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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
FERNÃO DA SILVEIRA, POETA E COUDEL-MOR:
paradigma da inovação no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
Geraldo Augusto Fernandes
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura
Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª Drª Lênia Márcia de Medeiros Mongelli
São Paulo
2006
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
FERNÃO DA SILVEIRA, POETA E COUDEL-MOR:
paradigma da inovação no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
Geraldo Augusto Fernandes
São Paulo
2006
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DEDICATÓRIA
Àqueles que, de certa forma, são co-partícipes desse estudo: parentes, amigos,
professores e colegas.
AGRADECIMENTOS
Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, magistra amantissima, pelos ensinamentos
e paciência.
Maria Isabel Morán Cabanas, pela ajuda a distância.
Vera Lúcia Bastazin, pelo grande incentivo, desde o início.
Simone de Almeida e Silva, Márcio Ricardo Coelho Muniz e Fernando Maués
de Faria Júnior, pela ajuda tão próxima.
Agradecimentos, também, à CAPES – Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior, pelo apoio financeiro através de bolsa de estudos.
“...há nele [no Cancioneiro] variedade de inspiração, individualismo literário,
que está a precisar de ser posto em relevo através de monografias substanciais. Os
poetas do Cancioneiro não têm sido estudados na sua personalidade poética, mas
como parcelas de um todo: é tempo de modificar o critério de apreciação...”
Costa Pimpão, Poetas do Cancioneiro Geral.
RESUMO
Pretende-se, neste estudo, discutir como os poetas palacianos do Quatrocentos
português usaram a tradição e a inovaram com elementos de inventividade e
criatividade, de modo a serem denominados precursores de futuras estéticas literárias.
Tomar-se-á por paradigma o poeta e coudel-mor Fernão da Silveira. Uma das
principais personagens da nobreza portuguesa, Silveira destaca-se por extensa
produção poética, bem como pelo rigor com que exerceu sua função política. Uma vez
que a crítica vem apontando o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende como
repositório de futuros movimentos literários, o objetivo é examinar, através de Fernão
da Silveira, os meios de que se serviram os poetas do fim do medievo português no
cultivo de formas e temas caros às escolas renascentista e barroca e, mais tarde, à arte
literária concretista e experimentalista.
Palavras-chave: poesia palaciana, Cancioneiro Geral, inovação poética,
tradição literária, poesia lúdica.
ABSTRACT
This study intends to discuss how the Portuguese Court poets of the XVth.
century made use of tradition and innovated it with elements such as inventiviness and
creativeness in order to be considered as forerunners of future literary aesthetics. For
this purpose, the poet and master of the royal stud farm Fernão da Silveira has been
taken as a paradigm. One of the most influential persons of the Portuguese nobility,
Silveira distinguishes himself for his wide poetic production and for the rigour he
performed his political role. Since criticism considers Garcia de Resende’s Cancioneiro
Geral a repository of future literary moviments, the purpose is to examine, through
Fernão da Silveira’s poetic production, the means that could have led the poets of the
end of the Portuguese medieval era to cultivate forms and themes dear to the
Renaissance and Barroque aesthetics and, later, to the concrete and experimentalist
literary arts.
Key words: Court poetry, Cancioneiro Geral, poetical inovation, literary
tradition, playful poetry.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................11
I O CANCIONEIRO GERAL: FESTA E TEATRALIDADE, UM ESPAÇO PARA A EXALTAÇÃO
DO “EU”................................................................................................................................................33
II FERNÃO DA SILVEIRA: COUDEL-MOR E POETA. PARADIGMA DA FACÉCIA.........ERRO!
INDICADOR NÃO DEFINIDO.3
III - CRONOLOGIA DA INVENTIVIDADE: TRADIÇÃO, INOVAÇÃO E RENOVAÇÃO ............49
3.1. Os precursores: Antigüidade clássica e Alta Idade Média........................................................52
3.2. Na poesia provençal, a surpresa maneirista .............................................................................55
3.3. Nos cancioneiros galego-portugueses, a quebra dos cânones..................................................60
IV A PRODUÇÃO POÉTICA DO COUDEL-MOR: PARADIGMA DA INOVAÇÃO NO
CANCIONEIRO GERAL........................................................................................................................67
4.1. Uma senhora que conduz o poeta à dança e à musica..............................................................79
4.1.1. A descriptio puellae: forma e caráter da mulher medieval................................................................. 81
4.1.2. A artificialidade na “poesia natural” de Fernão da Silveira. Olhar. Cantar. Ouvir. Dançar ...............84
4.1.3. A coita de amor perante uma beleza que traz perdição......................................................................90
4.1.4. Santo ou pecador: conhecendo a sensualidade feminina....................................................................95
4.2. Um presente de casamento inusitado: o sexo de D. Lucrécia................................................................ 97
4.2.1. A homo/bissexualidade: uma visão da sociedade nos fins do medievo............................................ 101
4.2.2. No ato sexual, profano x sagrado .....................................................................................................108
4.2.3. O órgão sexual masculino: chiste irônico......................................................................................... 111
4.3. O “eu” dividido: retrato do desconcerto do mundo................................................................120
4.4. Poesia palaciana: mote para a convivência social .................................................................122
4.4.1. Nas perguntas, o prenúncio do conflito............................................................................................123
4.4.2. Nas respostas, proposta de viver o momento...................................................................................125
4.4.3. Nas ajudas, um motivo para o diálogo.............................................................................................127
4.5. De música e poesia nas composições do Coudel-mor.............................................................130
4.6. L’amour de la forme: a forma pela forma...............................................................................139
V - AS SEMENTES DO CANCIONEIRO GERAL NO RENASCIMENTO E NO BARROCO. AS
RELEITURAS DO CONCRETISMO E EXPERIMENTALISMO ....................................................150
5.1. Fernão da Silveira e seus iguais: poetas palacianos, medida da criatividade........................151
5.2. No Renascimento, renovação dos clássicos: passeio pelos temas e formas do Cancioneiro
Geral...............................................................................................................................................157
5.3. Barroco: imagens e formas do Seiscentos português..............................................................161
5.3.1. Gregório de Matos e o Barroco tropical........................................................................................... 166
5.4. Do Barroco ao Modernismo: nada de inovador? ...................................................................170
5.5. Concretismo/Experimentalismo: um novo diálogo com o Cancioneiro Geral........................181
CONCLUSÃO.....................................................................................................................................197
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................211
ANEXOS.............................................................................................................................................228
ANTOLOGIA......................................................................................................................................232
9
Provável pintura de Antônio de Holanda (1480-1557), pintor e miniaturista flamengo;
recebeu encargos de D. Manuel para pintar as glórias dos Descobrimentos. In: Leitura
nova de D. Manuel I. Patrimonio Ediciones. Valência, Espanha [s.d.]. Capa de catálogo.
INTRODUÇÃO
...num movimento psicológico que
semelha prenunciar o Romantismo, os
poetas quatrocentistas “descobrem” a
Natureza, ainda graças a Petrarca (...)
Um quê de renascentista, e portanto
“moderno”, se mostra nessa
transformação operada no âmbito das
convenções lírico-amorosas: sente-se que
os poetas palacianos da Corte de Avis
preparam, com seus paradoxos e
indagações acerca do Amor, o Camões
lírico e, mesmo, o advento do Barroco.
Massaud Moisés
1
For not by art does the poet sing, but by
power divine; had he learned by rules of
art, he would have known how to speak
not of one theme only, but of all; and
therefore God takes away reason from
poets, and uses them as his ministers...
2
Platão
Quando, em 1516, Garcia de Resende publicou seu Cancioneiro Geral,
preocupava-se, exclusivamente, em divulgar uma coleção de poemas portugueses que
tinham sido produzidos em mais de meio século, a exemplo da moda então apreciada
em Espanha, a da compilação de poemas em cancioneiros. Enquanto Portugal, em
meados de Quatrocentos, dedicava-se ao que lhe trazia dividendos – os Descobrimentos
–, o que mais interessava à sociedade palaciana eram os relatos e registros desses fatos,
de suma importância para a Nação, através das crônicas históricas
3
. Por outro lado,
aliada à ascensão da dinastia avisina, na segunda metade do Trezentos, a voga eram os
1
In: MOISÉS, Massaud. Humanismo (1418-1527). In: A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix,
1981b, p. 49.
22
PLATÃO. Ion. In: The dialogues of Plato. 4 ed. Trad. B. Jowett. [Londres]: Oxford University Press,
1953, p. 108.
3
Além das crônicas de Fernão Lopes, cronista-mor da Torre do Tombo a partir de 1434, soma-se Gomes
Eanes Zurara que, com a Crônica del-Rei D. João I, começa a escrever sobre as conquistas ultramarinas,
principalmente sobre a Tomada de Ceuta. Também incluem-se como cronistas Rui de Pina e o próprio
compilador do Cancioneiro Geral, Garcia de Resende.
escritos moralistas
4
, preconizados pelos representantes daquela dinastia, como meios de
fixação do novo poder, desde a crise de 1383-1385.
Foram os fatos econômico e político que fizeram com que o lirismo, tão rico e
popular à época do Trovadorismo, fosse relegado a um plano de somenos importância
5
.
Não tivesse sido o trabalho ardoroso de Garcia de Resende, as gerações futuras não
teriam conhecido o que se produziu no campo da poética durante a segunda metade de
Quatrocentos e início de Quinhentos.
Visto em seu conjunto, o Cancioneiro Geral tem sido considerado, injustamente,
um repositório da mesmice. O amor cortês tem ainda a mesma essência daquilo que foi
exaltado pela poesia trovadoresca galego-portuguesa; contudo, esse amor avança e,
tomando por base o culto do amor como cantado por Dante e Petrarca, dá os primeiros
sinais da sensualidade que iria ser mais largamente explorada no Renascimento.
Continuam cultivadas as sátiras de maldizer e de escárnio, agora sob nova
nomenclatura, as “cousas de folgar”, nas palavras de Garcia de Resende.
Desenvolvendo novas possibilidades métricas, e à exaustão, esse florilégio de poemas
de Resende vai exaurindo a paciência não só do leitor hodierno, mas a de qualquer um
que já tivesse tomado a empreitada de tentar saborear aquela coleção, em qualquer
4
Vejam-se, como exemplo, as obras parenéticas de Dom Duarte, Leal Conselheiro, de Dom João I, Livro
da montaria ou ainda a do Infante Dom Pedro e Frei João Verba, Livro da virtuosa benfeitoria.
5
Quanto a esta relegação, registre-se o comentário de Teófilo Braga, valendo-se, inclusive de uma
citação de Amador de los Ríos: “Tudo nos afastava da passividade lírica; e conquistada Ceuta por D. João
I, como a chave do império de Fez, seguiu essa série de feitos na ocupação do norte da África, ‘dando um
sentido real e verdadeiramente histórico ao espírito aventureiro, nascido das ficções cavalheirescas (sic),
empreendendo-se e levando-se a cabo outras não menos afortunadas empresas...’ A exploração da costa
ocidental africana e as navegações atlântidas imprimiram à sociedade portuguesa uma vida em que a
actividade intensa a afastava das idealizações de lirismo.” (BRAGA, Joaquim Teófilo Fernandes. Os
poetas palacianos. Século XV. In: História da Literatura Portuguesa: Idade Média. Lisboa: INCM,
[s.d.], p. 341).
Para SARAIVA e LOPES, outro fato contribuiu para essa relegação: “O factor mais importante da crise e
definhamento da tradição poética portuguesa é o deperecimento das escolas locais de jograis, por força
dos novos meios dominantes de comunicação da poesia – que se torna escrita e não já oral. Por isso a
língua portuguesa deixa de ser na Península o veículo mais conhecido dos poetas”. (SARAIVA, A. J. e
LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 16
ed. Porto: Porto Editora, Lda., [s.d.], p. 155).
Parece haver dissonância quanto a essa alegação feita à língua, uma vez que o Cancioneiro é mostra
incontroversa de seu enriquecimento, justamente devido às Descobertas. Mais à frente, contradizem-se os
autores: “...esta colectânea mostra (...) um grupo de artistas aplicados ao trabalho de apurar e ensaiar
formas, ajustar a linguagem.” (ibidem, p. 163). Além do mais, há de se notar que a escrita é, ainda nesse
tempo, praticamente registro da oralidade, dadas as várias formas de se grafar uma expressão pelos
diversos poetas ou mesmo por um só.
12
época, em uma só sentada
6
. A leitura de peças individuais, no entanto, cativa qualquer
desses leitores.
O que se produziu com relação à crítica sobre esse trabalho do escrivão eborense
foram muitos estudos fundamentados no conjunto da obra. Nada ou pouco se encontra
quanto a um olhar dedicado a um só poeta, por exemplo, entre os mais de trezentos
(sem contar os fictícios e os anônimos)
7
que desfilam pela obra toda. À exceção do
longo poema “O Cuidar e Sospirar”
8
, originalíssimo pela sua estrutura e principalmente
pelo seu conteúdo, o Cancioneiro tem sido visto somente como registro de uma época
6
Quanto às possibilidades métricas e à paciência do leitor, escrevem A. J. Saraiva e Óscar Lopes: “A
grande maioria dos poetas do Cancioneiro Geral adopta o verso de redondilha maior, então chamado de
‘arte menor’ ou ‘arte real’, o que dá ao conjunto da colectânea uma marcada monotonia, em contraste
com a extrema variedade métrica dos cancioneiros dos séculos XIII e XIV.” (Idem, ibidem, p. 160).
7
Aida Fernanda Dias compila 345 poetas e 880 poemas. Cf. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende:
A Temática. Maia: INCM, 1998b, p. 76.
8
Ao longo deste estudo, serão apontadas algumas particularidades dessa composição que ocupa um
quarto do Volume I, da edição do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, escolhida para este estudo.
“O Cuidar e Sospirar” abre o Cancioneiro e inicia uma contenda jurídico-amorosa entre os poetas Nuno
Pereira, defensor do “cuidar”, e Jorge da Silveira, filho de Fernão da Silveira, defensor do “sospirar”.
Utilizando-se do jargão jurídico, todo o debate é proposto como um jogo de tribunal, em que são
interpelados vários poetas, inclusive D. Lianor, como juíza da questão proposta no feito: “qual era maior
tormento / e dava mor sentimento” (o cuidar ou o suspirar). Participam do processo dez poetas.
Entretanto, estudos recentes afirmam não ser preciso esse número, dada a quantidade de personagens
fictícias cuja criação ora se deve a Fernão da Silveira (provável organizador da primeira parte), ora a D.
João de Meneses (provável organizador da segunda parte), além de outros.
A forma poética apresenta-se como imitação de um processo judicial, tendo por base o momento político
por que passava Portugal. “Em 1483, os acontecimentos trágicos que impressionaram a corte tiveram uma
dimensão judiciária: o terceiro duque de Bragança, D. Fernando, cunhado da própria rainha D. Leonor,
havia sido decapitado em Évora, em 20 de Junho, por justiça privada do rei D. João II. O tribunal de
juízes nomeados pelo rei usou uma terminologia idêntica à praticada em ‘O cuidar e sospirar’, que assim
parece um arremedo poético com tema amoroso dum processo-crime real, passado nas mais altas
esferas.(...) Os hábitos jurídicos estão patentes neste processo, espécie de contrafacção, com tema
amoroso, dos reais julgamentos públicos do tempo, uma paródia galante de desenfadamento, estranha aos
olhos de hoje”. (O CUIDAR e Sospirar [1483]). Fixação do texto, introdução e notas de Margarida
Vieira Mendes. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1997. [Colecção Outras Margens, Série Poesia do Tempo dos Descobrimentos], p. 12-13).
Quanto à participação de Fernão da Silveira, escreve a autora: “Veja-se a abundância de vocabulário do
direito processual, relativo quer a acções discursivas quer a ofícios e instrumentos de tribunal (...); o
Coudel-mor apresenta-se como o autor de maior competência jurídica, permitindo aceitar-se serem de sua
autoria as rubricas, tecnicamente correctas.” (ibidem, p. 26).
O período de duração de todo o “processo” teria sido de 9 de novembro de 1483 a 20 de julho de 1484.
Cf. DIAS, Aida Fernanda. O Cancioneiro Geral e a prosa peninsular de Quatrocentos. Contatos e
Sobrevivências. Coimbra: Livraria Almedina, 1978a, p. 9.
13
esplendorosa para Portugal. É tomado como documento histórico
9
e social, tão somente.
A não ser raríssimos exemplos, é possível que nenhum dos autores de poemas
palacianos fosse um dia estudado com mais profundidade. Foram esses “raríssimos
exemplos”
10
que me levaram a descobrir Fernão da Silveira e a perscrutar a sua criação
poética.
Num extenso e completo estudo sobre a criação intertextual de Gregório de
Matos
11
, o crítico, jornalista e professor de literatura João Carlos Teixeira Gomes
encontrou na coletânea de Garcia de Resende um poemeto de Fernão da Silveira que lhe
chamou atenção pela sua forma. Sua análise e o modo como viu o inusitado nesse
poema instigaram-me a pesquisar mais a fundo a criação desse poeta do fim do medievo
português. Sem deixar de ver a obra de Fernão da Silveira também como um registro de
costumes e de História, o propósito primeiro deste estudo foi investigar seu modo de
produção e – problema central – encontrar bases para fundamentar o que pareceu novo
para Teixeira Gomes: Fernão da Silveira teria, pela sua criatividade, conseguido criar
uma obra contendo já ecos
12
de futuros movimentos literários.
9
Rómulo de Carvalho assim se pronuncia com referência aos textos poéticos em geral quando tomados
como documento: “qualquer texto poético constitui um documento social na medida em que o assunto de
que trata, os termos em que é redigido, a escolha dos vocábulos que utiliza, a sua ordenação formal, o seu
ritmo ou falta dele, a sua intencionalidade, tudo são sinais definidores de uma sociedade determinada.”
(CARVALHO, Rómulo de. O texto poético como documento social. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995, p. VII). Há de se comentar, contudo, que o autor não se preocupa quanto ao papel do
poeta, o que o poderia diferenciar de seus pares pela sua individualidade, nos termos definidos por Peter
Dronke mais à frente.
10
Podem-se citar Obras de Álvaro de Brito, de Isabel Almeida e Diogo Brandão: Obras Poéticas, de
Valéria Tocco, ambas de 1997. Desta mesma autora, cita-se Poesias e Sentenças de D. Francisco de
Portugal, 1
º
Conde de Vimioso, de 1999. Margarida Vieira Mendes, em 1997, publicou um estudo
especial O cuidar e sospirar [1483] (op. cit., 1997), analisando não um único poeta, mas o processo
jurídico-poético que toma grande parte (fólios 1-15) do volume I do Cancioneiro Geral. Todas estas
obras foram lançadas pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Lisboa.
11
GOMES, João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, O Boca de Brasa. Um estudo de plágio e criação
intertextual. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
12
Michel Zink conclui seu texto no verbete “Literatura(s)” com os seguintes questionamentos: “Se é
verdade que a Idade Média ‘durou desde o século II ou III de nossa era para morrer lentamente aos
golpes da Revolução Industrial’ [citando frase antológica de Jacques Le Goff], como nos impedir de
ouvir ecos, alguns ainda próximos de nós? E por que nos privarmos? Nesse e noutros casos, como
encontrar a distância correta?”. (In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/São Paulo:
EDUSC, 2003. Volume II, p. 92, grifos meus). Esses “ecos”, a que alude Michel Zink, podem-se
encontrar no Cancioneiro de Resende e prenunciam futuros movimentos literários.
14
O poema que norteou toda a pesquisa e análise neste ensaio é “Senhora,
graciosa, discreta, eicelente”
13
, uma esparsa estruturada em quatro colunas verticais,
como se fossem quatro estrofes de palavras colocadas uma ao lado da outra. Peça única,
em termos de estrutura formal, no portentoso compêndio de Garcia de Resende, esse
poema não causa estranhamento
14
só quando encarado como poesia visual. O binômio
forma-conteúdo mostra que o poeta Fernão da Silveira, ao criar aquilo que os barrocos
denominariam labirinto
15
, montou uma peça que, como diz Teixeira Gomes, teria
antecipado em quinhentos anos um tipo de poesia visual – a poesia concretista.
É possível que tal assertiva seja exagerada
16
, pois parece claro não ser um único
poema que fizesse nascer, séculos mais tarde, toda uma estética literária. O que se
entende do comentário do crítico é que determinado tipo de gênero poderá renascer nas
escolas posteriores, quando escritores retomam temas e formas antigas e as relêem. É o
que se percebe, não só com o pequeno poema de Silveira, mas com muito do que se
produziu no Cancioneiro, considerado germe do novo. Numa criação inovadora, um
elemento haverá de ser básico, qual seja, a inventividade, essencial para que o artista
13
Cf. em “Anexos”, p. 221-224 a reprodução desse poema.
14
Para Heinrich Lausberg, “o estranhamento (...) é o efeito anímico exercido no indivíduo pelo
inesperado (...), como fenómeno do mundo exterior. Este efeito é um choque psíquico, que se pode
realizar de diferentes maneiras e graus”. (In: Elementos de Retórica literária. Trad. R. M. Rosado
Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1966, p. 107; 112; 113) Cabe também aqui o
conceito de “estranhamento” como idealizado por Chklóvski: “estranhar não significa substituir o simples
pelo elaborado ou pelo complexo, mas pelo singular, de tal modo, que quando a expressão culta equivale
ao uso comum, o mais estranho é apelar para o termo vulgar. (...) Na duração perceptiva, a arte é
percebida ou apreendida não na sua espacialidade, mas na duração, na continuidade da percepção...”
(apud FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. A obra de arte difícil. In: A estratégia dos signos. São Paulo:
Perspectiva, 1981, Coleção Debates, p. 35).
15
A característica essencial de uma composição labiríntica é a multiplicidade de leituras que ela permite,
dependendo de onde se inicia sua leitura: no sentido horizontal, no vertical, de cima para baixo, de baixo
para cima, na diagonal, e assim por diante. Sobre o labirinto, escreve Maria dos Prazeres Gomes: “é (...)
um objeto estético, um texto pluridimensional que se alça da página, adquirindo às vezes a arquitetura
espacial de um móbile, às vezes a armação de um poema-cartaz, às vezes o arranjo colorístico e pictural
de um quadro. Nestas circunstâncias, um de seus aspectos mais notáveis é, a par de sua beleza gráfico-
ideogramática, o que requer de engenho, de destreza mental.” (In: Outrora agora. Relações dialógicas
na poesia portuguesa de invenção. São Paulo: EDUC, 1993, p. 232).
16
Assim se expressa Teixeira Gomes quanto ao labirinto de Silveira: “... um poema que já revela uma
clara audácia formal – constituindo mesmo uma peça isolada no Cancioneiro (...) É um poema que pode
ser lido alternadamente em várias direções, portanto um poema que os barrocos chamariam depois de
‘labiríntico’, e que ao mesmo tempo antecipa uma concepção visual de poesia, com a distribuição das
palavras levando em conta os espaços em branco da página, tal como cerca de 500 anos depois
pregariam os concretistas...” (Op. cit., 1985, p. 313, grifos meus).
15
possa sobressair-se e criar algo inusitado. Essa inventividade, registre-se, é mote para
Melo e Castro, crítico literário e poeta experimentalista português, afirmar que “se o
princípio da mímese permitiu a invenção da literatura, o princípio da construção permite
a literatura de invenção”
17
. Para Johan Huizinga, calcado em Frobenius, o processo
inventivo é concebido através da
experiência, ainda inexpressa da natureza e da vida, manifesta-se no homem
primitivo sob a forma de ‘arrebatamento’. ‘A capacidade criadora, tanto nos
povos quanto nas crianças ou em qualquer indivíduo criador, deriva desse
estado de arrebatamento’. (...) A emoção, o arrebatamento perante os
fenômenos da vida e da natureza é condensado pela ação reflexa e elevado à
expressão poética e à arte
18
.
Para além da técnica, Frobenius, segundo Huizinga, relega à estética um veio de
emotividade, que define por “arrebatamento”, o que faz com que alguns artistas
expressem materialmente – através de signos e significantes – seu estado de espírito. No
final do século XV, em Portugal, os poetas palacianos deixam-se arrebatar ainda pela
temática do amor, mas também, num novo modelo, arrastam-se pelos meandros da
sensualidade, do erotismo pornográfico. Deixam-se, também, arrebatar por questões
morais e espirituais, retratando certa decepção pela degradação dos costumes, avultada
pelas descobertas. Fernão da Silveira, centro deste estudo, trará, em suas composições,
todos os “arrebatamentos” próprios da época em que viveu: o amor, o sexo, o conflito e
mesmo as questões práticas do cotidiano reinol.
Ainda com relação à questão da inventividade, para o estudioso Peter Dronke,
são incontestáveis dois princípios que norteiam o entendimento do processo inventivo: a
tradição não tem poder determinante sobre aqueles poetas de talento individual, que a
tomam como ponto de partida
19
, e o reconhecimento dessa individualidade dar-se-á
pelo conhecimento do contexto em que uma peça inovadora foi criada
20
. Esse princípio,
segundo Eduard Norden, é válido não só para a Antigüidade romana
21
, mas igualmente,
17
MELO E CASTRO, E. M. Literatura Portuguesa de Invenção. São Paulo: Difel, 1984, p. 7.
18
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Pespectiva, 1993, p. 20.
19
“Una tradición poética no tiene ningún poder determinante sobre los poetas de talento individual que
toman esa tradición como su ponto de partida”. (DRONKE, Peter. La individualidad poética. Cuestiones.
In: La individualidad poética en la Edad Media. Trad. Ramón B. Rossell. Madrid: 1981. p. 36.
20
“La habilidad en ver semejanzas de estructura o expresión en contextos diferentes; y la habilidad en dar
una respuesta total a cada contexto, reintegrando las observaciones comparativas de modo que aparezcan
en justa proporción con el conjunto en que ocurren las estructuras observadas.” (Idem, ibidem, p. 37).
21
“Lo individual en la literatura romana no tanto se muestra en la formación de algo nuevo, cuanto en el
particular desarrollo y transformación de lo existente.” (apud DRONKE, op. cit., p. 43).
16
na opinião de Dronke, se estende para a literatura medieval e se prolonga no
Renascimento e Barroco
22
. Norden sugeria, dessa forma, que, na história da poesia,
“algo novo” é o desenvolvimento e a transformação do tradicional, o que permite uma
investigação da individualidade poética
23
. No estudo dessa individualidade,
entendendo-a como aliada à concepção de inventividade, deve-se levar em conta que o
típico e o individual se complementam
24
. Em seu trabalho, Peter Dronke propõe mostrar
que a novidade é, às vezes, devida a um gênio individual. Por isso, fazem parte do
campo semântico da individualidade poética, logo, da inventividade, a “perspicácia”, a
“variação” criativa da tradição – que o estudioso define por “criação tremendamente
livre”, ao fazer referência ao diálogo poético Semiramis e sua possível variação de uma
narração de Ovídio sobre o mito de Europa
25
. Faz ainda parte do campo semântico da
inventividade poética o termo – e conceito de – “experimental”, em que Dronke aponta
certos aspectos da proeza de Abelardo
26
. Ao selecionar alguns poemas de Fernão da
Silveira, pôde-se observar que a individualidade deste poeta releva-se principalmente
quando toma como “ponto de partida” a tradição e habilmente a contextualiza, como
expõe Dronke. Verificou-se que a perspicácia de Silveira vai além do “comum” aos
poetas contemporâneos seus, pois freqüentemente diversifica, e essa diversificação
caracteriza-se, essencialmente, pelo trabalho que realiza com a forma e pela ludicidade
a que se dedica quando “folga” – tanto com as palavras quanto com os temas.
Com relação às palavras “originalidade”, “criatividade” e “inventividade” – e os
seus derivados –, tais termos serão usados em todo o estudo e, por isso, fazem-se
necessários alguns comentários. Discorrer sobre todas as teorias e pensamentos
relacionados a esses termos parece ser improdutivo, mas registrar alguns conceitos e
reflexões poderá auxiliar no entendimento de seu emprego e, a partir disso, observar-se
22
DRONKE, op. cit., p. 43-44.
23
Apud DRONKE, op. cit., p. 45.
24
Idem, ibidem, p. 45.
25
Idem, ibidem, p. 50. O autor diz que esse diálogo desafia as noções habituais de imitação medieval da
poesia clássica. Nessa obra, aparecem traços da leitura que o poeta fez dos antigos, e Dronke pergunta-se
até que ponto há nessa leitura imitação ou uma “creación tremendamente libre de un mundo antiguo
fabuloso”.
26
Idem, ibidem, p. 54. Dronke mostra que o planctus de Abelardo está relacionado com uma tradição
antiga. Há duas seqüências em que Abelardo segue a forma estritamente “clássica”, contudo, “el resto
desarrolla el tipo ‘arcaico’ de secuencia, aunque con una amplitud sin precedentes de inventiva formal”.
Segundo Dronke, essa “inventiva formal” toma uma forma poética e musical adulterada, que florecerá
não somente em latim, mas em francês e alemão, dando origem a “dilatadas variaciones”.
17
o porquê do uso desses vocábulos como sinônimos. Na Antigüidade, Platão, para citar
uma das primeiras referências, coloca na boca de Sócrates seu conceito de criatividade
como inspiração advinda dos deuses. Em “Íon”, ao praticar o jogo dialético com o
rapsodo que toma o título do diálogo, o filósofo grego afirma que, com relação à
inspiração,
The gift which you possess of speaking excellently about Homer is not an
art, but, as I was just saying, an inspiration; there is a divinity moving you,
like that contained in the stone which Euripedes calls a magnet, but which is
commonly known as the stone of Heraclea. (...) In like manner the Muse first
of all inspires men herself; and from these inspired persons a chain of other
persons is suspended, who take the inspiration. For all good poets, epic as
well as lyric, compose their beautiful poems not by art, but because they are
inspired and possessed. (...) For in this way God would seem to demonstrate
to us and not to allow us to doubt that these beautiful poems are not human,
nor the work of man, but divine and the work of God; and that the poets are
only the interpreters of the gods by whom they are severally possessed
27
.
Mas a criatividade tem sido vista, ao longo dos tempos, também como produto
da insanidade, pois o “gênio, especialmente o artístico, parece separado da loucura
apenas por um fio de cabelo. A extrema sensibilidade do artista e sua tendência para
forçar ao extremo a própria natureza são a prova suprema de sua sanidade
28
”. Já no fim
do Renascimento, e mesmo com Kant, no século XVIII, a criatividade era vista como
produto de um gênio intuitivo, quando, por exemplo, aplicada ao poder criador de um
Da Vinci. Uma das teorias psicológicas, o associassionismo, pautado nos pensamentos
de John Locke, pregava, no século XIX – e ainda hoje alguns “behavioristas” são
influenciados por esta escola – que “o pensamento consiste em associar idéias,
derivadas da experiência, segundo as leis da freqüência, da recência (sic) e da
vivacidade. Quanto mais freqüentemente, recentemente e vividamente relacionadas
duas idéias, mais provável se torna que, ao apresentar-se uma delas à mente, a outra a
acompanhe
29
”. A psicanálise, tendo Freud por teórico de maior importância, concebe
que a criatividade tem origem no conflito do inconsciente (id). “Se a solução [do
27
PLATÃO, op. cit., p. 107-108.
28
KNELLER, George F. Arte e Ciência da Criatividade. 14 ed. Trad. J. Reis. São Paulo: IBRASA,
1978, 121p., p. 34. A propósito, Kneller refere-se à originalidade como o “mais amplo dos traços que
entram na criatividade. Abrange capacidades como a de produzir idéias raras, resolver problemas de
maneiras incomuns, usar coisas ou situações de modo não costumeiro. Essa amplitude torna difícil falar
de originalidade em termos específicos”. (Ibidem, p. 80). É por causa dessa “amplitude” tanto da
originalidade quanto da criatividade, que usarei indistintamente, como já dito, tais palavras, juntamente
com a inventividade.
29
Idem, ibidem, p. 39. Provavelmente, o tradutor quis dizer “urgência” quando usou o termo “recência”.
18
conflito] é ‘ego-sintônica’ – se reforça uma atividade pretendida pelo ego, ou parte
consciente da personalidade – teremos como resultado um comportamento criador. Se à
revelia do ego, ela será reprimida completamente ou surgirá uma neurose
30
”. Já os
neopsicanalistas rejeitam esse princípio de ser a criatividade produto da inconsciência e
crêem que ela nasce do pré-consciente, pois “o ego voluntária ou temporariamente se
retrai de alguma área do pré-consciente, a fim de mais eficientemente o controlar
depois. A criatividade é uma regressão permitida pelo ego em seu próprio interesse, e a
pessoa criativa é aquela que pode recorrer ao seu pré-consciente de maneira mais livre
do que outras
31
”. Uma escola psicanalista mais recente, por outro lado, prega que “a
criatividade, apesar de em parte ser uma possível redutora de impulsos, é também
procurada como um fim em si mesma. A pessoa busca não apenas repouso mas também
atividade, não só evita tensão mas também a corteja. Admitido que o novo e o estranho
podem ameaçar a pessoa, é preciso admitir também que possam intrigá-la e desafiá-la,
levando-a a achar, explorar e dominar essas coisas...
32
”.
Esses estudos, modernos, podem parecer inaplicáveis à criação artística da
Antigüidade e da Idade Média, posto que desenvolvidos nos séculos XIX e XX, em sua
maioria. Contudo, procuram o entendimento daquilo que é próprio do ser humano: suas
reações perante o belo. Talvez a teoria de Platão esteja mais próxima das atitudes
composicionais dos poetas medievais, uma vez que o divino exercia maior influência
nas mentalidades de então. Dessa forma, poderiam os poetas estar inspirados por algo
que os transcendiam. Mas talvez não seja anacrônico entender o ato composicional de
Fernão da Silveira, por exemplo, um expoente da sociedade do Quinhentos português,
com forte poder decisório nas questões políticas do Paço. Seria desproposital enxergar
no lado de
30
Idem, ibidem, p. 41.
31
Idem, ibidem, p. 47.
32
Idem, ibidem, p. 48-49.
19
deleitamento e mesmo de prazer estético de suas composições uma fuga às tensões por
que passavam aqueles que viviam a tumultuada sociedade guerreira medieval – e
desbravadora de novos mundos – uma forma de encontrar nas expressões líricas um
desafio a ser explorado e dominado? A resposta a esse questionamento foge do
propósito a que tentei me dedicar neste estudo. Releve-se que a abordagem das teorias
trazidas aqui tem apenas o intuito de esclarecer o uso que se fará dos termos que
remetem à criatividade e seus cognatos.
Já mais especificamente quanto à imaginação e à originalidade nas artes
literárias, o professor de Literatura Inglesa da Universidade de Princeton, Thomas
McFarland, comenta
Originality is a numinous term; accordingly, its value and function can be
transposed into other terms sharing its numinous effulgence, as the value and
function of those terms can be substituted back into those of originality. Such
is the situation with regard to the relation of originality and imagination. If
we take the terms in their strict meaning, disregarding their numinous aura,
originality and imagination do not refer to the same things. But neither term
is much used without its aura. By Romantic times, as Wordsworth pointed
out, ‘IMAGINATION’ had become ‘a word which has been forced to extend
its services far behind the point to which philosophy would have confined’ it.
The same holds true for originality
33
.
Mais à frente, cita outras palavras – “genius”, “invention”, por exemplo – como
“numinous terms”, ou seja, palavras que também têm uma forte qualidade religiosa ou
espiritual
34
.
No desenrolar da História, esses termos têm sido estudados em profusão por
filósofos, poetas, psicólogos, entre outros, sobre os quais deram-se acima algumas
referências. A divergência de conceitos é inumerável, sempre equilibrando-se no
paradoxal, pois, para McFarland “we cannot think of man except by invoking
simultaneously the opposed categories of individual and society (...) Neither
individuality nor communality can be felt without the other, although each strains
against its complements
35
”. E esse paradoxo origina-se do próprio conflito da existência
33
MCFARLAND, Thomas. Originality & Imagination. Baltimore/Londres: The John Hopkins
University Press, 1985, p. 88.
34
A palavra tem origem latina, numen, inis, e o adjetivo “numinous” significa “divino”, conforme os
dicionários.
35
Idem, ibidem, p. 1.
20
humana, que é responder, ao mesmo tempo, à nossa natureza social e à individual
36
. Há
épocas em que a voz da natureza social mostra-se mais evidente – como por exemplo na
ideologia marxista –, noutras sobrepõe-se a voz da natureza individual, como nas
“Confissões” de Rousseau
37
. Se se aliar isso tudo à sociedade palaciana, objeto deste
estudo, talvez não seja desproposital observar uma mescla do individual ao coletivo não
só pela fase de transição entre a Idade Média e a Era Moderna, mas nas próprias
composições dos poetas do Quinhentos, ora eivadas de um individualismo exacerbado,
principalmente naquelas de cunho amoroso, ora expressões de uma poesia voltada ao
congraçamento dos paçãos. Veja-se que, nas composições inovadoras das ajudas,
perguntas e respostas, por exemplo, os poetas palacianos estão sempre conclamando
seus pares ao diálogo, à convivência social.
O professor americano, ao analisar vários poemas e pensamentos que refletem a
preocupação com a questão da imaginação, e seu cognato, a originalidade, conclui que o
que envolve tais termos, em sua essência, é a “alma”. É ela que, segundo todos os
poetas e pensadores, mesmo os mais radicais ateístas, como Jean-Paul Sartre, induz o
ser humano a criar com “personality” quaisquer feitos, sejam eles instrumentais e
utilitários ou mesmo estéticos. Define, então, imaginação e seus derivados, da forma
como serão amplamente usados neste meu estudo:
Imagination and its cognate, originality, still retain their aura and still exist as
soul-facts. The idea of originality is most vitally conceived not as firstness,
which for the most part can be revealed under scrutiny to be factitious, but as
an intensity that honors personality. Originality denotes dynamic
individuality rather than inert temporality. It is inextricably linked to
imagination
38
.
É dessa forma que nos poemas de Fernão da Silveira, seus pares, e de todos os outros
que serão referenciados ou analisados, as palavras “criatividade”, “originalidade”,
“inventividade”, e seus correlatos, deverão ser aplicadas nas suas produções. É de certo
modo uma extensão à idéia difundida acima por Peter Dronke quanto à individualidade
36
Idem, ibidem, p. 31.
37
Idem, ibidem, p. 31.
38
Idem, ibidem, p. 199.
21
poética, acrescida a ela uma aura, a da alma, essencialmente de natureza humana
39
.
Já quando se remete à idéia de inovação, que não se distanciará muito dos
conceitos atrás relatados, um ingrediente a mais será incorporado: a tradição. O termo
será tomado aqui como releitura criativa da tradição. Quanto a essa, aliada à inovação,
pretendo discutir mais amplamente no Capítulo III. Contudo, algumas palavras
especiais devem ser ditas antes. Ao se ler mais acuradamente os críticos do Cancioneiro
de Resende, sobressaem inúmeras referências a um tipo de poesia que consideram – e
que é centro das preocupações neste estudo – extremamente inovador. Apenas como
ilustração, citem-se Pierre Le Gentil, André Crabbé Rocha e Jole Ruggieri. Le Gentil,
nos dois extensos volumes de seu La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du
Moyen âge: les thèmes, les genres et les formes, constantemente alude à poesia
peninsular de Quatrocentos com termos como “accents singulièrement modernes”,
“acuité nouvelle”, “créations originales”, “forme ingénieuse de préciosité”,
“d’ingéniosité et de subtilité”, “innovation poétique”, “spontané”, “artifices”, “plus
libre”, “particulier”, “souplesse”, “virtuosité”, “remarquables”, “renouveau poétique”,
“sensuelle et réaliste”, “poésie précieuse”, “jeu intellectuel et cérimonieux”,
“raffinements de forme”, e muitos outros. A estudiosa portuguesa André Crabbé Rocha,
especialista no compêndio de Garcia de Resende, ao se referir àquela obra, permeia seus
estudos com vocábulos tais como “rebuscada e complicada”, “maneira original”,
“variedade”, “procura de ornamentos”, “viveiro de toda a poesia ulterior”,
“espontaneidade”, “procura de efeitos novos”, atribuindo às peças tanto valor de
inovação quanto valor de prognóstico de movimentos estético-literários venturos. Na
obra antológica de Ruggieri, Il canzoniere di Resende, a crítica italiana também faz uso
de muitas expressões significativas quanto ao tipo inovador da poesia portuguesa de fins
do medievo: “nuove espressioni e forme più complicate”, “versi di sapore moderno”,
“freschezza di un canto nuovo”, “laboriosa finitezza della forma”, “prenuncio dei poeti
romantici e
39
Registre-se que toda essa conceituação concernente às palavras “originalidade”, “inventividade”,
“criatividade” pode parecer anacrônica. Pretendeu-se, com tal exposição, esclarecer o uso que se fará
desses termos, vistos em cada período de forma diversificada. Ao longo deste estudo, poder-se-á
verificar, por exemplo, a constância na aplicação deles por estudiosos do Cancioneiro Geral. O próprio
Garcia de Resende, diga-se de passagem, em seu Prólogo, usará o termo “invençam” para denominar as
novidades surgidas ao longo de seu vasto compêndio.
22
preromantici”, “fu aspirazione già alla Rinascenza”, “artifici stilistici”, “accenti nuovi”,
“poesia moderna (...) di intima ispirazione”, “nuova cura della forma per la forma”,
entre outras. O uso desse vasto vocabulário, já por si, demonstra que, a partir da
inovação própria dos poetas quatrocentistas portugueses, criaram-se os ecos do que
seria mais tarde produzido na Península. Esses termos, aliados às teorias expostas sobre
a “criatividade” e seus cognatos, corroboram, por si só, o que se pretende esmiuçar
neste estudo: a inovação dos poetas palacianos frutificou em outros períodos literários.
Quanto ao conteúdo, temas clássicos ou do desconcerto do mundo
40
e o de um
“eu” dividido, por exemplo, já antecipam as preocupações renascentistas e barrocas.
Quanto à forma, a qual se percebe mais claramente, as mesmas antecipações, mas com
um arranjo: os concretistas e experimentalistas do século XX irão beber no Barroco as
construções estruturais que já vigoravam na recolha de Resende.
No entanto, foi o conceito de construção, entendido como estrutura formal, que
guiou, primeiramente, este estudo do corpus poético de Fernão da Silveira e, nele, a
busca de evidências daquilo que será esmiuçado: a criatividade desse poeta palaciano
tem a semente do novo porque construiu um tipo de poesia baseado na pesquisa das
possibilidades múltiplas que o trabalho com a palavra oferece ao poeta inovador. É
necessário, antes de seguir, definir o sentido aplicado à terminologia “forma” como será
abordada aqui. O conceito é o proposto por Leyla Perrone-Moysés:
40
“Em relação a tal aspecto, temos de assinalar que o olhar crítico dos poetas quatrocentistas ao
desconcerto do mundo faz resvalar o discurso das suas composições para o confronto entre dois modos
de vida sumamente diferentes: o do galante cortesão, sempre disposto a desfrutar de amenos passatempos
e serões, e o do exercício arriscado que acarretavam as conquistas”. (MORÁN CABANAS, Maria Isabel.
Traje, Gentileza e Poesia. Moda e Vestimenta no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Lisboa: Ed.
Estampa, 2001b. Colecção Leituras, 9, p. 498).
23
O trabalho da forma se exerce em todos os níveis da obra literária, desde as
grandes estruturas, que sustentam a narrativa ou o poema e são suas linhas de
força invisíveis, até o lavor minucioso do estilo, que consiste em colocar as
palavras em determinada ordem, pesando como numa balança os sons e os
ritmos. A forma buscada pelo escritor é não apenas essa forma sensível na
materialidade do discurso mas, ao mesmo tempo, a forma do sentido, no
arranjo justo das referências, na exploração das conotações. A forma é,
assim, uma espécie de rede ardilosa tramada para colher, no real, verdades
que não se vêem a olho nu, e que, vistas obrigam a reformular o próprio real.
(Grifos meus)
41
.
Na coletânea de Silveira, poder-se-á constatar o “lavor minucioso” a que se refere
Perrone-Moysés. No seu modo de enunciar, percebe-se uma atenção especial do poeta
quanto ao “balanço” dos sons e ritmos, à exploração da própria forma do sentido,
ajustando e explorando as referências e as conotações, tanto nas criações de fundo
intimista quanto nas de fundo satírico.
Pôde-se constatar que a palavra e o seu modo de manipulação permitiram a
Fernão da Silveira estender seu campo de criatividade: nos exemplos trazidos a seguir,
parece claro que, para ele, é a poesia um elemento de sociabilização; o confronto que se
fará dos poemas de cunho amoroso com as expressões satíricas mostrou que se movia o
poeta entre a erudição da poesia aristocrática – a poesia palaciana – e a intimidade com
temas e formas populares, notadamente pela ludicidade com que enformou todos os
gêneros poéticos. Em todos eles, Fernão da Silveira prima pela criatividade que aplica
ora à forma – como apresentada por Perrone-Moysés – ora ao conteúdo, seguindo até os
princípios de desconstrução de tudo o que se tornou padrão no Cancioneiro. A
ludicidade também é a essência de seu trabalho artístico; em todos os exemplos que
aqui serão ilustrados, a brincadeira, o jogo de palavras e de sons são a marca de sua
produção. Essa visão particular da função da poesia tem por base exclusiva a
característica que é própria de grande parte dos poetas palacianos: a inventividade.
Com relação aos aspectos lúdicos da poesia, os estudos sobre a ludicidade e seus
derivados são a base do emprego desse termo e de seus correlatos neste trabalho, assim
como os aplicam Johan Huizinga, em Homo Ludens, e Roger Caillois, em Los juegos y
los hombres. La máscara y el vértigo.
Especificamente quanto à poiesis, Huizinga a vê como uma função lúdica, pois
41
PERRONE-MOYSÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p.
106-107.
24
ela se exerce no interior da região lúdica do espírito, num mundo próprio
para ela criada pelo espírito, no qual as coisas possuem uma fisionomia
inteiramente diferente da que apresentam na “vida comum”, e estão ligadas
por relações diferentes das da lógica e da causalidade. Se a seriedade só
pudesse ser concebida nos termos da vida real, a poesia jamais poderia
elevar-se ao nível da seriedade. (...) Em sua função original de fator das
culturas primitivas, a poesia nasceu durante o jogo e enquanto jogo – jogo
sagrado, sem dúvida, mas sempre, mesmo em seu caráter sacro, nos limites
da extravagância, da alegria e do divertimento. Até aqui não se trata da
satisfação de qualquer espécie de impulso estético. A ordenação rítmica ou
simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o
disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial de frases, tudo
isto poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico
42
.
Roger Caillois, por seu lado, dá ênfase à palavra ludus por reunir em si dois
princípios caros a este trabalho: a poesia como jogo e a inventividade.
Su capacidad primaria de improvisación y de alegría, a la que yo llamo
paidia, se conjuga con el gusto por la dificultad gratuita, a la que propongo
llamar ludus, para llegar a los diferentes juegos a los que sin exagerar se
puede atribuir una virtud civilizadora. (...) El ludus da ocasión a un
entrenamiento, y normalmente desemboca en la conquista de una habilidad
determinada, en la adquisición de una maestría particular, en el manejo de tal
o cual aparato o en la aptitud de descubrir una respuesta satisfactoria a
problemas de orden estrictamente convencional
43
.
Nos poemas que aqui foram trazidos para análise, pôde-se perceber como Fernão
da Silveira se valeu delas como “jogo” – tanto no sentido proposto por Caillois, quanto
por Huizinga – e como manifestação de um “espírito lúdico”, como propõe este último.
Tanto nas expressões de temas mais sérios – e deve-se tomar cuidado com essa
seriedade, pois para Huizinga o jogo é manifestação oposta a ela
44
– quanto naquelas
satíricas, poder-se-á constatar que Silveira brinca, sempre, com as palavras, usando-as
como jogo para armar sua expressão poética. Pretenderá, com isso, não apenas trazer
deleite para sua audiência, mas, do mesmo modo, prazer estético, se seus poemas forem
vistos como montagem “sutil e artificial de frases”, como designa o estudioso alemão.
No entanto, não tem este estudo a intenção de fazer a descoberta de uma grande
celebridade da poesia palaciana. Parece que os elementos considerados grandes, que se
encontram em Gil Vicente, em Camões, em Fernando Pessoa, para citar poucos,
possivelmente não se encontram em Fernão da Silveira. Contudo, por que não
investigar, então, o que leva um poeta do fim da Idade Média – e, junto com ele, seus
42
HUIZINGA, op. cit., 1993, p. 133-149.
43
CAILLOIS, Roger. Los juegos y los hombres: La máscara y el vértigo. México. D.F.: Fondo de
Cultura Económica, 1986, p. 65-68.
25
contemporâneos – a criar obras que poderão trazer momentos de deleite lírico e
servirem de eco para a posteridade?
Ezra Pound afirma que o artista, quando da execução de seu trabalho, não
somente coloca em evidência a realidade exterior e a sua realidade interior, mas
também, em sendo “antena da raça”
45
, poderá estar antecipando movimentos artístico-
culturais
46
.
O poeta palaciano Fernão da Silveira, durante o Quatrocentos português, escreve
um singelo poema que, pela sua estrutura labiríntica, destaca-se entre as quase mil
composições compiladas no extenso Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Esse
poema visual – “Senhora, graciosa, discreta, eicelente” – incita o leitor pela disposição
com que se apresenta na folha em branco. O olhar é o primeiro a ser estimulado,
convidando o leitor a conhecer o que a forma inusitada terá a dizer quanto ao conteúdo.
Uma investigação perspicaz fará com que, além do impacto visual, se veja o poema
como mostra da criatividade que um artista pode desenvolver, usando material comum a
seu trabalho, a palavra.
Passado o efeito do primeiro contato com algo incomum no florilégio de
Resende, o poema poderá estimular em qualquer estudioso algumas questões, como por
exemplo: teria Fernão da Silveira, num surto de inventividade efêmera, criado apenas
um poema distinto da grande massa do Cancioneiro? Somente após leitura atenta da
coleção de Resende e da recompilação do corpus poético de Silveira poder-se-ia dar
essa resposta. Ao selecionar tudo o que aparece sob sua rubrica, pôde-se chegar a uma
conclusão que incentivou o estudo e a análise do modo de sua produção: constatou-se
que ele – e a maioria de seus pares – pautava todo o trabalho pela inventividade, na
visão de Peter Dronke exposta anteriormente, e nas de Johan Huizinga e Roger Caillois,
44
Vide Capítulo I, p. 39-40.
45
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 71.
46
Quanto a isso, dizia Kandinski: “...a arte possui (...) ainda uma qualidade que lhe é exclusiva e peculiar,
ou seja, a qualidade de adivinhar o amanhã no hoje – um poder criador e profético”. (apud CAMPOS,
Augusto et alii. Teoria da Poesia Concreta. Textos Críticos e Manifestos. 1950-1960. [s.l.]: Livraria
Duas Cidades, 1975, p. 54; grifos do autor). E também Hilário Franco Jr.: “todo poeta percebe, sente,
intui as mudanças que estão apenas se esboçando nos subterrâneos da História, e ao trazê-los à tona antes
de amadurecerem para a maioria dos homens de sua época, contribui para a aceleração da própria
dinâmica histórica. Nesse sentido todo poeta é profeta.” (In: Dante Alighieri, o poeta do absoluto. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2000. Coleção Vidas e Idéias, p. 13-14).
26
quando aliada à ludicidade. Tomando a poesia ora como elemento de sociabilização, ora
como simples e delicioso jogo, ora trabalhando com temas de cunho erudito,
mesclando-os com os de cunho popular, o que marca a produção de Fernão da Silveira é
a inventividade, que traz em seu cerne as sementes de futuras estéticas literárias.
A problemática definida assim se resume: seria o poeta palaciano Fernão da
Silveira realmente um predecessor de movimentos poéticos, não só os imediatamente
posteriores ao declínio da Idade Média, mas também os vanguardistas do século XX?
Teria ele engendrado uma poética tão original em meio à tradição medieval? Poderia ter
tido uma visão tão à frente de seu tempo que o fizesse único entre os mais de trezentos
poetas presentes na coletânea de Garcia de Resende? Isso parece ser relevante, pois
contrapõe a criação poética palaciana medieval à criação poética renascentista, barroca
e contemporânea, mais especificamente, àquela desenvolvida na segunda metade do
século XX no Brasil e em Portugal: o concretismo e o experimentalismo.
Dessa forma, o objetivo principal deste estudo é observar os modos como a
criação poética de Fernão da Silveira possa ter antecipado algumas estéticas futuras.
Aqui, é necessário reforçar, Silveira será tomado como paradigma dos processos de
produção próprios dos poetas contemporâneos dele. O que me motivou a ver o poeta
palaciano como inovador foi tanto o seu trabalho com a imagética, não somente quanto
à visualização empregada nas estruturas dos poemas, mas também quanto ao rigor com
que monta seu discurso argumentativo e ao que faz com a palavra enquanto significante.
Usa o poeta as palavras como brincadeiras, pois explora seu arranjo e sua sonoridade de
modo a que o leitor possa montar seu próprio “jogo”. Sendo um cortesão do Paço – um
aristocrata, portanto – Fernão da Silveira não restringe sua criação a poemas de fundo
erudito: toma ao universo popular seus temas próprios e aplica-os à inventividade e
destreza vocabular desenvolvida nos serões áulicos do Paço.
Ora, esse trabalho único com a palavra enquanto signo e a sua exploração
inventiva é que marcarão sempre qualquer escola estética revolucionária, no campo da
literatura. Fernão da Silveira sozinho pode não ter antecipado movimentos de
vanguarda, mas uma observação acurada de sua criação poética, aliada à fortuna crítica
e a uma interpretação de sua obra, permitiu verificar que o germe da modernidade já
27
estava engendrado, no fim do medievo português, nas composições líricas desse poeta
palaciano.
Uma vez que o Cancioneiro Geral tem sido visto mais como registro histórico
do momento por que passava Portugal, somou-se aos objetivos deste trabalho estudar a
coleção de poemas na sua unicidade. A crítica tem freqüentemente analisado a questão
histórico-sociológica do documento resendiano e, quando se refere a algum poeta em
particular, dá importância ao porquê de determinada criação em referência a um fato
social ou a uma casuística comum aos contendores palacianos. Logo, a análise dos
feitos poéticos do Cancioneiro tem sido sempre circunstancial. Assim sendo, estudar a
criação de um único poeta, seu modo de produção, as correlações com outros seus
contemporâneos – e mesmo com o Cancioneiro em geral – é objetivo deste ensaio.
O trabalho poético de Fernão da Silveira toma grande parte do Volume I do
Cancioneiro Geral, o qual apresenta, inclusive, uma seção especialmente dedicada a
ele. Aparece, ainda, nos outros volumes, dos quatro que completam a compilação de
Garcia de Resende na edição escolhida como suporte para este estudo, qual seja, a mais
recente organizada por Aida Fernanda Dias, em 1998. A obra apresenta-se em seis
volumes, sendo que os dois últimos consistem de estudo crítico (A Temática – Volume
V) e de Dicionário Comum, Onomástico e Toponímico (Volume VI). Tendo por
objetivo investigar as sementes do novo em Fernão da Silveira, foram selecionados
dessa edição poemas que mostram uma preocupação inovadora, tanto com a forma
quanto com o conteúdo, ou, ainda, aqueles que, de certa maneira, desconstroem o lugar-
comum presente na recopilação de Resende; alguns ainda unem uma forma tradicional a
um conteúdo ousado, ou, ao contrário, aplicam a um conteúdo tradicional a forma do
inusitado.
Sendo assim, para se entender a produção de Fernão da Silveira, pretende-se, no
primeiro capítulo, apresentar um panorama sócio-histórico do final de Quatrocentos
português, bem como um breve relato sobre o próprio repertório de poemas do “moço
de escrivaninha do monarca”
47
. No capítulo seguinte, serão trazidos breves dados da
biografia de Fernão da Silveira. É necessário que se remeta à biografia do poeta
47
DIAS, op. cit., 1998b, p. 52.
28
analisado, haja vista seu papel preeminente nas políticas desenvolvidas por dois
reinados, sendo considerado por D. Afonso V e D. João II homem de confiança. Além
do mais, dividindo esse espaço político, liderava com maestria a função de
“coordenador” das artes poéticas do Paço.
No terceiro capítulo, pretende-se fazer um histórico cronológico daquilo que se
entende aqui por “produção inovadora”. Recorrer-se-á ao conceito de “tradição” e
mostrar-se-ão poemas que, de certa forma, fogem às regras sugeridas pela arte poética
de cada período, mesmo que calcados na praxe. Ao se fazer isso, levou-se em
consideração a questão da diacronia e da sincronia – não apenas com relação ao que se
apresentará neste capítulo, mas igualmente com relação ao trabalho desenvolvido com o
corpus poético de Fernão da Silveira. A propósito da diacronia/sincronia, Roman
Jakobson comenta que
os estudos literários, com a Poética como sua parte focal, consistem (...) de
dois grupos de problemas: sincronia e diacronia. A descrição sincrônica
considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também
aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu
viva ou foi revivida. (...) A Poética sincrônica (...) não deve ser confundida
com a estática; toda época distingue entre formas mais conservadoras e mais
inovadoras. Toda época contemporânea é vivida na sua dinâmica temporal
(...) a abordagem histórica, na Poética (...), não se ocupa apenas de
mudanças, mas também de fatores contínuos, duradouros, estáticos
48
.
Na montagem de uma retrospectiva de poemas inovadores do Cancioneiro de Resende,
procurou-se levar em conta as palavras do estudioso russo, para melhor definir a
questão proposta neste ensaio.
No quarto capítulo, serão analisados alguns poemas de Silveira, concentrando os
estudos no modo de produção próprio do poeta. Será nessa parte do trabalho que,
tentando esmiuçar tudo que há de inovador nas composições dele, permitir-se-á
confirmar, ainda mais quando contrastado com seus pares, o estigma impingido a todos
os participantes do Cancioneiro de Resende – o de produtores de peças que, de certa
forma, antecipam escolas literárias por vir. No capítulo seguinte, serão apresentados os
ecos da poesia dos poetas do Cancioneiro Geral germinados no Renascimento, Barroco
e, na releitura deste, a poesia desenvolvida pelos concretistas e experimentalistas do
século XX, no Brasil e em Portugal. Os estudiosos vêem na coletânea de Resende o
29
nascedouro da poesia que surgiu nesses quatro últimos movimentos estético-literários,
como se disse antes; ao relerem o Barroco, os modernos concretistas e experimentalistas
teriam, ao mesmo tempo, revisitado os poetas do Cancioneiro
49
. É dessa forma que,
nesse pequeno olhar sobre a poesia de um representante da criação poética palaciana,
pretende-se verificar como se disseminou a criatividade dos cortesãos palacianos do fim
do medievo português.
Com relação à escrita do repertório de poemas de Garcia de Resende, muitos
estudiosos dedicaram-se ao desvendamento do português arcaico usado em Quinhentos,
quando foi publicado o Cancioneiro Geral. A língua estava sendo sistematizada, as
normas gramaticais ainda eram variadas, e Resende copiou literalmente o que cada
poeta redigiu. A compilação é um rico documento da escrita de então, editada com os
tipos móveis da moderna imprensa que acabava de aportar em Portugal. Não era
costume, à época, intitular os poemas. Garcia de Resende escreveu, ele mesmo, as
didascálias
50
para cada uma das peças que compilou, sendo aquelas, na maioria das
vezes, longas demais. Intencionava com isso dar uma explicação sobre o que se iria ler
e as circunstâncias e motivações que levaram determinado poeta a criar seu poema
51
,
além de justificar sua inclusão no compêndio. Para se identificar cada um dos poemas
escolhidos para este estudo, utilizaram-se as didascálias ou, quando essas são muito
vagas – como, por exemplo, em “Outra sua”, que intitula o labirinto criado por Silveira
– será referenciado o primeiro verso e, às vezes, o primeiro e segundo, além da citação
de seu número na seleta de Resende.
Uma observação a mais faz-se necessária. No desenvolvimento deste estudo da
poética medieval, e mesmo a da Renascença e a barroca, não se hesitou em fazer-se uso
de teorias mais modernas, o que pode, talvez, parecer anacrônico. Mas para que
48
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Poética. In: Lingüística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e
José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 121.
49
Ao longo deste trabalho, apontar-se-ão alguns estudiosos que vêem esse prenúncio na antologia de
Garcia de Resende, tais como Andrée Crabbé Rocha, Pierre Le Gentil, Aida Fernanda Dias, João Carlos
Teixeira Gomes, entre outros.
50
Quanto ao uso sistemático das didascálias, comenta Giuseppe Tavani: “É preciso (...) salientar que a
função didascálica – embora não tão acentuada e escrupulosamente aplicada como nas Leys d’Amors
prevalece em qualquer das artes poéticas vulgares da Idade Média”. (In: Arte de trovar do Cancioneiro
da Biblioteca Nacional de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri, 1999, p. 11).
30
houvesse coerência entre o proposto – perceber as sementes da modernidade no final do
medievo – foi necessária a recorrência a tais estudos. Acrescente-se um testemunho a
essa observação. Maria dos Prazeres Gomes, em Outrora, Agora. Relações dialógicas
na poesia portuguesa de invenção, valioso suporte ao estudo que empreendo aqui, vale-
se da Semiótica para investigar os laços entre a poesia antiga, a medieval, a
renascentista, a barroca e, do século passado, a concreta e a experimentalista.
Como aqui também se trabalhará com a questão do visual, será de valia
reproduzir alguns poemas tirados do Cancioneiro Geral, bem como algumas figuras
que, de certa forma, estão ligadas ao florilégio de Garcia de Resende. O poema
“Senhora, graciosa, discreta, eicelente” será anexado em três versões – a de Gonçalves
Guimarães, terceiro editor da recolha de Resende, a de Aida Fernanda Dias, cuja edição
foi usada para a elaboração deste trabalho, e a que aparece na edição de 1516 do
Cancioneiro, em escrita gótica, o que levará o leitor a quinhentos anos atrás e a
visualizar o poemeto em sua primeira impressão.
Além dessa seção, serão acrescentados por inteiro – na Antologia – os poemas
que foram parcialmente analisados ou referidos. Tal procedimento parece ser de valia,
pois permite-se conhecer por completo uma boa parte da produção de Fernão da Silveira
e mesmo de seus pares, naquelas tenções em que vários contendores aplicam-se a
poetar.
51
Esse procedimento lembra as razós que antecediam as composições de alguns dos trovadores
provençais, apesar de que, neste caso, havia uma intenção não só de explicar a motivação das poesias de
determinado trovador, mas também apresentar, em prosa, dados biográficos deste.
31
Uma das páginas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende presente em várias
antologias. In: DIAS, 1998b, I, p. XXI; RIBEIRO, 1991, p. 55.
32
CAPÍTULO I – O CANCIONEIRO GERAL: FESTA E
TEATRALIDADE, UM ESPAÇO PARA A EXALTAÇÃO DO “EU”
Da mesma maneira que vários poetas dos
velhos cancioneiros tinham conseguido
instilar uma certa dose de verdadeira
emoção no árido convencionalismo da
cantiga de amor, também os do
Cancioneiro Geral se erguem de vez em
quando a autêntica poesia
52
.
Stephen Reckert
A ânsia de ser diferente e superior aos
restantes cortesãos no seu vestir parece
que levava à criação de novidades e à
frequente quebra dos padrões
estabelecidos, daí a sinonímia que se vem
estabelecer nos textos da colectânea entre
trajo e envençam
53
.
Maria Isabel Morán Cabanas
Um mar encapelado, feito de linho pintado; caravelas adentram a grande sala,
simulando os caminhos da navegação em direção às novas terras conquistadas; um
verdadeiro arsenal de máquinas ocultas faz tudo parecer real; animais são servidos
inteiros durante os banquetes faustosos e exóticos; trombetas, apitos e tiros anunciam e
animam as atrações: começam os momos
54
e os entremezes
55
– encenações típicas da
52
In: RECKERT, Stephen. Oásis num (quase) deserto: algumas poesias do Cancioneiro Geral. Arquivos
do Centro Cultural Calouste Gulbenkian. Homenagem a Maria de Lourdes Belchior, vol. XXXVII,
Lisboa-Paris, Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 1998, p. 46.
53
In: MORÁN CABANAS, op. cit., 2001b, p. 85-86.
54
Segundo Fidelino de Figueiredo: “Os momos eram simples efeitos cenográficos com artifícios mágicos,
mas como elementos literários só continham as letras ou cimeiras ou breves, isto é, pequenas explicações
que os atores e certos lugares do cenário ostentavam: eram dizeres da galanteria ou aclarações
indispensáveis à boa inteligência da representação.” (Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In:
História Literária de Portugal – Séculos XII-XX. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966,
p. 107).
55
Também conforme Fidelino de Figueiredo: o “entremez teria um sentido mais compreensivo,
designaria todo o conjunto de representações cênicas de determinado momento e determinada solenidade,
equivaleria ao nosso moderno espetáculo; o momo significaria o episódio particular e a ação cômica”.
(Idem, ibidem, p. 108).
última fase do medievo europeu, que prenunciam já o teatro moderno
56
. A dança e o
canto são enriquecidos pelo acréscimo de novos instrumentos e modismos, frutos do
intercâmbio mercantilista; as roupas são ricas, exuberantes e suntuosas; jogos, torneios,
justas
57
, uma infinidade de entretenimentos assistidos e comparticipados pela família
real, pelos cortesãos e pelo povo. Tudo é fausto, brilho e ostentação, permeado pela
etiqueta e galanteria, nesses grandes espaços propícios a apresentações, que são as salas,
adornadas com pompa e exuberância
58
.
O que antes era feito a céu aberto, quando o espaço público conclamava ao
gregarismo, ao viver em coletividade, agora se desenvolve nos espaços fechados –
amplos, mas restritos à perscrutação do olhar individual. A vida social agora, no dealbar
da Idade Média se desenrola na
56
Em Festa, teatralidade e escrita. Esboços teatrais no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
(2003b), Maria Isabel Morán Cabanas desenvolve um extenso estudo sobre o nascimento do teatro
português, cujo embrião se encontra na coleção de poemas de Garcia de Resende.
Quanto à teatralidade na poética da Idade Média, escreve Paul Zumthor: “A ritualidade – a ‘teatralidade’
– poética termina, certamente, em longa duração, por atenuar-se, mas não em suas manifestações
concretas, porque, até o século XV e, principalmente, até o XVII, o corpo ficou aí totalmente
comprometido. Foi seu objeto que se deslocou pouco a pouco (na medida da difusão da escritura), ao
ponto que, passado 1500, em todo o Ocidente, a poesia aparece como um empreendimento, a partir de
então laicizado e metaforizado, de teatralização do cotidiano.” (In: A letra e a voz. A literatura medieval.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 260). Em outra obra, afirma o mesmo estudioso: “Le
caractère général le plus pertinent peut-être de la poésie médievale est son aspect dramatique. Tout au
long du moyen âge les textes semblent avoir été, sauf exceptions, destinés à fonctionner dans les
conditions theâtrales: à titre de communication entre un chanteur ou récitant ou lecteur, et un auditoire.
Le texte a, littéralement, un ‘rôle à jouer’ sur une scène”. (In: Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil,
1972. [Collection Poétique], p. 37).
57
“Eram as justas e os torneios passatempos favoritos da nobreza, que por eles pretendia manifestar a
valentia e o denodo, a honra e brio dos cavaleiros, através de perfeita e destra agilidade no manejo das
armas, aliados a um aparato externo, que incidia fundamentalmente no porte e no vestuário. Eram (...) as
justas e os torneios um espetáculo deslumbrante para os olhos, onde cada um primava por ser primus
inter pares, tanto no espírito combativo como na galanteria e na elegância do traje. Com origem nos
antiquissimos jogos de gladiadores romanos, os torneios e as justas difundiram-se largamente por toda a
parte, com período de grande esplendor na Idade Média, em muitos casos organizados para comprazer a
príncipes e damas.” (DIAS, op. cit., 1998b, p. 227).
58
Baseei-me no seguintes estudos sobre esse a descrição do fausto e da suntuosidade dos reinados
portugueses do final do século XV e início do XVI: CIDADE, Hernâni. Os alvores do Renascimento e do
Humanisno. In: O conceito de poesia como expressão da cultura. Sua evolução através das literaturas
portuguesa e brasileira. 2 ed. Coimbra: Arménio Amado Ed., 1957. p. 55; DIAS, op. cit., 1998b, p. 23-
24; ROCHA, Andrée Crabbé. Garcia de Resende e o Cancioneiro Geral. 2 ed. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, 1987. Volume 31, p. 57; SARAIVA e LOPES, op. cit., p. 157; e SIMÕES,
João Gaspar. Lirismo Medieval. In: História da Poesia Portuguesa (Das origens aos nossos dias,
acompanhada de uma antologia). Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1955. Volume I, p. 110.
Também na revista da Fundação Calouste Gulbenkian, História e Antologia da Literatura Portuguesa.
Século XV, Rita Costa Gomes dedica um longo artigo, “Os tempos da corte”, sobre o cotidiano da
monarquia palaciana. Lisboa, n. 5, março de 1998, p. 29-35.
34
sala (...) lugar reservado à vida coletiva; separada da rua, é o lugar usual das
reuniões, o lugar por excelência da sociabilidade (...) Ela é, em particular, o
espaço das grandes travessias espetaculares (...) É na sala que se reúnem os
vassalos para os assuntos importantes (...) a sala é também um lugar de
divertimento, por ocasião das reuniões ligadas a uma data ritual em que se
testa a coesão do grupo
59
.
Entretanto, mais do que simples espaço para apresentações coletivas, a sala é o espaço
propício à revelação do “eu”, no sentido de exacerbação de uma personalidade que
precisa aparecer ante uma sociedade, em que a aparência se revela mais importante.
Nesse espaço propício ao “eu” exterior, adentram cavaleiros que lutam por sua senhora,
durante as justas e os torneios; nele, esgrimam-se os poetas palacianos, que colocam em
palavras seu embate por aquela a quem dizem servir; poetas que, no entanto, usam essas
mesmas palavras, para atacar desde os mais chinfrins defeitos dos cortesãos até as mais
íntimas taras desse público ávido pela bisbilhotice. Mas também é aí que esse “eu”
precisa atingir a perfeição, que, segundo Huzinga, “implica que esta seja mostrada aos
outros; para merecer o reconhecimento, o mérito tem que ser manifesto. A competição
serve para cada um dar provas de sua superioridade.”
60
Se esta manifestação vem da era
primeva do homem, já o nobre – aquele homem sociabilizado –
demonstra sua ‘virtude’ por meio de proezas de força, destreza, coragem,
engenho, sabedoria, riqueza ou generosidade. Na falta destas, pode ainda
distinguir-se numa competição de palavras, isto é, ou ele mesmo louva as
virtudes nas quais deseja superar seus rivais, ou manda que elas lhe sejam
louvadas por um poeta ou um arauto. Esta exaltação da própria virtude, como
forma de competição, transforma-se muito naturalmente em depreciação do
adversário, o que, por sua vez, passa a ser um outro tipo de competição
61
.
À época do Cancioneiro, fazendo uso da descrição de Huizinga, percebe-se a
supremacia da competição poética, não mais aquela de força e destreza nas batalhas de
campo, se bem que vários dos poetas do Paço – Fernão da Silveira inclusive –
participassem ativamente das lides bélicas engendradas por um Portugal das conquistas
e das descobertas. Nas mais das vezes, é o próprio poeta que se louva, ao contrário do
que acontecia à época áurea do Trovadorismo. Mas muitas das vezes, trazem os poetas
palacianos para encenação uma espécie de competição poética em que a depreciação do
adversário se sobressai. Há de se ressaltar este fato: tanto na época anterior à sociedade
59
RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In: História da Vida Privada. Da Europa feudal à
Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, volume 2. p. 323-324.
60
HUIZINGA, op. cit., 1993, p. 72.
61
Idem, ibidem, p. 74.
35
dos poetas quatrocentistas, quanto ao tempo destes, a depreciação sempre se deu pelos
embates entre dois ou mais poetas, que, com palavras escarninhas ou maldizentes,
montavam as “tenções” – no Trovadorismo – ou as ajudas, perguntas e respostas – no
fim do medievo peninsular, e cujas definições dar-se-ão mais adiante – descendentes,
enfim, das “tensó”, dos “partimen”, dos “joc parti” provençais
62
.
Quanto ao espaço físico das representações, a sala será o palco para a exaltação
do “eu” – como se disse atrás – e é projetada para fazer parte de um tipo arquitetônico
característico da Idade Média: o palácio. Espaço concentracional da nobreza, é nele que
se representam os grandes papéis sociais, é nesse espaço privado que circulam os
cortesãos, os grandes senhores, príncipes e reis. Mas também, como miniatura de uma
cidade, é nos palácios que se movimentam os cavaleiros, os servidores – mordomos,
tesoureiros, coletores, capelães, criados, servos, enfim, toda a máquina administrativo-
burocrática e militar do reino, transformando-se o habitat de convívio privado num
espaço público. Como um dos representantes máximos desses servidores, circula com
naturalidade e imponência a figura central deste estudo: Fernão da Silveira, cujos
atributos político-administrativos poderão ser melhor conhecidos no capítulo
subseqüente. Para bem atuar nesse espaço de teatralidade, é necessário referir-se, nesta
altura, a uma composição de Silveira. O poema é emblemático da exaltação do “eu”, e
um breve comentário sobre o mesmo cabe aqui, já que se está tratando da questão do
“fingimento” – aparentar em detrimento do ser com fins de se conseguir o apreço dos
convivas do Paço e, sem dúvida, uma posição mais alta na escala cortesã. Silveira
compõe, de forma epistolar, um verdadeiro manual de como se vestir e se comportar nos
salões áulicos, visando sempre à aparência – sabendo vestir-se e tratar cortesãos e
damas, o sobrinho do poeta, a quem é dirigida a composição, alcançará o sucesso que
qualquer nobre deseja. O “manual” é composto por vinte e oito trovas em redondilho
maior e, fato inovador, a última estrofe vem com os seguintes dizeres: “Dezia o
62
“Nas cortes de amor, o habitual era a imitação mais aproximada possível dos julgamentos verdadeiros,
com demonstrações por analogia, o recurso a precedentes, etc. Muitos dos gêneros que se encontram na
poesia dos trovadores se relacionam estreitamente com as queixas de amor, como por exemplo o castimen
(reprimenda), a tenzone (disputa), o partimen (canção antifonal), o joc partit (jogo de perguntas e
respostas). O fundamento último de todos estes gêneros não é o julgamento propriamente dito, nem um
impulso poético espontâneo, nem sequer a pura e simples diversão social, mas sim a luta imemorial pela
honra em questões de amor” (HUIZINGA, op. cit., 1993, p. 140). Se aqui Huizinga se refere diretamente
36
sobreescrito destas, porque iam cerradas em forma de carta”. Resende faz o leitor
certificar-se de que se trata de uma carta e Silveira desconstrói a forma dela dirigindo-se
ao destinatário no final, na verdade, formando uma imagem da carta em sentido
reverso
63
. Quanto à montagem do poema, antecipe-se já a propensão de Silveira à
inovação, o que será tratado no capítulo dedicado a suas composições poéticas.
É para o palácio, então, que se voltam todas as atividades da realeza; é onde ela,
protegida pelo rei e por ele controlada, irá travar a batalha ainda silenciosa contra a
ascensão inexorável da burguesia. Mas é aí, nesse ambiente, que essa burguesia também
vai encontrar, na convivência com os costumes áulicos, os subsídios para sua
dominação; e essa virá aos poucos com o crescimento mercantilista engendrado pelas
grandes descobertas.
É em meio a essa sociabilidade cortesã, em que a etiqueta é minuciosa e polida,
em que os atos são mais artificiais do que naturais, pois o código da galanteria exige
que a espontaneidade seja reprimida em favor da mesura, é, afinal, nesse centro que
nasce a poesia palaciana. Denominação por si só explicativa, a poesia desenvolvida no
Quatrocentos português irá retratar, dessa forma e essencialmente, o modo de vida
aristocrático, requintado, protocolar e formalista, longe da realidade caótica que
atravessará o final da Idade Média, agora, abrindo as portas para um renovação estética
e social que resultará no advento do Classicismo. Nas palavras de Jole Ruggieri, a
“cultura” palaciana nasce da combinação da nobreza com a realeza, preparando uma
nova sociedade:
ao amor, o trecho serve bem para expandir o entendimento de que o “eu” medieval se mostra através
desses gêneros, num espaço físico propício à teatralidade, como se procurou demonstrar.
63
Maria Isabel Morán Cabanas publicou um estudo minucioso dessas trovas em Iberia cantat: estudios
sobre poesía hispánica medieval. Santiago de Compostela, Universidad, Servicio de Publicacións e
Intercambio Científico, 2002, p. 459-472. O artigo intitula-se “Um curioso manual de etiqueta no
Cancioneiro Geral: as trovas o coudel-mor Fernão da Silveira”. A poesia a que se faz referência aqui e
no artigo é “Trovas de Fernam da Silveira, Coudel-moor, a seu sobrinho Garcia de Melo de Serpa,
dando-lhe regra pera se saber vestir e tratar o Paço.” (CG, I, 31).
37
La nobiltà che gradatamente era stata immobilizzata, si avvicinò al re
facendosi palaciana, tutta si rivolse alle galanterie cortesi, ed ebbe la sua
letteratura, che naturalmente fu letteratura di corte, in cui si continuava il
libero canto cavalleresco dei secoli antichi, in qualche misura però
modificato dalla tradizione castigliana e dallo spirito nuovo della prima
Rinascenza
64
.
É ainda nesse ambiente que Garcia de Resende, funcionário palaciano, compila
quase mil poemas na coletânea denominada Cancioneiro Geral, dedicada ao príncipe D.
João, futuro D. João III. Publicada em 1516, reúne poemas desde 1450. Provavelmente
se baseou no Cancionero General, de Hernando del Castillo, na Espanha. Apresenta
grande parte dos poemas compostos por homens e mulheres e que eram criados no
ambiente ocioso das cortes do século XV. Os temas desenvolvidos eram os da vida
simples e do dia-a-dia da corte, mas também os de cunho religioso, amoroso, elegíaco,
alguns com apelo à epopéia. Já nele desenvolve-se uma poesia didático-moralizante que
marca o desconcerto do mundo próprio do momento de transição. Nele, igualmente se
encontram ricas peças satíricas – de extenso número – burlescas e experimentais.
Da coleção, percebe-se claramente, flui a alma portuguesa. Quanto a ela,
comenta Maria Leonor Buescu: “Relevemos (...) alguns aspectos que nos parecem
caracterizar o sentimento do homem português da época, dividido entre o prazer e o
desprazer, a euforia e a disforia, de certo modo esmagado e perplexo perante o que
Camões chamaria o ‘desconcerto do mundo’ e que fere o sentido ético de Sá de
Miranda, entre outros”
65
. A esse comentário, acresça-se a questão da língua:
constitui [o Cancioneiro Geral] um alargamento das possibilidades
expressivas da língua, utilizando sábia e subtilmente uma retórica já
elaborada, instaurando os modelos de uma versificação que vai dominar (se
não predominar) o lirismo português do século XVI (nomeadamente nas
‘Rimas’ de Luís de Camões) e do século XVII (pense-se em Rodrigues Lobo
e numa parte significativa dos cancioneiros barrocos)
66
Para além de registro histórico e ampliação de recursos lingüísticos, a poesia é,
para Garcia de Resende, primordialmente social: é ela que faz reunir os poetas –
homens e mulheres – que, juntos, criam a sociabilidade necessária ao ambiente
palaciano; é ela que ameniza e traz harmonia e distração ao ambiente competitivo dos
palácios. Fernão da Silveira virá a ser uma das figuras preeminentes desse tipo de
64
RUGGIERI, Jole. Il canzoniere di Resende. Genève: Leo S. Olschki, S.A., 1931. p. 7.
65
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Literatura Portuguesa Medieval. Lisboa: Universidade Aberta,
1990. p. 179.
38
poesia, pois, pela reunião de poemas que se empreendeu de sua vasta produção, poder-
se-á notar sua desenvoltura no culto aos vários gêneros e subgêneros poéticos, com
destaque para aqueles poemas conclamatórios à participação dos convivas dos saraus
cortesãos.
Nessa época, tendo a poesia se desligado do canto e da dança, próprios da
criação poética do Trovadorismo, foram os poetas palacianos instigados a escrever
poemas cujo ritmo se revelasse na própria linguagem. Isso possibilita novas
composições. Toma a poesia um caráter mais amplo e as peças têm maior elaboração
poética, apesar da predominância de um sentimentalismo mais pessoal – quase sempre
influenciado por Petrarca e Dante.
Além do mais, para o compilador do Cancioneiro, a poesia é um ato lúdico – daí
nomear de “cousas de folgar” aqueles poemas de cunho satírico, irônico e brincalhão,
como já se disse atrás. Na poesia palaciana, poderá parecer que o menos interessante
seja o tema: a diversão do torneio é o que importa. Nas rimas, a intenção é mostrar ora
virtuosismo, ora habilidade, ora alto engenho, numa busca por brincadeiras com as
palavras. Ver-se-á adiante que essa engenhosidade e experimentalismo se enquadram
perfeitamente na poesia de Fernão da Silveira.
Essa questão do lúdico, diga-se de passagem, é assunto do capítulo “Lúcido
Lúdico”, do livro O próprio poético, de E. M. de Melo e Castro, quando o autor
relativiza a questão da modernidade desse ato: quando se afirma que “‘com coisas sérias
não se brinca’ está-se a exprimir o receio desse mesmo brincar, o receio de que pelo
brincar se altere a ordem estabelecida e a segurança que essa ordem representa.
Entendida nesse sentido, a atividade lúdica é uma força de vanguarda”
67
. Mais à frente,
afirma que movimentos como o Dada, o Neo-Dadaísmo, o Maio de 1968, etc., tiveram
por base a libertação lúdica, vista como sinônimo de “alegria”, e foram fundamentais
para a criatividade contestatória ou “desmi(s)tificadora”. Se é exagero ver uma poesia
de vanguarda em Silveira e seus contemporâneos – e também seria desproposital
enxergar no ato lúdico elementos de vanguardismo –, não seria irrelevante ver na poesia
66
Idem, ibidem, p. 183-184.
67
MELO E CASTRO, E. M. O Próprio Poético. (Ensaio de revisão da Poesia Portuguesa atual). São
Paulo: Edições Quíron, 1973, p. 111.
39
palaciana experimentalista e lúdica ecos da modernidade, como se tentará demonstrar.
Ainda a propósito da questão do lúdico como oposição às coisas sérias, Johan Huizinga
aponta que o oposto do jogo é a seriedade. Ao descrever o processo lúdico como um
jogo, o estudioso alemão nota que “a antítese do jogo é a seriedade, e também num
sentido muito especial, o de trabalho, ao passo que à seriedade podem também opor-se
a piada e a brincadeira. Todavia, a mais importante é a parelha complementar de
opostos jogo-seriedade
68
.” Não só na poesia de “folgar”, mas ainda naquela de cariz
mais espiritual ou moral, pode-se perceber, como tentarei mostrar, que Silveira optou,
majoritariamente, pelo ludismo na montagem de seus poemas, confirmando o que
alegam os estudiosos aqui mencionados.
Já o tema do transcendentalismo não é de relevância na grande maioria das obras
compiladas no Cancioneiro, pois a sociedade austera escondida nos salões das cortes
medievais decadentes não era a preocupação dos poetas palacianos: querem mostrar o
lado prazeroso da palavra e do som, daí ser a poesia um jogo para eles. Quanto a isso,
comenta Teixeira Gomes:
Já mostramos como é legítima a noção de fazer poético como um jogo, só
não podendo entendê-la os que se aferram à idéia da poesia como registro da
contemplação transcendente das coisas (...) a poesia é a linguagem que
organiza o mundo (...) essa organização é uma organização de linguagem (...)
passa primeiro pela palavra (...) Não há temas ‘inferiores’ ou ‘superiores’,
não cabendo assim a idéia de que a produção reunida no Cancioneiro Geral
perde exatamente pela mesquinhez dos assuntos poéticos
69
.
Quando da análise dos poemas de Silveira e dos de seus companheiros, poder-se-á notar
a preocupação deles com o “fazer poético” a que alude Teixeira Gomes. Alguns desses
poetas – ao relevarem a crise moral por que passava Portugal, perplexo ante as
descobertas – cantarão suas decepções, através do “registro da contemplação
transcendente das coisas”; não obstante, não era a preocupação da maioria. Essa, ao
poetar, tratará, como se poderá verificar nas análises aqui feitas, os assuntos “inferiores”
e “superiores” no mesmo nível, através da palavra.
Freqüentemente, a crítica especializada no Cancioneiro de Resende comenta,
também, sobre o distanciamento dos poetas palacianos da realidade a que assistiam, já
que há falta – ou exigüidade – de poemas que exaltem as grandes realizações
68
HUIZINGA, op. cit., 1993, p. 50.
40
portuguesas desde a conquista de Ceuta, até a realização completa dessas na Índia,
África e América. Há, sem dúvida, poetas mais conscienciosos dos fatos reais; contudo,
ao colocar em versos a saga das Descobertas, fazem-no criticamente, como comentado
no parágrafo antecedente, antevendo, de certa forma, a decadência do império
português. No artigo “Sentimento heróico e poesia elegíaca no Cancioneiro Geral”,
Aida Fernanda Dias, quanto a isso, comenta:
Os Portugueses, segurando bem firmes na mão o estandarte real e as espadas,
haviam feito surgir a matéria indispensável ao aparecimento da epopeia. (...)
Desde a segunda década do século XVI até 1572, surgem tentativas de fixar
em metro as glórias pátrias, e o apelo de alguns espíritos mais lúcidos, que
procuravam despertar a inspiração dos poetas, oferecendo-lhes, digamos
assim, a matéria para as suas obras, acompanha tais tentativas ou é-lhes em
alguns casos anterior
70
.
A epopéia lusitana iria surgir apenas com Camões; mas, no Cancioneiro, Dias antevê
alguns esboços rudimentares que chama de poesias heróicas. São elas um texto de Luís
Anriques dedicado à conquista de Azamor (CG, II, 390) e outro de João Rodrigues de
Sá de Menezes dedicado à mesma conquista (CG, II, 493). Fernão da Silveira, registre-
se, apesar do papel central nos relacionamentos políticos, tendo mesmo participado de
várias contendas engendradas pela monarquia avisina, não produziu nenhum poema que
exaltasse os grandes feitos ultramarinos dos portugueses. Há, por outro lado, entre esses
poetas do fim do medievo português, alguns que expressam suas preocupações quanto à
decadência dos costumes trazida pelas conquistas. Duarte da Gama, por exemplo, critica
a mania de seus conterrâneos em tudo imitar quanto à vestimenta; Diogo Velho
comparava Lisboa a uma mata onde tudo se podia caçar; Sá de Miranda fazia apologia à
vida do campo, pois execrava a metrópole corrupta, assim como o faziam Álvaro de
Brito Pestana e, sem dúvida, Gil Vicente em seus autos moralizantes
71
. Fernão da
Silveira, pelo contrário, nas composições em que registra fatos históricos e de costumes,
deteve-se a dar um panorama da sociedade, enfocando esses poemas nos nobres seus
pares.
69
GOMES, op. cit., 1985, p. 309.
70
DIAS, Aida Fernanda. Sentimento heróico e poesia elegíaca no Cancioneiro Geral. Biblos, vol. LVIII,
Coimbra, 1982. p. 269 passim.
71
Vejam-se exemplos e comentários sobre esses fatos em CARVALHO, op. cit., p. 76 passim.
41
Mais um pequeno comentário, nada insignificante, se se pensar na terminologia
“cancioneiro”. Nenhum estudioso encontrou a música que pudesse ter sido produzida
pelos poetas cortesãos, ainda que, entre eles, se encontrassem músicos como o próprio
organizador, Garcia de Resende, e D. João de Meneses
72
. Entretanto, há que se reforçar
que, dissociadas da música de acompanhamento, os próprios textos poéticos vêm
eivados de musicalidade
73
.
O Cancioneiro tem sido criticado como um amontoado de poemas de autores
interessados apenas na promoção social, cuja criação literária deixa a desejar, já que
marcada pela repetição de temas e formas em miniatura
74
levados à exaustão. Vistos no
seu conjunto, talvez os poemas reunidos de Resende poderão exaurir até o mais
resistente e audacioso leitor, como já se disse. No entanto, se apreciados com
parcimônia e analisados pela sua literariedade, poderão ser extraídas do Cancioneiro
Geral criações que privilegiam o inusitado e a originalidade. E o prazer da leitura e do
conhecimento será, então, outro.
72
Cf. DIAS, op. cit., 1978a, p.18.
73
Massaud Moisés anota sobre a questão música versus poesia: “é fácil compreender que a libertação
desejada acabou provocando uma verdadeira crise poética: que fazer com as palavras, subitamente postas
em liberdade, independentes da música? Alguns procuraram ou encontraram o ritmo que lhes era
inerente, quer dizer, o ritmo especificamente poético, formado pela sugestão de ‘atmosferas’ líricas – e
fizeram obra perdurável. Outros, constrangidos dentro da nova moda, faltos de talento, ou equivocados
com a revolução poética em processamento, entendiam que bastava juntar palavras formando versos para
criar poesia – e falharam.” (Op. cit., 1981b, p. 47).
74
Quanto à miniaturização própria do fim do medievo, Andrée Crabbé Rocha, relatando o que escreveu
Julia Kristeva sobre o século XV, faz uma interessante analogia entre os palácios medievais e as poesias
do Cancioneiro. Comenta que as obras dessa coletânea são consideradas “miniaturas poéticas”, dada a
exaustão de formas e de conteúdos. Relata que para Julia Kristeva “’os grandes conjuntos arquitecturais e
literários já não são possíveis; a miniatura substitui a catedral (...) O século XV será o século dos
miniaturistas’. Aplica-se o conceito ao nosso Cancioneiro (...) estamos perante uma vastísima colecção
de miniaturas poéticas, o que acentua ainda as suas mútuas parecenças”. (Op. cit., 1987, p. 24-25).
42
CAPÍTULO II – FERNÃO DA SILVEIRA: COUDEL-MOR E
POETA. PARADIGMA DA FACÉCIA
Dentro da uniformidade da arte em
épocas diferentes havia a relativa
originalidade pessoal do poeta
75
.
W. J. Entwistle
Todos os poetas verdadeiros são
necessariamente críticos de primeira
ordem
76
.
Paul Valéry
O bom poeta é aquele que verbaliza o
mundo melhor do que os seus
semelhantes
77
.
João Carlos Teixeira Gomes
É incontestável considerar-se o Cancioneiro Geral uma peça literária, além de
um documento de caráter histórico-social, em que desfilam poetas de todos os matizes.
Como que uma crônica às avessas, escrita em forma poemática, nela, cada poeta,
quando não registra as amarguras de um amor cortês, tema que perdura desde os tempos
da poesia trovadoresca galego-portuguesa, volta-se para o registro da vida palaciana, da
vida cortesã, que dita comportamentos e normas de obediência a um poder central
excessivamente burocrático.
É nesse ambiente ávido por marcar as relações sociais, mas carente de registros
epopaicos, com exceção de alguns prenúncios das grandes conquistas portuguesas, que
aparece a figura do coudel-mor. Espécie de líder ou coordenador dos poetas cortesãos, a
figura desse oficial tem papel de suma importância no desenvolvimento das artes
poéticas do Paço. Fernão da Silveira exerce a função em dois reinados portugueses do
75
ENTWISTLE, W. J. A originalidade dos trovadores portugueses. Biblos, Coimbra, tomo I, n. XXI,
1945, p. 172.
76
VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: BARBOSA, João Alexandre (org.). Variedades.
São Paulo: Iluminuras, 1991. p. 216.
77
GOMES, op. cit., 1985, p. 309.
Quatrocentos: no de D. Afonso V (1438-1481)
78
e de D. João II (1481-1495). Sucede a
seu pai quando, em 15 de junho de 1454, é nomeado para o cargo por D. Afonso V e,
em 1490, cede o cargo a seu filho, Francisco da Silveira, três anos antes de falecer. O
cargo não se restringia à coordenação dos poetas paçãos – essa função era a parte
cultural e de deleitamento. Esse “oficial da casa real” cuidava “da criação dos cavalos
castiços e de marca. Também provia e determinava as dúvidas sobre os acontecimentos
e lançamentos dos cavalos aos que tinham contia
79
ou fazenda a que fossem obrigados a
manter cavalo, para com ele servirem na guerra”
80
. Fernão da Silveira, à parte o cargo
oficial, foi ainda uma espécie de embaixador dos reis a que serviu, atuando
intensamente nos relacionamentos diplomáticos entre os reinos de Castela e Lisboa,
tratando de assuntos ora políticos, ora sociais e festivos, tais como os preparativos para
os casamentos dos herdeiros ao trono – como no caso das núpcias de D. Afonso, filho
de D. João II, com D. Isabel de Castela – em que a união entre os membros dos dois
reinos era fato corriqueiro – quando não estavam, ambos os domínios, envolvidos em
questões bélicas entre si. Exercendo o cargo com austeridade, por um lado Silveira
conquistou as graças dos monarcas a que serviu, sendo sempre agraciado com títulos e
posses; por outro, essas mesmas mercês, e, mais que tudo, seu pulso despótico,
tornaram-no invejado e odiado
81
.
Sobre a família de Fernão da Silveira, comenta Teófilo Braga: “todos os
problemas relativos a esta família são do mais alto interesse histórico, porque ela
resume em si a vida da corte e da poesia de três monarcas
82
”. Quanto ao Coudel-mor,
Braga (nos capítulos V e VI de sua obra sobre os poetas palacianos, todos dedicados à
família dos Silveiras) diz ser “o principal vulto desta família” e que ao conquistar
muitos cargos nos reinados de Afonso V e João II, propiciou inveja dos seus pares. Suas
78
Considera-se 1438 a data em que D. Afonso V, aos seis anos de idade, é aclamado rei de Portugal,
devido à morte do pai. (DIAS, Aida Fernanda. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende – Dicionário
[Comum, Onomástico e Toponímico]. Maia: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. Volume VI, p.
36-37).
79
Quantia. Importância, valor. (Idem, ibidem, p. 199).
80
Idem, ibidem, p. 208.
81
Cf. o verbete FERNÃO DA SILVEIRA, [s.d.], p. 907.
82
BRAGA, Joaquim Teófilo Fernandes. Poetas palacianos. História da Poesia Portugueza. Eschola
Hespanhola. Século XV. Porto: Imprensa Portugueza Ed., 1871, p. 360.
44
maiores características teriam sido a de ser íntegro e muito rigoroso, não só no trato do
Paço, mas também com sua própria família
83
.
A obra poética de Fernão da Silveira, compilada toda, ao que parece – já que não
se encontraram registros de qualquer outra publicação dele – no Cancioneiro de Garcia
de Resende, percorre os caminhos comuns dos poetas seus contemporâneos. Escreve
poemas de tema amoroso, trovas de registro histórico e político, além das de registro
social, enveredando por muitas das formas poéticas próprias da época, como trovas em
forma de carta, esparsas, cantigas, glosas, perguntas, respostas e ajudas, sem contar as
muitas de expressão satírica, fazendo da poesia um rico painel criativo de uma
mentalidade em constante diálogo com a moda de então.
Fernão da Silveira destaca-se principalmente no processo do “Cuidar e
Sospirar”, sendo considerado por muitos autores um dos principais organizadores
daquela contenda jurídico-processual
84
em que se digladiam os partidários do cuidar
(ocultar o sentimento de amor/paixão) e do sospirar (deixar transparecer o sentimento
de amor/paixão). Vale notar que a participação do poeta nesse processo é representativa
da burocracia palaciana: se para a função de coordenador de poetas e de justas poéticas
é preciso existir a função de coudel-mor, não seria nonsense poetar sobre um feito que
julgasse, nos termos mesmo de um processo forense, os papéis de quem cuida e de
quem suspira. A longa composição, além da forma, destaca-se pelo uso de termos
apoéticos numa peça de casuística amorosa. Tudo é razão burocrática, daí que, mais do
que um registro das experiências e contribuições literárias do Cancioneiro Geral, vê-se
nele um documento, repita-se, de um momento histórico português, em forma poética.
Em sendo o palácio o centro das decisões políticas e sociais – já que por ali
transitavam não só os membros da aristocracia, mas também os cortesãos, funcionários
83
Idem, ibidem, p. 360 passim
84
Como exemplo, cite-se Margarida Vieira Mendes: “na primeira parte, um dos principais autores, o
Coudel-mor, passa em revista de modo sistemático (...) os argumentos expostos ao longo de todas as
anteriores ‘alegações’ ou ‘arrazoados’, a fim de os refutar um por um. Para se desempenhar tal tarefa teve
na mão todo o material do ‘feito’, previamente organizado. Por ele próprio? Certamente, dado o seu
protagonismo. Dificilmente se pode pensar noutra mão organizadora, directora, encenadora e editora. (...)
O facto de as rubricas ou epígrafes obedecerem todas ao mesmo tipo discursivo judiciário leva a crer num
só organizador editor, cuja competência há que evidenciar. Ora, o poeta que levou mais a peito a ‘tenção’
foi o Coudel-mor, pertencendo-lhe ainda um estilo eivado de gíria e fórmulas forenses.” (Op. cit., p. 10-
11).
45
de Estado, serviçais, além, obviamente, da realeza – não é de se admirar que se
encontrasse Fernão da Silveira com outro Fernão da Silveira, este um sósia igualmente
poeta. Contudo, foi este um conspirador. Para distingui-lo do Coudel-mor, aquele
Fernão da Silveira foi cognominado de O Moço, apodo já esclarecedor da diferença
etária entre essas duas personalidades palacianas. Para distinguir Fernão da Silveira
daquele seu homônimo poeta e conspirador, recebeu o Coudel-mor a alcunha de O Bom.
Note-se a propriedade das distinções entre os dois poetas: O Moço envolveu-se em
conspiração política contra D. João II e foi um dos acusados da tentativa de assassinato
do rei, sendo por isso exilado e posteriormente morto a mando do regente; O Bom, por
motivo óbvio, distingue-se do outro pelo seu alto serviço à realeza, digno de confiança e
apreço daqueles a quem serviu. Acrescente-se ainda que um dos netos do Coudel-mor
também levou o nome de seu avô e aparece como um dos poetas participantes da
compilação de Resende
85
.
O aparte para o comentário sobre essas personalidades se faz necessário aqui
para registrar a dificuldade em determinar no florilégio aquilo que pertence à produção
de Fernão da Silveira, O Bom. Os registros e as didascálias de Garcia de Resende muito
pouco ajudam na identificação de algumas peças dos dois poetas. Não ajudam, também,
quando o compilador usa apenas o termo “Coudel-mor” para registrar a intervenção ou
criação do poeta participante: ora esse coudel-mor poderá referir-se a Fernão da
Silveira, ora a Francisco da Silveira, seu filho. Abstive-me, então, por considerar
produção de Fernão da Silveira, O Bom e coudel-mor, apenas aqueles poemas a que
alude Aida Fernanda Dias, na edição eleita como parâmetro e como base de estudo do
criador de “Senhora, graciosa, discreta, eicelente”.
O Coudel-mor é considerado de relevância como poeta ativo, pois cultivou
vários
85
Este neto do Coudel-mor distinguiu-se em batalhas na África e na Índia. Dotado de dom natural para a
criação poética, Fernão da Silveira, neto, foi cognominado Poeta Heróico, e suas peças despertaram
muito interesse no Príncipe D. João, filho de D. João III, que sempre lhe pedia enviasse suas obras.
Faleceu por volta de 1568. (DIAS, op. cit., 2003, p. 644-645).
46
gêneros poéticos, tanto em termos formais quanto conteudísticos
86
. Se em alguns
poemas deixa correr certo lirismo exacerbado, próprio de sua época, noutros, e não em
poucos, abusa no trato dos defeitos das personalidades que freqüentam o Paço, usando,
muitas vezes, de grosserias e de verborragia pornográfica. Esse seu modo de tratar
ofensivamente o decoro levou, em 1624, a Inquisição a expurgar algumas de suas obras,
as ditas de cunho pornográfico (como, por exemplo, a que dedicou ao órgão sexual de
D. Lucrécia), e também outras em que aplica ao lirismo o paradoxo entre ser santo e
pecador (“Porque meu mal s’i dobrasse, / vos fez Deos fremosa tanto, / que nam sei
santo tam santo, / que pecar nam desejasse”). Esses poemas serão estudados mais à
frente, no Capítulo IV.
Poeta de trânsito livre entre os reinos de Portugal e de Espanha, Fernão da
Silveira escreve tanto em português, sua língua nativa, como em espanhol, mostrando
treinos formal e vocabular adquiridos no convívio e nas intertextualidades poéticas com
os maiores destaques da literatura da Espanha de então, como Macias, Juan de Mena e
Rodriguez del Padrón.
Cancionero, é o Coudel-mor, ou o conspirador, este protegido de D. Isabel, a
Católica
87
. No entanto, o que importa é acompanhar a trajetória de um oficioso líder de
trovadores, cuja produção se desenvolveu numa fase preparatória do Humanismo e do
grandioso Renascimento de Quinhentos.
86
É de Fidelino Figueiredo o seguinte comentário sobre essa consideração: “O que forma a essência do
culteranismo – sutileza do conceito, anfibologias e perífrases, trocadilhos e calemburgos, pleonasmos e
aliterações, inversões e transposições, toda a procurada obscuridade – está já debuxado com relativa
nitidez nos versos do Cancioneiro Geral. O coudel-mor Fernão da Silveira e Álvaro de Brito são pré-
gongóricos e pré-academicistas pela especiosiodade dos temas e pela expressão sutil deles”. (Op. cit., p.
105).
87
“É natural que ele próprio houvesse participado nas justas, que se celebraram então em Castela, e que
talvez sejam dele as ‘letras’ transcritas no Cancionero General (ff.cxxxx-cxliijv°): a primeira antecedida
da epígrafe ‘Hernando de Silueira sacó por cimera un fisico que le tentava el pulso y dixo’:
Tu dolor no tiene cura,
ningun remedio te siento,
porqu’es baxa tu ventura
y alto tu pensamiento
enquanto a segunda mostra que ‘El mismo sacó enotra justa los martirios de la passion y dixo:
Ygualar otros a estos
seria gran desuario,
mas, por Dios, grand’es el mio
a não ser que pertençam ambas ao seu homónimo, Fernão da Silveira, o Moço...” (DIAS, op. cit., 1978a,
p. 20-21).
47
Essas trocas culturais e viagens à corte de Espanha são registradas numa
participação de certo Fernão da Silveira no Cancionero General (1511), de Hernando
del Castillo, por ocasião das justas de celebração, em Castela, do casamento de D.
Isabel e D. Afonso, como citado atrás. Os estudiosos não se habilitam a afirmar com
exatidão se esse Fernão da Silveira, que aparece em duas intervenções poéticas daquele.
Além do cargo de coudel-mor, Silveira exerceu, desde 1486, “o cargo de regedor
da justiça na casa da Suplicação”
88
, mostra do apego que D. João II tinha pelo poeta.
Seus três filhos, Diogo, Francisco e Jorge, também têm importante participação na
reunião de poemas de Resende, além do neto, homônimo seu.
A facécia, uma característica do Coudel-mor que se opõe ao rigor e prepotência
característicos de sua personalidade, e à qual se aludiu no subtítulo deste capítulo, será
melhor demonstrada nos estudos de seus poemas chistosos e graciosos – estes sim o
descreverão com melhor propriedade. A essa característica será dedicada uma boa parte
do Capítulo IV.
88
DIAS, op. cit., 2003, p. 645.
48
CAPÍTULO III - CRONOLOGIA DA INVENTIVIDADE:
TRADIÇÃO, INOVAÇÃO E RENOVAÇÃO
Toda arte nasce de um passado
‘potencializado em futuro’, por corte
dialético, e o artista é aquele que, pela
sua vivência, capta essa energia e a
condensa em estruturas objetivas
89
.
E. M. Melo e Castro
O poema é um ser de linguagem. O poeta
faz linguagem, fazendo poema. Está
sempre criando e re-criando a
linguagem. (...) É por isso que um (bom)
poema não se esgota: ele cria modelos de
sensibilidade
90
.
Décio Pignatari
Se tradição é, nas palavras de Ana Hatherly, “um conjunto de regras (...) herdado
e mantido sem alterações significativas” e a inovação se dá “quando ele é alterado
deliberadamente”
91
, entende-se, então, que o artista inventivo terá sempre por base
aquilo já produzido, atualizando-o “através de uma modificação intencional da focagem
e do enquadramento estético que, re-criados por condições de semelhança ou de
extremo contraste, impelem os novos receptores a encontrar neles algo que outros (já)
não puderam (mais) buscar ou encontrar”
92
. Estaria aí, então, para Hatherly, a definição
de originalidade. Para a autora, as questões de tradição, inovação e originalidade são a
base do que chama de programa:
89
In: MELO E CASTRO, op. cit., 1973, p. 21.
90
In: PIGNATARI, Décio. Comunicação Poética. São Paulo: Cortez & Moraes, 1977, p. 6.
91
HATHERLY, Ana. A experiência do prodígio. Bases teóricas e antologia de textos-visuais
portugueses dos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983. (Temas
Portugueses), p. 121.
92
Idem, ibidem, p. 122.
49
um sistema de regras que pré-determinam a orientação duma série de
operações destinadas a produzir um determinado efeito, ou seja, um conjunto
de instrumentos e informações necessárias à execução de operações
determinadas, [e é quando] verificamos [ser] óbvio que toda a poesia antiga,
como aliás toda a obra de arte de qualquer época, obedece a um programa.
93
A grandeza e a perenidade de certas obras do passado, dessa forma, manifestam-
se “através da sua constante capacidade de revalidação de seu [dessas obras do passado]
horizonte comunicativo”
94
. Somando-se a essas assertivas de Hatherly, há de se
lembrar, ainda, a “subversão” do conceito de tradição proposta por Jorge Luís Borges:
“O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa
concepção do passado, como há de modificar o futuro”
95
. Diz o escritor argentino,
então, que “a tradição é uma questão de leitura, de recepção, e como essa recepção se
transforma em cada momento histórico, a tradição está constantemente sujeita a uma
revisão, está em permanente mutação”
96
.
Ainda quanto à tradição e sua renovação na modernidade, comentam Maurice
van Woesel e Chico Viana
que não só de ruptura e dissonância vive a poesia moderna. A literatura se faz
pelo diálogo entre modernidade e tradição, e se renova persistindo. Não é
raro que autores contemporâneos resgatem formas e modelos antigos,
enriquecendo-os com novos temas, novos procedimentos artesanais e,
sobretudo, com novos matizes de sensibilidade
97
.
A observação vale não só para a poesia moderna, como citam os autores, mas para a de
qualquer período.
Ainda com relação à influência do passado no futuro, nomeadamente no caso da
Literatura, pode-se afirmar que a tradição está ligada à intertextualidade, que se pode
definir como “processos legítimos de intercâmbio e fecundação recíproca milenarmente
existentes entre as várias literaturas ocidentais”
98
, ou, ainda, como “diálogo transecular
93
Idem, ibidem, p. 121.
94
Idem, ibidem, p. 121.
95
Apud PERRRONE-MOYSÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 95. Grifo da autora.
96
Idem, ibidem, p. 95.
97
CORREIA, Francisco José Gomes & WOENSEL, Maurice Van. Poesia Medieval ontem e hoje:
estudos e traduções. João Pessoa: CCHLA/Ed. Universitária da UFPB, 1998. p. 169.
98
A obra do crítico a que se alude aqui – Teixeira Gomes – é, toda ela, uma definição do que seja
“intertextualidade” na medida em que relaciona as releituras da criação poética de Gregório de Matos
com a de outros contemporâneos seus não só brasileiros e portugueses, mas também de Espanha, e
mesmo antecedentes, como no caso do Cancioneiro de Resende. (op. cit., 1985).
50
e renovador das formas”
99
. Ernst Robert Curtius antecipou, de certa forma, esse
conceito utilizando a expressão “presente eterno”:
Significa o ‘presente eterno’, essencialmente peculiar às Letras, que a
literatura do passado pode continuar cooperando no presente. (...) Veja-se
(...) o jardim de formas literárias: sejam gêneros (...), sejam formas métricas e
estróficas, sejam fórmulas estereotipadas, ou temas narrativos, ou artifícios
de linguagem. É um domínio imenso. Finalmente, a mole de figuras,
formadas pela poesia do passado, que sempre podem tomar novos aspectos
(...)
100
.
Acrescente-se ainda a esses teóricos a opinião de Massaud Moisés sobre o
mesmo tema. O estudioso afirma que
ao triunfar, um ‘ismo’ recebe do outro que substituiu alguns dos seus
componentes, assim como transferirá para o subsequente algumas das suas
características. Como vasos comunicantes, a ruptura e a tradição interagem,
uma implica a outra, e uma não elimina por completo a oponente, mesmo
porque, se assim fosse, a vencedora acabaria por negar-se ou, ao menos, por
enfraquecer-se
101
.
São esses os conceitos que podem ser considerados norteadores da questão que
se presta a discutir neste estudo, como referenciado na Introdução. Eles serão referidos
e observados na recolha que se elegeu para configurar o trabalho poético desenvolvido
no Cancioneiro de Resende, apontado por muitos como precursor de muito do que viria
(re)nascer nas estéticas literárias vindouras. Neste capítulo, antes de abordar como
Fernão da Silveira valeu-se da tradição para inovar em suas composições, pretende-se
traçar um curto panorama da inventividade. Serão trazidos alguns poemas que fogem às
premissas das artes poéticas, tanto as antigas quanto as medievas. O interesse estará
centrado apenas na demonstração de como alguns poetas – considerados “criativos” ou
“inovadores” – transgrediram o comum e criaram composições que se destacam
justamente ora pela engenhosidade ora pela ludicidade. Não se pretende um estudo mais
profundo, mesmo porque a isso o próximo capítulo será dedicado, quando serão
99
GOMES, op. cit., 1993, p. 56. A esse diálogo acrescentar-se-ia a “plagiotropia”, “movimento de
apropriação e transformação dos textos literários”, não se tratando de intertextualidade, “mas de
estratégia deliberadamente assumida em todos os seus desdobramentos, sejam de negação ou homologia”.
(ibidem, p. 193). A plagiotropia, dessa forma, se intercala entre a intertextualidade e o plágio, este no
sentido de furto consciente com intuito de homenagear o plagiado.
100
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996,
p. 16.
101
MOISÉS, Massaud. As estéticas literárias em Portugal. Séculos XIV a XVIII. Lisboa: Ed. Caminho,
1997, p. 196-197.
51
analisados alguns poemas do Coudel-mor.
3.1. OS PRECURSORES: ANTIGÜIDADE CLÁSSICA E ALTA IDADE MÉDIA
Tomando por base as assertivas do item anterior, na Antigüidade, Teócrito de
Siracusa
102
(308-240 a.C.), Símias de Rodes
103
(c.300 a.C.) e, já na Alta Idade Média,
Publílio Optatiano Porphyrio (séc. IV) e Rábano Mauro (780-826) compuseram vários
poemas figurados – carmina figurata, em latim, ou technopaígnia, em grego – que
retratam uma espécie maneirística de disposição formal e conteudística dos
significantes
104
. Esses poucos aqui citados podem ser considerados precursores – na
forma como são tratados por diversos críticos e estudiosos – de um tipo de poesia visual
que, parece, tem inspirado poetas não só medievais, mas também renascentistas,
barrocos e concretistas-experimentalistas
105
. Poder-se-ia, então, tomá-los como
o ponto onde surgiria o primeiro programa, o seu ponto zero, [o qual] situar-
se-ia na região problemática da invenção que, não sendo possível, dizem-nos,
a partir do nada, só começa a poder afirmar-se como tal a partir dum contexto
histórico
106
.
É necessário, a esta altura, ressaltar que esse tipo de poesia não tinha apenas propósito
estético ou lúdico, como essência de sua composição. Estudiosos encontram nessas
manifestações poemáticas um sentido e necessidade místicos; um elo entre o terreno e o
divino
107
, ou ainda, segundo Ana Hatherly, uma origem na Cabala, “um termo que
102
ZÁRATE, Armando. Los textos visuales de la época alejandrina. Dispositio, Michigan, v. III, n. 9,
otoño 1978, p. 354.
103
Idem, ibidem, p. 355.
104
Paul Zumthor assim se manifesta quanto ao confronto grafismo versus desenho aplicados nos carmina
figurata: “O grafismo, (...) como todo sistema de signos, tem dupla face: uma, o traçado das letras,
voltada para o ponto de partida material; a outra, o desenho que engendra sua disposição, voltada para o
sentido que se oferece à interpretação”. (In: Carmina figurata. Trad. Alberto Alexandre Martins. Revista
USP, n. 16, São Paulo, p. 69-76, 1992/1993, p. 75).
105
Sobre a influência do Barroco nestes últimos poetas, comenta Ana Hatherly: “Na segunda metade do
século XX, os poetas Concreto-experimentalistas contribuíram para o ressurgimento de alguns aspectos
mais criativos da poesia barroca, destacando-se a versatilidade linguística, a criatividade imagística, o
culto do ludismo e a visualidade do texto. Na Poesia Experimental Portuguesa esses aspectos assumiram
valor de estandarte cultural e até político, para poetas como E. M. de Melo e Castro e Ana Hatherly
[referindo-se a si mesma] que se empenharam na defesa do que de mais válido encontraram no Barroco
poético, e o mesmo fizeram no Brasil poetas como Affonso Ávila e outros”. (In: A poesia barroca
portuguesa. Revista do Centro de Estudos Portugueses. Dossiê: Poesia em Língua Portuguesa. São
Paulo, no. 1, 1998, p. 13-14).
106
HATHERLY, op. cit., 1983, p. 121.
107
“El estilo de estos poemas es profuso. Hay en ellos teogonía, fábula y alegoría pastoril. Sin embargo,
algunos carbones épicos sobreviven, pero al modo mesurado de tono y matiz alejandrino.” (ZÁRATE,
op. cit, p.358).
52
designa a doutrina mística e esotérica hebraica. Diz respeito a Deus e ao Universo e diz-
se ter sido adquirida por Revelação a determinados santos eleitos num passado
remoto”
108
.
Essa maneira de compor poemas em forma de
109
, adiante-se, não passou
despercebido pelos poetas concretos. Fazendo referências a Símias de Rodes e unindo-o
a Mallarmé e Apollinaire, escreve Boultenhouse:
Um poema configurado é sempre novo, porque faz volver o poema à
simplicidade original da linguagem escrita, à experiência primitiva, vívida,
imediata e mágica de um som combinado com um signo. Pode o som ser
disposto em muitos ritmos e evocar muitas imagens, mas a dupla experiência
de olhar e ler nos dá a sensação de que tudo está recomeçando do nada.
Apollinaire a Mallarmé, Mallarmé ao antigo grego Símias. Ser novo, no
sentido do poema configurado, é sinal inconfundível de espírito de
vanguarda – e, na verdade, de todas as formas de literatura que a antiguidade
nos legou, esta é a única que permanece vanguarda ainda hoje
110
.
Um exemplo desse tipo de poesia figurada a que alude o crítico americano pode
ser o cálice (poculum)
111
, poema “desenhado” com as palavras que remetem ao objeto a
que o provável poeta medieval se propôs versar:
Ao construir seu poema, o poeta vincou o campo semântico próprio do cálice e
daquilo que pode conter: chegam as férias, fecham-se as escolas, calam-se os
professores, saem os alegres errantes a cantar, beber, conhecer as mulheres, para
regenerar a alma com aquilo que os excita nos dias de festa: um cálice repleto de
108
HATHERLY, op. cit., 1983, p. 36.
109
Expressão usada pelos poetas concretistas (cf. CAMPOS, 1975, p. 128 passim).
110
Apud CAMPOS, op. cit., p. 130.
53
vinho
112
. Permite ao interpretante, de forma didática, não só ver a imagem formada
pelas palavras, mas também empenho “en la elegancia, en el matiz verbal, en la práctica
específica y operativa del texto”
113
.
Sem dúvida, não se pode deixar de registrar que esta postura poética (...)
dejará secuela con el andar de los siglos. (...) Tanto el espacialismo de
Huidobro, los Calligrammes de Apollinaire o la poesía concreta, cuyas
invenciones bien pueden congeniar con los anagramas y permutaciones
medievales, caben sin sorpresa dentro de estas búsquedas ancestrales. No
puede, pues, negarse esta ladera visionaria de la poesía conforme a lo más
sustantivo y atrevido de la escritura, cuya intención dinámica plantea una
dimensión inquietante de la imaginación creadora
114
.
Será, então, desafio às estéticas posteriores inovar, calcadas na tradição, fazendo uma
releitura acrescida de criatividade, destreza e agudeza inerentes ao artista alerta às novas
realidades. A propósito dessa agudeza dos artistas, Massaud Moisés, comenta:
Definida em termos de hoje como “a penetração e subtileza do raciocínio,
qualidades brilhantes, que se manifestam na presteza dos ditos conceituosos e
galantes, no inesperado das aproximações”, a agudeza constitui requisito
básico do homem da corte. E em aliança com o engenho, produz a discrição,
que é afinal o fundamento de toda a estrutura espiritual do barroco
115
.
Esta definição, apesar de voltada para o estudo do período barroco português, cabe para
qualquer época. Já o estudioso galego Juan Casas Rigal, ao estudar a idéia de agudeza
no século XV hispânico, mais especificamente nos cancioneiros daquele século,
adiciona ao conceito de “agudeza” o conceito de “sutileza”:
La sutileza es, al tiempo, una potencia del intelecto y un constituyente de
toda materia científica y artística. La filosofía, en general, o disciplinas
determinadas como la Gramática, la Retórica y, sobre todo, la Dialéctica
propician lo agudo. De entre las dos familias de teorías que intentan explicar
la sutileza – la aristotélica, de base gnoseológica, y la ciceroniana, que
relaciona agudeza y humor –, en la Edad Media hispana, como en la europea,
es casi exclusiva la primera, pese a un tímido atisbo de la segunda por
Fernando Manzenares y Nebrija. Más en concreto, la aproximación de san
111
A poesia em forma de cálice aqui reproduzida encontra-se em FONDA, Enio Aloisio. Maneirismos
formais na poesia tardia. Revista de Letras, São Paulo, v. 25, p. 119.
112
Tome-se uma tradução esquemática dessa poesia figurada: “A escola fecha-se enfim / calam-se os
preceptores / Vamo-nos enfim, / ledos errabundos / urge o descanso / [mas] dos óbolos carecemos. / Da
venda dum Horácio, / plenos tornamos cálices: / canto / vinho / mulheres / a alma regeneramos /
inflamam-nos as férias!” (AGNOLON, Alexandre. Poculum: tradução comentada. Mensagem eletrônica
recebida por <[email protected]>, em 6.out.2005).
113
ZÁRATE, op. cit., p. 354.
114
Idem, ibidem, p. 362.
115
MOISÉS, op. cit., 1997, p. 157. Neste trecho Massaud Moisés comenta sobre o barroco Francisco
Rodrigues Lobo e diz que este, na obra Corte na Aldeia, usa tanto o substantivo “discrição” quanto o
adjetivo “discreto”, este em maior número de ocorrências, objetivando definir a capacidade de invenção
(engenhosidade) e a agudeza do cortesão.
54
Agustín en De doctrina christiana, en cuyo libro IV cataloga la acuitas
como la cualidad retórica que permite desentraía lo intricado y oscuro, es la
teoría que condiciona la interpretación de sotileza por los poetas de los
cancioneros: la agudeza hace la expresión de lo racionalmente inefable
116
.
O que se encontrará em muitos dos poemas que neste capítulo serão analisados –
como nos próximos dedicados ao poeta Fernão da Silveira e à evolução da poesia
inovadora – é o estilo agudo, sutil e engenhoso, parentes da criatividade, originalidade e
inovação, presentes já na Antigüidade. Não se encontram no Cancioneiro Geral poemas
“em forma de”, como o aqui demonstrado. Entretanto, o labirinto de Silveira, objeto
central deste estudo, demonstra preocupações visuais, como poderá ser constatado em
4.1. e seguintes. Antes, porém, deve-se fazer uma retrospectiva do que ocorreu
relativamente a essa questão, em algumas composições provençais e trovadorescas.
3.2. NA POESIA PROVENÇAL, A SURPRESA MANEIRISTA
Alguns trovadores provençais, à luz do conceito de originalidade, destacam-se
de forma evidente. Cerveri de Girona/Guilhem de Cervera (...1259-1285...) compôs uma
canção distribuída em estrofes de versos de uma só sílaba, com alternância de outros
versos com duas sílabas. Tal composição foge à rigidez de princípio, ou de princípios,
que norteava as composições poéticas, assim como prescreviam as Leys d’amors
117
. Na
edição de Riquer, a canção assim se apresenta:
116
CASAS RIGAL, Juan. La idea de agudeza en el siglo XV hispano: para una caracterización de la
sotileza cancioneril. Revista de Literatura Medieval, Madri, v. VI, 1994, p. 88.
117
“’Las leys d’amors’ (constituyen el mas extenso de nuestros tratados, de gran riqueza en sus partes
gramaticales, retóricas, estilísticas y versificatorias, que si en algo pecan es por el exceso de noticias
nimias y por el afán en clasificar y pormenorizar, pero que reúnen un auténtico tesoro de referencias”.
(RIQUER, Martín de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ed. Ariel, S. A., 2001,
Tomo I. Colección Letras y Ideas, p. 33-34). E, ainda, quanto ao uso das sílabas poéticas: “El cómputo de
sílabas en principio siempre es exacto en la poesía trovadoresca, como es lógico en textos compuestos
para ser cantados con una melodía culta y refinada.” (Ibidem, p. 36).
55
Us
an
chan,
pe-
san,
dre-
çan,
ri-
man,
li-
man,
lau-
gan,
aman
il man
d’en-
ten-
di-
menz
ses
jau-
si-
menz.
118
Girona não foi feliz apenas na disposição de sua canção, mas também na
melodia, o que é tautológico, já que os poemas à época eram para ser cantados. Realiza-
se a intenção pontual de evidenciar as terminações em “an", cuja musicalidade não só
pode ter agradado a audiência como uniu forma e fundo: coloca no seu poema a
definição de poeta, que é dispor, rimar, limar, louvar e amar. Para Martín de Riquer,
Cerveri cultivou, assim como Arnaut Daniel, o “trobar ric”, em que “alcanza a veces
momentos muy logrados
119
e “aunque por este camino llega a la extravagancia de
componer una canción con versos de una y dos sílabas
120
”.
Já um outro trovador provençal, considerado um dos mais criativos, por difícil e
obscuro, registra “el hápax, la voz popular no registrada en léxicos ni usada por otros
118
In: RIQUER, idem, ibidem, p. 35-36. A tradução encontrada em Elisa Garrido Gómez é a seguinte:
Hace un año que canto y voy considerando, y disponiendo, rimando, limando, alabando (y) amando los
mandatos de afectos sin gozo. A autora inclui mais uma parte à poesia de Cerveri: “Ni a Sobrepetz, / Ne
Is Cartz, / ne I Rey”, que traduz por “En este canto no puedo incluir de ningún modo a Sobrepetz, a los
Cardos ni al Rey”. (In: Los juegos poéticos de Los Trovadores. Universidad de Sevilla, Junio 2002.
Disponível em <http://boek861.com/juego_poetico.htm>. Acesso em 26.set.2005).
119
RIQUER, Martín de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ed. Ariel, S. A., 2001,
Tomo III. Colección Letras y Ideas, p. 1563.
56
escritores y el modismo cuyo sentido no alcanzamos
121
”. O trovador é Marcabru
(...1130-1149...) que, no poema que segue, desenvolve um tipo de poesia visual, o qual
comprova tanto a originalidade e individualidade desse provençal, quanto as definições
a ele impingidas. A dificuldade e obscurantismo, segundo Martín de Riquer, não se
apresentam apenas na parte filológica do trabalho de Marcabru, mas também no “juego
de ingenio, el doble sentido de una palabra, el valor preciso de los conceptos abstractos
y su mutua relación, la incertidumbre ante la dicción que no se sabe si es grave o
irónica
122
”. A essas dificuldades quer-se demonstrar que, utilizando-se do conceito de
Maneirismo proposto por Ernst Robert Curtius, a intenção do poeta maneirista é
sobressair-se, e, assim fazendo, torna-se, ante seu público, um artista inventivo, desde
que, é claro, seja original e não se utilize desses maneirismos apenas como
artificialidade
123
. O poema de Marcabru assim se apresenta na edição de Martín de
Riquer:
Estornel, cueill ta volada
Estornel, cueill ta volada:
deman, ab la matinada,
iras m’en un’encontrada,
on cugei aver amia;
trobaras
e veiras,
per que vas
comtar l’as;
e.ill diras
en ei pas
per que’er trasalhia.
124
Já pela disposição gráfica, nota-se o vínculo forma-fundo: os quatro primeiros
versos em redondilhos maiores assemelham-se às asas abertas para o vôo, seguidos de
120
Idem, ibidem, p. 1563.
121
Idem, ibidem, I, p. 175-176.
122
Idem, ibidem, I, p. 175-176.
123
CURTIUS, op. cit., p. 353 passim.
124
“I. Estornino, emprende el vuelo: mañana, con el amanecer, irás de mi parte a una comarca donde me
imaginé tener amiga. La encontrarás, la verás y le contarás por qué vás; y le preguntarás en seguida por
qué se há comportado mal” (RIQUER, op. cit., I, p. 211-212).
57
seis versos trissilábicos, assemelhando-se ao corpo do pássaro. O último verso em
redondilha menor conota, parece, os pés da ave. No poema, pede o “eu-lírico” que o
estornino vá, pela manhã, à procura da amada, diga-lhe o motivo da ida e repreenda-a
por ter-se comportado mal. Se, nessa mostra da poesia de Marcabru, o obscurantismo
semelha estar ausente – dada a simplicidade do enunciado – vale assinalar seu gosto
pela construção composicional aliada à motivação do tema.
Ainda dos trovadores provençais, observe-se uma das canções mais conhecidas e
difíceis. Arnaut Daniel (...1180-1195...), um trovador sempre preocupado com o fazer
poético, tendo criado, por exemplo, a sextina
125
, compôs, nas palavras de Martín de
Riquer, um “verdadero laberinto de rimas caras en breves unidades (a veces de una sola
sílaba), lo que implica una expresión elíptica y retorcida que hace posibles varias
interpretaciones”
126
. A ele se refere Petrarca como possuidor de um “dir strano e bello”,
pois cultivou um vocabulário rebuscado e original
127
; usou uma singularidade poética,
mesclando palavras que provocam surpresa com rimas raras
128
. Segue a canção, como
editada por Riquer
129
:
125
Baseia-se a sextina na aparição combinada de palavras no final do verso, com reiteração de vocábulos-
chave, cuja maestria composicional repercutiu com êxito no Renascimento. (Cf. RIQUER, op. cit., II, p.
610).
126
RIQUER, op. cit., II, p. 624.
127
O rebuscamento e originalidade são próprios de qualquer poeta amaneirado, pois “o poema maneirista
mantinha um elo forte com o petrarquismo. Muitos de seus representantes eram seguidores declarados de
Petrarca, a cuja tradição aderiram. Usavam suas formas e expressavam-se com o auxílio de sua
linguagem, que se tornara artificial e impessoal.” (HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da
Renascença e o surgimento da Arte Moderna. 2 ed. Trad. J. Guinsburg e M. França. São Paulo:
Perspectiva, 1994. p. 397). Percebe-se, com essas assertivas, que Petrarca foi beber em Arnaut Daniel e
tornar-se referência aos poetas que nele mesmo beberam.
128
RIQUER, op. cit., II, p. 610.
129
“I. El aura amarga hace aclarar los bosquecillos ramosos, que la dulce espesó con hojas, y mantiene
balbucientes y mudos los alegres picos de los pájaros de las ramas, aparejados y no aparejados. ¿Por qué
yo me esfuerzo en hacer y decir cosas agradables a muchos? Por aquella que me há vuelto de arriba
abajo, de lo que temo morir si no me da fin a los afanes” (Idem, ibidem, p. 624-625). Percebe-se nesta
poesia a expressão montada de palavras “laura” e ela remete a inúmeras poesias de Petrarca escondendo o
nome de sua amada Laura, homenagem explícita a Daniel e louvação daquela a quem servia: “L’aura
serena che fra verdi fronde” (CXCVI), “L’aura celeste che ‘n quel verde lauro” (CXCVII), “L’aura soave
al sole spiega et vibra / l’auro ch’Amor di sua man fila et tesse” (CXCVIII); estas, entre outras, estão
presentes no seu Canzoniere (Torino: Einaudi, 1992. (Classici, 104). Registre-se ainda que há uma
tradução desta poesia de Arnaut Daniel em POUND, Ezra, op. cit., p. 182, elaborada por Haroldo de
Campos.
58
L’Aur’amara fa.ls bruels brancutz
L’aur’amara fa.ls bruels brancutz
clarzir, que.l dous’espeys’ab fuelhs,
e.ls letz becx dels auzels ramencx
te balbs e mutz, pars e non-pars.
Per qu’ieu m’esfortz de far e dir plazers
a manhs? Per ley qui m’a virat bas d’aut,
don tem morir, si.ls afans no.m asoma.
Martín de Riquer comenta que se nota nas criações do provençal uma esmerada
preocupação formal, tanto com relação à posição das palavras-rimas quanto pela
escolha daquela que siga um caminho “difícil y bello”
130
. O poeta iria se destacar pela
engenhosidade na escolha das rimas, principalmente porque as usa de forma diversa da
de seus camaradas trovadores, além de usar vocábulos considerados apoéticos. Adverte,
contudo, que é esse um meio de Daniel demonstrar seu desespero e fastio de forma
surpreendente. Assim, coloca na forma a própria expressão de seu sentimento “strano”,
que passa a “dir bello”, como entendeu Petrarca. Ressalve-se que uma leitura afinca de
seus poemas leva a antever preocupações conceptistas pelo deslocamento da metáfora e
da combinação de sons
131
.
Uma observação ainda se faz necessária quando se remete ao modo
composicional dos trovadores provençais. Parece dividirem-se aqueles que versificavam
seguindo o trobar leu
132
, que pode ser entendido como simples, fácil, ausente de
recursos estilísticos complicados ou ornamentados, dos que se valiam do trobar clus
133
.
Este seria um versificar de forma hermética, usando sutileza e rebuscamento na escolha
dos termos com o intuito não só de criar dificuldades, mas demonstrar agudeza e
requinte morfo-conteudísticos. Ainda segundo Riquer, “el conocedor de la literatura
castellana de los siglos de Oro tendrá mucho adelantado si relaciona mentalmente el
trobar clus al conceptismo y el trobar ric al gongorismo”
134
. Os trovadores provençais
desenvolveram, na aplicação desses modos de “trobar”, os procedimentos da retórica
medieval do ornatus facilis – que “estriba en el empleo de los colores retóricos (o sea
130
RIQUER, op. cit., II, p. 610-624.
131
Idem, ibidem, p. 609-611.
132
Outras denominações seriam trobar leugier, pla. (Idem, ibidem, I, p. 74).
133
Também para esse modo versificatório, entendem-se os termos trobar ric, car, escur, cobert, sotil,
prim. (Idem, ibidem, I, p. 74-75).
134
Idem, ibidem, I, p. 75.
59
de las figuras), de la annominatio (conexión entre palabras de la misma forma, pero de
significado diferente) y de las determinaciones (cierta graduación gramatical) – e do
ornatus difficilis – que “se caracteriza por el empleo de los tropos (metáfora, antítesis,
metonimia, sinédoque, perífrasis, alegoría, enigma, etc.)”, cujas distinções derivam da
Rethorica ad Herennium
135
.
Ao se escolher três trovadores
136
que primaram, pela recolha do crítico
espanhol, no aperfeiçoamento do trobar clus, objetivou-se trazer exemplos que
contribuem para a discussão da proposta que aqui se dispôs delinear: a de analisar as
formas de evidenciar a inventividade naqueles poetas cuja individualidade aflora e, por
isso, são expressão de futuras estéticas. Sabe-se que os trovadores provençais
forneceram a seus sucessores os meios e artifícios para a criação poética própria de cada
região européia. Na Galícia, os trovadores galego-portugueses foram beber naqueles
antepassados para criarem o tipo de poesia que seria característico da Península. À parte
as cantigas de amigo, consideradas pelos estudiosos como autóctones, pois revelariam o
espírito, a alma do lado ocidental peninsular, a maioria das cantigas de amor e as de
maldizer e de escárnio seria a continuação da produção provençal. No capítulo que será
destinado ao poeta palaciano Fernão da Silveira, poder-se-á notar como essa produção
foi renovada no final do Quatrocentos, preparando, por sua vez, o advento de novos
estilos. Mas antes, faça-se uma rápida perscrutação de alguns poemas galaico-
portugueses que se destacam, se não pela originalidade, pela fuga aos modelos
pressupostos pela Arte de Trovar
137
.
3.3.
NOS CANCIONEIROS GALEGO-PORTUGUESES, A QUEBRA DOS CÂNONES
Nos cancioneiros galego-portugueses, a inovação desponta em alguns trovadores
que, se no tema permaneciam fiéis aos cânones, na forma ousavam. No Cancioneiro da
135
Idem, ibidem, I, p. 76.
136
Outros poderiam ser incluídos nesse rol: Raimbaut D’Aurenga, Raimbaut de Vaqueiras, Guilhem de
Montanhagol, Sordel e Peire Cardenal, entre os mais conhecidos.
137
Refiro-me à Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa.
60
Ajuda
138
, encontra-se um descordo
139
singular de Nuneannes Cerzeo, de número 389,
que assim se apresenta na lição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos:
Agora me quer’eu ja espedir
da terra, e das gentes que i son,
u mi Deus tanto de pesar mostrou,
e esforçar mui ben meu coraçon,
e ar pensar de m’ir alhur guarir.
E a Deus gradesco porque m’én vou.
Ca [a] meu grad’, u m’eu d’aqui partir’,
con seus desejos non me veeran
chorar, nen ir triste, por ben que eu
nunca presesse; nen me poderan
dizer que eu torto faç’en fogir
d’aqui u me Deus tanto pesar deu.
Pero das terras averei soidade
de que m’or’ei a partir despagado;
e sempr’i tornará o meu cuidado
por quanto ben vi eu en elas ja;
ca ja por al nunca me veerá
nulh’om(e) ir triste nen desconortado.
E ben digades, pois m’én vou, verdade,
se eu das gentes algun sabor avia,
ou das terras en que eu guarecia.
Por aquest’era tod’, e non por al;
mais ora ja nunca me será mal
por me partir d’elas e m’ir mia via.
Ca sei de mi
quanto sofri
e encobri
en esta terra de pesar.
Como perdi
e despendi,
vivend’aqui,
meus dias, posso-m’én queixar.
138
Essa cantiga-descordo de Nuneannes Cerzeo também aparece no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional. (Org.) Elza Paxeco Machado e José Pedro Machado. Lisboa: Edição da Revista de Portugal,
1949, vol. I, p. 192-195.
139
O descordo já era conhecido pelos trovadores provençais e “se caracteriza, como su nombre indica,
por ser una composición en la que cada una de las estrofas tienen una fórmula métrica distinta, y por lo
tanto también una melodía individual, lo que va en contra del rígido princípio de isometría a que
obedecen los demás géneros. Ello supone una gran variedad y riqueza de metros, rimas y melodías.”
(RIQUER, op. cit., I, p. 49).
61
E cuidarei,
e pensarei
quant’aguardei
o ben que nunca pud’achar.
E[s]forçar-m’ei,
e prenderei
como guarrei
conselh’agor’, a meu cuidar.
Pesar
d’achar
logar
provar
quer’eu, veer se poderei.
O sen
d’alguen,
ou ren
de ben
me valha, se o en mi ei!
Valer
poder,
saber
dizer
ben me possa, que eu d’ir ei.
D’aver
poder,
prazer
prender
poss’eu, pois esto cobrarei.
Assi querrei
buscar
viver
outra vida que provarei,
e meu descord’acabarei.
140
O que chama a atenção nessa peça é a desigualdade com que se montam e se
distribuem as estrofes e as rimas, além da inclusão de uma palavra perduda no verso
inicial e do enjambement na segunda estrofe das sextilhas, bem como na cauda, em que
esse processo fica mais evidente. Essa dissimetria, diga-se de passagem, não é
novidade.
140
In: Cancioneiro da Ajuda. [s.l.]: INCM, 1990. v. I, p. 764-767.
62
Vimos nos exemplos anteriores – com os provençais – que esse artifício, apesar de raro,
existiu e foi resultado de uma releitura que todos os poetas “antenados” promoveram ao
remontarem ao passado. Esse exemplo de Nuneannes Cerzeo trazido aqui tem o intuito
de corroborar essas assertivas e demonstrar como, por exemplo, Fernão da Silveira
pôde, calcado no tradicional, criar poemas inovadores, o que será mostrado no próximo
capítulo.
Feito para o canto, o descordo de Cerzeo traz, também, um ritmo diferenciado
que deve ter causado estranhamento e, ao mesmo tempo, deleite aos ouvintes. No
subcapítulo precedente, observou-se que Marcabru havia composto uma canção cuja
visualidade evidente lembra as formas de um pássaro. Apesar de uma forma alargada
nos primeiros versos, aquela canção afunilava nos últimos, mantendo, entretanto, certa
regularidade dentro das redondilhas (as maiores, na forma alongada, e as menores, na
adelgaçada). No descordo de Nuneannes, há identidade de forma
(alargamento/afunilamento) com a de Marcabru, contudo, há maior extensão de número
de versos, destacando-se a irregularidade. No conteúdo, há igualmente certa identidade
de fundo: ambos aludem à partida: uma em busca da amada, outra, em fuga da terra
querida. Acrescente-se que, além da irregularidade própria deste subgênero poético,
essa partida é condensada no último verso que fecha com a palavra “descordo”,
denominação do tipo de poesia que criou para expressar seu sentimento. Se esse tema –
o da partida – não é novo, aliás, é recorrente na literatura medieval
141
, o exemplo desse
poema serve para destacar como, numa forma assimétrica em estrutura e ritmo, um
espírito poético inquietante se serve de recursos diferenciadores para destacar sua
individualidade poética.
Também Dom Dinis, num poema encontrado no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional, compõe uma interessante peça, a de número 496, “Assi me Trax coytado”. O
uso de enjambements parecia ser do agrado do monarca, haja vista a proficuidade de seu
emprego em diversas peças, o que demonstra, parece, destreza e visão lúdica do poetar
próprios de Dom Dinis. Nessa, entretanto, o procedimento conjuga-se com a
141
O tema não é evocado somente na literatura medieval, é óbvio; mas é no medievo mais intensamente
explorado. No subcapítulo 5.4., será esquadrinhado alguns poemas que remetem à partida e à chegada, no
Parnasianismo, por exemplo.
63
visualidade, se se tomar como parâmetro a lição dos organizadores. Veja-se a
transcrição do poema, como editado nesse último Cancioneiro:
Assy me Trax coytado
E aficad Amor,
E tan atormentado
Que, se Nostro Senhor
A mha senhor non met en cor
Que se de min doa, a mor
T auerey praxer e sabor.
Ca vyu en tal cuydado,
Come quen sofredor
[H]E de mal afficado,
Que non pode mayor
Se mi non ual a que en for
Te ponto ui, ca ia da mor
T ey prax[er] e nenhum pauor.
E fazo mui guisado,
Poys soo seruidor
Da que mi non da grado,
Querendo lh eu melhor
C a min, nen al, por en Conor
T eu non ey ia, senon Da mor
T ande soõ deseiador.
142
Eivado de maneirismos, apraz o monarca fazer brincadeiras com os
cavalgamentos de palavras, exacerbando sua coita de amor, bem ao gosto trovadoresco.
À parte o tema recorrente, o poeta-monarca alterna versos hexassílabos com
octossílabos e acentua seu sofrimento – e o resultado que espera dele – no jogo entre os
termos “morte”, “forte” e “conorte”, encadeando as últimas sílabas entre um e outro
verso. Desse modo, como que condensa na forma e no conteúdo o seu morrer de amor.
Neste recolhimento todo do presente capítulo, procurou-se frisar como, providos
de agudeza e de engenhosidade estrutural, os poetas das épocas focadas também
recorreram à disposição gráfica para montar, de maneira criativa e lúdica, seus poemas,
almejando sua visualização. Retomam um expediente iniciado na Antigüidade greco-
romana, relendo-o e inovando-o, assim como o farão os poetas seguidores desses
artifícios. Os poemas escolhidos para a curta análise desenvolvida não só trazem uma
142
In: Cancioneiro da Biblioteca Nacional, op. cit., III, p. 122-123. Os destaques são grifos meus.
64
montagem estrutural calcada na tradição, mas também a renovam, valendo-se de temas
próprios a cada época. São esses tipos de composição que, no Cancioneiro Geral, os
poetas palacianos irão desenvolver, permitindo que se lhes atribua o epíteto de
inovadores e, por isso mesmo, portadores de criações poéticas futuras. Atribuir-se-ão a
muitos desses compositores não somente o apreço pelas formas e temas dos
antepassados, mas também a habilidade para, como que visionários, plantar as sementes
do que iria ser apreciado pelos seus seguidores. Ver-se-ão, no próximo capítulo, em que
se abordará um pouco da obra de Fernão da Silveira, os modos como essa operação de
estima pelo passado e de visão audaz são montados.
65
Reprodução do frontispício do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516). In:
MORÁN CABANAS, 2003, p. 10.
66
CAPÍTULO IV – A PRODUÇÃO POÉTICA DO COUDEL-MOR:
PARADIGMA DA INOVAÇÃO NO CANCIONEIRO GERAL
En Occidente, el refundidor juglar, lo
mismo que el cantor de romances, no
ejercitan ninguna improvisación:
pretenden conservar una historia cantada
que es ya muy vieja, y la innovan un
poco, conservando la mayor parte de lo
antiguo (...) Sólo en la extrema baja Edad
Media se observa algún raro caso de
innovar totalmente, por el gusto de
alterar totalmente el relato tradicional
143
.
Menéndez Pidal
...as escolas literárias pressupõem (...) os
contornos mais ou menos definidos de
uma formação social, embora surjam
criações literárias precursoras e até
preparatórias de uma dada evolução
144
.
A. J. Saraiva e Ó. Lopes
La prédominance des “styles” collectifs
sur les “styles” individuels constitue l’un
des caractères fondamentaux de la poésie
médiévale
145
.
Paul Zumthor
Em Aspectos do Cancioneiro Geral, Andrée Crabbé Rocha afirma que “a arte é
uma equação pessoal” e que “toda a arte colectiva tem autores civilmente
individualizados, mas artisticamente submersos pelas intenções e pelas obras de
centenas de companheiros. Por isso mesmo é que tentámos sempre procurar alhures a
razão da grandeza do Cancioneiro Geral
146
”. Na verdade, da compilação de Garcia de
Resende poucos são os que se destacaram para a posteridade como artistas individuais:
Gil Vicente, na dramaturgia, João Roiz de Castelo Branco, com o antológico “Cantiga
sua, partindo-se”, Bernardim Ribeiro, que se destacou na prosa e poesia, o próprio
143
In: MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Poesía oral y cantares de gesta. In: Historia y crítica de la
Literatura Española. Francisco Rico (Org.). Barcelona: Crítica, 1979. Vol. I, Edad Media, p. 101.
144
In: SARAIVA e LOPES, op. cit., p. 10.
145
In: ZUMTHOR, op. cit., 1972, p. 156.
Resende, nas crônicas, além de Sá de Miranda, considerado o introdutor do
Classicismo em Portugal, para citar alguns entre os cerca de trezentos
147
poetas que
participam da volumosa coletânea. No entanto, esse trabalho coletivo de criação
poética permite que o Cancioneiro Geral seja considerado um repositório de futuras
estéticas literárias. Tomando como paradigma o poeta Fernão da Silveira, de vasta
produção no compêndio, com oitenta e duas intervenções
148
, perfazendo quase dez por
cento de toda a recopilação, se se levarem em conta os poemas individuais e aqueles
em grupo (tenções, perguntas e respostas), pode-se verificar como a inovação, e
mesmo a inventividade, germinou, fazendo com que o Cancioneiro se afirme como
prenúncio do que irá ocorrer com a criação poética posterior. Não se quer dizer, com as
assertivas anteriores, que todos os poetas palacianos eram inventivos. Dado o elevado
número de participantes, parece não serem todos eles a tradução da criatividade. Mas
há os que se destacam pelo modo como montaram seus poemas, com engenhosidade e
agudeza, e um deles é Fernão da Silveira.
Para confirmar tal asserção, é necessário, então, analisar alguns poemas de
Fernão da Silveira quanto à forma e quanto à temática, cujo resultado pode-se estender
a muitos dos poetas do Cancioneiro Geral. Percebe-se que há certa coincidência de
recursos formais e conteudísticos entre muitos desses poetas. Tomando alguns poemas
de Silveira, e de alguns de seus pares, poder-se-á constatar como influenciaram os
movimentos literários renascentista, barroco e até mesmo concretista brasileiro e
experimentalista português. Estes dois últimos promoveram a releitura dos
cancioneiros, em especial o de Resende
149
, além das inovações camonianas e barrocas,
principalmente quanto à estrutura formal.
146
ROCHA, Andrée Crabbé. Aspectos do Cancioneiro Geral. Coimbra: Coimbra Ed., [s.d]. (Colecção
Universitas), p. 136.
147
Ver nota (7).
148
Sem contar onze poesias que vêm seguidas de um ponto de interrogação, no índice (p. 408), o que
pode significar dúvidas da editora Aida Fernanda Dias quanto à autoria, uma vez que, nas didascálias
produzidas por Garcia de Resende, consta apenas o título de “Coudel-mor”. Algumas dessas poesias, A.
J. Gonçalves Guimarães, o terceiro editor do Cancioneiro Geral, de 1910-1917, considera de autoria de
Fernão da Silveira; outras, que a editora acima considera de Silveira, não são creditadas a ele pelo editor
da terceira edição.
149
Veja-se a declaração de Melo e Castro à p. 183, como exemplo.
68
Para observar como o Coudel-mor trabalhou a casuística amorosa, nela
incluindo a beleza feminina, que traz ao “eu-lírico” sofrimento – relembrando a coita
de amor dos antigos trovadores –, conflito entre desejo e espiritualidade, entre bem e
mal, além de perdição, escolheram-se cinco poemas. Em “Senhora, graciosa, discreta,
eicelente”, recorre ao labirinto de palavras para exaltar a beleza da dama amada; na
“[Cantiga sua]”, explora a ambigüidade de uma dama, a qual prefere ter como senhora
e como amiga, mas também como “immiga”, para ver o bem dele derribado; em
“Porque meu mal s’i dobrasse, vos fez Deos fremosa tanto”, o “eu” poético vê-se diante
de um conflito caro aos poetas da Renascença e do Barroco: a beleza de sua dama
instiga-o ao pecado, mas a santidade desse mesmo poeta deixa-o constrangido. Já na
“Grosa do Coudel-moor a Mis querelhas he vencido”, Silveira canta o desconcerto que
a beleza da dama servida provoca nele, utilizando-se do castelhanismo para se
expressar. Ainda na temática intimista, escolheu-se a cantiga “Quien gana pierde,
aprendi, por mi mal”, igualmente em castelhano, em que Fernão da Silveira explora o
tema do “eu” dividido, resultado do desconcerto do mundo por que passam os poetas
do final do século XV, tema mais tarde melhor desenvolvido por Camões.
Da poesia pornográfica de Silveira, escolheram-se quatro textos que marcam
sua propensão ao escabroso e ao sutil. Em “O Coudel-moor às damas, porque deram a
ũa que casou a melhor peça que cada ũa tinha pera o casamento, antre as quaes lhe
derão o sexo de dona Lucrecia”, o poeta canta um inusitado presente dado a uma noiva
– o sexo de Dona Lucrécia; em “De Dom Joam de Meneses a ũa dama que refiava e
beijava dona Guiomar de Crasto”, Silveira e seus companheiros retratam uma visão
liberal da sociedade dos fins do medievo, satirizando a questão da
homo/bissexualidade; em “Coudel-moor a sua cunhada que lhe mandou ũa
escrevaninha fraancesa, que trazia o cano no tinteiro, tudo junto pegado”, ousa Silveira
mesclar o divino com o profano, numa cantiga eivada de sutilezas e imagens
pornoeróticas. Mas o homem não fica ao largo do chiste: em “D’Anrique d’Almeida
Passaro aa barguilha de Dom Goterre, que fez de borcado, enderençada aas damas”,
nove contendores, entre eles Fernão da Silveira, têm como alvo o órgão masculino e
dele causticam seu tamanho.
69
O Coudel-mor destacou-se também pelas composições em que retratam a
sociedade portuguesa do fim do século XV. Nessas peças, passeia entre o irônico e o
declarado, sempre brincando com as palavras. Em “Pregunta do coudel-moor a Alvaro
Barreto”, cujo tema é a partida, na “Resposta do Coudel-moor”, em que alude ao carpe
diem, e na “Ajuda do Coudel-moor”, na qual retrata a crueldade de uma dama que só
procura o mal de seus servidores, percebe-se em Silveira, pelo artifício das perguntas,
respostas e ajudas, uma poesia marcada pelo apelo à convivência social, já que esses
subgêneros conclamam ao dialogismo. Numa longa trova de formato epistolar, “Do
Coudel-moor a Anrique d’Almeida, que lhe mandou pedir novas das cortes que El-Rei
Dom Joam fez em Montemoor O Novo, sendo, principe, o ano de setenta e sete, sendo
El-Rei seu pai em, França.”, recorre o poeta a um fato histórico para, em seu único
redondilho menor, brincar com números e palavras. Finalmente, dediquei-me, num
único subcapítulo, a demonstrar o apreço que Fernão da Silveira tinha pela forma.
Comentar-se-ão trechos de poemas em que a exaltação da forma avulta. Serão aludidas
as seguintes composições: “Trovas que fez o Coudel-moor, de poesia, indo d’Evora
pera Tomar, na ponte do Sor e Pavia”, um hendecassílabo essencialmente hermético;
“Coudel-moor por breve de ũa mourisca ratorta que mandou fazer a senhora princeza,
quando esposou”, em que registra a fala de um rei negro de Serra Leoa; “Do Coudel-
moor a El-Rei Dom Pedro que, chegando aa corte, se mostrou servidor d’ ũa senhora a
que ele servia”, resgatando uma forma de cantiga trovadoresca; seu esmero no uso do
“pé quebrado” é ressaltado no trecho da tenção “De Dom Goterre aos gibõoes de
Fernam da Silveira e Dom Pedro da Silva, que fezeram de borcado com meas mangas e
colar de graam”. Trago também, neste subcapítulo, alguns trechos tirados ao longo
poema “O Cuidar e Sospirar”, em que a mestria formal do Coudel-mor é
inquestionável.
Fernão da Silveira cultivou a maioria das formas estróficas, rítmicas e rimáticas
que proliferaram no período: a redondilha maior, a menor – em número mais exíguo –,
o
70
hendecassílabo (versos de arte maior), estas três consideradas a grande novidade
150
do
Cancioneiro Geral, o labirinto, a cantiga, esparsas, trovas, glosas, as ajudas, as
perguntas e respostas – estas duas igualmente consideradas uma inovação à maneira
das preguntas e respostas provenientes do Cancionero de Baena, estendidas ao
Cancionero General de Hernando del Castillo. A propósito dessas, é necessário, a esta
altura, recorrer às suas definições, cabal para o entendimento da poesia sutil e aguda do
Quatrocentos.
Em qualquer subgênero cancioneiril, como o vilancete ou a cantiga, por
exemplo, há um mote
151
, que é glosado (desenvolvido em versos) pelo proponente ou
por outros poetas, dando surgimento às ajudas (quando a um outro poeta é solicitada
sua opinião em relação a um questionamento feito pelo proponente), às perguntas
(dúvidas propostas por um poeta em forma de pergunta, pedindo a outro que responda
de acordo com sua sabedoria ou conhecimento sobre o lema) e às respostas
(esclarecimentos da dúvida trazida no mote pelo poeta proponente). Não seria
despropósito enxergar nas perguntas e respostas uma origem clássica. Olivier Reboul,
ao definir “dialética”, comenta que
os gregos eram grandes esportistas, praticantes de toda espécie de lutas e
competições. Mas também se destacavam numa disputa esportiva fora dos
estádios e ginásios, ou puramente verbal, a dialética. Dois adversários se
enfrentam diante do público: um sustenta uma tese – por exemplo, que o
prazer é o bem supremo – e a defende custe o que custar; o outro ataca com
todos os argumentos possíveis. O vencedor será aquele que, prendendo o
adversário em suas contradições, conseguir reduzi-lo ao silêncio, para grande
alegria dos espectadores
152
.
150
“O redondilho fixa-se, definitivamente, neste Cancioneiro, como metro típico do nosso lirismo. Mas o
lirismo do século XV (...) combina-se com os chamados “versos quebrados”, de três ou quatro sílabas,
nova modalidade de nossa métrica. Além disso, um outro metro comparece pela primeira vez na nossa
arte de trovar: o hendecassílabo...” (SIMÕES, op. cit., p. 113-114). Assim escreve Pierre Le Gentil sobre
os versos de arte maior, os hendecassílabos: “L’arte mayor est, au XVe. siècle, le vers de la poésie dite et
des preguntas. Il est tout a fait excepcionnel dans les cantigas et les genres à forme fixe. Il convient tout
particulièrement à ces longues compositions allégoriques qui eurent tant de succès à partir d’Imperial.
(...) Encina écrit, dans son Arte de Trobar, que l’arte mayor se compose de douze syllabes ou ‘de su
equivalencia’, en d’autres formes qu’il peut avoir plus ou moins de douze syllabes, à condition que sa
valeur ne change pas.” (LE GENTIL, Pierre. La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du
Moyen âge: les thèmes, les genres et les formes. Vol. II. Rennes: Plihon, 1952, p. 363-364, grifos do
autor).
151
Do surgimento e do uso dos motes e das glosas, comenta Maria dos Prazeres Gomes: “Junto com o
texto, outro círculo se fecha: o do diálogo transecular e renovador das formas. Sabe-se que tanto o refrão
quanto o mote e glosa são expedientes típicos da poesia primitiva, aquele presente desde as cantigas luso-
galaicas do século XIII, estes surgidos do Cancioneiro de Resende, e praticados não só no século XVI,
mas ainda nos séculos de hegemonia barroca e, agora, na versão herbertiana” (op. cit., 1993, p. 56). A
versão a que se refere é a de Herberto Hélder, poeta experimentalista português da segunda metade do
século XX.
152
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 27.
71
Mais à frente, comenta que a dialética é um jogo e, “como todo jogo, a dialética não tem
outro fim além de si mesma: joga-se por jogar; discute-se pelo prazer de discutir. E é
nisso que se distingue das atividades sérias: da filosofia por um lado e da retórica por
outro, ainda que lhes seja (...) indispensável”
153
. O jogo – e esta palavra não vem ao
acaso, veja-se na definição de Reboul que ele está intimamente ligado ao diálogo
dialético – das perguntas e respostas, mesmo que o elemento “vitória” possa estar
ausente, é a forma quatrocentista do diálogo ordenado, cabendo nele qualquer assunto,
desde o filosófico até o mais chulo, como se vê nas inúmeras sátiras.
Quanto ao ritmo, segue Fernão da Silveira uma outra inovação: a da
irregularidade
154
. São inúmeros os poemas em que a variação de timbre e tonicidade é
tão copiosa que, de um verso para outro, há uma altercação impetuosa. Quanto às
rimas, destacam-se as preciosas e as ricas, resultado da agudeza
155
dos compositores
palacianos. Como todos os autores presentes na compilação, Silveira aprimorou o uso
dos ornati de pensamento e os de palavras, valendo-se da annominatio
156
, enumeratio,
amplificatio (hipérbole), anastrophe (inversio, inversão), finito (definição), oxímoro,
anfibologia (ambigüidade), epizeuxe, antíteses – em grande número – metáforas,
reduplicatio (anadiplose), entre outras, como poder-se-á verificar nesta análise. Tal uso
confirma a eminência de uma poesia essencialmente retórica – nas palavras de Johan
Huizinga: “Os poetas desta época [do final do medievo europeu] são perfeitamente
capazes de exprimir emoções passionais em forma simples, mas quando desejam
atingir um nível de beleza superior recorrem à mitologia, empregam termos latinos
153
Idem, ibidem, p. 29.
154
Cf. Pierre Le Gentil (1949-1952) para um estudo mais aprofundado.
155
Quanto à agudeza – e engenhosidade – dos palacianos, cita Margarida Vieira Mendes: “...o
Cancioneiro regista já o nome ‘agudeza’ e o epíteto ‘agudo’. Nos desafios, apreciava-se a rapidez e
virtuosismo da versificação (as ‘respostas polos consoantes’), ou seja, a engenhosidade.” (Op. cit., 1999,
p.12). Quanto ao termo antecipar gostos da estética barroca, Maria Isabel Morán Cabanas aponta: “Até se
faz aqui [na poesia 129, CG, I, p. 391, que a autora analisa] referência explícita à agudeza, que se vinha
aprimorando como parte importante do modelo cortesão, antecipando-se portanto ao discurso dos
tratadistas barrocos” (Op. cit., 2001b, p. 283).
156
Citando Baltasar Gracián, quanto ao estudo da agudeza, Curtius afirma sobre esse ornatus: “O jogo
acústico, i. é, os jogos de palavras no sentido estrito (‘figuras de sons’), e especialmente a annominatio
ou paronomásia, tão popular em toda a Idade Média e ainda em Dante, são também produtos intelectuais
e podem, por isso, integrar-se na teoria conceptista” (Op. cit., p. 373). Assinale-se que essa figura
percorre toda a história da Literatura; na poesia galaico-portuguesa é denominada “mordobre”. No século
XX, os concretistas e experimentalistas retomam a paronomásia em suas criações poéticas, como se pode
verificar neste estudo.
72
pretensiosos e sentem-se ‘retóricos’
157
.” Com o enriquecimento da língua portuguesa,
novidades como o artigo definido com valor de demonstrativo
158
, substantivação do
verbo, elipses, variação nos tempos verbais, apesar de, por ser uma poesia de
circunstância, prevalecer o presente do indicativo. Também presentes estão palavras
novas
159
e neologismos, permitindo ao poeta criar baseado nas novas possibilidades de
uso do significante. O bilingüismo
160
não se restringe mais ao castelhano – o que é
claro pela proximidade cultural de Portugal e Castela –, mas, pelo intercâmbio com
outras nações, cresce o uso de expressões e palavras francesas, italianas, latinas, esta
como permanência cultural de séculos. Devido à expansão marítima, surgem textos em
que a oralidade do negro e do judeu é reproduzida. No metro, o abuso, mas com
157
HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto Abelaira. [Lousã]: Ulisseia, [1985],
p. 335). Sobre a retórica poética medieval, escreve Ernst Robert Curtius: “Do caráter retórico da poesia
da Idade Média resulta que, na interpretação de uma poesia, não devemos questionar a ‘vivência’ em que
ela se apóia, mas o objeto de que se trata, o que resiste a fazer o crítico moderno, sobretudo se tem de
analisar poemas sobre a primavera, o rouxinol ou a andorinha. E, no entanto, esses eram precisamente
temas prescritos pela retórica.” (Op. cit., p. 212).
158
Um exemplo encontra-se no processo de “O Cuidar e Sospirar”, numa das intervenções de Fernão da
Silveira, e aparece no décimo verso:
Porem eu responderei
essas partes mais forçadas
e tambem repricarei
a outras por que passei
qu’havia por escusadas,
cuidando que o cuidado
se desse já por vencido,
mas pois tam aperfiado
o por ele alegado
será por mim respondido. (CG, I, 1, p. 68-69).
(O grifo no artigo “o” é meu).
159
Observe-se o uso da palavra “modernos” numa das intervenções do Coudel-mor em “O Cuidar e
Sospirar”. O sentido é de “contemporâneos”, mesclado ao sentido denotativo da palavra, o de
“inovadores”:
Mas s’i há quem crer se peja
estes doutores modernos,
porque mais craro se veja
creamos a Santa Egreja,
que segura dos infernos. (CG, I, 1, p. 57).
(O grifo na palavra “modernos” é meu).
160
Comenta Dulce de Faria Paiva: “Quanto a castelhanismos ou hispanismos, sua indicação ainda é mais
precária, devido principalmente a dois fatos: o bilingüismo e a grande semelhança existente entre ambos
os idiomas (português e espanhol) nesse período arcaico. (...) O bilingüismo predominava dos meados do
século XV à primeira metade do século XVII, em virtude do estreitamento cada vez maior das relações
políticas, sociais e culturais entre Portugal e Castela. (...) a supremacia hispânica alcançou tal
importância, que o castelhano, falado e escrito, era usado como segunda língua, não só pelos aristocratas,
mas também pelas pessoas cultas e letradas de Portugal”. (Grifos da autora). (In: História da Língua
Portuguesa. II. Século XV e meados do século XVI. São Paulo: Editora Ática, 1988, p. 29).
73
propósitos estéticos, dos “pés quebrados” em posições muitas vezes diferenciadas,
como se verá adiante.
Quanto aos temas, cultiva o poeta a casuística amorosa, à moda do amor cortês
trovadoresco; entretanto, o fingimento de amor cede lugar a sentimentos mais sinceros
e individuais, quase sempre fincados nas antíteses; vale-se da poesia para registro do
estado e costumes da Corte; na sátira, a pornografia declarada e, também, a sutil. O
“eu” dividido e o carpe diem aparecem, em seus poemas, como preocupação de época,
revelando já um espírito atento às transformações por que passava a sociedade européia
no declínio do medievo.
A fim de não se tornar exaustivo e repetitivo durante as análises do corpus
poético de Fernão da Silveira, cabem aqui algumas palavras sobre a questão das rimas e
do ritmo de suas composições. A exemplo da maioria dos contemporâneos, o Coudel-
mor usa, em profusão, da irregularidade rítmica e dos “ajustes” fonéticos para
harmonizar a contagem métrica. Exemplos são a diérese em “Val/re/de/a/d’u/vas”, no
redondilho menor do poema 28; o hiato poético em “que/a/mãao/nun/ca/lhe/do/a”, no
redondilho maior do poema 30; a sinérese (-cio-) e a elisão (-taei-) em
“Se/nho/ra/gra/cio/sa/dis/cre/taei/ce/len/te, do labirinto 45; além de inúmeras elisões. O
ritmo é freqüentemente quebrado nas alternâncias de sons fortes e fracos, com
intenções de desviar a sensaboria própria daquele tipo de poesia e de mostrar maestria e
mesmo destreza no manejo dos recursos poéticos. No poema 28, como exemplo, o
ritmo recai nos segundos e quintos versos, próprios da redondilha menor, mas no
terceiro heptassílabo, o poeta usa sílabas fortes no primeiro, terceiro e quinto versos:
do/ze/tur/dos/cur/tos”. Nas trovas de número 30, também o ritmo acentua-se nas
terceiras e sétimas sílabas (“Po/las/pra/ças/de/Lix/boa”), com várias exceções em que
alterna a tonicidade nas quartas e sétimas, por exemplo: “Mas/ũ/de/nós/cin/co/ou/seis”.
Quanto às rimas, também a irregularidade e a profusão. Evidencia-se, devido ao
desenvolvimento, então, da língua portuguesa, o uso das rimas ricas; contudo, num
mesmo poema mesclam-se as ricas com as pobres e até com as preciosas, como nas
trovas que o Coudel-mor dirige a seu sobrinho, em forma epistolar, uma espécie de
74
enseigment
161
de como se comportar, e ser objeto de desejo e respeito, no Paço,
brevemente comentadas no Capítulo I. As rimas são ricas numa oitava, pobres noutra,
ricas e pobres na próxima e pobres com preciosas a seguir, como em “calo / tratá-lo” e
“verdadeiro / primeiro”. A alternância dá-se, também, nos gêneros das rimas –
femininas ou paroxítonas, e masculinas ou oxítonas. Tome-se a glosa 36: nos primeiros
quatro versos da primeira estrofe, masculinas com femininas; nos quatro últimos,
apenas femininas. Na próxima oitava, todas femininas; já na terceira, segue-se o
esquema da primeira estrofe, e no quarto octossílabo, femininas mais masculinas e
masculinas mais femininas; na quinta, repete-se a ordem da primeira e terceira estrofes
e, no Fim, muda-se para masculinas e femininas. Ainda no poema 28, referido no
parágrafo anterior, o Coudel-mor usa sessenta e quatro tipos diferentes de rimas para
compor seu longo relato da situação do reino. O resultado dessa copiosidade e
assimetria rímicas é que, quando não exaurem pelo exagero, elas podem demonstrar
acuidade com as possibilidades que as palavras permitem ao poeta inventivo.
Sobre essa irregularidade presente no Cancioneiro, comenta Pierre Le Gentil:
Parlerons-nous alors de licence poétique? Parlerons-nous plutôt de
versification irregulière? (...) il est clair que la poésie péninsulaire n’a pas la
superstition des règles et que les poètes castillanes et portugaises, à part
quelques esprits scrupuleux comme Juan de Mena et le Marquis de
Santillane, n’attachent pas au métier une importance excessive; ce n’est pas
la première fois que nous soulignons cette tendance à la facilité, et que nous
prononçons le mot d’improvisation. Improvisateurs, les rimeurs de la fin du
XVe. siècle le sont presque tous; ils en ont les défauts et aussi les qualités,
car leurs dons naturels, leur souplesse, leur virtuosité sont parfois
remarquables
162
.
Distingue ainda o estudioso francês três características dessa irregularidade: (1) as
rimas que seguem o tema inicial não são idênticas às daquele tema; (2) as pièces de
citation, em que se terminam as estrofes com alguns versos de canções ou poemas
alheios – em latim, chamados “poemas cum auctoritate”
163
; e (3) irregularidades
161
O termo deriva do provençal ensenhamen que “corresponde a nuestros conceptos de ‘cultura’ y ‘buena
educación’, ya que una persona ‘mal ensenhada’ quiere decir que es ‘zafia’, ignorante; y cuando aquel
concepto se aplica a las damas se aproxima a lo que en la literatura castellana de los siglos XVI y XVII se
llamaba ‘discreción’ (una ‘dama discreta’ era, por lo general, una mujer instruida e inteligente)”
(RIQUER, op. cit., I, p. 89). A essa poesia também me referi no Capíttulo I, quando se comenta sobre a
exacerbação do “eu” que cultiva a aparência em prejuízo do caráter..
162
LE GENTIL, op. cit., 1952, p. 187-188.
163
“... con el último verso de cada estrofa tomado de una poesía de outro autor” (RIQUER, op. cit., III,
p.1650). Observe-se que nem sempre os palacianos obedecem à colocação dessas frases no último verso.
75
arbitrárias
164
, em maior número e que se pôde observar no exíguo levantamento acima.
Para além de defeito, deduz-se, primavam os palacianos pela destreza formal, mas,
sobretudo, pela condensação daquilo que é próprio do espírito peninsular – mais
acentuadamente português: o apreço pelo lúdico e pela necessidade de desconstruir o
comum.
Finalmente, à questão da dessimetria formal, da destreza e do lúdico, há de se
acrescentar uma relevante qualidade nas peças de engenho de alguns poetas palacianos.
Heinrich Lausberg diz que a vivência com a uniformidade e monotonia causa o
taedium
165
. Para fugir ao fastídio, os poetas palacianos procuraram – e por isso mesmo
causaram até o contrário – distinguir-se pela variatio. Segundo o estudioso alemão, é
ela que se opõe à invariabilidade, provocando a vivência do estranhamento e faz com
que a sensaboria retórica se amenize pelo delectare e pelo movere afetivos. No primeiro
caso, são os poetas suaves nas suas enunciações; no segundo, agressivos. É usando o
recurso do docere informativo que os poetas palacianos engenhosos intentarão causar
estranhamento através do genus obscurum, com tropos e figuras que procuram a
obscuritas; e através do genus admirabile – paradoxos, hipérbole e ironia – vão rechear
suas composições no intuito de provocar surpresa e deleite. Essa procura da variatio
pode-se verificar em algumas produções do Coudel-mor, as quais serão, em seguida,
abordadas. A primeira que se destaca, e à qual dedicarei mais atenção, é o labirinto 45,
“Outra Sua.”, que considero, reitere-se, centro deste estudo.
Se no Cancioneiro de Resende não são novidades os acrósticos, os anagramas, o
pantogramatismo – cujos exemplos serão definidos e expostos no próximo capítulo –
inusitado é encontrar um único labirinto criado por Fernão da Silveira, diferente mais
pela forma do que pelo tema declamado. O poema é “Senhora, graciosa, discreta,
eicelente” e desperta atenção pela sua estrutura formal.
O poema assim se apresenta já na primeira edição do Cancioneiro Geral (1516)
164
LE GENTIL, op. cit., 1952, p. 188-189.
165
LAUSBERG, op. cit., p. 112.
76
e vem intitulado “Outra sua” (CG, I, 45)
166
:
:
Senhora graciosa, discreta, eicelente,
sentida, humana, d’amores immiga,
garnida d’oufana, d’honores amiga,
d’agora fermosa, secreta, prudente,
excrude em vós tacha castigo manante,
perfeita bondade, inteiro enxempro,
sogeita à verdade, verdadeiro tempro
virtude vos acha consigo costante.
Essa composição original é formada por quatro esparsas alinhadas verticalmente,
o que, já aí, constitui uma fuga ao padrão do Cancioneiro: todas as esparsas dessa
reunião de poemas ou são monostróficas ou, quando duplas, seguem a distribuição de
uma fila indiana. A disposição espacial dessas esparsas ocupa todo o branco da página e
sua visualização destaca-se por estar o poema quase que isolado das outras peças no
fólio.
Não há registros críticos que expliquem a motivação inventiva – que o poeta
chama de “arte” e atribui a ela “long’ee curta” – a que foi levado Fernão da Silveira na
elaboração dessa peça poética. Entretanto, ele próprio, em seguimento a ela, conforme
166
Para a transcrição das poesias do Cancioneiro Geral serão usados a abreviatura do título da obra, o
volume em que se encontra e o seu número; para excertos, será adicionado o número (ou números) da
página.
Com relação à disposição visual deste labirinto, verifica-se que a editora do Cancioneiro, Aida Fernanda
Dias, na sua edição de 1998, não seguiu a mesma forma da do compêndio de Garcia de Resende, i. é, não
permite a visualização das quatro colunas do poema de Silveira. Em troca de correspondência eletrônica
com a estudiosa, perguntei o porquê de, na edição crítica dela e na que editou junto com o do Dr. Costa
Pimpão (1973), a poesia não ter sido disposta de acordo com a edição do Cancioneiro Geral de 1516. Em
resposta, Dias alegou: “Nas minhas duas edições, foram feitas tentativas de reproduzir o texto em colunas
harmoniosas, o que se não conseguiu, tal como Resende o não conseguiu também. Basta olhar para o
desalinhado dos últimos versos, como já viu. Silveira, com aquela disposição, abriu caminho para as
muitas leituras, mas já o seu amigo Á. de Brito foi mais preciso, dizendo que as suas trovas panegíricas
aos Reis Católicos se poderiam ler de 64 maneiras. Jogos poéticos que são de ter em conta.” (DIAS, Aida
F. Cancioneiro Geral. Mensagem eletrônica recebida por <[email protected].br>, em
22.set.2005).
É certo que a disposição na edição de 1516 está irregular, mas, ainda assim, é clara sua intenção
estrutural: quatro colunas de palavras “separadas por espaços verticais, de modo a evidenciar a rima
interna que liga os vocábulos de cada coluna”. (DIAS, Helena Marques & CASTRO, Ivo. A edição de
1516 do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Revista da Faculdade de Letras de Lisboa. IV série,
n. 1, Lisboa, 1976-1977. Separata, p. 110-111). Nesta separata, diga-se de passagem, os dois autores
dedicam-se a estudar os problemas de editoriação do Cancioneiro de Resende e destinam longa
escrutação sobre o labirinto de Fernão da Silveira.
Somente a título de curiosidade cf. os ANEXOS, em que se reproduz o labirinto no original de 1516, na
edição de 1910-17, do Dr. Gonçalves Guimarães e na atual edição de Aida Fernanda Dias (1998b).
77
epígrafe de Garcia de Resende, cria uma nova esparsa, explicando-a. Na sua longa
didascália, escreve Resende: “Desta copra do Coudel-moor atras escrita
167
se fazem
muitas copras e foe feita sobre aposta com Alvaro de Brito, porque disse que nam na
faria ninguem tal como a sua e apostaram capõoes pera a Pascoa.”, e vem assim
publicada:
Por comprir minha promessa
como quem o som vos furta,
esta fiz mais que depressa
por voss’arte, long’ee curta.
E pois nacem copras dela
nam menos da que fizestes,
fazê vós os capõoes prestes
qu’aqui é a Pascoela. (Ibidem)
Não foram encontradas no Cancioneiro outras coplas a que alude Fernão da
Silveira, que deveriam seguir a forma de distribuição gráfica como a que ele produziu.
Entretanto, pode crer-se que, em sendo Álvaro de Brito, da mesma forma, um poeta
criativo, já que são dele alguns acrósticos e poemas pantogramáticos dedicados aos Reis
Católicos de Espanha, Fernando e Isabel, talvez, nessa esparsa acima, quer Silveira
referir-se àquelas composições de Álvaro de Brito
168
e que foram criadas por aposta
entre os dois poetas. Nada há, também, nos estudiosos que se ativeram à análise desse
poema, mas não parece estar descartada a possibilidade de ser uma contenda entre os
dois poetas
169
.
4.1. UMA SENHORA QUE CONDUZ O POETA À DANÇA E À MUSICA
Quanto ao tema de “Senhora, graciosa, discreta, eicelente”, o Coudel-mor não
foge ao convencionalismo da poesia palaciana, a casuística amorosa, mas pretende
ousar na forma. Silveira cria um poema cujo ponto de partida é a “Senhora”, sua devota,
167
Ou seja, o poema “Senhora, graciosa, discreta, eicelente”.
168
Cf. os anagramas e os acrósticos de Álvaro de Brito, no Cancioneiro Geral, op. cit., 1998a.
169
Sobre essa possibilidade, escreveu Isabel Almeida: “Vem a propósito lembrar que no Cancioneiro
geral (23r-v) ficou registada, juntamente com uma copla labiríntica de Fernão da Silveira, a seguinte
rubrica esclarecedora ‘Desta copra do coudel-moor atrás escrita se fazem muitas copras e foi feita sobre
aposta com Álvaro de Brito, porque disse que não na faria ninguém tal como a sua, e apostaram capões
pera a Páscoa.’, ‘A sua’, se se tratou de uma estrofe isolada, perdeu-se, mas teria decerto afinidades com
os textos laudatórios dedicados aos monarcas espanhóis”. (In: OBRAS de Álvaro de Brito. Edição,
introdução e notas por Isabel Almeida. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 26-27).
78
que pode ser lido tanto na vertical, sendo por isso harmônico, quanto na horizontal, daí
ser melódico
170
, com o mesmo sistema de rimas e ritmo, além de permitir uma leitura
alternada, sem que se perca a intencionalidade e principalmente a musicalidade.
Entende-se que, pelo som, pelo ritmo, pela sua construção binária – um som
fraco, um forte, um fraco – o poema faz música com as palavras, agora que ela não é
mais acompanhada por instrumentos musicais. A composição rítmica dos quatro
primeiros versos, tanto na vertical quanto na horizontal, tem sonoridade acentuada para
cima ou para a direita:
Senhora/graciosa/discretaei/celente
sentida/humana/d’amores/immiga,
garnida/d’ufana/d’honores/amiga
d’agora/fermosa/secreta/prudente:
Declamando-se os quatro últimos versos, a sonoridade é mais branda, para baixo ou
para a esquerda:
Excrudeem/vós tacha/castigo/manante,
perfeita/bondade/inteiro/enxempro,
sogeitaa/verdade/verdadeiro/tempro,
virtude/vos acha/consigo/costante.
É o ritmo da dança – tänzerischer Rhythmus no conceito de Wolfgang Kayser:
um ritmo vigoroso “mais forte nos acentos, a exactidão maior dos kola
171
e a função
170
O conceito sobre melodia, quando os versos comandam as linhas horizontais, e harmonia, quando os
sons se combinam verticalmente, é teorizado por Décio Pignatari (Op. cit., p. 35).
171
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. (Introdução à Ciência da
Literatura). 6 ed. Revisão Paulo Quintela. Coimbra: Arménio Amado, Ed., 1976. Colecção Studium. P.
272-286. “Chama-se ‘kola’ [aos] agrupamentos autênticos do verso, delimitados por pausas perceptíveis.
O que forma a unidade do ritmo não são as distâncias entre os acentos, com as suas simples relações
numéricas, mas sim os kola (...). O “ritmo dançante” assemelha-se ao “ritmo fluente” (fliessender
Rhythmus) e, de certa forma, está presente no poema do Coudel-mor, já que se caracteriza pela “leveza e
semelhança das pausas, a forte correspondência dos kola, a função importante dos versos quanto ao
ritmo.(...) Não é difícil reconhecer até que ponto são favoráveis os versos curtos ao ritmo fluente. (...).
Também as estrofes curtas, regulares, em si de estrutura mais simples e solta, se mostram vantajosas: os
versos seguem-se quase sem tensão e sem subordinação complicadas” (Idem, ibidem, p. 283).
79
mais importante das pausas mais diferenciadas. Perante a macia fluidez, na totalidade
distingue-o uma forte tensão
172
”. Observe-se, nessa análise rítmica, que, aparentemente,
o adjetivo “verdadeiro” quebra a harmonia binária do poema, o que leva a se
considerarem dois aspectos: ou a última sílaba une-se à próxima da palavra “tempro”, o
que seria mais uma prova da tão comentada irregularidade versificatória dos poetas
palacianos, ou o que parece mais condizente com a inovação e com o uso constante
pelos autores quatrocentistas – valeu-se Silveira do “pé quebrado”, se se considerarem
as duas primeiras colunas uma redondilha menor. Isso não seria incorreto, uma vez que
o labirinto permite múltiplas leituras. Parece estar descartada, dessa forma, a
possibilidade de defeito de elaboração, mesmo porque o trabalho composicional desta
cantiga não revela improvisação, haja vista a preocupação com a disposição gráfica do
poema.
A peça é, enfim, essencialmente melopaica, cuja intenção é criar música através
do ritmo. Essa melopéia, diga-se de passagem, é “descrita da tradição helenística e
provençal”
173
. Entretanto, o uso excessivo de adjetivos (num total de dezesseis) e
substantivos abstratos (oito) para exaltar sua dama, reforça o uso da logopéia
174
como
coadjuvante: os dois únicos substantivos concretos – “senhora” e “tempro” – têm força
semântica inconfundível, pois esta “senhora” é aquela a quem o poeta devota seu amor;
“tempro” é o reduto místico onde todas as suas qualidades se encontram. O “eu” poético
parece pretender mostrar que sua dama é idealizada como numa operação matemática,
em que o produto é a perfeição, se se considerar a qualidade – e quantidade – dos
atributos.
Roman Jakobson, citando Gerard Manley Hopkins, explica que há duas espécies
de paralelismos numa produção poética: o de oposição cromática, quando a ênfase está
na seqüência rítmica, na seqüência silábica, no metro (versos de duas sílabas poéticas),
nas rimas interpoladas; outro, o de oposição acentuada, quando a ênfase está na
metáfora, no símile, na parábola, na semelhança e na dessemelhança
175
. Pode-se
observar que o paralelismo de “oposição cromática” está presente no poema analisado,
172
Idem, ibidem, p. 283.
173
MELO E CASTRO, op. cit., 1984, p. 16.
174
Cf. nota (263).
175
JAKOBSON, op. cit., 1999, p. 146.
80
já que o poeta escolhe uma construção binária, assim como o ritmo da dança, o que
induz ao sentido logopaico da composição, pois nela só existem dois seres: o poeta e
sua amada. A musicalidade dá-se pelo jogo de palavras e pelo som que imita a dança,
como que materializando-a pela forma, principalmente: audaciosa e múltipla nas
possibilidades de declamação; esta vem na recorrência aos pronomes “vós” e “consigo”,
além de uma adjetivação hiperbólica
176
para descrição do Outro. No entanto, a
“oposição acentuada” não está de todo ausente, posto que a metáfora nesse poema
expressa-se pela condensação – a palavra “tempro” é sinônimo das virtudes daquela que
o poeta exalta, é o ambiente próprio de sua “Senhora”.
4.1.1. A descriptio puellae: forma e caráter da mulher medieval
Observe-se, agora, como se constrói a dualidade dessa “senhora” que é
“d’honores amiga”, mas, concomitantemente, “d’amores immiga”. Aqui o poeta usa o
recurso da annominatio: dentro de immiga está amiga; esta figura, a par de mostrar a
identidade no nível do significante, permite a formação da antítese: a paronomásia aqui
tem o intuito de mostrar a ambigüidade de sua dama. Essa dama tão cheia de atributos
virtuosos não o ama, pois é “d’amores immiga”. Todos os adjetivos com que o “eu-
lírico” recheia seu poema, à exceção de “immiga”, são atributos positivos de sua dama.
Referem-se à sua beleza, candura e bondade; contudo, o único a trazer o mal ao amante
é aquele de sentido negativo – “immiga” –, aquele que faz com que sua dama não o
ame, assim como ele a serve. Se seu objeto de amor é perfeito, ao mesmo tempo é cruel,
pois não corresponde ao sentimento do servidor.
Juntamente com os atributos morais e de atitude, os poetas medievais
costumavam exaltar a beleza física de sua dama, atribuindo ao seu corpo a imagem da
compleição perfeita. Ao longo da História, as proporções do corpo humano foram
estudadas por filósofos, artistas, teóricos e arquitetos. O arquiteto romano Marco
Vitrúvio Pollio (séc. I a.C.), por exemplo, em De architectura, comparava a perfeição
de um edifício à perfeição humana. Se os edifícios são construídos para pessoas,
deverão, dessa forma, ser reproduções daqueles que aí habitarão e vice-versa. Para o
176
“Um dos traços fundamentais da imaginação lírica é a tendência para o exagero. A poesia precisa ser
exorbitante.” (HUIZINGA, op. cit., 1993, p. 158).
81
homem da Idade Média e o da Renascença, “os laços entre a aparência percebida como
uma construção e o sentimento do belo (forma-formosus) foram um dos temas
recorrentes da reflexão escolástica sobre a criação, e, depois, da especulação sobre os
números dos geômetras e dos artistas da Renascença”
177
. Para Fernão da Silveira, a
dama do final do medievo é retrato dessa formosura plena. O poeta faz, neste poemeto,
uma analogia entre o templo e a beleza de sua amante – principalmente seus atributos
interiores. A imagem que dela constrói, usando todos os expedientes do léxico próprio
do amor cortês, é aquela da transformação pela qual passava toda a Europa: harmonizar
a cultura clássica junto ao novo. O que vale observar nessa sua composição, quanto a
essa analogia, é que o Coudel-mor procurou transformar o modo como reproduziu o
ideário da época, qual seja, através do labirinto.
Johan Huizinga afirma que, na Idade Média, os contemporâneos admiravam
mais os poetas do que os pintores, mesmo que aqueles, no parecer hodierno, fossem
superficiais, monótonos e enfadonhos, por repetirem ad nauseam os mesmos temas e
imagens. Explica que isso se dava porque as palavras e as imagens têm uma função
estética diferente da pintura.
O contemporâneo vibrará com as palavras do poeta porque o pensamento que
ele exprime faz parte integrante da sua vida e parecer-lhe-á tanto mais
interessante quanto mais brilhante for a forma. (...) Mas se esse pensamento
estiver já gasto e não corresponder às preocupações da alma, nenhum valor
se lhe atribuirá excepto o da forma. E essa tem, indubitavelmente, extrema
importância
178
.
É na forma, portanto, que os poetas palacianos, nas palavras do próprio estudioso
alemão, encontrarão um meio de exaltação do belo
179
. E é com esse artifício formal, ao
exprimir uma simples imagem ou cena, ou ainda um sentimento ingênuo, que eles
revelarão seu vigor. É nos pequenos poemas que a beleza se mostrará, a exemplo dos
rondós e baladas, pois “a graça depende da sonoridade, do ritmo e da imagem; com
177
BRAUNSTEIN, Philippe. Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV. In: História da Vida
Privada. Da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Vol. 2, p. 550-551.
Para uma relação entre a Escolástica e o estilo gótico, consulte-se PANOFSKY, Erwin. Architecture
Gothique et Pensée Escolastique. [Paris]: Les éditions de Minuit, [1967].
178
HUIZINGA, op. cit., [1985], p. 284-285.
179
Idem, ibidem, p. 290.
82
efeito, quanto mais a canção artística da época se aproximava da canção popular maior
encanto revelava”
180
. Essas afirmações de Huizinga cabem bem no labirinto do Coudel-
mor. No pequeno poema que compôs, além da sonoridade e do ritmo, constrói o “eu-
lírico” a imagem de sua dama idealizada.
Ainda com relação à beleza, Pierre Le Gentil pontua que “au Portugal, on
insistait moins sur les qualités physiques que sur les qualités morales; le plus souvent,
un seul mot suffisait à la description; on se contentait de dire que la dame était fremosa
ou de bom parecer. Au XIVe. et au XVe.siècles (...) on tente de trouver mieux et l’on
emploie un certain nombre de comparaisons
181
.” Assim, além da forma poética para
expressar o belo – uma das características da produção literária do final do
Quatrocentos –, os poetas portugueses primam pela descrição das virtudes da dama e
pelas comparações, como se vê nesse labirinto do Coudel-mor. Quanto a isso, Maria
Isabel Morán Cabanas
182
registra: “o corpo fala e informa largamente das problemáticas
do indivíduo face ao colectivo: ele torna-se um modo de apreensão do mundo, tanto
através da valorização da beleza como da rejeição da fealdade e dos propósitos de
maceração”. Contudo, para a estudiosa, mesmo que a “Senhora, graciosa, discreta,
eicelente” venha ornamentada de virtudes, como indica a exagerada adjetivação, no
plano formal “estes exercícios de agudeza apresentam um uso muito reduzido nos
poemas do Cancioneiro português e, quando se registam, carecem em geral de qualquer
dose de originalidade, seguindo a linha da tradição peninsular
183
”. Há de se assinalar,
entretanto, que esses mesmos exercícios, e por seguirem a tradição, (re)floresceram com
intensidade no Barroco e, séculos depois, na arte concretista e experimentalista,
conforme
180
Idem, ibidem, p. 305.
181
LE GENTIL, Pierre. La poésie lyrique espagnole et portugaise à la fin du Moyen âge: les thèmes,
les genres et les formes. Vol. I. Rennes: Plihon, 1949, p. 105.
182
MORÁN CABANAS, op. cit., 2001b, p. 269.
183
Idem, ibidem, p. 568.
83
depoimentos de críticos e estudiosos
184
.
Nesses comentários, o que se quis registrar é como um tema tão antigo – a
beleza da mulher servida – pôde ser relido e reconstruído através de uma forma que
permitisse uma nova visão do tradicional. Essa beleza e as qualidades da dama amada
puderam ser exploradas de forma distinta no labirinto do Coudel-mor. Mas esse
pequeno poema permite, ainda, algumas outras considerações, nomeadamente quanto ao
modo de produção desse labirinto. Isso pode-se notar nos opostos “artificialidade”
versus “naturalidade” na criação poética, o que proponho fazer em seguida.
4.1.2. A artificialidade na “poesia natural” de Fernão da Silveira. Olhar. Cantar.
Ouvir. Dançar
Fernão da Silveira ousou, em meio àquela verbosidade própria das poesias
palacianas, criar uma obra que uniu a singeleza do sentimentalismo lírico-amoroso – a
expressão da emotividade do “eu”, própria de uma “poesia natural” –, à poesia de
realização, própria do tipo artificial, como definido por Max Bense. Segundo Bense, a
diferença essencial entre “poesia natural” e “poesia artificial” está apenas no modo de
produção, uma vez que o poeta, em ambos os casos, trabalha com as palavras. O
pressuposto da poesia natural é o conceito hegeliano de consciência poética pessoal
185
,
184
Em artigo publicado na Revista Signum retoma o assunto e assim se expressa Morán Cabanas,
contradizendo-se, de certa forma, quanto a essa originalidade: “Como muitos outros rimadores que foram
incluídos no Cancioneiro Geral, para além de se exercitar na crítica social, mais profunda, que denuncia o
desconcerto do mundo e condena as classes sociais e instituições corrompidas, ele [Garcia de Resende]
também fez de qualquer pormenor matéria poetável, atitude que já tem sido comparada com a produção
poética do Barroco. Efetivamente, muitas das composições seiscentistas surgiram em concurso e outros
passatempos das academias ou em torneios poéticos. Para os autores de ambos os períodos, tudo se torna
ponto de inspiração, o que advém em boa medida de uma tendência marcadamente realística e da
convicção de que o importante é o jogo conceituoso que o engenho poderá tecer.” (In: Coisas de folgar
redigidas por Garcia de Resende: alguns retratos caricaturescos. Signum, n. 7, São Paulo, 2005, p. 61).
185
Apud BENSE, Max. Pequena Estética. (Org.) Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1971.
(Estética) , p.181-182.
84
uma consciência que possui vivências, experiências, sentimentos,
lembranças, pensamentos, representações de uma faculdade imaginativa, etc.
(...) Cada palavra, que ela expressa, sucede à experiência do mundo de um
eu, e mesmo a posição estética assim atribuída a cada palavra pode ser
compreendida, ainda, como um reflexo desse mundo
186
.
Na “poesia natural”, determinadas classes de palavras (por exemplo, substantivos,
verbos e adjetivos) gozam de certa posição preferencial em relação ao conteúdo
semântico, que em geral comparece como portador do estético
187
. De acordo com o
autor, para concluir o processo de comunicação, a poesia natural deve ser declamada
188
.
A “poesia artificial”, por sua vez, é
aquela espécie de poesia na qual (...) não há nenhuma consciência poética
pessoal” [experiências, vivências, sentimentos, lembranças, etc.]; “não há,
portanto, nenhum mundo preexistente e em que o escrever não é mais um
processo ontológico, através do qual o aspecto-do-mundo das palavras possa
referir-se a um eu
189
.
Para a “poesia artificial”, só existe uma origem material: os textos. O programa da
“poesia artificial” compreende três direções: a estatística (freqüência de palavras), a
estrutural (classes de palavras e sua ordenação) e a topológica (relação de analogia e
deformação das palavras, entendendo-se deformação pela transformação das palavras
em relação ao seu sentido original). Exemplos de “poesia artificial” seriam as poesias
concreta, serial, matemática, cibernética, etc.
A “poesia artificial” assume, entretanto, traços da poesia natural quando as
seqüências de palavras proporcionam um sentido. Em direção inversa, a poesia natural
assume traços da artificial quando, por exemplo, há manipulação material precisa do
ritmo e do metro.
186
Idem, ibidem, p. 181-182.
187
Para Bense, na poesia natural, essas classes de palavras são selecionadas para formar o estético; já na
poesia artificial, “a realização material das palavras (...) coincide com a estética” (...) pois, “as palavras
estão a priori em posição de igualdade”. (Idem, ibidem, p. 184-185).
188
Idem, ibidem, p. 184 passim.
189
Idem, ibidem, p. 182.
85
Utilizando esse moderno
190
recurso de análise poética
191
, pode-se vislumbrar no
poema do Coudel-mor uma mescla do natural, pelo seu lado conteudístico, e uma do
artificial, pelo seu lado formal. Se as classes de palavras – os adjetivos, no caso
específico desse poemeto – gozam de posição preferencial em relação ao fundo
semântico, denotando poesia natural, o uso trabalhado destes mesmos adjetivos denota
poesia artificial: em seu programa estrutural a seqüência selecionada é muito bem
determinada. Seu poema é natural porque pode ser interpretado
192
, mas artificial porque
é poesia de realização. Se deve ser declamada para concluir o processo de comunicação,
traço da poesia natural, porque aqui as palavras são reflexo do mundo do poeta, a
precisão do ritmo, do metro e da rima traçam a elaboração de uma poesia artificial,
voltada para si mesma, interessada na construção poética, interessada em ser ouvida,
cantada, dançada – o que importa é a magia sonora que foi criada pelo signo.
Ainda, como forma de construção poética, válida para qualquer movimento
literário, o conceito de construção defendido por Mallarmé vem apoiar o parecer aqui
apresentado:
Assim ele [o poeta] constrói uma sintaxe espacial, em que as imagens verbais
funcionam como notas musicais, numa síntese espaço-sonora que sugere uma
cosmogonia de dualismos e contradições que se organizam e desorganizam
190
Como disse na Introdução, algumas teorias modernas seriam utilizadas neste estudo. É o caso da
definição de Max Bense sobre poesias “natural e artificial”. O Coudel-mor, ao compor seu labirinto,
almejava declamá-lo para uma audiência que prezava o recorrente tema da servidão, da beleza feminina e
de suas qualidades físico-morais, revelando, assim, uma “poesia natural”. Mais do que improvisação, o
labirinto de Silveira denota um trabalho de elaboração pela escolha precisa das classes de palavras, do
ritmo, das rimas e do arcabouço do poema, os quais revelam uma “poesia artificial”. É dessa forma que,
por mais vagos que sejam esses traços “comunicacionais e elaboracionais” – o de declamação para
concluir o processo de comunicação e o de uma poesia voltada para si mesma –, o objetivo único de
trazê-los à discussão é essa, a da técnica que se pode verificar no poema de Fernão da Silveira, em
oposição à alardeada improvisação.
191
Contudo, é propício também aqui citar o conceito de artificialidade/naturalidade desenvolvido por
Baltasar Gracián: “Otros dos géneros de estilo hay célebres, muy altercados de los valientes gustos, y son
el natural y el artificial; aquél, liso, corriente, sin afectación, pero próprio, casto y terso; éste, pulido,
limado, con estudio y atención; aquél claro, éste dificultoso.” (In: Agudeza y Arte de Ingenio. (Ed.)
Evaristo C. Calderón. Madri: Clásicos Castalia, 1988. Tomo II, p. 242). Gracián remete aos conceitos de
ornatus facilis e ornatus difficilis, ao que parece, o que cabe bem ao que vem se desenvolvendo neste
estudo.
192
“A poesia natural pode e deve ser interpretada, porque na maioria das vezes só com a interpretação se
tornam perceptíveis, de um lado, a relação com o eu, e, de outro, o aspecto-do-mundo que há nas
palavras, concluindo-se, assim, o processo comunicativo. Como a essência da interpretação consiste,
principalmente, no estabelecimento da relação com o eu e do aspecto-do-mundo de um texto, ou seja, no
apelo ao que chamamos processo ontológico (o que não existe na poesia artificial), para esta uma
interpretação não tem sentido”. (BENSE, op. cit., p. 185).
86
no potencial sígnico da página em branco. Com esta descoberta Mallarmé
transformou a linguagem
193
.
Esse processo de construção, espacial, imagético, sonoro, remete à poesia inovadora de
Silveira.
Nesse seu pequeno poema, pode-se perceber uma existência concreta, plena de
tensões sonoras, visuais, imagéticas e pulsionais. Essa concretização dá-se pela
transformação que o Coudel-mor faz do poema em música, usando a construção binária,
pela estrutura arquitetônica do poema, montado sobre quatro colunas verticais, o que
remete à imagem que o poeta tem de sua senhora: ela é tão virtuosa como as bases que
sustentam um templo. Isoladamente, contudo, cada significante tem somente o intuito
de demonstrar destreza com a parte significante do signo, tornando-se seu pequeno
poema uma brincadeira. Da mesma forma, nesse labirinto do Coudel-mor, observa-se a
relevância do ver, ouvir e falar, tão cultuados na poesia contemporânea. Augusto de
Campos utiliza uma expressão de James Joyce para caracterizar “uma estruturação
ótico-sonora irreversível e funcional, e (...) geradora de idéia, criando uma entidade
todo-dinâmica, ‘verbivocovisual’ [é o termo de Joyce] de palavras dúcteis, moldáveis,
amalgamáveis, à disposição do poema
194
” (grifo meu). O uso da espacialidade no
poema de Silveira faz um “casamento” destas três potencialidades da poesia: ver, ouvir
e falar, apesar de que, no lugar desta última, aplica-se bem o termo “cantar”, se a este
verbo se aliar a imagem do poeta medieval declamando sua poesia para uma audiência
ávida por música.
Pôde-se notar que, quanto ao fazer poesia, o “poietes”
195
– aquele que faz,
segundo acepção grega – Fernão da Silveira, ao trabalhar o signo, fez uma linguagem –
a poética – que organiza o mundo. Optou por cantar sua dama utilizando-se dos
artifícios tradicionais – o da descrição físico-moral, através de adjetivação numerosa,
mas numa estrutura que denotasse trabalho artesanal, não só com a escolha das
palavras, mas também com sua posição no corpo do poema. Ao fazer isso, o Coudel-
mor valeu-se, ainda, do recurso da imagética para construir sua dama, como se pode
notar, a seguir,
193
MELO E CASTRO, op. cit., 1984, p. 15.
194
CAMPOS, op. cit., 1975, p. 34.
195
Mencionado em CURTIUS, op. cit. , p. 198.
87
nos comentários sobre essa questão.
Muitas vezes, os antigos trovadores e os então poetas palacianos exaltaram,
durante mais de quatro séculos, a imagem de uma senhora – que, neles, evocava o
sentimento de servidão e que era perfeita em todos os sentidos: espirituais e materiais.
A ela são associados atributos de exaltação, que o poema “Senhora, graciosa, discreta,
eicelente” exibe em profusão, podendo, dessa forma, ser considerado um manifesto que
preceitua qual tipo de mulher deverá ser amada e servida: graciosa, discreta, excelente,
sentida, humana, garnida (vistosa), amiga, formosa, secreta (misteriosa; resguardada),
prudente, perfeita, bondosa e virtuosa. Ora, entende-se que a imagem criada por Fernão
da Silveira sobre sua devota e sobre a sociedade em que vivia funda-se numa espécie de
construção ideogramática, pois, no poema, o real imediato é mostrado de forma
inovadora: nesse seu labirinto, destaca-se a plasticidade sintática, somada ao seu
dinamismo – o poemeto é materialização da dança, através do som, pois, como
demonstrado no item 4.1., o labirinto de palavras de Silveira destaca-se pelo
“tänzerischer Rhythmus
196
”. A imagem poética é renovada.
Uma composição poética inventiva pressupõe, fora outros pontos – alguns dos
quais já discorridos aqui –, uma criação fundada nos preceitos da imagem. O estudioso
francês Jean-Claude Schmitt escreve que “na Idade Média, a palavra imaginatio designa
uma função cognitiva intermediária entre os sentidos corporais (dentre os quais, em
primeiro lugar, o sentido da visão: visus) e a inteligência racional (mens, ratio)
197
. Esse
espaço intermediário pode ser definido como sonho e o resultado da reprodução deste,
tanto icônica como verbal, será sempre a de uma “realidade” idealizada. Nos poemas,
desde o surgimento da poesia trovadoresca, a imagem de inacessibilidade se dá, parece,
justamente porque, em sonho, o objeto de devoção não é palpável. Mesmo que a amada
esteja presente, o acesso a ela é quase sempre impossível, pois ama-se quem não pode
lhe pertencer. Daí que as criações poéticas sobre o objeto de amor, por mais insistentes
e comuns, aos olhos dos medievais trarão algo de inusitado.
A questão da imagem sempre esteve ligada ao cristianismo e seus elementos de
veneração, mas tranpôs-se ao mundo terreno, pois “... tanto nas imagens medievais
196
Vide nota (169).
197
SCHMITT, Jean-Claude. A imaginação eficaz. Signum, n. 3, São Paulo, 2001, p. 134.
88
como na sociedade em geral, não há divisão estrita entre ‘profano’ e ‘sagrado’”
198
. Foi a
imagem – ou imaginação –, então, que “ permitiu tomar consciência do fato de que o
objeto do amor não é a pessoa que se diz amar, mas o ‘fantasma’ que o amante se dá
para usar imaginariamente a seu gosto. A similitudo corporis parece assim bem mais
real (e dócil) que a realidade objetiva”
199
. Para descrever sua amada, como se viu em
alguns poemas já analisados – e noutros que se analisarão – valer-se-á o poeta de termos
e formas poemáticas que realcem sua amada, de forma que se tenha dela uma idéia,
calcada na imagem descrita pelo “eu-lírico”.
É dessa forma que, como são as imagens que criam as idéias, Fernão da Silveira
colocou-as no seu pequeno poema de forma original: a adjetivação exagerada cria a
imagem de uma dama virtuosa – a sua devota –, e a idéia que o “eu-lírico” tem dessa
dama é a de inacessibilidade, pois seus atributos a fazem resguardar-se num templo, que
é a base de sua poesia. A metáfora predominante é a de que a senhora é o templo onde
todas as suas virtudes podem ser cultuadas. Registre-se, ainda, que essa dama bela e
virtuosa tem um defeito, como as dames sans merci medievais: ela é inimiga dos
amores que o “eu-lírico” devota a ela.
Essa mulher ambígua – “amiga / immiga” – como cantada por Silveira aparece,
como já se disse, por todo o repertório resendiano. No labirinto do Coudel-mor ela
surge numa forma inovadora – o próprio labirinto; mas o poeta não se restringiu a
cantar essa ambigüidade apenas numa forma distinta. Em “[Cantiga sua]”, que vem a
seguir, a dualidade da dama servida será exaltada numa das formas mais apreciadas para
o desenvolvimento da temática amorosa: a cantiga.
4.1.3. A coita de amor perante uma beleza que traz perdição
Os temas e os significantes, como já se sabe e se pôde verificar acima, são
padrões, não fogem à regra ditada pelos costumes poéticos tradicionais do final da Idade
Média portuguesa. O que é interessante observar nos poetas do Cancioneiro Geral é o
modo como trataram esse padrão. Na composição que segue, pode-se constatar que
198
Idem. Imagens. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/São Paulo: EDUSC, 2003, v.
I, p. 604.
199
Idem. Op. cit., 2001, p. 135.
89
Fernão da Silveira usa a annominatio, com função antitética. Em “[Cantiga sua]”, que
encerra a parte exclusiva de Fernão da Silveira no compêndio de Garcia de Resende, o
poeta explora novamente a ambigüidade da dama servida.
Que de tal troca se siga
ser de todo meu bem fora,
pois me vejo em tanta briga
quero vos trocar d’amiga
por immiga e por senhora.
Immiga pera poder
todo meu bem destroir;
senhora pera querer,
pera amar, pera servir,
pera me dar nova briga,
pois que vos vi em tal hora.
Mas que meus danos consiga,
convem trocar-vos d’amiga
por immiga e por senhora. (CG, I, 56)
Afora a retórica conceptista, pois quer o poeta ao mesmo tempo ter sua dama por
senhora e por amiga, quer tê-la também por inimiga para poder – numa clara
demonstração de masoquismo próprio do amor cortês – ver destruído todo o seu bem
200
,
ou seja, o seu amor: o “eu-lírico” não encontrará harmonia na amada, que para ele é
ambígua, “amiga e immiga”. Usando a enumeratio, enfatizada pela preposição “pera”,
define uma senhora tal como a tradição cortesã: aquela que o poeta quer possuir, amar,
servir e, para marcar a “coita”, para lhe dar novo desassossego (“briga”). Se no labirinto
em que exalta as virtudes de sua dama a annominatio restringe-se ao nível do
significante, para assinalar ludicidade com os sons e o ritmo, nesta cantiga, o ornatus é
usado para definir a senhora e mostrar os danos que ela provoca. Contudo, há de se
200
“’Bem’ constituía um termo nuclear na poesia de temática amorosa”. (Obras de Álvaro de Brito, op.
cit., p. 33).
90
registrar que ao “eu-lírico”, devido à impossibilidade de possuir seu objeto de desejo,
interessa mais o sofrimento: nos três últimos versos, declara que, para conseguir seus
“danos” – e o ponto fulcral deste sofrimento está no subjuntivo do verbo “conseguir” –,
convém trocar a amiga por inimiga e por senhora.
Essa cantiga, trazida em seguimento ao labirinto, teve a intenção de mostrar a
destreza de Silveira em tratar temas similares em formas distintas. Nos dois exemplos
vistos, é a beleza – aquela de cunho tradicional – o centro das atenções do “eu”. Essa
beleza, agora num “poema cum auctoritate”, vem confirmar a propensão de Fernão da
Silveira para explorar o mesmo conteúdo, numa forma que marca sua erudição – as
glosas, que mostram a presença da intertextualidade, e o bilingüismo.
Também na “Grosa do Coudel-moor a Mis querelhas he vencido.”, o poeta traz
de volta o desconcerto que a beleza da dama lhe causa. Usa um artifício caro aos poetas
medievais, qual seja, o de glosar mote alheio – as pièces de citation, na definição de
Pierre Le Gentil. Nesta “grosa”, Fernão da Silveira aplica-se a diluir versos de outro
poeta castelhano pela sua própria composição, valendo-se, portanto, da intertextualidade
e do bilingüismo, um expediente comum aos palacianos, dada a convivência paralela
das duas culturas da Península. Apesar de o ritmo ser regular, apresenta diversidade na
disposição e na natureza das rimas, mesclando masculinas com femininas e pobres com
ricas, sem alternâncias fixas. Parece criar com isso uma sensação musical concernente
ao conflito apresentado pelo tema.
A singeleza da composição anterior é abandonada nestas glosas, em que o
conceptismo é mais declarado. Ao ver a “beldad” de sua dama, confessa-se impotente
porque a vontade dele nunca se voltou contra ela. Por esse motivo, acredita ser isso um
ato de “locura” que vence seu “cuidado”, dada à “hermozura” com que Deus a fez. A
sutileza de pensamento e a intensidade do sofrimento de amor são montadas, ao longo
do poema, nas recorrências próprias de um coração “apassionado”: nas palavras e
expressões, tais como, “perdido”, “tormiento”, “mal/males”, “angustia”, “daños”,
“menos alivio”, “penas desiguales”, “passiones”, “olvido”, “enemiga”, “quexas”,
“desamor”, “disfavor”, “descuidado” e “menos bien”, todas enunciadas de forma
gradual, partindo de uma de menor intensidade até à de maior força – e todas, percebe-
se, em desfavor do “eu-lírico”. Tantos sentimentos negativos somente causariam ao
91
poeta “llagas mortales”, que ao fim e ao cabo – concretamente na última estrofe –
resultariam em sua morte, a qual, para ele, seria “el morir, quando vernaa, / menos bien
que desseado”.
*Mirando vuestra beldad
mis querelhas he vencido,
porque nunca s’haa bolvido
contra vos mi voluntad.
Y siguiendo tal locura
siempre me vence el cuidado,
que por vuestra hermosura
hizo Dios o mi ventura
mi mal no remediado.
No bivo sim pensamiento
qu'hee de ser por vos perdido,
segun que fue repartido
por vos mi grave tormiento.
Pero esta confiança,
esperando ser ganado,
é por bien aventurança,
pues por muerte se alcança
fin del mal continuado.
Entam menos me oistes,
quando más vozes os di.
por lo qual jamas parti
del mal que darme quesistes.
Sostengo vida tan fuerte
con angustias de mis males,
que no sé como compuerte
los daños que por mi suerte
hazen mis llagas mortales.
Teniendo más merecido
menos alivio senti
daquel mal a que me vi
por vuestra causa venido.
Nunca me puedo quitar
de mis penas desiguales,
ni me puedo apartar
de los mis dias gastar
en las passiones tales.
No siento que modo siga
con temor de vuestro olvido,
92
ni s’aparta mi sentido
de querer su enemiga.
Y con este tal querer
ya mis quexas he forçado
y las he de posseer,
fasta fin poder haver
mi bivir apassionado.
Fim.
Hame vuestro desamor
de la muerte percebido,
porque sempre es recogido
em mi vuestro disfavor.
Em tanto que vivo ya
de la vida descuidado,
ni dudes que me seraa
el morir, quando vernaa,
menos bien que desseado. (CG, I, 36)
Se se montar a composição original, provavelmente uma cantiga, dado o número
de versos, pode-se observar, já no desconhecido autor castelhano, a estruturação
conceptista a que se dedicou:
mis querelhas he vencido,
siempre me vence el cuidado,
qu'hee de ser por vos perdido,
esperando ser ganado,
quando más vozes os di.
con angustias de mis males,
menos alivio senti
de mis penas desiguales,
con temor de vuestro olvido,
ya mis quexas he forçado
de la muerte percebido,
de la vida descuidado
201
.
Trabalha essencialmente com as antíteses “perdido/ganado”, “angustias/alivio”,
“más/menos” e “muerte/vida”, e, além dessas, usa o hipérbato, parecendo querer
201
Abstive-me em transpor os versos tirados da glosa, sem preocupação com a pontuação, uma vez que
este trabalho não tem pretensões filológicas.
93
transparecer a passividade do “eu-lírico”. Essa passividade é dada não só pela inversão
composicional – como se pode perceber nos três primeiros versos e, provavelmente de
forma intencional, nos três últimos –, mas também pelo modo e tempo dos verbos: o
“pretérito perfecto”. É como se o poeta tivesse sido levado não por suas ações, mas
pelas do Outro – a dama a quem servia.
Glosando o poeta castelhano, Fernão da Silveira não só estende a complicada
enunciação original, mas transforma-a com maior vigor. Sua retórica não se pautará
pelas antíteses, mas sim pela argumentação montada pelos conectivos: “porque”, “y”,
“segun”, “pero”, “pues”, “entam”, “por”, “que”, “nunca/ni”, “no/ni”, “y/y/fasta fin”,
“porque”, “em tanto que”, “ni/menos bien que”. Altera ainda o foco enunciador,
utilizando não só o presente do indicativo, mas também o “pretérito indefinido”. O “eu-
lírico” criado por Silveira vê-se, do mesmo modo, levado pelas ações do Outro, mas,
valendo-se desses tempos e modos, aceita ser, ele também, causador de sua própria
“perdição”. Perdição, acrescente-se, que tematiza tanto o poema original quanto o
glosado e que leva – ambos “eus” poéticos – à morte.
Segundo Pierre Le Gentil,
par le nombre et la variété des exemples que j’ai relevés dans mes notes, on
peut, (...) se faire une idée de l’importance que prend la glose, à la fin du
XVe. siècle, dans les littératures péninsulaires. Que l’on songe aussi au
succès que le genre devait avoir plus tard, en pleine Renaissance et même
plus récemment encore, jusque dans le thêatre. Combien de poètes restés
fidèles à la medida velha, jusqu’à Camões inclusivemente, se plairont à
gloser un mote alheio, emprunté à une tradition plus ou moins ancienne?
202
Diz ainda o estudioso francês que esse gosto por glosar é bem medieval e do
pensamento escolástico, com seus hábitos dedutivos; faz parte do costume europeu, não
só peninsular
203
. Mais à frente, diz também que há um certo respeito religioso ao texto
glosado
204
, o que o faz permanecer, pode-se deduzir, durante o Renascimento e até mais
tarde. A opinião de Le Gentil corrobora, assim, a notoriedade do Cancioneiro Geral
como prelúdio das futuras formas poéticas.
Reforce-se, ainda, que a casuística amorosa, tão comum aos poemas cancioneiris
– pode-se notar nas composições anteriores –, adquiriu, no fim da Idade Média, um tom
202
LE GENTIL, op. cit., 1952, p. 295.
203
Idem, ibidem, p. 296-297.
94
mais melancólico, próprio da alma portuguesa. Se, nas antigas cantigas de amor e de
amigo, estava já presente o pesar característico dessa alma, depurou-se o gosto na sua
elocução, que vem agora eivada de sutilezas e requinte formal, os quais serão, na
posteridade, mais apurados. Todas as expressões poéticas do Cancioneiro de Resende
vêm, nas palavras de Pierre Le Gentil, com “formes de expression plus musicales”, em
comparação com seus vizinhos castelhanos. Essa musicalidade, renovada “plus ou
moins consciement” do lirismo galego, reproduz um romantismo “douloureux et
nostalgique”
205
, característico do espírito melancólico português.
A mulher, como demonstrada até aqui, nas três composições analisadas, traz ao
poeta apenas sofrimento. É aquela dama que não o ama. No labirinto e na cantiga vistos,
explora-se a ambigüidade da mulher bela; na glosa, explora-se a perdição que essa
beleza provoca no poeta. Mas essa beleza, que só traz sofrimento, traz também, nesses
fins do medievo, um sofrimento que antecipa os conflitos barrocos, como se poderá ver
na cantiga em que o Coudel-mor quer, ao mesmo tempo, ser puro e pecador.
4.1.4. Santo ou pecador: conhecendo a sensualidade feminina
Na cantiga intitulada “Do Coudel-moor.”, composta por um mote de quatro
versos e uma glosa de oito, o poeta usa um tema que vai ser caro aos renascentistas e
barrocos: a sensualidade da dama cantada provoca no “eu-lírico” o conflito entre o
pecar e o manter-se santo, desprezar os prazeres materiais ou realizar os espirituais. Na
divisa, “eu-lírico” vê-se ante tamanha formosura de sua dama, a qual inspira o pecado,
mesmo naqueles mais puros – os santos. Na glosa, confessa não ser santo, pois que o
desejo o consome e o faz perder-se, mas também traz-lhe prazer, já que até mesmo um
santo pecaria por amor à dama formosa, registrando de forma singela o uso da antítese:
ser santo e pecar. Acredita o “eu” poético que o arrebatamento daquela fermosura leva-
o a não conseguir desfazer-se do desejo de se perder, pois ser santo e pecador
equivalem-se, uma vez que ambos trazem prazer.
Porque meu mal s’i dobrasse,
vos fez Deos fremosa tanto,
que nam sei santo tam santo,
204
Idem, ibidem, p. 301-302.
205
Idem, ibidem, p. 471.
95
que pecar nam desejasse.
Polo qual sei que me vejo
de todo ponto perder,
por nam ser em meu poder
partir-me deste desejo.
Mas que m’este mal fadasse,
e me traga dano tanto,
praz-me pois nam sei tam santo,
que pecar nam desejasse. (CG, I, 53)
No primeiro verso, o poeta usa da sutileza característica do conceptismo
206
,
comportando o verbo “dobrar” duas interpretações, ambas coerentes com o sentimento
que lhe traz a beleza da dama cantada: para que seu mal fosse vergado ou para que seu
mal fosse duplicado, Deus a criou “fremosa” – palavra recorrente em qualquer tratado
de beleza feminina durante todo o medievo peninsular. Quanto à forma, não apela para
as constantes assimetrias presentes no Cancioneiro, muito pelo contrário, mantém um
ritmo regular e próprio da redondilha maior: acentuação nas terceiras e sétimas sílabas.
Com relação às rimas, também não inova: segue o esquema próprio da cantiga
tradicional: abba / cddc / abba. Tal montagem, parece, remete à palavra-chave do
poema: “fremosa”, isto é, a donzela é o estereótipo idealizado da beleza feminina, por
isso, a forma poética deve ser perfeita como a dama o é para o “eu-lírico”. Contudo,
destaca-se o poeta, nessa cantiga, pelo uso variado dos tempos verbais. Se, na poesia
circunstancial, prevalece o excesso de modos indicativos, nesta, Silveira revela
engenhosidade ao fazer uso de verbos no subjuntivo, no presente, no pretérito e no
infinitivo. Este recurso, parece, liga-se à antítese que explora ao longo do poema: a de
ser santo e pecador ao mesmo tempo.
206
O conceptismo se caracteriza pelo jogo de idéias, em que predominam as sutilezas do raciocínio e do
pensamento lógico, esses extremamente complexos. Segundo Margarida Vieira Mendes: “O veio do
conceptismo – não o imagético mas o silogístico – revela-se o grande responsável pela complexificação
intelectual do sentimento amoroso cancioneiril. São as subtilezas da linguagem que provocam as
subtilezas das intrincadas emoções que essa linguagem se esforça por estabelecer e transmitir”. (Op. cit.
1997, p. 35). Quanto à forma, as idéias conceptistas se apresentam estruturadas também de modo
intrincado, cheias de metáforas, analogias, antíteses e hipérboles. Ainda de acordo com Vieira Mendes:
“Muitas são as figuras da elocução poética desse conceptismo amatório cancioneiril, fundadas no carácter
abstracto do vocabulário referente a estados emocionais ou potências da alma e no carácter enigmático e
epigramático das sentenças.” (Idem, ibidem, p. 37).
À idéia de conceptismo, Baltasar Gracián vincula a questão do ornato e do espírito, o que se pode
apreender na poesia do Coudel-mor: “Ornato hay en la retórica para las palabras, es verdad, pero más
96
Observe-se que Fernão da Silveira, ao montar essa composição, não pode ser
considerado apenas mais um dos muitos participantes dos torneios poéticos que
engendrava no Paço. Vê-se isso nos poemas “Senhora, graciosa, discreta, eicelente” e
“Porque meu mal s’i dobrasse”. A inventidade, a criatividade, a ludicidade, fazem-no
usar os germes dos futuros estilos literários: em “Porque meu mal s’i dobrasse”, a visão
classicista da sensualidade feminina e o conflito barroco, em “Senhora, graciosa,...” um
trabalho de aproveitamento espacial sui-generis, que será retomado na segunda metade
do século XX.
Nas peças poéticas que fazem corpo a este primeiro subcapítulo, o centro das
atenções era a mulher como imagem da perfeição. Pôde-se verificar que Fernão da
Silveira, à moda de todos os poetas, não só os do declínio da Idade Média, mas também
de seus antepassados, exaltava a beleza da dama servida, principalmente suas
características internas de bondade e, ao mesmo tempo, de crueldade. Como símbolo do
amor, a beleza feminina é plena em todos os sentidos. Da mesma sorte, essa beleza pode
trazer ao “eu-lírico” o conflito entre desejo e resguardo, como visto na última cantiga.
Mas o Coudel-mor também cantou a mulher pelo lado da sexualidade. E nisso fartou-se,
abrangendo temas que se opõem àqueles tratados até aqui.
4.2. Um presente de casamento inusitado: o sexo de D. Lucrécia
Não parece ousado definir o Coudel-mor como “escrachado” ou ácido em suas
liberalidades – popularesco e realista – enfim. Não somente ele, mas muitos dos poetas
do Cancioneiro Geral fizeram uso, à exaustão, da sátira dirigida a qualquer fato
irrelevante ou que aparentasse estar a “vítima” fora dos padrões usuais da Corte. Nas
trovas em redondilho maior, “O Coudel-moor às damas, porque deram a ũa que casou a
melhor peça que cada ũa tinha pera o casamento, antre as quaes lhe derão o sexo de
dona Lucrecia.”, vale-se Fernão da Silveira da pornografia explícita, tanto na descrição
do órgão genital feminino, quanto ao seu uso no ato sexual. Neste poema, vale observar
a sua criatividade na forma composicional, lúdica e anafórica, aliada ao uso das
comparações.
principal para el sentido, que llaman tropos y figuras de sentencias. Siempre insisto en que lo
conceptuoso es el espíritu del estilo.” (Op. cit., II, p. 243).
97
À parte o ritmo variado, alternando a tonicidade nas terceiras e sétimas sílabas e
nas quartas e sétimas, mesclando rimas pobres com ricas, também de forma
desordenada – e usando apenas rimas femininas nas estrofes em que descreve o órgão
genital de D. Lucrécia, quando nas outras mistura masculinas com femininas –, cria o
poeta um ritmo festivo, propício ao tema que desenvolve. As duas primeiras estrofes
têm o intuito de apresentar “o estado da coisa” a ser cantado, ou seja, por que as damas
deram o sexo de D. Lucrécia à noiva que casou: conclui o Coudel-mor que, sem sexo,
qualquer casamento é triste e, uma vez que a noiva já havia acudido outras na mesma
situação, mereceria também que um “louvor grande” a acudisse. Atente-se, ainda, ao
emprego proposital do vocábulo “voda(s)” nas duas primeiras estrofes, se se aliá-lo ao
seu correspondente em linguajar chulo. Assim começa a longa trova:
Polas praças de Lixboa
tantos louvores vos dam
que a mãao nunca lhe doa
quem fez tal repartiçam.
Que no tal tempo de vodas
faça voda quem quiser,
mas por certo ha mester
que ali lh’acudam todas.
E pois tambem acudistes,
louvor grande vos acuda,
ca sem sexo se concruda
todas vodas serem tristes.
Mas ũ de nós cinco ou seis
esta questam fazer ousa,
que achastes essa cousa
u se remetam nas leis. (CG, I, 30)
Nas seis outras coplas, dedica-se o poeta à descrição, de forma obscena, da
genitália feminina. E aqui não mede esforços no retrato: para o fazer, usa como artifício
a enumeratio, que vem representado pela conjunção integrante “se” – em número de
trinta ocorrências, o que reforça a musicalidade do poema, já que constitui um recurso
anafórico e aliterativo, além das várias comparações, marcadas pela conjunção “como”.
Para ajudar a expressividade sonora, recorre à assonância com a conjunção “ou” em
chave de alternância e/ou exclusão, o que cria harmonia logopaica com o “se”
integrante. Os pontos descritivos, entre outros, incluem a forma (ancho, redondo, largo
[“arreganhado”]), concentrados na terceira estrofe:
98
Er’ele sobelo ancho,
ou tira mais de redondo
ou tambem se lança gancho
quando está sobre cachondo;
ou se anda perfilado
como compre a donzela,
ou s’estando arreganhado
se verãao dele Palmela. (Ibidem)
a aparência (calvo, pardo, vermelho), que é desenvolvida na quarta estrofe:
Se é per ventura calvo,
se toca de cabeludo,
se faz agua a seu salvo,
se mija coma sesudo;
se é faminto, se farto,
se é pardo, se vermelho,
se rapa como coelho,
s’arranha coma lagarto. (Ibidem)
a conduta (manso, brigoso, nervoso [“se lança, coucea, espora”], furioso, contente), que
vem explícita na quinta estrofe; já na sexta, prima o Coudel-mor em mesclar descrição
com ações próprias do objeto alvejado:
Se é manso, se brigoso,
se lança, coucea, espora,
ou quand’estaa forioso
se o quer dentro se fora;
ou se por matar a sede
a través toma mil saltos,
ou se lhe praz dos pés altos
arrimados aa parede.
Se tem risco no gargalo
do poço laa da fotea,
ou depois que papa e cea
se fica com bom regalo;
ou se tem crista de galo,
ou se fala com boca chea,
ou apagando a candea,
que som faraa sem badalo. (Ibidem)
e a consistência (mole, duro), no sétimo octossílabo, para finalizar aludindo ao tamanho
(nele podem-se guardar somas “d’almazem”):
S’ee de mole carnadura,
se tem cabelo de rato,
ou sobre vianda dura
99
se daa punhada ò gato;
quando estaa de si contente
a qual parte mais s’emborca,
ou se quando bate o dente
faz bacorinho com porca.
Fim.
Quanta soma d’almazem
cabe laa em seu carcaxo,
ou que tempo se detem
em fazê-lo altibaxo;
se é leesto marinheiro
em meter ũa moneta
ou se faz a çapateta
por si e polo parceiro. (Ibidem)
Mas o recurso de maior expressividade, em termos de ornatus de pensamento, é a
personificação, quando o poeta descreve a conduta e os possíveis sons que emitirá seu
“objeto poético”. Para tanto, apesar de seguir certa ordenação nos componentes
descritivos em cada estrofe, distribui a prosopopéia ao longo de toda a trova: “se anda
perfilado”, “s’arranha coma lagarto”, “toma mil saltos”, “depois que papa e cea”, “estaa
de si contente”, “se faz çapateta”, como alguns dos exemplos. Aliadas ao despudor
expresso, vêm expressões mais sutis, tais como, “cachondo” (que está no cio),
“emborcar” (sair da posição normal), “carcaxo” (talvez caixa grande, aberta em cima),
“çapateta” (dançar batendo a palma das mãos no sapato). Todos esses recursos levam o
interpretante a criar a imagem tanto do objeto quanto dos atos próprios de sua função: a
da sexualidade, pois o expediente da metagoge dá vida ao sexo que foi dado como
presente.
Pode haver nesse poema obsceno uma demonstração de misoginia
207
.
Entretanto, isso não importa aqui, pois parece não ser esse o centro das atenções do
Coudel-mor. A ele importava, com mestria, destreza formal e agudeza, cantar tudo o
que se passava à sua frente. Nada melhor do que a sátira para o fazer, já que ela não
respeita códigos morais – ou apenas camufla-os. E aqui recorre o Coudel-mor – assim
207
Quanto à misoginia na Idade Média, comenta Mário Martins: “Nem sempre as sátiras contra as
mulheres implicam misoginismo sincero. Dizer mal deles (sic), em verso, era uma forma de gracejar em
torno dum tema agradável. Além disso, os poetas desabafavam e atraíam as atenções das senhoras
magoadas. No entanto, descobrimos misoginismo autêntico em certas poesias de circunstância e na
pornografia, onde fermenta um desprezo autêntico pela mulher, objecto de prazer.” (O riso, o sorriso e a
100
como em muitas das sátiras pornoeróticas do Cancioneiro – ao realismo grotesco
estudado por Mikhail Bakhtin. Ao descer aos detalhes do sexo de D. Lucrécia, o poeta
transfere “ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel
unidade, (...) tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato
208
”.
Se, nessas longas trovas, voltou-se o poeta a descrever e a narrar ações de seu
objeto-alvo, o órgão sexual feminino, na discussão que vem a seguir – uma ajuda
vários poetas vão-se preocupar, se tanto, com a questão da diversidade sexual.
4.2.1. A homo/bissexualidade: uma visão da sociedade nos fins do medievo
Essa questão da sexualidade, a bem dizer, da diversidade sexual, tratada de
forma sutil e liberal, aparece numa “tenção” em que cinco contendores discutem o sexo
de duas damas que se beijavam, se acariciavam e se aconchegavam lascivamente. O
poema é uma ajuda para o motejo lançado pelo poeta João de Meneses que se intitula
“De Dom Joam de Meneses a ũa dama que refiava e beijava dona Guiomar de Crasto.”
Na sentença, Meneses evidencia o assunto e, aparentemente, condenam-se os atos
lascivos da Senhora: acariciar (rafiar) e beijar tão inescrupulosamente (sem empacho)
Dona Guiomar, condenação estendida ao ato de “antrepernar”, que vem no penúltimo
verso da estrofe inicial. Composta de um mote de seis versos e de seis estrofes em
décimas, o formato é propício para o desenvolvimento da “tenção”, seguindo a mesma
montagem rítmica, rímica e métrica.
Quanto ao ritmo, os cinco poetas primam por quebrar qualquer regra fixa, dando
às suas intervenções variedades na montagem, com o intuito, parece, de quebrar a
monotonia e também – isso certamente – para mostrar destreza formal. Neste poema, o
ritmo varia entre as acentuações nas segundas e sétimas sílabas, e nas terceiras e
sétimas. Cria-se uma musicalidade própria à redondilha maior, de sete sílabas,
desenvolvida ao longo da composição. Outro recurso inovador dos poetas que desta
peça participam é o uso dos “pés quebrados”, que se alternam entre os de cinco sílabas
paródia na literatura portuguesa de Quatrocentos. Lisboa. Instituto de Cultura Portuguesa, 1978,
Biblioteca Breve, volume 15, p. 72).
208
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. 4 ed. Trad. Yara Frateschi. São Paulo/Brasília: Hucitec/Edunb, 1999, p. 17.
101
– com a intenção, parece, de enfatizar o nome de uma das personagens-alvo da tenção,
Dona Guiomar –, e os de três sílabas.
Quanto à rima, que mescla femininas com masculinas, também ao longo de todo
o poema, o esquema é alterado pelos intervenientes, exceto nos últimos versos de cada
estrofe, em que ele é mantido: abab. Entretanto, no cabo
209
, o próprio D. João quebra o
delineamento alterando as posições para baba. Acrescente-se que a natureza das rimas
também é diversa. Há opção pelas ricas, misturando-se verbo e substantivo e pronome,
nomeadamente no cabo. Isso corrobora o fato de que, mais do que querer fugir ao
enfadonho, os poetas estavam realmente interessados em mostrar sua aguda habilidade
na forma, com finalidades satíricas. Segue o poema:
Senhora, eu vos nam acho
rezam para rafiar
e beijar tam sem empacho
Dona Guiomar,
salvante se vós sois macho.
Se o sois e nam sois dama,
é mui bem que o digais
e tambem deve sua ama
nam querer que vós jaçais
soo com ela em ũa cama.
Confessai-nos que sois macho
ou que folgais de beijar,
que doutra guisa nam acho
rezam de antrepernar
tal dama tam sem empacho.
Proposta a discussão e dados os seus argumentos, D. João de Meneses será
ajudado por Fernão da Silveira, o “Moço”, que traz à baila um comportamento que é
muito pouco explorado na literatura satírica: a bissexualidade
210
. Aos olhos de uma
209
Designava-se “cabo” a última estrofe; geralmente, no caso das ajudas, elaboradas pelo proponente da
disputa ou do pedido de opinião a outro(s) poeta(s). Além desse termo, era usado, indistintamente, a
palavra “fim” para designar a conclusão das trovas ou ajudas. Cf. DIAS, op. cit., 2003, p. 141.
210
São palavras de M. Rodrigues Lapa sobre uma única peça cujo tema é a bissexualidade, encontrada no
Cancioneiro da Biblioteca Nacional [1583] e no Cancioneiro da Ajuda [1115], de autoria de Afonso
Eanes de Coton: “São raros, na nossa poesia medieval, os documentos que aludem a esse vício feminino”.
Segue, como ilustração a primeira estrofe da poesia composta de duas coplas: “Mari’Mateu, ir-me
quer’eu daquen, / por que non poss’un cono baratar; / alguen que mi o daria nõno tem, / e algun que o
tem non mi o quer dar. / Mari’Mateu, Mari’Mateu, / tan desejosa ch’és de cono com’eu!” Diferente da
102
sociedade educada na rigidez dos princípios cristãos e onde prevalecia a figura viril do
homem, espera-se que a condenação seja mais veemente, já que as damas, além de
praticarem o lesbianismo, também fazem amor com homens. Silveira, como aparece no
terceiro e nos sexto e sétimo versos, não parece constrangido com a atitude da Senhora:
quer louvá-la e não tachá-la, pois sabe ela de tudo usar
211
. A questão, agora, é a de
saber se a mesma poderia engravidar outra mulher, uma vez que se duvida de seu sexo:
o de uma mulher ou o de um macho.
Ajuda de Fernam da Silveira.
Dous gostos podeis levar,
senhora, desta maneira,
pois sabeis de tudo usar:
ser macho pera Guiomar
e femea pera Nogueira.
E por isso nam vos tacho,
antes vos quero louvar,
nos trajos em que vos acho
podereis vós emprenhar
outra molher como macho.
Terminada a intervenção de Silveira, é a vez de Dom Rodrigo de Castro, irmão
de Dona Guiomar, a dama assediada. Nota-se aqui como se movia a sociedade no Paço.
Mesmo que irmãos, os desvios devem ser satirizados e, como se tem visto até agora, de
forma não contundente, mas jocosa. O tom de Dom Rodrigo, já mais cáustico, pede o
exílio das duas. Caso contrário, que lhes dêem outra mulher, com ânimo mais varonil, a
machoa, para que o desejo ardente de sexo seja amainado; literalmente, nas palavras do
poeta, “com que percais o raivaço”. O desejo seria ainda aplacado se fosse colocado nas
damas um cabeção de cordas, próprio para animais – o barbicacho ou, mais
extremadamente, se as duas fossem castradas. Aqui, Rodrigo de Castro não está
interessado, pelo que parece, no sexo das duas infratoras, mas sim, em saber se a irmã é
macho.
poesia aqui estudada, a de Coton prima pela obscenidade declarada. (Cantigas de escarnho e de
maldizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. [Coimbra]: Galáxia, 1965, p. 74).
211
Quanto a essa maneira de encarar os “desvios”, presentes no Cancioneiro Geral, comenta Lapa: “o
Cancioneiro nos dá a imagem fiel daquela época do limiar da Renascença: o desejo ardentíssimo de
gozar de todos os bens da vida, saltando por cima dos preconceitos, que tolhiam a acção do homem. Aos
olhos daqueles que tinham vivido no passado, este novo e ambicioso espírito surgia como um preságio
103
Dom Rodrigo de Castro
Lancem-vos fora do paço,
ou vos levem a Lixboa
ou vos dêm outra machoa
com que percais o raivaço.
Lancem-vos ũ barbicacho
ou vos mandemos capar,
porqu’outra forma nom acho
pera poder escapar
Dona Guiomar,
pois s’afirma que sois macho.
A contenda tem continuidade e o próximo mediador é Dom Pedro da Silva, que
centra suas farpas relatando as “cousas” que ambas têm em excesso, provavelmente os
seios e as partes baixas
212
. Contudo, não devem ser formosas, como bem o explicita: o
que “nam vem de boa parte” são a “muela”, ou seja, a face e os beiços, que não parecem
“de dama bela”. Passada a descrição das amantes, vem a parte mais cômica: Dom Pedro
não se arriscaria a se agachar perto das duas e, partindo para um nível ainda mais baixo
catástrófico”. (LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa. Época Medieval. 4. ed.
Coimbra: Coimbra Ed., 1955, p. 418).
212
Vale aqui um comentário de Maria Isabel Morán Cabanas quanto ao retrato da mulher no Cancioneiro
Geral: “se na lírica amorosa apenas surgem muito esporadicamente alusões às partes altas ou nobres do
corpo, cuja fronteira inferior é a cintura, nas trovas compostas ‘em deslouvor’ também aparecem
referências às baixas, facto que se vem interpretando desde Mikhail Bakhtin, como uma influência da
cultura cómica popular de inspiração carnavalesca” (2001b, p. 433). Observe-se que na poesia que
estamos analisando, os poetas contendores referem-se tanto às partes altas quanto às baixas e, sempre, em
“deslouvor” de seu alvo.
104
quanto à linguagem, gentilmente arregaçaria e olharia se ambas são fêmea ou macho.
Dom Pedro da Silva.
Pera parecer donzela
cousas tendes bem que farte,
mas chamardes vós muela
a beiços de dama bela
nam vos vem de boa parte.
D’hoje avante nom me agacho
nem mais hei assi d’andar,
mas com mui gentil despacho
vos hei-d’ir arregaçar
e oulhar,
se sois femea ou macho.
Fernão da Silveira é o penúltimo a intervir e vem nomeado “regedor”, cargo que
lhe foi atribuído por D. João II, como já se sabe, e é a única vez que Resende a ele assim
se refere nas didascálias. O poeta retoma a questão do beijo das duas damas
surpreendidas “no ato ilícito” e afirma que a acusada do desvio comporta-se de maneira
altiva e arrogante, como se fosse um “fino senhor”. Na sua ajuda, Silveira não alveja
Dona Guiomar, a dama assediada, mas sim a outra dama, cuja “identidade” sexual quer
saber o poeta. Se nessa intervenção o Coudel-mor não inova na forma, contrariamente
ao que faz em grande parte de suas composições, vale observar o poema como um todo
não só pelo subgênero desenvolvido – o da ajuda –, mas, também, como Silveira, assim
como seus colegas, aborda qualquer tema e dele faz poesia.
Fernam da Silveira, o Regedor.
Com estes tratos d’amor,
com estes beijos maa hora
vos nom ham já por senhora,
mas por ũu fino senhor.
Tambem trazês ũu recacho
e ũ som de galear,
que beijais tam sem empacho
Dona Guiomar,
que vos ham todos por macho.
Finalmente, fecha a composição o próprio proponente, Dom João de Meneses. E
o faz trazendo à cena mais uma nova personagem: Dona Joana de Souza, que estaria
prenhe daquela a quem se dirigem os poetas. Para que a dúvida proposta no mote e
glosada ao longo das trovas seja esclarecida – na verdade, resolvida a pendenga sobre
105
sexo –, Meneses sugere que a dama mande o “mochacho” – outra nova figura na peça –
ou Dona Joana cortar ou tapar o membro da acusada para que ela ficasse fêmea ou
macho.
Outra sua e cabo.
Ũa mui estranha cousa
se ruge caa antre nós,
porque laa convosco pousa
Dona Joana de Souza,
dizem qu’ee prenhe de vós!
Tambem diz cũ mochacho
vos foi nam sei quem topar!
Havei eramaa empacho,
mandai ũ deles cortar
ou tapar,
e ficai femea ou macho. (CG, IV, 586).
Na leitura desse poema, observa-se que a questão da homossexualidade e da
bissexualidade é vista pelos poetas do Cancioneiro Geral, muito geralmente, como
motivo para chufa, passando ao largo da crítica moralizante. Nessa composição, a
preocupação, em termos conteudísticos, é a sexualidade de algumas damas corteses.
Não se percebe qualquer doutrinação moralista, que, aproveitando-se da divisa
horaciana ridens dicere verum, pretenda, mesmo que através da poesia, moralizar os
costumes
213
. Pelo contrário, um dos contendores, Fernão da Silveira, homônimo do
Coudel-mor, até incita uma das damas infratoras a fazer bom uso dos prazeres como
bem lhe apeteça. É, certamente, um conselho que se dirige a todos os freqüentadores
dos serões áulicos, recomendação que se percebe, também, na intervenção do Coudel-
mor em “Resposta do Coudel-moor, que foi requerido pola senhora, que respondesse
por ela.”, quando declara “antes que este maldito mundo me destrua, quero me fartar de
bua.”
214
, a cuja análise procederei mais adiante.
213
É claro que, sob qualquer sátira, há um fundo moralizante; lembre-se do ditado popular: “É brincando
que se dizem as coisas sérias”. Se a intenção primeira parece não ser a de moralização dos costumes, por
detrás do enunciado há sempre um aspecto moralizador.
214
Ver capítulo IV, subcapítulo 4.4.2.
106
O que se percebe na composição dos cinco glosadores, no entanto, é a prática de
um costume antigo, nascido na poesia provençal, e dela transposta à poesia galego-
portuguesa, qual seja, cantar qualquer tema de forma humorística e irônica, o que é
próprio da sátira
215
. Para isso, nada melhor do que a poesia, pela exploração de sua
forma, pelo significante – enquanto linguagem simbólica e sonora – e também quanto à
estrutura a que se molda a peça. Mantendo a tradição trovadoresca, agora os poetas
palacianos cantam os mesmos temas comuns aos seus antepassados, apenas adequando-
os a uma forma inovadora. Nessa transição para a era moderna, o que se revela na
produção cultural é a renovação estética formal, mesmo que as preocupações sejam as
mesmas que atormentam – ou aliviam – o indivíduo. A propósito, Gustav R. Hocke,
estudioso alemão, afirma que
na sexualidade, o indivíduo descobre (...) a última liberdade possível. Nas
depravações sexuais, ele encontra a mais ampla liberdade, ou seja, a última
liberdade da vida pessoal, inacessível aos espiões do poder. Há uma tentativa
para escapar do ‘egoísmo a dois’, procurando a liberdade num ‘desespero a
dois’. Quanto mais rígido for o poder, tanto mais ‘abstrusa’ tornar-se-á a
sexualidade. (Grifos do autor)
216
.
Se o homem encontra a liberdade nas depravações sexuais, encontra-a também
na expressão estética dessas mesmas depravações, quando alia o canto ao prazer. E isso
o faz através da arte e da literatura – mais especificamente, através da poesia. Nela,
coloca a expressividade do som, transformando-o em música, moldando o tema numa
estrutura que une deleite e destreza, mesmo que através da sátira, considerada por
muitos antigos poetas e escritores – e mesmo na atualidade – uma expressão não nobre.
Viu-se que a sátira presente nas duas composições analisadas apontava ora para um
órgão sexual, ora para um comportamento sexual. Em ambas, o centro era o ser
humano. Mas o Coudel-mor, como se verá adiante, vai além ao tratar do mesmo tema
entre seres divinos.
215
LOPES, Graça Videira. A sátira nos Cancioneiros medievais galego-portugueses. Lisboa: Estampa,
1994, p. 208 passim. Também cf. DIAS, op. cit., 1998b, p. 352-53.
216
HOCKE, Gustav R. Maneirismo: o mundo do labirinto. Trad. Clemente R. Mahl. São Paulo:
Perspectiva, 1974. 334p. (Debates, 92), p. 288.
107
4.2.2. No ato sexual, profano x sagrado
A sátira pode se exercer sobre qualquer tema ou fato, humano ou divino, como
no caso da cantiga intitulada “Coudel-moor a sua cunhada que lhe mandou ũa
escrevanhinha fraancesa, que trazia o cano no tinteiro, tudo junto pegado.” Geralmente,
a sátira maledicente retrata com realismo fatos e personagens reais. No entanto, nesse
poema, considerado uma jóia de composição por Mário Martins
217
, Silveira aplica-se a
comentar por que o objeto que ganhara de presente da cunhada deixava-o perturbado. A
cantiga vem assim editada:
Senhora cunhada minha,
deu-me grande torvaçam
esta vossa escrevanhinha
qu’adavinha
a festa d’encarnaçam.
Nunca vi cousa tam nova
nem joia tam excelente,
mas dos cuidos que renova
seja a prova,
o tinteiro seu presente.
Ca jaz dentro na bainha
d' ũa tam nova feiçam
que sem caso d’antrelinha
adevinha
a festa d’encarnaçam. (CG, I, 49)
A peça a que se refere o poeta, a escrivaninha, era uma espécie de estojo que os
escribas e estudantes do século XV carregavam à cinta ou ao pescoço, contendo tinteiro
e pena
218
, diferenciando-se o objeto do móvel próprio para o officium. A sutileza do
poeta é formar a imagem do ato sexual quando a pena era colocada dentro do tinteiro, o
que lhe lembrava a festa da Encarnação, i. é, a concepção da Virgem Maria. Sem apelo
à obscenidade, cria, com os significantes próprios do campo semântico da peça e com o
reforço que Garcia de Resende dá na didascália, quando pontua que o objeto “trazia o
cano no tinteiro, tudo junto pegado” (grifo meu), uma imagem que remete à cópula,
217
MARTINS, Op. cit., p. 74. Diz mais o estudioso: “E ei-lo entre o sagrado e o profano, a poetar
atrevidamente, à base do tinteiro, do cano, etc., num jogo mental onde entram os órgãos genitais e a festa
de Nossa Senhora da Encarnação. Escrever isto a uma prima, mesmo em verso, teria alguma graça entre
homens. Se a tivesse. Não, porém, dito a uma senhora” (Idem, ibidem, p.74). Observe-se que a palavra
“cunhado(a)” era forma de tratamento à época do Cancioniero Geral (Cf. DIAS, op. cit., 2003, p. 220).
218
Cf. DIAS, op. cit., 2003, p. 270.
108
mais especificamente ao movimento dos órgãos genitais. E, para desespero da Igreja,
remete ao amor carnal das divindades supremas do Cristianismo
219
.
A descrição a que se entrega o Coudel-mor é cheia de musicalidade,
principalmente nos cinco primeiros versos da glosa e nos “pés quebrados”, que, de certa
forma, reforçam a imagem que montou: ada[e]vinha e prova; o primeiro com sentido de
“visão” e o segundo como prova mesmo dos “cuidos que renova”, ou seja, da
imaginação (“cuidos”) que traz o movimento do tinteiro. A musicalidade nesse trecho é
ainda reforçada pelas rimas “nova”, “renova”, “prova”. Também essas, aliadas ao verbo
“ver”, remetem à imagem de um tema profano, elaborado com sutileza. Esta, por sua
vez, é enfatizada pela palavra “antrelinha”: é nas entrelinhas que quer comentar a
“grande torvaçam” que o regalo lhe proporcionou – ou seja, não quer ser explícito.
Quanto à questão da imagem, no contexto da arte erótica, de esmerado trabalho
imagético do Coudel-mor nesta cantiga, observa V. Chklóvski:
É a arte erótica que nos permite uma observação melhor das funções da
imagem. O objeto erótico é apresentado freqüentemente com uma coisa
jamais vista. (...) Por vezes, a representação dos objetos eróticos se faz de
uma maneira velada, onde o objeto não é evidentemente aproximá-los da
compreensão. Relaciona-se a este tipo de representação aquela como um
cadeado e uma chave (...), como os instrumentos de tecer (...), como um arco
e as flechas, como um anel e um prego (...)
220
.
219
“Esta mistura entre o sagrado e o profano, resultante de uma concepção medieval e sacralizada do
mundo e da vida, constituía o quotidiano daquele tempo [no final do século XV]. Não se estabelecia uma
linha delimitadora entre o religioso e o profano: a mentalidade colectiva era marcada por uma concepção
teológica e teocêntrica da vida, que se seguia confiadamente ou se rejeitava entre a timidez temerosa, a
acrimónia mordaz e a marginalização explícita. O que não encontramos é a indiferença ou o
agnosticismo”. (FERNANDES, Manuel Correia. Aspectos da temática religiosa e moral no Cancioneiro
Geral. In: Sociedade, Cultura e Mentalidades na Época do Cancioneiro Geral. Congresso Internacional
Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas. Vol. IV. Porto: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1989, p. 41). Complemente-se com a descrição de Johan Huizinga: “Como
fenómeno cultural esta mesma tendência dá lugar a graves perigos. Uma religião introduzindo-se em
todas as relações da vida significa uma constante mistura das esferas do pensamento sagrado e do
profano. As coisas sagradas tornar-se-ão demasiadamente comuns para serem sentidas em profundidade.”
(Op. cit. [1985], p. 160). E mais à frente: “A distância que separa a familiaridade da irreverência é
transposta quando os termos religiosos se aplicam às relações eróticas”. (Ibidem, p. 165-166).
220
CHKLÓVSKI, V. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da
Literatura. Formalistas Russos. Porto Alegre: Ed. Globo, 1978, p. 51.
109
O autor russo refere-se à imagem na pintura; contudo, a vinculação imagem-palavra na
poesia serve à análise do poema de Silveira, pois o faz de “maneira velada”, ainda que
desenhando o objeto e o ato, como forma de adivinhações (cuja palavra manifesta-se no
próprio corpo do texto). Quanto a isso, ainda depõe Chklóvski: “a singularização não é
somente um procedimento de adivinhações eróticas ou de eufemismo; ela é a base e o
único sentido de todas as adivinhações
221
”. Ao desenhar a imagem da pena, objeto
arredondado e longo adentrando o tinteiro pelo orifício, o Coudel-mor pede ao leitor
que adivinhe a cena – obscena – do ato sexual. Como não bastasse a fina ousadia do
poeta, Resende reforça o ato criando uma didascália que antevê o resultado daquilo que
será cantado. Ambos singularizam o sentido, como propõe Chklóvski, e deixam ao
leitor a questão da adivinhação.
Ao parodiar o sagrado, Fernão da Silveira, se se levar em conta a cultura
carnavalesca e grotesca da Idade Média, como proposto por Mikhail Bakhtin, não
pretende denegrir “os textos sagrados ou [os] regulamentos e leis da sabedoria escolar:
elas [as paródias medievais] transpunham tudo isso ao registro cômico e sobre o plano
material e corporal positivo, elas corporificavam, materializavam e ao mesmo tempo
aligeiravam tudo o que tocavam
222
.” Isso parece ser verdade quanto a essa cantiga do
Coudel-mor. Parece estar longe a questão do denegrimento “herético”; o que pretende o
poeta, pelo modo que compôs essa sátira e pela minúcia da imagem que monta, é apenas
fazer um jogo gracioso de sons e palavras.
Para a sátira, dessa forma, o tema e a condição do visado não são relevantes.
Também não importa se, para se alcançar com primor o resultado da composição, o
sagrado sirva de mote. Esse poema pornoerótico é valorizado pela montagem de que o
Coudel-mor se utiliza para criar a imagem, valendo-se dos significantes apropriados a
essa criação. Na peça, registra-se a liberalidade das relações sociais do Portugal da
época, pois um tema de forte conotação erótica é dirigido a uma senhora, e a rigidez da
pregação da Igreja traz pouco resultado, mesmo porque quem elabora o “desvio” é um
dos mais respeitados cortesãos do Paço.
221
Idem, ibidem, p. 52.
222
BAKHTIN, op. cit., 1999, p. 72.
110
4.2.3. O órgão sexual masculino: chiste irônico
Mas esse respeitado funcionário da monarquia portuguesa de Quatrocentos não
se absteve – nem ele nem seus colegas – de satirizar apenas as mulheres. Na ajuda
“D’Anrique d’Almeida Passaro aa barguilha de Dom Goterre, que fez de borcado,
enderençadas aas damas.”, participam nove contendores e a originalidade está, assim
como ocorre no processo de “O Cuidar e Sospirar”, na diversidade de formas poéticas:
alternância de cantigas e esparsas, ao gosto de cada ajudador. Fernão da Silveira
intervém três vezes, com uma cantiga e duas esparsas. O visado, desta feita, é um
homem, e o denegrimento vai se dirigir ao seu órgão sexual. No motejo, Anrique
d’Almeida Passaro propõe aos parceiros descobrir o que esconde a braguilha de Dom
Goterre
223
:
Nom hajais por maravilha
preguntar donde vos vem
quererdes saber que tem
Dom Goterre na barguilha. (CG, III, 587, p. 199)
Na sua primeira intervenção, o Coudel-mor compõe uma cantiga para comentar
o feito:
O Coudel-moor.”
Barguilha de falso peito,
reboloa,
quando vem a ser no feito
nunca boa.
Faz amostra e grã parada,
porque toda a casa peje
se acha quem lhe rabeje
sai-vos tam envergonhada
e encurtada,
entam buscai quem peleje.
E fica toda d’um jeito
a pessoa,
porque s’enganou no feito
d’arralhoa. (Ibidem, p. 200)
223
Note-se que Dom Goterre era considerado traidor de D. João II e participou da conspiração contra o
monarca. Teófilo Braga, com relação a esta poesia e ao clima político tenso, comenta: “Daqui se vê o
vínculo que unia estes áulicos, que encobriam as emoções da conspiração com sátiras engraçadas”. (Op.
cit., 1871, p. 284).
111
No mote, o poeta destaca o vocativo “reboloa”
224
, chamando a Dom Goterre de
fanfarrão, usando como artifício a inversio e a elipse (subentende-se “é coisa” depois de
“nunca”): o que esconde o alvo do chiste não é coisa interessante. Reforça a mofa com
dois “pés quebrados” para, parece, escarnecer de Dom Goterre com um atributo –
“reboloa” – e aquilo que esconde na peça de brocado
225
. Na glosa, ridiculariza o
membro do visado, pois, apesar de demonstrar força (“parada”) dada à exótica braga,
quando acha alguém que lhe excite (“rabeje”), só resultará em vergonha e decepção. O
tamanho do órgão, que todos dizem ser pequeno, e a decepção de quem o descobre são
ressaltados pelo adjetivo “encurtada” e pela expressão “s’enganou no feito”. A
maledicência é, ao longo de todo o torneio, reforçada pelo diminutivo de braga:
“barguilha”, apesar de volumosa na aparência
226
.
Na segunda aparição do Coudel-mor, o poeta monta uma esparsa para comentar
a cantiga de seu homônimo Fernão da Silveira. Nela, usa um expediente próprio daquilo
sobre o que Bakhtin
227
discorre, quando estuda o grotesco em Rabelais: o louvor
daquele que será zombado, chamando-o de fidalgo de linhagem e de pai honrado; para o
estudioso russo, a louvação, nos finais da Idade Média, tem um duplo sentido: o de
escárnio e o de elogio, partes de uma literatura que denomina “carnavalesca”
228
. Usa o
poeta a anfibologia ao referir-se à genitália de Dom Goterre como carnagem que vem
desnaturada e, dessa forma, rebaixa sua condição de nobre. Usa ainda do calembur
quando compara o volume que a braguilha esconde com a ponta muito aguda do
224
Rebolão, fanfarrão. Cf. DIAS, 2003, p. 584.
225
O brocado é uma espécie de tecido de seda e era um dos mais apreciados, pois “que para além de seda
levavam na sua confecção ouro e prata ou os dois metais ao mesmo tempo, a formar na face flores ou
outros desenhos típicos – assim, pode-se dizer que fazem parte da grande família dos chamados panos de
ouro, tão prodigiosos ao longo de toda a Idade Média”. (MORÁN CABANAS, op. cit., 2001b, p. 96-97).
226
Quanto à maledicência nesta tenção, observa Maria Isabel Morán Cabanas que “os versejadores do
nosso Cancioneiro, (...) se riem nos seus versos não só da utilização de tão rico material, mas do facto de
revestir interiormente esta peça de chumaço a fim de alterar ou dar volume a ‘o que por obra falece’”.
(Op. cit., 2001b, p. 141).
227
BAKHTIN, op. cit. 1999, p. 364 passim.
228
Assim se expressa Maria Isabel Morán Cabanas, quanto à questão do elogio nas perguntas e
respostas: “Em geral, em tais textos o autor dirige-se ao seu confidente elogiando os seus grandes valores
intelectuais e até o seu cavalheirismo e valentia.” (In: MORÁN CABANAS, Maria Isabel. O exemplum
na lírica anorosa medieval Galego-Portuguesa e do Cancioneiro Geral. In: Retórica, Política e Ideología
desde la Antegüedad hasta nuestros días. Retórica Clásica y Edad Média. (Actas del II Congreso
Internacional). Salamanca, Logo, 1997, v. I, p. 358). Há de se ressaltar que no caso específico desta
tenção, o “confidente” passa a ser o visado – do qual se chufa.
112
sapato
229
, rimando “pontilha” com “barguilha”. A propósito do verbete “sapato”, Maria
Isabel Morán Cabanas registra:
O calçado dos homens no século XV continua a tradição dos sapatos bicudos
que fizeram a sua aparição na Península Ibérica na segunda metade de
Trezentos e estiveram sempre na moda até finais da centúria seguinte, com
maior ou menor sucesso entre os elegantes. Este tipo de sapato terminava
numa longa ponta na parte superior e dificultaria certamente o andar, pelo
que a pontilha curvada que possuía, quando levada ao exagero, tinha que se
prender à altura do joelho por meio de ligas. (Grifo meu)
230
.
Nota-se a propriedade da chufa dos contendores, uma vez que a “pontilha” do próprio
sapato de D. Goterre desmente o que escondia na “braguilha”.
A graça da esparsa, entretanto, está não somente na comparação reforçada pelos
tropos, mas no seu resultado irônico, acrescentado ao fato de usar um esquema rimático
que beira à música. Adorna o poema com um “pé quebrado” estratégico: a palavra
“mortal” destaca a ironia sutil e a intenção de mofar de seu objeto-alvo. Veja-se a
esparsa:
O Coudel-moor a esta cantiga.”
O fidalgo de linhajem,
filho de pai mui honrado,
é de ũa tal carnajem
que sem mais fazer menajem
vos vem jaa desnaturado.
Com recheos de pontilha,
raspa, lãa e isto tal,
faz ũ cume de barguilha
tam mortal
que mao grado a Sandoval. (Ibidem, p. 201-202)
Na décima intervenção, o proponente da chufa sugere seja apregoado um letreiro
na braguilha de Dom Goterre – o que reforça o fato de ela ser enorme. Com os seguintes
dizeres, ironiza-se o material com o qual foi confeccionada a braguilha, o brocado, cuja
palavra faz jogo com “bocado”: “Ponhamos-lhe por ditado, / pois tam maa vida passou:
/ Aqui jaz quem nom gostou / deste mundo ũ soo bocado!”
“O Coudel-moor ao letreiro.”
Aqui jaz quem sempre jaz
dormente, mas nunca dorme,
leixem o viver em paz,
229
Cf. DIAS, 2003, p. 539-540.
230
MORÁN CABANAS, op. cit, 2001b, p. 190.
113
pois que jaz e nunca faz
de si forma em que enforme.
Aqui jaz quem sem comer
jaz em som mais que de farto,
aqui jaz sem se mover,
que jaz fora de poder
de matar ninguem de parto! (Ibidem, p. 204)
Nesta terceira participação, Fernão da Silveira esmera no preciosismo. Brinca
com as rimas em “az”: jaz, faz, paz, utilizando, inclusive, as duas primeiras palavras
como rimas internas no quarto verso; usa o artifício do enjambement entre o primeiro e
o segundo versos; a annominatio aparece em “dormente” e “dorme”, “forma” e
“enforme”, intentando com esse uso, primeiro, dizer que, apesar de estagnado, o órgão
de Dom Goterre está sempre em riste, e a segunda renegando a primeira paronomásia: o
órgão da “vítima” nunca adquire forma devida para o uso. A epizeuxe vem nos cinco
últimos versos centralizada na palavra “jaz”, que corrobora a intenção da mofa: a de
lançar dúvidas quanto à eficácia do que se esconde por trás da braguilha; recorre,
novamente, à anfibologia quando diz que “aqui jaz quem sem comer”, tendo o verbo
“comer” conotação pornográfica
231
e, ainda, um outro calembur em “aqui jaz sem se
mover / que jaz fora de poder”. A interjeição final liga-se a toda intenção jocosa: a
suntuosa e desproporcional braguilha de Dom Goterre só poderia causar espanto, pois
dentro dela há aquilo que não mataria “ninguem de parto”. Há de se notar, ainda, as
segundas intenções com os verbos terminados em “-er”: comer, mover, poder, cujos
sentidos são ambíguos, sem contar que remetem a outro verbo chulo igualmente
terminado em “-er” e que caracteriza o ato sexual.
Nessas sátiras desenvolvidas por Fernão da Silveira, calcadas na tradição
peninsular, o que se percebe é uma maior preocupação com a forma, aliada a um
vocabulário e gramática já mais requintados, devido ao enriquecimento da língua
231
Para Morán Cabanas: “cumpre também atentar no contraste a nível semântico dos termos verbais
quase homófonos jaz e faz; na derivação paranomásica (sic)’ forma-enforme’ e em certos vocábulos que
já na tradição satírica galego-portuguesa significavam veladamente, como comer”. (Op. cit., 2001b, p.
330).
114
portuguesa
232
. Contudo, a grafia ainda sofre a influência da oralidade, e o escritor
registra as palavras de acordo com a sonoridade, sem obedecer a qualquer norma. A
declamação nos salões áulicos, por sua vez, traz à tona pelo menos duas questões: se
eram os poemas criados de improviso, a criatividade e a inventividade dos poetas
palacianos são dignas de alto merecimento; mas, se antes de serem recitadas perante
uma audiência ávida pelas novidades o poeta compunha suas peças, o merecimento
parece ser maior, pois tal atitude implica a conscientização de um ofício – o de poetar.
Seria, em verdade, a conscientização de que a função
233
não abrangia apenas deleite
234
,
ludicidade e exibicionismo, mas trabalho lapidar das palavras.
Também nessas sátiras percebe-se um distanciamento das preocupações
religiosas. Se uma cultura do pecado ainda prevalecia na consciência coletiva, instigada
pela austeridade cristã, as produções satíricas desmentem veementemente o poder da
Igreja quanto às relações privadas. Percebe-se, nessas criações, insista-se, uma
liberalidade que chega mesmo a afrontar os códigos morais hodiernos, pois aos
freqüentadores das festas e torneios do palácio importava viver o momento – e bem –,
uma vez que a realidade se-lhes mostrava árdua e desventurada.
É notório que a sexualidade, ao longo de toda a história do ser humano, tem sido
considerada tabu; talvez por isso ela seja “a mais pessoal, a mais vital, e também a mais
normatizada nas sociedades antigas, uma vez que as estruturas de parentesco e, mais
ainda, toda a organização social estão embasadas na codificação das relações
232
Segundo Dulce Faria Paiva, é nas poesias satíricas que “o número de vocábulos aumenta
sensivelmente com bastante diversificação e há emprego bem variado de recursos estilísiticos, notando-
se, em algumas composições, muitas metáforas de origem náutica, talvez por influência do ambiente
histórico, pleno de notícias relacionadas às conquistas ultramarinas”. (Op. cit., p. 31).
233
Quanto a isso, relata Aida Fernanda Dias: “Talvez já aqui se considerasse que a poesia – como se
depreende de versos do humanista João Rodrigues de Sá de Meneses (II, n° 493) – era uma actividade
artística, uma elevação do espírito a ideais mais nobres, um meio de formação do homem, e que,
simultaneamente, era deleitável, cumprindo assim as finalidades expressas por Horácio na Epistola ad
Pisones”. (Op. cit., 1998b, p. 116-117). O ofício de poeta, no fim do medievo vai adquirindo já a forma
moderna, diferentemente de seu significado quando da poesia provençal. Àquele tempo “la palabra poeta
estaba reservada a los versificadores que escribían en culto latín” (RIQUER, op. cit., I, p. 19) e a função
de trovador caracterizava aquele que compunha as canções, “aunque muchas veces no sean ellos
personalmente los que canten sus producciones.” (ibidem, p. 19)
234
Horácio defendia que a poesia devia ser a um só tempo diversão e utilidade. Cf. CURTIUS, op. cit., p.
263.
115
sexuais
235
”. Contudo, durante o medievo, um componente a mais é-lhe acrescentado: o
pecado. “Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo
pecado
236
” e desde que Adão e Eva desobedeceram a Deus e macularam o estado
original de perfeição, o que preocupa o indivíduo medieval é, através do rechaço às
necessidades do corpo, atingir a plenitude pela ascese, pela purgação do que o fez
desviar dos caminhos divinos.
Já pelo fim da Idade Média, “a palavra, a sexualidade, o dinheiro são os três
temas que (...) retornam, com insistência quase obsessiva, aos tratados morais
237
”. Esse
retorno acontece numa estrutura modificada, e a cultura do pecado, ainda com grande
influência nas relações sociais, destina-se “a influir com todo seu peso nos
acontecimentos culturais e religiosos que marcam a passagem à era moderna
238
”. Não
deixará a sexualidade, então, de estar entre uma das principais preocupações dos
religiosos e da sociedade civil. Para exercer seu controle sobre o rebanho, e para firmar-
se como única portadora da verdade sobre a conduta moral, a Igreja não mediu esforços
para desenvolver “um corpo detalhado e coerente de leis (...) sobre assuntos sexuais,
definindo e prescrevendo condutas pormenorizadamente
239
” .
Toda uma norma rígida contra essa sexualidade percorreu os manuais dos
moralistas medievais, principalmente dos religiosos, já que o privilégio da escrita
permaneceu, com poucas exceções, sob tutela da Igreja. É ela que pregava e fazia
difundir as leis regulatórias quanto ao uso do corpo; este deveria ser usado, nas relações
sexuais, apenas como meio de procriação
240
. Tudo o mais era desvio. Para disciplinar os
costumes, os educadores pregavam que desde a infância os cinco sentidos fossem
adestrados, não só quanto às relações sociais públicas e privadas, mas
235
ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade. Trad. Mário Jorge da M. Bastos. In: Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru/São Paulo: EDUSC, 2003, Volume II, p. 477.
236
CASAGRANDE, Carla e VECCHIO, Silvana. Pecado. In: Dicionário Temático do Ocidente
Medieval. Bauru/São Paulo: EDUSC, 2003. Volume II, p. 337.
237
Idem, ibidem, p. 350.
238
Idem, ibidem, p. 350.
239
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média. Trad. Marco A. E. da
Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 25.
240
Santo Tomás de Aquino considera que “o bem da espécie quer que a mulher ajude seu marido na
procriação, função auxiliar que constitui, na ordem da criação, a finalidade de sua existência enquanto
indivíduo sexuado”. (KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/feminino. In: Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. Bauru/São Paulo: EDUSC, 2003, Volume II, p. 143).
116
preponderantemente quanto às questões do sexo
241
. Separados desde crianças
242
, o
masculino e o feminino desenvolvem-se num ambiente em que a aproximação dos dois
sexos é proibida.
Contudo, a questão da sexualidade e suas manifestações sofre uma inversão em
relação àquela pregada nos manuais, quando surge nas obras literárias
243
. Nos
Cancioneiros, é comum retratar o tema e suas manifestações consideradas execráveis
como parte normal da convivência social
244
, como se pôde verificar na pequena recolha
que atrás foi trazida. Para os poetas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, a
questão da sexualidade é vista, muito geralmente, como motivo para chiste. Para eles,
qualquer mérito ou deslize dos freqüentadores do Paço era motivo para poetar,
louvando ou denegrindo seu objeto-alvo. Entretanto, mais do que usar a sátira no
sentido horaciano de moralização dos costumes, os contendores palacianos primam pelo
jocoso e pelo lúdico da linguagem. Mostram ainda que, no final do século XV, o rígido
código moral imposto pela Igreja continua a ser desrespeitado; ele é infringido mesmo
no espaço dos serões áulicos da nobreza. Vista exiguamente a questão da sexualidade na
Idade Média, pôde-se verificar como a sátira pornográfica é trabalhada com recursos da
241
RONCIÈRE, Charles de la. A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença. Trad.
Maria Lúcia Machado. In: História da Vida Privada, 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 307.
242
“Eis por que as crianças, desde que atingiam a idade da razão, eram divididas em dois compartimentos
distintos: um cuidadosamente fechado, para ali conservar meninas, futuras mães, até que fossem
transportadas, uma após outra, em cortejo, para uma outra morada da qual se tornariam damas; o outro
aberto, onde os meninos não viriam alojar-se senão de passagem, como hóspedes, pois eram soltos,
lançados ao exterior para ali apossar-se de tudo o que pudessem, especialmente esposas.” (DUBY,
Georges. Convívio. In: História da Vida Privada. Da Europa feudal à Renascença. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, volume 2, p. 80). Christiane Klapisch-Zuber afirma: “falando do
masculino/feminino na Idade Média, dificilmente evoca-se os valores ligados ao pólo masculino, tanto o
discurso medieval dominante atua pela separação, pela diferenciação do feminino a partir de um
masculino concebido como plenitude e totalidade”. (Op. cit., p. 149).
243
Michel Zink comenta o papel do escárnio, aliado ao desejo, na literatura da Idade Média: “Na poesia e
no romance cortesão, a expressão da sensualidade, por viva que seja, quase sempre lança sobre a
revelação e a realização finais o véu da alusão, do eufemismo ou da metáfora. Tudo pode ser descrito,
menos o ato sexual. Tudo pode ser nomeado, menos as pudenda. Mas outras formas literárias seguem
caminho inverso: o amor é apenas saciedade física, o corpo parece reduzido às partes genitais. O tom é
(...) o do cômico licencioso e do escárnio. Quando não é opacidade do silêncio, a exacerbação diante do
sexo gera a ostentação de uma obscenidade escandalosa e escarnecedora”. (Op. cit., p. 87).
244
“Nas comédias, nas novelas mais ou menos inspiradas em Boccaccio e nas obras que caricaturam a
lírica cortesã, o proibido parece distante e, em matéria de sexualidade, o tom e as situações são da mais
inteira liberdade. Mas não podemos nos guiar pelas aparências, que além de tudo não chegam a mascarar
o essencial, a extrema conformidade com a norma”. (ROSSIAUD, op. cit., p. 492).
117
poética, tais como o ritmo, a rima e a construção formal, nas composições pornoeróticas
de Fernão da Silveira e de alguns de seus colegas. É necessário acrescentar que,
enquanto os poetas galaico-portugueses, ao satirizar com maledicência ou escárnio,
muitas vezes se aplicavam mais aos termos chulos do que às descrições
pormenorizadas, os poetas palacianos, nas suas “cousas de folgar”, voltavam-se para as
minúcias escritivas
245
, como se pôde verificar no redondilho do Coudel-mor dedicado
ao sexo de D. Lucrécia ou ainda na tenção sobre a homo/bissexualidade de duas damas
palacianas, bem como no chiste ao órgão sexual de Dom Goterre.
Um outro aspecto das criações satíricas: quando se as observam, um dado é
essencial de sua elocução, o realismo. A palavra “realismo”, para designar as poesias
satíricas trovadorescas, é empregada com freqüência pelos estudiosos do medievo
português. Graça Videira Lopes, valendo-se da expressão “lírica do realismo” cunhada
por Peter Dronke, comenta que este tipo de poesia é “uma lírica que (...) se ancora
prioritariamente em personagens reais – tornadas alvo da sátira – e que se apresenta
geralmente como um comentário, mais ou menos sério, mais ou menos jocoso, de um
facto social, político ou meramente quotidiano de que essas personagens são
protagonistas...
246
”. Jole Ruggieri, que possivelmente usou pela primeira vez “realismo”
para definir a poesia – tanto a satírica quanto a de cunho amoroso – do Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende, assim se manifesta:
245
Mário Martins, ao tratar da poesia palaciana, afirma que nem sempre as poesias pornográficas são
feitas “para valer”. Elas lembrariam as anedotas de taberna, em que o homem prevalece; estariam longe
de ser sexualizantes ou imorais e têm o intuito de catarse pelo riso. Contudo, não deixam, essas poesias
pornográficas, de ser boçais, “com descrições tão asquerosas das partes íntimas da mulher e do corpo
deformado pela gordura ou pela idade, que delas resulta a repugnância física” (Op. cit. p. 73).
Especificamente quanto ao sexo de D. Lucrécia, dado de presente à noiva, Martins escreve: “instrumento
erótico que aliás já aparece nos cancioneiros mais antigos. Nisto de sexualismo, não há nada de novo
debaixo da roda do Sol”. (Idem, ibidem, p. 75). Um aparte ao registro do crítico; ele dá como autor da
poesia Anrique de Almeida, o que, provavelmente, foi uma falha sua, pois a didascália de Resende é
explícita quanto à autoria de Fernão da Silveira.
246
LOPES, op. cit., 1994, p. 208.
118
Se il grande sviluppo dato alla poesia d’occasione, la cui trama è un fatto
reale ed attuale, costituisce uno degli aspetti essenziali del canzonière di
Resende, in cui ormai il realismo, quasi sempre suffocato al tempo della
prima poesia lirica, e compreso allora nell’ambito breve della cantiga de
escarnho, pervade con perfetta obbiettività, gran parte delle rime, anche
quelle d’amore: pure, tale tendenza, che in fondo è anch’essa un mezzo per
avviare al rinnovamento della poesia, è già dichiarata da esempi, benché
questi rari, nel canzoniere di Ajuda e nel Vaticano
247
.
Este realismo contrapõe-se àquele conceituado por Johan Huizinga, que é o sentido
antitético do idealismo: “o pensamento medieval se inclinava frequentemente à
passagem do puro idealismo a uma espécie de ideal mágico, em que o abstrato tende a
tornar-se concreto. Revelam-se aqui os laços que unem a Idade Média a um passado
cultural muito primitivo
248
”. O conceito que se aplica às sátiras, portanto, é a evidência
do concreto real, não idealizado.
Ao se deparar com a sátira, um outro elemento, além do real, deve ser
observado, mesmo porque, sem ele, a sátira tornar-se-á insossa, inexpressiva: a questão
do humor. Sobre isso, comenta M. Rodrigues Lapa:
a esfera da nossa veia satírica não é o mundo dos sonhos, mas o mundo real,
palpável, em que agitam os homens. O humor, para se realizar, precisa de
uma objectivação que lhe sirva de símbolo, imagem das fraquezas e vícios
dos pobres viventes, que o homem tem de compreender e suportar com o
sorriso nos lábios. O humorista não pretende emendar o mundo à maneira do
moralista; prefere, ao contrário, que ele se conserve assim, para se rir à custa
dele, melhor dizendo, para se sorrir, pois (...) o riso não é próprio do
humorista, por ser demasiado explosivo e apaixonado
249
.
Nas sátiras desenvolvidas por Silveira, como se pôde vislumbrar nos exemplos
dados, o realismo a que aludem esses críticos é, de certa forma, cru e explícito. Não
fossem os recursos da poética, ele não seria nada mais do que obscenidade elevada ao
grau máximo. No entanto, mesmo o mais pudico crítico pode deixar de lado seus
valores morais, quando se defronta, por exemplo, com a descrição do sexo de dona
Lucrécia, poema eivado de sonoridade musical e de jogos de palavras – mesmo que
nada eufemísticos. Um religioso conservador deverá ver “conduta pecaminosa” na
alusão à sexualidade das personagens divinas, ao se defrontar com a cantiga que o
Coudel-mor fez à festa da Encarnação, comparando a penetração de uma pena ao
tinteiro ao ato sexual. No entanto, há de ser cativado pela engenhosidade da montagem
247
RUGGIERI, op. cit., p. 68.
248
HUIZINGA, op. cit., [1985], p. 227.
119
– tanto sonora quanto imagética – que empreendeu o poeta. E o que dizer do humor, não
só nessas peças citadas, mas no cômico deboche do órgão sexual de Dom Goterre,
quando os participantes da chufa brincam com as palavras, enformam-nas numa
estrutura diversificada, própria dos arremedos da teatralidade? Ri-se não só do
denegrimento do tamanho do órgão do visado, mas também de como se montou o jogo.
Viu-se, antes do “passeio” por algumas sátiras desenvolvidas por Fernão da
Silveira e seus comparsas, como a beleza feminina trouxe ao Coudel-mor inspiração
para cantar a coita de amor – um sofrimento que instiga conflito e arrebatamento. Mas
ambos não são causados somente pelo tema do amor. A questão do desconcerto do
mundo, através da visão de um “eu” repartido, transparece nas produções cancioneiris
do final do medievo, como se poderá atestar por alguns poemas de Silveira, de
diversificada estrutura composicional.
4.3. O EU DIVIDIDO: RETRATO DO DESCONCERTO DO MUNDO
O tema do “eu dividido”
250
será bastante explorado no final do medievo
português, retratando não só a melancolia própria da terra, mas também um sentimento
que vem já do estado de espírito característico de Dom Duarte
251
(1433-1438). Na
cantiga que segue, denominada “Coudel-moor.”, o sentimento é apresentado pelo poeta
como eivado de sutilezas e preciosismo. Canta sua perdição em castelhano, usando, no
primeiro verso do poema, uma antítese, “ganhar / perder”, reforçada nos dois versos
249
LAPA, op. cit., 1965, p. XII.
250
O sentimento do “eu” dividido é próprio do estado de espírito desse final do medievo português. Lênia
Márcia Mongelli assim se refere a esse sentir do autor anônimo do Boosco deleitoso, mais
especificamente com relação ao divino: “Etimologicamente, ‘peregrino’ é o expatriado, o exilado da
convivência divina (sentido ‘próprio’ de peregrinitas, tatis = ‘condição de estrangeiro’)” e cita as
palavras do próprio autor: “’porque me ssentia embargado dos meus pecados, que haviam feito
departimento entre mi e o Senhor Deus”. (MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros (Coord.). A
literatura doutrinária na Corte de Avis. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 152).
251
Com relação à melancolia do rei, escreve Márcio Ricardo Coelho Muniz, em A literatura doutrinária
na Corte de Avis: “O capítulo XIX constitui um dos mais célebres escritos duartinos. Encontra-se nele um
relato profundo, minucioso e aparentemente sincero do mal de ‘humor menencórico’, que sofreu D.
Duarte quando ainda príncipe. O rei narra todo o processo de intensa melancolia que viveu durante três
anos, aponta suas causas, as sugestões de tratamentos dadas pelos médicos da corte, sua negativa em
segui-los, o início da cura a partir da doença da mãe, a rainha D. Felipa de Lencastre – ‘porque sentindo
ela, leixei de sentir a mim’...” (MONGELLI, L. M. [Coord.], op. cit., p. 277). Tal manifestação, diga-se
de passagem, lembra poemas cujo tema é o “eu” dividido, cantado pelos poetas palacianos, como Sá de
Miranda (“Comigo me desavim / vejo-m’em grande perigo / nam posso viver comigo / nem posso fogir
120
seguintes por “ganarvos / me perdi”. Note-se que, como preciosismo, coloca o poeta,
de mim”. CG, II, 415) ou ainda de Bernardim Ribeiro (“Antre mim mesmo e mim / nam sei que
s’alevantou / que tam meu imigo sou”. CG, IV, 810) e o próprio Fernão da Silveira, o Coudel-mor.
121
algo comum a muitas outras composições suas, um “pé quebrado” no mote, destacando
a palavra-chave do “eu” dividido: “me perdi.”, repetido no último verso da glosa. Para
concretizar, de certa forma, o “eu” repartido, usa ritmo e rimas irregulares, tanto na
natureza das rimas quanto na disposição delas, e ainda se vale de um recurso
tradicional da poesia trovadoresca galego-portuguesa, a palavra perduda, no sexto
verso da glosa. Com esse recurso, concretiza o “eu-lírico” sua perdição. Toda a
sentimentalidade é pontuada pelas antíteses (desamado / amaros; quereros / no querido)
e pela annominatio, que se forma pelas próprias antíteses e no verso aliterativo “por me
ver vuestro me vi”.
Quien gana pierde, aprendi
por mi mal, pues foe en hora
qu’em ganarvos por senhora
me perdi.
Verme del todo perdido
ganee triste por ganaros,
desamado por amaros,
por quereros no querido.
Por me ver vuestro me vi
de mis sentidos tam fuera,
qu’en ganaros por senhora
me perdi. (CG, I, 51)
Esse mesmo sentimento ainda será explorado por Silveira numa contenda
intitulada “De Jorge d’Aguiar, apartando-se dos amores.”, em que participam cinco
poetas. Em forma de esparsa, o Coudel-mor vem explorar a partida dos amores, que
deixa o “eu-lírico” apartado de si mesmo.
Do Coudel-moor.
Quem podeer tanto consigo
precure sa liberdade,
mas eu nam posso comigo
nem posso mudar vontade.
Com todo mal que façaes
nem me fazeis,
amores, sempre jamais
nam quero nojos que dais,
pois me podeis dar mercês. (CG, III, 581, p. 177)
Nos poemas de cunho amoroso, o poeta quatrocentista acrescenta às suas
lamúrias já um sentimento que o diferencia dos seus antepassados trovadores. Agrega a
122
uma forma inovadora elementos de individualidade, sinceridade e espiritualidade. A
língua, agora, permite-lhe expandir sua sentimentalidade, aliada ao novo exercício que
adquire o “poietes”. O fazer poesias, como dito acima, é um ofício que deve ser elevado
à condição de artesanato, o das palavras, as quais serão, mesmo nos casos de
improvisação, resultado de uma experiência subjetiva e de uma programação
sistematizada.
4.4. POESIA PALACIANA: MOTE PARA A CONVIVÊNCIA SOCIAL
Dentre as numerosas composições de Fernão da Silveira, destacam-se as de
cunho amoroso e as de cunho intimista, mescladas às muitas de cunho jocoso, cujos
exemplos puderam-se ver mais desenvolvidos nas análises dos subcapítulos
precedentes. Mas o poeta ainda se valeu, e com proficuidade, de poemas de cunho
sócio-histórico, de cujos registros pretendo tratar nos próximos parágrafos.
Se se tomar a poesia como elemento do caráter gregário da sociedade palaciana,
são inumeráveis as intervenções de Fernão da Silveira, no desenrolar das justas poéticas
desenvolvidas nos festins da corte portuguesa. Sem dúvida, sua participação excessiva
no longo processo do “Cuidar e Sospirar”, por exemplo, já demonstra a visão – ou uso –
da poesia como elemento do gregarismo pação.
Ao contrário da poesia trovadoresca, em que ao trovador interessava divulgar
seu estado de espírito, quase sempre em relação a um amor não correspondido
252
, nas
peças compiladas no Cancioneiro observa-se uma inversão de prioridade: ao trovador,
252
“... en contraste con lo que puede observarse en la lírica provenzal y francesa, en las cuales predomina
el reproche tierno del poeta, siempre sumiso (...), la imprecación a la amada forma en la poesía de los
Cancioneros un verdadero subgénero...” (MALKIEL, María Rosa Lida de. Estudios sobre la Literatura
Española del siglo XV. Madri: Ed. Jose Porrua Turanzas, 1977, p. 97).
123
agora denominado poeta
253
, interessa fazer saber a quem “serve”. Mais do que isso, ao
novo trovador não cabe apenas explorar seu estado de espírito quanto ao amor –
correspondido ou não
254
; esse novo trovador deseja compartilhar seus sentimentos –
sejam eles de profundo filosofar ou de insignificante questionamento quanto a dúvidas
ou pequenices cotidianas.
Foi dito anteriormente que uma das grandes novidades do Cancioneiro Geral
são os subgêneros emulados do Cancionero General e do de Baena – as perguntas, as
respostas e as ajudas. Esses três tipos de composição permitem que os poetas criem
diálogos entre si, sendo sempre um dos participantes – ou vários – instigado a se
manifestar. Esses “diálogos” entre eles são a grande expressão do convívio pação do
final de Quatrocentos – tanto o português quanto o castelhano. Nos próximos tópicos,
mostrarei esses subgêneros da maneira como Fernão da Silveira os desenvolveu; o poeta
vai trazer à baila a questão do conflito e a do viver as benesses do momento,
prenunciando já preocupações barrocas e arcádicas, além de, numa ajuda, marcar a
premência do diálogo, modelado pela intertextualidade.
4.4.1. Nas perguntas, o prenúncio do conflito
Esses três subgêneros a que se aludiu no parágrafo anterior, numerosos no
Cancioneiro de Resende, foram campo fértil para o desenvolvimento de todos os temas
possíveis aos poetas palacianos. Veja-se, como exemplo, a pergunta que Fernão da
Silveira dirige a Álvaro Barreto, em que se desenvolve o tema da partida – preocupação
evocada em qualquer manifestação literária do medievo:
Pregunta do coudel-moor a Alvaro Barreto.
Quem bem sabe, em tudo sabe,
253
Com relação à evolução do trovador para poeta, escreve Hernâni Cidade: “... o ‘trovador’, que havia
assumido essa categoria que o diferenciava do ‘jogral’, sobe agora, pela cultura de ‘letrado’, à dignidade
de ‘poeta’. E a sua arte deixa de ser arte de ‘trovar’, para se enobrecer com a designação de ‘poesia’ ou
‘poetria’, quase com foros de faculdade científica – Gaya Sciencia” (Op. cit., p. 64). Segundo estudo de
Andrée Crabbé Rocha, trovar, à época do Cancioneiro, teria conotação satírica e não teria ligação com o
conteúdo lírico que lhe atribuímos hoje em dia. Referindo-se às cantigas de maldizer e de escárnio,
escreve: “A maior parte das críticas de tipo pessoal traduz-se em trovas (...), palavra que, como as suas
congéneres ‘trovador’ e ‘trovar’, não tem a conotação lírica que hoje lhe atribuímos, apontando (...) para
o significado de maledicência com que figura claramente no próprio Cancioneiro.” (Op. cit., 1987, p. 48).
254
Não sendo correspondido, o poeta de fins da Idade Média usará o recurso da “imprecação amorosa”,
como visto acima, na nota (252).
124
e porem daqui concrudo,
que a vós, que sabês tudo,
assolver as questões cabe.
E porem mui de verdade
peço que esta respondaes,
pera ver se concertaes
com minha negra vontade.
Ca eu ja me vi partir
e também despois chegar,
e senti todo o sentir
do prazer e do pesar.
Mas contudo é de saber
qual é vossa concrusam:
se partir dá mais paxam,
ou chegar maior prazer. (CG, I, 37)
A forma poética é a esparsa, compondo-se aqui de duas coplas de oito versos
cada, metrificada em redondilha maior. Seguindo um esquema rímico diferenciado -
abba nos quatro primeiros versos e cddc nos quatro últimos da primeira estrofe –, o
poeta altera o esquema na última estrofe: efef nos quatro primeiros versos, e ghhg nos
dois últimos da segunda estrofe. Usa rimas femininas e intercaladas na primeira estrofe
e masculinas e alternadas na segunda. Contudo, intercala dois versos destas últimas nos
sexto e sétimos versos da primeira estrofe. Estão montadas aí mais duas características
de sua obra: primeira, a inventividade, como ato de ludicidade, revelada pela
“brincadeira” com o esquema de rimas, como se evidenciou anteriormente, apesar de
usar a redondilha maior, tão comum na produção poética dessa época e exaustiva no
Cancioneiro, além de um ritmo também comum: acentuação tônica nas terceira e sétima
sílabas.
A outra característica – e essa de maior substância – é a ligação forma-fundo: a
pergunta que dirige a seu comparsa poeta é, na verdade, uma dúvida, em que a palavra
“saudade” é metaforizada no poema todo: o ato de partir desperta mais paixão ou o de
125
chegar oferece maior prazer?
255
Se o “eu-lírico” está em dúvida – e para isso pede a
participação de outrem para ajudá-lo –, nada mais propício que essa dúvida se mostre
não só no conteúdo, mas também na forma. E o questionamento se apresenta num
esquema rímico irregular que condensa, de certa forma, a idéia de um espírito
inquiridor, conflituoso. Conflito que é reforçado pelas antíteses partir/chegar e
prazer/pesar. Nessa esparsa, aliando uma forma original a um conteúdo que será
amplamente trabalhado durante o Barroco, pode-se da mesma forma assistir à destreza
do Coudel-mor.
É próprio da poesia a exortação da subjetividade. Apresentada nos salões
festivos dos cortesãos portugueses, esta subjetividade é dividida inter pares,
conclamando os participantes ao gregarismo. As três formas aqui apresentadas – a
ajuda, as perguntas e as respostas – são claras provas da conveniência da poética à
sociabilização. Visto um exemplo de pergunta, passe-se a estudar uma resposta.
4.4.2. Nas respostas, proposta de viver o momento
Na “Resposta do Coudel-moor, que foi requerido pola senhora, que respondesse
por ela”
256
, continua o poeta a praticar o jogo das rimas. Como metrificação, usa a
redondilha de sete sílabas, mas brinca agora com o ritmo: a acentuação aparece tônica
ora na segunda, na quinta e sétima sílabas, ora na terceira e na sétima, ora na quarta e
sétima. Brinca, ainda uma vez mais, com as rimas: nessa esparsa monostrófica de nove
versos o esquema é, novamente, diferenciado, sendo abba / accaa. Inova também
quanto às rimas do esquema “a”, as quais perdem o “s” final nos dois últimos versos,
255
A estudiosa Maria Isabel Morán Cabanas comenta o tema e a aparição dessa pergunta na antologia de
Resende: “Raríssimas são (...) as poesias que deixam sentir no fim da Idade Média a ‘joie de retour’ na
lírica castelhana e nem sequer um eco se encontra no Cancioneiro Geral. Aliás, quando um daqueles
textos da vasta colectânea em que à maneira de joc-parti (jeu parti ou partimen) medieval se debatem
determinados aspectos ligados à casuística amorosa, o Coudel-Mor pergunta a Alvaro Barreto se supõe
maior emoção a tristeza da partida ou o prazer da chegada (...) este responde que, quando se quer bem, é
maior o aflito da primeira...”. (MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Ainda sobre a partida no Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende. In: Associação Internacional de Lusitanistas (Actas do Quinto Congresso).
Oxford-Coimbra, 1998. Separata, p. 471). Morán Cabanas ressalta a exigüidade do tema no Cancioneiro
de Resende; contudo, a preocupação, se se amainou, continua presente na manifestação de Silveira, poeta
que se caracteriza por trazer amiúde temas e formas tradicionais, aplicando a eles um novo tratamento,
como se pode ver em alguns exemplos trazidos neste estudo.
256
Essa resposta segue a pergunta: “Do Conde Dom Alvaro, que mandou a ũa senhora, que era terceira
em ũus seus amores.” (CG, I, 38, p. 189). Vide a poesia completa na Antologia, ao final deste estudo.
126
além de incluir rimas agudas nos versos seis e sete, contrariando a esparsa toda, que é
formada de rimas femininas. Cria, com esse esquema, uma musicalidade festiva bem
propícia ao tema – desfrutar com prazer as coisas materiais:
Tres cousas queria nuas
ante qu’isso que dizeis,
que foram, nam duvideis,
dadas à filha de Fuas.
E viessem assi cruas,
pera fartar apetito,
ca neste mundo maldito,
ante qu’ele me destrua,
quero me fartar de bua. (CG, I, 38)
Não se tente ver nessa pequena composição a profundidade filosófica do carpe
diem barroco ou arcádico. Contudo, já no fim da Idade Média – uma vez que aqui se
fala da fase pré-renascentista –, todas as inquietações exploradas nos estilos literários
posteriores já proliferavam, por exemplo, no Cancioneiro Geral, germe do filosófico
questionamento do desconcerto do mundo, resgatado, ampliado e enobrecido por
Camões e pelo teatro crítico-sócio-moralista de Gil Vicente. As inquietações dos poetas
são trazidas a público – nas festas áulicas – e sempre requerem uma manifestação ou do
oponente ou daquele que comunga as preocupações do poeta proponente. No caso dessa
peça, é de se observar, quanto à questão de uma poesia participativa, que quem pede
uma resposta é a dama que foi galanteada por um conde, como se lê na didascália de
Garcia de Resende: “Do Conde Dom Alvaro, que mandou a ũa senhora, que era terceira
em ũus seus amores.”
Nessa resposta de Silveira, um tanto hermética para nós, se se pensar nos versos
“que foram, nam duvideis, / dadas à filha de Fuas”, uma vez que não foi possível
desvendar quem seria “Fuas” nem o que teria sido dado à filha dele, o que se percebe, a
par da questão de se aproveitar as benesses do tempo presente, é a concretização do que
os estudos vêm afirmando sobre a importância do Coudel-mor nas relações do Paço
257
.
Da didascália, depreende-se que Dom Álvaro posava de Dom Juan – a senhora que
galanteia é a terceira “em ũus seus amores”. Parece que, temendo as investidas do
galanteador, serviu-se a senhora da perspicácia e poder de Fernão da Silveira para
257
Vide Capítulo II e nota (284).
127
defendê-la. E o poeta não se absteve de usar essas prerrogativas na curta defesa:
emprega palavras contundentes, como “nuas e “cruas” (parafraseando, talvez, o ditado
popular: “quer-se a verdade nua e crua”?). No desvendamento dessa verdade, mesmo
que atroz, já que a senhora era a terceira colocada, o que sugere o poeta, na voz da
dama, é que ela se farte de bua
258
, não importando a atrocidade de sua posição nas
preferências de D. Álvaro.
Ressalte-se, nessa simples, ingênua, mas criativa esparsa do Coudel-mor, que o
aproveitar as sinecuras do tempo cabe bem à poesia cancioneiril: o que queriam os
poetas da corte era fartar-se, rir-se, viver o bem da vida naquele ambiente rico do
palácio, longe da triste história que estava para viver Portugal, depois das glórias das
descobertas e das conquistas
259
.
4.4.3. Nas ajudas, um motivo para o diálogo
Mais à frente, o poeta vem ajudar Henrique de Almeida, num mote tirado à
poesia castelhana, de autoria anônima: “Que milagre faria Dios”, em que este se
pergunta que faria Deus se aquela a quem serve penasse por alguém (como pena ele por
ela). Na “Ajuda do Coudel-moor”
260
, outra vez o uso da esparsa de oito versos, sendo a
redondilha ainda de sete sílabas, com ritmo tônico nas terceira e sétima sílabas.
Apresenta rimas alternadas e masculinas, seguindo o esquema abab / cdcd, mas também
aqui aparece certa sutileza: as rimas são ricas – quase preciosas, quando o poeta mistura
adjetivos, verbos, pronomes e substantivos desordenadamente.
Pois pena tam desigual
258
Aida Fernanda Dias registra como sinônimo “água”. Certamente a locução, dentro do contexto da
poesia, é viver bem o agora. (Cf. DIAS, op. cit., 2003, p. 137).
259
Essa “triste história” já cantavam, por exemplo: Duarte da Gama com as “Trovas que fez Duarte da
Gama aas desordeens que agora se costumam em Portugal (CG, III, 542); João Rodrigues de Castel
Branco com “De Joam Rodriguez de Castel Branco, contador da Guarda, a Antonio Pacheco, veador da
moeda de Lixboa, em reposta d'ũa carta que lhe mandou, em que motejava dele” (CG, II, 393); Gregório
Afonso com os “Arrenegos que fez Gregorio Afonso, criado do Bispo d’Evora” (CG, III, 561); de um
Anônimo “Estes sam os porquês, que foram achados no Paço em Setuval, em tempo d’el-Rei Dom Joam,
sem saberem quem os fez” (CG, IV, 615); Álvaro de Brito Pestana “D’Alvaro de Brito Pestana a Luis
Fogaça, sendo vereador na cidade de Lixboa, em que lhe daa maneira para os ares maos serem fora dela”
(CG, I, 57).
260
A ajuda de Fernão da Silveira está na composição “Anrique D’Almeida a este moto: Que milagre
faria Dios.” (CG, I, 180, p. 485-486). Na edição de Aida Fernanda Dias, não há referência à autoria desta
pergunta; já na edição de A. J. Gonçalves Guimarães, a intervenção de Fernão da Silveira, Coudel-mor, é
tida como certa.
128
me fazeis sempre sentir,
pois nam presta nem me val
amar-vos nem bem servir,
pois que tam certo de vós
é dar mal e nunca bem,
que milagre faria Dios,
se penasseis por alguem. (CG, I, 180)
Não contraria o poeta a afirmação de seu comparsa, uma vez que, na verdade,
somente realça a “crueldade” da senhora servida, que é “dar mal e nunca bem”, mas o
faz usando não somente o mesmo mote “que milagre faria Dios”, mas também o “se
penais por alguém”, além do léxico em que se estrutura a sentença: “pena” e suas
variantes. Serve essa peça como exemplo daquilo tão largamente usado por Fernão da
Silveira no Cancioneiro – e por poetas contemporâneos – que é, sem dúvida, fazer da
poesia um elemento de aglutinação social. E isso começa pela intertextualidade
fornecida no mote, que remete à troca de textos, fato tão comum entre a sociedade
portuguesa e a espanhola. Observa-se, ainda, que o próprio mote instiga o confronto de
idéias, ou a sua aceitação, fazendo com que os participantes dessem sua visão particular
ou corroborassem o proposto através de jogo argumentativo.
Entretanto, se formalmente o poeta segue os preceitos comuns, e no conteúdo
pontua um termo que é “nuclear na poesia de temática amorosa
261
”, há de se verificar
aqui um ponto de vista já conceptista, reforçado pelas antíteses bem/mal, como se vê
pelo raciocínio complexo que monta sua argumentação. Esses contrários, na designação
de Arnold Hauser, são “um reflexo direto da divisão dentro do indivíduo e sua alienação
do mundo”
262
. Essa divisão e essa alienação, o “eu-lírico” marca-as pelo uso da
conjunção “pois” não só no início do poema, mas também duas outras vezes, para
corroborar seu argumento: cria uma circularidade que prende o mal, que faz servir
àquela dama cruel, ao bem que seria vê-la penar por alguém. E isso só aconteceria por
um milagre de Deus, pois essa dama tão atroz faz viver do mal, como se depreende da
trova lançada por Henrique de Almeida, ajudado depois por Fernão da Silveira.
261
OBRAS de Álvaro de Brito, op. cit. p. 33.
262
HAUSER, op. cit., p. 395. Baltasar Gracián recorre ao mesmo conceito quando diz: “Protágoras decía
que en las cosas no había bien ni mal, pesar ni gusto, sino en la imaginación y en el modo de concebir
cada uno. Más verdadera y más provechosa fue la de San Juan Crisóstomo, que: Nemo laeditur nisi a
seipso: que de nadie podemos recibir daño, sino de nosotros mismos”. (Op. cit., I, p. 233)
129
Viu-se que, nos exemplos anteriores, a função gregária é preponderante, já que
exige a participação de outros poetas na composição. Mas nesses exemplos encontra-se
também inventividade – vejam-se, nas composições aqui recolhidas, os jogos de rima e
os rítmicos, além da musicalidade. Item a acrescentar: a melopéia
263
não é gratuita
nessas peças e nem noutras tantas encontradas no corpus poético do Coudel-mor. A
música instrumental vai sempre acompanhar a poesia durante os serões palacianos. Uma
vez que o uso do paralelismo não é tão marcante, ao contrário do que ocorria na época
trovadoresca, passam a acompanhar o poeta o alaúde, o bandolim, o oboé, a rabeca,
fazendo parte da festa como um todo e não somente como acompanhamento do jogral
ou do segrel, do período trovadoresco. A poesia deverá, então, ser essencialmente
melopaica para resgatar a música e, ao ser declamada, deve levar aos ouvidos dos
participantes dos serões não somente a palavra, mas também o som. Nisso, as
redondilhas maior e menor, por serem curtas, ajudam na composição musical do poema.
Nas perguntas, respostas e ajudas aqui recolhidas, pôde-se observar como a
poesia desempenhou papéis outros que não apenas os de deleite e de ludicidade, por
exemplo. Ela possibilitou, no dealbar da Idade Média portuguesa, marcar a
sociabilização dos freqüentadores do Paço – homens e mulheres –, com a finalidade de
se descontrair, se confraternizar e expressar a alegria e o prazer da vida. Nesse convívio
de autores e cortesãos, sublimava-se a arte da conversação e da galanteria, através da
poesia. Essa poesia, como se verá em seguida, quaisquer que sejam seus temas e
formas, deveria, no parecer dos freqüentadores do Paço, trazer um elemento essencial: a
musicalidade.
263
Décio Pignatari assim resume os conceitos de fanopéia, melopéia e logopéia: “Ezra Pound classifica
os poemas em três tipos fundamentais: 1. aqueles em que predomina a fanopéia: imagens, comparações,
metáforas. 2. aqueles em que predomina a melopéia: música, mesmo dissonante ou anti-música. 3.
aqueles em que predomina a logopéia: ‘dança das idéias entre as palavras’” (Op. cit., p. 35)
130
4.5. DE MÚSICA E POESIA NAS COMPOSIÇÕES DO COUDEL-MOR
Para Fernão da Silveira, música – enquanto recursos formais – e poesia são
indissociáveis
264
: a harmonia entre as duas é característica marcante de sua produção.
Lembre-se do labirinto em ritmo binário já apresentado anteriormente. Para o Coudel-
mor, não importa o tema a ser cantado: qualquer que seja ele, deve prevalecer o deleite
em se ouvir música, por meio do jogo criativo de palavras, rimas e estrutura formal.
Tome-se por exemplo esta longa trova, de dezenove coplas de oito versos cada, sendo a
derradeira uma conclusão. O poema vem em formato epistolar
265
, epigrafado: “Do
Coudel-mor a Anrique d’Almeida, que lhe mandou pedir novas das cortes que El-Rei
Dom Joam fez em Montemoor O Novo, sendo principe, o ano de setenta e sete, sendo
El-Rei seu pai em França.”. Nele, como em muitas composições daquela época,
aparecem palavras desconhecidas
266
, cuja significação ainda não se conseguiu
interpretar. O uso desses termos faz ver que poesia, para Silveira, como em todas as
suas composições, é antes um jogo, feito de brincadeiras e alusões irônicas.
O poema abre a seção exclusiva do Coudel-mor, no Volume I do Cancioneiro
Geral de Garcia de Resende, e é o único composto em redondilho menor. De acordo
com estudiosos do Cancioneiro, encontra-se o príncipe Dom João em Montemor-o-
Novo, no ano de 1477, enquanto seu pai, D. Afonso V, encontra-se em França, em
viagem feita para pedir auxílio financeiro a Luís XI. O reino de Portugal está em luta
contra os Reis Católicos, Fernando e Isabel, “por causa dos direitos de sucessão ao
trono de Castela de D. Joana, a Excelente Senhora
267
” e enfrenta grandes dificuldades
264
Veja-se a afirmação de Werner William Jaeger quanto à associação entre música e poesia, tal como
era vista por Platão: “Para a cultura grega, a poesia e a música são irmãs inseparáveis, a ponto de um
única palavra grega abranger os dois conceitos. Mas após as normas referentes ao conteúdo e à forma da
poesia vem a música, no atual sentido da palavra. No caso misto da poesia lírica, ela se funde com a arte
da linguagem para constituir uma unidade superior. Depois de explicar o que tocava à poesia, valendo-se
essencialmente, como era lógico, de exemplos tirados da arte poética, da épica e do drama, não é preciso
começar logo a tratar da lírica, naquilo em que é poesia, pois se rege pelos mesmos princípios que
aqueles outros dois gêneros.” (In: Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,
1986, p. 541).
265
Comenta Morán Cabanas sobre este subgênero presente no Cancioneiro Geral: “as cartas tornam-se o
veículo mais adequado para uma poesia de reflexão social sobretudo através da comparação entre espaços
e modos de vida diferentes”. (Op. cit., 2001b, p. 472).
266
Comenta Jole Ruggieri quanto a esse poema e às palavras desconhecidas nele presentes: “sono una
ventina di stanze riboccanti di pettegolezzzi, in cui perfino si dice il prezzo del vino, delle pernici (...) e di
altre cose ancora, dissimulando talvolta con un’espressione oscura.” (Grifo meu). (Op. cit, p. 62).
267
Cf. DIAS, 1998b, op. cit., p. 184.
131
financeiras, devido às demandas bélicas, às tenças dadas ao monarca e às verbas
enviadas a Afonso V, que permaneceu em França por um ano
268
.
Texto a exigir maiores estudos quanto ao relacionamento tema/criação poética,
parece, entretanto, mais um registro de brincadeiras com relação a preços, personagens
da época e estado do reino, tudo aliado ao jogo música/palavra. Interessa, por isso, ver
como o poeta trabalha um assunto, aparentemente sem apelação lírica, e como constrói
a música e esse jogo de palavras. O ritmo que Silveira usa é o da seqüência binária, com
acentuação tônica nas segunda e quinta sílabas, próprio da elocução repentista
269
; o
esquema rímico segue a forma interpolada abba / cddc na primeira estrofe para, nas
próximas, tornarem-se irregulares, misturando alternadas com interpoladas e vice-versa.
Nota-se que, nessa mudança de disposição rímica, o poeta obedece a um princípio
próprio da poesia: a ludicidade.
Inicia o Coudel-mor citando o fato histórico que irá cantar, registrando data e
lugar. Essa característica de marcação temporal é freqüente na produção do poeta: são
várias as composições em que espaço e tempo são mencionados, cujos exemplos se
podem verificar na recolha aqui apresentada – o poeta brinca com os números de
registro temporal, como se fossem fórmulas matemáticas.
No mes de Janeiro,
e ano de sete,
na era que mete
dez setes primeiro,
em Moor Monte Novo,
os povos s’ajuntam,
respondem, preguntam
mil cousas de provo. (CG, I, 28)
268
Idem, ibidem, p. 184.
269
Vale lembrar a influência que os redondilhos medievais exerceram na cultura popular nordestina
brasileira, mais especificamente nas expressões que emulam as tenções galaico-portuguesas, como atesta
Maurice van Woensel: “Os poetas de cordel nordestinos continuam praticando, como um dos gêneros
mais importantes de seu repertório, o chamado desafio ou peleja: trata-se de uma versão moderna da
tenção, o debate poético medieval, uma das formas fixas da tradição trovadoresca.” (Op. cit., p. 85).
132
Não há dúvida de que a intenção é criar música nos jogos de versos
270
, fazer da
poesia um elemento melopaico suave aos ouvidos daqueles que seguirão sua longa
exposição poética. Para atingir esse objetivo, além das rimas e ritmo, vale-se da
redondilha menor. As redondilhas maior e menor – ritmos usados à exaustão pelos
poetas palacianos –, recorde-se, servem de base às várias formas estróficas da poesia
desenvolvida no Paço, quais sejam a esparsa, a trova, a cantiga e o vilancete. Essas têm
origem popular e, conforme comenta A. J. Saraiva, “esta forma [a das redondilhas], que
tende para o comentário engenhoso de um dado tema, é especialmente adequada à
mentalidade glosadora difundida pelos pregadores e pela Universidade, e, assim, presta-
se admiravelmente ao gosto conceptista característico destes poetas palacianos
271
”.
Note-se ainda, como recurso de musicalidade, a reiteração da palavra “sete”, em final de
verso e internamente, acrescida de um “s”. O mesmo acontece com as rimas
metafônicas
272
(pares é/ê, ó/ô, abertos/fechados) “novo”, “povos” e “provo”, em que a
cadência se dá fora e dentro dos quatro últimos versos. Um recurso lúdico é usado pelo
poeta para formar o ano de 1477, data do evento do qual dá relato ao amigo Henrique de
Almeida: Silveira monta um jogo matemático, que lhe é característico: o ano de sete é o
último dígito de “setenta e sete”, e “setenta” são os dez setes primeiro. Essa marca,
parece, nada tem a ver com o uso mágico ou simbólico dos números, como atesta E. R.
Curtius em Literatura Européia e Idade Média Latina
273
. Seu uso poderia ser
considerado apenas como brincadeiras lingüísticas, ludicidade, enfim. Contudo, não se
deve esquecer que “o número em si mesmo, isto é, qualquer número, era sagrado
274
”, e
270
Quanto à analogia jogo e música, comenta Johan Huizinga: “É perfeitamente natural que tenhamos
tendência a conceber a música como pertencente ao domínio do jogo, mesmo sem levar em conta estes
aspectos especificamente lingüísticos. A interpretação musical possui desde o início todas as
características formais do jogo propriamente dito. É uma atividade que se inicia e termina dentro de
estreitos limites de tempo e lugar, é passível de repetição, consiste essencialmente em ordem, ritmo e
alternância, transporta tanto o público como os intérpretes para fora da vida quotidiana, para uma região
de alegria e serenidade, conferindo mesmo à música triste o caráter de um sublime prazer. Por outras
palavras, tem o poder de ‘encantar’ e de ‘arrebatar’ tanto uns como outros.” (Op. cit., 1993, p. 48-49).
271
SARAIVA e LOPES, op. cit., p. 160-161.
272
Para um melhor estudo das reiterações fônicas e outros recursos de versificação, cf. CHOCIAY, 1974.
273
Cf. CURTIUS, op. cit., p. 622. Entretanto, o autor prefere “ver as razões decisivas para a propagação
dessa técnica de composição, em primeiro lugar, no conceito sagrado do número e, em segundo lugar, na
falta de ulteriores preceitos para a dispositio. Com o uso da composição numérica, o poeta da Idade
Média atingia um duplo fim: um esqueleto formal para a construção e uma profundidade simbólica.”
(Idem, ibidem, p. 622).
274
BAKHTIN, op. cit., 1999, p. 408.
133
que “é inerente ao número ser determinado, acabado, arredondado, simétrico. Apenas
um número assim pode estar na base da harmonia e do todo acabado (estático)
275
”.
Dessa forma, alia-se à ludicidade própria da poesia o fato de, ainda nos fins do
medievo, os números exercerem certa fascinação. O poeta joga com as palavras também
ao posicionar as antíteses “respondem” e “preguntam” – o verbo “responder” vem antes
de “perguntar” – e da hipérbole “mil cousas de provo”, o que mostra seu gosto pela
desconstrução do habitual.
“Se o que se cá passa / Quereis lá sabê-lo, / nam seja escassa / a mãao eescrevê-
lo. / Mas pois o letreiro / ponto nam erra, / contará primeiro / o estado da terra.”, segue
o poeta. E não será o termo “escassez”, em todos os sentidos, que o fará ser comedido
na descrição do que ocorre na ausência de seu colega, ávido pelas novidades das cortes
feitas em Montemor-o-Novo. Prossegue, nas próximas trovas, a evocar números –
aliados a espécies –, que correspondem, segundo os estudiosos do Cancioneiro
276
, a
preços de mercadorias e serviços da Corte. A brincadeira com números não se dá apenas
com relação às datas, mas também a qualquer outra ocorrência que permita ao Coudel-
mor mostrar seu apreço pela seriação numérica.
A dous o vermelho
nom val mais o branco,
a dez o coelho,
perdiz faz derranco;
a vinte a galinha,
de graça mil furtos,
doze turdos curtos
aquela chinfrinha. (Ibidem)
Nessa estrofe, em que inicia o rol de produtos e seus respectivos preços,
observa-se uma quebra de padrão rítmico: no penúltimo verso, o ritmo passa a ser
ternário. Parece ser uma imperfeição, uma vez que a seqüência binária prevalece em
todo o poema. Retoma o poeta aqui as rimas internas com a palavra “turdos”, que se
harmoniza com “furtos” do verso anterior e com “curtos” que se lhe segue. Quanto aos
“furtos”, parece Fernão da Silveira ter recorrido à inversão da palavra “frutos”, com
intenção de manter a rima, uma vez que esta palavra, como aparece, destoa dos campos
275
Idem, ibidem, p. 409.
276
DIAS, op. cit., 1998b, p. 184-185.
134
semânticos apresentados na estrofe: vermelho e branco, que se referem a vinhos tinto e
branco; coelho, galinha e turdos, espécie de peixe
277
. No plano fônico, prima o poeta
pela reiteração consonantal das letras “d” (oito ocorrências) e dos sons nasais “in”
(quatro ocorrências). Nessas estrofes iniciais, apresentando seqüência numérica e
ludismo na seriação estrutural, o Coudel-mor brinca com os números
278
, relacionando-
os aos preços de mercadorias não para registrar um dado econômico, mas para aliá-los à
sua brincadeira, a qual se entrevê, principalmente nas rimas. Andrée Crabbé Rocha nota
que esse “tom” e “experiência cómica” podem ter inspirado Gil Vicente a colocar na
fala de Marta Gil, na Barca do Purgatório, uma lista de preços, à moda feita por
Silveira:
Hum ovo por dous reaes,
Hum cabrito, se s’alcança,
Té quatro vinténs, no mais (...)
Hum frangão por um vintém,
E hũa gallinha sessenta...
279
“Mas estas deixemos / quedar de seu cabo, / e sem dar mais cabo / das cortes
contemos. / Ouvi o que digo, / preponde notar, / que novas contar / vos cuido
d’amigo.” Logo após a longa relação de preços, arrolada em seis estrofes, propõe o
poeta comentar o estado das pessoas ante a tensão com o país vizinho. Cita nomes de
alguns homens da nobreza e da Igreja, personagens de então, reunidas nas cortes
280
,
onde discutem efusivamente a conveniência da empreitada contra os castelhanos.
Registra, ainda, a tensão entre os que participam das cortes, cautelosos em encarar a
aventura contra Castela, uma vez que necessitariam auxiliar o reino com dinheiro
277
Cf. o vocabulário constante do volume VI de DIAS, 2003.
278
“De uma poética do número decorrem práticas textuais específicas: o paralelismo, a seriação, a
combinatória e, de um modo geral, o programa e o projeto. Aí, as potencialidades sígnicas das letras, dos
fonemas, das palavras ou dos tropos se elaboram em texto e jogam no risco do significado.” (MELO E
CASTRO, op. cit., 1984, p. 35).
279
In: ROCHA, op. cit., [s.d.], p. 128. Também a relação de mercadorias e comidas lembram a praça
pública medieval e tem, segundo Mikhail Bakhtin, ao se referir à obra de François Rabelais,
“freqüentemente um caráter em si mesmas: menciona-se o objeto por sua própria causa. O universo das
comidas e dos objetos ocupa um lugar enorme, já que se trata dos víveres, pratos e coisas que são
cotidianamente apregoados em voz alta, em toda a sua diversidade e riqueza, nas ruas e praças públicas.”
(Op. cit., 1999, p. 158).
280
Registre-se que “as cortes” a que se refere o poeta são aquelas a que Garcia de Resende alude na
didascália que abre esta composição de Fernão da Silveira. Nessas cortes, o Príncipe D. João reúne os
membros da nobreza e do clero para deliberarem sobre a ajuda de cada um nas despesas da guerra contra
Castela; as mesmas continuaram em Santarém e em Lisboa, todas no mesmo ano de 1477. (DIAS, op. cit,
1998b, p. 184-185).
135
próprio.
Lixboa que sonha
no cardealado,
moordomo Noronha
tambem deputado;
i é Portimam,
Alvito, Penela,
Beringel com ela
que faz o sermam.
Aquestes despacham
o muito e o pouco,
Latam ficou rouco
mal pelo que acham,
que o trato de cá
e o modo da fala,
se s’ele entam cala
falá-lo-á laa.
Com barba de mouro,
toucar recoveiro,
ũ zunzum de besouro
em som lastimeiro.
Quem macho alcança
se ha por bençam,
mil falas de França
por este viram. (Ibidem)
Fernão da Silveira, usando a onomatopéia “zunzum”
281
– o que é novo e
diferencial entre os poemas do Cancioneiro –, pretende materializar o agito do reino em
estado de guerra. E marca essa realidade com tom jocoso, através da forma poética, e
irônico, através das alusões à sociedade que circundava o Paço, a qual objetivava
manter-se junto ao monarca para conservar a posição. Ressalte-se que a corrida a um
lugar próximo ao rei era prática usual dos freqüentadores do Paço, ávidos pela ascensão
social, como parece ser o caso mostrado nos versos acima: “Lixboa que sonha / no
cardealado, / moordomo Noronha / tambem deputado.” A fina ironia, própria da poesia
satírica, revela-se principalmente quando o poeta fala do sonho de Lisboa em alcançar o
cardinalato e ainda o sonho do mordomo Noronha em alcançar o cargo de deputado.
281
Do mesmo recurso vale-se o Coudel-mor na poesia “hermética” em hendecassílabos de número 43
(CG, I, p. 192-194), “Trovas que fez o Coudel-moor de poesia, indo d’Evora pera Tomar, na ponte do
136
Ambos demonstram a preocupação própria da classe eclesiástica e a da política em se
favorecer das benesses que os altos postos poderiam trazer. Estando ao lado do rei,
nessa contenda contra Castela, tal objetivo seria, para eles, mais realizável.
Na enumeração serial de profissões, vai aliando os nomes de personalidades de
então aos sons que seus nomes sugerem, formando a dança de ritmos e rimas. Se na
relação nominal não há qualquer intenção mágica, como acontece nas poesias de
seriação
282
, há abertamente uma intenção lúdica, qual seja, criar música através do
binarismo e do esquema rimático. Esse esquema reveza rimas femininas – nos versos
um a quatro e seis/sete –, com masculinas, nos versos cinco e oito. O objetivo é claro:
quebrar a monotonia aplicada ao ritmo binário do pentassílabo. O que também se
destaca, na última estrofe lida acima, é a abundância de reiteração vocálica da letra “a”,
criando uma sonoridade musical, que atinge o máximo na ligação da rima do penúltimo
verso com toda a última frase: cala / falá-lo-á laa.
Depois de cantar o estado da sociedade da Corte, passa à crítica de costumes e à
análise da situação financeira do reino, quando, na trova seguinte, diz:
E com isto querem
favores comũus,
peroo ũus e ũus
partir-se ja querem:
porque se lh’alarga
o seu desembargo,
o gasto lh’amarga,
a mais nam m’alargo. (Ibidem)
Alude à vontade de os convocados à guerra partirem para o confronto com Castela, uma
vez que, se demorar o despacho, aumentar-lhes-á o gasto. Os mecanismos fônicos
empregados nesta estrofe reforçam a idéia de musicalidade: rimas internas no segundo e
terceiro versos, comũus, ũus e ũus, que apresentam, por outro lado, rimas masculinas,
além de jogo de sentido e som entre lh’alarga e lh’amarga, jogo estendido ao último
verso: o próprio poeta aproxima-se da conclusão do relato, por isso não quer mais se
Sor e Pavia.” Nesta, usa a onomatopéia “tintim”, no nono verso da quinta estrofe. Cf. comentário no
Capítulo IV, subcapítulo 4.6. Vide a poesia completa na Antologia.
282
Quanto à seriação e ludismo, Melo e Castro comenta: “tal enumeração é muito mais propriamente um
procedimento estrutural, pois que a ordem de enumeração não é casual e sim intencional, criando uma
sobrecarga de significado, enquanto os seus elementos imagéticos se acumulam aditivamente, mas de fato
se interligam por leis fônicas silábicas, que entretecem um rico tecido de correspondências internas. O
137
alongar. Nesses últimos quatro versos, destaca-se, quanto ao sentido, um recurso
próprio das poesias satíricas: o uso de provérbios. Comum nas cantigas satíricas galego-
portuguesas, os provérbios, assim como outros recursos, mostram a ligação do gênero
satírico com a tradição e a linguagem popular
283
.
Para concluir, querendo ser remunerado pelo “relatório”, diz a Henrique de
Almeida que
Se pagar quereis
o que vos escrevo,
por mim beijareis
as mãos a quem devo. (Ibidem)
Em sendo a situação do reino de extrema seriedade, uma vez que a guerra contra
Castela demandava somas vultosas, o que se refletia nos preços e na insatisfação geral,
forçando inclusive membros da nobreza a contribuir no feito, esse poema é mais uma
prova não só do uso lúdico que Fernão da Silveira faz da poesia: se a conjuntura
demanda seriedade e preocupação, estaria o poeta tentando amenizar a tensão dos
reinóis, ou sua veia satírica é tão extremada que a ele não importa a situação, desde que
traga munição para ser cantada em versos, exercendo, de forma zombeteira, seu severo
senso crítico? Quer parecer, a levar em conta sua atuação no Paço
284
, que as duas
definições cabem em sua visão de poética. Pode-se afirmar, pela produção de Silveira,
que ele usa a forma poemática para deleite lírico, não apenas seu, mas dos ouvintes,
simplesmente brincando com palavras e formas, como no caso do poema labiríntico, já
visto anteriormente. Por outro lado, sua veia satírica é cultivada em vários poemas,
sempre ironizando qualquer conviva do Paço ou, o que é muito freqüente, escarnecendo
aspecto lúdico de tais seriações estruturais é bem evidente, o que acrescenta uma nova dimensão ao
distanciamento irônico (...)”. (Op. cit., 1984, p. 105).
283
LOPES, op. cit., 1994, p. 192.
284
Fernão da Silveira conhecia bem a sociedade cortesã em que vivia e exerceu o cargo de coudel-mor
“com rigor, o que lhe valeu grandes ódios e muitas queixas. Homem de confiança de D. João II foi
nomeado por este regedor das justiças e interveio em negociações delicadas como a do casamento do
infante D. Afonso de Portugal com a Infanta D. Isabel de Castela, a qual recebeu por procuração antes de
a entregar ao seu principesco noivo.” (CALAPEZ CORRÊA, Fernando. Fernão da Silveira, coudel-mor e
cortesão de D. João II. In: Sociedade, Cultura e Mentalidades na Época do Cancioneiro Geral Congresso
Internacional Bartolomeu Dias e s sua época. Actas. Vol. IV, Porto: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989, p. 66).
138
de pessoas, de objetos e partes do corpo que se propõe denegrir.
Aliando música, jogo e teatralidade, a poesia do Coudel-mor, como ocorria com
todas as produções de seus contemporâneos, foi, provavelmente, “encenada”
285
em
justas e torneios durante os serões áulicos. Sendo as justas e os torneios originários das
pugnas de gladiadores romanos, feitas para agradar e amainar o populacho, as
competições poéticas elevam-se à categoria de produção aristocrática pelo espaço em
que são apresentadas e pela forma que são escritas e declamadas. Nas encenações desse
tipo de composição, a base é a música, feita para acompanhar declamações poéticas.
Para Hernâni Cidade:
é alto o conceito em que se tem a poesia, no primeiro quartel do século XV.
Como ‘gaya sciencia’, os sábios escrevem sobre ela tratados e reis honram-na
e protegem-na, interessados nas justas poéticas, para as quais chamam e
sustentam mantenedores. Efectuam-se estas com ritual complicado e
espetaculoso, que mete trombetas, vinho e confeitos, e confere ao triunfador
a joya que lhe premeia o trabalho
286
.
Para serem apresentados, os poemas requerem, então, todos os aparatos de um
espetáculo.
Nas composições de Fernão da Silveira, o procedimento estrutural tem a
intenção de realçar os planos fônico-silábicos das palavras, pois só eles ajudarão a
formar os significados imagéticos; a cada poema que faz, a forma vai estar sempre
associada à questão da imagem. O poeta brincará com os significantes, reforçando seus
valores fonéticos, e com a disposição da palavra, que além de incentivar a brincadeira,
permite a visualização de seu objeto. É dessa forma que o Coudel-mor sempre criará
novas possibilidades formais para suas obras, com a intenção de ligar a palavra à sua
posição dentro do poema. Tenta, assim, trazer a harmonia própria da música e da
poesia, mesmo que explorando temas considerados apoéticos, tais como aos que recorre
nessa longa trova – preços de mercadorias, personagens e fatos históricos, profissões e
tantos outros.
285
As aspas aqui são propositais. A maneira de os poetas se apresentarem perante os convivas do Paço
beira a encenação teatral. Vários estudiosos têm-se aprofundado na questão da teatralidade no
Cancioneiro Geral e enxergam nisso o nascedouro do teatro português. Cf. o mais recente lançamento de
Morán Cabanas, já mencionado anteriormente (2003b), nota (54).
286
CIDADE, op. cit., 1957, p. 55.
139
4.6. L’AMOUR DE LA FORME
287
: A FORMA PELA FORMA
Se, até agora, o olhar estava restrito ao geral de cada composição do Coudel-
mor, misturando forma e fundo, sobre os quais tentei esmiuçar seu modo de produção,
nos passos seguintes a intenção é examinar de modo mais específico a própria estrutura,
i. é, a forma. Com isso, procurarei estabelecer mais alguns elementos para se constatar o
que se determinou na proposta apresentada: a poesia desenvolvida pelos poetas
palacianos prenuncia estilos literários futuros
Na grande maioria das composições aqui examinadas, prevaleceu um olhar
especial à forma, considerada pelos estudiosos do Cancioneiro Geral como a grande
inovação da época. Pierre Le Gentil afirma
qu’il n’y a pas de coupure entre le moyen âge et la Renaissance. (...) Surtout,
il transformera le formalisme du moyen âge en quelque chose de nouveau,
qui est l’amour de la forme. Le changement s’opérera le jour où la recherche
d’une discipline élégante sera, non plus un acte de conformisme, mais un art,
non plus la soumission à l’autorité d’une croyance commune, mais un éffort
de création personnelle. (Grifos do autor)
288
.
Salienta, na última sentença, que, durante o Renascimento, nascerá uma arte de cunho
individual, não mais submissa às criações coletivas. André Crabbé Rocha lembra que “é
a técnica exterior que se torna cada vez mais exigente, à medida que as regras do jogo
vão aumentando
289
”, para, mais à frente, dizer que os poetas do Cancioneiro Geral
“trabalham a sua forma, procurando dar-lhe a maior perfeição possível. Isto pode dar-se
em detrimento da beleza e da poesia, é certo, pois se trata dum esforço do intelecto mais
do que da sensibilidade, mas contribui largamente para dotar os poetas imediatamente
posteriores dum instrumento já posto à prova
290
.” Para Karl Strecker, “essa predileção
287
Segundo Massaud Moisés: “Fazer trovas equivalia (...) a arte de poetar, de compor versos: a ‘arte pela
arte’, denunciando o primado da forma, insinua-se como fundamento da poesia, de resto ecoando uma
‘autêntica renovação poética, entendida naturalmente mais como renovação da forma do que do
conteúdo’, em marcha por volta de 1450. Esse gosto da forma pela forma, onde é fácil descortinar
antecipações da poesia gongórica, manifesta-se no emprego de trocadilhos, acrósticos, labirintos,
anagramas, aliterações, bem como latinismos (...), de refências à linguagem musical (...) de expressões
francesas (...) e mesmo hebraicas”. (Op. cit., 1997, p. 56). Faltou-se acrescentar na relação de M. Moisés
os neologismos, castalheanismos, bem como os falares dos negros, dos quais algumas amostras foram
incluídas aqui.
288
LE GENTIL, op. cit., 1949, p. 73.
289
ROCHA, op. cit., [s.d.], p. 90.
290
Idem, ibidem, p. 94.
140
pela forma, pode-se dizer com freqüência pelo fútil, é característica e deve ser estudada,
caso se queira compreender a Idade Média
291
”.
Para finalizar a exposição, consultem-se, então, mais algumas das inovações de
Fernão da Silveira, ainda que certos elementos delas tenham sido apresentados
anteriormente.
Os vários artifícios presentes no Cancioneiro – e em toda produção peninsular
da época –, tais como “l’ingénieuse construction de l’arte mayor, genres à forme fixe, le
villancico et la canción, l’estribote”, constituem, para Pierre Le Gentil, elementos de
renovação poética “qu’on ne trouve pas (...) ailleurs
292
”. Observem-se, a seguir, alguns
outros recursos distribuídos em outras peças de Silveira, que vêm ajudar na constatação
do Coudel-mor como paradigma de criação poética inovadora, que municiaria os
próximos movimentos literários:
1.Quanto à construção engenhosa em arte maior, citem-se as longas “Trovas que
fez o Coudel-moor, de poesia, indo d’Evora pera Tomar, na ponte do Sor e Pavia.”
293
. O
poeta recheia seus hendecassílabos com palavras e expressões desconhecidas hoje em
dia – vejam-se, como exemplo, “vincasi bruno”, “lageo grande”, “madre da lande
294
”,
“arelho cam geiro quem dá d’arrebato”, entre muitas outras, e cria muitos neologismos,
tudo numa seqüência rítmica regular, mas abusando da disposição e natureza rimáticas,
para enfatizar, parece, as “cousas diformes oo ver repunantes” que teria presenciado.
Como próprio de sua criação lúdica, inicia a composição datando-a: “de quinos trezenos
bissete o ano / passando seu meo com as tres o Junho”. Recorre a figuras, como a
291
Apud CURTIUS, op. cit., p. 363-364.
292
LE GENTIL, op. cit., 1949, p. 470 passim.
293
Aida Fernanda Dias considera esta poesia uma “paródia de visões infernais”. Relata ainda que nem
editores nem estudiosos do Cancioneiro, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, conseguiram interpretar a
composição devido ao vocabulário exótico e hermético. (Op. cit., 1998b, p. 339) Acredita que, com a
paródia, Silveira “quis ridicularizar esta linha de poetar que, em muitos casos, pelas reiteradas abonações
da Antiguidade e da mitologia, mais não são do que o patentear de uma erudição, que dominava certos
espíritos, e que tornou o texto, para muitos leitores, desprovido de sentido”. (Idem, ibidem, p. 338-339).
Quanto ao hermetismo de composições como as dessas trovas, comenta Maria Isabel Morán Cabanas:
“Alguns colaboradores de Resende sentiram especial predilecção pela elaboração de versos carregados de
dificuldades e conferidores de certo carácter hermenêutico a fim de mostrar uma espantosa perícia no
exercício da poesia.” (Op. cit., 2001b, p. 18).
294
Lande significa, provavelmente, “terra”. Teria origem na língua inglesa ou germânica, o que pode ser
prova da miscigenação cultural por que passava Portugal na era dos Descobrimentos.
141
prosopopéia, em “lugar sonolento que já procurara” e a onomatopéia no verso “mas o
padre grande da casa mais sancta / tintim nos tregeita, ca missas nam canta”. Dirige-se
ao leitor no verso que diz “de que parte delas [das visões] irei apontando / porque tu,
leitor, em lê-lo t’espantes.” Recorre, ainda, a elementos da mitologia, prenúncio do
Humanismo e Renascimento, incluindo nas suas trovas os deuses Apolo, Diana e Sertes.
Este tipo de poesia nasce no Cancioneiro Geral e retoma um tema que se tornará
clássico: o das visões infernais, alegação à passagem da descida aos Ínferos retratada na
Divina Comédia de Dante. A temática é trabalhada por alguns dos poetas de seu tempo,
como em “D’Anrique da Mota a ũu seu amigo em reposta de ũa carta que lhe mandou,
em que lhe contava ũa visam que vira e pedia conselho e decraraçam da dita visam.”. O
esmero a que se dedica Silveira constata sua propensão a, sob qualquer forma, expressar
as novidades de seu tempo, as quais serão renovadas nas estéticas vindouras.
2. Essa expressão de seu tempo, referida no item anterior, Fernão da Silveira
também a mostra nas trovas “Coudel-moor por breve de ũa mourisca ratorta que
mandou fazer a senhora princeza, quando esposou.”. Vê-se estar o poeta atento às
mudanças por que passava o Portugal dos Descobrimentos. Lisboa tornara-se uma
metrópole habitada tanto por europeus ávidos pelos resultados da expansão marítima,
como genoveses e florentinos, quanto por um turbilhão de escravos africanos
295
. Apesar
de a rubrica parecer destoar do conteúdo, pois “ratorta” significa uma dança antiga, de
origem mourisca, e “breve” é um texto a ser lido durante os momos, entremezes, ou
torneios e justas, Aida Fernanda Dias acredita não haver engano por parte de Garcia de
Resende, como se verá
296
. Na peça, o Coudel-mor reproduz com fidelidade a fala de um
295
O historiador flamengo Clenardo, quando morou em Lisboa a convite da corte portuguesa de
Quinhentos, à época em que a Portugal afluíam artistas, historiadores, mercadores e toda sorte de outros
povos europeus, compartindo o evento denominado Humanismo, assim comenta em uma de suas cartas
sobre a sociedade lisboeta e o apreço dela pelos escravos: “Os escravos pululam por toda a parte. Todo o
serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase
em crer que só em Lisboa há mais escravos e escravas, que portugueses livres de condição. Dificilmente
se encontrará uma casa, onde não haja pelo menos uma escrava destas ” (CEREJEIRA, Dr. M.
Gonçalves. Clenardo – O Humanismo em Portugal. Coimbra: Coimbra Ed. Lda., 1926, p. 273).
Segismundo Spina comenta quanto a esse afluente africano na língua portuguesa: “Desde meados do
século XV o afluxo de negros escravos para o reino era uma realidade. Poetas do Cancioneiro geral e
várias peças de Gil Vicente atestam a vigência de uma fala típica, que se caracterizava por profundas
modificações lingüísticas no português de então.” (In: História da Língua Portuguesa. III. Segunda
metade do século XVI e século XVII. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 24-25).
296
DIAS, op. cit., 1998b, p. 191-192.
142
negro
297
, principalmente quanto aos verbos não conjugados, no infinitivo. Mistura
decassílabos com hendecassílabos, versos de arte maior, e rimas masculinas com
femininas, de natureza e disposição várias, como compete aos poetas cancioneiris de
então.
A mim rei de negro estar Serra Lioa,
lonje muito terra onde viver nós,
lodar caitbela tubao de Lixboa
falar muao novas casar pera vós.
Querer a mim logo ver-vos como vai,
leixar molher meu, partir muito sinha,
porque sempre nós servir vosso pai,
folgar muito negro, estar vós rainha.
Aqueste gente meu taibo, terra nossa
nunca folgar, andar sempre guerra,
nam saber qui que balhar terra vossa,
balhar que saber como nossa terra.
Se logo vos quer mandar, a mim venha
fazer que saber, tomar que achar,
mandar fazer taibo lugar, Des mantenha!
E logo meu negro, Senhora, balhar. (CG, I, 44)
Note-se que o negro se ressente de estar longe de sua terra; teria vindo numa
caravela, “caitbela”, fala muito, “muao”, partiu “muito sinha”, ou seja “asinha”,
depressa, para servir ao pai da princesa a que se refere a didascália. Diz que sua gente é
boa, “taibo” (palavra de origem árabe), que está sempre em guerra, e que o português
“nam saber qui que balhar”, isto é, não sabe o que é bailar – reprodução perfeita da
oralidade, assim como a expletiva “Des (Deus) mantenha!”. E se propõe à Senhora
ensiná-la a dançar. Mostra a poesia como um registro não só dos costumes do reino
português de fins do Quatrocentos, mas também do olhar – e dos ouvidos – do poeta
atento às novidades de seu tempo.
298
Mais do que isso, entretanto, são nesses registros que o Coudel-mor se antecipa
mais uma vez. Segundo Ana Hatherly,
dentro do Maneirismo/Barroco português a prática do polilinguismo foi
evidentemente importante e a ilustrá-la citaremos ainda o Soneto em Várias
Língoas, do Conde do Vimioso – em latim, italiano, espanhol e português –
297
Comenta Mário Martins sobre esta peça: “Do coudel-mor Fernão da Silveira, sabemos que tinha larga
veia parodística ao imitar, por exemplo, a fala dum rei negro da Serra Leoa.” (Op. cit., p. 95).
298
As palavras na voz do rei negro aqui “traduzidas” encontram-se em DIAS, op. cit, 2003.
143
assim como o artifício de escrever poesia ‘em língoa de preto’, em voga no
século XVIII e que consiste em misturar o português com uma imitação da
fala dos negros, geralmente de Angola
299
.
Silveira, no final do século XV, desenvolve, na composição vista, o que Hatherly afirma
se tornar moda durante o Barroco português.
3. Para exortar um sentimento, valem-se os poetas do Cancioneiro de Resende,
com freqüência, de figuras e formas que intentam fugir a qualquer sensaboria. É claro
que tudo em excesso provoca o contrário. No processo do “Cuidar e Sospirar”, primam
os participantes no exercício da retórica, valendo-se do conceptismo e do cultismo,
mostrando agudeza e mesmo lavor na lapidação de suas intervenções. Observe-se, na
trova seguinte, um trecho de uma das quarenta e três intervenções de Fernão da Silveira
no processo, como o poeta esmera no trabalho com a palavra “cuidar”, usando a
epizeuxe com fins de definição (horismo), calcada no verbo “ser”. Sua intenção, como
defensor do suspirar, é desqualificar o sentimento de cuidar, que para ele não deveria
dar fadiga, mas sim prazer.
Contra o que disse Joam Gomez.
Quem cuidado quer contar,
cuidar é lançar em renda,
cuidar é vida tomar,
cuidar é sempre cuidar,
cuidar, cuidar na fazenda.
Cuidado tem quem tem brigas,
cuidado quem tem demanda,
outro cuidado se manda
com prazer, não com fadigas. (CG, I, 1, p. 27)
Na defesa do suspirar, usa o mesmo recurso da epizeuxe, trabalhando agora o
verbo “descobrir”, cujo resultado será revelar “que lhe nam val / bem servir quem tem
servida.”.
Responde o Coudel-moor a estas ultimas rezões que Joam Gomez deu contra o
sospirar.
Dissestes que sospirar
faz desejo descobrir,
deve-s’isto decrarar
que descobre um sospirar
de paixões graves sentir.
299
HATHERLY, op. cit., 1983, p. 256.
144
Descobre seu triste mal,
descobre sa triste vida,
descobre pena mortal,
descobre que lhe nam val
bem servir quem tem servida. (CG, I, 1, p. 84-85)
Esse artifício de que se serve para enfatizar uma idéia a ser defendida é próprio
da retórica, de que o processo jurídico-poético é exemplo cabal. Se só a temática – a
defesa de sentimentos de amor enunciada num feito processual – é novidoso, apuraram
os poetas participantes da tenção em fazer com que a forma sobressaísse ao fundo. Para
isso, evocaram quaisquer artes que pudessem favorecer-lhes o exercício de poetar, como
se pôde divisar nos exemplos trazidos aqui.
4. Muito cultivado na Península, no final do século XV, o “pé quebrado” serviu
de artifício aos poetas que o colocavam na posição que lhes aprouvesse. Vejam-se
alguns exemplos em Fernão da Silveira. Ainda no “Cuidar e Sospirar”, o mote aparece
na cantiga para divisar sua definição de “cuidar” – reforçado pela annominatio (“cuidar
que dá cuidado”). No último verso da glosa, repete o “pé quebrado” com o verbo
“cansar”, e, como defensor do suspirar, para desqualificar o sentimento de cuidar.
Cantiga que dá o Coudel-mor por maes decraraçam do sospirar.
Do cuidar que dá cuidado
sem com ele sospirar,
ser de pouco namorado
é cuidar.
Quando cuidado s’aviva
Em tempos que dá paixam,
Dá o triste coraçam
Sospiros em voz esquiva.
Mas estar deles calado
mostra sem paixões estar
ou de pouco namorado
se cansar. (CG, I, 1, p. 29)
No mesmo longo poema, vale-se de dois “pés quebrados” no mote, mantendo-os no
corpo da cantiga. Cria uma espécie de quiasmo de pensamento, opondo em linha
cruzada os dois sentimentos: cuidar e suspirar, invertendo a ordem na glosa: suspirar e
cuidar.
145
Cant[i]ga sua que daa com o dito das testemunhas à dita senhora, em favor do
sospirar.
Sospiros nom podem ser
sem ser cuidar,
cuidados se podem ver
sem sospirar
Assi que sospiros logo
têm seu mal e o alheo,
nem é meu cuidado cheo,
se sospiros lhe revogo.
Cuidar se pode manter
sem sospirar,
mas sospiros nunca ser
sem ser cuidar. (CG, I, 1, p. 51-52)
Outra inovação, agora mais ousada, é começar sua ajuda com o “pé quebrado” e
estender a cantiga para onze versos na glosa, quando o usual são de oito a dez, sem
contar que os outros dois contendores participantes valem-se das esparsas e Silveira, da
cantiga.
De Dom Goterre aos gibõoes de Fernam da Silveira e Dom Pedro da
Silva, que fezeram de borcado com meas mangas e colar de graam.
(...)
O Coudel-moor.
Mais que francelha
andam os gibõoes maneiros
e decem, nam referteiros,
a ezcarlata que semelha
coor de telha.
Ũ pouco mais efaimados
do outro que se desdoura,
os gibõoes aguiarados
filharam polos costados
ũa toura
daquestes perros fanados.
Mas pardelha
assaz andam de roleiros,
pois decem a custureiros
d’ezcarlata mal vermelha
cor de telha. (CG, III, 590, p. 221-222)
146
6. Finalmente, para mostrar sua erudição, Fernão da Silveira recorre a um
expediente claramente tradicional: reproduz o paralelismo galego-português na cantiga
“Do Coudel-moor a El-Rei Dom Pedro que, chegando aa corte, se mostrou servidor d’
ũa senhora a que ele servia.”
Pois me chegastes ò coiro,
dando-me mal sobre mal,
homem de sangue real,
a lonje vaa voss’agoiro.
Vosso’agoiro a lonje vaa
E vossos motes d’amores,
Mas eu fui laa eramaa,
Pois me nam leixam senhores.
Pouco m’era compridoiro
vosso vir a tempo tal,
polo qual, sangue real,
a longe vaa voss’agoiro. (CG, I, 46)
Observe-se que o último verso do mote é repetido no primeiro da glosa, com
uma inversio, e no último da mesma forma que aparece no mote. O tema também é
oriundo da tradição peninsular, o da servidão, mas aqui se nota a disputa entre dois
cortesãos pelo serviço de uma mesma dama. Todos os recursos de ritmo e rima seguem
a norma de uma poesia trovadoresca, valendo-se, inclusive do mordobre (“mal sobre
mal”) e do verbo “leixar”, característico do linguajar desenvolvido nos cancioneiros
galaico-portugueses, além dos vocativos “homem de sangue real” (no mote) e “sangue
real” (na glosa). Há de se registrar, no entanto, que, da tradição poética antecedente,
Silveira aproveitou-se do tema e do sistema paralelístico, adequando-os à nova forma de
cantiga desenvolvida na Península nos fins do século XV. Disso, pode-se deduzir que a
poesia do final desse século, apesar de inovadora, vale-se de recursos eruditos para se
expressar.
Pôde-se perceber, nessa curta seleta de exemplos focados na forma, alguns
traços próprios da produção poética do Quatrocentos português recolhida no
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e considerados inovadores por muitos
estudiosos. Na compilação, se persistiam ainda temas da tradição peninsular, aparecem
também temas e formas que, de certa maneira, retratavam o período de transição da
Idade Média para o Renascimento.
147
Ao se analisar esse corpus poético de Fernão da Silveira, o intuito primeiro foi
procurar entender o modo de produção daquele poeta palaciano e, por extensão,
entender boa parte da produção cancioneiril presente na compilação de Garcia de
Resende. A partir da constatação de que Silveira realmente empregou recursos
inovadores, a intenção segunda seria mostrar o motivo pelo qual vários críticos e
estudiosos enxergam na obra de Resende embriões de muitos estilos literários que se
seguiram à última fase da literatura medieval. Uma vez dito que o que atrai os olhos do
leitor é a disposição gráfica do labirinto montado pelo Coudel-mor, restava conhecer os
artifícios da montagem desse pequeno poema, bem como os outros artifícios de que
Fernão da Silveira se valeu para poder ser tachado de inovador e possível predecessor
de estéticas futuras.
Foi então, a partir desse poema labiríntico, que se pôde vislumbrar como
Silveira, também nas outras suas composições, se muniu de recursos formais distintos
para montar suas peças. Mesmo que arrebatado, por exemplo, perante a beleza da dama
a quem serve, o poeta procurará mesclar ao tema uma forma inusitada. Viu-se que na
cantiga em que diz “que de tal troca se siga / ser todo meu bem fora” ou ao cantar essa
beleza em “Mis querelhas he vencido”, e mesmo naquela em que diz ser sua dama tão
“fremosa” que para ele não há “santo tam santo / que pecar nam desejasse”, o “eu-
lírico” irá usar recursos que, futuramente no Barroco, serão mais intensamente
explorados.
Mas Fernão da Silveira não se ocupou em mostrar somente a mulher idealizada.
Nas sátiras analisadas, ela também é cantada por um ângulo mais humano. E nesse
cantar satírico, além da graça – ou mesmo escárnio –, é o modo de se valer de recursos
ora fônicos, ora lingüísticos – principalmente no uso de tropos – que esse modo se
sobressai. Essa maneira de utilizar mais livremente os artifícios que lhe facilitam a
composição, diga-se de passagem, é estendido para as chufas que empreende quanto ao
sexo masculino, ao comportamento “desviante” de duas damas, à imagem erótica, agora
adentrando o campo divino, que uma simples escrivaninha medieval lhe traz.
Das formas surgidas no dealbar da Idade Média, valeu-se Silveira de
praticamente todas – das ajudas, perguntas e respostas, bem como das redondilhas, dos
“pés quebrados” e dos versos em arte maior, tudo de forma irregular, características
148
todas da moda quatrocentista de poetar. A cada uma delas, alia o poeta um tema
propício, seja ele de cunho amoroso, satírico ou histórico e social. Nesse amplo painel
de recorrências a tudo o que era novo, o poeta aplica, muitas vezes de forma inusitada, o
tradicional, representado por aquilo que é próprio de uma composição poética – a rima,
o ritmo, a métrica.
Todos esses dados levantados contribuíram para melhor entender por que os
poetas palacianos têm sido reverenciados como portadores de uma estética futura.
Como escreveu Andrée Crabbé Rocha, os poetas palacianos puderam “dotar os poetas
imediatamente posteriores dum instrumento já posto à prova
300
”, ao se referir à
exacerbação da forma cultivada por aqueles rimadores. Creio não ser exagero levar essa
contribuição para o campo da temática, também. Como se pôde notar, mesmo que
tratando ainda de assuntos recorrentes, os poetas, principalmente Fernão da Silveira,
releram o que já se cantava exaustivamente, mas acrescentaram traços de sua
individualidade poética e preocupações com um mundo novo que acabava de nascer
para eles.
Resta, agora, verificar os resultados disso tudo nos movimentos literários que
nasceram depois do surgimento do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Isso
pretendo fazer no capítulo que segue, valendo-me da mesma metodologia usada para
estudar os poemas de Fernão da Silveira, se bem que, registre-se, com menor extensão,
já que a proposta era entender sua produção, como paradigma de tudo o que foi feito
pelos poetas palacianos, e tentar encontrar os traços que possam ligar os novos estilos
àqueles de que se valeram esses poetas do final do século XV e início do XVI.
300
Vide citação na p. 140.
149
Anagrama poético de Luís Nunes Tinoco (séc. XVII).
In: HATHERLY,1998, p. 17.
150
CAPÍTULO V - AS SEMENTES DO CANCIONEIRO GERAL
NO RENASCIMENTO E NO BARROCO. AS RELEITURAS DO
CONCRETISMO E EXPERIMENTALISMO
Cada época espiritual exprime seu
conteúdo característico através de uma
forma que lhe é exatamente
correspondente. Cada época alcança,
desse modo, sua verdadeira fisiognomia,
plena de expressão e força, e assim
transforma o ontem em hoje em todos os
domínios do espírito
301
.
Kandinsky
A originalidade nunca é mais do que uma
questão de arranjo novo
302
.
Leyla Perrone-Moysés
São inúmeras as composições encontradas no Cancioneiro Geral que podem ser
classificadas como vôos ousados de forma e fundo, como prenúncio de muito do que
viria a fazer parte das estéticas literárias posteriores, mais especificamente do
Renascimento e do Barroco, e, no século XX, do Concretismo e do Experimentalismo.
Seguindo o caminho traçado na análise dos poemas de Fernão da Silveira,
almeja-se, neste capítulo, comparar brevemente a produção poética do Coudel-mor com
seus contemporâneos, no intuito de confirmar o parecer de que Silveira pode ser tomado
como paradigma da inovação na coletânea de Garcia de Resende. Em seguida, pretende-
se registrar a marca dessa releitura do Cancioneiro em alguns poemas do Renascimento,
Barroco, Concretismo e Experimentalismo.
301
Apud CAMPOS, op. cit., 1975, p. 54.
302
In: PERRONE-MOYSÉS, op. cit., 1990, p. 99.
5.1. FERNÃO DA SILVEIRA E SEUS IGUAIS: POETAS PALACIANOS, MEDIDA DA
CRIATIVIDADE
No acróstico de Jorge de Resende “Outra esparça em que estaa o nome d’ũa
senhora nas primeiras letras de cada regra.”, observa-se a engenhosidade do poeta ao
usar o nome da dama a que servia em redondilhos maiores, à moda da coita amorosa
dos antigos trovadores. Nele, o poeta embute o nome de Dona Ilária, trocando o “i”
inicial pelo “j”, como se usava então, em que se mesclava o alfabeto antigo ao moderno.
De vós, senhora, e de mim
Ousarei de m’aqueixar
Nos males que nam têm fim,
Antes vam ò galarim
Jurando de m’acabar
Lastimado com rezam.
Amores bem me fizeram
Resestir minha paixam,
Inteira satisfaçam
Aa mester, pois me prenderam. (CG, IV, 672)
303
Largamente usados no Barroco, os acrósticos são composições poéticas em que
a leitura vertical do conjunto das primeiras letras de cada verso forma uma palavra ou
uma frase. Sobre essa forma poética, escreve Maria dos Prazeres Gomes:
os acrósticos (...) remontam à Antiguidade greco-romana, [e] têm
representação na literatura européia ao longo dos séculos. Como os
anagramas e os labirintos, foram assimilados pela Idade Média que os
cultivou exaustivamente, em vários tipos de textos, em conexão com o culto
do alfabeto e das maiúsculas, transmitindo-se aos séculos posteriores
304
.
Para Ana Hatherly, “o acróstico está relacionado com a prática mágico-mística da
escrita hebraica, que considera a meditação sobre o alfabeto como uma via para o
conhecimento do nome das coisas e da criação, ou seja, o conhecimento de Deus”
305
.
Completa dizendo que “esta prática [foi transmitida e] manteve-se ainda viva durante o
século XIX e foi retomada em alguns casos pelo Surrealismo e mesmo pela Poesia
Concreta, no século XX
306
”.
303
As letras em destaque são grifos meus.
304
GOMES, op. cit., 1993, p. 214.
305
HATHERLY, op. cit., 1983, p. 149.
306
Idem, ibidem, p. 151.
152
Além desse acróstico de Rezende, registre-se o acróstico estrófico (CG, IV, 793)
de Henrique da Mota em que, em cada estrofe, o poeta “canta” o significado de cada
uma das letras que compõem o nome de Antônia Vieira, cuja dama solicitou a
montagem da trova. Comenta João de Almeida Lucas ser tal artifício “muito raro na
nossa Literatura
307
”. Acrescente-se a essas, ainda, a “Cantiga em que está o nome por
quem se fez, polas primeiras letras dela” (CG, II, 339), de autoria de Diogo Brandão,
outro anagrama cujas primeiras letras de cada verso formam o nome de Dona Vjolante.
É possível que, no caso da peça de Jorge de Rezende, e também nos de Henrique
da Mota e de Diogo Brandão, o vínculo místico possa ser descartado. Contudo,
sobressai a questão do mágico, aliado à da ludicidade. Mágico porque, ao reverenciar a
dama, colocando suas iniciais na primeira palavra de cada verso, o poeta personifica
aquela a quem serve, pelo nome, através de um processo enigmático. E o lúdico,
igualmente aliado à adivinha proposta no início de cada verso, é aparente, pois a feitura
dos acrósticos, anagramas, labirintos, etc., está intimamente ligada ao jogo, à
brincadeira.
Outra forma poemática que demonstra engenhosidade são os versos
pantogramáticos (ou pangramáticos), artifício retórico conhecido também por
homoeoprophoron. O ornatus é assim definido por Cristina Almeida Ribeiro: “[obriga]
a que todas as palavras de uma estrofe comecem pela mesma letra, e [impõe],
combinado com o acróstico, a subordinação das estrofes sucessivas – e não apenas dos
versos sucessivos – às diferentes letras de um nome
308
”. Álvaro de Brito compôs duas
trovas construídas sob essa forma: na primeira, intitulada “Estas oito trovas fez Alvaro
de Brito Pestana a El-Rei Dom Fernando, nas quaes meteo o seu nome e lem-se de
tantas maneiras, que se fazem sessenta e quatro.”, o poeta monta as estrofes usando em
cada delas uma das letras do nome do rei católico de Castela, Dom Fernando. A
segunda peça, homenagem à esposa do rei católico, vem assim referenciada: “Estoutras
oito fez à Rainha Dona Isabel, sua molher, da mesma maneira e sam em castelhano.” Os
307
O CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. (Excertos). (Org.) João de Almeida Lucas.
Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, [s.d.], p. 13.
308
CANCIONEIRO Geral de Garcia de Resende. Apresentação crítica, selecção, notas, glossário e
sugestões para análise literária de Cristina Almeida Ribeiro. Lisboa: Editorial Comunicação, 1991.
(Colecção Textos Literários 64), p. 30.
153
poemas têm tom laudatório e são mais uma expressão de jogo, de brincadeira com as
palavras
309
. Os dois poemas são compostos de oito trovas em oitavas; vejam-se a
primeira estrofe dedicada a D. Fernando, em que todas as palavras iniciam-se pela letra
“f”:
Forte, fiel, façanhoso,
fazendo feitos famosos,
florescente, frutuoso,
fundando fiis frutuosos.
Fama, fe, fortalezando,
famosamente florece,
fidalguias favorece,
francas franquezas firmando. (CG, I, 73)
e a primeira estrofe dedicada à Rainha Católica, tomada no poema pelo seu designativo
em castelhano, Elisabel:
Esclareces exalçada,
em Europa enlegida,
esperante esperada,
estrelha esclarecida.
Esplandor espritual,
electa espectativa,
especta, executiva,
estrema, esencial. (CG, I, 74)
Este jogo aliterativo não é novo, vem já da Antigüidade, como neste exemplo de
Ênio Quinto (239-169 a.C.): O Tite, tute, Tati, tibi tanta, tyranne, tulisti
310
. Admirado
pelos retóricos e gramáticos da Idade Média, como por exemplo o Abade Valério
(século VII) e Hucbald (m. ca. 930), o recurso tem sido usado quase sempre como
elegia a soberanos, demonstrando destreza formal e, especificamente no caso de Álvaro
de Brito, atividade lúdica, se a ela se associarem as produções de seus pares na recolha.
309
Foi essa poesia, provavelmente, que instigou Fernão da Silveira a compor seu labirinto atrás
examinado: “Senhora, graciosa, discreta eicelente”, conforme parecer de Aida Fernanda Dias e outros
estudiosos, como referido no Capítulo IV. Tal probabilidade é, de certa forma, evidente na esparsa que
vem apensa ao labirinto do Coudel-mor, como se pode observar pela didascália anotada por Garcia de
Resende. Ainda sobre essas brincadeiras aliterativas, escreve João Carlos Teixeira Gomes: “É óbvio que
se trata de um divertimento, na linha das parlendas populares ou dos jogos de dicção, mas que nos revela
a antigüidade e a procedência das criações sonoras do Barroco...”. (Op. cit., 1985, p. 311). Sem dúvida,
esse conceito de divertimento (ludicidade) – não só quanto à forma, mas também quanto à sonoridade –,
pode ser estendido à criação de Fernão da Silveira e a muitas das composições do Cancioneiro Geral.
310
“Ó tirano Tito Tácio, suportaste, seguro, tantos perigos”. (In: FONDA, op. cit., 1985, p. 110 e em
CURTIUS, op. cit., p. 354). Para este último, a aliteração pangramática é, na Idade Média, virtuosismo
muito popular e “no século XV foi tratada pelos Grands Rhétoriqueurs e legada por estes aos poetas do
século XVI. Ainda se mantém seu prestígio na Espanha do século XVII.” (Idem, ibidem, p. 355).
154
É necessário, mais uma vez, citar que muitas das composições poéticas, como essas
duas, não envolvem improvisação; mesmo que brincadeira sem grandes preocupações
estéticas, tais poesias engenhosas deveriam ter sido elaboradas previamente, tendo o
poeta se valido de pesquisa e inspiração.
Também engenhosas e criativas, mais propriamente quanto ao desenvolvimento
do tema, são as trovas do próprio Garcia de Resende dedicadas a Inês de Castro. A peça
de Resende é uma das mais belas composições do Cancioneiro Geral, não só pela
temática, que coloca em destaque a figura de Dona Inês como vítima das injustiças, mas
também pela forma: um monólogo da própria Inês de Castro contando suas desventuras
à hora de seu assassinato. Esse seu monólogo é um dos casos presentes no repertório
que apresenta já arremedos de teatralidade. Composto de 28 estrofes de dez versos em
redondilho maior, além de trazer o inusitado da fala da própria Inês de Castro depois de
morta, o poema inicia-se com uma preleção de Garcia de Resende e, depois da
exposição da personagem, vem, em mais seis estrofes, um parecer de Resende sobre o
amor, dedicado às mulheres, além de, em forma poética, editar uma crônica do amor de
D. Pedro por Inês e os frutos que dele resultaram. As didascálias assim aparecem:
“Trovas que Garcia de Resende fez à morte de Dona Ines de Castro, que El-Rei Dom
Afonso, o quarto de Portugal, matou em Coimbra, por o Principe Dom Pedro, seu filho,
a ter como mulher e polo bem que lhe queria nam queria casar, enderençadas às damas.”
No “prólogo”, Resende conclama as damas assediadas por quem as bem quer ou as
serve a pautarem-se no sofrimento de Inês de Castro:
Senhoras, s’algum senhor
vos quiser bem ou servir,
quem tomar tal servidor
eu lhe quero descobrir
o gualardam do amor.
Por sua mercê saber
o que deve de fazer,
vej’o que fez esta dama,
que de si vos daraa fama,
s’estas trovas quereis ler. (CG, IV, 861)
Em seguida, começa Dona Inês o seu relato:
– Qual seraa o coraçam
155
tam cru e sem piadade,
que lhe nam cause paixam
ũa tam gram crueldade
e morte tam sem rezam?
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fee, amor
ò Princepe, meu senhor,
me mataram cruamente! (Ibidem)
Depois de expor toda sua desventura, conta no Fim como “dous cavaleiros irosos” lhe
atravessaram a espada e confessa que “este é o gualardam / que meus amores me
deram!”. Dirige-se então Garcia de Resende às damas, em mais cinco estrofes,
clamando para que não tivessem medo nem receio de amar e, no cabo, registra que o
príncipe tomou Inês de Castro por esposa depois de morta e que “ambos vereis jazer: /
rei, rainha, coroados, / mui juntos, nam apartados, / no cruzeiro d’Alcobaça.”
Segundo Correa de Oliveira e Saavedra Machado, essas trovas de Resende
serviram de fonte a Camões, na parte dedicada à personagem de Dona Inês, em seu Os
Lusíadas
311
. O poeta eborense teria, ainda segundo os estudiosos, reproduzido um
romance da tradição oral, além de Resende valer-se de uma matéria dantesca, a dos
“infernos dos namorados”, ao gosto do que faziam outros seus pares, como Anrique da
Mota, Fernão da Silveira, Duarte de Brito e Diogo Brandão. As alegorias aos infernos,
segundo Maria Isabel Morán Cabanas, têm base na Divina Comédia e teriam grande
sucesso na Renascença, quer por trazer “recordações nostálgicas do passado, quer
recorrendo ao artifício do sonho, quer ainda de um modo esboçadamente dramático,
evocando a voz de além túmulo
312
”.
Podem-se citar, ainda, muitas outras composições dos poetas palacianos que se
encaixam na denominação de “inovadoras”, “criativas”, “engenhosas” e “agudas”, cujos
modelos serão aproveitados posteriormente. Apenas como registro, nomeiem-se
algumas: D. João Manuel, numa longa trova de 162 versos, monta um poema que se
311
TEXTOS Portugueses Medievais. (Org.) Luis Saavedra Machado & António de Corrêa Oliveira.
Coimbra. Atlântida Ed., 1959, p. 216. Neil Miller relata uma cronologia quanto ao aparecimento da
personagem Inês de Castro: “as primeiras em que o nome de Inês aparece são as crónicas de Fernão
Lopes, Rui de Pina e Pêro Lópes de Ayala. Mas a primeira obra verdadeiramente literária que trata do
tema é o poema de Garcia de Resende no Cancioneiro Geral.” (In: Os Lusíadas e o Cancioneiro Geral.
Ocidente. Revista Portuguesa de Cultura, Lisboa, novembro, 1972, p. 112-113).
312
MORÁN CABANAS, op. cit., 2003b, p. 14-15.
156
aproxima da prosa, e é intitulado: “Ũa fala ou palavras moraes, feitas por Dom Joham
Manuel, camareiro-moor do mui alto princepe El-Rei Dom Manuel Nosso Senhor”. No
“Breve do Conde do Vimioso d’ũ momo que fez sendo desavindo, no qual levava por
antremes ũu anjo e ũu diabo, e o anjo deu esta cantiga a sua dama”, cria o poeta uma
peça em forma de carta com saudação, numa longa estrofe de 26 versos, em prosa
poética, acrescido de uma cantiga do anjo em defesa do conde, escrita em castelhano.
São exemplos também os poemas laudatórios em tom de pranto, um de Diogo
Brandão, “De Diogo Brandam à morte d’El- Rei Dom Joam o segundo, que é em santa
groria” e outro de Luís Henriques “Lamentaçam aa morte d’El-Rei Dom Joham, que
santa groria haja, feita per Luis Anriquez”. Nos dois casos, os poetas reverenciam a
morte de D. João II, usando já a medida nova, se bem que “era muito grande, nos fins
do séc. XV e princípios do séc. XVI, a liberdade na construção do verso de arte maior.
Em Sá de Miranda ainda aparece este verso combinado com o decassílabo italiano (6
ª
,
10
ª
, ou 4
ª
, 8
ª
e 10
ª
)
313
”. Além da medida nova, os dois poetas fazem uso da mitologia e
de vários recursos clássicos, que serão no Renascimento explorados de forma mais
abrangente. Também inovador na forma e contundente no conteúdo, nos “Arrenegos
que fez Gregorio Afonso, criado do Bispo D’Evora”, o poeta, numa longuíssima estrofe
de 341 versos, “brinca” com o substantivo arrenegos e o verbo renego, mostrando a
decadência moral do Portugal de fins da Idade Média.
Ainda em D. Francisco de Portugal, o Conde do Vimioso, no “Vilancete do
Conde do Vimioso”, é patente a antítese de fundo petrarquista, que pode ser
considerado um prenúncio barroco:
Meu bem, sem vos ver
se vivo ũu dia
viver nam queria.
Caland’e sofrendo
meu mal sem medida,
mil mortes na vida
sinto nam vos vendo.
E pois que vivendo
moiro todavia,
viver nam queria. (CG, II, 297).
313
TEXTOS, op. cit., p. 268.
157
E, finalmente, uma antecipação das preocupações clássicas a que recorreriam os
renascentistas, pode-se encontrar no Cancioneiro de Resende, principalmente na “Carta
de Oenone a Pares, traladada do Ouvidio em copras per Joam R[o]driguez de Lucena
(CG, III, 566)”. É uma tradução dos versos de Ovídio aos quais João Rodrigues de
Lucena adicionou três outras estrofes de seu lavor, todas no Argumento, que abre a
transcrição ovidiana. Percebe-se que aos poetas palacianos apraziam-lhes a inovação,
quando mesclavam a tradição ao seu próprio modo composicional, como que
registrando sua marca e apreço aos antigos.
Trazendo aqui, resumidamente, esses poemas, e aliando-os à análise da
produção de Fernão da Silveira, verificou-se de fato, que a semente dos movimentos
literários futuros já vinha sendo engendrado no portentoso Cancioneiro Geral de Garcia
de Resende, exemplo de inventividade e arrojo formal.
Se até aqui se centrou em um relato da produção poética dos contemporâneos de
Fernão da Silveira, a intenção, desta feita, é verificar traços dessa produção nas poéticas
dos estilos literários que se seguiram às do século XV e início do XVI. Inicie-se com o
Renascimento e, seguindo a linha do tempo, o Barroco, fazendo um salto para a segunda
metade do século XX. Sobre esse “salto”, considerar-se-á também uma possível
influência da coletânea resendiana nos trezentos anos que separam o Barroco do
Modernismo.
5.2. NO RENASCIMENTO, RENOVAÇÃO DOS CLÁSSICOS: PASSEIO PELOS TEMAS E
FORMAS DO
CANCIONEIRO GERAL
O labirinto parece trazer ao poeta possibilidades infinitas: a começar pelo
próprio nome, o qual pressupõe a procura de várias saídas. Mais do que tudo, sua
pluralidade de leituras instiga o poeta a fazer do labirinto um jogo lúdico. Assim o
usavam os antigos, assim o usou Fernão da Silveira, com “Senhora, graciosa...” e
Álvaro de Brito, com suas trovas em louvor aos Reis Católicos de Espanha Fernando e
Isabel.
A estética literária que mais explorou a forma labiríntica, em todo o contexto
artístico, foi o Barroco. Todavia, no Renascimento, Camões retoma essa forma poética e
renova-a. Um exemplo é o seu poema “Estanças na medida antiga, que têm duas
158
contrariedades, louvando e deslouvando uma dama”, em que pluraliza o sentido
original.
Vós sois uma Dama Do grão merecer
Das feias do mundo; Sois bem apartada;
De toda a má fama Andais alongada
Sois cabo profundo. Do bem parecer.
A vossa figura Bem claro mostrais
Não é para ver; Em vós fealdade:
Em vosso poder Não há i maldade
Não há formosura Que não precedais.
Vós fostes dotada De fresco carão,
De toda a maldade; Vos vejo ausente;
Perfeita beldade Em vós é presente;
De vós é tirada. A má condição.
Sois muito acabada De ter perfeição
De taixa e de glosa: Mui alheia estais;
Pois, quanto a formosa Mui muito alcançais
Em vós não há nada. De pura razão.
314
Aqui, como em Fernão da Silveira, o tema é a mulher. Entretanto, Camões materializa a
dualidade da dama pela leitura múltipla: na horizontal, apresenta-se louvada, suas
qualidades positivas são realçadas; na vertical, o poeta a deslouva, mostrando
qualidades negativas. Já no poema “Senhora, graciosa, discreta, eicelente”, essa dupla
personalidade, despontada pela leitura múltipla, dá-se pela contradição daquela a quem
o poeta serve: ora é amiga, ora inimiga, ou seja, a expressão se dá no nível da própria
palavra. Se no labirinto de Silveira, a descriptio puellae mantém-se fiel aos cânones, o
poeta foge ao padrão na estrutura que usou para exaltá-la, se bem que majoritariamente
pelas qualidades positivas. Já nas composições desenvolvidas por Camões, percebe-se
uma atenção à personalidade humana da mulher, nada estanque, monológica ou
divinizada como o fizeram os poetas da Idade Média.
314
Apud MACHADO, Irene A. O romance e a voz. A prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de
Janeiro: Imago/FAPESP, 1995. (Série Diversos) p. 191. Optou-se por essa versão, tirada das Obras de
Luís de Camões. Porto: Lello, 1970, por facilitar a visualidade da forma labiríntica. Corrigiram-se
algumas grafias, baseadas na Lírica de Camões, p. 88.
159
No poema de Camões, a modernidade apresenta-se pelo jogo ambíguo que
propõe na leitura: horizontalmente, usa a medida nova, mas com tema e visão da mulher
próprios das cantigas trovadorescas; entretanto, na vertical, adota as redondilhas,
recurso das antigas canções medievais, e revoluciona a temática: a mulher é apresentada
grotescamente, desprezando, portanto, a nobreza e a suavidade, atributos da mulher
medieval. Apresenta, então, uma visão satírico-trovadoresca do sexo feminino
315
. Esse
artifício equivale ao que Baltasar Gracián denomina “epigrama retrógrado”: “especie de
enigmas que hablan a dos luces, y se há de entender en ellos todo lo contrario de lo que
dicen
316
”. Comenta também que
aunque es agudeza material, se estima por su picante malicia. Fue celebrado
este epigrama, que leído al revés, y comenzando por la última palabra, dice
todo lo contrario de lo que parece, pero no de lo que pretende:
Lares tua, non tua fraus, virtus, non copia rerum
Scandere te fecit hoc decus eximium.
Condito tua sit stabilis, nec tempore parvo.
Vivere te faciat hic Deus Omnipotens
317
.
Percebe-se nesses exemplos que a tradição – começada ao que parece na
Antigüidade latina – veio se transformando pela leitura distinta que cada poeta criativo
fez. Nessas peças, não há dúvida, além da releitura, prima o artista inventivo por dar sua
contribuição individual.
É ainda de Camões um soneto anagramático
318
, “Vencido está de amor”, que
também traz originalidades métrica e formal, plenas de criatividade. Se no poema
anterior o poeta escolheu os redondilhos menores em duas colunas, que somadas
formam um decassílabo ou medida nova, neste, a originalidade está em que a primeira
coluna é formada por redondilhos de arte maior ou de sete sílabas. Lido o soneto na
horizontal, têm-se hendecassílabos, uma vez que na coluna da direita o metro é formado
por versos de quatro sílabas poéticas. Fora essa novidade, as primeiras letras de cada
315
Apud MACHADO, op. cit., p. 193.
316
GRACIÁN, op. cit., II, p. 166.
317
Possível tradução: “Os Lares teus não teu agravo; tua virtude, não tua fortuna / Esta glória exímia fez
te elevares. / O tempo, que te seja constante, não breve instante determinado./ Aqui te faça viver Deus
Onipotente”. (AGNOLON, Alexandre. Epigrama retrógrado...tradução comentada. Mensagem
eletrônica recebida por <geraldoa[email protected]>, em 18.out.2005).
318
Caracteriza-se o anagrama pela formação de uma nova palavra ou frase transposta das letras de outra
palavra ou frase. Escreve Ana Hatherly sobre esse recurso: “atribuído aos hebreus, conhecido de gregos e
romanos, praticado largamente durante a Idade Média, [o anagrama] reemerge fulgurante no Barroco”.
(Op. cit., 1983, p. 185).
160
verso, tanto os da esquerda quanto os da direita, formam uma frase: “Vos[s]o como
catjvo / Mvi alta senhora”. Além do acróstico, usa Camões letras do português arcaico,
derivado do latim: o “s” com som forte, o “j” por “i” e o “v” por “u”. Um jogo muito ao
gosto do poeta que inova mesclando o tradicional com o novo. Está assim editado o
soneto na Lírica de Camões:
Vencido está de amor Meu pensamento,
O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e Instituída,
Oferecendo tudo A vosso intento.
Contente deste bem, Louva o momento
Ou hora em que se viu Tão bem perdida;
Mil vezes desejando, Assim ferida,
Outras mil renovar Seu perdimento.
Com esta pretensão Está segura
A causa que me guia Nesta empresa,
Tão sobrenatural, Honrosa e alta,
Jurando não querer Outra ventura,
Votando só por vós Rara firmeza,
Ou ser no vosso amor Achado em falta.
319
Essa espécie de anagrama já foi vista quando se trouxe o poema de Jorge de
Rezende, poeta palaciano. Em Camões, entretanto, a criatividade está não na feitura do
anagrama, e sim na métrica diferenciada, ao separar os hemistíquios, da mesma forma
que fez com o labirinto em que mescla a medida velha com a nova.
Preocupou-se, nesta exígua mostra de criatividade e inovações renascentistas,
mais dedicada à produção de Camões, em oferecer relações de forma e fundo com as
composições encontradas no Cancioneiro Geral. Há, sem dúvida, muito mais. Todavia,
o estudo demandaria análise mais pormenorizada do que se espera aqui.
Muitos estudiosos referem-se, com maior freqüência, à influência que o
Cancioneiro Geral teria exercido sobre as produções barrocas. Pretende-se a seguir
demonstrar, com alguns exemplos do Barroco português e brasileiro, o modo como essa
influência possa ter-se exercido.
319
Cf. Lírica de Camões, 1932, p. 129. As letras em negrito são grifos meus.
161
5.3. BARROCO: IMAGENS E FORMAS DO SEISCENTOS PORTUGUÊS
Nota-se na coletânea da Fênix Renascida, bem como no Postilhão de Apolo, que
uma das preocupações precípuas dos poetas barrocos era a questão da forma, comparada
com “as linhas curvas e contorcionadas da arquitectura de Seiscentos
320
” em oposição à
arquitetura retilínea do período anterior. Para o autor da recopilação, “as estátuas e
pinturas [são] sacudidas de fundas emoções” e “contrastam com as de apolínea
serenidade da época anterior
321
”. Teria o artista barroco transposto para a obra literária
a mesma forma rebuscada da arquitetura, da pintura e das estátuas, assim como, no fim
do medievo, a engenhosidade poética pode ser comparada ao estilo gótico
322
, um estilo
que antevê o próprio estilo barroco, posto que também rebuscado.
Cidade acredita que uma concepção de “homem horizontal” do mundo clássico
parece ser artificial, “muito mais sonhado do que realizado
323
”. Explica “que sempre o
Cristianismo manteve nas almas o conflito entre as aspirações transcendentais do
espírito e as propulsões vitais da carne
324
”, daí enxergar na produção artística do
período barroco, em Portugal, menos uma preocupação religiosa que uma questão de
atividade lúdica e de entretenimento. Para provar, cita dois motivos que levaram a
produção literária seiscentista portuguesa a manter-se distante e alheia da realidade
política e social: a intransigência da Inquisição e seus “aterradores processos”, e,
no ambiente espiritual de tal modo fechado a infiltrações estrangeiras,
compreende-se não devesse tal situação constituir grande estímulo para a
vida intelectual da Pátria e da Corte, sobretudo preocupadas com os
problemas militares e económicos, tanto mais urgentes quanto era a própria
existência delas que os impunha
325
.
Fecham-se os intelectuais da época na ociosidade, no luxo e na ostentação da corte,
como que revivendo o período medieval, mais especificamente o período em que foi
320
A POESIA lírica cultista e conceptista: colecção do século XVII, principalmente de Fênix
Renascida. (Org.) Hernâni Cidade. 4 ed. Lisboa: Seara Nova, 1968, p. VII.
321
Idem, ibidem, p. VII.
322
Com relação a este estilo em Portugal, comenta Jacques Le Goff: “o gótico ‘manuelino’ é, por volta de
1500 – uma das mais originais formas do delírio gótico – anuncia Gaudi”. (LE GOFF, Jacques. A
civilização do ocidente medieval. Lisboa: Ed. Estampa, 1983. Vol. II, p. 131).
323
CIDADE, op. cit, 1968, p. VII.
324
Idem, ibidem, p. VII.
325
Idem, ibidem, p. IX.
162
produzida a poesia compilada no Cancioneiro Geral
326
. De certa forma, nota-se uma
identidade de objetivos entre as duas épocas, principalmente quando se vê que, ao
tempo do Cancioneiro, os cortesãos se reuniam no Paço, à volta da realeza, para poetar
sobre tudo e todos, deixando de lado – isso a maioria dos poetas – as preocupações
sociais.
Quanto ao poetar barroco, teorizava Francisco Manoel de Melo: a atividade
poética era “lição não própria de sesudos, mas de mancebos, damas e ociosos e se funda
em dois pólos, que são o amor e a ociosidade
327
”. A poesia deve ser, então, nas palavras
de Hernâni Cidade
um jogo, um entretenimento, um prazer da imaginação sensual ou da
inteligência engenhosa (...) ela deve ser, do ponto de vista formal, tão
complicada e galante como as boas maneiras de sala, ou tão excessiva de
luxos ornamentais como a arquitectura, a indumentária, o próprio culto
religioso do tempo (...) Em tudo a preocupação do arranjo, do enfeite, do
jogo, do artifício...
328
É assim que, com base nesses pressupostos, escolheram-se algumas peças
poemáticas representativas, e à luz da visão cultista, que primava pela forma através de
jogos de palavras, de imagens e de construções – o cultismo –, ou pelo jogo dos
conceitos – o conceptismo, para fazer uma constatação: a de que o Barroco transpõe nas
suas criações poéticas a mesma preocupação estética nascida na antologia de Garcia de
Resende.
Quanto ao jogo de construção, veja-se como exemplo o soneto que segue. Em
“A F., favorecendo com a boca e desprezando com os olhos”, de Jerônimo Baía,
permite-se a decomposição em dois sonetilhos irregulares, prova de engenhosidade, à
moda das esparsas executadas pelos palacianos e depois por Camões.
Quando o Sol nasce e a sombra principia,
A doce abelha, a borboleta airosa
Procura luz ardente e fresca rosa,
Que faz a terra céu e a noite dia.
326
Sobre essa ligação entre os dois períodos, comenta Hernâni Cidade: “Pode dizer-se que [a poesia
barroca] regressou à sua categoria de actividade lúdica, de mero entretenimento, como o fora para os
poetas dos Cancioneiros medievais e a maior parte dos do Cancioneiro Geral, de Resende.” (Op. cit.,
1968, p. IX).
327
Apud CIDADE, op. cit., 1968, p. X.
328
Idem, ibidem, p. X.
163
Mas quando à flor se entrega, à luz se fia,
Uma fica infeliz, outra ditosa,
Pois vive a abelha e morre a mariposa,
Na favorável rosa e chama impia.
Fílis, abelha sou, sou borboleta,
Que com afecto igual, com igual sorte,
Busco em vós melhor luz, flor mais selecta.
Mas quando a flor é branda, a chama é forte,
Néctar acho na flor, na luz cometa;
A boca me dá vida, os olhos morte.
329
A leitura decomposta em sentido longitudinal é proposta por Hernâni Cidade e
pode ser assim montada, tomando-se como modelo a primeira estrofe. Observe-se que,
segundo o crítico, a ordem do terceiro verso deve ser alterada para manter o paralelismo
das duas imagens: a da abelha e a da borboleta:
Quando o sol nasce (Quando) a sombra principia,
A doce abelha A borboleta airosa
Procura a fresca rosa (Procura) a luz ardente
Que faz a terra céu (Que faz) a noite dia.
Por trás da aparente ingenuidade do tema – a alegria e vida que a luz traz à
abelha, e a tristeza e morte que a sombra traz à borboleta –, esmera Baía na
engenhosidade e agudeza de seu soneto. Descrevendo os objetivos de cada
“personagem” – a abelha e a borboleta –, opõe a cada “papel”, momento – Sol, sombra,
terra, céu, noite, dia –, sentimento – infeliz, ditosa, afeto –, e o resultado desses opostos:
na flor – favorável e branda –, encontra a abelha vida; na luz – ímpia e forte –, morre a
borboleta. O jogo de opostos, entretido nas antíteses, se traz alegria a uma, traz à outra
tristeza. Dir-se-ia que, no singelo soneto, o poeta descreve a trajetória da vida.
Primaram também os barrocos nas composições satíricas, como no soneto de D.
Tomás de Noronha, “A uns noivos que se foram receber levando ele os vestidos
emprestados e indo ela muito doente e chagada”, em que o poeta estrutura a brincadeira
com as últimas palavras de cada verso, fazendo com que o ritmo se sobressaia; nos dois
últimos versos, o “eu-lírico” surpreende o leitor com o jogo de palavras mesclado ao
329
Idem, ibidem, p. 43-44.
164
jogo de construção, envolvendo o soneto de jocosidade. Veja-se o poema:
Saiu a noiva muito bem trajada,
Saiu o noivo muito bem trajado,
O noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.
Ela uma anágoa muito bem bordada,
Ele um capote muito bem bordado;
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastada.
Folgámos todos os amigos seus
De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.
Disse-lhe o cura então: Confia em Deus.
E respondeu o noivo: – E eu confio.
E respondeu a noiva: – E eu com fios
330
.
Também jogos de opostos, sutis na inversão das palavras, ou seja, na
ambigüidade própria da annominatio, Noronha apresenta a saúde e alegria do noivo e o
estado crítico da noiva – “conchagada”, cheia de chagas e “emprastada”, cheia de
emplastros. Usando a antiqüíssima anfibologia, nesta construção engenhosa, o poeta
visa a marcar as antíteses de sentimento e de aparência física jogando com os equívocos
de palavras. Este jogo aprimora-se no último verso, em que os fios feitos para
emplastrar as chagas da noiva opõem-se aos seus brios. Chistoso, o soneto beira o
patético pela situação inversa da noiva, no seu dia mais importante, estando de branco,
mas o branco dos fios que protegem suas chagas.
Já nas poesias de cunho conceptista, em que o jogo dos conceitos prevalece
marcadamente, percebe-se uma relação temática entre essas e algumas poesias de sabor
melancólico desenvolvidas no Cancioneiro de Resende
331
. No poema do Dr. Antônio
Barbosa de Bacelar, um soneto, forma muito apreciada pelos poetas barrocos como se
pode perceber pela pequena recolha aqui trazida, percebe-se a questão do “eu” dividido
330
Idem, ibidem, p. 44.
331
Vejam-se como exemplos, os poemas citados nas notas (251), e ainda do Conde do Vimioso “Outra
sua” (“A vida sem ver-vos / é dor e cuidado”. CG, II, 298), de Dom João de Meneses (Cantanhede)
“Cantiga” (“Pois minha triste ventura / nem meu mal nam faz mudança”. CG, I, 10), ou de Francisco de
Souza “Trovas suas a este vilancete” (Abaix’esta serra / verei minha terra. CG, IV, 825), entre outros.
165
tão intensamente cantado por Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e outros – Fernão da
Silveira inclusive, como se pôde verificar na seleta do Capítulo IV. O poema vem
intitulado “A uma ausência” e aparece assim na coletânea:
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal que me consome me sustenta;
O bem que me entretém me dá cuidado.
Ando sem me mover; falo calado;
O que mais perto vejo se me ausenta;
E o que estou sem ver mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.
Choro no mesmo ponto em que me rio;
No mor risco me arrima a confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.
Mas se de confiado desconfio,
É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim como em deserto.
332
O poema marca a dúvida e a busca de uma saída. Sabe-se que o homem barroco
vive sua crise no corpo da linguagem: não há outra saída; não dá para enfrentá-la
emotivamente, mas iconicamente. Esse sentimento expressa-se no último verso, o qual
resume a angústia do homem barroco que está em uma encruzilhada, uma vida
contraditória. Nesse poema, percebem-se as recorrências a artifícios muito explorados
na Idade Média: a oposição bem/mal, o uso de um termo próprio daquela época:
“cuidado”, a paronomásia “confiado/desconfio”, além do valor das inúmeras antíteses.
Quanto a essas, Hernâni Cidade comenta que o Dr. Antônio Barbosa Bacelar é um dos
poetas mais fiéis à tradição camoniana e, em suas obras, como nesta acima, demonstra o
gosto por antíteses petrarquistas
333
.
Com essa pequena mostra de poesias barrocas portuguesas, pode-se seguramente
observar que a inventividade, pautada na originalidade e no trabalho formal próprios
dos poetas palacianos, estendeu-se.. Em ambos os casos, Renascença e Barroco, não só
como releitura, mas como prevalência de uma tradição que se renova a cada período.
332
In: CIDADE, op. cit., 1968, p. 49-50.
333
Idem, ibidem, p. 50.
166
Mas esta “releitura da tradição” não se deteve, estendeu-se aos Trópicos, como se
poderá constatar num dos mais aclamados poetas brasileiros.
5.3.1. Gregório de Matos e o Barroco tropical
Para completar esse estudo do Barroco, é necessário olhar algumas criações de
Gregório de Matos, representante do estilo no Brasil, admirado pela agudeza e
sensibilidade poéticas. Antes de se analisar brevemente alguns poemas do Boca do
Inferno, anote-se o que dele comentou João Carlos Teixeira Gomes sobre a relação do
poeta com o Cancioneiro de Resende, mais precisamente quanto à sátira: “Não
descartamos (...) a hipótese de que Gregório tenha encontrado estímulos para a sua
visão corrosiva da sociedade também em satíricos do Cancioneiro Geral de 1516,
embora a coleção organizada por Resende fosse, em sua época, uma raridade
bibliográfica de difícil manuseio, por limitar-se à edição princeps
334
”. Talvez a
dificuldade a que se refere Teixeira Gomes não seja tão veemente. O Cancioneiro
Geral, ao que parece, circulava quase que de forma corriqueira se se atentar a um fato
interessante comentado por Tito de Noronha:
O Cancioneiro de Resende, que, mal aparecido, excitou curiosidade geral, foi
também levado até à Índia, nos navios que para lá se iam. Diz-nos João de
Barros (...) Quando no ano de 1518 António Correa, oficial do governador da
Índia, foi mandado ao Reino do Pegu, para concluir tratado de paz com o
príncipe daquele país, pareceu-lhe ser pequeno o Breviário do capelão do
navio para ele prestar juramento, comparado com os livros sagrados dos
indianos, e por isso houve por bem escolher para o efeito o in-folio do
Cancioneiro existente a bordo
335
.
A distância dos dois acontecimentos – o de Gregório de Matos ter tido oportunidade de
consultar a coletânea e esse do oficial Antônio Correa – não parece tão extensa,
levando-se em conta a freqüência das viagens ultramarinas empreendidas pelos
portugueses. Recorde-se, também, que Matos viajou muito a Portugal, tendo lá, como
era costume então no Brasil, uma vez que não havia aqui universidade, estudado Direito
em Coimbra e tendo sido juiz em Lisboa
336
. Isso poderia ter-lhe facilitado o contato
334
GOMES, op. cit., 1985, p. 30.
335
In NORONHA, Tito. O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Porto/Braga: Livraria
Internacional, 1874, p. 58.
336
Cf. as obras de Teixeira Gomes e a de Rogério Chociay, ambas já citadas, que fornecem dados mais
precisos e extensos sobre a vida de Gregório de Matos.
167
com a obra de Garcia de Resende e lhe aguçado sua já latente “visão corrosiva” e seu
sarcasmo. O que vale ressaltar, nisso tudo, é que, de certa forma, esses fatos
materializam os “ecos” aludidos atrás, quando se afirmou que o Cancioneiro foi – e tem
sido – fonte de inspiração para a criação inovadora.
Observe-se, nos exemplos a seguir, como o “Boca de Brasa” usa muitos dos
artifícios presentes no compêndio de Resende, muitos dos quais foram utilizados nas
análises procedidas até aqui. O soneto laudatório “Douto, prudente, nobre, humano,
afável”, por exemplo, dedicado a Dionísio de Ávila Varreiro, desembargador, tem a
singularidade de ser uma produção com preocupações gráficas e efeitos lúdicos, “nos
quais alguns estudiosos pretendem ver antecipação do vanguardismo moderno. É
bastante sabido que o jogar com os grafismos não era novidade na época, donde as
centenas de poemas em acrósticos, labirintos, anagramas, etc
337
”. Assim se apresenta o
soneto:
Nesses versus concordantes
338
, “as sílabas da linha central são comuns à
primeira linha como à terceira. Em português são comumente chamados de ‘versos
337
CHOCIAY, Rogério. Os metros do Boca: teoria do verso em Gregório de Matos. São Paulo: UNESP,
1993, p. 125.
338
Para a transcrição deste soneto foi usada a seguinte edição didática, para melhor visualização:
Gregório de Matos: Poesia Lírica e Satírica. (Org.) PASSONI, Célia A. N. São Paulo: Núcleo, 1996. O
168
leoninos multiplicados’ porque, quase sempre, as palavras dos versos rimam entre
si
339
”. Parece correto o que comentou atrás o estudioso Rogério Chociay: a preocupação
é, primeiramente, a de brincadeira de palavras e imagens, apesar do tom laudatório.
Sabe-se da engenhosidade e criatividade de Gregório de Matos e, também, de sua
sagacidade e ironia – as quais se percebem pela profusão de qualidades do louvado, que
chega a beirar o chiste. Apesar de prevalecer a ludicidade, por trás de toda cor laudatícia
empregada no poema há uma outra, que é criticar pelo exagero composicional.
Outro soneto de Matos, de cunho essencialmente lúdico, é “A hum fulano da
Sylva excelente cantor, ou poeta”, em que o “ritmo sincopado na sucessão e articulação
dos decassílabos (...) com palavras-rima monossilábicas (...), no qual o encavalgamento
entre o segundo e o terceiro, o terceiro e o quarto, o nono e o décimo versos contribui
ainda mais para os efeitos rítmicos de suspensão
340
”. Nesta, prima o poeta na criação de
imagem laudatória para seu par. O poema de Gregório está assim, na obra do estudioso:
Tomas a Lira, Orfeu divino, ta,
a lira larga de vencido, que
canoros pasmos te prevejo, se
cadências deste Apolo ouvirás cá.
Vivas as pedras nessas brenhas lá
mover fizeste, mas que é nada vê:
porque este Apolo em contrapondo o ré,
deixa em teu canto dissonante o fá.
Bem podes, Orfeu, já por nada dar
a Lira, que nos astros se te pôs
porque não tinha entre os dous Pólos par.
Pois o Silva Arião da nossa foz
dessas sereias músicas do mar
suspende os cantos, e emudece a voz.
341
A engenhosidade do poeta avulta nas rimas finais, todas oxítonas, criando ao mesmo
tempo musicalidade e jogo lúdico nos efeitos de suspensão a que alude Chociay. Sua
intenção, a de louvar Silva Arião, é concretizada na forma – com as rimas – e na
imagem recorrente à mitologia: relembra a história de Orfeu, insigne cantor, que ganhou
poema aparece também em: CHOCIAY, op. cit. 1993, p. 124-125; HATHERLY, op. cit., 1983, fig. 30;
Obras, 1923, p. 85.
339
FONDA, op. cit., 1985, p. 117.
340
CHOCIAY, op. cit., 1993, p. 93.
341
In: CHOCIAY, op. cit., 1993, p. 93.
169
de Apolo uma lira e, quando a tocava, voz e instrumento atraíam todos – pássaros,
peixes, animais, árvores e pedra – para ouvir sua maravilhosa música, como o faziam
também as sereias
342
. Para Gregório, seu colega supera o canto das sereias, que
cativavam os ouvintes pela beleza canora, pois o poeta cantor faz o mesmo com elas, já
que ficam emudecidas pela voz de Arião. Parece que, com estas referências mitológicas,
compara o poeta baiano Silva Arião a Orfeu.
Finalmente, do mesmo Gregório de Matos, uma canção dedicada a D. Ângela,
com estrofes que combinam versos eneassílabos, pentassílabos e tetrassílabos. Segundo
Rogério Chociay, esse tipo de composição “não faz parte dos figurinos métricos da
época
343
”. Reproduz o poeta aquilo já observado nos poetas palacianos: a irregularidade
tanto métrica, quanto rítmica e rímica, além de estrófica. De acordo com Chociay, pode-
se dividir o poema em quatro sistemas semiestróficos: os três primeiros se subdividem
em duas semiestrofes de seis versos e outra de cinco; o último sistema tem as duas
semiestrofes com mesmo número de versos. Diz ainda o estudioso que as sílabas
métricas em número de quatro nos quartos versos indicam que o poema foi feito para
cantar
344
.
Pois os prados, as aves, as flores
ensinam amores,
carinhos e afetos:
venham correndo
aos anos felizes,
que hoje festejo:
Porque aplausos de amor, e fortuna
celebrem atentos
as aves canoras
as flores fragrantes
e os prados amenos.
Pois os dias, as horas, os anos
alegres, e ufanos
dilatam as eras;
venham depressa
aos anos felizes,
que Amor festeja.
Porque aplausos de amor, e fortuna
342
Cf. SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da Antigüidade Classica. Os mitos da Grécia e de
Roma. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Vol. 1, p. 123-129.
343
CHOCIAY, op. cit, 1993, p. 77.
344
Idem, ibidem, p. 77.
170
celebrem deveras
os anos fecundos,
os dias alegres,
as horas serenas.
(...)
345
Esse poema mostra não só o virtuosismo do poeta brasileiro, mas também como,
em qualquer época, o poeta criativo procura fugir dos padrões. Ao criar música em seu
poema, Gregório relembra a desvinculação da música como acompanhamento da
poesia, limando sua peça para que se assemelhe ao som provocado pela harmonia
palavra/instrumento musical. Parece contraditório falar-se em harmonia diante de tal
irregularidade, mas é fato que, neste caso específico, a própria irregularidade faz o
harmonioso.
Vistas essas amostras de poesias renascentistas e barroccas, faça-se agora um
curto comentário sobre os três séculos que separam a produção seiscentista do
Concretismo/Experimentalismo.
5.4. DO BARROCO AO MODERNISMO: NADA DE INOVADOR?
A resposta para tal pergunta é óbvia: tudo de inovador. O grande progresso que a
Era Moderna proporcionou em todas as áreas do conhecimento inclui as Artes de
qualquer veio. Pense-se no alargamento de possibilidades métricas, rítmicas e rimáticas
do Romantismo, que procurava abandonar tudo de clássico para expressar o novo.
Muito novo? Pense-se, pelo menos na Europa, no desejo romântico de retorno às
origens históricas que, para os poetas e escritores, estavam na Idade Média. Já o
Modernismo, no início do século XX, procurou, de chofre, estigmatizar tudo o que era
passado para incorporar, nas suas emanações artísticas, a velocidade, o dinamismo, a
345
Idem, ibidem, p. 78.
171
máquina. Tudo isso sem apelo ao lirismo clássico? Nem tanto, pois a base de todo o
movimento foi o lirismo; se os modernistas primeiramente manifestaram seu repúdio à
exacerbação lírica, logo se renderam ao que é inerente ao lírico: o humanismo.
Seguindo o que se vem delineando desde o Capítulo III , ou seja, os passos da
diacronia, pretende-se, a seguir, fazer um breve relato sobre as possíveis influências do
Cancioneiro Geral nas produções literárias do período que liga o fim do Barroco ao
Modernismo. Inicie-se pelo movimento que precedeu o Barroco. Em oposição ao
rebuscamento daquela escola literária, surge, baseado nos anseios de retorno à era
clássica – aos mitos, ao bucolismo e à estética greco-romana e renascentista – o
Arcadismo. Já essa intenção demonstra o apelo constante de todas as manifestações para
a intertextualidade, procurando no passado as sementes para a criação do novo. Viu-se
que um tema freqüente nas escolas literárias portuguesas, para ficarmos somente nessas,
depois de seu advento durante o medievo, é o do “eu” repartido, dividido. A ele recorre
também Bocage, por exemplo no soneto “Já Bocage não sou!”. Em seu soneto o poeta
inova ao não disfarçar-se sob o manto do “eu-lírico”, mas do próprio poeta, como que
fazendo uma autocrítica, lançando para isso dos recursos da metalinguagem: “conheço
agora já quão vã figura / em prosa e verso fez meu louco intento
346
”. Acrescenta, assim,
ao antigo, um novo artifício e um novo meio de se auto-analisar.
Além desse exemplo, pode-se recorrer à cantata de Bocage “À morte de Inês de
Castro”, outro tema recorrente da literatura portuguesa, nascido da trágica história
daquela amante do príncipe D. Pedro. Epigrafando seu poema com trechos de Os
Lusíadas, de Camões, o poeta inicia sua longa cantiga por um soneto, seguido de uma
estrofe de 128 versos, em que se altercam decassílabos com hexassílabos, terminando
com oito tetrassílabos, em que ecos – destacados por aspas, marcando o diálogo destes –
ressoam as mágoas por que passaram os amantes
347
. Lembre-se que essa irregularidade
composicional despontou com maior vigor no Cancioneiro de Resende.
Já quanto ao Romantismo, tanto o português quanto o brasileiro, a infinidade de
exemplos que se poderia encontrar demandaria não só muitas páginas, mas também um
346
In: BOCAGE, José Maria Barbosa du. Os Amores. Seleção, introdução e notas de Álvaro C. Gomes.
São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 100-101.
347
Idem, ibidem, p.123-127.
172
estudo muito mais acurado, o que certamente já existe. Quanto ao movimento,
relembre-se o que se disse no início desta subparte: a estética romântica, se se pensar
somente na forma, avulta pela irregularidade, explorando todas as possibilidades de
manifestações. Quanto ao conteúdo, é inevitável recorrer à temática amorosa, que nas
novas expressões, como já escreveram vários estudiosos – vide, por exemplo a opinião
de Massaud Moisés na epígrafe que introduz este trabalho, ou ainda Jole Ruggieri ao
declarar “e mentre si attardano i sogni, canteranno romances; come un preanuncio dei
poeti romantici e preromantici, già sul cadere del secolo XV e all’inizio del secolo
XVI...
348
”, potencializando o que já faziam os poetas provençais, trovadorescos galego-
portugueses e os palacianos. Contudo, essa nova casuística vêm eivada de
egocentrismo, particularidade que não se relega apenas a essa fase da Literatura, é
óbvio, mas que nela se exacerba, chegando, muitas das vezes, ao fingimento da coita
amorosa. O que do mesmo modo não é particularidade da época romântica – lembrem-
se dos cantos amorosos dos trovadores e dos próprios poetas palacianos. Procurando
suas raízes históricas, poetas e compositores românticos, como já se disse, vão beber na
Idade Média os indícios da nacionalidade. Um só exemplo: com o advento do romance
burguês, seja lembrada a prosa de Alexandre Herculano, que procura reviver os feitos
cavaleirescos, ao recriar no romance histórico as gestas medievais.
No Brasil, o poeta Gonçalves Dias, além de desenvolver os redondilhos maiores
– uma das grandes novidades da reunião poética resendiana –, em “Por um ai”, tematiza
o amor que torna o “eu-lírico” um cativo daquela a quem serve, nos moldes que já
Camões – vide o anagrama em que se declara “catjvo”
349
–, muito provavelmente tirou
à idéia de Diogo Brandão em suas trovas “De Diogo Brandam, estando ausente de sua
dama, enderençadas a Anrique de Saa.” (CG, II, 334)
350
. São emblemáticas as últimas
quadras do poeta brasileiro: “Ver-me-ás rendido e sujeito. / cativo e preso à tua lei, /
mais humilhado que um escravo, / mais orgulhoso que um rei!
351
”. Nelas, além de
valer-se do vocábulo “cativo”
352
, explora de forma sintética a servidão própria dos
348
RUGGIERI, op. cit., p. 67.
349
Vide subcapítulo 5.2.
350
Assim se inicia a poesia: “Depois, senhor, que forçado / me trouxeram caa cativo, / ando tam
desesperado / que nam vivo”.
351
In: GONÇALVES DIAS. Poesias completas. 2 ed. (Org.) Frederico José da S. Ramos. São Paulo:
Saraiva, 1957, p. 612-614.
352
Vide como exemplo o acróstico de Camões comentado no subcapítulo 5.2.
173
cantares medievos. Do mesmo poeta, refiram-se ainda as “Sextilhas do Frei Antão”, em
que Gonçalves Dias desenvolve um tema religioso-histórico medieval português,
estruturado como canção de gesta, subdividida em quatro capítulos: “Loa da Princeza
Sancta”, “Gulnare e Mustaphá”, “Solão do Senhor Rey Dom João” e “Solão de Gonçalo
Hermiguez
353
”. Para recriar a gesta, Dias procura emular inclusive a escrita medieval,
dizendo: “Os vocábulos que emprego nestas sextilhas se acham no dicionário de
Morais, bem que as mais das vezes no sentido antiquado
354
”. Retorna, dessa forma, à
medievalidade em forma e fundo. Outro exemplo encontrado em Dias e que lembra a
recopilação de Garcia de Resende, quando se comenta sobre a irregularidade formal,
pode ser “A tempestade
355
”. Nesse exemplo, o poeta desenvolve um jogo lúdico com a
métrica, iniciando o poema com uma estrofe de duas sílabas poéticas, seguindo para
uma de três, outra de quatro, depois, cinco, seis, sete até uma de doze sílabas e, a partir
desta, regredindo para uma estrofe de onze, outra de dez e assim por diante, até fechar a
peça com uma estrofe de duas sílabas poéticas, da mesma forma como iniciou o poema.
Seguindo para o final do século XIX, Cesário Verde despontará em Portugal
pelo fato de – como tratam as antologias – ter sido o primeiro a fazer lirismo de
assuntos nada poéticos
356
, mais especificamente quanto à nova sociedade que crescia
nos centros urbanos, cercada de novos personagens frutos da industrialização. É claro
que, nesta fase realista da Literatura, outros poetas se valeram desses fatos, ao que seria
monótono recorrer; no entanto, isso lembra muito do que se produziu na última metade
do Quatrocentos e no inicio de Quinhentos. Estudiosos apontam o Cancioneiro Geral
como um predecessor dessa característica ou novidade, por cantarem assuntos
“inapropriados” à poesia. Há muito disso em Cesário Verde, mas tome-se apenas um
excerto de “Noite fechada”, em que o poeta descreve de forma lírica, em metros
irregulares decassílabos e hendecassílabos, a Lisboa do século XIX.
Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
A aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
353
Cf. GONÇALVES DIAS, op. cit., p. 391-486.
354
Idem, ibidem, p. 391.
355
Idem, ibidem, p. 866-872.
356
Cf. SERRÃO, Joel. O essencial sobre Cesário Verde. Lousã: IN-CM, 1986.
174
Bem raramente encerra uma mulher de “Dom”!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
(...)
Na sua descrição, o “eu-lírico” também interliga as imagens do hoje àquelas da Idade
Média, uma vez que, ao ver a transformação de conventos medievais em quartéis,
ironiza – com certa amargura – a modernidade:
Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital que esfria.
(...)
357
O crítico português Carlos Cunha também comenta sobre o bucolismo de
Cesário Verde, o qual acredita ser extensão do tema da forma como o fez Gil Vicente:
Para o bucolismo clássico, os objectos, despidos da sua função decorativa,
vivencializam-se e agem como elementos duma simbologia implícita na
necessidade de convívio do poeta com a natureza. É o que acontece nas
cantigas de amigo. É o que acontece em “Diana” de Montemor. É o que
acontece nas éclogas de Bernardim, Falcão e Rodrigues Lobo (...) Ora o que
a meu ver distingue o bucolismo de Cesário Verde de todos que o
precederam é precisamente o novo conceito de realidade que o sentido do útil
e do vital lhe imprime
Ah! O campo não é um passatempo
Com bucolismos, rouxinóis, luar.
Novo, é certo, mas cuja novidade nada particulariza de insólito, pois se
articula na fértil tradição dum Gil Vicente que, na sua “Tragicomédia Pastoril
da Serra da Estrela”, celebra já, com genial antecipação, as gordas bezerras,
ovelhas e cordeirinhas (...) E assim, superando o provincianismo que limita o
panorama da nossa literatura, o autor do Livro se situa na linha mais alta do
bucolismo moderno
358
.
357
In: VERDE, Cesário. Poesia completa & Cartas escolhidas. (Org.) Carlos F. Moisés. São Paulo:
Cultrix/Edusp, 1982, p. 72-73. A poesia é dividida em quatro conjuntos de poemas e tem por título “O
sentimento dum Ocidental”, dedicada a Guerra Junqueiro. O organizador também comenta sobre o uso
visionário de Cesário Verde quanto a termos e temas apoéticos.
358
In: Cesário, poeta moderno. Braga: Cruz, 1955, p. 23-25.
175
Ainda pela mesma época, considerada realista, surge o “fenômeno” do Parnasianismo,
que se destaca pelo culto à forma, como dizem os antologistas e estudiosos. Fenômeno
vem entre aspas porque o movimento teve êxito somente na França e no Brasil, e aqui
foi, na primeira fase do Modernismo, impetuosamente combatido, sendo mesmo mote
para o nascimento deste. O que chama a atenção nessa estética, e é marca dela, é um
“amour de la forme” que os poetas levam ao grau máximo. Esse culto, de certo modo,
lembra o mesmo apreço que tinham os poetas palacianos pela composição estrutural,
como se tentou mostrar aqui
359
. Se a forma, para os poetas do final de Quatrocentos, foi
um meio de inovar, já que os temas – a maioria deles – são ainda característicos da
Idade Média, para os parnasianos era seu modus vivendi, a razão de existir uma feitura
poética. Como se vem discutindo, parece claro que, como em todos os movimentos e
em qualquer época, os artistas relêem o passado e o renovam. Um exemplo pode ser o
soneto do parnasiano Olavo Bilac “Nel mezzo del camin...
360
”, em que o “eu-lírico”
explora um tema trivial de toda Idade Média: o da partida e chegada. Nesse soneto, o
tema vem estruturado de forma diversa: nas duas primeiras quadras, Bilac remete à
partida; nos dois últimos tercetos, canta a chegada. Viu-se, quando da análise, por
exemplo, da “Pregunta do Coudel-moor a Alvaro Barreto”, que a temática da partida,
muito freqüentemente – mesmo nos exemplos cancioneiris provençais e trovadorescos –
, vem em forma de tenção: um poeta instiga outro para que opine o que traz mais pesar,
a partida ou a chegada
361
. Na peça de Olavo Bilac, é apenas o “eu-lírico" quem se
manifesta e descreve a dor da partida. Essa dor, aliás, também remete à “Cantiga sua
partindo-se”, de João Roiz de Castelo Branco. Nesta pequena obra-prima, a dor é
sublimada pelos olhos que vêem sua dama partir; no soneto de Bilac, igualmente os
olhos transparecem a dor quando “solitário, volto a face, e tremo, / vendo o teu vulto
que desaparece / na extrema curva do caminho extremo
362
”.
No início do século XX, procuram os novos poetas e escritores, dizem, a ruptura
com o passado. No seu “Prefácio interessantíssimo”, Mário de Andrade encerra um dos
muitos manifestos modernistas editados nos inícios de 1900 com uma citação de Gorch
359
Ver especialmente o subcapítulo 4.6., em que se destaca essa dileção de Fernão da Silveira.
360
MOISÉS, Massaud. A Literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 206.
361
Ver subcapítulo 4.4.1.
362
MOISÉS, op. cit., 1984, p. 206.
176
Fock: “Toda canção de liberdade vem do cárcere”
363
. Quer dizer o poeta que só essa
frase resumiria a que veio o manifesto e, conseqüentemente, todo o Modernismo:
provocar um rompimento contundente com tudo o que é clássico, mais especificamente
com o Parnasianismo. A rebeldia dos anos iniciais do movimento foi extremada,
causando choque na sociedade conservadora brasileira, e o que se produziu tornou-se
ponto de partida para uma nova visão da modernidade, calcada nas “vanguardas
européias” – Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo, para citar
as principais. Os modernistas querem, primordialmente, libertar as amarras das artes –
plásticas, musicais, da dança ou literárias – do rígido conservadorismo e cânones que
encerrariam as composições em fôrmas estanques. Nesse rompimento, trazem temas
inusitados – os da modernidade urbana e industrial –, modos de expressão mais ao gosto
popular – registrando, principalmente, o falar cotidiano –, a sintetização nos
enunciados, antes eivados de adjetivação, o apreço pela paródia, recheando quaisquer
manifestações com humor, ironia e piada, além de vários outros recursos e artifícios que
pontuassem a sociedade moderna.
Oswald de Andrade, no seu culto ao que se pregava à época do surgimento do
Modernismo brasileiro – sendo ele um dos iniciadores e maiores incentivadores do
movimento –, explorou várias possibilidades, sendo dele um curtíssimo poema,
revelando a sintetização demandada pelos poetas da primeira fase:
AMOR
Humor
364
O procedimento lembra, de certa forma, o mesmo método sintetizador de Fernão da
Silveira quando compôs seu labirinto de palavras, valendo-se sobretudo dos adjetivos e
substantivos abstratos, como se viu naquele capítulo dedicado ao Coudel-mor. Um outro
procedimento que lembra a ludicidade de Fernão da Silveira é um poema de Oswald de
Andrade em que, criticando a colonização portuguesa, joga com números:
363
In: ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Ed. crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo
Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1987, p. 77.
364
In: ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. 2 ed. São Paulo: Globo, 2003. (Obras completas de Oswald
de Andrade), p. 55.
177
A europa curvou-se ante o Brasil
7 a 2
3 a 1
A injustiça de Cette
4 a 0
2 a 1
2 a 0
3 a 1
E meia dúzia na cabeça dos portugueses.
365
Relembre-se a propensão do Coudel-mor a usar os números em qualquer circunstância;
para Oswald de Andrade, os números serviram não só para brincar, mas para elaborar
uma das críticas que se tornaram essenciais no início do Modernismo: à colonização.
É necessário observar que, durante o Modernismo, as releituras da produção do
passado eram constantes, todas feitas à luz de uma nova concepção lingüística e formal,
sobre a qual declinarei comentar aqui. Mas cite-se, como exemplo, o longo poema de
Jorge de Lima, “Invenção de Orfeu”, em que, no Canto IX, relembra a tragédia de Inês
de Castro:
Permanência de Inês
Estavas, linda Inês, nunca em sossego
E por isso voltaste neste poema,
Louca, virgem Inês, engano cego,
Ó multípara Inês, sutil e extrema (...)
366
.
Esse tema, redivivo nas literaturas portuguesa e brasileira (foi comentada a sua
trajetória desde Garcia de Resende, depois em Camões e Bocage), renasce em pleno
Modernismo, na poeticidade de um autor considerado místico. Nesse seu longo poema,
o poeta serve-se de fragmentos de epopéias clássicas e bíblicas, utilizando uma nova
estrutura: a colagem, muito próxima do que pregava o Dadaísmo então em surgimento.
Ao lado de Jorge de Lima, um outro místico, Murilo Mendes, experimentou, durante
sua trajetória como poeta, diversas formas e temas. A ele pode ser alegada certa
precedência, dentro do Modernismo, da fase concretista da poesia brasileira. Nos versos
a seguir, usa um artifício já visto no Coudel-mor, por exemplo, e em Oswald de
Andrade, a da composição curta, sintética, montada também somente com uma palavra,
365
Idem, ibidem, p. 165.
366
Cf. LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1952, p. 347-353.
178
mas com ritmo poético tetrassilábico, revelando uma das várias pesquisas lingüísticas
que Murilo empreendeu:
Astronave
Astroneve
Astronive
Astronovo
Astronuvem
Astronável
367
Ou ainda, nessa mesma linha, mas agora com desmembramento de uma palavra para
criar duas:
Vaidade
Vai dado
Vai dedo
Vai Dido
Vai doido
Vai tudo
Vãidade
Vaidar
368
Esses versos sintéticos podem, como se fossem labirinto de palavras, ser declamados de
cima para baixo e deste para cima, à moda daquele labirinto medieval de Fernão da
Silveira estudado no Capítulo IV. No entanto, os versos de Murilo Mendes são mais
simples quanto à montagem; o que sobressai é sua propensão à experimentação
lingüística.
Aludiu-se aqui à espiritualidade de Murilo Mendes e Jorge de Lima,
principalmente após a conversão de ambos ao catolicismo, e esse estado de espírito
lembra, também, os poemas de Cecília Meireles. Eivados de musicalidade, a poetisa
imprime em muitos de seus versos o paralelismo característico da época trovadoresca,
estruturados por versos curtos, quase sempre as duas redondilhas apreciadas durante o
Quatrocentos peninsular. Recordem-se os redondilhos maiores, plenos de “pés
quebrados”, duas das grandes novidades do Cancioneiro resendiano, em “Amor em
Leonoreta”
369
, com tema centrado no romance Amadis de Gaula, da fase trovadoresca.
367
In: MENDES, Murilo. Convergência. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970, p. 199.
368
Idem, ibidem, p. 199.
369
Cf. MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 167-176.
179
Na fase considerada final do Modernismo, em 1956, paralelo ao surgimento do
Concretismo, João Cabral de Melo Neto publica um auto de Natal, à moda daqueles que
Gil Vicente, no interregno entre o Quatrocentos e o Quinhentos, lançou em Portugal,
mesclando linguagem poética com dramaturgia. A peça de João Cabral, “Morte e vida
severina”, alterna redondilhos maiores e menores, emulando as de Gil Vicente, trazendo
para a árida – severina – realidade do Nordeste brasileiro um tipo de composição
medieval. A peça-poesia mostra a trajetória do inconsolável Severino, que se retira para
o Recife na noite de Natal, quando nasce uma criança, também miserável, mas que dá
ao retirante suicida um novo alento, já que liga esse nascimento ao de Jesus, símbolo de
esperança. Além de a montagem ser primordialmente musical, devido aos redondilhos,
o auto de João Cabral traz momentos de música cantada, acompanhada de instrumentos,
o que, ainda uma vez, ressalta a ponte entre sua composição e aquelas do poeta
medieval português: os autos de Gil Vicente eram encenados com todos os aparatos de
teatralidade.
Em Portugal, nada foi diferente disso tudo o que se relatou sobre o Modernismo,
mas lá pôde-se sentir as mudanças com maior rapidez, uma vez que as revoluções
vanguardistas aconteciam na Europa – em Paris, Praga, Roma. Em 1917, poetas
modernistas portugueses realizam um “espetáculo futurista”, baseado no manifesto de
Marinetti, em que a velocidade, o uso de símbolos da Matemática e da Música, além da
destruição da sintaxe, para citar apenas alguns tópicos, avultam. Essa revolução pode-se
constatar, por exemplo, na longa composição de Mário de Sá-Carneiro “Manucure
370
”,
na qual alterna versos com símbolos e fontes linotípicas, vocábulos de diferentes
idiomas, e, com intensidade, a reprodução dos sons próprios da dinâmica da nova
sociedade com seus carros e máquinas. Fernando Pessoa rende-se também, nessa fase
inicial modernista, ao Futurismo. Observe-se um excerto da “Ode triunfal”, assinado
pelo heterônimo pessoano Álvaro de Campos: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas
elétricas da fábrica / Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a
beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. // Ó rodas, ó
engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno! / Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
371
”. A
370
Cf. SÁ-CARNEIRO, Mário de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995, p. 135.
371
Cf. PESSOA, Fernando. In: O eu profundo e outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.
104. No mesmo tom dessa poesia, cf. “Ode marítima”. Op. cit., p. 206.
180
característica comum nesses dois poetas, a da apropriação de temas apoéticos, foi
aludida quando se referiu aqui a várias composições do Cancioneiro, principalmente
com Fernão da Silveira.
Para finalizar esse rápido percurso por três séculos de Literatura, aquele tema a
que muito me referi neste trabalho, o do conflito do “eu” consigo mesmo – o “eu”
repartido, foi também explorado pelos poetas modernistas, tanto portugueses quanto
brasileiros. Relendo o tema, esses poetas compõem-no apropriado ao novo tempo,
mesclando experiências lingüísticas a um lirismo melancólico. É assim que, no poema
de Mário de Sá-Carneiro, “Dispersão”, o “eu-lírico”, tal qual em Sá de Miranda e
Bernardim Ribeiro
372
, vê-se perdido de si mesmo: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu
era labirinto / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim
373
”. O poeta registra,
nesta estrofe, uma alma melancólica, valendo-se de um vocábulo próprio desse
sentimento, a saudade, e um “eu” à procura de si mesmo, ressaltado pela palavra
“labirinto”. Outrossim, em “Indícios de ouro”, livro pleno de poemas cujo tema é o “eu”
e suas várias facetas, Sá-Carneiro trata agora de um “eu” que se perde na ponte que vai
dele ao Outro:
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro
374
.
Nesse novo “eu” em conflito, a perda de si mesmo parece estar no papel que assume, o
de pilar que sustenta o tédio nos relacionamentos com o Outro. O poeta brasileiro
Vinícius de Moraes vai alargar ainda mais esse “eu” conflituoso em “Poética”. Nele, o
“eu-lírico” perde-se no espaço e no tempo:
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
372
Ver notas (250) e (251).
373
SÁ-CARNEIRO, op. cit., p. 53 (61).
374
Idem, ibidem, p. 82. Esta poesia leva o número 7 por título.
181
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
Meu tempo é quando
375
Todos esses “eus” perdidos aqui referenciados completam-se e complementam-se, se se
observá-los pelas mãos que os enunciam: o poeta. E nenhum melhor expressou a
condição deles, poetas, quando cantam como devem ser: “O poeta é um fingidor. /
Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente
376
”.
Este “eu” poético pessoano, parece, nunca se achará, já que sua função é fingir.
A longa relação a que me ative aqui pode ter sido exaustiva. A intenção não era
outra senão esta – a de ilustração, para que não se deixe vácuo tão distante entre as
estéticas a que me propus empreender neste ensaio. Feito isso, procurarei ligar o
Concretismo e o Experimentalismo às produções já desenvolvidas na recolha de
Resende, estando ciente de que os poetas dessas duas fases valeram-se do Barroco como
ponte para aquela do fim do medievo.
5.5. CONCRETISMO/EXPERIMENTALISMO: UM NOVO DIÁLOGO COM O CANCIONEIRO
GERAL
Como a preocupação primeira deste estudo é observar por que o Cancioneiro
Geral tem sido considerado inspirador de estilos literários futuros, neste capítulo, serão
relembrados alguns dos fatos e conceitos sobre o Concretismo e o Experimentalismo. A
finalidade é lançar um olhar mais atento a alguns poemas dessas fases e, neles, verificar
a marca do Cancioneiro de Resende.
Comente-se resumidamente sobre o Concretismo. O choque
377
que causou seu
surgimento no Brasil, em 1952, está ligado mais ao fato de os seus fundadores
375
In: MORAES, Vinícius de. Nova antologia poética. Sel. e Org. de Antônio Cicero et al. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p. 156.
376
PESSOA, op. cit., p. 198. A propósito, o título dessa poesia é elucidativo quanto ao tema do “eu”
perdido, repartido: “Autopsicografia”.
377
No próprio manifesto concretista, os poetas novos declaram: “contra a poesia de expressão, subjetiva.
por uma poesia de criação, objetiva. concreta, substantiva. a idéia dos inventores, de ezra pound”. (cf.
CAMPOS, 1975, p. 41). E mais à frente: “a poesia concreta acaba com o símbolo, o mito, com o mistério.
o mais lúcido trabalho intelectual para a intuição mais clara. acabar com as alusões. com os formalismos
nirvânicos da poesia pura. a beleza ativa, não para a contemplação. para nutrir o impulso, pound. no
182
proporem uma desconstrução completa do lirismo, do que à importância exacerbada que
deram ao signo, nomeadamente à sua parte significante. Essa importância revela-se no
próprio livro-manifesto:
a poesia concreta começa por assumir uma responsabilidade total
perante a linguagem: aceitando o pressuposto do idioma histórico
como núcleo indispensável de comunicação, recusa-se a absorver as
palavras como meros veículos indiferentes, sem vida sem
personalidade sem história – túmulos-tabus com que a convenção
insiste em sepultar a idéia.
o poeta concreto não volta a face às palavras, não lhes lança olhares
oblíquos: vai direto ao seu centro, para viver e vivificar a sua
facticidade
378
.
O que realmente é inovador no movimento, assim como acontece em todas as
estéticas novas, mas que, entretanto, não se percebe de imediato, é como passa a ser
vista e trabalhada a palavra
379
. Os concretistas vêem e divulgam uma nova palavra, em
que o significante tem valor absoluto
380
. Esse estilo elege como veículo de expressão os
mais modernos recursos de divulgação impressa, o que permite ao poeta dispor seu
objeto graficamente, de acordo com o espaço que quer explorar
381
. Terá menor
importância, para eles, o fundo estritamente semântico da poesia que propõem;
valorizar-se-á o impacto que o significante provoca nos olhos do destinatário e, quando
expressada oralmente, a musicalidade excepcional que o significante causará em quem a
ouve
382
. O efeito “verbivocovisual
383
” fecha-se, então, e concentra nesse processo a
preocupação primeira do Concretismo: o trabalho com a palavra.
máximo: ser raro e claro, como disse o último fernando pessoa. criar problemas justos e resolvê-los em
termos de linguagem sensível. (Idem, ibidem, p. 42).
378
Idem, ibidem, p. 45.
379
“DADOS: a palavra tem uma dimensão GRÁFICO-ESPACIAL / uma dimensão ACÚSTICO-ORAL /
uma dimensão CONTEUDÍSTICA” (Idem, ibidem, p. 46).
380
“uma NOVA ARTE de expressão exige uma ótica, uma acústica, uma sintaxe, morfologia e léxico
(revisados a partir do próprio fonema)”. (Idem, ibidem, p. 47).
381
“PROGRAMA: o POEMA CONCRETO aspira a ser: composição de elementos básicos da linguagem,
organizados ótico-acusticamente no espaço gráfico por fatores de proximidade e semelhança, como uma
espécie de ideograma para uma dada emoção, visando à apresentação direta – presentificação – do
objeto”. (Idem, ibidem, p. 47).
382
“Sob um certo ângulo a experiência tem raízes na música. Partem ainda uma vez de Mallarmé os
primeiros lampejos esclarecedores: ‘Acrescentar que desse emprego a nu do pensamento com retiradas,
prolongamentos, fugas, ou seu próprio desenho resulta, para quem queira ler em voz alta, uma
‘partitura’...” (Idem, ibidem, 1975, p. 49).
383
Este é o termo usado por James Joyce para caracterizar uma estrutura ótico (visual)-sonora (voco) e,
ao mesmo tempo, geradora de idéia (verbi). Vide p. 81.
183
Seguindo as tendências do Concretismo, nasce em Portugal o Movimento
Experimentalista, em 1964, no primeiro caderno da revista Poesia Experimental. Ao
mesmo tempo em que, para os experimentalistas, a palavra tem valor substantivo – a
“palavra-objeto”, como a definem –, ela é também um dos outros muitos meios de
comunicação poética. Ao lado de outras formas modernas de expressão da poesia –
fônica, visual e gestual –, a palavra poderá ser acessória ou mesmo abolida.
Contudo, como escreve um dos fundadores do movimento, Melo e Castro,
para o [poeta] experimental as palavras são os ‘materiais, instrumentos e
meio de comunicação’, não só de si próprias, como aventura da descoberta
de novos campos semânticos. Dotando as palavras de plasticidade
operacional ou seja de inventividade prática, determinar-se-ão os novos
modelos lingüísticos mais perto das necessidades reais de uma comunicação
dinâmica e de acordo com a complexidade estrutural das relações entre os
homens e os homens e entre os homens e as coisas
384
.
Percebe-se que é a palavra, enquanto signo, que regerá a manifestação estética
dos dois movimentos, Concretismo e Experimentalismo. Entretanto, enquanto a Poesia
Concreta leva ao extremo o culto à parte significante do signo, a Poesia Experimental
admite que, no plano do significado, o signo deverá ser mais explorado, perscrutando
todos os campos semânticos possíveis. Uma clara demonstração disso é o ressurgimento
de muitos dos valores estruturais do Barroco. Sobre isso, declara ainda Melo e Castro:
ao basear-se predominantemente numa operação gramatical para desencadear
a inovação semântica, a Poesia Barroca (e seus antecedentes portugueses de
Garcia de Resende a Camões) deve ser considerada como o verdadeiro
fundamento do atual Experimentalismo Polivalente. (Grifos meus)
385
.
Está, dessa forma, nas palavras do próprio estudioso, a convalidação de que as novas
384
MELO E CASTRO, op. cit., 1973, p. 13.
385
Idem, ibidem, p. 100.
184
estéticas se valem do passado e, no caso específico do material aqui apresentado – o do
Cancioneiro Geral –, a evidência de seu papel embrionário.
Disso tudo, vê-se que o novo traz, em sua essência a marca do antigo. Já na
Idade Média, e, principalmente no Cancioneiro Geral, podem-se encontrar elementos
daquilo que seria explorado de forma inovadora pelos renascentistas, pelos poetas
barrocos e, indo mais além, já em meados do século XX, pelos concretistas brasileiros e
experimentalistas portugueses.
Os poetas palacianos tiveram acesso a obras greco-romanas e delas absorveram
certos tipos de composição, como o labirinto, quanto à forma, e ainda certos elementos
conceptistas, quanto ao conteúdo, apenas para citar alguns exemplos. No Barroco, esses
elementos passam a ser próprios de toda a produção setecentista e elemento mesmo da
visão conflituosa do homem de então.
No século XX, os poetas concretistas e experimentalistas tentam dar nova
expressão a formas já cultivadas nos movimentos passados
386
. Essas formas são levadas
ao leitor hodierno, para que as deglutam e a elas dêem significado, conforme seu nível
interpretante. É proposta das poesias modernas concretistas e experimentalistas que surja
um diálogo entre o texto e o leitor
387
, daí que a palavra, como significante, seja cada vez
386
Haroldo de Campos declara no manifesto concretista: “Pierre Boulez, em conversa com Décio
Pignatari, manifestou o seu desinteresse pela obra de arte ‘perfeita’, ‘clássica’, do ‘tipo diamante’, e
enunciou a sua concepção da obra de arte aberta, como um ‘barroco moderno’. Talvez esse neo-barroco,
que poderá corresponder intrinsicamente às necessidades culturmorfológicas da expressão artística
contemporânea, atemorize, por sua simples evocação, os espíritos remansosos, que amam a fixidez das
soluções convencionadas” (CAMPOS, op. cit., 1975, p. 33). Na declaração, percebe-se o que se veio
tentando demonstrar: pela tradição, os poetas recriam, renovam e, conseqüentemente, inovam. O sentido
da citação é, sem dúvida, mais amplo, principalmente se se considerar o conceito de “obra de arte aberta”,
conceito a que se dedicou estudar, por exemplo, Umberto Eco. No entanto, por mais que se relegue,
também os concretistas e experimentalistas tomaram da tradição os caminhos para criarem uma nova
poética.
387
Assim se manifesta Ana Hatherly, quanto à postura do leitor da nova poesia: “A resultante mais
imediata, e talvez a mais polémica das propostas da Poesia Concreta e, por extensão, da Poesia
Experimental, diz respeito à mudança de perspectiva exigida ao leitor pelos novos textos produzidos” (In:
Experimentalismo, Barroco e Neobarroco. In: A casa das musas. Uma releitura crítica da tradição.
Lisboa: Editorial Estampa, 1995. [Teoria das Artes, no. 15], p. 189). E. M. de Melo e Castro diz: “Para o
leitor (utente) do poema a questão será naturalmente de descoberta e aprendizagem da utilização do
código específico, próprio dos materiais utilizados pelo poeta. E a pergunta é: como lerei eu este poema?”
(A poesia experimental portuguesa. Revista do Centro de Estudos Portugueses. Dossiê: Poesia em
Língua Portuguesa. São Paulo, no. 1, 1998, p. 23). Registre-se que essas afirmações dos dois críticos
portugueses valem para qualquer código de época – veja-se, somente como exemplo, as várias
possibilidades de leitura que o labirinto de Silveira enseja a qualquer um, em qualquer época.
185
mais escoimada de significados.
É nesse nível de produção que se mesclam o novo e o antigo nas criações
poéticas do Concretismo e do Experimentalismo. Se os temas se sofisticaram, dada a
evolução tecnológica a que chegou o homem atual, as antigas formas são exploradas e
readaptadas ao novo gosto estético.
E é assim que a forma labiríntica ganha sempre novas possibilidades quando
explorado o espaço em branco do papel. Em Fernão da Silveira, encontra-se uma forma
inovadora na disposição de seu poema dedicado à senhora de sua devoção – “Senhora,
discreta, graciosa, eicelente” –, em fins do século XV. No poema Sim, de Augusto de
Campos, pode-se agora vislumbrar uma outra disposição do poema labiríntico e uma
outra possibilidade de múltiplas leituras, pois permite ao utente formar diferentes
palavras pela disposição longitudinal com que o poeta montou sua composição:
Sim
sim
poeta
infin
itesi
(tmese)
mal
(em tese)
existe
e se mani-
(ainda)
festa
nesta
ani
(triste)
mal
espécie
que lhe é
funesta
se
tem
fome
come
fama
como
cama
leão
186
come
ar
al
moço
antes
doce
do
intes
tino
fino
ao
gr
osso
mais
baixo
que
o
lixeiro
que
cheira
a
lixo
mas
ao
menos
tem
cheiro
o
poeta
lagartixa
no
escuro
bicho
inodoro
e
solitário
em
seu
labor
atório
sem
sol
ou
sal
187
ário
388
À primeira vista, a única identidade entre esse poema de Augusto de Campos e
aquele de Fernão da Silveira é o método de montagem dos versos. Mas o confronto
entre os dois poemas permite, ainda, identificar como intenção dos poetas fazer
brincadeiras com as palavras, ou seja, ambos prestigiam ao máximo a atividade lúdica
da poesia. Fernão da Silveira, pela leitura múltipla; Augusto de Campos, porque a
multiplicidade se dá não só pela possibilidade das várias leituras, mas também por se
formarem novas palavras e alterar, ou acrescentar, sentidos ao poema. Vejam-se alguns
dos jogos possíveis, na primeira estrofe, lendo-se os versos que estão entre parênteses:
tmese, em tese, ainda triste. Ressalte-se que a palavra “tmese”
389
, de certa forma,
materializa o próprio poema, pois advinda do grego tmesis, significa “corte”, que, em
termos gramaticais, é o fenômeno da mesóclise – Campos recheia seu labirinto de
palavras cortadas que, emendadas a outras, adquirem vários significados. Há ainda
arremedos de rima, apesar de no Concretismo se rejeitarem recursos do lirismo:
sim/infin, mal/mal, itesi/em tese, festa/nesta/funesta. O poeta explora, ainda, o
recurso da paronomásia, elemento quase que básico da Poesia Concreta, pelas
possibilidades que fornece de criação de novos termos e, principalmente, pela
ambigüidade advinda do contexto: a do papel do poeta, que é o de ser infinitesimal.
A ludicidade do poema de Augusto de Campos estende-se ainda à sonoridade,
explorando a aliteração, pela repetição do som sibilante, iniciado pelo título da
composição: Sim, notadamente em espécie, se, moço, doce, osso, solitário, seu, sem,
sol, sal.
No nível da significação, observem-se algumas possibilidades de leitura. Na
terceira estrofe, os trocadilhos se dão nos campos semânticos da alimentação e do corpo
humano, ou mesmo da polidez de um rapaz: “(al)moço”, “doce”, “intestino fino e
388
In: Jornal de Poesia, [s.d.]. Disponível em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/ac15.html> Acesso em
23 nov. 2000.
389
Fonda comenta, e exemplifica, sobre a tmese em Quintiliano (De institutione oratoria X, 1, 29) que as
necessidades da métrica obrigavam, às vezes a “alterar certas palavras, alongando-as, contraindo-as ou
separando-as” (Op. cit., 1985, p. 112). Veja-se o exemplo clássico de Virgílio (Georg. III, 381):
HyperboreoSEPTEM subiectaTRIONI (Debaixo da hiperbórea Ursa menor). A palavra SEPTENTRIONI
está cortada por tmese, uma vez que subiecta foi colocada no meio daquela.
Heinrich Lausberg constata
que a tmese é “usual na poesia”, definindo-a como “um metaplasmo gramatical e consiste na separação
de uma palavra composta por meio da interposição de outros membros da frase.” (Op. cit., p. 204).
188
grosso”; “moço”, “doce”, “do fino ao grosso”. Note-se que, com essa disposição do
poema e pelo fenômeno da tmese, muitos jogos de palavras são permitidos, dentro de
um mesmo campo semântico, como em gr/osso: gr poderá significar abreviatura de
grama e osso, aquilo que deverá ser pesado
390
. Se se juntarem os dois versos, forma-se
grosso, que poderá se estender ao campo da etiqueta, quando se toma o sentido
conotativo da palavra, referindo-se ao “moço” – que, no caso, não seria polido.
É claro que a palavra, como é tratada pelo poeta concretista, inspira essa
pluralidade de leituras, e isso dá ao leitor alternativas de jogos que ele mesmo irá
montar, de acordo com seu nível de inventividade.
É necessário, ainda, fazer uma sucinta observação quanto à forma desse labirinto
concretista, montado em estrutura “lagartixa”, cujo termo aparece no corpo do próprio
poema. No Capítulo III, fez-se alusão a uma composição do provençal Cerveri de
Girona, cuja disposição gráfica tem identidade à dessa composição de Campos. Isso
atesta, mais uma vez, o parecer de que a inovação se dá pela renovação do tradicional,
assim como visto nas amostras aqui trazidas.
Analisado um labirinto do concretismo brasileiro, veja-se agora como o poeta
experimentalista desenvolveu o seu; poderá ser percebida certa identidade gráfica entre
o de Melo e Castro, o de Fernão da Silveira e ainda o de Camões, em que louva e
deslouva sua dama.
O poeta vê-se diante da página em branco, conhece a ductilidade das palavras
enquanto signo e quer com elas armar seu brinquedo. Cria, então, desenhos verbais, ao
dispor as palavras como numa montagem, para que boca, olhos e ouvidos se juntem e
participem do jogo lúdico dos signos. Isso foi visto nos labirintos enunciados nos
capítulos precedentes. Melo e Castro aproveita a forma labiríntica e a resgata do
Barroco, dialoga com essa forma tão antiga, acrescentando, agora, elementos do
390
A abreviatura de grama é g; as possibilidades de jogos, contudo, permitem ver em gr a abreviatura
popularizada para aquela medida de peso.
189
moderno, no poema “Penso lago digo agora”
391
:
penso lago digo agora
penso mão recito dor
olho água cheiro pele
peso fluídos
392
com rigor
sinto aroma vejo pedras
tomo o tempo bebo cor
faço lume duma dor
rasgo ossos queimo flores
durmo alto meu segredo
penso casa a luz é branca
sinto um dedo quebro asa
penso sinto
vejo bebo
morro cedo
393
Há, nesse poema, pelo menos quatro possibilidades de leitura: verticalmente;
horizontalmente; de baixo para cima; pode-se lê-lo, também, como se fossem dois
sonetos em miniatura, dispostos lado a lado e independentes, como indica Maria dos
Prazeres Gomes
394
. O poeta resgata dos tradicionais labirintos as redondilhas; dá
importância aos verbos de sentido; toma a máxima “penso, logo existo” e a desconstrói,
sem qualquer preocupação filosófica e enfatiza o jogo sonoro que provoca a troca de
letras logo/lago. Se o leitor optar por ver algo de filosófico, vai ver que o pragmatismo
impera na máxima de Melo e Castro: penso lago, digo agora. Faz aqui uma
intertextualidade com a máxima cartesiana do “penso, logo existo”. Pode-se dizer que
recriou na sua poesia experimentalista o calembur tão decantado pelos palacianos.
391
Quanto ao apreço dos experimentalistas pelo Barroco, diz Ana Hatherly: “Desde o início, além do
Concretismo e da Arte Experimental, os Experimentalistas portugueses estavam interessados na tradição
maneirista e barroca. No primeiro número da Poesia Experimental, sua Revista Manifesto, ao lado de
vanguardistas de várias proveniências, havia obras do poeta barroco alemão Quirinus Kuhlman e de Luís
de Camões, que viria a ser uma espécie de santo padroeiro [dos experimentalistas].” (Grifos da autora).
(Op. cit. 1995, p. 199).
392
Sic.
393
Apud GOMES, op. cit., 1993, p. 86.
394
GOMES, op. cit., 1993, p. 86.
190
Opõe o poeta aos verbos de sentido, que são desencadeadores do fato poético
(“penso”, “sinto”), os verbos de ação (“tomo”, “faço”, “rasgo”, etc.), para terminar com
o verbo “morrer’, encerrando a ação do poetar, do pensar e do sentir.
Se traz de volta uma composição tão cara aos poetas barrocos, quanto à forma, o
poeta o faz, entretanto, abandonando as maiúsculas, pois o texto surge como que num
fragmento, e uma total ausência de rimas, o que marca sua modernidade
395
.
A exemplo do que se pontuou na composição labiríntica de Augusto de Campos,
apenas um comentário quanto à disposição gráfica dessa peça de Melo e Castro: ela
remete ao labirinto de Fernão da Silveira, tanto pela seqüência estrutural – duas colunas
de redondilhos –, quanto pelas possibilidades de múltiplas leituras. Apesar de se ver no
poema medieval de Silveira um labirinto de palavras, no de Melo e Castro há o de
frases, ambos, porém, com preocupações visuais.
Nessas duas peças de poesia moderna, o foco centralizou-se na forma,
verificando certa identidade entre elas e as composições de Fernão da Silveira e seus
pares. Quanto à temática, parece interessante verificar o trabalho da palavra numa
composição pornoerótica concretista e, com ela, fazer um paralelo com as produções
satíricas do Coudel-mor.
Não há dúvida de que ambos movimentos concretista e experimentalista
preocupam-se, precipuamente, com os aspectos materiais do signo e com a estrutura que
se pode formar, conforme o ineditismo de seu uso. Mas o tema jamais poderia estar
ausente no poeta moderno que, jogado em meio à evolução das técnicas científicas da
segunda metade do século XX, quer também tudo explorar e sobre tudo poetar.
Em Fernão da Silveira – e nos poetas contemporâneos seus – viu-se que sua
verve verborrágica não media palavras para criar poemas pornográficos, como aquele
em que faz ode ao sexo de D. Lucrécia. Augusto de Campos, em “Esperança oh
magna”, também não medirá palavras para expressar o pornográfico. Pode-se,
395
Maria dos Prazeres Gomes escreve que, quanto ao conteúdo, dois eixos semânticos são recobrados
nesse poema: o eixo das ações internas (pensar, sentir) e o das ações externas (olhar, pesar, tomar, etc.). E
acrescenta: “o jogo léxico de concreto/abstrato (lago/agora, aroma/pedra, tempo/cor) põe-se a serviço
dessa mesma dinâmica e dessa mesma inquietação semântico-formal que habita o texto”. Ressalte-se que
a autora faz um longo estudo desse poema de Melo e Castro. (Op. cit., 1993, p. 86).
191
entretanto, verificar que, se Silveira é explícito nas suas intenções, Augusto de Campos
é absolutamente sutil:
Esperança oh magna
cadela
regina com fome
que abraças o esqueleto no corpo
de um espantoso noivo
taciturno e apoiado em seu anel.
Oh aranha esperança
aranha esperança ar
anha esperança
treva as coxas grand’abertas
e uma pequena relva
– e ali deixar nossos pêlos,
Magros joelhos.
Descansa o ventre esperança com um peixe
insinuoso entre as pernas desenrola
a sempiterna seda sobre a seda
de uma coxa que cresce (eu poro eu pele)
espiral esperança granda granda.
O poema pode ser dividido em três partes, não em estrofes, já que o poeta não
configurou sua peça usando a divisão clássica da estrutura poética. As três divisões
podem ser determinadas pelos pontos finais.
Na primeira parte, que vai de “Esperança oh magna” até “taciturno e apoiado em
seu anel”, há uma introdução, uma apresentação do sujeito do poema. O título, repetido
no primeiro verso, remete a um assunto clássico: a magnitude da esperança. Acresce ao
conteúdo um recurso formal tão estimado pela poesia lírica clássica, a interjeição: oh,
denotando um diálogo raro nesse tipo de poesia moderna. Entretanto, toda a nobreza do
primeiro verso decai no segundo: cadela derruba a magnitude da esperança e esta passa
a ser objeto de desprezo, desgosto, se se tomar a palavra pelo seu sentido figurado de
prostituta.
No terceiro verso, Augusto de Campos retorna ao clássico: regina não remete ao
nome de uma pessoa, mas retoma seu significado original do latim: rainha. E essa
rainha, que é, na verdade, a esperança, abraça “o esqueleto no corpo / de um espantoso
noivo / taciturno e apoiado em seu anel”. O poeta reescreve, de forma moderna, a
máxima popular “a esperança é a última que morre”, tratando-a de forma irônica, pois a
esperança quer unir-se ao seu noivo – a vida – até que ambos expirem.
192
Na segunda parte, que se estende de “Oh aranha esperança” até “Magros
joelhos”, a marcação repetida das palavras e de partes delas dá a sensação de arfagem,
que remete ao ato sexual e, nos quatro últimos versos dessa parte, a alusão aos órgãos
sexuais e posição do ato.
Na última parte, de “Descansa o ventre esperança com um peixe” até “espiral
esperança granda granda”, o resultado do ato é o descanso, após o embatimento de dois
corpos, ressaltado pela conotação de leveza que inspiram as palavras: “descansa”,
“peixe”, “seda”, “espiral”, “esperança”.
O resultado da experimentação concretista, aliando sons, palavras-chave e
metáforas, permite que o utente, dependendo de seu desempenho interpretativo ou
lúdico, entre no jogo de montagens proposto pelo poeta. Aí centra-se a diferença entre a
explicitação do poeta palaciano, Fernão da Silveira, e a sutileza e trabalho com o
significante que faz o poeta concretista Augusto de Campos: nas trovas do Coudel-mor
dedicadas ao sexo de D. Lucrécia, esmera-se o poeta, como visto em 4.2., em descrever
impudicamente as partes e funções daquele órgão; neste seu poema, Campos atém-se à
citação das partes e do ato sexual, sem se prender a detalhes de obscenidade.
Para encerrar, tentar-se-á verificar alguns exemplos dessa nova poesia,
principalmente em seus recursos gráfico-visuais e, com isso, se há uma ligação entre ela
e a produção do Cancioneiro Geral.
Conforme a criatividade do poeta moderno, ele conferirá à palavra, pela sua
disposição, a possibilidade de representar o objeto de forma a que a imagem do poema
seja o próprio ícone da palavra. Utilizando-se desse meio, o poeta traz aos olhos do
leitor a essência significativa da palavra-signo. O poeta experimentalista Melo e Castro,
por exemplo, no seu poema “Pêndulo”, faz com que a montagem de cada verso de sua
poesia visual remeta o leitor à própria dinâmica do significado da palavra “pêndulo”,
movimento de balanço. Flagra, entretanto, apenas parte daquilo que o olhar capta no
movimento pendular: um pêndulo sempre fará um movimento de 180
o
; o poeta registra
193
apenas 90
o
, enfatizando sua ascensão à direita, partindo da lentidão inicial ao ápice.
Visualize-se a composição
396
:
O mesmo ocorre, por exemplo, com o poema “Velocidade”, do poeta concretista
brasileiro Ronaldo Azeredo, amplamente divulgado em antologias didáticas. Nele,
observa-se o jogo lúdico das letras e sua corrida, partindo do ponto-morto V até a
completa – e veloz – formação da palavra velocidade. Unindo, visualmente, significante
e significado, ambos poemas, seguindo os preceitos da Poesia Concreta, visam a
concretizar a dinâmica do objeto figurado
397
.
Traçando uma linha reta, desde Fernão da Silveira, passando por Camões e pelos
autores barrocos, chegando aos poetas concretistas e experimentalistas, percebe-se que
o ponto comum a todas as obras apresentadas aqui é a originalidade com que cada
artista maneja seu material de trabalho. No antigo medievo, a inovação de Silveira; na
Renascença, a genialidade de Camões; no Concretismo e no Experimentalismo, a
exploração da diversidade técnica, que supre o artista de recursos que vão além das
396
Disponível em <http://www.instituto-camoes.pt/bases/literatura/experimentlsm.htm>.Acesso em
24.nov.2000.
397
Quanto a isso, diz Haroldo de Campos: “a POESIA CONCRETA é a linguagem adequada à mente
criativa contemporânea / permite a comunicação em seu grau mais rápido / prefigura para o poema uma
reintegração na vida cotidiana semelhante à que o BAUHAUS propiciou às artes visuais: quer como
veículo de propaganda comercial (jornais, cartazes, TV, cinema, etc.), quer como objeto de pura fruição
(funcionando na arquitetura, p. ex.), com campo de possibilidades análogo ao objeto plástico, substitui o
mágico, o místico e o ‘maudit’ pelo ÚTIL”. (Op. cit., 1975, p. 47-48).
194
palavras. Tudo orientado pela inventividade.
Hoje, os novos artistas apropriam-se de recursos que vão do “design” gráfico aos
mais avançados, os da Informática. A intersemioticidade sugere ao artista mais e mais
possibilidades de sofisticar seu trabalho e multiplicar seu diálogo com o Outro. Aliar a
palavra à figura, fazer que a imagem verbal se concretize e o objeto submerja, parece
uma das possibilidades de sofisticação a que chegou o artista moderno.
Em “Olha”, por exemplo, Millôr Fernandes dialoga com a antiga forma oriental
de poesia, o “haicai”, apropria-se do figurativo e une linguagem verbal à não-verbal
incitando o leitor a interpretar seu poema verbi-visual. Neste “haicai” estilizado, pois
não obedece à composição tradicional – dois versos de cinco sílabas e um de sete (o
segundo) –, Millôr, usando o imperativo, pede que o leitor olhe a formação da chuva
entre os pingos, não só usando o significante, mas também desenhando a figura pingo e
seu conjunto, a chuva. Brinca com os olhos do leitor ao pedir-lhe que, lendo, assista
também ao resultado concreto de seu poema
398
:
398
A poesia-haicai reproduzida aqui encontra-se em FERNANDES, Millôr. Hai-kais. Porto Alegre:
L&PM, 1999. (Coleção L&PM/Pocket), p. 7. A propósito desses novos poetas – que incluem os
concretistas, experimentalistas e a “nova vanguarda”, cumpre ver o que comenta Antônio Candido:
“Lendo-os, sentimos às vezes como pode ficar tênue, quase impalpável, a fronteira entre poesia e piada,
trocadilho, jogo gratuito, associação livre, charada, caricatura, propaganda, representação visual. Mas de
qualquer maneira esta poesia de vanguarda representa de maneira viva o passeio pelo fio da navalha, que
está sendo em nosso tempo o destino da arte e da literatura, envolvidas no turbilhão da mudança rápida
de práticas e valores”. (MELLO E SOUZA, Antonio Candido. A Literatura Brasileira em 1972. Arte em
Revista, n. 1, ano I, São Paulo, jan-mar/79. p. 22). Acrescente-se que, se a arte e literatura novas
trouxerem práticas e valores que cultuem a estética humanística, terão em parte cumprido sua missão.
195
Dá ao leitor, assim, o poeta-cartunista, mais um exemplo do que seja
inventividade, que será sempre explorada, enquanto for ele criativo e hábil na
manipulação de todos os recursos que a modernidade lhe oferece.
Na curta trajetória deste capítulo, objetivou-se lançar olhos àquilo que foram
considerados vôos ousados de forma e conteúdo, ampliando as possibilidades lançadas
pelo Cancioneiro de Resende. Ao se comparar Fernão da Silveira com seus
contemporâneos, listaram-se acrósticos e poemas que traziam registro da ludicidade
característica dos poetas paçãos. Registrou-se o surgimento, ainda tímido, da medida
nova e da releitura da tradição oral que Garcia de Resende promoveu sobre o tema de
Inês de Castro e seu trágico destino, o que forneceu para os novos movimentos sempre
leituras distintas – como Camões, em Os Lusíadas, Bocage, no Arcadismo, e ainda
Jorge de Lima durante o Modernismo brasileiro. Os palacianos ainda desenvolvem um
tema que será no Renascimento e no Barroco melhor desenvolvido, o “petrarquismo”,
uma visão mais realista da coita de amor e da mulher, como se pôde demonstrar, em
composições do Coudel-mor e do Conde do Vimioso.
Com a mostra de poemas de Camões, no Renascimento, e de alguns poetas do
Barroco português, pôde-se observar os frutos que o Cancioneiro Geral plantou
germinado em dois momentos estético-literários que marcaram o advento da Era
Moderna. Esses frutos foram realmente profícuos, pois atravessaram o oceano e fizeram
nascer em Gregório de Matos, no Brasil, muito do que já praticavam os poetas
palacianos, principalmente quanto à sátira e à irregularidade composicional.
No intervalo que separa o Seiscentos português do Modernismo nascido no
século XX, pôde-se perceber alguns resquícios da produção dos poetas palacianos: no
Arcadismo, a recorrência de Bocage a dois temas surgidos no Cancioneiro de Resende:
o de Inês de Castro e o do “eu” repartido. No Romantismo, aludiu-se à irregularidade
métrica dos românticos, a exemplo do que já faziam os palacianos, bem como o
desenvolvimento de um tema tão próprio não só do final do medievo, mas de toda a sua
milenar cultura: o amor. No Parnasianismo, o amor pela forma, assim como o fizeram
os palacianos quinhentistas.
Parece que o Modernismo, no curtíssimo relato deste capítulo, também valeu-se
de muito do que foi criado pelos poetas de Quatrocentos e início de Quinhentos.
196
Retonaram temas e formas nascidos na Idade Média, principalmente na sua fase final,
que renascem e dão motivo a qualquer poeta criativo renovar a tradição.
E, finalmente, ao se escolher Fernão da Silveira como representante dos poetas
palacianos e sua criação poética, tinha-se a intenção de mostrar o elo que une vários
estilos literários: a inventividade. Pôde-se trazer aqui uma coletânea de labirintos,
brinquedos de palavras e sons e, também, diversificação da mesma temática sob os
olhos de cada momento cultural. A cada reinvenção, aprende-se que o novo exige mais
e mais sofisticação. Nas poesias concretistas e experimentalistas, a sofisticação se
pautará pela tecnologia dos meios de comunicação modernos. A essência desses meios
está na dinâmica, que rege um mundo em evolução intensa, constante e ininterrupta.
Esses novos poetas trarão para o papel a imagética da dinâmica, colocando o signo o
mais próximo possível do objeto que ele representa. Não basta desenhar, pintar o objeto
– esse não é o campo do poeta –, é preciso que a própria palavra remeta o destinatário
àquele, sem representá-lo de forma figurativa. O desafio identifica-se ao que
enfrentaram os poetas palacianos quando, desligada da música instrumental, a poesia
deveria revelar musicalidade através da própria palavra.
197
CONCLUSÃO
A cultura medieval tem o sentido da
inovação, mas procura escondê-la sob as
vestes da repetição (ao contrário da
cultura moderna, que finge inovar mesmo
quando repete)
399
.
Umberto Eco
A tradição viva e moderna. Nessa
acepção, quanto mais moderno, mais
tradicional, mais parente da tradição
válida, onde quer que ela se encontre
400
.
Haroldo de Campos
A obra de Fernão da Silveira, assim como a dos outros poetas palacianos que
participam do Cancioneiro Geral, é sempre vista como parte de um conjunto
indissolúvel. Fora daquela compilação elaborada por Garcia de Resende, cada poeta não
teria vida própria? Não parece uma visão adequada para a análise literária essa
constante associação contextualizadora dos poetas palacianos somente ao seu momento
histórico – transformando a obra de Resende material único da sociologia da poética. A
perscrutação mais acentuada da produção de cada um desses participantes do
Cancioneiro urge; o estudo de cada um deles na imanência de sua obra traria sensível
contribuição à exegese do fato literário.
Alguns autores defendem essa necessidade de se estudar mais a fundo e
isoladamente aqueles poetas que, de forma revolucionária, levaram ao máximo a
estética literária, em meio à maioria extasiante que atua no conjunto. O crítico literário
português Costa Pimpão, por exemplo, cuja opinião foi registrada na epígrafe
introdutória deste estudo, já alertava, nos anos 40 do século passado, para essa urgência
em estudar os poetas do Cancioneiro “na sua personalidade poética” e não “como
parcelas de um todo”
401
. Reforça esse parecer Cristina de Almeida Ribeiro, outra
399
Apud MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros & VIEIRA, Yara Frateschi. A estética medieval.
Cotia: Ed. Íbis, 2003, p. 47.
400
In: CAMPOS, op. cit. 1975, p.154.
401
COSTA PIMPÃO, Álvaro Júlio. Poetas do Cancioneiro Geral. Lisboa: Livraria Clássica Editora
1942. Colecção Clássicos Portugueses, trechos escolhidos, séculos XIII e XV – Poesia, p. 7.
especialista no Cancioneiro Geral: “Importa (...) explorar potencialidades expressivas e
exibir, no interior de um sistema de regras estritas, o talento ou a arte que permitem a
originalidade. Um evidente excesso de formalização, ao mesmo tempo que denuncia a
poesia como parte de um ritual, permite aos poetas inovarem no seio da tradição.”
402
Ao escolher Fernão da Silveira, poeta e coudel-mor do Paço quatrocentista
português, tinha por objetivo – mais do que satisfazer uma lacuna a que aludem os
críticos e estudiosos – não só isolar um dos participantes mais ativos dos serões áulico-
poéticos, nos quais a grande maioria das peças foi divulgada antes de integrarem a
antologia de Garcia de Resende, demonstrar por que o Cancioneiro Geral é
reverenciado como fonte das novas futuras estéticas literárias. Para as composições nele
publicadas serem tachadas de obras visionárias, parecia não bastar apenas a constatação
disso nas opiniões dos renomados estudiosos. Instigou-me, então, estudar com mais
detalhe como eram montadas as “regras estritas”, e como o “excesso de formalização”
deu luzes a muito do que se produziu depois do surgimento do portentoso volume de
Resende.
Um pequeno poema de Fernão da Silveira – “Senhora, graciosa, discreta,
eicelente” levou-me a pesquisar de forma mais abrangente o modo de produção dos
poetas palacianos. Assim, Silveira foi escolhido como paradigma de tudo o que aparece
no Cancioneiro. Ao ler as peças poéticas coletadas por Garcia de Resende, e ao separar
o corpus poético do Coudel-mor, pôde-se constatar que os meios e elementos eram
semelhantes na produção de vários poetas. O estudo de um só deles como parâmetro e
modelo não me pareceu pouco para chegar à constatação de que, realmente, o que se
produziu no Quatrocentos e início de Quinhentos peninsulares foram base para as
criações literárias futuras, mais especificamente – pela delimitação deste trabalho e
pelas opiniões dos especialistas – durante o Renascimento, o Barroco e, séculos à frente,
o Concretismo brasileiro e o Experimentalismo português.
Ao reler uma forma tão antiga – o labirinto – e fazer dele um poema não só
visual, mas também múltiplo pelas possibilidades de leitura, Fernão da Silveira colocou
nele o germe do novo, mesmo que calcado na antiga tradição greco-romana. O poema
402
CANCIONEIRO Geral... Op. cit., p. 30.
199
traz, fora o estranhamento visual tão cultuado na contemporaneidade, a associação do
ato lúdico do poetar, pois é um jogo de brincadeiras de significantes – sons e ritmos que
lembram a música e a dança. São esses alguns dos pilares do Concretismo e do
Experimentalismo. Ao comparar esse labirinto do Coudel-mor com os de Camões,
Augusto de Campos e Melo e Castro, o que se destaca em cada um é o modo criativo
com que cada poeta montou seus versos, no contexto em que foram criados. Com
relação aos outros poemas de Silveira, pôde-se constatar, também, que o poeta se
pautava pela inventividade, e isso permitiu – a ele e a seus pares – testar novos temas e
formas que seriam melhor depurados depois.
É perceptível que, em seu modo criativo, aplicou-se o Coudel-mor ao rigor.
Melo e Castro afirma que num texto “altamente organizado e condensado” cada palavra
tem uma função própria e sua relação com o texto como um todo influenciará na sua
“temperatura semântica”. O poeta, ao dar importância à disposição das palavras no
texto, estará observando os princípios do “rigor” na criação poética, o mesmo, conforme
Melo e Castro, observado pelos poetas concretistas. Estes consideram a palavra “sob o
aspecto ‘físico, espacial e visual’”, organizando não um discurso, mas um objeto, dada a
sua estrutura visual e sonora. É assim que o poema e o objeto concretos são criados de
forma rigorosa e objetiva
403
. Além desse rigor, na seleta que se fez da produção poética
de Fernão da Silveira, observou-se que se dedicou o poeta a demonstrar também
destreza e inventividade. Naqueles poemas, por exemplo, em que se aplica a maldizer
seus pares ou qualquer outro conviva do Paço, atém-se o poeta a primar pela inovação.
Nos outros em que exacerba o lirismo amatório ou registra em versos o momento por
que passa Portugal, ou ainda nas que revela seu “eu” repartido, o mesmo procedimento
renovador. Para ele, percebe-se então, importava manejar com destreza e engenhosidade
todos os recursos próprios de uma função que agora – no dealbar do medievo –
despontava como digna do epíteto de “poietes”.
Apesar de a improvisação fazer parte de algumas composições dos palacianos,
tais como muitos dos redondilhos menores ou poemas de curta extensão, é certo que a
grande maioria exigiu trabalho artesanal, técnica e pesquisa, o que marca o ofício do
poeta. Pense-se no labirinto de Fernão da Silveira, várias vezes citado aqui, na poesia
200
pangramática que Álvaro de Brito Pestana compôs para os Reis Católicos de Castela, ou
ainda, no poema hermético em que também Silveira tem “visões infernais”, colocando
nela neologismos coerentes com uma alma em desespero por ter visto coisas
repugnantes, sem contar as inúmeras peças longas e aquelas montadas cum auctoritate,
só para citar poucas entre as mais de oitocentas elencadas por Garcia de Resende. São
tipos de poesia que não revelam uma criação imediata – essas composições exigem que,
mesmo o mais inspirado dos poetas, se volte para a realização delas. É mais, então, um
trabalho de elaboração que de improvisação.
E como se desenvolve esse novo espírito poético? Nas palavras de Johan
Huizinga, ele unirá técnicas do fazer poético, tais como ritmo, rima e métrica, ao
impulso e expressão estética. O espírito poético aventado pelo estudioso alemão vê a
poesia como um jogo lúdico em que as palavras e os sons deverão ser condizentes com
o tema e a forma – ela principalmente – com que quer expressar-se o “eu-lírico”
404
.
Além desses elementos “técnicos”, o poeta criativo deve ser levado por um
“arrebatamento” – para Frobenius, a capacidade de criar, em qualquer indivíduo
criativo, nasce de um estado emocional perante qualquer fato que será, então,
condensado pela expressão poética e artística
405
. O poeta inventivo também passa por
uma espécie de treinamento num jogo, na concepção de Roger Caillois: no manejo de
um aparato ou uma atitude que satisfaça problemas de ordem convencional
406
. O
“poietes” é, então, um técnico em que a inspiração é um Dom, aprimorado pelo ato de
fazer poesia.
Essa nova aptidão do poeta, contudo, não é requisito único para se definir aquele
que é inovador. Na Introdução a este trabalho, elenquei algumas questões que guiaram
a pesquisa empreendida: se Fernão da Silveira teria sido predecessor de estéticas futuras
e se teria sido original e único entre os seus pares. A resposta a esse questionamento
poderia indicar o porquê de o Cancioneiro Geral ser considerado um repositório de
muitos estilos vindouros. Para chegar a uma conclusão que satisfizesse tal preocupação,
escolhi traçar uma linha diacrônica que apresentasse poetas cujas características
403
Op. cit. 1973, p. 82-83.
404
Cf. p. 25.
405
Cf. p. 16.
406
Cf. p. 25.
201
composicionais fugissem aos padrões ditados pelas poéticas – às vezes muito rígidas –
de cada período. Pareceu-me didático esse método, aliado à divisão do trabalho em
subcapítulos, com o único intuito de tornar fácil não só o desenvolvimento do assunto,
mas também o entendimento de como progrediu o espírito inovador ao longo dos
tempos.
Fernão da Silveira não foi, ele sozinho, predecessor de estilos literários que
surgiram nos séculos que a ele se sucederam – uma só pessoa ou uma só composição,
parece, não tem todo esse poder, mas um conjunto de poetas e de obras, aliado a um
contexto próprio, pode, sem dúvida, lançar as sementes do novo. É dessa forma que as
composições inovadoras do Coudel-mor, somadas às de seus pares, permitiram que os
poetas das próximas gerações colocassem em prática, com mais afinco, o que foi testado
na recolha resendiana. Contudo, Silveira foi único e original. Único porque se destaca
da massa de poetas presentes naquela coletânea; original porque desenvolveu com
denodo suas qualidades de inovador pela diversificação de formas e temas de que se
valeu para compor suas peças, pela ludicidade que aplicou a estas, calcada na
diversidade de jogos de palavras e de formas, mostrando-se sempre atento às
possibilidades que a palavra – instrumento de trabalho do poeta – oferece àquele que é
criativo.
Para definir o Coudel-mor como poeta inovador, recorreu-se a atributos que
podem caracterizar aquele que está à frente de seu tempo: inventividade, criatividade,
originalidade, somadas aos seus cognatos e derivados. Ao definir o que é um poeta
inovador, esses termos foram usados indistintamente, tentando registrar aquele espírito
que se destaca pela maneira diferente com que se expressa. E essa maneira diferente que
se encontra em Fernão da Silveira é a que mescla o uso da tradição com os recursos que
o novo contexto possibilita para (re)criar algo inusitado. Viu-se que, para Peter Dronke,
a individualidade poética se mostra quando o poeta toma como ponto de partida a
tradição, mesmo que ela não tenha poder sobre aquele que é criativo, desenvolvendo e
transformando o que já existe. Para o estudioso, o gênio criativo é a soma do típico e do
individual
407
. A esse conceito, inclui-se o de Thomas McFarland: o original e
imaginativo se apresentam pela soma da natureza social à individual, pois o homem não
202
pode ser visto apenas sob um desses dois ângulos
408
, e o poeta, ao criar, coloca nas suas
realizações uma aura, a da alma. Foi com esses pensamentos sobre a criatividade que se
guiou o estudo dos poemas de Fernão da Silveira.
Paul Zumthor, ao tratar da questão da tradição, avalia a influência do passado
nas produções poéticas medievais:
Il est vrai qu‘un certain nombre de constantes (...) ont dominé la littérature de
l’Éurope occidentale, depuis la fin de l’Antiquité jusqu’au seuil de l’époque
contemporaine. Mais la période médievale est caracterisée par la plus forte
concentration de ces tendances. (...) Rien dans cette tradition n’est du reste
monolithique. (...) La vitalité, l’avidité inventive et la mobilité intellectuelle
de l’esprit médiéval associent, en fait, à l’exploitation systématique des legs
du passé, une grande permeabilité aux influences exotiques les plus diverses
ainsi qu’une notable capacité de redécouverte et de réutilization d’un vieux
fonds culturel, autochtone et paysan, demeuré sous-jacent à la civilisation
romaine
409
.
Um misto de tudo o que Zumthor disse sobre a influência da tradição pode-se encontrar
nas expressões poéticas do Coudel-mor e de muitos de seus colegas. Eles viveram num
período da História em que a concentração das constantes era extremada, a Idade
Média, mas que não eram “monolithiques”: exploraram sistematicamente tudo do
passado, imprimindo nas suas (re)criações vitalidade e inventividade, permeabilizadas
pelas “influences exotiques”. Tome-se, ainda uma vez mais, o labirinto de Silveira:
advindo da Antigüidade, a peça poética do Coudel-mor apresenta-se como respeito a
uma tradição antiga. Renovado pela engenhosidade, seu labirinto é montado por
palavras que lembram as colunas de um templo em que se resguardam as virtudes da
dama amada. Se seu labirinto não tem apelação mágica ou divina, como os da
Antigüidade clássica, sua forma levou o poeta a emular o poema num novo contexto.
Tomem-se também as composições poéticas em que tanto Silveira quanto Henrique da
Mota
410
, Diogo Brandão
411
e Garcia de Resende, com o monólogo de Inês de Castro,
canta, à moda de Dante, a visita aos Ínferos. Ou ainda, quando esses novos poetas
palacianos cantam um tema tão antigo – o amor cortês – numa forma nova e exótica: o
processo do “Cuidar e sospirar” é prova cabal, além, por exemplo, da cantiga “Do
407
Cf. p. 16-17.
408
Cf. p. 20-21.
409
ZUMTHOR, op. cit., 1972, p. 75.
410
Cf. “D’Anrique da Mota a ũu seu amigo em reposta de ũa carta que lhe mandou, em que lhe contava
ũa visam que vira e pedia conselho e decraraçam da dita visam.” (CG, IV, 800).
411
Cf. “Fingimento d’amores feito per Diogo Brandam.” (CG, II, 361).
203
Coudel-moor a El-Rei Dom Pedro que, chegando aa corte, se mostrou servidor d’ũa
senhora a que ele servia”, na qual esse tema de casuística amorosa ressurge em novo
modelo estrutural. Nesta última cantiga, a erudição de Silveira une-se ao tradicional
numa forma renovada, com palavras que remetem ao cantar provençal e
trovadoresco
412
. Todas essas composições são mostra da forte influência que a tradição
exerce sobre aqueles poetas considerados inventivos.
Referiu-se também, neste estudo, ao maneirismo e preciosismo, à sutileza e
agudeza, transparentes nas composições de Fernão da Silveira, e mesmo em outras
obras de sua época. Pela pesquisa empreendida, tais termos são mais aplicados quando
se referem às obras barrocas. Baltasar Gracián desenvolveu, no século XVII, um tratado
em que os conceitos de cada uma dessas palavras são extensamente definidos e
exemplificados com obras do passado clássico e principalmente com as do Siglo de Oro
espanhol
413
. Contudo, muitos especialistas do Cancioneiro Geral a elas recorrem para
definir as composições palacianas. Desses termos também me vali para estudar os
poemas de Fernão da Silveira. Ao fazer isso, pareceu apropriado seu uso, pois em
muitas das produções de Silveira – e, ressalte-se sempre, nas de seus pares – antevêem-
se ecos do Barroco. Alguns exemplos foram dados, como na cantiga “Porque meu mal
s’i dobrasse / vos fez Deos fremosa tanto”. Nela, o Coudel-mor já registra o conflito
entre ser santo e pecador; nas trovas em castelhano “Mis querelhas he vencido”, o poeta
glosa um poema de autoria anônima e pontua seu próprio texto com conceptismo
retórico. Ainda, na “Pregunta do coudel-moor a Alvaro Barreto”, registra Silveira o
conflito da partida e da chegada – tema recorrente na literatura medieva – concretizando
o estado conflituoso na irregularidade rimática e rítmica e no reforço das antíteses –
figura tão apreciada pelos poetas barrocos. Destes, puderam-se destacar alguns poemas
que transpareciam, tanto no conteúdo quanto na forma, a prática de uma poesia já
inovadora dos poetas do Quatrocentos. No soneto de Jerônimo Baía, “A F., favorecendo
com a boca e desprezando com os olhos”
414
, e no do Dr. Antônio Barbosa de Bacelar,
412
Cf. p. 146.
413
Assim se expressa o editor de Agudeza y Arte de Ingenio: “A Gracián le preocupan esencialmente dos
formas particulares de la expresión, la agudeza y el concepto, términos que ya destaca en el própio título
de su tratado, en el que comienza por decir al lector: ‘Válese la agudeza de los tropos y figuras retóricas,
como de instrumentos para exprimir cultamente sus conceptos’”. (Op. cit., I, p. 22).
414
Cf. p. 162-163.
204
só para citar dois exemplos, estão presentes a engenhosidade do primeiro e a releitura
daquele tema nascido da lavra dos poetas palacianos, no Dr. Bacelar, o do “eu”
repartido. Baía sugere ao leitor a divisão de seu soneto em dois sonetilhos, realçando a
alegria de viver no primeiro desmembramento e a tristeza da morte, no segundo; o Dr.
Bacelar, em “A uma ausência”
415
relê, na forma mais apreciada pelos barrocos – o
soneto –, o conflito e a angústia de um “eu” perdido. Nos trópicos, Gregório de Matos
cria seus versus concordantes louvando um desembargador, antevendo, conforme
registra Rogério Chociay, o “vanguardismo moderno”
416
. No soneto lúdico dedicado ao
poeta Silva Arião, condensa, com ritmo e rimas singulares, a própria música e o próprio
canto, ofícios de Arião
417
. O mesmo faz numa outra canção, em homenagem a D.
Ângela, cuja forma destoa da regularidade métrica própria do Barroco
418
. Nas mãos
engenhosas de Matos parecem renascer as brincadeiras e a musicalidade tão cultivadas
pelos poetas palacianos.
Um estudo acurado da poesia de Fernão da Silveira permitiu também ver como
ela se volta para o congraçamento social. Ele utiliza-se da forma poemática para
provocar o diálogo entre os cortesãos do Paço e, em meio aos serões áulicos, conclama
seus parceiros – poetisas ou poetas – a participarem dos espetáculos encenados na
Corte. Os recursos artísticos de que se vale para essa encenação vão desde as ajudas,
perguntas e respostas – subgêneros inovadores da poesia quatrocentista da Península –
até mesmo a laivos de teatralidade, incipientes em seus textos. Além destes artifícios,
sua poesia é marcada pela intertextualidade, praticando o dialogismo, uma conversa
com outros textos alheios na língua nacional ou castelhana. Esses expedientes, se
também são explorados por todos que participam do Cancioneiro, o Coudel-mor utiliza-
os de forma inovadora. A ele não interessa apenas sondar os temas, mas como distribuir
as palavras de modo a que se destaquem. Pôde-se verificar que são nas ajudas que o
poeta vê-se mais solto para – naquelas de cunho intimista – desenvolver a retórica.
Lembre-se da ajuda que presta a Henrique de Almeida, em que, utilizando-se de uma
temática tão medieval, o bem e o mal que causa no “eu-lírico” a dama servida, monta
415
Cf. p. 165.
416
Cf. p. 167, deste trabalho.
417
Cf. p. 168-169.
418
Cf. p. 169-170.
205
um complexo raciocínio em que a conjunção “pois” cria uma circularidade que prende o
mal – que é servir à dama cruel – ao bem – que seria vê-la penar por alguém, da mesma
forma que o “eu” poemático pena por seu objeto de devoção
419
. Entretanto, naquelas
ajudas de fundo satírico, prima o Coudel-mor em explorar todas as possibilidades que a
forma e a palavra lhe dão. Quando ajuda alguns contendores na questão da sexualidade
de duas damas pegas aos beijos em plena festa e quando ajuda outros a chufarem do
sexo de Dom Goterre, Silveira não mede esforços para diversificar as rimas e os ritmos,
muito menos para, com os artifícios da epizeuxe e da anfibologia, destacar uma palavra
que deverá, sobretudo, causar estranhamento – e riso
420
.
Ao refletir esse caráter gregário da sociedade palaciana, a poesia de Fernão da
Silveira abandona de vez o individualismo cultivado pelo trovador dos séculos
precedentes. No Trovadorismo, o poeta, usando de artifícios que escondem aquela a
quem dedicava sua servidão, volta-se para si mesmo e sua poesia será expressão de um
individualismo exacerbado, mesmo que enunciado de forma padronizada. No final de
1400, Silveira retomará os mesmos temas da época trovadoresca galego-portuguesa,
mais especificamente o amor cortês. Todavia, o Coudel-mor declara aberta e
deliberadamente este amor, fazendo com que todos saibam dos sentimentos por que
passa o “eu-lírico”, acrescentando a urgência de feedback por parte daqueles que
participam de sua emotividade. É assim que, ao expor seus sentimentos, Fernão da
Silveira pedirá que todos sofram com ele ou que com ele se divirtam. Numa pergunta
que faz a Álvaro Barreto, por exemplo, mostra o poeta toda sua sentimentalidade ao
querer saber o que dá mais pesar e prazer, se a partida ou a chegada. A resposta do seu
amigo deverá “concertar com a negra vontade” do “eu-lírico” inquieto: ambas resultam
em tristeza, tanto de quem parte quanto de quem chega. Para ambos, deverá restar a
saudade, metaforizada pelo conceptismo com que Silveira monta seu
questionamento
421
.
Essa sociedade que se reúne com pompa e circunstância em torno do monarca é
conclamada a participar das representações poéticas feitas de modo inusitado pelo
419
Vide subcapítulo 4.4.3., p. 127.
420
Cf. subcapítulos 4.2.1., p. 101 (sobre a homo/bissexualidade de umas damas cortesãs) e 4.2.3., p. 111
(sobre a braguilha de Dom Goterre).
421
Vide comentário sobre essa mesma pergunta acima e no subcapítulo 4.4.1., p. 123.
206
Coudel-mor. Fazendo uso de uma forma sempre inovadora, Silveira trará para os serões
não apenas os temas próprios daquela sociedade fechada. O mesmo canto popularesco
que movia a poesia dos trovadores será também cantado por ele nos salões do Paço. No
entanto, sejam quais forem os temas, o poeta os apresentará sempre como jogos,
brincadeiras de sons e palavras que, não sendo mais musicadas, poderão em qualquer
representação trazer a suavidade do canto e da dança aos ouvintes. A essa sociedade
sugere o Coudel-mor que viva as benesses do tempo presente, um arremedo já do carpe
diem barroco e neoclássico, quando, por exemplo, responde por uma dama às investidas
de um dos galanteadores dela. Por trás do triste fim que prenunciavam as glórias dos
Descobrimentos, Silveira acredita que viver bem o momento é a melhor solução
422
.
E o canto popularesco é um dos que mais munição, parece, forneceu a Fernão da
Silveira. Mostrou-se que sua veia satírica era extremada, principalmente quando trata de
temas como o sexo de Dona Lucrécia ou o de Dom Goterre, ou ainda, quando reúne ao
profano o divino. Ao descrever de modo obsceno o sexo de Dona Lucrécia, dado como
presente de núpcias, o Coudel-mor prima pelo jogo anafórico e assonante, ritmo e rimas
irregulares, variadas figuras de palavras e pensamentos, destacando-se com mais vigor a
prosopopéia. Um jogo nada sutil, se se comparar com a poesia pornoerótica do poeta
concretista Augusto de Campos, na qual, valendo-se de um vocabulário erudito,
Campos personaliza a esperança ao mostrá-la fazendo amor com a vida, denominada
pelo poeta como “noivo” daquela. Mas Silveira, nas suas expressões satíricas também
foi sutil; na contenda sobre o tamanho do sexo de Dom Goterre, brinca o poeta com os
calembures – o jogo de palavras com duplo sentido e as formas estróficas diferenciadas
revelam um poesia para rir não só do chufado, mas também do jogo forma-fundo. E a
mais engenhosa de suas “cousas de folgar” é a cantiga em que o ato de se colocar a pena
num
422
Cf. subcapítulo 4.4.2., p. 125, sobre a resposta que uma dama pediu ao Coudel-mor.
207
tinteiro lembrava ao “eu-lírico” a Festa da Encarnação – brincar com a sexualidade dos
deuses do Cristianismo numa época vivida marcadamente sob a austeridade da Igreja
pode parecer heresia. Feita com sutileza, o que se destaca desta cantiga é o uso de
artifícios que unem palavra à imagem, como que pintando o ato que causava ao poeta
tamanha “torvaçam”.
O Cancioneiro Geral tem sido apontado, também, como portador já de uma
estética inovadora quanto ao canto que empreende com termos e temas apoéticos.
Massaud Moisés, ao comentar a amplitude visionária de Garcia de Resende, que já
percebe não ser a poesia constituída apenas de temas lírico-amorosos ou satíricos, mas
também épicos, de costumes, de virtudes, ciências e gentilezas, observa que ao
compilador eborense permitirá, no seu compêndio,
abrigar muito verso desprovido de poesia, ou muito poema de circunstância,
[e essa concepção] é já inequivocamente avançada, com traços de
modernidade: nela se pode vislumbrar a intuição de que não existem motivos
poéticos naturais; todos os temas podem ser poéticos, ou são poetizáveis,
dependendo do engenho e arte do autor. (...) A engenhosidade e a inspiração
do poeta é que os transforma em matéria poética.
423
Foram estudados aqui vários poemas de Fernão da Silveira com esses “traços de
modernidade”, em que quaisquer “temas são poéticos e poetizáveis”. Lembre-se, como
exemplo, do extenso relato que o Coudel-mor faz sobre as cortes empreendidas por D.
Afonso V, em 1477, em que brinca com palavras, algumas difíceis de se definir, e
números, registrando nos seus versos um fato histórico-econômico – a situação do reino
em guerra e a inflação que tal empresa provocou nos preços, além de pontuar com
ironia a situação dos nobres e clérigos, bem como as relações sociais. Mas talvez o que
melhor se enquadra nesse modo moderno de compor seja o processo de “O Cuidar e
sospirar”, em que a temática amorosa é debatida num feito processual, entrando na
trama palavras do campo da lei jurídica, adaptadas ao lirismo amoroso. Recorde-se que
alguns estudiosos vêem na extensa composição uma única mão criadora: a do Coudel-
mor. Esse recurso “moderno” de se expressar, diga-se de passagem, já se havia visto no
provençal Arnaut Daniel, estendeu-se aos poetas palacianos e, fazendo uma longa
viagem, vai aparecer nos modernistas do século XX. Alguns exemplos foram citados,
423
Op. cit., 1997, p. 52-53.
208
como em Fernando Pessoa – na “Ode triunfal”, e em Sá-Carneiro – em seu extenso
”Manucure”, além, de Cesário Verde, do final do século XIX, e, obviamente, nos
concretos e experimentalistas, cujos exemplos foram mais extensamente estudados.
Quanto ao lirismo intimista, parece que o tema do “eu” perdido em si mesmo –
ora perdido ora repartido –, nasceu no Cancioneiro de Resende. Tal sentimento
melancólico demonstrou-o em seus escritos o rei Dom Duarte (1433-1438), registrando
o que se tornou característico da alma portuguesa, segundo estudiosos de vários
campos
424
. Os poemas dos palacianos Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro com essa
temática viraram antológicos e inspiraramrios poetas ao longo dos tempos. Silveira
também registrou essa angústia, quando descobre que, ao ganhar a dama a que servia,
aprendeu o que é perder-se. Esse estado de espírito que é cantado no final do medievo
português estender-se-á em verso e prosa, e, renovado, aparecerá em Bocage, Sá-
Carneiro, Fernando Pessoa e Vinícius de Moraes, para citar alguns. São essas mostras,
uma prova inconteste da aptidão visionária que já portavam os poetas palacianos.
Neste trabalho, há referências ora ao conteúdo ora à forma estrutural das
composições selecionadas. Um olhar mais apurado foi dado à última questão. Se a
maioria dos temas ainda permanecia os mesmos da época trovadoresca, a forma foi a
grande inovação do Cancioneiro Geral. Foi possível comprovar isso nas composições
de Fernão da Silveira: destacam-se nelas uma irregularidade de ritmo, de métrica e de
variação rimática que fogem a quaisquer cânones. O Coudel-mor usa, ainda, com
destreza e ousadia, os “pés quebrados”, outra das grandes inovações do Cancioneiro,
juntamente com os subgêneros a que se referiu atrás, as ajudas, perguntas e respostas,
derivadas da “tensó” provençal. Quanto aos “pés quebrados”, destaque-se o arrojo de
Silveira quando, na ajuda “De Dom Goterre aos gibõoes de Fernam da Silveira e Dom
Pedro da Silva, que fezeram de borcado com meas mangas e colar de graam.”, inicia sua
cantiga com um “pé quebrado” tetrassilábico. Ainda quanto à irregularidade, esta parece
ser proposital nas composições quatrocentistas, como forma de fugir ao taedium.
Contudo, se se tomarem as cantigas “Porque meu mal s’i dobrasse” e “Do Coudel-moor
a El-Rei Dom Pedro que, chegando aa corte, se mostrou servidor d’ũa senhora a que ele
servia.”, verifica-se que Silveira faz uso da forma considerada regular desse subgênero:
209
rimas abba / cddc / abba, ritmo regular nas terceiras e sétimas sílabas da primeira
cantiga, e quartas e sétimas da segunda, mantendo a mesma métrica do redondilho
maior em ambas. Esse modo composicional – que foge à variatio tão cultuada pelos
poetas do Cancioneiro Geral – está intimamente ligado ao tema da primeira cantiga,
que é o da perfeição da dama a quem serve o “eu” poemático, e à erudição que emprega
na segunda cantiga. Valendo-se de tema e vocábulos próprios da tradição trovadoresca
– a servidão – e de léxico antigo – termos característicos daquele período, tais como
“leixar”, “agoiro”, “eramaa” –, o poeta ainda acrescenta os artifícios do mordobre e do
paralelismo trovadorescos. Há de se ressaltar, no entanto, que, em ambas, a marca da
inovação é evidente. “Porque meu mal s’i dobrasse” antecipa o conflito que será
largamente explorado no Barroco; a outra composição usa a nova estrutura da cantiga e
a servidão agora se apresenta num combate entre dois senhores pela mesma dama.
Ainda quanto à forma, o Cancioneiro de Resende também se destaca pelo apreço
aos acrósticos, labirintos e anagramas. São registros lúdicos em que os poetas
palacianos entretiam-se com o jogo de palavras. Esses mesmos registros, como se viu,
farão grande sucesso no Barroco e no Concretismo e Experimentalismo. Além desses
recursos, há de se destacar do mesmo modo o bilingüismo. Se não é fato de todo
original, a forma como aparece no Cancioneiro é já mostra de uma nova sociedade
aberta aos ares trazidos pelos Descobrimentos. Como exemplo, numa mistura de versos
decassílabos com hendecassílabos, Fernão da Silveira reproduz com esmero a oralidade
de um rei negro de Serra Leoa. Registra com essa peça a “invasão” dos escravos
africanos, mas o poeta não mostra preocupações sociais. Este registro da língua de
negros vai ser explorado também no Barroco
425
, e não seria exagero enxergar na
transcrição fiel da oralidade uma preocupação que vai ser mote para os modernistas do
século XX.
Antes de encerrar, recorra-se uma vez mais ao labirinto de Fernão da Silveira, o
qual inspirou a pesquisa e feitura desta dissertação. O que teria de inovador, se a forma
labiríntica advém da Antigüidade clássica e foi explorada com maior apuro pelos
barrocos? Duas propriedades fazem com que o labirinto do Coudel-mor seja inovador.
424
Como exemplo, consulte-se a nota (250).
425
Cf. p. 142-143.
210
A primeira é a montagem do poema em quatro colunas de classe de palavras abstratas –
dezesseis adjetivos e oito substantivos abstratos. Esse recurso parece inovador e tem a
ver com o tema explorado pelo “eu-lírico”: a da perfeição de sua dama, que é
comparada a um templo de virtudes. A outra propriedade é que esse poema de Silveira é
único na coletânea de Garcia de Resende, pois destaca-se pela sua visualidade na página
em branco – um artifício amplamente usado pelos poetas concretistas e
experimentalistas. Se esse culto ao visual não é novo – lembre-se do poculum em latim
do início do medievo, exposto no Capítulo III – cada aparição desse tipo de poesia só
vem confirmar o que disse Boultenhouse: o poema figurado é sempre novo porque se
volta à simplicidade original da escrita, à experiência primitiva e mágica, e a dupla
experiência de olhar e ler dá a sensação de que tudo está recomeçando do nada
426
. Esse
recomeçar, parece-me, é original; cada artista criativo, de qualquer período histórico,
estará inovando ao criar uma poesia visual. Atualmente, e desde o advento do
Concretismo e do Experimentalismo, esse recomeçar pela visualidade vem sendo usado
de forma criativa – viu-se isso, como exemplos, no “Pêndulo” de Melo e Castro, em que
se registra a dinâmica de um objeto, e no haicai contemporâneo de Millôr Fernandes, no
qual o poeta descobre que nada há entre um pingo de chuva e outro. Se recriada com
originalidade, a poesia figurada estará não só dialogando com uma forma tão
tradicional, mas também trará ao leitor prazer estético.
O estudo da poesia de Fernão da Silveira permitiu perscrutar a engenhosidade de
seu modus operandi e ainda ver como suas composições se voltavam para o
congraçamento social, para os jogos de palavras, para a exploração completa de todas as
novas formas poéticas, tudo fruto de uma criatividade própria dos poetas palacianos.
Sua poesia trouxe muito deleite aos freqüentadores do Paço, que já sentiam as
transformações por que passava o Portugal dos Descobrimentos e, por isso mesmo,
deveriam, nas palavras do próprio Coudel-mor, “fartar-se de bua”, viver alegremente
um momento de incertezas. Mas a poesia de Fernão da Silveira trouxe muito mais do
426
Cf. p. 53.
211
que deleitamento, ao abrir possibilidades para o enriquecimento de artes literárias
vindouras.
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ANEXOS
Reprodução do labirinto intitulado “Outra sua” (Senhora, graciosa, discreta, eicelente),
de Fernão da Silveira. Fac-símile do original de 1516. In: DIAS, 1998b, V, p. 460.
231
Reprodução do labirinto intitulado “Outra sua” (Senhora, graciosa, discreta, eicelente),
de Fernão da Silveira. In: GONÇALVES GUIMARÃES, 1910-1917, p. 205-206.
232
Reprodução do labirinto “Outra sua” (Senhora, graciosa, discreta, eicelente), de Fernão
da Silveira. In: DIAS, 1998b, I, p. 195.
233
ANTOLOGIA
Publicam-se nesta seção os poemas completos de Fernão da Silveira que foram
analisados parcialmente ao longo deste trabalho. Ressalte-se que se excluíu desta seleta
o poema “O Cuidar e Sospirar”, devido à sua extensão.
CG, I, 28
DO COUDEL MOR A ANRIQUE D’ALMEIDA, QUE LHE MANDOU PEDIR NOVAS DAS
CORTES QUE EL-REI DOM JOAM DEZ EM MONTE-MOOR O NOVO, SENDO PRINCIPE, O
ANO DE SETENTA E SETE, SENDO EL-REI SEU PAI EM FRANÇA.
No mes de Janeiro,
e ano de sete,
na era que mete
dez setes primeiro,
em Moor Monte Novo,
os povos s’ajuntam,
respondem, preguntam
mil cousas de provo.
Se o que se cá passa
quereis lá sabê-lo,
nam seja escassa
a mãao eescrevê-lo.
Mas pois o letreiro
ponto nam erra,
contará primeiro
o estado da terra.
A dous o vermelho
nom val mais o branco,
a dez o coelho,
perdiz faz derranco;
a vinte a galinha,
de graça mil furtos,
doze turdos curtos
aquela chinfrinha.
A treze a cevada,
farelos a sete,
mas sua o topete
sobindo a calçada;
com pãao de real
punhada ao gato,
tres oitos o pato
e dous o açacal.
Tambem taverneiro
dá a quatro vinagre,
mas é moor milagre
quem cá tem dinheiro,
qu’a conta que leo
de peros roins
me dam sete e meo,
por boons tres quatrins.
A duzea e mea
se calça um pee,
o quarto d’um mee
val seis para a cea.
O qu’ee testemunha
da hora passada
faz ũu som de cunha
de cabo d’enxada.
A dez a ferragem,
mas cravos nam tem,
nam sofre estalajem
caber i ninguem;
pousadas defende
quem Deos nam mantenha,
de ũu asno a lenha
por nove se vende.
Val redea d’uvas
a cinco na praça,
mas nam ha i luvas
nem quem vo-las faça.
O gentil do cidram
a tres brancos se frisa,
real de sabam
nam lava camisa.
Mas estas deixemos
quedar de seu cabo,
e sem dar mais cabo
das cortes contemos.
Ouvi o que digo,
preponde notar,
que novas contar
vos cuido d’amigo.
Lixboa que sonha
no cardealado,
moordomo Noronha
tambem deputado;
i é Portimam,
Alvito, Penela,
Beringel com ela
que faz o sermam.
Aquestes despacham
o muito e o pouco,
Latam ficou rouco
mal pelo que acham,
que o trato de cá
e o modo da fala,
se s’ele entam cala
falá-lo-á laa.
Com barba de mouro,
toucar recoveiro,
ũ zunzum de besouro
em som lastimeiro.
Quem macho alcança
se ha por bençam,
mil falas de França
por este viram.
Rainha, Fernando
que dizem que vêm
com fama lançando
d’Ocres que ja têm.
E vêm mui per vista
em calça sevilha,
nom é maravilha
querermos dar vista.
Pois lá namorados
nam compre dormir,
fazê-me relir
cantar em ditados;
e pois lá vêm damas,
por amor das vossas,
convem ferir chamas
nas azes mais grossas.
Leixar piastram
fundar em loudel,
e seja cossel
valente rincham.
Qu'engeite carreira
querê-o vós tal
levand’a camal
que cubra calveira.
E pois vosso olho
todo isto vê bem,
as vossas convem
lançar em remolho;
mas fica a fadiga
com quem a tever
e oraçam diga
melhor quem souber.
Qu’os proves pedidos
dous deram soomente,
vassalos metidos
lá vaam de maa mente.
Dinheiro de praça
lhe daa crelezia
e quer fidalguia
que lanças refaça.
E com isto querem
favores comũus,
peroo ũus e ũus
partir-se ja querem:
Porque se lh’alarga
o seu desembargo,
o gasto lh’amarga,
a mais nam m’alargo.
Fim.
Se pagar quereis
o que vos escrevo,
por mim beijareis
as mãos a quem devo.
O mais nam vos tarde
às damas dezê-lo
nem tudo a Lordelo,
ca vos i vos arde.
CG, I, 37
PREGUNTA DO COUDEL-MOOR
A ALVARO BARRETO.
Quem bem sabe, em tudo sabe,
e porem daqui concrudo,
que a vós, que sabês tudo,
assolver as questões cabe.
E porem mui de verdade
peço que esta respondaes,
pera ver se concertaes
com minha negra vontade.
Ca eu ja me vi partir
e também despois chegar,
e senti todo o sentir
do prazer e do pesar.
Mas contudo é de saber
qual é vossa concrusam:
se partir dá mais paxam,
ou chegar maior prazer.
Resposta d’Alvaro Barreto.
De m’atrever que vos gabe
minha openiam mudo,
por nam ser ũu tam sesudo
que de vos louvar acabe.
E pois tal estremidade
sobre meu saber mostraes,
o nome que vós me daes
vosso gram louvor emade.
Porem sem detreminar
ante quem devo seguir,
ficando-m’eu de partir
há-se por vós emmendar.
Que chegar tenha poder
d’alegrar ũu coraçam
partir dá mais afriçam
u há grande bem querer.
235
CG, I, 38
DO CONDE DOM ALVARO, QUE MANDOU A ŨA SENHORA, QUE
ERA TERCEIRA EM ŨUS SEUS AMORES.
Des que fordes juntas duas,
vós essoutra que sabêes,
por mim tanto lhe dirêes:
– Ó senhora, nam destruas
aquele que em mãaos tuas
encomenda seu esperito.
E manda per este escrito
que cousa nam fique sua,
que toda nam seja tua.
Resposta do Coudel-moor, que foi requerido
pola senhora, que respondesse por ela.
Tres cousas queria nuas
ante qu’isso que dizeis,
que foram, nam duvideis,
dadas à filha de Fuas.
E viessem assi cruas,
pera fartar apetito,
ca neste mundo maldito,
ante qu’ele me destrua,
quero me fartar de bua.
CG, I, 43
TROVAS QUE FEZ O COUDEL-MOOR, DE POESIA, INDO D’EVORA PERA TOMAR, NA PONTE
DO SOR E PAVIA.
De quinos trezenos bissete o ano,
passando seu meo com as tres o Junho,
correndo Apolo o merediano,
ventura me trouve ò gram Paviano,
mostrar-me quem era o vincasi brunho.
Na universal do lageo grande
morada de fronte se mina fumerea,
cuberta das peles da madre da lande,
na qual melodias dulcissimas brande
a cega reinante na part’esquenterea.
Tambem tras o couce do grand’aparato,
sam vistos jazentes aquestes em torno
arelho cam geiro quem dá d’arrebato
com outros roliços crecentes no mato,
os quaes todos servem apos quadricorno.
Boim esteirado i faz cabeceira,
tendente per mesa tem grandes cadilhos,
ferrenhos tormentos teveram maneira
que desse Rui Vaca caldim na traseira
em velho fumereo de novos sorquilhos.
Apenas d’ali em Montargilado
me vi, já Diana mostrando as cara,
das forças humanas assi despojado,
que a poucas horas buscar foe forçado
lugar sonolento que já procurara.
Es i dos sentidos com grande desmando,
vi cousas diformes oo ver repunantes,
em si desvairadas, contrairas no mando,
de que parte delas irei apontando,
porque tu, leitor, em lê-lo t’espantes.
Em casa creada de novo, poida,
vi musica doce, de canto griloso,
e Sertes estava em som recolhida
de ser abrasada, por ter afrigida
alma pesciva do gram bordaloso.
E rim machidonio u seus dentes lança
em partes devide os mais integrados,
cortifera febre é posta em balança,
ali onde outros com cor d’esperança
per linha mui fraca vi ser pendurados.
De terra cozida vi reste fornada
e canda bovina cá vim espirgado,
que em dando voltas nos dava chilrada
nam menos que Jaques Menin gateado.
Tambem doutro cabo cantil s’alevanta,
cipelheo queda em terra jazente,
mas o padre grande da casa mais sancta
tintim nos tregeita, ca missas nam canta,
sendo senadores moeda corrente.
Fim.
As quaes cousas vistas causaram temores
a mim de tal forma que ponto nam pude
mais nelas sofrer os meus olhadores
por nam darem causa os tantos terrores
aa cousa contraira de minha saude.
Fundei-m’em partir mui acelerado,
tirei quanto pude, atras nam olhando,
porque do que vi fui tam espantado
que se nam valera batel esquipado
alaa se me fora coudel e Fernando.
236
CG, I, 180
ANRIQUE D’ALMEIDA
A ESTE MOTO
Que milagre faria Dios.
De quantos penam por vós
a que nunca fazeis bem,
que milagre faria Dios
se penasseis por alguem.
De quantos vossa crueza
tem lançados a perder
e vidas fazeis sofrer
tristes mais que a tristeza,
por se mais vingar de vós
quem mais servida vos tem,
que milagre faria Dios
se penasseis por alguem
Ajuda do Coudel-moor.
Pois pena tam desigual
me fazeis sempre sentir,
pois nam presta nem me val
amar-vos nem bem servir,
pois que tam certo de vós
é dar mal e nunca bem,
que milagre faria Dios,
se penasseis por alguem.
CG, III, 581
DE JORGE D’AGUIAR,
APARTANDO-SE DOS AMORES.
Amores, desd’hoje mais
nam me conteis
por vosso nem me queirais.
Nam quero nojos que dais
Nem quero vossas mercês.
Deixo vossas esperanças
vãas e sem nenhũ repouso,
deixo-vos, porque nom ouso
sofrer mais vossas mudanças.
Nam m’hajais por vosso mais
nem mo chameis.
Amores, pois que sois tais,
nam quero nojos que dais
nem quero vossas mercês.
Ajuda de Francisco da Silveira.
Lembra-me que vos servi
muito e mui de verdade
e com quanta lealdade,
e por isso me perdi.
E pois que tanto matais,
nam me culpeis
de nam ser já vosso mais,
e pois tantos nojos dais,
nom quero vossas mercês.
De Dom Joam de Meneses.
Se vos servi algũ hora
da sogeiçam em qu’estava,
nam quero mais que ser fora,
porqu’agora
sei quam mal o empregava.
E por isso nunca mais
m'acolhereis
de ser vosso, pois matais
com tantos nojos que dais
qu’ante nom queira mercês.
Do Coudel-moor.
Quem podeer tanto consigo
precure sa liberdade,
mas eu nam posso comigo
nem posso mudar vontade.
Com todo mal que façaes
nem me fazeis,
amores, sempre jamais
nam quero nojos que dais,
pois me podeis dar mercês.
D’Anrique d’Almeida.
Por me tirar desta briga
de quem mal ouço dizer,
quero servir ũa amiga
qual milhor me parecer.
Senhora, laa ond’estaias
perdoareis,
se disser que quero mais
à saudade que me dais
ca d’outrem cem mil mercês.
237
CG, III, 587
D’ANRIQUE D’ALMEIDA PASSARO AA BARGUILHA DE DOM GOTERRE, QUE FEZ DE
BORCADO, ENDERENÇADAS AAS DAMAS.
Nom hajais por maravilha
preguntar donde vos vem
quererdes saber que tem
Dom Goterre na barguilha.
Quant’eu devinhar nam posso
como deemo isto dizeis,
se vos ele deixa o vosso,
vós oo seu que lhe quereis?
Par Deos, é gram maravilha
que tem de fazer ninguem
co que tem ou que nam tem
Dom Goterre na barguilha!
O Coudel-moor.
Barguilha de falso peito,
reboloa,
quando vem a ser no feito
nunca boa.
Faz amostra e grã parada,
porque toda a casa peje
se acha quem lhe rabeje
sai-vos tam envergonhada
e encurtada,
entam buscai quem peleje.
E fica toda d’um jeito
a pessoa,
porque s’enganou no feito
d’arralhoa.
Dom Alvaro d’Ataide a esta cantiga.
Sobrinho, de meu conselho,
pois debaixo nam jaz nada
senam um triste folhelho,
nom te faças dominguelho
por bragada.
Ca se jouver no teu leito
putarroa,
achart-t’-aa tam encolheito
e do nembro tam tolheito,
qu’iraa maa e viraa boa.
Fernam da Silveira a esta cantiga.
Segundo a tençam minha,
quem barguilha assi guarnece
quer soprir com louçainha
o que por obra falece.
E o que nisto sospeito
e caa soa
é que nam é pera feito
tam mixilhoa.
Cantiga sua a esta barguilha.
Cavalheiros de Castilha,
vós qu’estais em Freixinal,
vinde ver ũa barguilha
a Portugal,
do filho do Marichal.
É de bom borcado raso
qu’eschameja como brasa,
e é gram caso
sair um homem de casa
com barguilha toda rasa.
Mandai lançar em Sevilha
um pregam que seja tal:
Dom Goterre fez barguilha
cordeal,
vinde-a ver a Portugal!
O Coudel-moor a esta cantiga.
O fidalgo de linhajem,
filho de pai mui honrado,
é de ũa tal carnajem
que sem mais fazer menajem
vos vem jaa desnaturado.
Com recheos de pontilha,
raspa, lãa e isto tal,
faz ũ cume de barguilha
tam mortal
que mao grado a Sandoval.
Joam Correa a esta cantiga.
Todalas cousas provistas,
sem mais grosa,
polos quatro Avangelistas
nestas vistas
nom vem cousa tam pomposa.
Mas nam é grã maravilha,
em caso que venha tal,
ser um sonho da barguilha
ainda mal,
porque tudo é papassal.
238
Dom Rodrigo de Castro a esta cantiga.
Irei eu daqui a Roma
por ver isto que se diz,
meteras-lh’o teu nariz
e siquer fizera soma,
ora toma!
Porque s’aqueste barguilha
nesta festa do Natal
que jaa vai a Bobadilha
de Freixinal
nova dela e que tal.
Dom Pedro da Silva.
Quem te vir o teu borcado
e te for buscar o centro,
achará grande toucado
e chico recado dentro.
Em nenhũ reino nem ilha
nunca se vio trajo tal
com’esta tua barguilha,
por teu mal,
mui vazia do ilhal.
Dom Alvaro d’Ataide.
Barguilha de gram valia,
chea de lãa ou de pena,
por nom andares vazia
enche-te de carne ajena
ou t’encherei de la mia.
Fizeste d’ũ mao retalho
de borcado, feito em tiras,
pera pequeno tassalho
grande outeiro de mintiras.
Pelo qual logo ordena,
como nom ande vazia,
enche-a de carne ajena
ou t’encherei de la mia.
Letreiro d’Antique d’Almeida aa barguilha.
Aqui jaz o encurtado
que o mundo mal logrou,
aqui jaz quem nom pecou
contra Deos ũ soo pecado.
Aqui jaz quem nunca sono
fez perder a seu senhor,
aqui jaz quem a seu dono
nunca fez vender penhor.
Ponhamos-lhe por ditado,
pois tam maa vida passou:
Aqui jaz quem nom gostou
deste mundo ũ soo bocado!
O Coudel-moor ao letreiro.
Aqui jaz quem sempre jaz
dormente, mas nunca dorme,
leixem o viver em paz,
pois que jaz e nunca faz
de si forma em que enforme.
Aqui jaz quem sem comer
jaz em som mais que de farto,
aqui jaz sem se mover,
que jaz fora de poder
de matar ninguem de parto!
Dom Goterre por si às damas.
Assi me veja eu em Beja
muito aa minha vontade,
com’isto vai com enveja,
mas nam jaa por ser verdade.
Senhoras, por meu repairo,
a quem nisto dovidar
eu lhe espero de mostrar
o contrairo.
239
CG, III, 590
DE DOM GOTERRE AOS GIBÕOES DE FERNAM DA SILVEIRA E DOM PEDRO DA SILVA,
QUE FEZERAM DE BORCADO COM MEAS MANGAS E COLAR DE GRAAM.
Sempre vivam suas famas,
destes jibões que fizestes,
com que tanto prazer destes
eestas damas.
Polo qual me dam cruzados,
mil presentes de lacõoes,
por lhe dar bem apodados
o vosso par de gibõoes,
do teor destes colhõoes
abrasiadaos.
Dom Rodrigo de Castro.
Eu disse qu’eram corais
deles coma de centolas
ou bicos de tarambolas
ou d’algũas aves tais,
ou pernas, pees de perdizes,
qual quiserdes destas tres,
ou os vermelhos narizes
de Jam Garcês.
Outra sua.
Senhores, se me tomais
as d’onça de Pero Feo,
elas foram mais d’arreo,
mas nam jaa tam cordiais.
Temos grandes presunções,
andamos mui abalados
de ter tam bem apodados
o vosso par de gibõoes
aguiarados.
O Coudel-moor.
Mais que francelha
andam os gibõoes maneiros
e decem, nam referteiros,
a ezcarlata que semelha
coor de telha.
Ũ pouco mais efaimados
do outro que se desdoura,
os gibõoes aguiarados
filharam polos costados
ũa toura
daquestes perros fanados.
Mas pardelha
assaz andam de roleiros,
pois decem a custureiros
d’ezcarlata mal vermelha
cor de telha.
240
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
AUTOR: GERALDO AUGUSTO FERNANDES
TÍTULO: FERNÃO DA SILVEIRA, POETA E COUDEL-MOR: PARADIGMA DA
INOVAÇÃO NO CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE RESENDE
ERRATA
Localização Erros Correções
Pág. 7 inovation innovation
Pág. 11 exclusivamente desconside-se esta palavra
Pág. 12 exaurindo a paciência pode exaurir
Pág. 14 fosse um dia seja um dia
Pág. 15, nota 13 p. 221-224 p. 229-231
Pág. 17, nota 26 florecerá florescerá
Pág. 25 se valeu delas se valeu deles
Pág. 30 seleta recolha
Pág. 34, nota 38 no ...esse a nos...essa
Pág. 37, nota 63 as trovas o as trovas do
Pág. 47-48 O último parágrafo da p. 47 une-se ao primeiro da p. 48.
Pág. 54 A primeira linha do segundo parágrafo é texto meu, em português,
deslocando-se portanto, do texto citado, em espanhol.
Pág. 60 Galícia Galiza
Pág. 61 verso inicial verso inicial das estrofes 3 e 4
Pág. 70 sendo, príncipe..., França sendo príncipe... França
Pág. 75, nota 161 Capíttulo Capítulo
Pág. 88, nota 196 Vide nota (169) Vide nota (171)
Pág. 95 Na divisa, “eu-lírico” Na divisa, o “eu-lírico”
Pág. 103, nota 211 preságio preságio (sic)
Pág. 104, nota 212 estamos estou
Pág. 108 escrevanhinha escrevaninha
Pág. 118 escritivas descritivas
Pág. 124 sétimos sétimo
Pág. 130, nota 264 de um única de uma única
Pág. 132 A última frase foi repetida na primeira linha da p. 133.
Pág. 132, nota 274 O número da nota não aparece no rodapé (última linha).
Pág. 138, nota 285 nota (54) nota (56)
Pág. 139, nota 287 refências referências
Pág. 148, nota 300 p. 140 p. 139
Pág. 171 ao não disfarçar-se ao não se disfarçar
Pág. 173 inicio início
Pág. 181 neste capítulo neste subcapítulo
Pág. 183, nota 383 Vide p. 81 Vide p. 87
Pág. 191 Faltou a fonte da poesia: In: Jornal de Poesia [s.d.]. disponível em
<http//www.secrel.com.br/jpoesia/ac13.html>. Acesso em
23.nov.2000.
Pág. 200, 202, 204, 209, 210 As páginas referidas nas notas de rodapé remetem às do trabalho
lido.
Pág. 208 nota (250) nota (251)
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