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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
A inclusão digital e a reprodução do
capitalismo contemporâneo
Edilson Cazeloto
Doutorado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2007
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
A inclusão digital e a reprodução do
capitalismo contemporâneo
Edilson Cazeloto
Doutorado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2007
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a
orientação do Professor Doutor Eugênio Trivinho.
Área de concentração: Signo e significação nas Mídias
Linha de pesquisa: Cultura e ambientes midiáticos
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
A inclusão digital e a reprodução do
capitalismo contemporâneo
Edilson Cazeloto
Doutorado em Comunicação e Semiótica
Banca Examinadora
São Paulo
2007
Resumo
Título: A inclusão digital e a reprodução do capitalismo contemporâneo
Autor: Edilson Cazeloto
Orientador: Eugênio Trivinho
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
A presente Tese de Doutorado está consagrada ao estudo da significação histórica e cultural
dos Programas Sociais de Inclusão Digital (PSID), definidos como o conjunto de iniciativas
para a disseminação do uso de ferramentas informáticas entre grupos sociais alijados do
acesso às tecnologias digitais, sobretudo por razões de ordem econômica.
Tais programas são analisados no contexto vigente de reestruturação do capitalismo e das
relações hierárquicas internacionais nele engendradas. Esse contexto será analisado com
base no repertório crítico e teórico da área de Comunicação, que as relações capitalistas
contemporâneas servem-se intensivamente da criação e circulação de signos como forma de
apropriação de valor. No interior dos processos de comunicação, destacam-se, como setor
de vanguarda, os chamados “meios digitais em rede”, sobre cuja disseminação de
ferramentas informáticas se debruçam os PSID.
O problema de pesquisa radica no fato de que a apropriação de técnicas digitais, como as
possibilitadas pelos PSID, não atinge seus objetivos: os resultados dessas políticas são
restringidos ou mesmo anulados pela própria lógica de reprodução do capitalismo, a qual
necessita, hoje, do processo de informatização social para produzir valor.
A principal hipótese de trabalho advoga, assim, a vigência de uma inclusão subalterna,
promovida pelos PSID como forma de valorizar os produtos típicos da cibercultura pela
exploração extensiva e intensiva de mão-de-obra específica, demandada pela organização
contemporânea do capitalismo. Em outras palavras, os PSID atuam como fator de
agravamento da dominação a que sua “clientela” está submetida e não como força
emancipatória, contrariando os próprios pressupostos desses programas.
Como o plano da obra envolveu exclusivamente uma reflexão de tipo teórico e
epistemológico, a metodologia adotada baseou-se fundamentalmente em pesquisa
bibliográfica, norteada pela preocupação em relação à questão da crítica social. A estrutura
da argumentação divide-se em três áreas, a saber: 1) capitalismo contemporâneo e
indistinção entre economia e cultura; 2) a comunicação calcada em vetores de
informatização do cotidiano e de saturação mediática; e 3) inclusão digital e organização
social da cibercultura.
O quadro teórico de referência é formado por autores contemporâneos como Baudrillard,
Bauman, Giddens, Kumar, Sfez, Trivinho e Virilio, entre outros, e se baseia nas
perspectivas da dromologia, do pós-estruturalismo, do pós-modernismo, do pós-marxismo,
da teoria da biopolítica e da crítica atual da comunicação e da civilização mediática.
O resultado da pesquisa pretende contribuir para uma compreensão renovada sobre o tema,
e, sobretudo, para a desmistificação do papel social e histórico da inclusão digital.
Palavras-chave:
Comunicação; Capitalismo contemporâneo; Informatização; Saturação mediática; Glocal;
Inclusão digital.
Title: Digital inclusion and the reproduction of contemporary capitalism
Author: Edilson Cazeloto
Adviser: Eugênio Trivinho
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Program of Post-Graduate Studies on Communication and Semiotics
Abstract:
This Doctoral Thesis is dedicated to the study of the historical and cultural significance of
Social Programs of Digital Inclusion (SPDI), defined as a set of initiatives aimed at
disseminating the use of informatics tools among social groups excluded from access to
digital technologies, above all for reasons of an economic nature.
These programs are analyzed in the current context of the restructuring of capitalism and of
the international hierarchic relations it engenders. This context will be analyzed based on
the critical and theoretical repertoire of the area of Communications, since contemporary
capitalist relations make intensive use of the creation and circulation of signs as a form of
value appropriation. Within the processes of communication, the so-called “digital network
media”, whose dissemination of informatics tools are the linchpin of SPDI, stand out as
forerunners.
The research problem is founded on the fact that the appropriation of digital techniques
such as those enabled by SPDI does not achieve its objective; in other words, the outcomes
of these policies are restricted or even voided by the very logic of reproduction of
capitalism, which, today, needs the process of social informatization in order to produce
value.
The principal hypothesis of this work therefore advocates the existence of a subordinate
inclusion, promoted by SPDI as a form of valuing the typical products of cyberculture
through the extensive and intensive exploitation of specific labor, which is required by the
contemporary organization of capitalism. In other words, SPDI act as an aggravating factor
of the domination to which their “clientele” are subjected and not as an emancipative force,
thus contradicting the very purposes of these programs.
Because the workplan of this research involved exclusively theoretical and epistemological
reflection, the methodology adopted here was basically founded upon bibliographical
research, guided by concerns regarding the issue of social critique. The structure of the
argument is divided into three areas, namely: 1) contemporary capitalism and indistinction
between economy and culture; 2) communication based on vectors of informatization of the
quotidian and of mediatic saturation; and 3) digital inclusion and social organization of
cyberculture.
The theoretical body of reference is composed of contemporary authors such as
Baudrillard, Bauman, Giddens, Kumar, Sfez, Trivinho and Virilio, among others, and is
based on the perspectives of dromology, post-structuralism, post-modernism, post-
Marxism, the theory of biopolitics, and the current critique of communications and of the
mediatic civilization.
The findings of this research contribute toward a renewed understanding of the theme and,
above all, to the demystification of the social and historical role of digital inclusion.
Keywords: Communication; Contemporary capitalism; Informatization; Mediatic
saturation; Glocal; Digital inclusion.
Sumário
Parte I
As transformações do capitalismo: contexto da inclusão digital
Introdução: um novo contexto histórico 3
Capítulo 1: o universo do trabalho 12
1.1. O trabalho na era pós-industrial 13
1.1.1. O trabalho imaterial 16
Características do trabalho imaterial 20
1.2. A desqualificação do trabalho 22
1.2.1. Especialização flexível 25
Capítulo 2: a questão do valor 29
2.1. O valor na produção contemporânea 29
2.1.1. O monopólio simbólico 32
2.2. O processo de valorização no consumo 34
2.2.1. A estética da mercadoria 35
2.3. A fusão economia/cultura 39
Parte II
Capitalismo, comunicação, informatização
Nota introdutória:
Saturação mediática e informatização do cotidiano:
vetores de transformação do capital 43
Capítulo 1: a saturação mediática 45
1.1. A rede glocal 49
1.1.1. O “Império” como momento político do glocal 51
1.1.2. A hegemonia difusa do “Império” 55
Capítulo 2: A informatização do cotidiano 60
2.1. Primeiro eixo de análise: a aceleração 61
2.2. Segundo eixo de análise: a insegurança estrutural 67
2.2.1. A glocalização da insegurança 70
2.3. Terceiro eixo de análise: a individualização 75
2.3.1. Informática, individualização e identificação 78
Capítulo 3: a estratificação social da cibercultura 83
3.1. A estratificação social no campo do trabalho 88
3.1.1. Uma elite para além das classes 90
Parte III
A inclusão digital na cibercultura
Nota introdutória:
Os Programas Sociais de Inclusão Digital 97
Capítulo 1: Hierarquia cibercultural e inclusão subalterna 101
1.1. A divisão do trabalho no “Império” 107
Capítulo 2: A Megainfoburocracia: um modo de dominação 112
2.1. A necessidade da inclusão digital: lugares e atores 114
2.1.1. A ampliação de mercados 120
2.1.2. Qualificação e remuneração da mão-de-obra 122
A qualificação vazia da informática 126
2.1.3. Interatividade e produção flexível 128
Capítulo 3: A inclusão digital como inclusão subalterna na cultura _ 132
3.1. O autoritarismo cibercultural 134
3.2. A política na cibercultura 136
3.2.1. A política identitária 140
Capítulo 4: Sociedade civil, Estado e Mercado: agentes da inclusão digital 144
4.1. A inclusão digital como política de Estado 145
4.2. A inclusão digital como ampliação da competitividade 151
4.3. A inclusão digital como direito civil 152
Capítulo 5: A questão do “software livre” 155
Conclusão:
Inclusão digital: totalitarismo e crítica 161
Referências Bibliográficas 165
A inclusão digital e a reprodução do
capitalismo contemporâneo
Parte I
As transformações do capitalismo:
contexto da inclusão digital.
3
Introdução
Um novo contexto histórico
Os esforços pela inclusão digital se tornaram um consenso social. Em torno dessa
“nova necessidade”, articulam-se atores sociais dos mais diversos campos e matizes
ideológicas: trabalhadores, empresariado, Estado, terceiro setor, partidos, redes de varejo,
indústrias, produtores e distribuidores de software e hardware, igrejas, lideranças
comunitárias. A lista de organizações e iniciativas poderia seguir quase indefinidamente,
em escala global. Todos empenhados em exorcizar um novo fantasma, que ameaça deixar
uma parte gigantesca da humanidade no mais completo obscurantismo: a exclusão digital.
Como todos os demônios temíveis, essa ameaça de privação da luz indireta das telas
recebe vários nomes: apartheid digital, tecno-apartheid, digital divide ou abismo
tecnológico, entre outros. Em comum, a percepção de que, se não forem tomadas medidas
corretivas, a concentração de acesso aos equipamentos informáticos tenderá a ampliar a
distância entre os ricos e os pobres, provocando uma cisão irrecuperável na combalida
justiça social. A visão consensual que se estabeleceu nas sociedades tecnologicamente
desenvolvidas é a de que a exclusão digital veio, portanto, somar-se ao arcabouço de
misérias e humilhações sofridas por aqueles que não possuem os elementos necessários
para participar da sociedade de consumo.
Para evitar essa “tragédia humanitária”, diversos segmentos da sociedade
organizam-se e constituem uma nova esfera na luta pela igualdade de oportunidades: os
programas de inclusão digital. Com o objetivo declarado de levar a informatização ao
“povo”, esses programas lançam mão das mais variadas estratégias de disseminação das
máquinas e dos conhecimentos necessários à plena integração dos menos afortunados àa
sociedade tecnológica. Acesso coletivo, subsídio para a compra privada, cursos
profissionalizantes, softwares de baixo custo e toda uma parafernália institucional e
tecnológica são utilizados para tentar fechar esse abismo e permitir que o computador
avance por todo o tecido social.
Na marcha dos programas de inclusão digital é a própria sociedade que se cada
vez mais enredada ao computador. Quanto mais ele se torna utilizado por todo e qualquer
segmento da sociedade, mais ele se coloca como o mediador necessário para o conjunto das
4
atividades humanas. O processo, que Trivinho (2001a) denomina “reescritura estrutural”,
é visível: são poucas e declinantes as formas de agir e se comunicar nos grandes centros
urbanos que não passem, em algum momento de sua cadeia produtiva, pela onipresença do
chip. São muitas e ascendentes as esferas, antes dominadas pelas relações não-comerciais e
não-tecnológicas, a se tornarem “digitalizadas”, em um processo de convergência mediática
que engole desde as relações de trabalho até o mais prosaico bate-papo, passando pela
religiosidade e pela sexualidade.
O fato é que, em pouco mais de cinco décadas, o computador passou de uma
máquina enorme e desajeitada, criada para o cálculo de trajetórias balísticas no campo
militar, a essa entidade semi-divina, presente de maneira ativa no cotidiano de uma parte
muito expressiva dos seres humanos.
1
É como se a “eficiência” , a “racionalidade” e a
“velocidade”, características que se atribui aos equipamentos informáticos, tivessem, na
verdade, um caráter latente de obrigatoriedade para a civilização humana. agora, no
entanto, com o avanço tecnológico, pudemos finalmente criar maneiras de materializar no
mundo vivido essa “necessidade antropológica”.
A inclusão digital seria, então, uma inclusão na humanidade. Nos discursos de
legitimação sobre o tema, emerge o ponto de vista que somente a máquina,
paradoxalmente, permite que sejamos homens e mulheres, engajados plenamente no
convívio uns com os outros e na esfera da produção. Fora da informática, a morte para o ser
social. Porém, como escreveu Marcuse (1967, p. 17), em relação a outro momento
histórico,
o fato de a grande maioria da população aceitar e ser levada a
aceitar essa sociedade não a torna menos irracional e menos
repreensível.
O caminho reflexivo que pretendemos desenvolver permitirá que se compreenda
como uma máquina obscura pôde se transformar em uma necessidade plenamente aceita e
incorporada pela quase unanimidade das forças sociais.
2
Além disso, queremos identificar
1
A onipresença do computador deve ser estendida mesmo àqueles que nunca tocaram (e talvez nunca venham
a tocar) em um mouse. Em cidades como São Paulo, assim com em todas as metrópoles mundiais, o chip está
presente na vida de todos, embutido, por exemplo, nos cartões eletrônicos usados pelo sistema de transporte
coletivo.
2
Daí o caráter imediatamente político e emergencialmente crítico das tecnologias digitais. É preciso trazer o
tema ao “campo de debates políticos e, conseqüentemente, sair da unanimidade atual que impede toda a
reflexão crítica” (WOLTON, 2004, p. 152).
5
se há, efetivamente, a possibilidades concreta de que a informatização do mundo possa
alicerçar devidamente o desejo de justiça social, oferecendo uma forma de “resgate” de
populações marginalizadas. Queremos, finalmente, cotejar a tecno-utopia emancipatória
construída em torno da idéia de “inclusão digital” com os efeitos produzidos pela
informatização das relações sociais,
3
ou seja, avaliar o processo de ganhos e perdas que está
implicado na relação entre “inclusão digital” e “informatização”.
Para isso, é importante começar por uma questão metodológica: discutir ou teorizar
o papel da inclusão digital nas sociedades contemporâneas implica assumir um
posicionamento acerca do conjunto de transformações pelas quais teriam passado essas
sociedades no decurso das últimas décadas. A inclusão digital é um fenômeno
contemporâneo e, como tal, requer um repertório teórico e epistemológico ajustado ao
objeto que busca compreender. Tal posicionamento, no entanto, a fim de que não padeça de
um excessivo unilateralismo, deve manter-se ciente de seus limites, tanto históricos quanto
geopolíticos. O que quer que esteja acontecendo certamente tem dimensões globais, mas
não afeta o mundo de maneira eqüitativa. sociedades, e mesmo grupos específicos no
interior destas, nas quais as transformações alegadas seriam mais sensíveis do que em
outras. Há regiões em que os processos de transformação encontram-se em um estágio mais
avançado, ao passo que outras mal permitem divisar alguma mudança, tamanho o peso de
estruturas tradicionais e de relações econômicas que experimentaram poucas variações nos
últimos séculos.
Como avaliar, então, a mudança? O critério quantitativo, expresso pela soma
simples do mero de seres humanos que estariam submetidos a “novas” formas de
relações sociais parece insuficiente, dado que este não pode refletir tendências, mas apenas
testemunhar contradições e desequilíbrios no avanço destas formas.
Não obstante as estatísticas apontarem para a existência de uma vasta multidão
humana que passa ao largo das questões políticas, sociais e econômicas presentes
primordialmente nas sociedades tecnologicamente avançadas do ocidente, há indícios
empíricos e teóricos para sustentar que as linhas de força destas últimas acabam por
3
Seguindo os passos de Weber (2004, p. 41), o que se quer compreender com a idéia de “papel” da inclusão
digital não é, de forma alguma, resultado de uma visão funcionalista, mas a sua significação cultural.
6
influenciar e estabelecer diretrizes para as primeiras, principalmente pela difusão quase
total das formas de relação implicadas no modo capitalista de produção.
O capitalismo transformou o mundo e, durante esse processo, se transformou. O
novo ambiente que queremos descrever, portanto, estaria relacionado a mudanças no
próprio modo de produção, tomado como “força civilizatória” que se faz sentir mesmo
onde não é imediatamente perceptível. Esse capitalismo global impõe as metas e os padrões
de desenvolvimento, regula as relações trabalhistas, delimita os marcos simbólicos,
desestabiliza as formas culturais tradicionais, estabelece os critérios de aferição das
performances e constrói a hierarquia internacional de privilégios e comando. Ninguém
escapa da rede capitalista, embora, individualmente ou na escala da sociedade, existam
formas de relacionamento, tensão e adesão bastante diversas.
É neste sentido que, metodologicamente, uma visão acurada das manifestações da
cultura e da produção nas sociedades tecnologicamente desenvolvidas, marcadas pelas
relações capitalistas, pode ser generalizada para o conjunto das sociedades (não sem prever
contradições, escalas e hierarquias), uma vez que uma das principais características do
sistema atual é ter se tornado global, ainda que, em alguns momentos, apenas por meio de
uma influência indireta ou difusa.
4
Para concentrar em um termo-chave esse conjunto de mudanças que se insinuam em
setores das sociedades tecnologicamente avançadas e que se colocam como um suposto
paradigma para o conjunto das relações globais, será utilizada a idéia de “pós-
modernidade”. Esta escolha, embora suscite polêmicas e discussões por vezes acaloradas,
será empregada dentro de um escopo bem delimitado, o qual cumpre elucidar
preliminarmente.
A noção de que exista (ou tenha existido) um período histórico denominado “pós-
modernidade” não é um consenso nas ciências humanas. Parte da idéia de “pós-
modernidade” é particularmente sujeita a críticas porque implica fixar, de antemão e
sempre de maneira mais ou menos arbitrária, quais critérios serão utilizados para dividir o
4
Jameson (2002, p. 14) o notara, ao afirmar que o próprio processo produtivo baseado no mercado se
tornou uma mercadoria indistinguível de qualquer produto que o constitui. É assim que o “estilo de vida” das
nações tecnologicamente desenvolvidas se torna um “fetiche” global. Por outro caminho, Michalet (1984)
busca demonstrar que o crescimento das multinacionais originárias dos grandes centros capitalistas tem como
principal efeito a “exportação” do próprio capitalismo e das relações sociais que lhes são inerentes. É isso que
permite a esse autor falar em “economia mundial”.
7
continuum histórico em “fatias” delimitadas para, em seguida, rotulá-las umas em relação
às outras (assim como é feito com as idéias de “tradição” e “modernidade”, por exemplo).
Soma-se a essa tarefa a dificuldade de que os parâmetros, sejam quais forem, dificilmente
seriam generalizáveis ao conjunto das sociedades humanas, gerando conclusões do tipo
“etnocêntricas” ou “evolucionistas”, ou seja, de que um determinado país ou região
encontra-se em uma “era” mais “avançada” que outro. Por exemplo, não é difícil esbarrar
com notícias na imprensa tratando como “medievais” as relações sociais em alguns países
do Oriente Médio e justificando-se, por esse recurso, as tentativas, às vezes violentas, de
“conduzi-los à modernidade”.
Outra dificuldade em relação à pós-modernidade é o fato de que ela não possui um
relato fundador ou marcos temporais definidos e consensualmente aceitos (como a
“modernidade” ou a “idade média”) para marcar o seu ingresso na história das fronteiras
imaginárias entre as épocas (TRIVINHO, 2001a, p. 43).
De qualquer maneira, a noção de pós-modernidade tem a vantagem de frisar
alterações, mais ou menos relevantes, no modo de pensar e produzir das sociedades
industrializadas. Embora outros autores prefiram denominar essas alterações de formas
distintas, como “capitalismo tardio” (Mandel), “modernidade líquida” (Bauman) ou
“modernidade reflexiva” (Giddens) isso não altera o contexto de uma análise que almeje
focar nas transformações do capitalismo a partir da segunda metade do século XX. A pós-
modernidade, na maneira como pretendemos compreendê-la, marca a emergência de novos
modos de produção e acumulação de riquezas, bem como de organização do trabalho e
estratégias de controle e integração social.
5
No entanto, o prefixo “pós”, não pode ser entendido como “ruptura” ou
transformação radical, mas como o resultado de um desenvolvimento contínuo da própria
modernidade, engendrando uma série de novos arranjos, os quais, por sua vez, se
acumularam a ponto de marcar diferenças notáveis em relação às formas precedentes.
Como lembra Jameson (2002, p. 16), a pós-modernidade não se refere a uma “ordem social
totalmente nova”, mas a um conjunto de modificações no próprio capitalismo. Daí o autor
usar como sinônimas as expressões “pós-modernidade” e “capitalismo global” e afirmar
5
Excluem-se, desta forma, as transformações mais diretamente relacionadas ao âmbito das artes ou da
estética, normalmente agrupadas em torno da noção de “pós-modernismo”.
8
que a pós-modernidade, como gica cultural vigente no mundo contemporâneo, é o
momento em que o capitalismo coloniza o “inconsciente e a natureza” (Ibid., p. 61).
Para um breve incursão nas teorias que versam sobre esse desenvolvimento,
seguiremos o trabalho de Trivinho.
6
De acordo com este autor, a pós-modernidade têm sido
normalmente descrita ao longo de três eixos:
1. Como época histórica relativamente definida, equivalendo à noção de “forma
social” calcada em elementos do capitalismo.
2. Como condição cultural de época (“uma determinada maneira de ser e estar no
mundo, uma nova sensibilidade individual e coletiva”).
3. Como corrente de pensamento propositivo-instituinte, na qual assume a
denominação genérica de pós-modernismo”, estando mais articulado a campos
como a arte, literatura e filosofia.
7
Trivinho argumenta, no entanto, que estes eixos, tomados separadamente, são
insuficientes para dar conta do conjunto de transformações as quais se propõe explicar.
Assim, sugere que a pós-modernidade seja entendida pela atuação conjunta, em graus e
escalas distintos, de uma série de “vetores estruturais” “tendências ou processos
socioculturais internacionais de longo prazo que perpassam a totalidade da vida humana
em diferentes localidades do mundo”.
Essa forma de tratamento do tema tem a vantagem de permitir a compreensão
dinâmica das transformações em curso. que os “vetores” são apreendidos nos períodos
de longa duração, a pós-modernidade pode ser talhada sem o recurso aos grandes marcos
históricos. A percepção das transformações se menos por um corte radical do que pelo
acúmulo de tendências que, ao convergirem em um dado momento, se tornam hegemônicas
e possibilitam uma interpretação do todo social a partir de suas características, até então
latentes.
Assim, a dominância de alguns “vetores” os quais, em si, não são necessariamente
novos mas que emergem simultaneamente no horizonte das sociedades contemporâneas
seria “o grande diferencial das sociedades tecnológicas do pós-guerra em relação a etapas
6
Para evitar o excesso de notas, indicamos previamente que as considerações seguintes são todas oriundas de
Trivinho (2001a, p. 32-58).
7
Em obra mais recente, Trivinho (2007, p. 377-378) ainda acrescenta mais uma vertente: a pós-modernidade
pode ser tratada “como uma perspectiva teórica relevante (sobretudo no âmbito da filosofia e da teoria social).
9
pregressas da forma social capitalista”. Nomeadamente, os vetores que constituem a
condição pós-moderna seriam, entre outros:
8
1. Fim da crença coletiva nos chamados “metarrelatos”, nas utopias e nos
grandes modelos de explicação da realidade;
2. Fim da crença e da legitimação dos grandes conceitos universalizantes, tais
como “Deus”, “História”, “Ser” etc;
3. Embaralhamento das oposições binárias como “esquerda e direita”, “público
e privado”, “local e global” etc;
4. Transformação do social em “social mediático” e da memória cultural em
memória “tecnológica”;
5. Espetacularização da cena política;
6. Estetização generalizada dos espaços;
7. Tecnologização acelerada de todos os domínios humanos;
8. Lógica do excesso como fundamento de toda e qualquer produção;
Não será objeto deste trabalho uma análise mais profunda de cada um destes
vetores, mas a conclusão extraída pelo autor de que, direta ou indiretamente, cada um deles
está ligado ao “desenvolvimento social do fenômeno comunicacional infoeletrônico”. Nas
palavras de Trivinho (2001a, p. 72), “comunicação eletrônica e pós-modernidade são, no
fundo, uma só e mesma coisa”.
A pós-modernidade, de qualquer maneira que seja concebida, relaciona-se
diretamente, portanto, com o advento da informatização do cotidiano e com a expansão das
formas de comunicação eletrônicas. Não se trata, no entanto, de uma análise baseada em
“determinismo tecnológico”, mas da constatação de uma mútua implicação: os vetores da
pós-modernidade são, ao mesmo tempo, condição e resultado da estrutura material e
simbólica proporcionada pela ascensão das ferramentas e práticas culturais envolvidas no
universo infoeletrônico. Essa maneira de encarar o mundo contemporâneo começa a
desenhar o relevo que se pretende dar aos programas de inclusão digital, uma vez que eles
desempenham o papel de transmitir o modus operandi da civilização mediática a grupos
específicos da sociedade.
8
A lista foi aqui resumida, mas conta ainda com os seguintes vetores: 9. Militarização velada da vida
cotidiana; 10. Auto-referencialidade de processos, fenômenos e tendências; 11. Neutralização das
negatividades dialéticas; 12. Perda das fronteiras e pulverização das classes sociais.
10
Assim, é possível abdicar da discussão sobre a pertinência teórica ou a exatidão da
idéia de pós-modernidade, utilizando-a, apenas instrumentalmente, para identificar, de
forma preliminar, a forma social que emerge a partir da segunda metade do século XX sob
o lastro da difusão dos meios de comunicação eletrônicos.
Essa forma social, como argumentamos, não implica ruptura histórica, mas o
aprofundamento de condições latentes em todo o período moderno (e até anteriores a esse).
A hipótese que trabalharemos a seguir é a de que a pós-modernidade ingressa na história
trazida pela mão do capitalismo industrial, como resposta a transformações próprias da
dinâmica deste modo de produção, principalmente no âmbito tecnológico. Essa demarcação
de âmbito não deve se deixar reduzir a uma visão “economicista” das sociedades e
tampouco reproduzir a crença de certo marxismo na determinação incondicional da
“superestrutura” pela “infra-estrutura”. Ela deriva das próprias características das
sociedades em questão, marcadas pela indiscernibilidade entre o econômico e o cultural
(JAMESON, 2002) e pela dominância dos vetores da informatização e da comunicação,
como se verá.
Assim, a visão econômica que emerge deste enfoque dado à história do capitalismo
será abordada por um viés mais “filosófico”, como maneira genérica de conhecer e
compreender a produção e distribuição de riquezas (doravante materiais ou “simbólicas”,
tangíveis ou não), bem como as formas de reprodução e hierarquização das sociedades com
base nessas riquezas. As categorias mais “clássicas” da economia serão trazidas à
argumentação apenas na medida em que forem indispensáveis a uma elucidação da
dinâmica geral, ainda que isso possa implicar, para os especialistas da disciplina, uma
excessiva simplificação.
Acompanhamos aqui, em partes, o recorte de Rifkin (2001), para quem a diferença
entre a modernidade e a pós-modernidade é que a primeira estava ligada a uma fase do
capitalismo “fundada na transformação da terra e dos recursos em commodities, na
contratação de mão-de-obra humana, em bens manufaturados e na produção de serviços
básicos”, enquanto a segunda diz respeito a um capitalismo “baseado no tempo, na cultura e
na experiência vivida transformados em commodity(Ibid., p. 154). Não se trata, portanto,
de reduzir a pós-modernidade ao âmbito exclusivo do econômico, mas de escolher um certo
11
ponto de vista mais amplo a partir do qual as mudanças possam ser apreendidas com base
em critérios claros e objetivos.
Sob esse prisma, o capitalismo (em geral) será compreendido como um modo de
organização da produção e das relações sociais com duas características fundamentais: 1) a
dominância da forma-mercadoria como padrão para os produtos do trabalho humano e 2) a
criação da mais-valia como finalidade última do aparato produtivo. Resumindo,
o capitalismo é um sistema de mercantilização universal e de produção de mais-
valia. Mercantiliza as relações, as pessoas e as coisas. Ao mesmo tempo,
mercantiliza a força de trabalho, a energia humana que produz valor. (IANNI,
1982, p. 18).
Alegar que o capitalismo passou por transformações nas últimas décadas faz
sentido, portanto, se forem detectadas alterações na natureza da forma-mercadoria, na
produção de mais-valia e na divisão social do trabalho da qual essa é resultado. É nesse
sentido que se torna primordial uma breve discussão sobre uma hipótese preliminar: a
“mudança” no capitalismo que marca a passagem da modernidade para a pós-modernidade
torna-se inteligível a partir de uma análise (a) das formas de divisão e organização do
trabalho e (b) do processo de criação e distribuição de valores.
Capítulo 1
O universo do trabalho
A tradição marxista (e mesmo um número expressivo de analistas sociais não
identificados a ela) acostumou-se a pensar a categoria do trabalho como um constituinte
ontológico. Neste viés, entendido de maneira alargada como forma genérica de
relacionamento entre o homem e a natureza, o trabalho surge como um modo de
subjetivação e via privilegiada de apropriação da cultura. É, por exemplo, a organização do
trabalho que define a diferença entre o artesão da idade média e o proletário industrial,
diferença essa que será o critério fundamental para a percepção de uma ruptura entre essas
fases históricas. A forma típica de organização do trabalho torna-se, portanto, o fator
determinante para compreender as mudanças sociais mais gerais.
Da mesma forma, toda a idéia de sociedade cindida em classes” deriva da
existência de posições distintas no modo de produção, normalmente identificadas com a
forma do trabalho. O trabalho é, nesse viés, também um critério de demarcações e divisões
sincrônicas e de sua hierarquização, no âmbito de uma sociedade.
Para o pensamento socioeconômico, portanto, o trabalho é tido como uma
“centralidade” ou um elemento-chave na compreensão de todo o tecido social, capaz de,
quando não determinar, ao menos influenciar largamente a concepção que o homem tem de
si mesmo, da natureza e das relações sociais. Desta forma, mudanças na organização e
natureza do trabalho tornam-se critérios particularmente importantes para a compreensão
do conjunto de mudanças nas sociedades tecnologicamente avançadas do mundo
contemporâneo.
Vários autores sustentam que uma das transformações mais radicais de nosso tempo
seria justamente o fato de que o trabalho deixou de ser uma centralidade (BAUMAN,
2001; GORZ, 1982; BAUDRILLARD, 1996a). O desenvolvimento das forças produtivas, a
hiper-especialização das categorias profissionais e a organização da sociedade em torno do
consumo (não mais da produção) seriam fatores que teriam lançado o trabalho a uma
posição subalterna (ainda que importante) na constituição das sociedades. Soma-se a isso o
chamado “desemprego estrutural” que se baseia no fato de que as tecnologias de produção
13
contemporâneas, se não tendem a eliminar postos de trabalho, certamente colaboram para
sua instabilidade e precarização.
1
Ainda que não se possa reiterar sem problematização esses fenômenos, é notável e
praticamente consensual, mesmo entre autores mais radicalmente ligados ao campo
marxista, que as formas de trabalho têm sofrido transformações acentuadas, principalmente
a partir da segunda metade do século XX. Essas transformações são normalmente
relacionadas à idéia de “pós-industrialismo”, que será considerada, no contexto desta
argumentação, como a forma de organização da produção típica da pós-modernidade.
Queremos, com isso, delimitar claramente os termos a que iremos nos referir: enquanto
“pós-modernidade” liga-se tanto a um momento histórico quanto a uma forma de
organização e reprodução da cultura, com base na generalização de técnicas
comunicacionais e informacionais eletrônicas, o “pós-industrialismo” corresponde às
tendências de organização da produção imbricadas no contexto mais amplo da “pós-
modernidade”. O pós-industrialismo, no entanto, não pode ser interpretado como uma
superação do modo de produção capitalista, mas como um rearranjo interno que tende a
realizar a recomposição da hegemonia do capital em um cenário de intensas transformações
sociais (BRAGA, 1995).
1.1. O trabalho na era pós-industrial
Segundo Kumar (1997, p. 14), o conjunto de idéias que pode ser agrupado em torno
da noção de “pós-industrialismo”
2
teve seu apogeu na década de 1970.
3
A percepção de um
grande número de analistas da sociedade é de que o desenvolvimento de novas formas de
1
A relação entre informatização e precarização do trabalho será melhor discutida adiante. Ressaltamos, por
hora, que a tendência claramente manifesta da automatização e informatização é a alteração da chamada
“composição orgânica do capital”. Temos uma ênfase cada vez maior em processos intensivos em capital, em
detrimento dos processos intensivos em trabalho. Veja-se Rattner (1985).
2
Vale aqui um resumo das características do pós-industrialismo que De Masi (2000, p. 33) deriva a partir dos
estudos de Bell: “1) a passagem da produção de bens para a economia de serviços; 2) a preeminência da
classe dos profissionais e dos técnicos; 3) o caráter central do saber teórico, gerador de inovação e das idéias
diretivas nas quais a sociedade se inspira; 4) a gestão do controlecnico e do caráter normativo da
tecnologia; e 5) a criação de uma nova tecnologia intelectual”.
3
Outra historia da do “pós-industrialismo foi contada por Mattelart (2004, p. 81–107), porém com uma
ênfase maior na genealogia desta idéia. Optamos pela versão de Kumar, uma vez que ela nos parece mais
aderente às características do modo de produção capitalista e, portanto, mais pertinentes aos objetivos deste
trabalho.
14
produção e acumulação estava sendo gestado no interior do capitalismo, de maneira a
demandar uma revisão mais ou menos ampla das categorias econômicas, sociais e políticas
vigentes e de seus principais autores como Weber, Durkheim e Marx.
Procedendo analiticamente, Kumar divisa três conjuntos de teorias que buscam
compreender essas mutações: a “sociedade da informação”, o “pós-fordismo” e o “pós-
modernismo”. Uma vez que tenha sido exposto o âmbito que a idéia de “pós-
modernidade” terá nesta argumentação (e que coincide apenas em parte com a visão de
“pós-modernismo” de Kumar), seguiremos buscando os termos de um consenso possível
entre as teorias do “pós-fordismo” e da “sociedade da informação”, como forma de
construir uma visão consistente para o “todo” que essas visões constituem na idéia de “pós-
industrialismo”.
Embora tente relativizar sua posição, Kumar termina por organizar esses conjuntos
teóricos em torno de pares dicotômicos. Enquanto a “sociedade da informação” é associada
a uma visão “otimista” e próxima ao chamado “pensamento de direita” (incluindo-se as
apologias à democracia de mercado e ao neoliberalismo), o “pós-fordismo” seria
predominantemente pessimista”, típico da “esquerda” e marcado pelo criticismo. O
enfoque do primeiro é o desenvolvimento naturalizado das forças produtivas. o segundo
sublinha criticamente as novas relações de produção. Mas o autor frisa, e esse ponto será
desenvolvido, que quaisquer que sejam as visões sobre a era s-industrial, elas
compartilham de um conjunto de concepções e pressupostos, dentre os quais se destaca a
generalização do uso de ferramentas da chamada tecnologia da informação (TI)”
(KUMAR, 1997, p. 48-49).
4
Sendo assim, as mudanças no capitalismo encontram-se, mais
uma vez, irremediavelmente associadas ao avanço da informatização, reforçando seus elos
com a categoria da “pós-modernidade”, de acordo com o estabelecido anteriormente.
Partiremos, então, deste consenso mínimo entre adeptos da “teoria da informação” e
do “pós-fordismo”: é o avanço da informatização que possibilita e favorece duas
transformações fundamentais que podem ser usadas para caracterizar o “pós-
industrialismo”. A primeira, central para as teorias da “sociedade da informação”, é que a
4
O uso de elementos de TI não se restringe aos setores industriais “de ponta”, mas compreende uma
transformação profunda em praticamente todas as áreas, graças ao fenômeno que Rattner descreve como
“deslocamento tecnológico”, ou seja, a incorporação, nos produtos e nos processos, de um único padrão ou
conjunto de insumos. No caso atual, são as ferramentas de TI que passam a ser “universalmente” válidas para
qualquer atividade econômica. Veja-se Rattner (1985, p. 45-46).
15
informatização “muda a própria fonte da criação de riqueza e os fatores determinantes da
produção. O trabalho e o capital, variáveis básicas da sociedade industrial, são substituídos
pela informação e pelo conhecimento” (KUMAR, 1997, p .24). Isso significa, para esta
vertente, nada menos que a superação da “lei do valor-trabalho”, uma constante da teoria
econômica que vai de Locke e Smith a Marx.
A segunda mudança fundamental, destacada pela linha dos “pós-fordistas”, refere-se
ao fenômeno da “especialização flexível”. Ao invés da rígida linha de montagem fordista,
direcionada para a produção em larga escala de um mesmo produto, a forma
contemporânea da indústria estaria sendo desenhada para suprir uma infinidade de
pequenos mercados dispersos e voláteis, sendo rapidamente adaptável às demandas que se
sucedem ao sabor dos modismos. Esse fenômeno ficou conhecido como a transição da
economia de escala para a economia de escopo (COHEN; ZYSMAN, 1987, p. 155; LASH,
1997, p. 145).
5
A própria centralidade da fábrica, como unidade básica produtiva, é
relativizada por modelos de terceirização e dispersão: cada empresa da cadeia produtiva se
especializa em um determinado componente ou processo (ganhando em agilidade) e o
produto final é apenas “montado” pela empresa-mãe, a qual, muitas vezes, não detém nada
a não ser uma marca comercial.
6
Means e Schneider (2000, p. 6) denominam esse modelo
de value-added community (comunidades de valor agregado ou VAC) e o conjunto das
relações entre essas empresas de metamercado, cuja principal vantagem seria a capacidade
de “possuir” os consumidores, criando uma relação de longo prazo (e, diríamos, de
dependência).
Em ambos os casos, de um modelo focado na prioridade da produção, passa-se a
outro, focado no consumo. Do ponto de vista das empresas, não se trata, a exemplo do que
fazia o fordismo, de encontrar os meios mais eficientes de produção, mas de fomentar o
ciclo de criação e acúmulo de valor a partir de uma “escuta” precisa e detalhada do
mercado consumidor. O uso de ferramentas informáticas, aliado à produção fragmentada
em pequena escala, permite um modelo ágil o suficiente para captar (e incentivar) o desejo
de grupos relativamente pequenos, modelando a oferta a partir da demanda.
5
Empiricamente, os mercados contemporâneos funcionam mesclando essas duas formas. Economias de
escala e de escopo são complementares e não mutuamente excludentes.
6
O processo de dissolução das empresas em cadeias produtivas globalizadas é analisado em detalhes por
Reich (1994).
16
As ferramentas de TI surgem, então, como técnicas de produção flexíveis o bastante
para imprimir pequenas (às vezes grandes) modificações na linha de montagem com
velocidade e baixo custo e como formas de coordenação da produção, dispersa globalmente
em unidades discretas. O exemplo mais claro talvez seja o de algumas montadoras de
automóveis que iniciam a produção de um veículo depois que o cliente tenha fechado o
negócio na concessionária, com as características que esse específico cliente solicitar
(produção on-demand). Todo o fluxo, do pedido à coordenação dos operários e máquinas,
distribuídos ao longo de uma cadeia de fornecedores dispersos, é realizado pelo
computador (KUMAR, 1997, p. 55-62).
Embora ambas as concepções permaneçam vulneráveis à crítica (principalmente de
ordem quantitativa, uma vez que esses modelos não descrevem o funcionamento da
totalidade e, talvez, nem da maioria das empresas contemporâneas), servem como uma
hipótese do surgimento de uma tendência e, principalmente, como forma de organização de
uma nova hierarquia, que ocorre o interior do metamercado no pós-industrialismo. As
(poucas) empresas que dominam o mercado global são, na verdade, organizadoras de um
processo produtivo disperso, proprietárias de marcas com forte apelo junto aos
consumidores (brand owners), com alta capacidade de inovação e flexibilidade e, é claro,
usuárias intensivas de tecnologias informáticas.
1.1.1. Trabalho imaterial
A produção flexível demanda uma mão-de-obra flexível (COHEN; ZYSMAN, 1987, p.
158). A percepção mais consensual é a de que os métodos chamados “pós-industriais”
promovem uma imediata desqualificação do trabalho manual, em benefício da prestação de
serviços e do trabalho dito “intelectual”, calcado no conhecimento e na capacidade de
inovação. As modalidades concretas deste tipo de trabalho podem ser agrupadas em torno
da noção de “trabalho imaterial”. Preliminarmente, entenderemos o “trabalho imaterial”
como a forma de relacionamento no processo produtivo capaz de realizar ou potencializar
a conversão entre capital simbólico e capital econômico.
7
7
A natureza deste “capital simbólico” e o modo desta conversão serão discutidos adiante.
17
Vale lembrar que o lugar que tem sido considerado característico, mas o exclusivo,
do trabalho imaterial é o setor de serviços, no qual a atividade desempenhada não pode ser
separada daquele que a desempenha. Ou seja, o “serviço” torna visível o trabalho imaterial
porque seu objeto não é a transformação de matérias, mas a relação entre prestador e
“usuário”; não ocorre, como tal, a troca de bens tangíveis ou de tempo de trabalho
objetivado, mas um processo cultural que envolve fatores subjetivos, como a “atenção”, a
“disponibilidade”, e a “satisfação”.
De fato, o crescimento sem precedentes do setor terciário, mesmo em economias
subdesenvolvidas, tem sido um dos indicadores mais utilizados para apanhar a
“desmaterialização do trabalho” e os meros mostram claramente o declínio do setor
industrial, principalmente nas grandes cidades (DE MASI, 2000, p. 29-36). a região
metropolitana de São Paulo, por exemplo, assistiu a um salto no número de trabalhadores
do setor de serviços nas últimas décadas. Em 1970, esse tipo de emprego representava 50%
da o-de-obra da região. Em 2005, o percentual foi de 70%, com perspectivas de atingir
80% em 2010. na última cada, o número de trabalhadores do setor terciário na região
aumentou 28%, com a absorção de quase 6, 5 milhões de pessoas. Chama a atenção que, no
interior do setor de serviços, as empresas que mais cresceram foram as que utilizam
ferramentas informáticas de maneira intensiva, as chamadas KIBS (Knowledge Intensive
Business Services), que experimentaram uma expansão de quase 70% no período entre
1998 e 2005.
8
Rifkin (2001, p. 43-44) também nota o crescimento das chamadas “indústrias
baseadas em informação” (finanças, entretenimento, comunicações, serviços e educação)
que, em 2001, responderam por 25% da economia dos Estados Unidos.
Mais relevante que as estatísticas de crescimento do setor terciário é a constatação de
que o “pós-industrialismo” modifica a própria natureza do trabalho direto, mesmo no
interior das indústrias. Assim, não se deve associar mecanicamente o trabalho imaterial à
noção de serviços pessoais”, mas levar em consideração o lugar central que ele ocupa na
produção de mercadorias tangíveis, com a prestação de serviços de marketing, propaganda,
assessoria, pesquisa etc. É como se a indústria passasse a se subordinar a uma lógica de
serviços na qual o produto em si perde espaço e importância para outras formas de
produção de valor (BRAGA, 1995, p. 110). O que marca o “pós-industrialismo” não é tanto
8
Dados do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Veja-se Júnior (2006).
18
o crescimento do setor de serviços, mas a subordinação que este impõe à lógica industrial.
9
Esse é o engano cometido por alguns críticos à noção de “pós-industrialismo”, como Cohen
e Zysman (1987). Eles afirmam que o setor de serviços e, indiretamente, as formas de
trabalho imaterial, na verdade dependem da produção industrial e podem florescer junto
com essa, uma vez que a indústria é o principal consumidor de serviços como o design e
propaganda. No entanto, o aspecto meramente quantitativo da relação entre estes setores diz
muito pouco. O fato de que a indústria precisa cada vez mais de produtos intangíveis, assim
como a migração das linhas de montagem para a periferia do sistema econômico, é também
um argumento para demonstrar uma profunda transformação na atividade fabril, ou seja, o
fato de que, cada vez mais, a criação de valor no modelo de produção atual implica um
distanciamento entre o trabalho direto e a mercadoria. Não é preciso ter uma definição clara
sobre a natureza do “serviço”, como querem Cohen e Zysman (Idem, p. 80), para perceber
a evidência de que as características do trabalho tendem a afastar o produtor direto da
manipulação de objetos concretos (as mercadorias). O fato é que a produção de valor não se
encontra mais prioritariamente na manipulação de matérias-primas, mas em características
imateriais associadas à mercadoria. Nas empresas de ponta pós-industriais, o trabalhador
direto é, cada vez mais, um prestador de serviços. Como afirma Gorz (2003b, p. 83-84),
Tanto o operador de uma refinaria, de uma máquina de laminar ou de uma
fábrica de massas alimentícias, ele não transforma, nem toca, o produto.
Pior ainda: ele supervisiona somente a usinagem de um semiproduto.
O trabalhador manual está a serviço da máquina, prevenindo paradas por falta de
insumos, realizando a manutenção de suas partes, cuidando para que as falhas não impeçam
que as máquinas “façam o seu trabalho”. O trabalho se torna apenas “prestação de tempo”,
na expressão de Baudrillard (1996a, p. 27).
Em muitos casos (como a tornearia na indústria metalúrgica e em praticamente todos os
setores da indústria gráfica), uma habilidade específica de transformação é substituída pela
vigilância e manipulação de uma interface digital. Mesmo que o operariado ainda seja um
fator vigente nas linhas de produção e que, certamente, ainda tenha uma expressividade
9
O mesmo critério pode ser usado para definir o apogeu da chamada “era industrial” em relação à sua
antecessora, de caráter agrário. A hegemonia industrial não acabou com o trabalho no campo, mas este teve
que se adaptar à lógica industrial. Essa mudança (industrialização da agricultura) ficou conhecida como
“revolução verde”. Veja-se Ehlers (1996).
19
numérica bastante relevante, a informatização e as técnicas do “pós-industrialismo”
alteraram profundamente o sentido do que é ser um operário (ARONOWITZ, 2005, p. 92).
Tal transformação pode ser compreendida como parte do processo histórico da
organização científica do trabalho, cujo objetivo sempre foi “quebrar” a autonomia do
trabalhador (o fordismo/taylorismo insere-se nesta tradição).
Nesse sentido, a informatização não seria senão o ápice de um processo de “alienação”,
que começa na destituição dos meios de produção do campesinato e dos pequenos artesãos.
O capitalismo é uma forma de tornar o processo social de produção opaco ao trabalhador, o
qual não domina seus objetivos, meios ou ritmo, mas apenas fragmentos de um todo que
lhe escapa (GORZ, 1968; 1982).
O crescimento do setor terciário, aliado às transformações na forma de trabalho fabril,
leva a uma tendência de hegemonia do trabalho imaterial nas economias pós-industriais. No
entanto, queremos frisar o aspecto tendencial deste fenômeno, para não incorrer no endosso
de teorias “apocalípticas” que apontam o fim de toda forma de produção industrial. Esta
ainda ocorre e, em vários contextos (como o dos produtos de baixo valor agregado
produzidos na China ou em toda a indústria petrolífera) ainda são preponderantes.
10
As
formas industriais e pós-industriais de organização do trabalho e de valorização do capital
não se excluem, mas se complementam, convivem e se contradizem em uma ambiente
complexo. Como lembra Gorz (2003a, p. 17),
A prestação de serviços, o trabalho imaterial, tornando-se a forma
hegemônica, envia o trabalho material para a periferia do processo de
produção [...]. Este se torna um ‘momento subalternodeste processo, se
bem que indispensável e mesmo dominante do ponto de vista quantitativo.
O coração da criação de valor é o trabalho imaterial.
A distinção entre uma esfera produtiva calcada no trabalho imaterial e nas estratégias de
organização “pós-industriais” de um lado e de uma periferia ainda fortemente
fordista/taylorista, desqualificada e precária de outro será uma das chaves para a
compreensão do papel dos programas sociais de inclusão digital no capitalismo
contemporâneo.
10
Tal preponderância, no entanto, é tributária de um crescimento expressivo da produtividade nestes setores,
o que não acarreta necessariamente na criação de postos e, portanto, não mais se impõe como forma
hegemônica de trabalho (ARONOWITZ, 2005; DE MASI, 2000, p. 29).
20
Esse ambiente, vale frisar, é apenas parcialmente controlado pelos proprietários dos
meios de produção. Não se trata, na maior parte das vezes, de um projeto de transformação
consciente, mas da aceitação tácita, tanto por parte dos trabalhadores quanto dos
proprietários, de “[...]uma lei que ninguém formulou e diante da qual curvam-se sob a pena
de se perderem”, que é, basicamente, o imperativo da acumulação do capital (GORZ,
1982, p. 65).
Características do trabalho imaterial
O imperativo da acumulação em um cenário onde a inovação constante torna-se a regra
faz o capital avançar sobre todas as esferas da existência humana, promovendo, por fim, a
mercantilização da cultura. A “experiência vivida” é a principal commodity do capitalismo
na era pós-moderna. (RIFKIN, 2001, p. 137-151).
Para transformar a cultura em mercadoria, o próprio trabalho deve ser
“desmaterializado”, ou seja, culturalizado. Ao invés do conhecimento técnico do operário
especializado e da habilidade mecânica no manuseio do maquinário, o trabalhador é
chamado a empenhar sua cultura, suas experiências pregressas, sua capacidade de
comunicação e cooperação no processo produtivo. Toda a “cultura cotidiana”, que ficava
do lado de fora da fábrica fordista, torna-se a fonte primária da capacidade de inovação das
empresas de ponta. O “saber” é convertido em conhecimento, ou seja, torna-se um fator de
produção. O “saber” aqui deve ser entendido à maneira de Lyotard (1986, p. 36):
Trata-se, então, de uma competência que excede a determinação e a
aplicação do critério único de verdade, e que se estende às determinações e
aplicações dos critérios de eficiência (qualificação técnica), de justiça e/ou
de felicidade (sabedoria ética), de beleza sonora, cromática (sensibilidade
auditiva, visual) etc.
Se, por um lado, esse movimento é saudado por alguns como indício do fim de uma
era de exploração brutal e desumanização do trabalho, por outro, ele pode ser
compreendido como a subordinação definitiva da cultura humana aos imperativos da
produção heterônoma e do lucro. A utopia que o capital tenta implantar (não sem
resistências) é nada menos que a superação da luta de classes, ou seja, a anulação das
contradições entre os interesses do trabalhador e dos proprietários. “Estamos todos no
21
mesmo barcoé o slogan que se repete nas empresas contemporâneas e que repercute nos
meios de comunicação:
Numa curiosa inversão do modelo de Karl Marx da relação capital-
trabalho, onde os capitalistas apenas pagavam onimo necessário à
reprodução da capacidade de trabalho dos trabalhadores, sua ´força de
trabalho´, mas exigiam trabalho muito além de seus gastos, as empresas de
hoje pagam aos empregados o tempo que trabalham para elas, mas
demandam toda a sua capacidade, sua vida inteira e toda sua
personalidade. A competição ferrenha veio para dentro dos escritórios da
empresa: o trabalho significa testes diários de capacidade e dedicação,
méritos acumulados não garantem a estabilidade futura. (BAUMAN 2003,
p. 116).
O problema é que a categoria do “trabalho imaterial” não pode ser vista como uma
massa homogênea. Para uma parcela dos trabalhadores, ele pode significar uma espécie
de liberação das agruras do trabalho industrial, mas, para outra, ele inaugura novas formas
de dominação e violência, exercidas na totalidade da “experiência vivida”. A grande
maioria dos trabalhadores (inclusive os “colarinhos brancos” da burocracia empresarial)
ainda experimenta sua atividade cotidiana como uma penúria forçada e sem sentido,
agravada por um clima de insegurança estrutural. Mesmo setores da intelligentsia técnica”
que autores como Birnbaum (1973, p. 39) afirmam compor a nova elite do trabalho pós-
industrial, estão sujeitos à precariedade, às jornadas estafantes e a um regime de trabalho
que tenta, incansavelmente, absorver a totalidade da experiência vivida. O relevante é que,
mesmo para os que constituem a pequena elite dos eleitos, o propriamente humano” (a
cultura, a subjetividade, as capacidades comunicativas) passa a fazer sentido apenas no seu
aspecto diretamente relacionado à produção mercantil. Tal redução do humano permite a
Gorz (2004, p. 14) afirmar que o trabalho imaterial transforma o homem em cyborg: “meio
de produção em sua totalidade, até em seu ser-sujeito, isto é, capital, mercadoria e trabalho
a um só tempo”.
Além disso, o trabalho imaterial pode ser também um trabalho repetitivo e enfadonho.
Basta imaginar o ambiente de uma sala de digitação ou de uma central de telemarketing nas
quais, embora não façam outra coisa além de manipular signos e técnicas de comunicação,
os trabalhadores envolvidos nada dão de si ou de sua criatividade. São “apêndices da
máquina”, muito próximos aos proletários da fábrica fordista.
22
1.2. A desqualificação do trabalho
Como sustentamos anteriormente, as mudanças no modo de produção são
indissociáveis do fenômeno da informatização. Esse fato é particularmente sensível no que
diz respeito às alterações nas relações entre capital e trabalho: o computador tornou-se a
ferramenta essencial no aprofundamento do desequilíbrio de forças, permitindo ao primeiro
mobilidade e velocidade que se traduzem em vantagens sobre o segundo.
Ao mesmo tempo em que constrói uma “elite”, voltada às formas de valorização
simbólica do trabalho imaterial, a informatização atua na chamada “desqualificação” de
formas de trabalho típicas do industrialismo. Embora alguns analistas aleguem, com
alguma razão, que o surgimento de novos postos de trabalho valorizados, tendo como base
a manipulação das máquinas informáticas, é uma forma compensatória ela eliminação de
vagas provocada pela informatização generalizada, tal hipótese não descaracteriza o
fenômeno da desqualificação, uma vez que uma grande parcela da população mundial, na
prática, vê seus saberes e experiência adquirida serem suplantados pelas tecnologias digitais
sem ter a possibilidade de uma requalificação massiva. Esse, inclusive, será um argumento
promocional utilizado pelos programas de inclusão digital ao reiterarem a crença de que os
postos de trabalho com melhor remuneração e qualidade estão disponíveis a todos que “se
atualizarem”.
A tecnologia prosseguiu com o pressuposto fundamental do taylorismo, a saber, a
fragmentação do trabalho em atividades simples e rotineiras. A pesquisa, o
desenvolvimento e o conhecimento, ficam concentrados em uma camada cada vez mais
estreita da força de trabalho, porque são incorporadas diretamente às máquinas e softwares
de controle, deixando pouco espaço para a intervenção humana. Como afirma Rattner
(1985, p. 56), a informatização da produção conduz ao “deslocamento de responsabilidades
e de poder decisório para a alta administração, em detrimento da relativa autonomia dos
níveis subalternos”.
Se tomarmos a questão do ponto de vista do papel exercido pelo trabalho e do status
social dele decorrentes, o fenômeno da desqualificação surge também sob a forma da
precarização, ou seja, da eliminação de contratos formais entre fornecedores e
consumidores de mão-de-obra. Cada vez menos o mercado de trabalho é capaz de oferecer
23
segurança social e pessoal. Isso porque, mesmo em termos exclusivamente numéricos (sem
levar em consideração a qualidade ou remuneração do trabalho), o avanço tecnológico se
mostra tendencialmente um redutor do número de vagas oficiais” e legalmente protegidas
oferecidas no mercado. Apenas como exemplo, dados apontados por Gorz (2004, p. 59) dão
conta da previsão de que o número de postos de trabalho legalizados em período integral
deve apresentar uma queda de 25 milhões de vagas nos EUA e de 9 milhões na Alemanha
nos primeiros anos do século XXI.
Na prática, mesmo o crescimento econômico e o aumento da produtividade têm
produzido relativamente menos trabalho que em períodos anteriores, graças ao avanço das
tecnologias. Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Aplicada mostra que “um
crescimento de 2% nas vendas da indústria contribui com o crescimento de 0,36% no
emprego formal do país. 10 anos, esse mesmo crescimento gerava um aumento de
0,56% no emprego total, uma redução de 64%” (BARBOSA, 2006). O trabalho qualificado
demandado pelo incremento tecnológico, portanto, restringe-se a uma pequena parcela da
população ativa global, com recortes e linhas de exclusão não apenas geopolíticos, mas
também etários, étnicos e de gênero (BOLT; CRAWFORD, 2000).
O fato é que as estratégias de terceirização e produção flexível, cada vez mais
comuns no universo empresarial, tendem a desfavorecer as relações de assalariamento. Ao
invés de contratar funcionários, as grandes empresas contratam pequenas empresas, que,
por sua vez, subcontratam outras ainda menores, implicando decréscimo na proteção social
aos empregados, salários mais baixos e contratos de tempo parcial ou intermitentes. São
comuns os casos companhias que demitem todo um setor e incentivam os ex-funcionários a
criarem uma empresa para prestar o mesmo serviço que faziam antes, mas sem os encargos
trabalhistas decorrentes. O critério empresarial se transformou: racionalizar, modernizar e
administrar de forma competente, cada vez mais significa cortar empregos, enxugar custos
e transferir tarefas para empresas especializadas (BAUMAN, 1998, p. 50).
Essa tendência aponta para uma utopia empresarial”: o fim das contradições entre
capital e trabalho. Quando o “livre-empreendedor”, desconectado de compromissos
trabalhistas, se torna o parceiro típico, ocorre a abolição do assalariamento e a “relação
salarial” espaço à “relação comercial”, colocando cada trabalhador individual em
concorrência com todos os demais. A coerção visível, exercida por um patrão, lugar a
24
uma coerção anônima e naturalizada exercida pelas leis impessoais do mercado” (GORZ,
2004, p. 62; BAUMAN, 2003, p. 45) ou pelos imperativos tecnológico-administrativos.
11
O resultado deste cenário é a cisão dos trabalhadores em duas categorias: de um
lado, um “núcleo central”, altamente qualificado, ágil e comprometido com as políticas de
crescimento das empresas a ponto de mais parecerem sócios que empregados (pela
remuneração por objetivos, participação nos lucros, distribuição de stock options etc); do
outro lado, uma massa de trabalhadores periféricos, precários e dispensáveis, recebendo por
produção e sem capacidade de influenciar o preço pago por sua hora trabalhada. Uma
pesquisa do Boston Consulting Group, citada por Gorz (2004, p. 59-61), mostra que o
primeiro grupo deve conter entre 30 e 40% dos trabalhadores industriais e 30 a 50% no
setor de serviços. Isso quer dizer que, na melhor das hipóteses, a tendência é que mais da
metade dos trabalhadores em escala mundial será reduzida à condição de subemprego, sem
proteções sociais e com rendimentos decrescentes provocados pela própria competição
entre trabalhadores.
12
É a ascensão do “modelo organizacional de Hollywood”, na
expressão de Rifkin (2001, p. 21): os custos fixos de mão-de-obra são mantidos a um
mínimo e cada projeto é considerado “único”, sendo realizado por uma equipe que se
desfaz tão logo tenha atingido seus objetivos.
Essa cisão também é apontada por Aronowitz (2005, p. 14) quando este autor
sublinha a distinção contemporânea entre trabalho” (work) e serviço pago” (paid job). A
primeira modalidade possui algumas características que faltam à segunda, tais como: a)
presunção de permanência no tempo; b) concessão de benefícios coletivos extra-salariais
como seguro de saúde, aposentadorias, folgas aos feriados e férias remuneradas e c) algum
tipo de proteção contra a demissão arbitrária.
Ainda segundo Aronowitz (2005, p. 92), ao menos nos EUA, o que vem ocorrendo
é a substituição sistemática da relação do tipo work pela paid job”, graças ao conjunto
de transformações produtivas que o autor denomina “tecnologia”: o uso intensivo da
informática e cibernética como “máquinas economizadoras de trabalho (labor-saving
11
“A decepção e o ódio são privados de seu alvo específico, e o véu tecnológico esconde a reprodução da
desigualdade e da escravização” (MARCUSE, 1967, p. 49).
12
Esse números referem-se ao emprego “formal”. Países, como o Brasil, em que a informalidade é uma regra
do mercado, certamente contam com uma situação ainda mais grave.
25
machinery) e formas globais de organização da produção, além da chamada especialização
flexível.
Finalizando este cenário, deve-se citar o fenômeno do “crescimento sem empregos”
(jobless growth), que ocorre quando a informatização e automatização simplesmente
eliminam postos de trabalho, ainda que a produtividade conheça expansões inéditas em
toda a história do capitalismo (ARONOWITZ, 2005; RATTNER, 1985, p. 101).
1.2.1. Especialização flexível
Movidas pela necessidade de atender a uma profusão de pequenos mercados
altamente voláteis, com demandas constantes por inovações e “customizações”, as
empresas contemporâneas tendem a romper com a fixidez do regime fordista, “baseado no
princípio de que uma empresa deve dedicar-se a produzir apenas um tipo de produto”
(SANDRONI, 1999, p. 249). A possibilidade de efetuar mudanças com rapidez e baixos
custos na linha de montagem, proporcionada pelos meios digitais de controle, criou as
condições para incentivar essa demanda fragmentada.
Porém, o processo de “especialização flexível” pode ser entendido a partir de
uma mudança mais profunda na forma de organizar a produção, que vai além dos muros
das fábricas individuais. O centro desta mudança está na chamada terceirização”, ou seja,
a dispersão do processo produtivo em uma longa cadeia de empresas interdependentes, na
qual cada uma se especializa em desenvolver uma parte específica do produto. É esse
fenômeno que permite a Kumar afirmar que a empresa contemporânea tende a ser, na
verdade, uma “confederação de empresas” e se opõe diametralmente ao princípio fordista
de internalização de todas as fases produtivas (KUMAR, 1997, p. 48-77). O metamercado,
na terminologia que empregamos anteriormente, com suas cadeias de valor agregado, não
pode existir sem a intervenção ativa de ferramentas informáticas (MEANS; SCHNEIDER,
2000, p. 23).
A Toyota, na década de 90 do século passado, empregava apenas entre 10 a 15% do
total de trabalhadores envolvidos na produção de suas mercadorias. O restante estava
disperso em uma rede de 45 mil empresas subcontratadas, numa cadeia de produção
internacional. Assim, os trabalhadores contratados diretamente pela empresa ocupavam o
26
topo de uma imensa pirâmide, tendo por base um exército de pequenas empresas que
pagavam um salário médio 45% inferior ao percebido na “empresa-mãe”, com abundância
de trabalhadores precários pagos por peça produzida (GORZ, 2004, p. 58-59).
Em grande parte graças à informatização e à comunicação satelitizada, a Toyota não
precisa se preocupar com a localização geográfica desta massa de trabalhadores precários.
A terceirização do trabalho, assim, também atua na redefinição do mapa sócio-econômico
global,
13
enfraquecendo, simultaneamente, o poder de negociação dos trabalhadores e a
capacidade de intervenção dos Estados (RIFKIN, 2001, p. 40). Os centros de produção do
“alto valor” são relativamente poucos, mais ou menos independentes do Estado-Nação que
os abriga e conseguem explorar oportunidades de negócios e vantagens competitivas nos
quatro cantos do planeta. Assim, são produzidas zonas de alta densidade tecnológica,
dominadas pela elite profissional global, e uma periferia de trabalhadores pouco
qualificados, porém, indispensáveis para os processos de acumulação do capital. A
informática libera o capital para procurar o máximo de qualificação no trabalho pelo
mínimo de custos em qualquer lugar do mundo.
14
O caso da Toyota é a exemplificação de uma tendência do modo de produção
capitalista que emergiu como de forma clara após a Segunda Grande Guerra. Em um longo
debate com as correntes neoclássica e marxista da economia, Charles-Albert Michalet
defendeu, já em 1976, as bases daquilo que chamaria de “economia mundial”, em oposição
à noção de “economia internacional”. O centro de sua teoria é que a ação concreta e
historicamente determinada das empresas multinacionais, desde pelo menos os anos 60 do
século XX, mudou de estratégia. Da expansão pela venda de mercadorias (exportação
simples, característica da “economia internacional”), o foco das multinacionais voltou-se à
exportação da produção. Fábricas foram instaladas nos países de economia
13
A dispersão global da produção não é apenas uma “oportunidade”, mas uma necessidade do capital. Os
elevados custos de pesquisa e desenvolvimento de novas mercadorias e processos não podem mais ser
absorvidos pelos mercados locais, empurrando as empresas “de ponta” para fora de seus países de origem
(RATTNER, 1985, p. 50-55). A exportação da produção surge, então, como a racionalização de uma
tendência inevitável.
14
Na verdade, a informatização acelera e facilita essa “liberação”. Mas, em alguns casos, o capital o recua
frente à possibilidade de desmontar fisicamente uma brica, peça por peça, para remontá-la em local mais
favorável. É o caso de uma fábrica de motores no Brasil, criada a partir de uma joint venture entre a BMW e a
DaimlerChrysler que, segundo o jornal The New York Times, estava sendo comprada por um grupo chinês
para ser desmontada e transportada à China. “Segundo o jornal, como a fábrica é altamente sofisticada, seria
muito mais prático para a montadora chinesa empreender esse esforço de transferir a maquinaria para outro
local, a uma distância de 13 mil quilômetros, do que desenvolver tecnologia própria [...]” (FADEL, 2006) .
27
subdesenvolvida a fim de explorar não mais apenas a proximidade com as fontes de
matéria-prima, mas os desníveis salariais que os diferentes contextos econômicos
proporcionam, dado um mesmo patamar de produtividade. Estatísticas mostram que, na
década de 1970, a produtividade nas filiais estrangeiras de empresas americanas era
próxima à percebida nos EUA (em média, o trabalho no exterior requeria apenas 8% a mais
de “homens por hora”), enquanto que o custo salarial médio representava apenas 14% do
que custaria em território americano (MICHALET, 1984, p. 161).
15
A empresa multinacional é o ator fundamental nas transformações do universo do
trabalho, uma vez que sua mobilidade através das fronteiras acaba colocando em xeque a
centralidade dos Estados-Nação na organização das economias locais e, principalmente,
impondo uma nova divisão internacional do trabalho baseada, doravante, na vantagem
obtida pelo potencial técnico-científico voltado à inovação e ao controle intelectual” do
processo produtivo (Ibid., p. 171). Essa dispersão para além das fronteiras nacionais
colabora para um embaralhamento na geografia do capital: bolsões de miséria e
desemprego se tornam tão comuns nos países desenvolvidos quanto zonas extremamente
ricas e luxuosas nos países periféricos. O critério de distribuição de riquezas não é mais
predominantemente geopolítico (embora essas divisões permaneçam como uma variável
importante), mas intimamente ligado à densidade tecnológica instável de pequenas regiões.
O trabalho nas zonas de alta densidade tecnológica é relativamente protegido e goza
de uma série de privilégios típicos de sua posição dominante. Paralelamente, a tendência na
periferia desqualificada é a desregulamentação, sendo dominantes as formas de
subemprego e precarização.
O fato é que a reestruturação produtiva, ainda que se baseie na exploração da
criatividade e da capacidade comunicativa dos trabalhadores, não implica uma libertação
generalizada da rotina embrutecedora da indústria, mas a desloca e a coloca em movimento.
Quanto mais distante dos centros tecnológicos, mais “taylorizado”, repetitivo, desprotegido
e precário é o trabalho, quer se trate das rotinas de escritório dos “colarinhos-branco” ou da
manipulação de interfaces informáticas no chão de fábrica.
Esse é o cenário que se deve levar em consideração quando da análise do papel da
inclusão digital nas sociedades contemporâneas porque elas são, antes de tudo, sociedades
15
O autor cita dados da United Tariff Comission dos Estados Unidos.
28
informatizadas nas quais prossegue em vigor, ainda que com certas modulações, uma
divisão social do trabalho específica. Uma parte da mão-de-obra é alocada nas tarefas que
efetivamente agregam valor aos produtos, enquanto outra permanece como força de
trabalho de baixa qualificação, sujeita, cada vez mais aos “ajustes econômicos” que
implicam, em última análise, redução dos custos de produção pela queda da remuneração
oferecida em escala global e pelo corte de postos de trabalho.
Rattner (1985, p. 58)
resume com clareza a relação entre informatização,
especialização flexível e precarização:
Em síntese, o processo contínuo de acumulação de capital, que passou a
funcionar em escala global, encontra nos sistemas computadorizados de
processamentos e comunicação de informações os instrumentos adequados
para as novas formas de organização emergentes da produção, de
marketing e de p&d, planejadas e conduzidas em dimensões internacionais
e, ao mesmo tempo, utiliza a nova tecnologia para aumentar a
produtividade e, assim, reduzir os custos de operações que envolvem o
trabalho humano.
Capítulo 2
A questão do valor
O segundo vetor de mudanças que implicam o surgimento de uma nova fase no
modo de produção será compreendido pelas alterações na forma de valorização do capital.
Embora a questão do valor seja considerada uma espécie de “nó górdio” da economia
(CAZELOTO; PRADO, 2006; BELLUZO, 1987; RUBIN, 1987), ela é fundamental para a
caracterização da dinâmica social como um todo, uma vez que a própria noção de “modo de
produção” não é senão a forma pela qual uma sociedade produz e distribui valores.
1
No
capitalismo, segundo a tradição marxista, o processo social de valorização do capital deve
ser analisado em suas duas etapas constituintes: produção e consumo. Essas fases se
implicam mutuamente: o momento da produção é largamente induzido por uma expectativa
de lucro que se realizará no momento do consumo, enquanto este depende,
evidentemente, dos resultados do processo de produção (RUBIN, 1987). Esta
interdependência reside nas próprias características do produto do trabalho humano no
modo capitalista de produção: a forma-mercadoria. Como a mercadoria é sempre produzida
para ser trocada no mercado, do ponto de vista do capitalista ela não é senão uma
promessa de lucro, uma potencial ampliação do capital investido. para o consumidor, a
mercadoria é uma expectativa de satisfação. É esse caráter ambivalente e irreconciliável
que dinamiza a produção de valor no capitalismo (HAUG, 1996).
2.1. O valor na produção contemporânea
Uma das principais características da produção capitalista contemporânea é o fato
de que o processo de valorização da mercadoria está cada vez menos dependente da
quantidade bruta de trabalho investido no momento da produção. Este fenômeno, previsto
1
Concordamos aqui com o pressuposto analítico que Rubin (1987, p. 57) extrai da obra de Marx: o valor não
é uma qualidade intrínseca das “coisas”, mas a expressão de uma relação social entre pessoas, mediada pela
produção de “coisas”.
30
pelo Marx dos Grundrisse, é analisado por vários autores. Seguiremos, em linhas gerais, a
descrição feita por André Gorz, para quem
O capitalismo moderno, centrado sobre a valorização de grandes massas de
capital fixo material, é cada vez mais rapidamente substituído por um capitalismo
pós-moderno centrado na valorização de um capital dito imaterial, qualificado
também de “capital humano”, “capital conhecimento” ou “capital inteligência”.
(GORZ, 2003a, p. 11, tradução nossa).
O traço definidor desta forma de organização do capitalismo é a capacidade de
colocar o conhecimento, a cultura cotidiana e a criatividade no centro do processo de
criação de valor. Não se trata, porém, apenas do conhecimento técnico-científico que se
materializa nas máquinas do aparato produtivo, mas de um conjunto de saberes, não
formalizados e não formalizáveis, ligados à cultura cotidiana dos trabalhadores. Neste
ponto, Gorz é precedido por Lyotard, o qual, em 1979, apontava a transformação do
saber em mercadoria (com a conseqüente perda do “valor de uso” do conhecimento) como
uma das características centrais da pós-modernidade (LYOTARD, 1986, p. 5).
2
O capitalismo “pós-moderno” surge quando o capital é levado a converter em valor
econômico a própria subjetividade humana ou, em outras palavras, quando passa a explorar
para fins mercantis o chamado trabalho imaterial, considerado por Gorz como aquele que
“repousa sobre as capacidades expressivas e cooperativas que não se podem ensinar, sobre
uma vivacidade presente na utilização dos saberes e que faz parte da cultura do cotidiano”
(GORZ, 2003a, p. 17).
3
O resultado dessa forma de extração de mais-valia é que a medida do valor deixa de
ser o número de horas trabalhadas” da economia clássica. O valor-conhecimento não é
mensurável diretamente. No máximo, pode ser estimado em termos de valor econômico nas
sempre cambiantes avaliações dos mercados financeiros.
No entanto, os elementos subjetivos e da cultura do cotidiano não são,
evidentemente, “propriedade” de nenhuma empresa, no sentido jurídico. A empresa
2
Não nos referimos aqui ao precedente da Escola de Frankfurt apenas para permanecer no âmbito das
reflexões sobre a “pós-modernidade”, comuns a Gorz e Lyotard.
3
Com base na perspectiva de Habermas, pode-se afirmar que o capital passa a converter em valor certas
formas semânticas e pragmáticas do “mundo vivido” identificadas com a cultura do cotidiano (CAZELOTO;
PRADO, 2006).
31
contemporânea, embora dependa destas formas semânticas e pragmáticas como um
“recurso” ou “matéria-prima”, não pode simplesmente apropriar-se delas como seu capital
fixo: elas permanecem atributos não comercializáveis do trabalhador.
A estratégia central do capitalismo contemporâneo, assim, é fazer esse “capital
humano funcionar como se fosse capital fixo (GORZ, 2003a). O enfoque não é mais a
extração de “mais-valia” diretamente relacionada à quantidade de trabalho extorquido, mas
o monopólio sobre o acesso a conhecimentos e ao capital simbólico inerentes à cultura.
É esse processo de transformação que Reich (1994, p. 75-80) irá descrever como
uma passagem do modelo de “larga escala” (fordismo) para o de “alto valor” (pós-
fordismo). O que agrega valor à mercadoria não é a quantidade de trabalho nela contida,
mas a forma específica de sua relação com o universo simbólico e imaginário, como
constituída e constituinte da cultura contemporânea.
As empresas, portanto, são capazes de transformar suas mercadorias em senhas de
inserção hierarquizada na cultura, ou seja, formas de status, de identidade, de pertença (essa
transformação será detalhada mais adiante). Certamente, esse não é um fenômeno novo,
mas, a partir das transformações ocorridas após a Segunda Guerra Mundial, ele deixa a
excepcionalidade do consumo de luxo e ostensivo para tornar-se, ao menos
tendencialmente, o padrão de toda a relação entre o homem e o mercado. A novidade é que
o consumo e a produção como forma de significação se tornaram hegemônicos. Como
afirma Rifkin (2001, p. 39), o que há de mais característico deste momento é que o que está
sendo vendido e comprado são “idéias e imagens”. A este processo de ancoragem do valor
em formas abstratas denominamos semiotização da mercadoria ou semiotização da
produção.
O fato é que o objeto que “corporifica” estas abstrações é, cada vez mais, secundário
do ponto de vista do valor. No interior dos metamercados internacionais, a empresa-mãe
tende a focar sua atividade no consumidor (estabelecendo com este relações de longo prazo
para a prestação de serviços), enquanto as empresas hierarquicamente inferiores se voltam
para a produção de mercadorias (MEANS; SCHNEIDER, 2000, p. 57) , substrato material
para as estratégias de semiotização que serão detalhadas a seguir.
Essa forma de produzir representa, para o capital, uma oportunidade de escapar à
redução da taxa de lucro provocada pelos ganhos crescentes de produtividade. A
32
“semiotização da produção” conduz a um estado de exceção da norma econômica, previsto
por Marx, a saber: o do estatuto de “objeto único”, cujo valor não pode ser comparado a
outros objetos e, portanto, não está sujeito às leis que regem o mundo das mercadorias.
2.1.2. O monopólio simbólico
A produção de mercadorias com base em processos semióticos e comunicacionais
retira as bases objetivas da criação de valor (no sentido atribuído a este pela economia
clássica), uma vez que torna mais ou menos irrelevante a quantidade de trabalho
(mensurável) necessário à produção.
4
Mesmo a ancoragem em um certo “valor de usoou
“utilidade” torna-se secundária em relação à percepção de atributos subjetivos como
“inovação”, “conhecimento”, “beleza e “praticidade”. A criação de valor com base na
mercadoria semiotizada obedece à lógica do “monopólio simbólico” (GORZ, 2003a).
O monopólio existe exatamente quando uma mercadoria não pode ser substituída
por outra e isso oferece a seu detentor a exclusividade comercial. O resultado é que, numa
troca monopolizada, a taxa de lucro não precisa obedecer à média percebida em um dado
mercado, uma vez que não pressão da concorrência para o equilíbrio de preços. O
monopólio simbólico é a forma pela qual o capitalismo contemporâneo cria “mercadorias
únicas feitas em série”: o valor semiotizado, derivado do trabalho imaterial, faz com que a
concorrência se dê não mais prioritariamente no plano da mercadoria ou dos valores de uso,
mas no plano da comunicação e da significação cultural, no qual não formas objetivas
de comparação entre as “imagens de produtos”. Não se trata de criar uma mercadoria
“melhor” ou mais barata que outra, mas de oferecer uma senha específica de acesso a um
universo cultural compartilhado que, a princípio, não é melhor nem pior que outro. Assim,
qualquer empresa pode produzir refrigerantes, mas a Coca-Cola somente pode ser feita e
vendida por uma determinada empresa. E a Coca-Cola é “algo mais” que um refrigerante,
sendo justamente esse “algo mais” passível de justificar diferenças na percepção social do
valor.
4
De fato, o que ocorre é a perda de uma certa medida do valor, tradicionalmente derivada da noção de valor-
trabalho. Embora mais fluída e imponderável, a comparação (e, portanto, a mensuração) é empiricamente
observável, seja pela variação do mercado de capitais, seja pelos processos milionários de fusões e aquisições
que se tornaram lugar-comum no capitalismo contemporâneo.
33
A marca e o uso de estratégias comunicacionais fazem com que as mercadorias
passem a ter um estatuto semelhante aos dos objetos irreprodutíveis, uma vez que são
destinados a “estilos de vida”, “personalidades” e “identidades” únicas. O produto não é
genérico, mas potencialmente individualizado, como se fosse um serviço.
As empresas de todos os setores valorizam seus produtos ao criarem “rendas de
monopólio” sobre um saber ou uma “imagem”. É assim que fazem esse capital simbólico
funcionar como se fosse capital fixo. O capital simbólico não é propriedade da empresa,
mas o acesso a esse capital está barrado a todos os concorrentes, com a anuência explícita
do sistema jurídico que sanciona essa forma de monopólio sob o título de “propriedade
intelectual”. É neste sentido que as leis de copyright, de proteção de marcas e de segredos
industriais são vitais para o capitalismo contemporâneo. É a regulamentação jurídica que
vai garantir o monopólio e não as “vantagens competitivas” do livre mercado.
Os signos que, em última análise, seriam elementos constituintes da cultura humana,
são colocados, pelo sistema jurídico, a serviço do capital. Como afirma Santos (2003, p.
23), referindo-se ao “patrimônio natural”, uma passagem do estatuto jurídico de res
nullius ou de res communis para o regime da propriedade privada.
Amiúde, res communis refere-se a um volume, continente ou um todo
como o ar ou o mar, enquanto res nullius refere-se a um conteúdo, a cada
elemento natural ou fragmento, como a planta e o animal selvagens.
Tradicionalmente, a res nullius está vinculada à abundância: ela não
pertence a ninguém e cada um pode livremente utilizá-la; mas, quando
escassez, ou medo da escassez, a res communis emerge para impedir a
apropriação e estabelecer uma espécie de reservatório do que é comum a
todos. Quando ocorre a apropriação, res nullius e res communis
desaparecem, dando lugar à propriedade.
É a política de direitos autorais e de propriedade intelectual, vinculadas à
emergência das marcas comerciais, que transformam idéias em “propriedades privadas
projetadas para serem vendidas em quantidades e escalas lucrativas” (JAMESON, 2001, p.
18).
5
5
Nem mesmo a “natureza” escapou desse processo. Como demonstra Rifkin (2001, p. 55), em 1987 houve
uma mudança fundamental no direito internacional de patentes, que passou a considerar os componentes dos
seres vivos, como genes, cromossomos e células, como propriedade intelectual “do primeiro que isolar suas
propriedades, descrever suas funções e encontrar aplicações úteis para eles no mercado”. Veja-se também
Santos (2003, p. 15-48)
34
2.2. O processo de valorização no consumo
A segunda
6
fase do processo de valorização do capital é o consumo, entendido como
momento de realização, no mercado, do potencial de lucro das mercadorias produzidas,
mas também, seguindo Baudrillard (1995, p. 10), como uma forma de “prestação social e
de significação”. Importantes transformações têm tido lugar na lógica do consumo das
sociedades industrializadas, transformações estas que se encontram articuladas com o
processo de valorização do capital na produção, descrito anteriormente. Como lembra
Bauman (2001, p. 173-174), ao contrário dos “objetos” característicos da produção fordista,
as “idéias” produzidas e vendidas pelo capitalismo contemporâneo
[...] são produzidas uma vez apenas, e ficam trazendo riqueza dependendo do
número de pessoas atraídas como compradores/clientes/consumidores e não do
número de pessoas empregadas e envolvidas na replicação do protótipo. Quando se
trata de tornar as idéias lucrativas, os objetos de competição são os consumidores e
não os produtores.
A passagem de uma sociedade caracterizada pela produção a um esgio no qual o
foco central é o consumo ocorre por força da inovação constante e do crescimento da
capacidade de produção. Segundo Gorz (1996), até o final da Segunda Guerra Mundial, a
principal preocupação do setor produtivo residia no aprimoramento contínuo dos métodos
produtivos. “Aprimoramento”, do ponto de vista do capital, significava basicamente
aumento de produtividade (otimização da relação entre o número de horas trabalhadas e a
quantidade de mercadorias produzidas) e a redução de desperdícios como o mau
aproveitamento de matérias-primas, o descarte de produtos manipulados de forma
defeituosa ou a ociosidade e a baixa velocidade do operariado.
O salto tecnológico experimentado na década de 50 do século XX,
7
porém, trouxe
uma nova frente de possibilidades (e novos problemas) para o capital. O controle da linha
de montagem continuou (e continua) na ordem do dia, mas houve uma notável aceleração
6
Vale lembrar que essa ordenação é meramente uma ferramenta analítica. Do ponto de vista do processo de
valorização, na prática cotidiana, essas duas etapas encontram-se sempre organicamente articuladas.
7
Seguindo Ernest Mandel, Jameson também concorda que os pré-requisitos tecnológicos fundamentais para
um novo estágio do capitalismo estavam dados nos anos 50. Porém, a s-modernidade pode ser
percebida com alguma nitidez a partir das grandes transformações culturais experimentadas nos países
industrializados nos anos 60. O encontro deste dois níveis torna-se visível (em retrospectiva) após a crise
mundial de 1973 (JAMESON, 2002, p. 23-24).
35
no desenvolvimento de inovações “referentes à substância, ao estilo e à apresentação dos
produtos de consumo”.
8
A estratégia adotada passou a ser o lançamento incessante de
“novos” produtos ou o desenvolvimento de pequenas modificações técnicas e estéticas que
“tiravam de moda” os produtos anteriores. No lugar da busca de novos mercados para os
mesmos produtos (abordagem extensiva), ganhou relevância a pesquisa de novos produtos
para os mesmos mercados, ou seja: vender mais, para os mesmos consumidores (abordagem
intensiva).
9
Do ponto de vista do capital é essa incessante capacidade de inovar que surge como
fator definidor do sucesso ou fracasso empresarial no mundo contemporâneo.
10
Essas
inovações não se referiam necessariamente ao “valor de uso”
11
da mercadoria, o qual, como
lembra Gorz (1996, p. 221), pode até diminuir entre as gerações de produtos. O que produz
valor nesta conformação é a mudança em si, carregada de valores simbólicos. Essa análise é
compartilhada por Jameson (2002, p. 30), para quem a “urgência desvairada” das
economias contemporâneas com o lançamento de novas mercadorias acaba por atribuir um
papel essencial para chamada “função estética”.
2.2.1 A estética da mercadoria
Wolfgang Fritz Haug (1996, p. 133) captou e descreveu essa tendência
12
em 1971, quando publicou “Crítica da estética da mercadoria”. Segundo o autor,
8
Isso é apenas outra forma de dizer: produtos que receberam investimentos de capital simbólico.
9
Rifkin situa essa “virada” por volta dos anos 60, quando a velocidade de produção propiciada pelo avanço
da tecnologia e da organização do trabalho começou a apontar para o problema da “superprodução”. Segundo
esse autor, a questão central da empresa capitalista passou a ser como “fidelizar” o cliente, ou seja,
transformar o encontro mais ou menos esporádico e acidental entre compradores e vendedores em um tipo de
“relação de longo prazo”, baseada na prestação de serviços.
10
A idéia de inovação”, principalmente tecnológica, tem sido utilizada como forma de medir a
competitividade econômica dos países e justificar a ampliação de investimentos, privados e públicos, em
ciência e tecnologia. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgou pesquisa mostrando
que apenas um terço das indústrias aqui sediadas melhorou seu processo produtivo ou lançou algum produto
novo entre 2001 e 2003, fato que provocaria uma baixa competitividade estrutural para a economia nacional.
Veja-se Billi (2006).
11
Baudrillard (1996b, p. 54) vai além ao tomar o valor de uso como um “sonho paradoxal” da economia
política e sugerir que nunca houve “uma boa substância, um valor de uso ideal” que pudesse ou devesse ser
libertado da mercadoria.
12
É importante ressaltar que Haug é sutil o bastante para prever o fenômeno da “desmaterialização do valor”
em uma “expressão tendencial”, ou seja, na forma de uma “escala” em que o valor físico continua sempre
existindo, mas perde espaço continuamente para o valor simbólico. Não se trata, portanto, de negar a
objetividade da mercadoria, mas de reescalonar seu significado no tocante à construção social do valor.
36
cada vez mais mercadorias modificar-se-ão numa direção em cujo extremo se
encontra a pura ´coisa significante’. Essa expressão tendencial, ´coisa
significante´, sugere que o grau de realidade e a maneira de ser do corpo da
mercadoria, enquanto valor de uso, desloca-se, distanciando-se do ´objeto
exterior simplesmente aparente, que satisfaz determinadas necessidades humanas
por meio de suas características físicas´ (a citação é de Marx), em direção à
acentuação crescente do significante e do aspecto alusivo da mercadoria. Do
valor de uso imediato, ligado à matéria, a importância continuará se deslocando
para os pensamentos, sensações e associações vinculadas à mercadoria ou às
quais supõe-se que outros vincularão com a mercadoria.
O valor de uso deixa de existir como tal ao subordinar-se às percepções do “aspecto
alusivo” vinculado à mercadoria. Essa vinculação é realizada por estratégias de
comunicação e de marketing, entre as quais se destaca o uso de “marcas comerciais”. Como
ressaltamos anteriormente, no momento da produção, a marca aparece como índice de um
monopólio simbólico. O conjunto de traços imateriais vinculados à mercadoria, no entanto,
funciona da mesma forma que o valor econômico: está pressuposto na produção, mas
pode se realizar plenamente no consumo. Isso quer dizer que os investimentos passionais e
estéticos que constituem o corpo da mercadoria” na fase da produção produzem seu
efeito (o monopólio) se forem percebidos no momento do consumo.
O vínculo entre mercadoria e identidade é parte do processo de semiotização, capaz
de fazer com que os produtos do trabalho humano não sejam mais “anônimos”: eles
possuem uma identidade, cuidadosamente burilada pelos “tecnocratas da sensualidade”
(HAUG, 1996) ou pelos analistas simbólicos (REICH, 1994). Tal identidade, com sua
dimensão de exclusividade, liga-se, no seio da cultura, às formas de identidade dos sujeitos,
representadas pela noção de “estilo de vida”. Giddens (2002, p. 79) trabalha essa questão
como
[...] um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo
abraça, não porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias,
mas porque dão forma material a uma narrativa de auto-identidade.
Essa idéia liga-se também à noção de “autobiografia construída”, de Bauman
(2001). Este autor afirma que não mais balizas confiáveis para a construção de uma
identidade estável,
13
cabendo ao indivíduo construí-la e reconstruí-la a partir dos materiais
13
Essa é uma das características da “pós-modernidade” assinalada por Lyotard (1986) como resultante da
crise de credibilidade dos “metarrelatos”.
37
significantes de sua cultura. O consumo, na forma capitalista contemporânea, surge como o
grande shopping center de estilos (cada um com seu preço característico) disponíveis para a
construção desta identidade.
Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependência de
consumidor a dependência universal das compras é a condição sine
qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser
diferente, de “ter identidade”. (BAUMAN, 2001, p. 98, grifos do autor).
A questão da formação de identidades será discutida em detalhe mais adiante. No
momento, queremos reter que, no capitalismo contemporâneo, a posse ou o uso de certas
mercadorias que constroem, pelos rituais da cultura, o “estilo” de seus possuidores/usuários
são relações compulsórias. Como afirma Giddens (2002, p. 79), “não temos escolha, senão
escolher”.
A perda do valor de uso (que passa a subordinar-se a esse “valor simbólico” de
inserção na cultura) implica o desatrelamento entre “necessidade”
14
e consumo (HAUG,
1996, p. 79-80). O ato da compra passa a ser, primordialmente, um construtor de
identidades legitimidado pelo repertório cultural das sociedades. Design, embalagem,
técnicas de apresentação e vendas, publicidade, marketing e outras estratégias simbólicas
são máquinas de criar identidades e “estilos de vida” sempre renovados. “Comprar o rótulo
coloca a pessoa no mundo cultural do faz-de-conta dos valores e significados
compartilhados que os designers criam. O fato de ser ilusório tem poucas conseqüências”
(RIFKIN, 2001, p. 141).
É importante ressaltar que, embora Rifkin lance mão de expressões como “faz-de-
conta” ou “ilusão”, é extremamente difícil e particularmente improdutivo julgar a
“realidade de uma necessidade”. Uma vez admitida e incorporada pelo indivíduo, fora
casos extremos de futilidade patológica, uma necessidade socialmente induzida é
14
É necessário acompanhar o raciocínio de Harvey (1992) e admitir que a categoria da “necessidade” nunca
foi estática ou plenamente vinculada a qualquer visão biológico-determinista, nem mesmo entre autores do
campo marxista (o próprio Marx incluso). O papel contraditório desta categoria é frisar que o “necessário” é
também produzido socialmente e que o capitalismo sempre foi fértil na criação de novas “necessidades”. Em
nossa análise, a questão é que, aliada à produção de excesso e à velocidade intrínseca das sociedades
contemporâneas (como se verá mais adiante), a “necessidade” se torna extremamente instável e dinâmica e
isso reescalona o problema. Trata-se, nos termos que Harvey (1992, p. 99), muito mais de uma questão de
reforço do que propriamente de transformação.
38
interpretada e traduzida como qualquer outra. Na verdade, além do nível biológico, todas as
demais “necessidades” são socialmente induzidas, se por essa expressão considerarmos que
elas não são inatas, mas desenvolvidas em contato e negociação permanentes com a cultura
e, mesmo as necessidades biológicas, são sempre submetidas a imperativos de ordem
cultural: se a fome é um fato do corpo vivo, aquilo que consideramos “comestível” pode ser
muito variável. Marcuse (1967, p. 26), por exemplo, é compelido a lançar mão de
argumentos éticos para construir a categoria da “falsa necessidade” que surgem como
aquelas:
[...] superimpostas ao indivíduo por interesses sociais ao reprimi-
lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a
miséria e a injustiça.
A constatação de que uma expressiva parcela da população permanece aquém das
possibilidades econômicas de possuir certas formas de objetos simbólicos (estando,
portanto, confinada aos limites estreitos do “necessário”) não constitui uma objeção a essas
conclusões, mas apenas reitera o caráter excludente do próprio capitalismo. O consumo de
“valores de uso” como tais, sem levar em conta os aspectos estéticos e a “moda”, é estigma
dos grupos de menor poder aquisitivo, e, mesmo entre estes, há uma infinidade de
gradações que permitem a constituição de identidades e “comunidades de sentido” através
da compra de produtos de baixo valor. Aqui, o estilo de consumo assume sua função
gregária de filiar o consumidor a “uma classe dos indivíduos que possuem da mesma
maneira” (BAUDRILLARD, 1995, p. 25).
É importante ressaltar que, mais do que a posse de mercadorias “atualizadas” ou de
alto valor simbólico, o que marca a hierarquização social no capitalismo contemporâneo é a
capacidade de mudar, de atualizar-se constantemente aos sabores da moda. A diversidade
de produção do mercado atual é capaz de criar mercadorias semiotizadas para os mais
diversos níveis de poder aquisitivo
15
, estendendo sua lógica para a quase totalidade do
tecido social, mas priva as camadas mais pobres da velocidade de atualização. As
mudanças permanentes a que as mercadorias estão sujeitas (pelo sistema da moda, mas
também pelo “avanço” tecnológico) cumprem, primordialmente, uma função
15
Neste sentido, a “pirataria” é sintomática. Quem compra um produto falsificado concorda com seu valor
simbólico, mas não pode arcar com o seu custo econômico. A pirataria é um “efeito colateral” da
monopolização simbólica.
39
discriminatória e hierarquizante, baseada na capacidade de velocidade. “Só as classes
privilegiadas têm direito à atualidade dos modelos. Os outros m direito a ela quando os
modelos já mudaram” (BAUDRILLARD, 1995, p. 37).
2.3. A fusão economia/cultura
A ntese entre os âmbitos da produção e do consumo demonstra que o processo
geral do capital nas sociedades contemporâneas gira em torno da transformação de cultura
em mercadoria e da mercadoria em cultura. Tal “culturalização do capitalismo foi
acenada nas obras de outros autores
16
(lembremos, entre outros, de Rifkin e Jameson), mas
propomos aqui uma forma de compreendê-la em termos de uma reestruturação do
capitalismo tendo como base os meios de comunicação, primeiro de massa e, recentemente,
digitais.
Um modelo descritivo geral poderia ser proposto, nos termos do processo de
valorização do capital, da seguinte forma: no momento da produção, o capital extrai do
repertório cultural os traços imateriais para construção da “mercadoria única produzida em
série”. São formas de conhecimentos e saberes, elementos de convivialidade, trabalho
colaborativo, vivências etc. São esses elementos que servirão de base para a inovação
contínua, fundamental à grande diversidade de mercadorias requerida pela exploração
intensiva de pequenos mercados e pela manutenção do “sistema da moda”. Esses traços do
mundo cultural são apropriados pela empresa capitalista e colocados para funcionar “como
se fossem” capital fixo, com o apoio da legislação e outras formas de garantia da
“propriedade intelectual” e das estratégias de organização da produção do chamado
“capitalismo flexível”, as quais permitem que a criatividade dos profissionais seja
absorvida como técnica de produção e propriedade da empresa.
No segundo momento, ainda no âmbito da produção, profissionais especializados
em comunicação e marketing realizam a tarefa de semiotização dessas mercadorias, ligando
tais inovações (ainda que apenas aparentes) a uma marca e revestindo-as com uma
16
Birnbaum (1973, p. 122) lembra que “a industrialização da cultura começou com um ato de destruição: a
eliminação da cultura do artesão e do camponês, à proporção em que artesãos e camponeses se transformavam
no proletariado industrial”.
40
“personalidade”, ou seja, um conjunto de distinções simbólicas que permitem a
monopolização ao dificultarem a comparação entre mercadorias em termos exclusivos de
valores de uso ou características objetivas.
Sobre essa base semiótica, as mercadorias, sempre renovadas pelas estratégias de
inovação contínua, podem ser assimiladas (compradas) não mais somente como “coisas”,
mas como senhas de inserção na cultura.
17
Ao comprá-las dessa forma, o consumidor as
toma como elementos fundamentais na materialização de seu próprio “mundo vivido” (pela
construção da identidade com base na posse de mercadorias ligadas a “estilos de vida” e
personalidade) e, portanto, como elementos culturais. É esse o processo de retorno” da
forma-mercadoria semiotizada à cultura. Jameson (2001, p. 26) faz a ligação entre cultura
cotidiana e reprodução do capitalismo ao afirmar que:
Por produção de cultura, entendemos produção de vida cotidiana e, sem
isso, qualquer sistema econômico dificilmente poderá continuar a se
expandir e a se estabelecer.
Cabe ressaltar, por último, que a exploração da cultura como “meio de produção”,
pela extração de uma taxa de lucro ampliada graças a uma lógica de monopólio, não atinge
o conjunto dos trabalhadores contemporâneos por igual, mas implica uma divisão
(hierarquizada) entre trabalhadores fordistas e “pós-industriais”, sendo os primeiros e uma
grande parcela dos segundos, sujeita à condições de precariedade, insegurança e baixa
tendencial de remuneração.
Por este ponto de vista, não cabe falar, como o faz Habermas, no “entendimento”
como telos transcendental da comunicação.
18
Ela se revela uma lógica instrumental e
instrumentalizável, mesmo que não permita uma racionalização total, dando margem a um
“resto” que sempre escapa à assimilação pelo sistema. A comunicação cumpre o papel
central de colocar a forma-mercadoria no coração do “mundo vivido”, permitindo que a
dinâmica geral do processo de valorização do capital seja compreendida como exploração
e, ao mesmo tempo, constituição de um mundo vivido sempre colonizado. Como
dissemos em outra ocasião:
17
É nesse sentido a afirmação de Rifkin (2001, p. 144) de que o capitalismo contemporâneo [...] já não diz
respeito à manufatura de bens ou à execução de serviços, ou mesmo à troca de informações, mas, sim, à
criação de elaboradas produções culturais”.
18
Seguimos aqui a crítica empreendida por Prado (2000, p. 110).
41
No capitalismo contemporâneo (dito pós-fordismo) muda radicalmente a
esfera da produção. Não se trata, portanto, de um processo de
deslocamento da valorização da esfera econômica da produção para a
esfera de produção de sentidos (isto é, da comunicação). A própria esfera
da produção é reconstruída como esfera da comunicação. (CAZELOTO;
PRADO, 2006).
Assim sendo, o processo de valorização na atualidade não pode ser entendido sem
considerar as tecnologias e estratégias da comunicação, a partir das quais são semiotizados
(discursivizados) produtos, serviços e marcas.
19
Usar o signo como força produtiva lançará o capital à exploração da cultura como
“lógica” de funcionamento. Traços do modus vivendi socialmente herdado serão
incorporados como elemento de produção na construção da mercadoria e, paralelamente, a
mercadoria se dará como traço cultural. O capitalismo torna-se forma cultural, segunda
natureza, ubíquo e inescapável. Jameson (2002, p. 74) afirma que
[
...] a dissolução da esfera autônoma da cultura deve ser pensada em
termos de uma explosão: uma prodigiosa expansão da cultura por todo o
domínio do social, até o ponto em que tudo em nossa vida do valor
econômico e do poder do Estado às práticas e à própria estrutura da
psique - pode ser considerado como cultural em um sentido original que
não foi, até agora, teorizado.
Não obstante, propomos que se trata menos de “expansão da cultura” do que de uma
fusão. Cultura e produção se tornam indistingüíveis não pelo avanço de uma sobre a outra,
mas porque ambas caminharam para uma posição de equivalência, conduzidas pelo motor
da comunicação, a qual mercantiliza a cultura, ao mesmo tempo em que culturaliza a
mercadoria. Nesse sentido, entendemos que não se trata mais apenas da subordinação da
produção ao marketing(RIFKIN, 2001, p. 83), mas de uma completa integração entre as
duas formas, culminando na “lógica cultural” do capitalismo vigente (JAMESON, 2001,
p.31). É o que permite a Baudrillard afirmar que “mercadorias e mensagens culminam no
mesmo estatuto de signos” (1996a, p. 157).
19
Jameson (2002, p.282).também aponta para esse fenômeno, o qual trata por uma dupla simbiose: a do
produto com sua imagem e a do mercado com a mídia. É isso, grosso modo, que proporciona a
indiferenciação pós-moderna entre economia e cultura e entre base e superestrutura.
Parte II
Capitalismo, Comunicação, Informatização
Nota introdutória
Saturação mediática e informatização do cotidiano:
vetores de transformação do capital
As mudanças apontadas no processo de valorização do capital e na forma de
organização do trabalho descritas na primeira parte são indícios suficientes para
sustentarmos a hipótese de que o próprio modo de produção está, no mínimo, enfrentando
uma reviravolta histórica. Trata-se de um processo estreitamente relacionado às
transformações ocorridas no âmbito das forças produtivas, mas que escapa desta esfera
específica para redesenhar o conjunto das relações sociais. Assim como industrialismo,
modernidade e cultura de massas são fenômenos relacionados, que se alimentam e se
reforçam mutuamente, a conjuntura contemporânea permite entrelaçar s-industrialismo,
pós-modernidade e um novo modelo de organização social, que engloba produção e cultura
sob a égide da onipresença informática: a cibercultura.
O fenômeno da inclusão digital pode ser compreendido tendo como parâmetros
as relações sociais e a distribuição social do trabalho típicas deste momento do capitalismo,
ou seja, a reflexão sobre o papel dos programas de inclusão digital necessariamente
demanda uma crítica da pós-modernidade e da cibercultura. Pensar a inclusão digital ainda
nos quadros teórico-institucionais da modernidade industrialista é, no nimo, sujeitar a
análise resultante a uma imensa distorção. Sob essa premissa, os programas sociais de
inclusão digital não podem ser mecanicamente comparados, por exemplo, aos cursos de
formação profissional para operários ou mesmo aos esforços para a alfabetização em massa
empreendidos por Estados que visavam à formação de quadros qualificados para a
indústria, característicos do momento precedente. Os programas sociais de inclusão digital
emergem em um ambiente distinto, ocupando, portanto, uma posição igualmente distinta na
forma de reprodução do capital.
Para que se compreenda os PSID no contexto contemporâneo é necessário, num
primeiro momento, extrair das transformações em curso um conjunto de características que
nos permita construir uma visão da própria reprodução do capitalismo. Para isso, ligaremos
essas transformações específicas da esfera econômica (pós-industrialismo) ao contexto
44
mais amplo do universo sociocultural (pós-modernidade) para, em um segundo momento,
lançarmo-nos à exploração da cibercultura propriamente dita, entendida como modelo
social que resulta do entrelaçamento entre economia, cultura e informática. Alicerçados nas
considerações sobre o momento da produção e do consumo realizadas anteriormente,
iniciaremos a exploração mais detalhada dos dois vetores da pós-modernização
apontados, a saber: a saturação mediática e a informatização do cotidiano.
Como dissemos anteriormente, a vantagem de encetar a pós-modernidade a partir de
seus vetores estruturais reside na possibilidade de, graças a esse procedimento
metodológico, sublinhar tendências latentes que se tornaram hegemônicas a partir da
segunda metade do século XX. Dessa forma, é possível afirmar que a saturação mediática
e a informatização do cotidianose apresentem visíveis na pós-modernidade devido à sua
conjunção com os demais vetores constituintes desta forma social, embora, como vetores
constituintes, já se apresentassem como tendências nos períodos anteriores. Esses dois
vetores, tomados isoladamente, se reescalonam em potência apenas se considerados no
panorama mais amplo do capitalismo pós-moderno. Não se trata, portanto, de afirmar que
saturação mediática e informatização do cotidiano produzem a pós-modernidade (em uma
relação de causa e efeito), mas que são condições de existência dessa, ao mesmo tempo em
que dela necessitam para serem plenamente compreendidas.
As transformações específicas nas esferas da produção e do consumo (pós-
industrialismo) ganham novo sentido quando dissecadas contra o fundo desses vetores. Há,
portanto, uma relação complexa de mútua reiteração: o pós-industrialismo se produz a
partir das condições materiais e simbólicas consolidadas com a emergência da saturação
mediática e da informatização do cotidiano, mas esses vetores se deixam compreender
pela luz da pós-modernidade, em geral, e do pós-industrialismo, em particular.
Capítulo 1
A saturação mediática
Na fase contemporânea do capitalismo, os processos comunicacionais, notadamente
aqueles baseados em ferramentas informacionais, se tornam o eixo central das estratégias
de valorização do capital. Isso ocorre como conseqüência da indistinção entre a esfera da
produção e a da cultura, que transforma a mercadoria em “coisa significante”, ao mesmo
tempo em que faz do consumo a via privilegiada para a construção do universo simbólico e
imaginário. Neste sentido, a comunicação não apenas se converte em fator de produção,
mas também subordina as demais variáveis: matérias-primas, trabalho e capital. O jogo da
valorização do capital, assim como as formas de exploração do trabalho imaterial são
dependentes da circulação de signos e de seus efeitos.
que o capitalismo contemporâneo funciona sob uma lógica cultural, a linha de
produção em si deixa de ser o local privilegiado para a criação de valor (GORZ, 2004, p.
53). Em outras palavras, o vórtice do capitalismo deve ser buscado em suas estratégias de
reprodução. Entendemos como reprodução do capitalismo a articulação dinâmica do
conjunto de elementos materiais e simbólicos que permitem não o prolongamento no
tempo de relações sociais específicas deste modo de produção, mas também a
naturalização de suas práticas e de sua hierarquia. Seguimos, aqui, a indicação de
Baudrillard (1996a, p. 72), ao afirmar:
Sabemos que hoje é no nível da reprodução – moda, meios de comunicação,
publicidade, redes de informação e de comunicação no vel daquilo que Marx
chamava desdenhosamente de despesas inúteis do capital (podemos avaliar a ironia
da história), isto é, na esfera dos simulacros e do código, que se tece a unidade do
processo de conjunto do capital.
Os fluxos comunicacionais, neste sentido, podem ser compreendidos como uma das
principais, senão a principal, estratégia de reprodução do capitalismo. Eles são
fundamentais tanto para a transformação da cultura cotidiana em meio de produção quanto
para o estabelecimento de um padrão de consumo simbólico apropriado para o mercado de
produtos culturalizados. A “comodificação” da comunicação (sua submissão a uma lógica
instrumental baseada na forma-mercadoria) oferece ao capital um modo privilegiado de
46
“comodificação” da cultura como um todo (RIFKIN, 2001, p. 113). não se trata apenas
de supor uma nova fase de intensificação relacional entre capitalismo e comunicação
(BRITTOS, 2002, p. 31-32), mas de radicalizar a hipótese e propor que, para todos os
efeitos, capitalismo é comunicação.
1
Produção, consumo e cultura se entrelaçam numa rede
única, fazendo valer a informação como moeda de troca e parâmetro de consumo. Como
exemplifica Dantas (2002, p. 94):
Aquele que, como engenheiro, artista, advogado, operário ou desportista, é, numa
ponta, gerador de informações para o capital, é, numa outra ponta, consumidor dos
conteúdos informacionais através de suas marcas, imagens e símbolos.
A comunicação, na fase presente, é alçada a elemento constituinte do processo de
valorização do capital, assim como base de sustentação do próprio tecido social.
2
A mídia
eletrônica passa a desempenhar o singular papel de “intelectual orgânico” dos centros
mundiais de poder, dos grupos dirigentes, das classes dominantes (IANNI, 1999, p. 121).
Mas que comunicação é essa?
Seguindo Lucien Sfez (2000, p. 13), a comunicação será aqui entendida como
processo social abrangente, o qual, pelo intercâmbio de signos e sentidos, acaba por
estruturar a percepção de mundo dominante nas sociedades. A comunicação é uma
forma simbólica ou filtro do qual podemos considerar não apenas as relações
individuais e sociais, como também nossas relações com o mundo construído.
Quadro simbólico que, pouco a pouco, se interiorizará a ponto de não mais ser
percebido como filtro, ou como meio de conhecimento entre outros, mas como algo
que gera uma única apreensão da realidade.
A característica fundamental deste modo de apreensão do real é condensada na
expressão tautismo:
[..] neologismo formado pela contração de “tautologia” (o “repito, logo, provo” tão
atuante da mídia) e “autismo” (o sistema de comunicação torna-me surdo-mudo,
isolado dos outros, quase autista) neologismo que evoca um objetivo totalizante, na
verdade totalitário. (Idem).
1
Não queremos afirmar que a relação entre capitalismo e comunicação tenha surgido naquilo que
denominamos “pós-modernidade”. A comunicação já foi o “signo por excelência da modernização” (IANNI,
1999, p. 119). O que nos parece é que se trata de uma transformação provocada pela radicalização de
tendências, por certo presentes desde antes, mas que atingem sua maturidade neste momento da
organização do capital.
2
“Por toda parte espalha-se esse novo modelo constituído pelo Estado reduzido, precarização social e
dinamismo comunicacional” (RAMONET, 1998, p. 46).
47
A forma predominante de circulação de sentidos no capitalismo contemporâneo gira
em torno de si mesma, num circuito “tautístico” sob a sombra do universal do mercado e
lastreada pelo desenvolvimento da tecnologia. É esse circuito que fornecerá as bases
necessárias à exploração mercantil dos signos culturais e da subjetividade, criando o
contexto para a implosão do valor de uso
3
e para a valorização comercial dos aspectos
intangíveis das mercadorias. É uma forma de “êxtase”, tautológica e sem finalidade, exceto
aquela de seu próprio crescimento sem medida.
O êxtase é essa qualidade própria a todos os corpos que giram sobre si mesmos até
a perda da consciência e que resplandecem então em suas formas puras e vazias.
[...] Extasiado: assim é o objeto na publicidade e o consumidor na contemplação
publicitária reviravolta do valor de uso e do valor de troca, até a anulação na
forma pura e vazia da marca. (BAUDRILLARD, 1996b, p. 9).
O curto-circuito entre mercadoria e cultura na comunicação (compreendido como
“tautismo” por Sfez) pode ser interpretado como o êxtase dos signos colocados em
circulação pelos meios de comunicação contemporâneos. O imperativo capitalista do “mais
é melhor” encontra sua forma comunicacional na profusão metastática da informação, em
sua reversibilidade e indiferença absolutas, em sua ausência de telos. Sempre mais e sempre
mais rápido: é na circulação pura e fechada sobre si mesma que a comunicação “emoldura”
o vivido de forma a favorecer a valorização do capital, desligando o “sentido” da
mercadoria/signo de qualquer referencial e, principalmente, dos vestígios de qualquer
noção de “necessidade”, “valor de uso” ou “racionalidade” sobre as quais se fundou a
economia política moderna, bem como de quaisquer referenciais que permitiam uma
ancoragem do significado no mundo “real” (ainda que esse “real” seja sempre apenas
pressuposto) (BAUDRILLARD, 1996a, p. 16).
Portanto, o paradoxo desta situação é que o excesso de comunicação produz a
incomunicação, ou a perda do sentido em detrimento da circulação sem medida dos
significantes, como o indicara repetidas vezes Baudrillard (1996a, p. 60; 1994, p. 80-82;
1988, p. 24;). Também é aparentemente paradoxal afirmarmos a tendência a semiotização
da mercadoria e, ao mesmo tempo, o fato de ela não construir propriamente um sentido.
3
O valor de uso, na tradição marxista, existe em referência a uma “necessidade” ou “utilidade”
socialmente instituída. É sobre esse ponto que Baudrillard (1996a, p. 32) fará uma crítica à concepção de
valor de uso, acusando-a de se basear em uma “metafísica da necessidade”. A produção capitalista, segundo
Baudrillard, não é pautada por nenhuma finalidade social: “trata-se de um processo em si e para si só”, ou
seja, fechado sobre si mesmo.
48
Na verdade, o sentido contemporâneo da mercadoria (sua lógica no processo de
produção em sua relação com as necessidades sociais) não está nela mesma (nem mesmo
nos seus atributos intangíveis que, a rigor, são absolutamente arbitrários e indiferentes),
mas no jogo relacional com as outras mercadorias e com as formas de significação da
cultura. Como esta significação é, cada vez mais, instável e fragmentária (como resultado
do tautismo), o efeito produzido pela posse da mercadoria não é nunca o de uma
identificação plena a um sentido, mas a inscrição de seu possuidor nos fluxos significantes
permanentemente criados e destruídos pela comunicação.
No limite, a velocidade com que os sentidos socialmente estabelecidos são criados e
destruídos faz com que a própria noção de propriedade se desfigure. É como pode ser
interpretada a “era do acesso”, vislumbrada por Rifkin (2001): a forma dominante de
relação com a mercadoria no capitalismo contemporâneo, marcada pela decadência do
conceito de posse em detrimento da idéia de uso. O dinheiro não é, de fato, trocado nem
por coisas nem por signos, mas usado como vetor de aceleração, como combustível
queimado para proporcionar o movimento necessário entre coisas e signos. O mercado não
é o local de satisfação, mas de criação permanente de necessidades e desejos impedindo a
“ossificação de quaisquer hábitos adquiridos” (BAUMAN, 1998, p. 23).
O excesso de comunicação cria, portanto, um efeito duplo: fornece uma
multiplicidade infinita de posições e artefatos culturais, incentivando a transição
permanente entre eles, ao mesmo tempo em que esvazia o sentido próprio de cada um
desses artefatos, tornando-os imediatamente equivalentes a todos os demais. Não é a posse,
mas o descarte, a velocidade de mudança, que surge como significado cultural da relação
entre consumidores e mercadorias. Esse fenômeno tem sua origem no industrialismo
moderno e foi apontado por Marcuse (1967), quando esse autor talha a categoria de
“desperdício socialmente necessário”.
Essa característica de esvaziar o significado cultural das mercadorias em proveito da
articulação tautológica e excessiva dos signos, presente de maneira mais notável nos
processos de comunicação eletrônicos, é complementada e radicalizada por outra: a
sobreposição de contextos locais e globais. É o fenômeno glocal, pressuposto fundamental
da organização do capitalismo contemporâneo que funciona como uma ponte entre os dois
49
vetores centrais da “pós-modernidade”: a saturação mediática e a informatização do
cotidiano.
1.1. A rede glocal
O excesso, em escala global, é possibilitado e largamente induzido pela
“glocalização da experiência”. Essa idéia de glocal é desenvolvida, no contexto mediático
avançado,
4
por Trivinho (2001b; 2007, p. 239-320). O conceito de glocal oferece uma
chave de leitura privilegiada para a análise do conjunto dos processos sócio-econômico-
culturais contemporâneos porque
[...] o fenômeno glocal é, do ponto de vista social-histórico, o selo
original, o sinete genuíno da civilização mediática, a sua face
inconfundível e inelidível, capaz de diferi-la, no fundamental, das outras
fases sociotecnológicas. (TRIVINHO, 2001b, p. 76).
“Glocal" é um neologismo usado para indicar a superposição de um contexto global
a uma realidade local, a partir de um meio de comunicação, prioritariamente (mas não
exclusivamente) operando em tempo real. No ambiente glocalizado, o sujeito se imerso
em um contexto simultaneamente local (o espaço físico do acesso, mas também o seu meio
cultural) e global (o espaço mediático da tela e da rede, convertido em experiência
subordinativa da realidade). Sem o fenômeno da glocalização, suporte comunicacional das
trocas em escala global, a derrubada das fronteiras para a circulação de produtos, serviços,
formas políticas e idéias estaria prejudicada ou impossibilitada.
Assim, Trivinho (2007, p. 279-282) rejeita a idéia de “globalização”
5
(corrente tanto
na imprensa quanto em parte do meio acadêmico) para propor a vigência de uma
glocalização generalizada da existência. A civilização mediática, é, sob esse prisma crítico,
uma “civilização glocal, do glocal ou glocalizada” (Ibid., p. 287).
A glocalização da experiência faz com que os signos (e, portanto, o próprio
processo de valorização do capital) possam proliferar em escala mundial e desorganiza os
4
A idéia de “Glocal” consta, além dos discursos claramente publicitários e promocionais das grandes
corporações transnacionais, em trabalhos acadêmicos do campo econômico-administrativo, sendo, nesse
contexto, um conceito operacional desprovido de viés crítico.
5
Seguindo o mesmo raciocínio, utilizaremos o termo “global”, nesta tese, em seu estrito sentido geográfico,
como adjetivo equivalente à forma “mundial”.
50
modos de apreensão e significação, ligados antropologicamente ao contexto local,
obliterando o espaço e o tempo em detrimento de uma “socioespacialização audiovisual
específica” que anula a geografia e de um “presenteísmo” que dissolve o tempo (passado e
futuro) (Ibid., p. 298-300).
Essa desorganização (ou “rearranjo”) foi igualmente assinalada como uma
“compressão do espaço-tempo”, na obra de Harvey (1992) e na dissecação dos efeitos do
“tempo real” (ou “terceiro intervalo”), realizada por Paul Virilio (2000, p. 31-45). Para esse
autor, o corpo humano e a sociedade estão historicamente ligados às coordenadas do
tempo-espaço. Assim como temos todo um sistema muscular e circulatório que rejeita o
“nomadismo sedentário” do tempo-real, as instituições herdadas, do Estado ao direito,
passando pela religião, pela arte e pela cultura, foram construídas levando em consideração
esse “destino” temporal/espacial. Mesmo levando-se em consideração a hipótese de que
uma nova configuração da cultura acabe, no decorrer de algumas décadas, por estabelecer
uma mudança profunda na estrutura do sentimento humano e no funcionamento cotidiano
das instituições sociais, terá ocorrido uma redução, um atrofiamento do corpo herdado que
se torna totalmente dependente das redes telemáticas.
6
Tal dependência apenas pode
radicalizar a tendência, presente desde os primórdios da industrialização, de tomar o
humano como “apêndice da máquina”, a prótese biológica que deve se adaptar aos ritmos e
necessidades da produção.
Por sua vez, Jameson (2002, p. 70-71) registra essas transformações a partir do
enfoque de uma mutação na percepção, a qual levou-nos a “[...] ultrapassar a capacidade do
corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear
cognitivamente sua posição em um mundo exterior”, sugerindo que essa “disjunção
alarmante entre o corpo e o ambiente construído”, seja vista como
o dilema ainda mais agudo, que é o da incapacidade de nossas mentes, pelo menos
no presente, de mapear a enorme rede global e multinacional (diríamos glocal) de
comunicação descentrada em que nos encontramos presos como sujeitos
individuais.
6
A respeito da sobreposição do global no local, Giddens (2005, p. 22) comenta: “quando a imagem de
Nelson Mandela pode ser mais familiar para nós que o rosto de nosso vizinho de porta, alguma coisa mudou
na natureza da experiência cotidiana”.
51
Mesmo tendo se tornado claramente perceptível na fase histórica presente, é
possível e desejável apreender o glocal como uma forma relacionada ao desenvolvimento
do próprio capitalismo, a fim de que se possa inferir algumas de suas características no
contexto da organização das sociedades. Queremos destacar, entre outras possibilidades, o
fato de que a rede glocal, embora descentrada e fluida, não está isenta de formas
hierárquicas. Trivinho (2007, p. 261) assinala o caráter do fenômeno glocal como uma
forma de disseminação de poderes globalmente instituídos de forma sutil e invisível: “O
glocal significa, na realidade, a presença (organizadora) do poder comunicacional vigente
em cada perímetro específico de abrangência da atuação humana” (grifo do autor).
Glocalizar é, portanto, hierarquizar. A desestabilização das categorias de tempo e espaço
não ocorre aleatoriamente, mas também não é fruto de projeto conscientemente implantado
por nenhum ator social específico. Ela realiza as “necessidades de reprodução social-
histórica da civilização mediática” (Ibid., p. 274-275) e, assim, se mostra como força
conservadora.
O vislumbre desta hierarquia é vital para a compreensão ulterior do papel
desempenhado pelos Programas Sociais de Inclusão Digital no capitalismo contemporâneo,
uma vez que a identificação de níveis variados de dependências e relações de subordinação
permite romper com a idéia de uma informatização “plana”, perante a qual todos os
usuários são iguais e gozam (ao menos potencialmente) de oportunidades equivalentes.
Esses desníveis podem ser compreendidos a partir do conceito de “Império”, criado por
Negri e Hardt (2003).
1.1.1. O “Império” como momento político do glocal
O glocal, como condição de possibilidade do capitalismo contemporâneo, tem suas
origens no próprio desenvolvimento das forças produtivas. Sua história pode começar a ser
desenhada com maior definição após a Segunda Guerra Mundial, embora o fenômeno, a
rigor, seja anterior a este momento. Propomos, no entanto, uma interpretação específica que
busca relacionar a emergência da glocalização como forma social hegemônica aos
estertores do modelo fordista, cujo marco é a crise do petróleo de 1973.
52
O chamado “compromisso fordista”, que prevaleceu nas sociedades industrializadas
até o último quartel do século XX, unia, sob tensões, os empresários, os trabalhadores e o
Estado. Aronowitz (1992, p. 7) define sucintamente o “acordo fordista” como “o regime de
regulação estatal/corporativa das relações entre produção, consumo, lucros e salários,
através de uma intervenção estatal no setor financeiro, nos serviços públicos e nas relações
de trabalho”.
O modelo mais claro ocorreu nos Estados Unidos: as empresas se comprometiam a
manter certo nível salarial, os trabalhadores buscavam o aumento da produtividade e o
Estado intervinha o mínimo possível, tanto do ponto de vista jurídico quanto fiscal, para
manter o equilíbrio entre os dois lados e fomentar a ampliação dos mercados, muitas vezes
recorrendo ao jogo da política internacional ou abertamente à guerra. Esse acordo foi o
responsável pelo grande desenvolvimento econômico das potências ocidentais entre as
décadas de 40 e 70. De acordo com Braga (1995, p. 91-97), durante sua vigência, a
hegemonia capitalista soube articular a coerção (liquidação do sindicalismo de base
territorial, por exemplo) e o consenso (legitimidade obtida pelo pagamento de altos
salários).
O resultado desse arranjo foi o reforço da mútua dependência entre capital e
trabalho. Ambos estavam engajados em um modelo de produção que, com todos os atritos e
contradições, tinha que manter os envolvidos “face-a-face” no espaço da fábrica como
única estratégia viável para a sobrevivência (BAUMAN, 2001, p. 166-167).
Tendo em vista nossos objetivos, não será necessário reescrever a história da crise
do fordismo. Queremos sublinhar, no entanto, o fato de que o período capitalista que
emerge da crise do petróleo pode ser marcado como o “fim da era do engajamento mútuo”:
As principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a
efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial, com os complicados
corolários de construção e manutenção da ordem, e com a responsabilidade pelas
conseqüências de tudo, bem como a necessidade de arcar com os custos.
(BAUMAN, 2001, p. 18).
A “fuga” e o desengajamento se deram pela conquista do espaço global. O capital
não necessita mais se ater à exportação de mercadorias: exporta-se a si mesmo (capital),
53
transformando o mundo em praça de negócios.
7
No entanto, para que o capital possa ter
tamanha mobilidade e indiferença territorial, foi necessária a consolidação de um ambiente
globalmente interligado, funcionando sob um mesmo marco regulatório, capaz de
proporcionar incrementos de produtividade sem a dispersão do controle. Na verdade,
mesmo que a nova dinâmica econômica não se relacione mais com o quadro institucional
delimitado pelo Estado-nação, permanece a necessidade de uma instância normalizadora
supranacional para viabilizar a ação global do capital (HERSCOVICI, 2002, P. 58). É esse
ambiente supranacional que entendemos ter sido capturado na noção de “Império”.
8
“Império”, na concepção de Negri e Hardt (2003, p.12-17), não é um Estado em particular,
mas um conjunto de instituições com a capacidade (militar, política, econômica e também
comunicacional) de influenciar legislações locais, normas de comércio, formas de
produção, aplicação de recursos, emprego de insumos, trânsito de mercadorias e serviços
etc. “Império” é o modo supranacional de organização do capitalismo global.
A teoria do “Império”, embora passível de críticas, permite perceber o mundo no
qual se inscrevem os fluxos comunicacionais como um espaço permeado por forças de
ordem política e econômica que atuam na comunicação e para além dela. A "lógica
cultural" do capitalismo obedece à difusão estabelecida por mecanismos nacionais e
internacionais não-isoláveis, os quais constituem o centro (difuso) de comando do
“Império”. Empiricamente, esse centro é formado por empresas transnacionais,
organizações não-governamentais atuando em escala global e Estados economicamente
dominantes (Estados Unidos à frente) (NEGRI; HARDT, 2003, p. 330-335).
O caráter desse intercâmbio, a complexidade das redes de troca e a dinâmica do
mercado são alguns dos fatores que impossibilitam a circunscrição inequívoca de uma
nação imperialista, na forma da geopolítica tradicional. Desenham, ao contrário, um certo
"campo difuso", pressuposto logicamente, mas com contornos e dimensões indecidíveis.
Esse caráter movediço desautoriza o simplismo de “teorias conspiratórias” em prol de uma
manipulação em escala global destinada a atender interesses implícitos ou explícitos de
corporações multinacionais ou de um Estado específico embora Negri e Hardt ressaltem
7
A bibliografia sobre esse fato é imensa e foi abordada na parte I. Destacamos, apenas como referência, as
obras de Michalet (1984) e Reich (1994).
8
Retomamos aqui a relação entre a teoria do “Império” e o glocal, desenvolvida por nós em Cazeloto,
(2005).
54
sempre a notável presença das empresas e instituições americanas. A própria
indeterminação das fronteiras do “Império” e a instabilidade de seus atores faz com que ele
seja permeável a fluxos antagônicos, tratados pelos autores como forças “contra-imperiais”,
ou, mais recentemente, como a “Multidão” (NEGRI; HARDT, 2004). Por isso, é mais
apropriado afirmar que os limites do “Império” não são determináveis à maneira
cartográfica, mas como um "campo", mais afeito à metáfora do modelo atômico, no qual
atuam forças contraditórias.
A exemplo da idéia de economia mundial de Michalet (1984), as empresas
multinacionais são atores privilegiados (não exclusivos) na noção de “Império”, uma vez
que, ao atravessar os limites invisíveis dos centros dominantes do capitalismo rumo à
periferia do sistema, elas carregam consigo formas de organização do trabalho e da
produção, necessidades técnicas e jurídicas, valores, visões de mundo e, evidentemente,
fluxos de comunicação. Como lembra Kumar (1997, p. 19-20):
a empresa multinacional vive de comunicação. É ela que lhe confere
identidade como empresa que abrange o mundo. Computadores e satélites
são tão essenciais ao seu funcionamento quanto operários e as fábricas que
produzem bens e serviços.
As tecnologias de comunicação estão, portanto, na raiz dos processos de
funcionamento do capitalismo contemporâneo e do “Império” (GORZ, 2004, p. 21;
CHESNAIS, 1996, p. 103; MATTELART, 2001, p. 252). Por trás da idéia de
“globalização”, predominantemente econômica, se vislumbra o fenômeno mais amplo, de
ordem eminentemente comunicacional e constituinte do “Império”. O glocal é o ambiente
que torna possível a internacionalização e a financeirização necessárias ao modo
contemporâneo de funcionamento do capitalismo. Além disso, é o modo pelo qual se fixam
as redes de poder e hierarquias instáveis que cortam o planeta sem permitir a apreensão de
um centro geopolítico (TRIVINHO, 2007, p. 291). Mas não é isso: como afirma
Mattelart (2001, p. 253), a “impossível aliança entre o local e o global” é uma
“mentalidade”, uma maneira de ver e ver-se em um mundo em que o espaço e o tempo têm
um significado inédito na percepção humana. O glocal é essa espécie de “porta”, essa
fronteira entre o fora e o dentro que se esfacela na presença das redes digitais, configurando
o que Virilio (1993a, p. 54) denomina “arquitetura da chegada generalizada”: a “dissipação
do obstáculo da distância” pela comunicação instantânea.
55
1.1.2. A hegemonia difusa do “Império”
Segundo Hardt e Negri, o “Império” exerce e auto-legitima o seu poder através de
"intervenções" nos espaços econômico, militar e jurídico (acrescente-se também, político e
cultural). Essas intervenções se dão de maneira supranacional e são expressas por políticas
macroeconômicas, flutuações nos mercados financeiros, invasões armadas, financiamento
de exércitos, normas de direito internacional, programas de ajuda "humanitária", leis de
comércio exterior etc. Dentre todas as formas possíveis, destaca-se a chamada intervenção
moral”, considerada pelos autores como “a linha de frente da intervenção imperial” e que
pode ser compreendida como a capacidade de disseminação e naturalização de uma certa
visão de mundo, com seus valores e moralidade. Gramsci identificava essa capacidade ao
exercício da hegemonia que interpretamos, acompanhando Gruppi (1978), como a
capacidade de fazer valer o particular como se fosse universal.
A intervenção moral relaciona-se claramente com a idéia de glocal, não apenas
porque atua de maneira mais direta nos (e pelos) meios de comunicação,
9
mas porque
repercute traços e comportamentos globais na visão de mundo e na ação concreta dos
indivíduos, formando o “pano de fundo” ou as condições de racionalidade do agir local e
cotidiano. Mais adiante, iremos apontar que parte dos discursos de legitimação da inclusão
digital se constrói sobre uma base argumentativa de ordem moral, uma vez que se colocam
como expressão de um desejo de igualdade”. Por enquanto, queremos apenas incluí-la (a
inclusão digital) no rol das formas concretas de intervenção do “Império”.
Essa forma de intervenção é reforçada pela ação dos “sistemas abstratos”,
10
os quais
atuam globalmente, fornecendo o conhecimento “perito e autorizado”, de ordem técnica e
científica (mas também cultural). Esse conhecimento não pode ser produzido localmente,
visto não possuir relação direta com o contexto do agir cotidiano não mediado pela
comunicação (GIDDENS, 1996, p. 111). A atuação dos “sistemas abstratos” é, no entanto,
9
“O que chamamos de intervenção moral é praticado hoje por uma variedade de entidades, incluindo os
meios de comunicação e organizações religiosas, mas as mais importantes talvez sejam as chamadas
organizações não-governamentais, as quais, justamente por não serem administradas diretamente por
governos, entende-se que agem a partir de imperativos éticos ou morais” (NEGRI; HARDT, 2003, p. 54).
10
Como veremos adiante, a saturação mediática coloca em crise a legitimidade dos sistemas abstratos. Essa
crise, porém, deve ser entendida não como uma tendência à dissolução, mas como um mecanismo que
transforma a instabilidade em “motor” da própria proliferação metastática das informações.
56
tautológica, uma vez que, quanto mais eles fazem difundir uma massa de saberes
descolados da experiência local, mais eles interferem, desestabilizando as condições de
possibilidade desses saberes e, portanto, mais se faz necessária sua intervenção. É assim,
por exemplo, com a introdução de técnicas industriais globais em populações rurais
tradicionais: uma vez que tenham penetrado na economia destas populações, os
especialistas agroindustriais se tornam indispensáveis, colocando em situação de
dependência de conhecimentos externos todo um conjunto de atores antes autônomos. Os
saberes tradicionais, que ainda forneciam algum nível de autonomia, são deslocados e
desvalorizados em detrimento de um conhecimento “glocal”, o qual, por sua vez, determina
uma inserção específica em uma cadeia hierárquica.
Ao transformar as condições culturais e sociais,
11
sobrepondo a essas um contexto
distinto da percepção imediata ou tradicional, a glocalização da experiência cria as
condições para sua própria reprodução, tornando-se não apenas hegemônica, mas também
auto-legitimadora. Em outras palavras, quanto mais glocalizada certa região (maior
densidade de tecnologias comunicacionais), mais a glocalização se torna necessária, uma
vez que não estarão disponíveis localmente as condições para uma apropriação efetiva dos
sentidos.
O "Império", assim, se faz presente e influente desde a formação das grandes linhas
macro-econômicas mundiais até o nível do indivíduo, atuando na formação de
subjetividades. Seu poder está enraizado e disperso em toda a sociedade, cristalizado nas
instituições, na práxis e no desejo de cada um de seus "cidadãos". É essa forma de
integração extremamente capilarizada que tende à sua própria reprodução:
As grandes potências industriais e financeiras produzem, desse modo, não
apenas mercadorias mas também subjetividades. Produzem subjetividades
agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações
sociais, corpos e mentes ou seja, produzem produtores. (NEGRI;
HARDT, 2003, p. 51).
A formação de subjetividades (ou de produtores biopolíticos, na terminologia que
Hardt e Negri tomam de empréstimo a Foucault) é o modo pelo qual a glocalização da
11
aqui todo um processo que pode ser identificado com o conceito de “Habitusde Bordieu (2004). Na
verdade, trata-se de um Habitus glocalizado”, no qual os pressupostos e o não-pensado” da ão cotidiana
são constituídos a partir desta fusão entre vivência local e global.
57
experiência serve de sustentação e fator de expansão do “Império”. Este "fazer-ser", no
âmbito das relações políticas, econômicas e culturais, é a resultante de ações comunicativas
que convergem no próprio corpo do usuário pela imersão no ambiente glocalizado.
12
É necessário, no entanto, ressaltar que, da maneira como a compreendemos, o se
possa falar propriamente em “produção” no sentido dado por Negri e Hardt. Trata-se, mais
propriamente, da delimitação de um espaço de inserção e da criação dos pressupostos sobre
os quais o indíviduo tende a agir. A glocalização da experiência provoca uma “crise de
referências”, desestabilizando as formas de apreensão do real baseadas nos conhecimentos
locais e na tradição e, no limite, é a própria noção de “real” que se desvanece, substituída
pela circulação de signos mediáticos, convertidos em grade interpretativa da experiência e
em referência para o agir cotidiano. No registro de Virilio (1993b, p. 18), a “informação
indireta” subordina a percepção sensorial imediata:
Se é possível falar de crise hoje em dia, esta é, antes de mais nada, uma
crise das referências (éticas, estéticas), a incapacidade de avaliar os
acontecimentos em um meio em que as aparências estão contra nós. O
desequilíbrio crescente entre a informação direta e a informação indireta,
fruto do desenvolvimento dos diversos meios de comunicação, tende a
privilegiar indiscriminadamente toda informação mediatizada em
detrimento da informação dos sentidos, fazendo com que o efeito de real
pareça suplantar a realidade imediata (grifos do autor).
O “Império” atua na construção de uma percepção hegemônica tanto do que é
“desejável” (em termos de valor), quanto do que é “possível” (em termos de ação). Daí a
dificuldade sentida pelos grupos que, de alguma forma, procuram resistir à expansão do
“Império” em propor uma nova utopia, ou mesmo um conjunto coerente de ações contra-
hegemônicas: suas tentativas provocam desconfiança ou crítica porque esbarram na crença
consolidada em um princípio de realidade que não deixa escapatória.
A subjetividade assim constituída pelas redes comunicacionais do “Império” será a
referência de identidade, mesmo para as parcelas mais "desconectadas" dos fluxos de
comunicação.
13
A cidadania “imperial” plena consolida-se como horizonte do desejo,
norteadora das ações das populações “bárbaras” (desconectadas dos fluxos simbólicos
12
A própria idéia de “imersão” tende a arrefecer diante das tecnologias de glocalização portáteis, como o
celular. Neste panorama, o glocal é prótese, situado a distância zero (ou tendencialmente zero) do corpo.
Sendo assim, constitui o um ambiente no qual se possa imergir, mas as condições mesmas de construção
dos universos simbólico e imaginário (TRIVINHO, 2001b).
13
Daí todos os esforços para a “inclusão digital”, ou seja, para aproximar, valendo-se de uma noção imprecisa
de democracia, todos os cidadãos de um modelo pré-concebido de usuário. Veja-se Cazeloto (2003a).
58
dominantes). No campo da informática, isso significa que o padrão tacitamente aceito é o
do usuário plenamente capacitado, com capital econômico e habilidades cognitivas que o
tornam capaz de transferir para o universo digital o maior número possível de práticas
culturais, de atividades políticas e de potencial econômico. Esse usuário é o “ponto ideal”, a
partir do qual as carências de acesso ao computador serão interpretadas como “falhas” ou
“desvios” que justificam a ação dos programas de inclusão digital.
No entanto, a constituição de um horizonte único de possibilidades não está livre de
contradições. A glocalização da experiência, ao mesmo tempo em que irradia a lógica
capitalista do "Império" (seus desejos, práticas e valores), abriga contrapontos possíveis a
esta mesma lógica, na medida em que o glocal não é mais um fenômeno controlável em sua
total magnitude. Como salientamos, o glocal é o modo de organização das sociedades
capitalistas avançadas (TRIVINHO, 2007, p. 292) e está sujeito a contradições porque não
encarna apenas a racionalidade abstrata de um sujeito histórico específico. Ele é o resultado
imprevisível de um conjunto de práticas, expectativas, valores e interesses que se
modificam conforme se atualizam em uma permanente reconfiguração dinâmica. Embora
utilize o termo “comunicação global”, Giddens (1996, p. 96) também captou esse
movimento de estruturação de uma percepção hegemônica avançando sobre si mesma, sem
superar-se: a “comunicação global instantânea penetra o tecido da experiência cotidiana e
começa a reestruturá-lo embora ela, por sua vez, também seja reestruturada em processo
contínuo”.
Não se trata, ainda, de prognosticar o localismo e o particularismo como formas de
“resistência” à colonização imperial. Como bem lembra Mattelart (2001, p. 234), small
não é necessariamente beautiful”: “O ´local´ tem verdadeiro interesse onde permite
apreender melhor, pelo viés da proximidade, a interação entre abstrato e concreto, vivido e
universal, individual e coletivo”.
Em síntese, a idéia de saturação mediática como primeiro vetor da pós-
modernização (TRIVINHO, 2001a, p. 32-58) baseia-se na constatação de que a
comunicação se tornou uma peça central no jogo da produção capitalista, promovendo o
declínio de categorias econômicas clássicas como o valor de uso”, ou mesmo na
ancoragem da mercadoria em “necessidades”. A saturação mediática, desta forma, não se
de modo isento do exercício do poder, mas reforça uma nova forma hierárquica fluida e
59
indeterminada (o “Império”) que surge a partir do rompimento do chamado “acordo
fordista” e que reorganiza o capital, a cultura e a formação de subjetividades em escala
mundial a partir da glocalização da experiência.
Capítulo 2
A informatização do cotidiano
O segundo vetor da pós-modernização de que trataremos é o da informatização do
cotidiano.
1
Com esse termo, queremos designar não apenas a penetração capilarizada de
máquinas e equipamentos informatizados na sociedade, mas todo o processo de banalização
e naturalização das relações humanas intermediadas por esses equipamentos. No plano
empírico, a informatização do cotidiano se materializa no amplo espectro de aplicação dos
chips e das memórias artificiais, presentes direta ou indiretamente em número crescente de
objetos,
2
mas também no universo em expansão das práticas culturais mediadas por
tecnologias informáticas (grupos de discussão pela Internet, blogs, flogs, sexo virtual, smart
mobs, web-arte, realidades virtuais etc.). O computador, sob este ponto de vista, surge como
exemplo daquilo que Aronowitz (1996, p. 18) chama de “objeto complexo”, aquele que
margem a grande mero de abordagens pelos mais variados enfoques, da física à
sociologia, da eletrônica à comunicação e assim por diante.
A informática, que tem sua origem no campo militar, rapidamente se alastrou pelo
sistema produtivo, redesenhando os fluxos de capital desde a segunda metade do século XX
e, mais recentemente, modificou as formas de relacionamento social, os padrões culturais
3
e
a formação das subjetividades. Da maneira como concebemos, a chamada “convergência
digital” não é senão a face mais visivelmente material e tecnológica deste processo amplo
de informatização do cotidiano, que inclui as práticas culturais e a produção simbólica
contemporâneas. Brzezinski (apud MATTELART, 2004, p. 154), em 1970, anunciava a
“revolução tecnotrônica” e o surgimento de uma sociedade
cuja forma é determinada no plano cultural, psicológico, social e
econômico pela influência da tecnologia e da eletrônica muito
particularmente no domínio dos computadores e das
comunicações
.
1
Lyotard (1986) é o precursor desta abordagem.
2
A idéia de presença indireta remete ao fato de que mesmo os objetos aparentemente não informatizados,
como roupas e alimentos, dependem de tecnologias informatizadas em seu processo de fabricação.
3
Até mesmo a noção de beleza vem se transformando graças à proliferação de imagens digitais e programas
de tratamento ou edição de imagens. Veja-se Sibilia (2006).
61
Esse é o contexto no qual os programas de inclusão digital cobram seu sentido. O
computador, visto como elemento de uma relação social, surge como senha de inserção no
complexo hierarquizado economia/cultura talhado pela informatização do cotidiano, e não
como uma máquina “neutra” ou um progresso natural das “tecnologias da inteligência”,
como apregoam certas abordagens. Sua generalização como suporte das formas culturais é
mais do que simplesmente a disseminação de um modo de acesso a uma cultura que lhe é
externa, mas o vetor de transformação e construção de uma nova configuração cultural
econômica e política específica, a cibercultura, a qual propomos, acompanhando Trivinho
(2007, p. 26, p. 67), seja entendida como o momento atual da organização das sociedades
capitalistas avançadas, desenhado pelos vetores da saturação mediática e da
informatização do cotidiano e marcado pela fusão das esferas econômica e cultural (pós-
modernidade).
A cibercultura é portanto, o contexto no qual se a experiência de mundo das
sociedades contemporâneas tecnologicamente avançadas. Mesmo as áreas com fraca
densidade tecnológica acabam sendo indiretamente atingidas pela emergência deste
fenômeno, uma vez que ele subordina e desloca as formas anteriores.
Assim, inclusão digital é outro termo para dizer “inclusão na cibercultura”, e,
portanto, pode ser compreendida como parte do movimento expansionista da
informatização do cotidiano, com todas as conseqüências oriundas de sua hierarquização
global e suas formas de controle, distribuição de privilégios, organização da vida cultural e
divisão social do trabalho. Os efeitos produzidos pela inclusão digital são, portanto,
assimiláveis aos efeitos da própria informatização do cotidiano nos parâmetros da
cibercultura. Assim, é possível interpretar as transformações do tecido social a partir das
características de sua informatização. Para tanto, articularemos três eixos de análise
mutuamente dependentes, derivados da idéia de “informatização do cotidiano”: 1) a
aceleração; 2) a insegurança estrutural; 3) a privatização.
2.1. Primeiro eixo de análise: a aceleração
Dantas (2002, p. 78-102) faz uma leitura de Marx, mostrando que o tempo sempre
foi uma variável importante nos custos da produção capitalista e, por isso, a velocidade é
62
um “gargalo” estrutural do sistema. Na verdade, em termos mais abstratos, a própria forma-
mercadoria típica das sociedades capitalistas implica uma necessidade de velocidade,
devido ao seu caráter dual: a separação entre valor de uso e valor de troca.
A mercadoria, para o capital, é quase um incômodo, uma etapa formal a
ser superada na busca pela valorização incessante. Quanto antes essa etapa
for vencida, melhor. O dinheiro não pode ficar muito tempo aprisionado
na mercadoria. Ele deve girar e carregar todo o conjunto da sociedade em
seu turbilhão irresistível. (CAZELOTO, 2007, p. 168).
.
A velocidade, como princípio organizador da divisão social do trabalho, é,
conseqüentemente, um modo de hierarquização da produção.
4
Bauman (2001, p. 17) o
notara, afirmando que, no período fordista, “a pirâmide do poder era feita de velocidade”:
no topo, os que podiam se mover, mudar, adaptar-se ao mercado e tirar vantagens dos
ganhos de velocidade; na base, o operário atado à linha de montagem, com os gestos
ritualmente padronizados e controlados no tempo. Como extensão da máquina, o operário
podia seguir o ritmo imposto pelas engrenagens. De maneira abstrata, para o modo de
produção capitalista, o poder era sempre o poder sobre o ritmo: esta era a única forma de
garantir a extração crescente de mais-valia.
Mas a aceleração da produção torna-se problemática, sem uma correspondente
expansão no consumo, uma vez que poderia acarretar numa crise de superprodução que
faria despencar a taxa de lucro. Um anúncio publicitário de uma loja de departamentos
nova-iorquina, em 1953, ilustrava o dilema nestes termos: “Se você quiser ter mais bolo
amanhã, tem que comer mais bolo hoje. Quanto mais consumir, mais você terá e mais
rápido” (REICH, 1994, p. 42). Não importa que se tenha fome ou não: consumir é a única
forma de manter indústria e comércio pagando salários, que serão usados para consumir
mais e assim por diante, mantendo a velocidade de giro necessária ao capital. Produzir e
consumir de forma acelerada tornam-se fins em si mesmos, desconectados de qualquer
vestígio de “utilidade”.
O computador, por sua vez, é uma máquina cujo principal motivo de existência
para o aparato produtivo reside em sua capacidade de poupar tempo, portanto, de acelerar
4
A dissecação que Trivinho (2007) faz deste tema, baseando-se nas reflexões de Virilio, é mais abrangente e
trata da velocidade como “pilar processual” (Ibid., p. 48) dos arranjos social-históricos que culminam com a
emergência da “dromocracia”. Na economia desta tese, isolamos apenas os aspectos diretamente relacionados
à categoria da velocidade no âmbito da produção capitalista.
63
(CAZELOTO, 2007). Sua origem, que remonta ao cálculo de trajetórias balísticas para
operações militares, é marcada pela necessidade de cálculos rápidos o suficiente para
suplantar a capacidade do cérebro humano. Qualquer pessoa treinada poderia, a princípio,
realizar as mesmas operações que um computador, porém, com velocidade extremamente
menor. Por isso, logo no primeiro momento, o computador encontrou no capitalismo um
enorme campo de aplicação, sendo apropriado pela indústria e pelo comércio para
satisfazer a avidez pelo tempo que caracteriza estes setores. A informática desenvolve-se,
então, como forma de aceleração da produção para além dos limites humanos. Com seu
avanço, o computador se torna a pedra de toque de toda a organização do chamado “pós-
industrialismo”, proporcionando, entre outros fatores:
- a flexibilização da linha de produção;
- o controle remoto do processo produtivo;
- a homogeneização das ferramentas e habilidades do trabalho;
- a simplificação dos fluxos de comunicação entre mercado e indústria;
- a redução do tempo de desenvolvimento de novos produtos.
Vista pelo lado do trabalho, a informatização colabora ativamente na destruição do
poder sindical e na desigualdade das relações entre capital e trabalho, reduzindo a
interdependência que caracterizava o modelo fordista. A informática corrói a “vida útil” de
habilidades produtivas, remetendo à obsolescência os trabalhadores que não conseguem se
adaptar ao ritmo das inovações. Como adverte Bauman (2005, p. 46):
Empregos tidos como permanentes e indispensáveis, do tipo “impossível passar
sem eles” se evaporam antes que o trabalho esteja terminado, habilidades outrora
febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e deixam de ser vendáveis
muito antes da data prevista de expiração; e rotinas de trabalho são viradas de
cabeça para baixo antes de serem aprendidas.
O fato de que a necessidade de velocidade inerente ao modo capitalista de produção
ganha novo impulso pela disseminação da informática certamente não passa despercebido
pelos principais atores do mercado. Uma pesquisa realizada pelo instituto Tns/InterScience
(2005) dedicou-se a delinear a percepção de 100 executivos de empresas dos mais variados
setores sobre a aceleração no ritmo dos negócios. O resultado mostrou que 95% dos
entrevistados concordam com a afirmação de que “as empresas estão trabalhando cada vez
mais em ritmo acelerado e com prazos mais curtos”. Entre os fatores que levam a essa
64
aceleração, 52% citaram a “criação de novas ferramentas / tecnologias”, 41% ressaltaram a
“facilidade de acesso à informação” e 39% a “facilidade de acesso à comunicação”.
5
Chama atenção, ainda, o fato de que, entre os que consideram a aceleração como
“desfavorável”, 44% atribuem essa opinião, em primeiro lugar, à dificuldade de “conciliar
vida profissional e pessoal”, apontando a percepção de que a aceleração do capital tem
imediata repercussão na vida individual dos trabalhadores, mesmo os que ocupam posições
hierárquicas superiores.
No campo do consumo, a semiotização das mercadorias (discutida anteriormente) é,
em si mesma, fator de aceleração e a “moda”, sua principal expressão. O computador é,
evidentemente, veículo de propagação global de modismos, mas é necessário frisar algumas
diferenças em relação aos meios de comunicação de massa, os quais também cumpriam, de
maneira distinta, esse papel.
Em primeiro lugar, expansão das redes de comunicação baseadas em equipamentos
informáticos promove um grau inédito de pulverização da moda. Como veremos a seguir,
uma explosão das possibilidades de “estilos de vida”, todos devidamente ancorados na
posse de determinadas mercadorias emblemáticas (fazendo valer o axioma da fusão entre
economia e cultura) e, mais que isso, validadas por ”comunidades de sentido”, que
emprestam aceitação indulgente (e provisória) a qualquer tipo de comportamento ou forma
de consumo. A estrutura mais centralizada dos meios de comunicação de massa, paralela à
produção fordista, tendia a fortalecer hábitos de consumo mais ou menos homogêneos,
ainda que, inevitavelmente, produzissem uma “margem de dispersão” entre os objetivos
publicitários da mídia de massa e o consumo efetivo de mercadorias. Na cibercultura, essa
“margem de dispersão” converte-se, potencialmente, em um novo nicho de mercado,
passível de aproveitamento econômico pelo modelo de produção em pequena escala.
O que a informatização do cotidiano fez foi investir exatamente na ampliação desta
dispersão, tornando virtualmente possível o atendimento mercadológico de qualquer
tendência de consumo ou inclinação do consumidor. Essa transformação é captada por
Rifkin (2001, p. 86) como a subordinação da gica produtiva às forças emergentes do
marketing:
5
Ainda foram lembradas a “competitividade”, com 19% das respostas, as “exigências do mercado”, com
15%, a “globalização”, com 8% e “outros fatores”, com 13%. O questionário permitia respostas múltiplas.
65
A evolução do marketing tem muito a ver com a demanda saturada do consumidor
e também com as novas tecnologias de informação e de comunicações, que
possibilitam um relacionamento um-a-um excelente entre empresas e clientes.
Em segundo lugar, o computador possibilita a aceleração da circulação de
mercadorias. Essa é a lógica por trás de técnicas como o just in time”, que reduz os
estoques graças à informatização da cadeia produtiva. Sem citar a digitalização de certas
mercadorias como músicas, filmes, softwares, imagens e textos, a qual proporciona
aceleração máxima: a distribuição instantânea do consumo on demand. A operação em
tempo real faz do computador “a mais fantástica máquina de distribuição de bens e serviços
já inventada na história humana” (VAZ, 2004, p. 216).
Numa economia cada vez mais centrada na prestação de serviços, é o computador
que permite, pelos seus mecanismos de feedback e tratamento de grandes massas de
informação, transformar o simples ato de compra característico do industrialismo em
“relação multifacetada de longo prazo entre servidores e clientes” (RIFKIN, 2001, p. 82). A
relação comercial não se esgota na venda, mas se estende pelo maior tempo possível
através da prestação de serviços pós-venda e se transforma numa maneira de “controlar o
cliente” (Ibid.).
Talvez o que seja mais relevante para o propósito de interpretar o papel dos
Programas Sociais de Inclusão Digital, seja o fato de a informatização da sociedade se dar,
ela mesma, como senha de acesso a determinados “estilos de vida” valorados positivamente
pelas sociedades urbanas industrializadas. A posse ou o uso dos equipamentos da
cibercultura torna-se sinal de distinção, objeto de desejo e fetiche. Porém, esses
equipamentos podem ser consumidos mediante uma lógica de aceleração. É o fenômeno
que Trivinho (2001a) denomina “reciclagem estrutural”: ao cabo de certo período de
tempo, cada vez mais curto, eles estão desatualizados e precisam ser substituídos. A posse
de equipamentos “atrasados” torna-se não mais sinal de distinção, mas de vergonha.
O mesmo acontece com o “capital cognitivo” empregado na manipulação das
interfaces e dos equipamentos. A indústria dos “cursinhos de informática” é movimentada
não apenas pelo ingresso de novos usuários, mas pela necessidade de renovação contínua
dos antigos. Se a alfabetização, por exemplo, ocorre uma única vez e dura a vida inteira, o
“letramento digital” vem com prazo de validade (cada vez mais curto).
66
Outro fator de aceleração constante no consumo de bens típicos da cibercultura é a
chamada “compatibilidade”: as interfaces e periféricos são criadas de maneira a forçar uma
atualização em conjunto toda vez que um elemento isolado sofre um upgrade. Protocolos,
cabeamentos, conexões, softwares distintos se tornam mutuamente incompatíveis, anulando
o valor de uso de equipamentos e programas mesmo que a necessidade concreta do usuário
não se altere.
Cabe aqui um pequeno comentário sobre a chamada “Lei de Moore”. Gordon
Moore, um dos fundadores da Intel (fábrica americana de processadores), elaborou a
“profecia” de que a capacidade de processamento dos computadores dobraria a cada 18
meses, sem elevação no preço pago pelos consumidores. Apologistas da informática têm
usado essa “lei” para defender a inevitável “democratização” da informática: uma vez que a
tendência de preço dos computadores é sempre declinante, seria apenas questão de tempo
para que o microcomputador atingisse a abrangência e o grau de disseminação de outras
tecnologias, como a televisão, por exemplo.
A leiparece ter fundamento empírico. Porém, as novas máquinas lançadas a cada
18 meses (ou menos) anulam ou corroem as possibilidades de uso das máquinas anteriores.
Hoje, efetivamente, boa parte dos trabalhadores empregados em países como o Brasil
teriam condições financeiras de comprar um computador com cinco anos de uso. Mas,
graças ao fenômeno da compatibilidade, teriam pouca possibilidade de usá-lo,
simplesmente porque essas máquinas estariam obsoletas ou seriamente comprometidas em
relação à capacidade do parque instalado. De acordo com Trivinho (2007, p. 72), na
cibercultura torna-se fundamental a necessidade progressiva de
otimização da mais-potência de hardwares, softwares e demais e demais
fatores informáticos, que compromete o que é anterior em nome do que
vem depois, ideologicamente valorado como sendo melhor.
A tecnologia efetivamente migra para as camadas mais pobres da população, mas o
déficit em relação aos níveis tecnológicos mais avançados, privilégio dos setores mais ricos,
permanece inalterado.
6
Ao contrário, o preço da menor máquina “útil” do mercado (baseadas em software
proprietário e com tecnologias as quais, ainda que ultrapassadas, não tornam o equipamento
6
Esse nos parece um diferencial importante a favor das estratégias de inclusão digital baseadas no chamado
software livre”, uma vez que esses programas são compatíveis com máquinas mais antigas e têm uma
velocidade de obsolescência menor. O tema do software livre” será discutido adiante.
67
obsoleto e sem valor de uso) permanece firmemente fora do alcance financeiro da maioria
da população em países como o Brasil. O mero computadores nestes países pode subir a
taxas elevadas simplesmente porque a base inicial de cálculo estatístico é muito pequena. O
fato é que, no Brasil, mesmo após mais de uma década de abertura do mercado, o
computador continua sendo um equipamento disponível em menos de um quarto dos
domicílios brasileiros (SPITZ, 2006).
Sob o prisma da velocidade, a informatização do cotidiano é, portanto, uma forma
de aceleração que transmite e satisfaz as necessidades de reprodução ampliada do capital,
em sua fase cibercultural, ao conjunto das relações sociais.
2.2. Segundo eixo de análise: a insegurança estrutural
Quão frágeis e incertas se tornaram as vidas daqueles já dispensáveis
como resultado de sua dispensabilidade não é muito difícil imaginar. A
questão é, porém, que pelo menos psicologicamente todos os outros
também são afetados, ainda que por enquanto apenas obliquamente. No
mundo do desemprego estrutural ninguém pode se sentir verdadeiramente
seguro. (BAUMAN, 2001, p.185).
Não é inútil afirmar a relação específica entre a informatização do cotidiano e uma
certa percepção de insegurança vivida nas sociedades contemporâneas mesmo que o
capitalismo, historicamente, sempre tenha sido um sistema que produz e se alimenta da
insegurança. Como afirma Harvey (1992, p.102),
O efeito da inovação contínua é, no entanto, desvalorizar, senão destruir,
investimentos e habilidades de trabalho passados. A destruição criativa
está embutida na própria circulação do capital.
No campo da produção, a inovação, com sua destruição de habilidades, sempre foi
sentida como ameaça. Desde o princípio, o fantasma da máquina assombra os
trabalhadores, brandindo o desemprego como forma fatal de exclusão. O que ocorre nas
sociedades informatizadas é uma aceleração estrutural deste processo e uma corrosão
acelerada do capital cognitivo (mas também econômico) a taxas sem precedentes. O
impacto estrutural da informatização na economia é objeto de estudos freqüentes, de
maneira que gostaríamos de apontar relações mais sutis entre a insegurança e os
68
computadores. Para isso, retomaremos a idéia de “sociedade de risco” (BECK; GIDDENS;
LASH, 1997).
Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash recusam o termo “pós-modernidade”
como modo de designar o mundo contemporâneo para lançar mão do conceito de
“modernidade reflexiva”. A intenção dos autores é marcar o aspecto dinâmico das
sociedades ocidentais na atualidade “em que o progresso pode se transformar em
autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro e o modifica” (BECK, 1997,
p.12). Consideramos, no entanto, que a “reflexividade” pode ser concebida como uma das
características da “pós-modernidade”, o que colocaria esses termos em uma relação de
complementaridade, e não de contradição. Assim também o concebe Jameson (2002),
quando constrói suas teses sobre a “pós-modernidade” afirmando que o mudo
contemporâneo é resultado de uma modernidade “consumada” ou “modernizada”.
Em Lash (1997, p. 139) o termo “reflexivo” é utilizado, da mesma forma, para
indicar uma “modernização da modernidade”. A “modernização reflexiva” tem origem em
três fatores: o impacto da globalização, o surgimento de uma sociedade pós-tradicional e as
mudanças na vida cotidiana. È prioritariamente neste último âmbito (do cotidiano) que os
autores sublinham o aspecto desestabilizador destas transformações, utilizando-se da idéia
de sociedade de risco” (risk society). Essa idéia não propõe a interpretação de um mundo
contemporâneo mais perigoso ou hostil do que qualquer outra época, mas sublinha a
percepção de uma mudança na forma como produzimos e lidamos socialmente com os
efeitos negativos da ação humana. O “risco” não é mais da ordem do imponderável. Antes,
é produzido cotidianamente, “manufaturado” com a própria cultura e “artificial” como
qualquer outra construção humana (GIDDENS, 1996, p. 12). A sociedade de risco diz
respeito a uma forma de organização da vida cotidiana em que a insegurança se torna
constante fonte de angústia em um mundo que escapa da possibilidade de apreensão e as
grades interpretativas oferecidas pela autoridade tradicional (sociedades pré-industriais) ou
pela ciência (sociedades industriais) não estão mais disponíveis. Bauman (1998, p. 32)
comenta a idéia nos seguintes termos:
O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de
incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas
igualmente a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta
de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e os erros da
69
maneira de viver. [...] O mundo pós-moderno está se preparando para uma
vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível.
Evidentemente não seria legítimo supor que a informatização seja a causa da
percepção de risco e da insegurança nas sociedades contemporâneas. Sfez (2000, p. 20), por
exemplo, inverte essa gica e trabalha com a hipótese de que a proliferação da
comunicação (digital ou não) na sociedade seja uma conseqüência do quadro de incertezas
desenhado pela pós-modernidade. A comunicação se torna a maneira privilegiada de tentar
(inutilmente) dar um sentido coerente e unificado ao mundo, uma vez que as “grandes
figuras simbólicas” tais como a Igualdade, a Nação ou a Liberdade “desapareceram
enquanto meios de unificação”.
Não se trata, mais uma vez, de apontar meras relações de causa e efeito, mas de
buscar elucidar a forma como o cotidiano informatizado participa da percepção de
insegurança e risco.
Assim com a informatização do cotidiano pode ser vista como um desenvolvimento
e uma radicalização de tendências latentes no industrialismo, como a busca pela aceleração
constante, a sociedade de risco não pode ser compreendida em si mesma, sem o recurso aos
modos de organização anteriores, por que este conceito “designa um estágio da
modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho
da sociedade industrial” (BECK, 1997, p. 17).
O conceito de risco também está eminentemente associado ao de “individualização”
(que será discutido mais adiante). A idéia central é que a primeira fase da modernidade
ainda fornecia modelos mais ou menos coerentes para o agir no mundo ao passo que, na
vida contemporânea, cada vez mais o agir é fruto de uma decisão pessoal, de uma
“escolha”. Se, por um lado essa transformação pode ser lida como uma liberação do
indivíduo, por outro, ela se torna fonte de angústia e pressão por dois motivos: 1) nas
sociedades contemporâneas, o ato de escolher é compulsório e compulsivo: não há outra
opção a não ser decidir diariamente sobre questões vinculadas à identidade, aos estilos de
vida e ao comportamento cotidiano; e 2) não há nenhum parâmetro socialmente consensual
capaz de avaliar a decisão tomada. Isso conduz, portanto, à eterna incerteza sobre a
pertinência, rentabilidade ou adequação das ações.
70
As escolhas realizadas compulsoriamente e sem parâmetros de avaliação implicam
que o indivíduo torna-se o único responsável por tudo o que lhe acontece. Sendo assim, a
cada ação surge um “risco” a ser assumido individualmente e que cabe a cada um avaliar de
acordo com critérios que ele mesmo estabelecerá. Vejamos o exemplo fornecido por Beck
(1997, p. 27):
Anteriormente, as regras do casamento baseado no status dominavam como
imperativos (a indissolubilidade do casamento, os deveres da maternidade e assim
por diante). Isso certamente reduzia o escopo da ação, mas também obrigava e
forçava os indivíduos a ficarem juntos. Em contraste com isso, hoje em dia não
modelo, mas vários modelos, especificamente aqueles negativos: modelos que
requerem que as mulheres construam e mantenham carreiras educacionais e
profissionais próprias como mulheres, porque do contrário enfrentarão a ruína em
caso de divórcio e permanecerão dependentes do dinheiro do marido dentro do
casamento – com todas as outras dependências simbólicas e reais que isso lhes traz.
Estes modelos não consolidam a união das pessoas, mas a dissolvem e multiplicam
as dúvidas. Assim, forçam todo homem e mulher, tanto dentro quanto fora do
casamento, a operar e persistir como agente individual e planejador de sua própria
biografia.
2.2.1. A glocalização da insegurança
A glocalização da experiência, como ressaltamos anteriormente, é capaz de
desorganizar a forma antropologicamente herdada de apreensão do real, tornando-se fator
decisivo para a nova percepção de insegurança estrutural das sociedades tecnologicamente
desenvolvidas (VIRILIO, 2000; TRIVINHO, 2007).
Os modelos de comportamento cotidiano, pela primeira vez na história da
humanidade, não são mais gestados e controlados pela comunidade imediata, mas
produzidos e disseminados mundialmente (GIDDENS, 1997, p. 124; TRIVINHO, 2007, p.
370-401). Claro que essa disseminação não se de maneira mecânica, como mera
reprodução, mas surge de uma intensa negociação e conflito entre as formas globais e os
contextos locais. Parte da insegurança estrutural advém exatamente desse conflito, uma vez
que não há um modelo de avaliação que permita um juízo inequívoco sobre como a
adaptação (a “localização do global”) é realizada.
A informatização do cotidiano colabora com esse processo já que toda tentativa de
estabilização de uma identidade pode fazer sentido se for socialmente legitimada
(BAUMAN, 1999, p. 212; TRIVINHO, 2007, p. 375-376). Esta legitimação social, antes
do advento das redes de comunicação digitais, era restrita às possibilidades oferecidas pela
71
comunidade imediata: os “modos de acordo tradicionais”, na expressão de Sfez (2000,
p.109). Atualmente, no entanto, uma virtual explosão na oferta de modelos e de
“aceitação”. Qualquer comportamento, por mais bizarro ou inadequado que pareça do
ponto de vista da cultura local, encontra ressonância na miríade de “comunidades virtuais”
que proliferam nas conexões glocais. Exemplo típico disso são as comunidades que
cultuam distúrbios alimentares, como a bulimia e a anorexia, alegando tratar-se de “estilo
de vida” e não de doença (THAMSTEM, 2007).
7
A glocalização da experiência, promovida pela comunicação em rede, amplia
desmesuradamente o acesso aos “sistemas abstratos”. Entendemos esta noção, originária
dos trabalhos de Giddens (1996, p. 111), como o conjunto de atores e instituições que
possuem um conhecimento especializado e socialmente legitimado para emitir juízos sobre
aspectos parciais e limitados da vida cotidiana. Os sistemas abstratos são baseados na
autoridade do “perito”. Porém, nas condições contemporâneas,
Um perito só possui uma afirmação provisória de autoridade, porque as idéias deste
perito podem ser contestadas por outros com credenciais equivalentes. O estado de
conhecimentos na maioria das áreas muda de maneira bastante rápida, de forma
que aquilo que se afirma com certeza em um determinado momento pode
rapidamente tornar-se obsoleto. (Idem, p. 111-112).
Assim, proliferam as formas de aconselhamento e auto-ajuda, capazes de fornecer
uma base de conhecimento “especializado” que legitima as escolhas de comportamento,
mas apenas por tempo limitado e sob o preço do eterno conflito entre “conselheiros”
distintos. Mesmo a ciência, que no período moderno foi considerada a “autoridade em
última instância”, se envolvida na disputa pelas opiniões. Vaz (2004, p. 216-238) captou
esse momento como uma mutação no papel dos mediadores na cultura contemporânea. A
figura de um “especialista no interesse geral” (advinda da indústria cultural) está sendo
gradativamente substituída pela função dos “filtros” (típicos da cibercultura), que podem
ser compreendidos como formas de organizar a grande massa de informações disponíveis, a
partir de critérios fornecidos pelos usuários. Os filtros, como afirma Vaz, implicam uma
ameaça para o potencial de diversidade e descoberta na rede, uma vez que são capazes de
fechar os “usuários” na estreiteza de seus próprios interesses. Mas também,
7
Os meios de comunicação em massa ainda ofereciam, pela quantidade limitada de modelos de
comportamento e, principalmente, pela “mão única” na transmissão de mensagens, um substrato
relativamente estável e assimilável localmente.
72
acrescentaríamos, eles não funcionam da mesma forma que o “especialista no interesse
geral” da comunicação de massa exatamente por abdicar de qualquer tentativa de
generalização ou universalização. Os “filtros” se sabem contingentes e arbitrários,
configurados de acordo com esse “interesse” do usuário, e não a partir de critérios que se
pretendam universais.
A abertura à contingência tem conseqüências ambíguas, ao mesmo tempo
libertadoras e perturbadoras: derrubam a opressão da autoridade única e inquestionável,
mas provocam ansiedade por corroer as certezas, retirando “o chão sob os pés do
indivíduo” (GIDDENS, 1997, p. 108). Esgarça-se o “otimismo” do racionalismo moderno,
para o qual “[...] não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível no
decurso de nossa vida” (WEBER, 2001, p. 439). No registro de Baudrillard (1996a, p. 18),
“tudo se torna indecidível”.
O fenômeno da interatividade, típico da comunicação glocalizada, reitera a sensação
de aceitação e de compartilhamento. Falar, expor-se, confessar: a “mão dupla” da
comunicação eletrônica possibilita o reconhecimento necessário aos casos particulares que,
assim, passam a ser aceitos e legitimados. Pela interatividade, não se trata mais de
selecionar entre mensagens genéricas e tentar enquadrar-se em modelos pré-estabelecidos,
mas de colocar-se como indivíduo que recebe a “benção” coletiva da aceitação (BAUMAN,
1999, p. 215).
No entanto, ao contrário do que sugere Bauman (1999, p. 209), a “aceitação”
benevolente de uma comunidade de sentido não é uma fonte de segurança e certeza quando
mediada pelo computador. Isso poderia ter sido verdade, numa época anterior à proliferação
das redes, em que a “máquina de calcular” era apenas uma forma de processar dados em
quantidades e velocidade inatingíveis ao intelecto humano e que, pela própria característica
lógica e matemática de suas respostas, gozava de uma pretensa objetividade comparável ao
saber científico. Mas, com o advento da telemática (união da informática com a
comunicação remota), o computador torna-se um ponto de difusão de opiniões distintas e,
por vezes, contraditórias. Quaisquer hipóteses ou tendências podem ser “comprovadas”,
assim como o seu contrário. E essa condição é estrutural, no sentido de que não há mais a
esperança de que as ambigüidades sejam resolvidas e que o conhecimento definitivo sobre
73
o mundo dissolva as trevas da opinião e das visões parciais. A telemática é o reino da doxa.
Sobre esse ponto, concordamos com a expressão de Baudrillard (1996b, p. 79):
A tela tecida pelos meios de comunicação (a informação) a nossa volta é
de total incerteza. E de uma incerteza completamente nova que não é
mais a que resulta da falta de informação, mas da própria informação e do
excesso de informação. Contrariamente à incerteza tradicional, que podia
ser resolvida, esta é, portanto, irreparável e nunca será dissolvida.
As certezas advindas do convívio local começam a desabar, ampliando a sensação
de insegurança estrutural, quando
o equilíbrio entre a comunicação “de dentro” e de “fora”, antes inclinado
para o interior, começa a mudar, embaçando a distinção entre “nós”e
“eles”. [...] A comunicação entre os de dentro e o mundo exterior se
intensifica e passa a ter mais peso que as trocas mútuas internas.
(BAUMAN, 2003, p. 18).
Fim do paroquialismo, celebram alguns. Mas também fim das certezas e da
segurança tradicional que uma comunidade local de sentidos compartilhados oferece a seus
membros.
É importante relacionar a proliferação dos meios de comunicação eletrônicos à
lógica do “Império”, uma vez que os sistemas abstratos globais são produzidos e
disseminados pelas estruturas internacionais hierarquizadas, sobrepondo-se às formas de
legitimação e conhecimento das comunidades locais. Não se trata de uma substituição, mas
de uma sobreposição. Os sistemas abstratos que penetram o tecido das relações cotidianas
provocam aquilo que Giddens (2002, p. 221) denomina “desencaixe”, ou seja, “o
descolamento das relações sociais dos contextos locais e sua recombinação através de
distâncias indeterminadas de espaço/tempo”.
Na verdade, a força e a legitimidade dos conhecimentos tradicionais dependiam de
sua exclusividade. Mesmo que os sistemas abstratos globais provoquem uma relação de
adequação e não uma eliminação pura e simples do local, o simples fato de que eles
inauguram umacompetição por legitimidade” com os conhecimentos locais corrói as
bases da “comunidade de sentido” imediata.
Como a incerteza provocada por essa relativização produz uma angústia difícil de
suportar, os meio de comunicação glocalizados se apressam em fornecer “comunidades-
cabide”, nas quais os indivíduos podem, a todo momento e sem nenhuma perspectiva de
74
compromisso, “pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e,
depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivíduos também
assustados e ansiosos” (BAUMAN, 2003, p. 21). E já que essas comunidades são, até certo
ponto, opcionais e absolutamente equivalentes, deixam o indivíduo livre para sair e bater
em outras portas tão logo julgue pertinente.
As “comunidades-cabide”, abundantes nas redes digitais, cumprem a função de
fornecer grades interpretativas coletivas e provisórias para dar sentido e possibilitar a ão
em um mundo no qual as comunidades “naturais” e os sistemas abstratos tradicionais
perderam sua legitimidade na construção da verdade. Mas, exatamente por serem
descartáveis, essas comunidades se inserem na lógica mais ampla da mercantilização: são
oferecidas no mercado de consumo, embutidas nos aspectos simbólicos das mercadorias.
Nas condições do mercado contemporâneo, comprar é identificar-se com a mercadoria.
Ainda que não se possua a condição financeira para tomar posse do objeto de desejo, a
compra (abstrata) já se efetuou pela identificação ao universo simbólico oferecido. O
consumo (real ou imaginário) é a senha de acesso à construção do indivíduo em uma
sociedade na qual a insegurança é produzida diuturnamente, mas, paradoxalmente, o
próprio consumo é um mecanismo de ampliação da insegurança, uma vez que não fornece
senão modelos provisórios e sempre questionáveis. O “bom consumo” torna-se uma
obsessão (da qual os movimentos sociais pelo “consumo responsávelou “sustentável’ não
são senão mais uma expressão).
A insegurança estrutural é, então, inflacionada pela informatização do cotidiano,
que essa incentiva a proliferação glocal de signos desprovidos de uma contextualização
pertinente. Cria-se uma rede de práticas culturais arbitrárias e provisórias, as quais, ainda
que representem uma libertação do peso da autoridade tradicional ou do cientificismo
moderno, terminam por dilacerar certezas e convicções herdadas ou construídas.. Giddens
(2002, p. 28-31) fala em termos de “mediação da experiência”, o que podemos atribuir à
vigência, como fator estruturante da cultura, da “lógica glocal”: a disseminação dos meios
de comunicação, notadamente os qualificados como “eletrônicos”, provoca uma
desestruturação na apreensão tradicional do tempo e do espaço em função da “intrusão de
eventos distantes na consciência cotidiana”. Essa forma “glocal” de construção identitária é
compulsória porque
75
os indivíduos não podem se contentar com uma identidade que é
simplesmente legada, herdada, ou construída em um status tradicional. A
identidade de uma pessoa necessita, em grande parte, ser descoberta,
construída, sustentada ativamente. [...] Cada vez mais temos que decidir
não quem somos e como agimos, mas como parecemos para o mundo
exterior. (GIDDENS, 1996, p. 97).
2.3. Terceiro eixo de análise: a individualização
Scott Lash (1997, p. 139-141) considera que a “individualização” tem sido o “motor
da mudança social”. As transformações sociais ocorridas desde o início da modernidade
teriam sido, na visão deste autor, formas de aumentar o grau de autonomia do indivíduo. A
primeira fase da modernidade incidiu sobre estruturas coletivas tradicionais, tais como o
grupo familiar amplo, a Igreja ou a comunidade da aldeia, realizando uma modernização
parcial. Na verdade, estas estruturas tradicionais não foram simplesmente desconstruídas,
mas substituídas por outras, como os sindicatos, o welfare state, a classe social. Estas,
embora representem um ganho no escopo da ação individual, ainda representavam entraves
à plena expressão do sujeito. O mundo contemporâneo, por sua vez, é caracterizado por
uma segunda modernização incidindo nestas instituições, modernas, com o intuito de
liberar ainda mais o indivíduo, mesmo às custas da insegurança ontológica provocada por
essa tendência.
É necessário (e o faremos mais adiante) refletir sobre o que seria essa “liberação”,
mas, em maior ou menor grau, a idéia de que o “indivíduo” tem ocupado papel cada vez
mais destacado no mundo contemporâneo é compartilhada por vários autores. A
individualização (ou “privatização”), de maneira geral, pode ser concebida como a
tendência a conceber o indivíduo como categoria central da vida social. Bauman (2005, p.
51) também a interpreta como a tendência dominante de se “buscar soluções privadas para
problemas socialmente produzidos”.
Birnbaum (1973, p. 122-123) liga o surgimento dessa tendência à noção de
“carreira”, que desponta no Ocidente como conseqüência da especialização na divisão
social do trabalho, à medida que a industrialização avançava:
76
A noção e a substância moderna de uma carreira, resultado do aumento da
escala e da mobilidade da sociedade industrial, tiveram conseqüências
psicológicas importantes. Conduziram a certa adaptação da cultura, à
limitação da perspectiva pessoal à esfera privada, ao isolamento da ética
da concepção da comunidade.
O avanço da individualização, marcado pelo desenvolvimento da especialização no
trabalho e simbolizado pelo ganho de relevância da noção de “carreira”, significa que as
chamadas “condições objetivas de existência”, tão caras à tradição marxista, perderam, aos
poucos, sua força explicativa. Se antes as condições de existência eram interpretadas (e
serviam como fundamento para a ação) em termos de articulações entre a divisão social do
trabalho e as instituições responsáveis pela reprodução desta divisão, agora o enfoque
privilegiado leva em conta categorias mais subjetivas, como a “habilidade”, a “adequação”
ou a “capacidade individual”. O tema do desemprego, por exemplo, aparece geralmente
ligado à questão da “empregabilidade”: se o primeiro tratava das condições gerais de oferta
de postos de trabalho determinada, entre outros fatores, pelo nível de atividade econômica,
o segundo sublinha as habilidades individuais que cada trabalhador deve possuir para
adequar-se à demanda por mão-de-obra.
A privatização” também pode ser percebida pela decadência das relações salariais
em detrimento do trabalho precarizado (free-lance, contrato temporário, terceirização etc).
O emprego, mas também a posição social e as condições concretas da existência, passa a
ser considerado o resultado do engajamento pessoal, desconectado de condições gerais da
economia e da política. É o indivíduo que deve ser responsável pela aquisição e
manutenção de habilidades com valor de mercado, ampliando sempre sua produtividade
para acompanhar os movimentos constantes do mercado. Caso não consiga e seja deixado
para trás, apenas ele, indivíduo, pode ser responsabilizado pelo fracasso.
O foco no indivíduo também implica a valoração negativa de qualquer forma de
coerção à “liberdade de escolha” (por mais condicionada que essa escolha possa
efetivamente ser). A célula primária do consumo, do direito, da política e da produção é o
indivíduo atomizado e desarticulado de relações sociais mais amplas. Nenhuma instituição
social, a princípio, tem o direito de determinar ou julgar, mas também aliviar e reparar, as
ações individualmente escolhidas. Nas palavras de Beck (1997, p. 180),
77
As oportunidades, ameaças, ambivalências da biografia, que anteriormente
era possível superar em um grupo familiar, na comunidade da aldeia ou se
recorrendo a uma classe ou grupo social, devem ser cada vez mais
percebidas, interpretadas e resolvidas pelos próprios indivíduos.
Bauman (2001) e Giddens (2002), em registros distintos, alegam que o foco na
individualização e a relativa perda de ênfase nas instituições modernas colocam como uma
das principais atividades do homem contemporâneo a “construção de si”. Assim, a
individualização
[..] consiste em transformar a identidade humana de um “dadoem uma
“tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e
das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais de sua realização.
[...] Os seres humanos não mais nascem em suas identidades. (BAUMAN,
2001, p. 40).
Podemos interpretar essa transformação a partir de algumas indicações contidas na
noção de “assujeitamento”, de Althusser (1985). Em sua teoria da ideologia, Althusser
considera a interpelação como a operação “por excelência” do aparato ideológico. É o
procedimento pelo qual os aparelhos ideológicos constituem o indivíduo em sujeito. Ao ser
interpelado como sujeito, o indivíduo se reconhece na interpelação, assumindo, assim, a
evidência de sua própria identidade, mas também sua submissão a esse outro que interpela,
o “Sujeito” (maiúsculo). Ao reconhecer-se e sujeitar-se, o indivíduo empenha sua aceitação
sobre o seu lugar no mundo (“é verdade, eu aqui estou, operário, patrão, soldado”) e sobre a
“ordem natural das coisas” (“as coisas são certamente assim e não de outro modo”).
No mundo contemporâneo o indivíduo é interpelado simultaneamente, nos meios de
comunicação, por diversos “Sujeitos” que, a princípio, são equivalentes. O excesso de
interpelações é conseqüência do excesso de informação e, aliado à crise de credibilidade
dos sistemas abstratos, produz a mesma ausência de sentido e o mesmo êxtase” apontado
por Baudrillard (1996b, p. 9). Há, na verdade, um “mercado de interpelações”, todas elas
indiferentes, mas que funcionam pela impossibilidade de uma fixação mais permanente
da identidade (conforme se verá a seguir).
Não se trata de alegar que os meios de comunicação eletrônicos provocam o
aumento da individualização” (ou a insegurança estrutural, relacionada a esse fenômeno).
Bauman (2005, p. 97), por exemplo, sustenta posição contrária ao afirmar que os
“instrumentos eletrônicos” apenas criam os meios técnicos para expressar essa condição:
78
[...] é porque somos incessantemente forçados a torcer e moldar nossas
identidades, sem ser permitido que nos fixemos a alguma delas, mesmo
querendo, que instrumentos eletrônicos para fazer exatamente isso nos são
acessíveis e tendem a ser entusiasticamente adotados por milhões.
De qualquer forma, é necessário fixar as relações entre a individualização e a
generalização da informática, a fim de que se possa compreender o papel reservado, na
lógica de reprodução do capitalismo contemporâneo, aos egressos dos programas de
inclusão digital.
2.3.1. Informática, individualização e identificação
O computador, principalmente com o advento da microinformática,
8
é uma máquina
de uso eminentemente privado. Mesmo nas complexas redes corporativas, o usuário possui
relativo grau de autonomia, que se reflete na capacidade de personalização da interface,
através da substituição de ícones, cores ou parâmetros de utilização.
9
Os locais de acesso
coletivo, como salas de aula, têm que se adaptar continuamente a esse tipo de arquitetura,
criando mecanismos para “limpar” a quina periodicamente, apagando rastros (arquivos,
configurações, donwloads etc) deixados por usuários anteriores.
Essa arquitetura é encorajada pelos desenvolvedores de softwares, que tratam a
capacidade de personalização (ainda que apenas estética e superficial) como diferencial de
seus produtos, com mudanças de cores, ícones, funções e disposição dos comandos na tela.
Essa constatação, aparentemente banal, com certeza não é suficiente para ressaltar o papel
da informatização do cotidiano no reforço à tendência de individualização do mundo
contemporâneo. Apesar disso, indica que, na arquitetura do computador pessoal, clara
ênfase no uso privado. O princípio de comunicação de “muitos para muitos”, alardeado
como uma das revoluções democráticas trazidas pela informatização, pode ser
8
Os chamados computadores de “grande e médio porte”, comuns no universo das grandes empresas a partir
dos anos 70, mas lentamente substituídos pelas redes de micros, é uma máquina de uso compartilhado. Os
usuários têm acesso apenas a terminais, não possuindo condições de modificar substancialmente os
parâmetros de operação da máquina e nem, ao menos, de desligá-la.
9
A autonomia a que nos referimos é relativa, na medida em que as opções de personalização são dadas e
definidas pelo fabricante do software. Assim, todas as possibilidades de uso e transformação estão, na
verdade, circunscritas à pequenas alterações previstas na codificação. Isso não impede, porém, que a
personalização se torne tanto uma percepção do usuário quanto um argumento publicitário.
79
compreendido se esses “muitos” forem redutíveis a uma coleção de indivíduos. Muitos
para muitos”, porém, “um de cada vez”.
A comunicação massificada lugar a outro modelo, marcado pela fragmentação e
pela individualização. Se os meios de massa ainda guardavam um resquício de
sociabilidade não-mediada,
10
representada pela possibilidade de fruição compartilhada
(vale a imagem nostálgica da família reunida em torno do aparelho de rádio), a
informatização conduz ao isolamento do corpo e ao enclausuramento solitário no contexto
da recepção. A “sala de TV” é substituída pelo “bunker glocal”.
O bunker glocal” é uma metáfora que Trivinho (2007, p. 305-317) utiliza para
designar não apenas as características físicas do ambiente típico de uso das ferramentas
informáticas, mas também o imaginário (de origem bélica) associado a esse ambiente. O
usuário se torna isolado, aparentemente “protegido” contra o real circundante e com a falsa
sensação de controle absoluto do entorno (mediático). O bunker é da ordem de um
[...] imaginário social fincado na necessidade incontornável de proteção
e/ou de defesa em relação ao mundo extensivo (supostamente exterior ao
contexto glocal) e a seus acontecimentos e tendências. (Ibid., p. 311).
Essa passagem da mídia de massa para o isolamento individual no bunker glocal é
de todo coerente e atende às necessidades do capital implicadas em outra transformação, da
produção em massa para a especialização flexível. O bunker é o índice do usuário
individual isolado e, ao mesmo tempo, do consumidor plenamente integrado às redes de
criação e distribuição de valor.
No novo ambiente da produção segmentada ocorre, paralelamente, uma explosão na
oferta de comunicação, acompanhada de pulverização da recepção. No entanto, nenhum
desses fenômenos acontece livre de restrições e modulações impostas pelas condições do
meio social, condições essas que, no contexto presente, são dadas pela resultante do embate
entre forças interiores ao “Império”.
A interatividade, típica da comunicação digital em rede, multiplica não apenas as
possibilidades de acesso à informação, mas, igualmente, o número de “falantes” possíveis,
ao dissolver as fronteiras entre emissão e recepção. Porém, a polifonia não implica
igualitarismo ou democracia, visto que alguns “emissores” continuam em situação
10
Embora a presença de um meio de comunicação já indique uma certa “mediação” na sociabilidade,
queremos frisar aqui o contexto coletivo de recepção, que se perde com os meios digitais.
80
privilegiada do ponto de vista de sua influência na cena coletiva. A atenção se fragmenta e
se individualiza, mas continua francamente induzida pela propaganda de massa, pelo hábito
socialmente determinado, pelo poder econômico que leva à produção de mensagens mais
sedutoras que outras. A comunicação em redes digitais não acontece em um vazio
institucional; antes, respeita hierarquias construídas e sustentadas alhures (CAZELOTO,
2003a).
No entanto, esses novos meios acrescentam camadas de complexidade à relação
entre comunicação e construção da sociedade, principalmente no que concerne à
proliferação de modelos de comportamento. Os meios de massa, embora fornecessem
numerosas possibilidades de produzir identidades socialmente legitimadas, permaneciam
quantitativamente e qualitativamente limitados.
Nesse sentido, a cibercultura marca o fim do mito da identidade (unificada e
totalizada, pica do pensamento moderno) e a emergência da lógica da identificação. Nas
palavras de Trivinho (2007, p. 394):
Se a lógica da identidade pressupõe para enfatizar o que é longevo,
“orgânico”, unitário e harmônico, a lógica da identificação inclui, em
geral, o que é instável e interino, múltiplo e disperso, acidental e fluido, ou
seja, o conceito pluralizado de identificação envolve, no limite, o princípio
da heteronomia, na modalidade do não-idêntico (grifos do autor).
A identificação, como lógica predominante na cibercultura, é solidária ao excesso e
à velocidade: ao primeiro, porque ela alimenta a explosão de significantes e, reversamente,
se consolida pela multiplicidade arbitrária das significações atualizadas; à segunda, porque
a identificação é sempre provisória e prontamente substituída, sendo reafirmada pelo
próprio ritmo do movimento (uma identificação que se cristalizasse seria o equivalente ao
que se pode entender como “identidade”).
Nas redes informáticas, a identificação se torna o processo por excelência da
individualização, graças aos mecanismos de interatividade. O computador em rede
propicia, além da possibilidade técnica de “dar voz” ao usuário, a criação de um mecanismo
de aparente adesão voluntária.
11
É o indivíduo que, ativamente, busca a informação e lhe
11
Trata-se, na verdade, de uma simulação de “adesão voluntária”, uma vez que o caráter compulsório da
informática, principalmente nos centros urbanos, deixa pouca possibilidade de uma “não-adesão”. A
informatização surge como forma de autoritarismo, como veremos adiante.
81
atribui algum sentido, ao contrário do modelo de “transmissão”, típico dos meios massivos.
Tudo se passa como se a comunicação interativa apenas expressasse, de modo mais ou
menos neutro, um desejo prévio do indivíduo. Não há, aparentemente, a imposição de um
conteúdo qualquer, mas apenas a sua “disponibilização”, cabendo ao usuário aceitar a
informação oferecida ou recusá-la, buscando outra fonte.
Há, certamente, vasto campo aberto para a investigação sobre as condições sociais
que regulam essa relação entre demanda e oferta. No entanto, para nossos objetivos, será
suficiente frisar que o modo de relacionamento possibilitado coaduna-se com as
características de um mercado de consumo fragmentado e da produção em pequena escala,
dependentes, por sua vez, de um imaginário social calcado na noção de “indivíduo”.
As “escolhas individuais”, possibilitadas pela comunicação interativa e pela
capacidade de “personalização” simulada pelo aparato informático, assim como a compra
de mercadorias (igualmente “personalizadas” e “personalizáveis”),
12
inserem
imediatamente aquele que escolhe em uma “classe de indivíduos que possuem (diríamos,
escolhe) da mesma maneira”. Assim, “[...] os próprios signos do privados atuam como
signos de pertença social” (BAUDRILLARD, 1995, p. 25-26), já que a seleção é, ao
mesmo tempo, individualizante no âmbito local e socializante no âmbito global. Escolher é
identificar-se e cada seleção pessoal é, simultaneamente, uma forma de diferenciação.
Como compara Rifkin (2001, p. 89): “dirigir um Cadillac ou um fusquinha serve como
uma declaração social tanto quanto como um meio de transporte”.
Um olhar sobre as chamadas “comunidades virtuais” (o caso do sistema de
relacionamentos Orkut é exemplar) revela as relações umbilicais entre escolha e
identificação promovidas pelo aparato infotecnológico. Nelas, é o indivíduo que constrói
sua rede de relações a partir de uma rie de seleções. Ocorre, mais propriamente, uma
“adesão” à comunidade que tem a expressão do indivíduo mediante suas escolhas como um
dos objetivos principais, atingido, paradoxalmente, através de sua pertença a um coletivo.
Assim como no campo da produção capitalista, cada objeto, lembra Baudrillard
(1995, p. 53) aludindo aos fonemas lingüísticos, “só ganha sentido na diferença com os
outros objetos, segundo um código de diferenciações hierarquizadas”, é o contraste entre as
12
A personalização das mercadorias aqui, não tem apenas o sentido dado pelas possibilidades de produção em
pequena escala, mas pelos sentidos individuais atribuídos a essas mercadorias no momento do consumo. Mais
do que “objetos”, trata-se de reconhecer a mercadoria como senha de inserção na cultura.
82
múltiplas possibilidades de escolha, todas elas, evidentemente, previamente estabelecidas,
que determinará a construção (instável) de uma identificação e seu respectivo lugar no
sistema de diferenciações.
A diversidade de possibilidades, portanto, atualiza-se a cada escolha individual
efetuada. A adesão colabora para dar sentido à comunidade, visto que ela não pode existir
sem que tenha sido objeto de escolha de um determinado número de usuários. Assim, as
comunidades são, na verdade, coleções de indivíduos e retiram seu capital simbólico dos
investimentos de atenção e participação realizados por estes.
No capitalismo contemporâneo, cada decisão de compra ou acesso torna-se essa
forma de “produzir diferenças”, trazendo à cultura objetos e escolhas que vão expressar
uma hierarquia de distinções (BORDIEU, 2003, p. 2-25). “É porque os objetos-signo são
comutáveis e arbitrários que eles espelham a própria divisão social, ao mesmo tempo em
que a fundam” (BAUDRILLARD, 1995, p. 57, grifo nosso).
Assim, a produção fragmentada do pós-industrialismo é dependente de uma lógica
mais ampla, solidária às possibilidades técnicas de interação e personalização dos meios
digitais, que é a lógica do indivíduo que se expressa e se produz, como indivíduo, a partir
de suas escolhas.
A saturação mediática é associada ao consumo pulverizado, criando formas de
participação no mercado que tendem ao atendimento individualizado. Ao mesmo tempo em
que as ferramentas informáticas permitem essa individualização da produção (como vimos
anteriormente), colaboram com a proliferação infinita de “modismos” e modelos de
comportamento. Os meios informáticos são capazes de captar padrões de comportamento
que eles mesmos incitam para, no passo seguinte, criarem os objetos que irão tornar pleno o
processo de identificação entre indivíduos e mercadorias.
Se o computador, em sua primeira fase (offline), poderia ser considerado como uma
“maquina de acelerar”, com o advento das redes ele é também uma “máquina de
selecionar”. Ele simula a centralidade do indivíduo, não apenas por ser uma máquina de uso
eminentemente privado, mas porque depende do engajamento ativo do usuário” no
exercício (compulsório) das escolhas permanentes. A capacidade de exercer níveis de
escolha, mas também a velocidade com que o descarte das opções anteriores é feito, irão
constituir uma forma de estratificação e hierarquização sociais na cibercultura.
Capítulo 3
A estratificação social da cibercultura
A cibercultura, como momento (atual) do capitalismo, possui uma axiologia própria,
a qual convém interpretar à luz dos vetores da saturação mediática e da informatização do
cotidiano, a fim de que se possam emoldurar os Programas Sociais de Inclusão Digital em
um conjunto de valores que são pertinentes a esses processos. Com isso, pretendemos
demonstrar a vigência de certas nuances que são “deixadas de lado” pelas tendências
dominantes de exaltação à “sociedade tecnológica” e que transformam as várias
modalidades de inclusão na cibercultura em um campo conflituoso, no qual a subordinação
“de fato” interpõe-se à emancipação idealizada, ou seja, em que pesem possibilidades de
ganhos sociais no uso intensivo de ferramentas informáticas, essas “virtualidades”,
normalmente associadas às características intrínsecas do computador, visto como objeto
tecnológico em si, podem se dissipar diante dos usos concretos das máquinas, sempre
presididos por relações hierárquicas e de poder que lhes são igualmente inerentes.
A hipótese é que traços estruturantes da cibercultura como a velocidade, a
construção autobiográfica aleatória, a gica da escolha individual compulsória e o acesso
aos fluxos de comunicação, se convertem em formas de estratificação social
sobredeterminando (mas não substituindo) categorias propriamente econômicas
(TRIVINHO, 2007). No entanto, nunca é demais lembrar que o acesso aos elementos
materiais e simbólicos da cibercultura ainda é realidade apenas para cerca de um quinto da
população mundial. A maior parte da humanidade parece ainda distante até mesmo do
conjunto de relações da modernidade industrial, embora seja inegável que a maneira como
as sociedades economicamente dominantes estão se reestruturando acabe por produzir
efeitos mesmo em quem não está diretamente conectado. A cibercultura é o ambiente da
elite mundial e, exatamente por isso, se faz sentir mesmo onde não está diretamente
presente. O que nos interessa é seguir a trilha sugerida por Baudrillard (1996a, p. 20) e
compreender o capitalismo mais como um “modo de dominação” que um “modo de
produção”.
84
As conclusões de Bauman (2003, p. 69-81) sobre as mudanças na percepção da
pobreza são particularmente úteis aqui. O autor afirma que, no período anterior, pré-
moderno, a privação era diacrônica, ou seja, medida e sentida em comparação a um
passado vivido. O sentimento de injustiça era provocado por uma ruptura no padrão
tradicional de vida, por uma percepção de “redução”. Weber (2004, p. 53) também
percebeu esse fenômeno nas origens do capitalismo, afirmando que, para o operário típico
da época,
ganhar mais o atraía menos do que trabalhar menos; ele não se perguntava:
quanto posso ganhar em um dia se render o máximo no trabalho? E sim:
quanto devo trabalhar para ganhar a mesma quantia [...] que recebi até
agora e que cobre minhas necessidades tradicionais?
Atualmente, no entanto, a pobreza é sincrônica, ou seja, estabelecida em função da
condição de vida de outras pessoas que se dão como modelo possível de riqueza. Tanto faz
que essas pessoas estejam fisicamente próximas ou surjam apenas como imagens
veiculadas pelos meios de comunicação. Não se trata, do ponto de vista de Bauman, de
saber-se pobre pelo pouco que se tem, mas pelo muito que se poderia ter.
Assim, tomados como forma de riqueza, a velocidade e o acesso jamais podem ser
“satisfatórios”, uma vez que sempre há os que “possuem” mais:
[...] nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem
qualquer probabilidade de trazer satisfação da maneira como o “manter-se
ao nível dos padrões” outrora prometeu: não padrões a cujo nível se
manter – a linha de chegada avança junto com o corredor e as metas
permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta alcançá-las.
(BAUMAN, 1998, p. 56).
Além das transformações na forma de percepção da hierarquia social, o novo
arranjo capitalista impõe a necessidade de uma abordagem distinta para o fenômeno da
estratificação social. Nos parâmetros impostos por uma economia culturalizada, é
necessário estar atento às novas relações de dominação que emergem. Ianni (1973, p. 11–
14) já alertava para a necessidade de incluir “categorias socioculturais” entre os critérios de
estratificação social, sem restringir a análise ao âmbito exclusivo das relações de produção
e é precedido por Bordieu (2003, p.14), para quem
85
Inúmeras propriedades de uma classe social provêm do fato de que seus
membros se envolvem deliberada ou objetivamente em relações
simbólicas com indivíduos de outras classes, e com isso exprimem
diferenças de situação e de posição segundo uma lógica sistemática,
tendendo a transmutá-las em distinções significantes (grifo do autor).
Embora, nas sociedades capitalistas industriais, as relações econômicas pressupostas
na noção de classe tenham ganhado relevo teórico e pragmático, outras formas de
hierarquização (como a raça e a tradição) nunca estiverem efetivamente ausentes.
Discutiremos adiante, em detalhe, as formas de hierarquização que parecem emergir na
cibercultura. No momento, basta frisar que o deslocamento de ênfase da produção para o
consumo e o declínio da centralidade do trabalho na constituição do sujeito faz com que
novas categorias socioculturais sejam elevadas à condição de parâmetros para uma teoria
contemporânea da estratificação social que tenha como critério não apenas as relações com
os meios de produção, mas também o acesso aos recursos da cibercultura e a
“dromoaptidão”.
A idéia de dromoaptidão, desenvolvida por Trivinho (2001a, p. 219-223; 2007, p.
97-99) é uma das chaves para a compreensão das novas formas de subordinação na
cibercultura. Ela pode ser interpretada como a capacidade de movimento acelerado e
possui uma conotação tanto material quanto cognitiva: trata-se, no âmbito restrito da
informática, de possuir as formas de acesso aos equipamentos de maior potência
disponíveis no mercado, mas também da capacidade de incluir no repertório individual as
práticas culturais sempre cambiantes da cibercultura.
Na cibercultura, a dromoaptidão, portanto, inaugura uma nova forma de
hierarquização calcada não apenas na capacidade de aquisição e manutenção dos
equipamentos e conhecimentos de ponta, mas também na possibilidade de descarte dos
modelos antigos e na velocidade de adaptação às técnicas e práticas culturais.
Os diferentes níveis de dromoaptidão significam diferentes “lugares” na
estratificação social,
1
mas revela-se um “imperativo categórico de época, válido para todos
os setores sociais” (Ibid., p.97). Para Bauman (1998, p. 118), o mundo pós-moderno se
divide entre “turistas” e “vagabundos”. Os dois estão em perpétuo movimento, mas, para os
últimos, a velocidade é uma imposição e não uma escolha. E a possibilidade de escolher,
1
Essa estratificação é capturada pela idéia de “pirâmide ciberdromocrática invisível”, detalhada por Trivinho
(2007, p. 165-167). Assumimos aqui uma versão simplificada que, para todos os efeitos, conta de frisar os
desníveis de poder e privilégios contemporâneos.
86
por mais condicionada ou socialmente determinada que seja, é o “mais essencial entre os
fatores de estratificação” nas sociedades contemporâneas.
Em trabalho posterior (BAUMAN, 2005, p. 44), o sociólogo polonês ainda nota que
até mesmo a capacidade de mover-se entre identidades torna-se um modo de captar os
desníveis sociais:
Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e
desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as
no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro
pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade,
que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem
oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros identidades de que
eles próprios se ressentem, mas não m permissão de abandonar nem das quais
conseguem se livrar.
No extremo inferior desta cadeia, ainda acrescentaríamos, situam-se aqueles aos
quais Giorgio Agamben (2002) se refere com a expressão “vida nua”: seres humanos
privados de qualquer forma de reconhecimento identitário, reduzidos à mera biologia de
seus corpos.
Se o acesso aos recursos da cibercultura pode ser considerado forma de privilégios
na hierarquia social, controlar o acesso a esses recursos será um modo de ocupar posições
de maior privilégio e poder mais evidente. É esse o coração da tese de Jeremy Rifkin
(2001) sobre a “era do acesso”: uma vez que cultura e economia tendem cada vez mais a se
tornarem indistingüíveis, a riqueza, mas também o poder político e a influência social, se
concentram nas estruturas que exercem alguma forma de controle sobre o acesso mediado
pelos equipamentos informáticos à experiência cotidiana da cibercultura.
Mesmo do ponto de vista restrito de uma teoria econômica, o controle do acesso
revela-se uma forma de riqueza no seu sentido quantitativo. Um maior número de usuários
é capital que a empresa contemporânea preza, não apenas pelas dificuldades cnicas e
pelos custos de uma mudança de plataforma, o que implica “fidelizar” (na verdade
“imobilizar”) sua clientela, garantindo vantagens comerciais, mas também pelo “efeito de
rede”, utilizado amplamente pela indústria do software:
Se a empresa pode convencer um número suficiente de usuários finais a mudar para
seus programas, a empresa poderá estabelecer um padrão na indústria e, no
87
processo, vender upgrades e serviços aos seus clientes com margens significativas.
(RIFKIN, 2001, p. 78).
“O controle privado das redes passou a ser determinante para a apropriação de um
valor que não é mercadoria” (DANTAS, 2002, p. 101), mas a vantagem não se reduz a esta
nova espécie de monopólio: ela também imprime ao produto certa chancela de qualidade,
associada a sua ampla aceitação no mercado. Como lembra Bauman (2003, p. 61), com a
crise de legitimidade do conhecimento tradicional, duas fontes de segurança para
proferir juízos de valor no mundo contemporâneo: os especialistas e a “autoridade do maior
número” (na suposição de que, quanto maior o número de “clientes”, menor a chance de
que estejam errados).
No entanto, retomamos aqui a idéia de “crise dos sistemas especialistas” e da
autoridade do conhecimento para afirmar que essas duas “fontes de autoridade” não têm o
mesmo peso. Numa esfera pública povoada por discursos contraditórios a respeito da
“verdade” ou do “melhor modo de se viver”, os experts são, no máximo, fontes de
segurança momentânea. Mesmo assim, em que pese a fugacidade de suas imagens, as
empresas contemporâneas se apropriam do capital simbólico dos “modelos de
comportamento” (dos jogadores de futebol aos astros da televisão) para oferecer seus
signos de pertença. No que diz respeito especificamente ao campo da informática, a
“autoridade do maior número”, no entanto, produz um elemento de valor mais durável
(enquanto durar o maior número) exatamente porque se a perceber como algo objetivo,
como uma lei matemática que implica a qualidade superior daquilo que todos reconhecem e
adotam.
A estratificação social baseada na velocidade e no controle ao acesso permite
vislumbrar sutilezas que escapam ao olhar esvaziado de crítica, típico dos discursos de
legitimação dos Programas Sociais de Inclusão Digital. Esses programas tendem a enxergar
a cibercultura como um campo homogêneo, diante da qual existiriam duas posições
possíveis: a inclusão e a exclusão. Como veremos adiante, há, na verdade, uma gama muito
mais ampla de possibilidades de inclusão e essas não se confundem com apenas com o
acesso (momentâneo) das ferramentas digitais mas sofisticadas. Mesmo entre os
“incluídos”, a diversidade e instabilidade das posições obtidas leva, necessariamente, a um
88
questionamento sobre qualquer forma definitiva de apropriação dos recursos, privilégios e
poderes na cibercultura.
Podemos manter uma abordagem dicotômica, apenas para efeito ilustrativo da
diversidade de enfoques possíveis. Um primeiro recorte dividiria a cibercultura, por
exemplo, entre os que concebem e produzem as tecnologias digitais (hardwares e
softwares) e os que se limitam à posição de usuários. Entre os produtores, aqueles que
estão envolvidos na criação, desenvolvimento e atualização de plataformas globalmente
dominantes (como o sistema operacional Windows ou os chips da Intel) e os que estão
alocados nas indústrias periféricas, atendendo nichos de mercado locais ou regionais. Os
desenvolvedores dominantes ainda podem ser subdivididos em um grupo decisório,
responsável pelas macro-estratégias e pela concepção das atualizações e uma massa de
executores, sem controle sobre a natureza ou finalidade de seu trabalho. Poderíamos
prosseguir quase indefinidamente com essas bifurcações hierárquicas e, mesmo assim, não
daríamos conta de preencher todas as possibilidades de inserção na cibercultura. Mas isso
não impede que se faça uma aproximação interpretativa desta diversidade, a qual pode ser
obtida com um exame detalhado (ainda que abstrato) da divisão social do trabalho na
cibercultura.
3.1. Estratificação social no campo do trabalho
Um senso comum em torno do tema da inclusão digital é a necessidade de suprir
amplos segmentos da população de qualquer país com as aptidões necessárias ao ingresso
em um mercado de trabalho dominado por tecnologias informáticas. A inclusão digital é
tomada como meio para a inclusão social pelo trabalho. Portanto, a discussão sobre o papel
da inclusão digital na cibercultura não pode ser encaminhada sem prévia reflexão sobre as
características da divisão internacional do trabalho em si mesma, mas, apenas, nas suas
relações com aquilo que pretende ser a “inclusão social”.
A cibercultura, no seu movimento extático de fusão glocalizada entre economia e
cultura, transfere para a esfera produtiva a mesma hierarquização calcada na dromoaptidão
apontada anteriormente. Essa hierarquização, obediente às linhas de força impostas pelo
“Império”, acaba por desenhar uma nova divisão internacional do trabalho, não mais
89
clivada entre produtores de matérias-primas e países industrializados, mas por regiões
capazes de produzir formas de capital simbólico (entre os quais podemos citar o design e a
inovação tecnológica) e outras, meramente consumidoras das mercadorias nas quais esse
capital se encontra incorporado. Essa divisão, como afirma Birh (apud BRAGA, 1995, p.
118), se no interior do modo capitalista de produção, redesenhando seus centros de
controle para além da idéia de Estado-nação:
[...] ao invés da divisão do trabalho fundada sobre a troca de matérias-
primas por produtos manufaturados, verificamos um movimento de
“relocalização” industrial impulsionado pelas multinacionais tendendo a
impor uma divisão marcada pela oposição entre as indústrias ou serviços
de ponta e industrias clássicas de mão-de-obra ou primeira transformação.
Scott Lash (1997, p. 146) por exemplo, chama a atenção para a emergência do
“proletariado McDonalds”. Trata-se de um enorme contingente de trabalhadores precários
no setor de serviços, rebaixado a uma posição inferior ao operariado fordista. o
balconistas, empregados do setor de limpeza, funcionários de escritório, recepcionistas,
atendentes de telemarketing e empregados em outras ocupações que exigem uma baixa
qualificação, normalmente alocados em empresas “terceirizadas” . A atividade desses
trabalhadores é eminentemente “servil” (Idem, p. 162).
A tese de Lash é a de que essa camada de trabalhadores subalternos, necessários às
economias desenvolvidas, surge, não em virtude da falta de acesso ao capital produtivo
(como o proletariado de Marx, que se define pela ausência de controle e propriedade dos
meios de produção), mas pela falta de acesso às “novas estruturas de comunicação e
informação”. Alguns setores econômicos (encontrados em países dominantes, tais como o
Japão e a Alemanha), proporcionam elevado fluxo de disseminação e processamento de
informações na forma de colaboração no ambiente de trabalho e aquisição de
conhecimentos. Mas, onde isso não acontece, o resultado é uma polarização entre três
“classes”, todas vinculadas, de maneiras distintas, às estruturas de comunicação e
informação. uma “classe média transformada” que trabalha nas estruturas de
informação e comunicação, uma “classe trabalhadora reflexiva” que trabalha para e com
essas estruturas, e uma “subclasse” excluída dos fluxos de informação e comunicação
(Ibid., p. 158-159).
90
Lyotard (1986, p. 7) também afirmou que a hierarquização de competências seria
capaz de levar a uma divisão radical entre formas de trabalho. Para ele, o conhecimento,
transformado em mercadoria, tende a “ser posto em circulação segundo as mesmas redes da
moeda”. conhecimentos que devem ser trocados “no quadro da vida cotidiana” e outros
que são investidos de maneira a “otimizar performances”. A sociedade se cinde, então,
entre decisores” e “pagadores”: os primeiros usam a informação como forma de
acumulação de riquezas, enquanto, para os últimos, os conhecimentos “servirão apenas para
pagar a dívida perpétua de cada um relativa ao vínculo social”.
Outra expressão marcante da profunda cisão social em operação no mundo
contemporâneo pode ser encontrada na obra de Rifkin (2001, p. 23-24). Para esse autor,
duas camadas no mundo do trabalho: uma dedicada à manufatura e à transferência de
propriedades e outra, especializada na “compra e venda de experiências humanas”.
Em outros termos, podemos interpretar a forma de expansão da produção na
cibercultura como uma hierarquização entre uma elite, encarregada de gerir os elementos
imateriais do complexo economia/cultura, e uma massa subalterna de atores dedicados às
tarefas rotineiras e repetitivas, que constituem a parte menos criativa (e menos remunerada)
dos produtos com apelo simbólico. Além disso, há uma periferia crescente de “excluídos”
que, por conta dos ganhos de produtividade induzidos pela informatização, não se
enquadram em nenhuma dessas duas grandes categorias: são aqueles que Bauman
denomina redundantes” e que Baudrillard afirma não constituírem mais o “exército
industrial de reserva”, uma vez que sua condição de desemprego não é mais percebida
como “passageira”, porque já se tornou estrutural.
3.1.1. Uma elite para além das classes
A distribuição desigual de privilégios na cibercultura não pode ser confundida com
uma versão atualizada do “conflito de classes”. O ambiente contemporâneo, marcado pela
glocalização da experiência, pela velocidade e pelo excesso, desautoriza qualquer definição
rígida como uma estrutura de classes. Não propriamente “classes”, se por esse termo
compreendermos um conjunto de atores que ocupam determinado lugar da estratificação da
sociedade determinado pela sua posição relativa no modo de produção, porque não
91
antagonismos fundamentais, mas desníveis flexíveis de dromoaptidão, sendo que um
mesmo grupo pode variar de posição num par de meses.
Em todo o período moderno, a ênfase dada às relações econômicas levou a idéia de
classe à situação de conceito hegemônico para explicar os desníveis de poder e riqueza nas
sociedades industrializadas (IANNI, 1973). Mas isso não deve ocultar o fato de a classe não
é um dado empírico, mas uma ferramenta conceitual que permite fragmentar o todo de uma
formação social (de um “bloco histórico”, conforme a expressão de Gramsci), revelando
assim suas contradições internas.
2
O universo econômico é um critério classificatório de
suma importância, mas, certamente, não único. A classe só é central para o pensamento que
institui as relações econômicas como “determinação em última instância” das relações
sociais e deriva todo o bloco histórico das condições objetivas de produção. Tal
interpretação esbarra em dificuldades teóricas insuperáveis, como a própria noção de
“relações com os meios de produção”:
A expressão “relação com os meios de produção” é excessivamente
genérica. As relações em apreço podem ser de propriedade, controle,
proximidade, lucro. Os próprios “meios de produção” não se especificam
com facilidade: além das máquinas, a expressão pode estender-se aos
aparelhos de distribuição e administração e, com a crescente ligação entre
o Estado e a economia, às próprias instituições políticas. (BIRNBAUM,
1973, p. 16).
A situação torna-se ainda mais complexa se considerarmos as novas formas de
“relação” com os meios de produção (como o “acesso”) e o princípio de que, no panorama
atual, a própria cultura se funde com o econômico, criando novas instituições e modos de
relacionamento: se a comunicação, por exemplo, é um meio de produção, devemos
considerar a totalidade dos profissionais envolvidos neste setor como membros de uma
mesma classe de técnicos e administradores do capital?
A explosão das formas de relação econômica e dos meios direta ou indiretamente
envolvidos no processo total de produção reescalona o problema. Se, como estamos
afirmando, uma das características mais marcantes da cibercultura é a fusão entre o
econômico e o cultural, é necessário supor que a idéia de classe não mais conta
2
Birnbaum (1973, p. 15-23) faz uma sucinta e alusiva história dos usos da noção de classe, bem como das
dificuldades inerentes à essa definição.
92
plenamente de fornecer o aparato conceitual necessário para a compreensão da
subordinação na sua forma contemporânea.
Ainda a questão da “consciência de classe”. Se buscamos na idéia de “classes
sociais” um conceito operatório, capaz de identificar um coletivo humano que e age
sobre o mundo de maneira mais ou menos homogênea, impulsionado por um conjunto de
valores compartilhados, a consciência e auto-imagem que esse grupo possui de si mesmo
não pode ser desprezada em detrimento de um “lugar idealizado” no modo de produção.
Embora, como afirme Lukács (1979, p. 12), “a essência do marxismo científico consiste em
reconhecer a independência das forças motrizes reais da história com relação à consciência
(psicológica) que os homens têm dela”, é natural supor que a consciência coletiva deva
refletir os interesses concretos de dado grupamento e não os interesses logicamente
pressupostos e determinados pela posição ocupada no modo de produção. Para superar a
diferença entre a consciência de classe percebida empiricamente e aquilo que ela “deveria”
ser pelo seu papel no sistema, uma certa linha do pensamento marxista insiste na idéia de
“alienação”: o hiato entre o ser e o dever-ser é creditado à obliteração do real, que reside
unicamente no conflito de classes. Bastaria, então, “esclarecer” os produtores diretos para
que eles, imediatamente, se tornassem o que sempre foram e assumissem como
individualmente válida a “consciência proletária” logicamente pressuposta..
Essa crítica é também empreendida por Harvey (1992, p. 57), ao afirmar que, nas
condições contemporâneas, não é possível se pensar em termos de alienação “porque o ser
alienado pressupõe um sentido de eu coerente e não-fragmentado do qual se alienar. Se esse
“sujeito transcendental” pode ser colocado em dúvida desde sempre, nas sociedades
organizadas em torno do excesso de informação e marcadas pela crise de legitimidade dos
discursos universalizantes, a idéia de um sujeito estável, imediatamente igual a si mesmo,
torna-se ainda mais insustentável.
Se as condições para a formação de uma classe passam necessariamente pelo
compartilhamento de modos de vida similares e de signos de pertença, além de uma relação
comum com os meios de produção, as formas e artefatos culturais que circulam em
tamanho volume (a comunicação inflacionada do mundo contemporâneo) terminam por
provocar a dispersão das solidariedades em uma sociedade de consumo marcada pelo
individualismo. A glocalização da experiência, provocada pelos meios de comunicação
93
eletrônicos e digitais, confunde as fronteiras entre as classes, dispersando-as em uma
miríade de posições, sempre instáveis e fortemente individualizadas. O reflexo político é
imediato: demandas por “justiça social”, picas de um enfoque classista, por exemplo, são
substituídas por questões ligadas à “qualidade de vida”, que podem ser individualmente
concebidas (ARONOWITZ, 1992).
Mas, ainda assim, é possível circunscrever de maneira flexível os campos de certa
divisão social do trabalho para, em seguida, remetê-los à lógica “imperial” do capitalismo
internacional. A cibercultura tem sua elite, que, embora coincida com a elite econômica em
parte, não se identifica plenamente com esta (TRIVINHO, 2001a, p. 224-227).
Evidentemente, a situação descrita não implica igualitarismo, nem mesmo algum contexto
de radical mobilidade social. O que se identifica é que os critérios pelos quais as classes são
definidas permanecem fundamentalmente ligados a um determinado nível de rigidez
metodológica calcada na preponderância absoluta da noção de trabalho, incapaz de explicar
a ação concreta dos grupos sociais no contexto contemporâneo das sociedades de consumo
e de exacerbação do individualismo.
A classe, na maioria dos casos, não é experienciada mais como classe, mas como
restrições (ou oportunidades) oriundas de uma diversidade de fontes. A classe
torna-se individualizada e expressa por meio da “biografia” do indivíduo; ela é
experienciada cada vez menos como sina coletiva. (GIDDENS, 1996, p. 163).
O problema das classes não é apenas relacionado ao excesso de posições possíveis,
mas também à sua fluidez e à “incapacidade de definir de maneira não ambígua e
relativamente estável os seus contornos” (BAUMAN, 1998, p. 154).
As classes sociais são, portanto, um caso particular e historicamente determinado de
um fenômeno mais amplo: a estratificação social. Devemos nos lembrar que outras
categorias são tradicionalmente reconhecidas como válidas, tais como a casta ou o
estamento. Dessa forma, o elemento invariante é o fato de que as sociedades são cindidas
por divisões hierarquizadas e a idéia de estratificação implica a concentração de direitos e
privilégios em um determinado conjunto de atores sociais. Assim, é plenamente lógico que
se possa supor a existência de classe sociais como apenas uma forma, entre outras
possíveis, de conhecer os modos de subordinação.
A idéia de subordinação pode ser compreendida de diversas formas, desde a
imposição de uma vontade particular pelo uso aberto da violência até as formas de
94
exercício da hegemonia, no registro de Gramsci. No contexto dessa argumentação, é
necessário dar a esse termo um sentido preciso. A subordinação, na cibercultura, será
entendida como imposição de um contexto material, simbólico e imaginário no qual as
escolhas individuais podem ser exercidas. Desta forma, a subordinação pode ser
compreendida sem a circunscrição unívoca de um “dominador” ou de uma “classe
dominante”, ou seja, sem um sujeito histórico que a exerça nos parâmetros de uma
“vontade” consciente ou não. A subordinação é o resultado de um processo concreto, por
vezes conflituoso, mas que termina por criar as condições de possibilidade do agir
cotidiano. Ela não se exerce através da violência explícita, mas do uso intensivo de técnicas
de sedução, integração e criação de dependências que se confundem com o prazer. É ainda,
o processo que resulta na conformação do habitus, com o conceitua Bordieu (2003),
docemente imposto como “uma determinada propensão mental-prática” e “uma disposição
comportamental-procedimental” fixada. (TRIVINHO, 2007, p. 75, p. 311)
Embora não possa ser atribuída a classes ou grupos sociais específicos, a
subordinação surge como o resultado da distribuição desigual de poderes, riquezas e
privilégios, a qual favorece (provisoriamente) alguns segmentos em detrimentos de outros;
os segmentos favorecidos, por sua vez, tendem a buscar a manutenção dessas desigualdades
como forma de exercício de sua própria capacidade de subordinar, conformando um círculo
vicioso que sempre tende à sua própria conservação. Mesmo sem recorrer à idéia de classe
social, é necessário frisar que as sociedades tecnologicamente avançadas estão sujeitas a
uma forma de hierarquização em que poderes e privilégios tendem a se concentrar e
permitem a circunscrição dinâmica de uma “elite cibercultural”.
As elites da cibercultura estão implicadas na própria noção de “Império”, uma vez
que são praticamente desligadas de seus Estados de origem (REICH, 1994). O
“cosmopolitismo” e a independência em relação a qualquer forma de comunidade de base
geográfica são suas marcas:
Seu mundo não tem outro endereço permanente que não o e-mail e o número do
telefone celular. A nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade
e plenamente extraterritorial. (BAUMAN, 2003, p. 53).
Embora permaneçam acima das fronteiras das nações, a elite cibercultural atua no
interior de cada unidade geopolítica transformando as relações de produção e reproduzindo
sua forma de subordinação. A penetração transnacional desta elite se através de
95
mecanismos de intervenção do “Império”, o qual não apenas cria as condições técnicas e
materiais, mas o ambiente cultural que torna essa forma de estratificação social “necessária
e desejável”.
É nesse contexto que a proliferação dos programas inclusão digital pode ser
interpretada como uma forma de intervenção “imperial” destinada a criar o ambiente
necessário à elite cibercultural pela saturação mediática e pela informatização do cotidiano.
O “Império” desenvolve mecanismos de absorção de mão-de-obra com a qualificação
mínima necessária à produção de valor e legitima a relação social de subordinação que lhe
dá suporte ao elidir essa mesma subordinação, “naturalizando-a” como um imperativo
técnico inscrito nas máquinas e nos códigos. Portanto, aceitar a inevitabilidade da
informatização equivale, pragmaticamente, a aceitar a subordinação à elite cibercultural.
O processo é tão completo que os programas de inclusão digital nem mesmo questionam
essa subordinação, tomando-a como necessária. Assim, a autonomia que pleiteiam é, no
máximo, uma autonomia limitada pelos parâmetros impostos pela elite cibercultural.
Parte III
A inclusão digital na cibercultura
Nota introdutória:
Os Programas Sociais de Inclusão Digital
As conclusões anteriores formam as condições de inteligibilidade do papel central
ocupado pelos programas de inclusão digital na reprodução do capitalismo contemporâneo.
Mas o que são esses programas?
O termo “inclusão digital” já denota em si uma forma de hierarquização. Ele remete
a um conjunto de discursos e práticas cujo objetivo é levar a informatização a grupos
sociais que, sem esses procedimentos, muito provavelmente não teriam condições de acesso
às ferramentas informáticas. Assim, não é possível falar em “inclusão digital” para
adolescentes urbanizados das classes altas ou médias, por exemplo, simplesmente porque o
uso de computadores já está de tal forma incorporado ao cotidiano desses indivíduos que a
manipulação de interfaces e equipamentos informáticos não se separa de outras dimensões
do vivido: ela está na educação, no lazer, nas práticas culturais. A inclusão digital é,
portanto, um artifício de engenharia social criado para estender ao maior número possível
de cidadãos os eventuais benefícios que uma elite desfruta integralmente, como parte
“natural” de sua inserção na sociedade. Ela despende esforços e recursos públicos e
privados para generalizar o conhecimento de técnicas que estão “naturalmente”
disponíveis a uma minoria, advindo daí a percepção de sua estreita ligação com a idéia de
democracia: a inclusão digital repousaria sobre o pressuposto ético da igualdade.
Se a inclusão digital é o processo de aproximação a um padrão de uso dos
equipamentos informáticos considerado ideal , reservamos o termo “Programas Sociais de
Inclusão Digital” PSID às estratégias de ação levadas a cabo por atores, públicos ou
privados, cujo objetivo é difundir o uso de computadores entre parcelas da população, total
ou parcialmente, excluídas da informatização do cotidiano. Para tanto, eles se servem de
vários modelos de gestão, financiamento e atuação, mantendo como base comum o desejo
de promover a “igualdade” no acesso às ferramentas informáticas. Trata-se, portanto, de
buscar equiparar setores marginalizados da sociedade (como as faixas com menor poder
econômico, as mulheres, os idosos, as minorias étnicas ou o campesinato) a esse padrão
tacitamente aceito como o ideal: o jovem branco das classes superiores para o qual,
98
lembremos, o computador surge como ferramenta “transparente”, integrado ao agir
cotidiano.
No Brasil, assim como em grande número de países, o Estado é um dos principais
fomentadores destes programas. Para conhecer e atuar melhor neste campo, o governo
federal, através do Ministério da Ciência e Tecnologia,
1
criou um “mapa” dos 16.721
pontos de inclusão digital no país, resultado da ação direta de 107 PSID, distribuídos
quantitativamente pelos Estados da seguinte maneira:
A descrição dos programas revela a enorme variedade de abordagens do tema. Ela
inclui desde iniciativas diretas do governo federal, sediadas em batalhões militares em
plena selva amazônica, até computadores instalados em lanchonetes da rede McDonald´s,
no interior de shopping centers nas principais capitais do país. A lista dos apoiadores de
1
Disponível em http://inclusao.ibict.br/index.php?option=com_wrapper&Itemid=316. Acesso em:
25/04/2007.
ACRE: 73
ALAGOAS: 187
AMAPÁ: 88
AMAZONAS: 272
BAHIA: 980
CEARÁ: 1017
DISTRITO FEDERAL: 237
ESPÍRITO SANTO: 373
GOIÁS: 593
MARANHÃO: 451
MATO GROSSO DO SUL: 160
MATO GROSSO: 189
MINAS GERAIS: 2.142
PARÁ: 561
PARAÍBA: 335
PARANÁ: 783
PERNAMBUCO: 2.250
PIAUÍ: 249
RIO DE JANEIRO: 1.163
RIO GRANDE DO NORTE: 271
RIO GRANDE DO SUL: 733
RONDÔNIA: 100
RORAIMA: 48
SANTA CATARINA: 571
SÃO PAULO: 2.629
SERGIPE: 138
TOCANTINS: 128
Quadro 1: Número de pontos de inclusão digital por Estado.
Fonte: Ministério da Ciência e Tecnologia
99
cada programa também é ecumênica, apontando para parcerias entre grandes empresas
(como a IBM e a Coca-Cola), instituições da sociedade civil, universidades e os três níveis
de governo. De maneira geral, os objetivos dos PSID mapeados podem ser descritos da
seguinte forma, tomando-se como base apontamentos realizados pelo Ministério ou a auto-
apresentação dos próprios programas (em número de PSID):
Na prática, excetuando-se casos em que os programas possuem um foco de atuação
bastante definido, tais categorias de objetivos acabam se confundindo e sobrepondo. A
partir desta classificação sumária, interessa-nos sublinhar o fato de os PSID se legitimarem
basicamente em torno de três eixos: a) cidadania e desenvolvimento humano; b)
desenvolvimento econômico; e c) inclusão social de grupos discriminados.
O objetivo de nossa análise é compreender o papel destes programas no contexto da
cibercultura, para além desses discursos de legitimação.
2
Para isso, é fundamental reter que
a inclusão digital se dá a partir de uma hierarquização social estabelecida de antemão, como
apontamos anteriormente.
O “objeto” de sua atuação destes programas são, inevitavelmente, grupos
subordinados na divisão social de privilégios. A idéia igualitária que apregoam em seus
2
Consideramos “discurso de legitimação” o conjunto de argumentos que justificam, em termos de pertinência
social, a atuação dos PSID.
Cidadania e desenvolvimento sócio-cultural e econômico: 56
1
Profissionalização: 21
Educação: 11
Inclusão de portadores de necessidades especiais: 5
Inclusão de idosos: 2
Inclusão de mulheres: 2
Inclusão de menores infratores: 1
Consolidação de redes sociais: 1
Descrição não disponível: 8
Quadro 2: Programas de inclusão digital catalogados pelo Ministério da
Ciência e Tecnologia, agrupados por objetivos de atuação declarados.
100
discursos, portanto, esbarraria em uma cisão de caráter mais amplo: a própria estratificação
social.
Do ponto de vista desta estratificação social criada, mantida e imposta pelas formas
de hierarquização do “Império”, os PSID podem ser compreendidos de duas maneiras: ou
eles atuam no sentido contra-hegemônico, buscando instituir mecanismos de resistência de
ordem individual ou coletiva, ou funcionam como mecanismos de reprodução da própria
lógica imperial, em que pesem suas intenções muitas vezes declaradamente contrárias a
esse modo de integração. Procuraremos explorar essa segunda hipótese, demonstrando que
a “inclusão” efetiva, promovida por esses programas, não atenta contra as normas de
distribuição de riquezas e privilégios que lhes o anteriores, mas, ao contrário, é um
elemento indispensável para a reprodução e expansão de um novo tipo de subalternidade,
próprio da cibercultura.
Em outras palavras, os PSID não anulam a condição de submissão concreta dos
grupos marginalizados (embora possam, eventualmente, produzir casos isolados e
excepcionais na escala do indivíduo), mas deslocam essa submissão para o interior de um
novo arranjo do capitalismo: a cibercultura.
Capítulo 1
Hierarquia cibercultural e inclusão subalterna
desenhamos os contornos de uma “elite da cibercultura” à qual será necessário
retornar de maneira mais detalhada adiante. No momento, é oportuno completar o quadro
geral das relações sociais contemporâneas. O “lado inferior” da hierarquia cibercultural é
constituído por indivíduos que executam tarefas repetitivas, sujeitos a regimes de trabalho
desprotegidos ou, no ximo, por “usuários”, manipuladores dos equipamentos e
programas produzidos pela elite. Estes “usuários” devem se contentar em usar máquinas e
softwares, nos parâmetros oferecidos pelo mercado. Têm pouca ou nenhuma influência (a
não ser como consumidores) no desenvolvimento de aplicações, no estabelecimento de
formas de uso e, principalmente, nas implicações sociais resultantes da disseminação
tecnológica. Estão sujeitos à “lei do código”, analisada por Lessig (2000), ou seja, aos
imperativos operacionais (que, não raramente, se sobrepõem e contradizem as legislações a
que estariam sujeitos localmente) determinados pela elite produtora de hardwares e
softwares e inseridos indelevelmente, em linguagem de máquina, na própria estrutura física
e lógica dos equipamentos.
1
Ainda é importante ressaltar que a informatização não acabou com o trabalho de
baixa qualificação, nem mesmo nas atividades diretamente relacionadas ao uso do
computador. Esses trabalhos são realizados diuturnamente por uma multidão de digitadores,
operadores, técnicos de baixo escalão e uma quantidade inumerável de pequenas funções
necessárias ao processamento de informações. Até os programadores, que podem, em
alguma medida, ser considerados profissionais “de elite”, possuidores de habilidades e
conhecimentos específicos, não constituem um grupo homogêneo: apenas um pequeno
percentual, alocado como mão-de-obra no restrito círculo de pesquisadores e
desenvolvedores, se dedica à criação de softwares propriamente dita. Os outros são
encarregados da confecção de pequenas rotinas mais ou menos padronizadas ou da
1
O chamadosoftware livre” ou “aberto”, ao propor que os códigos de programação não possam ser
ocultados, constroem uma tentativa de permitir que o usuário seja também um produtor, abrindo-lhe a
possibilidade de intervir na programação. Apesar disso, permanecem produzindo efeitos de uma inclusão
subalterna, como será detalhado mais adiante, no capítulo 5.
102
codificação de programas previamente estabelecidos e desenhados por instâncias
superiores, não interferindo, em nenhum momento, nas finalidades ou nos efeitos sociais
gerados pelo trabalho que realizam.
O mesmo acontece com as empresas de hardware. Fora dos centros mundiais de
desenvolvimento, o que resta de trabalho a técnicos espalhados pelo mundo é a montagem
de peças que já vêm prontas e dispensam o conhecimento mais aprofundado do maquinário.
Os trabalhadores alocados em funções de alto nível nos centros desenvolvedores de
hardware e software possuem em comum não apenas uma formação básica extensiva e
dispendiosa, mas também um potencial ampliado de atualização de seus conhecimentos, ou
seja, que gozam de um alto grau de dromoaptidão. Já uma grande parte dos PSID fornecem,
quando muito, “cursos profissionalizantes” em informática voltados às ferramentas mais
elementares, como processadores de texto ou os rudimentos do sistema operacional
Windows. Evidentemente, o tipo de conhecimento adquirido não habilita ao
desenvolvimento de aplicações complexas, mas apenas instrumentaliza o participante a
pleitear vagas de emprego nos estratos mais baixos da hierarquia cibercultural. Além disso,
sua condição econômica e social, na maioria das vezes, impede o investimento de tempo e
recursos financeiros na atualização do conhecimento adquirido, obliterando a capacidade de
acompanhamento das inovações, fundamental nos estratos mais elevados.
Mesmo os setores profissionais que utilizam a informática como um meio (ou seja,
que não têm como core business a criação de hardwares ou softwares), a adoção da
informática como plataforma fundamental da produção produz efeitos semelhantes. Muitas
ocupações que antes exigiam um grau considerável de conhecimento específico foram
substituídas por interfaces de manipulação simples e repetitiva, desqualificando as
habilidades acumuladas por gerações de trabalhadores. É o caso, por exemplo, da tornearia
mecânica, para citar apenas um setor bem conhecido. O saber profissional, antes fonte de
orgulho para grande quantidade de operários (ainda que esse saber não fosse conversível
em poder econômico ou em controle da produção) tende a ser substituído não por trabalhos
criativos, mas por funções burocráticas, repetitivas e dispensáveis, existindo, apenas,
devido ao fato de a mão-de-obra empregada ser tão barata que não compensa ao capital
investir em pesquisa para substituí-la.
103
O caso dos operadores de I & O (input e output) é ilustrativo. Parte destes
profissionais, nos anos 80, era encarregada de alimentar computadores de grande porte com
dispositivos de memória externa removíveis (primeiro fitas magnéticas e, depois,
cartuchos). O procedimento era simples e exigia pouca qualificação, sendo o portão de
acesso de office-boys e pequenos funcionários de escritório à carreira informática em
qualquer grande instituição, com destaque ao setor bancário, no qual a massa de dados
processados tende a ser muito grande e a relação entre velocidade e capacidade de
armazenamento é estratégica. Com a ampliação das aplicações e, conseqüentemente, a
necessidade de uso mais eficiente dessas memórias, a função foi automatizada e os
operadores foram substituídos por robôs. Tornou-se mais barato confiar o trabalho (que
ganhou relevo estratégico) a uma máquina do que contratar operadores habilitados em
número suficiente para manter a qualidade do trabalho. Os operadores de I &O faziam parte
desta mão-de-obra operacional, sem poder de decisão e sem influência nas operações.
Quando sua função, devido a transformações estruturais, poderia tê-los alçado a uma
condição de maior relevo, eles foram simplesmente substituídos.
No entanto, o trabalho destes empregados de baixa qualificação é fundamental para
manter a indústria funcionando. No caso dos setores de transformação, a concorrência
internacional tornou indispensável o uso de ferramentas controladas digitalmente e fez, nos
anos 80 e 90, com que a falta de qualificação informática do operariado se transformasse
em um gargalo para a expansão industrial (RATTNER, 1985, p. 72-73). Desenvolver essa
massa de trabalhadores com alguma qualificação técnica mínima em informática, tornou-se
uma necessidade premente do capital para possibilitar a informatização da produção, como
visto anteriormente. Assim como o trabalho imaterial normalmente não pode prescindir de
um suporte físico, ainda que este suporte participe apenas marginalmente do valor
produzido, a informatização do cotidiano não pode ser realizada apenas por trabalhadores
de alta qualificação e nem exclusivamente pelos setores de pesquisa e desenvolvimento.
É importante notar que a atividade de baixa qualificação não é em nada
incompatível com a centralidade tendencial das formas de trabalho imaterial, tal qual a
descrevemos. O que se passa é que nem todas as formas de manipulação de signos ou de
transformação da cultura em commodity recebem o mesmo tipo de tratamento, quando as
vimos emolduradas pela hierarquia do “Império”: há formas de trabalho imaterial que
104
permanecem na periferia (não geográfica) do modo de produção, implicando baixa
remuneração, insegurança social e péssimas condições de trabalho.
Desenha-se um dos primeiros papéis a serem cumpridos pelos Programas Sociais de
Inclusão Digital (a ser detalhado no decorrer deste capítulo): capacitar a mão-de-obra
necessária ao exercício destas funções de apoio, sem as quais a produção contemporânea
seria impossível. É a divisão internacional do trabalho, imposta pelo “Império”, que
determinará o lugar e forma de alocação dos recursos técnicos e humanos, de acordo com a
posição ocupada por cada trabalhador na hierarquia.
É fato que as multinacionais, agentes privilegiadas da expansão “imperial”, não se
movimentam pelo mundo apenas para pagar o menor salário possível aos trabalhadores.
Elas precisam garantir a melhor performance, ao menor custo. Para isso, é tão fundamental
a relativa disponibilidade de conhecimento e especialização necessários para a garantia da
manutenção (ou expansão) das taxas de produtividade, quanto os baixos salários
(CHESNAIS, 1996, p. 131; MICHALET, 1984, p. 162).
É o caso, por exemplo, dos operadores de telemarketing indianos, contratados por
empresas americanas. Devido ao domínio do idioma inglês, herança do período colonial,
eles se tornaram os profissionais ideais para esse tipo de trabalho, aceitando receber uma
fração daquilo que seria pago ao trabalhador norte-americano ou inglês no exercício da
mesma função. No entanto, a exploração dessa de atividade está condicionada à existência
de dois tipos de habilidades em níveis diferentes: primeiro, um corpo técnico local
qualificado na transmissão de dados e na comunicação por satélite; segundo, uma massa de
operadores de telemarketing capacitada a operar uma interface informática específica (o
script, no qual o operador encontra precisamente determinadas todas as suas falas possíveis
em qualquer situação). Logo, além da língua inglesa, as empresas precisam contar com um
mínimo de qualificação tecnológica local. O operador de telemarketing não decidirá sobre o
script, nem poderá alterar o programa, assim como o técnico em telecomunicações não terá
nenhuma autonomia sobre os dados que envia e recebe, mas ambos deverão saber
manipular os equipamentos informáticos a contento de seus empregadores do outro lado do
mundo. Ambos ocupam posições hierárquicas distintas no seio de sua sociedade, assim
como na configuração do capitalismo contemporâneo, mas, de qualquer forma, encontram-
se em situação inferior aos profissionais dos centros transnacionais de decisão e controle.
105
Os PSID, no entanto, cumprem outras funções de reprodução. Eles são necessários
ao capitalismo “imperial” não apenas para capacitar a mão-de-obra indispensável a essas
funções de baixo escalão, como também para criar condições de aprendizado e
“subjetivação” da lógica cibercultural na faixa de menor poder econômico das sociedades.
Essa gica, distribuída glocalmente como uma forma de “modernização da produção”,
inclui a aceitação da precariedade, a ênfase na manipulação de signos abstratos em
detrimento da produção material e a responsabilização do indivíduo pela sua própria
capacitação e reciclagem (ou seja, pela sua inserção no mercado de trabalho) entre outros
fatores. Ampliando o uso de suas máquinas e técnicas, a cibercultura universaliza a si
mesma e, assim, torna-se essa segunda natureza, tanto inescapável quanto incontrolável.
Como vimos, a informatização generalizada da sociedade colabora para transformar
a interface computadorizada numa espécie de “plataforma cognitiva” comum ao integrar,
na mesma forma de interação e lógica de operação, os universos do trabalho, do lazer, da
arte, das relações sociais etc. Desta forma, a generalização da informática como plataforma
de produção equivale à sua universalização como conjunto de critérios e valores que regem
as relações sociais.
2
Assim, até os PSID que atuam apenas no provimento de acesso
gratuito à Internet (monitorado ou não) estão, na realidade, desenvolvendo nos usuários
uma habilidade produtiva básica. Estão tornando-os úteis à expansão do “Império”.
Wallerstein (1985, p. 70-71) afirma que essa forma de produção de trabalhadores
subalternos pela integração generalizada a uma cultura comum faz parte, historicamente, do
próprio modo de reprodução ampliada do capitalismo. A expansão global desse sistema, em
sua origem, dependeu da disseminação de um “arcabouço cultural burguês mundial”,
sujeito às inflexões locais, mas sempre admitido sem grandes resistências, por todos os
setores das sociedades, como uma “cultura universal neutra”. As idéias de racionalização,
de progresso e de modernização, por exemplo, foram vetores de expansão do próprio
capitalismo, corroendo o status e a legitimidade de formas culturais calcadas na tradição e
na religião. A informatização é, nesse sentido, a difusão de novos valores, gestados no
interior de um capitalismo que se transforma e se expande.
2
Essa idéia remete à categoria de “tecnologia da racionalização”, que Ianni (1999, p. 167) emprega para
comentar a expansão da lógica capitalista por todo o globo e em esferas da vida privada não-mercantis. A
informatização é, sem dúvida, uma “tecnologia da racionalização” que opera ampliando uma lógica produtiva
específica ao conjunto da experiência sociocultural humana.
106
A noção de estratificação social (associada a uma hierarquização do trabalho) que
analisamos anteriormente, permite compreender melhor a natureza distinta das atividades
produtivas envolvidas na cibercultura. Os pontos mais elevados da hierarquia são ocupados,
em sua maioria, por indivíduos que possuem não apenas o capital econômico e cognitivo
sincronicamente compatíveis, mas, principalmente, por aqueles que possuem capacidade de
adaptação à velocidade crescente com que esses capitais se defasam (TRIVINHO, 2007).
Essa capacidade não é dada exclusivamente pela posse dos equipamentos, mas pelo
conjunto de privilégios prévios (educacionais, familiares, sociais, culturais etc) de que
gozam esses indivíduos. Assim, os PSID demonstram um aspecto de conservadorismo,
reiterando, no seio da cibercultura, os desequilíbrios sociais pré-existentes.
Os PSID podem ser interpretados como uma forma de provimento de agentes
especificamente voltados para as tarefas mais simples, que requerem um grau menor de
“dromoptidão” (TRIVINHO, 2001a, p. 219-223; 2007, p. 97-99). Na metáfora de Bauman
(1998, p. 118), citada anteriormente, a elite é composta por “turistas” enquanto a base da
cibercultura é constituída por “vagabundos”: ambos estão em movimento perpétuo, mas os
primeiros escolhem seu ritmo e destino, enquanto aos segundos, resta o deslocamento
heterodeterminado.
Não importa que os “ciberincluídos” tenham à sua disposição equipamentos
relativamente atualizados e conexões à Internet em banda larga. Sem essa aptidão para a
velocidade, as disparidades socioeconômicas persistem, quando não se aprofundam. O
capital cognitivo fornecido por uma grande parte dos PSID é perecível e estático, enquanto
a cibercultura faz da velocidade uma forma de riqueza e subordinação.
A essa forma de integração que não distribui de maneira equivalente a riqueza e os
privilégios, mas que preserva uma posição de dependência e heterodeterminação,
denominamos “inclusão subalterna”, ou seja, a inclusão que se dá exclusivamente em
posições hierárquicas inferiores para o cumprimento de tarefas repetitivas, pouco criativas,
quando não claramente desumanizantes. É, por exemplo (com licença da metáfora), a
“inclusão” do negro africano, transformado em escravo no sistema do capitalismo mercantil
ou a transformação (não menos violenta) do camponês europeu, incluídocomo operário
no capitalismo industrial.
107
1.1. A divisão social do trabalho no “Império”
Vários estudos estatísticos chamam a atenção para a migração da mão-de-obra de
funções diretamente engajadas na produção para outras ditas “imateriais”, principalmente
ligadas à pesquisa e desenvolvimento (P&D) (COHEN; ZYSMAN, 1987, p. 195). Essa
migração deixa um excedente de força de trabalho não assimilável pelos novos postos
(produz um déficit crescente na quantidade de vagas disponíveis) e, mais do que isso,
acelera o processo de concentração de renda, pressionando os salários dos produtores
diretos para baixo e dos “desenvolvedores” e administradores para cima, graças à lei de
oferta e demanda.
Embora essa divisão possa ser percebida nas relações entre países do sistema
internacional de trabalho, a hierarquia da cibercultura não pode ser compreendida apenas
nos limites geopolíticos. Mesmo no interior das nações tecnologicamente desenvolvidas a
aceleração constante (e, portanto, a defasagem constante dos capitais investidos em
informatização) acaba por gerar uma concentração de privilégios e riqueza que convive
com quantidade crescente de “marginalizados”, ao mesmo tempo em que os países
periféricos também contam com setores da população inseridos na elite.
Se as divisões do Estado-nação não traduzem as fronteiras da cibercultura, a ação
das empresas multinacionais pode ser considerada como forma aproximativa de
circunscrever as áreas privilegiadas. Segundo dados expostos por Rifkin (2001, p. 184),
“menos de 500 empresas transnacionais respondem por 1/3 de todas as exportações de
manufatura, 3/4 do comércio de commodities e 4/5 do comércio em tecnologia e serviços
de administração”. São essas empresas que dominam o mercado mundial, impondo padrões
tecnológicos com a anuência mais ou menos explícita de governos e setores produtivos
locais. Esses padrões tecnológicos, evidentemente, são acompanhados por técnicas
administrativas e de marketing, marcos legais regulatórios e fluxos de comunicação
necessários ao “bom funcionamento” dos equipamentos. As empresas locais, normalmente,
preferem pagar royalties a “lançar-se numa aventura de P&D”, geralmente intensiva em
capital em sua fase inicial e sem garantias de retorno (RATTNER, 1985, p. 103).
Em termos informáticos, essas empresas transnacionais estabelecem “plataformas”.
Entendemos por esse termo o conjunto de máquinas e programas, bem como modos de
108
utilização, administração e controle que se tornam padrões internacionalmente aceitos em
determinados setores da sociedade. A plataforma é uma restrição à concorrência
3
e
estabelece uma relação hierárquica entre quem domina o mercado e quem ocupa posições
subalternas. Quem estabelece as normas, obtém delas vantagem expressiva contra a
concorrência:
Durante muito tempo, o processo de formação de normas foi nacional.
Mais tarde, deu-se a internacionalização, seja pela cooperação e
negociação entre os organismos de normalização nacionais, seja pela
progressiva extensão das normas de um país-líder, à medida que seu
produto ou processo foi se impondo sobre a concorrência. Nos casos em
que um produto chegou a se impor , de forma muito ampla e rápida, no
mercado internacional, apresentando-se como “único” e “indispensável”, a
empresa proprietária pode tentar impor suas próprias normas, tanto aos
usuários quanto aos outros produtores. (CHESNAIS, 1996, p. 175).
A capacidade de concepção, implementação e manutenção de plataformas divide o
mundo entre “desenvolvedores” e “usuários”. A metáfora tópica que divide o mundo em
“centros” e “periferias” (IANNI, 1999; BRAUDEL 1987; WALERSTEIN, 1985) tem aqui
pouca relevância geográfica, uma vez que a “periferia” dos usuários pode ocupar o mesmo
país, a mesma cidade e até o mesmo escritório que os “centrosde desenvolvimento. A
cibercultura produz outra forma de espacialidade, embora mantenha as chamadas “zonas
econômicas especiais” (GORZ, 2004, p. 32), as quais, no entanto, não são homogêneas e,
principalmente, não vinculam todos os atores de uma mesma forma. Os critérios de
conexão e desconexão são menos espaciais que funcionais:
O novo modelo de desenvolvimento mundial provoca um desligamento
progressivo de segmentos de economias, de culturas e sociedades, de
países e grupos sociais que deixam de ter um interesse funcional e
econômico para o sistema em seu conjunto, sendo demasiado pobres para
constituírem mercados e demasiado atrasados para servirem como força de
trabalho em um sistema produtivo baseado na informação.
(MATTELART, 2001, p. 275).
É neste sentido que o capitalismo contemporâneo se torna compreensível a partir da
metáfora da “rede”, composta por múltiplos “nós” conectados entre si. Porém, não é
possível afirmar qualquer forma de “igualdade de prerrogativas” entre todos esse nós”.
3
Como afirmam Cohen e Zysman (1987, p. 94-190), o mercado não é “aberto”. Ele opera através de janelas
de oportunidade, fechando-se e restringindo a concorrência depois que determinado setor tenha conseguido
vantagens econômicas expressivas o bastante para bloquear a concorrência. A plataforma é um fator que
garante, ao menos por certo tempo, a monopolização de um mercado.
109
Acompanhando o raciocínio de Vaz (2004, p. 266), duas formas de avaliar posições
privilegiadas na topografia de uma rede: a) a “taxa de intermediação”: um pode ser
considerado mais “central” quando ele é uma rota ou uma “escala” necessária para unir
outros nós; e b) a acessibilidade: quanto menor a distância (espacial ou temporal) entre um
nó e todos os demais, maior é a “centralidade” desse nó:
[...] se pensarmos a rede de aviação do Brasil, percebemos que a cidade de
São Paulo, embora não esteja localizada no centro do território, ocupa o
lugar de um nó relativamente central. As escalas de vôo entre duas cidades
quaisquer usualmente passam por seus aeroportos.
Nas cibercultura, o “centro” é o privilegiado, fonte ou destino dos movimentos
que giram a seu redor. Por isso, trata-se de um “Império” sem Roma, ou com uma
pluralidade incontável de “Romas”, cada qual atraindo para si os elementos periféricos que,
por sua vez, sustentam e constituem o central. A centralidade pode ser interpretada,
portanto, como a capacidade de subordinação.
4
Ela não é propriamente “ocupada”, mas
“exercida”.
Se uma das características distintivas da civilização urbana contemporânea é dada
pela idéia de saturação mediática (conforme argumentamos na Parte II), é necessário
afirmar que a “centralidade” na chamada “sociedade em rede” é exercida pelo capaz de
não apenas sediar a origem destes fluxos de comunicação, mas também de determinar-lhes
o ritmo e o sentido de sua expansão. Os “nós centrais” surgem, então, como os atores
sociais que inflacionam o excesso comunicacional, provendo-lhe conteúdos, mas também
ferramentas de acesso e normas de difusão, ou seja, pelos grupos e instituições (empresas
transnacionais à frente) capazes de estabelecer “plataformas comunicacionais”.
Entendemos por esse termo, em linguagem mais afeita à teoria da comunicação, o conjunto
de emissores, mensagens e meios que se tornam dominantes em uma dada sociedade, os
quais imprimem sua marca nos valores e sentidos postos em circulação, assim como
estabelecem uma forma de hierarquização baseada no acesso aos signos.
Baseando-nos no crescimento exponencial da comunicação digital em praticamente
todas as formas de relacionamento humano, não apenas numericamente (como base de
4
É estritamente neste centido, e não como metáfora topológica, que manteremos o uso dos termos
“centralidade” e “central”.
110
usuários instalada), mas como intermediária privilegiada entre o indivíduo e sua cultura
(informatização do cotidiano), podemos concluir que, na hierarquia do “Império”, os nós
centrais” são ocupados por atores encarregados pela manutenção e expansão da
informática. A maior parte dos impulsos e fluxos que circulam pela rede “imperial” e se
alastram por toda a superfície do planeta, influenciando a quase totalidade das práticas
culturais pela vigência do fenômeno glocal (como visto na Parte II Item 1.1.), são, de
alguma forma, induzidos pela onipresença dos computadores.
Tal conclusão indica, preliminarmente, a relevância dos PSID na reprodução da
cibercultura. Esses programas ocupam, voluntariamente ou não, posição estratégica na
constituição da hierarquia imperial ao estender a informatização do cotidiano a segmentos
sociais que, sem a sua atuação, estariam “desconectados” da rede e, portanto, fora da área
de influência direta dos “nós centrais”.
5
A inclusão digital pode ser interpretada, portanto,
como a ampliação da base de influência do “Império”. Adiante veremos que essa ampliação
é realizada por um segmento específico da “ordem imperial” mas, no momento, a
argumentação empreendida já e suficiente para ligar os PSID ao conjunto de “intervenções”
que caracterizam a atuação do “Império” (conforme Parte II – item 1.1.2.).
Essa análise, calcada na saturação mediática como fonte de poder e influência nas
malhas do “Império” não deve anular a evidente preponderância política, econômica,
cultural e militar dos Estados Unidos no cenário do capitalismo contemporâneo, mas
oferece uma forma de interpretar por que até mesmo a nação economicamente dominante
no sistema internacional contemporâneo investe em programas de inclusão digital. A
estratégia utilizada, expressa no Telecommunications act de 1996, é a conexão de todas
as escolas à Internet através de fundos levantados pelo poder público junto às empresas de
telecomunicações, assim como o caso do FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de
Comunicação) criado pelo governo brasileiro no ano 2000.
6
Em 1998, esse projeto
americano investiu 1,7 bilhões de dólares em inclusão digital, sendo que, aproximadamente
1,1 bilhão foi destinado às escolas de todo o país (BOLT; CRAWFORD, 2000). O que esse
5
A influência “indireta”, no entanto, é sentida mesmo nos setores mais desconectados, uma vez que o
“Império” caracteriza-se como forma de soberania global.
6
De acordo com informações da ANATEL Agência Nacional de Telecomunicações-, disponíveis em
http://www.anatel.gov.br/index.asp?link=/biblioteca/editais/fust/default.htm. Destaquem-se ainda, nos
Estados Unidos, a informatização das bibliotecas e a criação de centros comunitários de acesso à Internet,
muito embora essas medidas estejam sendo questionadas pela administração Bush (Mossberger; Tolbert;
Stansbury, 2003).
111
programa almeja é reproduzir as divisões hierárquicas “imperiais” no interior do território
americano, que, como vimos, as fronteiras nacionais não dizem respeito aos impulsos de
informatização do cotidiano e da saturação mediática.
Assim, a divisão internacional do trabalho na cibercultura ultrapassa os limites dos
Estados-Nação para se converter em elemento estruturante de uma “rede” pela qual
circulam mercadorias, idéias, privilégios e obrigações. A posição dominante é ocupada pelo
“nó” capaz de intermediar e distribuir o maior número de transações e essa capacidade é
expressa pelo estabelecimento de plataformas comunicacionais, as quais, uma vez
consolidadas, moldam os fluxos e dificultam a concorrência de formas alternativas. Cabe
detalhar que o “nó” mais relevante da rede cibercultural não é ocupado por um Estado em
particular, mas por uma instituição difusa: a megainfoburocracia.
Capítulo 2
A megainfoburocracia: um modo de subordinação
O historiador Immanuel Wallerstein (1985, p. 61) usa a idéia de geografia dos
benefícios” para comentar a distribuição desigual das riquezas e privilégios que parece
marcar o capitalismo desde sua origem Se as desigualdades permanecem e, na verdade, se
acirram na fase presente, é a noção geográfica que requer revisão. A expansão das redes de
produção e controle, que não respeitam fronteiras e reduzem o papel ativo dos governos,
impele a análise para um modelo mais fluído. A idéia de “nós” privilegiados, atraindo o
fluxo de comunicação e capitais, é uma primeira aproximação, mas torna-se necessário
identificar com precisão os atores sociais que, de alguma forma, imprimem uma feição a
esses fluxos e deles se beneficiam. Para isso, destacamos a idéia de megainfoburocracia
como setor de vanguarda do “Império”, impulsionando, mas também tensionando outros
setores do capital internacional, como a indústria e a agricultura. A megainfoburocracia é
uma categoria desenhada por Trivinho (2001a, p. 139)
1
e define
[...] em bloco, a totalidade das instituições empresariais (de pequeno e
grande porte, do capital privado ao Estado e Universidades, da pesquisa e
produção de equipamentos e acessórios ao comércio e provisão de acesso
a redes). [...] Fomentada por um vasto contingente de infotecnólogos,
novos tecnocratas, intermediários e consumidores-usuários, tal instituição
sustenta a onda de longa duração equivalente à chamada segunda
revolução tecnológica em escala mundial.
O uso dessa categoria permite frisar que o “Império” não é um espaço livre de
atritos, mas um “campo” em que forças econômicas, políticas e culturais atuam, hora em
concorrência, hora em cooperação. A megainfoburocracia nomeia essa elite instável, porém
atuante, que define os parâmetros a partir dos quais o conjunto economia/cultura pode
funcionar. É principalmente do setor produtivo da megainfoburocracia que emanam os
critérios e valores difundidos em escala global pelas plataformas comunicacionais. Se,
efetivamente, “o código é a lei” (LESSIG, 2000), ela é o legislador invisível, sem mandato
1
Na obra citada, o autor usa a expressão conceitual “megainfoburocracia internacional da informatização das
sociedades tecnológicas contemporâneas”, da qual utilizamos a forma apocopada, “megainfoburocracia”,
também prevista no texto referido.
113
e sem constituição, cujo maior imperativo é a ampliação de seu próprio poder e de seus
privilégios. Ela influencia não apenas os setores mais diretamente relacionados ao “objeto”
computador, mas, ao estabelecer uma plataforma produtiva única, repercute sua atuação no
conjunto das sociedades, principalmente nos setores produtivos, os quais se tornam
dependentes das tecnologias informáticas.
2
Evidentemente, a megainfoburocracia não é propriamente um “sujeito racional”,
mas a resultante de um conjunto de interesses contraditórios, mas, fundamentalmente,
convergentes. Por abrigar elementos tão díspares quanto digitadores bancários e gestores de
políticas públicas, é necessário distinguir diferenças no interior da megainfoburocracia,
espelhando conflitos e colaborações. Os níveis inferiores, formados por pequenos
burocratas, operadores, usuários e trabalhadores envolvidos em tarefas repetitivas, formam
a base sobre o qual os veis superiores extraem as condições concretas de sua hegemonia.
A rigor, esses trabalhadores de baixo escalão não se confundem com a megainfoburocracia
em si, mas ocupam a posição de colaboradores: sem poder de decisão e controle não
constituem propriamente a elite, mas apenas as bases de sustentação desta. Como
afirmamos anteriormente, é exatamente neste nível mais baixo da megainfoburocracia que
incIdem as ações de inclusão subalterna dos PSID.
Embora não se possa associar univocamente a megainfoburocracia ao conjunto de
empresas e instituições de um dado Estado-Nação ou região específica, há que se notar uma
clara concentração tecnológica nos países ditos “desenvolvidos” e uma brutal exclusão dos
países “em desenvolvimento” (CHESNAIS, 1996, p. 67). Mas, mesmo nos países
hegemônicos, o que se percebe é a exclusão da maior parte dos cidadãos no que diz respeito
à gestão e à partilha do acesso relevante à tecnologia (WARSCHAUER, 2006). A
centralização da gestão tecnológica em torno de uma elite é inerente à cibercultura, uma
vez que demanda atividades altamente intensivas em capital para pesquisa e
desenvolvimento e que, por isso, tendem (essas atividades) a se agruparem na forma de
oligopólios (JAMBEIRO, 2005, p. 61).
2
Como afirma Rubin (1987, p.23-24), cada célula individual num mercado aberto é apenas “formalmente”
livre para produzir da maneira que quiser, mas “materialmente”, ela está sempre obrigada a se vincular aos
processos produtivos mais eficientes (do restrito ponto de vista econômico), sob pena de extinção.
114
2.1. A necessidade da inclusão digital: lugares e atores
Weber (2004, p. 48) já advertia, com relação ao capitalismo industrial, que o modo
de produção “[...] educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos
econômicos empresários e operários de que necessita”. Para se reproduzir, qualquer
sistema necessita criar e recriar incessantemente os “lugares” e os “atores”
(POULANTZAS, 1978) que atualizarão sua lógica e seus valores a partir de sua ação
concreta no mundo.
É esse raciocínio que permitiu ao sociólogo José de Souza Martins (1997, p. 25)
afirmar: “não existe exclusão”. Os problemas que são percebidos como injustiças e formas
de violência socialmente legitimadas em qualquer sociedade referem-se, antes, à
distribuição desigual de riquezas e privilégios.
A análise, que se aplica ao que se convencionou chamar de “exclusão digital”, pode
ser mais bem compreendida pela idéia de “inclusão precária, instável e marginal” (Idem, p.
26), ou seja, o estabelecimento de posições “residuais” ou daquilo que preferimos
denominar “inclusão subalterna”.
3
A criação de formas de subordinação é tão necessária à
reprodução do capital quanto a criação de posições de controle hierarquicamente
superiores: é ela (a subordinação) que garante a existência de atores específicos,
responsáveis pelo trabalho de base na acumulação do capital. Um digitador, por exemplo,
realizando um trabalho penoso e mal remunerado, é tão indispensável para a cibercultura
quanto o analista de software ou o pesquisador dos centros de desenvolvimento, que gozam
de um status social privilegiado. Para se reproduzir, o capital contemporâneo tem que
produzir incessantemente ambos os “lugares” e preparar, de maneira específica, ambos os
“atores” que irão desempenhar essas funções.
Na opinião de Wallerstein (1985, p. 33) essa atuação simultânea na formação de
quadros no “topo” e na “base” da hierarquia não é, de forma alguma, novidade para o
capitalismo. Analisando o processo de conquista e anexação de territórios por parte das
nações desenvolvidas, o autor conclui que, naquele momento histórico, os desníveis
3
Optamos por esse termo já que ele nos parece remeter diretamente à questão hierárquica, foco de nossas
atenções. O temo “subalterno” tem a vantagem de implicar, ao mesmo tempo, dominantes e dominados,
qualificando uma relação social e não um grupo específico.
115
salariais,
4
e não apenas a busca por novos mercados ou matérias-primas, podem ser
considerados uma explicação para a necessidade de expansão do capitalismo. Para
transformar determinado país em centro capitalista, era necessário construir sua periferia.
Essa periferia, no entanto, não pode mais ser confundida com os países
subdesenvolvidos (no plano internacional), nem com o “exército industrial de reserva” (no
plano nacional), conceito utilizado por Marx para designar a massa de desempregados que,
pela sua própria existência e número, era capaz de fornecer mão-de-obra a baixo custo para
o capital industrial. O papel desses “novos subalternos”, mesmo no interior das nações mais
ricas, é o de providenciar os serviços e a estrutura capazes de atuar como suporte para
valores intangíveis, fonte de criação e circulação de riquezas, assim como o de criar as
condições para a expansão do capitalismo. Eles colaboram para a expansão da cibercultura
no trabalho, e não fora dele.
Assim, uma base de dados de consumidores é um “objeto” conversível em riqueza
econômica e em velocidade, mas apenas se estiver corretamente digitada. A digitação,
porém, não partilha proporcionalmente dos valores que ela mesma produz. A natureza do
treinamento fornecido por grande parte dos PSID e, principalmente, as condições sociais
que antecedem sua formação, permite que trabalhadores de pouca qualificação possam ser
úteis ao processo de acumulação total como digitadores, mas não permite que eles possam
pleitear um lugar junto às categorias mais privilegiadas da hierarquia profissional. Eles
podem colaborar com a megainfoburocracia, mas, dificilmente, terão condições de
ingressar em seus quadros. Essa transformação exigiria, além de condições econômicas
estruturais favoráveis, a capacidade de investimento em aceleração, ou seja, o dispêndio de
capital econômico para a aquisição e descarte de equipamentos e conhecimentos sempre
atualizados e sempre rapidamente perecíveis. O cidadão de pouco poder aquisitivo, na
periferia da “rede imperial”, não pode contar com nenhum desses dois itens.
Mesmo nos casos (raros) em que indivíduos conseguem alguma ascensão na
hierarquia profissional, tal movimento em nada modifica o fato de que a
megainfoburocracia permanece sendo uma elite e, portanto, prossegue sinalizando uma
fratura irreparável entre subordinados e subordinadores.
4
É necessário reafirmar que apenas os desníveis salariais não justificam a migração de capitais no horizonte
contemporâneo, exceto se mantida uma taxa mínima de produtividade.
116
É inevitável, em razão da diferença entre o valor produzido e a partilha desses
valores entre aqueles que o produzem, uma analogia com a idéia de mais-valia. Mas essa
comparação deve levar em conta que, diferentemente do conceito de Marx, a diferença
entre o valor do trabalho realizado e o da mercadoria produzida não pode ser reduzida a
uma questão de “horas trabalhadas” ou ao excedente de trabalho não-pago. A diferença
aqui reside no caráter do valor simbólico produzido: a digitação, como atividade, pode ser
considerada uma commodity, facilmente reprodutível por qualquer trabalhador com
qualificação mínima. É trabalho imaterial que não possui valor simbólico. O produto dessa
digitação, circulando pelas redes em que as empresas capitalistas contemporâneas se
converteram pode ser, no entanto, a base para a constituição de mercadorias com alto valor.
Ressaltamos que as próprias condições produzidas pela informatização do cotidiano
(ou, mais precisamente, pela expansão da cibercultura, conforme discutida na Parte II,
Capítulo 2) acabam se revelando uma das origens das condições que permitem essa
modalidade de divisão social do trabalho baseada no jogo entre inclusão e exclusão,
deixando à maior parte dos “ciberincluídos” apenas um papel marginal na formação de
valor. Souza Martins (Idem, p. 32) afirma que produzir exclusão e inclusão, na verdade,
constituem um mesmo movimento do capitalismo:
Na sociedade capitalista essa é uma regra estruturante: todos nós, em vários
momentos de nossa vida e de diferentes modos, dolorosos ou não, fomos
desenraizados e excluídos. É própria desta gica de exclusão a inclusão. A
sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo,
segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica.
É com base nessa interpretação que propomos seja emoldurada a idéia de “exclusão
digital”. Trata-se, na verdade, de mais um movimento de “desenraizamento” e
“reenraizamento” promovido pelo capital. O grande contingente de trabalhadores fabris (e
não de trabalhadores, mas também de relações sociais calcadas no capitalismo
industrial) que se tornou “dispensável” pelo desenvolvimento das novas formas de
produção e acumulação de valor no capitalismo contemporâneo é reabsorvido (em parte)
como força de trabalho subalterna nos quadros das tarefas de apoio à megainfoburocracia.
São desenraizados de um modelo de organização da produção para serem reinseridos em
outro, preservando sua posição hierárquica desprivilegiada, fruto das condições sociais
que conformam o processo de inclusão digital .
117
O mesmo movimento em massa se deu em momento anterior, não sem uma boa
dose de violência (MARX, 1977),
5
no processo de industrialização do século XVIII, que
culminou com a hegemonia da modernidade industrialista. Foi primeiro necessário desligar
os trabalhadores de sua relação com a terra e com as tradições para, num segundo
momento, instituí-los como proletários modernos.
Esse desenraizamento e reenraizamento, paradoxalmente, é um dos constituintes da
noção moderna de progresso. Ainda que a destruição das relações tradicionais possa ser
interpretada positivamente (principalmente pelas forças sociais comprometidas com o
industrialismo) como uma forma de “modernização”, ela traduz um projeto de dominação
levado a cabo por uma elite, como lembra Ianni (1999, p. 101):
O povo, a massa, os grupos e as classes sociais são induzidos a realizar as diretrizes
estabelecidas pelas elites modernizantes e deliberantes. Daí a necessidade de
alfabetizar, profissionalizar, urbanizar, secularizar,
6
modificar as instituições e criar
novas, reverter expectativas e outras diretrizes, de modo a viabilizar a execução e
dinamização dos objetivos e meios de modernização, modernos, modernizantes.
Assim, o trabalho realizado pelos PSID junto às populações “excluídas” não pode
ser mecanicamente considerado como forma de redistribuição de rendas e benefícios,
7
mas
é a maneira contemporânea de cristalizar a cibercultura como um modo de subordinação
em escala global, realizando as “diretrizes estabelecidas pelas elites” da
megainfoburocracia. Essa cristalização, no entanto, não se pela mão-de-ferro das
workhouses, assim como não provoca a reação negativa dos novos subordinados: ela atua
ludicamente como sedução, alimentada pelos discursos de exaltação da tecnologia e pela
estética do mercado publicitário: “trata-se de uma violência sutil, estruturalmente
materializada e processualmente objetivada na dinâmica tecnológica, autônoma e impessoal
do social” (TRIVINHO, 2007, p. 74). As diretrizes ciberculturais não são impostas (o que
as deixaria mais vulneráveis à contestação), mas apenas sugeridas e prontamente
incorporadas.
5
Em outro momento (CAZELOTO, 2003b), construímos uma analogia entre os programas de inclusão digital
e as “workhouses” inglesas, destinadas a transformar artesãos e camponeses renitentes do século XVIII em
produtivos operários fabris.
6
Acrescentaríamos: informatizar e glocalizar.
7
Essa alegação, que reduz a noção democrática de igualdade a aspectos formais do franqueamento ao acesso,
é típica dos discursos de legitimação dos PSID, como veremos adiante.
118
Em um paralelo possível, assim como a industrialização “modernizou” as relações
sociais e de trabalho medievais, a informatização vem “pós-modernizar” o mundo
industrial, promovendo o mesmo tipo de desenraizamento e reenraizamento. O tipo de
inclusão que os PSID promovem visa essa “pós-modernização” da força de trabalho
subalterna e, por conseqüência a “pós-modernização” da própria forma de produção (da
sociedade como um todo, em última análise), a qual, em um segundo momento, exclui os
“ciberincluídos” da divisão de riquezas e privilégios.
Gostaríamos, ainda, de comentar dois comerciais para televisão produzidos pela
Organização Não-Governamental “Alfabetização Solidária”,
8
que ilustram de forma clara o
que pretendemos significar com a idéia de “inclusão subalterna”. No primeiro, uma
empregada doméstica surge na cozinha, lendo o que parece ser um livro de receitas. Sem
esconder seu contentamento, ela celebra o fato de ter aprendido a ler, porque agora, pode
preparar os pratos preferidos de sua patroa. No segundo comercial, o porteiro de um
prédio comemora o fato de que, graças à alfabetização, ele pôde se tornar um garoto de
recados, que aprendeu a ler e escrever bilhetes para os moradores. Ambos foram, sem
dúvida, “incluídos”, mas isso significou apenas o aprimoramento de sua capacidade de
servir, sem transformação concreta no lugar que ocupavam na hierarquia do trabalho antes
da alfabetização. Foram “modernizados”, ou seja, tornados úteis para o exercício de
atividades demandadas pela organização capitalista moderna do trabalho. O próximo passo,
provavelmente será inscrevê-los em um programa de inclusão digital para que possam,
respectivamente, pesquisar na web as receitas preferidas de sua patroa e mandar recados por
email para os moradores do condomínio.
Ainda assim, é possível suscitar-se o questionamento: é melhor incluir de forma
subalterna ou simplesmente deixar de lado um grande contingente da população mundial
que ainda não se adaptou ao modo de produção da cibercultura?
Não será objetivo deste trabalho adentrar por searas morais ou programáticas que a
questão levanta. No entanto, para que se possa construir uma visão mais apurada dos
eventuais efeitos benéficos e das implicações indesejadas, tanto socialmente quanto
individualmente, é necessário ter clareza sobre os termos dados como opções e, além disso,
criticar o processo que torna possíveis tais e quais escolhas e não outras. Certamente, a
8
Os comerciais estão disponíveis em http://www.alfabetizacao.org.br. Último acesso em 27/mar/2007.
119
inclusão digital não pode ser associada mecanicamente à inclusão social, nem ao desejo de
igualdade. No entanto, essa associação tanto irrefletida quanto socialmente aceita faz surgir
a necessidade da informática como um fenômeno autoritário e uma lei não expressa que
coloca o problema em termos de exclusão/inclusão, dando pouca margem a formas de
pensamento que tentem superar essa dicotomia. Em outras palavras: para que se emita um
juízo objetivamente válido sobre o papel dos PSID é necessário refletir sobre as razões que
levaram a informatização à posição de consenso, determinando de modo inescapável as
opções de inserção social dadas em termos de “ter ou não ter” acesso às ferramentas
digitais.
Seguimos aqui a intuição de Paul Virilio (1997, p. 34) para quem a invenção de um
objeto técnico sempre implica perdas e ganhos. Os discursos de legitimação dos PSID
parecem obliterar aspectos relacionados à própria dinâmica social, produzindo, assim, um
horizonte de positividade tanto mais amplo quanto mais completo se der o processo de
informatização do mundo. As mazelas (como a concentração de renda, o esvaziamento do
espaço público, a destruição de saberes tradicionais, o avanço da mercantilização da cultura
humana etc) surgem nesses discursos como conseqüências da incompletude da
informatização (sua não-generalização a todos os setores sociais) e não como problemas
relacionados à própria informatização. Parece óbvio que esses problemas não podem ser
explicados apenas pela hegemonia da cibercultura como forma de organização social, mas,
parece menos óbvio que haja algum grau de interdependência entre esses fenômenos.
Independentemente de qualquer benefício individual trazido pela inclusão digital, o
fato é que ela atende a demandas específicas de expansão da cibercultura e, portanto, está
implicada nas “perdas e ganhos” que ela (a cibercultura) faz surgir no mundo. Essas
“perdas e ganhos” não são distribuídas de modo eqüitativo, de maneira que se trata, no
plano político, de elucidar “quem ganha e quem perde”. Reconhecer o computador como
uma “necessidade” universalmente válida equivale a reconhecer como igualmente
necessária à distribuição de poder e privilégios que advém com a cibercultura.
No contexto mais amplo da reprodução ampliada do modo de produção
contemporâneo, sob a chancela das características mais atuais da cibercultura, os PSID
atuam com três objetivos centrais, a saber: 1) ampliação de mercados; 2) formação de mão-
de-obra de baixo custo, e; 3) capilarização dos mecanismos da produção flexível. Tais
120
objetivos refletem a divisão hierárquica imposta pelo “Império” e permitem a interpretação
do papel da inclusão digital principalmente nas zonas “periféricas”.
2.1.1. Ampliação de mercados
O mais evidente aspecto quando se reflete sobre o papel da inclusão digital na
reprodução do capitalismo relaciona-se à expansão do mercado para os produtos e serviços
típicos da cibercultura (hardwares e softwares): mais usuários significam mais
computadores e programas vendidos. A maior parte das críticas aos programas de inclusão
digital, incluindo aquelas oriundas de segmentos expressivos do movimento pelo
software livre, giram em torno da denúncia de que esses programas nada mais o do que
formas de comércio disfarçadas de “ação social” (MOSSBERGER; TOLBERT;
STANSBURY, 2003; WARSCHAUER, 2006; CASSINO; SILVEIRA, 2003; SILVEIRA,
2001). Num primeiro momento, os clientes são os próprios PSID (principalmente aqueles
promovidos e sustentados pelos Estados) que compram computadores, periféricos e
licenças de uso de software para fornecer cursos e acesso gratuito. Mas, é de se esperar que,
uma vez tenham dominado os rudimentos cnicos da informática, esse os usuários
“capacitados” pelos PSID passem a desejar e priorizar a aquisição de um equipamento para
uso privado como forma de individualizar sua relação com a informática.
Vale ressaltar que a compra de um computador é apenas parte de uma relação de
longo prazo entre o novo usuário e a megainfoburocracia. Estudos realizados nos Estados
Unidos sobre computadores adquiridos por escolas, por exemplo, mostram que os distritos
acabam tendo que desembolsar no mínimo cerca de um terço do valor de cada máquina por
ano em treinamento, manutenção, insumos e atualizações, além de implicar a compra de
softwares, que pode variar de custo imensamente de acordo com as necessidades de cada
instituição (BOLT; CRAWFORD, 2000, p. 49).
Esse é o aspecto mais evidente da relação entre inclusão digital e ampliação de
mercados. Mas outro, mais sutil, que merece a atenção. Seria oportuno extrair algumas
conseqüências da simples expansão das vendas de equipamentos informáticos.
A primeira é que, como apontamos anteriormente, graças à informatização do
cotidiano realizada, em parte, com a colaboração ativa dos PSID, não se pode reduzir a
121
expansão do consumo a uma estratégia que beneficia um ou outro setor industrial
isoladamente; A expansão de uma lógica de subordinação que perpassa todo o tecido social
permite novas formas de mercantilização que avançam para a totalidade da experiência
humana, integrando cultura e economia nas redes digitais e beneficiando agentes do
mercado que não estão diretamente envolvidos no setor informático. De fato, os
“ciberincluídos” passam a ser capturados pelas redes de marketing e comércio eletrônico,
pelo e-business, pela publicidade individualizada e por outras técnicas que significam não
apenas um novo mercado para os produtos típicos ciberculturais, mas uma nova forma de
acesso ao “público” a ser utilizada por empresas de todos os setores da economia. Como
lembra Rifkin (2001, p. 125), a Internet, por exemplo, funciona como um shopping center:
espaço privado fantasiado de público (o acesso à rede, no modelo atual, é quase sempre
intermediado por empresas privadas), no qual qualquer atividade não-comercial pode ser
transformada em meio para fins mercantis. Ao aderir a uma plataforma de webmail gratuita,
como o Yahoo!, por exemplo, o usuário aceita receber publicidade de empresas de todos os
setores da economia e ter mensagens publicitárias anexadas aos seus próprios emails. O
preço pelo acesso “gratuito” é converter-se em “garoto propaganda” das empresas
patrocinadoras do serviço.
As redes digitais, às quais os “ciberincluídos” passarão a se conectar, ainda são uma
forma de aceleração do giro de mercadorias para quaisquer setores. Na visão de Dantas
(2002, p. 95), a Internet responde ao anseio do capital de baixar os custos envolvidos nas
trocas econômicas, reduzindo e alterando a dinâmica do fator tempo. Ela possibilita que o
ato da compra se dê antes da produção e da entrega, ou seja, viabiliza que a empresa receba
o pagamento antecipado, o que minimiza a necessidade de capital de giro. Além disso, ela
anula ou reduz dramaticamente outros “tempos”, considerados gargalos produtivos na
sociedade de consumo, como o tempo morto do estoque, o tempo de circulação da moeda, o
tempo de exibição na loja. A rede digital concretiza “uma nova dimensão do tempo de
circulação, sem relação ou dependência seqüencial com a produção” (Idem).
Dessa maneira, a inclusão digital não é apenas uma forma de levar o desejo do
computador às camadas mais pobres da população, mas também uma maneira de inseri-la
em novas relações de consumo e de marketing, fundamentais para todos os setores que
122
constituem a cibercultura e não apenas para os diretamente implicados na produção de
hardwares e softwares.
2.1.2. Qualificação e remuneração da mão-de-obra
Os programas sociais de inclusão digital também fornecem ao capital mão-de-obra
“padronizada” e treinada para a execução de tarefas simples, porém fundamentais para a
criação e acumulação de riquezas. Os PSID reduzem o valor do trabalho ao torná-lo
relativamente abundante e os custos de treinamento associados tendem a ser baixos,
principalmente porque boa parte dos investimentos no adestramento para as técnicas
digitais são bancados pelo governo ou por instituições do terceiro setor (e não diretamente
pelas empresas).
9
O raciocínio é elementar: quanto maior a oferta de determinada qualificação, menor
será o valor unitário pago pelo trabalho realizado. A tendência, perceptível no mercado
de trabalho, é a anulação do valor de troca de certos tipos de conhecimentos informáticos
mais básicos, como a manipulação de browsers e processadores de texto, exatamente
aqueles que, grosso modo, são fornecidos pelos PSID. O conhecimento deste nível de
informática se torna “intelectualidade de massa”, como afirma Gorz (2004, p. 52-53) ao
interpretar algumas conclusões de Virno:
[...] as capacidades e aptidões postas em obra (pelo capitalismo
contemporâneo) são “o que de mais comum”, o intelectualidade de
massa, de maneira que todos e todas são ao mesmo tempo trabalhadores
potenciais e desempregados em potência.
Exemplo útil desse mecanismo de desvalorização de conhecimentos é o domínio da
língua inglesa que, aos poucos, deixa de ser considerado um diferencial no mercado de
trabalho pela saturação de qualificados. Uma pesquisa realizada pelo British Council
mostra essa tendência. Seu coordenador, David Graddol, afirma:
Estamos em um mundo em que, se você vai para uma entrevista de
emprego somente com o inglês, isso não será suficiente. As empresas
esperam algo mais do candidato e exigem, além de um excelente domínio
de inglês, o domínio de outras línguas também. (BOONE, 2006).
9
Quando uma empresa privada patrocina projetos de inclusão digital, diretamente ou através de fundações, o
capital gasto no treinamento de mão-de-obra retorna na forma de deduções de impostos ou como publicidade
institucional.
123
Da mesma forma, o tipo de qualificação básica fornecida pela maioria dos PSID não
constitui “diferencial” na obtenção de vagas nos postos de trabalho, muito embora a falta
completa de conhecimentos na área possa ser compreendida como um obstáculo. Ou seja, o
acesso às ferramentas e técnicas rudimentares da cibercultura funciona mais como barreira
do que como oportunidade. Não é dada aos “ciberincluídos” a possibilidade concreta de
ascensão econômica ou social, mas apenas a chance de permanecer em um patamar
mínimo, fora do qual sua mão-de-obra sequer é aproveitável. As opções são claras: ou uma
inclusão subalterna, ou a completa desqualificação: a “vida nua”.
10
Para compreender esse mecanismo, é importante relembrar que a inclusão digital
relaciona-se diretamente com o fenômeno mais amplo da informatização do cotidiano,
descrito anteriormente. Uma das características desse fenômeno é que o computador se
torna uma senha privilegiada de inserção no complexo economia/cultura, mediando, ao
mesmo tempo, relações de trabalho e práticas culturais. Na verdade, o computador se
interpõe entre os indivíduos e essas esferas tradicionais da experiência humana,
transformando-se em “portão de acesso” por onde necessariamente o indivíduo deve passar
para se tornar o que ele é (RIFKIN, 2001). Se, para a elite da megainfoburocracia, a
informatização do cotidiano representa a abertura de novas possibilidades, para essa imensa
base social ela se converte em barreira às oportunidades econômicas e culturais que, antes
da informatização, não existiam. Assim, a “inclusão” de que se trata é, no máximo, uma
“reinclusão”: todo o caráter desestruturante e desestabilizador da informatização do
cotidiano é omitido nas práticas e discursos da inclusão digital para que sua atuação possa
ser percebida como “emancipação” e não como a (possível, ainda que improvável)
reparação de danos provocados pela onipresença dos computadores.
Há um caminho claro de complexificação da relação entre o indivíduo e o social e a
cibercultura não é senão o estágio mais avançado desse percurso. Se, num estágio pré-
moderno, a forma de inserção na cultura era dada pela comunidade imediata (por questões
10
Retomamos aqui, metaforicamente, o termo de Giorgio Agamben (2002) “vida nua”, já utilizado
anteriormente, como a redução do humano à condição meramente biológica. Neste contexto, a expressão
indica um completo desligamento entre as habilidades individuais e as necessidades de reprodução do capital.
A “vida nua” é, sob esse prisma, a vida fora da rede e, portanto, fora das tendências hegemônicas da cultura.
124
hereditárias e tradicionais), ocupando a economia e o trabalho
11
uma posição relativamente
marginal, na modernidade industrial essa mesma inserção se deu através de uma colocação
necessária em posições específicas do modo de produção (a “cultura operária” é um
exemplo disso), além de uma intermediação exercida pela “indústria cultural”. No mundo
informatizado contemporâneo, a mesma inserção é intermediada pelo computador, com a
particularidade de, estando as esferas da economia e da cultura fundidas, as formas de
marginalização devam ser superadas simultaneamente nesses dois campos.
A cibercultura complexifica e obstaculariza o acesso à distribuição igualitária de
riquezas e privilégios criando novas dificuldades a serem superadas pelas populações de
baixa renda para permanecerem como estão. Ela não é um “impulso para cima” na
pirâmide social, mas “pressão para baixo”, de maneira que todos os esforços (e o capital)
empregados se destinam a evitar um empobrecimento ainda maior e não para possibilitar a
acumulação por parte das camadas atendidas pelos programas.
O problema é que a “pressão para baixo” atinge todos os setores da sociedade (vale
dizer, atinge igualmente os que estão incluídos, além daqueles que permanecem fora dos
portões digitais) e, graças aos mecanismos de competição próprios do capitalismo, é de se
supor que apenas uma fração dos atingidos consiga resistir a seu empuxo. Isso se aplica até
mesmo aos “dromoaptos” ou à elite cibercultural: seus componentes devem investir o
tempo todo na capacidade de atualização e movimento, sob pena de todo o capital aplicado
anteriormente desvanecer em um par de anos.
Sob esse ponto de vista, a informatização do cotidiano colabora, senão para um
empobrecimento generalizado das sociedades, ao menos para uma radicalização na
concentração de renda e privilégios. Os que possuem o capital, o tempo e as condições
sociais prévias (a “dromoaptidão”) necessários à manutenção de sua posição obtêm uma
vantagem expressiva em relação aos excluídos e aos subalternamente incluídos.
12
Se é verdade o que pregam os discursos de exaltação do digital ao afirmarem que
um mundo novo de conhecimentos, oportunidades e relacionamentos se abre aos usuários
das redes, tal abertura deve ser compreendida como mais um privilégio distribuído
11
É verdade que o “fazer” ou a “atividade” de um indivíduo sempre representou uma forma de inserção na
cultura. Compreendemos o termo “trabalho” como um fazer específico, relacionado ao mercado e,
fundamentalmente, associado à economia produtivista.
12
Apoiado em pesquisas sobre a concentração de renda, principalmente nos EUA, vários autores apontam
para essa radicalização das diferenças. Veja-se, por exemplo, Harvey (1992, p. 177-184).
125
socialmente de maneira desigual, não porque o acesso ao computador é restrito, mas porque
as condições sociais e econômicas que podem tornar esse acesso relevante de alguma
maneira (ou, pelo menos, estável no tempo) estão obliteradas à maior parte da humanidade,
uma vez que a “dromoaptidão” não se reduz à posse atual do equipamento, mas está ligada
à capacidade de reciclagem permanente. .
Além dessa complexificação e obstacularização do acesso à economia/cultura, a
informatização do cotidiano aumenta a instabilidade social (ligada à “insegurança
estrutural”, de que tratamos anteriormente). A qualificação de grande massa de
trabalhadores em uma ferramenta única (o computador) também faz com que aqueles que
hoje se encontram integrados aos processos sociais de maneira plena, sejam facilmente
substituíveis, que os conhecimentos necessários para os trabalhos simples se tornam
abundantes. Por ser “barato”, ele se torna “redundante”, ou seja, sua colaboração efetiva na
prática produtiva (nos referimos simultaneamente à economia e à cultura) é a mesma de
outros indivíduos. Ele não tem nenhum talento, nenhuma capacidade que o torne
indispensável, mas reproduz as mesmas fórmulas da “intelectualidade de massa”.
Tal processo ainda termina por empurrar grande contingente de “ciberincluídos” até
mesmo para fora do mercado de trabalho autônomo, no qual alguns trabalhadores
poderiam, em princípio, gozar de uma relativa independência e estabilidade, a crer-se nos
discursos de exaltação do “empreendedorismo” comuns a vários PSID. A única
“oportunidade” que essa parcela da população encontra é ser absorvida como força de
trabalho precarizada e instável, a serviço empresas . Como demonstrou Prandi (1978, p.
43), essa forma de “proletarização” não é nova e também atinge outros profissionais
liberais, como médicos e advogados, que tenderiam a se tornar assalariados graças à
abundância de mão-de-obra despejada pelas universidades no mercado e à concentração
dos instrumentos mais sofisticados nas mãos das empresas de grande porte. Nos estratos
mais baixos da cibercultura, no entanto, o problema se agrava.
É nesse cenário que a elite da megainfoburocracia encontra um campo fértil para
sua expansão mundial. Para onde quer que migre, encontrará, na medida certa, a mão-de-
obra “qualificada” e os consumidores necessários à acumulação sem ter que investir em sua
formação. Os PSID garantem a base mínima de produtividade para permitir o livre trânsito
do capital (MICHALET, 1984).
126
Assim, por mais que as “boas intenções” devam sempre gozar de crédito, os PSID
acabam por realizar um “trabalho que abole o trabalho” (GORZ, 2004, p. 57). Quanto mais
colaboram para o crescimento da produtividade e da riqueza, mais fazem crescer também a
miséria e a desigualdade.
A qualificação vazia da informática
É a omissão das condições sociais (sendo essas condições não determinadas por
forças locais, mas emolduradas pelas características gerais do “Império”) em que se o
acesso aos equipamentos informáticos que permite e justifica o discurso da inclusão digital
como panacéia para os problemas individuais e coletivos. Evidentemente, a mesma
influência das condições sociais como um todo se reflete em outros campos particulares,
como alerta Pastore (2006), ao descrever o descompasso entre educação, renda e emprego e
citar estatísticas que mostram
a) maior número de desempregados entre trabalhadores com curso médio do que
entre aqueles que concluíram apenas as quatro primeiras séries;
b) queda de renda mais acentuada entre os profissionais de nível médio que entre os
de nível educacional inferior;
c) o fato de que a maioria dos profissionais com nível superior encontra
empregos de nível médio.
A conclusão é que “a educação em si não cria empregos nem eleva a renda de
maneira automática”. Ainda segundo o autor,
Empregadores públicos e privados tiram proveito dos desequilíbrios entre
a oferta de profissionais mais educados e a escassez de empregos. As
exigências aumentam. Há prefeituras que requerem o segundo grau para os
que se inscrevem em concurso público para serviços gerais (varredor de
rua, trabalhador braçal, pessoal de limpeza etc.).
Os fatos apresentados por Pastore reiteram uma tendência do capitalismo
contemporâneo, certamente presente na forma como se a apropriação das máquinas e
conhecimentos informáticos, apontada por Kumar (1997, p. 37): o “credencialismo”. A
saturação de profissionais capacitados com conhecimentos rudimentares de informática
provoca uma inflação de credenciais”, permitindo ao mercado de trabalho solicitar
qualificações que, na prática, são ou podem ser dispensáveis. A “inclusão digital”
127
representa, então, uma “inclusão simbólica”, ou seja, o sinal visível de pertença a uma
classe de trabalhadores globalmente instituída. É a marca de uma inclusão no corpo de
colaboradores da megainfoburocracia, ou, pelo menos, da disponibilidade para a
colaboração.
Inicia-se, assim, um círculo vicioso: as “credenciais” em informática são exigidas
mesmo para postos de trabalho em que são desnecessárias, fazendo com que o trabalhador
não qualificado nestas ferramentas tenha que aprendê-las para pleitear as vagas disponíveis
(TRIVINHO, 2001a). Como o número de trabalhadores com esse treinamento básico
cresce, as empresas podem solicitar essas “habilidades supérfluas”, já que a abundância de
mão-de-obra faz com que elas sejam relativamente “baratas”.
Assim, a megainfoburocracia contará com oferta abundante de trabalhadores de
baixo nível porque a informatização é socialmente interpretada como necessidade e essa
interpretação é o suficiente para torná-la (a informatização) efetivamente necessária,
embora o processo, como um todo, não redunde em benefícios aos “ciberincluídos”, mas
apenas em uma barreira a mais para quem não possui o acesso, pleno ou limitado, ao
computador.
A informatização constrói sua própria necessidade ainda em um segundo
movimento: a mão-de-obra qualificada para o uso de ferramentas informáticas torna-se
relativamente abundante e isso pressiona para baixo o valor efetivo do trabalho. Com isso,
o processo de informatização passa a ser mais economicamente viável do ponto de vista de
seus custos de implantação. O resultado é que as empresas, buscando a ampliação de
lucros, encontram as condições favoráveis para os investimentos em informática porque
não ficarão “reféns” de uma mão-de-obra escassa (e, portanto, cara), nem terão de investir
na qualificação de pessoal. Para as funções mais simples, o investimento relativamente
módico permite que algumas empresas se informatizem apenas para seguir uma pressuposta
“tendência de mercado”, dispensando uma análise mais aprofundada dos impactos
produzidos pelo computador. Uma vez que tenham se informatizado, passam a pressionar o
mercado de mão-de-obra e exigir essa qualificação. E o ciclo se reinicia.
O credencialismo mencionado por Kumar (Ibid.) é, portanto, uma forma de
favorecer o capital ao incentivar a proliferação de habilidades e conhecimentos, no nível
individual, sem a produção de social de um ambiente em que essas habilidades possam ser
128
aproveitadas de forma integral, ou seja, gera um excedente de conhecimento técnico
individual que não é conversível em capital econômico dadas as condições estruturais de
uma sociedade. A elite da cibercultura é essencialmente concentradora e deixa pouca
margem de ascensão possível aos “ciberincluídos”.
2.1.3. Interatividade e produção flexível
Com base nas expressões “co-produtor” e “pro-sumidor” cunhadas pelo futurólogo
Alvin Toffler, Armand Matterlart (2001, p. 255-256) fala da “taylorização” do consumo:
“um número crescente de disciplinas e pessoas se empenha em perscrutar, com fins
estratégicos, as mínimas reações dos consumidores”. Na verdade, a “taylorização do
consumo” pode ser interpretada como uma necessidade criada pelo chamado “pós-
industrialismo”, como vimos anteriormente: a possibilidade de produzir em pequenos lotes
pressupõe a contra-partida de um mercado consumidor não apenas fragmentado, mas
infinitamente fragmentável, como motor do processo produtivo.
Na cibercultura, os PSID levam até os veis mais baixos da hierarquia global os
mecanismos de “perscrutação” do consumo, através do conceito de interatividade. Como
afirma Monteiro (2006), esse conceito está longe de apontar para qualquer espécie de
consenso epistemológico. Porém, ele pode ser utilizado, em seu aspecto mais cotidiano,
para denominar um modo de comunicação humano-máquina ou humano-humano mediado
por máquinas. O fato é que, em comparação com os signos “oferecidos” pelos meios de
comunicação de massa, o fenômeno da interatividade, alçado à condição de paradigma e
necessidade da comunicação contemporânea, promove uma mudança “metabólica” na
relação entre o humano e as imagens. Não se trata mais de “ser exposto” ou de “receber”
essas imagens, mas de integrar-se a elas, interferindo “concretamente nos fluxo sígnicos
que a presIdem, ajudando na construção das tendências possíveis desses fluxos”
(TRIVINHO, 2007, p. 251).
A comunicação em mão-dupla, assim estabelecida, permite ao conjunto das forças
capitalistas o feedback constante, necessário ao planejamento da produção flexível. A
disseminação das máquinas informáticas amplia e atomiza a rede de informação das
empresas transnacionais, tornando mais “afinado” o conhecimento necessário à atuação em
129
mercados locais a um custo e velocidade menores que as técnicas tradicionais de pesquisa.
O desejo de interatividade é um sintoma da cibercultura, no sentido em deixa entrever toda
uma lógica de reconstrução que institui a sociedade a partir de uma relação direta entre o
molecular e o global:
Molecular porque é no nível do invisível, no nível da informação digital
e/ou genética que se produzem suas (da sociedade) maiores realizações;
global porque cada transformação molecular operada está destinada a ser
incorporada e repercutida por uma rede de valorização planetária.
(SANTOS, 2003, p. 81)
Além disso, se, como afirmamos anteriormente, o trabalho imaterial pleiteia a
condição de modo hegemônico da atividade produtiva e torna-se uma forma de converter
capital simbólico em capital econômico, a interatividade desponta como ferramenta por
excelência para a conversão da esfera da convivialidade e da comunicação em meio de
produção, reduzindo a diversidade da cultura humana ao estatuto de informação.
13
Enquanto o industrialismo fordista poderia ser considerado um modo de organização da
produção relativamente “calado”, a cibercultura exige o trânsito incessante de informações.
Como afirma Rifkin (2001, p. 91), a capilaridade proporcionada pelos meios digitais
permite ao capital avançar sobre as formas vividas:
Todo momento vago de nosso tempo está sendo preenchido com alguma
forma de conexão comercial, tornando o tempo em si o mais escasso de
todos os recursos. Nossas máquinas de fax, e-mail, voice mail e telefones
celulares, nossos mercados comerciais 24 horas, caixas eletrônicos
permanentemente abertos e serviços bancários online, serviços de farmácia
e serviços de manutenção, todos atraem nossa atenção. Eles preenchem
nossa consciência, tiram a maior parte do tempo em que ficamos
acordados e ocupam muitos de nossos pensamentos, deixando pouco
tempo de folga.
A onipresença da linguagem digital ainda permite que ela atue no sentido de
completar o apagamento das fronteiras entre o mundo do trabalho e a esfera da vida
privada.
14
A informática, ao se tornar linguagem-padrão do lazer, da cultura e das relações
pessoais, torna as habilidades cognitivas básicas da nova sociabilização imediatamente
13
Santos (2003, p. 86) nessa redução nada menos que a corrosão do humanismo moderno: “[...] o homem
não é mais a medida de todas as coisas porque, ao privilegiarmos o plano da informação, ao tomá-la como
referência última, passamos a valorizar o molecular, o infra-individual, comprometendo a noção de indivíduo
e questionando a de organismo”.
14
E processo de apagamento de fronteiras é plenamente perceptível na comunicação de massa, mas as
proliferação das mensagens atingida pelos meios digitais leva essa tendência ao extremo.
130
apropriáveis pelo aparato produtivo. O processador de texto, a planilha eletrônica, o
programa de tratamento de imagens que atendem ao usuário final são os mesmos
necessários ao mercado. Esse fato pode ser celebrado por alguns, ao tornar (ao menos
potencialmente) soft”e “lúdico” o processo de aprendizagem para a produção: o usuário se
relaciona desde cedo com as ferramentas que, de acordo com os discursos de exaltação da
informática, seriam as únicas formas capazes de facilitar sua futura inserção no mercado e
sua integração à sociedade. Assim, a criança ou adolescente que passam horas em frente ao
videogame ou navegando pela Internet estariam, muitas vez com o consentimento tácito
dos pais e educadores, “se preparando para o futuro”, ou seja, construindo seu lugar de
inserção na hierarquia da cibercultura.
A mesma lógica de mercantilização produtivista da vida cotidiana é levada às
camadas com baixo poder de consumo, estendendo a “comodificação” da experiência
vivida a todo o tecido social:
Uma parte cada vez maior de nossas vidas diárias já é mediada pelos
novos canais digitais de expressão humana. E, uma vez que a comunicação
é o meio pelo qual os seres humanos encontram significado comum e
compartilham o mundo por eles criado, transformar todas as formas de
comunicações digitais em commodity é um processo paralelo a transformar
em commodity muitos relacionamentos que compõem a experiência vivida
– a vida cultural – do indivíduo e da comunidade. (RIFKIN, 2001, p. 112).
A interatividade é, ainda, o meio pelo qual o consumidor/usuário se a ver e,
portanto, converte seu “estilo de vida” em fonte primária para as bases de dados que,
devidamente trabalhadas pelos especialistas do mercado, retornam como produtos
segmentados. Para que essa estratégia seja efetiva, no entanto, é indispensável que as forças
produtivas tenham acesso a informações sobre a totalidade do social, ou seja, que penetre
em todos os nichos possíveis para atender a todas as demandas, existentes ou potenciais. Os
PSID, por terem como objeto privilegiado as populações de baixa renda, terminam por
integrar essas camadas ao modo dominante de produção segmentada. Assim, que
reduzido e redutível à mera informação, o “usuário” se torna mercadoria, “um objeto
potencial cuja reação futura aos estímulos da rede agrega valor” (SANTOS, 2003, p. 129).
Os processos interativos permitem um modo específico de mediação de relações
calcadas na capacidade de transformar os usuários em produtos. Um “site de
relacionamentos”, como o Orkut, por exemplo, nada mais é do que uma forma de mediar a
131
comunicação entre os usuários que cresce em relevância social e econômica na proporção
em que oferece mais e mais possibilidades de conexões. Seu valor e patrimônio estão
associados à quantidade de usuários que possui. Da mesma forma, sistemas “inteligentes”
como os do site Amazon.com, extraem seu valor da participação ativa dos “membros de sua
comunidade”. Como os grandes meros de suas audiências não podem ser conseguidos
somente entre as parcelas privilegiadas, quantitativamente menores em qualquer sociedade,
é necessário avançar para a totalidade dos grupos sociais, mesmo os de menor poder
aquisitivo, como forma de aumentar a visibilidade de seus conteúdos e conseguir
audiências expressivas que servirão como moeda de troca na barganha com o mercado
publicitário.
Tanto a necessidade de feedback constante quanto a inserção do indivíduo
(transformado em informação pela interatividade) nas redes de construção e acumulação de
capital (simbólico e ecomico) pressupõe aquilo que Virilio (1998, p.140-141) denomina
a conversão da reflexão em reflexo: “A reflexão é a memória e o raciocínio, enquanto o
reflexo é desprovido de reflexão”. O reflexo é a resposta imediata e, mais do que isso, a
prontidão permanente para a responder. A interatividade do aparato informacional cria os
mecanismos tecnológicos para a sustentação de uma sociedade calcada na necessidade da
informação pulverizada que redunda no “condicionamento a domicílio das populações”
(Idem).
Vê-se toda a necessidade estrutural das tecnologias de comunicação sem fio, dos
laptops aos telefones celulares: a prontidão para a resposta se torna uma imposição
naturalizada, um reflexo condicionado que passa ao largo da localização geográfica, das
limitações do tempo dedicado à produção, da capacidade de reflexão e, portanto, para além
das utopias emancipatórias. Virilio (Idem) resume as conseqüências desta mobilização total
do sujeito: “Trata-se de uma escravidão”.
Capítulo 3
A inclusão digital como inclusão subalterna na cultura
Para dar conta do papel ocupado pelos PSID no modo de produção contemporâneo,
a análise deve projetar-se para além das questões prioritariamente econômicas
1
e debruçar-
se sobre as práticas culturais e políticas implicadas no conjunto das novas relações
capitalistas que constituem a cibercultura. Esse nível de análise, além de elucidar questões
pertinentes ao tema da reprodução do capitalismo é ainda mais necessário porque algumas
iniciativas de inclusão digital focam seu discurso na questão da cidadania e do livre acesso
à informação, tentando legitimar-se para além da esfera econômica e do trabalho. A
reflexão crítica sobre os PSID não pode se eximir de buscar as contradições e os limites que
surgem desses discursos e práticas em sua totalidade e deve, portanto, ampliar o foco da
argumentação.
Em uma primeira abordagem, é possível verificar que alguns PSID buscam situar-se
para além das questões diretamente implicadas no trabalho e na distribuição de renda e
adentrar no campo da cidadania. A inclusão digital permanece como condição para a
inclusão social, porém, esta última ganha dimensão ampliada, relacionada com a garantia
de participação efetiva na esfera pública. O acesso às máquinas informáticas seria:
a) uma forma de construção de comunidades de interesse não-territoriais;
b) uma ferramenta de acesso a informações para a consolidação de uma opinião
pública crítica e ativa;
c) um mecanismo tecnológico para uma democracia participante;
d) uma via privilegiada para o exercício da autonomia individual, não determinada
por instâncias superiores de poder e influência;
Essa visão pode ser considerada como uma atualização do telos da emancipação do
indivíduo, herdeira das tradições da modernidade. Nesse caso, porém, a emancipação,
representando a independência/autonomia da ação e do juízo em relação às estruturas de
poder socialmente estabelecidas é, paradoxalmente, alcançada através da dependência
1
Sem deixar de levar em consideração a fusão entre economia e cultura, pica do momento atual,
consideramos como “prioritariamente econômicas”parte das questões suscitadas até o momento, uma vez que
articulamos categorias envolvidas nos processos de produção (tais como “valor”, “trabalho” e “consumo”).
133
crescente de uma tecnologia específica, cujo uso tende a reforçar as próprias formas de
poder e dominação das quais se busca emancipar.
Ao transferir as práticas culturais e políticas para relações mediadas pela máquina, a
informatização da sociedade termina por reforçar a própria necessidade do computador,
num círculo vicioso que, como visto, redunda na expansão da própria cibercultura e de suas
formas de subordinação. Quanto mais os serviços estatais, as formas de diálogo
democráticas, a atividade política e as práticas culturais em geral migram para o
ciberespaço, maior é, naturalmente, o apelo para que o cidadão seja convertido em usuário
da tecnologia informática. E quanto mais cidadãos atendem a esse apelo, maior é a
legitimação para que a cidadania mediada pelo computador se torne a forma hegemônica da
participação civil, excluindo um persistente “resto”, que vê sua condição marginal cada vez
mais radicalizada.
É esse tipo de círculo vicioso, união entre emancipação e subordinação na qual o
dano se faz inerente ao benefício, que possibilita Ianni (1999, p. 23) afirmar que “a utopia
da emancipação individual e coletiva, nacional e mundial, parece estar sendo punida com a
globalização tecnocrática, instrumental, mercantil, consumista”. Ou seja, ao verter para o
ciberespaço as formas de participação sociais e políticas, a cibercultura produz, no mesmo
movimento, a expansão da globalização capitalista, a intensificação da aceleração do
cotidiano, a insegurança estrutural e, por conseqüência, amplia o poder de submissão
exercido pela megainfoburocracia. A inclusão digital e expansão da informatização do
cotidiano são um mesmo e único processo e todas as conseqüências negativas discutidas
anteriormente são produzidas no mesmo movimento que pleiteia a emancipação pela
informática.
Além disso, se o acesso às ferramentas informáticas pode ser considerado por
alguns PSID como ampliação da capacidade individual de intervenção na cena pública ele
se torna, imediatamente, uma restrição a todos os que permanecem distantes dessas
ferramentas. Dessa forma, tal prática produz seus próprios excluídos” e essa “exclusão” é
incorporada como justificativa para a necessidade de inclusão digital. O resultado desse
círculo vicioso é o aprofundamento da própria dependência em relação ao computador. A
informatização, em si, permanece fora de questão, como uma necessidade sobre a qual
ninguém consegue exercer influência. É dessa inserção além da capacidade de reflexão
134
crítica que a informatização retira sua força autoritária: no regime da cibercultura, as
ferramentas informáticas são alçadas à condição de via exclusiva para a cultura
(TRIVINHO, 2001a, p. 209-227).
3.1. O autoritarismo cibercultural
Colocar-se como elemento da cotidianidade é uma forma de se tornar impermeável
à reflexão e consolidar-se como consenso. Jameson (2002) afirma que o mesmo
procedimento ocorre com a idéia de “mercado” que, no imaginário das sociedades
industrializadas, se tornou uma espécie de “segunda natureza”. Mesmo forças antes
identificadas com o socialismo terminaram por participar ativamente do mito de um
mercado “natural” e “inescapável”. O autor denuncia que essa maneira de pensar, cada vez
mais hegemônica mesmo em círculos anticapitalistas, enterra de vez qualquer possibilidade
de construção de uma nova sociedade. Trata-se apenas de lutar para “humanizar” o
mercado como se ele fosse uma realidade incontornável (Idem, p. 271). Assim como a
informatização, a naturalização do mercado não abre margem para que se pense em termos
de autonomia (Ibid., p. 273):
O mercado como conceito raramente tem alguma coisa a ver com escolhas
e com a liberdade, uma vez que todas já estão predeterminadas, quer
estejamos falando de novos modelos de carro, de brinquedos ou de
programas de televisão: selecionamos entre alguns, sem dúvida, mas não
podemos dizer que influímos na escolha real de qualquer um deles.
È possível prosseguir o paralelo entre a “naturalização” do mercado, apontada por
Jameson, e o consenso que se construiu em relação à informatização na cibercultura. Em
ambos os casos, os discursos correntes insistem na idéia de que “não há saída”. Logo, não
há margem para nenhuma ação que não parta do pressuposto de que o mercado e a
informatização são como “decalques do real”, ou seja, condições inescapáveis que devem
reger o “bom senso”. Assim, mercado e informática se colocam como parâmetro objetivo
de toda ação humana, um “mecanismo impessoal” que determina os limites da
racionalidade.
135
A ideologia do mercado assegura que todos os seres humanos se o mal
quando tentam controlar seus próprios destinos (“o socialismo é
impossível”) e que temos sorte em poder contar com esse mecanismo
impessoal o mercado que pode tomar o lugar da hubris e do
planejamento humanos, e substituir de vez a capacidade de decisão dos
homens. Só precisamos manter o mecanismo bem azeitado e limpo, e ele -
como o monarca tantos séculos tomará conta de nós e manter-nos-á
na linha. (JAMESON, 2002, p. 280).
:
Na gica dos PSID, a inclusão social torna-se impossível sem que o domínio da
informática possibilite participar do mercado de trabalho ou forneça as ferramentas para
uma atuação política eficaz. Tais procedimentos fazem com que a informática seja “natural
e indispensável”, como o foram escola e igreja em momentos anteriores, segundo Althusser
(1985, p. 81).
É produtivo, para a crítica da idéia de “autonomia pelo computador”, partir desta
“indispensabilidade” e relacioná-la com a diferenciação que Giddens (1997) faz entre
“decisão” e “escolha”: a primeira refere-se à capacidade de determinar qualitativamente as
opções aceitáveis dentro de um determinado contexto; a segunda trata apenas da
possibilidade de eleger uma entre as alternativas fornecidas previamente. As “escolhas”,
portanto, não são frutos da crítica ou do arbítrio individual, mas pré-determinadas pelas
próprias necessidades de reprodução do sistema. O consenso socialmente construído em
torno da informatização mutila as possibilidades de autonomia concreta ao determinar, de
antemão, que todas as alternativas passem pelo computador. Não há, portanto, decisões,
mas apenas escolhas (de plataforma, de software, de modelo etc).
Em outro nível de análise, interior ao processo de informatização generalizada, a
ausência de decisões também se reitera: visto que apenas a elite da megainfoburocracia é
capaz de produzir as ferramentas e interfaces informáticas, não resta ao conjunto dos
“usuários” senão escolher entre as possibilidades previamente decididas. Ninguém é
consultado sobre a pertinência social de uma nova atualização do Windows, por exemplo.
A própria idéia de interface” oculta uma forma de autoritarismo ao modular as opções do
usuário, determinando o que é possível fazer e o que não é. Determinar as alternativas em
curso é a estratégia mais eficiente das estruturas de domínio do “Império” porque, como
afirma Giddens (1997, p. 95), “quem toma as decisões, e como, é fundamentalmente uma
questão de poder”.
136
O problema, subestimado pelos PSID, é que usar um computador significa sempre
concordar com as decisões tomadas pela megainfoburocracia. Ao atuar como senha de
inserção simbólica na cultura, o computador legitima-se como uma necessidade a qual não
deixa outra saída senão a morte, compreendida como “figuração tendencialmente extrema”
da exclusão (TRIVINHO, 2007, p. 168). “É melhor ter que não ter”, justificam-se os
avatares da inclusão digital sem perceber que o que deve ser criticado é exatamente essa
“necessidade”. Não espaço para a decisão de “não ter”, a não ser sob a penalidade de
uma existência marginal. Tal como na metáfora do Frankenstein, evocada por Sfez (2000),
a criatura torna-se o mestre.
Mesmo no nível da racionalidade empresarial o espaço para escolhas tecnológicas
torna-se cada vez mais restrito:
A estrutura oligopólica dos mercados, reforçada pelos mecanismos de
crédito e financiamentos internacionais, e pelas normas de licitações e
concorrências públicas impostas, torna praticamente impossível a escolha
de uma tecnologia nova ou diferente, de alto risco para a sobrevivência da
empresa. (RATTNER, 1985, p. 104).
O totalitarismo da cibercultura (TRIVINHO, 2001a, p. 209-227) é, ainda, visível
no consenso social construído em torno da necessidade da inclusão digital. Dele, participa a
quase totalidade das forças sociais, num “mutirãopara garantir as bases de reprodução do
capital. Estado, sociedade civil e mercado superam suas diferenças práticas e ideológicas
para aderirem a esse esforço conjunto. Os PSID fazem parte deste “mutirão” ativamente, ao
disseminarem a noção de que, mesmo para os mais pobres, “sem a informatização, não
salvação”.
3.2. A política na cibercultura
Ainda no campo dos discursos de legitimação dos PSID, para além da questão
econômica, é necessária uma breve reflexão sobre a questão da política na cibercultura,
que a percepção do senso comum, partilhada e incentivada pelos gestores da inclusão
digital, é a de que o acesso às ferramentas informáticas tornou-se uma questão chave para o
processo de participação nas sociedades contemporâneas e para a atualização das garantias
137
democráticas. Como fizemos em outro momento (CAZELOTO, 2003a), é possível agrupar
séries de discursos sobre o tema em torno de três eixos:
1) A democratização da informática;
2) A democratização pela informática;
3) O caráter anti-democrático da informática;
Comentaremos apenas o segundo item, o qual indica um conjunto de proposições
que afirmam a capacidade de os meios de comunicação em rede provocarem uma
expansão da participação democrática efetiva. Esses argumentos m em comum o fato de
fazerem crer que o aumento da informação circulante na sociedade conduz à ampliação da
democracia. Os PSID seriam, por suas características intrínsecas, uma forma não apenas de
trazer para a cena pública as parcelas economicamente subordinadas da população, mas
também de colaborar para a emergência de novos atores e novas “vozes”, excluídas dos
processos tradicionais, que se manifestariam à margem do poder político e econômico
instituído.
2
Esses argumentos devem ser examinados à luz das transformações atuais do
capitalismo discutidas anteriormente (Partes I e II). Cabe, como introdução, concordar com
a afirmação de Wolton (2004, p. 150) quando lembra que
[...] não é suficiente que os homens troquem muitas informações para que se
compreendam melhor. São os planos culturais e sociais de interpretação das
informações que contam, não o volume ou a diversidade dessas informações.
Se a comunicação é tradicionalmente associada ao grau de democratização
alcançado por uma sociedade, é necessário frisar que tal associação não pode se dar de
maneira mecânica. Não é apenas a quantidade, mas a qualidade dessa comunicação e,
sobretudo, os “planos sociais de interpretação das informações” que poderão produzir
efeitos. É justamente neste nível que incIdem as questões relativas ao tautismo a que nos
referimos anteriormente (Parte II, Capítulo 1).
ressaltamos que, no plano estrito da formação de valor econômico, o excesso de
comunicação embaralha a percepção e apaga as fronteiras entre valor de uso, valor de troca
e valor simbólico. No plano da política, a situação não é diferente. A polifonia das
2
Sobre a relação entre democracia e inclusão digital, veja-se Mosseberger, Tolbert e Stansburry (2003).
138
sociedades contemporâneas termina por corroer as possibilidades de um entendimento e,
mais do que isso, trava os mecanismos de tomada de decisão que poderiam conduzir à ação
efetiva na realidade social. Como alerta Vecchio (in BAUMAN, 2005, p. 11):
Estão criadas as condições para o esvaziamento das instituições democráticas e
para a privatização da esfera blica, que parece cada vez mais um talk- show em
que todo mundo vocifera as suas próprias justificativas sem jamais conseguir
produzir um efeito sobre a injustiça e a falta de liberdade existentes no mundo
moderno.
A falta de critérios pertinentes para a construção de um juízo socialmente válido,
típica da pós-modernidade, implica que, por mais que os discursos possam circular
livremente, eles tendem a se perder no excesso de comunicação, tomado como valor em si
mesmo. Na falta de possibilidade de construção de projetos, a política transforma-se em
espetáculo, como forma vazia de si mesma. O vínculo que proporciona não visa mais à
construção do campo do interesse comum e torna-se fragilmente constituído por
significantes flutuantes, aos quais só é possível atribuir-se um sentido de maneira individual
e provisória, sem comprometimento e sem ideal coletivo. A política, assim esvaziada, perde
sua potência racional transformadora do agir humano em sociedade e converte-se em
“transpolítica”.
Buscamos aqui uma interpretação da idéia de “transpolítica” associada à emergência
da cibercultura, idéia essa desenvolvida por Trivinho (2007, p. 82-212) a partir de conceitos
e intuições presentes nas obras de Baudrillard e Virilio.
Em ambos os autores, a “transpolítica” é uma resultante do cenário de congelamento
das possibilidades concretas de ação dos Estados, a partir do contexto de mútua dissuasão
implicado no cenário da Guerra Fria. Trivinho extrapola essa condição historicamente
determinada para propor a vigência de uma “condição transpolítica da cibercultura”,
baseando-se no fato de que, apesar da ruína do socialismo nos países do leste europeu,
definindo o fim do confronto velado da Guerra Fria, os Estados permanecem esvaziados de
sua capacidade de organizar e administrar racionalmente as sociedades contemporâneas.
Dessa forma, a “condição transpolítica” deve ser entendida, para além de sua manifestação
histórica original, como
[...] todos os acontecimentos e fatos, situações e circunstâncias,
fenômenos, processos e tendências sociais, econômicos e/ou tecnológicos,
seja duradouros, seja transitórios, sempre de alcance macroestrutural, cuja
natureza, dinâmica e conseqüências escapam, inteira ou parcialmente, à
139
jurisdição das instituições políticas consolidadas na trajetória de realização
do iluminismo francês e do liberalismo inglês nos últimos séculos.
(TRIVINHO, 2007, p. 187-188)
Transpolítica, portanto, é a impotência das instituições herdadas da modernidade na
de realizar efetivamente de seus projetos universais. O poder da esfera pública resta
diminuído, quando não anulado, por um conjunto de forças que escapam de seu escopo e
jurisdição.
Na interpretação de Trivinho, essa situação se instala como conseqüência da
organização do social com base no vetor da velocidade tecnológica. As instituições
políticas (Estado à frente) sofrem um “descompasso dromocrático de temporalidades”
(Idem, p. 201); ou seja, a competência para a velocidade (dromoaptidão) dessas instituições
é necessariamente menor do que aquelas envolvidas na dinâmica dos mercados e do
desenvolvimento tecnológico: “é como se o Estado moderno e a política instituída
pertencessem à época essencialmente distinta da dromocracia cibercultural” (Idem).
Se o processo de corrosão do poder efetivo das instituições políticas torna-se claro e
acabado na vigência da cibercultura, sua origem pode remontar ao século XVIII, época em
que Foucault (1994) assinala como testemunha de uma transformação da noção de
soberania. No período imediatamente anterior, o poder das instituições estatais vinculava-se
à noção de “direito de Estado”, mas, com a aurora do capitalismo industrial, esse poder
passa a sofrer a inflexão de uma restrição interna: o mercado. Essa “nova” instituição,
doravante, vai determinar os limites de atuação do Estado, impondo-lhe sua racionalidade
e, portanto, restringindo sua soberania concreta. Desde o século XVIII, a história da política
no ocidente pode ser interpretada como um conflito entre a “soberania estatale o poder
efetivo do mercado: em alguns momentos (como na vigência dos regimes liberais), o
mercado se torna preponderante; em outros (como no welfare state), a dominância do
vetor estatal.
A “condição transpolítica cibercultural”, nesta linha de raciocínio, pode ser
interpretada como um desequilíbrio entre o poder efetivo do mercado e aquele exercido
legitimamente pelas instituições políticas, com clara vantagem para o primeiro. O
esvaziamento das instituições herdadas corresponde à hiperinflação do mercado, associada
ao desenvolvimento tecnológico, à saturação mediática e à crise dos metarrelatos (conforme
assentado anteriormente).
140
Sob os auspícios dessa lógica de funcionamento, a soberania do Estado, a rigor, não
se desfaz, mas, ao contrário, explode em fragmentos e se dispersa pelo tecido social. A
lógica preponderante do mercado permite e suscita o desenvolvimento de uma soberania
difusa, identificada com a capacidade de consumo e relegando às instituições públicas o
papel (mercadológico) de “prestador de serviços”. O vetor político perde eficiência não
porque não esteja em lugar algum, mas porque está dissolvido em todas as partes, em
demandas grupais pulverizadas.
3.2.1 A política identitária
O problema é que, nesse ambiente aparentemente caótico, pontuado por uma
miríade de grupos e pontos de vista discrepantes, a fragmentação do político que os
discursos apologistas tomam como “democratizante” torna-se, na verdade, solo fértil para a
expansão do “Império”:
As forças globais descontroladas e destrutivas se nutrem da fragmentação
do palco político e da cisão de uma política potencialmente global num
conjunto de egoísmos locais numa disputa sem fim, barganhando por uma
fatia maior das migalhas que caem da mesa festiva dos barões assaltantes
globais”. (BAUMAN, 2005, p. 95).
A fragmentação, somada às tendências individualizantes da condição pós-moderna,
conduz àquilo que chamamos de política identitária”,
3
por girar em torno de grupos que
possuem certa noção de identidade compartilhada, sem se referirem às noções mais
universalistas de “povo” ou “classe social”. De maneira geral, esses agrupamentos
coincIdem com a noção de “novos movimentos sociais” e atuam, primariamente, em torno
de demandas marcadas pelas noções de gênero, sexualidade ou etnia.
4
No mundo pós-moderno, a separação entre público e privado tende a se dissolver
(TIVINHO, 2001a, p. 44-45) e aspectos da vida cotidiana, até então considerados de ordem
privada, invadem a cena pública. Essa passa ser pontuada por interesses particulares que,
quando muito, expressam-se na forma de pressões por igualdade ou, na expressão de
3
Retomamos aqui, com as devidas modulações, as idéias expostas em Cazeloto (2007).
4
Aronowitz (1992) ainda considera o “nacionalismo” e o “fundamentalismo religioso” como formas de
política calcadas na identidade. O autor também inclui entre os “novos movimentos sociais” os grupos que
lutam por causas pontuais, como a posse da terra ou por moradias urbanas, por exemplo.
141
Chantal Mouffe (1996), em “cadeias de equivalência”. O público não é mais o espaço
utópico de construção do bem comum, articulado e negociado discursivamente, mas uma
arena na qual se chocam projetos particulares antagônicos. Propomos interpretar a polifonia
política contemporânea como relacionada a esta crise da idéia de interesse comum”, na
esteira da decadência das grandes narrativas (LYOTARD, 1986), como uma crise de
credibilidade nas categorias totalizantes e universalizantes, que cedem espaço para a
emergência de formas políticas calcadas na idéia de “identidade”, como sublinha Bauman
(2001, p. 124):
[...] como a idéia de ´bem comum´ é vista com suspeição, como ameaçadora,
nebulosa ou confusa a busca da segurança numa identidade comum e não em
função de interesses compartilhados emerge como o modo mais sensato, eficaz e
lucrativo de proceder. E as preocupações com a identidade e a defesa contra
manchas nela se tornam a idéia de interesses comuns (e, mais ainda, interesses
comuns negociados) tanto mais incrível e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo
improvável o surgimento da capacidade e da vontade de sair em busca desses
interesses comuns.
A política marcada pela identidade
5
deslegitima a presença de uma ação coletiva na
escala da sociedade, já que o pensamento contemporâneo coloca sob suspeição os “grandes
sujeitos históricos”, tais como o “proletariado”, o “povo” ou a “classe social”.
É no contexto da “crise dos metarrelatos”, então, que se consolida a chamada
“esfera pública não-estatal” e a emergência dos coletivos identitários como uma reação
contra as formas “universais” de atuação social, representadas pelo Estado e pelo Partido,
mas também pela noção de Povo” e até de “Humanidade”. O universalismo da Nação, do
Partido ou da Classe Social é visto apenas como uma estratégia de dominação levada a
cabo por grupos específicos que se pretendem porta-vozes de uma “verdade universal”.
Buscando outra forma de ação política, esses coletivos acabam por não visar à tomada do
Estado, assim como renunciam à proposta de uma utopia comum. Alternativamente, eles se
abrem a demandas pontuais e provisórias norteadas por diretrizes genéricas (as chamadas
“bandeiras”, que são mais uma declaração de princípios que um conjunto coerente de
objetivos e estratégias).
5
É bom lembrar que a “identidade” em Bauman nunca pode ser compreendida de maneira ontológica. Ela é
um processo permanentemente aberto e instável, sujeito a negociações e agenciamentos. É nesse sentido que
também a compreendemos neste texto. Veja-se Bauman (2005).
142
A idéia de um espaço coletivo povoado por indivíduos singulares coloca em
suspensão, de certa forma, a dicotomia entre o público e o privado que caracterizava a
maneira historicamente constituída de compreender o social. Nesta nova visão, a esfera
pública é condicionada por interesses e projetos “particulares”, definidos por uma noção de
identidade, e não por uma teleologia.
O abandono da idéia de “interesse blico” e a pulverização do social em questões
identitárias, se conduzem à alguma liberdade individual, o fazem às custas de fragilizar
imensas parcelas da população mundial ao reforçarem a idéia de que cada um pode contar
apenas com os seus recursos na solução dos problemas que o afetam.
6
A “privatização”
(que discutimos na segunda parte) dos efeitos nocivos da ordem econômica provocados
pela globalização do capitalismo pode estar colaborando para criar as condições políticas
necessárias à reprodução das desigualdades, injustiças e violências das sociedades
contemporâneas, exatamente da mesma forma que as teorias pós-modernas acusam o
Estado e os “discursos universalizantes”.
Sobre as raízes e os aspectos econômicos da miséria humana – o crescimento
gritante e acelerado das desigualdades em termos de condições, oportunidades e
perspectivas de vida, a pobreza crescente, o declínio da proteção aos meios de
subsistência humanos, a discrepância na distribuição da riqueza e renda -, a maioria
das novas visões se manteve num silêncio impertinente. (BAUMAN, 2005, p. 43).
Não se trata evidentemente, de prognosticar uma retomada aos grandes projetos
coletivos da modernidade, mas é importante admitir que o receio do autoritarismo implícito
na noção de “público” e a aposta na “rede de singularidades” pode trazer às sociedades
contemporâneas as mesmas formas de opressão que tenta combater.
[...] a pulverização do espaço público e sua saturação por conflitos
intercomunitários é precisamente o tipo de superestrutura (ou seria melhor chamá-
la se ´subestrutura´?) que a nova hierarquia de poder servida pela estratégia de
desengajamento precisa e, aberta ou sub-repticiamente, cultivará se puder
(BAUMAN, 2003, p. 96).
6
Liszt Vieira (2001) capta esse impasse e propõe a construção de um espaço público renovado o qual, sem
desconsiderar as demandas particulares e grupais, consiga elevá-las, com o auxílio do Estado, à condição de
políticas universalistas. Sem levar em consideração a viabilidade concreta deste projeto, resta apenas reiterar
que essa argumentação apenas reforça a necessidade de uma noção universalista para a construção de um
projeto político includente.
143
Apesar da pulverização da cena política favorecer às estratégias de subordinação do
“Império”, é evidente e empiricamente observável que grupos previamente articulados
estão conseguindo ganhos concretos graças ao uso intensivo das redes informáticas. Mas o
“efeito colateral” desta mobilização parece ser a intensificação da fragmentação política e o
conseqüente aumento na permeabilidade do social aos vetores “imperiais”, ou seja, o preço
para eventuais ganhos políticos progressistas é a adesão à redes tecnológicas conservadoras
(CUNHA, 2005) e a perda de condições para o “enfrentamento das realidades da economia
política e das circunstâncias do poder global” (HARVEY, 1992, p. 112). Esta
permeabilidade às forças “imperiais” é um dos fatores de enfraquecimento dos Estados
locais que se tornam mais e mais submetidos aos imperativos do mercado global, que atua
silenciosamente, à sombra de qualquer intervenção efetiva da ação pública. O “Estado
supranacional do capital” não cria propriamente um lugar político, mas um “não-lugar de
onde limita e regulamenta o poder das sociedades de dispor de seu lugar” (GORZ, 2004, p.
22).
Capítulo 4
Sociedade civil, Estado e mercado: agentes da inclusão digital
Por articular de maneira coerente o todo social, a informatização pode ser
interpretada como uma forma de exercício da hegemonia. Baseando-se nas análises de
Gramsci, Braga (1995, p. 73), embora carregue no vocabulário marxista ortodoxo, propõe
que a hegemonia seja compreendida como a “[...] fusão total de objetivos, efetuada por uma
classe fundamental com o consentimento ativo de outras classes ou frações de classe,
através da ideologia”.
Embora consideremos que, diante das transformações ocorridas nas sociedades
contemporâneas, tanto a noção de “classes sociais”, quanto a de “ideologia” não possam ser
mecanicamente aplicadas a este novo contexto, permanece o fato de que a necessidade de
informatização é um objetivo “econômico, político e intelectual e moral”, capaz de
articular, sobre o seus pressupostos, a quase totalidade das forças sociais. Em torno deste
objetivo, as discordâncias (diríamos, as contradições) entre capital e trabalho, cidadãos e
empresários, governo e sociedade civil, caem por terra ou são reduzidas apenas às questões
de ordem administrativa.
A necessidade da informatização, quando articulada a uma visão simplista, que
toma a idéia de democracia como igualdade formal de acesso (CAZELOTO, 2003a),
permite que a inclusão digital se erga como um consenso socialmente legitimado,
obliterando quaisquer possibilidades de crítica e, principalmente, qualquer alternativa à
marcha da digitalização.
Como necessidade consensual, ela (a informatização), irrompe no imaginário da
periferia do “Império associada às noções de “desenvolvimento” e “modernização”. É
divulgada, ao mesmo tempo, como se fosse um imperativo e uma oportunidade, tanto no
nível individual quanto para a nação como um todo. Aliás, esses dois níveis se misturam:
informatizar o povo é informatizar a sociedade, transportando-a para um novo patamar nas
relações internacionais.
A luz indireta da tela é herdeira da utopia da razão iluminista, uma vez que seu
brilho é, nos discursos publicitários engendrados, a dissolução das trevas do atraso e a porta
que se abre para a emancipação humana.
145
O consenso socialmente construído que a legitima se ergue a partir de estratégias
distintas, que podem ser resumidas em três “pontos de vista” sobre o tema da inclusão
digital. Estes pontos de vista, como veremos adiante, são mais convergentes que
divergentes, mais complementares do que excludentes.
A inclusão digital pode ser vista : a) como uma política de estado, presente em todas
as esferas do poder político e articulada na forma de investimentos públicos, diretos ou
indiretos; b) como uma forma de ampliação da competitividade, focando-se, então,
diretamente nas necessidades de expansão e “modernização” da empresa capitalista, mas
que, pelos aspectos de produção biopolítica do “Império”, termina por constituir-se em um
dos fatores estruturantes das subjetividades no contexto contemporâneo; e c) como um
direito civil, estando, estão, atrelada às lutas pela democratização da sociedade, ao pleitear
um conjunto de “igualdades” fundamentais entre os cidadãos.
4.1. Inclusão Digital como política de Estado
A construção de políticas públicas voltadas ao tema da inclusão digital é um lugar-
comum entre as nações contemporâneas. Países tão diferentes quanto França e África do
Sul mantém programas estatais com o objetivo de disseminar o uso de computadores e,
principalmente, da Internet em seus territórios.
Silveira (2003, p. 29-30) resume em quatro pontos os pressupostos e as justificativas
éticas para a transformação da inclusão digital em política de Estado:
1. A inclusão digital favorece o desenvolvimento humano, local e nacional,
assim como é uma ferramenta de combate à pobreza.;
2. O mercado é incapaz de promover a inclusão digital dos “extratos pobres e
desprovidos de dinheiro” (sic);
3. A velocidade da inclusão digital é ponto estratégico para o aproveitamento
de oportunidades de desenvolvimento que se abrem no cenário
internacional;
4. “O direito à comunicação é sinônimo de direito à comunicação mediada
por computadores. Portanto, trata-se de uma questão de cidadania”;
146
Sem desconsiderar os aspectos vinculados à idéia de cidadania (que veremos
adiante) e a emergência de uma noção de “direito à informática”
1
(CAZELOTO, 2003a),
podemos considerar que, do ponto de vista das estratégias estatais, a inclusão digital é uma
política pública que visa o estabelecimento de uma posição competitiva das economias
nacionais no cenário internacional.
2
Não é por acaso que, no Brasil, um dos articuladores
destas políticas, no nível federal, tem sido o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio. A disseminação do uso de ferramentas informáticas associa-se, assim, à idéia de
“desenvolvimento” ou “modernização”, ponto nodal das estratégias estatais pelos quarto
cantos do mundo.
Portanto, para interpretarmos a inclusão digital como uma política de estado, é
fundamental que essa análise seja permeada pela categoria do “desenvolvimento econômico
e social”. Essa ligação não é nova. Mattelart (2001, p. 177) afirma que, desde, pelo menos,
os anos 60 do século XX, o acesso às formas de comunicação e informação é tratado como
sinônimo de desenvolvimento econômico e de “modernização”. O autor ressalta a chamada
“teoria da decolagem”, que permeou a ação concreta de organismos internacionais como a
UNESCO desde essa época. Esta teoria ligava quantitativamente o acesso aos meios de
comunicação à noção de “progresso”, levando a conclusões de que, para ultrapassar o
subdesenvolvimento, os países precisariam de dez exemplares de jornais, cinco aparelhos
de rádio, dois televisores e dois lugares em salas de cinema para cada 100 habitantes.
Garantidas essas premissas comunicacionais, o caminho para o desenvolvimento
econômico estaria solidamente pavimentado na sociedade civil.
Na planilha dos planejadores estatais, o desenvolvimento econômico e a
modernização da nação são mecanicamente transmitidos à população. Segundo um
detalhado estudo conduzido por Rattner (1985, p. 105), esse raciocínio é um dos pilares das
políticas tecnológicas, principalmente nos países periféricos:
1
Os PSID normalmente contam com estratégias de inclusão que ultrapassam a questão econômica para buscar
uma atuação ligada à noção de “cidadania”, como discutimos anteriormente. Neste momento, se trata de
buscar compreender o papel mais abstrato da inclusão digital no âmbito de atuação dos estados nacionais.
Discutiremos, a seguir, o papel da inclusão digital como uma forma de “direito civil”.
2
Essa é a posição que transparece em documentos oficiais sobre a atuação estatal no campo das tecnologias
digitais, do famoso relatório Nora e Simon (1980), ao “Livro Verde da Sociedade da Informação no Brasil”
(CAZELOTO, 2003a).
147
As análises concentradas nos aspectos econômicos das inovações tecnológicas
baseadas na microeletrônica fundamentam-se, quase invariavelmente, nas teorias
clássicas ou neokeynesianas, segundo as quais o crescimento econômico é induzido
por investimentos de capital, cujos níveis e volume são função da poupança.
Estabelecendo a equivalência crescimento = desenvolvimento, exalta-se o
investimento como a chave para a solução dos problemas de emprego,
produtividade, salário, renda etc, nos países menos intensivos.
A crítica a esse pensamento mecanicista é óbvia e o próprio Rattner (Idem, p. 107)
termina por concluir que
[...] o aceno e as promessas de uma afluência material ilimitada, graças ao uso da
microeletrônica, tornam-se irreais por abstrair as relações sociais de produção e,
portanto, a distribuição do produto social, e irrelevantes, porque, mesmo que
fossem realizáveis em termos de abundância para todos, não necessariamente
convergência entre esta e o bem-estar social e individual.
Giddens (1996, p. 114-155) também ressalta a distância concreta entre
desenvolvimento tecnológico, a “modernização” e o “bem–estar social e individual” , ao
lembrar que
(...) tornou-se evidente que não é sempre a falta de desenvolvimento econômico
que causa o empobrecimento, mas ás vezes é esse próprio “desenvolvimento”. Um
modo de vida que poderia ser bastante modesto em termos econômicos, mas que
era auto-suficiente e organizado por meio da tradição local, acaba se destruindo
quando o projeto de desenvolvimento represa, plantação ou fábrica é
introduzido.
Deste ponto de vista, as políticas de inclusão digital comungam de uma ética
produtivista na qual “[...]os mecanismos de desenvolvimento econômico substituem o
crescimento individual, o objetivo de uma vida feliz e em harmonia com os outros”
(GIDDENS, 1996, p. 280). O objetivo último da inclusão digital é produzir riqueza para o
país e trabalho para os cidadãos. Como política para geração de empregos, a inclusão
digital insere-se na idéia que, nas sociedades contemporâneas, o trabalho é um “bem” e a
geração de empregos, um prestação de serviços por parte do poder público. Gorz (2004, p.
68) tem razão ao afirmar que o trabalho, no mundo contemporâneo, se torna uma
mercadoria rara”: “(...) “não algo que se faz usando sua energia e seu tempo, mas algo que
se “tem” ou não se tem”.
[...] pois doravante não é o trabalho que cria riqueza, é a riqueza (aquela dos
outros) que cria trabalho”. Os “criadores de trabalho”, quer dizer, os
148
empregadores, o patronato, os investidores, as empresas, merecem os
encorajamentos e os reconhecimentos da nação, as subvenções, os incentivos e os
descontos do fisco. O trabalho, um bem; o emprego, um privilégio.
A crítica ao mecanicismo que liga o desenvolvimento econômico ao bem-estar
social é agravada se tomarmos a situação dos Estados Nacionais da perspectiva do
“Império”. A facilidade de migração do capital e sua relativa independência em relação ao
contexto local deste “regime de soberania” tornam ainda mais incerta essa relação. Como já
foi citado, desde o fim do acordo fordista, o empoderamento do setor produtivo não reflete
mais diretamente no conjunto da população de um país.
3
Segundo Bauman (1998, p. 96),
O progresso econômico não significa mais procura de mão-de-obra; a
“racionalização” significa reduzir postos de trabalho e colocações. Pode-se dizer
que, na extremidade oposta do espetacular avanço científico e tecnológico, o
“crescimento” do PNB passa a medir a produção maciça de redundância e pessoas
redundantes, [...] a massa de desempregados que não é mais um “exército de
reserva”, visto que não serão jamais colocados em postos de trabalho, mas que
terão uma existência inteiramente marcada pela “inutilidade” econômica.
Nenhum Estado, portanto, está em condições de garantir a distribuição social
eqüitativa de quaisquer benefícios oriundos dos programas desenvolvimentistas em geral e,
dado o seu caráter de centralidade na cibercultura, dos programas de inclusão digital em
particular. Se o acesso e a velocidade são formas de riqueza, assim como o capital
econômico, eles também tendem sempre a se concentrarem nas mãos de grupos
relativamente pequenos, desconectados de interesses sociais mais amplos, abandonando à
própria sorte o conjunto dos “cidadãos”. A inclusão digital, por mais que prolifere na forma
de programas sociais, é sempre uma questão individual, ou seja, desatrelada de objetivos
distributivos. O “ciberincluído” que, eventualmente, ultrapassar as barreiras sociais que
impedem a ascensão econômica será incorporado à elite da megainfoburocracia global ou
local sem que este fato altere em nada as condições estruturais para o restante dos
indivíduos. Servirá, não obstante, como exemplo e paradigma da “mobilidade social”
proporcionada pela cibercultura, muito embora não passe de uma exceção.
Os Estados, portanto, tendem a serem reduzidos ao papel de “distritos policiais da
região” (BAUMAN, 1988, p. 84), garantindo a estabilidade institucional e a segurança
3
Este é o centro de gravidade das teses de Reich (1994).
149
necessária aos investimentos das forças econômicas globais e da megainfoburocracia em
particular.
Do ponto de vista estatal, trata-se, portanto, de buscar transformar (ou manter) o
país atrativo para as elites ciberculturais (nacionais ou estrangeiras), com a justificativa de
que os recursos internalizados, um dia, se reverterão em bem estar social. Como afirmamos
anteriormente, baseados em Chesnais (1995), nesta operação de “atração de capitais”, mais
importante que garantir vantagens fiscais ou níveis baixos de salários é a questão dos níveis
de produtividade de uma parcela da força de trabalho. Como a informatização do cotidiano
constitui o computador como essa “base universal” para a acumulação de capitais, uma
população com níveis diferentes de acesso é condição sine qua non para que o capital
encontre mão-de-obra apta e barata.
Do ponto de vista da hierarquia cibercultural, a relação entre qualificação
informática e custo de mão-de-obra deve obedecer ao imperativo de fornecer trabalhadores
para os diferentes estratos envolvidos no processo de produção:
a) No topo, a elite da megainfoburocracia, responsável pela concepção e
pelas normas codificadas de uso das ferramentas informacionais.
b) Um estrato inferior de colaboradores responsáveis pelas tarefas repetitivas
e pela aplicação, nos diversos setores da sociedade, das ferramentas
concebidas e controladas no nível imediatamente superior.
c) Uma base, fora da megainfoburocracia, de trabalhadores vinculados à
produção material dos suportes informacionais, ou seja, da parte
“concreta” que constitui as mercadorias, além dos desempregados e
marginalizados. .
As políticas estatais refletem essa necessidade de divisão do trabalho criando
estratégias diferenciadas de relacionamento com a megainfoburocracia. Se, para o primeiro
nível, os investimentos e esforços são dirigidos à qualificação de alto nível, destinados à
pesquisa e desenvolvimento de aplicações, os PSID se revelam como uma estratégia para
suprir o mercado de profissionais do nível mais baixo dos colaboradores da
megainfoburocracia.
É a presença deste estrato, em quantidades compatíveis, que transforma certa região
em “atratora” de investimentos específicos, justificando, do ponto de vista de lógica
150
“imperial”, os investimentos realizados na sua constituição. As políticas estatais buscam,
então, tornar um determinado território atraente o bastante para receber capitais ao tomar
para si a tarefa de fornecer essa mão-de-obra em um nível específico da divisão
internacional do trabalho.
A posição do Brasil no cenário internacional da produtividade, indica que os PSID têm
efetivamente atuado nos níveis mais baixos da cibercultura, o que indica a necessidade
local de investimentos em disseminação da informática. Pesquisa da Confederação
Nacional da Indústria coloca o país no penúltimo lugar do ranking de produtividade
(medida como a relação entre o total produzido e o número de trabalhadores empregados).
A taxa de crescimento médio de produtividade entre 2001 e 2004 ficou em 1,3%. O
primeiro lugar foi ocupado pela Índia, com taxa de 10,1% no mesmo período (GRANER,
2006). O crescimento desta produtividade, porém, pode não redundar em distribuição de
renda ou aumento na qualidade de vida para a população brasileira, mas, prioritariamente,
amplia a permeabilidade do país à influência do “Império”. Isso porque a qualificação
massiva da sociedade em termos de conhecimento informático não implica diretamente sua
ascensão na hierarquia imperial. Como a elite da megainfoburocracia não possui ligações
efetivas com nenhum estado nacional, a criação de postos de trabalho protegidos e bem
remunerados pode se dar à margem do ambiente local.
Estes postos de trabalho qualitativamente superiores, se pudessem ser induzidos por
políticas estatais, acabariam, paradoxalmente, expulsando investimentos que
aumentariam o custo do capital variável. As empresas buscariam (e efetivamente buscam)
explorar o trabalho qualificado em outras regiões, desprotegidas e economicamente mais
viáveis. Assim, a baixa remuneração e a precariedade são condições para a alocação de
recursos e, portanto, não podem ser superadas nem convertidas em bem estar social. Ao
invés disso, tendem a provocar o fenômeno do “credencialismo”, discutido anteriormente: o
conhecimento se torna abundante, com uma inflação de “credenciais”, mas não são
produzidos postos de trabalho na mesma proporção, a não ser para aqueles que se sujeitam
a salários aviltantes e condições precárias de trabalho.
A inclusão digital atrai capitais apenas se oferecer a capacitação máxima pelo valor
mínimo. Como ela se dá em escala global, não faltarão locais disponíveis competindo entre
151
si para que o capital aumente cada vez mais suas exigências, retribuindo da menor forma
possível.
4.2. Inclusão digital como ampliação da competitividade
O complemento, no plano da sociedade civil, desta forma de ver a inclusão digital
como política de Estado é a idéia de “competitividade”. Para as empresas e para os
indivíduos, a inclusão digital é uma forma de manter o “capital humano” atualizado em
relação às mais avançadas técnicas de produção. A defasagem estrutural é vista como
desvantagem comercial ou “despreparo pessoal”, na medida em que a baixa informatização
repercute como desperdício, baixo valor agregado, exclusão de oportunidades de lucro e
baixa “empregabilidade”.
Não há nenhuma novidade no fato de que as empresas vejam nas ferramentas
informacionais simultaneamente uma oportunidade e um risco: o aumento de produtividade
e da taxa de inovação propiciado pelo computador podem ser a diferença entre o sucesso e
o fracasso de uma empresa. A idéia de inclusão digital, no entanto, leva essa gica aos
indivíduos, transformando a informatização neste mesmo mecanismo de competição entre
trabalhadores. A inclusão digital é uma forma de trazer o “imaginário” da competitividade
empresarial para o interior das relações sociais.
Não somente a empresa se converteu em um ator social de pleno direito,
exprimindo-se cada vez mais em público e agindo politicamente sobre o conjunto
de problemas da sociedade. Mas também, suas regras de funcionamento, sua escala
de valores, suas maneiras de comunicar foram, progressivamente, impregnando
todo o corpo social. (MATTELART, 2001, p. 246-247).
Nos Estados Unidos, por exemplo, desde o final dos anos 90 do século XX, o
“medo e a ansiedade” de pais preocupados em garantir condições de competitividade a seus
filhos tem sido um dos principais argumentos para a avalanche de compra de computadores
e equipamentos por parte das escolas americanas, reduzindo investimentos em outros
programas educacionais, que passaram a ser considerados não-prioritários (BOLT;
CRAWFORD, 2000, p. 40-45). A mesma pesquisa revela que o setor empresarial colabora
para essa sensação, pressionando as escolas a se informatizarem para que garantam a
formação de uma mão-de-obra mais adaptada aos padrões de produtividade necessários aos
152
negócios, sem ter ele mesmo que investir na capacitação do trabalho (Idem, p. 58-65).
Como o dinheiro para a aquisição destas máquinas é drenado de outras áreas, o resultado é
que, pelo menos para os mais pobres, a educação tende a ser substituída pelo treinamento.
Não é por coincidência que o setor empresarial seja um grande investidor em
programas de inclusão digital. Aumentando o nível médio de acesso aos recursos
informáticos entre as classes subalternas, esses programas tornam a competição pelo
emprego ainda mais acirrada, o que resulta o apenas em queda de salários, mas na
garantia de uma predisposição permanente do trabalhador ao aprendizado contínuo. Os
PSID colaboram com a idéia de que os indivíduos devam se responsabilizar pessoalmente
pela sua “empregabilidade”, ou seja, pela aquisição de conhecimentos úteis ao processo
produtivo. Se o tempo e os recursos disponíveis para a educação são escassos neste nível
da sociedade, então eles serão quase que inteiramente dirigidos à “compra” de
conhecimentos práticos e instrumentais, como única forma de resistir à pressão pelo
empobrecimento que a informatização exerce.
Vale ressaltar que essa é ainda mais uma forma pela qual a informatização se auto-
legitima e se torna “indispensável”: a difusão do uso comercial de ferramentas informáticas
permite que os conhecimento a elas relacionados se tornem as únicas formas de
conhecimento produtivo “útil”; esse “monopólio da tecnologia produtiva” atrai para si um
número crescente de trabalhadores e empresários, que se qualificam nessas tecnologias com
a intenção de se tornarem competitivos; uma vezes qualificados, eles reiteram a própria
“necessidade” da informática, fazendo com que o monopólio se amplie. No caminho, todas
as outras formas de conhecimento e de saberes são desqualificados e rotulados como
“inúteis” ou “improdutivos”.
4.3. Inclusão digital como direito civil
Para as instituições da sociedade civil, a inclusão digital também assume as feições
de um novo direito. O slogan do programa Piraí Digital,
4
do município de Piraí, no Rio de
Janeiro, resume essa tendência ao afirmar: “Informação é um direito, tecnologia é o meio”
4
http://www.piraidigital.com.br/. Último acesso em 25/04/2007
153
O pressuposto é que em uma sociedade saturada por formas de comunicação
tecnológicas o exercício da cidadania não pode prescindir da fruição plena das máquinas
informáticas. Estas seriam, portanto, extensões de outros direitos previstos pelas
constituições democráticas, atualizados para a existência nas sociedades contemporâneas,
como o direito à informação, a liberdade de expressão e o direito à participação política.
Analisamos esse movimento em outra ocasião (CAZELOTO, 2003a), procurando
demonstrar como a idéia de democracia, aplicada à disseminação das ferramentas
informáticas, pôde ser construída a partir de uma simplificação extrema dos conflitos e
desníveis de poder que constituem as sociedades reais. O alardeado “potencial
democratizador” destas ferramentas poderia ser atualizado em uma sociedade
previamente democratizada em todos os âmbitos (civil, econômico, político, cultural etc),
fato que, até o presente momento, dificilmente poderia se imaginar como historicamente
observável.
No entanto, permanece aquilo que Mattelart (2001, p. 165) denomina a “visão
terapêutica da tecnologia da informação”, ou seja, a compreensão de que, devido a seu
caráter estruturante do social, as novas redes telemáticas teriam o poder de, por suas
próprias características descentralizadas, redefinir o conjunto das relações sociais entre
cidadãos, sociedade civil e Estado. É a visão, por exemplo, de Lévy (2002, p. 29): as redes
de comunicação operando em escala global e, mais recentemente, a interconexão mundial
de computadores fazem surgir um “novo espaço público”, no qual a sociedade civil
emergir novas formas de associação e o “aprofundamento da liberdade”, notadamente da
liberdade de expressão. Esse raciocínio leva o autor a prever que nenhuma ditadura seria
capaz de sustentar se apenas 25% de sua população tivesse acesso à Internet (Idem, p. 42-
44 ).
Porém, numa sociedade em que o político, o econômico e o cultural se tornam
indiscerníveis, o “aprofundamento da liberdade” tende a se confundir com a “extensão do
consumo”. No momento em que a cidadania se toma pelo direito do consumidor, a inclusão
digital surge como uma forma de garantir uma “liberdade” específica, definida em função
da capacidade de fazer escolhas no mercado de consumo.
No âmbito do consumismo é que se desenvolve a sociedade de consumo, a
sociabilidade consumista, em que indivíduos e multidões imaginam que estão
154
realizando a cidadania, confundindo a liberdade e a igualdade de consumidores
com os direitos de cidadão. (IANNI, 1999, p. 158).
Trata-se, antes de mais nada, de recuperar consumidores “falhos” (BAUMAN,
1998, p. 24). Herscovici (2002, p.67-69), recorrendo à história dos meios de comunicação,
sustenta que a implantação de uma nova tecnologia provoca uma espécie de disputa pela
hegemonia do uso social que se fará. uma fase inicial de turbulência”, na qual usos
não-mercantis despontam como possibilidades concretas e viáveis. “Não obstante, à medida
que o sistema vai se estabilizando e que se desenvolvem os diferentes movimentos de
concentração, esses espaços não-mercantis vão diminuindo”.
5
Cabe ainda ressaltar que o acesso às ferramentas informáticas não têm sido eficiente
em sua “função terapêutica” mais do que meios anteriores. Mesmo no que diz respeito ao
seu uso na educação, o computador parece estar repetindo a decepção provocada pela
mercantilização de outras tecnologias como o rádio e a televisão, vistas, em um dado
momento histórico, como formas sociais “revolucionárias” (MATTELART, 2001, p. 187).
Estudos empíricos recentes, realizados nos EUA, mostram que, a despeito de uma
grande expansão no acesso, a informática não foi capaz de apagar diferenças sociais
baseadas nas questões de gênero, etnia ou classe social (BOLT; CRAWFORD, 2000). Tal
percepção fez com que os autores de uma destas pesquisas (MOSSBERGER; TOLBERT;
STANSBURY, 2003) substituíssem a idéia de “exclusão digital” (digital divide) pela
noção de “desigualdade virtual” (virtual inequality).
6
O acesso formal ao computador, evidentemente, não é a garantia do exercício de
nenhuma forma direito. A cibercultura não distribui a todos igual capacidade de
intervenção nos métodos e nem de responsabilidade pelos fins associados à informática.
Desta forma. o “direito civil” propugnado pelos programas de inclusão digital revela-se
meramente um “direito de uso”, ou melhor, uma “obrigação de uso” que as ferramentas
digitais e as relações sociais delas oriundas revestem-se de um caráter totalitário. O
“direito”, para ser efetivo, deveria levar em consideração, no mínimo, a possibilidade da
recusa e da divergência sem sanções.
5
Veja-se também Dantas (2002, p. 102-103).
6
A idéia de desigualdade digital” representa, no nosso entendimento, um avanço em relação à noção mais
difundida de “exclusão digital”. Ela acrescenta novos matizes ao problema da estratificação social na
cibercultura, mas tem o problema de considerar ainda a informatização como forma “desejável” ou
“necessária”, ao tomá-la como termo de comparação para que se possa medir a desigualdade.
Capítulo 5
A questão do “software livre”
No panorama dos programas sociais de inclusão digital destaca-se um subconjunto
de iniciativas que, por se posicionarem de maneira crítica e terem conseguido adentrar na
esfera das políticas públicas em vários países, incluindo o Brasil, merecem uma discussão
específica. Trata-se do chamado “movimento pelo software livre” o qual, embora possua
uma afinidade explícita com o conjunto forças políticas e sociais mobilizadas em torno do
tema da “inclusão digital”, guarda a particularidade de defender a tese de que os benefícios
da inclusão tendem a ser minimizados ou simplesmente anulados, dependendo do tipo de
software que seja utilizado pelos atores engajados. Como afirma Sérgio Amadeu da Silveira
(2003, p. 29), a inclusão digital não é necessariamente uma forma democrática, mas seus
resultados e efeitos dependem do tipo de modelo a ser seguido:
A luta pela inclusão digital pode ser uma luta pela globalização contra-hegemônica
se dela resultar a apropriação pelas comunidades e pelos grupos socialmente
excluídos da tecnologia da informação. Entretanto pode ser apenas mais um modo
de estender o localismo globalizado de origem norte-americana, ou seja, pode
acabar se resumindo a mais uma forma de utilizar um esforço público de
sociedades pobres para consumir produtos dos países centrais ou ainda para
reforçar o domínio oligopolista de grandes grupos transnacionais.
O softwarelivre” deve ser compreendido como uma alternativa aos chamados
programas proprietários, sobre os quais incIdem leis de direitos autorais que impedem sua
distribuição ou modificação sem a autorização dos desenvolvedores que o criaram.
Resumindo brevemente as “vantagens” apontadas em diversos níveis para a adoção do
software livre, podemos citar:
- Custos menos elevados, tendo em vista o não-pagamento de royalties a empresas
monopolistas internacionais;
- Desenvolvimento de expertise local, uma vez que os programas, produzidos de
globalmente de maneira colaborativa, podem ser localmente adaptados às
necessidades dos usuários;
156
- Maior velocidade de aperfeiçoamento, que programadores e especialistas do
mundo todo participam da confecção e da depuração dos programas, em uma escala
que jamais poderia ser atingida por uma empresa individual.
- Transparência: a abertura do código-fonte permite que qualquer pessoa, com o
conhecimento técnico necessário, possa compreender e modificar as ações
realizadas pelos programas.
- Menor dependência do hardware, uma vez que, livre de funções e interfaces que o
usuário possa considerar inúteis, os programas ocupam menos memória e exigem
menos capacidade de processamento, possibilitando uma vida útil maior ao
hardware.
1
É importante lembrar, no entanto, que o software livre não é, em muitos casos,
gratuito. Embora seja desenvolvido em grande parte pelo trabalho voluntário de alguns
milhares de programadores dispersos pelo mundo, nada impede que o resultado obtido
tenha uma apropriação privada, uma vez que a única restrição comumente utilizada é a de
que um aplicativo produzido com uma base de software livre permaneça com o código
aberto.
Assim, pelo menos em princípio, não contradição entre o software livre e a
acumulação capitalista, tanto no que diz respeito à compra e venda de aplicativos quanto à
prestação de serviços por parte de desenvolvedores espalhados pelo mundo.
Nos últimos anos, esse exército de desenvolvedores passou a ser auxiliado por
empresas privadas que enxergaram no software livre um negócio lucrativo, uma
vez que é possível cobrar pelo suporte e pelo treinamento. Os programadores
também podem vender a sua mão-de-obra para quem quiser soluções específicas.
(CASSINO, 2003, p. 51).
Silveira (2003, p. 41) também demonstra concordar com a compatibilidade entre o
software livre e o “espírito capitalista empreendedor” que ele incentiva:
O uso de software livre nos telecentros e unidade de inclusão digital pode ser um
grande incentivo ao surgimento de inúmeras empresas locais capacitadas a
1
Frisamos, no entanto, que se trata mais de uma questão de ritmo do que de natureza. O software livre”
também é objeto de “aprimoramentos” constantes (SILVEIRA, 2003, p. 38), o que indica uma solidariedade
às questões levantadas anteriormente sobre a reciclagem contínua e o problema da aceleração.
157
configurar e até a desenvolver soluções adequadas aos interesses das empresas e
órgãos públicos locais.
É a possibilidade de acesso mais barato às ferramentas informacionais, aliada a uma
expectativa de ganhos futuros com a venda de expertise nas plataformas de software livre
que permite a conexão entre as idéias de “inclusão digital” e “inclusão social”. Se isso
poderia também ser feito, a princípio, com softwares proprietários, a justificativa daqueles
que defendem o software livre passa a repousar sobre uma questão moral. Afirma Cassino
(2003, p. 53), sobre o uso da plataforma GNU/LINUX pelos programas de inclusão digital
da cidade de São Paulo, mas em consonância com outros autores ligados ao movimento:
Não é justo que um projeto de combate à exclusão social da cidade de São Paulo
use dinheiro público para treinar usuários de programas desta ou daquela empresa.
É simplesmente irresponsável pagar por licenças de uso de software que fortaleçam
o poder de uma única multinacional, enquanto a cidade sofre com sérias restrições
orçamentárias.
A questão da economia, no entanto, embora possa ser importante, não é considerada
a mais fundamental para esse tipo de argumentação. O problema não é a “injustiça”
envolvida no pagamento de licenças, mas o fato de que
(...) mesmo que as licenças de uso de um sistema operacional proprietário sejam
doadas gratuitamente para os programas de inclusão digital, na realidade, o Estado
estaria pagando seus professores, monitores e instrutores para adestrar e treinar
usuários para aquela empresa. (SILVEIRA, 2003, p. 42).
Não se trata de buscar a desqualificação das iniciativas de disseminação do software
livre afirmando que há, entre elas e os programas baseados em digo proprietário, apenas
uma distinção moral. Essa diferenciação, por si mesma, é da maior relevância, mas o que
queremos é interpretar a especificidade dos PSID que usam códigos abertos no contexto da
reprodução internacional da cibercultura. A idéia que queremos sustentar é que esses
programas representam uma fratura no seio da megainfoburocracia e uma forma de
afirmação das elites ciberculturais locais. O software livre não é uma contraposição aos
vetores da aceleração e da informatização do cotidiano, mas uma resistência local aos
impulsos do capitalismo globalizado. É a versão informatizada de uma política nacional-
desenvolvimentista, que quer incentivar a circulação regional dos capitais e dos recursos
158
humanos envolvidos na indústria informática, impedindo ou dificultando que eles sejam
“drenados” pelas grandes corporações transnacionais. A inclusão digital pelo software livre
é ainda uma política de dispersão de renda (privilegiando as relações comerciais dispersas
em uma rede de pequenos prestadores de serviço locais ou, no máximo, nacionais).
Vemos aqui uma contradição entre a apologia do caráter cooperativo do software
livre e sua aplicação concreta como forma comercial. Dados de importação e exportação de
softwares são utilizados (SILVEIRA, 2003) como argumento sobre a pertinência de uma
política nacional de desenvolvimento informático no equilíbrio da balança comercial. Mas,
uma das justificativas éticas nas quais repousa o movimento do software livre é idéia de
“livre trânsito da informação”, como afirma Silveira (2003, p. 36):
O movimento do software livre é a maior expressão da imaginação
dissidente de uma sociedade que busca mais do que a mercantilização .
Trata-se de um movimento baseado no princípio de compartilhamento do
conhecimento e na solidariedade praticada pela inteligência coletiva
conectada na rede mundial de computadores.
Se o objetivo é buscar “mais do que a mercantilização”, a meta deveria ser zerar a
venda de programas, e não ampliá-la; Na verdade, os imperativos do mercado continuam
presentes no discurso sobre o software livre, porém, com um forte apelo nacionalista..
Mattelart (2001, p. 236-237) lembra que os estudos da comunicação historicamente
têm dado preferência ao enfoque “pelo lado da oferta”, ou seja, elegem problemas e pontos
de vista que privilegiam os interesses e as necessidades das empresas ou dos governos.
Mesmo tentando escapar a essa tendência e elegendo grupos economicamente dominados
no processo de globalização como seu ponto de vista, as iniciativas pelo software livre
acabam por compartilhar (e difundir) o ponto de vista hegemônico. A defesa, por vezes
apaixonada, dos partidários do software livre parte do pressuposto de que é necessário
informatizar a sociedade, quando esse deveria ser o objeto primeiro de uma crítica
realmente radical que possa ser considerada “expressão de uma imaginação dissidente”. O
movimento como um todo insiste no caráter libertador” das ferramentas digitais e
considera (às vezes de maneira contraditória) que, se elas não cumprem esse papel, é
porque foram subvertidas pela lógica comercial da propriedade intelectual. Neste tipo de
argumentação permanece intocada a questão mais ampla que é a própria informatização, a
159
sua necessidade, as hierarquias que engendra, as formas de violência e subordinação sutis
que possibilita e principalmente, o caráter estritamente mercantil da sociedade que vem a
reboque das redes informáticas.
Poderia-se usar o mesmo raciocínio para mudar o enfoque do problema moral
apresentado afirmando: “não é justo que o dinheiro público seja utilizado para adestrar e
treinar usuários em uma tecnologia específica (a digital), permitindo e induzindo que ela se
torne cada vez mais indispensável em todas as esferas da existência humana”.
A argumentação pelo software livre parte do pressuposto ingênuo que defende a
“neutralidade” da máquina. Os computadores são reificados, tratados como se fossem
politicamente e economicamente indiferentes, apropriáveis sem vestígios por quaisquer
forças sociais. Está implicada a “boa natureza” dos computadores, aviltada pela
mesquinhez do uso comercial socialmente dominante, mas que, certamente, pode ser
“libertada” pela colaboração desinteressada de desenvolvedores livres e associados. Esse
raciocínio nada mais faz que atualizar tecnologicamente a concepção marxista de
“neutralidade” das máquinas e de que a fábrica capitalista regida pelas leis da organização
científica do trabalho poderia ser “apropriada” para funcionar contra o sistema que as
produziu.
2
A mesma miragem reifica a máquina para depois tentar apagar, pelo uso que se
dá a elas, as marcas de sua origem como objetivação de uma relação social capitalista. Se
somos, como afirma Silveira (2003, p. 44) “cada vez mais uma sociedade
tecnodependente”, cabe perguntar: o software livre atua contra esse dependência ou apenas
a muda de endereço? Ele é uma manifestação do “imaginário dissidenteou um disputa
sobre meios que não põe em questão os fins?
O consenso não é a ausência de contradições, mas é o momento em que os termos
de uma disputa estão, eles mesmos, longe de questionamento. Os conflitos da cibercultura,
quando muito, são delimitados pelos parâmetros da própria cibercultura e é sobre esses
parâmetros que a crítica mais radical deveria incidir. Em outras palavras, no que tange à
informatização do cotidiano, cabe menos perguntar se esse ou aquele modelo é mais
democrático ou eficiente e sim, quais são as finalidades da informatização. Apenas uma
2
Em outro contexto, César Bolaño (2005, p .46) escreve com todas as letras o teor deste tipo de pensamento.
Diz o autor: “o próprio modo de produção torna-se, dessa forma, essencialmente informático e
comunicacional e que serve hoje fundamentalmente à cooperação capitalista pode, em princípio, servir, no
futuro, à liberação do trabalho de sua dominação pelo capital”.
160
critica às formas que induzem e fundamentam o consenso podem revelar sobre quais
pressupostos ele foi construído e, então, lançar alguma luz sobre o não-dito, sobre os
valores fundamentais que permanecem intocados em meio ao que aparenta ser uma querela.
Podemos recordar, como exemplo, o fato de que os dois sistemas político-
econômicos que desenharam a face do século XX e disputaram “corações e mentes”
possuíam uma larga base de consenso entre suas práticas: capitalismo e socialismo eram
sistemas produtivistas, fascinados pelas máquinas e pelas fábricas. Lênin e Ford, embora
permanecessem distante em termos de ethos, ligavam-se umbilicalmente à linha de
montagem. Qualquer que fosse o teor das disputas entre os dois sistemas, permaneceu
incólume o consenso sobre a necessidade de industrializar. Esse era o não-dito, o acordo
fundamental sobre o qual se erigiu o conflito da guerra fria.
Acompanhando Castoriadis (1982,), é sobre esse “não-dito” que se erige o
imaginário social que sustenta a reprodução do capitalismo. O marxismo acreditava na
“neutralidade” das máquinas, ou seja, na sua possível apropriação para fins distintos
daqueles para os quais foram concebidas (Idem, p. 402), da mesma forma que os discursos
de legitimação dos PSID parecem crer que os computadores podem perverter as sua origem
fundada nos desequilíbrios de poder e privilégios e nas necessidades de acumulação do
capital.
Evidentemente, ainda ampliando a análise de Castoriadis, apenas a presença das
ferramentas informáticas não é condição suficiente para “fabricar socialmente indivíduos”
úteis ao modo de subordinação da cibercultura, mas, onde quer que os computadores sejam
considerados indispensáveis, impera a evidência de que um imaginário social
tecnocêntrico esteja instalado e torna-se difícil conceber de que maneira a disseminação
destes mesmos computadores pode vir a ser utilizada como forma “contra-hegemônica” ou
como manifestação de um “imaginário dissidente”.
Conclusão
Inclusão Digital: totalitarismo e crítica
A sobreposição entre racionalidade econômica e racionalidade tecnocientífica
(SANTOS, 2003, p. 230) faz com a idéia de “emancipação” (política, econômica ou
cultural), associada ao uso de ferramentas informacionais apresente dificuldades teóricas e
práticas, quando emoldurada pelo contexto das relações sociais vigentes na cibercultura. O
computador é uma maquina que hipostasia relações sociais tipicamente capitalistas e
colabora ativamente para a manutenção dos desequilíbrios de privilégios e riquezas que
caracterizam esse modo de produção. Uma análise dos Programas Sociais de Inclusão
Digital, entendidos como formas de expansão da cibercultura, não pode, portanto,
prescindir de uma reflexão prévia sobre o modo como o capitalismo se exerce e legitima
nas sociedades contemporâneas. Tal omissão implica a aceitação tácita de deslocamentos
conceituais “mecanicistas”, retirando a informática do conjunto das relações sociais e
isolando-a como “coisa em si”.
A idéia dominante de inclusão digital como forma de realização da justiça social,
por exemplo, é uma justaposição mecânica que, seduzida por um discurso igualitário,
desconsidera os fatores contextuais nos quais se essa “inclusão”. Nos discursos e
práticas de inclusão digital, o acesso às máquinas informáticas é tomado como sinônimo de
ascensão social ou de participação sociopolítica efetiva, quando, na verdade, a
informatização generalizada do cotidiano (notadamente para as camadas de baixa renda,
alvo principal dos programas sociais de inclusão digital) não faz senão o contrário: reforça
as estruturas de subordinação e poder da cibercultura e capilariza as redes de produção
internacionais até o espaço da vida privada.
Os programas sociais de inclusão digital são ferramentas fundamentais para a
expansão e para o processo de valorização do capital, promovido por setores internacionais
dominantes (notadamente pela elite mundial da megainfoburocracia, mas, também, por
elites locais, afinadas com as formas de produção típicas da cibercultura) ao formatar a
mão-de-obra nos parâmetros necessários à sua exploração com baixos custos possibilitando
162
a expansão de mercados e os mecanismos de subordinação correntes. Como afirma Ianni
(1999, p. 109),
Toda tecnologia, na medida em que é inserida na vida da sociedade ou no jogo das
forças sociais, logo transforma-se em técnica social; Pode servir a distintas
finalidades. Mas, como cnica monopolizada ou administrada pelos que detêm o
poder, em sociedades atravessadas por desigualdades sociais, econômicas, políticas
e culturais, é evidente que ela tende a ser manipulada de modo a reiterar e
desenvolver as estruturas prevalecentes, em suas diversidades e desigualdades.
O totalitarismo das sociedades industriais avançadas, dizia Marcuse (1967, p. 18),
deve-se ao fato de que o aparato produtivo
[...] determina não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente
necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais.
Oblitera, assim, a oposição entre existência privada e pública, entre
necessidades individuais e sociais
.
Por se tratar de um consenso social, ao mesmo tempo aspiração individual e
necessidade de reprodução do sistema, a informatização assume as mesmas feições
totalitárias, de maneira que seria ingenuidade propor apenas que ela cesse de existir. No
entanto, alegar a inevitabilidade do processo social-histórico que levou à construção da
cibercultura equivale a lavar as mãos sobre qualquer responsabilidade sobre seus efeitos
negativos. A “ausência de alternativa” é esgrimida pelas elites que se beneficiam da
cibercultura e “os que resistem ou se opõe, os inconformados e os excluídos são assim,
desafiados, com cinismo e desprezo, a construírem alternativas e comprovarem sua
consistência” (SANTOS, 2003, p. 229).
Por isso, o pensamento crítico deve voltar-se inicialmente, para a reflexão essencial
de como a informática veio a se tornar essa unanimidade ímpar e a que interesses esse
fenômeno serve. A crítica, para colaborar na construção de um “imaginário dissidente”,
deve estar atenta aos pressupostos da organização do consenso social como um todo,
renunciando ao tratamento simplista que reifica o computador (e a informatização),
tornando-o um dever mais que uma ferramenta.
1
Como ainda afirma Marcuse (Idem, p. 28),
1
Trata-se portanto, de buscar um ponto de vista que supere o tecnocentrismo (MARTINS, 1998; FILHO,
1994), revelando não apenas suas formas de violência implícitas, mas escapando aos termos estabelecidos
pelas próprias necessidades de reprodução do sistema e erigindo uma crítica aos pressupostos desta forma
totalitária de pensamento.
163
Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em
poderoso instrumento de dominação. O alcance da escolha aberta ao
indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade
humana, mas o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo.
O critério para a livre escolha jamais pode ser absoluto, mas tampouco é
inteiramente relativo.
É necessário pensar além da dicotomia aparente entre inclusão e exclusão, buscando
elucidar outros modos de relacionamento mais nuançados e menos lineares, sem perder de
vista o conjunto das relações sociais implicadas. Bauman (2005, p. 79) lembra que é
necessário contrapor-se à estratégia de dominação contemporânea que
[...] consiste em fatiar os grandes problemas, aparentemente sem solução,
em pequenas soluções, ainda que não se articulem para produzir os
resultados de grande monta necessários, produzem efeitos paliativos e de
curto prazo: ´os grandes temas´ não foram resolvidos, mas suspensos,
postos de lado, removidos da ordem do dia.
Por isso, a chamada “exclusão digital” não pode ser vista como um problema em si
e nem analisada fora dos contornos da organização social historicamente determinada em
que se dá, ou seja: pensar a exclusão digital nos parâmetros teóricos e empíricos do
industrialismo fordista é tornar a análise defasada em relação à sua manifestação concreta.
Para uma interpretação mais acurada, é necessário não renunciar ao grande tema” para dar
atenção apenas aos detalhes administrativos, mas, primeiro, interpretar o contexto mais
amplo em que o fenômeno emerge: a cibercultura.
Os dois eixos principais da cibercultura (informatização do cotidiano e saturação
mediática) articulam-se em conformidade com a nova forma glocal de soberania,
representada pela metáfora do “Império”. Assim, na proporção em que se trata de uma
forma de inclusão na cibercultura, os Programas Sociais de Inclusão Digital podem ser
interpretados como estratégias fundamentais para a construção desta fase do capitalismo. O
arranjo social que ela representa não pode ser concebido como existindo anteriormente às
suas formas concretas, - os seus “lugares” e seus “atores”, na terminologia de Poulantzas
(1978) - daí a centralidade de procedimentos como a inclusão digital para a constituição da
soberania “imperial”.
A cibercultura depende das relações hierárquicas e de subordinação que constrói
incessantemente, a fim de transubstanciar valor simbólico em valor econômico (e vice-
164
versa) como também para garantir as possibilidades de exploração mercantil do trabalho
dito “imaterial”. Assim, os PSID se encarregam de criar a mão-de-obra não apenas
qualificada, mas devidamente “subjetivada” (graças às formas biopolíticas de expansão do
“Império”), para ocupar os postos mais baixos da megainfoburocracia, sem os quais o
capital teria seu trânsito global prejudicado ou mesmo inviabilizado.
Os PSID, embora apresentem nuances morais e práticas em suas formas de
legitimação, convergem em vários pressupostos, tais como:
- Naturalizam uma tecnologia específica como se fosse “necessária”;
- Reificam as máquinas informáticas, deixando de interpretá-las como formas
de relação sociais hierarquizadas;
- Tomam a exceção por regra, ao apontarem casos de sucesso como fórmulas
disponíveis a toda e qualquer pessoa;
- Crêem na “neutralidade da ferramenta”: as máquinas informáticas o
preservam traços de sua forma de produção, podendo ser apropriadas para
quaisquer usos sociais;
- Não levam em consideração a necessidade de renovação constante (e,
portanto, do caráter eminentemente excludente) da “inclusão” que oferecem.
- Crêem que a informatização pode resolver os problemas que derivam da
própria informatização.
- Desconsideram que a informatização se em um ambiente político e
cultural previamente dado.
Assim, os PSID “dão com a mão direita o que tiram com a esquerda”: se, por um
lado, oferecem uma via de acesso cada vez mais exclusiva ao mercado de trabalho e ao
exercício da cidadania, por outro lado favorecem a expansão de um modelo que corrói o
valor do trabalho assalariado, dissemina a insegurança estrutural, esvazia o sentido dos
fluxos comunicacionais, desestrutura as relações sociais, espetaculariza e fragmenta a cena
política e, finalmente, pressiona para o empobrecimento geral das populações que almeja
ajudar.
165
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