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A herança do período naturalista nas letras do século XX
Por
Flavio Pereira Senra
Dissertação de Mestrado em Literatura
Comparada apresentada à coordenação dos
cursos de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr.
Eduardo de Faria Coutinho.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
1
o
semestre de 2006
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2
Agradecimentos
A meus pais, Silvio e Marta, pelo amor incondicional e pelo apoio incansável.
A meus verdadeiros amigos, pelo incentivo e pela lealdade.
A meu orientador e amigo, Eduardo de Faria Coutinho, pelo incrível auxílio.
E finalmente, com muita saudade, a Adalberto da Cruz Pereira, por tudo.
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Sinopse
Reflexão de cunho comparatista acerca da influência do
período naturalista na literatura produzida no século XX. Para
a análise, são feitos três cortes: João do Rio (início do século
XX), Nelson Rodrigues (metade do século XX) e Rubem
Fonseca (meio-final do século XX).
4
Sumário
Introdução 05
1-O século XIX: um breve preâmbulo e alguns apontamentos 09
2-O século XX: A herança naturalista nas letras modernas
2.1- O pré-modernismo brasileiro 21
2.2-João do Rio. O cronista decadente e o crítico naturalista 23
3- A explosão modernista 37
3.1- Nelson Rodrigues, o anjo “neo-naturalista”? 45
4- Preâmbulo: o papel da literatura-reportagem nas letras modernas 84
4.1-Rubem Fonseca e o “naturalismo policial” 85
Conclusão 104
Bibliografia 108
5
Introdução
A visão de mundo do homem do século XIX foi muito guiada pelo forte
cientificismo então em voga. O determinismo e o darwinismo social foram influências
diretas para as teorias defendidas por sociólogos e antropólogos do período. Tal contexto,
como seria de se esperar, ecoou no âmbito literário, fazendo com que diversos escritores
se tornassem representantes dessas correntes cientificistas e expusessem em suas ginas
personagens e situações que exemplificassem e comprovassem as idéias de maior prestígio
do referido período. Assim o cenário literário viu a ascensão do Naturalismo.
O Naturalismo floresceu primeiramente na França na segunda metade do século
XIX, mas teve repercussão também em outros países europeus, nos Estados Unidos e no
Brasil. Seguindo os princípios cientificistas que lhe deram origem, o movimento tem como
base a filosofia de que as leis da natureza são válidas para explicar o mundo e de que o
comportamento do homem está sujeito a um condicionamento puramente biológico e
social. As obras naturalistas retratam a realidade de forma ainda mais objetiva e fiel do que
seu movimento predecessor, o Realismo. Nas artes plásticas o movimento não tem o
engajamento ideológico do Realismo, mas na Literatura e no Teatro mantém a temática dos
problemas sociais.
Influenciados pelo Positivismo de Auguste Comte e pela Teoria da Evolução das
Espécies de Darwin, os naturalistas enxergam e reproduzem a realidade sob uma ótica
totalmente científica. Sua visão de mundo é guiada por princípios como objetividade,
imparcialidade, materialismo e determinismo. Ao contrário da maioria dos movimentos
literários, o Naturalismo teve uma figura intelectual em sua liderança Émile Zola. O ano
de 1880 foi um marco para o movimento, pois foi o ano em que o escritor publicou a
6
coletânea de ensaios O romance experimental, onde define os princípios básicos do
movimento.
Nas artes plásticas, o Naturalismo retratou fielmente paisagens urbanas e
suburbanas, nas quais os personagens são pessoas comuns. O artista pinta o mundo como o
vê, sem idealizações e distorções, com o objetivo de expor posições ideológicas. Em
meados do século XIX, o grande interesse por paisagens naturais leva um grupo de artistas
a se reunir em Barbizon, na França, para pintar ao ar livre, fato considerado inovador na
época. Um dos principais artistas do grupo é Théodore Rousseau, autor de “Uma alameda
na floresta” de L’Isle Adam. Outro nome importante é Jean-Baptiste-Camille Corot. O
francês Édouard Manet é um nome fundamental do período, fazendo a ponte do Realismo e
do Naturalismo para um novo tipo de pintura que levará mais tarde ao Impressionismo.
Na literatura naturalista, a linguagem empregada nos romances é, em geral,
coloquial, simples e direta. Muitas vezes, para descrever vícios e mazelas humanas, são
empregadas expressões vulgares. Temas do cotidiano urbano, como crimes, miséria e
intrigas são uma constante. O estudo dos desvios do comportamento humano, marcado
pela influência exercida pelas noções de “raça” e “meio” sobre o indivíduo, foi uma das
mais importantes características do Naturalismo literário. Os personagens são tipificados: o
adúltero, o louco, o pobre, etc. O descritivismo na narrativa é excessivo. O maior expoente
do Naturalismo literário é o líder do movimento, Émile Zola, autor de Nana e Germinal.
No Naturalismo dramático, as principais peças são baseadas em textos de Zola,
como Thérèse Raquin, Germinal e A Terra. A encenação deste último constitui a primeira
tentativa de criar um cenário tão realista quanto o texto. Na época, o principal diretor de
peças naturalistas na França é André Antoine, que põe em cena animais vivos e simula
coisas como um pequeno riacho. Outro autor importante do período, o francês Henri
7
Becque, aplica os princípios naturalistas à comédia de “boulevard”, que ganha caráter
amargo e ácido. Suas principais peças são A parisiense e Os abutres. Também se destaca
o sueco August Strindberg, autor de Senhorita Julia.
Sendo o Brasil do século XIX um pólo receptor das idéias da França, seria apenas
uma questão de tempo para que as idéias naturalistas fossem incorporadas ao ideário
cultural brasileiro. No país, a tendência manifesta-se nas artes plásticas e na literatura. Em
relação ao teatro, várias peças francesas são encenadas no Brasil, porém não ocorre a
produção de textos nacionais. Nas artes plásticas estão presentes na produção dos artistas
paisagistas do chamado Grupo Grimm. Seu líder é o alemão George Grimm, professor da
Academia Imperial de Belas-Artes. Em 1884, após romper com a instituição, ele funda o
Grupo Grimm em Niterói, Rio de Janeiro. Outro naturalista importante é João Batista da
Costa, que tenta captar com objetividade a luz e as cores da paisagem brasileira. Na
literatura, o romance O mulato, de Aluísio Azevedo, é considerado o marco inicial do
Naturalismo no país. Trata-se da história de um homem culto, mulato, que vive o
preconceito racial ao se envolver com uma mulher branca. Outras obras naturalistas
marcantes são O bom crioulo, de Adolfo Caminha, A carne, de Júlio Ribeiro e sobretudo O
cortiço, também de Aluísio Azevedo.
Tendo as idéias cientificistas perdido seu prestígio no início do século XX, o
Naturalismo passou a ser visto como um movimento ultrapassado, e logo enfraqueceu.
Todavia, é nesse momento que surge uma pergunta: teria um movimento literário outrora
tão forte e influente simplesmente desaparecido sem deixar rastro ou, digamos, “herança”
alguma?
É sobre essa indagação que se debruça o presente estudo, que tem por proposta
defender a permanência de características do Naturalismo na literatura brasileira em alguns
8
autores do século XX. Para o estabelecimento de tal diálogo, foram efetuados três cortes,
privilegiando cada um deles um autor: João do Rio, relativo ao início do século XX; Nelson
Rodrigues, do meio, e Rubem Fonseca, do meio para o final do culo. Pede-se atenção
para o fato de que o segundo nome, Nelson Rodrigues, terá, na presente dissertação,
analisada sua obra dramática e não sua obra em prosa. A razão disso foi mostrar que o
contexto que proporciona a permanência ou retomada do Naturalismo no século XX não
teve impacto apenas na esfera do literário, mas também na esfera do dramático, e que o
Naturalismo também se manifestou no teatro ao encenarem-se peças baseadas em
renomadas obras do período.
Todas as análises feitas ao longo da presente dissertação são de cunho comparatista.
Nos três cortes propostos, além do levantamento de dados acerca de cada contexto
histórico-cultural, obras dos referidos autores são analisadas, e postas em contraponto com
pressupostos naturalistas e/ou obras do Naturalismo em si. Por fim, as diferenças e
particularidades do dito “neo-naturalismo” em relação ao Naturalismo do século XIX são
explicitadas, visando a deixar claro que a tendência aqui estudada não é uma mera imitação
do Naturalismo original, mas uma linha adotada por alguns autores que dialoga facilmente
com os valores sócio-culturais do século XIX, porém com evidentes particularidades
contextuais e estéticas. Por fim, no capítulo de conclusão, os estudos feitos ao longo do
texto são retomados e é adotado um posicionamento sobre a presença do dito “neo-
naturalismo” nas letras brasileiras do século XX.
9
1-O século XIX: um breve preâmbulo e alguns apontamentos.
Estudar a produção literária do período naturalista bem como o arcabouço teórico
que lhe serviu de justificativa ideológica é uma tarefa que, muito mais do que levar a uma
plena compreensão da visão de mundo do final do século XIX, pode conduzir a uma
compreensão de várias tendências e linhas literárias abordadas no decorrer do século XX.
Entretanto, o estudo da influência estética deixada pelo Naturalismo encontra em
um primeiro momento uma problemática, que é a de sua periodização. O século XIX, a
despeito do que algum manual de literatura possa afirmar, teve em verdade uma série de
correntes literárias conflitantes existindo simultaneamente, sobretudo quando se fala da
cena literária brasileira. O bloco Realista-Naturalista-Parnasianista, sempre em constante
oposição ao Romantismo, por vezes manifestou características peculiares deste movimento.
Esse processo é explicável por diversas razões, e uma das mais simples delas consiste no
fato de que, durante o processo de transição cultural do Romantismo para o
Realismo/Naturalismo/Parnasianismo houve um encontro, uma espécie de intersecção entre
os dois distintos momentos literários. Este entrecruzamento entre as diferentes correntes
fez-se notar em casos de escritores tanto de prosa quanto de poesia: diversos parnasianos
expressaram características românticas, e muitos proeminentes e renomados escritores
realistas ou naturalistas tiveram seu início de carreira sob o prisma romântico e não
perderam esse traço em seu amadurecimento literário. O embate entre objetividade e
subjetividade, outrora representado pela querela literária Classicismo versus Romantismo,
manteve-se mais intenso do que nunca neste período. Entretanto, além de ser um embate,
também foi uma espécie de troca essa relação entre as duas tendências.
10
Se a tempestade e ímpeto do Romantismo e posteriormente a veludosa voz
simbolista permanecem presentes e influentes no século XIX, como de então o grupo
Realista-Naturalista-Parnasianista adquirir tanta força? É simples: trata-se de uma questão
de mero prestígio sócio-político-cultural. O século XIX representou a ascensão de todo um
ideário cientificista revolucionário, o que redefiniu por completo a Biologia, a Sociologia e
a Antropologia, proporcionando o surgimento de ciências como o Positivismo e o
Darwinismo. Este novo panorama científico tem como principal aliada( e por que não dizer
também maior propagadora?) uma nova burguesia industrial-democrática ascendente
1
.
Idéias como a da evolução de Darwin (que soa tão idealizada para esses novos burgueses)
tornaram-se quase uma religião nesse período. O darwinismo, com suas teorias sobre a
seleção natural, passou a ser visto como a fonte de todas as respostas para a sociedade, e o
apoio burguês foi vital nesse ponto, pois possibilitou que essas idéias ganhassem força e se
propagassem. Dessa forma convergem, num segundo momento, a Biologia e outras ciências
- tais como a Sociologia e a Antropologia. No caso do Brasil, é válido ressaltar que estas
idéias tiveram ainda mais aceitação principalmente pelo fato de serem advindas da Europa,
pois até então era o Brasil grande “pólo receptor” das tendências do Velho Mundo.
O ideário que tomou de assalto a sociedade européia de 1870 em diante levou o
pensamento e a visão de mundo para um caminho estritamente materialista. O mundo
assistiu a doutrinas como o darwinismo e o determinismo tornarem-se uma febre entre as
elites, a ponto de todos os fenômenos de ordem social, econômica e política passarem a ser
analisados da mesma forma que a ciência tratava a biologia e a matemática, por exemplo.
Desta tendência floresce uma sociologia que explica a conduta e a psicologia humana
1
É interessante notar que o Romantismo foi feito pelos e para os burgueses, e que estes mesmos o rejeitaram
em um segundo momento em prol desse novo panorama cultural do século XIX.
11
orientadas pelo positivismo de Augusto Comte e propagadas por Spencer. A sociedade
torna-se um organismo vivo e pulsante em constante evolução, e a co-existência entre os
indivíduos passa a ser vista como uma luta de forças e classes sociais antagônicas, da
mesma maneira que animais selvagens brigam por seu território orientados por instinto. A
aplicação da metodologia das ciências naturais sobre as ciências sociais foi o acontecimento
mais determinante para a orientação sócio-cultural posteriormente desenvolvida. Logo, não
se pode estabelecer uma reflexão sobre a visão de mundo do homem do século XIX sem
levar em conta escolas cientificistas como o evolucionismo, o positivismo e o darwinismo
social. Politicamente falando, o evolucionismo possibilita à elite européia uma tomada de
consciência de seu poder, consolidado após a expansão capitalista. O evolucionismo
legitima ideologicamente a posição hegemônica do mundo ocidental. A então
“superioridade” da civilização européia passa a ser vista como uma verdade cientificamente
comprovada decorrente de “leis naturais” que determinariam os rumos da história dos
povos.
Para a elite intelectual brasileira assimilar tais idéias implica assumir um quadro de
“inferioridade” perante a Europa. As idéias evolucionistas fornecem para os intelectuais
brasileiros material para estudar o “atraso” do país e os maiores argumentos para justificar
tal quadro são encontrados nas noções de “meio” e “raça”. A escolha de tais fatores deve-se
ao fato de que são estes justamente os fatores que exprimem o que de específico na
sociedade brasileira em contraponto com a sociedade européia, pois um pensamento
surgido num contexto europeu seria inaplicável em seu formato original num contexto
latino-americano. Ser brasileiro, assim,como afirma Renato Ortiz “significa viver em um
12
país geograficamente diferente da Europa, povoado por uma raça distinta da européia”
2
. É
bastante claro que, com a plena absorção desse tipo de discurso pelos pensadores
brasileiros, fica a sociedade européia em uma posição extremamente conveniente e
vantajosa, pois é afirmada dessa forma oficial e cientificamente a superioridade do
colonizador perante o colonizado.
De acordo com esta perspectiva, toda e qualquer forma de estudo da sociedade
brasileira do culo XIX passa a ser feita levando-se em consideração o papel que tem a
influência do meio sobre o indivíduo. A idéia essencial darwinista de que as circunstâncias
externas determinam a natureza de qualquer ser vivo amplia-se a ponto de a análise dos
acidentes geográficos, do ambiente e da natureza propiciar não apenas o delineamento dos
caracteres psicológicos e o comportamento social do brasileiro, mas também a situação
econômica e política do país. O meio seria o maior motivo para o estabelecimento de uma
economia escravagista, da legislação industrial, do sistema de impostos e de outros aspectos
da sociedade daquela época. Isso seria, vendo a questão grosso modo, equivalente a
estudar-se o habitat para se compreender o comportamento do animal “homem”. Um bom
exemplo pode ser visto na interpretação do inglês Buckle, o qual, observando que o Brasil
teve as mesmas condições geográficas e geológicas para se desenvolver que tiveram os
países europeus, atribui aos ventos alísios a “culpa” pelo atraso” em seu
desenvolvimento. É notável ver como os intelectuais brasileiros aceitam tal interpretação,
chegando a ampliá-la com estudos e outras supostas “conclusões” acerca da relevância da
raça no estudo da personalidade do indivíduo. Essas formas de interpretação mostram-se
então incisivas para a compreensão da identidade nacional do povo brasileiro. De acordo
2
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo, Brasiliense, 1994. p. 17.
13
com essa ótica determinista, vê-se, como afirma Renato Ortiz, que “clima e raça explicam a
natureza indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e inseguras da elite intelectual, o
lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato”
3
.
Silvio Romero nesse período considera o estudo da raça a base fundamental de toda
a história, de toda a política, de toda a estrutura social, de toda a vida estética e moral das
nações. De acordo com o autor, a história do Brasil é:
Antes a história da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que
predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias. Os operários deste
fato inicial têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira. Tudo quanto
contribuído para a diferenciação nacional deve ser estudado, e a medida do mérito dos escritores é este
critério novo. Tanto mais um autor ou um político tenha trabalhado para a determinação do nosso caráter
nacional, quanto maior é seu merecimento. Quem tiver sido um mero imitador português, não teve ação, foi
um tipo negativo.
4
Nesse momento se estabelece a idéia da constituição do Brasil através da união do
branco, do negro e do índio. A verdadeira produção cultural brasileira somente tem sua
genuinidade afirmada enquanto produto de uma nova raça gerada dessa união, uma raça
supostamente “brasileira”. Todavia, a despeito da defesa dessa miscigenação(um tanto
quanto nacionalista sob certo ponto de vista), as ciências sociais posicionam o branco no
topo da pirâmide, e consideram o negro e o índio como “obstáculos” para o
desenvolvimento social brasileiro. Dentro dessa corrente de pensamento embasado
puramente no conceito da raça entra então em cena um elemento decisivo para a
compreensão da identidade nacional brasileira: o mestiço.
Os teóricos sociais desse período encontram-se logo num verdadeiro dilema: a
elaboração de uma identidade nacional era necessária, contudo, devido às crenças
3
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo, Brasiliense, 1994. p. 16.
4
ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira., 5
a
ed. Rio de Janeiro, Liv. José Olympio Editora, 1953,
vol. 1, cap. 1, p. 55-56
14
deterministas e evolucionistas européias, o quadro desenhado por estes não era favorável e
nem mesmo otimista para o Brasil. O mestiço, eleito símbolo da identidade nacional, era
visto como portador de vários defeitos morais, psicológicos e sociais. O único ponto
favorável da mestiçagem é que esta possibilita ao branco europeu fixar-se e “aclimatar-se”
nos trópicos. Vê-se claramente que o ideal da identidade nacional é uma utopia a ser
realizada apenas com a “purificação” -- leia-se “branqueamento” -- da sociedade brasileira.
Um ponto muito importante a ser ressaltado é a defasagem entre as idéias européias
de supremacia racial e sua adoção no Brasil. No fim do século, as teorias raciais sofrem
uma reviravolta devido ao grande número de críticas de diversos estudiosos de
Antropologia e Ciências Sociais. Os trabalhos dessa época já consideravam a questão da
raça aplicável ao âmbito da zoologia, mas não ao âmbito da Sociologia ou da Antropologia.
nessa época substitui-se o conceito de raça por outro mais amplo: o conceito de
“cultura”. É interessante notar, todavia, que no momento em que essas teorias começam a
perder força na Europa elas se mostram hegemônicas em nosso país. Essas teorias foram
abraçadas de acordo com a realidade em que viviam os intelectuais da referida época. Em
face de questões como a abolição da escravatura, a transição de um sistema escravocrata
para um trabalhista, o problema da imigração e a consolidação da República, a elite
intelectual adota uma corrente de pensamento que reflete puramente o impasse da
construção dessa identidade nacional ainda não consolidada. As teorias raciais (que
colocam o branco acima do negro e dos mestiços), aliadas a uma forte política de
imigração, refletem a tentativa de uma meta de “branqueamento” da sociedade, buscando,
dessa maneira, uma espécie de “Brasil ideal” para as elites.
Para se estabelecer uma reflexão acerca da relação do conceito de “raça” com a
idéia do Brasil enquanto “espaço imitativo” dentro do contexto do século XIX é válido
15
retomar as idéias do sociólogo Manuel Bonfim. Segundo o referido autor, a cultura
brasileira não pode ser vista individualmente, mas apenas como parte de um todo chamado
“América Latina”. Sua visão internacionalista o destaca de seus contemporâneos. Seus
estudos analisam as relações entre as nações hegemônicas e as dependentes comparando as
sociedades a organismos biológicos. Seus princípios básicos são: 1) As sociedades existem
enquanto organismos similares aos biológicos; 2) Existem leis orgânicas que determinam
sua evolução e 3) A análise da nacionalidade depende do meio em ação combinada com seu
passado. Desta analogia conclui Bonfim que as sociedades latino-americanas sofrem de
uma espécie de “doença”, definida como uma inadaptação do organismo a certas condições
especiais. A “cura” estaria no conhecimento da história da doença. Partindo dessa metáfora,
Bonfim afirma que o sociólogo não pode ignorar em seu trabalho a necessidade de
conhecer o passado das nações do continente, que assim ele terá subsídios para delimitar
o motivo desta “inadequação”. É com essas idéias que Manuel Bonfim tece uma teoria
acerca do imperialismo baseada na noção de “parasitismo social”: 1) O parasita possui uma
fase depredadora, onde ataca sua vítima; 2) Durante o período parasitário, o parasita vive
das energias de seu hospedeiro; 3)Após certo período longo de parasitismo, tem-se um
atrofiamento dos órgãos do animal parasita. A conclusão do estudioso é que uma sociedade
que vive parasitariamente das outras tende a degenerar-se e a involuir. Manuel Bonfim usa
tal metáfora para explicar o declínio de Portugal e Espanha, todavia o autor se esquece que
o progresso das demais nações européias deve-se, sobretudo, à expansão colonialista,
exemplo este que sua análise biológica não considera.
Analisar o Brasil sob a ótica do parasitismo social implica considerá-lo em sua
inter-relação com a metrópole portuguesa. Entretanto, na medida em que o colonizado é
educado (ou “parasitado”) pelo colonizador, aquele pouco a pouco torna-se como este. As
16
mazelas do parasita transmitem-se, logo, para o parasitado. No caso do Brasil, Manuel
Bonfim afirma que o povo brasileiro herdou um senso de “conservantismo” e uma “falta de
espírito de observação”. O conservantismo, diretamente herdado do colonizador, o qual
procura sempre manter a tradição que lhe dá poder, “explica” segundo o autor a dificuldade
que o brasileiro tem de encarar qualquer projeto de mudança social. Nesse ponto o
estudioso dirige-se principalmente a políticos e intelectuais, que ele julga essencialmente
conservadores. A falta de espírito de observação levaria a uma incapacidade do povo
brasileiro de analisar e entender sua própria realidade, o que proporcionaria a imitação
desenfreada do estrangeiro, por exemplo. A teoria de Manuel Bonfim é discutida por
muitos outros pensadores, dentre os quais Renato Ortiz
5
, que questiona esse caráter
“imitativo” do povo brasileiro, dada a comentada defasagem existente entre o momento
da produção cultural das idéias raciológicas e sua adoção no país.
É nesse momento que a burguesia firma uma espécie de “pacto intelectual” com
esse ideário cientificista. Assim, surge um tipo de romance que legitima tais idéias
calcando-se nas noções de raça e de meio, um tipo de romance repleto de personagens e
situações que servem como exemplos das teorias evolucionistas e cientificistas em voga.
Assim concretiza-se nas letras o Naturalismo. O movimento teve sua gênese na França,
tendo como maior nome Émile Zola. Com sua obra intitulada O romance experimental,
Zola elabora uma teoria que aplica ao romance as teorias cientificistas em voga (a saber: o
positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer). O método do
escritor passa a ser o mesmo do cientista. O escritor naturalista, orientado pelo
determinismo, escreve obras que não passam de espelhos da sociedade sob a justificativa
científica. Os homens que permeiam as páginas naturalistas não são nada além de
5
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional.
17
organismos orientados por leis puramente bioquímicas, pela noção de hereditariedade e por
seu meio social. A busca pela verdade da forma mais objetiva e empírica possível e o asco
declarado pelo sentimentalismo romântico eram desenvolvidos em uma narrativa lenta e
bastante detalhista, tendo como maior foco, principalmente, as classes mais pobres da
sociedade. Em suma: o valor estético da obra literária lugar a um valor experimental.
Sendo o Brasil neste período um espelho do ideário cultural francês, não tardou muito para
que o estilo tivesse adeptos tropicais. Os maiores nomes do gênero foram Adolfo Caminha,
Inglês de Souza e Aluisio Azevedo, do qual se destaca a considerada obra-prima do
Naturalismo brasileiro, O Cortiço.
O Cortiço é uma obra dotada de um caráter “estético-experimental” único, já
que possui uma carga ideológica muito forte e ao mesmo tempo, do ponto de vista literário,
sustenta-se de maneira coesa em sua narrativa. A idéia da raça como fator determinante na
personalidade de um indivíduo faz-se bastante presente ao longo da obra, sempre
favorecendo de alguma maneira a superioridade da raça branca. Peguemos como exemplo
para um início de discussão dois personagens portugueses, Jerônimo e João Romão.
Jerônimo é um homem extremamente responsável, trabalhador, fiel à esposa e devotado pai
de família. Todavia, ao apaixonar-se perdidamente pela mulata Rita Baiana, Jerônimo muda
totalmente seus hábitos: passa a beber, fumar, freqüentar os pagodes, torna-se irresponsável
e, por fim, abandona a esposa e a filha. Essa transformação do personagem traz à tona
muitos elementos que evidenciam o compromisso da obra com a ideologia evolucionista e
positivista do referido período. Num primeiro momento tem-se a oposição entre Jerônimo,
um personagem branco europeu dotado de um caráter moral visto como quase perfeito, e
Rita Baiana, uma mulata brasileira, caracterizada ao longo da obra como extremamente
promíscua, lasciva, dada a pagodes e festas. Ao se aproximar de Rita Baiana, Jerônimo
18
adquire as características comportamentais dos indivíduos do meio em que Rita vive.
Outrora superior, “o português abrasileirou-se”, como nos diz o próprio narrador, e
“inferiorizou-se” ao equiparar-se ao mulato brasileiro. João Romão ao leitor um
exemplo oposto: enquanto Jerônimo aproxima-se do elemento mestiço brasileiro, João
Romão apenas se afasta de Bertoleza, a negra escrava que lhe servia por anos e que também
era sua amante. João Romão ascende socialmente ao afastar-se de Bertoleza e decidir casar-
se com uma moça branca como ele, enquanto Jerônimo decai socialmente ao abandonar a
esposa branca e juntar-se a uma mulata. Esses dois exemplos ilustram o quanto os
intelectuais do século XIX não crêem na possibilidade de desenvolvimento do Brasil, já que
em nenhum deles o elemento brasileiro (representado pelo mulato) opera alguma forma de
evolução social.
O Naturalismo, logo, expõe a problemática da identidade nacional do Brasil do
século XIX. O intelectual desse período, assimilando as teorias raciológicas advindas da
Europa, assume uma postura totalmente descrente em relação ao progresso brasileiro, pois,
de acordo com a ideologia social da época, o mestiço não era dotado da “predisposição para
o progresso sócio-econômico” que tinha o branco. A metáfora, presente na obra de Aluísio
Azevedo, reflete o impasse que se via no pensamento brasileiro de então: na transição de
uma economia escravagista para a capitalista, importava-se mão-de-obra européia com o
intuito de “branquear” a população brasileira. No meio dessa transição delicada floresce,
conforme mencionado no presente trabalho, o mito do Brasil como espaço de união de
três raças (o negro, o índio e o branco), constituindo assim o país como a nação da
mestiçagem”. Entretanto, ao mesmo tempo que o pensador brasileiro assume o mestiço
como grande representante da identidade nacional, este mesmo pensador assimila as teorias
que pregam que esse mestiço é inferior ao branco. O resultado dessa combinação de idéias
19
é um pensamento pessimista do ponto de vista sócio-político que não permite horizonte
algum em termos de desenvolvimento do país. Como visto em O Cortiço, a literatura
naturalista tem como proposta assumir e difundir tal discurso ao máximo.
Apesar de ter inicialmente uma proposta de apenas servir os propósitos da ciência, o
Naturalismo brasileiro enquanto experiência estético-literária conseguiu ser muito mais que
isso, especialmente se atentarmos para o fato de que, até então, não era algo comum na
Literatura brasileira a presença de negros ou mestiços como personagens principais em uma
obra literária. Até antes da abolição da escravatura, a Literatura Brasileira muito pouco
mencionou a existência do negro. O período romântico já havia abordado a miscigenação
racial ao tratar da relação do branco com o índio (vide, por exemplo, Iracema, de José de
Alencar) mas somente em sua terceira fase, com Castro Alves, é que o elemento negro é
mencionado com relevância. O negro faz-se presente nas letras do Realismo, mas sem
grandes alardes, sempre como um personagem secundário, um elemento de pano-de-fundo
na trama--em geral, um escravo. Sobre esse reconhecimento do negro pela literatura, diz
Renato Ortiz:
Como fato político, a Abolição marca o início de uma nova ordem onde o negro deixa de ser mão-de obra
escrava para se transformar em trabalhador livre. Evidentemente, ele será considerado pela sociedade como
um cidadão de segunda categoria; no entanto, em relação ao passado tem-se que a problemática racial torna-se
mais complexa na medida em que um novo elemento deve obrigatoriamente ser levado em conta. O negro
aparece assim como fator dinâmico na vida social e econômica brasileira, o que faz com que,
ideologicamente, sua posição seja reavaliada pelos intelectuais e produtores de cultura. Para Silvio Romero e
Nina Rodrigues, ele adquire uma importância maior que a do índio(...), ou, como dirão alguns: “o negro é o
aliado do branco que prosperou”
6
O Naturalismo, logo, além de abrir possibilidades de mostrar o negro como um
personagem com maior relevância dentro da obra, representa a primeira manifestação
literária do Brasil em que este aparece como um espaço de miscigenação de três raças, além
6
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo, Brasiliense, 1994. p. 19
20
de abordar especificamente o mulato em diversos momentos, mesmo que no caso em
questão esse cruzamento racial seja analisado por uma ótica negativa.
De um ponto de vista puramente cronológico, o Naturalismo não durou muito em
nossas terras: teve seu início “oficial”
7
marcado com a publicação de O Mulato, de Aluisio
Azevedo, em 1881, e poucas décadas depois, já no início do século XX, o movimento
tinha suas premissas cientificistas sendo altamente postas em xeque. Tem-se assim a (falsa)
impressão de que o movimento Naturalista foi meramente uma espécie de “fatia” do
período Realista e que, após seu desprestígio no século XX, não teria sido nada mais do que
uma escola do passado, uma lembrança.
7
Apesar de haver um consenso de que o Naturalismo no Brasil foi introduzido com a referida obra de Aluisio
Azevedo, o movimento ensaiava seus primeiros passos em terras tropicais através das letras de outro
célebre escritor naturalista: Inglês de Souza. O Cacaulista (1876), História de um Pescador (1877) e O
Coronel Sangrado (1877) - foram publicados quando os meios literatos ainda eram dominados pelo
Romantismo.
21
2-O século XX: A herança naturalista nas letras modernas.
2.1- O pré-modernismo brasileiro.
Como comentado nas páginas anteriores, as teorias que comparavam o homem a
um animal cujo comportamento é determinado pelo seu meio e aproximavam a sociedade a
um organismo biológico vivo começam a ser postas em xeque no apagar das luzes do
século XIX quando os conceitos de “raça” e meio”, imprescindíveis para a análise
naturalista, começam a ser paulatinamente questionados e substituídos por noções mais
amplas, tais como a de “cultura”. Como é pertinente no processo literário em si, quando o
ideário cultural que base a uma escola literária começa a perder sua força, uma nova
corrente de idéias surge para negá-la. Assim como o Naturalismo negou o Romantismo,
surge nesse contexto finissecular o movimento que seria conhecido como Decadentismo, o
qual se opunha fortemente ao Naturalismo, afirmando que a arte não deve ser uma imitação
da vida, e sim que a vida deve ser uma imitação da arte.
“Arte” é uma das palavras-chave para uma compreensão do Decadentismo. A
descrença na ciência e a desilusão com o mundo fazem do artista decadentista aquele que
a arte como a mais perfeita forma de salvação humana. Em seu culto a toda forma de
arte, o decadentista crê no culto de tudo que é belo (uma “apologia do belo”, como faziam
os gregos). Glorificar e reviver as artes, em especial a clássica, e construir dentro destas seu
próprio mundo, sua “Torre de Marfim”, possibilita ao artista decadente resistir a todas as
incongruências políticas, sociais e econômicas do século XIX, bem como à visão de mundo
reificante e cientificista do período em questão. Essa resistência encontrou inspiração
ideológica em nomes como Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard e, num momento
22
posterior, Bergson. Em termos literários foi também o Decadentismo profundamente
influenciado pela poesia de nomes como Edgar Allan Poe e Isadore Ducasse.
Entretanto a mais importante inspiração literária para o movimento encontra-se no
livro Às avessas, escrito por Huysmans e publicado em 1884, e visto por muitos como a
grande “Bíblia do movimento decadentista”. A obra de Huysmans expressa os ideais do
homem decadente através do personagem principal, des Esseintes, um dândi, figura esta
que seria posteriormente escolhida como o perfeito estereótipo do homem decadentista. Des
Esseintes vive no final do século XIX sem conseguir compreender o processo de
modernização vigente, a crescente coisificação” do homem e os valores do capitalismo,
passando por isso a viver sua vida recluso do mundo e à base de seus próprios sonhos,
todos alimentados pelo intenso culto ao belo e a veneração pelas artes clássicas.
A agressividade anárquica, o gosto pelo satanismo, a perversão, a morbidez, o
horror à banalidade do cotidiano, a alucinação, a toxicose e a nevrose são as marcas do
Decadentismo, um estado de sensibilidade e atitude existencial que, apesar de intenso e
marcante, não constituiu uma doutrina estética coesa. É justamente essa falta de coesão
estética do movimento que, interessantemente, nos leva a observar que o Decadentismo não
rompeu com o Naturalismo em certos contextos literários específicos. Um exemplo disso
está em Portugal: por estar já impregnado de características românticas, o movimento
Realista/Naturalista não simbolizou para o Decadentismo português um movimento a ser
combatido
8
. Como já comentado no início do presente texto, a Literatura produzida no
Brasil também teve momentos marcados por esse caráter híbrido. O Decadentismo
assimilou um pouco do “rastro” Naturalista, fenômeno que pode ser visto no exemplo de
8
Como já afirmado aqui no presente trabalho, o mesmo fenômeno ocorre no Brasil, mas em um nível não
assumido.
23
um autor brasileiro que, pelo menos por um momento, produziu uma literatura com sólidas
bases decadentistas, mas com perceptíveis ligações com a narrativa naturalista. Trata-se de
Paulo Barreto, mais conhecido pelo grande público pelo pseudônimo de João do Rio.
2.2-João do Rio- O cronista decadentista e o crítico naturalista.
É bastante prudente relembrar as palavras de Antonio Candido sobre João do Rio ao
defini-lo como um “jornalista adandinado, procurando usar a literatura para ter prestígio na
roda elegante(...)
9
”. Sua relação com o Decadentismo reflete-se além de sua própria
produção literária, que João do Rio foi o primeiro tradutor brasileiro de Oscar Wilde,
grande ícone dos decadentistas. O contexto no qual se insere o autor é o de um Rio de
Janeiro no início do século XX. O urbanismo massacrante ocorrido no final do século XIX
não cumpre as promessas de uma vida melhor, e as mudanças políticas não trouxeram o tão
aguardado progresso. No período de 1902 a 1906, a Cidade Maravilhosa passa pelo radical
e polêmico programa de urbanização de Rodrigues Alves. É nesse ínterim, mais
especificamente em 1903, que a Gazeta de Notícias começa a publicar os textos do cronista
urbano João do Rio. É interessante ver nesses primeiros artigos críticas vorazes aos
movimentos romântico e simbolista, além de um posicionamento absolutamente contrário
ao Decadentismo wildeano em prol de uma visão de mundo realista-naturalista e uma
9
CANDIDO, Antônio. 1980. "Radicais de ocasião", em CANDIDO, Antônio, Teresina, etc. Rio de Janeiro:
Paz e Terra.
24
abordagem totalmente cientificista da realidade.
10
Nota-se então uma ligação entre o
pensamento naturalista e a produção literária de João de Rio no início de sua carreira que
deixaria marcas em seus textos subseqüentes. Suas obras são predominantemente
relacionadas ao espaço urbano, ao desenvolvimento do progresso e da chamada
“civilização”. Entretanto, João do Rio não teve como propósito exaltar esse processo de
urbanização, e sim criticá-lo ao descrever em suas crônicas e contos as discrepâncias e os
berrantes disparates desse progresso. Dentro dessa proposta, cria João do Rio uma
atmosfera única na qual contrasta o glamour de um Rio de Janeiro que tenta adaptar-se a
um modelo parisiense com personagens de comportamento sombrio, bizarro, muitas vezes
altamente patológicos. Um exemplo a ser destacado é o do Barão Belfordt, presente em
vários momentos em sua obra de contos Dentro da noite.
O Barão Belfort, um "velho dândi sempre impecável que diz as coisas mais
horrendas com perfeita distinção" (p. 10), é o perfeito estereótipo de um decadentista dos
trópicos. Aristocrata, amante das artes e com um comportamento que por vezes beira a
futilidade e a excentricidade, o Barão Belfordt remete o leitor a verdadeiros modelos da
estética decadentista tais como Des Esseintes de Ás avessas, do citado J.K Huysmann, e
Lorde Henry, de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. O dândi encara a arte, em
muitos casos a arte greco-romana, como uma espécie de “válvula de escape” do
mundo.Todavia, no caso desse dândi carioca, não é apenas a arte clássica que pode se
enquadrar nessa concepção “redentora”. O Barão Belfort manifesta em sua personalidade
10
Vale lembrar que as premissas acerca da raça e do meio, apesar de já defasadas na Europa no início do
século XX, seriam oficialmente questionadas no Brasil a partir de 1929/30 com a publicação de obras-
mestras na antropologia e sociologia brasileiras como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda.
25
outras necessidades que caminham notoriamente entre o bizarro, o sádico e, muitas vezes, o
patológico. Vejamos o exemplo dado ao leitor no segundo conto da obra, “Emoções”.
O conto inicia-se com o velho Barão jogando cartas com “um moço febril, que à
lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez” (p.06). O jovem, de nome Osvaldo,
tem a pele bem pálida e demonstra tensão, nervosismo e grande interesse no jogo. Após o
término da partida, Belfort, em conversa com o personagem que narra o conto, afirma que
Osvaldo é seu objeto de estudo. Através de sugestão e manipulação, o Barão faz com que
um rapaz que odiava o jogo se torne absolutamente viciado e dependente deste. Quando
indagado se queria perder o rapaz, Belfort afirma:
Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as
emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes
emoções de em torno. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a
mais delicada das observações e a mais fina emoção.(p.06)
O Barão Belfort então inicia o relato do chinês Praxedes, um “caso admirável”.
Homem responsável, Praxedes é descrito como um homem honesto e íntegro que
trabalhava o dia todo e todas as noites voltava para os braços de sua esposa, Clotilde.
Belfort o define como “legislativamente moral”, sem um vício sequer. Num jantar na casa
do Barão, Praxedes é convidado a jogar cartas com seu anfitrião. Aí, então, um novo
mundo se abre para Praxedes, e ele pouco a pouco se envolve cada vez mais na jogatina até
chegar ao ponto do vício absoluto. Sobre essa transformação, o Barão diz a seu interlocutor:
“Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o
homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe
sempre iminente, de um abismo em vertigem.”(pág. 07)
26
Belfort acompanha de perto toda a decadência da vida de Praxedes. Devido ao
vício, o pobre chinês perde seu emprego e vende a mobília de sua casa, as jóias da esposa,
várias peças de roupa, muda-se para uma casa menor e ainda aluga para estranhos sua ante-
sala. Todo o dinheiro que passava por suas mãos ia para o jogo. Praxedes chega ao ponto de
oferecer a própria esposa ao Barão em troca de dinheiro para a jogatina. O clímax da
história se quando Praxedes, deparando-se com sua situação desesperadora, comete
suicídio na frente de sua esposa dando repetidas cabeçadas na parede. Ao término de seu
relato, o Barão então conclui para seu interlocutor: “Preciso sentir vendo os outros sentir,
(...) assim tenho emoções. Garanto-te que o Osvaldo acaba como o chinês de Macau,
mas por outro meio —com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir
demais !”(p. 09)
Antes de vir para o Brasil e conhecer o Barão Belfort, Praxedes era um homem bem
diferente, sem vício algum, marido dedicado e homem exemplar. A influência do meio e
seu contato com o Barão Belfort (que num primeiro momento alimenta e fascina-se com o
vício crescente de Praxedes) culminaram em seu fim trágico. De acordo com a ótica
naturalista, um ser é determinado pelo meio onde vive e pelos outros que habitam esse
mesmo meio. O caso de Praxedes enquadra-se perfeitamente nessa lógica, que seu cio
se desenvolveu num ambiente diferente de seu ambiente de origem, Macau. Foi estando
nesse novo meio (o Brasil, mais especificamente a metrópole do Rio de Janeiro) e tendo
contato com outros habitantes desse meio (o Barão Belfort, principal responsável pela
queda moral de Praxedes e os demais freqüentadores do clube de jogos onde o Barão o
levou) que Praxedes mudou e se degradou.
Um caso parecido pode ser visto numa obra que é considerada por muitos críticos
literários como a grande bíblia do Naturalismo no Brasil: O cortiço, de Aluísio Azevedo.
27
Nesta obra tem-se Jerônimo, português que veio residir no cortiço, o qual ostenta valores
morais elevados: é responsável, trabalhador, devotado marido e pai, fiel à esposa, honesto e
sério. Jerônimo também não possui cio algum. Todas as noites Jerônimo canta na sacada
de sua casa canções que o remetem à sua terra natal. Porém, ao apaixonar-se pela lasciva e
promíscua mulata Rita Baiana, o português sofre gradativas e radicais mudanças: passa a
beber e a fumar, torna-se um marido infiel, começa a manifestar características de preguiça
e indolência no trabalho, e troca as canções de amor à sua pátria pelos pagodes do cortiço.
Por fim, no auge de sua degradação, Jerônimo abandona sua esposa e sua filha para viver
com Rita Baiana. Dessa forma “o português abrasileirou-se”, como sacramenta o narrador
da obra. Tanto no caso de Praxedes quanto no caso de Jerônimo tem-se um homem que
sofre sérias mudanças comportamentais e morais por influência de um meio diferente de
seu meio de origem. A despeito das semelhanças, particularidades a serem comentadas
em cada exemplo: o caso do português do cortiço possui apenas personagens de classe
baixa envolvidos; no caso do chinês da obra de João do Rio um personagem-chave
pertencente à classe alta, o Barão Belfort. Esse dado é importante se atentarmos para o fato
de que boa parte das obras naturalistas aborda preferencialmente personagens pobres,
enquanto o decadentismo tem como um de seus principais símbolos o dândi, que é um
elemento que faz parte de uma aristocracia.
Analisando o personagem Barão Belfort, percebe-se neste um certo caráter de
“dândi bizarro”. Assumidamente um homem desprovido de emoções, Belfort necessita que
outros as sintam e apenas por testemunhar essas emoções ele conseqüentemente as sentirá.
Para tal, Belfort não se importa em estimular o vício em um ser humano e levar este à
morte (vide o último parágrafo do conto, no qual o Barão revela sua sádica expectativa de
que Osvaldo tenha o mesmo fim de Praxedes). A necessidade do Barão Belfort por
28
emoções alheias é comparável à necessidade de qualquer dândi de ter a arte como sua
redenção perante um mundo incompreensível demais para ele. “Experimentos” como o de
Praxedes são sua obra de arte. O termo “experimento” não é aqui empregado em vão, tendo
em vista o modo assumidamente empírico com que Belfort os casos de Praxedes e de
Osvaldo. Destaquemos, por exemplo, a passagem em que o velho Barão narra como
observou e estudou minuciosamente os hábitos de Praxedes: “O Praxedes saía pela manhã,
trabalhava, voltava para o jantar, e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício,
nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o,
analisei-o. Nada. Legislativamente moral.” (p. 07)
O discurso do Barão assume características nitidamente empiristas: análise,
observação e conclusão acerca de um determinado espécime, no caso, um ser humano. Sua
conclusão sobre o caso do chinês possui até mesmo alguma base racista (Só os chineses
morrem às cabeçadas por sentir demais!”, p.08), o que é um ponto em comum com o
ideário naturalista. Entretanto, como já afirmado, ainda se trata de um dândi, o que também
o remete ao decadentismo. Ambas as correntes podem ser observadas no personagem num
comportamento que mistura o refinamento e a classe com o bizarro e o doentio.
A forma como João do Rio aborda a relação entre o homem e o sexo em alguns de
seus contos também permite-nos estabelecer um contraponto entre sua escrita e a escrita
naturalista. É bastante recorrente no imaginário naturalista a visão do homem (em geral, um
pobre ou um mestiço) como portador de taras sexuais e desvios comportamentais que o
inabilitariam de ser considerado como parte do restante da sociedade. Destaca-se aqui o
conto “História de gente alegre”, atentando para as personagens Elza e Elisa.
Elza é descrita como uma mulher jovem e muito bela, uma “prostituta de luxo”
muito cobiçada. Elisa é uma mulher feia, possuidora de “dois olhos mortos e velados” e de
29
um “corpo de andrógino morto”(p.10). Os homens em geral sentem repulsa por Elisa.
Segundo o Barão Belfort, narrador desse estranho caso, Elisa é detentora de muitos cios,
“desde o abuso do éter até o unissexualismo”
11
(p 10). Elisa nutre forte interesse por Elza e
sempre a observa e a deseja com seu olhar mórbido. Elza sente repulsa e medo de Elisa.
Segundo o velho dândi a rotina de mulheres que levam a vida de Elza acaba por afetar-lhes
seriamente o comportamento, levando estas mulheres na maioria das vezes a adquirirem
“vícios bizarros”. “Elas ou tomam ópio, ou cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda
assim, nos paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas! mais malucas no
manicômio obrigatório da luxúria”. Diz o Barão: (p. 11)
Apesar de descrita pelo Barão como uma mulher pura, um “animal sem vícios”,
Elsa ainda assim vê-se imersa em forte crise de nervos, assim como as demais mulheres.
Em diálogo com o Barão, Elza lhe confessa: “Diga-me, barão, não um meio da gente se
ver livre disto? Não posso, não tenho mais liberdade, não sou eu. Hoje, por exemplo,
tinha uma imensa vontade de chorar.” ( p.12)
O Barão Belfort então lhe aconselha a ter “uma paixão ou um excesso, um belo
rapaz ou uma extravagância” para que Elza se cure do problema diagnosticado pelo Barão
como uma “surmenagem
12
do artifício”. É nesse momento que Belfort a incentiva a atender
os desejos da medonha Elisa. Ambas protagonizam então cenas de lesbianismo em um
salão lotado. Elisa morde o pescoço de Elsa com voracidade, para asco desta. O Barão
nesse momento da narrativa salienta bem o quanto essa cena transformou-se em um
espetáculo para os homens presentes. Na madrugada, ambas sobem para um quarto, e horas
depois um grito se escuta na pensão. Quando a porta é aberta, a cena que se vê é chocante:
11
Homossexualismo.
12
Exagero
30
O quarto. cheio de sombra, mostrava, em cima das poltronas, as sedas e os dessous
13
de renda da Elsa. Um
frasco de éter aberto, empestava o ambiente. A Elisa, o corpo da Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os
braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros
amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d’Aragon, as pernas em compasso, a face contraída, ainda
sentada agarrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. Era Elisa que rouquejava. Elsa
estava bem morta, o corpo já frio.(pág 13)
Um exemplo que possui pontos em comum pode ser observado na obra O bom
crioulo, de Adolfo Caminha. O romance gira em torno do relacionamento homossexual
entre dois marinheiros, Amaro e Aleixo. Amaro é um forte homem negro de boa índole
que, fugindo da escravidão, entra na Marinha. É nesse momento que este conhece Aleixo,
um jovem grumete branco e frágil. Apesar do romance existente entre os dois homens,
Aleixo envolve-se com uma prostituta portuguesa chamada Carolina, despertando assim a
ira de Amaro, o qual, ao término da obra, mata Aleixo no meio da rua tendo vários
pedestres como expectadores. O detalhismo do narrador ao contar a retirada do corpo do
grumete assassinado é impressionante:
Aleixo passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a cabeça pendida para
trás, roxo, os olhos imóveis, a boca entreaberta. O azul-escuro da camisa e a calça branca tinha grandes
nódoas vermelhas. O pescoço estava envolvido num chumaço de panos. Os braços caiam-lhe, sem vida,
inertes, bambos, numa frouxidão de membros mutilados. (pág 73)
O homossexualismo é um tema pertinente em algumas obras do período naturalista,
em geral abordado como um desvio comportamental proveniente de uma mente com
propensões para alguma compulsão ou patologia. Vale recordar que em geral, dadas as
justificativas de ordem determinista defendidas pelo naturalista, patologias e desvios
comportamentais são associados a fatores como o da “raça”.Vide o caso de Amaro, o Bom-
Crioulo: não foi à toa que na obra houve um assassinato cometido por um homem negro e
homossexual. O mesmo houve em “História de gente alegre”, pois uma mulher
homossexual, Elisa, também é autora de um assassinato brutal. Ainda remetendo a temas do
13
´roupas de baixo´ em francês.
31
naturalismo, o estudo da psicologia feminina também se faz freqüente, muito influenciado
pelos casos de histeria diagnosticados por Sigmund Freud. Sob esse aspecto o conto de
João do Rio se enquadra perfeitamente nessa lógica, já que no referido texto o Barão André
de Belfort, antes de narrar a seu interlocutor o caso da morte de Elza, traça um pequeno
perfil da psicologia feminina, no caso, especificamente falando de prostitutas:
Você de certo ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por
enervamento de não ter o que fazer? Quase todas essas criaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são,
como direi? as excedidas das preocupações. Estão sempre enervadas, paroxismadas. O meio é atrozmente ar-
tificial, a gargalhada, o champanhe, a pintura encobrem uma lamentável pobreza de sentimentos e de
sensações.Todas amam de modo excepcional, jogam excessivamente, embriagam-se em vez de beber, põem
dinheiro pela janela à fora em vez de gastar, quando choram, não choram, uivam, ganem, cascateiam
lagrimas. Se têm filhos, quando os vão ver fazem tais excessos que deixam de ser mães, mesmo porque não o
são. Duas horas depois os pequenos estão esquecidos. Se amam, praticam tais loucuras que deixam de ser
amantes, mesmo porque não o são. Elas tem varias paixões na vida. Cinco anos de profissão acabam com a
alma das galantes criaturinhas. Não mais nada de verdadeiro. Uma interessante pequena pode se resumir:
nome falso, crispação de nervos igual à exploração dos “gigolôs” e das proprietárias, mais dinheiro apanhado
e beijos dados. São fantoches da loucura movidos por quatro cordelins da miséria humana.(pág 11)
Por definir a prostituta como uma pessoa com diversas características de ordem
patológica, além de suscetível a diversos vícios, o Barão Belfort mais uma vez demonstra
claras características que permitem um diálogo entre seu discurso e o discurso naturalista: o
velho dândi traça um perfil da personalidade (doentia) da prostituta baseando-se
principalmente no “meio” em que elas trabalham. Um indivíduo tem seu comportamento
delineado pelo meio em que vive ou pela sua raça. No conto de João do Rio, a patologia das
prostitutas deve-se ao meio em que elas vivem e aos demais que neste habitam. Na obra de
Adolfo Caminha a raça serve como ponto-chave: apesar do branco Aleixo também ter-se
envolvido com a “patologia” da homossexualidade, este ainda obteve, grosso modo, uma
espécie de“redenção” por envolver-se com uma mulher também. Já Amaro, justamente um
homem negro, que ainda por cima desenvolveu um ciúme que o levou a assassinar Aleixo,
teve um fim bem diferente. É pertinente destacar que tais justificativas racistas empregadas
32
para definir a personalidade humana foram muito convenientemente desenvolvidas por
europeus para legitimar ideologicamente sua suposta “superioridade” perante o negro e o
mestiço. O discurso naturalista legitima e serve ao propósito cientificista, e, como exposto
aqui, ecos dessa legitimação podem ser encontrados nos referidos textos de João do Rio.
A psicologia feminina também foi tema da análise naturalista, especialmente no
tocante aos estudos de histeria feminina (diretamente influenciados pelas análises de
Sigmund Freud acerca do assunto, divulgadas em 1895). João do Rio também abordou
esse tema em seu conto “Coração”, com a personagem Aurélia. Aos treze anos de idade
Aurélia recebe o pedido de casamento de seu professor, João Duarte, casando-se com ele
dois anos depois. Entretanto, ao contrário de seu apaixonadíssimo consorte, Aurélia não
nutria por seu marido amor algum. Em resposta ao amor incondicional e servil de João,
Aurélia mostra uma personalidade explosiva, dura, com mudanças de humor e crises
nervosas freqüentes oscilando entre o choro e momentos de silêncio absoluto. Após vinte
anos de casamento, com o nascimento de sua filha, Maria, o quadro de Aurélia agrava-se.
Lê-se no texto:
Aurélia, vendo que os carinhos do escravo diminuíam e por uma feição dos seus nervos em desequilíbrio,
desinteressou-se dos carinhos maternos ao mesmo tempo que sentia um violento ciúme do marido, apontando-
o como o inimigo pronto a roubar-lhe o amor da filha. Era o próprio egoísmo, o feroz egoísmo das
histéricas.(pág 27)
Negligenciando qualquer carinho e atenção de ordem materna, Aurélia torna-se
figura ausente dentro da casa, quase como um fantasma, ora gritando em crise histérica, ora
imersa em horas de sono profundo. Em momento algum Aurélia acompanha a doença de
sua filha; em verdade, a doença de Maria apenas deixava Aurélia “cada vez mais nervosa,
de pior humor, estava realmente doente e não se sentia senão irritada contra a filha”(pág.
28). Aurélia tampouco se mostra presente na ocasião da morte de Maria. O texto de João do
33
Rio tenta fornecer ao leitor uma justificativa para o comportamento de Aurélia ao afirmar
que “o desequilíbrio nervoso da mãe redundara nela numa vaga histeria. Precisaria de certo
de um homem brutal” (pág. 28). Atenta-se neste conto para uma questão muito abordada
pelo Naturalismo, a hereditariedade: a mãe de Aurélia também manifestava desvios
comportamentais e problemas de nervos, e Maria, a filha de Aurélia e João, apesar de não
possuir sintomas de histeria, desenvolve uma série de complicações físicas que culminam
em delírios e alucinações.
A título de comparação, destaca-se aqui uma obra das letras naturalistas que pode
dialogar em alguns pontos com o conto de João do Rio: O homem, de Aluisio Azevedo. A
referida obra conta o caso de Magdalena, referida na obra pelo apelido de Magda, vítima de
caso grave de histeria. Magda ama seu primo Fernando, e planeja casar-se com ele. Porém,
com a descoberta de que ambos são na verdade irmãos, Magda começa a sofrer certos
distúrbios que pioram paulatinamente. A princípio descritos como meras estranhezas
comportamentais, os nervos de Magdalena pioram progressivamente, sobretudo depois que
Fernando morre. No princípio de suas crises de histeria, o Dr. Lobão, médico de confiança
da família, diagnostica que o problema de Magda reside na abstinência sexual:
(...)Aqui não se trata de curar uma histérica, trata-se de evitar a histeria. Ora, sua filha é uma delicadíssima
sensibilidade nervosa; acaba de sofrer um formidável abalo com a morte de uma pessoa que ela estremecia
muito; está, por conseguinte, sob o domínio de uma impressão violenta; pois o que convém agora é evitar que
esta impressão permaneça, que avulte e degenere em histeria; compreende você? Para isso é preciso, antes de
mais nada, que ela contente e traga em perfeito equilíbrio certos órgãos, cuja exacerbação iria alterar
fatalmente o seu sistema psíquico; e, como o casamento é indispensável àquele equilíbrio, eu faço grande
questão do casamento(...)Casamento é um modo de dizer, eu faço questão é do coito! Ela precisa de
homem!(pág 43)
Contrariando as inúmeras tentativas de seu pai de lhe arranjar um marido, Magda
continua solteira, e suas crises nervosas apenas pioram. Seus sentimentos sensibilizam-se
cada vez mais, trazendo-lhe crises de choro freqüentes, além de uma sensação de
inquietação sempre constante. Os sintomas nervosos afetam também o estado físico de
34
Magda, causando-lhe fortes dores de cabeça e estômago. O quadro se agrava quando
Magda começa a manifestar desejo e paixão pelo pedreiro Luís. Magda começa a ter
sonhos freqüentes com Luís nos quais ambos vivem um tórrido romance em uma ilha
distante e deserta. Nesses sonhos, o amor de ambos é perfeito e totalmente recíproco.
Porém, na “vida real” Luís jamais desconfia dos sentimentos de Magda a seu respeito. Luís
chega a casar-se com Rosinha, uma mulher do seu mesmo meio social. Os sonhos de
Magda começam a afetar suas noções de realidade, e Magda chega a pensar em momentos
que seus sonhos com Luís são sua realidade, e que a realidade, na qual Luís não lhe
pertence é na verdade o sonho. No clímax de sua loucura, Magda convida Luís e Rosinha
para irem a sua casa pouco depois o casamento de ambos, e lhes serve um vinho. O vinho
na verdade continha veneno, e ambos morrem minutos após ingerirem a bebida. Magdalena
é internada em um hospício, ainda transtornada e confusa entre o que é real e o que não é
em sua vida.
Além da questão da histeria feminina abordada e trabalhada tanto em O Homem
quanto em “Coração”, há outros pontos em comum entre ambas as histórias que merecem
especial atenção. Um deles é que em ambos os textos pode ser percebido um embate
simbólico/metafórico entre o ideal romântico e a proposta naturalista. Em O Homem, as
alucinações e sonhos que Magdá tem com Luís possuem cunho fortemente romântico.
Nessas ilusões Magdá vive com Luís um amor incondicional e recíproco; nelas, ele é um
herói forte e destemido que a protege de todo e qualquer perigo dentro desse mundo de
sonhos. Nesse mesmo mundo, Magdá dá à luz um filho de Luís, o qual ela batiza de
Fernando, em homenagem a seu irmão morto. Sua fantasia romântica, porém, se choca com
a realidade, na qual Magdá é uma vítima da histeria e suas fantasias não passam de
alucinações provenientes de seu estado clínico. O embate entre a alucinação e a realidade
35
transcorre no decorrer da obra, ao ponto de Magdá trazer para a realidade elementos de seu
sonho romântico. Após a morte de Luís e Rosinha, ao entrar no retiro psiquiátrico, as
imagens do Luís heróico que povoavam seus sonhos mesclam-se com as lembranças dos
corpos do casal morto. Nesse conflito, de um ponto de vista simbólico, o ideal romântico
perece ante a visão naturalista. Uma interpretação similar tem-se em “Coração”, porém, ao
contrário do romance de Aluísio Azevedo, o embate não se por meio de conflitos de um
mesmo personagem, mas na forma de um embate entre dois: Aurélia, a histérica, representa
a visão de mundo naturalista, enquanto seu marido, João Duarte, possui características
tipicamente românticas. João Duarte nutre por sua esposa um amor dedicado, e mesmo
perante a frieza, os destrates e os problemas nervosos de Aurélia, continua a amá-la
incondicionalmente, mantendo o ideal de viver uma vida perfeita com esta. Entretanto, a
triste situação do casal não muda, pois em momento algum Aurélia manifesta qualquer
forma de afeto em relação a João Duarte. Com o nascimento da filha, Maria, que padece de
uma série de doenças, João Duarte tem em sua filha a esperança de ter realizado o amor que
jamais conseguiu obter de sua esposa. Lê-se no texto:
(...)Afinal o destino realizava a sua única vontade: uma filha! O seu sangue, parte do seu ser, com alguma
coisa da sua alma, o desdobramento belo do seu eu. A essa sim, ele podia amar totalmente, com o seu grande
amor sempre contido e represo, a essa devia amar e sentia amar, a essa entregaria a sede de pureza e ideal do
seu coração dedicado, porque ela havia de compreendê-lo, havia de senti-lo, havia de saber que a sua vida
inteira de esforço, de coragem e de sofrimento tinha por fim, por meta do sonho, por último círculo do paraíso
— ela.(pág 27)
Durante todo o período de enfermidade de sua filha, João permanece ao lado de
Maria cuidando dela com extrema devoção e dedicação. Mesmo quando desenganada pelos
médicos, João acredita que seu amor é suficiente para curá-la e salvá-la da morte.
Entretanto, ao término do conto, Maria não resiste e sucumbe. João Duarte é um
personagem que possui todas as características de um herói romântico, todavia, está imerso
numa realidade com vários ditames de cunho naturalista. Nesse choque, prevalece mais
36
uma vez a visão naturalista. João teve uma espécie de “dupla derrota” em seus esforços de
amor incondicional: não conseguiu o amor de Aurélia, e, não conseguiu salvar sua filha,
Maria. Tais aspectos do conto de João do Rio mais uma vez permitem uma aproximação
entre seu texto e a visão naturalista, que a reação ou a crítica ao Romantismo, implícita
ou explícita, são características do referido período.
Os exemplos levantados e discutidos no presente estudo não são os únicos dentro da
obra de João do Rio, e decerto outras análises acerca da relação Naturalismo-Decadentismo
presente em sua obra podem ser ainda comentadas e desenvolvidas. O exemplo de João do
Rio serve para ilustrar como se a tensão entre dois momentos literários distintos e a
transição de um para o outro, que nem sempre opera através de uma negação, impedindo
dessa forma o contato entre ambas as correntes literárias. O fato de a literatura produzida
por um determinado autor possibilitar uma comunicação simultânea com diferentes escolas
estético-literárias contribui apenas para sua grandiosidade e singularidade, e diferente não é
com João do Rio. Sua narrativa, uma espécie de decadentismo com momentos naturalistas,
deve ser encarada como única, pois é de um caráter “multicomposto”, gerada da
superposição de culturas de épocas e contextos diferentes, que culmina num texto rico e
altamente relevante para profundas discussões acerca dos ideários ideológicos/literários
brasileiros.
37
3- A explosão modernista
Com o avançar do século XX a sociedade brasileira começa a sofrer grandes
mudanças. Um dos principais agentes dessas mudanças foi o processo crescente de
industrialização e urbanização pelo qual passou o país nesse período. Entre 1912 e 1929 a
produção industrial brasileira cresceu cerca de 175%. Apesar de um percentual de tal porte,
a política econômica até então privilegiava muito mais os lucros agrícolas obtidos nas
atividades cafeeiras. O primeiro abalo nesse direcionamento político se deu com a crise de
1929, que evidentemente teve ecos no Brasil. Os baixos índices de exportações do café
assinalavam uma crise econômica grave, dado que até então o país era extremamente
dependente do comércio cafeeiro. Com a Revolução de 1930, o Brasil adota uma política
que visa somente estimular o desenvolvimento urbano e industrial que vinha ocorrendo no
país. Com medidas bastante significativas como tarifas protecionistas, investimentos brutos
e planejamentos para a construção de mais indústrias, o Brasil nos primeiros dez anos deste
novo regime político assistiu a uma aceleração do desenvolvimento industrial muito
superior à ocorrida na República Velha. Entre 1929 e 1939 a indústria cresceu
aproximadamente 125%, enquanto na agricultura o crescimento beirou os meros 20%.
Todas essas mudanças também sinalizaram para o crescimento de uma classe burguesa, o
que propiciou o estabelecimento da chamada classe média, que tinha cada vez mais
participação na vida política do país. Com essa crescente urbanização, a classe operária
evidentemente também cresceu bastante. Getúlio Vargas, atento para o quão importante
essa classe era para a economia brasileira, cria em 1930 o Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio que estabelece uma série de medidas políticas visando atender às necessidades
38
desta classe operária. Dentre as principais medidas destacam-se a lei de férias e a
regulamentação do trabalho de mulheres e crianças.
Todo esse novo quadro econômico e político influenciou drasticamente o panorama
cultural brasileiro. A partir da Revolução de 1930, o governo passa a financiar e controlar
reformas no ensino escolar que vinham sendo feitas sem grandes avanços desde 1920.
Essas novas propostas de renovação pedagógica visavam a um sistema educativo público.
Com discursos e propostas que valorizavam as classes mais baixas através da aproximação
entre o pobre e a cultura, o governo Vargas consegue uma adesão popular massiva e altos
índices de popularidade. Esse novo planejamento educacional alimentou uma grande
revolução cultural no país, fazendo com que a valorização do elemento popular atingisse
um grau bastante significativo. A tulo de exemplificação, pode-se ver que é justamente a
partir desse período que começam a popularizar-se pelo país estilos musicais como o samba
e a marcha, antes bastante restritos aos cortiços, subúrbios e favelas do Rio de Janeiro. O
Modernismo, tão criticado durante a Semana de Arte Moderna, tornou-se no período
imediatamente pós-1930 o movimento artístico principal em nosso país justamente por seu
caráter anti-elitista e popular, enquanto a tradicional Academia Brasileira de Letras perde
parte de seu prestígio nesse mesmo período. O rádio também teve papel importante nesse
processo, pois era um meio de comunicação de alcance por parte de praticamente todas as
camadas sociais e que promovia bastante esse novo panorama cultural.
Esse novo quadro sócio-cultural enfraqueceu bastante a abalada noção de
identidade nacional baseada na raça e no meio, tão forte até o final do século XIX e tão
defendida pelo Naturalismo. O elemento pobre sempre foi alvo da análise naturalista
através do estudo do negro e do mestiço, sempre em detrimento destes em relação ao
branco. Com esse novo panorama político-cultural, a elite intelectual branca vê-se cada vez
39
mais acuada em sua visão de sociedade positivista e evolucionista. Uma nova forma de se
ver a identidade nacional era necessária para atender a essa nova demanda social.
No início da década de 1930 surgem então três obras mestras na Antropologia e
Sociologia nacional: Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr.( 1933), Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freire(1933), e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
Hollanda(1936). Dentre estas três obras, a de Gilberto Freyre constitui um estudo singular
no sentido de que não rompeu com as visões anteriores de seu pensamento, mas elaborou
uma re-interpretação destas visões, substituindo a noção de “raça” pela de “cultura”. Dessa
forma, Gilberto Freyre promove um considerável distanciamento entre as noções biológicas
e as sociais. Ainda em Casa Grande e Senzala o elemento mestiço é assumido como um
fator positivo, e não negativo. Com base na interpretação dessa nova sociedade brasileira, a
idéia surgida no século XIX do Brasil como palco da miscigenação das três raças pôde
então ser aceita e solidificada. O mestiço é novamente aceito como símbolo do nacional,
porém, agora, sob uma ótica positiva e não-conflitante para o pensamento brasileiro.
Apesar de apenas consolidada politicamente a partir de 1930, essa nova identidade
cultural do Brasil vinha sendo defendida pelos modernistas. Conforme afirma Renato
Ortiz, “ao se cantar o fox-trot, o cinema, o telégrafo, as asas do avião, o que se estava
fazendo era de fato apontar para uma gama de transformações que vinham ocorrendo na
sociedade brasileira”
14
. Um nome muito representativo dentro dessa nova corrente de
pensamento foi sem dúvida Mário de Andrade, que dedicou sua vida aos estudos da arte e
da música popular, do folclore e do Barroco. Tendo como projeto-maior fazer com que o
povo vivesse e compreendesse a sua cultura para se reconhecer como Nação, Mário de
Andrade estabeleceu um grande compromisso social com sua produção literária,
14
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo, Brasiliense, 1994, p.40
40
defendendo diferentes manifestações populares, como a língua falada em oposição à
escrita, os ritos e os mitos sociais, as danças dramáticas, a literatura de cordel, os cantos
populares, etc. Sob esta ótica Mário de Andrade pode ser considerado um homem à frente
de seu tempo, tendo em vista que ele foi um dos maiores defensores de uma série de
reformas culturais que seriam politicamente consolidadas apenas alguns anos após sua
propagação. Uma obra do autor que reflete essas mudanças culturais é Macunaíma,
publicada em 1928, às vésperas do início do processo de oficialização política desse novo
panorama cultural.
Um dos pontos a serem comentados na obra de Mário de Andrade é a abordagem
dada à questão racial. na obra a célebre passagem em que Macunaíma e seus dois
irmãos saem para uma viagem e no meio do caminho se deparam com uma poça de água
milagrosa. Macunaíma é o primeiro dos três a entrar na poça, e eis que o protagonista, antes
negro, emerge da poça totalmente branco. Jiguê, o segundo a entrar na poça, a encontra
suja por causa de Macunaíma, e após lavar-se com a água não consegue ficar branco, mas
apenas mulato. Maanape, o irmão mais velho, encontrando a poça totalmente enegrecida,
apenas consegue molhar a palma das mãos e as solas dos pés e permanece negro. Mário de
Andrade, estudioso do folclore nacional, inseriu em Macunaíma esta e uma série de outras
fábulas e mitos advindos de suas longas pesquisas acerca do folclore popular nacional. No
episódio destacado pode ser vista uma clara alusão ao “mito das três raças”, mencionado
no presente trabalho, que afirma o Brasil como um espaço para a miscigenação. Enquanto
num contexto cultural anterior (situado no século XIX) a literatura naturalista era farta em
exemplos que promoviam o distanciamento racial, vê-se, nesse segundo momento, um
exemplo que funciona como alegoria para a união das três raças: três irmãos advindos da
mesma tribo indígena, a tribo dos Tapanhumas, passam por uma transformação na qual um
41
se torna branco, outro se torna mulato e o terceiro permanece negro. A união do índio, do
branco, do negro e do mulato é representada em um mesmo elemento: o brasileiro.
É interessante perceber que são atribuídas a Macunaíma características que se
enquadrariam perfeitamente em uma descrição naturalista. Macunaíma, personagem
mestiço, é extremamente preguiçoso. A primeira frase dita por ele em vida quando abre a
boca para falar é justamente "Ai, que preguiça", repetida diversas vezes ao longo de sua
vida. Promíscuo, Macunaíma chega inclusive a ter relações sexuais com as esposas de seus
irmãos. Sem escrúpulos ou senso de moral algum, o personagem-título não mede esforços
em mentir ou enganar alguém para tirar proveito da situação e obter algum lucro.
Ganancioso, após seu nascimento Macunaíma fica muitos anos sem pronunciar uma palavra
sequer. Seus familiares tentam de tudo para que o menino comece a falar: colocam água em
seu chocalho, fazem diversos trabalhos religiosos, evocam feitiços, lembram superstições e
nada. Macunaíma começa a falar quando começam a lhe dar um pouco de dinheiro.
"Dandá pra ganhar tentén", diz então o infante. Apesar de possuir tantos defeitos, em
momento algum estes são vistos de maneira negativa dentro da narrativa. Pelo contrário:
são tratados como qualidades, como a força do personagem. O Naturalismo também
descreve o mestiço com muitas dessas características, porém, sob uma ótica negativa.
Nesse segundo contexto o mestiço ainda possui essas características, mas elas são sua
força, a ponto de Macunaíma, mesmo tão imperfeito e tão defeituoso, receber nesta obra o
título de “herói”.
Na primeira fase do Modernismo(a mais radical), era muito enfatizada a questão
lingüística para o estabelecimento de uma verdadeira identidade nacional. Eram o estudo e
a busca do português falado em detrimento do português visto em gramáticas,
estabelecendo assim uma espécie de “língua” brasileira. Logo, dentro desse contexto, torna-
42
se mais simples compreender porque o aspecto lingüístico é um artifício que opera de
maneira bastante ideológica na obra Macunaíma. Na fala do personagem-título podem ser
encontrados falares regionais de várias partes diferentes do Brasil, sintetizados num
discurso. Macunaíma representa todos os falares do Brasil unidos em um indivíduo que
por si representa também todas as raças. Macunaíma é a expressão de uma idéia de
Nação construída por elementos como a tradição oral e o folclore, o que apenas reforça o
caráter popular da proposta de Nação defendida por Mário de Andrade. Essa proposta de
identidade nacional opõe-se totalmente à proposta defendida no século anterior em diversos
aspectos. Sob o aspecto da raça, nesse contexto literário não ocorre a desvalorização do
negro e do mestiço perante o branco; ao contrário, o mestiço e o negro são valorizados a
ponto de serem equiparados ao branco. Sob o aspecto do meio, ao contrário do que foi feito
nas letras naturalistas, a literatura não mais assume um discurso que valoriza a cultura e a
visão de uma elite branca, mas sim um que valoriza a cultura e a visão do subúrbio e das
periferias negras e mestiças.
3.2-O pós-1930
Se por mais de uma vez no presente estudo referimo-nos a um caráter híbrido e
“multicomposto” da literatura brasileira, onde várias correntes literárias diferentes se
encontram em um mesmo período cronológico, não é absurdo afirmar que tal tendência se
manifesta bem claramente nos anos que se seguiram a 1930. Como afirma Alfredo Bosi em
seu História Concisa da Literatura Brasileira
15
, caso quiséssemos traçar um (breve)
esquema de como se desenvolveu a produção literária brasileira entre 1930 e 1940/50,
15
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1980.(p.386)
43
poderíamos estabelecer a seguinte divisão: a ficção regionalista, o ensaísmo social e o
romance introspectivo, apenas para citar os mais expressivos. Ainda sobre essa grande leva
de tendências literárias co-existindo num mesmo período, afirma Bosi: “Enfim, caráter
próprio da melhor literatura de pós-guerra é a consciente interpenetração de planos (lírico,
dramático, crítico) na busca de uma “estrutura” geral e onicompreensiva, que possa
espelhar o pluralismo da vida moderna: caráter- convém lembrar- que estava implícito na
revolução moderna.”(p.388)
É nesse período, visto por diversos críticos literários como o mais fértil do romance
brasileiro, que uma herança do Naturalismo se faz mais presente. Todavia, esse resgate do
Naturalismo floresce em um outro contexto, não mais imbuído das justificativas ideológicas
do século XIX. Não se encontra mais na produção literária brasileira algum enfoque
voltado para a idéia de “raça” no sentido de uma ideologia dominante. Os escritores do
período pós-1930 sentem a necessidade do resgate da prosa naturalista principalmente
devido aos disparates sócio-políticos surgidos desde então, como a crescente miséria no
Nordeste e a crise cafeeira, bem como o contraponto com o crescimento industrial nos
centros urbanos e o fortalecimento de uma burguesia que cada vez mais deseja ocupar seu
lugar na política do país. Desenvolve-se nesse cenário uma nova prosa-documental dura,
rude, crua, que tem uma preocupação direta em captar o máximo de fatos materiais
possíveis e transcrevê-los para o papel. A proposta dessa safra de escritores é fazer com que
o “ler” equipare-se ao “ver”, ou seja, que uma leitura seja uma documentação fiel da
realidade material sob um viés de crítica e denúncia. Sob essa convicção de que a literatura
poderia ser uma ferramenta de alteração do status quo, surge uma prosa regionalista
marcada por nomes como José Américo de Almeida, Raquel de Queirós, José Lins do
44
Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado, entre outros
16
. A análise de fatos da realidade
passa a ser novamente o enfoque nessa nova tendência literária, em que se abordam as
diferenças sociais e em muitos momentos a miséria e a pobreza. Assim como na segunda
metade do século XIX -- a dita “geração do materialismo” -- a literatura dentro desse
contexto empenha-se em trabalhar a ficção da mesma maneira que trabalha o registro,
mostrando, assim, o ximo de materialidade possível. Porém, o ponto diferencial é que
esta nova abordagem não é feita de maneira impessoal, como a realista, ou sob uma ótica
cientificista, como a naturalista, nem tampouco assume um discurso ideológico em prol de
uma elite. Essa nova ficção é fortemente influenciada pelo caráter popular do primeiro
período moderno, estabelecendo assim um discurso de defesa das classes mais baixas. Essa
“nova literatura realista/naturalista” é formulada sob o viés de um Modernismo
amadurecido, que deixa bem claro suas influências, suas raízes, mas que se afirma logo de
cara como um novo e importante capítulo da história literária brasileira.
Apesar de esta nova escola ter se manifestado predominantemente na literatura sob
um âmbito regional, o espaço urbano também bebeu do ideário deixado por Azevedo e
outros naturalistas. Assim como o já comentado João do Rio no início do século XX, outros
escritores deixaram que sua produção fosse afetada (ou enriquecida?) por tais tendências do
século XIX. Entretanto, não foi apenas a esfera literária afetada por essas tendências, tendo
em vista que o universo dramático também teve manifestações referentes. Dentre diversos
dramaturgos que estabelecem diálogo com o naturalismo em sua esfera urbana, destacamos
e analisamos um: Nelson Rodrigues.
16
É pertinente aqui afirmar que uma das maiores inspirações para esse “neo-naturalismo” regional foi a obra
naturalista A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Ainda sobre essa obra, afirma Guimarães Rosa que
esta “abriu caminho para o moderno romance brasileiro”.
45
3.3- Nelson Rodrigues, o anjo “neo-naturalista”?
Antes de iniciar qualquer discussão acerca da obra de Nelson Rodrigues, algumas
considerações devem ser feitas. A primeira delas ocorre em nível de uma contextualização
acerca do teatro brasileiro.
É fato afirmar que sempre houve no Brasil a carência de uma ambiência cultural
mínima para o desenvolvimento pleno do teatro, tanto que, até meados de 1940, não se
pode afirmar que o país tenha passado por alguma “Era do teatro” ou algo similar. A
pobreza da tradição dramática no país foi tanta que diversos críticos literários simplesmente
omitem o gênero em suas páginas. Diversos romancistas brasileiros tentaram escrever
material dramático, mas nenhuma de suas peças obteve êxito e, logo, preferiram os autores
desistir do gênero. Sobre esse assunto, José Veríssimo afirma que enquanto “produto do
Romantismo, o teatro findou-se com ele”
17
. A falta de tradição teatral no país não se
apenas pela falta de sólida infra-estrutura para a montagem de espetáculos, mas, também,
pela carência de um público consumidor adequado. Somente com o crescimento urbano e o
fortalecimento de uma burguesia nas metrópoles é que pôde o teatro encontrar terreno para
desenvolver-se, seja no âmbito da infra-estrutura necessária para a montagem de
espetáculos, seja no âmbito da simples formação de um coeso público-consumidor.
Outro ponto a ser levado em consideração é o papel da chanchada como influência
cultural do povo brasileiro a partir do início do século XX. Muito difundido no cinema a
partir da metade da cada de 1930, o termo “chanchada” significa algo mal-feito,
grosseiro e sujo. A denominação caía como uma luva para o gênero; pois, como afirma
17
LINS, Ronaldo Lima. O teatro de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: F Alves; 1979; 2ª edição. Página 49.
46
Ronaldo Lins
18
“Empenhada em extrair o riso a todo custo, reduz-se sempre a um humor
grosseiro e sem sutileza em que a malícia beira a pornografia e a graça provém do
deboche.”(p. 49). Tendo atingido grande sucesso no Brasil, especialmente entre as camadas
mais pobres e menos instruídas da população, a chanchada sinaliza para o gosto pelo humor
sujo, apelativo e por vezes grotesco. Seu êxito no teatro também foi notório, e, a despeito
de quaisquer críticas que o estilo possa vir a receber, auxiliou na sustentação do gênero
dramático no Brasil, especialmente com as massas populares. Seja uma paródia mal-feita
ou uma sátira suja, podemos concordar novamente com Ronaldo Lins
19
, ao dizer que “do
ponto de vista estético, a chanchada está para a comédia assim como o melodrama está
para o drama: resulta com freqüência da pura falta de perícia.” (p. 40)
A Segunda Guerra Mundial foi também um fator importante para o
desenvolvimento do teatro brasileiro. Diante de uma Europa em severo conflito, um grande
número de diretores europeus refugiam-se no Brasil. Nomes experientes como Ziembinski,
Salce, Jacobbi, Adolfo Celi e outros associam-se ao teatro nacional e auxiliam em seu
desenvolvimento trazendo técnicas até então inéditas em nossas terras. Além de encontrar
no Brasil uma platéia em processo de formação e expansão, os refugiados do Velho Mundo
encontraram aqui muito bom material a ser trabalhado. O teatro ganha novo fôlego no
Brasil ao mesmo tempo em que cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo iniciavam seu
inquieto e crescente processo de formação sócio-industrial enquanto metrópoles.
Nesse contexto de forte crescimento industrial, o teatro alcança, dentro do seio
urbano, patamar de grande representante da cultura e da sociedade brasileira. A despeito de
montagens com temas associados à problemática rural, o teatro mostra-se como grande
19
LINS, Ronaldo Lima. O teatro de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: F Alves; 1979; 2ª edição. Página 49.
47
veículo de expressão dos problemas urbanos, enquanto a literatura em si, conforme
mencionado no presente estudo, predominantemente trata de temas regionais. É nesse
momento que se justifica como nunca o estudo literário dos textos de Nelson Rodrigues,
estes facilmente associáveis em diversos aspectos com a literatura naturalista do século
XIX.
O apelo naturalista na obra de Nelson Rodrigues é facilmente identificável, numa
primeira e superficial análise, em sua temática: retratando em geral um lado sujo e podre da
sociedade em várias camadas sociais distintas, o teatro rodriguiano mostra as patologias e
as nevroses do homem moderno urbano em contextos que podem ser facilmente associados
ao senso de grotesco e ao gosto duvidoso fartamente explorados pela chanchada, e em
alguns momentos, pela ironia negra. Para desenvolvermos o presente estudo, foram
escolhidos três textos do dramaturgo: Boca de Ouro, Os sete gatinhos e Anjo Negro.
.Boca de Ouro
A peça inicia-se com o fato que ao bandido sua alcunha sinistra. Em um
consultório odontológico, ironicamente após ser informado pelo doutor que possuía uma
dentição perfeita, o paciente pede ao médico que este arranque todos os seus dentes e
substitua-os por dentes de ouro. Após negar veementemente o excêntrico pedido de seu
paciente alegando um sem-número de questões éticas e profissionais, o médico é
convencido a fazer tal operação mediante o oferecimento de uma boa quantia em dinheiro.
Ao ver tantas cédulas, o dentista, ofendido, indaga ao bicheiro se aquilo seria alguma forma
de desacato. Boca de Ouro então lhe diz, com riso sórdido: - “Que conversa é essa, doutor?
Dinheiro não desacata ninguém! Fala para mim: eu desacatei o senhor?” (p.222). Uma
48
explosão de gargalhadas da parte do médico é a resposta para tal zombaria. Esse pequeno
trecho introdutório traz material para discussão. Analisemos especificamente a figura do
médico: o doutor em medicina é uma figura muito importante no texto naturalista.
Mediante um contexto no qual a ciência é glorificada, o médico não é apenas um
profissional da saúde: é um catedrático das ciências, um verdadeiro arauto do saber. Seu
papel no romance naturalista é quase similar ao de um sábio guru, ou, até mesmo de um
profeta, uma espécie de Tirésias
20
do cientificismo. É o que se passa com o Dr. Lobão, de O
Homem, de Aluisio Azevedo. Mais do que um dico de família, Lobão é um conselheiro,
um braço-direito do pai de Magda. Nenhuma decisão acerca do destino da jovem é tomada
sem a devida consultoria do doutor. É nesses momentos que os personagens despejam nas
páginas naturalistas toda a sua erudição fisiológica, e as entopem com uma série de
prerrogativas que apenas justificam o período em questão. O médico no contexto naturalista
torna-se um arauto do bem-estar da sociedade, um entendido dos comportamentos
humanos, o sinal de esperança para a salvação dos homens e das mulheres.
Mas aqui, no contexto rodriguiano, fica claro como a figura do médico recebe um
tratamento bem diferente: todo o conhecimento, a ética, a moral e o profissionalismo do
dentista são reduzidos a nada perante o capricho de um bandido e algumas cédulas de
cruzeiros. A fragilidade do médico aqui simboliza a fragilidade da sociedade como um
todo. Se aquele homem no Naturalismo era o sábio, o salvador, o portador de todas as
respostas, o que é ele nesse contexto moderno? Um ser tão amoral e perturbado quanto os
negros e mestiços tão criticados por ele no contexto cientificista do século XIX.
20
Personagem da tragédia Édipo Rei, de Sófocles. Na peça, Tirésias, velho cego e clarividente, prevê toda a
tragédia do rei de Tebas.
49
Logo ao início do ato seguinte, Boca de Ouro é dado como morto. O jornalista
Caveirinha é designado a entrevistar uma ex-amante do bicheiro, D.Guigui, a fim de
conseguir informações “quentes” sobre o bicheiro. A partir deste ponto da peça, Boca de
Ouro surge apenas através dos três diferentes relatos de sua ex-amante, todos estes
envolvendo o casal Leleco e Celeste. No primeiro relato, Leleco, ao pedir dinheiro a Boca
de Ouro, recebe a seguinte proposta: somente receberia a quantia desejada se sua esposa
fosse buscá-lo...sozinha. Leleco num primeiro momento recusa, mas, vê-se obrigado a
aceitar a aviltante proposta do bandido. Celete é levada por seu marido ao encontro do
bandido. Ao entrar na sala particular do Drácula de Madureira”, Celeste, após assédio de
Boca de Ouro, reage e chama por Leleco, afirmando a Boca de Ouro que este seria baleado
por seu marido em punição por tal abuso. O frágil e inseguro marido de Celeste é chamado
para dentro da sala e recebe um revólver de Boca de Ouro mediante o sinistro desafio
deste:- “Ou atira, ou morre!”(p.253). Leleco, incapaz de tal ato, tem a arma tomada de suas
mãos por Boca, que agora aponta o revólver para o rapaz. “Queres sair vivo daqui?”
(p.254), indaga o bicheiro. “Então manda tua mulher entrar ali!” (p.254), diz apontando
para seu quarto. O que se segue é a humilhação absoluta: Leleco, amedrontado, ordena que
sua mulher entre na sala. Leleco apenas reage de maneira mais áspera quando Boca de
Ouro afirma que não dará ao rapaz o dinheiro antes prometido. É quando Leleco comete o
erro que o condenará: --“Seu miserável...tenho a tua ficha! Tu nasceu numa pia de
gafieira!”(p.255). “Você falou de minha mãe... quem fala de minha mãe...” (p.255), diz
Boca de Ouro, profundamente enraivecido, antes de matar o rapaz com uma série de
golpes.
Neste primeiro relato sobre Boca de Ouro, tem-se um homem arrogante e ousado,
que usa do dinheiro para seduzir e humilhar as pessoas. Através da promessa de cem mil
50
cruzeiros, Boca de Ouro consegue fazer com que Leleco entregue sua esposa ao bandido.
Mais do que isso: assim como exibira a fragilidade de caráter do dentista, Boca de Ouro
exibe a fraqueza de Leleco. Da mesma forma que alguns textos do naturalista Aluisio
Azevedo, o texto de Nelson Rodrigues imprime um retrato da sociedade dentro das
camadas pobres, mostrando conflitos, desigualdades e tragédias pessoais. Porém, se o alvo
é o mesmo, a lente as enfoca sob um ângulo diferente: Boca de Ouro, filho de uma mulher
obesa e pobre que freqüentava gafieiras -- fato revelado no decorrer da peça -- é detentor de
grande poder no subúrbio de Madureira e, mais do que causar medo entre as pessoas,
consegue ser capaz de revelar os pontos fracos do caráter de cada ser humano. Se no
Naturalismo a figura do médico e a do marido enquanto chefe de família eram detentoras
de poder e dignas de respeito, aqui a situação se inverte: Boca de Ouro, um bandido outrora
pobre e cheio de defeitos de caráter, é o detentor de poder e a figura digna de respeito,
ainda que um respeito totalmente oriundo do medo. É aquele capaz de, mais do que
meramente corromper, mostrar o caráter real dos homens.
O segundo retrato feito de Boca de Ouro mostra uma imagem do bicheiro bem
diferente da primeira. Chocada com a notícia da morte do bicheiro (da qual até então não
tinha conhecimento algum), D.Guigui afirma ter dito uma série de mentiras apenas de raiva
por ter sido abandonada pelo bandido. O ato inicia-se com uma conversa entre o bicheiro e
um preto velho. Logo no início do diálogo, tem-se:
Boca de Ouro(abrindo um sorriso maligno) --Preto, tu me conhece?
Preto -- Conheço, sim senhor!
Boca de Ouro -- Como é meu nome, preto?
Preto -- Vossa Senhoria é o “Boca de Ouro”, sim senhor!
Boca de Ouro(ri) -- E que mais?
Preto -- O povo também diz que “Boca de Ouro” paga o caixão dos pobres! (p.264)
51
Neste segundo relato, Boca de Ouro é tratado como uma espécie de “Pai dos
pobres”, sendo inclusive definido por D.Guigui como um “Robin Hood do subúrbio”. Em
sua conversa com o preto, o “Drácula de Madureira” busca informações sobre sua mãe, fato
este que humaniza mais o personagem. Até mesmo seu célebre nascimento numa pia de
gafieira é retratado de forma mais amenizada: sua mãe, apesar de gorda, pobre e empestada
pela bexiga, é uma mulher sempre alegre e que, mesmo grávida, não abriu mão de dançar e
expor ao mundo sua alegria. Inclusive, ao ser indagado da razão de sua morte, o preto
afirma que a mãe de Boca “riu até morrer, morreu de tão alegre!” (p.266).
O casal Leleco e Celeste reaparece aqui, mas de maneira totalmente distinta. Se, no
primeiro relato do bandido, Leleco era um rapaz frágil e sem atitude alguma, aqui é
retratado como um legítimo “malandro”, um verdadeiro gigolô. Decidido a não mais
trabalhar, Leleco obriga sua esposa a tomar dinheiro de Boca de Ouro, sabendo que este
nutre forte desejo por Celeste. Leleco sugere como pretexto para pedir dinheiro o caixão
para a mãe de Celeste, que havia falecido recentemente--fato este que apenas denota sua
total falta de escrúpulos. Leleco, aqui bem mais agressivo que em sua primeira versão,
chega a apontar uma arma para sua esposa e ameaçá-la:- “Ou vai, ou te mato”(p.274).
É neste momento da peça que Boca, ao mesmo tempo que recebe Celeste, recebe
um grupo de grã-finas ansiosas para falar com o bicheiro. O grupo de grã-finas, fascinadas
com toda a mitologia que se criou acerca do “assassino de mulheres”, do “Drácula de
Madureira”, ao mesmo tempo em que o adoram, o humilham, tratando-o como uma espécie
de brinquedo, de objeto de admiração. Em sua adoração pelas lendas acerca do bandido, as
grã-finas não hesitam em fazer perguntas acerca da veracidade de sua fama de assassino de
mulheres, ou de seu nascimento em uma pia de gafieira, fato que muito o deprime e o
constrange. Boca de Ouro chega a soluçar em lágrimas ao narrar o ocorrido. Tratado quase
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como uma vítima da sociedade neste segundo relato, fica evidente aqui que o verdadeiro
vilão não é o bicheiro cujo rosto é estampado nos jornais, e sim a imprensa que assim o
elegeu e as classes altas, que apenas se importam em cruelmente beber de seu mito. No
intuito de retribuir a humilhação imposta pelas grã-finas, Boca de Ouro promove um
grotesco concurso de seios, no qual a portadora dos seios mais belos ganhará um legítimo
colar de pérolas. A grande vencedora é Celeste, fato ao qual as grã-finas protestam. Boca de
Ouro revida: “Vocês não são nem páreo para essa menina, e outra coisa... não chamo mais
ninguém de senhora. Ninguém aqui é senhora. A única senhora é essa menina,
compreendeu? (...) Eu nasci numa pia de gafieira com muita honra! E minha mãe abriu a
bica em cima de mim!” (p.286).
Celeste, tendo conquistado o respeito do bandido, sofre uma transformação: outrora
tão digna e relutante em sua tarefa de pedir dinheiro ao lendário bandido, passa a insinuar-
se para ele, seduzi-lo, chegando a ponto de manifestar seu desejo de largar o marido e
morar com o bandido. “Tudo isso é meu? Tudo que eu tocar é meu?(p.288), afirma ela,
com lascívia. Neste momento chega Leleco, mais calmo, decidido a trazer sua esposa de
volta. Tarde demais: Celeste se proclamara esposa de Boca de Ouro. Leleco, imerso em
cólera, ameaça Boca de Ouro com uma arma. E, assim como na primeira versão contada
por D. Guigui, Leleco morre...Mas desta vez com uma punhalada nas costas dada por
Celeste. Fim do segundo ato.
Ainda que pintado como um homem cheio de si e um tanto quanto violento, a
segunda imagem do bandido é bem mais amena que a primeira, trazendo ao espectador
momentos até em que se pode sentir compaixão pelo bandido-como a busca por seu
passado e a humilhação que passa perante o grupo de grã-finas. Nesse segundo retrato do
bandido entra em cena um interessante elemento para discussão: o grupo de grã-finas. A
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grotesca relação entre as três mulheres fúteis e ricas e o bicheiro de Madureira é uma
interessante alegoria para a relação entre a classe alta e a baixa. Apesar de ter uma situação
financeira bastante favorecida para um morador de um subúrbio e ser detentor de certa
influência política, Boca de Ouro ainda demonstra uma facilidade e identificação muito
maior com as classes pobres- de onde é oriundo- do que com as ricas. Seu desconforto e
mal-estar perante os comentários fúteis das grã-finas é perceptível. Boca de Ouro para essas
representantes das classes ricas não passa de um objeto a ser admirado e observado, daí as
colocações acerca de seu comportamento -- tais como, “O Boca não é meio neo-realista?”
(p.279). Aqui, entra em foco, de maneira bem alegórica, o fato de a classe baixa ser objeto
de estudo e interesse da classe alta. Entretanto, se no período naturalista esse estudo era
conduzido por homens de conhecimento científico apurado, aqui é feito por mulheres ricas
de comportamento fútil e de mentalidade vazia. Se no Naturalismo tal interesse pelo
elemento pobre era advindo das teorias positivistas, aqui esse mesmo interesse nasce do
fetiche, do glamour marginal” do bandido. Independentemente da forma como é retratado,
Boca de Ouro é forte, temido e admirado, por pobres e por ricos. E é ele que leva a melhor
nessa relação com o grupo de grã-finas ao expô-las ao ridículo submetendo-as a um
concurso de seios, e, em seguida, ao expulsá-las de sua casa batendo no peito e afirmando
sua condição de homem nascido numa pia de gafieira com muito orgulho. Se o Naturalismo
do século XIX abordou com força total o elemento pobre e mestiço com detalhismo e
análise, a literatura produzida posteriormente apenas resgatou essa abordagem, realçando as
características do pobre como sua força, como é o caso de Boca de Ouro, homem rico com
espírito pobre.
No terceiro relato acerca de Boca de Ouro, D.Guigui dá ao público, novamente, uma
imagem diferente do bicheiro. Novamente uma briga entre o casal Leleco e Celeste ilustra
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essa versão, na qual Celeste, sob pressão, confessa para o marido seu adultério. O nome do
amante: Boca de Ouro. Neste momento Leleco faz um sinistro acordo com sua esposa: caso
não consiga ganhar uma aposta previamente feita no jogo do bicho (este conduzido no
bairro por Boca de Ouro) ele a matará. Com o resultado negativo do jogo e o medo de
morrer, Celeste afirma ser capaz de arrancar o dinheiro de seu amante, salvando assim a
vida e satisfazendo Leleco. Corte de cena: Boca de Ouro e D.Guigui discutem, dado o
ciúme desta por uma das amantes de Boca, justamente uma mulher grã-fina. Neste ínterim
chega Celeste, desatinada, e conta a Boca de Ouro que Leleco sabia de tudo, que a havia
pressionado e que havia obtido a verdade toda de sua boca. É nesse momento que Boca de
Ouro afirma que:
Meu coração aprende! A mulher deve negar, nem que chova canivete! Ouve só: quando eu era mais mocinho
estava, uma vez, com uma mulher, no quarto!(...) E nisso, chega o marido com a polícia. Em conclusão,
arrombam a porta. A mulher, nuazinha, negou até o fim. Sabe que o marido ficou na dúvida, o comissário
ficou na dúvida e até eu fiquei na dúvida? Meu anjo, da próxima vez, nega, o golpe é negar! (p.313)
Inicialmente pode parecer que Boca de Ouro está a dar para Celeste uma verdadeira
“aula de malandragem”..., entretanto a grande tônica desse terceiro relato de Boca de Ouro
não está na capacidade do bandido de sair das situações mais delicadas, e sim, na revelação
de quanto o elemento feminino lhe foi tão cruel e aproveitador. No relato de Boca de Ouro
ele chega ao ridículo de afirmar que a mulher conseguiu até mesmo fazer com que ele
duvidasse de seu adultério. Celeste, logo após contar a Boca que Leleco estava chegando,
exige-lhe um “presente” por tê-lo avisado do perigo. A própria morte de Leleco nesta
versão revela a falta de caráter e mesquinharia de Celeste, já que seu marido apenas recebeu
a coronhada de Boca de Ouro porque esta o distraiu. Ao vê-lo caído no chão e indagar se
jaz morto, Boca de Ouro responde.
Boca de Ouro -- Depende.
Celeste -- Como depende?
Boca de Ouro -- De ti!(...) Quero que tu digas: “Mata!” Aí eu mato! No mesmo instante!
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Celeste -- E você me dá os seiscentos contos no milhar?(p.319)
A cena que se segue é no mínimo bizarra. Boca de Ouro, extasiado com tal situação,
propõe-se matar Leleco junto de Celeste. Assim, enquanto ele coronhadas no
desacordado rapaz, Celeste o apunhala diversas vezes seguidas. Ao término do crime,
Celeste ergue-se e de seus lábios emerge imediatamente uma indagação: - “E agora? Você
paga o milhar?” (p.320)
Pode-se dizer que a desconstrução de toda a idealização feminina feita pelo
Romantismo foi uma das “tarefas” do Realismo. O Naturalismo também manifestou tal
atitude perante a mulher, mas sob uma ótica muitas vezes violenta e fria. Exemplos não
faltam. Na obra-mestra O Cortiço, tem-se o caso da personagem Pombinha, que é descrita
como uma menina pura, ingênua, que sequer teve sua primeira menstruação, ou seja, ainda
não teve sua sexualidade formada (“Ainda não virou mulher”, segundo o narrador, p.16).
Após a chegada da menstruação, Pombinha sofre uma mudança de caráter radical: passa a
desprezar o casamento ao qual foi prometida desde a infância e começa a ver a figura
masculina como inferior e submissa à feminina, sendo desta última o dever de usar e
humilhar todos os homens. Ainda na mesma obra, tem-se o caso de Leocádia, que traiu seu
marido apenas para ganhar de presente um coelhinho branco. Casos como estes são
perfeitamente relacionáveis com essa terceira Celeste mostrada por D. Guigui. Por muitas
vezes a obra de Nelson Rodrigues tem essa mesma proposta de mostrar a sociedade em
seus detalhes mais sórdidos, assim como fizeram os escritores naturalistas do fim do século
XIX.
O ato aproxima-se do fim: entra em cena Maria Luísa, a grã-fina que por muitas
vezes tem visitado Boca de Ouro. Celeste e ela se reconhecem, visto terem sido colegas de
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escola. O diálogo entre Boca, Maria Luísa e Celeste segue então de maneira tensa: Celeste,
sempre humilhada por Maria Luísa nos tempos de colégio apenas por sua condição social
mais baixa, traz à tona toda sua raiva através de comentários de uma rudeza ácida. A
relação entre Maria Luísa e o bandido é similar em certos pontos à cena vista no ato
anterior das três grã-finas conversando com Boca de Ouro, no que concerne à relação de
fascínio para com a aura mitológica do bicheiro. Maria Luísa, uma fanática religiosa,
afirma querer batizar Boca de Ouro, e crê que este é um santo, que nunca matou ninguém.
Em seu discurso quase caricato, Maria Luísa chega a fazer comentários sobre o bandido,
associando-o com a figura de um santo ou um deus, como no momento em que a grã-fina,
falando do lendário caixão de ouro no qual o bandido seria um dia sepultado, compara Boca
de Ouro a um deus asteca. Celeste, no entanto, enraivecida, destrói as ilusões de Maria
Luísa acerca de Boca de Ouro ao mostrar o corpo de Leleco, contando a ela que Boca o
matou. O bicheiro, de forma fria, decide executar M. Luísa, ao que se segue um diálogo
marcado pela tensão:
Boca de Ouro -- Você gosta de mim?Gosta? A Guigui, que enxerga longe, diz que você é tarada por mim. A
Celeste, que também é viva, diz a mesma coisa.(...) Você é?
Maria Luísa -- Deus te perdoe!
Boca de Ouro -- Beija o teu assassino!
Maria Luísa -- Eu?
Boca de Ouro -- Na boca!(330)
Enquanto Maria Luisa cede ao desejo de Boca, Celeste, vitoriosa ante o medo de
sua rival e inimiga de infância, revela numa frase toda a sua mágoa contida de anos:-
Antes de morrer, escuta: eu não ando mais de lotação! Nunca mais!” (p.330). Entretanto,
para sua surpresa, Boca pega-a pelo pulso e afirma que quem morreria seria ela. Após a
execução de Celeste, Boca, assumindo seu ar de assassino, faz uma menção ao
comentário de Maria Luísa acerca de seu caixão de ouro:
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Boca de Ouro -- Pensando bem, eu sou meio deus. Quantas vidas eu já tirei? Quando eu furo um cara, eu sinto
um troço diferente, sei lá, é um negócio! Ainda agora. Primeiro, eu ia te matar. Depois, vi que o golpe era
executar Celeste. Um perigo, a Celeste! Gostaste da classe? E quando eu morrer, já sabe: o caixão de ouro!
Todo mundo tem dor de corno do meu caixão de ouro!(p.332)
Ao fim do terceiro relato sobre Boca de Ouro, tem-se a cena final: Caveirinha, o
repórter que vinha investigando o bandido desde o início da peça, ao encaminhar-se ao
velório do bandido, recebe a notícia de que este tivera todos os seus dentes arrancados ao
morrer. Ainda, Boca de Ouro fora assassinado com vinte e nove punhaladas por uma
mulher. Seu nome: Maria Luísa. Para sua súbita perda de interesse no bandido, justifica-se
o repórter: --“Desdentado não é a mesma coisa. Não sei explicar.” (p.335)
Mais do que o mero retrato em três versões de um bandido carioca, a peça Boca de
Ouro é o relato de uma verdadeira lenda urbana. A multidão que vai ver pela última vez o
bicheiro mais famoso de Madureira por si indica a força da mitificação do bandido.
Homem dos dentes de ouro que será sepultado num caixão igualmente feito de ouro,
assassino de mulheres, nascido numa pia de gafieira e portador de alcunhas como “Drácula
de Madureira” são exemplos dos mitos associados ao bandido que tonificam à sua volta
uma simultânea imagem de medo e fascínio. Todas as lendas que rondam o bandido são
associáveis a um quê de grotesco, violento, sujo e até caricato em alguns aspectos, e são
justamente tais mitos e relatos que fazem de Boca de Ouro um personagem que se
enquadraria perfeitamente numa obra naturalista. Boca de Ouro é um bandido assassino,
fascinado pelo dinheiro, todavia muitos dos personagens envolvidos com o bandido
também o são( Celeste, Leleco, Maria Luísa). Tal fato nos remete à velha máxima
naturalista de que o indivíduo é influenciado por seu meio. outras particularidades a
serem ressaltadas, como o já mencionado processo de “culto à personalidade” de Boca de
Ouro. Tal “idealização da imundície” feita em torno da imagem do bicheiro possui um
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inegável traço romântico, porém, contribui para a visão de Boca de Ouro não como um
herói, mas como um “anti-herói”. Logo, evidencia-se aqui a idealização e o culto a um
indivíduo específico (fato este incomum no Naturalismo). Mas o que faz Boca de Ouro ser
tão adorado não é nenhuma qualidade moral ou traço e bondade, e sim, tudo que possa
remeter a uma imagem de marginalidade. Tal quadro pintado por Nelson Rodrigues remete-
nos a uma série de questões levantadas aqui, como a crítica à sociedade e o retrato das
patologias implícitas do homem urbano. Boca de Ouro, ao resgatar elementos do
Naturalismo do século XIX em um novo contexto e sob certas peculiaridades, torna-se um
entre diversos exemplos de um, digamos, “moderno Naturalismo urbano”, bastante presente
em boa parte da obra de Nelson Rodrigues.
.Os sete gatinhos
Os sete gatinhos talvez seja uma das peças de Nelson Rodrigues mais significativas
para o estudo aqui proposto, principalmente por toda a carga de questionamento da família
enquanto instituição (supostamente) sólida e sagrada dentro da sociedade burguesa. A peça
tem início com um flerte entre dois personagens, o galante Bibelot e a jovem Aurora, que se
haviam conhecido no dia anterior, numa fila de ônibus. Durante a conversa, Bibelot é
indagado se é casado. Ao que responde que sim, Aurora lhe diz: --“Logo vi.Quando gosto
de um cara é casado!”(p.114). Bibelot, afirmando que sua esposa, após séria cirurgia em
todo o seu aparelho sexual interno, deixara de sentir prazer sexual, insiste em levar Aurora
para um apartamento em Copacabana. Percebendo a malícia e as intenções do rapaz em um
envolvimento carnal, Aurora reluta insistentemente em aceitar seu convite. Ao argumentar
contra Bibelot os motivos para sua não-ida ao tal apartamento, Aurora chega a mencionar
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seu pai:
Aurora (veemente)- Se, por acaso, eu fosse a esse apartamento contigo. Vamos imaginar. E meu pai?(...) Meu
pai mudou muito. Antigamente, não ligava. Mas agora descobriu uma tal religião Teofilista. cada bronca
menino! E virou vidente!(...) Ouve vozes, enxerga vultos no corredor. De amargar! Olha: você quer saber
quem é meu pai? Vou te contar uma que vais cair pra trás, duro! Depois que ficou religioso não admite papel
higiênico em casa, acha papel higiênico um luxo, uma heresia, sei lá!(p.190)
As primeiras informações acerca da convivência na casa de Aurora sinalizam um
quê de ridículo e caricato nas obsessões religiosas de seu pai. Prosseguindo a descrição de
seu pai, Aurora revela que este trabalha na Câmara dos deputados, fato que desperta o
interesse de Bibelot:
Bibelot (com novo interesse) -- Ele é o quê lá?
Aurora (com breve vacilação) -- Funcionário.
Bibelot (animado) -- Vem cá: se teu pai trabalha na Câmara, talvez tenha influência...Quem sabe se teu pai
não podia arranjar marreta pra eu voltar à P.E? Lá ele é funcionário importante?
Aurora -- Bem...
Bibelot -- É?
Aurora (em brasas) -- Contínuo.
Bibelot (amarelo) -- Sei...( muda de tom). Quer dizer que ao apartamento você não vai?(p.191)
Essa pequena passagem traz à tona alguns dados vitais para a compreensão da peça.
Aurora, quando indagada sobre o cargo de seu pai, vacila, constrangida, até dizer que seu
pai é um contínuo. O baixo cargo, que ao mesmo tempo sinaliza baixa condição financeira,
é mencionado em vários momentos ao longo da peça com ênfase, sempre em tom de
vergonha, como a própria Aurora o fez. O súbito desinteresse de Bibelot ao saber que o pai
de Aurora é um mero contínuo reflete o desprestígio da profissão e a impossibilidade de
qualquer favor que poderia lhe ser prestado dentro da Câmara.
Aurora, subitamente, após Bibelot sinalizar que desistira de levá-la ao apartamento,
muda de idéia e resolve ir com o tipo. Porém, neste momento Aurora faz uma revelação a
Bibelot: é uma prostituta. Ao cobrar quinhentos cruzeiros de Bibelot, este se revolta e se
nega a somente ir ao apartamento com Aurora se tiver de lhe pagar a quantia pedida:
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“Minha filha, nunca dei um vintém a mulher nenhuma! Nem dou!”(p.116), afirma ele
veementemente. Mesmo mediante a negativa de Bibelot, Aurora resolve ir ao apartamento
com ele, dado o desejo que sente pelo rapaz em seu terno branco engomado. Dentro do táxi,
a caminho de Copacabana, Bibelot revela a Aurora seu fetiche por mulheres sujas:
Bibelot -- Ah, eu preciso sempre ter uma mulher da zona.(...) Porque gostar mesmo eu gosto de mulher
bem esculachada! Queres ver um exemplo? Arranjei um broto espetacular. Tem um corpo, e que corpo! E uns
17 anos, no máximo.
Aurora -- Virgem?
Bibelot -- Era. Mas já sabe: foi comigo no apartamento, começamos naquele negócio e fiz o serviço completo.
Mas é uma menina tão purazinha que eu fico pensando: ora bolas! Menina de família, não sei, me chateia!
(p.194)
Aurora prossegue o relato de sua vida ao justificar para Bibelot a razão de sua vida
em meretrício:
Aurora (no seu frenesi) -- (...)Lá em casa somos cinco mulheres. Da penúltima para a caçula, houve um
espaço de 10 anos. As quatro mais velhas não se casaram. Sobrou Maninha, que está agora com 16 anos, no
melhor colégio daqui. E essa nós queremos, fazemos questão, que se case direitinho, na igreja, de véu,
grinalda e tudo o mais. Nós juntamos cada tostão para o enxoval...(...) O casamento de Maninha vai ser um
estouro.(...) Posso vender meu corpo, tal e coisa, mas o dinheirinho vai direto para o enxoval...Eu fico só com
o ordenado do emprego...(p.195)
Tem-se aqui uma situação, no mínimo, curiosa: Aurora afirma vender o corpo em
prol de um ideal, o de ver a caçula da família casar-se, de véu e grinalda, na igreja, como
pregam as tradições burguesas católicas mais acirradas. Enquanto isso, Bibelot, homem de
caráter duvidoso, promíscuo, assumidamente avesso a qualquer noção de moral e com um
ódio declarado da virgindade feminina, desdenha dos motivos de Aurora. Estranhamente,
Aurora, mesmo percebendo o caráter falho de Bibelot, ainda assim aceita tê-lo sem lhe
cobrar nada, e ainda demonstra ciúmes ao indagar constantemente acerca do tal “broto”
que ele havia desvirginado no mesmo apartamento. Aurora chega a, após despir-se,
insinuar-se a Bibelot indagando a este se era páreo para o tal broto. Ainda no apartamento,
enquanto envolvidos em volúpia e pouco antes do ato sexual, Bibelot apanha um revólver e
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esvazia o tambor. Intrigada, Aurora lhe pergunta o porquê daquilo. Bibelot lhe diz: “Já
disseram que uma mulher da zona ia me dar um tiro. E se você quiser me matar, atira, anda,
atira com um revólver sem balas!” (p. 197)
Nesse primeiro ato são dadas ao público várias informações-chave, que serão
retomadas constantemente ao longo da peça. No segundo ato é apresentado o núcleo central
da peça: a família de Seu Noronha. Já na chegada do único homem da casa, nota-se a
relação de subserviência entre as demais mulheres e este:
Débora (virando-se) --A bênção, papai!
“Seu” Noronha (abreviando a resposta) -- Te abençoe!
D. Aracy -- Não teve sessão noturna?
“Seu” Noronha (tirando o paletó) -- Morreu um deputado.
(andando de um lado para o outro) Gorda, arranja um jornal.(p.200)
O tratamento grosseiro com que “Seu” Noronha trata sua esposa referindo-se a ela
apenas como “Gorda” é um de muitos indicativos do estranho misto de autoritarismo e
grosseria que é a relação deste com sua esposa e filhas. Pouco mais à frente, um fato no
mínimo absurdo abala a ríspida rotina da família de seu Noronha: ao adentrar seu banheiro,
Seu Noronha encontra uma série de palavreados chulos e desenhos obscenos rabiscados nos
azulejos. Indignado, Noronha exclama:
“Seu” Noronha -- Eu chego em casa, com a minha boa cólica, vou ao banheiro e, lá, encontro a parede toda
rabiscada de nomes feios, desenhos obscenos!
D.Aracy -- Onde?
“Seu” Noronha (num berro) -- No banheiro!(arquejando) Isso na minha casa!
D.Aracy (desconcertada) -- Eu vou lá!
“Seu” Noronha -- Fique! Não precisa ir lá, não senhora! O que eu quero saber é quem foi!
D. Aracy -- Eu é que sei?
“Seu” Noronha (ameaçador) -- Ah, não sabe?
D. Aracy (também violenta) -- Você com seus coices!
(“Seu” Noronha estaca diante da mulher. Encosta-lhe a mão no rosto)
“Seu” Noronha -- coice é mão na cara!
D.Aracy (recuando) -- Nem meu pai me bateu!
“Seu” Noronha (abrindo os braços para as nuvens) -- Isso é lar?
D.Aracy -- Apanhar de marido por quê?
“Seu” Noronha (para a mulher) -- Cala a boca, Gorda!(p.p.130,131)
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O episódio em questão, de um grotesco que beira o ridículo e o humor chulo, nos
revela em poucas falas importantes traços do convívio familiar de “Seu” Noronha com suas
filhas e esposa. Autoritário e violento, Noronha chega a ameaçar bater na esposa em sua
busca pela autora de tal atentado ao pudor. um traço irônico no discurso de "Seu"
Noronha que merece ser ressaltado: perante o ultrajante quadro dos palavreados escritos em
seu banheiro, Noronha ameaça bater em sua esposa. Perante o choque da esposa e o
absurdo da situação, Noronha reage com a pergunta: "Isso é lar?" (p.131). Mas logo em
seguida, com o questionamento da esposa acerca da validade de uma surra do marido
("Apanhar de marido por quê?", p.131), eis que este volta a ameaçá-la. Noronha critica e
abomina os traços de violência e amoralidade, porém ele mesmo os propaga em prol de sua
autoridade. Esse traço da personalidade do personagem segue adiante na peça em diversos
outros momentos, como na passagem posterior em que uma das mais célebres máximas da
obra rodriguiana faz-se presente:
"Seu" Noronha (muda de tom) -- (...)Ainda agora, eu ameacei fisicamente sua mãe. (...) Ora, eu não tenho o
direito de ameaçar fisicamente ninguém. Acho que quem dá na cara de alguém ofende a Deus. Portanto, na
presença de todas vocês, eu peço desculpas à Gorda.(vira-se para a mulher) Gorda -- Você me desculpa?
D.Aracy (veemente) --Você ofende e depois pede desculpas?!
"Seu" Noronha -- Vocês estão vendo? Não se pode tratar bem uma mulher.(para D. Aracy) A Gorda não
aceita minhas desculpas! Lavo as minhas mãos! (p.133)
E é esse mesmo Noronha, tão supostamente avesso à violência, que não consegue
conter seus impulsos e esbofeteia uma de suas filhas, Arlete, em inquérito para descobrir a
autora do ofensivo crime contra a moral ocorrido no banheiro. Após ter batido em sua filha,
Arlete, insolente, olha fixamente para o pai apenas dizendo: --“Contínuo!”(p.136). Após
repetição perante seu atônito pai, Arlete apanha novamente, mas continua repetindo a
profissão do pai, em tom de insulto. A vergonha de ser contínuo e sua não-aceitação é como
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uma ferida para Noronha, chegando a ponto de ser uma ofensa chamá-lo dessa maneira.
Noronha, em seu discurso do contra-senso, ampara-se na religião e na moral familiar ao
mesmo tempo que promove a truculência. Noronha, discorrendo sobre a decadência moral
que abala sua família, sustenta a hipótese, supostamente a ele revelada por um espírito, de
que alguém responsável por este quadro: um suposto homem que chora por um olho só,
que estaria levando suas filhas para a perdição. "Seu" Noronha carrega a frustração de não
ter levado nenhuma de suas filhas para o altar, logo, concentra todos os esforços para casar
a caçula da família -- Silene, a única virgem. A extrema importância dada ao casamento
reflete a preocupação com a imagem da família perante a sociedade, já que uma mulher que
não se casou não merece o devido respeito. “Qualquer vagabunda se casa(p.138), afirma
“Seu” Noronha. E minhas filhas, não! Por quê?” (p.138). A vida de todas as pessoas na
casa gira em torno de Silene e do casamento que esta um dia terá. Todos na família juntam
dinheiro para o enxoval da menina e para dar a ela a melhor vida possível. Os esforços são
muitos e conjuntos para que a menina se mantenha pura até o dia de seu casamento e que
permaneça bem-vista aos olhos da sociedade. Noronha, em sua quase beatificação da filha
mais nova, a como um verdadeiro instrumento de salvação da família. É por tal razão
que cai como uma bomba na casa de Noronha o relato do Dr. Portela, assessor da direção
da escola de Silene, ao trazê-la de volta à sua casa: Silene havia assassinado a pauladas uma
gata,com a qual havia estranhamente desenvolvido forte ligação afetiva anteriormente. O
felino, mesmo morto, ainda conseguiu dar à luz sete gatinhos. O bizarro fato ocorreu no
meio do pátio da escola, aos olhos de várias alunas do instituto, muitas delas, crianças de
sete e oito anos de idade. Ao ouvir da boca do Dr.Portela tão hediondo relato, Noronha
protesta, de imediato, recusando-se a crer:O senhor não conhece minha filha! O senhor, se
conhecesse minha filha como eu conheço -- porque eu conheço minha filha, Dr.Portela, eu
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leio na alma de minha filha...o senhor, se conhecesse Silene, nunca diria uma coisa dessas,
e duvido!”(p.154)
Desesperado, Noronha recusa-se a crer no que lhe fora dito. Sua angústia, somada à
indignação de ouvir da boca do Dr.Portela que sua filha não poderia mais retornar à escola,
faz com que o chefe da família convoque todas as mulheres da casa para a sala de imediato:
face-a-face com o Dr.Portela, Silene teria que dar seu parecer sobre o caso. Somente
mediante uma confissão da caçula tendo a família como testemunha é que Noronha poderia
aceitar as palavras de Portela. Mediante a negação da menina, Noronha ameaça Portela com
um punhal prateado, e lhe diz:
"Seu"Noronha -- Se voce falasse de outra filha, qualquer outra, eu não diria nada...Agora mesmo, se o senhor,
ou voce, xingar, chamar de vagabunda uma dessas( aponta as mais velhas) ou a Gorda, eu lavo as minhas
mãos...Mas voce insultou quem não podia insultar..O senhor não pode entender a pureza de minha filha.(...)
Silene é pura por nós, ou voce não percebe que ela é pura por nós?( p. 219)
Mediante a ameaça de Noronha, Portela chora. Entretanto, Portela não chora por um
olho apenas, como havia sido revelado a Noronha que choraria o responsável pela desgraça
na família. Convicto a lavar a honra da filha, Noronha ordena a Silene que esta esbofeteie
Portela, por este ter proferido calúnias acerca de sua moral. A moça, após titubear por
alguns instantes, irrompe em fúria e confessa seu crime: havia de fato assassinado o pobre
animal. O choque estampa-se na face de todos. Ao ser indagada do motivo para tal ato,
Silene apenas responde: "Nojo. Ódio. Gata nojenta!" (pp.161,162)
A idealização de Silene feita pela família de Noronha e a crença de que a virgindade
e a pureza desta seriam os fatores que salvariam a casa são representantes de uma visão
tipicamente romântica da personagem. Esta visão, todavia, vai sendo desconstruída à
medida que a peça segue seu fluxo. Essa morte gradual dá-se através de choques entre a
ilusão criada e alimentada por Noronha e a cruel realidade de Silene, trazida à tona sempre
65
por um elemento externo. O primeiro choque- o assassinato da gata prenha- foi trazido por
Dr.Portela. O segundo e crucial foi notificado por um personagem que possui grande
importância na análise aqui proposta: Dr. Bordalo.
Dr.Bordalo (médico que fez o parto de Silene e de todas as suas irmãs) faz a
Noronha uma seríssima revelação: após examiná-la, Bordalo descobre que a menina está
chegando ao seu terceiro mês de gestação. Imediatamente, Noronha reage contra tão grave
diagnóstico:
Seu Noronha -- Mentira! Não tem nem quadris, a bacia é estreita! Diga, doutor, que é mentira!
Dr.Bordalo -- Em primeiro lugar, vocês vêem Silene com os olhos da adoração. Ela tem medidas normais.
Quanto à gravidez, não dúvida. É certo. Eu a examinei. É certo. Trate de descobrir o responsável e
providenciar o casamento.(p. 225)
É o Dr.Bordalo que abre os olhos de Noronha e lhe mostra a realidade. Tem-se aqui
mais um embate simbólico entre o ideal romântico e a veracidade realista, representados,
respectivamente, por Noronha e o Dr.Bordalo. Noronha, imerso em seu ideal de pureza
acerca de Silene, recusa-se a crer que esta teria perdido a virgindade. Noronha, ante a
destruição de seu sonho, chega a comparar Silene com uma virgem de vitral de igreja:
Seu Noronha -- O senhor não entende nada de pureza, de inocência...O senhor viu, na igreja, uma virgem
de vitral? Escute: de tarde, o sol bate na igreja...E a luz atravessa a virgem... Assim é Silene -- uma virgem
atravessada de luz...E de tanto adorar minha filha, eu descobri que, entre todas as meninas da Terra, ela é
virgem e só ela é menina...Mas se está grávida...(p.168)
Logo após tal notícia, o médico e Noronha vão até a sala e eis que o chefe da família
a notícia para suas filhas e sua esposa. O desespero toma conta da família. Assim como
Noronha, as irmãs de Silene e sua mãe tinham forte crença na salvação da família através
da pureza da caçula da família. Mediante forte inquérito por parte de seu pai, Silene afirma
que o pai de seu filho é um homem casado e que não abandonaria a esposa por ela. Tendo a
virgindade de Silene sido rompida, o sonho de salvação das demais filhas de Noronha dilui-
se por completo. Silene era a única razão para ainda estarem juntas, naquela casa, todas as
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suas irmãs, prostituindo-se nas ruas para ganhar dinheiro para seu enxoval e suportando as
grosserias e brutalidades de Seu Noronha. Eis que, num surto, Noronha propõe à sua
família uma sinistra idéia:
“Seu” Noronha -- Ouçam a idéia! Eu não vou mais voltar para a Câmara, não senhor, e por quê? Ah não! Vou
ficar em casa, porque o que vocês ganhariam, lá fora, vão ganhar aqui, aqui!
Dr.Bordalo -- O senhor Está propondo um bordel de filhas!
“Seu” Noronha -- Por que não? Olha: eu não vou mais servir cafezinho, nem água gelada, a deputado
nenhum!(para as filhas) vocês também podem largar o emprego!(para o médico, num riso sórdido)O emprego
das minhas filhas é uma máscara! Tive outra idéia: o senhor quer começar? Quer ser o primeiro?(p.173)
Eis que a destruição do ideal de Noronha, que viria a ser como uma espécie de
redenção para ele e para sua família, acaba por ser uma possibilidade de libertação de sua
humilhante condição de contínuo da Câmara dos Deputados. Envergonhado e enojado de
sua própria profissão, dado o tamanho desprestígio com que ela é vista, Noronha, ao saber
que sua filha mais nova enganou a família, julga-a tão (ou mais) meretriz que suas demais
filhas, e, num rompante de raiva e alucinação, tem a sombria idéia: prostituir todas as suas
filhas, incluindo Silene, em sua própria casa e ganhar dinheiro dessa forma. De uma forma
ou de outra, sendo pura ou não, ironicamente, Silene salvaria Noronha...A passagem ainda
mostra Noronha dando ao Dr.Bordalo a possibilidade de ser o primeiro cliente. Silene nega-
se, mas Noronha a ameaça: caso não vá, terá sua gravidez destruída por seu pai, a pontapés.
Dr. Bordalo espanta-se com o fato de, diante de tal cena, não protestarem nem D.Aracy e
nem as irmãs de Silene (com exceção de Aurora, que chega a oferecer-se para ir no lugar da
irmã caçula). Bordalo, atônito, exclama: “Vocês têm uma alma e... Ou não têm alma?...Mas
se não fogem é que são escravos uns dos outros...”, “Nem elas se livram de mim, nem eu
me livro delas!”(p.174), responde o patriarca da família.
O fato de estarem tão atrelados uns aos outros dentro da casa revela ao público um
ambiente marcado por uma coletividade doentia, uma família caracterizada por fantasmas
como a prostituição, a violência e a mentira que, apesar da aura de infelicidade e frustração,
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não consegue que seus elementos se desprendam uns dos outros. Mesmo após a descoberta
acerca de Silene, nenhuma das filhas de Noronha protesta contra sua decisão de prostituir a
caçula ou resolve abandonar a casa. A ligação entre todos é forte. Esse estranho senso de
coletividade é um traço claramente naturalista destes personagens. Após a queda do ideal
acerca de Silene, Noronha diz que a família pode finalmente entregar-se à podridão.
D.Aracy revela que foi ela a autora dos palavreados e desenhos chulos nas paredes do
banheiro. Dada a sua frustração imensa por ficar enclausurada em casa e ter um marido
distante que não mais a procura sexualmente, D.Aracy escrevia tais coisas nos azulejos do
banheiro apenas para extravasar. Entretanto, esquecera-se de apagar no dia anterior. Arlete
revela-se lésbica. O desespero toma conta de Bordalo: no meio de uma casa onde cada
pessoa possui um quê de podre -- algo a esconder da sociedade -- o próprio Doutor vê-se
contaminado por aquele ambiente e começa a sentir-se tentado pela vil proposta de “Seu”
Noronha: “Silene, eu tenho uma filha de sua idade... E se eu tocasse em você (faz no ar uma
carícia) eu não poderia beijar minha filha, nunca mais...Você é tão linda (grita) Silene! Teu
nome é uma dália!”(p. 231)
Mas, por fim, o Dr.Bordalo cede. Antes de ir ao encontro de Silene, o outrora bom
médico pede para que Aurora cuspa em sua cara. Toda essa passagem é bastante
significativa para nosso estudo. Bordalo, um médico, é um homem extremamente sensato,
racional, dotado de um espírito paternal raro. Fez o parto de todas as filhas de D.Aracy e
Seu Noronha gaba-se disso, e ainda Silene, a mais nova, como um bebê. O fato de ter
uma filha exatamente da mesma idade da caçula de Noronha também o aproxima da moça.
O que se observa ao longo do segundo ato da peça é a degradação de Dr.Bordalo. À medida
que vai tendo mais contato com os segredos sombrios da família de Noronha, Bordalo vê-se
acuado entre seu próprio senso de ética e a insuportável verdade que lhe é imposta: é tão
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canalha quanto os demais na casa. Ao ser oferecida a ele Silene, Bordalo, ainda que
sentindo-se sujo e afirmando que seria incapaz de beijar a própria filha caso cometesse tal
ato, sucumbe e aceita a oferta de Noronha. Sabe-se que a figura do médico é extremamente
valorizada nas ginas naturalistas, dada, por exemplo, a medicalização da linguagem às
vezes excessiva que permeia as obras do referido período. Enquanto símbolo do ideal
naturalista, tal qual o Dr. Lobão (de O Homem, já mencionado neste trabalho), Bordalo tem
sua moral abalada justamente através de uma máxima naturalista: o comportamento de um
ser é determinado por seu meio. Em contato com o meio da casa de Noronha, o médico vê-
se bombardeado pelas revelações e pela podridão que assola a família, e então se descobre
tão podre quanto eles, o humano quanto eles. Seu choque é tamanho que, pouco mais à
frente, Bordalo não suporta tal verdade e comete suicídio, enforcando-se. Ao lado de seu
corpo, um bilhete:-“Não quero que minha filha me beije no caixão.”(p.189)
O terceiro ato se inicia com uma sessão espírita, na qual Hilda, uma das filhas de
Noronha, incorpora o espírito de uma pessoa da família: o primo Alípio. Alípio reforça os
demais da família da idéia do homem que chora por um olho que estava desgraçando
todas as filhas de Noronha, e ainda prossegue: diz que este homem apareceria na casa de
Noronha, “vestido de virgem” (p.182), e que o chefe da família deveria matá-lo enquanto
dormia, com uma punhalada em seu coração. Aurora, todavia, convence o pai e o restante
da família de que, ao invés de procurarem o suposto homem que chora por um olho,
“Seu” Noronha deveria preocupar-se em encontrar o homem que tirou a virgindade de
Silene. Aurora convence a todos que seu namorado, Bibelot, mataria o tipo se ela assim lhe
pedisse. Ao inquirir Silene a respeito da identidade do seu agressor, a menina revela a
Aurora que a culpa não fora dele, mas toda dela, que todo o envolvimento ocorreu
porque ela insistiu. Ao ouvir a descrição do homem que tirou a virgindade de Silene,
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Aurora surpreende-se: esposa doente, terno branco, apelido gozado...Aurora entende no
mesmo minuto que o homem que tirou a virgindade de Silene na verdade fora Bibelot, e
que o tal “broto” de quem Bibelot tanto lhe falara era Silene. Aurora, a única que ficara do
lado da irmã após a revelação de sua gravidez, percebe neste momento que, ironicamente,
teria que disputar seu amado com sua própria irmã. Todavia, quando chega à casa de
Aurora, Bibelot lhe revela que sua esposa está para morrer, e que provavelmente não
passaria daquela noite. Aurora alegra-se com a notícia, pois não mais teria que dividir o
homem que tanto ama com alguém, porém, sua alegria acaba quando Bibelot a lembra de
que “precisa de uma mulher em casa e outra na zona” (p.204). Ao Recusar-se a dizer que a
ama e afirmando que somente a queria para ser a mulher “da zona”, Bibelot destrói
definitivamente todas as aspirações amorosas de Aurora. Ao indagar quem seria sua futura
esposa, Bibelot, sem titubear, lhe responde: --“O brotinho, o tal broto!”(p.208). Antes de se
deitar no quarto de Aurora para dormir um pouco, Bibelot esvazia o tamborim de seu
revólver e entrega-o para Aurora. “Teu amor virou ódio, você pode me fazer uma falseta...
queres me matar? Mata!”(p.209). Aurora empunha a arma sem balas em direção ao peito de
Bibelot e puxa o gatilho, diversas vezes. Beija-o, deixa-o dormindo e sai. Na sala,
comunica à sua família que o homem que desgraçou Silene está em seu quarto, dormindo.
Todas as filhas e D.Aracy testemunham Noronha entrar no quarto e assassinar Bibelot, com
uma única punhalada no peito. Entretanto, ao observarem o rosto do rapaz morto, notam
que ele chora pelos dois olhos. Bibelot não era o homem certo. A revolta toma conta da
família de Noronha. Após acusar o pai de ter prostituído Silene, Arlete confessa um último
segredo: somente prostituiu-se porque o pai assim quis, mandando um deputado ir procurá-
la. Noronha, acuado, confessa que fora o responsável pela prostituição das filhas ao enviar
deputados para ter com elas encontros íntimos. Em ódio profundo, as filhas de “Seu”
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Noronha vêem que este chora... por um olho só. Revelada a identidade do homem que
desgraçou a família, Arlete ergue o punhal e, seguida por suas irmãs, fim ao próprio pai.
Fim da peça.
De classe baixa e permeada por uma série de conflitos de ordem sexual e social, a
família de “Seu” Noronha poderia perfeitamente ser encaixada em qualquer romance
naturalista do século XIX. Algumas das situações ocorridas na casa assumem um tom que
por vezes nos remete para a chanchada, da qual se falou em tópicos anteriores,
especialmente em situações que beiram o ridículo (como os palavreados escritos no
banheiro), o popular (o apelo místico excessivo com as sessões espíritas e as incorporações
espirituais) e o senso de bizarro e grotesco(a morte da gata a pauladas, a queda de caráter de
Dr.Bordalo, etc.). Mas uma das maiores questões a serem levantadas acerca de Os sete
gatinhos é a relação da família de Noronha com a sociedade. “Seu” Noronha decide a todo
custo fazer com que sua filha mais nova se case apenas para poder limpar sua imagem e
prestar contas à sociedade que constantemente o humilha por sua condição de contínuo.
Quando Noronha expõe todas as deformações morais de sua família ao Dr.Bordalo, ele não
apenas se afirma perante o médico, mas perante a sociedade. Ao fazer com que o outrora
bom doutor sucumba e ter com Silene um encontro sexual, simbolicamente falando,
Noronha consegue fazer com que a sociedade, que tanto o julgara e o inferiorizara, mostre-
se tão impura quanto ele mesmo.A sociedade se mostra hipócrita, e Noronha, satisfeito,
sente-se vingado. Vale lembrar que Noronha, ao prostituir sua filha mais nova com o
Dr.Bordalo, está abandonando seu cargo de contínuo--que tanto lhe trouxe vergonha e
sentimento de inferioridade--para ganhar dinheiro vendendo o corpo das filhas. O mesmo
Noronha, outrora elemento julgado, passa a ser o elemento que julga, colocando a
sociedade contra a parede (simbolizada pelo Dr.Bordalo) e julgando suas filhas -- apesar de
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ser ele mesmo o responsável pela desgraça moral que tanto lamenta. Se em obras
naturalistas do século XIX os personagens não operavam alguma espécie de conflito com a
sociedade, aqui, nesse “neo-naturalismo dramático” que tanto caracteriza Os sete gatinhos,
tal embate se faz bastante presente.
.Anjo negro
A peça Anjo Negro traz à tona um dos temas mais pertinentes à análise naturalista: a
questão racial. Logo no início do primeiro ato tem-se um enterro de uma criança, um
menino filho do casal Ismael e Virgínia. O coro das senhoras traz ao público forte
discussão racial:
Senhora(polêmica)-Mulato! Senhora (doce) -- Um menino tão forte e tão lindo!
Senhora (patética) -- De repente, morreu!
Senhora (doce) -- Moreninho, moreninho!
Senhora -- Moreno não. Não era moreno!
Senhora (polêmica) -- Preto!
Senhora (polêmica) -- Moreno!
Senhora (em pânico) -- Meu deus do céu, tenho medo de preto!(p.p.07,08)
O coro das senhoras prossegue, e traz à tona um pouco da história do casal Ismael e
Virginía. Esse seria o terceiro filho do casal que havia morrido sob misteriosas
circunstâncias.O coro das senhoras defende a idéia de que, por ser filho de uma união de
um negro com uma branca, a criança estaria amaldiçoada, fadada a morrer. No decorrer da
peça de Nelson Rodrigues, muitos dos personagens possuem internalizados um discurso
raciológico no qual o indivíduo negro é assumidamente inferior ao branco, seja por
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questões intelectuais ou sociais. É o que fica evidente na cena seguinte, quando um
vagabundo cego e branco vem à procura de Ismael. Ao tentar obter informações com quatro
coveiros negros, tem-se o seguinte diálogo: Preto -- Vamos levar o filho do homem, que morreu.
Preto -- De repente.
Cego – Diga -- ele se chama Ismael?
Preto -- O doutor? Sim, e que médico!
Cego -- Preto, não é preto?
Preto -- Mas de muita competência!(para os outros). Minto?(p.10)
O fato de ser negro seria um motivo para atestar a falta de capacidade de Ismael. É
quase irônico notar que tal julgamento racial foi feito por um próprio negro. Essa simples
passagem é bastante significativa para a análise aqui proposta: mais do que meramente
idêntica, a afirmação do coveiro negro mostra-se como um eco, um resquício do processo
ocorrido no século XIX, quando intelectuais brasileiros assimilavam as teorias raciológicas
deterministas. Tal comportamento implica que o negro e o mestiço, na prática, punham a si
mesmos numa condição inferior à do homem branco. Pensemos: tendo a referida peça de
Nelson Rodrigues sido escrita perto da metade do século XX (a peça foi escrita em
1946), é de notar que o ideário cientificista do culo XIX deixou, de fato, forte rastro na
cultura brasileira. Ainda no mesmo diálogo, os coveiros revelam ao cego que o Dr.Ismael
possui ódio mortal de homens brancos, e por tal razão não o aconselham a vê-lo. Todavia, o
cego ronda a casa e consegue ir ao encontro de Ismael. Neste ponto, tem-se a revelação:
Elias, o cego branco com aspecto de vagabundo, é irmão de criação de Ismael. Odiado e
sempre surrado por seu irmão negro, Elias vem até Ismael para saber sobre seu filho morto.
Ao falar sobre a morte de seu filho, o médico negro diz:
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Ismael (caindo em abstração) -- Deus marcou minha vida, eu sei que é Ele, pode ser Ele. Ninguém sabe
como foi: Virgínia se distraiu por um momento, um segundo, e o menino desapareceu.( com excitação) Não
estava em lugar nenhum.(com espanto) Então eu me lembrei: o tanque! Fui correndo- ele estava pousado no
fundo do tanque, muito quieto- e morto. Mas a água é tão rasa, bate na cintura de uma criança. Ele não podia
ter-se afogado ali!
Elias -- Devia ser uma criança linda!
Ismael -- É o terceiro que morre. Todos morrem.(com veemência) Eles não se criam-ouviste?-não se criam.
Nenhum, nenhum! (muda de tom) Você não verá meu filho! Não quero que ninguém veja. A não ser eu e a
mãe dele-nós dois, ninguém mais! (p.13)
Nesse ponto Elias revela a Ismael que sua mãe mandara um aviso: uma maldição.
Um certo misticismo ronda as vidas de Ismael e Virgínia, seja pela crença da ira divina,
seja pela suposta "maldição" enviada pela mãe de Ismael. Após banir Elias de sua casa e até
mesmo ameaçá-lo com um chicote, Ismael permite que seu irmão fique na casa por uma
noite, mas adverte-o: o cego não deve sair de seu quarto, e sequer deve cogitar a idéia de
falar com Virgínia, a esposa de Ismael. Na cena seguida, tem-se um tenso diálogo entre
Ismael e sua esposa, no qual mais um dado é revelado ao público: Virgínia é mantida
enclausurada dentro de sua própria casa, proibida de andar até mesmo por entre os
corredores, afastada do contato com qualquer homem que não seja seu marido. Em
desespero, Virgínia chega a pedir a Ismael que ponha dentro de seu quarto um quadro de
Jesus Cristo, ao que Ismael recusa, pois ele não permitiria que ninguém olhasse para sua
esposa, muito menos uma imagem de Jesus branco, com fisionomia composta por traços
afinados. "Se fosse um Cristo cego, não tinha importância."(p.19), salienta Virgínia. Em
sua obsessão por afastar a esposa do olhar de qualquer outro homem, Ismael revela, muito
mais do que ciúme, seu repúdio pela sociedade, dominada pelos homens brancos:
Ismael -- Não quero, não deixo! Se eu quis viver aqui, se fiz esses muros; se juntei dinheiro, muito; se
ninguém entra na minha casa- é porque estou fugindo. Fugindo do desejo dos outros homens. Se mandei abrir
janelas muito altas, muito, foi para isso, para que você esquecesse, para que a memória morresse em você
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para sempre.(com uma paixão absoluta) Virgínia, olha para mim, assim! eu fiz tudo isso para que existisse
eu. Compreende agora? Não existe rosto nenhum, nenhum rosto branco!-só o meu, que é preto...(p.19)
Durante o velório de seu filho, Virgínia em momento algum vai vê-lo, fato este
ressaltado por Ismael. Virgínia deixa seu quarto após o fim do velório de seu filho,
que Ismael acompanharia o corpo até o cemitério. Com isso, Virgínia poderia contrariar a
proibição de seu marido e caminhar pela casa. Entretanto, Virgínia encontra resistência em
Hortênsia, empregada negra da casa, que segue as ordens de seu patrão e a mantém
trancafiada. Ao saber que Ismael possui um irmão branco e cego que está em sua casa,
imediatamente Virgínia remete à imagem do Cristo cego e branco que ela havia
previamente desejado e fica ensandecida, insistindo ainda mais para que Hortênsia a liberte.
Somente após oferecer uma boa quantia em dinheiro para a negra, Virgínia consegue ir ao
encontro de seu "Cristo cego". Virgínia demonstra um misto de deleite e alívio por poder
olhar para um homem que não Ismael- e ainda por cima branco. Durante a conversa, Elias
conta a Virgínia vários fatos sobre a história de Ismael, como o ódio que este possuía, desde
jovem, de sua própria cor. Ismael chegou a tirar da parede de sua casa um retrato de São
Jorge, por ser este, supostamente, um "santo de preto"(p.29).Certa feita, Ismael foge de
casa após, enraivecido, afirmar para sua mãe:-"sou negro por tua causa."(p.29). Elias ainda
revela a Virgínia que sua cegueira deu-se por um ato de maldade de seu irmão de criação:
cuidando de um problema de saúde que atormentava os olhos de seu irmão, Ismael troca
seus remédios, e provoca a cegueira do rapaz. Tal revelação apenas aumenta o repúdio que
Virgínia tem por seu marido. Nesse diálogo, indagada do motivo de ter-se casado com
Ismael, Virgínia lhe conta sobre sua soturna história: criada por uma tia viúva que tinha
cinco filhas, Virgínia cobiçava o noivo da mais nova de todas- um rapaz branco, de feições
finas, parecido com Elias. Certa feita, Virgínia e o referido rapaz se beijam, e são flagrados
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por sua tia viúva e a noiva do rapaz. Nenhuma palavra é dita. O noivo desaparece e a caçula
da família, perturbada com a traição, comete suicídio. Por ordem da própria tia, Ismael,
apaixonado por Virgínia algum tempo, adentra seu quarto e a estupra. "Sempre foi o
sonho dele violar uma branca..." (p.32) -- diz Elias acerca de seu irmão ao ouvir tal
revelação.
Virgínia (com rancor) -- Foi ela, minha tia, quem chamou Ismael, apontou a escada, que disse:"Deixe que ela
grite, deixa ela gritar..." Ismael comprou a casa e, no dia seguinte, ela e as três virgens partiram. Voltaram
trinta dias depois, para o casamento. E agora, quando um filho meu nasce ou morre- a mãe e as filhas vêm
assistir ao parto ou ao enterro. Querem ver se o filho que nasce ou que morre é preto...(espantada)(p. 34)
Os primeiros fatos bizarros sobre a união de Virgínia e Ismael são revelados, e já
dão à peça um pouco da tônica doentia pertinente a personagens tipicamente naturalistas: a
cobiça de Virgínia pelo noivo de sua prima, a obsessão do negro Dr.Ismael pela branca
Virgínia, o estupro mandado por sua tia viúva. Elias, o “Cristo cego” de Virgínia, lhe
propõe uma fuga como salvação desta prisão de vida. Mas Virgínia lhe pede uma outra
maneira de salvação: um filho branco, que todos os filhos negros por ela gerados seriam
malditos e iriam morrer. A breve, porém forte, ligação entre os dois personagens toma
proporções de paixão e loucura. Ao afirmar que Ismael a mataria caso soubesse de seu
adultério, Elias, no pico de sua embriaguez amorosa, afirma:-“Elias-(caindo em abstração)-
Seria tão bom que você morresse; assim nem ele, nem nenhum homem-ninguém mais
tocaria em você(...) Eu é que deveria ser teu assassino, e não ele- eu!” (pp. 39,40). A obra
rodriguiana é rodeada por um ambiente no qual, em diversos momentos, os personagens
transitam a tênue linha entre a sandice e a lucidez. Todos os que entram em contato com a
casa, com seus ares de tragédia, maldição e morte acabam por, em algum momento,
expressar algum traço patológico. Elias surge quase como uma antítese de Ismael(branco,
mentalmente são e vitimado por seu irmão negro). Todavia, ao entrar em contato com o
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ambiente da casa, e, em especial, ao apaixonar-se por Virgínia, paulatinamente o “Cristo
cego” mostra uma outra faceta, e chega a afirmar que mataria sua amada apenas para que
ela não fosse tocada por homem algum, muito menos por seu irmão, Ismael. Talvez não
seja forçoso afirmar que essa passagem remete à máxima naturalista que diz que o
comportamento do indivíduo é determinado por seu meio. Ora, não teve Elias justamente
seu comportamento “contaminado” por esse estranho “meio” de seu irmão?
Nesse momento da peça, Virgínia mostra-se fria com Elias, a ponto de negar a
veracidade e a intensidade do rápido envolvimento carnal/amoroso de ambos. Elias sai do
quarto, mas dizendo que não iria embora da casa. Entram então em cena as primas e a tia de
Virgínia, inquirindo-a acerca do belo homem cego que haviam acabado de ver saindo de
seu quarto. O diálogo segue tenso, com a tia de Virgínia acusando-a de ter um amante.
Virgínia defende-se dizendo:
Virgínia -- (...) Se a senhora soubesse por que me entreguei, se soubesse o motivo que eu tenho- um grande
motivo!...Deus que no meu coração, que na minha carne, sabe que não foi desejo...Se soubesse como me
sinto feliz. Hoje minha cama está pura -- uma virgem pode deitar-se ali, sem medo nenhum, uma virgem, uma
menina...(p.45)
Virgínia encara sua traição como quase como uma “tarefa divina”: a de gerar um
filho branco com seu “Cristo cego”. Deixando um pouco de lado os delírios de Virgínia,
uma breve (e um pouco ousada) comparação pode ser estabelecida aqui a título de
curiosidade apenas: Virgínia, mulher branca, inferioriza e renega seus filhos mestiços, além
de nutrir por seu marido, o negro Ismael, um sinistro misto de medo, asco e ódio. Virgínia
afirma a sua tia que seu leito estaria puro, pois ela se havia envolvido carnalmente com um
homem de sua raça. A criança branca que seu ventre geraria é vista por ela não apenas
como uma espécie de “novo messias”, mas como uma salvação para a maldição da soturna
casa. O quadro em questão, metaforicamente, muito se assemelha à situação ocorrida no
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Brasil durante o final do século XIX, época do auge das idéias cientificistas: a tentativa de
“branqueamento” da população, fazendo com que o Brasil não fosse caracterizado por uma
maioria negra, indígena ou mestiça. A situação de Virgínia e Ismael pode ser encarada
como uma alegoria para o quadro social brasileiro do referido período, tendo Ismael
representado a raça negra como um todo, discriminada e socialmente marginalizada, e
Virgínia a raça branca, racista, buscando uma linhagem de pureza para sua família (a qual,
junto da casa de ambos, pode ser metaforicamente relacionada à sociedade brasileira).
Ainda que a referida metáfora levante algumas discussões, como a “justiça poética” (ou
seria “contradição sócio-histórica?”) existente no fato de o elemento branco (Virgínia) ser
oprimido pelo negro (Ismael), a proposta alegórica remete a uma das propostas-base do
Naturalismo: a tentativa de explicar a sociedade brasileira, através de uma série de teorias
científicas, nas páginas de romances longos e detalhistas. Um bom exemplo está na obra O
Cortiço, na qual tem-se uma metáfora caracterizadora do processo de formação do Brasil
com o elemento português (João Romão) vindo para estas terras e acumulando capital aqui
e estabelecendo a escravidão(representada pela negra Bertoleza).
O fatídico episódio no qual Virgínia roubou o noivo de uma de suas primas é
sempre mencionado por sua tia; ele alimenta sua sede de vingança e seu ódio pela sobrinha.
A tia de Virgínia e suas primas percebem seu desprezo pelos próprios filhos (“Os filhos de
Ismael”(p.47), reitera Virgínia) , e fazem questão de ressaltar o fato constantemente. A tia
de Virgínia jura que contará a Ismael o adultério cometido por sua esposa, a fim de ter sua
vingança. Ismael chega em seguida, e estranha a doçura com que é tratado por sua esposa.
Virgínia tenta dissimular, para que seu marido não suspeite de sua traição. Mas seus
esforços são em vão: Ismael não oculta seu espanto e desconfiança com a mudança de
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Virgínia, ressaltando sempre o asco que esta sempre sentiu e ainda sente pelo sexo com o
negro. A estranheza de Ismael pelo doce tratamento de Virgínia chega ao ponto de indagá-
la acerca do sentimento de ódio que esta nutre pelos filhos do casal:
Ismael -- Por que odiaste meus filhos? (...) Antes deles nascerem, quando estavam ainda no teu ventre -- tu já
os odiava. Porque eram meus filhos...Levanta o rosto! Minto? E porque eram pretos e se pareciam comigo. Tu
mesma disseste -- que tinham o meu rosto... (p.51)
Virgínia diz que o destino de seus filhos era a morte, pois eram todos negros. Mas Ismael
retruca com a verdade: fora Virgínia sempre a responsável pela morte das crianças.
Ismael Mataste (baixa a voz) Assassinaste.(com violência contida) Não foi o destino: foste tu, foram tuas
mãos, estas mãos...Um por um. Este último, o de hoje, tu mesma o levaste, pela mão. Não lhe disseste uma
palavra dura, não o assustaste; nunca foste tão doce. Junto do tanque, ainda o beijaste; depois, olhaste em
torno. Não me viste, em cima, te espiando...Então, rápida e prática -- tinhas matado dois-, tapaste a boca
do meu filho, para que ele não gritasse...Só fugiste quando ele não se mexia mais no fundo do tanque... (p. 52)
Virgínia admite ter assassinado os três filhos que tivera com Ismael (os dois
anteriores, envenenados) e pergunta a Ismael por que este nunca havia tentado impedi-la.
Ismael responde que os crimes de Virgínia uniam os dois ainda mais, e que seu desejo por
ela apenas crescia ao saber que era ela assassina. Mais uma vez a atmosfera de patologia se
faz presente no universo rodriguiano com a estranha revelação de Ismael, cujo amor e
desejo são alimentados pelo ódio. Virgínia assume seu asco pelos filhos negros: “Eu queria
livrar minha casa de meninos pretos. Destruir, um por um, até o último. Não queria
acariciar um filho preto... (estranha) Ismael, é preciso destruí-los, todos...” (p. 53). Ismael
afirma que o casal haveria de ter mais um filho, mas que este, ao contrário dos anteriores,
Ismael não permitiria morrer. Virgínia então afirma ter se tornado uma mulher diferente e
que aceitaria os filhos de Ismael. Afirma até mesmo que o ama, após tantos anos, e que não
mais sente asco pelo negro. Justamente ao tentar convencer Ismael a nunca mais dar
ouvidos a sua tia (que poderia denunciar o adultério de Virgínia) é que esta surge e revela a
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Ismael que sua esposa o traíra com Elias, seu irmão cego, para ter um filho branco.
Transtornado, Ismael afirma:
Ismael -- É castigo...Sempre tive ódio de ser negro. Desprezei, e não devia, meu suor de preto...Só desejei o
ventre das mulheres brancas...Odiei minha mãe, porque nasci de cor...Invejei Elias porque tinha o peito
claro...Agora estou pagando...Um Cristo preto marcou minha carne...Tudo porque desprezei o meu suor...
(p.55)
Ismael sente-se vítima de sua própria segregação racial, chegando, ainda que
somente por um breve momento, a arrepender-se. Ismael expulsa de sua casa a tia de
Virgínia e suas primas. É nesse momento que se tem uma das passagens mais interessantes
para a presente análise. Se em momentos antes Virgínia jurava seu amor a Ismael para
tentar salvar-se da ira do marido, agora, enfrentando-o, reafirma seu ódio e nojo por ele.
Entretanto, na mesma narrativa a personagem sofre uma mudança de atitude quando Ismael
afirma que faria com a criança que estava por vir o mesmo que Virgínia fez com os filhos
anteriores e cai em absurda incoerência, negando novamente o horror que sente por Ismael
e afirmando que em seu adultério houve um amor que nunca sentira antes -- o que nega,
pouco depois. Virgínia, para salvar seu filho, na ânsia de provar que o amante não significa
nada para ela, revela a Ismael que seu irmão cego não fugiu, e que estava no quarto abaixo,
à espera de Virgínia. Ismael propõe a Virgínia que esta desça e chame Elias até o quarto, o
que ela faz com muito sofrimento. Ismael deseja ver com os próprios olhos que homem é
esse, “que ama como um anjo; cujo desejo não é triste, nem vil...” (p.61). O segundo ato
aproxima-se do fim, bem como a vida de Elias. Em seu último diálogo com Virgínia, Elias
afirma que a esposa de seu irmão fora a primeira mulher de sua vida. Em seguida, Ismael
saca seu revólver e atira no rosto de Elias.
É interessante notar que ao longo da peça tem-se a associação da figura de Elias
com várias imagens que remetem à pureza, à bondade e até mesmo à imagem de Cristo em
80
si. Antes de encontrar Virgínia, Elias era virgem. Ao mesmo tempo que com Virgínia Elias
perde sua “pureza”, é também devido a ela que ele perde sua vida, que ela é obrigada a
levá-lo até seu algoz, Ismael. É nesse momento que se nota em Virgínia uma interessante
dualidade: numa mesma personagem situam-se características românticas e
realistas/naturalistas. Virgínia, em sua face realista/naturalista, é uma mulher dissimulada,
mentirosa, que engana e manipula dois irmãos (Elias, ao levá-lo até a morte e Ismael, ao
dizer que o ama para salvar a própria vida), além de ter cometido adultério apenas para
poder ter um filho branco. Entretanto, Virgínia ao mesmo tempo tem atitudes românticas ao
enxergar em Elias a plenitude de um amor puro, além de ser capaz de, ainda que sôfrega,
sacrificar a vida dele pela do filho que viria a nascer. Além do que, durante seu contato com
Elias, Virgínia manifesta um desejo bastante pertinente aos românticos: a morte por amor
(p. 40). Tal comportamento dicotômico é uma marca do período moderno, e pode ser visto
em diversos outros personagens ao longo da obra rodriguiana.
Quinze anos separam o segundo do terceiro ato. O fruto do adultério de Virgínia já é
nascido: Ana Maria, uma linda adolescente cega, evidentemente branca. no início do ato
surgem Virgínia e Ismael em tenso diálogo acerca de uma mulher que recentemente fora
estuprada e morta perto da casa de ambos. Ao ser indagado porque não tentou acudir a
moça, Ismael afirma não tê-lo feito por ser a vítima uma estranha, uma desconhecida, assim
como todas as demais -- exceto Ana Maria, sua filha. Ismael conta a Virgínia que nem
mesmo a ela salvaria de ser estuprada e morta. Durante o diálogo de ambos, diversos dados
sobre a estranha relação de Ismael e Virgínia retratam a soturna relação entre ambos.
Ismael nutre por Ana Maria uma adoração intensa, a ponto de chamá-la de sua filha. O
amor e a aproximação de ambos dá-se justamente por Virgínia ter gerado uma filha, e não
81
um filho: desde a trágica morte de Elias, Virgínia clamava que amaria seu filho não com o
amor de mãe, mas com um amor de mulher para com um homem. O filho de Elias seria
uma espécie de vingador, um homem que mataria Ismael e tomaria Virgínia de seus braços.
Porém, para o alívio de Ismael e desespero de Virgínia, foi gerada uma menina. Ismael,
assim que viu Ana Maria nascer, pôs em prática um sinistro plano:
Virgínia-(...) Quando Ana Maria nasceu, o que é que você fez? Se debruçava sobre a caminha. Durante meses
e meses vocês dois e mais ninguém no quarto; você olhando para ela e ela olhando para você. Assim horas e
horas. Você queria que ela fixasse sua cor e a cor de seu terno: queria que a menina guardasse bem o preto de
branco. Você não falava, Ismael, para que ela mais tarde não identificasse sua voz. Um dia, você a levou. Ana
Maria tinha um ano, dois anos, seis meses, não sei, não sei...Você a levou e eu pensei que fosse para afogá-la
no poço; e até para enterrá-la viva no jardim não pensei que você fosse fazer o que fez- uma criança, uma
inocente-e você pingou ácido nos olhos dela- ácido! Você fez isso, fez, Ismael?(p. 69)
No terceiro ato de Anjo Negro a morbidez e a patologia atingem níveis que beiram o
absurdo. Ismael engana sua filha cega afirmando ser branco, e incutindo nela uma raiva
mortal contra os negros. Virgínia tem uma relação restrita com sua filha, pois o tempo todo
Ismael está por perto. Virgínia, sob os auspícios de Ismael, conta à sua filha toda a verdade
sobre seu verdadeiro pai e toda a história de dor e sangue que precedeu seu nascimento,
além do fato de ter tido sua visão tirada por Ismael e de este ser negro. É nesse momento
que Ana Maria revela-se não uma menina pura e ingênua como todos à volta idealizavam.
Além de não crer nas palavras da própria mãe, Ana Maria ainda faz uma revelação: mantém
com Ismael uma relação de homem e mulher. Chocada, Virgínia nesse ponto admite para
Ana Maria que sempre mentira a respeito de seu amor por ela, e que sempre a vira como
uma inimiga. Tendo falhado em seu intento de pôr Ana Maria contra Ismael, Virgínia, em
seu último jogo de dissimulação, consegue pôr Ismael contra a jovem cega ao afirmar que
esta não o ama, mas sim ama um homem que não existe -- que ela pensa que Ismael é
branco. (“Ela te ama porque acha que és o único branco... Ama um homem que não é você,
82
que nunca existiu...”p. 93). Virgínia afirma que o asco que antes sentia era uma mentira, e
que aceita Ismael como ele realmente é: negro.
Virgínia -- Menti muito, menti outras vezes, mas desta vez não. Espia nos meus olhos. Bem nos meus olhos.
Eu não sabia que te amava, mas minha carne pedia por ti. Mas agora sei! Tu me expulsaste, e eu não quero ser
livre, não quero partir -- nunca...Ficarei aqui, até morrer, Ismael...(p. 93)
Assim como um dia Virgínia levara Elias, seu amor cego, até a morte, Ismael faz o
mesmo ao conduzir Ana Maria até um mausoléu e trancafiá-la dentro, condenada a
morrer. Ao término da peça, enquanto a adolescente cega se debate cada vez mais
lentamente dentro de seu confinamento, o coro das senhoras prediz o destino de Ismael e
Virgínia:
Senhora -- Ó branca Virgínia!
Senhora -- Mãe de pouco amor
Senhora -- Em nosso ventre existe um novo filho!
Senhora -- Ainda não é carne, ainda não tem cor!
Senhora -- Futuro anjo negro que morrerá como os outros!
Senhora -- Que matareis com vossas mãos!
Senhora -- Ó Virgínia, Ismael!
Senhora -- Vosso amor, vosso ódio não têm fim neste mundo!
Todas -- Branca Virgínia...
Todas -- Negro Ismael... ( p. 96)
A herança naturalista em Anjo Negro se faz bastante presente ao longo da peça em
diversos momentos. O comportamento de muitos (senão todos) os personagens da trama é
de alguma maneira marcado por alguma forma de patologia ou desvio comportamental.
Conforme mencionado na presente análise, tem-se a impressão de que o ambiente onde
todos habitam é marcado pela estranha aura de doença e morbidez geradora de atos de
83
incesto, assassinatos, dissimulações e máculas corporais. A discussão racial, também tema-
chave do período naturalista, é o tema central da peça, ainda que sob uma perspectiva bem
mais social do que científica. A negação dos valores românticos é também retomada em
vários pontos do texto rodriguiano. O que particulariza a peça em relação à ótica naturalista
do século XIX é a abordagem um tanto quanto mítica da história de Ismael e Virgínia,
marcada por fatalismos previstos pelo coro das senhoras e pelas maldições da tia de
Virgínia.
4- Preâmbulo: o papel da literatura-reportagem nas letras modernas
84
É indubitável afirmar que os anos da ditadura militar, especialmente em sua fase
mais dura (o período compreendido em 1964 e 1974) tiveram um efeito impactante não
apenas na esfera política, mas na literária também. Ampliada em diversas linhas ficcionais,
a prosa brasileira vê-se extremamente afetada pelos anos iniciais da ditadura. Motivados
por um programa político centralizador e opressor, uma política econômica calcada na
concentração de renda e uma censura violenta, rios autores reagem de maneira massiva
com a chamada literatura-reportagem, tendência na qual a narrativa literária aproxima-se da
narrativa jornalística. Tal estética, logo de princípio, mostrava-se como uma nova visita dos
valores naturalistas, dada a forte ligação com a realidade em seus temas e na forma de
narrar, fria e descritiva. São as chamadas “narrativas factuais” (e não “ficcionais”). A
justificativa para o surgimento de tal produção literária é simples: tendo a imprensa sido
alvo de diversos ataques por parte do governo, ela se apropria de recursos estéticos
literários, encontrando assim um meio de denunciar com mais segurança os disparates
políticos e os absurdos sociais. Sobre o assunto, diz ainda Flora Süssekind
21
:
Literatura de olho no jornalismo”, o novo naturalismo mais ênfase à informação do que à narração. O
romance-reportagem obedece aos princípios jornalísticos da novidade, clareza, contenção e
desficcionalização. Normalmente o que se fez nos anos Setenta foi retomar casos policiais que obtiveram
sucesso na imprensa e trata-los numa reportagem mais extensa que a de jornal. A ela se deu o nome de
romance-reportagem. E não é de se estranhar que os autores de maior sucesso nessa linha(José Louzeiro, João
Antônio, Aguinaldo Silva) sejam todos jornalistas. Sua atuação literária parece apenas continuar o trabalho
nas redações de jornal. Até os assunto escolhidos, do caso Aracelli à morte de Ângela Diniz, são retirados das
páginas policiais do jornal. E recebem tratamento semelhante quando convertidos em matéria romanesca.
Quebram-se as fronteiras entre jornalismo e ficção. E o que se são notícias, informação, e não ficção.(p.
175)
E ainda sobre o período, Alfredo Bosi afirma que “o melhor da literatura feita nos anos de
regime militar bateria, portanto, a rota da contra-ideologia, que arma o indivíduo em face
do Estado autoritário e da mídia mentirosa. Ou, em outra direção, dissipa as ilusões de
21
SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance?
85
onisciência e onipotência do eu burguês, pondo a nu os seus limites e opondo-lhe a
realidade da diferença.
22
(p. 436). A tendência da literatura do referido período ainda segue
pluralizada, mas, de alguma forma, implícita ou não, promove alguma forma de choque, de
estranhamento com o real. Dentre os diversos autores e tendências, alguns optam por uma
linha urbano-materialista, concentrando suas obras em um exame frio e destrinchado de
traços mais distorcidos do comportamento de seus personagens, categorizados como tipos
sociais. Rubem Fonseca, mais do que um simples exemplo da tendência em questão, é um
escritor que torna-se bastante característico por ser um dos maiores representantes dessa
linha. Incorporando sutilmente em parte de suas obras alguns elementos da linguagem
jornalística (antecipando dessa maneira, sob certo aspecto, a dita literatura-reportagem que
seria feita nos anos setenta) e também dos populares romances policiais, Rubem Fonseca
desenvolve um estilo de narrar único, propiciando que sua obra se encaixe perfeitamente na
análise aqui proposta.
4.1-Rubem Fonseca e o “naturalismo policial”
A obra de Rubem Fonseca decerto merece uma atenção especial nos estudos
literários brasileiros. Estando listado entre os poucos autores que obtiveram
reconhecimento tanto pelo meio acadêmico quanto pelo grande público, Rubem Fonseca foi
capaz de elaborar um conjunto de obras que, em geral, se revelaram singulares, como será
mostrado ao longo das próximas páginas, principalmente pelo aproveitamento de antigos
recursos literários mesclados a novas técnicas narrativas. Visando simultaneamente a
análise do “rastro” naturalista na narrativa fonsequiana e o que distingue sua obra em
22
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira.
86
relação ao Naturalismo do séc. XIX, seguem-se algumas reflexões acerca de contos do
autor, a saber: “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”
(de Lúcia McCartney, 1967); “Feliz ano novo”, “Passeio Noturno parte I” e “Passeio
Noturno parte II” ( da obra Feliz ano novo, 1975); “O cobrador” e “Livro de ocorrências”(
de O Cobrador, 1979).
.Feliz ano novo
Tendo como protagonistas um trio de bandidos (Pereba, Zequinha e o narrador, cujo
nome não é revelado), “Feliz ano novo” tornou-se um dos contos mais célebres de Rubem
Fonseca. A linguagem abordada, direta e repleta de palavreados chulos e expressões
vulgares, aliada aos fatos narrados no decorrer da narrativa, dão a “tônica de imundície”
que torna o conto, no mínimo, chamativo. Narrado em primeira pessoa por um dos
bandidos, o conto inicia-se com o bando em seu apartamento. É o último dia do ano.
Frustrados com as condições de miséria e baixíssima higiene nas quais são obrigados a
viver, os três marginais enfatizam o tempo todo o abismo que os separa do universo em que
vivem as pessoas da classe alta:
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto. Já viu
como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem
mesmo é mostrar a boceta mas não m culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Vosabia
que a vida delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba (...)
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? (pp. 13,14)
Ainda que desgostosos da situação em que vivem, ainda momentos de certa
ironia suja da parte dos personagens. Um exemplo disso é a cena na qual Pereba, excitado
ao ter fantasias sexuais com alguma grã-fina loira, começa a se masturbar no meio da sala.
87
Zequinha surge, e ao indagar o motivo de não estar fazendo aquilo no banheiro, Pereba lhe
diz que “no banheiro um fedor danado” (p.14). O ridículo da situação apenas enfatiza a
indignação dos personagens perante o gritante abismo social que os separa da classe alta.
Os marginais então fazem o mais previsível: sacam as armas pesadas que estão estocadas
em seu prédio e saem em busca de alguma casa de ricos para saquear. Rodando no bairro
de São Conrado (uma área predominantemente de pessoas de classes mais altas), os ladrões
encontram uma casa que fica isolada, no fundo de um jardim. Dela podia ouvir-se, em bom
volume, canções de Carnaval. O alvo havia sido escolhido. Com meias no rosto servindo
como máscaras, os ousados protagonistas entram pela porta principal, anunciando: “É um
assalto! Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra de
vitrola!”(p.17). Durante o saque das jóias, cartões, dinheiro e comida dos ricos da festa,
Pereba sobe as escadas da casa com uma grã-fina gordinha, em busca da dona da casa, uma
senhora idosa e doente. Ao ver Pereba retornar sozinho, o narrador (notoriamente o líder do
bando), sobe as escadas da casa para procurar as mulheres e encontra as duas mortas. O
líder do bando decide então se aproveitar da situação:
Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da
velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo
dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco
quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei
para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou
lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu
na colcha, botei as calças e desci. (p. 18)
Não satisfeitos apenas em roubar, os bandidos promovem atos de estupro e
vandalismo, que servem, simbolicamente, como uma espécie de revanche, uma forma de
“ajustar as contas” pela diferença de classes existente entre o grupo de bandidos e os ricos.
Os bandidos ordenam que os ricos se deitem no chão, ao que um deles afirma aos
criminosos que eles poderiam levar o que quisessem, que nada lhes seria feito. O líder do
88
bando fita diretamente este ricaço:“Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o
dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós
não passávamos de três moscas no açucareiro.”(p.19). O narrador pergunta o nome do
homem rico. “Maurício”, ele lhe responde. Agindo com toda a educação do mundo, o
narrador solta seu refém e, tratando apenas como “Seu” Maurício, pede gentilmente que ele
caminhe até a parede e pare uns dois metros dela. É quando ele atira em cheio no peito de
Maurício. “O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando
lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar
um panetone.”(pág. 19). Após mais um assassinato e um estupro, o bando foge. Ao término
do conto estão reunidos os três, brindado o “reveillon”. “Que o próximo ano seja melhor.
Feliz ano novo.” (p. 21).
Sendo um evidente retrato da desigualdade social brasileira (especificamente da
cidade do Rio de Janeiro), o conto de Rubem Fonseca possui um aspecto interessante: é
narrado do ponto de vista de bandidos pobres, excluídos da sociedade. Sedentos de uma
espécie de “vingança social”, o trio de marginais promove um choque entre os dois mundos
(o da classe alta e o da classe baixa), no qual o deles sai vencendo, mesmo que apenas por
um instante. Conforme já foi mencionado no presente estudo, os pobres e os mestiços são
uma constante em obras naturalistas, tendo seus desvios comportamentais sempre
ressaltados. Ora, o que se tem aqui senão um grupo que poderia perfeitamente se encaixar
nas ginas de alguma obra naturalista do século XIX? A única diferença, talvez, é que
apesar de marginais, assassinos, terroristas e estupradores, os três ladrões conseguem
incutir no leitor um certo questionamento social. Os atos criminosos de Pereba, Zequinha e
o narrador do conto são motivados por uma revolta, uma indignação por uns terem tanto e
eles, nada. Sob essa ótica podemos enxergar o conto de Rubem Fonseca como uma espécie
89
de “Naturalismo às avessas” que os excluídos da sociedade como “vítimas do sistema”,
e não como espécimes inferiores a serem estudadas.
.O cobrador
O conto se inicia num consultório dentário. O narrador, impaciente, aguarda meia
hora pelo doutor. Ao sentar-se na cadeira do médico, eis que o protagonista abre a boca e
diz que um de seus dentes posteriores dói muito. O dentista lhe alerta que ele precisa cuidar
dos poucos dentes que ainda lhe restam, caso contrário, há de perdê-los. Após a extração do
dente, o médico ortodôntico lhe cobra o preço do serviço: quatrocentos cruzeiros. “Não tem
não, meu chapa” (p.12), ele lhe diz, e começa a andar em direção à porta. O doutor lhe
bloqueia a saída, ameaçando: “É melhor pagar.” (p.13).
Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico
franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos,
executivos, essa canalha inteira. Todos estão me devendo muito.(p. 13)
O personagem-narrador puxa seu revólver calibre 38. “Que tal enfiar isso no seu
cu?” (p.13) ele diz ao dentista. Sob o olhar atônito e apavorado do médico, ele começa a
jogar no chão objetos, quebrar vidros e pisar em outras coisas. “Eu não pago mais nada,
cansei de pagar! Agora cobro!” (p.14).Enraivecido, ele um tiro no joelho do doutor e
sai do consultório. Assim tem início o conto “O cobrador”.
Umas das histórias mais célebres de Rubem Fonseca, “O cobrador” é protagonizado
por um personagem marginal, que movido por forte raiva contra o mundo ao seu redor que
tudo lhe tira e tudo lhe cobra, resolve inverter os papéis e fazer com que os outros lhe
paguem. Assim como “Feliz ano novo”, o conto leva a um questionamento social, tendo em
90
vista que novamente um elemento pobre e marginalizado se opõe contra o restante da
sociedade. A diferença é que em “O cobrador” todas as aspirações são concentradas em
apenas um personagem.
A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão
me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego
pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulho das
moedas me irrita.(p. 14)
Misantropo ao extremo, o cobrador é um personagem cuja ira não se destina a um
grupo específico. Sua raiva é contra a sociedade, o mundo. O conto é recheado de situações
nas quais, movido por seu ódio, o cobrador promove alguma espécie de atentado contra
algum indivíduo. Em seu caminho para comprar uma nova arma (uma Magnum), o
narrador tenta matar, apenas por capricho, um homem que trafegava em sua Mercedes. “Me
irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha.” (p.14).
Ainda, na ocasião da compra da arma, o cobrador diz ao muambeiro que também comprará
um rádio, e pede para testá-lo. Ao ligar o aparelho num volume bastante alto, o cobrador
não hesita em dar três tiros no homem que lhe vendeu a arma.
Entre cada pequeno relato do narrador, são expressadas suas raivas e insatisfações:
“Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no
botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.”(p.16). Em momentos em que
seu ódio diminui e sua ira se acalma, o cobrador senta-se em frente à televisão. Até mesmo
os comerciais o fazem lembrar das coisas que ele não possui, e sua vontade de cobrar é
recuperada:
Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado,
abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com os dentes, os dentes dele
são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar com ele a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as
orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar do lado de fora num sorriso de caveira vermelha.(p.16)
91
Na casa de uma mulher mais velha que o seduz e o convida a ir à sua casa, o
cobrador lhe mostra uma estranha veia poética: “Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas
porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma
chance que eles/ têm de ser diferentes/ parasitar/ desprezar os que suam para ganhar a
comida/ dormir até tarde/ tarde/ um dia/ ainda bem/ demais.” (p.17). De seu ódio cultivado
contra a sociedade, o cobrador crê que provém não apenas uma forma de justiça, mas
também de arte. O cobrador ainda demonstra algum critério em sua “missão” e poupa a
mulher, julgando que esta nada lhe devia: “Essa fodida não me deve nada, pensei, mora
com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela estão empapuçados de beber porcarias e
ler a vida das grã-finas na revista Vogue” (p.17).
Em outro episódio narrado no conto, o cobrador ronda uma festa de grã-finos
disfarçado como um inofensivo mendigo aleijado. Tendo escolhido um casal como seu
alvo, ele aproxima-se e encosta seu revólver nas costas do homem, entra no carro e os
obriga a seguir até uma praia deserta no Recreio dos Bandeirantes.Ao suplicarem por suas
vidas e afirmarem que nada fizeram a ele, o cobrador ri, com ódio. Tentando salvar sua
esposa, o marido rico afirma que ela está grávida, ao que o cobrador reage: “Olhei a barriga
da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, pufe, em cima de onde achava que era
o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na
têmpora dela e fiz ali um buraco de mina” (p. 20). O homem assistiu a tudo sem dizer
palavra alguma. Tentando salvar a própria vida, ele estendeu a carteira, recebendo em troca
um chute do cobrador em sua mão. O cobrador então a oportunidade de realizar um
desejo seu: conforme havia visto nas telas do cinema, iria decapitar um homem com um
golpe apenas e veria sua cabeça rolando pelo chão. Após ter ordenado que sua vítima se
92
ajoelhasse e pendesse a cabeça para frente, o cobrador desce seu facão com toda a força em
direção à nuca do ricaço. O humor negro se faz presente na cena que segue:
A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas mãos de uma
cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou
morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára-lama do carro. O pescoço ficou
numa boa posição. Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão
fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! A
cabeça saiu rolando pela areia! Ergui alto o alfange e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que não era
nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente.
Onde eu passo o asfalto derrete. (p. 20)
Ainda que a decapitação do ricaço tenha um certo ar de humor negro, no episódio
em questão, além de denotar a extrema frieza do criminoso-narrador, a passagem deixa
claro a sensação de poder e a animalização que crescem progressivamente no personagem à
medida que ele faz mais e mais vítimas. Diz o narrador-personagem:
Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória que me dá vontade de dançar-dou
pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés
deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um
macaco. (p.23).
Ao longo do conto seus crimes vão tornando-se mais brutais e mais apoteóticos, e apenas
influenciam o Cobrador ao ponto de ele considerar a si mesmo uma espécie de “carrasco”
de todas as injustiças ao seu redor.
Composto por pequenos “flashes” narrativos, o conto segue com o episódio em que
o Cobrador se disfarça de bombeiro hidráulico e entra em um prédio. Batendo de porta em
porta e apresentando-se como o bombeiro que viera fazer o serviço, o narrador tem sorte
apenas no primeiro andar, no apartamento de uma jovem de aproximadamente vinte e cinco
anos, de camisola. Após amarrar a empregada, o Cobrador leva a moça para seu quarto e
ordena que ela tire a roupa. “Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta,
anda logo” (p.24) ele exclama. Mediante tantas negativas, o Cobrador golpeia a dona da
casa e rasga suas roupas. Ironicamente, o estupro em si(narrado em detalhes) à medida que
93
vai passando toma ares de uma relação sexual convencional, com uma excitação crescente
até que a vítima atinge um orgasmo: “Vê se não abre mais a porta pro bombeiro”(p.25),
disse o Cobrador, antes de partir. A violação sexual é tão importante para o Cobrador
quanto seus assassinatos, pois são, igualmente, uma forma de satisfazer seu ódio: “Não se
fazem mais cimitarras como antigamente/Eu sou uma hecatombe/Não foi nem Deus nem o
Diabo/Que me fez um vingador/Fui eu mesmo/Eu sou o Homem-Pênis/Eu sou o
Cobrador”(p. 23).
A grande reviravolta do conto ocorre quando, numa praia, o Cobrador conhece uma
moça chamada Ana. Fascinado com a beleza de bailarina da moça, o narrador vai ao seu
encontro, em sua casa, em um belo prédio de mármore à beira da praia. A diferença social
entre ambos é evidente, e o Cobrador sai preparado para saciar novamente seu ódio. Porém,
algo estranho ocorre: o Cobrador não sente ódio algum de Ana Palindrômica. Não sente
que ela lhe deve nada. Transtornado, ela o deixa em casa de carro, indagando quando o
veria novamente, mas obtendo apenas o silêncio deste como resposta. Apesar das tentativas
de evitar a moça, Ana vai ao encontro do Cobrador em sua casa. Finalmente cedendo, o
Cobrador nutre por Ana Palindrômica algo que nunca sentiu por mulher alguma antes.
Após terem feito amor, ela observa bem o quarto do personagem-título e percebe a
quantidade de livros e armas que seu homem possui em casa. Ana pega a Magnum no
armário, curiosa, e aponta para o Cobrador: “Quer atirar? Pode atirar, a velha não vai
ouvir.”(p.27), ele diz. “Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano
até a altura da minha testa. Aqui não dói.” (p. 27). Ana não sente medo do Cobrador, nem
mesmo ao saber do alívio que este sente ao matar. E o Cobrador por sua parte, sente por
Ana algo que jamais sentira por alguém antes: amor.
94
Ao contrário do que poderia indicar em uma primeira análise, a beleza e o tom
romântico da passagem amorosa entre Ana e o Cobrador não promovem uma redenção
deste. Ambos se unem, no matrimônio e na matança, e o personagem-título começa a
enxergar seu atos de maneira mais ambiciosa. “Meu ódio agora é diferente. Tenho uma
missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se
todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo” (p.28). Os novos planos do
casal destinam-se a não mais matanças com facões ou armas de fogo de mãos, mas a atos
terroristas com bombas. Convicto de sua “missão”, o conto se fecha com partes do
manifesto escrito pelo Cobrador destinado aos jornais:
Nada de sair matando a esmo, sem objetivo prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos
meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me
ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, assim mudaremos o mundo. É a
síntese do nosso manifesto.(p. 29)
O ponto mais curioso de “O Cobrador” é que seu personagem título, ainda que um
marginal assassino com sérios instintos misantropos, é um homem de forte sensibilidade
artística. Em sua casa encontram-se em grandes quantidades livros de poesia e armas. À
medida que comete seus crimes e prossegue em sua jornada, o narrador brinda o leitor com
um de seus poemas recheados de ódio. A relação deste conto fonsequiano com a estética
naturalista dá-se, numa primeira observação, pelas cenas extremas de violência contidas ao
longo do texto, todas narradas em detalhes, e protagonizadas por um personagem excluído
da sociedade, pobre e desdentado. Todavia, ao contrário dos marginais de “Feliz ano novo”,
o Cobrador possui uma linguagem que não usa apenas o discurso vulgar e cheio de
palavreados, mas também certa erudição e beleza poética. Louco ou artista, a estranha e
complexa lógica de pensamento do personagem vai mudando ao longo do conto a ponto de
este atingir um grau superior de discernimento, compreender sua “missãoe transformar-se
95
em terrorista genocida. A crítica ao status quo é ácida, e é feita ao longo do texto de
maneira explícita. O Cobrador é um personagem complexo que simbolicamente remete a
todos os anseios e frustrações dos pobres e excluídos da sociedade. É uma metáfora
agressiva para o estabelecimento de um naturalismo crítico moderno nas páginas da obra
fonsequiana.
.Livro de ocorrências
Fazendo jus a seu título, “Livro de ocorrências” conta, em detalhes, três ocorrências
policiais. Narrado em primeira pessoa por um delegado, Livro de ocorrências” consegue
posicionar-se num interessante ínterim entre o frio e seco registro criminal e a narrativa
literária. A primeira ocorrência relatada é de uma mulher que vai à delegacia registrar
queixa contra seu marido, por agressões físicas. Ainda que a mulher se arrependa de ter ido
até a polícia (“Ubiratan é nervoso, mas não é pessoa. Por favor, não faz nada com ele.”)
o delegado (cujo nome não é revelado ao longo do conto) decide ir até a residência do
casal: “Eles moravam perto. Decidi ir falar com Ubiratan. Uma vez, em Madureira, eu
havia convencido um sujeito a não bater mais na mulher; outros dois, quando trabalhei na
Delegacia de Jacarepaguá, também haviam sido persuadidos a tratar a mulher com
decência.”( p. 111)
Ubiratan, um halterofilista rude e arrogante, mostra-se indisposto a acompanhar o
delegado. Após algumas frustradas tentativas de persuasão verbal, o policial-narrador saca
seu revólver. Mediante a persistência do desacato de Ubiratan, o delegado atira em sua
coxa. O término da primeira ocorrência tem seu quê de ironia: Ubiratan, sendo levado de
96
ambulância para o hospital por um frio delegado que em seguida o conduziria, finalmente,
para a delegacia.
A segunda ocorrência trata de um acidente: “Um ônibus atropelou um menino de
dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa
encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.” (p.
113). O motorista foi preso em flagrante por um guarda de trânsito. Uma pequena multidão
contempla o cadáver em torno do cordão de isolamento. Duas pequenas passagens marcam
essa segunda ocorrência. Na primeira, uma senhora idosa e mal-vestida tenta ultrapassar o
cordão de isolamento com uma vela na mão, “para salvar a alma do anjinho” (p. 113). Na
segunda, uma mulher em crise histérica rompe o cordão de isolamento e toma o corpo em
seus braços. Depois de muita luta os policiais conseguiram tirar o morto dos braços da
mulher e recolocá-lo no chão. A ocorrência termina com o motorista-assassino em frente ao
delegado. Registra o narrador: “Era um homem magro, aparentando uns sessenta anos, e
parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que
não eram apenas daquele dia.” (pp.113-114)
A terceira e mais breve das ocorrências trata de um suicídio. Um morador do
subúrbio, casado e com um filho, estava morto em seu banheiro: “A casa cheirava a mofo,
como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar
vinha um odor de cebola e alho fritos” (p.114). Após todas as perguntas terem sido
devidamente feitas à viúva, ao remexerem no corpo, este solta um gemido. “Ar preso,
esquisito não é?” (p.114), diz o ajudante do delegado. Ambos riem, sem vontade. O morto,
“um homem franzino, a barba por fazer, parecia um boneco de cera” (p.114) não havia
deixado bilhete nem nota alguma sobre seu suicídio. “Eu conheço esse tipo, quando não
agüentam mais eles se matam depressa, tem que ser depressa senão se arrependem.”, diz
97
Azevedo (p.114). Por fim, Azevedo, o ajudante do delegado, urina no vaso sanitário, lava
as mãos na pia e as enxuga na camisa. Fim da ocorrência.
Observar a narrativa fonsequiana sob a lente naturalista é bastante possível em
diversos momentos e em diversos aspectos. Em Livro de ocorrências” tal pensamento não
é diferente. Todas as ocorrências narradas são em subúrbios do Rio de Janeiro, envolvendo
personagens quase sempre pertencentes a uma classe menos abastada. Tal ambiência
também é pertinente ao Naturalismo, que, por muitas vezes, teve suas narrativas
“científico-literárias” caracterizadas por personagens pobres. Se no universo Naturalista o
comportamento humano é destrinchado em seus aspectos mais baixos, o mesmo ocorre no
conto de Rubem Fonseca. Na primeira ocorrência se tem uma situação de violência
doméstica, que o narrador enfatiza ser comum tendo em vista a quantidade de casos
semelhantes já resolvidos por ele. Na segunda ocorrência, é narrado em detalhes um
acidente automobilístico que vitimou um menino. A caracterização extremamente fria,
sangrenta e detalhada da morte da criança remete diretamente a momentos clássicos da
narrativa naturalista, como o suicídio da negra Bertoleza ao término da obra O Cortiço:
“Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que
alguém conseguisse alcançá-la, de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado
a lado.E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira
de sangue.”(p. 122). Detalhes como a pequena multidão de curiosos que assistem, com
certo deleite, o corpo, bem como a compaixão da idosa pobre e o desespero da mulher que
abraça o defunto são cenas de concentração de massas populares onde alguns personagens
tomam atitudes que tramitam entre o exagero, o absurdo e o ridículo. Por fim, na terceira e
última ocorrência, tem-se o relato de um suicídio. Novamente o ambiente é pobre, e a
naturalidade com que os personagens (o delegado e seu auxiliar, Azevedo.) lidam com a
98
situação chega a ponto de ambos rirem quando o morto solta um gemido devido a um
pouco de ar ainda preso em seus pulmões. A narrativa é concluída com Azevedo urinando
no mesmo banheiro onde estava o corpo do suicida. A velocidade das curtas narrativas
contidas em Livro de ocorrências”, as pequenas tragédias nelas contidas, bem como a
caracterização quase gélida do personagem-narrador, dão a tônica necessária para que esse
breve conto possa ser perfeitamente encaixado na proposta de estudo desta tese. O conto
em questão possui apenas três ocorrências, mas, ao término da leitura destas, fica a
sensação de que poderiam ser dez, vinte, inúmeras ocorrências. O realismo bruto contido
nestas pequenas histórias remetem o leitor diretamente a um verdadeiro livro de ocorrências
de uma mesa de um delegacia, onde a cada novo dia algo surge em suas páginas.
.Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência
Se no conto “Livro de ocorrências” a narrativa literária aproxima-se do relato
policial/jornalístico, tal aproximação repete-se com ainda mais intensidade nas primeiras
linhas de “Relato...”
Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro 53, em
direção ao Rio de Janeiro.
Um ônibus de passageiros da empresa Única Auto ônibus, chapa RF 80-07-83 e JR 81-12-27, trafega na ponte
do rio Coroado em direção a São Paulo.
Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se
precipita no rio.
Em cima da ponte, a vaca está morta.
Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida de calça comprida e blusa amarela, de vinte anos
presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de trinta e quatro anos; Manuel do Santos Pinhal,
português, de trinta e cinco anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em fábricas de
Bebidas; o menino Reinaldo de um ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, quarenta e três anos.
(p.195)
Alguns artifícios presentes na passagem em questão são mais pertinentes a uma
narrativa literária em prosa, tais como a frase “Em cima da ponte, a vaca está morta”, ou, a
99
afirmação, ao retratar uma das vítimas, de que ela “nunca será identificada”. Todavia, a
semelhança existente com um relato jornalístico ou uma ocorrência policial é clara. O
desastre teve como testemunhas um homem chamado Elias Gentil dos Santos e sua esposa,
Lucídia. Elias ordena que sua esposa apanhe um facão. Enquanto espera pela lâmina, outras
duas pessoas aparecem, para a ansiedade e raiva de Elias. Cuspindo no chão diversas vezes
e agindo com rudeza, Elias fita a vaca morta incessantemente junto dos demais. Quando sua
esposa lhe traz o facão, Elias não perde tempo e corre em direção ao animal. “No lombo é
onde fica o filé”, lhe avisa Lucídia (p.196). Pouco a pouco, mais e mais pessoas aparecem
com facas e facões para fatiar o animal morto. Até mesmo uma mulher grávida, Lucília,
vem correndo para pegar uma parte do bicho: “Ela mal pode falar. Está grávida de oito
meses, sofre de verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponto no alto de outro
morro”(p.196). Até mesmo um policial surge, e exige uma faca para poder tirar seu pedaço,
caso contrário, irá ordenar a apreensão de tudo. Ironicamente, João, o açougueiro, junto de
seus dois ajudantes, munidos de uma serra, um facão e uma machadinha são impedidos pela
turba faminta de mutilar o bovino. O descritivismo e a sanguinolência marcam o término da
narrativa :
A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As
tripas ninguém quis.
Elias encheu duas sacas. Os outros homens usam as camisas como se fossem sacos.
Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo para Lucília. (...)
Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois
auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados no carro. Na ponte fica apenas
a poça de sangue. (p. 197)
Mais uma vez, uma situação marcada pela morbidez é o tema central de uma
narrativa fonsequiana curta. Muito comum nas narrativas naturalistas, a noção de
coletividade é explorada aqui novamente, com a cena de um grupo de pessoas pobres,
esfomeadas, mutilando uma vaca morta. Ao contrário do que ocorre em quase toda a obra
100
produzida por Rubem Fonseca, “Relato...” não possui um narrador-personagem, e sim um
narrador em terceira pessoa, o que torna a narrativa mais impessoal e ao mesmo tempo
aproxima-a mais da forma de narrar empregada por grande parte dos autores naturalistas do
século XIX. Por fim, é impossível não comentar o (extenso) título do conto, o qual sugere
que existe certa verossimilhança nos fatos narrados, ou seja, uma espécie de Realismo
urbano em sua acepção mais crua. Se pudéssemos eleger alguns dos, digamos, “picos
naturalistas”, de Rubem Fonseca, “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é
mera coincidência” estaria, sem dúvida, entre eles.
.Passeio noturno I e II
Divido em duas partes, o conto “Passeio Noturno” tem como protagonista um
homem aparentemente de meia-idade, casado, com dois filhos adolescentes. O homem em
questão (que narra o conto em primeira pessoa e não tem seu nome revelado em momento
algum) chega do trabalho, cansado e visivelmente estafado. Isola-se em sua biblioteca,
como faz todas as noites, mas ao invés de ler um livro, apenas abriu um volume de
biblioteca e esperou o tempo passar. Nota-se que é uma família com certa quantidade de
posses, pois eles possuem uma copeira, os filhos pedem dinheiro ao pai, a casa é descrita
como grande e com certos luxos, o casal possui uma gorda conta corrente e todos na família
(exceto a esposa) possuem carro. Após o jantar, o narrador convida a esposa para um
passeio de carro, que ele sabia que seria recusado, pois estava na hora da novela preferida
de sua mulher. Era o início do passeio noturno:
Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do
que moscas. Na avenida Brasil não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal-iluminada, cheia de
árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? (...) Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher
101
fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de
papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na
calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as
luzes do carro e acelerei. Ela percebeu que ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus
batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre
a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões,(...) Ainda deu para ver que
o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses
baixinhos de casa de subúrbio. (p.62)
Chegando em casa, o narrador examina seu carro, e orgulha-se de não haver
nenhuma marca nele: “Poucas pessoas no mundo inteiro igualavam minha habilidade no
uso daquelas máquinas”, afirma ele.(p.63). Entrando em sua sala de estar, a família toda
reunida em frente à televisão. Após ser indagado se estava mais relaxado, diz o narrador
que iria dormir, e que seu dia seguinte na companhia seria terrível.
A segunda parte do conto se inicia com o narrador, no trânsito, sendo abordado por
um outro carro que encosta no seu e buzina, insistentemente. Uma mulher dirigia. Ele
abaixa os vidros. “Não está mais conhecendo os outros?” (p.67) ela diz. Ele tem ciência de
que jamais havia visto o rosto daquela mulher antes. A motorista estende sua mão e lhe
entrega um pedaço de papel. O bilhete contém um nome, Ângela, acompanhado de um
telefone. Após um telefonema, combinam de sair para jantar em um restaurante de luxo.
Durante o jantar, ela, sedutora e misteriosa, pergunta o que ele havia pensado a respeito
dela quando o bilhete lhe foi dado. Ele responde que nada. Ao pedir que ele pensasse
naquele instante, ele lhe diz:
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma
mulher agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel
arrancado de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu decifrar o
que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos com o seu nome e o telefone.
Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você o número para
ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você. (p. 69)
102
A conversa segue de maneira intrigante, como um joguete. Ângela tenta jurar para
seu interlocutor que a primeira hipótese é a verdadeira, mas para ele isso pouco importa. Ao
ser indagado sobre sua identidade, ele afirma ser um traficante, fato que desmente pouco
depois. Ao término do jantar, ele a leva até perto de sua casa. Ângela não esconde sua
frustração com o encontro: “Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e
errado” (p.70), diz ela. “E você não é essas coisas. Teu carro é melhor do que você”
(p.71). Ironicamente, ele responde que ele e seu carro se completam. Tal resposta torna-se
ainda mais irônica quando Ângela tem o mesmo destino que a vítima da primeira parte do
conto.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do ra-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei,
primeiro com a roda da frente-e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando -- e
logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela estava liquidada, apenas
talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade. (p. 71)
O fim da segunda parte é idêntico ao da primeira: chega o protagonista em casa, e
sua esposa lhe indaga se está mais calmo. Ele diz que vai dormir, pois seu dia seguinte na
companhia será terrível.
Mais do que uma mera história de um serial killer automobilístico”, as duas partes
de “Passeio Noturnomostram um interessante (e até certo ponto irônico) caso em que um
homem bem-sucedido financeiramente na vida, casado e aparentemente com uma vida
tranqüila faz uso de uma curiosa catarse para suportar as pressões do mundo moderno: o
assassinato. Seu carro é sua arma, e, como afirma o próprio narrador na segunda parte, é
como se fosse uma parte dele. Ele se gaba de matar, e, mais do que, sente-se relaxado com
isso. Em ambas as partes do conto é deixado claro que em todas as noites se repete o
macabro ritual. Recorrente por diversas vezes ao longo de toda a obra fonsequiana, a
patologia mental aparece neste conto com um personagem que mata não por justiça, por
103
vilania ou por dinheiro, mas simplesmente para relaxar, acalmar-se e poder dormir direito
para o terrível dia seguinte que terá na companhia. O relativo conto tem seu quê de
naturalista, tanto pela presença de um desvio comportamental quanto pela descrição
apurada e detalhista das duas cenas de morte. Entretanto, o personagem em foco não é um
mestiço pobre marginalizado, mas justamente seu oposto, um senhor bem-sucedido na vida,
com família e dinheiro. Talvez pudéssemos considerar esse conto um exemplo de uma
forma de neo-naturalismo mais “refinado”, que sutilmente leva a uma reflexão sobre as
pressões que sofre o homem moderno- as quais teriam levado o personagem-narrador a
buscar uma forma de catarse tão brutal- e o quão insignificante podem ser valores
socialmente aceitáveis como a instituição familiar e o dinheiro, tendo em vista que nada
disso importa para o protagonista do conto.
104
Conclusão
Esmiuçadas as características conceituais e contextuais do Naturalismo, propôs-se
que o movimento naturalista tenha sido forte o bastante na cultura literária brasileira a
ponto de afetar uma parcela de autores do século XX e criar uma espécie de “linhagem” de
escritores que reviveram o Naturalismo de alguma forma. Todavia, é preciso lembrar que,
ao ser retomado em contextos culturais distintos, o novo Naturalismo assume
particularidades e desenvolve diferenças em relação ao Naturalismo original.
A primeira grande diferença a ser observada é a ausência de um conjunto de idéias
cientificistas que possam servir de mola propulsora ou justificativa para o movimento. Se o
Naturalismo do século XIX era movido, principalmente, pela necessidade de provar que o
homem tinha seu comportamento condicionado pelo meio e que fatores, como a raça, eram
primordiais na formação do caráter do indivíduo, o novo Naturalismo, do século XX,
floresce num contexto em que tais idéias haviam sido derrubadas. Contudo, mesmo com a
ausência de um ideário darwinista/determinista que pudesse servir como base, técnicas
narrativas, personagens e temas tipicamente naturalistas persistiram na literatura brasileira
durante o século XX, assumindo contornos ainda mais explícitos de 1930 em diante, com o
desenvolvimento de uma literatura de cunho social. No decorrer da presente dissertação,
optou-se por analisar esses “resgates” através de três cortes cronológicos, respectivamente,
no início, no meio e no meio/fim do século XX.
O primeiro corte, explicitado nas letras de João do Rio presentes em sua obra
Dentro da noite, mostra uma literatura pré-moderna que entra clamando os valores
decadentistas e negando as idéias naturalistas, mas que ainda carrega consigo traços
naturalistas. Em Dentro da noite, a atmosfera de morbidez presente nos textos
105
selecionados aliada ao comportamento patológico de personagens como o Barão Belford e
a evidente tipificação de personagens dão a tônica naturalista referida. A ênfase a uma
patologia psico-social que afeta tanto as classes baixas quanto as altas faz-se presente nesse
momento. É uma literatura de transição, uma interseção entre os movimentos, fato esse que
justifica a presença de tais características naturalistas, ainda que esta não seja assumida.
O segundo corte, as obras dramáticas de Nelson Rodrigues, constitui um caso
interessante. Com uma justificativa crítica e a proposta de esmiuçar o comportamento
humano, sua obra carrega traços que remetem bastante ao Naturalismo do século XIX.
Temos como exemplos as questões de raça presentes em Anjo Negro, as quais remetem
diretamente a obras naturalistas que abordam o tema, tais como O mulato, ou, ainda, a
presença de personagens movidos puramente por instintos violentos e sexuais, como o
bandido Boca-de-Ouro e a menina Silene, personagens que facilmente se identificam com
os tipos presentes em uma obra como O cortiço, por exemplo. É nesse momento que se
evidencia uma intenção de se estabelecer uma crítica de valores da sociedade através de
personagens e situações notoriamente polêmicas e chocantes. Tem-se nesse segundo
momento personagens representantes de uma patologia psico-social e psico-familiar.
Assim, o resgate de valores naturalistas torna-se bastante justificável não por algum
arcabouço de idéias deterministas, mas devido a uma necessidade dos meios artísticos de
operar uma crítica social. É interessante notar que durante o século XIX não houve no país
uma produção de material dramático naturalista que fosse digno de nota; em verdade, quase
toda a produção teatral naturalista relevante eram importações de peças francesas, que por
sua vez eram adaptações de obras de Émile Zola quase que em sua totalidade. Logo,
levando-se em consideração esses fatores, a obra de Nelson Rodrigues pode ser encarada
106
como a tentativa mais bem-sucedida de se produzir um teatro naturalista genuinamente
brasileiro.
Por fim, o último corte, com Rubem Fonseca, mostra um Neo-Naturalismo mais
definido, que resgata claramente diversas características do Naturalismo original (a
predileção por cenas bizarras, o descritivismo, a análise de tipos sociais, etc.), empregadas
sob um viés extremamente crítico e por vezes, ácido. Se em momentos como na obra
Macunaíma, a Literatura Brasileira viu personagens de índole questionável assumirem ares
de herói, tal processo nesse momento atinge níveis ainda mais altos. Na obra fonsequiana,
é uma constante ver personagens criminosos ganharem destaque e por vezes status de herói.
Tal marginalização não foi em vão, tendo em vista que, ao término dos anos de 1960 e
durante os anos de 1970 a literatura teve uma tendência a privilegiar tal tipo de
personagens, pois, além de provocar o questionamento social de forma extremamente
agressiva, o leitor poderia identificar-se com um tipo social que sofre a mesma
marginalização que ele.Ser marginal, ser censurado, procurado pelo governo, inimigo do
Estado... tudo isso era, na referida época, um sinônimo de prestígio que teve seu reflexo na
literatura.Observa-se nesse terceiro momento situações que evocam uma patologia de
ordem psico-social e psico-econômica.
Logo, conclui-se que o dito “neo-naturalismo” carrega consigo forte crítica social,
objetivando um realismo bruto e corrosivo. Efetuada da maneira mais chocante, direta e
agressiva possível, como um murro no estômago do leitor/espectador, esse “golpe de
realidade” se através do emprego dos artifícios literários mais marcantes do gênero
naturalista (o uso de cenas bizarras, a narrativa detalhista, etc.). E alia-se a essa intenção de
choque um interessante recurso de alternância entre um discurso formal e um uso da
linguagem bem mais próximo da fala cotidiana, por muitas vezes chula e até vulgar.
107
Inserido num contexto moderno onde diversas tendências literárias coexistem
pacificamente, não é de se estranhar também que, por vezes, tenha esse “neo-naturalismo”
expressado semelhanças com outras escolas literárias, como com alguns breves momentos
românticos. Inegavelmente, o dito “naturalismo do século XX” é uma tendência literária
rica e pulsante que é impossível de ser ignorada. Muitos outros autores não abordados no
presente estudo apresentam aspectos dessa estética. O tema proposto nesta dissertação é
bastante amplo e frutífero, tendo dado origem a alguns outros estudos a respeito (alguns
dos quais presentes na bibliografia ao término deste trabalho). Espera-se que este trabalho
seja apenas um de diversos estudos que possam ainda ser feitos sobre o tema, sempre com o
objetivo de ampliar a compreensão deste fenômeno literário moderno que é o “neo-
naturalismo”.
108
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112
RESUMO
Tendo-se constatado a presença de aspectos do Naturalismo novecentista na obra de
escritores brasileiros do século XX, esta dissertação tem por objetivo discutir a existência
de uma possível herança naturalista nas letras brasileiras, designada aqui de “neo-
naturalismo”. Para isso, efetuou-se um corte na literatura brasileira do período,
privilegiando-se três autores representativos de momentos distintos do século em que os
traços do Naturalismo se mostram mais evidentes.
O trabalho se inicia com um breve estudo do Naturalismo do século XIX,
focalizando em especial o contexto brasileiro. Em seguida, passa-se ao primeiro autor
selecionado, João do Rio, que corresponde a um momento comumente designado de pré-
moderno. Nesse capítulo, a partir da análise de alguns contos do escritor, discutem-se os
traços naturalistas presentes em sua obra e levantam-se questões a respeito da convivência
de tais traços com o decadentismo dominante na obra do autor.
O segundo autor selecionado, Nelson Rodrigues, representa aqui uma fase já
avançada do Modernismo, o meio do século. A parte da obra de Nelson Rodrigues aqui
focalizada é a sua produção dramática, e a escolha se deve ao propósito de mostrar que a
permanência ou retomada de aspectos naturalistas na literatura brasileira do século XX não
se restringe à narrativa.
O terceiro autor, Rubem Fonseca, representa um período freqüentemente designado
de pós-moderno, as três ou quatro últimas décadas do século. Nesse capitulo, estuda-se
uma seleção de contos do autor, focalizando-se em especial os seus traços neo-naturalistas,
e desencadeia-se uma discussão entre a presença desses traços e o sentido crítico de sua
estética. Aí, discute-se também a relação entre a narrativa do autor e sua linguagem
jornalística.
113
ABSTRACT
Based on the observation that there is a great number of aspects of nineteenth
century Naturalism in twentieth century Brazilian literature, this thesis is a discussion about
the possible existence of a Naturalist heritage in the country’s letters, which could be
designated as “Neo-Naturalism”. For this purpose, three moments of twentieth century
Brazilian literature are studied here by means of representative authors, in whose works the
presence of Naturalist traits is made more evident.
The study begins with a brief review of nineteenth century Naturalism, focusing
particularly the Brazilian context. Then, there is a chapter on João do Rio, the first author,
who represents a moment usually designated as Pre-Modern. Here, by means of the
analysis of some of the writer’s most significant short-stories, the presence of Naturalist
traits in his works is discussed and a questioning is raised about the coexistence of these
traits with the Decadentist climate predominant in his works.
The second author focused, Nelson Rodrigues, represents an advanced phase of the
Modernist movement, the mid-twentieth century. The part of Rodrigues’ works here
studied is his drama, and this choice is made to show that the permanence or revival of
Naturalist traits in twentieth century Brazilian literature is not restricted to the narrative
genre.
The third author, Rubem Fonseca, represents a period often designated as Post-
Modern, the three or four last decades of the twentieth century. In this chapter, a selection
of the writers’ short-stories is studied, with special reference to his Neo-Naturalist traits,
and a discussion is drawn about the presence of these traits and the critical character of his
aesthetics. In this section, there is also an examination of the relationship between the
author’s narrative and his journalistic language.
114
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