Download PDF
ads:
Patrícia Monteiro Lacerda
DE PERTO, NINGUÉM É ANORMAL
A construção discursiva de identidades,
em narrativas de trajetórias escolares longas,
de ‘pessoas com deficiência’.
Tese de doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Educação da PUC-Rio como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Educação
Orientador: Ralph Ings Bannell
Rio de Janeiro, setembro de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Patrícia Monteiro Lacerda
De perto, ninguém é anormal: a
construção discursiva de identidades,
em narrativas de trajetórias escolares
longas, de ‘pessoas com deficiência’
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo
Programa de Pós-graduação em Educação do
Departamento de Educação do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da
PUC-Rio
Prof. Ralph Ings Bannell
Orientador
PUC-Rio
Prof. Zaia Brandão
Presidente
PUC-Rio
Prof. Vera Maria Ferrão Candau
PUC-Rio
Prof. Alfredo José da Veiga-Neto
UFRGS
Prof. Branca Falabella Fabrício
UFRJ
Prof. PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 13 de Setembro de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
ads:
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora
e do orientador.
Patrícia Monteiro Lacerda
Graduou-se em Psicologia na FAFICH/UFMG (Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de
Minas Gerais) em 1986. Obteve o título de Mestre em
Educação Brasileira pela PUC-Rio em 2000. Pesquisadora
Associada a projetos apoiados pela CAPES e CNPq desde
1998. Ex-assessora na área de Educação da UNESCO Rio
de Janeiro. Experiência em Coordenação, Sistematização e
Avaliação de Projetos Sociais.
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Lacerda, Patrícia Monteiro
De perto, ninguém é anormal : a construção
discursiva de identidades, em narrativas de
trajetórias escolares longas, de ‘pessoas com
deficiência’./ Patrícia Monteiro Lacerda;
orientador: Ralph Ings Bannell. – 2006.
255 f. : il. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2006.
Inclui bibliografia
1. Educação Teses. 2. Deficiência. 3.
Trajetórias escolares. 4. Posicionamento. 5.
Identidade. 6. Disability studies. I. Bannell,
Ralph Ings. II. Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Departamento de Educação.
III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
Ao João, por ter me devolvido a vontade de mudar o mundo.
Ao mano André, por ter mostrado que há sempre uma saída honrosa.
Àqueles que posicionaram os meus entrevistados como pessoas de valor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
Agradecimentos
Aos narradores das histórias aqui analisadas.
À Júlia, por ser quem vem sendo.
Ao André – my partner in life.
À Mana Cynthia, que além da companhia intelectual, me protege de mim mesma.
Ao departamento de Educação da PUC-Rio por ter apoiado as reviravoltas que se
fizeram necessárias.
Ao Ralph, pela orientação tranqüila e empoderadora.
À Branca, pela co-orientação atenta e generosa.
À Vera, pelo acolhimento dos meus escritos, minhas idéias e minha pessoa.
À Zaia, pelo carinho e confiança crítica.
Ao Professor Alfredo Veiga-Neto, por ter aceito o convite da interlocução.
Ao Luis Paulo de Moita Lopes, pelo incentivo na hora precisa.
À Alicia, por ouvir seu grilo falante.
À CAPES e à FAPERJ, pelas condições do trabalho.
À Gloria Schaper dos Santos, por suas realizações e pela força.
Às Professoras Aída e Valéria, do Programa Rompendo Barreiras, pela rampa de
acesso às pessoas que eu procurava.
Ao Rodrigo, Aléxia, Pedro, Francisco e Lene pelo abrigo estratégico.
A Marilda e Ray, por nos inspirarem a amar o mundo.
À Liu, fiel escudeira de todas as horas.
À Zélia, pela retaguarda serena.
À Família Vizinhos, tão importante no Rio como o Morro Dois Irmãos e a Pedra
da Gávea.
À Eugênia, Paula, Julie e Lida, companheiras de maternidade especial.
À brava equipe que nos ajuda a pôr o João mais aprumado.
Aos moderadores e participantes das listas da Rede Saci, Inclusiva e do Fórum
Agenda.
Ao Renato, Renata e Lorena que intermediaram a compra dos livros importados.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
Resumo
Lacerda, Patrícia Monteiro; Bannell, Ralph Ings (orientador). De perto,
ninguém é anormal : a construção discursiva de identidades, em
narrativas de trajetórias escolares longas, de ‘pessoas com
deficiência’. Rio de Janeiro, 2006. 255 p. Tese de Doutorado
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Esta tese apresenta perfis de configuração identitária, a partir de narrativas
de trajetória escolar - da educação infantil à universidade - de sete pessoas com
diferentes lesões congênitas (cegueira, baixa visão, paralisia cerebral e
mielomelingocele). Alinhada a uma concepção socioconstrutivista da linguagem,
articula a análise dos posicionamentos acionados nas entrevistas às posições de
sujeito disponibilizadas pelos discursos pedagógicos e pelos movimentos sociais,
para as pessoas que não se encaixam no que foi historicamente estabelecido como
‘corpo normal’. Essa perspectiva é inspirada nos Disability Studies, nos trabalhos
de Michel Foucault e na sociolingüística que fornecem instrumentos para captar
os efeitos contextuais de quem diz o quê para quem, observando como as pessoas
incorporam, recusam, ignoram ou resistem às interpretações hegemônicas de
normalidade e diferença, em nossa sociedade, hoje. Uma das contribuições do
estudo é demonstrar que no movimento identitário a presença de atributos físico-
sensoriais diferenciados do padrão não posiciona, necessariamente, os indivíduos
como pessoas com deficiência. As pistas de que o discurso da integração
individual, através da auto-superação com apoio da família, ainda prevalece sobre
as formações discursivas da inclusão e da diferença, nos põe a pensar sobre as
condições de possibilidade de emergência, no Brasil, de discursos contra-
hegemônicos que possam deslocar as diferenças físico-sensoriais-cognitivas do
lugar de anormalidade.
Palavras-chave
Deficiência, trajetórias escolares, posicionamento, identidade, disability studies.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
Abstract
Lacerda, Patrícia Monteiro; Bannell, Ralph Ings (advisor). Close up, no
one is abnormal: the discursive construction of identities of “people
with deficiency” in extended educational trajectories. Rio de Janeiro,
2006. 255 p. PhD Thesis Departamento de Educação, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This work presents the profiles of identity configuration, of seven people
with different congenital impairments (blindness, low vision, cerebral palsy and
mielomelingocele), constructed from the narratives of their educational trajectory
from infants education to university. Grounded in a soioconstructivist
conception of language, it develops an analysis of their positionings, in
interviews, within the subject positions made available by pedagogical discourses
and social movements, for people who do not fit into what has been established as
a “normal body”. This perspective is inspired by Disability Studies, the work of
Michel Foucault and sociolinguistics, which provide the instruments for capturing
the contextual effects of who says what to whom, observing how people
incorporate, refuse, ignore or resist the hegemonic interpretations of normality and
difference, in our society today. One contribution of the study is to show that in
the construction of identity the presence of physical-sensory attributes different
from the standard does not, necessarily, position individuals as people with
disability. The analysis suggests that the discourse of individual integration,
through one’s own efforts together with family support, still prevails over the
discursive formations of inclusion and difference. This leads us to reflect on the
conditions of possibility, in Brazil, of the emergence of contra-hegemonic
discourses that can have the effect of dislocating physical-sensory-cognitive
differences from the place of abnormality.
Keywords
Disability, educational trajectories, positioning, identity, disability studies.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
Sumário
1 - Circunscrevendo o objeto de Estudo 11
1.1 - O universo (quase paralelo) dos Disability Studies 13
1.2 - Delimitando a questão de pesquisa 17
1.3 - A deficiência como vista como uma posição social 21
1.4 – Discursos sobre a educação de p.c.d. no Brasil 29
2 - Decisões teóricas 35
2.1 – A aparição de Foucault 35
2.2 – Um quase impasse e uma possível ultrapassagem 38
2.3 - Concepções de Linguagem, Discurso e narrativas 43
2.4 - Modos de subjetivação, posições de sujeito e identidade 47
2.5 - A produtividade do construto Posicionamento 51
3 – Metodologia 54
3.1 – Que discursos analisar e com que instrumentos? 54
3.2 - Histórias de vida como discurso 64
3.3 – Organização das entrevistas 72
4 – Perfis a partir das entrevistas individuais 78
4.1 - Antenor – Transformando olhares em audiência 81
4.2 - Fábio – Vivendo na fronteira da normalidade 96
4.3 – Lia - A Batalha Por Respeito e Pelo Direito de Se Divertir 111
4.4 - Gabriel – Maior que o próprio corpo 130
4.5 - Josué – Conquistar respeito para se jogar na vida 144
4.6 - Ruth – Ser igual ou diferente já não importa tanto 158
4.7 - Matias - Inquietude para conquistar um lugar ao sol 172
5 – Entrevista Coletiva 186
5.1 – Negociação de sentidos 193
5.2 – É preciso saber viver 203
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
5.3 – O outro ignorante – um novo sujeito a corrigir 206
5.4 – Balanço das posições 209
6 – Considerações Finais 212
6.1 – Voltando às questões teóricas com ajuda da empiria 212
6.2 – Conseqüências do recalque do discurso da diferença 228
6.3.- Linguagem: tecnologia de ponta na pesquisa educacional 241
7 - Bibliografia 244
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
O canivete de porcelana
Luiz Horta para Adrián Robotti
O menino inviável
penetrou cada minúsculo
espaço - do pouco espaço
que me restava.
O menino inviável
fez alegres todos
os desesperos - das
poucas emoções
que me serviam.
O menino inviável
exigiu cada fragmento
de recursos protéicos
que já não tinha.
O menino inviável
encontrou - não sei
como - em mim, outro.
O menino inviável
mostrou que o amor é
onde acontece.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
1
Circunscrevendo o objeto de estudo
Na música Vaca Profana, Caetano Veloso afirma que De perto, ninguém é
normal. Anos mais tarde a TV Globo exibia o seriado Os Normais que, seguindo
o mote do compositor baiano, mostrava um casal como tantos - socialmente
produtivo e bem sucedido - visto na esquisitice da sua intimidade. Em 2005, a
música Cotidiano de um casal feliz, de Jay Vaquer, fez ecoar nas rádios a
pergunta: ‘alguém sabe dizer o que é normal? Pode parecer tão natural’.
O presente trabalho se alinha àqueles que investigam o conceito de
normalidade e seu duplo - a anormalidade
1
, tentando entender como se traça e se
apaga a linha que delimita um e outro.
Se levarmos em conta que o poder engendra saberes que, por sua vez,
autorizam novos exercícios de poder, nós, pesquisadores, perdemos o álibi de que
nossos objetos de pesquisa são a mera revelação das realidades sociais. Por mais
que a neutralidade científica venha sendo questionada há tempos, nem sempre nos
damos conta da radicalidade implicada na idéia de que o conhecimento que
produzimos é sempre interessado e condicionado por fatores históricos que nos
sobrepõem e escapam. Sem o chão da objetividade que nos exime, resta-nos o
rigor da demonstração das idéias que fundamentam e possibilitam a construção do
que chamamos ‘achados de pesquisa’. Isso não significa dizer que não
conhecimento confiável ou que a ciência não se distingue da ficção. Significa
admitir que toda apreensão do real é uma operação de interpretação e que os
‘dados’ não são dados, mas uma elaborada articulação dos saberes disponíveis,
que fazem aparecer novos saberes.
Ver os conhecimentos produzidos como contingentes, parciais e instáveis
significa perder a pompa e a possibilidade de certezas tão caras ao marketing da
expertise. Por outro lado, ganhamos a chance de dizer por que queremos saber o
que estamos procurando, ou melhor, como fomos capturados por determinadas
forças para dizer o que estamos dizendo.
1
A palavra anormais é utilizada por Michel Foucault para designar os desviantes da norma, um
grupo que, segundo Veiga Neto (2001), vem sendo inventado e multiplicado, abrangendo: os
sindrômicos, os deficientes, os monstros, os psicopatas, os surdos, os cegos, os rebeldes, os
pouco inteligentes, os estranhos, os miseráveis, o refugo, enfim.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
12
No presente caso, o interesse pelo objeto do estudo teve início num
acontecimento que irrompeu em minha vida fazendo advir ‘outra coisa’ que não a
situação, as opiniões ou os saberes instituídos. O advento em questão foi a notícia
de que meu filho caçula tem uma síndrome genética que o qualifica como pessoa
com deficiência (p.c.d.)
2
. Diante disso, resolvi aceitar o enunciado ético proposto
por Badiou (1995): Persevera na interrupção. Captura em teu ser aquilo que te
capturou e deteve. A perplexidade diante do acontecimento causou minha
implicação profissional com a questão da deficiência que, embora não se
apresente no meu corpo, presentifica-se no meu cotidiano.
Outro fator que fisgou minha atenção foi a afirmação de que há uma
desqualificação não dos sujeitos com deficiência como também da própria
representação teórica que se tem da questão.
“(...) a educação especial e a alteridade deficiente não se constituem
necessariamente como reciprocidade, domínio e/ou simetria, mas compartilham
um mesmo problema: ambas foram e ainda são tratadas como tópicos
basicamente subteóricos. E isso ocorre, curiosamente, numa época em que os
acontecimentos mais triviais e supérfluos, como dormir, fazer dieta, usar brincos,
olhar o vazio ou comprar objetos sem utilidades, estão sendo hiperteorizados”.
(Skliar 2003: 157)
Ou, como diz Lennard Davis (1995):
“Há um estranho e realmente indizível silêncio quando o assunto da deficiência
é levantado (ou, indo ao ponto, nunca levantado); o silêncio é estranho, também,
desde que muito da crítica de esquerda tem se dedicado a assuntos como o
corpo, a construção social da sexualidade e do gênero
3
.”
Apesar de pouco divulgados ou pouco influentes, há um considerável
esforço sendo feito para abrir novos espaços teóricos sobre a deficiência que
identificarei genericamente como DS - Disability Studies (uma das facetas da
Disability Culture
4
). A percepção da vitalidade com que o movimento
internacional se empenha em redefinir a deficiência como objeto de conhecimento
2
A questão da nomeação é importante e nunca neutra. No artigo ‘Como chamar os que têm
deficiência’ (Sazaki, 2003) percorre a trajetória dos termos utilizados ao longo da história da
atenção às pessoas com deficiência no Brasil. Os termos que se sucedem são: inválidos,
incapacitados, defeituosos, deficientes, excepcionais, pessoas deficientes, pessoas portadoras de
deficiência, pessoas com necessidades especiais, portadores de necessidades especiais e
pessoas com deficiência. Este último ‘passa a ser o termo preferido por um número cada vez maior
de adeptos, boa parte dos quais é constituída por pessoas com deficiência que, no maior evento
(Encontrão) das organizações das pessoas com deficiência, realizado em Recife em 2000,
conclamaram o publico a adotar este termo.” Por este motivo e por ser esta a tradução afinada
com a nomenclatura utilizada nos Disability Studies, aderi a este termo na tese.
3
As traduções dos textos em língua estrangeira são de minha responsabilidade.
4
Disability Culture que é composta também pela Disability Arts
4
, Disability Studies e pelo Disability
Rights Movement.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
13
e a escassez de trabalhos nessa trilha em território nacional, instigam-me a propor
a articulação entre idéias produzidas por autores dos DS com autores da área
educacional e os discursos produzidos por brasileiros com deficiência.
Uma interlocução interessada é com os grupos de estudo e pesquisa em
educação brasileira que, atravessados pela crítica ao projeto racionalista da
Modernidade, confrontados com os novos movimentos sociais e desconfortáveis
com os horizontes utópicos da perspectiva crítica mais tradicional, têm se
dedicado a estudar as questões da diferença, do inter/multiculturalismo
5
, dos
estudos culturais e das minorias. No bojo desse movimento, vários pesquisadores
educacionais o reconfigurar os objetos de estudo mais clássicos em educação,
como o fracasso escolar, o currículo, a didática etc., dando peso a questões, como:
os modos de subjetivação produzidos pelos dispositivos escolares
(disciplinamento, inclusão/exclusão, tecnologias de individualização etc.); o
currículo inscrito na mídia e em espaços de circulação extra-escolar do alunado
(shopping centers, bailes funk etc.); a historicidade da sala de aula, do ofício de
aluno, da profissão docente, e por aí a fora.
Uma das preocupações levantadas por autores que se identificam com a
perspectiva pós-crítica Alfredo Veiga-Neto, Marisa Vorraber Costa, Rosa Maria
Fisher, Sandra Corazza, Tomás Tadeu da Silva dentre outros (Paraíso, 2004), é
trazer para o campo educacional discussões sobre concepções de linguagem que
exigem novos olhares investigativos sobre velhas ferramentas metodológicas, tais
como: entrevistas, grupos focais, histórias de vida etc.
Estes fatores, somados, representam desafios que, em vez de me
desestimular, acabaram funcionando como incentivo para a produção de um
trabalho que pusesse esses saberes em diálogo.
1.1
O universo (quase paralelo) dos Disability Studies
“Os Disability Studies reconfiguram o estudo da deficiência enfocando-a como
um fenômeno social, construído socialmente, metafórica e culturalmente,
utilizando o modelo de grupo minoritário. Eles examinam idéias ligadas à
5
Na busca desse tipo de referência me filiei ao GECEC - Grupo de estudos sobre Cotidiano
Educação e Cultura(s) - coordenado pela professora Vera Maria Candau.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
14
deficiência em todas as formas de representação cultural através da história, e
examinam políticas e práticas de todas as sociedades para entender os
determinantes sociais, mais do que os determinantes físicos e psicológicos, da
experiência da deficiência.” (Linton apud Longmore 1995:7).
Embora os autores de Disability Studies sejam, em grande medida,
desconhecidos no Brasil
6
, pode-se dizer que este é um campo em expansão, com
oito centros acadêmicos estabelecidos no hemisfério Norte
7
oferecendo formação
- incluindo mestrado e doutorado - com periódicos de referência; seminários e
congressos internacionais anuais
8
. As abordagens dos programas acadêmicos em
DS são diversas e, às vezes, divergentes entre si. No entanto, alguns pontos em
comum ajudam a conferir uma identidade de campo:
a) Os DS operam uma distinção entre impairment (lesão física
9
) e disability
(invalidação social), privilegiando a segunda como objeto de estudos, usando
os saberes das ciências humanas para entender como a sociedade constrói
mecanismos de classificação e hierarquização dos indivíduos que apresentam
algum tipo de lesão (impairment). Nesta linha, os DS devem ajudar a desvelar
valores e explicitar a construção social da deficiência pela cultura hegemônica,
utilizando o modelo social onde antes era empregado o modelo médico, que
definia a deficiência como um problema individual a ser tratado e curado.
b) Como os DS nascem do movimento social, espera-se que sua produção sirva
como ponte (ou rampa de acesso) entre a comunidade acadêmica e a
comunidade deficiente
10
.
6
Apesar do Modelo Social da Deficiência ser, cada vez mais, utilizado como parâmetro para
pensar a educação inclusiva, muito pouca articulação das reflexões mais políticas e pouco uso
do potencial analítico dos DS. Nenhum dos principais autores de DS está traduzido para o
português, pelo menos, no Brasil.
7
Academic Programs or Centers of Disability Studies. Canadian Centre on Disability Studies
Center for Disability Studies at the University of Hawaii
Disability Research Unit at University of Leeds, U.K.
Disability Studies concentration at Syracuse University
Center for Disability Research at Uppsala University
Institute for Disability Policy at the University of Southern Maine
Institute for Human Development, at Northern Arizona University
Institute on Disability, at the University of New Hampshire
Department of Disability and Human Development, at the University of Illinois at Chicago.
8
Tomei como guia básico para escolha dos textos e autores de DS o periódico internacional mais
tradicional da área: Disability Studies Quarterlyhttp://www.dsq-sds.org/ publicado pela Disability
Studies Society http://www.uic.edu/orgs/sds/
9
Embora a tradução mais utilizada por autores que trabalham com o modelo social no Brasil para
impairment seja incapacidade (Sassaki, 2004), opto neste texto pelo termo lesão, utilizado por
Medeiros e Diniz (2004), por achar que ele é mais acurado para descrever uma limitação física.
10
Essa relação entre a academia e os movimentos sociais não se dá sem tensões, como discutem
Barnes and Mercer 1996.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
15
c) A perspectiva, os insights e a experiência das pessoas com deficiência devem
informar as pesquisas, produzir novas questões e gerar novas compreensões.
Por isso os programas valorizam a presença de alunos e professores com
deficiência, que articulem sua experiência à sua formação.
O modelo social da deficiência põe em questão, entre outras coisas, a
forma como a prática discursiva atua na atribuição de significados sobre o corpo
que apresenta alguma lesão. Concordo com Corker (2002:196) que, apesar deste
modelo ter conseguido elevar a deficiência a uma categoria política, a escolha de
auto-nomeação através do termo disability (deficiência) reforça a linha divisória
entre eficientes e deficientes, mantendo, através do prefixo dis-ability ou d-
eficiência, uma associação contínua com a idéia de falta que vai ser confrontada
pelos discursos contra-hegemônicos. Essa questão traz conseqüências, como
veremos nos casos empíricos, e torna confusas as análises, que tomamos como
ponto de partida uma categoria um tanto contraditória a deficiência que, no
modelo social, nunca é um atributo da pessoa. Mesmo assim, opto, neste trabalho,
pela designação pessoas com deficiência, que identifica o consenso atual dos que
confrontam as associações pejorativas, colocando as pessoas em primeiro plano,
sem negar a deficiência e nem tomá-la, automaticamente, como o traço mais
marcante dos indivíduos que apresentam uma lesão.
Interessa ressaltar aqui, como as palavras ganham historicidade e vão
formando discursos que configuram possibilidades de ser, agir e pensar em
determinado contexto. É pela via das práticas discursivas que configuram
identidade e alteridade que seguimos nossa jornada.
No texto Disability, Identity and Difference Tom Shakeaspeare
(1996:96/97) propõe uma tipologia
11
das opções de identidade presentes nos
contra-discursos da deficiência como lugar social:
1 O modelo social que foca a deficiência como uma relação entre pessoas com
lesão e uma sociedade discriminatória. A deficiência é definida como o resultado
de barreiras impostas por um ambiente (uma sociedade) incapacitante. As
11
Shakeaspeare considera um quarto tipo que seria resultado de métodos de pesquisas sociais de
survey, mas, como seus exemplos são muito específicos do contexto inglês, acho que não ajudam
à nossa discussão. E, no caso da definição contraposta à normalidade estabelecida a partir dos
métodos estatísticos, creio que eles estão contidos na tipologia Weberiana/Foucaultiana.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
16
estratégias de ação passam a ser a remoção de barreiras concretas e atitudinais,
visando à inclusão. Tudo que as pessoas com deficiência querem é ser tratadas
como iguais, não devendo haver nenhuma distinção entre quem tem ou não lesão.
2 O modelo de minoria que define as pessoas com deficiência como um grupo
oprimido. Esse modelo tem semelhanças com alguns movimentos estadunidenses
de auto-organização de negros, feministas, gays etc., e pode advogar, por
exemplo, maiores recursos orçamentários, políticas de ação afirmativa, medidas
anti-discriminação etc. O efeito colateral pode ser o reforço daquilo que constitui
a deficiência como questão social.
3 Uma abordagem Weberiana ou Foucaultiana da deficiência como uma categoria
da política social. Essa abordagem vai privilegiar a constituição histórica dos
processos institucionais de nomeação, separação e segregação das pessoas com
lesão.
4 O modelo da deficiência como categoria cultural. Essa abordagem se relaciona
aos estudos de Foucault e também de Sontag enfocando as formações discursivas
onde se localizam termos preconceituosos, estereótipos e criação de sentido. A
noção de alteridade é requerida para pensar como os processos de negação,
projeção (e identificação/posicionamento - eu completaria), o acionados na
construção cultural da deficiência.
Esses tipos não são estanques e, de alguma forma, levam o trabalho
acadêmico a uma direção contrária à do movimento social. Enquanto a academia
busca compreender a complexidade e as nuances envolvidas nas análises da
deficiência como construção social, o ativismo político busca unificar pautas de
luta, mesmo que isso signifique passar por cima das nuances apontadas nos
estudos. De qualquer forma, a questão de identidade e diferença tem perpassado
os Disability Studies, configurando trabalhos sobre a disrupção biográfica
12
(Gavin, 2003); sobre a perspectiva de visão de mundo advinda da condição da
deficiência (Pfeiffer, 2003) e sobre a construção de identidades (Linton, 1998,
Corker & French 2002). Os objetivos deste tipo de estudo têm sido:
a) compreender como as pessoas recusam, acolhem e se fazem sujeitos dos
discursos circulantes na cultura,
12
Disrupção biográfica seria o impacto na vida social e na identidade pessoal representada pela
aquisição tardia da deficiência.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
17
b) pesquisar a emergência de formas contra-hegemônicas de viver a
deficiência, ampliando as possibilidades de experimentação dessa condição e
c) pensar em políticas e saberes que possam desafiar o lugar subjugado das
identidades marginais.
É minha intenção, neste trabalho, investigar indícios da existência de um
discurso contra-hegemônico sobre a deficiência no Brasil discutindo suas
condições de possibilidade/impossibilidade.
1.2
Delimitando a questão de pesquisa
A investigação sobre o movimento civil pelos direitos das pessoas com
deficiência foi-me conduzindo ao que penso ser uma questão relevante para as
pessoas que, por algum motivo, passam a ‘ter deficiência’; para os pais que geram
um filho com lesão ou para os professores que recebem alunos com deficiência
nas salas de aula, que é a seguinte:
Que lugares sociais estão disponíveis para as pessoas com deficiência, na
nossa sociedade?
Por lugares sociais entendo posições materiais e simbólicas construídas
historicamente nas relações de luta entre grupos. Em outras palavras, a percepção
das possibilidades de aprendizagem, participação e ‘independência’ dos filhos,
alunos e de si mesmo se insere nas ordens de discurso autorizadas pelos cânones
culturais (representações correntes). A literatura educacional é pródiga em
trabalhos que mostram tanto a influência da aspiração escolar dos pais nas
trajetórias escolares dos filhos (Weber, 1976, Zago, 1994, Nogueira, 2000), como
também a alta correlação entre expectativa de professores e desempenho dos
alunos. Como ilustrada o conceito de profecia auto- realizadora (Rosenthal e
Jacobson, 1981), as predições ou profecias dos professores sobre fracasso e
sucesso dos alunos tendem a se cumprir de fato, ou seja, a forma como os alunos
são posicionados pelos professores (como talentosos, aptos ou inaptos) costuma
repercutir fortemente nas suas trajetórias de vida escolar. Assim, quando a
alteridade deficiente irrompe na família, na escola e no espaço público, ela vai se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
18
defrontar com os saberes que informam o senso comum (leigo ou douto) do que
pode um cego, um surdo, um paralisado cerebral ou outro tipo de lesão, numa
sociedade como a brasileira.
Como as representações sociais são construídas historicamente, as análises
arqueológicas de objetos como o patológico e o anormal (respectivamente
Canguilhem, 2002 e Foucault, 2001) nos ajudam a entender como a categoria
deficiência vista como uma das encarnações da anormalidade ajudou a
conformar o duplo normal-anormal. A emergência dos ‘indivíduos a corrigir’
(parente mais direto dos deficientes de hoje), no século XVIII, é contemporânea à
instalação das técnicas de disciplina baseadas na interdição e no internamento
(Foucault, 2001:415). Esta sincronia é ilustrativa da função que a posição anormal
tem de sustentar a posição normal como desejável, uma vez que à anormalidade
são reiteradamente associados atributos de culpa, incapacidade, pouca eficiência,
baixa produtividade, dependência, assexualidade ou perversão, custo sem
benefício, pesadelo, feiúra etc.
Passado mais de um século do nascimento técnico-institucional da
cegueira, da surdo-mudez, dos imbecis e demais ancestrais dos atuais ‘portadores
de deficiência’, começaram a se formar as condições de possibilidade de
deslocamento e subversão dos sentidos pejorativos, que foram despejados sobre
quem ficou trancafiado no porão da anormalidade por fugir às especificações do
‘corpo normal’. O movimento de subversão de sentidos historicamente resistentes
tem se valido da desestabilização da identidade homogênea do sujeito ocidental,
que vem sendo problematizada por autores de diversos campos de saber.
Hall (2003b:20) argumenta que o ‘jogo das identidades’ está configurando
uma mudança estrutural ao desestabilizar tanto o sujeito do iluminismo quanto o
sujeito sociológico (regido pela identidade unificada pelo conceito de classe
social) e, fazer insurgir o sujeito pós-moderno, que tem como pressupostos: a) as
identidades são contraditórias, cruzam-se e se deslocam mutuamente; b) as
identidades o fragmentárias, isto é, uma erosão da ‘identidade mestra’, de
forma que os variados interesses e as variadas identidades das pessoas podem ser
reconciliadas e representadas e c) as identidades são móveis, elas podem ser
ganhadas ou perdidas, sendo, consequentemente, objeto de disputa política.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
19
Giddens (2002:32) também se dispõe a pensar como as mudanças dos
hábitos e costumes globalizados alteram a vida cotidiana, impactando desde a
organização de tempo e espaço, até a assunção do conhecimento como provisório
e da incerteza como parte da realidade. Este autor nos ajuda a pensar como as
mudanças nos processos macro sociais interferem no que Foucault (1994) chama
de experiência de si’, isto é, na construção de identidade do self, obrigando as
pessoas a se reposicionarem, uma vez que os parâmetros conhecidos vão sendo
deslocados e desconstruídos e novas orientações para nossas vidas vão sendo
arquitetadas. Para transitar na incerteza sem se desmanchar, Giddens (1991:189)
propõe que sejam enfrentados quatro dilemas: a) unificação versus fragmentação,
ou seja, manter a capacidade de “reconstruir e proteger a narrativa de identidade
do selfdiante das mudanças e rupturas; b) impotência versus apropriação, diante
do sentimento de impotência em relação ao mundo social amplo e diverso,
apropriar-se dessa impotência para reconstruir sua ação
13
; c) autoridade versus
incerteza, capacidade de lidar com situações onde as estruturas de autoridade
estejam ausentes ou onde haja mudança de tradição e d) experiência personalizada
versus co-modificada, em que narrativas de construção do self devem levar em
conta a experiência pessoal influenciada pelas relações (tendo o consumo um peso
importante) no mundo globalizado.
Admitindo todas essas transformações, podemos concordar com a tese de
Skliar (2003), análoga à declaração nietzchiana - ‘Deus está morto’, de que a
‘mesmidade’ cessou, mas não acabaram seus devotos.
As conseqüências da morte da ‘mesmidade’ e da liberação de ‘outridades’
se faz sentir na mídia, nas artes, na literatura e na academia (especialmente na
linha dos Estudos Culturais), onde novos atores e novos saberes começam a
desalojar os regimes de verdade
14
que sancionavam apenas um tipo de
sexualidade, um tipo de feminilidade/masculinidade e um padrão de normalidade.
No entanto, pesquisas desenvolvidas no contexto de sala de aula (Moita Lopes e
13
Há aqui parentesco com a idéia de assumir a própria incompletude constitutiva do humano como
meio de construção de um novo diálogo (Souza Santos, 2003 e Laclau, 1996 e 2000a)
14
Adoto aqui a noção de regime de verdade desenvolvida por Foucault (1981:12):
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos
de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
20
Fabrício 2004:8/9) observam o desenvolvimento de forças muito conservadoras
nos discursos entre alunos e professores, tentando barrar as ‘vertigens’ da
transformação das identidades sociais que se passam fora do ambiente escolar.
Penso que este é um ponto de reflexão importante para os educadores, em
especial para a educação das pessoas com deficiência, por ter sido constituída e
pautada no modelo dico, mantendo os alunos com necessidades especiais’ na
posição de ‘indivíduos a corrigir’, numa perspectiva assimilacionista que
despotencializa a organização de movimentos que buscam a transformação
social/escolar mais ampla.
É preciso compreender que, da produção de certas formações discursivas
num nível global, sua distribuição em vários locais até serem consumidos por
determinados atores sociais, várias transformações se dão. Significa que o trajeto
que o discurso percorre das instâncias de produção ao seu consumo requer
operações de negociação de sentido que são, em última instância, processos de
aprendizagem. Por essa via podemos dizer que a experiência de identidade é um
processo de aprendizagem, entendendo que a aprendizagem não é a
acumulação de habilidades e informações, mas sim um processo de tornar-se uma
certa pessoa ou, ao contrário, evitar tornar-se uma certa pessoa (...)” (Wenger,
1998:215 apud Fabrício, 2002:146). Essa associação entre aprendizagem e
construção de identidade é algo que merece atenção dos educadores.
Assim, situada a partir do campo educacional, nossa pergunta básica pode
ser desdobrada nas seguintes:
Que posições de sujeito o discurso educacional destina para pessoas com
deficiência, em nossa sociedade?
e,
Que posições são acionadas pelas pessoas com a experiência da deficiência ao
narrarem seu processo de escolarização em nossa sociedade?
Essa perspectiva de cruzar as duas vias, a que vai do discurso
institucionalizado sobre a educação de pessoas com deficiência e a que parte da
experiência de pessoas com deficiência, pareceu-me bastante promissora e
apontou para a necessidade de uma abordagem empírica articulada à teoria.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
21
1.3
A deficiência vista como uma posição social
Na busca de referências que pudessem ajudar a responder as perguntas
acima, o objeto da pesquisa foi se delineando. O primeiro movimento foi
identificar os discursos que disputam hegemonia em relação à educação das
pessoas com deficiência, tentando identificar suas fontes e sua repercussão. Antes,
porém, apoiada em Dubar (1998) julguei pertinente tentar cartografar as "posições
objetivas"
15
(demográficas e de escolarização) desse grupo, no Brasil, para ajudar
a contextualizar as categorias de identidade institucionais e individuais.
Situando os brasileiros com deficiência
A possibilidade de identificação de grupos específicos de indivíduos no
conjunto da população e sua articulação como uma minoria, depende de estudos
estatísticos válidos
16
. A Fundação Getúlio Vargas e a Fundação Banco do Brasil
produziram (Neri et alli, 2003) um estudo quantitativo inédito para traçar os
Retratos da Deficiência no Brasil, utilizando dados do Censo 2000 do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O que aparece é que cerca de
14,5% da população brasileira são PPDs [pessoas portadoras de deficiência] -
cerca de 24,5 milhões de pessoas.” Chama a atenção o fato dessa nova taxa oficial
ser 12 vezes superior à registrada nos levantamentos anteriores, devido à mudança
de conceituação de PPDs e da metodologia na coleta das informações.
Entre os que defendem os direitos deficientes circula o argumento de que,
para cada pessoa com deficiência existem, pelo menos, duas outras diretamente
envolvidas com a questão, o que triplicaria o número de beneficiários potenciais
das políticas voltadas para esta população. Outra questão, é que os números
15
Utilizo o termo de Claude Dubar – posições objetivas pensando no valor atribuído pelos
sistemas públicos de classificação das posições sociais, associadas a status, rentabilidade de
títulos e diplomas institucionais, prestígio e outras características utilizadas na sociologia. Nunca é
demais dizer que o caráter ‘objetivo’ dessas posições é fruto de um processo de objetivação no
qual colaboram também os saberes sociológicos.
16
Lembro aqui que a relação entre deficiência e a curva de Gauss, como mostra o ensaio de Davis
Enforcing Normalcy (1995), nunca foi das mais amistosas, por ter sido um dispositivo
fundamental na separação entre normais e anormais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
22
oficiais ainda são recebidos com suspeição, como faz o CEDIPOD - Centro de
Documentação e Informação do Portador de Deficiência:
‘(…) no site U.S. Census, do Governo Americano, podemos ver que o Censo de
1995 encontrou 20% de pessoas com algum tipo de deficiência. Ora! Se nos
Estados Unidos são 20%, como acreditar que aqui somos menos que isso, com
todo nosso histórico de pobreza, desnutrição e a falta de prevenção?
Continuamos esperando que o IBGE e o governo do Brasil cheguem a números
mais próximos da realidade ao contar os portadores de deficiência. assim
teremos políticas públicas e planejamento na atenção deste considerável
segmento populacional, até hoje desconhecido e desprezado.’ (Bianchi 2004)
O presidente do IBGE, Eduardo Pereira Nunes não invalida os números
atuais, mas assume que dificuldades nos levantamentos dos dados relativos a
este segmento:
‘Embora o Brasil tenha incluído perguntas sobre deficiência desde o primeiro
censo, em 1872, ficou boa parte do século passado sem buscar novos dados
uma interrupção encerrada em 1991. Ficamos 50 anos sem pesquisa e agora ela
é feita de dez em dez anos. As informações que temos ainda são insuficientes.
Para avaliarmos as políticas públicas precisamos de informações periódicas. A
principal dificuldade para fazer levantamentos sistemáticos não é oamentária,
mas de qualificação’·. (A tarde on line 19/09/2005).
Ao problema de qualificação, referido por Nunes, soma-se a preocupação
de Marcelo Medeiros (2004:12) sobre a necessidade de criar uma cultura para
incluir perguntas sobre deficiência, ao lado das tradicionais perguntas sobre idade
ou sexo, e também nos questionários de avaliação de escolas: “Necessitamos criar
uma cultura para inserir, por exemplo, perguntas sobre a inclusão nas escolas,
do mesmo modo que perguntamos sobre bibliotecas, número de professores etc.”
É interessante notar que a qualificação e a mudança cultural são os
principais obstáculos citados por estatísticos para a inclusão de perguntas sobre
deficiência nos estudos demográficos. Esses obstáculos nos remetem à
complexidade de pesquisar um grupo que reúne situações spares como a dos
cegos, dos surdos, dos autistas, de idosos, de sindrômicos etc. No caso da
educação, as necessidades educativas especiais incluem também pessoas com
altas habilidades (também chamados super dotados). A questão numérica é
importante, mas não é suficiente para definir um grupo como minoria, uma vez
que esta palavra embute um duplo registro que nem sempre aponta para a mesma
direção:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
23
a) o registro quantitativo, isto é, grupos que possuem um menor número de
membros e;
b) o registro de acesso ao poder, isto é, grupos que podem até ter um número
expressivo de membros, mas têm menor domínio dos mecanismos de poder.
Na História do Brasil, as elites político-empresariais, apesar de
numericamente minoritárias, monopolizam os recursos econômicos e culturais.
Em contrapartida, grupos numerosos, como negros e mulheres, sofrem
discriminação econômica e cultural, o que deixa embaralhados esses dois
registros. Assim, a discussão de fundo que atravessa o modelo de minoria é sobre
as formas de se obter igualdade de direitos em sociedades desiguais.
Se olharmos o problema através de um referencial mais clássico, de
orientação marxista, diríamos que o problema é de exploração, privação e
marginalização econômica de determinadas classes sociais, cujas raízes estão
assentadas no modo capitalista de produção. Contra esse tipo de injustiça seria
necessário redefinir a estruturação político-econômica, a distribuição dos ganhos e
a organização social do trabalho. O socialismo seria a saída do problema. No
entanto, as análises da desigualdade baseadas nesse tipo de visão nem sempre
contemplam a materialidade do universo simbólico - com toda carga de
discriminação, dominação cultural e naturalização de privilégios presentes nos
discursos. Assim, a definição de minoria
17
, ao destacar a idéia de ‘identidade
discriminada’ traz a questão da identidade cultural para a esfera da justiça,
passando a requer ações de reconhecimento, reparação e valorização de outras
formas de estar no mundo. Significa dizer que ao deslocar a questão identitária de
uma abordagem de auto-estima ou auto-realização, o modelo de minoria (étnica,
sexual, lingüística etc.), reconfigura a análise das identidades culturais como um
direito político/social.
“É injusto que a alguns grupos ou indivíduos seja negado o status de atores
sociais plenos, simplesmente em conseqüência de padrões de valores culturais
17
Segundo a Declaração dos Direitos das Pessoas pertencentes a Minorias Nacionais, Étnicas,
Religiosas ou Lingüísticas da ONU (1992), cada sociedade fica encarregada de propor e
desenvolver interpretações do que vem a ser ‘minoria’. Maia (2003) considera que, apesar de
problemática, a definição contida na Declaração chega a pontos importantes, como o de identidade
discriminada, ou seja, o entendimento de que as minorias seriam os “grupos distintos dentro da
população do Estado, possuindo características estáveis, que diferem daquelas do resto da
população; em princípio, numericamente inferiores ao resto da população; em uma posição de não
dominância.”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
24
institucionalizados, em cuja construção eles não tiveram igualdade de
participação.” (Unesco, 2000: 55)
A dimensão dos direitos culturais complexifica a própria idéia de justiça,
de forma que a luta pela redistribuição de bens materiais entre grupos e classes
passa a ser cruzada pelas lutas por reconhecimento de formas não hegemônicas de
existir, ou seja, pelo direito às diferenças de credo, opção sexual, lingüísticas,
raciais, [corporais eu diria] e outras, sem que isso implique em discriminação.
O Brasil tem uma conformação própria para se pensar o modelo de
minoria, por ser um dos países de maior índice de desigualdade de poder e
recursos materiais entre grupos, em todo o mundo
18
e uma cultura política que
naturaliza os privilégios de poucos. Nesse contexto, os nossos debates sobre
discriminação serão necessariamente atrelados ao de desigualdade em termos de
distribuição, priorizando os grupos submetidos à dupla opressão.
Pois bem, para combater as injustiças é preciso mostrar as evidências de
que elas existem e também demonstrar os processos históricos de sua produção.
assim, os grupos subjugados podem construir argumentos capazes de perfurar
as pequenas mesquinharias cotidianas que ajudam a produzir tantos infernos
evitáveis (Lacerda, 2005 b :159). E quais são as evidências de que as pessoas com
deficiência são alvos de injustiça?
Como mencionado, as estatísticas - argumento de prestígio da
racionalidade que vivemos - apresentam muitas lacunas com relação à população
com deficiência. Endereçada a esta falta de saber
19
, a equipe de Discapacidad y
Desarrollo Inclusivo, Región de Latinoamérica y El Caribe, do Banco Mundial,
vem coordenando estudos que demonstram que uma correlação estreita entre
deficiência, pobreza e invisibilidade social, de forma que as injustiças
econômicas, sociais e culturais se sobrepõem e se retro alimentam.
‘No mundo todo, a deficiência afeta a pelo menos 600 milhões de pessoas, das
quais 400 milhões habitam os países em vias de desenvolvimento. 80% das
18
Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada pelo
IBGE em 2003, o índice de Gini do Brasil atingiu 0,555. Isso significa que os 10% ocupados com
maiores salários receberam 45,3% do total da massa salarial (soma de todos os salários pagos no
ano), enquanto que os 10% ocupados com menores salários receberam apenas 1% do total da
massa salarial.
19
A partir de Foucault sabemos que nesta falta e em todo excesso de saber se expressa algum
tipo de poder.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
25
pessoas com deficiência e 87% das crianças com deficiência vivem em países do
hemisfério sul. Na América Latina e Caribe estima-se que vivam, pelo menos, 79
milhões de pessoas com deficiência, sendo que 82% destas são pessoas
consideradas pobres’. (Bieler (org), 2004).
O círculo gira assim: a pobreza predispõe às doenças, ao atendimento
médico precário e à falta de segurança, o que aumenta as ocorrências de lesão. Por
seu turno, as pessoas com lesão precisam de uma série de serviços específicos,
tais como: ajuda profissional multidisciplinar; materiais adaptados; cuidadores
etc., que oneram o orçamento e predispõem famílias e indivíduos com deficiência
a uma mobilidade social descendente. A baixa escolaridade e a conseqüente falta
de qualificação para o trabalho ajudam a manter a correlação pobreza-deficiência.
A pobreza e a deficiência podem formar um círculo vicioso difícil de romper,
onde as condições de pobreza aumentam a deficiência e, quando não se atendem
as necessidades de maneira integrada, a deficiência aumenta a pobreza.’ (Bieler,
2004:3).
Esse ciclo vicioso se converte em um ciclo de invisibilidade
20
que se
reproduz na seguinte lógica:
pessoas com deficiência ‘escondidas no quarto de trás’, isto é, que não
conseguem sair de casa e, portanto, não são vistas pela comunidade;
por não serem vistas pela comunidade, deixam de ser reconhecidas como parte
dela;
por não serem reconhecidas como parte dela, a comunidade não demanda bens,
direitos e serviços específicos que garantam acesso à participação das pessoas
com deficiência;
sem ter acesso a bens e serviços, não como serem incluídas na sociedade e
uma vez não sendo incluídas, continuam invisíveis, alvo de constante
discriminação.
Um enunciado comum no discurso das pessoas com deficiência é que as
piores barreiras, aquelas que realmente emperram suas vidas, o são as físicas e
sim as invisíveis. Constituem-se barreiras visíveis todos os impedimentos
concretos, entendidos como a falta de acessibilidade dos espaços. As invisíveis
compõem a forma como as pessoas são vistas pela sociedade, na maior parte das
vezes representadas pelas suas deficiência e não pelas suas potencialidades
(Almeida Prado, 1997:1).
20
Adaptado do European Disability Fórum Issues, 2003 em Bieler, 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
26
Embora os obstáculos arquitetônicos sejam o grande símbolo das barreiras
visíveis, o fantasma mais concreto que assombra este grupo é a pobreza. As
barreiras atitudinais funcionam como dispositivos de invisibilização via
discriminação, preconceito, exclusão e segregação (que tentam capturar também
quem se dispõe a pensar este tópico subteórico e desprestigiado).
Situação Educacional das pessoas com deficiência no Brasil
Na América Latina e Caribe, somente 20% a 30% dos meninos e meninas
com deficiência estão na escola (Bieler, 2004). As causas desse índice baixíssimo
estão na grave falta de serviços essenciais para acesso escolar, tais como:
transporte adequado, professores capacitados, materiais didáticos e infra-estrutura
escolar adaptada. “Além desses obstáculos evidentes, as barreiras psicológicas e
o estigma social adicionam mais problemas, que impedem os alunos com
deficiência de obter uma educação inclusiva de qualidade” (idem:4).
No Brasil, segundo Odeh (2000 apud Prieto 2004:3), as estimativas e
referências sobre o atendimento educacional das crianças com deficiências são
bastante variadas, mas a análise das informações disponíveis revela que na
melhor das hipóteses, o índice de atendimento escolar dessa população não
ultrapassa a 10%. Essa variação nos dados, revela a necessidade de se investir
na construção de instrumentos que permitam levantar informações precisas sobre
essa população
21
.
Segundo o Censo Escolar 2004 (MEC/INEP), tem havido nos últimos anos
elevação na taxa de inclusão de estudantes com necessidades educacionais
especiais em classes comuns e redução no ritmo de crescimento das matrículas em
escolas exclusivamente especializadas. Em 1998, quando teve início a coleta
sobre essa modalidade de ensino, a matrícula inclusiva equivalia a 15% do total.
Em 2002, representava 24% e, em 2004, chegou a 34% dos alunos com
deficiência.
21
Embora considere importante a produção de informação sobre esta população para o desenho e
implantação de políticas públicas, na perspectiva teórica adotada neste trabalho, os dados
estatísticos são vistos como interpretações que ajudam a construir a realidade e não um mero
retrato da realidade.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
27
Essas conquistas recentes ainda são insuficientes para uma mudança
substantiva na situação do alunado com deficiência, que ficou, segundo o próprio
MEC, relegado a iniciativas particulares com forte sentido assistencial e
terapêutico, sendo apenas apoiadas pelo Estado. Embora desde 1854 existam
instituições educativas destinadas às pessoas com deficiência (Imperial Instituto
de Meninos Cegos) e comissões específicas estejam incorporadas ao MEC desde a
década de 60, “até 1990 as políticas de educação especial refletiram,
explicitamente, o sentido assistencial e terapêutico atribuído à educação especial
pelo MEC. A partir de 1990, surgem indicadores da busca de interpretação da
Educação Especial como modalidade de ensino. Entretanto, é preciso salientar
que as principais propostas e planos mantêm-se numa abordagem reducionista,
interpretando a Educação Especial como questão meramente metodológica ou de
procedimentos didáticos.” (Mazzota, 2001: 200).
Na prática, tivemos mais de um século de ‘educação’ segregada, a cargo
de instituições privadas que, no vácuo da ação estatal, assumiram a organização
de serviços nas áreas de direito, saúde, comunicação e reabilitação das pessoas
com deficiência. Essa situação faz com que tenhamos, hoje, uma série de
instituições privadas com experiência técnica na educação de pessoas com
necessidades especiais, mas sem a lógica da inserção cidadã das crianças na
sociedade ampla. Por outro lado, temos uma rede de educação pública que recebe
cada dia uma clientela mais heterogênea e raramente tem as condições necessárias
para fazer um trabalho de qualidade que considere suas diferenças.
Tendo este panorama em tela, a luta pela inclusão prevê que o Estado
assuma sua parcela de responsabilidade e providencie políticas públicas que
garantam os direitos constitucionais dos brasileiros, inclusive educação de
qualidade para os que tenham necessidades diferenciadas.
Pois bem, os alunos com deficiência que conseguem ultrapassar todas as
barreiras seletivas do sistema escolar e chegam à universidade encontram a
seguinte situação: a composição da população universitária brasileira é de
3.887.022 alunos, sendo que 5.078 (0,13%) têm deficiência (MEC, 2005).
Considerando que, segundo o IBGE, 14,5% da população brasileira apresentam
algum tipo de deficiência e que aproximadamente 9% da população de 18 a 24
anos chegam à universidade, é possível perceber que uma subrepresentação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
28
deste tipo de aluno
22
em relação à sua proporção na sociedade. O Governo Federal
reconhece esta defasagem e propôs, como medida corretiva, o Programa Incluir,
lançado em 2005, que visa ao cumprimento dos requisitos de acessibilidade
determinados no Decreto Presidencial n
o
5.296, de 2004. Tal iniciativa tem por
base a seguinte justificativa:
O Ministério da Educação vem reinterpretando o conceito de Educação
Superior, afirmando ser um direito de caráter público. Nesse sentido, a Sesu
[Secretaria de Educação Superior] vem realizando ações que garantam o acesso
e a permanência de populações em situação de desvantagem nas Instituições
Federais de Ensino. A exigência de que as IFEs atuem na diminuição das
desigualdades, bem como promovam políticas de ações afirmativas são exemplo
de ações inovadoras. (...) Dados do Censo Universitário 2003 (INEP)
demonstram a baixa inserção desse extrato populacional [pessoas com
deficiência] nos ambientes acadêmicos. É necessária a promoção de ões que
promovam a Inclusão das pessoas com deficiência nos ambientes acadêmicos,
em condições de igualdade.” (MEC, 2005)
Antecipando-se à diretriz federal, algumas universidades públicas
iniciaram a experiência de reserva de vagas (cotas), utilizando como critérios de
elegibilidade: negros, estudantes de escola pública, alunos de baixa renda, alunos
do interior, mulheres, índios e pessoas com deficiência. Segundo levantamento do
jornal O Globo (21/02/2006), em 7 das 23 universidades brasileiras que adotaram
o sistema de reservas de vagas, a categoria portadores de deficiência é
contemplada. Entretanto, enquanto a discussão sobre as ações afirmativas referida
à questão racial ganhou a mídia, as cotas para pessoas com deficiência não tem
tido repercussão. Em 212 matérias relacionadas num site da UERJ que oferece um
clipping de notícias sobre o assunto
23
, nenhuma tematiza as cotas para pessoas
com deficiência.
No entanto, nos fóruns especializados a presença de pessoas com
deficiência na universidade tem repercutido bastante, sinalizando que este terreno
está sendo desbravado
24
. Segundo levantamento de Masini & Bazon (2005), no
22
É difícil distinguir entre os alunos com deficiência aqueles que apresentam lesão congênita, mas
estima-se que eles sejam uma minoria dentro da minoria, uma vez que a seletividade do sistema
escolar vai excluindo os alunos com maior dificuldade. Segundo hipótese do estudo da FGV (Neri
et alli, 2003) o volume de pessoas com ensino superior entre a população com deficiência deve-se
a alta correlação entre envelhecimento e deficiência, sugerindo que boa parte dos graduados com
deficiência passou a ter deficiência num estágio onde tinham completado seus estudos
superiores.
23
http://www2.uerj.br/~clipping/default.htm acesso em 18 de novembro de 2005.
24
Os pioneiros são celebrados: Edson Batista Jr. - Primeiro deficiente visual do estado de Minas
Gerais a cursar jornalismo(Boletim Sentidos 15/12/04), ou o feito de João Vitor Mancini Silvério
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
29
campo acadêmico profissional as pesquisas que acompanham este tipo de
movimento ainda são poucas.
É interessante notar que, muito antes das cotas universitárias, tinham
sido implantadas no Brasil, as cotas para o mercado de trabalho para pessoas
portadoras de deficiência. Conforme dispõe no artigo 36, do decreto 3.298/1999,
que regulamenta a lei de 1989: A empresa com cem ou mais empregados es
obrigada a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários
da Previdência Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência
habilitada.”
Embora a lei de reserva de vagas de trabalho esteja em vigência pelo
menos seis anos, na prática constata-se que a baixa escolaridade dessa população
resulta na baixa qualificação profissional, tornando difícil a empregabilidade
respaldada pelas conquistas legais. Mais uma vez, o caminho da escolaridade e a
importância da universidade são apontados como estratégias decisivas para que
mais pessoas com deficiência possam vir a disputar lugares sociais de maior
prestígio.
1.4
Discursos sobre a educação de pessoas com deficiência no Brasil
Para pensar os discursos educacionais relativos à alteridade/identidade
deficiente, percorri dois caminhos. O primeiro, foi a identificação dos autores de
referência no campo da Educação Especial através da análise da produção do
Grupo de Trabalho em Educação Especial (GT 15) da Associação Nacional de
Pós Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), entre 1999 e 2005. O outro
caminho foi a interlocução com os escritos de Luciana Marques (2001 e 2003)
sobre concepções e sentidos identificados nos discursos de professores de alunos
com deficiência [mental] e nas teses e dissertações da área de educação especial.
Discursos que circulam na ANPEd
Em 2002, na 25ª reunião da Associação, o GT 15 encomendou ao
Professor Júlio Ferreira da UNIMEP/SP um balanço da trajetória e da produção
que, aos 19 anos, passou no vestibular para Educação Física, tornando-se o brasileiro com
Síndrome de Down a entrar para a universidade.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
30
do referido GT nos seus 10 anos de existência (1991-2001). Este trabalho
apresentava o processo de constituição do campo e seus reflexos no grupo e
caracterizava os principais temas apresentados e discutidos.
Quanto à institucionalização, vê-se que a ambigüidade acompanha o grupo
desde sua origem: por um lado, defende-se o reconhecimento de que algo de
específico na educação daqueles que, ‘por razões de ordem sensorial, mental ou
física, não se beneficiam das situações comuns de ensino’, (tentando desvencilhar-
se de ‘interpretações equivocadas’ que identificam educação especial como
instância remediadora do fracasso escolar, legitimando os problemas do ensino
regular). Por outro lado a preocupação de que essa especificidade não sirva
para acirrar a segregação da clientela da educação especial, apontando para a
necessidade de situar sua discussão no âmbito da educação geral.
Quanto aos temas, o autor conclui o balanço, dizendo:
No conjunto de comunicações e trabalhos, predominam os estudos
descritivos sobre os programas de formação profissional seus currículos, sua
produção acadêmica; os trabalhos teóricos sobre desenvolvimento e
aprendizagem de pessoas com deficiência principalmente os alunos deficientes
mentais e auditivos; a prática educacional em escolas comuns com alunos ou
serviços especiais trazendo algumas experiências de integração e uns poucos
estudos de proposição ou avaliação de programas mais amplos.” (Ferreira,
2002:15)
Algumas ausências também foram mencionadas como “os aspectos extra-
escolares da educação especial e as instituições especializadas”. Este balanço dava
pistas insuficientes sobre os discursos em jogo, o que me obrigou a fazer meu
próprio apanhado dos trabalhos do GT, observando, principalmente, quais campos
de saber e quais autores informavam a produção do grupo. Para este fim, fiz uma
leitura transversal dos trabalhos apresentados da 22ª à 28ª reuniões e organizei as
referências recorrentes nas bibliografias.
A primeira constatação é que os Programas de Pós-graduação que têm a
área de concentração em educação especial, imprimem sua marca no grupo, pois,
como é praxe, alunos de pós-graduação costumam citar seus orientadores e
professores do departamento. É interessante notar que a produção inicialmente
concentrada nos centros que têm esta linha de pesquisa consolidada,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
31
notadamente UFSCar e UERJ, vai se diversificando e ampliando para várias
universidades do país
25
.
Rastreando este material, é possível compor uma bibliografia básica do
pesquisador de educação especial. Em termos de fundamentação teórica,
Vygotsky é o campeão absoluto em número de citações, seguido, mais
recentemente, por Michel Foucault. Entre os autores brasileiros mais citados,
pelo menos três tipos de situação aqueles que fizeram trabalhos historiográficos
que ajudaram a fundar o campo da educação especial (Jannuzzi, 1985 e Mazzota,
2001 por exemplo), os que fizeram trabalhos empíricos de referência (Nunes,
Glat, Amaral e Bueno, entre outros) e aqueles que marcam uma posição teórica
que acaba dividindo águas e influenciando a posição dos demais pesquisadores.
Neste último tipo, estão dois autores mais citados no período: Maria Teresa Eglér
Mantoan (coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e
Diversidade [LEPED], na UNICAMP) e Carlos Bernardo Skliar (ex-NUPPES
UFRGS, atualmente na FLACSO-AR). É interessante notar que ambos têm uma
posição crítica em relação à Educação Especial e, portanto, ao GT
26
.
Mantoan representa o discurso da educação inclusiva, na linha da
Declaração de Salamanca
27
e dos tratados internacionais que lançam as bases de
uma Sociedade para Todos. Sua visão é a de que, para incluir as pessoas com
deficiência, toda a sociedade - e conseqüentemente todo o sistema escolar - deve
se transformar. Diferencia e critica as práticas de integração no que elas têm de
condescendência e aposta na visão de uma sociedade onde todos sejam incluídos e
as diferenças sejam vistas como riqueza e como característica inalienável da
diversidade humana. Seus trabalhos iniciais enfocavam sobretudo as pessoas com
deficiência mental e, atualmente, além de orientar teses e dissertações na área,
escreve textos de divulgação sobre a proposta da Educação Inclusiva.
25
Da mesma maneira, nos outros GTs aparecem trabalhos referidos à inclusão e aos alunos com
deficiência.
26
Também é digna de nota a presença marcante de dois autores fora do circuito estritamente
educacional: Romeu Sassaki assistente social e consultor de reabilitação e Cláudia Werneck
jornalista e empreendedora social.
27
Em 1994, mais de 300 participantes, representando 92 países e 25 organizações internacionais,
reuniram-se em Salamanca-Espanha, para a Conferência Mundial sobre as Necessidades
Educativas Especiais: Acesso e Qualidade, visando a aprofundar o objetivo da Declaração de
Educação para Todos redigida em Jontien-Tailândia em 1990. A Declaração e o Marco de Ação de
Salamanca para as Necessidades Educativas Especiais se baseam no princípio da inclusão,
dizendo que as escolas regulares devem acolher todas as crianças, independentemente de suas
condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas, ou outras.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
32
Carlos Skliar aposta numa pedagogia ‘improvável’ da diferença.
Tendo produzido trabalhos de referência sobre os surdos e a surdez, este autor
recentemente centrou suas pesquisas na relação identidade/alteridade ou, nos seus
termos, entre a mesmidade (identidade estabelecida pela normalidade) e outridade
(alteridade como diferença e o duplo da norma). Numa operação de inversão
epistemológica, a compulsão da normalidade em transformar toda diferença em
mesmice passa a ser o objeto de exame seu exemplo paradigmático é a obsessão
ouvintinista de fazer o surdo falar. Em trabalho mais recente (Skliar, 2004), sua
reflexão tem um caráter filosófico mais amplo, sobre a possibilidade de alteridade
na contemporaneidade.
As duas posições advêm de matrizes filosóficas distintas e, apesar de
alguns pontos de contato, podem ser consideradas politicamente antagônicas. De
um lado, existe a proposta de afirmar a diferença, afirmar a possibilidade de uma
relação de alteridade e, de outro lado, a idéia de transformar todas as identidades
em diversidade humana. Com relação às estratégias e práticas, os contrastes ficam
mais marcados. Enquanto o discurso da inclusão apregoa o direito e a necessidade
de todas as crianças (não importa a severidade da deficiência) estudarem em
escolas regulares, com as adaptações físicas e pedagógicas que se fizerem
necessárias, a pedagogia da diferença questiona o status da normalidade e não c
na possibilidade de uma inclusão não subordinada da diferença, sem conflitos. No
caso dos surdos, apóia a afirmação da identificação com a língua de sinais, com a
comunidade de surdos, com um currículo que inclua a história da cultura surda e
assim por diante.
Apesar de considerar essas duas linhas de força constituintes da principal
tensão do campo, ainda uma terceira posição, que é a da integração. Embora
filosoficamente desprestigiada por sua identificação com o modelo médico de
reabilitação, é uma linha que, na prática, tem força e reúne autores que trabalham
numa perspectiva mais clínica ou de desenvolvimento de adaptações e tecnologias
assistivas, visando a fornecer melhores recursos educacionais para ajudar os
alunos com deficiência a aprender, seja em escolas regulares, seja em escolas
especiais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
33
Discursos de Professores, Dissertações e Teses
Na sua tese de doutorado, orientada por Mantoan, Luciana Marques (2001)
vale-se da perspectiva de Eni Pulcinelli Orlandi para analisar discursos
28
de doze
professores de alunos com deficiência mental do ensino fundamental. Para tanto,
ela distingue a coexistência atual de três formações discursivas no tratamento da
diferença imposta pela deficiência:
1 A da exclusão ou segregação, que coloca o sujeito com deficiência como
‘desviante’, tendo como referencial a dicotomia normalidade versus
anormalidade.
2 A da integração, que considera as pessoas com deficiência como ‘diferentes’,
tendo como referencial um determinado padrão social, constitui um
movimento da exclusão em direção à inclusão.
3 A da inclusão, que implica em pensar uma sociedade sem referenciais
determinados, em pensar os sujeitos na sua diversidade.
A análise dos discursos dos professores mostrou que:
Em função do sentido atribuído ao processo de inserção do aluno com
deficiência mental no ensino regular, das condições supostamente necessárias
para que tal processo ocorresse, da pequena contribuição que acreditavam
poder o aluno com deficiência trazer aos seus colegas sem deficiência e das
inúmeras dificuldades encontradas na realização deste processo, as professoras
inscreveram seus discursos na formação ideológica da exclusão do aluno com
deficiência mental, exatamente na direção contrária ao que se pretende, ao
inserir o aluno com deficiência mental na sala de aula regular. (Marques,
2001:166)”
Num trabalho posterior, Marques e Oliveira (2003) buscaram desvelar os
sentidos que estão sendo disponibilizados sobre o processo de inclusão em 4 teses
e 9 dissertações, desenvolvidas nos programas de pós-graduação que têm linhas
de pesquisa relacionadas às pessoas com deficiência: UFJF, UERJ, UFSCar,
UNICAMP, USP E UNIMEP. Utilizando a mesma tipologia de formações
discursivas do trabalho anterior, as autoras perceberam que ‘num mesmo texto, o
sujeito se posiciona em mais de uma formação discursiva, filiando-se ora a uma
28
Embora a base conceitual da análise de discurso seja diferente da que estou utilizando neste
trabalho, penso que a tipologia utilizada e as conclusões dos trabalhos selecionados ajudam a
pensar a disputa de sentidos que está se dando no campo da educação de pessoas com
deficiência no Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
34
posição integracionista, ora inclusivista e, ainda, algumas vezes, se posicionando
entre os que pressupõem a segregação dos deficientes.(pg.7)’
Esta conclusão evidencia que, no processo de apropriações dos discursos
oficiais e hegemônicos, os sujeitos, muitas vezes, o subvertem ou travestem,
reeditando seus sentidos. Outro aspecto a ressaltar, é como a posição adotada pelo
autor informa e localiza o saber que ele constitui. Na tipologia das formações
discursivas apresentadas por Marques, uma idéia de progresso moral de uma
posição segregada, passando por uma integração e chegando à terra prometida da
inclusão. Nesse continuum, tanto a pedagogia da diferença proposta por Skliar,
quanto pela identidade deficiente proposta no âmbito dos Disability Studies, são
alinhados à formação discursiva segregacionista
29
, que retroage em relação aos
avanços já conquistados.
29
Isso fica especialmente claro na análise do trabalho de Andrade (1997) - que questiona o
apagamento das diferenças nas perspectivas integracionistas e é filiada aos que ‘defendem a
segregação como possibilidade’.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
2
Decisões teóricas
2.1
A aparição de Foucault
Nos vários campos que trabalham com o modelo social e ajudam a forjar novas
associações para a deficiência, a convergência que me pareceu mais tida foi a ênfase
crescente no papel constitutivo da linguagem e a recuperação da historicidade dos
objetos conceituais, como anormalidade e normalidade. Tanto os autores dos DS,
quanto os da filosofia política, como os da educação, se referiam, ora en passant ora
centralmente a um autor: Michel Foucault. Essa sincronicidade fez de Foucault uma
referência incontornável neste trabalho.
A) AQUELE QUE TEMATIZOU A ANORMALIDADE:
Apesar dos Disability Studies terem florescido principalmente em terras
anglofônicas, pode-se perceber que o trabalho de Michel Foucault teve - e continua
tendo - grande influência no desenvolvimento das novas abordagens da deficiência.
“Entre outras coisas, ele [Foucault] desvelou a impensável [unaknowledged]
imposição do poder sobre as pessoas, que é inerente à visão medicalizada dos seres
humanos. Muitos escritores continuaram avançando na abordagem conhecida como
‘body criticism’, o estudo das vias pelas quais as culturas impõem vários sentidos,
significados e condições ao corpo humano.” (Monaghan,1998: 5)
1
.
A proposta de entender as verdades sociais, através do que é problematizado em
cada época e lugar, levou Foucault a buscar pistas sobre a gênese e o desenvolvimento
de objetos, tais como a loucura, a clínica e a anormalidade. Desse esforço - normal e
anormal - aparecem como duplos que se desdobram da mesma matriz, a saber, a
concepção moderna de população como uma entidade homogênea. No rastro desta
‘descoberta’, vieram estudos que mostraram como a emergência dos saberes estatísticos
ajudou a estabelecer e sustentar o conceito de normalidade, uma vez que estes saberes
permitem localizar cada indivíduo como mais ou menos desviante, em comparação com
características (categorias) da média de determinada população (Davis, 1995).
1
O sentido desta citação é trazer um historiador dos Disability Studies que reconhece e sublinha a
influência de Foucault neste novo campo, embora possamos discordar da leitura de Monaghan da
concepção foucaultiana de poder apenas como imposição.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
36
A abertura dessa chave explicativa tem sido extremamente produtiva para pensar
a deficiência como um lugar privilegiado
2
para observar a sociedade e seus processos de
subjetivação, por representar a perspectiva de quem se encontra à margem, isto é, como
um ponto fora da curva normal e que, muitas vezes, é interpretado como corpo estranho
que ameaça a saúde do ‘corpo’ da população. É nesse sentido que podemos entender a
alteridade deficiente como analisador espontâneo
3
, na medida em que sua simples
presença nos interroga sobre a natureza do humano, sobre o vínculo que temos uns com
os outros e sobre a normalidade e seus limites.
Um estudo interessante, intitulado Foucault and the Government of Disability
(Tremain, 2005), dedica-se, justamente, a estabelecer as linhas de influência do autor
francês no estado atual dos Disability Studies e a levar adiante esta conexão, uma vez
que Foucault não chegou a ver a emergência do movimento internacional que está
reconfigurando a anormalidade associada aos corpos com lesão.
B) AUTOR QUE TEM CRESCIDO DE IMPORTÂNCIA NAS REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO:
Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo
indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de
discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que
estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de
educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (Foucault,
1996:43/44)
Ao se debruçar sobre os mecanismos de governo das populações, Foucault
adentrou as instituições que disciplinam os corpos e modelam as subjetividades nas
sociedades modernas ocidentais. Dentre as chamadas ‘instituições de seqüestro’, que
inauguraram um novo modo de subjetivação através do confinamento e do trabalho
sistemático e simultâneo sobre os indivíduos e a totalidade, alinham-se: quartéis;
hospícios, hospitais e escolas. Esta visão da instituição escolar tem inspirado trabalhos e
grupos de pesquisa acadêmicos na área da educação brasileira
4
.
2
Este ponto de vista é ilustrado pela seguinte declaração de Alison Lapper em entrevista publicada no
The Guardian www.guardian.co.uk/g2/stories/ do dia 17 de Março de 2004 Pessoas com deficiência
ocupam um lugar único para testemunhar sempre as coisas mais estúpidas.”
3
Analisador é um termo da Análise Institucional que pode ser definido como “aquilo que produz análise.
Nos trabalhos socioanalíticos são privilegiados fatos, falas, acontecimentos que possam produzir rupturas
nos modos naturalizados de lidar com o cotidiano.“ Analisadores espontâneos é um termo proposto por
Baremblitt para significar “dispositivos produzidos pela própria vida histórico-social-libidinal e natural,
como resultado de suas determinações e da sua margem de liberdade”. (Rodrigues, Leitão e Benevides
de Barros [orgs.] 1992).
4
Obras como O sujeito da Educação (Silva 1994) e Foucault e a Educação (Veiga-Neto 2003) são
referências importantes nesta direção.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
37
A visão de Foucault sobre a educação vai além do panóptipo e do
disciplinamento. Para ele as escolas são agências de apropriação e distribuição de
discursos. Assim, Moita Lopes (2002:74), aponta que “as histórias que se contam na
escola têm papel central na produção de quem somos, ao se defrontarem com narrativas
que se contam na família.” Como conseqüência, os professores devem perceber o papel
que desempenham nos processos de construção das identidades sociais na sala de aula,
ao legitimar determinados tipos de identidades e não outros, e perceber a importância de
expor os alunos a narrativas de outros grupos sociais, tais como: negros, indígenas,
gays, lésbicas, idosos, empregadas domésticas, enfermeiras... [pessoas com deficiência,
eu acrescentaria]. Desestabilizar o monopólio das formas de existir, constituiria a tarefa
educacional de base para uma sociedade radicalmente democrática (Laclau, 2000 a).
Kenneth Wain (1996) reforça a importância da educação no pensamento de
Foucault, uma vez que os modos de subjetivação do ser humano estão no centro do
projeto educativo, que, por sua vez, têm importância capital no Projeto da Modernidade
(entendido como um conjunto de atitudes, formas de pensar, sentir e agir que
configuram um ethos).
O interesse de Foucault na educação é muito mais fundamental e direto. De fato, ele
está, como podemos ver, no coração mesmo de todo seu projeto intelectual, no seu
interesse na constituição do self. O que é a educação, afinal, se não o modo como o self
é constituído através de processos de aprendizagem? (Wain, 1996: 352)”
5
Também na área da educação das pessoas com deficiência, tem sido crescente a
influência do autor francês. Conforme o rastreamento bibliográfico que realizei nos
trabalhos apresentados no GT de Educação Especial da Associação Nacional de
Pesquisa em Educação (ANPEd) entre 2000 e 2005, Michel Foucault é um autor teórico
que tem sido cada vez mais citado.
C) AUTOR AFINADO COM A VERTENTE DA FILOSOFIA POLÍTICA QUE ME INSPIRA
Mesmo admitindo que a deficiência seja uma questão política, poucos são os
autores do campo educacional que tecem suas análises de forma articulada com as
ciências políticas. A abordagem de Ernesto Laclau (2000a, 2000b e 2001) enfatiza os
5
A minha única questão aqui é se o conceito de self (eu) é apropriado para expressar o entendimento
foucaultiano dos modos de subjetivação, uma vez que ele nem sempre incorpora a ‘descoberta’ do
inconsciente que, segundo Foucault, teve uma importância inestimável para a reformulação dos saberes
nas Ciências Humanas e dos dispositivos da arqueologia e da genética: A idéia do inconsciente e a da
estrutura da língua permitem responder de fora, por assim dizer, ao problema do eu. Tentei aplicar essa
mesma prática à história.” (Foucault apud Barros da Mota, 2002:343).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
38
discursos, ou melhor, propõe uma Teoria do Discurso para analisar: os novos
movimentos sociais; a construção política das identidades sociais; as formas da luta por
hegemonia; as diferentes lógicas da ação coletiva; a formulação e implementação das
políticas públicas e o fazer e refazer das instituições políticas. Na busca de melhor
compreensão do nosso complexo mundo, tal teoria assume que todos os objetos e ações
são significativos e que seu sentido é conferido historicamente por sistemas de regras
específicos (Howarth, 2000:2). Os Teóricos do Discurso - pela ênfase posta nos
processos de subjetivação e numa concepção de discurso como algo que não apenas
veicula e traduz as lutas, mas como aquilo mesmo pelo qual se luta, como o objeto de
disputa, ou o poder do qual nos queremos apoderar - podem ser vistos como
tributários dos trabalhos de Foucault.
Dentro do Disability Studies, os professores Mitchell e Snyders, da University of
Illinois, Chicago, têm proposto uma aproximação da abordagem filosófica laclauniana,
desenvolvendo pesquisas sobre deficiência como uma subjetividade política ou seja,
analisando as interfaces políticas de gênero, raça, sexualidade, classe, etnia e
deficiência.
2.2
Um quase impasse e uma possível ultrapassagem
Tanto nos volumes dos Caminhos Investigativos (Costa, 2002a e 2002b e 2005),
como no ‘guia de bolso’ Foucault e a Educação (Veiga-Neto, 2003), os leitores são
alertados de que não são todas as perguntas e todos os objetos que se adequam ao
pensamento do mestre francês. Sua adesão a uma corrente de pensamento que rompe
com as metanarrativas sobre a razão; o sujeito autônomo; a filosofia da consciência; o
conhecimento universal e uma concepção da linguagem como representação do real,
implode alguns pilares do discurso pedagógico e do discurso da pesquisa educacional
que vem sendo praticado no Brasil e no mundo, há tempos.
Perguntas pela essência das coisas do tipo - o que é isso?, dão lugar a outras
como: De que forma as ‘coisas’ vieram a ser o que são hoje? Que alternativas podem ser
criadas para que elas venham a funcionar e acontecer de outra maneira?
Indo ao ponto desta pesquisa, como diz Skliar (2003:155), ‘já não espaços
nem tempos para uma descrição que pretenda narrar o que significa ser deficiente.’
Mesmo porque, como demonstrou Foucault, o modo de fixar alguém em determinada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
39
representação é esmiuçá-lo e caracterizá-lo normativamente, isto é, moralmente, que
nenhuma lei impede alguém de ter distúrbios emocionais, de apresentar uma mutação
gênica, gostar do mesmo sexo etc.
Para prosseguir meu caminho investigativo, seria preciso formular questões a
partir de certa visão de mundo, embora as leituras da obra de Foucault comportassem
vários mundos. Mesmo sem a pretensão de criar um sistema filosófico, Foucault
construiu linhas de trabalho que valorizaram as descontinuidades e o depositaram na
coerência um valor maior. Significa dizer, que certas abordagens completamente
incompatíveis com seu legado. Veiga-Neto sugere que ao querer ser tomado como
‘fogos de artifício a serem carbonizados depois do uso’, Foucault aponta para o fato de
que não há muito sentido em alguém se declarar foucaultiano, visto que segui-lo
significa ultrapassá-lo, deixando-o para trás.” (2003:25)
As leituras dos textos do mestre F. me pareceram interessantes e desafiadoras
pelo seu potencial de desconstrução e crítica (ou hipercrítica) e geravam perguntas, que
não comportavam respostas simples, como: Qual o estatuto epistemológico das ciências
humanas depois de todo o trabalho arqueológico de desnudamento da gênese e
estabelecimento desse campo de saber? Qual o sentido da pesquisa, se a verdade é uma
propriedade que emana das entranhas dos jogos de poder e não algo que existe
independentemente das formulações que possamos engendrar? E ainda, como pensar a
prática educacional depois da carga de desconfiança atirada sobre seus bons propósitos?
Foucault não se fiou num ponto exterior de onde poderíamos alcançar verdades
não distorcidas pela ideologia. Ao demonstrar como a verdade se incorpora aos objetos
teóricos através de sucessivos domínios de regras de produção e legitimação de saber,
ele escancarou a contingência e a incompletude das suas próprias contribuições. Isso se
reflete numa nova compreensão de ‘rigor científico’, a saber, assumir que os achados
são interpretações situadas no tempo e no espaço, portanto limitadas e provisórias;
explicitar as referências teóricas e metodológicas - assinalando em que medida seu uso
específico requereu ajustes - e desconstruir as pretensões de uma objetividade
desinteressada e os resquícios de positivismo que possam nos habitar. O sentido do
trabalho intelectual passaria a ser então, trazer de volta à cena o que de arbitrário,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
40
casuístico e provisório nas verdades que guiam as concepções hegemônicas opressivas,
abrindo possibilidades para a criação de modos de vida mais artísticos
6
.
Pois bem, voltemos à questão inicial - Que lugares sociais estão disponíveis
para as pessoas com deficiência na nossa sociedade? Seria esta uma pergunta
compatível com a perspectiva teórica foucaultiana?
Diria que sim, na medida em que tem aproximações com duas questões que
ecoaram fortemente na sua obra. A primeira, é sua interpretação da questão kantiana
Was heisst Aufklärung?, como sendo um momento inaugural em que um filósofo se
propõe, como tarefa, investigar, não apenas um sistema metafísico, mas um evento
histórico recente, e contemporâneo - no caso, o iluminismo. (Foucault 1995:7). A
importância desse texto seria, portanto, circunscrever a pergunta genérica ‘quem somos’
a um momento preciso da história, ao problema do presente, que remeteria ao
desdobramento ‘quem estamos sendo neste preciso momento.’
A segunda é a pergunta nietzschiana o que estamos fazendo de nós mesmos?’
ou o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos (Rago, Orlandi e Veiga-Neto,
2005) - que tem como um desdobramento a pergunta pela alteridade ‘o que estamos
fazemos do outro’
7
.
As duas questões filosóficas recuperadas por Foucault podem inspirar a seguinte
reformulação na questão em desenvolvimento, neste texto:
Que posições de sujeito, as pessoas com deficiência estão ocupando em nossa
sociedade, hoje?
O ‘problema do presente’ sugere uma abordagem das condições que
estabeleceram o que nos fez ser o que somos. Isso exige a localização dos enunciados
que foram constituindo os regimes de verdade que fixam a posição ‘pessoas com
deficiência’, tal como se apresenta hoje, no Brasil. Considerei esse projeto fora dos
meus propósitos, devido às condições necessárias para o trabalho em termos de tempo e
às exigências de experiência com o trabalho arqueológico-genealógico.
Meu ponto de partida era mais imediato. Era preciso, antes, identificar de que
discursos alguns brasileiros com deficiência se faziam sujeitos, ou seja, capturar
algumas formas de ser ‘brasileiro com deficiência’, que ainda não estavam claras e
6
Modos de vida artísticos são uma referência à proposta de ‘fazer da vida uma obra de arte’, tema que
Foucault recupera da tradição filosófica grega e ao qual passa a se dedicar nos últimos anos de vida.
7
As perguntas E se o outro não estivesse aí?” de Carlos Skliar (2003) e “Para qué nos sirven los
extranjeros?” de Larrosa (2002) podem ser vistas como aprofundamentos dessa questão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
41
suficientemente exploradas na literatura nacional e, a partir daí, problematizar o que eles
acolhem, rejeitam e reivindicam pra si.
“Certamente, recusar o que somos e libertarmo-nos dos mecanismos hegemônicos da
sujeição exige atenção cuidadosa a nossas atuais posições de sujeito e às formas pelas
quais cuidamos ou governamos nossos eus. Isso implicaria envolver-nos em práticas de
liberdade, jogos de verdade ou jogos de poder que estejam dirigidos discursivamente a
nos re-construir a nós mesmos, se não a outros, em padrões particulares histórica e
culturalmente propostos ou impostos". (Deakon and Parker 1994: 108)
Porém, eu me dava conta de que a opção de ver o social do ponto de vista de
alguns indivíduos poderia ser conflitante tanto com a perspectiva teórica de Foucault
quanto a dos Disability Studies. Como diz Barret-Kriegel, (1992 in Gore, 1994: 13):
“Ele [Foucault] não coletou lamentos dos pacientes, nem captou as confissões de
prisioneiros ou tentou surpreender os loucos em suas tarefas; ele estudou os
mecanismos da cura e os mecanismos da punição. Ele se voltou para as instituições, ele
se baseou em seus edifícios e em seus equipamentos, ele investigou suas doutrinas e
disciplinas, ele enumerou e catalogou suas práticas e mostrou suas tecnologias...”.
Embora Foucault não tivesse analisado relatos de pessoas - o que lhe interessava
na arqueologia do confinamento, do disciplinamento ou da punição era compreender
como a problematização da loucura, da anormalidade e da sexualidade forjou saberes
que criaram mecanismos de intervenção concreta nos corpos humanos e nas suas almas
(não no sentido metafísico mas da subjetividade) -, se não tivesse havido casos
exemplares de pessoas que foram postas na posição de loucas, a loucura o existiria.
Se o houvesse casos concretos de pessoas tidas como monstros, aleijados e tarados, a
anormalidade não teria os contornos que conhecemos hoje.
Da mesma forma, a tentativa dos Disability Studies de deslocar a deficiência da
esfera privada e individual para a esfera pública de interesse geral
8
, implica em
privilegiar objetos sociais-públicos, tais como: as representações da deficiência
veiculadas pela mídia e a literatura; os mecanismos de educação e intervenção corporal;
os métodos diagnósticos que erigiram as fronteiras entre pessoas com deficiência e sem
deficiência ao longo da história e em determinadas culturas etc. Não obstante, os relatos
de experiência e testemunhos serem uma fonte documental importante nesse campo
disciplinar, é recomendável auto-vigilância, para não reforçar a visão individualista da
deficiência, que tanto obstaculariza a compreensão da sua construção como
problemática social.
8
Os DS fazem um movimento que tem analogias com a estratégia utilizada pelo sociólogo Herbert de
Souza o Betinho - na Campanha Contra a Fome e Pela Vida, isto é, de deslocar a fome do corpo dos
famintos para colocá-la como um problema político concernente a toda a sociedade brasileira.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
42
Meu argumento para desconstruir a pretensa incompatibilidade de trabalhar com
casos individuais numa perspectiva foucaultiana, ou dos DS, parte da compreensão de
que só existe indivíduo na sociedade e sociedade no indivíduo (Elias, 1993). Esta
concepção vai orientar o trabalho de sociólogos como Bernard Lahire e Claude Dubar,
que questionam a dicotomia estrutura/objetividade versus indivíduo/subjetividade.
“Se considerarmos que os seres sociais se constituem constroem suas estruturas
mentais e cognitivas - de forma contínua através de suas relações de interdependência,
livramo-nos, então, da oposição entre ator e estrutura e, com isso, não é tão necessário
dizer que ‘a ordem social se inscreve progressivamente nos cérebros’, que ‘há
correspondência entre as divisões reais e os princípios práticos da divisão, entre as
estruturas sociais e mentais’, ou enfatizar a relação entre ‘o mundo real e o mundo
pensado’, ou dizer que ‘as estruturas objetivas da ordem escolar’ se transoformam,
pela interiorização, ‘em formas escolares de classificação’. Se as estruturas mentais de
um ser social se constituem através das formas de relações sociais e as estruturas
objetivas são uma ‘medida’ particular dessa realidade intersubjetiva, desse tecido de
interdependências sociais, compreendemos realmente, então, que não se trata de duas
realidades diferentes, sendo uma (as estruturas mentais) o produto da interiorização da
outra (as estruturas objetivas), mas duas apreensões da mesma realidade.” (Lahire,
1997:353/354)
Também Dubar (1997) enfrenta a questão da articulação das dimensões micro e
macro sociais, através de um esquema de análise de processos identitários que, por sua
vez, foi apropriado e adaptado por Fabrício (2002). O esquema propõe que tanto os
processos de identidade pública (institucionais), quanto os de identidade privada
(indivíduo consigo mesmo), são inseparáveis, embora as regras que se aplicam a cada
uma dessas esferas sejam diferentes.
“(...) haveria dois movimentos inseparáveis no processo de construção de identidades
instalado no próprio social, porque não se constrói as identidades das pessoas sem elas
e, contudo, não se pode dispensar o outro para forjar nossa própria identidade. Assim,
um movimento intersubjetivo (identidade para o outro), ou seja, a identidade que o
outro me atribui, como o outro me percebe, e um movimento subjetivo (identidade para
si), ou seja, qual identidade reivindico para mim perante o outro, pois sei quem sou
através do olhar do outro, de seu reconhecimento. Esse é o aspecto relacional do
processo. (Fabrício 2002:136)
Aqui, a própria noção de sujeito individual isolado é posta em cheque, conforme
a citação de Kitzenger as identidades não são fundamentalmente propriedades
privadas dos indivíduos, mas construções sociais, suprimidas e promovidas de acordo
com os interesses políticos da ordem social dominante (Kitzinger 1989:94 apud Moita
Lopes 2003:13).
A noção que articula identidade pública e privada (coletiva e individual) e ajuda
a desfazer o mistério da ‘interiorização da exterioridade’ é a de que as práticas sociais se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
43
constituem através de jogos de linguagem ou discursos. Como veremos a seguir, o
sujeito do discurso não é necessariamente um indivíduo, isto é, o que está em foco na
análise de discurso é a palavra pronunciada e seu contexto e não propriamente a pessoa
que a pronuncia. Significa dizer que o discurso é sempre uma função social que deve
considerar quem o veiculou, para quem e em que circunstâncias, não para melhor
entender a pessoa, mas para mostrar como o contexto é parte integrante daquilo que é
dito.
2.3
Concepções de linguagem, discurso e narrativa
Conforme afirma Sandra Corazza (2000), o discurso pedagógico tem boa parte
de sua produção apoiada numa concepção de linguagem descritora da realidade. As
coisas são o que são e o que a linguagem tem a fazer é mostrá-las como um espelho que
revela o seu interior. As pessoas se valeriam da linguagem apenas para objetivar,
transmitir e receber pensamentos, ou seja, ela seria um veículo de expressão, tendo
como fonte geradora a consciência individual. Esta descrição confere com uma visão
representacionista da linguagem descrita em Fabrício (2002: 67-68), com palavras
emprestadas de Bezerra Jr (1994:128-129):
“(...)Tratar a linguagem desse modo [como veículo], implica admitir que: a mente
existe independentemente da linguagem; os processos mentais podem ou não ser
acompanhados do uso de palavras; o sujeito é capaz de perceber objetos, propriedades
e relações, de modo direto, sem a mediação da linguagem; eles se tornam existentes
na linguagem, quando uma espécie de olho interno’ olha para o interior da mente e,
desejando comunicar a outros o que lá existe, usa a linguagem para expressar aquilo
que – antes de ser dizível – já está lá com seu ‘sentido bruto.”
O contraponto deste tipo de concepção de linguagem se dá, principalmente, a
partir das formulações de Ludwig Wittgenstein
9
(ou melhor, do chamado segundo
Wittgenstein, o das Investigações Filosóficas [1953]). A grande virada se com o
desenvolvimento da idéia de que podemos falar da linguagem de dentro dela mesma,
de forma que o lugar de fala que não seja um lugar de linguagens, não sendo
possível ir além dela e o sendo possível uma fundamentação última da linguagem
(Veiga-Neto, 2004:136). Sem essência ou fundamento, a linguagem passa a ser descrita
como uma resposta do corpo em direção ao meio ou ao outro, o que configura uma
9
Apesar da referência explícita apenas a Wittgenstein, estou ciente de que ele não é o único responsável
pela virada lingüística. Também a hermenêutica - Heidegger, Davidson, Gadamer, Taylor.
Habermas e Bakhtin, entre outros, sendo fonte original para muitos desses autores, Wilhelm v. Humboldt,
na segunda metade do século XIX. (Bannell comunicação pessoal, 2005).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
44
prática na qual o significado se constitui, por meio das regras de uso das palavras em
determinada situação. Daí a compreensão de que somente no social os sentidos se
estabelecem e a idéia de Linguagem como ação (jogos de linguagem). As regras do uso
da linguagem estão enraizadas nas formas de vida sancionadas pela cultura e é como
membros de determinadas comunidades de sentido que passamos a agir
lingüisticamente.
Essa é uma discussão complexa e densa, na qual não vamos nos deter. Interessa
assinalar a triangulação que Veiga-Neto (2004) constrói, aproximando Wittgesnstein,
Nietzsche e Foucault, perfilando-os na mesma vertente não representacionista da
linguagem. Essa aproximação se expressa, por exemplo, na tese foucaultiana (1972:95)
de que o sujeito social que produz um enunciado não é uma entidade que existe fora e
independentemente do discurso, como a origem do enunciado, mas é, ao contrário, uma
função do próprio enunciado’.
Com relação a esse paradigma de linguagem cabe marcar as seguintes questões:
COMO É POSSÍVEL QUE AS PESSOAS SE COMUNIQUEM, SE NÃO HÁ CONCEITOS EXATOS,
VERDADES TRANSCENDENTES E SIGNIFICADOS IMUTÁVEIS?
A prática do jogo da linguagem impõe o uso compartilhado de regras para esse jogo.
São essas regras
10
que vão conferir precisão aos conceitos. A precisão seria uma função
de algo legitimado pelos jogadores (o que remete ao conceito de hegemonia), e não da
proximidade de uma verdade fundamental.
A CONTINGÊNCIA DA LINGUAGEM NÃO RELATIVIZARIA AS VERDADES AO PONTO DE
CAIRMOS NUM RELATIVISMO ABSOLUTO?
A resposta que Fabrício
11
(2002: 77) dá à questão, parece-me bastante satisfatória:
Podemos orientar nossas ações por valores e juízos éticos, tendo em vista não valores
universais, mas sim valores democraticamente definidos na esfera pública e no diálogo
aberto. Podemos fazer isso através da expressão das razões pelas quais agimos, que,
por sua vez, podem ser justificadas inseridas em um determinado sistema e em seus
próprios padrões de justificação, ao verificarmos, em interlocução coletiva, os ganhos
epistêmicos dos padrões sociais de determinadas ações. Por isso, é importante, ao
jogar, termos clareza das regras do jogo.”
10
Foucault vai se valer do estudo das regras através de noções como ‘ordem do discurso’ e ‘regimes de
verdade’.
11
Esta resposta tem ecos da proposta Habermasiana.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
45
SE NOSSA REALIDADE É FRUTO DE UM VASTO TECIDO ARGUMENTATIVO E NÃO
POSSIBILIDADE DE FALARMOS OU PENSARMOS FORA DA LINGUAGEM, ISSO SIGNIFICA
QUE TUDO É LINGUAGEM?
Minha posição é que não precisamos negar a existência de objetos extradiscursivos para
afirmar a função constitutiva da linguagem. A questão do corpo é paradigmática nesse
sentido. Kendall & Wickham (1999:39) analisam a posição de Foucault (1973) quanto a
isso, da seguinte maneira:
Corpos não são discurso, eles são não-discursivos em sua materialidade. Mas os
corpos não existem e operam num vácuo não-discursivo. É claro que a palavra ‘corpo’
é ela mesma uma produção discursiva, mas, mais do que isso, a entidade que é o corpo
está sujeita à soberania do discurso. (...) Mesmo se pensarmos em práticas corporais
extremas como a tortura, estaremos no âmbito de uma prática discursiva. Tortura é
discursiva pelo fato de ser desde-sempre inscrita numa série de declarações. Sob a
influência do modo de pensar foucaultiano, podemos ir mais longe e dizer que a
soberania discursiva atua na base material - neste caso, o corpo.”
A soberania do discurso aparece aqui como uma força modeladora do
comportamento humano, com repercussão direta sobre a materialidade do mundo, que é
acionada na medida em que nos relacionamos e operamos na linguagem. Os discursos,
por não estarem ancorados em nenhum lugar além das regras de sua formação,
distribuem-se difusamente pelo tecido social e marcam o pensamento de cada época e
lugar, permitindo a emergência de certas formas de vida e inibindo outras.
Ao longo do século XX, a crescente importância atribuída à linguagem na
constituição da realidade fez surgir diversos métodos, técnicas e concepções para se
proceder à analise dos discursos. Fairclough (2001), ressalta a importância das análises
arqueológicas de Foucault para a articulação dos efeitos da prática discursiva com os
contextos sociais amplos. No entanto, Fairclough se recente do fato de o autor de As
palavras e as coisas o se ter debruçado sobre a análise de textos, propriamente ditos,
mas sim sobre “as condições de possibilidade do discurso, sobre as regras de formação
que definem possíveis objetos, modalidades enunciativas, sujeitos, conceitos e
estratégias de um tipo particular de discurso (...). A ênfase de Foucault é sobre os
domínios de conhecimento que são constituídos por tais regras (idem, 2001:62-63).”
Analisar um discurso é dar-se conta das relações históricas e das práticas sociais
que estão ali vivas. É perceber que muitas vozes saem da mesma boca na produção de
falas e que estas são regidas por operações de validação e invalidação, de acordo com as
circunstâncias onde o poder é exercido. Tais regras da formação discursiva nem sempre
são emudecedoras, no sentido de censurar dizeres; são também impositoras, no sentido
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
46
de nos obrigar a dizer. Isso aparece claramente no estudo que Larrosa faz das práticas
pedagógicas, vistas como ‘tecnologias de si’, que atuam no enlace entre subjetividade e
‘experiência de si mesmo’ – onde a constituição do sujeito como objeto para si mesmo
passa a ser vista como uma série de procedimentos pelos quais o sujeito é induzido a
observar-se a si mesmo, analisar-se, decifrar-se, reconhecer-se como um domínio de
saber possível (Larrosa, 1994:55).” Nesse sentido, o descrever-se, o narrar-se e o
imperativo da auto-expressão podem ser vistos como práticas de autoconstrução e de
governamento
12
.
Entre as diversas práticas discursivas abordadas nas pesquisas que investigam a
relação entre discurso e identidade social, as narrativas têm tido um papel de destaque.
Isso porque, ao contarmos nossas histórias, produzimos sentidos para nossa existência.
A compreensão de narrativa utilizada neste trabalho tem a ver com seu papel de
organização do discurso, possibilitando a construção de conhecimento sobre quem
somos na vida social. Utilizo, portanto, uma noção mais genérica de narrativa, como
histórias que contamos sobre nós mesmos, e não uma concepção de narratologia, ou
seja, a narrativa vista como gênero discursivo específico, cuja análise vai levar em conta
características de sua estrutura frasal e temporal (Labov, 1972; Ricoer, 1980; Mishler,
2003). Faço minha, a posição de Moita Lopes (2001):
O que me interessa é o papel que as narrativas desempenham na construção das
identidades sociais nas práticas narrativas onde as pessoas relatam sua vida social e,
em tal engajamento discursivo, se constroem e constroem os outros. Em outras
palavras, o que tematizo é a natureza ontológica das narrativas. (idem, 2001:63)”
A partir desta visão percebo que, ao demandar às pessoas que contem suas
histórias de vida, lançamos mão de uma prática sistemática e relevante da vida social,
que foi apreendida também como tecnologia pedagógica (memoriais, redações sobre
quem sou eu, minhas férias, minha família, minha cidade etc.). O testemunho, o relato
de experiência e as histórias de vida são dispositivos que atuam tanto na manutenção de
identidades-prontas, quanto na construção de novas perspectivas culturais, que abrem
novas formas de estar no mundo.
Esta compreensão esna base da estratégia de sair do armário (to come out)
13
,
largamente empregada pelo movimento homossexual e também pelo movimento
12
Governamento e governamentabilidade são termos propostos por Veiga-Neto (2005) a partir da leitura
de Foucault.
13
To Come Out é um termo cunhado no movimento homossexual estadunidense, traduzido entre nós
como Sair do armário, que significa assumir publicamente sua orientação sexual. Essa estratégia tem sido
fundamental para dar visibilidade ao movimento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
47
disability inglês e estadunidense. Puxado pelo mote Tell your story (Conte sua estória),
procura-se estabelecer novas referências (posições) identitárias que levem em
consideração a positividade da experiência, inclusive da deficiência
14
e sirvam, tanto
para questionar identidades que foram impostas às pessoas, quanto para abrir novas
posições de sujeito e novas possibilidades de articulação com outras particularidades
15
.
Esse é um ponto relevante para quem quer pensar os mecanismos de reprodução
(fixação) das identidades como também suas possibilidades de transformação
(mobilidade).
2.4
Modos de subjetivação, Posições de sujeito e identidade.
“Os sujeitos que discursam fazem parte de um campo discursivo [...] o discurso não é
o lugar no qual a subjetividade irrompe; é um espaço de posições-de-sujeito
diferenciadas.(Foucault 1985:58)
Os últimos trabalhos de Foucault davam ênfase crescente ao que ele chamou
Experiência de Si, ou seja, a constituição do sujeito para si mesmo. Na Experiência de
Si o que ele buscava era uma história da subjetividade e das relações entre subjetivação,
autogoverno e governamento. Tratando ética e moral como domínios diferenciados,
Foucault vislumbra as possibilidades estéticas da existência, ou ainda, a capacidade de
recriação estética constante dos nossos modos de vida. Para isso seu empreendimento
foi entender como chegamos a ser o que somos, acionando ou o a liberdade inerente
aos processos de poder já que estes, ao contrário da violência, sempre envolvem
algum nível de consentimento. A recusa de se identificar com determinadas posições de
sujeito pode ser o que melhor nos aproxima de uma ‘emancipação’.
A relação consigo mesmo, que se transluz em sua obra, teria, pois, a forma de um
exercício pelo qual se chega a ser o que se é ao desprender-se de si mesmo. Aqueles
cujo ethos se assimilam a este desprendimento de si, diz Foucault, vivem em um
"planeta diferente" daqueles que buscam um ponto fixo de certeza, um caminho
autêntico ou uma decisão autêntica. (Rajchman, 1989:3)
14
Um exemplo recente é o texto Cadeira amiga’ onde Marcela Cálamo Vaz Silva fala de todas as
cadeiras de roda que teve e declara seu amor a essas ‘amigas imprescindíveis’ (publicado na Rede
Saci http://agenda.saci.org.br/ em 14/03/2006).
15
Utilizo a palavra particularidade na concepção de Laclau (2001) de grupos que se organizam dentro de
um limite identitário, ou seja, um senso de nós e um senso de outros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
48
É por este caminho que o filósofo mostra que é possível e desejável usar a
liberdade para não sermos capturados e fixados como sujeitos de determinadas tramas
do poder. A questão que se coloca é: que sujeito é esse?
“É preciso deixar bem claro, principalmente para aqueles que dizem que Foucault
primeiro matou o sujeito para depois ressuscitá-lo, que a palavra sujeito, aqui, não é
usada como sinônimo de pessoa ou identidade (exatamente este, o sujeito que Foucault
criticava [...]). Quando se fala de sujeito, fala-se de um produto da subjetivação. [...]
Exatamente por não ter um sujeito prévio, a subjetividade tem de ser produzida.”
(Levy, 2003:87)
Nem o sujeito do conhecimento, nem o sujeito como entidade dada, como
parte da condição humana, pré-existente ao mundo social, político, cultural. Muito
menos o sujeito autônomo idêntico a si mesmo. Um sujeito que não está acima da
história, mas que é, justamente, engendrado historicamente. Foucault quer saber através
de que mecanismos ou modos de subjetivação os seres humanos se transformam em
sujeitos, ou melhor, de onde sai esse ser que denominamos sujeito moderno e como ele
se forma (Barros da Mota, 2002).
A resposta, trazida pela leitura foucaultiana de Veiga-Neto (2003), é que nos
tornamos sujeitos no sentido de assujeitados pelo controle e dependência, mas
também de presos à própria identidade pelos modos de investigação (campo dos
saberes), pelas práticas que dividem e classificam (campo do poder) e pelos modos de
transformação sobre si mesmo (campo da ética).
O sujeito se constitui como rastros dos processos de subjetivação pelos quais
atravessa e, como esses processos são múltiplos e conflituosos, prefere-se falar em
posições de sujeito que seriam ancoradouros que garantem a continuidade da
subjetivação e pontos de parada nesse mesmo processo.” (Peixoto Júnior 2004:13)
No entanto, é bom lembrar que o discurso tem suas condições de possibilidade,
ou seja, o é qualquer idéia que pode ser pensada ou dita a qualquer hora por qualquer
pessoa. As regras e normas são estabelecidas por determinados exercícios de poder
tornando válidas algumas posições e invalidando outras. O que é impensável é
impronunciável, o impronunciável é invisível, o invisível é tido como inexistente
16
.
Nessa disputa, uma estratégia de manutenção muito utilizada é a desqualificação
daqueles que querem afrontar a ordem estabelecida.
16
A discussão sobre a especificidade da imagem e do discurso é densa e não será objeto de análise
nesse texto, embora reconheça que a aproximação direta entre o invisível e o indizível possa ser
problematizada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
49
Quando as pessoas que são classificadas como ‘outro’ elevam a voz para fazer
objeções às suas classificações, são tomadas por levemente loucas. Ou seja, a categoria
de louco pode recair sobre qualquer um que atente contra o discurso dominante.
(Young 1990 apud Gavin 2003:7).
As condições de possibilidade e legitimidade dos enunciados são dadas pelas
‘ordens do discurso’ (Foucault 1996), compreendidas como sistemas de validação e
invalidação dos discursos e falas que são constantemente reforçados e reconduzidos”
pelos sistemas de práticas e saberes, cujo valor é aplicado, distribuído e atribuído
institucionalmente, exercendo poder e pressão sobre outros discursos. Aqui fica clara a
necessidade de conectar qualquer nível de análise das práticas discursivas à análise
institucional, uma vez que as diferentes posições de sujeito ocupadas numa narrativa
estão ancoradas em diferentes ordens de discurso. Sendo assim, enfatizo que entendo
posição subjetiva, não como aquilo que ocorre no interior de cada indivíduo, mas como
processos sociais ocorrendo entre as pessoas nos discursos em que estão situadas
(Moita Lopes, 2003:20).
Embora o uso do termo identidade possa carregar consigo o peso das
concepções individualizantes e estáticas (justaposto à idéia de personalidade, por
exemplo), a abordagem da identidade como trajetórias de posições de sujeito no
discurso permite captar a mobilidade, as contradições e os pontos de coerência com que
nos mostramos a nós mesmos e ao mundo. Em suma, devemos considerar o sujeito
idêntico a si mesmo como uma exigência cultural que nos coloca a premissa de sermos
coerentes para podermos ser validados socialmente. Isso implica que, ao assumirmos
uma visão de identidade como arranjos provisórios que são projetados de nós em
direção a alguém, afrontamos o cânone cultural articulado tanto pelo sujeito do
iluminismo, quanto pelo sujeito sociológico (Hall, 2002). Como nos diz Bourdieu
(1986:186)
“O mundo social, que tende a identificar a normalidade com a identidade entendida
como constância em si mesmo de um ser responsável, isto é, previsível ou, no mínimo,
inteligível, a maneira de uma história bem construída (por oposição a história contada
por um idiota), dispõe de todo tipo de instituições de totalização e de unificação do eu.
A mais evidente é, obviamente, o nome próprio, que, como "designador rígido",
segundo a expressão de Kripke, "designa o mesmo objeto em qualquer universo
possível", isto é, concretamente, seja em estados diferentes do mesmo campo social
(constância diacrônica), seja em campos diferentes no mesmo momento (unidade
sincrônica além da multiplicidade das posições ocupadas). E Ziff, que define o nome
próprio como um ponto fixo num mundo que se move’ tem razão em ver nos ‘ritos
batismais’ a maneira necessária de determinar uma identidade.”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
50
O fato de vermos a identidade como arranjos provisórios, não significa que cada
um será o que quiser a partir de atos de vontade. que considerar a aproximação
marcada por Bourdieu entre normalidade como constância de si versus discurso
ininteligível do idiota. De novo, a figura do anormal (idiota) aparece sustentando a
identidade normal, que tem como atributos: a constância, a coerência e a
inteligibilidade. Dessa forma vemos claramente que uma margem de possibilidades
abertas, assim como, uma série de bloqueios para a constituição de determinados modos
de existência com os quais possamos nos identificar.
17
Mas, se a categoria identidade é mais dinâmica, fluida e múltipla do que supõe o
senso comum, que importância ela tem para a pesquisa em ciências humanas/sociais?
Mesmo considerando todo o hibridismo, toda a incompletude cultural, e toda a
fragmentação das identidades, nunca é demais lembrar que é a partir das posições
identitárias que ocupamos, que o mundo pode ser narrado e disputado. Não se afirma
nada sem ocupar um lugar, não se nega nada sem se posicionar, não posição neutra
nem no silêncio. Dessa maneira, concordo com Stuart Hall quando diz:
“Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre híbrida. Mas é justamente
por resultar de formações históricas específicas, de histórias e repertórios culturais de
enunciação muito específicos, que ela pode constituir um ‘posicionamento’, ao qual nós
podemos chamar provisoriamente de identidade. Isso não é qualquer coisa. Portanto,
cada uma dessas histórias de identidade está inscrita nas posições que assumimos e
com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de
identidade com todas as suas especificidades.” (Hall, 2003a:433)
Por fornecer pontos de vista específicos sobre o mundo e nosso lugar nele, é
que a questão da identidade (e das políticas de identidade) está na ordem do dia em
diversos campos disciplinares. Na filosofia política, por exemplo, autores como Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe têm-se proposto à importante tarefa de analisar as disputas
entre grupos de interesse, através dos discursos de identidade que eles constroem
(Howarth, 2000). Isso se traduz na exploração dos mecanismos de conflito e negociação
entre agentes sociais para encontrar sinais de equivalência ou antagonismo e, assim,
encontrar aliados e adversários que ajudem a configurar o senso de ‘nós’ e de ‘eles’.
Esses mesmos mecanismos operam a seleção das posições que vão representar os
regimes de verdade válidos e das que vão ser relegadas à invalidação social. Para isso a
teoria do discurso laclauniana faz uma distinção entre posição de sujeito e subjetividade
política, atribuindo ao primeiro a captura dos posicionamentos que os sujeitos ocupam
17
A frase do compositor Cazuza, me chamam de ladrão, bicha, maconheiro, ilustra bem essa estratégia
de caçar a palavra de alguém, atribuindo-lhe marcas identitárias socialmente desprestigiadas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
51
numa estrutura discursiva já dada e, ao segundo, a capacidade de agência destes
mesmos sujeitos. Embora a crítica da falta de ancia dos sujeitos (feitos corpos dóceis)
nos textos foucautianos seja recorrente (Huges, 2005), considero que o conceito de
posição de sujeito
18
não se refere somente ao assujeitamento, mas também, à capacidade
de agir micropoliticamente e produzir transformações cotidianas que podem vir a ter
efeito mais amplo.
2.5
A produtividade do construto Posicionamento
Uma vez tendo compreendido a importância das posições de sujeito, para traçar
as trajetórias de identidade, pela possibilidade de localização de onde (a partir de que
papéis, crenças, posições sociais) falamos, passei a buscar elementos que permitissem
apreender empiricamente tais posições.
Nessa busca, passei a freqüentar textos e conceitos da lingüística aplicada,
observando métodos e teorias de análise do discurso. Foi que encontrei meu elo
perdido: o construto de posicionamento, que me permitiria operar com Foucault, sem
seguir seus passos metodológicos, mas seguindo sua indicação de tentarmos ultrapassá-
lo, construindo nosso próprio caminho.
“De acordo com Moita Lopes (2003), o posicionamento foi introduzido como um
construto nas Ciências Sociais, primeiramente por Hollway (1984) influenciada por
Foucault (1971/2001, 1972/2002) e utilizado por Van Langenhove e Harré (1999),
Bamberg (1999), Davies e Harré (1999) e outros.” (Campos 2005:39)
O construto de posicionamento compartilha a premissa de que o discurso é uma
ação que cria e recria a realidade. Não significa uma visão anti-realista, que nega a
existência do extradiscursivo, significa uma aposta na materialidade do discurso. O
posicionamento refere-se, então, a como as pessoas são localizadas no discurso ou em
conversas, quando eles estão engajados na construção de significados com os outros
(Moita Lopes, 2003:7). Identificando, nos relatos das pessoas, como cada um se define,
no que acredita, com quem se alia e a quem se opõe, é possível localizar rastros
históricos que estão alimentando esta posição e rastrear algumas linhas de força que se
condensaram em determinada posição que ocupamos ao falar.
18
Segundo Reis (2004:36), tanto os termos posicionamento quanto posição de sujeito foram cunhados
por Althusser (1971 [2002]) para afirmar que é função da ideologia interpelar ou chamar indivíduos para
posições específicas de sujeitos, para que estes construam os tipos de identidades que são relacionadas
às práticas sociais e discursivas aceitas em sociedade. Essa origem pode explicar a carga de
determinismo atribuída aos autores, entre eles o próprio Foucault, que se apropriaram destes construtos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
52
A função heurística do construto posicionamento é dar conta dos efeitos sociais
de quem diz o quê e para quem, em práticas discursivas nas quais as pessoas agem.
Dessa forma, o que é analisado é o modo como os participantes da pesquisa se
posicionam nas suas histórias, em função do contexto no qual narram, do contexto
social no qual se inserem e dos discursos nos quais se engajam (Campos, 2005). Davies
e Harré (1990), ao desenvolverem a noção de posicionamento aplicável à análise
empírica de discursos, sublinham a forma relacional como somos forjados, o que
permite captar a dinâmica da negociação das posições e a capacidade de agência dos
sujeitos. Essa noção ajuda a demonstrar os espaços de indeterminação do mundo social
e de fluidez das posições de sujeito que informam as identidades sociais.
“Nós devemos argumentar que a força constitutiva de cada prática discursiva reside na
sua provisão de posições de sujeito. Uma posição de sujeito incorpora um repertório
conceitual e locações para pessoas na estrutura de direitos para aqueles que usam
determinado repertório. Uma vez tomada determinada posição particular como sua
própria, a pessoa, inevitavelmente, o mundo do ponto de vista que aquela posição
permite e nos termos das imagens particulares, metáforas, estórias e conceitos que são
feitos relevantes numa prática discursiva específica na qual somos posicionados. Por
fim, a possibilidade de uma noção de escolha é inevitavelmente requerida, porque
existem rias e contraditórias práticas discursivas em que cada pessoa pode se
engajar. Entre os produtos das práticas discursivas, estão as próprias pessoas que
nelas se engajam” (Davies & Harré, 1990:48).
O construto posicionamento é retomado por Harré e van Langenhove em 1999,
onde a noção de escolha, mencionada na citação acima, é refinada, no sentido de
esclarecer que os posicionamentos nem sempre são fruto de uma intencionalidade,
havendo sempre uma margem para posicionamentos tácitos (e mesmo inconscientes).
No desenvolvimento de uma Teoria do Posicionamento, categorias mais
pormenorizadas são criadas tais como: posicionamento de primeira ordem (refere-se à
maneira como interactantes se localizam ou localizam os outros dentro de um mesmo
espaço moral) e posicionamento de segunda ordem, quando o de primeira ordem é, de
alguma forma, contestado e tem como resposta uma reconfiguração do posicionamento
inicial (Van Langenhove e Harré 1999:20).
Neste trabalho, optei pela taxonomia de posicionamentos proposta por Bamberg
(2003:155), a partir dos trabalhos de Harré e seus dois colaboradores, que ajuda a
compreender que o modo como as pessoas pensam e interpretam a si mesmas é
construído no cotidiano, com o objetivo de ser entendido pelos outros. A interação
narrativa, embora tenha intencionalidade projetar uma determinada imagem de si
não é nem um mero reflexo dos discursos hegemônicos (‘Discursos com D maiúsculo’),
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
53
nem apenas constituídos de auto-posicionamentos voluntários (conscientes). Saindo do
registro dos determinismos e dos voluntarismos, prestamos atenção à situacionalidade,
relação de alteridade e imposição cultural de auto-coerência. Estes fatores embasam os
três níveis de posicionamento descritos por Michel Bamberg (2002):
Posicionamento de nível 1 Quem são os personagens e como estão
posicionados uns diante dos outros? Enfoca o conteúdo da história, ou seja, os
personagens que o evocados e caracterizados para configurar o assunto sobre o qual a
história se desenrola. (idem:163)
Posicionamento de nível 2 Como o falante/narrador se posiciona diante dos
outros. Enfoca o âmbito interacional e remete a questão do que o narrador está tentando
alcançar com a história, isto é, como o falante se baseia nos discursos culturais para
fazer seu trabalho de identidade. (idem:167)
Posicionamento de nível 3 Posições tomadas diante de discursos culturais e
do self. Enfoca os esforços utilizados pelo falante para responder a questão: quem sou
eu, ou seja, quando a noção de self passa a existir, que é essencial propor algum tipo
de identidade com o qual os outros irão se basear para lidar conosco. (idem:171)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
3
Metodologia
Fazendo um sobrevôo, podemos dizer que este trabalho pretende discutir
os lugares sociais que estão sendo ocupados na sociedade carioca
1
, hoje, por
pessoas com deficiência que alcançaram longevidade escolar. Para isso, valho-me
de narrativas de história de vida escolar de algumas pessoas com lesão congênita,
tentando construir perfis de configuração de identidade a partir da análise: do
sentido da trajetória escolar, dos discursos sociais dos quais os narradores se
fazem sujeitos (interdiscursos) e dos posicionamentos interacionais. Tal
análise leva em conta a forma como cada um desses sujeitos circula pelos
discursos disponíveis na cultura, e recusa, reforça, acolhe e atualiza as concepções
correntes sobre a deficiência, sobre a escola e sobre si mesmos e, assim, forjam
um movimento de identidade.
O objeto de pesquisa foi sendo construído ao longo do tempo e está
apoiado: nas concepções foucaultianas de modos de subjetivação, na visão da
deficiência como uma construção social, na noção sociológica de trajetória
(escolar/identitária) e numa concepção socioconstrucionista da linguagem que
fornece instrumentos para uma micro-análise contextualizada dos discursos.
Tendo esses referentes em mente, iniciou-se o segundo movimento da
pesquisa que foi a captura de discursos concretos e a apropriação das noções e
construtos teóricos como operadores metodológicos. Neste capítulo percorrerei os
caminhos dessa apropriação/conversão teórico-metodológica.
3.1
Que discursos analisar e com quais instrumentos?
Se minhas questões giravam em torno de estudos de identidade, seria
necessário definir que tipo de discurso serviria como dado primário, assim como,
que tipo de análise de discurso seria pertinente utilizar. Dentre as várias
possibilidades de estabelecimento de um corpus discursivo a analisar (interações
em aula ou reuniões, listas de Internet, autobiografias, produção textual sob
encomenda etc.), optei pelas entrevistas face a face de histórias de vida, pelo
1
Como meu fôlego exigia uma série de recortes, restringi minha ambição geográfica sobre
pessoas que vivem na cidade do Rio de Janeiro e não de brasileiros em geral.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
55
aspecto crucial que tais narrativas costumam ter na construção das identidades e
na riqueza analítica deste tipo de material. Restava saber quais seriam os sujeitos
que produziriam estas narrativas.
Estudando a origem dos Disability Studies, constatei que um fator
impulsionador do desenvolvimento da disciplina foi a chegada à universidade de
mais alunos com deficiência. Graças a leis, políticas, recursos tecnológicos e
investimento familiar, aqueles que costumavam ficar sempre pelo meio do
caminho começaram a ter uma sobrevida maior no universo escolar. Alguns
desses alunos tornaram-se acadêmicos (e também ativistas políticos) e começaram
a produzir trabalhos que questionavam a representação teórica que se tinha da
deficiência e a escassez de estudos sobre o assunto nas ciências sociais.
No Brasil, a discussão sobre inclusão na universidade começou a tomar
corpo nos últimos anos. Primeiramente, bastante concentrada na polêmica sobre a
política de reserva de vagas com base em critérios raciais que, pouco a pouco, foi
sendo ampliada para outras minorias - incluindo a deficiente. No acalorado debate
nacional, o acesso à universidade é apontado como uma estratégia eficaz de
combate às desigualdades e injustiça aos grupos historicamente marginalizados.
Essa discussão impulsionou políticas específicas de acesso e permanência na
universidade também para pessoas com deficiência, já que este grupo estava
claramente sub-representado no meio acadêmico. Já que, tanto a discussão sobre
minorias na universidade, quanto a visão da sociedade brasileira sobre as pessoas
com deficiência
2
estão no momento ganhando destaque na agenda nacional,
entendi que a geração atual
3
de universitários com deficiência estaria numa
posição privilegiada para influenciar na produção e distribuição de discursos que
constroem a deficiência como questão social. Uma hipótese a ser investigada seria
se a longevidade escolar, de alguma forma, abalaria a relação deficiência e lesão.
E, em caso positivo, que novos arranjos identitários esse abalo poderia produzir?
2
Sinais evidentes da crescente visibilidade da questão da deficiência na agenda nacional são: a)
tramitação no Congresso Nacional do Estatuto da Pessoa com Deficiência, b) presença de
personagens de novela com deficiência que fazem sucesso junto à audiência e; c) como país
majoritariamente católico, não é desprezível o fato da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil) ter escolhido a deficiência como tema da campanha da fraternidade 2006.
3
Apesar de existirem no Brasil, algumas décadas, casos de universitários com deficiência,
ainda podemos considerar pioneiros os casos de pessoas com deficiência congênita; pessoas com
deficiência intelectual e os movimentos estudantis como o CONSCEG – Conselho de Alunos
Cegos e Amigos – da Universidade de São Marcos –SP.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
56
O caminho parecia promissor, mas ainda restavam alguns ajustes. Um
recorte tradicional dos estudos de educação especial, mas que vem sendo cada vez
mais problematizado por quem toma a deficiência como construção social, é a
seleção de entrevistados pelo tipo de quadro físico que apresentam, produzindo
estudos específicos sobre os cegos, os surdos, os sindrômicos etc. Isso eu queria
evitar, até porque interessava saber se o tipo de lesão teria, ou não, peso específico
nos arranjos identitários. Assim, estabeleci como critério para escolha dos
informantes, pessoas que chegaram à universidade, ou se graduaram, tendo
alguma lesão congênita
4
. Os motivos que fundamentam esse critério foram: a) a
sobre-seleção inerente a esses indivíduos que, para estarem na universidade,
teriam que ter passado pelos vários dispositivos de seleção excludente alocados no
sistema escolar. Essa sobre-seleção atribuiria aos casos singulares características
de casos paradigmáticos, que, como se diz no jargão do movimento social,
esses indivíduos romperam muitas barreiras para conseguir um feito que pode ser
simples para alguém que não tenha sobre si a carga de suspeita associada à
deficiência; b) para estas pessoas, as questões da diferença/igualdade estariam
colocadas desde sua iniciação no universo escolar, permitindo uma visão de
trajetória, ou seja, dos obstáculos e estratégias
5
empregadas ao longo do processo
de escolarização. Para localizar os sujeitos que preenchiam o critério estipulado,
entrei em contato com unidades administrativas de universidades públicas e de
uma universidade privada, localizadas na cidade do Rio de Janeiro. Na maioria
delas percebi que esses alunos não são facilmente identificáveis e, para localizá-
los, eu teria que percorrer secretaria por secretaria dos diversos departamentos ou
unidades acadêmicas. Nogueira (2002), que também focou sua pesquisa em
universitários com deficiência, descreve dificuldades semelhantes às que encontrei
para localizar seus informantes:
“A seleção dos indivíduos foi inicialmente prevista para ocorrer nas
universidades em que existissem e possibilitassem o acesso a registros de
portadores de necessidades especiais que estavam, ou estiveram, matriculados
4
Já adiantando, as lesões apresentadas pelos 7 participantes da pesquisa são cegueira, baixa
visão, paralisia cerebral e mielomielingocele.
5
Tomo a noção de estratégia, no âmbito da trajetória escolar, no sentido recuperado de Bourdieu
por Nogueira (2000:128) de nem como produto inevitável de um cálculo custo-benefício nem,
tampouco, como um mero resultado do acaso. Se certas ações podem ser fruto de decisões
explícitas e racionais, outras decorrem do processo de interiorização das regras do jogo social e
revelam a intuição pratica (o ‘sens du jeu’) que marca o bom jogador, o estrategista.” Vale ressaltar
que na relação estratégia-identidade proposta por Laclau (2000a:243), são as estratégias que
criam as identidades e não o inverso”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
57
nestes estabelecimentos de ensino superior. No entanto, esta abordagem revelou-
se inexeqüível, que praticamente nenhuma das entidades contatadas possuía
qualquer tipo de serviço de acompanhamento ou controle de portadores de
necessidades em seus bancos escolares. A única universidade visitada e que
possuía um programa específico de atendimento a indivíduos com necessidades
especiais foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) que, através do
projeto “Rompendo Barreiras”, realiza o apoio aos alunos especiais. O registro
existente, no entanto, não é completo, pois abrange apenas aqueles alunos que
voluntariamente procuram o Programa. Muitos portadores de necessidades
especiais deixam de buscar um atendimento especializado com medo do estigma
que esta situação pode gerar (...) Este fato acabou por dificultar e, em alguns
casos, impedir o acesso a indivíduos que possuem necessidades especiais leves
ou que não puderam ser facilmente identificáveis. Em virtude destes fatos, a
seleção dos sujeitos foi feita por indicação de profissionais, do Instituto
Benjamin Constant, do Instituto Nacional de Educação de Surdos e de
professores especialistas em Educação Especial que trabalhavam no Município
do Rio de Janeiro.” (Nogueira 2002:50)
Enquanto, para Nogueira
6
, a localização do Programa Rompendo
Barreiras (PRB) foi vista como mais um obstáculo na sua busca, para mim, ele foi
a porta de acesso ao universo que eu queria investigar. Meu primeiro contato com
o Programa se deu através do website da UERJ, onde tinha um link para a gina
do Programa contendo informações básicas e meios de contato. Escrevi então para
a Professora Maria da Glória Schaper dos Santos, sua fundadora, que me
respondeu de maneira muito acolhedora, mas me informou que estava aposentada,
por problemas de saúde, residindo em outro estado. Fui então redirecionada para a
coordenação atual do Rompendo Barreiras, onde, em entrevista com as
Professoras Aida Assunção e Valéria de Oliveira, apresentei meu projeto. A
recepção foi muito boa e, juntas, iniciamos um mapeamento dos usuários e
voluntários que se encaixavam no perfil desejado
7
. Como eu não domino a língua
de sinais, acabei não entrevistando alguns surdos, pela dificuldade de analisar o
efeito da presença do intérprete na negociação dos sentidos e pela complexa
discussão sobre a tradutibilidade de gestos em palavras. No período 2004-2005
estive diversas vezes no PRB participando de diferentes atividades, o que
contribuiu para caracterização do contexto institucional que mediou meu contato
com os entrevistados
8
.
6
O interessante é que, embora este autor estivesse interessado em investigar práticas
pedagógicas inclusivas, acabou optando por indicações de profissionais ligados a instituições
especializadas tidas, muitas vezes, como escolas segregadas.
7
Dos 7 entrevistados que serão aqui apresentados, apenas 1 deles não tem ou teve vínculo com o
Programa Rompendo Barreiras, mas como se encaixava nos outros cririos decidi incluí-lo.
8
Na Parte 2 desta tese, onde traço os perfis de configuração, descrevo como cheguei em cada um
dos entrevistados.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
58
Estava ciente de que o recorte ‘pessoas com deficiência que conseguiram
alcançar longevidade escolar’ (ingresso na universidade), posiciona os sujeitos
como ‘pessoas bem sucedidas’ e ressalta a deficiência nos seus arranjos
identitários, o que tem implicações na produção das histórias. No entanto a forma
como cada um ratifica, desafia ou rejeita este enquadramento foi objeto de análise.
Instâncias de articulação da negociação identitária
Tendo em vista a relevância narrativa das histórias de vida e a constatação
de que a escolarização é uma experiência obrigatória na nossa sociedade, decidi
pelo recorte histórias de vida escolar. Considerando a escola como uma agência
social constituída por dispositivos de validação ou invalidação dos discursos
circulantes e de distribuição de veredictos sobre a capacidade individual de
aprendizagem que, por sua vez, se convertem em certificados que dão acesso aos
lugares socialmente mais valiosos, optei por analisar as histórias de vida escolar
na perspectiva trajetórias de identidade em narrativas de escolarização.
Para analisar tais narrativas, parti da compreensão de que os discursos têm
sua existência calcada na história social de cada povo, o que faz com que cada um
de nós seja precedido por eles. Na medida em que acessamos a linguagem,
tornamo-nos sujeitos derivados desses discursos, ou seja, “cada um de nós é
membro de muitos Discursos, e cada Discurso representa uma de nossas
múltiplas identidades” (Gee apud Moita Lopes 2003: 19). Isso implica que a ação
comunicativa se sempre em função de um contexto, ou melhor, em horizontes
de contextualização que, segundo Knoblauch (2001 apud Reis 2004:33), podem
ser caracterizados em três níveis:
1. Contexto imediato: A relação-nós ou “ordem interacional” ou micro-
social, em que os interagentes se comunicam, se conectam e co-ordenam a
ação comunicativa. Nessa pesquisa abrange tudo o que envolve a relação
entrevistado-entrevistador (relação prévia, interesses pessoais e
institucionais, o sentido atribuído à participação em uma tese de doutorado
vinculada a uma universidade de ‘excelência acadêmica’ etc.), ou
entrevistados entre si e em relação à moderadora - no caso da entrevista
coletiva.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
59
2. Contexto mediado: o mundo social em “alcance potencial” no qual
podemos agir e o qual pode agir sobre nós. Compreendido, por exemplo,
pelas comunidades de prática (grupos de pertencimento) e pelo contexto
institucional que enquadra a relação imediata dos atores. No caso da
presente pesquisa, os pertencimentos apresentados pelos narradores
informados pelas suas comunidades de prática; sua vinculação
institucional no PRB, que mediou as apresentações etc. No caso da
entrevista coletiva, o efeito de grupo pode ser visto como contexto
mediado.
3 - Contexto social: o mundo social amplo das realidades institucionais
em que vivemos. A ordem macro-social, operacionalizada pelas constantes
mudanças sócio-econômicas e culturais mudanças que se refletem nas
formações discursivas mais gerais acerca da alteridade deficiente na
sociedade brasileira e também nas possibilidades de posicionamento nos
discursos educacionais das pessoas nessa situação. E o sentido da
trajetória, ou seja, a suposição do valor social atribuído às diferentes
instituições pelas quais os entrevistados passaram no seu percurso (o maior
ou menor status das escolas/colégios/universidade que freqüentaram).
Esses horizontes contextuais têm relação com a concepção tridimensional
do discurso (Fairclough, 2001:99/102), que se preocupa em “estabelecer conexões
explanatórias entre os modos de organização e interpretação textual (normativos,
inovativos etc.) como os textos são produzidos, distribuídos e consumidos em um
sentido mais amplo, e a natureza da prática social em termos de sua relação com
as estruturas e as lutas sociais.” No entanto, como chama a atenção Fabrício
(2002), o trajeto entre o global e o local não é simples nem direto e envolve
instâncias distintas de articulação, que podem ser designadas como design,
reconceitualização e recontextualização dos discursos.
No presente trabalho, não me deterei na demonstração de como essas
instâncias de articulação operam para ir do contexto social ao contexto imediato.
Interessa captar no texto (nas narrativas de escolarização), o que ficou inscrito dos
diferentes horizontes contextuais nos quais sua produção está situada.
Alguns elementos vão ser fundamentais para possibilitar a recuperação dos
indícios dos contextos mais amplos na micro-análise. A noção de trajetória
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
60
(Bordieu, 1986, Dubar, 1997) como série de posições
9
sucessivamente ocupadas
por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) no espaço social
10
é um desses
elementos. Aprofundando a questão, podemos dizer que um sentido atribuído
culturalmente às trajetórias sociais que permite dizer se alguém esnuma rota de
ascensão, decadência, estabilidade ou estagnação. No caso das trajetórias
escolares (Nogueira, 2000), também indicadores que sinalizam se determinado
percurso é mais ou menos bem sucedido. Para a construção das hipóteses sobre o
sentido das trajetórias de identidade, busquei ressaltar os tipos de instituição
freqüentada e as passagens significativas (mudanças de escola, interrupções,
reprovações, aprovações etc.,) na história escolar dos entrevistados, contrastando
o que eles guardam dessas experiências e o que pode ser dito sobre o sentido
corrente dessas passagens no senso comum. Uma questão a ser examinada, é
como a condição da deficiência interfere na auto-avaliação da trajetória.
Em suma, para captar os efeitos dos horizontes contextuais (sociais,
mediados e imediatos) nas narrativas de vida escolar, recorri a três dimensões de
posicionamento:
a) as posições sociais que os sujeitos ocupam na sua trajetória escolar (análise
dos percursos institucionais),
b) as posições disponibilizadas pelos discursos culturais, das quais os
entrevistadores se fazem sujeitos (interdiscursos e seus regimes de verdade)
e
c) os posicionamentos (Davis & Harré, 1990 e Bamberg, 2002) que indicam
como as pessoas se posicionam, são posicionadas e posicionam seus
interlocutores nas narrativas.
Ao produto dessas dimensões analíticas chamei perfis de configuração de
identidade.
9
A palavra posição aqui não se refere ao posicionamento discursivo, mas às identidades sociais
institucionalizadas e normatizadas tais como: médico, psicólogo, pai, filha, aluno, professor etc.
10
Por exemplo: a sucessão de empregos que configura uma carreira, ou, como no caso
específico, a passagem dos narradores por distintas instituições educacionais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
61
ESQUEMA DA COMPOSIÇÃO DOS PERFIS DE CONFIGURAÇÃO DE IDENTIDADE
Uma questão cara à análise das narrativas é a temporalidade. Ela está na
base do modelo teórico (Labov, 1972) que permite distinguir as narrativas de
outros gêneros discursivos (crônicas, testemunhos, reportagens etc.). Em linhas
bem gerais, a estrutura narrativa proposta pelo modelo laboviano corresponde: a)
sumário; b) orientação; c) complicação; d) avaliação; e) resolução e f) coda
‘opcional’. Essa caracterização toma como princípio organizador o tempo
cronológico. Mishler, (1999, 2003), a partir de Ricoeur (1980), vai repensar a
questão da temporalidade narrativa entendendo que, além da dimensão episódica
dos eventos que ocorrem uns após os outros (tempo cronológico), devemos
observar a dimensão configuracional (tempo experiencial-narrativo) desses
eventos, cujas características temporais podem ser opostas ao tempo cronológico.
Em outras palavras, a temporalidade na narrativa deve considerar que, ao
reconstruirmos uma experiência pelo exercício da memória, recriamos a ordem
temporal de acordo com a situação de fala, levando em conta o por quê, o para
quem e o para quê estamos narrando. O modelo de tempo experiencial pode ser
percebido através de duas categorias (Mishler, 2002) ‘o sentido de final’ e ‘os
pontos de virada’. O sentido de final está inscrito na metáfora da “mão dupla do
tempo”:
Posições que compõem
uma Trajetória escolar
Posições de sujeito no
Discurso
Contexto social
Contexto social e
mediado
Contexto social,
mediado e
imediato
Posicionamento (como o
sujeito se posiciona,
posiciona a audiência e
os personagens da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
62
“A rememoração da história governada como um todo por seu final, constitui
uma alternativa para a representação do tempo, movendo-se do passado em
direção ao futuro, de acordo com a conhecida metáfora da mão dupla do tempo
... Ao lermos o fim no começo e o começo no fim, aprendemos a ler ao contrário,
como uma recapitulação das condições iniciais de um curso de ação em suas
condições terminais. Desse modo, um enredo estabelece a ação humana não
apenas no âmbito do tempo (...) mas também no âmbito da memória.” (Ricoeur,
1980:180 apud Reis :38)
Os ‘pontos de virada’ tem similaridades com o conceito filosófico de
‘acontecimento’. São incidentes que muitas vezes ocorrem de modo inesperado,
que irrompem no cotidiano e modificam a compreensão das experiências passadas
e, consequentemente, atuam na remodelação das identidades.
Essas duas categorias ressaltam o caráter indefinido da experiência, a
emergência de acasos, surpresas, rupturas que quebram a lógica linear do tempo
cronológico.
Como disse, minha adesão à análise das narrativas tem como interesse
principal seu papel na produção da existência e o, propriamente, na análise
detalhada do que constitui esse gênero discursivo. Reconheço a centralidade da
organização temporal e que mais interesses em jogo para a teoria e a
pesquisa sobre a narrativa na escolha entre os dois modelos de tempo, do que,
propriamente, na especificação da estrutura” (Mishler 2002:97).
Isto posto, procurei, na medida do possível, pontuar durante a análise, os
indícios de que a narrativa estava sendo regida pelo tempo experiencial, ou seja,
de que a história estava sendo governada por uma intencionalidade final
(consciente ou não), como indica a ‘metáfora da mão dupla do tempo’ e que ela
não se deu de forma linear. No entanto, na seleção do corpus discursivo que
compõe a sessão: Histórias de Vida Escolar dos perfis individuais, optei por
reconfigurar a ordem seqüencial dos eventos narrados, para recuperar o fluxo da
escolarização do entrevistado. Embora esse procedimento possa trazer uma
seqüência ligeiramente artificial, que a construção da história se deu por idas e
vindas que o vão ser recuperadas na análise, não nivela ou torna linear o relato.
As rupturas e o movimento do percurso permanecem. A maneira de selecionar e
ordenar os excertos das entrevistas privilegiou uma mirada no sentido (direção) da
trajetória escolar de cada narrador. Essa decisão levou em conta que o presente
trabalho tem como referência o campo educacional que me fez valorizar aspectos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
63
que possibilitassem a entender os obstáculos localizados na carreira escolar e as
estratégias empregadas para vencê-los.
Voltando ao esquema dos perfis de configuração de identidade, podemos
dizer que os posicionamentos funcionam como coordenadas que permitem ao
analista do discurso tecer hipóteses sobre as sucessivas localizações do sujeito na
narrativa. Essas coordenadas têm como referências, além da relação entre os
interagentes, os regimes de verdade que informam os discursos e os capitais e
recursos investidos nos diferentes espaços sociais pelos quais as pessoas circulam
durante uma trajetória. Uma das características do paradigma pós-estruturalista de
pesquisa é que tanto as posições objetivas quanto as subjetivas podem ser vistas
como parte de um mesmo processo de produção de sentidos e atribuição de
verdades, visando ao monopólio dos possíveis (isto é, concentração do exercício
de poder).
Para caracterizar os regimes de verdade que informavam os discursos dos
entrevistados sobre a condição de pessoa com deficiência, recorri, basicamente, a
três fontes: a) no âmbito mais global, autores de disability studies que
tematizaram as lutas por hegemonia na representação da deficiência; b) no âmbito
nacional, tipologias de posição de sujeito fornecidas pela literatura de educação
das pessoas com deficiência e c) discursos produzidos pelos movimentos sociais
(ou inclusivos), de defesa dos interesses das pessoas com deficiência, que são
disponibilizados em grupos discussão virtuais, que freqüento há,
aproximadamente, 4 anos.
1) A Agenda Deficiência foi instituída, em 2004, pela Fundação Banco do Brasil
e pela Rede Saci (da Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de
Atividades Especiais da Universidade de São Paulo - CECAE-USP) com apoios
da CORDE - Coordenadoria Nacional para a integração da pessoa portadora de
Deficiência. CONADE - Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de
Deficiência e PRODAM - Companhia de Processamento de Dados de SP – com o
objetivo de estimular a construção de um pacto político-social de amplo espectro,
abrangendo segmentos costumeiramente marginalizados, com foco nos conceitos
de inclusão e diversidade. A lista Fórum Agenda foi o mecanismo de consulta
entre especialistas convidados e pessoas que se candidatavam para influenciar a
agenda nacional sobre a inclusão das pessoas com deficiência.
2) A lista Educadores, hospedada na Rede Saci (Solidariedade, Apoio,
Comunicação e Informação) é aberta mediante inscrição e funciona como um
observatório de práticas educativas relacionadas à pessoa com deficiência.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
64
A participação nestas listas, além de me pôr em contato com ativistas
importantes da causa da deficiência (ou da inclusão das pessoas com deficiência),
ajudou na localização dos argumentos postos em jogo nas lutas de transformação
do lugar social das pessoas com deficiência, no Brasil.
3.2
Histórias de vida como discurso
O método de histórias de vida tem sido largamente empregado nas ciências
sociais e na educação (Bueno, 2002), principalmente referido às histórias de vida
de professores, influenciados pelo trabalho de Antônio Nóvoa (1995). Na pesquisa
em educação especial brasileira, este método tem sido utilizado desde o fim da
década de 80 (Glat at alli, 2004). No entanto, sob o mesmo rótulo metodológico
estão abrigadas práticas e concepções bastante distintas. Conforme Bourdieu
(1986:190), o relato biográfico pode induzir a, pelo menos, dois tipos de ilusão, a
saber: a de que os acontecimentos se dão de forma ordenada, cronológica e
estável, com começo, meio e fim e a de que é possível compreender uma história
de vida sem olhar para o contexto institucional da trajetória da pessoa (campos
pelos quais a pessoa circulou que são investidos de diferentes capitais).
Como venho argumentando ao longo deste trabalho, estou considerando as
entrevistas de história de vida como práticas subjetivantes, ou seja, uma
modalidade de ‘tecnologia do eu’, de forma que os textos produzidos a partir das
histórias narradas sejam vistos como ‘flagrantes de identidade’ ou exemplos de
experiência de si, narradas para um outro em determinado contexto. Para
desenvolver melhor esta perspectiva, irei contrastá-la com a descrição compilada
por Glat at alli em várias pesquisas educacionais que focam histórias de vida de
pessoas com deficiência.
[A metodologia de história de vida] Busca encontrar, a partir da análise
de percepções individuais, padrões universais de relações humanas, condutas e
atitudes características de grupos sociais específicos (...). Como o objetivo
básico desse tipo de estudo é aferir os significados que os sujeitos atribuem aos
eventos de sua vida, a estrutura da entrevista não é determinada a priori pelo
pesquisador, mas, sim, conduzida naturalmente pelos informantes. A partir das
falas dos sujeitos, o pesquisador identifica as categorias ou núcleos temáticos
predominantes. Destaca-se ainda que, pela flexibilidade metodológica, não
regras rígidas quanto a procedimentos de análise de conteúdo. Consideramos
que o Método História de Vida, ao dar voz aos sujeitos, é particularmente
profícuo para a Educação Especial, ou outros campos de conhecimento que
lidam com grupos excluídos. Essa perspectiva de investigação traz, embutida,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
65
também, uma analise reflexiva, que o sujeito, ao relatar sua vida, não
descreve suas experiências e visão de mundo, como, inevitavelmente, identifica
suas necessidades e dificuldades, bem como as estratégias de adaptação e
superação de sua condição estigmatizada. Na maioria dos estudos citados,
portanto, a aplicação desse método traz recomendações para ações terapêutico-
educativas. (Glat at alli 2004:1)
Contextualizando singularidades
A presente pesquisa não busca [estabelecer], a partir da percepção
individual, padrões universais. Os casos individuais não foram tomados como
uma amostra de uma população determinada pelo recorte da pesquisa. Primeiro,
porque interessava investigar a maneira singular com que cada entrevistado se
posiciona em relação aos seus múltiplos pertencimentos identitários, (ex: gênero,
raça, etnia, classe etc.) e também em relação à ‘identidade deficiente’, o que
contra-indicava tomá-los como representantes ou porta vozes das pessoas com
deficiência, baseando nos seus atributos biológicos. Segundo, porque a ênfase no
processo de subjetivação valoriza as singularidades seguindo a trilha de Mishler
(1999) e Lahire (1997). No entanto, percebe-se o quanto estes dois autores
parecem assombrados com a desqualificação que o trabalho com singularidades
vem sofrendo nas ciências sociais, face às abordagens estatísticas que m
vocação para a generalização. As saídas que eles encontram para justificar a
relevância de casos particulares são diferentes, mas ambos se preocupam em
situar socialmente seus sujeitos e tecer comentários sobre similaridades e
diferenças entre as histórias obtidas. Vale dizer, que as similaridades entre os
casos não são fruto de uma comparação entre variáveis decompostas e, sim, da
atenção à problemática comum que faz com que tais histórias, em analogia com a
música, sejam variações sobre o mesmo tema.
Partindo, então, da idéia de que toda prática discursiva é situada no mundo
sócio-histórico e cultural em que ocorre (Moita Lopes 2003:22), busquei pistas
para localizar cada entrevistado no espaço social, prestando atenção às
características de viés mais sociológico, tais como: profissão dos pais,
configuração e escolaridade familiar, pertença a comunidades de prática, tais
como grupos religiosos, profissionais e aspectos como gênero, raça e idade que
foram ressaltados pelos narradores
11
.
11
Como eu o tinha relacionamento prévio com os entrevistados, pedi-lhes que, ao se
apresentarem, fizessem uma breve descrição de sua família, do lugar de nascimento e moradia
atual; e, ao longo da análise, procurei levar em conta os cruzamentos e superposições de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
66
Podemos identificar que o mote que atravessou as entrevistas foi: conte-
me como foi/está sendo sua passagem pelo mundo escolar?
O que emergiu das narrativas, permitindo que elas sejam vistas como
variações do mesmo tema foi: conto como foi minha vida escolar para dizer
quem sou. (ou: narro minha vida escolar como exercício de ser).
A noção de configuração social que permite traçar os perfis de
configurações, propostos por Lahire e Dubar, a partir de Elias, ajuda a explicitar
como cada caso individual se move em diversos campos e redes, colocando em
evidência a interdependência que constitui a sociedade de indivíduos.
devemos precisar que o conceito de configuração social é um conceito aberto,
mais voltado para designar um processo lentamente construído no decorrer das
pesquisas empíricas do que para estabelecer uma definição estabilizada. A nosso
ver, ele está fundamentalmente ligado a uma antropologia da interdependência
humana, que considera os indivíduos, antes de tudo, como seres sociais que
vivem em relações de interdependência (...). Definiremos, portanto,
provisoriamente, uma configuração social como o conjunto dos elos que
constituem uma ‘parte’ (mais ou menos grande) da realidade social concebida
como uma rede de interdependência humana”. (Lahire, 1997:39/40)
A adaptação das configurações sociais para configurações de identidade
social é autorizada pelo caráter eminentemente relacional, ou, nos termos de
Lahire ‘de interdependência humana’, da concepção socioconstrucionista da
identidade que sustenta a análise dos posicionamentos discursivos. A idéia de
traçar perfis de configuração levou ao procedimento de descrição de cada história
separada, para, em outro momento, fazer uma leitura de conjunto.
Assim, a localização e interpretação com base no que Glat et alli (2004)
chamam de categorias ou núcleos temáticos predominantes nos relatos de
histórias de vida, não estruturaram os perfis de configuração, mas foram
considerados em dois outros momentos. Primeiro, logo após a realização das
entrevistas individuais. Depois das transcrições e antes das análises, tentei pôr em
relevo alguns aspectos recorrentes ou mais transversais das narrativas. Essas
recorrências, mesmo que ainda impressionistas, constituíram numa espécie de
roteiro para realização de uma entrevista coletiva, para a qual foram convidados
todos os entrevistados que tinham participado das sessões individuais. Voltarei
identidades evidenciadas nos discursos. Como inspiração para tal procedimento, tomei o trabalho
de Miner (1997), Making up the stories as We Go Along, onde a autora enfoca o cruzamento das
questões de gênero e de pessoa com deficiência na formação identitária em duas autobiografias
publicadas nos Estados Unidos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
67
aos procedimentos da entrevista coletiva mais adiante. O segundo momento de
mirada do conjunto dos relatos foi, na conclusão do trabalho, após traçar cada
perfil individual e analisar a entrevista coletiva.
A afirmação foucaultiana de que não pode haver enunciado que de uma
maneira ou de outra não reatualize outros’ (1972:98), reverbera a concepção
bakhtiniana de intertextualidade
12
. As conseqüências analíticas desta visão, como
comentamos ao falar dos horizontes de contextualização, é que micro e macro
análises o requisitos mútuos. Devemos buscar compreender num discurso
específico (nível micro) as ordens de discurso (nível macro) a que o narrador se
submete para produzir e interpretar seu discurso de forma normativa ou criativa.
Significa dizer que as posições de sujeito, ocupadas pelo narrador, informam por
que regimes de verdade, autores, formações discursivas e idéias ele atualiza e faz
ecoar na sua fala. Assim, podemos atribuir vínculos de pertencimento do texto
(narrativa) a determinados discursos hegemônicos ou contra-hegemônicos,
transgressores ou conservadores, tradicionais ou subversivos.
A atenção posta nas dimensões históricas, culturais e sociais que
atravessam cada caso singular implica em outros pontos de distância da
concepção de pesquisa com histórias de vida apontada por Glat at alli, por
exemplo:
A coleta de dados é considerada completa quando se chega ao que Bertaux
(1980) denomina de ponto de saturação: “quando, a partir de um certo numero
de entrevistas, o pesquisador tem a impressão de não apreender nada de novo no
que se refere ao objeto de estudo’ (Glat at alli, 2004:238)
O que definiu o fim da geração de dados não foi a impressão de que
não teria mais nada a aprender das entrevistas que vinha fazendo. Ao contrário,
penso que as possibilidades de variação do mesmo tema são inúmeras e cada uma
é única, portanto significativa. Meu ponto de corte foi pautado pela qualidade do
que já havia obtido e pela complexidade da análise a ser empreendida que valoriza
os detalhes e não a saturação dos dados.
Sobre a questão de ‘dar a voz’ aos excluídos
12
“Intertextualidade é basicamente a propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos
de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode
assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante.” (Fairclough 2001:114).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
68
À afirmação de que a entrevista deve ser conduzida naturalmente pelos
informantes (Glat et alli, 2004), contraponho, com Mishler (1999:147), que a
entrevista de história de vida se em diálogo, ou melhor, ela é uma co-
construção, na qual a interação entrevistador-entrevistado opera uma negociação
de sentidos. A narrativa é uma práxis. O ato de contar histórias a um interlocutor
específico e a uma audiência projetada (no caso os possíveis leitores de uma tese
de doutorado) é uma atualização ou performance da identidade. A condução,
portanto, é partilhada e, às vezes, disputada entre entrevistado-entrevistador,
que o poder se exerce em cada pequeno gesto cotidiano. É bom lembrar que as
narrativas produzidas nas entrevistas não estavam lá, esperando para serem
contadas. O discurso está sempre atrelado às condições de sua produção, de modo
que a mesma pessoa pode contar sua história de formas variadas e com ênfases
diferentes, de acordo com o contexto da narrativa. A análise do contexto passa a
ser tão importante quanto a análise do conteúdo obtido, que a forma de
organizar elementos, de apagar ou dar ênfase aos fatos depende do momento, da
relação com o entrevistador e dos discursos hegemônicos circulantes, entre outros
fatores. Esse ponto é extremamente relevante, uma vez que, no campo da
educação, as análises de entrevistas não costumam por em relevo os elementos
que configuram o tipo de interação que se deu naquele evento narrativo, deixando
de lado o caráter relacional da construção dos conteúdos que são analisados. Isso
pode ser facilmente observado na apresentação dos relatórios de pesquisa, onde as
evidências empíricas costumam focar somente a fala dos respondentes enquanto
as perguntas aparecem nos roteiros de planejamento da entrevista, postos em
anexo. A caracterização do contexto deve levar em conta: a relação prévia entre
entrevistador e entrevistado, a maneira como são feitos os primeiros contatos, as
relações institucionais que mediam e atravessam os contatos, a forma como as
perguntas são feitas, sua seqüência, as interrupções etc. Sem essas informações,
fica difícil entender como o contexto interacional atua na feitura da história
obtida.
“Cada um de nossos eus parciais é um personagem em uma história
diferente, na qual somos posicionados de modos diferentes em nossas relações
com os outros que constituem nossos diversos mundos sociais. Essas histórias,
com seus enredos diferentes, intersectam-se e podem entrar em conflito umas
com as outras criando tensões em diversos pontos de nossas vidas.” (Mishler,
2002:110)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
69
Em função dessa possibilidade de construção de diversos significados
através das histórias de vida, Mishler (1999) recomenda que sejam utilizados
diferentes tipos de entrevistas o estruturadas, semi-estruturadas, individuais,
coletivas etc. - com as mesmas pessoas em momentos diferentes. No caso desta
pesquisa, foram realizadas, primeiro, entrevistas individuais e depois uma
entrevista coletiva
13
. Este procedimento realmente enriqueceu a pesquisa,
conforme poderá se observar na sessão que trata da análise, já que a mesma
pessoa se posiciona de forma diferente sobre o mesmo assunto dependendo da
interação com seus interlocutores.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio
14
e a entrevista coletiva foi
filmada, com a devida autorização prévia dos participantes. Posteriormente elas
foram transcritas na íntegra.
Pois bem, se a história de vida, obtida via entrevista, é uma co-produção e
se considerarmos que o sujeito da narrativa não é idêntico à pessoa que fala, mas
fruto da relação intersubjetiva entre narrador, audiência e contexto, perguntamos:
de quem é a voz que emerge na narrativa?
A noção de intertextualidade nos remete à polifonia dos discursos, na
medida em que são várias as vozes que falam através dos nossos bios (ou mãos,
no caso dos surdos não oralisados). Além disso, nas narrativas aparecem
freqüentemente discursos indiretos ou reportados, ou seja, falas atribuídas a outras
pessoas que são trazidas à tona pelo falante. Essa discussão pode adentrar uma
seara ainda mais densa quando toca no conceito utilizado por Foucault do ser da
linguagem’, que é ilustrado por Tânia Levy (2003:51) com uma declaração da
escritora Clarice Lispector: É curiosa a sensação de escrever. Ao escrever não
penso nem no leitor nem em mim: nessa hora sou mas só de mim sou as
palavras propriamente ditas.
O ‘ser da linguagem’ é quando a linguagem fala em nós e não o contrário.
Não cabe aqui enveredar por essa discussão, mas apenas assinalar a dificuldade,
13
Duas pessoas que estiveram presentes na primeira etapa das entrevistas individuais não
participaram da coletiva e uma das pessoas que esteve na entrevista coletiva não foi entrevistada
individualmente.
14
Um aspecto técnico de entrevistas com pessoas com deficiência é que pode haver entrevistados
com problemas de articulação da fala, o que exige um trabalho paciente de várias escutas de
alguns trechos para decupar a gravação. Recomendo, nestes casos que a entrevista seja filmada,
caso isso não seja possível o entrevistador deve anotar frases e palavras durante a entrevista para
facilitar o estabelecimento do texto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
70
inclusive ética, de conceber a pesquisa de história de vida como a expressão direta
da voz de quem foi entrevistado, pois, uma coisa é um ato da fala (sem um
controle intencional de tudo) e outra é o estabelecimento desta fala em um texto
que vai sofrer operações de estabilização (transcrição e codificação), seleção
(escolha de extratos) e análise (interpretação). É possível que a pessoa que contou
a história nem se reconheça no texto final, uma vez que sua voz foi mixada e re-
mixada com várias outras. Isso não significa que se ocupar das histórias de
determinados indivíduos não seja uma maneira de expô-los e de trazer para o
espaço público o que se desenrola no espaço privado. Como o título desta tese diz,
os entrevistados foram vistos ‘de perto’, quase de dentro e sua exposição nesse
nível de proximidade pode extrapolar a expectativa que tiveram ao topar participar
da pesquisa. Com relação a isso, além de cuidados de preservação das pessoas
através de troca de nomes
15
e ‘disfarce’ das instituições pelas quais passaram,
recupero a idéia de que se a análise de um discurso não deve ser tomada como
uma análise da pessoa que o pronuncia. Seguindo o mote feminista - o privado é
político –, diria que a proximidade ajuda a revelar o que há de público nas
posições privadas, e mais, ajuda a entender que as práticas discursivas são sempre
uma função social e a idéia de um eu individual autônomo é também uma
construção cultural. Nossas individualidades têm assinaturas de tantas mãos que
nem nos damos conta
16
.
Outra questão delicada, é quando a perspectiva de dar a voz acaba gerando
uma convergência prévia da posição do pesquisador com a dos sujeitos
entrevistados, o que pode vir a constranger aspectos da análise que assinalam as
contradições, as ambivalências e outras facetas que não foram intencionalmente
expostas pelos narradores, mas que têm valor analítico. A questão da voz
também tem a ver com as lutas por auto-representação e auto-advovacia
17
(Neves
15
É interessante observar, que quando falei dessa necessidade para meus entrevistados muitos
deles se sentiram ofendidos, dizendo que queriam ser identificados com seus nomes próprios e
que, sem isso, parte do sentido da sua participação na pesquisa desapareceria. Argumentei que
seus depoimentos representavam o material bruto e que a partir dali era minha responsabilidade
trabalhar, lapidar, interpretar e que o resultado final poderia ser bem diferente das suas
expectativas.
16
Na entrevista coletiva levei em disquete a transcrição das entrevistas individuais e entreguei a
cada um deles sua cópia como uma forma de compartilhar aquela primeira etapa da nossa co-
produção.
17
Esta postura é defendida mesmo para aqueles que são historicamente tidos como incapazes de
se auto-representar como os doentes mentais e deficientes intelectuais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
71
e Mendes, 2002) dos grupos minoritários, ou seja, a idéia de que os interesses
específicos devem ser defendidos diretamente por seus principais interessados.
“Durante muitos anos, as pessoas com deficiência foram consideradas “objetos”
das políticas de assistência social. Hoje, graças a uma mudança muito
significativa da maneira de encará-las que se foi verificando nas últimas duas
décadas, as pessoas com deficiência começam a ser vistas como seres humanos
que devem exercer todo o espectro de direitos civis, políticos, sociais, culturais e
econômicos. É certo que este processo tem sido lento e inconstante, mas está
registrando-se em todas as partes do mundo. O lema do movimento internacional
das pessoas com deficiência, “Nada sobre Nós, Sem Nós” resume bem essa
mudança.” (Trecho de mensagem do Secretário-Geral da ONU Kofi Annan, por
ocasião do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência - 03 de Dezembro de
2004)
Um fator que me levou a desenhar a pesquisa centrada em depoimentos de
pessoas com a experiência da deficiência foi o reconhecimento de que tem sido
muito mais comum ver estudos com pais, professores, médicos ou irmãos, do que
tomar as próprias pessoas com deficiência como informantes das pesquisas a seu
respeito (Nogueira, 2002). Isso reforça estereótipos de que tais pessoas são
incapazes de participar e narrar suas experiências, o que afeta a produção de saber
sobre o tema.
No entanto, é preciso ressaltar que, no limite, o mote Nada sobre nós, sem
nós’ pode virar uma armadilha que leva a tomar automaticamente todas as pessoas
com deficiência como membros naturais do mesmo conjunto de interesses que,
por sua vez, não pode ser compartilhado com pessoas sem deficiência. Os
processos de identificação o o assim tão lineares e a auto-definição pode
opor-se à definição externa. Assim como uma pessoa de pele escura pode não se
reconhecer na identidade negra
18
, uma pessoa com lesão pode não se ver como
membro do grupo com deficiência.
Por último, a abordagem que utilizo imprime radicalidade ao que Glat et
alli (2004) apontam como a função reflexiva das histórias de vida, que permite ao
sujeito, ao relatar sua vida, não só descrever suas experiências e visão de mundo,
como, inevitavelmente, identificar suas necessidades e dificuldades, bem como as
estratégias de adaptação e superação de sua condição estigmatizada.
18
Recentemente o jogador da seleção brasileira Ronaldo Fenômeno disse que não era negro o
que causou forte reação por parte dos movimentos negros que fazem um esforço para positivar a
negritude através de ídolos nacionais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
72
A entrevista, como prática de subjetivação, não é vista como uma forma de
pôr para fora o que tem dentro, mas sim de constituir este dentro, de atualizar e
afirmar o que consideramos ser nosso conteúdo. Por essa razão busco, no
discurso, a sua materialidade, aquilo que de específico sobre o contexto de
produção ficou inscrito no que foi dito e não o que ficou oculto, a intenção
secundária, ou as provas de sua veracidade. Isso implica na necessidade de
considerar, no processo interpretativo, a mensagem ou conteúdo (o que está sendo
dito) articulado à metamensagem (como está sendo dito), que sinaliza as atitudes
do falante quanto a seu(s) interlocutor(es) no processo de comunicação (Fabrício,
2002:79).
Tendo como objetivo provocar a reflexão sobre a ação discursiva de
construção/recriação das identidades e considerando as práticas pedagógicas como
dispositivos de apropriação, distribuição e legitimação de determinadas formas de
vida, optei por uma análise que levanta aspectos de metamensagem, sem descer
aos detalhes. Por isso, realizei uma adaptação simplificada das convenções para a
transcrição de discursos, privilegiando a leitura corrida destes, assinalando pausas
e ênfases de maneira mais grosseira, sem chegar às minúcias de cronometrar as
pausas, marcar a ênfase em determinadas sílabas ou trazer a respiração para o
texto. As ocorrências de risos, suspiros e gestos foram anotadas entre colchetes ao
lado das falas.
Gostaria de ressaltar que, embora a análise dos discursos, numa acepção
pós-estruturalista, não disponibilize um lugar neutro para o analista, não tenho
como pressuposto a existência de que um posicionamento certo ou errado. O
objetivo da análise não é fazer julgamento de valor e, sim, extrair possíveis
conseqüências, para a ação no espaço público, das visões de mundo adotadas
quando aderimos a determinado regime de verdade.
3.3
Organização das Entrevistas
Entrevista piloto
Assim que as principais questões teórico-metodológicas foram
equacionadas, resolvi fazer uma entrevista piloto com Marcos
19
, que me foi
19
Os nomes de todos os entrevistados são fictícios.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
73
indicado no contato com uma ONG que defende os direitos de pessoas com
deficiência. Esta entrevista funcionou como base para a tomada das seguintes
decisões:
- Deixar a escolha do local de entrevista a cargo dos entrevistados. As
vantagens seriam: a familiaridade com o lugar poderia gerar menos tensão; eles
teriam melhores condições de avaliar a acessibilidade do local (Marcos, por
exemplo, é cadeirante
20
) e o fato de que a escolha seria, em si, uma informação
relevante no contexto da entrevista. No caso, conversei com Marcos nos jardins de
um Museu, próximo de sua residência. Essa escolha pode ser interpretada também
como um local que simboliza a ascensão social que foi ressaltada na entrevista,
que Marcos foi criado em uma favela e atualmente reside num bairro de classe
média.
Experimentar o roteiro de entrevistas, que foi composto de uma breve
introdução sobre meu projeto de estudo, o pedido que a pessoa falasse sobre
seu contexto familiar, sobre sua primeira infância e, depois, seguisse o fluxo
das memórias escolares, tendo como fio condutor a seqüência das séries
cursadas.
Transcrever a entrevista logo em seguida da sua realização, para cobrir
possíveis falhas de memória e aguardar algum tempo até retomar o material
para análise, permitindo-me distanciar da minha própria fala. Essa dupla
posição, de entrevistadora/mediadora e analista, fez com que, em determinadas
passagens da análise, eu me posicionasse criticamente e até distante da
entrevistadora/mediadora que é descrita, eventualmente, na pessoa do
singular.
Combinar, logo no fim da entrevista, a participação do entrevistado no
encontro coletivo, criando já a expectativa de um novo contato.
Uma questão que me deixava dúvidas era se eu deveria ou não expor a minha
condição de mãe de uma criança com deficiência. O exercício de participar de
listas de discussão sobre educação inclusiva trouxe-me a percepção de que a
conversa fluía mais solta quando eu me identificava como alguém com
vivência íntima da questão. Resolvi iniciar a entrevista piloto sem mencionar o
fato, podendo colocá-lo em pauta caso sentisse necessidade. Como a entrevista
20
Que usa cadeira de rodas para se locomover.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
74
correu bem, achei melhor o fazê-lo, mesmo porque, quanto menos auto-
posicionada eu estivesse, mais espaço o entrevistado teria para me posicionar
de acordo com sua conveniência. No entanto, ao final de algumas entrevistas,
com o gravador desligado, alguns entrevistados me perguntaram sobre o
motivo do meu interesse no tema e, aí, eu falei sobre meu filho. Por esse
motivo, na entrevista coletiva, quando a maioria tinha conhecimento dessa
minha condição, eu mencionei a influência do meu filho no tema da pesquisa.
Apesar de muito rica, esta entrevista não consta do texto estabelecido, pelo
fato do narrador ter ficado paraplégico aos 17 anos, num acidente, e, portanto, não
se encaixar no critério comum a todos os outros, que é ter uma lesão congênita ou
desde o início da sua escolarização.
Contexto Mediado - o Programa Rompendo Barreiras
A história das conquistas das pessoas com deficiência é respaldada pelo
esforço de alguns indivíduos que, por absoluta necessidade, tiveram que inventar
soluções para si, que acabaram afetando positivamente a vida de tantos outros. Do
sistema de escrita braille, à ngua de sinais, passando pelos modernos recursos
informacionais, a necessidade foi a mãe da invenção. Da mesma forma, embora a
discussão sobre acesso e permanência de grupos marginalizados na universidade
esteja hoje na ordem do dia, existem iniciativas como o Programa Rompendo
Barreiras que já completou 17 anos de existência. Ele foi fundado por uma
professora do Departamento de Educação, que tinha seqüelas de poliomielite e foi
progressivamente perdendo mobilidade. Abaixo a transcrição de como o programa
se auto-define:
O Programa Rompendo Barreiras: luta pela integração/inclusão foi fundado em
05.04.1988 pela professora Maria da Glória Schaper dos Santos, e está ativo até hoje.
Teve início a partir de um Grupo de Trabalho instituído por um ato executivo do então
reitor Ivo Barbieri. Pouco depois, foi transformado em Projeto de Extensão, e ao longo do
tempo adquiriu a abrangência e o caráter permanente que lhe conferem o perfil de
Programa.
Sua característica básica é a participação ativa dos próprios portadores de deficiência nas
decisões e rumos do Programa que luta pela inclusão do portador de deficiência na
sociedade, e para que essa inclusão ocorra de forma.
OBJETIVOS GERAIS
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
75
• Romper barreiras de natureza cultural, afetiva e educacional, que dificultam a
integração/inclusão de pessoas portadoras de dEficiências
21
;
• Encaminhar as propostas que refletem os anseios das pessoas portadoras de deficiências
que estudam e/ou trabalham na UERJ, visando garantir a formação e ação de uma política
de integração/inclusão e valorização, promovendo sua integração em todos os espaços
desta universidade e comunidade externa.
http://www2.uerj.br/~educacao/projetos.htm acesso em 12/05/2003 e complementado por
entrevista.
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi pioneira na
experiência de reserva de vagas (cotas), por força de um projeto de lei, elaborado
na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), que instituiu a
obrigatoriedade de reserva de vagas para negros e alunos de escolas públicas. Essa
experiência começa agora a ser analisada em teses e dissertações e tem motivado
um acalorado debate na mídia. Se de início (2002), a UERJ implantou as cotas por
imposição legal, num segundo momento (2003), ela elaborou um contra-projeto
tentando corrigir as distorções do projeto inicial. Nesta reformulação, os fatores
raciais e de rede escolar foram cruzados com a condição sócio-econômica do
candidato, isto é, passou-se a discriminar positivamente os alunos que, além de
serem elegíveis pelos critérios raciais e de rede escolar, tivessem renda familiar
per capita líquida de até R$300,00 (trezentos reais, em 2005). Outra inovação foi a
destinação de 5% das vagas reservadas para ações afirmativas - que já
representam 45% do total das 5.000 vagas disponíveis na UERJ
22
-, para
deficientes físicos (sic) e indígenas
23
.
Dados mais precisos sobre este alunado [cotistas com deficiência] ainda
não vieram a público, mas a coordenadora do Proiniciar da UERJ
24
- Programa
destinado a garantir condições de permanência dos estudantes cotistas no primeiro
ano de vida universitária -, relata que em 2004 entraram 32 alunos pelas cotas de
deficiente físico. Embora não haja uma pesquisa bem fundamentada sobre quantos
alunos nesta condição havia antes das cotas específicas, a estimativa da Sub-
reitora de graduação é que eles girassem, em torno de, 5 ingressos por ano.
21
A palavra dEficiência grafada com E maiúsculo é um recurso lingüístico utilizado por parte do
movimento social dos direitos deficientes para ressaltar a Eficiência das pessoas com deficiência.
22
O número de vagas total disponível para deficientes físicos e indígenas seria, então, 112,50.
23
Deficientes físicos e indígenas também devem obedecer ao critério de corte sócio-econômico.
24
Dados obtidos em entrevista com Márcia Souto Maior setembro de 2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
76
Uma fonte de pressão para a implantação da cota para deficientes nesta
Universidade, foi a Faculdade de Educação, por ser um dos centros educacionais
brasileiros que possui, mais tempo, uma linha específica de pesquisa e ensino
em Educação Especial (atualmente Educação Inclusiva) em nível de pós-
graduação. Não obstante, pelos relatos de sua fundadora, a vinculação do PRB
com a Faculdade de Educação foi, em muitos momentos, mais uma formalidade
do que uma integração real. Um sinal deste distanciamento é o PRB nunca ter sido
tema de tese ou dissertação na Universidade que o abriga, mesmo sendo uma
iniciativa pioneira e relevante para o estabelecimento de políticas específicas para
esta clientela no ensino superior.
Era minha intenção fazer um levantamento do histórico do PRB, de modo
traçar seu perfil institucional. Porém, os registros documentais existentes deram
pistas vagas para este propósito. A leitura das atas de reunião mostrou indícios de
que o Programa estava muito ancorado na pessoa de sua coordenadora, que
dividia as decisões com o pequeno núcleo mais constante de usuários e bolsistas e
encaminhava a maioria dos contatos institucionais. O espaço sico destinado ao
Programa foi inicialmente compartilhado com uma Associação de Alunos com
Altas Habilidades (na época, chamados Superdotados), que depois saiu de lá ou se
extinguiu. Outro elemento presente é que os investimentos e serviços oferecidos
pelo PRB se dirigiam principalmente aos alunos cegos ou com deficiência visual
25
havendo, paralelamente, na mesma Universidade, outro programa destinado
especificamente aos alunos surdos. O Projeto ‘Ouvindo Livros’ – que produz
áudio-livros, começou no Rompendo Barreiras e depois se tornou autônomo. A
partir de 2005, o PRB ganhou uma versão na webradio da UERJ, veiculando
informações para todos os que possam se interessar pela causa da deficiência.
Em setembro de 2005, foi realizado o I Encontro Rompendo Barreiras
para a Inclusão, comemorando seus 17 anos. A programação do Encontro sinaliza
a atual visão institucional. As mesas de debate foram compostas por oradores com
deficiência, mediadas por professores sem deficiência. A maioria das
apresentações foi de cunho testemunhal. Cegos e surdos, lado a lado, narraram
suas aprendizagens para uma platéia de estudantes e professores, na sua maior
25
Faço a diferenciação entre cego e deficiente visual para distinguir aqueles que nada enxergam
dos que têm baixa visão ou visão subnormal.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
77
parte do departamento de Educação. Vários depoimentos funcionaram como
testemunhos de trajetória do Programa, que foi retratado, ora como uma sala de
recursos’ na universidade, ora como um ‘ponto de encontro e de acolhimento das
pessoas com deficiência’.
A presença do vice-reitor na abertura, deu respaldo institucional ao evento,
mas, olhando as condições de funcionamento cotidiano deste, percebe-se uma
certa precariedade. Além da remuneração da coordenadora geral e coordenadora
pedagógica, os únicos recursos financeiros recebidos são destinados ao pagamento
dos bolsistas. Como o Programa está instalado na UERJ, tem sua infra-estrutura
custeada, mas os recursos para material de consumo, reparos técnicos e
investimentos, muitas vezes saem do bolso de funcionários e usuários. Assim,
talvez o fator que iniba a procura dos alunos com deficiência ao Programa não
seja tanto o medo da estigmatização, como sugere Nogueira (2002), mas a
dificuldade de atendimento das suas necessidades específicas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
4
Entrevistas individuais
Caracterização dos participantes da pesquisa
1. Antenor - 24 anos, estudante de jornalismo, mielomelinocele (cadeirante),
bolsista do PRB.
2. Fábio – 27 anos, estudante de psicologia, visão subnormal, voluntário no PRB.
3. Gabriel 21 anos, estudante de comunicação, quadro de paralisia cerebral,
não tem ligação com o PRB.
4. Lia - 33 anos, pedagoga, mestrado em educação, paralisia cerebral, ex-usuária
do PRB.
5. Ruth 52 anos, formada em história, cega, professora voluntária de braille
para readaptação no PRB.
6. Josué – 28 anos, estudante de filosofia, paralisia cerebral, usuário do PRB.
7. Matias -28 anos, graduado em Letras, cego, professor voluntário de braille no
PRB.
Convenções para transcrição dos dados
1
(?) – incompreensível
Letra maiúscula – ênfase ou acento forte
// - corte na produção do falante
... – fala suspensa
(...) – pausa
[...] – edição da fala
[67/70] trecho ou linha da transcrição a que a análise se reporta. Para
numerar as falas utilizei o recurso de numeração automática disponibilizado pelo
softer Microsoft Word. A numeração que aparece nos excertos selecionados
corresponde àquela da entrevista transcrita integralmente.
Escrito dentro do colchete [lkjlçkj] – intervenção do analista
P – pesquisador
L / LC – Lia entrevista individual / Lia entrevista coletiva
1
A convenção utilizada aqui foi adaptada de Campos (2005) que, por sua vez, adaptou de
Marcuschi, L.A. – A análise da conversação – São Paulo, Ática – 1991.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
79
A / AC – Antenor entrevista individual / Antenor entrevista coletiva.
G /GC - Gabriel entrevista individual / Gabriel entrevista coletiva.
F / FC – Fábio entrevista individual / Fábio entrevista coletiva.
J / JC - Josué entrevista individual / Josué entrevista coletiva.
M / MC - Mateus entrevista individual / Mateus entrevista coletiva.
R / RC - Ruth entrevista individual / Ruth entrevista coletiva.
IC – Isis – só participou da entrevista coletiva.
Estrutura dos Perfis de Configuração de Identidade
Para selecionar os trechos das entrevistas e formar o perfil de configuração
identitária de cada entrevistado, estabeleci uma estrutura comum de análise,
pensando nas dimensões de posicionamento apresentadas no capítulo anterior.
Relembrando:
a) as posições sociais que o sujeito ocupa na sua trajetória escolar (bom
aluno, aluno reprovado, colega isolado, colega integrado etc.), levando em conta o
reconhecimento social das instituições que o narrador freqüenta/freqüentou.
b) o posicionamento em relação aos discursos vigentes, tentando
apreender os regimes de verdade ou crenças a que o narrador se filia.
c) análise dos posicionamentos, tal como proposto por Davis e Harré
(1990), incluindo: o auto-posicionamento, o posicionamento do interlocutor
imediato e o posicionamento dos personagens da narrativa.
Essas dimensões de posicionamento são distribuídas na análise de acordo
com a seguinte organização tópica:
1) SITUAÇÃO DO ENCONTRO: descrição do conhecimento prévio do entrevistado.
Forma de contato e circunstância do encontro local, dia, duração e impressões
gerais da entrevistadora.
2) CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR: descritores individuais, tais como gênero,
raça, estado civil, profissão e demais pertencimentos mencionados durante a
entrevista. Grupos de pertencimento a que o narrador se filia. E, configuração
familiar, apresentando escolaridade e profissão dos pais ou responsáveis, local de
nascimento e moradia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
80
3) AUTO-APRESENTAÇÃO: auto-posicionamento inicial ou como o entrevistado se
apresenta e como se refere à deficiência e às reações familiares ao ser revelada a
deficiência.
4) INTERAÇÃO ENTREVISTADOR-ENTREVISTADO: Esta dimensão de análise
corresponde ao horizonte de contexto imediato proposta por Knoblauch (2001
apud Reis 2004:33) e também, parcialmente, pelos que Bamberg (2002: 167)
descreve como Nível 2 de posicionamento - Como o falante/narrador se posiciona
diante de seu interlocutor imediato e como é posicionado por este, ou seja, que
tipo de relação se estabelece no evento discursivo: de conflito, camaradagem,
cordialidade etc. Mishler (1986) observa que o padrão nas entrevistas é a
ascendência do entrevistador sobre o entrevistado, uma vez que é ele quem detém
a ‘agenda tópica’ (roteiro ou script), por saber mais sobre o que pretende a
pesquisa. A confirmação, ou não, dessa assimetria e sua influência na negociação
de sentidos, são objetos de análise.
5) ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL: quadro de descrição sintética da
seqüência das instituições escolares e ou reabilitação freqüentadas
2
, assinalando
repetências, interrupções, atividades paralelas e relação idade-série aproximada.
6) HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR: análise das posições sociais e das estratégias que
dão sentido às trajetórias escolares. Análise dos discursos cultural/educacionais
nos quais o/a narrador/a se faz sujeito (posições de sujeito nos discursos), e os
posicionamentos que ele/a assume para si e para os personagens mencionados na
narrativa da história escolar. Podemos dizer que o Nível 1 de posicionamento
proposto por Bamberg (2002) – ‘quem são os personagens e como eles são
posicionados uns diante dos outros’, é o preponderante nesta seção.
7) POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES seleção e análise dos posicionamentos
que tiveram maior investimento do narrador na construção da coerência que
integra suas posições. Essa categoria de análise poderia ser comparada ao que
Bamberg (2002:158) chama de Nível 3 de posicionamento, ou seja, ‘o falante
transcende o nível dos personagens da história e o nível interacional de ‘como eu
quero ser entendido pela audiência’, e tenta construir uma resposta localizada para
a pergunta: ‘quem sou eu?’. Ao fazer isso, o falante/narrador se posiciona diante
2
Os nomes dos estabelecimentos de ensino também foram trocados ou omitidos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
81
de discursos culturais, seja acatando-os, seja mostrando neutralidade ou, ainda,
distanciando-se, criticando, subvertendo ou resistindo a eles.
8) RESUMO DOS POSICIONAMENTOS balanço final, tentando responder as
questões: O que o conjunto dos posicionamentos sinaliza? Que tipos de atributos
identitários o narrador constrói? Que tipo de movimento os sucessivos
posicionamentos sugerem? Qual o sentido atribuído à sua trajetória escolar? E que
regimes de verdade a narração reforça, atualiza ou repudia?
Ao final dos 7 perfis, apresento a análise da entrevista coletiva que seguiu
uma estrutura de interpretação um pouco diferente, por não se tratar de narrativa
de história de vida e sim de um evento narrativo onde o foco foi posto na
interação entre os participantes ao reagirem aos temas apresentados pela
moderadora.
Análise das Entrevistas
4.1
ANTENOR Transformando os olhares atraídos pela diferença em
audiência.
SITUAÇÃO DO ENCONTRO:
Conheci Antenor no dia em que fui apresentar meu projeto de pesquisa no
Programa Rompendo Barreiras. Falei rapidamente sobre o assunto, e ele se
prontificou a participar. Ele foi o primeiro a ser entrevistado, e escolheu como
ponto de encontro o hall do departamento onde cursa jornalismo. De lá, fomos
para uma parte recuada no corredor, onde havia um banco de madeira,
estrategicamente colocado para quem quisesse ver e ser visto por quem passasse.
Enquanto falava comigo, Antenor acenava para os conhecidos que ali circulavam.
Na cabeça ele usava uma touca de num dia de sol. Embaixo da touca ele
guardava as tranças do penteado novo, feitas para comemorar os 24 anos que
seriam completados no dia seguinte. A conversa durou cerca de 2 horas.
CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR:
Descritores individuais: homem, negro, 24 anos, solteiro, estudante de jornalismo,
tem mielomelingocele cadeirante), bolsista do Rompendo Barreiras, participa
de um programa de webrádio na universidade.
Grupos de pertencimentos: família materna, colegas de escola, torcedores do
flamengo, músicos de samba e grupo de dança.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
82
Configuração familiar: Pais separados, mora com a mãe e os avós maternos num
morro na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Mãe estudante universitária - iniciou a faculdade antes de o filho nascer, teve
que interromper os estudos e, em 1993, fez novo vestibular, e agora está
terminando o curso de Química numa universidade federal. Mantém-se
financeiramente trabalhando como faxineira e professora particular.
Pai – Músico free-lancer, formado no ensino médio.
Um irmão mais novo, que está morando com o pai.
AUTO-APRESENTAÇÃO
Quadro 1
21- P Me conta um pouco das circunstâncias do seu nascimento, da sua
história, da sua chegada, da sua aparição [risos].
22- A Como eu falei, surge essa criatura [apontando para si] e de pra
cá tiveram vários problemas, desde antes até do meu nascimento (...) até o dia de
hoje. Antes de eu nascer, minha mãe ela (...) sofreu na gravidez e eu acabei
adquirindo uma doença que é um mal congênito, que é a mielomeningocele, que
os médicos costumam chamar de formação do sistema nervoso central, que é
mais bonitinho.
23- P – Esse é um nome que te acompanha a vida inteira?
24- A É verdade. Eu costumo falar primeiro esse nome pra depois falar
mielomeningocele senão ninguém entende. Nasci com mielomeningocele e
também com princípio de hidrocefalia. Mas, aí, com dias de nascido eu fui fazer
uma operação para a correção da hidroencefalia. E até hoje eu uso a válvula que
colocaram. Quer dizer, colocaram uma válvula, depois de 4 meses trocaram essa
válvula que tá comigo até hoje. Ela não tem mais serventia a doença praticamente
estabilizou. De lá pra cá não tenho tido muitos problemas com essas doenças.
25- P E como sua mãe relata o recebimento da notícia, ela sabia por
algum meio pré-natal que você teria algum problema?
26- A Olha, essa informação ao certo eu não a tenho, mas ela diz pras
pessoas que// (...) Foi bastante difícil, no começo, mas como ela mesma diz, que
como ela é uma pessoa muito teimosa, ela preferiu não desistir de mim como
algumas mães por fazem. Tem gente que quando desenvolvendo, vê a
dificuldade, o filho com problema e desiste. A minha mãe não, ela persistiu e
persiste até hoje, está até hoje nessa luta. NÓS persistimos nessa luta.
Antenor inicia a interação num tom de humor. Posiciona-se como narrador
descolado da figura do protagonista e se refere ao próprio nascimento como o
‘surgimento da criatura’. Sua entonação de voz é carregada de uma ironia ambígua,
seu surgimentoé narrado como um grande acontecimento, tanto por ser a entrada
em cena do protagonista da história, quanto por ser um evento dramático na vida da
família.
A deficiência é apresentada como uma doença, formação congênita
que acarreta uma série de problemas, problemas esses que são logo minimizados:
de pra não tenho tido muitos problemas com essas doenças.A escolha do
termo doença, mostra filiação a um regime de verdade derivado do modelo médico
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
83
e que costuma ser combatido pelos movimentos em prol da deficiência. A palavra
‘problema’ retorna na pergunta sobre a repercussão do seu nascimento.
A mãe é introduzida na história, posicionada como uma mulher persistente
e batalhadora, que não desistiu da luta para vencer as dificuldades com o filho, em
contraste com outras mães. Nesta passagem [linha 26], emerge uma concepção de
mães que abandonam os filhos com deficiência, ou desistem de cuidá-los, como se
esse fosse um comportamento sancionado culturalmente. Sem negar a ocorrência
esporádica de abandono, as pesquisas (Glat, 1993; Miller, 1995; Corrêa, 1997)
mostram que a carga cultural de responsabilidade pelos cuidados dos filhos
deficientes recai, majoritariamente, sobre as es. A imagem das mães que
abandonam é usada para enaltecer a persistência da sua mãe, no enfrentamento dos
obstáculos advindos da deficiência, justificando o vínculo identitário entre mãe e
filho, expresso pelo NÓS persistimos na luta’. Podemos ver aqui, indícios do que
Mishler (2002) chama de ‘a o dupla do tempo’, uma vez que o amálgama da
identidade de dois lutadores mãe e filho - antecipa a explicação pelo sucesso da
trajetória a ser narrada.
INTERAÇÃO ENTREVISTADO - ENTREVISTADOR
Quadro 2
31. P –Agora o fato de você ter milingo, mielo//
32. [A – ajuda a pronunciar corretamente] mielomeningocele.
33. P - Não tem um apelido, uma abreviatura? [ri] Deve ter acarretado um monte
de terapias, tratamentos na sua infância. Antes da escola provavelmente você já
caiu num circuito de instituição: ABBR essas coisas...
34. A – Eu fui tratado na ABBR durante uns 5 anos, dos 3 aos 7.
A entrevistadora tem dificuldades em pronunciar o nome da lesão e
brinca com essa dificuldade, sustentando o enquadre de humor iniciado pelo
entrevistado. Em seguida ela se posiciona como alguém que tem informações
sobre o universo das instituições que atendem pessoas com deficiência,
mencionando uma associação de reabilitação. Como a instituição mencionada
tinha sido aquela freqüentada por Antenor, a ignorância sobre a lesão específica é
recoberta por um saber que a reposiciona na interação. A assimetria da interação é
atenuada pela aceitação das modulações de comédia e drama propostas pelo
narrador, que são sustentadas pela interagente com pontuações de risos e silêncios
que acompanham o fluxo dos enunciados.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
84
Quadro 3
302. P – Você começou a falar rápido, na idade regular?
303. A Normal, idade normal. A única coisa que acontecia de anormal, entre
aspas, que acontecia comigo, não é uma coisa anormal-anormal, mas é uma
coisa engraçada. É que a maioria das crianças gostam muito de desenho
animado, né?. Eu já sou ao contrário, completamente ao contrário, tanto é que
estou AQUI fazendo Comunicação Social. Eu via os comerciais de TV e o
único programa que eu via era Jornal Nacional, desde os 3, 4 anos. E minha
mãe falava que eu adorava Jornal Nacional.
304. P – [ri] E então você ficava esperando o comercial dos programas?
305. A É, minha mãe disse que eu comecei a ler assim, vendo anúncios de
outdoor.
306. P – E isso com quantos anos?
307. A – 2 anos, 2 para 3.
308. P – SOZINHO? Sem ninguém te ensinar?
309. A – Hum hum [sorrindo e balançando a cabeça afirmativamente].
310. P – Então ta, vamos contar a história.
302. P Essa coisa do impossível eu queria que você falasse um pouco disso.
Nada é impossível’, você disse. Como é isso: ‘nada é impossível’?
303. A Eu sou um cara que tem várias frases feitas, apesar de não gostar de
nenhuma, [ri]. Eu sou meio que um paradoxo de mim mesmo. Uma
outra frase que eu tenho é “Tudo é possível e nada é improvável”, ou
seja, você pode fazer tudo e provavelmente você vai conseguir (...) dentro
dessa lógica de você conseguir o que você almeja.
Nos trechos acima, Antenor se posiciona como um menino cuja
‘anormalidade’ era sinal de precocidade e inteligência. A pesquisadora se mostra
espantada com tal prodígio, mas usando as prerrogativas de quem dirige o
inquérito, propõe a mudança de assunto, como se a informação dada não fosse
ainda a história que teria que ser narrada, dando mais atenção à sua agenda tópica
do que ao que está sendo dito pelo entrevistado.
Ao longo do evento narrativo, ao ter suas assertivas questionadas,
Antenor recorre a explicações ou mesmo a uma imagem que legitima suas
possíveis incoerências ao declarar-se ‘um paradoxo de si mesmo’. Assim, o
narrador relativiza a seriedade do que está dizendo, assumindo que, em alguns
momentos, está tagarelando, usando frases feitas, de que nem ele mesmo gosta.
Assim, a construção da coerência do relato inclui, como um de seus elementos, a
possibilidade de se contradizer ou de falar por falar.
Uma informação que não espresente no quadro de transcrições, mas
que diz muito do enquadramento da entrevista proposto por Antenor, foi a escolha
do lugar para o encontro. Este permitiu que seus colegas e professores de
departamento o vissem sendo entrevistado, e que a entrevistadora visse como ele
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
85
era bem relacionado, na medida em que acenava com a mão para vários dos que
por ali passavam. Numa ocasião, uma colega se aproximou, e ele pediu licença
por o poder conversar, pois estava sendo entrevistado, o que indica, além do
próprio texto, que o gênero ‘entrevista para pesquisa acadêmica’ foi
recontextualizado para ‘entrevista jornalística com uma personalidade’ ou uma
‘celebridade’, como veremos adiante. Na negociação de enquadramentos, a
posição de ‘personalidade ou celebridade’ vai convergindo para o trabalho de
pesquisa acadêmica, na medida em que esta também pode ser vista como uma
‘vitrine’, que expõe a um público amplo, o seu exemplo de força e determinação.
Isso foi explicitado na entrevista coletiva, quando perguntados sobre o que
motivou cada um a participar da pesquisa e Antenor respondeu que seu interesse
foi servir de exemplo para influenciar outras pessoas.
ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL
Nível escolar / idade
3
Escolaridade Outros
Educação infantil (4 aos
7 anos)
Escola privada
perto de casa (inclusiva)
Dos 3 aos 7 anos
reabilitação numa
Associação Filantrópica.
1ª a 4ª série (8 aos 11) Colégio Municipal em
Coelho Neto.
Dos 7 aos 9 interrupção
Volta à Associação dos 9
aos 11 anos. terapia
ocupacional, apoio
psicopedagógico,
fisioterapia.
5ª a 8ª série (12 aos 15)
Escola Municipal em
Laranjeiras - RJ
Ensino Médio
(16 aos 20)
Escola Técnica em
Niterói
(Escola construiu rampas
e adaptou banheiros para
os alunos com
deficiência.)
Repetiu ano e ano
Formação Técnica em
eletro-técnica.
Nessa Escola fez curso de
teclado, participou do
coral, praticou jiu-jitsu e
entrou para um grupo de
dança.
Vestibular Primeira tentativa não conseguiu.
Passou no segundo ano no Curso de Comunicação
numa Universidade Estadual utilizou sistema de
3
As idades, em todos os quadros de trajetória educacional, foram declaradas pelos narradores
durante a entrevista de uma forma aproximada e não foram checadas após a transcrição das
mesmas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
86
cotas para deficientes físicos.
Faculdade Estava no 2º ano aos 24 anos.
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR
QUADRO 4
54. A Tinham várias brincadeiras, eu fiz o C.A. lá. Tinha a professora, tinha a
hora do soninho, hora do lanchinho. E tinha também a parte de
aprendizagem, com várias dinâmicas. Se o me engano o nome da
professora era Margarida. (...) Era bastante legal que dali comecei a
minha vocação pra fazer amigo. Que ali eu conhecia todo mundo, todo
mundo me conhecia.
60. A No início dessa época eu era bastante retraído, entre aspas, né? Até
porque eu tinha bastante complexo com// (...) de andar de cadeira de
rodas. Eu não gostava NÃO ACEITAVA de jeito maneira.
61. P – E isso você lembra de se perguntar sobre isso desde quando?
62. A (...) Desde sempre (...) desde sempre. Mas aos pouquinhos eu fui
mudando isso.
96. A Na hora do recreio// tá, chegando aí. No início, eu levava lanche de
casa. Levava lanche de casa e ficava lá, tinha toda aquela coisa da hora da
merenda. Até porque o pessoal não descia muito pra brincar. ao decorrer
do tempo eu fui criando uma certa cara-de-pau. eu comecei a andar pelo
chão como se tivesse engatinhando mesmo. eu subia a escada, descia a
escada.
144. A – Era, era uma escola municipal. Ele era um prédio// Engraçado, eu sempre
estudei em escola que era em prédio, para dificultar, o prédio tinha
escada. O primeiro lugar que eu estudei que tinha elevador é a universidade.
E também eu estudava no ANDAR, o último andar e eu já tive uma
ajuda maior dos alunos. Quando eu chegava, eu entrava às 7 da manhã, eu ia
com a minha mãe ou com algum parente meu que pudesse me levar. Ia pra
e ficava na, na sala até a hora do recreio e na hora do recreio alguém da turma
se oferecia para descer, pegar meu lanche e subir com meu lanche. Eu ficava
na sala esperando. essa pessoa ficava comigo, conversando comigo
até o recreio terminar. As pessoas até revezavam, mas na maioria das vezes
era uma menina, eu me lembro até hoje dela: Luciana Antunes. Na maioria
das vezes era ela que ficava comigo.
201. A - No Graciliano Ramos eu não tive muita dificuldade para me adaptar, o
pessoal, eles não me deixavam ficar na sala na hora do recreio. Cada um
pegava de um lado da cadeira e descia. A gente fazia um social, a gente ia
para o refeitório comer, é, fazia a chamada ‘social’. Ficava conversando no
pátio, os meninos ficavam de olho nas meninas e eu que não sou BESTA
também ficava lá: de OLHO. Aí e tal... Tinha aquela sociabilidade, nós
voltávamos para a sala da mesma forma que descemos e não tinha muito
aquela coisa de se retrair. Foi dali que eu criei essa cara-de-pau, de chegar,
conversar com todo mundo. Por exemplo, tem uma rodinha de amigos aqui,
tem uma pessoa que eu conheço, eu cumprimento essa pessoa, me apresento
pro resto, me integro nessa rodinha e vou embora, vou embora. E daí eu fui
meio que criando esse meu mecanismo de defesa que é o fato de criar os
amigos. Não tive muita dificuldade quanto a isso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
87
Na reconstituição das memórias de escolarização, Antenor ressalta a questão
da socialização com os colegas, acima de quaisquer outros aspectos do universo
escolar. Ele se posiciona, desde o início, como alguém com iniciativa e que
desenvolveu uma vocação para fazer amigos. Esses posicionamentos vão ser
reforçados, ao longo do relato, por diversos casos em que se destacou e conseguiu
superar dificuldades de locomoção através dos relacionamentos. A descrição do
seu comportamento oscila entre não aceitar a sua necessidade de usar cadeira de
rodas e aproveitar que essa condição o destaca na multidão para se fazer notado.
A hora do recreio é assinalada como um momento crucial para marcar o
pertencimento ao grupo de colegas. No trecho [linha 96], Antenor diz que não
ficava sozinho na sala durante o recreio na educação infantil porque os colegas
também não desciam para brincar. No entanto, a vontade de descer foi tão grande
que ele largou a cadeira e se arriscou a ir arrastando pelas escadas achegar ao
pátio. Não há menção de ajuda, e o seu esforço para superar obstáculos é realçado
como um traço identitário forte. No segundo trecho [linha 144], durante o recreio
as pessoas se revezavam para trazer seu lanche, uma colega é destacada como
alguém memorável, por lhe fazer companhia constante. Na seqüência [linha 201],
quando cursava o segundo segmento do fundamental, Antenor aparece já bem
integrado e na hora do recreio os colegas o carregavam para o pátio, onde ele fazia
uma ‘social’ incluindo o flerte com as meninas. Ao mencionar o interesse pelo
sexo oposto, Antenor se posiciona como membro da masculinidade hegemônica
(heterossexual), não apenas como contraponto a homossexual, mas também
endereçado à imagem social dos cadeirantes como assexuados ou impotentes.
Neste trecho, sua vocação de fazer amigos é nomeada como um mecanismo de
defesa, ‘uma cara-de-pau’ desenvolvida para evitar o isolamento e se socializar.
Essa mesma vocação vai sendo construída na narrativa, como um talento que foi
se desenvolvendo e graças ao qual ele conseguiu minimizar muitos problemas de
baixa estima, advindos da baixa mobilidade.
Quadro 5
226. P Então vamos voltar lá. O que você estava dizendo e que você tinha a sua
turma, sua relação com os amigos, colegas em Laranjeiras, no Graciliano
Ramos, mas a condição de técnico te deu uma visibilidade para a escola
inteira. De repente...
227. A – Virei celebridade!
228. P – E você gostou da sensação de celebridade.
229. A É, gostei, e essa condição de celebridade veio me acompanhar até o
grau, que eu sempre fui uma pessoa muito comunicativa, sempre falei com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
88
todo mundo. Aí eu fui conhecendo as pessoas aos poucos e eu até-até no meu
ano// O ano é o que eu mais gosto, do grau. Eu fui eleito presidente
do grêmio estudantil, com uma margem de votos bastante grande em relação
a//
230. P – Isso antes ou depois de ser técnico?
231. A Depois, isso foi no grau. No grau eu tive assim (...) tive assim um
contato com outras turmas mais porque algumas pessoas que estavam
inseridas nessas turmas eram meus vizinhos. Por exemplo, meu primo, que
quando eu estava na ele tava na 5ª. eu fui criando essa popularidade.
Tanto é que um belo dia, no finalzinho do ginásio, as minhas professoras
resolveram fazer uma homenagem prá minha mãe, no dia das mães. nessa
quadra que houve os campeonatos de futebol, que eu te falei, reuniram
praticamente a escola toda. Era início do período, era 7h da manhã. Reuniu a
escola toda, uma menina, colega minha que estudava na mesma sala que
eu, me parou na porta do Colégio, pediu para minha mãe esperar e entrou
comigo. quando eu olhei estava aquela roda gigante no meio da quadra,
com um espaço enorme para minha mãe ficar no MEIO. ela me explicou
do que se tratava e voltou comigo. minha mãe conseguiu entrar. Essa
menina conduziu minha mãe até o MEIO, aí me colocou lá. Aí começaram as
homenagens, deram flores para a minha mãe, uma caixa de bombom, teve
uma professora que leu um texto. Era dia das mães, e minha mãe foi eleita a
mãe símbolo do Graciliano Ramos.
232. P – Não só você virou celebridade como sua mãe também, por sua causa [ri].
233. A – É, por minha causa.
O posicionamento de pessoa socializável e comunicativa, aqui ganha um
novo contorno - o de ‘celebridade’. Esse não é um atributo qualquer, se
pensarmos que vivemos numa sociedade que fabrica e consome celebridades
como modos de vida exemplares. A condição de celebridade é estabelecida, no
relato, por dois eventos que podem ser caracterizados como ‘pontos de virada’
(Mishler, 2003), ou seja, acontecimentos que reconfiguram a trajetória da
identidade.
O primeiro, que não consta no quadro de transcrição, fala do sucesso de
Antenor como treinador do time de futebol da escola. Como ele sempre se
interessou pelo esporte, mas não podia praticá-lo com desenvoltura, foi tentando
se encaixar no jogo de alguma forma. Tinha tentado ser goleiro, mas foi a função
de treinador técnico que levou o time à vitória no campeonato, que lhe conferiu os
atributos de vencedor, num terreno onde as pessoas com lesões físicas não
costumam ter espaço. Além disso, considerando como diz Marco Souza
(1996:46), que o futebol pode ser entendido ‘como um dos complexos rituais de
iniciação que abrem acesso à virilidade adulta masculina’, vemos que o episódio
afirma potência e masculinidade que o inserem no grupo de pares. O futebol vai
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
89
indicar seu pertencimento a determinado time evidenciando um pertencimento
grupal [ver quadro 8 linha 285].
No trecho das linhas 229 a 233 é narrada a consagração da trajetória de
popularidade iniciada como ‘cara de pau’ pra fazer amigos, afirmada na vitória
como técnico de futebol e, mais tarde, com sua eleição para presidente do grêmio
estudantil, com boa margem de votos. O traço de retraimento mencionado na
linha 60 do quadro 4 vai sendo apagado por afirmações como a de que ele sempre
fora muito comunicativo [229].
Na ordenação dos fatos, ele liga a eleição do grêmio a uma cena de
homenagem pública à sua mãe. A imagem da sua mãe como símbolo da
maternidade para toda a escola, reforça o vínculo mãe-filho, sendo que, agora, não
é a luta que fica em primeiro plano, mas a conquista de reconhecimento público
por essa luta. Neste episódio, as posições de vergonha e revolta cedem lugar ao
orgulho mútuo.
Quadro 6
202. A – Eu com o tempo acabei me sentindo um aluno como outro qualquer. Mas
os professores, logo de início, eles// isso aconteceu de à série, eles
olhavam e perguntavam para mim// Eu cheguei a ser avaliado sobre a minha
capacidade de aprendizagem nessa época.
203. P – Por que, os professores tinham dúvida?
204. A Os professores tinham dúvida, mas eu, modéstia a parte, apresentei um
desempenho nesses testes, um desempenho extraordinário para a capacidade
de aprender as coisas.
205. É, e mesmo depois desses testes eles faziam um acompanhamento assim,
entre aspas, especial comigo.
206. P Mas tinha algum outro professor, tinha algum acompanhamento na
escola, tinha alguma estratégia diferente com você?
207. A Não, não. Eram os professores que iam e faziam as coisas comigo,
sentiam que eu tinha dificuldade para entender determinada coisa e eles iam
lá, chegavam particularmente para mim e me ensinavam no meu caderno
mesmo, não no quadro para todo mundo. Para tirar alguma dúvida que eu
podia estar com vergonha de perguntar.
251 A Na maioria das vezes a gente matava aula para ficar conversando no pátio,
às vezes era metade da turma, que costumávamos chamar que era a banda
podre da turma. Se bem que a banda podre é um termo mais pra cá, (...) mas
era a banda podre da turma. A gente matava aula, o pessoal ia jogar bola e eu
ficava assistindo o pessoal jogar bola, então eu ficava nessa de... Mas
também quando eu cismava de estudar alguma coisa eu ia e pegava, não
queria nem saber.
70. P Essa vontade de escrever, esse desejo, desde quando você lembra disso,
isso foi incentivado pela escola ou não?
71. A – O fato de eu gostar de escrever vem muito da (...) da formação musical que
eu tenho, porque meu pai além de ex-componente de grupo de samba ele
também é compositor, e eu peguei um pouco dessa veia de compositor dele. De
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
90
vez em quando eu escrevia algumas coisas, que até hoje a maioria delas estão
perdidas, eu não achei. E fui desenvolvendo esse lado de compositor e esse
lado de escrever as coisas, de exercitar a imaginação e transformar tudo em
palavras.
Quanto à identidade de aluno, Antenor menciona que teve sua capacidade de
aprendizagem sob suspeição por parte de alguns professores, sem posicioná-los
claramente. Estes aparecem como personagens secundários, num enredo em que a
suspeita forja a oportunidade de exibir seu ‘desempenho extraordinário’. Apesar
desse desempenho, Antenor continuou a receber atenção especial por parte dos
professores, de uma forma discreta para não o constranger perante a turma. O que
aparece aqui, pode ser interpretado como uma instância pericial que costuma ser
requerida pelos sistemas escolares para acompanhar e classificar os indivíduos
com deficiência. Marques (2002:11) ressalta que na construção do anormal e no
estado de letargia social em que vivemos, as oportunidades de trabalho, lazer e
educação das p.c.d. passam a depender dos laudos dos especialistas. Antenor, no
entanto, não apresenta a exigência de testes como uma crítica, mas como mais um
obstáculo que ele ultrapassou.
Continuando a história, na adolescência Antenor se junta à ‘banda podre da
turma’. Apesar de matar aula e acompanhar os maus alunos, ele sustenta a posição
de que, quando quer, basta acionar sua força de vontade para recuperar seu
desempenho acadêmico. As duas vezes em que foi reprovado de ano são
mencionadas como um descuido, algo que poderia ter sido evitado, se ele o
tivesse se envolvido tanto com atividades no grêmio, por exemplo.
No último extrato do quadro 6, o narrador enumera, entre os motivos que o
levaram a escolher a carreira de jornalista, o gosto pela escrita. Perguntado sobre o
papel da escola no desenvolvimento da vontade de escrever, ele atribui esse
interesse à sua relação com o pai, através da parceria na composição de músicas.
O pertencimento identitário ao universo da música, em geral, e do samba, em
particular, é aqui ressaltado o posicionando-o como filho legítimo de seu pai.
Esses posicionamentos vão configurando a escola como um local de
socialização, onde a relação com o saber é secundária à relação de convivência e
camaradagem. A escola é retratada como o lócus dos encontros, das amizades e
um refúgio da solidão e do isolamento, que cobra o preço da obrigação de estudar
para passar de ano.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
91
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES
Quadro 7
70. A Conversar diretamente sobre isso eu conversava mais com a minha mãe,
ela sempre chegava e falava: “Vonão é diferente de ninguém. (...) Você tá
aqui, você conseguiu o que você conseguiu - desde entrar no primário, no
ginásio, na faculdade -, você conseguiu o que conseguiu por mérito seu, não é
porque os outros te ajudaram.”
73. P – O que te deixava pra cima?
74. A A proximidade das pessoas, até hoje isso é um ponto para mim que é
importante. Eu penso assim, EU PRECISO DAS PESSOAS. Mesmo que as
pessoas talvez não precisem de mim, eu preciso das pessoas. Nem que seja ta lá
pra ouvir as pessoas. A pessoa de repente está com um problema, chega a mim
e conversa. Eu fico parado olhando para a pessoa escutando. Isso para mim
já é suficiente, me sentir importante para as pessoas.
155. A Na adolescência. Que como sempre na adolescência você tem vários
questionamentos, e esses questionamentos aumentou na adolescência. Dos 12
até os 16, foi durante esses 4 anos que tinha muito esse conflito. Para você ter
uma idéia eu já pensei em me suicidar. Mas depois toda vez que eu pensava em
me suicidar depois vinha a imagem da minha mãe na minha cabeça e eu
desistia [ri]. Eu pensava que todo o esforço que ela tinha feito até aquele
momento teria sido à toa, teria sido em vão.
156. P – Mas o que era mais sofrido para você, o que doía mais?
157. A – Era não poder andar, simplesmente o fato de não poder andar. [...]
158. A Justamente porque EU TINHA esse auto-preconceito. As pessoas
nunca tiveram, em 23 anos de vida, as pessoas nunca tiveram preconceito para
com a minha pessoa, mas eu tinha esse auto-preconceito, de achar que as
pessoas iam ter esse preconceito comigo. E até hoje quando eu vou em um
lugar que eu ainda nunca fui, eu fico parado pensando que as pessoas estão
achando, na faculdade não foi diferente. [...]
No quadro 7, Antenor resume e reafirma sua posição com relação à própria
lesão e à deficiência. A presença da mãe é apontada como a alteridade que
importa e que disponibilizou para o filho um lugar positivo no mundo: de alguém
que tem mérito; que não deve favor a ninguém; de um lutador e também de
alguém que não é diferente de ninguém, ou seja, que não deve deixar que a lesão
seja um marcador importante na sua identidade. Esse olhar funciona como guia,
uma vez que a mãe é reiteradamente posta na posição de grande companheira de
luta. No trecho 155-158, isso fica claro. Quando entra na adolescência, isto é,
quando as transformações do corpo nos obrigam a prestar atenção a ele, Antenor
atravessa uma crise e chega a pensar em se matar. O que o impede de passar ao
ato é a presença ‘internalizada’ da mãe. É como se a sua vida não pertencesse só a
ele pois a identidade de Antenor e da mãe estão amalgamadas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
92
A relação com o corpo é ambivalente. Ao mesmo tempo em que ele
conseguiu minimizar as limitações advindas da lesão, ampliando enormemente
suas possibilidades (por exemplo, de dançar, de locomover-se pela cidade e de
namorar), Antenor não consegue se desprender da dor de não poder andar. Sua
baixa mobilidade exige interdependência com os outros. Outros braços e pernas
devem ser acionados para que ele possa andar de ônibus (não adaptados), possa
chegar em casa (que fica numa ladeira) etc. No entanto, quando ele expressa sua
necessidade em relação aos outros, o que vem à tona não é a necessidade de ser
ajudado, mas de poder ajudar, de se sentir importante para as pessoas.
A retórica de nunca ter sido alvo de preconceito sustenta seu posicionamento
de ser ‘uma pessoa como outra qualquer’, que não quer associar sua identidade
com a lesão corporal. No entanto, ao mencionar a angústia que o leva às fantasias
suicidas, algo da posição de pessoa bem resolvida, se quebra. Para resolver essa
incoerência ele menciona um auto-preconceito que não tem base na sua
experiência, mas está ali atuando constantemente...
A idéia de auto-preconceito está atrelada a um regime de verdade que
concebe a subjetividade como um espaço interno e individual, que por sua vez,
tem como fundamento uma visão representacionista da linguagem. De acordo
com a linha conceitual adotada nesta pesquisa, o auto-preconceito é fruto de uma
estratégia de poder que constrói um sistema de vergonha como modo de
subjetivação, a partir do antagonismo normal versus anormal e ativado nas jogos
de linguagem que fundam as relações cotidianas de uns com os outros. As
conseqüências de uma e outra visão são bastante distintas. Enquanto na visão
representacionista-individualista o preconceito deve ser atacado como uma
fantasia ou fraqueza pessoal, na visão socioconstrucionista, nossa identidade e
nossos conceitos são gerados na linguagem - que é uma instância social que
envolve sempre alteridade e situacionalidade (Moita Lopes 2003), ou seja, é
preciso atuar no nível da intersubjetividade pela linguagem.
Quadro 8
281. A É como eu falei, como eu estava acostumado a andar com não
deficientes foi uma coisa que assim, para mim foi indiferente, o fato de estar
com mais alguma pessoa deficiente. Porque como ao longo desse período eu
aprendi a não diferenciar as pessoas deficientes dos não deficientes foi uma
coisa assim que surgiu natural.
282. P – Você acha que o melhor é não diferenciar, é tudo gente e...
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
93
283. A É tudo gente, e como eu costumo dizer BRINCANDO e não
pejorativamente, são tudo farinha do mesmo saco.
284. P – Então é mais importante ser flamenguista e vascaíno do que ser
deficiente e não deficiente?
285. A Exatamente. Eu abomino mais um deficiente sendo vascaíno do que
ele sendo uma pessoa diferente. Eu acho estranho, não que eu abomino. Eu
acho estranho, eu acho diferente, eu tenho uma certa re-rejeição, rejeição não,
uma certa resistência, essa que é a palavra, com um deficiente que seja
vascaíno mais pelo fato de eu ser flamenguista do que pelo fato de ele ser
simplesmente deficiente. Ele ser deficiente é indiferente para mim.
O trecho acima reafirma a posição de normalização ou seja, de recusa a se
identificar com o marcador ‘corpo com lesão’. Ao explicar sua relação de
antagonismo, Antenor usa vocábulos com forte conotação avaliativa como
abominoe tenho certa rejeição’, que em seguida ele se auto-corrige atenuando
parte do efeito avaliativo e tentando deixar claro que a carga de resistência ou
estranhamento estaria dirigida ao aspecto de torcedores do Vasco - seu time
adversário - e não aos deficientes. A não-diferenciação entre quem tem ou não
tem deficiência pode ser interpretada como uma indiferença a quem tem
deficiência. Aqui, um certo discurso de inclusão, que propõe a indiferenciação
entre as pessoas para que sejamos todos circunscritos no rol da diversidade
humana, é reforçado e o discurso da positivação da deficiência, como uma
diferença que conta, é antagonizado.
Quadro 9
302. P - Você acha que você é a encarnação viva da possibilidade de vencer
obstáculos?
303. A – É, uma vez eu cheguei ao Centro Tecnológico, dancei com o grupo
de dança da escola que estudei e falei a mesma coisa: “Sempre que for possível
corra atrás dos seus objetivos.” E eu costumo usar como exemplo, usar como
frase emblemática, um trecho de um samba enredo, que eu também sou um
cara muito ligado a Carnaval, um trecho de um samba enredo da Unidos da
Tijuca que diz assim: “Sonhei, amor, e vou lutar, para o meu sonho ser real.”
Se não me engano foi em 2004, foi ano passado isso. E desde quando eu ouvi
esse trecho desse samba que eu levo essa frase comigo. Que essa frase, nela,
pelo menos para mim, vem o que eu quero levar para as pessoas. Mesmo as
pessoas não sendo deficientes elas sempre se abatem. Lógico sempre tem
aquele abatimento de não ter conseguido o que quer, eu sempre chego e falo
para as pessoas, praticamente em toda a apresentação que eu faço: “Sonhem.
Sonhem, lutem e consigam”.
349. A – Tinha alguma coisa separada para mim lá para frente.
350. P – Você achava que era uma premonição?
351. A É, eu sempre, eu sempre acreditei em destino. Eu sempre acreditei
que as coisas que acontecem na vida da gente estão traçadas TROCENTOS
MILHÕES DE ANOS ATRÁS [...]
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
94
395. A – Às vezes eu penso que (...) Existe um desenho, existia um desenho há
um tempo atrás chamado “O Fantástico Mundo de Bob” que era um menino de
aproximadamente quatro anos, que tinha todo um imaginário que às vezes se
via como médico, como dico veterinário, como médico de pessoas e tal,
como motorista de táxi. E eu acho que me sinto um pouco Bob também. De, é,
prá aplacar um pouco as coisas que me ferem eu acabo criando um imaginário.
Nos três fragmentos do quadro 9, são trazidos elementos que ajudam a
compor uma cosmovisão de si e dos outros, ocupando posições de sujeito em
discursos que fornecem concepções de mundo às vezes contraditórias.
No primeiro trecho [302/303], Antenor se posiciona como o superador de
obstáculos que tem autoridade moral para aconselhar as pessoas a acreditar nos
seus sonhos até que eles se realizem. Aqui, a capacidade de realização é atribuída
à persistência em manter seu sonho/desejo ativo, mesmo que as circunstâncias
digam que este sonho é inalcançável. No segundo trecho [349/351], ele se alinha
ao discurso espiritual/religioso mais determinista, onde tudo o que acontece está
traçado num plano superior e o que devemos fazer é cumprir e bendizer este
plano. No terceiro trecho [395], ele traz a imagem de um desenho animado e se
compara ao personagem principal, um garotinho que se refugia no mundo da
fantasia. Diferente da posição do sonhador-realizador, ou do cumpridor-do-
próprio-destino, aqui a realidade parece muito dura para se lidar, sendo necessário
buscar refúgio na imaginação, não para tirar forças para realização, mas para
alcançar o prazer de se imaginar sendo outras coisas.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
A trajetória escolar de Antenor foi toda feita entre pares sem deficiência
4
,
em escolas regulares. O percurso de entrada numa pequena pré-escola privada no
subúrbio do Rio, passagem para uma escola municipal num bairro de classe
média, conclusão do ensino médio numa escola técnica, é coroado com a entrada
na universidade estadual. Essa moldura institucional dá à trajetória de Antenor um
sentido ascendente, que ajuda a posicioná-lo como vencedor. Os percalços da
trajetória, duas reprovações e necessidade de apoio psicopedagógico poderiam
questionar tal sucesso, mas o posicionamento do narrador não está calcado na
imagem de aluno aplicado e estudioso. Embora ele mencione, aqui e ali, sua
4
Há relatos de colegas com deficiência no ensino médio – um outro cadeirante, uma anã e um
surdo, mas eles foram citados em resposta a pergunta [insistente] sobre outros colegas com
deficiência.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
95
facilidade em aprender e seu bom desempenho nos testes psicopedagógicos, a
principal virtude que desenvolveu e foi reconhecida pelo universo escolar, foi a
facilidade em fazer amigos. Nesse sentido, andar com a banda podre da turma’,
matar aula, tomar ‘bomba’ são contrabalançados pela sua inserção entre os
colegas, professores e funcionários das escolas, sua eleição como presidente do
grêmio estudantil, sua consagração como técnico de futebol e da homenagem à
sua e como mãe-símbolo da escola. Aqui, os indicadores de qualidade
educacional o são as notas e a relação estrita com o saber, mas a capacidade de
fazer parte dos grupos, de ser querido e ser lembrado. Os atributos de
popularidade alcançam o status de celebridade, em algumas passagens da
narrativa.
Para construir esse perfil, de quem transforma adversidades em
oportunidades ou converte a visibilidade pública da sua diferença em porta de
entrada para novas relações, Antenor circula por vários discursos. O discurso
religioso embora sem identificação de uma filiação específica, é a referência
para explicar as diferenças corporais/sociais como algo tramado desde um plano
superior que mesmo não sendo compreensível, é necessariamente justo. O
discurso da superação através do esforço pessoal com apoio da família é o ponto
de coesão da narrativa. A mãe é posicionada como co-autora das suas conquistas e
companheira de luta. Colegas recebem mais destaque do que professores e a
escola aparece como um cenário para o processo de desenvolvimento de seu
talento social.
A crença nos sonhos e num plano divino e justo, reforçam o discurso de
indiferenciação entre quem tem e quem não tem deficiência, de forma que a lesão
não ganhe centralidade na sua performance de identidade. As características
evidenciadas no seu relato o identificam como heterossexual: tem namoradas,
‘não é bobo de não olhar para as meninas’ e bastante interessado em futebol, o
que na cultura local, são atributos de masculinidade. Filia-se como membro do
universo do samba que remete tanto à questão de classe e raça sendo um negro
de camada popular quanto o aproxima do pai, um músico de pagode, que lhe
ensinou a tocar vários instrumentos e o estimulou a escrever, fazendo do filho um
parceiro na composição de canções.
A contradição aparece em diversos momentos e é assumida como um traço
que o caracteriza sou um paradoxo de mim mesmo’. Entre todas elas a que mais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
96
me chama atenção é aquela que oscila entre independência (incluindo auto-
preconceito e resolução autônoma dos problemas) e interdependência
(reconhecimento da sua necessidade do outro). O que ele diz necessitar no outro
não é de solidariedade ou ajuda, mas de sinais de que sua presença conta, de que
ele pode ajudar, de que sua participação vai ser levada em consideração.
Na entrevista coletiva, Antenor foi bastante incisivo e ocupou um lugar de
liderança, na medida em que, por diversas vezes, foi o primeiro a arriscar a
comentar as questões propostas pela moderadora e suas opiniões foram validadas
por outros interagentes. De modo geral ele reafirmou no coletivo os sentidos de
jovem bem sucedido em romper barreiras e desafiar limites sociais e físicos.
4. 2
FÁBIO - Vivendo na fronteira da normalidade
SITUAÇÃO DO ENCONTRO:
Conheci Fábio no mesmo dia em que conheci Antenor. Fomos
apresentados pela coordenadora do Rompendo Barreiras e agendamos nossa
entrevista para a semana seguinte. No dia combinado, eu cheguei e, quando o
cumprimentei, ele comentou: ‘é você? Não tinha te reconhecido, naquele dia você
estava de cabelo preso, hoje você está de cabelo solto.’ Eu fiquei intrigada, ‘como
pode alguém que não enxerga reparar no meu penteado?Ele riu e me explicou
que enxergava vultos, e que de perto, focando bem, ele podia reconhecer coisas
desse tipo. A entrevista se deu numa salinha, dentro do Programa Rompendo
Barreiras. Conversamos por quase duas horas, numa tarde quente de sexta feira.
CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR
Descritores individuais: homem, negro, 25 anos, solteiro, 5º período de psicologia
numa Universidade privada, visão sub-normal (enxerga 20%).
Grupos de pertencimento: família, vizinhos e colegas de escola.
Configuração familiar – mora com os pais e a irmã mais nova num bairro da zona
norte do Rio de Janeiro
Mãe – 2º grau – secretária numa empresa de consultoria.
Pai – 7ª série – técnico em montagem de carros - assalariado.
Dois irmãos – um irmão 3 anos mais velho e uma irmã adotiva 8 anos mais nova.
AUTO-APRESENTAÇÃO:
Quadro 1
[a conversa se inicia com Fábio incomodado com a gravação pois não gosta de ouvir
a própria voz]
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
97
2. F Meu nome é bio, eu tenho 25 anos de idade e me considero deficiente
visual. E a grande questão, é assim, se eu me considero deficiente, por que a
pergunta?
3. P Não, assim, eu te perguntando por que eu tô partindo dessa idéia de que eu
estou entrevistando pessoas com deficiência. Então a primeira coisa é a auto
definição, qual é a SUA definição da sua condição. As pessoas podem ter uma
visão sub-normal, mas não se considerarem com deficiência, tá entendendo?
4. F Mais ou menos, deixa eu ver se eu entendi. Pra falar a verdade, quando a
gente nasce, quando a gente é criança, você não essa diferença entre você e as
pessoas até certo momento, né? //
8. F - Em primeiro lugar, quando eu era criança, eu tinha obstáculos? Tinha. Era
diferente? Era. Mas aquilo não me PESAVA, não me trazia nenhum tipo de
estigma pra mim não. Mas é (...) começou a pesar, é quando você tava vendo
televisão, e sempre sua mãe tirando você de perto da televisão: “Ah ele não
vendo a televisão”. Então: ‘Vamos levá-lo ao oftalmologista’. Isso na minha
história pra mim ela me conta, junto com minha memória, das minhas primeiras
informações que eu comecei a ter né?
13. F - Isso com 3, 4 anos, muito novo. Achava aquilo tudo muito estranho. Eu tenho
um irmão, tenho uma irmã adotiva, e o que acontece? Eu sou no meio deles. O
Leonardo via televisão sentado no sofá, ele conseguia, quando chamavam ele,
pegar as coisas muito mais rápido. Ele conseguia identificar os chinelos debaixo
de uma cama, né? Coisas pequenas ele pegava muito mais rápido, e eu, o mais
novo, não. ‘Tem algo de errado nele’. Pra eu poder ver tem que tá muito próximo.
‘Pra enxergar de longe ele procura onde ta, DEMORA’. Então tem vários
obstáculos. Primeiro você vai ter que distinguir que tipo de visão é essa. A visão
subnormal ela é (?) do nervo ótico, cientificamente. Fazia todos os exames
normais nos hospitais do estado e do município e eles não acusavam, nada.
nós fomos pro projeto “HCE”. E eles detectaram o quê que era, começaram a
fazer uns exames de estudo lá, e nesse intervalo, de saber o que eu tinha e o que
eu não tinha é que veio a parte escolar, que era de 5-5 anos de idade, 6 anos.
A interação começa com Fábio estranhando a pergunta se ele se considera
uma pessoa com deficiência. Não significa que a assimetria das posições
entrevistador-entrevistado tenha sido contestada, mas que a primeira questão já
tocou num ponto chave do seu movimento identitário. Ele diz que entende mais ou
menos a pergunta mas esse mais ou menos[linha 4] pode ser lido, em conjunto
com os atos narrativos que se seguem, também como uma resposta sobre sua auto-
definição: ele se posiciona como mais ou menos deficiente.
Quando criança, diz o ter percebido a sua diferença em relação aos outros,
embora os relatos de sua mãe e suas memórias mostrem que desde cedo a família
achou que havia algo diferente no seu comportamento, tomando como parâmetro
seu irmão mais velho. Essa diferença é descrita como um ritmo mais lento para
pegar objetos e a necessidade de chegar muito perto das coisas para enxergá-las, ou
seja, como algo que o compromete sua funcionalidade e, portanto, não representa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
98
um PESO familiar. Na seqüência, Fábio assinala que sua mãe nota que ‘tem algo de
errado nele’ e parte para procurar ajuda. Para achar esse ‘algo errado’ foi preciso
empenho e persistência, passando por uma maratona de exames até que o saber
científico detecta uma disfunção/lesão do nervo ótico que ele traduz por visão sub-
normal. A escolha lexical para nomear a lesão ajuda a definir seu posicionamento na
narrativa. Em vez de dizer visão sub-normal ele poderia ter dito ‘deficiência visual’
ou ‘baixa visão’, sendo esta última defendida pelos grupos que estão revendo o
‘entulho autoritário’ que vive nos interstícios da língua e estigmatiza as pessoas
com deficiência (Sassaki, 2003). Sub-normal para além de um nome técnico, um
‘tipo de visão’, pode se caracterizar uma coordenada em relação à normalidade ou,
como o posicionamento de alguém que habita um entre-lugar (Bhabha, 1990) entre
a normalidade e a deficiência (cegueira).
INTERAÇÃO ENTREVISTADO - ENTREVISTADOR:
Quadro 2
73. F [...] Porque na minha primeira escola municipal as crianças ficavam às vezes
admiradas, tipo: ‘quem é você? Porque você é assim?’ Olhavam bem dentro do
meu olho e falavam: ‘seu olho é normal, ele é grande, seu olho nem pequenininho
é, então ele é normal’.
74. [P – ri]
75. F - Eu lembro muito engraçado. ‘Como é que você pode não enxergar direito?’
76. Assim pra ir ao banheiro eu ficava sempre observando pra onde os meninos
estavam indo e pra onde as meninas estavam indo. Porque o bonequinho ficava
desenhado em cima e eu não ficava vendo aquele desenho. Até hoje eu faço isso
e, com muita naturalidade, as pessoas não percebem. Então eu acompanhava eles:
‘mas você faz tudo, você corre. Como é que você não enxerga o quadro?’ Eles
tinham certo ciúme dos professores, tinha essa diferença. ‘Porque escreve pra ele
e não escreve pra mim? Ah porque pra ele tem que ser assim e pra gente não? ’
77. P Eles duvidavam que você tivesse alguma coisa? Olhavam e falavam assim:
‘não, ele ta mentindo, pra ter um tratamento VIP ele ta falando que não enxerga.’
[ri]
78. F Parecia né? Mas tinha essa diferença. Mas a minha maior complicação é que
elas implicavam com isso né? Elas ficavam admiradas durante um tempo,
depois melhorou bastante. Mas assim que eu me lembro que olhavam dentro do
meu olho e ‘como ele pode não enxergar se ele ta aberto’, ‘você anda de olho
aberto, seu olho é grande, não é igual de japonês, seu olho não é todo branco, não
é todo preto, seu olho é igual o nosso, não tem diferença nenhuma. Você não ta
olhando torto esganiçado. O que acontece contigo que você não enxerga. Você
tem que enxergar.’ Eles exigiam isso de mim. (P ri várias vezes ao longo da
fala)
79. P – Mas você chegava em casa e enchia a sua mãe de perguntas? Por que você ta
contando com muita leveza, dá vontade de rir do jeito que você conta. Mas você
acha que isso pra você era uma forma de atenção, atraía a atenção das pessoas ou
te incomodava?
80. F – Me incomodava. E trazia a atenção das pessoas pra mim.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
99
A interação entre entrevistado e entrevistadora é marcada pela capacidade
de Fábio circular pelos dois mundos normal e deficiente, e de trazer notícias, de
um lado para outro, de se deslocar de lado de acordo com a conveniência. Seu
relato tem uma entonação teatralizada, utiliza muito o recurso de mudar de
entonação de voz ao fazer a fala reportada dos personagens com os quais interage
como, por exemplo, as crianças, suas colegas, perplexas com seu ‘mistério’.
Diante da falta de um sinal claro sobre a deficiência, as crianças ‘exigiam’
que Fábio enxergasse. Essa exigência impossível poderia caracterizar seus colegas
como pequenos opressores que encurralam um de seus pares. No entanto, toda a
cena tem o enquadramento de comédia e não de drama, graças ao distanciamento
entre narrador e protagonista da cena. Ao se localizar como alguém que está de
fora, observando uma cena escolar, a narrativa traz, em primeiro plano, a
curiosidade e a perplexidade infantil e a esperteza do protagonista em driblar suas
dificuldades.
O contraste entre a dureza do conteúdo e a leveza da forma de narrar é
assinalado pela entrevistadora, como que se desculpando por estar rindo diante de
fatos que podem ter sido difíceis de serem vividos. Essa intervenção muda um
pouco o enquadre da conversa e Fábio prossegue explorando esta ambigüidade
entre gostar e se incomodar por ser diferente e chamar atenção dos outros.
Circular tanto pela ambigüidade dos sentimentos quanto pela ambigüidade
da sua condição, é um talento desenvolvido por Fábio. Nesse sentido, ele revela
alguns ‘truques’ que utiliza para que sua lesão não ganhe destaque. Um exemplo é
poder distinguir o banheiro dos meninos, sem enxergar a sinalização na porta e
sem ter que pedir ajuda a ninguém, seguindo os vultos de saias e de calças. E
arremata: ‘Até hoje eu faço isso e, com muita naturalidade, as pessoas não percebem.’
Assim ele firma seu posicionamento de que é vantajoso agir de forma que
as pessoas não percebam ou fiquem confusas quanto ao grau de comprometimento
da sua visão. que os marcadoressicos mais comumente associados às pessoas
cegas ou com baixa visão não estão presentes: ele não usa óculos e seus olhos não
têm nenhum sinal evidente de lesão - ele desenvolveu comportamentos de um
vidente. Conversa olhando para o falante, vira-se na direção de algum ruído que
atravessa o ambiente e, como apresenta certo estrabismo quando foca por mais
tempo, ele se vira de vez em quando para que seu interlocutor não repare nisso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
100
ESQUEMA DE TRAJETÓRIA ESCOLAR
Nível escolar / idade Escolaridade Outros
Educação infantil Iniciou escolaridade por
volta dos 5 anos numa
escola privada. Aos 6
mudou-se para uma
escola municipal.
Exames e médicos para
diagnóstico do problema
visual.
Interrupção Aos 8 anos passou por longos períodos de
hospitalização que o tiraram da escola.
Alfabetização Voltou para a escola onde estudava e repetiu o C.A.
1º e 2º séries do Ensino
Fundamental
Foi para uma Escola Municipal que tinha serviço de
educação especial - sala de recurso.
2ª Série à 8ª série
Instituto Walter Benjamin horário integral fez
novamente a série para se alfabetizar no Braille e
repetiu a série pelo desempenho em matemática.
No contra-turno fazia esportes, habilitação
(aprendizagem de atividades rotineiras para vida
independente) e informática.
Ensino Médio Escola Estadual em Vila Isabel que oferecia sala de
recursos.
Vestibular Passou no exame
vestibular no segundo
ano de tentativa.
Paralelamente fez Curso
de telemarketing e foi
bolsista de um Programa
do Governo Estadual
voltado para a juventude.
Faculdade Universidade Privada
Psicologia 6º período.
Faz psicoterapia.
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR:
Quadro 3
48. F Fui estudar numa escola particular. E chegando lá// minha mãe
identificava o que eu tinha na visão, mas minha mãe falava que eu tinha que
estudar... porque ‘ele é uma criança’. Então eu fui estudar na escola particular e
eu sempre escutei os professores ficavam falando comigo: “postura pra sentar ...
postura pra cantar”. E eu não entendia o que tava acontecendo. [P ri] O que era
que eles querem de mim? O que desejam de mim? E não se usava muito o
quadro, né? As crianças tinham que pintar, é (...) cobrir , colar. E isso pra mim
não foi problema tão grande.
49. P – Você conseguia fazer?
50. F Eu conseguia pintar. Cobrir pra mim era uma grande diversão. Até tudo
bem.
51. P – Fazia tudo de pertinho...
52. F Essa é uma grande questão. Tudo meu era muito colado ao papel. E a minha
coluna não ficava ereta. Eu não ficava com a coluna ereta e olhando papel.
Imagina esse é o caderno e eu não fazia como os outros, tudo meu é aqui [leva o
papel a um palmo do nariz] muito próximo, colado. E desenho, eu desenho assim
até hoje. Pintar pra mim eu faço de perto. Pintar um campo limitado, né? Que não
é o meu não é essa minha criação, então eu vou obedecer àquela regra, então
nesse caso eu vou tomar o cuidado pra permanecer numa igualdade, igual todo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
101
mundo faz. ‘Todo mundo faz certinho, eu tenho que fazer certinho também’.
Porque eu tenho deficiência visual, mas eu acho que eu tenho que aproveitar dela
ao máximo pra ser igual a todo mundo.
De novo sua mãe é trazida à cena, aqui posicionada como a responsável
pela sua iniciação escolar. O motivo atribuído à e na fala reportada [48] minha
mãe falava que eu tinha que estudar... porque ‘ele é uma criança’, indicam que Fábio
foi posicionado por um olhar normalizador de quem no filho uma criança
acima de qualquer atributo associado à lesão ou outra característica específica.
A primeira experiência escolar é descrita como prazerosa, mas marcada
pela dificuldade de entender o que os professores diziam ou queriam dele. Aqui,
os professores são posicionados como incapazes de se fazerem compreender,
portanto, como despreparados para a função, mas não nenhuma avaliação mais
crítica nesse sentido.
No trecho 52 Fábio se posiciona como alguém disposto a seguir as regras,
a fazer tudo certinho, a pagar o preço necessário para ser igual a todo mundo.
Quando ele diz que tem que aproveitar ao máximo da ‘deficiência’ para ser igual,
pode ser interpretado como ver a baixa visão não pelo que ela tem de baixa, de
falta, de limite, mas pelo que tem de visão, de possibilidade e de normalidade.
Quadro 4
72. F - Fui pra [escola] Simon Bolivar, que era ao lado da minha casa. E, justamente,
minha mãe me levava até a porta da escola. Era muito cômodo, não tinha obstáculo
nenhum, era atravessar de uma calçada pra outra que a gente estava dentro da
escola. Mas eu lembro que a gente ia pra forma. Cantávamos o hino nacional de
manhã, íamos pra sala de aula, tudo normalmente. Antes de irmos pra sala de aula,
cantávamos o hino, íamos para o refeitório e do refeitório pra sala. Tomávamos
leite antes de entrar na sala de aula. Eu não fazia muita questão porque eu
tomava leite em casa, né? Então nesse caso, pra sala de aula, eu era o primeiro da
fila, como até hoje. [ri] que sempre tem aquelas brincadeiras né? O primeiro da
fila é aquele que é CDF, é mais aplicado? Não. Talvez não seria. Talvez seja o que
tem mais necessidade mesmo né, de estar sendo o primeiro da fila.
73. P - Mas era um privilégio? Era um peso? O que significava ser o primeiro da fila
pra você?
74. F - Pra mim, às vezes era um privilégio, por que era um meio do professor
conseguir ter mais dinâmica, talvez, comigo. Por que tive professores que eles não
tinham nenhuma paciência, de// sabia da minha deficiência, que eu não enxergava o
quadro, mas chegavam ao ponto de dizer assim: “ah não, você tem que enxergar o
quadro, nem que você precise levantar e copiar o quadro, ou você coloca a sua
cadeira aqui, em frente ao quadro.” Então, elas botavam umas coisinhas no quadro,
né? O abecedário, o conteúdo que tinha que ter. E normalmente todo mundo ia
sentar, e falavam que eu tava na frente de todo mundo, então eu sentava e falava:
‘ah daqui eu não vejo nada’. ela falava, ‘você bota uma cadeira aqui’. Então eu
ficava levantando o corpo em direção ao quadro pra poder enxergar o quadro. Eu
não podia ficar colado ao quadro porque ela tinha que ficar apagando e escrevendo,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
102
e ela não queria que eu ficasse indo e voltando, indo e voltando. E também ficava
nessa distância, tipo um metro, ou menos de um metro e me esquivava pra levantar.
Fazia um certo tumulto no meio da turma, pra eu ficar levantando. E todas as
crianças da minha idade queriam levantar igual a mim, queriam estar-estar na
minha posição de levantando pra escrever. [P- ri] ‘Então não, você vai botar a
sua cadeira na forma certinha igual a de todo mundo. E você vai levantar e vai
copiar”. E eu passei a levantar e copiar. Minha primeira professora. Eu conhecia
o abecedário.
75. P – Como você conhecia?
76. F – Da escolinha. Prá mim foi muito importante a escolinha, por que pelo menos já
deu um conhecimento né? Do que é o “a”, “e”, “i”. Então nesse caso eu passei a
levantar da minha cadeira, levar o caderno pro quadro e copiar do quadro. eu
ficava a um metro e pouquinho do chão, e ele ficava com alguns metros de
intervalo do chão até o teto. Então eu copiava o quadro TUDO PELA METADE!
Meu caderno era todo pela metade, e a parte de cima do quadro eu acabava não
visualizando. E então eu acabava com os exercícios incompletos. Aí o ano passou...
77. P – E a professora não se deu conta disso?
78. F – Ela se deu conta. Ela não tinha estratégia, não tinha dinâmica, não tinha esforço
de vontade, nem paciência. Aí eu tive problemas de dor de cabeça com sete anos.
O extrato acima diz respeito à entrada de Fábio no ensino fundamental,
numa escola pública perto de sua casa. Ele inicia o relato falando das facilidades
de acesso à escola onde não tinha obstáculo nenhum’, e da sensação de
autonomia. Continua descrevendo a rotina de chegada, destacando o fato de que
ele era o primeiro da fila para entrar para a sala, o por ser CDF’, mas porque
era justo, ele necessitava mais do que os outros. Quando complementa que o
primeiro da fila não deve ser o mais aplicado, mas sim quem mais precisa de
apoio, alinha-se como sujeito de um discurso da discriminação positiva onde, para
se obter justiça, pode ser necessário tratar de forma diferenciada os desiguais,
ainda mais se considerarmos que, no reino da escola, os últimos não costumam ser
os primeiros, mas sim os reprovados.
Quando Fábio se refere ao que acontecia dentro da sala de aula, sua posição
muda de um aluno que recebia atenção e era de certo modo privilegiado, para
alguém que era atendido por professores sem paciência, sem repertório, enfim,
sem condições de propiciar uma inclusão real. No trecho 74, ele inicia falando de
personagens pluralizados: professores, mas quando vai detalhar o que acontecia,
ele se refere a uma professora específica - ‘minha primeira professora’. Essa
professora é posicionada como alguém que percebia as dificuldades do aluno, mas
não tinha estratégia, não tinha dinâmica, não tinha paciência, não tinha esforço
de vontade e impingiu a ele situações humilhantes que foram aqui associadas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
103
como possível causa de sua dor de cabeça. Este é um raro momento de avaliação,
não apenas da competência, mas da moral dos personagens evocados na narrativa.
O distanciamento utilizado em outros trechos parece se diluir nesta cena
deixando que um grau de indignação aporte no discurso. Esta indignação é
contrabalançada pelo tom jocoso com que a estratégia pedagógica da professora é
descrita. A princípio ela faz a mesma ‘exigência infantil’, dos colegas de pré-
escolar, de obrigar que Fábio enxergue. Ele, um garoto de 7 anos, sustenta a
posição de quem quer obedecer e fazer tudo certinho. Para seguir a exigência de
copiar o quadro sem ajuda, ele procura um lugar na sala se deslocando entre os
colegas e o quadro negro, o que interfere na dinâmica da aula. Nesse sentido a
professora é posicionada como atrapalhada, a cada hora dá um comando e nenhum
deles funciona, ao contrário, parece que a confusão vai aumentando, a ponto dos
colegas quererem também se levantar e ela quase perde o controle da turma. Essa
descrição meio debochada e o argumento de que veio da pré-escola sabendo
algumas coisas, atenuam o gosto amargo da experiência.
Quadro 5
115. P – E qual é a diferença entre estar numa sala regular e ir para uma sala//
116. F Naquela época eu gostava mais de estar naquela sala mais individual.
Assim, hoje em dia a gente sente até uma exclusão de repente né? Você ta
excluindo? Não. Pra mim era mais interessante porque ali eu conseguia aprender
a separar as silabas, conseguia tentar ler algumas palavras, dava pra eu me
desenvolver muito mais do que numa sala (...) tradicional. Onde os professores
não tinham a dinâmica e a capacitação pra poder lidar com 40 alunos ou vinte e
poucos, ou 30 não sei, aquela massa. E excluir dois alunos, ou um apenas, pra ele
poder copiar alguma coisa. Naquela época, o professor, até hoje, mas naquela
época especialmente, eles não tinham capacidade.
117. P Então você achou boa essa mudança. Depois que você foi se dar
conta que tinha essa conversa de exclusão. Você não sentia nada disso?
118. F Isso eu comecei a perceber depois de bem maior. Mas nós amos
na escola na hora da merenda. Era a hora em que todo mundo ficava junto, todos.
Os professores ficavam olhando, observando? Ficavam. Mas estava todo mundo
junto; os mudos, os cegos, os de visão subnormal, o da muleta? Todos juntos.
Não faziam muita distinção. E eu também não me considerava tão diferente.
Na seqüência do ensino fundamental, Fábio se mudou para outra escola
pública regular, mas, desta vez, havia uma estratégia específica que era a sala de
recursos com atendimentos praticamente individualizados. Na sua percepção, a
sala de recursos foi uma estratégia importante para que ele conseguisse aprender.
Ao defender esse modelo, ele se depara com o discurso da educação inclusiva e se
pergunta se isso seria defensável hoje, ou se é uma prática segregadora,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
104
excludente. Sua resposta é uma tentativa de composição entre os discursos da
inclusão e da integração, ressaltando a importância de todos os alunos estarem
juntos na hora da merenda, apesar de separados durante as aulas. É interessante
observar que, na sua descrição de todos os alunos juntos, ele cita apenas alunos
com deficiências, não mencionando os não-deficientes.
De novo os professores e as condições de trabalho oferecidas pela escola
são apontados como impedidores de uma prática realmente inclusiva: professores
sem estratégia, diante de uma massa de alunos. Ao mencionar o olhar dos
professores para os alunos ‘diferentes’, Fábio a entender que esses olhares
eram de estranhamento, mas que esse estranhamento ou incômodo não tinha o
poder de barrar-lhes a presença. Por fim, ele volta a se posicionar como alguém
que não se acha tão distante da normalidade, recusando-se a ocupar o lugar que os
olhares dos professores queriam lhe fixar.
Quadro 6
79. F Alívio. Porque ela não sabia da capacitação de um deficiente visual, ela não
sabia que existia um professor cego. Ela não sabia que existiam cegos que
nadavam, que corriam, um cego que comia sozinho e se locomovia só. Ela até via
cegos na rua, mas os cegos que nós víamos na rua alguns anos atrás não é o cego de
hoje né? Aquele cego coitadinho, que fica sempre com outra pessoa pedindo
esmola. - “Ah ajuda ele que ele não enxerga, ele tem deficiência visual”, ou então
aquele ceguinho que fica em frente a igreja, né? Muito menos, né? Então foi essa a
imagem que quando minha mãe percebeu// - ‘olha só, quantos professores
graduados! Impressionante! Professor de matemática.’ Tudo aquilo pra ela acho
que foi um alivio. Ela percebeu que eu poderia estudar, que eu poderia ser alguém
na vida (...) e tudo isso foi um alivio pra ela.
222. F – Não, minha mãe sempre falou, quando você me perguntou lá atrás você falou
assim, ‘ah e que você achou da escola, como é que seus pais viam, por né?’ D
ela, quando fomos ao Benjamin, ela falou pra mim: você quer realmente estudar
mesmo?’ E eu falei que queria. eu perguntei por que ela tinha me perguntado e
ela falou: ‘Porque é muito longe. É longe, você vai ter que levantar cedo e voltar
tarde para casa e, não é como seu irmão que-que em 10 minutos tá na escola. Então
nesse caso...’ eu falei: ‘não, vou estudar.’ quando eu fui pro Benjamin é que
eu comecei a perceber que, que tinha uma grande quantidade de cegos e de visão
subnormal que não faziam muito as minhas coisas. Assim, que não tinham muito
estudo, não tinham muita posição. Assim, a gente percebe realmente as condições a
partir da convivência né? Mas eu sempre via// ‘Nossa esse agora tão coitadinho,
né? Olha, ele fez só até o segundo grau, ou estudou só até a sétima.’
223. E aí eu comecei a ver que as pessoas videntes, ditas normais , com uma visão
100% todas elas, tinham vários leques de oportunidade pra cultivar. Se você não é
um operador de telemarketing, você pode ser um caixa de supermercado. Se você
não é um caixa de supermercado, você pode ser motorista de táxi, de Van. Você
pode ser um pedreiro, pode ser um monte de coisas, né? Toda profissão é honesta,
importante você ter ela e ter um ganho pra te sustentar. Aí, nesse intervalo todo, eu
sempre pensei nisso. A questão, desde criança realmente, mas na adolescência que
eu fiquei pensando nessas dificuldades financeiras. Meu pai e minha mãe sempre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
105
trabalharam. Eu sempre achei muito maçante, trabalhando direto. E eu pergunto:
‘Trabalhar pra que? Trabalhar pra ter um carro. Pra pode pagar a conta de aluguel.
Pra poder pagar a mensalidade da casa. Pra pode viver.’ Então deu falei assim:
‘Ué, então realmente eu vou ter que estudar mesmo, por que eu acho que motorista
eu não posso ser.’ O meu pai já foi motorista, uma experiência (...) Era a profissão
dele. É a profissão do meu irmão, hoje em dia. Sempre dirigiram, os dois// (...)
Então eu pensei: ‘Eu não vou ter a mesma oportunidade’. Meu pai fez até a
sétima serie. Minha mãe fez ao segundo grau. Mas, assim, meu irmão parou no
segundo grau. Não terminou o segundo grau. Não foi até o último ano.
O próximo passo na sua carreira escolar ajuda a resolver um impasse.
Apesar de não se sentir tão diferente, a escola regular foi-se mostrando uma opção
pouco eficaz para seu desenvolvimento como aluno. Fica então decidido que ele
passará a freqüentar uma escola especial, no caso, um centenário instituto
dedicado à educação de cegos e deficientes visuais.
Perguntado sobre essa passagem, que costuma ser retratada na literatura de
educação especial como traumática e muitas vezes sem volta, Fábio diz que o
contato com um lugar preparado para os cegos foi um alívio, principalmente para
sua e. Aqui ele posiciona a mãe como alguém que carrega consigo a
representação social dos cegos como coitados, mendigos e incapazes, em
contraste com a posição anterior, onde a mãe tinha posto o filho na pré-escola
alegando apenas ‘que ele era uma criança’ e que nunca fez drama em relação à sua
lesão.
A entrada para o instituto é um ponto de virada (Mishler, 2002:106) na
história, ou seja, é um daqueles eventos que abrem direções inesperadas, levando
a um senso de si diferente do que era projetado até então. A virada se deu, não
apenas porque ele e sua mãe perceberam que os cegos podiam ocupar lugares
menos degradados na sociedade, mas, também, porque elevou a lesão a uma
condição identitária importante na tomada de decisões. A forma como nos
localizamos relacionalmente fica clara, pois, numa terra de cegos, quem tem baixa
visão é quase vidente.
Além disso, a mudança para o Benjamin significou uma profunda alteração
na rotina de Fábio, que ele teria que ficar o dia todo num lugar longe de sua
casa, o que obrigava a um grande esforço de deslocamento diário. Esse momento
foi decisivo para a sua carreira escolar, pois a ele foi dada a escolha de parar de
estudar ou se apegar à oportunidade, e ele optou por continuar os estudos, apesar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
106
de todas as dificuldades. O contraste entre os cegos pedintes, que não tiveram
estudos, e os cegos professores, que estudaram, foi determinante neste momento.
No trecho 223 ele se dá conta de que as oportunidades de trabalho comuns
entre os membros da sua família e da sua classe social não estariam disponíveis
para um deficiente visual. Ser motorista, caixa de supermercado ou outras
profissões de baixa escolaridade estava vetado para ele e, portanto, a escolarização
se firmava como a única saída, não como uma opção, e, muito menos, como um
desejo. Ele se posiciona aqui com desencantamento, como alguém que, para ter
uma posição (sic) na vida, teria que se afastar do caminho natural de seu grupo
social. Podemos pensar nesse impasse como o da figura do trânsfuga social,
aquele membro de determinado grupo que se vê forçado ou alçado a outro extrato
social e experimenta sentimentos tanto de realização quanto de quebra de
pertencimento ao mundo de origem, causando um dilaceramento no habitus
(Bourdieu, 1993).
Quadro 7
196. F Muito preocupante no inicio. Angustiante. De você perder o sono
uma noite antes do curso porque eu falei assim : ‘vão ter pessoas novas que
nunca me viram, e todos enxergam bem.’ (...) Mesmo aqueles que dizem que
não enxergam bem. Mas eles enxergam bem. Eles têm condições de chegar
aos 18 anos de idade então nesse caso, aquele que enxerga mal ele pode
entrar numa auto-escola sair dali e tirar carteira de motorista. Então pra mim
era horrível. Então eu lembro, voltando um pouquinho atrás. Eu liguei
pra uma colega minha e falei: ‘matriculei em tal escola, fui com a minha
mãe, semana retrasada. Em qual escola você foi que eu tô pensando em ir pra
mesma escola que você ta indo.’ pelo fato de não me sentir o único
diferente dentro de uma instituição, dentro de uma sala de aula.
197. Assim, só o fato de saber que o meu amigo do Walter Benjamin estava na
sala do lado, da mesma serie que eu, aquilo pra mim estaria trazendo um
pouco mais de conforto, porque as pessoas não estariam vendo apenas um,
estariam vendo dois. Saberiam que não existe apenas um, existem dois. Aí eu
fiquei sabendo que uma amiga minha tava indo pra lá.
198. Chegando lá na escola, quando chegou a hora do intervalo não tinha só eu
e ela, por coincidência ela ficou na mesma sala que eu, pra mim foi melhor
ainda. E ela é totalmente cega. E as pessoas ficam mais preocupadas com
quem é cego do que com quem tem visão subnormal. Porque por incrível que
pareça quem tem visão subnormal ele ta muito em cima do muro. Ele não é
percebido assim de primeira instância, ele não é cego mas também não
enxerga bem. Ele não enxerga lá, mas também não enxerga aqui algumas
coisas. O que ele enxerga? Paira sempre uma dúvida né? Sempre. Essa
dúvida eu vou levar a minha vida inteira, eu tenho certeza.
No final do ensino fundamental, Fábio faz de novo uma passagem, desta
vez da escola especializada para uma escola regular. Apesar de ter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
107
experimentado o sistema escolar regular e ter vencido vários obstáculos, ele se
posiciona como alguém corroído por angústia, com medo da situação, buscando
apoio para enfrentar o desafio.
Neste momento ele mostras de temer que sua diferença/desvantagem
venha de novo para o primeiro plano. Se, entre os cegos, seus 20% de visão eram
uma grande vantagem, entre os videntes seus 80% de cegueira sobressairiam. Ele
mesmo valoriza esse ponto quando diz que as pessoas que acham que m
problemas visuais por usarem óculos e acham que não enxergam bem,
comparadas com ele, enxergam muito bem. Enxergar mal é estar impedido de tirar
carteira de motorista, ele repete, afirmando a limitação que mais o distancia do pai
e do irmão.
Ele então busca conforto entre os antigos colegas do Instituto. Ao saber
que seus ex-colegas de Benjamin, estes sim, totalmente cegos, vão para a mesma
escola, ele sente alívio, como se a diferença pudesse ser dividida ou diluída as
pessoas não estariam vendo apenas um, estariam vendo dois. Saberiam que não
existe apenas um, existem dois’ [194].
Na seqüência, a expectativa se confirma e o impacto da sua chegada na
escola parece ter sido amenizada pelo fato de que na sua turma havia alguém mais
radicalmente diferente do que ele, uma garota totalmente cega. Assim, na
presença de cegos e videntes ele recupera seu entre-lugar, sua posição de transitar
‘em cima do muro’ e encontra abrigo na dúvida que sempre paira sobre a sua
condição em relação ao padrão normal.
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES:
A trajetória escolar de Fábio foi toda feita em escolas e instituições
públicas. Em relação à qualidade da educação, parece haver um divisor de águas
entre as escolas municipais, algumas descritas como lugares de humilhação e sem
condições de fornecer uma inclusão real, e a escola especial que lhe conferiu os
conhecimentos básicos que permitiram sua chegada à universidade privada, que é
paga pelos pais, que não passaram do ensino médio.
Quadro 8
201. P - E qual a situação que você achava mais interessante? Vocês quatro
juntos no meio de outras pessoas diferentes, ou onde tinha cego e de visão
subnormal?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
108
202. F - Achei muito interessante a gente sair do-do círculo. Eu sempre acho
que a gente tem que enxergar mais, do que você vê, né? Se não ta enxergando
tenta olhar pró lado e ver que tem um pouco mais, além. É difícil, muito difícil.
Mas eu penso assim a gente sempre tem que tentar enxergar mais, então, eu com
meu curso de informática eu não fiz curso de DOSVOX, não fiz o DOS, como
eles chamam. Eu fiz no método normal, com pessoas ditas normais e fui me
matricular pedi pra minha mãe me matricular. Meu pai até hoje ele não sabe até
onde eu enxergo. Minha mãe tem mais, tem mais consciência de tudo. Ela
conviveu muito MAIS com isso. Meu pai não.
203. P- Porque ele saia cedo pra trabalhar? Por que ele não se da conta?
204. F Pelo trabalho. Mais tinha aqueles estigmas que o homem teria sobre
si né? Daonde vem esse problema? Será que é uma parte genética minha?’ Hoje
em dia eu penso nisso né. Será que, que é algum erro meu? Alguma coisa que
não fiz direito?’ Eu creio que na mente dele passa tudo isso.
Circulando por espaços de pessoas com e sem deficiência, Fábio se
posiciona como um ser de fronteira. Sua aproximação de outras pessoas com
lesões mais limitantes que a sua parece ter o efeito de normalizá-lo. Dessa forma,
paradoxalmente, sua proximidade de pares com deficiência o distancia da
identidade deficiente. Também sua mãe é posicionada como alguém que sente
alívio e amplia as esperanças quando vê do que são capazes aqueles que são
piores do que seu filho. A normalidade é sedutora, a sub-normalidade é uma
condição que deixa sempre algum espaço para não se deixar pegar ou prender
pelos diagnósticos certeiros que estigmatizam. A dúvida dos outros inclusive de
seu pai – sobre sua real capacidade de enxergar é seu espaço de jogo.
A palavra erro é associada à sua lesão em algumas passagens, desde as
primeiras impressões de que tem algo errado com esse menino’, até a fantasia de
castigo atribuída ao seu pai: será que foi algum erro meu, algo que eu não fiz
direito’. Essas associações sustentam a posição de que a deficiência pode ser
disfarçada e que é melhor que passe despercebida. Ao lado disso, as imagens
ligadas à capacidade da visão são elevadas a uma filosofia de ver além do
aparente, talvez, de enxergar mais do que se vê: Eu sempre acho que a gente tem
que enxergar mais do que você vê, né? Se não enxergando tenta olhar pró lado e ver
que tem um pouco mais, além. É difícil, muito difícil.” [202]
Quadro 9
233. F - [...] Então eu resolvi fazer psicologia porque eu comecei a reparar
todos os estigmas que os deficientes tinham. As questões de escola, as questões
da sociedade. As pessoas não conseguiam ver, não viam o deficiente como
deficiente. O deficiente não sabia lidar, as vezes nem consigo próprio. Eu via isso
no meu colega que fez segundo grau comigo, que ele tinha a mesma visão que eu
tenho, tipos de deficiências diferentes mas o campo visual muito parecido, muito
igual. Mas a postura dele conversando com você era a de um (...) de um cego.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
109
Praticamente. Porque ele falava contigo, eu não fixo tanto os olhos nas pessoas
normalmente. Não é por não querer, mas simplesmente tem horas, que quando eu
fixo muito às vezes eu olho um pouquinho pro lado. Então nesse caso eu digo
‘não, não vou fazer isso prá não repararem que eu sou deficiente visual, ou então
não repararem que eu tenho o olho um pouquinho torto, o olho direito. Então
nesse caso, ele ficava o tempo todo de cabeça abaixada, (...) ele anda com a
cabeça abaixada até hoje. Ele pede os favores pras pessoas de cabeça abaixada.
Tudo dele é muito assim sabe, ele não olha pras pessoas. As pessoas sempre
olham pra ele e pensam assim ‘ah, ele enxerga pouquíssimo’
234. [P – ri]
235. F - E ele lê, ele anda, ele joga bola. E eu falei : - ‘Cara porque você anda
dessa maneira?’ ‘Ah por que eu ando.’ ‘Porque vofala dessa maneira com
fulano?’ ‘Porque as pessoas sabendo o que você faz as pessoas não vão agir
como agem com você. (...) Tudo flui muito naturalmente.’ As pessoas me tratam
muito como igual, nunca como uma diferença. [...]
As metáforas sobre ver sem ser visto, de tornar a deficiência invisível, de
tapear o olhar dos videntes aparecem durante o relato. Para isso ele desenvolve
um repertório de truques e joga com o lusco-fusco da indiferenciação. A metáfora
da ‘mão dupla do tempo’ pode ser vista aqui também, uma vez que a hesitação
inicial de se auto-definir como pessoa com deficiência vai sendo aclarada como
uma posição intermediária, que não tem uma resposta unívoca sobre ter ou não ter
deficiência. Essa questão, especialmente no caso de Fábio, depende do parâmetro
de comparação.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
Fábio tem um percurso escolar misto, isto é, freqüentou tanto escolas
regulares quanto especiais. Na avaliação dessas experiências, a possibilidade de
transitar entre os dois universos parece ter sido o grande aprendizado que deu a
ele a capacidade de viver na tensão entre a deficiência visual e a normalidade. O
fato da escola especial freqüentada ser uma instituição conceituada, que é
referência na educação dos cegos na América Latina, provavelmente atenue os
estigmas atrelados a esta modalidade educativa. A qualidade da escola está
relacionada, neste relato, ao repertório de estratégias dos professores e condições
de atenção individualizada, quando necessário.
Em algumas passagens ele circula por um discurso de discriminação
positiva, defendendo a experiência das classes de reforço e também de que os
alunos mais necessitados devem ter prioridade na atenção dos professores. No
entanto, a posição mais marcada é a de que a identificação pela deficiência atrai
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
110
estigmas e é melhor ser normalizado, alinhando-se à formação discursiva da
integração.
O narrador não se posiciona como um exemplo de sucesso, mas como
alguém que percebeu que as opções profissionais para pessoas com baixa
escolarização, como seus pais e irmão, não estariam disponíveis para pessoas com
sua limitação visual. Como aluno, posiciona-se como quem quer fazer as coisas
certas, aspirando ficar na média para ser igual aos outros, tendo como marca a
discrição. Sua participação na entrevista coletiva foi bastante contida, não
arriscando iniciar qualquer debate e falando pouco, geralmente para reforçar o que
estava sendo expresso como posição majoritária no grupo.
Os relatos de camaradagem e brincadeiras são mais referidos ao ambiente
familiar do que propriamente escolar, embora ele não mencione problemas de
relacionamento entre pares. As interrupções e percalços são relatados como
alheios à sua vontade ou esforço. Ele perdeu um ano por ter ficado um longo
período hospitalizado e a mudança para a escola especial exigiu que ele fosse re-
alfabetizado em braille, o que lhe custou outra repetição da mesma série. O que
mais pareceu incomodá-lo nestes casos foi a associação que outras crianças
fizeram entre atraso na escolarização e problemas cognitivos. Isso lhe posicionou
como alguém injustiçado.
Além da deficiência, as marcas identitárias de classe social e gênero
cruzam a narrativa. O fantasma dos cegos pedintes de esmola e a necessidades de
conseguir um trabalho para se sustentar são fontes de angústias, típicas da
representação hegemônica de masculinidade como supridor das necessidades
materiais e de alguém que não conta com um volume de capitais que o eximam de
trabalhar para sobreviver. Outros atributos de masculinidade são ressaltados:
Fábio menciona uma namorada, narra suas brincadeiras jogando futebol na casa
da avó, fala dos truques para não passar situações embaraçosas, como entrar no
banheiro das meninas por engano etc.
Podemos dizer que o conjunto desses posicionamentos e atributos
identitários constrói o efeito de que, na sua experiência, a sociedade trata melhor
as pessoas que parecem normais, mesmo que essa normalidade seja bancada às
custas de algum disfarce.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
111
4.3
LIA - A Batalha Por Respeito e Pelo Direito de Se Divertir
CONTEXTO DO ENCONTRO
Eu conhecia Lia, estivemos juntas numa mesa de seminário
apresentando nossos trabalhos e depois assisti à defesa da sua dissertação de
mestrado. Seu nome foi mencionado pela coordenação do Programa Rompendo
Barreiras como uma ex-bolsista bastante atuante. Como eu tinha seu e-mail,
resolvi contatá-la diretamente, o que não surtiu efeito. Através de um professor do
departamento de Educação da PUC-Rio, consegui o telefone do seu pai. Demorei
um pouco a ligar e, quando o fiz, ele foi muito receptivo, deu-me o telefone da
casa da filha e ela parecia já estar esperando meu contato quando, enfim, liguei.
Lia lembrou-se de mim, não sei que tipo de lembrança, e ficou muito
entusiasmada com o tema da pesquisa. O lugar escolhido por ela para nosso
encontro foi a universidade na qual faço o doutorado e ela fez o mestrado. Ela
chegou antes de mim e estava vestida de maneira mais formal do que das outras
vezes em que a vi. Nós nos encontramos na fila do elevador e, de lá, fomos
procurar um lugar tranqüilo para conversar. Lia se locomove com autonomia, mas
com alguma dificuldade e aceitou se apoiar no meu braço para chegarmos ao
banco do jardim, um lugar agradável, numa manhã ensolarada. Ela tinha uma hora
de disponibilidade, a conversa acabou durando quase o dobro, e por pouco ela não
perdeu o compromisso que tinha depois.
CARACTERIZAÇÃO DA NARRADORA:
Descritores individuais: mulher, branca, carioca, 33 anos, pedagoga, mestre em
educação, tem paralisia cerebral, trabalha como professora numa escola especial e
acaba de passar num concurso para cargo administrativo numa universidade
federal.
Grupos de pertencimento: ex-ativista de direitos das pessoas com deficiência.
Configuração familiar: Pais divorciados, mora com a mãe.
Mãe pedagoga, professora do município, aposentada, atualmente trabalha como
assessora na área de Cultura. Pai engenheiro mecânico, aposentado, atualmente
representante comercial. Um irmão, 8 anos mais novo.
AUTO-APRESENTAÇÃO
Quadro 1
8 - L – Sou carioca, e o que eu tive, a minha deficiência foi causada por uma anóxia na
hora do parto.
9 – Então a gravidez foi tudo, tranqüilo?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
112
10 – L – Foi normal, foi realmente um acidente. Na hora do parto o cordão umbilical
enrolou no pescoço, teve circular de cordão, que eles chamam.
12 L - (...) Eu logo tive todos os atendimentos possíveis pra época, tinha o pediatra,
que indicou os melhores técnicos, médicos, na época que tratavam do meu problema, e
eu comecei cedo a ter o atendimento né? De-de fisioterapia, tive inclusive em casa.
Tive alguém que ia em casa fazer, dar orientações pra minha mãe de como lidar comigo
né? E aí foi isso. Eu fiquei com uma lesão na parte de coordenação motora, do
equilíbrio e da fala. Que são os três tipos, as três características de uma paralisia
cerebral, né? Que é (?), hoje até a gente discute se o termo paralisia cerebral é legal
porque, tem gente que acha que acha que o cérebro tá parado,
13 - P – [Ri]
14 - L Uma pessoa leiga né? Então você é, tem pesquisadores dessa área estudando
outros nomes, outras formas de //
15 - P – Tem alguma sugestão, já?
16 - L Tem-tem é, dismotria cerebral ontogenética, é, tem algumas denominações
assim, que diz mais o que é a paralisia. Agora não vem, a que eu mais uso é essa,
dismotria cerebral ontogenética, que fala da motricidade né? Dismotria – e ontogenética
deve ser do período de formação do cérebro.
No início da entrevista, pedi para Lia falar sobre sua família, lugar de
nascimento, moradia atual e iniciar a história contando do seu nascimento e da
reação familiar em relação à lesão. A forma como ela nomeia sua condição é
minha deficiência[8] e, ao longo da entrevista, ela usa o termo o deficientee
também portadores de deficiência’. O uso do termo ‘deficiente’, embora
criticado, é usado coloquialmente como economia de palavras. o termo
‘portador de deficiência’ é uma contração de ‘pessoas portadoras de deficiência’,
que aparece somente na língua portuguesa, entre os anos 1988 a 1993, e coloca a
deficiência como algo agregado à pessoa. Esta denominação foi adotada nas
Constituições federal e estaduais e nas demais leis e políticas pertinentes ao
campo das deficiências no Brasil (Sassaki, 2004).
Os termos que Lia utiliza para descrever ‘sua deficiência’ vêm do discurso
científico. Usando uma nomenclatura técnica, ela opera uma clara distinção entre
leigos e especialistas, e ainda diferencia, nesta segunda categoria, os melhores da
área’. A narradora se posiciona como alguém que tem acesso ao discurso
especializado, ora se incluindo entre seus produtores ‘hoje até a gente discute se o
termo paralisia cerebral é legal’, ora nomeando pesquisadores e médicos como
outros: circular de cordão, como eles falam. A deficiência é apresentada como
um acidente, e o discurso técnico permite a narrativa factual, distanciada de
julgamentos ou sentimentos. Essa introdução antecipa a posição, que vai sendo
firmada pelo movimento dos posicionamentos, de que a narradora o tem a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
113
vivência da deficiência, mas pensa e pesquisa essa condição, ou seja, não é leiga
nem intuitiva no assunto. Essa antecipação pode ser lida como indício do que
Mishler (2003) chama de ‘mão dupla do tempo’, uma forma de organizar a
narrativa, o pelo tempo cronológico, mas pelo tempo experiencial, não linear.
Significa que o início da narrativa é regido pelo seu fim que, por sua vez, é
influenciado pela intencionalidade e pelo contexto, produzindo efeitos na seleção
dos conteúdos.
A precocidade do início dos atendimentos segue uma visão evolutiva
biológica que está incorporada, no discurso pedagógico da educação especial, à
educação inclusiva.
“Os estudos de desenvolvimento humano são unânimes em ressaltar certos
períodos como fundamentais no processo de maturação, particularmente os
situados nos primeiros anos de vida. As privações e as restrições nestes
primeiros momentos podem estar associadas a déficits evolutivos irreversíveis e
a distorções funcionais e estruturais. Aqui, mais uma vez, evidencia-se a
importância da identificação ser feita o mais cedo possível, pois claramente
permite situar o perfil apropriado e harmonioso dos comportamentos que
caracterizam as primeiras fases de desenvolvimento.” (Nogueira, 2002:64)
A alusão a ter sido confiada aos melhores especialistas posiciona seus pais
como esforçados e bons condutores da sua reabilitação e prenuncia um dos fatores
explicativos da trajetória de sucesso a ser contada, trazendo outro indício de
‘começo regido pelo fim’.
Vale dizer que na sua dissertação de mestrado, que versava sobre
Representação de professores sobre seus alunos com paralisia cerebral, Lia
dedicou uma sessão a prestar informações técnicas sobre a paralisia cerebral e
aponta, nas conclusões, para problemas advindos do desconhecimento dos
professores sobre a condição física desses alunos.
INTERAÇÃO ENTREVISTADO-ENTREVISTADOR:
O duplo posicionamento, de alguém que vive a condição da deficiência
mas que também pensa e produz conhecimento sobre ela, atravessou toda a
entrevista, posicionando a entrevistadora como colega, às vezes em desvantagem
por não sentir ‘na pele’ o seu objeto de estudo. Nesse sentido, a escolha do lugar
do encontro foi significativa, por ser o nosso ‘chão comum’, que ajudou a nos
nivelar como pós-graduadas da mesma universidade.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
114
O perfil identitário de mulher batalhadora foi sendo construído através da
negociação ativa do lugar de protagonista da entrevista, tentando inverter a
assimetria a seu favor ou, pelo menos, atenuando os possíveis efeitos de poder do
entrevistador sobre o entrevistado (Mishler, 1999).
Quadro 2
28 L Trabalhava, foi o seguinte, vou contar a história se você quiser interromper você
fala.
57. [...] L - Eu vejo hoje, eu trabalhando nessa área, que eu ainda to trabalhando, eu vejo
que, cada caso é um caso, não tem uma fórmula. A fórmula você cria na hora,
entendeu? Porque cada um vai te dar um tipo de resposta diferente.
58. P Mas, tô adiantando, a gente vai sair do script um pouco, mas, hoje, você com a
formação que você tem, com a experiência que votem, e com a sua experiência
pessoal, o quê que você defende em termos de uma educação?
62 L - (...) a gente ia adiantar um pouco [ri].
63 - P – Tá, então vamos voltar, entendi.
64 - L – NÃO, porque eu ia acabar falando da minha prática hoje, enquanto professora.
65 - P – Lógico, a gente vai chegar, mas é bom que.
66 - L – Aí eu tenho umas experiên//
67 - Eu acho que principalmente esse ano eu ganhei muito. Não assim que eu tenha feito
alguma coisa muito importante, mais eu ganhei muito como pessoa.
68 - P – Mas o quê que você ressalta desse ganho?
69. L – Não, porque eu, aí eu vou ter que contar a história, melhor eu voltar...
70. P – Melhor voltar, então vamos na sua história e depois, outra hora, se der tempo//
71. L – NÃO! FAZ PARTE da minha história.
72. P – Faz parte, exatamente, por que sua formação continua né?
73. L – Não e, é uma formação enquanto pessoa. Eu acho que a gente aprende muito.
74. Aí, vai falando aí...
152 - L – É, ou eu levava alguém de casa, ou então um amigo e tal, eu tinha um namorado
na época ele IA [sorrindo]
153 - P – Era seu namorado, de onde, onde você conheceu ele?
154 - L – Eu queria contar isso. [ri] Por que ia bem gostar (?)
195 - P – [tenta interromper]
196 - L – [fala mais alto]
136. [...] L - Quando você falou do teu projeto eu falei ‘pois é esse projeto eu queria pra
mim.’
137. P – (ri alto) Vão fazer a parte dois junto.
138. L – Eu falei, eu queria pra mim esse projeto, não é possível, é a minha cara! Sabe?
139. Que eu estudei a inclusão nas escolas, do município, mais eu, essa coisa de história de
vida, sabe, na educação em si a gente não tem muito espaço, pra entrar em alguns
meandros da questão da vida né? E você nunca pega a questão do todo. Vopode
até (?), você abre uma questão mais acadêmica, mais tendo uma noção//
140. P – Sem ver o contexto.
141. L Não, o TEU trabalho, você tendo uma noção do contexto, é uma coisa muito
legal, então, eu fiquei, ‘não, eu vou lá que eu quero saber qual é’, sabe? Quando você
me disse// ‘Não, eu, era isso que eu queria’ [ri]. Então eu acho que faltou. Eu não sei
se esse é um defeito ou é uma questão minha, ou uma questão, sei lá, acadêmica, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
115
eu hoje não tenho um projeto pra mim, pra doutorado. O quê que eu vou fazer? O quê
que eu quero?
332. P Tá certo. Pra fechar eu queria saber se tem alguma coisa assim que você queira
falar, ou que faltou falar e voache que é importante? Pergunta não tem, eu acho
que a gente deu um sobrevôo bacana, mas//
333. L – Não, fala alguma coisa, assim, não sei.
334. P – Sobre? (...) O quê que eu acho da entrevista?
335. L – É
336. P Não, na verdade, eu acho que a gente podia conversar mais um tanto, porque na
verdade//
337. L – O quê que você queria?
338. P Eu queria o que viesse. Na verdade, cada pessoa// eu num// A expectativa que eu
tenho é ter um momento e criar uma relação.
339. L – Que horas são, já são 11?
No primeiro fragmento do quadro 2 [linha 28], Lia ‘dá as cartas’ sobre a
forma como deve correr a entrevista dizendo para deixá-la falar livremente e
interromper só quando houvesse necessidade.
A seqüência das linhas 57 a 74 mostra uma negociação meio truncada
sobre o modo de ordenar os assuntos da entrevista. Ao narrar sua experiência
escolar Lia sai da posição de protagonista e se posiciona reflexivamente (Van
Langenhove e Harré, 1999) como a profissional que é hoje e analisa aquela
situação. Eu, como entrevistadora, peço que ela aprofunde a reflexão mesmo que
isso fuja do script [ou agenda tópica] - que vinha sendo a narrativa cronológica da
sua vida. Ela reage dizendo que isso interferiria na ordem da narrativa. Eu
interpreto essa observação como uma recusa de mudar a seqüência e acato a
recusa. Ela responde com veemência, indicando que eu não havia entendido bem e
que ela não estava se recusando, que esse assunto ia acabar aparecendo de
qualquer jeito. O diálogo subseqüente mostra tentativas da minha parte de
interpretar sua posição, e respostas que sinalizam que essas interpretações estavam
equivocadas. Por fim, para sair da zona de mal entendidos e retomar o fluxo da
conversa, ela se dirige à entrevistadora, dizendo: aí, vai falando ’, invertendo a
posição de condução da entrevista. Em alguns momentos houve disputa na tomada
de turno, quando tentei fazer um aparte e ela não permitiu, continuando sua fala
elevando o tom de voz. Estes pequenos conflitos dão pistas de como se exerce e se
disputa o poder numa conversação.
No trecho que começa na linha 152, Lia menciona um namorado que a
acompanhava durante algumas atividades escolares e um sorriso dando uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
116
deixa de que ali tinha algo a ser explorado. A entrevistadora pergunta sobre o
namorado e a narradora explicita que este é um tópico que gostaria de abordar.
Caso a interagente não tivesse prestado atenção aos sinais de interesse da
narradora no assunto – sorriso, tom de voz -, provavelmente teria perdido a
chance de ouvi-la sobre algo bastante relevante em termos de posição identitária,
como veremos a seguir. Na narrativa do caso amoroso, o enquadramento
entrevista de pesquisa acadêmica cede lugar para uma conversa entre
mulheres[ver quadro 8], onde os detalhes - onde se conheceram e quanto tempo
a relação durou - passam a ser objeto de construção de intimidade entre narradora
e audiência. O efeito dessa mudança de enquadre permitiu a abordagem de
questões mais amplas do que as estritamente referidas à trajetória escolar.
A passagem que compreende as linhas 136 a 141 mostra posicionamentos
ambíguos de colaboração, cumplicidade e até de possível competição, presentes
na relação. Relatando sua insatisfação com a experiência no mestrado e sua
frustração com a falta de um projeto para o doutorado, Lia diz que o projeto de
pesquisa em pauta era a ‘sua cara’. Aqui, a admiração pela idéia se mistura a um
quase pesar por não ter sido ela a proponente do projeto. A forma direta como ela
coloca a questão me fez rir e convidá-la para transformar o meu projeto e o seu
desejo numa empreitada comum, no futuro. Essa sugestão parece não ter sido
registrada, tanto que, ao final da entrevista coletiva, quando ela repetiu seu
interesse pelo projeto e eu insisti para que pensássemos em algo para realizarmos
juntas, ela mostrou-se surpresa como se tivesse ouvido a proposta naquele
momento.
No final da entrevista [332 a 339], quando perguntei a Lia se ela teria algo
mais a acrescentar ao relato, esta toma a posição de entrevistadora e pede que eu
narre algo sobre a conversa que acabamos de ter, que avalie sua narrativa em
relação às expectativas da pesquisa etc. Diante das respostas evasivas, um pouco
atrapalhadas, da entrevistadora, Lia pede informação sobre as horas e ajuda a
encerrar o encontro.
ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL
Idade Escolaridade Reabilitação
Desde os 1
os
meses Atendimento domiciliar e
numa clínica privada:
fisioterapia, terapia
ocupacional (t.o.) e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
117
orientações para a família.
Educação Infantil (2 anos
aos 7 anos)
Instituição especializada em reabilitação de crianças com
deficiência – atividades de reabilitação e educativas
(mantida por obra religiosa espírita).
Alfabetização (7 anos) Foi alfabetizada em casa pela mãe e professoras
contratadas.
C.A. à 3ª série do ensino
fundamental (8 aos 12 anos)
Instituto Reeducação Física (IRF) – instituição
especializado em pessoas com paralisia cerebral. Educação
formal do C.A. à 3ª série do ensino fundamental e
atividades de reabilitação em paralelo. Maioria dos
atendimentos individualizados.
4ª série fundamental (12
anos)
4ª série Escola Municipal
Regular próximo ao IRF.
2º segmento do ensino
fundamental e ensino médio
(13 aos 18 anos)
Escola privada com
proposta de inclusão –
cursou o segundo segmento
do ensino fundamental (5ª a
8ª) e ensino médio.
Atendimentos no IRF no
contra-turno da escola.
Projeto de informática.
Vestibular (19 anos) Passou nos vestibulares de pedagogia numa universidade
estadual e em administração numa privada.
Graduação (20 aos 24 anos) Cursou pedagogia
Especialização Especialização em Educação Especial numa universidade
Federal
4 tentativas frustradas para entrar no mestrado da
universidade onde cursou a graduação.
Mestrado (30 aos 32 anos) Mestrado em Educação Brasileira – universidade privada.
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR
Uma questão presente na vida de muitas pessoas com lesão congênita é
que antes ou concomitante à sua entrada no universo escolar se a experiência
de institucionalização
5
para reabilitação. Em muitos casos, como nas APAEs e
outras associações reabilitadoras como a freqüentada por Lia, a vida escolar se
inicia no serviço pedagógico oferecido pela instituição. Este tem geralmente o
caráter de escola especial, com turmas pequenas ou atendimentos individuais. Nos
trechos abaixo, aparecem formas distintas de ser posicionada como aluna com
deficiência pelas instituições educacionais e a forma como ela ora ratifica e ora
recusa esses posicionamentos.
Quadro 3
39. L Ia às// é, IA todo dia tinha os atendimentos, fisioterapia, terapia ocupacional,
fono, t.o., tinha tudo, e tinha depois uma parte pedagógica também. E, uma coisa
engraçada que eu me lembro é que eu não conseguia escrever, né? Não tinha
coordenação motora pra um grafismo, nem escrita, pra um grafismo, entendeu? E eles
queriam que eu fosse alfabetizada quando eu tivesse é (...) coordenação motora.
Então eles não queriam que eu me alfabetizasse o. E a minha mãe então, é, era
5
A idéia de institucionalização aqui não significa internação, mas freqüência diária durante
algumas horas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
118
professora, chamou professoras que trabalhavam na escola onde ela trabalhava. Ela
era, na época trabalhava na secretaria, no Malcon X. Escola Municipal Malcon,
Malcon X, e essas professoras começaram a ir na minha casa pra me alfabetizar.
40. P – Eram várias? Mais de uma?
41. L – Não, teve duas. Teve um período que eu fiquei com uma, depois saiu, ela
arrumou outra então, foi aí que eu me alfabetizei.
42. P – Você já estava na escola? Ou você estava nesta instituição?
43. L – Eu estava nesta instituição que TINHA-tinha a área pedagógica.
44. P – Hum, hum.
45. L – Também, entendeu? Só que eu ainda não tava me alfabetizando lá, eu me
alfabetizei EM CASA. Então depois eu passei pra uma turma mais adiantada, porque
eu me alfabetizei!
46. P Entendi. Então a primeira escola, a primeira relação de escola que você teve foi
nessa instituição.
47. L – Foi.
48. P – Como que chamava, e //
49. L – Era Lar Escola Frei Damásio, e eu depois passei pra outra instituição.
50. P – E quem eram seus colegas nessa instituição?
51. L – AH, olha só, relação com colegas assim, eu não, assim, de relação mesmo, eu não
tive não, porque (...) eu era muito NOVA, e a questão da deficiência é (...) impedia
um pouco. Os outros também eram até mais deficientes que eu, então//
52. quando eu tive 8 anos eu passei pra uma outra instituição que eu tava. Era um
monte de deficiências misturadas. Então tinha mental, tinha paralisia cerebral, tinha//
(...) então não deu para //
No quadro 3, Lia começa apontando um conflito de visões sobre sua
possibilidade de ser alfabetizada. Menciona, com apropriação técnica, um
discurso pedagógico que coloca como pré-requisitos para a alfabetização certas
capacidades motoras. Esta visão é questionada pela sua mãe, aqui posicionada
como alguém investido de experiência pedagógica que permite desafiar o
veredicto da escola e organizar uma estratégia paralela de aprendizagem,
apostando nas possibilidades da filha. Assim, um episódio que poderia ter sido
traumático tem enquadramento de comédia, de algo engraçado’, pois, a pretensa
incapacidade para a escrita foi desafiada pela mãe e quebrada por Lia. A
possibilidade de fracasso foi revertida em sucesso, pelo reconhecimento de sua
capacidade de aprender e a conseqüente promoção de série. A família, sempre
apontada como um apoio importante na escolarização das crianças, aparece aqui
como decisiva, não por colaborar com a escola, como apregoa o discurso da
sociologia da educação (Fourquin, 1993), mas por desobedecer os limites
colocados e tomar para si a tarefa pedagógica tida como impossível.
Na continuação deste trecho [51 e 52], a falta de colegas é naturalizada:
‘eu era muito NOVA e a questão da deficiência é, impedia um pouco’. Este
argumento a coloca alinhada a um discurso de educação especial mais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
119
conservador, oposto ao discurso pedagógico da educação inclusiva mais
combativo, que apregoa a importância da socialização desde a Educação Infantil
(naquela altura Lia estava com 7 anos, idade cronológica para iniciar o ensino
fundamental) e desqualifica qualquer recusa de inclusão de alunos em escolas
regulares com base na sua deficiência (Mantoan, 2003).
Quadro 4
90. L Agora o IRF, deixa eu falar um pouco, eu entrei pra com 8 anos, fiquei até
os 17. Fiquei uma longa, um longo período lá. que eu fiz o CA, a série, a
série e a 3ª.
91. Na 4ª eu fui pra outra escola, no município, que era ao lado do IRF. Eu que quis. Não
foi ninguém...
92. P – Mas você se lembra desse desejo de ir pra outro lugar?
93. L – LEMBRO, lembro.
94. P – Você foi//
95. L Lembro porque eu tinha uma amiga, amiga não né? Ela era professora, hoje ela é
minha amiga. Ela trabalhava e ela falava: (...) ‘Não, você não é pra tar aqui, você
tem condições, você tem // Vai procura, faz um curso fora daqui, vai pro inglês’
96. E ela sempre falava isso e eu também, quando eu saí da instituição eu tava com
desejo de ir pra uma escola, né? E o desejo foi um pouco guardado [ri] entendeu?
97. ‘Não, vamo pra lá’ e tal. E eu engoli.
98. eu comecei a ter coleguinhas que eram do IRF que tavam indo prá escolas
regulares. que a minha deficiência era mais difícil de incluir né? Na época, por
que eu tenho uma dificuldade motora, eu não consigo acompanhar (...) a aula...
99. Eu preciso é ter alguém com carbono, eu tentei, na série, quando eu passei pra
essa escola. Eu tentei pedir para uma colega colocar o carbono, em baixo.
100. P – E funcionou?
101. L Funcionou, mais acho que não houve muito interesse da escola para que eu
ficasse.
102. Eu senti isso, entendeu?
103. P – Hum, como é que você percebeu isso?
104. L – Eu acho que era mais// eu tinha o que, 13 anos na época, mas//
105. Porque no final do ano, as provas eram feitas a parte, eu com o professor, eu ditava e
o professor registrava (...) Mas no final desse ano os professores chamaram os meus
pais e //
106. Falaram que (...) eu passei pra 5ª série, e que agora ia ter muitos professores, muitas
matérias, que a escola era grande, que podia ficar difícil me dar uma atenção
individual e tal, aí,
107. como eu continuava fazendo tratamento nessa-nessa, no Instituto, no IRF, continuava
no IRF. tinha uma outra menina que tinha uma deficiência, tinha paralisia
cerebral, porém era bem mais é (...) tinha dificuldades maiores que as minhas e ela
tava nessa escola. Aí falaram: ‘Ah Lia, porquê que você não vai’ e tal, ‘é uma escola
particular aqui perto, na Tijuca, você pode’ e tal.
108. Aí eu fui para essa escola.
Na seqüência da sua trajetória, Lia vai para uma escola especial em outro
instituto de reabilitação, o IRF (Instituto de Reeducação Física). Ela começa
caracterizando o IRF como uma clínica especializada dirigida pelo ‘Papa da
paralisia cerebral na época’, novamente é ressaltada a importância da expertise e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
120
do reconhecimento público do trabalho especializado, valorizando as escolhas
paternas. O longo período em que permaneceu no instituto e a importância dos
contatos que ali travou conferem à instituição um lugar de honra: ‘lá eu consegui
criar amigos, lá eu tive, ATÉ pela idade né, 8, 9, 10 anos, a gente ta mais// né?
Então é que eu comecei a minha vida, eu acho que foi no IRF que eu// Toda
minha, tudo meu eu acho que tem um pouquinho relacionado a mim [rindo]
[fragmento não transcrito no quadro].
Porém, depois desse preâmbulo Lia menciona que acalentava o desejo de
freqüentar uma escola regular. De um lado esse desejo era apoiado por uma
professora, posicionada como alguém que se tornou sua amiga e, por outro, foi
abafado por pessoas ou fatores que ela não nomeia, mas que a fizeram ‘engolir’
esse desejo. Ela se posiciona como alguém sem força para fazer valer o seu desejo
e, em vários momentos desse quadro, ela usa falas reportadas de outras pessoas
você não é prá tar aqui [...]’, não, vamos pra lá’, porque você não vai?’, que
vão direcionando sua trajetória sem sua participação direta.
O argumento alegado para a não realização da vontade de ir para a escola
regular é que seu tipo de deficiência era mais difícil de incluir’. Ao se colocar
como sujeito desse discurso, Lia toma para si a responsabilidade pela sua
permanência na escola especial e naturaliza a necessidade de segregação,
alinhando-se ao discurso da pedagogia especial referido ao modelo médico da
deficiência, bastante questionado hoje pelo movimento da educação inclusiva e
pelos Disability Studies. As afirmações são atenuadas pela qualificação temporal
‘na época’, que poderia sugerir que hoje seria diferente
6
. No entanto, ela completa
a frase [linha 98] com os verbos no presente ‘eu tenho uma dificuldade motora, eu
não consigo acompanhar (...) a aula’, assumindo esses traços como constitutivos
e estáveis. O exemplo citado do tipo de adaptação requerida para determinar seu
processo de inclusão no ensino regular é bastante prosaico, bastava um colega
anotar a aula com carbono para produzir uma cópia. Essa caracterização faz os
empecilhos para a mudança da escola especial para a escola regular parecerem
injustificados, embora o único sinal de crítica ou conflito com a decisão de
6
Esse recurso de não perder de vista que sua experiência escolar se deu em outro momento
histórico aparece claramente mais adiante quando relata sua primeira experiência de escola
regular a qualifica como uma inclusão dos anos 80! Nos primórdios da inclusão.’ [quadro 5,
primeiro fragmento].
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
121
permanecer onde estava seja dado pela palavra engoli’, que culturalmente tem o
sentido de algo imposto de fora para dentro.
Finalmente, ela vai para a escola regular na rie, e na linha 101 é
relatado o desinteresse da escola regular na sua permanência por mais um ano. As
alegações da escola de não estar preparada para dar atenção individualizada, na
medida em que o ensino se complexifica, foram absorvidas sem crítica ou sinais
de frustração. A leveza da narrativa contrasta com a dureza da rejeição, que é
ignorada como tal, e a narradora se guia pela fluidez com que uma porta se abre
assim que outra se fecha. Logo aparece no horizonte uma escola privada que não
apenas aceita as limitações da sua deficiência de difícil inclusão’, como acolhe
uma colega com limitações ainda maiores que as suas. Essa comparação das suas
limitações com a dos colegas é uma demonstração do caráter relacional da
construção da identidade e da anormalidade-normalidade, como havia
aparecido no quadro 3, quando ela diz que os outros também eram até mais
deficientes que eu [51]. Essa comparação sinaliza um importante movimento da
nossa cultura, sustentado pelo caráter seletivo do sistema escolar que transforma a
relação entre alunos numa comparação rankiada, ou seja, assim como uma
disputa pelos primeiros lugares - os que subirão ao podium, elevando-se sobre os
demais -, também uma disputa para o escapar dos últimos lugares do
ranking, o que significa uma grande chance de rebaixamento público.
O argumento de que as escolas não estão preparadas para lidar com alunos
com necessidades especiais é rechaçado por defensores da Educação Inclusiva por
contrariar um direito conquistado (Mantoan, 2003; Fávero & Ramos, 2002). No
bojo dos Disability Studies o argumento do despreparo pode ser interpretado
como eficientismo, ou seja, uma discriminação baseada na lógica hegemônica de
que as pessoas com lesão são inferiores às sem lesão. também quem (Franco,
2002) pondere que devemos levar em conta as reais dificuldades do projeto
inclusivo nas escolas públicas brasileiras, pois suas exigências vão desde a
formação dos professores e a adaptação dos espaços físicos e materiais, até o
preparo e sensibilização de todo o corpo funcional e discente - o que é uma
exorbitância para o combalido sistema de ensino público nacional. Sustentar esta
posição pode ser uma forma de naturalizar a ‘ruindade’ da escola atual, por outro
lado, se ignorarmos a complexidade da implantação da proposta inclusiva
podemos ratificar as práticas discursivas genéricas da atenção à diversidade que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
122
produzem a exclusão na escola em substituição da exclusão da escola (Ferraro,
1999).
Quadro 5
111. P Era uma escola com proposta de inclusão, era uma escola especial, como é que
era?
112. L – Com proposta de inclusão por incrível que pareça, naquela época, anos 80! A
escola tinha proposta de inclusão. E aí, que eu me lembre tinha 5 deficientes.
113. P – Na sua sala ou na escola toda?
114 - L – Não, na escola toda. Tinha uma proposta, né? Eu acho que tinha.
117. L - E logo que eu fui, foi uma outra menina do IBRM também foi, foi pra minha
turma.
118. Aí eram duas numa turma!
119. P – Han, han. Qual é a importância disso?
120. L – Não sei, eu hoje analiso isso como uma, uma inclusão nos anos 80.
121. Uma proposta, o início do movimento... Mais, como era pra mim, era normal, por que
eu sempre convivi, a Juliana que era essa outra, era da minha turma no IRF, a gente já
vinha desde da 1ª série juntas...então
122. P Mais isso te dava confiança, o fato de ter uma outra pessoa que voconhecia
de outros lugares, ou era indiferente?
123. L – Eu acho, não sei, na época eu acho que eu não pensei nisso. Eu acho que, que era
legal, eu acho que dava segurança sim, mais não era tudo não, entendeu? Dava uma
certa segurança porém não era tudo. Eu tive aborrecimentos nessa escola, quanto a//
que a Juliana não ficou.
141 - L - Teve um professor que virou pra mim e falou que eu não escrevia porque eu não
sabia escrever [respira fundo]. Aí eu chorei [tom jocoso], me descabelei.
146. P – Agora o outro episódio é o que?
147. L Não, o outro episódio foi logo no final do grau, que o Professor Mauro o
diretor Mauro era diretor da escola, era psicólogo, era uma pessoa assim muito
especial, entendeu? Acho que pra fazer uma escola daquela tinha que, além de
deficientes tinham alunos problemáticos também, que assim, tinham sido expulsos de
outros colégios, e tal. E ele tentava , né? E o professor Mauro adoeceu, teve um
câncer, e quem ficou com, na direção da escola foi uma filha dele que era pedagoga e
tal, e ficou dirigindo a escola.
148. E ela não tinha a mesma visão...
176. L É, e, teve um dia que eu tava na secretaria, porque, eu tinha que ter um local pra
fazer as provas, né? Na secretaria, numa sala separada e tal. E um dia eu tava na
secretaria ela virou//
177. P – Ela quem?
178. L – A diretora
179. P – Ah, essa filha//
180. L Filha do Mauro. E ela: ‘ah, eu tenho nervoso de ouvir ela falar, eu fico nervosa
até de ouvir ela falar’. [suspiro profundo]
A partir da série até o fim do ensino médio, Lia freqüentou uma escola
privada caracterizada como uma vanguarda na experiência da inclusão no Brasil.
O mentor dessa experiência foi o diretor da escola, aqui posicionado como um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
123
psicólogo sensível, uma pessoa especial. Note-se que a qualificação ‘pessoa
especial’ costuma ser empregada como eufemismo para caracterizar as pessoas
com deficiência. Porém as qualidades do dirigente não o extensivas aos outros
personagens evocados nas lembranças dessa escola. Lia descreve, primeiro, sua
relação com uma colega, também com deficiência, sendo que esta não conseguiu
acompanhar a turma e acabou saindo da escola. Em seguida, destaca que sua
diferença para os demais aparecia no fato dela não escrever, o que implicava,
entre outras coisas, que suas provas fossem feitas oralmente. Isso gerou
desconfiança num dos professores com relação à sua competência com a ngua
escrita. O episódio da desconfiança [linha 141] é descrito como um drama ‘aí eu
chorei, me descabelei’, mas é narrado com a ironia de quem está posicionado
além do problema e é capaz de rir dele.
No segundo episódio, a então diretora da escola, filha e substituta do
diretor-fundador, é posicionada como preconceituosa, por fazer um comentário
desrespeitoso sobre o comprometimento motor que afeta ligeiramente a dicção e o
ritmo da fala de Lia. Esse flagrante de ‘eficientismo
7
(Lacerda, 2005) pode ser
lido junto com outro depoimento ocorrido na entrevista coletiva, quando Lia diz
que o preconceito fica latente e se manifesta, eventualmente, de onde menos se
espera, o que gera um estado de permanente prontidão para a ‘batalha
antidiscriminação’.
Sua narrativa mescla alguns episódios discriminatórios com uma trajetória
de desempenho escolar sem dificuldades, sem repetência ou mesmo recuperações.
A função da escola parece ser a de estabelecer uma rotina que normalize a vida.
eu ia pra escola, saía da escola e ia pra casa, estudava de tarde, uma vida de uma
jovem qualquer da minha idade, saía... sabe, tive, eu acho que eu tive uma vida
normal, dentro do// saia, namorava, ia, fazia, e tinha a escola, estudava, mas, sem
maiores problemas’ [linha 234 não transcrito aqui].
A normalidade aparece como desejo e como prova de aceitação e
pertencimento social, mas ela não vem na bandeja, tem que ser conquistada! Essa
7
Eficientismo é a versão que proponho para os termos Ablism ou Disablism que significam
‘discriminação, opressão ou comportamento abusivo advindo da crença de que as pessoas com
deficiência são inferiores às outras’ segundo a campanha da ONG inglesa Scope
http://www.timetogetequal.org.uk./ acesso em fevereiro de 2005.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
124
postura é bastante recorrente nos relatos de brasileiros com deficiência que
encontramos – por exemplo, site da Rede SACI [sessão depoimentos].
Quadro 6
216. L – Fiz pedagogia, né, cursei na Estadual
217. P – Como é que foi?
218. L – Foi bom... Alguns professores ficaram surpresos, eu tive que me colocar, quê que
eu fazia, como era, que eu podia fazer e tal.
219. P Sempre você falava por você mesma ou tinha alguém, algum profissional que
atendia, que ajudava?
220. L Não, tinha o Rompendo Barreiras né? da Estadual, a Glorinha
8
, não sei se
você//
221. P – Você o procurou [o PRB] assim que você chegou?
222. L – Se você já ouviu falar dela, ela foi aquela que me deu FORÇA. Lembra que eu saí
do IRF foi a Glorinha que depois veio a ser minha professora, e a gente sempre teve
uma relação muito legal, então a Glorinha me conhece desde que eu entrei pro IRF, e
nos REENCONTRAMOS, quer dizer, reencontramos não porque a gente nunca se
perdeu. Mais o fato d’eu estar na Estadual, tem muito a ver com ela.
223. P – Em que sentido, o fato de você ter escolhido a Estadual?
224. L o, a gente sempre conversava, e no início eu queria fazer pra psicologia, e
depois eu falei: ‘ah, vou fazer educação mesmo, trabalhar com educação especial, e
tal.’ A gente sempre trocava umas figurinhas assim. Aí, a Glorinha sempre jogava a
bola pra mim, vinham perguntar alguma coisa de mim ela: ‘pergunta a Lia, a Lia é
que sabe, ela responde’. E foi, acontecendo, os professores passavam trabalho, eu
fazia. Na época, mesmo que não tivesse computador, eu dava pra alguém digitar, tal,
e fui, concluí a faculdade. Aí...
Sem relatar problemas Lia, por volta dos 19 anos, passou em dois
vestibulares: para Administração de Empresas, numa universidade privada, e para
Pedagogia, na universidade pública na qual se graduou. A universidade é
apresentada como mais um degrau da trajetória que ainda não se esgotou, pois o
doutoramento está nos seus planos. O Projeto Rompendo Barreiras
9
(PRB) e, mais
especificamente, a sua fundadora, são indicados como apoios importantes nesta
etapa do processo. Glorinha tinha sido mencionada nesta entrevista: ela era a
professora do IRF que dizia que Lia deveria sair da instituição [linha 95 quadro
4]. Neste reencontro na universidade, a professora é reposicionada como amiga e
continua no papel de quem empodera, o que, no caso concreto, significa fornecer
um lugar institucional de bolsista do Rompendo Barreiras e intervir junto aos
outros professores no sentido de ver a aluna como alguém autônomo, capaz de
responder por si aos desafios da vida e da academia. No contato telefônico que
tivemos para marcar a entrevista eu disse à Lia que estava pesquisando pessoas
8
O nome de todas as pessoas foi mudado, mas neste caso específico decidi mantê-lo por ser uma
referência que aparece em outros pontos da tese.
9
As atas de reunião do PRB nos anos de 95 a 97 registram sistematicamente a presença de Lia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
125
ligadas ao Programa Rompendo Barreiras. Em função disso ela me perguntou se
eu conhecia a Glorinha e aqui volta a perguntar se eu já tinha ouvido falar dela.
Uma vez graduada, Lia fez uma especialização em Educação Especial
numa Universidade Federal num município vizinho ao Rio, para onde se mudou
quando foi viver junto com um rapaz que morava ali. Este companheiro é
posicionado como alguém que a estimula a cumprir mais uma etapa de formação
acadêmica.
o mestrado na universidade privada é apresentado como um acaso, uma
opção sobressalente, que ela não fora aprovada nas várias tentativas de seleção
para a universidade onde se graduou e tem área de concentração em Educação
Inclusiva (até pouco tempo, Educação Especial). Lia não tem uma queixa
específica do mestrado. Diz ter aprendido muito e que valoriza o título de Mestre,
mas repete que esperava mais, que queria mais.
O jogo de ousar querer e se contentar com o que lhe é oferecido, ou com
os limites impostos, se alterna ao longo da entrevista. Ela mesma analisa essa
oscilação, colocando-se como sujeito de um discurso psicológico (na posição de
analista) da relação consigo mesma.
Quadro 7
192. L Ah, eu sei, eu acho que foi uma construção. Eu acho que a minha vida é
muito isso, eu acho que eu sempre estou me construindo, é engraçado isso, eu
faço terapia, eu, e eu tenho essa eterna sensação, que eu tô sempre em
construção, que eu sempre aprendendo a conviver com o outro, com o outro
diferente, por que eu sou DIFERENTE [tom risonho], então o outro pra mim é
diferente, entendeu? Então eu acho que a inclu// que o meu convívio era, eu
não esperava nada. Não esperava porque, eu sabia que eu era diferente. Na
medida em que as coisas foram acontecendo, de identidade, de conhecer uma
pessoa, de namorar, de ter um vínculo afetivo forte com alguém, é uma
construção. Eu acho que eu não esperava nada disso e as coisas foram
acontecendo.
193. P Mas, por você não esperar, tinha uma sensação de que o que viesse era
lucro?
194. L – Eu tenho, até hoje eu ERRO, eu erro muito, porque eu tenho essa sensação,
do que vier é lucro, entendeu? Eu hoje to tentando mudar isso. Mais eu ainda
não sei como mudar.
195. P – [tenta interromper]
196. L [fala mais alto] PORQUE quando você pensa: ‘o que vier é lucro’, você
aceita qualquer condição. Você aceita qualquer, ‘ah, ela ta fazendo isso, mas
ela é minha amiga, ta do meu lado. Ah, ele fez isso comigo, mas ele ta me
dando algum tipo de afeto e eu não vou falar nada.’ Entendeu? Então, você fica
com algumas coisas que o é por aí, você não tem que aceitar qualquer coisa
de qualquer pessoa só porque ela ta com você.
197. P – Agora, conquistar o afeto, conquistar companhia, isso sempre foi uma coisa
prioritária? Como que//
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
126
198. L – Com certeza, com certeza. Porque as outras coisas, eu não sei se eu
conquistei como eu queria e, novamente, não sei, mas de um modo ou de outro,
chegaram a mim.
199. P – Por exemplo, que outras coisas?
200. L Ah, (?), faculdade, passar pro mestrado, ter um trabalho, mesmo que não
seja o trabalho que eu sonhei pra minha vida
201. P – Chegaram até você? [fim da fita]
341 - L Tem muitas questões, que não estão atreladas apenas à vida escolar, que
estão atreladas a outras coisas, que o deficiente ele tem que ter, lazer, esporte,
direitos do cidadão, entendeu? Por que não, por quê que a gente vai achar que pra
ele, aquilo que ele tem é o bastante? Porquê que ele não pode sonhar, né? Porque
não sonhar, porque o desejar, sabe? Porque não OUSAR? Sabe, uma palavra
mais forte seria OUSAR, sabe. Por que não? Então você fica naquele esqueminha
de-de, aas vezes quem a pessoa, de temer a reação do outro. Às vezes você
não pode deixar de se colocar com medo da reação do//
O trecho das linhas 192 a 201, a entender que Lia circulou por
diferentes discursos acadêmicos: psicológicos ou psicanalíticos que enfocam a
questão da identidade em termos de incompletude, de construção permanente e
da alteridade como diferença desafiadora. O acesso a esse tipo de discurso
parece proporcionar a capacidade de análise crítica de si e do mundo,
produzindo efeitos de liberdade, na medida em que faculta a ousadia e auto-
invenção. A menção à terapia mostras de uma experiência de si, vista como
auto-construção permanente, lastreada numa concepção de ‘eu’ que não é fixo,
mas que vai sendo talhado e transformado na medida em que os fatos vão se
desenrolando. O movimento de transformação é atribuído aos encontros com os
outros, principalmente com aqueles cujos laços afetivos se tornam mais
intensos. A mudança o é concebida como um ato de vontade e sim como um
saber: ‘eu ainda não sei como mudar’.
O fato de não esperar nada e receber acriticamente o que lhe é oferecido é
enfatizado como um ERRO, como uma postura de baixa expectativa, sem fortes
desejos em relação à vida. Essa passividade transparece quando diz que suas
realizações escolares e profissionais vieram aela, quase com indiferença, em
contraposição à importância e prioridade atribuída às relações afetivas que foi
estabelecendo. Este pode ser um traço que a posiciona como alguém que
incorpora e naturaliza a invalidação social que é feita de maneira sutil e
constante através da disseminação de discursos preconceituosos que operam o
empreendimento de poder. A partir do momento em que ocorre o auto-
reconhecimento dos sentidos de inferioridade, dependência e heteronomia por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
127
parte dos dominados em relação aos seus dominantes, pode-se afirmar o êxito
do empreendimento.” (Marques, 2002:7). No relato de Lia, é como se a luta
constante contra as representações correntes no tecido social forçasse
movimentos de acomodação, logo seguidos por rompantes de reação.
Em diversas passagens Lia deixa claro que qualquer tentativa de
compreender a vida escolar deve levar em consideração um foco mais
abrangente, como as atividades de lazer, os lugares por onde a pessoa circula,
suas relações afetivas etc. É como se a escola fosse importante, mas não fosse a
parte mais emocionante ou interessante da sua vida. Das poucas pessoas que
tiveram seus nomes anunciados, dois são médicos, um professor-diretor, uma
professora-amiga, uma colega de turma e três namorados. No entanto, sua
grande ousadia ou conquista, aquilo que ela gostaria mesmo de contar é o
namoro com um rapaz não deficiente.
Quadro 8
142. L – Eu queria contar isso. [rindo] Por que ia bem gostar (?)
143. No IRF, teve um projeto de informática. De profissionalizar o deficiente, o
portador de paralisia cerebral através da informática. Não era só profissionalizar,
tinha uma parte pedagógica também. Tipo, aqueles que não podiam ser
profissionalizados iam, pra lá brincar, iam ter contato com o computador, e tal, não
era bem pedagógica não. [ri] Era, o quê que eu vou dizer? Um primeiro contato, né?
E, como eu tava bem, tal, eles me chamaram pra ser MONITORA, desse projeto. E
foi um projeto que rolou muito dinheiro. Entraram empresas fortes como a Dataprev,
o Serpro, recebia dinheiro, ajuda do Governo Federal, na época tinha a CORDE,
recebia dinheiro da CORDE. Eu sei que ele conseguiu fazer um laboratório, praquela
época, muito bom. De primeiro mundo mesmo.
144. E, começaram a contratar é, estagiários de-de informática. E o Wilson era um
estagiário [sorri] foi assim uma coisa meio louca, que uma-uma aluna, uma paciente
de ficar com um estagiário, era uma coisa meio louca né? Mas graças a Deus as
pessoas aceitaram numa boa//
166. P – E o seu namoro com o, é, Wilson né? Durou!?
167. L – Durou três anos e meio [ri]
168. P – É mesmo?
169. L E não foi legal, quer dizer, a gente acabou porque eu forcei uma barra. Eu
queria me casar com ele e a mãe dele não queria. Que tinha um PRECONCEITO
assim ENORME. Ele era o filho mais velho, querido, tava na faculdade, já fazia
informática e tal, ele chegou a ver até, eu entrar pra faculdade. Aí ele me ajudou,
estudava comigo, e tal. Mais aí, eu falei, PÔXA// Eu não podia nem ligar pra casa
dele.
170. Falei: ‘poxa, ou você casa comigo, fica logo comigo, me uma segurança
de que eu vou ficar com você ou...’ [suspira]
171. P – Você deu um ultimato?
172. L – É, não sei se eu deveria não mais foi o que na época eu, eu//
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
128
Esse romance entre um estagiário e uma aluna, uma paciente é
apresentado como coisa meio louca’, que depois foi bem aceita pela instituição,
mas não pela mãe do rapaz. Essa relação pode ser vista como um ‘ponto de
virada’ (Mishler, 2003:107) na sua trajetória de identidade. Aqui estão
condensados os sentimentos de ser vista e desejada para além da sua deficiência,
mas, ao mesmo tempo, ter sido vítima de um PRECONCEITO ENORME. O caso
teve como desfecho o rompimento, que Lia atribui ao seu comportamento de
querer ‘forçar uma barra’. Novamente ela atribui a si mesma a responsabilidade
por algo que não saiu como o desejado. Eis o pêndulo de colocar claramente o
desejo e arriscar a perder ou aceitar o que vier como lucro e ficar no esqueminha
de não querer desagradar o outro. O cruzamento de questões identitárias de gênero
e da deficiência fica claro aqui - a mulher se sobrepõe aos outros traços
identitários. Ser uma mulher - com deficiência - desejada, subverte as concepções
hegemônicas de que deficiência física e sexualidade são excludentes. Assim como
Roland (2003) fala de uma masculinidade gay, a mulher sensual deficiente é um
exemplo de rompimento com as posições de sujeito mais comuns e a abertura de
novas possibilidades de viver a condição deficiente.
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES
Quadro 9
59. L Hoje eu defendo educação especial que eu falando eu defendo que o defi//
a pessoa que tem alguma necessidade especial seja ela educativa, seja ela de social.
Eu acho que tem que buscar formas de suprir, de se ter no mundo, de estar incluso, da
gente//
60. E a inclusão não é colocar na escola regular, não. A inclusão é você fazer da
pessoa cidadão. Você pode incluir sem precisar duma escola regular. A inclusão
maior é você fazer da pessoa uma pessoa autônoma, dentro das, do possível ...
61. Que pense, que não se ache TÃO diferente quanto a sociedade incute, nela. Quer
dizer, você é, você tem um monte de diferenças: analfabeto é diferente, o, o negro é
diferente, o//
136 – L - Aí a Juliana saiu (...) da escola, porque a mãe achou que ela não tava
conseguindo acompanhar. Tinha uma, a mãe cobrava muito, eu ficava com muita pena
dela, porque a mãe cobrava muito.
137 - P – A mãe cobrava muito?
138 L - Cobrava, sabe, queria. Não tem nada a ver com o ideal de educação inclusiva,
essa coisa de ter que ser igual, ter que ter notas iguais, é, ela tava indo, podia deixar,
podia repetir um, dois anos, mais ia, entendeu? Mais não, a mãe achando que, pelo menos
convivia, com pessoas normais e tal.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
129
174. P – E, eu queria, a gente já ta chegando na hora né, mais eu queria só te perguntar
essa imagem da guerra, qual é a principal batalha? O que é o pior problema que você
acha? E em relação à educação também.
175. L Eu acho que o pior problema que (...) em relação à vida eu acho que é vo
conseguir viver com a diferença. Acho que a gente ainda não consegue viver com a
diferença, sabe?
176. Eu acho que o ser humano ainda sabe tivemos fases piores mais ainda
uma discriminação, ainda há professores que pensam ‘como é que eu vou lidar com
esse aluno’... Minha tese, eu vi no meu trabalho os professores falando ‘POXA, mais
isso não é pra mim. Isso é da educação especial, ele devia estar numa escola
especial’. Então eu acho que é discriminação com o diferente. E você saber conviver
com a diferença, quer dizer, que eu que sou eu, tenho uma estrutura familiar, que tive
uma formação, eu sinto isso, imagine quem não tem? Nada disso.
Ao se colocar no lugar normativo sobre a educação de pessoas com
deficiência, Lia faz circular fragmentos do discurso dos movimentos sociais em
prol dos direitos deficientes. A ênfase na autonomia e cidadania reverberam os
discursos que configuraram os Centros de Vida Independente (CVIs), como
espaços de encontro visando à prestação de serviços para dar maior autonomia e
que acabaram se configurando em espaços de mobilização política.
Na tensão igualdade-e-diferença, seu acento recai sobre a possibilidade de
ser aceita na sua diferença. Não me parece um discurso sobre a necessidade de
manter a diferença como acontecimento que desestabiliza a mesmidade(Skliar,
2003), mas uma diferença sutil
10
que deve ser respeitada, mas nunca exacerbada
ao ponto do diferente se sentir completamente outro. Ao mesmo tempo em que
afirma a própria diferença, Lia denuncia a dificuldade da nossa sociedade (não
apenas brasileira, mas da comunidade humana) em lidar com as diferenças. Esse
posicionamento difere um pouco daquele assumido na entrevista coletiva, onde
ela não se contrapôs à posição majoritária no grupo de indiferenciação entre as
pessoas. Naquele espaço, sua defesa foi da individualidade que não deve ser
marcada apenas por um atributo (por exemplo, a situação de lesão), mas pelo
conjunto de posições que configuram a história de uma pessoa.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
A trajetória escolar de Lia pode ser descrita como tendo um início
atribulado, descrença da sua capacidade de aprendizagem, recusa em escolas
regulares, que foi desafiado e transformado numa trajetória ascendente. Com
algumas adaptações, como provas orais e ajuda dos colegas na cópia do conteúdo
10
No caso essa diferença é circunscrita como uma diferença motora.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
130
das aulas, sua evolução segue o curso tranqüilo, sem repetências. Suas vitórias em
processos seletivos acirrados vestibulares e mestrado garantem a legitimação
social da sua capacidade cognitiva. No entanto, sua trajetória de identidade ao
longo da narrativa é pendular, alterna posições de agenciamento e passividade. O
efeito desse movimento é que ela ora se posiciona como vencedora, ora como
quem ainda tem muito que vencer, deixando espaço para a autocrítica e a
reinvenção de si. Ela é, ao mesmo tempo, a universitária sem problemas, que
enfrenta adversidades, e a pessoa que percebe as conquistas de sua trajetória como
tendo vindo até ela, como se sua atuação fosse secundária para o alcance das
conquistas. No processo de construção permanente de si, alternam-se posturas de
ousadia, que ela recomenda para os outros e reflexão sobre a aceitação dos
próprios limites e a procura de um modo menos passional de reagir aos fatos.
As relações afetivas são destacadas como o exercício principal de tornar-se
quem ela é. A posição de mulher sexuada, desejada tanto por homens com ou sem
deficiência, é valorizada, assim como sua possibilidade de ajudar aos outros,
invertendo o cânone cultural de que ela deveria ser objeto de ajuda.
Lia se posiciona como pensadora e fazedora de educação especial que usa
a ‘autoridade da experiência’ no seu trabalho. Ao transitar por discursos de
educação segregada e inclusiva ela ressalta que a educação deve ser pensada
desde uma perspectiva global da vida dos indivíduos e não apenas sob o enquadre
da escolarização.
Alguns posicionamentos assumidos na entrevista individual são retomados
na entrevista coletiva, às vezes com diferenças em relação ao mesmo assunto. Por
exemplo, em relação à luta política das pessoas com deficiência, sua posição vai
de um certo engajamento na luta por direitos específicos, na entrevista individual,
ao distanciamento crítico e descrença da efetividade do ativismo, na entrevista
coletiva.
4.4
GABRIEL – Maior que o próprio corpo
SITUAÇÃO DO ENCONTRO
Gabriel é o único entrevistado que não tem nenhuma ligação com o
Programa Rompendo Barreiras. Eu o conheci através da terapeuta ocupacional
que trabalha com meu filho. ouvira falar nele, por outras mães e pela própria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
131
terapeuta. Por suas conquistas em termos de autonomia e realização ele é uma
espécie de força inspiradora para mães e pais das crianças com deficiência. Peguei
seu telefone quando nos encontramos pela primeira vez na sala de espera da
terapeuta. Demorei para ligar e ele tinha até mudado o número do telefone.
Mas, quando nos falamos, ele se lembrava da nossa primeira conversa e
agendamos um encontro para dali a três semanas. O lugar escolhido foi a praia da
Urca, perto de sua residência. Fazia um dia bonito de sol. Gabriel chegou depois
de mim, vestindo roupas esportivas de marcas famosas. Dali víamos pessoas
escalando a pedra do pão de úcar, helicópteros sobrevoavam constantemente,
dificultando às vezes nossa conversa. A entrevista durou cerca de uma hora e
meia. Como eu estava de carro e ia para a mesma direção que ele, ofereci-lhe
carona e fomos conversando, mais informalmente, por outra meia hora.
No nosso segundo encontro, para a entrevista coletiva, pedi que cada
participante trouxesse uma música com a qual se identificasse. Gabriel foi o único
que o fez e escolheu a música de John Mayer - Bigger than my body.
CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR
Descritores individuais: homem, branco, 21 anos, solteiro, estudante de
comunicação social numa universidade privada, quadro de paralisia cerebral
(diagnóstico inconcluso), primeiros passos aos 6 anos, marcha autônoma 9 anos.
Grupos de pertencimento: praticantes de escalada e freqüentadores de raves
[festas de música eletrônica].
Configuração familiar: mora sozinho no Rio, sua família vive numa cidade
próxima.
Mãe – psicóloga – trabalho voluntário junto a comunidades carentes.
Pai – engenheiro – dono de fábrica de cerâmica.
Uma irmã, mais nova 5 anos e meio.
AUTO - APRESENTAÇÃO:
Quadro 1
6. G Meus pais moram juntos até hoje, eles moram em Barra Mansa e eu moro
sozinho aqui no Rio e bom, pelo que eu sei, meu nascimento foi normal, não teve
nenhuma complicação
7. Eu acho que, acho que por volta de seis meses eles começaram a notar que tinha
alguma-algum tipo de deficiência. Eu não vou saber di-dizer exatamente o que
eles perceberam. Mas, eu sei que quando eu era pequeno, não sei se tem relação,
eu acredito que não, mas eu cheguei a ter alguns problemas de comida, não podia
comer certas coisas. Tinha que comer leite especial, carne de rã, algumas
coisas assim.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
132
8. Faço fisioterapia... faço fisioterapia não, faço tratamento desde 8 meses. E de 8
meses até os 5 anos eu fazia, eu freqüentava, aqui no Rio, vinha duas vezes na
semana, na clínica da Helena Sanchez.
12. P – É, mas o quê que cê tem? Qual é a o tipo de deficiência?
13. G Eu tenho um quadro de paralisia cerebral. Mas nenhum dos exames// fomos
em vários médicos (...) todos esses exames aí, nunca deu nada, nunca apareceu
nenhum tipo de lesão no meu cérebro. Mas é um quadro de paralisia cerebral mas
nunca apareceu nada nos exames.
14. P – Entendi.
15. G Então eu acredito que possa ser alguma coisa celular, mas não tem como
descobrir. Mas é até estranho que nunca tenha dado nada nem em ressonância
magnética, nesses exames super modernos [fala rindo]. Eu me lembro de ter feito
[exames] pequenininho e até agora um pouco mais velho também.
Gabriel inicia seu relato caracterizando sua família e marcando seu lugar
de independência, por morar sozinho no Rio de Janeiro. Ao nomear sua diferença
física ele usa a palavra deficiência e esclarece que seu nascimento foi normal e os
exames ‘super modernos’ não revelaram nenhuma anomalia. As palavras normal e
normalmente aparecem 30 vezes ao longo da narrativa, dando um tom de seu
posicionamento de pessoa que apresenta um ‘quadro de paralisia cerebral’, mas
não fala a partir do lugar de pessoa com deficiência. Paralisia cerebral não é o
nome exato do que ele tem, é apenas uma forma de aproximá-lo de um grupo com
sintomas parecidos com os seus, mas ele deixa claro que isso é apenas um artifício
pois, cientificamente, é mais provável que ele tenha uma disfunção celular.
Ao mencionar o nome da clínica onde fez tratamento, Gabriel se coloca
como alguém que teve acesso a profissionais de reconhecida competência,
‘renomados’ e, portanto, merecem ter seus nomes revelados. Esse posicionamento
traz pistas de sua identidade de classe social de camada média superior.
Quando afirma o saber reproduzir o que seus pais perceberam da sua
diferença, o narrador dá a entender que esse não é um assunto muito explorado ou
valorizado nas conversas familiares. É interessante a auto-correção efetuada na
linha 8 não faço fisioterapia, faço tratamento’. Interpreto essa mudança para
demarcar que ele não freqüenta apenas a fisioterapia, mas um conjunto de
atividades de reabilitação que configuram um tratamento. Culturalmente a palavra
tratamento está mais associada à doença e, ao mesmo tempo, à cura, algo que se
pode resolver.
INTERAÇÃO ENTREVISTADO-ENTREVISTADOR:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
133
Durante a interação, embora solícito, Gabriel parecia não gostar de
algumas perguntas. ‘Não lembro’ e ‘normal’ foram respostas recorrentes,
principalmente quando eu tentava explorar o que havia de específico da sua
experiência de pessoa com deficiência. Essa foi a fonte dos nossos desencontros.
Afinal, como se verá ao longo da análise, Gabriel se posiciona, geralmente, pela
recusa de se identificar com traços ligados à deficiência. Isso ficou ainda mais
claro na sua participação na entrevista coletiva, quando ele questionou o fato de
ali estarem apenas pessoas com algum tipo de deficiência, sugerindo que o
próprio recorte da pesquisa era segregacionista. Assim, partindo de posições
diferentes, ele e eu nos provocamos mutuamente ao longo da interação conforme
ilustra o trecho abaixo:
Quadro 2
159. P - Então você tem essa história de tranqüilidade com os estudos?
160. G – É,
161. P – De aprender com facilidade?
162. G – É.
163. P Você tem um ritmo de fala diferente. Isso, os professores sempre
esperaram, você nunca sentiu impaciência?
164. G – Não.
165. P – Você sempre sentiu a vontade de fazer as perguntas que você queria?
166. G – Sempre me senti a vontade.
167. P – De falar, de perguntar?
168. G Nunca tive nenhuma, nenhum tipo de constrangimento com
professor.
169. P – Eu to pensando nisso, assim, no ritmo nas coisas//
170. G – No colégio isso nunca aconteceu.
171. P – Em outros lugares aconteceu?
172. G Eu num digo da fala mas [falando super fluente], mas tem assim,
uma pessoa que vem e faz uma pergunta idiota. Sempre vai ter.
173. P – Tipo o que, que tipo de pergunta?
174. G Ah, eu me lembro, lógico que, hoje diminuiu muito, ainda mais na
faculdade, isso não acontece. Mas na rua às vezes, ou quando uma pessoa não me
conhece assim, às vezes as pessoas que não têm uma noção, uma noção boa, elas
vêm e trata assim de um jeito diferente e você percebe que tratando tipo
criancinha que não entende. [...]
Depois de tentar engajar Gabriel numa conversa sobre sua escolaridade,
sem muito sucesso, pois ele ou dizia não se lembrar de muita coisa ou de fazer
entender que sua história era igual a de outro bom aluno qualquer, como
entrevistadora eu aponto para uma diferença visível que é uma certa dificuldade
na articulação das palavras, o que torna mais lento seu ritmo de fala. Em resposta
ele, falando fluentemente, diz que tem sempre alguém que faz uma pergunta
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
134
idiota, e poderíamos acrescentar: uma pergunta idiota do tipo você nunca notou
nos professores impaciência pelo seu ritmo de fala?
Quadro 3
194. P – Pronto, fecha parênteses, vamos continuar a sua história escolar.
195. Me fala um pouco, que mais que você lembra? Ta, uma história assim//
Não teve nem um-um caso, um episódio mais emocionante ou mais diferente da
sua vida escolar? o em relação a outros, mas da sua sensação assim, um dia
marcante, uma coisa, um episódio que tenha sido diferente pra você. (...) Um
professor que marcou, pro bem ou pro mal, uma relação que fez diferença que-
que te fez, enfim//
196. G – (...). Xô ver? Boa pergunta.
Entendendo o recado da pergunta idiota, o assunto foi direcionado para os
adereços com que ele resolveu se identificar ao se adornar: o significado da
tatuagem que ele tem no braço e do escrito na pulseira que ele estava usando. Essa
estratégia foi bem sucedida e possibilitou a retomada da conversa sobre a
trajetória escolar. Podemos dizer que estes são indícios de que Gabriel desafia a
agenda tópica da entrevista e se posiciona como quem avalia a validade das
perguntas e seleciona o que vai responder. Isso repercute na assimetria da
interação, uma vez que, sem sua colaboração, a narrativa não se produziria ou não
se prestaria aos objetivos da pesquisa.
Como entrevistadora, eu me reposiciono. Em vez de provocá-lo, resolvo
convidá-lo, de forma meio gaguejante, a se engajar na construção de suas
memórias. Gabriel aprova essa nova abordagem ao avaliar que essa era uma boa
pergunta, deixando clara a sua posição de narrador e agente que avalia a prática
discursiva. Assim transcorreu a nossa interação, com momentos de crítica à
condução dos tópicos e outros de maior abertura para a co-construção dos
sentidos. No cômputo geral, o mal estar inicial foi ultrapassado e a narrativa
produzida se presta aos propósitos da pesquisa.
ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL
Nível escolar / idade Escolaridade Outros
Educação infantil Iniciou escolarização aos
4 anos numa creche-
escola privada em Barra
Mansa.
Reabilitação:
fonoaudiologia,
fisioterapia e terapia
ocupacional numa Clínica
privada Rio de Janeiro,
duas vezes por semana (8
meses aos 5 anos).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
135
1ª a 8ª série Colégio privado em Volta
Redonda.
Acompanhante particular
até a 7ª série.
Reabilitação foi
transferida para Volta
Redonda.
Ensino Médio
Escola privada maior em
Volta Redonda.
Começou a praticar
escalada.
Vestibular Passou para Biologia numa Universidade Pública no
Rio de Janeiro - cursou um semestre, voltou a fazer
cursinho e prestou vestibular novamente.
Faculdade Entrou numa universidade Privada de Excelência no
Rio de Janeiro – cursa 2º ano de Jornalismo.
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR:
Quadro 4
44. P –[...] Cê tem memória, assim, de quando é que você começou? A primeira
escola que você freqüentou?
45. G – Não, eu entrei na escola acho que com 4 anos, em Volta Redonda, num
colégio que chamava Plic-ploc (...) eu fiz maternal até o C.A. nesse colégio.
46. Eu me lembro mesmo quando o meu pai comprou a primeira máquina de
escrever.
47. P – ham, ham.
48. G – Eu ia ser alfabetizado usando a máquina de escrever por que até hoje eu não
tenho movimentos finos, mas naquela época então era pior ainda. Então a idéia da
máquina foi a Helena Sanchez quem deu e assim, graças a Deus, porque, foi uma
coisa muito boa porque hoje eu//
49. Aí eu lembro o dia meu pai chegar com a máquina e eu ficar brincando com a
máquina até antes do C. A. mesmo. Além da máquina (...) acho que até (...) até a
6ª ou 7ª série, não me lembro bem, fora isso é, meus pais pagavam uma ajudante
pra ficar, pra ficar COMIGO, na sala, pra me ajudar a-a fazer as coisas porque eu
não// eu ainda não tinha uma independência grande, mas aí ela me ajudava com
material, mochila, essas coisas.
54. [...] Mas tirando isso acho que nunca teve problema nenhum, acho que foi tudo
normal.
175. G – [falando da ajudante que o acompanhava] Assim era uma relação tipo
de aluno e professor. Ela me ajudava, mas em prova assim não tinha nada, ficava
longe. E com as outras crianças também, às vezes ajudava as outras crianças,
trabalho de ajudante mesmo só que o dela é um pouco mais voltado pra mim, mas
também ajudava as outras crianças.
141. P – Você lembra dessa pessoa? [da acompanhante]
142. G – Não.
143. P – Não lembra?
144. G – Não lembro. (...) Da 1ª série não.
145. P – Que mais? Quê que você lembra?
146. G – Ah eu lembro assim, na 1ª série, teve nos primeiros anos até a quarta,
eu sempre participei normalmente de tudo, das festinhas, dançava, na educação
física (...) eu era o goleiro, e fui goleiro até uns 13 anos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
136
O quadro 4 um panorama do relato da vida escolar de Gabriel, onde a
rotina e a normalidade dão o tom, e mesmo os acontecimentos mais diferenciados
acabam vindo para compor e consolidar essa rotina e essa normalidade. A
primeira memória marcante mencionada não se relaciona aos colegas, nem
professoras, mas a uma máquina de escrever, que ele ganhou do pai, como
estratégia de alfabetização. Em três momentos Gabriel usa a expressão graças a
Deus’: a primeira para louvar a idéia da terapeuta de usar a máquina de escrever; a
segunda, para dizer que sempre teve amigos e a terceira num tom mais
brincalhão -, para agradecer por sua mãe não ter estado presente numa situação
em que ele foi discriminado.
Junto com a máquina, seus pais forneceram outro apoio pedagógico: uma
ajudante de professora. A menção a esta ajudante vem carregada por um
posicionamento de classe, de quem tem poder aquisitivo para pagar pelos serviços
de alguém. A memória da ajudante é neutra e fatual em contraste com o
envolvimento emocional demonstrado em relação à máquina de escrever. Em
outro momento da entrevista [não transcrito aqui], Gabriel narra que a presença
dos ajudantes de sala o constrangia, principalmente quando era adolescente
cursando a série por ter alguém do seu lado, marcando sua baixa autonomia.
Nesse enquadre, as ajudantes são posicionadas como sinais de dependência, que
ele queria superar. Além disso ele frisa [linha 175] que a ajuda que elas
providenciavam era de ‘mão-de-obra braçal’ para deixar bem clara sua autonomia
intelectual.
Quadro 5
355. P – O que quê era bom na escola? Do que quê você gostava?
356. G Ah, eu gostava dos amigos, de algumas matérias, nunca tive alguma
coisa que eu não achasse, que eu detestasse, de eu não querer ir prá aula. Graças a
Deus que eu sempre tive amigos que foram muito bons pra mim, amigos que me
acompanhavam do meu jeito.
No quadro 5 aparece sua relação com os colegas de turma como bons
amigos, companheiros. Em outros momentos da entrevista ele menciona que
andava de andador e corria com os colegas, que brincava em alguns brinquedos do
pátio da escola, tudo ‘do seu jeito’. Esse ‘jeito’ é apresentado como um estilo
próprio, algo que não deve ser mudado ou que traz algum tipo de
constrangimento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
137
Quadro 6
102. G - a minha mãe-minha mãe, meu pai, procuraram dois colégios. Um
em Barra Mansa, que era um colégio grande e tal e um outro menorzinho em
Volta Redonda.
103. Foi até coincidência, esses dias eu perguntei pra minha mãe como é que
tinha sido isso aí, por que é que eu num tinha ido pro Santos [primeiro nome da
escola] que é em Barra Mansa, eu sempre morei em Barra Mansa mas eu estudei
a minha vida inteira em Volta Redonda.
104. Aí ela falou que eu fiz a prova, fiz normalmente, passei BEM. Mas a
coordenadora do Santos, que é conhecida da minha mãe, ela falou que por ser um
colégio muito grande, talvez eles não conseguissem dar uma atenção especial pra
mim. Devido ao número, ao número grande de crianças que tinha na sala. Então
com isso, a minha e optou por eu estudar no São Marcos que era um colégio
menor, e tinha assim, uma ou duas turmas no máximo, no Santos era muito mais.
254. G Acho que na maioria dos casos no colégio teve que fazer uma certa
adaptação.
255. P Tem as adaptações físicas, mas em termos de comportamento. De
atitude, de esclarecimento?
256. G - Também, também.
257. P – Também? Como é que isso era feito?
258. G – Isso eu não me lembro, mas assim tipo meus pais//
259. P – A sua função não era essa, essa era função dos seus pais?
260. G –É, sempre que meus pais fossem na escola eles falavam que eu tinha
uma deficiência física, que eu entendia tudo normalmente, para os professores
ficarem preparados por que senão// Pra eles não modificarem o ritmo da aula por
causa de mim.
274. G – Não eu fiz o 2º grau num colégio que chama AVA.
275. P – AVA? É uma sigla?
276. G – É, é uma sigla que acho que ninguém sabe o que significa.
277. Aí esse colégio era maior, as turmas eram maiores,
278. Quer dizer, o colégio em si, não era maior, mas ai já eram turmas de 40
alunos.
279. Minha mãe falou que ela até ficou um pouco preocupada, achando que eu
fosse estranhar o número de alunos, mas, não-não.
280. P – Ela te preparou?
281. G – Eu lembro dela falando ‘nossa, vai ser difícil’. Eu falei ‘mãe’, aí eu já
lembro do que eu falava. Aí eu falei ‘mas vão fazer o que, tem que mudar de
colégio’.
282. P – Por que o outro só tinha//
283. G – Porque o outro só tinha ate a 8ª série. E ou era esse AVA, que era um
colégio pequeno mais com as turmas grandes ou era o Santos. Aí eu falei “mãe,
não vai ter jeito”. Mas não teve nenhum problema de adaptação.
197 G - Deixa eu ver, um dia marcante? Eu acho que foi é, quando eu passei no
vestibular pela primeira vez, ainda pra biologia. Passei mas não gostei. Eu lembro que
foi um dia assim bem legal, a sensação de passar pra uma faculdade.
Nos excertos do quadro 6, Gabriel posiciona seus pais como decisores e
mediadores das relações escolares. No fragmento 102/104 aparece a negociação
da escolha da escola onde ele cursou o ensino fundamental. Apesar de ter passado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
138
e ‘bem’ na seleção para a escola mais próxima da sua casa, sua matrícula foi
contra-indicada pela coordenadora pedagógica, que disse não haver ali condições
especiais para atender às suas necessidades. A posição de Gabriel em relação a
esta alegação é de o confrontar o argumento da coordenadora, mesmo que, em
seguida, ele relate que seus pais, na condição de intermediários junto aos
professores, recomendavam que não houvesse nenhuma alteração na aula por
causa de seu filho, ou seja, desmontando a idéia de que ele precisasse de
atendimento especial.
A posição de sujeito prevalente é o de acato ao saber especializado, seja ele
médico, terapêutico ou pedagógico. Estes profissionais são posicionados como
influentes na modelagem do seu modo de ser, autônomo e independente. As
adaptações de que Gabriel se valeu ao longo da escolaridade estão sempre
relacionadas às questões motoras e não, propriamente, pedagógicas. A facilidade
nos estudos, seu bom desempenho cognitivo e a facilidade em fazer amigos
delimitam o mundo escolar como um mundo sem maiores desafios, um mundo
rotineiro e tranqüilo.
A entrada no ensino médio [274 a 284] obrigou a nova mudança de escola,
que a que ele freqüentou no ensino fundamental oferecia até a série. Esse
momento de passagem é identificado pela ansiedade de sua mãe, contrastada ao
seu pragmatismo. Reportando as falas da mãe, ele abre um parêntese para dizer
que nessa etapa da sua vida ele lembra do que falava, numa alusão à falta de
lembranças de outros períodos e à caracterização de maior maturidade e
consciência a partir do ensino médio [antigo 2º grau]. A ansiedade da sua mãe foi
injustificada, pois, sua adaptação no novo colégio seguiu o curso da tranqüilidade
que vinha marcando sua trajetória.
Quando perguntado sobre um momento mais marcante, algo que saísse da
rotina, ele destaca a sensação de passar no vestibular como o coroamento dessa
trajetória de sucesso [197]. Mesmo não tendo seguido o curso para o qual foi
aprovado, a experiência de ser selecionado, na base do mérito, legitimou sua
posição de pessoa capaz e inteligente.
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES
Quadro 7
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
139
66. G – Assim, quando muito pequeno eu não lembro. Mais depois com 8, 9 anos que
eu tenho algum tipo de lembrança eu acho que era alguma coisa normal sabe,
ninguém chegava se aproximando [tom de voz baixo] era uma coisa normal.
67. P – Como é que é o normal?
68. G Ah você começa a conversar normalmente, do lado, puxa papo, essas
coisas assim.
69. Nunca tive vergonha de-de chegar e falar com uma pessoa. Nunca tive nenhuma
dificuldade da pessoa não querer me aceitar do jeito que eu sou.
70. P E você nunca teve essa sensação de que o outro te olhando torto, que
estranhando?
71. G Eh ahn? Com os amigos não, mas às vezes na rua, até hoje em dia. Passa
(...) tem uma pessoa que passa e aí você percebe que ela continua te olhando. Mas
com os amigos não, nunca aconteceu. Sempre foi normal, nunca tive nenhum tipo
de constrangimento ou dificuldade com os amigos. As pessoas que olham torto
não são amigos.
72. P – Não interessam?
73. G – Não interessam.
No quadro 7, Gabriel inicia o relato da naturalidade em que fez amigos na
escola. De novo, usa e insiste no vocábulo ‘normal’. Incitado a atribuir um
conteúdo ao que seja ‘normal’, ele explica como não se deixava capturar pelo
‘sistema de vergonha’ (Miner, 1999) que fixa várias pessoas, com quadro
parecido ao dele, numa posição sub-julgada. Para tanto, ele se aproximava
abertamente das pessoas. Quem não respeitar seu jeito-estilo, não serve pra ser
amigo e, portanto, será recusado, não interessa. Nessa posição ele se coloca como
agente com controle da situação e não à mercê da atenção alheia.
Quadro 8
205. G – [...] Ah lembrei! De um episódio.
206. P – hum!
207. G – Foi chato.
208. Foi quando eu fiz vestibular pra outra federal. Na primeira fase que a
prova era objetiva - de múltipla escolha -, e eu sempre fiz a prova, sempre de
múltipla escolha (...) na máquina. Fazia, anotava as respostas depois uma pessoa
passava elas pro cartão. E nesse dia eu me lembro que eu fiz a prova em Niterói,
por que assim pra quem precisava de alguma coisa (...) especial, era em Niterói.
E, eles não deixaram eu usar a máquina! Eles falaram que, ia ter uma pessoa pra
escrever pra mim, mas eu, não aceitei isso, não usei a máquina mas eu fiz a
prova eu escrevendo. Lógico que não fui tão bem como poderia ter ido, mas eu
nunca ia aceitar é// que alguma pessoa fizesse uma coisa que eu sou capaz de
fazer também. Do meu jeito.
209. P – Você aprendeu a não aceitar essas coisas ou//
210. G – Eu aprendi, a não aceitar.
211. P – Com quem você aprendeu a não aceitar, quê que você ouviu, que tipo
de//
212. Porque você não ia aceitar?
213. G – Eu não lembro exatamente assim de ouvir uma coisa, de determinado
fato que me fez pensar assim, mas acredito que foram meus pais, os terapeutas
que foram , moldando, e eu também. Tendo essa-essa visão de mundo que eu
não preciso de ter alguém que faça alguma coisa que eu sou capaz de fazer.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
140
Mesmo que do jeito que eu faço eu faça de um jeito diferente. Mas se eu consigo,
eu vou fazer do meu jeito.
Na narrativa da trajetória escolar, Gabriel custa a se lembrar de algo que
escape da rotina de normalidade e, finalmente, ele se lembra de um episódio que
merece destaque por ter sido chato. No dia do exame vestibular, ele vive uma
situação onde ‘seu jeito de fazer as coisas’ é invalidado. Diante desta invalidação,
ele se posiciona com altivez de quem não aceita determinadas atitudes. Esta
firmeza para recusar uma imposição de dependência é atribuída a uma construção
coletiva dos seus pais e terapeutas que o ‘moldaram’, forjando nele uma visão de
mundo onde ele deve fazer valer sua capacidade de ação e participação. Essa
posição é expressa por uma frase que daria um bom slogan: ‘eu não preciso que
alguém faça alguma coisa que eu sou capaz de fazer, do meu jeito’. A
compreensão de que a sua identidade é tributária das relações significativas da sua
rede social, é consoante com os discursos socioconstrucionistas. O efeito da
circulação por esses discursos é a seleção de quem vai ser escutado e quem vai ser
colocado na situação de quem ‘não interessa’. Esse posicionamento de seleção
permanente do que vai ser acolhido na sua pessoa, sentido de coerência à
interação imediata com a entrevistadora, no início, onde ele avalia criticamente a
agenda da conversa. Este pode ser também um indício de que o modelo de tempo
mais apropriado para entender a narrativa é o tempo experiencial (Mishler, 2002),
uma vez que, no início da entrevista, esse posicionamento foi sendo afirmado
como que regido por um ‘sentido de final’.
Com a retaguarda de confiança de pais e terapeutas empoderadores,
Gabriel vai se posicionando como autônomo e capaz. Assim se distancia cada vez
mais dos estereótipos de incapacidade ligados às concepções hegemônicas da
deficiência. Essa dissociação entre presença de lesão e identidade deficiente é
evidente no seu caso. No entanto, ele não está imune ao que está inscrito no
cânone cultural, de forma que os probleminhas chatos, continuam aparecendo no
seu caminho, como mostra o episódio do quadro 9.
Quadro 9
225. G - Lembro uma coisa mais, muito pequena. Uma vez no-no zoológico
aqui do Rio, na fila pra entrar NORMALMENTE// e geralmente as pessoas
recebem algumas ordens e elas não são capazes de abrir uma exceção.
226. P – Sei.
227. G - Então no zoológico devia ter alguma ordem, uma ordem que dizia
que pessoas portadoras de deficiência não pagam, assim de jeito nenhum, e aí tem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
141
que passar por uma outra fila. E eu estava indo pra entrar na fila, normal, junto
com minha mãe, meu pai e a minha irmã e aí, na hora de entrar, a pessoa falou
“ele não paga!”
228. Aí a minha mãe (eu não lembro disso, mas a minha mãe é que conta),
ela falou: - ‘não, ele vai pagar’. E a pessoa não foi capaz de-de deixar. Aí chamou
não sei quem lá, acabou que eu entrei pela fila normal mesmo. Mas a pessoa
recebe uma ordem ela é incapaz de abrir. Igual cavalo, só olha pra frente.
O evento acima revela com acuidade a recusa de Gabriel, com apoio dos
pais - principalmente da mãe -, em se enquadrar na categoria ‘pessoa portadora de
deficiência’ mesmo que isso represente, a princípio, alguma vantagem. Ao
contrário de tantas pessoas e instituições que lutam para obter condições mais
favoráveis de participação nos lugares públicos através da gratuidade do acesso,
Gabriel tal gesto apenas como uma forma de discriminação. O porteiro, ao
aplicar a discriminação positiva, que costuma ser normativa, é posicionado como
alguém inflexível, incapaz de discernir que ali tem alguém que, apesar de algumas
características corporais que não o impedem de entrar na fila junto com sua
família, não se vê e não quer ser rotulado como portador de deficiência. O erro do
porteiro foi não reconhecer que Gabriel é maior do que seu corpo e que não
uma relação automática entre diferença física e auto-definição como pessoa com
deficiência. Nesse sentido, esse evento é paradigmático, pois evidencia aquilo que
os Disability Studies vêm chamando a atenção, ou seja, a deficiência é uma
construção social que recai sobre os indivíduos com lesão, mas ela pode ser
recusada e contestada.
Na entrevista coletiva [EC trecho 37], outro evento ajuda a fixar a história
da inflexibilidade de algumas pessoas em adaptar as normas à sua situação. No
caso, um funcionário do Detran se recusou a marcar com [x] as opções que
Gabriel lhe ditaria, no exame teórico, para tirar carteira de motorista. Como
Gabriel tem dificuldades com a coordenação fina, a alternativa que se apresentava
era pedir alguém que assinalasse na folha de respostas as opções por ele
escolhidas. Quando o funcionário rejeitou essa alternativa e não ofereceu
nenhuma outra, ele deficientizou’ Gabriel, ou seja, transformou seu jeito-estilo
em uma limitação excludente. Esse é um exemplo típico de como a deficiência é
imposta aos indivíduos que apresentam algum tipo de lesão.
Quadro 10
248. G - nessa crônica tava falando um pouco que as pessoas m que-que
olhar o deficiente de uma maneira diferente, como uma pessoa normal, que pode
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
142
fazer todas as coisas desde que tenha uma certa adaptação. A pessoa muitas vezes
vê uma pessoa com dificuldade de andar, e ela acha que por ela ter aquela
dificuldade de andar, ela tem alguma deficiência na parte cognitiva e isso na
maioria das vezes não é verdade. A pessoa até tem o cognitivo muito bom.
Mesmo tendo uma deficiência FÍSICA.
249. P E as pessoas que tem deficiência cognitiva? Qual que é a sua// quê
que ce acha que devia ser feito? Você tem algum amigo? Você conhece pessoas//
250. G – Conheço.
251. P – Com deficiência cognitiva?
252. G Conheço pessoas, mas amizade não. Mas, não sei, mas acho que a
pessoa tem que ser tratada da maneira, melhor possível. Da maneira mais normal
possível, com certos tipos de adaptação. Tem que ir pra escola, mas tem que ser
uma escola adaptada, e//
253. Enfim, acho que deve investir tudo para o deficiente se sentir bem, sentir
que ele tem um lugar na sociedade. Mesmo as pessoas com deficiência cognitiva,
não as gravíssimas, que a pessoa não entende nada, mas as leves, elas têm que,
elas têm que perceber que elas são bem recebidas, que elas são bem aceitas.
A seleção do quadro 10 se refere a uma crônica que Gabriel disse ter
escrito sobre o modo como a sociedade deve tratar as pessoas com deficiência. A
princípio [248], ele prescreve para a sociedade em geral o tratamento que ele quer
pra si: ser tratado como uma pessoa normal. Na seqüência, ele diagnostica como
problema geral a superposição das deficiências - no caso, a suposição de que
pessoas com deficiência motora têm, necessariamente, comprometimento
cognitivo. Este é um problema bastante comum, principalmente às pessoas com
paralisia cerebral, que muitas vezes se sentem tratadas de modo infantilizado ou
invisíveis, quando as perguntas sobre si são dirigidas a alguém que as está
acompanhando.
Trabalhos como os de (Simpson, 2002, Aspis, 2002, Yates, 2005 e
Carlson, 2005) dedicam-se a pensar a relação entre pessoas com deficiências
físicas e intelectuais
11
. Para conquistar respeito e direito à participação, muitas
vezes as pessoas com deficiência física utilizam a estratégia de se distanciar de
qualquer representação e mesmo da companhia das pessoas com deficiência
intelectual, o que é questionado, por estas últimas, como sendo uma exclusão
dentro de um grupo já marginalizado.
Gabriel circula pela estratégia discursiva de distanciamento dos que têm
deficiência intelectual, ao se colocar na posição de se basear na gravidade da lesão
a condição para a inserção ou não das pessoas na sociedade. Dessa forma ele se
alinha a um discurso mais econômico de que o lugar da pessoa na sociedade deve
11
A expressão deficiência mental tem sido contestada pelo movimento social que sugere sua
substituição por deficiência intelectual.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
143
ser estabelecido segundo sua capacidade de retorno produtivo e se afasta do
discurso de inclusão radical, que se desdobra, a partir da idéia dos Direitos
Humanos, para pensar que todos sem exceção devem ter respeitados seus
direitos de participação social.
No desfecho do trecho, o uso da terceira pessoa posiciona Gabriel numa
perspectiva de não pertencimento ao grupo das pessoas com deficiência, que se
refere a ‘ele - o deficiente’ e não ‘nós – pessoas com deficiência’.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
A trajetória escolar de Gabriel é, nas suas palavras, normal. Nem brilhante,
nem difícil, uma trajetória marcada pela rotina e pelo bem estar de ser um garoto
como os outros da sua idade. Todo o percurso foi feito em escolas regulares
privadas e ele contou com algumas adaptações pedagógicas orientadas por
profissionais externos e apoiadas por seus pais.
Se Gabriel não tivesse o apoio familiar, se não fosse assistido por
profissionais dedicados e tivesse as condições financeiras que tem, talvez não
passasse tão bem pelos buracos que os outros lhe atiraram.
Seus posicionamentos são bastante coerentes e, de certa forma, lineares,
sem apresentar algo que pudesse ser caracterizado como rompimento ou ‘ponto de
virada’. Todo o tempo ele sustenta sua postura de recusa a se identificar pelos
atributos relacionados à lesão. Suas conquistas de independência e autonomia são
os pontos de sustentação para responder por aquilo que ele é: alguém faz o que os
outros fazem, que do seu jeito. Essa postura de transformar a diferença física
em um estilo próprio pode ser vista como reinvenção positivada da maneira como
o senso comum as pessoas com lesão. O efeito disso é a confiança na sua
capacidade de avaliação e seleção do que ele inclui na sua ‘experiência de si’, o
que amplia sua margem de liberdade.
Na entrevista coletiva, ele se deixou influenciar principalmente pela
liderança de Antenor, reforçando os pontos de vista deste e adotando expressões
como ‘os ditos normais’ que não condizem com a posição mais pregnante na
entrevista individual. Este pode ter sido um recurso de filiação ao grupo de
interagentes para participar em igualdade daquela comunidade de prática
específica.
4.5
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
144
JOSUÉ - Carpe Diem – Conquistar respeito para se jogar na vida.
SITUAÇÃO DO ENCONTRO
A Valéria, coordenadora executiva do Programa Rompendo Barreiras
tinha me dito algumas coisas a respeito de Josué. Por exemplo, que ele lia
Foucault desde os 15 anos e que atualmente estudava filosofia. Essas informações
me deixaram curiosa por conhecê-lo. Nosso encontro foi intermediado por
Valéria, uma vez que, Josué o era facilmente acessível por telefone. Assim, a
primeira vez que falei com ele já foi para a realização da entrevista. Ele carregava
uma mochila grande e me cumprimentou sorrindo. Fomos para uma espécie de
sala de estudos que fica próxima ao Rompendo Barreiras. Ele ficou preocupado
quando pedi para gravar nossa conversa. Achou que não fosse adiantar, que eu
não fosse entender o que ele dizia devido à dificuldade motora da fala. Eu disse a
ele que estava entendendo tudo que ele falava (para alívio de ambos) e que
quando não entendesse, pediria para ele repetir
12
. Ele dispunha do tempo que
precisasse e eu também. Nossa conversa durou quase três horas. Ao final do
encontro, trocamos informações sobre a monografia dele e a minha tese, que
tinham parte do referencial teórico em comum. Emprestei-lhe o livro Elogio de la
Debilidad, de Alexandre Jollien (2001), outro jovem com paralisia cerebral que
estuda filosofia na Universidade de Friburgo, na Suíça.
CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR:
Descritores individuais: homem, pardo, 28 anos, solteiro, terminando Filosofia na
Universidade Estadual, tem paralisia cerebral, nasceu e foi criado numa cidade do
litoral fluminense.
Grupos de pertencimento: grupo de amigos, em Cabo Frio, e familiares.
Configuração familiar: atualmente mora com um sobrinho em Niterói.
Mãe – ensino fundamental, comerciante, faleceu quando Josué tinha cerca de 10
anos.
Pai – segundo grau – telegrafista aposentado – contador free lancer.
É o caçula de 7 irmãos.
AUTO -APRESENTAÇÃO:
Quadro 1
4. J – Eu sou, o caçula de 7 irmãos...
5. P – Sete?!
6. J – É, minha mãe infelizmente já faleceu.
12
Por uma questão de confirmar determinadas informações, essa entrevista acabou tendo mais
intervenções e um ritmo mais fragmentário que as outras.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
145
7. P – hum
8. J – É ela foi a grande responsável por eu tar aqui hoje, (...) foi-foi a grande
incentivadora da família. [tom emocionado]
30. J A versão que eu mais ouço foi que eu nasci normal, mais tive uma infecção
hospitalar, no hospital, fiquei quatro semanas internado e foi uma luta louca pra
eu conseguir viver.
51. P - E aí, o quê que// tecnicamente o quê que tem? Você teve uma paralisia
cerebral?
52. J – Paralisia Cerebral, é.
53. P – Que afetou o que, exatamente?
54. J – As funções motoras.
115. J Eu, (...) eu lembro que uma vez, que a gente tava na rua, um-uma
senhora me chamou de doente, ela [a mãe] virou e falou assim: ‘meu filho
não é DOENTE, meu filho é ESPECIAL’.
116. P – han han
117. J – Isso (...) eu carrego isso até// [voz embargada]
118. P – É emocionante né? (...) Esse é o jeito que você gosta que se refiram a sua
diferença? Falando que você é especial? Como é que// porque tem essa coisa
né? Cada um fala de um jeito: portador de necessidades especiais; portador de
deficiência; pessoa com deficiência; especial... Como é o jeito que ce se
identifica, que ce gosta de ser chamado?
119. J – Antes, eu me importava muito com essas coisas//
Josué inicia o relato falando da família, conforme havia sido demandado
pela entrevistadora. Ele é o caçula de sete irmãos, tem o mesmo nome que o pai e
perdeu a mãe ainda criança. Ao mencionar o falecimento da mãe, ele a posiciona
como presença e não como ausência, na sua vida. Uma outra pista desse
posicionamento se dá, quando a entrevistadora pergunta que idade ele tinha
quando a mãe morreu e ele evita repetir a palavra ‘morreu’, utilizando novamente
o vocábulo faleceu.
Quando vai falar da origem da deficiência, Josué se coloca como um
narrador distanciado da cena contando qual é a ‘versão’ que ele elegeu para sua
história, em relação aos diversos discursos a que foi exposto. Nessa versão ele é
um vitorioso na luta contra a morte e a lesão pode ser vista como um aspecto
secundário diante da sobrevivência.
No trecho [115/119], a mãe é a protagonista de uma cena em que defende
o filho ao revidar o olhar discriminador vindo de um outro. Diante da tentativa de
fixar Josué na posição de doente, com a qual ele poderia passar a se identificar, a
mãe faz um gesto de recusa firme, gesto que foi registrado pelo filho, que se
posiciona como herdeiro dessa firmeza.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
146
A forma como Josué prefere nomear a deficiência o fica clara, dando a
entender que essa questão não é mais relevante para ele. Ao longo da entrevista
ele parece evitar qualquer tipo de nomeação específica. Em compensação, utiliza
diversas vezes a expressão ‘os ditos normais’ questionando a fronteira que separa
as pessoas, de acordo com a categoria inventada pelas ciências sociais e medida
com réguas matematicamente precisas. Podemos inferir que o fato dele ser um
leitor de Foucault informa seu discurso sobre a divisão normal-anormal.
INTERAÇÃO ENTREVISTADO-ENTREVISTADOR:
Quadro 2
25. P – Nossa senhora! E ainda, morando em Cabo Frio ela te trazia todo dia pra
Niterói e te buscava de volta?! Qual é a distância Cabo Frio-Niterói?
26. J – Duas horas e meia de ônibus.
27. P - Duas horas e meia pra ir duas horas e meia pra voltar, todo dia!!?
28. J – É.
29. P – Menino, que história! [...]
Logo no início da entrevista, ao tomar contato com o contexto de vida de
Josué, vi-me fisgada pela dramaticidade da história
13
. Certo deslumbramento
circulou pelo meu discurso, em formas de interjeições de espanto. Na linha 29
aparece, além do espanto, um tratamento informal - ‘menino’ - que pode também
acentuar a diferença de idade entre entrevistador-entrevistado. Dessa forma, o
enquadre de gênero ‘entrevista para pesquisa acadêmica’ foi atravessado por um
testemunho de uma história fascinante, que teve efeitos atenuantes na assimetria
entrevistador-entrevistado e criou condições para uma conversa mais íntima.
As linhas 117 e 118 do quadro 1 mostram um dos momentos em que Josué
fica emocionado, com dificuldade de completar a frase. A entrevistadora, primeiro
valida o sentimento que emergiu - é emocionante ?- e, em seguida, conduz a
conversa para um ponto menos mobilizador, retomando a direção da interação.
Josué responde como o protagonista que se deixa guiar pelas perguntas sem opor
resistência.
ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL
Nível escolar / idade Escolaridade Outros
Educação infantil
Associação de Pais
Com menos de um ano
13
Penso que na condução desta entrevista, minha posição de mãe de uma criança com deficiência
foi acionada de maneira mais clara do que nas outras. A fantasia sobre o ‘destino’ dos nossos
filhos na nossa ausência costuma freqüentar nosotras que vivemos esta condição de maternidade.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
147
Especiais de Cabo Frio
entre 6 a 10 anos
iniciou reabilitação numa
Associação de Niterói.
Atendimento diário de 8
da manhã às 6 da tarde
até os 5 anos. O
deslocamento Cabo Frio-
Niterói-Cabo Frio levava
cerca de 5 horas diárias -
ida e volta.
Alfabetização Escola privada com 4
alunos na turma pela
manhã e à tarde reforço
com psicopedagoga.
1ª a 4ª série (12 aos 15
anos)
Escola Pública Municipal
– Cabo Frio.
Pulou a 1ª série.
5ª a 8ª série (16 aos 19
anos)
Escola Pública Municipal
– Cabo Frio.
Ensino Médio (20 aos 22
anos)
Escola privada – Cabo
Frio.
Vestibular 3 anos de tentativa – fazendo cursinho pré-vestibular
Faculdade (25 – 28 anos) Último período de filosofia na UERJ
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR:
Quadro 3
174. P – E você, você era o quê? Um era apaixonado pelo Flamengo, o outro
era o Tonho da Lua e você era o quê?
175. J – Eu era o, o-o-o Nerd
176. P – O que?
177. J – O Nerd, o estudioso.
178. P – Você era o estudioso, você era o Nerd da Associação!
179. Você sempre gostou de estudar?
180. J – Sempre. Até o 1º grau eu gostei muito de estudar, só tirava// não é
gostar não, é também é uma forma de adquirir respeito.
181. É, e-e não porquê que eu achasse, quando eu comecei a querer ficar na
rua também, eu sempre eu sempre era o café com leite nas-nas brincadeiras todas.
182. P – O que é café com leite?
183. J – É o que não fede nem cheira.
184. P – [ri]
185. J – O que nunca é disputado, o que nunca é// fica só com (?) da história.
186. P – Sei, mas isso em que, em que meio? Isso na turma da Associação ou//
187. J – Só na turma da rua. Na turma da// eu era o cínico da-da-da turma.
188. P – O cínico?
189. J É, porque eu fazia, aprontava as coisas, mas ninguém desconfiava de
mim.
103. J – Eu acredi// é-é, mas eu, minha mãe// Ela queria me colocar, me
colocar nos colégios ditos normais, mas nenhum-nenhum me aceitou.
104. P – Nenhum te aceitou?
105. J Por causa que achavam que eu-eu-eu tinha, que eu tava muito
atrasado em relação aos outros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
148
219. J a a Anelise, a minha Anjo da Guarda, ela procurou a minha irmã
que eu entrasse na esco-escola nor-normal. Meus pais, minha mãe é come//
minha mãe também fez isso, mas não conseguiu// junto com o pessoal dito
normal. Mas, é (...), nós fomos procurar uma, justamente, uma escola pequena,
particular, pra começar.
246. J – É. Aí na Anelise, eu comecei a ficar com medo.
247. P – Han.
248. J – ‘Lá eu não vou ter paz pra prá fazer os exercícios.’ [imitando outra
voz]
249. P – Han.
250. J –‘Lá eu não vou ter é’// Aí a Anelise [falou]: “Você ta com medo?
Nunca vi você com medo!”
251. P – Han!
252. J – Aí era o medo do novo, do desconhecido...
274. J - Aí no 1º dia [de aula], a Anelise foi lá, é, explicou-explicou pros
alunos, é como é que ia ser o nosso convívio.
275. P – Você tava junto? Você viu ela falando?
276. J– Vi
277. P – O quê que ela falava?
278. J – Falava que-que eu só tinha um-um-um problema de coordenação
motora, mais que-que o resto é-era normal, que podia brincar, fazer tudo comigo
que-que eu era igual aos outros.
O início da vida escolar de Josué se deu na mesma instituição onde ele
fazia tratamento de reabilitação desde os primeiros meses de vida: uma
Associação de Pais, numa cidade vizinha, a duas horas de distância da sua casa. O
sacrifício imposto pelo deslocamento fez com que sua mãe e uma tia paterna, que
tinha também dois filhos com deficiência, atuassem junto ao prefeito de Cabo Frio
e conseguissem a implantação de uma Associação nos mesmos moldes, naquela
cidade.
Relembrando esse tempo, Josué nomeia alguns colegas, todos com
deficiência, e os caracteriza segundo a cidade de origem, o time de futebol etc., e
se define como o Nerd da Associação. A posição de estudioso desde os primeiros
tempos de escolarização prepara terreno para justificar sua longevidade escolar,
fazendo com que o final dê coerência à narrativa como sugere Mishler (2002) com
a ‘metáfora da mão dupla do tempo’. No entanto, perguntado sobre o desejo de
estudar, ele responde que o que sempre o motivou foi a necessidade de ser
respeitado pelos outros. Como ele deixa claro, aqui e em outros momentos, ser
respeitado significa ser considerado uma pessoa com capacidade de participar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
149
ativamente, de ser mais do que o café com leiteda turma. Ao se sentir colocado
na posição de quem não conta, de quem ‘nem fede nem cheira’, Josué se posiciona
com a esperteza de quem tira proveito da prerrogativa de que dele nada se espera,
para fazer traquinagens sem ser punido.
A primeira tentativa de freqüentar uma escola regular foi empreendida
ainda pela sua mãe e foi mal sucedida. Ao falar dessa rejeição Josué usa a
expressão colégios ditos normais em consonância com pessoas e movimentos
que problematizam a naturalização da normalidade para fins de exclusão. Os
‘ditos normais’ são o equivalente à ‘branquidade’ proposta pelos movimentos
negros para dar historicidade à raça branca, a fim de desconstruí-la como dado da
natureza (Gavin, 2003). No entanto, o argumento usado pela escola para recusá-lo
não é contestado.
No fragmento 219, Josué introduz uma personagem que é nomeada seu
‘anjo da guarda’. Trata-se de uma psicopedagoga que acreditou e trabalhou para
desenvolver suas capacidades de aprendizagem. Ao longo da trajetória, essa
personagem aparece diversas vezes exercendo diferentes papéis: como mediadora
das relações com a escola, como alfabetizadora, como suporte emocional nas
horas difíceis etc. Através da intervenção da Anelise, Josué encontra um caminho
de saída da Associação e entra numa escola privada pequena. Vencida essa etapa,
o próximo passo seria o ingresso numa escola pública regular. Sair do circuito da
Associação e da pequena escola particular e entrar na escola regular seria uma
passagem de aluno ‘café com leite’ para aluno ‘que conta’, uma vez que o
reconhecimento público do ensino proporcionado pelas Associações de Pais é
contaminada pelo estigma que paira sobre as instituições especializadas em
pessoas com deficiência. No trecho 246/252, Josué se posiciona como alguém
temeroso dessa passagem e relata como Anelise questiona seu medo e o ajuda a
enfrentá-lo, comparecendo à escola para explicar aos seus pares e professores que
a única diferença entre Josué e os demais era a de coordenação motora
14
. O
processo de normalização, iniciado pela mãe, continuou com Anelise, com o
diferencial, para efeito institucional, da sua palavra ser a de uma especialista.
Quadro 4
296. J – Não. Sempre no estudo. Eu me fechei no estudo.
14
Uma outra diferença que é mencionada mais adiante é a idade, uma vez que Josué iniciou o
ensino fundamental entre 11 e 12 anos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
150
297. P – Focou no estudo passou a só estudar?
298. J – Passei a (?)
299. P – Você não conversava com os colegas?
300. J – Não.
301. P – Não brincava?
302. J – Não.
317. J - Aí um dia né, eu briguei com um cara.
318. P – Brigou como?
319. J – Na aula de educa-educação física. O cara [falou] “você vai (?)”
320. P – Vai o que?
321. J – ‘Vai ficar-ficar lá fora”
322. J - ‘Vem cá, por que?”
323. P – Han, han.
324. J - “Porque vai te machucar!” – “Problema é meu” – “Ah coitado”
“Coitado!?”
325. J - Parti pra cima. Aí, de-depois disso.
326. P – Ele te chamou de coitado aí você falou, fez o que?
327. J – Parti pra cima dele! [rindo]
328. P – Meteu a mão nele? [ri]
329. J – É.
330. P – E aí?
331. J – Aí foi aquela gritaria, aí a diretora mandou chamar a minha irmã, mas
ficou por isso mesmo.
115. J – Mas na 3ª série, eu tive uma professora que foi, uma professora
decisiva assim.
116. P – Foi decisiva?
117. J – É, que eu era, eu era muito fechado. Sabe quando a professora é (...)
puxa você, puxa?
118. P – Como é que ela fazia pra te puxar, pra te deixar a vontade?
119. J –Brin-brincava comigo, tipo ‘Zezinho, vai lá no quadro’
120. P – [ri]
121. J – ‘Zezinho, vai lá e explica aí’.
122. P – Como é que ela te chamava?
123. J – [Josué, Josuézinho] Zezinho. Aí sempre puxou pra// e teve um
momento decisivo que foi quando, eu descobri nessa época que, eu era,
que eu era bom no gol.
358. J – Aí o pessoal me chamava pra-pra, é, agarrar na quadra, já começou a-
a já comecei a me relacionar mais. E, e teve um momento nos jogos, nos jogos de
campo na escola, que (...) foi-foi na 3ª série. E não tinha ninguém pra agarrar e
o povo todo olhou-olhou pra mim meio desconfiado, no jogo con-contra o melhor
time de Cabo Frio que é o time do (?) que o professor dava aula também. O
professor e-ele chamou essa escola pra jogar com a gente. A escola cheia pra
caramba ‘eu não vou’. ‘Não vou, não vou’. O professor parou e: ‘você vai, eu
confio em você’. (...) eu nervoso, eu com medo, o professor falou assim
‘cara, eu vou indicar você’. Aí eu entrei, agarrei bem e o professor assim, até hoje
lembra, lembra desse jogo.
A introdução de Josué na escola regular teve sabor tanto de conquista
quanto de dificuldade. Entrando na série do ensino fundamental aos 11 anos,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
151
ele se sentiu um peixe fora d’água, que não conseguia estabelecer relações de
amizade com os colegas, voltando-se exclusivamente para os estudos, a fim de
provar que tinha capacidade intelectual e era digno de respeito. Por já estar
alfabetizado, ele foi logo reclassificado e passou direto para a 2ª série, o que, além
de ser reconhecimento de que ele aprendia, diminuiu sua diferença etária em
relação aos colegas.
Sua timidez e fechamento o deixaram isolado, até que alguns
acontecimentos transformam a situação. Um dos ‘pontos de virada’ (Mishler,
2002) se dá quando, na aula de educação física, um colega barrou sua participação
e ele reagiu. Primeiro verbalmente e em seguida batendo no colega. Ao contar que
partiu para cima do colega Josué ri e demonstra satisfação em relembrar o fato.
Este evento o posiciona como alguém que, finalmente, rompe com a posição de
passividade para pleitear seu direito de participação junto aos demais colegas. O
episódio não teve conseqüências em termos de castigo - ficou por isso mesmo’.
No entanto, teve grandes conseqüências na forma como passou a ser visto pela
turma e no seu paulatino posicionamento como agente.
Outros dois fatos são apontados como decisivos na sua trajetória, ambos
têm a presença marcante dos professores. No primeiro relato, a professora da
terceira série é posicionada como alguém que acredita no seu potencial e o
estimula, ‘puxando’ sua participação. A ação decisiva desta professora – como ele
avalia se dá na medida em que ela oportunidade para que Josué mostre seu
bom desempenho e vá deixando o lugar de ‘café com leite’ para ocupar o de aluno
‘que sabe a matéria’.
A lembrança da professora que ‘puxa’ trouxe, por associação, um episódio
de grande visibilidade pública. Numa disputa entre times de duas escolas, faltou
um jogador para o gol e Josué foi convocado pelo professor a assumir esta
posição. Temeroso, ele quis recusar, mas o professor, ao mesmo tempo em que o
pressionou o apoiou. O resultado foi um momento de glória, onde ele agarrou bem
e descobriu junto com toda a escola ‘que era bom no gol’. Essa descoberta reforça
a imagem de superação, sendo que, para além da competência intelectual, que ele
tinha se desafiado a provar, o episódio do jogo de futebol ajudou a confrontar
suas limitações motoras, ou seja, o fantasma da lesão. Além disso, que se
ressaltar a importante correlação entre futebol, masculinidade e virilidade já
apontada nos outros casos (Souza, 1996), que funciona, na cultura brasileira,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
152
como um rito de passagem obrigatório para a composição da identidade masculina
hegemônica.
Quadro 5
433. J - Talvez eu ter perdido um pouco o foco e, quando eu vi, tava de
recuperação. Aí, tirei 10 na prova final.
434. P – Teve recuperação, levou um susto, mas recuperou?
435. J – É, na 6ª série, normal, passei legal, agora, da 7ª a 8ª, foi um período per-
perturbado.
436. P – Perturbado? Por que?
437. J – Até, até, vo-você (...) a-adolescente, apoiando algumas coisas, apoiando a
paixão, é, apoiando as perguntas ‘por que eu sou assim?’, ‘por que eu sou
isso ou aquilo?’, ‘por que’, (...) mil questões também na cabeça, eu vivia
meio que sozinho. Meu pai é, ele, ele ia em casa pra tomar café e pra
almoçar, só.
458. J - Mas, é um negócio meio-meio complicado porque eu também, me envolvi
com-com-com uma galera barra pesada. Eu comecei a fazer umas besteiras.
459. P – Tipo o que?
460. J – A-aquela coisa de adolescente. De que-querer falar pro grupo que você é
igual a todo mundo?
486. Sempre, ninguém precisou (...) me dizer o que fazer. E o estudo, mesmo eu,
com esse momento difícil, eu sempre fui mantido unido nos estudos. Podia
chegar em casa, podia ser a hora que fosse.
487. P Mas o que quê te fazia, hoje, olhando pra trás, que quê você acha que te
fez manter mesmo na época da// louco, por baixo, fazendo um monte de coisa
errada, o que quê te fez segurar ?
488. J – O, foi o-o respeito. O respeito.
489. P – Porque também você tava fazendo as maluquices pra ganhar respeito, um
outro respeito.
490. J É, isso, pra ganhar o respeito das meninas. (...) Aquele-aquele negócio de
adolescente, revoltado com a vida, re-rebelde sem causa nenhuma. Querendo
mostrar pras meninas que você podia, mais, mais. Querendo, correndo// sem
saber eu cai. [...]
Uma vez provada sua capacidade intelectual e conquistado o desejado
respeito, Josué inicia outra fase da sua vida. A entrada na adolescência traz à tona
uma série de questionamentos, com os quais ele se debate sem ter com quem
dividir. Seus desejos e manifestações de sexualidade conflitam com as
representações sobre as limitações impostas pela deficiência. Na busca por
aprovação junto ao sexo oposto ele se envolve com uma ‘galera barra pesada’
que oferece um lugar de pertencimento entre os malucos, os marginais. Para
compor esse personagem, que em outra passagem da entrevista ele nomeia como
‘o bobo da corte’, ele transgride as leis e se rebela. Essa rebeldia é descrita
retrospectivamente como sem causa, uma estratégia de aproximação das meninas.
Dessa forma ele o associa os mil questionamentos da entrada na adolescência,
ou o fato dele ser ‘isso ou aquilo’ para não nomear a diferença como causa da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
153
sua rebeldia. O protagonista da ação é aqui descolado do narrador e as
dificuldades enfrentadas são generalizadas como algo típico desse período da vida
de todo mundo.
A superficialidade da rebeldia é fixada quando Josué destaca que nem
nesses momentos mais irresponsáveis ele deixou de cumprir suas obrigações de
estudante, ou seja, nunca perdeu completamente o controle da situação. Os
percalços da trajetória escolar vão embora assim que a fase ‘perturbada’ passa,
sinalizando que seus problemas com os estudos foram circunscritos a um
determinado momento de sua vida e não comprometem sua identidade de bom
aluno.
Quadro 6
596. J (...) O livro Introdução da Marilena Chauí tinha uma parte, do mito da
caverna, do Platão.
597. P – han, han.
598. J – Eu não entendi nada. Aí, conversando com um amigo meu, que hoje ele ta
aqui [na Universidade]. A gente começou a conversar e eu achei// PÔ, achei
tão maneiro o jeito que a gente começou a conversar. O-o nível da conversa
(...) então (...) eu pensava// (...) e aí a gente começou a// (...) Pô, Platão! Aí eu
comecei a procurar livros, e (...) depois disso eu (...) comecei ler Ma-
Machado de Assis. (...) Machado de Assis tem muita coisa de Schopenhauer,
ele fala sempre de Schopenhauer, aí fiquei (...) lendo Schopenhauer. Aí,
acaba tendo um contato, só que antes, eu chegava num lugar e (...) no
primeiro grau, eu não sabia nem o que era dar beijo, (...) beijo no rosto.
Apesar de estudioso, Josué não tinha apresentado até este ponto da história
uma relação com o saber que não fosse interessada em outros ganhos, como
conquistar o respeito e admiração das pessoas. No extrato acima, ele narra uma
transformação nessa relação. Ali, o prazer proporcionado pelo conhecimento, o
fato de conseguir, através das leituras, atingir outro nível de conversa, posiciona-o
como um enamorado do conhecimento. Esse conhecimento elevado e abstrato
Platão! – é associado a um saber prático e imediato – saber dar beijo. Essa
associação fica mais fácil de entender quando ele comenta que, a partir de um
interesse mais aprofundado pela literatura, especialmente pela literatura filosófica,
ele acessa um outro patamar de intimidade consigo e com o amigo com quem
passa a poder discutir suas dúvidas sobre questões da vida em geral. É interessante
notar que, aqui, ele atribui aos novos discursos a que tem acesso – literário,
filosófico uma mudança na sua experiência de mundo, cujo efeito é abrir novas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
154
possibilidades de conversar, e consequentemente, novos recursos de fazer amigos,
que até então ele não tinha alcançado.
Este momento teve como conseqüência a própria escolha do curso
universitário, também apoiado por um professor de história, que reconheceu nele
esse interesse pelo saber e pontuou que sua experiência de vida podia dar-lhe uma
perspectiva interessante para pensar a sociedade. No entanto, ao comentar sobre
sua relação atual com os professores e colegas da faculdade de filosofia, ele os
ironiza, dizendo que estes só vêm a vida que está registrada nos livros e se
esquecem da vida que pulsa em seus corpos e no seu entorno.
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES:
QUADRO 7
106. J – [...] Essa fase foi assim, foi que eu falei comigo mesmo: ‘vo// agora a
luta é sua’.
107. P – Hum, foi nessa idade que você mesmo falou consigo, que você tomou
essa decisão, que você percebeu isso?
108. J Tomei a decisão e a minha família me deu todo o apoio, mas, como
perdi a pessoa mais importante da minha vida, eu falei comigo mesmo: ‘é, o que
vier pra mim agora é lucro’, porque é muito// Eu sabia que eu tinha um potencial
imenso, porque ela acreditava [baixa o tom de voz].
109. P – Porque o quê?
110. J – Por que ela acreditava.
O relato de Josué traz vários eventos dramáticos, que representaram pontos
de virada na sua vida. O primeiro e mais profundo foi na infância, quando perdeu
a mãe e, para cumprir a profecia de crença no seu potencial, tomou para si a luta
que ela havia iniciado em seu nome. O extrato do quadro 7 mostra esse momento
de decisão, de se mirar na crença da e como forma de honrá-la e de ter forças
para desafiar as barreiras que fossem atiradas no seu caminho.
Quadro 8
520. J Essa conversa com meu irmão, levou, marcou uma reunião com todo
mundo lá em casa. NÃO, lá na casa da esposa do pai.
521. Aí, crente que ia falar sobre (...) vai vender a loja, vai se livrar desse
problema logo, (...) meu irmão, fala sobre a loja, e depois ele: ‘eu quero falar
mais uma coisa’ ‘o que?’ (...) - ‘eu descobri que o, que o Zezinho tá-tá usando
drogas’.
522. Eu// porque// (...) o mundo desabou em cima de mim.
523. P – Como é que foi a reação das pessoas?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
155
524. J - (...) Eu não conseguia olhar na cara do meu pai. (...) De tanta vergonha
que eu tive. (...) Eu, nesse momento (...) mais (...) mais pesado que (...) que (...)
pô, (...) é, (...) é//.
525. Minha irmã queria que eu fosse pra Maceió, porque meu irmão mora em
Maceió, o mais velho. (...) Minha outra irmã queria que eu fizesse tratamento,
(...) aí, meu pai levantou e: ‘ó, da escola prá casa, de casa pra escola’, e se fosse
pra loja, ‘da loja pra casa, da casa pra loja’. Só isso.
526. Aí (...) um dia desses, eu (...) eu (...) eu (...) eu (?) não deixaram, (?) tinha
uma festinha não sei aonde, da-na casa de (?). meu irmão não deixou eu ir:
‘Por quê que você vai?’ ‘Com quem que você vai?’. Eu falei com ele (?) e ele:
‘Vem cá, você não vai sair não, vai ficar em casa. Não, não vai sair. Se quiser
fumar, fuma aqui, eu compro pra você pra você fumar aqui dentro de casa, mas
você não vai sair prá rua.” (...) Aí eu percebi que, que eu tinha perdido totalmente
a confiança da minha família. (...) Pra recuperar, só no 2º grau.
O desfecho da fase de rebeldia que Josué iniciou no fim do ensino
fundamental se numa reunião de família, onde um de seus irmãos – uma
espécie de tutor – torna pública a faceta transgressora do irmão caçula. Essa
revelação é narrada como tendo posto por terra todo o trabalho de aquisição de
confiança que ele tinha se empenhado em construir ao longo do tempo.
A vergonha foi tanta que até hoje, passados vários anos e o respeito
reconquistado, Josué ainda tem dificuldades de descrever o momento de encarar o
pai sem a máscara de filho exemplar. As pausas, gaguejos e gestos atestam esta
dificuldade.
No trecho 526, onde Josué é barrado quando quer sair para uma festinha,
este irmão é posicionado como alguém que não se importa com o consumo da
droga, em si, mas com a imagem pública da família de ter um irmão drogado.
Quadro 9
539. P A forma que você encontrou de ganhar a confiança de novo foi, se
converter?[à igreja evangélica]
540. J – Isso.
541. P – Mas ce tinha convicção daquilo ou não?
542. J – Nunca tive.
543. P – Nem hoje?
544. J – Nem hoje.
545. P – Que-que convicções que você tem?
546. J – Ahn?
547. P – Que tipo de// em quê que você acredita?
548. J (...) Acredito num-num Deus, não é esse Deus que// Um Deus bom,
um Deus puro, não é esse Deus da Bíblia (...) que é um Deus vingativo, é
um Deus às vezes hipócrita. Eu acredito num Deus da Natureza, acredito
nessas coisas. Mas pô! Nunca foi na minha cabeça, religião eu sempre
combati. Desde o tempo da minha mãe eu-eu sempre fui muito-muito é-é
(...) crítico nessa coisa de religião.
549. P – Por que? O quê que te incomodava na religião?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
156
550. J – (...) É que, tudo, tudo pra eles é que Deus, ou que o Diabo, (...) que é//
eu num acreditava. Como é que eu-eu vou acreditar que alguém, com
minha família evangélica, do Reino de Deus hum, é assim, e procurar um
Deus// Como é que é? ‘Se DEUS quis assim, assim SEJA.
O caminho que Josué encontrou para reconquistar o respeito familiar
foi vestir outra scara, a scara da conversão religiosa. Embora sendo crítico
das crenças professadas pelos seus irmãos e pais, Josué se faz passar por adepto
da igreja por eles freqüentada, como uma espécie de pena para poder ser
novamente digno de crédito.
Seu conflito com os dogmas da religião vem, principalmente, de uma
aceitação incondicional do destino e toda a carga de passividade que essa
aceitação pode gerar. Sua postura sempre foi, ao contrário, a de alguém que se
empenha em desafiar o destino cruel. Sua recusa de se posicionar como fiel a uma
determinada representação de Deus e da religião não o leva ao ateísmo ou à
descrença. Sua capacidade crítica e discernimento nessa situação, remetem ao fato
narrado quando criança que, por ser considerado incapaz – ‘café com leite’ - ele se
vingava atuando com a liberdade de quem não é responsabilizado pelos próprios
atos e travessuras. Aqui, depois de ser desacreditado, Josué se passa por crente.
Sem deixar transparecer suas divergências, ele recupera suas credenciais de bom
filho. Assim, ele se posiciona como alguém que entende que, no jogo social, a
dissimulação muitas vezes é a habilidade requerida ao bom jogador.
Quadro 10
739. J – É o seguinte: é que a questão que os que lidam com Educação Especial
aqui no Brasil têm que dar mais-mais// Educação Especial tem que ser
vivência. Um dos meus projetos é empregar na Associação de Cabo Frio tudo
isso que eu vivi. Mostrar pros caras que eles não são os coitadinhos que a
sociedade quer que eles sejam. Que você tem que mostrar não é só na escola,
não só na universidade, é nos lugares que menos// de relacionamento. Tipo,
eu vou a Cabo Frio, vou na roda de pagode, depois eu vou pra boate, essa
redoma que a sociedade faz, se você ficar preso nessa redoma, você não vai a
lugar nenhum.
740. P – Na sua trajetória o que representou a redoma?
741. J – (...) A redoma, luta, LUTA. Eu e a minha família sempre fomos contra
essa redoma de força.
742. P – A redoma é te paralisar, te colocar em um lugar, te encaixar nesse lugar
de coitadinho, de incapaz ou de//
743. J – É, eu tive uma namorada, ela se encaixa bem nisso. Mãe e pai, filha de
pescadores humildes e assim, com um potencial enorme pra estudar, mas
sempre foi// vestia essa (?), porque a mãe a protegia muito.
744. P – Porque ela tinha medo que a menina...
745. J – Tinha medo que a menina encarasse o mundo.
746. P – Ela tinha alguma deficiência, essa menina?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
157
747. J – É, tinha paralisia de um lado. Mas andava, podia muito bem ir pra escola.
Mas não, a mãe, não sei o que quê foi que um dia eu fiquei revoltado, porque
a menina podia ter uma vida dita normal como qualquer pessoa e ficava
naquela redoma, porque a família aceita também.
748. P – A redoma vem de onde?
749. J – Da gente mesmo. Quantas vezes meu pai brigou comigo porque eu queria
comer de colher e ele: ‘NÃO, vai comer de GARFO’. Ele sabia que comer de
colher era melhor pra mim, mas ele insistia que eu comesse de garfo, de faca,
a qualquer custo. Então se você não lutar contra essa super-proteção da
sociedade você vai ficar em casa, vai ficar que nem aquela música do Raul
Seixas: “ficar de boca escancarada, cheia de dente, esperando a morte
chegar”. E a vida passando... Mas se o meu, o meu é, lema na vida, o que eu
levo é CARPE DIEM: ‘Aproveite o Dia’. Não importa como, mas é a vida e
você tem que agarrar. Parece que eu, sou um privilegiado, porque eu
conquistei uma coisa que, na minha cidade poucas pessoas têm: respeito.
Esse último extrato corresponde ao trecho final da entrevista e
apresenta um fecho ou coda laboviana (Fabrício, 2002) que coesão à narrativa
e lança uma plataforma existencial. Josué começa dizendo dos seus projetos
profissionais de voltar à Associação, agora na condição de quem tem formação e a
‘autoridade da experiência’ (Gilson & De Poy, 2004). Sua posição é a de alguém
disposto a libertar as pessoas com deficiência da posição de coitadinhos imposta
pela sociedade, numa crítica alinhada ao discurso do modelo social da deficiência.
A metáfora utilizada para fazer ver essa imposição social é a redoma -
uma proteção que aprisiona, que não deixa as pessoas com lesão (embora ele não
nomeie o grupo) se exporem à vida, às experiências mundanas, que nos fazem
aproveitar cada dia.
De onde vem a redoma? eu pergunto. Vem da gente mesmo’, Josué
responde. Embora tenha iniciado a fala dizendo que a sociedade quer que as
pessoas com deficiência sejam postas na condição de coitadinhas, na sua
conclusão os constrangimentos sociais o apresentados como uma questão
individual. Lutar contra a redoma e ocupar os espaços sociais é a dica de alguém
que conseguiu um fato digno de nota o respeito das outras pessoas. Assim,
posicionando-se como agente que não se deixa fixar pelas tramas discursivas que
o querem passivo, Josué fecha o relato.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
A trajetória de vida de Josué dimensiona a trajetória escolar como um
meio para conseguir se validar socialmente e não como um fim em si mesmo. Seu
percurso é notável - de Nerd da Associação de Pais a Filósofo formado numa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
158
universidade de prestígio. É certo que o curso de filosofia não tem o status das
carreiras mais concorridas, mas, no seu caso, ele tem o sentido de um encontro
com o saber que abriu as portas de percepção que não estavam disponíveis no seu
meio social/familiar. Tendo um percurso misto escola especial e escolas
regulares ele atribui ao momento da alfabetização e à passagem para o sistema
regular os maiores desafios. Uma vez incluído fisicamente, ele conseguiu romper
com sua posição de passividade e passou a recusar o lugar de ‘cacom leite’, o
que não conta. Essa mudança é nomeada como conquista de respeito, e a escola é
descrita como o espaço por excelência onde essa conquista pode se dar.
Vivendo constantemente entre a confiança de uns e a suspeita de
outros, Josué pauta seu movimento identitário na manutenção da credibilidade,
mesmo que isso signifique jogar com a imagem que lhe atribuem: é o cínico que
não vai ser punido, pois dele nada se espera; é o ‘bobo da corte’, para cortejar as
meninas, ou faz-se de crente, para contentar a família.
Essa capacidade de entender as expectativas alheias sem se deixar
suplantar por elas vai sendo desenvolvida nas relações com a mãe, com ‘seu anjo
da guarda’ e com amigos, professores e colegas que o posicionaram como alguém
de valor. O fato de ter sobrevivido a tantos reveses a ele uma resiliência e uma
confiança de quem confia na vida e se joga nela. Josué não participou da
entrevista coletiva por ter confundido as datas.
4.6
RUTH - Ser igual ser diferente importa menos do que ser intenso
SITUAÇÃO DO ENCONTRO
Meu primeiro contato com Ruth também foi no Rompendo Barreiras. Eu
estava por lá, quando ela chegou e a secretária nos apresentou. Ela ficou muito
interessada na pesquisa e me deu os telefones para agendarmos um encontro. Isso
foi feito e, na manhã de um feriado, eu fui até sua casa para realizarmos a
entrevista. Toquei a campainha e a porta se entre-abriu. dentro, uma risada
longa de quem está achando muita graça no que vem do outro lado da linha. Ruth
me recebeu de vestido azul e sandálias de tiras brancas com sola vermelha.
Elegante, numa casa que tem na sala um piano aberto e muitos discos de Bill
Evans na prateleira. Nossa conversa durou duas horas e, ao fim, parecia que nos
conhecíamos há muitos anos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
159
CARACTERIZAÇÃO DA NARRADORA
Descritores individuais: mulher branca, 55 anos, nascida na Bahia, criada no Rio
de Janeiro, formada em História por uma universidade federal, cega, trabalha no
Instituto Especializado em Cegos e quer fazer mestrado em educação. Casada,
mãe de um rapaz de 21 anos.
Grupos de pertencimento: familiares, músicos e amigos diversos.
Configuração familiar: pais falecidos, mora com o marido e o filho na zona sul
do Rio de Janeiro. Foi criada numa família de 5 filhos: dois irmãos homens - um
deles também é cego - e duas irmãs – Ruth é a caçula.
Mãe – ensino fundamental – dona de casa.
Pai – curso técnico contabilidade - tesoureiro aposentado de uma estatal.
AUTO-APRESENTAÇÃO:
Quadro 1
18. R- [...] Não. É o segundo. Esse meu irmão mais velho é o Renato. Depois
nasceu esse meu irmão cego. E que enfrentou, acho, que esse meu irmão cego
segurou a maior parte das (?), das notícias, que tinha um filho cego na família.
E tinha uma babá, uma velhinha, que era SUPER protetora, protegia ele pra
caramba, não deixava ele fazer nada. E a minha mãe também, com a notícia
assim, de que o primeiro filho, assim, (...) um filho cego na história dela, né?
Foi uma onda muito pesada e ela segurou. E eu acho que meu irmão ficou// se a
gente comparar as nossas formações, em determinados momentos da vida do
meu irmão e da minha, a gente comparando, o meu irmão ficou com algumas
deficiênciazinhas, entendeu?
24. R - o meu pai veio pra cá, minha mãe ficou lá, eu nasci. Eu vim pra com
quatro meses. Eu nasci em fevereiro e em junho eu vim pra cá. Não tinha ainda
muitas notícias que eu era cega não. Entendeu? Na hora do// ninguém sabia,
tinha o olhinho muito vivo. Minha mãe disse que ela mais ou menos pensou
que eu podia ser cega porque, o primeiro movimento que eu fiz no berço, foi
colocar a mão no olho, igual ao meu irmão, entendeu? Ela disse que ela não
quis admitir que fosse, mas que uma coisa dentro dela pensou que pudesse ser.
Ruth é a caçula de cinco irmãos, sendo que um deles também nasceu cego.
Esse fato, na visão da narradora, preparou terreno para a ‘notícia’ da sua cegueira.
Quando ela nasceu, seus pais já tinham passado pelo trabalho de elaboração de
luto ou aceitação, tinham mais informação sobre as possibilidades de educação
de um cego etc. Esse irmão cego passa a ser uma referência importante ao longo
da narrativa, posicionado de várias maneiras. Sua presença diluiu o impacto da
deficiência na família, ajudou a abrir portas por exemplo, Ruth freqüentou as
mesmas escolas que ele - e serviu como conselheiro para questões mais delicadas
como namoro, maternidade etc.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
160
Mesmo antes de a família ter certeza de que a caçula também era cega, já
tinham decidido se mudar da Bahia para o Rio de Janeiro, para que o filho
pudesse freqüentar um instituto especializado na educação/formação de cegos.
Ruth usa o termo deficiência, não para nomear a cegueira, mas para
nomear algumas dificuldades práticas do irmão, que ela atribui a uma super-
proteção na infância. Em diversos outros momentos ela usa a palavra seqüelas -
que é um termo do discurso médico ligado a lesões anatômicas ou funcionais -
para se referir às dificuldades em matemática, na escrita, na vida prática etc. A
mãe é posicionada como uma mulher forte, que segurou a barra da notícia de ter
um filho cego, mas com limitações e fragilidades, como a de não querer admitir
que a história iria se repetir com a filha mais nova.
INTERAÇÃO ENTREVISTADO-ENTREVISTADOR:
Quadro 2
43. R- Inclusive a minha tese futuramente vai ser sobre isso. A identidade-a
identidade do deficiente, não sei-não sei como eu vou amarrar isso não.
81. R Muito, muito interessante sim, porque eu também tou mergulhada nessas
questões sim, (...) eu o sei exatamente o que você está querendo pinçar disso
que eu estou te falando mas, nem quero saber, porque eu acho que pode
atrapalhar. Mas é// (...) eu também to me fazendo umas perguntas a respeito do
conhecimento, porque eu também quero me dedicar a essa coisa de mexer com
educação especial de maneira bem especial, entendeu?
65 R , conclusão, o meu irmão, esse filho da puta [rindo] falava assim ‘você
está entrando de gaiata’ [...] Resultado, tomei um esporro do tamanho de um
bonde.
Pode falar palavrão não pode?
66 P - Pode, fala o que tiver vontade [risos].
67 R- [risos] aí tomei uma super bronca [...]
25. R [...] Que é isso que eu noto, eu não sou exatamente// Esse papo também é
superlegal, me aclarando assim, na medida que eu to falando com você eu
vou botando pra fora umas coisas que não estão ainda muito claras pra mim,
mas que estão sendo, estão se aclarando na medida que eu vou falando. É como
se eu não fosse muito o sujeito daquele conhecimento, entendeu? E eu acho que
a minha vida se pautou um pouco por aí, porque eu não sou muito sujeito do
meu objeto do saber.
Ruth estava atravessando um momento de vida de transformações
profissionais quando a entrevistei. Depois de uma carreira de quase 20 anos como
cantora de bares e restaurantes, ela tinha acabado de ser aprovada em concurso
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
161
para trabalhar com reabilitação de pessoas que recém ficaram cegas e estava
planejando tentar uma pós-graduação em educação. Naquele momento, ela estava
pensando em um projeto de pesquisa para apresentar nos exames de seleção de
mestrado. Sua participação na pesquisa de doutorado que focava a identidade a
posicionou como alguém com interesses convergentes aos da pesquisadora, com
possibilidade de desenvolver uma relação que fosse além daquele momento, já
que ela sinalizou que gostaria de ser informada sobre as datas e procedimentos
relativos ao processo seletivo da universidade a que eu estou vincula. Uma forma
de personalizar e tornar mais íntima a relação e minimizar a assimetria da
interação entrevistado-entrevistador, Ruth me chama pelo nome em alguns
momentos ao longo da entrevista. Essa intimidade não desafia a agenda tópica,
que ela prefere não saber para não contaminar seu fluxo associativo. Usando a
prerrogativa de estar em casa e com alguém que tem uma zona de interesses
comuns, Ruth empregou, ao longo da narrativa, uma linguagem bastante informal,
incluindo alguns palavrões. Nas linhas 65 a 67 ela se detém e pede uma
sinalização da entrevistadora, da adequação ou não da sua forma de se expressar.
Nesse momento ela concede poder ao entrevistador para que este coordene o tom
da interação. Ao receber a autorização para ficar à vontade e falar como bem
entendesse, ela ajusta o discurso para o gênero ‘entrevista acadêmica’ trocando a
palavra ‘esporro’ porsuper bronca’.
No trecho 230. o gênero entrevista se mescla com o gênero terapia. A
entrevistada faz associações livres, pede conselhos e aponta insights que lhe
ocorrem, na medida em que vai narrando sua trajetória. Pensando a entrevista de
história de vida como tecnologia de si, podemos fazer diversas aproximações dos
dois gêneros narrativos, principalmente dentro da perspectiva socioconstrutivista
(Rasera e Japur, 2001). Sustentando o lugar de entrevistadora, sem dar respostas
ou explorar esses insights, reposiciono Ruth para ocupar o lugar tanto de
analisante quanto de analista da própria fala.
ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL
Nível escolar / idade Escolaridade Outros
Educação infantil (4 aos 6 anos) Experiência pioneira de inclusão
de crianças cegas numa escola
municipal Guanabara, com
auxílio de professor itinerante.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
162
1ª a 4ª série (7 aos 10) Escola pública municipal Duque,
com auxílio de professora
itinerante.
Máquina datilografia em Braille.
Aos 8 anos teve
febre reumática e
ficou afastada da
escola 3 ou 4 meses,
tinha aula com
professora itinerante
e ajuda da mãe.
Admissão
Cursinho para fazer prova para
um renomado Colégio Público
Federal Dom João. Passou no
segundo ano de tentativa.
Ginásio e Científico Colégio Público Federal Dom
João.
Vestibular Fez cursinho passou em dois
vestibulares
Início terapia
Faculdade Cursou História numa
universidade federal, formou-se
em 1974 nunca trabalhou na área.
Cantora profissional
– Fazia psicoterapia
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR:
Quadro 3
33. R- Aí, nesse ínterim, meu irmão// O professor Gerald, que era um professor cego,
do Instituto também, tinha mil ligações, um cara super viajado, descolado e tal.
(...) Ele resolveu fazer a experiência: tirar 4 meninos cegos da escola, do Walter
Benjamin e colocar na escola regular. Uma experiência assim absolutamente
pioneira. Com um professor itinerante, que era o cara que ia lá dar aula pra gente.
Então meu irmão saiu lá do Walter Benjamin e foi pro Guanabara.
42. R- [...] Teve um momento em que eu lembro de umas coisas legais, eu ia
enfiando umas continhas numa agulha.(...) Pegavam uma agulha pra mim e eu
enfiava umas continhas. Era para eu fazer um colar, mas esse colar não apareceu,
entendeu? Eu lembro de uma certa frustração, entendeu? Eu sei que estava
fazendo um colar, eu ficava enfiando, enfiando, enfiando, enfiando, enfiando, e
cadê o colar, entendeu? [risos] Aquele negócio chato. Eu lembro de eu fazendo
massa plástica. Mas pra que? Por quê? Eu noto que eu não tinha muita referência,
de modelos, sabe? Faz um boneco’. eu tinha brincado de boneca, mas como
é que faz um boneco? O que é ‘faz um boneco’, né? Eu acho que nessa parte aí o
negócio ficou meio embolado, sabe? Acho que foi meio// Tanto é que eu até hoje
eu tenho muita, uma coisa que eu precisei trabalhar pro braille, fazer o braille.
Minha habilidade manual é ZERO, viu. Eu leio braille, atualmente com as coisas
domésticas, eu acabo fazendo uma coisa ou outra. Mas eu não tenho// a pessoa
que seja ÁS com as mãos, não, nada disso. Acho que eu fui muito pouco
trabalhada nessa coisa de correspondências, de modelo-de modelo com a
realidade, entendeu? E acho que essa parte da minha infância foi muito
complicada. Essa parte da construção da minha identidade.
Apesar de ser a pessoa com mais idade entre os entrevistados desta
pesquisa, Ruth foi das poucas que teve uma trajetória inteira em escolas regulares,
sempre seguindo os passos do irmão Renato. Sua iniciação foi numa escola
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
163
pública municipal, junto com outros alunos cegos, dentro de um projeto
experimental de inclusão, coordenado por um professor também cego posicionado
aqui como um sujeito bem relacionado, inteligente e vivido.
Apesar de certo orgulho de ter participado de uma ‘experiência
absolutamente pioneira’, as lembranças dessa primeira escola mostram que ela
teve dificuldades de se inserir no grupo de colegas. Ruth menciona o nome de um
colega que era simpático com ela junto com mais duas ou três pessoas num grupo
grande [trecho não transcrito]. Quanto à aprendizagem, parece que as coisas
ficavam incompletas e sem sentido, como mostra o excerto 42. As lacunas
deixadas na fase inicial de sua educação são vistas como causas possíveis de
dificuldades que ela tem no presente – da falta de habilidade manual às limitações
em matemática –, como veremos adiante. A conclusão de que sua infância foi
complicada, interferindo negativamente na construção de sua identidade, lança
uma avaliação negativa sobre a experiência pioneira de inclusão, uma vez que
toda a descrição do ambiente familiar é basicamente positiva. Essa introdução
prefigura o que vai sendo construído - uma mulher madura que está disposta a
avaliar a trajetória e localizar o que precisa ser resgatado, ou melhor elaborado.
Quadro 4
55. R - Então rolou mais ou menos legal. Agora essa parte do (?) professor itinerante,
porque o meu primeiro ano no Duque foi horrível, entendeu? Eu lembro de
uma vez que eu vomitei o almoço, porque a mulher me botou numa pilha...
56. Ela me ensinou// ela botou os números em braille num papel e mandou eu estudar
em casa, né? E eu sabia contar mas ainda não sabia ler. Então: ‘lê aqui’, eu
comecei, um, dois, três, quatro, cinco, (...), contei até setenta, né? Lendo assim,
fingindo que estou lendo, na verdade. E ela (...) começou a brigar muito comigo,
eu tinha acabado de almoçar, eu fui pro banheiro e vomitei o almoço inteiro.
Tomei horror dela, entendeu?
126. R- [...]. Uns arrochavam um pouquinho, eu estudava mais um pouco, a professora
ajudava, a professora itinerante me dava uma força, depois mudou a professora
itinerante e veio outra mais legal ainda, D. Elisa, adorava ela, ela era muito gente
boa falava das minhas coisa com ela. Ela também era cega, entendeu? Que é uma
coisa que não parece nada, mas interferiu bastante positivamente, entendeu? É
falava mesmo dos papos que eu estava ficando menstruada, começando a
menstruar, a dor de barriga// que eu sentia cólica,entendeu? Conversei com ela,
‘você deve estar ficando mocinha’ e tal.
73. R- Fui, bem rapidamente. Eu fui alfabetizada muito rapidamente. Em três meses
eu estava lendo em braille. Lendo legal! Tirei 10 na prova de final de ano de
leitura e (...) eu já, botei meu deverzinho, ela transcreveu pra mim o dever e eu li
legal mesmo, muito bacana. E li com interpretação. Quer dizer, li compreendendo
a pergunta. Perguntou as coisas, me lembro perfeitamente desse//
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
164
A segunda escola freqüentada por Ruth é rememorada por um episódio
traumático, vivido com uma professora itinerante responsável pela educação dos
alunos cegos. A cena tem como contexto a escola pública, num dia de ponto
facultativo, onde estão Ruth e a professora - Dona Raimunda. O irmão de Ruth
tinha feito uma brincadeira e tirado seu punção
15
da pasta. Assim, quando D.
Raimunda, descrita como ‘careta, organizadinha e certinha’, que a aluna está
sem seu instrumento, pressiona e oprime Ruth dando-lhe um super esporro’.
Assim, a professora itinerante, que seria um recurso importante para o seu
aprendizado, é posicionada como causadora de traumas que deixaram ‘seqüelas de
conhecimento’ que persistem até hoje. A primeira relação de dificuldade com a
matemática é narrada neste episódio e retomada em vários outros momentos,
sendo apontada como decisiva na hora de escolher o curso universitário, já que ela
eliminou as carreiras mais desejadas e optou por história, também em função de
não precisar enfrentar prova específica de matemática no vestibular.
A segunda professora itinerante é posicionada como oposto da primeira,
ou seja, próxima e apoiadora. Uma das diferenças apontadas como fator de
identificação que interferiu positivamente na relação foi o fato da professora
também ser cega, o que permitiu uma cumplicidade que extrapolou o âmbito
meramente escolar, passando a ouvi-la e aconselhá-la.
No fragmento 73 Ruth projeta uma imagem positiva de si ao dizer que
alfabetizou-se com facilidade, o que a posiciona como inteligente e capaz,
contrariando, tanto o cânone cultural - de que as pessoas com deficiência são
incapazes e limitadas –, quanto o veredito de dona Raimunda, de que sua
desorganização a impediria de progredir nos estudos.
Quadro 5
161. R [...] e eu depois, eu fui conseguindo uma inserção boa no grupo e até
uma GRANDE amiga, que na época foi muito minha amiga mesmo.
162. P – Foi sua primeira grande amiga de escola?
163. R- Não, não, não, no primário eu também tive uma grande amiga também,
mas, engraçado porque no primário era bem diferente, eu notava que essa
grande amiga minha do primário, ela meio que abria mão da brincadeira
pra ficar comigo, de brincadeiras que rolavam, entendeu? Ela ficava meio
sendo o meu cinema, sabe? - ‘Ih jogaram a bola de futebol e caiu dentro da
panela do mingau’. Sabe? Ficava assim, ela narrava o jogo da bola,
entendeu? Ela estava meio sentindo prazer naquilo, mas ela não estava
inserida no grupo. Essa minha amiga do ginásio não, nós íamos juntas pra
putaria, entendeu? Ela estava no grupo, ela era a minha ponte, entre mim e
15
Punção é um instrumento pontiagudo usado para a escrita manual do braille.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
165
o grupo, mas a gente conseguia se inserir no grupo, sabe? Ela não deixava
de fazer nada porque eu tava, mas ela me botava no lance, quando ela
notava que eu tava fora, entendeu?
272. R- Não, era meio santinha danada, ‘que santinha danada!’ Era meio como
diz em inglês – pet, sabe aquele bichinho de estimação? [...]
273. ‘Não vamos agora parar tudo porque// Não, vamos o que, mas vamos-
vamos todo mundo, vamos.’ Sabe? Uma mão pegava, me levava,
entendeu? Era uma coisa muito assim - legal. A gente ia pra casa de amigo,
freqüentava a casa dos amigos e ia no ônibus: qua-qua-quá [imitando
risada] a Ruth caiu no colo do padre!’ Sabe uma classe assim? - ‘No colo
de quem que eu cai?’ - ‘No padre, meu Deus do céu? Tanta gente pra você
cair no colo você vai cair no colo do PADRE!’ Aquela sacanagem, sabe?
Aquela coisa muito legal
274. P - Mas você ria de tudo? De você mesma?
275. R- É, exatamente, é. E eu achava bom, achava gostoso, porque ficava
engraçado, eu não me sentia ridícula, nesse momento não.
No quadro 5, a identidade de colega vai sendo construída nas relações de
amizade e camaradagem na escola. No primeiro trecho [161/163], acontece a
comparação de dois tipos de amizade: uma, que fazia companhia para Ruth de
fora da ação, posicionada como observadora passiva, excluída dos fatos e a
segunda amiga, posicionada como agente dos acontecimentos, que estimula a
força de ação de Ruth. Enquanto uma é descrita como meu cinema a outra é
minha ponte com o grupo’. Embora as duas formas sejam reconhecidas como
amizade, a segunda é avaliada como capaz de conseguir uma inserção de verdade.
Sob influência da segunda amiga, Ruth passa a se sentir parte do grupo de
colegas [272/275], a sair do espaço da sala de aula e ganhar com eles o mundo da
rua. Ela se descreve com duas imagens complementares: uma santinha danada’,
que era quietinha, mas gostava quando aprontava alguma, e o bichinho de
estimação - uma espécie de mascote da turma. Essa segunda imagem aponta para
uma assimetria na relação com os colegas. No entanto, a descrição da cena toda
tem como desfecho a avaliação de que aquela experiência trouxe satisfação e
entrosamento, ou seja, de pertencimento ao grupo de pares.
Quadro 6
254. R [...] eu trazia umas seqüelas, umas queixas antigas, de ser (?) em
matemática ta-rá-rá// E no Dom João não tinha, na verdade, orientação de
pessoas itinerantes pra me ajudar e tinha a questão dos números relativos,
mais ou menos, que eram coisas resolvidas no quadro negro e eu não sabia
usar o meu aparelhinho pra resolver essas questões. Então, ‘vou fazer prova
oral’, e aí ficou uma coisa meio assim, ‘vou fazer prova oral porque eu sou
cega’, entendeu? E fazia uma prova super teórica, de matemática, um
negócio muito doido que eu mesma inventei, sabe? Eu mesma criei esse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
166
lugar, eu não gostava, não dei espaço pra pessoa dizer ‘você é cego, você
vai fazer prova fazendo conta, então como é que você faz conta’// Não
rolou, eu não gostei, sabe? Eu já fui logo tomando a frente: ‘Oh, a gente faz
conta assim!’, Entendeu? (?) temendo o mecanismo do número relativo -
falar mais é mais, menos é menos, falar aquela porra toda// Fazia aquela
prova e acabou [...].
317. R [...] esse último ano de faculdade, aquela história da chavinha do
saber, essa foi pro fundo do mar, que eu não tava nem aí. Lembra quando
eu tava dentro do seminário: ‘Ruth vamos fazer o seguinte: vai ter esse
seminário depois de amanhã, você não vai ter tempo de estudar não. Você
vai ficar com a conclusão, você vai escutar tudo que a gente vai falar, boba
você não é, boba você não é, ?’ Então, conclusão, ficava na conclusão,
concluía maravilhosamente bem, entendeu? meu interesse pela história
foi pro brejo mesmo.
A relação com o saber, na sua interface com a construção de identidade, é
tematizada por Ruth em diversos momentos da entrevista e apontada como o
possível objeto de sua pesquisa futura. Nos dois trechos selecionados acima ela
desenvolve algumas considerações nesta perspectiva. Na primeira, ela comenta
como usou a ignorância dos professores sobre a especificidade da educação
matemática de um cego, para determinar a forma como deveria ser avaliada na
matéria. Sua posição é de uma esperteza que redunda em perdas e ganhos. Perdas,
porque ela o aprendeu matemática, na medida em que mascarou suas
dificuldades ou deficienciazinhas. Ganho, porque conseguiu não ser reprovada.
Relacionando os dois trechos [254 e 317], percebe-se uma avaliação
negativa das estratégias utilizadas para burlar as barreiras de aprendizagem. O
custo foi o enfraquecimento do seu desejo de estudar, tendo como conseqüência
uma formação deficitária, onde pouca coisa do que foi estudado foi incorporado
como saber real. Aqui não traços de crítica com relação à escola ou às linhas
pedagógicas. A responsabilidade pela relação com o saber é atribuída a si mesma
e aos seus processos internos de decisão. Em outra passagem da entrevista [não
transcrita], Ruth volta à metáfora da chave que liga e desliga seu interesse pelo
saber, fazendo com que as coisas fiquem sem cor ou com cores vivas (sic). Nessa
reflexão, ela coloca a dedicação aos estudos e a socialização com os colegas como
uma tensão que puxa para lados opostos. Nesta tensão, prevalece a vontade de se
inserir no grupo fazendo pose de existencialista, não querendo ser confundida com
uma estudiosa ‘careta’. Para ficar IN e satisfazer o que ela entendia ser a atitude
mais valorizada pelo grupo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
167
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES
QUADRO 7
48. R- Na família era muito interessante, pelo seguinte, porque minha mãe, ela tinha
uma coisa assim de adepta, que depois deu pano pra manga na análise. Porque:
‘não enxergar não tem problema nenhum’, entendeu? Você não enxerga, você
apanha igual a todo mundo, entendeu? Você faz as coisas// embora, nas internas,
depois, conversando com ela sobre isso, ela me disse, evidente que rolava umas
certas colheres de chá, entendeu? Mas assim, ela botava a mesa, no meio do
caminho, ‘Ruth, olha só, deixa eu te mostrar: aqui no caminho vou botar uma
mesa, aqui no centro com umas coisinhas em cima, olha aqui o que é que tem’ e
mostrava tudo muito bem. , eu andava e tropeçava na mesa e eu andava e
tropeçava na mesa, ela o falava nada. E eu andava e tropeçava na mesa umas
três ou quatro vezes, na quinta vez ela: ‘Ruth você é cega mas não é burra. Não
vou tirar a mesa daqui por sua causa não’. Entendeu?
49. P e R – riem
51. R - Na minha cabeça ficou, depois a gente sacou essa coisa, tirou, desenterrou
essa história, ficou um pouco uma confusão. Enxergar tem ou não tem problema?
Sabe? Eu não enxergar? Ai a educação era assim, entendeu? Então// tão
engraçado... era, que a gente pra brincar de cabra-cega, tampava meu olho.
52. P - ri.
53. R- [dando risada]. Se tampava o olho de todo mundo tampava o nosso também. E
era até legal porque eu tenho um pouco de percepção luminosa, entendeu? Podia
me dar bem mesmo. Mas na cabeça deles é porque [ri] era pra ser igual a todos.
A relação entre normalidade e cegueira foi alvo de questionamento ao
longo do processo psicoterapêutico pelo qual Ruth passou, de forma que ela tinha
um acúmulo de reflexão sobre o tema. A primeira referência veio do ambiente
familiar, onde sua mãe é posicionada como alguém que circunscreve as
dificuldades da cegueira à limitação visual e não devem ser motivo nem de
mudança na rotina da família nem de discriminação entre os filhos. Ao dizer que
‘apanhava como todo mundo’, Ruth não está denunciando maus tratos e sim
exemplificando o nível de igualdade com que sua mãe tratava os filhos. No
exemplo da mesa colocada no centro da sala [48], a mãe é mais uma vez
posicionada como desafiadora, estimulando a filha a se adaptar à casa e,
consequentemente, ao mundo, invalidando os argumentos de que a cegueira é um
impedimento constante ou desculpa para desatenção. No entanto, ela considera
que dizer que ‘ser cego é o enxergar’ é uma simplificação. Fora do ambiente
doméstico essa igualdade não era tão fácil de ser obtida e como os discursos a que
ela estava exposta o incluíam as nuances atribuídas a ser diferente numa
sociedade que tem dificuldades em lidar com a diferença, Ruth ficava confusa
quando se deparava com problemas e obstáculos que iam além da falta de visão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
168
Quadro 8
154. R- Ah eu passei muito mal esse pedaço, Patrícia, muito mal mesmo
porque; sabe quando você acha que está com DEZ e descobre que está com
ZERO? Isso é coisa que me acompanhou durante muito tempo na minha vida,
de vestir uma roupa que achava que eu estava linda e depois descobrir que eu
tava ridícula.
155. De alguma maneira eu descobria, sacou? Tá manchada. Sabe aquela
coisa? suja. Coisa que você o tem controle sobre. O pessoal em casa
realmente cagava! Não me viam com um olhar especial não. ‘Vamos, vamos
embora, simbora, tchau’, entendeu? As pessoas achavam que vo pode dar
conta de ver se sua roupa ta suja, porque elas viam as delas. Na casa de cego a
gente tapa o olho, então a gente é igual, né? Então, passei muitas situações
assim, de desgosto, nesse ponto, sabe?
133. P - E essa pergunta: será que eu não posso ser igual aos outros?
134. R- Eu passei a vida inteira tentando responder.
135. P - Mas é uma pergunta que te acompanha a vida inteira?
136. R- Não, atualmente não, atualmente eu já consegui arranjar o meu
cantinho, entendeu?
137. P - Como é que você resolveu?
138. R- Assim, resolve assim, é// (...) Eu sou igual aos outros até um determinado
momento. Essa pergunta não rola mais. Essa pergunta não me acompanha
não, é, é uma coisa meio assim de// EU sei mais ou menos o que quê eu
gosto, o que quê eu quero, no que quê eu sou diferente, no que quê eu sou
igual. Onde é que a gente pode se juntar, onde é que vou dizer, péra aí Pá,
isso aqui não dá pra mim, entendeu? Como é que nós vamos fazer isso pra eu
poder, ou eu não vou poder? Eu já fiquei melhor disso aí. [...]
228 –R - [...]Existe uma coisa dentro de romper barreiras, né? Rompendo os meus
limites eu consigo, e existe a coisa do limite, né? Até onde, esse limite é
como uma parede? Você não vai poder passar por essa parede?
229 - P – Estudando as barreiras?
230 - R- Entendeu? Enxergo barreiras, entendeu? Você acha que é mais ou menos o
inverso, saber romper as barreiras sem me dar conta do tamanho delas?
Atualmente eu fico// esses pensamentos todos estão vindo e eu tenho de
reconhecer as barreiras para saber até onde eu vou, ta?
‘Ser cego é não enxergar’ é uma espécie de mantra familiar que ajudou
Ruth a se posicionar no mundo como alguém ‘como todo mundo’, mas teve como
efeito colateral a simplificação de um quadro mais complexo. Um exemplo,
aparentemente banal, é exagerar na autonomia, dando a Ruth a responsabilidade
de se vestir sem auxílio de alguém que pudesse sinalizar se a roupa estava suja,
manchada ou desgastada. Quando uma pessoa, externa ao círculo familiar,
denunciava que Ruth estava em público de forma inapropriada, era como se sua
limitação visual saísse da zona de indiferenciação e ficasse visível. Essa idéia de
ser visto sem ver é associada com a sensação de estar nua em público, que foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
169
sendo elaborada, na medida em que ela assumia haver especificidades na condição
de pessoa cega que têm que ser levadas em consideração sem que isso signifique
comiseração ou proteção incapacitante. Se na juventude a questão da inserção
indiferenciada na massa, expressa pelo desejo de ‘ser igual a todo mundo’, era
inquietadora, na fase adulta a diferença, as adaptações necessárias à sua inserção e
o domínio das barreiras e dos próprios limites passam ser o foco da atenção.
QUADRO 9
243. R [...] Até que ponto me interessa mesmo eu fazer um trabalho que possa
ajudar os outros, pra que eu possa ganhar dinheiro também, sabe? Enfim, até
que ponto a minha vivência pode me trazer dinheiro, explorar honestamente
essas idéias, entendeu? Claro que você faz um desabafo mas eu me
interessando por tudo isso,
244. P – Quais as vantagens eu posso tirar?
245. R- Exato, quais as vantagens que eu tiro, eu tiro muito vantagens da
minha experiência, eu acho, entendeu? Pra mim//
246. P – Quais?
247. R- Eu tenho uma coisa, eu tenho uma visão espiritualista do mundo, sou
espiritualista, espírita, espiritualista mesmo. Eu tenho uma visão dessa parte
muito particular, né? Assim, eu acho assim// eu acho que é uma viagem que eu
estou vivendo e que eu vou aproveitar da melhor maneira possível, para o meu
enriquecimento, mas não é só. Eu acho que a minha essência é uma essência
milenar, entendeu? E essa minha essência estava comigo milenarmente e
enquanto eu puder, quanto mais eu puder fazer pra melhorar essa minha
essência eu vou fazer, entendeu? Me tornar uma pessoa melhor, né? Eu vou
fazer, e eu vejo muito a minha cegueira também como uma coisa de fazer com
que isso possa me tornar uma essência melhor, né?
248. P – A cegueira como uma necessidade da sua essência?
249. R- E também da minha esncia e da minha existência, exatamente, da
minha existência. Eu quero, como pessoa cega, né? Como pessoa cega ser uma
pessoa, entendeu? Eu quero ser uma pessoa em que sentido? Não é porque eu
sou cega que eu posso ser mau caráter, não é por que eu sou cega que eu posso
ser manipuladora, entendeu? [...]
44. R- A identidade e o saber, por que eu estou trabalhando a reabilitação, onde, as
pessoas estão reconstruindo a sua identidade, na verdade, né? E eu noto que o
conhecimento do braille vem na medida em que exista a construção/aceitação
dessa nova identidade, entendeu? Da identidade cega. Que na verdade, é o
subdiretório da identidade SER, né? Você é, mas você, você é a Ruth
Magalhães, mas pelo lado seu que se comporta e que tem a vivência, que tem a
história do cego então, sabe? É essa coisa aí que ta me interessando atualmente.
Porque eu noto que eu tive muita complicação nessa área, entendeu? Inclusive,
quando eu fiz análise levantou-se muito essa questão.
A questão da identidade cega aparece aqui com várias nuances. como a
‘autoridade da experiência’ (Miner, 1999) ou a ‘sabedoria da deficiência’ (Gilson
e DePoy, 2004), que lhe podem possibilitar a entrada diferenciada no campo
educacional, para dar palestras, ou coisas do gênero. Nesse sentido ela se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
170
posiciona como alguém que possibilidades de tirar vantagem ao assumir a
deficiência como um traço constitutivo da sua identidade.
Explorando o tópico dessa possível vantagem, Ruth muda de um enquadre
mais materialista ou na esfera do interesse, para um discurso espiritualista, onde a
unidade da identidade é ampliada para uma essência milenar, algo que ultrapassa
o limite de uma vida e, portanto, do corpo. Nesta cosmovisão, a deficiência é
explicada como uma oportunidade de evolução espiritual, o que acarreta um
compromisso ético: ser uma pessoa melhor e não usar a deficiência como
desculpa para desviar sua conduta. O discurso espiritualista converge para o de
elaboração terapêutica, na medida em que ambos propõem a ética da existência
que tem como pressuposto o cuidado com as relações.
O extrato 44 novamente articula identidade com saber. A cegueira é
nomeada como uma parte da identidade que precisa ser aceita para integrar
determinados saberes. Ela [a deficiência] não precisa ter centralidade na
composição da identidade. É apenas um dos diretórios do ser ou essência, mas
não deve ser negada ou ter sua importância minimizada.
Quadro 10
330. R- [...] Ele chegou com a bengala, ‘Ruth, eu vou te dar um presente, mas
janta primeiro. Janta primeiro porque vo vai ficar chateada comigo.’ Eu
‘Como que eu vou ficar chateada se você vai me dar um presente?’ Porque
vai, já sei.’ Aí eu fiquei curiosa: - ‘fala, fala.’ - ‘Não, não vou deixar você ver.’
331. Depois do jantar, ele tirou a bengala e falou: ‘Calma, Ruth, olha só, você
ta cheia de projetos aí, querendo ter filho, não sei o que// Ta cheia de idéias, tô
achando tudo muito bacana, mas tudo bem, mas eu não vou, de jeito nenhum,
me juntar com você, com uma pessoa que não vai na padaria comprar cigarro.
Não vou, entendeu?’
332. [...] R - Fiquei puta, passei três dias de mal com ele, achando que ele
estava se sentindo melhor do que eu, me sentindo superior a mim, ele tava
pensando que ele era quem, entendeu? Mas ele também não me ligou não.
333. [...] R – Hoje eu falo isso: ‘a melhor coisa que você me deu foi o filho e a
bengala’, tanto é que eu consegui// muito interessantemente, muita gente assim
tem o filho como bengala, né? E eu consegui, muito interessantemente, não
usar meu filho como bengala, entendeu?
No quadro 10, Ruth conta da passagem de sua resistência à aceitação da
bengala branca, que além de ser um auxílio à locomoção, é forma de identificar o
cego no espaço público. A recusa da bengala era uma questão de honra, tanto para
ela quanto para seu irmão Renato, que chegou a se acidentar no metrô por não
usá-la. A bengala era interpretada como símbolo de dependência e não de
autonomia. Para mudar essa relação, aparece uma terceira pessoa, atualmente seu
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
171
marido, e na época seu namorado, que decide enfrentar essa resistência,
argumentando que a aceitação da bengala e tudo que ela simbolizava seria
uma conquista e não uma diminuição.
A conclusão que ela chega é que a bengala/aceitação foi uma coisa
importante para si, para a relação com o marido e com o filho, e sua presença [da
bengala] evitou que seu filho fosse posto no lugar de esteio/bengala da mãe.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
Ao contrário da maioria dos entrevistados, Ruth reconstituiu sua trajetória
escolar de um ponto de vista de quem se formou bastante tempo atrás. Seu
interesse em voltar a estudar e trabalhar com educação motivou seu engajamento
na reconstrução dessas memórias. A trajetória é um tanto atípica para a época,
pois poucos cegos com sua idade tiveram um percurso longo, totalmente feito em
escolas regulares. Esse feito se deve ao fato de seu irmão mais velho, também
cego, ter aberto os caminhos que ela seguiu. Comparando sua história escolar com
a desse irmão, Ruth ressalta nele a inteligência e a capacidade de argumentação e,
em si, a sociabilidade. Embora não tenha sido reprovada, ela não se posiciona
como vencedora, ou exemplo a ser seguido, mas como alguém que aprendeu
coisas e passou por uma série de situações de vida extra-escolares que a marcaram
muito mais do que os conteúdos escolares. Assim, Ruth circula pelas posições de
um narrador que faz da entrevista um momento de reflexão sobre as ações do
protagonista da história e de reposicionamento pessoal. A narração, a princípio
num enquadramento informal e até mesmo debochado não impede de ser
profunda e densa, na medida em que, questiona as próprias crenças e re-elabora
sua própria história na interlocução com um outro. Uma cumplicidade entre
mulheres interessadas na deficiência como objeto de pesquisa perpassou o
encontro, criando espaço de intimidade. Ruth fala rápido e as duas horas de
conversa renderam mais de 30 páginas de transcrição, onde a história escolar foi
apenas um dos elementos. Falou das relações afetivas, da sua iniciação de
namoro, das cenas familiares, do fim de seu primeiro casamento etc. A seleção
dos trechos a serem analisados, de acordo com o propósito da pesquisa, restringiu-
se aos pontos mais marcantes da trajetória escolar e de identidade. Os ‘pontos de
virada’ foram vários, desde o episódio traumático com a professora itinerante que
lhe deixou ‘seqüelas’ em matemática, até a rememoração de alguns insights
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
172
produzidos no seu processo psicoterápico. Apesar de ter feito história e não
psicologia, como era seu desejo, sua narrativa é mais marcada pelo discurso
psicológico
16
.
O movimento dos seus posicionamentos revela uma mulher imersa em
ambiente familiar caloroso e afetivo, representando uma rede que minimizou
muitos problemas advindos da deficiência. No entanto, na medida em que ela se
autonomiza e se afasta desse ambiente acolhedor, vai-se dando conta de que a
cegueira é um traço que precisa ser levado em consideração e suas implicações
não devem ser minimizadas. Retrospectivamente, ela se posiciona como alguém
que tem algumas falhas na formação escolar em contraponto com uma sólida
formação ética. O discurso espiritualista de que tudo tem um propósito na
evolução de cada espírito gera um efeito de aceitação da condição da cegueira e
de responsabilização dos próprios atos. Uma questão que pode ser levantada aqui
é do cruzamento idade versus identidade ligada à deficiência, como sugere o
estudo de Gilson & De Poy (2004). Segundo estes autores, os jovens com
deficiência se posicionam como sujeitos de um discurso de desejo de aceitação
pela cultura mais ampla, enquanto as pessoas mais maduras vêm suas diferenças
advindas das lesões como uma característica pessoal como tantas outras, e estão
menos dispostas a abrir o dessas características para se sentirem aceitas
socialmente. Ruth não participou da entrevista coletiva.
4.7
MATIAS – Inquietude para conquistar um lugar ao sol
SITUAÇÃO DO ENCONTRO:
Matias foi recrutado para a entrevista coletiva e depois fizemos a
individual. Conversamos na salinha dentro do espaço do Rompendo Barreiras,
num intervalo entre o almoço e as aulas de braille que ele ministra
voluntariamente. Eu já sabia algo sobre suas opiniões, mas não sabia quem ele era
e por onde tinha andado até chegar ali. Ele parecia inquieto, chegou ligeiramente
atrasado, mas no momento em que começou a falar se acalmou. Conversamos por
aproximadamente uma hora e quinze minutos.
16
Não sei se na minha apresentação mencionei o fato de ter me graduado em psicologia e se isso
teve algum efeito na narrativa. De qualquer modo, o contexto imediato da interação funcionou
como um enquadre de confiança, onde coisas íntimas puderam ser ditas, pontuadas por palavrões
e muitas risadas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
173
CARACTERIZAÇÃO DO NARRADOR
Descritores individuais: homem, branco, 26 anos, formado em Letras pela
Universidade Privada, cego, tem disritmia. nascido e criado em Campo Grande
RJ, solteiro.
Grupos de pertencimento: membros do grupo religioso Testemunha de Jeová.
Configuração familiar: mãe solteira, foi criado pelos avós maternos e duas tias,
junto com outros dois irmãos. Mora ainda com os avós.
Avó – Empregada doméstica.
Avô – Mecânico de manutenção.
Irmã, de 21 anos e irmão, de 15.
AUTO-APRESENTAÇÃO
Quadro 1
17. P: E o que te contam sobre a noticia da sua cegueira? Quando eles ficaram sabendo?
Como é que foi?
18. M: Com dois meses de idade. Por quê? Porque colocavam aquelas coisas coloridas
que criança sempre percebe e fica vidrado naquelas coisas, e colocavam coisas
perto de mim e eu não estava nem pro mundo. Então eles me levaram pro
Hospital, para um montão de médicos e descobriram que eu tinha retinosa
pigmentar, uma doença que é aqui na retina, no fundo do olho ligado quase ao
cérebro e que afeta a visão. depois que descobriu que eu era cego, foram
super cuidadosos, aquela super proteção, é comum, não queriam que// (...)
Quando depois que eu tinha dois, três anos, era difícil de eu sair, mas como eu
era meio agitado comecei a sair pra rua com uns quatro anos, mais ou menos,
ficava já com meus colegas. [...]
57. M: Deu que tinha um probleminha lá, light, mas que eu comecei a tomar um
remédio. Eu tomava um remédio, acho que era Eleptil (?), isso, tomava Eleptil . [ri]
58. P: Era uma disritmia, uma coisa assim?
59. M: Não sei o quê que era não, eu sei que deu um problema lá.
60. P: E você sentiu diferença?
61. M: Não. Tomava Eleptil e ficava mais tranqüilo, mas de-depois de um certo
tempo eu começava a dormir, aí eu parei. Parei por conta. Chegou um tempo eu parei.
Matias inicia a entrevista explicando como foi diagnosticado o problema
que causou sua cegueira e acrescenta que a reação dos familiares ao fato foi super
proteção. Ele não fala de trauma ou de sofrimento, mas de excesso de zelo, de
cuidado que fazia com que ele quase não saísse de casa, o que ele naturaliza
dizendo que ‘isso é comum’.
A cegueira é nomeada como sintoma de uma doença e a forma mais
utilizada para nomear aqueles que apresentam alguma lesão corporal é ‘o
deficiente’, ou mesmo ‘nós, deficientes’, alinhando-se a um discurso de senso
comum e de pertencimento ao grupo das pessoas com lesão.
Seu contexto familiar é composto por dois irmãos mais novos, os avós e
tias maternas. Sua mãe biológica é mencionada no início da narrativa, quando
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
174
ele explica que ela era solteira e delegou a criação dos filhos aos seus pais. Assim,
Matias chama, em alguns momentos, os avós biológicos de pai e mãe, que eles
o registraram como filho. As dificuldades financeiras da família são sugeridas em
alguns momentos identificando os traços de pertencimento à camada popular .
Além da cegueira, ao longo da entrevista Matias apresenta uma outra
questão que o deixava inquieto e dificultava sua concentração e, por conseguinte,
sua aprendizagem. Uma professora indicou que fosse feito um exame, que
detectou o que ele chama de ‘probleminha’, uma disfunção que ele não lembra o
nome, mas afirma que era algo light, que não merecia maior atenção, tanto que,
em determinado momento ele decidiu, por conta própria, parar de tomar os
remédios indicados. Esse posicionamento de quem o se detém diante dos
‘problemas’ e decide a própria vida, vai antecipando um traço importante da sua
trajetória de identidade. Isso evidencia como o narrador organiza sua história de
modo a adaptá-la aos contextos, às intenções dos contadores e às expectativas dos inter-
agentes, fazendo com que a narrativa seja uma história regida pelo seu final, recorrendo à
metáfora da “mão dupla do tempo” Mishler (2002).
INTERAÇÃO ENTREVISTADO-ENTREVISTADOR
Quadro 2 – Entrevista coletiva
19. MC [...] Mas alguns têm como, aqueles que podem acabam sendo alvo de
marketing.
20. P – Como é que é? Aqueles que podem...
21. MC – Em vez de fazer algo mais para o deficiente acabam sendo alvo de
marketing né? Entendeu?
22. P – Marketing tipo o que?
23. MC Marketing tipo isso, ficar assim na base de estudos, eu gosto assim, de
PRÁTICA [faz um gesto de firmeza com as mãos e sorri].
Minha interação com Matias foi iniciada na entrevista coletiva e depois
realizamos a individual. No quadro 2, ele discorre sobre a especificidade da
deficiência e condena o comportamento daqueles que estudam e falam sobre a
deficiência em vez de partir para a ação. Seguindo o senso comum, Matias
contrapõe teoria e prática, desvalorizando tanto a junção dos dois quanto o
trabalho teórico que ele denomina de marketing. Sua posição aqui pode estar
informada pela idéia nada sobre nós sem nósque questiona a legitimidade de
alguém, sem a experiência da deficiência, falar sobre o assunto - o que pode ser
interpretado como uma provocação à pesquisadora.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
175
Quadro 3
43. P: Como é que foi essa (...) era uma classe regular, era uma classe multi//
44. M: Vou falar.
45. P: Tá.
46. M: Benjamin. Então, o que acabou acontecendo? O Benjamin é uma escola de
educação, uma instituição federal para pessoas cegas. Já tentou colocar pessoas
que enxergam lá, mas teve pouco êxito, até mesmo que (...) algumas coisas
eu não concordo, mas não vem ao caso. Vamos lá. No princípio...
47. P: Porque não vem ao caso?
48. M: Não, eu vou falar, calma. [...]
108. M: [...] Não, ninguém do Walter Benjamin, não. Eu que mostrei e pronto.
Foi colega mesmo. Por exemplo, a senhora é da minha turma, então
sentava do meu lado, lia pra mim e eu me virava. [...]
O estilo narrativo adotado por Matias foi o de conduzir a entrevista
praticamente sozinho, perguntando e respondendo didaticamente as questões por
ele levantadas [18/41/131 etc.]. No fragmento 43 a 48, a entrevistadora pede um
esclarecimento e ele sinaliza que vai responder. Durante a resposta, ele começa a
desenvolver um raciocínio sobre a tentativa de abertura do instituto de cegos para
as práticas de inclusão e julga que este é um desvio do assunto principal e que
‘não vem ao caso’ enveredar por essa vertente. Questionado se seria mesmo um
desvio, ele pede calma, posicionando a entrevistadora como alguém que pode
estar querendo atropelar a narrativa.
No trecho 108, ele se refere explicitamente a mim como interlocutora e me
chama de senhora, posicionando-me numa distância respeitosa.
Assim, a interação se deu a partir da compreensão do narrador de que tinha
entendido o que era a agenda da entrevista e não precisava de balizamentos para
sua narrativa. Não houve um desafio direto, mas um posicionamento de que ele
tinha os meios necessários para a condução do fluxo narrativo e preferia não ser
interrompido.
ESQUEMA DA TRAJETÓRIA EDUCACIONAL
Nível escolar /
idade
Escolaridade Outros
Educação infantil 6 anos foi matriculado
numa creche privada com
poucos alunos.
Aos 2 meses descoberta
da cegueira. Até os 4
anos mal saía de casa.
C.A à 7a série (dos 7 aos
17 anos)
Aos 7 anos aluno interno
no Instituto Walter
Benjamin (IWB).
Esportes, atividades
manuais e de adaptação a
tarefas do cotidiano.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
176
Repetiu a 1ª e 3ª séries.
Na 7ª série passou a ser
aluno externo do (IWB).
7ª série a seguir os
preceitos dos Testemunha
de Jeová por influência
de um colega.
8ª série
Escola Municipal em
Campo Grande
Ensino Médio (21 anos)
Escola Estadual Albert
Sabin.
Vestibular Passou na primeira tentativa sem cursinho
Faculdade Letras numa universidade privada no Rio de Janeiro.
HISTÓRIA DE VIDA ESCOLAR:
Quadro 4
41. [...] M Aí, o que aconteceu? Aos seis anos de idade minha avó começou a
procurar escola pra mim. Eu fui (...) àquelas crechezinhas de pessoas ditas
regulares que eles vão ficar aprendendo a desenhar, aprender a escrever, eu
cheguei a freqüentar. Eu pegava o caderno, fazia um desenho aqui, a moça
falava que tava bonito, que tava legal. Aí, me ensinava a escrever o A. Aí, eu ia
aprendendo. Tudo pra mim era alegria. Por que? Porque eu tava junto com
aquelas pessoas, estava também aprendendo, a professora me elogiava, então, eu
ficava satisfeito. Chegava em casa todo feliz, mostrava pra todo mundo. Também
aprendi a lidar com os outros porque fazia bagunça junto com aquelas pessoas
também da minha idade. Fazia bagunça, brincava, escrevia, perturbava, e assim
por diante. Sendo que na época que a minha família começou a me pôr na escola,
veio aquela idéia, começou a surgir nas escolas aquela idéia de inclusão, mas
muito vaga, muito remota. tinha uma inscrição que eles estavam fazendo para
matricular as pessoas que iam aceitar na escola. Só que essa matrícula nunca saiu.
Eu me inscrevi e nunca saiu uma turma especial para mim. minha avó que
trabalhava como empregada doméstica, não lembro onde, a patroa dela indicou o
Walter Benjamin. Então ela passando pela Praia Vermelha, tinha passado pelo
Benjamin, quando ela voltou ela foi no Benjamin. A princípio não tinha vaga,
mas eu entrei por pistolão.
131. M - Aí o que aconteceu? Minha vida foi assim. Aí depois eu passei minha
escola pra tarde para de manhã poder ir pro campo [trabalho religioso]. Eu
estudei numa escola do estado. eu passei pro estado. Como eu consegui essa
vaga no estado? Primeiro, aquele negócio de você se inscrever, dar cinco opções,
colocar cinco opções, eles te indicam pra uma. eles me indicaram para
uma perto da minha casa [fala o nome da escola], que eu não queria essa,
queria o Albert Einstein que era a melhor da localidade. Mais longe um
pouquinho, mas eu queria essa; de qualquer custo. Lutei determinado, fui lá, corri
atrás e consegui o Albert Einstein de tarde.
No excerto 41, Matias resume sua entrada na pré-escola, suas sensações ali
e o caminho trilhado até chegar ao instituto Walter Benjamin, tudo num só fôlego.
A primeira questão a destacar é que ele se refere à escola regular como
crechezinha de ‘pessoas ditas regulares’, o que imprime um tom de crítica à
normalidade e ao rótulo regular. Apesar de ter sido uma experiência numa época
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
177
onde a idéia de inclusão ainda era vaga e remota, a descrição da sua inserção na
creche é de plena inclusão, quase uma festa. O rito desta experiência pode ser
visto relacionado ao fato dele ser tolhido nos movimentos pela ‘super-proteção’
que o manteve em casa, praticamente recluso, até os quatro anos. Na entrevista
coletiva, os interagentes apontam a família como a grande aliada e Matias se
mantém calado. Quando perguntados se eles têm experiências de proteção
incapacitante, expressa pela metáfora da redoma, Matias intervém rapidamente
dizendo [62 MC]: Acho que isso [redoma] começa na família, aquela
preocupação muito grande, que te protege e impede que a pessoa faça o que ela
poderia estar fazendo estimulada desde cedo, ne?” Seu enquadramento da
conduta familiar em relação a sua primeira infância é de crítica compreensiva, ou
seja, percebe que o fato de ter sido ‘super-protegido’ não o ajudou, mas reconhece
que a família agiu assim por preocupação e falta de informação.
Seguindo a narrativa da trajetória escolar, ele faz duas denúncias: a
primeira que, apesar de ter-se inscrito no sistema público de ensino, não
conseguiu vaga para se matricular. A segunda que, para se matricular na escola
especializada em educação de cegos, que é uma instituição pública, precisou da
intervenção de alguém influente um pistolão. Essas denúncias não são
aprofundadas ou encaminhadas para um discurso de direitos. Elas aparecem como
constatações e não como elemento de avaliação ou análise.
No trecho 131, Matias narra sua saída do Instituto, para cursar a última
série do ensino fundamental e, novamente, tem que enfrentar a batalha por uma
vaga. Seu posicionamento aqui não é propriamente de denúncia, mas de quem
conhece o que é melhor e sabe defender seus interesses. Usando um conhecimento
específico um capital informacional pedagógico (Brandão e Lellis, 2003) ele
se posiciona como sabedor de qual é a melhor escola para si e luta determinado
até conseguir se matricular nela. Nessa passagem ele não conta com nenhuma
intervenção externa, com sua persistência e capacidade de negociação,
posicionando-se como astuto e autônomo.
Quadro 5
62. M - [...] Na série a mesma coisa, fiquei reprovado uma vez, mas passei na outra.
Depois fui pra 4ª e a terceira e terceira de repetência e a quarta fiz com uma
professora só também. Os três anos ela me aturou. Foi a que mais me aturou e que me
deu um estímulo pra me ajudar. Por que? Ela sabia que eu era um pouco agitado e ela
foi a única que me levou à psicóloga, me levou pra bater um eletro da cabeça,
conversou comigo, chamou meus pais, minha família. A única que fez isso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
178
102. M - Então, eu tinha os dois mundos. Eu gostei muito do Benjamin, eu
aprendi muito. Aprendi a jogar bola, aprendi bastante coisa. Mas lá fora eu também já
tinha uma vida legal com as pessoas, entendeu? Pra mim tanto faz, eu estar numa
escola tipo Walter Benjamin, como lá. Acho que, por exemplo, se eu tivesse saído de
lá na 4ª série pra mim já era o suficiente, mas minha família não deixava.
103. na rie eu fui pra essa escola do município, fui recebido hiper bem, mal
entrei na sala a turma falou assim: “Bem vindo a 82”. Começaram a gritar: “Bem
vindo a 82”. Aí eu já fiquei assim, sorri, já fiquei entusiasmado. [...]
174. P - Como era o material para você acompanhar os cursos?
175. M - Bom, na época do 2º grau não tinha nenhum.
176. P - Não tinha material?
177. M - Não. Eu mesmo que (...) a professora ditava ou então colocava no quadro e
alguém me ditava e eu copiava tudo.
178. P - Se falasse assim: leia o livro texto na página tal?
179. M - Não, nunca fazia.
180. P - Não lia.
181. M - Não lia ou então pedia alguém pra ler pra mim, mas se fosse para fazer em
casa eu não fazia. Se fosse pra fazer na aula eu fazia. Mas como é aquele negócio o
que me fez prevalecer foi o quê? A facilidade que eu tinha. Tirava até dez, tirava
notas boas, ótimas. Em física eu pensava que ia ter dificuldade, aquele negócio de
gráfico, movimento uniforme, variado, retardado, essas coisas assim, velocidade,
delta n sobre delta c. Ih, tirava dez! Me dava bem! A única coisa que eu tive mais
dificuldade foi matemática que é o que todo mundo teve porque o professor não sabia
passar a matéria, apesar dele dar aula pra universidade, essas coisas, ele era meio
parado. [...]
Suas memórias da escola são ricas e detalhadas. No quadro 5 estão
selecionados três momentos que caracterizam um movimento pendular entre o
posicionamento de aluno que tem que enfrentar vários problemas e aluno que não
tem dificuldades. No fragmento 62, Matias comenta alguns tropeços da sua
trajetória - reprovações e atrasos -, justificados pela falta de apoio para questões
que estavam além do seu controle. Assim, ele posiciona o sistema escolar,
principalmente os professores, como responsáveis por seus tropeços, sem se
culpabilizar. Uma única professora parece ter percebido que ele estava precisando
de ajuda, enquanto as outras são posicionadas como fracas, que não conseguiam
aturá-lo.
Apesar de valorizar a educação que recebeu no Instituto, como aluno
interno, ele acabou se sentindo isolado e, através de ‘pirraça e show’ [expressões
usadas em extrato o transcrito], conseguiu passar a ser semi-interno. Aos
poucos, ele passa a circular entre o mundo dos cegos e o mundo fora, até que
rompe a barreira e vai para uma escola regular. Ele não relata medos ou angústias
nessa passagem, mas a recepção calorosa que recebeu dos colegas da nova escola,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
179
o que preparou o terreno para que ele se sentisse entusiasmado. Colegas e
professores, que podiam ser fonte de sofrimento, são posicionados como gentis e
receptivos em diversos momentos da narrativa.
No trecho 174/181, Matias se posiciona como alguém que tem domínio
sobre a situação escolar mesmo não tendo as condições necessárias para um bom
desempenho. Os fatos de não ter material para acompanhar a aula, de não poder
ler os textos e nem fazer os deveres em casa, não são vistos como direitos
negados, mas como algo que não fez falta, pois, ele compensou todas as
dificuldades com inteligência e perspicácia. A única dificuldade explicitada - em
matemática -, é atribuída ao estilo do professor que, por ser meio parado, não
conseguia ensinar nem a ele nem aos demais alunos.
Na entrevista coletiva, ao se apresentar, Matias deu um enfoque diferente à
questão, posicionando-se como crítico de uma situação considerada errada: Eu
sou Matias de Souza [...]. Atualmente to fazendo uma pós graduação em
educação especial (?). E, sem livros em braille, sem ter as matérias na hora
adequada pra estudar não tem como, sempre vai ter dificuldade. Sempre vai tar
em discussão.[linha 24 entrevista coletiva]
Esta posição está ligada ao que vinha sendo dito pelos outros interagentes
sobre as barreiras que tiveram que romper durante seu processo de escolarização.
Quadro 6
159. M [...] no terceiro ano que eu peguei uma turma que um garoto repetiu;
acho que ele tinha problema, não sei se era uma deficiência mental, mas tinha um
probleminha. Eu passei a me enturmar muito bem e ele não aprendia igual, ele
tinha um retardo assim, parecia na mente, sei lá, e ele tinha dificuldade de
aprender, entendeu? Aí a gente passou a se dar muito bem. Ele não gostava muito
de se associar com as pessoas. Ás vezes eu jogava pra ele: - Pôxa, cara, eu quero
ser seu amigo. Seja meu amigo. Dá seu telefone aí. Tentava me enturmar com ele
pra ver se ele relaxava um pouquinho. Aí ele ia ficar reprovado de novo; eu tomei
partido da turma pra gente falar com os professores para não reprovar ele porque
se reprovasse ele eu também ia querer ser reprovado, entendeu?
165. M – [...]Eu fiz a prova [do vestibular], aí particular todo mundo passa, sabe como
é que é. Aí eles falaram que eu passei, aí eu fui. Minha avó botou pilha aí eu fui.
179. M: Os alunos da faculdade. Os professores da faculdade não sabiam como lidar
comigo. Eu mesmo tinha que falar: - ‘Ah, você tem que fazer isso e isso’. É
dar sua aula normal; é alguém me ditar e a prova a gente fazia oral. Tudo foi
feito assim. Só o professor de Língua Portuguesa que decidiu aplicar minha prova
em braile. Sendo que tinha uma prova em braile... além de eu fazer; uma vez
que aconteceu, eu tinha que copiar minha prova todinha, passar minha prova de
tinta pro braile, depois tinha que fazer minha prova. Ele fez eu fazer isso uma
vez.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
180
Um episódio ocorrido no ensino médio posiciona Matias como defensor de
um colega que apresentava uma deficiência de aprendizagem. Na explicação da
sua intervenção junto aos professores, ele se posiciona como alguém que se
solidariza com o outro, por ter vivido situações próximas. Assim, ele afirma que
reter um aluno que se esforça para aprender não é um recurso pedagógico válido.
Embora ele circule por discursos pedagógicos, as questões de qualidade escolar ou
de estratégias pedagógicas específicas não são abordadas. Sua posição é de
alguém que está disposto a se sacrificar por um ‘irmão’ necessitado. Essa postura
parece estar mais alinhada com sua opção religiosa do que com uma militância
pró pessoas com deficiência, mas transita também por um discurso pedagógico de
crítica às estratégias de seleção no interior do sistema educacional.
Nos outros dois fragmentos [165 e 179], Matias faz uma análise da sua
entrada e permanência na universidade. Primeiro, ele atribuí à avó a idéia e
estímulo para que ele fizesse vestibular, assim como ela tinha feito quando o
colocou na pré-escola e no Instituto Walter Benjamin. Ou seja, a avó, apesar da
pouca escolaridade, é alguém que o protege e o apóia na trajetória escolar. A
referência à sua aprovação no exame vestibular é um tanto depreciativa
universidade privada não tem propriamente seleção, basta pagar. Novamente ele
ratifica uma posição de denúncia, e com isso desvaloriza sua conquista, ou então,
mostra-se consciente de que os diplomas m rentabilidades diferentes,
dependendo do grau de prestígio da instituição que o confere – no caso parece que
seu curso não é bem avaliado pelos parâmetros oficiais.
A entrada na faculdade é relatada como problemática. Ele se sente
deslocado, nem professores nem alunos sabem como lidar com sua presença e ele
se com a responsabilidade de ensinar aos outros, o que é preciso fazer para
incluí-lo. Em outro momento ele conta que foi ensinando às pessoas a não segurar
no seu ombro com força e outros truques, mas que nunca teve problema de
relacionamento com os colegas. Na faculdade as coisas parecem mais duras. Seu
sonho de estudar inglês se desvanece por falta de material em braille. Seus colegas
queriam sair para farrear enquanto ele estava comprometido com sua comunidade
religiosa. Seus professores, por vezes, nem sabiam que tinham um aluno cego na
classe e passavam ao largo. Esse ponto específico apresenta uma ambigüidade, a
de lidar tão naturalmente com sua lesão que ela passa despercebida e de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
181
desatenção por parte dos professores e sistema escolar. Duas pessoas parecem
fazer diferença nessa jornada: uma colega, que sabia alguma coisa em braille e o
ajudava, e um único professor, que se deu ao trabalho de traduzir a prova escrita
em braille para poder corrigi-la, enquanto todos os outros aplicavam testes orais.
A cada final de etapa ele menciona que não foi à formatura da turma.
Alega que isso não era importante, mas deixa também sugerido que o fato de ter
que pagar, barrava sua participação.
POSICIONAMENTOS MAIS PREGNANTES
Quadro 7
41. M: Isso. Mas isso durou pouco tempo. Acabei me enturmando com o pessoal
foi legal. No começo, até para minha família foi um pouco difícil, eu tinha aquele
[cabelo] romeu, que era arredondado aqui, aquele cabelo grandão, fininho,
lisinho, loirão, aí cheguei lá, a primeira coisa que fizeram: - ‘quer cortar o
cabelo?’ Eu, na inocência, falei quero’. cortaram, fez aquele negócio de
exército, aqui atrás pequenininho, aquele tapete tabacow e na frente grande.
cheguei em casa sexta-feira todo mundo em casa chiou porque meu cabelo era
bom e estragaram meu cabelo [risos]. foi assim. depois eu fiquei
conhecendo um pessoal lá no Walter Benjamin...
125. M: No começo o usava muito não [a bengala]. Com eles o, com os irmãos
não usava não, mas depois eu passei a usar por causa das pessoas, às vezes não
entendem, pessoa malda [põe maldade] e às vezes eu estou com uma pessoa ou
um homem e as pessoas, sei lá, entendeu? E também pras pessoas respeitarem.
Quando eu vou atravessar a rua, se eu estiver com a bengala aberta, às vezes, eu
até paro o trânsito, entendeu? Questão de respeito, de mostrar realmente que eu
sou cego. Porque eu sem bengala as pessoas falam que eu não sou cego. Aí já deu
alguns problemas, aí comecei a usar bengala mesmo.
Nos dois extratos acima aparecem indícios de cruzamentos identitários de
classe/raça social e sexualidade. No primeiro [41], é narrado um evento na sua
chegada ao instituto, onde ficou como aluno interno. Ele vinha descrevendo como
foi difícil a sua separação da família, dos seus choros quando as tias que o
levaram foram-se embora. Para exemplificar como a família também sentiu essa
separação, Matias fala com humor que cortaram seu cabelo – que era ‘bom, loirão,
lisinho, fininho’ e que, de alguma forma, ele não sabia que era motivo de
orgulho da família. O adjetivo cabelo bom empregado na descrição, sinaliza a
valorização social do branco na sociedade brasileira e numa família onde esse
pode não ser o fenótipo predominante. Uma vez cortado o cabelo ele não voltou a
crescer liso e fininho.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
182
No segundo [125], perguntado se usa bengala-branca para ajudar a se
locomover, ele diz que não usava muito, sem especificar os motivos. O que o faz
decidir usá-la é o fato de que ao ser guiado/acompanhado por outro homem, o que
geralmente exige contato físico, pode ser confundido com homossexualidade.
Entre tornar visível sua deficiência e ser alvo de suspeita de homoerotismo Matias
prefere a primeira e se posiciona com traços homofóbicos, pois pensar que dois
homens juntos podem ter um relacionamento amoroso é ‘maldar’ (pôr maldade).
Quadro 8
73. M: Ficava no meio de todo mundo. Eu era um nato matador de aula porque
ninguém me segurava, entendeu? Ninguém me segurava lá. Até tentavam fazer
aquela aula de orientação e mobilidade comigo, mas foi em vão. Porque a
professora subia numa escada e eu descia pela outra. Ela ia num corredor, eu
fugia pelo outro. Então ela viu que era desnecessário porque eu já sabia.
94. M: Sei lá. Não sei se eles queriam que eu ficasse lá, que acabasse lá, já que eu era
acostumado com lá, e um deles chegou e falou pra mim que eu ia me dar mal na
escola do município, que iam zombar de mim, que eu ia, tipo assim, que eu ia me
ferrar com isso porque é diferente. Eu não liguei pra isso. Não gostei muito
não, mas também não liguei. Mas eu fui o único, o primeiro da turma que eu
estava a entrar numa faculdade. Dfiz a rie no município e fiz o segundo
grau na escola do estado. Agora como é que aconteceu no município? Como é
que eu fui recebido na turma? Primeiro, peguei uma turma totalmente bagunceira.
Eu não era mais bagunceiro porque eu havia, eu aprendi, entrou no Walter
Benjamin uma pessoa que estudava a Bíblia que era testemunha de Jeová, então
comecei a estudar e vi as coisas diferentes, aí começou a tocar minha mente, aí eu
mudei.
Sua inquietude é apresentada ora como disfunção neurológica que precisa
ser controlada com remédio e ajuda psicológica, ora como esperteza da qual ele se
orgulha, como no excerto 73. Sua destreza em fugir da professora de orientação e
mobilidade é seu próprio diploma na matéria.
No trecho 94, dois eventos importantes são narrados de forma
correlacionada, sendo o primeiro a saída da instituição especializada em cegos
para uma escola regular. Matias se posiciona como alguém que segue em frente,
apesar de ser desaconselhado por alguns professores e desafiado pela profecia de
um deles de que ele não iria se adaptar à nova situação. Ele vence o desafio, e não
apenas desmente a previsão do professor como passa a ser o mais bem sucedido
dentre os seus antigos colegas – o único, ou melhor, o primeiro a entrar na
faculdade.
Ele saiu do Instituto como uma pessoa diferente, não o bagunceiro de
antes, mas um jovem estudioso da Bíblia e com laços de pertencimento firmados
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
183
com uma comunidade religiosa. Nesta comunidade ele aprende retórica e oratória
para poder fazer trabalho de campo, que ele não explica bem como é, apenas que
o faz numa base regular, dedicando até 70 horas por semana. Essas técnicas de
argumentação são empregadas na entrevista na forma de um auto-diálogo onde o
interlocutor é posicionado como uma audiência que tem que ser convencida pela
força de seu discurso.
Quadro 9
217. M - Isso, em fevereiro. Estou até hoje fazendo [especialização] (...) com mais
ênfase em surdez. A gente aprende um pouco da história dos surdos, aprende um
pouco das dificuldades deles. [...] estou gostando. Estou tendo uma visão
diferente, embora, assim, aceito que todos precisam ter a mesma determinação,
ninguém é coitadinho, isso eu já tinha em mente, mas eu estou aprendendo a ver
um pouco mais deles. Ah, também fiz um curso, nas férias, de capacitação de
professores, de 180 horas, de especialização, e fiz com ênfase em deficiência
mental.
218. P: Por que?
219. M: Ah, porque eu quero aprender todas as deficiências. Eu sou cego, não sou
doido, então eu posso trabalhar, acho que eu posso lidar com todo mundo. Quero
saber um pouquinho de cada. Saber como é que eu posso ajudar. Por isso.
224. P - Quando você fala ‘nós’ é ‘nós’ em geral?
225. M - s deficientes. Até mesmo as pessoas comuns também precisam aprender.
Mas no caso do deficiente, por exemplo, como um professor, às vezes não tem
como, não é capaz de dar a matéria pra turma de trinta, quarenta alunos na sala
dele, imagine com um deficiente na sala. Não sou contra a inclusão não. Acho
assim, por exemplo// ou para ser alfabetizado ou de à 4ª série a gente (...) o
deficiente ter uma escola especial pra ele.
226. P - Você acha que isso é...
227. M - É viável ainda.
228. P - É o melhor?
229. M - Isso. É o melhor.
19. MC Eu acho que a gente tem que ter primeiro determinação, como ele falou. E
quanto a ser aceito no grupo ou não, acho que isso é natural do ser humano, a gente
precisa ser respeitado como um todo, na verdade nós não somos deficientes, nós
temos é// eu sou cego. No mais, todos podem ser considerados como deficientes.
Agora Eficientes é o que nós precisamos ser. Alguns são eficientes numa coisa,
outros em outra, né? As habilidades. Então as pessoas têm que respeitar nossos
direitos, e a gente tem que respeitar também nossos deveres. E também o nosso
desenvolvimento. É a capacidade, na verdade. [...]
Depois de se formar em Letras, Matias está fazendo um curso de
especialização em Educação Especial, com ênfase em educação de surdos, numa
universidade pública na baixada fluminense. Essa escolha, a relação dela com sua
visão do que deve ser a educação dos deficientes (sic), é explicada nos trechos
[217/219 e 224/229]. Ele justifica seu interesse pelos surdos como uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
184
preocupação de educador que deve estar preparado para o encontro com pessoas
diferentes. Esse mesmo raciocínio vale para um curso de férias que ele fez,
voltado para educação de pessoas com deficiência mental. Desta forma, Matias
vai se voltando para atuar profissionalmente, preferencialmente junto a pessoas
com deficiência. Seu modelo de educação não é inclusivo desde o começo. De
acordo com sua própria experiência, ele pensa que deve haver escolas especiais
sem que isso represente, necessariamente, uma segregação. Na impossibilidade de
ser atendido com qualidade na escola regular, ele prega que as pessoas com
deficiência sejam alfabetizadas no sistema de escolas especiais para depois se
integrarem às escolas comuns. Neste trecho ele se identifica claramente como
membro do grupo de deficientes que quer trabalhar em prol deste grupo.
no extrato 19, em intervenção sua na entrevista coletiva, ele se alinha à
opinião geral manifestada pelos outros entrevistados de que não deve haver
diferenciação entre pessoas a partir das suas características físicas. Nesse
momento, em contradição com o discurso de ‘nós deficientes’, Matias se
posiciona como sujeito do discurso da igualdade indiferenciada, onde ou ninguém
é deficiente ou todos são deficientes, ou seja, como humanos, temos os mesmos
direitos e deveres e as diferenças devem advir dos talentos individuais das
Eficiências.
Esse discurso se contrapõe à afirmação de que ele é só cego, não é doido, e
portanto pode trabalhar, que os loucos são posicionados o como membros de
direitos humanos indiferenciados, mas como incapazes de participar da vida social
de maneira produtiva. Assim, fica claro que não é cil sustentar uma posição
indiferenciada numa sociedade onde as práticas classificatórias são a regra do
jogo.
RESUMO DOS POSICIONAMENTOS
Matias freqüentou poucas instituições escolares ao longo de sua trajetória.
Iniciou numa creche privada perto de sua casa, da qual tem boas lembranças.
Logo em seguida entrou no IWB onde permaneceu da Classe de Alfabetização à
sétima rie, tendo repetido dois anos ali. Sua inserção no Walter Benjamin é
relatada como um ‘ponto de virada’ (Mishler, 2002) na sua trajetória, foi ali que
ele se deparou realmente com o universo escolar, com a extensão das questões
concernentes à cegueira e também com a separação de sua família, pois, como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
185
aluno interno, ia em casa nos fins de semana. Em vista dessa condensação de
mudanças, as outras mudanças de escola são relatadas como relativamente
tranqüilas. Como comentei no caso de Fábio, o status do IWB é diferenciado:
Instituição de referência nacional e internacional, a carreira de quem se forma ali
tende a ter uma legitimidade maior do que a de quem estuda em escolas especiais
menos conhecidas ou qualificadas, que são estigmatizadas pela sua clientela.
A experiência de Matias o posiciona como favorável escolarização
‘segregada’ na etapa inicial de escolarização, em função da crença de que o ensino
fundamental regular não está preparado para oferecer uma inclusão com
aprendizagem. Assim ele se alinha a uma visão integrada de educação ou mesmo
da diferença. O complemento de sua trajetória educacional, da oitava rie ao
ensino médio, é relatado como tranqüilo. A entrada na faculdade aparece como
problemática e frustrante, por não ter podido seguir a especialização que queria,
devido a falta de material em braille. Essa frustração leva a uma avaliação
depreciativa da faculdade, que é tomada como fraca e cujo critério de seleção é
basicamente o pagamento das mensalidades. Essa avaliação, consequentemente,
não o posiciona como um vencedor.
Entre todos os entrevistados Matias parece o que mais assume a
deficiência como uma parte importante da sua identidade, projetando suas
perspectivas de trabalho na possibilidade de ser um professor, capacitado para
lidar com outros tipos de deficiência. Um discurso que pode estar atuando nessa
configuração é o da cultura surda, que faz parte do curso de pós-graduação que ele
está fazendo e tende a forçar a diferença como positividade. No entanto, na
entrevista coletiva, quando o discurso da indiferenciação mostrou-se majoritário,
ele se deslocou para o discurso da superação das deficiências através da
comprovação da própria Eficiência.
Sua filiação religiosa transparece no discurso de solidariedade com os
outros e no tipo de estrutura narrativa de quem é treinado na oratória. Fazendo ele
mesmo perguntas e as respondendo, ele controla a interação e não deixa espaço
para seu interlocutor contra-argumentar ou mesmo desviar a interação do caminho
que ele vinha seguindo. Os efeitos disso são a maior chance de reificação dos seus
pontos de vista pela menor abertura à negociação de novos sentidos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
5
Entrevista Coletiva Nada sobre nós sem nós, mas nós
quem?
A análise da entrevista coletiva segue uma estrutura um pouco
diferenciada da utilizada nos perfis individuais.
1 - O item CONTEXTO DO ENCONTRO se mantém, explicitando as condições
em que ele se deu.
2 - Depois vem a análise de aspectos da DINÂMICA DE INTERAÇÃO DOS
PARTICIPANTES, prestando atenção nas posições que os interagentes ocupam, tais
como: de liderança, audiência, moderadora etc. A forma como a palavra circula
fornece pistas de como o poder está sendo exercido na interação e se os
interagentes conseguem criar um efeito de grupo, ou seja, uma dinâmica que gera
consenso.
3 - Em seguida, apresento o item NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS onde destaco
os principais temas que emergiram na discussão, levando em conta os
posicionamentos e interdiscursos apresentados, isto é, a análise dos discursos
culturais que estão sendo legitimados no coletivo. Para evidenciar o movimento
dos posicionamentos adotados, contrasto algumas posições ocupadas pela mesma
pessoa no coletivo e na situação individual de entrevista.
4 - Por fim, o item BALANÇO DE POSIÇÕES tenta captar se foi ou não
estabelecida uma posição de grupo sobre os temas levantados.
A agenda tópica foi pautada pelas impressões
1
das primeiras entrevistas
articuladas às questões da pesquisa. No entanto, como a primeira questão da
agenda mobilizou a discussão, ela acabou incorporando o entendimento mais
aprofundado do que estava sendo dito. Assim, ao final da entrevista, podemos
depreender o seguinte ‘roteiro’:
a) apresentação – da pesquisa, da moderadora, da assistente que ia filmar e
de cada um dos participantes.
b) pergunta sobre a existência, no Brasil, de identidade deficiente
explorando a tensão igualdade x diferença.
c) contraposição ação individual x ação coletiva (ou posição sobre os
movimentos sociais brasileiros em prol da deficiência).
1
Digo impressões, pois, naquele momento eu já tinha feito a transcrição da maioria das
entrevistas, mas não tinha iniciado sua análise.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
187
d) pergunta sobre aliados e sobre quem são seus outros.
e) motivos de participação na pesquisa.
f) fechamento – agradecimentos e esclarecimentos.
SITUAÇÃO DO ENCONTRO
Como já foi dito, ao final das entrevistas individuais os entrevistados eram
convidados a participar de um momento coletivo, a ser realizado futuramente.
Assim foi feito. Fiz contato por telefone e ou e-mail com cada um deles, até
encontrar data e local que atendessem à maioria. O Seminário do Programa
Rompendo Barreiras foi uma ocasião em que pude confirmar pessoalmente
algumas presenças. Nesses contatos, pedi autorização para que a sessão fosse
filmada e que trouxessem consigo uma música que os identificasse. Com exceção
de Gabriel, nenhum deles apresentou a sua música. Não ficou muito claro se as
pessoas se conheciam do Rompendo Barreiras - com certeza, Fábio e Antenor,
sim. Provavelmente, Lia e Daniel, por não estarem vinculados ao Programa, não
conhecessem ninguém. A entrevista coletiva foi realizada numa sala cedida ao
PRB pela UERJ, numa tarde de sexta feira. Para facilitar a análise, a entrevista foi
filmada por uma assistente de pesquisa. Duas pessoas que estiveram presentes na
etapa das entrevistas individuais o participaram da coletiva Ruth, que não
conseguiu desmarcar um compromisso previamente agendado, e Josué, que
confundiu o dia, comparecendo ao encontro uma semana depois. Marcos, que
participou da entrevista piloto também foi convidado, mas não pode comparecer.
Matias participou primeiro da entrevista coletiva e depois da individual e Isis só
participou da coletiva, pois o foi encontrada nos telefones que forneceu para
agendarmos a etapa individual. A entrevista durou cerca de uma hora e meia.
DINÂMICA DE INTERAÇÃO DOS PARTICIPANTES
Quadro 1
2. P Com alguns tive oportunidade de conversar e a idéia hoje é da gente
conversar sobre algumas questões que me intrigam, algumas coisas que
apareceram nas entrevistas e outras no que eu tenho lido, tá? [...] A idéia é a
gente se apresentar para começar esta conversa. Vou começar.
3. Eu faço doutorado em educação brasileira e o meu projeto de pesquisa é
justamente esse, recuperar a EXPERIÊNCIA// as trajetórias, mas por dentro da
experiência. Não só, ‘fez isso, fez aquilo’, mas também como foi o sentimento,
como foram as sensações a forma como cada um foi se construindo nesta
trajetória.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
188
4. AC Antenor Ramalho, 23 anos, eu no período de jornalismo aqui na
universidade estagio num programa da webradio aqui como locutor. Eu
apresento um programa chamado Rompendo barreiras. Ele foi inspirado no nosso
programa aqui da Educação. Como eu já tinha falado pra Patrícia, a minha
história ela é bastante, vamos dizer assim, significativa. Muita batalha e cada dia
a gente tem que matar um leão por dia para estar aqui. Pra conseguir alcançar este
estágio, este estágio de vida. E ao longo da conversa eu vou falando um pouco
mais sobre mim.
5. GC - Meu nome é Gabriel, tenho 21 anos, no período de comunicação-
jornalismo na Católica e assim como o Anselmo, tive que superar inúmeras
dificuldades ao longo da minha trajetória de pequenininho até agora na faculdade.
E também ao longo da conversa a gente vai se conhecendo.
6. FC - Eu sou Fábio tenho 24 anos, estudo psicologia, no período e, vou
repetir né? Acho que ao longo vamos falando aí dessas barreiras que fomos
rompendo...
7. P Fábio, pra quem não te conhece não é muito evidente por que faz parte do
grupo.
8. FC Ah! Sim, tenho visão subnormal que é uma visão bem diferente ? Fica
todo mundo perguntando assim, ‘ah, é cego, ou é deficiente né? Você vê o mudo,
agora é surdo né? Você vê o cadeirante, você vê o cego, mas quando você vê uma
visão subnormal é diferente né?
9. I - Meu nome é Isis, tenho 21 anos, to estudando direito na Estadual, estou no
período. E por enquanto é isso [ri meio sem graça].
10. MC - Eu sou Matias de Souza, sou formado em letras, professor de português,
dou aula de braille no Rompendo Barreiras. Atualmente tô fazendo uma pós
graduação em educação especial, no futuro// E sem livros em braile, sem ter as
matérias na hora adequada pra estudar não tem como, sempre vai ter dificuldade.
Sempre vai tar em discussão.
11. LC - Bem, meu nome é Lia Maria, eu estudei aqui nesta universidade, fiz
pedagogia , depois eu fiz uma especialização em educação especial, depois acabei
fazendo o mestrado em Educação Brasileira. Sou a mais velha do grupo [ri], sou
professora da rede estadual, dou aula numa escola especial e, é (...) atualmente
passei num no concurso para Técnico em Recursos Pedagógicos e estou
aguardando. É um processo meio complicado a minha entrada, mas acho que vai
dar tudo certo. Espero...
O evento narrativo é aberto por mim, ocupando o papel de moderadora,
com ênfase na idéia de que estaríamos ali para uma conversa. A transformação do
gênero entrevista para tese no gênero conversa, pressupõe relações mais
horizontais e um enquadre mais coloquial. A pauta foi dada pelo meu
posicionamento como pesquisadora que conhece a maioria dos presentes e tem
coisas específicas a saber, o que me colocava na condição de condutora da
interação. Esta posição é reforçada pelos atributos escolhidos para a auto-
apresentação, onde ressaltei minha condição de doutoranda que está ali em função
de um projeto da pesquisa, em detrimento de outras tantas coisas que podiam ser
faladas. As apresentações seguiram a ordem em que as pessoas estavam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
189
assentadas, de acordo com a representação abaixo: Patrícia - Antenor, Gabriel,
Fábio, Isis, Matias e Lia.
Antenor, foi o primeiro a tomar a palavra [trecho 4]. Demonstrando
proximidade com a moderadora ao chamá-la pelo nome como eu tinha falado
pra Patrícia’. Ele se posiciona como lutador que tem conseguido conquistas:
Minha história é muita batalha e cada dia a gente tem que matar um leão por
dia para estar aqui. Pra conseguir alcançar este estágio, este estágio de vida.”
Gabriel [trecho 5] ecoa e apóia a fala de Antenor se posicionando também
como batalhador: assim como o Antenor, tive que superar inúmeras dificuldades
ao longo da minha trajetória de pequenininho até agora na faculdade.’ Esta
introdução contrasta com sua posição predominante na entrevista individual que
foi a de afirmar sua normalidade e relativa facilidade de se mover na vida,
principalmente, no ambiente escolar.
Fábio confirma as falas de Gabriel e Antenor ‘vou repetir né? Acho que ao
longo vamos falando ai dessas barreiras que fomos rompendo.’ Ele usa o nome
do programa que é nosso ponto de ligação para obter pertencimento ao grupo dos
rompedores de barreiras.
Moderador
Matias
Assistente
Lia
Isis
Fábio
Antenor
Gabriel
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
190
Isis informa seu nome, seu curso e se posiciona mais como expectadora
do que informante.
Matias fala da sua formação e se alinha aos outros, mencionando as
dificuldades encontradas na sua trajetória: sem livros em braille, sem ter as
matérias na hora adequada pra estudar não tem como, sempre vai ter dificuldade
[excerto 10]. Este enquadramento também destoa da entrevista individual - que,
no seu caso, foi concedida após a entrevista coletiva -, onde ele minimizou a falta
de condições concretas de estudo através da exaltação da sua facilidade em
absorver os conhecimentos.
Lia se distingue dos demais por ser ‘a mais velha do grupo, por já ter feito
mestrado e por atuar profissionalmente. Alinhando-se ao posicionamento dos
batalhadores, iniciado pelos outros entrevistados, ela menciona as dificuldades
que estava enfrentando naquele momento na sua efetivação como funcionária
pública, mas arremata com tom esperançoso: É um processo meio complicado a
minha entrada, mas acho que vai dar tudo certo. Espero...’
A interação que ocorreu na primeira rodada ajudou a definir a dinâmica do
encontro. O lugar da moderadora de condução do debate foi ratificado e os papéis
foram distribuídos entre o grupo. Antenor funcionou como narrador principal,
sendo apoiado por Gabriel e Fábio na maior parte das vezes. Lia, representou a
figura mais experiente, nivelada à moderadora como pós-graduada, o que permitiu
que ela propusesse o aprofundamento do debate [ver linha 28 quadro 3 e quadro
10], analisasse a questão por diversos ângulos e se sentisse à vontade para
discordar dos demais entrevistados. Isis se posicionou como audiência,
emitindo opinião, geralmente, quando requisitada pela moderadora. Matias se
posicionou como alguém que complementa e reforça a fala dos colegas, seja
através de denúncias, seja através da valorização das pessoas com deficiência na
definição de questões que lhes dizem respeito. No entanto, ele marcou seu
posicionamento de que há uma diferença de legitimidade nas pessoas com a
experiência da deficiência para cuidar de assuntos que lhes dizem respeito,
sugerindo uma divisão entre ‘nós deficientes’ e eles os não deficientes’.
Nesta entrevista mencionei o fato de ser mãe de uma criança com
deficiência, uma vez que, a maioria deles já sabia desse meu vínculo com a
questão da pesquisa. Não ficou claro o efeito dessa informação na fala dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
191
entrevistados. Para mim, teve o efeito de uma autorização íntima para estar ali
fazendo a pesquisa.
QUADRO 2
92. P A gente tá chegando no horário e eu queria fazer uma rodada, com uma
curiosidade que é a seguinte: porquê que vocês aceitaram participar desse
projeto? Por que vocês toparam me conceder essa entrevista e também a primeira
entrevista? E o que vocês gostariam que fosse feito com essa história, o que quê
vocês detestariam que fosse feito com ela?
93. AC Bom é,(...) sempre que me convidam prá alguma coisa desse tipo, sempre
que me convidam prá tar expondo o que eu sei fazer e gosto de fazer, prá mostrar
pras outras pessoas do quê que o deficiente é capaz. Antes de terminar eu digo:
‘eu aceito, topei’. E nesse caso não foi diferente. Porque eu creio que isso,
além de estar me ajudando a crescer um pouco mais como pessoa, pode estar
ajudando outras pessoas a se descobrir como um ser humano. A se descobrir
como pessoas capazes de fazer coisas importantes prá si e pro mundo. E é uma
das questões que eu me propus, é uma das missões que eu tenho nesse mundo. Eu
peguei prá mim essa missão, de passar esse exemplo prá outras pessoas. Não
pro deficiente, mas prá outras pessoas não-deficientes que por algum motivo
acabam desistindo do-da// de lutar, de buscar, a sua-a sua identidade.
94. P – Então a sua expectativa é que você sirva como um exemplo. Que esse
trabalho possa amplificar esse exemplo?
95. AC É verdade! E se eu mudo pelo menos uma pessoa, se eu mudar a
mentalidade de uma pessoa eu já tô feliz da vida.
96. GC O meu caso, acho que cai muito no que o Antenor falou de poder passar
minha experiência e por isso mudar alguma pessoa e conseqüentemente a própria
sociedade. Eu sei que é difícil mudar uma sociedade inteira, mas como ele falou:
‘se eu conseguir mudar uma pessoa eu vou estar satisfeito’. Porque essa uma
pessoa também vai poder mudar a mentalidade de outra pessoa e assim
sucessivamente até mudar a própria sociedade.
97. AC Efeito dominó que às avessas, em vez de derrubar - levanta. [risos de
todos]
98. FC – Acho que tá bem igual mesmo, todo mundo está pensando igual mesmo né?
Cada um com-com palavras diferentes, mas parecido. Quando eu fui ser
entrevistado por você eu questionei né? Mas pra mim foi muito interessante. É
isso mesmo, passar a experiência prá poder ter o efeito dominó mesmo. Prá
fazer um mundo melhor.
99. I Prá mim, essa conversa com vocês foi boa por duas questões. Uma por poder
passar a história prá outros que vêm depois e também, foi importante prá mim
porque eu vi outras pessoas com deficiência, que não seja só visual, falando e foi
um aprendizado prá mim. Eu pude mostrar a minha vida um pouquinho e pude
conhecer um pouquinho.
100. LC Eu me identifiquei muito com o teu trabalho. Eu falei isso desde o
primeiro momento. Poxa, eu queria fazer um trabalho desse! Não é por nada, é de
coração. Porque eu achei muito legal mesmo entendeu? Porque eu vejo as
dificuldades, eu fui da Católica, eu sei como é, prá juntar um trabalho, entrevistar
e escrever, então eu, além de ter esse lado da deficiência, é um lado que esse é o
tipo de trabalho apaixonante prá mim. E que eu espero, porque a grande paixão
não é nem o trabalho mas é o que vai surgir a partir desse trabalho. Não adianta a
gente é, é fazer um trabalho e engavetar. E viver de palestras.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
192
A rodada final confirma as posições assumidas desde o início. Antenor,
mais uma vez, o tom da resposta, colocando-se como alguém que está
habituado a este tipo de situação e que tem uma reflexão acumulada sobre os
motivos que o levam a aceitar uma exposição como esta. Sua posição é a de
exemplo de força para outras pessoas com ou sem deficiência. Gabriel, confirma
seu alinhamento com Antenor, citando uma das frases que ele acabara de dizer. A
diferença mais clara nos dois discursos é que, enquanto Antenor utiliza um
modelo messiânico de exemplo - o do missionário -, Gabriel descreve uma
dinâmica social aonde cada caso de sucesso vai contaminando as pessoas e
transformando as mentalidades progressivamente. Antenor intervém nomeando a
descrição de Gabriel como ‘efeito dominó ao contrário’ em vez de uma peça
derrubar todas, uma peça pode levantar as outras: ao fazê-lo, ele reforça o colega.
As risadas coletivas ajudam a confirmar Antenor como alguém espirituoso, como
ele mesmo se posicionou.
Fábio, que pouco falou durante a entrevista, repete com outras palavras o
que disseram Antenor e Gabriel. Isis, ressalta o aprendizado que a interação
resultou, deixando entender que seu circulo de troca de experiências relativas à
deficiência incluía apenas pessoas com deficiência visual. Matias não se manifesta
[e faz um gesto com a cabeça passando sua vez à Lia]. Lia se dirige diretamente à
moderadora e retoma a posição que tinha aparecido na entrevista individual, de
identificação com o projeto de pesquisa em questão, falando de maneira afetuosa -
de coração- da sua admiração pela idéia da pesquisa. Ao se posicionar como
alguém que valoriza o processo de pesquisa por saber o que significam os
procedimentos de entrevista etc. Assim ela se reafirma como pesquisadora, nivela-
se à moderadora e, ao mesmo tempo, alinha-se ao grupo pelo fato de viver a
experiência da deficiência. Lia arremata dizendo que, na sua percepção, o que
torna uma pesquisa significativa é sua capacidade de gerar conseqüências na vida
social e não apenas na academia. Dessa forma, ela utiliza a pergunta sobre os
motivos de participação na pesquisa para colocar requisitos que devem ser
cumpridos para que a pesquisa seja considerada legítima e sua participação válida.
Neste movimento, ela empenha confiança, mas posiciona a autora do estudo como
alguém que depende da repercussão prática do trabalho para ser validada, o que
aponta para o exercício do poder em outra esfera.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
193
A entrevista se encerra com os meus agradecimentos e com o pedido que
cada um escolha um pseudônimo para ser usado neste relatório de pesquisa.
Antenor puxa a reação dos outros dizendo: [105] - AC no meu caso se eu fosse
mudar o nome eu ia perder completamente a identidade que eu criei nesses 23
anos.
Apesar dos meus argumentos sobre ética na pesquisa e das transformações
que suas falas poderiam sofrer no processo de análise, não houve acordo naquele
momento. Desta forma, escolhi por conta própria os pseudônimos.
5.1
Negociação de sentidos - ser diferente é normal?
Quadro 3
19. P - Eu queria perguntar pra vocês essa questão é (...), vocês consideram que
existe uma-uma identidade de pessoa com deficiência no Brasil? Isso-isso, vocês
se identificam, fazem parte de algum grupo ou tem alguma militância? Ou isso é
de alguma forma uma bandeira na vida de vocês? A idéia de romper barreiras, de-
de, de ter lugar social diferente do que o que vocês encontraram pra vocês?
20. AC Essa questão ela é uma questão assim, é bastante complicada porque, as
pessoas ditas normais, por quê que eu coloco assim esse normais entre aspas?
Porque particularmente eu não vejo diferença nenhuma entre o deficiente e o não
deficiente. A única diferença é-é, foi como eu falei quando eu apresentei o evento
do dia 26 de agosto, eu falei que não são deficiências o que a gente tem, são
pequenas diferenças que o, que acreditem ou não, o cara de cima olha e fala
pra pessoa, ‘vovai nascer com ISSO’ e pra outra pessoa: você não vai nascer
com isso’. E, quanto à questão de se engajar em projetos (...) em projetos ou-ou
organizações que tenham como mote esse, essa guerra da (...) em defesa do
deficiente. Eu particularmente, não que eu seja-seja isso ou seja aquilo, mas
particularmente eu acho que eu não precise me juntar a nenhum movimento
assim, a não ser o Rompendo Barreiras que me despertou a participar, ser
voluntário. Mas eu não vejo assim (...) uma necessidade de estar me unindo a
outros deficientes. Por que? Porque eu (...), é, como é que eu vou dizer? O intuito
dessas instituições, digamos assim, é pegar os deficientes que se sintam retraídos,
que não queiram, por um motivo ou por outro, lutar pelo seu, pelo SEU. Devem
ter a atenção [da sociedade] e puxar esse [serviço] todo pra si. Eu tenho pra mim
que cada um tem que ter dentro de si uma vontade própria né? De buscar o SEU,
buscar o próximo né? Lógico que, lógico que o ser humano ele tem por obrigação
ser solidário para com seu próximo, mas como o mundo de hoje
completamente é, ao contrário. Ao contrário disso, como o mundo ele tá, o ser
humano cada vez mais se afastando um do outro. A questão é, se você não
procurar o SEU, primeiro, primeiro de tudo, você acaba não conseguindo nem SE
ajudar nem ajudar o próximo. É, é, um pouco assim que eu penso. Se alguém
discordar...
21. P – E o que vocês acham dessa-dessa idéia, dessas idéias?
22. MC – Eu acho que a gente tem que ter primeiro, determinação, como ele falou. E
quanto a ser aceito no grupo ou não, acho que isso é natural do ser humano. A
gente precisa ser respeitado como um todo, na verdade nós não somos
deficientes, nós temos é, eu sou cego. No mais, todos podem ser considerados
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
194
como deficientes. Agora, EFICIENTES é o que nós precisamos ser. Alguns são
eficientes numa coisa, outros em outra, né? As habilidades. Então as pessoas têm
que respeitar nossos direitos e a gente tem que respeitar também nossos deveres.
E também o nosso desenvolvimento. É a capacidade, na verdade (?) A gente anda
rua e sente o preconceito, principalmente o cego, ‘não precisa ninguém pra andar
contigo não? Você faz isso sozinho?’ [imitação de outras vozes em tom irônico].
Às vezes até a gente se retrai, algumas até tudo bem. Mas hoje, o tempo
corrido e a gente não tem nem tempo pra pensar no outro né? [...]
27. AC Tem também aquela coisa, o Matias não enxerga com os olhos, mas ele
enxerga com as mãos. E eu por exemplo, eu não ando com as pernas, mas eu
ando de cadeira de rodas.
28. LC Acho que tem dois lados essa questão, é complicado. Eu acho que esse
negócio de bandeira da deficiência, por um lado, eu quero ter a minha vida
privada, eu não quero ser um grupo. Eu sou a LIA, antes de ser deficiente, eu
tenho uma identidade que eu não quero perder essa identidade.
29. AC – As pessoas têm que respeitar, o ser humano.
30. LC – As pessoas têm que me respeitar, como eu sou. Eu acho que isso de direito,
de lei pra deficiente, eu acho que existe já bastante lei, a gente procura os
direitos. Eu acho que o problema é, tratar o deficiente como um grupo. Cada
indivíduo, tem sua especificidade. E se a gente for defender uma bandeira como
antigamente [o disco tem falhas de áudio neste trecho Lia discorre sobre a
necessidade que houve de organização]. Hoje acho que isso ta abrindo mais,
quer dizer, o deficiente não é esse grupo, ele é um ser humano dentro de uma
sociedade. Que deve estar preocupada para que incluam não o deficiente, mas
todos. Eu acho que é assim como ele falou, a gente tem que ser uma pessoa
assim, dentro do mundo.
Afirmar ou diluir a diferença deficiente era uma questão que interessava
colocar em discussão levando em conta que as pessoas com deficiência podem ser
consideradas uma coletividade submetida, simultaneamente, a lógicas opostas na
busca de justiça: as políticas de redistribuição enfatizam os males da desigualdade
e sugerem a diluição das diferenças econômicas entre grupos, enquanto as
políticas de reconhecimento reivindicam o direito à afirmação das diferenças
culturais sem que isso signifique desigualdade de oportunidades (Fraser, 2001).
A questão da identidade/alteridade deficiente, além de ser central neste
projeto de pesquisa, tinha aparecido de maneiras muito diferentes nas entrevistas
individuais. Por isso, respaldada nas discussões sobre a tensão igualdade x
diferença que permeia tanto a análise dos novos movimentos sociais quanto dos
discursos educacionais atuais, introduzi como primeiro tópico da agenda a
questão: Vocês consideram que existe uma identidade de pessoa com deficiência no
Brasil?
Antenor foi o primeiro a tomar a palavra e sua resposta [trecho 20] ecoa
discursos constituídos por diferentes regimes de verdade. A princípio, ele se
posiciona como sujeito de um discurso crítico, que propõe uma ‘inversão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
195
epistemológica’ (Skliar 2001), ou seja, questiona o estatuto da normalidade
através de expressões como: ‘os ditos normais’ e ‘normais, entre aspas’. No
complemento, ele se posiciona a favor de uma sociedade cega para esse tipo de
diferença e arremata o argumento passando pelo discurso religioso, onde a
deficiência é apresentada como uma decisão tomada em outra esfera, a esfera
divina, que implica apenas em ‘pequenas diferenças’. O movimento desses
posicionamentos pende mais para o registro de que lutar para modificar o status
social das pessoas com lesão na base da afirmação da diferença seria indesejável,
tanto por fortalecer a fronteira imaginária normal/anormal, quanto por se rebelar
contra um desígnio divino. Sua defesa da luta individual o posiciona como sujeito
do discurso da auto-superação e mesmo da competição, pois cada um tem que
lutar pelo que é ‘SEU’ de maneira individual, valendo-se da força de vontade.
Matias, posiciona-se como sujeito do discurso da Eficiência, ou seja, que a
melhor forma de se despregar de estereótipos incapacitantes é provar, através da
atuação competente, que as pessoas com deficiência são eficientes, hábeis e
dignas de respeito. Ele faz distinção entre ser cego e ser deficiente, de forma
análoga à separação, proposta pelo modelo social, entre lesão e deficiência, onde
esta última é contestada por ser fruto de uma imposição socialmente desvantajosa
para as pessoas com lesão. Completando sua idéia, Matias generaliza a deficiência
como uma condição de todos, colocando a incompletude, e não a normalidade,
como nosso denominador comum (Laclau 1996, Davis 2002). Assim, ele chega ao
horizonte de igualdade por outro caminho.
Lia, assinala que essa não é uma questão simples e marca a posição de que
uma luta específica de um grupo com o recorte da deficiência o parece ser
vantajosa, por exigir um movimento de apagamento das singularidades e por
perder de vista a idéia de inclusão de todos e não apenas de alguns poucos. Na sua
fala, a posição das pessoas com deficiência como um grupo diferenciado é uma
etapa ultrapassada no movimento social. Uma vez que os recursos legais estão
disponíveis, não haveria mais necessidade de diferenciação e sim de
indiferenciação no todo. Ao dizê-lo, Lia atualiza a idéia de que diferença e
segregação são sempre correlacionados e se alinha à formação discursiva da
inclusão (Marques, 2001). É interessante notar que sua posição, aqui, entra em
choque com o que foi dito na entrevista individual [linha 175 quadro 9 pg.135].
Quando perguntada sobre a principal batalha na vida das pessoas com deficiência,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
196
ela responde: Eu acho que o pior problema que (...) em relação à vida eu acho
que é você conseguir viver com a diferença. Acho que a gente ainda não consegue
viver com a diferença, sabe?
A dificuldade em viver com a diferença, na nossa sociedade, aparece na
negociação de sentidos entre os participantes da pesquisa – incluindo a própria Lia
que aderem e reforçam o discurso da não-diferenciação. Os movimentos civis e
discursos que afirmam a deficiência como uma diferença, marcando assim seu
lugar político, são aqui posicionados como segregadores e circunscritos a um
gueto que não consegue se fazer ouvir além de um público interno restrito. Ao
contrário do que acontece com alguns grupos ativistas, apoiados pelos Disability
Studies, a defesa de uma identidade deficiente não é percebida como mobilizadora
ou capaz de articular (ou criar equivalência) outras subjetividades políticas que
almejem transformações na sociedade em geral.
Para proteger as conquistas de se verem e serem vistos fora do quadro das
representações pejorativas atribuídas pela deficiência, os sujeitos da pesquisa
contrapõem o individual ao grupal. Essa posição atualiza e respalda o discurso da
auto-superação, que responsabiliza o indivíduo pelo lugar que ocupa no espaço
social.
No cenário nacional, a posição coletiva de afirmação da diferença parece
estar bastante circunscrita aos Surdos
2
, mas, neste caso, divergências sobre a
associação entre surdez e deficiência, que muitos dos membros da ‘cultura
surda’ de definem como uma minoria lingüística o pertencente à comunidade
deficiente.
Na entrevista coletiva, Matias foi o único que defendeu a assunção da
diferença como forma de ‘reserva de mercado’ das pessoas com deficiência para
trabalharem junto a seus pares. No quadro 4, duas de suas participações sinalizam
isso. Na primeira, ele valoriza a experiência da deficiência como um aspecto que
posiciona cegos como os melhores professores de braille, surdos como
professores de libras
3
e assim por diante. No trecho 42-43 ele critica a postura da
universidade em dificultar a contratação de Lia, pois essa seria uma oportunidade
2
A Surdez grafada com S maiúsculo é um recurso lingüístico de reocupar esse vocábulo com
associações positivas como a beleza da língua de sinais, a construção de vínculos entre surdos de
várias gerações e até o projeto de uma nação surda.
3
Libras – língua brasileira de sinais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
197
de colocar a experiência da deficiência a favor das pessoas com diferentes tipos de
lesão que circulam por aquele espaço público.
Quadro 4
35. MC Eu acho que a gente mesmo pode estar com a nossa experiência estar até
capacitando profissionais, nas escolas. Por exemplo, quem ensina libras? É o
surdo, no caso, quem vai ensinar o braille? O cego. A gente pode dar uma
contribuição pelas nossas experiências trabalhando nas escolas, porque nós
sabemos como é. E até mesmo para abrir mais oportunidade de trabalho nas
escolas (?)
42. MC E a universidade pública perdendo a oportunidade de contratar uma
pessoa com deficiência. Quem vai tratar com essas questões são as pessoas ditas
normais, elas não passam//
43. Como é que ela vai tratar de uma questão na universidade relativa a uma pessoa
com deficiência? Alguém, no caso cegueira ou baixa visão, como é que ela vai
atender?
Embora o posicionamento predominante na entrevista coletiva seja que a
auto-afirmação da deficiência é sempre uma aproximação do lugar de vítima e de
incapacidade, alguns dos entrevistados se valeram das conquistas legais e
institucionais que foram alcançadas, na lógica da ação afirmativa, tais como as
reservas de vaga de emprego/estágio e na universidade. Essas políticas pregam a
discriminação positiva, alegando que é preciso reconhecer a desigualdade que
historicamente desfavoreceu determinados grupos, tratando-os, no presente, de
forma diferenciada para podermos alcançar, no futuro, um horizonte mais
igualitário. Vejamos os posicionamentos acionados nas entrevistas individuais em
relação às políticas de cotas, por exemplo.
Quadro 5
261. P – E a sua posição em relação às cotas, cota pra universidade ou cota pra emprego.
262. L – Eu não sei, não sei, é uma dis// é uma coisa//
263. Eu ainda acho que TEM QUE TER. Eu ainda acho, porque...
264. P – Nesse concurso por exemplo?
265. L Eu usei as cotas, eu usei. Tudo bem, eu acho que eu poderia passar sem cotas,
mas eu acho que numa sociedade como a nossa que ainda falta muito emprego... A
pessoa deficiente ainda é discriminada, eu vejo a cota como uma forma de defender
alguma coisa.
266. Que nem, (?) acham que a vida é uma grande guerra, uma grande batalha e que você
tem que saber enfrentar ela.
267. P Mais é uma batalha de todos? De qualquer pessoa ou é uma batalha para// a vida
de uma pessoa com deficiência é uma guerra?
268. L Não, como eu te falei no início, eu acho// porque não é do deficiente não, eu
acho que tem muitas pessoas, socialmente excluídas, que não tiveram sorte e que é
uma BATALHA TAMBÉM! E é uma BATALHA TAMBÉM. Então a gente tem que
aprender a lidar, da melhor maneira possível e, claro que eu acho que cotas, não é
justo e tal, talvez...
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
198
269. P – Não é justo com quem? [toca o celular de P – impaciente pede desculpas e desliga
o aparelho]
270. L Uma sociedade é, onde as pessoas tenham, melhores oportunidades (...) sem
discriminação, sem, não sei. Com mais abertura com a diversidade, até entender que
uma pessoa pode contribuir DA SUA FORMA. Entendeu? Não sei, talvez um
incentivo maior do governo, não sei. Como é que a gente poderia fazer isso.
271. Mas a cota é mais ou menos prá isso entendeu? Se você pensar que uma pessoa
poderia ficar em casa, ficando improdutiva, sabe? Não tendo oportunidade, sabe? Eu
não sei, o que quê você acha? Não sei. Eu acho que ainda tem muito deficiente que
não trabalha, principalmente deficiente mental, não encontra ramo de trabalho
nenhum.
272. Tem uma iniciativa do Mac Donalds, que acontece há anos. Tem agora supermercado
contratando deficiente mental, mais ainda é uma coisa ...
273. P – Muito pequena né?
274. L – Muito pequena. E eu acho que essa batalha que tem que enfrentar.
Lia, tem dificuldade em firmar uma posição sobre as cotas. Repete, rias
vezes, que não sabe claramente o que dizer e ao mesmo tempo afirma, categórica,
que tem que ter’. Embora tenha se beneficiado do sistema no concurso público
que prestou recentemente, minimiza sua importância, ponderando que poderia ter
passado sem elas. Talvez ela nem tivesse mencionado o fato de ter usado as cotas
se não tivesse sido interrogada. Na linha 268, ela deixa escapar que o sistema de
cotas pode não ser justo. Embora não mencione claramente o discurso que
questiona e se opõe a este sistema, tem como base a defesa do modelo
meritocrático. Quando vai justificar sua adesão às cotas Lia faz questão de frisar
que ela provavelmente não precisaria desse recurso, mas que outras pessoas,
principalmente as com deficiência mental, o teriam chances num esquema
meritocrático que privilegia a intelectualidade. Assim, se posiciona em defesa das
ações afirmativas para os outros, os que não têm condições de disputar na base do
mérito, distanciando-se desse tipo de necessidade.
Quadro 6
358. P – Foi na Universidade Estadual, né? Você se inscreveu pelas cotas ou...
359. J – Não tinha cota.
360. P – Você já está terminando, porque agora tem, não tem?
361. J – Tem. Mas, eu nunca fui a favor de cota.
362. P – Nunca foi. Nem pra emprego, nem pra nada?
363. J – Não.
364. P – Porque?
365. J – Por que eu sempre fui um cara que sempre é (..) lutou por uma
igualdade de condições. Mas não essa igualdade de condições é “calma meu
filho, vai que você vai passar...” Não é isso.
366. P – Você dá valor para o esforço, o mérito.
367. J – O mérito. Pelo menos no meu caso. Falar isso pros outros é
complicado, mas eu sei que hoje eu falo de mim, mas pros outros /.../ eu falo pra
mim. (fim da fita)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
199
Josué, se posiciona de maneira análoga à de Lia quando aventa a necessidade
de cota para os outros, mas não para alguém como ele, que tem toda uma trajetória
bem sucedida, sem nunca ter precisado reivindicar condições especiais. Como
sujeito de um discurso igualitário, cujo mérito de uma pessoa se ancora na
possibilidade de ser vista como ‘qualquer outro ser humano’, não é possível
apoiar um sistema [das cotas], que parte da premissa da desigualdade. As cotas
são retratadas como uma política de condescendência, cujo preço pode ser a
fixação de quem se vale desse privilégio numa posição de sujeito tutelado.
Quadro 7
194. G – mais fiz vestibular na Federal e só não passei na Federal porque, quando eu
passei na Católica eu parei de ir na aula. (...) Eu não lembro porque que eu parei,
mas eu parei de ir na aula e mesmo tendo parado de ir na aula eu fiz muito ponto
na Federal. Eu acho que eu só não passei por zero dois (O,2).
195. P – hum hum
196. G – Mais eu acho que foi
197. P Mas vo teria, por exemplo, agora tem cota na Estadual. Você se
inscreveria pela cota ou você faz questão de fazer o vestibular normal.
198. G – Eu acho que eu não me inscreveria pela cota porque eu tive isso normal, ia
ser desleal, ia ser muito fácil.
Gabriel, segue um raciocínio semelhante ao de Josué. Como seu discurso
está fortemente marcado pela recusa de se identificar como deficiente e pela
afirmação da sua capacidade intelectual, ele sugere que seria deslealdade obter um
privilégio, alegando uma suposta desvantagem. Sua perspectiva é individual e não
considera, como fizeram Josué e Lia, casos de pessoas com deficiência que
poderiam necessitar deste tipo de expediente para participar de espaços sociais
mais seletivos.
Quadro 8
330. P – E aí como você saiu de lá e a passagem para a Universidade, como foi?
331. A É, eu saí de lá, eu fiquei dois anos fazendo matérias técnicas porque no
3º ano de formação geral eu me meti a me candidatar a eleição do grêmio
estudantil, venci, fiquei um ano, tive que abandonar as matérias técnicas, foi um
erro meu. Eu dei mais atenção ao grêmio do que à formação geral, fiquei dois
anos fazendo matérias técnicas e no final de 2003 eu fiz prova para cá, para a
Universidade, que havia feito em 2002 para a Federal do Rio e para a Federal de
Niterói, não passei em nenhuma das duas. Nenhuma das duas tinha sistemas de
cota. Aí no ano seguinte, no finalzinho de 2003 eu fiz prova para as três públicas
[cita as siglas]. Nas outras duas eu não passei, passei para cá.
332. P – E aqui tinha sistema de cotas?
333. A Eu entrei pelo sistema de cotas para deficientes físicos, deficientes e
indígenas. [...]
342. P Agora, pela quantidade de pontos que você fez, se não tivesse sistema de
cotas, você teria passado, tem essa noção?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
200
343. A – Eu acho que não, e por muito pouco.
226. P E você, falou que desde criança você ficava preocupado com o seu
sustento.
227. F Não na pré- adolescência. eu comecei a me tocar. Não, eu tenho
que ter uma profissão. Fiz o telemarketing. Fui fazer estagio em uma instituição,
fiquei dois anos dentro, era remunerado. Tinha essas questões das pessoas
ficarem me olhando.
228. P – Por cota?
229. F – Não. Um projeto do governo há dois anos atrás
230. P – Você lembra o nome?
231. F Lembro. Todos pela Paz. Então, neste caso eles fizeram um trabalho
grande, NÃO estruturado, com deficientes. No qual eles abrangeram todos os
deficientes: mudos, cegos... todos os tipos de deficiência, até sica. Mas que
jogaram dentro das instituições públicas. Sendo que muitos cegos não tinham
preparo (...) profissional. Então eu sempre reparei que aquele cego estava lá
dentro, preenchendo alguma vaga que, vamos supor: a prefeitura tem uma
quantidade de vagas pra deficientes lá, pra fazer aquele estágio dentro, e o
governo tinha liberado uma verba, pra poderem pagar a gente. E pra não ficarmos
sem ninguém, tínhamos lá, uma-uma pessoa fazendo edital que ficava quatro
horas sentada numa mesa ou então num banquinho de espera, esperando o tempo
passar. Ou então o tempo ficava pela metade e então mandavam ele embora
porque ele não conseguia produzir, não tinha preparo, não se encaixava dentro
daquele departamento. E eu falo isso porque eu trabalhei num prédio de 12
andares e eu via como muitos foram tratados. Com carinho, mas com muito
cuidado, porque não tinham preparação, e quem estava lá dentro não tinha
preparo em deficiente e quem era deficiente não tinha preparo em estar se
incluindo. Então nesse caso, nessa brincadeira, eu via que eu fazia muita coisa.
Eu tinha que ver processos, atender telefone, passar fax, porque eu tinha um
trabalho de telemarketing. Já sabia lidar com telefone. Sabia ler, e isso me
beneficiava. Então, aqueles que não tinham muitas habilidades ficavam parados.
Enquanto eu queria alguma coisa, tinha um propósito, como tenho até hoje. Eu
era um pouco explorado, porque ninguém me mandava embora uma hora antes de
acabar o expediente. Enquanto aquele que não produzia nada ‘você pode ir
embora.’
O quadro 8 apresenta extratos de duas entrevistas individuais que revelam
vantagens em se posicionar publicamente como deficiente, embora isso não seja
admitido pelos narradores.
Antenor [trecho 330/343], utilizou a reserva de vagas para entrar na
universidade e admite que sem elas, provavelmente, não teria conseguido tal
acesso. Mesmo assim, todo seu discurso é de valorização do esforço individual, o
que faz com que, em outro trecho, ele afirme que se não houvesse cota ele daria
um jeito, como sempre deu. Esse jeito ‘mágico’ parece ancorado no discurso
religioso mencionado en passant [linha 20 do quadro 3] na entrevista coletiva. Ali
ele credita ao Cara em cima’ (Deus) a origem das diferenças físicas por ser
quem determina quem vai ou quem não vai nascer com ISSO(deficiência). Essa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
201
atribuição das diferenças à vontade divina também se expressa na sua posição de
alguém que tem uma missão a cumprir na vida. Esta visão é fonte de força para
que ele possa correr atrás dos seus sonhos e projetos. Nesse contexto, mais
importante é seguir firme e se colocar como um exemplo de luta, do que aliar-se a
um movimento baseado em direitos historicamente negligenciados.
Fábio [linhas 226-231], relata a experiência de estagiar em um programa
de protagonismo juvenil financiado pelo Governo do Estado, que destinava parte
das vagas a jovens com deficiência. Quando perguntado se o estágio tinha sido
conseguido através da política de cotas, ele nega, ou melhor, ele não faz
associação entre uma coisa e outra. No decorrer do seu depoimento, ele reflete a
importância da postura e do preparo individual para que o portador de deficiência
(sic) possa realmente ser incluído, pois pelo que ele percebeu, conseguir o estágio
podia significar ficar jogado em um canto, como parte do mobiliário da casa. A
crítica a este estado de coisas recai, em maior medida, sobre os próprios
deficientes que não se prepararam para se incluir, mas também, em quem estava
dentro não tinha preparo em deficiente.’ O fato de se destacar como bom
trabalhador, o distancia do lugar de deficiente e o normaliza.
Como podemos ver nos extratos das entrevistas individuais, os sujeitos da
pesquisa circulam por discursos de indiferenciação e de igualdade irrestrita, ao
mesmo tempo em que utilizam as conquistas conseguidas na lógica da ação
afirmativa, isto é, da necessidade de tratar de forma diferenciada os grupos
desiguais. quem tente conciliar os dois movimentos como se fossem etapas
sucessivas: na primeira etapa, se daria a formulação das leis de proteção de
direitos específicos e, na segunda, seria o momento de apagar as diferenças. O
problema é que estes movimentos se dão em lógicas opostas e não na mesma
direção. As leis específicas afirmam particularidades e a inclusão geral pressupõe
indiferenciação. Assim, a conciliação pressupõe uma tensão e não
necessariamente uma harmonia.
5.2
É preciso saber viver
Achei que um ponto importante a ser aprofundado na entrevista coletiva
era a dicotomia - indivíduo versus grupo - que apareceu em alguns
posicionamentos. Esse foi, então, o segundo grande tópico a ser explorado. Mas,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
202
no bojo desta questão apareceram as estratégias de auto construção e de cuidado
de si (Foucault, 1985), que se torna mais agudo nas horas de dúvida, de fraqueza
ou em face a um comportamento preconceituoso.
QUADRO 9
46. P [...] A quem interessa, pela experiência de vocês// eu não tô falando idealmente,
na vida de vocês, concretamente, que tipo de aliança vocês têm encontrado, que
tipo de apoio, pra poder seguir em frente e fazer parte da sociedade? A quem
interessa essa discussão?
47. AC – Bom, a questão da aliança o essencial, é óbvio evidente, não pras
pessoas com deficiência mas pra todas as pessoas em geral é a família. Se vo
tiver uma base familiar forte, se tiver pessoas na família ajudem, não
fisicamente falando, como é meu caso. Minha e anda comigo pra cima e pra
baixo. De uns tempos pra que eu aprendendo a me ‘virar sozinho’. Mas se
tiver apoio dos familiares, no sentido psicológico de fazer a pessoa não desistir
do objetivo dela, isso é a coisa mais importante que o deficiente tem na vida. Eu
carrego comigo o seguinte lema: ‘é mais cil eu me adaptar ao mundo do que o
mundo se adaptar a mim’. Por quê? Porque se eu for ficar esperando as
autoridades, as pessoas em geral, se preocuparem com a minha questão e
começarem a se mexer, eu vou perder muito tempo. E assim eu perco no meu
desenvolvimento como pessoa, como ser humano. [...]
50. P – Então o esforço individual é que é a saída, vocês acham?
51. AC – É, não é a saída em si.
52. P – Mas na história de vocês foi o grande caminho?
53. GC É com certeza, eu acho que se alguém ficar parado, até uma pessoa dita
normal, ficar esperando que as coisas aconteçam a vida passa e ela não conseguiu
nada. No nosso caso, acho que isso é até, como é que eu vou dizer um pouquinho
mais sério porque, realmente se eu for esperar que o mundo mude, as coisas
demoram muito. Então eu acho que além de esperar o mundo mudar, a gente tem
que nos adaptar também. Eu por exemplo, pratico escalada, eu faço várias coisas
que muitas pessoas acham que um deficiente não tem condições de fazer. Tem
sempre essa idéia de lutar duro para conseguir sempre.
54. P – Isso não exaure? Não é muito cansativo não?
55. LC – Eu acho que tem horas que// teve horas que pra mim e acho que na vida de
qualquer um, de qualquer ser humano - ou por motivos pessoais ou por motivos
de relacionamento ou institucionais - que você vira e: meu Deus, será que eu tô
lutando por alguma coisa que vai acontecer, que eu vou conseguir?’ Sabe?
56. Quando eu tava na escola, atrás, que chegou um professor um dia que falou
que não era obrigação dele escrever a prova pra mim. Eu ditava a prova e ele
escrevia, né? E que eu deveria estar numa escola especial. Esse foi um dia pra
mim muito ruim, entendeu? Não é só: ‘olha, eu preciso existir’. Falei: ‘Pôxa, pra
que quê eu to lutando? Quem eu represento?’ Entendeu? O que quê eu sou, quem
eu sou? Então eu acho que a nossa identidade, pelo menos pela minha
experiência de vida, passa por altos e baixos. Tem dia que você se sente super
bem: ‘Cara eu consegui, eu sou forte, eu sou o super-homem.’ Mulher maravilha,
melhor dizendo. Tem dia que votem tanta dificuldade, que você pensa: ‘se
que eu não tô querendo demais para mim?’. Por que não é só o emprego, não é só
o dinheiro é o que te valor é a ligação pessoal. É ele saber que ele tá fazendo
um monte de coisa que ele gosta, que ele tá amarradão em fazer, entendeu? E isso
deve se expressar no campo afetivo// E tem horas que você diz ‘Meu Deus [põe a
mão na testa], mas será que é isso? Será que eu tô brigando por uma causa justa?”
57. P – Vocês concordam, este é um sentimento comum?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
203
58. AC Realmente, sempre tem aquele sentimento: ‘ah eu sou o máximo, eu vou
conseguir tudo, eu sou o cara, ninguém me segura’. [Todos riem]. Mas também,
no dia seguinte acontece uma coisinha que te faz pensar o contrário. Hoje, hoje
de manhã, eu tava vindo pra e tive que vir sozinho, como eu falei. Minha mãe
já estava meio atrasada e me deixou no ônibus. E se não fosse o pessoal de dentro
do ônibus gritar, ele ia arrancar e ia me carregar lá pra Abolição. Detalhe, a
cadeira de rodas tava do lado de fora do ônibus. Ele não esperou, e olha que
ônibus tinha retrovisor de todo lado. pro motorista ver. O pessoal teve que
gritar e ele já tava arrancando. Isso às vezes deixa bastante chateado e me
pergunto assim: será que realmente vale a pena eu continuar sofrendo por isso?
Será que lá na frente vou ter uma recompensa que me faça esquecer tudo o que
tem acontecido comigo?’ Mas junto com isso, você olha no espelho e diz assim:
‘Você tá maluco? Você tá doido? Você quer desistir por causa de que? Me diz!’
59. Eu particularmente quando começo a ter esses sentimentos de coitadinho, eu paro
na frente do espelho e começo a brigar comigo mesmo, é assim que as pessoas
devem reagir, tem que tomar uma sacudida para acordar. Ou você fica prá baixo
ou te mais força ainda prá você continuar, jogar na cara desse pessoal que
você pode, que ninguém vai te segurar.
60. P – Todo mundo aqui compartilha dessa sensação?
61. LC Eu acho que você realmente cria uma expectativa, as vezes, que não é uma
expectativa real. Porque a vida vai fazendo umas (???) que as vezes, o que a
gente NÃO espera, é o que acontece. [Ri] Não adianta ficar ‘eu quero isso, quero
aquilo’. Hoje em dia é uma questão de oportunidade, eu acho que se abrir a
oportunidade e você conseguir é o que me segura. Tem que saber também até
aonde eu posso ir. Até onde vai a minha// hoje, entendeu? Não falando
amanhã. Até aonde eu posso ir? Eu sempre trabalhei em mim essa coisa de que//
claro que na minha cabeça eu viajo. Mas eu tenho que ter os pés no chão. Até
aonde eu posso ir? Claro que eu tenho N sonhos de ser independente, de morar
sozinha, de ter uma vida diferente da que eu tenho hoje, mas eu tenho que viver o
que eu tenho hoje. Eu não posso ficar infeliz porque eu não consegui aquilo. Mas
você tem que valorizar as pequenas coisas. Porque a vida em si tem muitas
dificuldades. Como ele falou, tem pessoas que quando me vêm na rua:
‘coitadinha, você devia estar acompanhada’. ‘Porque você está sozinha?’ E não
me enxerga como outra que tá ali pegando o ônibus, que tá indo pro trabalho, que
quer se divertir... Que a gente também tem direito de tomar um chope, de//
entendeu? Isso é importante! No imaginário das pessoas eu acho que os
professores, que o ser humano, ele viaja, acha que a gente é bonequinho, sem
sentimento, sem noção, sem razão, então ele acha: ‘mas você precisa de alguém’.
Na seqüência da conversa sobre a luta pela inclusão social, Lia aciona o
discurso do modelo social para dizer que o que precisa ser modificado é a
estrutura da sociedade e não as condições específicas das pessoas com deficiência.
Completa dizendo que as pessoas com deficiência são potencialmente agentes
transformadores e na medida em que ocupam os espaços sociais vão
transformando as estruturas.
Tomando-os como agentes privilegiados para perceber indícios dessa
transformação estrutural, perguntei sobre as alianças e sobre os outros atores
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
204
sociais que se sentem tocados pelas questões da inclusão de todos, em geral, e das
pessoas com deficiência, em particular.
Antenor, responde sem titubear que a família é a grande aliada,
generalizando e tomando como óbvia esta situação. Esse apoio vai além dos
aspectos físico-financeiros, pois inclui a sustentação do desejo para que os
obstáculos não nos façam desanimar. Assim, ele reforça a visão de que a força de
vontade é a mola propulsora da auto-superação. Para resumir essa posição ele
explicita seu lema: é mais fácil eu me adaptar ao mundo do que o mundo se
adaptar a mim [trecho 47]. Esse posicionamento reverbera e naturaliza os
discursos médicos que colocam a reabilitação individual como pré-requisito para
inclusão.
Como moderadora, quis ouvir como os outros participantes reagiam a esta
posição. Diante da pergunta - se o caminho individual seria a saída [51] -, Antenor
capitula, dizendo que não era uma questão de saída. Gabriel intervém validando a
posição de Antenor de que não dá para apostar e muito menos esperar uma
mudança mais ampla da sociedade. Vale ressaltar que [na linha 53] Gabriel usa a
expressão ‘pessoas ditas normais’ que não fez parte do seu vocabulário até aquele
momento, indicando que na interação com os demais ele foi se apropriando de
artefatos lingüísticos que circularam pelo grupo. Na defesa da ação individual,
tanto Gabriel quanto Antenor, usaram o argumento da lentidão dos processos
sociais em contraste com a necessidade que eles têm de não perder tempo
4
. Se
isso é válido para todos, como fazem questão de frisar, no nosso caso [...] é um
pouquinho mais sério’, completa Gabriel. Esse uso do pronome possessivo nosso
caso o posiciona como pertencente ao mesmo grupo dos demais o grupo das
pessoas com deficiência, diferente do que havia acontecido na entrevista
individual, onde Gabriel não se incluiu neste grupo.
A repetição da imagem de lutadores incansáveis me faz provocá-los
perguntando se viver assim não é extenuante.
4
A vivência qualitativa do tempo, no caso das pessoas com deficiência, daria uma questão
interessante para ser aprofundada, uma vez que a necessidade de estimulação precoce, a
dificuldade de ter um ritmo diferenciado para fazer as coisas, a vontade de acompanhar seu grupo
etário na escola e a baixa expectativa de vida em alguns quadros, configuram pressões
importantes nessa percepção de ‘não poder perder tempo’.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
205
Lia se dispõe a responder, trocando a figura do lutador pela de um ser
humano qualquer que tem seus momentos de fragilidade e de força, enfim, vive
altos e baixos.
A situação de deficiência pode fazer com que atos aparentemente simples
como se locomover, pegar objetos, achar um endereço ou marcar as questões
numa prova, exijam esforços consideráveis. Admitir esse esforço sem cair no
lugar da vítima ressentida é uma das tensões que permeiam as narrativas de
pessoas com deficiência (Linton, 1998). Há momentos em que esse esforço parece
vão, como diz Lia [trecho 55], posicionando-se como alguém tomada por
questionamentos sobre o sentido de toda sua luta. Os exemplos elencados de
momentos de desânimo são de ações que a invalidam socialmente – como o
professor que queria ‘devolvê-la’ para a escola especial [56] ou aqueles que a
olham como coitadinha e dependente [61]. Na narrativa de Lia, a fonte da alta ou
baixa estima emerge da nossa condição de interdependência, do fato de sermos
seres feitos nas relações – institucionais ou afetivas. A questão da alteridade, de se
deixar alterar pelo outro, aparece aqui como crucial: ‘o que te dá valor é a ligação
pessoal’ [56].
A estratégia sugerida por Antenor para reagir aos olhares e sentimentos de
baixa estima é transformar a desconfiança alheia em desafio e motivação para
entrar numa aposta que tem como trunfo poder ‘jogar na cara desse pessoal’ a
própria capacidade de auto-superação.
O contraste entre as posições de Antenor e Lia se pela questão: a auto-
estima vem de onde? Para ele, é uma questão de foro íntimo, de chacoalhar a si
mesmo diante do espelho. Para ela, é uma questão de relação e afeto. Essas duas
posições têm conseqüências diferentes. Alguns analistas (Kassar, 1998 e Marques,
2003) fazem uma aproximação da cultura da superação individual com o discurso
liberal (ou neoliberal) do self made man, ou seja, do indivíduo que ascende
socialmente à custa do seu esforço e ascese. A idéia da superação, vista pelo
ângulo do modelo social de deficiência, é uma tarefa complicada, na medida em
que a pessoa excluída, ao tentar superar, sozinha, os entraves sociais que recaem
sobre ela, acaba naturalizando a seleção e exclusão dos menos capazes, ou melhor,
dos que não têm tanta força de vontade. Para escapar desta armadilha, o ativismo
que abre a posição de uma identidade deficiente, confronta a responsabilização do
indivíduo e de sua família ao compartilhar histórias de discriminação e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
206
invalidação. Essas narrativas permitem que os sentimentos de frustração e
impotência sejam compreendidos como uma experiência social e coletiva e não
como eventos isolados e pessoais. Quando demonstramos que cada caso não é um
caso à parte (Fonseca, 1999), expomos a regra.
O efeito do discurso relacional, atualizado por Lia, é de atenção às
interações e à intersubjetividade, uma vez que elas compõem o que somos. Nesse
regime de verdade, a responsabilidade individual é uma operação de seleção e
filtragem - através de recursos de crítica - daquilo que vamos fazer com o que
fazem conosco.
A posição de Lia, de mais velha do grupo, lhe confere uma maturidade e
ponderação que trazem elementos mais complexos às análises simplificadas que
são feitas pelos outros interagentes. No excerto 61, ela contrapõe o voluntarismo
da terapia do espelho dizendo que o controle que temos sobre os fatos é uma
ilusão que pouco corresponde ao real. Quando diz muitas vezes, o que a gente
NÃO espera é o que acontece’ ela o está se posicionando no registro da queixa,
mas de quem abre espaço para o inusitado e para a necessidade de atenção às
relações e às oportunidades. De maneira análoga à de Ruth, Lia sugere que é
melhor estudar os obstáculos e respeitar os próprios limites do que desafiar a
priori qualquer limite. Lidar com as próprias expectativas, de forma a celebrar as
pequenas coisas da vida, é o trabalho sugerido. [na individual tinha o dilema,
querer demais ou contentar com muito pouco]. Essa forma de encarar a vida tem
semelhanças com outras mulheres com deficiência (Miner, 1997; Gil 2001), o que
pode indicar um cruzamento identitário com a questão do nero, que a
necessidade de controle é uma exigência cultural que recai mais sobre o gênero
masculino.
5.3
O outro ignorante – um novo sujeito a corrigir
Quadro 10
79. AC Esse lance das perguntas bobas, pra mim depende da interpretação. É que
as pessoas precisam entender o que te acontece para te ajudar.
80. IC Às vezes a pessoa nunca teve oportunidade de conversar com alguém e
quando te viu na rua faz questão de conversar.
81. MC É até interessante a gente aproveitar a oportunidade. Em vez de quando
alguém chegar você um fora. o, você tenta mostrar educadamente como é
que é feito, como é que se faz, é uma oportunidade de conhecer.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
207
82. AC Uma saída que eu criei pisso, porque eu não fico chateado, mas às vezes
eu fico sem graça, é que eu costumo dizer, quando a pessoa já me conhece: ‘olha
só, o jornalista sou eu, eu é que tenho que fazer pergunta.’ Prá amenizar um
pouco quando as pessoas ficam sem jeito de me perguntar e quando acabam
perguntando acabo que eu é que fico sem jeito dependendo da pergunta que ela
faça. Aí eu faço essa brincadeira.
83. FC Se a pessoa não te conhece, exemplo na universidade; um colega meu leva
um susto de te ver e quer saber o que você faz, o que você não faz. Te fazem
bastante perguntas. E nisso eles podem me ajudar melhor, sabendo que eu não
enxergo o quadro eles copiam a matéria prá mim e assim vai indo.
84. PC Hoje vocês estão num estágio que vocês educam os outros a lidar com
vocês.
85. GC Eu acho que a maioria das vezes as pessoas não fazem de sacanagem.
Fazem porque elas não conhecem, não sabem como lidar e acabam fazendo uma
pergunta idiota. Eu me lembro de uma ascensorista nova perguntar prá minha
mãe, se eu falava! Isso agora é muito pouco, na faculdade quase o acontece.
Mas na cidade onde meus pais moram, eu tava numa loja e em vez do cara
perguntar qual era o meu nome, ele perguntou prá minha mãe, qual era o meu
nome. Aí eu respondi, meu nome é Gabriel. Então às vezes as pessoas fazem esse
tipo de pergunta, mas o é porque// é porque elas não sabem. Eles acham que
você tem uma deficiência mental, porque você tem dificuldade de se
locomover.
86. P Vocês sentem nesses momentos uma certa invisibilidade, é como se vocês
fossem invisíveis? Porque teve um moço que fez uma tese sobre os garis, ele
trabalhou como gari e lançou essa tese, que tem pessoas que estão no mundo mas
é como se elas estivessem invisíveis. Então vocês falam: ‘bom mas as pessoas
não conhecem’, mas sempre teve um monte de gente por aí, mas não ganhava a
rua.
87. GC Eu acho que você não notar uma pessoa com deficiência na rua é muito
difícil, porque ela geralmente destoa. Por exemplo, uma cadeira de rodas não é
normal você ver uma cadeira, aqui no Brasil e a pessoa andando de ônibus. Então
nesse caso não é muito aplicável. São vistos mas de uma maneira diferente, as
pessoas não sabem como lidar, com a gente.
88. LC Eu não sei se é bem isso. Eu acho que tem pessoas que se aproximam sim.
Mas que a qualquer momento, não é nem nas perguntas, que a qualquer
momento, pode ser o teu melhor amigo. Mas que a qualquer momento ele vai te
falar alguma coisa, que você vai se sentir// Mas não é com uma pergunta, é o
modo como chegar a você, é o modo como lidar com você. Eu não sei o que quê
é, mais é muito chato você tar com alguém e de repente vê que aquela pessoa tem
algum tipo de (...) preconceito, uma idéia mal formulada, uma idéia que você
discorda da tua idéia com relação à deficiência. Eu acho que o preconceito às
vezes, ele ta até, é, (...) não visível, ele ta quase invisível, mas que você vê
através de uma palavra, num modo de agir, de um olhar, de um gesto, você
percebe. Então eu queria sair do campo da ignorância, eu queria ir mais fundo, eu
acho que tem um preconceito que você talvez por falta de conhecimento, ou por
modo de ver o mundo, tem preconceito de nível pessoal, de pessoa prá pessoa. E
de repente uma pessoa que você ama, adora, seu amigão, sua amigona e você
PERCEBE lá no fundo aquela idéia divergente e você diz: ‘meu Deus! O que quê
essa pessoa tá me dizendo tá me desconstruindo toda!’
O enunciado de que as reações adversas em relação à deficiência são fruto
da ignorância sobre as potencialidades das pessoas com lesão é facilmente
perceptível nos discursos brasileiros. Ele é mote da campanhas ser diferente é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
208
normale objeto de ‘manuais de mídia’, por exemplo (Lacerda, 2005). O tópico
da ignorância foi retomado na entrevista coletiva [quadro 10], inicialmente com
as ponderações de Antenor, Isis e Matias, que se posicionam como
transformadores da curiosidade alheia (mesmo das perguntas bobas) em
oportunidade de prestar esclarecimentos sobre si, recusando a posição de quem se
ofende facilmente.
Nas entrevistas individuais de Lia e Gabriel, foram narradas algumas
situações onde pessoas se dirigiam aos seus acompanhantes para perguntar seus
nomes ou outra informação a seu respeito. Nos dois casos, estes outros foram
posicionados como preconceituosos e essa atitude como diminuidora. Na
entrevista coletiva, os mesmos exemplos foram retomados, mas, desta vez,
aqueles que os abordam na rua, pressupondo incapacidade, foram posicionados
como ignorantes e não como preconceituosos. Gabriel, afirmou que as perguntas
idiotas não são feitas por maldade, alinhando-se à posição dos outros
interagentes. Nesta perspectiva, em vez da reação agressiva que o primeiro
enquadre recomendava, outras atitudes são citadas. Em vez da indignação, aparece
a paciência para mostrar ao outro ignorante que ele está se baseando num
conceito equivocado - por exemplo: que as pessoas com deficiência física
necessariamente têm deficiência mental. Diante do outro ignorante, muitos deles
tomam para si a responsabilidade de ensinar a lidar consigo, dizendo aos
professores como avaliá-los, pedindo aos colegas para ajudar de determinada
maneira, pedindo, no ponto de ônibus, que alguém os ajude, mostrando como
segurá-los ou guiá-los numa situação de rua. Outra estratégia mencionada foi o
humor. Antenor, disse que quando alguém lhe faz alguma pergunta
constrangedora ele responde em tom de brincadeira: o jornalista aqui sou eu,
quem tem que fazer as perguntas sou eu. [82]
Lia, na posição de quem aprofunda a discussão, intervém para sair do
campo da ignorância’ [88] e propor uma distinção entre a falta de conhecimento e
o preconceito, que circula no discurso hegemônico e aparece na boca de quem
menos se espera. Ela sustenta que o impacto de uma idéia desvalorizadora, vinda
de um desconhecido (um outro ignorante), tem um efeito menos devastador do
que quando circula pelo discurso de alguém próximo, íntimo, alguém em que se
confia. Uma vez que a validação social é dada nas relações subjetivantes, uma
palavra ou um gesto preconceituoso vindo de alguém suposto de sustentar sua
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
209
posição de pessoa plena, tem força de uma desconstrução [trecho 88] Meu Deus!
O que quê essa pessoa tá me dizendo tá me desconstruindo toda!
Esse entendimento de que o preconceito atua através das pessoas que nos
conhecem, traz a dimensão social do pensamento e mostra o quão sorrateiras são
as tais barreiras invisíveis que se conservam na linguagem. A análise do discurso
se presta a iluminar o que Lia descreve como algo quase invisível, mas que você
‘vê através de uma palavra, um gesto’. Mais importante do que brigar por este ou
aquele termo que se sucedem sem esvaziar o veneno, talvez seja mostrar a
historicidade de expressões e palavras naturalizadas pela cultura, que acionam as
barreiras invisíveis tais como: retardado, autista, down, usadas largamente como
atributos desqualificadores. A percepção do mecanismo de construção dessas
barreiras tem, como conseqüência, a inversão do sentido de quem é o sujeito a
corrigir. Explico: se na ‘invenção’ da anormalidade, os saberes médicos se uniram
aos jurídicos para enquadrar os indivíduos ao corpo social, mesmo que
trancafiados em hospícios e escolas segregadas (Foucault, 2002), a pauta dos
Direitos Humanos instala uma série de declarações e leis que transformam os
comportamentos racistas, xenófobos, sexistas [eficientistas, etc. -
complementaria], como formas de discriminação a serem coibidas. Assim, a partir
de um modelo social de deficiência, o que precisa ser ‘corrigido’ ou ‘reabilitado’
são os comportamentos que discriminam negativamente outros humanos. Além
disso, o outro ignorante não é necessariamente alguém sem conhecimentos. No
extrato abaixo [45], por exemplo, Lia relata sua entrevista com a neurologista
encarregada de sua avaliação para ocupar a vaga do emprego para o qual tinha
sido aprovada. A medica é posicionada como uma pessoa ignorante, que fantasia a
deficiência, e não como alguém que tem um saber a ser respeitado.
45. LC [...] Quando eu tava com a neurologista bam-bam-bam, ela perguntou:
‘você vai ao banheiro sozinha? [ri] ‘Você usa o computador sem adaptação?
Você anda de ônibus?’ [ri] O que quê tem eu andar de ônibus? Eu podia ter
motorista né? Não podia? É um direito que eu tenho. Sabe, então acho que essas
questões são meio loucas. As pessoas fantasiam a deficiência. E era uma
neurologista!
5.4
Balanço de posições
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
210
Ana Maria Crespo, no artigo Nem coitadinho nem super-herói (1995:2),
critica as duas posições mais disponíveis para as pessoas com deficiência no
Brasil, por serem duas faces da mesma moeda.
“Estas duas visões embora diferentes inspiram, cada uma a seu modo,
atitudes sempre danosas para inclusão e a dignidade dos portadores de
deficiência. De um lado, a imagem de coitadinho inspira atitudes paternalistas,
assistencialistas e caritativas, ou seja, exclui toda noção de respeito aos mais
básicos direitos como, por exemplo, o da autodeterminação. De outro lado, a
visão de super-herói induz a que se desconsidere a necessidade de a sociedade
remover os obstáculos que dificultam a vida dos deficientes, que a força de
vontade, a coragem e a determinação dessas pessoas seriam suficientes para que
fossem bem-sucedidas na vida e, em decorrência, serem integradas à sociedade.
Neste caso, a noção de cidadão com direitos também é excluída.”
No entanto, mesmo sendo criticadas e havendo sinais de que outras
posições estão sendo ocupadas, na entrevista coletiva, esta dicotomia ‘coitado-
herói’ parece ter funcionado ainda como a matriz principal dos posicionamentos
dos entrevistados. Para escapar do lugar de coitadinhos e toda a carga de
dependência e proteção incapacitante que ela traz consigo, aciona-se o lugar de
exemplo de superação individual. Essa não foi uma posição unânime no grupo,
podemos destacar na fala de Lia e no silencio de Isis algum distanciamento destas
posições, mas o efeito de grupo fez prevalecer a idéia de que remover os
obstáculos que dificultam a vida dos deficientes é mais difícil do que tocar a vida
com força e vontade de lutar pessoalmente contra os obstáculos. Nesse sentido, a
formação discursiva mais acionada é a da integração, ou seja, cada um se
adaptando ao meio para viver melhor.
Em contrapartida, podemos dizer que o discurso da não diferenciação entre
as pessoas seja pela via do somos todos seres humanos’, ou somos cidadãos e
pagamos impostos como os outrosou ainda todo mundo é deficiente em alguma
coisa’ foi um ponto de convergência.
O apagamento da diferença e a recusa de identificação com a posição
‘pessoa com deficiência’ distanciam os entrevistados de qualquer possibilidade de
ativismo, na lógica da ação afirmativa. No entanto, é interessante perceber que
muitos deles estão encontrando portas abertas para se incluírem na sociedade,
justamente, no nicho de ‘pessoas com deficiência’. Vejamos. Antenor entrou na
universidade pelo sistema de cotas, foi bolsista do PRB e apresenta um programa
na webrádio da universidade que trata de questões da deficiência. Lia é professora
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
211
do Estado numa escola especial, sua dissertação de mestrado versou sobre as
representações de professores sobre alunos com paralisia cerebral e ela acabou de
passar num concurso utilizando o sistema de cotas de trabalho. Ruth é professora
de braille para pessoas que acabaram de ficar cegas num instituto especializado
em cegos e pretende fazer mestrado em educação para trabalhar a relação entre
conhecimento e identidade de pessoas com deficiência (visual). Matias é professor
de braille para não cegos e faz curso de especialização em educação especial.
Josué tem o projeto de trabalhar na Associação que foi fundada graças ao esforço
de sua mãe e o tema da sua monografia de final de curso estava ligado a
problemática da anormalidade. Flávio tinha pensado em trabalhar com pessoas
com deficiência mas está num momento de indecisão.
Apenas Gabriel pretende trabalhar com jornalismo esportivo, não ligado à
deficiência. Teria vontade de participar de paraolimpíada, se houvesse prova de
escalada. Sua decisão pode ter relação também com sua posição de classe, que
esta costuma ser, num país com a estrutura de desigualdades como a do Brasil, o
melhor preditor das oportunidades de trabalho.
O princípio de identificação, que está na base dos grupos de apoio mútuo -
tais como Alcoólatras Anônimos, Narcóticos Anônimos e outros - e que constitui
um pilar da positivação da deficiência em outros países, não é uma referência
entre os sujeitos entrevistados. Assim, temos que a posição que tem mais adesão
entre os participantes desta pesquisa é que criar uma identidade coletiva de
pessoas com deficiência é algo indesejável. Revisitando o mote Nada sobre nós
sem nós podemos nos perguntar quem serão aqueles que ocuparão este nós, se
as pessoas com a experiência da deficiência e boa formação recusarem essa
posição?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
6
Considerações finais
6.1
Voltando às questões teóricas com ajuda da empiria
Nesta terceira parte do trabalho, gostaria de propor uma mirada no
conjunto das entrevistas, retomando as perguntas que foram formuladas ao longo
da pesquisa para ver em que medida a análise dos dados empíricos fornece pistas
de respostas.
Os dados estatísticos sobre as pessoas com deficiência no Brasil (Neri,
2003), indicam que ainda uma correlação cíclica entre lesão-pobreza-baixa
escolaridade-invisibilidade social. Esse ciclo alimenta concepções hegemônicas
sobre o corpo normal, construídas na cultura ocidental, pelo menos, desde o
século XVIII (Foucault 2001), que associa à deficiência atributos como
incapacidade, feiúra, pesadelo, castigo etc.
No campo da educação brasileira, crescem as matrículas inclusivas e
decrescem a das escolas especiais, embora as pesquisas sobre práticas escolares
(Banco Mundial 2003) apontem o que tem sido chamado de inclusão nas escolas
públicas nacionais não é digno de comemoração. Não obstante, mudanças
profundas estão sendo engendradas a partir das últimas décadas do século XX
para redefinir a deficiência. Um ponto importante nesta virada tem sido a
renovação dos movimentos sociais das pessoas com deficiência (disability rights
movement) que passaram a ser protagonizados por pessoas com a experiência da
deficiência e, não mais, por seus tutores. Assumindo sua capacidade de
participação, os novos ativistas utilizam estratégias assemelhadas aos de outros
grupos minoritários tais como: a produção de conhecimento teórico, a produção
de artefatos artísticos e a criação de comunidades de prática. O resultado deste
conjunto de estratégias é o deslocamento das pessoas com lesão da posição de
objetos de caridade para a de agentes de confrontação (Fleischer & Zames,
2001). As mudanças ocorridas no movimento internacional têm repercutido, no
Brasil, com a organização nacional das entidades ligadas aos interesses deficientes
e foram catalisadas em função do Ano Internacional da Pessoa com Deficiência,
promovido pela ONU em 1981:
“Em 79 aconteceu a primeira iniciativa para reunir as várias áreas da
deficiência e começar a organizar o movimento em todo país para preparação do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
213
Ano. Comecei atuar na luta em 78 por meio da ADEFERJ (Associação dos
Deficientes Físicos do Rio de Janeiro) e logo em seguida as primeiras
confederações nacionais começaram a ser constituídas: ONEDEF, FEDEC,
FENEIS, Morhan, APAE, Pestalozzi, FEBIEX. Todos se reuniram para começar
a discutir pautas de luta e como se organizar junto com os órgãos de governo.
Era o começo, estávamos criando uma identidade própria para a pessoa com
deficiência
1
, ‘nada sobre s sem nós’.” (Entrevista com Rosangela Bieler -
Boletim Sentidos n
o
26 )
A alusão de que um movimento de criação de uma identidade própria
das pessoas com deficiência entre nós, remete à pergunta inicial desta pesquisa:
Que lugares sociais as pessoas com deficiência estão ocupando em
nossa sociedade, hoje?
Embora não tenha a pretensão de generalizar os dados produzidos nesta
investigação, gostaria de trazer para esse espaço o que foi evidenciado na análise,
a fim de levantar hipóteses e indicar caminhos para novos debates. Retomando as
narrativas, podemos dizer que os participantes da pesquisa, individualmente e em
grupo, consideraram que ocupar o posicionamento de pessoa com deficiência
articulado numa identidade coletiva é indesejável. As estratégias de
indiferenciação (normalização) e da superação dos limites pelo esforço individual
com apoio familiar aparecem em destaque. Os movimentos sociais são
desacreditados e as políticas públicas na lógica da ação afirmativa o utilizadas,
mas rechaçadas no discurso. A única pessoa que teve experiência de militância na
área, posicionou-se como reticente da efetividade desta luta por direitos
específicos, tal como está configurada na cidade onde mora, fortalecendo a
posição de descrédito dos demais.
De acordo com o que vem sendo dito, podemos sugerir que os Disability
Studies, ao questionar a lógica da ação individual por atribuir às pessoas com
deficiência todo o ônus da sua marginalização e propor estratégias de ação
coletiva, através de uma agenda comum às pessoas com deficiência -, estabelecem
um discurso que colide com algumas características do discurso dos entrevistados
e nos remete à problemática da representação das diferenças, na subjetividade
nacional.
Para enfrentar esta questão, farei uma interlocução com alguns textos de
Meriti de Souza (2004 a, 2004 b e 2006) sobre a formação de uma ‘subjetividade
1
Grifo meu.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
214
brasileira’. A autora parte do referencial psicanalítico freudiano para pensar os
processos de construção da identidade, retomando a concepção de que a
subjetividade humana é cindida entre paixão (pathos) e razão. Como esta cisão é
fonte de angústia, o jogo de forças que constitui o campo psíquico busca todo o
tempo um equilíbrio, um estado de percepção de que somos unos e completos.
Para obtermos essa ‘ilusão de completude’ uma parte dos conteúdos constituintes
do campo psíquico é excluída, ficando inacessível à consciência e a outra parte
passa a ser considerada o todo. A exclusão não significa que esses conteúdos
desaparecem. Eles continuam atuando e sustentando a configuração da
consciência. Pois bem, as questões que Meriti de Souza se põe, a partir deste
referencial e da análise da história do Brasil, são: nas narrativas sobre o país
Brasil, e sobre os brasileiros, o que é expurgado? (...) Nas representações
identitárias construídas pelos brasileiros, qual o excluído que sustenta essas
concepções?’ (Souza, 2004b:4)
A interpretação de Souza é que as narrativas da história oficial que se
construíram sobre o país produziram mitos, como o da cordialidade e da
miscigenação harmônica das raças como atributos comuns ao povo brasileiro.
Para sustentar esses mitos, a extrema violência (da escravidão e da nossa
desigualdade) e a apropriação espúria do princípio de igualdade
2
, foram varridos
para debaixo do tapete (expurgados). A eficácia dessas narrativas pode ser
comprovada, na medida em que, apesar da experiência cotidiana de discriminação
de várias ordens (culturais, sociais, econômicas), o discurso do homem cordial,
pacífico e gentil permanece atuante. As conseqüências da eficácia desse
discurso são a inviabilização de posicionamentos que confrontem o caráter
cortês e deixem à vista nossa capacidade de gerar violência e injustiça. Essas
características, aliadas a práticas como o clientelismo, a gestão dos negócios e
do dinheiro público, criam o caldo cultural que alimenta o desinteresse das
pessoas comuns pelas atividades públicas e afastam grande parcela da população
da vida política. Reforçando essa distância, cuja produção é bastante interessante
para determinados segmentos da elite nacional, ressalta-se ainda a produção de
subjetividades que valorizam o íntimo e o individual, o universo da casa e das
2
Embora o Brasil tenha adotado uma Constituição liberal quando se tornou Independente,
continuou admitindo a escravidão. Isso gerou uma situação onde o discurso oficial era de
igualdade e as práticas eram hierárquicas com base no patrimonialismo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
215
relações afetivas e se reconhecem, prioritariamente, a partir de modelos
identificatórios engendrados no e pelo espaço privado (Souza, 2006).
Esse cenário nos elementos para entender uma tendência da sociedade
brasileira de ter dificuldade em lidar com a diferença e aderir facilmente ao
discurso da igualdade mesmo enquanto os dados sociológicos nos espelham como
campeões da desigualdade. Outro elemento interessante é nossa aposta
preferencialmente nas soluções individuais e apoio nos círculos familiares mais do
que nas soluções públicas e na via do encaminhamento político da concretização
de direitos.
Tendo isso em tela, investigaremos como o mito da cordialidade e o
recalque da violência podem estar agindo nas narrativas de história escolar
apresentadas.
Principalmente na interação coletiva, os entrevistados esboçaram a
percepção de que a maioria da população é receptiva às suas diferenças, tanto na
escola quanto na rua. O problema que colocam é que, para ajudá-los, não basta
boa vontade. É preciso um saber que não está a disposição da maioria da
população. Assim, eles se colocam como quem foi entendendo, ao longo da vida,
que precisavam ensinar as pessoas a lidar consigo, posicionando-se como agentes
educativos no espaço público.
Matias cita como exemplo, pessoas que queriam ajudá-lo a atravessar as
ruas apoiando com força no seu ombro, o que lhe causava incômodo, já que, ele
sentia dores de coluna. Antenor, fala da sensação de insegurança quando tentam
carregá-lo pegando na cadeira de rodas sem o cuidado necessário. Ao encontrarem
colegas ou transeuntes dispostos a lhes ajudar, eles precisam dizer o que é preciso
fazer e os ‘cidadãos de boa vontade’ precisam saber escutá-los.
As manifestações explícitas de preconceito e discriminação foram
caracterizadas como partindo de uma minoria ou simplesmente negadas. O mito
do brasileiro cortês é atualizado nessas posições e a sociedade brasileira é
retratada como culturalmente propícia à inclusão, mas despreparada para fazê-lo.
O enunciado do despreparo é recorrente também na fala dos professores de
escolas regulares (Marques 2001). Podemos considerar que as pessoas aqui
entrevistadas estão hoje localizadas socialmente em espaços que confrontam os
estereótipos mais desqualificadores, o que pode inibir que sejam postos em
posições mais humilhantes que poderiam lhes ser impostas se estivessem numa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
216
situação de exclusão do mundo da produção. Ainda, para manter um afastamento
da identidade deficiente pode ser conveniente não reparar nas atitudes
discriminatórias – como faz Gabriel quem discrimina, não me interessa.
No entanto, no cenário da harmonia, aparecem algumas ponderações que
mostram como o avesso da cordialidade irrompe nas suas vidas. Lia disse que as
atitudes discriminatórias, às vezes, vêm de onde menos se espera e atravessam os
atos de fala das pessoas mais confiáveis. Do analista ao primo, do professor ao
namorado, todos, em algum momento, se fazem sujeitos de discursos que
consideram as pessoas com deficiência menos capazes, ou atraentes, ou eficazes,
por apresentarem lesão. Fábio lembra dos colegas e professores que ‘não se
conformavam’ com sua diferença e faziam quase uma exigência para que ele se
normalizasse. Josué relata que foi chamado de ‘doente’, foi considerado ‘café com
leite’ pelos vizinhos e presenciou situações onde outras pessoas com deficiência
foram impedidas de participar da vida social, tendo como desculpa a sua própria
proteção. Matias foi ele mesmo, objeto de uma proteção que o ‘prendeu em casa’
nos primeiros anos de vida. Com todos esses episódios, o posicionamento mais
pregnante do conjunto dos entrevistados foi que a discriminação não acontece por
maldade e não deve ser motivo de confrontação e sim de paciente ensino para
correção.
Retornando à tipologia de identidades proposta por Shakeaspeare
(1996:96/97), podemos localizar os discursos dos narradores como mais próximos
do tipo 1 O modelo social que foca a deficiência como uma relação entre
pessoas com lesão e uma sociedade discriminatória. (...) Tudo que as pessoas
com deficiência querem é ser tratadas como iguais, não devendo haver nenhuma
distinção entre quem tem ou não lesão”.
No caso brasileiro (ou carioca), os ecos do mito do homem cordial
sugerem o seguinte ajuste: tipo 1 - modelo social que foca a deficiência como
uma relação entre pessoas com lesão e uma sociedade ignorante’. O
enquadramento dos comportamentos preconceituosos como ignorância e não
como discriminação pode ser evidenciado na figura do outro ignorante, que
apareceu na análise da entrevista coletiva.
Isso pode significar que a falta de penetração dos Disability Studies no
Brasil, pode não ser uma questão de mero desconhecimento, mas de falta de
condições de possibilidade de emergência de um discurso mais confrontador, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
217
aponte para a violência social e para a hierarquização das diferenças sob o manto
do discurso de igualdade.
Trabalhando no campo da educação, interessa saber qual a contribuição
dos discursos educacionais para a abertura de espaços de participação para essas
pessoas que historicamente foram expurgadas da consciência educacional.
Voltemos então aos desdobramentos da pergunta inicial da pesquisa:
Que lugares sociais o discurso educacional disponibiliza para pessoas com
deficiência em nossa sociedade?
Endereçando a esta questão, passarei a interpretação dos discursos
educacionais que os entrevistados ratificam, tendo como referência as formações
discursivas propostas por Marques (2001 e 2003). Relembrando - os discursos
pedagógicos disponibilizariam três posições sicas para os sujeitos com
deficiência: 1) o de desviante da normadiscurso da segregação; 2) o diferente
de determinado padrão social discurso da integração e 3) o indiscriminado
na sua diversidade discurso da inclusão. Enquanto os dois primeiros
desviante e diferente são atributos do sujeito, a indiscriminação é um determinante
da sociedade, que não classificaria seus membros, uma vez que todos somos
diversos uns dos outros.
Na fala dos participantes da pesquisa, o desejo de não ser discriminado
equivale a se sentir normalizado e se mostrou um discurso muito atraente. No
entanto, ele convive com práticas de inserção em espaços sociais na base da
discriminação positiva e com várias situações de exclusão no universo escolar
(falta de material adaptado, falta de estratégia dos professores, isolamento dos
colegas etc.).
Antenor e Gabriel tocam notas dissonantes ao discurso inclusivista ao
assumirem que não apostam suas fichas nas mudanças sociais e, sim, nos recursos
que possam ser acionados para adaptá-los à sociedade. Na adesão a determinada
identidade, além dos aspectos já mencionados da conformação da subjetividade
nacional, devemos levar em conta outros atributos. Por exemplo, Gabriel, que tem
uma condição socioeconômica privilegiada em relação aos demais, é o que se
posiciona mais claramente como ‘não deficiente’. Outra observação é que as duas
pessoas mais velhas, que também são as duas mulheres, Lia e Ruth, são as que
relativizam a importância de ser igual (normal). Ruth diz claramente que o desejo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
218
de ser igual a todos não é mais importante para ela e Lia, diz valorizar sua
identidade pessoal que é mais rica do que uma pretensa normalidade ou uma
diferença com base na lesão. Essa posição corrobora os estudos de Gilson & De
Poy, (2004) que mostram como os jovens e adolescentes com deficiência
costumam acionar o discurso da indiferenciação muito mais do que os adultos
com as mesmas lesões. Penso que um dos pontos interessantes apontados pela
presente pesquisa é que, o tipo de lesão (cegos e paralisados cerebrais, por
exemplo) foi menos aglutinador das posições identitárias do que
características de gênero, idade e classe social. Este dado merece ser
aprofundado, em estudos futuros, para repensar as práticas educativas que
utilizam como marcador prioritário o tipo de deficiência.
Continuando a análise das entrevistas, uma consideração a fazer é que Lia
e Matias, tiveram uma formação acadêmica com ênfase em educação especial ou
inclusiva, tendo sido mais expostos aos discursos pedagógicos. Matias adere ao
discurso da diferença para acionar a autoridade da experiência da deficiência
como importante força formadora que pode ser posta a serviço da educação de
outras pessoas com deficiência. Essa posição é referendada por Ruth, quando
disse que o fato da sua segunda professora itinerante ter sido cega como ela
favoreceu a relação das duas e, consequentemente, sua aprendizagem. Lia (assim
como Fábio) valorizou a presença de outros colegas com deficiência na sua turma
de escola, além disso, ela leciona numa escola especial, mas tem uma visão de que
é perigoso dar ênfase a lesão na formação das identidades.
Outra informação que não devemos perder de vista é que 4 das 7
trajetórias escolares mesclam instituições especializadas e escolas regulares. Na
construção de suas memórias, a contraposição entre segregação e inclusão,
presente no discurso pedagógico, não foi associada diretamente ao tipo de escola
freqüentada, mas, principalmente, à qualidade do ensino que receberam. Em
outras palavras, nos discursos analisados, o antagonismo escola especial versus
escola regular
3
ficou menos marcado do que escola que ensina x escola que não
ensina (ou que possibilita uma melhor estratégia de aprendizagem). Os narradores
que passaram pela experiência das instituições de educação especial, por mais que
tenham críticas a fazer, pensam que elas ainda têm uma função a desempenhar, na
3
Refiro-me aqui a educação especial como espaço institucional e não como modalidade
educativa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
219
medida em que detêm um saber específico que pode ajudar alunos com maiores
dificuldades de aprendizagem. No entanto, ressaltam que a educação especial
entendida como modalidade institucional - deve ser apenas uma etapa da
escolarização para evitar, aí sim, dependência e segregação.
Vale ressaltar que a oferta de escolas especiais no Rio de Janeiro é atípica,
pois a cidade concentra uma série de serviços públicos que não estão disponíveis
em outras cidades brasileiras. Podemos citar, como exemplos, as duas instituições
federais pioneiras – o Instituto Benjamin Constant (IBC), para cegos e deficientes
visuais e o Instituto Nacional para Ensino de Surdos (INES). Isso confere uma
outra institucionalidade a estes espaços e fazem do Rio um pólo educacional
especial. Por exemplo, a família de Ruth, migrou da Bahia para poder educar o
filho cego, aqui.
Assim, podemos inferir que das três formações discursivas
disponibilizadas pela educação, as mais acionadas pelos entrevistados foram as da
inclusão (enquanto indiferenciação, como horizonte utópico), e a da integração
(enquanto estratégia de sobrevivência no universo escolar/social carioca).
Pensando que a posição deste pequeno grupo repercute a de movimentos públicos
em prol das pessoas com deficiência (Adiron, 2004) vemos que o discurso da
diferença é menos expressivo.
Retomemos agora o outro lado da moeda, ou seja, a segunda pergunta que
desdobra da questão inicial da pesquisa:
Qual é o papel atribuído ao processo de escolarização, no discurso das
pessoas com deficiência em nossa sociedade?
A primeira coisa que salta aos olhos é a diversidade de funções que a
escola assume nas narrativas estudadas. Talvez o traço mais convergente entre os
entrevistados é que é muito difícil entender suas posições e trajetórias, olhando
somente o que se desenrola no espaço escolar. Todo o aparato familiar joga um
peso importante, a inserção nas relações de vizinhança, os profissionais de
reabilitação, os dicos, os períodos de hospitalização, todos esses fatores fazem
com que a escola seja um dos espaços de socialização importantíssimo mas
que tem suas verdades relativizadas ou desafiadas pelas relações extra-escolares.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
220
Façamos um breve sobrevôo pelas trajetórias, verificando os tipos de instituição
freqüentadas e o posicionamento da escola nas suas vidas.
Antenor só fez a educação infantil numa escola privada, todo o restante foi
cursado em escolas públicas, sendo que, no ensino médio, ele freqüentou um
Centro Tecnológico que oferece condições de qualidade de ensino superior às
outras escolas da rede estadual. A demanda por vagas neste tipo de instituição, a
certificação profissionalizante e os cursos extra-classe que Antenor pôde
freqüentar: balé, esporte, coral, o a dimensão dessa diferença. Apesar desse
aparato, a escola para Antenor foi retratada, sobretudo, como um espaço de
socialização e de validação da sua capacidade de ‘fazer amigos e influenciar
pessoas’. A qualidade do ensino não foi ressaltada, e sim, a habilidade do narrador
em se locomover no espaço escolar com desenvoltura.
Fábio teve uma trajetória um pouco acidentada, com interrupções e
repetições, até chegar à escola especializada em deficientes visuais. Vale observar
que o apoio de uma sala de recursos na escola municipal, em que fez o primário,
foi considerado importante para seu aprendizado. Os dois primeiros anos na
escola especial parecem ter sido um investimento de retificação da trajetória que
depois entrou num fluxo mais contínuo. A saída da escola especial e entrada
novamente numa escola pública regular foi precedida de muito medo e angústia.
A presença de outras pessoas com deficiência no ensino médio foi caracterizada
como diluidora da pressão de ser ‘o diferente’ entre os iguais. A escolarização,
para Fábio, parece ter significado a única via para se profissionalizar e escapar do
destino de mendicância que recai sobre tantos deficientes visuais da camada
popular com baixa escolarização.
Gabriel teve toda sua trajetória em escolas privadas regulares. Seu
percurso não teve incidentes maiores e é apresentado como tendo sido tranqüilo e
linear. Algumas adaptações foram utilizadas tais como: andador, máquina de
datilografia, professor de apoio e intermediação dos pais na sua adaptação nas
mudanças de escola. A função da escola na sua vida parece ter sido,
fundamentalmente, provar sua capacidade cognitiva e distanciá-lo das suspeições
de que pessoas com lesões motoras têm sempre algum comprometimento
intelectual. A escola, neste sentido, certificou sua normalidade, ajudando a
converter sua diferença em estilo – ‘seu próprio jeito’.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
221
Lia iniciou sua escolarização numa escola especial, teve dificuldades em
se desvencilhar dos estigmas de incapacidade, que foram desafiados pela sua mãe
ao alfabetizá-la, à revelia dos prognósticos de que ela não estava pronta para isso.
Até ingressar no ensino regular passou por alguns percalços, mas, uma vez tendo
conseguido entrar, sua trajetória foi de ascensão, tendo passado em dois
vestibulares, feito pós-graduação e mestrado. As estratégias utilizadas foram a
adaptação de provas que eram feitas oralmente ou com opções de múltipla
escolha. A escola aparece com a dupla função de validar sua capacidade
intelectual e colocá-la em contato com pessoas com as quais ela estabeleceu
relações afetivas profundas.
Josué, assim como Lia, iniciou sua escolarização no serviço pedagógico de
uma instituição especializada em reabilitação. Identificou-se como o nerd (o
estudioso) da Associação, mas relatou dificuldades para passar ao sistema regular
de ensino. O apoio de uma psicopedagoga é relatado como decisivo para que ele
superasse tais obstáculos. Uma vez na escola pública regular, ele se dedicou
integralmente aos estudos até conseguir reconhecimento sobre sua capacidade
intelectual. Isto posto, ele foi buscar outro tipo de reconhecimento entre os pares e
junto às meninas, o que o desviou do percurso de bom aluno levando-o a
experimentações mais arriscadas. A retomada dos estudos se deu com relativa
facilidade e no ensino médio ele diz ter acessado uma relação com o saber que
não estava em função do reconhecimento do outro, mas em função do prazer que a
aprendizagem lhe proporcionava. Assim, a função da escolarização passou de
busca de respeito à sua capacidade de participar para ser também a busca da
aventura proporcionada pelo saber.
Ruth freqüentou sempre escolas públicas, inicialmente em escolas
municipais que ofereciam professores itinerantes - numa experiência pioneira de
inclusão -, depois, através de concurso, freqüentou uma escola pública federal
considerada de excelência. Toda a trajetória, incluindo a universidade foi
caracterizada como descontínua, não no sentido de rupturas ou percalços, mas no
sentido de real apreensão do saber. Em diversos momentos ela parece ter se valido
das prerrogativas da diferença visual para contornar suas dificuldades de
compreensão ou de interesse. As provas teóricas de matemática – que ela disse ter
inventado – e a participação de trabalhos em grupo onde ela só fazia as conclusões
baseadas no relato dos colegas, são exemplos disso. A visão retrospectiva da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
222
função da escola em sua vida parece ter sido inseri-la socialmente e, muito
importante, cumprir o desejo de sua mãe de vê-la graduada. Uma vez alcançado
este objetivo, Ruth foi trabalhar em algo não relacionado à sua formação superior.
Considera que as falhas na sua formação cobram um preço no presente e, para
ganhar consistência, pretende voltar a estudar e, quem sabe, construir uma nova
carreira profissional.
Matias teve uma breve passagem por uma pré-escola privada inclusiva e
logo em seguida foi aluno interno de uma escola especializada em cegos e
deficientes visuais. A condição de isolamento da família e a falta de estimulação
nos primeiros anos de vida parecem ter favorecido comportamentos de
inquietação e revolta no início da escolarização formal, que foi um tanto
conturbada. A partir da terceira série do fundamental a trajetória parece se
estabilizar. Na oitava rie ele se insere na rede pública regular, escolhe a escola
que lhe parece mais qualificada e, a partir de então, mostras de ter dominado o
jogo escolar e ter tido sucesso nos estudos, mesmo sem ter tido quase nenhum
material adaptado. A ajuda de colegas aparece como determinante no sentido
ascendente da trajetória. A faculdade é narrada como um espaço de frustração que
ele está tentando compensar com cursos de pós-graduação lato senso na área de
educação inclusiva. A escola aparece na sua vida como uma janela para o
convívio social. Depois, passa a representar a via que lhe trará independência
financeira através da profissionalização. Seu pertencimento ao grupo religioso
parece ser uma importante fonte de garantia de seu lugar na sociedade.
Uma possível leitura do conjunto das trajetórias é que, as escolas públicas
freqüentadas e o apoio familiar, forneceram as condições suficientes para cumprir
o percurso até a universidade, embora a qualidade deste ensino, em alguns casos,
tenha deixado a desejar. A presença de instituições federais nas trajetórias de
Antenor, Matias, Ruth e Fábio pode ser considerada um diferencial, pelo tipo de
investimento que estas instituições recebem, que não são as mesmas para a grande
maioria das escolas públicas brasileiras. Mesmo considerando as dificuldades que
também atravessam este sistema, devemos entender que, além do esforço
individual que pauta o discurso dos entrevistados, muitos deles se beneficiaram de
políticas públicas de educação inclusive na universidade sem as quais essas
trajetórias poderiam ter sido interrompidas de forma precoce.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
223
Isso o diminui a importância do seu esforço pessoal nem das estratégias
acionadas pelas famílias ao longo das suas trajetórias. O momento de passagem de
uma rede escolar especial para inclusiva é relatado tanto como angustiante
quanto excitante. O desejo de estar num ambiente menos restritivo e a recepção
dos colegas ditos normais’ são descritos como decisivos para uma passagem
menos traumática. Nas histórias de Josué e Gabriel
4
aparecem figuras de
mediadores (uma psicopedagoga e os pais respectivamente) que ajudam a preparar
a turma e os professores para recebê-los e tratá-los adequadamente. Matias
também cita a recepção calorosa que teve na oitava serie como sendo um fator
decisivo na sua adaptação. Esse trabalho parece especialmente importante nas
séries iniciais do ensino fundamental e nos momentos de mudanças de escola e
pode sugerir uma prática que favorece a inclusão escolar.
Como Foucault (2002) mostra, a figura do ‘indivíduo a corrigir’, que
aparece na Europa nos fins do século XVIII, tem como função sica atribuir ao
núcleo familiar a responsabilidade pelos cuidados e encaminhamento da sua prole,
particularmente dos incorrigíveis. Na medida em que as relações familiares
passaram a ocupar um núcleo do controle social, os pais foram responsabilizados
(culpabilizados e ou condecorados) pelo comportamento de seus filhos. Estudos
que focam a relação família-escola (Fourquin, 1993; Zago, 1994; Nogueira, 2000
e Brandão, 2003), mostram o quanto o mundo natal e a estrutura de capitais que as
famílias dispõem, são convertidos em sucesso/fracasso escolar. No caso das
pessoas com deficiência, no Brasil, as famílias não apenas apóiam a escolaridade
dos filhos, como m sido o grande agente impulsionador das conquistas por
direitos civis inclusive educacionais - relacionado a este grupo. Prova disso é a
relevância das APAES (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) na
estruturação de uma rede de atendimento para crianças que, até pouco tempo, não
tinham vez no sistema regular de ensino (Januzzi, 1985 e Mazzota, 2001). Assim,
se as pesquisas educacionais apontam a importância da contribuição familiar na
educação dos filhos, no caso das pessoas com deficiência essa vinculação costuma
ser ainda mais estreita.
O investimento familiar nas trajetórias educacionais aqui narradas foi de
várias ordens. De tudo o que foi feito, o destaque dado aos pais principalmente
4
Apesar de no caso dele não ter sido uma passagem de escola especial para regular.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
224
às mães foi a forma como disponibilizaram para seus filhos olhares e dizeres
que os posicionaram como pessoas capazes e dignas de um lugar ao sol. Nos
momentos onde essa capacidade foi posta em questão, estes pais atuaram
desafiando o cânone cultural e as estruturas institucionais escolares sustentando a
crença e confiança na capacidade de seus filhos. Isso é válido inclusive para a mãe
de Josué, que, apesar de ter falecido, continuou atuando nos posicionamentos do
filho.
A importância da família se deu também pela sua capacidade de acionar
uma rede de relações que ajudasse a posicionar seus membros no espaço social.
Ruth se beneficiou do caminho que foi sendo aberto pelo seu irmão, também
cego. Matias mencionou a influência de um ‘pistolão’, que veio da parte da patroa
de sua avó e viabilizou sua matrícula na escola especial. Josué fala da influência
de uma psicopedagoga, que passou a integrar seu círculo familiar, nos momentos
difíceis de sua carreira e Gabriel, releva a mediação de seus pais e terapeutas
como fator de seu sucesso.
Embora a subjetividade marcada pelo mito do brasileiro cortês tenha
atuado nos relatos, a contestação de certos vereditos escolares foi fundamental
para a longevidade escolar de alguns dos entrevistados. Lia relata a estratégia de
sua mãe de desafiar os prognósticos da escola e da recusa da escola que ela
permanecesse ali no segundo segmento do fundamental. Matias e Fábio falam de
como enfrentaram as profecias lançadas por professores, de que eles não
conseguiriam se adaptar às escolas regulares, devendo permanecer nas instituições
especializadas. Antenor relata os pedidos da escola de pareceres de especialistas
para dirimir suspeitas sobre o comprometimento da sua capacidade cognitiva.
Josué fala da sua luta para provar que conseguiria aprender e de como foi barrado
na entrada no ensino fundamental regular. Ruth conta o trauma da professora
itinerante que a repreendeu severamente, colocando-a numa posição de
humilhação. Gabriel é o único que não parece ter tido que lutar contra
prognósticos de fracasso, mas teve sua matrícula desestimulada numa escola. Vê-
se, portanto, que na maioria dos casos, para que a escola pudesse validá-los como
alunos que aprendem, foi preciso algum nível de confrontação das barreiras
impostas.
Em termos da construção de identidade de ‘aluno que conta’, alguns
aspectos merecem destaque. No caso dos homens o esporte, através da educação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
225
física, funcionou como validação da sua masculinidade e capacidade de
superação. Todos os entrevistados do sexo masculino se expuseram aos ritos
esportivos, especialmente o futebol, sendo que Antenor e Josué conseguiram um
reconhecimento público nas suas atuações como técnico e goleiro,
respectivamente. Gabriel tem uma relação forte com o esporte, pratica escalada e
pretendia, no momento da entrevista, se especializar em jornalismo esportivo. No
percurso escolar, conta que corria com os colegas, mesmo usando um andador
5
.
Matias também destacou, na sua rotina de interno numa instituição especializada,
os tipos de jogos que praticava. Para Fábio, um exemplo de situação realmente
inclusiva foi quando ele brincava de jogar bola com os vizinhos da sua avó, que
morava no interior do estado. Todas essas experiências de desafio e superação dos
limites impostos pela deficiência ajudaram a desmistificar a lesão como uma
restrição à participação.
para, Lia e Ruth, o esporte não apareceu como ponto importante, mas
sim as relações afetivas, sejam de amizade, sejam amorosas. Este é o terreno da
validação das suas feminilidades. Ruth conta como seus irmãos e irmãs davam
conselhos, apresentavam pessoas e a aproximavam dos rapazes. Relata a angústia
e glória de ficar sentada num salão de dança esperando que alguém a convidasse
para dançar. Na escola as relações de amizade e pertencimento se deram muito a
partir da mediação de algumas amigas e amigos que, de formas diferentes, a
inseriam nos programas extra-classe e nas brincadeiras da escola. Lia também
mencionou algumas amigas, sendo que, no seu caso eram pessoas para quem ela
funcionava como apoiadora e não o contrário. As relações de namoro foram
marcantes da constituição de sua auto-imagem positiva.
Quando se trata da construção de pertencimento ao grupo de pares na
escola, é interessante notar que nas histórias de Josué, Antenor e Ruth, em
determinado momento da adolescência, tiveram sua inserção viabilizada no grupo
dos alunos marginais e não dos bons alunos. Josué se envolveu com a turma
‘barra pesada’, Ruth com aqueles que achavam bonito ficar bebendo, fumando e
fazendo pose de existencialista e Antenor com a turma que matava aula. Essa é
uma questão para ser investigada em futuras pesquisas, pois, vistas pelo ângulo da
relação com as diferenças e não apenas do desempenho escolar individual, os
5
Embora conseguisse dar alguns passos ele não tinha uma marcha que lhe desse autonomia para
um percurso curto até 9 anos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
226
parâmetros que estabelecem a posição de bons e maus alunos pode sofrer
alterações. Este tópico está endereçado também a uma questão que atravessa os
discursos pedagógicos sobre a escolarização de alunos com deficiência que é: a
escola para este alunado deve ser vista com peso maior na socialização do que na
aprendizagem? Vejamos se a microanálise aqui realizada aponta algum elemento
de resposta a esta questão.
O que fica claro nos perfis de configuração identitários, é que, mesmo o
tendo problemas cognitivos ligados à lesão, todos os narradores tiveram que se
desvencilhar das suspeitas de déficit intelectual e provar sua capacidade de
aprendizagem para poderem se socializar numa base onde não fossem
considerados ‘café com leite’, ou ‘mascotes’ da turma. Como diz Antenor, e que é
extensivo aos demais - o que ele precisa na relação com os outros é que
precisem dele, que queiram contar com ele, que se estabeleça algum tipo de
troca e não apenas de doação.
É nesta concepção que todo paradigma de caridade é ofensivo e a escola
pode ser vista como inclusiva, não apenas pelo tipo de alunado que recebe (com
ou sem deficiência), mas pela forma como trata os alunos diferentes como
cidadãos de direito o direito à educação de qualidade.
6
Nesse sentido, as
posturas empoderadoras foram caracterizadas como aquelas que os desafiaram,
em contraste com as que os protegeram. Considerando que nossa identidade é
marcada pelas oposições que fazemos, podemos dizer que a posição recusada
pelos entrevistados foi mais claramente a de ‘coitados’ ou ‘vítimas’, mesmo que
ela possa oferecer certas vantagens e facilidades. O coitadismo é denunciado
como uma estratégia empregada pelo ‘sistema de vergonha’ para fixar as pessoas
com deficiência numa posição de inferioridade, mas também de uma passividade
confortável, que viabiliza para outras pessoas a posição de tutores da sua
participação social. Nos discursos que conformam as identidades dos narradores,
as duas figuras que aparecem como antagônicas à posição de dignidade são: a de
‘coitados’ e dos ‘perfeitos
7
(pessoas que se valem das representações de falta
ligadas às pessoas com lesão para se sentirem completas e superiores).
6
Uma pesquisa feita na Inglaterra (Barnes at alli, 1998) com crianças e adolescentes com
deficiência evidenciou como a normalidade é uma questão relacional, pois, mesmo nas escolas
especiais se encontram comportamentos de bulling e discriminação entre os alunos por conta de
suas características físicas.
7
Embora este seja um termo ainda pouco disseminado no Brasil, podemos sugerir que ‘os
perfeitos’ como nomeia Lia, são os ‘eficientistas’, assim como existem os racistas e os sexistas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
227
O coitadismo é associado a uma metáfora que circulou pelos discursos de
Josué e Ruth e foi reconhecido na interação da entrevista coletiva: a da redoma.
A redoma seria o símbolo da ‘proteção que incapacita’, da vontade de querer
manter o outro como objeto de proteção que gera dependência. Ela é uma
estratégia de diminuição do outro embora seja revestida de ‘proteção’ que é um
ato sancionado histórica e culturalmente. Essa diminuição nos remete às
manifestações da recusa [racista] do outro descritas por Michel Wieviorka (1993
apud Skliar 2004:75-76): o preconceito, a segregação, a discriminação e a
violência. O preconceito seria uma forma de proteger os privilégios de um grupo
dominante através da defesa de uma identidade coletiva e/ou comunitária
considerada apropriada. A segregação seria o confinamento do ‘outro’ a seu
espaço ‘próprio’ sem que ele possa abandoná-lo quando bem quiser. A
discriminação seria um tipo de tratamento que consiste na diminuição, na redução
do ‘outro’ na relação e, a partir daí, na fixação deste ‘outro diminuído’ numa
única maneira de se pensar, de se perceber, de se julgar, de se nomear. E a
violência, que seria tornar intencionais e explícitas as três expressões anteriores.
(Lacerda, 2005:158)
Assim, na agenda antidiscriminação, a tutela incapacitante passa a ser um
item importante da pauta, contraposto ao empoderamento, que assume várias
formas de participação social, com especial ênfase na auto-representação (nada
por nós sem nós). Embora este seja um traço comum à luta por uma sociedade
inclusiva em todo o mundo, ele apresenta contornos diferentes de país para país.
No Brasil, com a ausência de ações do poder público, a iniciativa privada de
caráter filantrópico e as associações religiosas assumiram para si, durante muito
tempo, a assistência e educação (mais assistência do que educação) das pessoas
com deficiência. Assim, antes de simplesmente desmontar os sistemas das escolas
especiais é preciso, separar o joio do trigo, ou seja, verificar quais delas segregam
e quais delas integram e, montar as condições para que as escolares regulares
acolham os alunos com deficiência como pessoas de direito e não como ‘aluno
café com leite’ que deve ser grato pela simples possibilidade de conviver com não
deficientes.
O tema do orgulho deficiente não é levantado em nenhuma das falas e a
identificação da deficiência como uma característica que forja senso de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
228
pertencimento grupal é basicamente rechaçada. Viver entre pessoas com
deficiência é visto como uma forma de auto-exclusão e de afirmação de barreiras
que eles custaram a romper. No entanto, podemos interpretar que a necessidade de
escapar do lugar de deficiente pode ser um indício da imposição da deficiência
sobre a lesão na sociedade brasileira, ou seja, a representação hegemônica das
pessoas que apresentam diferenças sensoriais/físicas e comportamentais é de
inferioridade.
Assim voltamos à idéia de que a diferença é o conteúdo excluído
(recalcado), que some da vista, mas não desaparece. Ela retorna, por exemplo, na
seguinte declaração: Eu acho que o pior problema que (...) em relação à vida eu
acho que é você conseguir viver com a diferença. Acho que a gente ainda não
consegue viver com a diferença, sabe? [Quadro 9 linha 175 - Lia]
6.2
Conseqüências filosófico-políticas do recalque do discurso da
diferença deficiente na sociedade brasileira.
“Querem que achemos tudo normal. Entretanto, avisamos que Não estamos aqui
para que as coisas continuem normais. De normalidade já estamos 'saturados', o
que queremos são ações, provocações, movimento, anormalidade, o direito a
diferença.“(Editorial do número 1 do Boletim CONSEG-indo 2004)
As figuras de coitadinhos e eficientistaso comuns às descritas em textos
de Disability Studies (Oliver, 1996; Linton, 1998; Brown 2004) como
antagônicos, mas nos dados da pesquisa não aparece com força a figura dos
‘normalizadores’ - aqueles que querem impor um padrão de normalidade sobre as
pessoas com lesão – que é eloqüente nos D.S. Ao assumirem seu desejo de
normalização, os narradores posicionam alguns ‘normalizadores’ (fisioterapeutas,
médicos, familiares esforçados), como aliados e a ação de normalização como
desejável.
No entanto, podemos nos perguntar se é possível deslocar a deficiência do
lugar de subordinação em que se encontra simplesmente alegando que somos
todos iguais, sem confrontar a historicidade dessa assimetria. O exame dos
mecanismos de construção dos anormais (que abriga também as pessoas com
deficiência, mas não somente) nos remete ao esquema descrito por Laclau, onde
uma ameaça externa (caos/anormalidade) define e unifica as diferenças internas a
determinado contexto, forjando uma identidade normal. Segundo Foucault (2002),
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
229
a categoria ‘anormais’ é fruto de três elementos com autonomia relativa entre si: o
monstro, o indivíduo a corrigir e o onanista, que vão funcionar como
externalidade constitutiva da normalidade. As operações de oposição e exclusão
configuram o normal e o anormal como duplos interdependentes, ou seja, o
normal depende do anormal para sua definição, tranqüilidade e singularidade, e o
anormal depende do normal para sua própria segurança e sobrevivência (Veiga-
Neto, 2001). Assim, as pessoas com deficiência se vêm historicamente presas a
uma posição de sustentação da identidade normal através da incorporação de seu
duplo maldito. Essa interpretação é uma importante chave de sentido para os
Disability Studies que, numa atitude de resistência ao empreendimento de
dominação, desenvolvem trabalhos sobre os mecanismos discursivos - literários,
midiáticos, médicos etc - através dos quais a lesão é convertida em invalidação
social e o corpo normal em padrão social.
Conforme disse, os posicionamentos prevalentes dos participantes dessa
pesquisa atualizam elementos do discurso da indiferenciação/normalização de
forma que cada um possa se identificar com a figura de um ser humano genérico
que não deve ser marcado por diferenças específicas ligadas ao corpo. Esta
posição tem respaldo nos primórdios do Movimento de Vida Independente, que
está na base dos modernos movimentos sociais pelos direitos deficientes, onde, a
luta contra a institucionalização e a segregação baseou-se no princípio da
"normalização" (Wolfensberger, 1972), isto é, as pessoas com deficiências
deveriam viver no ambiente mais "normal" possível se se espera deles um
comportamento "normal".
No entanto, podemos perceber alguns sinais de que, também no Brasil, a
normalização vai sendo contestada com a afirmação da diferença como
positividade sugerida na epígrafe dessa seção retirada do Boletim CONSEG-indo.
A diversidade como eliminação do poder
O discurso inclusivista, muitas vezes, toma a diferença como sinônimo da
diversidade. A essa associação Skliar (2002:11) responde: diversidade e
diferença parecem termos similares, seus usos parecem ser os mesmos, seu
caráter de representação da alteridade parece idêntico. Mas entre a diversidade
e a diferença existe um abismo insondável, uma distância política, poética e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
230
filosoficamente opressora. O outro da diversidade e o outro da diferença
constituem outros dissimilares.
Que dissimilaridade é essa e que conseqüências podemos tirar da falta de
condições de representação da diferença deficiente entre nós?
Pensar a deficiência - quer seja pela ótica da segregação, integração,
inclusão ou diferença - é pensá-la politicamente, uma vez que se trata de delimitar
um conjunto de interesses e um modo de conceber a sociedade desejada. No
entanto, mesmo admitindo que a questão é política, a literatura educacional
raramente articula suas análises à produção das ciências políticas. A Sociedade
Para Todos (Sassaki, 1997), ou a Inclusão Ampla Geral e Irrestrita (Adiron, 2004)
despontam como uma nova utopia. Mas, como pensar o ideal de inclusão de todos
no atual quadro global de desigualdade e exclusão, mesmo em países
democráticos? A primeira pergunta que ocorre é: será possível uma comunidade
política total, com todos incluídos?
Embora o suposto de igualdade moral seja válido e os direitos humanos,
algo a ser defendido, concordo com Chantal Mouffe quando diz:
Existirá sempre e permanentemente um ‘elemento externo constitutivo’, algo
exterior à comunidade que torna possível a sua existência. (...) a política é
marcada pelo conflito e pela divisão. É possível alcançar formas de acordo, mas
sempre parciais e provisórias, uma vez que o consenso se baseia
necessariamente em atos de exclusão.” (Mouffe, 1996:95)
Não se trata de naturalizar a violência da exclusão, mas de tomar a
externalidade como função social logicamente inescapável. Russell, influenciado
pela matemática de Cantor, desenvolveu a possibilidade lógica da existência, em
uma população, de elementos que, apesar de pertencerem a ela, o fazem parte
dela mesma. Significa dizer que um elemento estranho é logicamente necessário
para a noção do todo e que, embora pertença ao conjunto, é estranho a ele (Souza
e Gallo, 2002). A mesma idéia é retomada na concepção freudiana (e depois
lacaniana) de que somos cindidos e não inteiros e que sempre algo excluído
(recalcado) para sustentar nosso senso de completude e inteireza. Nesse sentido a
tensão inclusão versus exclusão não é passível de ser anulada. Trata-se de
entender que o antagonismo entre quem está dentro e quem está fora (incluídos e
excluídos ou estabelecidos e outsiders como diz Norbert Elias), é um motor das
transformações sociais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
231
Revendo o mote sociológico ‘no social tudo é relacional’, teóricos, como
Laclau, dizem: a sociedade não existe. existem relações e a isto chamamos
sociedade. Desta concepção derivam releituras de algumas tensões fundamentais
presentes também na discussão multicultural, onde a idéia do reconhecimento dos
direitos das minorias joga um papel importante na reformulação da agenda
política internacional. Candau (2002) nomeia algumas das tensões chaves deste
processo de transformações geradas pela globalização hegemônica (neoliberal) e
pela chamada ‘virada cultural’
8
: identidade e hibridização, igualdade e diferença,
democracia e pluralidade, localidade e globalidade.
Estas tensões, no limite, geram situações paradoxais como a compreensão
de que para pleitear condições de igualdade pode ser preciso tratar de forma
diferente os grupos sociais desiguais. A estratégia que traduz essa posição o as
políticas de ação afirmativa, isto é, de afirmação da diferença
9
tendo como
horizonte uma sociedade mais igualitária.
Um movimento que tem sido feito é a revisão e ressignificação dos ideais
revolucionários de Igualdade, Liberdade e Fraternidade desde uma perspectiva
pós-estruturalista. De partida, Laclau (2000b) assume que a dimensão universal é
essencial a qualquer tipo de interação humana (exigência de toda ação política e
fundamento da possibilidade de comunicação) e que o existe diferença pura,
que a diferença é fundamentalmente relacional. Ressalta que o universalismo não
deve ser pensado como a superação de toda diferença - no sentido de uma
sociedade plena, conciliada consigo mesma -, uma vez que esse estado é
inalcançável. No entanto, apesar de ser inalcançável, a plenitude ausente da
sociedade tem uma função importantíssima; ela constitui um lugar de desejo, um
lugar vazio (sem conteúdo fixo) que vai ser objeto de permanentes tentativas de
preenchimento. As estratégias e disputas de preenchimento deste lugar vazio são,
em última instância, a tarefa do jogo político - cujos resultados podem unificar
8
De maneira análoga à chamada ‘virada lingüística’, que ressignificou o papel da linguagem na
constituição da realidade social e com isso desencadeou a revisão de uma série de pressupostos
teóricos das ciências humanas, a ‘virada cultural’ também tem um impacto importante ao colocar a
cultura como arena de disputa pelos significados dos objetos sociais e de abordar temas ligados à
constituição das subjetividades (reconhecimento, identidade, discriminação cultural) como
questões eminentemente políticas.
9
Pierruci (1999) alerta sobre as ‘ciladas da diferença’ que são: a multiplicação constante de novas
identidades uma vez que ‘diferença gera diferença’, e a dificuldade ou desvalorização de um
horizonte comum mais universal.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
232
momentaneamente um conjunto de demandas heterogêneas e assim alcançar um
efeito de universalidade.
Se a universalidade plena da sociedade, embora impossível de ser
alcançada, precisa ser representada, os meios dessa representação serão sempre
provisórios e incompletos. As particularidades vão assumir a função de
representar a totalização do sistema dentro de um conjunto de sistemas
diferenciais em outras palavras, elas vão assumir um papel hegemônico. Uma
vez que este universal é de fato parcial, haverá sempre grupos minoritários que se
sentirão excluídos ou não representados pelo discurso hegemônico e tentarão
desestabilizar seu sentido unificador e propor outro horizonte de representação do
fechamento da totalidade (universalidade). Por seu turno, as articulações
hegemônicas tentarão negar as identidades que querem representar opções e
sentidos alternativos, o que envolve elementos de força e repressão (Torfing,
1999).
Esse processo de disputa estrutura nossas subjetividades, atuando nos
processos de construção de identidade, de fixação de um eu (ou um nós). Nesse
sentido, a pergunta que título ao livro de Cláudia Werneck (1999) Quem cabe
no seu todos?, é instigante pois há sempre alguém de fora do nosso Todos,
podendo perguntar também quem não cabe no nosso todos
10
? As microanálises
apresentadas neste trabalho ajudam a evidenciar esse processo de negociação
dentro de contextos de diversas ordens. De acordo ainda com essa visão,
identidade e alteridade são mutuamente constitutivas, ou seja, as identidades são
forjadas na medida em que algum limite demarca o que existe para além de mim
(de nós) isso é, um outro. Esse limite é estruturante e seu rompimento ameaça a
ilusão da nossa completude, ameaça a ilusão de que somos uma unidade
identitária.
As perguntas que se colocam são: como romper com os limites que
separam anormais de normais sem o reconhecimento de que historicamente
uma inclusão subjugada dos primeiros? Como transformar o lugar social das
pessoas com deficiência a um ponto que esta problemática possa desaparecer no
mar das diversidades humanas? Como desarmar os mecanismos de dominação e
10
Minha resposta pessoal seria: psicopatas, assassinos, nazistas, espancadores, políticos
corruptos, etc. cabem no meu Todos, mas devidamente enquadrados pela lei.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
233
controle que vêm sendo montados desde os fins do século XVIII e início do
século XIX, com o ‘nascimento técnico institucional da cegueira, da surdo-mudez,
dos imbecis, dos retardados, dos nervosos, dos desequilibrados’ (Foucault,
2002:416)? Como romper os laços que atam fortemente deficiência e pobreza,
deficiência e vergonha, deficiência e baixa escolaridade, deficiência e
comiseração? Como fazer isso num momento em que as desigualdades se acirram,
a concentração de recursos aumenta, e as práticas de extermínio ganham força?
Discursos que emergem a partir da posição de diferença deficiente
“Pessoas com deficiência ocupam um lugar único para testemunhar
sempre as coisas mais estúpidas.” (Alison Lapper, 2004)
11
O reconhecimento da deficiência como processo social tem pautado uma
série de ões de ‘reinvenção da deficiência pelas pessoas com lesão’, a partir da
compreensão de que, o caminho da desconstrução da deficiência passa pela
afirmação (retorno) da diferença que foi recalcada (excluída) e não simplesmente
a decretação de que todos são iguais.
Considerando que as verdades o deste mundo, que os sentidos são
contingentes e que a linguagem existe na medida em que é usada, podemos ver
que várias possibilidades de pôr em movimento aquilo que parece fixo, mesmo
sabendo que, a historicidade que lastro aos discursos tornam alguns sentidos
bastante resistentes. Gavin (2003) ajuda a identificar alguns movimentos de
construção de contra-discursos utilizados no contexto dos direitos deficientes, nos
Estados Unidos.
Movimento 1 - Reconhecer e recusar os estereótipos que ajudam a
posicionar as pessoas como fracas, sem capacidade de ação ou responsabilidade.
O discurso médico, que impregna também o discurso educacional, atribui
conotações negativas à deficiência com o uso de expressões como ‘sofre de
paralisia cerebral’, ‘vítima de síndrome de Down’, ‘doença da surdez’, ‘fulano
parece autista’, ‘fulano é meio Down’, ‘não me vendo o, cego?’, como
atributos não desejáveis. Uma ação que vem tentando combater esse tipo de
depreciação é a construção de manuais para de mídia
12
que informam os órgãos de
11
Frase de entrevista publicada no The Guardian www.guardian.co.uk/g2/stories/ do dia 17 de
Março de 2004.. A tradução do texto é da responsabilidade da autora.
12
Ver www.escoladegente.org.br que coordena o projeto Mídia Legal e produz manuais de mídia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
234
imprensa - produtores dos discursos de massa - sobre os conceitos que regem o
modelo social.
Movimento 2 Em face da estratégia de dominação, via silenciamento dos
fatos narrados a partir da posição subordinada, recomenda-se a auto-advocacia
13
e
a produção de narrativas a partir da experiência da deficiência e não apesar da
deficiência. Para isso é preciso assentar-se nessa posição de sujeito e usar a
palavra para dizer o que dá pra ver dali.
Movimento 3 - A criação de metáforas é uma outra forma de subverter a
linguagem corrente na medida em que faz deslizar as associações e suspender a
fixação de conotações pejorativas. A metáfora é uma forma de sacudir os
discursos para produzir novos sons. Assim, procurando vaga nos interstícios da
língua hegemônica produzem-se novas idéias. A invisibilidade tem lá suas
conveniências, pois aquilo que não se nomeia também não se analisa. Dessa
forma, os movimentos negros cunharam a idéia de ‘branquidade’ para
problematizá-la como esconderijo de alguns racistas. De maneira análoga, o
movimento deficiente cunhou as expressões ‘não-deficiente’ e ‘dito normal’ para
explicitar o seu duplo como uma categoria e não como um dado da natureza
humana. Na medida em que essas palavras são pronunciadas elas invertem a
posição de centro e margem. Quando quem nomeia o branco é seu ‘outro’
significa que ele está em posição de interpelar, ele tomou a palavra e conseguiu se
fazer ouvir. O efeito colateral dessa ação é reforçar os limites estabelecidos pelas
práticas divisórias e continuar preso na posição de duplo. Quando as pessoas com
deficiência dizem ‘os ditos normais’ estão nomeando seu ‘outro’ e ao mesmo
tempo contestando o estatuto de naturalidade da norma. O eficientismo é uma
dessas metáforas. Denunciar um gesto racista/sexista/eficientista, é usar o espelho
de Perseu contra Medusa
14
, é negar-se a compactuar com determinada posição
subjetiva e devolver a carga de menosprezo a quem tentou fazê-la circular.
13
Defesa de interesses realizada pela própria pessoa ou grupo reclamante (Neves e Mendes,
2001)
14
Na Mitologia Grega, Medusa é um monstro terrível: sua cabeleira formada por serpentes
embaraçadas, seus dentes compridos e sua língua pendente dão-1he aspecto assustador. Mas, o
seu poder maior é o olhar, que transforma em pedra todos os que têm a audácia ou a imprudência
de olhá-la. Quem conseguiu enfrentá-la foi Perseu, filho de Dânae e Zeus, que com a ajuda de
Atena, usou um espelho de bronze para ver a imagem de Medusa sem olhá-la diretamente e assim
conseguiu decapitá-la.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
235
Movimento 4 - Outra forma de subversão discursiva é assumir o lugar
oferecido mas, ocupá-lo de um outro modo. Assumir a homossexualidade com
orgulho, assumir a negritude como valor, assumir o gênero feminino como poder
(gay pride, black is beautiful e women’s power). Se assumir como ‘pessoa com
deficiência’ seria uma operação desse tipo, de revestir de resiliência e força uma
posição construída como lugar de falta de eficiência. Outras nomeações
continuam sendo inventadas, como os P.O.D.E
15
. (pessoas com direitos especiais),
‘os chumbados’, ‘os surdos chipados’, ‘os mutantes’, etc., a princípio como
código restrito, mas que podem galgar um lugar de visibilidade como a categoria
‘cadeirantes’, por exemplo.
Falar na deficiência como uma identidade cultural com status equivalente
ao de negritude, feminilidade ou homossexualidade, costuma soar estranho.
Primeiro, porque ela é uma categoria sociológica nova (data do fim dos anos
1960). Depois, porque há poucos autores influentes que ocupam ou refletem sobre
essa posição. E terceiro, porque ela destampa a fragilidade inerente ao corpo
humano. De qualquer forma, parece que o estabelecimento da(s) identidade(s)
deficiente(s) é um movimento que foi iniciado e que possibilita a abertura de
novos espaços narrativos que permitem associar outros sentidos as experiências a
partir da deficiência.
Se compreendemos a identidade como um movimento e não uma unidade,
a deficiência apresenta certas peculiaridades que tornam esse movimento ainda
mais instável. Davis (2002) sugere que, enquanto muitos brancos abraçam hoje a
causa dos negros e muitos heterossexuais apóiem demandas de gays e lésbicas,
poucos normais entram em ressonância com a causa das pessoas com deficiência.
Uma das razões para este comportamento é que é pouco provável que um branco
se transforme em negro; que poucos ‘heteros’ vão optar pela homossexualidade;
mas qualquer ‘normal’ pode vir a ser deficiente, mas ninguém quer.
O caráter de ‘coisa’ indesejada da deficiência não é algo ‘natural’, já que
sua representação difere bastante no tempo e em cada sociedade. Os trabalhos
inspirados em Canguilhem e Foucault (Davis, 1995; Edward,1997 e Barnes,1998),
têm ajudado a demonstrar que na emergência histórica do duplo normal-anormal,
o anormal cumpre a função de pesadelo que delimita e sustenta a normalidade
15
Proposto por Frei Betto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
236
como completa e superior. Para desconstruir o lado mais ameaçador, pelo que tem
de indesejável, da condição deficiente, o movimento disability costuma insistir
que ser uma pessoa com lesão não é necessariamente ruim, o ruim é ser
discriminado, subjugado, barrado nas escolas, nos empregos, pela arquitetura etc.
Essa contestação pode ser exemplificada com a descrição de Simi Linton sobre a
‘saída do armário’
16
, como pessoa com deficiência.
Nós saímos às ruas não com aquelas cobertas de lã marrons sobre nossas pernas
murchas, ou com óculos escuros sobre nossos olhos pálidos, mas em shorts e
sandálias, em casacos e ternos, vestidos para participar e trabalhar diretos,
sem máscara e sem apologias. (...) E não foram os bem torneados atletas em
cadeira de rodas que o vistos nos anúncios de televisão, mas também os mal
encarados, os atarracados, os encrespados e os turbulentos dentre s,
declarando que a vergonha não vai mais estruturar nossos guarda-roupas e
nossos discursos. Nós estamos em todos os lugares atualmente, rodando e
deslizando pelas ruas, tateando com nossas bengalas, aspirando nossos tubos de
respirar, seguindo nossos cães guias, impulsionando nossas cadeiras
motorizadas. Nós podemos babar, ouvir vozes, pronunciar sílabas em staccato,
usar catéteres coletores de urina, ou viver com um sistema imunológico
comprometido. Nós acabamos nos juntando, não pela lista dos nossos sintomas
coletivos, mas por circunstâncias sociais e políticas que nos forjaram como um
grupo.
Nós descobrimos uns aos outros e descobrimos vozes para expressar não
desespero pelo nosso destino, mas nossa indignação com a nossa posição social.
Nossos sintomas, algumas vezes dolorosos, assustadores, desagradáveis ou
difíceis de lidar, são partes do nosso dia a dia. Eles existem e têm existido em
todas as comunidades através do tempo. O que nos revolta são as estratégias
usadas para nos privar de direitos, oportunidades e da busca de prazer.
(Linton,1998 apud Ramirez, 1997:7)
Como podemos ver, o que dá o tom a este discurso é a afirmação de desejo
e possibilidades que não devem ser confundidos com o que Robert Huges (1993),
referindo-se à onda do politicamente correto das políticas multiculturalistas,
chama de Cultura da Reclamação. Há um desafio duplo : posicionar-se como
injustiçado sem cair no lugar do coitadinho. Isso exige afirmação das aspirações e
da confiança na própria força de ação. Trata-se também de recusar a incapacidade,
sem negar a condição concreta da deficiência. Isso significa abrir um espaço
narrativo ‘pós-colonial’
17
(Skliar 2002, Muller 2002), onde a diferença cultural
16
To Come Out é um termo cunhado no movimento homossexual estadunidense, traduzido entre
nós como Sair do armário, que significa assumir publicamente sua orientação sexual. Essa
estratégia tem sido fundamental para dar visibilidade ao movimento.
17
“A Teoria Pós-Colonial, (...) traduz a sua herança crítica do Orientalismo sob a forma duma
prática interdisciplinar, passando pela Filosofia, pela Historiografia, pelos Estudos Literários, pela
Sociologia, pela Antropologia e pelas Ciências Políticas. Os teóricos s-coloniais distinguem-se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
237
seja vista como um processo de significação na inscrição e articulação do
hibridismo e não do exotismo. O espaço narrativo pós-colonial possibilitaria a
expressão da experiência, de forma a desestabilizar os discursos coloniais - onde a
alteridade é narrada como o outro maléfico - e também os discursos sócio-
antropológicos, que veiculam a imagem de realidade de harmonia não conflitiva
usando eufemismos - ‘pessoas especiais’ - e tentam criar uma atmosfera light sob
a retórica abrangente e difusa da ‘atenção à diversidade’.
As narrativas ‘pós-coloniais’ vão produzir conteúdos para demarcar o que
são as perspectivas, os valores, os ideais de mundo vistos a partir da experiência
da deficiência e não apesar dela. Através de artefatos culturais como a arte, os
textos acadêmicos, os blogs, websites etc., a diferença deficiente vai configurando
visões que aproximam pessoas com e sem deficiência num movimento que cria
laços identitários e subjetividades políticas que não querem compactuar com as
condições que mantêm seu lugar de duplo fantasmagórico da normalidade.
A produtividade das subversões
Diria que, embora, pelos dados aqui produzidos e cotejados com discursos
circulantes no movimento social nacional, o discurso hegemônico barra as visões
diferencialistas da deficiência por parte dos brasileiros com lesão, isso não
significa que não haja necessidade (ou ao menos utilidade), de conhecer um pouco
dessas visões. O discurso da diferença pode ser necessário, não como uma
trincheira ou um gueto, mas para manter viva a tensão igualdade-diferença, que
possibilitaria a emergência de discursos contra-hegemônicos que provêm novas
posições de sujeito. Novos espaços de fala significam novos espaços de
existência. Dessa forma, compreendemos o vertiginoso movimento de desprender
os grupos excluídos do lugar de recalque, como uma tentativa de reinscrevê-los
num horizonte onde eles sejam reintegrados de forma não subordinada à
organização social. A diferença pode ser o caminho para uma igualdade não
pela tentativa constante de repensar a estrutura epistemológica das ciências humanas, estrutura
essa que terá sido moldada de acordo com padrões ocidentais que se tornaram globalmente
hegemônicos devido ao fato histórico do colonialismo. Consistindo numa resposta da periferia ao
centro, a Teoria Pós-Colonial procura dar voz à alteridade que a «vontade de saber» dominante
tem vindo a assimilar dentro de si mesma, criando assim paradoxalmente a exclusão dessa
mesma alteridade. Pela ênfase colocada na temática da alteridade, a Teoria Pós-Colonial tende a
transcender as conseqüências do colonialismo, servindo como frente de combate a qualquer grupo
que se sinta discriminado em relação à norma prevalecente – seja esta étnica, social ou sexual - e
que procure implementar uma política de identidade através da afirmação da diferença.”, (Álvares,
Cláudia 2000:222).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
238
assimilacionista, pois, quando a particularidade se integra ao ‘todo’, ela se mescla,
se hibridiza, adquirindo contornos menos tidos e, ao se mesclar, ela adiciona
suas cores ao todo
18
. Como sustenta Laclau (2000b), a alternativa compatível com
uma política verdadeiramente democrática seria aceitar a natureza plural e
fragmentada das sociedades contemporâneas, mas, em vez de permanecer nesta
constatação, tentar inscrever esta pluralidade na lógica da equivalência, que torna
possível a construção de novas esferas públicas. Por mais paradoxal que possa
parecer, a diferença seria o ponto de partida para a abertura de uma rota rumo a
uma relativa universalização dos valores que possa ser a base para uma
hegemonia popular. É por essa via que Laclau e Moufe propõem que as lógicas da
diferença e da igualdade (ou equivalência), em vez de serem excludentes, são
mutuamente constitutivas.
“Nem a gica da equivalência nem a lógica da diferença vão dominar
completamente [Laclau and Mouffe, 1985:129]. Elas mutuamente se subvertem.
No entanto, a imprevisível (undecidable) relação entre as duas lógicas pode
temporariamente ser fixada em determinada hierarquia. Qual das duas gicas
ficará por cima nesta hierarquia, e que gestões serão feitas para se estabelecer
como lógica predominante, depende das lutas políticas por hegemonia em uma
área.(Torfing, 1999:125-126)
Passaremos então a identificar as tentativas de configuração da
particularidade deficiente como uma diferença cultural nos movimentos
internacionais.
Posição 1 - Recusar a vergonha de ser o que se é e assumir o desejo de
ser também outra coisa.
Davis (2002) ressalta que, em vez da instabilidade identitária ser motivo
para desconfigurar a disability identity, ela pode ser absorvida como um de seus
elementos, tomando a maleabilidade como característica que pode ajudar a definir
não apenas a deficiência, mas todas as categorias identitárias. Se, nas concepções
não-essencialistas, todas as identidades são provisórias e mutáveis, essas
características são muito mais evidentes quando pensamos numa condição que é
virtualmente universal (qualquer um pode se lesionar por acidente ou a idade) e,
simultaneamente, as formas de lesão que conhecemos hoje podem ser
radicalmente reduzidas com as novas tecnologias (terapias de células tronco,
transplantes cocleares, nanotecnologia etc.).
18
Como disse Milton Santos numa palestra: ‘a Europa colonizou a África e agora a África está
colorizando a Europa.’
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
239
“(...) quero deixar claro que deficiência é ela mesma uma categoria
instável. Penso que seria um grande erro para os estudiosos e advogados da
deficiência definir a categoria com base na já bastante problemática e
desgastada figura, de uma entre várias identidades. Na verdade, eu argumento
que a deficiência pode tirar proveito das suas várias e, um tanto diferenciadas,
definições em relação a outras conhecidas identidades. Para fazer isso, não
devemos ignorar a instabilidade das autodefinições, mas reconhecer o fato dessa
instabilidade permitir à deficiência transcender o problema das políticas de
identidade. Estabelecendo este modelo devemos também reconhecer o fato de
que, não apenas a deficiência é uma categoria instável, mas também o é sua
assombração – a invalidez.” (Davis, 2002:23)
Quando os ativistas da causa deficiente se dizem tentados a experimentar
as novas terapias (Lacerda, 2004), estão assumindo não apenas um desejo de cura
e de normalização, mas um desejo de ser outra coisa, de livrarem-se de si como
diria Foucault. Essa posição tem semelhanças também com a proposta da
pedagogia (improvável) da diferença esboçada por Skliar (2003:209).
“Uma pedagogia que acabe de uma vez por todas com aqueles dois princípios
que tem governado por sempre a educação: 1) Está mal ser o que se é; 2) Está
bem ser alguma coisa que nunca se poderá ser. E que traduza esses princípios
em outros dois radicalmente diferentes: 1) Está bem ser o que se está sendo; 2)
Não está mal ser, também, outra coisa daquilo que já se está sendo.”
Posição 2 - Assumir a experiência da deficiência como uma importante fonte
de aprendizado.
Essa posição pode ser apreendida nos extratos seguintes, que tentam objetivar
a) uma perspectiva de vida a partir da deficiência;
“A experiência da deficiência não importa se por nascimento, acidente,
doença ou idade – amadurece as pessoas e lhes dá um ponto de vista único sobre
a sociedade e o mundo. Tem similaridades com as experiências iniciáticas, tais
como: sobreviver a um combate, a uma desilusão amorosa, a um doutoramento
(sic), a dar à luz etc. Enquanto algumas pessoas evitam ao ximo esse tipo de
experiência, outras atravessam muitas delas.” (Pfeiffer 2002: 3)
b) valores advindos dessa experiência;
“Afirmar valores advindos da sua própria experiência, que podem ser diferentes
e até mesmo opostos aos da maioria não-deficiente: a autodeterminação e não a
auto-suficiência a interdependência e não a independência, a conexão pessoal e
não o separatismo funcional, a comunidade humana e não a autonomia física.”
(Longmore, 1995:7).
c) uma visão de sociedade ideal e
“Uma sociedade onde minha experiência cultural, a partir da deficiência, seja
aceita e que esta, por sua vez, seja aceita como parte da ‘diversidade humana’.
Deve haver uma curiosidade respeitosa sobre o que eu tenho aprendido a partir
da minha diferença, de forma que eu possa ensinar à sociedade. Neste mundo
ninguém vai ligar em ser chamado Deficiente. Ser incapaz de fazer alguma coisa,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
240
da forma que a maioria faz, não será algo ruim, que precisa ser curado. Será
visto apenas como diferença”. (Carol Gill 1994 in The Edge)
d) uma pauta que aglutine pessoas numa comunidade de prática ou grupo de
pertencimento.
CRIP CULTURE Pontos da plataforma político-cultural deficiente: orgulho;
solidariedade grupal na comunidade deficiente; a complexa e rica experiência de
viver com deficiência; a raiva com a forma com que pessoas com deficiência têm
sido tratadas. (Kathleen Tolan, 2001)
Posição 3 - Desafiar o mito de que pessoas com deficiência não são atraentes e
sexuadas.
Hoje, estão se multiplicando os livros, filmes e ensaios sensuais
produzidos com pessoas com deficiência. Novas figuras aparecem em cena, como
os Devotees, pretenders and wannabes (DPW's
19
). Um outro exemplo é a série de
documentários produzidos pela BBC de Londres, chamada Desirability, que conta
histórias de pessoas com deficiência que trabalham na indústria do sexo, se vêm
como pessoas atrativas e desejáveis e usam sua sexualidade como uma poderosa
fonte de valor e auto-expressão.
Posição 4 - Viver com deficiência não é viver um pesadelo constante e não
levar sua normalidade muito a sério pode ser mais divertido.
Aqui o humor e a irreverência são utilizados em artefatos culturais para
subverter o lado indesejável da deficiência de pelo menos duas formas:
1) Assumindo que na vida humana a regra é a deficiência (vista como limitação e
fragilidade humana) e a normalidade (vista como perfeição e completude) é a
fantasia.
2) O ‘indivíduo a corrigir’ é o preconceituoso, o discriminador, aquele que exclui
e não as pessoas com lesão.
Outras tantas posições poderiam ser citadas, mas o tenho nenhuma
intenção de esgotar o assunto. A idéia é mostrar como a política da diferença
cultural da deficiência não é, necessariamente, segregacionista, mas ela leva em
19
Devotees são pessoas sem deficiência que são sexualmente atraídas por pessoas com
deficiência, tipicamente aquelas com limitações de mobilidade e especialmente amputados.
Pretenders são pessoas que agem como se tivessem deficiência através do uso de acessórios
como bengalas, muletas, cadeiras de roda, no espaço privado e algumas vezes em público, de
forma que eles ‘sintam’ a deficiência por serem percebidos pelos outros como tendo uma
deficiência. Wannabes na realidade desejam se tornar deficientes, podendo chegar ao extremo de
terem um membro amputado.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
241
consideração que pensar uma sociedade sem referenciais determinados, em
pensar os sujeitos na sua “diversidade (Marques 2003:14), é acreditar que é
possível abolir os sistemas de classificação sociais. Como nos mostra Foucault
(1995), tais sistemas são mecanismos muito eficazes de exercício do poder.
Pensar numa sociedade livre do poder é pensar numa sociedade sem lei e isso
minha imaginação não alcança.
Talvez seja produtivo pensar numa sociedade mais radicalmente
democrática, ou seja, onde a constituição de leis possibilite participações
múltiplas e mecanismos de revisão constantes.
A mesma coisa acontece no sistema escolar. Embora na idade de 6 a 14
anos, no Brasil, o ensino seja obrigatório e o acesso universal, a seletividade
interna da escola o pára de classificar pessoas de acordo com referenciais bem
determinados. Essa seletividade, ou a lógica de dividir os estudantes em turmas
de acordo com os níveis de cognição, idade, classe social, numero de repetências
etc, é o arranjo inventado para colocar em ação a norma e a ordem (Veiga-Neto,
2001:110) que está na base do projeto da escola moderna.” Ou seja, os maus
alunos, os deficientes, os últimos da fila são uma função do projeto da escola
moderna e não sua disfunção. O que é excluído neste projeto não são apenas os
alunos, mas a negação de que a escola está ancorada no ‘rankiamento’ das pessoas
conforme habilidades cognitivas padronizadas, mas que sempre acham espaço
para a conversão das características valorizadas culturalmente em boas notas
(Nogueira 2000). O desejo dos diferentes é que não cabe nesse projeto de escola e,
enquanto seu desejo não for posto em questão é provável que os alunos com
deficiência, assim como outros (pretos pobres, filhos de famílias desestruturadas
etc.) continuem sendo analisadores que põem à mostra toda uma cadeia de
problemas do sistema escolar.
Na verdade, a criança com deficiência denuncia a falência de um
sistema, denuncia uma gestão escolar, uma formação inadequada do
professor, uma escola fechada à comunidade, uma falta de relacionamento da
família com a escola, enfim, vai denunciando em cascata milhões de situações
inadequadas do sistema escolar brasileiro.” (trecho de entrevista com Claudia
Werneck in Januzzi, 2000)
6.3
Operar com a linguagem: tecnologia de ponta na pesquisa qualitativa
em educação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
242
Fechando este trabalho, podemos perguntar sobre a(s) utilidade(s) desse
estudo para o campo da educação. Penso que, além da reflexão específica sobre a
identidade/alteridade deficiente, que vimos fazendo como forma de pensar nas
condições de possibilidade de uma inclusão não subordinada das pessoas com
lesão na escola, um aspecto relevante para a pesquisa educacional é operar num
paradigma socioconstrucionista da linguagem. Esse paradigma subverte narrativas
tradicionais sobre a relação escolar, colocando em questão:
a) as abordagens que têm como unidade a individualidade, sem considerar
nossa radical interdependência a análise dos posicionamentos tem por função
mostrar esta interdependência no nível micro, para podermos compreender como
os contextos institucionais e pessoais em que nos encontramos conformam nossas
posições e identidades.
b) repensar nossos instrumentos de pesquisa a partir de uma concepção
não representacionista da linguagem. Isso requer uma reavaliação tanto das
perguntas que fazemos quanto dos métodos que utilizamos, entendendo-os como
práticas sociais onde pesquisador e pesquisados negociam posições e sentidos. As
conseqüências são, a exigência de análise não apenas dos conteúdos, mas também
de aspectos da metamensagem que contextualizam a produção destes conteúdos.
Afinal, todo dizer é endereçado a alguém, e percorrer esse endereçamento é uma
forma de flagrar a relação de alteridade que nos impregnada a fala. Isso
complexifica a análise e exige grande esforço de foco e seleção do material, mas
enriquece a compreensão de como foram construídos os ‘dados’ da pesquisa.
c) oferece recursos de crítica que têm como efeito a abertura de novos
discursos e a desconstrução de posições opressoras com longa história de fixação.
Nesse enquadre o trabalho de liberdade ganha espaço, na medida em que,
podemos recusar continuar sendo o que estamos sendo e podemos vislumbrar
possibilidades de sermos também outras coisas, já que somos mais múltiplos e
flexíveis do que pregam os cânones educacionais. A abertura de novas opções de
escolha entre regimes de verdade e posições de sujeito, mais do que um saber,
passa a ser uma sabedoria.
Espero ter demonstrado na parte 2, através da análise dos perfis e da
entrevista coletiva, que os discursos que consumimos e pelos quais circulamos
delineiam aquilo que podemos ser. Minha intenção, ao prestar atenção às
narrativas de história de vida de brasileiros com lesão congênita, foi ajudar a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
243
entender como as vozes de educadores, médicos, juízes, publicitários, cineastas,
pais e mães, professores e colegas, formam a polifonia que disputa a posse das
nossas decisões, sopra frases nos nossos ouvidos, brota dizeres que adotamos
como crenças. Os processos de subjetivação tanto prendem quanto libertam, mas
são sempre eficazes no que têm de continuo, íntimo e constante.
Queria alinhar-me àqueles que, ao demonstrar as maquinarias discursivas
que nos constituem, ajudam a quebrar encantos que aprisionam príncipes em
sapos, ou mais concretamente, diferenças sicas em invalidação social. Outros
mundos são possíveis, embora uns sejam mais prováveis do que outros, e nem
todo mundo possível é desejável. Querer o é poder, mas desejar poder é o
começo para usufruir outras possibilidades, recusar saberes, manter o que
escolhemos ser, pelo menos temporariamente.
O artista com deficiência Jean-Claude Grenier, no documentário O
comprimento e a largura do céu (dirigido por Margot 1998), conta sua
experiência de saúde frágil, num corpo de meio metro de altura, cheio de
complicações devido a graves problemas ósseos. Ele diz que não devemos brigar
com as limitações do nosso corpo (entendido como suporte material da vida), mas
devemos desenvolver formas de maestria no usufruto do corpo dentro de suas
limitações. Essa maestria me remete ao convite de Foucault de fazermos das
nossas vidas obras de arte. Lembrando que a auto-estima vem do outro, e nosso
valor depende de reconhecimento e não de choques narcísicos. Acho que esse é
meu desejo profundo com este trabalho: aprender, junto àqueles que vivem
rompendo barreiras, como é que a gente faz para alargar os estreitos horizontes de
possibilidades que tentam nos impor. Para romper com o que somos, precisamos
ser algo. Assim, talvez seja melhor tomar nossa incompletude como o chão
comum da humanidade e elevarmos nossas deficiências a um patamar de
positividade, como sugere Tom Zé, e quem for perfeito que trate de se cuidar.
Entre a infância e o palco de hoje vim aos solavancos, levado pelo tempo e
depois pelo espaço. Erros e tropeços. Trop trop que em reiterados e repetidos
flashbacks tornaram-se lições. Polições. Um golpe de vista mais geral mostrou
que quando todas as dificuldades se agregavam, justamente então, emergia uma
aliada. Ela me tomou pelas mãos e me levou a um terreno firme. Ela, com cujo
apoio me converterei num profissional: a deficiência." (Tom Zé, 2003)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
7
Referências Bibliográficas
ADIRON, FÁBIO (2004) - Nós não queremos migalhas – Universidade Solidária
- disponível em -
http://www.unisol.org.br/index.php?mod=content&id_content=156&id_categorie
=1 acesso 17 de outubro de 2004.
ALMEIDA PRADO, ADRIANA -1997 - Ambientes Acessíveis - Publicado no
documento sobre o Primeiro Seminário Nacional "A Pessoa Portadora de
Deficiência no Mundo do Trabalho", CORDE, nov. 97
ÁLVARES, CLÁUDIA (2000) - Teoria pós-colonial, Uma abordagem sintética -
Revista de Comunicação e Linguagens - Tendências da Cultura Contemporânea -
J. Bragança de Miranda e E. Prado Coelho (org.) – Lisboa - Relógio de Água.
ASPIS, SIMONE (2002) Why they don’t tell disabled people with learning
difficulties in Disability Discourse Corker, Mairian & French, Sally (Orgs)
Philadelphia – Open University Press.
BADIOU, ALAIN (1995) – Ética: um ensaio sobre a consciência do mal – Rio de
Janeiro - Relume Dumará.
BAMBERG, MICHAEL (2002) Construindo a masculinidade na adolescência:
posicionamentos e o processo de construção da identidade aos 15 anos em
Identidades: recortes multi e interdisciplinares Moita Lopes e Bastos (orgs)
Campinas - Mercado de Letras.
BANCO MUNDIAL (2003) Relatório ´Educação Inclusiva no Brasil
diagnóstico atual e desafios para o futuro
www.cnotinfor.pt/inclusiva/report_inclusiva_brasil_pt.html
BARNES, COLIN (1998) – The Social Model of Disability: A Sociological
Phenomenon Ignored by Sociologists? - in The Disability Reader: social science
perspectives – Shakespeare, Tom (org.) - London – Cassell.
BARNES AT ALLI (2000) Life as a disable child: A Qualitative Study of
Young Peoples Experiences and Perspectives - University of Leeds
http://www.hull.ac.uk/children5to16programme/details/shakespeare.htm - acesso
10/05/2003.
BARROS DA MOTA, MANOEL [organização e seleção] (2002)– Michel
Foucault - Problematizações do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise – Rio
de Janeiro – Forense Universitária.
BENEVIDES, CASSUÇA (2004) Brasil tem a melhor legislação para
deficientes do mundo - acessado em 26/08/04.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
245
BEZERRA JR. (1994) - Descentramento e sujeito versões da revolução
coperniciana em Freud in Freire Costa, Jurandir (org.) Redescrições da
psicanálise: Ensaios pragmáticos – Rio de Janeiro – Relume Dumará.
BIANCHI (2004) CEDIPOD - Centro de Documentação e Informação do
Portador de Deficiência - www.cedipod.org.br acessado em 23 de março de 2004
BIELER, ROSANGELA coord. (2004) - Desarrollo Inclusivo: Un aporte
universal desde la discapacidad Equipo de Discapacidad y Desarrollo Inclusivo,
Región de Latinoamérica y El Caribe, Banco Mundial disponível em
http://pdi.cnotinfor.pt/recursos/DI_Un%20aporte%20universal%20desde%20la%
20discapacidad_RBB.doc último acesso – abril 2005.
BHABHA, HOMI (1998) - O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG
BOLETIM SENTIDOS (15/12/2004) Edson Batista Jr. Primeiro deficiente
visual do estado de MG a cursar jornalismo, acredita que uma escola
verdadeiramente inclusiva pode transformar a sociedade. - Endereço
www.sentidos.com.br/canais/sessão Talentos.
BOURDIEU, PIERRE (1986) - A ilusão bibliográfica. In: M. A. Ferreira & J.
Amado, Usos e abusos da história oral - Rio de Janeiro: FGV.
__________________ (1993) – As contradições da Herança – em Pierre Bourdieu
Escritos de Educação Nogueira e Catani (org.) 1998 Petrópolis Editora
Vozes.
BUENO, BELMIRA OLIVEIRA (jan./jun. 2002) - O método autobiográfico e os
estudos com histórias de vida de professores: a questão da subjetividade.
Educação Pesquisa, vol.28, no.1, p.11-30.
BRANDAO, Zaia e LELLIS, Isabel (2003) - Elites acadêmicas e escolarização
dos filhos. Educação e Sociedade, vol.24, no.83, p.509-526.
BRASIL - MEC (2005) Edital do Programa Incluir disponível em
www.mec.gov.br/sesu - acesso 29/06/2005.
_______________ (2006) – Números da Educação Especial no Brasil
BROWN, STEAVE (2004) Personal Reflections on Disability Culture - Review
of Disability Studies, vol 1, Issue 1 – Manoa – University of Hawaii.
BRUNO, RICHARD L - Devotees, pretenders and wannabes: Two cases of
Factitious Disability Disorder - Journal of Sexuality and Disability, 1997; 15: 243-
260. http://www.amputee-online.com/amputee/bruno_art.html último acesso
março de 2006.
CAMPOS, SÔNIA ISABEL (2005) Histórias de vida de professores de línguas:
construções discursivas situadas Dissertação de mestrado apresentada à
Coordenação de Pós Graduação em Letras da UFRJ.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
246
CANDAU, VERA (2002) – Cidadania e pluralidade cultural: questões emergentes
– em Sociedade Educação e Cultura(s) – Candau, Vera (org) – Petrópolis – Vozes.
CANGUILHEM, GEORGES (2002 [1966]) – O normal e o Patológico –
edição – Rio de Janeiro – Forense Universitária.
CARLSON, LICIA (2005) Docile Bodies, Docile Minds: Foucauldian
Reflections on Mental Retardation in Foucault and the Governament of
Disability – Treimain, Shelley ed.– The University of Michigan Press.
CHARLTON, JAMES (2000) - Nothing about us without us: disability oppression
and empowerment - Univ of California Press.
CORAZZA, SANDRA (2000) O que faz gaguejar a linguagem da escola em
Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender Candau, Vera (org.) Rio
de Janeiro – DP&A.
CORKER, MAIRIAN (2002) New disability Discourse, the principle of
optimization and social change – in– Disability Discourse Corker, Mairian &
French, Sally (Orgs) – Philadelphia – Open University Press.
CORRÊA, ISABEL d’ALMEIDA (1997) Mães de crianças com Síndrome de
Down: estudos de caso Dissertação de Mestrado Universidade Federal de São
Carlos.
COSTA, MARISA VORRABER org. (2002a) Caminhos Investigativos: novos
olhares na pesquisa em Educação – Rio de Janeiro – DP&A Editora.
_____________________________ (2002b) - Caminhos Investigativos II -
Outros Modos de Pensar e Fazer Pesquisa em Educação- Rio de Janeiro - DP&A
Editora.
COSTA, Marisa Vorraber & BUJES, Maria Isabel Edelweiss (orgs.) 2005 -
Caminhos Investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras.
Rio de Janeiro: DP&A.
CRESPO, ANA MARIA (2006) - Pessoas Com Deficiência e a Construção da
Cidadania http://www.artsbrasil.org.br/fase2/materia.asp?p=102 acesso
15/06/2006
DAVIES, B e HARRÉ, R (1990) Positioning: the discursive production of
selves – Journal for the Theory of Social Behavior 20 – p.43-63.
DAVIS, LENNARD (1995) Enforcing Normalcy: Disability, Deafness and the
Body – London – Verso.
_________________ (2002) - People with Disability: They are you – em Bendind
over Backwards: disability, dismodernism and other difficult positions – New
York and London - New York University Press.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
247
DEACON, ROGER & PARKER, BEN (1994) Educação como Sujeição e como
Recusa – em O sujeito da Educação: Estudos Foucaultianos – Silva, Tomás Tadeu
(org.) – Petrópolis – Editora Vozes.
DELEUZE, GILLES (1998) – Conversações – São Paulo – Editora 34.
DUBAR, CLAUDE (1997) A socialização: construção das identidades sociais e
profissionais. Porto: Editora Porto.
___________________ (1998) - Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns
esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educ. Soc., Abr. vol.19.
EDGE (2004) Disability Culture - disponível na Internet URL
http://www.disabilityhistory.org/dwa/edge/curriculum/cult_content8.htm -
acessado em 24 de março/04.
EDWARDS, MARTHA (1997) – Constructions of Physical Disability in the
Ancient Greek Word: the community concept – em The Body and Physical
Difference Mitchell, David and Snyder, Sharon (editors) The University of
Michigan Press – USA.
ELIAS, NORBERT (1994) A sociedade dos indivíduos - Rio de Janeiro – Jorge
Zahar Editor.
_______________ (2000) Os Estabelecidos e os Outsiders Rio de Janeiro
Jorge Zahar Editor.
FABRÍCIO, BRANCA (2002) Implementação de mudanças no contexto
educacional: discursos, identidades e narrativas em ação Tese de Doutorado
defendida no Departamento de Letras da PUC-Rio – Rio de Janeiro.
FAIRCLOUGH, NORMAN (2001) Discurso e Mudança Social Editora UnB
– Brasília.
FERRARO, ALCEU (1999) Diagnóstico da escolarização no Brasil. Revista
Brasileira de Educação,no.12, 22-47.
FERREIRA, JÚLIO (2002) - O GT educação especial: análise da trajetória e da
produção 1991 – 2001 – 25ª Reunião da ANPEd – CD Rom.
FLEISHCHER, DORIS & ZAMES (2001).– The disability rights movement:
from charity to confrontation – Philadelphia - Temple University Press.
FONSECA, CLÁUDIA (1999) - Quando cada caso não é um caso: pesquisa
etnográfica e educação - Revista Brasileira de Educação (10: 58 - 89). São Paulo:
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, abril.
FOUCAULT, MICHEL (1979) História da Loucura São Paulo
Perspectiva.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
248
____________________ (1981) - Verdade e poder em Microfísica do Poder
Rio de Janeiro – Graal.
____________________ (1985) História da sexualidade 3: o cuidado de si Rio
de Janeiro – Graal.
___________________ (1987) – A Arqueologia do Saber Rio de Janeiro –
Forense-Universitária.
___________________ (1994) – História da sexualidade 2: o uso dos prazeres.
___________________ (1995) - Sobre a genealogia da ética. Uma revisão do
trabalho. In: Rabinow, Paul; Dreyfus, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória
filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
___________________ (1996) A Ordem do discurso Edições Loyola - São
Paulo.
___________________ (2001) – Os Anormais – São Paulo – Martins Fontes.
FOURQUIN, JEAN-CLAUDE (1993) - Escola e Cultura. Porto Alegre: Artes
Médicas.
FRANCO, MONIQUE (2002) Igualdade e a diferença no discurso da escola
inclusiva Goiânia/GO - XI ENDIPE –
FRASER, NANCY (2001) Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da
Justiça na Era pós-socialista in J. Souza (org.) Democracia Hoje: Novos
Desafios para a Teoria Democrática Contemporânea, Brasília – UnB.
GALLAGHER, B. & WILSON, A (1984) Michel Foucault, na Interview: Sex,
Power and Politics of Identity The advocate n400, 7 de agosto pp.26-30 e 58.
Tradução Wanderson Flor do Nascimento.
GAVIN, ROSE (2003) – The Making of the Disabled Identity: A Linguistic
Analysis of Marginalisation - Disability Studies Quarterly – volume 23, no 2, págs
149-178 - Society for Disability Studies - spring 2003 www.cds.hawaii.edu/dsq
.
GIDDENS, A. (1991) - As conseqüências da modernidade. Rio de Janeiro: Unesp,
__________. (2002) - Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar.
GLAT, ROSANA (1993) – Ser mãe... e a vida continua – Rio de Janeiro – Editora
Agir.
GLAT, ROSANA at ALLI (2004) - O todo de História de Vida na Pesquisa
em Educação Especial - Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, Mai.-
Ago., v.10, n.2, p.235-250.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
249
GILSON, STEPHEN & DE POY, ELIZABETH (2004) – Disability, Identity, and
Cultural Diversity – Review of Disability Studies, vol 1, Issue 1 – Manoa
University of Hawaii.
HALL, STUART (2003a) - Stuart Hall por Stuart Hall: a formação de um
intelectual diaspórico em Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais – Liv
Sovik (org) – Belo Horizonte – Editora UFMG, Brasília : Representação da
Unesco no Brasil.
________________(2003b) A identidade cultural na pós-modernidade Rio de
Janeiro – DP&A editora.
HOWARTH, DAVID et alli (2000) Discourse Theory and Political Analysis -
Manchester and New York – Manchester University Press.
HUGHES, BILL (2005) What can a Foucauldian Analysis Contribute to
Disability Theory? in Foucault and the Governament of Disability The
University of Michigan Press.
HUGHES, ROBERT (1993) - Cultura da Reclamação: o desgaste americano -São
Paulo, Companhia das Letras.
JANNUZZI, GILBERTA (1985) A luta pela educação do deficiente mental no
Brasil – São Paulo – Cortez.
____________________ (2000) – A luta por uma escola inclusiva – em Cadernos
do Observatório n 2 outubro Ibase/Observatório da Cidadania e Campanha
Nacional pelo Direito à Educação.
JOLLIEN, ALEXANDRE (2001) Elogio de la debilidad Barcelona - RBA
Libros.
KASSAR, MÔNICA (1998) - Liberalismo, neoliberalismo e educação especial:
algumas implicações. Cad. CEDES. [online]. vol. 19, no. 46.
KENDALL, GAVIN & WICKHAM, GARY (1999) Using Foucault’s Methods
– London – Sage Publications.
KNOBLAUCH, H. (2001) Communication, Contexts and culture: A
communicative constructivist approach to intercultural communiation. A. Di
Luzio, S. Günthner & F. Orletti (Eds.), Culture in Communication: Analyses of
intercultural situations. USA: John Benjamins.
LABOV, W. & WALETZKY (1972) The transformation of Experience in
Narrative Syntax. Language in the Inner City. Pennsylvania: U. of Pennsylvania.
LACERDA, PATRÍCIA (2003) O pior entre os iguais portadores de
necessidades especiais frente às políticas de reconhecimento 26ª reunião da
ANPEd – Cd Rom.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
250
_____________________ (2004) O olho invisível que nos vê: a narração da
sociedade a partir da experiência da deficiência CD Rom do I Seminário
Brasileiro de Estudos Culturais em Educação – Rio Grande do Sul.
_____________________ (2005a) Ser diferente é normal? Em Cultura(s) e
educação: entre o crítico e o pós-crítico Candau, Vera (org.) Rio de Janeiro
DP&A Editora.
_____________________(2005b) Eficientismo: nomeando as barreiras
invisíveis presentes na vida de alunos com deficiência Revista Pedagógica
Chapecó – Argos.
LACLAU, ERNESTO (1996) - Emancipación y diferencia. Argentina: Editora
Espasa Calpe/Ariel.
_________________ (2000a) - Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro
tiempo: Nueva Visión – Buenos Aires.
________________ (2000b) Sujeto de la política, política del sujeto -em - El
reverso de la diferencia: Identidad y política Arditi, Benjamin (org.) Prometeo
libros – Caracas – Venezuela.
_________________ (2001) Universalism, particularism and the question of
identity in Cultural Pluralism, Identity, and Globalization Mendes, Candido e
Soares, Luiz E. (coord) – Rio de Janeiro - UNESCO/ISSC/EDUCAM.
LINTON, SIMI 1998 Claiming Disability: Knowledge and Identity New
York – University Press.
LAHIRE, BERNARD (1997) Sucesso Escolar nos Meios Populares: as razões
do improvável – São Paulo – Editora Ática.
LARROSA, JORGE (1994) Tecnologias do Eu e Educação em O Sujeito da
Educação: estudos foucaultianos Silva, Tomaz Tadeu (org.) Rio de Janeiro
Editora Vozes.
_________________ (2002) - Para qué nos sirven los extranjeros? – Dossiê
“Diferenças” – Educação & Sociedade – n
o
79, ano XXIII, agosto.
LONGMORE, PAUL. (1995) - The Second Phase: from disability rights to
disability culture– disponível em:
http://www.independentliving.org/docs3/longm95.html - acesso em 24/03/2004.
LEVY, TATIANA (2003) A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze
– Rio de Janeiro – Relume Dumará.
MANTOAN, MARIA TERESA (2003) Inclusão Escolar: O que é? Por que?
Como fazer? – São Paulo – Moderna.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
251
MARQUES, CARLOS ALBERTO (2002) - A construção do anormal: uma
estratégia de poder – 24ª Reunião da Anped - CD-Rom – Anped.
MARQUES, LUCIANA PACHECO (2001) O professor de alunos com
deficiência mental: concepções e prática pedagógica – Juiz de fora – Editora
UFJF.
MARQUES, LUCIANA & OLIVEIRA, FERNANDA (2003) - Inclusão: Os
Sentidos Nas/Das Dissertações E Teses GT Educação Especial - 25ª Reunião da
ANPEd.
MASINI, ELCIE e BAZON, FERNANDA (2004) - A Inclusão de Estudantes
com Deficiência, no Ensino Superior - GT: Psicologia da Educação.
MAZZOTTA, MARCOS (2001) Educação Especial no Brasil –História e
Políticas públicas – São Paulo – Cortez Editora – 3ª edição.
MEDEIROS, MARCELO e DINIZ, DÉBORA (2004) - A nova maneira de se
entender a deficiência e o envelhecimento. IPEA Texto para discussão No 1040
– Brasília.
MILLER, N. B (1995) Ninguém é perfeito: vivendo e crescendo com crianças
com necessidades especiais – Campinas – Papirus.
MINER, MADONNE (1997) Making up the Stories as We Go Along: Men,
Women, and narratives of disability – in– The body and physical difference:
discourses of disability Mitchell & Snyder (orgs.) The University of Michigan
Press.
MISHLER, ELLIOT (1991) Research Interviewing: Context and Narrative
Cambridge and London - Harvard University Press.
___________________ (1999) Storylines: Craftartists narratives of identity
Cambridge – Harvard University Press.
________________ (2002) Narrativa e Identidade: a mão dupla do tempo in
Moita Lopes e Bastos (org) - Identidades Fragmentadas: a construção discursiva
de raça, gênero e sexualidade em sala de aula – Campinas – Mercado das Letras.
MITCHELL, D & SNYDER, S. (1997) – The body and physical difference:
discourses of disability – The University of Michigan Press.
MOITA LOPES, LUIZ PAULO (2001) Práticas narrativas como espaço de
construção das identidades sociais: uma abordagem socioconstrucionista. In
Ribeiro, Branca, Lima, C, Dantas, Maria Teresa (orgs.) Narrativa, identidade e
clínica – Rio de Janeiro – Ed IPUB-CUCA.
MOITA LOPES E BASTOS [orgs.] (2002) Identidades Fragmentadas: a
construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula Campinas
Mercado das Letras.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
252
__________________________ (2003) – Discursos de Identidades: recortes multi
e interdisciplinares – Campinas - Mercado de Letras.
MOITA LOPES, LUIZ PAULO & FABRÍCIO, BRANCA (2004) Identidades
em cheque em narrativas contemporâneas VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro
de Ciências Sociais – Coimbra – Setembro.
MONAGHAN, PETER (1998) - Pioneering Field of Disability Studies Challenges
Established Approaches and Attitudes Chronicle of Higher Education
Research & Publishing.
MOUFFE, CHANTAL (1996) – O Regresso do Político, Lisboa, Gradiva.
MULLER, ANA CLÁUDIA (2002) Narrativas Surdas Dissertação de
Mestrado apresentada ao Departamento de Educação da PUC-Rio.
NERI, MARCELO et alli (2003) Retratos da Deficiência no Brasil Rio de
Janeiro – FGV/IBRE, CPS.
NEVES, TÂNIA E MENDES, ENICÉIA (2001) Movimentos Sociais e a Auto-
Advocacia: Analisando a Participação de Pessoas com Deficiência Mental
trabalho apresentado na 24ª Reunião anual da ANPEd – Cd-Rom –.
NOGUEIRA, MARIA ALICE (2000) A construção da excelência escolar: um
estudo de trajetórias feito com estudantes universitários provenientes de camadas
médias intelectualizadas em Família e Escola: trajetórias de escolarização em
camadas médias e populares – Petrópolis – Editora Vozes.
NOGUEIRA, MÁRIO LÚCIO (2002) -Educação Inclusiva Uma Reflexão a
Partir da Fala de Universitários Portadores de Necessidades Especiais. -
Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
NÓVOA, ANTÓNIO (org.) - (1995) - Profissão Professor. Porto: Porto Editora.
OLIVER, MICHEL (1996) Defining impairment and disability, in C. Barnes
and G. Mercer (eds) Exploring the Divide: Illness and Disability. Leeds:
Disability Press.
PARAÍSO, MARLUCY ALVES (2004) - Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 122, p.
283-303, maio/ago.
PEIXOTO JR., CARLOS AUGUSTO (2004) Formas de Subjetivação Rio de
Janeiro – Contra Capa.
PFEIFFER, DAVID (2003) Disability Studies and the Disability Perspective
Disability Studies Quarterly – volume 23, n
o
1, p. 142-148 - Society for Disability
Studies - winter – www.dsq-sds.org .
PIERUCCI, A. F. (1999) - Ciladas da Diferença – São Paulo – Editora 34.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
253
QUEIROZ, ANDRÉ (1999) Foucault o paradoxo das passagens Rio de
Janeiro – Pazulin.
RAGO, MARGARETH, ORLANDI, LUIZ E VEIGA-NETO, ALFREDO (2005)
Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas Rio de Janeiro
DP&A.
RAJCHMAN, JOHN (1989) Foucault: a ética e a obra - texto apresentado no
Colóquio RENCONTRE INTERNATIONALE. Michel Foucault Philosophe - Paris,
9, 10, 11, janvier. Paris, Seuil.
RAMIREZ, ANTHONY (1997)- Disability as Field of Study? - New York Times,
December, 21th.
RASERA, EMERSON E JAPUR, MARISA (2001) Contribuições do
pensamento Construcionista para o Estudo da Prática Grupal Psicologia:
Reflexão e Crítica – vol 14 no 1 – Porto Alegre.
REIS, CLÁUDIA (2005) - Linguagem, evidencialidade e posicionamentos de
professor: A construção da coerência dos selves” em narrativas de experiência
Tese de doutorado apresentada no Departamento de Letras da PUC-Rio.
RICOUER, PAUL (1980) - Narrative Time. Critical Inquiry, 7.
RODRIGUES, LEITÃO E BENEVIDES DE BARROS [orgs] (1992) Grupos e
Instituições em Análise – Rio de Janeiro – Editora Rosa dos Ventos –.
ROLAND, BEATRIZ (2003) A adolescência homoerótica no contexto escolar:
uma história de vida in Discursos de Identidades Moita Lopes (org.) –
Campinas – Mercado das Letras.
ROSENTHAL, R. E JACOBSON, L. (1989) “Profecias auto-realizadores em sala
de aula: as expectativas dos professores como determinantes não intencionais da
capacidade intelectual dos alunos”. Em: Patto, M.H.S.(org.) Introdução à
Psicologia Escolar. São Paulo: T.A.Queiroz.
SASSAKI, ROMEU (1997) Inclusão: construindo uma sociedade para todos
Rio de Janeiro – WVA Editora.
___________________ (2003) - livreto Vida Independente: história, movimento,
liderança, conceito, filosofia e fundamentos. São Paulo: RNR. Disponível em
http://www.cnbb.org.br/documento_geral/RomeuSassakiComochamaraspessoas.d
oc - último acesso janeiro 2006.
SILVA, TOMÁS TADEU (1994) O Sujeito da Educação: Estudos
Foucaultianos – Petrópolis – Editora Vozes.
SIMPSON, MURRAY (2002) Bodies, brains, behaviour: the return of the three
stoodes in learning disability Disability Discourse Corker, Mairian & French,
Sally (Orgs) – Philadelphia – Open University Press.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
254
SHAKESPEARE, TOM (1996) Disability, identity and difference, in C. Barnes
and G. Mercer (eds) Exploring the Divide: Illness and Disability. Leeds:
Disability Press.
____________________ (1998) The Disability Reader: social science
perspectives – Cassell – London.
SKLIAR, CARLOS (2002) É o outro que retorna ou é um eu que hospeda?
Notas sobre a pergunta obstinada pelas diferenças em educação. Trabalho
encomendado 25ª Anped.
________________ (2003) Pedagogia (improvável) da diferença. E se o outro
não estivesse aí? – Rio de Janeiro – DP&A.
________________ (2004) A materialidade da morte e o eufemismo da
tolerância. Duas faces, dentre as milhões de faces desse monstro (humano)
chamado racismo – em Gallo, Silvio e Souza, Maria Regina (orgs.) – Educação do
Preconceito: ensaios sobre poder e resistência – Campinas SP – Editora Alínea.
SOUZA, MARCOS ALVES (1996) - A “nação em chuteiras”: raça e
masculinidade no futebol brasileiro – Dissertação de Mestrado Departamento de
Antropologia da Universidade de Brasília (UnB).
SOUZA, MERITI (2004a) – Fios e Furos: a trama da subjetividade e a educação –
Revista Brasileira de Educação – ANPEd - no 026 – maio/agosto.
______________ (2004b) - Mito Fundador, narrativas e história oficial:
representações identitárias na cultura brasileira - VIII Congresso Luso-Afro-
Brasileiro de Ciências Sociais – Coimbra – Setembro.
________________ (2006) - Leituras sobre o público, o privado e o sujeito da
ação configurado pela identidade individualizada Revista Espaço Acadêmico
número 62 - julho.
SOUZA, REGINA e GALLO, SILVIO (2002) Porque matamos o barbeiro?
Reflexões preliminares sobre a paradoxal exclusão do outro - Dossiê “Diferenças”
– Edicação & Sociedade – no 79, ano XXIII, agosto.
SOUSA SANTOS, BOAVENTURA org. (2003) - Reconhecer para Libertar:
caminhos do cosmopolitismo multicultural - Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
TORFING, JACOB (1999) New Theories of Discourse Laclau, Mouffe and
Zizek – Oxford – UK - Blackwell Publishers.
TREIMAIN, SHELLEY ed. (2005) – Foucault and the Governament of Disability
– The University of Michigan Press.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
255
UNESCO (1994) Leis, decretos, etc. Resolução 48/96. Declaração de Salamanca.
Procedimentos e padrões das Nações Unidas para a equalização de oportunidades
para pessoas portadoras de deficiências. Salamanca, Espanha.
__________ (2000) World Culture Report - Cultural diversity, conflict and
pluralism.
VAN LANGENHOVE, L & HARRÉ, R (1999) Introducing posirioning theory
– Oxford – Blackwell.
VEIGA-NETO, ALFREDO (2001)– Incluir para excluir em Habitantes de
Babel: políticas e poéticas da diferença Larrosa e Skliar (orgs.) Autêntica
Belo Horizonte.
______________________ (2003) Foucault e a Educação Autêntica Belo
Horizonte.
______________________ (2004) – Nietzsche e Wittgenstein: alavancas para
pensar a diferença e a pedagogia - em Gallo, Silvio e Souza, Maria Regina (orgs.)
Educação do Preconceito: ensaios sobre poder e resistência Campinas SP
Editora Alínea.
VERNON, AYESHA (1998) Multiple Oppression and the Disabled People’s
Movement - in The Disability Reader: social science perspectives Shakespeare,
Tom (org.) - London – Cassell.
WAIN, KENNETH (1996) Foucault, Education, the Self and Modernity –
Journal of Philosophy of Education, vol 30, n
o
3.
WEBER, SILKE (1976) – Aspirações à educação – Petrópolis – Ed. Vozes.
WERNECK, CLÁUDIA (1999) - Quem cabe no seu todos? Rio de Janeiro
WVA editora.
WITTGENSTEIN, LUDWIG [1953]1996 – Investigações Filosóficas – Petrópolis
– Vozes.
WOLFENSBERGER, WOLF (1972) - The Principle of Normalization in Human
Services. Toronto: National Institute on Mental Retardation.
YATES, SCOTT (2005) Truth, Power, and Ethics in Care Services for People
with Learning Difficulties in Foucault and the Governament of Disability
Treimain, Shelley ed.– The University of Michigan Press.
ZAGO, NADIR (1994) Relação escola-família: elementos de reflexão para um
objeto em construção – em Sociologia da Educação – Porto Alegre – ANPEd.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212123/CA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo