lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignifi-
cância a lei da vida; é a insignificância que go-
verna a vila. É a paciência, que espera hoje,
____
amanhã, com o mesmo sorriso humilde: — Tem
paciência — e os seus dedos ágeis tecem uma teia
de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. —Tem
paciência — e rodeia, volta atrás, espera ano atrás
d’ano, e olha com os mesmos olhos sem expres-
são e o mesmo sorriso estampado. Paciência ...
paciência ...
107
Já a mentira é d’outra casta, faz-se
de mil cores e toda a gente a acha agradável.—
Pois sim...pois sim
108
e 109
.
107
H3
: <
Paciência ...paciência ...>
108
Em H2 e H3: <.>[...]
109
Em H2 e H3: [— Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas
palavras., cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os
hábitos lentamente acumulados. E o tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas.
§
Reparem, vê-se daqui a vila toda... Lá está a Adélia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguém
mexe. N’um canto mais escuro a prima Angélica não levanta a cabeça de sobre a meia. Tanta inveja
ruminou que desaprendeu de falar. Chega o chá, toma o chá, e apega-se logo à mesma meia, a que
mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas,
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*para ela, mal se ergue, recomeçar* a tarefa. Um
dia — um século — e só o pêndulo invisível vai e vem com a mesma regularidade implacável — p’ra a
morte! p’ra a morte! p’ra a morte!
§
Passou um minuto ou um século? Sobre o granito salitroso assenta
outra camada denegrida, e as horas caem sobre a vila como gotas d’água de uma clepsidra. De tanto ver
as pedras já não reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés e ninguém ouve seus passos. Todos
os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada à espera e a D. Procopia a abrir a boca com sono,
como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto não
fosse um drama todos os dramas, um minuto e todos os minutos ... § Não há anos, há séculos que dura
esta bisca de três — e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas
se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca — o jogo é o da morte ... O candeeiro
ilumina e a sombra rói as fisionomias, a majestosa Theodora, a Adelia, a Eleutheria das Eleutherias, o
padre. Salienta-se do escuro uma boca que remói, a da
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*D. Bibliotheca. Os padres* exaltam-na, a Igreja
exalta a sua caridade, que rebusca a desgraça para lhe dar três vinténs. Só distingo, despegadas dos
crânios, as orelhas do respeitável Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lívidos como dois
fantasmas. Ambos regulam a consciência como quem dá corda a um relógio. Dívidas são dívidas.
3
*
Tudo isto parece que flutua debaixo d’água, que esverdeia debaixo d’água. A luz do candeeiro ilumina as
mãos da D. Leocadia, que põe acima de tudo o seu dever, e que leva para casa uma órfã a quem
sustenta e que lhe entrapa as pernas: ósseas e secas enchem a sala toda, o mundo todo... § Não sei
bem se estou morto ou se estou vivo ... Decorre um ano e outro ano ainda. O relento sabe bem, e o
tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero aumenta não
se traduz em palavras.* A D. Procopia odeia a D. Bibliotheca, mas nem ela sabe o que está por trás
d’aquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua à vida. Matar matava-a eu, mas várias
palavras me detêm. Detém-me também um nada ... Chegamos todos ao ponto em que se esclarece à luz
do inferno. Mas ninguém arrisca um passo definitivo.
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§ As velhas com o tempo adquiriram a mesma
expressão, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debruçadas sobre a mesa as figuras não
bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras
do padre — Jogo; — nem o que a Adelia diz baixinho à Eleutheria, para que a velha temerosa ouça: — A
nossa Theodora está cada vez mais moça! ... — o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor
d’essas figuras imóveis, e sobre elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o