedade, como estar
atento à forma como se instituem as ordens e não permitir que se reproduzam certos
mecanismos de dominação e opressão social? Como evitar a manutenção das normas
sociais que impedem novas propostas de reorganização da sociedade? A chave para estas
questões estava na reflexão sobre a racionalidade, responsável pela conformidade e
manutenção das estruturas de poder. Este terceiro elemento, a teoria social crítica, também
se aproveita da psicanálise, na medida em que recebe dela uma explicação sobre a
formação do indivíduo e o modo como este compõe o corpo social. A teoria social
compreende a racionalização dos vínculos sociais quando a psicanálise, que não separa
estruturas da subjetividade e modo de subjetivação social, mostra como os sujeitos
individuais vêm a adotar determinados padrões, como eles investem os vínculos sociais.
A teoria social esclarece a dimensão política do sexo e do gênero, o papel social da
mulher, mas a dimensão pessoal da questão é fornecida pela psicanálise. A psicanálise traz
interpretações sobre a mulher e sobre o desejo e se constitui como uma via de acesso aos
processos de representação que compõem os sistemas simbólicos da psique e da sociedade.
(Dimen, 2000, p.190).
É importante ter claro que, quando surgem os escritos sobre gênero em psicanálise,
pode-se perceber que a maior parte deles se refere a esse contexto do qual também fazem
parte a perspectiva feminista e a teoria marxista, esta última representada pela teoria social.
Das inúmeras teóricas do feminismo psicanalítico, podemos selecionar quatro que operam
com o conceito de gênero e cuja pesquisa tem origem em campos distintos: antropologia,
clínica das relações objetais ligada à sociologia americana, clínica das relações objetais
ligada à Escola de Frankfurt e clínica freudiana francesa. Não pretendo, por certo,
demorar-me sobre essas teorias. O objetivo maior deste capítulo é mostrar como o conceito
de gênero operou no questionamento sistemático das noções de masculino e feminino, de
homem e mulher na psicanálise e pela psicanálise, incidindo sobre a sociedade.
2.4 Gênero e psicanálise
Destaco primeiramente a antropóloga Gayle Rubin, que introduz a idéia de um
sistema sexo/gênero a partir de um referencial psicanalítico e estruturalista francês. Ela
examina como as mulheres são uma produção social, uma moldagem, de uma matéria-
prima que seriam as fêmeas humanas. Esta produção se daria através da troca nos sistemas
de parentesco, controlados por homens na instituição da cultura. Em seguida, lembrarei a
psicanalista Nancy Chodorow, para quem a psicanálise, além de ser uma teoria de gênero,
passa a ter uma função sociológica: enquanto teoria de gênero, pois ela permite analisar e
criticar a reprodução da sociedade, principalmente nos aspectos relativos a sexo e a gênero.
Já a psicanalista Jessica Benjamin nos interessa por trabalhar a noção de gênero junto à
teoria social. Dentro do projeto de auto-crítica da razão da Escola de Frankfurt, gênero é
um conceito utilizado na crítica à racionalização a partir da teoria psicanalítica. Com este
conceito, Benjamin pretende denunciar o androcentrismo nos pressupostos universalistas
da razão. Por último falarei de Emilce Dio Bleichmar, cuja utilização da noção de gênero
me parece ter propósitos principalmente clínicos, mas que atribui grande relevância ao
papel da cultura na valorização (ou desvalorização) narcísica da mulher.
Fiz a opção por deixar de lado importantes psicanalistas feministas francesas, como
Luce Irigaray e Julia Kristeva, por dois motivos: primeiramente, era necessário fazer um
recorte, na medida em que este não é um trabalho sobre a psicanálise de cunho feminista;
em segundo lugar, tomo como referencial o uso do conceito “gênero”. Estas autoras
trabalham com a noção de “diferença sexual” e não, de “gênero”. Ainda que o tema se
assemelhe, definitivamente a linguagem é outra. “Diferença sexual” não é traduzível por
“gênero”. A distinção entre sexo e gênero é uma distinção feita no idioma inglês,
especialmente no americano. O alemão, por exemplo, tem apenas uma palavra,
Geschlecht”, que não denota o mesmo que o inglês “sexo”, ou “gênero”. E o francês, ao
menos o francês utilizado na psicanálise, fala de “diferença sexual”, conceito que
tampouco se traduzirá por “sexo” ou “gênero”.
28
(Haraway, 2004; Shepherdson, 2000).
2.4.1 Gayle Rubin
O ensaio de Gayle Rubin, Tráfico de Mulheres, escrito quando esta ainda era
estudante de pós-graduação, em Michigan, no ano de 1975, e que versava sobre
feminismo, psicanálise e marxismo e introduzia a idéia de um “sistema sexo/gênero”,
tornou-se um marco fundamental nos escritos sobre gênero, servindo como ponto de
partida para reflexões feministas socialistas e marxistas. Rubin se torna uma referência
igualmente importante para a psicanálise, pois a recupera no seio do movimento feminista
americano, em que era alvo de críticas. Sua postura moderada em relação à psicanálise e a
postura crítica em relação ao feminismo fazem dela uma autora com quem se pode
estabelecer um diálogo sobre as questões de gênero nesse contexto. Em Tráfico de
Mulheres, Rubin relaciona as críticas das feministas e dos movimentos gays e lésbicos à
psicanálise ao fato de que, nos Estados Unidos, houve uma identificação da psicanálise
com uma proposta de recuperação de indivíduos que se teriam desviado de um objetivo
“biológico”, no que diz respeito à sexualidade. A psicanálise teria funcionado como um
dos mecanismos de reprodução dos padrões sexuais. Além da prática clínica de
psicanalistas americanos estimular críticas à psicanálise, os escritos freudianos, que
explicitavam os efeitos de dominação masculina sobre as mulheres, também era alvo de
questionamentos.
Nesse sentido, Rubin não é ingênua e apressa-se em lembrar que existem as
interpretações biológicas de Freud, realizadas pelos americanos, assim como as
interpretações estruturalistas francesas. Rubin coloca-se a meio caminho entre as duas
correntes e crê que Freud também. Não se pode negar que Freud fala sobre pênis, sobre a
“inferioridade das mulheres”, sobre as conseqüências psíquicas da anatomia; e, ao falar do
caráter destacável do pênis e de sua equivalência com fezes, criança e presente, pode-se
fazer dele uma interpretação simbólica. “Não obstante, não acho que Freud foi coerente
28
No capítulo 4 discutirei o debate entre Butler e psicanalistas lacanianos sobre o conceito de “diferença
sexual” em Lacan. Em Kristeva e em Irigaray, este conceito toma outras dimensões, que mereceriam uma
discussão pormenorizada da obra dessas autoras.
como Lacan ou eu gostaríamos que fosse, e temos que levar em conta o que ele disse,
ainda que façamos um jogo com o que ele pode ter querido dizer”. (Rubin, 1993, p.41).
Rubin critica as feministas que recusam a psicanálise. Para ela, a psicanálise
fornece um conjunto de conceitos que permitem entender o homem e a mulher, ou melhor,
ela permite compreender a aquisição do gênero em nossa sociedade e, portanto, pode ser
alçada à condição de uma teoria de gênero. Justifica-se o ataque das feministas quando se
considera que Freud não se deu conta de que sua teoria racionalizava a subordinação das
mulheres aos homens. Tampouco Freud lançava um olhar crítico sobre os processos que
descrevia. Mas a psicanálise, nas palavras de Rubin, é inigualável quando identifica
aspectos das estruturas profundas da opressão sexual, pois descreve a domesticação das
mulheres operada por uma cultura fálica. Assim, dentro do próprio movimento feminista,
Rubin convoca a psicanálise para lutar pela eliminação da hierarquia de gênero ou do
próprio gênero.
29
Gênero, enquanto conceito, opera para combater a subordinação das
mulheres aos homens, justificada teoricamente pela psicanálise. No entanto, de acordo com
Rubin, a própria psicanálise estaria capacitada a empreender este combate.
Em Tráfico de Mulheres, Rubin define o que ela chama de “sistema de
sexo/gênero”. O sistema sexo-gênero de uma sociedade consiste de “...uma série de
arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da
atividade humana, e nos quais essas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas.”
(1993, p.3) De acordo com Haraway, Rubin via a divisão sexual do trabalho e a construção
psicológica do desejo (através do Complexo de Édipo) como fundamentos de um sistema
de produção dos seres humanos que atribuía aos homens direitos sobre as mulheres que
elas próprias não tinham sobre si mesmas. A heterossexualidade obrigatória garantiria a
sobrevivência material - quando homens e mulheres não podem realizar o trabalho um do
outro - e a troca das mulheres como forma de aliança. Está dada aí a relação entre a
opressão das mulheres e a heterossexualidade obrigatória, tema que será caro a algumas
feministas e teóricas de gênero.
30
(Haraway, 2004, p. 16).
Rubin parte para uma leitura de Freud e de Lévi-Strauss, com o intuito de aprimorar
sua definição do sistema sexo/gênero. Inclui-se nessa leitura o texto de Lacan The function
29
É esta idéia de eliminação do gênero que coloca Rubin entre os precursores do movimento queer.
30
Esta discussão é retomada no cap. 4.
of language in psychoanalysis
31
. Quatro aspectos se destacam no comentário de Rubin
sobre a psicanálise freudiana: o Complexo de Édipo na mulher, o falocentrismo, o modo de
se conceber o tabu do incesto, além da heterossexualidade compulsória.
Segundo Rubin, ao teorizar sobre a fase pré-edípica, em que a mãe é objeto do
desejo para ambos os sexos e este desejo é ativo e agressivo, Freud teria deixado em aberto
o surgimento da mulher a partir de uma disposição bissexual. O feminino não seria reflexo
simples da biologia, já que haveria uma construção do feminino. Mas, ao dar
prosseguimento ao desenvolvimento da menina, invocando a “inveja do pênis” e a
castração para explicar o surgimento da feminilidade, ele precipita a revolta das feministas.
A menina se vê presa à “inveja do pênis” e a um sentimento de inferioridade ao se
descobrir “castrada” na comparação entre clitóris e pênis. Abandona a luta pelo amor da
mãe, já que não tem como satisfazê-lo e assume uma postura feminina passiva diante do
pai. A feminilidade aparece como conseqüência de uma reação diante da diferença
anatômica entre os sexos. Rubin mostra como o desenvolvimento da feminilidade está
centrado não somente no valor atribuído ao pênis, mas também no pressuposto da
heterossexualidade compulsória. Se o pressuposto da heterossexualidade como norma não
estivesse presente, a reação da menina seria outra: Se a lésbica pré-edipiana não se
confrontasse com o heterossexualismo da mãe, certamente tiraria conclusões diferentes
sobre o status relativo de seus genitais.” (1993, p. 37)
Rubin mostra às feministas da época que, ainda que, em Freud, o estatuto do falo
seja ambíguo, ora coincidente com o pênis, ora simbólico, em Lacan, as coisas são
diferentes. Nesse autor, a castração se desvincula de uma referência à realidade anatômica.
Mas nem por isso Lacan escapará de uma crítica semelhante. Fazendo uma análise de The
function of language in psychoanalysis, Rubin aponta, que mesmo com o falo simbólico, se
preserva a idéia de uma inveja do pênis e do desconforto da mulher numa cultura fálica.
Resumindo sua análise:
...o falo é mais que um traço que distingue os sexos: ele é a encarnação
do status masculino, a que os homens acedem, e que implica
determinados direitos entre os quais o direito a uma mulher. É uma
expressão da transmissão do domínio masculino.....Entre as marcas que
deixa, estão a identidade de gênero e a divisão dos sexos. (Rubin, 1993,
p. 43).
31
Acredito que esse texto seja a tradução de Função e campo da palavra e da linguagem na psicanálise
(1953). Rubin refere-se à edição americana de Wilden, A. The function of language in Psychoanalysis.
Baltimore: John Hopkins, 1968.
Quando Rubin analisa a questão do falo, alterna entre Freud e Lacan, mas, assim
como Rubin se referira a Freud, ela entende que Lacan também não é coerente como
gostaríamos que fosse.
32
De qualquer modo, não percamos de vista que Rubin aponta para
a situação marginal da homossexualidade na psicanálise. A montagem da teoria do Édipo
em Freud requer, segundo Rubin, o pressuposto da heterossexualidade.
Rubin faz uma crítica ao modo como o tabu do incesto é introduzido
conceitualmente na teoria psicanalítica. Faz uma análise de A Sexualidade Feminina, de
Freud, e toma por base a idéia de Lévi-Strauss, para quem a troca de mulheres entre clãs,
resultante do tabu do incesto, constitui a origem da sociedade. Porém, as teorias
explicativas da formação da sociedade, seja em Lévi-Strauss, seja em Freud, seriam teorias
que explicam apenas uma sociedade, aquela que tem por norma a opressão das mulheres e
a heterossexualidade compulsória. Vale a pena acompanhar alguns trechos de Rubin por
seu tom quase sarcástico, mas, a meu ver, pertinentes, de quem fala como representante de
uma identidade lésbica, reagindo de modo indignado às colocações da psicanálise. As
críticas de Rubin serão retomadas por Butler (2003; 2004), mas direcionadas a alguns
conceitos lacanianos específicos.
33
Na psicanálise, dirá Rubin, o tabu do incesto iniciaria a troca do “falo”. As crianças
descobrem as diferenças entre os sexos e, ainda, que cada criança se destina fatalmente a
um ou outro gênero. Uma determinada expressão da sexualidade é proibida: não se pode
ter a posse da mãe. O menino, ao renunciar à mãe, troca-a pelo “falo” e adquire o direito
de, mais tarde, trocar o falo por uma mulher. A menina, diz ela:
...descobre também alguns fatos desabonadores sobre o gênero que lhe
atribuem. Para o menino, o tabu do incesto é um tabu em relação a
determinadas mulheres. Para a menina, é um tabu que se refere a todas
as mulheres. Visto que ela está numa posição homossexual em relação à
mãe, a regra absoluta do heterossexualismo torna a sua posição dolorosa
e insustentável. A mãe e, por extensão todas as mulheres, só podem ser
amadas devidamente por alguém “com um pênis” (falo). Como a menina
não tem “falo”, ela não tem “direito” de amar sua mãe ou outra mulher,
uma vez que ela própria é destinada a um homem. Ela não tem o objeto
simbólico que pode ser trocado por uma mulher. (Rubin, 1993, p. 44).
Falo e pênis se confundem em Rubin e em Freud. Rubin tem pouco acesso à obra
de Lacan. Pouquíssimas traduções estavam disponíveis em língua inglesa nos anos 70. Não
32
A teoria lacaniana da sexualidade comporta momentos em que a relação com o falo está efetivamente
presente na divisão dos sexos e na construção dos gêneros, de modo a privilegiar a relação heterossexual. Cf.
Dunker, 2005.
33
Cf. cap. 4.
se pode cobrar dela a adoção definitiva de “falo” enquanto simbólico. O que podemos
destacar aqui é sua reiterada leitura de que não há lugar no sistema, como um todo, para
enquadrar a homossexualidade feminina sem que venha junto a idéia de “inveja do pênis”
ou de “inferioridade da mulher” por não possuir o falo. As críticas de Rubin resultam numa
proposta: revolucionar o sistema de parentesco. Examinarei essa idéia no quarto capítulo,
junto ao questionamento de Butler acerca do termo “simbólico” em Lacan. Rubin faz uma
série de suposições: se os homens e as mulheres cuidassem igualmente das crianças, se o
heterosexualismo não fosse obrigatório, se os homens não tivessem direito sobre as
mulheres, se não houvesse gênero..., todo o drama edipiano não passaria de mero vestígio.
Rubin, influenciada por Weeks
34
e posteriormente por Foucault, apesar de conceber
a psicanálise como uma teoria de gênero, que lhe permite compreender a aquisição do
feminino e do masculino em nossa cultura, no que diz respeito à variação sexual
(homossexualidades, masoquismo e outras manifestações sexuais), a considera
“surpreendentemente reducionista e simplificadora”. Segundo ela, a psicanálise
empobrece a rica complexidade do sentimento e do comportamento eróticos.
35
Percebe-se, em Rubin uma conceituação de gênero que se separa das práticas
sexuais. A psicanálise freudiana, segundo ela, explica a formação dos gêneros, mas não
consegue relacioná-los à variação sexual sem se tornar reducionista. Já em Butler vemos o
conceito de gênero se expandir e a distinção entre sexo e gênero se esfumaçar para
englobar os “gêneros não-inteligíveis”.
2.4.2 Nancy Chodorow
Dez anos após Stoller publicar seu Sex and Gender, a psicanalista Nancy Chodorow
aparece com The Reproduction of Mothering Psychoanalysis and the Sociology of
Gender.
36
Estamos, portanto, em 1978 e Chodorow mostra que já se apoderou do aparato
conceitual de Gayle Rubin, marcando sua filiação às teorias de gênero construtivistas
37
. Na
esteira de Rubin, Chodorow também descreve a psicanálise como uma teoria de gênero,
34
Ela cita especificamente: Weeks, J., Coming Out: Homosexual Politics in Britain from the Nineteenth
Century to the Present. New York, Quartet, 1977.
35
Apud Tráfico Sexual entrevista, G. Rubin com J. Butler. Cadernos Pagu , Campinas : Unicamp, n.21,
2003, p. 179.
36
Em português: Psicanálise da Maternidade, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990.
37
O sexo é matéria-prima e sobre ele acontece uma intervenção humana. Não há como conhe-lo senão pela
ação exercida sobre ele. Chodorow adota a “teoria das relações objetais” e se refere a autores como Balint,
Fairbairn e Guntrip, que dariam mais espaço às relações sociais na formação da personalidade. Cita-os como
alternativa para o “determinismo instintual” de Freud.
cuja função é a de analisar e criticar a reprodução da sociedade, principalmente do sexo e
do gênero: “O sexo como o conhecemos identidade de gênero, desejo e fantasia sexuais,
conceitos de infância é ele mesmo um produto social”.(Chodorow, 1990, p.23).
Chodorow tem uma preocupação específica em mostrar como as instituições sociais
perpetuam os “papéis de gênero”. Adota o conceito de “sistema de sexo-gênero” em seu
estudo da organização social da educação na família, descrevendo a produção de mulheres
como mais capazes de relações não-hostis do que os homens. Mas essa organização social
familiar também perpetua a posição subordinada das mulheres quando as produz como
pessoas estruturadas para a maternidade no sistema do patriarcado.
Chodorow centra sua análise na estrutura familiar e, fundamentalmente, no papel da
“maternação”. A psicanálise mostraria como a divisão do trabalho na família, com os
homens participando da vida pública e as mulheres da vida doméstica mas, principalmente,
exercendo a função de maternação, fornece significados sociais e históricos específicos ao
próprio gênero, criando condições para a reprodução social. “As mulheres são predispostas
psicologicamente para a maternação por causa da situação de desenvolvimento na qual
crescem, na qual outras mulheres as maternam”.(Ibid., p.61). Desde cedo as mulheres
internalizam e integram à sua estrutura psíquica a capacidade e a aptidão para a
maternação, assim como a obtenção de satisfação através dessa atividade. Trata-se de um
processo identificatório, segundo Chodorow. Mulheres “maternadas” por mulheres se
identificam com a “maternação” e isso leva à reprodução social que implica numa divisão
de trabalho em que o homem exerce sua atividade na esfera pública e a mulher permanece
na vida privada, dependente do homem e dominada por ele. A psicanálise explicaria esse
processo em detalhes.
“Gênero” serve, ainda, para que se faça uma análise da própria psicanálise
enquanto reprodutora da sociedade, ou seja, é possível identificar em Freud inúmeros
preconceitos ideológicos que reforçam a dominação masculina. Freud faria afirmações
acerca do desenvolvimento feminino e de como a mulher deveria ser, sem poder
fundamentá-las clinicamente. Faria uso de afirmações sobre biologia que não poderia
demonstrar. Partiria de pressupostos culturais patriarcais não analisados, do sistema de
valores patriarcais e da teoria evolucionista para fundamentar esses valores.(Chodorow,
1990, p.181).
A teoria freudiana de aquisição de gênero de Freud também é analisada e criticada
por Chodorow, que adota a posição de Stoller quanto à formação da identidade de gênero
nuclear. Com a feminilidade primária, a menina fica mais confortável quanto ao senso de
feminilidade do que o menino, que terá um caminho de separação a percorrer para alcançar
sua masculinidade.
Por último, Chodorow abre uma perspectiva de mudança através da idéia de
“reprodução da maternação”. É preciso mencionar que, em Chodorow, a maternação é
decisiva para a organização do gênero. Se ela puder ser exercida também por homens, isso
geraria um efeito sobre a sociedade. Assim, dentro do próprio movimento feminista, como
fez Rubin, Chodorow convoca a psicanálise para lutar pela eliminação da hierarquia de
gênero. Basicamente propõe que a maternação poderia ser igualmente realizada por
homens. As crianças se tornariam dependentes de pessoas de ambos os gêneros. “Desse
modo, a masculinidade não se tornaria vinculada à negação de dependência e à
desvalorização das mulheres”. (Ibid., p. 69) A autonomia masculina não precisaria ser
rígida e reativa. As mulheres também teriam acesso a ela.
Sem dúvida Chodorow tem consciência de que a reorganização da família quanto à
criação das crianças, por si só, é insuficiente para modificar as relações entre os gêneros. A
dominação masculina está presente na cultura de forma mais ampla, principalmente na
divisão entre esferas pública e privada
38
.
Chodorow é objeto da crítica de Haraway, por adotar o paradigma da “identidade
de gênero” para refletir sobre o masculino e o feminino. De fato, Chodorow não questiona
a biologia, é herdeira do “sistema sexo/gênero” de Rubin e, nesse sentido, a partir de
“sexo” deriva uma “essência” do feminino. O que muda é a forma como a mulher se
constrói nas diferentes sociedades, mas, de qualquer maneira, constrói-se uma mulher, que
gera filhos. Nesse sentido específico, Chodorow não abre possibilidades para os “gêneros
não-inteligíveis”. No entanto, sua proposta de alterar a relação entre os gêneros na família
caminha na direção de uma transformação da sociedade a partir de mudanças no
parentesco. Sei que parece exagero falar em “parentesco” nesse caso, afinal o que muda,
em Chodorow, são apenas os papéis dentro da família. Mas quero destacar algo que pode
ser visto como uma indicação na direção do pensamento de Butler.
38
Ouço com frequência o argumento de que esse tipo de análise “envelheceu” por conta da crescente entrada
da mulher no mercado de trabalho e na vida pública. A questão, a meu ver, é que o inverso não é verdadeiro.
O homem, apenas em pequeníssima escala entrou para a vida privada. A mulher continua sendo a principal
responsável pela criação das crianças. Ela acumulou a participação nas duas “esferas”.
2.4.3 Jessica Benjamin
Jessica Benjamin é reconhecida como uma teórica que trabalha na intersecção entre
psicanálise, teorias de gênero e teoria social. Adere ao projeto de autocrítica da razão da
Escola de Frankfurt e faz uma crítica à racionalidade a partir de uma perspectiva freudiana
da construção dos gêneros masculino e feminino. Na obra de Benjamin, o termo “gênero”
se torna uma categoria de análise que serve ao propósito de denunciar o princípio da
racionalidade e da tentativa de se definir um sujeito pretensamente neutro. O sujeito da
razão não estaria livre de determinações de gênero, como o pensamento moderno quer
supor. (Benjamin, 1988) A suposta neutralidade do sujeito se apoiaria, de modo velado,
sobre uma estrutura de dominação do gênero feminino pelo masculino. Benjamin vincula a
essa denúncia uma crítica ao ideal de autonomia individual e ao ideal perdido da
maternidade. A polaridade de gênero eliminaria as possibilidades de reconhecimento
mútuo na sociedade como um todo. É esse “reconhecimento”, conceito-chave em sua obra,
que Benjamin introduz em The Bonds of Love (1988) e aprofunda em Like subjects, love
objects (1995), que proporcionaria algum tipo de transformação social, como veremos
mais adiante.
2.4.3.1 Gênero e a crítica da racionalidade: dominação x reconhecimento
O que Benjamin chama de “racionalidade” é considerado a partir da definição de
“racionalização” de Weber: um processo no qual modos de interação abstratos, calculáveis
e despersonalizados substituem aqueles fundados em relações pessoais, em autoridades e
em crenças tradicionais. Essa racionalidade reduz o mundo social a objetos de troca,
controle e cálculo. Podemos adiantar aqui que Benjamin tenta mostrar que essa seria uma
racionalidade masculina, em oposição a uma irracionalidade feminina, e, dessa forma, o
sujeito moderno racional - não teria ainda escapado de ser definido como masculino, bem
ali onde as teorias sociais e culturais pensavam estar livres do sexo. A orientação
instrumental e a impessoalidade que governa a organização social moderna, assim como, o
caráter de objetividade das instituições públicas e sua indiferença às necessidades
individuais, deveriam ser compreendidas como masculinas. A dominação masculina não
está no exercício de poder de cada homem individualmente, embora Benjamin admita, por
certo, que isso exista, mas está embutida na organização social, sendo, por isso, invisível.
(Benjamin, 1988)
Benjamin traz para a discussão de gênero a idéia de que a racionalização dos
vínculos sociais depende do modo de os sujeitos individuais adotarem determinados
padrões, do modo como eles investem vínculos sociais. Para compreender a passagem do
sujeito ao social, recorre à psicanálise, mas mostra que esta também é um discurso
atravessado por questões de “gênero” (gendered discourse).
A masculinidade que Benjamin acredita ver na racionalidade revelar-se-ia através
da seguinte análise: em primeiro lugar, a aparente neutralidade do sujeito seria uma
mistificação. Esta mistificação se encontra no ideal de autonomia individual. A crítica ao
ideal de autonomia individual se ampara na crítica do ideal burguês de liberdade individual
feita pela Escola de Frankfurt. Ambos os ideais só existem graças à negação da
dependência. A liberdade burguesa, segundo Marcuse (apud Benjamin, 1988), consiste em
se proteger do controle ou da intrusão dos outros. É um ideal de liberdade negativo, que
descarta a relação com os outros e a necessidade deles. Não existe, então, neutralidade, na
medida em que há uma divisão entre autonomia, de um lado, e dependência de outro. Para
idealizar a autonomia, nega-se a dependência. O núcleo dessa dependência seriam os laços
emocionais primários com a mãe. Autonomia, portanto, está vinculada à separação do
homem de sua mãe, ao não-reconhecimento de qualquer vínculo de dependência com ela e,
posteriormente, à consideração da mulher como posse, promovendo uma aparência de que
ele não é dependente ou apegado a qualquer um fora de si próprio. O “outro” é reduzido a
um apêndice do sujeito, não é um sujeito por si. Reconhecer o outro ou reconhecer algum
tipo de dependência seria uma ameaça de retorno à irracionalidade e à indiferenciação
maternas.
A autonomia individual deriva de uma postura masculina de diferenciação: repúdio
da experiência primária de cuidados maternos (nurturance) e da identificação com a mãe.
Poder-se-ia objetar a Benjamin e dizer que a mulher também se afasta e se separa da mãe
para conquistar sua autonomia individual e que, portanto, essa postura de diferenciação não
seria exclusivamente masculina. No entanto, ela rebateria esse argumento, mostrando,
primeiramente, que a forma ideal de autonomia individual, conforme concebida pela
modernidade, não existe e, em segundo lugar, que, se alinharmos a mãe com as idéias de
dependência, de “força da irracionalidade”, de desejo de indiferenciação e de unicidade em
relação à criança que precisam ser rompidos, como ocorre, por exemplo, na teoria
freudiana do Édipo, então certamente essa racionalidade da modernidade não é neutra, pois
a mãe entra aí como representante do feminino. A mulher, ainda que tenha conquistado sua
autonomia individual, por ser mulher, feminina, possivelmente futura mãe, guarda, em si, o
germe da irracionalidade. Se a racionalidade não é neutra, terá de ser alinhada do lado
masculino, conclui Benjamin, o sujeito racional não pode ser concebido como universal,
ou seja, não existe uma única forma de resolver as coisas. Ela continua:
Além disso, se esse sujeito estabelece sua identidade cortando fora certas
capacidades humanas, chamadas femininas, e se recusando a reconhecer
a subjetividade deste outro feminino, então sua reivindicação pela
igualdade, liberdade, pensamento livre e reconhecimento do outro
também se encontra invalidada. (Benjamin, 1988, p.189).
Benjamin acredita encontrar na teoria freudiana do complexo de Édipo a
polaridade entre racionalidade masculina e irracionalidade feminina. Nesse sentido, a
psicanálise freudiana se alinharia a formas de expressão que reproduzem a opressão de
gênero. O Édipo alinharia a mãe do lado da irracionalidade e da indiferenciação vivenciada
com a criança. O pai estaria alinhado com a racionalidade e com a separação. De um lado a
unicidade irracional, de outro a autonomia racional. O feminino como perigoso, o
masculino como o ordenado. A noção de Édipo freudiana estaria colocando ênfase na
negação da subjetividade feminina, levando junto com ela as idéias de dependência e de
reconhecimento mútuo, fundamentais para uma política de igualdade entre os sexos.
(Benjamin, 1988, p. 184).
Juntamente com o ideal de autonomia individual, a relação de dominação da mulher
pelo homem produz o ideal perdido da maternidade, ou seja, a sobrevalorização da
maternidade como atividade a ser desenvolvida pela mulher e da relação mãe-criança como
vínculo ideal. Trata-se de uma compensação para o banimento do feminino apoiado na
suposta irracionalidade materna do mundo objetivo, racional, seguindo o raciocínio de
Benjamin. Por trás disso haveria duas explicações, diz ela: uma ao nível social e outra ao
nível psíquico. No primeiro nível, a origem do ideal da maternidade estaria na separação
histórica das esferas pública e privada, como uma oposição entre racionalidade (masculina)
e cuidados maternais (feminino). Para compensar a impessoalidade e neutralidade do
mundo racional e público e a dominação masculina com a negação de uma subjetividade
feminina, aparece a idéia sentimental da maternidade, desde que devidamente restrita ao
espaço doméstico. Aí ela se encontraria valorizada sem ser questionada. O reencantamento
do vínculo emocional, sua valorização, podem se dar de forma protegida e limitada. Já no
plano psíquico, o repúdio edípico de uma mãe onipotente resulta numa divisão desta entre
objeto denegrido e objeto idealizado. A separação, promovida pelo pai, de uma mãe
“desejosa de unicidade irracional” produziria uma divisão de sentimentos: a recusa daquilo
que o materno representa enquanto fragilidade emocional e, por outro lado, a reparação
deste rebaixamento, produzindo uma idealizaçao da maternidade. Na medida em que
denegrir a mãe se torna uma convenção cultural, a menina também é afetada na
identificação com a imagem cultural da mãe. Ela aceita sua própria falta de auto-afirmação
e é preparada para confirmar o reconhecimento do “outro”, mas sem tê-lo para si. Homem
e mulher ficam presos a fantasias apoiadas em papéis sociais, impedindo o reconhecimento
mútuo. É essa reconstrução freudiana da aquisição de gênero que, por sua vez, tem suporte
numa sociedade em que existe a opressão do gênero feminino, que Benjamin critica, na
medida em que esta teoria não apontaria para uma solução favorável às mulheres
39
.
2.4.3.2 A solução psicanalítica via Winnicott
Benjamin recorre a Winnicott. É nesse autor que ela encontra subsídios para
compreender a ausência de reciprocidade entre homem e mulher na sociedade e, da mesma
forma, para imaginar uma possível saída para esta situação. Examina a teoria winnicottiana
da separação entre o bebê e sua mãe, constatando que, nesse processo de separação, a
sociedade precisaria dar suporte psíquico à mãe para que ela pudesse aparecer como real
para o bebê e não apenas em acordo com a fantasia deste, a de uma mãe onipotente. Cabe à
mãe proporcionar ao bebê a possibilidade de suportar a experiência de separação e de
agressão. Mas, para isso ocorrer, é necessário que a mãe encontre uma legitimidade para a
expressão de sua subjetividade na sociedade, que não seja apenas a da “mãe idealizada”,
nem tampouco a da mulher irracional e perigosa. Se a sociedade não a “acolhe” de maneira
39
Vimos, no capítulo 1, que Stoller identifica certos distúrbios de gênero como tendo origem na dificuldade
do menino em livrar-se da simbiose com a mãe. É justamente essa a visão que Benjamin parece tentar
combater: a de que o vínculo de dependência com a mãe seja denominado “simbiose” pois isso se
aproximaria da idéia de ideal perdido da maternidade e de que existe uma atração por um retorno à paz
desse período; a de que há necessidade de separar-se como condição para ser um indivíduo e, ainda, a
premência em erguer uma barreira contra o impulso para a fusão. O masculino seria a luta contra a fusão para
não ser visto por si próprio e pelos outros como possuidor de atributos femininos. Claro que Stoller deriva
suas afirmações de estudos sobre transexualismo. Mas, na medida em que explica a “produção da
feminilidade” em meninos, como causa do transexualismo, pela hipótese da mãe demais e do pai de menos,
pode-se dizer que, em certa medida, ele está atravessado por um gendered discourse
suficiente, o lugar de “mãe ideal” é extremamente atraente. No entanto, se a mãe logra
aparecer em toda a sua realidade, ela facilita para o bebê o reconhecimento de ambos como
separados, um do outro. Uma das conseqüências de uma separação saudável seria o
reconhecimento do outro, sem a negação dos vínculos emocionais e de dependência,
culminando, posteriormente, em vínculos igualitários entre homens e mulheres.
(Benjamin, 1988, p. 212).
A “mãe perfeita” e o “indivíduo autônomo” estariam conectados numa relação de
dominação. A dominação, como problema de relacionamento, e a racionalidade, como
paradigma da ciência moderna, são os termos escolhidos por Benjamin para fazer uma
análise das relações de gênero. A falta de reconhecimento entre homens e mulheres como
sujeitos iguais deriva da ausência da dificuldade de reconhecimento da mãe e do bebê
como ser separados. Por sua vez, essa dificuldade se apóia na dominação de gênero. Trata-
se de um ciclo. A divisão de gênero de trabalho e o monopólio feminino do cuidado da
criança também são apontados por Benjamin como aspectos que contribuem para a
dificuldade em se desenvolver o reconhecimento mútuo. (Ibid., p. 218).
Por último, Benjamin sugere que, se a questão do reconhecimento da subjetividade
materna está centrada no período pré-edípico, a criança poderia, nesse momento, adquirir
capacidades de reconhecimento que evitassem a rigidez no período edípico. Assim como
Bleichmar, retoma a idéia freudiana de que as identificações primárias que ocorrem nesse
período, distintas daquelas do final do Édipo, se dirigem a ambos os pais de modo não-
conflitivo. Posteriormente, a identificação edípica pode construir-se sobre essa base, não
precisando ser caricaturalmente ou estereotipadamante toda feminina ou toda masculina, já
que existem identificações pré-edípicas da menina com o pai e do menino com a mãe.
(Benjamin, 1995, passim).
Em relação às contribuições trazidas por Benjamin, podemos destacar a
centralidade do conceito de “reconhecimento” em sua obra, como aquilo que permite
pensar numa aceitação do outro gênero ou, voltando ao nosso tema, dos “gêneros não-
inteligíveis”. Se, de fato, como argumenta Rubin e Butler concorda com ela , a
opressão das mulheres e a heterossexualidade compulsória vêm juntas, a luta feminista
contra a dominação e a proposta de uma ação no sentido de uma maior reciprocidade entre
os homens e as mulheres se irmanam com a luta por uma reciprocidade entre todas as
formas de gênero, no sentido butleriano. Ressaltemos que, no que diz respeito à abertura
para se pensarem outras formas de gênero, Benjamin acena para essa idéia quando afirma
que as identificações edípicas não têm de ser construídas de modo caricatural ou
estereotipado. Essa expectativa, por parte da sociedade, não deveria ser necessária.
A desmontagem da teoria de aquisição de gênero que Benjamin opera pretende
revelar o quanto concepções psicanalíticas e concepções filosóficas que instrumentalizam a
organização social estão atravessadas por um gendered discourse. A transformação das
relações entre os gêneros requer, entre outras coisas, a denúncia desses atravessamentos.
De certo modo, é isso que Butler fará com a psicanálise lacaniana.
2.4.4 Emilce Dio Bleichmar: o feminismo espontâneo da histeria
Bleichmar traz à cena psicanalítica o conceito de gênero em torno da questão sobre
o que fundamenta a predisposição da mulher para a histeria. Sua leitura de Freud ressalta a
presença, neste autor, da anatomia como referência última da feminilidade ou da
masculinidade na formação dos gêneros, sob a forma de conseqüências psíquicas da
diferença anatômica entre os sexos. Como vimos no capítulo 1, Bleichmar recorre a Stoller
como alguém que põe fim a qualquer tentativa de estabelecer uma ligação direta entre
gênero e anatomia e é sobre esta distinção que ela construirá sua teoria sobre a histeria
40
.
Vamos abordar, agora, as conseqüências, para a menina, do que Bleichmar observa da
relação entre os gêneros na sociedade.
Bleichmar encontra em Freud o conceito de identificação primária, que lhe permite
conceber uma identificação precoce não-conflitiva da menina com sua mãe. A
feminilidade, definida como um conjunto de atributos e atividades que caracterizam a
mulher, é considerada pela criança como uma condição ideal, um ideal de gênero, mas por
um tempo curto. “Gênero será entendido como uma estrutura estritamente articulada e
permanentemente avaliada e significada pelo sistema narcisista do sujeito”. (Bleichmar,
1988, p.29). O que determina maior especificidade e caráter diferencial nos gêneros é sua
diferente valorização narcisista. A condição ideal da feminilidade para a menina é
quebrada pelo discurso cultural. O falo entra como símbolo privilegiado pela cultura para
designar o poder. O fantasma da mulher fálica se produz para manter a crença na
onipotência materna, até que o discurso cultural atravesse a relação e revele o privilégio da
40
Cf. meu comentário, no capítulo 1, sobre a relação entre o “ideal de gênero” e a anatomia na teoria de
Bleichmar.
masculinidade como símbolo do poder. A valorização do masculino, representado pelo
falo, provoca efeitos em seu sistema narcisista. A diferença anatômica é interpretada
segundo uma chave de leitura valorativa. Constatam-se desigualdades na valorização social
dos gêneros. Bleichmar junta aqui feminismo e psicanálise. A desvalorização da menina
por ela mesma e o conseqüente transtorno narcisista colocam para ela uma questão: como
faz a menina para desejar ser mulher num mundo paternalista, masculino e fálico? A
castração promove uma inversão na valorização do gênero. A menina perde o ideal
feminino primário.
Na mesma linha de Rubin e Benjamin, Bleichmar sugere a grande possibilidade de
ocorrer um déficit narcisista na organização da subjetividade da menina. Em sua opinião,
isso explicaria sua predisposição para a histeria. No processo de identificação com a mãe, a
menina encontra obstáculos para considerá-la como modelo com o qual se parecer e, em
lugar de querer identificar-se com ela, localiza o ideal no homem. Já que a feminilidade é
desvalorizada, conclui-se o processo pelo qual:
...a única via para o restabelecimento do balanço narcisista na mulher é
na base de alguma referência fálica, colocando o homem no objetivo
central e único de sua vida. Pode rodeá-lo da mais alta idealização(...);
pode, despojando-se da possibilidade de possuir para si metas e valores,
delegá-los a ele, de maneira que será a fiel companheira, a que ajuda que
seu ‘homem se realize’, situando-se nesse lugar tão valorizado por
nossas convenções, de ser ‘a mulher que está sempre por trás dos
grandes homens’; ou ambicionando maior transcendência para si,
competirá tendo comportamentos ou atividades que são desenvolvidos
pelos homens, quer dizer, masculinizará seu Ideal do Ego e seu Ego; ou
finalmente pode chegar a instituir como sua meta o comportamento
sexual do homem para com a mulher, homossexualizando seu desejo.”
(Bleichmar, 1988, p. 25)
41
O conceito de gênero, na opinião de Bleichmar, permite uma melhor compreensão
da histeria. Ela está situada no centro de um conflito narcisista que leva a mulher para uma
espécie de feminismo espontâneo. Através da histeria, ela reivindica uma equiparação ou
mesmo uma inversão da valorização de seu gênero.
41
A vantagem da crítica de Rubin, talvez, é a de trazer a lésbica para o plano das mulheres que também não
têm opção para a identificação. Mas há uma diferença entre supor a homossexualidade como conseqüência da
desvalorização narcísica sobrando a identificação com o homem no quesito “desejar mulheres” e supor a
homossexualidade independente disso e, nesse caso, o modelo heterossexual é insuficiente para dar conta da
explicação sobre a construção do desejo.
Cada vez que se sinta humilhada apelará à sua única arma na luta
narcisista, o controle de seu desejo e de seu gozo, para inverter os
termos. (...) Seu feminismo espontâneo e aberrante ocorrerá no terreno
em que ficou circunscrita: o sexo. Quando deixa de ser feminina em
forma convencional fêmea, mãe, dona-de-casa não se pensa que
busca outras formas no mundo, senão que imita e compete com o
homem. (Ibid., p.26)
Ambas as citações, em minha opinião, revelam o que Haraway aponta como um
certo essencialismo da afirmação de Beauvoir. Mesmo recusando a anatomia na
determinação do gênero, Bleichmar constrói a mulher e o homem de modo bastante
caricato, seja sob o aspecto da identidade, seja sob o aspecto do desejo. Retomando meu
comentário do capítulo anterior, novamente parece estar presente uma idealização do
gênero na própria exposição da autora. Ainda assim, me parece útil a contribuição de
Bleichmar por se tratar de um questionamento dos efeitos na clínica, de uma determinada
organização social baseada na desigualdade da relação entre os gêneros. E um
questionamento oriundo, assim como, em Benjamin, da própria desconstrução da teoria
freudiana de aquisição de gênero.
Como último comentário, quero mencionar uma crítica de Bleichmar à teminologia
psicanalítica lacaniana que parece refletir uma posição de muitas feministas. Bleichmar
questiona o uso do termo “histeria” da seguinte maneira: quando Lacan define a histérica
como sujeito do inconsciente em exercício, efeito e produto da linguagem, diz ela, ele
universaliza e redefine o conceito de histeria, que se torna paradigma do sujeito do
inconsciente. Perde-se a conotação psicopatológica, sexista e valorativa, já que o sujeito do
inconsciente é pura estrutura e a-histórico. Mas por que então chamar de histeria, ela se
pergunta. Esse termo guarda uma relação com a histeria freudiana, psiquiátrica ou mesmo
a concepção do senso comum, do patrimônio cultural. “Por que continuar mantendo um
significante tão carregado de reminiscências de um saber marcado pela história, pelo
preconceito e pelo sexismo?” (Bleichmar, 1988, p.27). Este mesmo argumento se estende,
em Bleichmar, à noção de “falo”, instituído como significante do desejo, e à fórmula “a
mulher não existe”. Haveria, por parte de Lacan e daqueles que reproduzem seu discurso,
um descuido em relação ao fato de que está sendo feito uso de um vocabulário que implica
relações de poder entre os gêneros.
Como vemos mais uma vez, Butler não está sozinha em seu projeto de
questionamento de conceitos psicanalíticos para abordar as desigualdades nas relações de
gênero. Porém, quero adiantar que, no seu caso, não se trata apenas de sugerir mudanças de
nomenclatura, mas de algo mais sutil. Ela critica o campo epistemológico que funda alguns
conceitos.
2.5 Breve resposta às feministas
Especificamente em relação ao uso do termo “falo” na psicanálise, com relação à
crítica feita por Rubin e por Bleichmar - crítica que tem caráter eminentemente político
42
-,
vale a pena reproduzir a resposta de Bruce Fink, psicanalista e comentador de Lacan na
língua inglesa
43
.
Segundo ele, pode-se mitigar o recurso de Lacan à anatomia em vários momentos
de sua obra, se considerarmos que, na lógica lacaniana, os termos centrais seriam os de
“limite”, “falta” e “perda” e Lacan os usa, tendo como referência a castração. O fato de
eles aparecerem relacionados aos órgãos genitais nada nos diz sobre a fundamentação de
seus conceitos na anatomia:
Eles podem (os conceitos), em casos históricos particulares, setores
específicos e fases da cultura ocidental, muitas vezes, estar associados
aos órgãos genitais, a tumescência e a não tumescência do órgão sexual
masculino e as teorias sexuais infantis e de onde vêm os bebês. Tais
particularidade são, entretanto, contingentes comparadas com a estrutura
de falta/perda em si mesma. (Fink, 1998, p. 128, grifo do autor).
O uso do termo “falo” como significante do desejo na psicanálise merece uma
atenção particular de Fink, como que para dar uma resposta definitiva às feministas. O falo
como significante do desejo, daquilo que é desejável, é algo constatável na cultura
ocidental, de modo geral, como também o é na clínica. Isto constitui uma generalização,
embora não seja uma regra necessária e universal. Talvez existam outras sociedades nas
quais algum outro significante exerça o papel de significante do desejo, dirá Fink. Em
nossa sociedade, não há razões estruturais para que o falo exerça esse papel, mas, em sua
visão, a permanência do falo nesse lugar é quase a de um fato consumado. “Não há razão
teórica para que seja outra coisa...” . (Ibid., p.128)
Fink recupera algumas razões propostas pelo próprio Lacan para o fato de o falo
assumir esse papel em nossa sociedade:
42
Não vou discutir aqui a crítica clássica do feminismo ao falocentrismo. Estou me restringindo às
conseqüências políticas, para a desigualdade entre os gêneros, do uso do termo “falo”.
43
Fink, B. O sujeito lacaniano entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Uma poderia ser a de que esse significante é escolhido como
aquele que é o mais notável (ou saliente) daquilo que pode ser
apreendido na relação sexual como real (como uma atividade real, não
imaginária ou simbólica), e, também, como aquilo que é o mais
simbólico, no sentido literal do termo, uma vez que ele é equivalente na
relação sexual à cópula. É possível dizer que devido à sua turgescência
ele é a imagem do fluxo vital como é transmitido na procriação. (Lacan
apud Fink, 1998, p.129)
44
.
Tenho a impressão de que não há como calar a crítica das feministas quando
aparecem afirmações como essas de Lacan ou, mesmo, as de Fink. A afirmação de Fink de
que não há razões teóricas para que o falo deixe de ser o significante do desejo, parece não
se enquadrar com as razões, igualmente teóricas, das feministas, segundo as quais os
discursos atravessados por relações de gênero, que implicam em dominação e ausência de
reconhecimento, perpetuam essas mesmas relações de desigualdade.
2.6 Binarismo de gênero
A concepção binária de gêneros, predominante nas teóricas feministas, parece ser
útil para análise das relações de poder, de dominação, de desigualdade e de ausência de
reciprocidade entre homens e mulheres. Mas são evidentes os impasses causados por essa
concepção para se lidar com a idéia de “gêneros não-inteligíveis”.
Gênero foi desenvolvido como uma categoria para explorar o que significa
‘mulher’, para problematizar o que era anteriormente dado. Partindo da afirmação de
Simone de Beauvoir, de que não se nasce mulher, à luz do marxismo e da psicanálise as
teorias feministas compreenderam, ou deveriam ter compreendido, que “..qualquer sujeito
inteiramente coerente é uma fantasia, e que a identidade pessoal e coletiva é precariamente
e constantemente socialmente reconstruída.” (Coward, 1983, apud Haraway, 2004, p.30)
45
.
Gênero combate a predominância de uma interpretação dos indivíduos baseada no registro
do imaginário. “A recusa em tornar-se ou permanecer homem ou mulher marcado/a pelo
gênero é, então, uma insistência eminentemente política em sair do pesadelo da muito-real
narrativa imaginária de sexo e raça”. (Haraway, 2004, p.30). Parece-me que esse é o
xeque-mate de Haraway. Gênero é uma categoria política.
44
Lacan J., Écrits, p. 287 e Mitchell, J; Rose, J. (Orgs.) Feminine Sexuality, New York: Norton, 1982, p. 83.
45
Coward, R. Patriarchal precedents: sexuality and social relations. London: Routledge & Kegan Paul,
1983.
3. JUDITH BUTLER: SUJEITO E ABJETO
Nesta segunda parte, em que apresentamos as idéias de Butler, queremos avançar a
hipótese de que “gênero” definido como “ato performativo” poderia apontar para uma
transformação social, no que tange à questão dos gêneros na sociedade e às relações de
poder que aí se encontram. Para compreender essa definição, no entanto, é necessário
revelar alguns pressupostos de Butler, ou melhor, acompanhá-la em sua tentativa de
estabelecer uma noção de sujeito que não determine, a priori, uma concepção de
normalidade e de patologia a partir das identidades de gênero binárias. Ao mesmo tempo,
veremos Butler adotar como paradigma de “gênero”, não o masculino ou o feminino, mas
algo que se encontra em outro lugar, para além dos gêneros compreensíveis. Em sua
análise de “gênero”, Butler parte dos “gêneros não-inteligíveis”.
No entanto, uma nova definição de “gênero” sozinha não seria suficiente para
desencadear uma transformação na sociedade. É por isso que, no desenvolvimento de seu
trabalho, Butler se depara com o questionamento das noções de “simbólico” e de
“diferença sexual” em Lacan. Sua proposta é de que estas noções sejam compreendidas de
modo diferenciado, com vistas a incluir os gêneros não-inteligíveis na cultura, sem
conotações patológicas. Isto estará exposto no capítulo 4.
Este capítulo é dividido em duas seções. A primeira aborda os efeitos ontológicos
da performatividade e, a segunda, toma os “gêneros não-inteligíveis” como paradigma de
gênero.
3.1 Gênero e sujeito
Butler tem um objetivo claro em seu uso do conceito de gênero: quer dar conta do
“abjeto”. Trata-se de uma atitude política. Trata-se de dar direito de cidadania ao
inabitável, ao “invivível”, ao Outro que virou “merda”
46
, “à zona social mais densamente
46
Em Problemas de gênero, Butler comenta o conceito de abjeção, de Kristeva. (p.190-193). “O “abjeto”
designa aquilo que foi expelido do corpo, descartado como excremento, tornado literalmente ‘Outro.” Os
excrementos que originalmente pertencem ao corpo, ao serem expelidos e dos quais se tem repulsa, ajudam a
construir a fronteira entre o interno e o externo. Esse processo se torna modelo pelo qual outras formas de
diferenciação da identidade são praticadas. A desonra é o que é descartado pelo sistema simbólico. É o que
povoada por quem não desfruta do status de sujeito, mas que paradoxalmente- define seu
domínio.” (Femenías, 2003, p.13). Butler se insere na tradição queer que se debruça sobre
os personagens do Navire Night de Marguerite Duras: “...é a sexualidade dos anúncios, das
saunas, dos clubes privés, dos jardins públicos.
É a sexualidade fora da família, fora da
fidelidade, fora do amor, que tem seus lugares, seus códigos, seus ritos, seus limites
também, e da qual nunca se trata no campo freudiano....”.
47
Essa sexualidade colocaria em causa a questão da identidade de gênero? Ou
existiria uma zona de exercício da sexualidade em que a identidade assumida pelo
indivíduo fora dali não entra em questão?
48
Para alguns, a sexualidade exercida fora das
insígnias identitárias culturais representa uma certa dose de sofrimento. Para outros, a
própria identidade de gênero é algo maleável e não há como, em função dos desejos, das
práticas sexuais e dos próprios sentimentos acerca de seu gênero, enquadrar-se nas
definições binárias clássicas de gênero. Deixar ao indivíduo o confronto inevitável com a
sociedade e seus preconceitos, suas limitações de ordem ideológica e política é furtar-se a
uma responsabilidade social. No campo teórico, prático e político, é preciso assumir um
compromisso com os personagens do Navire Night.
Butler tem algo em comum com a psicanálise lacaniana: ela recusa a idéia de uma
estabilidade no gênero. Ela afirma a inadequação do sujeito a uma identidade fixa. A
identidade de gênero não daria conta daquilo que a psicanálise chama de “sexual”. Mas a
postura psicanalítica é menos radical, na medida em que aceita a divisão binária entre as
identidades “homem” e “mulher” para descrever os seres humanos. Se tomarmos, por
exemplo, dois textos que falam da sexualidade, como A significação do falo (1958) e O
Seminário, Livro XX, Mais, Ainda (1975) de Lacan, neles utiliza-se a linguagem
tradicional. No primeiro, as relações entre os sexos giram ao redor de um “ser” e um “ter”
o falo: são descrições genéricas do que acontece com o homem e do que acontece com a
mulher em suas relações com este significante. Já o segundo faz referência ao “lado
homem” e ao “lado mulher” (nas fórmulas da sexuação do Seminário XX), ainda que estes
lados ou posições não sejam complementares e nem definidos a partir da anatomia.
escapa à racionalidade social, à ordem lógica em que se baseia uma agregação social,...”. Kristeva, J. The
powers of horror: an essay on abjection. New York: Columbia UP, 1982, apud Butler, 2003, p. 232.
47
Duras, M. Le navire Night, Paris: Gallimard, 1989, apud Allouch, J., 1999. Allouch acredita que a
psicanálise não estava dando conta desses “personagens” e, a partir dessa questão, iniciou um diálogo com os
estudos gays e lésbicos e com autores queer.
48
É comum encontrar nos cinemas de “pegação” homossexual, senhores, “pais de família”, que freqüentam
amiúde ou esporadicamente estes locais para uma relação sexual sem compromisso, que não interfira em sua
vida cotidiana e que não questione a sua “identidade de gênero”.
Podemos então afirmar que, no que diz respeito à identidade enquanto categoria
descritiva dos seres humanos que, direta ou indiretamente se refere à sua sexualidade, a
teoria lacaniana é tradicional. Ela se tornaria subversiva em relação à sexualidade num
momento específico da obra de Lacan, quando este utiliza o conceito de “objeto a”
vinculado à teoria do “fantasma”. É aí que, como diz Dunker: “Abre-se espaço para uma
diversidade que é ao mesmo tempo de natureza sexual, logo, não redutível às posições do
gênero e à gramática fálica.
49
O fato de não haver um fantasma masculino em oposição a
um fantasma feminino questionaria a própria idéia de gênero. O caráter fantasmático da
sexualidade faz pensar em modos de gozo sujeitos à contingência de cada um. Trata-se de
diferentes sexualidades, que não se ajustam muito bem às posições de gênero clássicas.
(Dunker, 2005, p. 9).
Não vamos aqui discutir a teoria lacaniana do “fantasma” e do “objeto a”. Fica a
sugestão de que este seria um caminho para o questionamento do binarismo de gênero a
partir de Lacan, ou, nas palavras de Dunker, da “própria idéia de gênero”. No entanto,
como indica o mesmo Dunker, Lacan desenvolve ainda uma outra teoria da sexualidade em
sua obra a teoria da sexuação nos anos 70 que, apesar de se aproximar da idéia de
Butler, de que não há prática sexual que em si remeta a uma identidade de gênero, não
caminha no sentido de um questionamento da idéia de gênero. (Ibid., p.11). Ora, Butler
pretende mostrar que a subversão também deve ocorrer em relação ao conceito de gênero.
Vemos, então, que não é propriamente a teoria da sexualidade na psicanálise
lacaniana que Butler deve tomar como foco de suas críticas. Seu questionamento é
endereçado à divisão binária das identidades, que parece reger a sociedade, não permitindo
a determinados indivíduos se reconhecerem enquanto humanos.
Em minha opinião e creio que também na de Butler, é necessário refletir sobre
“gênero” porque essa categoria gera teorias, gera visões de mundo e, conseqüentemente,
gera sofrimentos por parte daqueles que tentam se enquadrar nos gêneros “inteligíveis”,
aqueles que, segundo ela, aparentemente ...mantêm relações de coerência e continuidade
entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. (2003, p.38). E ainda, a categoria “gênero”
gera variadas formas de repressão por parte daqueles que, com maior ou menor
consciência, impõem aos próximos a sua forma de divisão dos seres humanos. Nesse
sentido, parece importante desconstruir essa noção e é isso que Butler faz quando define
49
Dunker, C., Teorias da Sexualidade em Psicanálise, artigo cedido pelo autor (dez de 2005), p. 9.
gênero como “ato performativo”, em Problemas de gênero (2003), originalmente
publicado em 1990, e que examinaremos logo mais. Da mesma forma, mais tarde, em
Undoing Gender (2004), Butler define “gênero” como o mecanismo pelo qual as noções de
masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas deve igualmente ser o aparato
pelo qual esses termos são desconstruídos e desnaturalizados. Vemos que tanto em
Problemas de gênero quanto em Undoing Gender, publicações com 14 anos de diferença,
Butler mantém a idéia de que o conceito de “gênero” pode ser um interrogador do “status
quo”, um gerador de impasses para as teorias que concebem o sujeito, a identidade e a
sexualidade com um grau de coerência entre si, que de fato é inexistente.
Propomo-nos a investigar a noção de gênero como “ato performativo”. Logo após a
publicação de Problemas de gênero, Butler foi acusada de pressupor intencionalidade e
voluntarismo na construção de gênero e de tomar as drag queens como paradigma da
subversão de gênero. Suas idéias criaram inimigos na psicanálise (Braunstein, 2005;
Gallano, 2003). Além disso, Butler sofreu críticas sobre sua interpretação daquilo que
Lacan convencionou chamar de diferença sexual”. Essa interpretação supostamente
equivocada estaria na raiz das discussões que tendem a anular sua contribuição sobre a
questão dos gêneros. (Shepherdson, 2000; Copjec, 1994).
Levando em consideração que Butler parte de uma postura militante e que tem em
vista um alcance político de suas colocações, podemos resumir suas questões do seguinte
modo: em primeiro lugar, qual é a necessidade de se organizar a sociedade em termos de
homens e mulheres como gêneros estanques na medida em que essa divisão que define
os gêneros um em relação ao outro não coincide com o que desde há muito tempo se vê
pelo mundo? Em seguida, pergunta-se sobre onde está a abertura (teórica) para se fazer
crer que na sociedade os seres humanos não se limitam a esses dois gêneros? O conceito de
“simbólico” e a noção de “diferença sexual” de Lacan (que abordaremos adiante), na visão
de Butler, parecem impeditivos para a aceitação das variações de gênero ou dos “gêneros
não-inteligíveis”. Mas, como vimos acima, na mesma psicanálise lacaniana, haveria a
possibilidade de questionar a noção de gênero a partir da teoria do “fantasma” e do “objeto
a”. No entanto, na medida em que as implicações desse questionamento não parecem ter
sido levados adiante o suficiente ao menos não ao ponto de serem do conhecimento de
Butler - o debate com a psicanálise lacaniana, no que diz respeito a “gênero”, se restringe
às interpretações sobre o “simbólico”, a “diferença sexual” e o “parentesco”, como
veremos no capítulo seguinte.
3.1.1 Desconstruindo gênero
De acordo com Butler, as noções usuais de gênero permitem trabalhar apenas com
os gêneros “inteligíveis”. O próprio Stoller é submetido por ela a uma crítica quanto ao uso
de uma noção limitada de “gênero”. O “núcleo da identidade de gênero” implicaria numa
concepção de homem e mulher como substâncias permanentes e, no entanto, para Butler,
essas substâncias permanentes são pura ilusão, produção ficcional de uma coerência
culturalmente estabelecida.(Butler, 2003, p.48). Na perspectiva stolleriana e mesmo na de
outros autores, determinadas “identidades de gênero” ficam necessariamente
compreendidas como falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas por não se
enquadrarem no que Butler denomina “normas de inteligibilidade cultural”, normas que
supõem que o “gênero” decorra do “sexo” e que as práticas do desejo decorram do “sexo”
e do “gênero”. Butler dirá que são a persistência e a proliferação destas “identidades” que
põem em xeque os “..limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade”
(Ibid. p.39), criando paradigmas novos, matrizes rivais e subversivas de desordem do
gênero em oposição à matriz de inteligibilidade, que seria a matriz da heterossexualidade,
ou o que Butler chama freqüentemente de sistema da heterossexualidade compulsória.
50
Butler se propõe, então, a reconfigurar o conceito de gênero, permitindo que este dê conta
das “identidades de gênero” no geral, sendo estas mais ou menos inteligíveis, e abrindo
espaço para aquelas que continuam surgindo. Isso implica numa recusa da idéia de sexo
como “substância”, ou seja, de um sexo idêntico a si mesmo, aparentemente coerente,
dividido em duas categorias de ser: homens e mulheres, responsáveis pelos atributos de
masculinidade e feminilidade. De acordo com Butler, é o uso da linguagem que cria a idéia
de uma substância onde haveria apenas performatividade. Butler cita Foucault, para quem:
...a gramática substantiva do sexo impõe uma relação binária
artificial entre os sexos bem como uma coerência interna artificial em
cada termo desse sistema binário. A regulação binária da sexualidade
suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as
hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica. (Foucault,
apud Butler, 2003, p. 41).
50
Em Cuerpos que importan ela passa a usar a expressão “hegemonia heterossexual” no lugar de “matriz
heterossexual”, argumentando que esta segunda expressão favorece a idéia de se tratar de uma simbólica
totalizante, enquanto a primeira permite pensar numa abertura para uma rearticulação.
Limitar as “identidades de gênero” a apenas duas ou, ao menos, aos “gêneros
inteligíveis” seria uma forma de manter o cenário social. A definição de gênero guarda
relações com o poder. Gênero é um efeito de uma prática discursiva que, por sua vez, é
efeito de uma prática reguladora que possui um determinado objetivo. O que a hegemonia
heterossexual pretenderia garantir? A reprodução da espécie? A reprodução do poder
patriarcal?
Não sei se é possível para uma filósofa discutir sexo e gênero, sem fazer uma
reflexão sobre o sujeito, o corpo e a linguagem. Butler é herdeira de Foucault e Nietzsche,
mas também de Hegel, de Sartre, de Simone de Beauvoir e de Merleau-Ponty, sem falar
em Austin e Derrida. A “confusão de línguas” é evidente em seus textos e já foi apontada
por seus críticos e comentadores. Nem por isso é necessário desistir da leitura ou mesmo ir
atrás de cada uma de suas referências. Butler vai tramando seus conceitos com um objetivo
claro: quer encontrar uma noção de sujeito e uma noção de corpo, amarradas pela
linguagem, que permitam incorporar na cultura, de modo não patológico, os seres humanos
que não se enquadram nos padrões normais de gênero. Por isso, não é fácil dizer se sua
obra é realmente sobre gênero. Talvez esse seja o pretexto para discutir temas clássicos da
filosofia: o que é o sujeito? O que é o corpo? Mas lembremos que, além de filósofa, Butler
é também feminista. Sua reflexão não é isolada da perspectiva de uma transformação da
sociedade.
Butler desconstrói a idéia de uma coerência da identidade de gênero com base em
duas questões: em primeiro lugar, a de que não há uma essência ou substância por trás do
gênero. Não há “ser”, não há um “fazedor”, não há unidade. A ontologia não é uma
fundação, mas uma “injunção normativa”, dirá ela. Inventa-se a idéia de “ser”, para que os
indivíduos sejam mais bem controlados. As categorias de “ego”, “indivíduo” e “pessoa” -
às quais se pode acrescentar “gênero” - como forma de descrever os seres humanos,
derivam de uma ilusão de substância. Não há necessidade de existir um “agente” por trás
do ato. Ele é construído através do ato. Não existe qualquer estrutura pré-discursiva do eu e
de seus atos.
O segundo ponto de apoio para a desconstrução da coerência da identidade de
gênero consiste em tomar como referência figuras como Herculine Babin
51
, transexuais,
transgêneros, drags, butchs, femmes e partir do princípio de que não há necessidade de
classificá-las a priori como patológicas. Admiti-los como cidadãos (o que, por incrível que
51
Butler comenta este famoso caso, trazido à luz por Foucault. (Problemas de gênero, p.140-155).
pareça, é algo que se revela muito difícil quando se pensa, por exemplo, em termos de
documento de identidade), seria conceder-lhes o direito de existência enquanto seres
humanos e com isso, libertá-los para a normalidade coisa inadmissível para quem tem a
expectativa de uma coerência da identidade de gênero. São esses dois pontos que
examinaremos a seguir.
3.1.2 Breve ontologia
Para introduzir o conceito de gênero como ato performativo precisamos percorrer
dois caminhos definir performatividade, ver as raízes deste conceito e descobrir como
Butler o utiliza. Mas, além disso, é necessário olhar para as conseqüências do uso deste
conceito. Escolhi partir de uma frase de Butler: “Performatividade é o veículo pelo qual
efeitos ontológicos são estabelecidos.”
52
Nessa frase, Butler aponta para a produção do
“ser” como substância, mas, como veremos, “performatividade” é o modo de produção de
uma aparência de substância, de uma ilusão de substância. E, se o ser é uma substância
ilusória, imediatamente se coloca a questão quanto à materialidade do corpo. Trata-se
então de uma noção de gênero que coloca de início uma pergunta sobre o sujeito e sobre o
corpo. Essas questões na obra de Butler são anteriores a Problemas de gênero, tangenciam
as discussões sobre essencialismo versus construtivismo e entram do debate sobre a relação
entre sexo e gênero.
Segundo Femenías, comentadora de Butler, num texto em que discute O Segundo
Sexo, de Simone de Beauvoir
53
, Butler se aproximaria de uma noção de corpo de Merleau-
Ponty. Butler alinharia erroneamente Beauvoir a Sartre numa concepção dualista
consciência/corpo em vez de alinhá-la a Merleau-Ponty, que superaria esse dualismo. A
noção de corpo de Butler se aproximaria da de Merleau-Ponty e de Beauvoir e não
contrariaria esta última.
Femenías aponta algumas idéias de Butler que levam, de modo semelhante, à noção
de performatividade, a uma negação da concepção de sujeito como “agente”, “fazedor”,
unidade metafísica. Contrariamente a uma posição construtivista, o corpo seria o sujeito
das ações. Não se poderia pensar num “gênero” que se constrói porque não se poderia
conceber um agente que se apropriaria de um gênero desde um lugar sem gênero ou pré-
52
Essa frase foi dita por ela numa entrevista a Osborne e Segal em 1994, depois de haver publicado, além de
Problemas de gênero, também Cuerpos que importan.
53
Infelizmente não consegui localizar “Sex and Gender in Beauvoir´s Second Sex” (1986), de Butler, mas
decidi tomar como referência os comentários de Femenías, pois me parece razoavelmente possível identificar
nessas idéias as raízes de “gênero” como ato performativo.
gênero. Já estaríamos desde sempre “generizados”. As normas de gênero recebidas seriam
atuadas através do corpo. Corpo e sexualidade seriam expressões concretas da existência.
Se, de fato, Butler se aproxima de Merleau-Ponty e, de acordo com Femenías, mais
especificamente de sua posição em Fenomenologia da Percepção
54
, podemos entender aí
uma concepção de corpo que lhe permite dispensar a idéia de intenção, interpretação e
escolha em relação a gênero, porque dispensa um sujeito que escolhe algo para seu corpo e
sua sexualidade e, em seu lugar, concebe um conjunto que experiencia e vivencia os fatos.
Merleau-Ponty propõe que a existência biológica está engrenada na existência humana. A
existência se realiza no corpo. “Nem o corpo nem a existência podem passar pelo original
do ser humano, já que cada um pressupõe o outro e já que o corpo é a existência
imobilizada ou generalizada, e a existência uma encarnação perpétua.”(p. 230).
55
No
entanto, o modo de existência é adquirido. Tudo é contingência no homem, no sentido em
que a maneira humana de existir não está garantida a qualquer criança por alguma essência
que ela teria recebido em seu nascimento. Além disso, o modo de existir, realizado no
corpo inclui também a sexualidade. Um estilo de vida é, talvez, uma expressão
generalizada de um certo estado da sexualidade, dirá Merleau-Ponty. Mas, ele adverte, não
se pode reduzir a existência ao corpo ou à sexualidade e também não se pode reduzir a
sexualidade à existência.
Esse curto parágrafo expressa algumas idéias que encontramos em Butler.
Primeiramente, a idéia de que o “ser” é concebido sempre em conjunto, não se separa
mente e corpo. E, quando se fala em sexualidade, o corpo que a vive está sempre
pressuposto. Não há uma preocupação em se referir a cada momento ao que acontece com
o corpo no processo de assunção das normas de gênero, pois há uma vivência dos fatos que
é realizada pelo conjunto corpo-existência.
Ao final de Problemas de gênero Butler parece retomar essa idéia ao dizer que o
corpo não é um “ser”, no sentido de ter algo a expressar. Ele é “... uma fronteira variável,
uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante
dentro de um campo cultural de hierarquia do gênero e heterossexualidade compulsória.”
(2003, p.198). O gênero está na superfície, podemos dizer que se trata de um “corpo-
gênero”. (Ibid., p.195). Buscando uma herança, faz um paralelo com o que Sartre
54
Merleau-Ponty, M., “O corpo como ser sexuado”, in Fenomenologia da Percepção, Martins Fontes, São
Paulo, 1994.
55
Não pretendemos aqui aprofundar as noções de corpo e de existência em Merleau-Ponty. Queremos apenas
demarcar o território que nos permite entender melhor a construção teórica de Butler.
chamaria de “estilo de ser”, Foucault de “estilística da existência: referindo-se à sua
leitura de Beauvoir, Butler fala de “estilos da carne”.
A partir daqui, Butler volta um passo ou, quem sabe, assume uma ambigüidade da
qual depois parece querer se livrar, mas que, a meu ver, nunca poderá dispensar totalmente.
Trata-se da idéia de intencionalidade. “Consideremos o gênero, por exemplo, como um
estilo corporal, um ‘ato’, por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde
performativo’ sugere uma construção dramática e contingente do sentido.” (2003, p.198,
grifo da autora). Vale notar que, nessa definição de “gênero”, a intencionalidade (o “ato
intencional”) convive lado a lado com o “ato performativo”. Esse registro será importante
para o que veremos Butler desenvolver em sua teoria de gênero.
3.1.3 Performatividade.
O conceito de performatividade utilizado por Butler deriva de Derrida, ou melhor,
de uma leitura que este fez de Austin.
56
Na teoria dos atos de fala de Austin exposta em
How to do things with words
57
, se considera performativa a prática discursiva que torna
realidade ou produz aquilo que nomeia. Austin faria uma divisão entre atos de fala
constatativos e atos performativos. Estes últimos produziriam os acontecimentos aos quais
se referem. Por exemplo, na frase: “Eu os declaro marido e mulher” o poder opera através
do discurso; são formas enunciativas de autoridade. Em Austin, o performativo pareceria
revelar que o fenômeno nomeado e, a partir desse momento, existente, toma sua existência
a partir do poder de um sujeito ou de sua vontade. Aí aparece a crítica de Derrida, que
proporá que este poder é sempre derivado. Dirá Derrida que um enunciado performativo
tem êxito porque sua formulação repete um enunciado codificado, é identificado como um
modelo repetido, uma citação.
Poderia uma enunciação performativa ter êxito se sua formulação
não repetisse uma enunciação “codificada” ou iterativa ou, em outras
palavras, se a fórmula que pronuncio para iniciar uma reunião ou para
lançar um barco à água ou para celebrar um matrimônio não se
identificasse de algum modo com uma “citação”?(...) em tal tipologia, a
categoria de intenção não desaparecerá, terá seu lugar, mas desde esse
lugar já não poderá governar a totalidade desse cenário e o sistema de
enunciação[énonciation]. (Derrida, 1998, apud Butler, 2002, p.34).
58
56
Não é nosso intuito aqui avaliar o rigor da interpretação que Butler faz do conceito deste autor. Trata-se de
situar o ponto de partida para a construção de sua noção de gênero como ato performativo.
57
Butler cita esta obra de Austin, publicada pela Harvard University Press , Cambridge, Massachussetts,
1955.
58
Derrida, J., Signature, Event, Context. In: Gerald Graff (Comp.) Limited, Inc. Evanston: Northwestern
University Press, 1988, p. 18.
A partir desse questionamento feito por Derrida, Butler tomará a idéia de
performatividade e de repetição como referências para o conceito de gênero. Usa
“performatividade”, para dizer que o ato performativo torna real e produz aquilo que
nomeia ou atua (enquanto gesto e comportamento) e “repetição”, por que este ato é sempre
uma citação de algo, é referido a um código e, por isso mesmo, é efetivo. São citações e
repetições, entretanto, baseadas em convenções. A linguagem falada, assim como a escrita
pode ser repetida, é reconhecida e tem eficácia fora de um contexto original. Está
pressuposto que, se há inteligibilidade per si daquilo que foi escrito ou falado, há
autonomia e desvinculação em relação a um original, há existência separada. É no seio
dessa definição que Butler introduz aquilo que vai diferenciá-la de outros autores das
teorias de gênero: a possibilidade de uma repetição subversiva e transformadora.
Para Butler o gênero é um ato, requer uma performance que, ao se repetir, mantém
o gênero em sua estrutura binária. É uma ação pública, encena significações já
estabelecidas socialmente e desse modo funda e consolida o sujeito. O gênero é um efeito
performativo de atos repetidos, sem um original ou uma essência. Não expressa nem revela
uma identidade preexistente. Vejamos as palavras de Butler (2003, p.200, grifos da autora):
O gênero não deve ser interpretado
59
como uma identidade
estável ou um locus de ação do qual decorrem vários atos; em vez disso,
o gênero é uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituído
num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O
efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido,
conseqüentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos,
movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um
eu permanente marcado pelo gênero.
Gostaria de chamar a atenção aqui para a presença do corpo na construção do
gênero e na definição de performatividade. Inclui gestos, movimentos e estilos corporais.
Gênero é uma identidade da qual o corpo faz parte.
Essa formulação tira a concepção do gênero do solo de um modelo
substancial da identidade, deslocando-a para um outro que requer
concebê-lo como uma temporalidade social constituída.
Significativamente, se o gênero é instituído mediante atos internamente
descontínuos, então a aparência de substância é precisamente isso, uma
identidade construída, uma realização performativa em que a platéia
59
Na tradução brasileira, no lugar de “interpretado” está “construído” o que altera completamente o sentido.
Segui a tradução espanhola.
social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar,
exercendo-a sob a forma de uma crença.(...)
Sua definição de gênero denuncia o equívoco dos modelos que pensam a identidade
como substância. Trata-se de uma ilusão que engana o próprio sujeito. Sendo o corpo-
gênero marcado pelo performativo, ele não tem status ontológico separado dos vários atos
que constituem sua realidade.
É precisamente nas relações arbitrárias entre esses atos que se
encontram as possibilidades de transformação do gênero, na possibilidade
da incapacidade de repetir, numa deformidade, ou numa repetição
parodística que denuncie o efeito fantasístico da identidade permanente
como uma construção politicamente tênue.(...)
Acima aparece o que Butler entende como possibilidade de repetição subversiva e
transformadora. São as repetições que fornecem condição de mudança, seja por uma
qualidade intrínseca à própria repetição do que foi assumido como norma de gênero e que,
por algum motivo, não consegue ser reproduzido de modo igual, seja pela intenção de
subverter as normas de gênero presentes na paródia, o que veremos logo mais.
Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo
mostra ou produz sua significação cultural, são performativos, então não
há identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido;
não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a
postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma
ficção reguladora. O fato de a realidade do gênero ser criada mediante
performances sociais contínuas significa que as próprias noções de sexo
essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes
também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter
performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação
das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação
masculina e da heterossexualidade compulsória. (2003, p.200)
60
60
Encontramos em Goffman (1963) idéias que dialogam com a proposta butleriana de definir gênero como
identidades criadas mediante performances sociais” ou como “uma realização performativa em que a platéia
social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar”. Em Estigma, Goffman afirma que a
sociedade estabelece categorias para as pessoas e atributos considerados como comuns e naturais para os
membros de cada uma dessas categorias. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos
permitem um relacionamento com “outras pessoas” previstas sem atenção ou reflexão particular.” Nesse
sentido, podemos dizer que os gêneros não-inteligíveis com seus atributos particulares provocam o tempo
todo a atenção e a reflexão e, por isso mesmo, incomodam. Quando um estranho nos é apresentado, diz
Goffmann, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua “identidade
social”. “Transformamos essas pré-concepções em expectativas normativas, exigências apresentadas de
modo rigoroso. Fixamos afirmativas em relação ao que o indivíduo deveria ser e nem nos damos conta”.
Goffman explica aqui o que Butler chama de exigência de coerência do gênero. A sociedade tenderia a se
organizar de modo a evitar a formação de incoerências e até mesmo a percebê-las. Goffman, E. Estigma. Rio
de Janeiro: Zahar Editor, 2.ed, 1978, pp. 11-13.
Nesse último parágrafo Butler aponta para as relações de poder presentes na
imposição das normas de gênero. A constituição das identidades masculina e feminina
serve a um poder regulador que, segundo ela, obedece à estrutura da dominação masculina
e da heterossexualidade compulsória. Da mesma forma, este poder regulador tenta impedir
- e Butler mostrará por quais meios - a percepção do caráter performativo de gênero que,
por sua vez, apontaria para novas possibilidades de gênero
61
.
Uma das conseqüências do fato de gênero ser performativamente estabelecido é o
fato de que homens e mulheres heterossexuais seriam tão construídos quanto as categorias
ditas “cópias”, como butch e femme, drag queens e drag kings. Não haveriam gêneros
originais. A aparente cópia não se explicaria com referência a uma origem. A origem perde
o sentido porque o “homem” e a “mulher” de “verdade” tem de assumir o gênero da
mesma forma: por intermédio da reiteração de atos. Através da idéia de
“performatividade”, gêneros dominantes e não-dominantes (os gêneros não-inteligíveis) se
encontrariam no mesmo patamar. Desfaz-se a necessidade de coerência interna às
identidades sexuais e da classificação dessas identidades segundo graus de normalidade e
patologia.
Pelo conceito de performatividade, aquilo que se acredita ser “homens” e
“mulheres” “de verdade” encontra uma explicação na repetição e sedimentação de normas
de gênero que, ao longo do tempo, terminaram por criar a ilusão de uma substância
“mulher” e de uma substância “homem” numa aparente a-historicidade. Roupas, gestos,
olhares, falas, define-se um conjunto de estilos corporais que aparecem como formação
Outro paralelo que pode ser estabelecido é entre o que Butler descreve como uma repetição
estilizada de atos” ou “...a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários
tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero” e o conceito de técnica corporal de
Marcel Mauss. Num artigo de 1936, Técnicas e Movimentos Corporais, Mauss parte da idéia de que cada
sociedade faz uso de seu corpo numa forma tradicional, sendo o corpo o primeiro instrumento do homem e o
mais natural e a técnica, um ato eficaz tradicional. Não há técnica e nem transmissão se não houver tradição.
O corpo se adapta a uma finalidade física, mecânica, química (ex.quando bebemos) que é seguida por uma
série de atos de acoplamento, que são levados a cabo, não pelo indivíduo sozinho, mas com ajuda da
educação, da sociedade da qual forma parte e do lugar que ocupa. Essas técnicas se ordenam num sistema
concebido como um sistema de montagens simbólico. Não são comportamentos instintivos. A transmissão
tem aí um papel preponderante. Na sociedade todos devem saber e aprender o que devem fazer em qualquer
situação. O que está claro é que em toda parte nos encontramos ante a montagem física-psíquica-sociológica
de uma série de atos, atos que são mais ou menos habituais e mais ou menos velhos na vida do homem e na
história da sociedade”. Mauss, M., Sociologia y Antropóloga Madrid: Editorial Tecnos, 1971, pp.344 - 353.
Esses paralelos me foram apontados por Anna Paula Vencato, por sugestão de seu orientador Peter Fry.
61
Cf. capítulo 4.
natural dos corpos que, por imposição das normas de gênero, se dividem em dois sexos
relacionados um ao outro.
Os gêneros são construídos por uma complexidade discursiva: doutrina da igreja,
ciências biológicas, discurso médico e discurso jurídico. A “unidade” do gênero é efeito de
práticas reguladoras que buscam uniformizar a identidade de gênero através da
heterossexualidade compulsória. O poder precisa da heterossexualidade obrigatória e da
reprodução, assim como de um sistema de alianças. O tabu do incesto e o tabu contra a
homossexualidade, para Butler, caminham juntos. Produzem juntos a identidade “..nas
grades inteligíveis de uma heterossexualidade idealizada e compulsória”. (2003, p.194)
Punem-se os que não desempenham corretamente o seu gênero. Constrói-se a coerência
para ocultar a descontinuidade, mas, como denuncia o conceito de “performatividade”,
todo esse aparato só alcança uma falsa estabilização de gênero.
3.1.4 Estratégias de desconstrução
Como estratégia geral de desconstrução do gênero, Butler propõe uma genealogia
política das ontologias de gênero. Isso revelaria a aparência substantiva de gênero,
desmembrando-a nos diferentes atos que a constituem, e explicaria e localizaria esses atos
no interior das estruturas criadas pelas forças que controlam a aparência social do gênero.
Duas tentativas de exemplificar esse processo se encontram na segunda parte desse
capítulo.
Partimos, então, da idéia de que performatividade estabelece um efeito: a ilusão de
uma substância que, em última instância, trata-se de um corpo-gênero. Mas Butler aponta
para o fato de que, ao precisar repetir os atos que constituem o gênero na medida em que
gênero é um eterno fazer podem ocorrer repetições subversivas e transformadoras,
involuntárias ou intencionais. A estratégia de resistência às regras que governam a
identidade inteligível, segundo Butler, é interna à repetição, porque as regras também
operam por repetição. A “ação” de resistência deve ser situada como uma variação dessa
repetição. As regras que governam repetições restringem, mas também permitem a
afirmação de novas possibilidades de gênero, que contestam o binarismo de gênero.
A ordem de ser de um dado gênero produz fracassos necessários,
uma variedade de configurações incoerentes que, em sua multiplicidade,
excedem e desafiam a ordem pela qual foram geradas. Além disso, a
própria ordem de ser de um dado gênero ocorre por caminhos
discursivos: ser uma boa mãe, ser um objeto heterossexualmente
desejável, ser uma trabalhadora competente, em resumo, significar uma
multiplicidade de garantias em resposta a uma variedade de demandas
diferentes, tudo ao mesmo tempo. A coexistência ou convergência dessas
injunções discursivas produz a possibilidade de uma re-configuração e
um reposicionamento complexos...(2003, p. 209).
Não se trata de repetir ou não, mas de como repetir. Em Problemas de gênero, a
“paródia” foi usada como exemplo de repetição que denuncia os efeitos ilusórios das
identidades. Pouco tempo depois, em Cuerpos que importan, Butler precisou explicar que
a paródia não era paradigma da repetição subversiva. Mas vamos aos seus argumentos,
lembrando que estamos atentos para a presença da intencionalidade junto à
performatividade.
3.1.5 Práticas parodísticas
A noção tradicional de paródia é a de uma imitação que, muitas vezes, causa riso
ou, no mínimo, estranhamento. As práticas consideradas parodísticas são aquelas que
brincam com os estereótipos, brincam com a distinção entre anatomia, identidade de
gênero e a performance de gênero. Sexo e gênero ...são desnaturalizados por meio de uma
performance que confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural da sua unidade
fabricada.”(Butler, 2003, p.196).
A paródia está presente no travestismo, nas performances das drag queens e dos
drag kings e na estilização sexual das identidades butch/femme na identidade lésbica,
trata-se da paródia do macho e da fêmea, do estereótipo do masculino e do estereótipo do
feminino. Diante da performance da drag, a graça e o estranhamento consistem em
perceber a estrutura imitativa do próprio gênero assim como sua contingência. Gênero é
revelado como um conjunto de atos encenados, repetidos e endereçados a alguém. A
paródia do gênero mostraria que a identidade original sobre a qual se molda o gênero é
uma imitação sem origem. Faz-se paródia da própria idéia de um original.
As práticas parodísticas denunciam a distinção entre uma configuração de gênero
privilegiada, supostamente original, e outra que parece derivada, fantasística e mimética
uma cópia mal feita. “Todavia essa impossibilidade de tornar-se “real” e de encarnar “o
natural” é, diria eu, uma falha constitutiva de todas as imposições do gênero, pela mesma
razão de que esses lugares ontológicos são fundamentalmente inabitáveis.” (2003, p.210).
O travesti, ao fazer a paródia, subverte a distinção entre espaços psíquicos
interno/externo, através da ironia da idéia de um gênero que expressa a sua essência interna
através de seus atos ou, pelo contrário, de uma verdadeira identidade de gênero escondida
por detrás da aparência externa em consonância ou não com os atos. Diz o travesti:
“..minha aparência ‘externa’ é feminina, mas minha essência ‘interna’ [o corpo] é
masculina” Mas o travesti simultaneamente afirma o inverso: “..minha aparência ‘externa’
[meu corpo, meu gênero] é masculina, mas minha essência ‘interna’ [meu eu] é feminina.”
(Newton
62
, apud Butler, 2003, p. 195).
Se o sujeito, como parece supor Butler, é um corpo-gênero que repete atos, não há
lugar para uma essência de gênero, seja do travesti, seja da mulher “de verdade”. Não há a
identidade original, real, natural e, nesse sentido, Butler se refere a “lugares ontológicos
inabitáveis”.
A força política da paródia está no rompimento do que Butler chama de “ficção
reguladora da coerência heterossexual”. A “desorganização e desagregação do campo dos
corpos”, que é um modo de se referir às expressões e manifestações de travestis, drags,
butchs e femmes, enfraquecem o modelo de um corpo que revelaria uma verdade sobre o
gênero, como modelo descritivo único das relações entre gêneros. Isso denunciaria a norma
reguladora das relações de gênero, da heterossexualidade compulsória, como pura ficção.
Denunciaria sua tentativa de impor-se como lei que regula o campo sexual que tenta
descrever.
No entanto, enquanto potencial de subversão, as paródias têm limites. Se em
determinados contextos são disruptivas e perturbadoras, Butler sabe que também podem
ser incorporadas pela hegemonia cultural e difundidas de forma controlada. Como resistir
às normas de gênero? Novamente Butler se vê às voltas com as condições para a
transformação social. Se o poder incorpora as resistências, como fazer face frente a ele?
Butler responde:
Estamos, por assim dizer, no poder, mesmo quando nos opomos a ele,
porque o poder nos forma enquanto o re-elaboramos e esta
simultaneidade é, ao mesmo tempo, a condição de nossa parcialidade, a
medida de nosso desconhecimento político e também a condição da ação
mesma. Os efeitos incalculáveis da ação são uma parte de sua promessa
subversiva, tanto quanto o são os efeitos que planejamos de antemão. (...)
O alcance de sua significação (da expressão performativa) não pode ser
controlado por quem a pronuncia ou escreve, pois essas produções não
pertencem a quem as pronuncia. Continuam significando, apesar de seus
autores e, às vezes, contra as intenções mais estimadas de seus autores.
(Butler, 2002).
62
Newton, E. Mother Camp: Female Impersonators in América.
Intencionalidade e performatividade. Se a intencionalidade presente na paródia é
necessária, mas encontra seu limite numa noção de poder que a incorpora, o ato
performativo, na repetição, guarda a possibilidade da surpresa. Como vimos na definição
de performatividade, além da paródia, existia também a possibilidade de não se ser capaz
de repetir os atos de gênero. Afinal, não haveria um fazedor de gênero, um agente, um
sujeito que escolhe a coerência, ou uma essência que repetiria harmonicamente os atos de
gênero que configurariam uma suposta identidade original.
3.1.6 Gênero como re-significação
Em Cuerpos que importan, Butler substitui paródia por re-significação. Sua
intenção é eliminar a idéia do sujeito que escolhe, mas que, pelo contrário, é constituído
pela repetição dos atos. Em entrevista a Osborne e Segal (1994), Butler afirma que
Problemas de gênero teria dado margem a uma interpretação que confundiria
performatividade com performance, mas, enquanto a última pressupõe um sujeito, a
primeira colocaria em questão a própria noção de sujeito. “Gênero” foi interpretado como
um tipo de teatro improvisado em que diferentes identidades poderiam ser exploradas de
acordo com o desejo de cada um. Mas não se constroem ou desconstroem voluntariamente
identidades, dirá ela. As drags não seriam paradigmas para a subversão de gênero, como os
exemplos dados em Problemas de gênero fizeram crer. Butler parece querer eliminar
qualquer traço de intencionalidade. Enfatiza que gênero não é um papel que se escolhe a
cada dia, pois essa idéia implicaria num “alguém” que precede este gênero.
Comparando Problemas de gênero e Cuerpos que importan, Osborne e Segal dizem
que não é claro em que medida Butler quer apegar-se às possibilidades abertas em
Problemas de gênero de usar performances transgressivas como as drags para ajudar a
descentrar e a desestabilizar categorias de gênero e em que medida ela se teria tornado
cética quanto a isso. Se não se trata mais da paródia, como ato voluntário ou intencional,
onde fica a possibilidade de resistência à hegemonia heterossexual, a possibilidade de
transformação e de subversão do gênero? Butler se vê obrigada a retomar o que já havia
exposto em Problemas de gênero. Enfatiza o uso de “re-significação” em lugar de
“paródia”, não para eliminar esta, mas para recuperar as demais possibilidades existentes
na repetição dos atos de gênero.
A re-significação é possível porque os atos performativos, em particular os atos de
fala, tornam existente aquilo que nomeiam. As ações e os atos de fala têm efeitos
incalculáveis, trazendo significados inesperados. Não se trata de uma ação voluntária, mas
tampouco de quietismo, como os críticos de Butler querem fazer crer (Nussbaum, 1999).
Em Undoing Gender há mais uma “correção” do que poderia ser entendido como
“ato performativo” de forma equivocada. Fazer seu próprio gênero, diz Butler, não é uma
questão meramente cultural, não se trata de:
...um exercício burguês de liberdade em dimensões excessivas.
Dizer que gênero é performativo não é simplesmente insistir no direito de
produzir um espetáculo prazeroso e subversivo, mas ‘alegorizar’ os modo
espetaculares e conseqüentes pelos quais a realidade é ao mesmo tempo
reproduzida e contestada. (2004, p. 30).
Nesse momento, Butler diz que o gênero é um tipo de “fazer”, uma atividade
performatizada incessantemente, sem o conhecimento e sem a intenção da pessoa. Mas
nem por isso é automático ou mecânico. É uma prática de improvisação dentro de uma
cena de constrangimento.
Como conjugar a idéia de intencionalidade que parece estar presente na prática de
improviso e, ao mesmo tempo, fazer “gênero” sem o conhecimento e a intenção da pessoa?
Butler tem dificuldade em conjugar intencionalidade e performatividade. Recebe críticas
da maioria das feministas que temem justamente a perda da “agência”/atuação, pois com a
performatividade, se perde a noção de sujeito como um centro interior e organizador do
gênero. (Haraway, 2004).
63
Também se torna alvo fácil de críticas por parte de
psicanalistas, se em sua concepção de gênero predominar a idéia de intencionalidade.
Parece que Butler passa os quatorze anos seguintes a Problemas de gênero tendo
que esclarecer e eventualmente modificar sua definição de gênero como ato performativo.
A partir do lugar teórico que concede ao “corpo”, vejamos como enfrenta essa questão.
3.1.7 Corpo, sexo e gênero
Havíamos tomado como ponto de partida uma concepção tomada de empréstimo a
Merleau-Ponty: uma existência que se realiza no corpo, uma existência biológica que está
engrenada na existência humana, um conjunto corpo-existência que experiência e vivencia
os fatos. Nem corpo, nem existência seriam anteriores um ao outro. O modo de existência é
63
“Agency” é um termo de A.Giddens, (A Construção da sociedade, ed. Martins Fontes, SP, 1989 e “...diz
respeito a eventos dos quais um indivíduo é o perpetrador no sentido de que ele poderia, em qualquer fase de
uma dada seqüência de conduta, ter atuado de modo diferente.” Mas o trad. Álvaro Cabral utiliza “ação” ou
“atuação”, termos mais usados na língua portuguesa em momentos distintos do livro. (Essa nota é da
tradutora de Donna Haraway para o português. Sua preocupação é adequar o uso que Haraway faz de
“agency” ao nosso vocabulário, pautando-se pela tradução de Giddens feita por A. Cabral.)
adquirido, mas, ainda, o modo de existência, que se realiza no corpo inclui também a
sexualidade, lembrando que não se pode reduzir a existência ao corpo ou à sexualidade e
também não se pode reduzir a sexualidade à existência. Butler chegava à idéia de um
corpo-gênero.
Em Problemas de gênero, Butler afirma que não existe um “sexo” natural. Sexo e
gênero seriam uma única e mesma coisa. A opção por manter o termo “gênero” é para
realçar sua recusa de que a biologia seja o destino, isto é, que seja o determinante dos
modos de ser do gênero, limitando-os ao binarismo clássico. No entanto, Butler igualmente
recusa a idéia de um gênero como construção cultural porque não se pode definir o
mecanismo pelo qual gênero se constrói. Enquanto algumas feministas discutem acerca da
validade da teoria freudiana do Édipo para compreender a aquisição de gênero, Butler quer
investigar se existiria uma forma de determinismo social na construção de gênero. Ou
ainda, se existiriam leis que regulam as diferenças de gênero segundo eixos universais de
diferença sexual. Como falar em construção de gênero sem assumir um construtor prévio,
tanto no sentido lógico como ontológico? Butler quer evitar chegar à idéia de que, no lugar
da biologia, a cultura determina o destino. E quer igualmente recusar a noção de um agente
construtor, de um voluntarismo na construção do gênero, como condição lógica para que
exista um gênero que não seja determinado pela biologia. Se existem gêneros não-
inteligíveis, não é por determinação de um sujeito que escolhe o gênero.
A complexidade discursiva, formada pelas instituições religiosas, médicas, jurídicas
e escolares, seria responsável pela produção constante de corpos-homens e corpos-
mulheres. Butler, em Problemas de gênero, mostra-se bastante foucaultiana. A partir de
reiterações contínuas dos atos que atualizam as normas de gênero, os corpos adquirem sua
aparência de gênero. Pode-se dizer que existe então uma construção política de corpos-
gênero. Mas o que dizer da existência biológica? Butler manteria sua proximidade com
Merleau-Ponty?
Os leitores de Problemas de gênero consideraram que Butler teria banido “sexo” e
ignorado ou negado a materialidade do corpo, dando lugar exclusivo ao “gênero”, sendo
este performativo. Butler reconhece que se livrou de modo muito rápido do “sexo” e em
Cuerpos que importan se propõe a recuperar a materialidade do corpo através da pergunta
de como o sexo é construído enquanto norma. São as normas reguladoras, através de sua
repetição, que materializam o “sexo”, afirma ela, assim como materializam o corpo em
função de outras exigências normativas.
O corpo sofreria um processo de materialização pelo discurso. O discurso produz
tanto a materialidade do corpo como o gênero, mas a reiteração é necessária porque a
materialização nunca é completa. Além disso, o corpo não aceita totalmente aquilo que lhe
é imposto. O corpo repete as normas reguladoras de “sexo” e é na repetição que os
fenômenos do corpo, do gênero e do sexo se instalam, mas é igualmente através dela que
uma transformação pode ocorrer. Da mesma forma que em relação ao gênero, Butler
encontra a brecha para a transformação ou re-significação:
...os corpos nunca acatam inteiramente as normas mediante as quais se
impõe sua materialização(...)são as possibilidades de re-materialização
abertas por este processo as que marcam um espaço no qual a força da lei
reguladora pode voltar-se contra si mesma e produzir rearticulações que
coloquem em tela de juízo a força hegemônica destas mesmas leis
reguladoras. (2002, 18).
64
Mas o que é afinal o corpo? Um corpo materializado pelo discurso é um corpo
construído? A construção é um processo temporal que ocorre através da reiteração de
normas. Abrem-se brechas para construções que escapam à norma, aquilo que não pode
definir-se ou fixar-se completamente mediante o trabalho repetitivo da norma. Em relação
à teoria da construção social, Butler se posiciona: nem tudo é construído. Mas como falar
do que não é construído?
Comentando o conceito de sexo em Cuerpos que importan, Butler aponta o que
parece ser um paradoxo da construção social radical em relação ao sexo. Como essa teoria
não pode postular o sexo como algo dado sobre o qual se atua (sobre o qual se constrói o
gênero), uma vez que o “sexo” como um dado biológico já seria uma construção do
discurso (por exemplo, o da biologia), termina por supor o sexo como o “não-construído
(nesse caso, “sexo” não pode ser considerado como referência para construção de gênero).
Se ele é uma ficção, uma construção (quando se diz qualquer coisa acerca dele), o gênero
não está pressupondo um sexo sobre o qual atua (o que seria o construtivismo simples),
mas está produzindo um sexo erroneamente denominado “pré-discursivo”. Cai-se na idéia
de que tudo é linguagem, idéia que receberá imediatamente a pergunta quanto ao que
64
Marcel Mauss (1936) já admitira a possibilidade de o corpo não acatar inteiramente as normas de
materialização, mas sua perspectiva era a de uma anormalidade no aprendizado ou na reprodução das
técnicas corporais. Butler, no lugar de anormalidades, aponta para o diferente, “rearticulações” que
questionam a força hegemônica das próprias normas. Mauss, M., 1971.
acontece com o corpo. (2002, p.23). Haveria, então, uma recusa de que existam partes e
capacidades sexualmente diferenciadas, diferenças hormonais e cromossômicas que podem
ser admitidas sem referência à idéia de uma construção social? Butler tem uma resposta
que parece ser definitiva: “Admitir” o caráter inegável do “sexo” ou sua “materialidade”
sempre é admitir certa versão do “sexo”, certa formação de “materialidade”. O discurso
não funda o corpo, mas não há qualquer referência a um corpo puro que não seja ao mesmo
tempo uma “formação adicional a este corpo”, algum tipo de construção que, ao falar
“sobre”, acrescenta algo a este “sexo”, seja lá o que ele for.
65
Mais tarde, em Undoing
Gender, Butler comenta que, toda vez que começa a falar de corpo, termina por falar de
linguagem. O corpo não é redutível à linguagem, diz Butler, mas ela acrescenta: A
linguagem emerge do corpo. O corpo é aquilo em cima do qual a linguagem gagueja,
balbucia. O corpo tem seus próprios sinais, seus próprios significantes, de um modo que
permanecem em boa parte inconsciente”.(2004, p.198).
Há sempre uma dimensão corporal que não pode ser totalmente
representada, mesmo se ela funciona como a condição da linguagem e, ao
mesmo tempo, a condição que ativa a linguagem...Nós dizemos coisas, e
queremos dizer algo através do que dizemos, mas também fazemos algo
com nossa fala, e o que fazemos, como agimos sobre o outro com nossa
linguagem, não é o mesmo que o significado que nós conscientemente
transmitimos. É nesse sentido que as significações do corpo excedem as
intenções do sujeito.(2004, p.199).
O corpo excede as intenções do sujeito. Aí está a raiz para compreender as
possibilidades de transformação dos mandatos de gênero e das normas de produção de
corpos-homens e corpos-mulheres. O corpo não acata completamente as normas que impõe
sua materialização. Nesse sentido o corpo resiste tanto às intenções do sujeito quanto às
normas sociais. Butler finalmente parece ter descoberto a pulsão!
Admite que, até certo ponto, “...somos dirigidos por aquilo que não conhecemos e
não podemos conhecer e esta pulsão (Trieb) é precisamente o que não se reduz à biologia e
nem à cultura, mas sempre o lugar de sua densa convergência.” (2004, p.15). Butler abre
espaço para a transformação individual e, conseqüentemente, social, quando diz que as
normas não exercem um controle definitivo, ao menos não sempre. A psicanálise é
65
Uma posição moderada que admite que há partes do sexo que são construídas, e outras não, não escapa à
crítica de que este “não-construído” é demarcado pela construção, ou seja, é limitado em função de uma
prática significante que diz o que é e o que não é construído. Sempre se recorta algo para “ser” o corpo. Não
há como se livrar da linguagem.
invocada como uma teoria que mostra de que maneira a sexualidade falha em se conformar
às normas sociais pelas quais ela é regulada. A sexualidade se caracteriza pelo
deslocamento, excede a regulação, mas tampouco se pode dizer que ela é livre e selvagem.
Emerge como possibilidade improvisada dentro de um campo de constrições. Mesmo
citando a psicanálise, Butler se refere à concepção de sexualidade presente na
Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, destacando agora outro aspecto: “..num
certo sentido a sexualidade nos estabelece como fora de nós mesmos; somos motivados por
um alhures cujo significado total e cujo propósito não podemos definitivamente
estabelecer.” (2004, p.15).
O raciocínio de Butler mais uma vez se repete. Dentro de um campo de constrições,
onde existem normas para a atuação, que deve ser reiterada, há algo que pode ser diferente
e lograr uma transformação. Dessa vez, parece-me, Butler dirá que a resistência vem da
sexualidade, de um modo mais preciso, e não do corpo, de modo geral.
Uma solução parece ser proposta para conjugar intencionalidade e
performatividade. Butler parece querer dar uma resposta final às críticas feministas que
enxergam na teoria da performatividade um esvaziamento das possibilidades de lutas e
reivindicações de transformação da sociedade. Butler atribui a intenção a um “eu”, autor
das reivindicações políticas. Mas esse “eu” é compreendido como desfeito pelo próprio
gênero que julga ser, e espoliado pela própria sexualidade que julga possuir. Seu gênero
vem de uma fonte alheia a este “eu” e se dirige para além dele. É uma norma incorporada e
atuada, presente na sociedade, regulada por dispositivos que escapam a qualquer autoria do
“eu”, como mostra a teoria da performatividade. A sexualidade, por sua vez, é investida e
animada de algum outro lugar, mesmo se pertence ao próprio “eu”. Nesse sentido, ela pode
ser compreendida como resistência às normas sociais, mas não se pode dirigi-la. O corpo
não se deixa traduzir totalmente pela linguagem, somos dirigidos por algo pulsão cujo
significado nos escapa. No entanto, o fato de o gênero nos desfazer e a sexualidade nos
despossuir, isso não significa o fim das reivindicações políticas. Significa apenas, dirá
Butler, “..que quando alguém as faz, faz por muito mais do que por si próprio.” (2004, p.
16).
Escolha difícil essa de Butler. Não quer abandonar a militância, mas tampouco ser
ingênua em relação às descobertas psicanalíticas acerca da idéia de sermos dirigidos por
algo que não conhecemos e não podemos conhecer, a não ser parcialmente. A pulsão, que,
em suas palavras, não se reduz nem à biologia nem à cultura, não deve, entretanto, tornar-
se obstáculo para uma ação política em defesa do abjeto.
3.1.8 A pulsão subversiva
Ao invocar a psicanálise para trazer a sexualidade ao primeiro plano, no papel de
resistência às normas sociais, Butler nos convida a olhar mais de perto para o discurso da
psicanálise francesa acerca de corpo, sexo e gênero. Como teórica queer, certamente há
diferenças entre ela e a psicanálise. Não obstante, recorre com freqüência a conceitos
psicanalíticos, seja para incorporá-los, seja para questioná-los, como veremos no próximo
capítulo. No que diz respeito ao corpo, especificamente, há alguns pontos que podem ser
aqui levantados.
Butler vê a sexualidade como algo que se desloca e excede as normas sociais que a
regulam. Nem por isso ela é totalmente livre. Surge como improvisação num campo de
constrições. Num primeiro momento, pode-se dizer que sua visão é semelhante a do
psicanalista Charles Shepherdson, que tenta traduzir para a língua inglesa a especificidade
da visão do corpo e da sexualidade da psicanálise francesa, distante de uma concepção
dualista que divide o mundo em natureza e cultura, ou a sexualidade em sexo e gênero.
66
O
corpo é definido como uma relação entre significante e carne. A organização do corpo, que
não é dada no nascimento, mas que tem que ser construída, é alcançada graças a uma
determinada relação com a linguagem. Se o corpo não é natural, tampouco a sexualidade o
será. Falar em sexualidade não é falar em um corpo determinado anatomicamente e em
suas funções reprodutivas. Esta seria uma sexualidade “natural” que, num momento
posterior, poderia ser distorcida por convenções particulares de uma determinada cultura.
Aí, sim, caberia a distinção entre “sexo” e “gênero”, no sentido de “natureza” e “cultura”.
Em sua apresentação do corpo na psicanálise, Monique David-Ménard, fala de uma
primeira hipótese, freudiana, segundo a qual o corpo era concebido como “orgânico”,
“biológico”, sujeito às forças de representação: natureza e cultura colidiam.
67
Na formação
do sintoma histérico conversivo, uma idéia ou imagem (um pensamento inconsciente) era
convertida e produzia efeitos sobre o corpo de modo incomum. A partir dos Três Ensaios
66
Shepherdson, Vital Signs Nature, Culture, Psychoanalysis. New York and London: Routledge, 2000.
67
David-Ménard, M., A histeria entre Freud e Lacan. São Paulo: Escuta, 2000.
para uma Teoria Sexual (1905), o corpo passaria a ser compreendido de forma diferente:
um processo de organização libidinal que é contrária à inclinação da natureza e se constitui
de modo singular. Lacan mais tarde desenvolve essa organização libidinal do corpo através
do imaginário, simbólico e real. A “lei simbólica” que governa a pulsão sexual e o corpo,
segundo Shepherdson, não deve ser confundida com a “lei instituída” num acordo entre
sujeitos de uma determinada cultura. Se pode haver uma história da sexualidade, é porque
esta não se conforma aos mecanismos instintivos e ao objetivo da reprodução. No entanto,
a relação da sexualidade com o campo da representação não significa que a sexualidade é
um produto discursivo, construído de acordo com cada cultura. Sem o símbolo, não há
sujeito humano, mas, na relação com o símbolo, o sujeito não é o senhor, não é autônomo
em relação ao símbolo e, portanto, não pode ser agente de uma “construção de gênero”.
Shepherdson menciona aqui o que Butler chama de “campo de confinamento”. É a
“lei simbólica”. A sexualidade não é anatomia, não é construção social, mas acontece no
encontro com a linguagem. Gênero não é construção voluntária de um agente fazedor.
Justamente porque o sujeito não é o senhor na relação com o símbolo, para Butler, a
performatividade constituirá esse sujeito. A não ser pelos momentos em que Butler invoca
a ação política, sua concepção parece estar próxima à de Shepherdson.
Podemos indicar aqui que a concepção de pulsão sem dúvida implica algum grau de
essencialismo, na medida em que ela possui características universais. Por outro lado, em
sua relação com a linguagem, ela constrói uma história particular e singular. A pulsão
ocuparia aqui o lugar do sexo pré-discursivo sobre o qual algo se constrói? Aparentemente
não. Se tomarmos o conceito de real em Lacan, há algo do corpo que não se coloca
enquanto simbólico e nem anatômico. Nem todo corpo é uma construção simbólica. Nem
tudo é construção, mas tampouco se trata de uma essência doadora de sentido. Nos termos
de Butler, a sexualidade falha, excede as normas reguladoras, há uma dimensão do corpo
que não pode ser representada. É por isso que as identidades de gênero nunca serão
totalmente coerentes. Normalidade e patologia, se referidas à sexualidade, seriam
diferentes gradações da inteligibilidade de gênero? Não vamos responder a essa pergunta
agora. Ela nos guiará na segunda parte deste capítulo e também no capítulo seguinte.
Existe um ponto em que é importante manter a diferença entre Butler e a
psicanálise francesa. Em relação à pulsão, a psicanálise é radical. Não se trata de
construção. Mas, ainda que seu estatuto seja o de uma essência pela negatividade, ou seja,
de algo que não se indexa, algo que não se faz totalmente representar, algo que, em certa
medida, escapa ao campo do simbólico, em Butler parece haver uma tensão. Ela tem
sempre um último argumento: o não-construído é nomeado como “não-construído”. Ele
ganha um estatuto ontológico pela sua nomeação. Trata-se sempre de uma versão do sexo,
uma “formação adicional”. Em última instância, a psicanálise também é um discurso que
constrói seus objetos. Essa seria seguramente sua posição em Problemas de gênero e em
Cuerpos que importan. No entanto, em Undoing Gender, apesar de ela comentar que
sempre que fala de corpo escorrega e fala de linguagem, admite que as significações do
corpo excedem as intenções do sujeito. Como ela mesma indicou, há um paradoxo. O
construtivista radical acaba por nomear aquilo que não pode ser construído. É essa tensão
que, em Butler, diferentemente da psicanálise, permite aceitar as mudanças do corpo e a
transformação do simbólico, como veremos a seguir.
3.2 O abjeto como paradigma
Butler quer dar voz ao “abjeto”. É um objetivo político. E pode trazer
conseqüências para uma prática clínica. Com isso, ela mostrará que, na construção do
sujeito, não se trata de essencialismo nem de construtivismo. A questão principal dessa
discussão não é sobre se tudo se constrói discursivamente, mas é a questão da ocorrência,
ao realizar-se a construção de gênero, de exclusões, supressões e abjeções violentas. Por
isso é insuficiente sustentar que os sujeitos humanos são construções, pois a construção do
humano é uma operação diferencial que produz o mais ou menos “humano”, o inumano, o
humanamente inconcebível.” (Butler, 2002, p.27).
68
O que se inclui dentro das fronteiras
do termo “sexo” está determinado por aquilo que foi excluído. Sujeitos e abjetos se
constituem simultaneamente.
Mas Butler não indica que a matriz mediante a qual se formam sujeitos
(constituídos através de identificações lícitas) requer a produção simultânea de seres
abjetos, os não-sujeitos, que formam o exterior constitutivo do campo dos sujeitos. Ela
também afirma que é pela voz do “abjeto” que a reflexão sobre a produção do humano, as
normas que o regulam e a possibilidade de transformação social se fará ouvir.
Se questionarmos o caráter fixo da lei estruturalista que divide e
limita os “sexos” em virtude de sua diferenciação diádica dentro da
68
Tem-se a impressão de que os transgêneros, transexuais e outros, ao serem “patologizados” pela nosografia
psicanalítica e psiquiátrica, valeriam “menos” do ponto de vista do ser humano. Cf. debate entre Gallano e
psicanalista que propõe não haver necessidade de se interessar pelo queer ou pela produção intelectual
lésbica. Gallano, 2003.
matriz heterossexual, o faremos a partir das regiões exteriores dessa
fronteira (não desde uma “posição”, senão a partir das possibilidades
discursivas que oferece o exterior constitutivo das posições hegemônicas)
e esse questionamento constituirá o retorno devassador dos excluídos
desde o interior da lógica mesma do simbolismo heterossexual. (Butler,
2002, p. 33).
Para se tornar sujeito, assume-se uma norma corporal. Nessa assunção, há a questão
da identificação. Certas identificações satisfazem a normalização e outras não, elas estão
excluídas do campo das possibilidades. Se, de um lado, se discutem a constituição do
sujeito e a criação do campo do abjeto, pode-se discutir como se dão essas identificações.
Aí a psicanálise poderia ser útil, como vimos no capítulo 2, sobre as teorias de aquisição de
gênero. Mas vimos igualmente que chegamos a um certo impasse quanto a possibilidade de
transformação social, ou seja, da aceitação dos gêneros não-inteligíveis. Em Bleichmar,
Benjamin, Rubin ou Chodorow, vê-se que o freudismo explica a formação de gênero,
mantém uma relação hierárquica entre os gêneros já existentes, e faz referência somente a
dois gêneros coerentes, jogando os restantes na patologia. Mas talvez esse seja o ponto de
Butler: se discutirmos as construções de gênero mediante as identificações que pertencem
ao quadro do inteligível, dificilmente evitaremos a criação de categorias de normatividade,
saúde e patologia. Se, pelo contrário, tomarmos a discussão, partindo do pressuposto de
que todas as formas de identificação são legítimas, desfaz-se a idéia de que existam seres
abjetos.
Para que aumentar as possibilidades de gênero? Parece-me que ela atinge o cerne
de seus objetivos políticos, quando diz que não se trata de produzir um novo futuro para
gêneros que ainda não existem.
Os gêneros que tenho em mente existem há muito tempo, mas não
foram admitidos nos termos que governam a realidade. Trata-se de uma
questão de desenvolver no seio da lei e das teorias psiquiátrica, social e
literária, um novo léxico que legitime a complexidade de gênero com a
qual convivemos há muito tempo. Porque as normas que governam a
realidade não admitiram essas formas como reais, por necessidade nós as
denominaremos como “novas”. (Butler, 2004, p. 31).
Embrenhemo-nos um instante pelo argumento de Butler e tomemos os gêneros não-
inteligíveis como paradigma da constituição do sujeito e da sociedade. Na medida em que
consideramos algumas de suas questões, vemos que o que está em jogo é menos uma
questão de patologia do que de legitimidade do humano enquanto humano. Nesse
sentido, quando Shepherdson diz que a “lei” da diferença sexual é um imperativo e não
uma lei humana e que, portanto, não pode ser alterada, vê-se que está em pauta a definição
do que é humano
69
. (Shepherdson, 2000, p. 89). Mas eis as vozes levantadas por Butler:
O que é considerado uma pessoa? O que é considerado um
gênero coerente? O que qualifica (alguém) como cidadão? O mundo de
quem é legitimado como real? Subjetivamente, podemos perguntar:
Quem eu posso vir a ser num mundo em que os significados e os limites
do sujeito estão previamente dados? E o que acontece quando começo a
me tornar aquilo para o qual não há lugar neste regime da verdade?
(2004, p. 58).
Como disse ela, o imperativo heterossexual cria uma esfera de identificações
permitidas e, simultaneamente uma esfera do abjeto. O abjeto se traduz por aquilo que é
jogado fora, excluído, produzindo um campo de ação a partir do qual se estabelece a
diferença. Essa zona de exclusão delimita o campo do sujeito e o campo das identificações
temidas. Esse exterior que constitui o sujeito é também seu “interior”, enquanto uma
exclusão de si próprio que o funda.
70
Sem este repúdio o sujeito não poderia emergir. Isso é
o que Butler questionará.
3.2.1 Dois casos
Tomo dois exemplos de gênero não-inteligível citados por Butler. O primeiro é
um comentário acerca de Herculine Babin e o segundo é sobre a história de David Reimer,
conhecido como “o caso Joan/John”.
Herculine Babin é um hermafrodita do século XIX, vive como menina num
convento até que um dia, aos 20 anos, confessa a padres e, posteriormente a médicos, que
seus desejos e práticas eróticas se dirigem às meninas. A partir desse momento é obrigado
a assumir legalmente um sexo masculino, vestir-se como homem e a se afastar das meninas
com quem vivia, inclusive sua amante. Na seqüência desses acontecimentos, ele se suicida.
69
Essa discussão será retomada no próximo capítulo.
70
Aqui Butler está pensando no conceito de “foraclusão” de Lacan (Verwerfung), mas que toma de modo
muito particular, em função de sua leitura de Zizek. Verwerfung seria uma operação que funda o sujeito,
produzindo a socialização através do repúdio de um significante primário que produz o inconsciente (em
Freud) ou o registro do real (Lacan). A abjeção designaria uma condição excluída dentro dos termos da
socialização. O forcluído, na psicanálise tal como Butler o compreende a partir de Laplanche e Pontalis- é o
que não pode retornar ao campo do social sob o risco de provocar a ameaça de psicose, da dissolução do
próprio sujeito. Na questão da identificação ou não com os gêneros permitidos pela sociedade, existe na
fantasia do sujeito a percepção de uma ameaça a sua integridade caso entre em contato com a zona invivível
e inabitável da vida social, uma ameaça que se lhe aparece sob o temor de uma dissolução psicótica. (Butler,
2002, p. 20).
Foucault escreve uma introdução aos diários de Herculine em que aponta para o fato de
que um corpo hermafrodita ou intersexuado denuncia e rejeita implicitamente as
estratégias que regulam as categorias sexuais. (Foucault, apud Butler, 2003, p. 144). Não
há sexo inteligível. Os prazeres sentidos e experimentados por Herculine escapam à
inteligibilidade imposta pelos sexos unívocos na relação binária. Para Foucault, Herculine
viveria num mundo feliz de uma naõ-identidade. Ainda segundo Foucault, essa felicidade
teria sido possível graças à sua história específica, ou seja, à sua convivência quase
exclusiva com meninas e mulheres numa situação em que havia a sugestão de um amor
homossexual ao mesmo tempo estimulado e proibido. Foucault considera a sexualidade de
Herculine como fora de qualquer convenção e, portanto, livre das identidades. Uma
sexualidade múltipla, “antes” da lei ou, mesmo, “fora” da lei.
Butler se opõe a essa idéia de felicidade, quando afirma que Herculine sofre com a
injunção de ter de pertencer a um dos dois sexos. Herculine deposita em seu corpo a causa
do sofrimento. Um corpo anômalo, causa de seus desejos e aflições, fomentando confusões
de gênero e estimulando prazeres transgressivos. Mas Butler discorda. A causa do
sofrimento não estaria no corpo. Para ela, Herculine é “...signo de uma ambivalência
insolúvel, produzida pelo discurso jurídico sobre o sexo unívoco.” (Butler, 2003, p. 147).
Em seu caso, a ambivalência é fatal. A ênfase de Butler é na cobrança médica, religiosa,
jurídica e social de um gênero inteligível, enquanto Foucault enalteceria as possibilidades
de prazer por se estar fora das convenções. Herculine não poderia ser mulher ou homem
“por inteiro”, como idealizavam seus interlocutores da época. Então, não lhe restava o que
ser.
O segundo exemplo diz respeito a David Reimer.(Butler, 2004, p. 57-74) David foi
considerado inicialmente como menino por ocasião de seu nascimento, tendo nascido com
cromossomos XY (1966). Aos oito meses, fez uma cirurgia de fimose e, por erro médico,
teve grande parte de seu pênis queimado. Reimer foi levado a John Money, um dos
pioneiros dos estudos de gênero e que era favorável à realização de cirurgias de transexuais
e intersexos. Sua idéia era de que se uma criança sofresse uma cirurgia e iniciasse um
processo de socialização num gênero diferente daquele assinalado por ocasião de seu
nascimento, a criança se desenvolveria normalmente, adaptando-se perfeitamente ao outro
gênero, e seria feliz. Foi assim que David Reimer se transformou em Brenda. David teve os
testículos removidos, foi criado como menina e fez uma pequena cirurgia preparatória para
criar uma vagina num momento posterior, quando estivesse maior.
Brenda freqüentou o instituto de identidade de gênero de Money com alguma
periodicidade, para monitorar e cultivar sua adaptação ao sexo feminino. Mas, entre os oito
e os nove anos, Brenda desejou um revólver de brinquedo. E entre os nove e os onze anos,
desejou mais revólveres e caminhões. Além disso, gostava de urinar em pé. Em resumo,
começou a se dar conta de que não era uma menina. Deu-se início a uma “negociação” de
seu gênero. A equipe de Money lhe ofereceu estrógeno e uma vagina. Money lhe prometeu
que poderia inclusive ter filhos. Brenda recusou todas as ofertas. Junto a uma outra equipe
médica em um outro hospital, acreditou-se que houve um erro de reassinalamento de sexo.
Dessa vez, Brenda aceitou uma proposta de mudança. Aos 14 anos, passou a viver como
menino. Retirou os seios, tomou hormônios masculinos. Aos 15 anos, implantou um pênis,
o que lhe proporcionava um pouco de prazer. Não ejaculava, mas urinava em pé.
O caso de David levantou muitas questões. Uma delas foi sobre a teoria da
construção social, a favor da qual Money chegou a escrever. Enquanto David era Brenda,
John Money fez algumas publicações onde relatava o sucesso do caso. Para ele, o
desenvolvimento completo de Brenda como menina oferecia evidências concludentes de
que o gênero poderia ser construído, fosse em crianças normais, fosse em crianças nascidas
com órgãos sexuais não concluídos ou que padecessem de qualquer distúrbio ou alteração.
O caso de David servia para dizer que o feminino, tanto quanto o masculino podem ser
alterados, não têm significado fixo em termos culturais (que são maleáveis), não tem um
destino fixado biologicamente. Diante da euforia de Money, a partir do caso David, que
permitia a afirmação de que a biologia não é o destino, Butler faz questão de se posicionar,
afirmando que a cultura tampouco é o destino. Vimos, na primeira parte desse capítulo, o
quanto ela reforça a idéia de que na repetição dos atos, algo escapa. A cultura sozinha não
impõe o gênero.
Com o fracasso do caso, houve uma reação oposta às idéias defendidas por Money.
Foi possível defender exatamente o oposto da idéia de uma construção social de gênero.
Haveria um núcleo de gênero, uma essência, amarrada à anatomia. David teria muito
profundamente assentado no seu íntimo, um sentido de gênero experienciado a partir de
seus genitais originais, uma espécie de verdade interna e necessária, que nenhuma
construção social poderia demover. Nesse momento do caso David/Brenda, muitos
argumentos foram levantados a favor do essencialismo.
Butler traz, em associação a este caso, a situação dos seres ditos “intersexos”,
nascidos com genitais mistos ou incompletos. Eles, também pertencentes ao campo do
abjeto, trazem à tona questões para refletir sobre os gêneros não-inteligíveis. Os casos de
intersexo normalmente requerem uma cirurgia, de modo a refazer o corpo de acordo com a
imagem social pertencente a um determinado gênero. Em verdade, há sobre tudo isso,
segundo Butler, uma enorme controvérsia, dado que, de modo geral, é mais fácil construir
uma vagina provisória do que um pênis, o que leva os cirurgiões a se posicionarem a favor
dessa opção. Por sua vez, estatisticamente, a maioria dos intersexos tem o cromossomo Y,
o que fala a favor de serem criados como meninos. (Diamond, apud Butler, 2004).
Outra posição médica, e que vai de encontro às idéias de Butler, é de que não se
realize a cirurgia até a criança crescer e poder optar, ou não, por ela. Na opinião de Cheryl
Chase, fundadora da Intersexed Society of North América, a criança deve receber um
assinalamento de sexo com vistas a estabelecer uma identidade social estável, mas isso não
significa que se deva fazer uma cirurgia de modo coercitivo (muitas vezes, segundo ela,
nem os pais ficam sabendo que a cirurgia foi feita e muitas crianças, quando crescem,
também ficam na ignorância desse fato), apenas para adequar seu corpo às normas sociais
de gênero. De acordo com Chase (apud Butler, 2004, p. 63), uma criança, ao longo de seu
amadurecimento deve poder escolher mudar de gênero ou, ainda, escolher fazer um
tratamento hormonal ou uma intervenção cirúrgica. Mas estas decisões se justificariam
porque se baseiam no conhecimento de que existe escolha.
Encontramo-nos no avesso da transexualidade, nos casos de intersexo. Discute-se
aqui o direito de não fazer uma cirurgia de transformação ou intervenção sobre o aparelho
genital externo. Os partidários da intervenção pressupõem que gênero nasceria de uma
anatomia inteligível. Para eles, a forma como a anatomia aparece para o próprio sujeito e
para os que o olham seria a base da identidade social como homem ou mulher. No entanto,
diz Butler, as mutilações e as cicatrizes que restam dessa intervenção dificilmente
oferecem evidências daquilo que a cirurgia pretendia realizar. A necessidade de a medicina
intervir e fazer sua marca sob a forma de mutilação ou cicatriz nos corpos dos sujeitos
intersexos se dá pelo fato de esses corpos serem “inconcebíveis”? pergunta-se Butler.
(2004, p. 64) Afinal, a anatomia é um dos componentes dos gêneros não-inteligíveis,
talvez o mais difícil de aceitar como diferente.
Ao contar a história de David, ou mesmo ao comentar a história de Herculine
Babin, Butler insiste no fato de que não pretende com esses dados confirmar ou negar as
teorias da construção social ou do essencialismo de gênero. Seu objetivo é compreender a
estrutura que define, classifica, normatiza, formula etiologias e nosologias e tem poder de
decisão, estrutura na qual David e Herculine desenvolvem um discurso acerca de si
próprios, buscando referências num quadro de inteligibilidade pelo qual sua humanidade é
questionada ou afirmada. Herculine procura em seu corpo as causas de seu sofrimento,
enquanto David, ao se descrever, relata a percepção de que era “diferente do que devia
ser”, que não encontrava nada de “feminino” em si. (2004, p. 68).
Herculine e David sofreram com a necessidade de ter de ser de um sexo definido.
Em muitas entrevistas com Money e, posteriormente, com a equipe médica que lhe propôs
voltar ao sexo masculino, David era sistematicamente interrogado sobre seu “ser”, numa
tentativa de, através do discurso, estabelecer a verdade de seu gênero e, no caso particular
dele, também de seu sexo. Buscava-se compreender David dentro de um quadro de
inteligibilidade. É em relação a esse aspecto que Butler aponta para a violência da
imposição das normas que habitam a linguagem. As palavras pelas quais David se faz
entender pertencem a uma língua que preexiste a ele e se encontra saturada de normas que
limitam a maneira como alguém pode falar de si. Isso é algo de extremamente óbvio, mas
que não impede que seja problematizado. Enquanto era Brenda, David olhava-se no
espelho e via “...algo sem nome, excêntrico (esquisito, monstruoso (freakish), alguma
coisas entre as normas; não estaria essa coisa nesse momento em questão enquanto
humana, não seria ela um espectro do “freak” contra o qual e através do qual a própria
norma se instala?” (2004, p. 69). Podemos dizer que Brenda é o próprio abjeto ao olhar-se
no espelho, o abjeto que funda o sujeito, sujeito definido de acordo com as normas ser
homem inteligível ou ser mulher inteligível. Butler denuncia uma certa violência na
tentativa de imposição da inteligibilidade.“O desejo de determinar o sexo conclusivamente
e de determiná-lo como um sexo em vez de outro, parece assim advir da organização social
da reprodução sexual, através da construção de identidades e posições claras e inequívocas
dos corpos sexuados em relação uns aos outros.” É este desejo que vai alimentar a
demanda de alguns transexuais pela cirurgia, como discutiremos a seguir.
Tomemos o depoimento de um transexual sobre o desejo de estar em acordo com o
que a sociedade aceita:
Vitória: “Imagina eu no clube, toda mulher e, de repente, a tromba sai? Você está
entendendo? Por isso é necessário uma cirurgia. Você está com um corpão de mulher
lá....Então é isso. A cirurgia é para corrigir. Porque uma vagina não vai me fazer mais
mulher nem menos mulher.”
71
A partir dos casos acima e do que virá a seguir a discussão sobre a
transexualidade, Butler faz emergir o que me parece ser o seu eixo principal para a
discussão de gênero: a questão do reconhecimento. Para ela, o desejo de reconhecimento
está no cerne da questão por ser a condição de pertencimento à humanidade.
Reconhecimento é a experiência pela qual os seres se tornam socialmente viáveis. Levar o
desejo às últimas conseqüências supõe que haja reconhecimento da sociedade, proteção e
não violência ou exclusão. Ou ainda, acrescenta Butler, coerção, patologização e
enquadramento.(2004, p.2). Há um apelo em seu texto: “Se sou de um determinado
gênero, continuarei sendo vista como humana? O “humano” irá se expandir a ponto de me
incluir em sua categoria? Se eu desejo de uma certa maneira, serei apto para viver?” (Ibid.,
p.2). Gênero só tem sido reconhecível e inteligível segundo as normas de gênero que
incluem “corpos-homens” e “corpos-mulheres”.
72
Essa constatação está na base da grande
demanda por cirurgia dos transexuais e da preocupação dos médicos em definir, talvez
precocemente, os casos de intersexo.
Esse é o ponto de partida de Butler: a. necessidade de ser de um sexo. (como
condição para reconhecimento) A partir daqui surge uma discussão interessante, pois, se
para o/a transexual existe a necessidade de fazer cirurgia para ser mulher ou homem, para
alguns dos seres “abjetos”, dos “não-inteligíveis”, aparece a necessidade de ser
“transexual”. É essa questão que abordaremos a seguir: a identidade transexual, o
transexual verdadeiro. Derivam-se desta duas outras questões: a questão da transformação
corporal e a questão de quem é senhor, de quem julga e decide sobre a transexualidade.
3.2.2 A questão transexual
Em Extrasexo um ensaio sobre o transexualismo, Catherine Millot argumenta que
o se deve confundir travestis com transexuais. Sabemos que o transexual sempre existiu,
isto é, existiram seres em estado de não conformidade com seu sexo anatômico.
73
Millot
71
Apud Bento, B., 2006, p. 194.
72
As expressões são de Berenice Bento, socióloga que pesquisou transexuais em Goiânia e em Barcelona.
Bento,B., A reinvenção do corpo Sexualidade e gênero na experiência transexual, ed. Garamond, Rio de
Janeiro, 2006.
73
Cf. Bento, 2006.cap. “Corpo e História”.
cita Kraft-Ebbing como fonte de referências. O que é novo é a identidade transexual
definida pelo DSM-IV em 1980 e que permite a cirurgia. Um transexual atualmente se faz
em parceria com um endocrinologista e com um cirurgião. As características que definem
um “transexual verdadeiro” (e que vem sendo questionadas mesmo no campo da medicina)
tornaram-se normas a serem imitadas por outros transexuais, apenas com a intenção de se
encaixarem no estereótipo que lhes permitirá a realização da cirurgia. O “transexual
verdadeiro” tem ojeriza a seus genitais, não aceita seu corpo, não se masturba, é assexuado
e espera a cirurgia de transgenitalização para poder se relacionar sexualmente. Berenice
Bento, em seu estudo sociológico sobre a transexualidade, realizado em hospital, onde
conviveu com transexuais na fila da cirurgia, mas também com um grupo militante
transexual, procura desconstruir a identidade transexual, despatologizando a
transexualidade. Bento (2006, p.152) resume os tipos que encontrou sob o nome
“transexual”:
Ao longo do trabalho de campo, conheci histórias de vida de
transexuais que têm uma vida sexual ativa; que vivem com seus/suas
companheiro/as antes da cirurgia; de pessoas que fazem a cirurgia mas
não tiveram relações heterossexuais, pois se consideram lésbicas e gays.
Aproximei-me de outros que não acreditam que a cirurgia lhes
possibilitará ascender à masculinidade ou à feminilidade, pois defendem
que suas identidades de gênero não serão garantidas pela existência de
um pênis ou de uma vagina e que, portanto, a principal reivindicação é o
direto legal à identidade de gênero, independentemente da cirurgia.
Seu livro relata inúmeros casos onde são contraditos os “dogmas” da identidade
transexual. No entanto, na entrevista com as equipes médicas, que decidem sobre sua
inclusão, ou não, no processo que lhes permitirá prosseguir em sua reivindicação de um
novo sexo anatômico ou de uma nova identidade de gênero, muitos transexuais descobrem
ser necessário mentir
74
.
Millot também desconstrói a “identidade transexual”, mas com outro objetivo. Não
existiria uma universalidade na transexualidade.
O transexualismo é agora um fenômeno social, pode-se mesmo dizer
um sintoma da civilização. (...)é definido como transexual uma pessoa
74
De acordo com os entrevistados de Bento, o reconhecimento legal de um novo gênero quase sempre só é
feito mediante a comprovação da realização da cirurgia. Aqueles que não a desejam, mas, no entanto, já
tomaram hormônios e têm uma aparência exterior de sexo oposto ao do nascimento, têm de permanecer com
seus documentos originais, gerando uma série de constrangimentos, além da dificuldade de se inserir no
mercado de trabalho. Bento cita um caso de um transexual que entrou na justiça, mas têve negado seu pedido
de mudança de documentação por não ter realizado a cirurgia.
que solicita a modificação de seu corpo para conformá-lo às aparências
do sexo oposto, em nome da certeza de que sua identidade sexual
verdadeira é contrária ao sexo biológico. O transexualismo é, atualmente,
a conjunção de uma convicção, que nada deve a ninguém, e de um pedido
que se dirige ao outro. Esta solicitação é nova, pois supõe uma oferta que
a suscita, e que é feita pela ciência. (...) Neste sentido o transexualismo é
um fenômeno essencialmente moderno. (Millot, 1992, p. 17).
Tanto Millot como Bento estão de acordo quanto à inadequação do processo pelo
qual o/a candidato/a à cirurgia passa. Uma das obrigações é fazer um “treinamento” no
papel oposto para ser avaliado numa escala de feminilidade/masculinidade. Se estiver
conforme ao papel esperado, sua demanda de redefinição do sexo poderá ser considerada
legítima. Percebemos que a variação de gênero interna ao que seria a “categoria”
transexual também sofre uma imposição de normas. Deve se reduzir ao modelo médico.
Não há espaço para ser um transexual “não-inteligível”. O transexual oficial é uma ilusão
criada pelo próprio aparato médico-jurídico.
Mas existem perspectivas diferentes entre a sociologia queer” de Bento e a
psicanálise de Millot e Shepherdson. Para Bento, a cirurgia não é questionável a priori.
Para Millot e Shepherdson, ela é fonte de risco para alguns dos indivíduos que a
demandam, podendo levar a um surto psicótico. Millot aponta para a necessidade de um
diagnóstico relativo à posição do sujeito em relação à castração simbólica. Essa avaliação
permitiria vislumbrar as condições psíquicas de enfrentamento de uma cirurgia sem correr
o risco de um surto.
75
Embora o transexual de Millot seja diferente do transexual da
medicina oficial, existe a preocupação de se fazer um diagnóstico preciso. Já para Bento e
para Butler, muitos indivíduos que buscam a cirurgia o fazem pela necessidade de
conformação ao discurso predominante: ter de ser de um sexo. Para a sociedade, não se
pode ficar no limbo. Já para Millot, que desloca a discussão para a questão da psicose, não
existe limbo. Estar no limbo equivale a estar fora do sexo, estar na psicose.
Aqui começam a aparecer as diferenças mais agudas entre a teoria “queer” e a
psicanálise. Butler dirá que se deve poder ficar no limbo. Percebemos que tanto os
indivíduos que se encaixam nos casos que a medicina denomina de “intersexo”, como por
75
Contardo Calligaris, psicanalista lacaniano, admite que a cirurgia pode ser importante para a organização
subjetiva do transexual. Através dela procede-se a tentativa de constituição de uma “metáfora delirante no
real do corpo” (Calligaris,C. (1989) Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes
Médicas, p.38, apud Arán, 2006. O transexual, muito mais próximo do psicótico do que do neurótico na
clínica psicanalítica, recebe aí uma outra interpretação sobre o que Butler chama de desejo de
reconhecimento. A diferença é que a psicanálise o “patologiza”.
exemplo, os hermafroditas, quanto os transexuais, colocam em questão para a ciência, mas
não apenas para ela, o princípio de que um dimorfismo natural deveria ser estabelecido ou
mantido a qualquer custo. No entanto, vimos, com o caso David, que existe a opinião de
que a assinalação de um dos dois sexos não poderia de maneira nenhuma se dar de forma
coercitiva. Deveria ser garantida a liberdade de o indivíduo reivindicar uma identidade, por
exemplo através do assinalamento de um sexo estável, como querem alguns militantes do
movimento transexual, ou ainda, de simplesmente recusar qualquer identidade, como
insiste a teoria queer, já que a sexualidade não é facilmente indexada ou unificada através
de categorias.
Para Millot, o transexual, ao pensar que pertence ao sexo dos anjos, simplesmente
está fora do sexo, porque não existiria um sexo dos anjos. Há homens e há mulheres, não
há terceiro sexo. O que não se situa como homem e nem mulher está destinado ao abjeto e,
nesse caso, à patologia. Poderíamos ironicamente dizer que Millot sugere uma hierarquia
interna ao campo do abjeto. Os travestis não representariam grandes problemas para o
campo dos profissionais da saúde ou do sofrimento psíquico. Claro que, sem dúvida, seu
olhar é o de uma psicanalista preocupada em diminuir o sofrimento humano, mas este está
sendo concebido, nesse caso, como um possível surto. Segundo Millot, os travestis
brincam com o gênero através de roupas e de comportamentos miméticos, demonstrando o
caráter simbólico da identidade. Já os transexuais incorrem na possibilidade de um curto-
circuito da ordem simbólica, pois, ao buscarem uma cirurgia de redefinição do sexo, se
furtam à questão da “diferença sexual”. Na demanda dos transexuais participa a
comunidade médica, os cirurgiões e suas inovações tecnológicas que permitem enfrentar a
mudança anatômica, segundo Millot e Shepherdson, sem considerar a questão simbólica da
“diferença sexual”. Essa “diferença sexual” que será abordada no próximo capítulo diz
respeito a um imperativo, tanto quanto a morte. Não é uma invenção humana, dirá
Shepherdson, não é uma convenção e tampouco é sinônimo de gênero. (Shepherdson,
2000, p.89).
Mas o travesti também altera o corpo, como bem sabemos. Próteses de silicone nas
mamas, nas nádegas, nas maçãs do rosto, raspagem do pomo de Adão, injeções de
hormônio freqüentes para alteração da voz, diminuição dos pelos, enfim toda uma série de
procedimentos que fazem de sua relação com o corpo uma relação de transformação. Se a
crítica de Shepherdson é de que a relação do transexual com seu corpo é uma relação de
manipulação, não marcada pelo limite do real, um corpo que não põe limite ao domínio do
sujeito, então muitos travestis também se enquadrariam aí. Mas, para ele, na esteira de
Millot, a diferença entre transexuais e travestis parece ser decisiva e não apenas de grau.
Cross-dressing e outras instâncias da maleabilidade do sujeito
iluminam a mobilidade simbólica do gênero, e por vezes o transexual é
listado como exemplo radical dessa mobilidade. Mas talvez a questão do
corpo não possa ser situada no mesmo patamar que a questão da
roupagem, concebida como mais um “fashionable”, fenômeno
“simbólico”. Enquanto o travesti já “tem” uma identidade que pode ser
orquestrada e aproveitada, o transexual que preocupa Millot está no
limbo, esperando por uma operação que um dia tornará possível a
assunção de uma identidade que até então faltou. (Shepherdson, 2000, p.
111).
Shepherdson argumenta ainda, de acordo com Millot, que, enquanto o travesti tem
uma relação com o social, o transexual tem uma relação apenas consigo próprio. Na
medida em que seu corpo ainda não está constituído, ele tem reduzida a sua capacidade de
agir, é refém do próprio corpo. Certamente esse não é o caso de muitos dos entrevistados
de Bento, que namoram, trabalham, militam. Vemos aqui Shepherdson falando
genericamente do transexual, justamente o que Bento mostra que não existe.
3.2.3 Transformação do corpo e inteligibilidade
Se Shepherdson concebe a “diferença sexual” como um imperativo e, se essa
concepção, por sua vez, significa não admitr a transformação dos corpos, aí, sim,
poderemos dizer que a psicanálise não se aproximará de uma compreensão dos “gêneros
não-inteligíveis”. Para os transexuais e os transgêneros, o que inclui os travestis e os
intersexos, o corpo está no cerne da questão. A teoria “queer” parte da idéia de que o corpo
não é um fato estático e consumado, mas um processo ativo, algo que pode ser
transformado no sentido de que excede as normas ou até mesmo as questiona. Bento
admite como algo dado o fato de que o corpo é “...plástico, manipulável,
operável,transformável,...” (Bento, 2006, p.162). Isso seria um argumento para
percebermos que as realidades as quais parecíamos confinados não são eternas. Nos
transexuais existe um processo de construção dos corpos que buscam ajustar-se ao modelo
dimórfico. Mas existem também aqueles, como os drag kings, as drag queens e os
travestis, que jogam com as ambigüidades e reconstroem seus corpos com este objetivo.
76
(Bento, 2006, p. 161). Na perspectiva de gênero como ato performativo, homens e
mulheres também estão permanentemente se refazendo através do que falam, através de
seus gestos, através de seu vestuário e mesmo através de intervenções cirúrgicas em seus
corpos. Lembremos as cirurgias plásticas de embelezamento, ou mesmo cirurgias de
alargamento do pênis. Nesse sentido, como advogar a favor de gêneros verdadeiros versus
imitações? Ou radicalizando, como propõe Butler, humanos verdadeiros versus humanos
falsos?
Quando Millot critica a posição do advogado e do médico que decidem sobre a
cirurgia de redefinição do sexo, pergunta-se por que o analista também não se encontraria
nesse lugar de senhor, que legisla sobre a realidade humana. A diferença, dirá ela, é que o
analista oferece uma pergunta, enquanto a lei e a ciência oferecem uma resposta
antecipada. Não se pode oferecer uma resposta sem saber quem é o sujeito. A medicina e a
lei oferecem resposta a um sujeito genérico, enquanto o analista parte de sua ignorância
para escutá-lo e tentar apreender quem está falando. Normalmente chega-se à idéia de que
quem fala, nesse caso, fala de um lugar de certeza de sua posição transexual, certeza da
inadequação entre o que “é” e o seu sexo anatômico. Mas o que o analista oferece,
diferentemente da lei e da ciência, é a dúvida inerente à formulação simbólica da
“diferença sexual”. Onde não há dúvida, há indício de uma psicose. A análise propõe um
ponto de abertura para que o transexual questione a sua intenção.
Bento acredita que há um equívoco em se colocar a autoridade do lado da medicina
e da psicanálise quando se trata de decidir sobre autorizar ou não a cirurgia. Segundo ela,
“...supõe-se que a fonte dos conflitos está no sujeito e não nas normas de gênero.”( Bento,
2006, p. 229). Alguns profissionais que lidam com a transexualidade defendem o auto-
diagnóstico como fator preponderante na decisão acerca da cirurgia.
77
Butler acrescentaria
que um campo social que admitisse gêneros não-inteligíveis permitiria uma menor adesão
76
Bento faz uma interessante apresentação daquilo que pode ser concebido como transformação do corpo:
“...corpos pré-operados, pós-operados, hormonizados, depilados, retocados, siliconados, maquiados. Corpos
inconclusos, desfeitos e refeitos, arquivos vivos de histórias de exclusão.” Diferentemente dos transexuais, os
drag kings e as drag queens não reivindicam uma identidade de gênero, mas a legitimidade dos trânsitos
entre os gêneros, inclusive corporais. O corpo é usado como manifesto para embaralhar as fronteiras entre os
gêneros, diz Bento.(Bento, 2006).
77
Bento relata discussão entre a psicanalista Collete Chilland, invocando um elevado índice de
arrependimento pós-cirúrgico e o cientista Jos Megens, relatando a satisfação de inúmeros pacientes com a
mudança de sexo. Ele se posiciona a favor do autodiagnóstico, enquanto ela considera que muitos não tem
condições de realizá-lo.
à oferta de cirurgias. Não seria necessário conformar-se ao modelo dimórfico, não seria
preciso “ter” ou “forjar” uma certeza. Se a psicanálise oferece uma abertura para
questionar várias intenções, não apenas a da demanda pela cirurgia, por que então a
preocupação de Millot? Alterar o órgão sexual parece estar profundamente vinculado à
recusa da “diferença sexual”.
78
A manipulação do corpo na transexualidade, segundo Millot, corresponde à
realização de uma fantasia de poder ilimitado por parte dos médicos e dos juristas, um
poder de legislar sobre as próprias leis da realidade humana, que diriam respeito aos
imperativos da morte e da diferença sexual.(Millot, 1993). Busca-se a abolição das
fronteiras do real. Mas, pergunta-se Butler, o que é real e o que “precisa” ser real? Como as
normas que governam as noções contemporâneas de realidade podem ser questionadas e
como novos modos de realidade podem ser instituídos? (Butler, 2004). São essas perguntas
que norteiam Butler em sua reflexão sobre os gêneros não-inteligíveis e sobre a
possibilidade de transformação do campo social de modo a acolhê-los. Veremos como leva
adiante essa discussão no capitulo seguinte.
Não posso, nesse momento, deixar de pensar que parece haver um certo
conservadorismo na psicanálise. Será que a mudança de corpo hoje ocupa o mesmo lugar
que a sexualidade ocupou outrora, ou seja, restrita a certos padrões morais, religiosos e,
mesmo, de saúde mental
79
? Tempos se passaram desde que Millot publicou Extrasexo
(1993). Seu argumento ainda é válido, no sentido de que determinados indivíduos podem
não se beneficiar da cirurgia, na medida em que podem surtar. Mas seu livro teve grande
efeito sobre a comunidade psicanalítica em termos de associação da figura do transexual
com a patologia. E sua postura em relação à transformação do corpo pode ser interpretada
como conservadora.
A exposição dos casos de Herculine Babin e David Reimer e da discussão sobre
transexualidade teve como intuito mostrar que o “abjeto” não apenas questiona
permanentemente as normas sociais, mas é também um recurso crítico na luta para
rearticular os termos de inteligibilidade do gênero. Butler faz uma proposta política:
78
Shepherdson e Millot, assim como os transexuais que demandam a cirurgia, estariam calcando a “diferença
sexual” sobre a diferença dos órgãos sexuais. A anatomia aqui ocupa um espaço preponderante. Ainda que
esteja em jogo a relação do sujeito com a castração simbólica, sendo isto o que de fato permite a realização
do diagnóstico por Millot, o que está sendo de fato autorizado, ou não, é a realização de uma intervenção
sobre o órgão sexual .Em última instância, órgão e significante estão sendo negociados no mesmo patamar.
Essa discussão será retomada no próximo capítulo.
79
Lembremos, por exemplo, do enquadramento da homossexualidade como perversão.
Ainda que os discursos políticos que mobilizam as categorias de
identidade tendam a cultivar as identificações em favor de um objetivo
político, pode ocorrer que a persistência da desidentificação seja
igualmente essencial para a rearticulação da competência
democrática.(...) Tais desidentificações coletivas podem facilitar uma re-
conceitualização de quais são os corpos que importam e que corpos
haverão de surgir ainda como matéria crítica de interesse. (2002, p. 21).
A sugestão de Butler vai num sentido: manter-se como “não-inteligível”, na medida
em que não se está de acordo com as normas sociais estabelecidas. Para desenvolver uma
relação crítica a essas normas é preciso distanciar-se delas, suspender a necessidade que se
tem delas, dispensar temporariamente o reconhecimento, uma espécie de abandono do
“humano”. Seria essa a condição para refazer o “humano”. O que sustenta essa proposta,
diz Butler, é o fato de que “..embora possamos sentir que sem algum reconhecimento não
se pode viver, também sentimos que os termos pelos quais somos reconhecidos tornam a
vida invivível”. (Butler, 2004). Isso pode ser entendido como uma recusa a aproximar-se
daquilo que é tido como “normal”, como, por exemplo, casar de forma legal como casam
os heterossexuais (no caso dos homossexuais) ou, então, necessariamente fazer a cirurgia
de redefinição do sexo, quando de repente se poderia permanecer numa categoria inter
gêneros.
De novo aparece um modo de ser que implica em intencionalidade: manter-se como
não-inteligível. Butler não escapa da oscilação entre uma posição que gostaria que
estivesse próxima à psicanálise, quando invoca a pulsão para falar dos corpos e, uma
militância política que requer algum grau de intencionalidade. Seria realmente o ato
voluntário condição para uma transformação social?
4. Críticas de Butler a Lacan e a Lévi-Strauss
Até aqui acompanhamos Butler em sua proposta de conceber “gênero” como um
conceito que pode dar conta do abjeto, do conjunto de seres definidos como “gêneros não-
inteligíveis”. Partiu da noção de gênero como “ato performativo”, que remete a uma
desestabilização da identidade, na medida em que revela a identidade como ilusão.
Entretanto, ao trazer questões acerca da nosografia da psicanálise lacaniana relativa aos
transexuais, viu a necessidade de questionar o significado dos termos “simbólico” e
“diferença sexual” nesta teoria. A transformação do corpo, na transexualidade, colocaria
em discussão as “leis da realidade humana”, enfrentaria o imperativo da diferença sexual e
correria o risco de abolir as fronteiras do real, segundo Shepherdson. A transformação do
corpo colocaria igualmente em xeque a noção de simbólico, concebido como um conjunto
de estruturas lingüísticas que são irredutíveis às formas sociais que a linguagem toma. O
simbólico, através do Édipo e da castração, incide sobre a constituição da identidade
sexual, sobre a realização do ser como sexuado, mas, por conta do imperativo da
“diferença sexual”, só permite que os seres se tornem sujeitos ou como homens, ou como
mulheres.
Veremos como Butler responde a essas questões, mas vamos somar às
preocupações de Shepherdson, as críticas de Zizek e de Copjec aos questionamentos
butlerianos, de modo a organizar suas repostas a esses autores.
4.1 Os passos da resistência
Na visão de Slavoj Zizek, a proposta de transformação social que Butler faz, é a
proposta da velha esquerda, que se pergunta como é possível não apenas resistir, mas
minar e deslocar a rede sócio-simbólica existente que predetermina o espaço no qual o
sujeito existe.
80
Butler (1997) criticaria a possibilidade de resistência a partir de Lacan,
que pareceria estar condenada à derrota. Lacan reduziria a resistência ao desconhecimento
imaginário da estrutura simbólica. Essa resistência depende da rede simbólica e, em sua
80
Zizek faz uma crítica da idéia de resistência e do uso do conceito de ato por Butler, apresentados em
The Psychic Life of Power (1997) principalmente no que se refere ao seu confronto com o simbólico de
Lacan. Zizek,S.,The Ticklish Subject, London: Verso, 1999.
oposição, nada faz senão afirmá-la, tornando-se incapaz de rearticular seus termos. De
acordo com Zizek, Butler confunde dois usos do temo “resistência”: seu uso na clínica e
seu uso de maneira sócio-crítica. Quando Lacan efetivamente diz que a resistência é
“imaginária”, ele tem em mente o desconhecimento da rede simbólica que nos determina.
Enquanto a resistência imaginária se limita a “...falsas transgressões que reafirmam o status
quo simbólico e até servem como condição positiva de seu funcionamento..”, é de fato um
“ato” apropriado, segundo Zizek, que atingirá o objetivo almejado. A rearticulação do
simbólico seria, sim, possível, não pela resistência, mas “...pela intervenção do Real de um
ato”.(1999, p. 262). Trata-se do “ato ético”, do ato enquanto irredutível ao ato de fala, que,
diferentemente do primeiro, tira seu poder performativo das regras e normas simbólicas
pré-estabelecidas em que se baseia. Já o “ato ético” implica em “...correr o risco de uma
suspensão momentânea do grande Outro, da rede sócio-simbólica que garante a identidade
do sujeito; um ato autêntico ocorre quando o sujeito arrisca um gesto que deixa de ser
coberto pelo grande Outro.” (Ibid., p.264).
Butler veria fixidez no simbólico de Lacan, o que dificultaria a transformação
social, e oporia a esse simbólico uma outra concepção, segundo Zizek, baseada em Hegel.
Nessa outra perspectiva, a ordem simbólica existe, é reproduzida apenas na medida em que
sujeitos reconhecem a si próprios nela, através de gestos performativos repetidos e, de
novo, assumem seus lugares nela. Isso abre a possibilidade de mudança do contorno
simbólico de nossa existência sócio-simbólica por meio de encenações performativas as
paródias, que deslocam os pressupostos e as coordenadas fixadas de antemão. Butler
rejeitaria, então, o simbólico a priori lacaniano enquanto uma nova versão da estrutura
transcendental, pois não deixa nenhum espaço para o deslocamento retroativo dessas
condições pressupostas.
Uma observação precisa ser feita já neste momento. Percebe-se aqui, uma leitura
parcial de Zizek, que se une a outras tantas críticas feitas a Butler, enxergando unicamente
na paródia, a condição de mudança. A paródia, em si, talvez possa até ser encaixada no que
Zizek chamou de “falsa transgressão” embora isso também mereça uma reflexão mais
cuidadosa. No entanto, tive a preocupação em mostrar, no capítulo anterior, que existem
duas vias de transformação apontadas por Butler e, uma delas, a performatividade, separa-
se da paródia justamente por não se qualificar como voluntária ou intencional. Na repetição
encontra-se a brecha para o inesperado.
Segundo Zizek, Butler confundiria, ou melhor, fundiria seu ato performativo com o
“ato” de Lacan, o que seria um equívoco. A dimensão radical do “ato” não seria redutível à
reconfiguração performativa da condição simbólica de alguém através de deslocamentos
repetitivos, como quereria Butler. Estes últimos são internos ao campo hegemônico,
mudam os termos desse campo contra ele próprio, mas isso difere de uma reconfiguração
do campo inteiro, proporcionado pelo ato ético.
É a própria Butler quem termina numa posição de permitir
“reconfigurações” marginais do discurso predominante permanecendo
restrita à posição de “transgressões inerentes”, que necessitam do grande
Outro como ponto de referência com a aparência de um discurso
predominante que pode apenas marginalmente ser deslocado ou
transgredido.(Zizek, 1999, p.264).
Nesse sentido, segundo Zizek, ela superestimaria o potencial subversivo das
reconfigurações performativas, acreditando que elas atingiriam e atrapalhariam o
funcionamento do grande Outro. Por outro lado, ela não perceberia a real capacidade de
atingir o grande Outro, a ordem simbólica hegemônica, através do “ato ético”.
Zizek parece ser radical no sentido de invalidar o pressuposto butleriano de que o
ato performativo, seja na sua vertente de paródia, seja na sua vertente de repetição
subversiva que permite o aparecimento de “algo” que escapa às normas de gênero, possa
gerar transformação social. A proposta de Butler manteria o sujeito numa resistência
imaginária, sem alcançar um verdadeiro deslocamento da rede sócio-simbólica. O “ato
ético”, que Zizek opõe ao “ato performativo”, este sim, levaria a mudanças sociais e a
mudanças do “simbólico”.
81
A recusa de Butler a um a priori do simbólico lacaniano, enquanto uma nova
versão da estrutura transcendental, é o que convém examinarmos a partir de agora, na
medida em que essa recusa vai atingir igualmente a concepção de diferença sexual. Vamos
inverter a ordem e nos deter primeiramente sobre seu embate com a “diferença sexual” e,
num segundo momento, com o conceito de “simbólico”.
81
Não é nosso intuito aqui aprofundar essa discussão. Ela exigiria uma investigação do conceito de “ato” em
Lacan, assim como uma reflexão acerca de suas idéias sobre a ética. A comparação entre as duas noções de
ato, a de Butler e a de Lacan é, com certeza, um caminho interessante para ser traçado. Nesse momento,
infelizmente, isso foge ao nosso escopo. Vamos nos limitar ao questionamento de Butler acerca dos termos
“simbólico” e “diferença sexual”.
A preocupação de Butler diz respeito, o tempo todo, à possibilidade de incluir os
gêneros não-inteligíveis de maneira não-patológica dentro do campo do humano. É a partir
dessa perspectiva que ela avalia o modo como estes conceitos lacanianos aparecem e são
utilizados, seja na clínica, seja na mídia, seja no campo jurídico, através dos pareceres que
auxiliarão juízes em suas decisões sobre adoção, casamento, mudança de documentação,
autorização para cirurgia, etc.
Que visão Butler tem da “diferença sexual”? Uma das formas de sabermos isso é
analisando as críticas que lhe fizeram e ver como ela as respondeu. É nas críticas que ela
enxerga essa “nova versão da estrutura transcendental”, a qual Zizek se referiu, e que ela
recusará.
No caso da “diferença sexual”, Problemas de gênero serviu igualmente como mote
para as críticas que Butler recebeu. Butler admite que sua compreensão deste conceito
talvez tenha sido equivocada, mas, ainda assim, em Undoing gender permanece recusando
o caráter transcendental deste conceito.
Segundo Zizek (1999), Butler não teria compreendido que, para Lacan, a “diferença
sexual” nunca pode ser propriamente simbolizada, transposta ou traduzida numa norma
simbólica que fixa a identidade sexual do sujeito. Butler tornaria equivalente à “diferença
sexual” a norma simbólica heterossexual determinando o que é ser um “homem” e o que é
ser uma “mulher”. Zizek se refere aqui aos textos de Butler até 1997. A “diferença sexual”,
diz Zizek, é real, é impossível de simbolizar, de formular como uma norma simbólica.
Em outras palavras, não é que existam homossexuais, fetichistas, e
outros perversos no lugar do fato normativo da diferença sexual ou seja,
como prova da falência do fato normativo da diferença sexual; não é que
a diferença sexual seja o derradeiro ponto de referência no qual ancora o
contingente flutuante da sexualidade; é, pelo contrário, em razão do
“gap” que para sempre persiste entre o real da diferença sexual e
determinadas formas de normas heterossexuais simbólicas, que temos a
multidão de formas “perversas” da sexualidade. (Zizek, 1999, p.273).
Essa é uma crítica direta a Problemas de gênero, pois Butler questionaria o conceito de
diferença sexual a partir da existência de gêneros não-inteligíveis. As formas “perversas”
da sexualidade, de acordo com Zizek, seriam testemunhas da impossibilidade de
simbolizar a “diferença sexual”. Ela seria a própria razão da existência dos gêneros não-
inteligíveis.
A pergunta que urge responder aqui é: o que é a “diferença sexual” para Lacan?
Resposta nada simples, é essa justamente uma das preocupações de Butler ou seja,
desvendar o mistério em torno desse conceito, de modo a entender que espaços ele cria
para as diferentes identidades sexuais.
Sheperdson (2000) dirá que quando se tenta compreender conceitos fundamentais
da psicanálise, como corpo, pulsão, diferença sexual e ordem simbólica, numa chave de
leitura que contempla a alternativa entre essencialismo biológico e construção social,
perdeu-se a especificidade da psicanálise. Na opinião de Shepherdson, parte da
comunidade anglo-americana e seria tentador incluir Butler nesse conjunto -
compreendeu de forma equivocada a “diferença sexual”. Este conceito não pode ser
traduzido por “sexo” nem por “gênero”. Situar a “diferença sexual” como fenômeno
simbólico
82
(formação histórica contingente que permite falar de uma construção simbólica
de “gênero”) ou como um tipo de essencialismo biológico (diferença anatômica a-histórica
que permite até deduzir um ideal fixo de masculinidade ou feminilidade) não faz jus ao
termo em questão. Shepherdson acredita que o debate em que natureza e cultura se opõem
distorce a psicanálise. Existiria uma especificidade teórica da psicanálise em relação a
modelos biológicos e sócio-históricos. Nesse sentido, essencialismo e construtivismo
social seriam polos de uma grade de interpretação inadequada para decifrar o conceito de
“diferença sexual”. Freud inventou a sexualidade como um problema exclusivamente
humano. Isso diz respeito a uma concepção de corpo como organização libidinal e, em
certa medida, submetida à “ordem simbólica”. A sexualidade acontece no encontro com a
linguagem. “Diferença sexual”, portanto, é um conceito que diz respeito à linguagem, mas
não como produto discursivo de cada cultura em particular. Shepherdson se refere à
própria relação entre o ser e a linguagem, ou seja, aquilo por meio do qual ele se torna um
sujeito humano.
Para Shepherdson, então, a “diferença sexual é um imperativo e, como a morte, não
pode ser concebida como uma instituição humana, como as muitas construções sociais
inventadas por determinadas sociedades ou culturas. (2000, p. 91). Shepherdson se apega à
idéia de que, ao deslocarmos a “diferença sexual” desta posição, argumentaríamos a favor
de uma concepção humanista, até narcisista, dirá ele, que coloca o homem como fazedor
de todas as coisas ou seja, de seu sexo e de seu gênero inclusive.
Ora, ainda que Butler possa ser associada aos construtivistas radicais, acredito que
pudemos mostrar que sua posição é bastante mais complexa. Mesmo em Problemas de
82
Não se deve confundir “fenômeno simbólico”, que está explicado entre parêntesis, com “ordem
simbólica”, conceito lacaniano que veremos a seguir.
gênero ou em Cuerpos que importan, quando ainda não se havia aproximado da noção de
pulsão, já havia no conceito de performatividade algo que escapava à idéia do “agente
fazedor de todas as coisas”. Mas não nos antecipemos. Vejamos a terceira crítica.
Joan Copjec, em Sex and the Euthanasia of Reason (1994)
83
, questiona alguns
pressupostos de Butler a partir de Problemas de gênero. Curiosamente, Copjec tem
semelhanças com Butler. É americana, embora neta de checos, é professora de literatura e
estuda psicanálise, é colega de Ernesto Laclau e Slavoj Zizek, com quem tem afinidades
intelectuais. Se Zizek colocou a “diferença sexual” como impossível de simbolizar e,
Shepherdson a colocou como um imperativo, Copjec vai mais longe e compara
diretamente a “diferença sexual” de Lacan - enquanto posição masculina e posição
feminina compreendidas como dois modos de a linguagem e a razão falharem - aos dois
modos pelos quais a razão cai em contradição consigo mesma, indicadas por Kant na
distinção entre a antinomia matemática e a antinomia dinâmica, em sua Crítica da razão
pura.
84
“Kant foi o primeiro a teorizar, através dessa distinção, a diferença que funda a
divisão psicanalítica de todos os sujeitos em duas classes mutuamente excludentes:
masculina e feminina.” (Copjec, 1994, p. 213).
Copjec fornece a sua definição de “diferença sexual” a partir de Lacan. No
Seminário XX Mais, ainda, Lacan dirá que nosso ser sexuado não é um fenômeno
biológico, não passa através do corpo, mas “resulta das demandas lógicas do discurso
(speech)”. (Lacan, apud Copjec, p. 213). Essas demandas lógicas levam a um impasse, que
é o fato de ser impossível “dizer tudo”. As palavras falham e falham de dois modos
diferentes: o modo masculino e o modo feminino.
O que permite a comparação entre as antinomias da razão e as “fórmulas da
sexuação” de Lacan, que explicitam a “diferença sexual”, é o cerne das críticas dirigidas
por Copjec a Butler. Mas, antes de expor a relação entre sexo e linguagem, que Copjec
adverte como fundamental em sua diferença com Butler, consideremos que, ao invocar as
antinomias kantianas que não vamos discutir aqui para tratar da “diferença sexual”,
Copjec desloca a discussão sobre a “diferença sexual” para um plano, o do transcendental,
83
Copjec, J., Sex and the Euthanasia of Reason. In: Read my desire Lacan against the Historicists.
Cambridge MA, London: MIT Press , 1994.
84
Antinomia significa um conflito da razão consigo mesma, diante de duas proposições contraditórias, cada
uma podendo ser demonstrada separadamente e sendo coerente consigo mesma. Japiassú H.; Marcondes, D.,
Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, p.21.
que mais tarde Butler irá questionar.
85
Convém, então, acompanharmos as críticas de
Copjec, tendo como pano de fundo uma perspectiva transcendental, ou seja, uma
perspectiva que considera as condições de possibilidade de todo conhecimento, que
examina as condições de possibilidade da experiência, já que o mundo da experiência
dependeria essencialmente das possibilidades ou usos a priori do conhecimento. Nas
palavras de Kant: “Chamo transcendental todo conhecimento que, em geral, se ocupa
menos dos objetos do que de nossos conceitos a priori dos objetos.” (Kant, apud Japiassu;
Marcondes, p. 237).
Copjec parte da idéia de que o intuito primordial de Butler é desfazer a
“estabilidade do sexo binário”, na medida em que ela o vê como efeito de práticas que
buscam instalar a heterossexualidade compulsória. Mas o que é o sexo? Butler assume que
ele é construído discursivamente ou culturalmente, pensa Copjec, que talvez desconheça as
referências de Butler a Merleau-Ponty. Em Lacan, diferentemente, sexo seria produzido
pela falha da significação. Justamente onde a prática discursiva falha é que o sexo vem a
ser.
A não-estabilidade do sexo, como Butler quer pensar, a incompletude do sexo, não
pode ser derivada do fato de que os termos da diferença sexual são instáveis (por conta de
diferentes concepções culturais de mulher, por exemplo), ou de que as significações estão
sempre em processo. Assumir, como Butler, que não se pode dizer o que é sexo como no
argumento construtivista, não significa que se possa passar do nível do conceito ao nível
do ser: não é possível estabelecer a necessidade da existência com base nas possibilidades
criadas pelos conceitos. Copjec critica aqui a possibilidade de Butler se referir a seres não
situados como masculinos ou femininos.
Quando falamos da falha da linguagem com respeito ao sexo, continua Copjec, não
estamos falando da sua insuficiência com relação a um objeto pré-discursivo, mas da
contradição em que entra consigo própria.
86
Sexo coincide com essa falha/fracasso
85
Butler, J., Competing Universalities. In: Contingency, Hegemony, Universality , London, Verso, 2000.
86
A regra da linguagem, segundo Copjec, impõe que existe um processo de significação interminável, pois
sempre haverá um outro significante para determinar retroativamente o significado de tudo o que veio antes,
mas também requer a pressuposição de “todos os outros significantes”, a totalidade que é necessária para o
significado de um. A completude do sistema de significantes é igualmente demandada e evitada pela mesma
regra da linguagem. “Sem a totalidade do sistema de significantes, não pode haver determinação de
significado, mas essa mesma totalidade impedirá a sucessiva consideração de significantes que a regra
exige”.(1994, p. 205).
(failure), essa contradição inevitável. Sexo é então a impossibilidade de completar
significado e não um significado que é incompleto, instável. Sexo é “a incompletude
estrutural da linguagem, e não que o sexo seja em si mesmo incompleto”. (1994, p. 206)
O argumento kantiano/psicanalítico quer desubstancializar o sexo. Sexo não é uma
entidade incompleta, mas uma entidade totalmente vazia à qual nenhum predicado pode
ser atribuído. Copjec traça mais uma vez a distinção entre Butler, de um lado, e a
psicanálise lacaniana e Kant, de outro:
Vinculando sexo ao significante, ao processo de significação,
Butler faz da nossa sexualidade algo que se comunica a outros. Enquanto
o fato de que a comunicação, sendo um processo e, desta forma,
contínuo, impede uma completa revelação do conhecimento num
determinado momento, um conhecimento adicional, ainda assim, está
colocado dentro do campo das possibilidades. Quando, pelo contrário,
sexo é desvinculado do significante, ele se torna aquilo que não se
comunica, aquilo que marca o sujeito como não podendo ser conhecido.
Dizer que o sujeito é sexuado é dizer que não é mais possível ter qualquer
conhecimento acerca dele ou dela. Sexo não tem outra função senão
limitar a razão, remover o sujeito do campo da experiência possível ou do
conhecimento puro. (Copjec, 1994, p. 207).
Se sexo é aquilo que não pode ser dito, por que aquilo que não pode ser dito é
sexo?, nos perguntamos. E ainda, por que as duas maneiras de não se poder dizer tudo
admitindo que seriam de fato duas são denominadas de “modo masculino” e “modo
feminino”?
Invocando Freud, Copjec busca responder a essas questões que pairam, ou seja, a
de por que estabelecer o sexo como limite da razão, por que instalar o sexo como
incompletude estrutural da linguagem, ou, ainda, por que definir o sexo como aquilo que
não se comunica. Freud define que sexo deve ser compreendido no terreno das pulsões. E
Copjec continua: sexo é definido pela lei das pulsões, não é suscetível às manipulações da
cultura. Não há plasticidade no sexo, sexo não se move. Esse sexo, assim colocado como
universal, por que não é dito afinal? Continuando com Freud, trata-se de algo não
lembrado, não experienciado. É o impasse do conflito da linguagem consigo própria que
produz a experiência do não experienciável, do que não pode ser lembrado ou falado. É
este impasse que necessita repetição. Repetimos porque não podemos lembrar. (p.211)
Sexo, definido como essa repetição daquilo que não se lembra e do qual também não se
teve experiência, poderia ser comparado ao que se revela no fracasso da repetição no ato
performativo, se pergunta Copjec? Não, diz ela. O que falta a Butler em Problemas de
gênero, diz Copjec, é uma noção apropriada de limite não ultrapassável, a impossibilidade
que aleija qualquer prática discursiva. Mesmo quando Butler fala em fracasso na repetição
vimos no capítulo anterior que Butler diz que na repetição se criam novas possibilidades
para gênero - Copjec diz que ela não se refere ao que seria a causa dessa falha, ou seja: a
impossibilidade de dizer tudo na linguagem. (Copjec, 1994, p. 211) Ora, Butler chegará a
essa concepção em Undoing gender, mas, como veremos, isso não refletirá uma aceitação
da “diferença sexual”, tal qual Copjec a entende.
Copjec, em seu raciocínio, estabelece “sexo” como condição a priori da “diferença
sexual” e revela assim seu ponto de partida, a sua perspectiva transcendental. O sexo,
como limite da razão, como aquilo que não pode ser dito, define dois modos de não se
poder dizer tudo. Ao se tornar um sujeito falante, o indivíduo teve apenas duas
possibilidades de não dizer tudo, de ter um limite colocado para a razão: o modo masculino
e o modo feminino. Foi sob uma dessas duas formas que ele se inscreveu na ordem
simbólica. A “diferença sexual”, exposta dessa maneira, não pode ser desconstruída, pois
sexo não está no plano do significante. Copjec vai mais além: Butler não sabe o que é
sexo! “Sexo é o que não pode ser falado pelo discurso; não é nenhum dos inúmeros significados
que tentam dar conta dessa impossibilidade. Eliminando esse impasse radical do discurso,
Problemas de gênero, apesar de toda sua fala sobre sexo, elimina o próprio sexo.” (1994, p.211).
Um último posicionamento, o da psicanalista lacaniana Colette Soler, traz a
possibilidade de avançarmos um pouco mais nessa discussão
87
. Soler não cita diretamente
Butler nem Butler a ela -, mas faz uma crítica ao uso do conceito de “gênero” pelos
anglo-saxões, por ser um conceito que se refere a um tempo em que Lacan ainda se
debruçava sobre as reformulações da questão edípica freudiana, em termos de linguagem.
Ao avançar para o termo “sexuação”, no Seminário XX, Lacan concebe o “homem” e a
“mulher”, que são os dois termos da diferença sexual, por seu “modo de gozo”. As
fórmulas da sexuação “descrevem a distribuição dos sujeitos entre duas maneiras de se
inscrever na função fálica, que não é outra coisa senão a função do gozo na medida em
que, pelo fato da linguagem, cai sob o golpe de uma castração.” (Soler, 1997, p.2). É
“homem” o sujeito submetido à função fálica. É “mulher” o que não está todo inteiramente
87
Soler, C., A Maldição sobre o sexo, numa coletânea publicada na Internet dos textos apresentados no
Seminário da Escola Brasileira de Psicanálise, Salvador, 1997. Este texto também foi publicado sob o nome
“Éticas Sexuais” em O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
submetido ao gozo fálico e que escolhe um gozo outro, suplementar. Como já havia
mencionado Copjec, a binariedade do sexo não é uma repartição natural, mas depende
totalmente de uma necessidade lógica da linguagem.
A “diferença sexual”, então, diz respeito a dois distintos modos de gozo, que são
formas de se relacionar à linguagem. Implicam na castração que, nos termos de Copjec,
seria o limite para aquilo que pode ser dito, e se restringem a dois modos o modo todo
submetido à função fálica e o modo não-todo submetido à função fálica. Um modo é o
“homem” e o outro modo é o “mulher”. Soler afirma: “...há homens e mulheres no sentido
do estado civil, que não são homens e mulheres no sentido do ser sexuado”. (1997, p. 3)
Assim, não há nenhuma contradição em que os homens, tanto
heterossexuais como homossexuais ou místicos, quando existem, e
mesmo mulheres histéricas totalmente ocupadas do objeto do outro
masculino, se alinhem do lado homem, no todo fálico, e que, do mesmo
modo, se coloquem do lado mulher, mulheres heterossexuais ou
homossexuais, como também outros místicos, homens e mulheres, (...), e
ainda, sujeitos psicóticos dos dois sexos. (Soler, 1997, p. 4).
Façamos uma pausa. Nesse momento, seria possível tomar um caminho para
explicar o que é a “castração”, o que é a “função fálica”, o que são os “modos de gozo” e
talvez mais alguns tantos conceitos lacanianos que certamente surgirão pelo caminho. Não
farei essa opção. Isso significaria dar um outro rumo a essa pesquisa, pois implicaria em
fazer a “tradução” de conceitos lacanianos que Butler não discute. Sua intenção não é
discutir os pormenores da psicanálise lacaniana, mas a implicação do uso de determinados
termos na vida de sujeitos enquadrados como “gêneros não-inteligíveis”. Creio então ser
possível lidar com a nossa questão, a partir dos elementos que temos. Estes elementos são
os seguintes: existe um limite para a linguagem, na medida em que não se pode dizer tudo;
isso que não pode ser dito é denominado “sexo”; há duas formas de se submeter às regras
da linguagem e, dessa forma, tornar-se sujeito; essas formas se denominam “homem” e
“mulher” e têm características diferentes; o ser que se submete às regras da linguagem é
um sujeito sexuado seja como “homem”, seja como “mulher”; a sexuação dos sujeitos
como “homem” ou “mulher” é independente de seu sexo anatômico. E, por último, se
convocamos Shepherdson, trata-se de um imperativo, são leis da realidade humana.
O que está em causa na compreensão de Butler da “diferença sexual”? Se
tomarmos as demarcações que Soler faz das contribuições de Freud e de Lacan para se
compreender o pertencimento dos seres ao sexo masculino ou ao sexo feminino,
poderemos situar o alcance dos questionamentos de Butler em relação ao termo “diferença
sexual”.
De modo sucinto, vamos expor os dois caminhos, nas palavras de Soler. Freud,
partindo da perversão polimorfa das crianças, utiliza o complexo de Édipo para explicar
como a criança se torna um homem ou uma mulher. Trata-se da via da identificação. A
fase edípica corrige a dispersão das pulsões através de identificações que as unificam, as
direcionam, ainda que pagando o preço de alguns sacrifícios as pulsões recalcadas vão
retornar incessantemente através dos sintomas.
Além disso, Soler acrescenta que, pela via das identificações edípicas, Freud
...dá consistência a um Outro do discurso. Um Outro que
estabelece suas normas, seus modelos, obrigações e interditos com a
identidade anatômica. Um Outro, portanto, que imporia uma solução
standard ao complexo de castração, a solução heterossexual, rejeitando
qualquer outra solução na atipia ou na patologia. (Soler, 1997, p.2).
Em Lacan, seguindo Soler, alguém é identificado como “homem” ou “mulher” pela
via da sexuação, que se furta às normas do Outro, por implicar uma definição a partir dos
modos de gozo. Nada aqui prescreve a heterossexualidade, diz Soler. Para o ser
denominado “homem”, por exemplo, o que causa seu gozo, todo fálico, é o objeto de sua
fantasia. Este é realmente seu parceiro, seja ele alojado numa mulher (no sentido
anatômico), num homem (no sentido anatômico) ou em Deus (no caso de alguns místicos).
Já para o ser denominado “mulher”, “não-toda” submetida ao gozo fálico, também há a
possibilidade de que tenha acesso ao gozo na relação com um homem, pelo viés de uma
mulher, ou ainda com Deus. (Soler, 1997, p.4).
Tendo em vista estas duas perspectivas, tem-se a impressão de que tanto Zizek,
quanto Copjec, pensariam que Butler dirige sua crítica somente a Freud, não tendo
compreendido o alcance da posição lacaniana. Queixar-se das normas que regulam a
sexualidade, confrontar a imposição da heterossexualidade como obrigatória, não se
conformar com a “patologização” dos seres que não se enquadram nas identificações
standard,...ao se manter nesse nível de crítica, Butler teria sido deixada para trás por
Lacan, quando este saltou das identificações edípicas para as fórmulas da sexuação. Lacan
seria mais subversivo que Butler, na opinião de Copjec. (Copjec, 1994, p.207). Afinal,
dentro da perspectiva que divide os seres humanos em “homens” e “mulheres”, em sua
relação com a linguagem, pode-se alocar as relações heterossexuais, as relações
homossexuais, os místicos de ambos os sexos e os psicóticos de ambos os sexos. (Soler,
1997). E, finalmente é por causa da impossibilidade de traduzir para o simbólico o que é
“diferença sexual”, na medida em que ela não se fixa em nenhuma identidade, que existem
“homossexuais, fetichistas e outros perversos”. (Zizek, 1997).
4.2 A crítica ao transcendentalismo
Butler tem noção de que o conceito de gênero deriva do discurso sociológico, é
configurado como norma e que, por isso mesmo, é estrangeiro ao discurso da “diferença
sexual” que vem de Lacan e dos lacanianos. (2004, p.210). Butler cita nominalmente seus
críticos (Copjec, Shepherdson e Zizek) e enumera suas posições (as destes autores) da
seguinte maneira:
- Homens e mulheres existem como categorias sociais e são modos pelos quais a
“diferença sexual” assumiu conteúdo.
- Diferença sexual” tem apenas caráter formal. Disso nada decorre quanto aos
papéis sociais ou significados que gênero pode ter a partir do conceito de diferença
sexual.
Butler comenta, ainda, que alguns lacanianos esvaziam “diferença sexual” de qualquer
eventual significado semântico, aliando-a com a possibilidade estrutural para a semântica.
Está atenta para a defesa que eles fazem das acusações que recebem quanto ao fato de a
“diferença sexual” ter-se tornado concreta em certas instâncias sociais e culturais, na
medida em que isso eliminaria a abertura fundamental proposta pela distinção em si
mesma. Se a diferença sexual não é simbolizável, ela não pode se fixar em identidades,
como às vezes ocorre. (2004, p. 210).
88
88
Essa é, por exemplo, a preocupação da psicanalista Márcia Arán, que trabalha com transexuais no Rio de
Janeiro. Ela partilha da preocupação de Butler em relação ao conceito de diferença sexual em Lacan. Sabe
que ele dá margem a uma compreensão equivocada: “...a fixidez da lei estruturalista estabelece, por meio de
uma matriz heterossexual, as posições consideradas legítimas. Todo o resto, então, torna-se incompreensível
caso não corresponda a esse sistema binário hierárquico, e permanece como um excesso impossível de ser
inscrito no âmbito simbólico.(....) Em que medida os conceitos de identificação e de sexuação na psicanálise
estão de tal forma referidos a uma lei estabelecida a priori que acabam por fixar e restringir as manifestações
das sexualidade a duas posições normativas: ‘masculino’ e ‘feminino?” (A transexualidade e a gramática
normativa do sistema sexo-gênero, In Ágora, Rio de Janeiro, v. IX, n.1 jan/jun 2006, 49-63) p. 58.
Mas apesar dessa compreensão, Butler responde de duas maneiras às críticas que
lhe foram feitas. A primeira resposta está em Competing universalities (2000)
89
e busca
desmontar o conceito de “diferença sexual” em seu aspecto de transcendentalidade.
“Diferença sexual” foi um conceito alçado à condição de mais fundamental do que
outras diferenças, como classe ou raça. Em seu caráter formal, enquanto estrutura vazia,
difere radicalmente das formulações concretas que recebe ao longo da história. Mas,
pergunta-se Butler, seria a “diferença sexual” fundamentalmente formal ou se teria ela
tornado formal? A condição para ser formalizada e ser elevada a um nível transcendental
implica algum tipo de exclusão? Butler volta às suas raízes hegelianas. Não apenas invoca
Hegel contra Kant para discutir a relação entre estrutura vazia e conteúdo, mas,
igualmente, discute “..como a exclusão de certos conteúdos de uma dada versão de
universalidade é, em si mesma, responsável pela universalidade em sua veia vazia e
formal”. (Butler, 2000, p. 137).
Segundo Butler, uma séria crítica feita por Hegel aos formalismos kantianos é a de
que uma estrutura vazia e formal é estabelecida precisamente através de uma sublimação
não totalmente bem sucedida do conteúdo para a forma. Alguns formalismos são
originados por um processo de abstração que nunca se livram totalmente do remanescente
do conteúdo que eles recusam. No caso da “diferença sexual”, o remanescente é
obviamente o dimorfismo sexual.
O caráter formal dessa “diferença sexual” originária e pré-social
em sua ostensiva vacuidade é consumado precisamente através da
materialização pela qual um certo dimorfismo idealizado e necessário se
firma. O traço ou remanescente que o formalismo precisa apagar, mas
que é o sinal de sua fundação, enquanto é anterior a si mesmo,
freqüentemente opera como a chave para o seu deciframento. (Butler,
2000, p. 145).
Em relação às exclusões que permitem o estabelecimento de formalismos que se
pretendem universais, Butler se perguntará quanto aos conteúdos que precisaram ser
excluídos de modo a fazer emergir um conceito formal e vazio de “diferença sexual”. Não
necessitamos ser adivinhos para ver onde ela quer chegar. Sem dúvida, sua preocupação é
com o abjeto. Como incluir os corpos que não perfazem o ideal do dimorfismo de gênero?
Seriam estes os “conteúdos” excluídos para fundar a “diferença sexual” enquanto categoria
vazia e formal e, portanto, “universal”? A favor de seu argumento, Butler invoca um
89
Butler,J., Competing universalities”, in Contingency, Hegemony, Universality, 2000.
bordão do discurso lacaniano, que prega que “a inteligibilidade cultural requer a diferença
sexual” ou que “não existe cultura sem a diferença sexual”. Esse bordão proclama uma
normatividade constrangedora (constraining normativity), diz ela, presente no aspecto
transcendental da “diferença sexual”. (Butler, 2000).
Poder-se-ia dizer que a “diferença sexual” paira acima das questões que envolvem
corpos não conformes ao ideal (casos de intersexo, por exemplo). Poder-se-ia dizer que ela
tem uma resposta para a transexualidade, “patologizando-a”, como fez Millot. Poder-se-ia
identificar usos inapropriados da “diferença sexual” por psicanalistas que se posicionaram
contra a adoção de crianças por casais homoparentais, buscando proteger as crianças de
uma futura psicose. Seria possível, às custas de algumas “patologizações”, acomodar a
“diferença sexual” às homossexualidades, aos fetichistas e às demais “perversões”. Se a
“diferença sexual”, como querem os lacanianos, está no plano da linguagem e dos modos
de gozo, tem-se a impressão de que não entra em questão a forma dos corpos e, muito
menos, a escolha de objeto. No entanto, Butler considera difícil separar o transcendental
do social. E considera também difícil desfazer o complexo vínculo entre a “diferença
sexual” e o dimorfismo biológico. Trata-se de um termo cujo estatuto vacila e essa
vacilação o conduz inevitavelmente a uma função prescritiva. É suposto como
transcendental, mas fundamenta e sustenta formulações históricas e sociais da diferença
sexual; coloca-se como condição dessas formulações, mas é igualmente parte delas.(2000,
p. 147).
Em sua interpretação de Kant, “transcendental” significa, não apenas a condição
sem a qual nada pode aparecer, mas igualmente as condições reguladoras e constitutivas do
aparecimento de qualquer objeto dado. O “transcendental” fornece as condições-de critério
que constrangem a emergência do que é tematizável. O “transcendental” torna-se
normatizador. Se a diferença sexual é a condição de inteligibilidade, diz Butler, é porque
algo ameaça a inteligibilidade: “intersexualidade, transexualidade, parcerias gays e
lésbicas, só para mencionar alguns”. (Ibid., p. 148).
Butler, por último, considera que se o campo do transcendental não tem uma
historicidade, não é uma epistéme que se transforma e pode ser revista e alterada com o
passar do tempo, não está clara a sua utilidade para sustentar e promover“...uma
formulação democrática mais radical do sexo e da diferença sexual”. (Ibid.,p. 147). Se a
“diferença sexual”, reivindicada como transcendental, prescreve a norma e dita os tipos de
arranjos sexuais que podem ou não ser permitidos numa cultura inteligível, então essa
categoria tem que sofrer oposição
90
.
Vejamos então a segunda resposta de Butler às críticas que lhe fizeram.
4.3 As diferenças sexuais
Vamos tomar dois momentos da obra de Butler para ver sua posição frente ao
conceito de “diferença sexual”. O primeiro é o de Problemas de gênero e, o segundo,
abrange o período em que Butler tematiza a “pulsão” em Undoing gender. De fato, é a
própria Butler que conta como se relacionava com a “diferença sexual” em Problemas de
gênero e a importância que esse conceito tinha para o movimento feminista.
Butler pensava que a teoria da diferença sexual era uma teoria da
heterossexualidade na época de Problemas de gênero. Isso vai de encontro às críticas que
recebeu. Sua compreensão da diferença sexual veio através do feminismo francês, com
algumas leitoras de Lacan, para quem a diferença entre o masculino e o feminino, colocada
como uma diferença primordial e fundamental auxiliava na compreensão de como a
linguagem e a cultura emergiram. Tinha-se como pressuposto que o sujeito falante emergia
em relação à dualidade dos sexos e a cultura, segundo Lévi-Stauss, era definida pela troca
de mulheres. A diferença entre homens e mulheres se colocava ao nível de uma troca que
formava a própria possibilidade de comunicação. Nesse sentido, o paradigma estrutural era
útil para marcar o poder diferencial entre homens e mulheres na sociedade e fornecer um
modo de compreender a estrutura patriarcal e como a hierarquia entre os gêneros funciona
no estabelecimento da ordem sócio-simbólica em que vivemos.
Mas, se a teoria da “diferença sexual” servia às discussões feministas, Butler
percebia que, ao mesmo tempo, um problema se colocava: o paradigma estruturalista
assumia uma constância da diferença sexual, mas os gêneros não-inteligíveis contestavam
a própria diferença sexual. Em relação à categoria “mulheres”, por exemplo, havia o risco
de enfraquecer a luta feminista em suas reivindicações, que faziam sentido na oposição
colocada em termos binários, mulher-homem, se fosse tomada em consideração a
teorização das categorias butch-femmes”. Afinal, perguntava-se se os tipos de
90
A interpretação lacaniana da “diferença sexual” de Lacan e a conclusão a que Butler chega, baseia-se nos
autores citados.. Outras interpretações desses mesmos autores são possíveis, assim como, existem outras
concepções, também lacanianas, da “diferença sexual”.
masculinidade das butch” eram sempre determinados por uma diferença sexual já
operativa ou se estavam justamente questionando a diferença sexual. Era uma feminilidade
(a das femmes”) oposta a uma masculinidade já existente na cultura, parte de uma
estrutura que não podia mudar, ou era um desafio à cultura? A novidade de Butler, naquela
época de Problemas de gênero, é perguntar se a “diferença sexual” é necessariamente
heterossexista, se precisa colocar em oposição uma oposição que é pensada a partir de
uma complementaridade, o homem e a mulher. Seus “amigos lacanianos”, como ela
mesma os chama, se esforçaram por mostrar que não.
Num segundo momento (que na verdade seria o terceiro, caso consideremos a
crítica ao transcendentalismo como o segundo momento do debate butleriano sobre a
“diferença sexual”), Butler parece tentar acomodar a “diferença sexual” à sua incorporação
do conceito de pulsão. Em Undoing gender ela aborda esse problema.
Em “The end of sexual difference” (em Undoing gender), Butler pretende, através
da psicanálise e da noção de pulsão, tornar compreensível o termo “diferença sexual” para
o feminismo americano, que confundiria sexo, gênero e “diferença sexual”. Butler
comenta que o termo “diferença sexual” coloca um problema: a permanente dificuldade de
determinar onde começam e terminam o biológico, o psíquico, o discursivo e o social.
Shepherdson insistira na idéia de que muitos conceitos psicanalíticos não se reduzem à
biologia ou à cultura, eles têm uma especificidade que diz respeito à relação do indivíduo
com a linguagem. Nesse ponto Butler se posiciona de modo um pouco diferente.
“Diferença sexual” guardaria relação com diversos registros e, nessa medida, teria um
registro ontológico permanentemente difícil de determinar. A pulsão, nesse sentido, ajuda
a encontrar esse lugar: Se a “pulsão” é a convergência da cultura e da biologia, parece que
a “pulsão” guarda a possibilidade de uma troca produtiva entre aqueles que falam em nome
do corpo e aqueles que falam em nome da cultura”. (Butler, 2004, p.202).
O termo “pulsão” contribui com a idéia de se pensar a sexualidade como algo
distinto da biologia e da cultura, ao mesmo tempo fundando um campo outro, que permite
tematizar aquilo que não é apreensível pela linguagem. Mas o inapreensível de Butler não
se dá por um impedimento lógico e, sim, pelo fato de que as significações do corpo
excedem as intenções do sujeito, havendo uma dimensão corporal que não pode ser
totalmente representada. Como disse Butler sobre a pulsão, somos dirigidos por aquilo que
não conhecemos e não podemos conhecer. Essa é sua resposta a Copjec. Sexo diz respeito
às pulsões, mas, como a pulsão mantém contato com o biológico e o social, sexo se move.
E o simbólico, para Butler, também se move, como veremos adiante.
A pulsão ajuda, então, a descrever o campo do que Butler entende a partir de agora
como “diferença sexual”:
Da maneira que entendo, a diferença sexual é o locus em que a
questão concernente à relação do biológico ao cultural é colocada e
recolocada, onde precisa ser colocada, mas não pode, estritamente
falando, ser respondida. É entendido como um conceito limite.
“Diferença sexual” tem dimensões psíquicas, somáticas e sociais que
praticamente não desabam uma na outra, mas que nem por isso são
finalmente distintas.(2004, p186).
A partir de “diferença sexual”, Butler fornece um lugar para “gênero”: “Será que
entendemos por gênero aquela parte da diferença sexual que aparece como o social
(gêneros seria assim o extremo do social na diferença sexual), como o negociável, como o
construído..” (Butler, 2004, p.186).
Gênero aparece acima como um conceito no vácuo da “diferença sexual.” Se
“diferença sexual” não pode ser definida e aparece sempre como questão, então por que
não falar de gênero, que de alguma maneira diria respeito à “diferença sexual”, seu lado
social, desde que se leve em conta que “gênero” não a esgota?
A solução butleriana para a aceitação do conceito de “diferença sexual” inclui os
gêneros não-inteligíveis. Ela propõe que a pulsão seja a garantia de que a diferença sexual
não implique normatividade heterossexual. Na verdade, trata-se quase de uma substituição.
Como se, em vez de dizer que há “diferença sexual”, dizer que existem pulsões sexuais
que, em seu exercício, rompem a coerência de qualquer postulação de uma identidade. É
desse modo que o conceito de “diferença sexual” deveria ser articulado.
No lugar de “diferença sexual”, Butler surge com as “diferenças sexuais”. Butler
reivindica uma outra estrutura para se pensar a diferença sexual que não seja binária, mas
múltipla: afinal, só entre as mulheres, existem outros femininos, se se pensa, por exemplo,
nas butch. (Butler, 2004, p. 197). Isso leva, como já sabemos, a uma saída do discurso
lacaniano sobre a “diferença sexual”. Aqui se dá a crítica de Butler: a diferença sexual
binária é assumida pela psicanálise como forma de organização social. Mas, ainda que
assim o seja na maioria da população, isto é, que a maioria se organize socialmente como
homem ou mulher, se a psicanálise pretende ser subversiva, é preciso que as posições da
sexuação não reproduzam os gêneros existentes em sua maneira clássica, espelhos do
dimorfismo sexual. Mesmo porque, a psicanálise não tem que reproduzir o discurso da
maioria e, sim, permitir o discurso do singular. Como disse Butler, trata-se de um termo
que vacila entre o transcendental e o social. E, se ao vacilar, dita a normatividade, precisa
ser posto em xeque.
...de muitas maneiras, Lacan permanece um pensador estruturalista
e seu modo de entender as estruturas masculina e feminina (como
limitada/ilimitada, fechada/aberta, finita/infinita) as tornam estritamente
contraditórias, não simplesmente contrárias: não há meio termo entre elas
(como não existe nenhuma categoria “fronteiriça” entre neurose e psicose
em sua versão da psicanálise). Sem dúvida isso deixa Lacan suscetível às
críticas ao pensamento binário por parte de feministas e
desconstrutivistas. (Jay, apud Fink, 1998, p. 233).
91
No início do capítulo 1, comentamos que fazia parte do cenário do construtivismo
social e da teoria queer a investigação sobre a origem de alguns conceitos ligados à
sexualidade. Laqueur mostra como, no século XIX, se substitui o modelo hierárquico do
corpo único pelo modelo reprodutivo, que enfatiza a existência de dois corpos distintos,
com sexualidades opostas: a masculina e a feminina. As diferenças entre os corpos
existiam, mas a redução dessas diferenças a uma oposição binária é determinada, entre
outras coisas, pelo contexto histórico. Não se trata, com isso, de dizer que a teoria
lacaniana postula duas formas de sexualidade, opostas entre si, a partir de uma concepção
médica. Trata-se, mais uma vez, de esboçar as relações entre o social e o transcendental.
Na opinião de Laqueur, o estruturalismo revela que os humanos impõem seu senso de
oposição num mundo de contínuas sombras (diferentes graus, nuances) de diferença e
similaridade. Constrói-se um a priori que determina o que se vê e o que se relata sobre os
corpos. Diante disso, Butler quer recuperar a visão das sombras, permitir a percepção dos
diferentes corpos e gêneros, dando visibilidade aos gêneros não-inteligíveis.
Já me perguntei algumas vezes o que Butler pensa daquilo que o senso comum chama
de “diferenças biológicas”. Essa resposta lhe foi solicitada há muito tempo. Em sua
entrevista a Osborne e Segal (1994), Butler diz que não nega certos tipos de diferenças
biológicas, mas sempre se pergunta sob que condições discursivas e institucionais certas
diferenças biológicas (nenhuma em particular, dado o estado anômalo de corpos no mundo,
diz ela) se tornam características salientes do sexo. Butler insiste numa postura política.
91
Jay, N., Gender and Dichotomy .In Gunew, S., A Reader in Feminist Knowledge , New York: Routledge,
1991.
Repete o quanto as normas constrangem e tenta mostrar o que são as normas e como elas
operam. Mostra o poder da palavra no mal-estar das pessoas.
Se você está nos seus trinta anos e não pode engravidar por razões
biológicas, ou talvez você não queira, por razões sociais o que quer que
seja você está brigando com a norma que regula o seu sexo. É preciso
uma comunidade vigorosa e politicamente informada em torno de você
para aliviar o possível sentido de fracasso ou perda, ou inadequação
uma luta coletiva para repensar a norma dominante. Por que uma mulher
que quer tomar parte na educação de crianças, mas não na concepção de
crianças, ou que não quer ter nada a ver com isso, não pode habitar seu
gênero sem um sentimento implícito de fracasso ou inadequação?
Quando as pessoas perguntam: “Mas essas não são diferenças
biológicas?”, elas não estão realmente fazendo uma pergunta sobre a
materialidade do corpo. Na verdade, elas estão perguntando se a
instituição social da reprodução não é a mais saliente para se pensar sobre
gênero. Nesse sentido, há uma imposição discursiva de uma norma.
(Resposta de Butler a Osborne e Segal, 1994).
Se partirmos da idéia de que, de algum modo, os corpos informam uma grade de
leitura e fornecem os pilares da construção dos conceitos que se alçam à condição de “ a
priori”, sabemos que a biologia já avançou o suficiente para tornar a leitura dos corpos
bastante complexa. Entram em cena os órgãos sexuais externos, mas também os internos,
os cromossomos e os hormônios, os corpos “standard e os corpos “anômalos”. Com o
avanço da tecnologia, outras variações, que misturam homem e máquina, podem também
aparecer.
Mas, se a verdade sobre o sexo não está nos corpos e, sim, no discurso, como
querem os lacanianos, a aparência dos corpos e a sua modificação deveriam deixar de ser
um problema. Se a anatomia cede lugar à lógica, o sexual, enquanto objeto construído pela
psicanálise, deve abrir mão dos termos que tradicionalmente se referem a realidades
ontológicas, ainda que performativas: homem e mulher.
Passamos agora ao segundo questionamento de Butler, em busca de espaços que
dêem direito de cidadania ao abjeto. Trata-se de colocar em xeque o conceito de
“simbólico” de Lacan. Conforme vimos no início desse capítulo, Butler o considera como
uma estrutura fixa, uma nova versão de uma estrutura transcendental, nas palavras de
Zizek. Há uma pergunta que dirige seu raciocínio: “O que significa para essa ordem ser
simbólica e não social? (...) Se é simbólica, pode ser mudada ?” (Butler, Gender
regulations”, em Undoing gender, 2004) Butler diz que seus “amigos lacanianos”
normalmente respondem que uma mudança no simbólico leva muito tempo.
92
Quanto?
4.4 O argumento das normas simbólicas
Vamos retomar rapidamente nosso caminho. Para incluir os gêneros não-
inteligíveis, e entre eles os/as transexuais, na categoria de “humanos”, Butler acredita ser
necessário questionar o conceito de simbólico de Lacan. O simbólico é utilizado pelos
lacanianos, com quem Butler dialoga, para descrever um sistema de representações
baseado na linguagem, ao qual o indivíduo está ligado e que o determina à sua revelia.
Esse sistema, denominado “ordem” ou “função simbólica”, classifica os indivíduos em
diferentes entidades nosográficas, de acordo com o tipo de vínculo que possuem com esse
mesmo sistema. Nessa relação ao simbólico, alguns indivíduos terminam por serem
considerados psicóticos. Com isso, sofrem uma série de adversidades por parte da
sociedade, da ordem médica e da ordem jurídica. Butler sabe que isso acontece com
freqüência com os seres enquadrados como “gêneros não-inteligíveis”. Em função desses
acontecimentos, busca interrogar o conceito de “simbólico” para ver em que medida ele
pode ser responsabilizado por essa prática de exclusão e se ele, de fato, pode se manter no
lugar teórico em que se encontra.
“Simbólico” é um termo técnico que Lacan definiu, em 1953 e diz respeito à
formulação de uma tópica que explica o funcionamento do indivíduo em diferentes
aspectos. Junto com o “imaginário”, o “real” e a noção de parentesco, compõe um sistema
estrutural que torna possível a análise do complexo de Édipo.
93
“Simbólico” designa uma
concepção de estruturas lingüísticas que são irredutíveis às formas sociais que a linguagem
toma. Permite conceber o inconsciente como um universo de regras vazias de conteúdo.
No entendimento de Butler, o simbólico estabelece as condições universais sobre as quais
o social (sociality), isto é o uso da linguagem em sua função de comunicação se torna
possível. Além disso, o simbólico está vinculado à regulação do desejo no complexo de
Édipo.(Butler, 2004, p.44). O Édipo deriva de uma proibição simbólica do incesto, que faz
sentido em termos de relações de parentesco nas quais várias posições são determinadas
92
Cf. comentário de Zizek sobre a diferença entre “ato ético” e “ato performativo”. O “ato ético” seria uma
possibilidade de mudar o simbólico, para Zizek, mas Butler, em Undoing gender, não discute essa questão.
Toma outro caminho.
93
Roudinesco, E., Plon, M., Dicionário de Psicanálise, verbete “Simbólico”, p. 714, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998.
dentro da família em função de um mandato exogâmico. O simbólico é entendido como a
esfera que regula o sexo enquanto um conjunto de posições diferenciadas, masculina e
feminina. Não há como, portanto, para Butler, questionar o simbólico sem questionar a
noção de parentesco que Lacan incorporou de Lévi-Strauss.
94
Butler quer argumentar que
“..qualquer pretensão de estabelecer regras que “regulam o desejo” de maneira inalterável e
eterna tem pouco uso para uma teoria que busca compreender as condições em que a
transformação de gênero é possível”.
Em “Gender regulations” (em Undoing gender), ela enfrentará o conceito de
simbólico tendo como estratégia mostrar que a distinção entre simbólico e lei social não se
sustenta, pois o simbólico seria, em última instância, a sedimentação das práticas sociais.
Da mesma forma, as alterações radicais no parentesco que vêm ocorrendo nos últimos anos
demandariam uma rearticulação das pressuposições estruturalistas da psicanálise.
Nesse debate, Butler sabe que enfrenta teóricos lacanianos, para quem as normas
simbólicas diferem radicalmente das normas sociais. Shepherdson é um deles.
Shepherdson tem uma grande preocupação em traçar as fronteiras entre os construtivistas,
os culturalistas e a psicanálise. Assim como Butler, Shepherdson atua como uma espécie
de tradutor da teoria lacaniana para os americanos. Ele reproduz algumas idéias lacanianas,
buscando enfatizar os conceitos que diferem radicalmente nos dois campos. Butler, por sua
vez, tenta incorporar e, por vezes, modificar alguns conceitos lacanianos a favor de uma
concepção que permita a transformação social no que diz respeito à aceitação dos gêneros
não-inteligíveis. Shepherdson constrói o “simbólico” lacaniano a partir da relação do
sujeito com o símbolo e com a sexualidade. É na relação com o símbolo que o sujeito entra
na história. Sem essa inscrição simbólica, a sexualidade seria governada pelas necessidades
da natureza e não seria suscetível à história. No entanto, há uma inevitabilidade da
inscrição simbólica que é diferente daquilo que os construtivistas denominam “ordem
simbólica”. Acompanhemos Shepherdson:
Precisamos então distinguir entre as formas históricas particulares que
uma determinada cultura pode instituir para a sexualidade (esta é a sua
história), e a inevitabilidade da inscrição simbólica que é constitutiva do
animal humano. Na ausência de um reconhecimento adequado dessa
inscrição simbólica como constitutiva, sempre estaremos tentados,
mesmo em nome de “liberá-la”, a fazer retornar a sexualidade a sua
pretensa naturalidade a-histórica... (2000, p.34).
94
A própria noção de simbólico é herança de Lévi-Strauss e de Marcel Mauss.
As formas históricas particulares que uma determinada cultura institui para a
sexualidade são as normas sociais. Já o que Butler denomina “normas simbólicas” é o que
Shepherdson considera como inevitável para o acontecimento do humano, ou seja, para a
entrada do sujeito na história ou na cultura. Nesse sentido, as normas simbólicas são
condições para o sujeito se tornar humano, o simbólico é um organizador universal da
sociedade, condição para a sua existência.
O simbólico não é uma forma de organização particular de uma dada cultura, diz
Shepherdson, mas tampouco é a-histórico.(Ibid., p.35). É a inevitabilidade do simbólico
que torna a história possível e inescapável. Mas, se o simbólico é um conceito que recusa o
essencialismo biológico, o corpo e a sexualidade “naturais”, em que ele difere exatamente
daquilo que os construtivistas opõem aos essencialistas? Ele não se aplica a “formas
históricas particulares”. A diferença que Shepherdson aponta entre a psicanálise e os
construtivistas aparece quando estes atribuem ao sujeito uma autonomia na intervenção
sobre as transformações na história. O que a psicanálise não pode aceitar é a idéia de um
sujeito livre, consciente, autônomo e agente de mudanças históricas. Reduzir o simbólico a
condições históricas externas ao indivíduo equivaleria a atribuir-lhe autonomia.
Essa é, então, umas das perguntas que deveremos ter em mente ao acompanhar
Butler em sua tentativa de mostrar que as normas simbólicas são, de fato, normas sociais.
Haveria que se pensar num sujeito autônomo, dotado de intencionalidade? Como garantir
que o simbólico mude? Vejamos como Butler irá responder a essas questões.
Butler faz uma reflexão sobre o que regula a vida e o que determina o que é
passível de viver ou não. Chega à idéia de normas, que discute em “Gender regulations” e
em “The question of social transformation” (Undoing gender). Butler parte de uma
concepção comum aos estudos feministas e aos estudos gays e lésbicos, a de que gênero
seria regulado por instâncias jurídicas, militares, psiquiátricas, entre outras. Há imposições
de leis, regras e políticas, através das quais se procura tornar alguém “regular”. Mas, a
normatividade, além de se referir aos objetivos e aspirações que nos guiam, também se
refere ao processo de normatização, fornece critérios coercitivos para “homens” e
“mulheres” normais. São normas que governam o que é uma vida “inteligível”, “homens”
e “mulheres” reais. (Butler, 2004, p. 206). Que normas governam gênero? Gênero não é
anterior às normas, diz Butler, e é nessa afirmação que ela difere da concepção da qual
partiu. Gênero é uma norma. O sujeito já emerge “generizado” (gendered), emerge
produzido através de formas particulares de submissão às regulações. O aparato regulador
que governa gênero já é, em si próprio, específico para gênero. (Ibid., p.41). Em Undoing
gender, a reflexão sobre as normas sociais mostra que desde sempre somos “generizados”.
O conceito de gênero, na visão de Butler, serve como exemplo para mostrar que as
normas sociais que agem sobre as pessoas e que, por isso, seriam diferentes do que Lacan
chama de “simbólico”, já são, de fato, o próprio “simbólico”. Ao menos, é o que acontece
em relação a gênero. A prova disso, segundo ela, é o conceito de “diferença sexual”, que
não se separa da divisão binária de gêneros que cria as categorias “homem” e “mulher”
95
.
A condição de existência do sujeito como humano já o determina como homem ou mulher,
sejam estas categorias sociais ou posições simbólicas.
Por constatar que existem sujeitos que não se encaixam na divisão binária de
gêneros, Butler questiona a legitimidade do aparato regulador de gêneros, na medida em
que este aparato é, ele próprio, “generizado”. Nesse sentido, Butler critica o “simbólico”
através da noção de gênero, que ela interpreta como sendo uma norma simbólica. O que
significa para gênero ser compreendido como norma? Norma não é regra e nem é lei.
Norma não proíbe. Ela cria inteligibilidade. Ela opera no contexto das práticas sociais
como padrão de normalização. A norma governa a inteligibilidade social da ação, mas não
se confunde com a ação que ela governa. A norma permite que certas práticas sejam
reconhecidas como inteligíveis e outras, não. A norma define o que fica dentro e o que fica
de fora do campo social. No entanto, estar fora dos padrões ditados pela norma continua
sendo uma maneira de estar relacionado a ela.
Mas justamente a questão levantada por Butler é a de que, se surgem gêneros não-
inteligíveis em relação a um padrão de coerência esperado, esses gêneros não-inteligíveis
estiveram até hoje destinados à patologia por estarem referenciados à norma “gênero”. O
aparato regulador é binário. Assim como em Problemas de gênero, em Undoing gender,
“gênero” não é o que alguém “é” ou o que alguém “tem”. Mas, se em Problemas de gênero
Butler dava destaque ao ato performativo, ou seja, às ações que produziam o efeito
ontológico de gênero, em Undoing gender ela realça o papel de norma que produz e
normaliza o masculino e o feminino através da imposição de uma grade de leitura que
define a inteligibilidade dos seres enquanto “humanos homens” ou “humanos mulheres”.
Mais do que isso, gênero define igualmente os seres não-inteligíveis, os “não-humanos”. E,
nesse sentido, evidencia-se que o próprio aparato que busca instalar a norma produz o
95
Cf. nosso item Crítica ao transcendentalismo.
fracasso de sua instalação. A instalação de gênero como norma se mostra incompleta por
definição. Eis um argumento para mostrar que qualquer discurso que insista no binarismo
homem/mulher, para falar de gênero, serve a um poder regulador.
Butler acredita que a psicanálise opera uma estratégia ao separar o “simbólico” das
normas sociais. Isso lhe dá a possibilidade de invocar uma lei acima de tudo, a Lei,
universal, primordial e incontestável. A Lei, que estabelece a cultura, é a proibição do
incesto, organizadora da sociedade. Como, então, “gênero” se presta a contestar o
“simbólico”? Butler dirá que, na medida em que “gênero” é compreendido como norma
simbólica, como norma que define a inteligibilidade dos seres enquanto “humanos
homens” e “humanos mulheres”, percebê-lo alçado à condição de lei incontestável não faz
sentido para uma perspectiva de mudança social no que tange à compreensão do desejo e
da sexualidade. A instalação de gênero como norma, afinal, mostrou-se incompleta.
Ao dizer que se trata de uma “lei”, a psicanálise mostra devoção à lei, um sinal de
desejo de que a lei seja a lei indisputável, “um impulso teológico da psicanálise que busca
colocar fora do páreo qualquer crítica ao pai simbólico, à lei da própria psicanálise.”
(Butler, 2004, p. 46). A força autoritária que sustenta a lei simbólica como incontestável é,
em si, um exercício dessa lei simbólica, uma instância além do lugar do pai, como se fosse
indisputável e incontestável. É uma teoria que insiste em posições simbólicas masculina e
feminina, que estão acima de qualquer contestação, mas que também “repousa na
autoridade que descreve para escorar a autoridade de suas próprias reivindicações
descritivas”.
Para Butler, a teoria lacaniana impõe uma verdade última e incontestável. Mais do
que isso, ela pretende “acolher” e “compreender” as contestações que lhe são feitas. O
“simbólico” pretende por fim à ansiedade causada pelas possibilidades de gênero. Coloca-
se como uma lei que não pode ser deslocada, mas que tentamos imaginariamente deslocar.
Sabemos, então, de antemão, que nossos esforços de mudança serão colocados em xeque,
nossa luta contra explicações autoritárias de gêneros será estorvada, nos submeteremos a
uma autoridade inatacável, diz Butler. “Estes são aqueles que acreditam que pensar que o
simbólico pode ser mudado por prática humana é puro voluntarismo.” (2004, p. 47). E, por
ser voluntarismo, seria necessariamente recusado. Como disse Shepherdson, não se pode
conceber o indivíduo como agente de mudanças históricas. Reduzir o simbólico a
condições históricas externas ao indivíduo significa falar em autonomia. Será mesmo
voluntarismo, se pergunta Butler?
Butler precisa mostrar que contestar a autoridade simbólica não significa um
retorno ao “ego” ou às noções liberais clássicas de liberdade. Nessa posição, ela se torna
presa fácil da crítica de Shepherdson ou de Zizek. Como, então, conceber um “simbólico”
sujeito a mudanças? A partir do momento em que ele é pensado como norma. Afinal, diz
Butler, as normas simbólicas apenas diferem das demais normas porque foram elevadas
pela psicanálise ao status “de serem posições sem as quais nenhuma significação procede,
nenhuma inteligibilidade cultural pode ser garantida”. Uma vez que se entenda que o
simbólico é uma norma, ele pode mudar com o contexto cultural. A norma, que em sua
definição contém uma temporalidade necessária, é aberta a deslocamentos e subversões
que vêm de dentro.
Em sua concepção de simbólico enquanto norma social, Butler percebe dois riscos:
o primeiro é o de conceber a norma como independente de suas incorporações, das ações
que governa. Por esse caminho chegaria ao ponto de onde partiu sua crítica, ou seja, à
transcendentalidade; em seguida, percebe que “norma”, enquanto princípio de comparação,
sugere que qualquer oposição à norma já está contida na norma e é crucial para o seu
próprio funcionamento. Desse modo, “...mover-se de uma noção de posição simbólica
lacaniana para uma concepção mais foucaultiana de “norma social”, não faz aumentar as
chances de um deslocamento efetivo ou de re-significação da própria norma.” (2004, p.51).
Dentro dessa perspectiva, o simbólico transformado em norma social seria objeto da crítica
de Zizek, a de que as paródias não levariam a nada, senão a falsas transgressões. Vejamos
a solução de Butler.
Ao buscar uma relação entre norma e prática, Butler encontra em Pierre Macheray a
idéia de que norma deve ser entendida como uma forma de ação.(2004, p. 51).
96
Não uma
ação repressiva, uma interdição sobre um sujeito. Não uma ação que, nos moldes de
Foucault, implica que o sujeito poderia se livrar do controle que a ação exerce, mas que,
longe de suprimi-lo, estaria apenas reforçando-o. A ação, para Macheray, é o local de
intervenção social. A norma subsiste apenas na ação e através dela. Não está por trás das
ações e nem é independente delas. A norma não é exterior ao seu campo de aplicação. Ela
produz seu próprio campo de aplicação e, ao produzi-lo, produz a si mesma. Butler se atém
96
Macheray, P., Towards a Natural History of Norms.
particularmente a uma idéia de Macheray, a de que “..a norma deve ser considerada tal
como ela atua precisamente em seus efeitos, não de modo a limitar a realidade através de
simples condicionamentos, mas de maneira a conferir-lhe o máximo de realidade de que é
capaz.”(Butler, 2004, p.52).
Normas conferem realidade, produzem realidade. É justamente pelo seu repetido
poder de conferir realidade que a norma se constitui como norma, ressalta Butler.
Macheray fornece a Butler um conceito de “norma” como criadora de realidades. Isso é
especialmente oportuno em relação às transformações de gênero. Como acontecem as
ações das normas de gênero? “Na medida em que as normas são reproduzidas, são
invocadas e citadas por práticas corporais que têm também a capacidade de alterar normas
no curso de sua citação.” (Ibid., p. 52). Não se trata portanto de voluntarismo, de um ato
intencional. Butler retoma seu antigo argumento para a concepção de mudanças. Trata-se
de uma repetição subversiva, não intencional. Ou até poderia ser? Butler não entra no
mérito dessa discussão Lança apenas uma pergunta: Que afastamentos (departures) com
relação à norma rompem o poder regulador? E ensaia uma resposta: a questão da cirurgia
de correção das crianças intersexos é um caminho para se pensar. Outro caminho,
acrescentamos, seria o da transexualidade. Ambos, como vimos no capítulo anterior,
questionam o simbólico enquanto Lei.
Respondendo a Zizek, se o “simbólico”, assim como a “diferença sexual”, descem
do pedestal da transcendentalidade, não é necessária a idéia de um “ato ético” como o
único ato possível para gerar transformações. Se as normas simbólicas, como quer Butler,
não passam de normas sociais e essas, por sua vez, criam realidades, sua proposta de
transformação, seja a partir de repetições via paródia ou via performatividade, é plausível.
4.5 Parentesco e simbólico
O incômodo de Butler com a noção de parentesco de Lévi-Strauss, incorporada pela
psicanálise a partir de Lacan, poderia se resumir na seguinte pergunta: quais as
conseqüências de tornar certas concepções de parentesco atemporais e elevá-las ao status
de estruturas elementares de inteligibilidade? Sua crítica à maneira de se pensar o
parentesco por Lacan tomará o mesmo rumo que as problematizações das noções de
“diferença sexual” e do entendimento do “simbólico” como conjunto de estruturas
incontestáveis e inalteráveis. Para ela, as posições de parentesco foram elevadas ao status
de estruturas linguísticas fundamentais, ganhando o status de serem posições sem as quais
nenhuma significação procede, nenhuma inteligibilidade cultural pode ser garantida.
A estrutura universal de troca de mulheres, baseada na Lei (de proibição do incesto,
inalterável), que caracteriza o sistema de parentesco e consolida as alianças entre grupos,
tem como efeito, segundo Butler, o asseguramento de certas formas de laços sexuais
reprodutivos e a proibição de outras formas de vínculos sexuais. Butler se refere
explicitamente a vínculos homossexuais masculinos e femininos. Haveria um pressuposto
da naturalidade da heterossexualidade que estaria subjacente aos escritos de Lévi-Strauss.
Então, uma primeira crítica feita por Butler, seria a de que essa concepção de
parentesco estabelece posições para o sujeito ocupar que pretendem regular a legitimidade
de seu desejo. Em segundo lugar, ficam excluídas as demais formas de parentesco. Em
função das discussões cada vez mais freqüentes sobre o casamento gay e sobre a adoção de
crianças por parte de homossexuais, as novas formas de parentesco obrigariam os
psicanalistas a refletir sobre sua própria cultura e a repensar a noção de cultura.
São esses os dois pontos sobre os quais Butler se debruça. Suas críticas às
concepções de Lévi-Strauss e à incorporação destas por Lacan podem ser rastreadas em
Problemas de Gênero e ser reencontradas em Undoing gender. Butler também se faz uma
interlocutora de Gayle Rubin, abordando esse assunto numa entrevista em 1994, quase
vinte anos após a publicação de Tráfico de mulheres, quando Rubin levanta a questão das
conseqüências da presença do estruturalismo na psicanálise para se pensar a sexualidade
lésbica.
Em Problemas de gênero Butler explicita sua crítica ao estruturalismo. Para realizar
uma análise da vida humana, Lévi-Strauss lançou mão de uma estrutura lógica totalizante.
Resumiremos a seguir alguns pontos importantes do pensamento de Lévi-Strauss, para
melhor acompanhar Butler em sua crítica.
Para que a antropologia não se mantivesse na superfície dos fatos sociais, Lévi-
Strauss buscou na lingüística estrutural um modelo para encontrar categorias
antropológicas universais. Uma das diretrizes impostas por esse modelo é a de investigação
de invariantes para além das inúmeras variedades identificadas. A busca de universais
estende-se para os diversos sistemas que compõem a sociedade humana: parentesco,
religião, magia, economia, etc. Especificamente em relação aos sistemas de parentesco,
Lévi-Strauss propõe um universal, uma lei da cultura, que tem o mesmo grau de
universalidade de uma lei natural. Esse é o lugar que ocupa a proibição do incesto em As
estruturas elementares do parentesco. A lei de proibição do incesto é um fato cultural que
instaura a ordem social, promove um rompimento entre natureza e cultura. Nas palavras de
Lévi-Strauss, em certo sentido, ela é a própria cultura.
97
Assim como na lingüística estrutural, há processos inconscientes determinando os
fatos sociais. Ao estudar os problemas de parentesco, deve-se compreender os termos do
parentesco como elementos que somente adquirem significação ao se integrar num sistema
de parentesco. Esse sistema, assim como os sistemas fonológicos, estudados pela
lingüística, “...são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente”.
98
A partir da adoção do modelo da lingüística estrutural, Lévi-Strauss redefiniu o
objeto da antropologia como sendo o “símbolo” e a cultura, como sendo um conjunto de
“sistemas simbólicos”. O símbolo não é mais pensado nos termos de uma relação de
convenção com as “coisas”, mas assimilado ao elemento formal de uma estrutura. A
linguagem se constitui num sistema em que os sinais remetem uns aos outros e não apenas
às coisas que eles designam. Nesse sentido, o homem vive “num meio artificial de
símbolos; não reage diferentemente às coisas, mas às idéias que ele tem sobre as
coisas...”.
99
Ele pode ser considerado, em sua subjetividade individual, “uma ocasião para
que o simbolismo social se manifeste”.(Simanke, 2002, p.437).
O inconsciente de Lévi-Strauss, como função simbólica, é um sistema universal de
operações lógicas que determina o comportamento humano em suas práticas sociais e pode
ser considerado “.. um princípio efetivo de organização da vida interior; sob este aspecto,
constitui um princípio subjetivo que determina nossas atividades mentais.” (Lépine, 1979,
p. 35).
Para além de uma explicação sobre a origem da cultura e o funcionamento de
nossas atividades mentais, através do estudo do parentesco, Lévi-Strauss nos informa
também sobre o fundamento das organizações sociais, os sistemas de aliança.
...as famílias geram casamentos como o dispositivo legal mais
importante que têm para estabelecer alianças entre elas. Mas é necessário
garantir que o casamento seja uma necessidade fundamental. Isso seria
garantido através de um dispositivo que institui um estado recíproco de
dependência entre os sexos: a divisão sexual do trabalho. Assim, como o
princípio da divisão sexual do trabalho estabelece uma dependência
mútua entre os dois sexos, obrigando-os a formar uma família, a
97
Lévi-Strauss, apud História do Estruturalismo, apud Simanke, Metapsicologia lacaniana, 2002, p. 434.
98
Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, p.40-41, apud Simanke, 2002, p. 434.
99
Lépine,C. O inconsciente na antropologia de Lévi-Strauss, São Paulo : Editora Ática , 1979, p.21, apud
Simanke, 2002, p. 437.
proibição do incesto estabelece uma mútua dependência entre famílias,
obrigando-as, para se perpetuar, à criação de novas famílias.
100
Por último, vale ressaltar a afirmação de Lévi-Strauss, citada por Butler, de que “o
surgimento do pensamento simbólico deve ter exigido que as mulheres, como as palavras,
fossem coisas a serem trocadas.” (Butler, 2003, p. 71).
Além de questionar a “presunção de universalidade” contida na obra de Lévi-
Strauss, Butler questiona as conseqüências dessa lógica totalizante para se pensarem as
identidades “homem” e “mulher”.
101
Os homens são portadores de identidade, mas às
mulheres é negada uma identidade ou elas ficam em posição subalterna. A crítica ao
estruturalismo aparece desde um ponto de vista feminista, que questiona o lugar delegado
às mulheres nessa estrutura de explicação das relações sociais e acopla a idéia de que a
proibição da homossexualidade é igualmente fruto da Lei que proíbe o incesto.
O sistema de alianças proposto no estruturalismo condiciona uma reciprocidade
entre os homens que, ao mesmo tempo, exclui uma possível reciprocidade entre homens e
mulheres, assim como uma relação entre as mulheres. Como seria uma lógica alternativa
do parentesco?, pergunta-se Butler. (2003, p. 69).
O pós-estruturalismo de Butler recusa as tentativas de totalização e universalização
das explicações do parentesco, assim como, a presença de oposições estruturais binárias
operando de modo a organizar e, com isso, fazer desaparecer as ambigüidades e as nuances
existentes nas relações humanas e na cultura, de modo geral. É preciso recusar o
“simbólico” para fazer aparecer uma lógica alternativa do parentesco? E, ao recusar o
simbólico, é necessário recusar a psicanálise? A meu ver, essa é a tensão que aparece em
Butler.
Mas vejamos suas críticas ao estruturalismo. Primeiramente, em Lévi-Strauss, as
regras que governam a troca sexual e que produzem a partir daí posições subjetivas são
distintas dos indivíduos que aderem a essas regras e que ocupam estas posições. As ações
humanas são reguladas por essas regras, mas não têm poder de transformá-las. Em segundo
lugar, a proibição do incesto é colocada como um fenômeno cultural, mas não contingente,
ou seja, como uma lei universal e inalterável. Em terceiro lugar, quando Lacan adota o
estruturalismo de Lévi-Strauss, ele pavimenta o caminho para uma distinção entre
100
Piscitelli, A., Comentário. Cadernos Pagu Campinas: Unicamp, n.21, p. 211-218, 2003.
101
Nesse momento, em Problemas de gênero, Butler não está discutindo com os psicanalistas lacanianos as
“categorias” da “diferença sexual”. Está se referindo a identidades sociais. Cf. p. 69.
explicações simbólicas e sociais do parentesco. Para os lacanianos, seria um erro tomar a
posição simbólica do pai, que é a posição paradigmática, e confundi-la com posições
socialmente constituídas que pais assumiram através dos tempos. O lugar simbólico do pai
não cede a demandas de uma reorganização social da paternidade. O simbólico põe limites
a qualquer esforço de reconfigurar relações de parentesco fora da cena edípica. (Butler,
2003c).
Entrevistando Gayle Rubin, Butler recupera as primeiras críticas feitas à noção de
parentesco de Lévi-Strauss.
102
Em Tráfico de mulheres, escrito em 1975, Rubin fez a
crítica de Lévi-Strauss, por este definir uma organização social da atividade humana
pautada pelo gênero e pela heterossexualidade compulsória. Os sistemas de parentesco
criariam socialmente dois gêneros a partir do sexo anatômico, uma divisão social do
trabalho que enlaça homens e mulheres numa relação de dependência recíproca e a
regulação social da sexualidade, impulsionando para relações heterossexuais que garantam
a reprodução biológica e social, além de reprimir arranjos diferentes destes. Não cabe o
componente homossexual da sexualidade humana na teoria de Lévi-Strauss. A divisão de
trabalho criaria homens e mulheres heterossexuais, devendo ter seu desejo sexual dirigido
ao outro sexo.
Segundo Rubin ainda, a noção de parentesco de Lévi-Strauss deveria ser empregada
apenas numa análise histórica. A organização de sexo e de gênero, promovida pelos
sistemas de parentesco, tinha como função organizar a sociedade. Mas, uma vez
organizada a sociedade, essa forma de parentesco foi com o passar do tempo esvaziada de
suas funções políticas, econômicas, educacionais e organizacionais. Ficou reduzido apenas
ao núcleo sexo/gênero, aprisionando “gênero” numa dicotomia. Como o gênero operaria
se fossem levadas em conta as relações entre parentesco e homossexualidade? Rubin e
Butler
103
se dedicam a essa discussão. Butler comenta a idéia de Rubin, em Tráfico, de que
as identidades de gênero derivam das relações de parentesco. A forma tradicional de se
conceber o parentesco está intimamente vinculada à heterossexualidade e, na medida em
que o Édipo está igualmente vinculado aos dois anteriores, a homossexualidade parece
“cair fora” da cultura.(Butler, 2003, b).
Parece-me que tanto Rubin quanto Butler não estão se referindo a práticas
homossexuais ou a atividades sexuais de modo geral. Tampouco se referem à existência de
102
Butler, 2003b.
103
Rubin, 1993b e Butler 2003c.
identidades homossexuais. Empiricamente se constata a existência de identidades e
práticas sexuais diferentes das práticas heterossexuais, assim como se constatam novos
arranjos de parentesco. Também Lévi-Strauss certamente encontrou práticas sexuais
diferentes das práticas heterossexuais. Quando, então, Butler e Rubin dizem que as
identidades de gênero derivam das relações de parentesco, referem-se às identidades de
gênero que podem ser consideradas legítimas ou “pertencentes à cultura”. Da mesma
forma, quando discutem a superação do parentesco tal como está concebido, referem-se à
possibilidade de legitimar outras formas de parentesco e, inclusive, de poder nomeá-las
como “parentesco”.
104
Não se trata de conceder licença para diferentes formas de
sexualidade, mas, sim, de conceder licença para diferentes formas de parentesco, ou seja,
de novos laços sociais. Trata-se de legitimar relações e indivíduos inseridos nessas relações
que, por efeito de um sistema de alianças concebido a partir de uma Lei inalterável, não
são considerados “humanos”. Se a Lei, como diz Lévi-Strauss, cria a cultura, essa
concepção de cultura não incluiria alguns indivíduos como “humanos”.
Assim, desde a primeira crítica ao estruturalismo lembrada acima, na visão de
Butler, seguindo de perto a de Rubin, não há lugar, em Lévi-Strauss e em Lacan, para
mudanças nas relações de parentesco.
Mas talvez possamos fazer uma objeção a Butler. Lévi-Strauss, de acordo com o
método da lingüística estrutural, buscava investigar as invariantes para além da multidão
de variáveis identificadas. Não seria o caso de enquadrar os novos arranjos de parentesco
entre as variáveis possíveis de uma cultura, mas não como elementos fundamentais dos
sistemas simbólicos que nela operam? Ou, ainda, como patologia?
Na Introdução à obra de Marcel Mauss, Lévi-Strauss afirma que, dentro de cada
sociedade, é inevitável que exista uma porcentagem de indivíduos que estão situados fora
do sistema. As variadas formas de transtornos mentais característicos de cada sociedade e a
porcentagem de indivíduos afetados por elas são elementos constitutivos do equilíbrio
dessa sociedade. Lévi-Strauss descreve a relação desses indivíduos com o grupo:
104
Christian Dunker, em comunicação pessoal, observou que o objetivo de Lévi-Strauss não era, no início,
tematizar a sexulidade, mas a aliança. Rubin e Butler trariam ao primeiro plano, na discussão sobre o
parentesco, a temática da sexualidade, quando isso para ele era totalmente secundário. A separação entre
sexualidade e aliança já era admitida por Lévi-Strauss. Parentesco e sexualidade não teriam uma ligação
biunívoca (?), assim como, tampouco, modo de gozo e laço social. O resultado da separação entre parentesco
e sexualidade acaba por confirmar a separação entre prática particular de gozo e tipo de laço social.
Nessas condutas, em aparência aberrantes, os “doentes” não
fazem senão transcrever um estado do grupo, pondo em evidência uma
ou outra de suas constantes. Sua posição periférica em relação a um
sistema local não impede que formem parte integrante do sistema total;
além disso, se não se integram como testemunhas doces dentro do
sistema, colocariam esse sistema total em perigo de desintegração em
sistemas locais. Poderia, por tanto, afirmar-se, que dentro de cada
sociedade, a relação entre condutas normais e condutas especializadas é
complementar.
105
Posicionemos Butler em relação a essas duas objeções. Assumir as novas formas de
parentesco como sendo apenas variáveis internas à cultura não elimina o caráter de
inteligibilidade cultural presente na interdição do incesto, na medida em que este relaciona
os indivíduos dentro de um sistema de alianças entre famílias formadas por casais
heterossexuais e seus filhos biológicos. Estabelecer um paradigma para regular a
legitimidade do desejo é justamente o que Butler questiona. O que ela condena é a
normatização. O invariante nas formas de parentesco é alçado à posição de condição de
inteligibilidade.
Já em relação a um suposto equilíbrio que a sociedade encontra ao relacionar
condutas normais e condutas especializadas, Butler tem uma posição um pouco mais
complexa. Ela parte dos indivíduos que estão aparentemente “fora do sistema”. Não é à toa
que a transexualidade e os casos de intersexo se tornam paradigmas para refletir sobre a
noção de gênero. Da mesma forma, as novas modalidades de parentesco servem de base
para o questionamento da concepção lévi-straussiana e lacaniana de parentesco. No
entanto, Butler sente a ameaça de uma incorporação, seja pelo estruturalismo, o qual ela
terá que negar, seja por um foucaultianismo, que ela também recusará, das “resistências”
ao sistema, representadas pelos novos arranjos de parentesco. Há que se mover do lugar de
assimilação pelo sistema ou pelo poder para abrir espaço para o novo. Esse é o trajeto que
realizou ao definir as normas simbólicas como normas sociais e ao adotar uma concepção
de norma criadora, como vimos no item anterior. Se o parentesco sai de um lugar de
sistema simbólico para se tornar uma prática social e se, ao se tornar norma, cria realidade,
os novos arranjos se tornam legítimos.
Por último, para Butler, os estudos pós-parentesco em antropologia não foram
acompanhados pelos psicanalistas e a psicanálise, portanto, ainda depende do parentesco
heterossexual para teorizar a formação sexual do sujeito. (2003c, p.256). O próprio Lévi-
105
Lévi-Strauss, “Introduccion a la obra de Marcel Mauss”, in Mauss, M., Sociologia y Antropologia,
Editorial Tecnos, pp20-21.
Strauss (2000) afirmará que seus pontos de vista de mais de cinqüenta anos (As estruturas
elementares de parentesco é de 1949) não coincidem mais com seu pensamento atual. Dirá
que a teoria da troca não precisa estar vinculada às diferenças sexuais.(Strauss, apud
Butler, 2003c) Butler se apóia em Strauss nesse momento para questionar a recusa de
alguns psicanalistas franceses em aceitar a homoparentalidade. “..se questionarmos o
postulado pelo qual o complexo de Édipo, concebido em termos rígidos, torna-se a
condição da própria cultura, como então retornamos à psicanálise uma vez ocorrida essa
desvinculação?”
A própria Butler aponta a saída para a psicanálise. Trata-se justamente de recusar
uma concepção rígida do modelo edípico. O complexo de Édipo pode assumir várias
formas culturais e pode, ainda, não ser considerado condição normativa da cultura. Butler
não acredita em sua universalidade. E, ainda que fosse universal, poderia não ser condição
da cultura, mas apenas um nome para a triangularidade do desejo. Essa triangularidade
pode ser investigada pela psicanálise nos modelos não-normativos de parentesco, desde
que a psicanálise não fique “..associada exclusivamente ao momento reacionário no qual a
cultura é compreendida como tendo por base uma heterossexualidade irrefutável.” A
proposta de Butler à psicanálise é a de que esta repense sua noção de cultura a partir dos
novos parentescos e dos novos arranjos sexuais.(2003c, p. 258).
Considerando o conjunto de críticas que Butler faz à noção de parentesco, parece-
me que ela opera um erro estratégico ao mesclar as idéias de Lévi-Strauss, Lacan e, ainda,
de Freud. Existe, sem dúvida, em sua posição, uma discordância com relação ao
estruturalismo, assim como a recusa de uma concepção de Édipo clássica, baseada na via
da identificação. Mas, ao mesclar os três autores, move-se para uma posição de
enfrentamento generalizado da psicanálise, o que incorre no risco de lhe tirar as
possibilidades de uma parceria, inclusive política.
Para responder às críticas feitas às reivindicações de legalização da união
homossexual na França, ou seja, à questão do “casamento gay”, Butler quis mostrar uma
realidade mais complexa, discutindo a idéia de parentesco homossexual. Dessa forma
chegou ao questionamento da concepção de parentesco em Lévi-Strauss e sua influência
sobre a psicanálise, freqüentemente convocada para instrumentalizar as ações e decisões
jurídicas. Seu objeto de reflexão era, portanto, parentesco e sistema de alianças.
Inevitavelmente chegou à noção de cultura.
Talvez por questões políticas, considerando seus interlocutores possíveis, manteve sua
crítica no plano das queixas dirigidas a Freud e a um Lacan dos anos cinqüenta, que,
naquele momento, incorporava a noção de inconsciente, via Lévi-Strauss, e desenvolvia o
“simbólico” na esteira do estruturalismo. Como foi comentado no início desse capítulo,
Butler parece apenas queixar-se das normas que regulam a sexualidade, que impõem a
heterossexualidade como obrigatória, que “patologiza” os seres que não se enquadram nas
identificações standard.
De fato, se a resposta de Butler é dirigida à psicanálise num sentido “macro”, ou seja,
aos mais diversos estudiosos da psicanálise em seu artigo chega a citar Hanna Segal -,
aos leigos, à psicanálise compreendida em “linhas gerais” por parte do universo feminista
americano, aí talvez faça sentido uma crítica ampla, misturando os diversos níveis de
resposta. Mas, ainda que seus interlocutores façam essa mistura,
106
Butler poderia, talvez,
tornar claras algumas distinções.
Butler poderia separar as teorias sobre o Édipo em Freud e em Lacan, mostrando a
abertura em Lacan para se pensar o Édipo em termos de posições dentro de uma estrutura.
Isso permitiria imaginar tanto homens como mulheres ocupando funções simbólicas
paterna e materna. Quais as conseqüências de uma mulher desempenhar uma função
paterna e vice-versa? Não me parece que seja indiferente. Essa seria uma alteração de
parentesco. Butler aponta para essa questão quando sugere que a psicanálise pode se
ocupar da triangularidade em arranjos de parentesco não-normativos. No entanto, deixa
claro que recusa a estrutura edípica como universal.
As críticas feitas ao estruturalismo de Lévi-Strauss e à presença desta teoria em
Lacan terminam por enquadrar este segundo como um teórico igualmente estruturalista.
Mas, ainda que a teoria de Lévi-Strauss, por se basear em observações antropológicas e,
posteriormente, elevar as regras de parentesco a condições universais, tenha uma
incidência sobre a organização de sexo e de gênero na sociedade, poder-se-ia relativizar a
crítica a Lacan, levando em conta, por exemplo, que este concebe o conceito de “diferença
sexual” esvaziado de conteúdo. Mas, como vimos, Butler recusa a transcendentalidade
deste conceito, questionando a distância que ele poderia ter de sua origem no campo social.
Apesar de Butler tomar conhecimento do conceito de “diferença sexual” dos anos
setenta, Butler não investiga as possíveis conseqüências do fato de que, na construção
lacaniana, o “real” passa a ter precedência sobre o “simbólico”, o que talvez lhe trouxesse
106
Cf. Butler 2003c, p. 243.
novos dados para refletir sobre a proximidade teórica entre Lacan e Lévi-Strauss em suas
críticas. Segundo Fink (1998), no final dos anos setenta e começo dos anos oitenta, Lacan é
mais conhecido como estruturalista nos Estados Unidos e, apesar de Butler citar o
Seminário Livro 20, Mais Ainda, em sua tese de doutorado
107
, talvez se tenha mantido em
acordo com a corrente americana dominante.
Butler não opta por se aprofundar na teoria lacaniana. Toma simplesmente o caminho
do enfrentamento do estruturalismo e, por outro lado, da construção de uma teoria de
gênero que, como vimos, pretende dar conta dos gêneros não-inteligíveis.
Já na sua tese, em 1987, ao escrever um capítulo sobre a noção de desejo, em Lacan,
intitulado “Lacan: The opacity of desire”, Butler explicitamente recusa a noção de desejo,
a de diferença sexual, e os pressupostos em relação à prevalência e à função universais do
tabu do incesto. Recusa a “Lei do Pai” como fundadora da cultura. Recusa a noção de
desejo como “falta”. Butler se pergunta: “É necessariamente o caso de considerar o desejo
não apenas fundado numa proibição, mas também estruturado em relação a ela? Será a lei
assim tão rígida? E será a satisfação sempre tão fantasmática?” (1999, p. 204).
4.6 Do sujeito ao humano
Como feminista, Butler considera que, do ponto de vista de um questionamento
sobre o que funda a categoria de sujeito, já foi feita a pergunta sobre se as mulheres são
parte da comunidade universal da espécie humana. (2004, p. 227). Essa questão, ela
também parece estendê-la aos “gêneros não-inteligíveis”.
Se se vai até o fim do questionamento de Butler sobre as noções de “simbólico” e
de “diferença sexual”, ela parece ter encaminhado a discussão para a seguinte pergunta:
será que o fato de se aceitarem esses conceitos não corroboraria a política corrente de
recusar o atributo de “humano” e de não permitir uma vida “vivível” àqueles que não se
enquadram como “gêneros inteligíveis”? A violência que aparece em relação aos
transgêneros e também aos homossexuais não seria reforçada por uma postulação teórica
como essa qual seja, o entendimento da diferença sexual como estrutural e inalterável, a
compreensão do parentesco em termos de uma estrutura simbólica e o estabelecimento da
lei da proibição do incesto como condição para a emergência da cultura?
107
Butler, J., “Subjects of desire Hegelian Reflections” in Twentieh-Century France, Columbia University
Press, New York, 1999 (1987). O capítulo sobre Lacan não fazia parte da primeira versão da tese, em 1984,
mas foi incluído para a publicação em 1987.
Aqueles que vivem fora da estrutura conjugal ou mantêm formas de organização
social para a sexualidade que não são monogâmicas nem quasi-maritais, diz Butler, são,
cada vez mais, considerados “irreais” e seus amores e perdas valem menos que os
“verdadeiros” amores e as “verdadeiras” perdas. Sua intimidade e sua vida social são
consideradas ilegítimas e irreais. Nega-se a realidade e a verdade das relações em questão.
Não pertencem à cultura, não são humanas.(2004, p. 26).
Se, no final do capítulo 3, expusemos a proposta de Butler de manter-se como “não-
inteligível”, abandonar a categoria de “humano” e dispensar temporariamente o
reconhecimento como formas de criticar as normas sociais estabelecidas, vemos, neste
momento, uma outra proposta. Butler executa aqui seu projeto, que acredita dever ser o
mesmo, tanto por parte da teoria queer, como por parte dos movimentos ativistas
transexuais e dos intersexos, de “distinguir entre normas e convenções que permitem às
pessoas respirar, desejar, amar e viver, e aquelas normas e convenções que restringem ou
evisceram as próprias condições da vida.” (Butler, 2004, p.8). Esse, me parece, foi seu
trabalho em relação aos conceitos lacanianos. Para garantir o “humano”, é preciso, por
exemplo, garantir que o “simbólico” mude.
108
Na busca de uma definição de gênero, as elucubrações acerca do sujeito, em Butler,
ora estabelecido pelos efeitos ontológicos da performatividade, ora dotado de
intecionalidade para executar as paródias de gênero, em Undoing gender cedem lugar a um
questionamento sobre o “humano”, talvez mais condizente com a preocupação com a
transformação da sociedade.
108
A psicanalista carioca Márcia Arán, em seu trabalho com transexuais, adota o ponto de vista butleriano de
que somente concebendo o “simbólico” como transformável, pode-se tirar a transexualidade do campo do
abjeto. “Se compreendermos a lei como uma estrutura anterior e transcendente às manifestações sociais,
políticas e necessariamente históricas, o simbólico será apresentado como uma força que não poderá ser
modificada e nem subvertida sem a ameaça da psicose. No entanto, se compreendermos a lei como algo que é
vivido e constantemente reiterado de forma imanente às relações de poder, as possibilidades de modificação e
subversão, inclusive do simbólico, não necessariamente significarão uma ameaça à cultura e à civilização.”
(Arán, 2006, p. 58.).
CONCLUSÃO: GÊNERO, UMA CATEGORIA POLÍTICA
Seguindo de perto o raciocínio de Butler, percebo agora que concluir não é apenas
terminar. Concluir, de alguma forma, é recomeçar. Digo isto porque, ao me dar conta de
que uma conclusão deve retomar as perguntas iniciais e, igualmente, as conclusões parciais
de cada capítulo, percebo que se trata, numa certa medida, de uma repetição. Mas, se para
“gênero”, para a materialidade do corpo e para a lei, são as repetições que fornecem a
condição de mudança e de transformação, o mesmo pode acontecer com uma tese de
doutorado. Eis aí um risco: na repetição algo fracassa, falha, mas também irrompe e faz
surgir um “novo”. Mas, recomecemos do início.
Parti da pergunta sobre a noção de “homem” e de “mulher” com a qual eu deveria
trabalhar na clínica da homossexualidade. Questionava-me sobre se o conceito de gênero
seria útil e de que maneira, já que a própria homossexualidade é uma categoria de
definição ampla e pouco consensual na psicanálise. Suspeitava que “gênero” seria
importante, na medida em que informa a visão que os pacientes têm de si, assim como as
teorias que abordam a homossexualidade através de definições quanto ao que é próprio ou
impróprio do “homem” ou da “mulher” serem, pensarem ou desejarem.
Em relação ao “homem” e à “mulher”, encontrei uma primeira resposta em Butler:
a de que não há “ser” por trás dessas categorias. Butler invoca Nietzsche, de A Genealogia
da moral, para reafirmar que o ‘fazedor’ é uma mera ficção acrescentada à obra a obra é
tudo. (Butler, 2003, p. 48). A obra”, em Butler, são os atos performativos. Eles produzem
um efeito ontológico. Fazem-nos acreditar que existem seres homens e seres mulheres
como substâncias. Essa é uma diferença radical entre Butler e aqueles autores que, como
Stoller, trabalham com um núcleo de identidade de gênero. Essa substância, como verdade
última do sujeito, para Butler, não existiria: o “masculino” e o “feminino” não são
substâncias originais, essências universais. Butler destaca a idéia de que os atributos de
gênero são regulados por diretrizes culturais que estabelecem uma suposta coerência entre
eles. Como conseqüência da análise que desconstrói a noção de gênero e permite perceber
a imposição de uma ordem binária, entrelaçada a um discurso de inteligibilidade social,
Butler desloca o transexualismo, visto por Stoller como patologia, para a transexualidade,
como uma possibilidade de existência legítima.
Butler se aproxima de teóricos da construção social, quando entende que se pode
fazer leituras e classificações a partir dos corpos, mas que a redução das diferenças a uma
oposição binária é fruto de determinados contextos históricos que, com isso, inviabilizam
a percepção das várias possibilidades corporais e de gênero. Essa oposição binária dos
corpos, em grande parte fruto de construções e recortes realizados pela biologia,
contribuem para a valorização do que Butler chamou de “gêneros inteligíveis”, pessoas que
supostamente mantêm coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Os “gêneros
não-inteligíveis”, por sua vez, ficaram relegados à esfera da não-aceitação e, por vezes, até
da invisibilidade. Tornaram-se o “abjeto”. Não têm inteligibilidade cultural.
Com o conceito de gênero, Butler foi traçando o contorno da problemática da
homossexualidade. Na verdade, nosso trabalho mostrou que se pode acrescentar à
homossexualidade a transexualidade, os casos de intersexo e tantos outros mais que se
enquadram na idéia de “gêneros não-inteligíveis”. Diante do mito das substâncias
“homem” e “mulher”, criou-se o campo do “abjeto”. Do “abjeto” pouco se escuta, pouco
efetivamente se sabe.
Ao abandonarmos a busca de uma definição de “homem” e de “mulher”, ficou a
questão quanto ao que revelariam os “gêneros não-inteligíveis” sobre a sexualidade. O que
revelariam seus corpos? Assim como Weeks, Butler recusa a idéia de que o corpo expressa
uma verdade fundamental sobre a sexualidade. Esta tem tanto a ver com nossas crenças,
ideologias e imaginações, quanto com o nosso corpo físico. Os corpos não têm nenhum
sentido intrínseco. O “corpo-homem” e o “corpo-mulher”, lembrando ainda que há casos
de intersexo, nada revelariam de verdade absoluta. Como então se constroem
normalidades, patologias, ou mesmo identidades? Para isso são necessárias teorias e
ideologias.
A partir da teoria psicanalítica de Freud, vislumbrou-se a aquisição de gênero: como
tornar-se homem e tornar-se mulher, pela via das identificações. A homossexualidade, em
Freud, recebeu uma abordagem complexa. Gayle Rubin se encarregou de questionar o
lugar destinado à sexualidade lésbica e as possibilidades de se imaginarem outras formas
de parentesco. É no seio do feminismo que “gênero” ganhou a dimensão de ser um
conceito que questiona as estruturas de poder. E questionou a psicanálise como teoria que
serve à manutenção das relações de poder existentes. Instalou-se uma pergunta: a teoria
psicanalítica se limita a reproduzir a organização social? Ela apenas narra a aquisição
(normal ou problemática) do gênero masculino e do gênero feminino? Ou a organização
social, através de uma análise adequada das relações de gênero ou da forma como se
adquire gênero, pode ser transformada? “Gênero” se tornou categoria política, ganhou a
tarefa de buscar transformações nas relações. A psicanálise, através de algumas
representantes feministas, de correntes psicanalíticas variadas, fez suas propostas. Essas
feministas consideraram, ainda, que certos termos utilizados na teoria lacaniana ajudam a
perpetuar a relação hierárquica que existe entre os gêneros.
Butler não fugiu a essa discussão, mas foi além. Expandiu a questão da
desigualdade entre os gêneros igualmente para os “gêneros não-inteligíveis”. Também fez
a crítica de termos psicanalíticos, mas não pela sua influência no imaginário social (que
certamente deve ser considerado, afinal ajuda a informar não apenas as concepções leigas,
quanto também a dos especialistas), e sim por se alçarem à condição de categorias
transcendentais, pretensamente imunes às transformações da sociedade e advogando para
si o direito de impor regras de inteligibilidade cultural.
A definição de gênero como ato performativo trouxe algumas questões. Com a
idéia de que a performatividade” produz uma aparência de substância, Butler precisou
responder sobre a materialidade do corpo. Recuperamos seu ponto de partida em Merleau-
Ponty. Não havendo separação mente-corpo, concebe-se um corpo-existência. Esse corpo,
por sua vez, não é um “ser” que tem algo a expressar. Ele tem uma fronteira variável, uma
superfície permeável às normas que o regulam politicamente de acordo com a hierarquia
de gênero e a heterossexualidade compulsória. Butler dirá que se trata de um “corpo-
gênero”.
Gênero como “estilo da carne”, como estilo corporal, é um “ato”, tanto intencional
quanto performativo. Com essa definição, Butler abriu a discussão sobre a determinação do
sujeito. Sua discussão, no entanto, é conduzida a partir dos fatos (das paródias) e da
necessidade de transformação da sociedade. São as repetições que fornecem condição de
mudança, seja pela intenção de subverter as normas de gênero, presentes na paródia, seja
por uma qualidade intrínseca à própria repetição, que ao tentar reproduzir a norma de
gênero assumida, falha, fracassa e produz algo novo. Que sujeito está suposto aí?
Determinado pelas normas sociais? Determinado por algo que se manifesta na repetição?
Em relação à teoria da construção social, Butler se posiciona: nem tudo é construído. Ela
abre espaço para a noção de pulsão, embora admita que também se pode pensá-la como
uma construção do “não-construído”. Seu discurso, que nunca abandona a psicanálise,
migra de uma crítica ao Freud do complexo de Édipo para uma “aposta” na pulsão, como
algo que nos determina e que só podemos parcialmente conhecer, algo que excede as
intenções do sujeito. E retorna a Merleau-Ponty, com a idéia de que a sexualidade nos
estabelece como fora de nós mesmos. Além de uma determinação social, o sujeito ganha
uma determinação pulsional. É da pulsão, conceito relacionado à sexualidade, que vem as
possibilidades de transformação. Butler relacionou gênero, sujeito e corpo. O que dizer da
linguagem? Antes de fazer um comentário final sobre esse aspecto da obra de Butler,
lembremos que ela não abandona a militância. Precisa lidar com o fato de que a pulsão não
deve tornar-se obstáculo para uma ação política em defesa do abjeto. Uma de suas
estratégias, a “carta escondida na manga”, seria lembrar que a psicanálise também é um
discurso que constrói seus objetos (pulsão). Há um paradoxo. A pulsão “existe” e as teorias
constroem seus objetos. É essa tensão que, em Butler, diferentemente da psicanálise,
permite aceitar as mudanças do corpo (transexualidade) e a transformação do “simbólico”.
Afinal, qual é o limite para o uso de um modelo teórico?
Quando Butler aborda o “abjeto”, através dos casos de Herculine Babin, David
Reimer/Brenda e das questões levantadas pela transexualidade, vimos imediatamente
colocar-se o problema de uma atitude ética, de respeito ao outro e de necessidade urgente
de transformação de certas normas sociais. O recolhimento daquilo que excede a norma é
parte deste projeto, é sua ação política. Minha intenção, através da exposição dos dois
casos que Butler cita e do debate entre a psicanálise de Shepherdson e de Millot versus a
“transexualidade” apresentada por Bento, foi, como em Butler, dar voz ao “abjeto”,
evidenciar o mal-estar causado por determinados pressupostos acerca do gênero, do corpo
e da própria organização social. Alguns desses pressupostos estão presentes na teoria
psicanalítica ou são informados por ela.
Ao debater com psicanalistas lacanianos os conceitos de “diferença sexual”,
“simbólico” e “parentesco”, vimos que Butler, em realidade, direcionava sua crítica ao
estruturalismo de Lévi-Strauss e à incorporação do mesmo por Lacan. Para lidar com os
“gêneros não-inteligíveis”, Butler argumentou que não seria possível aceitar conceitos
elevados à condição de transcendentais. Recusou qualquer afastamento entre aquilo que se
passa no plano do vivido, ou seja, do social e, de outro lado, as normas e categorias
construídas para dar conta desse plano. Uma estrutura simbólica imporia sua organização
como uma camisa-de-força, desconhecendo sua inadequação aos membros que constituem
a sociedade. O estruturalismo, na visão de Butler, mostrou dificuldade em conceber um
lugar para os “gêneros não-inteligíveis”. É necessário fazer muita elucubração teórica para
enquadrá-los nas categorias “homem” e “mulher”, como quer Soler. Além disso, as novas
formas de parentesco exigiriam da psicanálise uma outra definição de cultura.
Butler traz ao primeiro plano de sua reflexão a preocupação com a categoria de
“humano”. É a reflexão sobre a exclusão de determinados seres da categoria de
“humanos” que deve orientar as disciplinas que lidam com o humano.
O que dizer a Butler? Sua relação com a psicanálise lacaniana é tensa. Seu diálogo
com psicanalistas lacanianos e seu interesse por Kristeva e Irigaray induz seus leitores a
pensar que ela partilha da concepção de linguagem como código. Leva a crer que uma
mudança no “simbólico”, no “parentesco” e na “diferença sexual” bastariam para permitir
a psicanálise lacaniana uma compreensão dos “gêneros não-inteligíveis”. Butler não quer
abrir mão de seu “encanto” com a psicanálise, uma vez que identificou a noção de pulsão
como fonte possível para as novidades que irrompem na repetição das normas de gênero.
No entanto, precisa abrir mão do Lacan estruturalista que conhece. Que soluções Butler
poderia encontrar para suas questões? Como manter seu interesse pela psicanálise sem se
por a brigar por modificações dos conceitos lacanianos? Qual psicanálise permitiria lidar
com os “gêneros não-inteligíveis” de maneira não “patologizante”? Qual psicanálise
permite um posicionamento político e uma ação de transformação no sentido de aceitação
dos “gêneros não-inteligíveis”?
Se retomarmos a definição de gênero como ato performativo, vemos que Butler
toca a questão da linguagem. Ato performativo é um conceito oriundo de Austin, com
releitura de Derrida. Que conseqüências poderiam advir, se forem levadas adiante as
relações entre a psicanálise e o pragmatismo, ao qual estes dois autores podem ser
referidos
109
? Essa seria uma via de exploração. Uma segunda via seria retomar a sua
leitura de Kristeva e de Irigaray e, com essas autoras, ver que brechas existem para
“recolher” os “gênero não-inteligíveis” do campo do abjeto, dentro de uma psicanálise
originalmente lacaniana, mas que ganhou outros contornos a partir de questões
“feministas”.
110
A terceira possibilidade seria investigar, dentro da psicanálise lacaniana, o
período em que Lacan se torna menos estruturalista e concede mais importância ao registro
109
Refiro-me aqui ao pragmatismo lingüístico, tal como Costa o aborda. Austin e Derrida são citados como
filósofos que contribuem para a construção desse campo teórico. Isso não significa dizer que são filósofos
“pragmáticos”. Cf. Costa, 1994.
110
Shepherdson argumenta que a recepção dessas autoras pelas feministas americanas é parcialmente
equivocada. Em Vital Signs (2000) busca recuperar, através de escritos clínicos dessas autoras, seu
compromisso com a teoria lacaniana.
do real, tirando a predominância do “simbólico”. Ainda assim, as críticas de Butler fariam
sentido? Em que aspectos? Deixo a segunda e a terceira vias para outros exploradores.
Abrirei uma “picada”, o suficiente para “olhar a vista” na primeira via, das relações entre a
psicanálise e o pragmatismo.
Freire Costa introduz a pragmática da linguagem” como uma expressão que,
apesar de reunir teorias distintas, mantém em comum a idéia de que “a linguagem nada
mais é do que uma habilidade particular dos organismos humanos, desenvolvida na
interação com o ambiente.” Recusa as concepções de linguagem como forma; estrutura,
matriz e código.
111
Recusa, igualmente, postulados apriorísticos com pretensões à
universalidade”. Estes seriam substituídos por uma valorização dos atos de fala em seus
múltiplos contextos e “descrições das regras de uso dos termos e expressões nos diferentes
jogos da linguagem ordinária”. Ora, o incômodo de Butler com o estruturalismo e sua
tentativa de recusar os postulados a priori e de aproximá-los do campo do social permitem-
me sugerir uma aproximação de sua posição com essas características. Da mesma forma,
quando Freire Costa afirma que a “pragmática da linguagem” destaca a ética e a
preferência moral, deixando em segundo plano, se for o caso, a objetividade científica do
conhecimento, “como aquilo que permite decidir sobre o valor das idéias admitidas”,
visando uma maior solidariedade entre os sujeitos “capazes de se reconhecerem como
semelhantes em crenças, desejos e aspirações morais”, ele está, como Butler, assumindo
um compromisso político.
Mas, que lugar de fato ocupa a linguagem na obra de Butler? Como isso muda ao
longo desses quase vinte e cinco anos em que ela vem produzindo? Isso é certamente um
tema para outro trabalho. Da mesma forma, também com Costa Freire, se poderia abrir
uma trilha na direção de uma concepção de pulsão que solicita a produção de atos
intencionais criativos e enriquecedores da vida mental”.
112
Essa poderia ser a resposta para
uma das perguntas lançadas na introdução. A psicanálise, livre da normatividade e do
preconceito, poderia compreender novos gêneros e novas sexualidades como uma
necessidade criativa.
111
Costa, J. F. Redescrições da psicanálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 8.
112
Costa, J.F. O vestígio e a aura.Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 49. Costa afirma que a visão
naturalista pragmática admite que nem todas as pulsões são sexuais. Segundo ele, essa idéia se aproximaria
do conceito de pulsão criativa, presente em Rank, Balint e Winnicott. Certamente Butler se refere à pulsão
sexual, mas sua insistência na falha da repetição, seja quanto às normas de gênero, materialização do corpo
ou citação da lei, como algo que produz o novo, pode ser uma idéia que se beneficiaria de uma concepção de
pulsão como esta.
“Gênero” como “ato performativo” fez-me adotar a postura de que não se pode
pensar ou fazer psicanálise acreditando que se está isento de um posicionamento político.
Da mesma forma que Butler, como feminista, recusa uma noção unitária e estável de
“mulheres”, parece-me agora fundamental recusar a noção de “homossexuais” na
psicanálise. Termo difícil de se definir, como já tínhamos visto com Stoller. Termo que
aprisiona sexualidades, como já mostraram Weeks e Foucault. Ainda assim, entretanto, já
que Butler propõe que se mantenha a categoria “mulheres” como uma necessidade política,
acredito haver a necessidade em se manter “homossexuais” ou talvez “gênero” como
termos que provocam, que interrogam permanentemente, ou seja, como uma forma de
quebrar seus próprios significados substantivos e prescritivos, de prover um lugar de
abertura para uma permanente re-significação.
Como disse Haraway (2004), gênero é uma categoria política. Finalizo com Butler:
É uma questão de desenvolver no seio da lei, da psiquiatria, da
teoria social e literária, um novo e legitimador léxico para a
complexidade de gênero que sempre vivemos. (.....) A concepção de
política que uso está relacionada à questão da sobrevivência, física e
psíquica. Como criar um mundo em que aqueles que entendem seu
gênero e seu desejo como não normativos possam viver e prosperar sem
a ameaça de violência do mundo externo e sem o sentido pervagante de
sua própria irrealidade, que pode levar ao suicídio ou a uma vida
suicida. (Butler, 2004, p. 219).
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