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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
CECÍLIA DE ALENCAR SERRA E SEPÚLVEDA
DEFININDO A MODERNIDADE ATRAVÉS DO URBANO:
SALVADOR NA PASSAGEM DO SÉC. XIX PARA O XX SEGUNDO A
PERSPECTIVA DO ROMANCE “O FEITICEIRO” DE XAVIER
MARQUES.
Salvador
2006
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CECÍLIA DE ALENCAR SERRA E SEPÚLVEDA
DEFININDO A MODERNIDADE ATRAVÉS DO URBANO:
SALVADOR NA PASSAGEM DO SÉC. XIX PARA O XX SEGUNDO A
PERSPECTIVA DO ROMANCE “O FEITICEIRO” DE XAVIER
MARQUES.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em Ciências
Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Paulo César Borges Alves.
Salvador
2006
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AGRADECIMENTOS
Para aqueles do meu convívio, que dividem comigo os desafios cotidianos vivenciados
nas cidades brasileiras reportados à conjuntura local de Salvador, meus agradecimentos. Sou
grata por compartilharem o estorvo de realizar metas pessoais, em meio a um contexto
coletivo desagregador marcado pela violência urbana e pela falta de cidadania.
Meus reconhecimentos a Omar Monteiro Mendes por salvaguardar a minha
estabilidade emocional, sendo um namorado muito solidário;
Agradeço a Osmar Sepúlveda e Maria Sepúlveda por proporcionarem um ambiente
doméstico propício ao trabalho intelectual;
Minha gratidão também a Cláudia Sepúlveda e Gabriela Sobrinho por dividirem
comigo as inquietações do dia-a-dia e por serem exemplos da dedicação ao estudo.
Agradeço ao atarefado professor Paulo César Borges Alves que me auxiliou em mais
essa empreitada.
E por fim, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
pelo apoio e investimento na minha qualificação profissional.
Se fosse possível estabelecer uma
lei de evolução da nossa vida
espiritual, poderíamos talvez dizer
que toda ela se rege pela dialética
do localismo e do cosmopolitismo,
manifestada pelos modos mais
diversos.
Antonio Candido, 1967
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a maneira como o literato e jornalista baiano Xavier
Marques (1861-1942) interpretou o espaço urbano da cidade de Salvador no final do séc. XIX
a partir do seu romance O Feiticeiro (1922), tendo como temas centrais as reflexões do autor
sobre a organização espacial da cidade, os hábitos das diferentes classes sociais no contexto
soteropolitano, as atividades desempenhadas pela população afro-descendente e a
contraposição entre cultura popular e cultura civilizada. Para uma melhor contextualização
dessa questão buscou-se caracterizar a passagem do séc. XIX para o séc. XX como um
período de modernização e reformulação de costumes da sociedade brasileira, definindo a
modernidade como uma cultura histórica à maneira de Simmel (1983; 1991; 1998). Foram
descritas as principais características das reformas urbanas do Rio de Janeiro (1902-1906)
como um modelo de urbanização seguido por outras capitais brasileiras de acordo com a
abordagem de historiadores como Chalhoub (1996) e Needell (1993). Foram abordadas as
principais mudanças ocorridas na esfera pública brasileira entre 1900 e 1922, com o
desenvolvimento da grande imprensa (Ribeiro, 1998; Miceli 2001) e a emergência de estilos
narrativos pautados nas vicissitudes da vida urbana, como exemplifica a obra do escritor João
do Rio (1881-1921).Este trabalho aponta para aspectos singulares das mudanças ocorridas no
espaço urbano de Salvador na passagem do séc. XX, que se aguçaram a partir das reformas
empreendidas por J.J. Seabra (1912-1916); e salienta a relevância das obras literárias de
ficção como veículos de análises históricas que permitem discernir aspectos importantes das
mudanças ocorridas na sociabilidade urbana e nos hábitos cotidianos a partir dos processos de
urbanização.
Palavras-chave: Literatura; Vida Urbana; Xavier Marques.
ABSTRACT
The purpose of this research paper is to analyse the way the Bahian literate and journalist
Xavier Marques (1861-1942) interpreted the urban space of the city of Salvador at the end of
the 19
th
century, through his novel O Feiticeiro (1922) of which the main themes are the
reflections of the author about the spatial organization of the city, the habits of its different
social classes, the activities carried out by the Afro-descendants and the contrast between the
popular culture and the civilized culture. In order to achieve a better contextualization of this
issue we aimed to characterize the transition from the 19
th
century to the 20
th
century as a
period of modernization of the habits of the Brazilian society, defining modernity as a
historical culture on a Simmel (1983; 1991; 1998) approach. The main characteristics of the
urban reforms of Rio de Janeiro (1902-1906) were described as model of urbanization
followed by other Brazilian capitals according to the historians Chalhoub (1996) and Needell
(1993). We also broached the major changes which occurred in the Brazilian public sphere
between 1900 and 1922 with the development of the press (Ribeiro, 1998; Miceli, 2001) and
the springing up of narrative styles focusing the urban life vicissitudes as exemplified in the
literary work of João do Rio (1881-1921). This research paper points out particular aspects of
the changes which took place in the urban space of Salvador at the beginning of the 20
th
century specially during the reforms carried out by J.J. Seabra (1912-1916); and calls
attention to the relevance of literary fiction as a source of historical analysis that enables one
to perceive important aspects of changes in urban sociability and daily habits arisen from the
processes of urbanization.
Keywords: Literature; Urban Life; Xavier Marques.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 6
2 MODERNIDADE: PRELIMINARES HISTÓRICAS 11
2.1 Primeiras Décadas da Republica: As Bases das Contradições da Modernidade
Periférica (Alguns Acontecimentos Históricos). 22
2.2 Haussmannização: as reformas de Paris (1853-1870) e a disseminação de um modelo
de modernização de centros urbanos.
28
2.3 As reformas de Pereira Passos (1902-1906) ou como materializar um sonho de
civilização. 33
3 REPERCUSSÕES 48
3.1 O Campo intelectual entre o Império e a República. 52
3.2 Atores da repercussão: o papel do literato e da literatura de ficção na construção do
“real”. 58
3.3 Literatura e vida urbana. 63
4. DANDO SENTIDO AO CONCRETO: AS REFLEXÕES DE XAVIER MARQUES
SOBRE O ESPAÇO URBANO DE SALVADOR NO SÉC. XIX. 72
4.1 Espaço público, sinais de uma cidade e suas divisões. 76
4.2 A cultura colonial e a escravidão vistas como um estigma. 91
4.3 “Miscigenação” um problema ou uma resposta à singularidade Brasileira. 98
4.4 Cultura popular versus cultura civilizada. 111
4.5 O que há de concreto: a cidade vista em seu aspecto urbanístico e arquitetônico. 121
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 141
6. REFERÊNCIAS 146
1. Introdução:
Tudo surgiu da vontade de contar estórias
1
. É movido por esse estímulo peculiar que o
presente estudo revolve as páginas do passado e traz a público (ao pequeno grupo de
professores e colegas que gentilmente me auxiliam nessa trajetória) uma interpretação
sociológica de textos literários e de crônicas jornalísticas de autores nacionais da passagem do
século XIX para o século XX, como Lima Barreto, Olavo Bilac, João do Rio e Xavier
Marques, buscando situar as vozes desses autores no contexto de urbanização das cidades do
Rio de Janeiro e Salvador durante a primeira República.
Contar uma estória requer, em grande medida, uma tomada de posição. “Quem conta
um conto aumenta um ponto”, o narrador nunca é isento. Construir uma narrativa é antes de
tudo assumir um ponto de vista sobre uma situação e reconstruí-la como trama. O estudo
histórico não escapa a essa função inerente ao narrar, e se inscreve como ação que constitui a
tradição com base nos valores da ciência moderna. É, portanto, um tipo de retórica que se
diferencia por ter como valor central, o logos, ou seja, a sua lógica argumentativa, e por
ludibriar a centralidade do ethos, ao transformar a autoridade personalizada em autoridade
institucional, a da ciência e seu método.
O tema da modernidade circunscrita à passagem do culo XIX para o século XX,
período no qual ocorreu a consolidação dos Estados Nacionais na América Latina pós-
colonial, tem merecido a atenção de diversos autores interessados na formação da sociedade
brasileira, tais como Skidmore, Novy e Bosi. O estudo das mudanças sociais ocorridas no
Brasil durante esse período traz à baila discussões sobre a autenticidade das instituições do
1
O termo “estória” foi retomado por Guimarães Rosa do português antigo em seu livro Primeiras Estórias, para
definir uma oposição à “história” realçando o caráter fabuloso e inventivo do primeiro termo. Nesse sentido,
“estória” é uma palavra para definir os “casos”, os enredos que são assumidamente inventados, e que não
pretendem uma referência direta com o que é tido como real”. O presente trabalho seguiu como pressuposto a
idéia de que o estudo de história e sociologia, mesmo quando construído de acordo com as exigências de
validação científica, não se opõem de maneira radical, ao caráter criativo e construtivo das obras de ficção. Por
essa razão, as análises históricas constituem-se também como veículos de reflexão e de reinvenção dos valores
sociais, e das identidades que são construídas em referência a nacionalidade.
capitalismo moderno entre nós, Estado Nacional Democrático e mercado competitivo, além
de abordar o tema da singularidade do arranjo social brasileiro em contraposição ao ocidente
europeu, e às outras nações americanas.
O processo de formação dos Estados Nacionais nos países que constituem a periferia
do capitalismo moderno, como as nações latino-americanas, abarca na sua própria
constituição a dicotomia entre o vetor nacionalista a reunião de elementos considerados
tradicionais e definidores da identidade de um povo-nação e o impulso universalista que
enseja uma dinâmica de europeização de instituições e da própria sociabilidade, prescrevendo
outros modos de vida. Dessa maneira, as pesquisas sociológicas que abordam o tema, como as
obras clássicas de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e Florestan
Fernandes, discutem simultaneamente as contribuições singulares da sociedade brasileira para
a civilização e a possível inautenticidade das instituições modernas, democráticas entre nós.
As reformas urbanas empreendidas em capitais brasileiras no início do século XX a
exemplo das reformas do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906 e as reformas de Salvador entre
1912 e 1916 expressam essas contradições que envolveram a apropriação do modelo de
Estado Nação ocidental, no cenário nacional da Primeira República (1889-1930). Por essa
razão o presente trabalho pretende abordar o processo de modernização da sociedade
brasileira, buscando entender de que maneira os literatos compreenderam o espaço urbano de
cidades que passaram por reformas durante o início do século XX.
Cabe observar que essa pesquisa está situada nos limites da investigação sociológica e,
portanto, não se define como uma proposta de análise literária, isso é, o investiga os
pressupostos estéticos da obra literária. Tampouco se trata de uma “sociologia da literatura”,
pelo menos nas suas abordagens mais “clássicas”, como os trabalhos desenvolvidos por
Robert Escarpit, Pierre Macherey, Lukács, Lucien Goldmann e tantos outros. Assim, não
procura interpretar a obra literária pelo seu contexto sócio-cultural. O que buscamos através
da obra ficcional é caracterizar como os literatos deram visibilidade a um processo de
modernização da sociedade brasileira, ao refletirem sobre o espaço urbano de suas cidades,
seja em seu aspecto físico, arquitetônico e urbanístico, seja em seu aspecto humano, como
espaço de coexistência onde ocorrem interações sociais.
O capítulo seguinte oferece uma contextualização histórica definindo a passagem entre
o séc. XIX e o séc. XX, no Brasil, como um período de intensas mudanças de costumes, que
tem lugar a partir do processo de urbanização das capitais brasileiras. Nessa perspectiva a
modernidade pode ser entendida como uma nova experiência histórica que se instaura em
cidades que sofreram alterações como aumento populacional, diversificação étnica e religiosa,
processos de reestruturação urbana, melhorias dos transportes públicos, entre outras mudanças
que afetam a constituição do espaço de coexistência e as relações de alteridade como
sugerem os escritos de Simmel (1983; 1991; 1998).
Em seguida são apresentadas as principais características do modelo urbanístico
difundido a partir das reformas empreendidas pelo barão de Haussmann em Paris entre 1853 e
1870. Esse modelo influenciou as reformas do Rio de Janeiro durante o governo do
engenheiro Pereira Passos entre 1902 e 1906, cujos principais aspectos o também
destacados nesse trabalho. As reformas do Rio de Janeiro, então Capital Federal, serviram
como estímulo à aplicação de novos padrões urbanísticos e arquitetônicos em outras cidades
brasileiras, e consolidaram um modelo que outras capitais procuraram reproduzir como
expressão de um protótipo de civilização e modernidade.
O presente trabalho busca ainda caracterizar de maneira sucinta o desenvolvimento da
esfera pública no Brasil na transição entre a monarquia de D. Pedro II e o governo
republicando, salientando a emergência de novos postos de trabalho para escritores
profissionais e o desenvolvimento da grande imprensa, durante esse período. Procura-se
também identificar a relação entre o florescimento da vida urbana e a emergência de novos
estilos de narrativa literária que têm como pauta a descrição dos eventos que compõem o
cenário da cidade, a exemplo da literatura de João do Rio.
No contexto de reformulação de costumes, que caracteriza a passagem do séc. XX
no Brasil, no qual se destaca a centralidade de reformas urbanas como critérios de
modernidade, ocorrem importantes mudanças na esfera pública a partir da formação de um
campo intelectual relativamente autônomo, que concorrem para uma ação mais ativa por parte
dos intelectuais e literatos. A grande imprensa se desenvolve e são gerados novos postos de
trabalho para intelectuais profissionais, em partidos políticos e nas redações de jornais e
revistas (Miceli, 2001).
Por fim, o trabalho apresenta uma análise mais detida acerca de como o literato e
jornalista baiano Xavier Marques interpretou o espaço urbano da cidade de Salvador no final
do séc. XIX a partir do seu romance O Feiticeiro. A análise trata como tema relevante a
maneira como o autor interpreta a organização espacial da cidade de Salvador, os hábitos das
diferentes classes sociais no contexto soteropolitano, as atividades desempenhadas pela
população afro-descendente e a contraposição entre cultura popular e cultura civilizada.
Como recurso metodológico foram definidas cinco categorias de análise que serviram
como suporte para a compreensão dos principais aspectos que perpassam as reflexões de
Xavier Marques acerca do espaço urbano de Salvador:
a) Espaço público, sinais de uma cidade e suas divisões: aborda a maneira
como o autor descreve o cenário da cidade destacando as diferenças
territoriais.
b) A cultura colonial e a escravidão vistas como um estigma: trata da forma
como o autor aborda os hábitos da população soteropolitana que reportam à
origem colonial e escravista.
c) “Miscigenação” um problema ou uma resposta à singularidade
brasileira: aborda as reflexões do autor acerca da composição mestiça da
sociedade baiana em termos culturais e hereditários.
d) Cultura popular v ersus cultura civilizada: as considerações dirigidas às
festas populares e manifestações religiosas quando contrapostas à visão
progressista do período republicano.
e) O que de concreto: a cidade vista em seu aspecto urbanístico e
arquitetônico: analisa as críticas dirigidas à aparelhagem urbana e à
arquitetura.
2. Modernidade: preliminares históricas.
O período que se estende entre 1870 e 1920 aproximadamente é marcado por
mudanças contundentes no cenário sócio-político nacional, proporcionadas pela abolição da
escravatura (1888) e pela proclamação da República (1889). Alguns acontecimentos
importantes ilustram esse momento, como a promulgação da constituição republicana em
1891, o fortalecimento da economia de mercado, a criação de um liberalismo (ainda que
limitado) e a implementação do trabalho assalariado. O país entrava em um processo de
construção de uma sociedade urbano-industrial (Herschmann & Pereira, 1994), as relações
sociais cambiavam das trocas de tipo escravista para o tipo burguês/capitalista. Nesse sentido,
a valor negativo que recaía sobre o trabalho em função da sua associação com a escravidão,
compunha um aspecto indesejável da visão de mundo colonial, que aos poucos se reformulava
mediante discursos políticos que preparavam a população para a participação em uma nova
ordem burguesa. No plano econômico, a segunda revolução industrial proporciona uma
dinamização da economia européia e norte-americana afetando as nações que mantém
relações comerciais com esses paises.
É justamente nas últimas décadas do séc. XIX que noções como “moderno” e
“modernidade” são incorporadas ao vocabulário das elites dirigentes. Os sentidos que lhes
são atribuídos estão atrelados a um desejo de reformulação da sociedade em uma perspectiva
progressista que visava romper com o modo de vida tradicional herdado das relações
coloniais. Paralelamente, chegam ao país correntes de pensamento que marcam a era
moderna, como o evolucionismo de Darwin e Spencer, e o positivismo de Comte (Veloso &
Madeira, 2000)
2
. Da mesma forma, se expandem as ciências aplicadas medicina e
2
Segundo Skidimore (1976), o Positivismo, o Evolucionismo e o Materialismo fazem parte do novo arsenal de idéias
difundido entre os grupos intelectuais, alguns autores estudados eram Comte, Taine, Darwin, Renam e Heackel. O
Positivismo teve penetração entre os intelectuais de várias regiões do país. No Rio de Janeiro foi fundada a 1
a
. associação
Positivista do Brasil em 1876, e em 1881 o Apostolado Positivista. O positivismo invadiu também a Escola Militar do
Rio. Essa doutrina foi divulgada através das, então nascentes, ciências aplicadas. Nas escolas de matemática e de
Engenharia os estudantes ouviam dizer que o Positivismo era “a aplicação lógica da ciência à sociedade”. Essa corrente
engenharia tidas como indispensáveis ao desenvolvimento do país. O regime republicano
fortemente influenciado pela filosofia positivista pretendia apagar os vínculos ainda visíveis
com o passado colonial mediante programas de urbanização das cidades, planos de
saneamento dos espaços públicos e privados, campanhas de higienização no combate as
epidemias, medidas que vicejavam uma verdadeira reformulação pedagógica.
Esse período da história brasileira é reconhecido por vários autores como um
momento de mudança de costumes e de divulgação de uma nova visão de mundo, que se
exprimem na internalização de valores (Herschmann & Pereira, 1994), na apropriação de
teorias estrangeiras (Alonso, 2002) e no remanejamento da noção de espaço público em
referência à dimensão domiciliar (Freyre, 2003). Essa reformulação do modo de compreensão
do espaço de coexistência se instaura principalmente no espaço urbano das capitais brasileiras
que passam por processos de modernização com a implementação de uma aparelhagem
tecnológica destinada aos serviços públicos como o saneamento, abastecimento de água,
iluminação e transportes.
Igual modernização ocorre também nos meios de comunicação com a chegada do
telégrafo (1852), do telefone (1877) e com a implementação do serviço postal domiciliar. Em
1889 entrou em operação a primeira usina hidrelétrica de porte no país, situada na cidade de
Juiz de Fora. A energia elétrica representou um grande avanço tecnológico, possibilitando o
melhor funcionamento de fábricas e a substituição dos lampiões a gás na iluminação pública.
Outras inovações abrem os horizontes nacionais ao mundo “civilizado” como o fonógrafo,
divulgado no país em 1891 e o cinematógrafo, que abre as suas primeiras salas em 1896. Em
1905 a cidade do Rio contava com 12 automóveis e em 1906 o brasileiro Santos Dumont
corta os céus de Paris com o primeiro avião, o 14 bis (Neves & Heizer, 1991). Para Prado
de pensamento se encaixava com as aspirações de uma elite que ansiava por um progresso econômico, mas por outro
lado, temia a mobilização social. Os grupos dirigentes encontravam legitimidade para o seu projeto de modernização no
aspecto autoritário do positivismo.
Junior (1961), nesse período o país vislumbra, pela primeira vez, o significado do progresso
do séc. XX a partir do desfrute de um bem estar material para certos setores urbanos da nação.
Além das mudanças tecnológicas são notáveis as alterações provocadas na
dimensão da produção e das trocas comerciais e financeiras. Primeiramente, a adoção do
trabalho assalariado implicará na formação de uma nova ética a ser empregada no
reconhecimento do trabalhador, a partir da consolidação da relação “profissional”, inexistente
durante a escravidão. No comércio e no setor financeiro a disseminação de uma cultura
monetária implicará, por sua vez, na racionalização e objetividade das trocas sociais.
Nesse sentido, destaca-se a influência dessas mudanças na sociabilidade dos
indivíduos. Ou seja, a modernidade compreendida como um momento singular da história,
que conduz a uma ruptura com o modo de vida das sociedades tradicionais, é constituída por
um novo padrão de sociabilidade, que em um nível mais superficial, exprime um aspecto mais
profundo de alteração da relação entre sujeito e mundo. Por essa razão, o presente trabalho
pretende adentrar em uma dimensão mais fundamental das relações sociais, a saber, as
alterações que se instauram no âmbito da vida cotidiana e que caracterizam a formação de um
novo tipo de experiência social, ainda que considere relevante a observação dos indicadores
político-econômicos, na construção de um recorte contextual da situação estudada. Busca-se
salientar os novos significados atribuídos ao espaço público que conduzem a uma maneira
peculiar de compreensão do meio ambiente e do “outro”.
Georg Simmel (1858-1918) é um autor que pode dar subsídio à análise aqui
proposta. Embora os seus conceitos apresentem uma certa dificuldade ao serem
operacionalizados sociologicamente, devido ao caráter ensaístico de toda a sua obra, suas
análises são sempre elucidativas quanto ao tema da modernidade, por apontarem
características até hoje consideradas como decisivas desse período histórico (Frisby, 1985;
Allen & Pryke, 1999). São canônicos nesse aspecto os seus ensaios acerca do ritmo das
metrópoles e sobre as conseqüências da economia monetária na cultura moderna. (Simmel,
1950, 1991)
Nas palavras de Gabriel Cohn (1979), Simmel é o protótipo do intelectual
marginal. Ele foi professor na universidade de Berlim no final dos anos oitocentos e início dos
novecentos, mas a sua participação oficial na vida universitária era inexpressiva. Ocupou
durante 29 anos cargos cuja qualificação era meramente honorífica, a exemplo da precária
condição de “livre docente”. Por essa razão, o autor nunca esteve totalmente comprometido
com o meio universitário e, na medida em que essa posição ia se constituindo como uma
condição irrevogável, o próprio autor passou a aderir a ela, aproveitando para fugir às
prescrições acadêmicas, a exemplo da exigência de uma abordagem mais sistemática. Os
trabalhos de Simmel se caracterizam pela assistematicidade, pela fragmentação e pela
diversidade de temas abordados. Segundo Morais Filho (1983), Simmel se comportava como
um livre pensador crítico dos valores dominantes tendendo a adoção de uma ética vitalista
nietszchiana que não se enquadrava norculo da vida universitária nacional. Faltava-lhe, em
certo sentido, disciplina acadêmica. Seus trabalhos tinham um caráter interdisciplinar e
abrangiam áreas distintas da filosofia (da lógica à estética), além de temas de psicologia,
sociologia, história e filosofia da religião. Dedicou-se ainda à produção de biografias de
Goethe, Schopenhauer, Nietszche, Rembrant e Kant.
Ao analisar o modo de vida na modernidade, tendo como exemplo empírico a sua
própria vivência na cidade de Berlim na passagem do séc. XIX para o séc. XX, o autor acaba
por compreendê-la como uma cultura histórica que se desenvolveu em cidades que sofreram
alterações peculiares como: aumento populacional, diversificação étnica e religiosa, processos
de reestruturação urbana, incrementação de transportes públicos, entre outras mudanças de
caráter progressista que afetaram sobremaneira a constituição do espaço de coexistência e as
relações de alteridade. Nesse sentido, o autor situa a modernidade como um tipo específico de
experiência social, o que coloca a sua análise no âmbito da vida cotidiana. Por essa razão, o
conceito de modernidade, assim definido, identifica uma singularidade histórica em termos
culturais que extrapola os limites de uma conceituação pautada em critérios cronológicos.
Nos textos que versam sobre as experiências sociais que traduzem a cultura
moderna e as suas representações, o autor destaca uma defasagem crescente entre a vivência
particular individual e a teia de relações que forma o todo social. Essa defasagem entre a vida
particular e o todo se manifesta na busca do indivíduo por si mesmo, constituindo-se em uma
busca por uma base sólida. Ou seja, o individualismo moderno redunda em uma procura por
um refúgio seguro, uma vez que o horizonte prático e teórico se expande e a complexidade da
vida social se intensifica aceleradamente, gerando uma espécie de desolação. Nesse contexto,
a busca por si mesmo passa a ser o grande ideal dos indivíduos na modernidade.
Durante toda a época moderna, temos a busca do indivíduo por si mesmo, por um
ponto de solidez e ausência de dúvidas, o qual se torna tanto mais necessário quanto
mais o horizonte prático e teórico e a complexidade da vida aumentam
aceleradamente, tornando ainda mais urgente essa necessidade, a qual o pode ser
encontrada em instâncias externas à própria alma (Simmel, 1998 p.114).
A partir dessa caracterização da vida moderna, marcada pela contingência e
constante ruptura de limites, Simmel entende a modernidade como uma experiência de
transição e movimento. Nesse sentido, as noções espaciais de mobilidade e fixidez, assim
como as de proximidade e distância serão temas da investigação “simmeliana”, para expressar
muito do que é tido de antemão nas relações cotidianas das cidades do mundo moderno. O
espaço, como categoria sociológica, ganha destaque na obra de Simmel, na medida em que o
autor se debruça sobre o modo de vida urbano e acaba por descrever a modernidade como um
tipo de cultura histórica definida a partir da troca de relações de proximidade e distância e de
novas experiências de mobilidade e fixidez.
Tendo em vista que o presente estudo busca analisar a articulação entre as
reflexões do autor Xavier Marques a respeito do espaço urbano da cidade de Salvador no séc.
XIX e a difusão de uma dada concepção de modernidade, as considerações de Simmel acerca
da relação entre a modernidade e a consolidação de novas formas de compreensão do espaço,
como prerrogativa de determinadas interações sociais, torna-se um referencial teórico de
importante valor heurístico, na medida em que sugere que a própria modernidade como modo
de vida, situado historicamente, se constitui a partir de novas experiências de proximidade e
distância e de novos referenciais de mobilidade e fluidez.
Existem dois caminhos que podem ser seguidos para se chegar a uma sociologia
do espaço em Simmel. Um deles é a consideração do espaço como uma das precondições para
determinados tipos de interação social, e outro a compreensão do autor da modernidade como
uma cultura de transição e movimento que é espacialmente “experiênciada”
3
, logo
espacialmente constituída. A priori, pode-se dizer que o interesse de Simmel em uma
sociologia do espaço é de natureza bastante abstrata, próxima ao formalismo filosófico. Diz
respeito ao estabelecimento das precondições formais das associações, como parte do seu
estudo sobre as formas sociais. Não devemos perder de vista, nesse ponto, um elemento
fundamental da teoria desse autor, o pressuposto de que a sociedade é composta pela soma
das interações sociais, o que norteia o seu interesse preliminar pelo “espaço” como
precondição para certos tipos de interação.
Nesse sentido, em escritos como “O Espaço e a sociedade”, um dos capítulos do
livro “Sociologia: estudo das formas de socialização”, o autor exploraria esse interesse mais
formal em perceber como as várias qualidades de espaço condicionam as possibilidades de
certas formas de interação social. Mas, para compreender o significado que o espaço adquire
como categoria analítica em Simmel é preciso passar pelos seus estudos formais e buscar a
operacionalização dessa categoria, que encontramos em seus ensaios sociológicos. Nesses
3
A utilização desse neologismo “experienciado” ao invés de “experimentado” é justificada pela referência a noção
fenomenológica de experiência, a qual indica uma vivencia de caráter fundamental que compromete a própria formação
subjetiva a partir da relação originária entre o sujeito e o mundo por ele habitado.
termos, os trabalhos mais interessantes são aqueles nos quais o autor tematiza o modo de vida
na modernidade e as suas diversas formas de interação.
O espaço comparece como categoria analítica para compreender por exemplo, as
conseqüências do caráter diversificado, acelerado e transitório das relações travadas no
perímetro urbano. Essas relações são propiciadas por um ritmo urbano intenso, que passa a ser
responsável por produzir reações extremas de alheamento, reserva e indiferença. Segundo
essa perspectiva o caldeirão da vida urbana, com o contínuo fazer e refazer de transações, as
mudanças de ritmo, o contato constante com estranhos, enfim o excesso de informações ao
redor, faz com que um entendimento de toda essa diversidade se faça impossível, levando o
individuo a desenvolver uma certa apatia e indiferença para coordenar o dia-a-dia e
salvaguardar a sua integridade subjetiva. Criar uma distancia entre si e os outros, e entre si e o
ritmo sobrecarregado da cidade como um todo, é, na verdade, uma estratégia para coordenar a
dinâmica interacional. Basicamente isso é o que faz com que seja possível andar para o ponto
de ônibus ou de trem pela manhã, sem se sentir obrigado a parar e falar com cada um, pelo
caminho (Allen, 2000).
Esse efeito de distanciamento é o que Simmel descreve como a formação de uma
atitude blasé em resposta ao ritmo complexo da vida urbana. Tem-se a idéia de que a
impossibilidade de lidar com todas as diferenças, os movimentos e as transações da cidade,
conduz a uma atitude de reserva, essencial para o estilo de vida urbano. Nesse aspecto, a
“espacialidade”, como categoria analítica, está presente para pensar como a natureza das
relações nas cidades alteram o nosso senso de proximidade e distância. A exemplo da
definição da impessoalidade como conduta requerida pelos encontros constantes com
estranhos, e pelo ritmo acelerado das transações; assim como a atitude de reserva e
“apartamento” empreendida para salvaguardar a integridade subjetiva, frente ao excesso de
informações.
Essa tensão entre os critérios de proximidade e distância está presente também no
tratamento dado pelo autor ao impacto da economia monetária nas interações modernas. De
acordo com Simmel (1991), o calculismo abstrato e as relações frias travadas
economicamente o interações que geram disposições racionais e práticas instrumentais que
envolvem outro tipo de isolamento baseado na lógica das trocas monetárias. A economia
monetária, ao interpor o dinheiro como denominador comum para a obtenção de fins diversos,
acaba por igualar a todos os fins com caráter pessoal distintos, destituindo os objetos culturais
de um valor subjetivo. Nesse sentido, o dinheiro como símbolo abstrato dos valores, acaba
favorecendo a formação de uma cultura objetificada, na qual as relações sociais se constituem
em uma base impessoal, marcada pelo distanciamento subjetivo dos indivíduos envolvidos.
Percebe-se na abordagem de Simmel que o espaço é tratado como uma
possibilidade de coexistência, nesse sentido, o que importa não é o espaço geométrico, mas os
códigos sociais que aproximam e distanciam as pessoas e os grupos. O distante ou remoto,
não necessariamente é aquele que está longe em termos físicos. O distanciamento pode se dar
em termos culturais e sociais. Uma pessoa pode ser remota em termos culturais e estar
próxima fisicamente, ou pode estar distante fisicamente e ser próxima em termos culturais.
Um exemplo dessa ambigüidade é a propagação de uma cultura cosmopolita, que faz com que
pessoas de regiões diversas do globo sintam-se próximas por compartilharem um certo estilo
de vida urbano.
Simmel utiliza a figura do “Estrangeiro” como metáfora sociológica que sintetiza
essa tensão entre proximidade e distância. Através da sua imagem é colocada em questão
uma gama de ambivalências que m à tona nas relações, quando tratamos de negociar as
diferenças. Simmel adota a figura do estrangeiro para iluminar ou capturar a experiência
contraditória de estar próximo a alguém fisicamente, porém distante desse alguém
culturalmente. A síntese entre proximidade e distância contida em toda interação, está
organizada no fenômeno do estrangeiro da seguinte forma: na relação com ele a distância
existe pelo fato de que ele, que está próximo fisicamente, é um ser remoto culturalmente, por
outro lado, a estranheza se pelo fato de que este, que é remoto, está perto de fato. O
estrangeiro é, por tanto, alguém que está envolvido e ao mesmo tempo não está, alguém que
está próximo de nós e ao mesmo tempo é parte do exterior.
A unificação entre mobilidade e distância envolvida em toda relação humana
organiza-se, no fenômeno do estrangeiro, de um modo que pode ser formulado da
maneira mais sucinta dizendo-se que, nessa relação, a distância significa que ele,
que está próximo, está distante; e a condição de estrangeiro significa que ele, que
também está distante, na verdade está próximo, pois ser um estrangeiro é
naturalmente uma relação muito positiva: é uma forma específica de interação
(Simmel, 1983 p. 182)
Em outra perspectiva, o estrangeiro é uma alegoria que exprime os conflitos
vivenciados nas interações urbanas modernas, nas quais é necessária a constante negociação
de diferenças. Nem sempre a distância é medida em termos espaciais, um indivíduo distante é,
em muitas situações, aquele pertencente a um outro grupo social. Segundo Simmel (1998),
esse fenômeno indica que as relações espaciais são, de um lado, apenas a condição das
relações humanas, e de outro, o símbolo dessas interações.
Por essa razão, a sugestão de Simmel é de que traços de estranhamento,
marginalidade e estrangeirismo em toda relação humana, não nas relações que se
enquadram nas características do outsider, ou marginal. Esse traço está presente no encontro
íntimo da paixão à primeira vista, no qual o estranhamento é o que justifica a originalidade do
vínculo entre os apaixonados. Tem lugar também nos encontros fugazes entre desconhecidos
em lugares públicos, como o metrô ou nas ruas atarantadas e na vida das cidades como um
todo, na qual os indivíduos compartilham de um pertencimento a um mesmo universo, mas ao
mesmo tempo, afirmam as suas diferenças mútuas. O estrangeiro é apenas um ícone através
do qual todas as tensões sociais e espaciais devem ser canalizadas.
Encarnando a ambivalência entre distância e proximidade, a figura do estrangeiro
em Simmel adverte acerca da dissociação entre presença e proximidade. O estrangeiro
encarna a presença daquilo que não pode ser verificado espacialmente, ele é a presença de um
mundo exterior ausente, característica que dissolve a santidade da presença e desfaz a idéia
estandardizada de que a presença requer proximidade física. Nesses termos, reforça-se a idéia
de que o espaço para Simmel diz respeito a fatores “espirituais”, em outras palavras
constituem valores sociais que unem ou separam as pessoas, e que por isso a proximidade
pensada segundo a sua sociologia do espaço, não requer proximidade física.
Nessa perspectiva, a tensão entre proximidade e distância é seminal, ela não é um
conflito que deva ser superado, é um fato da vida moderna que deve ser vivido. Essa maneira
de conceber os conflitos como fatores funcionais, seminais apontam a constante presença da
chamada “dialética sem conciliação”, descrita por Ferreira (2000) da seguinte forma:
concepção de um conflito entre estruturas fenomenológicas formais (culturais) e um fluxo de
energia vital que agiria de modo a romper os limites de tais estruturas. Essa construção
filosófica é utilizada por Simmel para analisar os fenômenos sócio-históricos mais diversos, e
se traduz na relação conflituosa entre cultura subjetiva e cultura objetiva, cuja configuração
em diferentes períodos históricos determina estilos de vida peculiares.
O fato de a vida subjetiva que sentimos em um contínuo fluir e que a partir de si
impele à sua perfeição interior – não poder absolutamente, da perspectiva da idéia de
cultura, alcançar esta perfeição a partir de si, mas somente por meio daquelas
criações que se tornam totalmente estranhas a ela e que se cristalizam em uma
instância fechada, constitui o paradoxo da cultura. Cultura surge e isto é
simplesmente o essencial para a sua compreensão na medida em que
aproximação de dois elementos: a alma subjetiva e o produto espiritual objetivo;
sendo que nenhum deles a contém por si (Simmel, 1998 p.83).
A vida es inescapavelmente condenada a somente se apresentar na realidade na
forma do seu oposto, vale dizer, numa forma. (Simmel apud Cohn, 1979).
Temos a impressão que Bérgson nunca se deu conta do que de profundamente
trágico no fato de que a vida, para existir, deve se converter na não-vida.(Simmel
apud Ferreira, 2000)
Segundo Morais Filho, Simmel não teria sido tão assistemático quanto parece, os
seus trabalhos apresentam uma unidade em termos da utilização de idéias ou figuras formais
filosóficas, como é o caso do constante aparecimento do conflito entre vida como fluxo e vida
como forma, descrito nas citações acima. Da mesma maneira, a noção de “espaço”,
apropriada em sua sociologia, possibilitou que o autor se voltasse para temas diversos. A
distância social é explorada como categoria analítica para tratar ao mesmo tempo do
fenômeno do estrangeiro, das conseqüências da economia monetária sobre as normas de
conduta, das exigências da vida em grupo nas cidades e para compreender o impacto do ritmo
apressado das transações urbanas, sobre a integridade subjetiva dos agentes sociais.
É justamente sob o caráter formalista da sociologia de Simmel que o autor deixa
como legado a idéia de que as diversas formas de interação possuem uma dimensão espacial
constituinte, e que elas podem ser descritas sociologicamente a partir da análise desse fator.
Por isso é possível se perguntar a partir de Simmel, que novos tipos de co-presença podem ser
gerados nas relações propiciadas pelos meios ligeiros de comunicação, como o telégrafo e o
telefone que chegam ao Brasil no final do século XIX; ou de que maneira o nosso senso de
proximidade e distância se alterou com a nova organização espacial das cidades brasileiras
nesse período, tendo em vista a definição de espaços destinados ao desfrute das classes mais
altas em contraposição aos espaços de moradia das classes trabalhadoras. Dessa maneira, é
possível constituir uma perspectiva de análise acerca das mudanças ocorridas nas cidades
brasileiras em modernização na passagem do século XX perseguindo a sugestão, apontada por
Simmel, de que a urbanização na passagem do séc. XIX para o séc. XX provocou uma
verdadeira revolução nas relações de alteridade, e na compreensão do espaço de coexistência.
2.1 Primeiras décadas da Republica: as bases das contradições da modernidade
periférica (alguns acontecimentos Históricos).
A primeira década da República foi um período conturbado politicamente, a
iminência de levantes monarquistas ameaçava o regime recém instaurado. Durante o governo
de Floriano Peixoto (1891-1894), ocorre o movimento conhecido como Revolta da Armada
(1893-1894) que começa no Rio de Janeiro e se expande pala região Sul, formado por oficiais
da Marinha contrários à posse do vice-presidente Floriano Peixoto após a renúncia de
Deodoro da Fonseca. Os dissidentes da Marinha exigiam novas eleições presidenciais,
previstas pela constituição, em casos em que a presidência ficasse vaga antes de transcorrida a
metade do mandato (Fausto, 2003). Muitos monarquistas participam também desse confronto,
que em uma de suas ações promove um bombardeio ao porto do Rio de Janeiro. Com a ajuda
de navios de guerra estrangeiros, Floriano Peixoto derrota os rebeldes e angaria novos aliados
entre a população urbana. Uma onda de patriotismo republicano se levantou entre os militares
e civis, abrangendo estudantes, profissionais liberais, funcionários públicos, jornalistas, entre
outros. No entanto, o apoio das camadas urbanas o era suficiente para sustentar o governo
Republicano, por essa razão, a aliança com a oligarquia agrária de São Paulo constituirá o
principal esteio do governo de Floriano Peixoto (Needell, 1993).
Durante todo a governo florianista vigora um acordo tácito entre os militares e os
representantes políticos de o Paulo, filiados aos interesses dos grandes fazendeiros de Café
do Vale do Paraíba. Devido às excelentes condições de plantio desse produto na área recém
descoberta do Vale, a receita do estado de São Paulo torna-se a maior da união. Esse fato
propicia grande influência dos seus representantes políticos nas disputas federais. A elite
paulista consolidou-se de maneira forte e coesa. As divergências entre conservadores e
liberais, acirradas durante a queda do Império, não criou grandes rachas entre os dois grupos
que dividiam a elite cafeicultora local, ambos privilegiaram os objetivos econômicos em
comum. O estado paulista contava com a economia mais próspera da união e com força
militar própria.
Floriano Peixoto não teve força política para emplacar um sucessor à presidência e
a tênue aliança entre militares e a oligarquia paulista perde sustentação. Para a sucessão
presidencial prevalece o nome do paulista Prudente de Morais (1894-1898), o primeiro
presidente civil da República brasileira. Durante o seu governo, apesar da continuidade dos
levantes políticos
4
e de um atentado sofrido pelo próprio presidente
5
, Morais conseguiu
consolidar a força agrária no poder, assegurando para a sua sucessão o mandato de mais um
fazendeiro paulista, Campos Sales (1898-1902). O país estava novamente sob o mando de
uma elite agrário exportadora.
Durante o mandato de Sales estrutura-se a assim chamada, “política dos
governadores”, a elite paulista manteve a sua supremacia no âmbito federal, através de
acordos com as oligarquias locais, implantando uma política federal que garantiria os
interesses dos grupos mais influentes nas sucessões para os governos estaduais. Sendo mais
específica, o arranjo conhecido como “política dos governadores” consistia na aliança do
governo federal com os políticos que gozavam de maior poder no âmbito de cada Estado,
visando reduzir as disputas políticas locais e garantindo o apoio dos Estados ao governo
federal. Esse sistema propiciava também o fim das desavenças entre o poder Legislativo e o
Poder Executivo, através da domesticação da escolha dos deputados (Fausto, 2003).
Nesse sentido, embora a constituição de 1891 tenha seguido os preceitos liberais e
o liberalismo tenha prevalecido como ideologia adotada pelos setores sociais que
4
Um evento marcante do governo de Prudentes de Morais foi a Guerra de Canudos, um embate entre as forças militares
federais e a população de uma comunidade conhecida como Arraial de Canudos no sertão Baiano, liderada pelo Beato
Antonio Conselheiro. A comunidade foi interpretada como uma resistência monarquista e uma ameaça à República. Em 1897
a revolta foi esmagada no episódio descrito por Euclides da Cunha como um verdadeiro massacre. Os sobreviventes, uma
multidão de famintos, foram conduzidos para outras áreas, onde permaneceram à míngua (Skidmore, 1976).
5
A oposição entre a política oligárquica e o centralismo republicano do grupo dos Jacobinos, que apoiaram o governo de
Floriano Peixoto, se acirrou durante o mandato de Prudente de Morais, alguns membros dos jacobinos participaram de uma
tentativa de assassinato do presidente.
predominaram na organização do novo regime, na prática o poder político esteve sob o
controle de grupos reduzidos no âmbito de cada Estado. Devido a esse comportamento do
poder Executivo em relação às oligarquias dos Estados da união, o período republicano entre
1889 e 1930 recebe as designações de “República dos governadores”, “República oligárquica”
e “República dos coronéis” (Fausto, 2003). Por outro lado, esse ajuste de interesses entre o
poder Executivo e as oligarquias locais concedeu estabilidade política à República.
Por seu turno, a estabilidade econômica foi conseguida mediante o
restabelecimento do crédito internacional com a Inglaterra. A dívida externa, herdada dos
tempos do Império, consumia quantias consideráveis da balança comercial. Esse quadro se
agrava em 1890 com o aumento de déficit público. Ao final do mandato de Prudente de
Morais a sustentação do serviço da dívida externa tornou-se inviável; era preciso iniciar um
novo acordo com os credores internacionais. Já no Governo de Campos Sales foi acertado um
Funding Loan, que consiste em um empréstimo de consolidação da dívida, ou melhor, um
novo empréstimo para dar folga e garantir o pagamento dos juros dos empréstimos anteriores.
O País recebeu um novo crédito no valor de 10 milhões de libras. De acordo com Needell
(1993), a estabilidade do regime Republicano foi alcançada mediante o conservadorismo
financeiro, o restabelecimento de relações estreitas com o crédito estrangeiro, e a efetivação
de uma política federal que reforçou os interesses das oligarquias estaduais.
Alcançada a estabilidade política e econômica, o Estado republicano preocupava-
se em constituir um novo tipo de lógica das relações sociais de acordo com os preceitos da
racionalidade capitalista e da impessoalidade burguesa, visando corresponder às
transformações sociais ocorridas na Europa e na América do Norte. Essas mudanças tinham
como precedente a dinamização da produção e do comércio, impulsionada pela segunda
revolução industrial. Nesse contexto, a implementação de reformas urbanas, que
promovessem a modernização das principais cidades brasileiras, passou a constituir uma
importante prerrogativa para a promoção da boa imagem do país no exterior. Era preciso
instituir um novo padrão urbanístico que reproduzisse nos trópicos um prolongamento da
civilização européia, visando combater a desordem” da cidade colonial com a “ordem” e
racionalidade da cidade moderna, pronta para atender às necessidades das trocas capitalistas
(Pinheiro, 2002). Percebe-se a emergência de uma ideologia
6
progressista que legitima
medidas de saneamento e urbanização, tendo como principal argumento a modernização.
Era preciso combater a cidade tradicional caracterizada pela venda de leite
levando a vaca à porta das casas, pelos quiosques abertos nos centros da cidade, pelo uso de
transportes puxados por escravos, como as liteiras e cadeiras de arruar, pelas procissões
fúnebres, entre outros hábitos que passam a ser considerados incivilizados. O espaço urbano
deveria expressar o novo modelo de sociabilidade cosmopolita, facilitando as relações
comerciais e administrativas, através da reestruturação dos portos e da abertura de grandes
avenidas que favorecessem à melhor circulação de pessoas e de mercadorias. Mas não isso,
o novo cenário urbano dotaria a sociedade brasileira republicana de uma nova representação
para os estrangeiros, ao mesmo tempo em que expressava uma nova identidade nacional.
No contexto de modernização da sociedade brasileira durante a primeira
República, o espaço urbano passa a constituir o palco onde se instaura um modo de vida
identificado com os novos padrões de modernidade. Herschmann & Pereira (1994)
identificam a formação de um “paradigma modernizador” entre as elites políticas nacionais
especificamente entre as oligarquias cafeicultoras que detiveram o predomínio das disputas
6
Ao chamar atenção para as disputas ideológicas, o presente trabalho não pretende restringir o fenômeno da
ideologia à função de dissimulação e de dominação de um grupo social sobre os demais. O fascínio exercido pelo
tema da dominação, segundo Ricoeur (1977), impede que se adentre em um problema mais amplo no qual se
inscreve o fenômeno ideológico, o tema da integração social. A dominação é apenas um dos aspectos dessa
integração e não o seu fator essencial. A ideologia se inscreve no âmbito da relação social descrita segundo os
critérios da sociologia compreensiva (Weber, 1999), que a definem pelo caráter de uma relação dotada de
sentido, mutuamente orientada e que garante uma certa estabilidade e previsibilidade para os agentes
participantes. Agindo no nível do caráter significante, mutuamente orientado e socialmente integrado da ação, a
ideologia desempenha a função de conferir para um grupo social a sua auto-imágem, uma representação de si
mesmo. Nela se compreende a relação do grupo com o seu advento, a formação de um mito fundador. Nesse
nível ela cumpre uma função justificadora e ao mesmo tempo motivacional.
representativas no poder executivo – que envolvia uma nova concepção de espaço público. No
Brasil o processo de disseminação de uma cultura burguesa que caracteriza a modernidade da
passagem do séc. XIX para o séc. XX esteve associada à transição do Império à República e à
abolição da escravatura. Nesse sentido, a modernidade é entendida como um processo de
ruptura com as heranças do passado colonial. O estilo de vida e a cultura que representam os
tempos coloniais adquirem um valor negativo, lhes são imputados os estigmas do atraso. A
origem colonial do país é apontada como causa dos males sociais. Por essa razão, na imprensa
e na opinião pública circulam discussões que destacam a importância do estabelecimento de
um novo padrão arquitetônico e urbanístico que se oponha ao padrão colonial. Essas
modificações que incidem sobre o espaço de coexistência das cidades, da urbe propriamente
dita, indica a centralidade que a organização do espaço adquire como critério de modernidade,
como apontam as observações retiradas da crônica O Rio Convalesce de Olavo Bilac,
publicada no jornal Gazeta de Notícias em 20 de maio 1906.
Não de outro modo, os cariocas (os verdadeiros, os legítimos porque muitos
cariocas que se preocupam com a beleza e a saúde de... Paris) acompanham,
atentamente, interessadamente, carinhosamente e assustadamente, a convalescença
do Rio de Janeiro pobre e bela cidade, que quase morreu de lazeira, e, por um
milagre mil vezes bendito, foi arrancada às garras da morte. (...)
Agora, o que está particularmente interessando os cariocas é a rapidez maravilhosa
com que se vai erguendo o majestoso pavilhão São Luís, no fim da Avenida
[Avenida Central, atual Rio Branco].
A qualquer hora do dia ou da noite, quando por ali passa um bonde, dentro dele
um rebuliço. Interrompe-se a leitura dos jornais, suspendem-se as conversas, e todos
os olhares se fixam na formosa construção, que está pouco a pouco subindo,
esplêndida e altiva, da casca dos andaimes, revelando a suprema beleza em que
daqui a pouco pompeará.
As velhas casas em torno ruem demolidas. Rasga-se ali, no coração da cidade, um
imenso espaço livre, para que mais formoso avulte o palácio. No alto das cúlpulas
imponentes, agitam-se operários como formigas, completando a toilette do
monumento. E a cidade não pensa em outra cousa. Ficará pronto ou não, em julho, o
palácio? Ferve a discussão, chocam-se as opiniões, fazem-se as apostas porque o
carioca é um homem que nada faz sem aposta e sem jogo. (...)
O progresso é grande, e será cada vez maior. Que é que não é lícito esperar a
quem já viu o que era o Rio há cinco anos e vê o que ele é hoje? (Bilac, 1996 p. 268-
274)
Entre os intelectuais e as elites dirigentes cresce o sentimento de atraso da
sociedade brasileira frente à modernidade dos países europeus. As diferenças sociais e os
problemas nacionais adquirem inteligibilidade a partir de concepções apropriadas das
correntes de pensamento evolucionistas que interpretam as diferenças entre povos e culturas
como provenientes do seu nível de “desenvolvimento”, melhor dizendo, de acordo com a sua
aproximação com o modelo europeu de civilização. Dessa maneira, os problemas sociais
ganham inteligibilidade de acordo com a sua avaliação frente às seguintes oposições:
Moderno / Antigo, Civilizado/ Bárbaro. Nas crônicas jornalísticas os autores destacam a
necessidade de fluidez, de claridade e arejamento dos centros urbanos, além de estética e
monumentalidade. Chega ao país à imagem da civilização do espetáculo e da velocidade, que
tem como expressão a vida urbana.
(...) a civilização é a igualdade em um certo poste, que de comum acordo se julga
admirável, e, assim como as damas ocidentais usam os mesmos chapéus, os mesmos
tecidos, o mesmo andar, assim como dous homens bem vestidos hão de fatalmente
ter o mesmo feitio da gola do casaco e do chapéu, todas as cidades modernas têm
avenidas largas, squares, mercados e palácios de ferro, vidro e cerâmica.(João do
Rio apud Gomes, R. 1996 p. 13)
A arte é a placa sensível da vida. Fídias diz o mundo grego como Rodin o mundo de
agora. Uma estética nova surge, a estética do milagre animador. A natureza é outra,
utilizada pelo homem, vista na corrida dos automóveis. A vida das cidades tem esse
frenesi de saber, esse desespero orgíaco do domínio, da audácia, da energia cerebral.
O homem é outro com os instintos aguçados e os sentidos multiplicados. A mulher é
ainda mais mulher. (João do Rio apud Gomes, R. 1996 p. 23)
Esses precedentes conduzem a discussões sobre a adesão de determinados padrões
urbanísticos, tidos como critérios de modernidade. A efetivação de reformas urbanas,
especialmente na cidade do Rio de Janeiro Capital Federal do país, é tomada como uma
premência governamental. O bom resultado de reformas semelhantes em capitais de outros
países da América Latina, principalmente a repercussão das obras recém concluídas de
Buenos Aires e Montevidéu, era outro motivo que tornava a europeização da capital carioca
uma medida de urgência para as classes dirigentes.
A estabilidade política e econômica propiciou à elite da capital carioca uma vida
urbana refinada, o que iniciou o período que ficou conhecido como Belle Époque brasileira.
No governo que sucedeu o de Campos Sales, o mandato de Rodrigues Alves (1902-1906),
foram implantadas as reformas urbanas e sanitárias que transformariam a cidade do Rio de
Janeiro, a Capital Federal, de forma definitiva. Estas atenderiam aos anseios civilizatórios da
elite carioca e provocariam o afastamento das camadas populares do centro da cidade para a
periferia. Com a remoção da população pobre esperava-se uma superação dos hábitos e das
tradições populares, vistos como resquícios de um passado bárbaro a ser suplantado.
Acreditava-se que tais reformas teriam um papel pedagógico, favorecendo a difusão de novos
costumes.
2.2 Haussmannização: as reformas de Paris (1853-1870) e a disseminação de um modelo
de modernização de centros urbanos.
De acordo com a proposta do presente trabalho e buscando seguir a sugestão de
uma articulação entre a cultura moderna e a formação de novas maneiras de constituir o
espaço de coexistência, é interessante compreender o sentido que noções como
“modernidade” e “civilização” adquirem entre as elites dirigentes do Estado Republicano no
período da República Velha (1889-1930), na medida em que se discutem certas medidas
necessárias a reformulação do espaço das cidades, visando destituir-lhes o semblante colonial.
Dessa maneira, convém destacar alguns aspectos constituidores do modelo de intervenção
urbana que influenciou as reformas empreendidas em capitais brasileiras como o Rio de
Janeiro, entre 1902 e 1906, e Salvador, entre 1912 e 1916. Trata-se do modelo difundido a
partir das reformas urbanas de Paris entre 1853 e 1870.
Haussmannização passou a ser o termo utilizado para definir esse padrão de
intervenção urbana que tem como exemplo paramétrico as reformas empreendidas pelo
engenheiro Eugéne Haussmann, em Paris sob as ordens de Napoleão III. A principal
característica dessa forma de atuação no traçado urbano é a abertura de grandes avenidas,
antecipada por demolições em um centro urbano densamente ocupado. Por outro lado, esse
tipo de intervenção urbana não constitui propriamente uma invenção de Haussmann, reformas
anteriores seguiram esse padrão, como as empreendidas em Paris pelos prefeitos Claude-
Philibert de Rambuteau (1833-1853) e Berger (1848-1853) (Pinheiro, 2002). No entanto, as
reformas empreendidas por Haussmann consagraram esse tipo de intervenção que ficou
cunhado em um estilo. Haussmanização é, no uso atual, o termo empregado pelos autores para
designar o método que se pode inferir da reorganização do espaço urbano provocada pelas
reformas de Paris entre 1853-1870.
Veremos que reformas dessa natureza, empreendidas em várias capitais
brasileiras, foram uma das principais prerrogativas de um projeto de modernização do País
durante o período da República Velha que, como foi visto, é um momento da história nacional
que chama a atenção pela presença de medidas governamentais que visam construir uma nova
imagem do país no exterior. Herschmann & Pereira (1994) destacam que nesse período o país
importava valores e códigos sociais.
A reformulação do espaço urbano foi uma das estratégias adotadas por esse Estado,
no início do século XX. A cidade, com sua organização físico-espacial, seus rituais
de “progresso” como no caso das exposições nacionais e internacionais –, passa a
ter um caráter pedagógico. Torna-se símbolo por excelência de um tempo de
aprendizagem, de internalização de modelos (Herschmann & Pereira, 1994 p. 27).
Antes de tudo, as reformas de Haussmann são obras de caráter público que
pretendem aparelhar a cidade com infra-estrutura e serviços destinados ao atendimento das
necessidades capitalistas, preparando os antigos centros urbanos às transformações estruturais
ocasionadas pela segunda revolução industrial. São obras de serviços públicos como a rede de
esgoto, rede de abastecimento de água, aquedutos, iluminação pública, transportes públicos,
construção de parques e de edifícios destinados à administração (Pinheiro, 2002). Por outro
lado, as características mais marcantes das intervenções de Haussmann são aquelas que afetam
o traçado urbano, e que instituem uma nova organização ou setorização da cidade. Segundo
Pinheiro (2002) as reformas “Haussmannianas” comportam uma nova maneira de pensar a
urbe, cujo principal elemento é a rua, ou seja, a criação de uma nova rede viária que em seu
traçado destrói bairros antigos insalubres, melhorando a circulação e a higiene. A destruição
desses bairros exige a expulsão da população residente para áreas distantes do centro, que
passa a adquirir outra imagem e outra função.
Sobretudo as ruas da cidade são modificadas de maneira a se oporem à rua
medieval, estreita, sinuosa e escura. A rua moderna tem a sua dimensão alargada, prioriza-se o
traçado reto, as fachadas das construções que a margeiam são reconstruídas com a intenção de
renovar a estética arquitetônica. Em Paris os bulevares do século XIX visam o tráfego pesado
e a circulação rápida, são artérias cujas dimensões se opõem aos bulevares construídos na
época de Luís XIV, projetados para o passeio. As reformas impõem um novo conceito de
circulação e mobilidade, em um sistema que superpõe malhas hierarquizadas, pertencentes a
uma rede em estrela (Pinheiro, 2002). Outro ponto que deve ser destacado, é que o novo
desenho viário proveniente das reformas aguça a segregação social dentro do espaço ocupado,
acentuando as diferenças sociais entre leste e oeste, e entre centro e periferia.
A nova face urbana pressupõe a padronização das fachadas, segundo uma
concepção paisagística que erige uma homogeneidade dos espaços heterogêneos. Os imóveis
se integram de maneira harmônica para criar uma continuidade com o espaço público, cuja
projeção é regulamentada. Normas para a construção de imóveis são adicionadas ao controle
da cubagem e da altura dos edifícios, instituindo uma convenção arquitetônica, através da
homologação de elementos constitutivos como balcões, molduras e cornijas (Pinheiro, 2002).
A criação de uma nova paisagem que se oponha aos padrões pré-estabelecidos,
impondo uma homogeneização arquitetônica, além da modificação do traçado urbano que
condiciona a destruição de bairros antigos e a expulsão da população residente, são aspectos
que expressam o caráter autoritário das reformas de Haussmann. Um tipo de autoritarismo
tecnocrático, uma vez que as questões das grandes cidades são tidas como problemas técnicos,
passíveis de resolução mediante preceitos científicos da engenharia, da arquitetura, do
urbanismo e da medicina, em detrimento dos interesses das diferentes classes sociais em jogo.
Os pontos decisivos são sanear, transportar e equipar (Pinheiro, 2002).
Não obstante, a abertura de ruas com traçado reto e de fácil circulação atendiam a
interesses militares ao favorecer a contenção de possíveis levantes políticos, facilitando o
deslocamento de tropas dos quartéis, localizados de maneira intencional nos cruzamentos
abertos à mobilidade em vários sentidos. Esse aspecto acentua a ligação entre as reformas
urbanas e o intuito disciplinador do Estado, em favor da grande burguesia que temia possíveis
levantes do proletariado. Também deve ser destacado que a viabilidade financeira das
reformas de Haussmann esteve assentada em uma associação entre a intervenção pública e as
sociedades imobiliárias e de crédito, que se locupletavam com a especulação imobiliária
(Pinheiro, 2002).
De certa maneira, o modelo de intervenção definido pela atuação de Haussmann
em Paris é a expressão dos interesses de uma burguesia que visa transformar a cidade segundo
seus anseios, dotando-lhe de feições modernas com as quais ela se identifica. A expulsão das
classes menos abastadas do centro da cidade para a periferia, a modificação da feição
histórica dessa área central, e a sobreposição de um novo traçado urbano à malha tradicional,
indicam que a burguesia intentava retomar o centro da cidade para as suas atividades,
transformando-o em um espaço elitista. A destruição de quarteirões considerados insalubres e
de locais de conspiração política tem como justificativas a segurança e a higiene, estando no
entanto, fortemente amparadas pelos interesses da especulação imobiliária. A melhoria dos
serviços públicos e a urbanização do local favorecem à valorização do solo, que constitui um
mecanismo de expansão urbana, propiciando, por sua vez, um lucrativo ciclo gerador de
riquezas.
A abertura de grandes avenidas que é antecedida por uma série de demolições na
área central da cidade, visa uma revitalização dessa área com base em critérios que definem
uma concentração centrípeta de equipamentos civis (terciários e administrativos) e uma
dispersão centrifuga de equipamentos considerados “sujos” como cemitérios, matadouros,
manicômios e prisões (Pinheiro, 2002). Nesse sentido, a haussmannização dota a cidade de
um novo significado, ao constituí-la como um espaço dividido, esquadrinhado, que abarca na
sua organização componentes discriminados quanto a funções, classes sociais e estilos de
vida. Note que essa discriminação é efetivada no espaço de maneira horizontal constituindo
setores dentro de uma mesma unidade. Embora a haussmanização seja um conceito que define
apenas o método de transformação urbana efetivado em Paris entre os anos de 1853 e 1870,
podemos observar nos seus efeitos aspectos constitutivos da modernidade do século XIX,
quando tomada como uma determinada vivência social. Segundo a noção de modernidade em
Simmel, descrita como uma cultura que se constitui por novas maneiras de lidar com a
proximidade e a distância, pode-se dizer que o modelo urbanístico de Haussmann compromete
de maneira fundamental a lida com a diversidade ao prescrever uma setorização dos bairros da
cidade e ao definir através de territórios as desigualdades sociais. Essas características, por sua
vez, compõem aspectos constituintes da própria modernidade quando tomada como uma
cultura histórica vivenciada em certos espaços de interação urbana.
Notadamente, as reformas de Haussmann produziram uma profunda segregação
social. Os espaços revitalizados foram ocupados pelas classes mais abastadas, não obstante, a
população de baixa renda, cuja presença era indesejada, continuou a residir nas vizinhanças
não afetadas pela reforma, estando desprovida das intervenções do poder público. A
população expulsa do centro se dirige à periferia em busca de novas moradias, o que origina
uma crise habitacional das camadas mais baixas. Em Paris são aguçadas as separações entre a
Paris central e a periferia, e entre os quarteirões ricos do oeste e os quarteirões pobres do leste,
a rive gauche versus a rive droite (Pinheiro, 2002).
Por fim, a Paris de Haussmann é considerada como o exemplo da cidade moderna
da passagem do século XIX para o século XX. Uma cidade que se modifica a partir de um tipo
de intervenção urbana que tem como principais ações à abertura de grandes eixos, largas
avenidas e a destruição de bairros insalubres. Esse é um processo que se caracteriza pela
imposição autoritária, como também pela capacidade de embelezar uma cidade, dotando-a do
status de obra de arte. A cidade que emerge desse tipo de intervenção é a cidade burguesa por
excelência. Esse estilo influencia reformas urbanas dentro e fora da Europa, como na cidade
do Cairo no Egito, em Saigon no Vietnam e, como veremos adiante, no Rio de Janeiro e em
Salvador, no Brasil.
2.3 As reformas de Pereira Passos (1902-1906) ou como materializar um sonho de
civilização.
Em finais do século XIX e início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro era
considerada como o berço da modernidade brasileira. Tendo sofrido transformações
contundentes em seu traçado arquitetônico e em suas estruturas sócio-culturais desde a vinda
da corte Portuguesa ao Brasil em 1808, quando se tornou sede do Império Português, a cidade
sofreu uma série de transfigurações até que, pelo final do século XIX, passou a materializar as
aspirações “modernizadoras” que medravam nas mentes dos setores mais abastados da
população (Neves & Machado, 1999; Carvalho, 1990; Holanda, 1985). Nesse processo, a
cidade ganhou uma força e uma dinamicidade inteiramente novas. Ao longo desse século, o
Rio de Janeiro diversificou a sua estrutura econômica, demográfica e étnica. “O Rio civiliza-
se”, proclamava Filgueiredo Pimentel na sua coluna “O Binóculo” na Gazeta de Notícias
(Machado Neto, 1973). Novos padrões sociais de comportamento e sociabilidade nessa cidade
a transformaram em um modelo a ser imitado por outras capitais do país.
Alguns dados sobre o desenvolvimento dos serviços públicos ilustram o processo
de modernização que atinge a cidade com a chegada da corte portuguesa, e que se aguça na
última metade do século XIX. Em 1850 a primeira rede de canos de ferro e peças hidráulicas é
instalada para o abastecimento de água, beneficiando a área do centro da cidade, em 1880 um
novo conjunto é inaugurado ampliando de forma mais eficiente o serviço. Em 1864 são
instalados os primeiros segmentos de sistema de esgoto da rede domiciliar, graças a forte
campanha de médicos higienistas junto à opinião pública, após a primeira grande epidemia de
febre amarela em 1849-1850. A partir de 1854 são instalados os primeiros lampiões a gás da
iluminação pública, em 1882 a eletricidade já começa a ser utilizada na iluminação do Palácio
de Exposição da Indústria Nacional, seguida pela iluminação do Largo do Machado (1883) e
da Biblioteca Nacional (1885), até que finalmente em 1891 os lampiões a gás do centro da
cidade são substituídos por mpadas elétricas. Nos transportes públicos, a força animal
começa a ser substituída em 1892 com a primeira linha de bondes elétricos entre o Centro e o
Largo do Machado.
Na área das comunicações, o serviço postal domiciliar começa a funcionar em
1852, no mesmo ano chega o telégrafo ligando o Rio de Janeiro à Bahia, Pernambuco, Pará e
à Europa. Os telefones começam a funcionar em 1877 em serviços públicos, mas apenas em
1881 são feitas instalações de linhas telefônicas em residências e em estabelecimentos
comerciais, sob a direção da Companhia Telefônica Brasileira e da Telegráfica Urbana. Com
esses serviços começa a se desenvolver uma atmosfera urbana, com valores burgueses que se
opõe à lógica das relações aristocráticas, acentua-se a discrepância entre o modo de vida rural
e as interações citadinas
7
.
Por outro lado, a cidade do Rio de Janeiro enfrentava graves problemas de ordem
habitacional e sanitária. Turbilhonada pela mudança de regime político e pelo fim da
escravidão, a capital federal sofreu mudanças drásticas de ordem demográfica. Entre 1870 e
1906, a população das “freguesias urbanas” da cidade cresceu de 191.002 para 619.648
habitantes (Abreu, 1987). O fim da escravidão liberou um contingente de população ex-
escrava no mercado de mão-de-obra livre da cidade, aumentando a quantidade de
subempregados e desempregados. O êxodo rural de ex-escravos, provenientes das fazendas de
café do Vale do rio Paraíba, vem engrossar ainda mais esse contingente (Carvalho, 1999). Em
1890, 34% da população era constituída por negros e mestiços. Além disso, a imigração
estrangeira intensificou-se. Em 1890, 28,7% da população da cidade era constituída por
imigrantes do exterior. O rápido crescimento demográfico provocou não apenas uma
expansão da área urbana como também um significativo aumento da segmentação social e
distanciamento espacial entre setores da população.
O aumento da população gerou problemas de habitação. As camadas mais baixas
concentravam-se no centro da cidade, alojadas em acomodações precárias como casas de
pensão e cortiços. Nessa época, agravaram-se os problemas de saneamento, abastecimento de
água, higiene e circulação (Cavalcante, 1985). Esse quadro alarmante se intensifica com os
surtos epidêmicos. Em 1891 a cidade foi devastada pela varíola e pela febre amarela que
vieram se juntar as consagradas malária e tuberculose, causando grande número de mortes
(Pechman & Ribeiro, 1985). A cidade se tornava perigosa no verão erelatos que indicam o
êxodo das camadas abastadas para Petrópolis durante essa estação, por temor das moléstias.
Com o aumento da população, cresce também o número de pessoas subempregadas que
7
Apesar da acentuação de um modo de vida urbano e da modernização dos serviços públicos da cidade, a infra-estrutura
ainda se concentra muito no centro e a periferia conserva o seu aspecto rural. Somente no último terço do séc. XIX a infra-
estrutura se expande para além do núcleo central impulsionada, sobretudo, pela especulação imobiliária (Pinheiro, 2002).
desempenham funções intermitentes, irregulares ou ilegais. Havia muitos desocupados pela
cidade, uma malta reconhecida como trapaceiros, ladrões, aproveitadores, bicheiros e os
famosos “capoeiras” (Chalhoub, 1986). Por essas razões, desde 1850 que o governo imperial
procurava subsidiar empresas que se dispusessem a edificar “habitações cômodas para o
povo”. De acordo com uma lógica de atuação do capital imobiliário, Américo de Castro
começou em 1875 a construir “casas operárias” (Pechman & Ribeiro, 1985), mas o projeto de
edificação de moradias populares foi mais uma realização da República Velha.
Pinheiro (2002) destaca o aspecto insalubre da cidade. O serviço de limpeza
responsável pelo recolhimento do lixo doméstico era realizado de maneira intermitente e
insatisfatória, de forma que grande parte do lixo era jogada nas ruas e nas praias. A epidemia
de febre Amarela do Verão de 1849-1850, que causou milhares de mortes, alertou as
autoridades médicas e políticas que passaram a discutir medidas de prevenção e contenção da
moléstia. Propostas de saneamento começam a ser discutidas pela Assembléia Geral. Desde
então os debates das autoridades médicas em torno das noções de contágio e de infecção
fundamentam ideologicamente proposições para intervenções urbanas que então pudessem
favorecer à salubridade local.
Os contagionistas defendiam que a transmissão da febre amarela ocorria mediante
o contato de uma pessoa com um doente, seja por contato físico direto, ou por contato
indireto com objetos utilizados por um doente. Por sua vez, os infeccionistas acreditavam que
a propagação da doença se dava pela ação de “miasmas mórbidos”. A infecção, mesmo que
provocada pelo contato entre duas pessoas, podia ocorrer no foco onde se encontravam
emanações miasmáticas provenientes de plantas ou animais em decomposição (Chalhoub,
1996).
Como medidas de prevenção contra as epidemias os contagionistas recomendavam
a quarentena dos navios recém chegados ao porto e o isolamento dos doentes em hospitais
distantes do centro da cidade. Por seu turno, os infeccionistas propunham medidas que
transformassem as condições ambientais evitando a proliferação de emanações miasmáticas,
como o aterro dos pântanos e o desmonte dos morros. Os argumentos dos dicos
infeccionistas se alinhavam às propostas de reformas urbanas, nesse sentido Chalhoub (1996)
adverte que os “philosophos infeccionistas” foram os fornecedores do arcabouço ideológico
que legitimou as reformas urbanas realizadas em diversas cidades ocidentais, entre a segunda
metade do séc. XIX e o início de séc. XX. Essas noções de infectologia prescreviam a
necessidade de reformas urbanas que viabilizassem a circulação de ar nas cidades evitando a
concentração dos indesejáveis miasmas.
A febre amarela reaparece em 1868 depois de permanecer praticamente ausente
desde 1862. Essa doença se torna especialmente indesejada por atingir mais fortemente a
população branca estrangeira. O governo começava a fomentar uma política de imigração de
trabalhadores europeus, por volta da década de setenta, por essa razão a febre amarela passa a
suscitar uma maior discussão em torno de políticas de saúde pública. As autoridades sanitárias
atacam mais veementemente as habitações coletivas, os mencionados cortiços, como focos
de proliferação de germes da doença (Chalhoub, 1996). Os higienistas percebiam que a
doença infestava toda a área central da cidade, fato que intensificou o debate sobre planos de
transformação do espaço urbano com o intuito de evitar ao máximo a produção de miasmas,
ou, ao menos, de tentar dispersar as emanações mórbidas a partir do alargamento de ruas e
abertura de avenidas largas, possibilitando uma melhor circulação de ar no centro da cidade.
Quanto aos cortiços, era preciso que eles fossem reconstruídos, ou simplesmente demolidos,
buscando atender as prescrições sanitárias. Por sua vez, a possibilidade de expansão e de
transformação da malha urbana despertava interesses de grupos empresariais interessados nos
investimentos imobiliários.
Em 1874 D. Pedro II compõe uma comissão para a elaboração de um plano
urbanístico para a cidade do Rio de Janeiro. Os pontos principais do plano elaborado por essa
comissão composta pelos engenheiros Jerônimo Moraes Jardim, Marcelino Ramos da Silva e
Francisco Pereira Passos, foram: a abertura de ruas e avenidas com até 40m de largura e a
construção de novas praças (Pinheiro, 2002). Esse plano previa novos alinhamentos das vias
urbanas, a retificação ou alargamento de ruas e praças existentes, a implantação de
melhorias do serviço público e a expansão da malha urbana para bairros mais próximos, como
os do vetor norte da cidade, indo da Praça da Aclamação até a raiz da Serra do Andaraí. Na
proposição de novas avenidas o plano da comissão se alinha com as concepções urbanísticas
em voga, especialmente, com o modelo de intervenção difundido pelas reformas de
Haussmann em Paris. No entanto, as avenidas propostas pela comissão de melhoramentos
urbanos não pressupõem a destruição do centro, a maneira da demolição do bairro operário em
Paris, uma vez que as novas avenidas são projetadas para áreas ainda pouco urbanizadas,
criando condições para a expansão da malha urbana. O plano proposto pela comissão de
melhoramentos não foi executado, abrindo caminho para a proposição de muitos outros.
De acordo com Pinheiro (2002), são temas recorrentes nas propostas de reformas
urbanas para a corte: a melhoria da parte antiga da cidade e a abertura de grandes avenidas nos
sentidos norte-sul, leste-oeste. As propostas de reformas urbanas se amparam na perspectiva
de melhoramento das condições gerais de higiene do espaço urbano, estimulando a ventilação,
a melhor circulação de ar e iluminação das vias públicas, como critérios de salubridade. Nesse
ponto, evidencia-se a relação entre o urbanismo e as concepções sanitárias vigentes durante o
período. A participação dos médicos sanitaristas é central para a formação de um contexto
favorável à aceitação das reformas urbanas pela opinião pública, difundindo a crítica a cidade
suja, escura e abafada. Destaca-se a participação de instituições intelectuais como a Escola
Politécnica, fundada em 1874, dedicada à engenharia civil e o Clube de Engenharia, fundado
em 1880, composto por alunos egressos da Escola Politécnica, por alguns industriais e
comerciantes.
Somente na República Velha estabelecem-se as condições políticas e econômicas
favoráveis à implementação de um plano de reestruturação urbana da Capital Federal, a partir
da estabilidade política alcançada durante o governo de Campos Salles e o novo crédito
internacional concedido por credores ingleses. O governo do presidente Rodrigues Alves
(1902-1906) assume como prioridade a modernização da capital do país, promovendo
medidas de saneamento em toda a cidade. As reformas urbanas empreendidas na capital
Republicana eram vistas como indispensáveis à formação de uma boa imagem do Brasil no
exterior e como condição para a aceitação do país no rol das nações civilizadas. A
modernização do porto era considerada uma medida necessária não para facilitar o
comércio do café, como para atrair mão-de-obra e capital europeus.
Para alcançar esses objetivos, Rodrigues Alves nomeou o engenheiro Pereira
Passos para a prefeitura do Rio de Janeiro. Pereira Passos era herdeiro de uma família de
aristocratas do café que cursara a escola militar do exército, dedicando-se posteriormente à
engenharia na École des Ponts et Chaussées, em Paris onde estudou ente 1857 e 1860. Com a
sua formação parisiense, Passos representava o novo ideal de modernização que se traduzia na
intenção de “afrancezamento” da vida carioca (Needell, 1993). A sua nomeação para prefeito
do Rio de Janeiro era condizente com os objetivos “civilizatórios” do governo de Rodrigues
Alves. A participação de Osvaldo Cruz nas campanhas de erradicação da febre amarela, da
varíola e da peste bubônica, exemplifica as ações médicas que integravam o projeto
sanitarista, juntamente com as reformas urbanas de Passos (Chalhoub, 1996).
Segundo Needell (1993), o projeto de Passos tem como principal influencia as
reformas parisienses ocorridas entre 1853-1870 durante a regência de Napoleão III, sob
coordenação do prefeito do departamento do Sena, Georges-Eugène Haussmann. Pereira
Passos e sua equipe reconheciam em Haussmann um planejador superior entre os demais.
Passos entrou em contato com o projeto parisiense desde o seu período de estudos na capital
francesa. Quando o jovem Passos chegara na Europa por volta de 1857, Paris era um modelo
vivo para um estudante de engenharia. Assim como outras cidades européias que haviam
crescido de forma desordenada com o êxodo populacional provocado pelas indústrias, Paris
sofria com problemas de saneamento e circulação que estavam sendo resolvidos com uma
série de reformas. A conclusão da primeira rede viária, por exemplo, estava em andamento
quando da chegada de Passos à cidade (Needell, 1993).
De acordo com Pinheiro os principais objetivos das reformas empreendidas no Rio
de Janeiro sob a liderança de Pereira Passos são:
(...) a construção de um novo porto e de avenidas para uma melhor circulação de
mercadorias; o saneamento da área central; o alargamento, alinhamento e
pavimentação de ruas; a abertura de uma grande avenida em direção norte-sul e a
construção de edifícios monumentais (Pinheiro, 2002 p. 132).
O plano de melhorias urbanas da prefeitura de Passos inclui a abertura de novos
eixos de circulação na cidade, instituindo um novo desenho do espaço, os bairros se
distinguem quanto as suas funções e quanto à população que neles habita. O fluxo de
mercadoria e de mão-de-obra segue uma lógica mais complexa; um número maior de pessoas
passa a trabalhar em locais distintos do seu local de residência e as mercadorias circulam para
abastecer áreas distantes da sua origem. A avenida Beira-mar construída sobre aterro da área
litorânea constitui um eixo de ligação entre o centro e a zona sul. Na sua extremidade central
ela se liga à Avenida Mem de Sá, que segue em direção ao oeste, e à Avenida Central, que se
estende em direção ao norte. Note que essas mudanças passam a constituir uma
complexificação das trocas sociais, aumentando a distância entre a esfera particular subjetiva e
a teia de relações que envolve a dimensão global das atividades desenvolvidas no espaço da
cidade. Esse é mais um ponto para o qual a sociologia de Simmel chama a atenção, ao
caracterizar a modernidade como uma experiência de ruptura propiciada pela imensa cadeia
que se interpõe entre as vontades individuais e os fins a serem alcançados.
Para entendermos essa perspectiva trágica sobre a modernidade em Simmel,
podemos recorrer ao ensaio O conceito e a tragédia da cultura, no qual o autor expõe a
tragédia da cultura moderna pelo hiato que se forma entre a cultura objetiva e a cultura
subjetiva. Hiato proveniente do prolongamento dos meios intermediários entre desejo e
fruição. Segundo o autor, os fins ou propósitos individuais estariam diretamente relacionados
a nossa subjetividade. Por outro lado, os “meios” para alcançar os fins, adquirem um caráter
independente das vontades. Quanto maior a série de meios que se interpõem à obtenção de um
fim, menor é a força da subjetividade sobre o resultado da ação. As ações na modernidade se
caracterizam pela longa série teleológica, e nesse aspecto a rede de meios se converte no
núcleo da vida social, deixando de ser apenas um passo intermediário entre a volição e sua
satisfação.
Voltando às mudanças provocadas pelas reformas de Passos no Rio de Janeiro, as
classes abastadas passam a se interessar pela faixa litorânea e pelo centro da cidade, a partir
da nova organização espacial instituída pela ligação entre a Avenida Central e a Avenida
Litorânea, ao passo que a população pobre passa a se concentrar na área ao fundo da baía de
Guanabara. Com isso, as reformas urbanas e a campanha sanitarista possibilitaram um re-
ordenamento do espaço habitado da cidade, prescrevendo novas ordens classificatórias e
possibilitando a formação de novos arranjos identitários, até então desconhecidos. No plano
simbólico, tal divisão espacial prescreve uma nova discriminação entre os diferentes locais da
cidade, diferenciando-os segundo os seus aspectos modernos ou antiquados (Padilha, 1985).
Os bairros populares eram tidos como um espaço onde permaneciam os hábitos coloniais,
“bárbaros”, opostos ao modelo civilizatório, proposto pelo governo da República Velha.
A obra de maior impacto das reformas de Pereira Passos é a construção da
Avenida Central (atual Rio Branco): um grande boulevard com uma extensão de 1996 metros
por 33 de largura
8
. Segundo Jeffrey Needell (1993), estas eram dimensões até então
inovadoras para os padrões da América Latina. Projetada para cortar o centro onde se
concentravam as atividades administrativas, comerciais e financeiras em sentido diagonal,
ligando-se ao sul com a avenida Beira-mar e ao norte com a avenida Rodrigues Alves, visa
atender às necessidades de melhor circulação de mercadorias, constituindo-se na principal
ligação entre o porto, recém-reformado, e outras artérias da cidade. Transforma-se na
principal via da área central, o seu traçado reto e largo se opõe ao intricado traçado do centro,
cuja sinuosidade passa a ser vista como um empecilho à fluidez requerida pela nova dinâmica
do comércio internacional.
Como foi dito, a segunda revolução industrial na Inglaterra e em outras
potencias européias gerou um crescimento de produção e, em conseqüência, um incremento
do comércio internacional. Nessas condições o Rio de janeiro – na função de cidade portuária
e, ao mesmo tempo, capital política do país assume o papel de centro distribuidor de
produtos importados, e se estabelece como um importante pólo de mercado consumidor.
Nesse sentido, a cidade passa a desempenhar um papel fundamental na inserção do Brasil no
capitalismo internacional (Pinheiro, 2002).
Um outro objetivo importante que se espera atingir com a construção da Avenida
Central é o efeito de embelezamento da cidade, representando a inserção do Distrito Federal
nos tempos modernos e, ao mesmo tempo, um rompimento com o passado colonial. Muito
embora a sua modernidade urbanística e arquitetônica permaneça isolada em meio à malha
do restante do centro, cujo aspecto se mantém notadamente colonial, ainda assim, a Avenida
8
Existem controvérsias em torno das dimensões da Avenida Central. Outros autores apontam diferentes dimensões como
1880m de comprimento por 33m de largura, ou 1795m por 33m de largura.Ver: Pinheiro, Eloísa Petti. (2002) Europa, França
e Bahia: difusão de modelos urbanos (Paris, Rio, Salvador). Salvador: EDFBA.
Central dota a cidade de uma nova fisionomia, rivalizando com outras avenidas consagradas
pelo caráter moderno, especialmente, com a avenida de Mayo em Buenos Aires.
A enorme via, construída com 33m de largura à semelhança dos boulevards
parisienses, era ladeada por uma muralha de prédios no estilo eclético, cuja arquitetura foi
acompanhada de perto por uma comissão
9
que avaliou os planos arquitetônicos. Era esperado
que tais reformas causassem um impacto ideológico sobre a população, pressupondo-se que
elas desempenhariam um papel educativo, funcionando como exemplo vivo do novo padrão
civilizado que deveria ser seguido pelas demais cidades do país. Segundo Needell (1996), a
função destinada a cada um dos edifícios que margeiam a avenida era uma questão que
interessava à comissão encarregada do projeto. Os prédios deveriam ser ocupados por
empresas nacionais e estrangeiras de comércio e infraestrutura, por órgãos governamentais,
por instituições ligadas a “boa Literatura” e às Belas Artes, e por lojas que instituíssem o
consumo recreativo de artigos europeus de luxo. Todos esses fatores concorriam para instituir
uma atmosfera de “civilização” na qual seriam envolvidos os freqüentadores.
São definidas três zonas distintas na avenida: a parte mais ao sul, da Avenida Beira-
Mar até a Rua São José, abriga as edificações de estabelecimentos públicos,
institutos e associações; no centro, entre as Ruas São José e General Câmara, estão
as grandes lojas de moda, confeitarias, cafés, jornais e bancos; e, na parte mais ao
norte, da Rua General Câmara até a Praça Mauá, os comércios de importação e
exportação, além dos grandes bancos do mercado financeiro (Pinheiro, 2002 p. 139).
Outra obra importante do conjunto de reformas dirigidas por Pereira Passos na
Capital Federal foi a modernização do porto. As reformas visam dotá-lo da infra-estrutura
necessária ao atendimento das novas demandas do mercado de importações, que o Rio se
convertera no centro de distribuição de mercadorias estrangeiras no país. O porto antigo era
muito estreito e pouco profundo, inadequado para receber os novos transatlânticos. Como foi
mencionado anteriormente, o porto vinha despertando a atenção das autoridades desde a
época do Império por conta das enfermidades que podiam chegar e sair do país através das
9
Trata-se da Comissão Construtora da Avenida central (1903) dirigida pelo engenheiro Paulo de Frontin. A comissão
desenvolve um concurso para projetos de fachadas dos edifícios da nova Avenida no final de janeiro de 1904.
embarcações, por essa razão medidas como a vigilância sanitária de mercadorias, inspeções e
quarentenas vinham sendo empregadas desde então, mas as propostas de alteração das suas
instalações só começam a ser veiculadas a partir de 1880. As reformas empreendidas durante
o governo de Rodrigues Alves têm como um de seus objetivos garantir a articulação do porto
com todas as áreas da cidade, com a zona industrial em implantação, com os terminais
ferroviários, assim como com os centros administrativos, comerciais e financeiros.
Embora haja controvérsias a respeito da influência das reformas de Haussmann
em termos de uma adoção plena de um modelo urbanístico (Pinheiro, 2002), é possível
pontuar analogias entre o projeto urbanístico empregado por Passos e sua equipe, e as
reformulações dirigidas por Haussmann na Paris de meio século anterior. O alargamento das
ruas antigas e a criação de novas vias, visando uma melhor circulação de ar e melhor
iluminação das ruas, remonta a “guerra contra os miasmas” empreendida pela medicina
francesa de inícios do século XIX. Outro ponto em comum, é a destruição do bairro proletário
em Paris que se assemelha às demolições feitas no bairro da Cidade Nova no Rio, onde
morava boa parte da mão-de-obra não escolarizada de então (Needell, 1993). -se também
analogia com o projeto francês na ênfase dada a criação de novas vias ligando o centro aos
limites da cidade. Vale lembrar ainda a inauguração do Teatro Municipal, inspirado na Ópera
de Paris; que junto com o edifício da Escola de Belas Artes e da Biblioteca Nacional
compunham a extremidade Sul da Avenida Central e serviam para criar uma atmosfera
civilizada entre os freqüentadores.
Para que ocorresse a modernização do centro, era preciso é claro, fazer uma série
de demolições. As habitações populares, os cortiços e as casas de pensão que existiam no
local foram removidos. Na verdade essa remoção começou muito antes, desde o período
imperial que os cortiços eram vistos como um problema para a higiene pública. Durante o
gestão do Florianista Barata Ribeiro (1892-1893) foi promovida uma verdadeira campanha de
guerra com a qual se efetivou a remoção do Cabeça de Porco” (1893) um dos mais
significativos cortiços da cidade. O argumento a favor da demolição de tais cortiços era
concedido pelos princípios higienistas. Segundo Chalhoub (1996) esses princípios quando
articulados aos interesses políticos em questão deram origem à formação de uma “ideologia
da higiene” que pode ser esquematicamente descrita da seguinte forma: a) admitia-se a
existência de um processo civilizatório válido para todos os povos, como uma lei evolutiva
natural e inviolável; b) cabia aos governantes zelar para que tal caminho de aperfeiçoamento
humano fosse o mais rapidamente seguido pelo país ao qual pertenciam; c) a higiene pública
era um dos princípios para alcançar tal patamar, o que justificava qualquer medida que fosse
aplicada em seu nome.
As habitações coletivas que no período de expansão da população urbana era o
principal refugio das classes pobres foram condenadas pelas autoridades sanitárias, ao
concluírem que elas colaboravam para a disseminação de doenças epidêmicas e serviam
também para a germinação da ociosidade, da “bandidagem” e de vícios sociais de várias
espécies. Note-se que ao lado da ameaça de proliferação de doenças, encontra-se também o
receio de contaminação pelos vícios sociais associados aos hábitos das classes pobres. É
interessante notar que a noção de higiene abrangia questões não concernentes à saúde
física, mas advogava também a respeito de questões morais e sociais. Comportamentos,
hábitos e costumes da população eram questões sanitárias assim como as epidemias. As
medidas de higiene pública, como foi explicado acima, eram tidas como um requisito para o
progresso moral e material do país, o seu potencial reformador extrapolava as questões
epidêmicas para chegar a reformulação do “corpo social”, tendo como pano de fundo o ideal
progressista.
Nesse sentido, um outro aspecto que aproxima as reformas de Passos ao modelo
de intervenção urbana que se pode inferir da ação de Haussmann em Paris é o caráter
autoritário da gestão governamental que amparou tais reformas. As medidas de políticas
públicas recebiam uma justificação a priori, fornecida pela noção de que as reformas urbanas
constituíam um critério para a modernização do país. A crença na civilização como um
processo intrínseco a evolução humana, fazia com que o projeto civilizatório do Estado
parecesse estar livre da influência dos interesses políticos e do embate de forças no âmbito
social. Inaugura-se durante esse período um tipo de gestão autoritária tecnocrata que delega as
decisões aos técnicos da engenharia e da medicina. Supunha-se a possibilidade de uma gestão
científica baseada em leis universais e objetivas, cuja lógica era extrínseca a realidade social e
ao conflito dos interesses particulares. No entanto, os pareceres da ciência, tidos como
neutros, eram utilizados de forma parcial quando interpretados pela classe dominante que
preenchia os quadros do Estado (Chalhoub, 1996).
Segundo Pinheiro (2002), as intervenções de Haussmann em Paris exemplificam
um “plano de reforma
10
que tem como medidas características a modificação do tecido
urbano existente, a abertura de novas ruas, a construção de praças, e a introdução de
monumentos e edificações que traduzem o padrão estético da época moderna. Outra
característica é a restauração do centro da cidade, e a sua valorização imobiliária, que torna
essa área um local atrativo para as classes abastadas. A restauração do centro é antecedida
pela realocação da camada desprivilegiada da população para os subúrbios não urbanizados.
Esse tipo de intervenção é pontual, limita-se à modificação do perímetro urbano já existente,
através da implantação de novas instalações, da renovação de edificações existentes e da
reestruturação viária.
Ao seguir a influência desse padrão, as obras de Pereira Passos introduzem novas
contradições no espaço da cidade, elas são a expressão de um urbanismo que em suas bases
instaura a separação espacial entre os estratos sociais, e prevê a expulsão da população pobre
10
Esse modelo foi adotado na Europa continental, a exemplo das reformas de Paris, e se opõe ao modelo adotado na Grã
Bretanha intitulado por teóricos do urbanismo comoplano de extensão”. Esse último tem como características principais o
deslocamento das classes abastadas para a periferia da cidade, e a urbanização da área periférica, no sentido de aumentar o
perímetro urbano(Mumford apud Pinheiro, 2002).
da área valorizada da cidade. Nesse sentido, o espaço passa a reproduzir um novo tipo de
estratificação social que tem lugar com a substituição da mão-de-obra escrava pelo trabalho
livre. Na nova ordem burguesa que se opõe à dependência patriarcal dos escravos com os seus
senhores, desfaz-se a premência de uma aproximação espacial entre os indivíduos que
integram os pólos opostos da hierarquia social. De um modo paradoxal, o igualitarismo
burguês inscreve no espaço urbano, de maneira contundente, a segregação social que
repercute as diferentes posições no mercado de trabalho e de produção. De acordo com
Needell (1993) a área valorizada é reservada aos usos da burguesia, teme-se a influência dos
hábitos e dos costumes tradicionais dos “populares” que podem macular a imagem civilizada
da Capital Federal.
11
11
O exemplo dos acontecimentos que caracterizaram as reformas empreendidas no Rio de Janeiro entre 1902 e
1906 se aqui abordado como um contraponto para melhor compreender as especificidades do processo de
urbanização que ocorreu em Salvador entre 1912 e 1916.
3. Repercussões:
Em certo sentido, os acontecimentos que envolvem as reformas urbanas
empreendidas por Pereira Passos no Rio de Janeiro são reproduzidos em capitais de outros
estados brasileiros. Primeiramente pelo fato do processo de modernização da Capital Federal
ter sido adotado como modelo para a elaboração de propostas de reformas urbanas em outras
cidades, mas não por essa razão, como também devido à existência de similitudes relativas
às contradições sociais herdadas do modelo senhorial-escravista e transpostas para a nova
organização do Estado independente pós-colonial, que acabam por constituir um padrão em
todo território nacional.
De acordo com Novy (2002) a transformação do Brasil em território independente
acarretou uma significativa reestruturação do espaço de entrelaçamento entre o país e o
exterior, que influenciou definitivamente na urbanização de suas principais cidades. Após a
independência a oligarquia agrária nacional passou a ocupar a função, outrora desempenhada
pela metrópole portuguesa, de gestora do comércio dos bens agrícolas para exportação, como
parceira da aliança com o capital inglês. A condição de nação independente forçou um
investimento em infra-estrutura por parte do Estado, uma vez que o desenvolvimento da
agricultura e do comércio, que interessava à oligarquia agro-exportadora, demandava
investimentos em urbanização. O capital estrangeiro também colaborou para o aparelhamento
tecnológico de setores vinculados à exportação do café, através de investimentos britânicos na
ampliação da rede ferroviária e no beneficiamento dos portos. Nesse período, o setor de bens
de produção se dinamiza, o país conhece um primeiro impulso na atividade industrial e as
camadas médias urbanas adquirem um novo padrão de consumo, pautado pela moda européia.
Dessa maneira, a adaptação às novas trocas comerciais, instituídas a partir do fim
do pacto colonial e marcadas por uma relação de dependência com outras nações européias,
especialmente com a Inglaterra, acabam por requisitar uma nova organização espacial da
cidade, destinada ao fluxo mais intenso de pessoas e mercadorias. Concomitantemente, a
importação de novas tecnologias no setor de comunicações e transportes instaura, nas
principais capitais brasileiras, uma nova maneira de compreender o espaço, a partir da
dinamização do tráfico de informações e da possibilidade de cobrir maiores distâncias em um
menor tempo, aspectos que remetem às considerações sugeridas pela sociologia de Simmel,
em termos da relação entre a modernidade e novas formas de compreensão do espaço.
Um outro ponto decisivo das alterações urbanas ocorridas na Capital Federal que
se repete, de certa maneira, em outras cidades e que acaba por compor a fisionomia do meio
urbano no cenário nacional é a segregação social que tem lugar com a formação de bairros
elitistas, nas áreas centrais valorizadas pelas reformas, e a formação de bairros pobres que são
construídos de maneira desordenada a partir da ocupação por uma população sem recursos,
constituída por ex-escravos, imigrantes rurais ou imigrantes europeus, desempregados.
No Rio de janeiro, as reformas urbanas se concentraram em determinadas áreas
da cidade, criando ilhas de civilidade onde era cultivado um modo de vida urbano. Ao mesmo
tempo, faziam-se presentes os efeitos da modernidade que destacamos como aspectos
salientados na teoria de Simmel, a exemplo da alteração no ritmo das interações sociais e uma
expansão do horizonte prático, que se expressam em mudanças na lida cotidiana. Ocorre uma
dinamização do trabalho com o desenvolvimento do setor comercial e das transações
financeiras, além do crescimento do funcionalismo público. Por essa razão, as reformas são
aclamadas por parte da população e reconhecidas como um projeto de recuperação da cidade,
como demonstra o seguinte trecho de uma crônica de Olavo Bilac:
poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciaram os trabalhos de
construção da Avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas (...)
começamos a caminhar para a reabilitação.
No aluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia um longo
gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio. A
cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava
soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino
claro das picaretas abafava esse protesto impotente.
Com que alegria cantavam elas as picaretas regeneradoras! E como as almas das
que ali estavam compreendiam bem o que elas diziam, no seu clamor incessante e
rítmico, celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte! (Bilac apud
Needell, 1993)
Como foi dito, percebe-se uma característica desagregadora nesse processo que
ilustra de maneira mais geral os efeitos da urbanização em cidades brasileiras na passagem do
séc. XX, qual seja, a construção de nichos bastante distintos em uma mesma cidade: um
centro moderno civilizado e uma periferia que sofre a ação das reformas modernizadoras
apenas de maneira indireta. A periferia se expande com o crescimento da população e com a
valorização do centro, que implica no deslocamento da população pobre para os subúrbios,
que crescem de maneira desordenada e acabam por constituir um território que se contrapõe
às representações imputadas ao “moderno” , como destacam os trechos abaixo, retirados do
romance Triste fim de Policarpo Quaresma de autoria de Lima Barreto.
Os subúrbios do Rio de janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação de
cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influi decerto para tal
aspecto; mais influíram, porém, os azares das construções.
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado.
As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas as ruas
se fizeram. algumas delas que começam largas como boulevards e acabam
estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento
reto com um ódio tenaz e sagrado. (Barreto, 2002 p.124)
Não nos subúrbios coisa alguma que nos lembre os famosos das grandes cidades
européias, com as suas vilas de ar repousado e satisfeito, as suas estradas e ruas
macadamizadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos,
aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e
desleixados. (Barreto, 2002 p.125)
A síntese entre proximidade e distância, exemplificada na figura do estrangeiro
em Simmel, pode servir como alegoria das contradições despertadas pelas distâncias sociais
experimentadas em cenários urbanos, especialmente, em cidades que passam por processos de
reformas pautadas no modelo de Haussmann e apropriadas de acordo com as desigualdades de
uma sociedade que se constituiu a partir do modelo colonial-escravista. Isso é notável quando
levamos em conta as diferenças étnicas e sociais que tinham que ser equacionadas em tal
convívio. Como foi dito, as reformas urbanas empreendidas durante o governo de Pereira
Passos alteraram o espaço da cidade de forma desigual, dando origem a territórios distintos
em uma mesma cidade, por essa razão o componente de estranhamento e marginalidade passa
a ser um elemento marcante nas interações travadas na capital da República Velha.
Nesse contexto, o “outro” porta a estranheza de um desconhecido, distante em
termos sociais, culturais, étnicos, ou simplesmente estranho por ser alguém fora do convívio
doméstico, e ao mesmo tempo, comporta a proximidade física de um igual. O “igual” é aquele
com o qual se compartilha o mesmo espaço, o espaço da rua. Nessa configuração a rua”
adquire um novo significado como espaço de sociabilidade, ao representar o mito igualitário
da cultura burguesa, por aproximar indivíduos distanciados socialmente e culturalmente,
pertencentes a camadas sociais diversas. Como expressão desse ideal burguês, associado à
vivência de uma cidade em transformação, podemos destacar trechos da narrativa de Paulo
Barreto, que escreve aqui sob o pseudônimo de João do Rio:
A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa
do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos
seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as
frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um
arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais
igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas (Rio, 1991).
Em Amisterdão, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, a rua é
a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem auxílio dos
deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para a outra rua. (op. Cit.)
Percebe-se que os autores literários da passagem do século XIX para o século XX
conferem visibilidade às questões urbanas.
Durante esse período a literatura brasileira é marcada por novos estilos narrativos
que tem como emulação a descrição e avaliação da vida nas cidades, seja em seu aspecto
físico, arquitetônico e urbanístico, seja em seu aspecto humano, como espaço de coexistência
onde ocorrem interações sociais. Em vista da centralidade que o ambiente urbano adquire nas
obras literárias cabe perguntar: de que maneira os literatos concebem as transformações
urbanas? Sob que perspectiva os autores literários discutem o espaço urbano, entendido como
espaço de coexistência que abriga determinados estilos de vida?
3.1 O Campo intelectual entre o Império e a República.
O processo de formação da esfera pública
12
no Brasil, entendida como espaço de
atuação da intelectualidade, ocorre de maneira entrelaçada à consolidação do Estado
monárquico. Como expressa a fundação da imprensa nacional, em 1808, a partir de um
decreto real, atuando, em certo sentido, como meio de afirmação da soberania do monarca.
Segundo Lavina Ribeiro (1998), a imprensa brasileira se firmou desempenhando a função de
agente na constituição do Estado nacional, ela era legitimada pelo seu papel de instrumento da
prática política. Havia uma certa confusão entre o parlamento e a prática jornalística: muitas
carreiras políticas eram iniciadas ou fortaleciam-se nos jornais. Os integrantes da esfera
pública acabavam por participar desses dois espaços de forma simultânea. Não era possível
distinguir com precisão a esfera pública privada da esfera pública do poder imperial.
Os espaços destinados à discussão de assuntos da coletividade tinham o seu
acesso restrito a uma camada seleta, bem situada econômica e culturalmente. O público dos
jornais brasileiros durante o período imperial, por exemplo, era composto por integrantes da
elite que pertenciam, em grande parte, aos quadros da burocracia estatal, recrutados entre a
aristocracia rural e a pequena burguesia. Ainda segundo Ribeiro (1998) essa elite urbana
brasileira consolidava a sua homogeneidade como grupo social a partir do treinamento e da
internalização de uma “disciplina de carreira”, na medida em que se firmava a sua
12
Esfera pública: espaço público de discussão dentro da grande esfera privada da sociedade, composto por
indivíduos livres para expressar-se e que requerem para si a competência de decidir sobre assuntos da
coletividade. Ver: RIBEIRO, (1998) Lavina Madeira. A Constituição do Jornalismo no Brasil: 1808-1964. Tese
de doutoramento em Ciências Sociais. UNICAMP. p.32.
dependência de sinecuras e cargos do serviço público, dando lugar à formação de um tipo de
elite burocrática. A trajetória pica desses jovens incluía anos de formação em Coimbra,
concentrada nos conhecimentos jurídicos dirigidos ao exercício da magistratura ou de cargos
militares de alta patente (Ribeiro, 1998).
Dessa maneira, os integrantes da camada ilustrada que compunha a esfera pública,
por serem também os integrantes dos quadros do Estado, acabaram por atribuir à imprensa o
papel de agente responsável pela divulgação de partidos, movimentos políticos, grupos e
indivíduos em particular. Como foi dito, acentuava-se a indefinição de fronteiras entre
jornalismo e parlamento, devido à participação simultânea dos principais agentes da esfera
pública nestes dois espaços. Durante o segundo Império havia uma confusão entre a carreira
política e a carreira jornalística, era através do jornal que muitas carreiras políticas
começavam ou se firmavam, os mesmo indivíduos que compunham os cargos políticos,
participavam também da imprensa.
(...) era pelo jornal que se iniciava ou se fortalecia a carreira política e raros foram os
homens públicos que conseguiram subtrair-se à sedução do jornalismo. (Azevedo
apud Ribeiro,1998).
Essa coincidência era resultado da mútua dependência entre a família real e as
elites urbanas no processo de conformação do Estado pós-independente, o qual solicitava a
construção de uma dada nacionalidade durante o séc. XIX. As artes plásticas, a literatura e o
jornalismo se desenvolveram cumprindo a função de consolidação de uma identidade nacional
capaz de lastrear a legitimidade do poder do Estado recém-independente, em todo território
brasileiro. Instituições como o Instituto Histórico Geográfico e a Escola de Belas Artes
estiveram diretamente relacionadas ao imperador D. Pedro II, que além de proteger os artistas
e intelectuais via mecenato, patrocínio e outorga de cargos públicos, participava, em pessoa
das reuniões promovidas nessas instituições.
O entrelaçamento entre a trajetória dos intelectuais durante o Império e a
consolidação do Estado esteve de tal maneira aprofundado, que a emergência de um ideário
nacional esteve articulado à própria formação profissional dessa elite burocrática, da qual
havia falado. A formação de jovens brasileiros em faculdades européias de cidades como
Coimbra, Monpellier e Paris, possibilitou a consolidação de uma perspectiva exterior do país,
ao passo que o encontro de jovens herdeiros da antiga elite colonial de diferentes regiões em
terra estrangeira, dava corpo à sensação de pertencimento, indispensável à consolidação da
nacionalidade (Ribeiro, 1998).
Nesse sentido, o caráter restrito da esfera pública e a relação de dependência entre
esta e o Estado podem ser interpretados como conseqüências da própria conformação de
poder na transição entre a colônia e o Império. A cidadania estava restrita a uma camada
estamental, devido a certas permanências da ordem senhorial que se infiltraram na
composição do Estado. Ou seja, após a independência, a cidadania no Brasil se estabeleceu
como um privilégio, contrariando os princípios democráticos. Lembremos que o Brasil fica
independente em 1822 e em 1888 é abolida a escravidão. Dessa maneira, a ordem
Senhorial escravista deixa marcas contundentes na formação do Estado nacional (Fernandes,
1976). Esses elementos influenciam a formação do campo intelectual.
Para esclarecer melhor esse processo, recorre-se às definições de Florestan
Fernandes relativas ao fenômeno que ele intitulou como a formação de uma camada de
cidadãos prestantes. A grande revolução que ocorre na sociedade brasileira com a
independência é a projeção do elemento senhorial para dentro da ordem legal, requerida pela
formação do Estado nacional. Com o fim da tutela colonial, a camada senhorial-escravista
assume o comando político da nação, ao ser inserida na nova configuração do Estado
Independente, que vem a substituir a administração da metrópole portuguesa. Os princípios de
representação, e a democratização do poder político no vel dos grupos sociais dominantes,
requeridos pela nova ordem legal do liberalismo, conduzem à transformação dos senhores de
terras em senhores cidadãos.
Graças a essa transformação, o elemento senhorial volta ao centro do palco, agora
transfigurado em “cidadão”, que era no que o convertia, para fins da organização do
poder político, a ordem legal vigente.(Fernandes, 1976 p. 39)
Por outro lado, a forma como o liberalismo e a ordem legal foram assimilados
pelo “estamento senhorial”, conduziu a uma restrição da sociedade civil. Ou seja, o direito de
representação estabelecido a partir das eleições indiretas, como também o recrutamento de
ministros e conselheiros de Estado, entre os deputados e senadores, acarretou uma tal
concentração do poder político no nível dos privilégios estamentais, que a sociedade civil e os
estamentos dominantes se confundiam. Segundo Florestan Fernandes, a maioria da população
ficara excluída dos direitos liberais, a massa dos cidadãos ativos serviria de pedestal a uma
nata de cidadãos prestantes. É por conta dessa dinâmica de constituição do Estado nacional,
mediante a transfiguração do elemento senhorial em senhor cidadão, que ocorre a
transformação dos direitos civis em privilégios estamentais. Esse processo tem como
corolário a restrição da esfera pública, impossibilitada de cumprir a sua função ideal de
mediadora entre o Estado e o “povo”. Cabe destacar, ainda, que o tipo de formação dos jovens
das elites urbanas, treinados para integrar os cargos do Estado, favorecia o distanciamento
entre estes e a maioria da população.
Muitos intelectuais desempenhavam funções políticas e mantinham relações
estreitas com o Estado o que conduzia a um afastamento entre a intelectualidade e o “povo”, a
grande massa analfabeta de cidadãos ativos. Por essa razão os intelectuais do período estavam
muito mais próximos dos parlamentares do que de outros grupos da sociedade, e nesse sentido
tornava-se difícil a sua ação crítica frente ao Estado, o que destitui o caráter público” da
imprensa.
De acordo com Pécaut (1990), os “homens de letra” definiam uma postura
homóloga à posição do Estado, como se estivessem distanciados das relações sociais, não
advogavam para si nenhum vínculo de classe, não se comprometiam como porta-vozes de
determinados grupos sociais. Os intelectuais, no período Imperial, definiam-se como
portadores da cultura e da identidade nacional e entendiam que a formação da nacionalidade
era a essência da ação política. Ainda segundo o autor, a homogeneização da intelectualidade
como grupo social não provinha da vinculação a determinadas instituições acadêmicas, que
não existiam universidades no país, apenas escolas técnicas e superiores como os cursos de
Engenharia, e faculdades especializadas como as de Direito. O perfil do intelectual era o de
engenheiro, advogado, médico ou “homen de cultura”.
O auto-reconhecimento dos intelectuais como integrantes de um mesmo grupo
provinha da posse de um conhecimento da realidade social extraordinário. Este saber era
reconhecido socialmente e muitas vezes se confundia com o conhecimento sociológico, que
capacitava os intelectuais para a ação política e os definia como agentes responsáveis por
analisar e entender os fenômenos da sociedade através do respaldo científico. Nesse sentido,
seu prestígio teria avançado, em grande parte, sob o signo da ciência. Convém ressaltar a
influência do positivismo como filosofia ou visão de mundo difundida na Escola Militar e nas
escolas de engenharia, o que não significou, no entanto, uma fidelidade estrita a filosofia de
Comte.
A relação entre a esfera pública e o Estado começa a adquirir outra feição a partir
da década de 1880, segundo Ribeiro (1998), quando ocorre um florescimento mais radical da
vida urbana, acarretando uma maturação da imprensa, da literatura e das artes em geral. A
esfera pública começa a adquirir autonomia frente ao Estado, os novos parâmetros de
discursividade pública levam a um certo abandono das grandes metas nacionais em favor da
divulgação das vicissitudes imediatas da vida urbana.
Para Miceli (2001) durante a Primeira República, especificamente no período
entre 1908 e 1922, reconhecido pelos críticos literários como pós-naturalismo ou pré-
modernismo, houve o desenvolvimento de condições sociais favoráveis à profissionalização
do trabalho intelectual, principalmente em sua forma literária. Ocorre a definição de novos
postos de trabalho graças à dinamização de dois setores do mercado de trabalho: de um lado o
desenvolvimento da grande imprensa e de outro o fomento de instituições políticas e
partidárias, como as assembléias regionais e os partidos políticos. Os intelectuais passam a
ocupar cargos como escritores profissionais, ou ainda cargos administrativos no âmbito das
instituições político-partidárias e nos órgãos da imprensa.
No texto “Intelectuais à brasileira” Sergio Miceli (2001) analisa a trajetória de
alguns escritores desse período visando reconstruir a dinâmica do campo intelectual em
expansão. Um aspecto interessante destacado pelo autor é a permanência da relação de
dependência entre o campo intelectual e o campo político. As posições intelectuais não eram
totalmente autônomas ao poder político, uma vez que o recrutamento para a produção
intelectual dependia da relação dos candidatos com os grupos dominantes, que o autor
distingue como uma oligarquia. A maior parte dos intelectuais estudados por Miceli eram
originários de famílias oligárquicas falidas, cuja situação material estava em declínio. A
carreira intelectual era concebida como uma possibilidade de reconversão do antigo status
familiar. Em muitas situações o sucesso dessa estratégia de reconversão dependia da
utilização do capital social de que dispunha o candidato junto a pessoas influentes da
oligarquia política. Nesse sentido, a relação estreita entre a carreira intelectual e a carreira
política comum ao período imperial se manteve durante a República, todavia em um novo
cenário caracterizado por uma dinamização da vida urbana e pela emergência de novos postos
de trabalhos dirigidos à profissionalização do trabalho intelectual.
3.2 Atores da repercussão: o papel do literato e da literatura de ficção na construção do
“real”.
Nesse cenário caracterizado pela emergência de propostas governamentais
visando a construção de uma nova sociedade pautada nos moldes das nações européias, os
intelectuais, especialmente os literatos, passam a desempenhar um importante papel como
porta-vozes e artífices de determinadas concepções de modernidade que vinham legitimar ou
contradizer certas propostas fundadas no pano de fundo de uma visão progressista. Nesse
sentido, as crônicas jornalísticas, os romances e as reportagens comportavam reflexões sobre
a sociedade brasileira e principalmente sobre o meio urbano. Cabe destacar que a grande
mídia da época eram os jornais e as revistas. Os temas da atualidade, os padrões
comportamentais eram divulgados em meios de comunicação como as revistas ilustradas, o
jornalismo cultural e mundano, e os jornais “sérios” que se consolidaram desde a campanha
pela República e pela Abolição. Sem falar, é claro, na literatura que assume um papel
indispensável na divulgação do paradigma moderno:
Mais do que nunca, a literatura torna-se instrumento de ação política, o meio de
difundir os ideais laicos, progressistas e liberais, função social que exerce
abertamente, rompendo com o que restava de Romantismo subjetivista, lírico e
idealizado, que deveria ser substituído pela retórica da ciência, ou pela dos salões
literários e políticos (Veloso & Madeira, 2000).
A imprensa e a literatura além de serem veículos de entretenimento à época
muito divulgados entre a parcela da população que tinha acesso a instrução, tendo em vista a
não existência de outros meios de comunicação e lazer como o rádio e a televisão possuíam
um comprometimento com ideais políticos e com representações sócias. Além disso a
principal característica dos romances da época, construídos segundo os preceitos do estilo
realista e naturalista, apontada por historiadores da literatura (tais como Moisés, 2001;
Cândido, 1967), é a presença da crítica social. Nesse sentido, os literatos eram os principais
responsáveis pela produção de uma interpretação sobre o espaço urbano e suas interações.
Contudo, não se deve inferir que as obras literárias reproduzam um dado contexto
social, constituindo-se em uma espécie de reflexo das relações materiais. Nesse
entrelaçamento histórico no qual se destaca um cenário de reformulação cultural, as obras
literárias e as crônicas jornalísticas constituíram importantes veículos de reconhecimento e
discussão de novos costumes. Nesse ponto, é interessante destacar os pressupostos filosóficos
que informam a abordagem do presente estudo, em relação à articulação entre produção
literária e a transformação das relações sociais.
Nessa perspectiva, a relação entre literatura e contexto social pode ser definida
segundo os critérios estabelecidos por Ricoeur (1994) na obra Tempo e Narrativa. O autor
propõe uma abordagem hermenêutica da obra literária, considerando a ficção não como uma
estrutura fechada e estática – o que indicaria uma oposição entre o texto e a realidade social
mas como uma mediação entre o estágio da experiência prática e o momento da recepção da
obra pelo leitor.
Para uma hermenêutica da obra literária é preciso compor as operações pelas
quais uma obra se eleva do fundo opaco do viver e do agir humano, para ser dada por um
autor a um leitor que a recebe e assim muda o seu agir. Esse processo é composto pelas etapas
da mimese. Mimese é um termo utilizado por Aristóteles para designar a propriedade de
imitar, de representar a ação, peculiar a linguagem artística. Ricoeur utilizará esse termo,
considerando a relação da obra com o campo “real”, não como uma relação referencial, na
qual se compreenderia a obra literária como uma criação condicionada por elementos de uma
realidade específica, mas como uma relação de reciprocidade na qual a ficção e o real” se
completam mutuamente. Essa consideração se encontra explicitada na tese central do livro, a
de que: O tempo torna-se um tempo humano na medida em que é articulado de um modo
narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da
existência temporal (Ricoeur, 1994).
Por seu turno, o autor Wolfgang Iser (1996) adverte não haver uma ruptura entre o
fictício e o real. Na obra O fictício e o Imaginário encontra-se a proposta de superação da
oposição tácita entre ficção e realidade, mediante uma relação triádica entre real, fictício e
imaginário, buscando responder a questões como: de que forma o texto ficcional contém
elementos do real, sem no entanto se esgotar na descrição desse real. Iser considera queno
texto ficcional muita realidade,o social como emocional e sentimental. Essas realidades
não se transformam em ficção apenas por aparecerem em um texto ficcional, por outro lado
essas realidades não aparecem por efeito delas mesmas. O texto ficcional se refere à realidade
sem se esgotar nela, através do ato de fingir, no qual a realidade é repetida pela configuração
dada a um imaginário. A relação entre realidade e ficção se conclui ao considerarmos que o
imaginário é preenchido por elementos sócio-culturais advindos de uma realidade histórica,
por isso ao ser configurado no ato de fingir, ele garante a repetição da realidade, sem no
entanto se esgotar em uma mera reprodução dessa realidade.
Em seu caráter de recriação de um imaginário social as obras de ficção permitem
vislumbrar sob um outro prisma os valores sociais compartilhados, a respeito dos quais
raramente refletimos e que são aceitos mediante um acordo tácito que permite a
espontaneidade dos agentes sociais nas diversas trocas cotidianas. Isso se deve tanto ao
caráter interessado e engajado da produção literária vinculada ao estilo Naturalista que se
definia por uma descrição “objetiva” da realidade, quanto à própria natureza do romance, cujo
caráter fictício não o destitui de qualquer vínculo com o “real”, ao contrário, possibilita a
explicitação de certos elementos da realidade na qual está inserido o autor.
Ainda refletindo sobre a aproximação entre o “real” e o “fictício”, deve-se
considerar que uma determinada situação sócio-histórica não se apresenta como um fator
dado, plenamente constituído, com um sentido encerrado que se apresenta de maneira unívoca
para os agentes sociais. Por essa razão, a própria lida cotidiana requer constantes
interpretações, mesmo em vivências de situações familiares, o que indica que a própria ação
corriqueira constitui-se em atos criativos, que aproximam o “real” da ficção. Seguindo essa
premissa, Ricoeur (1994) salienta que a potencialidade de agir em um contexto sócio-cultural
exige o domínio de uma semântica e de uma sintaxe da ação. Um sujeito que interage no nível
da relação social, significante, mutuamente orientada e socialmente integrada como sugere
Weber
13
possui a capacidade prévia de utilizar, de modo significativo, os termos que
integram a trama conceitual da ação. Ou seja, uma compreensão prática permite distinguir
fins, motivos, meios, circunstâncias e agentes envolvidos em um curso de ação, constituindo
uma estrutura pré-narrativa da experiência. Além disso, a ação é desde sempre
simbolicamente mediatizada, e por isso ela pode ser narrada. Não ação que o suscite
aprovação ou reprovação e que, portanto, possa ocorrer sem despertar certos pressupostos
éticos e normativos. Nesse sentido, a experiência como tal contém uma narratividade
incoativa, uma verdadeira exigência de narrativa.
De acordo com essa perspectiva, as instituições sociais, tomando entre elas os
valores sociais que definem os códigos de conduta, precisam ser constantemente atualizadas e
reinterpretadas a partir dos usos que os agentes lhes atribuem. Segundo Weber (1999) as
formações sociais (Estado, associações, fundações) têm vigência porque são formadas pelo
desenvolvimento e pelo encontro concatenado de ões individuais específicas. Quando se
fala em Estado, em Nação, está-se na verdade, falando do curso orientado da ação social de
indivíduos. O Estado e a Nação têm vigência porque pessoas orientam as suas ações pela idéia
de sua existência, e ainda que faça parte do pensamento cotidiano, eles são a representação de
algo que existe, mas que ao mesmo tempo pede vigência, estando na mente de pessoas reais
que orientam as suas ações de acordo com a sua existência (Weber, 1999).
13
Weber, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. In: Economia e Sociedade. Vol. I. Brasília: UNB, 1999.
Levado por uma exacerbação da dimensão construtivista da ação social como um
processo interpretativo que requer constantes elaborações criativas, Castoriadis (1982)
considera o fenômeno de renovação da história humana como a manifestação de um
imaginário radical. Para o autor o cerne da dimensão social é o processo de “significação”;
tudo que é captado pela sociedade deve ser revestido de um significado. Decorre dessa
condição fundamental que a instituição da sociedade como processo sócio-histórico
compreende a instituição de um mundo de significação. A instituição da dimensão sócio-
histórica coincide com a instituição de um imaginário social, e com a instituição de um
magma de significação. Ocorre que do ponto de vista da teoria de Castoriadis (1982) as
significações não são finitas, elas remetem para significações anteriores e servem como
suportes para novas significações, formando um feixe.
A obra de arte, ao re-configurar o real no plano artístico, possui um importante
papel nesse círculo de reinvenção que caracteriza uma tradição situada historicamente, ou
mesmo a própria dinâmica de renovação da ordem social. O tema da tradição visto sob o
prisma da memória coletiva, trazido para o âmbito teórico da sociologia permite atualizar os
pressupostos filosóficos concernentes a uma fenomenologia da ação que compreende a
narrativa como uma propriedade ontológica para discutir as possibilidades de narrar,
pertencentes a configurações sócio-históricas específicas. Levantando questões como: O que
determina que certos eventos históricos se tornem significativos para um grupo social, em
detrimento de outros? Quais são os filtros valorativos que definem os aspectos da vida em
comum a serem narrados?
Por seu turno, o presente estudo considera os intelectuais como agentes que, em
grupos sociais específicos, ocupam uma posição privilegiada no campo simbólico. Eles agem
como porta-vozes autorizados, dos anseios e projetos ideológicos dos setores aos quais se
filiam. Por essa razão, a obra de arte é equivocadamente tratada como um espelho das
relações sociais, elas formam ações de caráter construtivo que interferem no contínuo
processo histórico.
3.3 Literatura e vida urbana:
Quem é capaz de se entediar em meio à multidão humana é um imbecil. Um
imbecil, repito, e desprezível.
(Guys apud Baudelaire apud Benjamin, 1989 p.35)
Um dia, em finais dos oitocentos, um autor literário abandona o seu gabinete e vai
a rua, buscando em sua cidade um local de intenso movimento. Em suas andanças, chega, por
exemplo, a uma feira no cais do porto e pondo-se à parte das infindáveis transações que
ocorrem simultâneas ao seu redor, observa os seus contemporâneos envolvidos em trocas
diversas. Um cigano que vende jóias falsas a um catraieiro, meretrizes em flerte com
marinheiros, um doceiro que arriando a sua caixa de doces, entrega o braço à agulha do
tatuador.
14
A par de tudo, ele observa como se contemplasse uma pintura panorâmica.
Esse autor imaginário bem poderia ser João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-
1921) mais conhecido pelo pseudônimo de João do Rio, literato carioca que testemunhou o
processo de modernização do Rio de Janeiro na passagem do século XX, e que se dedicou,
com certo empenho, a um estilo literário inspirado na observação do homem urbano. João do
Rio é considerado por muitos críticos (Rodrigues, 1996; Oliveira & Gens, 1991 Sussekind,
1992) como representante, no Brasil, da linha literária que se volta para a atividade quase
jornalística de descrição dos tipos humanos e investigação dos espaços urbanos freqüentados
pelas classes populares. No desempenho dessa atividade, o autor tem como inspiração a
14
Este exemplo fictício tem como inspiração a crônica “Pequenas Profissões” retirada do livro “A Alma
Encantadora das Ruas” de João do Rio que teve a sua primeira edição em 1908.
imagem da Flânerie literária, representada por autores europeus como, Baudelaire, Balzac e
Hoffman. É com essa inspiração que apena” de João do Rio se apossa de seus conterrâneos,
os habitantes da sua cidade, lançando sobre eles o olhar do Flâneur. O presente trabalho
pretende abordar a figura do Flâneur de acordo com a tipificação elaborada por Benjamin
(1989), como uma atitude de um escritor que se volta para a descrição dos seus
contemporâneos, abordando “o outro” como um ser da multidão, idealmente compreendido
como anônimo, diluído na massa, incógnito, despersonalizado ou apenas tipicamente um
indivíduo urbano.
Como se pode reconhecer, não é só no plano das relações de trabalho que as
transformações político-econômicas compreendidas durante a Primeira República interferem
na vida intelectual. O processo de modernização das relações sociais, mediante a adoção do
trabalho-livre, da dinamização das trocas comercias e da formação de uma cultura
cosmopolita, acabaram por redimensionar o papel de autores do início do século XX, ao
mesmo tempo em que as obras de urbanização de cidades brasileiras como o Rio de Janeiro e
Salvador vêm produzir uma nova relação dos intelectuais com a cidade, a ponto de
contribuírem para a formação de diferentes formas de narrativa. Em certa medida, a
emergência de um modo de vida urbano, implicará na escolha de novos temas para a pauta
das discussões. Por outro lado, em um nível mais fundamental, é possível considerar que as
novas maneiras de lidar com o espaço público e de compreender a co-presença com
“estranhos”, requerida pela urbanização, produzem novas perspectivas literárias, tão bem
observadas por Benjamin na sua descrição do Flâneur.
Além de estar associada a certas condições do espaço urbano, a obra literária do
Flâneur porta um tipo de atitude frente ao próximo que tem como referência às relações de
alteridade correntes nas cidades (Benjamin, 1989). A visão do outro, desenvolvida na sua
narrativa, é possibilitada por um afastamento contemplativo com relação aos seus
contemporâneos, que está associado à formação de uma atitude blasé, peculiar a certos
contextos urbanos de interação; como por exemplo, o encontro entre desconhecidos nos
transportes públicos. A propósito, podemos nos referir ao aparecimento do Bonde, fenômeno
que ocorreu no séc. XIX. A partir de então, passa a ser um elemento corriqueiro do dia-a-dia a
permanência de dois desconhecidos em um tête-à-tête por horas. Estar próximo fisicamente de
outrem sem trocar qualquer palavra por horas, requer o desenvolvimento da indiferença
educada, polida e cotidiana, um comportamento que contrasta com a postura informal
familiar.
Esse tipo de encontro peculiar, proporcionado pelas interações urbanas, nas quais
o outro pode se apresentar como um ser da multidão, perdido entre os demais, estando, por
outro lado, recoberto pela aura igualitária do ideal burguês, suscita no tipo flanador uma
empatia com o gênero humano: próximo o bastante para que nele possa se lançar a sua
imaginação, e distante o suficiente para que o “outro” possa se transformar em um tipo, um
personagem, destituído de um caráter especificamente individual. Essa característica da visão
literária está muito bem exemplificada pela obra A Alma Encantadora das Ruas (Rio, 1991).
Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da
observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite,
meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir
com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os
ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha
das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior
tenor do lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros
das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo
Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio
lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz
sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja... (Rio,
1991)
O tipo de perspectiva literária exemplificada na obra de João do Rio evidencia a
emergência de novas modalidades de narrativas suscitadas pelo desenvolvimento de uma
cultura urbana. Dessa maneira, João do Rio pode ser tomado como um exemplo canônico de
uma característica que comparece de maneira mais difusa em outros autores do mesmo
período, qual seja a relação de mútua contribuição entre a literatura e a formação de uma nova
compreensão do espaço de coexistência e das relações de alteridade, que constituem o cenário
de urbanização de cidades como Salvador e Rio de Janeiro.
Nesse sentido, a figura do Flâneur e a sua atividade literária podem ser
compreendidas como elementos pertencentes a esse contexto de inovações do espaço urbano,
que ganha notoriedade nos estudos de Simmel, principalmente na análise do Estrangeiro. O
aspecto interessante sobre a abordagem do estrangeiro como fenômeno sociológico, é a
compreensão o indivíduo moderno como aquele que está sempre envolto por uma aura de
distanciamento. Ou seja, a atitude resguardada e impessoal requerida constantemente na lida
cotidiana das cidades modernas, faz do homem urbano “típico” um constante estranho em
potencial. Cada um precisa, a cada momento, medir o grau de proximidade ou marginalidade
para toda interação em que se envolve.
Em certa medida, a figura do estrangeiro em Simmel pode ser justaposta à figura
do Flâneur em Benjamin, se entendermos o estrangeiro como alegoria que expressa a unidade
entre familiaridade e estranhamento, presente em toda relação humana e ponto essencial dos
encontros travados no meio urbano. O Flanador é aquele que perambula pelas ruas interessado
em seus contemporâneos, observador dos tipos humanos e comentador das suas vidas, ele se
interessa por esse “outro” com quem divide o espaço da rua, entrevista compatriotas, mas por
outro lado, nunca se mistura com os tipos humanos que inspiram a sua literatura. O Flâneur
permanece na posição de observador burguês, de comentador distanciado que desfrutando da
sua posição social, se diverte ao se misturar com as camadas populares, sem se diluir de fato
nelas, e sem nunca criar raízes.A sua aparente entrega ao rebuliço das cidades, que se traduz
no encanto que a sua obra exprime acerca do “outro”, é na verdade um complemento da
atitude de reserva e apatia planejada, que Simmel observa como ingrediente revelador do
modo de vida urbano.
O Flâneur, descrito por Benjamin (1989) tendo como principal inspiração
Baudelaire, se perde em outras almas ao projetar seus desejos nos outros, ou ao imaginar
serem seus, os interesses e desejos alheios. Como teatrólogo, toma emprestada a vida do
transeunte que passa, faz desse outro um personagem do seu drama. Mas, essa espécie de
paixão, entre o Flâneur e o transeunte disperso na multidão, requer o mistério e a estranheza
presentes nas relações impessoais e despersonalizadas, que têm lugar nas cidades modernas, e
se caracterizam, segundo Simmel, pela objetivação e pelo caráter transitório e acelerado das
relações urbanas, cujas causas são a economia monetária e a divisão do trabalho.
Em certa medida, todos os habitantes de centros urbanos passam a comportar esse
olhar do Flâneur; ao se envolverem em interações urbanas, experimentam esse contato com
um outro difuso, proporcionado pela perda de pessoalidade em meio à multidão, ao mesmo
tempo em que são, para olhares alheios e secretos, esse outro desconhecido, pico: como o
tipo do Largo do Machado”, ou “meninas que cheiram a Cidade Nova” ou “a gente de
Botafogo”.
Essas expressões entre aspas, foram destacadas mais uma vez do livro A Alma
encantadora das Ruas, de autoria de João do Rio, autor cuja obra literária expressa um tipo de
perspectiva sobre o espaço urbano que perpassa a obra de outros autores do período, e que
sugere uma relação de mútua influência entre a criação de novas formas de lidar com o espaço
coletivo e a emergência de novos estilos de narrativa literária. Esse tipo de perspectiva
literária, tão bem exemplificada na atitude do Flâneur pode ser também traduzida na figura
pictórica do secreta, ou detetive: herói moderno que precisa desfrutar da condição de estranho,
incógnito, favorecida pela impessoalidade da massa urbana, para exercer a sua atividade
policial. A sua aparente indulgência com a qual passeia pelos centros urbanos, ou descansa
em um café, é um mero disfarce sob o qual se encobre a sua observação vigilante do “mal
feitor”. O efeito da multidão aparece novamente nos romances policiais, e mais tarde nos
filmes de meados do séc. XX, cujo clímax da trama é proporcionado pelo suspense que
emerge da diluição do criminoso em meio ao aglomerado de gente.
(...) É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes
dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite ou numa noite muito
feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis
decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O Flâneur é um bonhomme
possuidor de uma alma igualitária e risonha, (...). (Rio, 1991)
Outro aspecto que deve ser ressaltado na literatura de João do Rio é a presença do
jogo entre personagens e o espaço da cidade. Na medida em que João do Rio, na qualidade de
Flâneur, persegue os tipos urbanos, a própria cidade é descortinada, e com isso o autor
adentra no jogo entre homem e espaço social. Um jogo de mútua constituição, no qual o
Homem dá significado à “Rua” na mesma proporção em que a “Rua” transforma o Homem.
(...) Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para o seu
uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma
das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível
futilidade dos pedestres da poesia de observação...
Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser
vivo e imóvel.
Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de
todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.(Rio, 1991)
Segundo Sussekind (1992), é um tema recorrente em João do Rio a presença de
personagens que partem para uma caçada amorosa, buscando um parceiro na multidão da
cidade. No decorrer da trama, o traçado geográfico da cidade e o trafego urbano passam a
integrar o pano de fundo da crônica. O espaçamento do Rio de Janeiro com seus bairros,
praças e monumentos é revelado, na medida em que evolui a conquista amorosa, que não
raro acaba por abordar a distância social dos personagens que formam o par amoroso, dando
visibilidade à distância econômica, cultural e estamental dos personagens envolvidos
15
.
Repetindo a mesma lógica de entrelaçamento entre o Homem e seu espaço, o livro
A alma encantadora das Ruas vale lembrar, uma coletânea de textos de Paulo Barreto
escritos para o jornal Gazeta de notícias e para a revista Kosmos, publicado em 1908
15
São exemplos desse tipo de trama na prosa de João do Rio os contos, O bebê de Tarlatana rosa, e O carro da
Semana Santa.
ressalta a influência cotidiana da cosmopolitização compulsória da cidade, aliada à
desigualdade social, ainda que retratada através do olhar bonachão do autor. A Rua é a
personagem central, imagem através da qual surge a cidade e seus habitantes, esse é, talvez,
um aspecto sintomático da experiência do autor que assistiu a cidade da sua infância ser
demolida pelo bota-a-baixo dos casarões do centro da cidade (Rodrigues, 1996), e falando
sobre as ruas:
Porque nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colméias sociais,
de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinha-se um
tarrascal, corta-se um trecho de chácara, aterra-se um lameiro, eestá: nasceu mais
uma rua.(Rio, 1991)
(...) nada mais enternecedor que o princípio de uma rua? É ir vê-lo nos
arrabaldes. A princípio capim, um braço a ligar duas artérias. Percorre-o sem pensar
meia dúzia de criaturas. Um dia cercam à beira um lote de terreno. Surge em seguida
os alicerces de uma casa. Depois de mais outra. Um combustor tremeluz indicando
que ela se o deita com as primeiras sombras. Três ou quatro habitantes
proclamam a sua salubridade ou o seu sossego. Os vendedores ambulantes entram
por ali como por terreno novo a conquistar. Aparece a primeira reclamação nos
jornais contra a lama e o capim. É o batismo. As notas policiais contam que os
gatunos deram nun dos seus quintais. É a estréia na celebridade, que exige o
calçamento ou o prolongamento da linha de Bondes. E insensivelmente, na
memória da produção, bem nítida, bem pessoal, uma individualidade topográfica a
mais, uma individualidade que tem fisionomia e alma. (...) (op. cit.)
Ao tomar a obra de João do Rio como exemplo para entender a influência que a
urbanização das capitais brasileiras exercem sobre a visão literária, deve-se considerar o
destaque que o autor concede aos tipos humanos que caracterizam as atividades desenvolvidas
em espaços específicos da cidade. Em vista das distâncias sociais relacionadas ao desenho
espacial da cidade, que recobre cada rua de um significado especial, a partir do qual
instauram-se fronteiras simbólicas, João do Rio cria, de maneira imaginária, uma
personalidade para cada uma das ruas mais significativas do Rio de Janeiro: Ora, a rua é mais
que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (Rio, 1991).
Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar a moral dos seus
habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, bitos, modos,
opiniões políticas. Vós todos deveis ter ouvido ou dito aquela frase:
– Como estas meninas cheiram a Cidade Nova!
Não é a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! meninas que cheiram a
Botafogo, a Haddock Lobo, a Vila Isabel, como velhas em idênticas condições,
como homens também. A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada
criou o tipo social. (...) (Rio, 1991)
(...) porque cada rua tem um stock especial de expressões, de idéias e de gostos. A
gente de Botafogo vai às “primeiras” do Lírico, mesmo sem ter dinheiro. A gente de
Haddock Lobo tem dinheiro mas raramente vai ao Lírico. Os moradores da Tijuca
aplaudem Sarah Bernhardt como um prodígio. Os moradores da Saúde amam
enternecidamente o Dias Braga. As meninas das Laranjeiras valsam ao som das
valsas de Strauss e de Berger, que lembram os cassinos da Riviera e o esplendor dos
kursaals. (...) (op. cit.)
(...) Como outrora os homens, mais ou menos notáveis, tomavam o nome da cidade
onde tinham nascido Tales de Mileto, Luciano de Samosata, Epicarmo de
Alexandria – os chefes da capadoçagem juntam hoje ao nome de batismo o nome da
sua rua. o José do Senado, o Juca da Harmonia, o Lindinho do Castelo, e
ultimamente, nos fatos do crime, tornaram-se célebres dois homens, Carlito e
Cardosinho, temidos em toda a cidade, cheia de Cardosinhos e Carlitos, porque
eram o Carlito e o Cardosinho da Saúde
16
. (...) (op. cit.)
Além desse aspecto, o olhar flanador e aparentemente desinteressado do autor,
tem como pano de fundo uma ideologia progressista. Cada traço do presente é vorazmente
registrado, como se estivesse perto de desaparecer. Segundo Gomes (1996) o referencial de
João do Rio é o futuro; os acontecimentos que o autor narra no presente, comparecem como
um passado em potencial, que o autor reconhece na mudança a principal característica do
mundo em que vive. Olhai o mapa das cidades modernas. De século em século a
transformação é quase radical. As ruas são perecíveis como os homens.(Rio, 1991)
Nessa sentido, a obra literária de João do Rio expressa de modo paramétrico o
tipo de reflexão sobre o espaço urbano suscitada pelas novas contradições provocadas pelo
processo de urbanização de cidades como Salvador e Rio de Janeiro, cujas reformas urbanas
tiveram como principal modelo às intervenções empreendidas por Haussmann em Paris, que
por sua vez têm como principais características a revitalização do centro da cidade a partir da
demolição de bairros antigos e insalubres, e a criação de espaços destinados à recreação
elitista. Esse modelo interfere nas relações entre os grupos sociais, por acirrarem a segregação
social.
16
Sobre a observação acerca do temor suscitado por dois moradores emblemáticos da Saúde, lembremos do
envolvimento que os moradores desse bairro tiveram na revolta da vacina. Mobilização popular contra a vacina
obrigatória antivaríola que durou uma semana durante o mês de novembro de 1904. Ver: Carvalho, José Murilo
de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª. Ed. São Paulo: companhia das Letras, 1999.
Depois de traçada essa breve contextualização histórica, acerca das condições que
envolveram a urbanização da Capital Federal e as principais mudanças ocorridas na esfera
pública, o presente trabalho pretende investigar as reflexões sobre o espaço urbano presentes
na literatura brasileira nesse contexto modernizador da passagem do século XIX para o século
XX, utilizando como estudo de caso a analise do livro O Feiticeiro de autoria do escritor
baiano Xavier Marques (1861-1942).
4. Dando sentido ao concreto: as reflexões de Xavier Marques sobre o espaço urbano de
Salvador no séc. XIX.
Xavier Marques nasceu na Ilha de Itaparica, Bahia em 1861. A sua família natal
pertencia à classe media baixa, seu pai possuía um barco e fazia transporte de mercadorias
entre Itaparica e Salvador, estabelecendo-se como comerciante. Xavier foi criado pelos tios
maternos. Sua única instrução formal foi a do curso primário, no entanto, como autodidata
atingiu uma educação de padrão universitário para a época, principalmente se levados em
consideração os aspectos lingüísticos e literários (Salles, D. 1977).
Quando completou a maioridade em 1882, Xavier se mudou para Salvador onde
passou a lecionar em escolas primárias. Logo após a publicação do seu primeiro livro “Temas
e Variações” em 1885, ingressa no “Jornal de Notícias” de Salvador dando início a sua
carreira como jornalista. Desde então desempenha trabalhos em vários jornais baianos, a
exemplo do “Diário da Bahia”, ocupando o cargo de redator político em 1891, o que lhe abre
as portas ao seu primeiro cargo público como oficial da Câmara dos Deputados.
Posteriormente ocupa os cargos eletivos de Deputado Estadual entre 1915-1921 e de
Deputado Federal entre 1921-1924. Em sua trajetória acentuam-se características comuns às
trajetórias de outros autores do período, de acordo com os estudos de S. Miceli (2001), em
especial a permuta entre a atividade intelectual e a carreira política, evidenciada na
concomitância entre o período de produção literária, e a passagem pelo serviço público
seguida da ação como jornalista, que serve como ponte para a nomeação em cargos políticos
de confiança, e por fim a eleição a deputado.
Do desempenho da sua vida profissional dividida entre as atividades de escritor,
jornalista e deputado depreende-se o seu caráter de homem público e o possível engajamento
da sua prosa romanesca, apesar do aspecto descritivo e quase ornamental do seu estilo
narrativo, aparentemente desinteressado, principalmente se comparado com a prosa de autores
como Aluísio Azevedo (O Cortiço) e Júlio Ribeiro (A Carne) que levaram à risca o intuito da
crítica social, prescrita pelo estilo Realista/Naturalista.
Dessa maneira, talvez pela priorização da perspectiva cronológica por parte de
alguns críticos literários (por exemplo Salles, D. 1977; Moisés, 2001), a prosa do autor é
considerada como pertencente a um estilo misto pré-modernista ou pós-realista que agrupa
autores de características literárias diversas, que escreveram durante a transição entre o
Naturalismo/Realismo e o Modernismo, a exemplo de Lima Barreto e João do Rio. Apesar
disso, podemos dizer que na sua ambigüidade de estilo a obra de Xavier Marques apresenta
traços distintivos do romance de costumes característico do final do séc. XIX. A produção
literária do período belle époque possui uma relação simbiótica com o mundanismo da vida
urbana das classes média e alta. Nessas narrativas encontramos elementos que expressam um
padrão de vida burguês, moderno afinado com os anseios políticos das elites urbanas.
Os romances de Xavier Marques contêm descrições sobre os encontros sociais
desempenhados pela classe média da cidade de Salvador, favorecendo à atualização das novas
tendências e instruindo os leitores acerca do comportamento adequado ao novo estilo de vida
“civilizado”. Por essa razão podemos aproximá-los dos chamados “romances de costumes” ou
“romances da atualidade”. Vale ressaltar que o aspecto “pedagógico” da obra de Xavier
Marques não constitui uma idiossincrasia do autor. Na primeira década da República os
homens de letra outorgaram para si um compromisso modernizador e civilizatório. Era
comum aos romances a prescrição subliminar de um padrão comportamental ditado por uma
visão eurófila da civilização. Esse modelo correspondia ao projeto modernizador da
República Velha, do qual esses intelectuais eram porta-vozes e artífices.
Entre as obras mais importantes de Xavier Marques, as que melhor expressam o
seu interesse literário pelas convenções pequeno-burguesas
17
da classe média soteropolitana, e
a interferência desses valores incidindo sobre a compreensão crítica do espaço urbano dessa
cidade são O Feiticeiro e A Boa Madrasta. O Romance O Feiticeiro foi publicado em 1897
com o título de Boto & Cia e em 1922 o livro é revisto e reeditado com o sugestivo título O
Feiticeiro. Na ocasião da sua primeira edição o jornal “A Bahia” publicou a seguinte nota:
O autor propõe-se estudar a classe média, e em plano secundário, no povo, costumes
íntimos, usanças, tradições, superstições, tendências políticas, fazendo convergir
todos os episódios e peripécias para a acentuação da fisionomia moral da classe que
tomou para objeto de estudo.
No recurso do drama amoroso, que constitui propriamente o romance, dois pontos
merecem cuidado: a influência do espírito público, ordeiro e conservador, sobre a
direção da sociedade política, e a influência do africano feiticeiro em certos atos da
vida doméstica.
É, pois, na essência, um livro de crítica, se bem que moderada, visando desacreditar
do feiticeiro, sem descurar a exibição da vida baiana, segundo o modo de ver e
apreciar do autor (A Bahia/ Salvador, 26 de ago. 1897 apud Salles, D. 1977).
A nota é interessante, pois acentua alguns aspectos que julgo centrais para a
compreensão da obra, relacionados ao contexto sócio-histórico da sua configuração e primeira
recepção. A saber: a) a centralidade posta no modo-de-vida da classe média soteropolitana no
final do Império b) a crítica à influência da cultura afro-baiana no ambiente doméstico das
famílias de classe média e alta. A nota torna-se ainda mais significativa se considerarmos a
hipótese de que o próprio Xavier Marques a tenha escrito. Hipótese fundada no fato de que,
naquele tempo, Xavier Marques era redator do jornal “A Bahia” (Salles, D. 1977).
Mas, cabe ressaltar por ora uma outra questão evidenciada pela nota acima: o
aspecto “crítico” do romance. Segundo a nota, O Feiticeiro é um livro de crítica, de uma
crítica moderada. Nesse sentido, vale a pena destacar mais uma vez as similaridades que o
17
A expressão “pequeno burguês” é aqui utilizada para designar um estilo de vida difundido entre a classe média
do período identificado com a absorção de padrões europeus que serviam também como fatores de distinção
social.
estilo de Xavier Marques comporta em relação ao estilo Naturalista/Realista, apesar do tom
moderado e ornamental cultivado pelo autor (Salles, D. 1977). Suponhamos que de fato tenha
sido o próprio autor o redator da nota acima, a intenção de ter o romance como um veículo de
estudo, que tem como objeto a fisionomia moral da classe média, constitui uma aproximação
com o cientificismo defendido pelo movimento Naturalista/Realista, cuja pretensão era fazer
do romance uma obra de caráter científico. O estilo literário em questão tem como principais
características o privilégio dado à observação e a experiência empírica, assim como à relação
real que propunha entre suas idéias e o mundo objetivo. Nesse sentido, o romance da belle
époque
18
teve uma grande preocupação em aliar o aspecto ficcional com a verossimilhança.
Através dos efeitos da verossimilhança, o escritor procurava facilitar a aceitação das suas
idéias de modernidade e civilidade. Esta tendência foi altamente exacerbada pelo realismo e,
principalmente, pelo naturalismo. Esses movimentos literários procuraram documentar a vida
social através do recurso de pesquisa direta com a realidade da época.
Essas observações, referentes à filiação do autor a certas prerrogativas de
determinado estilo literário, passam a extrapolar o interesse de uma apreciação meramente
estética da obra, para alcançar também a perspectiva sociológica, ao evidenciar certas
convenções sociais compartilhadas pelo escritor e seus pares, e pelo escritor e seu público.
Além disso, o presente estudo pretende salientar o conteúdo ideológico do romance que, na
passagem do século XX, constituiu-se como principal veículo de crítica social e mesmo de
análise sociológica.
É interessante salientar a relação estreita entre a literatura desse período e a
formação de vertentes de interpretação da realidade brasileira, e por tanto, entre a literatura e
o pensamento sociológico nacional. Para Antônio Candido (1967) a literatura brasileira teria
ocupado o papel das ciências sociais até finais do século XX, quando ainda não havia se
consolidado o seu ensino universitário. Devido ao prestígio das humanidades clássicas e ao
18
Período, grosso modo, definido entre 1880 a 1920.
demorado avanço do espírito científico entre nós uma característica do ensino da colônia e
do Império a literatura foi responsável pela formação de uma consciência nacional e pela
análise da vida e dos problemas brasileiros, tendo se apresentado como fenômeno central da
vida do espírito (Candido, 1967).
Em função da crítica social presente em seu conteúdo temático, os romances
naturalistas e realistas estão profundamente associados às transformações políticas e
econômicas da sua época, tendo se consagrado como um dos principais meios pelos quais a
elite intelectual emitiu a sua opinião acerca da sociedade brasileira. Nesse sentido, o romance
O Feiticeiro se torna um recurso privilegiado para proceder a uma análise sobre determinadas
discussões ideológicas do período.
4.1 Espaço público, sinais de uma cidade e suas divisões.
Como foi visto, a obra de Xavier Marques possui uma aproximação ambígua ao
estilo Naturalista, pois não apresenta o tipo de análise social e de crítica materialista, que
caracterizam o naturalismo em autores como Émile Zola. Na época em que Marques procura
atingir certo reconhecimento entre os autores da Academia Brasileira de Letras
19
, os aspectos
escatológicos e sensualistas exacerbados pelo objetivismo crítico, que prescrevia uma
descrição apurada das mazelas sociais, como em O Cortiço de A. Azevedo – são considerados
de mau gosto, por romperem com o bom tom e a moralidade do ambiente familiar dos lares de
classe média e alta. De acordo com Salles (1977), o critério das boas maneiras e da alta
respeitabilidade pessoal era uma exigência de Machado de Assis para que um escritor
ocupasse uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Por essa razão, Xavier Marques se
exime de apresentar conclusões deterministas quanto à constituição da sociedade brasileira,
19
O autor se candidatou por três vezes à Academia Brasileira de Letras: em 1905, 1909 e 1917, quando
finalmente se consagra membro da instituição.
polêmicas para época, assim como evita mostrar certos inconformismos sociais, elaborando
um texto de caráter ameno voltado ao entretenimento das senhoras de classe média e alta
(Salles D., 1977).
Ainda assim, o naturalismo recatado da prosa do autor em O Feiticeiro
presenteia as ciências sociais com descrições detalhadas da sociabilidade urbana da cidade de
Salvador, durante o segundo Império. São trechos da narrativa que não interferem diretamente
no enredo da trama, e cuja presença é justificada unicamente pelo interesse “científico” do
autor em registrar o modo de vida da Salvador Imperial, produzindo no leitor da época a
sensação de verossimilhança, ou seja, de estar frente a uma descrição objetiva do real.
Contudo, ao salientar a referência do romance ao seu contexto social, o presente trabalho não
pretende compreender a obra literária como um reflexo da sociedade, e sim como um veículo
de reflexão acerca das relações sociais e dos valores compartilhados.
Para efeito da presente análise, a apresentação dos trechos do romance O
Feiticeiro, referentes à descrição da sociabilidade urbana, será feita a partir da observação das
seguintes categorias de interesse, a) a organização espacial da cidade, b) os hábitos das
diferentes classes sociais, c) as atividades da população afro-descendente, d) a cultura
popular. A começar pelos trechos que oferecem um panorama da organização espacial da
cidade, ou seja, aqueles trechos que sugerem uma dinâmica de segmentação do espaço urbano
segundo funções e segundo a estratificação social. Quais são os espaços da cidade destinados
ao trabalho, à moradia e ao lazer? Qual é a utilização que os diferentes estratos sociais
(classes alta, média e baixa) fazem desse espaço territorializado?
O enredo do romance O Feiticeiro tem como tema central o colóquio amoroso
entre Eulália, uma jovem pertencente a uma família de pequenos comerciantes, e Amâncio
Neri, jovem bacharel em direito filho de um rico comendador. Vários acontecimentos se
interpõem como obstáculos ao casamento dos dois: uma viagem repentina de Amâncio Neri, a
disputa com uma família rival que intenta casar a filha com Amâncio e a não anuência do
comendador Neri em relação à escolha amorosa do filho. Todos esses eventos estão
envolvidos em uma aura mágica, pela possível interferência subterrânea de um Feiticeiro, o
pai-de-santo Elesbão, líder de um terreiro no bairro do Matatú de Brotas e residente da antiga
rua do Alvo na cidade de Salvador.
O namoro de Amâncio e Eulália dura um ano, até os dois vencerem os obstáculos
e se decidirem pelo casamento. A passagem do ano no qual se desenrola a trama é marcada
pelas festas populares e pelas datas comemorativas do calendário soteropolitano. A história
começa com a ida da classe média aos subúrbios, durante o veraneio, seguido das festas
natalinas, a festa dos Reis, os festejos de carnaval, o Ano Bom, a comemoração do Dois de
Julho (data da independência da Bahia), os oitavários estrondosos do Bonfim e novamente o
retorno dos dias de verão, marcados pelos piqueniques no subúrbio. O início do enredo de O
Feiticeiro é ambientado na estação de estio, próxima ao Verão, que começava cedo para os
habitantes da província Imperial soteropolitana, segundo a narrativa, a partir do mês de
novembro o cheiro de frutas sazonadas começava a atrair passeadores para as chácaras
verdes, fora dos limites urbanizados. O autor caracteriza esse período do ano pelas idas aos
subúrbios da cidade, como atividade de lazer.
Nos dias de estio, a excursão aos subúrbios, de preferência ao campo, era um prazer
salutar de que raramente se privava a mediana da população urbana. E o subúrbio
convidava, porque ainda vivia na simplicidade campestre, confinando com as roças,
emaranhado em capoeiras e plantações (Marques, 1975 p.3).
Vimos na sociologia de Simmel que o espaço é abordado como uma das
precondições dos diferentes tipos de interação social. O espaço, em nossa experiência social
cotidiana, comporta uma constituição distinta do espaço visto sob uma perspectiva geográfica,
ou matemática, que destaca propriamente os aspectos da sua constituição física. Em termos
das orientações dos agentes em sua lida cotidiana, o espaço é investido de significados que
lhes são atribuídos pelas interações sociais, favorecendo a constituição de identidades
territoriais. A respeito desse aspecto identitário, é interessante ressaltar a maneira como
Xavier Marques opõe a área suburbana à área central da cidade de Salvador, investindo esses
espaços de sentidos contrários, cuja oposição evidencia a constituição de identidades distintas,
porém, mutuamente referenciadas. A linguagem literária, devido ao seu caráter de narrativa
permeada pelo engajamento do autor, frente a expectativas quanto à recepção da obra, em
uma antecipação de um diálogo com o leitor permite distinguir os sentidos sociais que
informam a construção do espaço de coexistência.
Atentando para a descrição da organização espacial da cidade, é interessante notar
os bairros que o autor aponta como integrantes dos subúrbios da cidade: Cabula, Matatu, S.
Lázaro, Garcia e Brotas, que à época não integravam a malha urbana. Atualmente esses são
bairros centrais, a cidade se expande para muito além deles. Mas, até a década de 40 do séc.
XX, São Lázaro ainda era um bairro de características rurais.O bairro de Brotas possuía
casas residenciais, mas não tinha a mesma configuração urbana que os bairros da Graça,
Vitória ou Piedade. Na década de 40, o bairro de Brotas era urbanizado apenas em seu traçado
principal, as ribanceiras e as encostas eram tomadas pelo verde. Nesse bairro era possível
encontrar roças, chácaras e mesmo pequenas fazendolas de gado leiteiro que pastava pela
região. Em termos das funções de que são dotados os diferentes espaços da cidade, o subúrbio
é apontado por Marques como um espaço de lazer, que se opõe à área urbanizada da cidade,
identificada com o labor cotidiano.
- À roça! À roça! era o toque de alvorada, ao despontar das manhãs estivas e
feriadas, na quentura dos ninhos que a classe média pendurava nos primeiros
andares dos prédios maciços e mal arejados. As janelas se abriam ao bafejo matinal .
Os galos cantavam. Ouvia-se repicar de sinos, e ao longe o rodar das carroças da
limpeza pública. os rapazes sôfregos, a família aforçurada, em satisfeita
balburdia,tinham atado ao fardel, e iam-se esgueirando ao desluzir da estrela d’alva,
através do pó que os varredores da rua lançavam aos ares da cidade estremunhada.
Depressa, antes que amanhecesse, corriam para o Cabula, o Matatu e S. Lázaro, para
o Garcia, as margens do Dique e Brotas a dentro. A liberdade dos prazeres honestos
ai lhes sorria com o benefício não encontrado nos bailaricos fatigantes, nos
concursos de luxo em festas de Igreja, nem mesmo nos oitavários estrondosos do
Bonfim. (...) (Marques, 1975 p.3)
Algo que a narrativa também sugere, é a diferente utilização que as classes sociais
fazem desses espaços opostos: o campo-subúrbio versus a cidade-centro. As idas ao subúrbio
descritas como um prazer salutar, devido aos efeitos benfazejos dos ares do campo e às suas
virtudes sanativas, não são de igual apreço para todas as classes sociais. No romance, que
assumidamente toma como perspectiva o modo de vida da classe média, as atividades do
campo portam a liberdade dos prazeres honestos que se contrapõem às festas da cidade como
os oitavários estrondosos do Bonfim, bailaricos fatigantes, concursos de luxo em festas de
igreja... mas, apenas no que tange à perspectiva da faixa mediana da população. As idas ao
campo constituíam um habito do qual não se furtava à classe média, no que ela se opõe à
classe alta, famílias abastadas vítimas da meia aristocracia, e também à classe pobre cujas
preocupações com o ganha-pão diário, impediam o privilégio dos dias de lazer.
as desaproveitavam, com efeito, ou as classes terra a terra nos deveres e
preocupações do ganha pão, a gente pobre que tinha muitos filhos e nenhum feriado,
ou as famílias abastadas, vítimas da meia aristocracia de últimas modas e lautos
almoços a hora certa, senhoras devotíssimas à missa das onze à Piedade, obrigada a
seda e jóias, patrícias que se divertiam sobriamente pelo tom das conveniências
sociais e julgariam pecar pelo bom gosto se deixassem encapado o piano, envolto
em “asas de mosca” o espelho biselado, se não brunisse todos os critais e mármores,
se não escancarassem as alcovas onde jaziam camas de Gonçalo-alves virgens do
contato de corpo humano e peças de lavatório que nunca se molharam, se o
reproduzissem, uma semana, essa nobre faxina em seus palacetes, para a
recepção das famílias conhecidas, principalmente das inesperadas (Marques, 1975
p.4).
O trecho acima porta um ar de crítica ao comportamento sisudo das classes mais
abastadas, cuja cultura aristocrática destoava do comportamento burguês da classe média
urbana. Um outro aspecto interessante é a contínua acuidade na descrição dos eventos do
cotidiano da cidade, como por exemplo a menção à missa das onze do Bairro da Piedade. A
igreja da Piedade está a meio caminho da área de ocupação mais antiga, a paróquia da Sé, e os
bairros da Vitória, Graça, Canela e Barra para onde se deslocam as famílias ricas no final do
século XIX. A partir do início do século XX, a ligação entre o centro da cidade e essa nova
área de ocupação é feita pela Avenida Sete de Setembro, a principal obra das reformas
empreendidas durante o governo de J.J. Seabra (1912-1916), as quais serão abordadas mais
adiante. Essa área constituiu o principal eixo de expansão urbana no final do século XIX e
início do século XX.
As atividades urbanas descritas no romance ocorrem nos atuais bairros da
Piedade, Sé, Terreiro de Jesus, Pelourinho, Maciel, Comércio e Bonfim. Esse espaçamento
oferecido pela trama converge com a descrição histórica de Kátia Mattoso (1992). Segundo a
autora, a cidade de Salvador no séc. XIX tinha a mesma extensão que no séc. XVIII, de
acordo com a divisão eclesiástica, abrangia 11 paróquias urbanas, ou dez freguesias urbanas e
sete suburbanas
20
. Todos os caminhos e atividades convergiam, porém, para os dois centros
mais antigos: a paróquia da Sé, na cidade alta, e o centro comercial à beira mar da paróquia da
Conceição da Praia, atual bairro do Comércio na cidade baixa. Ou seja, além de manter os
mesmos limites estipulados no século anterior, a cidade estava organizada segundo a mesma
divisão funcional entre Cidade Baixa e Cidade Alta, estabelecida desde a sua fundação em
1549, quando foi projetada pelo reino português, visando cumprir as funções destinadas a
sede do Governo Geral do Brasil. A Cidade Baixa, a margem de uma grande baía, que
corresponde, como foi dito, à paróquia da Conceição da Praia, concentrava as atividades
portuárias vinculadas ao comércio, por seu turno a Cidade Alta, correspondente à paróquia da
Sé, reunia as atividades administrativas, políticas e religiosas. Era também a área onde residia
a maior parte da população. O enredo de O Feiticeiro ilustra as observações históricas,
referentes à distribuição das atividades sociais no espaço da cidade, a partir das disposições
das personagens.
As duas famílias envolvidas na trama residem em um dos locais de ocupação mais
antigos de Salvador, nas imediações da antiga paróquia da Sé. A família de Eulália,
encabeçada por seu cunhado Paulo Boto, reside em um sobrado no Terreiro de Jesus, ponto de
passagem entre a Praça da e o Pelourinho. Amâncio Néri e seu pai moram na Rua da
20
A 11ª. Paróquia urbana foi estipulada em 1871, a paróquia dos Mares a partir de um desmembramento de uma
área anteriormente pertencente às paróquias do Pilar e de Santo Antônio Além do Carmo.
Ajuda, paralela à Rua Direita do Palácio, atual Rua Chile, que ligava a Praça da ao Largo
do Teatro, atual Praça Castro Alves. O Cunhado de Eulália é um pequeno comerciante que
possui um armarinho no morgado de Santa Bárbara, no comércio. Não mais se ouve falar em
um “morgado de Santa Bárbara”, Kátia Mattoso cita, no entanto, a existência de uma igreja de
Santa Bárbara no comércio, que correspondia, durante o séc. XIX, ao “canto dos escravos
guruncis”
21
.
Habilitado pela prática adquirida no escritório de João Rodrigues, quatro anos antes
de casar na família do patrão, tivera o feliz arrojo de estabelecer-se com uma loja de
fazendas e miudezas junto ao morgado de Santa Bárbara. Graças ao tino e bem
entendida economia do ex-caixeiro, a loja tornou-se em pouco tempo a mais popular
do quarteirão (Marques, 1975 p.12).
Esse trecho é parte da descrição da personagem Paulo Boto, homem de estatura
mediana, de musculatura desenvolvida, pescoço curto, olhar curioso e inteligente, ele é o
chefe da família de Eulália, sua cunhada que protagoniza o romance central da história, o
namoro entre ela e Amâncio Néri. Ao oferecer uma narrativa sobre a trajetória profissional
dessa personagem, que se estabelece como dono de um armarinho na Cidade Baixa, o autor
retrata uma atividade econômica na qual as famílias de classe média se envolviam, cujo modo
de vida o autor toma como centro de interesse da sua investigação. Nesse mesmo capítulo
Marques oferece mais detalhes que ajudam a definir os contornos da família que é o núcleo
central da trama.
Tinha largo e bem assentado crédito nas casas importadoras; começava a
importar diretamente
- Não se ajuntam milhões nem se come em baixela de prata, mas vivi-se. Levarei o
melhor que se pode levar da vida.
(...) A mesa abundante, sem desmandos, as meninas asseadas, no colégio, nas
reuniões de família, nas festas do Bonfim e, uma vez por outra, no teatro; dívidas
nenhumas, casa franca aos amigos, hospitalidade cordial a quem lha pedisse;
consciência tranqüila, religiosidade um tanto eivada de mundanismo, mas sem
condescendência para as superstições da esposa, tal foi o modo de existir, a regra do
falecido negociante João Rodrigues, desamparado finalmente no infortúnio de uma
transação com uma partida de fumo e cacau (Marques, 1975 p. 12-13)
21
Os ‘cantos’ eram locais onde os escravos se postavam a espera de que viessem demandar os seus serviços:
“Segundo Pierre Verger, sob as sacadas de Santa Bárbara ficava o ‘canto’ dos guruncis e, a alguns passos dali,
entre Santa Bárbara e o Hotel das Nações, o dos haussas” (Mattoso, 1992).
Vários autores consideram a atividade comercial como o centro da economia de
Salvador até a metade do séc. XX (tais como Mattoso, 1992; Santos 1958; Pinheiro, 2002).
Vendedores ambulantes, lojas e Mercados fechados (como o mercado de Santa Bárbara)
ditavam o ritmo da cidade em um vai-e-vem de pessoas que surpreendia os viajantes. A
cidade era o principal ponto de escoamento de produtos para a exportação das áreas vizinhas
como o recôncavo baiano e o sertão. Produtos como o açúcar vindo do recôncavo, o ouro e o
diamante da Chapada Diamantina, e mais tarde o cacau de Ilhéus, eram exportados para
outros estados do país e para o exterior através do porto da Baia de Todos os Santos. Por essa
razão, a organização do espaço da cidade era regida pela função de centro distribuidor de
mercadorias para toda a província da Bahia e também para Sergipe, Piauí, Minas Gerais e São
Paulo. A área de influência do Porto de Salvador abrangia até mesmo países vizinhos como a
Argentina e Uruguai.
Voltando à análise do romance O Feiticeiro, de acordo com a descrição do
espaço urbano, a principal área de residência das classes média e alta, daquele período,
corresponde hoje ao centro histórico e suas imediações: abrangendo os bairros do Maciel,
Pelourinho, Terreiro de Jesus, Rua da Ajuda, Avenida Sete de Setembro e Piedade. Ainda
hoje, alguns moradores de Salvador invocam os epítetos “Centro” ou “Cidade” ao se
referirem a essa região que durante séculos foi o espaço principal das trocas urbanas,
juntamente com a paróquia da Conceição da Praia na cidade baixa. Os trechos citados abaixo
invocam a importância dessa zona de povoamento urbano, e algumas atividades a ela
associadas.
Uma preciosa descrição do movimento de transeuntes no Terreiro de Jesus ilustra
a teia urbana que envolve aquele local, atribuindo-lhe significados como espaço de atividade
religiosa, como área residencial da classe média, como ponto intermediário entre a área do
Pelourinho, Maciel e Baixa dos Sapateiros (à época Rua da Vala) e a Cidade Baixa, e por fim,
como local freqüentado também por jovens estudantes da faculdade de medicina, sediada no
antigo Colégio dos Jesuítas. Destaca-se a presença das igrejas e dos clérigos e beatas
envolvidos nas atividades da missa, como também: a ausência dos estudantes da faculdade
por conta das férias, a passagem dos negociantes em direção à área comercial da Cidade
Baixa, e a presença de negras ao chafariz a buscar água para atividades domésticas.
Eulália à janela, de manhã, olhava o Terreiro de Jesus, o grande chafariz cercado de
pretas que entravam e saíam com barris d`água, a Academia na Taciturnidade das
férias, o adro da Catedral e o de S. Pedro dos Clérigos sempre fechada numa espécie
de interdição. Via passar negociantes em rumo da cidade baixa, ganhadeiras,
operários, um ou outro reverendo, cabisbaixo, caminhando vagarosamente para os
templos (Marques, 1975 p. 41).
Crescia o movimento no largo com o vai-vem dos transeuntes e o bimbalhar dos
sinos do Colégio de S. Domingos. Começavam a aparecer peixeiras com as gamelas
coaguladas de pescado fresco, as vacas de leite, pelo cabresto, badalando a sineta
caminho dos estábulos; senhoras e padres que voltavam das missas, empregados
públicos arrastando-se para as repartições. Na perpétua vagabundagem, os
capadócios gaiatos , assobiadores, assenhoreavam-se da praça (Marques, 1975
p.44).
Em sua descrição histórica, Pinheiro (2002) também considera essa praça o centro
religioso de Salvador e interposto entre a Cidade Baixa e os bairros de Santo Antônio, Passo
e Santana. O largo abrigava a catedral e o colégio que pertencera aos Jesuítas, a igreja da
Ordem Terceira de São Domingos e o templo da Irmandade dos Clérigos de São Pedro, além
de residências sediadas em casas pequenas, antigas e irregulares (Vilhena apud Pinheiro,
2002 p.187). O Terreiro de Jesus é vizinho ao Pelourinho, um espaço composto por sobrados
de diversos andares que até meados do séc. XIX eram povoados por integrantes da classe
abastada, o que dava a essa local o status de área residencial mais valorizada da cidade. Com
as transformações econômicas que ocorrem a partir do final do séc. XIX, o Pelourinho passa a
abrigar uma população pobre proveniente da zona rural, retirantes da seca que assolava o
sertão baiano, e ex-escravos, que não encontram ocupação formal após a abolição.
Dentre as atividades exercidas pela população negra do período, chama atenção a
presença de ganhadeiras no relato acima, escravas de ganho que viviam da venda de artigos
como doces e quitutes. Dessa venda parte do dinheiro era entregue ao seu respectivo senhor,
uma quantia diária, o “jornal” previamente estabelecido. Nessa atividade o escravo podia
viver por conta própria. Esse tema receberá um tratamento mais detalhado a seguir, quando
forem abordados os trechos da narrativa que aludem às atividades desempenhadas pela
população afro-baiana. É notável a presença de vacas leiteiras no cenário urbano. Até a
segunda metade do século XIX era comum a venda de leite levando a vaca à porta das casas
dos fregueses, um hábito que passou a ser mal visto a partir do final daquele século, devido
aos valores sanitaristas em voga.
As freguesias do centro da cidade e também as de maior concentração
populacional eram: Sé, Passo, Santo Antônio Além do Carmo, Santana e São Pedro, na
Cidade Alta, e Conceição da Praia e Pilar, na Cidade Baixa. Porém, o centro nervoso da
cidade era constituído pela Sé, no alto, e pela Conceição da Praia, em baixo (Pinheiro, 2002).
Um intenso transito de mercadorias e pessoas, principalmente comerciantes e trabalhadores,
vigorava entre essas duas áreas, com mais intensidade nas primeiras horas da manhã e no final
da tarde. Esse intercâmbio é feito pelas ladeiras, pelo Elevador e através dos Planos
Inclinados.
Um trecho do romance contém uma descrição de interessante valor documental
dessa verdadeira ebulição, causada pelo movimento de retorno do bairro da Cidade Baixa, que
concentra as atividades econômicas, para a Cidade Alta, área residencial e administrativa, à
hora do rush. Nesse trecho comparece a descrição dos tipos envolvidos nas atividades
comerciais, assim como a menção às ladeiras que faziam ligação entre as duas zonas mais
importantes da cidade. Os transportes públicos eram à época recentes aquisições do panorama
da cidade, no trecho destacado a seguir, eles são representados pela linha delegada à
companhia Transportes Urbanos.
Às seis horas da tarde foi postar-se no passeio da rua, a ver subir por S. Bento os
comerciantes afanados a limpar o suor dos rostos lustrosos, a negraria dos mercados
e cais, de cesto à cabeça, em magotes faladores, empertigados caixeiros com ares de
sócios de casas fortes, meninos e raparigas que vinham de compras sobraçando
pacotes, vendedores de gazetas a apregoar o Diário e a Tribuna. Divertia-o esse
borborinho que refluía aos bairros da cidade alta, pela ladeira da Conceição, pela
gameleira e pelos Transportes Urbanos, onde vinham os representantes do comércio
em grosso, capitalistas, diretores de bancos, estrangeiros, senhoras de boa sociedade,
a minoria cujo sistema nervoso afrontava a ascensão pelo “Parafuso” da Praça
(Marques, 1975 p.47-48).
Segundo Pinheiro (2002), os investimentos na área de transportes ocorrem na
década de 60 do séc. XIX, o primeiro serviço público é introduzido em 1862 pelo empresário
Rafael Ariani. São gôndolas, carros altos com molas, puxados por quatro animais, em que o
cocheiro fica sobre um deles. Nesse mesmo ano o mesmo empresário introduz o bonde
puxado por burros sobre trilhos de aço ou madeira, no trecho entre Coqueiros de Águas de
Meninos e Bonfim. Outras empresas são criadas para cobrir outras partes da cidade. Em 1871
é introduzida uma nova linha entre a Barroquinha e as Sete Portas, nas novas terras
conquistadas depois da canalização do Rio das Tripas. Nesse mesmo ano são introduzidos os
transportes a vapor que permitem uma circulação ainda maior pela cidade. Três empresas
dividem o território urbano em setores, os transportes são estruturados buscando facilitar a
ligação entre o Centro, o circuito entre a a Conceição da Praia, e os diferentes bairros. A
companhia Trilhos Centrais dirige uma linha entre a Barroquinha e a baixada da Soledade, a
Veículos Econômicos entre o largo da Conceição da Praia e a península de Itapagipe, a
Trilhos Urbanos liga a Praça do Palácio até o Rio Vermelho e a Barra. A modernização dos
transportes está relacionada à especulação imobiliária, à valorização de áreas da cidade mais
distanciadas da área central, especificamente, a área que abrange o litoral Sul, no sentido da
Barra, para onde se desloca a classe abastada no final do séc. XIX.
Um outro trecho que expressa o interesse de Xavier Marques em descrever a vida
urbana de Salvador, e que ilustra a sua perspectiva sobre o espaço urbano, comporta um
interessante relato do Paço Presidencial, iluminado pela luz diáfana dos lampiões a gás, que
faz desse local um espaço de conquistas noturnas para os caixeiros que trabalham no
comercio e afluem da Cidade Baixa para a Cidade Alta pelo Elevador Lacerda. A presença
destes causa desconforto para as famílias presentes também ao local, cuja perspectiva moral
se opõem ao sentido das aventuras amorosas. Mais uma vez, a narrativa com seu aspecto
jornalístico sintonizado na descrição das ações cotidianas, permite destacar os sentidos sociais
que recobrem os espaços da cidade, dotando-os de identidades e constituindo-os como espaço
social de coexistência, como sugere a sociologia de Simmel. Percebe-se a preocupação em
criar um certo distanciamento entre o ambiente familiar, que também integra o espaço da
praça, e o ambiente erótico, constituído pela paquera. Instaura-se uma tensão entre
proximidade e distância, que prescreve o estabelecimento de fronteiras culturais e sociais.
Mesmo próximos fisicamente, o ambiente familiar e o erotismo se afastam em termos sociais.
Na Praça uma multidão ondeava em frente ao velho paço presidencial.
O gás, amortecido, não dissipava a penumbra que no meio do largo desdobrava uma
espécie de véu sobre uns vultos de mulheres e homens, cujos encontros se
amiudavam e faziam com familiaridade e segredo. As famílias se distanciavam
desse campo de conquistas noturnas (Marques, 1975 p.52).
Segundo Pinheiro (2002), a Praça do Palácio, atual Praça Municipal, na qual se
ambienta a cena acima, estava situada no distrito da Sé, era o local para onde se dirigia a
população em momentos de crise e durante as festividades. Nesse espaço estavam situados a
Casa de Câmara e Cadeia, o Palácio dos Governadores a Casa da Relação e a Casa da Moeda,
essas duas últimas construções demolidas respectivamente em 1872 e 1875. Ao norte da Praça
do Palácio, encontrava-se a igreja da Sé, a Santa Cassa de Misericórdia e o Palácio
Arquiepiscopal. Em outro trecho do romance O Feiticeiro, que cito abaixo, destaca-se a
presença de caixeiros e trabalhadores do comércio que representam a centralidade da
atividade comercial para a economia da cidade portuária. As negras ganhadeiras, vendedoras
de doces, voltam a aparecer na descrição, sugerindo constituírem um tipo urbano comum.
Fala-se também dos pregoadores das gazetas, dessa vez mencionando a notícia de maus tratos
a negros escravos, ilustrando um período no qual a escravidão começa a ser discutida, por
adquirir um caráter desumano e bárbaro frente aos novos padrões de modernidade.
O Elevador ia despejando grupos de caixeiros que vinham de baixo à espairecer,
fumar e ensaiar aventuras. Vendedores de gazetas apontavam em alto pregão mais
um caso de castigos bárbaros em escravos. As pretas do doce, enfileiradas,
expunham e vendiam, à luz de lanternas, queijadinhas, roletes de cana. As
pastelarias enchiam-se de tomadores de cerveja e Porto, comedores de empadas e
discutidores de política. (Marques, 1975 p.52)
Nos trechos acima citados chama atenção, de um modo geral, o interesse do autor
em descrever as interações urbanas, fazendo menção aos tipos que compõem essa teia. Essa
característica remonta à aproximação entre o fazer literário e o fazer jornalístico como um
traço da literatura da segunda metade do séc. XIX, apontado por Benjamin e exemplificado
nos pequenos fascículos vendidos na França com o nome de fisiologias. Entre os autores
brasileiros, João do Rio é, possivelmente, o principal integrante dessa linha. O seu interesse
jornalístico é veemente em obras como A Alma encantadora das Ruas, e em semi-reportagens
como As religiões do Rio. Em Xavier Marques esse traço literário, dota a sua obra de ficção
de um teor de documento histórico, que ajuda a reconstruir a atmosfera de Salvador no século
XIX.
Voltando novamente à descrição que a obra oferece em termos da organização
espacial da cidade, o Maciel de Baixo, bairro que hoje pertence ao centro histórico,
comparece como um bairro de classe média e alta onde ocorriam ensaios de bandas de música
e bailes pastoris.
À noite ia ouvir da rua os ensaios da Triunfo Pastoril, ao Maciel de Baixo; algumas
vezes de parceria com Amâncio Néri e Salustiano.
(...)
Pelo Natal os bailes pastoris do Maciel fizeram furor. Amâncio ouviu missa na
Catedral com a família do amigo. Depois da missa deram todos juntos um passeio
pelas ruas principais, entre musicatas, harmonias de piano, descantes de trovadores
ao relento. Esse natal encantou Eulália e Amâncio, enchendo-lhes uma semana de
delícias. (Marques, 1975 p.61)
Ainda segundo Pinheiro (2002), toda a área que compreende a paróquia da e
suas cercanias perde, em parte, o seu caráter residencial a partir do final do séc. XIX com a
chegada do comércio varejista, atividade que constituía uma particularidade da Cidade Baixa.
À medida que as atividades comerciais conquistam esse espaço, as famílias abastadas
abandonam essa área em busca de um novo estilo de vida, abrindo vagas para a ocupação de
uma população de baixa renda, oriunda da imigração da zona rural, acompanhada de ex-
escravos que não encontram ocupação no mercado formal. Mesmo antes disso, o centroera
o local de residência preferido dos escravos de ganho e libertos que viviam por conta própria
e lá encontram maiores oportunidades de biscates diários.
Essa população origem a uma ocupação amontoada que transformará essa área
em um verdadeiro formigueiro humano. No apogeu da sua degradação, na dec. 20 do séc XX,
o meretrício é transferido para o Maciel, visando isolar a prostituição e outras atividades afins
em um local específico da cidade, de acordo com a lógica sanitarista da época. A população
de alta renda que residia nos sobrados da se desloca em sentido sul, para os novos bairros
da Vitória, Graça, Canela e Barra, onde passam a instaurar um novo estilo de vida burguês, de
forte inspiração parisiense. Esses novos bairros, que desde sua origem comportam um caráter
elitista, são habitados por latifundiários, cônsules, grandes comerciantes nacionais e
estrangeiros. A classe média constituída por funcionários públicos, profissionais liberais,
comerciantes portugueses e brasileiros, instala-se no Santo Antônio e em Santana, onde
também residem artesãos, pequenos comerciantes e artistas, principalmente músicos. O Passo
concentra grandes famílias que residem em sobrados, uma classe média similar a do Santo
Antônio, e São Pedro abriga a elite intelectual e social da cidade (Pinheiro, 2002).
Mas, essas mudanças na organização social da cidade e no seu modo de vida
atingem Salvador apenas nas ultimas décadas do século XIX. Durante a maior parte do
período histórico estudado, a cidade apresenta uma configuração espacial bem distinta da
sociabilidade moderna exemplificada por cidades européias como Londres e Paris. A
segregação social – proveniente da formação de bairros burgueses e bairros operários, comum
à racionalidade novecentista aplicada ao espaço urbano era um aspecto ausente à sua
configuração espacial. Não era ainda possível visualizar uma setorização clara quanto a
funções, excetuando-se a divisão entre o centro econômico portuário na Cidade Baixa e o
centro religioso, administrativo e político da Cidade Alta. No entanto, essa divisão se
constituiu visando atender as necessidades das relações coloniais e destoa do tipo de
esquematização característica ao espaço urbano moderno.
De fato, os traços de uma organização espacial socialmente discriminada vão aos
poucos modificando o perfil social da cidade com a construção dos bairros elitistas da Vitória,
Graça e Barra ao sul, assim como com a ocupação operária na paróquia de Nossa Senhora da
Penha, ao norte, que concentra uma indústria têxtil a partir de meados do século XIX, dotando
esse setor da cidade, afastado do centro, de um caráter popular, ao passo que ao sul em
direção a Barra, desenha-se um perfil aristocrático. Por outro lado, durante a maior parte do
século XIX vigora, nas palavras de Mattoso (1992), uma promiscuidade social.
As paróquias centrais da Cidade Alta (Sé, Santo Antônio Além do Carmo,
Santana, São Pedro o Velho e Passo) abrigavam, sem discriminação, moradores das diversas
classes sociais, com ocupações e origens étnicas variadas. Sobrados de três ou quatro andares,
como o Solar do Ferrão
22
, eram erguidos lado a lado com pequenos casebres, as vezes feitos
de taipa, portando apenas uma porta e uma janela que davam para a rua. Não raro essas
construções precárias eram destruídas em deslizamentos de terra durante as fortes chuvas dos
meses de Junho e Julho. Dentre os prédios de três a quatro andares, existiam aqueles que eram
ocupados por famílias abastadas de senhores de engenho, ricos comerciantes e profissionais
liberais, e outros que eram internamente divididos em vários cômodos, que abrigavam uma
população variada, de escravos de ganho a pequenos funcionários públicos.
Mattoso (1992) exemplifica a diversidade social dessa área da cidade a partir de
dados do recenseamento de 1855, referentes à rua da Ajuda, na 21ª circunscrição da paróquia
da Sé, que, coincidentemente, é o local fictício da moradia da família da personagem
Amâncio Néri, filho de um rico comendador que morava em um rico casarão acompanhado
22
Grande construção no estilo barroco situada no Pelourinho.
por uma escrava e seu filho. Segundo o recenseamento de 1855, das seis casas habitadas da
rua da Ajuda cinco eram simples construções térreas e a sexta um sobrado de dois andares.
Caldeamento racial e social tão intensos, que é impossível classificar socialmente as
várias paróquias de Salvador: atividades econômicas, fortunas e posições sociais
díspares se acotovelavam num mundo em que as diferenças ainda não estavam
rigidamente cristalizadas (Mattoso, 1992 p. 441-442).
4.2 A cultura colonial e a escravidão vistas como um estigma:
A diversidade social que caracteriza a ocupação do centro de Salvador no século
XIX não deixa de ser discutida por Xavier Marques através da linguagem do romance,
especificamente no que se refere às relações entre a classe média branca e os mestiços e
negros que integram, majoritariamente, as classes mais baixas. Essa temática é trazida à baila
nos trechos que descrevem atividades desempenhadas pela população afro-baiana no cenário
urbano, e os significados que elas instauram na identidade do local. Na cena urbana abaixo
descrita, encontramos eventos que caracterizam certas relações sociais desempenhadas em
uma cidade cuja mão-de-obra permanecia escrava, em grande medida.
Nas ruas havia mulheres trajadas de preto, sotainas, caponas e opas roxas que
passavam para uma procissão a sair da Sé antiga. No meio da praça estacionavam
grupos à espera do cortejo. Antes desse transitou, sem escândalo, um negro
escoltado por soldados de polícia. Era escravo fugido. Rodou em seguida o bangüê
destinado à condução dos defuntos indigentes.o tardaram duas luxuosas cadeiras
de arruar, aos ombros de quatro africanos, cujos trajes novos, chapéus de oleado e
rabonas de ganga vermelha , quase envergonharam Salustiano. Pela fresta das
cortinas verdes, lavradas a ouro, viam-se as damas ricas que iam provavelmente ao
sermão. O escriturário suspirou, pensando em que a sua Pomba bem merecia andar
num daqueles palanquins (Marques, 1975 p. 5).
A cena acima descrita é marcada pela presença de caracteres que identificam o
modo de vida da colônia brasileira, a começar pelo poder que a religião obtém como esfera
produtora de sentido, representada pela religiosidade católica. A circunspeção e obscuridade
com as quais o autor dota a religiosidade colonial o representadas pelas vestimentas longas
como caponas, opas e sotainas, e suas cores escuras, o preto e o roxo. Cabe lembrar que a
passagem do século XX é caracterizada pela divulgação de uma cultura científica que se opõe
à lógica religiosa, que passa a ser tida como uma visão de mundo supersticiosa e
tradicionalista, oposta à cultura civilizada e esclarecida, do século das luzes. Em termos sócio-
políticos a virada do século marca o processo de secularização, pelo qual a esfera religiosa
perde, definitivamente, a primazia do monopólio dos sentidos culturais, através dos quais os
atores sociais norteiam as suas ações
23
. A religião é suplantada pela objetividade das relações
burocráticas impessoais, representadas pelo Estado. Esse processo histórico constitui o pano
de fundo através do qual o autor, Xavier Marques, avalia a sociedade baiana do segundo
império. Os valores laicos ocidentais recebem uma expressão no cenário nacional
contemporâneo ao autor, no processo de formação do Estado Republicano, que se opõe à
cultura colonial Lusitana, associada ao Império.
Em seguida, no trecho do romance, a escravidão entra em cena na figura de um
escravo fugido escoltado por policiais. A imagem retrata as tensões existentes em uma
sociedade escravista, na qual os trabalhadores, de cuja força de trabalho depende toda
economia, não gozam da liberdade legal juridicamente instituída como nas nações burguesas
proletarizadas. Lembremos que a escravidão, passa a comportar um aspecto desumano, de
acordo com os valores que emergem nesse período. Nas obras de intelectuais como Joaquim
Nabuco, o sistema escravista era interpretado como a principal causa dos males nacionais
(Nogueira, 2002). Por outro lado, é importante pontuar que a visão negativa sobre o modo de
vida da sociedade colonial escravista não é explícita na prosa de Marques, por conta de uma
opção por uma crítica moderada, como requisito da filiação a um determinado padrão literário
mais aceito entre os intelectuais da Academia Brasileira de Letras.
Segundo Needell (1993), a partir dos mandatos dos presidentes civis da
República, os literatos brasileiros passam a redefinir o seu papel político, ao abandonarem o
engajamento que caracterizou o romantismo e os primeiros exemplos do naturalismo na
23
Ver: PIERUCCI, Antônio F. (1998) Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos
a acessar aquele velho sentido. RBCS vol. 13 no. 37 Junho.
literatura nacional, até então fortemente vinculada às causas abolicionista e republicana. Com
a formação de uma sociabilidade burguesa, na qual se inserem esses intelectuais, em espaços
como a Academia Brasileira de Letras e os cafés da Avenida Central, esses autores redefinem
a função social da literatura, deixando de lado as causas abertamente políticas e definindo
como principal missão literária a formação da nacionalidade. Salles (1977) observa uma
mudança intencional de estilo na prosa de Xavier Marques, observável a partir da comparação
entre os seus dois primeiros ensaios e o romance Boto & Cia, título da primeira edição do
livro O Feiticeiro. As duas primeiras obras literárias do autor inscreviam-se nos padrões
naturalistas, por conterem um vocabulário científico comum ás ciências médicas e por
descreverem, de maneira ofensiva, as mazelas sociais, podendo atingir um tom escatológico e
sensualista. Esse teor denso é abandonado posteriormente pelo autor que passa a exibir um
estilo literário mais leve característico dos romances de costumes.
Voltando a apreciação dos elementos presentes no trecho acima destacado, o
aspecto soturno que compõe a atmosfera da cidade nas permanências da cultura colonial,
volta a cena na passagem de um bangüê padiola para a condução de defuntos de pretos
escravos ou indigentes. É interessante ressaltar a ideologia sanitarista que passa a se
desenvolver nas academias de medicina, no Brasil, na segunda metade do século XIX, dando
vazão à formação de uma nova perspectiva para políticas públicas, que prescreve, entre
diversas intervenções, uma alteração dos rituais fúnebres. Reis (1991) averigua a formação de
uma perspectiva médica sobre a morte, que ganha corpo, no cenário nacional, a partir de
1830. Segundo o autor, essa nova perspectiva condena práticas como o enterro nas igrejas, os
velórios e os cortejos fúnebres, defendendo que tais rituais poderiam criar focos de doença.
Acreditava-se que a putrefação de cadáveres emanava miasmas nocivos responsáveis pela
proliferação de doenças, por essa razão as autoridades públicas passaram a discutir medidas
para isolar os cadáveres dos centros urbanos, construindo cemitérios em áreas afastadas das
zonas densamente povoadas, isolando as atividades urbanas das cerimônias fúnebres. A
Faculdade de Medicina da Bahia, situada no Terreiro de Jesus, no prédio que abrigou o antigo
colégio dos Jesuítas, constituiu um dos principais centros acadêmicos de difusão da visão
sanitarista sobre a morte.
Um outro trecho do romance comporta mais uma descrição de um cortejo fúnebre,
novamente tematizando a religiosidade popular, dessa vez abrangendo integrantes de uma
irmandade de negros. Vale ressaltar que esse trecho se segue à narrativa do afluir de pessoas
da Cidade Baixa para a Cidade Alta na hora do rush ao cair da tarde. O cortejo fúnebre é mais
um evento que se entrelaça ao tumulto daquela hora em que todos se misturam no trajeto da
Conceição da Praia para a Sé, passando pela Praça do Teatro, conduzidos pelas ladeiras da
Conceição e da Gameleira.
Da rua de Baixo surgiu o préstito de um enterro à mão, composto de uma irmandade
de negros revestidos de capas cor de lírio, negras de tabuleirinhos e bandejas de
flores, uma dentre elas levando o banco para descanso do caixão, no longo itinerário
dos defuntos pobres. Em dois minutos se perdia essa nota fúnebre nos ecos da
multidão parladora, da molecagem grulha, das carroças barulhentas e do realejo
desafinado que um italiano manejava junto às ruínas da Recreativa (Marques, 1975
48).
Por fim, o sistema colonial escravista é mais uma vez capturado pela pena do
autor na descrição de uma dama aristocrática conduzida em uma cadeira de arruar, ricamente
adornada, suspensa pelos ombros de dois escravos, também ricamente vestidos. Contrasta
com esse cenário que remonta à escravidão, a presença de Salustiano, funcionário público
mestiço, cujo trabalho como escriturário prenuncia a ordem legal burocratizada e a sociedade
burguesa, fundamentada no trabalho livre. A opressão dessa personagem que, diga-se de
passagem, representa um aspecto do modo de vida identificado com a modernidade oposto à
atmosfera colonial, é aparente no seu mal trajar e na condição financeira em que se
encontra, que o impede de concretizar a mais corriqueira das aspirações, casar-se com a moça
pela qual está enamorado.
Quanto ao uso de cadeiras de arruar, Pinheiro (2002) chama atenção para o fato de
que até a segunda metade do séc. XIX, o meio de transporte mais comum entre os
soteropolitanos era os próprios pés, ou as cadeiras de arruar, palanquins, serpentinas e liteiras
movidas por escravos, nessa cidade de terreno acidentado, caracterizado pela presença de
ladeiras muito íngremes. Mesmo no final do século, quando os transportes públicos que
aparecem por volta de 1850 se impõem, muitos soteropolitanos continuaram utilizando as
cadeirinhas carregadas por escravos, que permaneciam um meio de transporte menos
dispendioso que o bonde (Mattoso, 1992). Da mesma maneira o abastecimento de água, bem
como o transporte de águas sujas era todo feito por escravos.
Como a classe alta dependia de muitos serviços desempenhados pela população
cativa ou recém liberta, compartilhar o mesmo espaço com as camadas mais baixas era uma
necessidade. Esses fatores sócio-econômicos contribuíam para a não existência de uma
segmentação urbana entre bairros ricos e bairros pobres, divisão que ocorre a partir do
século XX, quando são importadas novas tecnologias de aparelhagem urbana, que permitem
substituir os serviços de transporte de águas e locomoção urbana desempenhados por
escravos. Veremos que os aspectos acima descritos divergem do modelo urbano que se
dissemina no século XX como representação da nova concepção de modernidade.
Voltando a personagem de Salustiano, o seu tipo aparente de mameluco, baixo,
encorpado, imberbe, abotoado no rendigote do serviço público (Marques, 1975 p. 5), permite
abordar a presença de uma classe média composta por mestiços e a sua relação com as
famílias de classe média branca um pouco mais alta. Antes é interessante fornecer alguns
dados sobre a estrutura social e étnica da cidade de Salvador no século XIX.
Salvador era um dos portos mais importantes de tráfico negreiro, a mão de obra
escrava era essencial para a vida da cidade devido ao comércio de produtos fornecidos pela
economia agro-exportadora de tipo plantations, grandes latifúndios destinados à monocultura
de produtos para a exportação baseada no trabalho escravo. Só na primeira metade do século
XIX chegaram a Salvador por volta de 300 mil africanos (Pinheiro, 2002). Por essa razão, a
maior parte da população era composta por negros. Apesar da centralidade da economia
agrícola, muitos escravos se mantinham na cidade, desempenhando serviços domésticos nas
famílias mais ricas. Mas como foi dito, os trabalhos desempenhados por escravos na área
urbana eram bastante diversificados, a escravidão nos núcleos urbanos favoreceu ao
desenvolvimento de modalidades engenhosas de utilização do escravo, em termos de
patrimônio familiar: como os escravos de aluguel, mais comuns entre as famílias de classe
média, para as quais era mais proveitoso ganhar dinheiro com o aluguel de um escravo que
utilizá-lo para realizar serviços pessoais.
Os escravos poderiam ser alugados para os mais diversos fins, tendo em vista que
a prática de qualquer trabalho braçal ou esforço físico era, à época, considerada ultrajante.
Muitas vezes o dinheiro do aluguel do escravo era a única renda de que dispunha o seu dono
que poderia ser, por exemplo, uma senhora viúva de classe média. Uma outra modalidade de
escravidão, ainda mais curiosa, era o “escravo de ganho”, que comparece em alguns trechos
do romance em tipos como as ganhadeiras e as pretas dos doces. Nessa atividade o escravo
podia procurar qualquer tipo de trabalho pela rua, desde que uma parte dos seus benefícios
fosse destinada ao senhor, uma soma diária, semanal ou mensal prefixada. Na maioria das
vezes, o escravo de ganho nem ao menos residia na casa do senhor, vivendo por conta própria.
Essa duas modalidades de escravidão comportam uma mescla com o sistema capitalista, e
podem ser um índice da dissolução do sistema escravista na segunda metade do século XIX
(Salles, R. 1996).
Além disso, a interdição do tráfico negreiro (1850) seguida das demais leis que
restringiram a escravidão, anteriores a lei áurea em 1888, provocaram mudanças na economia
da cidade e na sua estrutura social. Segundo Pinheiro (2002), o censo de 1872 registrava a
diminuição gradativa da população escrava em relação à população liberta. Em paralelo, o
incremento da manufatura e das fábricas acelerou o aumento de trabalhadores livres,
favorecendo a formação de um proletariado urbano.
Segundo Pinheiro (2002) a estratificação social da cidade no século XIX dava
origem a quatro grupos: a classe alta era composta por funcionários da administração real, o
alto clero, militares de alta patente, grandes proprietários de terras e grandes mercadores. Em
seguida vinham os profissionais liberais, mestres de ofícios nobres (como ourives, pintores e
entalhadores) e os integrantes das mesmas categorias acima mencionadas, mas com renda
mais baixa. No terceiro grupo encontram-se os funcionários subalternos da administração real,
militares de baixa patente, profissionais liberais secundários, e pequenos comerciantes. Nesse
mesmo grupo estão os trabalhadores recém saídos da escravidão que podiam ocupar ofícios
como os de marinheiro e pescadores. O quarto e último grupo era composto por escravos
(Mattoso apud Pinheiro, 2002).
A estratificação social é acompanhada por uma gradação por cores: a classe alta é
composta por brancos, brasileiros ou estrangeiros; a classe média é composta, em grande
maioria, também por brancos, mas podem ser encontrados alguns mulatos e caboclos; na
classe baixa poucos brancos, a maioria formada por mulatos e caboclos; por fim entre os
escravos não há nenhum branco (Pinheiro, 2002).
4.3 “Miscigenação” um problema ou uma resposta à singularidade Brasileira.
Um tema que merece atenção na análise do conteúdo ideológico do romance O
Feiticeiro é a abordagem da feição mestiça da sociedade baiana, tanto em termos culturais
quanto em termos hereditários. Cabe destacar que a constituição racial da sociedade brasileira
era uma questão problemática para os intelectuais do final do século XIX. Autores como
Silvio Romero e Nina Rodrigues buscavam constituir uma identidade mestiça nacional que
não incorresse em uma avaliação negativa da nossa cultura, mesmo fortemente influenciados
por teorias européias que prescreviam a inferioridade racial dos povos ameríndios e africanos
frente às sociedades caucasianas (Ventura, 1991). Segundo Schwarcz (1991), a miscigenação
era um tema polêmico para os intelectuais, fortemente influenciados pelo racismo científico
de autores europeus como o diplomata e escritor francês Gobineau autor de Ensaio sobre a
desigualdade das raças humanas. A noção de raça é apropriada pelos autores nacionais como
um suporte para entender as desigualdades sociais, e como linguagem mediante a qual se
constitui uma dada leitura da identidade nacional. Particularmente, a constatação de que o
Brasil era uma nação mestiça gerava certos dilemas para os nossos cientistas, tendo em vista
que as teorias deterministas preconizavam a degeneração de sociedades compostas por
indivíduos provenientes do cruzamento de raças heterogêneas.
Por outro lado, o aspecto mestiço da sociedade brasileira é também identificado
como elemento que constitui a singularidade nacional. A miscigenação fornece um critério
importante que permite aglutinar as singularidades regionais em um único signo nacional. A
ambigüidade no tratamento dessa questão pode ser percebida no enfoque de Marques sobre a
sociedade baiana. A personagem Salustiano, a sua namorada Pomba e a mãe desta, Josefa,
formam um núcleo de classe média mestiça que dispõe de um intercâmbio com o núcleo
principal da trama, composto por uma família de classe média branca, encabeçada pelo
pequeno comerciante, dono de armarinho, Paulo Boto.
Salustiano é funcionário público, um escriturário, assim como o personagem
célebre de Lima Barreto M. J. Gonzaga de Sá, sem parentes nem aderentes, sem proteção e
quase sem dinheiro queixa-se da falta de oportunidades de ascensão. Cabe ressaltar que na
trajetória de vários escritores da primeira República, incluindo o próprio Xavier Marques e o
citado Lima Barreto, destaca-se a passagem (ou mesmo permanência) no serviço público.
Como referência à própria vivência dos autores é comum a presença de personagens
semelhantes a Salustiano, oprimidos pela falta de perspectiva oferecida pelo trabalho como
escrivão. Uma ambição que fazia fagulhar o espírito de Salustiano era o matrimônio com
Pomba, esplendida trigueira filha da despenseira Josefa que trabalhava no internato de
meninas.
(...) O espírito, sem embaraço de alimentar a fagulha de uma pequena ambição,
abatia-se a contemplar as roupas no fio e os botins deformados, a pensar nas
desigualdades e injustiças da terra, que a uns elevava sem lhes perguntar pelas
virtudes, enquanto a outros humilhava à revelia de todo merecimento (Marques,
1975 p. 3).
Salustiano voltava com apetite para o seu jantar de solteiro, trazendo a certeza de
que na madrugada seguinte se acharia em companhia daquela por amor de quem
acariciava uma pequena aspiração, aquela que resumia o seu único ideal numa vida
obscura e erma de empregado público, sem parentes nem aderentes, sem proteção e
quase sem dinheiro (Marques, 1975 p. 5).
um aspecto da descrição das personagens Salustiano, Josefa e Pomba que
merece ser abordado, o emprego de adjetivos identificadores da sua constituição fenotípica
que reportam à cor da pele ou que identificam a sua ascendência. Termos como mameluco,
que indica o cruzamento entre índios e brancos, ou ainda parda, que descreve cor da pele de
um indivíduo sem raça propriamente definida, e trigueira, morena, da cor do trigo maduro,
aludem à mestiçagem dos personagens.
Então ele, apressando-se afim de ver a procissão, seguiu para casa, o seu tipo
aparente de mameluco, baixo, encorpado, imberbe, abotoado no rendigote do
serviço público, dentro d’alma o antegosto do prazo dado em lugar propício às
liberdades do namoro (Marques, 1975 p.5)
Não havia certeza, mas dizia-se que entre a parda Josefa e o finado João Rodrigues
se mantiveram em tempo remoto certas relações muito íntimas (Marques, 1975 p.
14)
Seguia a dois passos dele a esplêndida trigueira, cujo andar por si o embalava
com um ritmo volutuoso (Marques, 1975 p.8). (grifo nosso)
Os adjetivos invocando colorações da pele, que aparecem como identificações dos
personagens, por vezes soam até como epítetos ou nomes de guerra como a parda Josefa”.
Esse aspecto da narrativa do autor, no que se refere à descrição dos personagens, sugere a
centralidade que a cor da pele adquire como definidor de reconhecimento ou posição social. A
cor escura, em suas variadas gradações, identifica um determinado pertencimento social.Ou
seja, a característica racial dos personagens marca a posição que eles ocupam na hierarquia
social, indicando o valor simbólico da cor da pele como fator de distinção. É interessante
notar que Thales de Azevedo (1966 & 1996) em seus estudos sobre os grupos de cor em
Salvador, descreve a raça como um conceito biossocial de cor por representar um fator de
distinção ou status que se entrelaça a outros atributos sociais, como a situação de classe, para
estabelecer a posição hierárquica de um indivíduo.
Thales de Azevedo (1996) se apóia nas categorias de classe e de grupos de status
para analisar a estratificação dos grupos de cor na Bahia. Para Tonnies e Weber as classes se
estratificam de acordo com suas relações com o produto e a aquisição de bens, e os grupos de
status se apóiam em padrões de consumo representados por especiais estilos de vida. O autor
persegue a hipótese de que a sociedade baiana da primeira metade do século XX não concluiu
a passagem de uma sociedade de status, relacionada ao Brasil colonial, para uma sociedade de
classes, que representaria o Brasil moderno. A associação entre status e cor permanece
incólume. Isso reflete na definição do que é ser branco e ser negro em Salvador.
De acordo com as entrevistas feitas por Azevedo (1996) por volta da década de 50
do século XX com soteropolitanos de diversas classes sociais, os brancos eram identificados
como os indivíduos de fenótipo caucasóide, pessoas de pele mais alva, com olhos claros,
cabelos claros e finos. Podiam ser chamados de brancos finos quando não apresentavam
indícios de mistura com pessoas de cor. O termo branco era também utilizado para identificar
as pessoas ricas ou de status elevado, independente da sua aparência física. Daí a idéia de que
o negro podia branquear-se à medida que ascendia economicamente e adquiria os estilos
comportamentais dos grupos dominantes.
Pretos eram definidos como os indivíduos que portavam características físicas do
negro africano, especificamente, pele escura, cabelo encarapinhado, nariz chato e os lábios
espessos. A palavra negro era muitas vezes considerada uma indelicadeza, preferindo-se
outras terminologias ligadas diretamente à cor, como preto ou escuro, que o termo negro
tem a função de designar um grupo de status. Na época da colônia, esse termo qualificava
todos os escravos independente de sua cor. No Brasil moderno, o termo negro passou a
designar as classes baixas dos trabalhadores braçais que não tinham acesso à cultura e à
instrução intelectual. Quando o negro ascendia socialmente, a etiqueta sugeria que fossem
empregados os termos moreno ou escuro para identificá-lo.
As observações de Azevedo permitem discernir um aspecto interessante referente
às relações sociais entre os diferentes grupos de cor da cidade de Salvador. Em primeiro lugar,
a idéia de que os termos negro e branco indicam mais do que a cor de um indivíduo ou a sua
origem étnica, mas o pertencimento a determinados grupos de status. Negro é o termo que
identifica o grupo social composto por escravos, durante o período escravista. Posteriormente,
o termo passou a identificar os indivíduos pertencentes à camada proletária sem acesso à
instrução formal. Por seu turno, o termo branco identifica pessoas de cor clara, sendo também
atribuídos aos integrantes da classe alta portadores da educação formal e de uma cultura
“civilizada”.
Cabe destacar que por identificarem o pertencimento de um indivíduo a
determinado grupo de status, a cor da pele e o fenótipo racial constituem fatores de distinção,
que se entrelaçam a outros atributos para informar a posição social de um indivíduo, por essa
razão quando um negro ascendia, ou adquiria certas honrarias como a aquisição de um
estilo de vida tido como civilizado ele não era mais identificado como um negro, devendo
ser chamado de mulato ou moreno claro. Esse aspecto sugere a noção de embranquecimento,
segundo a qual um indivíduo de ascendência africana poderia se embranquecer à medida que
adquirisse um padrão e um estilo de vida identificados com a elite branca. Por outro lado, o
embranquecimento consistia também na prática de indivíduos de cor escura que buscavam se
relacionar com indivíduos de cor clara, para gerarem descendentes mestiços de cor mais clara
que as de seus ancestrais africanos.
Essa prática é também abordada na narrativa de Xavier Marques, lembrando
sempre que o estilo do autor se aproxima do “romance de costumes” que visa descrever a
sociedade de seu tempo. No trecho abaixo, que trata do suposto envolvimento da parda
Josefa com o finado Rodrigues, pai de Eulália e Branca, sogro de Paulo Boto, o autor fala da
prática da miscigenação como uma maneira de ascensão para os afro-descendentes. A prática
de limpar a barriga, purificar a geração ilustra a ideologia do embranquecimento vigente na
época, e revela certos vínculos familiares constituídos por relações bastardas do dono da casa.
Uma prática que é indicada por Gilberto Freyre (Freyre, 1999) como característica do
patriarcalismo escravista, que concorria para criar agregados ao núcleo familiar dos senhores
de engenho.
Não havia certeza, mas dizia-se que entre a parda Josefa e o finado João Rodrigues
se mantiveram em tempo remoto certas relações muito íntimas, de que a Pomba teria
sido o fruto. O certo é que tanto Josefa quanto a “cabra” parteira, sua mãe, sempre se
gabaram e fizeram timbre de “limpar a geração”. A convivência no casebre à rua da
gameleira com a negraria de variada mestiçagem, na comunhão das crenças no
feitiço, nos santos, em mães e pais de terreiros, não impediu a parteira e a filha que
cuidassem da purificação dos descendentes. Verdade ou mera invenção a história de
Josefa, teúda e manteúda do negociante, o que se via de longos anos era essa
intimidade dela e da filha em casa da viúva Rodrigues (Marques, 1975 p.14).
O caráter conflituoso que a aceitação da miscigenação como singularidade da
nação Brasileira adquire no contexto intelectual do período, exprime-se na forma como
Xavier Marques aborda as religiões africanas, especificamente o Candombé. Por um lado, fica
claro que para a cultura da classe média não era de bom tom o vínculo ou a crença nos santos
africanos, no entanto, a família de Paulo Boto acaba fazendo uso dos serviços de Elesbão, pai-
de-santo de um terreiro no Matatú. Além disso, o próprio Paulo Boto, chefe da família, possui
um cargo no terreiro como ogâ. O conflito reaparece no “núcleo mestiço” da trama, Pomba
tem uma ligação familiar com o Candomblé, cujos fundamentos religiosos foram transmitidos
por sua avó, mas as falas e a atitude dessa personagem indicam que ela pretende esconder a
sua crença, consentindo em uma avaliação negativa da mesma.
No trecho abaixo destacado, a menção a uma “árvore sagrada” (gameleira) faz
Pomba afirmar o seu envolvimento com as religiões africanas, uma leviandade, segundo o
narrador, que ela deixa escapar. Dois aspectos merecem destaque, um é o entrelaçamento
entre cultura e raça, uma vez que o conhecimento de Pomba reforça a sua afro-descendência,
que no entanto está de antemão indicada no seu fenótipo afro-descendente, a esplêndida
trigueira. Outro elemento interessante é o tratamento dado à prática das religiões africanas,
tida como um mau hábito, leviandade, segundo a moral da classe média representada pelo
núcleo formado pela família de Paulo Boto.
- Para onde vamos?
- Vamos para a sombra da mangueira que fica junto de uma árvore sagrada.
Isso de árvore santa fez nascer um vago pensamento no espírito de Pomba. Nem ela
pôde dominar-se que não dissesse baixinho, ao lado de Salustiano.
- É alguma gameleira...
- Sim? acudiu ele, num tom admirativo, que valia por dizer: “Como sabe? Onde
aprendeu isso?” Ela disfarçou como melhor gesto essa leviandade que traia suas
origens africanas (Marques, 1975 p. 10).
A hipocrisia de Pomba, se tomarmos essa como um aspecto da sociedade
soteropolitana que o autor pretendia ressaltar, sugere que a aceitação da miscigenação como
singularidade nacional não implicava em uma avaliação igualitária quanto às diferentes
contribuições dos três grupos étnicos formadores da sociedade brasileira, a cultura indígena, a
cultura africana e a cultura portuguesa, européia. Se por um lado, a cultura ameríndia e negra
são admitidas como formadores da sociedade brasileira, por outro elas são avaliadas como
inferiores à cultura européia. As hipóteses levantadas pelos estudos de Azevedo (1966 &
1996) conduzem a destacar que a aquisição de uma visão de mundo, afinada à perspectiva das
classes dominantes, constituía-se em um fator de distinção e status. Por essa razão, para ser
aceito na alta roda convinha esconder os vínculos com a religião africana, e inteirar-se dos
valores difundidos pela classe dominante, afinados com o paradigma europeu.
Um dos capítulos do livro O Feiticeiro é dedicado à narrativa de uma cerimônia
do Candomblé. Paulo Boto aproveita a visita da família ao Matatú, por ocasião do veraneio no
campo, para comparecer a uma cerimônia no terreiro do pai Elesbão, no qual Boto ocupava o
cargo de ogã
24
. Nesse dia se sagraria a iniciação de Belmira, uma iaô
25
que recebia a proteção
de Paulo Boto na qualidade de ogã, contribuindo este com as despesas do seu ritual de
iniciação. Belmira reaparece em outra parte do romance para retribuir os favores do seu
protetor encomendando-lhe um “trabalho”, para abrir o caminho à prosperidade dos seus
negócios no armarinho. O autor comenta a presença de outros brancos no ritual.
Com efeito entre os convivas da festa que apenas começava, não eram poucos os
homens de cor limpa e cabelos lisos que se agitavam em volta da casa, engravatados,
metidos em lustrosos fatos engomados, com ares complacentes, quandoo de todo
sérios. Paulo conheceu-os e falou a mais de um. Eram ogãs como ele, mas ainda em
pleno exercício das suas funções. (Marques 1975 p. 34)
A essa introdução segue uma descrição detalhada dos procedimentos litúrgicos: a
identificação do orixá para o qual é dirigido a festa mediante a observação das cores
predominantes entre as vestimentas das sacerdotisas presentes, as contas que discernem esse
ou aquele orixá, etc.
Pela cor das vestes e dos enfeites que predominavam na roda, saia branca e contas
amarelas viu Paulo que era Oxum o santo do dia, a divina Oxum, esposa de
Xangô, do nio que troveja nas nuvens e lança as pedras de raio, partículas de sua
divindade. (Marques, 1975 p.34)
O autor mostra grande interesse em descrever o ritual, vê-se menção até mesmo
aos mitos dos Orixás e às suas personalidades. Os procedimentos religiosos são descritos: a
chegada e a arrumação dos músicos, a formação da roda de iniciadas que dançam ao som dos
24
Cargo concedido a alguns adeptos do Candomblé que assumem uma função de “protetores” do culto, ou de
responsáveis pelas relações públicas do terreiro ou “casa de santo”.
25
Iaô ou iyawóòrisà: mulher do orixá. Termo empregado tanto para homens quanto para mulheres que alude à
relação de dependência entre o iniciado e os “santos” do Candomblé, quando este é escolhido como veículo para
receber o orixá durante os rituais de transe e incorporação (Verger, 1981).
atabaques, o despacho para Exu, oferenda obrigatória na abertura de qualquer ritual do
Candomblé, o momento em que sai da camarinha o líder do terreiro Elesbão, o cumprimento
deste aos ogãs, a saída da iaô, o momento em que esta é tomada pelo transe do orixá, etc.
Cabe destacar que obras de outros autores do período se dedicam também à descrição de
rituais afro-brasileiros, dentre elas Os Africanos no Brasil de Nina Rodrigues e As religiões
do Rio de João do Rio (Paulo Barreto). Essas obras revelam um interesse jornalístico por uma
cultura considerada marginal, pertencente às classes sociais mais baixas e tidas como
incivilizadas.
O início do século XX no Brasil coincide com o momento de formação do Estado
republicano, no qual a releitura da nacionalidade após a abolição da escravidão e o fim do
Império – é motivo de inquietação para a elite pensante. O tema da integração nacional é uma
questão emergente, que tem como cânone literário a obra Os Sertões de Euclides da Cunha.
Nessa obra o autor expõe o conflito despertado pelo movimento civilizatório, que se exprime
no descompasso entre o Brasil urbanizado do litoral e o abandono do Brasil rural,
representado pelo Sertão (Galvão, 2001). O estigma da mestiçagem reaparece, mais uma vez,
na aporia que autor expõe acerca da possibilidade de integração das sub-raças sertanejas na
formação do país moderno. O próprio autor responde a essa dúvida, concluindo pelo provável
desaparecimento desse tipo racial “o sertanejo” frente ao avanço da civilização.
A abordagem de Xavier Marques reproduz essa inquietação na forma de um texto
polissêmico no qual se entrelaçam discursos contraditórios. Nas falas da personagem Paulo
Boto o Candomblé figura como uma religião tão “evoluída” quanto o catolicismo. A
personagem argumenta que em analogia à oferta de velas para os santos católicos, os
africanos oferecem comida aos seus orixás, no Candomblé. Através das falas dessa
personagem o autor desfaz a visão estigmatizada a respeito dos procedimentos litúrgicos do
Candomblé, em especial, o transe e os “despachos”
26
para os orixás – oferendas que contém as
comidas de cada santo e outros objetos que a eles agradam, como flores ou charutos. No
trecho abaixo destacado, Boto tenta desfazer a idéia preconcebida do seu amigo Salustiano
que toma por um feitiço, uma oferenda dirigida a um tipo de orixá que tem como morada
terrena uma Gameleira, a árvore sagrada mencionada em uma citação acima.
- Encontrei agora um feitiço, debaixo daquela árvore.
Paulo sorriu da ignorância do amigo. (...)
- Está muito enganado disse Aquilo que viste não é “coisa feita”, é uma
oferenda, é um sacrifício aos santos dos nossos pretos africanos e crioulos. Aquela
árvore é um altar se não mesmo uma divindade... (Marques, 1975 p. 17)
Porém, ao mesmo tempo que o discurso de Boto contraria o estigma relacionado
às religiões afro-brasileiras, a obra do autor contém outros índices que coadunam com o
discurso corrente, a começar pelo título “O Feiticeiro” que vai ao encontro do ponto de vista
segundo o qual o Candomblé não pode ser definido como uma Religião, mas como seita,
bruxaria, feitiçaria ou superstição. Vale lembrar, todavia, que esse título foi adicionado à
obra por ocasião da sua segunda edição em 1922, e que antes intitulava-se Boto e cia. Esse
título que foi inicialmente destinado à obra faz alusão ao estabelecimento comercial de Paulo
Boto, indicando que o foco do romance seria a vida da família de classe dia chefiada pelo
comerciante. Teria o autor mudado de perspectiva para satisfazer a um discurso hegemônico
dos literatos da Academia Brasileira de Letras, seguindo a mesma influência que o fizera
adquirir um tom mais moderado e menos afinado à crítica naturalista?
- Não se escandalize pediu-lhe Boto. Houve tempo em que eu , não tendo muito
o que fazer, para divertir-me, vinha a essas roças caçar passarinhos, e inteirava-me
destes segredos com negros que tinham perto daqui um terreiro.(...) Eis porque
afirmo que aquela árvore pode muito bem ser a encarnação de um espírito, de uma
divindade, a quem os negros ofertam comidas e bebidas assim como nós oferecemos
cera, flores e incenso aos santos do nosso oratório. (Marques, 1975 p.17)
O respeito e aceitação às religiões africanas que adquire voz na narrativa do autor
através das falas de Boto contrastam também com a utilização de adjetivos que carregam um
26
“Despacho”, “trabalho” ou “comida de santo” são algumas expressões utilizadas para designar a oferenda
atribuída a um orixá.
tom pejorativo, indicando certo etnocentrismo das elites brancas, sendo a expressão de uma
visão negativa da religião africana quando confrontada com os padrões ocidentais de
civilização e modernidade. Buscando fornecer ao leitor uma imagem pictórica o autor utiliza
expressões como anjo das trevas e êxtase diabólico referindo-se á filha de santo em
possessão.
A pouco e pouco faz-se um anjo das trevas. Na cabeça uma réstea de luz do poente,
traspassando o verdor da latada, vem iluminar-lhe o êxtase diabólico. (Marques,
1975 p.38)
Sem lhes dar mais tempo nem repouso, parte a esgalgada filha do terreiro no balanço
exaustivo, aos golpes ferinos do gã e ao tunc-tunc dos atabaques, em volta dos quais
revolucionam cabaças. Reaparece a tremelga viscosa, convulsiva, a tresfolegar. Daí
a pouco não é figura humana; é uma harpia, uma górgona, perseguida por um
dardo secreto. Freme e tressua, rumina e devora com as ventas túmidas o ar saturado
de catinga e bafos de álcool. Braços e tronco, pernas e cabeça agitam-se-lhe em
trepidações de calafrio. Reergue-se e oscila, as mãos abertas, os dedos hirtos, como
palpando uma sombra. As contrações do rosto, a palidez do beiço, o esgazear dos
olhos denunciam demasiado sofrimento. É uma angústia contagiosa, de que
parece sofrer todo o terreiro. Mas essa mesma agonia exalta ainda mais as irmãs da
roda e dá-lhes a ânsia mórbida do paroxismo e da possessão. Suas vistas coruscantes
parecem invejar a ditosa dor da companheira. (Marques, 1975 p.39)
O caráter etnocêntrico presente na descrição da cerimônia do candomblé é
sugerido pela perspectiva do narrador. A voz do enunciador pontua um distanciamento ante a
cena descrita, como quem narra de fora, constituindo-se em um ponto de vista forasteiro sem
envolvimento com os eventos descritos e sem pertencimento àquela comunidade. É curioso
notar que na descrição dessa cerimônia a vinculação do autor ao estilo naturalista comparece
de maneira mais veemente, tanto no tom sensacionalista, quanto na ênfase colocada em
aspectos fisiológicos e sensualistas da cena. A atenção voltada para as qualidades sensíveis
como os odores que circulam pelo local e a visível viscosidade da pele, contraída em esforço
muscular, assim como a menção ás secreções como suores e salivas, e a regularidade com que
se descreve o ritmo da respiração da filha-de-santo em frêmitos ofegantes, parece indicar que
o evento descrito se aproxima a um fenômeno patológico, como um ataque epilético ou crise
histérica que atinge o seu auge (paroxismo). A compreensão da alteridade ganha sentido na
construção do exótico, exterior, cuja humanidade desafia os padrões familiares se não os
ultrapassa, pois que o narrador diz daí a pouco não é figura humana e busca imagens
mitológicas como harpia e górgona para descrever esse outro.
Mais um ponto concernente ao tratamento concedido á religiosidade africana
como componente da vida soteropolitana é a abordagem do autor referente à eficácia dos
trabalhos ou feitiços do candomblé. O narrador se sente no dever moral de desmistificar o
efeito “mágico” dos feitiços, através de uma visão materialista. Nesse sentido segundo as falas
de algumas personagens, a eficácia de um trabalho, que visa levar o “enfeitiçado” ao
infortúnio, atinge o seu propósito através da sugestão. A vítima é sugestionada ao saber-se
alvo de um feitiço. A impressão provocada por tal consciência cria um forte transtorno
psicológico, principalmente nos indivíduos crédulos, tornando-os suscetíveis ao malogro.
Enquanto esperávamos, de longe, à porta da casinha, ouvíamos aquele batuque
interminável, lá nas brenhas, no meio de uma grande solidão... Quantos pensamentos
me assombraram! Vultos de negros feiticeiros, negras alucinadas, loucas, vinham
atormentar-me e davam-me vontade de fugir dali mais que depressa. (...) Tive medo
daqueles roncos que saíam do mato. Imaginei que os negros e as negras do terreiro
vinham contra nós, que era um levante, que Paulo, Salustiano e você não voltariam
mais daquela baixada...
- Imaginação para o horrível... Nervoso... Efeitos dessas histórias tétricas que nos
contam desde a infância levantes de malês e hauçás, guerras de quilombos,
malefícios de bruxas... Nós todos vivemos mais ou menos assombrados por esses
espectros, pelo negro e o seu feitiço. (Marques, 1975 p. 71-72)
Nesse trecho o autor indica a influência da religião africana no imaginário da
classe média soteropolitana. Sob a voz da personagem Amâncio, leva o leitor a entender que
os temores e anseios suscitados pelos efeitos dos feitiços de Pais e Mães de Santo, não passam
de superstições de uma cultura tradicional que a visão de mundo moderna desmascara com o
seu olhar científico e positivo.
Por detrás do enfeitiçador está o mistério: esse inimigo invisível se acastela no
segredo mais resistente do mundo. É este o poder dos feiticeiros, de quem muitos
riem,mas todos se temem. É por isso que eu digo: nós somos governados pelo
feiticeiro. Quantas vidas não giram por si sobre esse eixo! Quantas almas,
submissas, não vivem debaixo dessa mão de ferro...(Marques, 1975 p. 71-72)
Os efeitos do feitiço são suscitados pela sugestão que atua sobre o enfeitiçado,
fazendo-o sentir medo, repulsa, ódio, sentimentos que podem levar as pessoas mais frágeis à
loucura. Nesse sentido, o autor se encarrega de um papel moral e civilizador esclarecendo os
leitores acerca das armadilhas da superstição. O tema da auto-sugestão é transmitido de
maneira mais explícita nos trechos abaixo, ilustrado pelo delírio de perseguição de que sofre
Eulália e pelo terror instintivo da coisa feita que atinge até mesmo o prudente Paulo Boto,
que este efeito atua de maneira espontânea.
(...) Como de outra coisa não falavam, havia muito, com tanta insistência, ela sabia
de sobra que uma coisa feita podia levar ao delírio de perseguição. Qualquer
acidente importuno anunciaria daí por diante outros mais graves e mais desgraçados.
Lali vivia em um mundo fantástico, assobrado de duendes e bruxedos. Andava à
borda de um precipício. Por que meio afastá-la desse perigo?(Marques, 1975
p.180)
Algumas penas pretas ainda esvoaçavam pelo largo, deixadas pelos varredores.
Paulo seguia para o comércio. Quanto mais refletia, mais irritado se punha contra a
autora do desacato. A intenção malfazeja de D. Tomásia provocava-lhe cólera. Fosse
qual fosse a eficácia ou ineficácia dos seus feitiços, a intenção danosa, o pensamento
de causar-lhe mal, a ele e a sua família, era positivo.
Demais, se bem o calasse, ele não escapava de todo ao terror instintivo da coisa
feita. A auto-sugestão do atraso, da decadência, da mofina, conseqüente ao gris-gris,
operava-se-lhe espontaneamente. A pedrinha ficava-lhe no sapato. (Marques, 1975
p.150)
A influência do pai-de-santo na vida das famílias de classe média é um tema que o
autor investiga; narrador e personagens comentam a influência do pai de santo Elesbão e os
serviços por ele prestados a diversas pessoas da “boa sociedade”, Eulália se questiona Será
verdade que nós todos vivemos governados pelo feiticeiro?
A despenseira foi direto à sala do fundo. Sua presença era sempre mais interessante,
(...). Com ela vinha a sombra poderosa de Elesbão, a que todos ali viviam
abrigados, posto que nunca lhe pronunciassem o nome em comum. Com ela chegava
o espírito engenhoso da Cabala amorosa, fértil em surpresas, represálias,
estratagemas, incubando esperanças e vitórias. (Marques, 1975 p. 181)
Quando minha mãe morava na rua da Gameleira com a minha finada avó, ouvia e
via tudo que se passava entre as tias da Costa. Havia uma que tinha um quartinho
com seus santos, e entrava muita gente boa... Naquele domingo, na roça,
quando nós ouvíamos de longe o batiquê, eu me lembrava do que mamãe conta.
Eu já sabia quem era o pai daquele terreiro. Chama-se Elesbão, mora na rua do
Alvo. É respeitado... A casa vive cheia, quer de noite, quer de dia. E não é gente
ruim que o procura; são brancas, gente de qualidade, e até mulheres ricas... acredita-
me?(Marques, 1975 p.98)
Embora contenha um tom crítico quanto à influência do pai-de-santo Elesbão na
vida das famílias de classe média e alta, envolvidas na disputa por um casamento com
Amâncio Néri, o filho do homem mais rico da Ajuda, a narrativa acaba dotando de um caráter
pitoresco, a imersão da cabala amorosa no intercurso do flerte e do namoro que antecede o
casamento pequeno burguês, no cenário imaginoso da Salvador do II Império, com uma
cultura e um modo de vida originais pelo seu regionalismo. Dessa maneira, o tom regionalista
acrescenta ao tema do colóquio amoroso, clichê dos romances de costume, um atrativo sui
generis, capaz de projetar o autor baiano no métier acadêmico, como destaque entre autores
provincianos. Como indica a observação do crítico literário José Veríssimo:
O sr. Xavier Marques é, no romance, talvez o escritor mais distinto entre os
escritores provincianos, e mesmo um dos mais distintos entre os escritores do gênero
no Brasil. (Veríssimo apud Salles, 1977)
Como foi visto, a abordagem da cultura africana e da miscigenação, tomados
como aspectos definidores da identidade local, comporta contradições que se exprimem na
polissemia discursiva do texto, como sugere a comparação entre os pontos de vista
representados pelas falas da personagem Paulo Boto e pelas emissões do narrador. Sob as
falas de Boto o Candomblé ganha status de religião, equiparando-se com o catolicismo, por
outro lado, as descrições do narrador representam um posicionamento distanciado e
etnocêntrico, que assimila o candomblé e suas cerimônias através do prisma do exotismo que
desafia os padrões familiares e tangencia o patológico.
Pode-se conceber essa contradição como a expressão do dilema enfrentado pelos
intelectuais brasileiros quanto à aceitação das origens mestiças nacionais. O nacional é sempre
confrontado com o padrão estrangeiro europeu que quando apropriado pela opinião publica
constituí um filtro que ora suprime ora abarca aspectos “impuros” da nossa origem
miscigenada e tropical. Ou seja, pode-se considerar, de acordo com as reflexões de Eisenstadt
(2001), que as ambigüidades explicitadas pelo texto, quanto à maneira de tratar a contribuição
da cultura africana na identidade nacional, integram o processo de reconstrução contínua de
esquemas culturais, a que deu origem a expansão do modelo europeu de modernidade. Este ao
ser assimilado pelas culturas “não ocidentais” ocasionou a elaboração de outros arranjos
modernos possíveis, construídos através do conflito e do casamento entre elementos do
padrão europeu e elementos da vivência histórica tradicional de cada país.
Em se tratando da construção e reconstrução da identidade baiana, a questão
torna-se ainda mais sinuosa. Mesmo investido de um pano de fundo modernizador, orientado
por um modelo de civilização à européia, Xavier Marques capta certos aspectos do modo de
vida da Bahia colonial como elementos pictóricos que identificam a originalidade regional
baiana, e que por isso não são de todo tomados como aspectos indesejáveis, contrários à
civilização. Nesse período a Bahia começaria a se constituir no imaginário nacional como
região manancial dos aspectos coloniais e afro-brasileiros, que constituem a identidade
nacional.
4.4 Cultura popular versus cultura civilizada.
O romance O Feiticeiro foi escrito em 1897, durante o mandato do primeiro
presidente civil da República brasileira, Prudente de Morais, por outro lado, o seu enredo é
ambientado no final do império de D. Pedro II, por volta de 1870. Nesse sentido, a narrativa
do livro está imbuída de um olhar crítico sobre o passado. Embora apenas três décadas
separem o período no qual é ambientada a trama do momento da criação ficcional do artista,
as mudanças sociais que separam um e outro são contundentes. A abolição da escravatura
(1888) e a proclamação da República (1889) foram acontecimentos que abriram um horizonte
modernizador para as elites nacionais.
Esses dois momentos convergem com o que Walter Benjamin, nos escritos sobre
Paris do séc. XIX, descreve como a passagem entre uma primeira e uma segunda
modernidade. Segundo Renato Ortiz (2000), a data do enredo de Paris capital do séc. XIX”,
uma das obras canônicas de Benjamim, seria aproximadamente o período entre 1828 e 1913.
No âmbito desse período é possível distinguir a presença de duas “modernidades” distintas.
Um primeiro momento é caracterizado pela utilização do transporte público de tração animal,
pela iluminação a gás, pelas máquinas a vapor, e no que diz respeito à arquitetura urbana, pela
utilização de passagens ou galerias. O segundo momento corresponderia à dita segunda
revolução industrial, e se caracteriza pela descoberta e disseminação da energia elétrica,
principalmente na iluminação pública, pelos telégrafos sem fio, e urbanisticamente, pelas
grandes lojas e pelas grandes avenidas abertas pelo barão de Haussmann, durante a regência
de Napoleão III entre 1853-1870.
Curiosamente, essa nuança do período moderno, cuja ênfase é antes qualitativa
que cronológica, é marcada no Brasil por fenômenos de ordem política. Os avanços
tecnológicos associados à “primeira modernidade” em Benjamin, como a iluminação a gás e o
uso das máquinas a vapor, estão articulados à monarquia de D. Pedro II. O Império fez
grandes avanços nos transportes através das linhas férreas, e da navegação a vapor, que era
utilizada tanto nos rios brasileiros quanto na circulação marítima nos portos. Para o setor de
comunicação foi instaurada uma rede telegráfica de 11.000 Km que ligava as principais
cidades do país. No setor industrial, a manufatura têxtil foi a que mais se desenvolveu, no fim
do império somava 100 estabelecimentos de monta (Prado J. 1961).
Por sua vez, as inovações que correspondem à segunda revolução industrial
ficaram conhecidas como feitos da República, a exemplo da disseminação da energia elétrica
nos ambientes urbanos, que teve grande importância tanto na iluminação quanto no transporte
público, uma vez que o bonde elétrico constituiu um dos principais símbolos de urbanidade.
Por fim, foi também durante a primeira República que o urbanismo de Haussmann, cuja
principal característica era a construção de grandes avenidas, acabou por influenciar reformas
urbanas nas cidades do país. Por essa razão a belle époque brasileira é definida pelo
brasilianista Jefferey Needell (1993) como um processo de afrancesamento do modo de vida
das principais cidades brasileiras, em especial, da cidade do Rio de janeiro, Capital Federal do
país. Tal afrancesamento estava presente tanto na recriação das fachadas arquitetônicas e na
mudança do traçado urbano, quanto no estabelecimento de novos hábitos e na divulgação de
novos gostos entre a elite.
É sob esse pano de fundo que podemos compreender em Xavier Marques a
descrição e avaliação da vida urbana de Salvador, seja em seu aspecto físico, arquitetônico e
urbanístico, seja em seu aspecto humano, como espaço de coexistência onde ocorrem
interações sociais. Ao se reportar a um passado recente, o período Imperial, o autor projeta
nesse cenário uma imagem negativa da cidade, que se opõe ao padrão de civilidade almejado,
segundo uma perspectiva progressista. Como foi visto, o desenrolar da trama do romance O
Feiticeiro é entremeado por eventos festivos que compõem o calendário soteropolitano, as
festas populares consomem boa parte das descrições presentes no romance, e simbolizam a
passagem do tempo. A história começa com a ida da classe média aos subúrbios, durante o
veraneio, enveredando pelos festivos natalinos, depois a festa dos Reis, o carnaval, o Ano
Bom, a comemoração do Dois de Julho (data da independência da Bahia), os oitavários
estrondosos do Bonfim e o retorno dos dias de verão, e das idas á roça para piqueniques.
A cidade preparava-se para grandes folguedos. Fora-se a Conceição; ai vinha o
Natal, Ano Bom, Epifania, Bom-fim. (Marques, 1975 p.61)
O destaque concedido às festas populares propõe uma intenção em retratar
costumes e usanças de uma época em que o país ainda não tinha sido tocado pelo processo de
civilização. Pressupunha-se que muitos desses costumes se esvairiam com a chegada da
civilização, ou seja com a implementação de um projeto modernizador, levado adiante pelo
governo Republicano. A mesma proposta é sugerida pela interpretação de uma passagem do
texto da apresentação do livro Os Sertões (primeira edição 1902), na qual E. Cunha expõe a
sua preocupação em registrar o modo de vida do homem sertanejo, possivelmente fadado ao
desaparecimento pelo contato com o “Brasil civilizado”.
A civilização avançará nos Sertões impelida por essa implacável “força motriz da
História” que Gumplowiez, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no
esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes. (Cunha, 1954 nota
preliminar)
Nesse sentido, a abordagem de Xavier Marques dirigida aos festejos populares e
as suas manifestações culturais permite destacar os aspectos de uma crítica que tem como
horizonte a construção seletiva de um modelo de sociabilidade, considerado moderno. Uma
das principais referências que informam à construção de uma noção de modernidade é a
oposição ao modo de vida colonial escravista. O presente estudo pretende destacar que os
padrões seletivos da narrativa ou seja os filtros que compõem o processo da memória, que
pressupõe a supressão de certos elementos em detrimento da permanência de outros estaria
fundamentalmente baseado na proposta de um processo modernizador, capaz de equiparar o
país e seu recente Estado Republicano às nações européias.
Por essa razão os acontecimentos públicos, narrados pela trama de O Feiticeiro,
especialmente os que reportam a um modo de vida da colônia, ainda presente no final do
Império de D. Pedro II por volta de 1870, período histórico no qual está ambientada a trama,
são narrados sob o olhar progressista dos intelectuais da primeira República. Alguns
comentários do autor permitem compreender esses eventos como pertencentes a uma cultura
em extinção que vai sendo suplantada pelo processo de modernização, pelo qual passa o país.
Duas passagens referentes ao carnaval em Salvador parecem expressar, de maneira ilustrativa,
essa perspectiva progressista, em voga entre as elites dirigentes e entres os intelectuais
pertencentes à Academia Brasileira de Letras, ou aspirantes a uma cadeira entre os “imortais”.
Uma delas comenta a substituição da prática do entrudo pelas comemorações do carnaval à
européia, com a utilização das máscaras e fantasias em estilo veneziano.
A cidade mudava de roupa e fazia luxo em vestir-se à moda, para celebrar a
passagem, ou antes, a morte do entrudo. Franca hostilidade declarava-se aos jogos
d’água. As autoridades empenhavam-se à porfia em suprimir os banhos anacrônicos
e funestos; ensaiavam rasgar ao povo os horizontes do verdadeiro Carnaval, à
européia, mascarado, risonho, castigador... No teatro haveria bailes; a Nova Euterpe
abriria o seu salão aos dominós; nas praças tocariam fanfarras; um clube se
preparava para passear as ruas. (Marques, 1975 p.121)
Cabe ressaltar que era comum o engajamento em questões políticas da parte dos
literatos do início do século XX, já que muitos deles foram defensores de medidas estatais que
incidiam sobre a proibição de práticas incompatíveis com o novo modo de vida urbano que se
pretendia instaurar. No Rio de Janeiro, então Capital Federal, durante a prefeitura de Pereira
Passos (1902-1906) uma série de proibições foi realizada no sentido de coibir certas usanças
tradicionais tidas como negativas frente aos novos padrões de modernidade. Pereira Passos
baixou varias posturas regulamentando ambulantes, fechou os quiosques do centro da cidade,
proibiu o cuspe nas ruas e dentro dos veículos públicos, o urinar fora dos mictórios, a venda
do leite levando a vaca à porta das casas, etc (Needell, 1993).
As crônicas jornalísticas, e mesmo as ficções literárias eram veículos de apoio e
legitimação do modelo modernizador da República Velha
27
. Como exemplo, podemos
destacar o trecho de uma crônica de Olavo Bilac, retirado do jornal “Gazeta de Notícias” em
20 de maio de 1906. Ao louvar a construção do “pavilhão São Luís” no final da Avenida
Central, Olavo Bilac parabeniza a proibição do hábito de estender roupas em varais na frente
das casas dos bairros do Centro.
...E, por felicidade, não é apenas materialmente que a cidade convalesce: é
moralmente também. A população naturalmente vai perdendo certos hábitos e certos
vícios, cuja abolição parecia difícil, se não impossível.
Verdade é que, para outros vícios, é ainda necessária a intervenção da autoridade,
com o argumento sempre poderoso e decisivo da multa... Mas, voluntária ou
obrigatória, espontânea ou forçada, o essencial é que a reforma dos costumes se
opere.
Ainda ontem, a prefeitura publicou um edital, proibindo, sob pena de multa, “a
exposição de roupas, e outros objetos de uso doméstico, nas portas, janelas e mais
dependências das habitações que tenham face na via pública...”.(aspas do autor)
Era esse, e ainda é, um dos mais feios hábitos do Rio de Janeiro... (Bilac, 1996).
27
Por outro lado, é importante salientar que nem todos os intelectuais estiveram afeitos ás medidas
modernizadoras. Entre os literatos circulavam diferentes noções de modernidade que nem sempre iam ao
encontro das prerrogativas sanitaristas do Estado Republicano. Nicolau Sevecenko (1999) destaca os exemplos
de Lima Barreto e Euclides da Cunha como dois intelectuais dissidentes e marginalizados durante o período.
Segundo o autor, esses dois ícones da nossa literatura teriam feito críticas ao governo republicano com relação
ao tratamento delegado a população pobre das cidades e aos trabalhadores da zona rural.
Outra passagem do livro O Feiticeiro que exprime a visão progressista da época é
um comentário sobre o Bumba-meu-boi. Esse festejo popular, muito presente na cultura
nacional nos dias de hoje, foi descrito como um frangalho de tradição em vias de se
desvanecer em meio à modernização da festa carnavalesca.
Mais longe, como que envergonhado da sua rustiqueza e velharia, fugindo às vistas
do público, encafuado na meia sombra de uma viela, berrava um bumba-meu-boi
para divertimento dos pobres moradores do beco e dos raros transeuntes que ainda
amavam aquele frangalho de tradição. O rufo áspero dos pandeiros e a monotonia do
estribilho – “Ê, bumba!” – cantado por vozes duras e urrantes, mudaram depressa as
disposições de Eulália. (Marques, 1975 p. 71)
No entanto, é possível destacar um aspecto ambíguo da narrativa de Xavier
Marques, quando enfocada a partir do espectro da sua contribuição como narrativa social, que
se inscreve no processo coletivo de construção da memória (nacionalidade), missão que se
autodelegavam os literatos reconhecidos do período republicano (Needell, 1993). Se por um
lado, a cultura tida como popular ou tradicional, se opunha pela sua rustiqueza aos padrões de
modernidade, por outro as manifestações populares, que emergiam do filtro da lembrança,
ensejavam signos identificadores de uma singularidade nacional. O trecho abaixo destacado
descreve o desfile de ranchos durante as epifanias, é notável a presença de tipos populares que
compõem, no foco do autor, o cenário urbano da província de Salvador: o mulatame de
escarpins, crioulas bamboleantes, o rapazio do comércio, a malta de capadócios pernósticos.
Descendo a Baixa dos Sapateiros, Paulo e seu amigo tiveram que estancar a que
desfilasse, por entre alas compactas de povo, um rancho de raparigas que seguiam
aos pares, batendo castanholas e pandeiros, num esvoaçar de fitas multicores. No
mesmo passo trejeitava, abrindo o préstito, a figura funambulesca do baliza, em
saltos e vira-voltas diante de uma sereia.
Continuavam a passear em direção à Lapinha com esturgir de cantorias e
exclamações jubilosas, no regozijo das passeatas e marchas, ao som de música, de
castanheteados e pandeiros, ranchos de crioulas bamboleantes, ufanas de seus
chapéus de palha com recamo de laçaria de fitas, o rapazio do comércio, o mulatame
de escarpins e arrecadas, na lufa-lufa de chegar, arrastando na pista, ao cheiro
especial de seu almíscar, a malta de capadócios pernósticos a dizer facécias e a rir
alto dos seus grosseiros dichotes. Era um préstito interminável. (Marques, 1975 p
73)
Quanto a esse aspecto é interessante refletir sobre a instituição do Estado
nacional, como adoção ao modelo de Estado burguês de direito, que tem como forma de
governo a democracia. Esta por sua vez, pressupõe a formação de um povo-nação, capaz de
exercer a sua cidadania e inscrever-se no processo de representatividade democrática através
das eleições. Nesse sentido, a possibilidade de atribuir cidadania a esse povo mestiço
analfabeto, visto com desconfiança e desconforto pelas elites que se miravam nas nações
européias, era uma questão conflituosa para os intelectuais como indicam as reflexões de
Manuel Bonfim. O autor, assim como outros de seu período, concebia a origem colonial como
causa dos males da sociedade brasileira. Em sua defesa por uma campanha de alfabetização
em massa ele expunha a sua preocupação concernente à cidadania das camadas
desprivilegiadas, expropriadas pela ação parasitária
28
das classes dominantes (Ventura,
2002).
Uma passagem do romance O Feiticeiro é dedicada ao processo eleitoral, a crítica
a política brasileira é indicada pela menção a processos ilícitos que compõem o pleito. O
escriturário Salustiano convida o seu amigo Amâncio Néri, bacharel em direito filho de um
rico comendador, a visitar a “combuca”, espécie de comitê eleitoral do partido liberal onde
eram distribuídas benesses para a compra de votos.
Salustiano quis oferecer ao amigo um espetáculo que ele talvez não conhecia.
Defronte da residência do chefe, em um casarão antigo,de dois andares, reunia-se a
mais curiosa das multidões. Eram votantes a deitar por fora. Todas as janelas
escancaradas permitindo ao chefe, que de vez em quando vinha á sacada, avaliar o
grosso das suas forças. O saguão não comportava mais “liberais” da arraia miúda,
trabalhadores, quitandeiros, botiqueiros, serventes de repartições, condutores de
bondes, saveiristas do porto, pessoal de associação e ofícios. À porta do pardieiro
formava-se uma cauda que interceptava o transito na ladeira.
Amâncio parou com o escriturário a ver o que se fazia dentro. Viu dois homens
nos primeiros degraus da escada, a distribuir chapéus e botinas que muitas os
agarravam no ar às rebatinas. Pelos cantos, alguns dos votantes, apoiando-se às
paredes descalçavam os sapatos velhos ou rotos, e enfiavam os novos. Outros
experimentavam os chapéus, e rindo dando vivas atroadores ao partido liberal,
28
“Parasitismo” é um conceito da biologia que M. Bonfim se apropria para descrever as relações sociais entre a
metrópole e a colônia, que depois é transferida para as classes dominantes e camadas desprivilegiadas do Brasil
independente. Ver: Ventura, R. Manuel Bonfim. A América Latina: males de origem. In Mota, L. D. (org).
Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico (vol. 2). São Paulo: Editora SENAC, 2002
safavam-se a custo do redemoinho do saguão e vinham para a rua exultantes,
ardorosos, concitando os ânimos à luta. (Marques, 1975 p.77)
No tocante a critica à política no período do II Império, o aspecto da
verossimilhança, que caracteriza o estilo naturalista, acentua-se novamente nessa descrição,
como forma de tornar contundente o aspecto de denuncia social do qual se reveste a crítica do
autor, atingindo o caráter de dever moral concernente á literatura. Articulada à ilegalidade do
processo eleitoral, exemplificada pela compra de votos, ressurge a preocupação quanto a
inserção das camadas populares no processo democrático que constitui um dos ingredientes
do paradigma moderno. Nesse sentido, no trecho acima é interessante notar a menção a vários
integrantes desse cenário urbano da Salvador imperial, tipos que integram a arraia miúda a
exemplo dos trabalhadores, quitandeiros, botiqueiros, serventes de repartições, condutores
de bondes, saveiristas do porto, pessoal de associação e ofícios.
- É a “combuca”, não é?
- A “combuca” da Sé. E se você visse a de Santo Amtônio...
- Quanto custa isso no fim das contas?
- Além da roupa feita, que se distribui em cima, custa jantares, bebidas,
charutos e ajudas em dinheiro para os que deixaram a família sem pintança. É
preciso muito cobre para vencer eleições.
- Ainda mesmo com o partido de cima...
- Que quer? O povo é pobre, não tem trajos decentes para estas ocasiões, perde as
vezes de fazer um “gancho”. Se os chefes querem vitórias que paguem o pato,
vistam ao menos o votante e dêem-lhe um dia de regalo...
- E é com certeza a única coisa que eles lucram da política. (Marques, 1975 p.78)
O final da citação acima permite destacar mais vivamente a inserção da crítica do
autor no intercurso da problemática sobre a formação de um “povo-nação”, articulada a
legitimação do Estado nacional Republicano e à interpretação das nossas matrizes culturais e
históricas. A dúvida quanto à “aptidão” das camadas populares o povo pobre a integrar as
eleições, recebe uma resposta na afirmação comodista contida na fala do escriturário
Salustiano, de que o povo não lucra com as eleições, senão com os “presentes” que
conseguem obter em troca de votos, o que revela a falta de cidadania popular.
Como sugere a interpretação dos textos acima citados, a problemática que envolve
a oposição entre a cultura popular e a cultura civilizada atravessa o texto do autor em
passagens concernentes a diversos eventos públicos, como festas populares e eleições. A
presença assídua de tipos urbanos pertencentes às classes menos abastadas, que compõem o
cenário da cidade como se constituíssem monumentos oficiais, alude à formação de uma
imagem de povo-nação. Esse tema torna-se especificamente elucidativo para a interpretação
do conteúdo ideológico do romance, quando entendido através da perspectiva histórica,
destacando o contexto de consolidação do Estado brasileiro após o golpe militar que instaurou
a república. Deve-se salientar que a primeira década do governo republicano foi conturbada
devido a divergências entre os militares, e pela repressão aos possíveis levantes monarquistas.
Cabe destacar também, que a obra literária em questão foi editada em 1897, ano que coincide
com o governo do primeiro Presidente civil da história, Prudente de Morais.
A problemática acima destacada comparece como pano de fundo nas cenas que
tratam da religiosidade católica presente no cenário urbano de Salvador, em datas públicas
como as festas do Senhor do Bonfim. Nesse aspecto, a crítica prevalece com o mesmo tom
cientificista que propicia a abordagem do autor dirigida às cerimônias das religiões afro-
baianas.
Na baixa do Bonfim, acabam de apear-se de um bonde Paulo Boto e toda a família, e
mais Pomba e Amâncio Néri. D. Antônia parou alguns minutos até que os romeiros
e misseiros, que saltavam dos outros carros, subissem o primeiro trecho da colina.
- É tanta gente! queixou-se ela, um pouco atordoada, enquanto Eulália lhe
compunha nos ombros a capa de renda preta.
- Está estranhando – disse-lhe carinhosamente a filha.
Realmente, havia mais de um ano que não punha os pés na rua, nem para visita.
- Só o senhor do Bonfim me faria sair. (Marques, 1975 p.225)
Xavier Marques oferece uma descrição interessada da romaria de peregrinos e
crentes, pagadores de promessa, à colina do Bonfim para assistir a missa solene das sextas-
feiras. Nos trechos faz-se menção a vários tipos urbanos que compõe esse cenário dos
costumes religiosos soteropolitanos como, rapazes com trajes marítimos levando como ex-
voto um barco de cortiça em miniatura, velhas ofegantes, crianças raquíticas, moças em
cujas faces se viam marcas frescas de varíola. Outros tipos são citados no trecho abaixo,
dentre os quais se destacam os integrantes da população afro-descendente, que devido à
acuidade da descrição, não poderiam ser omitidos do cenário religioso baiano:
Os apitos dos condutores de bondes trilavam em baixo, na estação. Aos carros
vazios que partiam sucediam novos comboios, trazendo da cidade mais gente
portadora de cera, a ouvir missa e a pagar promessa. A devoção não lhes reprimia o
gosto de folgar. Eram raparigas da plebe, de saia e torço, argolões de pechisbeque
nas orelhas; negras tilitantes de cordões de ouro e figas de prata; cafajestes, rufiões,
malandros chasqueadores que levavam ao sítio sagrado um tanto de alegria e
sagacidade pagã. (Marques, 1975 p.225)
Como foi visto em capítulos anteriores, Benjamin destaca que a literatura da
segunda metade do século XIX era marcada pela observação da vida urbana. Os autores
costumavam se deter na descrição das relações sociais que compunham a teia urbana e os
tipos que dela participavam. A literatura brasileira da passagem do séc. XIX e de inícios do
século XX era fortemente influenciada pelo estilo de autores como Balzac, Flaubert e Zola,
comportando também descrições dos integrantes do contexto urbano das cidades brasileiras.
O presente trabalho enfatizou como exemplo a prosa de João do Rio, cujo estilo é marcado
pelo interesse jornalístico em registrar as características da sociabilidade urbana carioca do
início do século. Lembremos que por portar esse caráter do realismo, por ter a
verossimilhança como um valor a ser buscado na descrição do romance, a literatura nacional
desse período contribuiu para formar as bases do pensamento social brasileiro.
Toda essa multidão vária nas maneiras, na cor e no vestir, discorria entre duas alas
de mendigos, cegos, mancos, chaguentos, aleijados, que formavam de baixo a cima
um estendal de sofrimento e miséria, decorados pelo esplendor da manhã. (Marques,
1975 p.225)
Embora a prosa de Xavier Marques não contenha a crítica sórdida do estilo
naturalista, o seu realismo moderado ainda manifesta certa visão negativa sobre as tradições
do catolicismo popular, que sob o olhar do cientificismo da época, comparecem como rituais
incivilizados, sobressaindo o seu aspecto insalubre e supersticioso, contrário à cultura
esclarecida do início do século. Guardada as proporções, esse trecho do livro incita certa
comparação com a narrativa de Zola no romance Naná (1880), por narrar a religiosidade cristã
como parte de um cenário decadente. Nesse sentido é interessante perceber o entrelaçamento
entre a absorção do estilo literário de origem europeu, como estrutura formal, com as
ambições modernizadoras de grupos sociais que tinham entre seus porta-vozes intelectuais
que atuavam como literatos e jornalistas. Os aspectos formais da construção do estilo
naturalista, assim como a proposta de constituir uma crítica social munida dos argumentos da
cultura científica do período, ganham sentido no cenário nacional, a partir da sua articulação
com os anseios de setores da classe dirigente em meio às conturbações políticas provocadas
pela mudança de regime e pelo fim da escravidão, e o restabelecimento das relações de força
no campo político.
4.5 O que há de concreto: a cidade vista em seu aspecto urbanístico e arquitetônico.
Pode-se considerar que até o final do séc. XIX a estrutura urbana de Salvador não
traía os indicadores de uma cidade colonial (Pinheiro, 2002). O fator central era a premência
do sistema escravista para o funcionamento das atividades urbanas, tanto no espaço público
quanto no âmbito doméstico. Como foi visto anteriormente, serviços como a distribuição de
água, o transporte público (liteiras, cadeiras de arruar), a condução de dejetos domésticos e até
a troca de correspondências dependiam do trabalho cativo. Em outras situações a renda de
uma família de classe média poderia estar substancialmente ligada a sua complementação por
meio do aluguel de um ou mais escravos, ou por cota adquirida do “jornal”, ou mensalidade
paga por um escravo de ganho. Sem contar que os serviços domésticos e os trabalhos manuais
eram em sua maioria destinados aos escravos, por conta do caráter aviltante de que eram
revestidos de acordo com o ethos consubstancial às relações senhoriais-escravistas.
Outros índices apontam para o “atraso” em termos de urbanidade: a cidade sofre
com a insalubridade pública, possui altas taxas de mortalidade, sendo palco da propagação de
enfermidades, como as epidemias de febre amarela nos anos de 1850 e 1852 e de cólera em
1855, tendo esta última provocado 10 mil mortes, o que representava 16,8% da população da
capital (Pinheiro, 2002). Essa cidade suja, não possuía rede de esgoto e nem cloacas; apesar
das proibições da Câmara Municipal a maioria do lixo doméstico era jogada nas ruas; os
serviços de limpeza urbana começam a funcionar contundentemente apenas em 1867, quando
deixam de ser uma responsabilidade dos particulares para se tornarem um dever da prefeitura.
Para agravar o quadro de atraso do aparelhamento urbano, até finais do séc. XIX, outros
serviços tardam a ser implantados. As obras para instalação do equipamento para a
iluminação pública a gás carbônico têm início em 1861, durante o séc. XIX todo o
abastecimento de água da cidade é feito através de chafarizes e fontes públicas, o primeiro
serviço de transporte público é introduzido apenas em 1862, e ainda de maneira bem precária.
Além da deficiência em equipamentos de infra-estrutura, os aspectos
arquitetônicos e urbanísticos da cidade passam a ser avaliados como empecilhos à salubridade
pública, concorrendo para a formação de um ambiente propício à proliferação de doenças. De
acordo com as discussões dos médicos e engenheiros sanitaristas, o espaço densamente
ocupado, com ruas estreitas, escuras e sinuosas, impedia o arejamento e permitia a
concentração de ar saturado. Da mesma maneira, as casas construídas em estilo colonial, sem
varandas, passaram a ser mal vistas por serem pouco iluminadas e mal ventiladas. Ao mesmo
tempo, a salubridade pública passa a ser reconhecida como um critério de modernidade, uma
cidade civilizada, teria que ser necessariamente uma cidade higiênica. Nesse sentido, são
tomadas várias providências durante o final do séc. XIX para melhorar a higiene local,
medidas como o saneamento de matadouros e de mictórios públicos, a desinfecção de cargas e
passageiros que chegavam pelo porto, serviços de coletas de materiais fecais, construção de
hospitais para o isolamento de doentes e de cemitérios fora do perímetro urbano. São criados
órgãos para a defesa da saúde pública, incentiva-se a pesquisa com vacinas, e, em geral,
estrutura-se melhor o serviço sanitário (Pinheiro, 2002).
Por essa razão, ao longo do séc. XIX são efetuadas várias intervenções urbanas
que visam aparelhar a cidade com novos serviços, facilitar a circulação de pessoas e de
mercadorias, melhorar a salubridade e acomodar a população crescente, construindo novas
habitações. A primeira ação de planejamento urbano implementada na cidade de Salvador,
incide sobre a área do Comércio, na Cidade Baixa, a partir da realização de aterros para
alargar a estreita faixa de terra entre a colina e o mar (Pinheiro, 2002). Com a conquista de
terras são construídos novos quarteirões de aparência regular, contendo grandes sobrados com
até cinco andares e mansarda, portando o mesmo acabamento em suas fachadas e dispostos de
maneira alinhada. São também construídas praças e ruas largas. O conjunto de prédios da
última linha de aterros, criada entre 1840 e 1870, conhecido como Cais do Pedroso ou Cais
das Amarras, porta um caráter monumental em sua uniformidade, e representa o poderio da
burguesia comercial.
O governo do Conde dos Arcos teve um importante papel na modernização da
cidade durante o séc. XIX, a partir de obras como a construção do Passeio Público (1810), da
Associação Comercial (1840), do Teatro São João (1840) e a organização da Biblioteca
Pública (1811). É interessante destacar a iniciativa em criar um código de “posturas” que
visava regulamentar as construções, revelando a intenção de embelezar a cidade.
Por sua vez, duas intervenções transcorridas no século XIX revelam o interesse
em modernizar a rede viária; a canalização do Rio das Tripas para a construção da Rua da
Vala, onde hoje se localiza a Baixa dos Sapateiros e a Barroquinha; e a construção da Ladeira
da Montanha, liberada para o trânsito em 1878, que começava na Rua dos Ourives, na Cidade
Baixa, e conduzia á Praça do Teatro (atual praça Castro Alves), na Cidade Alta. Além dessas
duas principais intervenções, são efetivadas outras medidas como o alargamento e a
pavimentação de ruas existentes, e a abertura de novas ruas. Essas melhorias se
concentravam em áreas nobres como a Sé, a Conceição da Praia e São Pedro. A Praça do
Palácio, principal praça da cidade, também recebe melhoramentos como a demolição de
alguns edifícios arruinados e o alinhamento das casas, nesse período também é construído o
elevador hidráulico (1873), mais uma importante ligação entre a Cidade Alta e a Cidade
Baixa.
Com a abolição e a gradativa adoção do trabalho livre, as atividades
desempenhadas por escravos, principalmente aquelas associadas aos serviços públicos, eram
aos poucos substituídas por equipamentos de infra-estrutura urbana, como veículos de
transportes, rede de tubulações para abastecimento de água e também escoamento de dejetos,
serviço de limpeza realizado pela prefeitura, etc. Nesse sentido, o fim do sistema escravista
marca o processo de urbanização da cidade. Todo esse progresso material afeta sobremaneira
os hábitos e o modo de vida, em geral. As classes média e alta começam a vislumbrar um
novo padrão de vida. O estilo arquitetônico dos casarões coloniais se torna obsoleto diante das
novas necessidades. Os bairros recentes da Vitória, Graça e Barra, representam a concepção
de um espaço considerado moderno, com seus solares elegantes, arejados, iluminados e com
jardins. São construções sólidas com muitos ornamentos nas fachadas, janelas em profusão,
terraços e galerias. Nos bairros antigos, Sé, Pelourinho e Maciel permanecem os sobrados e
casas térreas, muito fechados, sem adornos, poucas janelas e sem varandas ou terraços.
Apesar da crescente modernização, em princípios do séc. XX o desenvolvimento
do setor industrial ainda era incipiente em Salvador, o seu principal papel continua sendo o de
cidade comercial portuária, centro de escoamento de produtos para exportação de importância
regional. Apesar da manutenção da estrutura colonial, em razão da concentração nas
atividades de exportação de matéria-prima, a cidade crescia populacionalmente, e com isso
crescia também a sua área de ocupação urbana. O inchaço proveniente do aumento
populacional exigia a criação de uma nova estrutura urbana, com o incremento dos
transportes, instalação de redes de água e esgoto. Fazia-se premente, também, a melhoria do
porto.
Mesmo com a expansão territorial em sentido Sul e com a criação de novas
residências nos bairros elitistas da Vitória, Graça e Barra, a maioria da população continuava
morando na área central da cidade. Todo esse espaço de intenso povoamento na cidade Alta e
Baixa, será palco de reformas durante o séc. XX, especificamente entre 1912 e 1916, durante
o governo de J. J. Seabra. As reformas projetam a construção de uma nova cidade que se opõe
ao antigo padrão colonial, definido segundo a lógica das relações escravistas, para dar lugar a
introdução de novas tecnologias, e à nova dinâmica das relações capitalistas.
É sob esse pano de fundo que podemos compreender o olhar enviesado de Xavier
Marques para os aspectos urbanísticos e arquitetônicos da Salvador do séc. XIX. Vejamos
agora um trecho do livro O Feiticeiro que possui uma descrição sobre a paisagem urbana da
cidade, que se avistava estando no Largo do Teatro, atual Praça Castro Alves, sítio que serve
de entreposto entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, especificamente, entre as ladeiras que
afluem do Comércio para a Cidade Alta e a ladeira de São Bento, que por sua vez, conduz ao
bairro da Piedade.
À direita no alto, a igreja de S. Bento, acostada à massa do mosteiro, avançando um
pouco em cima do adro com escadaria de pedra, coroada pela sua cúpula de
azulejo... Em frente, em baixo, ao fim de uma rampa, o templo da Barroquinha,
em cujas torres repicavam os sinos em véspera de festa. Um trecho de mar à
esquerda, com alguns mastros de navios; uma linha de prédios altos, paredes brancas
e azuis; e por entre os ramos das árvores do largo, sob um céu diáfano, partes da
fronteira do Teatro, cujas vidraças rebrilhavam como água corrente ao sol.
Que lindo aspecto lhe desvendava a cidade velha e sem arte, até então mais digna da
sua indiferença!(Marques, 1975 p. 48)
Embora a descrição remeta a um belo cenário com imagens coloridas como as de
um céu diáfano, ou vidraças que rebrilham como água corrente ao sol junto a um trecho de
mar por onde se avista alguns mastros de navio, o comentário que encerra a descrição não
favorece a uma avaliação positiva da paisagem da cidade, considerada velha e sem arte mais
digna de sua indiferença. È bastante provável que o autor tenha construído essa perspectiva
negativa sobre o arranjo espacial da cidade, estando inspirado no modelo urbanístico de
Haussmann que, como foi visto, prescrevia a construção de grandes avenidas, arejadas e
claras, ruas largas e boulevards, que segundo a concepção sanitarista, impediriam o acúmulo
de miasmas e o contágio de doenças.
Essas idéias impressionavam os intelectuais e políticos brasileiros desde muito
antes das reformas empreendidas no Rio de Janeiro durante a presidência de Rodrigues Alves
(1902-1906). Pereira Passos, o engenheiro responsável por essas reformas, havia
apresentado um projeto de reconstrução da cidade à maneira francesa, durante o Império de
D. Pedro II, quando recém egresso de Paris. O projeto foi julgado como inviável, e as
reformulações drásticas na Capital Federal, visando destituir-lhe o semblante colonial,
tiveram que ser adiadas.
Como foi visto, o principal chamariz das reformas empreendidas por Pereira
Passos no Rio de Janeiro foi a construção da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco.
Jefferey Needell (1993) a descreve como um enorme boulevard com uma extensão de 1.996
metros por 33 de largura, dimensões até então inovadoras para os padrões da América Latina.
Essa enorme via era ladeada por uma muralha de prédios em estilo eclético, cuja arquitetura
foi acompanhada de perto por uma comissão que avaliou os planos arquitetônicos. Era
esperado que tais reformas causassem um impacto ideológico sobre a população,
pressupondo-se que elas desempenhariam um papel educativo, funcionando como exemplo
vivo do novo padrão civilizado que deveria ser seguido pelas demais cidades do país
(Herschmann & Pereira, 1994).
Cabe destacar que os antecedentes das reformas de J.J. Seabra em Salvador são,
em certa medida, similares aos antecedentes das reformas empreendidas por P.Passos no Rio
de Janeiro. Refiro-me à centralidade que o sistema escravista adquiria no funcionamento das
duas cidades. Ambas são cidades portuárias, cujas funções econômicas e de serviços giram
em torno do porto e seu hinterland. Nesse sentido, tomadas as devidas proporções, as duas
cidades passam por alterações similares a medida que é adotado o trabalho livre e a mão-de-
obra escrava é substituída por uma aparelhagem moderna aplicada aos serviços públicos. Nas
duas cidades o processo de urbanização em inícios do séc. XX se entrelaça ao fim da
escravidão e à formação de um novo tipo de relação trabalhista, condizente com a adoção de
uma estrutura econômica capitalista.
Entre 1912 e 1916, foi a vez de Salvador passar por uma série de reformas
inspiradas no modelo da Paris de Napoleão III, sob a coordenação do governador J. J. Seabra.
Este havia acumulado experiência e influência em matéria de reformas urbanas, primeiro
como Ministro da Justiça e de negócios exteriores entre 1902-1906 no governo de Rodrigues
Alves, e posteriormente como ministro dos transportes do governo de Hermes da Fonseca
entre 1910 e 1912. A atividade como ministro de Estado o permitiu acompanhar os trâmites
das reformas empreendidas na Capital Federal durante a prefeitura de P. Passos e manter
contato com grandes empresários brasileiros e com representantes do capital financeiro
internacional.
As reformas urbanas transcorridas entre 1912 e 1916 em Salvador incidem
justamente sobre a área central da cidade. Na Cidade Baixa continua o processo de conquista
de terras através de aterros, iniciado no séc.XIX, e concomitantemente a área recebe uma
nova urbanização. Na Cidade Alta são abertas grandes avenidas, prédios públicos são
reformados e ganham fachadas em estilo eclético, o mesmo acontece com casas particulares.
A leva de demolições decorrente do alargamento de ruas e da abertura de avenidas, acarreta a
supressão de construções representativas da arquitetura civil e religiosa do período colonial.
As principais intervenções são: o alargamento da Rua do Palácio que ganha o nome de Rua
Chile e a construção da Avenida Sete de Setembro.
O Largo do Teatro, atual Praça Castro Alves, local não por acaso retratado no
trecho do romance acima citado, que contem críticas quanto ao seu caráter antiquado, fica
situado em uma área que será diretamente atingida pelas reformas empreendidas entre 1912-
1916. O Largo do Teatro é um ponto de ligação entre a Rua Direita do Palácio e a ladeira do
mosteiro de São Bento, justamente as duas vias que sofrerão intervenções para a criação da
Rua Chile e a abertura da Avenida Sete de Setembro, os dois destaques das reformas de
Seabra. A Rua Direita do Palácio marcada pelo aspecto colonial, estreita, escura e mal arejada
é alargada e recebe nova aparelhagem urbana, como asfaltamento da rua, a construção de
postes de iluminação e novo calçamento, sendo renomeada como Rua Chile. Executam-se
grandes demolições, todas as construções que ficam no lado da terra, contrário ao mar, m a
sua parte frontal demolida para propiciar o alargamento da rua. Todas as construções têm as
suas fachadas reconstruídas no padrão estético da época, o estilo eclético.
Pode-se dizer que o ponto central do projeto de reformas empreendido durante o
governo de J.J. Seabra era a abertura de uma grande avenida que partisse da Praça Castro
Alves, antigo Largo do Teatro, até o Campo Grande, desafogando o trafego da área central,
especificamente da parte Sul do distrito da Sé, em direção aos novos bairros da Vitória Graça
e Barra, constituindo-se no principal vetor de crescimento da cidade em direção ao Sul
(Pinheiro, 2002). Esse projeto foi levado a cabo com a construção da Avenida Sete de
Setembro. Uma avenida com o traçado de um total de 4.600m de extensão, 21m de largura e
3m de calçada
29
, que resulta da retificação e do alargamento de ruas e vielas no trecho entre a
Praça Castro Alves e o Farol da Barra, o que implicou na demolição de importantes
construções do período colonial, de forte teor simbólico para o auto-reconhecimento da cidade
29
Excetuando-se a ladeira da Barra cuja largura permanece com as dimensões originais, tendo em vista a
escassez de recursos no final da reforma, que implicou na alteração do projeto e na manutenção da largura
original da ladeira da Barra.
como singularidade em termos nacionais. Dentre elas estão a Igreja de São Pedro Velho, a ala
esquerda do edifício do prédio do Senado do Estado, parte da Igreja do Rosário de João
Pereira e parte do convento das Mercês (Pinheiro, 2002).
Essas demolições não são feitas sem que ocorram resistências por parte de setores
da sociedade. O projeto original previa a demolição do Mosteiro de São Bento para que a
grande avenida comportasse um traçado mais retilíneo, no entanto o Abade Dom Majolo de
Caigny se contrapôs a essa decisão e conseguiu mobilizar a população, através da distribuição
de panfletos. A polêmica atingia os jornais que muitas vezes tomavam partido a favor das
reformas, que acreditavam ser um progresso. Parte da opinião publica concordava que era
preciso dar uma outra feição a cidade para que esta se aproximasse ao modelo europeu. Sob o
prisma do paradigma modernizador, em voga nas primeiras décadas da República, a cidade
parecia estar condenada ao atraso, pela conservação do seu semblante colonial e pela
manutenção dos costumes herdados de tempos da escravidão.
OS FRADES DO S. BENTO E A REMODELAÇÃO
Uma coisa que não compreendemos é que os srs. Frades queiram entravar o nosso
progresso, creando toda sorte de dificuldades ao plano de melhoramentos.
Homens extranhos ao movimento civilizador, pouco se lhes que a Bahia seja
eternamente a velha cidade da colina infectada e africanizada, ou que se a queira
remodelar dando-lhe o molde das cidades européias. (O Correio, 1 out. 1913 apud
Pinheiro, 2002)
Nesse sentido, é interessante ressaltar a filiação política de Xavier Marques como
intelectual ligado ao grupo “seabrista”. Segundo Salles (1977) Marques se elegeu deputado
estadual (1915-1921) e posteriormente deputado federal (1921-1924) sob o influxo político da
liderança de J.J. Seabra, de quem teria sido fiel seguidor, tendo ocupado o cargo de diretor do
jornal do seu partido até 1919. O Jornal chamava-se “O Democrata” abertamente vinculado
ao PRD, Partido Republicano Democrata.
Mas, por que os aspectos urbanísticos e arquitetônicos são tomados como peças
chave no processo de modernização, a ponto de chamarem tanto a atenção da opinião pública,
e de figurarem em projetos governamentais que são implementados de maneira autoritária
como se a reforma das cidades fosse uma medida de urgência? Não necessariamente o
processo de urbanização para a difusão de novas tecnologias, trazendo eficiência aos serviços
públicos, teria que incorrer na demolição de construções significativas da arquitetura colonial,
que marcavam sobremaneira a identidade territorial da cidade. Por que, no contexto histórico
em questão, a introdução de modelos arquitetônicos e urbanísticos importados da Europa e
dos Estados Unidos é reconhecida como a melhor maneira de alcançar a modernidade?
Além da influência clara do modelo francês como padrão de civilidade adotado
pela elite intelectual de um país que havia recentemente abolido a escravidão e proclamado a
República, existem aspectos referentes à própria modernidade tida como uma experiência
histórica que podem ser considerados, visando compreender melhor as concepções de
modernidade vigentes entre as classes dirigentes no Brasil da passagem do séc. XX. Não por
acaso, o espaço, como categoria sociológica, ganha destaque na obra de Simmel, na medida
em que o autor se debruça sobre o modo de vida moderno. Como foi visto no capítulo inicial,
esse autor descortina novas perspectivas sobre a modernidade que permitem pensá-la como
uma cultura histórica definida a partir da troca de relações de proximidade e distância e de
novas culturas de mobilidade e fixidez. Para o autor, a modernidade como uma cultura de
transição e movimento é espacialmente experiênciada, logo espacialmente constituída.
Segundo Allen (2000), isso sugere não que o espaço importa como categoria
para compreender as relações sociais, mas que a modernidade para Simmel é vivida, em
grande parte, através de novas experiências “espaciais”. Relembrando, o espaço comparece
como categoria analítica para compreender, por exemplo, as conseqüências do caráter
diversificado, acelerado e transitório das relações travadas no perímetro urbano. Essas
relações estão vinculadas a um ritmo acelerado, que passa a ser responsável por produzir
reações extremas de reserva e indiferença, favorecendo a adoção de uma postura blasé.
O espaço como categoria sociológica permite pensar também o isolamento que se
constitui com base na impessoalidade financeira e burocrática. A economia monetária ao
interpor o dinheiro como denominador comum para a obtenção de fins diversos, acaba por
igualar a todos os fins com caráter pessoal distintos, despersonalizando os objetos culturais
que perdem, gradualmente, o seu valor subjetivo (Simmel, 1991). Nesse sentido, o dinheiro
como símbolo abstrato dos valores, acaba favorecendo a formação de uma cultura
objetificada, na qual as relações sociais se constituem em uma base impessoal, marcada pelo
distanciamento subjetivo dos indivíduos envolvidos. Nesse sentido, fenômenos característicos
da vida moderna, como o encontro constante com estranhos nos transportes públicos, a
participação em trocas financeiras, a impessoalidade burocrática, e mesmo a divisão do
trabalho a distância que ela instaura entre o trabalhador e o produto do seu trabalho são
aspectos que interferem na percepção do espaço, ou seja, nos critérios de proximidade e
distância, e na experiência de mobilidade e fixidez.
Embora as mudanças sociais observadas por Simmel em Berlim na passagem do
séc. XIX para o séc.XX tenham uma natureza distinta das mudanças retratadas por Xavier
Marques principalmente se consideradas as especificidades do contexto brasileiro nessa
virada de século, profundamente marcado pela tentativa de superação das origens coloniais e
escravistas o fim da escravidão, a introdução do trabalho-livre e o processo de urbanização
dos centros urbanos provocaram alterações similares na maneira de compreender o espaço e a
alteridade. À medida que o trabalho livre é adotado e a mão-de-obra escrava é substituída,
serviços como o transporte de pessoas, o escoamento de águas sujas, o abastecimento das
casas e até mesmo a troca de correspondências, passam a ser desempenhados por uma
aparelhagem urbana. Note que nessas circunstâncias, serviços que eram executados por
pessoas passam a ser supridos por uma infra-estrutura urbana ou por órgãos governamentais,
o que instaura o aparecimento de relações impessoais. Ou seja, demandas que antes requeriam
a relação direta entre pessoas, passam a ser mediadas por uma aparelhagem de serviços, como
empresas, máquinas e órgãos públicos gerando, por sua vez, um novo tipo de relação entre
indivíduos, orientada pelo que Simmel identifica como a impessoalidade das relações
burocráticas. Nesse sentido, a urbanização es profundamente ligada às concepções de
modernidade no imaginário da virada do século.
Por essa razão, os aspectos urbanísticos e arquitetônicos, tomados como
prerrogativas de um tipo específico de coexistência urbana, moderna, ganham notoriedade nas
críticas dos autores brasileiros da passagem do séc. XX, na medida em que estes projetam um
novo modo de vida “civilizado”. De acordo com a perspectiva de Simmel, certas
configurações urbanas, como a criação de praças e o alargamento de avenidas, podem
constituir precondições espaciais indispensáveis para a instauração de interações
características da modernidade.
Em termos das transformações que se efetivam a partir do processo de
urbanização de cidades como Salvador, cabe destacar que nas relações sociais instauram-se
novas formas de compreender a proximidade e a distância em termos sociais, uma vez que a
segregação entre classes se torna evidente na nova organização do espaço urbano, a través da
criação de bairros elitistas e de áreas destinadas ao proletariado. Voltando às observações
sobre o tipo de ocupação urbana que vigorava em Salvador até o final do séc. XIX, prevalecia
uma espécie de promiscuidade social (Mattoso, 1992), um amálgama entre classes sociais
distintas era uma característica do povoamento local. Um dos motivos apontados para esse
amálgama, de acordo com Pinheiro (2002) era a dependência dos ricos relativa à mão-de-obra
escrava ou semi-liberta empregada em atividades as mais diversas.
A partir do final do séc. XIX e início do séc. XX os deslocamentos da população
transcorrem, em sua maior parte, pelos bondes. Os transportes públicos encurtavam distancias
e favoreciam a uma comunicação mais rápida entre os pontos da cidade, criando uma nova
cultura de mobilidade e velocidade. Este meio de transporte favoreceu a ocupação de novos
espaços, a exemplo da linha explorada pela companhia Trilhos Urbanos, que ao ligar a Praça
do Palácio (atual Praça Municipal) ao Rio Vermelho e à Barra abria caminho para essa nova
área de ocupação, propiciando a especulação imobiliária. Ao mesmo tempo, delineavam-se
novos contornos na estrutura social e funcional da cidade. O espaço urbano é dotado de novos
significados, a segmentação social atinge uma primeira definição. O centro torna-se cada vez
mais denso, ocupado por uma população pobre, como o contingente de ex-escravos que se
amontoam em espaços pequenos, resultantes das divisões feitas nos interiores dos antigos
sobrados, que se transformam em cortiços. A população abastada migra para bairros mais
recentes como Vitória, Graça e Barra. Ao mesmo tempo, Itapagipe se transforma em um
bairro operário, abrigando os trabalhadores das fábricas.
Além da segmentação social, os espaços da cidade passam a se diferenciar em
termos das funções que exercem em relação ao todo. Em lugar da divisão entre Cidade Baixa
e Cidade Alta, instala-se uma diferenciação mais complexa. A Penha passa a abrigar as
atividades industriais e manufatureiras, se instalam as fábricas têxteis e as manufaturas de
produtos alimentícios. A Conceição da Praia mantém-se como centro comercial. A cidade
Alta mantém a sua função de centro administrativo e religioso, mas passa a abrigar também
um importante comércio varejista, a sua área de influência estende-se até o Campo Grande, a
partir desse, em direção a Barra estabelece-se o espaço de residência da elite.
Em termos das alterações na percepção das relações de alteridade e no senso de
espacialidade apontadas por Simmel como conseqüência da economia monetária, cabe
destacar que também em Salvador as reformas urbanas criam um novo espaço de consumo
que implica no exercício da impessoalidade como orientação da sociabilidade. As reformas
empreendidas por Seabra provocam profundas mudanças nas atividades desenvolvidas na
parte Sul do distrito da Sé, especificamente na rua Chile. Os espaços renovados, prédios que
recebem novos adornos em suas fachadas para se aproximarem do estilo eclético e
neoclássico, transformam-se em boutiques de luxo e confeitarias à moda européia, por onde
passeiam senhoras e senhores da classe média e alta, elegantemente vestidos. O conforto
proporcionado pela melhoria dos serviços públicos, aliado à estabilidade política e econômica
propiciou às elites das capitais brasileiras o desfrute de uma vida urbana refinada, uma
primeira experiência do progresso material do século XX. “Pode-se dizer que é nessa época
que o Brasil tomará pela primeira vez conhecimento do que fosse o progresso moderno e
uma certa riqueza e bem-estar material.” (Prado J. 1961, p. 173)
Pensando na notoriedade que o espaço urbano e a arquitetura podem adquirir, se
tomados como precondições de certas interações “civilizadas”, destaca-se em um outro trecho
do romance O Feiticeiro: a descrição da residência da família de Paulo Boto, o cunhado de
Eulália. Como foi dito, o núcleo familiar principal da trama residia em um sobrado no
Terreiro de Jesus, área que hoje integra o centro histórico de Salvador.
A casa, de fato, não se recomendava por nenhuma beleza. Era uma construção
antiga, de tipo colonial: um andar, paredes grossas, quatro janelas oblongas com
sacadas de ferro pintadas de verde, o telhado em ângulo obtuso, amparado nas abas
por uma cornija, único adorno da fachada simples, caiada a tabatinga amarela e
exposta ao nascente. A entrada era por uma porta larga e alta, para se distinguir das
portas das lojas de aluguel, em que se dividia o resto do pavimento térreo (Marques,
1975 p.14).
Essa crítica à arquitetura além de estar associada a um novo padrão estético,
baseado nos conceitos de salubridade e conforto em voga, também se dirige à implementação
de um outro modo-de-vida, que no olhar do autor é incompatível com aquelas disposições
espaciais. Vale ressaltar que a descrição da casa das personagens de O Feiticeiro converge
com as informações oferecidas por Mattoso (1992) sobre a habitação típica da classe média
baiana do séc. XIX. Segundo a autora, a maior parte das famílias de classe média habitava
prédios de dois, três ou quatro andares com uma porta e duas ou três janelas que davam para a
rua. Nos prédios com vários andares, o segundo e o terceiro eram ocupados por famílias do
mesmo nível econômico. Não pegava bem morar no térreo ou em uma casa que fosse ao rés
do chão. Os andares rreos eram destinados a famílias pobres, a estudantes ou a
empreendimentos comerciais.
Nesse ponto, convém fazer algumas observações sobre o referencial de Simmel e
Benjamin, e a sua apropriação para a abordagem das reflexões literárias acerca do espaço
urbano. É possível compreender sob uma nova perspectiva a centralidade dos aspectos
urbanísticos e arquitetônicos, na crítica dos autores nacionais, a partir das considerações de
Simmel, ao ponderar que a modernidade constitui uma cultura histórica definida,
principalmente, por novas experiências de proximidade/distância e mobilidade/fixidez, ou
seja, ao tratá-la como um momento histórico que se caracteriza pela alteração do “senso
espacial”. Pode-se avaliar que a centralidade dos aspectos urbanísticos e arquitetônicos nas
reflexões dos autores literários e na definição de políticas públicas no início do séc. XX
provêm da importação de certos padrões europeus, na medida em que estes destacam a
urbanização e a arquitetura como precondições para determinadas interações sociais que dão
forma à modernidade.
Por sua vez, a partir dos escritos de Benjamin é possível perceber como a
experiência da modernidade, caracterizada por uma nova percepção das prerrogativas
espaciais, propicia novas possibilidades de narrativa. Nesse sentido, o romance do final do
séc. XIX comparece como a principal expressão da modernidade. Esses romances se
aproximam da atividade jornalística, têm como inspiração a teia de relações que formam o
panorama social, detêm-se no desvendamento dos ambientes mais reclusos das cidades: suas
casas de diversão, seus trabalhadores de profissões escusas, seus sacerdotes, feiticeiros e
cartomantes. Esse estilo literário logra se aproximar da intenção reveladora das reportagens.
Dentro desse gênero se destacaram pequenos fascículos vendidos na França com o
nome de “Fisiologias” (Benjamin, 1989). A alcunha desses livros de bolso alude ao escrutínio
empregado nas descrições das relações da urbe, e ao igual detalhismo com o qual as obras
descreviam os tipos humanos das cidades. Tal esmiuçar das relações humanas, sugeria a
analogia entre a literatura e o estudo fisiológico, como se encontrássemos nela a dissecação do
gênero humano habitante das cidades. A obra de autores franceses que entusiasmaram as
observações de Benjamim serviram de forte inspiração para autores brasileiros. Por exemplo:
Balzac, Flaubert e Baudelaire são referências explícitas da obra A Alma Encantadora das
Ruas de autoria de João do Rio.
Convergindo com esse tipo de apreciação da relação entre espaço urbano e
interações sociais, podemos citar a relação direta entre a Flanerie literária e as passagens de
Paris, nas análises de Walter Benjamin. Se nos perguntarmos sob uma perspectiva
sociológica, por que o Flâneur surge apenas no séc. XIX e quais são as transformações que
permitem o seu aparecimento, veremos que na abordagem de Benjamim essa personagem é
fruto da modernidade. A circulação, princípio estruturante da modernidade, possibilita a
emergência do Flâneur (Ortiz, 2000 p.21).
Benjamin (1989) chama a atenção para o fato de que o passeio flanador não
poderia ter existido na Paris da segunda metade do século XIX, caso não existissem as
galerias. Por aquele tempo, as calçadas das ruas eram muito estreitas, não ofereciam abrigo
contra os veículos. Dessa maneira, foram as galerias que abrigaram os flanadores do início da
segunda metade do séc. XIX. Por serem caminhos cobertos de vidro e revestidos de mármore
ladeados por casas uma espécie de rua coberta as galerias propiciavam o passeio
desinteressado, que não está dirigido ao consumo, podendo estar ligado somente ao desfrute
do ambiente urbano e à observação de seus tipos exóticos.
Uma vez que a emergência do Flâneur esteve relacionada à circulação espacial
proporcionada pelas passagens, a sua derrocada foi condicionada pela emergência do
capitalismo industrial, que tornou obsoletas as passagens e galerias. O avanço da sociedade de
consumo, e o efeito de massificação relacionada a esta, impediram a atividade do Flâneur. As
grandes lojas serviram como locais de passeio quando ainda se encontravam nas galerias,
destituídas do seu glamour, mas na medida em que o nculo com o consumo se torna
obrigatório nas lojas de departamento, o passeio desinteressado é impossibilitado. O último
abrigo do Flâneur é a multidão das cidades industriais, na qual ele se imiscuí, projetando-se
nos desejos alheios e perpetuando o seu interesse pelo outro.
Também no contexto brasileiro da virada do séc. XX o literato era identificado
como uma figura popular, que gozava de prestígio e reconhecimento público. Brito Broca
(1975) destaca a atuação dos intelectuais em conferências públicas (as de Olavo Bilac eram
muito concorridas). Era comum a presença dos acadêmicos nos cafés da Avenida Central.
Tidos como espaços de sociabilidade peculiares às cidades, os cafés tiveram um papel
relevante na vida intelectual, no início do séc. XX. Eram pontos de encontro de círculos
intelectuais, onde ocorriam as disputas acadêmicas, e aonde os novos literatos vinham a se
destacar, demonstrando a sua verve oratória. Eram pontos de pouso dos jornalistas, onde estes
atualizavam as novidades que virariam notícias, e parte da rota dos Flanadores, servindo como
um observatório da vida urbana.
Em Salvador o setor Sul do distrito da Sé, entre a Catedral da e o antigo Largo
do Teatro, transformou-se em um importante espaço de socialização de intelectuais como
jornalistas, literatos e políticos. Esse ambiente Belle Époque que é construído em algumas
capitais brasileiras em espaços que são reformados à maneira da Avenida Central no Rio de
Janeiro e, em menor grau, da Rua Chile em Salvador, constituem verdadeiras ilhas de
civilidade que fazem despontar novos hábitos e o cultivo de formas de sociabilidade
identificadas com um dado modelo de civilização. Nas obras literárias, as novas experiências
propiciadas por esse ambiente se traduzem no interesse voltado para aspectos do cenário
urbano, seja na descrição de culturas agora definidas como marginais, como as manifestações
populares afro-brasileiras, seja na narrativa de romances enfocando a vida da classe média,
que têm o efeito pedagógico de atualização de novos costumes. Essa relação de referência
mútua entre a literatura e a transformação do espaço urbano, aproxima o contexto literário
brasileiro a certas características identificadas por Benjamin na literatura francesa de meados
do séc. XIX, que favorecem a compreensão do espaço urbano como uma alegoria da
modernidade.
Aos olhos do literato a vida urbana adquire o magnetismo de um reclame
comercial, tudo parece estar passando em desfile a sua frente, o burburinho das cidades é um
chamariz que capta a sua atenção, e entorpece este observador embriagado de vida alheia.
Sem o espaço público das cidades a sua obra não existe, e em seu perambular em busca da
inspiração que lhe proporcionará o seu labor literário, ele mesmo se torna um personagem da
dinâmica da sua cidade, o Flâneur. Esse tipo de literatura é, ao mesmo tempo, objeto de
estudo para Benjamin e inspiração, na medida que o propicia compreender a París do séc.
XIX como uma fatasmagoria da modernidade. De acordo com Ortiz (2000), a ênfase que a
obra de Benjamim delega ao dinamismo das interações sociais e à temática atualmente
reconhecida como « vida cotidiana » é uma conseqüência da utilização dos romances do séc.
XIX disponíveis no acervo da Bibliotéque Nationale em Paris, que o autor teria consultado
por volta de 1935.
Porém cabe destacar como peculiaridade da literatura brasileira do final do séc.
XIX e do início do séc. XX a presença da contradição entre dois importantes vetores: de um
lado a verve nacionalista que se exprime na afirmação das peculiaridades da cultura brasileira
e da constituição étnica da sua população; e de outro a aproximação imitativa de padrões
europeus, presentes tanto no estilo formal da literatura, quanto nos critérios de valor através
dos quais é descrita e avaliada a sociedade brasileira. A esse respeito A. Cândido (1967)
chama atenção para um movimento de dialética entre o localismo e o cosmopolitismo, de
acordo com o qual é possível pensar o desenvolvimento da literatura nacional desde os
tempos da colônia com Gregório de Matos no séc. XVII, a a eclosão do movimento
modernista em 1922. Segundo o autor o sentimento de inferioridade desse país novo, tropical
e largamente mestiçado é um traço marcante dos desafios encontrados pelos literatos no
processo de construção da identidade nacional. Grande parte da nossa dinâmica espiritual se
nutre desse dilaceramento...(Cândido, 1967 p.)
Por sua vez, Needell (1993) destaca o caráter engajado da literatura, os literatos
reconhecidos da academia (ABL) se auto-delegavam a tarefa de exprimir a nacionalismo em
suas obras escritas, identificando-se como portadores da nacionalidade. A respeito desse
posicionamento engajado Pécaut (1990) identifica uma tendência missionária na formação
dos intelectuais da Primeira República, como uma herança da ação reformista da geração de
1870, que concorria para a definição de uma proposta pedagógica por parte dos autores. Na
primeira década da República os homens de letra outorgaram para si um compromisso
modernizador e civilizatório. Era comum aos romances a prescrição subliminar de um padrão
comportamental ditado por uma visão eurófila da civilização.
Quanto a essa questão, em breve relato biográfico de Xavier Marques, Gomes
(1969) ressalta uma frase do autor que evidencia o seu engajamento literário. De acordo com
Marques O escritor é um homem público. Tem uma função e um dever social (Marques apud
Gomes E., 1969, p. 193), assim o autor reconhecia a sua posição como homem de letras. O
seu comprometimento se evidencia na temática das suas obras, que parecem traduzir a
trajetória de desenvolvimento da sociedade brasileira, passando pela narrativa Pindorama de
teor patriótico a semelhança do Guarani de J. Alencar, cuja temática é a colonização e a
junção das matrizes nativas com as do colonizador português. Até o seu último livro As
Voltas da Estrada, no qual o autor trata da transição entre o Império e a República,
concentrando-se na problemática do fim da escravidão e as suas conseqüências em uma área
do Recôncavo Baiano, a fictícia cidade de Amparo, fortemente servida pelo trabalho escravo.
A preocupação com a temática nacionalista, destaca-se também no aspecto regionalista da sua
produção, os romances são todos ambientados na área do Recôncavo Baiano ou da Baia de
Todos os Santos, com a exceção de alguns contos que tratam da vida sertaneja.
A relação entre literatura e espaço urbano na passagem do séc. XIX para o séc.
XX, observada por Benjamin, adquire notoriedade na prosa de Xavier Marques a partir da
atenção voltada para a descrição de tipos populares que compõem o cenário urbano de
Salvador, assim como no zelo na descrição do modo de vida da classe média e na curiosidade
em retratar os costumes do Candomblé, à época, tido como um culto marginalizado. Além
disso, a própria estrutura física da cidade, tomada em seus aspectos urbanísticos e
arquitetônicos, revela o interesse literário pela urbe identificada como um emblema da
modernidade. Através da descrição crítica desse espaço, os autores difundiam, sob o respaldo
da verossimilhança, suas concepções sobre modernidade.
Mas, é interessante notar que o tema da modernização, que tem como expressão o
espaço urbano, articula-se com a construção da nacionalidade brasileira, no jogo de
contradição entre a absorção de padrões europeus e a consolidação de uma identidade
nacional mestiça. Nesse sentido, os textos literários constituem uma parte do processo
coletivo da memória que permite consolidar o auto-reconhecimento de uma comunidade a
partir da ação seletiva da lembrança, na medida que esta é acompanhada do seu oposto, o
esquecimento.
5. Considerações Finais:
O presente trabalho tem a intenção de contribuir com as pesquisas em torno da
formação da nacionalidade brasileira na passagem do séc. XIX para o séc. XX, lançando uma
nova perspectiva sobre essa problemática. Elegeu-se como ponto de convergência dos
conflitos do período a construção de representações sobre a modernidade, tida como um
desejo das elites internas e ao mesmo tempo como o resultado de pressões das novas relações
internacionais, provocadas pelo capitalismo industrial.
Pensar a maneira como os brasileiros das capitais, situadas no litoral, definem-se
como integrantes de uma nação moderna, pode trazer à baila a visão de mundo segundo a qual
passamos a nos reconhecer como unidade, equacionando as diferenças e construindo sobre
elas um tecido, uma trama agregadora; mesmo em meio às transformações que realçavam
ainda mais as diversidades regionais, e a presença de culturas distintas em convivência no
território das capitais em urbanização. A forma como as noções de “modernidade”,
“progresso” e “civilização” são incorporadas no contexto nacional da virada do século
enfatiza as tensões que se aguçam na “reinvenção” das desigualdades sociais, que adquirem
uma nova manifestação com o fim do regime escravista e adoção do trabalho assalariado,
como de outros aspectos que constituíram o capitalismo industrial do século XX, por exemplo
o mercado de massa e a concentração de riquezas.
Ao mesmo tempo, o presente trabalho chama atenção para a participação dos
intelectuais, especificamente os literatos e jornalistas, no processo de difusão de novos valores
e de revisão dos valores associados à sociedade colonial, mediante a construção de
concepções de modernidade e civilização. A atuação desses intelectuais é estimulada pelo
desenvolvimento da grande imprensa e pela geração de novos postos de trabalho para
escritores profissionais, que favorecem a formação de um campo intelectual relativamente
autônomo durante o período da Primeira República.
A hipótese de que o espaço urbano era o signo que identificava a modernidade e a
civilização para as elites dirigentes do período norteou a presente pesquisa. Nesse sentido, a
maneira como os literatos refletiam sobre os processos de urbanização e sobre a constituição
dos espaços das cidades tanto nos seus aspectos urbanísticos e arquitetônicos, quanto em
seus aspectos humanos, ao destacarem as diferentes interações sociais que preenchiam de
sentido o espaço habitado foi considerada como uma nova perspectiva na investigação da
modernidade dessa passagem de século.
Os aspectos estruturais que envolveram as transformações urbanas ocorridas no
Rio de Janeiro entre 1902 e 1906 foram utilizados como um contraponto para melhor
compreender as particularidades das reformas empreendidas em Salvador durante o governo
de J.J. Seabra (1912-1916), que os principais estudos sobre modernização no Brasil na
passagem do séc. XIX para o séc. XX costumam utilizar o Rio de Janeiro como exemplo.
Deixando um pouco de lado as comparações entre os processos ocorridos nas duas cidades, o
estudo em questão levanta considerações relevantes quanto à contribuição das obras de
literatura de ficção, quando tratadas como veículo de análise, em contraposição aos estudos
históricos que costumam se ater a outras fontes, como documentos, atas, notícias de jornais,
etc.
Nos capítulos iniciais dedicados à contextualização histórica do tema, com base
na descrição dos aspectos centrais do processo de urbanização do Rio de Janeiro, foram
utilizados os trabalhos de historiadores como Needell (1993) e Chalhoub (1996) que destacam
principalmente as mudanças que afetaram a atuação do Estado e das instituições políticas,
assim como de outras associações da sociedade civil, a partir da consolidação de um projeto
civilizatório do governo republicano. Por outro lado, a análise das reformas urbanas de
Salvador entre 1912 e 1916, por ter como veículo principal a interpretação do romance O
Feiticeiro, permitiu abordar aspectos das mudanças que afetaram a formação de uma nova
sociabilidade urbana, incidindo sobre as interações sociais. Nesse sentido, o trabalho
contribuiu para mostrar a relevância das obras literárias como veículos de análises históricas,
que favorecem à abordagem das mudanças ocorridas na sociabilidade e nos hábitos da vida
cotidiana.
A interpretação do livro O Feiticeiro de Xavier Marques, tendo como
direcionamento a análise das reflexões do autor acerca do espaço urbano de Salvador no séc.
XIX, possibilitou destacar questões centrais para o entendimento de uma dada construção da
nacionalidade, durante o período da República Velha. Mas, além disso, propiciou discutir os
valores sociais da época relacionados à constituição multirracial da sociedade brasileira, à
apropriação de padrões de comportamentos tidos como civilizados, e à adoção de modelos
urbanísticos e Arquitetônicos. A maneira de compreender o espaço aponta para os valores
que constituem os padrões de convivência e as diversas formas de lidar com a alteridade.
Nesse sentido, foi possível destacar os seguintes fatores: a presença de uma oposição entre a
cultura popular e a cultura civilizada, o estigma que recaia sobre o passado colonial e os
complexos que agiram sobre a aceitação das origens mestiças da população brasileira. Mas,
sobretudo possibilitou enfocar as ambigüidades dessas questões, provocadas pela absorção
desses elementos como caracteres definidores da singularidade brasileira, que integram a
dialética descrita por A. Cândido (1967) entre localismo e cosmopolitismo.
A analise do romance O Feiticeiro possibilitou chamar atenção para a segregação
social que se inscrevia no espaço das cidades a partir do final do séc. XIX, na medida em que
os bairros passaram a ser projetados para abrigar funções específicas, segundo as prescrições
do modelo urbanístico de Haussmann. Essa observação leva à definição de uma hipótese para
trabalhos futuros: a de que esse tipo de discriminação ao repercutir na formação de bairros
elitistas e bairros operários e na definição de áreas suburbanas que crescem a partir de uma
ocupação desordenada, constitui uma ruptura com o tipo de segregação social existente
durante o período colonial e imperial.
De acordo com Mattoso (1992), vigorava no espaço da cidade de Salvador uma
espécie de promiscuidade social, a o final do séc. XIX. Era possível encontrar casas muito
pobres vizinhas a grandes sobrados que abrigavam as famílias de ricos comerciantes. Para
Pinheiro (2002), a presença de ricos e pobres dividindo o mesmo espaço, muitas vezes a
mesma rua, era uma exigência das condições de vida local. Serviços básicos como o
abastecimento de água, os transportes públicos e o transporte de dejetos para fora da área
residencial, eram desempenhados por escravos de ganho ou pela população recém-liberta. Por
essa razão, a camada abastada da população precisava viver em proximidade física das classes
mais baixas.
A partir do final do séc. XIX a difusão de novas tecnologias nos serviços públicos,
como a introdução do bonde e o abastecimento de água via tubulação, permite o afastamento
entre os segmentos sociais e a formação de bairros residenciais destinados, exclusivamente, às
camadas mais abastadas. Esse tipo de segregação social que se inscreve no esquadrinhamento
do espaço urbano constitui uma singularidade desse período, o que aponta para o estudo dessa
transição como uma perspectiva privilegiada para tratar das desigualdades sociais que se
consolidaram durante o século XX, nas cidades mais populosas do país.
Voltando às considerações quanto aos procedimentos metodológicos, a
abordagem das obras artísticas de ficção, sob o enfoque das ciências sociais, encontra certos
desafios quando pretende ir além de uma mera sobreposição do contexto social estudado
sobre o conteúdo simbólico dessas obras. A presente pesquisa buscou escapar às abordagens
clássicas da sociologia da literatura que acabam por considerar as obras artísticas como um
mero reflexo das relações sociais. Para tal, foi preciso destacar o caráter motivacional contido
na obra de ficção, quando interpretada como um veículo de reflexão que permite discutir os
valores sociais em transformação na sociedade brasileira da passagem do séc XX, em um
contexto de reformulação de costumes.
Talvez a estratégia utilizada para abordar o romance da passagem do séc. XIX
para o séc. XX como um meio de reflexão, através do qual é possível distinguir o diálogo
entre diferentes pontos de vista em vigor na sociedade, pode não ter alcançado ainda os
resultados esperados. Pretendemos fazer uma revisão da articulação metodológica que foi
utilizada para dar vozes aos textos literários. Acreditamos ser preciso definir de maneira mais
clara o pano de fundo da problematização teórica que amparou a interpretação dos textos, para
melhor distinguir a apresentação do que entendemos ser as reflexões dos autores literários,
das análises constituídas pelo pesquisador, a partir dessas reflexões. Nesse sentido, é preciso
repensar a articulação entre o referencial teórico e o material empírico constituído pelos
romances literários.
Deixando os percalços de lado, Tudo surgiu da vontade de contar estórias”, do
desejo de narrar de que maneira parte dos brasileiros passou a se compreender como
integrante do “mundo moderno”.
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