Depois, senti que os meus maxilares se dilatavam de modo estranho, e que as minhas presas
cresciam, tornando-se mais fortes, mais adequadas ao ataque, e que, lentamente, se afastavam
dos dentes queixais; e que meu crânio se achatava; e que a parte inferior do meu rosto se
alongava para a frente, afilando como um focinho de cão; e que meu nariz deixava de ser
aquilino e perdia a linha vertical, para acompanhar o alongamento da mandíbula; e que enfim as
minhas ventas se patenteavam, arregaçadas para o ar, úmidas e frias.
Laura, ao meu lado, sofria iguais transformações.
E notamos que, à medida que se nos apagavam uns restos de inteligência e o nosso tato se
perdia, apurava-se-nos o olfato de um modo admirável, tomando as proporções de um faro
certeiro e sutil, que alcançava léguas.
E galopávamos contentes ao lado um do outro, grunhindo e sorvendo o ar, satisfeitos de existir
assim. Agora, o fartum da terra encharcada e das matérias em decomposição, longe de enjoar-
nos, chamava-nos a vontade de comer. E os meus bigodes, cujos fios se inteiriçavam como
cerdas de porco, serviam-me para sondar o caminho, porque as minhas mãos haviam afinal
perdido de todo a delicadeza do tato.
Já não me lembrava por melhor esforço que empregasse, uma só palavra do meu idioma, como
se eu nunca tivera falado. Agora, para entender-me com Laura, era preciso uivar; e ela me
respondia do mesmo modo.
Não conseguia também lembrar-me nitidamente de como fora o mundo antes daquelas trevas e
daquelas nossas metamorfoses, e até já me não recordava bem de como tinha sido a minha
própria fisionomia primitiva, nem a de Laura. Entretanto, meu cérebro funcionava ainda, lá a seu
modo, porque, afinal, tinha eu consciência de que existia e preocupava-me em conservar junto
de mim a minha companheira, a quem agora só com os dentes afagava.
Quanto tempo se passou assim para nós, nesse estado de irracionais, é o que não posso dizer;
apenas sei que, sem saudades de outra vida, trotando ao lado um do outro, percorríamos então
o mundo perfeitamente familiarizados com a treva e com a lama, esfocinhando no chão, à
procura de raízes, que devorávamos com prazer; e sei que, ao sentir-nos cansados, nos
estendíamos por terra, juntos e tranqüilos, perfeitamente felizes, porque não pensávamos e
porque não sofríamos.
XI
De uma feita, porém, ao levantar-me do chão, senti os pés trôpegos, pesados, e como que
propensos a se entranharem por ele. Apalpei-os e encontrei as unhas moles e abafadas, a
despregarem-se. Laura, junto de mim, observou em si a mesma cousa. Começamos logo a tirá-
las com os dentes, sem experimentarmos a menor dor; depois passamos a fazer o mesmo com
as das mãos; ás pontas dos nossos dedos logo que se acharam despojadas das unhas,
transformaram-se numa espécie de ventosa do polvo, numas bocas de sanguessuga, que se
dilatavam e contraíam incessantemente, sorvendo gulosas o ar e a umidade. Começaram-nos
os pés a radiar em longos e ávidos tentáculos de pólipo; e os seus filamentos e as suas
radículas eminhocaram pelo lodo fresco do chão, procurando sôfregos internar-se bem na terra,
para ir lá dentro beber-lhes o húmus azotado e nutriente; enquanto os dedos das mãos
esgalhavam, um a um, ganhando pelo espaço e chupando o ar voluptuosamente pelos seus
respiradouros, fossando e fungando, irrequietos e morosos, como trombas de elefante.