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Filomena Borges
Aluísio Azevedo
I
FLORES DE LARANJEIRA
O Borges não cabia em si de contente no dia de seu consórcio com a filha de D. Clementina.
Estava a perder a cabeça - ia e vinha por toda a casa, radiante, cheio, abraçando os
convidados, forçando-os a participarem daquela felicidade que marcava a melhor e a mais
extraordinária época de sua vida.
Era homem de meia idade, quarenta a quarenta e cinco anos, robusto, socado, fisionomia
franca e extremamente bondoso, movimentos acanhados de quem não convive em alta
sociedade, e um perene sorriso de dentes puros e perfeitos.
Usava o bigode rapado e uma barbinha de orelha a orelha, por baixo do queixo, o que o fazia
parecer mais feio e mais velho. Nunca saía de suas calças de brim mineiro, do seu invariável
paletó de alpaca, dos seus sapatões de bezerro e do seu chapéu do Chile. Um enorme guarda-
chuva sempre debaixo do braço.
Todo ele estava a revelar a sua infância no campo, descalço, o corpo à vontade, as madrugadas
feitas de pé, ao primeiro sol.
Nascera em Paquetá, onde se criou à larga com leite de jumenta, e onde residiu até à ocasião
de perder o pai, um afamado e rico mestre de obras, português, antigo, econômico e ríspido,
que, ao morrer, lhe legou uma dúzia de prédios bem edificados, alguns terrenos, que mais tarde
valeriam muito, e o inestimável hábito de ganhar a vida.
Borges sucedeu ao pai no trabalho, fez-se construtor como ele, e, em poucos anos, tornou-se
um dos proprietários mais ricos da Corte. Todavia, o muito dinheiro, se não conseguiu fazer dele
um extravagante, muito menos logrou precipitá-lo no orgulho e na avareza - o coração do bom
homem continuou tão franqueado às virtudes, quanto sua bolsa fechada às loucuras e às
vaidades.
Além desses dotes, tinha uma saúde de ferro e dispunha de urna força física de tal ordem, que
se tornou lendária entre as pessoas que o conheciam de perto.
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Citavam anedotas a esse respeito: Um dia, estando a administrar umas obras, escapara dos
andaimes um dos pedreiros, e o Borges apanhou-o no ar, como quem apanha um chapéu de
palha; outra vez, tratando-se de safar um pobre diabo, que ficara entalado entre uma andorinha
e uma parede - o nosso Borges arranjou um ponto de apoio, meteu os ombros contra a
andorinha, e esta virou e caiu imediatamente para o lado oposto. 1
E, como estes, muitos outros fatos, verdadeiros ou não, corriam de boca em boca; a respeito do
possante mestre de obras.
Verdade é que bastava observar aquela carne transpirante e sadia, aqueles pulsos rijos e
cabeludos, aquele peito largo, aquele pescoço nervoso e duro, para que a gente fizesse logo
uma idéia justa do que seria capaz o Borges em matéria de forca muscular.
Contudo, ninguém era menos amigo de questões. Nunca se metia em barulho; às vezes até,
coitado, suportava em silêncio certos desaforos: mas também, quando lhe chegasse a mostarda
ao nariz, o contendor podia entregar o seu ao boticário, porque o esborrachamento havia de ser
memorável.
Devido a essa pujança excepcional, davam-lhe a alcunha significativa de João Touro.
João Touro era geralmente tido e havido pelo mais completo modelo de bondade e de bom
senso. Ninguém lhe fosse pedir manifestações brilhantes de talento, concepções artísticas,
descobertas científicas; ele, coitado! não era "homem de estudos" e nunca também lhe
"puxaram muito pela memória". Aos doze anos, saíra da aula de primeiras letras para se meter
logo no trabalho; mas tinha muito "bom pensar" e um tino admirável para os negócios. Seu único
vício consistia no rapézinho Paulo Cordeiro - nada de charutos! - nada de bebidas! - e grande
aversão às mulheres que não fossem tão puras como ele.
Antes do casamento, ninguém lhe conheceu uma inclinação amorosa, uma fraqueza; e nunca
ninguém lhe descobriu outra preocupação que não fosse a do seu trabalho e a do seu "Urso".
Urso vinha a ser um enorme cão de São Bernardo, que o acompanhava, havia muitos anos.
Animal bonito, todo negro, e de uma aparência tão feroz, que lhe dava inteiro direito de usar do
nome.
Todavia, o mestre de obras fora algumas vezes requestado pelas mulheres. Várias trintonas lhe
lançaram a rede, mas ele sempre se desviara - sorrindo... e corando...
Entre essas, distinguia-se D. Chiquinha Perdigão, mulher de firma comercial; negociante, muito
rica, com um bonito nome na praça - Viúva Perdigão & Cia.
O Borges, porém, não queria outros negócios com ela, além dos de puro interesse pecuniário, e
embalde o demônio da viúva empregava todos os meios para obrigá-lo a desistir de tal
resolução.
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Uma vez, chegou a tomar-lhe as mãos, confessar que o amava, que ele a podia fazer feliz; e
o bom homem, sem ter uma resposta, pôs-se a suar, a suar, até que fugiu. atônito e espavorido,
como se levasse uma fera atrás de si.
Só a filha de D. Clementina, a flor das moças do Catete, a bela Filomena, teve o dom de acordar
naquele coração encruado as fibras adormecidas do amor.
Ele próprio não atinara como "aquilo" se dera: Um dia, a convite de Guterres, foi à casa de D.
Clementina, viu a pequena, ouviu-a cantar ao piano um romance de Tosti, e desde esse
momento não ficou mais senhor de si.
E o amor, o desejo, a paixão, rebentaram-lhe por dentro, como um monstro que se levanta,
espedaçando a velha calma de quarenta anos.
Era a primeira vez que amava. O Borges, que até aí vivera para as suas propriedades e para os
seus prédios em construção, desde que viu Filomena, desde que concebeu a idéia de possui-la,
nunca mais pode compreender a existência sem a companhia dessa formosa criatura, por quem
logo se sentiu capaz de todos os sacrifícios.
Lamentava, contudo não ser mais novo; não dispor de mais atrativos, para melhor merecê-la.
Desejava ser mais fino, mais terno, mais civilizado; temia assustá-la com a sua medonha figura
de touro. Receava o contraste formidável de sua grossa corpulência, do seu abdome redondo e
farto, de suasos curtas e vermelhas, de seus pés enormes, postos em confronto com aquele
corpinho tão delicado, tão bem feito, com aquela pele tão branca, com aqueles pézinhos tão
sutis.
- Oh! aquele casamento realizava o melhor sonho de sua vida! Ele queria-a tanto!...
Os amigos ficaram pasmados quando tiveram notícia do fato:
- Que?!... - Pois o Borges, o "João Touro", aquele pax vobis ia casar! e logo com quem?... - com
a filha de D. Clementina - a moça mais romântica e mais cheia de fumaças que havia no
mundo!... Oh! - O João Touro com certeza não estava em seu juízo! - Ninguém lhe dizia que não
casasse; mas, que diabo! fosse buscar uma mulher mais própria para isso e não uma cabecinha
de vento, que só cuidava em patacoadas e maluquices!
O seu amigo mais íntimo e mais antigo, o Borroso, não se pode conter> quando o Borges lhe
falou nisso:
- Enlouqueceste, homem de Deus?! Não vês que vais fazer uma reverendíssima asneira?! Não
vês que aquilo não e mulher que te convenha?! Não desconfias, pedaço d'asno, que aquela
sirigaita e mais a raposa da mãe estão a farejar-te os cobres?!... Não compreendes que elas te
querem, porque tens para mais de quinhentos contos?! Ora vai deitar um caustico na nuca?!
João Touro, porém, não estava em circunstâncias de pensar. Todo ele era pouco para a sua
paixão e, depois de uma conversa agitada com o Barroso, concluiu, perdendo a paciência:
- Homem! queres saber de uma coisa?! Vocês podem rosnar como entenderem; o que lhes
afianço é que a própria D. Filomena seria capaz de me fazer desistir do casamento. Só ela!
Entendes tu?! só ela!
- Bem, filho! respondeu o Barroso com o gesto de quem solta alguma coisa das mãos. - Tua
alma, tua palma! Assim o queres, assim o terás. - Ora essa! Na certeza de que - para mim - se
levares a cabo a tua doidice - perdeste tudo!
- Pois que perca! É boa!
- E desde então não contes comigo para coisa alguma!
- Vai para o diabo! gritou-lhe o Borges, enterrando o chapéu na cabeça, e saindo furioso.
* * *
Entretanto a Filomena custou bastante resolver-se a dar o "sim".
Muito sonhadora, muito saturada de romantismo não se conformava com a idéia de se ligar a
um burguês ratão como o Borges.
Tinha o seu ideal, seu tipo e, com muito sacrifício, desistiria da esperança de encontrá-lo
no mundo.
Sempre fora muito dessas coisas. Aos quinze anos, perdia noites a ler novelas, várias vezes foi
a mãe encontrá-la assentada no jardim, olhos no céu, a cismar, a cismar, perdida nos seus
devaneios.
Era então franzina, muito descorada, e tinha grandes pupilas negras de um rebrilhar de tísica.
Quase nunca expunha o colo, e seus vestidos, sempre afogados, cosidos à garganta por um
estreito colarinho de rendas, davam-lhe o ar passivo e contrafeito de uma pensionista das irmãs
de caridade.
Quando ria, o que era raro, mostrava dentes grandes, alinhados e extremamente claros. De
perto, bem examinada, notava-se-lhe no canto dos olhos, estalando o de arroz, uma
redezinha de pequenas rugas trêmulas, que se espalhavam pelas fontes, até à entrança dos
cabelos. Em torno das sobrancelhas, finas e delgadas, nas mucosas das pálpebras, das
orelhas, do nariz e da boca - um tom arroxeado de umidade serosa e doentia. As pestanas,
muito escuras e rama1hudas, pareciam despregar e cair a cada movimento dos olhos.
Nas soirées fazia impressão vê-la assentada horas esquecidas a um canto da sala; mito direita
no seu espartilho, o corpo teso, os longos e vagarosos braços cruzados sobre o ventre, os
ombros empinados e contraídos, como por uma sensação de medo, trazia sempre o cabelo com
singeleza; quando não era solto, apenas enrodilhado na nuca, acentuando o desenho puro de
sua cabecinha e deixando lobrigar parte do pescoço, que então principiava a ser belo na sua
cor de camélia fanada.
Perdera o pai por essa idade, e sua mãe D. Clementina de Araújo, uma senhora magra e
comida de desgosto, impacientava-se silenciosamente por ver casada "aquela filha que Deus
lhe dera".
Era essa toda a sua preocupação e também toda a sua esperança: - "Só um bom casamento as
salvaria da triste situação em que se achavam".
O chefe da casa - o defunto conselheiro - não fora homem previdente, e gastara-se quase todo
em procurar luzir; os bens, que sobejaram da política, caíram na voragem do jogo e das
confeitarias. Ainda assim, durante a vida, nunca lhe perceberam sombra de dificuldades, nem
houve jamais quem melhor soubesse guardar as conveniências de sua posição social. Os chás
do defunto conselheiro eram deliciosos.
Quando uma apoplexia veio chamá-lo para a cova, os amigos tiveram que se cotizar para o fim
de lhe pagarem as dívidas, a viúva teve que trabalhar para manter decentemente a filha - essa
pobre filha, que da existência apenas conhecia alguns noturnos ao piano e alguns romances
traduzidos do francês; essa filha, que crescera à luz do gás, dançando desde os quatro anos, e
arruinando o estômago com os mesmos doces que arruinaram a fortuna do pai.
Trabalhar! Trabalhar seria o menos; esconder a precisão do trabalho é que era mais difícil!
Felizmente, o prédio em que moravam pertencia à órfã, e o imperador, que fora amigo do
defunto - amigo e compadre - havia de ajudá-la.
Assim foi: Sua Majestade não negou o seu augusto auxílio à comadre, e esta, por sua vez,
tratou de alugar q prédio e refugiar-se com a filha em uma casa mais em conta.
- Não seria, porém, metidas entre quatro paredes, que a menina arranjaria um bom casamento!
- Era preciso aparecer! - Mas os bailes, os teatros, os passeios, custavam tanto! - As modistas e
os armarinhos "pediam os olhos da cara por qualquer trapo mais no tom!"
Todavia, não desertaram da boa sociedade.
Mas quanto sacrifício! Quanta luta! Quanto heroísmo ignorado! Que de lágrimas não havia
escondidas naqueles vestidos enfeitados pela quarta vez! Quanta amargura naqueles
penteados, naquelas capas, naqueles chapéus! Quanto sofrimento, quanta resignação naqueles
leques, naqueles sapatinhos e naqueles sorrisos de amabilidade?
As vezes, tinham ambas que passar pior de boca, para não faltarem ao baile do Sr. Conde de tal
ou à soirée do Sr. Barão de tal e tal. Uma verdadeira campanha, um verdadeiro martírio,
principalmente para a rapariga, que, em constante revolta com a realidade, estava sempre a
sonhar coisas extraordinárias e regalias de alto preço.
A longa peregrinação pelas salas e pelas ruas dera-lhes um grande tato, uma grande
experiência. Conheciam a gente à primeira vista. Mãe e filha entravam familiarmente pelas
almas dos indivíduos e iam devassando o que estava por dentro, como se bisbilhotassem
uma gaveta franqueada.
Para a velha, então, não havia coração, por mais fechado, que se não traísse. Embalde
procuravam outros, em idênticas circunstâncias, dissimular a falta de certos recursos; embalde
se endomingavam caixeiros pobres, literatos necessitados, doutores sem meios de vida,
procurando iludir, aparentar grandezas: - era bastante que D. Clementina corresse por qualquer
deles uma olhadela de alto a baixo, para ficar sabendo quanto o sujeito pesava ao certo - quanto
ganhava, quanto possuía, que lugar, enfim, devia ocupar na bitola de sua consideração.
Porque, é preciso notar, a viúva do conselheiro tinha já uma bitola para aferir os pretendentes da
filha. Essa bitola marcava desde o marido "ótimo" até ao marido "péssimo". Quando a velha se
referia a algum deles dizia secamente "regular" ou "bom", "sofrível para bom", etc. E essas
simples palavras, ditas à socapa, determinavam as maneiras que Filomena devia usar para com
o tal sujeito, se este se apresentasse.
O fato é que muita gente a cortejava. D. Clementina de vez em quando abria a casa aos seus
amigos.
Que talento desenvolvido nesses modestos chás de família! Nada deixava perceber o
mecanismo posto em ação para que não viesse a faltar coisa alguma no melhor da festa. Havia
sempre piano, canto, recitativos, e às vezes dança, muita dança.
Mas tudo isso era por conta, peso e medida. Não se gastava um fósforo que não estivesse
inventariado. Acabada a festa, procedia-se a um balanço minucioso; guardava-se com todo o
cuidado o que pudesse servir para outra vez, e, antes de se deitarem, as duas senhoras
arrumavam tudo, escovavam as roupas, acondicionavam as botinas, os leques e as jóias falsas.
Filomena lançava-se depois aos travesseiros, devorada por um estranho desgosto da vida, por
uma vaga necessidade de horizontes largos, um desejar pungente de coisas imprevistas e
grandes, uma sede indefinida de empresas arriscadas e situações transcendentes, que sua
louca imaginação mal podia delinear.
E chorava muito aflitivamente, sem saber porque. No outro dia, eram suspiros e mais suspiros,
queixas, tristezas, e um fastio e um tédio de causarem dó.
A mãe caía-lhe em cima, a ralhar, a aconselhar. "Filomena que se deixasse de bobagens, que
os tempos não davam para isso!" E dizia-lhe tintim por tintim o que lhe convinha praticar, como
devia proceder. Ensinava-lhe os segredinhos de agradar a todos, de prender, de "prometer sem
dar, de negar, sem desistir".
- Agüenta-te, minha filha' Agüenta-te como vais, e um belo dia, quando menos o esperares, cai-
te do céu um noivo "dos bons", que nos indenizará de todos estes sacrifícios.
O belo dia chegou com efeito, e o Borges caiu.
- Hem? que te dizia eu?... perguntou a velha, abraçando-se à filha, com as lágrimas nos olhos. -
Chegou ou não chegou a tua vez?
Filomena abaixou o rosto e fez um gesto de descontentamento.
- Ora, deixa-te dessas coisas, minha filha! Observou mãe, apanhando no ar a intenção daquele
desgosto. Quem dera a muitas a tua fortuna!
A outra soltou um grande suspiro.
- Que mais querias tu, então?!... volveu D. Clementina entre meiga e repreensiva. - Quem sabe
se preferias por algum bonifrates, que nos viesse atrapalhar ainda mais capítulo? ...
A filha emplumou-se com altivez, franziu o nariz, e estalou um muxoxo desdenhoso.
- Então?! prosseguiu a viúva do conselheiro. - Borges não é de certo nenhum Adónis; mas é um
marido que vale quanto pesa!
E engrossando a voz, respeitosamente:
- Muito benquisto, muito bem relacionado... não é nenhum de boi. tem sua educaçãozinha...
e, olha, filha que aquilo tudo é sólido!
- Ora, faça-me o favor! ... disse a rapariga, impacientado-se - sólido será, mas não me venha
dizer, que o Borges tem educação!... É um bruto! É mesmo um "João Touro"!
- Não é tanto assim, menina!
- E o que fez ele outro dia aqui em casa?! Aquilo é quem tem educação?! Um homem que come
com a faca! Ora minha mãe!...
_ De acordo de acordo, mas tu também deves fechar olhos a umas certas coisas, oh!... Os bons
maridos fazem-se, preparam-se - os diamantes não se encontram lapidados! E, então,
aquele, coitado! que a gente o leva para onde quer... Ali, é teres um pouco de paciência e o
porás a teu jeito!
- Não acredito que daquele lorpa se possa fazer alguma coisa! retrucou a menina com desdém.
- Parece-te agora, verás depois que é justamente o contrário!... Em questões de casamento,
minha filha, as aparências quase sempre enganam muito! Em geral os maridos que nos
parecem mais fáceis de tragar, são justamente os ma amargos; ao passo que os outros, os
tipos, os "Borges", esses são os bons, os doces! por mim, nunca aconselharia mulher
alguma a unir-se a um homem, que julgasse o seu espírito superior ao dela. Nada! Para haver
perfeito equilíbrio num casal, é sempre indispensável que o marido conheça alguma
superioridade na mulher; seja essa superioridade de fortuna, de inteligência, de educação ou
mesmo de forca física. Desgraçada da tola que não pense sobre isso antes do casamento - não
será uma esposa, será uma escrava!
E D. Clementina, depois de dar uma pequena volta na sala terminou, batendo com ternura no
ombro da filha: - Não te queixes da sorte, ingrata! O que no Borges agora se te afigura defeitos,
são justamente qualidades muito aproveitáveis! Não avalias o tesouro que ali está! Digo-te com
experiência! E, se duvidas, deixa correr o tempo, e dir-me-ás depois!
* * *
Filomena não se decidiu logo; porém, daí a poucos dias, a morte inesperada da mãe obrigou-a a
tomar uma deliberação. Seis meses depois, voltava ela de uma igreja, casada com o Borges.
Seguiram logo para Botafogo, onde iam morar, segundo exigira a noiva. João Touro não
poupara esforços para festejar o seu casamento, e, como sujeito considerado, que era,
conseguiu reunir uma sociedade bem escolhida. Só o Barroso não quis comparecer: - tinha a
sua opinião sobre o fato e não havia quem o demovesse daí.
Os convivas, não obstante, estavam todos de acordo em que o Borges não poderia encontrar
mulher mais formosa e mais simpática.
Filomena, com efeito, apesar dos dissabores, não lembrava aquela rapariga seca e
descorada de outros tempos. Toda ela se carneara: a pele, atufada pela gordura, estendeu-se
numa transparência macia e provocadora: o colo abriu-se em deliciosas curvas; a garganta
enformou-se completamente; os braços encheram-se; os quadris ampliaram-se; a voz acentuou-
se, e os olhos amorteceram com os cruentos mistérios da puberdade.
- E que ar de inocência! comentavam em voz baixa, a contemplá-la no seu rico vestido de
chamalote branco - que candura!...
- Não! dizia o Borges, que estava perto. - Não! nisso não tenho que invejar ninguém! - fui feliz!...
E esfregando as mãos:
- Fui muito feliz! A respeito de gênio, não outra: dócil, meiga, modesta, incapaz de uma
exigência, de uma recriminação! Nunca lhe vi o narizinho torcido, nunca lhe ouvi uma palavra
mais áspera, um arremesso, uma impertinência! Sempre aquele mesmo sorriso de bondade,
aquele mesmo arzinho de santa! É um anjo! É uma pomba de doçura a minha Filoca! a minha
rica Fíloquínha!
E o Borges, sem poder conter os ímpetos da felicidade, andava de um lado para outro, a contar
os segundos, dando repetidas palmadinhas na barriga.
A casa tinha dois andares. Estava combinado que, à meia-noite, os noivos fugiriam para o de
cima, enquanto no primeiro a festa continuaria, até entrar pela madrugada. Mal os ponteiros do
relógio se reuniram nas doze horas, o Borges, impaciente, aproximou-se da esposa e, com a
voz trêmula, o olhar suplicante e o hálito em brasa, disse-lhe ao ouvido:
- Podemos fugir... São horas... não acha?...
Ela ergueu os olhos e sorriu; depois levantou-se, deu-lhe o braço, e ambos desapareceram
pelos fundos da sala de jantar. A madrinha estava à espera da noiva, para a cerimonia do
despojamento das roupas.
Mas o Borges, quando atravessava a sala contígua à alcova nupcial, ficou muito surpreendido
com a mudança brusca, que acabava de se operar na desposada. O tal arzinho de santa fora
substituído por uma expressão dura de má vontade. E a surpresa de João Touro aumentou
ainda na ocasião em que, tentando segurar Filomena pela cintura para dar-lhe o primeiro beijo,
ouviu-lhe dizer com um repelão enérgico: - Deixe-se disso, homem!
E ainda aumentou quando, depois que a madrinha a deixou no quarto, ele - o noivo -
querendo também recolher-se, levou com a porta no nariz, e ouviu ranger um ferrolho que a
fechava por dentro.
- Ora esta! resmungou o Borges, sem saber que fizesse...
E bateu, a princípio devagarinho, depois mais forte, mais forte ainda. resolveu abandonar o
posto, quando Filomena lhe gritou da cama:
- Com efeito! O senhor não tenciona acabar com isso?! dormir, e deixe-se de imprudências!
Se espera que eu lhe abra a porta, perde o seu tempo. Boa noite!
- Bonito! disse o pobre noivo, cruzando os braços.
II
O FERROLHO
O Borges passou toda a noite na tal saleta contígua à alcova da mulher, estirado num divã, a
ouvir o coaxar insuportável de um velho relógio suspenso na parede, justamente sobre sua
cabeça.
Que noite, coitado! Que terrível situação para um pobre homem que, durante os seus calmos
quarenta anos, nunca passou uma noite fora de sua cama,. nunca dormiu menos de sete horas,
deitando-se invariavelmente às onze e acordando às seis.
Ele! Ele, que nunca entrara numa pândega, passar uma noite inteira enfronhado em calças
pretas, camisa bordada e gravata branca!
E o pior é que o infeliz, no cego empenho de parecer agradável aquela noite à esposa, metera-
se num banho de perfumes, e sentia por todo o corpo, atabafado na roupa preta, uma comichão
desenfreada.
Pobre noivo! Quanto não sofreste essa noite!
O Borges, mesmo no tempo de rapaz, fora o protótipo da ordem, do arranjo e do método.
Gostou sempre das coisas no seu lugar - o almoço às tantas, o jantar às tantas, o seu chá com
torradas antes de dormir - e nada de se afastar desse regime.
Não podia compreender como houvesse no mundo quem, por gosto, perdesse as horas
sagradas do sono, vergado sobre uma banca de jogo, a beber numa taverna, ou a fumar em
companhia de mulheres.
Santo homem! uma simples palavra mais decotada era bastante para fazer refluir-lhe às faces o
mais pronto e legítimo rubor. Por isso, alguns amigos lhe faziam troça, às vezes; mas, no fundo,
todos o respeitavam, todos o amavam. Sabiam já que daquela boca cor de rosa, os dentes
imaculados, daquela boca sem vícios, não sairiam a calúnia ou a intriga. Tinham certeza que
daquele coração, virgem de paixões, não poderiam brotar o ódio, a inveja e a perversidade.
Conheciam, por longa experiência, a sinceridade daqueles olhos doces e compassivos, que
muita vez se umedeceram com as desgraças alheias, e que, aos domingos, nos espetáculos da
tarde, iam chorar três horas ao S. Pedro de Alcântara, defronte de um dramalhão de D'Ennery.
Pobre homem! Foi preciso que te casasses para passares mal a tua primeira noite! Tu! que vias
no casamento "a última expressão da paz e da estabilidade". Tu! que procuravas no matrimonio
"o sossego completo, a dignidade do teu lar e o cumprimento de teus deveres de homem com a
sociedade e para com a natureza"! Oh! como não te devias sentir indignado!
Não estava, porém, no seu gênio o revoltar-se. - Não gostava de contendas - não queria estrear
por uma desavença a sua vida de casado.
Além disso, amava-a tanto! --- adorava-a de tal forma, que se sentia perfeitamente incapaz de
reagir.
- Não fez aquilo com intenção! ... pensou ele. - Foi talvez por pudor, coitada! ou, quem
sabe? talvez tivesse medo desta minha figura!
- É isso! com certeza não foi outra coisa! --- concluiu de si para si, a coçar-se, quando a aurora
já lhe invadia a sala pelos vidros da janela.
E foi nas pontas dos pés acordar um criado.
- Arranja-me um banho morno quanto antes! gritou - e se descobres por alguma roupa,
aquilo por cima está ainda tudo fechado! Olha! também se me dás café e algumas
bolachinhas; estou a cair de fraqueza!
O criado. tonto de sono, porque o baile havia acabado pouco antes, ergueu-se a roncar,
resmungando, muito intrigado por ver o amo tão cedo às voltas com ele e, o que era mais
ainda, com a roupa da véspera e a dar ordens com uma tal impertinência, que não parecia o
mesmo.
- vai! Já vai! respondeu, ouvindo novas reclamações do Borges. E pôs-se em movimento, a
parafusar no que diabo teria sucedido ao amo, para andar tão cedo à procura de banhos
mornos, de roupas e cafés com bolachinhas! - Aquilo foi grande espalhafato por cima!
resolveu ele, tratando de executar as ordens. Ora, queira Deus que este casamento ainda não
lhe venha a dar na cabeça! ... Eu nunca achei grande coisa a tal senhora D. Filomena! Pode ser
que me engane... mas aquela boneca de engonços há de dar água pela barba ao patrão!
Daí a pouco o Borges, já restaurado, metido numa fatiota de brim branco, a barbinha feita, o seu
farto cabelo bem penteado, lia o Jornal do Comércio, no salão do segundo andar, à espera de
que a mulher se levantasse.
Quando Filomena, às dez horas da manhã, saiu do quarto para o salão, encontrou-o repímpado
na cadeira de balanço, dormindo de papo para o ar, a boca aberta, a barriga espipando por
dentro do colete e do rodaque de brim, os braços soltos, e numa das mãos o jornal.
Schocking! exclamou ela, arrevezando um olhar de nojo.
O marido bocejou, despertado por aquela exclamação. E, ao dar com a mulher, endireitou-se
atrapalhadamente, contendo os bocejos, as carnes a tremerem-lhe e os olhos sumidos na
rápida congestão do estremunhamento.
Ela vinha formosa a mais não ser. O sono completo dera-lhe às feições a olímpica serenidade
das Vênus antigas. Trazia a rastros um longo penteador de linho bordado; o cabelo preso ao
alto da cabeça, como dantes, mas agora enriquecido, à moda japonesa, por um gancho
encastoado de pedras preciosas. Em volta do mármore sem brilho de seu pescoço, reluziam
pérolas e toda ela respirava um cheiro bom de saúde e de asseio.
- Como passou? disse, aproximando-se do marido e estendendo-lhe a mão.
Borges adiantou-se cerimoniosamente para cumprimentá-la. Um acanhamento espesso tolheu-
o dos pés à cabeça. Quis responder e apenas gaguejou algumas palavras sem sentido. Naquele
instante lhe passava pela idéia o receio de que a mulher desconfiasse do ressentimento, que
porventura nele tivesse produzido o fato da véspera. - Como chegara a imaginar, pensou num
relance - que aquela mulher, tão delicada e tão altiva, consentisse em recebê-lo ao seu lado, na
sua cama, logo na primeira noite do casamento! - Onde tinha ele a cabeça para esperar
semelhante coisa?!
Filomena, como se adivinhasse o pensamento do marido, expediu-lhe generosamente um
sorriso de indulgência e disse-lhe, devagar, enfiando o seu braço no dele:
- O senhor seria muito amável se quisesse fazer-me companhia ao almoço...
E vendo um gesto de surpresa no Borges. - Isto significa que desejo almoçar aqui, no segundo
andar, sozinha com o senhor, sem a presença de estranhos, nem mesmo a dos criados - um
verdadeiro tête-a-téte... Não acha boa a idéia?
- Oh!... se acho!... Eu não ousava ambicionar tanto!... Sim, quero dizer... eu...
- Pois então tenha a bondade de dar as providências para isso. Quanto às nossas visitas de hoje
- só me pilharão ao jantar.
E no fim de uma pausa, tocando-lhe no ombro:
- Então! Vá! Mexa-se!
O Borges, encolheu a cabeça e precipitou-se de carreira para o primeiro andar.
* * *
Só se tornaram a ver à mesa do almoço.
- É bom que esteja tudo à mão para o termos de chamar pelos criados, observou ela,
acomodando-se na sua cadeira, defronte uma pilha de ostras cruas.
E desdobrando o guardanapo sobre o peito:
- É uma providência dispormos deste segundo andar; fica-se aqui perfeitamente à vontade. É
tão desagradável mostrar-se a gente a visitas logo pela manhã, depois de um casamento!
O Borges sorriu. É desagradável... é! disse ele corando levemente.
- É brutal! emendou Filomena, passando o copo de vidro, para que o marido lhe servisse o
Sauterne que tinha ao lado.
E depois de beber:
- Não compreendo como ainda se conservam na sociedade moderna certos costumes
verdadeiramente bárbaros. As cerimônias do casamento estão nesse caso. Nada mais
grotesco, mais ridículo, do que essa espécie de festim pagão em que se celebra o sacrifício de
uma virgem. Horroriza-me, faz-me nojo, toda essa formalidade que usamos no casamento - a
exposição do leito nupcial, os clássicos conselhos da madrinha, o ato formalista de despir a
noiva, e, no dia seguinte, os comentários, as costumadas pilhérias dos parentes e dos amigos...
Oh! é indecente! Mas agora reparo: o senhor não come!...
De fato, enquanto Filomena falava, o marido era todo olhos sobre ela, não se fartava de
contemplar aquele adorável busto que tinha defronte de si. Causavam-lhe estranhos arrepios o
modo desembaraçado, a graça natural, com que a mulher prendia uma ostra na pontinha dos
dedos cor de rosa para levá-la à boca, numa riqueza de braços arremangados, onde tilintavam
dois portebonheurs de metal branco.
- Ao menos beba! replicou ela, vendo que o Borges não se resolvia a comer.
E encheu-lhe o copo.
O pobre homem teve acanhamento de confessar que nunca toda a sua vida, bebera o mais
pequeno trago de vinho.
- Então... fez a mulher. - Vamos! E tocando o seu copo no dele: - Ao nosso casamento!
Borges emborcou o seu de um fôlego, com uma careta.
Filomena não se pôde conter, e soltou uma dessas risadas retumbantes, que chegam para
encher toda uma casa. Aquele ar esquerdo do mestre de obras, engasgado, roxo de tosse,
fazia-lhe cócegas pelo corpo inteiro. E ela ria, ria, ria, sem se dominar, cobrindo o rosto com as
mãos,. torcendo-se como uma cobra, enquanto o Borges, muito enfiado, procurava posições na
cadeira, ardendo por sair daquela situação que o torturava.
- Coma sempre alguma coisa! disse-lhe por fim a esposa, fazendo inúteis esforços para reprimir
a hilaridade - olhe que não é cedo!... uma hora, creio eu.
- Obrigado! Não tenho apetite... respondeu ele, cada vez mais confuso, a limpar o suor que
lhe sobrevinha ao rosto.
Ela continuava a rir.
- de ser porque passei mal a noite... acrescentou o Borges. Não preguei olho!... Isto para
quem nunca saiu de seus hábitos...
- Mas, meu amigo, acudiu Filomena, solicitamente, tornando-se séria - para que faz o senhor
loucuras dessa ordem? Isso pode causar-lhe mal!... Lembre-se de que não tem vinte anos, e
a sua saúde, na sua idade, é coisa muito preciosa!
O Borges desta vez perdeu de todo o bom humor. Ou fosse por efeito do vinho, que ele bebia
pela primeira vez, ou fosse que as palavras da mulher o irritassem deveras, o caso é que fechou
o rosto e respondeu quase com azedume:
- Eu não perdi a noite pelo gostinho de a passar em claro! Não foi minha a culpa!...
- De quem foi, nesse caso?... indagou Filomena, já com o riso a espiar pelos cantos da boca.
- Ora, minha senhora!...
- Quer dizer que foi minha?!
- A senhora bem o sabe...
- Perdão, meu amigo, convém que nos entendamos! O senhor terá bastante bom senso para
compreender o que lhe digo: ouça...
- Tenho até para mais... apartou o Borges, encavacado.
- Tenho para compreender o papel ridículo que a senhora quer me fazer representar!...
- Ridículo? Por quê?!
- Por quê?! Porque eu não tinha a menor necessidade de passar a noite no sofá e ainda por
cima servir de galhofa! Ora aí tem porque?
- Mas que queria o senhor que eu lhe fizesse?!...
- Ora, minha senhora! Por amor de Deus!
- Pois acha que devo ter plena confiança em um homem que mal conheço?! Um homem, que eu
não sei se me ama, ou que, pelo menos, ainda não me deu provas disso?!...
- Não dei provas! exclamou Borges ofendendo-se. - Não dei provas!... Homessa!... Quer então
uma prova superior ao casamento!... Então o fato de me fazer seu esposo, não vale nada?!
- Vale tanto como o de fazer-me eu sua esposa. Foi uma permuta, uma troca. E por ora é o
que - estamos quites - nem o senhor por enquanto tem direitos adquiridos, nem eu! Salvo se
entende que o noivo vale muito mais que a noiva!...
- Eu não entendo nada! respondeu ele, triste; - sei apenas que me casei com a senhora porque
a estimo muito...
E baixando a voz, ainda com mais amargura: - A senhora, sim! é que nunca me teve afeição, e
principio a duvidar que isso venha a suceder algum dia...
- Depende unicamente do senhor, meu amigo!... retrucou Filomena.
Agora parecia comovida. Estava muito séria; o olhar ferrado no prato.
Houve um silêncio. Ela, afinal, continuou a falar, imóvel, sem descravar os olhos donde
estavam, e a bater compassos na mesa com a faca.
- O coração de uma mulher nas minhas condições, disse, medindo as palavras e recitando,
como se tivesse os períodos decorados - o é coisa que se conquiste assim com um simples
casamento: não haveria nada melhor! O senhor, se quer ter a minha confiança plena, a minha
dedicação, a minha ternura, faça por merecê-las... Não será de certo com esses modos e com
essa cara fechada, que conseguirá abrir-me o coração! Eu, até, se soubesse que o senhor havia
de se portar desta forma, não o teria convidado para almoçar em minha companhia... O senhor
fala de farto!... Em vez de agradecer à sua boa estrela a bela ocasião que lhe faculto para
principiar a conquistar-me, põe-se nesse estado e parece disposto a incompatibilizar-se comigo
por uma vez!
Borges ouviu tudo isso, vergado na cadeira, sem um movimento, os olhos corridos, o rosto
anuviado por uma funda expressão de mágoa resignada. Quando a mulher terminou, ele
estendeu-lhe um olhar de súplica e tentou agarrar-lhe as pontas dos dedos.
Filomena retirou a mão com um movimento rápido, e voltou-se para o outro lado, dando as
costas ao marido. Este arrastou-se com a cadeira para junto da esposa, e, em segredo, a voz
medrosa e submissa, perguntou-lhe o que então queria que lhe fizesse?...
- Tudo! respondeu Filomena na mesma posição, a sacudir uma perna, que havia dobrado sobre
a outra.
- Mas tudo, como?... perguntou Borges, tentando acarinhá-la.
Ela ergueu-se, demovendo o corpo, e acrescentou, encarando-o:
- Ouça! - Por ora, meu amigo, pertenço-lhe de direito, porque nos casamos, e isso tornava-se
inevitável na situação em que o senhor me achou; mas declaro-lhe abertamente que lhe
pertencerei de fato no dia em que o senhor tiver conquistado o meu amor à custa de dedicação
e de perseverança! lhe pertencerei de fato no dia em que o senhor se houver cabalmente
habilitado para isso! Compreende, agora?...
O marido deixou cair a cabeça e ficou a pensar, enquanto a mulher atravessava o gabinete,
depois ~ saleta, e fora assentar-se no divã do salão. No fim de cinco minutos, Borges levantou-
se resolutamente e foi ter com ela:
- De sorte que a senhora tenciona continuar com a porta do seu quarto fechada, até que eu...
- A porta e o coração, acudiu Filomena - até que o senhor os consiga abrir com os seus
desvelos!
- Quer então que lhe faça a corte?...
- De certo.
- Pois tomo a liberdade de declarar a V. Ex. que foi justamente por não ter jeito para essas
coisas ~ que me casei! Se eu tivesse gênio para atirar-me aos pés de uma mulher e fazer-lhe a
minha declaração com palavreados de romance, se eu tivesse queda para galante, o
procuraria uma esposa, bastava-me ter uma...
Filomena não lhe deu tempo de concluir a frase. Ergueu-se num movimento, e, depois de
medi-lo de alto a baixo com um olhar de rainha ofendida, afastou-se lentamente em silencio, os
passos firmes, a cabeça altiva.
Borges correu logo atrás dela e segurou-lhe uma das mãos.
- Solte-me! exclamou Filomena, arrecadando o braço.
E fugiu para a saleta, atirou-se sobre o divã em que o marido passara a noite, e rompeu a
soluçar com um frenesi histérico.
Borges ajoelhou-se-lhe aos pés e cobriu-lhe as mãos de beijos e de lágrimas.
- Não leves a mal aquilo, minha santa! Desculpa, exclamou ele, escondendo o rosto no colo da
esposa. Reconheço que não fui muito delicado excedi-me, mas não sei onde tenho a cabeça -
não estou em mim! É que me pões doido com tuas palavras! Oh! mas não fiques zangada, não
chores; tudo aquilo prova justamente o bem que eu te quero, minha vida, minha mulherzinha do
coração!
Filomena não respondia e continuava a chorar, toda prostrada no divã: a cabeça vergada para
trás, o rosto encoberto por um lenço de rendas, que ela segurava em uma das os, ao passo
que abandonava a outra aos beijos apaixonados do marido. Agora os soluços eram espaçados
e mais secos, como os últimos rumores de uma tempestade que acalma.
De repente, ergueu-se. Fitou por instantes o marido, que jazia a seus pés ajoelhado, a encará-la
lacrimoso e súplice; depois estendeu os braços, deu-lhe um empurrão e fugiu para o seu quarto,
fechando-se logo por dentro, violentamente.
O Borges ficou meio assentado e meio deitado no chão, amparando-se às mãos e aos pés.
- E esta - balbuciou ele dai a pouco, erguendo-se de mau humor. É gira ou não é gira?...
E pôs-se a percorrer todo o pavimento, rondando o quarto fechado da mulher, como um gato
que fareja o guarda-petiscos... No fim de uma hora de exercício, indo e revindo
incessantemente, de lá, para cá, as mãos nas algibeiras das calças, o olhar cravado na
esteirinha do soalho, Borges estacou no meio do salão:
É de mais! pensou ele. - É para um homem perder a cabeça!
E atirou-se prostrado à cadeira de balanço, passando uma revista mental a todas as
contrariedades e decepções que o afligiam desde a véspera.
- Ora aí estava para que se tinha casado!... Passar por tudo aquilo!... Ele! Ele, que em sua longa
vida de solteiro nunca amargara uma noite tão e um dia tão levado da breca! - Quem te
mandou, João Borges, meter em camisa de onze varas?... Maldito fosse o Guterres, que o levou
à casa da defunta Clementina! Antes tivessem ambos quebrado as pernas nessa ocasião!
Maldito Guterres!
E, acabrunhado por esses raciocínios, sentindo perfeitamente que não tinha forças para
arrancar de si a paixão enorme que lhe inspirava a esposa, levantou-se de novo, foi e veio por
todo o segundo andar, suspirando e tossindo todas às vezes que passava defronte da porta de
Filomena. Afinal, no fim de outra hora de passeio, convencido de que a mulher não aparecia,
desceu ao primeiro pavimento.
Os amigos já estavam para o jantar. Guterres foi o primeiro que correu ao seu encontro,
abrindo-lhe os braços.
E, discretamente, enquanto o estreitava: - Você está abatido, seu maganão!
Borges sorriu, protestando vagamente:
- Uma enxaqueca!... Uma pequena enxaqueca!...
- E sua senhora?... perguntou um dos amigos.
- Vem já, vem já... Ela, também, coitadinha!... não passou lá para que digamos!...
- Outra enxaqueca?...
- Naturalmente! Considerou um terceiro a rir.
- Ah! estes noivos! estes noivos!... volveu o Guterres a bater no ombro do Borges. - Não precisa
fazer-se vermelho, que diabo! sei o que isso é, meu amigo, passei duas vezes por esses
transes!...
O Borges teve um novo sorriso, ainda mais amarelo que o primeiro, e foi continuando a receber
os parabéns dos outros convidados, cujas pilhérias, cujas pequenas frases de sentido dúbio e
malicioso, ditas aliás com a intenção de lisonjeá-lo, mais a mais o indispunham e frenesiavam.
III
COMEÇAM AS PROVAÇÕES
O jantar correu melhor do que se podia esperar; Filomena mostrou-se muito amável às suas
visitas e, sem se dar mais a uma do que a outra, sempre risonha, afável e cheia de espírito,
dividindo-se por todas elas a um tempo, mostrou quanto era profunda na complicada ciência
de agradar em casa, na mesma ocasião, muita gente reunida.
Fez-se música; houve canto e conversou-se a valer.
Ao retirarem-se às dez e meia, iam todos penhorados pela dona da casa e plenamente
convencidos de que não havia no mundo inteiro um marido mais feliz do que João Touro.
O que, entretanto, não obstou que o pobre homem três dias depois caísse numa melancolia
taciturna e pesada, que lhe tirava o gosto para tudo, até para o trabalho. Emagrecia a olho visto,
e com as suas gorduras fugiam-lhe as belas cores do rosto e escapava-lhe dos lábios aquele
calmo sorriso de felicidade, seu bom companheiro de tantos anos.
É que a portinha do quarto da esposa continuava fechada por dentro.
- Aquilo não era mulher para o Borges! murmuravam os maldizentes, ao vê-lo tão puxado e
abatido.
- Olhe que ela o tem derreado! considerava outro.
E a verdade é que o infeliz estava apaixonado e apaixonado deveras. Para fazer as pazes
(restritas, bem entendido> com a mulher, depois do primeiro arrufo do almoço, teve que lançar
mão de todos os recursos da humildade e da súplica.
- Procure ser-me agradável! aconselhou Filomena, e o senhor obterá de mim tudo quanto
quiser!...
- Mas em que lhe posso ser agradável, minha querida... A senhora bem que faço para isso
tudo que está nas minhas mãos!...
- Talvez assim lhe pareça, mas juro-lhe que o não é! Por exemplo - por que razão não se
resolve desde já o meu caro esposo a abandonar esse hábito insuportável de rape... hábito, que,
só por si. é quanto basta para o incompatibilizar comigo?
Borges corou e prometeu nunca mais tomar rapé: - Não fosse essa a razão!...
- tem o senhor por onde principiar: - Eu tanto abomino o vil e baixo rapé, quanto gosto do
aristocrático perfume do charuto. Experimente fumar um! Eu mesmo posso encarregar-me de
prepará-lo. que não sou tão má - até lhe aponto os meios, que o seu coração devia ser o
único a descobrir para conquistar o meu.
E, depois de fazer vir uma caixa dos melhores charutos que se encontraram, tomou um, trincou-
lhe graciosamente a ponta, e disse, passando-o ao marido:
- Vamos lá! Sente-se aqui ao pé de mim... Muito bem.
E, riscando um fósforo: - Principiemos!
Borges hesitava.
- É que eu nunca fumei, filhinha... objetava ele timidamente.
- Oh! que grande sacrifício! E encheu a boca com a frase - "Nunca fumou!" E os outros?... os
que fumam?... acenderam o primeiro charuto só depois de habituados a fumar?!...
- Isto pode fazer-me mal...
- Pois então não fume! Ora essa! respondeu ela, erguendo-se já amuada. Quando para fumar é
isto, quanto mais...
- Vem cá, menina, vem cá! Oh! Tu também te esquentas por qualquer coisa! Eu não disse que
não fumava!...
- Pois então vamos lá! tornou a formosa mulher corri uma pontinha da faceirice. - Acenda...
- Tu és os meus pecados!... disse o Borges obedecendo.
- Acenda direito... recomendou Filomena, fazendo-se amável. - Não chupe com tanta força!
Assim... assim! Veja como vai bem agora!
E o Borges fumava afinal, interrompendo-se a cada momento para tossir sufocado, sem dar
vencimento à saliva que lhe acudia.
- É horroroso! afirmava ele alguns minutos depois, segurando o charuto com ambas as mãos. -
Faz-me vir água aos olhos!
- É delicioso! contestava a mulher ao lado, derreada para trás, aspirando voluptuosamente o
fumo que o marido expelia da boca.
Borges, quando se levantou, sentia tonturas, vontade de vomitar e suores frios.
- Continue, continue, que em breve se habituará! disse-lhe a mulher, enquanto ele se afastava
para o quarto muito pálido, cheio de calafrios, agarrando-se às cadeiras.
E desde então Filomena não consentiu que o marido se aproximasse dela, sem vir fumando.
- E promete que me deixa depois dar-lhe um beijinho na face?... perguntou ele na ocasião de
submeter-se ao sacrifício do segundo charuto.
- Prometo que lhe consentirei beijar-me a testa - a testa! - no dia em que fumar o último charuto
da caixa.
* * *
Filomena cumpriu a promessa; o Borges, depois de fumar cem charutos, beijou pela primeira
vez a fronte da esposa.
Ela, porém, tornava-se mais exigente de dia para dia. O marido teve que pôr abaixo a sua
barbinha à portuguesa e deixar crescer o bigode; teve que abandonar as suas queridas calças
de brim mineiro, de que tanto gostava, teve que suportar cosméticos e brilhantinas, contra os
quais protestava o seu delicado olfato de homem duro. O que, porém, mais lhe custou, o que
atingiu as proporções de um verdadeiro sacrifício, foi ter de submeter-se a "usar pastinhas". Ele!
o Borges! de pastinhas! - que não diriam os seus velhos e respeitáveis amigos do comércio?!...
Que não suporia o Barroso?!.
Mas enfim... usou.
- Ah! o amor! o amor! gemia ele, quando no seu quarto entregava a cabeça aos ferros quentes
do cabeleireiro.
- Deus me dê paciência!
A dois passes, o criado observava-o em silêncio, com um ar de compaixão.
- A que bonito estado o reduziu aquela mulherzinha dos demônios. Quando eu digo as coisas!...
E de uma feita, vendo os esforços que o amo fazia por disfarçar o abdome com um espartilho,
ficou tão indignado, que saiu do quarto, para não cometer alguma imprudência. Em baixo foi
desabafar a sua indignação com o copeiro e o cozinheiro.
- Eu é que não estou disposto, disse este, a suportar as impertinências da patroa! Tenho
servido em casas muito mais ricas do que esta, e nunca sofri o que me fazem aqui. Todo o dia
são reclamações e mais reclamações! Não meio de agradar! Se faço assim, é mau; se não
faço, é pior! E nada presta! e "tudo é uma porcaria!" Hoje é com a sopa, amanhã com o assado!
Vá para o diabo um tal sistema!
- Além disso, acudiu o copeiro - não horas certas para a comida! Uma vez querem o almoço
às sete da manhã e do dia seguinte o reclamam às duas da tarde. O jantar, tanto pode ser
às quatro, como às seis, como às oito e até como às onze da noite! E eu que me amole! Não!
Assim também não se atura!
- E comigo, então?! perguntou a criada, que se havia metidona conversa - comigo é que são
elas! - Falte água no jarro, falte qualquer coisa, não corra eu ao primeiro chamado, para ver
como fica a bicha! Outro dia, porque quebrei o braço de uma pestezinha de figura que ela tem
sobre a cômoda, deu-me um tal pescoção que me fez cair de encontro à quina da secretária!
Ainda estou com este quadril todo roxo! Bruta!
O jardineiro, que também se achegara do grupo, contou que, não havia uma semana, a senhora
varrera com um pontapé os vasos da escada do jardim, porque uma das begônias parecia
mal tratada. - É uma mulherzinha de gênio!...
- E agora vão ver! tornou a criada. - Para ralhar e atirar com as coisas na gente, é isto que se
sabe; entretanto, a casa pode cair aos pedaços que ela não se incomoda. Se o patrão que é
aquele mesmo, não der as providências ninguém as dará!
- Não! Que ela tem pancada na bola, não resta dúvida!
E os comentários da criadagem foram-se desenvolvendo de tal forma, que chegaram aos
ouvidos de Filomena.
- Tudo na rua! Já! disse esta, sem se alterar. - Não quero semelhante súcia nem mais um
instante em casa! acrescentou ao marido. - Despede-os, e anuncia, quanto antes, que
precisamos de nova gente! Preferem-se estrangeiros!
O Borges tratou de executar as ordens da mulher.
- Então, o senhor põe-me fora?... perguntou-lhe o criado, quando recebeu a intimação para sair.
- É verdade, Manuel, sustentou o Borges - tem paciência, mas não outro remédio...
Reconheço que és um bom rapaz, mas não podes continuar ao meu serviço. Vai-te e acredita
que não é por meu gosto.
- Mas por que sou despedido? seis anos que estou ao serviço de vocemecê, e creio que até
agora ainda não dei motivos para ser posto na rua como um cachorro.
- Tens razão! tens razão, mas, já te disse, filho! Não há outro remédio!...
- É que é duro ficar a gente assim desempregado de um momento para o outro, quando aliás...
- Eu recomendar-te-ei aos meus amigos. Não ficarás desamparado. E se te vires em algum
aperto, procura-me...
- É duro! insistia Manuel. - É muito duro! Ah! mas vocemecê me despede porque lhe foram
encher os ouvidos a meu respeito!
- Homem, rapaz, é melhor que te vás logo e não me estejas a causticar a paciência. Se te
despeço é porque assim o entendo, sebo!
- Qual o que! vocemecê despede-me a mandado da patroa!
- Ó seu mariola! gritou o amo. - Ponha-se já na rua!
--Isto é uma casa de S. Gonçalo... principiou ainda o criado, quando o Borges, perdendo de todo
a paciência, saltou sobre ele, e tê-lo-ia rachado com um pontapé, se o respondão não tratasse
de ganhar a porta da rua.
- Atrevido! rosnou o Borges. - Insolente! Faltar-me ao respeito! A mim!
No dia seguinte, principiou a escolha do novo pessoal. O Borges, bastante importunado com
ter de suportar comida de hotel, viu-se tonto no meio da chusma de cozinheiros, copeiros,
jardineiros, serventes de ambos os sexos e de todas as nacionalidades, que choviam de sul e
norte, entre uma algazarra infernal.
A coisa durou dias. Filomena vacilava na escolha - queria gente especial, fora do comum e
pronta a cumprir estritamente os seus caprichos, sem tugir nem mugir; ainda que com isso
custasse muito mais caro.
Para a cozinha preferia um chim; para o serviço da copa um inglês, um groom legitimo, e para
sua criada grave alguma coisa de francesa ou russa ou espanhola, uma criada, enfim, que não
fosse de cor, nem tivesse a menor sombra de portuguesa.
- Oh! os portugueses eram incompatíveis com a sua fantasia!
Mas não encontrou gente nessas condições, e, enquanto esperava por ela, resignou-se a tomar
para seu serviço uma Cecília, tão brasileira como um Roberto, que foi substituir o Manuel e
também como o novo jardineiro, e como o novo copeiro, e como o novo cozinheiro. - Uma
lástima! - todos brasileiros!
- Está agora mais satisfeitinha com seu marido?!... perguntou-lhe o Borges meigamente.
- Sim, respondeu ela, deixando-o beijar-lhe a mão. Vais muito bem. Continua, continua dessa
forma, que um dia, talvez... consigas captar-me a estima.
- Ora!... balbuciou o mestre de obras, meio desanimado. - É "continua! continua!" e as
coisas é que vão continuando na mesma!...
E o bom homem, no desespero de merecer as graças da esposa, transformava-se pouco a
pouco.
O Guterres, indo visitá-lo, três meses depois do casamento, soltou um grito de estupefação e
abriu grandes olhos espantados:
- Que! Pois é o João Borges?!... que metamorfose, meu Deus! que mudança!
E contemplando-o de alto a baixo. Sim senhor! sim senhor! - Está moço e bonito! Onde foi você,
seu maganão, arranjar esses bigodes tão pretos e tão petulantes?!
- É que aquela barba por debaixo do queixo principiava a incomodar-me... respondeu o marido
de Filomena, abaixando os olhos e enrubescendo.
- Mas agora reparo! tornou o outro. - Fraque à inglesa! colarinho da moda! prastron! meias de
cor! polainas! sapatos de verniz! flor à gola! - Bravo! seu João! Bravo! Não como uma
mulherzinha bonita para fazer desses milagres!
E vendo o amigo acender um charuto. - Também fuma?!... Ó senhores! estou maravilhado!
- É... gaguejou o janota à força; - o rapé ultimamente, não me fazia bem... Dou-me muito melhor
com o charuto!...
- E digam mal do casamento!... considerou o Guterres.
- Queria que se mirassem neste espelho!
E em resposta a um gesto de impaciência do Borges:
- Não, meu amigo, isto tenha paciência! Em três vidas que você vivesse não me pagaria o
serviço que lhe prestei, levando-o à casa da defunta D. Clementina!
- Sim, sim... respondeu o outro, cortando a conversa.
- Mas que ordena afinal, o meu amigo?
O Guterres, mudando logo de aspecto, disse então o motivo de sua visita; - se o outro lhe
pudesse adiantar ainda uns duzentos mil réis, seria um grande favor...
O Borges coçou a cabeça. - Era o diabo!... As coisas não iam muito bem... O casamento
trouxera despesas consideráveis!... Agora o negócio fiava mais fino; tinha de pensar no futuro!...
os filhos não tardariam por aí...
- Bom, senhor! retorquiu o Guterres, transformando-se de novo. - Bom! Eu também não exijo
sacrifícios!...
E deixando escapar aos poucos como o vapor comprimido de uma caldeira, a raiva que se lhe
desenvolvia por dentro.
- Desculpe! Desculpe! - Pensei que você fosse o mesmo homem!... ou que pelo menos o fosse
para mim... a quem... digo-lhe então!... devia trazer nas palminhas, se... se soubesse ser mais
reconhecido!
- Ora, vá plantar batatas! exclamou o Borges, contendo a custo o que tinha para dizer a respeito
dos tais favores do Guterres. - Não esteja ai a dizer barbaridades!
- Você nega então que só a mim deve estar casado?
- Homem! não me amole, homem de Deus! Se, para - o ver pelas costas, tenho de dar duzentos
mil réis - aqui estão! mas, por quem é, deixe-me em paz! -
- Ingrato!
Aí os tem, leve-os e não se incomode em voltar cá para restitui-los! Vá, vá - com Deus!
- Sim! disse o Guterres com ênfase, tomando o chapéu e a bengala - sim! levo comigo o vil
dinheiro, porque desgraçadamente não tenho outro remédio; mas também sabendo que, de sua
parte, é uma covardia aproveitar o aperto em que me acho, para injuriar-me desse modo!
- Fomente-se! respondeu o Borges, dando-lhe as costas.
* * *
O outro, desde aí, não o poupou mais. Logo no dia seguinte, em uma roda onde se falava do
mestre de obras, teve ocasião de lhe meter as botas. - Além de um grande pedaço d'asno, é um
impostor! bradou e]e. Pensa, lá por ter os seus mil réis, que é superior a todo o mundo! Um tolo!
E apontou as toucas do Borges, as transformações que sofrera o basbaque depois do
casamento. Mas quase todos lançaram esses comentários à conta da inveja, e o marido da
encantadora Filomena ia, cada vez mais, ganhando a reputação de um homem completamente
feliz.
Entretanto, as exigências daquela multiplicavam-se, e o Borges continuava a submeter-se,
estribado sempre na grata esperança de possuí-la um dia.
Vieram as festas, os bailes; Filomena principiou a luzir nas salas, a ofuscar. Sua beleza, sua
vivacidade espiritual e romanesca, postos agora em relevo pelos mil réis do marido, tomaram
proporções dominadoras.
Era sempre a rainha dos lugares onde se achava; a mais querida, a mais falada, a mais
desejada.
Todos viam no Borges um cúmulo de fortunas - os homens invejavam-no, mas nenhum deles se
podia gabar de ir um ponto além de sua inveja. Filomena a todos prendia igualmente na mesma
rede de atrações, sem dar a nenhum direito de avançar, nem ânimo de fugir. Se o sorriso
prometia - o olhar negava; e se de seus olhos escapava porventura uma dessas faunas
satânicas, que acendem no coração mil esperanças a um tempo - era uma frase, enérgica e
pronta, que vinha destruir de chofre a indiscreta promessa dos olhos.
E o Borges, apesar de marido, não estava ileso dessas condições; feliz aos olhos de todos, ia
arrastando ele o seu desgosto, sem poder confessar a pessoa alguma os tormentos que o
devoravam. Esta circunstancia ainda o fazia sofrer mais.
- És um felizardo! Repetiram-lhe a todo o instante. E essa maldita frase produzia-lhe o efeito de
um ferro em brasa. Evitava ficar a sós, nas janelas ou nos cantos da sala, com os amigos
mais chegados, para não ouvir a constante glorificação daquela felicidade, que existe na
imaginação deles.
- Para você é que é esta vida!... diziam-lhe. - Meu caro. quem nasce sob uma boa estréia, não
tem que se apoquentar com a sorte!
E o Borges sacudia os ombros, sorrindo contrafeito. Mas a sua tristeza aumentava; o seu vigor
descrecia, e todo ele ia parecendo vítima de uma grande enfermidade.
- Você precisa ter um pouco de cuidado, segredou-lhe uma vez o médico. - Olhe que o mundo
não se acaba, meu amigo! Isso pode prejudicar mesmo a sua senhora, que, em todo o caso, é
uma mulher e tem a constituição mais delicada! Não convém abusar! Não convém abusar!
- E isto é dito a mim! a mim! exclamava o Borges, a bater no peito, chorando, logo que se
achava só. Mas não desanimava, certo de que os sacrifícios dedicados à cruel deusa de seus
sonhos teriam, mais cedo ou mais tarde, uma recompensa. - Oh! só de pensar em tal, o coração
saltava-lhe por dentro.
Não obstante, as exigências continuavam a surgir, e ele continuava a render-se, cada vez mais
submisso e mais vencido.
Agora lhe não custava suportar os bailes de cerimônia, e recebia duas vezes por mês. Aquele
homem, que dantes, ao bater das onze, se recolhia invariavelmente aos seus travesseiros,
passava agora todas as noites em uma roda de etiquetas, a cortejar para a direita e para a
esquerda, a rir, a lisonjear, a fazer-se fino. Suas reuniões tornavam-se famosas pela
suntuosidade, profusão bem escolhida dos vinhos, excelência dos bufetes, boa música e
esplêndida variedade de convivas de ambos os sexos.
- Não há dúvida! E um felizardo! insistiam os amigos.
- Que mulher possui o ladrão! - formosa, distinta, elegante, inteligente e, além de tudo, honesta!
Parece que só vive para o marido! Definitivamente, não há outro mais feliz!...
o mísero esposo não pensava dessa forma. Agora os caprichos da mulher impunham-lhe
uma provação terrível para ele, e a pior de todas que até cometera; Filomena exigiu que o
desgraçado aprendesse a valsar.
Valsar o Borges! O Borges! o homem mais incompatível com a dança!
Foi preciso arranjar um professor discreto, que lhe desse as lições em casa, às ocultas, todos os
dias, das três às cinco da tarde.
Que luta, santo Deus! Que longas horas de tormento! Que heroísmo para não desanimar no
meio da empresa!
Foi uma campanha formidável! Seus vastos e pesados pés não se queriam sujeitar àquela
violência implacável dos passos e dos saltinhos; seus nodosos tornozelos, grossos como
troncos de árvore, protestavam energicamente contra os inquisitoriais ritornelos das valsas
puladas. Recalcitravam-se os joanetes, revoltavam-se os calos; tremia o soalho; vinham abaixo
as bugigangas que estavam sobre os consolos da sala; o Borges suava, afogueava-se e não
conseguia passar das primeiras figuras.
Mas Filomena estava ali para lhe dar coragem, como nos cavalheirescos torneios da idade
média. A imagem dela animava-o, como a presença de um grande prêmio ambicionado.
valsando conseguiria transpor o limiar daquele paraíso.
Pois bem! Valsaria, custasse o que custasse!
- Oh! ela adorava a dança! Não podia sofrer um homem que não soubesse valsar. A dança foi
sempre uma de suas paixões mais fortes; em pequena chegou a imitar vários passos difíceis
que vira no teatro. Sabia o solo inglês, a gavota
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o minuete, a cachucha e muitos outros.
O Borges, no fim de cinco meses de estudo acérrimo, conseguia dançar, não só a valsa, como a
polca, a mazurca, o schottisch, os lanceiros e as quadrilhas francesas. Filomena então exigiu
que ele, enquanto descansava da última campanha, se entregasse à leitura escolhida de certos
poetas e romancistas. Apresentou-lhes os livros e marcou as lições que o marido havia de
decorar.
- Quero que tenhas de memória um bom repertório de versos, para m'os recitares nas ocasiões
de aborrecimento. A prosa todos os dias fatiga muito!
O Borges obedeceu, como de costume, e daí a pouco tempo atroava nas salas a sua voz de
baixo profundo, recitando os trechos mais declamatórios de Manha, de Gonzaga.
Um amigo, que ia visitá-lo, não se animou a tocar a campainha, intimidado por aquela gritaria, e
desgalgou a escada, benzendo-se. A criada bispou-o e foi logo contar o fato à senhora.
- Pois de hoje em diante quero a porta da rua fechada, enquanto durar a declamação, ordenou
Filomena; e, a partir desse momento, fechavam-se sempre ao meio-dia e caíam no recitativo.
Filomena, que tinha muitos versos de memória, lembrou-se de dialogar com o marido as
poesias mais próprias para isso. Depois veio-lhe a idéia de recorrer às tragédias de Gonçalves
Dias e fazer a coisa mais ao vivo; tomando cada um o traje e o característico que exigia o papel.
- Queres saber de uma coisa?!... disse ela afinal. O verdadeiro é arranjarmos um teatro.
O Borges levou as mãos à cabeça.
- Um teatro! Pois eu tenho de representar?!...
- E que há nisso de extraordinário?... Na Europa o teatro em família é um divertimento da melhor
sociedade. Convidam-se algumas pessoas para nos ajudar - o Barradinhas, por exemplo, serve,
que tem muito jeito. Vê-se também o Chico Serra, Gonçalves, o Morais, chama-se a viúva
Perdigão...
- A viúva Perdigão?!... perguntou o marido, sentindo um arrepio.
- Sim! de dar uma excelente dama central. E muito desembaraçada e tem graça. Enfim, não
faltará quem nos ajude. O teatro pode ser na chácara; estende-se mais aquele pavilhão que
está e rouba-se um pouco do jardim para a platéia.
O Borges ainda tentou algumas objeções; mas no dia seguinte vieram os trabalhadores, e as
obras principiaram.
IV
VEREMOS QUEM VENCE
Foi esse um tempo magnífico para Filomena; vivia muito entretida com a construção de seu
teatrinho. Era ela própria quem dirigia as obras; quem arranjava os desenhos decorativos da
sala e do frontispício; quem administrava e conduzia os trabalhos do cenógrafo.
Quinze dias depois, estava em ensaios a primeira peça. A casa tomou um caráter boêmio de
atelier; encheu-se de amadores dramáticos, de músicos. Havia certo movimento, certa agitação
alegre, feita de conversas em voz alta, de risadas, de afinações de instrumentos. Viam-se
carpinteiros, de cachimbo ao canto da boca, trabalhando e cantarolando em mangas de camisa;
panos enormes, estendidos no chão, cobertos de tinta; costureiras, aderecistas, operários de
todos os gêneros, a entrar e a sair, numa atividade ruidosa.
O Borges andava muito atrapalhado com tudo aquilo, e principalmente com o seu papel.
- Ora que diabo me havia agora de cair na cabeça!... dizia ele consigo. Eu nunca tive queda
para ator. Esta só a mim sucede!
Mas a peça ficou ensaiada; expediram-se os convites, e no dia do espetáculo o teatrinho de
Filomena encheu-se de amigos.
O Barradinhas era o melhor dos curiosos, e fazia de galã. Devia ir muito bem; tinha enorme
talento para a cena; "uma figura de arrebatar"! Bonito, cabelos crespos e uma voz "que nem um
tenor italiano"! Filomena representava a sua amante; ele caía-lhe aos pés, várias vezes, e dizia-
lhe longas frases retoricamente apaixonadas.
O Borges é que não ficava muito satisfeito com a história. - Ele, para que o havia de negar?...
não morria de amores por - aquele gênero de divertimento!...
E cuidava muito mais em vigiar o galã do que em estudar o seu papel. Pode ser que se
enganasse... mas ia jurar que aquele pelintra não tinha por ali muito boas intenções!... Ah! ele
sabia perfeitamente que a mulher não era das mais fáceis... (Oh! se sabia!) não estava, porém,
em suas mãos afastar os olhos de cima do tal galã! Era lá uma cisma!...
- Também! Pobrezinho dele, se me cai na arara de tentar alguma! jurava o mestre de obras.
Racho-o de meio a meio!
E - rachava. Mas o bonito curioso, bem a contragosto, não tinha achado ainda uma boa ocasião
para dizer em particular a Filomena o que lhe repetia todos os dias, ajoelhado a seus pés,
defronte do marido. Por várias vezes estivera até "vai-não-vai", chegara a supor que a coisa se
decidia; mas o diabo do Borges apresentava-se de repente, e... lá se ia a ocasião.
- Por ela, coitada! estou garantido! considerava o Barradinhas, pensando nos olhares
prometedores de Filomena. Está caídinha! Assim dispusesse eu de um momento!... Não queria
mais que um momento!... Dizer-lhe uma palavra; entregar-lhe uma carta; fazer-lhe um sinal -
bastava!
Mas o demônio do marido nem isso permitia!
A peste não fazia outra coisa senão vigiar a mulher! - Cacete!
Chegou o dia do espetáculo, sem que o Barradinhas tivesse oportunidade de ouvir dos lábios de
Filomena aquilo que havia tanto tempo diziam os olhos indiscretos da formosa criatura.
- É para maçar! pensava ele indignado. É para fazer um homem perder a paciência! Sei que sou
amado por uma mulher que adoro; caio-lhe aos pés, tomo-lhe as mãos, bebo-lhe nos olhos a
confissão de sua ternura, - e, a despeito de tudo isso, não consigo estar com ela um só instante;
porque essa mulher tem um marido impossível, um marido único, um marido que não a larga,
um marido que não vai cuidar de seus negócios, um marido-calamidade! Diabo leve quem
inventou semelhante homem!
E o lindo curioso dramático, quando fazia esses raciocínios, ficava colérico, furioso, a passear
no lugar em que estivesse, com as mãos nos bolsos, o coração oprimido como por uma
injustiça.
- Oh! ela será minha! Isso juro eu! Para que serve então ter talento e ser moço e bonito?...
* * *
Às oito horas da noite estava o teatrinho completamente cheio; a orquestra havia já tocado a sua
sinfonia, e esperava o sinal para lançar a música com que tinha de principiar a peça. Corria nos
espectadores um suspiro de impaciência. Filomena, nervosa, trêmula, esperava atrás de um
bastidor que o pano subisse, para mostrar-se ao público, esplêndida na sua roupa de caráter,
com o seu papel na ponta da língua. O contra-regra corria de um para outro lado, perguntando
se todos estavam prontos e declarando que ia principiar o espetáculo. "Fora de cena! Fora de
cena!" O ponto correu a esconder-se no seu buraco. E, na confusão que se fazia na caixa, cada
um tratou de tomar o seu lugar. Mas ninguém sabia dar notícias do Borges.
- Ora, onde diabo se foi meter este homem?!... perguntou o contra-regra, aflito.
Por esse tempo, o Barradinhas, que vira Filomena pela primeira vez sem o marido, meio oculta
no vão sombrio de um bastidor, concebeu logo a idéia de aproveitar a ocasião; deu uma volta
pelo fundo da caixa, e, surgindo misteriosamente por detrás dela, ia a segurar-lhe a cintura e
ferrar-lhe um beijo, quando a bela mulher vira-se de súbito, recua dois passos e solta em cheio
no lindo rosto do galã a mais sonora bofetada.
O regente, supondo ser aquela palmada o sinal que ele esperava, rompeu a orquestra, o pano
ergueu-se logo, e os espectadores viram o seguinte:
Filomena, sem poder conter as gargalhadas, torcia-se num divão; o Barradinhas, vestido de
calção e meia, procurava uma saída, perseguido pelo Borges, que, em mangas de camisa e
botas, de montar, numa cabeleira a escapar-lhe pelo pescoço, cercava-o por toda a parte, a
dordejar bengaladas. No meio do palco uma das amadoras escabujava com um ataque de
nervos, entre o grupo assustado dos curiosos, que iam e vinham, num fluxo e refluxo de
encontrões promovidos pelo Borges.
O público, defronte daquela cena tão agitada e tão ao vivo, tomou a resolução de aplaudir;
enquanto o dono da casa, repetindo as bengaladas, bramia possesso:
- Pensava que eu o te via, grande velhaco? Não sabias que trago muito a pulga atrás da
orelha, grande maroto?!
O Borges, com efeito, não perdera de vista o galã, na ocasião em que se vestia no camarim,
farejou-lhe os planos e tanto bastou para ir, munido de bengala, esconder-se sorrateiramente
perto da mulher, por detrás de uma empanada, sem mais pensar no drama, e surdo
completamente aos reclamos do contra-regra.
Entretanto, o Barradinhas, vendo que não conseguia fugir pelos fundos do teatro, arremessa-se
sobre a orquestra, salta por cima dos rabequistas, enfia pela platéia e ganha a chácara, e afinal
a rua, onde se lançou de carreira, na frente do populacho, que a sua estranha roupa de veludo
chamava e atraía.
É inútil acrescentar que este fato cortou pela raiz a idéia das representações, e induziu o Borges
a fazer um bom conceito da mulher. Esta circunstância em parte o consolou de seus duros
infortúnios; mas... desgraçado! uma nova provação já o esperava.
* * *
Filomena descobriu que o Urso lhe fazia mal aos nervos, e declarou positivamente não estar
disposta a sofrer em casa semelhante bicho.
- Porém, que mal te fez o pobre cão?... perguntou o Borges, sobressaltado com a idéia de
separar-se daquele fiel amigo de tanto tempo.
- Ora! respondeu ela. É um animal feio! feio, e está sempre a pregar-me sustos! Ainda não
dois dias, achava-me eu descuidada na sala de jantar, quando o maldito surge-me pelas costas.
Não imaginas que susto apanhei! Demais, gosto dos cães em certas e muitas determinadas
circunstâncias: - como acessório pitoresco de uma paisagem, não são maus; na qualidade de
guia de cego, ao longo da rua, num dia chuvoso, também não desgosto; ou então dentro de
casa num gabinete de trabalho - um cãozinho felpudo, asseiado, muito gordinho, um king-
charles esquecido sobre as cadeiras - tem sua graça. Mas o Urso o está em nenhum desses
casos; é um cão detestável, feio, sem pitoresco, sem razão de ser, sem pés nem cabeça de cão;
parece um monstro, é grande de mais, é bruto, não se lhe vêem os olhos, não vai bem em parte
alguma; tão mal fica sobre o tapete da sala, como sobre a grama da chácara! Além disso,
enche-me a casa de pulgas e tem uma morrinha insuportável! Se soubesses como ficas
repulsivo depois de brincar alguns instantes com ele!...
Esta última consideração resolveu o Borges a separar-se do querido Urso. Mandá-lo-ia para a
casa de um amigo, morador do Engenho Novo, visto que na ocasião não dispunha em Paquetá
de alguém que se pudesse encarregar disso.
Foi com os olhos cheios d'água que o bom homem viu no dia seguinte partir o seu fiel
companheiro.
- Vai! disse consigo. Vai, meu pobre Urso! Não contavas naturalmente que eu te enxotasse de
casa, como se enxotam os Guterres e os Barradinhas - tu! que sempre foste bom e verdadeiro!
- Pobre animal! pobre animal! dizia o Borges, fechando-se no quarto. Como tudo se vai
transformando em minha vida! não possuo os meus dois melhores amigos, os únicos que me
restavam - o Barroso e o Urso!
E chorava. O Barroso fora o seu companheiro de infância, em Paquetá. Principiaram a vida
trabalhando no mesmo serviço e às ordens do mesmo patrão, pois que o Barroso era neste
tempo caixeiro do pai de Borges; antes do casamento, nunca tinham tido a mais ligeira rusga -
foram sempre unha com carne, unidos - inseparáveis; mas depois... esfriaram, nunca mais se
deram, e por conseguinte restava o outro - o Urso, o fiel, o sempre o mesmo, o único que lhe
não fazia recriminações!...
E agora era este que se ia também... talvez para sempre! Oh! quantas vezes não passaram
juntos, horas esquecidas, como dois iguais!... Com que prazer o Borges, ao voltar do trabalho,
não recebia no ombro as patas do companheiro e não lhe corria a mão pelo enorme lombo
felpudo?...
Ah! Mas ele, sem que Filomena o soubesse, havia de ir visitá-lo, pelo menos duas vezes em
cada mês.
E desde então, efetivamente, o Borges, quando lhe apertavam as saudades do Urso, metia-se
no trem e ia passar com ele alguns instantes. - Que idílios nessas curtas visitas clandestinas!
Que festas não trocavam entre si os dois amigos!
O animal parecia compreender aquela afeição do Borges, porque, mal o via apontar ao longe,
disparava a correr para ele, grunhindo, a sacudir a cauda, a fazer-lhe negaças, a cercá-lo, a
pular, a morder-lhe os calcanhares, num alvoroço de prazer. Mas um belo dia em que o mestre
de obras foi visitá-lo, disseram-lhe que o dono da casa havia na véspera fugido aos credores, e
ninguém sabia dar notícias dele, e muito menos do Urso.
O Borges voltou muito triste, e assim se conservou durante o resto do dia. A mulher veio a saber
a causa dessas mágoas, e, para o consolar, tomou-lhe a cabeça, entre as mãos e deu-lhe um
beijo em plena boca; mas fugiu logo, deixando o marido na doce esperança de ver terminar ali
as suas provações e com elas o longo suplício de Tântalo, que o devorava.
Assim não sucedeu.
Nem o trinco permanecia corrido, como a paixão de Filomena pelas festas e pelos requintes
de luxo exacerbara-se de um modo assustador. Agora, não se passava um dia, uma hora, que
lhe não acudissem novos meios de gastar "carradas de contos". Ela quis carruagens, parelhas
de raça, lacaios gordos à moda parisiense, grooms de cara raspada, que servissem o chá de
gravata branca e casaca; quis as esquisitices do gosto, os Sêvres, as sedas de Macau, os
móveis caprichosos e as jóias empobrecedoras para quem as dá.
O Borges principiava a temer uma ruína. Ele era rico... mas; afinal, que diabo! não tinha à sua
disposição as Índias Inglesas! Daquele modo onde iriam parar?... Verdade é que ultimamente,
instigado pela mulher, que desejou sentir as comoções comerciais, arriscara na Bolsa grandes
quantias que lhe trouxeram lucros consideráveis.
Mas a fortuna também cansa! refletia o capitalista. E se me desanda a roda, posso dar com os
burros n'água.
Por esse tempo exercitava-se ele no bilhar. sabia tomar grogs, dizer mal dos cantadores do
lírico, e perder dinheiro nas corridas do Prado.
- Contudo, ainda te falta uma coisa, observou-lhe a mulher uma vez em que ele queria valer os
seus progressos.
- Ainda! Qual?
- Um título.
- Mas para que um título?
- Não posso compreender um homem sem qualquer distinção. Um título serve para disfarçar a
nulidade do nome. Creio que não terás a pretensão de imaginar que possuís um nome!
- Como assim?! Pois eu não...
- Teu nome não existe; não tens uma individualidade, não tens por onde te possas distinguir dos
outros! Se se disser o - João Borges - é como se se dissesse o - José da Silva; ninguém sabe
quem é, ninguém conhece!
- Mas, filha, cada um é conhecido na sua roda. Eu sou conhecido na praça!...
- Que praça!...
- A praça do comércio.
- Ora! fez a mulher com desdém - isso não é ser conhecido; ainda se fosse na praça pública, vá!
O Borges fez um gesto severo.
- Se tivesse talento, acrescentou a mulher, lançar-te-ias na literatura, ou na política, ou no teatro,
ou na guerra de qualquer país. Mas nem é bom pensar nisso! Tuas ambições limitam-se a uma
patente da guarda-nacional, a uma faixa de subdelegado ou à presidência de alguma irmandade
religiosa; coisinhas que eu abomino, como a expressão mais chata e mais ridícula da estupidez
burguesa!
- Mas, filha, nem eu sou subdelegado, nem nunca prestei serviço à guarda-nacional; e, desde
que torceste o nariz às irmandades, nunca mais aceitei cargos, tanto da ordem de Nossa
Senhora da Candelária, como do Sacramento e da de S. Francisco!
- Grande fúria! exclamou a mulher. O que sei é que não tens um título, e é preciso que o tenhas!
- Isso é o que menos custa! disse o Borges. - Serei comendador, arranjarei a comenda da Rosa!
- Comendador! Estás doido! Isso não é um título! Eu aceito de barão para cima.
Comendador! Comendador todo o mundo o é! Ora, comendador! Com efeito!
- E se eu arranjar um baronato? Hem?! Se eu o arranjar, prometes ser mais condescendente?...
Filomena respondeu passando-lhe os braços em volta do pescoço, e dando-lhe um beijo na
face.
- Pois juro-te que serás baronesa ou coisa que o valha. Hoje tudo isso se obtém com muita
facilidade do governo português...
- Mas receio a demora! volveu Filomena. Ardo de impaciência por ser alguma coisa - baronesa!
condessa! viscondessa! oh! como é bonito! como é poético. "A Sra. condessa quer se dar ao
incômodo de entrar?... A Sra. baronesa se retira?..." Oh! ~ excelente! ~ encantador! Lamento
apenas não ter me lembrado disto mais tempo; a estas horas podíamos estar no gozo do
titulo! Receio a demora!
- Não; talvez não demore muito, Sra. viscondessa! disse o marido galhofeiramente, tomando as
mãos da mulher.
- E se fôssemos a Portugal tratar disso?... lembrou ela. Ainda não fizemos uma viagem!...
- Pois vamos lá a Portugal! disse o Borges.
E ficou resolvido que partiriam, logo que estivessem dadas as providências necessárias para a
compra do título.
Durante o resto desse dia, Filomena mostrou-se muito chegada ao marido. À noite, às
costumadas visitas, não se cansaram de falar na próxima viagem. Borges estava radiante, a
mulher nunca o tratara tão carinhosamente. Os amigos chegavam a estranhá-lo. Abriram-se
garrafas de um Tokai magnífico, que o futuro titular recebia diretamente da Hungria, e o mestre
de obras bebeu entusiasmado à sua felicidade.
- É agora! dizia consigo esfregando as mãos. É agora que se decide o negócio!
Mas o ferrolho ainda não se abriu dessa vez.
- Pois veremos quem vence, exclamou ele, atirando-se furioso na sua cama de solteiro. Ou eu
conseguirei, quanto antes, entrar naquele quarto, ou leva tudo o diabo nesta casa! Arre! Nem sei
até o que me parece semelhante coisa!
* * *
Não pôde dormir o pouco que lhe restava da madrugada, e, mal surgiam no horizonte os
primeiros raios do dia, já o Borges estava de pé.
- Cecília! gritou ele, vendo passar a criada por defronte da porta do seu quarto. Espere aí, que
tenho o que lhe dizer.
A criada fez um gesto de surpresa, vendo o marido de sua ama tão sobressaltado.
- Você é uma boa rapariga! principiou ele. É fiel, bem procedida e diligente!...
Cecília olhou-o espantada.
- Eu sempre tive boas intenções a seu respeito, continuou o Borges. Minha mulher está
satisfeitíssima com o seu serviço!
- São bondades... balbuciou a rapariga, abaixando os olhos.
- Não! A verdade diz-se!... Sou-lhe grato, sou! Para que negar?... e fique sabendo que hei de
ajudá-la no seu casamento!...
A fisionomia da criada iluminou-se, e, sem dizer palavra, ela pôs-se a torcer e destorcer o seu
avental de algodão.
- Sei das suas intenções com o Roberto, e estimo que se casem. Pode contar com o enxoval!
Cecília quis beijar-lhe a mão.
- Não tem que agradecer. Olhe! guarde isto para comprar um vestido novo.
E o Borges meteu-lhe nos dedos uma nota de vinte mil réis.
- Oh! meu rico amo! exclamou ela com os olhos úmidos de comoção - como vocemecê é bom!
Eu e mais o Roberto havemos de lhe agradecer por toda a vida!
- Bem, bem! disse o Borges, mas preciso que você me preste um serviço, um pequeno serviço...
Cecília adiantou-se mais, cheia de solicitude.
- É quase nada!
E abaixando a voz depois de olhar cautelosamente para os lados:
- Desejo penetrar hoje no quarto de minha mulher.
A criada recuou estupefata. Agora o seu rico amo lhe parecia simplesmente doido. Que diabo
queria dizer aquilo?!...
O Borges compreendeu o espanto da rapariga e disfarçou:
- Sim; sim! Não era uma simples questão de lá ir!... Isso seria o menos. Puf!
- Então? animou-se a perguntar Cecília.
Mas é que eu queria entrar sem que minha mulher contasse comigo, percebe?...
A criada fez-se vermelha.
- Vosmecê então desconfia de minha ama?! Que aleive, meu Deus! Uma injustiça assim!
Desconfiar de uma senhora que é mesmo um anjo! Uma senhora que...
- Não! não é isso, filha! Quem lhe falou aqui em desconfiança?! Ninguém desconfia de sua ama.
Está a tomar o pião à unha! - ninguém conhece melhor minha mulher do que eu!
- Ah! respirou a criada, credo! até me deu uma coisa na boca do estômago!
- Está claro que sua ama, nesse sentido, é o beijinho das esposas! o tenho que me queixar,
graças a Deus! Mas eu queria ir, sem que ela me esperasse; percebe? É uma fantasia como
outra qualquer!... Vocemecê nem tem que se comprometer com isso... Ela, no fim de contas, é
minha mulher, que diabo!
- Meu amo quer que eu lhe arranje a chave do quarto?...
- Qual! Isso não adianta nada! Ela tem um ferrolho, fechadinho por dentro.
- É exato, é! disse a criada, lembrando-se de já ter visto o tal ferrolho.
- Pois é que bate o ponto! Trata-se de arranjar os modos de abri-lo por dentro, sem que ela o
saiba, compreende?
A criada ficou a pensar. Mas para que exigia o amo semelhante coisa?... A senhora podia ficar
massada e voltar-se contra ela!...
- Não tenha receio! disse o Borges. Eu respondo por tudo! Valha-me Deus! não é nenhum crime
querer um homem entrar no quarto da sua mulher!...
- Vocemecê então promete?...
- Que a não deixo ficar mal? Ora! nem tem que saber!...
- Não e isso... digo: ajudar-me no meu...
- No seu casamento?... Pode ir descansada, contanto que arranje o que lhe disse.
Ficou assentado que Cecília nessa noite se esconderia no quarto da senhora, e, quando esta
estivesse dormindo, abriria cautelosamente o tal ferrolho, que ela, por cautela, untaria
previamente com azeite. E se a criada guardasse bem o segredo de tudo isso, nem teria o
seu enxoval prometido, como ainda havia de chimpar um par de brincos à moda.
- Mas veja lá agora se vai dar com a língua nos dentes!...
Foram as últimas palavras de Borges.
A criada saiu dali para ir ter com o Roberto.
- Esta noite não te posso aparecer senão mais tarde, disse-lhe ao vê-lo. Tenho que ficar no
quarto da senhora.
- Há alguma novidade?
- Não! É uma coisa. É um negócio com o patrão! - E ria-se. - Eu não te posso dizer mais
nada!...
- Olé! Então, é coisa de segredo?...
- Estou a dizer que é, homem!
- Segredo! Você tem segredos com o patrão?!
- Mau, que me tomas o pássaro no ar! Eu nada tenho com o patrão! Tenho é de ficar no quarto
da senhora!
Roberto mordeu a ponta do bigode:
- Tu premeditas alguma, raio de uma peste! Já! dessem bucha p'r'aí, se não queres que eu te
faça falar por outro modo!
- Mas é, que eu não te posso dizer nada! o que te afianço, é que as coisas vão mudar de
figura! Não tens mais razão de demorar o nosso casamento; o amo cai com o enxoval e ainda
com uma ajuda de custas! Hem? que te parece?
- Parece que tudo isso me cheira a patifaria! Donde saiu agora essa bondade do patrão?!
E vendo que a criada não respondia:
- Não tencionas desembuchar, criatura?!
- É que se dou com a língua nos dentes, vai tudo por água a baixo!
- Ora, deixa-te de tolices e conta lá o que houve! Bem sabes que entre nós não há segredos!
- E antes houvesse! Mal fiz eu em permitir umas certas coisas antes do casamento!... Se não
fosse isso, você com certeza não me trataria desse modo, e já teria me levado à Igreja!
O Roberto sacudiu os ombros.
- É! fez Cecília, muito queixosa. Até aqui toda a dificuldade era o enxoval; venho dizer-lhe que o
patrão se encarrega disso, e você, em lugar de despachar-se por uma vez, ainda me dá
muxoxos e põe-se a desconfiar de mim! Tola fui eu em ir atrás de cantigas! Diabo do traste!
- Deixa-te tu de cantigas e vamos ao que interessa!... Despeja p'r'aí o que houve!
- Não despejo nada! Você não me merece coisa alguma, é um velhaco; enquanto eu me fiz
tesa, não lhe faltaram maneiras; agora é isto que se vê!...
E começou a chorar:
- É preciso não possuir um bocado de consciência para enganar desta forma uma pobre
rapariga, que nunca teve pecha que lhe botassem.
- Guarda as lamúrias para outra ocasião, filha!
- Pois se é como eu digo!... Ingrato! Se eu não o quisesse tanto, não estava agora aqui me
arreliando!
- Deixa-te de asneiras... fez o criado, passando-lhe por condescendência a mão na cabeça. Não
te podes queixar - eu também gosto de ti!
- Sim, sim: mas o casamento não ata nem desata! dizia ela, soluçando.
- Ora! E que teríamos lucrado nós em nos termos já casado?...
- Que teríamos lucrado! Olha o disparate! Você talvez não lucrasse nada, mas eu?! Penso nisso
todos os dias! Até estou mais magra! Lembrar-me de que você é muito capaz de deixar-me
neste estado... dá-me venetas de acabar com a vida!
- Não digas asneiras, toleirona! O que tem de ser teu, às mãos te chegará!
E depois de beijá-la, sem carinho:
- Mas vamos lá. Conta o que houve entre vocês, tu e o basbaque do patrão!...
- Prometes guardar segredo?... perguntou Cecília, fazendo por esticar as carícias do noivo!
- Ora!
- Então, lá vai! O patrão quer entrar, sem ser esperado, no quarto da patroa!
- Com que fim?!
- Sei cá! Diz ele que é uma fantasia como outra qualquer!...
- Mas daí?... Que diabo tens tu a ver com isso?...
- Pois aí é que bate o ponto. A patroa fecha-se por dentro; eu fico escondida no quarto para abrir
a porta ao marido! Creio que aquilo é arrufo entre os dois!
Roberto coçou a parte inferior do queixo:
- Hun-hun! resmungando. Não sei, não sei! Queira Deus que essa história não te de na
cabeça!... Olha que não se encontram duas casas como esta!... Isto aqui, filha, vale mais que o
céu!...
- Ora o que! fez a criada. - Não é crime introduzir um marido no quarto de sua mulher!... Aquilo
foi arrufo com certeza; ela não quer dar o braço a torcer; mas eu que a conheço, sei que não lhe
vou cair em desagrado; ao contrário - verás como me agradece!
- Isso é entre vocês, mulheres, que se entendem! Em todo o caso, é bom pensares antes no
que vai fazer!
- Deixa correr o barco por minha conta!
* * *
Entretanto, o Borges, à proporção que a noite se aproximava, sentia o coração pulsar-lhe com
mais força. Ah! desta vez, sem dúvida, iam acabar os seus tormentos. Aquele novo plano não
poderia falhar!
Namorado algum, dos mais ardentes, palpitou com tanta febre no antegozo de uma aventura.
Nunca uma alma apaixonada ansiou tanto pela entrevista de seu ideal; nunca os segundos
foram contados com tanta impaciência; nunca o momento supremo da ventura foi atraído com
tanta sofreguidão.
Borges, assim que viu a casa completamente recolhida, tratou de tirar as botas e subiu ante
pé ao segundo andar.
Não se pode conceber o sobressalto em que ia o pobre homem; tremiam-lhe as pernas; a
cabeça andava-lhe à roda; o sangue afluía ao coração, que parecia querer saltar-lhe pela boca.
- Filomena já devia ter pegado no sono, ou pelo menos estar adormecendo.
Esperou mais um instante. Nada, porém, de aparecer a criada!
Decorreu mais algum tempo - um quarto de hora, uma hora talvez; ele não o podia determinar:
sua impaciência fazia parecer uma noite inteira, uma eternidade.
- Oh! Como o torturava aquela tardança!
E Cecília nada de aparecer; Borges principiava a desesperar. Haveria alguma novidade... Ela
teria ido contar tudo à senhora? pensou o namorado, rangendo os dentes e fechando os
punhos!
- Se me traíste, miserável, verás o que te sucede! Verás o que te sucede!
Mas um rumor quase imperceptível veio nesse instante do lado do quarto de Filomena; a porta
abriu-se muito de mansinho, e a criada saiu cautelosamente, às apalpadelas, como se não
quisesse tocar com os pés no chão.
- Está dormindo?... perguntou-lhe o Borges em segredo, indo ter com ela.
- Está respondeu Cecília no mesmo tom. Pode entrar. Mas veja se me vai comprometer...
- Descansa. Aí tens para os teus alfinetes...
Deu-lhe mais dinheiro.
A rapariga afastou-se, pensando no pobre noivo, o Roberto, que àquelas horas devia estar
farto de esperá-la; e o Borges, cheio de mil cautelas, penetrou no quarto perfumado e virginal de
sua esposa.
Uma dúvida claridade de lamparina aquarelava meias sombras vagas e transparentes em torno
do leito, onde Filomena se aninhava entre nuvens de linho branco. Ouvia-se um respirar
tranqüilo e cadenciado, que vinha da cama.
Quando o marido sentou o primeiro no tapete da alcova, a mulher estremeceu, encolhendo-
se toda com um suspiro.
Borges retraiu-se maquinalmente, e procurou esconder-se atrás do reposteiro da porta; mas o
arfar ansiado de seu peito denunciou-o.
Filomena virou-se em um novo arrepio, e, depois de algum silêncio, perguntou com a voz
alterada:
- Quem está ai?...
Borges não tugiu nem mugiu.
- Quem está aí? Não ouve?! tornou ela, erguendo a cabeça e fitando a porta.
O marido viu-a levantar a meio, desembaraçar um braço dos lençóis e procurar tateando alguma
coisa na gavetinha do velador; ele, porém, não respondeu, e apenas se traiu por um estalo seco
das juntas do joelho.
- Quem está aí, fale, com os diabos, se não quer receber uma bala nos miolos!
E engatilhou um revólver, fazendo pontaria ao reposteiro.
V
LUTA ABERTA
- Sou eu! disse o Borges, correndo para ela. - Não dispares! É teu marido!
Filomena, ao senti-lo perto da cama, repeliu a arma e, embrulhando-se no lençol, saltou pelo
lado contrário, prestes a fugir.
- Não sairás! gritou o esposo, cortando-lhe a passagem.
- É então uma violência?! perguntou a mulher.
- Seja o que for, mas não me escaparás desta vez!
- Socorro! gritou ela. Socor...
Não pôde continuar, porque o marido tomara-a nos braços e abafava-lhe com os beijos a voz.
Filomena debatia-se violentamente; afinal, soltou um grito desesperado, e caiu sem sentidos.
- Ora, mais esta!... resmungou o Borges, depondo a mulher sobre um divã. Filomena! Filomena!
Então?! Que é isso?!
Ela não respondia.
- Ora senhores! - Ó Filoquinha! Anda! Volta a ti!
Filoquinha estrebuchava. Borges correu à procura de sais. Acudiram os criados. Cecília, aflita,
andava de um para outro lado, sem saber que fizesse, a olhar espavorida para o amo, como
quem olha para um bandido.
No entanto, o pobre esposo não saía de ao da mulher. no fim de meia hora, esta voltou a
si, olhando estranhamente para os lados e a passar a mão repetidas vezes pela fronte.
- Ah! exclamou, dando com o marido. E escondeu o rosto, gritando entre soluços - que estava
perdida, desonrada, chamando-se infeliz, pedindo a morte.
- Mas, meu amor, dizia-lhe o marido. Lembra-te de que sou teu esposo! Lembra-te de que não
estou cometendo um crime!
- Deixa-me! Deixa-me! respondia Filomena desorientada, em soluços. - Fuja! Retire-se!! Não
quero que o vejam aqui! ! Vá-se embora! Siga esta mesma noite para longe! Saia do Rio de
Janeiro! do Brasil! da América! Saia, se não quer que eu lhe de cabo da vida! Infame! Sedutor!
E chorava, desesperada, como se lhe tivesse sucedido uma grande desgraça O marido dizia-lhe
palavras de ternura, animando-a; ela, porém, não se queria conformar com a situação, e
soluçava cada vez mais fortemente.
O Borges, afinal, também se pôs a chorar. O dia veio encontrá-los numa orgia de lágrimas.
- tem a minha bela vida de casado!... dizia ele entre dentes, na ocasião de abandonar a
alcova de sua mulher. Esta, ainda em cima, o queria ver pelas costas!... Que vida a sua! Que
vida, santo Deus!
Retirou-se para o seu quarto, desesperado, e atirou-se à cama, sem se despir, soluçando,
escondendo o rosto entre os travesseiros.
Ia a pegar no sono, quando foi surpreendido por alguém, que chorava e gritava
desesperadamente ao seu lado.
* * *
Era Cecília, que acabava de entrar no quarto, dizendo a berros que o Borges havia causado a
sua desgraça; que a senhora pusera-a no olho da rua e que ela, pobre de si! desse momento
em diante não tinha onde cair morta! Que o patrão fora a causa única de tudo aquilo! Que,
infeliz que era! ia separar-se do Roberto, do homem destinado a ser seu marido e a quem dera
por conta o seu coração e a sua ternura! E que agora...
Uma explosão de soluços sufocou-a.
- Sou muito desgraçada! berrava. - Sou muito desgraçada!
Ora, não me amoles tu também! gritou o Borges, erguendo-se da cama.
- Mas é que a senhora me despediu!
- Pois que a despedisse. Vão todos para o diabo! Eu também estou despedido e não me queixo!
Arre!
- Mas a questão é que, se eu me for embora, o Roberto será muito capaz de...
- Pois o Roberto que se vá também! Está despedido! Sou eu que o ponho na rua!
Roberto, que escutava tudo isso atrás da porta, entrou por sua vez no quarto e correu ao patrão,
implorando-lhe piedade. - Que seria uma revoltante injustiça pô-lo na rua! Ele! que cumpria tão
bem com os seus deveres! Ele! que, por amor dos amos, era capaz de ir às profundas do
inferno! - Oh! Uma coisa assim até bradava aos céus!
E cada um dos criados agarrou-se a um dos braços do Borges, e principiaram ambos a
choramingar, implorando-lhe compaixão por tudo que ele mais amasse nesta vida.
- Olhem que vocês me estão fazendo um berreiro nos ouvidos! bradou o amo, querendo
arrancar-se daquela posição.
- Arre! Pois tenho também de aturar este par de galhetas?! o para o diabo! Deixem-me!
Deixem-me! Súcia de doidos!
E o Borges de um salto agarrou o chapéu, enterrou-o na cabeça, e ganhou em três pernadas a
porta da rua.
- Safa! Safa! dizia ele a marche marche pela calçada. - Que inferno! Isto lá é vida!
E assim andou até às dez horas pela cidade; tonto, sem destino. furioso, a abalroar com todo o
mundo, a dar encontrões nas quitandeiras, e meter os pés no que encontrava, a praguejar, a
promover barulhos.
Num restaurante, onde entrou para almoçar, à primeira réplica do servente, atirou-lhe com o
sifão e fez voar a mesa diante de si com um soco. Um sujeito, que a recebeu pelas pernas,
desafrontou-se, arremetendo contra o Borges o prato que tinha mais à mão.
Levantou-se grande desordem, e a coisa teria acabado na polícia, se o marido de Filomena,
depois de lançar uma nota de cem mil réis ao dono do hotel, não distribuísse vários ponta-pés
para os lados e não ganhasse a rua, levando na sua frente todos os obstáculos que se lhe
antepunham.
Chegou à casa ao meio-dia, esbaforido, aniquilado, sem querer a presença de ninguém,
disposto a fechar-se no quarto e deixar que aquela maldita vida girasse em torno dele, como
bem entendesse.
Mas o aspecto revolucionado de seu "lar doméstico" o surpreendeu logo à entrada. Tudo estava
em reviravolta. Cecília e Roberto arrastavam malas, despejavam a roupa dos gavetões da
cômoda, empacotavam objetos de uso, acumulavam trouxas.
- Que é isto? perguntou o Borges.
- A senhora deu-nos ordem de preparar o necessário para uma viagem...
- Viagem de quem?!
- Nossa não é, com certeza, porque nós já estamos despedidos
- Quem vai viajar?! Desembuchem, com os diabos!
- A senhora, naturalmente; pelo menos esta roupa é dela.
Borges subiu ao segundo andar; encontrou a mulher muito tranqüila, sentada no divã, a ler.
- A senhora tenha a bondade de explicar que desordem é aquela em baixo? Que significam
aquelas malas, aqueles preparativos de viagem?!
- O que vê. Trata-se justamente de uma viagem.
- Viagem de quem?
- Minha. Vou, uma vez que o senhor não quis ir. Juntos é que não ficaremos por coisa alguma!
Não me quero arriscar a uma segunda agressão! Não posso ficar numa casa, onde não tenho a
menor garantia, onde nem o meu quarto de dormir é respeitado!
- Mas a senhora esquece-se de que é minha esposa? A senhora não vê logo que eu não a deixo
sair assim, sem mais nem menos?...
Filomena ergueu-se em silêncio, sacudiu os ombros e retirou-se da sala.
O Borges acompanhou-a.
- Filomena! disse ele.
- Que é?
- A senhora não tencionará acabar com essas coisas por uma vez?...
- Que coisas?
- Esses caprichos! Então está sempre resolvida a fazer a viagem?
- Estou.
- Pois nesse caso irei também! Acompanhá-la-ei ainda que seja para o inferno. Roberto! ó
Roberto do diabo! Corre! arranja-me uma mala!
- Bem! Nesse caso não irei, disse Filomena, fechando o livro, que tinha entre as mãos.
- É então um propósito firme de contrariar-me em tudo?! perguntou o marido, trêmulo de raiva.
- O senhor é que está nesse propósito! Parece que anda inventando meios e modos de
mortificar-me! É bastante que eu mostre gosto em qualquer coisa para o senhor fazer logo
justamente o contrário! Isso prova que o senhor não me ama! Que o senhor não deseja ter uma
esposa; deseja éter uma mulher às suas ordens! Animal! Bruto! Estúpido!
E, possuída de um violento sobressalto de nervos, atirou-se de bruços no divã a soluçar, a
morder-se.
Borges correu para junto dela; tomou-a nos braços, fê-la encostar a cabeça no seu colo, e, com
muita ternura, os olhos úmidos, começou a acarinhá-la, a dizer-lhe todas as meiguices que lhe
inspirava o amor.
- Oh! Mas para que havia de se mortificar daquela forma?... Para que se maltratar assim? para
que nodoar com os dentes aquelas mãozinhas tão formosas?... O fato da véspera não
justificava semelhante desespero! Se algum dos dois devia estar ressentido, era ele de certo,
porque...
- Não! Não! Tu procedeste como um selvagem!,.. Tu foste violento! Tu foste brutal!
- Porque te adoro, minha vida!
- E juras que me amas?! Juras que não conheces outro ideal, outra preocupação, que não seja
eu?! Juras que serás capaz de todos os sacrifícios por minha causa?!
- Ainda o duvidas?!
- Bem! Iremos juntos nesse caso; faremos os dois a viagem!...
- Sim, mas não é bonito, nem há razão para sairmos tão precipitadamente!
- Mau! Já principias tu com as objeções do costume!... Dessa forma não teremos nada feito!
- Mas, vem cá, minha santa, é que não há a menor necessidade de irmos como dois criminosos,
que fogem à justiça! Para que havemos de nos sujeitar a umas certas coisas, quando, graças a
Deus, não nos faltam recursos para termos todas as comodidades?...
- Oh! Eu mesmo faço muito caso das comodidades!...
- Sim, mas hás de confessar que...
- Ah! meu amigo! se tens medo de sair de teus hábitos, o melhor é desistirmos da viagem!
Quem quer estar a gosto fica em casa!...
- Não é isso! não é isso! não está quem falou! Oh! Tu também te espinhas por qualquer
coisa!...
- Pois então, nem mais uma palavra sobre o assunto, e, no primeiro vapor que sair para a
Europa...
- Estamos de partida!
- Ora muito bem!
VI
PRIMEIRA DESILUSÃO
Não obstante, o Borges ainda não se podia considerar feliz. A mulher, depois da cena da alcova,
tornou-se mais esquiva; enquanto que a paixão dele, como se recebesse um novo impulso,
recrudescia de um modo fantástico. Mas continuava a ser o seu amante platônico, o seu
namorado, disputando um sorriso, um olhar de ternura, à custa de enormes sacrifícios.
Durante os dias que precederam à viagem, o mísero não fez outra coisa além de procurar meios
engenhosos de seduzir a esposa. Certo de que a violência não produzia bons resultados, tentou
captá-la com presentes de grande valor; punha, a todo momento, à disposição dela, jóias
caríssimas, cortes de seda do que havia de melhor. Depois, desiludido também por esse lado,
lançou mão de outros recursos - tentou fasciná-la com a grandeza, falou-lhe em belas posições
sociais, falou no seu título, que não devia demorar muito; mas, ainda assim, nada conseguiu: o
maldito ferrolho estava, inabalável e frio, como uma lei da natureza.
Ele, porém, em vez de sucumbir, redobrava de coragem. Procurou afinar os seus gostos pelos
dela; fazia-se triste, propenso às melancolias e aos êxtases; apertava muito a roupa ao corpo
para figurar mais magro: fingia-se poeta - roubava os versos dos almanaques, torcendo-lhes os
nomes e às vezes o sentido, versos que ele copiava pacientemente durante a madrugada e que
deixava, como esquecidos, no seu escritório, sobre a pasta, molhados de pingos d'água, que
representavam lágrimas arrancadas do coração. Outras vezes. quando a via de bom humor,
fazia-se muito estouvado, cheio de rapaziadas, risonho, com fumaças de estroinice fidalga.
- Creio que agora se decide o negócio!... pensava ele esfregando as mãos - desta vez parece
que vai.
Efetivamente, se tudo isso não conseguia logo a abolição do tal ferrolho, não deixava,
entretanto, de modificar as reservas de Filomena e de faze-la mais dócil e mais chegada ao
esposo. Mostrava-se agora muito agradecida às finezas que dele recebia; mostrava-se amável e
prometedora; ao jantar, tocavam os pés por debaixo da mesa; tinham apertos de mão ligeiros e
assustados, beijinhos furtados e longos idílios ao luar, nos bancos do jardim ou debruçados no
balcão da mesma janela.
- A bordo é que eu te quero pilhar!... dizia o Borges de si para si, mentalizando planos de
ataque. - A bordo é que serão elas!
E tratou de realizar a viagem. A casa ficaria entregue aos criados.
Dias depois embarcavam num paquete francês, que seguia para Lisboa.
- Ora até que afinal!... considerou ele, quando viu a mulher já instalada no beliche. - Ora até que
afinal estou livre do maldito...
E, de fato, pelo seu ar condescendente, por sua linguagem doce e pelas maneiras de tratar
agora o esposo, Filomena parecia muito pouco disposta a morrer de saudades pelo ferrolho.
* * *
Mal, porém, começou a caminhar o paquete, que um terrível enjôo apoderou-se do pobre marido
apaixonado e o prostrou no fundo de seu beliche, inútil e arquejante.
Filomena não lhe perdoou semelhante coisa. Enjoar!... enjoar em sua companhia! Oh! o Borges
acabava de perder todo o prestígio que ultimamente havia conquistado!
- Mas não é culpa minha! lembrou ele, sem ânimo para erguer a cabeça.
- Reagisse! Tivesse mais domínio sobre si! Os espíritos fortes governam a matéria! Enjoar! Oh!
Shocking!
E acalmou um pouco a sua indignação, lembrando-se de que D. Juan, de Byron, enjoara
também na primeira viagem que empreendeu. Todavia, em Lisboa, foram ocupar aposentos
separados no Hotel de Bragança.
Apenas se demorariam o tempo necessário para tratar do título e seguiriam logo caminho de
Espanha, porque Filomena declarou que aquela cidade lhe fazia mal aos nervos.
Todo o seu ideal era a Itália; sonhava-a através das descrições que lhe depararam centenas de
romances. Queria Nápoles, com o clássico Vesúvio em plena erupção, o seu golfo lendário, o
seu famoso céu azul, estrelado de pombos.
Exigia Veneza. Veneza com todos os seus acessórios pitorescos - as suas serenatas em
gôndola, o seu palácio dos Doges, os seus romances debaixo de velhas e melancólicas
abóbadas, consagradas pelos séculos. Reclamava excursões ao Lido, às ilhas decantadas da
Laguna, a S. Lázaro dos Armênios, a Murano, a Torcelo. Queria saturar-se bem da "filha gentil
do Adriático", mergulhar nas sombras azuis de seus canais, onde rebrilham de espaço a espaço
as competentes lanternas dos gondoleiros; não morreria sem passar algumas horas de
concentração mística e deliciosa sob a melancólica ponte dos Suspiros. - Oh! a ponte dos
Suspiros!
Depois, Gênova, "cidade de mármore!", com a sua acumulação de palácios célebres, seus
jardins silenciosos, suas colinas fortificadas! - Oh! a Itália, a Itália era então toda a sua ambição,
todo o seu viver!
E deixaram-se os dois seguir o itinerário comum das viagens à Europa. Atravessaram a
Espanha, a ruidosa França, percorreram a Suíça, "a livre Helvécia", como poeticamente a
classificou Filomena, e, afinal, depois de uma semana de Mônaco, onde ela teve a fantasia de
ver o marido perder dinheiro ao jogo, acharam-se em caminho de Nice, da qual, mediante nove
horas de mar, passaram-se a Gênova.
Chegaram às oito da manhã, quando um sol esplêndido punha em relevo as magnificências da
cidade de mármore. Filomena, porém, estava sequiosa de Nápoles e, como seu vaporzinho
seguia para aí, mal deu um passeio em terra, tornou a embarcar com o esposo.
- Oh! Nápoles! Nápoles, dizia ela, entusiasmada, ao chegar à famosa cidade. Como desejava
eu viver e morrer sob o teu sol dourado, passando os dias e as noites a contemplar o teu céu
azul, o teu golfo da cor do teu céu!... E ter perto de mim, ao alcance de meus olhos, Capri, Ischia
e o Vesúvio, e essa extensa costa, que vai de Portici a Castellamare e aos belos penhascos de
Sorrento! Ó Nápoles!
O Borges escutava essas e outras declamações com um profundo silencio de respeito. - Sim
senhor! Não fazia a mulher tão entendida em geografia!... pensava ele, ensoberbecendo-se.
Não obstante, a romântica senhora sofreu uma triste decepção ao saltar na desejada cidade.
Não era o seu Nápoles que tinha defronte dos olhos; não o reconhecia; faltava-lhe fosse o que
fosse - um certo pitoresco, um certo encanto, que ela, por mais que procurasse, não encontrava
ali.
- Não! decididamente não era aquele o Nápoles de seus sonhos! O que ela via defronte de si
era uma população agitada e desordeira, que a acotovelava grosseiramente, obrigando-a a
segurar-se ao braço do marido, o qual, por mais de uma vez, esteve a cair com os encontrões
que recebia de todos os lados.
- Safa! gritou o Borges, tonto. - Assim nem a praia do Peixe!
Sobre o cais e nas longas ruas agitadas, que vão a Chiaja, a Santa Luzia, à rua de Toledo, ao
Forte de Sant’Elmo - o mesmo formigar, o mesmo borborinho impertinente e grosseiro.
E que confusão de pescadores, camponeses, frades, mercadores, garotos nus e lazarones de
todos os feitios e de todas as cores.
- Isto parece uma cidade de doidos! observou Filomena ao marido - isto nunca foi Nápoles.
E aquela multidão irrequieta parecia justamente um bando enorme de doidos, que iam e vinham
em vertigens, empurrando-se uns aos outros, metendo-se pelas pernas dos estrangeiros,
invadindo-lhes a bolsa e as algibeiras com olhares de ganância, e, às vezes, com os dedos.
Vendedores d'água, de frutas e de peixe, passavam a gritar como perdidos; burros carregados
de legumes seguiam a trote, chocalhando guizos barulhentos; transeuntes de todos os matizes
sociais, conversavam e gesticulavam agitadamente. E carruagens a galope cortavam as ruas,
em várias direções, num estardalhaço febril de matracas, ferragens e campainhas. E tudo, até
as casas, as árvores e as pedras da rua, pareciam gritar, mover-se, espolinhar-se num frenesi
estrepitoso, sem tréguas.
Filomena declarou que estava roubada!
- Qual! Pois aquilo era um Nápoles! Impossível! Bem longe estava de ser o Nápoles que ela
queria - o seu rico Nápoles! - Aquele era um Nápoles de segunda mão! Um Nápoles pulha!
Antes não tivesse lá ido! Mil vezes antes!
Que lhe mostrassem as belas cenas napolitanas, que ela vira em pequena nas litografias
coloridas! Que lhe apontassem os bem conhecidos e muito pitorescos pescadores napolitanos,
com as suas Calezoni, a perna nua, a faixa e o gorro vermelho, e o amuleto ao pescoço.
A excursão ao Vesúvio, como um passeio que fez à Torre d'el Greco, impressionou-a
mediocremente. No Vesúvio não viu erupção de espécie alguma; não percebeu vestígios de
salteadores. - A Calábria desacreditou-se para ela. Nada encontrou de tudo aquilo que
reclamava a sua terrível sede de comoções
- Experimenta a tal Pompéia! aconselhou o marido, incomodado por vê-la contrariada. Pode ser
que te dês bem... E lembrou também Herculanum, de cujo nome não se recordava.
- Qual Pompéia, nem qual histórias! respondeu a mulher furiosa contra os seus poetas e
romancistas. Canalhas! Súcia de empulhadores!
E, muito indignada, abandonou Nápoles, para tomar a direção de Veneza, à qual sua
imaginação insistia em agarrar-se como a um recurso extremo.
Mas a bela filha do Adriático, a pátria do amor e do arrepio, a sede da comoção e da poesia, a
cidade dos palácios de abóbadas mouriscas a terra, enfim, das patrícias apaixonadas, também
não correspondeu à expectativa de Filomena.
estava a ponte triangular do Rialto; o cais dos Escravos; as cúpulas de S. Marcos; os
indispensáveis pombos; as ramalheteiras, que vendem flores aos estrangeiros; os oficiosos
cicerones; os gondoleiros, encapotados como monges, que passeiam tristemente por baixo das
pontes; estava tudo isso de que constavam as notas de Filomena, mas, valha-me Deus! -
nada a satisfazia, nada a saciava, nada correspondia ao que ela julgara encontrar, nada
realizava o que anteviera nos seus sonhos cheios de impaciência e de sobressalto.
Passearam em carruagem de Burgano a Leco, sobre as margens do lago de Como; foram
depois a Menaggio, na margem oposta, e daí partiram resolutamente para a calma Suíça, fartos
de Itália, cujos nomes de grandes e pequenas cidades, aqueles mesmos que dantes
arrebatavam Filomena e lhe punham no espírito uma nostalgia doce e melancólica, nem ao
menos tinham para ela a mesma sonoridade de então. Livurnia, Cività-Vechia, Chija, Bellinzona,
Ischia, Gaeta, nada, nada possuía já o primitivo encanto!
E um grande vácuo abriu-se nas suas aspirações; um de seus sonhos acabava de esfacelar-se
como uma nuvem dissolvida pelo vento. E Filomena, desde que se convenceu de que, se
quisesse a comoção e a aventura, tinha de prepará-las por suas próprias mãos, caiu num
estado sombrio de atonia e desânimo.
O Borges, sobressaltado com essas tristezas, procurava cercá-la de mil cuidados, fazia-se
meigo, muito seu camarada, seu amigo, adivinhando-lhe as vontades, correndo ao encontro de
seus caprichos.
- Que tens tu, meu anjo, minha vida? Fala! Conta-me tudo.
Ela, em vez de responder, atirava-se-lhe nos braços e escondia entre soluços o rosto no peito
dele.
VII
O RAPTO
Mas, uma noite, achavam-se então em Sevilha - sultana do Guadalquivir - como lhe chamava
Filomena, sempre fecunda nas suas paráfrases poéticas; Borges, familiarizado já com os gostos
românticos da mulher, resolveu pôr de parte uns certos escrúpulos e assaltar-lhe o quarto pela
janela.
- Era impossível que Filomena resistisse ao encanto de uma violência tão pitoresca!...
Moravam em Triana, num modesto e confortável hotelzinho. A caprichosa, segundo o louvável
costume, exigira que o marido alugasse dois quartos bem separados, e não teve grande
empenho em declarar-se casada; ao Borges, por outro lado, também não convinha dizer a
verdade, receioso de que esta o tornasse ridículo aos olhos de todos, como havia sucedido
em várias partes.
O terno marido, depois de bem estudar o seu plano de ataque, tratou de realizá-lo. Vestiu-se
como os do povo, arranjou uma escada e, logo que ouviu em todo o quarteirão a voz
longínqua dos serenos, meteu mãos à obra.
E, com certeza, teria obtido o melhor êxito, se alguém, que o vira tentando penetrar de um modo
tão suspeito no hotel, não fosse denunciar o fato aos tais serenos, que sem demora acudiram
armados de suas lanternas e de seus chusos.
Houve escândalo; reuniu gente, e o Borges escapou de ser catrafilado, graças à lógica de sua
algibeira, que conseguiu provar ao honesto estalajadeiro a conveniência de arranjar-lhe em
menos de dois minutos um esconderijo no próprio hotel.
Por esse tempo, Filomena, tendo chamado em vão pelo marido, e talvez até desconfiando ser
ele o autor do malogrado assalto, exigia do oficial de ronda (estavam em épocas
revolucionárias) que lhe deparasse um lugar decente, onde uma estrangeira honesta ficasse ao
abrigo do primeiro malfeitor, que lhe quisesse entrar pela janela.
O oficial tinha família e pôs a sua casa à disposição da queixosa, até que o juiz designasse, com
as devidas formalidades, o sítio onde ela devia ser depositada judicialmente.
O fato ganhou logo circulação no bairro e, à falta de esclarecimentos verdadeiros, Inventou-se
toda sorte de legendas. Uns juravam que Filomena não era mulher e sim um grande sonso que
namoriscava a esposa do oficial e usara daquele expediente para ir ter com ela; outros
afiançavam que a tal estrangeira era pura e simplesmente uma cocotte, sequiosa por chamar
sobre si a atenção do público; outros lhe atribuíam intenções políticas. Este notara que ela trazia
no corpo as mais belas jóias do mundo, que lhe vira nas orelhas e no colo brilhantes de um
tamanho fabuloso; aquele protestava que nunca ouvira uma voz tão estranha e todavia tão
melodiosa como a dela; outro dava a sua palavra de honra em como a tal sujeitinha era de uma
formosura e de uma graça, que nem as virgenes de Murilo.
Porém a opinião mais seguida rezava que a encantadora e misteriosa estrangeira era nada
menos do que a filha de rico negociante português, de cuja companhia desertara por não querer
casar com um fidalgo velho e debochado que o pai lhe impunha. Pelo menos era esta a versão
que mais se compadecia com o que noticiavam a esse respeito os jornais do dia seguinte:
"GRANDE ATENTADO CRIMINAL, dizia um. A noche a las doce poco más o menos um
malhechor de los muchos que infelizmente ínfestan esta hermosa ciudad, intentó introducirse
por la ventana de una de nuestras mas acreditadas fondas, com ei fin perverso de raptar una
joven extrangera que ali residia esperando su anciano padre, hidalgo portuguez, cuyo nombre
nos abstenemos de publicar por motivos fáciles de comprender.
La belia nifia, que casi fue víctima de tanta atrocidad, hallase, a su ruego, depositada em casa
dei oficial Sr. D. José Nuflez, hasta que eI competente juez decida de su destino.
Debido delicado estado de natural sobre-excitacion nerviosa, la seflorita aludida aun no ha
podido explicar los pormenores dei crimen dei cual fue objeto.
El malvado desapareció, pero la policia emplea todos los medios para alcarzarlo y cremos que
sus esfuerzos no seran defraudados.
A medida que nos lheguem nuevos pormenores los transmitiremos a nuestros lectores."
Outros jornais iam mais longe. Um chegou a fazer engenhosas considerações sobre o fato
estranho de se achar "desacompanhada num hotel por si suspeito (o dono do hotel era
federalista e o jornal apoiava o governo) uma senhora tão distinta, tão bem tratada e com todas
as aparências de donzela! o estaria a ponta de algum importante enigma político?... Em
épocas de revolução é preciso desconfiar de tudo e de todos".
Estas notícias excitaram a curiosidade geral. Não faltou quem deixasse de enxergar no
misterioso homem da escada um malhechor ordinario - como diziam algumas folhas, e atribuir-
lhe fins de grande alcance político.
O dono do hotel foi um desses, e, como bom cantonalista que era, não lhe podia passar
despercebido que o seu misterioso hóspede usava um lenço de seda encarnada, uma gravata
ainda mais encarnada que o lenço; não podia deixar de notar que nas caixinhas de fósforos do
seu protegido encontrara sempre o retrato de alguns dos chefes dos cantões - encontrou o
retrato do general Contreras, o de Antonio Galvez e de Duarte e o de Rafael Grulíleu.
- Não há dúvida! pensou ele. Não há dúvida que o homem é dos nossos!
E o fino estalajadeiro, considerando o modo despejado pelo qual o seu correligionário gastava
ouro, notando a riqueza de suas bagagens e atentando para o incógnito em que se fechara esse
homem, estrangeiro sem dúvida, mas estrangeiro amigo e respeitável, não vacilou em descobrir
nele um vulto importante da causa federal, e resolveu pôr-se discretamente ao seu serviço.
- Talvez, quem sabe?... considerou o cantonalista com os seus botões. - Mais tarde, quando
subirem os nossos homens, isto até me venha a render um lugar importante na política!
E foi logo ter com o Borges.
- Cidadão! disse-lhe resolutamente. Escusa negar; sei que tenho a honra de refugiar em minha
casa um dos cantonalistas mais distintos do mundo!...
Borges recuou de boca aberta.
- Descanse! volveu o outro em tom de mistério. Pode ficar tranqüilo! Não tem de que temer aqui
- eu sou seu correligionário.
- Mas, senhor! ... ia a protestar o Borges.
- Nem quero que me diga quais são as suas intenções - as intenções de um cantonalista são
sempre as melhores!
O que eu desejo é saber em que lhe posso ser útil! Tenha confiança em mim e fale com
franqueza.
E o estalajadeiro, sacando do bolso um barrete frígio, que ele possuía para as ocasiões de
levantamento, meteu-o na cabeça e perfilou-se defronte do Borges.
- Bem vejo, bem vejo!... respondeu este, compreendendo a situação e hesitando, na qualidade
de homem sério, se devia ou não aproveitá-la em seu favor. Bem vejo, mas...
E franziu o sobrolho. - Era o diabo! Aquilo não lhe podia ficar bem!...
- Compreendo! tornou o outro, guardando o barrete e fazendo um gesto de arrependimento. Fui
indiscreto!...
- Certamente! confirmou o Borges. Imagine se, em meu lugar, estivesse aqui um inimigo!...
- Este federal é chefe com certeza de algum cantão! disse consigo o estalajadeiro. E sabe Deus
qual não será a importância de sua presença por estas alturas!...
- Em todo caso... acrescentou o Borges, tomando uma resolução, não me despeço de seus
favores, talvez precise deles.
E chegando-se por sua vez ao ouvido do outro, em tom de segredo:
- Preciso fazer chegar uma carta às mãos daquela senhora que...
- Já sei; de quem se trata, interrompeu o estalajadeiro. Trata-se da fidalguinha portuguesa. Bem
tinha eu um pressentimento!... Preparai o amigo a carta, que eu a farei chegar ao seu
destino, custe o que custar! E vou daqui ver mais cinco companheiros, tão bons como eu, com
os quais podemos contar para a vida e para a morte!
- Obrigado, respondeu o Borges, pondo-se a jeito de escrever.
E logo que terminou a carta, chamou o seu correligiorio, e entregou-lha juntamente com
algumas libras esterlinas.
O cantonalista repeliu energicamente o dinheiro, dizendo frases de abnegação heróica. E, com
tão boa vontade se pôs em ação, de tal modo providenciou as coisas, que pouco depois uma
correspondência cerrada se estabelecia entre o Borges e a mulher.
Eram belas cartas de amor, escritas com entusiasmo de parte a parte. O marido, nas frases
mais poéticas que conseguiu arranjar, suplicava à esposa que desistisse do abrigo em que se
achava e fosse ter com ele ao hotel, para fugirem juntos daquela maldita cidade, que lhes
trazia canseiras e dissabores.
Filomena, porém, exigia um rapto. Estava disposta a acompanhar o marido, mas não queria ir
ao encontro dele, queria que ele a fosse buscar.
inútil insistires", terminava a visionária, em seguida a uma exposição minuciosa do que o
Borges tinha a fazer para alcançá-la.
"Se me amas, como dizes, prova-mo, arrancando-me daqui violentamente. O verdadeiro amor
não conhece dificuldades! Não encontra obstáculos quando se precipita em torrentes
vertiginosas de um coração apaixonado! Vem! Vem conquistar-me à força de intrepidez e
coragem, vem disputar-me com o risco de tua vida e eu serei tua, eu viverei para beijar os
grilhões com que me prenderes ao teu destino! Tua, F."
O Borges ficou irresoluto, coçou a cabeça, passeou longas horas com as mãos cruzadas atrás. -
Faltava-lhe mais essa, resmungou furioso: - ter de perpetrar um rapto! Eu! - Diabo leve tal
viagem e mais quem me meteu na cabeça a idéia de casar! Ah! que se não fosse a esperança
de que as coisas não durarão neste belo gosto por muito tempo, eu... eu nem sei o que faria!...
Mas, afinal, impaciente por sair do seu esconderijo, farto daquela situação que o tornava ridículo
aos seus próprios olhos, deliberou fazer a vontade à mulher. - agora seria o que Deus
quisesse!...
* * *
Entretanto, o estalajadeiro, mal teve conhecimento das intenções do seu ilustre protegido, tratou
de dar as providências para o rapto.
Chegado o momento, armou os seus homens: vestiu-se de cocheiro (profissão que exercera por
muito tempo), muniu-se de um par de tiros, preparou a bagagem do raptor pela maneira que
mais convinha à conjuntura, isto é, reduzindo-a o melhor que pôde, e meteu-a dentro de um
coche apropriado, do qual tomaria a boléia; e, depois de erguer com os outros vários brindes ao
Cantonalismo, à Espanha, à Liberdade; e depois de embolsados os protestos de gratidão que o
Borges lhes apresentava na forma de moedinhas de ouro, puseram-se todos a caminho da casa
do oficial, dispostos a derramar a última gota de sangue em prol da gloriosa empresa que
cometiam.
E quem os visse, tão formidáveis nos seus capotes de conspiradores, os colones convictamente
puxados sobre a orelha, os gestos ameaçadores e trágicos, não seria capaz de supor que se
tratava de raptar uma donzela, mais que ninguém senhora de seu nariz.
Filomena, ébria de prazer com a idéia de ser furtada, palpitante de comoção, fez a trouxa em
segredo e retirou-se ao quarto, pretextando incômodos para dissimular os seus projetos de fuga.
À meia-noite, chegava o terrível grupo dos conspiradores, acompanhando o coche que devia
conduzir o precioso fruto daquela empresa delicadíssima. Borges separou-se de seus
companheiros, mudo e sombrio. E, com o passo firme, a mão armada, penetrou resolutamente
no jardim da casa em que estava a mulher. Não foi difícil, porque, felizmente, o portão achava-
se apenas encostado.
Ao chegar debaixo de certa janela tirou da algibeira um pequeno assobio de metal e apitou
devegarinho. A janela abriu-se logo e, ao doce clarão da lua, apareceu o vulto romântico de
Filomena, toda de branco, os cabelos soltos, os braços nus.
- Vamos com isto! segredou-lhe o Borges, levando as mãos à boca em forma de porta-voz.
- Trouxeste a escada?... perguntou Filomena no mesmo tom.
- Trouxe. Arreia o barbante.
- Aí vai.
- Pronto, disse o Borges, depois de amarrar a escada no cordão.
Filomena daí a pouco lançava-se nos braços do marido, a exclamar: - Fujamos, meu amor!
Fujamos!
- Não grites! ralhou o sedutor. Olha que te podem ouvir!
E, com efeito, alguém abria já uma janela.
- Estamos perdidos! bradou a fugitiva.
O Borges, porém, havia já alcançado a rua com a mulher nos braços, quando o sujeito da janela
berrou com uma voz de trovão:
- Ó da guarda! Ó da guarda!
Ouviu-se um estardalhaço de portas que se abrem precipitadamente fechaduras que rangem e
vozes que se altercam.
Mas Filomena, trêmula e sobressaltada, achava-se dentro do carro, ao lado do raptor, e os
cavalos galopavam fustigados a valer pelo estalajadeiro.
Enquanto fugiam, os cinco cantonalistas, no meio de grande algazarra, de gritos e de apitos,
simulavam uma alteração na rua, atraindo sobre si os serenos, que acudiam de vários
quarteirões.
O carro, entretanto, voava pelas ruas de Triana, para os lados de Lora-del-rio. A cidade
desaparecia atrás deles, vertiginosamente. Mal avistavam o cume quadrado da Giralda, que o
luar fazia sobressair no horizonte.
No fim de três horas de carreira, penetravam no campo.
- Estamos salvos! exclamou Filomena. No campo não seremos alcançados!
- Ao contrário, respondeu o estalajadeiro, o campo e menos favorável à fuga, porque temos de
evitar os guardias civiles, muito mais perigosos que os serenos.
Não tardou a surgir ao longe o primeiro par de tais guardias.
- Quem vai lá?! gritou um deles.
O estalajadeiro em resposta fustigou melhor os cavalos e precipitou-se em direção contrária ao
lugar donde vinha aquela voz.
- Alto! gritou o guarda campestre.
Novas e mais fortes chicotadas.
- Faça alto! gritou o outro guarda engatilhando a sua espingarda.
O estalajadeiro, que conhecia muito bem as prerrogativas da sentinela do campo na Espanha,
apertou o galope de seus animais e vergou-se todo para a frente, sobre as coxas.
Uma bala veio cravar-se na traseira do carro. Em seguida outro tiro, depois outro; mas as bestas
não afrouxaram e o carrinho sumiu-se por entre as sombras de um olival que nascia a algumas
braças daí.
- Ânimo! gritou o intrépido cocheiro aos fugitivos. Dentro em pouco estaremos livres de perigo;
trata-se apenas de ganhar a outra margem do rio!
E fustigou as bestas com energia.
Mas no fim de meia hora de galope cerrado, o estalajadeiro soltou um grito, que aterrou os
companheiros. Na sua precipitação, invadira, sem dar por isso, as terras de um tal marquês de
Saltilio, e agora, auxiliado pela aurora, que ia repontando, via-se no meio de uma vasta dehesa,
cujos touros gozavam da fama dos mais perigosos de toda aquela redondeza.
- Ira de Dios! bradou ele, enquanto o Borges e Filomena, estarrecidos de medo, espiavam pelas
portinholas.
- Que é?! perguntaram.
- É que podemos ser assaltados pelos touros! explicou o cantonalista, tratando de fugir ao
perigo.
A dehesa era enorme, estendia-se até muito longe; nessa ocasião, por felicidade, os touros
achavam-se entretidos para o lado contrário ao do carro, e o estalajadeiro não precisou puxar
muito pelos cavalos, porque estes fariscando logo o risco que corriam, abriram a rinchar e, mau
grado da fadiga, desembestaram para as bandas do campo.
Ma]ditos rinchos! Um touro acabava de despertar ao seu fragor e, encapotando a cabeça nas
pernas dianteiras, corria assanhado na direção do carro.
O federal chicoteou os cavalos com toda a força e o pobre coche rodou por entre o mato como
uma bala perdida.
- Anda! Anda! berrava o Borges de pé, a tocarolar as costas do cocheiro. - Olha que o diabo do
bicho aí vem!
Com efeito, o touro perseguia-os na distância de uns cinqüenta passos.
- Preparem as armas! bramiu Filomena. Aqui o recurso que há é lutar.
Mal terminava essa frase, quando se sentiu decair com o marido para a direita; uma das rodas
do carro estava por terra, em pedaços.
- Jesus! fez ela, agarrando-se à portinhola.
- Já aí vem o conocedor e já ouço o chocalho do cabestro. Estamos salvos!
De fato, três homens a cavalo e seguidos de um boi velho e manso, vinham com os seus
cajados em punho à pista da rês que se desgarrara da dehesa. O touro logo que ouviu o
chocalho, parou, sorveu o ar por alguns segundos e foi humildemente emparelhar-se ao
cabestro.
- Diabos te consumam! rosnou o federal, considerando o estado de seu pobre carro e de seus
pobres animais. Como hei de agora arranjar-me para a volta?!...
Felizmente não estavam muito longe da estação de Lora, e o Borges, se não quisesse tomar
o caminho de ferro, podia ficar em algum hotel, onde com facilidade arranjaria meios de
condução para o lugar que melhor entendesse.
Mas Filomena declarou logo que não se sentia disposta, por coisa alguma, a passar a sua lua
de mel enterrada num quarto de hospedaria. Não foi para isso que viera à Espanha! Queria um
sítio pitoresco, ignorado, poético, silencioso... O marido que tivesse paciência; ela, porém, não
descansaria antes de encontrar um lugarzinho nessas condições.
- Pois tranqüiliza-te, que, custe o que custar, havemos de descobri-lo, respondeu o Borges.
agora, com mais um empurrão leva-se a caixa ao porão!
Durante esse diálogo, o estalajadeiro carregou pelo melhor os seus animais com a bagagem
dos fugitivos. E os três, seguidos das cavalgaduras, puseram-se corajosamente a caminho,
dispostos a não acampar, sem terem descoberto o tal sítio indispensável para os amores de
Filomena.
VIII
ENFIM
Foram dar com os ossos a Cordova, num destroço de castelo árabe, construído à margem de
um braço do Guadalquivir, ainda nos tempos do domínio muçulmano, e em cujas ruínas se
aboletavam agora os pescadores do lugar e um ou outro gitano, que a fome e a fadiga
trouxessem de rastros até aí.
Filomena ficou arrebatada; confessou que o lugar não podia ser melhor para uma lua de mel e
resolveu instalar-se nas ruínas.
- Que?! exclamou o Borges, assustando-se. Ficar aqui?! Ficar neste covil de vagabundos?!.. -
Ora, qual! A mulher com certeza estava gracejando!
- Não! disse ela, sem se alterar, não gracejo, nem admito que te queiras fazer insensível a estas
magnificências do belo! Olha! Contempla estas abóbadas lascadas, tudo isto é maravilhoso!
Onde mas tu descobrir um lugar mais propício aos nossos amores?...
Borges ainda tentou despersuadi-la de semelhante idéia. Opôs-lhe os mais sensatos
argumentos, apresentou-lhe com todo o peso de seu bom senso os inconvenientes que os
esperavam - o sol, a chuva, os mosquitos, os insetos venenosos, talvez a morte nas mãos
daqueles bárbaros! Filomena que pensasse um instante, que refletisse um momento, antes de
dar aquele passo! porém, nada obteve - a mulher não cedia uma polegada; e o infeliz,
disfarçando o seu desgosto e auxiliado pelo cantonalista, procurou entrar em bom acordo com
os pescadores.
Tudo arranjado pelo melhor que foi possível, o estalajadeiro descansou um pouco, depois
embolsou a recompensa de seus trabalhos e a indenização de seus prejuízos, abraçou o
suposto correligionário, jurou ainda uma vez que estaria sempre disposto a derramar a última
gota de sangue pela pátria, e afinal retirou-se.
O Borges então cuidou de resignar-se às circunstâncias. Aquele capricho da mulher não poderia
deitar muito longe! ... Que a deixassem com as suas ruínas, o primeiro d'água que caísse
havia de ensiná-la!...
Contudo, ficaram três semanas, expostos ao sol e ao sereno, quase ao relento, alimentando-
se sabe Deus como, e dormindo sob as velhas abóbadas lascadas e cheias de verdura.
Felizmente tinham consigo alguma roupa, uma boa mala e ainda bastante dinheiro.
Foi aí, nesse canto ignorado da velha Espanha despojada, ao ciciar das brisas do Guadalquivir
e à sombra murmurosa dos gigantescos loureiros e dos sicômoros, que Filomena se identificou
pela primeira vez com o marido. E fê-lo sem a mais leve reserva, nem o mais ligeiro rebuço,
chegando até a amá-lo com transporte, com delírio, chamando-lhe "seu raptor, seu amante!"
Refugiando-se nos braços dele, cheia de ternura e de medo, unidos, sobressaltados, como dois
criminosos que ardessem na chama da mesma paixão clandestina,
O bom homem não desejava melhor; "assim não fosse ela tão caprichosa"!
Filomena agora o obrigava a longos passeios por entre canaviais bravios por entre matagais de
cactos, escolhendo lugares difíceis, quase intransitáveis, onde às vezes era preciso que ele a
carregasse nos ombros para vadear pequenos regatos, coalhados de nenúfares, ou levá-la ao
colo pelo meio de barrancos perigosos, cobertos de limo e salsas espinhosas. Outras vezes lhes
sucedia perderem-se, e os dois tinham de descansar sobre a relva, sofrendo sede e fome,
sempre foragidos, evitando as vistas de quem quer que fosse, como se fugissem de inimigos
implacáveis.
Borges, temendo contrariá-la, submetia-se a tudo isso de cara alegre. Fingia desfrutar o mesmo
encanto que ela desfrutava; fazia-se entusiasmado pela natureza, amando as águas do regato,
admirando os passarinhos, correndo atrás das borboletas e deitando-se de bruços à beira do rio;
o queixo na palma das mãos, a balbuciar versos; os olhos perdidos no serpentear monótono da
corrente.
Mas no fundo sentia-se muito mal à vontade e extremamente contrariado. - Por que não havia
sua mulher de ser como as outras?... Seria tão bom que os dois, àquela hora, estivessem
gozando juntos, numa boa casa, em plena segurança e em plena dignidade do lar, a mais
completa e a mais doce felicidade a que tinham direito por todos os motivos! Oh! ele, porém,
amava-a tanto, tanto, que seria capaz de todos os sacrifícios para vê-la alegre e satisfeita! -
Além de que, Filomena com o tempo havia de mudar de gênio!... Estava ainda muito moça,
muito cheia de fantasias, porém tinha o principal, que era - boa índole e bom coração.
E ele subordinava-se, abafando os seus ressentimentos, sem um olhar de queixa, sem um gesto
de desgosto, sem nunca desmentir aquele bom humor primitivo, aquela mesma
condescendência delicada e simples, aquela mesma extrema amizade, leal e generosa.
Mas os caprichos de Filomena multiplicavam-se a cada momento. Era já a idéia de acompanhar
os pescadores ao rio, à noite, munidos de archotes e vestidos como eles; era a fantasia de
uma caçada pela Serra-Morena, em horas de calor, ou então a mania de uma pastorada nos
vales sombrios e pacíficos, acompanhando o gado, a cantarem de mãos dadas pelas
ribanceiras, ou então deitados na grama, nos braços um do outro, à espera que o sol acabasse
de descer no horizonte a sua escadaria de fogo.
* * *
De repente veio-lhe uma febre de viajar - viajar muito, sem destino, não pelas cidades muito
conhecidas e palmilhadas cotidianamente por centenas de estrangeiros taciturnos, encapotados
nos seus ulsters, de binóculo em bandolin e chapéu de sol encapado de verniz. - o! nada
disso! Queria lugares totalmente imprevistos, que ainda não tivessem sido muito decantados
pelos poetas como a "sua Itália" e que lhe deparassem comoções inesperadas. - Queria os
verdadeiros perigos, as fadigas dos desertos arenosos, a cólera dos simouns, o risco das
florestas virgens, as jornadas por ínvios sertões desconhecidos, os horizontes eternos e as
longas noites perdidas nos cumes silenciosos das montanhas, ouvindo o sanhudo sibilar dos
ventos e os roncos desesperados das feras que tem fome!
O Borges sentiu um calefrio percorrer-lhe o corpo inteiro ao receber dos lábios da mulher aquela
terrível sentença.
- Precisamos de uma vida mais agitada! explicou ela, vendo o gesto surpreso do marido.
- Mais agitada?!... ..... - balbuciou este.
- Sim! mais agitada! Sinto-me morrer de inanição! Basta de repouso! É preciso dar começo a
uma nova existência!
O Borges esteve a perder os sentidos.
- Pois agora é que ia principiar o exercício?! pensou ele numa verdadeira vagabundagem?!...
Mas então que não será ela?! - Se até aqui descansei, qual não será minha pobre vida de hoje
em diante?!...
Filomena não percebeu o sobressalto do marido, porque estava já a cismar no Oriente.
Julgava-o numa desordem de impressões recebidas de Antony Rich, René Menard e
principalmente de Lady Anna Brunt, cuja originalidade e cujo espírito másculo a fascinavam.
Não lhe era estranho também o Dicionário Arqueológico de E. Bosc e por mais de uma vez
folheara o itinerário do Dr. Emilio Isambert.
Com todo esse combustível a fumegar-lhe dentro da cabeça, via-se dentro das muralhas
venerandas de Jerusalém; sonhava o consagrado Sinai, a Abissínia, Malta, a Núbia e - o Egito.
O Egito! o longo e tortuoso Egito, cheio de passado e reslumbrante de tristeza.
Imaginava-se de sandália e bombachas de brocado, assentada á japonesa no dorso empírico
de um camelo, ao lado do Borges, que sumido no seu albornoz característico, as mãos
esquecidas sobre o adequado kandyjar, e também de canelas em cruz, toscanejava
orientalmente sobre o macio shedad. A imitação de sua querida Lady Brunt, sentia-se preada
por um formidável ghazú e conduzida aventurosamente ao castelo de Djot.
No dia seguinte, estavam de partida.
IX
VÔOS ALTOS
Desde então, foi um peregrinar sem tréguas.
Viram muito, atravessarem regiões inóspitas, extensões selvagens, participando de caçadas
temerárias, fazendo guas sobre elefantes, experimentando o enjôo de mil paquetes, a
indiferença de mil povos diversos a monotonia das cidades desconhecidas, a dura
insociabilidade dos hotéis e o tempestuoso embate de todas as paixões humanas.
E Filomena Borges tomou notas, escreveu memórias, fez apontamentos, criou gosto pelas
investigações, pelo estudo; enfim, tornou-se filósofa e sentiu necessidade de compendiar em
volume as impressões que recebia.
"O Egito", contava ela depois de longas considerações filosóficas, "desenrolou-se debaixo de
meus pés, triste como um sudário. Ajoelhei-me com o meu companheiro (o companheiro era o
Borges) defronte dos Spéus arruinados de Ibsambul e dos esborcinados templos d'Efu! Percorri
os imensos labirintos subterrâneos de Silsilis, o templo d'Ombos; vi os monumentos da ilha de
Philoe, contemplei a esfinge de Gizeh, surgindo da areia ardente do deserto, como um fantasma
de granito, que se ergue a meio de um estranho oceano, com os olhos de pedra fitos no levante,
o ar atento e concentrado de quem escuta e de quem espera! Que esperas, tu, sentinela do
passado?! Monstro! que perscrutas com esse teu olhar imóvel de pedra?!"
"Minhalma", afirmava ela em ponto das memórias, "como que se dilatou ao sopro embalsamado
das melancólicas lendas do Oriente. Pareceu-lhe ouvir ainda, perdidos no espaço, os últimos
ecos dos coros religiosos dos sacerdotes de Horus e o cântico venerando dos escribas reais..."
Ouvisse ou não ouvisse, o fato é que, uma vez, depois da costumada excursão pelas ruínas, ela
tomou de repente as mãos do marido e perguntou-lhe em segredo, com a voz trêmula de
comoção:
- Meu amigo, não sentes alguns sons doces e lamentosos, que rumorejam neste vasto e
profundo azul do deserto? ...
O Borges vergou a cabeça para o lado donde vinha o vento, concheou as os nas orelhas e,
depois de escutar durante alguns minutos, disse que sim, por condescendência. - Que sim,
supunha ouvir, qualquer coisa - assim como unia espécie de zunido! - Que vinha a ser isso?...
perguntou ele, estimulado pelo olhar estranho da mulher.
- É, respondeu Filomena muito grave - é a alma errante do passado que chora as suas
grandezas extintas, ou talvez sejam as notas derradeiras dos lamentosos salmos das
adoradoras de Hathor!
- Ah!... fez o marido, fingindo interesse, mas sem compreender patavina.
* * *
E, enfronhados nas suas roupas egípcias, iam aquelas duas almas perdidas, a jornadear dia
e noite, de sol a sol, de ruína em ruína; ela em busca de comoções; ele em busca de coisa
alguma, aborrecido, cansado, pedindo a Deus de instante a instante que fizesse a mulher
desistir daquela terrível mania de andar a trocar as pernas, pelo mundo e fosse com ele
repousar a um canto feliz e calmo de sua terra.
Contudo não se revoltava, nem lhe fugia às mais caras exigências. Na ocasião em que
visitavam a quase extinta Menfis. ela mostrou desejos de que o marido chorasse defronte do
colosso mutilado de Ramsés II, que jazia estendido na areia e o Borges choramingou para fazer-
lhe a vontade. Quando desembarcaram no Luqzor, à margem direita de Tebas "a cidade de cem
portas, decantada pelo sublime cego de Smyrna" como parafraseava ela, cheia de entusiasmo,
o pobre homem estava mais morto que vivo; Filomena, entretanto, não admitiu que se
esbanjasse o precioso tempo com o repouso e exigiu que o Borges prestasse suma atenção às
maravilhas que surgiam defronte de seus olhos.
- Sabes?... disse-lhe ela> atravessando com um passo solene o corpo principal do despojado
templo de Luqzor - foi daqui que o solitário de Santa Helena levou o obelisco que orna hoje a
praça da Concórdia, em Paris!
- Boa pedra para construção! respondeu o mestre de obras, batendo com a ponta ferrada de seu
cajado no granito vermelho das velhas e consagradas esculturas de Secos. Boa pedrinha! Isto
deita séculos!
Felizmente, a mulher não o ouvia, graças ao encanto melancólico daquelas relíquias, que a
arrebatavam para as épocas esplendorosas de Sesostris e a faziam reconstruir mentalmente
toda a extinta grandeza da margem ocidental de Tebas,
Neste dia, não houve um momento de descanso. Filomena não tinha ânimo de abandonar as
ruínas, e como que as queria ver todas ao mesmo tempo. - Oh! Ó Karnak! Ó Karnak com a sua
avenida de esfinges decimbradas e os monólitos gloriosos de Amenhotep III !
No fim de cinco horas de êxtases e exclamações desse gênero, o Borges cujo estômago
reclamava os seus direitos disse, batendo-lhe meigamente no ombro:
- Não te apetece agora uma costelazinha com batatas?... Creio que não será mal lembrado...
hein?...
- Não! disse Filomena, repreensivamente. - O que me apetece neste instante é o Medinet-Abu
na outra margem do Nilo. Creio que esse prodígio de sete séculos valerá sempre mais alguma
coisa que uma costeleta!...
- Oh! de certo, de certo! apressou-se a confirmar o Borges, pronto a seguir a esposa, sem o
menor vestígio de oposição.
Mas, pelo caminho, indiscretos suspiros partiam-lhe a miúdo dos lábios.
- Triste fado o meu! resmungava o pobre homem com os seus botões. - Triste fado!
E lá ia caminhando, de cabeça baixa, a puxar pelo cabresto o seu burrico e o da mulher.
* * *
O desgraçado esteve a desfalecer, quando, no fim da estafadora peregrinação pelo Egito,
Filomena tratou com assombro de Babilônia, na qual, segundo vagas recordações de Herôdoto
e Deodoro de Sicília, pensava encontrar panos para as mangas nas estátuas de ouro e nos
palácios de Korsabad e Nemrod e nos baixos relevos e nos caracteres da escritura assíria.
Ah! encontrou de tudo isso indícios, quase apagados - ruínas e deserto! sempre o deserto!
sempre o deserto!
Veio-lhe então a idéia de recorrer à Grécia. "aí com certeza encontraria alguma coisa; pelo
menos os sublimes destroços do Acropólio, do Partenon, do Agora!"
vejo que não é tão cedo que isto acaba!... considerou o Borges, quando a mulher lhe falou
nas riquezas descobertas pelo professor Ihlismann, na Argólida.
E, custasse o que custasse, ela havia de fazer um almoço no tesouro de Atréus como fizera seu
padrinho!...
- Que padrinho é esse? perguntou o Borges.
- D. Pedro II, o nosso imperador.
- Ah!...
Coitada! Mal então sabia ela a influência que o monarca estava destinado a exercer na sua
vida!...
- Bem! disse o Borges, depois do passeio à Grécia. Agora, creio que basta de ruínas e que
podemos voltar para o nosso canto! Ah! se soubesse, Filomena, as saudades que tenho de meu
querido Paquetá!... Aquilo, sim, é que é terra! Estou aqui a ver-me debaixo de uma mangueira,
contigo ao lado, depois do jantar... Que bom, meu Deus! que coisa boa
1
....
- Enlouqueceste?! exclamou ela. Pois nós havemos de voltar sem conhecer a Índia?!... A
fanática! A terra das superstições brutais! dos faquires sobre-humanos! A Índia, com todos os
seus formidáveis budas! A Índia, com o seu Both-Jattrá, essa deslumbrante festa dos carros!
Oh! não! isso seria impossível!
O Borges empalideceu.
E depois da Índia, acrescentou ela por que não um pouco da Arábia, onde faremos belas
peregrinações ao Nedjed, onde percorreremos aldeolas e lugarejos singulares, estudando a vida
das mulheres de Hail, com o seu uso original de trazer argolas de ouro nas ventas e nas
orelhas; onde teremos ocasião de apreciar os dançados das donzelas de Shakik?!... E a África?!
A África então?! Esquecia-se o Borges de que a África era a única paragem do mundo, em que
ainda se podiam encontrar regiões desconhecidas? E, além disso, não valeriam a pena de
alguns passos as famosas cascatas de Samba-nagoshi, a aldeia de Mayolo, tão estimada pelos
naturalistas?! E as caçadas dos elefantes pretos nas terras dos Aponos, e a caçada dos leões
de Mogiana e dos gorilas de Olenda?!... Acaso não reconhecia o Borges a necessidade urgente
de ver e experimentar todas essas coisas?!...
- se vai tudo quanto Marta fiou!... disse o pobre homem, gemendo debaixo daquele
bombardeamento.
Mas não reagiu. E, no fim de algum tempo; ia-se já habituando ao viver boêmio que a mulher lhe
impunha. Dócil, como era, para escravizar-se aos bitos, afez-se pouco a pouco àquele duro
vagabundear, e estaria disposto a seguir Filomena ao inferno, contanto que esta nunca mais lhe
fechasse o ferrolho sobre o nariz.
X
DE VOLTA A PÁTRIA
E assim se transformava completamente sem dar por isso. Não parecia o mesmo; sabia montar
a cavalo, atirar várias armas, bater-se em duelo, andar em velocípede, correr no gelo, jogar o
soco e a bengala e até servir-se do terrível bowie-knife de dois gumes.
E no fim de algum tempo, quem o visse à tolda de um paquete inglês, numa dessas
madrugadas cor de pérola, enluvado no seu ulster de xadrezinho, o chapéu ao lado, a toalha
caída sobre as costas, o bigode retorcido, monóculo no olho, binóculo a tiracolo, e tão pronto ao
prazer como ao perigo, lépido, terrível, namorador; quem o visse - seria capaz de acreditar que
ali estava aquele mesmo Borges, aquele pacato João Touro, que alguns anos antes atravessava
as ruas comerciais do Rio de Janeiro, agenciando a vida, muito atarefado, dentro de suas
calcinhas de brim mineiro?!...
Onde iria já o casto, o puro, o doce João Touro do outro tempo?...
As repetidas viagens, o atrito com as populações estranhas, a familiaridade com os costumes de
mil povos diversos, a experiência das comoções transcendentes, deram-lhe grande
desembaraço aos movimentos, certa elegância máscula, de trappeur, que de alguma forma
dizia bem com os seus músculos atléticos. Agora tinha exclamações em todas as línguas,
anedotas de toda a espécie, termos e frases de todo o mundo. E as correrias, os exercícios, os
perigos, fizeram-no intrépido, aventuroso, despejado de maneiras, enérgico como um herói do
romantismo.
Por outro lado, o constante entusiasmo de Filomena pelas coisas do espírito acabara por
dominá-lo: ensinara-lhe a ter, ou pelo menos suportar de cara alegre certos prazeres delicados,
como a música dos clássicos, a conversa sutil das senhoras de boa sociedade, os segredos da
literatura, as linhas misteriosas da arquitetura, os primores de estatuária e o valor dos quadros
célebres.
Ele! O Borges, aquele mesmo que, em Tebas, classificara o granito vermelho do Syena - boa
pedra para construção! - Quem o diria?...
Alguns olhos femininos principiavam de voltar-se para ele com certa insistência; as mulheres
descobriam-lhe na elegância do todo e no espírito da conversa, pretextos de amor e
elementos de sedução.
De volta ao Rio de Janeiro, os amigos mal o reconheceram. Acharam-no transformado em tudo;
descobriram-lhe novos dotes e novos defeitos, porém estes em mero muito maior que
aqueles. Fizeram-lhe boas e más ausências.
O Borges, o querido Borges, que até aos quarenta anos não conhecera o gostinho de uma
inimizade sequer, ficou pasmado quando, alguns dias depois de sua chegada à pátria, começou
de redominhar em torno dele um enxame de maledicentes, que o intrigavam, descompunham e
malqueriam, tecendo intrigas, publicando mofinas, remetendo-lhe cartas anônimas, cheias de
injúrias, procurando covardemente, por todos os meios e modos, injetar-lhe o fel e a amargura
no coração, como se, ofuscados pelas aparências, não pudessem admitir um tão completo
exemplo de felicidade. As injúrias versavam principalmente sobre o caráter da mulher.
Então um desgosto sombrio principiou a persegui-lo; abominou a pátria - esse covil de maus e
de invejosos - qualificou ele, revesando o seu tédio!
Em breve, qualquer maledicência a seu respeito, que lhe chegava aos ouvidos, punha-o num
estado lastimável de irritação. E, no despenhadeiro de seu azedume, tudo foi aos poucos lhe
parecendo mau e mesquinho; chegou a desconfiar da mulher; e supô-la sem amor, sem
gratidão, capaz talvez de uma deslealdade; suspeitou de todos que o cercavam, detestou a
sociedade, e, por não encontrar sobre quem descarregasse diretamente o seu ressentimento,
bramou contra o atraso do Brasil, contra a falta de distrações, contra a ignorância geral do
público, contra a incompetência dos poderes, contra toda a "podridão social enfim"!
Uma terra de bugres! dizia e repetia ele aos amigos, que o visitavam todas as noites. Uma terra
de bugres! Aqui, um homem, para não morrer de tédio, para divertir-se um bocado, precisa
atirar-se aos vícios, ou não sair de casa! - País de lama!
E para esquecer-se de seu desgosto, jogava.
* * *
De resto, o governo português acabava de o fazer barão de Itassu, e o Rio de Janeiro fariscava
em torno de sua casa, atraído pelo som da música e pelo barulho dos pratos.
A casa! A casa, ou antes o museu do Borges, que outra coisa não era esse ninho de raridades
de que se falava em toda a Corte, dessas magnificiências do luxo antigo e moderno, desses
ricos objetos da arte de todos os tempos e de todas as paragens. A casa transformara-se, como
o dono.
Tudo foi reformado. Exibiram-se novos trastes, novas cortinas, tapeçarias, peles, cachemiras,
bronzes, faianças, cristais, porcelanas, quadros, estatuetas, aquários, álbuns, mosaicos, vasos
florentinos, lustres de vermeil, espelhos venezianos talhados à bisseau, cariátides de Jean
Goujon, servindo de peanhas a esculturas de Germam Pilou, e uma variedade interminável de
tetéias e relíquias, que a baronesa colecionara por todo o mundo. Expuseram-se velhas
cadeiras com espaldar e assento de couro de Córdova, lavrado, e tacheado de metal amare]o;
leitos à Renascença de colunas retorcidas e métopes talhados em madeira fusca; jarras do
Oriente, sarapintadas de hieróglifos; objetos preciosos de marfim, manufaturados na China;
molduras delicadíssimas de porcelana, a Luiz XIV, representando grinaldas coloridas; consolos
de brêche-antique, sustentados por delfins de olhos e barbatanas douro, luzido; sem contar as
otomanas asiáticas, os divãs, os fauteuils, as etagères de xarâo, de palissandra, de ébano;
enfim o que podia haver de raro, de singular, de extraordinário. Não era uma casa, era um
prolongamento do Hotel Cluny. Cada objeto, cada móvel, cada peça representava uma época,
um reinado, uma escola.
Mas o barão, quando ficava a sós no meio de tudo isso, sentia-se acabrunhar por uma espécie
de remorso; afigurava-se lhe fugir debaixo dos pés o chão sólido e áspero do dever, para dar
lugar aos tapetes felpudos e voluptuosos; parecia-lhe ouvir uma voz austera, que se levantava
de tudo aquilo para o argüir e reprovar.
- Pois foi nisto que esbanjaste o teu dinheiro, João Borges?!... Foi nestas quinquilharias que
enterraste essa fortuna, que teu pai, à custa de tanto sacrifício, conseguiu juntar para ti,
insensato? Perdulário! ... E agora vão ver!... Tudo por que? - Porque o pedaço d'asno adora
cegamente uma mulher, um demônio, a quem se entrega de corpo e alma e que faz dele o que
bem entende, sem talvez lhe dedicar um pouco de afeição, pois, se dedicasse não seria a
primeira a cavar-lhe deste modo a ruína!... Oh, sim! dizia o infeliz, deixando-se cair em uma de
suas cadeiras preciosas. - Oh, sim! sou um miserável, mas amo-a tanto! adoro-a tão
extremosamente, que ainda seria capaz de muito mais para conservá-la sempre ao meu lado!
E procurando fugir ao ferretear dessas considerações, refugiava-se no entorpecimento da
embriagues, nos sobressaltos do jogo e na conversa agitada dos amigos, que o iam cardando e
descodeando todas as noites.
Filomena, por outro lado, não se mostrava, apesar do titulo, completamente feliz.
- Mas que te falta ainda?... perguntou-lhe o marido, sem se poder conter, uma vez que a viu
mais triste e desconsolada. - Creio que até hoje tenho cumprido à risca, e com sacrifício de
nosso futuro, todos os teus desejos e todos os teus caprichos! Possuís uma casa como
ambicionaste; és requestada pela melhor sociedade; ostentas um título, e tens plena certeza de
que eu, teu marido, teu amante apaixonado, vivo por ti, e para ti! Sabes perfeitamente que
não em todo o mundo, por toda a parte onde estivemos, uma única mulher, escrava ou
rainha, que me fizesse esquecer um instante de ti, minha querida Filomena! E, no entanto, eu,
tu! que és a minha única preocupação, o meu cativeiro, tu, nem por isso te mostras mais
satisfeita e mais agradecida! Mas, com todos os demônios! Se te falta ainda alguma coisa, fala
com franqueza! Exige! ordena! Mas por amor de Deus não me tortures com essas tristezas e
com esses suspiros que me desesperam! Bem sabes que és tudo quanto possuo? És a minha
vida! a minha felicidade! Vamos! Fala! fala! dize o que te oprime, Filomena de minhalma
- Nada! Não tenho nada! respondia a mulher com um esgar fastidioso. Quero apenas que me
deixem!... Que me não apoquentem com perguntas! ...
- Tudo isso prova que nunca me amaste!... disse o Borges retraindo-se.
- AI temos outra! observou Filomena, e, depois de um novo gesto de tédio, afastou-se,
resmungando - que não estava disposta àquilo!
Borges atirou-se sobre uma das tais cadeiras, e escondeu o rosto nas mãos.
- Que desgraça a sua! Que desgraça! ... pensava. Ora vissem se era possível haver um homem
mais infeliz do que ele!..- Pois a despeito de tudo que fazia pela mulher, ainda não merecia
amor! Mas então Filomena estaria disposta a ser sempre a mesma ingrata? ...
- Não! bradou ele, erguendo-se. Não! decididamente é preciso fazer-se forte! É preciso reagir!
Talvez até seja este o meio de lhe cair em graça por uma vez!
Mas daí a duas horas, vendo que a mulher não saia do quarto, foi ter com ela.
- Então? Ainda dura a rabugem? ...
- Deixe-me! respondeu Filomena com uma voz de choro.
- Mas o que te aflige, meu amor? Fala, fala com franqueza! Não sou eu porventura o teu
amiguinho, o teu confidente, o teu íntimo?... Olha, se estás aborrecida, procura meios de
distrair-te; bem sei que aqui não muito aonde ir, mas inventa! se descobres alguma idéia.
É verdade - tu ainda não festejaste o nosso título... tens! Porque não dás tu um baile, um
jantar ou coisa que o valha?
Filomena abraçou o marido, balbuciando palavras de reconhecimento.
- Ainda bem! Ainda bem! disse ele, sem mais se lembrar das apoquentações. E, sentindo que a
mulher animava-se-lhe aos beijos. - Assim! assim é que te quero ver sempre?
Começaram a falar, muito amigavelmente, sobre os projetos da festa. Aproximava-se o entrudo.
- E se dessem um baile de máscaras?!...
Esta idéia trouxe a Filomena uma alegria convulsiva. - Um baile de máscaras! um baile de
máscaras! exclamava ela fora de si. - Mas como já não me tinha eu lembrado disto?!...
E saltou ao pescoço do Borges, radiante. - Que belo! que belo! Um baile de máscaras!
Deram logo princípio aos preparativos da festa, e durante esses dias, Filomena não deixou
transparecer sinal de aborrecimento. Ao contrário, muito animada, muito contente de sua vida,
era ela própria quem tomava as providências para a função. - Ah! mas havia de ser uma festa
sem exemplo no Brasil! Uma festa que desse que falar por muito tempo.
Todavia, Borges andava meio atrapalhado nos seus negócios, e, para não desgostar a mulher,
escondia-lhe, sabe Deus com que heroísmo, certas dificuldades de dinheiro, que o principiavam
a perseguir.
- Em todo o caso, Filomena teria o seu baile de máscaras!...
XI
QUAL DOS DOIS MARIDOS SE O MAIS INFELIZ?
Nas vésperas do grande dia, quando o Borges andava de baixo para cima, tratando de pôr em
prática as ordens da mulher, deu cara a cara com o Barroso, uma noite em que entrava no
Passeio Público.
Em outra ocasião, é possível que os dois companheiros de infância nem se cumprimentassem,
pois nunca mais se tinham visto depois da resinga do casamento; mas encontrados assim, de
supetão, ambos colhidos de surpresa, não puderam conter o clássico- Oh! - dos momentos de
circunstância, e, quando deram por si, já estavam nos braços um do outro.
Ah! eles haviam sido tão camaradas, tão parecidos nos gostos e nos costumes! usando da
mesma moral e dos mesmos princípios! Durante quarenta anos tinham seguido sempre a
mesma linha tesa das conveniências comerciais: - O Borges, como sabemos, transviara-se com
o impulso que lhe deu Filomena; mas o Barroso, não senhor! - foi cada vez mais acentuando a
sua circunspecção e enrijando os seus créditos de homem sério.
De sorte que, atirados agora um defronte do outro, em flagrante contraste - o Barroso tão grave,
tão ríspido, tão Invulnerável dentro de seu paletó saco, fiel ao seu permanente chapéu alto de
pelo e ao seu guarda-chuva desenrolado; - e o Borges, tão catita tão gamenho, tão moderno nos
seus sapatões ingleses e na sua bengalinha de junco - não podiam fugir ao mais completo
embaraço.
Sentaram-se ambos no primeiro banco, ao lado um do outro. sem uma palavra, mudos como
dois frades de pedra.
Borges, no fim de alguns instantes de completo silêncio, caiu de novo nos braços do amigo e
abriu a chorar copiosamente.
Não era o barão de Itassu quem chorava ali, era o João Touro, o primitivo, o bom João Touro
doutros tempos, que agora reaparecia, como por encanto, à vista de um companheiro de seu
doce passado, tão tranqüilo e singelo.
Chorou muito, muito, como se desabafasse naquele momento toda a acumulação de
contrariedade, de desgosto e de fadigas, que se lhe foram amontoando no coração desde a
primeira noite do casamento. Era um pranto velho, muito tempo represado à falta de uma
ocasião para rebentar.
O Barroso recebia no peito as lágrimas do antigo camarada, sem fazer um movimento, nem ter
uma palavra para lhe dizer. Enquanto chorava o Borges, ele fazia por explicar a si mesmo como
diabo se podia conciliar toda aquela lamúria com a jubilosa aparência do amigo.
- Não és então feliz com tua mulher? ... perguntou-lhe afinal.
- Adoro-a! respondeu o outro, limpando os olhos.
- Então?...
- Mas é que a minha vida de casado tem sido uma tempestade constante! Ainda não o disse a
ninguém, digo-te a ti, que és o único amigo em quem deposito confiança. Ah! não imaginas! não
imaginas, Barroso, o que tenho experimentado! Não calcules de que força é minha mulher...
Bem me dizias tu...
- Mas por que não a pões a teu jeito, filho?
- Porque a adoro, como te disse. Porque só a idéia de lhe cair em desagrado me faz tremer! Pô-
la a meu jeito - dizes tu! É que não a conheces! É que, felizmente para ti ~, nunca te deixaste
arrastar por uma paixão como a minha!
E, depois de uma pausa, enquanto o outro se torcia sob aquela expansão sentimental:
- Pô-la a meu jeito!... foi ela quem me pôs ao seu! Foi ela que me torceu a seu bel-prazer!
- Ora essa! E quem te mandou consentir?
- Repito! nunca amaste, que se já o houvesse feito, não estranharias a minha fraqueza.
E, baixando a voz, disse-lhe alguma coisa no ouvido.
O Barroso fez um gesto de indignação.
- Desaforo! Não havia de ser comigo, juro-te!
- Ah! Só Deus sabe pelo que tenho passado!...
- Não! contradisse o Barroso. Não! Uma mulher dessa ordem, manda-a a gente plantar batatas!
- Impossível! Se te estou a dizer que a adoro!
O outro sacudiu os ombros:
- Não era isso o que ele supunha! Pelo que ouvira por ai, ia jurar que o Borges era o homem
mais feliz do mundo!
- É o que todos julgam... tugiu o barão com tristeza.
- Pelo menos é o que leva a acreditar esse teu modo de viver, de tempos para cá! São
pagodes e mais pagodes! Eu... confesso-te - sempre estranhei!...
- Ah! gemeu o outro. Deus sabe quanto me custa tudo isto! Meu amigo, vês-me a cara e não
me vês o coração...
- Vamos tomar alguma coisa, disse o Barroso erguendo-se do banco e seguindo na direção do
botequim. Creio que agora já bebes...
- Se bebo! tartamudeou o outro, acompanhando-o. Se bebo!
E foram ambos sentar-se a uma mesinha no lugar das bebidas.
- Pois muito me contas!... prosseguiu o Barroso, enchendo os copos de cerveja.
- E ainda não te disse nada!... acrescentou o Borges, a olhar muito sério para um buraco que
fazia no chão com a ponta da bengala.
E depois, encarando o amigo:
- Mas olha! Isto que não passe daqui. Imagina que pape1 faria eu, se viessem a saber que...
- Ó Borges! interrompeu o Barroso, ofendendo-se. Eu ainda sou o mesmo! Ainda sou aquele
mesmo amigo para a vida e para a morte! Por que estás mudado e porque não dás idéia do
que foste, não se segue que os mais também se tenham transformado! Oh!
- Bem sei, bem sei, meu bom amigo; perdoa! E olha, vai sábado à casa; a mulher arranjou
uma festa... leva contigo quem quiseres.
- Sempre as festas! censurou o Barroso acremente. Sempre as festas!...
- Que queres tu? Filomena obriga-me a estas coisas! Hoje, creio até que eu próprio não
poderia passar sem isso! Tudo vai do hábito!
- É imperdoável, mas irei, irei à tua casa...
E meneando a cabeça: -
- Pobre Borges! Pobre Borges!...
- Traze mais cerveja! disse este ao caixeiro, com uma voz plangente.
- Pois vais beber ainda?... observou o outro admirado.
- Quero festejar o restabelecimento de nossa amizade!
- Seja; mas eu não te posso acompanhar. Bem sabes que a minha conta é um copo...
- Sei, sei! Quantas vezes noutro tempo, assentados invariavelmente nos fundos da venda do
Sampaio, não fiz caretas ao teu copinho de cerveja!... Então era eu quem se admirava de que
"houvesse no mundo alguém que a bebesse por gosto..." entretanto... tu continuas a tomar a tua
cervejinha todas as noites, ao passo que eu...
- Todas as noites... confirmou o Barroso. É o meu vício! Com a diferença de que agora, em vez
de a tomar na casa do Sampaio, tomo-a quase sempre ao lado de minha mulher.
- É verdade! Não me lembrava que havias também casado. E como vais te dando com a vida?
- Bem! Não tenho razão de queixa! A Sabina, justiça se lhe faça, é uma excelente mulher! Bom
gênio... acomoda-se com tudo... não gosta de festas!... Às vezes até é preciso que eu a obrigue
a sair de casa para distrair-se um bocado, coitada!
- Sim? hein?...
- Vivemos como Deus com os anjos!...
Houve uma pausa.
- Já temos um pequeno, sabes?... acrescentou ele depois.
Borges continuou silencioso, a cabeça derreada numa taciturnidade invejosa. mudou de
posição para esgotar o copo e tornar a enche-lo.
- Ainda?! censurou o outro.
- Que queres, homem?!...
E depois de alguns goles:
- Com que então, és feliz?... E suspirou.
- Sou, graças a Deus! sou! respondeu o Barroso estirando-se na cadeira. a minha Eva não é
nenhuma senhora que meta vista, lá isso não é!... Ao contrário, coitada! não serve para se haver
com etiquetas e cerimônias; porém, no que se diz - arranjo de casa, doçura de gênio, tratamento
do filho e mimos com o nhonhô... nisso não quero que haja segunda! Meiguice ali! Ela é
incapaz de uma resinga! Sempre a mesma! Sempre! Além disso muito asseiada, muito amiga
de arrumar e ativa, ativa que faz gesto! Ainda pouco tempo ficamos três dias sem criada.
Pois, filho! acredita que a Sabina, arregaçou as mangas, meteu-se na cozinha, agarrou-se a
uma vassoura, e, tantas voltas deu, tanto virou, que a criada não fez falta! Foi preciso que eu
ralhasse para a ver sossegar um instante! Não! como dona de casa não quero que haja outra!...
mas também podes ver de que maneira a trato!...
- Ai. ai! suspirou o Borges. Garçon!, mais cerveja.
- Não bebas mais!, aconselhou o Barroso.
- Deixa-me!, balbuciou o outro limpando os olhos. Deixa-me!
Quando se levantaram para sair, o marido de Filomena, muito atacado dos nervos, muito
excitado pela cerveja, chorava como uma criança.
Consola-te, homem! dizia o amigo, batendo-lhe no ombro. Consola-te! Mais tem Deus para dar
que o diabo para tomar!
* * *
Porém, no dia seguinte, quem fosse à casa do Sr. barão de Itassu, das nove da noite às seis da
madrugada e o visse fantasiado de chicard no meio da dança, não seria capaz de acreditar que
ali estivesse o mesmo homem da véspera.
Era de um cômico o Borges de cabeleira de arminho e capacete com penacho vermelho. O seu
vigoroso tipo de montanhês não se acomodava bem dentro da extravagante camisola de seda
cor de rosa, franjada de ouro, que lhe mostrava os ombros e os grossos braços nus, e parecia
reagir contra as pitorescas botas de montar, que lhe iam até ao joelho.
- Falta-te qualquer coisa!... dissera-lhe a mulher a considerá-lo de alto a baixo, na ocasião em
que ele lhe perguntou que tal o achava. Deves dar mais elasticidade aos movimentos; não trazer
esse capacete assim caído sobre a nuca, e puxar o canhão das botas mais para cima.
Ela é que apareceu encantadora numa fantasia espanhola, que lhe deixava bem patente o rijo
desenho do corpo e mostrava um princípio de pernas, parte do colombino seio, e completo
aquele famoso pescoço cor de camélia, tormento de muita gente nas poucas vezes que se
expunha.
Os adoradores crivavam-no à ponta de olhares gulosos, e desfaziam-se em galanteios.
A festa foi no primeiro pavimento, e toda ela de um brilho original e deslumbrante.
Plantas e flores por toda parte, entre decorações de bandeiras e galhardetes; longos rosários de
pequenas lanternas redondas, desenhando os mais graciosos arabescos em uma bela
variedade de cores; palmeiras, tinhorões, grutas artificiais, repuxos, sátiros e faunos,
engendravam grupos artisticamente distribuídos.
A música, que não se sabia donde vinha, chegava às salas tépidas, abafada e voluptuosa, como
gemidos, beijos e soluços errantes pelo ar. A luz, à feição da música, era também distribuída
suavemente, em tons opalinos e duvidosos.
Tudo era morno e misterioso: os tapetes de seda fina, Imitando relva, bebiam o som dos passos;
os coxins de damasco da Ásia, os divãs bojudos e rasteiros, como bonzos deitados de bruços
no chão, tinham a maciez fofa e mole de carnes gordas; enquanto que dos maciços de verdura
se desprendia, numa sutil pulverização, um delicioso chuvisco de perfumes, que adoçava e
refrescava o ambiente e punha nos sentidos um vago entorpecimento de volúpia.
Como para contrastar com toda essa suavidade de tons e sons, havia no fundo do salão
principal um enorme tímpano de metal polido, em forma de quadrante de relógio, que servia
para marcar as várias peças da dança. Era bastante que o regente da orquestra tocasse, do
seu esconderijo, num botãozinho elétrico, que tinha ao lado, para que o grande tímpano, nem só
com um ponteiro, mas em badaladas sonoras, anunciasse por toda a casa a quadrilha ou a
valsa que se ia dançar.
Um terraço, iluminado à luz elétrica, estabelecia comunicação entre as salas e a chácara, onde
pequenos quiosques transparentes, como gigantescas lanternas de papel pousadas sobre a
grama, ofereciam aos convidados a mais completa variedade de vinhos e refrescos.
Com efeito! disse o Barroso, olhando com um ar de censura para tudo aquilo. Com efeito! É até
onde pode chegar a maluquice de um homem!...
E o conseguiu reprimir a sua indignação ao ver o Borges aproximar-se dele aos saltos,
agitando o irrequieto e escandaloso penacho do seu ofuscante capacete cor de prata:
- Que diabo é isso?!... exclamou, deste para maluco! Pois não vês, homem, quenão te ficam
bem essas coisas?!... Queres acabar num hospício?!... Ora, o que parece um marmanjão da tua
idade a pular no meio da casa, vestido de princês?!...
- Que queres, meu amigo?... o amor! o amor! disse o Borges, procurando ser grave e
conseguindo apenas ficar mais cômico debaixo da sua cabeleira a Luís XV.
- Qual o amor, nem qual carapuça! retrucou o outro, ralhando.- Eu amo muito minha mulher, e,
ai dela se me viesse para cá com pantominices dessa ordem!
- É por que não estás nas minhas condições! Fosses tu casado com Filomena e dir-me-ias
depois!...
- Qual o que!, contradisse o Barroso. Tu o que precisavas era de um cáustico na nuca!
- Mas, com a breca! querias então que eu contrariasse minha mulher?!... repontou o Borges,
perdendo a paciência. Que diabo! eu desejava estar casado de outro modo!... juro-te que
preferia uma esposa como dizes ser a tua! ... Mas a sorte não quis assim; que lhe hei de eu
fazer? ... Agora é levar a cruz ao Calvário! Se eu não a estimasse, bem! mas eu adoro-a, como
te confessei um milhão de vezes; e ela, meu amigo, formosa, querida, desejada como é,
vendo-se contrariada, seria, em represália, muito capaz de fugir dos meus braços para os de
outro qualquer!
- Pois que fugisse! É boa!
- Que fugisse, não! bradou o Borges encolerizando-se. Vai para o diabo com o teu agouro!
Prefiro tudo a ver-me privado da sua companhia! Serei um louco, um libertino, um criminoso, se
preciso for, contanto que a tenha sempre ao meu lado, que a veja, que a sinta, que a ame, que a
possua! Deixá-la ir! E nesse caso de que me serviria a vida?!... Sem ela de que me serviria a
posição social, a estima pública e todas as grandezas da terra?!
- Não era dessa forma que me falavas poucos dias... observou o Barroso, deveras surpreso
com a transformação rápida que se acabava de operar no amigo.
- É que então não me aconselhavas que a deixasse fugir de meus braços!... respondeu o marido
de Filomena.
- O que te afianço, acrescentou o outro, é que, se desconfiasse que havias de mudar tão
depressa, não teria vindo à tua casa...
- Estás arrependido?...
- Não, filho! o estou arrependido... mas é que ainda o poucos dias tu te queixavas
daquela forma de tua mulher, e hoje saltas-me com três pedras na mão, só porque eu...
- Ah! tornou o Borges, passando o braço na cintura do amigo e procurando falar-lhe em
segredo. Ah! ... é que nesse momento eu estava longe de Filomena, fora do alcance de sua
fascinação, do perfume de seus cabelos, do eco de sua voz, da reflexão de seus olhos!...
O Barroso fitou-o assombrado, e fez um gesto para fugir-lhe do braço. Que diabo de palavrório
era aquele?!...
O outro não fez caso e segurou-o melhor.
- Vê!... disse-lhe entusiasmado apontando para a mulher, que atravessava a sala próxima. Olha!
como vai formosa! Contempla aquela garganta de mármore, aquele porte de rainha egípcia,
aqueles olhos mais formosos que as estrelas! Contempla-a toda, e dir-me-ás depois,
desgraçado! se no mundo coisa alguma que valha a posse de todo aquele tesouro vivo e
palpitante!... secoisa alguma, seja ela a doçura do lar, as glórias do talento, a consolação do
trabalho, as honrarias sociais, o respeito, o acatamento de seus semelhantes, o amor de uma
geração inteira - se alguma coisa que possa corresponder à suprema ventura de ser seu
escravo!...
- Tu bebeste demais! exclamou o Barroso, conseguindo afinal arrancar-lhe dos braços.
- Ainda não bebi demais! respondeu o barão, fazendo um gesto dramático.
- Mas lembraste a propósito: Champanhe! exclamou para um criado. Champanhe! Depressa!
E depois, erguendo a taça, que se lhe entornava sobre os dedos: - Ao amor, Barroso! Ao
sempre belo! ao sempre novo! ao nunca vencido! ao amor!
- Estás insuportável! resmungou o amigo, pensando já em escamugir-se na primeira ocasião.
E mal pilhou uma escapula, foi-se.
* * *
Em casa, a mulher, que ainda estava de pé, admirou-se de o ver entrar tão cedo.
- Pois eu estou disposto a aturar bebedeiras de quem quer que seja?!... exclamou ele,
desabridamente, a desenfiar a sobrecasaca. O Borges está insuportável! Está um libertino! A
mulher faz dele o que quer. Eu, se adivinhasse semelhante coisa, até nem lhe tinha falado
quando o vi! Um pancada!
- Mas que fez ele?... perguntou D. Sabina, emperrando com as palavras do marido.
- Ora! Faz todas as loucuras que vem à cabeça da mulher! Não Imaginas! -.. É bastante que ela
mostre desejo de uma coisa, seja qual for, a mais extravagante, a mais irrealizável, está o
homem tratando de pô-la em prática! Deus te livre!
- Então, faz-lhe todas as vontades? ...
- Pois se ele está apaixonado loucamente pela mulher! se está mesmo pelo beiço!
E o Barroso passou a contar tudo o que presenciara a respeito do Borges.
- Sim senhor! disse D. Sabina, quando ele terminou. Sim senhor! É um marido ás direitas!
Assim é que eu os entendo - ou bem que um casal se ama ou bem que se não ama!
- Que é isso?... perguntou Barroso espantado. - Pois achas que aquele idiota procede bem,
fazendo todas as vontades à mulher?!...
- De certo! acudiu Sabina - de certo. E há de ser muito amado e muito respeitado pela esposa...
Eu, no caso dele, faria o mesmo! Pois se a mulher é todo o seu encanto, todo o seu feitiço...
nada mais natural que o homem lhe faça as vontades para vê-la feliz e satisfeita! Não tem que
saber - gosto do Borges! É um marido que me enche as medidas!
- Ora! ora! ora! fez o Barroso, sacudindo a cabeça - ora esta!...
Sabina prosseguiu:
- De uma mulherzinha como a dele é que você precisava para o ensinar, seu unha de fome! Não
devia ser uma toleirona, como eu, que levo aqui a matar-me, às vezes até fazendo o despejo! e,
quando quero ir a qualquer divertimento, quando apeteço um teatro, um passeio, uma visita, ou
quando preciso de um vestidinho mais assim ou de um chapéu mais assado, você nunca está
pela coisa!
- Porque não sou doido! respondeu o Barroso com mau modo. - Estaria bem servido se fosse a
fazer-te todas as vontades! - a estas horas não teria onde cair morto!
- Ora, não me venha contar histórias, seu Barroso! Não haviam de ser essas misérias que o
poriam mais pobre! Hoje, por exemplo... por que não me levou à casa de seu amigo?... Eu tinha
tanta vontade de ir!... Dizem que estava tudo preparado com tanto luxo, tão bonito!... E você,
só para não me fazer a vontade, deixou-me ficar em casa!
- Pergunta antes se tinha dinheiro para te levar!
- vem a tal história do "Pergunta se eu tenho dinheiro!" O mesmo não diz você aos
procuradores dessas sociedades, que não lhe largam a porta! Principalmente a tal Maçonaria!
Meu Deus, é um cesto roto para comer dinheiro! Entretanto, o mais insignificante objeto de que
eu precise...
- Olha! queres saber de uma coisa?! exclamou o Barroso, interrompendo-a. - Não estou
disposto a ouvir essa lengalenga! Por hoje já basta de maluquices! Se te não levei à casa do
Borges foi porque não quis, entendes tu! Porque não quis! e não tenho que te dar satisfações!
Ora, vamos a ver se temos aqui a Filomena Borges!...
- Ah! fale assim! retrucou a mulher enraivecendo-se. - Fale desse modo e não venha para
com fingimentos! Você não me levou à casa do barão, porque teve pena de comprar um vestido!
porque não teve coragem para alugar um carro! Somítico!
- O' mulher! berrou o marido. - Já te disse que não estou disposto a essa seringação!
- Pois que não esteja! Eu também não estou disposta a muita coisa e vou agüentando! não
pilho o que desejo! há mais de uma semana pedi-lhe que comprasse um tapete, ali para o pé da
cama, que, sempre que me levanto, é uma constipação certa... e, que é dele?!
- Aí temos outra!
- Pois se é assim mesmo! Eu nada lhe peço que você faça!
- Não tenho onde cavar dinheiro! Arre!
- Mas tem por fora onde enterrá-lo! Quem sabe se o Borges é mais rico do que você?!
- Mulher! mulher! mulher! Estás a fazer chegar-me a mostarda ao nariz! ...
- Diabo do sovina!
- Cala esta boca, demônio! trovejou o Barroso; ameaçando a mulher com o punho fechado.
- Bate, malvado! guinchou ela, empertigando-se com as mãos nas cadeiras, lívida, defronte do
marido. Bate! Também é só para que serves, ordinário!
E, voltando-se com desprezo. - Um pulha desta ordem a querer falar dos outros!... Por isso é
que se vê tanta coisa por aí!...
- Hein?! berrou o marido, saltando para junto da mulher. Que é que se vê por aí? Hás de dizer o
que se vê por aí!
E cego de cólera, a sacudir um braço de Sabina:
- Hás de dizer! hás de dizer!
- Solte-me o braço, seu bruto!
- Atrevida! Quero só que vejam a intenção perversa daquela ameaça!
E empurrando-a: - Vai-te, peste! Vocês tão todas a mesma súcia! E ainda quem de os
homens como culpados das patifarias das mulheres! ...
- E são! respondeu Sabina. E são! E fazem elas muito bem! Era do que você precisava para não
ser bruto!
O Barroso, que se havia afastado, voltou rapidamente ao ouvir a nova ameaça, e com tal força
arremessou um pé contra a mulher, que a fez ir aos trambolhões de encontro à mesa de jantar.
- Bate, danado! bate! que não me hás de tapar a boca!
O pequeno, no quarto, acabava de despertar com o barulho e pôs-se a fazer berreiro.
A mulher correu logo para junto dele e foi lhe assistindo palmadas nas perninhas tenras, a
exclamar:
- Tu também, pestezinha? tu também queres entrar no sarilho?! Pois toma! Toma!
E o pequeno redobrava a gritaria na proporção das palmadas.
- Não mates a criança! rugiu o Barroso, puxando a mulher pelo braço e fazendo-a cair por terra.
Ela não tem culpa que a acordasses tu com os teus berros!
- Dou! posso dar! retorquiu Sabina, esganiçando-se. É meu filho! não é seu!
- Não é meu, cachorra?!
E a pancadaria recomeçou.
Mas afinal, a desgraçada foi deitar-se, a chorar, a maldizer-se, e o marido daí a pouco fez o
mesmo, ao lado dela, resmungando.
Algumas horas depois, dormiam profundamente nos braços um do outro.
- Vivemos como Deus com os anjos! ... balbuciava ele, sonhando, a conversa que tivera com o
Borges no Passeio Público. - Meiguice ali!... Mas também podes ver de que maneira a trato!...
Ah! hipócritas! hipócritas!
XII
AMOR DE FILOMENA
Por esse tempo, a festa do Borges atingia o seu apogeu.
Chegava ao momento do completo delírio, do prazer sem bordas que embala e arrebata os
sentidos, como um vasto oceano de delícias, sem horizontes. Chegava ao ponto em que a gente
perde a noção justa das coisas e cai num doce modorrar voluptuoso e alheiado; quando tudo o
que nos cerca vai-se confundindo, dissolvendo, perdendo os contornos num esbatimento de
sonho; quando todos os hálitos se misturam no ar; quando os perfumes das mulheres, os
gemidos das rabecas, e todas as cintilações da carne, e todas as rebrilhações dos diamantes se
fundem e confundem numa atmosfera opalina, que nos penetra até os mais íntimos refolhos da
alma.
Mas, no meio de tanta delícia, Filomena recebeu em pleno coração uma abalo que ela estava
longe de prever.
Este abalo foi causado por uma carta caída do cinto do marido. Filomena apanhou-a, refugiou-
se no quarto, abriu-a e leu-a.
Era dirigida por aquela célebre viúva rica, a Chiquinha Perdigão, a mulher de firma comercial, a
mesma que em algum tempo tentara seduzir o Borges e que, afinal, a julgar pelo sentido do que
vinha escrito, conseguira pouco mais ou menos os seus desígnios.
Eis o que dizia ela, à tinta encarnada, numa pequena folha de papel de seda, rescendente a
couro da Rússia:
"Querido barão.
Em data de ontem, recebi a sua amável cartinha e tenho o mais vivo prazer em cumprir com o
que ela me determina.
Não sei o que vou ouvir de seus lábios, mas adivinha-me o coração que não será nada de mau.
Durante a sexta quadrilha estarei à sua espera no caramanchão, que fica ao fundo da avenida
de bambus.
A essa hora ninguém se lembrará de ir, e poderemos então conversar à vontade, sem que D.
Filomena, venha a suspeitar de nossa entrevista.
Por mais cautela levarei um dominó escuro, que previamente ficará depositado no gabinete das
senhoras, e acho que o barão deve também se disfarçar com outro dominó.
Por conseguinte, não se comprometa com pessoa alguma para a sexta quadrilha e, à hora
marcada, esteja no ponto, sem falta.
Aquela que o estima e sempre o estimou,
C . Perdigão.
- Miseráveis! exclamou Filomena, amarrotando a carta. - Miseráveis!
E, depois que o seu pensamento percorreu num vôo toda a órbita do fato que ali estava provado
naquele pedaço de papel, sentiu uma grande indignação pelo marido.
- Trair-me! Trair-me o infame! E logo com quem?... Com a Chiquinha!... uma mulher que pinta
os cabelos e usa enchimentos de algodão! Oh! É indigno!
E, sem se poder dominar, deixou-se possuir de um desespero sombrio, de uma aflitiva sede de
vingança; mas, caiu logo em si, e circunvagou olhares sobressaltados, como se receasse ser
apanhada na intimidade daquele sofrimento.
Desconheceu-se.
- Pois que... Teria ela ciúmes do marido?... Seria crível que ela - Filomena Borges! - amasse
aquele homem, aquele impostor?! Oh! não! não era possível!
Ergueu-se da otomana, em que se havia prostrado, e pôs-se a passear pelo quarto, rindo
nervosamente, a afetar que não ligava "a menor importância àqueles amores ridículos do
marido".
- Que amasse! que amasse à vontade a quem melhor entendesse, que diabo tinha ela com
isso?!...
E, sentindo um novelo enrodilhar-se-lhe na garganta, foi à janela e abriu-a bruscamente de par
em par.
Sua fantasia fugiu logo noite fora, como ave ominosa e amiga das trevas e do silêncio. E ela
ficou, ficou a olhar, a olhar para o espaço, como se acompanhasse com a vista o doido remigiar
do pássaro fantástico e agoureiro.
A noite era calma e de uma transparência azul. Sentiam-se no ar emanações balsâmicas que se
despediam do jardim, onde ainda bruxuleavam tristemente os últimos balõezinhos venezianos;
ao passo que das salas do primeiro andar, em um tom cansado e arquejante, subiam de rastros
longos gemidos de outras valsas alemãs.
Filomena apoiou os cotovelos no balcão da janela, cobriu o rosto com as os e pôs-se a
chorar.
Nisto, a lua, afastando a cortina de nuvens que a velava, entornou da concha de prata a sua luz
tranqüila e misteriosa, que é, como um doce orvalho refrigerante para os corações abrasados na
febre do amor.
Então, uma infinidade de considerações veio grupar-se no espírito magoado de Filomena
Borges.
Agora, que pela primeira vez o esposo lhe aparecia capaz de esquecê-la por outra, é que ela o
desejava e queria como nunca. As palavras da viúva enchiam-na toda de um amor inesperado e
punham-lhe no espírito o sobressalto de quem de repente pela falta de um objeto precioso
que trazia consigo; enquanto a pontinha sorrateira de um nascente remorso aproveitava a
perturbação em que ela estava para ir desfibrando, um por um, todos os véus que escondiam as
qualidades simpáticas do marido.
E o vulto do Borges, à proporção que se descobria aos olhos da mulher, ia crescendo,
crescendo, e tomando dimensões extraordinárias.
Filomena o via generoso, bom, intrépido e apaixonado. - Sim!... murmurou ela, como se
despertasse de um longo entorpecimento. - Sim!... Ele era digno de muito mais amor! É um
homem completo, um coração enorme, um caráter sublime! Eu, só eu, fui a culpada de o haver
perdido: nunca o apreciei devidamente! nunca lhe paguei em amor bastante tudo que a sua
dedicação punha aos meus pés! Imprudente que fui!... Mas ele?!... Ele! como pôde esquecer-se
de mim por aquela mulher detestável?! Oh! Eu detesto-o! Eu abomino-o!
E, escondendo de novo o rosto, abriu de novo a chorar.
Estava agora mais formosa na sua fantasia espanhola: toda vergada sobre o balcão da janela,
os quadris empinados, suspendendo um pouco mais a saia de seda amarela, guarnecida de
rendas pretas; as pernas cruzadas, os ombros vagamente iluminados pela lua, faziam estranha
harmonia naquela expressão de angústia, casada com o salero de seu tipo a Fortúnio.
Mas um beijo à queima-roupa, recebido em cheio no pescoço, fê-la soltar um grito e voltar-se
rápida como uma espada em duelo.
* * *
A seu lado tremulava o irrequieto penacho vermelho do marido, cujas mãos lhe haviam
empolgado a cinta e a puxavam brandamente sobre ele.
Filomena, em vez da costumada resistência, passou-lhe os braços em volta do pescoço e
começou a disparar-lhe beijos por todo o rosto, com um tal ardor e com uma tal obstinação, que
o pobre homem, pouco habituado àqueles ataques, esteve a perder o fôlego.
- Upa! exclamou ele afinal, atordoado e cheio de espanto.
A mulher fitou-o por alguns segundos e, de repente, atirou-se-lhe de novo nos braços como uma
descarga. O Borges, ainda desorientado com a primeira, hesitou entre a resolução de fugir ou
implorar graças. Daquela forma a mulher dava-lhe cabo do canastro!... Que menina!
- Tu amas-me Borges?! interrogou ela, segurando-lhe as mãos com transporte.
- Ora, que pergunta! Pois ainda tens alguma dúvida a esse respeito?...
- Não sei! Quero que respondas! Quero que digas se me amas, se és só meu!
- Oh! Tu até me ofendes com isso, filhinha! Bem sabes que sim... Mas, anda daí. meia hora
que estou à tua procura. - alguns dos nossos convidados já se querem raspar. Anda, vem daí!
- Não! Espera, espera um instante! Desejo ter-te ainda algum tempo nos meus braços! Não me
fujas! Vem cá!
O Borges, cada vez mais surpreso, não teve forças para resistir, e os dois, assentados no
mesmo divã abraçados como dois amantes de quinze dias, juravam e tornavam a jurar uma
afeição eterna, quando, no fim de meia hora, o sinal da sexta quadrilha os foi interromper.
- Ouviste? exclamou ele, pondo-se de. - Vão tocar uma quadrilha; não devemos ficar aqui. A
caminho!
- É' a sexta, disse Filomena.
- É! é a sexta... repetiu ele.
- Pois vamos. Serás o meu par; ainda não dançaste hoje comigo...
- Impossível, balbuciou o Borges, já tenho par. Dançaremos a seguinte.
- Não quero! Quero esta!
- Mas meu amor, se te estou dizendo que...
- Quem é o teu par?!
- É...
- A Chiquinha... Aposto!
- É exato, é justamente a Chiquinha, disse o marido enrubescendo.
- Pois vai! Vai!, respondeu a mulher repelindo-o. Eu fico.
- Ficas aqui?
- Fico.
- E os nossos convidados?...
- Que esperem.
- Acho que fazes mal; devias dançar.
- Só dançaria contigo...
- Então, até logo.
- Até já.
E ele foi-se.
A mulher, mal o viu pelas costas, correu ao guarda-roupa, abriu-o, sacou um dominó preto,
enfiou-o rapidamente no corpo, pôs máscara, tomou o seu chicote de montaria, e, depois de
vencer ligeira o segundo andar, ganhou as escadas do fundo e desapareceu.
Atravessou a chácara como um pássaro que foge, entrou na avenida de bambus e dirigiu-se
ofegante, trêmula, para o ponto da entrevista.
A fronde compacta de árvores e o tear das trepadeiras acumulavam
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