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De volta ao Rio de Janeiro, os amigos mal o reconheceram. Acharam-no
transformado em tudo; descobriram-lhe novos dotes e novos defeitos, porém estes
em número muito maior que aqueles. Fizeram-lhe boas e más ausências.
O Borges, o querido Borges, que até aos quarenta anos não conhecera o
gostinho de uma inimizade sequer, ficou pasmado quando, alguns dias depois de
sua chegada à pátria, começou de redemoinhar em torno dele um enxame de
maledicentes, que o intrigavam, descompunham e malqueriam, tecendo intrigas,
publicando mofinas, remetendo-lhe cartas anônimas, cheias de injúrias, procurando
covardemente, por todos os meios e modos, injetar-lhe o fel e a amargura no
coração, como se, ofuscados pelas aparências, não pudessem admitir um tão
completo exemplo de felicidade. As injúrias versavam principalmente sobre o caráter
da mulher.
Então um desgosto sombrio principiou a persegui-lo; abominou a pátria —
esse covil de maus e de invejosos — qualificou ele, revezando o seu tédio!
Em breve, qualquer maledicência a seu respeito, que lhe chegava aos
ouvidos, punha-o num estado lastimável de irritação. E, no despenhadeiro de seu
azedume, tudo foi aos poucos lhe parecendo mau e mesquinho; chegou a desconfiar
da mulher; e supô-la sem amor, sem gratidão, capaz talvez de uma deslealdade;
suspeitou de todos que o cercavam, detestou a sociedade, e, por não encontrar
sobre quem descarregasse diretamente o seu ressentimento, bramou contra o
atraso do Brasil, contra a falta de distrações, contra a ignorância geral do público,
contra a incompetência dos poderes, contra toda a "podridão social enfim"!
Uma terra de bugres! dizia e repetia ele aos amigos, que o visitavam todas
as noites. Uma terra de bugres! Aqui, um homem, para não morrer de tédio, para
divertir-se um bocado, precisa atirar-se aos vícios, ou não sair de casa! — País de
lama!
E para esquecer-se de seu desgosto, jogava.
De resto, o governo português acabava de o fazer barão de Itassu, e o Rio
de Janeiro fariscava em torno de sua casa, atraído pelo som da música e pelo
barulho dos pratos.
A casa! A casa, ou antes o museu do Borges, que outra coisa não era esse
ninho de raridades de que se falava em toda a Corte, dessas magnificências do luxo
antigo e moderno, desses ricos objetos da arte de todos os tempos e de todas as
paragens. A casa transformara-se, como o dono.
Tudo foi reformado. Exibiram-se novos trastes, novas cortinas, tapeçarias,
peles, cachemiras, bronzes, faianças, cristais, porcelanas, quadros, estatuetas,
aquários, álbuns, mosaicos, vasos florentinos, lustres de vermeil, espelhos
venezianos talhados à bisseau, carótides de Jean Goujon, servindo de peanhas a
esculturas de Germam Pilou, e uma variedade interminável de tetéias e relíquias,
que a baronesa colecionara por todo o mundo. Expuseram-se velhas cadeiras com
espaldar e assento de couro de Córdova, lavrado, e tachado de metal amare]o;
leitos à Renascença de colunas retorcidas e métopes talhados em madeira fusca;
jarras do Oriente, sarapintadas de hieróglifos; objetos preciosos de marfim,
manufaturados na China; molduras delicadíssimas de porcelana, a Luiz XIV,
representando grinaldas coloridas; consolos de brêche-antique, sustentados por
delfins de olhos e barbatanas douro, luzido; sem contar as otomanas asiáticas, os
divãs, os fauteuils, as etagères de charão, de palissandra, de ébano; enfim o que
podia haver de raro, de singular, de extraordinário. Não era uma casa, era um
prolongamento do Hotel Cluny. Cada objeto, cada móvel, cada peça representava
uma época, um reinado, uma escola.