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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Débora Conforto
Da escola do hardware para a escola do software:
o processo educativo sob a lógica da compressão do tempo e do espaço
Porto Alegre
2006
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1
Débora Conforto
Da escola do hardware para a escola do software:
o processo educativo sob a lógica da compressão do tempo e do espaço
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para a obtenção do título
de Doutor em Educação.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
Lucila Maria Costi Santarosa
Porto Alegre
2006
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2
ara meus pais, Annibal Varges Conforto,
um professor-engenheiro, e Iraci
Conforto, uma professora-socióloga,
cujo pensar ético e confiança no processo
radical de transformação do mundo
orientaram e fundamentaram minha opção
consciente pela Educação. Devo a esses dois
educadores a mais importante de todas as lições:
a tomada de consciência de minha inconclusão
como ser humano, ser histórico e ético em
processo permanente de educação.
P
3
AGRADECIMENTOS
A escrita de uma Tese é um trabalho solitário. Para responder à exigência de uma
apropriação teórica e metodológica, o carinho, a compreensão e a cumplicidade de
professores, colegas, amigos, em diferentes tempos e espaços, estabeleceram as condições
para que esta professora construísse sua ação como pesquisadora:
À professora Dr
a
. Lucila Maria Costi Santarosa, pela confiança e liberdade com que
conduziu esta pesquisa, pela abertura de outros tempos-espaços e de novas temáticas de
investigação, como a Acessibilidade à WEB, e por compartilhar de projetos de valorização da
diversidade humana.
Ao professor Dr. Alfredo Veiga-Neto, que me abriu as portas para o pensamento de
Michel Foucault, Zygmunt Bauman, Antony Giddens, Giles Deleuze e Michael Hard e pelo
exemplo de um intelectual que sabe fazer da vida uma obra de arte.
Ao professor Dr. Nilton Bueno Fischer, por me aproximar do pensamento de Alberto
Melucci nas saborosas e produtivas quintas-feiras na FACED e por sua defesa incondicional
da Educação Popular.
À professora Dr
a
. Norma Regina Marzola, pelas discussões teóricas nas quais esta
pesquisa se inscreve; devo a ela muitas das discussões que possibilitaram que eu estranhasse
um acontecimento para mim extremamente familiar.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em especial, Cláudio Roberto Baptista, Ricardo
Ceccin e Hugo Beyer, que, pela qualidade de suas aulas, permitiram que eu compartilhasse
de seu talento e rigor intelectual e que acreditaram e incentivaram minha passagem direta para
o doutorado.
4
Aos professores da Banca Examinadora, Dr. Nilton Bueno Fischer, Dr
a
. Helena
Sporleder Côrtes e Dr
a
Marilú Fontoura de Medeiros, pelo rigor e cuidado na leitura e
avaliação desta Tese.
À amiga Alda Rejane Barcelos Hansen, pela disposição em ler e participar ativamente
das discussões que culminaram na construção desta Tese. Com ela compartilhei, mesmo da
distante Dinamarca, os momentos difíceis, os risos, as bobagens, o carinho e o estímulo para
continuar essa solitária caminhada tão cheia de dificuldades... Preciso destacar o apoio e o
carinho de Karsten Hansen, um dinamarquês que minha amiga Rê me ensinou a admirar.
Às educadoras Beatriz Perez, Edite Ricchetti e Jane Mari de Souza, amigas e
companheiras na luta por uma escola pública de qualidade. A excelência de seu pensar e fazer
em Educação produziram práticas de liberdade na periferia de Porto Alegre que ecoaram em
muitos momentos da escrita desta Tese.
Aos meus irmãos Marília, Annibal, Augusto César e Ecléia, pela presença, aconchego
e compreensão de meu cansaço e distanciamento. Em especial, a minha sempre pequena e
amada irmã Ecléia, pelas produtivas lições da pedagogia do ócio!
Finalmente, um agradecimento, quase em tom de desculpas, ao meu filho Bernardo,
meu maior orgulho, minha maior alegria, minha força por lutar por um mundo melhor... A
pesquisa e escrita desta Tese fizeram com que eu não compartilhasse muitos dos seus tempos
e espaços de criança... Seu amor me fez continuar!
5
O
A
wetware tornava os humanos semelhantes;
o hardware os tornava diferentes (Bauman, 2001, p 130);
o software os torna controláveis.
creditar no mundo é o que mais nos falta. Acreditar no
mundo significa, principalmente, suscitar acontecimentos, mesmos
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-
tempos, mesmo de superfície ou de volume reduzido (Deleuze, 1992,
p.218).
6
RESUMO
A presente pesquisa aborda os movimentos desencadeados na instituição escolar com a
chegada dos ambientes informatizados nas escolas da rede municipal de Porto Alegre, tendo como
interface de investigação as categorias de tempo e de espaço. Problematizo a relação escolarização-
tecnologia no contexto de um cenário social que emerge na hegemonia tecnológica digital das redes de
informação e comunicação, para que se tornem evidentes as configurações de tempo e de espaço
forjadas no palco de uma proposta de organização da escola pública municipal que, ao reorganizar
tempo e espaço escolares, marca a saída do modelo da escola seriada e a entrada da escola por ciclos
de formação e autoriza uma forma de escolarização que coloca de forma oficial a materialidade e os
saberes da informática educativa na rede de ensino municipal de Porto Alegre. Sob a lógica de uma
perspectiva de investigação histórica e cultural, desnaturaliza-se a inserção da informática no tempo e
no espaço ao considerá-la como não-imune aos efeitos do contemporâneo fenômeno de compressão do
tempo e do espaço. Percorrendo as diferentes experiências espaço-temporais e as configurações
assumidas pela sociedade ocidental, ganham visibilidade formas de escolarização que, num processo
histórico, conquistaram legitimidade e produziram a escola pública, gratuita, obrigatória, tecnológica e
ajustada às transformações e exigências de um cenário social regido por uma imensa acumulação de
espetáculos. Continuidades e descontinuidades marcam a inserção das tecnologias de informação e de
comunicação na maquinaria escolar, e o disciplinamento cognitivo e comportamental conquista novos
dispositivos. Em um corpus de análise em que se entrelaçam documentos, entrevistas, observações e o
complexo e ambivalente fenômeno implementado pela permanente revolução das redes digitais de
comunicação e de informação, é que a inserção do saber e da materialidade da Informática na
Educação no tempo e no espaço escolares passa a ser tematizada. Como um jogo de cara e coroa que,
ao revelar sua face de veneno, tornando mais eficiente o controle individual e coletivo, faz, também,
girar a moeda, para que o potencial participativo, socializante e emancipador da rede mundial de
computadores aponte para a face do próprio remédio. A partir dessa faceta condicionante e não-
determinista da relação escolarização-tecnologia, tempos e espaços para colonizar são
problematizados a fim de fazer emergir, na mesma intensidade, tempos e espaços para fruir, para
deixar espraiar a sensibilidade e a interação humanas, para potencializar o aprendizado e a aquisição
dos saberes.
7
ABSTRACT
The current research approaches the movements triggered by the school environment at the
time computers arrived in the city schools of Porto Alegre, having as inquiry interfaces the categories
of time and space. The objective is questioning the relationship of education-technology in the context
of a social environment that emerges from the digital technological hegemony of information and
communication nets, so that it becomes evident to the configurations of time and space forged with the
proposal of a kind of organization for public city school that, by reorganizing time and school space,
mark the abandonment of a school model base on grades and the beginning of a new kind of school
base on formation cycles and authorizes a kind of education that officially places materiality and the
knowledge on educational information in the net of city schools of Porto Alegre. Under the logic of a
cultural and historical inquiry investigation, the insertion of data processing in time and space is
disnaturalized, considering it as not-immune to the effects of the contemporary phenomenon of
understanding time and space. Revising all different time-space experiences and the configurations
assumed by western society, the forms of education that, in the historical process, conquered
legitimacy and produced the technological, mandatory and free public school, adjusted to the
transformations and demands of a social environemnt governed by an immense accumulation of
spectacles earned visibility. Continuities and descontinuidades marked the insertion of information
technologies and communication in the school, and the cognitive and behavioral discipline conquered
new devices. It is in a corpus of analysis where documents, interviews, observations and the complex
and ambivalent phenomenon implemented by the permanent revolution of digital communication and
information nets intertwine that the insertion of knowledge and materiality of data processing in the
Education in educational time and space is approached. Just like in a game of heads and tails, upon
revealing its poisonous face, making the individual and collective control, it also makes everything
work, so that the participatory, socializing and emancipator potential of the worldwide net of
computers aims for the face of the same medicine. Based on this condicioning and non-determining
face of the relationship between education and technology, times and spaces for colonizing are
questioned, in order to make it emerge, in the same intensity, times and spaces for enjoyment, spread
sensibility and human interaction, in order to boost learning and the acquisition of knowledge.
8
SUMÁRIO
A roteirista
9
O programa – a sociedade do espetáculo
14
A crise – um dos possíveis roteiros
20
Os palcos e os elementos em cena
30
Os personagens – tempo e espaço
36
Tempo – a construção de uma categoria
38
Os figurinos do tempo – círculo, flecha, ponto
41
Espaço – a construção de uma categoria
47
Os figurinos do espaço – terra, território, mercadoria
49
Tempo e espaço – coreografando formas de viver e conviver
55
Para o espaço terra e o tempo em repouso – o cenário da sociedade de soberania
58
Para o espaço território e o tempo da velocidade – o cenário da sociedade de normalização
67
Para o espaço mercadoria e o tempo acelerado – o cenário da espetacular sociedade de controle
86
Tempo e espaço tecendo o terceiro personagem – a escola
103
Para o espaço terra e o tempo em repouso – os ritos, a paideia, a didática, os mosteiros, as corporações
106
Para o espaço território e o tempo da velocidade – a escola do hardware
115
A invenção do estatuto da infância – um corpo para a instituição escolar
132
Um espaço e um tempo específico – a escolarização da infância
136
Os saberes, o corpo de especialistas e o sujeito disciplinar
140
A hegemonia da escola do hardware
144
Para o espaço mercadoria e o tempo acelerado – a escola do software
152
Novos saberes, novos especialistas e o sujeito psicológico
153
A escolarização ativa e criativa para a autonomia e a auto-realização
156
Flexibilizar, participar, informatizar – novas ações educativas e o sujeito participante
159
O palco – da escola seriada para a escola ciclada
163
Da alfabetização construtivista para a escola cidadã
165
Escola cidadã – aprender e ensinar participando
177
A informática educativa: do Raiar para a Escola, Conectividade e Sociedade da Informação
203
Os atos e cacos – tempos e espaços para colonizar e para fluir
222
Em busca da ordem – uma nova heterotropia na escola
225
Práticas de alfabetização tecnológica – a apropriação das ferramentas de compressão de tempo e de espaço
246
Diversidade, flexibilidade, ambientes virtuais de aprendizagem – o processo educativo sob a lógica da
compressão do tempo e do espaço
259
Para o tempo da espiral e o espaço do saber
280
Do hardware para o software – a escola na espetacular sociedade de controle
300
Referências bibliográficas
309
9
A ROTEIRISTA
Uma prática de pesquisa é um modo de pensar, sentir, desejar, amar, odiar;
uma forma de interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a capacidade de
resistência e de submissão ao controle; uma maneira de fazer amigas/os e cultivar
inimigas/os; de merecer ter tal vontade de verdade e não outras(s); de nos enfrentar
com aqueles procedimentos de saber e com tais mecanismos de poder; de estar
inseridas/os em particulares processos de subjetivação e individualização. Portanto,
uma prática de pesquisa é implicada em nossa própria vida. A escolha de uma
prática de pesquisa, dentre outras, diz respeito ao modo como fomos e estamos
subjetivadas/os, como entramos no jogo de saberes e como nos relacionamos com o
poder. Por isto, não escolhemos, de um arsenal de métodos, aquele que melhor nos
atende, mas somos escolhidas/os (e esta expressão tem, na maioria das vezes, um
sabor amargo) pelo que foi historicamente possível de ser enunciado; que para nós
adquiriu sentidos; e que também nos significou, nos subjetivou, nos (as)sujeitou.
(CORAZZA, 2002, p.124).
A pesquisa é uma prática vinculada às trajetórias de vida. São mais de dez anos
vivenciando estratégias educativas na materialidade dos Laboratórios de Informática em
instituições educativas. Participando da construção de práticas pedagógicas presenciais e de
experiências de Educação a Distância, discutindo os movimentos de inclusão digital ou
problematizando a acessibilidade de usuários a ambientes e ao conteúdo disponibilizado na
Internet
1
, o campo da Informática na Educação se faz presente como uma temática
diretamente relacionada ao meu exercício profissional.
No contexto político-pedagógico das escolas da Rede Municipal de Porto Alegre, uma
forma de escolarização era colocada em prática e, ao organizar novos tempos e novos espaços
para o processo educativo, fez aparecer um outro lugar no edifício escolar – o ambiente
informatizado – para o exercício de um novo campo de saber, a informática. O saber-
informática que já havia interpelado algumas unidades educativas na periferia de Porto
1
Destaco a discussão apresentada no RIBIE (Reunião Ibero-Americana de Informática na Educação) no ano
de 2002 sobre o título de Acessibilidade: discutindo a interação homem-máquina na WEB, em que, eu e minha
orientadora, Prof
a
Dr
a
Lucila Santarosa, problematizamos a exclusão digital de usuários com necessidade
especiais, fisico-motoras ou cognitivas, do conjunto de ferramentas disponibilizados na rede mundial de
computadores, uma discussão posteriormente premiada pela organização do evento em Vigo, na Espanha
(Conforto e Santarosa, 2003).
10
Alegre, com o desenvolvimento do Projeto Raiar
2
, tinha seu campo de atuação ampliado com
a implementação da escolarização por Ciclos de Formação.
Novos tempos, novos espaços e uma nova materialidade tecnológica interpelam a
instituição educativa na periferia de Porto Alegre e despertam em mim uma vontade, um
desejo de investigar os movimentos que a relação Educação-Tecnologia passava a operar na
ossatura da instituição escolar sob o holofote das novas configurações espaço-temporais do
mundo contemporâneo. Capturada pelos campos discursivos da Informática, da Informática
na Educação e da Educação, saberes que me constituem, passo a tecer um objeto de
investigação, a construir uma pesquisa que, de forma interessada, possibilite compreender o
agora da Escola com a inserção das tecnologias de informação e de comunicação, em suas
práticas e em seus discursos.
Escavando um pouco as camadas de minha história profissional, caminhando sobre os
meus próprios passos, procuro pistas que permitam investigar as condições que possibilitaram
a inserção das tecnologias digitais de informação e de comunicação na escola, no mesmo
tempo e espaço em que a escola (re)configura seu pensar e fazer pedagógico. A relação entre
dois acontecimentos – a escola que deixava para trás a seriação como forma de escolarização
e a emergência de um novo lugar no edifício escolar, o ambiente informatizado – planta em
mim uma desconfiança e coloca sob suspeita as certezas de um fazer profissional marcado
pela interface das tecnologias computacionais. Na trajetória da especialista em Informática na
Educação que, sob um conjunto de novos questionamentos, deixava de lado suas certezas
pedagógicas para desnaturalizar a inserção das redes digitais de comunicação e de informação
no tempo-espaço escolar, uma inserção que celebra o mundo digital, a conexão em rede, mas
que parece um pouco surda para com a própria história que possibilitou sua emergência.
Um primeiro movimento se estabelece, era preciso desconstruir a história do meu fazer
profissional, desconstruir uma parte da história de mim mesma para, como aponta Larrosa,
[...] produzir no agora uma diferença: a diferença entre o que somos (e já estamos
deixando de ser) e o outro daquilo que somos, o que viremos a ser, [...] então,
desfamiliarizar o presente (aquilo que somos), solapar sua certeza, arruinar seu
caráter necessário, e abri-lo a um vir-a-ser sem projetos e sem promessas, a uma
liberdade sem garantias, a uma temporalidade trágica (2000, p.329-330).
2
Raiar foi um projeto desenvolvido em cinco escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre, sob a
orientação técnica e pedagógica do LEC – Laboratório de Estudos Cognitivos – da UFRGS. Esse projeto será
apresentado no decorrer desta tese.
11
Estranhando o caráter necessário da Informática na Educação, afasto-me do que já
sabia para me entregar à inquietude de novas idéias, para colocar em questão o que sou, para
percorrer uma das múltiplas possibilidades que são possíveis numa investigação que conecta
Educação-Tecnologia. Investigar e problematizar o processo ensino-aprendizagem mediado
por ferramentas computacionais ou construir novas possibilidades educativas potencializadas
pela interação em ambientes de aprendizagem a distância são trilhas por mim já percorridas
capturada pelo desejo de produzir novos discursos acerca da relação Educação-Tecnologia,
pela ambição em prescrever novas práticas pedagógicas e, com elas, produzir outras verdades.
Guiada pelas rotas demarcadas pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
3
, desloco-me por linhas de pesquisa, vou construindo meu
currículo de aprendizagens, um elenco de saberes, verdadeiros mapas dinâmicos que me
impulsionaram, como aponta Foucault, para uma curiosidade,
[...] única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de
obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que
permite separar-se de si mesmo; pois [...] existem momentos na vida onde a questão
de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber
diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e a refletir
(1994, p.13).
Caminhando por outras rotas, aproximo-me de uma discursividade que planta em mim
a desconfiança em relação aos discursos educacionais unificadores que, contemporaneamente,
levantam uma nova bandeira salvacionista – A informática vai revolucionar a Educação!
4
Outras rotas, novas reflexões são desencadeadas, e um pensar que eu não havia ainda
experienciado, passa, agora, a direcionar minha ação investigativa. Uma curiosidade se
estabelece e me impulsiona a trocar de óculos, a ajustar o foco para discutir como e com que
finalidade ferramentas digitais de comunicação e de informação são inseridas no contexto da
educação escolarizada, no palco de uma proposta político-educacional que estrutura a escola
municipal sob uma outra lógica ao reorganizar seus tempos, seus espaços e suas relações de
poder.
3
É fundamental destacar a estrutura do curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, uma prática freireana do inédito-viável, que tem potencializado o rompimento com os
currículos estabelecidos a priori, alicerçados na classificação e na automatização do conhecimento. Ao
disponibilizar um elenco de saberes, que evoluem com os percursos de aprendizagem e de experiências de seus
membros, potencializa a construção de uma coletividade inteligente.
4
Slogan que acompanhou as chamadas publicitárias do projeto não-governamental Amigos da Escola ao
longo do ano de 2002.
12
Redireciono minha trajetória de pesquisadora, abandono as discussões reducionistas
sobre o direito de acesso ao equipamento, o tipo de conexão técnica, a análise de se os
computadores são bons para o ensino ou de se as novas ferramentas digitais potencializam o
processo de aprendizagem, para dar visibilidade aos movimentos que a inserção de uma
materialidade pós-moderna passa a desencadear no tempo-espaço da escola moderna. Outros
fios emergem e, tecidos por outras agulhas, vão tramar um objeto de pesquisa bastante
diferente das pesquisas que, até então, eu havia experienciado.
Como assinalado na epígrafe, em que tomo emprestadas as palavras de Sandra
Corazza, fui escolhida por essa rota de pesquisa, uma escolha que, de forma incipiente, eu já
sinalizava na época da seleção para o programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Ao assumir o desafio de olhar a materialidade disponibilizada no
ambiente informatizado sob uma perspectiva histórico-cultural, afasto-me de formas mais
dominantes de pensar e de escrever a relação Educação-Tecnologia. É de dentro do campo da
Informática na Educação, pelo olhar de uma especialista em Informática na Educação, que
passo a investigar a inserção das tecnologias computacionais no tempo-espaço escolar apoiada
pelas lentes de outros campos de saber, no desejo de “pensar de outro modo, de explorar
novos sentidos, de ensaiar novas metáforas” (LAROSSA, 1994, p.35).
Faz-se necessário apresentar o lugar que ocupo durante a produção dessa investigação.
Um ser híbrido se estabelece forjado na experiência de uma professora da rede municipal de
ensino familiarizada com a temática da Informática na Educação e na ação da pesquisadora
que, por não se encontrar na exterioridade do campo que descreve, não teme percorrê-lo de
forma apaixonada. Dessa trama que entrelaça pesquisa e paixão, construo as trilhas, as rotas e
os desvios para que pudesse assumir como problemático aquilo que já havia se convertido em
um hábito – que já habita em mim.
É a partir do olhar da professora-pesquisadora que não ocupa um lugar especial ou
superior por não estar imune aos discursos e as práticas pedagógicas, que procuro assentar
minha investigação. É a professora-pesquisadora que é parte do texto que produz, que aguça
seu olhar para problematizar a construção de um novo lugar no edifício escolar da periferia de
Porto Alegre - o ambiente informatizado.
Desafiada pela pertinência do objeto de pesquisa e correndo todos os riscos em deixar
para traz terrenos possivelmente mais seguros, elejo caminhos, escolho debatedores, mergulho
em suas idéias, convido-os a percorrer novas trilhas, para, na articulação de diferentes campos
teóricos, compor um quadro conceitual que possibilite problematizar os tempos e os espaços
que a relação escolarização-tecnologias da informação e comunicação começam a configurar
13
no microcenário da instituição escolar em sintonia com o macrocenário da sociedade
contemporânea.
No rastro de uma história pessoal e profissional de busca permanente de novas formas
de ver e dizer o mundo, justifico meu interesse em problematizar a relação Educação-
Tecnologia no tempo e no espaço da proposta político-pedagógica da Escola Cidadã,
primeiro, por ser um projeto de Educação que emerge do desejo de desencadear movimentos
de ruptura com a lógica da própria Modernidade, para Veiga-Neto (2000, p.182), implicada
com a domesticação da diferença, com a desigualdade e com a exclusão; segundo, por ser o
saber-informática um campo de saber que não nasce das práticas dos sujeitos da classe
popular, mas importado, interpelado pelas relações de poder e imerso nas lutas permanentes
de dominação e de manutenção do status quo da escola moderna.
14
O PROGRAMA - A ESCOLA NA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de
produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era
vivido diretamente tornou-se uma representação (DEBORD, 1997, p.13).
Transpor para a lineariedade da escrita alfabética todo um pulsar de idéias e
questionamentos experienciados na instituição escolar, desenhados no tempo e no espaço de
uma pesquisa que problematiza a relação Educação-Tecnologia coloca-se como um desafio
face à exigência de uma pesquisa acadêmica que, muitas vezes, sob a tutela de uma
normatização, reduz a riqueza e a singularidade de acontecimentos a uma categorização
identificatória e classificatória. Era preciso valorizar a riqueza dos dados que emergiam do
processo de pesquisa. Era preciso aprender, como ensina Wittgenstein (1987, p.61), a forma
de falar de um acontecimento.
Assim, tinha em mãos o desafio de construir uma forma de abordar o acontecimento
que marca a inserção das tecnologias digitais de informação e de comunicação em um cenário
escolar que organiza seus tempos e espaços sob a lógica dos Ciclos de Formação. Era preciso
encontrar uma forma de dar visibilidade para a riqueza do processo investigativo que percorre
a periferia de Porto Alegre para buscar novas peças e, com elas, construir uma das possíveis
respostas para uma necessária e importante pergunta: Sob que novos arranjos os dois pilares
que forjaram a estrutura típica da escola moderna – tempo e espaço – vão se configurar na
instituição educativa contemporânea com a inserção das tecnologias digitais de informação e
de comunicação?
A complexidade da pergunta e do contexto sociocultural em que se insere essa
investigação deveria ser respeitada em todas as suas dificuldades, limitações e
potencialidades. Por ser um estudo no tempo contemporâneo, precisava ser mostrado em toda
a sua densidade, não para seduzir o futuro ou tirar a magia do passado, mas para tentar
entender o presente, tempos carregados de dúvidas e incertezas. Portanto, era preciso eleger
uma forma para apresentar os resultados desta pesquisa, em que a própria forma de estruturar
os capítulos e seções contemplasse o tempo e o espaço social em que se desenvolveu, não
15
esquecendo que o conjunto de saberes e práticas que emergiam da pesquisa encontra-se
inextricavelmente imbricado nas configurações e no modo de viver de uma sociedade
construída com base na informação, sob um tipo particular de informação – a imagem.
No cenário contemporâneo, somos capturados por uma infinidade de fluxos
socioculturais que tem no poder da tecnologia e na força da imagem sua força motriz. As
relações sociais passam pela interface de imagens e pelo espetáculo, a superexposição passa a
ser o modo dominante de viver esse contexto sociocultural. Viver a sociedade contemporânea
é viver a Sociedade do Espetáculo
5
.
O tempo e o espaço em que foi gestada e implementada a proposta político-pedagógica
da Escola Cidadã, solo em que se inscreve a investigação proposta por esta Tese, são
marcados pelo brilho do espetáculo. Grandes seminários nacionais e internacionais eram
organizados, reuniões que colocavam em um mesmo palco, professores, intelectuais
renomados, autoridades públicas, todos interessados em discutir e socializar saberes no fértil
campo da Educação. Com o objetivo de trazer a luz para o pensar e o fazer em Educação,
verdadeiros espetáculos eram colocados em cartaz, uma discursividade modernizante e
secular para o saber pedagógico. A formação e a capacitação docente que se tornaram uma
constante desde a primeira gestão da Administração Popular, na construção dos Ciclos de
Formação da Escola Cidadã, era intensificada e ampliada para todos os atores do cenário
educativo – professores, funcionários, pais –, uma vez que todos, na Escola Ciclada,
passavam a ser educadores. Era por meio dos grandes espetáculos – seminários e encontros,
nacional e internacional – que se implementava a formação permanente e continuada a que o
coletivo escolar devia se submeter para aprender os novos vocábulos e a nova gramática da
escolarização sob a lógica dos Ciclos de Formação, uma outra linguagem para constituir o
novo educador e a emergente Escola Cidadã:
[...] Foi instituída uma política de formação permanente dos educadores. Essa
política, que priorizava a formação e serviço, tem diferentes espaços e ações
diversificadas de formação. Os grandes seminários (Nacional e Internacional) visam
colocar ao alcance da Rede as pesquisas e as discussões pedagógicas mais avançadas
que ocorrem no Brasil e no mundo todo. Ao mesmo tempo, o Seminário Nacional é
um espaço de socialização teórico-prático de experiências que os nossos educadores
desenvolvem na Rede, possibilitando uma leitura acadêmica dessas experiências
com a participação de pesquisadores de diversas universidades do País (AZEVEDO,
2000).
5
Expressão criada pelo filósofo Guy Debord (1997) para ilustrar as dificuldades de viver num mundo forjado
pela ditadura do mercado e temperado pelos direitos do homem consumidor-espectador.
16
A sociedade do espetáculo não poderia deixar escapar um de seus principais
instrumentos para a dobra e (re)dobra da subjetividade na sociedade imagética e tecnológica.
Como analisa Wertheim (2001), as tecnologias de informação e de comunicação têm sido
apresentadas como o reino perfeito, um quase paraíso reconstruído num formato secular e
tecnologicamente sancionado nos portais eletrônicos .com, .net e .edu. O espetáculo da
Informática Educativa, na quase idolatria ao computador, explora o enredo salvacionsita e a
narrativa mágica para a crise na Educação
6
.
Assistimos, como não nos deixa esquecer Becker (2004), a muitos espetáculos
educativos, QPE (Quadro de Pessoal por Escola), Calendário Rotativo ou, aos muitos ismos
educativos... Seria o ciclo o próximo espetáculo a entrar em cartaz? E o computador o novo
elemento em cena no palco para o espetáculo escolarização-tecnologias? A Educação é
facilmente seduzida pela purpurina do espetáculo, mas o espetáculo não pode e não deve
substituir a experiência escolar! A Educação não pode e não deve ser seduzida pelos
tentadores efeitos ilusórios do espetáculo. Há um espetáculo sendo encenado no teatro
escolar, uma peça que parece não mais sair do palco das instituições educativas: O pacto da
mediocridade – eu finjo que ensino e vocês fingem que aprendem! O poder cênico da
Educação é exercido em toda a sua potência na sociedade de espetáculos.
Respeitando o tempo e o espaço da contemporânea sociedade de espetáculos, fundada
no poder da tecnologia e na supremacia da imagem, elejo a metáfora do teatro como forma de
dispor saberes, práticas discursivas e não-discursivas de uma pesquisa que tematiza a relação
Educação-Tecnologia. Pela metáfora do teatro, busco uma forma mais produtiva de ver um
acontecimento no cenário da Sociedade do Espetáculo. Como no teatro, viver na Sociedade do
Espetáculo, é viver papéis, é ser ator, é ser espectador, é viver num palco em que se
entrelaçam os signos em representação, a espacialidade e a temporalidade virtual de uma
narrativa, mas, também, o que é previsto como fora de cena.
No espaço-tempo escolar vivemos uma multiplicidade de papéis – alunos,
profissionais da educação, pais, pesquisadores. Para cada papel aprendemos uma linguagem e
uma gramática, recebemos a moldagem apropriada que nos permite vestir o figurino, subir no
6
A mesa temática - Inclusão Digital - no X Seminário Nacional de Educação promovido pela Secretaria
Municipal de Educação de Porto Alegre, em 14 de maio de 2002, tem como mote a discussão e divulgação de
formas de implementar e experienciar sistemas de formação a distância, principalmente, na temática das novas
tecnologias da comunicação e da informação. Discutindo sobre a premência de reformar a escola - pela utopia da
eliminação dos currículos, dos horários, do ensino presencial -, o espetáculo apresenta seu enredo e faz lembrar a
fala quase profética de Deleuze: [...] tentam nos fazer acreditar numa reforma da escola, quando se trata de sua
liquidação. (1992, p. 216).
17
palco e encenar um enredo, seja ele um drama, seja uma comédia. Nos diferentes momentos e
movimentos dessa investigação, assumi diferentes papéis, observei configurações espaço-
temporais, ora como o ator em cena, ora como uma espectadora na platéia.
Da pesquisadora para a roteirista, aponto para um deslocamento que tem em seu eixo
o valor central que atribuo à linguagem, não a linguagem produtora de representações sobre a
realidade, mas como foi concebida após a virada lingüística
7
, como produtora da própria
realidade discursiva. A idéia ingênua de que a informação reflete uma realidade em si é, como
alertou Melucci (2004), um resíduo do passado que devemos renunciar. Habitamos imagens,
endossamos mensagens, fazemos acontecer eventos pelo fato de pensá-los ou de comunicá-
los. Não há nada que faça sentido fora do discurso e da linguagem, pois, de acordo com
Foucault (1997), ambos são práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.
Se nomear é fazer existir, ao falar da inserção dos ambientes informatizados e de sua
materialidade instituo-a como um problema e como um objeto de pesquisa, construindo, sob
o olhar de outros campos de saber, um caminho investigativo que se afasta um pouco das
formas mais tradicionais de se pensar e de se escrever sobre o adjetivo educacional que o
saber informática conquistou. Faço parte do contexto investigativo dessa pesquisa, sou a
pesquisadora-expectadora que “tem sempre um grau de interação com a situação estudada,
afetando-a e sendo por ela afetada” (ANDRÉ, 1999). Construo um roteiro para esse caminho
investigativo, não como um esquema linear, rígido e seqüencial, mas como pequenas rotas,
desejando, como me ensinou Fortuna (1998), que intencionalidade e criação sejam bem-
vindas a essa investigação.
No capítulo Da crise para um dos possíveis roteiros, apresento o objeto de pesquisa,
uma investigação que emerge da percepção de um estado de crise na e da escola, uma
instituição de confinamento apontada por não mais responder às demandas do cenário social
contemporâneo inaugurado pelos movimentos de planetarização do espaço e de
presentificação do futuro. Com a definição do objeto de pesquisa, apresento, na seção Os
palcos e os elementos em cena, a metodologia, as unidades de pesquisa e a descrição dos
instrumentos utilizados para a coleta de dados.
Para continuar a caminhada por essa rota de pesquisa e, com ela, abordar o fértil objeto
de investigação que problematiza a inserção de uma materialidade tecnológica no cenário de
7
Nova orientação no campo da linguagem conhecida como Virada Lingüística imprimiu papel central à
linguagem, tratando-a não apenas como um conjunto de signos, mas, entendendo que ao nomear, ao descrever,
ao caracterizar fatos, fenômenos, sujeitos, a linguagem institui significados, constituindo a realidade de uma
determinada perspectiva. Como afirma Veiga-Neto (1996, p. 159), “isso que chamamos de realidade não é um
dado externo a ser acessado pela razão, mas é, sim, o resultado de uma construção interessada”.
18
uma escola que (re)configura seus tempos e espaços de escolarização, construo uma grade de
inteligibilidade – tempo-espaço-tecnologias de poder – uma grade que permita abordar as
configurações espaço-temporais no ensejo de desnaturalizá-las. As categorias tempo e espaço
que emergem do processo histórico da humanidade, quando liberadas de suas identidades e
restrições cristalizadas, oportunizam a emergência de outras possibilidades de se examinar as
íntimas conexões entre o mundo moderno e o pós-moderno. A imanente transformação
espaço-temporal e suas repercussões são abordadas, em nível macro, na organização
sociocultural, política e econômica na sociedade contemporânea e, em nível micro, nas
diferentes formas de escolarização.
No capítulo Os personagens – o tempo e o espaço, modelo a primeira parte da grade
de inteligibilidade, em que procuro dar visibilidade à construção histórico-cultural das
categorias tempo e espaços, problematizando-as como elementos inventados e reinventados
pelas sociedades na emergência de acontecimentos de ordem intelectual, técnica e social, que,
ao se transformarem, transformam os sujeitos e as formas de organização social.
Ao percorrer as representações espaço-temporais, reconstruo o solo que tornou
possível que os diferentes dispositivos para a construção do homem e da sociedade pudessem
florescer, compondo a segunda parte da grade de inteligibilidade - tempo-espaço-tecnologias
de poder. Diferentes percepções e sentidos espaço-temporais que interpelaram o homem ao
longo de sua história, forjaram estratégias para a preservação da ordem em um corpo
individual e social que lentamente sai da barbárie para viver a civilidade. Assim, no capítulo
Tempo-Espaço – coreografando formas de viver e conviver, as categorias tempo e espaço
emergem no contexto histórico dos múltiplos e permanentes conflitos e negociações, em que
técnica, política e projetos socio-culturais se misturam de forma inextrincável.
Construída a grade de inteligibilidade e contemplada, em nível macro as configurações
espaço-temporais, no capítulo Tempo e espaço tecendo o terceiro personagem – a Escola,
faço minha entrada na instituição educacional pelo viés de construções históricas de tempo e
de espaço para, com elas, analisar e descrever os movimentos da Escola – as condições que
possibilitaram sua emergência e as configurações que a mesma vai assumindo em sua
conexão íntima e orgânica com a sociedade. As históricas configurações espaço-temporais são
abordadas, agora, em nível micro, para dar visibilidade às condições de possibilitaram à
escola imprimir um conjunto de práticas de normalização do corpo individual e coletivo.
Ensejo para esse capítulo, entrelaçar os verdadeiros personagens dessa trama investigativa -
tempo, espaço, escola - personagens que, vistos em sua própria história e em sua relação de
imanência com a sociedade, permitem dar visibilidade às continuidades e descontinuidades
19
das formas de escolarização, suas diferentes configurações e sua imanente conexão com um
cenário contemporâneo que se materializa sob uma nova metragem do espaço e sob formas
quase que instantâneas de tempo.
No capítulo O palco: a escola seriada para a escola cidadã , construo a dobradiça
que liga a diversidade de temporalizações e espacializações - em nível macro, na
complexidade das formas de organização social e, no micro, nas diferentes formas de
escolarização -, discutidas nos capítulos anteriores, com o cenário educativo em que garimpo
as configurações espaço-temporais que, pela interface das tecnologias disponibilizadas no
ambiente informatizado, começam a emergir. A proposta político-pedagógica da Escola
Cidadã é apresentada para dar visibilidade à forma de escolarização da rede municipal de
ensino que, ao desenhar novas configurações espaço-temporais para o processo educativo e,
ao projetar novas relações de poder, faz com que o saber da Informática Educativa seja
inserido, de forma oficial, no tempo-espaço escolar.
Em Atos e cacos, tempos e espaços para colonizar e para fruir, mergulho no corpus
de análise desta tese, as práticas discursivas e não-discursivas produzidas no palco de quatro
cenários educativos da periferia de Porto Alegre, para dar visibilidade às continuidades e às
rupturas espaço-temporais instituídas na escola, para problematizar as condições que
determinaram sua construção e sua modelagem, uma das tarefas a que me propus nesta
pesquisa de Doutorado.
Ao problematizar as ações mediadas pelas tecnologias digitais de informação e de
comunicação, procuro compreendê-las em sua historicidade e em seu espaço social específico,
relacionando-as com as condições de emergência que consigo perceber e os efeitos que
produzem nessa maquinaria que é a escola moderna. Por fim, em Do hardware para o
software - a escola na espetacular sociedade de controle, apresento as conclusões que não se
pretendem definitivas, pois, as rotas e os caminhos pelos quais me desloco, um cenário
marcado pelas incertezas de um tempo presentificado e um espaço planetarizado, não me
possibilitam a construção de um argumento que se justifique a partir de certezas ou verdades
pré-concebidas.
20
DA CRISE PARA UM DOS POSSÍVEIS ROTEIROS
[...] Gostemos ou não, estamos fadados a escolher, a continuar escolhendo e a
justificar nossas escolhas, dolorosamente conscientes de que escolher e ser
pressionado a provar que escolhemos certo é a nossa sina [...] (BAUMAN, 2000,
p.138).
As tecnologias digitais de comunicação e de informação disponibilizam ferramentas
que, a cada dia, colocam sob nossos olhos um processo de planetarização irresistível e
irreversível de trocas econômicas e culturais (HARDT e NEGRI, 2002). São esses fluxos
econômicos e culturais que potencializados por ferramentas tecnológicas de compressão do
tempo-espaço
8
, estão anulando antigas divisões territoriais, borrando o mapa mundial e
fazendo com que as cores das bandeiras dos Estados-Nação se unam e se mesclem num
verdadeiro arco-íris global. Os movimentos que colocam o velho continente sob a tutela de
uma mesma bandeira, de uma mesma moeda, de um mesmo conjunto de regras econômicas,
ilustram uma forma de organização social que começa a ganhar visibilidade e a apontar como
frágil a estrutura político-econômica das unidades nacionais que dominavam anteriormente o
cenário mundial.
Viver o processo de planetarização, fazendo minhas as palavras de Melucci (2004) é
viver num sistema mundial que não deixa mais lugar para o externo: territórios e culturas só
existem como dimensões internas do sistema planetário. É cada vez menor a distinção entre o
dentro e o fora. O espaço se tornou único e planetário, e o tempo, pelo esfacelamento do
futuro, se presentifica.
A organização social que se estruturava na relação entre territórios – reais e
imagináveis -, no ordenamento de um tempo-espaço interior em oposição ao tempo-espaço
exterior, é suavizada pelo desmoronamento dos muros das instituições. O cenário social
moderno organizado por meio de tempos e espaços de confinamento – a escola, a fábrica, o
8
Os sistemas aperfeiçoados de comunicação e de fluxo de informação, associados às racionalizações e à
velocidade das redes de distribuição de mercadorias e o rompimento das barreiras espaciais pela densidade das
redes de comunicação e de transporte são os acontecimentos que forjam a sensação do encolhimento do mundo e
da perda do sentido de passado e de futuro, imprimindo no homem contemporâneo a percepção da compressão
espaço-temporal (HARVEY, 2000).
21
manicômio, a prisão – se fragiliza e, de forma cada vez mais visível, revela suas crises em
favor de novas configurações espaço-temporais.
A intensa fase de compressão do tempo-espaço vivida pela humanidade tem
estabelecido as condições de possibilidade que apontam para uma crise generalizada dos
espaços de confinamento. Do espaço estriado
9
e do tempo linear das instituições, com suas
moldagens fixas e distintas, passamos para o espaço liso da sociedade contemporânea, que
opera por meio de redes flexíveis e moldáveis, “moldagens autodeformantes em cada ponto
da rede” (DELEUZE, 1992, p.221). Para Hardt (2000) e Deleuze (1992), são os espaços de
confinamento, com suas linguagens análogas, operando de forma independente para construir
distintas moldagens, que parecem não mais responder às demandas de um macrocenário
social. A forma histórica de organização social - o sistema fábrica – lentamente começa a ser
abandonada para dar lugar a uma forma de organização social que, ao mesmo tempo em que
abandona antigas territorialidades, passa a investir maciçamente em dimensões simbólicas da
ação humana.
As mutações tecnológicas derrubaram a limitação econômica, permitindo distribuir, a
custos mais atrativos, ferramentas digitais de informação e de comunicação de forma
praticamente universal, condicionando, quase como que na brincadeira de fazer cair peças
enfileiradas de um dominó, fissuras nos limites das instituições que constituíam a sociedade
disciplinar. Como argumenta Hardt (2000), as lógicas disciplinares não se tornaram ineficazes
com o inquestionável processo de abertura das instituições de confinamento, mas tornaram-se,
agora, generalizadas como formas fluidas através de todo o campo social.
Ações que eram exclusivas da escola estão, contemporaneamente, espalhadas no
cenário social. Práticas discursivas e não-discursivas, anteriormente típicas de instituições
educativas, como estabelecer conteúdos programáticos ou definir objetivos, passam a circular
fora da tutela do território escolar, podendo ser facilmente identificadas na programação de
um canal aberto ou nos canais por assinatura
10
das redes de televisão, visíveis nas áreas
9
Estriado, termo empregado por Michael Hart (2000, p.357), faz alusão às estrias, termo biológico
empregado para caracterizar as linhas ou os sulcos que marcam a pele do corpo individual. O corpo social se
revela estriado pelas demarcações de espaços e de tempos e, cada qual com sua linguagem e moldagem, passa a
interpelar o indivíduo ao longo de suas histórias individuais e coletivas.
10
As campanhas educativas, essas nas mais diversas áreas socioculturais; os canais de televisão com cunho
marcadamente educativo – Canal Futura, TVE -, os programas de educação mais formais, como por exemplo,
Telecurso 2000; os canais dedicados ao público infantil, como o Discovery Kids, que disponibiliza para seus
usuários os objetivos, os conteúdos e as habilidades associados a cada nova programação colocado no ar, entre
tantos outros exemplos, exibe de forma incontestável sob nossos olhos a fluidez das práticas educativas para o
cenário social.
22
recreativas dos Centros Comerciais
11
, acontecimentos que, concordando com Veiga-Neto
(2003c), nos possibilitam falar em Pedagogias Culturais. Seguem essa mesma lógica, os
programas de educação a distância e as ações nacionais e internacionais de organizações
governamentais e não-governamentais que, sob a etiqueta Educação para todos
12
, operam
para o espraiamento de práticas educativas para fora dos muros da escola. Ganham
visibilidade estratégias de âmbito internacional, como Cidades Educadoras, que tem como
objetivo projetar uma cidade
[...] que se converta [em] uma escola sem paredes e sem teto. Nesse espaço,
todos os lugares são salas de aula: rua, parque, praça, praia, rio, favela, shopping e
também as escolas e as universidades. Há espaços para a educação formal, em que
se aplicam conhecimentos sistematizados, e a informal, em que cabe todo tipo de
conhecimento. Ela integra esses tipos de educação, ensinando todos os cidadãos, do
bebê ao avô, por toda a vida (CABEZUDO, 2004).
Os coreografados rituais do ensinar e do aprender no tempo e no espaço escolar
experienciam, também, suas rupturas e continuidades: do presencial, na aula do quadro e do
giz, ao não-presencial, nas práticas educativas a distância mediadas por tecnologias digitais
de informação e de comunicação, oportunizadas na troca de e-mails, nos encontros nas salas
de bate-papo ou no surfar nas páginas da Web. São múltiplos os movimentos, são inúmeros os
ruídos que circulam na instituição educativa, uma multiplicidade de discursos e práticas que
desestabilizam estratégias que objetivavam garantir uma certa homogeneidade para o fazer
pedagógico e passam a colocar sobre um outro patamar a conexão entre escola e sociedade e a
relação entre poder e ensino. Essa infinidade de estratégias que passa a ser experienciada no
tempo-espaço escolar fragiliza um modelo de escolarização historicamente estabelecido.
Seguramente, hoje, é impossível se falar em um cenário educativo enclausurado, protegido
das influências do mundo exterior.
A morte de mais de uma dezena de alunos, adolescentes vítimas do poder do tráfico de
drogas
13
; os muitos que saem da escola e vão para outros confinamentos –FEBEM
14
ou
11
A pedagogização de espaços comerciais em shopping centers foi alvo de investigação exploratória
realizada por Coutinho (2002), evidenciando o deslocamento de práticas e discursos educativos para além dos
muros do edifício escolar.
12
O projeto da UNESCO – Educação para todos! – apresenta a campanha internacional coordenada pelo
seu consultor John Daniel, que busca nas ferramentas de Educação a Distância, a possibilidade de envolver todas
a sociedade civil para a qualificação da Educação Básica, destinando recursos financeiros agenciados pelo Banco
Mundial. (Cf. DANIEL, 2003).
13
A contabilidade da morte é uma das ações que um grupo de professores da Escola Leste realizam nos
últimos cinco anos.
23
Presídio Central; a prática ilícita do aluno que coloca a rota da droga dentro dos muros escola;
o adolescente que vem armado ou as constantes e recíprocas agressões entre professores e
alunos são alguns, entre tantos outros indícios, que revelam que a escola vem deixando de ser
um espaço de normalização, um espaço que parece perder um pouco o brilho de seu poder de
disciplinamento para um conjunto de indivíduos ainda pouco civilizado para o convívio
social.
A escola como a instituição que almejava forjar o mundo civilizado, ao se constituir
como um tempo-espaço privilegiado para a regulação, o disciplinamento e o controle de
corpos e mentes em formação, tem sua imagem um pouco arranhada e um pouco distante do
ideal pregado por Kant (1999), que já advertia para a falta de disciplina como um mal pior
que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode
abolir e corrigir um defeito de disciplina.
Os educadores que, como esta pesquisadora, estão na estrada como profissionais da
Educação há mais de 25 anos, percebem que um comportamento não-escolar
15
tem se
tornado a postura normal de crianças e jovens nas salas de aula das instituições educativas,
fato que provocaria em Kant, autor de Sobre a Pedagogia, um certo desconforto ao observar,
[...] o movimento contínuo das crianças e jovens nas salas de aula, a conversa
generalizada, os gritos e brigas, os pedidos constantes para ir ao banheiro ou tomar
água, as saídas e retornos da sala de aula para simplesmente dar uma volta, o arrastar
das classes, as idas ao quadro-verde para brincar com o giz [...] (XAVIER, 2003,
p.43)
Esse caracterizado comportamento tão pouco escolar, contemporaneamente, pode ser
ampliado e atualizado ao incluir no edifício escolar artefatos próprios do Mundo da
Informação. O telefone celular, o objeto de desejo e o verdadeiro ícone de cidadania para o
século XXI, não apenas abre um canal de comunicação para o mundo do lado de fora do
edifício escolar, como, ainda, possibilita fazer circular, durante as aulas (ou melhor, durante
as tentativas de ensino-aprendizagem), os torpedos
16
e a livre troca de informação entre
14
Atualmente, a instituição sócio-educativa FEBEM, para promover a resocialização dos jovens adolescentes,
é nomeada de FASERGS, mas mantive a forma de nomeação anterior por ser assim que os alunos a ela se
referem, por exemplo, ao reportar sobre os colegas que lá se encontram: tá na FEBEM, profe!
15
Termo construído no desenvolvimento da pesquisa coordenada por um grupo de pesquisadoras na UFRGS
no âmbito da disciplina escolar, cuja síntese pode ser conhecida em Xavier (2002, 2003).
16
Torpedos são mensagens de texto instantâneas veiculadas pelo telefone celular (podem ser enviados também
pela Internet), uma, entre tantas possibilidades de interação para os cidadãos da Era da Informação. Os sujeitos
economicamente mais privilegiados podem ser capturados por tecnologias digitais mais recentes - as fotos
digitais, os clipes e as músicas - um verdadeiro pacote para que o lúdico e o prazer digam presente no tempo-
espaço escolar contemporâneo.
24
adolescentes. Os aparelhos de telefonia móvel, igualmente, colocam nas mãos de crianças e
adolescentes da periferia de Porto Alegre
17
, os jogos eletrônicos, aquela espécie de fliperama
particular que, no ritmo frenético do clicar de teclas, em qualquer tempo e espaço, possibilita
a esses sujeitos o exercício da pratica pedagógica do prazer e da desnutrição cultural.
A escola tem seu tempo-espaço escolar interpelado por um conjunto diferenciado de
experiências e expectativas, por uma diversidade de relações e técnicas, que tornam o lugar
cada vez mais fantasmagórico, um movimento que faz da escola, como aponta Giddens
(1991, p.27), “um local completamente penetrado e moldado por influências sociais bem
distantes” das que tradicionalmente operavam no edifício escolar. Ações do Ministério
Público, Conselhos Tutelares, Políticas de Assistência Social (Bolsa Escola, depois Bolsa
Família) passam a influenciar e a configurar novas ações, a colocar outros atores no tempo e
no espaço escolares, repercutindo, diretamente, no gerenciamento do cenário educativo.
A escola, contemporaneamente, revela-se cada vez mais desencaixada
18
da sociedade
pelo descompasso entre tempos e espaços tão diversos. Sujeitos localizados no tempo-espaço
escolar vivenciam a lógica do fenômeno de compressão espaço-tempo, experienciando
temporalização e espacialização próprias da sociedade que se configura como pós-moderna,
mas, no contexto de uma instituição que, por sua própria gênese, ainda está ancorada na
modernidade. A escola desencaixada forja a percepção da crise
19
.
A inserção do ambiente informatizado no edifício escolar marca a chegada do
computador e das possibilidades educativas a ele associadas. Esse novo lugar no tempo-
espaço escolar é ansiosamente aguardado e, muitas vezes, é visto como o analgésico para
todos as dores-de-cabeça provocadas pelo processo de desencaixe da escola. Ilustro essa aura
17
Enganam-se os que acreditam que a periferia está à margem desse recurso da telefonia móvel, pois mais do
que 40% dos alunos em sala de aula das turmas do último ano do III Ciclo têm como “material escolar”
obrigatório o telefone celular. O uso adequado dessa tecnologia passa a figurar na pauta das reuniões com os
pais, e sua utilização, normatizada nas Normas de Convivência Escolar (Dados levantados na Escola Leste, uma
das instituições educativas participantes dessa pesquisa).
18
Desencaixe é o termo utilizado por Giddens (1991) para referir-se ao deslocamento das relações sociais de
contextos locais de interação e sua reestruturação por meio de extensões indefinidas de tempo e de espaço.
19
Habermas sugere que a percepção de um estado de coisas como crise é uma questão de teoria; assim, para
falar de uma crise, é preciso primeiro buscar uma teoria para, com ela, estabelecer a imagem de um estado de
normalidade. A crise, sob essa lógica, passaria a ocorrer quando esse estado de normal e familiar desmorona e o
acaso aparece quando a regularidade deveria imperar. A lógica proposta por Habermas parece ser impecável ao
vincular a idéia de crise à disfunção de um estado de normalidade, quando eventos parecem escapar do controle
e as ações rotineiras já não produzem os resultados esperados. Contudo, autores como Michael Foucault e Martin
Heidegger apontam que seria mais produtivo reverter essa lógica, uma vez que é por meio do extraordinário, do
não-rotineiro que reconhecemos o significado de um estado de normalidade A percepção de normalidade passa a
ser uma construção cultural que se efetiva na anormalidade e que, desafiando a lógica proposta por Habermas,
faz com que a percepção da crise seja anterior à percepção da normalidade. É a percepção da crise que nos
estimula a buscar uma teoria do normal para, com ela, imprimir a imagem de normalidade (Cf. Bauman, 2000).
25
de magia que cerca a chegada do computador no tempo e no espaço com dois fragmentos – de
uma entrevista e de uma observação - que compõem o corpus de análise desta investigação
20
:
Mas, para o fazer pedagógico, a pílula mágica chamada computador não se
apresentava em dose suficiente, uma vez que todos não podem estar ao mesmo tempo no
ambiente informatizado. Assim, perdem as apostas os que colocaram todas suas fichas no
jogo O computador vai revolucionar a educação! Além de não poder disponibilizar as
tecnologias computacionais a todos e ao mesmo tempo, também opera com códigos de
linguagem ainda não traduzidos pelas gerações que interagem no espaço educativo: os alunos
sedentos para dominá-los, e os professores ainda não se sentido muito confortáveis como a
chegada daquelas máquinas um pouco desconhecidas!
Contudo, não há como negar, com a chegada de novas tecnologias de informação e
comunicação na escola, abrem-se novas possibilidades para tecer laços sociais e instituem
novos espaços para a construção de um coletivo cada vez mais inteligente. Subjetivada pelos
discursos, pelas práticas pedagógicas mediadas pelos recursos computacionais e por uma
produção científica no campo da Informática na Educação, comemoro, sim, a implantação do
20
Os dados de pesquisa serão apresentados ao longo desta tese em caixas de texto, utilizando outra tipo de
fonte, para diferenciar das citações bibliográficas.
[...] Nós temos o limite do professor para levar no Laboratório de Informática. Como de manhã são
adolescentes, eles abrem, eles acessam, porque o professor ainda tem medo...
(Dados de pesquisa - Supervisora Educacional – Escola Sul – Outubro de 2001)
[...] Alguns professores ainda têm um pouco de receio, acho que são da nossa geração. Eles têm
um pouco de receio de mexer com a máquina, daquela coisa, acho que até um pouco de não
saber o que fazer com o recurso, como utilizar, em que o computador pode ajudar e tal... Mas eles
usam, até porque, nos temos um estagiário e essa parte técnica o estagiário supre.
(Dados de pesquisa - Supervisora Educacional – Escola Oeste – Dezembro de 2001)
Minha grande esperança para a turma de progressão era o Laboratório de Informática
porque era um instrumento novo, uma linguagem nova! Eu achei que eles iam ficar deslumbrados
e aquilo iria despertar a curiosidade deles... Acho também fundamental que a criança, mesmo a
da turma de progressão, o menino de rua, todos, enfim, tivessem acesso a esse tipo de coisa,
porque eu acho que pode alavancar outros conhecimentos que não só a Educação propedêutica,
só o letramento, enfim, eles têm que estar no laboratório...
(Dados de pesquisa – Professora - Escola Leste – Novembro/2001)
Os alunos sentados no chão em frente ao único computador que funcionava no ambiente
informatizado, todos em silêncio e organizadamente, um por vez, desenhava no Editor Gráfico –
Paint. O ambiente informatizado não estava totalmente instalado, mas os alunos das turmas de III
Ciclo, pelas mãos da professora de Espanhol, eram apresentados à nova tecnologia que chegava
a escola [...].
(Dados de Pesquisa – Observação -I Ano do III Ciclo - Escola Leste – Abril/2001)
26
ambiente informatizado nas escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Tinha agora
a materialidade tecnológica para construir estratégias pedagógicas mediada pela interface de
máquinas sintonizadas com o tempo-espaço de um mundo que aceleradamente se globaliza.
Vibro com a possibilidade de engendrar ações educativas para qualificar percursos de
aprendizagem, para suscitar a participação na confecção do laço social possível pela
valorização das singularidades de sujeitos da periferia de Porto Alegre. Computadores, rede
mundial de informação e de comunicação... Tinha agora em minhas mãos, na versão
tecnológica da fraternidade humana no ciberespaço, como ressalta Wertheim (2001), a
possibilidade de diminuir o peso da bagagem suscetível de gerar a exclusão, pois, pela
interface da tela do computador, corpos sexuados, coloridos ou desprovidos do capital cultural
são ocultados. Pela interface computacional, borram-se os marcadores identitários - sexo, raça
e idade – que se inscrevem fundamentalmente no corpo e funcionam, segundo Veiga-Neto
(2000e), para diferenciar, agrupar, classificar, incluir, excluir. Como assinala Wertheim,
[...] um dos atrativos do ciberespaço é precisamente o alívio que proporciona do
inexorável escrutínio físico [...]. No fluxo de bits, ninguém pode nos ver vacilar [...],
gordura, rugas, cabelos grisalhos, acne, calvície, baixa estatura e outros pecados
estéticos da carne ficam todos (literalmente) encobertos, [...] liberado da pressão
constante que o obriga a ter boa aparência (2001, p.19).
Meu entusiasmo e motivação não duraram muito tempo... Aquelas ferramentas que
tinham marcado de forma tão profunda meu fazer profissional, os instrumentos com os quais
tinha potencializado a construção de estratégias de aprendizagem mais significativas em
outros tempos e espaços
21
, revelam-se vazios... Instrumentos que utilizava com bons
resultados parecem agora estranhos em minhas mãos...
Na sala de aula, no ambiente informatizado, vivencio no meu fazer profissional uma crise, e a
percepção dessa crise, como sinalizam as palavras de Bauman (2000, p.146), me estimula a
buscar uma explicação teórica que me permite parar e olhar os instrumentos – as tecnologias
da informação e da comunicação - que tinha preciosamente nas mãos, mas que, agora,
parecem escapar.
Sinto a necessidade de investigar, de problematizar as condições que possibilitaram
que as tecnologias de informação e de comunicação inseridas no tempo-espaço escolar
passassem a revelar uma frágil ligação com o ensinar e o aprender. Ato pedagógico
21
Alguns exemplos de projeto mediados pela interface de ferramentas computacionais podem ser
encontrados em Conforto (2002), Conforto e Santarosa (2004).
27
desencadeado no ambiente informatizado, revela-se cada vez mais distante dos princípios
delineados pela proposta político-pedagógica da Escola Cidadã para as ações mediadas no
ambiente informatizado – “potencializar a construção de projetos com o desenvolvimento do
trabalho em sala de aula a partir do Complexo Temático” (SMED, 1999).
A percepção da crise nos impulsiona a teorizar, a problematizar ações, a analisar
regras e normas que passam a invalidar os discursos e a práticas rotineiras que, até então,
alicerçava o fazer pedagógico na escola. A incerteza de como prosseguir em um tempo-
espaço escolar que se configura de forma tão diferente do que o estabelecido pelo script
educativo moderno, projeta a percepção desse estado de crise. A percepção de uma crise no
tempo-espaço escolar, definitivamente, não é uma novidade, uma vez que as inúmeras
configurações que os processos de escolarização foram assumindo ao longo da História da
Educação desencadearam e foram desencadeados como formas de respostas à percepção de
estados de crise. Como afirma Bauman (2000, p. 147), “a cada momento, na história, várias
gerações convivem, interagem, fazem intercâmbios e enfrentam, assim, a tarefa de coordenar
suas ações e comunicar-se”, perspectiva que coloca a instituição educativa – palco para a
interação de diferentes gerações - em permanente estado de crise.
Assim, assumindo a dimensão de crise proposta por Bauman (2000), pode-se falar que
a escola esteve, está e estará permanentemente em estado de crise, por ser um tempo-espaço
de impacto do encontro entre gerações, cada qual com seus conteúdos e artefatos culturais,
que se encontram, sofrem com os atritos, constroem seus pontos de contato, modelam
interfaces que possibilitem tornar traduzíveis diferentes configurações temporais e espaciais.
Se a perspectiva de crise proposta por Bauman é “um estado normal da sociedade
humana” (2000, p.147) [grifo do autor], uma questão se coloca: por que, então, percebemos
como surpreendente a atual crise no cenário educativo? Novamente, é no pensamento de
Bauman que busco as possíveis respostas para esse dilema. Uma das possíveis respostas seria
o “pequeno volume de idéias estranhas e sem precedentes que destroem expectativas geradas
e nascidas em épocas quando as coisas mudavam mais lentamente (2000, p.147)”, ou “[...]
nunca antes eventos e transformações fundamentais que marcaram as gerações, envelheceram
e desapareceram tão rápido [...], [...] hoje, mais curtos do que nunca – alguns anos e não
algumas décadas. [...] Provavelmente nenhum formato emergente se consolida e dura muito
tempo” (2000, p.148) [grifo do autor].
Os estranhos e desconcertantes fenômenos de compressão do tempo e do espaço,
provocados pela aceleração do tempo e pelo contínuo processo de desterritorialização, como
defende Harvey (2000, p.257), tem provocado “um impacto desorientado e disruptivo sobre as
28
práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio do poder de classe, bem como sobre a vida
social e cultural”. A crise educacional contemporânea é, na verdade, uma crise do todo da
sociedade moderna e das instituições e dispositivos que alimentam o dinâmico processo que a
instituiu. As mudanças dos significados e dos usos do espaço e do tempo que instituíram a
modernidade são as que também inventaram a escola. Se a escola esteve indissociavelmente
implicada na formação do homem moderno e da própria modernidade, como e em que medida
a inserção de tecnologias digitais de comunicação no tempo-espaço escolar está envolvida na
configuração do sujeito e da sociedade, nomeada, entre tantas outras formas de nomeação,
como da Informação ou do Conhecimento?
Como discute Petitat (1994), as múltiplas contribuições que a escola faz para a
produção da sociedade estão assentadas em quatro pilares: o espaço, o tempo, a seleção de
elementos socioculturais e as estruturas de poder. Sob que novos arranjos os pilares que
edificaram a estrutura típica da escola moderna – tempo, espaço e relações de poder – vão se
materializar na instituição educativa contemporânea com a inserção das tecnologias digitais
de informação e de comunicação?
No rastro da proposição lançada por Veiga-Neto (2002a, p.14), “a crise da educação
escolarizada se articula com a crise da própria Modernidade”, começo a construir as trilhas e
as rotas para problematizar a inserção das tecnologias de informação e de comunicação no
microcenário do projeto político-pedagógica da Escola Cidadã, uma proposta que emerge
como resposta à crise da e na Escola, uma resposta que, de forma oficial, conduz a interface
das ferramentas digitais de informação e comunicação para o tempo-espaço escolar da
periferia de Porto Alegre.
Para sustentar essa perspectiva de investigação, construo um referencial teórico
apropriando-me da metáfora proposta por Michel Foucault – a caixa de ferramentas – um
conjunto de teorias e pensamentos que estabelecem as condições para operar sobre a
realidade. Quanto às ferramentas que elejo para a construção desta pesquisa, não as encontro
em uma única caixa, pois, coerente com a complexidade da trama investigativa, vou buscá-las
nas inúmeras caixas que me possibilitam pensar o status quo da escola e problematizar esse
território inventado pela Modernidade, que vive os impasses e os desafios da crise do próprio
histórico movimento sócio, político, econômico e cultural que a gestou.
Percorro os territórios de saber que organizam o Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS, desloco-me por linhas de pesquisa para compor uma grade de
inteligibilidade que possibilite olhar e problematizar o presente da escola com a inserção das
tecnologias de informação e de comunicação: nos Estudos Culturais, nas produções de Michel
29
Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, David Harvey, Zygmunt Bauman, Júlia Varela,
Fernando Alvarez-Uría, Mariano Narodowski, Marisa Costa e Alfredo Veiga-Neto, encontro
um pensar que me permitiu olhar a modernidade fora de um ordenamento de eventos e
personagens, como um período histórico em que se estabeleceram novas percepções, novos
significados e novos usos para o tempo e o espaço. Nos Movimentos Sociais, me aproximo
das inspiradas reflexões e das análises pontuais de Albert Melucci, ao disponibilizar novas
perspectivas para a construção de uma investigação social e, ainda, de Nilton Fischer e
Jaqueline Moll pelo desejo de reconceitualizar e reinventar a escola. Na caixa da Informática,
as problematizações de Steven Jonhson, Pierre Lévy, Nikolas Burbules, Castellister, Castells,
permitiram-me construir uma análise não determinista, mas, sim, condicionante para a
tecnologia.
São muitas as caixas, diferentes são as problematizações que as acercam, mas,
conduzida pelas idéias de Larossa (1994, p.35), as percorro movida pelo desejo de realizar
“algo assim como reorganizar uma biblioteca, colocar textos junto a outros, com os quais não
têm aparentemente nada a ver”, para buscar na diversidade de suas idéias a produção de
outras idéias, para explorar novos sentidos para a relação Educação-Tecnologia. Não elejo
nenhuma caixa, nenhum campo disciplinar em especial, o que seguramente seria o melhor
modo de ver, mas, também, a melhor forma de não ver, pois, como alerta Bauman (2000,
p.152) ao se “concentrar sob alguns aspectos da realidade, borramos o resto”. Por isso, sem
me limitar a nenhuma das caixas, me aproprio de porções de seus estudos que me
acompanharam e me possibilitaram investigar de maneira curiosa e interessada essa
maquinaria que é a escola, para visualizar outras peças, para conhecer alguns de seus
mecanismos e conexões e para desconstruir temporalizações e espacializações que teceram e
continuam a tecer a história da escolarização.
Sinalizo que meu interesse ao construir essa caixa de ferramentas é muito mais
analítico e descritivo do que propriamente propositivo. Desejo analisar e descrever ações
desencadeadas na lógica estruturante da escola moderna com a inserção das tecnologias de
informação e comunicação e não prescrever práticas educativas mediadas pelas ferramentas
digitais, para, quem sabe, ao produzir novas receitas, gerir a crise na escola, a crise na
engrenagem-mestra da sociedade ocidental.
Assumo essa perspectiva de investigação recorrendo às palavras de Ewald (1993,
p.26), não para impor a possibilidade, mas como uma possibilidade entre outras, certamente
não a mais verdadeira, a mais pertinente; não para produzir verdades, no sentido definitivo,
30
absoluto, mas para dar peças que sejam úteis para outros como chaves de uma caixa de
ferramentas.
OS PALCOS E OS ELEMENTOS EM CENA
O pesquisador não pode ter pressa. Muitas vezes aquilo que não é possível
apreender-se em um momento, pode-se obter mais tarde, noutro dia. Pois, muitas
vezes, as situações mais significativas do processo surgem espontaneamente, sem
nenhuma combinação ou premeditação (RODRIGUES, 1998, p. 58).
A pesquisa, ao se constituir como uma atividade humana, é interpelada por jogos de
poder, carregada de valores, interesses e princípios que marcam e orientam a ação do
pesquisador e passam a constituir os pressupostos que nortearão a construção do objeto de
investigação. A evolução das pesquisas no campo da Educação tem revelado a positividade de
uma pesquisa qualitativa, ao mesmo tempo em que alerta para o problema em se reduzir a
complexa realidade educacional a uma dimensão apenas quantificável.
[...] Em Educação as coisas acontecem de maneira tão inextricável que fica
difícil isolar as variáveis envolvidas, [...] correndo o risco de submeter à complexa
realidade do fenômeno educacional a um esquema simplificador de análise,
sacrificando o conhecimento de uma realidade em favor da aplicação acurada do
esquema. (ANDRÉ e LÜDKE, 1986, p. 3 e 4).
Como aponta e André e Lüdke (1986, p.4), os dados de uma investigação não se
revelam gratuita e diretamente aos olhos do pesquisador, nem de maneira transparente. Como
pesquisadora, não enfrentei dados e acontecimentos desarmada de todos os princípios e
pressuposições, ao contrário, foi a partir da interrogação dos fatos e dados, baseada em tudo
que conheço sobre o assunto, com toda a teoria acumulada a respeito, que construí o objeto
investigado. Ao projetar um objeto de investigação que assume o desafio de problematizar os
tempos e os espaços que começam a ser configurados e colocados em operação nos ambientes
informatizados da Escola Cidadã, aponto para a inadequação de um método causal-linear no
âmbito do mutante campo da tecnologia e para a necessária ruptura com os mitos da
imutabilidade e da neutralidade científica.
Reconhecendo e valorizando a complexidade da relação Educação-Tecnologia e sua
imanência com os fenômenos educacionais no âmbito da Informática na Educação, assumo
como metodologia de pesquisa a abordagem qualitativa do estudo de caso por oportunizar a
31
compreensão de uma instância singular e historicamente situada nas configurações espaço-
temporais do cenário político-pedagógico da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Ao
optar metodologicamente por uma pesquisa qualitativa elejo, dentro dos diferentes tipos de
estudo de caso, como caracteriza Triviños (1987, p.136), o Estudo de Multicasos que, ao
oportunizar o estudo de mais de uma instituição educacional, permite analisar, de forma mais
global, as configurações que começam a ser forjadas na materialidade dos ambientes
informatizados.
Novos tempos e novos espaços no edifício escolar, mas, igualmente, novos tempos e
novos espaços são configurados pela interface das ferramentas digitais na rede municipal de
ensino, no ambiente informatizado, na virtualidade da rede mundial de computadores.
Tempos e espaços diferentes que exigem do pesquisador uma diversidade de dados coletados
em diferentes momentos, em situações variadas e com diferentes informantes para, assim,
cruzar informações, confirmar ou rejeitar hipóteses, descobrir novos dados, afastar suposições
e levantar hipóteses alternativas.
Em novembro de 2000, realizei uma primeira entrevista com a assessoria de
Informática Educativa da Secretaria Municipal de Educação, momento em que apresentei o
objeto de investigação e consultei sobre a possibilidade de realizar a pesquisa no contexto do
sistema educativo municipal de Porto Alegre. Aceita a pesquisa, continuei a entrevista
registrando a caminhada da Informática na Educação na rede municipal de ensino, para
posteriormente, definir as unidades educativas que participam da pesquisa. Assim, com o
apoio da assessoria de Informática Educativa da SMED, escolhi quatro palcos como cenário
de pesquisa, quatro unidades educativas localizadas em diferentes regiões de Porto Alegre,
todas dotadas de ambientes informatizados equipados com infra-estrutura mínima de acesso
às ferramentas computacionais para informação e comunicação.
No espaço e no tempo em que ocorreu a coleta de dados na rede municipal de ensino
de Porto Alegre, tem início, nos ambientes informatizados, o processo de migração do
Sistema Operacional da Microsoft para GNU/Linux
22
. Esse acontecimento faz com que as
unidades pesquisas contemplem os dois sistemas operacionais na configuração dos ambientes
informatizados. As quatro unidades de pesquisa são agora identificadas
23
e caracterizadas no
Quadro 1. Nessas unidades educativas, faço uma análise do espaço físico e do mobiliário,
identifico e caracterizo os recursos computacionais, registro o layout e localizo o ambiente
22
Segundo informação obtida durante entrevista como o assessor de Informática Educativa da SMED.
Entrevistado em novembro de 2000.
23
As escolas participantes foram identificadas com o nome dos pontos cardeais para preservar seu nome e
localização.
32
informatizado no edifício escolar. Observo práticas educativas e realizo entrevistas semi-
estruturadas
24
com os estagiários de informática, com os professores e com a supervisão
pedagógica, pois, segundo a proposta da Escola Cidadã, “o projeto de trabalho com o
ambiente informatizado deve estar em estrita articulação com a coordenação do projeto
político-pedagógico da escola, sendo, portanto, responsabilidade do coletivo do Serviço de
Coordenação Pedagógica (SCP) e direção da escola” (CADERNOS PEDAGÓGICOS, 1999a,
p.69-70). Na Escola Sul, além dos estagiários e da supervisão pedagógica, foi entrevistada a
professor coordenadora do ambiente informatizado, pois, com a nova organização dos
recursos humanos, professores de técnicas comerciais e agrícolas assumiram projetos
relacionados com suas áreas de formação. No caso dessa escola, a professora com área de
concurso em Contabilidade, com a implementação dos Ciclos de Formação, assumiu a função
de coordenadora do ambiente informatizado. Do ponto de vista cronológico, a coleta de dado
foi desencadeada no período 2001 a 2004: realizando observações e entrevistas no último
trimestre dos anos letivos de 2001 e 2002; interagindo e observando as ações de alunos da
turma de progressão do III Ciclo da Escola Leste em 2002-2003; analisando documento, home
page e espaços virtuais de aprendizagem ao longo de toda a pesquisa.
QUADRO 1
Unidades de Pesquisa
Escola Norte
Escola de tipologia média, localizada próxima de um grande conjunto habitacional.
Primeira escola municipal do Porto Alegre a iniciar a migração para o software
livre. Escola referência para a rede de ensino, realizando cursos de capacitação para
os novos estagiários em Linux.
Escola Sul
Escola de tipologia pequena. Tem como destaque a proposta para o pensar e o fazer
pedagógico apoiada na Aprendizagem por Projetos. Ambiente informatizado com
sistema operacional Windows.
Escola Leste
Escola de tipologia média. Ambiente informatizado com sistema Linux. Localizada
próxima do Campo da Tuca, uma região bastante violenta da cidade.
Escola Oeste
Escola de tipologia média. Ambiente informatizado com sistema Windows.
Localizada próxima a um galpão de reciclagem de lixo. Escola referência na rede na
construção de projetos de Educação Ambiental e Informática.
Os primeiros contatos com a assessoria de Informática Educativa da SMED e os dados
que emergiram das entrevistas e das observações nos ambientes informatizados realimentaram
a pesquisa, colocando em cena novos elementos ou dimensões que necessitaram ser
acrescentados no desenvolvimento da investigação. A prioridade de utilização das turmas de
24
Escolho essa forma de entrevista por potencializar ao entrevistado a liberdade e a espontaneidade ao seu
falar, aspectos, sem dúvida, enriquecedores para a pesquisa.
33
progressão nas grades de horários do ambiente informatizado, um projeto de formação
continuada e a distância para professores que atuavam em turmas de progressão, a utilização
da Internet como um mero repositório de informação, os espaços virtuais, as home pages das
instituições de ensino que começam a ser colocadas na rede, foram elementos que
necessitaram ser problematizados no contexto sociocultural e político da escola municipal de
Porto Alegre.
Os dados que emergem das primeiras investigações de campo realizadas nos
ambientes informatizados apontaram para a necessidade de um recorte e de um
aprofundamento da investigação. Foi necessário observar de forma mais pontual a ação
educativa na turma de progressão no ambiente informatizado. Era preciso problematizar a
relação que parecia se estabelecer entre Turma de Progressão-Ambiente Informatizado–
Projeto de Formação a Distância. Foi preciso aproximar-me da rotina pedagógica
desencadeada no ambiente informatizado. Para responder aos novos desafios que emergiram
no decorrer da investigação, coloco-me mais próxima da ação pedagógica com os alunos da
Turma de Progressão no ambiente informatizado, no decorrer dos anos de 2002-2003, na
Escola Leste. Minha atuação como professora itinerante na Escola Leste, nesse mesmo
período, determinou a escolha dessa escola para realizar o recorte e aprofundamento da
investigação na Turma de Progressão. A proximidade com as dinâmicas da escola e da turma
de progressão e a oportunidade de acompanhar todas as etapas de construção e de suas
interações das estratégias pedagógicas pela interface dos recursos disponibilizados no
ambiente informatizado permitiram compor um conjunto de anotações de natureza descritiva
e pontos para reflexão, uma proximidade que possibilitou que “as situações mais
significativas do processo surgissem espontaneamente, sem nenhuma combinação ou
premeditação” (RODRIGUES, 1998, p. 58).
De forma paralela às observações e entrevistas, aprofundo a análise documental para
compor um quadro analítico de como e com que fins o saber da Informática e da Informática
na Educação se insere no discurso da proposta político pedagógico da Escola Cidadã. São
eleitos os documentos - publicações oficiais, memorandos, relatórios, planejamentos, atas de
reuniões. Somam-se a esse conjunto, as publicações periódicas vinculadas diretamente à rede
municipal de ensino- Revista Paixão de Aprender e Cadernos Pedagógicos (Quadros 2 e 3) -
documentos que circulam no cenário educativo e passam a construir a ação pedagógica
sintonizada com os Ciclos de Formação na Proposta Político- Pedagógica da Escola Cidadã.
Dois outros documentos passaram a compor o material de análise, um impresso, Cadernos
temáticos: multimeios e informática educativa; e um digital, um CD-ROM, com o relatório
34
elaborado pelos estagiários das unidades educativas descrevendo as práticas construídas nos
ambientes informatizados da rede municipal no ano de 2002, documento que possibilitou uma
visão mais global das ações pedagógicas mediadas por tecnologias computacionais
construídas nos ambientes informatizados da rede municipal de ensino. Das publicações
periódicas da rede municipal de ensino de Porto Alegre, citadas anteriormente, são eleitas e
analisadas e que estabelecem uma aproximação com o objeto de pesquisa e possibilitam
percorrer e recontar a história de implementação dos Ciclos de Formação da Proposta
Político-Pedagógica da Escola Cidadã e da inserção do saber da Informática na Educação, na
imanência de seus discursos e as práticas:
QUADRO 2
Análise documental - Paixão de Aprender
Número 4 – Setembro, 1992 Espaço Físico do Construtivismo.
Número 5 – Outubro, 1993 Escola Conhecimento e Cidadania.
Número 8 – Novembro, 1994 Ensinando e aprendendo para um novo tempo.
Número 9 – Dezembro, 1995 Escola Cidadã: construindo sua identidade.
Número 14 – Novembro, 2001 A cidade educando. Neo-socialismo.
Número 15 – Dezembro, 2002 Transformação: Arte, informática e ecologia.
QUADRO 3
Análise documental - Cadernos Pedagógicos
Número 3 – Março, 1995 Unicidade da ciência & outros temas.
Número 4 – Abril, 1995 Congresso Constituinte – Eixos Temático.
Número 5 – Maio, 1995 Encontro de Verão – Textos Básicos.
Número 9 – Abril, 1999 Ciclos de Formação – Proposta Político Pedagógica da Escola Cidadã.
Número 12 – Julho, 1998 Relatos do II Encontro das Escolas Cicladas da RME.*
Número 18 – 1999 Caderno de Estudos: Referências para a Escola Cidadã.
Número 19 – 1999 Terceiro Encontro das Escolas por Ciclos de Formação.
Número 21 – Março, 2000 II Congresso Municipal de Educação. Teses e diretrizes.
RME: Rede Municipal de Ensino.
Realizo entrevistas com a equipe de assessoria de Informática Educativa da Secretaria
Municipal de Educação que tem seu corpo técnico ampliado no decorrer do processo de
implementação na proposta dos Ciclos de Formação. Participo de duas reuniões do Comitê de
Informática da SMED, grupo multidisciplinar responsável pelas deliberações técnico-
pedagógicas para a rede municipal de ensino no campo da Informática na Educação. Navego
pelas home page das instituições educativas participantes da pesquisa e pelas páginas que
compõem o ambiente de Educação a Distância, na interface do projeto de capacitação docente
35
- Escola, Conectividade e Sociedade da Informação -, para conhecer sua modelagem e suas
configurações espaço-temporais e para problematizar suas estruturas, seus conteúdos e as
possibilidades educativas que passam a ser disponibilizadas, virtualmente, no cenário
educativo. A análise documental agregou à investigação uma fonte repleta de informações
sobre os propósitos, as estratégias, as premissas, os sentidos que são atribuídos ao saber da
Informática Educativa na proposta político-pedagógica da escola por Ciclos de Formação da
Escola Cidadã.
O caminho se faz ao andar, já disse Viñao Frago (1998, p.16). Caminhei pelas escolas
e pelos outros palcos eleitos por essa pesquisa – de forma presencial e não-presencial - com
um roteiro delineado pelas seguintes indagações de pesquisa:
Como foi pensado o projeto de Informática na Educação na proposta político-
pedagógica da Escola Cidadã? Para quem se destina? Que objetivos busca
atender?
Em que tempos/espaços estão sendo forjadas as ações educativas mediadas
pelas novas tecnologias da informação e da comunicação? As práticas
materializadas nos ambientes informatizados permitem movimentos de
renovação ou assumem uma nova camada no processo de
disciplinamento/controle no tempo e no espaço escolar? As ações
desencadeadas operam na lógica do tempo/espaço mercantil, restringindo-se a
garantir aos sujeitos a aquisição de uma postura e de um conjunto de
habilidades individualizantes e competitivas exigidas pelo projeto imperial do
mercado?
Os tempos e os espaços modelados possibilitam aos interagentes da periferia de
Porto Alegre a construção de suas respostas, de suas resistências ou adesões, ao
estabelecer movimentos de ruptura com as práticas educativas programadas
para o confinamento e disciplinamento?
36
OS PERSONAGENS – O TEMPO E O ESPAÇO
As práticas materiais de que nossos conceitos de espaço e de tempo advêm
são tão variadas quanto a gama de experiências individuais e coletivas. O desafio
consiste em cercá-las de algumas estruturas interpretativas gerais que vençam o
hiato entre a mudança cultural e a dinâmica econômica (HARVEY, 2000, p.195).
O campo de investigação em que esta tese se insere, a Informática na Educação, e o
palco de pesquisa constituído por um cenário educativo que propõe uma reorganização dos
tempos e espaços da escola apontam para a necessidade de que o próprio conceito de tempo e
de espaço seja colocado em discussão.
Problematizar tempo e espaço não é uma tarefa fácil, por ser uma ação que tem como
obstáculo inicial a forma substantivada que reveste esses conceitos. Pensá-los como
substantivos reificados, tratados como objetos físicos em que impera o caráter instrumental –
controlar, mensurar, determinar - fez com que esse hábito lingüístico prevalecesse e
contribuísse para distorcer a reflexão sobre o tempo e o espaço.
Romper com práticas restritivas e cristalizadas pelos hábitos lingüísticos é primordial
para que as noções de tempo e de espaço possam ser compreendidas não como estruturas
neutras ou propriedades naturais dos indivíduos (ESCALANO, 1998, p. 44), que existem
independentemente de suas ações, mas como categorias que precisam ser analisadas como
elementos inventados e reinventados pelas sociedades e que, portanto, “se transformam e
transformam sujeitos (LOURO, 2002, p.120)”. Desnaturalizar, romper com as locuções que
os tornam objetos físicos mensuráveis, é o que proponho para este capítulo, pensar o tempo e
o espaço como construções históricas e sociais, como realidades que emergem da sociedade
no decorrer de seu processo civilizatório e que tornaram possível construir os sistemas de
representação que os grupos sociais elaboram sobre o si e sobre o mundo.
Tempos e espaços variados se organizaram em torno de idéias e de dispositivos
materiais, são mundos de significação e não categorias reificadas que estruturam a percepção
humana antes de qualquer experiência ou independentemente do patrimônio cultural de uma
sociedade. As categorias tempo e espaço não são apriorísticas, como o caráter limitador que
os conhecimentos empíricos da época de Descartes e Kant apregoavam, mas, sim, construções
37
sociais que são resultados da aprendizagem e da experiência humanas. Como adverte Elias,
as categorias espaço-temporais não são,
[...] simplesmente, de cada indivíduo em particular, mas de uma longuíssima cadeia
de gerações através da qual o saber é transmitido, pois uma vida individual é curta
demais frente ao processo de aprendizagem necessário para o conhecimento das
concatenações específicas representadas pela causa, pelo tempo, [pelo espaço] e por
outros conceitos decorrentes do mesmo nível superior de síntese (1998, p.34).
Diferentes significados de tempo e de espaço estão postos na história da humanidade.
É preciso historicizar
25
esses significados, contextualizá-los na produção social que os
engendrou e cristalizou e que limita a compreensão de sua trajetória histórica. Numa relação
de imanência – produto e condição de processo –, tempo e espaço são símbolos sociais
reguladores e cognitivos, ferramentas que possibilitaram ao homem organizar seu entorno
social na medida em que conquistava o controle sobre a dinamicidade do próprio mundo.
Como experiências e instrumentos de reflexão elaborados ao longo da história da
humanidade, tempo e espaço exercem seu poder regulador e impõem uma certa ordem no
mundo, são categorias, como destaca Lévy (1999a, p.127) que emergem da “atividade
imaginária e prática de milhões de máquinas antropológicas transversais presentes nas dobras
dos sujeitos, nas técnicas e nos agenciamentos das instituições”.
Percorro a história da humanidade, levando como bússola os símbolos sociais
reguladores e cognitivos do tempo e do espaço, para desconstruir as formas de temporalização
e espacialização experienciadas pelos grupos sociais e apontar as condições que
possibilitaram que diferentes percepções de tempo e de espaço fossem aprendidas, não de
modo arbitrário, mas percebidas de uma determinada forma porque foram construídas para
serem assim percebidas.
Desconstruir
26
as noções de tempo e de espaço, desnaturalizar esses elementos
constituintes da vida social, romper com a forma de percebê-los como propriedades naturais
dos seres vivos, que existem independentes de suas ações, é o movimento central dessa trama
investigativa. A forma como o homem percebe o tempo e o espaço está intimamente ligada às
contínuas invenções e descobertas tecnológicas da própria humanidade. Concordando com
25
Historicizar significa colocar o acontecimento e as práticas sociais no contexto das lutas para classificar,
ordenar e definir os objetos do mundo; em contraste com o historicismo, que focaliza o ator e os eventos no
mundo como a última causa de mudança social (Popkewitz, 1994, p.182).
26
A idéia de desconstrução remete à ação de buscar os movimentos que condicionaram formas de percepção
do tempo e do espaço na história humana. Desconstruir para revelar que são elementos construídos, inventados
pela humanidade e, como não nos deixa esquecer Veiga-Neto em suas aulas, “muitas vezes esquecemos que os
inventamos”.
38
Elias (1998), o uso que fazemos do tempo e do espaço situa-se num alto nível de
generalização e de síntese e pressupõe um riquíssimo patrimônio social de saberes em relação
aos métodos de mensuração das seqüências temporais e às regularidades que elas apresentam.
É na capacidade de aprender com experiências transmitidas de uma geração para outra que
repousa o aprimoramento e a ampliação progressiva desses símbolos sociais reguladores e
cognitivos ao longo do processo histórico da humanidade.
A linguagem, o primeiro artefato inventado pelo homem que permitiu transmitir a
cultura através do tempo, com seu poder de manipular e controlar as informações, forjou uma
configuração social-cultural que potencializou a emergência de sociedades com poder
centralizado. A escrita, ao descontextualizar a informação, fortalece a idéia de um tempo
linear e cronológico; a invenção da impressão, ao mesmo tempo em que aprofunda o controle
estatal, facilita a circulação de idéias revolucionárias. Se a escrita e a impressão, ao construir a
seta que se lança para projetar um tempo futuro e escrever a história territorializada dos
Estados-Nação, são as ferramentas digitais de informação e de comunicação que ao forjar um
mundo assentado por princípios de velocidade e de volatilidade, passaram a escrever a
história da “planetarização do espaço e da presentificação do futuro” (MELUCCI, 2001).
A planetarização do espaço e a presentificação do futuro imprimiram um sentido de
crise as nossas experiências do tempo e do espaço, uma mutação radical para hábitos e
percepções que ainda mantinham seu lastro no sentido único e objetivo do tempo e do espaço.
A percepção dessa crise condiciona o reconhecimento de que os processos materiais e as
práticas humanas estão entrelaçados à multiplicidade das concepções espaço-temporais
experenciadas pela humanidade.
TEMPO – A CONSTRUÇÃO DE UMA CATEGORIA
Quando não me perguntam sobre o tempo, sei o que ele é, dizia um ancião
cheio de sabedoria. Quando me perguntam, eu não sei. Então, por que fazer a
pergunta? Ao examinar os problemas relativos ao tempo, aprendemos sobre os
homens e sobre nós mesmos coisas que antes não discerníamos com clareza.
(ELIAS, 1998, p.7).
O mundo já possui o sonho de um tempo. Para vivê-lo de fato, deve agora
possuir consciência dele (DEBORD, 1997, p.110).
39
A palavra tempo tem sua significação cercada por um debate que beira os limites da
própria história do conhecimento. Preso às teorias tradicionais do conhecimento - ora
apresentado como um dado objetivo que independe da realidade humana, ora como uma
simples representação subjetiva, um dado enraizado na natureza humana, - o significado do
tempo se cerca de posições diametralmente opostas e que tornam esse um debate estéril.
A construção conceitual associada a palavra tempo, no acompanhar desse debate,
tornou-se mais um problema do que uma solução. Sem um conceito que em si e para si
imprima a tranqüilidade de se ter pelo menos a certeza de sermos entendidos, a noção de
tempo ultrapassa os limites da identificação do objeto e se coloca como uma espécie de
identidade epistêmica que o homem não define, mas que a experiencia em toda sua potência.
A experiência do tempo não foi um acontecimento tranqüilo para a humanidade. A
fragilidade da existência humana frente às forças da natureza e a ação implacável do tempo no
ciclo da vida fizeram com que a experiência humana da temporalidade fosse marcada pelo
”selo do provisório e do efêmero” (DOMINGUES, 1996, p.19).
As potências do tempo - o novo, o imprevisto e o efêmero - levaram a humanidade a
construir formas para diminuir ou mesmo negar a ação corrosiva desses elementos. Para
Domingues (1996), dispositivos da natureza humana passaram a funcionar como carapaças de
proteção, mecanismos capazes de afastar do rastro do tempo o sofrimento, a decadência e a
morte. Para amenizar os efeitos corrosivos do tempo, mecanismos da natureza humana - o
instinto, o hábito, a memória, o esquecimento e a consciência
27
– passaram a operar, não
propriamente para integrar e assimilar o tempo, mas, sim, para esvaziá-lo ou negá-lo. Era a
natureza humana forjando uma armadura de proteção à ação corrosiva sobre a experiência do
tempo e da história. A ação desses dispositivos, com o apoio da linguagem e das instituições,
disponibilizaram os elementos de permanência e de coesão sem os quais o homem ficaria
desprotegido e a humanidade não sobreviveria.
O forte desejo de aniquilar a ação corrosiva do tempo faz da eternidade uma
constitutiva da experiência humana da temporalidade. Os sentidos da busca da eternidade e da
fuga do efêmero são os operados que constroem a experiência humana da temporalidade e
27
Como analisa Domingues (1996, p.21), o instinto é o automatismo do passado uma mera repetição no
presente, enquanto o hábito, um peso do passado fixado no presente, porém, ambos, ao negar a mudança,
terminam por instalar uma continuidade na ordem do tempo, uma certa fixidez no modo de ser e viver humanos.
A memória é a faculdade do eterno e do presente, que conserva o passado no presente, um mecanismo que vai
dar vida ao passado no presente. O outro lado da memória é o esquecimento, que, na impossibilidade de apagar
todo o tempo, o esvazia ou o suaviza. A faculdade do eterno por excelência é a consciência que, desafiando toda
a cronologia do tempo, se furta a sua ação, se descola para o passado, se coloca no presente ou se lança para o
futuro. O esquecimento deve ser visto em sua positividade de apagar da memória tudo aquilo que cai no tempo e
traz o selo de sua atividade corrosiva: o novo, o imprevisto, o efêmero.
40
imprimem no símbolo social do tempo os adjetivos de enigmático e de misterioso. Na
incapacidade de desvendar o enigma da temporalidade, a humanidade busca a evasão do
tempo, construindo formas para tentar aprisionar, controlar e marcar um tempo que, como
afirma Elias (1998, p.7) “não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear, nem respirar com odor
28
”.
No processo civilizatório, sobretudo na emergência da sociedade industrial,
aprendemos, por meio de controles sociais, a ritualizar e a formalizar nossas experiências
individuais e coletivas, como se fosse possível registrar e enquadrar nossas vivências numa
única escala temporal – horas, dias, meses, anos, décadas, séculos. Nas sociedades ocidentais,
pelo desejo de colocar ordem no mundo e com ela proteger-se da ação corrosiva do tempo, o
homem construiu a representação de um tempo percebido socialmente como um fluxo
objetivo – passado, presente e futuro – conformando um tempo social e um tempo individual
não-relacionados entre si.
Nas sociedades contemporâneas, mais do que em qualquer outro momento da
humanidade, ganham visibilidade e se entrelaçam os muitos sentidos do tempo – tempo
cíclico das rotinas diárias, o tempo da família para criar as novas gerações, o tempo escolar
para aprender novos conhecimentos e habilidades, o tempo industrial para a produção e
alocação no mercado, o tempo sagrado do destino, do mito dos deuses – uma lista de muitos
sentidos do tempo, permanentemente renovada. Nossas percepções e processos mentais nos
desorientam, pois o tempo marcado pelo relógio e pelo calendário pode ter sempre a mesma
duração, ser sempre o mesmo, mas aquele que vivemos e sentimos pode andar mais devagar
ou se acelerar pela ação dos acontecimentos. Experiências fazem segundos parecerem anos-
luz ou momentos de prazer passam com tanta rapidez que parecem se evaporar
instantaneamente, fazendo lembrar, como afirma Melucci (2004), a condição provisória do
tempo humano.
Sendo o tempo uma potência e a história o prolongamento dessa potência no mundo
dos homens, Domingues (1996) revela que o mesmo desejo de evadir o tempo e de se refugiar
na eternidade reaparecerá com mais força ainda no plano da história. O tempo na história da
humanidade também passa por diferentes velocidades. O homem que viveu na metade do
século XVII talvez percebesse o tempo da história muito lento. Os reis absolutistas e os
nobres tinham tanto poder, que era sensato acreditar que o tempo da aristocracia duraria para
28
Os órgãos do sentido possibilitam ao homem explorar o ambiente e se perceber como indivíduo de uma
espécie; por meio da consciência, o homem comprova a passagem do tempo. A espécie humana aparelhada para
pensar a individualidade e para perceber temporizações, o possui um órgão sensível para representar o tempo e
os efeitos que produz. Para suprir essa deficiência em sua materialidade biológica, o homem recorreu, desde
muito cedo, a elementos da natureza para representar e marcar o tempo.
41
sempre. Mas o acelerador da história era acionado pela Revolução Inglesa, que consagra o
ideal político liberal, inspira a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa
que, em nome dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, enche de esperança
corações e mentes em todo o mundo ocidental, até nos nossos, nas revoltas brasileiras da
Inconfidência Mineira e da Conjuração Baiana.
O frenesi tecnológico das redes digitais de comunicação acelera de forma crítica o
relógio da sociedade contemporânea. A velocidade, a instantaneidade, a quase
simultaneidade, deixam marcas que já não podem ser apagadas da história da humanidade,
pois parece que o tempo, como uma história, acaba de deixar a vida do homem.
As concepções de tempo são definidas, em parte, pelos instrumentos disponibilizados
para seu controle, para seu quase aprisionamento, para assim, estruturar e organizar nossas
experiências individuais e coletivas no grupo social. O homem, ao longo de sua história,
experienciou uma diversidade de tempos - tempos lentos, tempos acelerados, tempos
diferentes do tempo vivido pela natureza, por possuir um instrumento de memória e de
representação – a linguagem.
A linguagem, ao instalar a continuidade do tempo, conserva e reproduz os
agenciamentos sociais e as representações ligadas à forma e ao uso dos artefatos humanos. O
entrelaçamento da linguagem e da técnica permitiu produzir e modular o tempo. Pensadores
contemporâneos, como Pierre Lévy, Ivan Domingues e Alberto Melucci, vão buscar nas
figuras do tempo – o círculo, a flecha e o ponto – as metáforas criadas pela cultura para
representar simbolicamente as temporalidades experienciadas pelos agrupamentos sociais no
processo histórico da humanidade.
Os figurinos do tempo: círculo, flecha, ponto
Em estágios primitivos da história da humanidade, o homem, para avaliar durações ou
harmonizar suas atividades a processos externos, adquiriu o hábito de escolher como
parâmetro as seqüências recorrentes de fenômenos naturais – o ritmo das marés, os
batimentos do coração ou do pulso, o nascer e o pôr-do-sol, as fases da lua. A necessidade de
orientação e de estabelecer formas de regulação social fez com que a humanidade
desenvolvesse diferentes formas de medir o tempo e, a partir delas, modificasse suas
concepções nas relações entre indivíduos, sociedade e natureza. O tempo associado aos ritmos
da natureza faz emergir a figura do círculo, uma temporalidade freqüentemente representada
42
por deuses aquáticos e que, com seu escorrer, relembra o aparecer e o desaparecer das coisas e
de eventos numa analogia aos grandes ciclos da natureza.
Em culturas orais, estabelece-se a reversibilidade do tempo na figura da temporalidade
circular, em que o passado não é senão a prefiguração do futuro. Não há perda do real ou
eliminação do tempo, mas a instalação de uma temporalidade superior, não fora do tempo,
mas no tempo, no tempo sagrado das origens. O eterno conserva o passado no presente e o faz
aderir de forma tão profunda a ponto de se confundir com o próprio coletivo e com a memória
que produz. Para Domingues (1996), a memória coletiva não aceita o individual e não
conserva senão o exemplar; opera reduzindo os acontecimentos às categorias e construindo
arquétipos em vez de personagens históricos.
A memória coletiva é profundamente a-histórica: além de não conferir
nenhuma importância às lembranças pessoais, ela não retém os acontecimentos e as
individualidades históricas senão na medida em que os transforma em arquétipos,
isto é, na medida em que ela anula todas as particularidades históricas e pessoais.
(DOMINGUES, 1996, p.22).
Ancorada no arquétipo da repetição, a humanidade viveu uma temporalidade em
articulação a duas ordens de tempo diferentes: o tempo dos homens e o tempo dos deuses. A
primeira, um tempo profano, vulgar, para o fluir dos homens, sem acontecimentos, ritmado
pela alternância do dia e da noite, das estações do ano; em associação a esse, um segundo
tempo, um tempo sagrado que flui num plano divino, onipotente, que abrange a cada instante
a totalidade dos acontecimentos, ora para ocultá-los, ora para descobri-los, mas sem que nada
escape a ele, nem se perca no esquecimento.
O surgimento de uma tecnologia intelectual
29
reorganiza uma função cognitiva. A
relação entre a escrita (tecnologia intelectual) e a memória (função cognitiva) era
reorganizada, pois, como analisa Lévy (1996, p.38), o aparecimento da escrita acelerou um
processo de artificialização, de exteriorização e de virtualização da memória que certamente
já havia começado com a hominização. A escrita apostava no tempo; era a garantia da
durabilidade e o enfraquecimento do tempo nômade pela possibilidade de programar o futuro
e de estocar o passado.
A escrita torna-se a memória da linguagem de uma coletividade. Uma memória
autônoma, separada parcialmente de um corpo vivo e independente da memória biológica.
Virtualizante, a escrita dessincroniza e deslocaliza. Para Lévy (1993, p.88), a colocação
29
São tecnologias que ampliam, exteriorizam e alteram muitas funções cognitivas, como a memória, a
imaginação, a percepção e o raciocínio.
43
textual da palavra permite a virtualização da lei e da narrativa – a secular e a sagrada – e a
instauração de um poder “que comanda tanto signos quanto homens, fixando-os em uma
função, designando-os para um território, ordenando-os em uma superfície unificada”. A
escrita e a impressão aceleram o processo de superação da forma circular e a-histórica do
tempo pela longa perspectiva da história. A possibilidade de manutenção do conhecimento
permite o fim do devir sem marcas, mas também condiciona uma forma de comunicação
radicalmente nova ao permitir a distância entre o autor e o leitor:
A imprensa, que representa a primeira indústria e o primeiro meio de
comunicação de massa, transforma profundamente o modo de transmissão do
conhecimento. Pela impressão, pela ampliação da circulação de livros e pela
existência de jornais se potencializa o desenvolvimento tecnocientífico, um dos
motores da revolução industrial (LÉVY, 1999a, p.60).
A evolução da técnica operava para a separação entre o tempo e o espaço. A invenção
e a virtualização do relógio são elementos-chaves para engendrar novas formas de percepção
do tempo. Os relógios e a padronização dos calendários propiciam uma uniformidade na
mensuração do tempo e, com ela, uma nova racionalidade para a organização social. O tempo
que a cultura moderna imprime é o tempo medido pela máquina, e o relógio, como aponta
Melucci (1997, p.7), a sua máquina por excelência.
O tempo do relógio e o do calendário estabelece o tempo do emprego do tempo, um
tempo mecânico que condiciona padrões de velocidade, sincronizando ações e coordenando
organizações
30
. O tempo do relógio é um produto artificial, sua marcação é a materialidade
que objetiva o tempo e estabelece uma medida universal que permite comparar, trocar, pagar
desempenhos por meio da virtualidade do dinheiro e do poder do mercado. Como analisa
Melucci (2004), os relógios são as máquinas, instrumentos que medem o tempo como uma
quantidade homogênea, divisível e equivalente, produzindo a estandartização do tempo.
As mutações da racionalidade instrumental do relógio são ilustradas por Alberto
Melucci (2004) e Antonio Vinão Frago (s/d), na materialidade do relógio de areia, do relógio
geométrico e do relógio digital, revelando as diferenças na percepção do tempo ao longo da
evolução da humanidade. O relógio de areia trazia uma percepção material do tempo
transcorrido e do tempo que faltava transcorrer. A areia que caía e que se depositava e a
possibilidade de girar a ampulheta e fazer recomeçar o ciclo garantiam uma materialidade ao
30
No célebre filme de Charles Chaplin, Tempos modernos (1935), o operário Carlitos é martirizado pelas
máquinas e pelas linhas de montagem da usina e quase crucificado nos ponteiros de um grande relógio (LÉVY,
1999a, p.153).
44
tempo. Para Melucci (2004), nas culturas do passado, as medidas do tempo eram guiadas pela
idéia de fluxo e seus instrumentos associados a elementos da natureza – ar, terra, água, fogo.
Era no movimento intrínseco desses elementos que o homem buscava materializar o tempo,
para torná-lo visível, para circunscrevê-lo.
Se a areia, essa materialidade que escorre, torna o tempo uma experiência perceptiva e
sensorial, o relógio geométrico, pelo posicionamento dos ponteiros, permite uma visão
espacial do tempo. Não há uma materialização do tempo, mas há a transformação do tempo
em um percurso abstrato no espaço. A medida do tempo implica ainda uma associação física
com o espaço, no espaço do pequeno círculo que o ponteiro percorre. O movimento dos
ponteiros imprime a construção de um tempo linear e histórico, oferece uma idéia de
continuidade, aponta para o tempo passado, para o tempo transcorrido e para o futuro, para o
tempo que resta.
A racionalidade ocidental foi buscar nos dogmas do Cristianismo, na História da
Salvação, na herança dessacralizada do tempo cristão, o sentido mais profundo da
temporalidade, colocando-a no fim do caminho, na eternidade. A figura do círculo era
substituída pela flecha, que dá a direção, que orienta para um ponto final, que dá sentido a
todo o percurso precedente e ilumina o presente. Para Melucci (1997), a ênfase que a
sociedade industrial tratou a história, deriva de um modelo de tempo que supõe uma
orientação para um fim: progresso, revolução, riqueza das nações ou salvação da humanidade.
Essa orientação finalista do tempo, para Melucci (1997), organiza um modelo de
representação da experiência da temporalidade à qual todo o planeta se submeteu. A figura
linear do tempo assume seu sentido final ora em termos religiosos, ora em termos de
progresso. Nesse sentido, para os desafios e incertezas postos ao homem pelo mutante cenário
social, duas possibilidades de respostas são normalmente assumidas sob a tutela dessa
experiência de temporalidade: se a resposta religiosa torna-se falha, depositamos nossa
confiança na resposta secular, na racionalidade tecnológica; mas, em ambas as respostas,
colocamos no futuro o sentido do presente.
A racionalidade da cultura moderna passava a viver uma experiência de temporalidade
desencadeada pela substituição da figura do tempo entrelaçado no círculo-ciclo-linha para a
figura do tempo da flecha, um deslocamento que, segundo Melucci (2004), foi sendo
construído sob duas referências fundamentais – a máquina e a meta:
45
[O relógio] é a máquina que cria uma nova dimensão do tempo: não mais
natural, marcado somente pelos ciclos do dia e da noite, das estações do ano, do
nascimento e da morte; não mais subjetivo, ligado à percepção e a experiência dos
atores humanos (MELUCCI, 1997, p.7).
A meta é a orientação final [...], um direcionamento do tempo para um final,
em que todas as passagens intermediárias são iluminadas por um farol colocado na
conclusão do percurso e na satisfação em dar sentido às ações cumpridas durante o
percurso (MELUCCI, 2004, p.26).
Na atualidade, vivemos o tempo pontual, o tempo do relógio digital, em que não há
fluxos, o tempo não transcorre, desaparece o movimento da flecha no círculo das horas, que
saltam em um sinal, em instantes congelados do tempo. Hoje a relação entre passado, presente
e futuro emerge como uma grande interrogação. A organização espaço-temporal do sistema
fábrica cancelou o ciclo natural do dia e da noite. A racionalidade tecnológica acelerou e deu
visibilidade à intervenção social nos tempos da natureza, modificando-os e, muitas vezes,
quase anulando-os. Os tempos da natureza são percebidos como produtos de intervenção
social. Os ciclos das estações já não são mais referência para o tempo de maturação dos
alimentos postos à mesa. Podemos intervir no relógio biológico e programar quando e como
queremos dar continuidade a nossa espécie. Nascer e morrer, verbos conjugados por
excelência pela natureza, passam, contemporaneamente, a ser produtos de intervenção médica
e cultural.
A cultura da modernidade industrial colocou sua meta nos mitos do progresso e da
transformação. Os ingredientes para a felicidade da humanidade – razão, liberdade, progresso
– que prometiam seu êxito com o transcorrer do tempo, não conseguiram implementar seus
ideais na construção de uma sociedade civilizada. O futuro torna-se cada vez mais um obscuro
objeto de incerteza.
A espécie humana vive sobre a Terra, elabora e reelabora o meio em que vive por
meio de linguagens, ferramentas e instituições sociais, faz do tempo uma construção cultural.
O homem passa a ser o ator social que desloca para mais longe os limites impostos pela
natureza, colocando em sua mão a possibilidade de decisão, o poder de intervir no tempo e no
espaço planetário, pois, como afirma Melucci (2004), a vida no planeta Terra não é mais
garantida por uma ordem divina, mas posta nas mãos frágeis e hesitantes de cada um de nós.
Contemporaneamente, o homem começa a exercer de forma ainda mais significativa o
papel de operador do tempo. A cultura informático-midiática, por meio da rede mundial dos
computadores, quebra a flecha do tempo de Aristóteles. A conexão de inúmeras tecnologias
ratifica a figura de um tempo pontual. Os interagentes das comunidades reais e virtuais
46
afirmam-se como operadores do tempo: atualizam a memória, transmitem e inventam, numa
mesma ação, idéias e modelos. Modelos construídos para determinado uso de determinado
sujeito em um determinado momento.
Se a escrita permitiu um incremento e deu velocidade ao pensamento, as tecnologias
digitais, ao operar sob o critério dominante da aceleração, incorporam ao mesmo tempo o ser
e a história. A ruptura com a lineariedade e a possibilidade de cruzar os tempos, de reler o
passado e de reinterpretá-lo condicionam um rompimento do aprisionamento das verdades e,
principalmente, das identidades.
O marco da revolução neolítica em seu desejo de controlar o tempo, de manter as
coisas por um longo período tem, contemporaneamente, o alvo da durabilidade substituído
pelo da transitoriedade. O transitório constrói uma sociedade assentada sobre novos padrões
culturais e éticos, pois, o homem contemporâneo se diferencia de seus antepassados por viver
um presente que quer esquecer o passado e não parece acreditar no futuro. O dilema vivido
pelos jovens, respeitar ou subverter a experiência temporal ganha visibilidade e passa a ser o
dilema da sociedade, pois, contemporaneamente, como afirma Melucci (1997, p.8) “a
juventude que se situa, biológica e culturalmente, em uma íntima relação com o tempo,
representa o ator crucial, interpretando e traduzindo para o resto da sociedade um dos seus
dilemas conflituais”.
As experiências de tempo no acelerado e mutante cenário social contemporâneo, para
Melucci (2004, p.34-35), podem desencadear três tipos de respostas. A primeira consiste em
perder o futuro. A velocidade com que emergem e o excesso de possibilidades dos eventos
contemporâneos fazem com que o homem não consiga fixar suas ações - talvez por limites
pessoais, por vínculos sociais, pela história precedente - fazendo o passado imobilizar a
atuação no presente e cancelar o futuro. O passado passa a ser a âncora que prende o homem
num porto, numa prisão permanente .
Uma segunda resposta consiste em perder o passado, pois se as possibilidades são
tantas e mudam tão rapidamente, é preciso perseguir tudo, consumir rápido e não perder nada.
A experiência individual e coletiva torna-se uma eterna troca de possibilidades, cada uma que
emerge anula a anterior, uma resposta perigosa que muitas vezes pode levar a um caminho
esquizofrênico.
O terceiro tipo de resposta consiste em cancelar o presente, podendo ser expresso na
presentificação do futuro. A força do projeto de futuro esvazia o presente, ou priva-o de
significado, modalidades que geram o imobilismo engendrando um viver cheio de tensões ou
de tédios. As pressões do tempo social acelerado tornam-se mais sensíveis no corpo –
47
individual, coletivo e planetário – e revelam a dificuldade de viver o tempo contemporâneo. O
tempo é hoje uma experiência múltipla e descontínua que combina todas as suas dimensões
anteriores, pois, para Melucci (2004) reúne a relação entre passado, presente e futuro e une
presença memória e projeto. Entrelaça a flecha e o círculo e, talvez, permita aceder à espiral,
uma temporalidade construída na velocidade e lentidão, de movimento e repouso, de
alternância e de ritmo.
Talvez, a emergência de uma nova figura do tempo – a espiral – seja a chave que
possibilita perceber e não reduzir a pluralidade das experiências individuais e coletivas a uma
única dimensão, que reconheça a riqueza de construir projetos, não mais assegurados nas
raízes da memória ou na projeção de um futuro, mas na capacidade de estar presente,
momento por momento. Mais uma vez a juventude nos ensina com sua linguagemdá um
tempo! - a riqueza em dar um tempo para o próprio tempo, para experimentar outras
possibilidades de transgredi-lo, para experienciar a temporalidade espiral seja, com afirma
Larrosa (2000, p.232) “pela experiência da novidade, da transformação, da transgressão dos
limites, do ir além daquilo que somos, [pela] invenção de novas possibilidades de vida”.
O surgimento de tecnologias intelectuais digitais aponta para condições de
possibilidades que podem ser interpretadas, desviadas ou negligenciadas. Os diferentes
autores sociais podem ditar diferentes significados para a mesma tecnologia a fim de
modificar ou inventar um sentido, estabelecendo novos usos e significados sociais, para
possibilitar a vivência de novos tempos sociais e individuais.
ESPAÇO – A CONSTRUÇÃO DE UMA CATEGORIA
Ainda que se diga que o relógio - junto com o tempo que ele representa – que
comanda a cena, trata-se de um comando que só pode ser compreendido em
combinação com o espaço em que ele se encontra. [...] Não há como pensar num
“tempo em si mesmo”, descolado da experiência que temos do espaço (LOPES e
VEIGA-NETO, 2004, p.231).
O uso da categoria espaço é freqüente no debate acadêmico, transitando tanto nos
discursos de caráter mais científico, como nas conversas do cotidiano. Expressões como –
espaço cósmico, espaço urbano, espaço social, espaço político, espaço público, espaço
privado, espaço pedagógico – para citar apenas algumas, são suficientes para revelar a
impossibilidade de reduzir a categoria espaço a um único e mesmo substantivo. A
48
multiplicidade e a riqueza de significados possíveis para a categoria espaço, por outro lado,
fazem perceber a ausência de uma construção cultural suficientemente capaz de embasar esse
largo conjunto de necessidades e de interesses.
A noção imediata e intuitiva que assumimos quando tentamos nomear espaço revela-
se, como salienta o pesquisador italiano Alberto Melucci (2004), uma experiência de difícil
definição, mas que sabemos seguramente a que se refere. De uma noção de espaço que
ultrapassa os limites da identificação de um objeto, as discussões operam em torno da
necessidade não de assegurar uma conceituação mais perene, mas de poder descrevê-lo.
É por essa trilha que sigo, percorrendo a significação histórica da categoria do espaço
para problematizar a experiência da espacialidade como uma invenção humana. Para muitos,
pode parecer estranho falar do espaço como uma invenção. Espaço, na forma como a ele
estamos acostumados a nos referir, essa significação universalmente conhecida, é, na verdade,
um esforço constante de uma construção cultural capturada por seu próprio movimento. Para
Santos (2002), o que pensamos ser espaço jamais poderia ser compreendido sem refletir sobre
o próprio movimento que o cria e o recria, por superação, que redefine a espacialidade dos
próprios homens.
A construção cultural da humanidade, como sinaliza Santos (2002), é, entre outras
coisas, a construção de sua geografia. A identidade do indivíduo efetiva-se na construção da
identidade dos lugares, nas marcas territoriais, no significado operacional e mítico de cada ato
e lugar e no jogo entre o real e sua criação simbólica. É desse jogo simbólico que o indivíduo
constrói sua relação com o mundo e com ele mesmo, o que permite construir um mundo para
o próprio simbólico.
Como o tempo, o espaço também é naturalizado, tratado como uma qualidade objetiva
das coisas da natureza, podendo ser medido e apreendido pela atribuição de sentidos - direção,
área, forma, padrão, volume, distância - sentidos mais complexos do que os atribuídos ao
tempo. Essa aparente naturalidade acerca do espaço, da mesma forma que o tempo, oculta
territórios de ambigüidades, de contradições e de conflitos, interferindo no modo como a
humanidade interpreta e age em relação ao mundo.
Cada grupo social desenvolve concepções diferentes de espaço, uma diversidade de
significados que desencadeia inevitáveis conflitos, os quais, para Harvey (2000, p.188-189),
foram gerados, em parte, precisamente em torno do sentido próprio do espaço a ser usado para
regular a vida social e para dar sentido a conceitos, como o dos direitos territoriais. As
mudanças culturais e a dinâmica da economia política colocaram para a humanidade o desafio
de encontrar estruturas interpretativas para cercar as experiências individuais e coletivas na
49
construção do conceito de espaço. As figuras do espaço – Terra, Território, Mercadoria –,
metáforas propostas por Pierre Lévy (1999a), ajudam a representar de forma simbólica os
espaços experienciados pelo homem: espaços antropológicos dependentes de técnicas, de
significações, de linguagens, de culturas, de convenções, de representações, de emoções
humanas. São espaços que emergem entrelaçados com a evolução tecnológica dos sistemas de
comunicação e de transporte em seu poder de instituir novos sistemas de proximidade.
A Terra, o Território e a Mercadoria nascem da interação entre as pessoas,
engendrados pela atividade imaginária e pela prática de milhares de seres humanos, mediados
pelas técnicas e agenciados pelas instituições sociais. Percorrer os movimentos –
continuidades e rupturas – da espacialização da sociedade ocidental é dar visibilidade, da
mesma forma que o tempo, aos modelos de representação do espaço que têm emergência a
partir de um acontecimento de ordem intelectual, técnica, social e política.
O espaço revela sua importância. O tempo é memorizado não como um fluxo, mas
como lembranças de lugares e espaços vividos. A fotografia, o cinema, toda a imagem
espacial revela seu poder sobre a história. Para Harvey (2000, p.201), “a história deve ceder
lugar à poesia, o tempo ao espaço, como material fundamental da expressão social”.
Os figurinos do espaço – Terra, Território, Mercadoria
A Terra foi o primeiro espaço produzido pelo homem, o cenário para as epopéias e
para o depósito das sabedorias humanas. É o espaço percorrido por forças que se desenvolvem
num universo da potência e da presença, para um homem que não só pertence a uma espécie,
mas que também cria seus deuses. Tudo no espaço Terra fala, seres vivos, corpos celestes
desencadeiam relatos e rituais. As falas dos que habitam a Terra são potências que jamais se
separam de uma presença, que exercem seus poderes, destroem e criam, com os gestos e os
cantos que sustentam o mundo. Os rituais e os mitos transmitem um inventário ordenado das
qualidades e de ações possíveis no espaço.
A revolução neolítica
31
não aboliu o grande espaço da Terra, nômade e selvagem, mas
estabeleceu as condições que possibilitaram a modelagem de um novo espaço, um espaço
para o homem que se civilizava. O homem, a partir do momento em que passava a produzir
seu próprio alimento pela domesticação de plantas e de animais, começava a forjar sua
31
O neolítico não é somente um período histórico, mas um espaço antropológico que, uma vez surgido,
repercute imediatamente sobre todo o passado, todo o futuro da espécie humana (LÉVY, 1999a, p.116).
50
identidade territorial e a exercer um controle pessoal e social submetido a uma disciplina que
anteriormente desconhecia, imposta pelas exigências da agricultura, ao colocar a produção do
alimento na mão do homem.
Em um estágio relativamente primitivo da civilização agrícola, os grupos humanos
tiveram sua experiência temporal e espacial determinada por necessidades práticas de caráter
social. A experiência espaço-temporal humana, em sua relação com o cenário físico e celeste,
dizia quando e onde iniciar a semeadura, quando e onde realizar a colheita, quando e onde
começar as cerimônias rituais, os sacrifícios para agradar e agradecer aos deuses, protegendo
os homens de qualquer espécie de perigo ou desgraça.
A superação de necessidades de sobrevivência do homem implicou sempre um tipo de
deslocamento. A possibilidade de ir e vir limitada pela força muscular das pernas humanas ou
das patas de cavalos, como aponta Bauman (2001), fez com que a humanidade concebesse o
espaço como uma categoria geograficamente objetiva e imutável. O avanço tecnológico vai
lentamente inventando e colocando a disposição do homem possibilidades de deslocamento
além da força dos músculos do homem e dos animais, engendrando novos sentidos para
expressões até então usadas com quase o mesmo significado – longe e tarde ou perto e cedo.
As novas possibilidades de deslocamento condicionaram uma ruptura com o tempo da
espera e permitiram a superação de seu repouso, colocando em movimento uma história que,
para Bauman (2001, p.128), começa com a modernidade e que faz emergir “um tempo em que
o tempo tem uma história”. O tempo se diferencia do espaço e, ao poder ser manipulado,
torna-se o parceiro dinâmico do casamento tempo-espaço, pois
[...] o tempo se tornou um fator independente das dimensões inertes e imutáveis das
massas de terra e dos mares; [...] um tempo que se torna ferramenta para vencer a
resistência do espaço: encurtar distâncias, tornar exeqüível a superação de
obstáculos e dos limites à ambição humana (BAUMAN, 2001, p. 130).
Essa nova experiência da espacialidade faz o tempo produzir o espaço. O tempo
forjado pelo território quadricula o espaço, demarca e restabelece continuamente o dentro e o
fora, na construção seja das barreiras ou das fronteiras que impedem a passagem dos
nômades, seja das estradas que canalizam os fluxos econômicos e culturais.
51
A carta-portulano
32
, com suas qualidades sensoriais e uma ordenação racional do
espaço, forjava uma cartografia que marcava o ponto abstrato e não mais os recortes de
relevos e de hidrografias feitos por estimativas. A rosa-dos-ventos integrava o mapa friamente
geométrico, estriado por latitudes e longitude, completamente distante do alcance plástico e
sensorial da cartografia da Idade Média. Pela linguagem geométrica se territorializa a Terra,
cada ponto uma coordenada, um endereço, uma inscrição territorial.
A geometria e a perspectiva imprimiram uma forma objetiva de representação
espacial, um saber valorizado para um cenário social que começava a ser construído pelo
modo de produção capitalista. Orientar de forma precisa a navegação, determinar direitos de
propriedade da terra, delimitar fronteiras territoriais, estabelecer direitos de passagem e de
transporte, são os novos imperativos econômicos e políticos para o emergente cenário social.
O mapa geometrizado passou a ser um instrumento cartográfico perfeito que potencializava a
apropriação de diferentes pontos do globo, fazendo emergir uma totalidade que passa a ser
apreensível para ocupação e ação do homem. A nova representação espacial condicionou a
conquista e a organização mais racional do espaço, uma condição de possibilidade para a
emancipação do homem, pois
[...] o espaço passa a ser organizado não para refletir a glória de Deus, mas para
celebrar e facilitar a libertação do homem como indivíduo livre e ativo, dotado de
consciência e vontade, [...] o mundo deveria ser organizado, mapas e cronômetros
precisos constituíram os instrumentos essenciais (HARVEY, 2000, p.227).
O Território instaura com a Terra uma relação de depredação e de destruição. O
Território domina, fixa, inscreve e mede. A escrita abre um outro tempo para o Território,
pois a fala era separada do corpo vivo e sedentarizada num suporte inerte. Como analisa Lévy
(1999a, p. 142), os signos representam as coisas: tornam presentes coisas ausentes.
A dessacralização do espaço oportunizava a representação de um espaço usável, capaz
de ser conquistado, controlado e dominado para ação humana. A criação da moeda pela
emergência do alfabeto, o triunfo renascentista da impressão, a posse de novos continentes, o
desenvolvimento do comércio, a construção do primeiro mercado mundial, a revolução
industrial e, com ela, a hegemonia do capitalismo, foram as condições que permitiram criar
um novo sentido para o espaço.
32
A carta-portulano era uma carta que desenhava sobre um pergaminho uma rede de linha de rumo para
que o navegador escolhesse a rota e a definisse com o apoio da bússola. Sua utilização no Mediterrâneo foi
nomeada de navegação de rumo e estima (MARQUES, 1987, apud SANTOS, 2002, p.53).
52
Um novo espaço antropológico emerge como resultado de uma conjunção histórica
que possibilitou a reunião de elementos - moeda, banco e crédito, capitais e técnicas,
mercados extensos, trabalhadores subtraídos dos campos - antes dispersos no Território. O
Território passava a ser interpelado por uma espécie de novo mundo, tecido pela circulação
contínua, cada vez mais intensa e rápida, de uma virtualidade - o dinheiro.
O espaço das Mercadorias adquire autonomia em relação ao Território, ele não abole
pura e simplesmente os espaços anteriores, mas sujeita-os, organiza-os segundo seus próprios
objetivos, pois, como analisa Lévy (1999a, p.118-119), “esse espaço não é o espaço usual de
trocas ou de comércio, mas o que transforma em mercadoria tudo que consegue incluir nos
circuitos do capitalismo”. Esse espaço antropológico organizava-se subordinado por fluxos
econômicos: fluxo de energias, de matérias-primas, de mercadorias, de capitais, de mão-de-
obra, de informações. A riqueza não mais provém do domínio do território mas, do controle
dos fluxos. Os indivíduos são definidos por seu papel na fabricação, na circulação e no
consumo de coisas, de informações e de imagens. São desestruturadas as identidades
anteriores – a linhagem e a inscrição territorial. Os indivíduos são redefinidos, seus signos de
identidade tornam-se quantitativos – renda, salário, conta bancária – signos exteriores de
riqueza. A identidade, como afirma Lévy (1999a, p.132), “depende do lugar nas relações de
produção e da posição nos circuitos de consumo e de troca”. O consumo forja a construção da
identidade.
A planificação econômica, o avanço tecnológico, a densificação das redes de
comunicação e de transporte e a revelação de uma comunidade única, desigual e conflituosa
estabeleceram um momento histórico que condiciona o aparecimento de um novo plano de
existência da humanidade que emerge sem ter construído ainda sua autonomia. O cenário
contemporâneo organiza-se sobre um espaço híbrido, construído sobre as dobras dos espaços
anteriores – Terra, Território, Mercadoria. Encontra-se no espaço mercantil submetido às
exigências da competitividade e ao ganho do capital; no Território, subordinado aos objetivos
e à gestão burocratizada dos Estados-Nação; na Terra, absorvido nos mundos cercados pelos
ritos e mitos, (re)configurados, mas ainda presentes.
Na atualidade, a relação com a dimensão espacial altera-se radicalmente, pois as
ferramentas digitais possibilitam realizar operações de circulação e de transferência que
praticamente desprezam a dimensão espacial. O avanço tecnológico torna possível percorrer
em uma velocidade espantosa espaços de diferentes pontos do mundo, espaços que vão além
do planeta Terra. A possibilidade de visitar virtualmente lugares, até mesmo extraplanetários,
de acompanhar a vida e os conflitos de outros grupos sociais pela interface dos meios de
53
comunicação e informação altera a relação distância-vizinhança. O espaço contemporâneo
muda sua metragem. A geografia mensurável do território é substituída pela geografia da
mente, para Melucci (2004), um espaço mediatizado, simbólico, tão real quanto o espaço
físico.
A guerra de independência em relação ao espaço foi definitivamente deflagrada, e a
mobilidade passa a ser a moeda para um mundo em que distância é definitivamente um
produto social. A guerra da espacialidade coloca de cabeça para baixo uma configuração
social assentada na organização do espaço. Do espaço que deveria ser homogeneizado para
ser controlado, passamos para o hiperespaço que, com o advento da rede mundial de
computadores, sofre uma reengenharia como analisa Bauman (1999b, p.25), “em vez de
homogeneizar a condição humana, [com] a anulação tecnológica das distâncias temporais e
espaciais tende a poralizá-la”.
A matriz tecnológica que emancipa atores sociais e os torna cada vez mais
extraterritoriais, desterritorializados, é a mesma que coloca pesadas amarras para uma massa
humana cada vez mais localizada e presa a territórios, reais e imagináveis. Da
desterritorialidade de alguns para a territorialidade forçada de outros, uma massa humana
passa a ser presa pelas amarras dessa polaridade, experienciando, muitas vezes, a
materialidade das ferramentas digitais de informação e de comunicação despojada de meios
éticos para que os valores de sua ação possam ser confrontados e negociados.
Se sob a lógica do tempo linear, o homem construía sua identidade por um nome - a
inscrição simbólica da linhagem - e o pelo endereço - a pertença ao território -, para o acesso
ao mundo planetário, na fluidez e na velocidade do tempo pontual impõe um novo passaporte
– a senha – a figura de controle – registrada no cartão magnético, por um conjunto de dígitos,
ou inscrita na própria materialidade biológica, única e intransferível, na leitura ótica da íris ou
da digital.
Problematizar as experiências espaço-temporais construídas pela humanidade,
combinando-as com acontecimentos históricos e culturais, objetivo deste capítulo, permite
estabelecer as condições que possibilitam parar e pensar a educação escolarizada como um
conjunto de práticas que não pode ser separado das demais práticas sociais que emergem sob
a tutela de configurações espaço-temporais. A inserção de tecnologias digitais de
comunicação e de informação no edifício escolar necessita ser pensada como um conjunto de
práticas implicadas com a emergência de novas configurações espaço-temporais, sintonizadas
com novas experiências de temporalidade e de espacialidade experienciadas no âmbito da
sociedade.
54
Conhecidos os personagens – tempo e espaço –, as formas de viver socialmente as
experiências espaço-temporais devem ser problematizadas. As tecnologias de poder foram se
acumulando e se aperfeiçoando ao longo da história da sociedade ocidental. Da velha potência
da morte, que simbolizava o poder do soberano, passamos para a positividade de uma relação
de poder que ao objetivar a administração dos corpos e a promoção da vida, colocava em
circulação formas muito particulares de viver socialmente o espaço e o tempo.
Para compor a segunda parte da grade de inteligibilidade – tempo-espaço-tecnologias
de poder –, caminho guiada pela desconstrução das experiências de tempo e de espaço e
apoiada pelas investigações históricas desenvolvidas por Foucault e levadas adiante por
Deleuze, buscando mapear as modalidades de controle social que a relação entre coerções
externas e internas colocam em circulação em cada configuração espaço-temporal.
Para caminhar pela história e construir a segunda parte da grade de inteligibilidade e,
com ela dar visibilidade às tecnologias de controle do corpo individual e coletivo, elejo meus
debatedores, mergulho nos domínios de suas problematizações. David Harvey, Michel
Foucault, Gilles Deleuze, Douglas Santos, Margaret Wertheim, Pierre Lévy, Alberto Melucci,
Zygmunt Bauman, acompanham-me nessa árdua tarefa analítica. Sigo suas rotas de
pensamento, no desejo de que, deixando-os falar, suas idéias permitam construir as
ferramentas que possibilite o meu falar, um falar da relação Educação-Tecnologia no tempo e
no espaço da proposta de escolarização associada à Escola Cidadã.
De forma interessada, retomo partes de seus estudos para compor a segunda parte da
grade de inteligibilidade construída para esta tese, uma grade não-fechada e não-totalizada,
mais próxima de um esboço que disponibiliza elementos para possibilitam problematizar a
invenção do tempo e do espaço em sua relação de imanência com formas de controle do corpo
individual e social experienciadas pela humanidade. Estimulada por esse múltiplo diálogo e
pelas novas tramas e redes de investigação que suas idéias fazem emergir, busco a construção
de uma forma de olhar para os antigos e atuais processos de socialização e de escolarização
como produto e processo de uma conjuntura histórica em que se articulam condições
econômicas, políticas, sociais e culturais.
Com as palavras de Leonardo Boff, apresento o próximo capítulo Tempo e espaço –
coreografando formas de viver e conviver, salientando que
todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é
necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da
leitura sempre uma releitura.
55
TEMPO E ESPAÇO – COREOGRAFANDO FORMAS
DE VIVER E CONVIVER
As ordenações simbólicas do espaço e do tempo fornecem uma estrutura para
a experiência mediante a qual aprendemos quem e o que somos na sociedade.
Formas temporais ou estruturas espaciais configuram não somente a representação
do mundo, mas o próprio grupo, que se organiza a si mesmo de acordo com essa
representação (Harvey, 2000, p. 198).
Seria preciso fazer uma história dos espaços, que seria o mesmo que fazer
uma história dos poderes (Foucault, 1979, p.212).
Urge conhecermos as forma históricas pelas quais fazemos o que fazemos
conosco, vivemos como vivemos, a favor ou contra nosso tempo (Cardoso Jr, 2002,
p.187).
O longo processo que possibilitou ao homem sair da barbárie para viver a civilidade é
marcado por deslocamentos que, ao instituírem diferentes configurações espaço-temporais,
condicionaram uma determinada percepção do mundo e estruturaram dispositivos para a
preservação da ordem social. Tempo e espaço não podem ser compreendidos independentes
da ação social. As diferentes formas de controle que interpelaram e constituíram o corpo
individual e social instituíram-se a partir de saberes que definiram as práticas plausíveis e
inteligíveis para cada temporalidade e espacialidade vividas pela humanidade. Saberes
historicamente produzidos e reconhecidos como verdadeiros condicionaram o contexto
material e estabelecerem as regras básicas para o jogo social.
A forma como utilizamos o conceito de tempo e de espaço, como analisa Elias (1998,
p.35), pressupõe um riquíssimo patrimônio social de saberes. Se, em estágios anteriores da
humanidade, o homem não possuía saberes para uma mensuração temporal e espacial mais
racionalizada, com um nível mais alto de generalização e de síntese, é porque esse saber
exige, por natureza, muito tempo para se desenvolver.
Como as práticas espaciais e temporais estão implicadas em processos de reprodução e
de transformação das relações sociais era preciso encontrar uma forma de demarcar e de
apreender os significados que as concepções de tempo e de espaço, numa relação de
imanência, fizeram emergir. Capturar, mesmo que em parte, essa complexa transformação das
concepções e das práticas espaço-temporais é uma tarefa delicada, um risco que se corre
56
sempre que se tenta organizar qualquer forma de periodização ou de sistematização, uma vez
que “o que se ganha em termos didáticos se perde em rigor (VEIGA-NETO, 2003a, p.41)”.
Conceitos macro-históricos tendem a um determinismo linear e a creditar às forças
transcendentais o motor da história da humanidade. Seus seguidores, alicerçados no
imaginário do século XIX e na crença da existência de uma lei natural do progresso ou da
razão superior, anunciam a marcha sempre ascendente da humanidade para um futuro melhor.
De Comte a Marx
33
, a história da humanidade passa a ser lida como uma sucessão necessária
de tipos de sociedade ou de etapas do movimento histórico.
Deixando de lado as interpretações quase que proféticas do historicismo, buscando
fugir de uma organização histórica assentada na lei da evolução social, traço um caminho,
como sugere Machado (1979) pelas análises fragmentárias e transformacionais de
acontecimentos que emergiram instituindo e sendo instituídos por diferentes configurações
espaço-temporais. Percorrendo esse caminho, construo três grandes cenários, três grandes
momentos em que as concepções de tempo e de espaço operaram para deslocar e transformar
as maneiras de pensar e de conviver da espécie humana.
Consciente das dificuldades impostas por uma escrita alfabética que condicionam uma
ordenação temporal linear e seqüencial para o texto, ensejo, com a organização dos três
grandes cenários da história da sociedade ocidental – Sociedade de Soberania, Sociedade de
Normalização, Sociedade de Controle - não projetar uma linha espaço-temporal, mas, sim,
compor um imbricado mosaico de acontecimentos para, na riqueza de sua plasticidade, tornar
visível as mutações sócio-antropológicas e não a uma seqüenciação delimitada e, muitas
vezes, engessada pelas etapas do historicismo.
Para capturar a natureza das descontinuidades que as concepções temporais e espaciais
forjaram nas práticas sociais da humanidade, tomo como ponto de partida dois operadores que
mobilizaram a experiência humana da temporalidade, apontados por Domingues (1996) e
discutidos no capítulo anterior – a intuição do efêmero e o desejo de eternidade –, para
problematizar como os conhecimentos e as percepções que os sustentaram se deslocaram e
carregaram consigo o poder do discurso verdadeiro. O tempo é tomado como trampolim para
a análise desses deslocamentos, pois, como analisa Giddens (1991), o esvaziamento do tempo
é, em grande parte, pré-condição para o esvaziamento do espaço.
33
Para Augusto Comte, a evolução intelectual da humanidade passaria pelas etapas de uma visão teológica,
metafísica, até uma visão positivista; para Marx, do comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo,
socialismo até comunismo. Cada pensador estabelece a seqüência de momentos da sociedade a que
obrigatoriamente a humanidade deveria se submeter (SROUR, 1998, p.11).
57
As alterações na concepção do tempo têm prioridade causal, como afirma Giddens
(1991), sobre as diferentes configurações que o espaço vai assumir ao longo da história da
sociedade ocidental. Foi o tempo, e não o espaço, que pela primeira vez se configurou como
um problema histórico-político para a humanidade. O espaço, para o mundo pré-moderno,
remetia à natureza, à geografia física, a um lugar para a residência ou expansão de um povo,
de uma cultura, de uma língua. O tempo emergia com um dos primeiros enigmas para a
humanidade e como um suporte para construção da individualidade e da consciência do
homem.
As percepções de tempo e de espaço, quando analisadas no processo histórico que as
engendrou, permitem apontar para o crescimento da autonomia das sociedades humanas em
relação aos problemas postos pela natureza e pela sociedade. Quanto mais os problemas
humanos ganhavam extensão em razão dos processos de urbanização, comercialização e
mecanização, mais o homem se tornava dependente de dispositivos artificiais para medir
racionalmente o tempo e o espaço. Com o adensamento dos desafios econômicos, políticos e
sociais, o homem percebia a necessidade de elaborar um mundo simbólico, de construir
padrões de medida mais exatos e mais confiáveis do que os imprecisos processos naturais de
controle do tempo e do espaço.
Técnicas e atitudes ligadas ao controle do tempo e ao domínio do espaço que
estiveram presentes desde as civilizações mais antigas até o mundo feudal, aprofundam-se e
desprendem-se de marcadores socioespaciais. O processo de separação e de controle do tempo
e do espaço que se acelerou no mundo pós-medieval tem, contemporaneamente, sua ação
potencializada pela profusão de instrumentos de medida numa escala e precisão outrora
inimagináveis.
Em tempos de presentificação do futuro e de planetarização do espaço, vivenciamos a
intensificação da consciência espaço-temporal, sentimos as conseqüências da dilatação do
tempo e da história, somos interpelados pela instituição de novas maneiras de governar os
outros e de nos autogovernar. Das sociedades arcaicas para a contemporânea sociedade do
conhecimento ou da informação, configurações de tempo e de espaço condicionaram
investimentos diferenciados na produtividade do corpo individual ou coletivo que, segundo
Passetti, se aperfeiçoram e se acumularam:
58
[...] na sociedade de soberania, castiga-se; na disciplinar, busca-se utilidade
econômica e docilidade política; na de controle, exige-se participação no fluxo
inteligente. Efeitos inibidores de resistência também não cessam de trafegar entre o
direito de morte, o de deixar viver e o de fazer viver (2002, p.123).
Caminho, neste capítulo, pelos fragmentos e pelas transformações que marcaram a
história da sociedade ocidental, para compor a segunda parte da grade de inteligibilidade –
tempo-espaço-tecnologias de poder – para, com ela, ajustar e direcionar meu olhar para as
grandes mudanças culturais e científicas, não somente como resultado de uma inovação
tecnológica, mas também como instituidoras de saberes que configuraram as práticas sociais
pelas quais os homens se constituem e se relacionam entre si. Cada temporalidade e
espacialidade que emergia do processo civilizatório modelava dispositivos de controle social
com diferentes configurações para a relação entre coerções externas e internas.
Seguindo por trilhas traçadas pela natureza histórica e mutável do tempo e do espaço e
pela imbricada relação que se estabelece na organização, no gerenciamento e no controle do
corpo individual e social, caminho, impulsionada pelo desejo de dissipar um pouco da névoa
que os fenômenos de compreensão tempo/espaço colocam sobre a escola, uma instituição
convocada a responder às demandas de uma sociedade estruturada pelas regras de um jogo
social construído sob a lógica de movimentos econômicos, políticos, sociais e culturais
superacelerados e desterritorizados.
PARA O ESPAÇO TERRA E O TEMPO EM REPOUSO, O CENÁRIO DA SOCIEDADE
DE SOBERANIA
Um longo período da história da humanidade foi marcado, como analisa De Masi
(2000), por movimentos em que o homem aprendeu a ser homem, aprendeu a andar ereto, a
falar, a educar a prole, a coreografar aprendizagens que permitiram que a espécie humana
superasse as características físicas que a colocava em ampla desvantagem em relação aos
outros seres com quem dividia o mesmo espaço Terra.
A espécie que caminhava de forma ereta, com mãos livres e especializada para
construir instrumentos e utensílios, superava as limitações de um olfato fraco e da pouca
habilidade para agarrar e esquartejar uma presa. O homem inventava, descobria-se criativo,
compensava fraquezas, superava limites, dominava o fogo, manipulava metais e passava a
viver no espaço Terra entre signos, relatos e mortos. Expressar potencialidades era a marca da
espécie que ultrapassava o nascer imperfeito e indefeso de sua prole que transformava
59
fraqueza em força ao fazer circular na roda das gerações, além das características hereditárias
e instintivas, um saber cultural. Na potência das palavras, nos saberes fixados em suportes
materiais, conhecimentos e percepções eram protegidos da ação corrosiva do tempo e do
homem. Como afirma Lévy (1993), pela linguagem - a oralidade e o grafismo -, o homem
conservava e reproduzia, além dos artefatos materiais, também os agenciamentos sociais e as
representações ligadas a sua forma e a seus usos.
Compartilhando o mundo com outros seres vivos, vivendo em comunicação com
lugares e com espíritos, o homem excedia seu nicho ecológico
34
para, por meio de suas
linguagens, ferramentas e instituições sociais, elaborar e reelaborar o espaço Terra. A espécie
humana que descobria tecnologias para fabricar objetos, lentamente, colocava ordem no
mundo ao construir referências espaço-temporais. Ordenando o mundo, o homem se define e
se distingue das outras espécies, separando espaços na natureza e estabelecendo diferentes
formas de gerenciar – adiando ou resolvendo – desafios e conflitos de seu entorno social.
Os agrupamentos humanos produziam um lugar para as metamorfoses e para os
grandes relatos inspirados em deuses, seres mágicos e misteriosos, por meio dos quais
inventavam o homem e o mundo. O mito e o rito eram os operadores do comportamento
social para grupos humanos que viviam num mundo povoado por espíritos:
[Em] estágios primitivos, o nível de perigo é mais elevado; por isso mesmo, a
segurança pessoal dos indivíduos é mais frágil. A formalização e a ritualização do
contato com os espíritos, bem como com os seres humanos, servem para aplacar as
incertezas e angústias correspondentes a esse nível de perigo (Elias, 1998, p. 24).
O tempo em repouso, experienciado pelo homem arcaico, tinha no mito uma teoria
segundo a qual nada no mundo era real e poderia durar se não fosse animado, se não fosse
dotado de uma alma que lhe desse vida. O rito era a força mágica que reatualizava e
assegurava a continuidade do tempo, como analisa Domingues (1996), por meio de um
sacrifício que repetia o ato pelo qual os deuses criaram o mundo e deram vida às coisas. Pelo
arquétipo da repetição, instaurava-se a desvalorização do tempo e o travamento da história.
Os mitos e os ritos celebravam a narrativa da criação, uma temática compartilhada,
segundo Domingues (1996), por um grande número de povos antigos, em que a existência do
homem no mundo dar-se-ia pela queda em relação a um estado de perfeição original e por
longo período de degeneração - a decadência -, configurando uma história de sofrimento
34
Nicho ecológico, ou simplesmente nicho, representa a posição biológica ou funcional ocupada por uma
espécie dentro do ecossistema.
60
provocada por seu afastamento dos deuses. Na mentalidade do homem que habitava o espaço
Terra, o arquétipo da repetição imperava e comandava a construção da temporalidade social,
em que
[...] deuses viviam em meio aos homens, até que um dia, por causa do crime dos
homens, os deuses se retiram para longe e os homens são abandonados à própria
sorte, condenados à fadiga, ao trabalho, a levar uma vida miserável cheia de penas e
de infortúnios (Eliade apud Domingues, 1996, p.48).
No espaço Terra, todo sofrimento humano era atribuído à vontade dos deuses, não
havia lugar para o acaso e para o acidental. O sofrimento encontrava sua justificativa nos
desígnios dos deuses. Era a coerção externa da força do transcendente que reprimia todos os
comportamentos desviantes e imprimia, no homem, um viver em estrita obediência à lei dos
deuses. A força do transcendente era a fonte dos males, mas também seu próprio remédio,
uma vez que, na repetição do rito, o castigo dos deuses era reparado e o equilíbrio do universo
restaurado.
O comportamento ritualizado e formalizado de um grupo social, segundo Elias (1998),
afetava, de forma sistematizada, a conduta e a sensibilidade do homem que buscava, junto às
figuras imaginárias, a coerção externa para impedir variações comportamentais acentuadas e
indesejáveis. Um mundo habitado por potências cósmicas e sobrenaturais tinha, nos rituais, o
operador para as funções de orientação e de regulação, para fazer com que o homem
aprendesse a se autodisciplinar e a aceitar práticas de violência contra seus semelhantes pelo
simples fato de serem atos que os espíritos desejavam. A esse respeito diz Elias:
Grupos humanos que talvez não tenham condições de controlar bem suas
pulsões e afetos mediante suas próprias forças encontram ajuda junto às figuras
imaginárias que, ao lhes imporem restrições aparentemente externas, reforçam suas
faculdades de autodisciplina (1998, p. 24).
Pela força mágica do rito, o tempo sagrado da criação era reatualizado, assegurando o
sentido de duração contínua e reversível. O sentido de reversibilidade era a figura de
temporalidade que acompanhava o tempo em repouso e estabelecia uma organização social
em que nada de novo se reproduzia, pois o mundo passava a ser apenas a repetição dos
arquétipos primordiais. O mundo encontrava-se ancorado no mesmo instante, no retorno
cíclico ao seu começo e a sua origem.
61
No espaço Terra, a função de coordenação e de integração do tempo era exercida por
específicas figuras dominantes. Para gerenciar a existência humana no tempo profano, os
soberanos, homens divinamente eleitos, personagens de carne e osso, eram convocados a
exercer, no espaço Terra, os poderes dos deuses, um poder absoluto sintonizado com uma
organização social construída sob a simbólica do sangue (FOUCAULT, 1999a). O soberano
possuía o saber-poder e a autoridade para decidir, em nome dos outros membros de seu grupo
social, o período ou a data mais oportuna para iniciar as atividades agrícolas ou realizar as
festividades. Como afirma Elias (1998), a atividade de coordenação de um grupo social
pressupunha o conhecimento do momento favorável para as ações individuais e sociais, uma
função especifica dos reis e dos sacerdotes
35
.
O soberano tinha sua existência desejada pelos deuses, era a fonte de justiça, de lei, de
poder. O poder conquistava seu lugar no espaço Terra, ganhava um endereço terrestre,
materializado na figura do soberano, um homem reconhecido como absolutamente bom, por
ser escolhido e desejado pelos deuses. Os homens sabiam, ou achavam que sabiam, como
aplacar a ira dos altos poderes e, portanto, como aliviar seu próprio medo. O soberano era o
remédio tranqüilizador para os males dos grupos humanos. Se o soberano era deposto, um
novo assumia o lugar vago. Rei morto, rei posto, já dizia o dito popular. Para Bauman (2000,
p.66), com a figura do soberano e a justiça de suas leis, “se oferecia um acordo, uma troca
fácil de aceitar: noites calmas compensariam a dócil obediência diurna”.
O homem construía sua marca de identidade pelo nome, mas também por sua
participação no clã, na linhagem e no poderoso sistema de filiação e alianças. No espaço
Terra, era o sangue que colocava em funcionamento o poder dos deuses, segundo Foucault
(1999a), no valor simbólico de ter um certo sangue ou de ser do mesmo sangue. Pelo poder
dos laços de sangue, o soberano exercia o direito sobre a vida e sobre a morte de seus súditos.
Pela honra ou horror à guerra, pela necessidade ou pelo medo da fome, pela proximidade do
perigo ou do desconhecido ou, simplesmente, para cumprir os desígnios dos deuses, o sangue
dos súditos era derramado e o direito do soberano sobre a morte era exercido. Ao poder matar,
o soberano exercia seu poder sobre a vida, para Foucault (2002, p.287), no “direito de fazer
morrer ou de deixar viver”. Uma relação entre o rei e seus súditos era estabelecida, pois
35
A importância das funções de coordenação e de integração associadas ao tempo fica evidenciada pelos
momentos de tensão e de lutas provocados pela conquista de seu controle. Quando a supremacia do controle do
tempo deu a vantagem aos reis, o estabelecimento do calendário e a cunhagem da moeda passaram a ser
monopólio do Estado. Um exemplo do exercício desse monopólio nas nações contemporâneas é a passagem do
horário de inverno para o horário de verão (ELIAS, 1996, p.45 e 160).
62
[...] o súdito não [era], pelo direito, nem vivo nem morto. Ele [era], do ponto de vista
da vida e da morte, neutro, e [era] simplesmente por causa do soberano que o súdito
[tinha] o direito de estar vivo ou [tinha] direito, eventualmente, de estar morto
(FOUCAULT, 2002, p.286).
As réplicas mundanas dos poderes divinos falavam para serem ouvidas e obedecidas,
pois, como escolhidos dos deuses, os soberanos eram os detentores do poder para aplacar a ira
divina e aliviar o próprio medo da vulnerabilidade humana no espaço Terra. Ao soberano não
bastava apenas proferir as leis, era necessário, também, implementar o castigo para o seu
cumprimento, fossem elas quaisquer. Para Bauman (2000), o medo que preservava a
conformidade à lei era divino, alicerçava-se no horror irremediável e inextirpável da
vulnerabilidade última da humanidade – a morte.
Os rituais das sessões públicas com castigos e suplícios corporais
36
operavam para o
controle do corpo social por meio de um poder que era exercido, como analisa Ewald (1993,
p.77), “de forma negativa na captura, na reclusão, na subtração ou na repressão que culminava
na morte”. A verticalidade da força soberana agia sobre o corpo do súdito de forma pouco
produtiva, um corpo que podia ser perdido, um corpo sentenciado para sofrer, não para ser
recuperado, transformado, normalizado
37
.
O grande espetáculo público, em que quase toda a sociedade participava, era uma
tecnologia de poder que marcava, com o brilho da ritualização, a passagem de poder entre
soberanos - o do espaço da terra para o do espaço da alma:
[...] A morte era o momento em que se passava de um poder, que era o do
soberano aqui na terra, para outro poder, que era o soberano do além. Passava-se de
uma instância de julgamento para a outra, passava-se de um direito civil e público,
de vida e de morte, para um direito que era o da vida eterna ou da danação eterna. A
morte era igualmente uma passagem de poder do moribundo, poder que se transmitia
para aqueles que sobreviviam: últimas palavras, últimas recomendações, últimas
vontades, testamentos. Todos esses fenômenos de poder é que eram ritualizados
(FOUCAULT, 2002, p.295).
Dos primeiros séculos da era cristã até o longo período da Idade Média, a
temporalidade social do arquétipo da renovação periódica do mundo e do tempo encontrava-
se arraigada nas massas populares, mas o homem medieval, principalmente o erudito, o
36
Em Vigiar e Punir, no capítulo A ostentação dos suplícios, Foucault analisa que não só as grandes e
solenes execuções, mas qualquer penalidade, devia incluir alguma forma de suplício: exposição, coleira de ferro,
açoite, marcação com ferrete em brasa. A multa era acompanhada de açoite (FOUCAULT, 1987, p.30-31).
37
Normalizar remete à ação de colocar indivíduos dentro de um padrão e de uma medida estabelecida por
uma autoridade, pelo costume ou pelo consenso como base de referência ou de comparação (EWALD, 1993,
p.99).
63
filósofo e a alta hierarquia da Igreja já lidavam também com outras figuras de temporalidade
- o ciclo e a linha
38
. A intuição do efêmero e o desejo de eternidade permaneceriam como os
modeladores da experiência medieval do tempo, porém um conjunto de saberes oriundos da
tradição judaica e cristã começava a configurar uma nova temporalidade. Um tempo novo se
instaurava pela afirmação do tempo linear e pela desvalorização do regime do arquétipo da
repetição, colocando em seu lugar o regime da história, nomeado por Domingues (1996, p.34)
como a História da Salvação.
A experiência cristã do tempo colocava em circulação acontecimentos, caracterizados
por Domingues (1996, p.34-35) como fundadores, únicos e irreversíveis. Eram fundadores
porque falavam da criação do homem e do mundo; únicos porque eram acontecimentos que
não se repetiriam (não haveria uma nova queda ou um novo afastamento do homem do
criador, nem uma outra encarnação); irreversíveis porque inauguravam uma nova era.
Acontecimentos únicos e irreversíveis eram narrados nas Sagradas Escrituras e marcavam,
com a figura linear do tempo, a História da Salvação.
O Cristianismo instaurava o paraíso e inaugurava uma nova ordem para o tempo do
mundo. A eternidade abrigava-se fora do tempo e definia-se pela ausência do tempo.
Dissociada do tempo do mundo, era a eternidade que abrigaria o homem regenerado e
reconciliado com Deus no fim dos tempos. Ao centrar a atenção dos homens no presente, o
cristianismo conferia ao tempo o máximo de sua potencialidade no presente. A história da
salvação desenrolar-se-ia na linha do tempo do mundo, voltada totalmente para a prática da
virtude, para aproximar o homem do Deus onipotente e misericordioso, para colocar um fim
aos suplícios e aos males que o afligiam, possibilitando a conquista da vida eterna no Paraíso.
O homem medieval que vivia sob a égide da Igreja, passava a ter sua experiência de
tempo modelada, segundo Domingues (1998, p.40), pela díade tempo/eternidade. A
temporalidade era experienciada ora como sucessão temporal, ora como duração, na
eternidade. Do arquétipo da repetição que configurou a temporalidade do homem na
Antigüidade até a Idade Média, com os saberes disponibilizados pela História da Salvação, o
efêmero se sacrificava ao eterno com a construção do arquétipo do paraíso.
As práticas confessionais cristãs eram expandidas para fora dos muros da Igreja com a
vigência do arquétipo do paraíso, um deslocamento de poder do âmbito religioso para o
âmbito civil. Percepções e conhecimentos no panorama do mundo medieval passaram a
38
A escrita é uma tecnologia intelectual que opera sob a lógica de um tempo linear. Como apenas membros
das classes ligadas ao poder, principalmente o clero, tinha suas práticas sociais, políticas e econômicas medidas
pela a escrita, eram os estamentos sociais que vivenciavam uma temporalidade mais linearizada.
64
conceber, ao mesmo tempo, um espaço para os vivos e um espaço para os mortos,
entrelaçando, para Veiga-Neto (2003a, p.82), duas formas de poder – o poder pastoral e o
poder do soberano. Era sobre o corpo e a alma do homem que operava a ação sobre as ações
humanas. Para gerir ações do homem no cotidiano vivido no espaço Terra, o poder do
soberano; para preparar a alma e permitir sua entrada na eternidade do Paraíso, o poder
pastoral. Imprimia-se, segundo Wertheim (2001, p.33), um esquema dualista em que o espaço
do corpo e o espaço da alma passaram a espelhar-se um no outro.
O tempo e o espaço vividos sob a dualidade corpo-alma foram retratados na Divina
Comédia, obra em que o poeta florentino Dante Alighieri relata uma viagem pelo espaço
físico e espiritual medieval, uma explicação épica de como a ciência de seu tempo
compreendia o esquema espacial. A obra de Dante é a poética da imagem medieval do
mundo, descrevendo uma geografia que incluía ao mesmo tempo o espaço dos vivos e o dos
mortos, realizando a fusão entre o secular e o divino:
O espaço da alma medieval cristã era dividido em três regiões distintas:
Inferno, Purgatório e Paraíso. Depois da morte, cada alma seria ou levada por um
demônio até as portas do Inferno, ou transportada por um anjo numa barca até as
praias do Purgatório. Só os verdadeiramente virtuosos - os cristãos e os mártires –
estavam destinados a ir diretamente para o Paraíso; os cristãos comuns deviam
sempre esperar alguma forma de punição após a morte. O Purgatório era para eles
uma espécie de escola preparatória para o Paraíso (WERTHEIM, 2001, p.34).
Institucionalizado nas práticas cristãs medievais e seguindo a mesma lógica de ação do
pastor sobre as ações de suas ovelhas - conhecê-las para melhor protegê-las e conduzi-las -, o
poder pastoral era exercido verticalmente, pois, como analisa Veiga-Neto (2003a, p.81),
emanava de um líder espiritual; era sacrificial e salvacionista, para possibilitar a vida eterna
não-terrena, e era individualista e detalhista, pois, para a salvação, era fundamental conhecer
cada discípulo detalhadamente para melhor orientar e governar cada um e, assim,
potencializar o ingresso no Paraíso.
Os castigos e os suplícios também se faziam presente no espaço espiritual para que as
almas pudessem se livrar da mancha de seus pecados por meio de processos purificadores. A
purgação fazia do purgatório, como afirma Wertheim (2001, p.34), um inferno de duração
limitada, uma parada na trilha medieval rumo ao Paraíso. No espaço Terra, era por meio do
sofrimento e da morte, da reflexão sobre a materialidade e a espiritualidade, que se processa a
passagem de um estado de barbárie e de desordem para o estado de integração e de harmonia.
65
O mundo dualista descrito por Dante fundava-se na cosmologia física e na ciência de
seu tempo - uma Terra esférica num universo geocêntrico, que sustentava coletivamente o sol,
a lua, os planetas e as estrelas. Da viagem das profundezas do Inferno, passando pelo
purgatório até o paraíso, a espacialidade medieval era recenseada. Dante, o navegador
medieval virtual
39
, não localizava o ponto, mas percorria sensorialmente lugares singulares
dos espaços do corpo e da alma com seus instrumentos de navegação - os mapas da cultura
patrística
40
e os relatos – para poderosamente despertar os sentidos físicos humanos.
O purgatório desempenhava um papel fundamental para o exercício do poder na
fraturada Europa da Idade Média. Com o corpo e alma unidos pela mesma matriz temporal, o
purgatório era a parte do espaço espiritual que poderia ser afetada pela ação dos vivos. Na
mentalidade medieval, o purgatório caracterizava-se por apresentar uma fronteira
extremamente porosa, o que tornava o espaço do corpo e o espaço da alma, inextricavelmente,
entrelaçados. O sofrimento das almas do purgatório era uma realidade e poderia ser suavizado
mediante o oferecimento de orações aos mortos e donativos à Igreja, uma prática nomeada
como sufrágio.
O purgatório, um novo espaço inventado pelo homem, levou um longo tempo para se
estabelecer no pensamento cristão, pois a Bíblia menciona, explicitamente, apenas o Céu e o
Inferno. Somente no Concílio de Lyon, em 1274, que o espaço para a purgação das almas
receberia a aprovação teológica formal, instituindo, oficialmente, uma possibilidade de
resposta para conflitos nas práticas medievais cristãs. Com o purgatório, suavizava-se o juízo
final diante da justiça divina e da polaridade Paraíso-Inferno e potencializava-se a colocação
de toda a humanidade sob o guarda-chuva do Cristianismo. Com o purgatório, os ricos
pagãos e os estrangeiros vindos do Oriente conquistavam sua senha de entrada para a
salvação, o que proporcionara à Igreja, pelo sufrágio, um lucro considerável. Para Wertheim
(2001, p.50-51), o purgatório inaugurava a contabilidade do além, pois,
39
A Divina Comédia faz a criação virtual do mundo na Idade Média em toda a sua abrangência dualista.
Dante antecede o desenvolvimento das tecnologias de realidade virtual e se diferencia de uma prática comum aos
engenheiros de software atuais, que, com a criação mundos virtuais, buscam fugir da realidade cotidiana. O
poeta florentino cria um mundo virtual para a realidade medieval (WERTHEIM, 2001).
40
São esquemas muito simples, projetados para ilustrar textos litúrgicos ou livros sagrados (SANTOS, 2002
p.35).
66
[...] pela primeira vez na história da humanidade, os vivos passam a encontrar-se em
situações de poder fazer alguma coisa em favor dos mortos: pagar missas e
indulgências pelo resgate da alma deles. Inaugura-se assim uma época de
especulação sobre as almas. O comércio das indulgências torna-se central na
sociedade cristã e permite uma imensa acumulação por parte das igrejas. Para gerir
essas poupanças desmedidas nasceram bancos com nomes de santos e os montepios
de caridade (DE MASI, 2000, p.39).
O Monte do Purgatório de Dante era o espaço de redenção a ser escalado rumo à graça
e à luz. Imprimia-se uma outra possibilidade de vida no espaço espiritual, colocando em
xeque o dualismo - vida eterna no Paraíso ou sofrimento eterno no Inferno. A bússola
espiritual, e não a física, que orientava o homem no espaço Terra, começava a apontar para
um déficit no poder do soberano, uma vez que,
[...] o poder do soberano não pode ser salvacionista, nem piedoso, nem mesmo
individualizante. São coisas que não cabem ao soberano, se ele quer ser mesmo
soberano... Assim, de certa maneira, o poder de soberania tem um déficit em relação
ao poder pastoral (VEIGA-NETO, 2003a, p.81).
A coreografia custosa e violenta de reis sobre súditos na sociedade de soberania perdia
seu ritmo e revelava-se pouco produtiva para reger um corpo social que passava a ser
interpelado pela explosão demográfica e por um novo modo de produção, que viria a ser
nomeado de capitalista. A verticalidade do poder do soberano tornava-se pouco produtiva
para controlar as ações indesejáveis de uma crescente massa de indisciplinados súditos que se
rebelava e se insurgia contra a força do castigo corporal e do suplício.
O corpo esquecido na masmorra, o corpo perdido pelo suplício precisava ser
otimizado, recuperado para a produção. Como analisa Veiga-Neto (2003a), o direito sobre a
morte gerava o terror, e a aniquilação corporal mobilizava o corpo e retirava dele a força para
o trabalho. Na sociedade de soberania subtraiam-se corpos que, com a emergência de uma
nova experiência temporal e espacial, assumiam sua importância para o desenvolvimento e a
hegemonização de um novo processo produtivo que ultrapassava os limites da subsistência
para atingir o paradigma da acumulação.
Potencializada pela História da Salvação, tornava-se mais densa a consciência da
inscrição sobre as coisas e sobre o tempo para a humanidade, que, ao integrar o arquétipo
primordial da repetição no arquétipo do paraíso, colocava a história em movimento e o
controle do tempo e do espaço nas mãos humanas. O homem que vivia no espaço Terra sob a
lógica de um tempo em repouso, que configurava uma percepção do mundo como um ir-e-vir
constante, começava a experenciar fissuras na temporalidade edificada sob a ciclicidade. A
67
superação do tempo em repouso estabelecia condição de possibilidade para o mundo da
acumulação, pois o que se desejava não era um amanhã igual ao ontem mas, um amanhã
muito mais rico, muito mais rápido, muito maior.
A superação da espacialidade sensorial e a ruptura com o tempo fluido e contínuo,
ambos regidos pela força do transcendente, estabelecia-se como produto e processo de uma
discursividade para a transformação. Um tempo e um espaço racionalizados tornavam
possível a conquista do controle sobre a dinamicidade do mundo, impulsionando a
configuração do espaço Território e de um tempo que conquistava velocidade.
PARA O ESPAÇO TERRITÓRIO E O TEMPO DA VELOCIDADE, O CENÁRIO DA
SOCIEDADE DE NORMALIZAÇÃO
O esvaziamento das potências míticas do tempo e a imanentização do sentido da
história condicionaram a secularização do tempo e iniciaram o processo de dessacralização da
história. A sociedade ocidental assumia uma atitude otimista frente ao homem e à história. O
homem do espaço Território passava a valorizar não a imitação e a repetição do arquétipo
primordial, mas a criação e a inovação.
Criar e inovar eram os verbos que passavam a sustentar um projeto de dominação da
natureza. Para dominar o tempo e o espaço do mundo, um planejamento consciente de ações
no âmbito econômico, social e político era colocado em movimento. O homem criava
relógios, calendários e inventava novos instrumentos de precisão, para todos os fins e por
todos os meios, para, com eles, afastar-se dos arquétipos, dominar a história e apontar a flecha
do tempo para o futuro.
Se no espaço Terra a existência do homem estava amarrada às idéias de queda e de
decadência, para o homem do espaço Território, a queda em relação ao estado de perfeição
original, ainda que ligada à idéia de imperfeição, passava a ser vista como uma ascensão, uma
superioridade que aumentava com o avançar do tempo por meio do aprimoramento humano
num futuro sempre em aberto. Para a decadência, a força do mal não era mais divina mas do
próprio homem, estava nele o poder de evitá-la e repará-la. A salvação não estava mais no
outro mundo, mas neste mundo, pois,
68
[...] se a história é a morada do homem, a história há de oferecer os meios capazes de
reparar os males que ela mesma acarreta, sendo sua ação tão eficaz, que não
dependerá de ajuda de qualquer potência transcendente, mas tão só da humanidade,
a qual dispõe de todo o tempo para a empreitada (DOMINGUES, 1996, p.58-59).
Desprendido da ação restritiva dos arquétipos, o homem começava a cortar as amarras
com os mitos, com seus personagens e acontecimentos, para reconhecer na história o seu
próprio modo de ser homem. A História da Salvação instituía a eternidade fora do tempo-
espaço do cotidiano e, ao pôr fim à ação inquestionável dos suplícios e dos martírios que
afligiam os homens, condicionava a percepção de um tempo laico que despertava no homem o
interesse pela natureza, pelo mundo físico. O homem perdia um pouco o medo da força
divina, o que permitiu, em grande parte, que a humanidade começasse a construir uma visão
de mundo completamente diferente, passando a experimentar e a testar as coisas postas no
mundo.
O homem abrandava os mitos da criação e da condenação eterna, e uma revolução era
posta em circulação refletindo o borbulhante interesse pelo mundo físico. A arte e a ciência,
entrelaçadas, imprimiam um estilo de representação, nomeado de perspectivismo. Criava-se a
arte ilusionista, que atraía o espectador para o mundo virtual. A ligação entre o individualismo
e o perspectivismo foi fundamental para acentuar a capacidade do homem em representar
racionalmente o mundo, deslocando o olhar da mitologia e da religião para o olho do homem
que vê.
Novas necessidades sociais eram, paulatinamente, impostas ao mundo medieval a
partir do século X. A retomada da vida urbana e o conseqüente enfraquecimento dos feudos
como os principais centros de produção e reprodução da vida fizeram ressurgir as feiras
comerciais, impulsionando o aparecimento dos burgueses
41
, a classe social que
paulatinamente se formava e passava a exercer pressões econômicas e políticas em um
cenário mercantil e pré-industrial.
A expansão do mundo árabe, a incapacidade interna dos feudos em mudar seu ritmo
produtivo e a própria fragmentação territorial do poder eram para Santos (2002), os elementos
que impediram qualquer intervenção com maior profundidade nas relações econômicas e
políticas e que, lentamente, colocavam em xeque a manutenção do sistema produtivo feudal.
A crise do feudalismo era acompanhada por uma redefinição discursiva que se colocava como
41
Burgueses eram os homens que moravam nos burgos, aldeias fortificadas que apresentavam aspectos da
cidade, tendo o comércio como a atividade econômica de maior importância.
69
resultante e como condição de possibilidade para um amplo movimento de transformação das
relações sociais.
A idéia de observar a natureza com a finalidade de aprender, uma forma de ver o
mundo ainda estranha para os homens da Ciência, era utilizada por certos pintores italianos
que buscavam na observação detalhada da natureza a chave para o realismo visual. O realismo
revelado na pintura no final da Idade Média advinha de uma observação cuidadosa, com
incrível e detalhada precisão para recriar a aparência ótica da profundidade, do movimento e
da distribuição de figuras no espaço. A análise de Santos (2002) aponta para um momento em
que a humanidade possuía a capacidade de olhar para o mundo tridimensional mas, que sua
aceitação envolvia algo mais complexo do que somente uma incapacidade técnica. A não-
representação tridimensional encontrava sua explicação amarrada a um discurso que de forma
mais precisa possível demarcava o lugar do homem na ordem espacial do cenário medieval.
Um conjunto complexo de tradições e mudanças históricas favoreceu o nascimento de um
novo sentido para o espaço, impresso quando homem indagou sobre as origens de como
percebia e concebia a natureza.
O mapa medieval, um texto imagético sem qualquer tipo de precisão geométrica, era
desenhado sem a necessidade de utilizar o recurso da escala, uma vez que não era feito para
indicar caminhos ou esclarecer sobre a real distribuição territorial; seu escopo estava em
mostrar o mundo das relações feudais e não a localização de um lugar específico
42
. O mundo
das relações feudais eliminava a necessidade da localização precisa de lugares, pois o valor da
terra era secundário, e a construção de sua representação simbólica não estava na acumulação
ou na apropriação, mas no sentido da terra, esse, dado pela presença do servo em sua
resignação, perdão ou morte.
Da arte do início da Idade Média, que não tinha pretensões representativas, mas
simbólicas, com Giotto, embora ainda retratando temas religiosos, a representação literal dos
fenômenos físicos conquistava seu espaço. Era a arte marcando a emergência de uma nova
espacialidade e, como ela, de uma configuração de homem e de mundo. A partir do século
XII, os artistas ocidentais afastavam-se cada vez mais do estilo simbólico, buscando
representar corpos e cenários físicos concretos. Cristo, anjos e mortais passavam a ser
pintados na mesma escala, uma igualdade física dos corpos que, como afirma Wertheim
(2001), substituiria a hierarquia medieval das almas por uma nova métrica visual.
42
Na Europa medieval eram raras as viagens, eram raríssimas as pessoas com algum conhecimento
geográfico. Em geral, os indivíduos não conheciam nada sobre o mundo que estivesse além das cercanias do
feudo em que viviam.
70
O homem histórico libertava-se do domínio transcendental, e o tema divino era
traduzido em termos profundamente humanos. A arte refletia uma modificação profunda na
cultura ocidental, em que sai a transcendência de Deus e da alma para fazer a estréia do
homem e da matéria. Giotto e os novos mestres no final da Idade Média, segundo Harvey
(2000) e Wertheim (2001), deixavam de pintar o que sabiam para começar a pintar o que
viam:
Com a transição para a representação naturalista, o “órgão da visão” do pintor
começa a se deslocar do olho interior da alma para o olho físico do corpo. Isto é, os
artistas começaram a olhar para fora em vez de para dentro, [...] o que irá se tornar
um catalisador crítico para o surgimento da ciência moderna (WERTHEIM, 2001,
p.65).
O início do século XIV, época de Giotto e Dante, marcaria um tempo em que a cultura
ocidental esteve, momentaneamente, equilibrada entre dois pólos rivais, espiritualismo e
fisicalismo, num cenário medieval fortemente marcado pela desconfiança do mundo material.
Para Wertheim (2001), a arte e a ciência floresceram sob essa influência; Giotto conciliava,
em imagens, a natureza dual da pessoa cristã; Dante celebrava, em verso, a jornada da alma
cristã e a glória do corpo.
A visão física superava a visão espiritual e estruturava uma arte para o espaço do
corpo, para reverenciar a forma humana. O desenho de Leonardo da Vinci que mostra um
homem com os braços estendidos, inscrito num círculo e num quadro é, para Wertheim
(2001), um vigoroso comentário da idéia do homem como medida de todas as coisas. Do
século XV ao XIX, o corpo reinaria supremo na arte ocidental, refletindo uma característica
fundamental da era pós-medieval, o culto ao individualismo. Como afirma Harvey (2000), a
ligação entre o individualismo e o perspectivismo fornecia o fundamento material para os
princípios cartesianos de racionalidade, assinalando uma ruptura na prática artística e
arquitetônica e nas tradições artesanais e nacionais para a atividade intelectual e criativa do
artista, do cientista, do empreendedor.
A centralidade no homem e a obsessão pelo espaço desacomodavam crenças do
mundo feudal. Giotto e seus seguidores ensinavam o mundo a olhar o espaço de forma
diferente, um olhar que fez germinar a semente das bases para a ciência moderna. A revolução
na visão do espaço desencadeada pelos pintores dos séculos XIV ao XVI condicionou a
revolução no pensamento do espaço operado pelos físicos do século XVII. Giordano Bruno,
71
Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e Galileu Galilei
43
, mesmo que não colocando em
dúvida a existência de Deus, apontavam para uma laicização do universo e fertilizavam o solo
para as grandes navegações, com as sementes plantadas pela imaginação e cobiça dos
europeus.
As grandes viagens marítimas exigiam mapas aperfeiçoados e técnicas de navegação,
que dependiam de um maior conhecimento do céu, uma vez que, para saquear o ouro e as
demais riquezas do Novo Mundo, o Velho Mundo precisava de uma melhor compreensão da
astronomia. O fluxo de conhecimentos resultante das navegações marítimas, ao ser absorvido
e representado, passava a configurar um mundo finito, potencialmente apreensível, exigindo
uma maior objetividade na representação espacial. Privados dos elementos de fantasia
44
e de
crença religiosa, os mapas renascentistas tornaram-se objetivos e funcionais, características
conquistadas pela incorporação das regras da perspectiva, que já cercavam as produções
artísticas e arquitetônicas no fim da Idade Média. O perspectivismo, ao condicionar a
concepção do espaço métrico, configurava o mundo como uma totalidade a ser conquistada
para fins da ocupação e da ação humanas, pois,
[...] o domínio da natureza [era] uma condição necessária da emancipação humana.
Tempo e o espaço tinham que ser organizados não para refletir a glória de Deus
mas, para celebrar e facilitar a libertação do homem como indivíduo livre, dotado de
consciência e vontade (HARVEY, 2000, p.227).
A arte de medir e de calcular ganhava importância. O olho humano passava a ver e a
constatar, a se tornar a régua e o compasso, a submeter tudo à doutrina geométrica. Como
aponta Thuillier (1994), uma nova mentalidade instaurava-se marcada por um realismo e um
racionalismo totalmente favoráveis ao estudo sistematizado da natureza.
De uma espacialidade sem escala, sem profundidade, sem medida, para um espaço
metrificado, uma nova espacialidade passava a sustentar os novos parâmetros de produção e
reprodução social. A decadência do feudalismo era igualmente a decadência de sua concepção
de espaço, para dar lugar ao domínio de uma espacialidade geometrizada, uma
processualidade que passa a exigir, segundo Santos,
43
Giordano Bruno antecipou os argumentos que dariam a forma e o conteúdo à física newtoniana, mas, da
mesma forma que Copérnico, não possuía tecnologia para se contrapor ao sujeito aristotélico que, ao ver o
mundo do ponto de observação em que se efetivamente se encontrava, permitia afirmar que o Sol girava em
torno da Terra. Ambos, porém, apontavam como a chave do mistério, a aplicação da linguagem matemática.
Kepler com o movimento e as figuras elípticas, Galileu modelando as idéias de tempo e de espaço. Era a
modernidade que se instituía junto com as idéias e verdades da ciência (SANTOS, 2002, p. 83-138).
44
Navegar pelo lado ocidental do Atlântico não comprovou a presença dos precipícios, nem dos monstros
presentes no imaginário do mundo na Antigüidade.
72
[...] o conceito de espaço enquanto adjetivação não permite a medição fora do
fenômeno e, menos ainda, a reificação do território a ponto de construir fronteiras
com base em parâmetros meramente conceituais matemáticos/geométricos. A
substantivação do espaço, por sua vez, permite o desenvolvimento da própria
geometria, definindo regras que permitirão um verdadeiro “redesenhar” do mundo,
tanto no que se refere às artes plásticas – parametrizando o lugar de cada um no jogo
das relações sociais - quanto à própria cartografia – indicando com maior precisão a
distribuição territorial dos fenômenos, não só aqueles que devem ser evitados como,
fundamentalmente, o percurso por tudo aquilo que se quer conquistar (2002, p.46).
Como um revolucionário avanço cartográfico em relação ao período medieval, a carta-
portulano era uma carta baseada na efetiva experiência e em uma eficaz técnica
representativa, que emergia motivada por necessidades náuticas e hidrográficas. A cartografia
portulano era uma representação que resultava da necessidade de deslocamento para
identificar os possíveis caminhos entre os portos, para garantir os mecanismos básicos para a
circulação de mercadorias e de pessoas em uma sociedade que se urbanizava. A construção de
uma nova maneira de viver exigia uma releitura da territorialidade, impulsionada pela
mudança em sua metragem - abandonava-se o tão distante caminho do Paraíso para descobrir
o caminho mais seguro para o próximo porto, para a circulação eficaz de mercadorias, para
permitir uma acumulação e para operacionalizar o modelo econômico que ficou conhecido
como mercantilismo.
Para Santos (2002), as cartas-portulano expressavam os primeiros movimentos de uma
sociedade mercantil em detrimento das relações de subsistência do feudalismo, dando os
primeiros passos para o entendimento do mundo e de sua espacialidade pelo viés de sua
matematização, do uso da escala e de técnicas de geometria. Era a matemática estabelecendo-
se como linguagem científica universal, redimensionando os conceitos de tempo e de espaço
para expressar uma nova maneira de desenhar o mundo. A cartografia dos portulanos
forneceu as bases geográficas, com um mínimo de confiabilidade, para as viagens de Vasco
da Gama, Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio, estabelecendo as condições de
possibilidade para a construção de novas imagens de mundo e do próprio conhecimento
científico, ambas impulsionadas por necessidades impostas pelo capitalismo mercantil
nascente.
A idéia da harmonia, da repetição, da centralidade e do equilíbrio do modo de viver
feudal necessitava ser rompida para construir as condições culturais próprias do
expansionismo e a redefinição do significado da natureza sob os padrões éticos e estéticos do
modo de viver burguês. O emergente discurso da transformação, do não-repouso, ainda que
73
minoritário, desacomodava o status quo e deixava um rastro de inconformismo. Como regra
do jogo sociopolítico-econômico, o significado da racionalidade da matemática impor-se-ia
como um regime de verdade. Observar passava a ser o ato que se tornava proveitoso quando
mediado pela razão. A lente da racionalidade matemática permitiu ao homem ver o mundo
multidimensionalmente tal como a tradição feudal jamais havia sido capaz de colocar para si
mesma.
Com novos mapas, nova cronologia, novas linguagens, novas ferramentas, instaurava-
se, no espaço Território uma nova relação com o mundo para medir, desenhar, identificar,
projetar, classificar, fixar, dominar. Geometrizar era a solução para organizar racionalmente
um mundo que alargava suas fronteiras para além dos limites da Europa. A nova
espacialidade em plena construção no século XV e XVI, sustentada por linhas retas e
paralelas
45
incorporadas à cartografia das conquistas, redefinia o limite da área de influência
européia, legitimando o processo de europeização do mundo. A territorialidade do mundo
passava a ser lida pela ótica da absorção, pela via da reculturalização ou da simples
eliminação física do diferente. Nessa perspectiva, Santos afirma que
[...] para cada caravela colocada ao mar, para cada aborígine escravizado ou morto,
para cada árvore derrubada em nome da europeização do planeta, novos rumos do
pensar, do significado, do conhecer, foram igualmente sendo construídos. Se
Copérnico é contemporâneo das primeiras ”expedições exploradoras”, Kepler,
Galileu e Descartes são contemporâneos da Companhia das Índias Orientais (2002,
p.139).
No processo de europeização do mundo, a apropriação do desconhecido operava na
sua superação, na transformação do diferente em conhecido, em um longo processo de posse
territorial que colocava Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio e Pedro
Álvares Cabral como os homens do futuro para um mundo em devir, anunciando aquilo que
está em formação, mas de que ainda não se tem clareza e nem uma lúcida consciência.
O controle do espaço, em sua capacidade de defesa ou de conquista, ao ser colocado
na balança da espacialidade, fez com que o prato do uso do conhecimento sistematizado
pesasse mais do que o das determinações divinas. Era nesse rastro que os contemporâneos
Maquiavel
46
e Copérnico lutaram contra o mundo feudal. O primeiro rompia com as
45
O Tratado de Tordesilhas e as capitanias hereditárias são exemplos das retas e paralelas que começam a
redesenhar o mapa do Novo Mundo para fins econômicos do nascente capitalismo mercantil.
46
O Príncipe, escrito em 1513, a obra mais conhecida de Maquiavel, é considerado por Santos (2002) um
livro de receitas para se garantir o poder. O poder existe não importando se tem sua justificativa pela presença
ou conivência divina ou pela própria sociedade. Há os que querem dele fazer uso, os que precisam descobrir a
74
determinações divinas na constituição do poder; o segundo dava fluidez ao planeta e
condicionava uma concepção de espaço matemático.
A partir do final do século XVII, e ao longo de três séculos, a visão fisicalista do
mundo era convocada a extirpar tudo que não pudesse ser acomodado na concepção
materialista da realidade. A imagem científica moderna admitia somente a realidade dos
fenômenos físicos. Descartes e Newton eram aterrorizados com a dessacralização da imagem
do mundo
47
, mas o resultado científico que os assombrava era parte decorrente de seus
legados
48
.
A visão teológica do espaço progressivamente deixava de ser necessária; embora o
rastro da divinização do espaço ainda persistisse, o impensável tornava-se aceitável – o
homem se situava não no centro do universo, mas num grande bloco de rocha que girava num
vazio infinito. Com o homem no lugar de Deus e a razão no lugar das forças irracionais das
potências divinas, as amarras da transcendência começavam a se soltar e a história começava
a ser destravada. A espacialidade e a temporalidade medieval estavam verdadeiramente
encerradas, e o homem começava a olhar o mundo como seu, colocando o espaço e o tempo
sob sua custódia. Eram estabelecidas as condições de possibilidade para a europeização do
mundo e para a configuração de novas formas de coerção interna e externa para a
humanidade.
Novos saberes, novos instrumentos de mensuração do tempo e do espaço e maior
controle sobre a dinamicidade do mundo foram os elementos que se entrelaçaram para
edificar a cultura ocidental pós-medieval, para responder a uma configuração da sociedade
européia que se complexificava, crescia e espalhava-se pelo mundo. A conquista de novos
territórios, o comércio, as cidades, o dinheiro e o lucro estabeleceram as condições de
possibilidade para a hegemonia de uma nova forma de produzir riqueza, uma riqueza
forma mais eficiente de atingir tal objetivo. Foucault (1979, p.277) analisa a obra de Maquiavel, não como um
conselho a príncipes, nem como uma ciência política, mais como a arte de governar.
47
Na concepção de Newton, se a presença de Deus está em toda parte, o espaço também deveria estar em
toda parte – e ser, portanto, infinito (WERTHEIM, 2001). Para Descartes, mente e matéria eram criações de
Deus, e a existência de Deus era essencial a sua filosofia científica. Para esse pensador, a existência de Deus era
tão certa, quão certa poderia ser qualquer demonstração da geometria (REALE & ANTISERI, 1990).
48
No Discurso do Método, Descartes apontava que verdadeiro era o pensamento com clareza e precisão,
explicável teoricamente pelas leis científicas e fórmulas matemáticas. Colocava como uma das teses
fundamentais de sua teoria do conhecimento o critério de verdade, a clareza e a distinção entre as idéias. Newton
integrava as intuições de seus mais importantes antecessores, em especial Copérnico, Kepler, Galileu e
Descartes. A ciência matemática de Newton unificava o espaço celeste e terrestre que Kepler havia iniciado, por
meio de uma equação que representa até hoje o arquétipo da Física – a Lei da Gravidade –, uma força física que
operava tanto no espaço da alma, como no espaço terrestre. Com a lei da gravidade e a força da atração dos
corpos, a matéria reinava de forma suprema não apenas na Terra como em todo o cosmo. Como destaca
Wertheim (2001, p.110-111), uma revolução era operada na concepção da espacialidade – o espaço terrestre e o
espaço celeste estavam unidos como um domínio físico contínuo.
75
diferente da riqueza do mundo feudal
49
. A Europa era bem-vinda ao mundo da burguesia e ao
capitalismo. A humanidade dava suas boas-vindas a novas modulações para a ação sobre as
ações dos homens, para novas configurações de poder.
Enquanto a força de trabalho escravo permaneceu abundante e viável, a necessidade de
investimentos em equipamentos mecânicos não se colocou na ordem do dia. A abundância da
força de trabalho, o uso extensivo da força animal e a larga habilidade técnica dos artesões
destinavam à máquina uma posição marginal. Novas condições sociais e políticas tornaram
possível o aproveitamento econômico das máquinas a vapor que os gregos conheciam e
utilizavam somente em apresentações circenses
50
. O homem inventava novas máquinas,
construía teares mecânicos, que despertaram a indústria. O capital passava a ser investido na
manufatura, em máquinas-ferramentas e na aplicação da força motriz não-animal à produção.
Os grandes teares movidos a vapor, que surgem na Inglaterra da Revolução Industrial,
necessitavam, para potencializar sua ação, de um lugar e de um tempo rigorosamente
administrados, prudentemente maximizados.
Um lugar especial era construído na separação entre os trabalhadores e os meios de
produção, pelos cercamentos e pela ruína do artesão inglês
51
. Era nesse tempo e nesse espaço
que, ao tirar a magia da produção da mão habilidosa do artesão, dava-se a inauguração do
sistema-fábrica. O adensamento da relação capital-trabalho ocorria no espaço Território sobre
uma materialidade de máquinas pesadas, lentas, resistentes e de difícil deslocamento,
guardadas em grandes prédios e movidas por uma grande equipe de trabalhadores. A riqueza e
o poder dependiam do tamanho, da quantidade, do volume dos hardwares e de um conjunto
significativo de trabalhadores para cadenciar o ritmo da produção. Como destaca Melucci
(2001, 2004), essa idéia animou a industrialização e a grande transformação no mundo
ocidental engendrada pelo sistema-fábrica, um modelo logo aceito e ao qual todo o planeta se
submeteu.
49
O nobre feudal era rico porque tinha muitas terras e milhares de servos para aumentar sua riqueza; o burguês
enriquecia porque acumulava dinheiro, muito dinheiro.
50
Na vida econômica da antigüidade grega, o mercado não era muito desenvolvido e não havia uma
concorrência muito grande entre produtores; a mão-de-obra, amarrada ao jogo das relações escravistas, não era
contratada por um período marcado (em troca de salário); o conhecimento científico não era aplicado
diretamente à prática, o que limita o avanço da ciência e da tecnologia para que se processe alteração nas formas
de viver e produzir de uma sociedade. A combinação de elementos sociais, econômicos e políticos estabelecem
as condições de possibilidades para desencadear as descontinuidades e continuidades na história da humanidade.
51
Para ampliar as áreas de cultivo, os fazendeiros encurralaram as famílias de camponeses em pequenos
pedaços de terras circundados por cercas, terrenos que o possibilitavam a criação de animais, tampouco o
cultivo da terra. Para o camponês expulso do campo e para o artesão arruinado, a sobrevivência na cidade estava
vinculada à rotina da fábrica.
76
A urbanização e as novas relações de trabalho instituídas pelo sistema-fábrica
evidenciavam a crescente dificuldade de levar o olhar do soberano sobre corpos em um
mundo perigosamente interpelado pela acumulação dos homens. A organização do cenário
social que tinha como configuração o poder do soberano aprofundava seu déficit e mostrava-
se pouco produtivo para reger, econômica e politicamente, corpos em uma sociedade que, a
um só tempo, passava a viver a explosão demográfica e a industrialização. A velha mecânica
do poder do soberano não mais respondia às novas demandas econômicas e políticas para o
controle do corpo individual e do corpo social. Como problematiza Foucault (2002),
agravava-se a reduzida capacidade de praticar uma análise individualizante e exaustiva do
corpo social, de interpelar o corpo individual para aumentar sua força útil por meio do
exercício, do treinamento. Era preciso fazer circular outras técnicas de controle, para
Foucault,
[...] técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se
exercer, de maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de
vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios. Toda essa
tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho [...] (2002,
p.288).
A perspectiva e a geometria reeducaram a mente humana para uma outra forma de ver
a espacialidade do mundo. A sociedade ocidental era colocada sobre outros trilhos, e uma
nova forma de conjugar o verbo ver era possibilitada, estabelecendo as condições para a
configuração de novos arranjos para regular e controlar o corpo individual e social. O verbo
ver conjugado pelo soberano resultava numa ação de pouca e descontínua visibilidade sobre
seus súditos. Essa descontinuidade permitia a emergência de espaços de escuridão, que
oportunizavam a emergência de fenômenos de resistência e de desobediência, condicionando
a aplicação de medidas coercitivas com um elevado custo político. Na sociedade de soberania,
uma multidão assistia ao castigo de poucos, uma vez que
[...] a justiça só prendia uma porção irrisória de criminosos [...] Utilizava [esse] fato
para dizer: é preciso que a punição seja espetacular para que os outros tenham medo.
[...] Um poder violento e que devia, pela virtude de seu exemplo, assegurar funções
de continuidade. É um poder muito oneroso e com poucos resultados, [...] [faz]
grandes despesas de violência que tem pouco valor de exemplo, [...] obrigando a
multiplicar as violências e, assim, multiplicam-se as revoltas (FOUCAULT, 1979,
p.217-218) .
.
77
Para aumentar a visibilidade sobre o corpo individual e coletivo, para potencializar a
individualização e a interiorização do poder, um conjunto de novas técnicas destinadas ao
controle minucioso das operações sobre o corpo era posto em circulação. Realizando a
sujeição constante de suas forças corporais, impondo uma relação de docilidade-utilidade,
uma tecnologia de poder instituia-se alicerçada sobre práticas disciplinares e de vigilância – o
disciplinamento e o panoptismo
52
.
A tecnologia de controle e regulação – o poder disciplinar - emergia tendo como
superfície de atuação o homem-corpo, para reger a multiplicidade de homens que deveriam
redundar em corpos individuais, um corpo, como analisa Foucault (1987, 2002), para ser
vigiado, treinado, utilizado e, eventualmente, punido. Submetidos a uma vigilância constante,
segundo Veiga-Neto (2003a), cada corpo passava a ser único, ordenado no espaço por
operações de divisão, distribuição, seriação e, no tempo, pela seqüenciação.
Diferentes das formas anteriores de coerção
53
, o disciplinamento marcava uma nova
arte sobre o corpo ao instituir uma tecnologia que operava para fabricar corpos submissos e
exercitados, aumentando a força do corpo em termos de utilidade econômica e diminuindo
sua força em termos políticos de obediência. A disciplina era a observação detalhada e
minuciosa das pequenas coisas, uma anatomia política e mecânica de poder, que operava pela
organização do espaço, do tempo e das capacidades. Para Foucault, (1987), estabelecia-se
com o corpo um elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.
O arranjo arquitetônico do panoptismo, pela posição central e pela invisibilidade da
vigilância, disponibilizava uma tecnologia de poder para resolver os problemas de controle do
corpo social que se estabeleciam pelo acúmulo dos homens. Colocados em um espaço
fechado, de preferência circular, divididos em celas, homens eram dispostos sob a vigilância
da torre central
54
. Foucault (1987) mostra a positividade desse sistema óptico idealizado por
Bentham, um dispositivo arquitetônico que possibilitou que poucos fiscalizem eficiente e
permanentemente a ação de muitos.
52
Panóptico é um dispositivo arquitetônico idealizado por Jeremy Bentham, no século XIX, formado por
uma construção em anel; no centro, uma torre com grandes janelas que se abrem para o interior do anel, na
periferia, a construção é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Basta, então,
colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário,
um estudante (FOUCAULT, 1979, p.210).
53
A história da humanidade é marcada por diferentes formas de coerção dos corpos: a escravidão, uma
relação custosa e violenta de apropriação dos corpos; a vassalagem, uma relação de submissão altamente
codificada pelas operações sobre o produto do trabalho e pelos rituais de obediência; a domesticação, uma
relação de dominação constante, global, estabelecida sob a vontade singular do patrão (FOUCAULT, 1987, p.
118 e 119).
54
A positividade do dispositivo arquitetônico do panóptico, ao possibilitar que poucos fiscalizem eficiente e
permanentemente a ação de muitos, passou a comandar instituições como as prisões, os hospitais, as fábricas, os
asilos e as escolas (VEIGA-NETO, 2003a, p.78).
78
O espetáculo coercitivo do poder do soberano era invertido com o panoptismo, pois,
da multidão que assistia à correção de poucos, passava-se, com esse dispositivo arquitetônico,
a alguns observando o que acontece com muitos. Procedimentos mais específicos e
econômicos encontraram na arquitetura panóptica seu suporte material, que tornava, como
analisa Veiga-Neto (2003a, p.82), “o olhar do rei um anacronismo, muito menos eficiente e
muito menos econômico”.
Com o deslocamento de práticas pastorais restritas ao âmbito religioso para amplo
cenário social, eram estabelecidas as regras do imbricado jogo do disciplinamento disputado
no tabuleiro do panoptismo, possibilitando o apagamento do olhar do soberano. Com o
disciplinamento e a visibilidade do panóptico, uma operação era posta em ação, como afirma
Marshall (1994 apud VEIGA-NETO, 2000a, p.185), “capaz de colocar para dentro de cada
indivíduo o olhar do soberano que se apagava com o raiar da Modernidade”. Um conjunto de
saberes e estratégias para disciplinar e normalizar sujeitos possibilitava diluir a figura do rei
por todo o corpo social. A presença física do rei, como analisa Foucault (1979), que havia
sido necessária para o funcionamento da sociedade até o século XVII, passava a ser
incompatível com as novas configurações políticas e econômicas de uma sociedade construída
sob a lógica da soberania do Estado-Nação.
Dos mecanismos de poder violentos, destinados a poucos, com o disciplinamento e o
panoptismo, corpos passaram a ser interpelados por dispositivos coercitivos mais sutis e
dirigidos a todos sem distinção. O homem moderno, como analisa Foucault (1987), entrava
numa maquinaria que o esquadrinhava, o desarticulava e o recompunha, por meio de
tecnologias que operavam de forma compacta para bloquear as comunicações, para
neutralizar os perigos, para fixar populações inúteis ou agitadas, para fabricar corpos
submissos e exercitados que cresciam em utilidade e docilidade
55
.
A nova forma de controle e regulação do corpo individual e coletivo, a forma de
governo de si e dos outro, como analisa Veiga-Neto (2000a), afastava-se dos princípios
alicerçados nas virtudes e habilidades do soberano/senhor/pastor para operar por meio de
preceitos centrados no Estado, importava garantir a segurança e o desenvolvimento do Estado.
Uma verdadeira guerra contra a confusa espacialidade e temporalidade feudal passava a ser a
principal tarefa enfrentada pelo emergente Estado-Nação, frente à necessidade de
homogeneizar o espaço para submetê-lo a sua autoridade. Para operacionalizar essa tarefa,
55
A noção de docilidade une o corpo analisável ao corpo manipulável. É dócil o corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. É o corpo que se torna dócil,
macio, maleável e, portanto, fácil de ser moldado (FOUCAULT, 1987, p.118).
79
segundo Bauman (1999, p.36), era preciso substituir todas as práticas locais e dispersas por
práticas administrativas de Estado, “o único ponto de referência universalmente impositivo
sobre todas as medidas e divisões do espaço e do tempo”.
A transparência do espaço e o controle do tempo, mediatizados pela razão,
transformaram-se em uma das maiores batalhas na organização do emergente Estado
Moderno. Para obter o controle legislativo e regulador, padrões de interação e lealdade sociais
foram estruturados em nome de um processo modernizador de reorganização do tempo e do
espaço, operando pela desqualificação de outras concepções alternativas. As concepções
espaço-temporais foram definidas de forma inteiramente quantificável, culturalmente
indiferente e impessoal. Modernização, nas palavras de Bauman (1999), significava, entre
outras coisas, tornar o mundo habitado receptivo à administração estatal, tornar o mundo
transparente e legível para que os poderes administrativos pudessem se estabelecer e
perpetuar, controlando as diversidades de agentes envolvidos nos arranjos sociais. Para Veiga-
Neto (2000a), o que passava a ser problematizado era o Estado e não mais o governante, um
Estado compreendido e configurado muito mais em termos de sua população do que de seu
território.
Se a cartografia medieval refletia e registrava formas de uma geografia local, no
espaço moderno era o território que se tornava um reflexo cartográfico, planejado para o
ordenamento e controle da população. O espaço passava a ser remodelado por princípios de
uniformidade e de regularidade, ordenado por um alto nível de transparência e depurado do
acidental e do ambivalente. Projetado por técnicas radicalmente diferentes, como analisa
Bauman, (1999), o espaço passava a ser planejado e não mais doado por Deus; mediado pelo
hardware e não mais imediato ao wetware
56
.
A busca permanente de uma estabilidade e um ordenamento para as coisas postas no
mundo fez emergir, no final do século XVIII, segundo Foucault (2002), uma nova forma de
poder que não excluía o poder sobre o corpo individual, mas atuava sob um novo corpo, um
corpo com uma multiplicidade de cabeças – a população. Essa nova técnica de poder não
suprimia a técnica disciplinar porque operava em um outro nível, em uma outra escala, em
uma outra superfície de ação, auxiliada por outros instrumentos.
56
O neologismo wetware foi criado para afirmar a proximidade homem-computador: constituído de coisas
duras e leves, o Hardware e o Software, e do Wetware, mole, gelatinoso e úmido, que é o cérebro humano onde
estaria inscrita nossa identidade (WERTHEIM, 2001, p.192).
80
A nova relação entre soberano e súditos
57
, a superação da estrutura feudal iniciada
com a instauração dos grandes Estados Nacionais, a explosão demográfica, o aumento da
produção agrícola e uma notável expansão de base monetária foram os acontecimentos que
fizeram a preocupação se deslocar do território para a população, um elemento que até então
figurava como uma extensão, dependente da conquista de novas terras. Tais acontecimentos,
como problematiza Foucault (1979) fizeram com que a população aparecesse como um dado,
como um campo de intervenção.
Uma outra preocupação interpelava a arte de governar o homem com o fim da
espacialidade e da temporalidade feudal. Para Foucault, (1979), o corpo social deixava de se
referir exclusivamente ao território e deslocava-se para a população, configurando-se como
um conjunto imbricado de homens, de coisas e de suas relações: entre os meios de
subsistência com suas riquezas e recursos, entre o território com suas fronteiras, qualidades,
costumes, hábitos, formas de agir e de pensar.
As tecnologias de individualização, como analisa Foucault, (1979), iriam se deslocar e
servir, também, para regulação da população, para geri-la em profundidade, minuciosamente,
no detalhe. O poder para administrar a vida da população – Biopoder - tinha sua emergência
impulsionada para torná-la produtiva, aproveitando ao máximo suas capacidades e
potencialidades. O biopoder importava-se com ações direcionadas à coletividade, na
capacidade de interpelar cada indivíduo em particular. A disciplina não era eliminada pois,
como afirma Foucault (1979, p.291), ela nunca “foi tão importante, tão valorizada quanto a
partir do momento em que se procurou gerir a população”.
A população é, para Veiga-Neto (2003a), o conceito criado para dar conta de uma
dimensão coletiva que, até então, não havia sido tomada como um problema ou se
configurado como uma temática no campo dos saberes. O aparecimento da população como
um problema ao mesmo tempo biológico e político, para Foucault (2002), desencadeou a
produção de múltiplos saberes para descrevê-la e quantificá-la, mas também, para jogar tais
descrições e quantificações em grades de combinações e comparações, para criar dispositivos
de controle para a população.
Para Veiga-Neto (2003a), as medidas estatísticas – natalidade, mortalidade,
longevidade – produziram saberes como Estatística, Demografia e Medicina Sanitária que, ao
circularem, passaram a controlar a população, projetando seu futuro a partir de seu passado,
57
Foucault (1979) sinaliza que o corpo do rei não era uma metáfora, mas uma presença física necessária ao
funcionamento da monarquia. Quando o edifício jurídico escapou ao controle real, quando foram questionados
os limites do poder e os privilégios da monarquia, o corpo do rei assumiu uma soberania representativa, uma
espécie de memória viva e carnal do Antigo Regime.
81
prevendo e administrando seus riscos. O mapeamento do controle dos nascimentos, a
intervenção nos fenômenos de fecundidade e de morbidade e o investimento no controle das
doenças
58
eram os fenômenos coletivos próprios da vida, não mais um poder que
individualiza o corpo-homem, mas um biopoder, um poder que operava na direção do
homem-espécie.
Com o biopoder, o poder deixa a morte
59
de lado para fazer sua entrada nas coisas da
vida – o nascimento, a mortalidade, a produção, a doença –, um poder que tem em seu escopo
aumentar a vida e buscar o equilíbrio da massa viva com a segurança da população em
relação a seus perigos internos (FOUCAULT, 2002, p.289-291 e 296-297).
Era no tabuleiro das mudanças no mundo pós-medieval, como afirma Veiga-Neto
(2000a, 2003) e Foucault (2002), que se construiria a interface para combinação de dois
conjuntos de mecanismos: o jogo da cidade, totalizador, jogado na população, seguindo as
regras do biopoder, e o jogo do pastor, individualizador, jogado no indivíduo, sob as regras do
poder disciplinar. Tais jogos, ainda que antagônicos, são complementares e articulados entre
si e criam as condições de possibilidade para o mundo moderno. Para Hardt e Negri (2002,
p.349), entre os séculos XVII e XVIII, a sociedade européia deslocava-se de uma forma de
organização social centralizada na vontade e na pessoa do rei para uma forma de soberania
alicerçada na economia descentralizada de poder e na administração da população. Eram
estabelecidos os dois eixos do mundo moderno: o poder disciplinar e o biopoder.
A dobradiça que articulava esses dispositivos para permitir controlar a ordem
disciplinar sobre o homem-corpo e os acontecimentos biológicos sobre o homem-espécie era
a norma, segundo Foucault (2002), o dispositivo que vai interpelar tanto o corpo que se quer
disciplinar, quanto uma população que se quer regulamentar. A norma é um princípio de
valorização, uma medida que tem como referência a média e que afirma seu valor no jogo das
oposições entre o normal e o anormal. Na transição do século XVIII para o XIX, a sociedade
passava pela multiplicação paralela de práticas normativas, impulsionada pelo
desenvolvimento das ciências humanas. Assentada na relação saber-poder, nada escapava à
norma.
58
São as doenças reinantes na população, que, diferentemente das famosas epidemias (que eram dramas
temporários e que potencializavam a morte), são enfermidades que alteram o equilíbrio do homem e de forma
permanente, subtraindo-lhe suas forças, baixando suas energias, diminuindo o tempo de trabalho e aumentando o
custo econômico, tanto pela produção não-realizada, quanto pelo tratamento a custear (FOUCAULT, 2002,
p.220-221).
59
A transformação das tecnologias de poder – do soberano para o disciplinar e o biopoder - engendra um
processo de desqualificação progressiva da morte. Do ritual público para a cerimônia privada que se quer
esconder, o poder tem seu domínio deslocado da morte para a mortalidade (FOUCAULT, 2002, p. 294-296).
82
O déficit no esquema organizador da soberania expresso no nível do detalhe e no nível
da massa começava a ser recuperado. Para recuperar o detalhe, operava o treinamento e a
vigilância dos mecanismos do poder disciplinar, realizados mais cedo, de forma intuitiva,
empírica e fracionada, nas instituições de confinamento – a família, a escola, a fábrica, o
hospital, o exército, a prisão. Para o controle e a regulação da população, os processos bio-
sociológicos das massas humanas, uma recuperação mais difícil, e, por isso, foram
implementados mais tarde, por necessitar de órgãos mais complexos de coordenação e de
centralização. Para Foucault (2002, p. 298), o poder disciplinar é composto pela série corpo–
organismo–disciplina–instituição, um conjunto organo-disciplinar da instituição, e o
biopoder, pela série população–processos biológicos–mecanismos regulamentadores–Estado,
um conjunto bio-regulamentar pelo Estado.
Os mecanismos disciplinares de poder para o homem-corpo e os mecanismos
regulamentadores de poder para o homem-espécie, por não operarem no mesmo nível, não se
excluíam, mas se articulavam. Para Ewald,
[...] as disciplinas fazem a sociedade, criam uma espécie de linguagem comum entre
todo o gênero de instituições, tornam-nas traduzíveis umas nas outras. [...] A norma
é precisamente aquilo pelo qual e mediante o qual a sociedade comunica consigo
própria a partir do momento que se torna disciplinar, (1993, p.83).
As respostas às demandas de uma temporalidade e espacialidade que se reconfigurava
com a convergência de acontecimentos – a instauração dos Estados Nacionais, os movimentos
religiosos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, a explosão demográfica - superavam
a estrutura do tempo e do espaço feudal e, numa relação de imanência, condicionavam a
rearticulação do poder do soberano e a emergência de novas formas de controle para o
homem-corpo e para o recém descoberto, homem-espécie. Os dados eram lançados sobre o
tabuleiro do cenário pós-medieval, rompendo gradativamente com os paradigmas do
feudalismo enquanto, efetivamente, um novo mundo era construído nos interstícios das
dificuldades do velho mundo. Esse deslocamento na configuração da sociedade européia
coincidia, para Hardt e Negri (2002), com o primitivo desenvolvimento e expansão do capital.
Para esses autores, era colocada em movimento a passagem da posição transcendente da
soberania real para o plano de imanência do capital.
Da violência do poder do soberano para a sutilização do poder disciplinar e do
biopoder, o olhar do rei apagava-se com o raiar de um mundo que deixava para trás o modo
feudal de viver o tempo e o espaço. A sociedade da normalização permitiu que o rei fosse
83
demitido de suas funções quando as tecnologias do poder disciplinar e do biopoder entraram
no jogo político. A saída do rei do jogo político tornou-se possível com o aparecimento de um
novo mecanismo de poder que se apoiava mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus
produtos, uma configuração para o controle do entorno social “que permitiu extrair dos corpos
tempo e trabalho mais do que bens e riqueza (Foucault, 1979, p.187)”.
A soberania centrada no exercício coercitivo assegurado no poder de domínio
individual, conquistado pela simbologia do sangue, passava a operar em torno de uma
maquinaria – disciplinamento e vigilância – em que ninguém era o titular. O poder dissociava-
se do domínio individual para operar por meio de uma tecnologia que passava a exercer um
poder por transparências e uma dominação por iluminação. A visibilidade dos corpos
possibilitou a invisibilidade e a economia do poder, que se tornava invisível e impunha uma
visibilidade obrigatória a quem a ele se submetia.
Táticas eram inventadas e organizadas a partir de condições locais e particulares e por
meio da articulação de diferentes instituições de confinamento, instâncias conectadas, que,
mantendo sua especificidade, operavam em complementaridade e com linguagens análogas,
estruturadas sob a mesma dinâmica de disciplinamento.
60
Da soberania do soberano, fonte da
justiça desejada por Deus, passava-se à soberania do regulamento e da disciplina, um poder
que espacializava, visualizava, imobilizava e disciplinava o corpo-homem e o corpo-espécie.
No espaço Território, nada substituiria o lugar do soberano era a sentença proclamada pela
sociedade disciplinar e normativa. Como problematiza Foucault,
[...] ninguém pode ou deve ser aquilo que o rei era no antigo sistema, isto é, fonte de
poder e de justiça; [...] o poder é organizado como uma maquinaria funcionando
com engrenagens complexas, em que é o lugar de cada um que é determinante, não
sua natureza. [Se estabelece] uma nova distribuição de poder com suas hierarquias,
seus enquadramentos, suas inspeções, seus exercícios, seus condicionamentos e
adestramentos (1979, p. 220-221).
Da espacialidade e da temporalidade feudais da sociedade de soberania para as
configurações de espaço e de tempo da sociedade de normalização, uma densa rede de
deveres e de obrigações era construída para adequar o mundo à existência humana. O espaço
pós-medieval passava a ser organizado por uma rede de territórios – reais e imagináveis – e
por sua relação com a exterioridade. O espaço Território configurava sua espacialidade na
60
As célebres palavras de Foucault (1987, p.187) “Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com
as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?” remetem a
um conjunto de instituições que mais se aproximam do que se afastam, uma vez que se estruturam sob um
mesmo fio condutor – a ação disciplinar.
84
relação entre a (des)ordem natural e a ordem da razão e da consciência. Por meio da
organização de instituições de confinamento - espaços limitados para concentrar, para
distribuir no espaço e ordenar no tempo – o homem era moldado para o mundo moderno.
Da mesma forma que o mapa mundial era sulcado pelas bandeiras do colonialismo
61
, o
território de cada emergente Estado-Nação era quadriculado num movimento progressivo de
estriamento do espaço social para a internalização do exterior por meio das instituições
disciplinares. As instituições sociais construíram uma rede que difundia e espraiava a
autoridade estatal por toda a sociedade. Era nos pontos de exercício do poder disciplinar que o
projeto da modernidade acontecia, segundo Hardt e Negri (2002), para civilizar, para
processar a natureza, eliminar a exterioridade confusa e, progressivamente, dar lugar à
civilidade. O espaço moderno – planejado, rígido, sólido, permanente e inegociável – passava
a ser, junto com o tempo rotinizado, a chave para a sociedade moderna.
Na espacialidade do Território e por meio de uma temporalidade que conquistava
velocidade, aprofundava-se o estriamento da sociedade ocidental. Eram demarcadas as rotas,
os fluxos e as barreiras que sucessivamente facilitavam ou obstruíam a circulação de idéias,
pessoas e produtos. A sociedade da normalização, ao instituir seus sulcos, suas alfândegas,
seus guichês, suas portas e suas eclusas, restabelecia continuamente a linha que delimitava o
dentro e o fora. A configuração espacial de interior e de exterior era o fundamento que
edificava o mundo moderno, o ordenamento da sociedade efetivava-se na separação dos
espaços externos da natureza.
A organização dos grandes meios de confinamento das sociedades de normalização
estabelecia as condições de possibilidade para um exercício da soberania que tinha no Estado-
Nação a legitimação de sua força. A modernidade, que deixava para trás a espacialidade e a
temporalidade experienciadas pelo homem medieval, fez espraiar o poder do soberano por
todo o corpo social. Em cada instituição de confinamento, operavam dispositivos de
regulamento e de disciplina, que passaram a estruturar atitudes, comportamentos e
subjetividades, forjando no homem moderno o desejo de respeitar fronteiras e hierarquias. A
interdependência família-escola-fábrica sustentava a cadeia social na modernidade, por meio
de uma complementaridade de territórios, espaços fechados e identificados, cada qual com
regulamentação própria, por onde o homem moderno não cessava de transitar. Como
61
No espaço Território, as fronteiras eram redefinidas, e a instauração dos Estados Nacionais acelerava o
processo de europeização do mundo, um mundo parcelado e pintado: de vermelho para os territórios britânicos;
de azul para os territórios franceses; de verde para os territórios portugueses. Pintavam-se os importantes limites
para o colonialismo europeu e para a expansão econômica do capitalismo (HART e NEGRI, 2002).
85
caracteriza Deleuze (1992, p.219), “[...] primeiro a família, depois a escola (você não está
mais na sua família), depois a fábrica (você não está mais na escola), de vez em quando o
hospital, eventualmente na prisão, que é o meio de confinamento por excelência”.
Hardt e Negri (2002), ao afirmarem que uma sociedade disciplinar era, portanto, uma
sociedade-fábrica, apontavam para um processo de disciplinaridade que era, ao mesmo tempo,
uma forma de produção e de governo. As práticas e as relações da tecnologia do poder
disciplinar e normativo que se originaram no sistema fabril espalharam-se por todo o tecido
social como um mecanismo do campo político e econômico. A disciplinaridade disposta no
cenário social por meio de arquiteturas institucionais fez circular um poder capilar que
produzia subjetividades pela internalização da disciplina e do regulamento.
Era nesse cenário que a escola, em sua configuração moderna, emergiria, como a
instituição de seqüestro e confinamento que viabilizaria o acesso às funções do mundo adulto,
prolongaria o tempo do não-trabalho e criaria as condições espaço-temporais para o mundo da
produção. Ao interpelar o homem em sua mais tenra idade, a escola passava a funcionar como
uma instituição privilegiada para o exercício da tecnologia do poder disciplinar e normativo.
Da sociedade de soberania para a sociedade de normalização, como afirma Veiga-Neto
(2003a, p.84), “a escola, mais do que qualquer outra instituição de seqüestro, se encarregou de
operar a individualização disciplinar, engendrando novas subjetividades e, com isso,
cumprindo seu papel decisivo na constituição da modernidade”.
A sociedade da normalização nascia desrespeitando a ordem pré-moderna,
estabelecendo uma ruptura com qualquer condição histórica precedente, para marcar, com o
selo da transitoriedade, o mundo fundado pelo desenvolvimento de formas racionais de
organização social. Na busca da emancipação humana, por meio do acúmulo de saberes
gerados pela livre e criativa atividade intelectual, buscava-se libertar o corpo individual e
social das irracionalidades do mito, da religião, da superstição e do uso arbitrário do poder.
O movimento iniciado no século XVIII, que desmitificou e dessacralizou o
conhecimento, saudou a criatividade e o saber científico como meios de controle dos
fenômenos naturais, como instrumentos para a compreensão do homem e do mundo, como
estratégias para estabelecer o progresso moral e a segurança a ser edificada na justiça das
instituições e dos homens. Contudo, como destaca Harvey (2000), a única coisa segura na
modernidade era a sua insegurança, e os exemplos do século XX – os campos de
concentração, os dois conflitos mundiais, a experiência da morte pela aniquilação nuclear –
colocaram sob suspeita esse otimismo projetado pela modernidade, transformando o desejo de
emancipação humana num movimento de opressão universal.
86
A modernidade imprimiria como sua marca o efêmero, o fragmentário, o contingente
e, em meio a um processo de destruição criativa
62
, seguiria sua trajetória guiadas pelos ideais
de razão, de civilização e de direitos universais, instituindo novas temporalidades e
espacialidades, forjando outras experiências para o corpo individual e coletivo, inventando
novas possibilidades e perigos para o viver da humanidade. A sensação desorientadora da
fragmentação, da efemeridade e da mudança caótica seria impulsionada pelos desdobramentos
pós-conflitos mundiais e movida pelo princípio estruturante da modernidade, assinalado nas
palavras de Harvey (2000), como a transformação do homem e do mundo e, ao mesmo tempo,
a destruição de tudo o que existe, do que se sabe e do que se é.
No século XX, sob a tutela da destruição criativa da modernidade, os elementos que
edificaram a sociedade de normalização seriam abalados pelas fissuras nos muros das
instituições disciplinares e pelo desmoronamento e enfraquecimento da sociedade civil. Da
soberania do Estado-Nação, de uma configuração espaço-temporal assentada no
disciplinamento e na regulamentação do jogo dentro-fora, passava-se a uma nova forma de
soberania que começa a interpelar o homem-corpo e o homem-espécie, regida por novas
práticas de dominação e de poder, uma tecnologia identificada por Deleuze (1992) pela
rubrica da lógica de controle. Começava a ser tecida a configuração do Espaço Mercadoria e
do Tempo Acelerado.
PARA O ESPAÇO MERCADORIA E O TEMPO ACELERADO, O CENÁRIO DA
ESPETACULAR SOCIEDADE DE CONTROLE
A visão fisicalista do mundo, que tinha sido cunhada no final do Século XVII, operou
como uma poderosa ferramenta epistemológica para afastar da arena das discussões tudo o
que não se ajustava à concepção materialista da realidade. Os olhos dos astrônomos, durante
três séculos, observaram, das lentes de seus telescópios um universo atemporal. A ciência
matemática de Newton imprimiu um universo que não veio a ser, ele simplesmente era. Um
conjunto de leis matemáticas se calava sobre a própria história do espaço cósmico, uma
cosmologia que apagava qualquer rastro de seu processo gerativo. A racionalidade científica
estava na ordem do dia, mas a Gênese, a história da criação do universo encontrava sua
62
Para nomear esse processo impulsionador da modernidade, Harvey (2000, p.25 e 26) apropria-se da figura
mítica de Dionísio – ser a um só e mesmo tempo destrutivamente criativo - e da imagem nietzschiana da
destruição criativa e da criação destrutiva.
87
narrativa na Bíblia, um saber sobre o qual a física newtoniana nada tinha a dizer. Em relação à
criação do universo e da vida, a Bíblia não era tencionada pelos saberes do Sr. Newton.
A harmonização da ciência com o cristianismo era fragilizada quando os astrônomos
insatisfeitos com a abordagem não-racional para a criação começaram a propor teorias
científicas para a origem do universo. A insatisfação com a natureza anistórica da visão
científica do mundo deslocava a espacialidade moderna fundada no espaço tridimensional
euclidiano para o hiperespaço, uma configuração espacial edificada a partir da concepção do
espaço relativístico de Einstein.
O rígido espaço euclidiano representado na cosmologia newtoniana começava a ser
substituído por uma visão mais dinâmica do universo e, com ela, uma nova dinâmica para o
próprio espaço. Poderosos telescópios revelavam galáxias cada vez mais distantes, tornando o
espaço cósmico cada vez maior. As idéias esquecidas de Kant
63
de que as manchas difusas no
universo eram compostas de milhões de estrelas foram comprovadas por Edwin Hubble, na
década de 1920. Medindo o movimento das estrelas, Hubble, apoiado por Milton Humason,
evidenciava graficamente sua hipótese sobre o movimento das estrelas e colocava sua
assinatura num poderoso achado cosmológico, destacado por Wertheim (2001, p.121): o
universo estava se expandindo! Essa descoberta colocou em xeque a noção de um universo
estático, atemporal.
O espaço relativístico começava sua história. Hubble fez a descoberta de um cosmo
dinâmico, mas foram as equações de um jovem físico alemão, Alberto Einstein, que deram o
sentido a esse achado extraordinário. A concepção de espaço de Einstein, embora poucos
compreendessem o significado de suas teorias, foi radical a ponto de se tornar um dos
princípios para a construção da imagem contemporânea do mundo. Enquanto Kant tentou
demonstrar espaço e tempo como categorias a priori, conceitos necessários para a construção
da imagem científica do mundo, Einstein
64
lançou-se contra os grandes da ciência e da
filosofia, apontando como problemática a insistência newtoniana de tempo e espaço
63
Na segunda metade do século XVIII, Kant, um teísta devoto, acreditava que o universo deveria resultar de
processos puramente naturais a partir da matéria bruta e das leis newtonianas do movimento. Sem poder
embasar teórica e empiricamente suas idéias, o pioneirismo do trabalho de Kant foi deixado de lado, e o avanço
tecnológico dos telescópios passou a direcionar investigações para fenômenos cosmológicos mais fascinantes
sedimentando, na mente da comunidade científica daquela época, a concepção de um universo alicerçado num
padrão atemporal eterno.
64
Einstein, inspirado no dilema que ocupava a mente dos melhores físicos da época - a velocidade da luz –,
faz a pergunta perturbadora – como se poderia explicar que a luz se propaga numa velocidade constante? Como
explicar que uma pessoa se desloca numa velocidade diferente da de outra, mas a luz parece se deslocar na
mesma velocidade em relação a ambas? Abandonando o espaço absoluto, Einstein propõe a resposta – se, em
vez de todas as pessoas partilharem de um só tempo e espaço universais, se cada uma ocupasse seu próprio
espaço e tempo, a velocidade da luz seria constante para elas (WERTHEIM, 2001, p. 124-125).
88
absolutos. A alforria para o tempo e o espaço absolutos fez nascer a concepção libertadora do
espaço-tempo relativo.
A obra de Einstein e seus colaboradores forjou a linha do tempo para o universo no
instante do big bang, em que não só a matéria mas também o espaço e o tempo haviam
surgido. O big bang, a primeira faísca da criação, fez com que a ciência desenvolvesse uma
história da evolução do universo, uma história que, ao instituir o espaço e o tempo, articulou
um processo em que o universo se desdobrou no ser
65
. A natureza fundada na imagem do
espaço relativístico conferia ao mundo uma identidade própria.
Para o novo espaço cósmico que emergia, a Terra tornava-se um entre tantos outros
planetas, girando em torno de uma estrela entre tantas outras estrelas e entre tantas outras
galáxias. A ciência articulava sua própria narrativa esfacelando a criação bíblica. A teoria da
evolução de Darwin contestava a criação da vida nos moldes bíblicos e a concepção
relativística do espaço opunha-se à história da criação cósmica do Gênesis. Eram as equações
relativísticas e a teoria evolutiva abalando as antigas crenças da humanidade, e o homem
perdia seu pedigree.
A concepção de um espaço físico não-tridimensional tornou arbitrárias as regras da
perspectiva linear e apontou para o tempo não mais como um atributo da experiência humana
subjetiva, mas como um artefato de manipulação matemática e espacial. O espaço e o tempo
estavam agora imbricados num todo quadridimensional. O tempo tornava-se, efetivamente,
mais uma dimensão do espaço, um complexo que passava a ser registrado por uma única
palavra: espaço-tempo.
Para o cenário sociocultural produzido pela cosmologia do espaço relativístico,
racionalizar significava mais do que planejar com a ajuda do mapa e do cronômetro. Novos
sentidos de relativismo e perspectivismo eram inventados e aplicados à produção do espaço e
à ordenação do tempo. Harvey (2000, p.242) assinala momentos cruciais situados,
significativamente, na produção das teorias da relatividade de Einstein
66
. A linha de
montagem instalada por Ford, em 1913, produziu uma forma de organização espacial que
acelerava o tempo de giro do capital produtivo. A produção em série, ao fragmentar tarefas e
ao distribuí-las no espaço, tornava visível um processo de aceleração do tempo como produto
de uma ordem espacial para a produção e o consumo em larga escala. No mesmo ano, o
65
Os astrofísicos modelaram uma explicação para a formação das galáxias, das estrelas, dos planetas e,
paralelamente, descobriram processos de síntese da cadeia de elementos atômicos nas estrelas.
66
Albert Einstein propôs duas teorias da relatividade: a Teoria Especial da Relatividade, em 1905, que se
centrava nos movimentos uniformes com velocidade constante e, em 1916, o físico alemão elaborou uma versão
mais complexa da teoria da relatividade, incluindo não só o movimento em velocidades constantes e na mesma
direção, mas qualquer movimento, variável em velocidade, em direção ou em ambas.
89
primeiro sinal de rádio era transmitido para o mundo a partir da Torre Eiffel, acentuando a
capacidade de fazer o espaço decair, na simultaneidade do tempo, tornando-os público e
universal. A emergência da simultaneidade derivou de uma radical mudança da experiência
do tempo e do espaço impulsionada pela concepção relativista do espaço.
O adensamento da rede de estradas de ferro, o desenvolvimento do telégrafo, as
primeiras comunicações por rádio, o desenvolvimento da navegação a vapor, as viagens em
balões e as tecnologias de impressão e de reprodução mecânica subverteram o sentido do
espaço e do tempo, que, ao potencializar uma maior exploração de deslocamentos, assumia
novas configurações. Espaços eram desterritorializados, privados de seus significados
precedentes e reterritorializados sob a tutela de uma administração colonial e, posteriormente,
imperial. Eram as forças econômicas do capitalismo encaminhando para a conquista global.
A linha de montagem provara que processos sociais podiam ser acelerados e que
forças produtivas podiam ser aumentadas pela espacialização do tempo. A humanidade
celebrava a aniquilação do tempo pelo espaço, colocando em circulação um projeto racional
de emancipação humana para um espaço global cimentado por mecanismos de comunicação e
de intervenção social. Uma submissão do planeta à força da reestruturação espacial e temporal
era colocada em operação, explorando novos sentidos do espaço e do lugar, forjando vínculos
entre o território e o sentido social de identidades pessoais e comunitárias.
O encolhimento do espaço levou os territórios do planeta a competirem entre si, a
criarem estratégias concorrenciais localizadas e a ampliar a consciência dos elementos que os
tornavam lugares especiais, que lhes davam vantagem competitiva. O mundo da
mercadificação internacional exibia, na geografia da produção econômica e cultural, lugares
longínquos comercializados como valiosas mercadorias. O domínio do espaço como fonte
fundamental de poder político, econômico e militar era o que marcava o início do século XX.
O Estado-Nação fortalecia-se como o centro social estável para um mundo que se
planetarizava.
A unidade entre o povo e a terra, que a geopolítica do Estado-Nação instituiu,
concedeu aos personagens do território o direito de dominar o lugar particular em favor de um
interesse nacional, um fundamento cultural e político que só poderia ser dissolvido por meio
da violência ou da expropriação. No entrelaçar do universalismo e do nacionalismo, em meio
a um cenário de desemprego em massa e de vulnerabilidade do território frente à progressiva
queda das barreiras espaciais, era estabelecido o solo fértil para germinar sentimentos de um
fanático nacionalismo.
90
A onda de compreensão do tempo e do espaço impulsionada pela emergência de
tecnologias de comunicação e de deslocamento estabelecia a materialidade para pensar e
vivenciar novas experiências espaço-temporais, permitindo a disseminação de notícias,
informações e artefatos culturais no âmbito cada vez maior da população. Porém, por meio da
ação de tecnologias intelectuais – comunicados em jornais e rádios, filmes, conversas
telefônicas, tempestades de telegramas – que a raiva popular era alimentada e a atividade
diplomática desarticulada. Essas ferramentas de compressão do tempo-espaço foram os
instrumentos que desencadearam um frenesi nacionalista que veio a desembocar em dois
conflitos mundiais. A crença no progresso e na própria história da civilização ocidental era
arranhada, colocando sob suspeita o projeto da modernidade.
Os saberes do espaço relativista concluíram a tarefa de afastar da humanidade os mitos
da criação, da revelação e da condenação eterna e, assim, reafirmaram o ideal da
racionalidade iluminista que projetara o mundo moderno. A relação entre os meios e os fins,
os planos utópicos que se colocavam como opressores para muitos e emancipadores para
poucos, a concepção de uma sabedoria européia, masculina e branca e os crimes cometidos
pela colonização imperialista foram pontos de atrito que adensaram o debate em relação à
racionalidade sustentada pelo projeto da modernidade. Críticas ao projeto do mundo moderno,
como analisa Harvey (2000, p.24), emergiam divididas em duas grandes correntes: a que
debitava seu possível fracasso aos defeitos da razão iluminista e a que apontava para a não-
aplicação correta de seus princípios. Nietzsche, como destaca Harvey (2000, p.25),
questionava as pretensões de ordem e estabilidade social do projeto da modernidade ao
afirmar que “moderno não era senão uma energia vital, a vontade de viver e de poder,
nadando num mar de desordem, anarquia, destruição, alienação individual e desespero”.
A ambição imperialista das grandes potências européias gerava o clima de tensão e de
rivalidade que marcou o século XX. As tensões advindas das disputas por áreas coloniais e da
contestação da hegemonia internacional inglesa favoreceram a formação de blocos
antagônicos que culminaram em dois conflitos mundiais. O continente europeu em ruínas no
campo econômico e social tornava-se o grande mercado dependente de exportações norte-
americanas. Possuidores de praticamente metade do capital que circulava nos mercados
financeiros, os Estados Unidos projetavam-se como a maior potência financeira mundial do
pós-guerra.
Para Harvey (2000), a Segunda Guerra Mundial desencadeou o maior evento da
destruição criativa do capitalismo. A necessidade de reconstruir economias devastadas pela
guerra na Europa, a necessidade de amenizar o descontentamento político associado às formas
91
capitalistas de crescimento urbano-industrial e as dificuldades colocadas no cenário mundial
ao crescente poder dos movimentos socialistas impuseram a racionalidade pela eficiência
tecnológica, pela tendência em promover um novo ordenamento para que metas socialmente
úteis fossem atingidas. A estética do mundo era reconfigurada para que a máquina, a fábrica e
a cidade racionalizadas oferecessem e restabelecessem as qualidades eternas da vida moderna,
agora sob o ordenamento do modo de viver norte-americano.
Na primeira metade do século XX, como analisa Veiga-Neto (2000a, p.194), três
experiências de governo – o nazismo, o socialismo de Estado e o Estado de bem-estar social –
iriam emergir como resultado de grande intervenção governamental para a planificação, a
condução e o controle da economia. Como resposta aos excessos estatais e estatizantes e à
disputa conciliadora entre a liberdade de mercado e o exercício ilimitado da soberania, o
liberalismo construiria sua interface de ação. Como um dispositivo de racionalização do
exercício de governo, o liberalismo assim projetava a sociedade:
[...] um todo harmônico pela combinação complementar de indivíduos, cada um
funcionando como um átomo indivisível, centrado e estável, que é, em si mesmo e
ao mesmo tempo, réu e juiz, ovelha e pastor. O liberalismo ocupava-se do governo
da sociedade, uma sociedade formada por sujeitos que são, cada um e ao mesmo
tempo, objeto (governado de fora) e parceiro (sujeito autogovernado) do governo;
[...] o sujeito com deveres e direitos, um sujeito cidadão, um sujeito parceiro
(VEIGA-NETO, 2000a, p.187). [grifos do autor]
Conforme Paraire (1999), o período de 1945 a 1990 estabeleceu a recolonização e o
prelúdio da globalização. A política e a economia internacional do liberalismo pós-guerra
foram os agentes benevolentes e progressistas do processo de reconstrução européia e,
principalmente, da modernização para o Terceiro Mundo atrasado. A globalização do capital
foi um dos objetivos defendidos no quadro da política externa dos Estados Unidos durante a
Guerra Fria
67
.
Por meio de instituições internacionais, entre elas o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional, e sob a coordenação política do G7
68
, eram construídas estratégias
de ajuda e cooperação internacional, mas que passaram a operar como instrumentos de
consolidação da hegemonia norte-americana. A primeira estratégia foi a dependência técnica
67
A Guerra Fria iniciou após a II Guerra Mundial, entre Estados Unidos e a antiga União Soviética pela
disputa da hegemonia política, econômica e militar do mundo. A expressão Paz Armada ilustra esse período
caracterizado pela corrida armamentista, uma vez que a paz era garantida pelo equilíbrio bélico entre as duas
potências. A corrida espacial exemplifica a disputa tecnológica entre essas potências, produzindo extraordinários
avanços científicos em diferentes áreas do conhecimento.
68
Grupo dos sete países mais ricos do mundo – Inglaterra, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Alemanha
e Japão.
92
e financeira dos países pobres descolonizados por meio de uma política sistemática de ajuda
ao desenvolvimento assentado na compra de tecnologia, na concentração urbana, nas grandes
obras
69
e na industrialização das zonas rurais. A segunda estratégia implementada foi a
transformação da estrutura produtiva dos países pobres que, pela ingerência do capital
internacional, estabelecia a passagem forçada para a economia de mercado, possibilitada pelo
desmantelamento de toda a função reguladora do Estado. O Estado-Nação perdia sua posição
como o centro organizador da sociedade, substituído pela tutela das agências financeiras
internacionais, pois, como ilustram as palavras de Paraire (1999, p.467),
[...] depois de ter representado a comédia de ajuda financeira e técnica
70
, a estratégia
orientava-se em seguida para o endividamento. [...] A esmola, uma vez emprestada
ao mundo pobre, reencontrava valor como que por milagre, transformado numa
dívida a pagar.
A fissura no território do Estado-Nação era iniciada, mas a grande exterioridade
estabelecida com o final da Segunda Guerra Mundial, e que tinha sua imagem representada no
muro de Berlim, necessitava ser rompida. Uma terceira estratégia foi colocada em prática pela
corrosão das estruturas que sustentavam a União Soviética. Com o mundo pobre de joelhos
(PARAIRE, 1999, p.468), por sua condução à economia de mercado, a radicalização da
política externa operava para a reconquista dos últimos territórios localizados do outro lado do
muro de Berlim. Pela Glasnost e pela Perestroika, a economia capitalista fazia sua entrada na
União Soviética, que encerraria seu ciclo hegemônico na emblemática queda do muro de
Berlim, em 1989. Seus aliados, Cuba e Vietnã, abriram-se ao turismo de massas, e a China
restaurava a economia de mercado em utópicas zonas especiais
71
.
Para Melucci (2001), a sociedade socialista soava como um mito desgastado,
consagrando o neoliberalismo como o único vencedor da Guerra Fria. O capitalismo assumia
sua forma ainda mais radical no imanente processo de expansão de seus próprios limites. O
limite do capital deixava de ser assegurado pelo simples controle das forças de trabalho e pela
intervenção crescente no mercado. Com o desaparecimento dos tradicionais adversários e com
o fim da Guerra Fria, o neoliberalismo, em sua forma política e econômica, colocava toda a
69
Por essas lentes devem ser lidas a construção, no Brasil, de Brasília e da rodovia Transamazônica.
70
Como analisa Paraire (1999), depois de cinqüenta anos de assistência, o hemisfério sul revela-se arruinado:
mais da metade dos seus habitantes vive abaixo da linha de pobreza, seus territórios estão ecologicamente
devastados, as populações levam existências indignas. “A famosa decolagem não aconteceu: o avião do Terceiro
Mundo, superlotado e fétido, apodrece no final da pista sem piloto e sem combustível (id, 1999, p.470)” .
71
A China vendeu suas províncias aos investidores privados para se preparar para as reformas econômicas
destinadas a recuperar a economia de mercado a antecipar a abertura às grandes empresas japonesas e norte-
americanas.
93
sua energia para impor sua concepção de mundo de forma planetária, tarefa operacionalizada
pela globalização.
O mundo tornava-se planetário para que a reconquista do mercado mundial fosse
estabelecida sob a estratégia do Ajuste Estrutural Universal. Os sucessos das estratégias
neoliberais eram globalizados: controle das potências rivais por meio da desindustrialização
dos países emergentes e dos mais pobres; estagnação prolongada de outros, desruralização,
transformação da pequena produção em trabalho assalariado e reorientação dos investimentos
para um crescimento não-gerador de empregos. Somava-se a essas ações o fim dos sistemas
de bem-estar social, intensificado pelo combate às políticas sociais e às leis trabalhistas
obtidas num século e meio de lutas.
A planetarização cortejava o mundo com os benefícios das sociedades capitalistas:
bairros miseráveis, moças de aluguel, favelas, drogas, destruição ambiental, Coca-Cola,
automóveis, fast foods, delinqüência mas, telefones celulares. Para cada Estado-Nação era
imputada a tarefa da privatização das estatais, da dispensa dos funcionários, da redução de
despesas sociais de saúde e de educação e, da promoção de novos agentes privados para esses
serviços. Do Estado máximo para o Estado mínimo, o discurso do desenvolvimento
econômico era imposto ao mundo pela hegemonia norte-americana. Para Negri (2003), a
extensão planetária do American way of life desestabilizava as identidades nacionais,
esmagava a autodeterminação dos povos e gerava a instabilidade. A hegemonia norte-
americana em si mesma, constituía o triunfo da democracia global sob a derrocada do
socialismo.
A passagem dos paradigmas econômicos, agricultura–modernização–informatização,
analisada por Hardt e Negri (2002) e por Deleuze (1992), possibilita dar visibilidade às
transformações desencadeadas em todos os elementos do cenário social. O século XIX,
marcado pela concentração na produção e na propriedade, fez com que o sistema-fábrica
emergisse como meio de confinamento e o capitalista como proprietário dos meios de
produção. Contemporaneamente, com a planetarização do mundo, o capitalismo configura-se
para a sobre-produção, dirigido para o produto.
As instituições sociais estruturaram a sociedade sob a ordem do capital e do Estado-
Nação. Para Hardt e Negri (2002, p.350), ao mesmo tempo em que a sociedade moderna
tornava o terreno social imanente para a ação do capital, configurava-o para o transcendente
exercício do poder estatal, um obstáculo ao desenvolvimento do capital que necessitava ser
superado.
94
A fluidez do tempo e a nova métrica do espaço, engendradas pela positividade do
avanço tecnológico, redimensionava relações sociais e, entre elas, as relações de trabalho.
Colocava-se em xeque o sistema-fábrica, um modelo de produção que, ao manter capital e
trabalho juntos, incorporados, ajustados, trazia, em sua lógica, o corpo do trabalhador para ser
controlado, vigiado e administrado pela visibilidade dos dispositivos arquitetônicos e pelos
princípios científicos da administração e da economia.
O sistema-fábrica era desmontado, pois era preciso jogar fora todas as âncoras, todo o
peso inútil das amarras de uma administração centrada na conservação da mão-de-obra e, com
ela, a soma cada vez mais crescente de compromissos e obrigações sociais e fiscais. Da linha
de montagem, passava-se para os círculos de produtividade, a fábrica era substituída pela
empresa. A capacidade do trabalho continuava incompleta e irrealizável sem o capital, mas a
recíproca não era verdadeira. O capital, agora extraterritorial, volátil, tinha em sua leveza e
mobilidade sua maior estratégia. Volume e tamanho deixaram de ser recursos e passaram a ser
riscos.
A empresa substituiu a fábrica e descorporificou o trabalho. As fábricas se
virtualizaram, transformaram-se em empresas: o capital circulava, flutuava, buscava parceiros
para breves e lucrativas especulações. No tabuleiro do jogo pela sobrevivência no mundo, o
capital deslocou-se da produção para a especulação financeira. Trabalhadores salvos
temporariamente do naufrágio do desemprego, esperavam a nova jogada a ser engendrada
pela trama da mutação tecnológica.
O mundo do trabalho deixou o espaço da fábrica, do âmbito da sociedade nacional, do
Estado-Nação, das tensões polarizadas entre cidades para ocupar os centros decisórios de
empresas, corporações e conglomerados transnacionais, desterritorializados, mobilizando
recursos científicos e tecnológicos para diagnósticos, prognósticos, planos, programas e
projetos. O taylorismo e o fordismo
72
passavam a complementar a organização flexível do
processo produtivo do toyotismo
73
. O mundo do trabalho organizava-se sob a base da
automação, robótica e microeletrônica.
72
Henry Ford introduziu o dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para trabalhadores da linha de
montagem de automóveis. O fordismo racionalizava inovações tecnológicas e organizacionais já estabelecidas: a
forma corporativa das estradas de ferro e os princípios da administração científica de Taylor. Com o fordismo,
inaugura-se um novo sistema de produção em massa para um consumo em massa, uma nova política de controle
e gerência de trabalho para uma sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista. Como analisa
Harvey (2000, p.121), citando Gramsci, “o fordismo e o americanismo equivaliam ao maior esforço coletivo até
para criar, com velocidade sem precedentes e com uma consciência de propósito sem igual na história, um novo
tipo de trabalhador e um novo tipo de homem”.
73
Nova organização para o trabalho: a redução de custos em equipamentos, matéria-prima, cargos e funções.
Do grande número de funcionários do modelo fordista, passava-se para polivalência e a plurifuncionalidade dos
95
Como afirma Castells (2003), o mundo não cancelou ciclos econômicos, não
substituiu leis comerciais, mas transformou suas modalidades e seus efeitos ao mesmo tempo
em que acrescentava novas regras ao jogo, regulamentações mais gerais que objetivam
suprimir a legislação estatal pela instituição de um controle independente e supradeterminado.
Nas palavras de Negri (2003, p.11), “não há globalização sem regulamentação”.
A nova divisão internacional do trabalho formava uma espécie de fábrica global em
cidades globais, mobilizando trabalhadores de todos os tipos e qualificações,
independentemente da raça, do sexo e da idade
74
. A fábrica tornava-se global, e o empregado
passava a ser do mundo! As migrações nacionais e regionais, como as de escala
intercontinental, configuravam-se como expressões do processo de formação da classe
operária de alcance global. A densidade das redes de informação e de comunicação
impulsionou a formação de um imenso exército de trabalhadores ativos e de reserva que se
desloca pelo mundo, pela fábrica global, sob o visto da divisão transnacional do trabalho.
Cientistas políticos e economistas projetam uma drástica redução da quantidade global
de trabalho disponível e justificam esse enxugamento como sendo um dos reflexos da
transferência do controle da economia das instituições representativas dos governos nacionais
para o jogo do livre mercado comandado pelas transnacionais. Como registra Bauman (2000,
p.27), 20% da força potencial de trabalho global bastará para manter a economia funcionando,
o que tornará economicamente supérfluos 80 % da população mundial capacitada. Os altos
índices de desemprego e a crescente insegurança no trabalho colocaram a percepção da crise
na rotina diária do homem contemporâneo, fazendo emergir uma percepção de sociedade que
vive como se não existisse futuro. O planejamento do futuro, que foi indiscutivelmente um
dos motores da sociedade moderna disciplinar e normativa, estruturava a ação de seus
membros em função de uma rede de deveres e de obrigações para a conquista dos direitos do
mundo adulto, o que, contemporaneamente, soa como uma meta de difícil realização.
A leveza e a mobilidade do capital condicionaram uma nova base de dominação que se
tornou o principal fator de divisão e de motor social. O capital distribui as peças, dita as regras
para o jogo e escala seus jogadores por sua aptidão em participar do jogo do consumo.
assalariados. Mudava-se a forma de gestão da produção e da estrutura organizacional da empresa. Saia a
verticalidade do controle piramidal dos supervisores e entrava a horizontalidade do controle da máquina.
74
Como ilustra Paraire (1999, p.480), as crianças indianas ocupavam as ruas exigindo um salário igual por
trabalho igual ao dos adultos. Sobre a crise, o Fundo Monetário Internacional sugeriu que baixassem a idade
mínima para o trabalho infantil e abolissem o salário mínimo. O governo indiano, que trabalhava por conta de
peritos ultraliberais do Fundo Monetário Internacional e do Banco Interamericano para o Desenvolvimento,
impôs esse plano e acionou a polícia para impedir greves. Nenhuma convenção internacional conseguiu
regulamentar concretamente o problema da progressão exponencial do trabalho infantil, que se resume numa
escravatura autorizada pelos Estados nele interessados.
96
Descartam-se, como sinaliza Bauman (1998, p.24), os consumidores falhos, as pessoas
incapazes de responder aos atrativos de mercado consumidor. Como um camaleão, o capital
desprende-se do trabalho, é livre e tem infinitas possibilidades de transformação dentro de um
leque de opções constantes e instantaneamente disponíveis. O curto prazo substituiu o longo
prazo e, nessa nova relação com a duração, a experiência tornou-se um objeto de consumo
imediato, instantâneo.
O corpo individual e coletivo começava a sentir os efeitos da passagem da sociedade-
fábrica para a sociedade-empresa. A forma histórica do sistema-fábrica – produzir para um
mercado, opor produtores e proprietários dos meios de produção – começava a sucumbir
impulsionada pelo avanço da racionalidade tecnológica ocidental, que encolhia o espaço e
aniquilava o tempo. Para a fábrica-empresa global, o empregado e o consumidor para o
mundo! O cenário social necessitava forjar e naturalizar a percepção do cidadão do mundo!
Declinava-se, visivelmente, a condição de cidadão nacional. O status de sujeito inserido na
história e nas tradições, em condições de participar efetivamente das decisões relativas à
soberania nacional, desapareceu, visto que essa soberania também encontra-se em declínio ou
vem sendo anulada pelo monopólio decisório das corporações transnacionais
75
. Os
indivíduos, as nações, as culturas estão inscritas, organizadas, dinamizadas e desafiadas por
processos e estruturas em escala mundial.
A planetarização do mundo forjou um novo contexto histórico-social, projetando um
novo homem, um novo cidadão, o cidadão do mundo. Essa forma de cidadania, que fora uma
figura de linguagem, uma metáfora, uma utopia em outros tempos e de modo muito eficiente
em diferentes momentos da história da humanidade, tornava-se uma realidade com a
formação da sociedade civil mundial. O mundo passou a ser o palco da história para que as
relações, os processos e as estruturas de integração, fragmentação, dominação, apropriação,
alienação e emancipação pudessem operar. A cartografia sob a qual se movem indivíduos e
coletivos humanos, deslocava sua escala da territorialidade do Estado-Nação para o mundo.
A espacialidade mundial plural, policrônica, polifônica, projetada por um emaranhado
de redes, teias e cadeias políticas, econômicas, sociais e culturais, revelava o déficit da
sociedade alicerçada no disciplinamento e no panoptismo. Entraram em crise os espaços
disciplinares que, sob a nova escala cartográfica, revelaram-se sem fôlego ou perderam a
corrida da planetarização do mundo. Para Hardt (2000), as lógicas disciplinares não se
75
Como ilustra Bauman (2000, p.27), “se os ministros da Fazenda, do Tesouro ou das Finanças ainda são um
mal necessário, os ministros da Economia são cada vez mais coisas do passado – ou meramente uma devoção
hipócrita e nostálgica de uma soberania estatal outrora firme e hoje em rápida extinção”.
97
tornaram ineficazes, mas encontram-se, contemporaneamente, distribuídas por todo o tecido
social. Deleuze (1992), ilustra esse deslocamento apontando a substituição da imagem
disciplinar representada nos túneis estruturais da toupeira pela das ondulações infinitas da
serpentes do controle.
A sociedade disciplinar e normativa que, para Cardoso Jr. (2002, p.193), funcionava
alicerçada sob territórios de caça para as relações de poder, necessitava de dispositivos
disciplinares - os territórios fechados, que reuniam práticas legitimadas pelo saber científico e
pela visibilidade da arquitetura panóptica, operavam pela criação de dispositivo espaço-
temporal para manejar ou induzir práticas de subjetivação. A instituições sociais
estruturavam-se em territórios ajustados às funções disciplinares – vigiar, ensinar, curar -
cumpridas pela família, pela escola, pela fábrica, pelo exército, pelo hospital, pela prisão. A
fluidez das tecnologias de comunicação e de informação, ao impulsionar o desmoronamento
dos muros das instituições disciplinares, como destaca Ramont (2001), colocava como
dominantes outras funções para o gerenciamento e controle social: anunciar, vender, vigiar.
A mutação tecnológica converteu sistemas simbólicos
76
em um único sistema: texto,
som e imagem passaram a ser transmitidos em tempo real, na velocidade da luz. Máquinas
digitais conectadas criaram uma rede de informação e de comunicação, uma malha que
abrange todo o planeta para anunciar, porque a economia na sociedade do espetáculo é
essencialmente publicitária; para vender porque, pelas redes mediáticas, não só se entra em
contato com a propaganda mas, também, se pode escolher, pedir, pagar, comprar produtos e
serviços de infinitas naturezas e possibilidades; vigiar porque cada manipulação na rede deixa
marcas, desenha o auto-retrato de seus usuários – seus interesses culturais, ideológicos,
lúdicos, de consumo –, um retrato que revela segredos, que torna pública as preferências e
possibilita que vontades e desejos possam ser manipulados.
Formas abertas, em rede e ultra-rápidas, de coerção e gerenciamento social
substituíram as antigas formas fechadas e rígidas das instituições disciplinares, e uma outra
lógica era estabelecida. Como analisa Deleuze (1992), as diferentes instituições disciplinares
operavam como variáveis independentes, em que a presença obrigatória, e sob a suposição de
recomeçar do zero, ajustava o homem moderno a um formato, a um molde. Da lógica
76
Para Ramonet (2001), cada sistema simbólico - o texto escrito, o som e a imagem - foi responsável por
forjar sistemas tecnológicos. O texto deu origem à edição, à impressão, ao jornal, à tipografia, à máquina de
escrever; o som deu origem à fala, ao rádio, ao gravador, ao telefone, ao disco; a imagem, por sua vez, produziu
a pintura, a gravura, os quadrinhos, o cinema, a televisão, o vídeo. Os sistemas multimídia e, principalmente a
Internet, instituíram uma mudança radical nos mecanismos de informação e de comunicação, ao não fazer
distinção entre o sistema textual, o sistema sonoro e o sistema da imagem. Assistimos, no final do século XX, à
fusão-concentração de empresas de telefonia, de televio e de edição , construindo megagrupos mediáticos
integrados.
98
disciplinar experienciada nas instituições disciplinares, com linguagens análogas para
produzir corpos individuais e coletivos sujeitados a um molde, passava-se ao controle, a uma
moldagem auto-deformante, para forjar múltiplas formas ou modos de ser sujeito.
As mutações tecnológicas de informação e de comunicação configuraram o tecido
social em um espaço aberto, fluido, produto e condição da atividade de uns e de todos, para
expressar configurações e movimentos da história. A rede mundial de computadores,
respondendo aos desejos do Pentágono, foi projetada, na época da Guerra Fria, para
sobreviver a uma agressão nuclear. O desenvolvimento massivo da galáxia Internet era
iniciado em 1989, ano-chave, marcado pela queda do muro de Berlim, quando pesquisadores,
em Genebra, Suíça, criaram a World Wide Web, a rede baseada em uma concepção
hipertextual, que transformou a Internet na rede de informação e de comunicação de mais
fácil convivência. Correio eletrônico, fórum de discussão, salas de bate-papo, documentação,
informação, compras diretas, transporte e consultas de arquivos, são inúmeros os usos da
Internet, a rede rápida, fácil, interativa e de baixo custo. Para Ramonet (2001), a Internet, com
o protocolo público, uma rede indestrutível, descentralizada, propriedade de todos, fez nascer
o sonho utópico da comunidade humana harmoniosa e planetária. A rede mundial dos
computadores conquistou ares celestiais, sendo comparada, como analisa Wertheim (2001), à
versão tecnológica do espaço cristão no céu.
A globalização dos mercados, as redes imateriais e os circuitos financeiros levaram à
desregulamentação radical do mundo econômico, político e cultural. O declínio do papel do
Estado e dos serviços públicos fez triunfar a empresa, os interesses privados e a força do
mercado. Essa reengenharia do cenário social condicionou o pouco fôlego e a perda da corrida
das instituições disciplinares, o que, como adverte Cardoso Jr (2002), não foi uma vitória,
como se pode pensar precipitadamente, pois, trata-se do advento de uma nova configuração
social – a sociedade do controle. Para Deleuze (1992), o controle atua em espaços abertos, ao
contrário da disciplina, e ajusta-se a um cenário em que as fronteiras estão borradas e em que
a sociedade é pensada em âmbito global.
Para cada sociedade, como afirma Deleuze (1992, p. 216), um tipo de máquina
estabeleceu a materialidade para impulsionar sua configuração espaço-temporal e engendrar
refinados agenciamentos individuais e coletivos: as máquinas simples ou dinâmicas para a
sociedade de soberania; as máquinas energéticas para as sociedades disciplinares e, para as
sociedades de controle, as máquinas cibernéticas e os computadores. Meios eletrônicos,
dispositivos de informação e de comunicação instantânea passaram a ordenar a população em
tempos e espaços cada vez mais abertos e menos restritivos a determinados estamentos
99
sociais. Se as máquinas criadas na sociedade de normalização forjaram uma definição
artificial e objetiva da experiência espaço-temporal, o mundo configurado pelas máquinas
cibernéticas, para Passetti (2002, p.129) produz “processos de normalização, de modulação,
de modelização, de informação, que se apóiam na linguagem, na percepção, no desejo, no
movimento, etc..., e que passam por micro-agenciamentos”.
A subjetividade moderna constituída pela moldagem de estratégias de poder que, para
Cardoso Jr (2002, p.195), colocava sua centralidade no dispositivo de sexualidade, passa a
ser, contemporaneamente, uma subjetividade determinada por inúmeros fluxos que
atravessam os campos de subjetivação: “fluxos de consumo, de arte, científicos, redes de
computadores, opiniões [...]”. Os fluxos tecnológicos são centrais para a sociedade de
controle, pois operam como meios de extensão, de virtualização do corpo humano. Como
aponta Cardoso Jr ,
[...] eles não se contentam em fornecer ao corpo grandes braços virtuais (uma
ferramenta, uma máquina) ou um cérebro ampliado (computadores), pois os fluxos
produzem, os fluxos penetram nosso corpo, modificando-o, já que extrapolam
nossas relações psicomotoras naturais (2002, p.195).
A participação nas redes e nos fluxos forjados pelas redes digitais de informação e de
comunicação potencializa a vigilância contínua. O panóptico, que havia possibilitado ao poder
disciplinar manter juntos agrupamentos humanos, gerenciando-os e fazendo-os produzir,
cedeu lugar para o sinóptico, como nomeia Mathiesen (1997 apud Bauman, 2000, p.77),
invertendo a lógica de visibilidade para que “em vez de poucos vigiarem muitos, agora são
muitos que vigiam poucos”. Por meio dos fluxos e das redes tecnológicas, o controle opera
como um dispositivo que é indiferente ao espaço extensivo. Para Deleuze (1992, p.216), o
controle incessante em meio aberto pode tornar os confinamentos mais duros em um passado
delicioso e benevolente.
Para Bauman (2000), a sociedade disciplinar buscava como dispositivo arquitetônico
do panóptico, uma guerra contra o privado para dar visibilidade ao maior número possível dos
atos do corpo individual e coletivo; com o sinóptico, assumiu uma outra dimensão, pois
[...] os grandes e famosos (grandes porque famosos) não mais aspiram ao poder
pastoral e por isso não oferecem mais instruções em matéria de virtudes públicas; o
último serviço que podem prestar ao antigo rebanho é expor suas próprias vidas para
que os outros admirem e também para que desejem e tentem imitá-las. [...] O
sinóptico reflete o ato de desaparecimento do público, a invasão da esfera pública
pela privada, sua conquista, ocupação paulatina mas inexorável colonização
(BAUMAN, 2000, p.77) [grifo do autor].
100
Do panóptico que forçava uma localização no tempo e no espaço para que a vigilância
hierárquica pudesse disciplinarmente operar, passa-se ao sinóptico, uma coerção que seduz as
pessoas para a vigilância. A interatividade das redes edificadas pelas tecnologias digitais de
informação e de comunicação torna as estratégias panópticas factíveis e atraentes. As
contemporâneas redes midiáticas e informáticas operam como formas atualizadas do
panóptico, e a interatividade das redes computacionais torna corpos individuais e coletivos
informaticamente amarrados e controlados.
O avanço das redes de comunicação e de informação impulsionou o movimento que
suavizava a distinção entre o dentro e o fora, redefinindo as relações entre público e privado,
consolidando a dinâmica da sociedade de controle. Os espaços públicos e exteriores, lugares
próprios para a política, palcos em que a ação do indivíduo era exposta para o reconhecimento
dos outros, deslocaram-se para os espaços privados. O que era anteriormente público tornou-
se privado e o que era privado passou a ser de domínio público. Como analisa Bauman (2000,
p.70), as palavras anteriormente não-pronunciadas em público tornaram-se obrigatórias nos
inúmeros programas talk-shows e nas comunidades virtuais da rede mundial de computadores:
exibir emoções, expor os mais íntimos segredos.
Inverteu-se a definição do público, e o antigo lugar da política era desativado,
transformado em território para exibição de assuntos particulares, temas que despertam a
curiosidade e conquistam o selo de interesse público. É no espetáculo que vira realidade que
as representações dominantes são reconfiguradas e a sociedade perde a solidez de muitas de
suas instituições.
A família e a escola, que anteriormente exerciam, pela educação, o instrumento
moderno de criação dos códigos de escolha, perderam importância no cenário social
estruturado pelo violento processo do desenvolvimento capitalista que, ao mesmo tempo em
que destruiu habilidades tradicionais de produção econômica e cultural, alterou as condições
de empregabilidade, colocando o mundo sob a égide do Espaço das Mercadorias. Inovações
técnicas e organizacionais, como produto e processo de uma crise de representação e de
reajuste radical do sentido do tempo e do espaço na vida econômica, política e cultural,
substituíram as certezas pela insegurança de eventos e de seus efeitos. O tempo acelerado e o
espaço planetarizado do mercado tornaram o mundo um lugar cada vez mais fantasmagórico,
termo cunhado por Giddens (1991, p.27), para evidenciar que, cada vez mais, o que estrutura
o local não é simplesmente o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as
relações distanciadas que determinam sua natureza. Para Veiga-Neto (2002b, p.216),
101
assistimos a entrada na escola de outros saberes, outras práticas, outras realidades que vêm de
contextos distantes e estranhos. O tempo e o espaço escolares abrem-se a fantasmagoria.
A pouca receptividade de dois principais eixos da vida humana – amor e trabalho –
enfraquece os rituais de entrada no mundo adulto e afrouxa as redes de apoio social. Com a
sensação de que a sociedade não precisa mais de muitos de seus atores, estamentos sociais
tentam viver sem acreditar no futuro, capturados por redes de participação e por poderosos
aparatos de controle flexíveis e modulados. O homem contemporâneo desprovido de
propósitos coletivos para o todo social, passa a viver a promessa iluminista de liberdade
humana, que colocou na mão do homem a possibilidade de construção de um outro cenário
social, como a liberdade de cada um dos seus membros, no individualismo e no narcisismo. O
aumento da liberdade individual, como alerta Bauman (2000), coincide com o aumento da
impotência coletiva na medida em que a ponte entre a vida pública e privada foi destruída ou
não chegou ser a construída.
Saem a família e a escola e entra o espetáculo das redes mediáticas e seus dispositivos
integrados e difusos para produzir e regular o discurso e a opinião pública, estabelecendo um
monopólio para o fazer e o pensar. O espetáculo destrói formas de ação coletiva e, ao mesmo
tempo, impõe uma nova sociabilidade de massa. Faça seu blog
77
, entre nas salas de bate-papo
virtuais, participe da rede de relacionamentos na comunidade virtual do Orkut
78
, circule pelos
espaços completamente desterritorializados
79
, pois, como discute Bauman (2000, p. 77),
“ocultar a vida pessoal à vigilância pública já não é do ‘interesse público’”.
Solicitado a experienciar práticas de autocompreensão e de auto-expressão, o homem
contemporâneo é permanentemente convocado a participar do espetáculo, uma vez que a
sociedade de controle realiza-se nos espaços de comunicação. Para Cardoso Jr. (2002, p.196),
o controle invade os espaços entre eu e eu mesmo, penetra e descobre formas de aprender a
captar forças e a criar modos de vida.
A escola entra em crise com a crise da sociedade disciplinar, crise desencadeada pelas
tecnologias de controle e coerção social que a projetou. A escola ajusta seu tempo e espaço,
77
Blog é uma página da Internet composta por pagrafos dispostos em ordem alfabética, funcionando, muitas
vezes, como uma versão eletrônica e pública dos velhos diários pessoais.
78
Orkut é uma comunidade virtual criada com o objetivo de ajudar seus membros a criar amizades e
relacionamentos. 75% dos participantes dessa comunidade virtual são brasileiros.
79
O interesse pela vida pessoal de candidatos a vagas tem feito empresas e especialistas em recursos humanos
a consultarem o Orkut e os Blogs para desvendar a personalidade dos candidatos. Em reportagem no caderno de
empregos de um jornal, os usuários dos espaços de relacionamento da rede mundial de computadores são
orientados: escolha as comunidades de que quer participar, seja sucinto em suas descrições e comentários, não
coloque fotos provocantes, retire de sua página pessoal comentários inoportunos deixados por visitantes, não
emita comentários preconceituosos (LISBOA, 2005).
102
refina suas tecnologias de poder para, em sintonia com a fábrica-empresa global, com o
cidadão, o empregado e o consumidor do mundo, forjar o aluno para o mundo! Os muros
reais e imagináveis que configuram a escola moderna, começam a se estruturar para a nova
corrida e para conquista de um novo fôlego, para que o descontrole da máquina escola na
sociedade de controle possa ser superado. As redes digitais de informação e de comunicação
presentes no espaço e no tempo escolares, a possibilidade de comunicação com o mundo de
forma quase que instantânea, os ambientes de educação a distância e de formação continuada
para professores, mostram a escola, a máquina instituidora da Modernidade, ajustando-se e
assumindo novas configurações para responder às demandas do mundo contemporâneo.
Práticas coercitivas de controle e gerenciamento do corpo individual e coletivo foram
possibilitadas por um processo continuado, minucioso e lento de socialização e de
escolarização, que produziu e reproduziu sujeitos, que, por sua vez, permitiram a construção
de respostas para os desafios, de resistências e de adesões. A sociedade que se desloca da
lógica disciplinar para a de controle configura a escola como um tempo e um espaço
especiais para a produção de signos, para a apropriação e tradução das novas ferramentas
tecnológicas disponibilizadas no contemporâneo cenário econômico, político, cultural e
social.
Com as palavras de Alvarez-Uría, inicio a construção do capítulo em que ajusto meu
olhar para os processos de socialização e de escolarização que cada tempo-espaço produziu e
foi por ele produzido, pois,
[...] o papel dos centros de ensino, nesse novo marco, está ainda para ser
determinado. Para nós, corresponde manter viva a memória histórica dos avanços e
retrocessos, refletir e ensaiar novas vias alternativas. Repensar a escola no marco da
modernidade pode nos ajudar a encarar o futuro com maior lucidez (2002, p.129).
103
TEMPO E ESPAÇO TECENDO O TERCEIRO
PERSONAGEM - A ESCOLA
Imagine um grupo de viajantes do tempo de um século anterior, entre eles um
grupo de cirurgiões e outro de professores primários, cada qual ansioso para ver o
quanto as coisas mudaram em sua profissão em cem anos ou mais no futuro.
Imagine o espanto dos cirurgiões entrando numa sala de operações de um hospital
moderno. Embora pudessem entender que algum tipo de operação estava ocorrendo
e pudessem até mesmo ser capaz de identificar o órgão-alvo, na maioria dos casos
seriam incapazes de imaginar o que o cirurgião estava tentando fazer ou qual a
finalidade dos muitos aparelhos estranhos que ele e sua equipe cirúrgica estavam
utilizando. Os rituais de anti-sepsia e anestesia, os aparelhos eletrônicos com seus
sinais de alarme e orientação e até mesmo as intensas luzes, tão familiares às platéias
de televisão, seriam completamente estranhos para eles.
Os professores viajantes do tempo responderiam de uma forma muito diferente a
uma sala de aula de primeiro grau moderna. Eles poderiam sentir-se intrigados com
relação a alguns poucos objetos estranhos. Poderiam perceber que algumas técnicas-
padrão mudaram – e provavelmente discordariam entre si quanto a se as mudanças
que observaram foram para melhor ou pior -, mas perceberiam plenamente a
finalidade da maior parte do que se estava tentando fazer e poderiam, com bastante
facilidade, assumir a classe (PAPERT, 1994, p.9).
A epígrafe que escolho para apresentar o terceiro personagem da trama investigativa a
que se propõe esta tese – a escola - abre o primeiro capítulo de uma obra que, na década de
90, tornou-se referência para educadores que começavam a aventurar-se pelos caminhos da
Informática na Educação, época em que se discutiam os aspectos relacionados à chegada dos
computadores e a instrumentalização necessária para naturalizá-los e familiarizá-los com o
tempo e o espaço da educação escolarizada. Seu autor, Seymour Papert
80
, um matemático sul-
africano reconhecido mundialmente como uma autoridade em Informática Educativa,
pretendia, com essa parábola, oferecer uma medida rudimentar da desigualdade tecnológica
em diferentes áreas da atividade humana.
Papert, ao tematizar sobre o descompasso tecnológico em instituições educativas,
analisava a escola dentro de uma linha evolutiva e, ao entendê-la como o resultado de uma
evolução, prescrevia a inserção do computador para atualizá-la e, assim, marcar a mais nova e
melhor configuração que a instituição mais diretamente responsável pela educação formal
80
A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática e LOGO: Computadores e Educação
– foram algumas das obras de Papert que construíram os primeiros movimentos para a apropriação pedagógica
do estranho e poderoso artefato tecnológico, o computador.
104
deveria assumir em sua escala evolutiva. Ao lamentar tal descompasso, o autor propunha a
atualização da escola por meio de inovadoras alternativas metodológicas e tecnológicas. O
computador passava a ser o instrumento necessário e capaz de adequar a educação ao que se
supunha ser as demandas de um contexto sociocultural e econômico projetado pela nomeada
Sociedade da Informação. Com a Informática no tempo e no espaço escolar, implementar-se-
ia a própria expressão do progresso, “a evolução inexorável para uma sociedade cada vez
melhor, a mudança identificada com a própria dinâmica social, [...] direcionada para a
harmonia e o bem-estar da sociedade” (MARZOLA, 1995).
A forma natural e familiar utilizada pelo autor da parábola para configurar a escola é
comumente pensada por aqueles envolvidos no processo educativo institucionalizado que
desconsideram o caráter histórico do processo de escolarização. As configurações espaço-
temporais experienciadas pela humanidade instalaram-se, desenvolveram-se e tornaram-se
hegemônicas ao produzirem e ao serem produzidas por diferentes processos educativos e por
diferenciadas práticas de socialização entre os indivíduos.
As mutações das técnicas de produção permitiram ao homem produzir, transformar e
manipular objetos. Os sistemas simbólicos oportunizaram o gerenciamento do contexto
sociopolítico e econômico que, por sua vez, impulsionou a invenção de novas técnicas para o
aprimoramento da produção e do domínio da natureza. As tecnologias de poder operaram para
determinar a conduta dos outros e de si. Foram todos esses acontecimentos que, entrelaçados,
produziram e foram produzidos por um conjunto de saberes que permitiram ao homem, como
afirma Giddens (2002, p.104), controlar o mundo natural e social.
O controle humano do mundo natural e social foi possibilitado e impulsionado por
meio de longos processos de aprendizagem, processos que oportunizaram diferentes
percepções de tempo e de espaço, que estabeleceram o comportamento aceitável para o
homem e para os grupos que o cercavam. Os processos de aprendizagem e as formas de
produzir, de regular e de fazer circular saberes assumiram diferentes formatos ao longo do
processo de secularização das práticas educativas.
Processos socializadores e civilizatórios, que emergiram impulsionados por
fenômenos urbanos desencadeados pela industrialização, transformaram a ação educativa, até
então fortemente tutelada pelo pecado e pela salvação eterna, em uma prática associada à
escolarização. Privilegiada por destacar competências, por desenvolver capacidades, por
reformar moralmente os indivíduos, a invenção de um modelo de processo educativo - a
escola moderna – passava a construir um tempo e um espaço institucionalizados para as
práticas educativas, que se diferenciavam das vinculadas à família e ao mundo do trabalho.
105
A escola, como analisam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.68), nem sempre existiu, o
que aponta para a necessidade de determinar as condições históricas de sua existência no
interior da formação social da civilização ocidental. Cruzar a configurações espaço-temporais
com as formas de educação experienciadas pela humanidade é o que proponho para este
capítulo - olhar a escola fora do enquadramento evolutivo, desconstruir a história de uma
instituição tipicamente moderna, que tem sua emergência marcada por um conjunto de
acontecimentos imbricados com configurações espaço-temporais.
Com um olhar retrospectivo, percorro as camadas que construíram a configuração de
uma escolarização pública, gratuita e obrigatória, não para demonizar ou endeusar a escola,
não para olhá-la com os óculos da moralidade ou do saudosismo, mas para dar visibilidade às
práticas por ela mediada, que possibilitaram normalizar o espaço urbano, forjar o mundo e o
homem modernos e que, contemporaneamente, e de forma imanente, produzem e são
produzidos por um tempo que se presentifica e por um espaço que se planetariza. Sem a
idealização romântica, desloco-me pelo passado para ajudar a decifrar o presente, para,
seguindo as palavras de Varela e Alvarez-Uría (1992, p.68) rastrear continuidades, determinar
os processos de montagem das peças mestras, seus engates, que possibilitem compreender a
instituição educacional moderna como uma maquinaria escolar
81
.
A instituição que foi atual no tempo e no espaço de sua emergência forjou as
condições de possibilidade para sua configuração no tempo-espaço contemporâneo. Essa
positividade da escola impulsionou-me na construção deste capítulo, não para encontrar a
melhor ou a mais a avançada forma de escolarização, não para apontar seus instrumentos e
dispositivos signatários do progresso, mas para marcar que as configurações por ela
assumidas corresponderam a determinadas condições históricas de possibilidade, a
concepções de racionalidade sociocultural, a construções sociais de tempo e de espaço.
Seguindo pelos deslocamentos de concepções espaços-temporais, apresentados no
capítulo anterior, recuo no tempo e no espaço para percorrer os diferentes processos
educativos experienciados pela humanidade, recomponho os fragmentos de uma história que
não tem seu início marcado pela emergência da escola, mas que se encontra atrelada a uma
diversidade de movimentos de socialização que deita suas raízes na própria história da
humanidade. Retorno ao passado mais próximo e ao presente, para problematizar os
elementos que conformam o edifício escolar – a escolarização em modalidades de ensino, a
81
Termo cunhado por Varela e Alvarez-Uría (1992), eleito como título para ensaio escrito por esses autores
em que, aplicando um método genealógico, buscam dar visibilidade ao histórico processo que instituiu a escola
moderna para conhecer suas peças e o funcionamento de suas engrenagens.
106
organização por série ou por ciclo, a divisão por critérios etários e/ou aproveitamento - para,
contemporaneamente, olhar os modernos dispositivos tecnológicos que, ao mesmo tempo em
que se ajustam às funções sociais a que a escola passa a responder, forjam novas práticas
disciplinares e educativas para além dos limites do território escolar.
PARA O ESPAÇO TERRA E O TEMPO EM REPOUSO - OS RITOS, A PAIDÉIA, A
DIDÁTICA, OS MOSTEIROS, AS CORPORAÇÕES
Com o raiar da humanidade, emergiu um processo educativo informal e altamente
integrado às práticas de sobrevivência – alimentação, abrigo e defesa. O Homo sapiens
destacava-se por sua capacidade de criar, conservar e perpetuar culturas, diferenciando-se dos
demais seres que habitavam o espaço Terra. Padrões cognitivos e comportamentos sociais
eram assimilados, e o homem tornava-se competente para gerir sua sobrevivência.
Os agrupamentos humanos normalmente isolados, organizados socialmente com
relativa simplicidade e homogeneidade, compartilhavam conhecimentos, crenças e valores
para responder aos desafios postos pelo ambiente. Mesmo grupos sociais especializados -
caçadores, agricultores, artesãos - integravam-se e reforçavam-se mutuamente,
compartilhando saberes e técnicas para a realização de tarefas rotineiras. A aprendizagem dos
saberes que necessitavam ser transmitidos, pouco especializados e vinculados a determinadas
forma de viver, dava-se pela via da experimentação.
No longo período que se estendeu até o final do século XVI, a similitude
desempenhava o papel de construtor na cultura ocidental. A forma de produzir conhecimento
se alicerçava no reconhecimento de semelhanças, no estabelecimento de afinidades entre
coisas e fenômenos, fazendo emergir um conjunto de comparações e de referências. Laços
profundos e misteriosos relacionavam o homem aos demais seres do universo, uma ordem
mística, divina, transcendental que, como analisa Varela (2002), tornava próximas e
solidárias, coisas e fenômenos os mais diversos. O homem era o microcosmo regido pelas
mesmas leis que regiam a natureza, integrado, sem diferenciar-se do espaço Terra.
A sociedade que emergia no tempo em repouso do espaço Terra organizava-se em
torno de poucas instituições, e a escola, como uma instituição, não existia, pois era
desnecessária. No grupo familiar e na comunidade local, o processo educativo era
desencadeado, e a transmissão de um conjunto de saberes era garantida pela atuação do
indivíduo no grupo social. Como analisa Xavier (2003), as crianças, por meio das lendas, das
107
crenças e da interação com os membros mais velhos do grupo social, aprendiam a língua, os
costumes, a religião, as normas da comunidade, as técnicas de sobrevivência, os papéis
masculinos e femininos, as regras do mundo.
O papel educativo do rito era de máxima importância para manutenção e integração do
homem à sociedade. Suportar a dor, a fome e as inúmeras formas de privação, revelava o
domínio de saberes e práticas necessárias à sobrevivência no mundo adulto. O processo
educativo ritualizado estabelecia as condições que possibilitavam a coexistência da magia, da
adivinhação e da erudição como formas de socialização nas sociedades de soberania durante
um longo período da história da sociedade ocidental.
As transmissões cíclicas, o incessante movimento de recomeço retido na roda das
gerações, imprimiam sua função mnemônica, estabelecendo uma estratégia de memória que
estruturava e organizava o pensamento mágico. A correspondência do tempo individual com o
tempo social e a forma de percepção do mundo e da vida humana engendravam um raciocínio
por situação ou funcionalidade, uma racionalidade ajustada às condições de vida e ao
aprendizado ritualizado.
Na perspectiva de uma análise marxista, como a realizada por Saviani (1991), quando
o homem superava a fase primitiva da coleta e a terra passava a ser o meio de produção por
excelência, pela agricultura e pela domesticação de animais, hierarquizava-se o cenário social
sulcado pela classe de proprietários e pela maioria dos não-proprietários. A fixação do homem
à terra dava origem às classes sociais e impulsionava a emergência de processos educativos
mais formalizados e diferenciados.
A estrutura hierarquizada da sociedade que se estabelecia já não comportava um
processo educativo informal. A aprendizagem do sistema simbólico estruturado pela escrita e
a necessidade de formar novos escribas sacerdotais colocaram o primeiro sistema de ensino
formal na mão da casta religiosa. O emergente sistema educativo não nascia universal e
obrigatório, uma vez que as possibilidades da escola formal eram reservadas aos indivíduos
das classes que detinham o poder.
Era para a classe social, como analisa Saviani (1991), que poderia viver para o ócio,
que não precisava trabalhar para viver, que o processo educativo se destinava. A escola –
lugar do ócio, em grego – reunia os ociosos, os jovens aristocratas que dispunham de tempo
livre para se dedicar a tarefas escolares - as tarefas do ócio - enquanto a maioria do povo
educava-se trabalhando e para o trabalho, para o seu sustento e de seu senhor.
108
Fendler (2000), ao realizar a genealogia
82
do sujeito educado, revela como a
possibilidade de ensinar nem sempre fora assumida como certa na educabilidade humana. O
debate educativo que teve como palco o tempo e o espaço gregos encerrava discussões
acaloradas que confrontavam a paidéia
83
e a didática sobre uma questão central: a virtude
pode ser ensinada? Os princípios da paidéia seriam preservados pela acumulação natural da
virtude ou, por meio da didática, poder-se-ia ensinar a virtude?
As diferentes tecnologias da paidéia e da didática apoiavam-se em concepções
diferenciadas sobre a educabilidade do sujeito. Para a paidéia, a possibilidade de ser educado
vinha determinada no nascimento, por isso não se encontrava ao alcance da maioria das
pessoas. A natureza humana - holística e completa – era determinada, por direito, ao nascer, o
que desobrigava a necessidade de uma intervenção para a formação do jovem aristocrata
grego.
O desenvolvimento da virtude e a formação moral eram cultivados pelo diálogo, pela
prática musical e pelas atividades atléticas. Como o próprio governo, o governo de si, era
muito valorizado pelos gregos, a paidéia era tomada como um ethos, a atitude filosófica e
cotidiana em permanente reativação, para fazer digno e bom tanto o governado quanto o
governante. Seu objetivo não era ensinar ofícios, era treinar a liberdade e a nobreza. Pela
paidéia, concebia-se uma ação educativa que consistia em extrair e deixar florescer as
sementes alojadas dentro de cada jovem aristocrata grego. Na análise de Fendler (2000), o
conhecimento e a virtude formavam parte da natureza humana, uma totalidade não-ensinada,
mas sim ativamente cultivada.
Para a didática, a incompleta e imperfeita natureza humana exigia a intervenção de um
mestre para a construção de virtudes. A possibilidade de ser educado não vinha determinada
no nascimento. A didática era a arte de completar, de suprir a falta pela ensinabilidade da
virtude. A tradição familiar da educação começava, gradualmente, a ceder o lugar para as
tecnologias mais públicas da didática. A construção do processo educativo secular e
racionalista assentado na livre investigação começava a ser desenhado e a imprimir um
importante deslocamento na história de educação da humanidade.
A conquista da Grécia conduziu a helenização de Roma. O mundo civilizado era
abarcado por um conceito de cultura universal que transcendia qualquer limitação étnica ou
82
O objetivo da genealogia é problematizar as suposições comuns para dar visibilidade às relações de poder
existentes. A investigação desencadeada por Fendler examina as construções sociais para a educabilidade do
sujeito, analisando as subjetividades do sujeito educado como efeito de relações de poder (FENDLER, 2000).
83
Processo de educação em sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana. Paidéia era o
ideal alimentado pelos valores da cultura clássica transmitida pela educação: a cultura do espírito – idéias,
valores, símbolos - influenciada pelos processos técnicos da vida civilizada.
109
territorial. O modelo educativo grego passava a ser assumido para a formação do homem
universal. Suas etapas acompanhavam o processo de amadurecimento humano: o lar, do
nascimento aos sete anos; a escola elementar, dos sete aos quatorze anos; a escola
gramatical, dos quatorze aos dezoito anos; o serviço militar e o ensino superior – a Retórica
ou a Filosofia -, a partir dos vinte e um anos, de acordo com as possibilidades financeiras da
família.
A crise econômica
84
alterava radicalmente a organização político-social do Império
Romano. O latifúndio feudal tornava-se a unidade auto-suficiente da produção. Com o campo
mais seguro que a cidade, o processo de ruralização econômica e administrativa preparava o
mundo ocidental para o surgimento do feudalismo.
A ruralização da economia levou a Igreja ao campo. Transformado em senhores
feudais, o clero passava a ser o detentor de terras e do monopólio cultural, pois eram,
principalmente, os membros do alto clero os que sabiam ler e escrever. A Igreja passava a
participar da administração pública e a conquistar grande importância social. O clero
alfabetizado monopolizava a interpretação da realidade social e projetava um homem com um
destino espiritual, que necessitava ser preparado para a salvação.
A desintegração política estabelecida no mundo medieval levou à quebra da
comunicação e, conseqüentemente, do vigor social. A educação perdia seu sentido
significativo e deixava de ser uma real preocupação da sociedade. Como a única instituição a
sobreviver à queda do Império Romano, a Igreja capacitava-se a dar continuidade ao processo
educativo, mas dedicava-se, principalmente, à preparação do próprio clero e não à formação
de profissões seculares. O monopólio cultural da Igreja, somado à intensa religiosidade,
cristalizou a sociedade teocrática.
Protegidos das invasões bárbaras, os mosteiros tornaram-se os centros culturais que
preservaram os tesouros da Antigüidade. Os monges mais instruídos escreviam versos,
tratados de teologia e crônicas de história e descreviam pestes, passagem de cometas, entre
outros, escritos em latim prolixo ilustrado por ricas iluminuras
85
e por citações antigas. Diante
da realidade medieval e da desintegração do sistema educacional, a tarefa de ensinar a ler e
escrever, anteriormente de responsabilidade das escolas seculares, era assumida pelas escolas
monásticas, uma vez que a capacidade de ler e de escrever era exigida para o cumprimento do
lema do mosteiro– orar e laborar.
84
A base escravocrata do sistema econômico do Império Romano era abalada pela diminuição do número de
escravos e pela divisão dos latifúndios em pequenas propriedades. A queda na produção diminuía o número de
impostos arrecadados, o que dificultava o gerenciamento dos altos custos da administração pública romana.
85
Iluminuras eram as pinturas que ilustravam os manuscritos medievais.
110
A filosofia e a arquitetura refletiam a insegurança e a religiosidade do mundo feudal.
O espaço arquitetônico medieval era marcado por linhas horizontais e pela simplicidade
ornamental do exterior e do interior dos grandes e maciços prédios. Grossas paredes e
número reduzido de janelas condicionavam o frio e o escuro arquitetônico, que ajudavam a
construir um sentido de proteção. O espaço adequava-se aos princípios do destacado filósofo
medieval Santo Agostinho, um pensador que refletia as precariedades da Europa medieval –
guerras, invasões, decadência do Império Romano. Inspirando-se em Platão, Santo Agostinho
definia o homem como um ser corrompido, herdeiro do pecado original. Em oposição a um
Deus espiritual e perfeito, existiam os homens imperfeitos, feitos de carne, impuros e mortais.
A onisciência de Deus – em seu conhecimento total do presente, passado e futuro – fazia do
homem um ser predestinado seja à salvação, seja à condenação. A fé precedia a razão, restava
ao homem a obediência incondicional ao clero.
Nesse ambiente de desintegração sociopolítica, a instrução era valorizada em função
de sua utilidade instrumental. O homem medieval era, antes de tudo, um servidor de Deus,
preso ao lugar de origem e à profissão patrilinear. O processo educativo destinado às classes
baixas limitava-se à instrução necessária para o exercício da profissão; para as classes
dedicadas à administração secular e eclesiástica, o reconhecido direito à educação elementar
nas escolas monásticas.
A falta de uma formação intelectual colocava a nobreza cada vez mais dependente do
clero. A Igreja era o elo indispensável na ordem social feudal, pois não exercia somente as
funções religiosas. Por ser a classe social alfabetizada, o clero era indispensável, também,
para as funções seculares. A concepção de educação projetada pela cultura grego-romana
mantinha-se preservada nas mãos do clero ao longo da Idade Média: Gramática, para saber
ler e escrever corretamente; Dialética, para saber raciocinar, e Retórica, para saber compor
discursos e convencer.
Apesar de o processo educativo encontrar-se profundamente vinculado à Igreja na
sociedade feudal, havia outros sistemas educativos, embora de alcance bastante reduzido. As
cortes européias mantinham instituições às quais a nobreza e os altos funcionários da corte
enviavam seus filhos para prepará-los para a assumir as funções atuariais, fiscais e de
magistrados. A escola de cavalaria era outra instituição educativa medieval, porém menos
formal. Dedicava-se à preparação do nobre feudal, um guerreiro antes de tudo, para o dever e
o privilégio de lutar. Apoiada e sancionada pela Igreja, a ordem dos cavaleiros contribuía para
manter ordem na sociedade feudal. Para Giles (1987, p.73), a grande vantagem de tal
formação consistia em fomentar, no jovem nobre, o sentido de obrigação social e de
111
responsabilidade moral, o que servia de freio à exploração social, à pilhagem e à destruição
desenfreada, práticas comuns na época.
Com o fim das ondas invasoras, cresciam a segurança e a circulação de mercadorias. A
diminuição dos conflitos provocava um aumento na população, o que estimulava o consumo
de produtos para alimentação, vestuário e habitação. Técnicas de cultivo
86
aperfeiçoaram a
produção e melhoraram a alimentação e as condições de saúde, intensificando o crescimento
demográfico. A população européia voltava a agrupar-se em povoados que, impulsionados
pelo incentivo comercial, se transformavam em cidades.
Uma nova dinâmica social começava a colocar em xeque o sistema de produção servil
e a impulsionar sua substituição pelo regime de trabalho assalariado. O descompasso entre as
necessidades crescentes da nobreza feudal e a estrutura de produção assentada no trabalho
servil tornava-se cada vez mais evidente. Crescia o número de senhores feudais, parcela não-
produtiva; em contrapartida, aumentavam as pesadas obrigações servis, causando a fuga
generalizada de servos dos feudos.
O deslocamento do sistema feudal para o pré-capitalismo
87
gerava a marginalização
social. Camadas servis e senhoriais expulsas dos feudos tornaram-se mendigos e bandidos. A
Igreja interveio com a Trégua de Deus
88
e, para canalizar a vitalidade guerreira e barrar a
ofensiva muçulmana, nasciam as Cruzadas. Com a Guerra Santa, era estabelecida a primeira
grande expansão territorial depois do recuo medieval, configurando-se com a válvula de
escape para as tensões sociais.
Com as Cruzadas, a Europa entrava em contato com novos processos e técnicas, mas,
principalmente, com a riqueza da cultura grega conservada pela cultura islâmica: o compasso,
o relógio à base de pêndulo, a manufatura do papel, um sistema de anotação numérica mais
eficiente. As cruzadas reabriram o mar Mediterrâneo aos europeus, e os saques colocaram em
circulação um grande número de moedas. Eram dinamizadas as relações comerciais, fazendo
surgir novas práticas – letras de câmbio, cheque e contabilidade. Os interesses materiais
86
O arado munido de rodas e de uma lâmina de ferro revolvia melhor a terra e aumentava a possibilidade de
germinação das sementes. A coleira acolchoada possibilitava aos cavalos a tração de cargas mais pesadas.
Ampliava-se o uso de moinhos d’água e de vento, o que aumentou a produção de farinha. A rotação de culturas,
o uso de estercos e o cultivo de forragens recuperavam mais rapidamente o solo. A maior segurança ativava o
comércio e possibilitava que parte da produção que excedia a do envio compulsório ao senhor feudal fosse
comercializada. Havia um interesse em aprimorar as técnicas de cultivo para aumentar o excedente e, com isso,
aumentar seus recursos e melhorar as condições de vida servil.
87
A crise do feudalismo, conhecida como Baixa Idade Média, nos séculos XII – XV, estabelece as condições
de possibilidade para a emergência do capitalismo, na verdade, do pré-capitalismo por colocar em ação no
cenário social uma produção para o mercado, as trocas monetárias e o espírito de lucro. Faltava, apenas, um
importante elemento: a relação assalariada.
88
Trégua de Deus foi um movimento desencadeado pela Igreja com o objetivo de combater, ou pelo menos
minimizar, o espírito de guerrear que imperava no mundo medieval.
112
passaram a superar os limites da fé, e as sementes do capitalismo eram lançadas no
Mediterrâneo, imputando um sentido progressista para a expansão comercial. Começava a
florescer o pré-capitalismo, um sistema econômico em que o crescimento da população
deixava de ser um problema e passava a ser uma solução – mais consumo, mais produção,
mais mercado, mais mão-de-obra.
A formação técnico-profissional era entregue às corporações de ofício, associações
que agrupavam homens comprometidos com determinada profissão ou arte. As corporações
de ofício regulamentavam e protegiam os interesses de seus membros, e estabeleciam normas
de capacitação e de produção. Eram as corporações de ofício que passavam a dominar a
economia e a política dos centros urbanos, fixando os salários dos trabalhadores temporários,
bem como o valor da diária ou da peça produzida.
Nas corporações de ofício, buscava-se a capacitação necessária ao exercício de uma
profissão. O processo educativo implicava um sistema de transmissão de saber organizado
segundo a hierarquia da oficina. Como analisam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.86), a oficina
era o local de trabalho, era lugar de educação, de instrução e de moradia. Os aprendizes
viviam misturados com os adultos, participavam ativamente das atividades da oficina
89
,
aprendiam o ofício em contato com a realidade que os rodeava, uma aprendizagem que não
deixava de ter dificuldades e nem carecia de dureza e penalidades.
Por meio de um contrato formal, o mestre da corporação de ofício assumia a
responsabilidade pela alimentação, vestuário, alojamento e instrução elementar da escrita, da
leitura, da aritmética e da religião do jovem aprendiz, que estava incumbido de aprender uma
profissão e de auxiliar o mestre. Passado o período de aprendizagem, o jovem deixava a tutela
do mestre, podendo procurar emprego em um outro ateliê ou oficina. Para chegar a mestre,
com o passar do tempo, o artesão deveria preencher certas condições, como pagar direitos, ter
filiação burguesa e legítima, além de realizar obras e submetê-las ao julgamento do corpo de
mestres.
O desenvolvimento das cidades, o crescente número de estudantes provenientes da
burguesia e a força do movimento das corporações contribuíram para o surgimento de um
novo processo educativo. Sob a responsabilidade das autoridades municipais e tutelado pela
exigência dos pais dos estudantes, o processo educativo passava a atender às necessidades e
aos interesses da crescente classe burguesa. Expandindo o programa de estudos, com a
89
Os aprendizes participavam das lutas e reivindicações do mestre, tomavam parte em seus debates, iam à
taberna e ao cabaré, tinham seu lugar em festas e celebrações, além disso, é claro, aprendiam uma técnica, um
ofício durante os longos anos de trabalhos em cooperação (VARELA e ALVAREZ-URIA, 1992, p.86).
113
inserção de novos conteúdos, o processo educativo tornava-se mais relevante para atender às
novas condições econômico-sociais. Era necessário formar recursos humanos para a nova
estruturação social. Advogados, mestres e clérigos deviam preencher as necessidades da
administração civil e eclesiástica.
O crescimento populacional e a complexidade social exigiam um processo educativo
com um maior grau de sistematização e de organização. Era importante ampliar a capacidade
de saber ler e contar em um cenário socioeconômico marcado pelo progresso comercial. Foi
adotado o modelo do sistema das corporações para regularizar a instrução e proporcionar uma
formação mais sintonizada com o modo de produção que se tornava preponderante, o
comercial. Contudo, a autorização para ensinar ainda era dada pelos bispos, pois a Igreja
90
não
desejava perder sua influência.
Estimulados por burgueses, mestres e estudantes uniam-se num único agrupamento de
estudos - a universidade. Como um verdadeiro pólo da atividade intelectual, as universidades
eram a casa da liberdade, inseridas num cenário medieval altamente desconfiado e
assombrado pela heresia
91
; ali organizavam, conservavam e transmitiam o acervo de
conhecimentos. Seus freqüentadores gozavam de isenção de impostos, estavam dispensados
de serviço militar e eram submetidos a julgamentos em tribunais especiais. Essas instituições
educativas eram palco para as explicações totalmente naturalistas e racionais do universo,
colocando em xeque as pretensões das autoridades religiosas de ensinar a verdade. Era na
universidade que assuntos proibidos e suspeitos podiam ser discutidos com certa impunidade,
estabelecendo as condições de crítica e a liberdade de ensinar e de aprender. O sistema
educativo perdia um pouco de seu caráter religioso para tornar-se mais leigo.
O contexto sociopolítico projetado pela expansão comercial, como analisa Fendler
(2000, p.59), configurava o homem medieval sob o nexo ciência-teologia. Submetido à
devoção pela oração e ao desprezo às sensações físicas, preso à lealdade, à autoridade e à fiel
aceitação dos desígnios sagrados, o homem medieval encontrava-se, também, submetido ao
contato cultural com os povos do Oriente, interpelado pela ciência discutida nas
universidades, por meio da observação empírica, da experimentação, do questionamento dos
princípios assumidos, da comprovação das hipóteses racionais. Essa fratura que fortemente se
90
O processo educativo ajustava-se às necessidades da sociedade sob a tutela da Igreja. Ao Estado, competia
a direção e a supervisão dos interesses públicos, porémo lhe competia exercer nenhuma função de criatividade
intelectual ou social. Essa função competia à Igreja, pois somente a pessoa do clero tinha a formação adequada
para combinar elementos morais, éticos, sociais e espirituais para projetar o processo educativo. Como ilustra
Giles (1987, p.86), o Estado é comparável à cabeça; a ordem cavalheiresca, às mãos; os trabalhadores, aos pés, e
a Igreja sustenta e dá a forma a todo o corpo social.
91
Palavra de origem grega que significa erro, opinião diferente. Sob o guarda-chuva da heresia, eram
colocados todos os que colocavam em xeque os dogmas da Igreja.
114
inscrevia sob o homem medieval – sagrado e secular – estabeleceu as condições de
possibilidades para se pensar educação como um processo institucionalizado e secular.
De todas as instituições educativas da Antigüidade, foram as universidades
estabeleceram as condições de possibilidade para a época moderna. Essas importantes
instituições de ensino que receberam o nome de universidade por formar os mestres para
outros níveis de ensino
92
, impulsionava a emergência de homens dispostos a proclamar a
independência das autoridades civis e eclesiásticas, interferindo em assuntos públicos. Como
porta-vozes das queixas sociais junto a reis e a bispos, as universidades contribuíram para
acelerar o ritmo na sociedade medieval.
O sistema econômico fortalecia-se impulsionado por um entrelaçamento de forças:
internas, na incapacidade do sistema feudal em atender à necessidade de novas fontes de
receita para a nobreza e externas ligadas ao desenvolvimento do comércio e das cidades.
Explorados pelos nobres e cansados da aridez do trabalho, muitos lavradores estimulavam
seus filhos a aprenderem ofícios nas cidades; outros abandonavam o campo para procurar
pequenas ocupações nos centros urbanos. O comércio prosperava, e a lavoura, pela falta de
mão-de-obra, aprofundava sua decadência.
A falta de mão-de-obra servil aumentava a crise do sistema feudal. O choque entre a
cidade e o campo agravava-se com a drástica diminuição agrícola nos feudos, causando a falta
de alimentos na cidade. Como a produção urbana não era comercializada no campo pela falta
de poder aquisitivo, a solução encontrada foi a de abrir o mercado pela expansão marítima e
buscar novas rotas comerciais. A expansão marítima dos tempos modernos emergia como
uma resposta à crise da economia européia. O sistema econômico saía da etapa pré-capitalista
para entrar na fase do capitalismo comercial. O comércio começava a eclipsar a produção.
O ponto de apoio da sociedade medieval era a Igreja, e seu processo educativo fazia
parte da estrutura operativa para inculcar a cultura cristã. Era, principalmente, por meio do
processo educativo cristão que o homem realizava a união com Deus, uma união forjada no
jogo entre as universidades e os dogmas da Santa Igreja. No entanto, as sociedades européias
assistiam às disputas das universidades pela busca da autonomia intelectual, enquanto o
processo educativo cristão, imbuído de elementos defensivos, buscava manter e promover a
fé, colocando-se como o militante a serviço da Igreja.
92
O sistema universitário parisiense, dividido em três graus – bacharelado, licenciatura e mestrado –, era
assumido como modelo para outras universidades e centros de estudos. A passagem de um grau para outro era
condicionada por um sistema de seleção em que só um número mínimo de candidatos chegava ao termo, pois os
debates e os exames eram rigorosos. Os estudantes que não conseguiam o título com distinção tornavam-se
ensinantes nas escolas primárias e elementares (GILES, 1987, p.81).
115
A emergente sociedade modelada pelas crescentes urbanização
93
e comercialização
condicionava um sistema de educação cada vez mais secular e pluralista. Começava a ser
desenhado um processo educativo para superar o tempo mágico e cíclico, para romper com o
homem integrado no cosmos, sulcado pelo saber sagrado e secular. Uma educabilidade era
projetada pelo e para o homem que se civilizava para viver na sociedade dos indivíduos,
interpelado pelo modelo de organização social que ia se engendrando com o declínio da
soberania do senhor feudal e com a emergência da soberania do contrato social e da
territorialidade do Estado-Nação.
PARA O ESPAÇO TERRITÓRIO E O TEMPO DA VELOCIDADE -
A ESCOLA DO HARDWARE
Brilhantes descobertas e invenções tornavam evidente que o homem pós-feudalismo
estava empenhado na renovação de idéias e instituições, ampliando os limites do
conhecimento geográfico e do próprio homem sobre o mundo
94
. O homem começava a
desacreditar muitas de suas crenças, fazendo renascer sua imaginação e o desejo por altos
empreendimentos. Como analisa Eby (1976, p.1 e 2), a concha do medievalismo, que durante
tão longo tempo encerrara e cerceara a inteligência humana, estava sendo quebrada para que,
completamente despedaçada, possibilitasse a emergência de uma moderna civilização.
Passada a crise de retração do século XIV, provocada pela seca, fome, peste e guerras,
a Europa retomava o crescimento econômico iniciado pelas Cruzadas. Em meados do século
XV, uma espécie de camisa-de-força continha a expansão econômica pela inadequação de
dois sistemas antagônicos: o feudal – no campo – e o capitalista – na cidade.
O regime de trabalho servil nos feudos estagnava a produção agrícola, que se tornara
insuficiente para abastecer os centros urbanos. A produção artesanal urbana não encontrava
93
As cidades cresciam sem planejamento. Pelas ruas tortuosas, eram atirados detritos e, por meio de valas,
eram levados aos limites das cidades e acumulados à beira dos muros, formando focos de epidemias. A umidade
e a falta de higiene contribuíram para a disseminação da Peste Negra, causada por um vírus oriental em 1348 e
que dizimou grande parte da população européia.
94
A criação de novas técnicas de exploração agrícola e mineral impulsionava a economia monetária e
comercial; a difusão do uso de armas de fogo que levava ao declínio da cavalaria; a descoberta do processo de
fabricação do papel que substituía os pergaminhos (os caros e de fornecimento incerto); novos tipos de tintas,
tipos móveis e facilidade de acesso ao papel estabeleciam as condições para a invenção da imprensa; o
desenvolvimento da matemática, da geografia, da cartografia lançava o homem à exploração de novos mundos e
estimulava a observação, a sistematização dos registros. Um conjunto de saberes começava a mudar a
mentalidade européia e a colocar sob suspeita a explicação do mundo e de seus fenômenos apenas pela fé ou
vontade de Deus. A ampliação do conhecimento contribuiu para aumentar a confiança do ser humano em si
mesmo e em sua capacidade de interferir nos acontecimentos e em seu destino.
116
consumidores na zona rural, o que resultava em graves tensões sociais nas cidades. Os
produtos do mercado internacional percorriam longos trajetos controlados pelos árabes e pelas
corporações mercantis que operavam nas rotas européias. Somava-se a esses acontecimentos,
o grande número de intermediários que encarecia o preço dos produtos para consumidores
com renda drenada pela crise do feudalismo.
A crise do feudalismo foi condição fundamental para a formação das monarquias
nacionais que, com o enfraquecido poder da nobreza feudal, abriu espaço para o poder real.
As revoltas camponesas e urbanas de pequenos artesãos fizeram com que senhores feudais e
burgueses abrissem mão de seus privilégios em favor do rei. A nova classe social ligada ao
comércio tinha interesse econômico na unificação nacional. Para a burguesia, a centralização
do poder era um meio de atingir a unificação econômica. A uniformização de pedágios, pesos,
medidas, moedas e leis era condição para a conquista de um mercado internacional. A
retomada do crescimento econômico somente poderia ser solucionada com a conquista de
novos mercados, novas rotas comerciais, ações possibilitadas por meio de empreendimentos
financiados com os impostos arrecadados em um cenário social que se configurava sob a
tutela dos Estados Nacionais.
A tradição herdada do poder do real, o movimento universitário que formava um corpo
técnico-científico que legitimava o poder do rei, impulsionava a formação das monarquias e a
assunção do ideal nacional impresso no individualismo e na figura do rei. O poder real
projetava na imagem do rei um novo espaço político-econômico – o Estado-Nação.
Com as viagens marítimas, eram conquistados povos e territórios até então
desconhecidos. Rotas comerciais construíram uma nova cartografia mundial, o continente
europeu deixava sua condição de periferia do mundo e passava a ocupar um lugar mais central
no cenário mundial
95
. A expansão marítima européia acelerava a europeização do mundo.
Uma revolução cultural era estabelecida nos centros urbanos impulsionada pelo
dinamismo de uma economia monetária e comercial. A Liga Hanseática
96
aumentava a
segurança, a independência e o poder da burguesia que, ao firmar-se como classe social,
almejava moldar uma imagem de sociedade na qual ocupasse posição central. A usurpação do
poder impunha a necessidade de legitimá-lo por meio da arte, para glorificar o Estado e
95
Até 1492, a Europa poderia ser interpretada como mera periferia do mundo muçulmano. Possuía poucas
cidades, riqueza escassa, população pequena e ciências e artes submetidas ao domínio da Igreja. O mundo
europeu tinha um significado secundário perante o mundo muçulmano. Foram os árabes que dominaram as
principais rotas comerciais do Velho Mundo, o mar mediterrâneo e os saberes náuticos, tinham cultura e ciência
relativamente mais exuberantes que os europeus, com ricas cidades e uma extensão geopolítica que envolvia
parte da África, Ásia e, na Europa, a Península Ibérica e o leste europeu.
96
Organização criada para proteger o comércio contra os piratas no mar e a pilhagem dos barões e cavaleiros
em terra.
117
enobrecer a origem burguesa. Governantes e burgueses poderosos transformavam-se em
mecenas, construíam palácios, igrejas e catedrais e contratavam artistas para erguer estátuas
em locais públicos e para pintar quadros e afrescos para decorar edifícios.
O impulso cultural nos centros urbanos estava associado, também, ao avanço
educacional. O comércio, as artes e ofícios e até mesmo o autogoverno necessitavam da
difusão da escrita, da leitura e do cálculo. Era preciso que os novos saberes associados às
dinâmicas energias dos centros de ofício e de negócios se irradiassem em todas as direções.
Pensadores humanistas
97
defendiam a educação como o meio mais adequado para
capacitar o homem a dominar seu destino, um importante instrumento de controle e
transformação da natureza. Com o humanismo, o processo educativo deslocava sua ação da
leitura e do debate de textos antigos para a crítica das próprias condições de vida feudal. Uma
reforma educacional revitalizava os estudos das áreas humanas, refletindo os novos interesses
do mundo pós-feudal.
A expansão do conhecimento científico significou a retirada do monopólio da
explicação do mundo e do homem das mãos da Igreja, abrindo caminho para a ciência leiga,
livre de limitações e de dogmas. Com destaca Eby, (1976, p.52), em dois anos, surgiram três
dos mais importantes trabalhos científicos que o mundo medieval jamais vira: Da Revolução
dos Corpos Celestes, de Copérnico (1543); Sobre a Estrutura do Corpo Humano, de Vesalius
(1543), e A Grande Arte, de Cardan (um tratado de Álgebra, 1545).
Ao longo dos séculos, sob o controle da Igreja, uma riqueza foi sendo acumulada
pelas peculiaridades da vida social e religiosa do mundo feudal, que pregava a salvação pelas
obras caridosas e pela compra da absolvição dos pecados e a redução da permanência no
purgatório por meio de doações à Igreja ou pela celebração de missas. Presentes, doações,
dinheiro de indulgência e dízimos aumentaram os tesouros da Igreja. No contexto social,
político e econômico da sociedade pré-capitalista, o dinheiro conquistava importância, pois
havia sido introduzido para substituir a prática do escambo, uma mudança que agravava as
condições econômicas e acelerava a decadência moral que se generalizada entre os membros
do clero.
Pregando a pobreza, a Igreja tornava-se cada vez mais rica. As vozes dos reformadores
contra as extorsões da Igreja começaram a se transformar em gritos. Vozes de protesto que
não surgiram de forma súbita, mas que já eram proferidas desde as Cruzadas, contra o
crescente domínio da hierarquia papal, a corrupção progressiva dentro da Igreja e o
97
A palavra humanismo vem do latim humanus, que significa cultivado ou culto. Nessa perspectiva, o homem
e a mulher não nascem humanos, mas são humanizados pela educação.
118
relaxamento da vida espiritual. O baixo clero comercializava objetos sagrados, papas tinham
filhos naturais e viviam em cortes luxuosas pagas por fiéis; a venda de indulgências – os
bilhetes de salvação – possibilitava a construção de ricas basílicas; a desmoralização do
papado era agravada por seu envolvimento com o poder político da Europa. Aprofundava-se a
crise de consciência religiosa, uma vez que a Igreja, o canal de comunicação entre fiéis e
Deus, era uma instituição marcada pela corrupção moral e financeira.
A obstrução desse canal de salvação gerou a crise de consciência religiosa, que
agravou o conturbado momento de transição gerado pela crise do mundo feudal. O progresso
comercial e urbano criava uma nova realidade econômica em discordância com posição da
Igreja, que condenava a usura, os juros e o lucro. A reforma religiosa era filha do capitalismo,
gerada pelo descompasso entre as necessidades espirituais dos fiéis e a organização da Igreja
Católica. A crise de consciência religiosa dava-se em um momento de transição, em que os
problemas da fé se misturavam com problemas econômicos, políticos e sociais.
O cenário social que emergia sob as redes do progresso comercial e urbano tinha, no
poder da Igreja, – ao condenar a usura, os juros e o lucro – um forte impedimento ao avanço
do processo de acumulação de capital. As monarquias nacionais e centralizadoras, que haviam
iniciado seu processo de formação sob o enfraquecimento do poder da nobreza feudal,
estavam interessadas em submeter e controlar a Igreja, bem como em confiscar os bens do
alto clero.
Igrejas não-católicas surgiram na Europa Ocidental no século XVI. A Igreja
Protestante, na Alemanha, foi organizada pelo monge e professor de Teologia Martinho
Lutero, sob as críticas à corrupção do clero católico e à venda de indulgências. A posição
teológica de Lutero afirmava que a salvação viria somente pela fé na pessoa de Jesus Cristo,
sem intermédio da Igreja ou dos sacramentos. Os príncipes alemães rebeleram-se contra a
imposição do catolicismo e confiscaram as terras da Igreja, sendo, por isso, chamados de
protestantes.
Proliferavam-se as críticas aos poderes da Igreja, espalhando as idéias de recusa à pena
de morte, à hierarquia da Igreja, à crença no purgatório, às indulgências
98
e à veneração de
santos. O catolicismo deixava de ser o único representante da doutrina cristã. A divisão do
cristianismo gerada pelas reformas religiosas começava a submeter a Igreja ao Estado no
plano político e, no plano econômico, ao confiscar os bens do alto clero.
98
Para animar os fiéis durante a cobrança das indulgências, o enviado papal cantava: “Assim que a moeda no
cofre cai, a alma do purgatório sai”.
119
As atividades humanistas fizeram crescer o patriotismo e o sentimento popular, o que,
como discute Giles (1987, p.119), ajudou a fortalecer a posição teológica luterana,
impulsionada pela impressão e tradução da Bíblia para o alemão. Lutero pregava que a
estabilidade da nova ordem religiosa dependia da capacidade das crianças de compreenderem
as Sagradas Escrituras, o que só poderia ser alcançado pela instrução. Um processo de
alfabetização pública era desencadeado, pois, para Lutero, “não há outra ofensa que pese tanto
diante de Deus e que mereça maior castigo que o pecado de negligenciar a educação das
crianças” (Giles, 1987, p. 119).
O processo educativo implementado por Lutero, na Alemanha, expandia-se por toda a
Europa, era desejado pela burguesia interessada na formação de um povo capacitado para
governar e organizar a vida social. O sistema de ensino era assumido pela sociedade civil e
eclesiástica, providenciando a formação dos professores e a abertura de escolas organizadas e
dotadas de boas bibliotecas. As idéias do humanismo cristão e do protestantismo repercutem
nas instituições educativas, no momento em que os mosteiros e as escolas eclesiásticas
sofriam com o descrédito e a aversão populares. O povo associava o saber e o orgulho
intelectual à trapaça, o que provocava uma deserção em massa, tanto nas escolas elementares
como nas superiores, um aspecto que, como analisa Eby (1976, p.55), manifestava-se como
contraditório com uma época de grande efervescência intelectual.
A quebra da conexão educação-subsistência contribuíra para estimular a decadência do
sistema educativo. Os pais enviavam os filhos às escolas para prepará-los a ocupar posições
sociais que lhes fornecessem meios de subsistência. Como os meios de subsistência mais
desejados estavam nas mãos da Igreja, o destino escolhido era, normalmente, o das escolas
eclesiásticas. Com a Reforma, as profissões que garantiam a sobrevivência dentro da ordem
cristã estavam ameaçadas de extinção, além da dificuldade em sustentar estudantes pobres,
pois, com as inovações introduzidas pelas reformas religiosas, as boas obras não eram mais
essenciais para a salvação. O fluxo de caridade, que nutria incontáveis instituições de
benevolência cristã, deixava de existir ou era reduzido ao extremo. Para Eby (1976, p.57), até
que esses novos meios de subsistência pudessem ser estabelecidos e as escolas pudessem
prepará-los para os novos postos, os pais não sabiam que educação dar a seus filhos.
A Igreja católica levou muitos anos para compreender a importância da Reforma
protestante. Uma iniciativa pioneira instituia-se com a fundação, em 1534, da Companhia de
Jesus, ordem religiosa criada pelo ex-soldado espanhol Inácio de Loyola. Organizados sob
uma rígida hierarquia e sob uma disciplina quase militar, os soldados de Cristo, como foram
120
chamados, estabeleceram estratégias para combater o protestantismo por meio do ensino e da
expansão da fé católica.
Com a Contra-Reforma, a Igreja Católica impôs um combate sistemático aos
protestantes em três frentes. A primeira era a recuperação de áreas sob influência do
protestantismo, por meio da educação, criando colégios destinados ao ensino primário e à
recuperação das novas gerações. A segunda frente era a difusão do catolicismo entre povos
não-cristãos, por meio da catequese
99
. A terceira frente era a contenção do protestantismo,
com as lutas anti-heréticas, por meio de um forte instrumento – o Tribunal da Inquisição –
para julgar qualquer indivíduo suspeito de idéias contrárias à Igreja católica.
Era pela educabilidade que a Igreja alicerçava a retomada de sua importância social.
Com a expansão de sistemas de ensino conflitantes
100
, era necessário que a Companhia
formasse suas próprias instituições de ensino para realizar seus ideais de uma educação cristã:
estudos humanistas alicerçados na filosofia de Aristóteles, tal como foi interpretada por
Tomás de Aquino
101
.
A Companhia de Jesus formava o sistema de ensino mais abrangente da Europa
102
,
organizado sob um completo plano de estudos. Os métodos de disciplina e de motivação
buscavam enfrentar as dificuldades em ensinar meninos pouco adaptados a interesses
intelectuais. Isolando jovens das influências exteriores, o processo educativo era projetado
para tornar-se fácil, gradual, perfeito e definido.
No século XVI, o modelo do colégio-convento impôs-se como forma de separar
jovens do contato direto com o mundo adulto. A severidade da disciplina religiosa formatava
o local educativo, que se configurava como um espaço fechado, cercado e diferenciado de
todos os outros. Reunidos em grandes grupos e sob o rigor do castigo e submetido às ordens,
os jovens aprendiam ofícios e os preceitos cristãos. Um método de instrução colocava toda a
confiança na memorização do conhecimento trabalhado. Como aponta Eby (1976, p.96), o
99
No Brasil, na difusão do catolicismo pela catequese, destacaram-se os jesuítas Manuel da Nóbrega e José
de Anchieta, que fundaram colégios na Bahia (1550) e em São Paulo (1554).
100
Na França, com o calvinismo, fundam-se oito universidades, trinta e dois colégios e inúmeras escolas
elementares sob o patrocínio público, para todas as crianças de todas as classes sociais. Na Inglaterra, com o
anglicanismo, a Lei para os Pobres, em 1601, determinava a arrecadação de impostos compulsórios sobre a
propriedade para custear a aprendizagem para os pobres, exigindo que os filhos dos pobres recebessem instrução
religiosa, tornada obrigatória nas paróquias (Cf. GILES, 1987, p.126-127).
101
Enquanto, para Platão, a alma e o corpo eram inseparáveis, para os pensadores cristãos, entre eles, Tomás
de Aquino, o sujeito medieval deveria cumprir o imperativo teológico: a alma, divina e eternamente boa ; o
corpo, definitivamente humano e pecaminoso. A alma e o corpo poderiam ser educados por tecnologias
diferenciadas: para alma, a nutrição do espírito – a devoção, a oração e a obediência; para o corpo – a
depreciação e a debilitação da carne – abstinência, sofrimento, dor, celibato (Cf. FENDLER, 2000, p.59).
102
Em 1586, já havia 162 colégios, dos quais 17 eram abertos a alunos externos, isto é, não-destinados à vida
religiosa (Cf. GILES, 1987, p. 134-135).
121
antigo lema repetitio mater studiorum – a repetição é a mãe da aprendizagem – jamais foi tão
habilmente praticado por qualquer outro grupo de professores. Um conjunto de habilidades
motivacionais para a aprendizagem era metodicamente aplicado: a submissão aos professores,
o sentimento de dever, recompensas e castigos (nunca excessivamente severos), prêmios,
posições de liderança e uso da rivalidade.
O plano de estudo – Ratio Studiorum – explicitava a metodologia humanista católica:
estabelecia os horários de aula e a ordem e os métodos de execução; determinava os
exercícios, tanto os de composição corrigidos pelo próprio mestre, como as disputas e os
debates públicos. Esse documento traduzia a missão educativa da Companhia de Jesus e
regulamentava a formação dos professores
103
, o comportamento de alunos e mestres, o
conteúdo e os procedimentos para todos os colégios sob direção da Sociedade de Jesus. O
programa educativo proposto pela Companhia de Jesus era estruturado com base na tríplice
metodologia: preleção, conserto e repetição.
Com o Ratio Studiorum, era traduzido um programa de ensino concreto e prático, que
atribuía importância ao mestre e colocava em ação um movimento em direção à diversificação
educativa para o conjunto da população. Extrapolando a fronteira européia, a população das
colônias portuguesas e espanholas, no Novo Mundo, na África e nas Índias Orientais, era
doutrinada e colocada sob a lógica do catolicismo.
O processo educativo que emergia como produto dos movimentos religiosos resultava
de uma realidade sociopolítica moldada nas profundas modificações provocadas pelo
fortalecimento da burguesia, pelo uso mais eficiente da terra e pela expansão do comércio.
Era dentro de um espaço sulcado pela consolidação dos Estados Nacionais e pelas disputas de
doutrinas religiosas, que a Europa tornava-se o centro do mundo. Era o Antigo Regime
104
que
se organizava na esteira do capitalismo comercial, da política mercantilista, do sistema
colonial, do Estado absolutista, da intolerância religiosa e da laicização cultural.
Uma laicização cultural impulsionava a dessacralização da sociedade, e a ciência
moderna nascia no século XVII, combinando o uso da razão matemática com a observação e a
103
A Companhia dos Jesuítas propunha uma formação perfeita com métodos de instrução uniformes para que
todos os professores fossem treinados com a máxima precisão. O candidato à admissão passava dois anos como
noviço sob disciplina moral e espiritual para adquirir capacidade de autocontrole. Completado o noviciado,
retornava à escola para aprender os assuntos que deveria ensinar. Observava os métodos empregados pelos
melhores instrutores, período conhecido como juniorado, que era seguido por três anos de estudo de Matemática,
Ciência e Filosofia, na Universidade. Completada a formação, começava a ensinar em colégios inferiores, sob a
vigilância de superiores, para então, durante quatro anos, aprimorar os estudos de Teologia , na Casa de Estudos,
para assim, ser ordenado (Cf. EBY, 1976, p.96-97).
104
Antigo Regime é o nome da sociedade que se formou na Europa nos séculos XV e XVIII, possuindo a
nobreza grandes privilégios. Três características marcaram essa época histórica: o feudalismo, o absolutismo e o
mercantilismo.
122
experimentação. O inglês Francis Bacon formulou, em Novum Organum (1620), as regras do
método de observação e de experimentação. Descarte definiu o método matemático em seu
Discurso Sobre o Método (1637). O empirismo científico tornava-se a moda intelectual da
época, e o processo educativo deslocava sua função de conservação da sabedoria para a
procura das causas e dos movimentos da natureza, para garantir um meio eficaz e mecânico
de controle do mundo. A invenção do telescópio, do microscópio, do barômetro, do plano
inclinado, da máquina pneumática, entre outros, ampliou a instrumentalização e as
possibilidades para o estudo e a observação. A inter-relação da matemática e das ciências
físicas, por meio dos laboratórios e das novidades instrumentais, impulsionava o
desenvolvimento do conhecimento biológico, social e psicológico, apresentando um avanço
notável e perceptível.
Na medicina, a magia, o misticismo e a astrologia eram substituídas pela procura de
causas puramente materiais para as doenças. De uma época em que o médico
105
necessitava
saber examinar o horóscopo e estar familiarizado com os elementos da astrologia para
determinar os dias críticos no decorrer das doenças, passava-se à reconhecida ciência médica,
pela descoberta da circulação sangüínea e pelos conhecimentos mais precisos de anatomia e
de fisiologia, saberes que não poderiam ter sido alcançados sem o uso do microscópio. A
ciência moderna conquistava a autoridade e a exatidão que nem as obras da filosofia
escolástica haviam conseguido. Leonardo da Vinci, gênio universal, pintor, escultor,
engenheiro, arquiteto, físico, biólogo e filósofo, ilustra a inter-relação da matemática com as
ciências físicas; ele foi uma das primeiras inteligências modernas a compreender o novo
método da ciência.
A matemática rompia com limitações das simples exigências do comércio, da
contabilidade, da confecção do calendário, das construções da engenharia arquitetônica e
militar e dos cálculos dos astrólogos e dos navegadores, para auxiliar a expandir o
conhecimento do mundo físico e humano, para tornar-se a linguagem do preciso método do
pensamento científico. Investigadores científicos foram rápidos em discernir que a linguagem
matemática fornecia um mágico instrumento para o esclarecimento de fenômenos naturais.
Com ela, era estabelecido o padrão pelo qual deveria ser medido o êxito de todas as
descobertas científicas; a matemática foi um impulso para a realização do ideal de precisão e
excelência que passava a dominar o mundo moderno.
105 No medievo, acreditava-se que um médico sem a astrologia não era melhor do que um olho que não via
(Cf. EBY, 1976, p.130).
123
Da tradição grego-romana em se ater à compilação de textos clássicos, confusos e
muitas vezes abstratos, passava-se para a compreensão do homem e do mundo por meio de
um processo que coordenava o científico e o tecnológico. Academias ou sociedades
científicas emergiam na Europa como instituições alternativas ao ensino superior, dedicadas
exclusivamente às pesquisas e ao incremento da ciência. Compostas por amadores voluntários
e sem uma constituição formal e oficial, não outorgavam títulos e não carregavam o peso da
organização, da estrutura e da metodologia que cerceavam as universidades. Sob as pressões
da Inquisição, principalmente depois da condenação e morte de Galileu, as reuniões eram
sigilosas, para manter o ideal da pesquisa científica e o dos acadêmicos, como destaca Giles
(1987, p.145), “a prova da verdade baseia-se na evidência experimental conformada pela
comprovação”.
A efervescência de descobertas e de invenções impulsionava a imaginação e a
experimentação. Enquanto a mentalidade feudal vivia sob a égide do crime da novidade,
imputado a qualquer fenômeno ou acontecimento que viesse a romper violenta e brutalmente
com o curso natural das coisas ou de seu estado tradicional, o homem pós-medieval passava a
configurar-se pelo princípio da dúvida: nada mais era aceito se não fosse submetido ao
critério da clareza e da evidência. A fórmula que expressava esse deslocamento, que ilustrava
a assunção da primazia da razão e do pensamento, foi expressa em Cogito ergo sum – penso,
logo existo! Era a razão, que em última instância, destacava o homem dentro da ordem natural
e possibilitava seu domínio, um deslocamento que, ao mesmo tempo em que imprimia
tendências intelectuais ao processo educativo, provocava uma reação sob a forma de um
extremo empirismo.
A ciência prenunciava deslocamentos também para o campo social. Planos utópicos
eram numerosos, exprimindo a possibilidade de reconstrução da sociedade humana,
especialmente, pela educação. Thomas More, no século anterior, com sua obra Utopia,
projetava melhorias para o destino do homem por meio de medidas sociais e políticas, mas as
utopias escritas no século XVII colocavam a educação como o meio essencial para melhorar o
indivíduo e a sociedade.
A escrita de utopias, uma prática que desde a Antigüidade Clássica desencadeava
modificações no âmbito social e educacional, foi novamente o ponto de apoio para que novas
tendências na educação se estabelecessem, trazendo, em seu rastro, novos problemas sociais e
educacionais. Como analisa Eby (1976, p.140-141), entre os mais prementes problemas
educacionais com que se defrontavam os pensadores do século XVII, estavam as questões:
124
Até onde devem ser estendidos os privilégios
106
da educação? O currículo devia permanecer
humanístico ou tornar-se realista? Qual o método de instrução? Devia-se possibilitar a
educação para as meninas das classes sociais associadas ao poder? Esse último problema
colocava-se com relevada importância e impulsionava discussões em um sistema educativo
em que as meninas eram praticamente esquecidas
107
, para emergir como uma premência, uma
vez que rainhas assumiam o controle de Monarquias Absolutistas.
O tema mais proeminente nos escritos sobre o processo educativo no século XVII,
como analisa Giles (1987, p.150), era o da reforma - reformular o sistema educativo surgia
como uma unanimidade. Sob pano de fundo desses problemas educacionais, avançava e
consolidava-se o processo de centralização do poder em um contexto marcado pelas guerras
religiosas. Historiadores destacam a crueldade e a selvageria das disputas religiosas, e a
Guerra dos Trinta Anos, entre católicos e protestantes, no norte da Europa, exemplifica essa
perspectiva. Como ilustra a pesquisa realizada por Eby (1976, p.147), a população da
Alemanha foi reduzida à metade, e os sobreviventes passaram a viver em estado de
selvageria. Pastores e professores cessavam seus serviços, e a barbárie, a ignorância, a
superstição e o crime ganhavam força e, de forma paralela, a destruição de todos os vestígios
escolares
108
.
Foi nesse caótico contexto social que se estabeleceu a passagem da iniciativa, nas
reformas escolares, das autoridades eclesiásticas para o poder civil. Um conjunto de reformas
no sistema educativo, ancorado, principalmente, nos princípios de Comenius, foi colocado em
prática e marcou de forma profunda e duradoura o processo educativo ocidental.
Comenius era o visionário que buscava colocar em prática os sonhos utopistas,
concretizando suas implicações em relação ao processo educativo. Segundo Eby (1976,
p.155), durante toda a sua vida, Comenius esteve obcecado por um grandioso projeto para a
correlação e para o progresso da ciência, designado por ele de Pansophia, a sabedoria
universal, um plano que compreendia: primeiro, uma enciclopédia do saber universal com a
106
É importante frisar que na época moderna, o que definia o relacionamento entre os homens, entre as
camadas sociais e o Estado eram os privilégios. A divisão básica dentro da sociedade se fazia entre aqueles que
tinham – clero e nobreza – e os que não tinham – o povo. Nessa perspectiva, parece que vivemos de forma cada
vez mais plena o motor social que instituiu a modernidade.
107
O programa de estudos almejava levar a aluna à prática da virtude moral e da piedade. O elemento
intelectual era colocado em segundo plano, uma ação justificada pelo fato de que, do ponto de vista intelectual, a
mulher era considerada inferior. Pregava-se um ideal de formação para as meninas visando a uma das duas
opções – o casamento ou o véu (Cf. GILES, 1987, p.162-163).
108
Com as guerras religiosas, a situação do território alemão no século XVII era deplorável. Igrejas e escolas
em ruínas, outras usadas como hospitais e estábulos. Na maioria das comunidades, até mesmo a instrução
religiosa havia sido cessada. Cidades e comunidades estavam empobrecidas e despovoadas, os habitantes
remanescentes, em grande parte, viviam em estado de quase barbárie (Cf. EBY, 1976, p.148).
125
contribuição de todos os cientistas europeus; segundo, o projeto de um colégio para promover
a investigação científica, com laboratórios e com todas as condições necessárias para que a
descoberta se efetivasse. Esses dois aspectos levavam ao terceiro: a afirmação que o ensino e
que a pesquisa eram interdependentes.
O plano de Comenius com a Educação Pansófica compreendia a arte de ensinar tudo
a todos, partindo do ideal de educar cada criança até a plenitude de suas capacidades, para que
pudesse aproveitar os benefícios do conhecimento em todos os campos do saber. Para Eby
(1976, p.156), nenhum educador teve maior fé no poder da educação como meio de salvação
da humanidade como Comenius, um pensador que possuía uma confiança sublime na
perfeição da raça humana e no poder da educação para regeneração do homem. Um outro
aspecto importante que pode ser destacado como uma qualidade fundamental em Comenius
era sua profunda admiração pelo homem. Em uma época em que a sociedade se afirmava em
torno do absolutismo político, em que a aristocracia de nascimento e posição fechava a porta
de oportunidades às classes inferiores, Comenius levantava a bandeira da democratização do
processo educativo, pois
[...] a educação [...] inclui tudo que é evidente para um homem e é tal que todos os
homens nascidos neste mundo deveriam dela participar. Todos, portanto, tanto
quanto possível, deveriam ser educados juntos, de modo que se possam estimular e
incitar mutuamente (EBY, 1976, p.157).
O objetivo da educação era ensinar tudo a todos os homens, uma ação que se efetivava
por meio de três elementos essenciais: bons livros de texto, bons professores e bons métodos.
Ao projetar sua escola, Comenius tinha claramente em vista os defeitos e as omissões que
eram evidentes na escola de seu tempo. As escolas protestantes, católicas e jesuíticas, segundo
Eby, (1976, p.159), alicerçavam seu processo educativo na memorização, na verbosidade
latina e na fraseologia retórica. A habilidade de observar e de pensar com suas próprias
mentes não havia sido exercitada. Como conseqüência, afirmava Comenius, a maioria dos
homens não possuía informações alguma além das citações, sentenças e opiniões colecionadas
de vários autores, costuradas numa colcha de retalhos.
A concepção da Escola Pansófica atraía reformadores educacionais e estadistas de toda
a Europa, interessados em estabelecer um deslocamento em relação ao modelo de educação
formal que vigorava no Antigo Regime. Com a escola Pansófica, buscava-se a superação de
um processo educativo que as pesquisas de Ariès (1988) retratam como uma escolarização
126
restrita ao sexo masculino, não-delimitada por critérios etários, que não projetava um tempo-
espaço formalmente educativo.
Comenius elaborava a Didaktika e, depois, A Didactica Magna, obras em que
apresentava o projeto de reforma educacional para o sistema vigente, rejeitando a visão
dualista do ensino – um para o povo e outro para a elite. O projeto educativo de Comenius
emergia como uma idéia revolucionária para o cenário do Antigo Regime, como analisa Giles
(1987, p.155), pela exigência de incluir tudo o que era próprio do homem e por democratizar
o acesso à educação
109
. Nessa obra, Comenius apresentava um método que serviria para
ensinar qualquer criança, com rapidez, ao mesmo tempo em que transmitia as qualidades
necessárias e relevantes para o mundo moderno. Baseado na maturação da mente da criança,
buscava um processo educativo em que a aprendizagem e o ensino progredissem de forma
simultânea.
O profeta de princípios modernos, como Comenius é referendado por Eby (1976),
anunciava o tratado educacional mais importante dos tempos modernos. Como anuncia Giles
(1987), Comenius estabelecia graus para o processo educativo, modelando um sistema de
ensino organizado em quatro níveis, cada qual com seis anos de duração e ajustados às fases
do desenvolvimento humano – da infância à maturidade. A escola materna e a escola
vernácula
110
para educar a infância, existindo, respectivamente, em cada casa e em cada
lugarejo ou aldeia. Para os jovens, em cada cidade, a escola latina e, em cada reino ou
província, a universidade.
O sistema escolar projetado por Comenius uniformizava a data de início para todas as
escolas e estabelecia uma sala de aula e um professor especial para cada classe. As ações
pedagógicas eram estruturadas por meio de um plano didático anual a ser cumprido. As
matérias de instrução e as tarefas eram definidas e divididas para cada ano, mês, semana, dia
e até para cada hora. A classe e o livro de texto foram inovações projetadas por Comenius,
centrais para romper com os entraves provocados pelo agrupamento confuso dos alunos e pela
falta de livros de textos satisfatórios aos alunos.
Dos grandes grupos de alunos desordenadamente agrupados para a ordem da classe, a
instrução deixava de ser dada individualmente, para configurar a instrução simultânea.
109
Comenius exigia uma educação elementar completa para cada criança, pobre ou rica, de alto ou baixo
nascimento, menino ou menina. Todas as crianças deveriam ser ensinadas juntas nas mesmas escolas, uma
inovação inaudita para uma época cunhada pela distância aristocrática.
110
Essa forma de nomeação dessa fase do processo educativo proposto por Comenius remete a uma exigência
de que os alunos despendessem seis anos de estudo da língua vernácula, para “treinar os sentidos internos, a
imaginação e a memória”. Os estudos na escola vernácula era a instituição na qual as crianças eram treinadas em
todas as artes da humanidade.
127
Combatia-se a perda de tempo associada ao costume medieval de copiar o texto, para
possibilitar ao aluno uma cópia própria do texto, além de tudo o que deveria ser ensinado na
aula. Como analisa Eby (1976, p.174), a época exigia um novo método pelo qual as crianças
pequenas pudessem aprender a língua em menos tempo e com mais facilidade. Para tal tarefa,
a ação educativa consistia em ensinar palavras por meio de coisas e, então, ensinar coisas por
meio de palavras. Comenius publicava Orbis Pictus, ou Mundo em Figuras, com um
vocabulário conciso, utilizando figuras
111
ao lado das palavras para impressionar a memória
das crianças e dar-lhe um caminho mais rápido para a aprendizagem. Um texto específico
passava a ser dirigido para a criança, uma extraordinária inovação, quando a imagem
associada ao texto operava como um instrumento psicológico para o aprender.
Para Narodowski (2001), Comenius, na busca normalizadora, projetava um modelo
teórico-didático em que o livro de texto assumia uma estética própria. Pela concatenação de
elementos texto-imagem, a pedagogia comeniana realizava uma transformação revolucionária
radicada na inserção da imagem, que não apenas complementava o texto, como protagonizava
a mensagem escrita ao trazer para o tempo e o espaço escolares o mundo tal como ele devia
ser percebido. O livro didático representava o mundo em imagens escolarizadas e
impulsionava a uniformização não apenas dos conhecimentos, como também da fala da
população, por meio da eliminação do latim em favor do uso do vernáculo. Um segundo
aspecto colocava-se com extrema relevância na busca da uniformidade pedagógica, uma vez
que o texto virtualizava o especialista e o político na sala de aula, era uma espécie de árbitro
das diferenças lingüísticas e culturais. A vigilância epistemológica e o controle cultural têm,
nesse instrumento, uma expressão primordial.
O processo educativo, para Comenius, deveria ser suave, agradável e rápido, sem a
necessidade de castigos físicos. Como destaca Giles (1987, p.156), a disciplina conseguida
por meio de golpes era um indicativo de que o mestre não sabia tornar os alunos receptivos ao
conhecimento ou não sabia transmiti-los.
Ao organizar o tempo e o espaço educativos, Comenius antecipava as modernas
inovações pedagógicas - o plano anual, o planejamento diário com a rotina dos horários e das
ações do trabalho escolar, a classe, o professor, a instrução simultânea, o livro de texto – um
conjunto de meios para organizar e estruturar a ação educativa foi projetado, e a ciência da
higiene escolar, inaugurada.
111
A presença de figuras nos livros de textos não era uma novidade, mas Comenius assumiu-as como iscas
intelectuais para potencializar o processo de aprendizagem, não as reduzindo a elementos decorativos.
128
Ao criar um ordenamento educativo, Comenius refletia um princípio central para o
mundo em tempos modernos – a busca de uma nova ordem. O mundo moderno, como
problematiza Bauman (1999a, p.12), “era concebido em meio à ruptura e colapso de mundo
ordenado de modo divino, que não conhecia o acaso, um mundo que apenas era, sem pensar
jamais como ser”. Se Deus deixava de ser a única garantia de ordem no mundo, era preciso
que outras estratégias de ordenamento - coerção e controle social - fossem estabelecidas. A
busca da ordem passava a ser um princípio central para o mundo pós-medieval, um princípio
que, historicamente, emergiu, como ilustra as palavras de Bauman (1999a, p.12), como “o
último suspiro do mundo agonizante e o primeiro grito da recém-nascida modernidade”.
O ordenamento para o processo educativo projetado por Comenius, apesar da
extraordinária popularidade conquistada, pouca influência exerceu em sua época. Como
analisa Narodowski (2001, p.75), “no século XVII os Estados nacionais europeus ainda
mostravam muitos flancos débeis quanto ao poder unificador e disciplinador dos interesses
locais para levar a cabo uma operação da envergadura exigida”. Um programa de ensino
democrático que propunha a suspensão de privilégios de classes, chocava-se com um mundo
que ainda era fortemente marcado pelo direito divino dos reis. Suas idéias e princípios
projetavam um povo esclarecido e soerguido. Se sua obra pouca influência imprimira sobre o
movimento de reforma em seu tempo e, inicialmente, fora relegada ao esquecimento,
posteriormente, marcaria de forma profunda e duradoura o sistema de ensino ocidental.
Para Eby (1976, p.178), o primeiro grande profeta da idade moderna sofreu o destino
usual que aguarda homens de visão muito arrojada. Na visão de Narodowski (2001, p,75),
“foram necessários alguns séculos para que, em outras circunstâncias, o Estado moderno
pudesse – a seu modo – atualizar Comenius”.
O processo educativo mantinha sua rígida estrutura fundamentada no privilégio das
classes sociais. Os movimentos de reforma educacional, centradas em esforços filantrópicos,
eram dispersos e dependentes de grupos voluntários, o que delimitava a abrangência e a
duração de tais iniciativas. Aos movimentos filantrópicos nos séculos XVI e XVII, faltavam
meios para educar os pobres. Somava-se a isso, segundo Giles (1987, p.167), o firme
princípio da burguesia não estender a educação - o resultado inevitável seria a subversão da
ordem social, pois a esperança dada em demasia aos pobres começaria a ultrapassar os limites
do aceitável. A maioria da aristocracia e da burguesia compartilhava a visão de que a
ignorância era necessária para todos aqueles que nasciam na pobreza, pois era o único ópio
capaz de ajudá-los a agüentar as misérias e as fadigas daquela vida.
129
As lutas sociais, o desenvolvimento da burguesia e de seus negócios e a crença na
racionalidade culminariam na propagação dos ideais iluministas. O Iluminismo não
significava uma quebra radical com o passado, mas, sim, o ponto culminante de diversas
correntes do passado ativamente entrelaçadas: o Renascimento, a Reforma e a Revolução
Científica. A burguesia, equipada com novas armas teóricas fornecidas pelo movimento
Iluminista, passava a questionar o poder dos reis absolutistas, a acelerar o fim das práticas
feudais ainda existentes e a estimular a derrubada de regimes absolutistas-mercantilistas na
Europa e na América e, assim, justificar a criação novas formas de poder político e de
organização econômica.
O processo de queda do Antigo Regime dava-se no colapso do Estado moderno
absolutista e na sua substituição por um novo tipo de Estado – o Estado Liberal – esse,
plenamente controlado pela burguesia. A Independência dos Estados Unidos, a Revolução
Industrial na Inglaterra e a Revolução Francesa foram os elementos desagregadores do Antigo
Regime, tendo como lastro o direito à liberdade e à resistência a governos autoritários. Em sua
dimensão racionalista, as idéias iluministas forneceram o substrato teórico sobre o qual esses
movimentos germinaram, afirmando que a razão humana pode alcançar a verdade sem a ajuda
da Teologia.
Sob a base teórica do Iluminismo e sobre a base econômica propiciada pela Revolução
Industrial, edificava-se uma nova soberania de Estado, e a história da sociedade ocidental
começava a assistir à emergência de um novo mundo, marcado pelo sucesso burguês e pelo
desenvolvimento máximo do capitalismo industrial. Com o Iluminismo, a guerra entre a
Ciência e a Teologia foi acirrada. A Razão era a arma que os filósofos iluministas erguiam
para combater todos os males que afligiam a sociedade: a racionalidade contra a mitologia, o
conhecimento contra os dogmas, o progresso por meio do processo educativo contra a
aceitação pacífica da ordem estabelecida - era tirado o véu que encobria a ação religiosa para
dominar e manter as massas sob o controle dos tiranos monarcas. Para Varela e Alvarez-Uría
(1992, p. 70-71), a Europa inteira se convertia em um território para a missão de dois grandes
blocos religiosos em luta - católicos e protestantes –, um fanatismo religioso que se
constituiria como uma das chaves para a instituição da modernidade. Ao desenvolver práticas
para reformar o clero, desencadearam um processo educativo que, pela captura de jovens, em
sua fragilidade biológica e por meio de um processo pedagógico, passou a inculcar normas
para regular a vida, para naturalizar a sociedade de classes, para modelar o homem e a
sociedade moderna.
130
Com a revolução industrial, a substituição das ferramentas pelas máquinas, da energia
humana pela energia motriz e do modo de produção doméstico pelo sistema fabril, um
processo de notável evolução tecnológica revolucionou a estrutura da sociedade. Do
artesanato
112
para a manufatura
113
e, posteriormente, para a maquinofatura, o artesão era
submetido ao regime de funcionamento da máquina e à gerência direta do empresário. A
população urbana crescia, o mercado consumidor acompanhava, mas sobrava mão-de-obra
nos centros industriais.
A concentração de trabalhadores na fábrica transformava radicalmente as relações de
trabalho: de um lado, capitais e meios de produção; de outro, o trabalho. A mecanização
desqualificava o trabalho e reduzia salários, gerando uma massa de trabalhadores que passava
a viver em condições miseráveis. Mulheres e crianças aumentavam a concorrência,
engordando o exército de mão-de-obra de reserva
114
. Do artesão que controlava seu ritmo de
trabalho, passava-se ao operário assalariado, submetido à disciplina da fábrica.
O crescimento demográfico pela transferência de grandes parcelas da população das
zonas rurais para as zonas urbanas, condicionou a utilização máxima dos tempos de trabalho
produtivo, o que implicou manter essa massa de indivíduos controlada e disciplinada. A
periculosidade social foi o motor para a modelagem de uma configuração para o processo
educativo que não havia se estabelecido no começo do capitalismo em virtude do trabalho
infantil. Impulsionada pelos constantes conflitos entre classes populares e capitalistas ao
longo do século XIX
115
, a escola apareceria como a solução de um conjunto de problemas
mais prementes desse momento histórico, entre eles, controlar as camadas populares e evitar
que modos de educação gestados pelas próprias classes trabalhadoras colocassem em xeque
os saberes e o modo de viver burgueses.
112
Primeira forma de produção industrial, surgiu no final da Idade Média com o renascimento comercial e
urbano. O artesão realizava todas as etapas da produção e possuía todos os meios de produção: as instalações, as
ferramentas e a matéria-prima.
113
Resultou da ampliação do consumo, levando o artesão a aumentar a produção e o comerciante a dedicar-
se à produção industrial. O manufatureiro distribuía a matéria-prima, e o artesão trabalhava em casa, recebendo o
pagamento pelo que produzia. O comerciante passou a produzir, contratava o artesão para acabamentos, para
tingir, para tecer, para fiar. Surgiram as fábricas, os artesãos passaram a ser assalariados, perderam o controle
sobre seu trabalho. Estabelecia-se a divisão do trabalho, cada trabalhador ficava responsável por uma etapa da
produção.
114
A tecnologia das máquinas a vapor dispensava a força física para o trabalho. O capitalista preferia o
trabalho de mulheres e de crianças, que recebiam um pagamento menor pelo mesmo serviço de um homem
adulto.
115
A revolução industrial representou, também, o início das lutas operárias. Grupos populares invadiam as
fábricas e destruíam as máquinas. Para o artesão, esses movimentos eram uma forma de preservar seu trabalho
com a concorrência da indústria moderna. Para os camponeses, eram um recurso para salvar seu emprego contra
a máquina que substituía o trabalho humano. Para os operários, eram uma forma de pressionar o patrão a
aumentar salários.
131
O longo exílio destinado a separar o homem cada vez mais da natureza, a distanciá-lo
da animalidade, como problematiza Varela (2002, p.80), era fortemente impulsionado. Era
acelerado o processo para converter o homem, de um ser imbricado com o tempo circular e
com o espaço mágico da Terra, em um ser civilizado, individualizado, ajustado ao tempo da
máquina e da meta e ao espaço do Território.
A lógica da similitude do tempo em repouso e do espaço Terra precisava ser rompida
de forma definitiva, era necessário deixar para trás os exclusivos critérios de parentesco, para
buscar, nas diferenças, a possibilidade de classificar. Separar, diferenciar, particularizar a
população, separá-la em territórios, conferir especificidades para grupos etários e sociais,
eram ações centrais que estabeleciam um devir em relação a processos educativos anteriores.
O mundo governável projetado pela desintegração do Antigo Regime podia ser entendido,
explicado e modificado seguindo uma linha de raciocínio único - fragmentação do mundo
como sua maior realização e, a ordem como a fonte primária de sua força. A busca da ordem,
como afirma Bauman,
[...] significava, em primeiro lugar, postular que o mundo consiste em entidades
discretas e distintas; depois, que cada entidade tem um grupo de entidades discretas
e similares ou próximas ao qual pertence e com as quais conjuntamente se opõe a
algumas outras entidades; e por fim tornar real o que se postula, relacionando
padrões diferenciais de ação a diferentes classes de entidades [...] (1999a, p.9).
A população era classificada, separada, segregada. Ao nomear parcelas da população,
a operação central para o ordenamento do mundo se estabelecia erguendo as fronteiras
definidoras e promovendo a exatidão com que os estratos populacionais eram separados. Pela
operação de inclusão/exclusão, a visibilidade conquistada pelas categorias etárias e sociais
possibilitava que elas se tornassem alvos do Bipoder. Para cada segmento da população, eram
produzidos saberes e regras e eram estabelecidos expectativas e limites.
Com a expansão do capitalismo e a aceleração nos processos de industrialização e de
urbanização, a sociedade passava a exigir um novo disciplinamento, um dispositivo para a
formação de sujeitos mais úteis, produtivos e ajustados aos novos arranjos sociais. Como
afirma Varela, 2002, p.88, era preciso solucionar a questão social, neutralizar a luta de classes
por meio de uma política de harmonização dos interesses do trabalho e do capital com as
demandas do movimento operário.
132
A escola, um recente invento moderno
116
, instituído para o governo e a
regulamentação da população, reuniu uma série de dispositivos que emergiram e se
configuraram desde o século XVI mas que, ao longo dos séculos posteriores e sob um
conjunto de condições sociais, amalgamaram essa forma de escolarização nomeada por mim
como a Escola do Hardware, pela invenção do estatuto da infância; pela configuração de um
espaço e de um tempo específicos destinados à educação das crianças; pela emergência da
ciência pedagógica com o aparecimento de especialistas e de um conjunto de códigos teóricos
e de tecnologias para operar sobre a infância; pela destruição de outros processos educativos e
pela institucionalização e imposição da obrigatoriedade da escola.
A invenção do estatuto da infância – um corpo para a instituição escolar
A infância, da mesma forma que a escola, é um artefato cultural historicamente
construído, e sua definição foi uma condição para a configuração da escola moderna. Como
discute Dornelles (2005), o conceito de infância foi incorporado ao pensamento
contemporâneo tendo por base uma visão atemporal, ingênua e dependente do ser infantil.
Entender a definição do estatuto da infância oportuniza a construção de um outro olhar sobre
as formas de escolarização atual e fornece elementos para a compreensão de antigos processos
educativos. Para Narodowski (2001), o nascimento da infância e o da escola moderna
emergiram como processos paralelos e sumamente ricos em relações recíprocas. A
escolarização da infância implicou a infantilização de uma importante fração da sociedade
européia.
No tempo e espaço medievais, pelas análises de Ariès (1988) e Petitat (1994), não se
estabelecia uma separação entre a infância e a idade adulta, não se instituía uma percepção
realista e sentimental para a criança, nas palavras de Nadorowski (2001, p.28), “as crianças
não eram nem queridas nem odiadas, mas simplesmente inevitáveis”. Desde cedo, a criança
participava dos eventos da comunidade, tendo seu lugar assegurado ao lado dos membros
mais velhos, Compartilhando com o mundo adulto as atividades lúdicas, educacionais e
produtivas, a criança tinha sua ação projetada de acordo com suas possibilidades e
peculiaridades. Para Narodowski,
116
Como analisam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.68), a escola pública, gratuita e obrigatória foi instituída
por Romanones, em princípios do século XX, ao converter professores em funcionários do Estado e ao adotar
medidas concretas para efetivar a regulamentação que proibia o trabalho infantil antes dos dez anos de idade.
133
[...] o nascimento de uma infância moderna tem de seu o necessário afastamento da
criança em relação à vida cotidiana dos adultos; afastamento que é determinante,
pois, implicava um passo constitutivo na confirmação da infância como novo
corpo. O surgimento da escola é um fato aparentado a esse afastamento: ao mesmo
tempo causa e conseqüência (2001, p.50).
O processo educativo experienciado no Antigo Regime não privilegiava uma faixa
etária, não especificava uma idade para o ingresso e ou a duração de um período de
escolaridade
117
. Crianças e jovens eram agrupados num mesmo recinto para aprender um
mesmo conteúdo, uma vez que, como destaca Ariès (1988, p.28), “a matéria estudada [era] o
que contava, fosse qual fosse a idade dos alunos”
Os movimentos religiosos da Reforma protestante e da Contra-Reforma da Igreja
Católica haviam legitimado a intervenção sobre o corpo social, principalmente sobre os
jovens, indivíduos que precisavam de tutela, proteção e, principalmente, disciplinamento
religioso. A intervenção legitimada pela Igreja sobre o corpo social impulsionou a ruptura de
uma idéia hegemônica que produzia a criança como um ser indiferenciado do adulto. A
infância começava a separar-se da categoria etária que havia sido privilegiada ao longo do
século XVI – a juventude - e a cristalizar um sentimento de responsabilidade moral do mestre,
anteriormente inexistente por ser prescindível.
O avanço da aliança família-escola fez com que, a partir do século XVII, segundo as
análises de Varela e Alvarez-Uría (1992, p.74), a criança tornava-se o menino pequeno, uma
espécie de brinquedo divertido e agradável dos membros das classes sociais mais afortunadas.
Entretanto, para as classes populares, a infância ainda mantinha seu caráter amplo e
impreciso: saía-se da infância na medida em que se conquistava independência.
Características específicas, como destacam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.71), eram
estabelecidas, e o estatuto da infância cristalizava sua definição: pela maleabilidade que
possibilitava sua moldagem; pela fragilidade e imaturidade que justificavam sua tutela; pela
rudeza que estabelecia a necessidade de desenvolver sua civilidade; pela fraqueza de juízo que
exigia o desenvolvimento da razão, pela qualidade da alma que a distinguia dos animais. Com
a idéia de fragilidade e de dependência impressa para a etapa do ciclo de vida humana
denominado de infância, como discute Narodowski (2001, p.28), a criança deixava de ocupar
117
Como exemplificam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.72), nos colégios jesuítas, em princípio, não
funcionava a separação por idades: a entrada na escola podia ser feita desde os 6 anos até os 12 anos, e era o
nível de instrução, marcado sobretudo pelo nível de conhecimento do latim, que servia para agrupar pequenos e
maiores. Essa lógica de agrupamento foi rompida, sendo separados os maiores dos menores por razões morais e
de disciplina.
134
um lugar residual na sociedade para ser percebida como um ser carente, inacabado,
individualizado, um corpo para ser amado e educado, um produto de um processo lento de
demarcação e reinserção social.
Se a definição do estatuto da infância assumiu diferentes concepções em relação às
classes sociais, as escolas destinadas ao processo educativo, por sua vez, não se configuraram
como espaços homogêneos. Como destacam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.76 e 77), a maior
ou a menor natureza dos educandos, determinada por sua posição na pirâmide social, impunha
as diferenças em relação às medidas coercitivas, à flexibilidade dos espaços e às
possibilidades de destino de seus usuários. A máxima repreensão e o mínimo de saber a ser
transmitido correspondia aos considerados de menor natureza, evidentemente, aos pobres.
Programas para o recolhimento e vigilância dos pobres conquistavam uma amplitude
sem precedentes. O isolamento transformava-se, como identificam Varela e Alvarez-Uría
(1992, p.78) em um dispositivo para a constituição da infância, ao mesmo tempo em que o
próprio conceito de infância associava-se, naturalmente, a uma demarcação espaço-temporal e
a uma configuração para a escolarização. A escola, como problematiza Narodowski (2001,
p.50), assumia uma outra conformação - uma versão moderna – e afirmava-se como uma
importante instituição social a partir da existência do ator, do corpo infantil que, por sua vez,
não adquiria seus traços definitivos a não ser a partir da escolarização.
A educação assumia, como escopo, a naturalização de uma sociedade estamental que,
ao estabelecer diferentes qualidades para parcelas da diversidade humana, passava a exigir
programas educativos diferenciados. A instituição educativa que amparava e ocupava
meninos e meninas pobres ou órfãos primava pela necessidade de enclausuramento e
moralização, relegando à instrução uma posição secundária. As paredes erguidas pelas
instituições educativas separavam em diferentes territórios escolares parcelas da população - a
infância rica e a pobre – classificado-as por sua origem social, mas também por critérios
etários e de gênero.
Para responder às demandas de uma higiene social, como apontam as pesquisas de
Varela e Alvarez-Uría (1992), as crianças oriundas de parcelas mais pobres da população
eram entregues à classe rica, em sua mais tenra idade, para serem criadas e colocadas em
ofícios ou utilizadas como serventes. Ao atingirem os 7 ou 8 anos, passavam a casas de
doutrinas ou aos seminários. Quando atingissem maior idade, meninos e meninas,
aprenderiam ofícios: as meninas, nos mosteiros, para que se fizessem virtuosas e prestassem
serviços a anciãos inválidos e desvalidos; os meninos, de 10 a 14 anos, com boa saúde e força
135
física, iriam para a marinha e outras atividades destinadas à fortificação, à conquista e ao
ataque, para ampliação e manutenção do território do Estado-Nação.
A velha caridade era substituída, como problematizam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.
78), “por uma ética rentabilizadora do trabalho e mantenedora da ordem”. Na diferença de
conteúdos e das atividades, na dureza do enclausuramento, no rigor dos castigos, na
autopercepção a ser inculcada, no adestramento para a produção, na moralização e na
fabricação de súditos virtuosos, modelava-se um processo educativo construído em sintonia
com a especificidade de cada classe social. Segundo os autores:
[...] o ensino rudimentar para gente rude e ignorante não tem por finalidade facilitar o
acesso à cultura, senão inculcar estereótipos e valores morais em oposição aberta às
formas de vida das classes populares, e, sobretudo, impor-lhes hábitos de limpeza,
regularidade, compostura, obediência, diligência, respeito à autoridade, amor ao
trabalho e espírito de poupança (VARELA e ALVAREZ-URÍA, 1992, p.82).
Do homenzinho do mundo medieval para o ser infantilizado que necessitava ser
protegido das influências perniciosas do mundo adulto, inaugurava-se movimento para
escolarizar o estrato infantil da população. Nas escolas de primeiras letras, destinadas aos
filhos dos pobres, eram construídos os territórios escolares em que era proibido o estudo de
matérias literárias, pois a gramática, a retórica, a dialética, o ensino de línguas, jogos e
espetáculos cultos, as atividades físicas mais sofisticadas - a dança, a esgrima e a equitação-
eram destinados aos filhos das camadas mais ricas para proporcionar-lhes a aquisição de
maneiras e do programa político para prepará-los às funções de governo
118
. Na visão de
Varela e Alvarez-Uría,
[...] a infância “rica” vai ser certamente governada, mas a submissão à autoridade
pedagógica e aos regulamentos constitui um passo para assumir ”melhor”, mais
tarde, as funções de governo. A infância pobre, pelo contrário, não receberá tantas
atenções, sendo os hospitais, os hospícios e outros espaços de correção os primeiros
centros pilotos destinados a modelá-la (1992, p.75).
Se a idade, anteriormente, não aparecia como um critério determinante para a
escolarização, a Escola do Hardware nascia sob a lógica da divisão de idades e da modelagem
de um conjunto de saberes, de experiências e de aprendizagens para responder a cada uma das
118
Pierre Bourdieu, citado Varela e Alvarez-Uria, nomeava esse conjunto de exercícios distintos para cada
grupo de sujeitos de hexis corporal, ações diferenciadas praticadas em consonância com a categoria social dos
indivíduos submetidos ao processo de escolarização (Cf. 1992, p.79) [grifo do autor].
136
especificidades etárias e de classe. Para tutela das crianças, para afastá-las, como destaca
Nadorowski (2001, p.51) “da produção e do jogo”, era preciso criar esse novo lugar, moldar
seu tempo e seu espaço, ajustá-las às novas configurações postas pela queda do Antigo
Regime e, assim, começar a construir as possíveis respostas aos problemas que emergiam,
simultaneamente, aos processos de infantilização e de escolarização.
Um espaço e um tempo específicos - a escolarização da infância
O novo aparato comercial e a produção mercantil que haviam eclodido e impulsionado
a desagregação do mundo medieval coreografavam uma nova forma de viver e conviver. Do
aparato eminentemente jurídico do Antigo Regime – da lei e da proibição – novos
dispositivos de poder conquistavam uma maior importância – os mecanismos de normalização
– que, como discuti no capítulo anterior, permitiram extrair dos corpos tempo e trabalho mais
do que bens e riqueza. O poder disciplinar para produzir um corpo útil e dócil (Foucault,
1987, 2002) encontrava, nas instituições educacionais, um de seus pontos fundamentais de
ancoragem. Essa forma específica de poder, que não nasceu na escola mas, importado dos
conventos e dos exércitos e, que fora incorporada pelos jesuítas em seus colégios, era
cristalizada no tempo e no espaço da escola moderna.
Uma ruptura estabelecia-se no cenário social e político do Antigo Regime,
inaugurando a via individual – meritocrática - em substituição à do sangue e da linhagem.
Para isso, um conjunto de tecnologias de individualização para disciplinar, para normalizar,
emergiu como modelo mais rentável do que o vigiar e o castigar do Antigo Regime. O poder
disciplinar, em articulação com o biopoder, promoveu novas táticas de governo ao mesmo
tempo em que perdeu importância o confisco de bens, os castigos e os sacrifícios que
suprimiam a vida em nome do trono real. A hegemonia dessa nova forma de soberania – “a
tecnologia disciplinar do corpo e a tecnologia regulamentadora da vida – [fizeram com que] o
poder deixa[sse] a morte de lado” (FOUCAULT, 2002, p.296 e 297).
Nesse período histórico, as questões de governo e as relações entre soberanos e súditos
reorganizavam-se face à necessidade de normalizar o espaço urbano. Essa nova forma de
governar que se formava sob emergência do poder disciplinar assinaria o livro da história
como uma das grandes invenções da sociedade burguesa, como um instrumento fundamental
para a constituição do capitalismo industrial. O poder disciplinar, por meios de suas
tecnologias, estendia seus efeitos por todo corpo social, mas, como analisa Varela (2002,
137
p.82), seus efeitos ganharam uma visibilidade mais sensível nas instituições
119
, produzindo
novos saberes e novos sujeitos, operando a partir de uma nova concepção de tempo e de
espaço.
O isolamento era a lógica que marcava o território escolar. Instituia-se um tempo e um
espaço fechados sobre si mesmos, separados e protegidos das influências do mundo exterior.
Inspirado no modelo dos conventos, começava um enclausuramento da infância, para erguer,
como ilustra as palavras de Varela e Alvarez-Uría (1992, p.76), uma parede e, com ela,
separar, completamente, “as gerações mais jovens do mundo e dos seus prazeres, da carne e
da tirania, do demônio e de seus enganos”. O território escolar deixava para trás a
aprendizagem como meio de educação e relegava uma menor importância ao processo
educativo em que crianças aprendiam as regras do mundo adulto, no contato direto com os
membros mais velhos da comunidade. Para Ariès (1988), a escola separou a criança do
mundo adulto, numa espécie de quarentena física e moral, antes de habilitá-la ao exercício de
funções sociais e produtivas. A escola modelava-se como dispositivo institucional.
Com os processos disciplinares, era instituído um conjunto de regulamentos,
facilmente reconhecido nos espaços escolares, para controlar e corrigir as operações sobre o
corpo. A disciplina, que opera por minuciosas técnicas de controle e por uma vigilância
contínua e permanente, exige a distribuição dos indivíduos no espaço e a sua ordenação no
tempo. O isolamento, que se impõe pouco a pouco, vai ser central para a estruturação do
processo educativo moderno, um modelo que, ainda hoje, se mantém bastante forte em sua
lógica, mesmo tendo passado por inúmeras formas experienciadas para a organizar a
escolarização de massas.
Para disciplinar o corpo infantil, minuciosas técnicas disciplinares operavam no eixo-
espaço – dividindo, distribuindo, alinhando, classificando, hierarquizando - e no eixo-tempo
- por meio do ritmo, da repetição, da seqüenciação. Para que o exercício da disciplina se
efetivasse, era preciso colocar o corpo no jogo do olhar, sob a fiscalização de um dispositivo
óptico de visibilidade, idealizado, no século XIX, por Jeremy Bentham – o panóptico. Esse
dispositivo arquitetônico, como discuti no capítulo anterior, desempenhou um papel
fundamental no progressivo quadriculamento do espaço e no ordenamento do tempo, uma
tecnologia que possibilitou o controle de indivíduos em espaços fechados. Com o panoptismo,
119
As tecnologias disciplinares operavam no nível institucional – na fábrica, na escola, no hospital, no
manicômio e na prisão – produzindo os ajustes sociais e disponibilizando forças para o trabalho. A Escola, como
instituição de transmissão de saberes, disciplinava para a formação; a Fábrica disciplinava os indivíduos para o
mundo do trabalho; o Hospital, o Manicômio e a Prisão disciplinavam para a normatização, operando na
correção do físico e da conduta (Cf. Foucault 1987).
138
operava-se a passagem da punição para a vigilância, um deslocamento impulsionado pela
possibilidade de que um único olhar percorresse o maior número de rostos possíveis.
Sob dispositivo óptico do panoptismo, uma transformação dos espaços institucionais,
entre eles o da escola, era experienciado. Abandonavam-se os espaços maciços que haviam
marcado os antigos processos educativos para ceder lugar, pouco a pouco, à classe - um
espaço escolar homogêneo com indivíduos colocados um ao lado do outro, em fila, sob o
olhar vigilante e classificador do mestre. Os espaços do processo educativo eram
reconfigurados sob a lógica do panoptismo, e uma arquitetura escolar se cristalizava sob os
princípios de vigilância, controle e correção.
O isolamento do estrato infantil da população objetivava concentrar forças para retirar
o máximo de vantagem, neutralizando os inconvenientes e protegendo a atividade
disciplinadora de todo o ruído social externo. A clausura e o cercamento não eram suficientes
para o pleno êxito dos aparelhos disciplinares, pois operavam em espaços muito flexíveis.
Necessitava-se, como problematiza Foucault (1987, p.122 e 123), de uma localização
reticular, de um quadriculamento, para colocar cada indivíduo no seu lugar e para criar um
lugar para cada indivíduo; com isso, eram deixadas para trás as distribuições e os
agrupamentos, as pluralidades confusas e maciças.
Com o quadriculamento, a disciplina organizava o espaço para conhecer, dominar e
utilizar o corpo infantil sob a tutela do tempo e do espaço escolares. Experienciava-se uma
ação sobre a ação do outro, uma operação essencialmente celular, que condicionava e
construía individualidades precisamente localizadas, ações para ancorar cada sujeito em um
ponto preciso do espaço e do tempo, vinculado a posições bem-definidas – à classe, à sala, à
turma, à série. Nesse jogo de distribuições, o tempo-espaço escolar precisava ser dividido em
tantas quadrículas quantos corpos ou elementos havia para repartir, pois era fundamental
controlar os indivíduos:
[...] era preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado
dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa, ... importa
estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as
comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de
cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos (FOUCAULT, 1987,
p.123).
A clausura e o quadriculamento ainda eram técnicas muito grosseiras de estruturação
dos espaços nas instituições disciplinares. As localizações funcionais incidiram sobre um
espaço que as lógicas dos processos educativos anteriores deixavam livre para utilizações
139
diferenciadas e descontroladas. Ao determinar lugares e funções, suscitava-se a criação de um
espaço útil e produtivo.
Para Foucault (1987, p.126), no século XVIII a organização por fileiras começava a
definir a grande forma de repartição dos indivíduos no ordenamento instituído para o tempo-
espaço escolar: filas de alunos na sala de aula, nos corredores e nos pátios; colocação
atribuída a cada um em relação à tarefa e à prova; o alinhamento das classes por idade, a
sucessão dos assuntos ensinados, os conteúdos hierarquizados segundo uma ordem crescente
de dificuldade. A organização de um espaço serial tornava possível o controle de cada um e o
trabalho simultâneo de todos, organizando uma nova economia do tempo de aprendizagem,
que fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar e, também, como analisa
Foucault (1987, p.126), de vigiar, hierarquizar, recompensar. Esse jogo de distribuições e de
disposições no espaço permitiu, como argumenta Fonseca (1995, p.77), fazer “uma
codificação minuciosa das atividades em relação às frações de tempo”.
Nas escolas, a divisão do tempo tornava-se cada vez mais exata e regular. As
disciplinas atuavam como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo, uma maneira de
gerir o tempo e torná-lo útil por meio de recortes: por segmento, por série, por síntese e por
totalização (Foucault, 1987). O tempo escolar se linearizava, temporalidades se integravam e
se orientavam, sob a máquina do relógio, para a meta, para um ponto terminal e estável.
A produtividade do poder disciplinar, que substituiu os métodos drásticos de
intimidação associados aos processos educativos do Antigo Regime, implicava mecanismos
normalizadores e de micropenalidades, ancorados em um sistema de gratificações e sanções.
Nessa direção, Foucault (1987, p.149) aponta, como essencial a todos os sistemas
disciplinares, o funcionamento de um pequeno mecanismo penal, com suas leis próprias, seus
delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. Na
Escola do Hardware, a sanção normalizadora quadricula as micropenalidades, tornando
penalizáveis as frações mais tênues de conduta, para punir o mínimo ato, para que cada
indivíduo fique retido nas malhas da rede do punível-punidora:
Na escola [a sanção normalizadora], funciona como repressora de toda uma
micropenalidade de tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade
(desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseira, desobediência),
dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não
conformes, sujeira) [...] (FOUCAULT, 1987, p.149).
140
A penalidade e o castigo disciplinar assumiram a função de reduzir desvios, por isso,
os meios de coerções do Antigo Regime – as multas, os açoites, a masmorra – foram
substituídos por medidas essencialmente corretivas, privilegiando o exercício. “Castigar é
exercitar”, já dizia Foucault (1987, p.150), o que tornava as penalidades uma intensificação e
uma multiplicação do aprendizado ao operar pela repetição dos exercícios, das ações, do fazer
novamente a mesma coisa. A meta do poder disciplinar, “produzir forças, fazê-las crescer e
ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (Foucault, 2002), encontrava, na
punição, o funcionamento de operações bem-distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os
comportamentos singulares a um conjunto, que era, ao mesmo tempo, campo de comparação,
espaço de diferenciação e ordenador de princípios de uma regra a ser seguida. A norma dava a
medida, o mínimo, a média, o ótimo. Medir e quantificar eram ações possibilitadas pela
norma, o instrumento, a medida que “compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui,
em outras palavras, normaliza” (Foucault, 1987, p.153)[grifo do autor].
O principal dispositivo para a produção da sociedade e do sujeito moderno era o
exame. Para Foucault (1987), o exame se generalizava como forma de subjetivação e também
de objetivação por meio da extração de saberes. Na diversidade das instituições sociais, o
exame era instituído – notas, fichas, registros, históricos, diagnósticos, prognósticos –;
sujeitos eram escrutinados, descritos, transformados em casos. Sob duas operações
coordenadas - a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora –, a instituição educativa era
transformada em examinadora, para Varela (2002, p.85), em “espaços de observação
eminentemente normalizadores e normativos”. O estatuto de individualidade era estabelecido
pelos resultados das avaliações e dos contínuos exames e impulsionava a extração de saberes
de cada aluno, de cada caso, o que possibilitava o desenvolvimento da ciência pedagógica.
Os saberes, o corpo de especialistas e o sujeito disciplinar
A emergência do estatuto da infância e a construção pedagógica para sua captura
colocavam-se como o resultado de um histórico processo para transmissão de conhecimentos
e de modelagem de comportamentos. Assumindo as palavras de Varela e Alvarez-Uría (1992,
p.79), a Escola do Hardware era o resultado de “um acúmulo de saberes codificados acerca de
como pode resultar mais eficaz a ação educativa”. Nos diferentes processos educativos
experienciados pela humanidade, pontos de fissura e algumas fraturas se estabeleceram em
141
relação a ações educativas anteriores, disponibilizando elementos que possibilitaram edificar
o modelo educativo moderno.
O desaparecimento do adulto pequeno e a progressiva substituição por um novo
indivíduo, produto e processo da pedagogização da infância, condicionaram o surgimento de
um corpo de especialistas com autoridade para projetar os elementos de regulação e de
controle do ambiente destinado à formação do sujeito escolar. Como afirma Narodowski
(2001, p.51), na medida em que a instituição se situava em um plano diferente do produtivo,
do lúdico e do familiar, um controle eminentemente simbólico era estabelecido para
possibilitar a absorção de um organismo historicamente novo e socialmente singular.
O afastamento do mundo adulto e a transferência da infância para um outro espaço -
que não era o familiar e nem o da produção - fizeram proliferar discursos para normatizar e
enfrentar a quantidade e a complexidade dos problemas que se colocavam com a absorção do
corpo infantil por parte da escola. O afastamento da criança do ambiente familiar era
legitimado por saberes produzidos por um campo discursivo que conduziu à humanização do
pedagogo, um processo contemporâneo ao da definição do estatuto da infância e de sua
normatização biológica e psicológica. Para Narodowski (2001, p.51), a pedagogia não
colocava a criança no lugar que lhe correspondia, mas acompanhava a criação moderna desse
lugar.
O moderno cenário do processo educativo era edificado sob o solo de práticas
desenvolvidas nas escolas jesuíticas – a organização cuidadosa do espaço, a programação dos
conteúdos, a aplicação de métodos de ensino estabelecidos no plano de estudo Ratio
Studiorum - e pelas idéias de Comenius – a simultaneidade, a gradualidade e a universalidade.
O processo educativo projetado por Comenius, como apresentado anteriormente neste
capítulo, que fora extremamente revolucionário em seu tempo, encontrou as condições de
possibilidade para promover um devir para a pedagogia moderna com a emergência de novas
configurações para a soberania – o poder disciplinar e o biopoder.
A necessidade de controle e regulação da população encontrava, na Didactica Magna,
um instrumento altamente relevante ao propor a implantação de um processo educativo com
uma escola pública para “todos os setores sociais pauperizados” (Narodowski, 2001, p.62). O
lema impresso no ideal pansófico – ensinar tudo a todos – apontava para uma educação que
incluía os pobres, um dos pontos mais revolucionários e de maior polêmica da pedagogia
comeniana e que se faz presente na contemporânea bandeira levantada pelas políticas
públicas para uma Educação Inclusiva.
142
Com a pedagogia comeniana, foi impulsionada a passagem da educação familiar à
escolarização, marcando o início do processo de desprivatização da educação ao proclamar
que “o educador não seja o pai e sim o professor” (Narodowski, 2001, p.64). Esse
deslocamento da responsabilidade pelo processo educativo estabelecido pelo critério de
utilidade estava ancorado, como analisa Narodowski (2001), em três pontos que edificavam o
processo educativo em um patamar superior a questões individuais e familiares: o primeiro, as
crianças aprendiam melhor ao lado de outras crianças; o segundo, a educação ficava a cargo
do especialista, afastando do processo educativo a boa ou a má vontade paterna; o terceiro,
procurava-se um ordenamento racional que espelhasse a divisão social do trabalho para
instrumentalizar o indivíduo para a manufatura, na necessária ação - “cada um faz uma coisa
sem distrair-se das outras
120
”. O processo educativo, ao configurar-se como uma ação adulta
extrafamiliar sobre a infância, projetava um corpo de especialistas que racionalizava o ato
pedagógico para garantir uma atuação ordenada e eficiente sobre o corpo infantil.
A complexa sociedade que se organizava pela urbanização e pelo processo crescente
de especialização, impulsionado pela industrialização, condicionava a assinatura do tácito
acordo família-escola. A operação para universalizar a educação escolar foi oportunizada pela
instalação e institucionalização do dispositivo de aliança escola-família.
A abdicação da autoridade familiar em favor do pedagogo conferia a esse o status de
especialista, com autoridade moral para atuar sobre o estrato infantil da população. O
pedagogo conquistava importância no cenário social por possuir os conhecimentos e as
chaves para interpretar e programar os métodos, os programas e os princípios que
correspondiam a cada idade e a cada estrato social. Como destacam Varela e Alvarez-Uría
(1992, p.80), os saberes relacionados com a manutenção da ordem e da disciplina nas salas de
aula, o estabelecimento de níveis de conteúdo e a invenção de métodos de ensino enunciavam
um campo de conhecimento para a organização escolar, para as técnicas de ensino,
constituindo a Ciência Pedagógica.
Para a formação dos novos especialistas da educação, os aspirantes ao magistério
freqüentavam a Escola Normal, uma instituição especialmente controlada pelo Estado para
capacitá-los a desempenhar suas funções em sintonia com a sociedade que se industrializava.
O Estado esperava do professor uma ação política de controle para formar as bases de uma
nova configuração social e, assim, garantir o emprego de técnicas para a leitura, a escrita e o
cálculo, a capacidade de conhecer e cumprir os deveres de cidadão e a sua atuação no
120
Trecho da Didática Magna citado por Narodowski (2001).
143
mercado nacional. A idéia de pátria, de unidade política, era cristalizada pelo ensino da
geografia e da história, uma ação importante para ratificar o território do Estado-Nação. A
instituição para a formação do corpo de especialistas em educação, como analisam Varela e
Alvarez-Uría (1992, p.81), era o tempo e o espaço destinados para que os aprendizes de
professor fossem interpelados por um intensivo processo de transformação e vigilância, que
visava, não à aquisição de um saber, mas à apropriação de técnicas de domesticação, de
métodos para a manutenção da ordem.
Os aspirantes ao magistério, recrutados em estratos sociais mais baixos, viam, no
exercício pedagógico, uma possibilidade de promoção social. O professor conquistava um
prestígio social, não pela via econômica
121
, mas pelo capital simbólico. Sua ação social era
divinizada, um quase sacerdote, com autoridade, dignidade e respeito investidos por Deus
para o exercício da missão educativa.
A ambivalência posicional
122
faria do professor, como afirmam Varela e Alvarez-Uria
(1992, p.82) um ser esquizóide, desclassificado e em perpétua aspiração à reclassificação.
Rompidos os laços de união e de solidariedade como sua classe social de origem, o professor,
reforçado e motivado pela formação recebida na Escola Normal, menosprezava os hábitos e
os costumes das classes populares e revelava toda a sua admiração pela cultura burguesa. A
Ciência Pedagógica tinha seu corpo de especialistas conformados por profissionais divididos e
individualizados, que assumiam a responsabilidade pela produção de seres híbridos, forjados
no jogo entre a cultura popular e a burguesa.
O processo educativo, na mesma proporção em que enclausurava corpos infantis e
professores, produzia sobre eles um saber correlato e um corpo de especialistas autorizados a
legitimar sua ação sobre o corpo individual e social. Como analisa Machado (1979, p.XX), a
ação sobre o corpo - o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização
do prazer, a interpretação do discurso – que impulsionava separar, distribuir, avaliar e
hierarquizar fazia emergir figuras individualizadas e singulares - o aluno e o mestre.
Ao longo de sua história, as instituições educativas funcionaram como laboratórios de
pesquisas, oportunizando a extração de saberes que culminaram no aparecimento da Ciência
Pedagógica. A organização cuidadosa para o tempo e o espaço, a programação dos conteúdos,
a aplicação de métodos de ensino, a graduação por idade e a tutela mais individualizada são
produtos e processo da ação pedagógica e de seus especialistas. Nessa perspectiva, como
121
Conforme Varela e Alvarez-Uria (1992, p.82), a remuneração do professor sempre foi baixa, ainda mais
no século XIX.
122
Recrutados em estratos sociais suficientemente elevados para não se sentirem pertencentes às classes
populares e suficientemente baixos para que aspirassem, infrutiferamente, sua integração em grupos dominantes.
144
assinalam Varela e Alvarez-Uría (1992, p.79), “a constituição da infância e a formação de
profissionais dedicados à sua educação são as duas faces de uma mesma moeda”.
A hegemonia da escola do hardware
A Escola do Hardware foi gestada na emergência de um cenário social projetado pelo
exercício do poder disciplinar, pela incorporação de elementos da pedagogia jesuítica e
comeniana, sob uma ordem conventual. Um projeto pedagógico historicamente construído
pela modernidade substituía a “razão teológica” pela “razão social” (Retamoza apud Marzola,
1995, p.187) e instituía, como explora Popkewitz
123
(1994, p.174), um processo de
escolarização para a população, para “organizar as percepções e as formas de responder ao
mundo e as concepções do eu”.
Era preciso codificar e controlar o tempo, o espaço e as atividades, garantir a
submissão constante dos sujeitos, metas que imprimiram importância à meticulosidade da
educação cristã. O tempo-espaço escolar era configurado e sancionado por rígidos
regulamentos internos e por uma estrita disciplina para a codificação dos gestos e do corpo,
sob uma rígida relação de subordinação e de dependência. Acelerava-se o processo que havia
sido iniciado e desencadeado nos colégios jesuítas com a implantação de “formas
institucionalizadas para a transmissão de saberes e a formação de vontades” (Varela e
Alvarez-Uría, 1992, p.83).
A nova forma de escolarização detalhadamente organizada e gerenciada pelo Ratio
studiorum regulamentava a ocupação do espaço, normatizava o uso do tempo, separava
conteúdos por níveis de ensino e estipulava sanções e premiações – ações que estabeleciam
uma fratura em relação aos processos educativos centrados nas práticas habituais de formação
da nobreza e nas aprendizagens ligadas aos ofícios das classes populares. Como analisam
Varela e Alvarez-Uría (1992), essa remodelação do processo educativo respondia a uma perda
de poder por parte da nobreza feudal frente às classes dominantes ligadas aos estamentos
administrativos e eclesiásticos. A destruição e a desvalorização de modos de vida mais
autônomos em relação ao poder político eram impulsionadas por uma nova forma para a
123
Como Marzola traz para a discussão (1995), a mudança educacional que instituiu a escolarização das
grandes massas é considerada, por Popkewitz, como a “maior reforma da Modernidade”.
145
regulação e o controle do corpo individual e social. Estabeleciam-se os pontos de referência
que levariam à imposição da escola obrigatória.
Se no campo econômico a manufatura estabeleceu seus pontos de oposição à produção
artesanal, no âmbito educativo o modelo erguido pelos colégios jesuítas colocava-se como o
oponente das instituições educativas medievais. Mecanismos começavam a emergir para
desvincular o saber escolar da vida política e social por meio de uma preocupação típica da
moderna Ciência Pedagógica – normatizar o processo educativo e estabelecer os fins para a
escolaridade. Essa complexa operação encontrou seu instrumento de implantação na dispersão
escolar projetada por Comenius, provocando alterações no processo educativo de instituições
que gozavam de uma restrita autonomia, como as universidades medievais.
As universidades medievais, assim como as instituições de ensino elementar, perderam
suas marcas medievais – estudantes de diferentes idades misturados, a simultaneidade dos
ensinamentos, a quase ausência de exames, a inexistência de modernas práticas disciplinares –
para ceder lugar às instituições modernas. Os tempos e espaços educativos, como afirmam
Varela e Alvarez-Uría (1992, p. 84), eram reformados para conferir um novo estatuto para o
saber, para exercer sobre os estudantes funções de controle moral e de individualização
psicológica.
A suspensão dos privilégios dos estudantes universitários e do direito de a comunidade
exercer o controle sobre a instituição educativa marcava a separação do processo educativo do
poder político. Essa perda de poder era acompanhada pelo incremento de funções reservadas
aos professores, que se estabeleciam, como assinalam Varela e Alvarez-Uria (1992, p.85) pelo
“direito de ministrar novos saberes, de inventar e aplicar técnicas didáticas e pedagógicas
dirigidas para estimular e normalizar” as instituições educativas.
O processo educativo era modernamente racionalizado, a cooperação entre estudantes
e professor cedia seu lugar para uma organização e uma planificação colocada exclusivamente
nas mãos do professor. Para Varela e Alvarez-Uría (1992, p.85), o saber passava a ser
propriedade do professor, o especialista que conhece e censura as fontes, a autoridade para
legitimar conhecimentos e capacidades, para realizar a correta interpretação dos autores. Se,
no meio produtivo, o artesão fora destituído dos meios e dos instrumentos de produção,
primeiramente com a manufatura e, depois, submetido a regime de funcionamento da
máquina pela maquinofatura, o estudante era, também, excluído do saber e dos meios e
instrumentos que permitem o acesso ao saber.
146
O modelo médico-higienista
124
, que planificava e civilizava os centros urbanos, foi
aplicado de maneira similar no processo educativo para que as fissuras com o modelo de
escolarização medieval fossem definitivamente estabelecidas. Como analisam Varela e
Alvarez-Uría,
[...] saberes [eram] separados da vida social e política que não só tinham a virtude de
converter em não saber os conhecimentos vulgares das classes populares, senão que,
além disso, através dos mecanismos de exclusão, censura, ritualização e canalização
dos mesmos, imporão uma distância entre a verdade e o erro. Para as classes
distinguidas, que são sempre as classes mais instruídas, cunha-se a verdade do
poder, verdade luminosa afastada das praças públicas e do contato contaminante das
massas. [...] A partir de agora a memória dos povos, os saberes adquiridos no
trabalho, suas produções culturais, suas lutas, ficarão marcadas com o estigma do
erro e desterradas do campo da cultura, a única e legítima porque está legitimada
pelo mito da neutralidade e da objetividade da ciência (1992, p.85-86) (grifo dos
autores).
A relação entre saber científico e saber popular, entre saber dominante e saberes
inferiores, reproduzia no tempo e no espaço da Escola do Hardware a relação social desigual
marcada pelo poder e legitimada pela avaliação do corpo de especialistas das Ciências
Humanas, autorizado a estabelecer o estatuto de verdadeiro aos novos saberes. Como
descrevem Varela e Alvarez-Uría (1992, p.86), a relação desigual para o saber convertia o
status conquistado pela aprendizagem de um ofício em um desprestigiado trabalho manual e
mecânico; as formas de saber e de socialização do campesinato e das classes populares eram
desqualificadas pelas novas autoridades científicas, pelos “novos propagandistas da verdade
legítima”.
Com o novo estatuto do saber, com o desprestígio do trabalho manual e a
desqualificação da aprendizagem de ofícios, o processo educativo era projetado para o
controle moral e para a individualização, rompendo, definitivamente, com os laços que
sustentavam as práticas das instituições educativas medievais, acelerando a imposição da
escola universal e obrigatória.
A obrigatoriedade e a universalidade do processo educativo eram implementadas por
meio de um mecanismo de equiparação da atividade escolar. Como afirma Narodowski (2001,
p.67), para legitimar a passagem da educação familiar para a esfera pública “era inteiramente
necessária a existência de um programa de universalização para garantir o acordo tácito entre
124
O espaço urbano era reorganizado – ruas, moradias, instituições – e projetado com base num saber
técnico: “um conjunto constituído por medicina e higiene que vai ser, no século XIX, um elemento, não o mais
importante, mas aquele cuja importância será considerável dado o vínculo que se estabelece entre as influências
científicas sobre os processos biológicos e orgânicos” (Foucault, 2002, p.301).
147
os que estão naturalmente encarregados da criança e os que estarão efetivamente
encarregados do aluno” [grifo do autor].
A passagem do processo educativo da esfera familiar para a pública tornava necessária
uma ação “supra-individual e supra-escolar” (Narodowski, 2001, p.73). Regular, controlar e
integrar todas as ações envolvidas na escolarização do corpo infantil não seria possível sem a
coordenação do único estamento capaz de garantir e de concretizar a universalidade – a
instância estatal. O processo pedagógico espelhava e respondia com toda a sua positividade à
configuração socioeconômica e política do Estado-Nação. Para Narodowski (2001, p.75), o
ente coordenador e integrador era o Estado por dispor dos elementos políticos e financeiros
indispensáveis para o bom funcionamento do mecanismo de escolarização.
A funcionalidade e a eficácia da atividade escolar, em sua dimensão temporal e
espacial, desdobravam-se, como analisa Narodowski (2001), em dois eixos– a simultaneidade
institucional e a simultaneidade sistêmica, um movimento que revelava sua positividade para
o fortalecimento da soberania do Estado-Nação.
A simultaneidade institucional operava em âmbito institucional, na sala de aula, unificando a
atividade docente, que, de forma econômica e eficiente, exercia um controle mais estrito sobre
a infância para converter o corpo infantil em seres civilizados, dóceis e úteis para a sociedade.
O disciplinamento e o panoptismo estabeleciam as condições para que o professor passasse a
ensinar simultaneamente um mesmo conteúdo para vários alunos. Em uma amplitude maior, a
simultaneidade sistêmica - um único currículo, um único calendário, as mesmas normas
legais - oportunizava as condições para integrar um conjunto de instituições escolares.
Em sua ação de caráter distributivo, a simultaneidade institucional e sistêmica, como
afirma Narodowski (2001, p.68), era centrada no desejo de produzir “um modelo capaz de
distribuir eqüitativamente os saberes gerados pela humanidade”. Com a simultaneidade, o
discurso pedagógico que edificava a Escola do Hardware buscava, no ideário da pedagogia
comeniana, na metáfora da escola como um relógio, o instrumento para responder ao
imperativo moderno de ordenamento para a atividade escolar: no tempo, no conteúdo, no
método. Como ilustram as palavras de Comenius: profetas fundante do discurso pedagógico
moderno,
[...] é preciso fazer uma escrupulosa distribuição do tempo para que cada ano, mês,
dia, hora tenha sua particular ocupação [...]. Cada escola siga a mesma ordem e
procedimento em todos os exercícios. Seria muito conveniente que todas as escolas
públicas abrissem e fechassem uma só vez por ano [...] e que desta maneira o labor
de cada classe se levaria a cabo por completo cada ano e chegando todos os alunos
ao fim a um mesmo tempo (exceto aqueles cuja incapacidade não o permitisse)
passariam juntos à classe seguinte [...] (Didactica Magna apud Narodowski, 2001,
p.9, 70 e 72).
148
Pelo ordenamento do tempo, a operação em grande escala desencadeada pela
simultaneidade oportunizava o encontro do sucessivo e do simultâneo. A preocupação que se
colocava por trás do plano pansófico de educação - a arte de ensinar tudo a todos – como
analisa Narodowski (2001, p.68), não era apenas que todos deviam ir à escola, mas também
que todos deviam fazê-lo ao mesmo tempo. Explicitava-se, no território escolar, a percepção e
configuração que a temporalidade assumia no cenário econômico-político. O tempo era
tomado com uma das principais preocupações da Escola do Hardware: diante da desordem e
diante da heterogeneidade, a simultaneidade atuava sob o preceito da gradualidade e da
uniformidade. Do caos para a ordem, regularidades eram geradas: o tempo-idade, a cada etapa
da maturidade humana uma etapa da escolaridade; o tempo-ano, um único calendário escolar;
o tempo-dia, a harmonização da atividade que unifica a ação docente - ao mesmo tempo, um
mesmo conteúdo para vários alunos.
A universalização da escolarização, como adverte Narodowski (2001), por via do
ordenamento sucessivo-vertical ou do simultâneo-horizontal, não era desencadeada por uma
pretensão simplesmente democratizadora, o que seria “uma visão parcial e, em conseqüência,
ingênua”. A atualização moderna do ideal pansófico da pedagogia comeniana estava
alicerçada na lógica normalizadora e homogeneizadora. Na busca da ordem, a simultaneidade,
e seu preceito de uniformizar tudo, deixava de lado a diversidade; era a arma que o processo
educativo apontava para combater a desordem e a heterogeneidade.
Para a solidez do ensinar e do aprender, a operação ordenadora da transmissão de
saberes colocava a gradualidade como um importante instrumento para abreviar e acelerar o
processo educativo. A gradualidade objetivava integrar e harmonizar o processo educativo
pela separação meticulosa dos saberes, pelo seqüenciamento e pela coerência das ações e pela
repetição constante do aprendido, uma ação sustentada por um conceito central na pedagogia
comeniana – a instrução simultânea.
Pela instrução simultânea, o processo educativo projetado pela Escola do Hardware
superava três características presentes nos sistemas de ensino anteriores, como destaca
Narodowski (2001, p.81): “[...] cada mestre trabalhava separadamente com um ou alguns
discípulos; costumava existir vários mestres para um mesmo conjunto de educandos, o que
confundia a aprendizagem destes; os livros lidos não estavam unificados, o que causava muita
confusão”. O produto mais significativo da instrução simultânea era a programação dos
conteúdos a transmitir, permitindo a construção de um currículo unificado em um sistema de
simultaneidade.
149
A normatização da disciplina, meio de garantia da “marcha harmoniosa do processo de
instrução simultânea”, como coloca Narodowski (2001, p.88), efetivava-se por um processo
de rejeição e pela assunção de uma tendência nas instituições educativas. Gritos do professor,
castigos físicos, usos de instrumentos específicos para o disciplinamento escolar passaram a
ser rejeitados para dar lugar a uma tendência de controle basicamente epistemológico, menos
sobre o corpo infantil e mais sobre o método. A confiança no método pedagógico moderno
fez com que a disciplina fosse deslocada da posição de instrumento básico para a de elemento
conjuntural. As medidas coercitivas sobre o corpo cederam seu lugar como instrumentos
disciplinadores para os mecanismos de castigo e de premiação - as repreensões, os louvores,
as exaltações. A pedagogia moderna passava a exercer uma vigilância não sobre o corpo
infantil em processo de escolarização, mas sobre a atividade do mestre e a transmissão de
saberes de um modo correto.
Hamilton (1992) descreve a emergência do termo currículo junto com a divisão da
escola em classes, na agitação política do século XVI. Com a adoção da classe – uma
vigilância mais estreita dos alunos – e com o currículo – um refinamento do conteúdo e dos
métodos pedagógicos -, era modelado um artefato de controle externo maior para o ensino e a
aprendizagem numa época em que a escolarização saia da jurisdição da Igreja e passava para
o âmbito secular e estatal. Para Hamilton (1992, p. 34), por meio de um esforço de
ordenamento moderno, a escola era ajustada para controlar os professores e as crianças de
forma que pudessem ensinar e aprender assuntos difíceis em tempo recorde. O currículo
garantia a homogeneidade nos conteúdos de aprendizagem, e o ordenamento para o processo
educativo operava com mais um elemento para atingir a meta de uniformização: do tempo, do
espaço e do conteúdo.
Pela disposição curricular, o mundo passava a ser compreendido a partir de um
quadriculamento dos diferentes campos dos saberes, um enquadramento que produzia um
pensar e um agir disciplinar, pois tudo o que poderia ser dito e pensado no mundo passava a
ser explicado pela lógica das disciplinas. O desenho curricular criava, organizava, e
transformava o pensamento, a percepção, a análise e a intervenção na realidade. No desejo de
disciplinar, de ordenar o mundo moderno, as matérias de ensino impuseram um sentido de
entendimento do mundo, atingindo os atores sociais das mais diferentes maneiras.
Era na diversidade dos conhecimentos postos no mundo que as ciências modernas
emergiam como territórios de saberes, monopólios de regimes de verdade legitimados pelo
estatuto de cientificidade. O controle dos diferentes campos de saberes saía do nível macro da
tutela eclesiástica - pecado e salvação eterna – para as operações de suprimir e censurar
150
enunciados no nível micro, interno. Como analisa Varela (2002, p.86), sob a ação disciplinar,
quadriculavam-se e hierarquizavam-se saberes, reduzindo-os a disciplinas, com uma
organização interna e lógica específica. Sob a intervenção do Estado, operava-se a
eliminação dos saberes locais e artesanais e a sua substituição por saberes mais gerais ou
industriais e pela centralização, normalização e hierarquização dos saberes. O ordenamento
disciplinar, para Veiga-Neto (1996), constrói disciplinas que especificam o que estudar e
como relacionar entre si as coisas que pensamos, o que acaba construindo os regimes de
verdade, fornecendo os critérios e os métodos para organizar e construir objetos. As
disciplinas fabricam os praticantes do conhecimento, com as respectivas maneiras de
produzir, de ter acesso e de colocar saberes em circulação, ao mesmo tempo em que
produzem bens, empregos, recursos econômicos, prestígios, valores e a idéia de progresso.
Para Narodowski (2001), a pedagogia moderna, ao deslocar a escolarização do âmbito
paterno para o âmbito magistral, inaugurava um movimento singular para a escola, o de lugar
de ação direta sobre a realidade. Com o mundo representado por meio de textos e imagens, a
escola passava a ser o espaço onde a realidade era gerada e o tempo-espaço para apropriação
das chaves indiretas e das estratégias gerais de participação futura conquistada por meio do
aprendizado das linguagens e das grandes disciplinas científicas. Como analisa Narodowski,
[...] a escola aparece assim como uma realidade onde se processam conhecimentos
que possuem um alto grau de abstração e que [por meio] de diferentes elementos
mediatiza tanto a presença do externo em seu interior como a participação futura de
seus autores no exterior. A similitude sistemática parece incluir no modelo um
princípio de realidade interno ao sistema escolar já que, embora as crianças não
operem diretamente com aquilo que será objeto de ação quando adultos, mas vêem
antecipadamente as utilidades do mesmo, todas as crianças em todas as escolas são
incluídas na mesma operação, o que torna esse jogo de abstrações, imagens e
representações um lugar comum (2001, p.87).
A Escola do Hardware era institucionalizada e tinha seu funcionamento garantido pela
qualidade dos elementos que compõem sua dinâmica – o disciplinamento do tempo e do
espaço, a simultaneidade, a uniformidade, a gradualidade e a vigilância epistemológica. No
processo educativo, eram experienciados deslocamentos, como aponta Foucault (1987), de um
conjunto de escolas sem uniformidade para um sistema ordenado e estatal; da
heterogeneidade de jovens justapostos para a homogeneidade construída na relação entre
professores, classe, alunos; da restrição de acesso para a obrigatoriedade e uniformidade do
processo educativo. Por meio da construção de um programa escolar marcado pela
complexidade crescente, garantia-se a aquisição progressiva do saber e do bom
151
comportamento. Era no entrelaçamento desses elementos que se dava a invenção da Escola
Seriada.
A escola moldava-se como o tempo-espaço seriado e analítico, que passava a atender a
necessidade de escolarização colocada pela urbanização e para a consolidação da sociedade
disciplinar e produtiva. Ao distribuir no espaço, ao estabelecer a localização na série de séries,
ao intensificar a utilização do tempo, a escola tornava o sujeito suscetível a operações
específicas que naturalizavam o controle detalhado e a intervenção pontual, para a ação de
processos coercitivos individuais e coletivos, para impor uma relação de docilidade-utilidade.
Delimitando um tempo e um espaço de normalização, a Escola do Hardware deslocava
a instituição educativa do ler-escrever-contar para a da formação integral com um programa
curricular enciclopédico e por meio de operações que, como analisa Varela (2002, p.82),
estavam na base da produção social de novos saberes e de novos sujeitos por meio de uma
nova concepção e organização do tempo e do espaço. Dos grupos misturados e pouco
vigiados, passava-se para a localização precisa no interior de cada classe, para promover
prioritariamente as relações úteis e produtivas. Ao maximizar a ação educativa sobre os
sujeitos em processo de escolarização, a escola refletia a maximização de forças e de energias
exigidas na esfera produtiva para a acumulação de riquezas e de capital.
A escola modelava-se como a instituição social central na formação do sujeito e da
sociedade modernos; era nela que se colocava em jogo o poder disciplinar para a produção
dos sujeitos e para a produção de saberes e, desse cruzamento, para a produção do mundo e do
estilo de viver moderno. A formação do edifício escolar estruturado pela distribuição dos
indivíduos e para capitalizar o tempo para torná-lo suscetível à utilização e ao controle
começou a se desestabilizar no mesmo momento histórico em que o sistema fábrica saiu da
vitrine como forma de organização da produção econômica. O salário e a nota; a série para a
produção e para o ano letivo; um supervisor para trabalhadores e um mestre para alunos; os
sistemas de vigilância e de sanção no processo produtivo e escolar mostravam a pouca
eficácia para um esquema produtivo que passava a se organizar sob a base técnica da
automação e sob a relação capital-trabalho que dispensava o corpo do trabalhador e
comemorava a entrada da máquina.
A seriação era posta em xeque, e uma nova forma de escolarização começava a ser
modelada, edificada sob a necessidade de flexibilizar os tempos e os espaços escolares para
respeitar ritmos individuais de aprendizagem, para potencializar o sucesso escolar para todos.
Era preciso sintonizar o tempo e o espaço escolares à flexibilidade do cenário produtivo
projetado pelo Espaço Mercadoria e pelo Tempo Acelerado.
152
PARA O ESPAÇO MERCADORIA E O TEMPO ACELERADO – A ESCOLA DO
SOFTWARE
A pedagogia moderna, como afirma Narodowski (2001, p.93), pelo princípio da
gradualidade, lançava as bases para a construção de categorias mentais – maturidade,
desenvolvimento, aprendizagem – estabelecendo, assim, as condições de possibilidade para a
emergência de novas disciplinas e de novos saberes, que iriam aprofundar o já iniciado
processo de normatização do corpo infantil em processo de escolarização.
No início do século XX, desloca-se a pedagogia moderna alicerçada em práticas
disciplinares coercitivas para colocar no centro do processo educativo a criança. Esse
deslocamento emergiu no momento histórico em que se buscava uma resposta à questão
social colocada pelo acirramento das lutas de classe. A Europa encontrava-se fraturada pelas
idéias marxistas e pela necessidade de neutralizar os efeitos da luta de classes, para
harmonizar os interesses do capital e do trabalho e, assim, permitir a integração do
movimento operário. Começava a ser modelado um processo educativo que, na seqüência dos
movimentos revolucionários do século XIX, passava a ser ajustado ao interesse da indústria -
para o lucro - e ao interesse do governo - para o conformismo.
A proliferação das fábricas aumentava a população urbana que, por sua vez, tornava-se
operária. Sob a força propulsora do socialismo, pela necessidade de redimensionar em termos
mais humanos o avanço tecnológico, o processo educativo era configurado pela necessidade
de formar meninos e homens para preencher os cargos especializados disponibilizados pela
indústria.
O crescimento vertiginoso da indústria manufatureira pela aplicação imediata e
rentável de descobertas científicas fez com que a ciência se tornasse cada vez mais necessária
para incrementar o processo de industrialização. A pesquisa científica presa ao
desenvolvimento de máquinas e de ferramentas para a indústria passava a ser desenvolvida
em instituições educativas cada vez mais especializadas, o que tornava impraticável e
incabível uma visão orgânica para as atividades científicas
125
e condicionava uma visão
positivista para a realidade
126
.
125
Como analisa Giles (1987), os homens da ciência aceitavam essas condições de pesquisa como garantia
de emprego, tendência reforçada pelos títulos e honrarias. Realizando a pesquisa pura, teórica, se sentia eximido
de qualquer responsabilidade pelo uso que seria impresso para o produto de suas pesquisas.
126
O ideal positivista era expresso por seu fundador, Augusto Comte, que projetava a sociedade em uma
ascensão progressiva. A humanidade avança etapa por etapa, desde a interpretação religiosa da realidade,
153
Um processo educativo refletindo o ideal positivista projetado pela ciência passava a
ser assumido pelos sistemas educacionais nacionais nos países industrializados. Seus
governantes buscavam métodos mais eficientes e menos dispendiosos para formar os quadros
necessários ao processo de industrialização. O processo educativo consolidava-se como
Ciência, e a Pedagogia, como tecnologia, reduzida à aplicação de princípios científicos por
meio de métodos racionalizados.
Além dos princípios do socialismo e do positivismo, o processo educativo foi
influenciado por uma nova ciência, a Psicologia Experimental, fundamentada na metodologia
da observação da Biologia e da Fisiologia, com o objetivo de relacionar estrutura-função,
explicitada em termos mecanicistas ou quantitativos. Essa incipiente ciência interpelava o
processo educativo pela via da instrumentalização, para a solução dos problemas imediatos e
não para um planejamento pedagógico mais abrangente.
Varela (2002) analisa que, nesse cenário sociocultural, político e econômico, a
obrigatoriedade escolar se instituía como um instrumento de regeneração e de profilaxia
social. Segunda essa pesquisadora, foi estabelecida uma série de analogias entre a criança, o
selvagem e o degenerado , e a infância passou a corresponder a um estágio de selvageria. As
crianças, em especial as das classes trabalhadoras, eram identificadas como selvagens,
devendo, por isso, ser civilizadas e domesticadas em uma escola pública e obrigatória ainda
formatada por uma ação pedagógica disciplinar coercitiva.
Novos saberes, novos especialistas e o sujeito psicológico
A obrigatoriedade e a universalização da escola moderna – o currículo, o método e o
livro de texto unificados - colocara no cenário educativo um modelo de educação formal
com práticas, com sistema de valores e com uma percepção de mundo que, ao se impor,
chocava-se com os hábitos e o modo de viver das classes trabalhadoras. Para Varela (2002),
essa imposição, por via legal, fez aflorar conflitos e desajustes que, subsidiados pelos
discursos das patologias da aprendizagem, foram interpretados a partir de uma enviesada ótica
que responsabilizava a má índole dos alunos por todos os males vividos na escola.
passando pela interpretação metafísica, para enfim chegar à plena compreensão positiva da realidade por meio
do raciocínio indutivo. O ideal positivista traz como resultado a observação direta da experiência sensível. Esse
ideal inspirou a legislação educacional dos Estados-Nação na Europa e nas colônias africanas, asiáticas e
americanas.
154
O processo educativo para os filhos da classe trabalhadora ocorria sob o ritmo
unificado da instrução simultânea e sob a lógica de um conjunto de práticas escolares para
identificar, diferenciar e hierarquizar sujeitos colocados dentro do tempo e do espaço da sala
de aula. O ensino seriado produzia categorias no processo educativo - o rápido e o lento, o
capaz e o incapaz, o integrado e o não-integrado – instituindo o problema pedagógico da
reprovação e da necessidade de retomar e de refazer programas de estudos.
Formava-se um campo institucional de intervenção e extração de saberes destinados à
ressocialização do anormal para construir as possíveis respostas para os sujeitos que se
colocavam na exterioridade dos padrões de normalidade. Territórios de saberes eram
estabelecidos impulsionados pelas patologias da aprendizagem - a psicologia da
aprendizagem, a psicologia evolutiva, a psicopedagogia. Um novo conjunto de especialistas
passava a compor a ciência pedagógica e a marcar presença na instituição escolar -
psiquiatras, psicólogos clínicos -, personagens convocados a justificar o insucesso escolar e a
programar métodos de ensino mais eficazes.
Alicerçado em uma outra visão de infância, o estatuto médico-científico passava a
interpelar o discurso pedagógico forjando a patologização do espaço escolar. Novos termos
começavam a fazer parte do discurso pedagógico - diagnóstico, prognóstico, recuperação
preventiva e terapêutica -, além dos vocábulos presentes nos laudos dos especialistas das
áreas psico-médicas.
Crianças em manicômios e alunos resistentes à disciplina escolar compunham objetos
de observações e investigações de pesquisadores no final do século XIX e início do século
XX
127
. Surgem instituições educativas para o controle social dos não-adaptados, para a
educabilidade da infância anormal, caracterizando-se como tempos e espaços de observação e
funcionando como verdadeiros laboratórios que desencadeariam mudanças no dominante
modelo pedagógico das práticas disciplinares coercitivas. Como destaca Varela,
[...] a gestão da anormalidade converteu-se em ponta de lança do governo de
populações mais amplas. Neste sentido, a infância anormal, que parecia uma
população residual e secundária, serviu, na condição de objeto de tratamento e de
técnicas, de laboratório de experimentação de novos saberes e poderes com desejo
de expansão (2002, p.97).
127
Montessori, Decroly, Pestalozzi, Herbart e Froebel idealizaram um sistema educativo popular centrado
no desenvolvimento da capacidade da criança. As idéias de Rousseau prepararam e inspiraram os anseios e as
aspirações de uma época marcada por transformações e revoltas contra todos os elos que formam a sociedade:
político, econômico, industrial e intelectual. (Cf, Giles, 1987).
155
As pesquisas e os testes de inteligência de Binet
128
ilustram o cenário de um processo
educativo em que proliferavam as medidas, pois era preciso detectar o mais rápido possível os
refratários à obrigatoriedade escolar. Gêneros e espécies resistentes à ação disciplinar das
pedagogias coercitivas eram revelados na infância:
[...] as crianças insolentes, indisciplinadas, inquietas, faladoras, turbulentas, imorais
e atrasadas [...]. [...] teimosos, mimosos, parabúlicos, cretinos, sem sentimentos,
desconfiados, frios, desmemoriados, memoriosos, visionários, terroristas, surdo-
mudos, cegos, de gostos grosseiros, inexpressivos, imbecis, histéricos,
hiperestéricos, passionais [...] (VARELA, 2002, p.91).
Dos primeiros pedagogos e psicólogos da infância anormal e dos saberes que passaram
a legitimar - o campo da Psicologia Experimental e depois da Psicologia Genética -, nasciam
as críticas à pedagogia disciplinar: aos métodos tradicionais de ensino, aos rígidos espaços,
aos horários inflexíveis, à inadequação dos programas. As primeiras fissuras nos pilares que
haviam colocado em funcionamento a Escola do Hardware eram estabelecidas, e outras
configurações para o processo educativo começavam a desenhar a Escola do Software. Os
saberes e as práticas que se destinavam, inicialmente, aos não-adaptados, logo seriam
deslocados para as crianças normais, emergindo como um remédio para os males do controle
considerado demasiadamente exterior e coercitivo.
A educação era compreendida por uma interface antropológica que tinha sua base nas
idéias de Rousseau, o protagonista dessa reengenharia pedagógica
129
. Para uma outra
compreensão de homem e de educação, a criança, ou o educando, era colocada no centro do
processo de aprendizagem. O processo educativo não poderia ser reduzido à organização de
condutas e de saberes de forma a adaptá-lo melhor à mente da criança, como era uma
preocupação de Comenius. As regras estabelecidas pelos jesuítas no Ratio Studiorum perdiam
seu sentido, como analisa Streck (2004, p.27), quando a “criança [era] colocada como critério
e como medida do aprender”. Os saberes acumulados pela Ciência Pedagógica passavam a
128
Binet elaborou uma testagem para triagem e orientação de crianças excepcionais com a finalidade de
aplicar um tratamento médico e, eventualmente, integrá-la ao processo educativo. Com suas pesquisas,
desenvolve-se uma escala de eficácia mental que abriria caminho para o conceito de inteligência reificada,
verificável e individualizada, assumindo um papel de grande relevância na organização pedagógica em escola
mundial.
129
Streck (2004) e Eby (1976) apontam a guinada que Rousseau estabelece para a compreensão da educação,
o que faz desse pensador um revolucionário. O Copérnico do mundo moderno deslocava a teoria e a prática do
ponto de vista dos interesses e da vida social adulta para um outro ponto de vista: no lugar das idéias e opiniões
do adulto, colocou as necessidades e atividades da criança e o curso natural de seu desenvolvimento. Nada mais
revolucionário para um pensador da cosmologia medieval que deslocava a criança , o adulto em miniatura, para
fazer dela o ponto central do processo educativo.
156
operar em função da criança, sob a lógica de um processo educativo não mais cerceado e
engessado por um programa de estudos a cumprir. A ação mais importante do professor e da
rotina educativa deixava de ser a de organizar e estruturar conteúdos para centrar-se na
observação da criança e na análise de seu desenvolvimento.
Estudar as fases de desenvolvimento, observar as brincadeiras e a linguagem e os
modos de raciocinar da criança faziam parte das pesquisas desencadeadas por Rousseau, que
iniciava um estudo sistematizado sobre a infância como parte de uma investigação para a
compreensão humana. O processo educativo tornava-se aberto, uma ação em que se conhecia
o ponto de partida, mas que talentos, interesses e oportunidades experienciadas pela criança
dificultavam a definição de uma chegada. Edificado sob uma nova construção e percepção do
ser em processo educativo, o sujeito disciplinar modelava-se como sujeito psicológico, como
analisa Varela (2002, p.97), com novas formas de socialização, transformações no estatuto do
saber e formas de produção de subjetividades.
Sob o olhar das Ciências Humanas, principalmente sob a tutela da Psicologia, os
métodos mecânicos e repetitivos que haviam denotado uma concepção de infância foram
colocados sob suspeita. Novos saberes e novos especialistas legitimavam uma nova
concepção para a natureza infantil e um movimento por uma nova escola, por uma
escolarização ativista, que idealizava o novo aprendiz: ativo, autônomo, participativo e
democrático. As tecnologias do poder disciplinar que haviam edificado as instituições
educativas modernas conquistavam novos dispositivos – práticas individuais e
individualizadas – para esboçar, no início do século XX, o que Foucault nomeia, citado por
Varela (2002, p.96), como uma forma de um exercício de poder, o psicopoder, gestado nas
instituições educativas de correção e de educação infantil e, posteriormente, espraiado para
outras formas de socialização.
A escolarização ativa e criativa para a autonomia e a auto-realização
O saber e o especialista da psicologia escolar diversificaram-se na psicologia genética,
na psicologia cognitiva e na psicologia do desenvolvimento, proclamando novas autoridades
para prescrever processos pedagógicos da educação infantil à educação especial. Novos
saberes e novos especialistas colocavam o aprendiz no centro da ação pedagógica, declarando
uma bandeira de guerra à aprendizagem alicerçada na ação. Novos métodos e novas técnicas
157
reorganizavam o tempo e o espaço de ensinar, modificando programas escolares para
configurar um meio educativo artificial ajustado às necessidades naturais do sujeito em
processo de aprendizagem.
O processo educativo adaptava-se aos interesses e às tendências naturais da criança.
Maria Montessori desenvolveu um processo educativo para enfrentar uma realidade de
escolarização das massas que engrossavam os centros urbanos da Itália. Criava a Casa de
Bambini, para crianças faveladas de Roma, que não iam à escola e viviam nas piores
condições de higiene e de promiscuidade. Para Varela (2002), a instituição educativa
montessoriana não se colocava alheia às necessidades dos operários, ao buscar a higiene e a
harmonia familiar e social. Embora normais do ponto de vista físico e intelectual, as crianças
oriundas dos bairros pobres eram refratárias ao comportamento socializado que se costumava
estabelecer como condição prévia para a instrução em sala de aula.
A profilaxia e a regeneração social estavam na base da reforma que colocava o normal
e o anormal no cenário educativo, para produzir, no final do processo, um sujeito equilibrado
e adaptado socialmente. Como afirmava Decroly, citado por Varela (2002, p.92), na luta
contra a degeneração e suas múltiplas conseqüências, a intervenção deveria, ao mesmo tempo,
ser profilática e terapêutica e o conceito de terapêutico implicava tratamento médico e
tratamento pedagógico.
Considerando a sala de aula dentro de uma perspectiva médica e assistencial,
Montessori rejeitava qualquer modelo tradicional para o processo pedagógico. A sala de aula
devia ser transformada em um ambiente apropriado à introdução da ordem e para dar
significado às experiências e impressões da criança. O programa de estudo passava a ser bem-
planejado, com a elaboração de tarefas evolutivas para levar o aluno a alcançar o nível de
desenvolvimento desejado.
O ambiente escolar devia estimular e desafiar a criança a buscar o amadurecimento
social e moral para a conquista da autonomia e da emancipação humana. O mobiliário e a
metodologia eram adaptados à fase de desenvolvimento da criança, e o professor passava a ser
o orientador e o coordenador das experiências de aprendizagem, cuja ação mais importante
era a de identificar as verdadeiras necessidades da criança e de tornar todas as suas
experiências veículos de aprendizagem
130
. O processo de separação do mundo infantil do
mundo do adulto instituía, para Varela (2002, p.96), um modelo de ensino liliputiano que, ao
130
Para Montessori, a profissão do magistério deveria ser exercida por mulheres, por serem mais capacitadas
para descobrir potencialidades na criança e para introduzi-la nos padrões culturais da sociedade (Cf. Giles,
1987).
158
insistir nas possibilidades criativas e expressivas, impunha uma infantilização das crianças
pequenas e, progressivamente, das crianças em geral, distanciando-se dos saberes da cultura
legítima e, assim, da possibilidade e da capacidade de compreensão do mundo adulto.
Tempos, espaços e saberes precisavam ser adaptados à população escolarizável.
Entravam em cena os centros de interesses e os métodos globalizadores, e os programas
curriculares e a rotina escolar eram transformados. Observar, experimentar e expressar eram
ações que substituíam as práticas de repetição e de memória para aprender os saberes
organizados na rigidez da tradicional divisão disciplinar. O tempo do relógio educativo era
ajustado ao tempo biológico da criança, respeitando as etapas supostamente universais do
desenvolvimento infantil centradas na lógica do progresso e da superação.
Novos métodos e técnicas, novas organizações de espaço e de tempo e testes e
avaliações estabeleciam medidas normativas e novos dispositivos de poder. A prática
pedagógica passava a concentrar-se em ações educativas com um frágil controle externo,
estruturando tempos e espaços para promover a criatividade e a autonomia:
O controle, portanto, que o mestre exercia no ensino tradicional através da
programação das atividades e dos exames, se desloca [...], tornando-se indireto, para
organização do meio. O objetivo ao qual se volta já não é a disciplina exterior,
produto de um tempo e de um espaço disciplinares, mas a disciplina interior,
autodisciplina, “a ordem interior” (Varela. 2002, p.93).
O controle interno tornava-se cada vez mais forte, pois, aliando-se aos exames
avaliativos externos vigiados e sancionados pelo mestre, a auto-avaliação marcava sua entrada
na cena do processo educativo. Sob a tutela de uma refinada organização do tempo e do
espaço escolares e por meio da normatização impressa nos estágios do desenvolvimento
infantil, eram desenvolvidas as práticas pedagógicas e as marcas da programação e vigilância
conformavam a criança natural e universal. Parece que, por ironia, como adverte Walkerdine,
citada por Varela (2002, p.99), “esta criança foi vigiada e controlada muito mais do que as
‘velhas pedagogias’, porque não apenas se requeriam delas respostas corretas, mas também
agora era necessário que seu mecanismo de desenvolvimento fosse controlado”.
O controle do processo de ensino-aprendizagem era deslocado das mãos do professor e
do aluno para subordinar-se aos saberes dos especialistas. A intensificação de práticas
pedagógicas ativas e participativas colocadas no cenário educativo para construir e mediar a
relação do sujeito consigo mesmo associava-se e articulava-se normativamente a esse
processo de expropriação do controle do processo educativo, influenciado pela Psicologia
159
Social do Desenvolvimento. Como destaca Larossa (1994, p.39), práticas
pedagógicas/terapêuticas do tipo reflexivas – conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se
normas, regular-se, disciplinar-se - eram colocadas em ação para que o sujeito individual
desenvolvesse de forma natural a idéia que tem de si mesmo. A escola, interpelada por
práticas pedagógicas e terapêuticas, passava a ser um espaço institucionalizado para que o
aprendiz autoconsciente e dono de si mesmo pudesse se desenvolver
131
e forjar o ser
individualizado - ativo, participativo e democrático.
Flexibilizar, participar, informatizar - novas ações educativas e o sujeito participante
Os saberes psicológicos e pedagógicos deslocaram as práticas pedagógicas coercitivas
e instituíram uma refinada organização para flexibilizar o tempo e o espaço escolares e
adaptá-los à normatização dos estágios do desenvolvimento humano. Por meio de práticas
pedagógicas centradas no princípio aprender a aprender, passava-se, progressivamente, a
colocar na mão do aluno o controle de sua aprendizagem, o saber auto-avaliar-se,
autocorrigir-se, autodisciplinar-se, ao mesmo tempo em que, como adverte Varela (2002,
p.99), “a verdade sobre eles mesmos e seus verdadeiros interesses tornava-se uma realidade
distante e alheia”.
A lógica do tempo linear cristalizada pela gradualidade, como afirma Varela (2002),
que tinha sua representação nas leis e nos estágios de desenvolvimento de aprendizagem,
reorganizava-se e apontava para o tempo educativo, da mesma forma que o tempo social, sob
a lógica do tempo pontual, sustentado pelas leis do ritmo, um ritmo individualizado, em que o
aluno passava a ser seu próprio parâmetro no processo de aprendizado.
A possibilidade de uma socialização universal, individualizada, válida para qualquer
sujeito, desligada de classe social, legitimada por saberes médico-científicos, trazia para o
discurso pedagógico, para o âmbito da educação, os princípios do liberalismo econômico. O
processo de socialização e de formação do homem civilizado passava a ser estritamente
individual, negando o capital econômico e cultural familiar. A escola moderna disciplinar
vestia novas roupagens, vivenciava novos ismos, ensaiava saberes e práticas que
condicionavam mudanças na relação pedagógica sintonizadas com os novos significados que
131
Para cada tempo e espaço, um processo de auto-interpretação do homem era experienciado, seja ele
impulsionado pela mística do ritual, seja pela imagem e semelhança de Deus ou pela razão, condicionando o
comportamento humano ao longo da história, na relação com os outros e consigo mesmo.
160
o tempo e o espaço conquistavam a partir do ordenamento mundial pós-guerras e do avanço
das tecnologias de informação, de comunicação e de deslocamento.
Contemporâneo à construção de um outro ordenamento político, administrativo e
econômico para o Estado-Nação, quando esse se transformava profundamente e perdia
algumas de suas antigas prerrogativas – exercício do poder militar, cunhagem da moeda,
exclusividade cultural – e quando a soberania nacional, caracterizada por Negri (2003, p.13)
como “um monopólio no exercício do poder que se exercia sobre um território unido por uma
única cultura”, desaparecia, o mundo era obrigado a reconhecer outras fontes de soberania, e o
processo educativo colocava sob suspeita a legitimidade da estrutura disciplinar. Se as
fronteiras que demarcavam o Estado-Nação tornavam-se extremamente tênues, as fronteiras
da rigidez curricular disciplinar eram questionadas por meio de um acontecimento
denominado por Veiga-Neto (1996) de movimento pedagógico pela interdisciplinaridade.
Com a interdisciplinaridade, a flexibilidade imprimia sua marca na organização
curricular sintonizando-a aos discursos em prol da totalidade, a solução pela via pedagógica
para buscar a unidade perdida. A racionalidade cartesiana tornara o mundo doente, a
interdisciplinaridade possibilitaria a aproximação das disciplinas. A patologia do saber era
combatida ao projetar práticas educativas interdisciplinares, e os conteúdos conquistavam o
rótulo de transdisciplinares. Esse novo pensar para o currículo forjava, para Popkewitz (1994),
em sua forma interdisciplinar de apresentar os conhecimentos, uma nova percepção da
realidade e uma nova forma de inserção social. Para um mundo que se planetarizava
aceleradamente, o pensar e o agir interdisciplinarmente conquistaram importância e se fazem
fortemente presentes no discurso pedagógico contemporâneo, para inculcar marcas no sujeito
aprendiz requisitadas pelo mundo da produção pós-fordista, para Santomé (1998, p.64),
“flexibilidade, confiança, paciência, intuição, pensamento divergente, capacidade de
adaptação, sensibilidade com relação às demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir
na diversidade, a aceitar novos papéis [...]”. Essa personalidade em formação no tempo-
espaço escolar inscreve-se, como problematiza Varela (2002, p.104), na lógica de um
exercício de poder cada vez menos visível, mais capilar, mais microscópico, que se incorpora
em formas de socialização e em modos de educação específicos, frente ao corpo-segmento do
poder disciplinar.
Da linha de montagem para a plasticidade das equipes de produção, a palavra
flexibilidade passava a ser central. A flexibilidade nos horários, nas contratações, e nos
salários modificava a gestão e a produtividade na empresa. Do proletário, passava-se para o
empregado que participava do lucro da empresa. O olho do dono multiplicava-se no olhar de
161
cada empregado, que, na posição de sócio, reduzia custos, detectava problemas e apontava
soluções. Tudo e todos passavam a ser detalhadamente controlados, registrados,
contabilizados, informatizados. Da produção sob a meta da qualidade total, passando pela
tomada de decisão, participar e flexibilizar eram os verbos conjugados para imprimir
qualidade e eficiência à esfera produtiva.
A escola empresariava seu processo pedagógico. Flexibilizar e participar passavam a
ser também os verbos conjugados no tempo e no espaço escolares, impulsionando
deslocamentos no processo ensino-aprendizagem: da ação pedagógica do professor para o
coletivo escolar; do boletim para o parecer descritivo; da hora-aula para o bloco de horários;
do programa disciplinar para a ação interdisciplinar. O sistema de regulação espaço-temporal
no edifício escolar passava a operar com a máxima flexibilização do tempo e do espaço. A
sala de aula passava a ser configurada pela mesma lógica produtiva da empresa: grupos e
equipes de trabalho, líderes, transitoriedade e alternância de papéis.
Na educação institucionalizada, saberes e conteúdos disciplinares perdiam
progressivamente sua importância para que práticas pedagógicas sintonizadas com o ritmo do
aluno conquistassem lugar, como destaca Varela (2002, p.100), práticas que estivessem
“relacionadas ao desenvolvimento do corpo, das linguagens, da gestualidade, da imagem:
esporte, expressão corporal e verbal, teatro, psicodrama, dinâmicas de grupo, mímica,
operações de coordenação e de percepção espaço-temporais [...]”. A ação educativa, como
adverte a autora, alicerçada em pedagogias cada vez mais psicologizadas, reforçava a imagem
do aprendiz para sublimar conflitos e superar deficiências afetivas por meio da comunicação
intra e interpessoal. Com conhecimentos interdisciplinares e sintonizados com os contextos
culturais e sociais ligados à vida dos alunos, o projeto educativo era desprivatizado para
incentivar e valorizar a participação para que o sujeito aprendiz pudesse expressar suas idéias
e sentimentos, para manifestar e encontrar seu estilo próprio livre de ações coercitivas.
Aprender a aprender era eclipsado pelo aprender participando e, nas instituições
educativas, passava-se a experienciar o deslocamento da transmissão do conhecimento
historicamente construído para a formação do sujeito participante. Ajustava-se o processo
educativo à lógica do cenário da sociedade de controle, que exige a participação como forma
de inibir resistências.Tecnologias inseridas no tempo-espaço escolar – televisão, vídeo, DVD,
computador, redes digitais de comunicação e de informação – revelam uma utilização muitas
vezes restrita ao jogo lúdico-tecnológico, configurando os tempos e os espaços escolares,
como indica Varela (2002, p.104), “como verdadeiros parques de alucinado entretenimento”.
162
Na Educação, há uma relação imanente entre escola e sociedade. Para Veiga-Neto
(2003b), há uma implicação mútua, em que ao mesmo tempo em que a escola funciona
reproduzindo os arranjos sociais, sejam eles de natureza econômica, cultural ou política, opera
para a produção da sociedade por meio de novos saberes e de novas práticas e competências.
O edifício escolar assentado sobre uma organização espaço-temporal fragmentada,
segmentada, da escola seriada revela sua inadequação para um cenário social em que a
mutação tecnológica entrelaçada ao discurso da unidade e da totalidade borra os limites dos
territórios de um mundo que se torna globalizado.
A imbricada relação escola-sociedade configura um tempo-espaço escolar organizado
em torno de outras modalidades de organização para o processo educativo, em que entram em
cena os ciclos de formação, os programas de aceleração de aprendizagem, a educação a
distância, modalidades de Educação que não se apresentam como uma sucessão ou uma
substituição à escola moderna, mas sim como novas camadas, camadas colocadas mais na
superfície, para a manutenção da ordem escolar e da ordem social.
Os saberes da Informática Educativa interpelam o processo educativo, caracterizando
novos tempos e espaços no edifício escolar e projetando novas possibilidades e desafios para
a relação Educação-Tecnologia. Interfaces começam a ser construídas com a inserção das
redes digitais de informação e de comunicação, introduzindo novas metodologias, modelando
novas práticas e instituindo novos saberes tecidos nas teias do marketing educacional, na
desmaterialização do trabalho e na redução de custos para o gerenciamento do processo
educativo e, também, para combater o individualismo e o narcisismo, retecendo afrouxados
laços sociais.
Olhar os deslocamentos, as rupturas e as continuidades de uma proposta de
escolarização que, de forma oficial, coloca no edifício escolar tecnologias computacionais
pelas lentes das configurações espaço-temporais, problematizadas por meio da grade de
inteligibilidade construída na trama de acontecimentos políticos, econômicos, sociais e
culturais, e apresentada na primeira parte desta tese, é o que proponho para os próximos
capítulos: dar visibilidade às percepções, aos significados e aos usos de tempo e de espaço
que a relação escolaridade-tecnologias digitais de informação e de comunicação começam a
configurar da periferia de Porto Alegre.
163
O PALCO: DA ESCOLA SERIADA PARA A ESCOLA CICLADA
Na escola por Ciclos de Formação [...], [...] novas relações de poder, nova
organização administrativa e novos tempos e espaços para o aprender, a escola se
transforma em instrumento necessário e fundamental na construção de uma
sociedade mais justa e solidária (AZEVEDO, 1999).
Tempo, espaço, tecnologias de poder, categorias utilizadas para compor a grade de
inteligibilidade apresentada na primeira parte desta Tese, são também os elementos que
aparecem como norteadores da proposta político-pedagógica da Escola Cidadã.
A Escola Cidadã por Ciclos de Formação, uma forma de escolarização que reorganiza
os espaço, os tempos e estabelece novas relações de poder na escola, era apresentada pelo
Secretário de Educação da rede municipal de ensino de Porto Alegre responsável por sua
implementação, José Clóvis de Azevedo, como um produto historicamente construído para
compor uma resposta ao formato da Mercoescola (AZEVEDO, 1995), um modelo educativo
que faz do conhecimento e de sua aprendizagem algo restrito a grupos privados,
reproduzindo, a lógica do mercado, ao transformar bens culturais em mercadorias e cidadãos
em consumidores. O modelo de escolarização tradicionalmente erguido sob a lógica da
seriação, e que se tornara hegemônico ao colocar em prática uma inovação administrativa e
pedagógica no final do século XIX, passou a ser questionado e a ser apontado como uma
forma fragmentária e excludente de organizar o tempo e o espaço escolares.
O aprender e o ensinar participando! Antes a série, agora, o ciclo! Reprovação não,
progressão sim! Era preciso contextualizar e problematizar o cenário educativo que serviu de
solo para a investigação a que se propõe esta Tese. Era preciso dar visibilidade à forma de
escolarização da rede municipal de ensino que, ao desenhar novas configurações espaço-
temporais para o fazer pedagógico e ao projetar novas relações de poder, colocava o saber e a
materialidade da Informática Educativa, de forma oficial, no tempo e no espaço escolar.
Organizo este capítulo retomando, inicialmente, um pouco da história da construção
do projeto da Escola Cidadã, uma história que se entrelaça com o amplo movimento de
democratização do Estado desencadeado pela Administração Popular
132
à frente da gestão
132
Expressão que acompanhou a administração municipal de Porto Alegre no período de 1989 –2004.
164
municipal a partir de 1989. Apresento, posteriormente, o Projeto Político-Pedagógico da
Escola Cidadã como uma forma de escolarização conectada com as modificações políticas,
sociais, econômicas e culturais da sociedade contemporânea. Finalizo o capítulo percorrendo
a história da inserção do saber da Informática Educativa – seus discursos, sua materialidade –
na proposta da Escola Cidadã, buscando dar visibilidade aos movimentos projetados pela
interface das tecnologias digitais de informação e de comunicação para sujeitos na periferia de
Porto Alegre.
A pesquisadora que percorre os caminhos e as trilhas que levaram à construção da
proposta político-pedagógica da Escola Cidadã por Ciclos de Formação caminha movida por
toda uma profusão de saberes e sentimentos da professora que experienciou cada etapa da
implementação dessa proposta. É a partir das alegrias e das dificuldades de ser professora na
Escola Cidadã - nos espaços de discussão e de formação, na pesquisa sócio-antropológica, na
interpretação e no mapeamento das falas de sujeitos da periferia de uma grande cidade, na
construção dos currículos para o ensinar e aprender participando, na diversidade dos
movimentos que possibilitaram tornar público o fazer pedagógico ao coletivo da escola e a
toda a rede de ensino -, que examino e problematizo a nova forma de escolarização posta em
circulação na rede municipal de ensino de Porto Alegre.
Caminho em meio a tantas vivências, acompanhada por produções acadêmicas tecidas
no programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, no desejo de construir um olhar
plural, uma quase composição polifônica para problematizar a forma de escolarização que
potencializou a inserção do saber da Informática na Educação na rede municipal de ensino de
Porto Alegre. Aproximo-me das problematizações de Dahlke (2001) sobre a seriação escolar e
o governo dos sujeitos, percorro as análises de Xavier (2003) sobre os processos de
disciplinamento de sujeitos incluídos na escola, conheço as descrições e as reflexões de
Oliveira (2002) sobre um novo lugar no edifício escolar: o Laboratório de Aprendizagem.
Analiso as publicações oficiais da rede municipal de ensino de Porto Alegre que passaram a
regulamentar e normatizar o pensar e o fazer pedagógico que, cada vez mais, parece
abandonar a configuração panóptica e disciplinar de controle social, para Bauman (1999,
p.10), uma forma de escolarização que começa a “revelar sua irrelevância e morte gradativa”
frente às transformações e exigências de um mundo global e acelerado.
A proposta político-pedagógica da Escola Cidadã é apresentada neste capítulo não
para avaliar seus princípios ou julgar sua implementação – condená-la ou absolvê-la -, mas
para problematizá-la e situá-la como uma forma de organização da escola sintonizada com um
conjunto de práticas e de discursos que emerge no rastro de contemporâneas configurações
165
espaço-temporais. As bandeiras que tremulam na sociedade contemporânea - a participação
democrática, a inclusão social, a flexibilização, o respeito à diversidade humana – são,
também, as bandeiras agitadas na escola, marcando o discurso pedagógico e os atos vividos
por sujeitos no tempo e no espaço escolares na periferia de Porto Alegre.
DA ALFABETIZAÇÃO CONSTRUTIVISTA PARA A ESCOLA CIDADÃ
O Partido dos Trabalhadores, ao assumir a administração do município de Porto
Alegre, em 1989, elegeu como forma de gestão um projeto de governo popular e democrático.
O Orçamento Participativo passou a ser o instrumento de democratização do Estado – “uma
estratégia para ‘despessoalizar’ o trato com os recursos públicos, que serviam, muitas vezes, à
lógica de interesses privados [...]” (FISCHER E MOLL, 2000, p.154). A cidade, dividida em
dezesseis regiões, passava a discutir e a estabelecer demandas socio-culturais, priorizando e
destinando os recursos necessários para viabilizá-las. De acordo com Azevedo (2000, p.31),
[...] ao contrário das práticas tradicionais de governo, quando governantes se
adaptam ao caráter autoritário e excludente do Estado tradicional, o Governo
Popular redefiniu o papel do Estado dentro das possibilidades e limites da esfera
municipal. Em vez de decisões tecnocráticas e verticalizadas, o governo municipal
estabeleceu um amplo e profundo processo participativo para as tomadas de
decisões. A cidade é chamada à construção coletiva das políticas públicas,
envolvendo todas as frentes de atuação da administração.
Enquanto a cidade experienciava, via orçamento participativo, uma prática concreta de
um governo democrático, na Secretaria Municipal de Educação era implementado
mecanismos para o fortalecimento do sistema educacional público, democrático e de
qualidade, centrando seu foco em uma política educacional para a alfabetização – a
Alfabetização Construtivista.
Na primeira gestão da Administração Popular (1989-1992), sob o slogan Coragem de
Mudar em Educação, um conjunto de estratégias buscava promover a inclusão escolar e
romper com a produção da exclusão mediada pela interface da escola - analfabetismo, baixa
escolaridade e evasão escolar. A própria Secretária da Educação da primeira gestão,
professora Ester Pillar Grossi, educadora e pesquisadora do GEEMPA
133
, assumiria o desafio
133
Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação, que agrega educadores e
pesquisadores interessados nas contribuições do ideário piagetiano e sócio-interacionista na organização de
práticas pedagógicas construtivistas.
166
e a coordenação pedagógica do projeto, como analisa Titton (2004), com a determinação
política de não mais excluir, de repartir o saber igualmente entre todos, de universalizar as
condições de acesso, de permanência e de progressão na escola.
Um projeto de intervenção nas escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre
era colocado em prática. Discutia-se a educação popular e valorizava-se a diversidade cultural
para desestabilizar crenças que patologizaram
134
o processo educativo e levaram professores e
especialistas à leitura e à interpretação equivocadas das dificuldades de aprendizagem de
alunos de classes populares
135
. Como alerta Barbosa (2004), a desnutrição dos alunos, a
desestrutura e a ausência de capital cultural nas famílias das classes populares, muitos são os
elementos apontados para justificar a exclusão das crianças da e na escola, algumas entre
tantas outras ideologias que, acionadas como respostas rápidas e exclusivas, naturalizam o
fracasso escolar.
A prática pedagógica da rede municipal passava a ser investigada pelas lentes das
pesquisas de Paulo Freire, Bárbara Freitag, Edgar Morin, Emília Ferreiro, Alícia Fernadez e
Sara Paim, entre tantos outros intelectuais que ajudaram a compor e a dar o tom ao discurso
educativo da primeira gestão da Administração Popular. Investia-se na capacitação e na
formação continuada do corpo docente para, segundo Mostardeiro (2000), autorizar o
professor a falar e a pesquisar as necessidades de seus alunos, para devolver ao professor a
autoridade sobre sua ação pedagógica. As escolas especiais participavam dessas discussões e,
de forma paralela, iniciava-se um movimento migratório dos sujeitos das escolas especiais
para as escolas regulares, colocando o conceito de inclusão nas práticas efetivas e no discurso
pedagógico da rede municipal de Porto Alegre.
Um consistente projeto de formação de educadores convocava-os a assumirem-se
como cidadãos e sujeitos da sua história e da história dos cidadãos que ajudavam a formar.
Uma meta era estabelecida, recuperar o caráter social da profissão de professor, estendendo a
funcionários e pais o compromisso com a educação de crianças, jovens e adultos. Um
processo de renovação das mentalidades e crenças, como analisou Titton (2003), era colocado
em prática e implicou no deslocamento da culpabilidade do fracasso escolar dos alunos e de
suas famílias para os professores e as escolas.
134
O processo de patologização do espaço escolar é apontado por Lajonquière (1999) como resultado da
desqualificação profissional do professor e da transferência da responsabilidade pedagógica para os especialistas,
com os saberes psicológicos e técnicos sendo convocados a justificar o insucesso escolar.
135
Para Mostardeiro (2000), o projeto desencadeado objetivava rever o processo de alfabetização e as causas
neurológicas, emocionais, nutricionais apontadas para as dificuldades de aprender. Muitos alunos que
fracassavam no processo de alfabetização, sob o respaldo das avaliações de especialistas do campo da Psicologia
eram encaminhados para as Classes Especiais.
167
A ação principal do projeto ocorreria nas turmas em processo de alfabetização,
alterando dinâmicas e conceitos que alicerçavam a prática pedagógica dos professores que
atuavam na primeira série do Ensino Fundamental. Uma assessoria sistematizada ao trabalho
desses professores
136
foi implantada para garantir o sucesso escolar. Alunos e professores da
série caracterizada pela alfabetização viviam o impacto da revolução conceitual desencadeada
pelos saberes da Psicogênese da Língua Escrita, que, como analisa Weisz (2000, p.34),
deslocava a questão central da alfabetização do ensino para a aprendizagem: “partindo não de
como se deve ensinar e sim como de fato se aprende”. Essa estratégia objetivava promover a
cidadania por meio de um efetivo acompanhamento do processo de ensino-aprendizagem nas
turmas em fase de alfabetização, pois, ao diminuir as taxas de reprovação nas séries iniciais,
potencializava-se a continuidade dos estudos e a abertura de novas vagas.
O mundo que aceleradamente se globalizava desencadeava modificações políticas e
econômicas, redimensionando práticas sociais, culturais e educativas. Projetos e pesquisas
internacionais no campo da Educação, nos anos 80, atualizavam as discussões iniciadas na
década de 1920, sobre a necessidade de reorganizar o processo de escolarização sob outra
lógica espaço-temporal. Investigações realizadas por Fernandes e Franco (2001), apontam que
as discussões sobre as formas de escolarização eram assumidas com entusiasmo por políticos
brasileiros, na década de 1950, quando propunham uma outra lógica para o fluxo escolar.
Sintonizado com esse otimismo,
Juscelino Kubitschek proferiu, como presidente da república, um discurso sobre a
reforma do ensino primário com base no sistema de promoção automática,
destacando que a inclusão de um módulo complementar ao ensino primário, de
caráter profissionalizante, voltado às parcelas da população que não pudessem seguir
o ensino secundário, com a concomitante adoção, em todo o ensino primário, do
sistema de aprovação automática, vitorioso entre os povos mais adiantados garantiria
uma reforma de ampla repercussão. (FERNANDES e FRANCO, 2001, p.55
)
No discurso pedagógico brasileiro, a reformulação do sistema de ensino, discutida por
educadores e pesquisadores, referendava a promoção automática e a substituição da série pelo
ciclo, fundamentalmente nos anos iniciais da Educação Básica
137
. Na análise documental
136
Para assessorar e sistematizar as ações educativas e sintonizá-las com a lógica de uma proposta
construtivista para a alfabetização, eram organizados encontros e seminários para refletir a proposta didático-
pedagógica e para socialização de dificuldades e de experiências. As professoras que conseguiram 100% de
aprovação em suas turmas de alfabetização foram homenageadas no Salão de Atos da UFRGS recebendo uma
medalha pela conquista (A Escola Leste, participante da pesquisa desencadeada por esta tese, teve uma de suas
professoras homenageada).
137
As pesquisas realizadas por Mainardes (2001), fazem referência a estudos técnicos apresentados durante
Conferência Regional sobre Educação Gratuita e Obrigatória, promovida pela UNESCO, em 1956, em que
168
realizada por Mainardes (2001), sobre as formas de escolarização brasileira, emergia a
reorganização do tempo e do espaço educativos como forma de operacionalizar e otimizar a
continuidade de processos de aprendizagem. A organização curricular com nexos ou pontes
entre níveis, o acompanhamento dos alunos por um mesmo professor ao longo de dois anos
ou mais, a existência de um planejamento coordenado entre educadores, começavam a
provocar fissuras nas formas tradicionais de agrupamento por anos de escolarização propondo
sua substituição por uma política de ciclos. Para Pooli e Costa (2004), essa nova lógica para a
ação educativa visava ampliar o tempo de aprendizagem ao permitir a continuidade, a
flexibilidade, o respeito ao ritmo de aprendizagem e ao processo de construção de
conhecimento de cada aluno.
Conquistava importância a temática que não era estranha ao discurso pedagógico
brasileiro, mas pouco traduzida para o campo educacional, uma vez que, na escolarização por
seriação, a Educação tinha a melhor resposta pedagógica aos hegemônicos princípios
racionais exigidos por uma esfera econômica que requisitava um trabalhador adaptado à linha
de produção. As históricas discussões sobre a organização escolar eram atualizadas na década
de 1990 e, a idéia da escolaridade por Ciclos de Formação incorporada ao discurso
pedagógico. A LDB
138
(Lei n° 9394/96), instituída e sancionada a escolarização por ciclos e o
regime de progressão continuada ao longo da Educação Básica.
Como afirma Kincheloe (1997, p.54), nossas construções de realidade não são
livremente feitas, mas moldadas pelos interesses de poder de uma sociedade maior. No
contexto das discussões nacionais e internacionais para uma nova organização para a
Educação Escolarizada, a segunda gestão da SMED (1993-1996)
139
imprimiu uma mudança
na política educacional, e novos rumos passaram a ser desenhados para a escolarização da
rede municipal de ensino de Porto Alegre. A expansão do atendimento do ensino regular
140
e
a sensibilização para a proposta pedagógica construtivista eram apontadas como importantes
avanços da primeira gestão petista na pasta da Educação, mas que, na visão do Secretário de
Educação José Clóvis de Azevedo, “não se constituíram em uma alternativa democrática e
foram debatidas a escolarização por ciclos e a promoção automática como solução para o sistema de ensino de
quatro países da América Latina – El Salvador, México, Colômbia e Brasil. A barreira entre as séries era
claramente discutida e fragilizada em uma das propostas encaminhadas durante a conferência, a promoção
automática do primeiro para o segundo período para todos os alunos que tivessem o benefício de um ano de
escola.
138
LDB – Lei de Diretrizes e Bases para a Educação.
139
Na segunda gestão da Administração Popular, a SMED, inicialmente, fica a cargo do Professor Nilton
Bueno Fischer, especialista em Educação Popular, sendo, posteriormente, substituído pela professora Sonia Pilla
Vares.
140
A rede municipal de Porto Alegre passa de 22 escolas para 90 escolas no período de 1998-2000, segundo
dados da Equipe de Pesquisas e Informações Educacionais SMED/PMPA (AZEVEDO, 2000, p.37).
169
progressista capaz de fazer um contraponto à educação conservadora e tradicional [...], por
isso, [...] não se configurando com o projeto orgânico vinculado ao projeto global da
Administração Popular [...]” (AZEVEDO, 2000, p.36).
A política educacional da SMED intensificava o projeto de radicalização da
democracia, projetando a Escola Cidadã
141
, com o objetivo, segundo Pilla Vares (1995), de
construir “uma escola que privilegia a participação da comunidade, [...] que respeita os
tempos do aluno, integrando-o em vez de excluí-lo”. A ação construtivista, carro-chefe da
primeira gestão da SMED, mesmo tendo reduzido drasticamente a reprovação e a evasão
escolar nas séries iniciais, passava a ser questionada pelos novos gestores da Administração
Popular, pois, segundo Pooli (1999),
[...] esse modelo não contemplava diretamente o projeto de democratização e
ampliação para toda a rede dos efeitos positivos do construtivismo. A centralização
em alguns pontos, como nas séries iniciais, e o projeto construtivista de construção
de [uma] escola [...] com uma pretensa arquitetura piagetiana, deixaram em aberto
uma discussão sobre a validade de políticas circunscritas a zonas especiais de
atendimento, que não eram estendidas ao sistema como um todo, que era parte do
projeto político-pedagógico do PT [Partido dos Trabalhadores] [grifo do autor].
O projeto da Escola Cidadã, segundo Azevedo (1999), buscava reverter a lógica de
gerenciamento tutelado das escolas, em que a participação da comunidade ficava restrita a
deliberações secundárias. Para o Secretário de Educação José Clóvis de Azevedo, era preciso
democratizar o Estado também na esfera educacional, era preciso desprivatizar a escola
estatal municipal, substituir seu conteúdo, sua concepção hegemônica dos valores e interesses
privados, pelos valores e interesses de seus usuários. O Secretário de Educação para a
segunda gestão da Administração Popular buscava “a transformação da escola estatal
municipal em uma escola pública municipal” (AZEVEDO, 2000, p.36).
A comunidade escolar era convocada a participar e a discutir sobre a democratização
da gestão e do acesso ao conhecimento, uma vez que “a pedagogia, a didática, as
metodologias de aprendizagem têm a ver com a cosmovisão do projeto político de seus
agentes” (AZEVEDO, 1995). Implementava-se, assim, o projeto Constituinte Escolar para
consolidar as concepções de conhecimento, currículo, avaliação, gestão e normas de
141
O projeto político-pedagógico da Escola Cidadã tem, como ponto de partida, experiências realizadas nos
municípios de São Paulo (1989-1992) e de Belo Horizonte (1993-1996) sob a coordenação de administradores
populares. Os coordenadores dos projetos, nesses dois municípios, respectivamente, foram Paulo Freire e Miguel
Arroyo, autores que contribuíram com a construção da política educativa de Porto Alegre desde a primeira
gestão da Administração Popular (Cf. BARRETO e SOUZA, 2004).
170
convivência no interior das escolas
142
, “partindo do questionamento da ‘escola que temos e a
escola que queremos’” (AZEVEDO, 1995). Tinha início, em março de 1994, a construção
coletiva e democrática do projeto educativo para implementar uma nova forma de
escolarização, operacionalizado em diferentes etapas, em tempos e em espaços diversos e
envolvendo grande parte da comunidade escolar da rede municipal de ensino de Porto Alegre:
1a Fase: Organização de grupos temáticos nas escolas. Temas propostos
para debate: gestão da escola, organização escolar, avaliação e princípios de
convivência. 2a Fase: Encontros regionais: objetivou a sistematização das discussões
nas escolas, unificando as propostas da região a serem encaminhadas ao Congresso.
3a Fase: Congresso Constituinte das Escolas Municipais: visou a sistematizar, em
um documento único, as discussões em cada região, a fim de construir as diretrizes
globais para a construção coletiva do regimento escolar, expressando a escola
desejada e os avanços sociais. 4a Fase: A construção dos regimentos escolares: a
partir das diretrizes globais definidas pelo Congresso Constituinte das Escolas
Municipais, foi desencadeado um processo de discussão e elaboração dos
regimentos escolares em cada unidade [...] (CADERNOS PEDAGÓGICOS -
SMED, 1999a, p.6).
As propostas que emergiram dos debates nas assembléias, das discussões nos grupos
temáticos e dos encontros regionais foram discutidas e votadas no Congresso Constituinte
Escolar, realizado em junho de 1995, com a participação de pais, professores e funcionários.
A Escola recebia o adjetivo de cidadã e passava a construir sua interface educativa e
democrática sob a lógica de três dimensões - a gestão e acesso à escola e ao conhecimento -,
que ganharam visibilidade nos princípios deliberados no Congresso Constituinte Escolar.
Dos estudos e debates proporcionados pelo projeto Escola Constituinte para a
construção e aprovação de seus princípios no Congresso Constituinte, foi gestada uma nova
forma de organização para as escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Sob um
novo olhar para Currículo e Conhecimento, com a adoção de uma Avaliação Emancipatória,
com a Gestão Democrática
143
e com a construção coletiva dos Princípios de Convivência,
nasce a Escola Cidadã, uma proposta político-pedagógica para superar o caráter conservador e
excludente da escola.
Em 1995, em pleno processo da Constituinte Escolar, uma primeira escola da rede
municipal começava a experienciar a nova forma de pensar a Educação em Porto Alegre. Os
desejos políticos e filosóficos de uma política blica eram colocados em ação “no espaço de
142
Temáticas que nortearam a construção da proposta político-pedagógica da Escola Cidadã (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 1995).
143
Gestão Democrática significa que a escola se transforma em espaço permanente de experiências e prática
da democracia. O aprendizado da democracia deverá permear todo o conjunto de relações que se desenvolvem
no seu interior e as relações com a comunidade (SMED, 1995).
171
2.743 m
2
de área construída em cinco blocos de dois pavimentos, conquistados no Orçamento
Participativo Municipal. Cria-se uma escola com uma proposta diferenciada na rede de
ensino” (SCHMITT, 1995, p.6).
Na materialidade do projeto arquitetônico da Escola Construtiva, a nova escola saía
dos sonhos de uma gestão e passava a implementar a substituição das séries, das notas, dos
boletins e da repetência. A escola municipal de Porto Alegre vivenciava uma outra forma de
escolarização que tinha na participação, na descentralização e na autonomia seu mote de ação.
Pelo viés da escolaridade por Ciclos de Formação, a instituição escolar democrática e
participativa começava a ser experienciada em um edifício de concepção arquitetônica
construtivista
144
. A forma de ordenamento do espaço físico passava a acompanhar o pensar e
o fazer pedagógico para que uma das unidades educativas da rede municipal de ensino de
Porto Alegre pudesse vivenciar a proposta educativa da Escola Cidadã. O cenário escolar,
pensado por uma equipe multidisciplinar coordenada por Macadar (1992), projetara espaços
para promover a dinâmica do encontro e a aventura da troca de saberes; para permitir a
entrada da luz do sol no edifício educativo, mas, também, a entrada da luz do conhecimento,
uma iluminação a serviço da transformação da sociedade.
A criação dos Conselhos Escolares, a eleição direta para diretores e o Congresso
Constituinte imprimem e enfatizam a natureza política do projeto pedagógico da Escola
Cidadã. Foram essas estratégias que, contemplando o aspecto político da proposta, iriam abrir
a escola municipal de Porto Alegre à participação da comunidade para que, de forma coletiva,
se processasse a reorganização dos tempos e dos espaços escolares e a democratização do
acesso e da gestão do conhecimento. A ação educativa tinha agora um novo mote, aprender e
ensinar participando.
A vanguarda pedagógica que começava a ser vivida na rede municipal de Porto Alegre
ganhava visibilidade, e seus movimentos passaram “a instigar a todos que deseja[ssem]
coletivamente colocar-se na aventura de revisitar e reinventar a prática educativa” (SMED,
1995). Os olhares dos intelectuais interessados em novas possibilidades educativas, do Brasil
e do mundo, voltaram-se para Porto Alegre. Os Ciclos de Formação na proposta político-
pedagógica da Escola Cidadã conquistava espaços na mídia com recortes de ações educativas
desenvolvidas nas unidades da rede municipal de ensino de Porto Alegre.
144
Na primeira gestão da Administração Popular, uma equipe multidisciplinar comandada pelo arquiteto
Raul Marcada assumiu o desafio e criou o Projeto Arquitetônico para a Escola Construtivista. Ainda que esse
projeto arquitetônico tenha sido criticado pelos gestores que assumiram a Secretaria da Educação em sua
segunda gestão, foi nesse modelo de escola construído sob a lógica construtivista para a organização do espaço
que foi colocada em prática a proposta político-pedagógica da Escola Cidadã por Ciclos de Formação. Rocha, C.
(2000), problematização e desnaturaliza o ordenamento espacial em instituições educativas.
172
A Educação passava a ser temática freqüente nos programas de marketing político do
Estado, com entradas diárias no programa Cidade Viva
145
. O pensar e o fazer pedagógico da
rede municipal de ensino de Porto Alegre conquistavam e dividiam o espaço na mídia, junto
com outras demandas: o saneamento básico, a habitação e a saúde. Respirava-se Educação
nos grandes seminários - nacionais e internacionais - que, segundo o Secretário de Educação
José Clóvis de Azevedo, “colocavam ao alcance da rede [municipal de ensino de Porto
Alegre] as pesquisas e as discussões pedagógicas mais avançadas desenvolvidas no Brasil e
no mundo” (AZEVEDO, 2000, p.40).
Circularam por Porto Alegre estrelas e astros do mundo acadêmico “de centros de
pesquisa e universidades dos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha e outros estados do
Brasil” (AZEVEDO, 2000, p.40). Nos congressos e nos seminários, debates acalorados,
palmas e sessões de autógrafos construíam a Escola Cidadã, possibilitando que uma nova
forma de escolarização ganhasse visibilidade e fosse assumida como aceitável, apropriada e
recomendada para organizar o tempo e o espaço escolares na periferia de Porto Alegre. Esses
grandes eventos públicos para dar visibilidade à proposta político-pedagógica da escola por
ciclo de formação aproximaram-se das reflexões realizadas por Bastos (2005) ao vincular tais
acontecimentos a dinâmicas da educação como um espetáculo
146
:
[...] Pretendendo integrar-se às nações desenvolvidas, o Estado brasileiro faz
da Educação um grande espetáculo, promovendo conferências – populares, públicas,
literárias, pedagógicas ou de professores; organizando Congressos, exposições
pedagógicas, museus escolares e pedagógicos (BASTOS, 2005, p.116).
A radicalização da democracia era posta em prática no cenário educativo de Porto
Alegre, sem dúvida uma exigência do mundo contemporâneo, da sociedade do espetáculo.
Como problematizei na primeira parte desta Tese, a sociedade contemporânea, ao operar sob a
fluidez e as fissuras das tradicionais instituições de confinamento, passou a exigir a
participação como forma de inibir resistências, uma vez que “o investimento não [opera] mais
[exclusivamente] no corpo, propriamente dito, [mas o] interesse, agora, [está em] extrair o
máximo de energias inteligentes. [...] Fazer participar, criar condições para que cada um possa
se sentir atuando e decidindo no interior das políticas de governo [...]” (PASSETTI, 2002,
145
Cidade Viva era um programa de comunicação governamental para divulgar os projetos colocados em
prática na cidade de Porto Alegre pela Administração Popular.
146
A visibilidade da proposta dos Ciclos de Formação conquista o Brasil e o mundo, o que, sem dúvida,
cacifa Porto Alegre a sediar por três vezes o Fórum Mundial de Educação.
173
p.134). Como analisa Melucci (2001), controlar a ação manifesta revela-se insuficiente, era
preciso interferir nas suas raízes motivacionais, cognitivas e afetivas.
Todos precisam ser democráticos, uma democracia de antecipação, que se efetiva,
como analisa Passetti (2002, p.135), por meio de sondagens. A escola era redefinida por meio
de consultas e de discussões com todos os segmentos que compõem a comunidade escolar -
pais, alunos, funcionários, professores. Para ser democrático, para ser cidadão é preciso
participar, pois é a participação contínua que dá sentido e que torna inteligível a sociedade do
espetáculo. A escola faz parte dos atos do grande espetáculo assistido e encenado no cenário
social contemporâneo.
A escola tornava-se transparente, forjando a participação, criando condições para que
cada segmento escolar se sentisse atuando e decidindo no interior das políticas públicas. Não
importava a não-igualdade de conhecimento sobre os problemas postos em discussão, não se
questionava a frágil liberdade para a crítica e a autonomia na tomada de decisão, o importante
era participar, era politizar demasiadamente a participação popular, era preciso fazer operar a
democracia de antecipação, ao reduzir a ação democrática a reuniões estéreis
147
, tuteladas por
decisões pré-estabelecidas pelas instâncias de poder. O importante era acreditar na
participação, o importante era perceber como verdadeiro que “o coletivo de professores,
funcionários e pais
148
, [...] teve uma intensa participação na autoria da proposta” (AZEVEDO,
2000).
A escola que se tornava transparente e permeável às ações de instâncias
governamentais e não-governamentais estabelecia novos protocolos e interfaces para o ato
educativo. Era necessário abrir o que ainda restava do enclausurado no edifício escolar, como
afirmava o Secretário de Educação na época, era preciso “desprivatizar a escola”
(AZEVEDO, 2000), desencadear em seu espaço-tempo o contemporâneo movimento vivido
no cenário sociopolítico-econômico que deslocava ações do privado para torná-las públicas:
147
Participei de reuniões em diferentes tempos e espaços educativos, em que representantes da comunidade
escolar – pais, alunos, professores e funcionários - eram convocados a deliberar sobre o gerenciamento da Escola
Cidadã. Contudo, o gerenciamento tutelado das reuniões e a assimetria no entendimento do que era colocado em
discussão tornava a participação da comunidade escolar semelhante aos dos figurantes de programas de
auditórios contratados para aplaudir ao sinal da direção do espetáculo. A comunidade escolar coreografava o
espetáculo da democracia de antecipação e participativa.
148
O III Congresso da Cidade apontava para a necessidade de criar estratégias para qualificar o papel de
cada segmento – pais, alunos, funcionários - a partir da ressignificação do processo de ensinar e aprender na
escola. A participação reduzida de pais e mães nos espaços de formação era um desafio que se tentaria resolver
“com estruturação do que estamos denominando de Escola para Pais e Mãe” (Azevedo, 2000).
174
As direções e os conselheiros, eleitos com a participação da comunidade,
foram desafiados a buscar legitimidade política, articulando-se com a comunidade,
participando de seus movimentos, principalmente no Orçamento Participativo da
cidade. Desenvolveu-se todo um conjunto de ações com os Conselhos Tutelares,
com os Conselhos Setoriais (como o da Criança e do Adolescente), com o da
Educação, com o Ministério Público e com os fóruns da Administração Popular e da
sociedade civil (AZEVEDO, 2000, p.43).
Juntamente com a implementação da proposta político-pedagógica da Escola Cidadã,
em 1998, instituía-se o OP da SMED - o orçamento participativo interno da rede municipal de
ensino -, ação que, para Azevedo (2000, p.43), “permitiu a mobilização da comunidade e a
articulação entre as escolas para conquistar recursos para seus projetos”. Com isso,
articulavam-se, na cidade de Porto Alegre, duas instâncias democráticas para a discussão das
possíveis configurações e demandas educativas para a rede municipal: a primeira, no
Orçamento Participativo da cidade, deliberando, por exemplo, sobre a reforma de prédios ou
construção de novas escolas; a segunda, no Orçamento Participativo da SMED, ação ilustrada
no dado de pesquisa disponibilizado a seguir, para disputar recursos financeiros entre
comunidades escolares a fim de viabilizar a execução de projetos especiais para favorecer o
sucesso escolar, a qualidade de ensino e o combate à exclusão.
A participação democrática demandava tempo e espaço para que os segmentos do
Conselho Escolar – pais, alunos, funcionários, professores - pudessem coreografar sua
participação: falar, ouvir, discutir, votar, encaminhar decisões. Todos os segmentos eram
valorizados como educadores, conquistando “espaços específicos de formação e integrados
aos espaços antes destinados somente a professores” (TITTON, 2004, p. 117).
A radicalização da democracia fez com que todos discutissem tudo!
149
, muito sobre o
gerenciamento escolar, mas pouco sobre o aprender e o ensinar pela interface das novas
149
As reuniões pedagógicas foram reorganizadas para que todos os segmentos discutissem sobre todas as
demandas da comunidade escolar. Assim, desde como os funcionários deviam varrer os corredores ou como
proceder à limpeza das salas de aula até a deliberação sobre a distribuição dos recursos financeiros são pautas
cada vez mais freqüentes nas reuniões, que, paulatinamente, vão diminuindo, afastando e, nesse sentido,
desvalorizando temas como o ensinar e o aprender ou como operacionalizar as novas práticas pedagógicas que
passam a ser exigidas por um currículo e por um conhecimento projetadas pela Escola Cidadã.
Dinheiro do OP/SMED já está na escola
O Orçamento Participativo da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre iniciou em 1997,
tendo se inspirado no modelo do OP da cidade. Desde então, vem se aperfeiçoando também
como espaço de ensino/aprendizagem ao favorecer uma cultura em que pais alunos e
funcionários se organizam e apresentam suas demandas, discutem e definem prioridades,
potencializando a gestão democrática da Escola Cidadã.
(Dados de pesquisa – Boletim informativo da SMED – SMED – 2004)
175
formas de concepção do currículo e do conhecimento
150
. Na escola participativa e
democrática da rede municipal de ensino de Porto Alegre, as ações do cotidiano escolar eram
redefinidas e conquistavam novos adjetivos, como a merenda pedagógica
151
. O refeitório, que
já se destacava na estrutura física da escola, conquistava ares bem mais democráticos e
pedagógicos, criando, na escola, uma nova identidade para esse espaço e para seus
profissionais:
Mudanças significativas ocorreram [...] na área da merenda quando
colheres foram substituídas por garfos e facas (considerados, até então, possíveis
“armas” na cultura que a todos marginalizava e rotulava) e pratos de plástico são
substituídos por pratos de vidros, além da adoção do sistema de bufê, deixando os
alunos se servirem de forma autônoma, sob a supervisão de nutricionistas,
cozinheiras e auxiliares de cozinha. Os momentos e os espaços de refeição passam a
ter significado pedagógico (TITTON, 2004, p.117-118).
Sob a lógica dos Ciclos de Formação, foram estabelecidas metas para qualificar o
processo de reorganização na rede municipal de ensino de Porto Alegre. Mesmo tendo um
quadro de pessoal qualificado, a formação continuada colocava-se como uma necessidade,
pois, como analisava o Secretário de Educação responsável pela implementação da Escola
Cidadã, José Clóvis de Azevedo (2000), a formação permanente estimulava a busca pelo
aprimoramento teórico para operar sob a complexidade da proposta dos Ciclos de Formação,
buscando qualificar o atendimento a um público atingido pela crise econômica e pela exclusão
social.
No período de 1997 a 2000, iniciava-se a implantação da escolarização por Ciclos de
Formação para a totalidade da rede de ensino municipal de Porto Alegre. As deliberações do
Congresso Escolar Constituinte estabeleciam séries e etapas, além dos ciclos, como formas
possíveis de organização do tempo e do espaço escolares para as unidades educativas da rede
municipal de ensino, mas nenhuma proposta que operasse sob a lógica da seriação, mesmo
150
As reuniões pedagógicas da Escola Leste, participante da pesquisa desta tese, tiveram como pauta central
a participação do corpo docente no orçamento participativo da microrregião leste, com o objetivo de buscar a
aprovação para a construção do novo prédio da escola, uma vez que o Orçamento Participativo – 2001 para a
Região Leste da cidade colocou como prioridades, em ordem de pontuação: Saneamento Básico, Habitação,
Pavimentação e Assistência Social. A não-priorização da temática da Educação fez com que a assessoria da
SMED articulasse, por meio do segmento dos professores e, posteriormente, de pais e funcionários, estratégias
para incluir a Educação como prioridade na microrregião Leste. Em 2002, a Escola Leste, teve suas reuniões
pedagógicas prioritariamente coordenadas pelos assessores da SMED para instrumentalizar a participação do
segmento dos professores no Orçamento Participativo da cidade. Assim, fora de sua região legítima de votação,
os professores deliberaram sobre saneamento básico e habitação, colocando o item Educação no segundo lugar
das demandas da microrregião, o que viabilizou a construção do novo prédio escolar.
151
Ganha força um processo de valorização dos funcionários iniciado já com a primeira gestão da
Administração Popular.
176
que propusesse avanços na questão da reprovação, era aceita como viável pela SMED. O
princípio 47, deliberado pelo Congresso Escolar Constituinte, que garantia à escola autonomia
para optar pelo estudo e implantação dos ciclos, seriação ou outras formas de organização,
passou a ser desconsiderado
152
. A justificativa para romper com um princípio
democraticamente construído era dada ao associar toda a proposta de escolarização por
seriação à reprovação
153
:
A implantação dos Ciclos de Formação foi um processo rico em discussão,
por vezes polêmico. Propiciou o confronto entre o conservadorismo pedagógico, o
corporativismo e as visões identificadas com concepções educacionais
comprometidas com as metas de inclusão social. A adesão aos ciclos foi efetivada
por tomada de decisões das comunidades escolares, com a participação de
segmentos através de assembléias e plebiscitos, dando legitimidade à proposta em
todas as escolas. A cada ano, desde 1997, um grupo de escolas aderiu aos ciclos. O
caráter democrático das decisões é inegável, embora as posições vencidas nos
espaços de deliberação levantem críticas ao processo. É importante registrar que as
últimas escolas, duas escolas, a “ciclar”, o fizeram sem ter uma posição majoritária
pró-ciclos. Contudo, depois de quatro anos de discussão, é muito lógico e
democrático prevalecer a vontade da maioria da Rede (AZEVEDO, 2000).
Assim, com a implantação um pouco tumultuada da proposta dos Ciclos de Formação,
a relação entre SMED e escolas oscilou entre as dicotômicas relações de autoritarismo e
autoridade, democratismo e democracia, espontaneísmo e intencionalidade, reprodução e
autoria. Toda a possibilidade de um exercício efetivo de construção de uma outra forma para
o aprender e o ensinar passou a se configurar como um instrumento de dominação, em que a
lógica da imposição fazia a comunidade escolar abdicar de histórias de autorias, das práticas
que valorizavam as singularidades das unidades educativas na periferia de Porto Alegre
154
.
Como alerta Thurler (1995, p.51), obrigar os estabelecimentos ou, mesmo, as equipes
pedagógicas, a sacrificarem essa liberdade de escolha é sempre um erro, tanto quanto deixar
cada qual fazer o que quer.
152
No II Congresso Municipal de Educação, quatro anos depois da realização do Congresso que estabeleceu
os princípios da Escola Cidadã, ainda mantinha como um de seus princípios a possibilidade de a escola optar
pelo estudo e pela implantação dos ciclos, seriação, etapas ou outras formas de organização, assegurada a
qualificação do corpo docente e reestruturação da proposta pedagógica e curricular da escola.
153
O discurso educativo oficial, ao falar sobre a seriação, afirmava: “Não queremos dizer com isso que cabe
ao regime seriado a responsabilidade pelo insucesso dos educandos, [...] buscamos enfrentar, mostrando no
conjunto desta proposta político-educacional, possíveis alternativas” (SMED, 1995, p.15).
154
Na Escola Leste, na década de 1980, professores e equipe diretiva organizaram-se, estudaram e discutiram
buscando qualificar seu fazer pedagógico e atender às demandas de uma camada social que, historicamente,
tinha sido afastada da Educação Escolarizada. Foram estudados alguns teóricos da educação, em sábados de
formação, contando com a adesão e participação ativa de todos os professores. Quando os espaços de formação
foram geometrizados no calendário escolar em 10 turnos letivos, sem a possibilidade de intervir em suas pautas,
muitas vezes, impostas ao coletivo de professores, passaram a configurar-se como espaços descontextualizados,
sem significado para a comunidade escolar.
177
Assim, ou por adesão ou por imposição, a rede municipal de ensino de Porto Alegre
tinha, em 2000, todas as sua unidades educativas de Ensino Fundamental cicladas. Sob a
bandeira É proibido reprovar!, professores da rede municipal de ensino de Porto Alegre eram
convocados a assumir a tarefa de construir respostas, sob o cenário de uma nova forma de
organizar a escolarização, para os velhos desafios da escola – a construção do currículo
escolar, a avaliação e a promoção dos alunos. A Escola Cidadã colocava em circulação uma
prática educativa que alterava o fluxo escolar sob a construção de um discurso pedagógico,
passando a incluir temas como a autonomia, a avaliação continuada, os ciclos para a
superação da distorção idade-série e as políticas de inclusão social.
ESCOLA CIDADÃ – APRENDER E ENSINAR PARTICIPANDO
A proposta da escola por Ciclos de Formação implementada na educação básica da
rede municipal de ensino de Porto Alegre com o propósito de oferecer uma educação de
cunho popular e democrática, reorganizava o tempo e o espaço escolares, estabelecia novas
relações de poder. A escolarização que passava a ser construída a partir da segunda gestão da
Administração Popular, assumia: uma postura radical de reversão das estruturas excludentes
da escola e da cultura que ela legitima; um forte acento ao trabalho coletivo, envolvendo toda
a comunidade escolar na formulação e na implementação do projeto político-pedagógico; uma
nova relação com o conhecimento, buscando a construção de um currículo escolar com um
vínculo mais significativo com as vivências dos alunos e com um conhecimento
sistematizado, numa perspectiva globalizadora e interdisciplinar; a superação do regime
seriado e suas conseqüências em relação à retenção e à seletividade escolar.
Com a implementação da escola por Ciclos de Formação, o ato educativo deveria promover
um “continuum no processo de aprendizagem pelo qual passam os educandos, o planejamento
e a prática pedagógica dos educadores” (SMED, 1995, p.14). Para assegurar o
desenvolvimento sócio-cognitivo, respeitando a faixa etária e buscando uma formação sem
interrupção para o aluno, o tempo e o espaço escolares passaram a ser organizados por ciclos
de formação, cada um com três anos de duração, correspondendo às fases da infância, da pré-
adolescência e da adolescência. Como ilustra o Quadro 4, a Educação Fundamental passava
de oito para nove anos, divididos em três Ciclos de Formação, assim estruturados:
178
Primeiro Ciclo (I Ciclo): Atendendo aos estudantes da faixa etária dos seis
anos aos oito anos e onze meses (aproximadamente). A base curricular, nesse ciclo,
tem como ponto de partida o educando em sua dimensão globalizadora, ampliando e
organizando as experiências rumo à apropriação do conhecimento historicamente
acumulado numa perspectiva interdisciplinar. Segundo Ciclo (II Ciclo): Atendendo
aos estudantes da faixa etária dos nove anos aos onze anos e onze meses
(aproximadamente). A base curricular é desenvolvida na forma de grandes áreas do
conhecimento, em que as diversas formas de expressão, as ciências físicas e naturais,
as sócio-históricas e a educação matemática interagem no processo de construção e
de apropriação do conhecimento a fim de possibilitar que o educando se perceba na
condição de sujeito histórico-social. Terceiro Ciclo (III Ciclo): Atendendo aos
educandos da faixa etária dos doze anos aos quatorze anos e onze meses
(aproximadamente). A base curricular é organizada por áreas e por relações pluri e
interdisciplinares (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.37).
Quadro 4
Organização dos Ciclos de Formação
Faixa Etária Ciclo Ano Turmas Ano-Ciclo Turmas de Progressão
1°
A11 – A12 – A13
2°
A21 – A22 – A23
Infância
I Ciclo
A
3°
A31 – A32 - A33
AP
1°
B11 – B12 – B13
2°
B21 – B22 – B23
Pré-adolescência
II Ciclo
B
3°
B31 – B32 – B33
BP
1°
C11 – C12 – C13
2°
C21 – C22 – C23
Adolescência
III Ciclo
C
3°
C31 – C32 – C33
CP
Cada Ciclo de Formação se organizava pelo critério da idade do aluno, o que
possibilitava romper com a prática de separar os alunos entre aprovados e reprovados,
permitindo ao aluno superar suas dificuldades, sem ser segregado dos colegas de sua faixa
etária. A enturmação pelo critério idade-ciclo, visava reduzir as interrupções provocadas pela
repetência nos percursos de aprendizagem. Para a organização dos alunos, considerava-se,
além do conhecimento construído pelo aluno, suas experiências de vida e as características
próprias de sua faixa etária.
Em cada ciclo de formação, para agrupar alunos com defasagem entre idade e
escolaridade, foram criadas as Turmas de Progressão, espaços não-engessados
155
, com uma
organização de tempo diferente da do ano-ciclo no qual estavam inseridas. São espaços e
155
São turmas de existência provisória, pois, criadas dentro de cada ano-ciclo, desapareceriam à medida que
fossem ocorridas aprendizagens efetivas, passando seus educandos a freqüentar as turmas do ano-ciclo
correspondente a sua faixa, escolarização e socialização.
179
tempos modelados para implementar uma ação pedagógica investigativa e diferenciada, que
colocava seu sentido maior no futuro, na possibilidade de (re)integração de seus sujeitos em
turmas de ano-ciclo.
As turmas de progressão eram marcadas pelo adjetivo do transitório para o aluno e
para a escola. Para o aluno, por permitir seu avanço a qualquer momento do ano letivo, “desde
que apresente condições de continuar sua socialização e escolarização em uma turma em nível
de escolarização mais complexo” (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a). Para a
escola, a transitoriedade justificava-se na própria evolução da proposta, pois as turmas de
progressão tornar-se-iam espaços progressivamente desnecessários passado o período inicial
de transição da escola seriada para a escola ciclada. Essas turmas de existência provisória,
deveriam, também, proceder à adaptação de estudos para os alunos provenientes de outras
escolas ou para aqueles que possuíssem pouca escolaridade.
O Laboratório de Aprendizagem foi um outro espaço pedagógico de caráter
investigativo criado na escola por Ciclos de Formação para apoiar alunos com dificuldade em
seus percursos de aprendizagem. Projetado para modelar estratégias de aprendizagem
significativas e, assim, “facilitar o trabalho cotidiano realizado nas turmas e nos Ciclos”
(CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.49). Na análise realizada por Oliveira
(2002), os alunos que passavam a freqüentar o Laboratório de Aprendizagem eram
encaminhados por professores para desenvolver uma investigação: na dimensão pedagógica,
na leitura, na escrita e no raciocínio lógico-matemático; na dimensão familiar, ao priorizar o
atendimento a alunos abandonados pela família ou presos em casa pelo trabalho dos pais; na
dimensão disciplinar – pela falta de manejo do professor em sala de aula.
Os dados que emergem da pesquisa desencadeada por Oliveira (2002) apontavam para
a dificuldade em se estabelecer qual a real função do Laboratório de Aprendizagem. A fala
dos professores responsáveis pela ação educativa no Laboratório de Aprendizagem assinalava
a tênue linha divisória entre a investigação pedagógica e a dificuldade do professor no manejo
em sala de aula para a diversidade humana que passa a ser incluída no edifício escolar:
[...] a queixa sobre o aluno é quase sempre a da “criança inquieta ou desatenta, que
não colabora, não participa ou ultrapassa os limites de tolerância de qualquer um em
sala de aula”; [...] ele não senta em sala de aula, eu queria que tu colocasses um
limite nele [...] (OLIVEIRA, 2002, p. 121-125).
A inserção de alunos com necessidades educativas especiais fez surgir o espaço
pedagógico regionalizado - Sala de Integração e Recursos – criado para apoiar a inclusão dos
180
alunos surdos, com lesão cerebral, autistas ou com problemas de ordem mental nas escolas
regulares. Esse novo lugar no cenário educativo destinava-se aos sujeitos que necessitam de
“uma investigação e uma ação pedagógica complementar e específica para possibilitar sua
adequada integração ao grupo e a superação de suas dificuldades” (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a). A Sala de Integração e Recursos (SIR), com analisa
Oliveira (2002), passava a ser o espaço para onde eram encaminhadas as dificuldades que
extrapolavam o atendimento do Laboratório de Aprendizagem, principalmente na área
emocional e neurológica. O aumento do número de vagas passou a ser constantemente
solicitado pelas escolas, dando visibilidade à real dificuldade em apoiar a trajetória educativa
para um conjunto de educandos colocados na escola por políticas de inclusão. Segundo a
pesquisa de Oliveira (2002, p.125), o atendimento a alunos com necessidades educativas
especiais congestionou e dificultou a ação pedagógica do Laboratório de Aprendizagem para
com sujeitos “que deveriam estar na SIR, mas que não estão por falta de vagas”.
Novos recursos humanos foram disponibilizados para cada ano-ciclo na escola por
Ciclos de Formação. Para apoiar o trabalho do professor referência
156
, foi projetada a figura
do professor itinerante, um professor de “perfil generalista-interdisciplinar” (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a), com a responsabilidade de articular um trabalho de
(re)alimentação da ação político-pedagógica do coletivo do ano-ciclo. O professor itinerante
projetado para atuar como um profissional articulador deveria operar como a cola do coletivo
de cada ano-ciclo, realizando as sínteses interdisciplinares com os conceitos mais
significativos presentes no Complexo Temático
157
.
A ação do professor itinerante no coletivo escolar foi uma das temáticas discutidas no
III Encontro das Escolas por Ciclos de Formação (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED,
1999b), em outubro de 1998, com o objetivo de refletir sobre alternativas para operacionalizar
a atuação desses profissionais no cotidiano da Escola Cidadã. A sistematização das idéias
discutidas no Encontro revelava que o não-tempo de planejamento, o tempo quase que
exclusivo com substituições de professores ou a falta de espaço para a realização das
atividades eram os problemas apontados, com maior freqüência, pelos professores que
assumiam o papel de professor itinerante em cada ano-ciclo. Essa discussão tornava-se ainda
mais produtiva ao revelar que eram justamente na organização das categorias tempo e espaço,
156
É o professor titular da turma de cada ano-ciclo.
157
Complexo temático é a forma de organização curricular da escola por Ciclos de Formação e será
apresentado ainda neste capítulo.
181
os eixos que nortearam a construção da proposta por Ciclos de Formação, apontadas como as
maiores dificuldades para o exercício da função do professor itinerante:
Tem sido difícil organizar espaços e tempos para as reuniões onde se
possam planejar atividades a serem desenvolvidas no coletivo pelo professor
itinerante. Isso acontece devido a inúmeras razões, desde as substituições a que esses
professores são levados [a fazer], passando pelo espaço onde realizar seu trabalho,
tempo para planejar com o coletivo ou, ao menos com o professor referência,
chegando ao desconhecimento de atividades alternativas a serem efetivadas com os
alunos, tanto individualmente como em pequenos coletivos. [...] O professor
itinerante não pode ser o “pau para toda obra” [...], cabe ao coletivo ver as soluções,
seja agrupando duas ou mais turmas de alunos, seja desmembrando a turma entre os
vários professores e serviços do ciclo presentes, seja a equipe diretiva, através de
vários membros, trabalhando com turmas ou grupos de alunos, etc. (MARTINS,
1999).
Ao ter sua ação limitada pelo gerenciamento das faltas e das biometrias de professores,
o professor itinerante tinha seu papel de articulador do projeto político-pedagógico
dificultado, o que passou a repercutir na operacionalização de um dos aspectos centrais para a
proposta de escolarização por Ciclo de Formação - colocar em prática o currículo e o
conhecimento construído via Complexo Temático. O não-planejamento coletivo para o fazer
pedagógico para a turma ou, até mesmo para o aluno que necessitava de uma ação mais
individualizada, foi aos poucos não concretizando o que havia sido projetado para o professor
itinerante pela proposta da escola por Ciclo de Formação. Nas palavras de Martins (1999,
p.22), assessor pedagógico na época da implementação da escola ciclada, a ação do professor
itinerante só teria sentido “na articulação entre seus pares, no planejamento coletivo, na
possibilidade de mediar diferentes olhares na avaliação e intervenção junto ao educando”.
O forte acento ao trabalho coletivo que marcava a escola por Ciclos de Formação tinha
no professor itinerante seu maior articulador, um recurso humano criado para o coletivo de
cada ano-ciclo, com o objetivo de romper com o individualismo e a privacidade pedagógica
que se praticava no contexto de trabalho dos professores da escola seriada. Desprivatizar o
fazer pedagógico do professor, como aponta Martins (1999), colocar as ações de ensinar e de
aprender no espaço público de vivências coletivas, era o grande movimento projetado para a
ação do professor itinerante.
A lógica do deslocamento do privado para o público experienciado na sociedade
contemporânea era fortemente vivenciada no tempo e no espaço escolares. Era preciso engajar
o professor no planejamento coletivo, era necessário fazer com que professores
compartilhassem seus planejamentos, “as dúvidas, as angústias, as soluções que sempre
182
permitissem ‘as visitações’ dos colegas aos seus ‘castelos’ de saberes específicos”
(MARTINS, 1999, p, 22). Como discorre Lüdke (2001), a escolarização por Ciclos de
Formação imprimiu a necessidade de o professor expor sua prática ao coletivo escolar como
meio de buscar recursos que possibilitassem satisfazer as necessidades e a diversidade de
estilos de aprendizagem dos alunos.
Se a sociedade contemporânea, ao ser regida pela lógica do mercado, faz do homem
um consumidor que vive sob o culto ao individualismo; as instituições educativas parecem
não fugir à lógica do homem manipulabilis
158
. Se o mercado deve customizar
159
a produção, a
escola, para satisfazer as necessidades e a diversidade de estilos de aprendizagem, parece
customizar o ensinar e o aprender. O aluno deve ter a especificidade de seu percurso
educativo atendido, um processo pedagógico, como caracteriza Cambi (1999), que cada vez
mais deve fazer referência às especificidades do aluno, as suas necessidades e aos seus
interesses. A prática pedagógica da Escola Cidadã, sintonizada com o princípio da
customização deveria ser conduzida pela ética do prazer e pela afirmação da individualidade
do sujeito em processo de aprendizagem.
O professor itinerante, sob a lógica de uma ação pedagógica personalizada, deveria,
segundo Martins (1999, p.27), assessor pedagógico da SMED, “organizar atividades
diferenciadas, [...] preparar atividades diferentes daquelas que já foram trabalhadas com
todos, [...] [compor] atividades diferenciadas conforme o desenvolvimento de cada aluno”. A
ação pedagógica projetada para o professor itinerante veio a se somar às ações
individualizadas e investigativas realizadas no Laboratório de Aprendizagem e na Turma de
Progressão, mas conquistou importância particular ao possibilitar a construção de abordagens
diferenciadas no tempo e no espaço da sala de aula, tornando-as mais constantes e intensas,
abordagens que, segundo Martins (1999, p.29), deveriam estar sintonizadas com a “lógica de
uma aprendizagem [que] há muito tempo se sobrepõe à lógica discursiva da transmissão de
conhecimentos”.
A grade de horário da Escola Leste, um dos dados de pesquisa em disponibilizo a
seguir, ao organizar os tempos e os espaços para a atuação do professor itinerante, ilustra esse
movimento rumo à personalização e à individualização do processo de ensino-aprendizagem.
158
Expressão criada por Veiga-Neto (2000a, p.197) para caracterizar o sujeito forjado pela economia de
mercado, que tem sua subjetividade (talvez seja melhor falar em subjetividades) modelada pelo marketing da
indústria cultural, que imprime a sensação da existência de uma fórmula específica para cada pessoa. O sujeito-
consumidor reclama para si uma personalização do produto, da calça jeans ao carro.
159
Customizar tem o sentido de adaptar os produtos e processos ao gosto do cliente, portanto é o atendimento
que visa à satisfação do freguês. A origem da palavra está no inglês customer, que significa cliente
(MICHAELIS, 1989, p.75).
183
Na distribuição dos tempos e dos espaços, o professor referência e o professor itinerante
dividiam o mesmo horário para, assim, diversificar e individualizar as estratégias pedagógicas
para atender às especificidades dos alunos:
O ato educativo na escola por Ciclo de Formação, ao mesmo tempo em que tornava
público o fazer pedagógico do professor regente pela ação do itinerante, projetava uma ação
para o processo ensino-aprendizagem essencialmente individualizada. Para Martins (1999,
p.30), assessor pedagógico da SMED, o aluno deveria “aprender como se aprende e a regular
seu próprio processo de aprendizagem”. Era na ação individualizada e investigativa do
professor itinerante que se alicerçava o ato pedagógico do coletivo de cada ano-ciclo, uma
ação que o assessor pedagógico que ajudou a edificar a escolarização por Ciclos de Formação
no sistema municipal de ensino de Porto Alegre, pretendia,
[...] não [ser] exclusiva. Ou seja, falar dele é falar de todo e qualquer professor. No
entanto, como um recurso a mais na busca da aprendizagem para todos, este
profissional deve ser aquele que constrói uma visão para além do professor
referência, isto é, quando este último ‘esgota’ suas possibilidades aquele as recria e
vai adiante, [...] o faz centrando-se sobre um aluno em particular ou um grupo
particular ou um grupo particular de alunos [...] (MARTINS, 1999, p. 30).
Com novos recursos humanos e novos lugares para o ato educativo na escolarização
por Ciclos de Formação, a gestão da escola ciclada passava a ser uma responsabilidade
coletiva. O gerenciamento da escola efetivava-se na participação de todos os segmentos que
formam a comunidade escolar – pais, alunos, professores, funcionários –, uma ação
possibilitada pela criação do Conselho Escolar, o órgão máximo dentro da escola com
competência consultiva, deliberativa e fiscalizadora. A equipe diretiva
160
tinha seu exercício
de poder deslocado para a coordenação do trabalho coletivo, com o objetivo de superar, na
160
A composição da equipe diretiva estava definida no plano político-administrativo-pedagógico-cultural da
escola. Equipe diretiva é o órgão colegiado composto pelo Diretor, Vice-Diretor e dois coordenadores do Serviço
de Orientação Pedagógica (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.85).
Grade de horário – Professores referência, itinerante e especializados – I Ciclo – A20
Segunda-feira Terça-feira Quarta-Feira Quinta-Feira Sexta-feira
I R R R R
I R R R R
EF R / I EF R R
EF R R / I R
EA R
Reunião
Pedagógica
R / I R
R – Professor referência I – Professor Itinerante EF – Educação Física AE – Arte-Educação
(
Dados de
p
es
q
uisa
Grade de Horário
Escola Leste
Ano Letivo 2002
)
184
prática, “a dicotomia entre o administrativo e o pedagógico” (CADERNOS PEDAGÓGICOS
- SMED, 1999a):
O conselho escolar é o órgão máximo da escola, com função deliberativa
nas questões administrativas, pedagógicas e financeiras. É composto por
representantes eleitos de pais, alunos, funcionários e professores. Cada conselheiro
tem mandato de dois anos. Nas comunidades escolares, onde o processo de
democratização é mais consolidado, o diretor da escola é um executivo do Conselho
(AZEVEDO, 2000).
A construção de regras de convivência era um dos pilares que sustentava o
funcionamento da escola ciclada. Os princípios de convivência deveriam contemplar “a
liberdade de expressão, a flexibilidade, o respeito à diferença e ao bem comum, a
compreensão, a tolerância e a solidariedade; qualificando as relações através da
responsabilidade, honestidade nas críticas, transparência e diálogo” (Princípio 76,
CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.64).
As medidas punitivas e autoritárias passaram a ser substituídas por práticas educativas,
uma vez que a “disciplina deve ser vista como forma de organização da vida escolar e não
como meio de controle do comportamento” (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000,
p.65). Para aprofundar a discussão sobre os direitos e os deveres de cada segmento escolar, o
Conselho Escolar deveria promover estratégias para reavaliar e reformular as regras de
convivência, para que essas refletissem a realidade da comunidade escolar.
A democratização escolar abria as tradicionais instâncias de poder da instituição
educativa seriada ao potencializar o acesso ao conjunto de informações escolares –
administrativas e pedagógicas -, ao permitir a concreta organização de cada segmento – pais,
alunos, professores e funcionários, para possibilitar que a tomada de decisões se
estabelecessem de forma, exclusivamente, coletiva. A Escola Cidadã dos Ciclos de Formação,
que objetivava tornar público o que antes era privado, instrumentalizava cada segmento
escolar para intervir nas deliberações da escola - o uso da verba trimestral, a aprovação do
calendário escolar, a organização do currículo e das regras de conivência da escola, a
transparência no processo de construção do plano anual e na escolha das demandas na disputa
do Orçamento Participativo da SMED. Apostando na relação com o diferente, como força
motriz para a crítica e a transformação da realidade, era assumida pela SMED em que
185
[...] a cultura democrática é gestada no respeito às diferenças, na convergência das
semelhanças, na produção de decisões partilhadas, em oposição ao autoritarismo, à
negação dos conflitos, ao consenso forçado, [...] a todos os elementos constituintes
da cultura autoritária. A democratização só e garantida no interior da escola a partir
da igualdade de condições de participação dos vários segmentos que compõem a
comunidade escolar, respeitando seus saberes e suas diferentes responsabilidades,
[...] [passando] da hegemonia de um grupo para a construção coletiva, estruturada na
partilha de poder , respeitando papéis e responsabilidades diferentes: uma gestão que
inverte a lógica autoritária e instaura novas relações de poder (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.29).
Da democratização da Educação que, nacada de 70, restringia sua ação na
garantia de acesso ao sistema público de ensino, ampliava sua atuação para interior
das escolas, na construção das regras de convivência para a gestão do tempo e do
espaço. À bandeira da ampliação das vagas, somaram-se novas bandeiras, que
passaram a reivindicar a participação nas decisões sobre a gestão dos recursos
financeiros, sobre a ação pedagógica, sobre a política administrativa da escola. A
escola ciclada passava a ser o espaço que, de forma permanente, deveria
desencadear ações que possibilitassem viver as experiências de uma prática
democrática, um aprendizado que deveria permear o conjunto das relações
desencadeadas no seu interior mas, também, refletir-se na comunidade.
(CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000).
A gestão democrática da escola ciclada expressava o desejo da Secretaria da Educação
de deslocar a autoridade educativa da direção da escola para uma gestão compartilhada por
professores, alunos, pais e funcionários:
[...] Queremos uma escola a que todos tenham acesso assegurado, que se constitua
num espaço público de construção de vivência da cidadania, que não se limite à
transmissão, mas articule o saber popular com o conhecimento científico, voltado
para a transformação da sociedade, em que o educando seja sujeito do processo de
conhecimento e a prática pedagógica aconteça numa perspectiva interdisciplinar,
superando a fragmentação existente nas escolas (CADERNOS PEDAGÓGICOS -
SMED, 2000, p. 29).
Para transformar a escola em um espaço público, segundo Schimitt (1995), era preciso
estabelecer traços firmes entre o discurso e a prática, não somente na descentralização
financeira e na gestão coletiva, mas, efetivamente, na democratização do conhecimento. Na
escola ciclada, o currículo e as estratégias de aprendizagem eram construídos a partir do
Complexo Temático, com origem em Pistrak (1981)
161
e inspirados nos Temas Geradores
aplicados por Paulo Freire em movimentos educativos reconhecidos internacionalmente.
Como expressam os documentos oficiais, o Complexo Temático contemplava dois aspectos
161
O papel do complexo temático era fazer a criaa vivenciar o método dialético, e isso, só pode ser
conseguido na medida em que o aluno assimile o método na prática. Pistrak enfatiza a necessidade de estruturar
complexos geradores de ação, para organizar a atividade do educando e dirigir o trabalho social da Escola
(PISTRAK, 1981, pg. 19).
186
apontados como essenciais para a construção de currículo e do conhecimento para a escola
por Ciclos de Formação: ter vínculo com a realidade e planejar coletivamente as ações
pedagógicas.
O Complexo Temático era a estratégia central no processo de radicalização da
democracia. A partir da falas da comunidade, da escuta da família dos educandos, passava-se
à organização da relação aprender-ensinar, uma relação que deveria ser construída sob a
lógica da interdisciplinaridade. Quatro diretrizes-fonte nortearam a elaboração do Complexo
Temático: a sócio-antropológica – leitura do contexto do aluno; a sócio-psicopedagógica
leitura sócio-interacionista do processo de desenvolvimento do educando; a epistemológica
leitura histórica do conhecimento acumulado por cada disciplina, e a filosófica – leitura
político-pedagógica-filosófica do coletivo da escola (CADERNOS PEDAGÓGICOS -
SMED, 1999a, p.21-22).
O processo de construção do Complexo Temático, do instrumento projetado para
organizar o fazer pedagógico da escola ciclada, não transcorreu de forma tranqüila. O
conjunto de termos presentes no discurso educativo da escola por Ciclo de Formação, não
plenamente traduzidos pelo coletivo escolar, colocava-se como uma dificuldade,
apresentando-se como um verdadeiro emaranhado conceitual, que, como problematiza Pooli
(2004), se não imobilizava, pelo menos aprisionava os professores em um jogo de palavras e
conceitos [muito pouco] explicados e, portanto, pouco compreendidos:
Uma vez aprovado pelo coletivo o plano de trabalho, cabe, também ao
coletivo, sugerir a forma como dar-se-á a ação e a intervenção na realidade, para que
os princípios e o plano de trabalho sejam vivenciados. Após isso, a intervenção é
desencadeada, tendo como critério a interdisciplinaridade (no conteúdo e na ação), a
hegemonia do coletivo, as práticas sociopolítico-históricas, o aprofundamento
teórico metodológico nas diferentes áreas de conhecimento e, por fim, os processos
de organização do pensamento (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1996,
p.24).
Nessa profusão de termos, um deles marca fortemente a organização do fazer
pedagógico na escola por Ciclos de Formação - a interdisciplinaridade. Da mesma forma que
a seriação era associada ao fracasso escolar e à repetência, o discurso pedagógico
contemporâneo debitava a fragmentação do conhecimento às disciplinas. Seguindo por esse
caminho, o projeto político-pedagógico da Escola Cidadã por Ciclos de Formação colocava a
interdisciplinaridade como o remédio para combater o mal da fragmentação disciplinar, um
remédio que poderia ser aplicado em diferentes doses, como indica Veiga-Neto (2002b), da
pluridisciplinaridade até a transdisciplinaridade. A difícil aplicação do remédio para a
187
fragmentação do saber teve, nos Ciclo de Formação, a tensão entre a disciplinaridade e a
interdisciplinaridade
162
suavizada com a perda de privilégios, uma vez que todas as
disciplinas passavam a ter a mesma carga horária, uma ação de reengenharia na grade
curricular para borrar a superioridade de algumas disciplinas.
Falava-se em postura interdisciplinar
163
, mas não se discutia o modo como
operacionalizar a interdisciplinaridade. Colocava-se sob o conceito da interdisciplinaridade a
lógica de desenvolvimento do Complexo Temático, mas não se discutia como tornar possível
uma prática que se revela filosoficamente questionável e objetivamente confusa. Vivia-se na
rede municipal de ensino de Porto Alegre o que Veiga-Neto (1996, 2002b), nomeia como uma
das ações do movimento pela interdisciplinaridade - defender o uso da escola para a cura da
alegada patologia do saber, o uso saber para melhorar o mundo moderno. Seguindo a
perspectiva argumentativa de Santomé (1998) e de Veiga-Neto (1996), saberes e práticas, de
forma imanente, produziram e reproduziram a interdisciplinaridade como um remédio para o
mundo patologizado pela disciplinaridade que, em contra-partida contaminou a forma de
pensar o processo educativo, um erro a ser corrigido, também, na rede municipal de ensino de
Porto Alegre.
O processo disciplinar de escolarização, classificou, ordenou e distribuiu saberes, não
apenas para que nos apropriássemos de informações, mas como argumenta Popkewitz (1994),
para aprendemos maneiras de conhecer, de compreender, de interpretar, para conquistarmos
os instrumentos de percepção do mundo e de nós mesmos. Se a estrutura disciplinar
estabeleceu as condições de possibilidade de configuração do mundo e do sujeito moderno,
Popkewitz (1994), analisa a forma interdisciplinar de organização e controle dos saberes
como uma tentativa de gerar uma nova percepção da realidade e um novo ser individual e
coletivo. Nessa perspectiva, não causa surpresa que o assunto da interdisciplinaridade, da
busca pela totalidade do conhecimento conquistasse o discurso pedagógico,
contemporaneamente a assunção de um cenário político-econômico que acelerava o processo
de globalização.
Os resultados pouco animadores e as inúmeras tentativas em articular estratégias
pedagógicas com vista à totalidade do conhecimento na rede municipal de ensino resultaram
162
Para aprofundar essa discussão, a pesquisa realizada por Veiga-Neto (1996), em sua tese de doutorado,
aborda de maneira bastante produtiva a tensão entre disciplinaridade e interdisciplinaridade, mostrando as
impossibilidades – de ordem lógica epistemológica – e as dificuldades – de ordem metodológica e prática –
problematizando a forma como tem sido abordada essa temática por grande parte de pedagogos e pedagogas no
Brasil.
163
Como disse Fazenda (1993), a interdisciplinaridade não se aprende e nem se ensina: se exerce, vive. O
caráter atitudinal da interdisciplinaridade coloca na mão do professor a responsabilidade por articular práticas
que objetivem a totalidade do conhecimento.
188
em um deslocamento para a ação da interdisciplinaridade, como analisa Veiga-Neto (1996),
no discurso e na prática, de uma dimensão pedagógica para uma atitudinal, deixava de ser
uma categoria de conhecimento para tornar-se uma categoria de ação. Na busca dessa unidade
perdida, como nos alerta de forma muito oportuna Meirieu (2002, p.94), o discurso
pedagógico adotava formas estranhas para o coletivo dos professores, formas contribuem em
grande medida para confundir a ação educativa que objetiva construir.
Se não era a definição do instrumento, mas o manuseio e a efetiva experimentação que
possibilitariam sua compreensão, na prática, ao tentar construir e operar pela interface do
Complexo Temático, o instrumento de democratização de acesso ao conhecimento tornava-se
ainda mais difícil, talvez incompreensível. Professores percorreram a comunidade,
registraram as falas dos moradores de vilas populares, observaram as condições
socioeconômicas das famílias de seus alunos e concluíram, com grande surpresa, como
observa Pooli (2004), que os alunos eram pobres, realmente eram pobres e viviam em todas as
condições que a pobreza lhes podia oferecer.
Uma pesquisa era colocada em prática parar dar visibilidade a um contexto social que
já era de conhecimento do coletivo de professores. Os fenômenos que passavam a configurar
o Complexo Temático em muitas das instituições de ensino de Porto Alegre, como a falta de
segurança ou o problema habitacional, definitivamente, não eram novidades para o coletivo
de professores, não operando, assim, como um elemento que possibilitasse desencadear
mudanças na transposição didática do conhecimento científico para o saber escolar.
O currículo organizado sob a lógica do Complexo Temático imprimia, de forma ainda
mais forte, a missão salvacionista da Educação na escola por Ciclos de Formação. Conhecer a
comunidade e levar a luz do conhecimento para salvar as comunidades pobres da periferia de
Porto Alegre de seus problemas mais imediatos. Na concepção da Escola Cidadã, a ação
educativa deveria levar em conta que “a prática social é a fonte de conhecimento, que a teoria
deve estar a serviço da ação transformadora, pois a prática social é o critério de verdade e o
fim último do processo de conhecimento” (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a,
p.35). A busca cíclica da Grande Pedagogia, como afirma Silva (1994, p.251 e 257), que
procurei dar visibilidade no capítulo anterior ao percorrer as marcas deixadas pelos processos
educativos construídos pela sociedade ocidental, parece encontrar na escolarização por Ciclos
de Formação, finalmente, a resposta a todas as grandes questões educacionais e sociais, para
colocar na mão do professor, na melhor tradição iluminista, o saber desinteressado para o
avanço e progresso da vida social.
189
As etapas que se seguiram à pesquisa sócio-antropológica revelaram o quanto o
processo de implantação dos Ciclos de Formação, como alerta Pooli (2004), “prescindiu da
discussão de questões metodológicas essenciais para as atividades escolares”. A
sistematização das discussões e reflexões realizadas no II Encontro das Escolas Cicladas da
rede municipal de ensino de Porto Alegre tornou visíveis as dificuldades vividas pelos
professores para colocar em prática a construção do currículo e do conhecimento pela
interface do Complexo Temático:
[...] Este processo de construção é bastante difícil [...]; [...] realizamos um
trabalho intenso como conceitos e categorias, que se misturavam e nos confundiam
[...], [...] estratégias avançam e retrocedem; [...] retornamos às atividades da
seriação; [...] por vezes, revelam avanços em direção à “ciclagem” de nosso ensino.
Devemos nos preparar quando a contradição vier com tudo [...]. Por muitas vezes
não sabíamos como responder à realidade que víamos, [...] o que importa é registrar,
este tem sido um processo intenso, por vezes... doloroso...; na etapa de planejamento
do complexo, percebemos, agora, que não conseguimos estruturar todo o
decálogo
164
, isso tem perturbado muito o trabalho pedagógico [...] (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 1998).
O fazer pedagógico passava a ser organizado e desenvolvido a partir da leitura do
contexto social do aluno, colocado dentro da escola por meio da escuta das falas de uma
comunidade feita pelo segmento dos professores. Era o mundo dos pais dos educandos,
interpretado pela visão de mundo dos professores que passava a organizar o ensinar e o
aprender na escola por Ciclos de Formação.
Abandonava-se a lista de conteúdos hierarquizados por níveis de complexidade e
adotava-se, em seu lugar, um conjunto de conteúdos planejados a partir do estudo do contexto
social, das preocupações da comunidade e da necessidade de instrumentalizar os alunos para
uma percepção crítica do mundo. A organização curricular era operacionalizada sob um outro
olhar,
[...] a partir de uma concepção de conhecimento interdisciplinar que possibilita uma
relação significativa entre conhecimento e realidade; desmantela uma abordagem
curricular burocraticamente pré-estabelecida; envolve o educador na prática de
construir o currículo; determina uma relação dialética entre a realidade local e o
contexto mais amplo (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p. 35).
164
Para organizar os Complexos Temáticos, foi sugerido seguir o Decálogo: (1) Investigação de interesses
do coletivo de professores em cada Ciclo ou Escola; (2) Definição dos Complexos no coletivo do Ciclo ou
Escola; (3) Formulação de princípios por área de conhecimento; (4) Elaboração do plano de trabalho da área de
conhecimento e de cada ciclo; (5) Compatibilização e re-elaboração no Ciclo ou na Escola; (6) Seleção do
conjunto de idéias a serem trabalhadas por ano em cada ciclo; Plenária de socialização do que cada ano
selecionou e definiu como conteúdo do período; (8) Definição coletiva das linhas de ação; (9) O coletivo da
escola busca ou insere parcerias no processo, (10) Problematização da realidade (Cf. Cadernos Pedagógicos -
SMED, 1999a, p.23-25).
190
Construir o desenho, o esquema gráfico que representava o Complexo Temático e
organizava o projeto pedagógico para cada Ciclo
165
não se revelaria a etapa mais difícil, mas,
sim, as tentativas em traduzir as falas da comunidade em estratégias para o aprender e o
ensinar em cada componente curricular. Tal dificuldade fez com que a equipe de assessores da
SMED realizasse inúmeras reuniões, sempre com o decálogo em mãos, instrumento que a
própria equipe tentava traduzir para colocá-lo em ação, porém sem muito sucesso. Somava-se
a essa confusão teórica um novo conceito que precisava ser traduzido e colocado em prática
pelos componentes curriculares - o Campo Conceitual.
O campo conceitual organizava os conceitos eleitos pelas diferentes áreas de
conhecimento, com a tarefa de assumir a responsabilidade de apontar as possíveis respostas
aos problemas colocados pelo Complexo Temático. No campo conceitual, os conceitos
receberiam três roupagens: específicos – somente em um determinado complexo temático;
transversal – perpassa várias áreas de conhecimento e propicia uma visão interdisciplinar;
longitudinal - percorre diversos Complexos Temáticos, pois necessita de mais tempo para que
seja dominado. São os conceitos no campo conceitual que geometricamente dispostos:
[...] à maneira de uma teia/trama intencional na qual estão integradas idéias que
organizam as aprendizagens escolares e na qual muitas vezes um ou outro conceito
se repete diante de um novo Complexo Temático, fazendo com que os educandos
participem do processo de elaboração e problematização dos conceitos de maneira
que fiquem cada vez mais cônscios de suas representações (SMED, 1995, p.22).
Além do desafio da tradução do Complexo Temático e do Campo Conceitual, restava
ao professor a árdua tarefa de construir estratégias que possibilitassem superar a limitação de
uma organização curricular que, ao centrar-se na leitura do contexto social, poderia levar o
aluno à não-ampliação de seus conhecimentos, dificultando o reconhecimento de outras
possibilidades para a esperada interpretação e posterior intervenção na realidade. Mais uma
vez a tarefa salvacionista imputada à educação – intervir e melhorar a realidade -, projetada
pelo Complexo Temático na escola ciclada, colocava na mão dos professores o grande (talvez
impossível) desafio de tentar organizar o conteúdo e a forma do saber científico para
possibilitar a construção de respostas ao desafio que estava por trás da pergunta o que faço na
segunda-feira?
166
165
A duração do trabalho do Ciclo, num mesmo Complexo Temático, podia ser mensal, trimestral, semestral
ou anual, dependendo dos critérios que o coletivo assumisse e da idade das crianças e dos jovens (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.25).
166
Seminário Internacional organizado pela SMED, em 2000, que discutiu as possibilidades de inovação no
fazer pedagógico, ao mesmo tempo em que uma pergunta se colocava e não era respondida por nenhum dos
191
Os professores do I e II Ciclos, etapas em que o conhecimento assume “uma dimensão
globalizadora” (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.35), pareciam se
aproximar e contemplar a exigência de plasticidade que o conhecimento precisava assumir
para construir as respostas às demandas de um contexto social que se encontrava disposto no
Complexo Temático. Entretanto, para os professores do III Ciclo, etapa que ainda mantém
uma base disciplinar, saber o que fazer e o que dizer, nos períodos de aula, tornara-se uma
tarefa nada fácil, agravada pelo fato de que o conhecimento científico passou a ser associado a
[...] uma prática de exclusão evidenciadas pela evasão, reprodução e não-
aprendizagem, [ações que deveriam ser substituídas] por práticas pedagógicas
avançadas, exercidas por muitos professores(as) preocupados com uma visão de
educação inclusiva e prazerosa, em oficinas ou atividades extracurriculares
(CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.21).
Saberes da História, da Geografia, da Matemática e dos inúmeros conhecimentos
científicos localizados nas diferentes disciplinas escolares, territórios de saber que ainda se
faziam presentes na escola ciclada, deveriam “permitir a articulação dos saberes cotidianos
com o conhecimento formal, colocando-os ao alcance das classes populares” (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.23). Conhecimentos, anteriormente válidos – Tabela
Periódica, Fórmula de Báskara, Teorema de Pitágoras, Regras Gramaticais, Classificação dos
Seres Vivos, entre tantos outros – tornaram-se estranhos saberes, conhecimentos que muito
pouco têm a dizer sobre fenômenos que passavam a estruturar o currículo na periferia de
Porto Alegre: “Vila é ‘Frau’”, “A falta de segurança e as relações entre as comunidades, a
escola e a família”, “Mudança de Moradia”, “Cidadania”, “A questão da infra-estrutura nas
comunidades e a busca de melhor qualidade de vida
167
”.
O rápido processamento dos dados da pesquisa sócio-antropológica pelos professores
e pela escola, também, reduziu as possibilidades dos resultados de uma pesquisa a uma
espécie de didatismo, transformando os fenômenos do entorno social em algo prático e
utilitarista para a sala de aula
168
. Para Fischer (2004), ao ser instituída como uma prática
obrigatória para definir o Complexo Temático, a pesquisa do entorno social se revelou uma
muitos intelectuais que estiveram no evento – O que faço na segunda-feira? Esse questionamento remete à
dificuldade de colocar em ação discursos inovadores, mas que não explicitam o comportamento metodológico a
ele associado.
167
Fenômenos presentes em Complexos Temáticos da Escola Cidadã (CADERNOS PEDAGÓGICOS -
SMED, 1998).
168
Como problematiza Fischer (2004), as falas da entorno social da escola encerravam-se na nova palavra da
moda – cidadania. Restava aos componentes curriculares, como a matemática, a tarefa de contar índios e fazer
gráficos, sugestão apresentada pela equipe de assessores, no ano de 2000, para marcar as comemorações dos 400
anos de Descobrimento do Brasil.
192
ação adaptativa e não-transformadora, ajustando-se aos aspectos imediatos da rotina
escolar
169
.
A organização do currículo e do conhecimento pelo Complexo Temático provocou a
evaporação de um fazer pedagógico que tradicionalmente tinha dominado o tempo e o espaço
escolares. A análise que Giddens (1991, p.12) faz a respeito do contexto contemporâneo pode
ser aplicada para o cenário escolar, quando o tempo e o espaço sociais passavam a ser
interpelados por “uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a
ciência não tem um lugar privilegiado”.
Avaliar o desenvolvimento dos alunos no ringue desse emaranhado conceitual gerava
novos desafios diretamente relacionados com o sucesso ou com o fracasso escolar. Ao ser
concebida como uma ação processual, contínua, participativa, investigativa, diagnóstica e
prognóstica, a avaliação fez do ato avaliativo na escola por Ciclo de Formação,
[...] um re-olhar sobre o conjunto da escola, pois situações de aprendizagem e
produção do conhecimento não são responsabilidades de apenas um dos segmentos
da comunidade escolar, [...] há necessidade da participação efetiva de todos os
segmentos [...], [...] compreender a avaliação como uma ação humana concreta
inserida e contextualizada no cotidiano da escola, [...] momento da crítica e da
reflexão e consciência da trajetória [do aluno] sem desvinculá-la do contexto social
mais amplo (Cf. CADERNOS PEDAGÓGICOS, 1999a, 28-29).
A avaliação na escola ciclada envolveu três modalidades: Avaliação Formativa – a
que tem a função de informar o desenvolvimento da aprendizagem, registrada de forma
contínua e sistemática no Dossiê
170
do aluno; Avaliação Sumativa – diagnóstico final sobre
o desenvolvimento da aprendizagem no ano-ciclo, apontando a forma de progressão do aluno;
Avaliação Especializada - solicitada pelo coletivo do ano-ciclo e realizada pelo Serviço de
Orientação Pedagógica, com apoio do Laboratório de Aprendizagem, da Sala de Integração e
Recurso e de outros serviços especializados. A avaliação formativa tem periodicidade
trimestral, seguindo a seguinte dinâmica:
169
No Caderno Pedagógico (1998), que traz a temática Falas do Cotidiano: vivências nos ciclos de formação
, são relatadas várias ações pedagógicas construídas para responder às novas demandas do Complexo Temático.
Porém, nenhuma das práticas descritas colocava-se como uma nova forma de tratar o conhecimento científico,
tornando visíveis práticas de ensino-aprendizagem que freqüentemente estavam presentes na ação educativa da
escola seriada.
170
Pasta com os relatórios descritivos e/ou instrumental didático, a nova nomenclatura das fichas com itens
objetivamente pré-definidos para acompanhamento do desenvolvimento do processo de aprendizagem do aluno.
193
1. A auto-avaliação do aluno, do grupo, da turma e dos educadores;
2. O conselho de classe participativo com todas as pessoas envolvidas no
processo de avaliação geral da turma;
3. A análise do Dossiê pela família, construindo o relatório, a partir de um
momento coletivo de reflexão entre pais, professores, alunos, sobre a construção da
aprendizagem da turma na qual o educando está e das demais atividades
desenvolvidas na escola;
4. A elaboração de um relatório descritivo de avaliação individual do aluno,
realizada pelos professores (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.52).
A progressão do aluno ocorria nas seguintes modalidades: progressão simples – o
aluno prossegue normalmente seus estudos; progressão com plano didático-pedagógico de
apoio – o aluno progride para o ano seguinte mediante a elaboração de um plano didático-
pedagógico que serviria como um guia para o professor do ano seguinte; progressão sujeita a
uma avaliação especializada – aluno com necessidade de uma investigação mais
aprofundada, feita por especialistas, para apontar elementos para organização do plano de
apoio didático-pedagógico.
Reprovação não, progressão sim! A não-retenção foi a principal ruptura implementada
na escola por Ciclos de Formação, aspecto que se aproximava de forma mais direta com as
contemporâneas configurações espaço-temporais. Todos os alunos tinham assegurado o
direito à continuidade e terminalidade de estudos, devendo acompanhar o avanço de sua
turma. A escola deveria proporcionar condições de avanço e progressão, garantindo a todos o
acesso a diferentes possibilidades de apoio: atividades planejadas pelo coletivo do ciclo, apoio
do Laboratório de Aprendizagem e estratégias individualizadas no plano de apoio didático-
pedagógico.
A garantia da progressão para todos os alunos concretizava a proposta de
reorganização dos tempos e dos espaços e tornava-se o principal cartão de visita da Escola
Cidadã. O aluno conquistava o direito de não mais interromper seu percurso de aprendizagem
e não mais ser afastado de seu grupo etário. O direito de acesso à escola era potencializado no
direito à continuidade e à terminalidade de percursos educativos.
A avaliação conquistava novos elementos, sintonizando-se com um mundo
globalizado que não podia mais perder tempo! Percorrer os princípios que organizaram a
proposta da Escola Cidadã por Ciclos de Formação permitiu explicitar como o novo olhar
sobre a avaliação passou a responder as configurações espaço-temporais da sociedade
contemporânea.
“Na avaliação do aluno, ele é parâmetro de si mesmo” (Princípio 56, CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 2000). Vivia-se a customização, também, na avaliação. O
194
processo avaliativo passava a “incluir uma medida que não se esgota [nela]; a ênfase se dá na
qualidade e não na quantidade” (Princípio 52, CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED,
2000). A avaliação ao colocar o aluno como parâmetro de si mesmo, dispensava o boletim e a
nota, a medida quantificável e impessoal, para colocar em seu lugar o Dossiê, o diário de
bordo para o registro de percursos de aprendizagem, não para comparar o aluno com uma
medida arbitrária, mas, para registrar seus avanços, suas dificuldades, de forma global, nas
dimensões cognitivas, afetivas e comportamentais.
Uma avaliação personalizada, individualizada e sensível em relação ao ritmo próprio
de cada aluno deveria ser efetivamente colocada em prática no interior de cada ciclo e
também entre os ciclos. Como analisa Lüdke (2001, p.31), na flexibilidade dos ciclos de
formação, o coletivo de professores e o Conselho Escolar, em sua função precípua,
necessitavam buscar os meios para satisfazer as necessidades e os diferentes estilos de alunos,
cada qual, em seu percurso individual.
Na escola ciclada, a avaliação incluiu um novo instrumento para possibilitar “a
observação, o registro e a reflexão constante do processo de construção do conhecimento”
(Princípio 65, CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000). O Dossiê era um dos
instrumentos de que a escola por Ciclos de Formação passava a se valer para superar a forma
disciplinar para expressar o processo de aprendizagem, anteriormente, associado ao boletim e
à nota. Do caráter disciplinar para a busca da totalidade, a avaliação passou a desencadear
“um processo contínuo, cumulativo, permanente, que respeita as características individuais e
as etapas evolutivas e socio-culturais de cada sujeito [...]” (Princípio 52, CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 2000).
O Dossiê era o instrumento que expressava a transparência que a nota não
possibilitava ao processo de aprendizagem. Ao registrar os progressos e os não-progressos do
aluno, o Dossiê tornava o processo de aprendizagem transparente e passível de intervenção do
professor itinerante, dos especialistas da Sala de Integração e Recurso, da equipe do
Laboratório de Aprendizagem e, quando necessário, “dos recursos de outras secretarias e/ou
instituições, visando garantir esse processo” (CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a,
p.53).
A busca da totalidade também se expressava na responsabilidade pelo processo
avaliativo, pois “[...] quem avalia são todos os integrantes do processo educativo” (Princípio
55, CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.63). Não mais o professor, mas sim, o
coletivo escolar; não só o aluno, mas todos os segmentos do coletivo escolar avaliam e são
avaliados, uma vez que “a avaliação deve priorizar a crítica e a autonomia moral e intelectual
195
dos professores, alunos e demais envolvidos no processo avaliativo [...]” (Princípio 54,
CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.63).
“A auto-avaliação, em todos os segmentos, deve ter critérios e objetivos definidos
pelo grupo [...]” (Princípio 66, CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 2000, p.63). Refletir
e auto-avaliar eram expressões presentes no discurso pedagógico construído para a
comunidade educativa da escola ciclada, pois, como analisa Larossa (1994, p.46), era preciso
produzir seus próprios textos de identidade, produzir textos para também se produzir. Como
uma das dinâmicas da avaliação formativa, a auto-avaliação colocava em prática um
dispositivo para construção da autonomia moral. A auto-avaliação é um dispositivo
pedagógico que, segundo Larossa,
[...] produz e regula, ao mesmo tempo, os textos de identidade e a identidade de seus
autores. E aprendem, também, uma certa imagem das pessoas e das relações entre as
pessoas, que cada um tem determinadas qualidades pessoais, que é possível conhecê-
las e avaliá-las segundo certos critérios, que é possível mudar coisas em si mesmo
para ser melhor e conseguir o que a pessoa se propõe, que as outras pessoas têm
qualidades diferentes, que é possível comunicar o próprio modo de ser, que é possível
viver juntos, apesar das diferenças, dadas certas atitudes de compreensão, respeito e
tolerância, etc. [...] As crianças aprendem o que significa o jogo e de como jogar
legitimamente. E aprendem quem são elas mesmas e os demais nesse jogo social
enormemente complexo e submetido a formas muito estritas de regulação, no qual a
pessoa se descreve a si mesma em contraste com as demais, no qual a pessoa define e
elabora sua própria identidade (1994, p.46-47).
Na escola ciclada, a auto-avaliação colocava-se como uma dinâmica obrigatória no
processo avaliativo para todos os segmentos da Escola Cidadã. Por meio de uma variedade de
recursos – texto autodescritivo, ficha check-list, narrativas pessoais, dinâmicas de grupo – em
ações isoladas ou combinadas, para que todo o coletivo escolar – aluno, professor, funcionário
– pudesse se “definir, formar e transformar, [tornar-se um sujeito] reflexivo capaz de
examinar e reexaminar, regular e modificar constantemente tanto sua própria atividade
prática, quanto, sobretudo, a si mesmo [...]” (LARROSA, 1994, p.49).
Avaliar era o verbo conjugado de forma coletiva na Escola Cidadã por Ciclos de
Formação. A avaliação participativa, flexível e reflexiva, operava em diferentes
temporalidades – contínua, permanente, em todas as faixas etárias - e sob diferentes
espacialidades – na sala de aula, no Laboratório de Aprendizagem, no Ambiente
Informatizado, na Sala de Integração e Recurso, na família, no conselho participativo, com
todo e por todo o coletivo escolar.
Ao ser investigado e trabalhado como parâmetro de si mesmo, o aluno condicionava
uma redefinição do trabalho docente. A ação pedagógica que, na escola seriada, conforme
196
aponta Lüdke (2001), caracterizava-se como uma prática individual de um profissional, com
responsabilidade única e exclusiva sobre seus alunos, na escolarização por Ciclos de
Formação, colocou o desenvolvimento do aluno sob responsabilidade do coletivo escolar –
professores, pais, funcionários –, todos passaram a acompanhar o percurso de aprendizagem
do aluno dentro do ciclo e entre os ciclos. Se o planejamento e a execução da ação pedagógica
na escola ciclada deslocavam-se do individual para o coletivo – professor referência,
professor itinerante, Laboratório de Aprendizagem, Sala de Integração e Recurso -, a
avaliação não ficaria inume a esse movimento, expondo sua metodologia ao coletivo escolar
para garantir as condições de acompanhamento e atendimento ao aluno.
Com os métodos de avaliação contínuos e cumulativos que deslocaram o enfoque
disciplinar para uma dimensão mais globalizada e, da centralidade do professor para a
participação de todos os segmentos da comunidade escolar, a avaliação configurava-se com
uma das principais marcas da escola ciclada, uma vez que foi a que mais diretamente
repercutiu sobre o fluxo escolar. A reorganização do processo avaliativo objetivava afastar do
sistema de ensino da rede municipal de Porto Alegre o fantasma da reprovação. O fracasso
escolar imputado a um sistema avaliativo por sancionar o sucesso ou o insucesso do aluno,
por separá-lo de seu grupo etário, deveria ser rompido para dar lugar a um conjunto de
iniciativas que respeitasse o ritmo e que se adequasse à especificidade de cada aluno. Ao
apagar a nota do histórico escolar dos alunos da periferia de Porto Alegre, afastava-se da
vontade de medir que esteve na base do pensamento na sociedade moderna. A objetividade da
nota, ao ser substituída pela subjetividade do parecer descritivo ou pela imprecisão do
conceito, colocava em ação, na Escola Cidadã, o contemporâneo processo de desmedida.
O processo de desmedida experienciado no cenário escolar, como analisa Negri
(1998), evidencia a recusa a um sistema métrico de avaliação e de sua relativização levada ao
extremo. Como alerta Fortuna (2004), a anulação das medidas não leva ao apagamento do
objeto medido e, tampouco, consegue extinguir a realidade e a diferença, que ainda imprimem
sua marca no processo de subjetivação. Um fragmento do diário de campo desta pesquisa
ilustra que a realidade de um percurso de aprendizagem não é apagada com a eliminação da
medida na avaliação. A não-retenção, o parecer ou o conceito que substituíram a reprovação e
a nota, não fizeram desaparecer, a diferença que marca as experiências de vida escolar de
quem sabe e de quem não sabe ler:
197
A construção dos Ciclos de Formação na rede municipal de ensino de Porto Alegre
inventava um novo sentido para a escolarização, que desejava Ensinar e Aprender
participando! Participar, incluir, democratizar, desprivatizar, flexibilizar, são muitos os
verbos que passaram a ser conjugados na instituição educativa com as novas configurações
espaço-temporais, passando a suscitar novas práticas avaliativas, a eleger novos conteúdos, a
colocar o rótulo de flexível nos tempos, nos espaços e nos currículos escolares.
A nova forma de escolarização passava a exigir dos gestores da Secretaria Municipal
de Educação uma ampliação significativa dos investimentos financeiros. Como atestam as
palavras do Secretário de Educação José Clóvis de Azevedo
171
, transcritas logo a seguir, cada
escola que passava a operar pela lógica dos Ciclos de Formação demandava por novos
recursos humanos – professores para assumir o papel de professor itinerante, para atuar no
Laboratório de Aprendizagem, para coordenar o Ambiente Informatizado; recursos materiais
e tecnológicos para a implementação do Ambiente Informatizado – grades na porta e nas
janelas, ar condicionado, rede elétrica e lógica específica, mobiliário adequado,
computadores, mouses, impressoras, estabilizadores:
O compromisso de aprendizagem para todos é sustentado por uma escola
equipada com acesso a novas tecnologias, com recursos humanos redimensionados e
com novos espaços de aprendizagem. O professor itinerante é um recurso humano a
mais a cada três ou quatro turmas, fortalece o coletivo e amplia as possibilidades de
planejamento do trabalho em grupo dos professores. Recentemente, esse coletivo foi
reforçado por estagiários remunerados, estudantes de cursos de formação de
professores, um para cada dez turmas (AZEVEDO, 2000, p.46).
171
Na época em que a rede municipal de ensino de Porto Alegre assumiu como proposta de rede a
escolarização por Ciclos de Formação, o município se defrontava “com perdas significativas de recursos”
Fundo de Estabilização Fiscal, Lei Kandir, isenção para exportações, etc. – fazendo com que o valor-aluno
ficasse muito aquém do praticado pela rede de ensino (Cf. CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999).
[...] Apenas Ja., Su. e Je. participam da atividade no ambiente informatizado, no horário da
turma de progressão. Os alunos olharam atividade na planilha eletrônica sobre os animais,
reclamaram por não ser um jogo e começaram a experIenciar . Su. foi a que mais resistiu em
começar a realizar a atividade. [...] Parecia que a estratégia seria produtiva e se desenvolveria de
uma forma mais tranqüila... até que um grupo de alunos, do último ano do III Ciclo, responsáveis
pela edição do Jornal com Bah!, entraram no ambiente informatizado e, rapidamente, sentaram-se
nas estações de trabalho que não estavam sendo utilizadas, pois precisavam concluir e corrigir
alguns textos para a editoração final do jornal. Na mesma hora, Ja. saiu correndo para o pátio. Fui
atrás dele, perguntei o que havia acontecido... Ele me disse que “com eles junto no computador,
eu não vou ficar!” Voltei ao ambiente informatizado, conversei com os alunos do III Ciclo e pedi
que voltassem em um outro momento. Eles concordaram, me colocando que conheciam o Ja.,
que ele tinha sido colega de turma, mas que depois o Ja. se atrasou e, agora estava na Turma de
Progressão. Com a saída dos alunos do III Ciclo, Ja. retornou ao ambiente informatizado e
continuou a realizar a atividade proposta. Perguntei para ele, novamente, por que ele saiu daquela
forma. Ele me disse: “Não quero que eles vejam que eu ainda não sei ler!” [...].
(Diário de Campo – Escola Leste - Ambiente Informatizado – Turma de Progressão – Outubro-
2003).
198
Ao apagar a palavra reprovação do sistema municipal de ensino de Porto Alegre, a
Escola Cidadã potencializava a permanência do aluno na escola e a expansão do número de
vagas, configurando-se, assim, como uma resposta positiva ao modelo de racionalidade
econômica, normalmente proposto por agências internacionais de financiamento para a
obtenção de uma maior produtividade e eficiência no campo da Educação. Como analisa
Mainardes (2001), ao acelerar a passagem dos alunos pela escola, ao aumentar o número de
alunos concluintes, ao diminuir o gasto gerado e o desperdício dos recursos financeiros
associadas à repetência, a escolarização por ciclos de formação, pela garantia da aprovação,
aproximava-se do conjunto de práticas em que aspectos econômicos colocavam-se acima de
ações mais comprometidas com a qualidade de ensino e com o exercício pleno da cidadania
[grifo do autor].
A não-retenção do aluno atenuava os índices de reprovação nas estatísticas
educacionais, mas é preciso associar a esse mesmo movimento, a garantia de uma
aprendizagem efetiva, para que a promoção formal correspondesse à promoção real. A
distância entre o almejado e o concretizado se alargava demasiadamente, pois, a simples
implementação da escola ciclada não significava que tivessem sido alteradas as práticas
imputadas à escola seriada. A evasão escolar ficava mascarada no número expressivo de
Fichas de Alunos Infreqüentes (FICAI) e a dificuldade em operacionalizar o currículo via
Complexo Temático, esvaziado do conhecimento mais científico, reduzido a um mero
esquema gráfico que apenas enfeitava o planejamento de cada ano-ciclo.
Dificuldades que lentamente começavam a ofuscar o brilho que a proposta desejava
irradiar e, assim, transformar o contexto social de uma comunidade escolar. A não-interrupção
na caminhada escolar de cada aluno permitiu a garantia de manutenção do fluxo escolar, mas
oportunizou, também, que esse movimento passasse a ser lido pela comunidade escolar, como
alerta Vasconcelos (1999), como mera empurração, colocando no diálogo entre professores e
alunos a expressão Não dá nada! [grifo do autor].
Foram inúmeros os aspectos que começavam a apontar para uma forma de
escolarização que tinha se afastado do sonho iluminista de emancipação humana. Como falar
em exercício de cidadania para sujeitos concluintes do Ensino Fundamental que não possuíam
habilidade para assistir a filmes legendados
172
? Como falar em inserção social para os 30%
172
Na Escola Leste, alunos do III Ciclo, da Turma C23, calorosamente decidem sobre o filme a que
assistiriam em um dos passeios ao cinema organizados pela escola. O critério para a seleção do filme – ser
dublado – “sabe né, sora não consigo ler e acompanhar o filme”. Depois desse dia, comecei a entender por que
os filmes infantis eram solicitados, com tanta freqüência, por alunos concluintes do Ensino Fundamental.
199
dos alunos do I Ano do III Ciclo (correspondente à 6
a
série do ensino seriado) que, após seis
anos de escolarização, ainda não estavam alfabetizados? E que, mesmo não-alfabetizados,
tinham garantido seu direito à progressão
173
? Podemos falar em cidadãos autônomos,
participativos, ousados e construtores de projetos de vida? Como colocar em prática o ideário
de um dos teóricos que alicerçou muitas das discussões pedagógicas na cidade de Porto
Alegre, citado por Moll (2001, p.25) Paulo Freire, que acreditava na “perspectiva [de] futuro
[para] as gerações que educamos, um futuro enquanto presente transformador gestado no
fazer cotidiano de nossas escolas”?
Se a Mercoescola era questionada e apresentada como o modelo educativo que fazia
do conhecimento e de sua aprendizagem algo restrito a grupos privados, que transformava
bens culturais em mercadorias e cidadãos em consumidores, a Escola Cidadã talvez tenha
impossibilitado o consumo de bens culturais, agora, não apenas pela dificuldade de acesso a
esses bens, mas também pela impossibilidade que se expressa pela ausência de ferramentas
cognitivas para sua tradução. Sem a competência para ler e escrever, com uma formação em
que o conhecimento científico passa ao largo, como possibilitar a esses sujeitos o direito de
saber aproveitar as cartas que lhes são oferecidas no jogo sociocultural contemporâneo
174
?
O diálogo repleto de ruídos tornava cada vez mais difícil a comunicação entre
assessores pedagógicos e escola. Um quase enfrentamento aprofundava e dificultava o
encaminhar dos pontos de atritos que se colocavam na operacionalização de uma
escolarização sob a lógica de tempo e de espaço da escola ciclada. O impasse na
operacionalização da proposta levou os gestores da Secretaria de Educação, no período 2001-
2004, a incentivarem as escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre a construção e a
socialização dos projetos pedagógicos, a assumir como eixo de sua gestão a autonomia
pedagógica e o protagonismo docente. Segundo as pesquisas de Titton (2004), os professores
expressavam uma certa desconfiança em relação à reconquista da autonomia, ao mesmo
tempo em que pareciam aliviados com a possibilidade de organizar sua prática pedagógica
fora da tutela do Complexo Temático. Os questionamentos constantes sobre a obrigatoriedade
do Complexo Temático e o alívio manifestado pelos professores ao serem desobrigados da
realização da pesquisa socioantropológica, para a pesquisadora Titton (2004), revelaram que a
Entretanto, a sociedade não precisa ficar preocupada com essa constatação, a tecnologia resolve também esse
problema, agora temos a escolha do idioma com a invenção dos DVDs!
173
Para esses alunos, a rede municipal de ensino propõe a certificação especial, para manter em voga a
máxima: Todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros! Nas palavras da assessoria pedagógica da
SMED: “Professores, vamos garantir a certificação para esses alunos!”
174
Na Escola Leste, em uma das oficinas pedagógicas oferecidas aos alunos concluintes do III Ciclo e,
portanto, do Ensino Fundamental, ao exibir e debater aspectos abordados no filme Olga, um dos pontos de
discussão levantado pelos alunos era se Getúlio Vargas existiu realmente ou se era uma personagem de ficção.
200
atitude de pesquisador ainda não estava incorporada como uma prática para o professor, que
se mostrou despreparado para enfrentar tamanho desafio.
A não-imposição do Complexo Temático, um dos elementos centrais da proposta da
Escola Cidadã por Ciclos de Formação, ocorreu no mesmo tempo-espaço em que a rede
municipal de ensino de Porto Alegre começava a construir uma nova interface para a
Educação Municipal de Porto Alegre. A Escola Cidadã se ampliava para a perspectiva da
Cidade Educadora:
Nesse sentido, entende a cidade educadora como cenário para as práticas
escolares que possibilita qualificar – na direção da vida e das práticas socio-culturais
produzidas na cidade – o entendimento freireano da leitura da palavra escrita
(objetivo fundamental da escola) como leitura de mundo e, portanto, como
compreensão analítica e reflexiva dos problemas cotidianos e desafios postos pela
contemporaneidade sem, contudo, abrir mão de que o acúmulo histórico produzido
pela humanidade, traduzido nos diferentes campos de saber científico, esteja
presente nas pautas curriculares da escola pública municipal (MOLL, 2001, p.25).
Segundo o Secretário de Educação na época, Eliezer Pacheco (2001, p. 18), o conceito
da Escola Cidadã não dava mais conta da amplitude e da complexidade dos processos
educacionais, uma vez que “a Educação não ocorre apenas nos espaços da educação formal,
mas ela resulta das experiências vivenciadas em todos os espaços da cidade pela ação das
organizações governamentais ou não”. Para uma cidade que buscava o adjetivo de educadora,
dois outros verbos passaram a ser conjugados nas instituições educativas da rede municipal de
ensino de Porto Alegre – singularizar e pluralizar – no desejo de desencadear
[...] uma reflexão permanente e coletiva que nos permita um olhar lúcido sobre os
avanços obtidos com a implantação da política dos ciclos de formação e, também,
sobre seus pontos de tensionamento e de dúvida. O desafio que temos pela frente é o
de permitir, no sentido da radicalização da democracia, que a pluralidade das
proposições que as escolas construíram seja explicitada, a partir da afirmação de
uma escola pública e de qualidade que garanta o acesso, a permanência e as
aprendizagens (MOLL, 2001, p.26).
A Escola Cidadã, que passava a operar sob o conceito de Cidade Educadora,
desobrigava a instituição educativa da pesquisa socioantropológica e estimulava “a
pluralização das práticas educativas e a expressão das singularidades dos coletivos que
compõem as escolas. Singularizar e pluralizar sem perder de vistas seus eixos e desafios”
(MOLL, 2001, p.26). A não-retenção, um dos eixos centrais para a escolarização por Ciclos
de Formação, passou a ser fortemente defendida, apontada como um acerto pedagógico das
201
políticas públicas para a Educação Fundamental. O controle sobre as atas finais de avaliação
das instituições de ensino municipal aprofundava-se para assegurar a progressão continuada e
a permanência do aluno na rede, como ilustra um fragmento da entrevista com a supervisora
pedagógica destacado a seguir:
A equipe pedagógica da SMED evitava o confronto com o coletivo de professores,
preferindo ignorar a enfrentar plenamente as reais dificuldades na operacionalização dos
Ciclos de Formação. Para a escola, restava a incômoda tarefa de gerenciar a complexidade e
as incertezas da escola ciclada. Ao mesmo tempo em que a escola retomava, em parte, sua
autonomia e assumia a tarefa de levar em frente à proposta da escola por Ciclos de Formação,
políticas públicas eram desencadeadas para garantir a permanência e atendimento educativo
de crianças e jovens em situação de risco. Os projetos Nenhum a menos na escola e Projeto
Coruja foram implementados, em parceira com o poder público e a sociedade civil, para
incluir, em estratégias de escolarização, sujeitos que experienciavam um viver em que há
pouco tempo e espaço para que a vida possa ser vivida como um projeto!
O Projeto Coruja, inspirado nas experiências pedagógicas com meninos e meninas de
rua, foi implementado em seis escolas situadas em regiões da cidade com altos índices de
exclusão social e de evasão escolar, oferecendo bolsas de estudo para cursos voltados à
profissionalização – jardinagem, construção civil e informática. A ação deflagrada para buscar
alunos em casa - Nenhum a menos na escola –, construída em parceria com o Ministério
Público e o Conselho Tutelar, tinha por finalidade “zerar as Fichas de Alunos Infreqüentes
(FICAIs)
175
, historicamente acumuladas, além de discutir alternativas de permanência escolar,
a curto, médio e longo prazo” (SMED, 2001).
175
FICAI – Ficha para o acompanhamento de alunos infreqüentes, encaminhadas ao Conselho Tutelar e ao
Ministério Público. O volume de fichas era tão expressivo, em média 350 fichas, que monopolizava a ação do
SOE (Serviço de Orientação Pedagógica) com o preenchimento e envio desta documentação.
Agora, de 2002 para cá, tendo em vista toda a pressão que se sofre..., o aluno não pode
ficar retido, a única forma de retenção é a FICAI... Porque, até então, nos tínhamos casos de
alunos que eram freqüentes, ele não está faltando, mas quando um aluno tinha muita dificuldade
de aprendizagem, não conseguia acompanhar, mesmo tendo acompanhamento na Sala de
Integração e de Recurso, acompanhamento no Laboratório de Aprendizagem, não conseguia
avançar no seu processo de aprendizagem. Em alguns casos, se conseguia fazer a retenção
tendo em vista que ele não conseguia avançar cognitivamente. Do ano passado para cá, essa
pressão, via SMED, ficou muito maior, no sentido que não se tem possibilidade de retenção, o
aluno independente do nível de conhecimento que ele tem, ele tem que avançar... Se ele não tem
a FICAI para comprovar a ausência, para permitir a retenção, ele tem que avançar... Aí a coisa
ficou muito séria, ficou muito complicada e desestabilizou mesmo.
(Dados de pesquisa -Supervisora pedagógica – Escola Leste – Dezembro de 2002)
202
Foram propostas políticas públicas para enfrentar o risco social de manter fora da
escola seres humanos que, como afirma Bauman (2000, p.93) se tornaram supérfluos com a
falência do idealizado estado de bem-estar social e com o esfacelamento das promessas da
sociedade ocidental – industrial, capitalista, democrática e moderna.
[...] Na época em que a indústria proporcionava trabalho, subsistência e
segurança à maioria da população, o estado de bem-estar tinha como arcar com os
custos marginais da corrida do capital pelo lucro e tornar a mão-de-obra deixada
para trás novamente empregável – um esforço em que o próprio capital não
empreenderia ou não poderia empreender. Hoje, um crescente setor da população
que provavelmente nunca reingressará na produção e que, portanto, não apresentará
interesse presente ou futuro para os que dirigem a economia, a “margem” já não é
marginal e o colapso das vantagens do capital ainda o faz parecer menos marginal –
maior, mais inconveniente e embaraçoso – do que é. A nova perspectiva se expressa
na frase da moda: “Estado de bem-estar? Já não podemos custeá-lo...” (BAUMAN,
1998, p.51).
Em meio a um conjunto de ações públicas para responder aos desafios
contemporâneos da inclusão social, a educação pública municipal de Porto Alegre projetou
uma política educacional para “romper [com] a lógica da exclusão social, também através de
processos de inclusão digital, utilizando a informática para a assimilação, por professores e
por alunos, de novas posturas frente à organização do conhecimento” (MOLL, 2001, p.29).
No segundo semestre de 1999, o II Congresso Municipal de Educação, ao discutir a
democratização do conhecimento, definiu, como uma de suas prioridades, a implantação e a
qualificação gradativa do projeto de Informática Educativa no conjunto das unidades de
ensino da rede municipal, para garantir o acesso de todos os alunos e em todos os níveis de
ensino ao ambiente informatizado, com planejamento pedagógico, para possibilitar a
qualificação de todos os segmentos da comunidade, priorizando a formão e a assessoria aos
educadores. As metas estabelecidas no Congresso foram colocadas em ação, a partir de 2000,
e, além de implementar e consolidar a escolarização municipal por Ciclos de Formação,
projetavam “a informatização administrativa e pedagógica das escolas regulares e a ampliação
das relações de troca da rede com universidades e centros de pesquisas nacionais e
internacionais [...]” (AZEVEDO, 2000, p.45).
O saber da Informática Educativa que, no documento referência para a Escola Cidadã,
era abordado como Situações vivenciadas na escola e que interferem no trabalho do coletivo
de cada Ciclo de Formação e apresentado como um Conteúdo Transversal, junto com a
Sexualidade e a Educação Ambiental, conquistava importância e passava a configurar como
uma das políticas para a educação pública de Porto Alegre. Uma materialidade tecnológica e
203
um conjunto de saberes da Informática Educativa interpelava o tempo e o espaço da periferia
de Porto Alegre, buscando repensar posturas e práticas pedagógicas e expandindo os tempos e
os espaços da sala de aula e da formação do professor, dirigido a sujeitos em situação de
vulnerabilidade social. Como ilustra a fala assessora de Informática Educativa:
Olhar a nova materialidade tecnológica e o novo conjunto de saberes que a relação
Escolarização-Tecnologia fez circular no tempo e no espaço escolares na periferia de Porto
Alegre é a história que começo a recontar, percorrendo os acontecimentos que marcaram os
discursos e as práticas das políticas de informatização de uma rede de ensino que objetivava
responder às novas demandas sócio-educativas. Como destaca a equipe técnica e pedagógica
responsável pela elaboração e execução da proposta de Informática Educativa para a rede:
A INFORMÁTICA EDUCATIVA: DO RAIAR PARA A ESCOLA, CONECTIVIDADE
E SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Para contar a história da inserção do saber-informática na rede municipal de Porto
Alegre, garimpo pela memória dos assessores pedagógicos da SMED e pelos estudos das atas
e dos relatórios dos coordenadores dos ambientes informatizados de aprendizagem que
experienciaram os primeiros movimentos desencadeados, no contexto político-pedagógico da
Escola Cidadã, com a chegada da nova materialidade tecnológica - CPU
176
, teclados, mouses,
monitores, impressoras, softwares educativos e uma linguagem computacional especialmente
modelada para crianças. As dificuldades que enfrentei ao percorrer as rotas que marcaram a
inserção dessa materializada tecnológica e desse novo saber no tempo-espaço escolar, foram
apontadas pela assessora pedagógica de Informática Educativa da SMED:
176
CPU – Central Processing Unit – unidade central de processamento do computador.
Nosso desejo é o de resgatar o desejo de aprender pela utilização de novos recursos e,
ao mesmo tempo, fazer com que o aluno mantenha sua freqüência na escola.
(Dados de Pesquisa – Entrevista – Diretora de Informática Educativa – SMED – Setembro/2004)
Desenvolver competências e preparar jovens para viver e produzir numa sociedade em constante
transformação. Transformar o modelo da Escola Industrial para um novo modelo: o da Escola que
vai formar o cidadão da Sociedade da Informação e da Sociedade do Conhecimento.
(
Dados de
p
es
q
uisa
Relatório Técnico Parcial
Convênio BNDES/SMED/PMPA
Ano 2003
)
204
Projeto Raiar, grupo pós-Raiar... Para Correa, Del Pino e Basso (s/d), Raiar foi o termo
escolhido para nomear o projeto que buscava agregar ao movimento que trazia a Informática
Educativa para as escolas municipais da periferia de Porto Alegre, a força do nascer do sol, a
energia necessária para implementar os ambientes informatizados de aprendizagem e para
construir, criativamente, um enfrentamento mais qualificado entre sujeito e sociedade
informatizada. O projeto de informatização da rede de ensino objetivava, por meio da cultura
da informática, transformar as relações entre professores e alunos, ressignificando-as, para
apoiar o processo de construção da instituição democrática projetada pelos princípios da
Escola Cidadã, aspecto que foi apresentado de forma bastante elucidativa pela Assessoria de
Informática Educativa da Secretaria Municipal, uma das equipes responsáveis pela
implementação do novo projeto de escolarização para o sistema de ensino em Porto Alegre:
Os desafios que cercaram as questões de por que e de que forma informatizar,
pedagogicamente e administrativamente, a rede municipal de ensino de Porto Alegre
começavam a ser respondidos pela capacitação de professores, das escolas e da administração
da SMED, uma apropriação técnico-instrumental necessária para permitir a esses profissionais
uma exploração pedagógica qualificada dos recursos tecnológicos, além de subsidiar as
discussões para a definição de quais e de que forma utilizar as ferramentas computacionais a
serem disponibilizadas em cada ambiente informatizado de aprendizagem.
Foram estabelecidas parcerias com a sociedade civil e com instituições públicas e
privadas para possibilitar a implementação dos primeiros ambientes informatizados de
A proposta de criação dos ambientes informatizados de aprendizagem se insere na
política educacional do município de Porto Alegre, contribuindo para a construção de uma rede de
significações, entre diferentes disciplinas, escolas, professores, alunos, comunidades. Pretende-
se acompanhar a contemporaneidade com o ingresso da informática educativa e o acesso às
novas tecnologias viabilizando construções coletivas de uma proposta político-pedagógica.
(Dados de pesquisa - Assessoria Pedagógica - Informática Educativa –
Dezembro/2000)
O grupo de Informática Educativa nunca se manteve o mesmo. Essa é a questão da Informática
Educativa na rede. Não se tem a referência de uma pessoa que, por exemplo, se manteve desde
a época do projeto Raiar, que veio acompanhando e que hoje possa estar junto com o LEC
(Laboratório de Estudos Cognitivos do Instituto de Psicologia da UFRGS), representando a SMED,
pensando isso. O grupo Raiar foi embora, aí o grupo pós-Raiar, ficou até o final do ano passado...
Agora, foi embora... Agora tem um novo grupo... É uma história, como tu podes ver, que não tem
um registro sistematizado, escrito.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Assessora Pedagógica - Informática Educativa –- Agosto/2001)
205
aprendizagem
177
e, assim, garantir a chegada da materialidade tecnológica no tempo e no
espaço escolares. Reuniões, oficinas, diferentes estratégias para aproximar os saberes da
Informática Educativa e o conjunto de professores municipais foram colocadas em prática a
fim de concretizar as ações projetadas para a política de informatização pedagógica e
administrativa para as escolas da periferia de Porto Alegre.
As informações garimpados no Caderno de Registro do Projeto Raiar - 1995/1997 e no
relatório das ações desenvolvidas pelo projeto no ano de 1996 dão visibilidade a um projeto
de informatização administrativa e pedagógica que iniciava com a implementação dos
ambientes informatizados de aprendizagem em cinco escolas, nomeadas de Escolas-Pólo, bem
como, a capacitação de um grupo de professores que atuariam como coordenadores dos
Ambientes Informatizados de Aprendizagem nessas instituições de ensino. As escolas-pólo
foram projetadas para operar como centros para irradiar o saber da informática educativa na
periferia de Porto Alegre, o novo território do edifício escolar, como apontam os dados de
pesquisa:
A capacitação dos recursos humanos foi operacionalizada por meio de dois
movimentos. Primeiro, a capacitação técnica - a instrumentalização - promovida pela equipe
de assessores da SMED, na primeira edição, e, em edições posteriores, em parceira com o
SENAC e a PROCEMPA
178
. Essa capacitação tinha como objetivo, como revela dado de
pesquisa disponibilizado a seguir:
Uma segunda forma de capacitação tornou-se necessária com a implementação dos
ambientes informatizados de aprendizagem nas escolas-pólo da rede municipal – a
capacitação pedagógica, uma ação oportunizada pela efetiva participação do grupo de
177
No Caderno de Registro do Projeto Raiar ações buscavam parcerias para a doação de microcomputadores:
Banco Central e Colégio Marista Nossa Senhora do Rosário, este último, além de doar recursos técnicos,
promoveu oficinas pedagógicas com os professores municipais para potencializar o uso do equipamento.
178
Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação de Porto Alegre.
Instrumentalizar os professores da rede municipal de ensino com as noções básicas sobre
o computador e ambientes de utilização do MS-DOS e Windows para possibilitar o
aprofundamento posterior no campo da Informática Educativa.
(Dados de Pesquisa – Caderno de Registros - Projeto Raiar - 1995/1996)
O ambiente informatizado é privilegiado para a apropriação e a construção do
conhecimento, para preparar a escola para ir além das possibilidades que até então a ela era
creditada. Acreditamos em mudanças, em transformações e pretende-se garanti-las por meio da
cultura informatizada, possibilitando novas relações culturais, estéticas, políticas e pedagógicas.
(Dados de pesquisa – Relatório de Equipe - Projeto Raiar – Informática Educativa – Ano/1996)
206
pesquisa do LEC/UFRGS. A relação Educação-Tecnologia, construída nos ambientes
informatizados de aprendizagem nas escolas-pólo da periferia de Porto Alegre, tinha sua ação
técnico-pedagógica alicerçada nos saberes produzidos por um reconhecido grupo de pesquisa,
pioneiro na formação de recursos humanos, na produção de softwares educativos e nas
investigações sobre o processo de ensino-aprendizagem mediado pela interface
computacional.
Os especialistas do LEC/UFRGS, um grupo de pesquisa com know-how no campo da
Informática Educativa
179
, com mais de 20 anos em pesquisas sobre a utilização do
computador como recurso tecnológico na Educação, foram autorizados a produzir, a
distribuir, a fazer circular e a regular os saberes da Informática Educativa na rede de ensino de
Porto Alegre. Foram esses profissionais, com suas pesquisas no âmbito da Informática na
Educação, que foram autorizados a exercer a tutela pedagógica do pensar e do fazer para a
materialidade tecnológica colocada no tempo e no espaço escolares – o computador.
O pensar e o fazer da Informática Educativa autorizados a interpelar o tempo-espaço
escolar nas escolas-pólo da rede de ensino municipal de Porto Alegre, como analisa Foucault
(2001b, p.8), conquistara esse status de verdadeiro por ser um discurso com lastro científico,
formulado por pessoas qualificadas e no interior de uma instituição de pesquisa respeitada
nacional e internacionalmente. Foram os saberes do grupo de especialistas do LEC/UFRGS
que passaram a projetar e a gerir a ação da Informática Educativa para a rede municipal de
ensino de Porto Alegre. A importância que esse grupo de pesquisadores assumiu na
implementação das políticas de informatização da rede de ensino municipal de Porto Alegre
179
LEC/UFRGS, no cenário nacional e internacional, é reconhecido como centro de referência em Informática
Educativa, por suas investigações, apoiadas na epistemologia piagetiana, sobre como o computador pode
contribuir no processo de aprendizagem. A UFRGS foi uma das cinco universidades públicas brasileiras
escolhidas com a meta de encaminhar a primeira ação oficial de levar os computadores para as escolas públicas
brasileiras (Cf. OLIVEIRA, 1997).
A escola-pólo tinha um professor específico para lidar com o ambiente informatizado. Geralmente
eram professores que emanavam dos cursos de capacitação promovidos pelo LEC/UFRGS.
(Dados de Pesquisa – Entrevista - Assessor Informática Educativa –Dezembro/ 2000)
As oficinas foram organizadas contemplando o conhecimento da proposta desenvolvida
nas escolas-pólo (ministrada pelos coordenadores) e outras atividades de sensibilização,
apontamento de hipóteses e propostas de trabalho, [...] não podemos deixar de registrar as
contribuições [...] no planejamento e acompanhamento às oficinas e da equipe do LEC.
(Dados de pesquisa – Relatório de Equipe - Projeto Raiar – Informática Educativa – Ano/1996)
207
foi ilustrada nas palavras da direção da equipe de Informática Educativa da SMED, na gestão
2001-2004, ao falar da proposta pedagógica para os ambientes informatizados:
O projeto Raiar capacitava professores e assessores da SMED para inscrever, em sua
prática pedagógica, o pensar e o fazer da Informática Educativa. Novos comportamentos
deveriam ser assumidos, novas práticas e discursos deveriam interpelar o professor e o aluno
para desencadear a conformação de novas leis para o funcionamento e de exercício de poder
no tempo-espaço escolar. Professores, formados pela equipe LEC/UFRGS para o tempo-
espaço escolar, eram moldados pelos saberes da Informática Educativa em oficinas
pedagógicas projetadas e dirigidas com o objetivo de instrumentalizar e qualificar a ação
pedagógica a ser desenvolvida no ambiente informatizado de aprendizagem. Um trecho do
relatório do Projeto Raiar, disponibilizado a seguir, elucida essa perspectiva:
Nas escolas-pólo circulavam os saberes da Informática na Educação para apropriação
de alunos e de professores da escola e de escolas vizinhas. Pelas mãos dos coordenadores dos
ambientes informatizados
180
, - professores capacitados pela equipe do LEC/UFGRS, com
carga horária específica, para conduzir as possibilidades de utilização dos recursos
180
O coordenador do ambiente informatizado na escola-pólo tinha como atribuição “responder pelos
equipamentos e assessoria pedagógica, organizar dos horários e utilização junto a alunos e professores, fazer a
‘ponte’ como a Coordenação Multidisciplinar/Projeto
Raiar” (Dados de Pesquisa – Caderno de Registros -
Projeto Raiar - SMED -1995/1997).
[..] Para um público que, na sua grande maioria, confrontava-se com a informática, ou melhor,
com o computador pela primeira vez. Sendo assim, bastante significativo e coerente com o
momento de desmistificação do meio que se constituiu neste trabalho, vale a pena mencionar o
valor que isto significa no coletivo de professores e a importância de tais movimentos para as
ações da secretaria nos processos de formação. As oficinas configuraram-se, basicamente, em
duas estruturas: uma priorizando a criação, a exploração e a interação com o meio e outra
priorizando a discussão, explicitando os conflitos (concepções, medos, expectativas, etc...) que
envolvem o trabalho com a informática, ambas buscando trabalhar o imaginário dos professores
no confronto com as novas tecnologias.
(Dados de pesquisa – Relatório de Equipe - Projeto Raiar – Informática Educativa – Ano/1996)
[...] em nível de rede, quem sabe melhor do que nós são os docentes da universidade.
Esse é o metiê deles, são eles que fazem parte do Laboratório de Estudos Cognitivos, com
acúmulo de conhecimento nessa direção.
(Dados de Pesquisa – Entrevista – Direção de Informática Educativa - SMED – Dezembro - 2001)
O LEC/UFRGS conta com uma equipe de experientes pesquisadores: 5 doutores, 5
doutorandos, 4 mestres, 4 mestrandos, 2 com nível de especialização.
(Dados de Pesquisa – Entrevista – Direção de Informática Educativa - SMED – Dezembro - 2001)
208
computacionais - os princípios gerais elaborados pela Equipe multidisciplinar/Projeto Raiar
eram colocados em ação:
Os relatórios das escolas-pólo encaminhados à Coordenação Pedagógica
Multidisciplinar/Projeto Raiar apontavam para o ambiente Logo, a linguagem de programação
modelada para crianças, como a interface computacional que centralizava as ações
pedagógicas experenciadas na rede em seus ambientes informatizados de aprendizagem. As
possibilidades pedagógicas associadas a essa linguagem de programação apareciam,
freqüentemente, na pauta das reuniões da equipe do Projeto Raiar, fato esse que vai culminar
na participação da rede municipal de ensino de Porto Alegre no VII Congresso Internacional
Logo e no I Congresso de Informática Educativa do Mercosul, em 1995.
Memorando encaminhado a toda a rede de ensino incentivava a participação dos
professores nesses eventos que, organizados pelo LEC/UFRGS, traziam para a capital gaúcha,
conferencistas internacionais, entre eles Seymour Papert, para debater, no solo da
epistemologia piagetiana, pesquisas que envolviam o desenvolvimento de processos
cognitivos em crianças pela interface do ambiente computacional Logo :
Escolas-pólo, professores capacitados com certificação do LEC/UFRGS para
coordenar a ação pedagógica nos ambientes informatizados de aprendizagem e ênfase no
Princípios Gerais / Informática:
O conceito de imagem virtual como forma de propiciar o desenvolvimento da
abstração;
O computador como objeto de conhecimento para o desenvolvimento do pensamento
abstrato e lógico-matemático e da criatividade e intuição;
O trabalho com diferentes formas representacionais oferecidas pelas novas
tecnologias;
Inserção da informática no currículo, mas não como uma disciplina isolada;O uso
desta tecnologia para criar espaços transdisciplinares e para definir uma rede de
relações e significações frente as diferentes disciplinas da escola.
(Dados de Pesquisa – Caderno de Registros – Projeto Raiar - Assessoria Pedagógica -1995/1997)
A Coordenação Multidisciplinar, com o objetivo de incrementar a discussão sobre as novas
tecnologias de informação e telecomunicação na educação (NTIC), ampliar as possibilidades de
uso dos ambientes informatizados de aprendizagem implantados na rede municipal e garantir
espaços constantes de formação e qualificação dos professores vem, por meio deste, informar
sobre o VII Congresso Internacional Logo e I Congresso de Informática Educativa do Mercosul,
que acontecerá de 06 a 09 de novembro, em Porto Alegre, conforme folder anexo. Para os
professores da rede municipal interessados, o prazo de inscrição, ao preço de R$ 50,00, foi
prorrogado. A SMED custeará 12 inscrições que serão escolhidas por sorteio, dia 23/10, pela
manhã, na coordenação multidisciplinar, dentre aqueles que chegarem por memorando até dia 19
de outubro. [...]
(Dados de Pesquisa – Of. Circ. N° 288 - Caderno de Registros - Projeto Raiar-SMED -1995/1996)
209
trabalho com a Linguagem Logo eram os elementos que o Projeto Raiar disponibilizava para
tecer os primeiros movimentos da Informática Educativa nas escolas da periferia de Porto
Alegre. No ambiente informatizado, as teorias construtivistas eram colocadas em prática,
aproximando professores e alunos da rede de ensino de Porto Alegre da linguagem de
programação desenvolvida pelo matemático sul-africano Seymour Papert.
Da mesma forma que as teorias construtivistas marcaram a política pedagógica da
primeira gestão da Administração Popular, os movimentos iniciais da Informática Educativa,
conduzidos pelos assessores do Projeto Raiar e com o uso da linguagem de programação
Logo, buscavam deslocar filosofias da Educação – do instrucionismo para o construcionismo
– aprofundando as práticas de uma pedagogia psicológica. Pela interface do ambiente
computacional, o projeto de informatização pretendia, como propunha Papert, (1994,) “apoiar
uma ampla possibilidade de estilos de intelectuais e protestar contra a imposição de uma
maneira uniforme e única de aprender”. A ação pedagógica pela interface computacional
deveria potencializar um processo educativo individualizado e personalizado, sintonizada com
os movimentos de customização projetados pela Escola Cidadã por Ciclos de Formação.
Por meio de uma linguagem de programação, alunos e professores, no cenário
educativo das escolas-pólo, começavam a construir conhecimentos e a desenvolver
habilidades para dominar o computador, segundo Papert (1994), a desenvolver as habilidades
cruciais para moldar o futuro.
Os alunos e professores de escolas municipais que ainda não tinham sido beneficiados
com a implementação dos ambientes informatizados de aprendizagem deslocavam-se para
interagir com os recursos tecnológicos disponibilizados nas cinco escolas-pólo, inicialmente,
em ônibus fretado, posteriormente, em ônibus de linha. Vales-transportes foram distribuídos
para garantir o movimento de alunos e professores na periferia de Porto Alegre. Professores
de diversas escolas e áreas de conhecimento, apresentados ao universo de programação da
linguagem Logo, ampliavam o campo de atuação do saber-informática, sendo desafiados a
elaborar projetos de aprendizagem com os alunos.
Dia 5 de junho de 1996, foi realizada, no Ambiente Informatizado de aprendizagem da
Escola P.V., a primeira aula, somente para professores, com o LOGOWRITER. [...] Aprendizagem
quanto ao modo de ligar até a fazer uso do LOGOWRITER, experimentando alguns comandos e,
com isto, fazendo desenhos, pintando, apresentando a necessidade do uso de ângulos quando da
virada da tartaruga para a esquerda ou direita.
(
Dados de Pes
q
uisa
Caderno de Re
g
istros - Pro
j
eto RAIAR - SMED -1995/1996
)
210
Na ata da reunião da equipe de assessores do Projeto Raiar, em 19 de dezembro de
1995, a questão do deslocamento de alunos e professores para as escolas-pólo ocupava a
pauta, sendo analisada sob a perspectiva da relação custo-benefício:
Memorandos e ofícios solicitavam regimes de trabalho para que professores passassem
a assumir o papel de coordenadores do ambiente informatizado, licitações encaminhavam a
compra de novos softwares, assinatura de contratos para manutenção dos computadores, ações
que se tornavam cada vez mais freqüentes nas reuniões da equipe do Projeto Raiar.
Paralelamente a essas demandas, os problemas técnicos e as dificuldades na manutenção dos
computadores começavam a inviabilizar o trabalho dos coordenadores nos primeiros
ambientes informatizados de aprendizagem nas escolas-pólo da rede municipal de ensino de
Porto Alegre. Uma carta da direção de uma das escolas-pólo narrava as dificuldades na
implementação do ambiente informatizado de aprendizagem, por coincidência, a escola que
pela primeira vez experienciar a escolarização por Ciclos de Formação:
[...] Informamos da disponibilidade de vales-transporte, em nome do(a) prof.(a) acima relacionado,
para trabalho no ambiente informatizado de aprendizagem das escolas-pólo, solicitamos que seja
enviado a esta Coordenação/Equipe Projeto RAIAR, o relatório de utilização dos vales-transporte.
[...] Salientamos a importância do preenchimento e retorno deste relatório para elaboração de
relatório geral, liberação de vales para novembro e planejamento para 97.
(Dados de Pesquisa – Caderno de Registros - Projeto RAIAR - SMED -1995/1996)
Questão do ônibus para o Projeto Raiar: [Assessor R] encaminhou pedido de ônibus para as
escolas, constando o número de 685 viagens para 96, com uma viagem por semana para cada
escola referida. O projeto voltou por não constar as informações de roteiro das viagens que seriam
realizadas. Avaliou-se o custo do transporte como sendo de alto custo, tal verba poderia ser
investida em computadores para mais escolas. Encaminhou-se nova proposta com vales-
transporte para professores e alunos. A previsão foi feita envolvendo uma média de 30 escolas
em viagens quinzenais.
(Dados de Pesquisa – Caderno de Registros - Projeto RAIAR - SMED -1995/1996)
Com relação aos professores das outras escolas que também participaram dos cursos de
formação LEC/UFRGS [...] efetiva-se, com a oferta de vales-transporte, a concretização do
trabalho com seus alunos, articulando à prática pedagógica, o referencial desenvolvido.
(Dados de pesquisa – Relatório de Equipe - Projeto Raiar – Informática Educativa – Ano/1996)
Contando inicialmente (nas primeiras reuniões e projetos em desenvolvimento) com
aproximadamente 10 professores atuando no Projeto [Raiar], hoje este grupo está composto pelos
coordenadores das escolas-pólo (8) e demais professores por eles articulados e,
aproximadamente 10 professores de outras escolas que vêm utilizando com seus alunos os
ambientes informatizados de aprendizagem sistematicamente, totalizando, seguramente mais de
50 professores de diversas áreas do conhecimento e nível de ensino, o que vem enriquecendo
este projeto, pela sua participação e envolvimento profissional.
(Dados de pesquisa – Relatório de Equipe - Projeto Raiar – Informática Educativa – Ano/1996)
211
Os desejos da equipe de assessores pedagógicos responsáveis pelo Projeto Raiar,
Corrêa, Del Pino e Basso (s/d), que projetaram a política de informatização para a rede
municipal de ensino de Porto Alegre, movidos pela possibilidade de quebrar tabus ao acesso à
tecnologia da informação inviável às classes populares, para que professores e alunos não
ficassem paralisados diante da contraposição - miséria x revolução tecnológica. O sonho de
formar núcleos de incubação e de geração de experiências nas escolas públicas municipais,
para fazer com que estas se transformem, gradativamente, em pólos irradiadores de
conhecimento apreendido e construído ou para promover as mudanças na própria concepção
de Educação, passaram a encontrar no computador, nos problemas técnicos, a dificuldade que
se estabelecia e inviabilizava o alcance das metas estabelecidas. Justamente a interface
tecnológica que deveria aproximar realidades distantes, o recurso tecnológico que
possibilitaria romper com o isolamento para estabelecer novas relações entre toda uma
comunidade escolar, colocava-se como o maior entrave no processo de sensibilização e
apropriação das ferramentas computacionais para o tempo e o espaço escolares.
Ao colocar em evidência as dificuldades técnicas enfrentadas para a
operacionalização dos ambientes informatizados, um segundo aspecto era destacado e seria
analisado, posteriormente, por assessores do projeto Raiar como um dos pontos que
desestabilizaram a política de informatização pedagógica colocada em prática pelo projeto
Raiar – a preponderância da linguagem Logo como recurso computacional. Esse aspecto era
colocado em destaque pela equipe diretiva de uma das escolas-pólo, que disponibilizo a
seguir:
[...] Em abril, recebemos dez computadores 386, 40Mhz, 4Mb, uma impressora Olivetti 209.
Enviamos, então, um memorando à SMED colocando nossa necessidade e preocupação quanto
aos computadores pois, imaginávamos, acabaria a garantia e os computadores não teriam ainda
entrado em uso. Com a adaptação refeita e um estabilizador particular (nosso), o responsável pelo
Raiar instalou os programas no mês de junho. Tínhamos os programas instalados, mas os
estabilizadores não existiam. Começamos a gerar recursos para comprá-los, pois estava
descartada qualquer possibilidade de consegui-lo com a mantenedora. Com o dinheiro da Festa
Junina e adiantamento, compramos três estabilizadores, um cabo de força, um cabo de
impressora e três bases de atrito para mouse. Estávamos no início do mês de julho e nossa
preocupação passou a ser também a inauguração oficial, onde espaços “desfalcados” e/ou sem
uso, certamente, causariam constrangimentos, inclusive, à mantenedora devido à presença da
grande imprensa [...]
(Dados de Pesquisa – Carta - Direção da Escola M. C. à Equipe Projeto Raiar - outubro de 1995)
212
A necessidade de aprofundar e qualificar a formação pedagógica buscando
potencializar a utilização da linguagem Logo colocava-se como uma demanda para os
coordenadores dos ambientes informatizados de aprendizagem a fim de não comprometer a
continuidade do Projeto Raiar, como ilustra um trecho do relatório enviado a equipe
pedagógica do Raiar pela coordenação do Ambiente Informatizado de uma escola-pólo:
Professores e alunos, rompendo distâncias, deslocavam-se às escolas-pólo para
experienciar um pensar e um fazer pedagógico regidos pela concepção construtivista e sob o
lastro do conhecimento acumulado pelas pesquisas com a linguagem Logo. Privilegiava-se
uma relação de construção de conhecimento entre o aluno e o computador, uma lógica que
parecia não mais responder às demandas do coletivo de professores da rede municipal de
ensino de Porto Alegre. A supervalorização da Linguagem Logo passou a ser questionada, ao
mesmo tempo em que as possibilidades pedagógicas oportunizadas pelas ferramentas da rede
mundial de computadores começaram a ser discutidas e investigadas por grupos de
pesquisadores da Informática na Educação, principalmente os associados à Rede Mundial de
Computadores - Internet. As aplicações educativas associadas à filosofia Logo perdiam um
pouco do brilho e ofuscavam a magia da cibernética tartaruga como recurso educativo.
Os problemas técnicos que se multiplicavam e a demanda por novos ambientes
informatizados para cada escola que assumia como forma de escolarização os Ciclos de
Formação passaram a exigir novos computadores e novos regimes de trabalho para a
coordenação do projeto de informatização pedagógica nessas unidades de ensino, ações que
Solicito programar visita as escolas de Novo Hamburgo, talvez Caxias que já estão atuando a
mais tempo com o Logowriter para um maior conhecimento do que se pode realizar com os
alunos. Solicito, também, com o [Assessor de Informática Educativa] a participação de algumas
atividades no LEC/UFRGS, mesmo como mera observadora, para aprender mais sobre o
LogoWriter pois tenho muitas dúvidas e me sinto sem “pai nem mãe”, não posso avançar mais
com meus alunos frente a isto. Acredito que se isto não ocorrer, o projeto vai aos poucos
morrendo nas escolas pois, os professores se sentirão mais à vontade usando programas já
prontos, à venda no mercado e que não necessitam de muito empenho dos alunos [...]
(
Dados de Pesquisa
Caderno de Re
g
istro
Pro
j
eto Raiar
Julho/1996
)
[...] Iniciamos os trabalhos no dia 10 de julho. Surgiram os primeiros problemas: um computador
não funcionava, vários computadores trancavam no meio do programa Word. Comunicamos
pessoalmente ao responsável pelo Projeto Raiar e não obtivemos nenhum tipo de resposta.
Decidimos pedir auxílio diretamente à PROCEMPA, [...] atendidos nos dias 27 e 28 de julho. [...]
Repassamos todas as informações recebidas para a SMED, via memorando, em 1° de agosto,
pedindo o recolhimento dos equipamentos sem condição de uso. Novamente, ficamos sem
retorno. [...] Comunicamos os problemas técnicos detectados na segunda visita da PROCEMPA,
ao responsável pelo Projeto Raiar. A resposta que obtivemos foi: “Mas o Logo funciona?”
(Dados de Pesquisa – Carta - Direção da Escola M. C. à Equipe Projeto Raiar - outubro de 1995)
213
tornaram necessária a ampliação e a busca de novos recursos para o Projeto Raiar. Movidos
por essas demandas, a equipe de coordenação do Projeto Raiar, em parceria com a
PROCEMPA, projetou, para o cenário educativo da rede municipal de ensino de Porto
Alegre, uma nova conformação técnico-pedagógica para os ambientes informatizados de
aprendizagem - o Projeto Piloto SMED/PROCEMPA. A parceria marcava a construção de
uma nova configuração para o ambiente informatizado e a escrita de um novo capítulo na
história da Informática Educativa na rede de ensino de Porto Alegre. Apresento, a seguir, um
trecho de uma entrevista com o assessor de Informática Educativa, que atesta esse
deslocamento na configuração técnico-pedagógica para os ambientes informatizados:
Uma outra configuração para os ambientes informatizados de aprendizagem, em sua
dimensão pedagógica e técnica, era projetada para responder, de forma mais qualificada, às
dificuldades técnicas dos ambientes informatizados de aprendizagem e, também, para colocar
em prática um projeto de informatização pedagógica que deslocava seu cartão de visita da
linguagem Logo para as tecnologias de informação e de comunicação. As possibilidades
pedagógicas e administrativas propiciadas pela conexão em rede e as ferramentas de
comunicação e de informação oportunizadas pela rede mundial de computadores começavam
a compor as pautas das reuniões da equipe do Projeto Raiar e a marcar presença nas
discussões e deliberações do Comitê de Informática da SMED
181
. O Projeto Tecnópole,
formalizado por meio da parceira PROCEMPA- LEC/UFRGS, e o Projeto Internet escreviam
as novas demandas para a política de informatização administrativa e pedagógica da rede
municipal de ensino de Porto Alegre.
181
Equipe multidisciplinar formada por especialistas de diferentes áreas constituiria o Comitê de Informática
da SMED, instância decisória responsável pelo novo desenho que a Informática Educativa assumiria na rede
municipal de ensino de Porto Alegre.
A partir das dificuldades de gerenciamento técnico dos equipamentos, necessidade de
agilizar-se o processo das escolas e articular a necessidade de informatização administrativa
com a implementação de ambientes informatizados de aprendizagem nas escolas municipais,
foi elaborado, com o Comitê de Informática, a implementação de um Projeto Piloto em uma das
escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Piloto por ser o primeiro projeto buscando
parceria entre SMED e PROCEMPA, na parceira entre a implementação pedagógica e
administrativa de ambientes informatizados, como também na conexão em rede com diversos
órgãos da administração municipal. A equipe do Projeto Raiar participou da elaboração do
projeto, da indicação da escola a partir de critérios elencados pelo coletivo de professores, da
articulação junto à escola escolhida e PROCEMPA e da implementação pedagógica do projeto.
(Dados de Pesquisa – Relatório de Equipe – Projeto Raiar – Ano/1996)
214
O Projeto Tecnópole, aprovado pelo CNPq
182
, com previsão de execução em 1997,
tinha como objetivo disponibilizar 20 microcomputadores para quatro escolas do município,
podendo ser negociado para 10 micros por escola e, assim, ampliar o número de escolas a
serem atendidas, priorizando as regiões da cidade com situação escolar diagnosticada como
áreas de risco social:
A parceria com a PROCEMPA, ao garantir a manutenção técnica para os recursos
disponibilizados nos ambientes informatizados de aprendizagem, era uma das respostas para
um conjunto de demandas que se tornava cada vez mais freqüente no Caderno de Registros do
Projeto Raiar. No projeto piloto SMED/PROCEMPA, as soluções para as demandas técnicas
que se multiplicavam nos ambientes informatizados tinham, em uma nova escola-pólo, a
possibilidade de concretização. A importância dessa parceria possibilitava construir as
respostas para alguns dos questionamentos enviados pela equipe diretiva de uma das cinco
escolas-pólo para a equipe do Projeto Raiar:
As dificuldades a serem enfrentadas na dimensão pedagógica buscavam suas respostas
com a formalização da parceria com o LEC/UFRGS. Um deslocamento começava a se tornar
cada vez mais evidente: da preponderância da linguagem Logo para as possibilidades
pedagógicas de um conjunto de ferramentas tecnológicas que conquistou o cenário educativo
182
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Participação e co-responsabilidade no Projeto Grande Porto Alegre Tecnópole, realizando
diagnóstico da situação escolar das populações de duas regiões geográficas de Porto Alegre
Vale da Agronomia e Vila Restinga – pólos incubadores de tecnologia. A escolha das instituições
de ensino que constituirão um estudo inicial. Tal projeto visa dentre outros objetivos, atender,
curtíssimo prazo, populações que habitam zonas marginais urbanas, mas que poderão passar,
gradativamente, a participar da cultura de Tecnópole; incorporar os recursos das NTIC (Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação) a ambientes informatizados que transformem as
salas de aula em espaços de cultura, arte e técnica.
(Dados de pesquisa – Caderno de Registro – Ações Previstas – Projeto Raiar – Ano/1996)
[...] Depois de insistentemente procurar solucionar o problema com iniciativas exclusivas
da escola, a realidade [do ambiente informatizado de aprendizagem] é esta: dos 10
computadores, só usamos oito, pois dois não funcionam. Desses oito, dois só funcionam com
velocidade 20 e sete funcionam no Word, restando apenas 1 funcionando de acordo com o
esperado de sua configuração.
Essa situação leva-nos a formular algumas perguntas: 1. Quem vai dar assistência técnica
aos equipamentos usados no Projeto Raiar? 2. Por que equipamentos são deixados fora de uso
até o término da garantia? 3. Por que equipamentos que apresentam defeitos não são recolhidos
para uma averiguação criteriosa e possível solução? 4. Por que há acomodação a uma situação
em que existem equipamentos comprados cujo funcionamento não corresponde às
especificações? 5. A quem recorrer senão para solucionar o problema pelo menos para evitar que
esse tipo de problema volte a acontecer?
(Dados de Pesquisa – Carta - Direção da Escola M. C. à Equipe Projeto Raiar - Outubro de 1995)
215
– redes de computadores e tecnologias para informação e comunicação. Começava a fazer
parte do cenário educativo um conjunto de elementos tecnológicos que havia possibilitado a
construção do conceito de Globalização no plano político e econômico. Cursos de capacitação
deslocavam seu conteúdo para as possibilidades de utilização da Internet na sala de aula.
Novos conceitos eram trazidos pela equipe de assessores de Informática Educativa para o
tempo e o espaço escolar – aprendizagem em rede, aprendizagem distribuída, interatividade,
possibilidade de comunicação e troca de informação de forma rápida e a baixo custo.
As ferramentas computacionais solicitadas à equipe técnica da PROCEMPA –
navegadores para Word Wide Web, editor para a linguagem da Internet - HTML, chats (voz,
texto, gráfico), videoconferência – e o conteúdo que passava a compor os cursos de
capacitação – Internet na sala de aula, organização de repositório de informações, construção
de Home Page, comunicação síncrona e assíncrona – tornavam visível o deslocamento do
projeto pedagógico na política de informatização. A linguagem Logo, que, segundo o assessor
pedagógico do Projeto Raiar, tinha sido eleita como o software referência da Informática
Educativa, deixava de ocupar os espaços de discussão coordenados pela equipe do Projeto
Raiar.
Perde importância o ambiente computacional idealizado pelos pesquisadores do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts que, no final da década de 1970, abriu as portas da
escola para o mundo dos computadores. A interface que permitiu ao aluno programar o
computador por meio de um conjunto de regras semânticas e linhas de comando, uma
programação que tornava visível a forma de pensar do aluno para, assim, potencializar a
intervenção do professor em seu desenvolvimento cognitivo, deixava de ser o foco de
investigação dos principais grupos de pesquisa em Informática na Educação no final da
década de 1990.
O projeto piloto PROCEMPA/SMED foi ampliado e assumido para o conjunto de
escolas da rede de ensino de Porto Alegre, ao mesmo tempo em que a palavra aprendizagem
deixava de fazer parte da expressão utilizada para nomear o lugar do saber da Informática
Educativa no edifício escolar, identificado, apenas, por ambiente informatizado. A linguagem
Logo perde sua importância, cedendo lugar a um novo conjunto de ferramentas, na época
chamadas de novas tecnologias de informação e de comunicação. A nova política de
Informática Educativa para rede municipal de ensino de Porto Alegre sintonizava-se com a
proposta político-pedagógica da Escola Cidadã por Ciclos de Formação, Aprender
participando!
216
Em 1999, durante o II Congresso de Municipal de Educação, a SMED assumiu o
compromisso público de implantar, em todas as instituições educativas municipais de Ensino
Fundamental, ambientes informatizados como forma de acesso a novos instrumentos e
linguagens para reduzir índices de exclusão, expressos nas taxas de reprovação e de evasão
escolar. A garantia da apropriação dos recursos tecnológicos disponibilizados para o coletivo
da comunidade educacional era de responsabilidade da coordenação pedagógica, devendo
organizar o tempo-espaço para sua utilização e promovendo a articulação dos diferentes
horários a partir da construção de projetos pedagógicos de aprendizagem, para possibilitar que
todas as áreas do conhecimento fossem contempladas:
As diferentes áreas do conhecimento terão, nos ambientes informatizados,
um instrumento qualificado a mais para trabalhar a construção do conhecimento
específico, articulando com o planejamento coletivo da escola. Caberá à supervisão
estimular o professor a pensar de que forma poderá potencializar seu trabalho
através da tecnologia de forma a justificar a utilização deste recurso (CADERNOS
PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.70).
Organizavam-se os tempos e os espaços no ambiente informatizado não priorizando
apenas a lógica eqüitativa, não se garantia um horário fixo semanal, por turma, por revelar-se
como uma prática que não potencializava a construção de projetos sintonizados com os
conceitos propostos pelo Complexo Temático. A lógica de organização dos tempos e dos
espaços deveria contemplar os seguintes movimentos:
Espaços de utilização coletiva, um espaço sistemático, no horário regular
da escola, para agendamento das diversas turmas, acompanhadas de seus
professores, com o propósito de exploração das ferramentas computacionais,
promovendo, através da interação, o surgimento de possíveis projetos pela utilização
da tecnologia. Espaço livre para a investigação, espaço sistemático em horário
alternativo – fora do horário regular da escola – para agendamento, por iniciativa
pessoal ou de segmentos da escola. Esse espaço visa possibilitar a apropriação do
uso do computador em caráter permanente de investigação e de descoberta de
possibilidades. Constituirá, também, um espaço aberto à comunidade no sentido de
democratizar o uso da tecnologia dentro das possibilidades e da organização da
escola. Espaço pedagógico para professores, espaço sistemático, no horário regular
da escola, para agendamento dos professores, visando discutir os projetos
pedagógicos articulados com o Complexo Temático da escola. Espaço para
desenvolvimento de projetos, ficando a cargo do Serviço de Coordenação
Pedagógica a definição do horário e do tempo necessários, conforme
encaminhamento da proposta do projeto e mediante aprovação de Conselho Escolar
(CADERNOS PEDAGÓGICOS - SMED, 1999a, p.70).
Com a ampliação do projeto piloto PROCEMPA/SMED para todas as escolas da rede
municipal de ensino, as cinco escolas-pólo tiveram seus equipamentos atualizados e , em 51
217
escolas de ensino fundamental, foram instalados os novos ambientes informatizados.
Tecnologias para a conexão em rede, acesso à Internet e um software livre como sistema
operacional foram as novidades colocadas nos ambientes informatizados para estabelecer
novos protocolos de comunicação e a possibilitar a modelagem de outras estratégias de
ensino-aprendizagem. Outros objetivos passaram a ser associados à materialidade tecnológica
disponibilizada no Ambiente Informatizado, como elucida dado de pesquisa disponibilizado
pela direção da equipe de Informática Educativa da SMED, apresentado a seguir:
A implementação dos ambientes informatizados em todas as unidades de ensino de
Educação Fundamental e a competência conquistada pela equipe de pesquisadores do
LEC/UFRGS em virtude de sua participação em projetos como o EDUCADI
183
e o
PROINFO
184
, como elucida o trecho do relatório apresentado a seguir, colocaram-se como
condições de possibilidade para a construção de um projeto de formação continuada, em
serviço e a distância, para professores da rede pública municipal, buscando desenvolver e
incorporar, gradativamente, as tecnologias digitais de informação e de comunicação no
cenário escolar e, por meio de sua interface, transformar a escola:
Pela interface das tecnologias digitais de informação e de comunicação e tendo como
mote pedagógico a metodologia de Projetos de Aprendizagem, três elementos – o suporte
183
EDUCADI - Educação a Distância em Ciência e Tecnologia – projeto apoiado pelo CNPq, desenvolvido
em três centros - Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Ceará e Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – com a participação dos governos estaduais das regiões brasileiras envolvidas, que constrói uma
ação cooperativa para formação em serviço, colocando em conexão 10 escolas das cidades de Fortaleza/CE, São
Carlos/São Paulo, Porto Alegre e Novo Hamburgo.
184
PROINFO – Programa Nacional de Informática na Educação - foi lançado pelo governo federal em 1997
para qualificar o processo de ensino-aprendizagem por meio da incorporação das tecnologias digitais de
informação e de comunicação, tendo como meta a formação humana para a sociedade da informação.
[...] Entre os resultados do Projeto EDUCADI, tivemos a produção de um repositório, com
publicação digital de relatos de experiências e de recursos, tanto tecnológicos como pedagógicos
que permanecem disponíveis para a continuidade de novos desenvolvimentos. Entre os
resultados alcançados, sobressaem como mais relevantes: A) a definição de novos paradigmas
que orientaram essa produção de experiência inovadora; B) a formação continuada de
educadores, em serviço, por meio da Educação a Distância.
[...] Essas experiências e produções permitiram construir modelos/protótipos de inovação
curricular, em função da necessidade de transformação do modelo de Escola da Sociedade
Industrial para um novo modelo: o da Escola que vai formar o cidadão da Sociedade da
Informação.
(Dados de pesquisa – Relatório Técnico Parcial – Convênio BNDES/SMED/PMPA - Projeto
Escola, Conectividade e Sociedade da Informação – Janeiro/Dezembro 2003).
[...] Preparar o novo cidadão para um modelo de sociedade em novos patamares da evolução
humana. [...] Preparar educandos que necessitam de novas competências, talentos e habilidades
para apropriar-se das tecnologias, para adquirir, produzir e aplicar conhecimentos.
(Dados de pesquisa – Projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação – Março/2001)
218
pedagógico LEC/UFRGS, os ambientes informatizados da Rede Pública de Ensino de Porto
Alegre e os recursos financeiros do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) – eram tramados para tecer um projeto de formação docente, em serviço, na cidade
de Porto Alegre, como referenda dado de pesquisa que destaco:
Da mesma forma que as Políticas Públicas de Informatização – Projeto Tecnólope,
Telecentros
185
- tinham como foco de intervenção áreas da cidade com grande potencial de
risco social, com o projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação, convergia-se
para os 6.470 alunos das turmas de progressão, sujeitos com trajetórias de vida escolar
associadas a histórias de fracassos e em fortes condições de risco social. O trecho da
entrevista, apresentada a seguir, coloca em evidência o novo papel associado à Informática na
Educação:
Do marketing da aprendizagem construtivista para o marketing da gestão democrática.
Da escola estatal municipal para a escola pública municipal. Da Coragem de Mudar em
185
São espaços públicos, localizados, normalmente, em zonas periféricas, constituídos por meio de parceiras
com o governo municipal e comunidades locais, em que são disponibilizadas tecnologias de informação e de
comunicação para pessoas que têm pouca ou nenhuma oportunidade de usar ou aprender a usar as ferramentas
digitais (Cf. SILVA, C. 2002).
A partir de 2001, reativada a parceria com o LEC, foram captados recursos através do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – no valor de R$ 2, 3 milhões,
para investir em formação continuada de professores, presencial e a distância, e para a aquisição
de equipamento (hardware e equipamento para a capacitação, edição, áudio e vídeo), visando
ampliar a capacidade multimídia em nossos ambientes.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Direção - Informática Educativa – SMED – Setembro/2004)
[...] Quando submetemos o projeto Escola, Conectividade, Sociedade da Informação ao BNDES,
nós submetemos dentro de uma rubrica existente na época, não mais existente hoje, mas
existente na época, chamada de Crianças e Jovens em Situação de Risco Social. Essa rubrica
vem a ocupar uma lacuna da rubrica Educação que o BNDES não dispõe, não dispunha na época
e não dispõe hoje, porque ele é um banco de negócios. A maneira que a equipe do banco
interessada em incluir a Educação como Negócio, encontrou foi colocar dentro do núcleo dois,
que era o núcleo das Crianças e Jovens em situação de risco social. Entra pelo caminho da
Responsabilidade Social do BNDES. Quem são as crianças e os jovens em situação de risco
social para nós, SMED? Aqueles que possivelmente evadirão. Quem são aqueles que
possivelmente evadirão? Aqueles que não estão conseguindo acompanhar a vida escolar normal,
o que se chamava de reprovados e evadidos. Numa pesquisa, no final do ano, no censo escolar
que fizemos em dezembro de 2000, nós chegamos a um número, esse número era, exatamente,
6.470 crianças que estavam sendo matriculadas para o ano seguinte, pela terceira vez, em
Turmas de Progressão. Consideramos essas crianças, que correspondiam, na época, a 9% das
matrículas da rede, como o público alvo do projeto, porque eram essas crianças que, muito
provável, vão evadir, porque não estavam conseguindo construir o código, não estavam
conseguindo se alfabetizar. Assim, passava-se a usar a ferramenta informática para a
alfabetização. Ferramentas que se mostraram de grande, de muita utilidade.
(Dados de pesquisa – Entrevista - Direção-Informática Educativa – SMED – Setembro/2004)
219
Educação para a Escola Cidadã e, posteriormente, para a Cidade Educadora. Do Raiar para a
Escola, Conectividade, Sociedade da Informação. Foi no contexto desses deslocamentos no
cenário educativo da rede municipal de ensino de Porto Alegre, que um conjunto de
investimentos técnico-pedagógicos era disponibilizado para que comunidades escolares
construíssem alternativas para a gestão escolar, para a formação de professores e para a
reorganização curricular e, também, para colocar em circulação um conjunto de discursos e
práticas que atuariam, discretamente, na produção de realidades e efeitos desejados por meio
de processos disciplinares e normalizadores. Sob novas formas de organização do espaço e de
controle do tempo no processo educativo, outras práticas disciplinares eram colocadas em
ação para gerir e administrar, de maneira calculada, um conjunto da população localizada na
periferia de Porto Alegre e identificada pelos projetos de escolarização e de informatização
como sujeitos em condições de risco social.
Se viver contemporaneamente, como analisa Giddens (2002, p.104), é viver, de forma
concomitantemente e inevitável, oportunidades e riscos, as relações construídas no tempo e no
espaço escolares vão operar, também, sob a articulação desses dois elementos. O risco se
estabelece quando as práticas pedagógicas disciplinares aprendidas e cristalizadas ao longo da
história da escola moderna, deixam de funcionar como elementos de proteção e de
gerenciamento da ação docente, por tornaram-se inadequadas e irrelevantes, desencaixadas
em instituições educativas que deslocaram o foco da apropriação do conhecimento científico
para um exercício da participação democrática. Ao mesmo tempo, esse risco se transforma em
oportunidade, pois, ao desestabilizar e sublimar cristalizadas práticas disciplinares, abriam-se
novas oportunidades para a construção de outras práticas sócio-educativas e para a
emergência de novos saberes. Novos saberes são sempre necessários para aproximar e
colonizar o desconforto do inesperado, do desconhecido, do diferente, da diversidade,
construindo estratégias educativas para transformar o ato pedagógico em práticas rotineiras e
tranqüilas, para produzir novos processos de individualização para o controle social.
Se as políticas de inclusão colocaram para a escola a necessidade de modelar
estratégias educativas para dar conta de uma parte da diversidade humana que não respondia
de forma positiva ao conjunto de práticas pedagógicas tradicionalmente colocadas no espaço-
tempo escolar, as tecnologias digitais de informação e de comunicação eram convocadas a
estruturar novas interfaces para possibilitar uma colonização do tempo e um ordenamento do
espaço e, assim, ajustar o desencaixado cenário educativo às novas configurações espaço-
temporais da sociedade contemporânea.
220
Criando uma cultura da informática, o projeto Raiar colocava a tecnologia computacional no
tempo e no espaço escolares para que também a escola de classe popular pudesse expor seus
alunos a esses equipamentos. No período de 1995 a 1998, quando o custo do hardware era
elevado e a Internet não se configurava como um recurso para a escola pública, a política de
informatização do projeto Raiar, por meio de escolas-pólo, em pontos estratégicos para
permitir o deslocamento e o acesso de outras comunidades educativas, iniciou um processo de
formação continuada em serviço para professores da rede de ensino de Porto Alegre, sob a
tutela pedagógica do LEC/UFRGS. Em 2001, com os recursos do BNDES, com o suporte
técnico da PROCEMPA e pedagógico do LEC/UFRGS, investiu-se na capacitação presencial
e a distância por meio de uma plataforma tecnológica.
A capacitação docente não apenas objetivava a apropriação, mas, como analisa
Giddens (2002, p.130-133), também coloca suas fichas no empoderamento, isto é, na criação
de qualidades crescentes de saber-poder, para que o professor pudesse “alterar o mundo
material e transformar as condições de suas próprias ações”. Ambientes virtuais foram
modelados para que o empoderamento pudesse operar tanto no individual como no coletivo.
Tecnologias de informação e de comunicação, espaços de publicação, listas de discussão,
webfólios, foram inúmeras ferramentas tecnológicas para confrontar o professor com sua
prática docente, para ser interpelado por uma rede de intervenção e de apoios e, assim,
qualificar parcial ou completamente sua proficiência.
No jogo virtual-presencial, sob o olhar do grupo de especialistas do LEC/UFRGS, dos
assessores pedagógicos da SMED e dos técnicos da PROCEMPA, configurações espaço-
temporais eram modeladas, construídas para romper com o desencaixe da escola em uma
sociedade que, como analisa Veiga-Neto (2003a), tem sua ênfase cada vez menos no
disciplinamento dos corpos e dos saberes e para experienciar estratégias que operam sob a
lógica de um controle social mais permanente, horizontal e minucioso. Da Escola do
Hardware – rígida, enclausurada – para moldar o homem moderno pelo disciplinamento dos
corpos e dos saberes, passamos para a Escola do Software - fluida, flexível, participativa,
tecnológica – para modelar o cyberhomem, o sujeito contemporâneo constantemente
interpelado por tecnologias minuciosas de controle e de vigilância.
Ao percorrer a história que forjou o Projeto Político-pedagógico da Escola Cidadã por
Ciclo de Formação e os acontecimentos que levaram a diferentes configurações que a Política
de Informática Educativa foi assumindo para a rede de ensino municipal de Porto Alegre,
procurei algumas das possíveis respostas para as indagações que estabeleço como ponto de
partida para minha investigação: Como foi pensado o projeto de Informática na Educação na
221
proposta político-pedagógica da Escola Cidadã? Para quem se destina? Que objetivos
buscava atender? Partindo dessas respostas, apresento o próximo capítulo, em que proponho
desconstruir as práticas desencadeadas nos ambientes informatizados e nos espaços virtuais
projetados para a rede mundial de computadores, não para apontar a melhor e/ou a mais
adequada forma para sua utilização, mas para fazer emergir as configurações espaço-
temporais, para dar visibilidade as práticas de normalização - disciplinamento e controle -,
mas também, as linhas de fuga construídas por comunidades escolares, ambas, operando sob o
sujeito individual e coletivo na periferia de Porto Alegre.
222
ATOS E OS CACOS
186
- TEMPOS E ESPAÇOS
PARA COLONIZAR E PARA FRUIR
Não basta estar na frente de uma tela, munido de todas as interfaces
amigáveis que se possa pensar, para superar uma situação de inferioridade. É preciso
antes de mais nada estar em condições de participar ativamente dos processos de
inteligência coletiva que representam o principal interesse do ciberespaço (Lévy,
1999b, p. 238)
Apresentados os personagens – tempo, espaço, escola –, percorrida sua história,
exibida e aplaudida nos cenários modelados sob a lógica de diferentes experiências espaço-
temporais, ingresso no novo lugar
187
construído no edifício escolar para abrigar as
ferramentas digitais de informação e de comunicação - o ambiente informatizado. Olhar mais
de perto essa materialidade e o conjunto de práticas por ela mediada em escolas da rede
municipal de ensino de Porto Alegre move a construção da terceira parte desta Tese no desejo
de buscar as possíveis respostas para as indagações que me acompanharam ao longo desta
pesquisa: sob quais experiências de tempo e de espaço as práticas discursivas e não-
discursivas materializadas no ambiente informatizado estão sendo tecidas? Que movimentos,
continuidades e descontinuidades, estão sendo forjados na maquinaria escolar com a inserção
de tecnologias digitais de informação e de comunicação no contexto político-pedagógico da
Escola Cidadã por Ciclos de Formação?
No capítulo anterior, ao recontar a construção da proposta político-pedagógica da
Escola Cidadã, reconstruí um pouco da história que marcou a inserção do saber da informática
educativa na rede de ensino municipal de Porto Alegre. Os professores foram
instrumentalizados para a construção de respostas para os desafios educacionais colocados em
evidência pelo descompasso entre a velocidade e a multiplicidade das mudanças tecnológicas
e sociais e o ritmo da escola, fortemente alicerçado na oralidade do professor, na escrita
manuscrita, na rigidez da Escola do Hardware.
186
Caco é um termo utilizado no espetáculo teatral para identificar a ação do ator em cena que improvisa
uma fala e foge do que havia sido demarcado pelo script.
187
Seguindo a análise proposta por Veiga-Neto (2002, p.169) assumo o termo lugar como o cenário físico,
palco para desenrolar experiências concretas e imediatas, “o cenário particular, sensorial e imediato do espaço”.
223
Uma política de informatização foi experienciada nas escolas-pólo, em pontos
estratégicos da rede municipal de ensino de Porto Alegre, para aproximar alunos e professores
de uma materialidade tecnológica e para potencializar a apropriação de uma linguagem de
programação especialmente modelada para crianças – a linguagem Logo. Os cursos de
capacitação docente evidenciavam um movimento sintonizado com o empoderamento
docente, uma estratégia para expandir sistemas abstratos com o objetivo de alterar o ambiente
escolar para aumentar e qualificar as possibilidades de ação do professor sobre a ação dos
alunos em processo de aprendizagem. Pela interface de uma tartaruga cibernética que se
deslocava na tela por meio de comandos informados ao ambiente computacional pelo usuário,
o processo cognitivo do aluno conquistava uma maior visibilidade, permitindo uma
intervenção mais qualificada do professor na forma de pensar e de fazer do aluno.
Como discuti anteriormente, os problemas técnicos enfrentados com as ferramentas
computacionais disponibilizadas no ambiente informatizado, a precária instrumentalização do
professor, que dificultava a construção de estratégias pedagógicas mediadas pela interface do
ambiente de programação Logo, e o deslocamento de tecnologias de comunicação e de
informação do cenário social para o edifício escolar estabeleceram as condições para a
construção de uma política de informatização da rede municipal de ensino de Porto Alegre,
influenciada por processos de compressão espaço-temporais e ajustada à nova conformação
da escola para tempos mais acelerados e flexíveis e para espaços configurados sob uma nova
métrica. A preponderância da Linguagem Logo perdia espaço para as ferramentas da Internet,
a tecnologia eleita para construir respostas às demandas que se colocavam frente ao
desencaixado tempo e espaço escolares, respostas que se revelaram fortemente imbricadas a
projetos de escolarização e de informatização para sujeitos em condições de risco social.
Desmontando documentos e dados obtidos por meio de entrevistas e observações,
estabelecendo relações, formando unidades de análise mais complexas e capturando a
emergência de novos pontos de investigação, inicio um processo de ordenamento de um
denso material de pesquisa movida pela vontade de compreender e expressar os movimentos –
continuidades e rupturas – que as ferramentas de compressão espaço-temporal começam a
impulsionar sobre a maquinaria escolar. Da multiplicidade de leituras que podem ser feitas , e
consciente de que toda leitura já precede uma interpretação, não busco categorias, mas
movimentos, não desejo cristalizar as riquezas de um imbricado corpus de análise em um
enquadramento categórico, sempre reducionista. Busco dar visibilidade aos movimentos no
processo educativo que entrelaçam suas trajetórias, em um exercício de elaborar sentidos
dentre os diferentes sentidos que podem ser lidos e impressos para o corpus de uma
224
investigação de caráter histórico-cultural que problematiza a relação Educação-Tecnologia no
microcenário escolar com a inserção de ferramentas computacionais.
Iluminada pelas reflexões de intelectuais que tematizam o viver e o conviver no
mundo acelerado e planetarizado e guiada por minha trajetória profissional no âmbito da
Informática na Educação como facilitadora-mediadora de práticas desencadeadas nos
ambientes informatizados em redes de ensino público e privado, atribuo sentidos e
significados para o corpus que analiso. Assumindo-me como autora da interpretação que
construo, estabeleço como ponto de partida dois tempos/espaços, projetados como limites
entre os quais as temporalidades e espacialidades podem operar na instituição escolar com a
inserção de tecnologias computacionais – do tempo e espaço para colonizar ao tempo e
espaço para fruir. Esses limites espaço-temporais não foram projetados para inscrever um
juízo de valor, elegendo o melhor tempo/espaço, mas para apresentar tempos e espaços que
coexistem sem reduzir, assimilar ou destruir qualquer um deles.
O tempo e o espaço para colonizar foram estabelecidos nos limites dos saberes de
um ideário psicológico e pedagógico que edificou a instituição escolar e que engessa as ações
mediadas pelas ferramentas tecnológicas para disciplinar e normalizar condutas. Em meio a
tantas mudanças educacionais ocorridas ao longo da história da sociedade ocidental, em que
formas de escolarização foram sendo questionadas, a maquinaria escolar parece manter ainda
vivo o projeto civilizatório assentado no ideário moderno da noção de progresso e do
ordenamento de massas populacionais. O tempo e o espaço para fruir foram projetados com a
valorização da técnica, não pela fascinação cega e pela supremacia das ferramentas
tecnológicas, mas na possibilidade de abertura de um campo de ação em potencial para o
processo da inteligência coletiva (LÈVY, 1999a) e de confecção do laço social.
Desmontar, (re)agrupar e comunicar foram ações que constituíram o ciclo de análise
para corpus que compõe esta Tese. Desmontando e reorganizando, em um processo paralelo
de coleta e de análise e, sob a aplicação do critério de saturação
188
, emergiram movimentos
apontando deslocamentos e continuidades nos elementos que edificaram o processo
educativo. Fragmentando documentos e dados obtidos em entrevistas e observações,
desorganizando textos, colocando-os dentro dos limites espaço-temporais projetados para esta
pesquisa, começo a organizar, a dar sentidos e significados às ações desencadeadas no
ambiente informatizado e no cenário educativo pela interface das ferramentas computacionais.
188
Utilizo o termo saturação como proposto por Moraes (2003, p.194), ação que se efetiva quando a
introdução de novas informações nos produtos de análise já não produz modificações nos resultados
anteriormente atingidos.
225
Num processo de auto-organização de unidades de análise, movendo-me da quantidade para a
qualidade, da explicação causal para a compreensão globalizada imbricada com a construção
teórica que cercou esta Tese, deixo o objeto de pesquisa falar, estabelecendo relações e pontes
entre dados de análise para, assim, possibilitar sua comunicação.
Da desorganização e desconstrução para a produção de uma compreensão do corpus
que analiso, procuro, inicialmente, dar significado e sentido a três movimentos que emergiram
desse ciclo investigativo. São três atos exibidos nos palcos de unidades educativas da periferia
de Porto Alegre que se aproximam, fortemente, do limite projetado pelo tempo e espaço para
colonizar: a busca da ordem, a alfabetização tecnológica e um projeto de informatização para
responder às demandas de sujeitos-aprendizes em situação de risco social. Caminho por esse
ciclo de análise para também apontar para os movimentos que, mesmo sob a tutela do uso
utilitarista da relação escolarização-tecnologias, estabeleceram pequenas fissuras, mesmo que
de superfície, no modelo que forja o sujeito disciplinar-psicológico-participativo. Percorro
dados de pesquisa para deixar fruir tempos e espaços individuais e coletivos no contexto de
um cenário social que a modernidade preparou e que hoje se realiza em escala global, uma
realidade, como caracteriza Melucci (2001), hipersocializada em sua expansão e penetração
social em cada aspecto da vida individual e coletiva.
EM BUSCA DA ORDEM, UMA NOVA HETEROTROPIA NA ESCOLA
Nós, humanos, somos dotados de memória e de uma capacidade de aprender,
por esse motivo, conferimos benefícios a uma boa organização do mundo
(BAUMAN, 1998, p.16).
Olhar o ambiente informatizado nos leva a pensar, primeiramente, no seu astro por
excelência – o computador. Da mesma forma que aluno e professor carregam consigo uma
história de representação, o computador tem sua imagem associada à inovação, à tecnologia
que, contemporaneamente, conquista o rótulo de a mais nova ferramenta do marketing
educacional.
Na atualidade, é cada vez mais difícil pensar a escola, principalmente a escola
inscrita nos grandes centros urbanos, dissociada de seu cartão de visita - o computador. Essa
tecnologia passa a ser o elemento gráfico, a imagem eleita para divulgar a escola e a temática
que se faz presente nas discussões ligadas à Educação. Alunos interagindo com computadores
226
passaram a ser quase que figuras obrigatórias ao se falar de uma instituição educativa que
deseja apresentar-se atualizada e sintonizada com as novas configurações espaços-temporais.
Não desconsiderando a importância e a centralidade de sua materialidade na efetiva
configuração do ambiente informatizado, meu interesse, para a primeira seção deste capítulo,
consiste em desviar o olhar do computador para o conjunto de elementos que cercaram e
conformaram o lugar inventado no edifício escolar para receber as tecnologias
computacionais. O layout do ambiente informatizado, a disposição do mobiliário e os recursos
humanos e tecnológicos, em sua interdependência e imanência, vão compor ações
pedagógicas sob determinadas configurações espaço-temporais. Para tal desvio, foi preciso
trocar os óculos de tão clara nitidez para uma especialista em Informática na Educação, para
alfabetizar o olhar e, assim, tentar examinar o ambiente informatizado em um plano menos
imediato, fora do olhar tecnológico. Como assinalam as palavras de Lopes e Veiga-Neto
(2004), foi preciso investigar além do lugar-comum, para apreender os jogos de significação
nos e pelos quais aprendemos, entre outras coisas, a viver sob esquemas temporais e espaciais
mais ou menos disciplinados.
Apesar do histórico movimento de dessacralização do espaço, vivemos,
contemporaneamente, comandados por uma infinidade de espaços que ainda operam por
secretas sacralizações – o espaço familiar, o espaço escolar, o espaço de lazer, o espaço de
trabalho. O edifício escolar tem seus espaços sacralizados - salas para a turma de alunos,
laboratórios, refeitório, cozinha, secretaria, sala da direção - espaços que forjam relações e
estabelecem posicionamentos que dificilmente podem ser reduzidos ou sobrepostos.
Vivenciamos a heterogeneidade dos espaços - privilegiados, proibidos, reservados,
idealizados, realizados -, somos por eles atravessados, espaços não para localizar sujeitos ou
objetos, mas, sim, como nos ensina Foucault (2001a), para que relações se estabeleçam, para
que sujeitos sejam interpelados e enquadrados.
Muitos são os lugares inventados pelo homem em seu longo processo civilizatório.
Para Foucault (2001a, p.415), existem lugares reais que são modelados pela sociedade com
utopias
189
realizadas, encontrados no interior da cultura como espécie de lugares que se
apresentam diferentes de outros lugares, embora efetivamente localizáveis, nomeados como
heterotropias. Provavelmente, não existe uma única cultura que não se constitua de
heterotropias em suas mais variadas formas.
189
Utopias são espaços fundamentalmente e essencialmente irreais, que mantêm com o espaço real da
sociedade uma relação geral de analogia direta ou invertida (MARTINS, 2002) (FOUCAULT, 2001a).
227
A escola é um somatório de heterotropias inventadas para a conformação da
sociedade moderna. Nas históricas configurações que o processo educativo foi assumindo,
heterotropias foram inventadas
190
para imprimir maneiras de ensinar conteúdos, para
promover relações sociais, para estabelecer hierarquias, para ensinar hábitos e para exercitar
comportamentos e, com eles, modelar o sujeito em suas diferentes camadas - disciplinado,
psicológico e participativo –, a fim de ajustá-los aos diferentes tipos de escolarização e aos
diferentes cenários sociais.
O modo como os espaços são organizados permite, mais do que qualquer outro
elemento cultural, visualizar as concepções socioculturais que, de forma mais ampla, o
emolduram. A organização de um espaço implica, não apenas um conjunto de princípios
funcionais, mas também, as concepções que cercam a instituição e normalizam os indivíduos
que localiza. Um novo lugar na escola passou a ser meticulosamente planejado, tão bem-
arrumado e organizado que, muitas vezes, parecia contrastar com o flexível, fluido e, muitas
vezes, confuso tempo-espaço sob o qual a escola ciclada começava a se edificar.
A organização do ambiente informatizado seguiu o modelo dos grandes planejadores,
especialistas autorizados a tornar o espaço o mais racional e funcional possível. Orquestrado
no plano mestre de uma equipe de experts, o ambiente informatizado passava a celebrar a
eficiência desejada pelo projeto da Modernidade. Durante reunião do Comitê de Informática
da SMED, quando questiono como e por que se elegeu uma configuração técnico-
arquitetônica específica para os ambientes informatizados, a resposta de um de seus
representantes ilustra o movimento de intervenção humana para organizar a materialidade
tecnológica:
Uma equipe multidisciplinar – informatas, engenheiros, arquitetos, pedagogos –
emprestou seus saberes para modelar um layout, “para que cada coisa se ache em seu justo
lugar e em nenhum outro” (BAUMAN, 1998, p.14), para que o ambiente informatizado
190
Supervisão Pedagógica, Orientação Educacional, Laboratórios, Brinquedotecas, heterotropias criadas para
ajustar o processo educativo às demandas do cenário social.
Chegamos a esse layout para os ambientes informatizados depois de muita discussão, levando
em consideração a visão de muitos especialistas e depois de ver a utilização dos computadores
em algumas escolas: o mobiliário na forma de uma banca em U, o esquema para a disposição da
rede lógica e elétrica, a colocação de mesas coletivas com material de qualidade, firme e
resistente para a atuação das crianças. Percebemos que, conforme a localização das tomadas os
alunos poderiam desligar com facilidade e, com isso, perderiam todo o trabalho. Era importante
também que o professor pudesse enxergar todas as telas para controlar o que os alunos estavam
fazendo.
(Dados de pesquisa –- Observação/Entrevista - Comitê de Informática - SMED – Novembro/2001)
228
assumisse uma configuração-padrão, uma utopia técnico-arquitetônica realizada nas escolas
da rede municipal de Porto Alegre. Era no Comitê de Informática da SMED que as decisões
sobre as especificidades relativas ao ambiente informatizado – hardware, software,
mobiliário, rede elétrica e lógica - eram discutidas e decididas por uma representação de
profissionais de diferentes áreas de saber, para definir a configuração arquitetônica, técnica e
pedagógica que a Informática Educativa deveria assumir nas escolas municipais de Porto
Alegre. Um conjunto de especialistas eram autorizados a construir e a colocar em prática a
política de informática educativa da SMED e, que tinha no Comitê de Informática seu
principal instrumento articulador, como destacam as palavras do assessor de informática
educativa da época:
Os recursos computacionais não foram distribuídos ao acaso, foram alocados em um
lugar do edifício escolar que seguia um enquadramento arquitetônico e técnico específico,
para tornar os ambiente informatizados cenários homogeneizados na periferia de Porto
Alegre: uma sala protegida por grades, sempre próxima à sala da direção, ou localizada no
prédio administrativo, num ambiente quase asséptico - sempre muito limpo e com temperatura
controlada pela instalação de aparelhos de ar condicionado - com bancadas em U para dispor
o kit tecnológico. Aspectos observados no edifício escolar, como destaco a seguir, se repetem
em outras escolas municipais, ilustrando a homogeneidade que os ambientes informatizados
conquistavam em sua configuração:
Um fato importante em termos organizacionais para a SMED, foi a criação de Comitê de
Informática da SMED, uma representação que ainda tem uma atuação forte, reuniões semanais,
sempre as sextas-feiras, composto por uma representação do pedagógico aqui da SMED,
representação do Planejamento, dos Recursos Humanos, da PROCEMPA (com cadeira fixa), da
Comunicação, e quando necessitamos da participação de um setor específico, esses são
convidados a participar. A criação do Comitê de Informática da SMED foi um acerto, em termos de
pensar a informatização da SMED, da rede, como um todo .
(Dados de pesquisa – Entrevista - Assessor de Informática Educativa – Dezembro/2000).
A diretora da escola me acompanha ao primeiro andar onde está localizado o ambiente
informatizado, por coincidência, a sala localizada acima da sala da Equipe Diretiva. Grades nas
portas e nas janelas protegem um espaço muito limpo e organizado. A diretora mostra, com
orgulho, as novas compras para o ambiente informatizado: as capas para proteger do pó os
computadores e as novas cortinas [...].
(Dados de Pesquisa – Observação – Escola Norte – Outubro/2001)
229
Com a implementação do ambiente informatizado, cada unidade educativa da rede
municipal de ensino de Porto Alegre recebia seu kit tecnológico: dezoito microcomputadores
rigorosamente distribuídos na escola - um servidor e quinze estações de trabalho para o
ambiente informatizado, um microcomputador para a secretaria e outro para a biblioteca, além
de uma impressora. Qualquer alteração no padrão dos ambientes informatizados deveria ser
encaminhada ao Comitê de Informática da SMED para avaliação.
O projeto técnico-arquitetônico e o gerenciamento do ambiente informatizado tinham
como princípio central o desejo de ordem, o que significa afastar de suas práticas diárias a
imprevisibilidade que cerca ações como trocar, construir, improvisar, para, assim, criar,
como destaca Bauman,
[...] um meio regular e estável para os nossos atos, [...] [para] que as probabilidades
dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa
hierarquia restrita – de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis,
outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis (1998, p,15).
Para circunscrever sob o holofote da ordem os movimentos no ambiente
informatizado, a rotina do principal executor do projeto de informatização da SMED - o
estagiário de informática – necessitava ser programada e regulada para torná-la previsível,
para garantir, como afirma Bauman (1998, p.15), a possibilidade de se “poder realmente saber
como prosseguir”. Para um desafio de tamanha envergadura, um conjunto de regras
normatizava as ações do estagiário de informática para promover o disciplinamento/controle
e, assim, permitir que a heterotropia modelada pela inserção das tecnologias de informação e
de comunicação pudesse operar ajustada ao projeto autorizado pelo corpo de especialistas que
integravam o Comitê de Informática da SMED.
Circulavam normatizações que estabeleciam os limites para o uso do ambiente
informatizado e para definir as possibilidades de utilização das ferramentas da Internet.
Memorandos eram afixados no ambiente informatizado e retomados em reuniões de formação
com estagiários, promovidas pela assessoria de Informática Educativa e pelo Comitê de
Informática da SMED, como ilustram os dados de pesquisa que apresento a seguir:
Sou conduzida ao ambiente informatizado pela secretária da escola. A sala se localiza no primeiro
andar, no mesmo prédio do setor administrativo da escola. Subindo a escada, a sala destinada ao
ambiente informatizado é facilmente encontrada e identificada – apresenta uma porta de ferro –
uma característica, que se repetiu também em outras escolas. Foi relatado ser essa uma medida
de segurança e uma exigência da secretaria para a organização do ambiente informatizado na
escola. Na sala encontro computadores colocados em uma bancada fixada nas paredes que
circunscrevem o ambiente informatizado [...]
(
Dados de Pes
q
uisa
Observa
ç
ão - Escola Oeste
Novembro/2002
)
.
230
Em uma época em que as interfaces tornam-se cada vez mais amigáveis, modeladas
por princípios plug and play, causa um certo estranhamento que, mesmo contando com o
conhecimento técnico dos estagiários, a instalação de programas e a manutenção rotineira
para hardware e equipamentos periféricos ocorressem vinculadas à abertura de eventos para a
manutenção aos administradores de rede do grupo de assessoria da SMED e a PROCEMPA,
como apontam as observações realizadas nas unidades educativas e na análise documental,
apresentadas abaixo:
O ambiente informatizado passava a ser um espaço homogeneizado, esteticamente
agradável e harmônico, minuciosamente planejado e organizado por especialistas para dispor
recursos humanos e tecnológicos. Eram atribuídos lugares para localizar computadores,
periféricos e mobiliário, lugares justos e convenientemente inventados para gerar um
ordenamento e uma estabilidade para a ação educativa. Ferramentas computacionais eram
[...] A instalação de programas e aplicativos baixados da Internet só deve ser feitos após consulta
aos Administradores de Rede ou ao Comitê de Informática.
(Dados de Pesquisa – Memorando n° 4402 - Política do Uso da Internet – Setembro/2002).
A Internet está à disposição de todos que prestam serviço nesta Secretaria e possuam matrícula,
como ferramenta de aprimoramento e informação. Seu uso não deve concorrer com o bom
andamento da rotina de trabalho e deve ser feito na medida em que consultas e acessos venham a
acrescentar no aprimoramento do mesmo. Dentro dessa política, não devem ser acessados sites
de conteúdo pornográfico, jogos ou chats que envolvam discussões não pertinentes ao trabalho. Da
mesma forma, a instalação de programas e aplicativos baixados da Internet só deve ser feita após
consulta aos Administradores de Rede ou ao Comitê de Informática. A observação desses
procedimentos é de responsabilidade de cada funcionário e de sua chefia imediata. Qualquer
desvio dessa orientação deve ser levado, pela respectiva Coordenação, ao Comitê de Informática
que discutirá as medidas cabíveis em cada situação. Essas podem variar da advertência até a
abertura de Processo Administrativo, dependendo da natureza da infração.
É importante destacar que, tecnicamente, é possível monitorar os sites visitados por cada
usuário, bem como o conteúdo de seu Correio Eletrônico.
(Dados de Pesquisa – Memorando n° 4402 - Política do uso da Internet –– Setembro/2002)
Nenhuma possibilidade de desenvolvimento ou aperfeiçoamento técnico, já que todas as
atividades desenvolvidas por mim são apenas as permitidas ao usuário. Criei a falsa expectativa
de que, por trabalhar num laboratório, poderia ter acesso ao servidor e à administração da rede, o
que me traria experiência como administrador de redes. Achei que atividades básicas de um
técnico, tais como instalar/desinstalar softwares, check-ups, trocas de componentes etc. seriam
por nós elaboradas. Nenhuma dessas tarefas nos é permitida.
(Dados de Pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Sul - Outubro/2001).
O/A estagiário/a tem como atribuições: [...] – mediar contato entre a escola e a SMED e/ou a
escola e a PROCEMPA a fim de agilizar a abertura de eventos para a manutenção dos
equipamentos, utilizando, para tanto, os números específicos de cada setor.
(Dados de pesquisa - Documento do Encontro de Informática Educativa – Maio/ 2002).
231
numeradas, etiquetadas e registradas em planilhas de controle enviadas à assessoria de
informática da SMED. O mapa desenhado pelo Comitê de Informática localizava a
materialidade tecnológica no ambiente informatizado. Nenhum equipamento poderia ser
deslocado entre pontos da rede lógica sem autorização prévia da PROCEMPA, mesmo que
isso acarretasse a perda de estações de trabalho e, conseqüentemente, de interação nos
ambientes informatizado.
A configuração e o ordenamento estabelecidos pela equipe técnica da PROCEMPA e
pela assessoria de Informática Educativa da SMED deveriam ser observados e mantidos pelo
estagiário do ambiente informatizado, pois a garantia da ordem estava acima de qualquer
outra demanda, inclusive pedagógica. O relato de um dos estagiários de informática ilustra a
busca da ordem e a garantia de controle para a materialidade tecnológica disponibilizada no
ambiente informatizado:
O estagiário que deveria impulsionar as ações pedagógicas pela interface das
ferramentas computacionais tinha sua função de mediador deslocada para a de vigilante-
contador dos recursos guardados no ambiente informatizado, para garantir que o ordenamento
projetado pela política de informatização da SMED fosse mantido. Mergulhado nas planilhas
de controle, o estagiário ficava preso aos fios das teias da burocracia e da contabilidade
educativa que marcaram, também, a inserção das ferramentas computacionais no cenário
educativo.
Do coordenador do ambiente informatizado para o professor da rede municipal de
ensino com carga-horária específica para promover as ações pedagógicas mediadas pelas
tecnologias computacionais, com o fim do Projeto Raiar, era instituída a figura do estagiário
para organizar e gerenciar os recursos computacionais, bem como apoiar a ação de
professores e alunos em sua ação com as tecnologias digitais. O estagiário passava a ser a
figura central na política de informatização da rede municipal de ensino de Porto Alegre, na
implementação do novo lugar no edifício escolar, o que, segundo as palavras da supervisora
Essa relação estagiário-PROCEMPA era tranqüila?
No início, os encontros foram bem tumultuados, eles achavam que os estagiários não tinham
conhecimento nenhum, só servíamos para bagunçar os computadores. Durante uma de suas
visitas ao ambiente informatizado, o técnico da PROCEMPA responsável pela manutenção
técnica ficou furioso, gritou comigo, porque eu havia tirado o mouse de uma estação de trabalho
que estava com o monitor com problemas e colocado em uma outra para, assim, garantir mais
um computador para que uma dupla de alunos pudesse trabalhar. Para mim era mais importante
garantir o trabalho do aluno do que respeitar a numeração dos equipamentos como estava
marcado na planilha da SMED. Cheguei a chorar de raiva... Tive várias discussões com os
técnicos da PROCEMPA, para que eles entendessem que o nosso objetivo era pedagógico.
(Dados de Pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Leste - Dezembro/2002).
232
pedagógica entrevistada no decorrer desta pesquisa, era uma das novidades que seduziam
professores para optar pela escolarização por Ciclos de Formação
191
:
Oriundo de cursos técnicos de informática e do curso de Pedagogia Multimeios e
Informática Educativa
192
, o estagiário de informática era o responsável por manter a
cuidadosa distribuição dos equipamentos e a meticulosa apropriação dos recursos
computacionais. Sua presença garantia o ordenamento e o funcionamento do ambiente
informatizado, pois uma das demandas a ele imputado era o de controlar a permanência dos
alunos nos diferentes períodos de funcionamento do ambiente informatizado e garantir a
correta utilização dos recursos tecnológicos disponibilizados.
No papel de vigilante-contador do ambiente informatizado, a ausência do estagiário
de informática, da figura responsável pelo patrimônio tecnológico inserido no edifício escolar,
muitas vezes, inviabilizava o acesso ao ambiente informatizado para alunos e professores nas
escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre, como confirmam dados de pesquisa que
disponibilizo a seguir:
191
Nas discussões com a assessoria da SMED para implantar o projeto da Escola Ciclada, era freqüente
ouvir,, por parte da assessoria pedagógica: “Vocês querem ambiente informatizado, Laboratório de
Aprendizagem..., então vamos assumir como forma de escolarização os ciclos de formação!”.
192
Curso oferecido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, para a formação de
profissionais para atuarem em Laboratórios de Informática de instituições educativas.
O ambiente informatizado fazia parte do kit – Escolas por Ciclo de Formação -, quando a
escola optava pelo ciclo, sabia que teria o ambiente informatizado. Sabíamos que esse espaço
vinha no próprio kit quando a escola ciclava.
(Dados de pesquisa – Entrevista - Supervisora Pedagógica – Escola Leste –
Dezembro/2002)
Faz quatro meses que estou aqui... Tinha um outro estagiário, mas quando ele saiu, a
escola ficou um bom tempo sem utilizar os computadores, os professores me disseram...
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Oeste – Novembro/2001)
O ambiente informatizado funcionava sem o estagiário de informática?
Não podia ser usado. Até eu disse para a diretora que poderíamos utilizar, pois vários
professores já sabem usar. Mas a diretora disse que não, que era melhor não usar porque temos
medo, pode estragar alguma coisa, tem o provedor [o correto seria servidor], ninguém entende
para ficar mexendo... Ficou chaveado e ninguém usou. Acho que uns quinze dias. Pela manhã,
nós estamos sem estagiário ainda... O estagiário que tinha saiu porque arrumou um outro trabalho
e não mandaram ninguém para substituir.
Então as turmas da manhã não estão utilizando o ambiente informatizado?
Está sendo usado somente no dia que o estagiário da tarde vem pela manhã. Nesse dias,
os professores podem utilizar.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora Pedagógica – Escola Norte –
Novembro/2001)
Proibida a permanência de aluno nesta sala sem acompanhamento do professor.
A chave desta sala deverá permanecer com o professor.
(Dados de pesquisa –Cartaz fixado no ambiente informatizado – Escola Oeste – Novembro/2001
233
Dispor monitores, mouses e teclados em bancadas em U era importante para que o
professor e o estagiário pudessem enxergar todas as telas e, assim, controlar a ação dos
alunos. Como analisa Veiga-Neto (2003a, p.79-80), o ordenamento arquitetônico ativa
importantes princípios de disciplinamento e controle possibilitados pelo dispositivo óptico do
panoptismo, princípios colocados em prática no ambiente informatizado: princípio da
totalidade, para que ninguém escape do olhar vigilante do professor e do estagiário; princípio
da minúcia, por permitir a observação detalhada da ação do aluno pelo dispositivo
arquitetônico do panoptismo e pelo controle tecnológico; princípio de saturação, por
potencializar uma observação permanente das ações em cada estação de trabalho; princípio da
individualização, ao segmentar a turma e transformar seus sujeitos em unidades alcançáveis,
descritíveis e controláveis; princípio da economia, pouco investimento para se obter um bom
resultado.
Aos princípios de vigilância do panoptismo, somavam-se os instrumentos da
sociedade de controle, expressos na possibilidade de monitoramento presencial e virtual dos
recursos e das ações experienciadas no ambiente informatizado, permitindo reduzir,
drasticamente, a opacidade que cercava as ações muitas vezes ocultadas no edifício escolar. O
professor perdia sua posição quase que monopolista na observação e no escrutínio de sujeitos
em processo de aprendizagem, para dividi-la com o estagiário de informática mas,
principalmente, com as ferramentas de administração e gerenciamento da materialidade
tecnológica. Era possível garimpar as marcas deixadas por seus interagentes nos endereços de
acessos na Internet armazenados no histórico dos navegadores da Web, nos arquivos que
digitalizavam as interações durante os chats, no conteúdo dos e-mails enviados e recebidos,
na argumentação que conquistava visibilidade nas listas de discussão e nos perfis
disponibilizados nos ambientes virtuais de aprendizagem. Inúmeras eram as peças que,
quando encaixadas, permitiram montar o quebra-cabeça que tornava quase transparente os
interesses, as motivações, a forma de perceber a si mesmo e o mundo para os sujeitos na
periferia de Porto Alegre.
O moderno sonho pedagógico de vigiar mestres e aprendizes, de otimizar o tempo e o
espaço escolares expresso nos princípios do panoptismo e impresso na arquitetura dos prédios
escolares sustentava a configuração do ambiente informatizado: expor permanentemente os
alunos à visão e ao controle dos educadores. Os limites anteriormente estabelecidos ao
De manhã ficamos sem estagiário durante o ano todo, o laboratório ficou fechado.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora Pedagógica – Escola Leste – Dezembro/2002)
234
processo educativo para a relação mestre-aprendiz eram revistos, pois as possibilidades de
comunicação e de informação e o constante estímulo à interação em ambientes
computacionais tornavam todos os participantes observados e observadores.
As novas possibilidades de visibilidade associadas às ferramentas digitais de
informação e de comunicação produzem contínuos intercâmbios na determinação e no
desempenho de papéis para sujeitos da periferia de Porto Alegre. Aumentavam-se,
significativamente, as possibilidades de controle e de intervenção no processo ensino-
aprendizagem ao iluminar comportamentos individuais e coletivos que, anteriormente, se
colocavam na escuridão, protegidos dos dispositivos de disciplinamento e do controle da
educação escolar. O modelo do panoptismo não era modificado nem substituído, mas, sim,
maximizado, ao multiplicar pontos de observação, ao distribuir massivamente a capacidade de
julgar e ao ampliar o campo de conhecimento sobre mestres e aprendizes.
A nova heterotropia criada na escola tinha, na construção do projeto pedagógico para o
ambiente informatizado, a chave para operar seu sistema de abertura e de fechamento. Projeto
era a palavra que possibilitava o acesso aos recursos disponibilizados no ambiente
informatizado. Previsto na proposta político-pedagógica da Escola Cidadã por Ciclo de
Formação, o projeto, junto com a grade de horários, estabelecia o protocolo de acesso para o
lugar que guardava os recursos computacionais no edifício escolar, como ilustram os
fragmentos do corpus de análise apresentados a seguir:
[...] Os professores vão à supervisão e marca o horário. Eles trazem o projeto. Eles têm
que ter um projeto, eles têm que vir trabalhar para chegar aqui e ter o que fazer..., não chegar
aqui sem saber, ficar pensando, procurando. Eu acho melhor fazer assim, se conversa para
quando chegar aqui com o aluno, se saber o que fazer.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Oeste - Dezembro /2001)
[...] É sempre programado, o aluno sempre entra no ambiente informatizado com o
professor. O professor agenda o projeto para o mês todo. À vezes eles combinam e podem trocar
com outro professor. Os alunos sempre trabalham com o projeto agendado pelo professor.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Sul - Outubro /2001)
Como são organizadas as ações no ambiente informatizado?
Os professores me encontram nos corredores, se tenho alguma idéia eu passo para eles.
Em algumas atividades eu trabalhei com uma estagiária da Pedagogia, como ela não tinha
conhecimento de informática, juntos pensamos em alguma coisa. Os professores trazem o que
querem. Eu estudo o jeito de montar e ficar parecido com o que era desejado no projeto.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Norte - Dezembro /2001)
[...] A maioria dos projetos está comigo. Os projetos da tarde – Robótica, Museu Virtual –
estão no site, direto no computador.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora pedagógica – Escola Oeste - Dezembro /2001)
235
O projeto, registrado no site, expresso no planejamento do ano-ciclo ou organizado
de forma tácita na planilha de horário, era o protocolo de acesso à heterotropia que localizava
e tecia relações entre seus interagentes e as tecnologias de informação e de comunicação
inseridas no edifício escolar. O ambiente informatizado, o protegido lugar no edifício escolar,
tornava-se penetrável pela chave de acesso dada pelo projeto, o passaporte para ingressar no
espaço muito arrumado, muito organizado, gerenciado presencialmente pelo estagiário e a
distância pelas ferramentas de monitoramento disponibilizadas pela equipe técnica da
PROCEMPA.
A grade dos horários para utilização dos recursos ordenadamente inseridos no
ambiente informatizado modelava um decisivo instrumento para controlar comportamentos e
ordenar as ações mediadas pelas tecnologias disponibilizadas na nova heterotropia escolar.
Pela grade de horários, eram demarcadas as rotinas para cada período, cada turma e cada área
de conhecimento, para o controle do tempo de utilização, por parte dos alunos e dos
professores, dos recursos tecnológicos disponibilizados no ambiente informatizado. No
entrelaçar do projeto e da grade de horário, os desconhecidos saberes da Informática
Educativa eram ordenados e trazidos para o processo educativo, para possibilitar sua
apropriação por sujeitos na periferia de Porto Alegre.
Um processo de engenharia escolar era desencadeado para planejar e organizar os
tempos e os espaços para a apropriação dos saberes e das ferramentas apontadas como a mais
positiva resposta às transformações do mundo contemporâneo. Por meio da precisão e clareza
do cálculo matemático, pela escolha de seus usuários priorizando a turma em cada ano-ciclo
ou o professor, o processo de espacialização do tempo impulsionava a apropriação e a lógica
espaço-temporais associadas às ferramentas computacionais. Dados de pesquisa,
disponibilizados a seguir, elucidam o desejo, levado ao extremo, de ordenar o tempo para
reduzi-lo a um espaço:
236
O desejo de Comenius de uma distribuição detalhada do tempo para o controle
minucioso de seu uso tem, na grade de horário, o mais fiel instrumento. A grade de horário
ordenava as ações no ambiente informatizado, estabelecia os limites para a utilização e a
apropriação das ferramentas de informação e de comunicação e de seus saberes, refinando e
operando sobre outras espacializações do tempo, dispositivos que, ao longo da história da
escolarização de massa, imprimiram um ordenamento para sujeitos, para saberes - o currículo
e a grade de horários de cada turma em cada ano-ciclo.
Cada parcela da totalidade dos horários disponibilizados para mediar ações
pedagógicas pela interface das ferramentas computacionais era planejada dentro do horário de
cada turma e do componente da arquitetura curricular de cada ano-ciclo. No entrelaçamento
dessas espacializações para o tempo, era desencadeado o projeto de informatização para
potencializar a apropriação das linguagens alfabética e pós-alfabética, a linguagem
hipertextual que permite em um mesmo documento a inserção de texto, som, imagem. Uma
diversidade de aplicativos e de ferramentas computacionais circulava no cenário sociocultural
e nas unidades educativas para possibilitar sua aproximação e apropriação para sujeitos da
periferia de Porto Alegre, como ilustram os dados de pesquisa que apresento a seguir:
Como vocês organizam os horários para a utilização do ambiente informatizado?
Primeiro nós fizemos uma divisão, o professor de matemática nos ajudou, quanto daria para cada
um. Vimos que não daria para contemplar todo mundo, assim, organizamos o horário deixando
sempre o de Educação Física fora, só que dia de chuva a prioridade é dele. Ele, professor de
Educação Física, ficou de fora mas, se estiver chovendo, o professor de Ciências, de
Matemática, de Português abrem mão do horário para ele. Naquela época, nós dividimos tudo
igual. Cada turma conseguia ir dois períodos por semana. Cada professor levava no seu período,
a turma não repetia. A gente dividiu que a turma X teria a oportunidade dois períodos por semana
lá na Informática. Então naquela semana eles iriam com aquele professor específico, uma vez
caía com um professor, outra vez com outro, nem sempre com o mesmo para dar oportunidade
para todos. Aquela turma tem essa oportunidade. Aí, o próprio professor, seja da área que for, vai
direto lá, com o estagiário, e se agenda: - Olha eu estou trabalhando isso. O pessoal trabalhou
um pouquinho essa história de pesquisa na Internet, deles buscarem, pesquisarem..
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisão pedagógica – Escola Sul – Novembro/2001)
Fiz uma tentativa com a turma de progressão do terceiro ciclo para eles usarem a lógica da
planilha de cálculo, mas não funcionou muito bem, eles não se interessaram...
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Norte – Outubro/2001)
Que tipo de atividades os professores agendam?
Mais é pesquisa na Internet, dessa pesquisa eles fazem um resumo no Word, colocam figuras. [...]
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Sul – Outubro/2001)
237
Ao configurar o ambiente informatizado sob a lógica de redes computacionais, a
política de informatização da SMED trazia, para o cenário escolar da periferia de Porto
Alegre, a forma de reconhecimento experienciada na sociedade de controle – a senha. Às
formas de reconhecimento anteriores - o nome, para a sociedade de soberania, a identidade e o
endereço, para a sociedade de normalização - que já se faziam presentes nos cadernos de
chamadas, nos números de matrícula - somava-se o uso do login e da senha para acessar o
computador. A senha estabelecia uma estrutura hierárquica de permissões, determinava as
possibilidades de alterar configurações e interfaces, demarcava os limites impostos às práticas
mediadas pelos recursos computacionais. Instalavam-se, no tempo e no espaço escolares, os
movimentos vivenciados no cenário social, em que senhas instituem os protocolos de acesso e
de abertura ao tempo-espaço tecnológico, substituindo os antigos portões que, desde o
feudalismo, demarcavam o dentro-fora e as relações associadas a cada um desses lados. O
ordenamento impresso nas ações desencadeadas no ambiente informatizado e a validação de
senhas, naturalizavam os rituais de reconhecimento postos em prática na sociedade de
controle.
A chave de acesso ao espaço-tempo tecnológico era a senha, e o estagiário de
informática era o porteiro que possibilitava que essa chave fosse utilizada para abrir o lugar
mais tecnológico da escola. A pouca instrumentalização e a pouca apropriação das
ferramentas computacionais por parte dos professores fizeram com que a construção das
ações pedagógicas desencadeadas no ambiente informatizado encontrasse no estagiário seu
ponto de ancoragem.
O estagiário de informática, sujeito que ainda se encontrava em processo de
formação, superava sua posição de aprendiz para tornar-se o protagonista na construção de
possibilidades educativas com as ferramentas computacionais disponibilizadas no ambiente
informatizado. Contudo, a tradução do saber da informática educativa para as regras da
escolarização dos ciclos de formação, mesmo para os estagiários que emanavam do curso de
Que ações pedagógicas são realizadas no ambiente informatizado?
Eles trabalham bastante com a Internet. Pesquisam bastante coisa na Internet. Com a professora
de Ciências, teve o projeto de Saúde Bucal, eles pesquisaram na Internet, mandaram e-mail para
dentistas, outros alunos construíram páginas no FrontPage Express. Uma dupla de alunos
trabalhou com um programa criado pelo pessoal do LEC, o Chaterboard. A turma fazia pesquisa
na Internet sobre assuntos diferentes e passava para essa dupla de alunos as perguntas e as
respostas para cadastrar no Chaterboard, para chamar as perguntas e as respostas. Tinha uma
coisa de bate-papo com o pessoal da PUC sobre os dentes e os dentistas, eles faziam perguntas
e o dentista dava a resposta. Como o professor de português vem e só dá texto para eles
digitarem, ele pensa que é bom para o aluno treinar e aprender. Ele tem razão né! Os alunos
adoram entrar na Internet e jogar... Eles adoram jogar, é o que eles mais gostam.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Oeste – Novembro/2001)
238
Pedagogia Multimeios e Informática Educativa da PUCRS, enfrentava dificuldades quando a
incipiente formação pedagógica e a pouca experiência profissional eram convocadas a
responder às demandas que se colocavam frente à relação computador-aluno-professor-escola
e aos desafios que cercam o trabalho no ambiente informatizado no cenário educativo
contemporâneo.
A necessidade de produzir filtros – saberes para dar sentido a outros saberes –, de
criar os tradutores e os guias para a exploração da nova realidade tecnológica colocada no
edifício escolar fez com que a assessoria de informática educativa colocasse, nas mãos desses
acadêmicos da PUCRS, a possibilidade de operacionalizar e concretizar a política de
informatização da SMED no tempo e no espaço das unidades educativas da rede municipal de
ensino de Porto Alegre, como assinala a fala do assessor apresentada a seguir:
O estagiário que não figurava na política de informática educativa da SMED passava a
ser o protagonista para pensar e fazer acontecer a informática educativa na rede municipal de
ensino, para assumir a responsabilidade de colocar em funcionamento a nova heterotropia
criada no tempo e no espaço escolares. Construir o mapa para esse território novo e estranho e
produzir a interface para traduzir e orientar o desconcertante tempo-espaço das tecnologias
computacionais para comunidades educativas na periferia de Porto Alegre eram as tarefas
imputadas ao estagiário.
O estagiário ocupava o espaço deixado pelo supervisor pedagógico, a figura designada
oficialmente pela proposta da escolarização por ciclos de formação para conduzir e coordenar
pedagogicamente e administrativamente as ações no ambiente informatizado. A desafiante e
complexa tarefa de apresentar e traduzir os recursos tecnológicos presentes no ambiente
informatizado para uma comunidade escolar trocava de mãos, um deslocamento para
responder a um desafio que as palavras da supervisora pedagógica ajudam a elucidar:
Temos um outro tipo de estagiário que está entrando agora, que é o estagiário de terceiro grau, da
PUC. Temos dez trabalhando conosco, um pessoal que tem uma política muito boa. A política
deles é a nossa política em termos de informática educativa. Nós conversamos com o pessoal que
dá supervisão ao curso, tivemos algumas reuniões e se viu que seria ótimo tanto para nós, como
para a PUCRS, termos esse estágio constante do pessoal de lá. É o estagiário que não sabe a
informática técnica, eles sabem informática educativa. [...] Eles têm conseguido fazer uma
contribuição pedagógica ao grupo de professores.
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Assessor de Informática Educativa
Dezembro de 2001
)
239
Ao mesmo tempo em que se deslocava das mãos do supervisor para o estagiário a
tarefa da construção de filtros para traduzir as possibilidades da materialidade tecnológica
disponibilizada no ambiente informatizado em um projeto pedagógico, um segundo
movimento influenciaria a construção da interface para a relação computador-educação pelas
rotas traçadas pela política de informática educativa da SMED: a migração do sistema
operacional proprietário - Microsoft - para o software livre – GNU/Linux. Foram
deslocamentos experienciados na rede municipal de ensino que consolidaram uma
configuração para o ambiente informatizado e garantiram uma política de informatização sob
a ordem da eficiência e do baixo custo.
Com o estagiário de informática, era encaminhada a solução para as dificuldades que
se colocavam com a saída do professor coordenador do ambiente informatizado em virtude da
política de redução dos recursos humanos, uma demanda não suprimida ao delegar essa
função ao supervisor pedagógico. Com o sistema operacional GNU/Linux, aliviava-se o
problema que se colocava ao propor a informatização de toda uma rede de ensino sob a tutela
Acho que a primeira dificuldade já vem por aí... Na verdade não se teve oportunidade de discutir
esse novo espaço na escola, quando a escola ciclava, automaticamente passava a ter o ambiente
informatizado, da mesma forma que o volante e o Laboratório de Aprendizagem. O que mais
dificultou foi ter colocado a figura do supervisor como coordenador de uma coisa que ele
desconhece. Observando a rede, pelo menos na época de implantação da escola ciclada, nenhum
supervisor tinha conhecimento de informática. Em nenhum momento se discutiu com o supervisor
que papel seria esse e por que os supervisores e não uma pessoa que tivesse formação para
isso, ou outra pessoa que quisesse atuar nesse espaço. Foi uma surpresa para o supervisor. Isso
se reflete, por exemplo, na formação do Comitê de Informática nas escolas, a maior dificuldade
era essa, não se tinha conhecimento de como funcionaria esse espaço. [...] O ambiente
informatizado é um espaço com vida independente na escola. [...] Essa é a nossa principal
discussão: qual é a função do ambiente informatizado na proposta político-pedagógica da Escola
Cidadã? Isso não está claro, ainda hoje, para a rede como um todo.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora Pedagógica – Escola Leste – Dezembro/2002)
E o apoio à figura do supervisor...
Nós fizemos formações na SMED, uma oferecida para a equipe diretiva para a construção de
páginas e outra com o coletivo de professores da escola em Linux. Acredito que essas formações
não tinham um objetivo pedagógico, mais didático... Uma coisa é uma formação pessoal, outra
coisa é oferecer uma formação para a supervisora que vai ter que repassar essa formação para
seus professores. Não era esse o cunho da formação... Eu estava me formando enquanto pessoa,
mas como eu faço para orientar meus professores, para que eles consigam fazer e depois
possam fazer com seus alunos? Acredito que é isso que falta, poder instrumentalizar o professor
para que depois eles possam trabalhar com seus alunos. Era isso que faltava, instrumentalizar os
professores para que eles tenham segurança suficiente para chegar no ambiente informatizado e
pensar em um projeto pedagógico [...] Não que eles tenham que dominar tudo, mas que eles
tenham uma idéia das ferramentas de que podem se valer para o contexto de cada projeto. Mas
isso não ocorreu, além do mais, o curso foi feito numa ferramenta, por exemplo FrontPage, que
era para Windows. Quando tínhamos Windows ainda conseguíamos fazer alguma coisa, mas
quando mudou para Linux, ficou pior ainda, praticamente impossível!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora Pedagógica – Escola Leste – Dezembro/2002)
240
do custo da compra de licenças da Microsoft, pontos que emergem na fala do assessor de
informática da SMED:
Fazia sua entrada no projeto de informatização da rede municipal de ensino um novo
sistema operacional, GNU/Linux, desencadeando, a partir de 2001, o processo de migração do
sistema operacional proprietário para o software livre e, paralelamente, as inúmeras tentativas
para resolver os problemas que passaram a ser enfrentados com a implementação, por toda a
rede de ensino, de uma plataforma computacional ainda desconhecida para a assessoria de
informática da SMED, para os técnicos da PROCEMPA e para os estagiários de informática,
como revelam dados de pesquisa apresentados a seguir:
Como está sendo a migração para a plataforma Linux?
Quando comecei como assessora de Informática Educativa na SMED, a secretária adjunta pediu
para fazermos uma avaliação. Eu coloquei que concordava com a idéia do Linux, que realmente
deveria continuar, mas que nós tínhamos muito pouco acúmulo para termos iniciado tão cedo
essa migração. Eu disse para ela que, como Secretaria, tínhamos uma bomba, uma batata quente
nas mãos! O tempo para apropriação para o grupo de assessores é de seis meses a um ano. Eu
trabalho com colegas que não conhecem nem Windows, muito menos Linux!
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Assessor de Informática
SMED
Setembro/2002
)
A migração para o software livre foi pensada dentro do Comitê de Informática da SMED?
A questão do Linux, na verdade, chega forte no início de 2001, porque, até então, eu nem sabia,
eu era ignorante de outro sistema operacional, para mim só existia a Microsoft. [...] O pessoal da
PROCEMPA, do governo do Estado e do Município, organizou um seminário de Linux para falar
sobre informática e as tendências da informática no mundo. O governo do Estado, a partir disso,
toma a decisão de fazer a migração para o sistema operacional Linux, devido aos benefícios em
termos de máquina, em termos de economia, em termos de construção dos próprios softwares. A
PROCEMPA acompanha e propõe isso para o Comitê de Informática da SMED. Avaliou-se
pedagogicamente e se resolve ficar com o sistema operacional Linux. [...] Agora muda o sistema
operacional, e a rede precisa se apropriar disso e ver o que se propõe. Na verdade estamos
nessa situação.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Assessor de Informática – SMED – Dezembro/2000)
O problema é o registro, ninguém vai comprar licença da Microsoft, é algo financeiramente inviável
para a escola. Só em instalar o Linux já se tem uma economia de 19 mil reais. Imagina a cada
dois ou três anos fazer essas mudanças, não tem rede que agüente!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Assessor de Informática – Dezembro/2000)
Com a retirada do professor específico para o ambiente informatizado, passa para a supervisão
pedagógica a responsabilidade de informática da escola. Lança-se mão da possibilidade de
estagiários. Na verdade o estagiário tem que ter um certo conhecimento [...], é claro que eles
dominam o sistema operacional Microsoft, o pacote do Office da Microsoft, poucos dominam o
Linux. Nós estamos tendo dificuldade com o Linux [...]
(Dados de pesquisa – Entrevista – Assessor de Informática – Dezembro/2000)
241
Referenciado como um tema transversal e não efetivamente como um novo lugar no
edifício escolar, o ambiente informatizado construía suas ações educativas sob as dificuldades
desencadeadas pelo deslocamento da efetiva coordenação do projeto de informática da escola
das mãos da supervisão pedagógica para o estagiário, o sujeito aprendiz que passava a
enfrentar os desafios de um sistema operacional desconhecido e a necessidade de ajustá-lo às
regras da escolaridade. A respeito de todas as dificuldades enfrentadas, o lugar reservado no
edifício escolar configurava-se como uma heterotropia, uma parcela do espaço-tempo
educativo planejado e organizado, buscado pelos professores e desejado pelos alunos.
O poder de dar nomes, como afirma Melucci (2004), que permite ao homem fabricar o
mundo e submetê-lo aos sinais com os quais lhe damos voz, é explicitado na língua espanhola
ao nomear a máquina por excelência do mundo cibernético como ordenador. O
funcionamento das ferramentas computacionais exige procedimentos de acesso e de utilização
mais disciplinados, práticas que parecem ter sido deixadas do lado de fora da sala de aula. É
preciso sentar-se para trabalhar com o computador, é preciso ter atenção para seguir os
programas, é preciso concentrar-se para a conclusão da atividade! Essa perspectiva
Que dificuldades você está sentindo em seu estágio?
Um maior conhecimento em Linux, eu não tenho ninguém que me forneça. O curso oferecido pelo
SMED para os professores da escola apresentou o que eu já sabia, qual era o editor de texto, o
editor gráfico, nada mais. Não me acrescentou em nada, eu precisava de uma orientação, como
acertar configurações, não estou tendo esse suporte. Quando tem algum problema eu ligo para a
PROCEMPA, que é o órgão que cuida do setor de informática da SMED. Dizem que vão mandar
alguém para consertar, mas o retorno é demorado e, às vezes, não ocorre.
(Dados de pesquisa - Entrevista - Estagiário de Informática – Escola Leste – Setembro/2002)
Durante o ano letivo ocorreram encontros de formação para os estagiários organizados
pela SMED? Que discussões foram feitas sobre a ação de vocês no ambiente informatizado?
Eu tive uma orientação como agir quando entrei. A assessoria me disse que eu seria um
auxiliar no laboratório. Os professores iriam trazer as turmas e eu ia dizer as ferramentas que
tinham e como deveriam usá-las. Isso foi quando eu assinei meu contrato pela primeira vez.
Depois os únicos encontros que tive com a SMED foram na renovação do meu contrato e, com
meus colegas estagiários só tive um encontro com um colega para aprender a lidar com o Linux.
Foram poucos encontros, foram somente três dias que eu tive com esse estagiário e depois nunca
mais me encontrei com outros estagiários. Não recebemos nenhuma orientação. Na verdade,
fomos colocados nos colégios e que cada um corresse atrás dos recursos com a escola, com a
supervisão. A SMED não nos deu nenhuma orientação.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Leste – Dezembro/2001)
A primeira dificuldade é que os estagiários chegam sem conhecimento de Linux. Isso dificulta,
complica o trabalho num ambiente que só tem Linux. Acredito que deveria ser fundamental,
primordial, que conhecessem esse sistema operacional. Se eles não têm esse conhecimento em
sua formação, a SMED de alguma forma deveria organizar.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora Pedagógica – Escola Leste – Dezembro/2002)
242
disciplinadora que a interface das ferramentas computacionais possibilita imprimir ao
processo educativo era colocada em destaque na análise da professora, que apresento a seguir:
Os diferentes lugares no edifício escolar configuram espaços e tempos variados,
operando sob a lógica de diferentes saberes. Saber o onde se pode fazer isto ou aquilo
(dimensão objetiva) vai se confundir, então, com o saber da maneira a executar o que dele se
espera (dimensão subjetiva). Se o saber da informática traz, para o cenário educativo, outro
modo de pensar o mundo ao mesmo tempo em que concebe relações com esse conhecimento,
impõe, de forma paralela, a conformação de comportamentos individuais e coletivos. O
professor encontrava, no planejado e ordenado ambiente informatizado, as ferramentas para
potencializar a construção de interfaces e exercer sua ação sobre a ação dos alunos, para
erguer as pontes e viabilizar a comunicação e a interação com sujeitos em processo educativo
que revelavam dificuldades em assumir os comportamentos escolares habitualmente
esperados.
Solapadas as tradicionais formas educativas de controle escolar – prova, nota,
reprovação - eram as ferramentas computacionais localizadas no edifício escolar que, mesmo
mediando práticas pedagógicas que as reduziam a glorificadas máquinas de escrever, de
calcular, de desenhar e de jogar, passavam a assumir a missão de dar forma e controle à
interação entre alunos e professor. Colocar em prática uma outra possibilidade de gerenciar o
processo educativo fez com que as grades de horário que especializavam o tempo de
utilização do ambiente informatizado fossem rapidamente preenchidas, como ilustram os
dados de pesquisa que disponibilizo a seguir:
[...] O trabalhar no ambiente informatizado exige uma outra postura, a própria concentração fica
diferente, se não clicar direito não alcançará o objetivo, isso exige uma maior concentração. [...] O
ambiente informatizado não é a mesma coisa que a sala de aula, tem um maquinário importante,
por isso, não pode ficar comendo, batendo, subindo em cima... Isso se discutia muito com os
alunos da turma de progressão, saber a diferença de estar em diferentes espaços: na sala de
aula, no pátio, no ambiente informatizado. Eles começam a descobrir que os espaços são
diferentes e que o comportamento para cada uma deles também deve ser diferente.
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Professora
Escola Leste
Dezembro/2002
)
No início, era meio vazio, o pessoal parece que tinha medo de vir para cá... Agora, olha o
horário, está sempre cheio. Mal se coloca o papel na sala dos professores para logo ficar todo
preenchido. Os professores até reclamam que não deu tempo!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Sul – Dezembro/2001)
[...] Os horários estão sempre ocupados, todos os períodos, até na quarta-feira, que, pelo horário
da escola, os períodos são reduzidos...
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Norte – Dezembro/2001)
243
Quando o afastamento da família e os papéis específicos na sala de aula eram
reconfigurados, quando a distância física e simbólica entre aluno e professor era alterada,
quando as diferentes escalas de isolamento colocadas em prática no tempo e no espaço
escolares para fazer com que o sujeito-aprendiz renunciasse aos hábitos de sua classe social a
fim de edificar comportamentos escolares perdiam precisão e confiabilidade, as ferramentas
computacionais passaram a responder de forma produtiva às demandas da imobilidade
corporal, da rigidez e da máxima individualização, afirmando-se como contemporâneos
instrumentos para a colonização do tempo e domesticação do espaço. Era pelo brilho das
tecnologias computacionais que as resistências individuais e coletivas eram atenuadas e que
os sujeitos em processo educativo eram capturados e (re)adaptados para responder à ética e à
estética das configurações da sociedade edificada sob a supremacia da imagem e da lógica do
mercado.
Quando a sala de aula não mais consegue prender aprendizes às suas classes, quando
os saberes psicopedagógicos colocam sob suspeita os bons hábitos e a boa disciplina; quando
a escolarização impõe ao professor uma prática distante da tradicional missão de transmitir
saberes historicamente construídos pela humanidade, a ação pedagógica no ambiente
informatizado constrói inusitados tempo e espaço de domesticação. O computador e os
saberes da informática educativa implementavam uma ação utilitarista para atuar ativamente
na administração do corpo discente. Era pela interface das ferramentas computacionais que o
professor buscava uma possibilidade para ordenar e gerenciar alunos no contexto de um
processo educativo e de um cenário sociocultural que colocavam sob suspeita práticas e
saberes que fizeram parte da formação e da proficiência dos professores e,
contemporaneamente, eram questionadas e desvalorizadas.
Copiar, a técnica que marcou a longa história da escolarização, se faz presente
também na interação do aluno com o espaço-informação. Pesquisava-se durante o tempo e o
espaço das disciplinas de cada ano-ciclo: as informações saíam da Galáxia da Internet para o
caderno do aluno. Trocava-se o meio de armazenamento da informação e, facilmente,
comemorava-se o processo de inclusão digital - páginas para a Web, informações
organizadas em software de apresentação sem a apropriação do sentido e do significado da
[...] tem um horário para encaixar a C13? Para qual projeto, pergunta a estagiária? Para fazer
qualquer coisa!
(Dados de pesquisa – Observação – Escola Leste – Setembro/2004)
244
informação ricamente ilustrada e enfeitada por arquivos .gif e .jpg
193
registrada no meio
digital. Dados disponibilizados a seguir referendam uma forma de interação com o espaço-
informação preso à repetição da realidade cotidiana e caseira da escola:
A cópia disfarçada de pesquisa na Web só perdia para os jogos na Internet, a corrida
para as ações mais freqüentes no agendamento para a utilização dos recursos do ambiente
informatizado. Era pela interface lúdico-tecnológica das ferramentas computacionais que o
ambiente informatizado configurava-se como fliperama, como o parque de diversões digitais
para colonizar um estamento social que, pela ausência de instrumentos para a apropriação de
criticidade (para destacar apenas um deles, a competência de leitura e de escrita),
transformava os alunos em uma maioria silenciosa incapaz de reger-se por si mesmo.
193
São extensões de arquivos de imagens e de animações digitalizadas que se fazem presentes na escrita pós-
alfabética.
No ambiente informatizado, uma turma do segundo ciclo realiza atividade pedagógica
acompanhada pela professora volante. São apenas seis alunos. Estávamos no período que
antecedia o intervalo da manhã. Três alunos, tranqüilos, jogam no site da Turma da Mônica –
www.turmadamonica.com.br – todos na atividade das cruzadinhas. Parece não ser a atividade
inicialmente proposta pela professora, mas a mesma apenas olha e diz: – Aí, heim, cruzadinhas! –
e continua a ler seus e-mails em uma das estações de trabalho. Dois alunos navegam na Internet
sem nenhum objetivo aparente. Uma aluna, sentada a distância de dois computadores depois da
professora, faz uma cópia, em seu caderno, de informações sobre vermes no site –
http://puccamp.aleph.com.br/vermes. Sento ao lado dessa aluna, pois me chama atenção a
freqüência com que a mesma solicita a atenção da professora, sempre sem retorno. Fica
angustiada, inquieta, pois apresenta grande dificuldade na leitura das informações
disponibilizadas no site, bem como na navegação do próprio site, mas, mesmo assim, copia tudo
o que pode no seu caderno. Solicita de maneira mais incisiva a ajuda da professora. Nesse
momento, a estagiária informa que a professora saiu..., ela saiu e eu nem vi. Deve ter ido à sala
dos professores. A estagiária também não atende à solicitação da aluna, que, com grande
dificuldade, tenta preencher um formulário projetado para interagir com a equipe de pesquisadores
responsáveis pelo site. A professora retorna ao ambiente informatizado trazendo na mão um copo
com um cafezinho, senta-se e retoma a leitura de seus e-mails. O sinal soa marcando o término
do período e o início do intervalo da manhã. Os alunos saem, e a aluna que solicitava de forma
mais incisiva a ajuda da professora sai, desligando o computador de forma incorreta. Pergunto
sobre a proposta de atividade que estava sendo desenvolvida com a turma e a aluna me informa
que a professora volante da turma queria que eles pesquisassem sobre os vermes. Assim, a
estagiária fez uma pesquisa no site de busca Google – www.google.com.br – e escolheu
previamente o site que apresentasse muitas figuras..., as crianças gostam de sites com muitas
imagens. A professora não teve um contato anterior com o site e durante sua permanência no
ambiente informatizado não manifestou o menor interesse nas informações ali disponibilizadas,
nem pela ação dos alunos em sua navegação pelo site.
(Dados de pesquisa – Observação – Escola Oeste – Novembro/2001)
[...] Eles já viam com os sites que os professores determinaram e não usavam a Internet para
ampliar seus conhecimentos, era apenas para copiar. Era como se eles tivessem mais um quadro-
negro ali na frente deles e eles copiando desse quadro, só que era a tela do computador. Eles
copiavam tudo no caderno, mas não entendiam o que estavam escrevendo.
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Esta
g
iário de informática
Escola Leste - Dezembro/2001
)
245
A ação utilitarista para a materialidade tecnológica colocada dentro do tempo e do
espaço escolares estendia sua dinâmica na gestão da instituição educativa. Se as sociedades de
soberania e disciplinar, como analisa Hardt (2000), foram marcadas por uma transcendência,
uma superioridade e distância em relação ao poder, na imagem do rei ou do Estado, as
fissuras e o desmoronamento dos muros das instituições marcaram a passagem para a
sociedade de controle e para o deslocamento da soberania no campo da imanência.
Recursos computacionais localizados na secretaria das escolas mantinham ativos e
atualizados os bancos de dados do SIE - Sistema de Informação por Escola - com dados
referentes ao número de matrículas, à configuração do corpo docente e ao histórico educativo
do corpo discente. Com o SIE, era garantida uma transmissão de dados online que subsidiava
as decisões administrativas para a construção do quadro de pessoal de cada escola e para a
distribuição dos recursos financeiros, materiais e tecnológicos necessários ao funcionamento
da escola ciclada. As demandas de recursos financeiros e humanos conquistavam novos
pontos de ancoragem, diminuindo o risco que sempre cerca a tomada de decisões pedagógicas
e administrativas. Era o olhar virtual da SMED, via fluxo de informações, que rompia com as
barreiras de tempo e de espaço, garantindo uma maior transparência à administração escolar.
A escola ciclada, ao democratizar suas relações de poder por meio da atuação do
Conselho Escolar, ao mesmo tempo em que deslocava ações administrativas do privado para
o público, aprofundava e refinava o controle pela via tecnológica. O movimento
desencadeado pelas ferramentas de compressão espaço-temporal que derrubavam as barreiras
da instituição da Escola do Hardware acirrava o controle pelos fluxos de informações dos
bancos de dados do SIE. A visibilidade que cada unidade educativa da periferia de Porto
Alegre conquistava tinha importância no cenário social, pois essas informações legitimavam
programas de distribuição de renda como o bolsa-escola e, posteriormente, o bolsa-famíla,
repasse de recursos que está vinculado à freqüência escolar. A importância que a
materialidade tecnológica alocada na secretaria imprimia ao funcionamento da Escola
Ciclada era revelada nos dados de pesquisa que disponibilizo a seguir:
A questão da FICAI passa a ser o carro-chefe da ação escolar. A escola com a FICAI passa a dar
conta até de programas como o Bolsa Escola, o Cartão Cidadão, uma vez que isso passa a ser
vinculado à presença do aluno na escola [...]
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora pedagógica – Escola Leste – Dezembro/2001)
246
Para responder ao ordenamento que já se fazia sentir no cenário social, a escola
assumia sua configuração software. Apoiada por ferramentas de informação e de
comunicação, a ação educativa voltava-se para a formação de sujeitos participativos,
comunicativos, abertos ao monitoramento tecnológico. Na Escola do Software, a condição
disciplinar não só era mantida mas, principalmente, intensificada. Ajustava-se o processo
educativo para moldar personalidades flexíveis, participativas e comunicativas, sintonizadas
como a lógica do espaço mercantil, que exige trabalhadores com plasticidade e adaptabilidade
às freqüentes e profundas transformações do mercado de trabalho.
Para estimular sujeitos em processo educativo a participar das variadas situações
pedagógicas ajustadas à espetacular sociedade de controle - trocar mensagens por e-mails,
fazer um blog, publicar imagens no fotolog
194
, interagir em sites de relacionamento, participar
de listas de discussão e de chats, divertir-se com os jogos digitais –; para tornar os alunos,
como afirma Varela (2002, p.102), “mais dependentes e manipuláveis quanto mais liberados
se acreditem”, era necessário ligar o motor e ativar o movimento de alfabetização tecnológica
nas unidades educativas da periferia de Porto Alegre.
PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO TECNOLÓGICA - A APROPRIAÇÃO DAS
FERRAMENTAS DE COMPRESSÃO ESPAÇO-TEMPORAL
Quando modos de pensar, sentir e agir experenciadas pela humanidade são abalados,
metáforas, parábolas e alegorias multiplicam-se no intuito de dar conta dos deslocamentos
desencadeados por configurações socioculturais emergentes. Ao tentarem construir uma
definição geral para a sociedade contemporânea, pesquisadores fazem florescer uma
194
Diário fotográfico hospedado na Internet para compartilhar fotos e comentários com outros internautas.
Espaços virtuais para a exposição textual e imagética das experiências individuais e coletivas para serem
compartilhadas com outros usuários da rede mundial de computadores.
[...] Técnicos da PROCEMPA respondem ao evento aberto pela Escola Leste para a manutenção
do equipamento utilizado pela secretaria desta unidade educativa. O computador apresentava
problemas para acessar o SIE, em função de uma configuração com pouca memória, segundo os
técnicos. A solução encontrada foi a de retirar o equipamento de melhor configuração do ambiente
informatizado e transferi-lo para a secretaria. O resultado de tal alteração foi a colocação, no
ambiente informatizado, de um equipamento que apresentava uma configuração que dificultava o
acesso a Internet e um teclado com suas letras apagadas, o que inviabilizava a utilização por
partes dos alunos. Era a dimensão administrativa que eclipsava a pedagógica na política de
informatização da Escola Ciclada. A solução encontrada não foi questionada pela equipe diretiva,
pela supervisão pedagógica ou pelo estagiário; parece que incluir dados era mais importante que
incluir alunos, que garantir e ampliar as possibilidades de interação com as tecnologias de
informação e de comunicação no ambiente informatizado.
(Dados de Pesquisa – Observação – Escola Leste – Agosto/2003)
247
diversidade de metáforas que apontam para fenômenos econômicos, políticos, culturais e
sociais, como adverte Ianni (2000, p.5), “ainda fugidios ao horizonte das ciências sociais.”
Um conjunto de especificações lingüísticas e a ausência de um pressuposto teórico
explícito colocam, na arena das discussões, como analisa Melucci (1996; 2001), a dificuldade
em construir uma definição mais apropriada para tentar capturar, mesmo que em parte, os
emergentes deslocamentos do cenário social. Para Sposito e Fischer (2001), essa tentativa de
nomeação busca captar processos de mutação social ainda inconclusos, uma dificuldade que
se estabelece pela falta de distanciamento histórico para explicar essa realidade em sua
totalidade.
O contemporâneo cenário social, em sua diferenciada configuração espaço-temporal,
carrega consigo um elenco de adjetivos - pós-industrial, pós-moderno, complexo, de
informação, entre tantos outros
195
-, que aponta para uma questão lingüística que não se limita
à sempre presente dificuldade no ato de nomear fenômenos sociais, mas sinaliza para um
sintoma de uma quase indecisão teórica. Testemunhamos uma organização social que
conhecemos empiricamente, mas que, ao tentar defini-la, nos coloca na difícil e
desconfortável posição que assumimos sempre que tentamos formular novas questões
apoiadas em velhas linguagens
196
. Falamos de um cenário social em que seus pressupostos
teóricos são raramente explicitados, um contexto social que contém mais lacunas do que
respostas, o que dificulta, ou até mesmo impossibilita, a previsão das conseqüências que
estamos construindo ao caminhar por determinadas rotas ou por assumir determinadas
escolhas.
Qualquer que seja o adjetivo utilizado para nomear o cenário contemporâneo, ele
aponta para uma configuração social que difere de outras experienciadas pela humanidade.
Contudo, uma característica se faz presente seja qual for o adjetivo utilizado, pois um
consenso se estabeleceu no fato de que a informação tem se tornado o principal recurso, um
aspecto que revela, de forma ainda mais evidente, a faceta artificial e construída da vida
social.
195
Ianni (2000) apresenta o novo mapa do mundo a partir de um conjunto de metáforas que aponta para
possibilidades e impasses de um cenário social sustentado pelo poder da tecnologia: Aldeia Global – a
comunidade mundial forjada pela informatização e pela eletrônica; Fábrica Global – transformação quantitativa
e qualitativa do capitalismo além de todas as fronteiras.; Nave Espacial – a tensão e magia do destino
desconhecido desencadeado pela viagem e travessia de uma forma de organização social moderna que se
desenvolveu no século XX anunciando o século XXI.
196
Como analisa Melucci (1996, p. 199), os dois principais paradigmas da modernidade nos quais a
interpretação da sociedade foi alicerçada, o paradigma da sociedade capitalista e o da sociedade industrial, não
são mais úteis para a interpretação das mudanças que testemunhamos, mas que não somos capazes de
compreender a partir desses modelos.
248
A maior parte das experiências cotidianas situam-se em contextos cada vez mais
construídos por informações transmitidas pelas mídias e internalizados pelo homem
contemporâneo. O homem passa a viver suas experiências individuais e coletivas em
contextos sociais que se transformam, de forma espiralada e sem fim, cada vez mais em
signos e imagens.
A informação, como salienta Melucci (1996), é um recurso simbólico inerentemente
reflexivo e, por isso, um recurso que depende da capacidade humana, biológica e
motivacional, de transmitir e receber informação. Possuir as chaves com os códigos que
organizam os signos que compõem a informação e lhe atribuem sentido se torna central. O
controle da produção, acumulação e circulação da informação como um recurso opera sob a
habilidade de compreender as linguagens que lhe dão forma, tamanho e sentido.
Do mundo alfabético ao pós-alfabético, a escola exerce um papel central em
aproximar indivíduos dos códigos e dos princípios organizadores que possibilitam tornar a
informação um recurso simbólico. Assim, perguntas do tipo “A escola tem futuro?”
197
ou
“As crianças ainda devem ir à escola?” (VEIGA-NETO, 2000b) podem ser respondidas
positivamente, uma vez que é no tempo-espaço escolar que o homem, precocemente
capturado, é exposto aos instrumentos e às estratégias educativas para o desenvolvimento de
sua capacidade em utilizar a informação como um recurso reflexivo. Se, para a ordenação
racional do tempo e do espaço, a escola teve papel central na produção e reprodução da
sociedade industrial, popularizando o uso do relógio e difundindo o conhecimento
cartográfico, estratégias que possibilitaram topologizar o pensar e agir social. A sociedade
contemporânea se produz e reproduz pela capacidade de aproximar grupos humanos das
ferramentas digitais de comunicação e de informação.
Se o mundo pós-medieval colocou nas mãos do homem a construção de sua história,
temos, contemporaneamente, de forma acelerada, uma sociedade que concebe a si mesma
como um produto da ação humana. Para além da lógica econômica centrada na posse da terra
e na exploração da força de trabalho humana, dominante para o espaço-tempo da Terra ou do
Território, no espaço-tempo Mercantil, a produção material é transformada na permanente
produção de signos e de relações sociais. Para Melucci (1997, p.5), a tarefa não é somente da
ordem da dominação da natureza e da transformação da matéria-prima em mercadoria, mas
sim do desenvolvimento da capacidade reflexiva do eu para produzir informação,
197
Título de um livro que apresenta um conjunto de entrevistas, organizado por COSTA (2003), com
destacados educadores para problematizar o futuro da instituição escolar, revelando as nuanças, os contrastes e
certos confrontos entre diferentes formas de pensar e conceber a escola na sociedade contemporânea.
249
comunicação, sociabilidade, com um aumento progressivo na intervenção do sistema na sua
própria ação e na maneira de percebê-la e representá-la.
A informação como recurso supõe a existência de uma rede de emissão-recepção,
uma rede que se estabelece pela capacidade dos indivíduos em perceber, codificar e
desenvolver códigos e linguagens. É preciso tornar essa rede cada vez mais densa, incluindo
de forma permanente indivíduos e fazendo-os praticar seus códigos culturais. Nesse sentido,
parece bastante claro que recursos tecnológicos devam ser socialmente distribuídos de modo
que os indivíduos – com seus cérebros, motivações, sentimentos e emoções –, acelerando a
capacidade social de individualização, possam, como destaca Melucci (1989, p.58), se tornar
“terminais efetivos de redes informacionais complexas”.
A capacidade social para a individualização necessita ser posta em operação. Os
recursos de individualização potencializados e acelerados pelas ferramentas digitais de
informação e de comunicação devem ser distribuídos e experienciados pelo homem
contemporâneo, para que esse se construa como um sujeito capaz de conhecimento e de
tomada de decisão. Sem a apropriação das ferramentas do mundo digital e do
desenvolvimento das capacidades formais de aprender e agir – aprendendo a aprender –, a
rede informacional não conquista sua necessária densidade.
Somando-se à diversidade de projetos sociais, construídos e apresentados sob o selo
da inclusão digital, era colocada em operação, no cenário contemporâneo, um movimento
para potencializar a aproximação das ferramentas digitais de informação e de comunicação de
um conjunto maior da população brasileira
198
. É pelo rastro desse movimento de distribuição
de recursos para individualização que podemos olhar para o processo de informatização das
escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre, nas palavras da assessora de Informática
Educativa:
Na periferia de Porto Alegre, as unidades educativas passavam a operar como centros
capazes de distribuir socialmente os recursos de individualização, um movimento previsto na
198
No contexto sociocultural brasileiro, os movimentos de inclusão digital têm seu início com as Políticas de
Informática Educativa ocorridas no início da década de 1970. Das anteriores ações de reserva de mercado, com o
objetivo de construir uma autonomia nacional na ciência e na tecnologia, para a formação dos recursos humanos,
ações para apropriação de tecnologias computacionais eram assumidas, pelas universidades brasileira. A
inclusão digital já começava a dar seus primeiros passos, e a educação, nesse processo, assumiu um papel de
destaque. Desde o início, a educação foi a escolhida como “uma das prioridades para garantir o lugar do Brasil
como um país capaz de desenvolver e utilizar tecnologias que começavam a ser produzidas no século XX” (Cf.
OLIVEIRA, 1997).
[...] A rede pública que tem o maior investimento em hardware do Brasil, isso sem dúvida!
(Dados de Pesquisa – Entrevista – Diretora de Informática Educativa – SMED – Outubro/2001)
250
Proposta Político-Pedagógica da Escola por Ciclos de Formação. O ambiente informatizado,
como apresentei no capítulo anterior, deveria configurar-se como um espaço para a livre
investigação, para possibilitar a apropriação individual do uso do computador em caráter
permanente de descoberta, aberto à comunidade, no sentido de democratizar o uso da
tecnologia dentro das possibilidades e da organização da escola.
Como centros distribuidores de recursos de individualização, as escolas que
participaram dessa pesquisa abriram o edifício escolar, disponibilizando à comunidade
possibilidades de apropriação dos recursos tecnológicos digitais de forma mais sistematizada
ou para livre investigação, como ilustram dados de pesquisa:
Comunidades educativas da periferia de Porto Alegre aproximavam-se e começavam
a produzir, traduzir e interpretar contemporâneas linguagens. Oficinas e cursos de
capacitação, que marcaram a construção da política de informatização da SMED pela via do
Projeto Raiar, eram intensificados para possibilitar a professores, alunos e outros segmentos
da comunidade escolar, a formação de sujeitos capazes de lidar com o avanço tecnológico.
Ao assumir a forma de escolarização por ciclos de formação junto com a
materialidade tecnológica, a escola era presenteada com um curso de introdução à
microinformática para professores e funcionários, seguido de oficinas e de encontros de
capacitação. Sob a autoridade de assessores de informática educativa da SMED ou sob
orientações dos instrutores do SENAC, equipe diretiva, funcionários de secretaria,
No ano passado, tinha uma oficina para a comunidade no horário intermediário, o
estagiário fazia a oficina. Atualmente, faço uma oficina, à tarde, um espaço maior para os alunos
do 3º ano de III Ciclo, era optativa para possibilitar um momento a mais para esses alunos
(
Dados de
p
es
q
uisa - Entrevista - Professora - Escola Sul
Outubro/2001
)
A estagiária foi chamada à secretaria da escola. A secretária apresentou uma senhora da
comunidade - sem uma relação mais direta com a escola, por exemplo, com filhos ou familiares
estudando ou trabalhando. Ela tinha em mãos o endereço eletrônico da Receita Federal.
Solicitava uma orientação para que pudesse acessar a página da Receita Federal para consultar
sobre a situação de seu bar com o Imposto de Renda. A estagiária avisou que, no ambiente
informatizado, todos os microcomputadores estão sendo utilizados por uma turma de alunos. A
secretária da escola ofereceu o micro da secretaria. O navegador para a Internet foi aberto pela
estagiária, pois a senhora comentou que não conhecia esse computador da escola (o não
conhecer o computador refere-se ao sistema operacional e a Interface para o Linux). Bem
devagar, digitou o endereço consultando o papel que tem em mãos. Acessou o site da Receita
Federal, verificou as pendências com o Imposto de Renda. Imprimiu o DARF [...]
(
Dados de
p
es
q
uisa
Observa
ç
ão - Escola Leste
Abril/2002
)
O ex-aluno A.., freqüente usuário do ambiente informatizado, utiliza a rede mundial de
computadores para a inscrição em concursos, acesso aos editais e às listagens de aprovados,
pesquisa na Internet e para leitura de seus e-mails. Já tive um computador em sua cada, mas foi
vendido para diminuir o valor da conta de luz. [...] pesquisar numa Lan House, mas fica caro.
(Dados de pesquisa – Entrevista/Observação - Ex-aluno - Escola Leste – Novembro/2002)
251
supervisores pedagógicos e professores foram apresentados às novas ferramentas
tecnológicas colocada no tempo e no espaço escolares. A alfabetização tecnológica
aproximava o saber tecnológico e as comunidades educativas para que essas assumissem o
desafio de transformá-lo em um princípio educativo e em uma ação pedagógica. Do
conhecimento técnico à valorização e conscientização de sua utilização, uma aproximação
entre tecnologias e escola era concretizado, como ilustram dados de pesquisa que
disponibilizo a seguir:
A alfabetização tecnológica assumiu novos parâmetros quando a interface
computacional deixou de ser textual para adotar a forma gráfica. Permitindo a interação entre
o usuário e o computador - mediando, traduzindo, tornando um sensível ao outro –, a interface
computacional, ao tornar-se gráfica, eliminava a escrita das arcaicas linhas de comandos para
assumir, como analisa Johnson (2001), a metáfora de uma pasta virtual colocada sobre uma
escrivaninha virtual. Elementos do mundo alfabético - os arquivos, as pastas e as fichas de
papéis, a tesoura, a cola, o pincel, a lixeira -, transformados em ícones, tornavam o uso de
programas computacionais uma experiência mais intuitiva e divertida. Os professores
acostumados com as ferramentas do mundo letrado, ao serem apresentados às metáforas
gráficas das interfaces computacionais, potencialmente passavam a transferir aptidões para o
espaço digital.
A interface computacional que combina mouse e ícones institui uma linguagem em
que o verbo passa a ser conjugado pela ação da mão. A metáfora do desktop, ao colocar um
ponto final na cansativa tarefa da escrita das linhas de comando, possibilitava que a
alfabetização tecnológica para professores, alunos e funcionários colocasse seu foco na
apresentação dos ícones e menus de programas gráficos e na execução de suas principais
ações: clicar, arrastar, eventualmente, digitar.
Participei, como supervisora, de um curso de Windows e Word de 20 horas, ministrado pela
SMED, e outro de Linux – StarOffice, também organizado pela SMED.
Os professores e funcionários fizeram o curso de Linux do SENAC. O curso era à noite, saíamos
quinze para seis e seis horas começava o curso aqui no ambiente informatizado da escola. Como
era o sistema Linux, aprendemos desde a ligar o computador como, também, conhecer quais os
programas que teríamos disponíveis para utilizar.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora pedagógica – Escola Norte - Novembro/2001)
Participei de um curso de Introdução à Microinformática na Escola Municipal Neuza Brizola,
organizado pela SMED e pelo SENAC.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora pedagógica – Escola Sul - Novembro/2001)
252
Para sujeitos com dificuldades na aprendizagem lecto-escrita, as possibilidades de
interação com interfaces gráficas encontravam sua justificativa numa relação bastante simples
apontada por Johnson (2001, p.59): “É mais fácil pilotar em meio à informação espacial do
que em meio à informação textual”. Tutoriais elaborados especialmente para crianças eram
modelados em ambiente gráficos com amigáveis interfaces e com ricas simulações. Cada
sujeito-aprendiz conquistava um instrutor virtual para apoiá-lo na interação e na apropriação
da funcionalidade de ferramentas computacionais para editar textos, para criar desenhos, para
calcular e criar gráficos, para elaborar uma apresentação digital. As telas com as interfaces
gráficas (Figura 1 e Figura 2) que disponibilizo a seguir fazem parte de um tutorial utilizado
nas unidades educativas da rede municipal de ensino, para aproximar alunos e professores
dos recursos e da funcionalidade de aplicativos para edição de textos e imagens e para o
cálculo, tutorial que pode ser consultado e conhecido, na íntegra, acessando o site
http://star.lec.ufrgs.br/img2/:
Figura 1 – Interface de abertura do tutorial do StarOffice. A imagem de cada estrelinha remete a uma
simulação para possibilitar a apropriação das funcionalidades do aplicativo: editor de texto, editor gráfico,
planilha eletrônica e editor de apresentação.
253
Figura 2 – Interface de abertura do tutorial do Editor de Apresentação – um hipertexto simulando as
principais ações do usuário para a construção de uma apresentação computacional.
Diminuindo a distância com o mundo real, a interação com um espaço de informação
gráfico possibilita a leitura de mundo digital sem precisar dominar a árida linguagem de
programação de zeros e uns. Nessa perspectiva, da mesma forma que os vitrais das catedrais
na Idade Média alfabetizaram o olhar e funcionaram como um texto popular para ver o mundo
sob a ordem sagrada, as amigáveis e gráficas interfaces computacionais,
contemporaneamente, potencializam a interação com as significativas máquinas para tradução
do mundo na era da informação.
A alfabetização tecnológica operava sob a magia dos computadores gráficos, a
máquina que, apoiada em objetos do mundo alfabético, naturalizava sua interface,
possibilitando seu deslocamento de uma mera ferramenta para escrever, calcular e desenhar
para um espaço de comunicação e de interação. Superando a domesticação da máquina, a
tradução do mundo digital para uma comunidade escolar centrava-se na compreensão do
potencial das tecnologias computacionais não mais como exclusivos espaços de trabalho, mas
como um meio de representar comunidades educativas.
A inserção no mundo letrado passa pelo domínio do código alfabético; a inserção no
mundo digital da informação e da comunicação estabelece como passaporte a posse da senha
e a leitura de imagens. A linguagem gráfica das interfaces computacionais possibilitava que
sujeitos em processo de aprendizagem, com frágeis instrumentos de leitura e de escrita
alfabética, pudessem sair da exterioridade do espaço digital e operar sua exploração.
A interação com amigáveis interfaces gráficas, sutilmente, superava muitas das ações
restritivas que cercavam o domínio do código lingüístico, aspecto que talvez justifique o
254
fascínio que ações pedagógicas medidas por tecnologias digitais passavam a exercer em
sujeitos aprendizes com dificuldades significativas no processo de aprendizagem lecto-escrita.
Possibilitada por uma interface mais inclusiva que restritiva, a alfabetização tecnológica
operava não por uma ação mais metódica ou sistematizada, mas com a estratégia de
disponibilizar, aos aprendizes, as telas de ambientes computacionais. Era por meio da
interação com uma interface gráfica que sujeitos aprendizes conjugavam os principais verbos
computacionais – clicar, selecionar, arrastar - que, associados ao conjunto de ícones dos
ambientes digitais, oportunizavam a apropriação da linguagem tecnológica. Dado de pesquisa
que disponibilizo a seguir revela a interação de alunos da turma de progressão do III Ciclo
com ferramentas e ambientes computacionais, sujeitos que, mesmo sem o domínio mais
formal da leitura e da escrita, eram interpelados por uma ação pedagógica para o domínio do
código alfabético que, efetivamente, colocava em prática uma estratégia de apropriação de
recursos tecnológicos:
A alfabetização tecnológica potencializava a capacidade social de individualização,
ação central para a expansão da sociedade normatizada pelo mercado. Para forjar indivíduos
automonitorados, moldáveis e capazes consumidores, recursos devem ser distribuídos para
que esses indivíduos funcionem como centros independentes de conhecimento, de tomada de
decisão e de vontade. A alfabetização digital contribui seguramente para que o indivíduo se
perceba como sujeito com capacidade de expandir campos simbólicos para responder às
permanentes pressões de escolha da lógica de consumo. O movimento de distribuição de
recursos deve simultaneamente reforçar formas de controle, mas, também, transferi-los aos
níveis mais baixos nos quais as identidades são moldadas. É pela interação com recursos de
informação e de comunicação, pela sensação de participação e de decisão que a espetacular
sociedade de controle ganha legitimidade e passa a ser traduzida por seus atores sociais.
[O estagiário abre o site de busca e mostra onde cada dupla deveria digitar o assunto que queria
pesquisar]. Lembram o que tínhamos trabalhado sobre o google? Uma das duplas escolhe
pesquisar sobre música sertaneja. A dupla leva bastante tempo para digitar música sertaneja. O
estagiário auxilia no processo de digitação chamando atenção para cada letra, MU, como você
escreve? O M e o U... Como demoram muito para digitar, o estagiário conclui a digitação e abre o
primeiro endereço listado pelo site de busca. A dupla chama a professora: - Olha, é a página do
Leonardo! - Como vocês sabem? - Porque eu vi a foto do Leonardo. [...] A professora pergunta: -
Vocês conseguem ler mais alguma coisa? - Aqui está escrito Leonardo. A professora comenta
com o estagiário: - Essa escrita eles estão cansados de ver, não estão efetivamente lendo, é
apenas memória visual... A dupla navegava pelo site, pois já tinham aprendido que por trás de
cada mãozinha tinha nova página com outras informações. Clicavam em todos os links e
permaneciam por mais tempo nas páginas com um maior números de imagens.
(Dados de pesquisa – Observação – Turma de progressão – Escola Sul – Novembro/2001)
255
O ambiente informatizado assume um importante papel na distribuição de
tecnológicos recursos de individualização. São nas unidades educativas que alunos da
periferia de Porto Alegre têm acesso às ferramentas digitais de comunicação e de informação.
Era na nova heterotropia escolar que alunos e professores, sob o afrouxamento das regras que
tradicionalmente demarcavam o cenário educativo, eram confrontados com uma quantidade
cada vez mais crescente de possibilidades de interação com ferramentas digitais:
Nos ambientes informatizados, sob a orientação dos estagiários, professores e alunos
descobriam aplicativos, participavam de listas de discussão, trocavam mensagens por e-mail e
realizavam encontros virtuais por meio dos chats (Figura 3). Memorandos e e-mails enviados
Registramos as atividades no fotolog. Usamos uma webcam para registrar e permitir os
comentários sobre os trabalhos desenvolvidos pelos alunos.
[Fragmentos do Fotolog]
Eu estou gostando de escrever no Fotolog, acho muito interessante.
Eu adorei muito conheser o fotolog é muito legal. [Forma de registro do aluno]
Vanessa, é tu que aparece teclando?
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Oeste – Novembro/2001)
Realizamos um chat com uma escola de Portugal, para apresentar nosso grupo de educação
ambiental e conhecer a experiência portuguesa sobre esse tema.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Oeste – Novembro/2001)
O grupo de robótica desenvolveu um rato robô [...] Foi usado o kit MindsStorms, que com peças
Lego, permite a construção e a programação do robô. Um dos alunos programou o movimento do
robô usando animação em flash.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Oeste – Novembro/2001)
O projeto do jornal está bem avançado, só falta finalizar os textos no Word. Depois eles vão
colocar no programa Publisch. Nesse programa, tem um tipo de assistente, fica bem mais fácil. O
aluno só precisa recortar do Word e colar no Publisch.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Sul – Outubro/2001)
Usamos muito o editor gráfico – Paint. Quando os alunos vêm com o professor de artes, eles
usam bastante o Paint. Os alunos do I e do II ciclos , se abre muito para eles o Paint.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Sul – Outubro/2001)
Têm professores trabalhando com lista de discussão e com a construção do site da escola, está
começando a questão dos blogs.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Assessora de Informática Educativa - SMED – Outubro/2004)
No ambiente informatizado, os alunos dão asas à imaginação. Começam a criação do logotipo do
grupo, usando para isso o editor de páginas para web – Composer - e o editor de imagens Paint
[...]
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Oeste – Novembro/2001)
256
às escolas organizavam dinâmicas para a apropriação de ferramentas de comunicação em
grupo , como disponibilizo a seguir:
Figura 3 – Arquivo com as interações do chat realizado entre professores municipais e psicóloga, Era
a ação do especialista que se virtualizava pelas unidades educativas, e os professores eram expostos a uma
prática da alfabetização tecnológica com uma importante ferramenta de comunicação em grupo da sociedade
contemporânea.
As interfaces dos ambientes projetados para o empoderamento docente
possibilitaram, aos professores, experienciar um conjunto de dispositivos de visibilidade para
a ação pedagógica. Espaços virtuais – Webfólios (Figura 4), Portfólio, Diário de Bordo,
Páginas Pessoais – eram apresentados para serem apropriados pelos professores, que, assim,
podiam tornar públicos seus saberes, suas práticas, seus desejos, suas motivações, permitindo
a intervenção do outro: do colega professor, do especialista.
Conforme Memo n
o
2129, de 08 de junho de 2004, enviado pela Supervisão
Pedagógica/Temáticas Contemporâneas e Políticas Culturais, está agendada para o dia 25 de
junho, à tarde, a atividade “O bate-papo da SMED põe na roda a Semana de Prevenção ao Uso
de Drogas”. Trata-se de uma conversa virtual entre os professores da RME com a Dra. Marta
Conte, especialista no tema proposto. A atividade funcionará da seguinte forma: a escola agrupará
professores interessados no tema na sala do ambiente informatizado para conectarem-se na
Internet – endereço http://chat.portweb.com.br/smed - entrando na “sala virtual de bate-papo
SMED” [...]
(Dados de pesquisa – E-mail - Assessora de Informática – SMED – Junho/2004)
257
Figura 4 – A escola municipal apropriava-se dos recursos tecnológicos da rede mundial de
computadores e, por meio dos webfólios, perdia a opacidade de suas paredes ao tornar públicas suas ações
educativas.
O curso de extensão implementado pela parceria SMED/LEC/Instituto de
Matemática da UFRGS foi um dos ambientes projetados para contribuir com a construção da
educação matemática em sintonia com o modelo de escolarização por Ciclos de Formação,
como ilustra a parte superior da interface de abertura do ambiente na Web que deu suporte às
ações não-presenciais do curso (Figura 5).
A necessidade de intensificar a alfabetização tecnológica fez com que a equipe de
assessores de informática educativa da SMED fosse ampliada. Com a informatização de toda
a rede de ensino municipal, a assessoria pedagógica, para possibilitar a qualificada inserção
do saber da Informática educativa, passava de dois para quatro assessores, especialistas
autorizados a responder às demandas dos ambientes informatizados de cada região da cidade
– norte, sul, leste e oeste
199
. Sob o olhar do especialista em informática na educação, as
unidades educativas da periferia de Porto Alegre conheciam as inúmeras possibilidades da
Internet, apropriavam-se de suas ferramentas e experienciavam as diversidades de tempos e
de espaços.
199
A rede municipal de ensino de Porto Alegre, para otimizar sua administração, foi dividida em quatro
regiões, cada uma com um conjunto de assessores, dentre esses, o de Informática Educativa.
258
Figura 5 – Interface de abertura do Curso de Extensão – Contribuição da Geometria para a Educação
Matemática. Na interface de abertura, são disponibilizados os espaços que convidam o usuário a socializar suas
descobertas e projetos, para a interferência de outros professores e dos especialistas que assessoravam o curso,
hospedado na rede mundial de computadores no endereço http://mathematikos.psico.ufrgs.br/cursogeo/.
Os assessores de informática assumiam o desafio de organizar em cada unidade
educativa o Comitê de Informática para que também o saber da Informática Educativa, ao ser
inserido no tempo e no espaço escolares, conquistasse transparência a fim de tornar suas
discussões e decisões mais públicas e menos privados. Dados de pesquisa que disponibilizo a
seguir revelam que o compartilhamento das discussões e decisões que cercam o como e o
porquê,, questionamentos que deveriam estar por trás da construção da proposta de
informatização de cada escola, foram capturado pela burocracia escolar:
Se os Comitês de Informática nas escolas não conseguiram sair do papel e dos sonhos
dos assessores de informática educativa, parcerias com a UFRGS, o Instituto de Matemática e
de Psicologia e, em especial, com o LEC colocavam em prática um curso de capacitação para
professores da rede municipal de ensino, um claro movimento de empoderamento docente.
Sob uma experiência de um processo de qualificação presencial e não-presencial, utilizando
interfaces na Web para a formação a distância, buscava-se qualificar a ação do professor de
ensinar sobre a ação de aprender de alunos na rede municipal de ensino de Porto Alegre.
Em nenhum momento se discutiu o que deveria ser esse espaço..., e isso se refletiu na formação
do Comitê de Informática da escola, a maior dificuldade foi essa, não se tinha conhecimento de
como iria funcionar esse espaço. [...] Acredito que o Comitê de informática da escola não foi
adiante por falta de assessoria da SMED. Tínhamos uma ajuda mínima nos momentos de socorro
ou então com modelos de estatutos para a formação do comitê, quem faz parte, quem são seus
membros e nada além disso.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Supervisora pedagógica – Escola Leste – Dezembro/2002)
259
Com a prática de formação continuada dos professores da rede municipal de ensino
de Porto Alegre, no jogo do presencial e não-presencial, a qualificação docente era
potencializada pela flexibilidade do tempo e do espaço. A possibilidade de intervenção de
uma rede de especialistas, a escola ciclada ajustava-se ao ritmo e à métrica da sociedade de
controle. Sob a lógica da sociedade de controle, foi implementado, na escola por ciclos, um
projeto de formação a distância que tinha por objetivo implementar uma comunidade virtual
de aprendizagem - Escola, Conectividade, Sociedade de Informação - para responder às
demandas de sujeitos em processo educativo em situação de risco social.
DIVERSIDADE, FLEXIBILIDADE, AMBIENTES VIRTUAIS DE APRENDIZAGEM -
O PROCESSO EDUCATIVO SOB A LÓGICA DA COMPRESSÃO DO TEMPO E DO
ESPAÇO
Educar a diferença e pela diferença foi uma das bandeiras que a Escola Cidadã
assumiu ao organizar o espaço e o tempo da educação escolarizada da periferia de Porto
Alegre. Esse desafio, com assinala Burbules (2003), aponta para oportunidades mas, também,
para dificuldades. É no embate da diversidade de grupos e de sujeitos que emergem as
possibilidades de se explorar a potência do humano expresso na cultura e na história. Dessa
potencialidade, ferramentas passam a ser disponibilizadas, permitindo tornar inteligível a
conversa entre as diferenças, possibilitando entender e aprender a lidar com o diferente, sem
dúvida, “uma virtude na construção da cultura cívica democrática” (Id., 2003, p. 160).
A diferença, por outro lado, impõe dificuldades para a ação educativa, uma vez que,
mais do que gerar conflitos e percepções equivocadas, a diferença revela
incomensurabilidades que extrapolam os limites da linguagem e fogem à capacidade de
compreensão do discurso pedagógico e psicológico contemporâneos. A dificuldade em
trabalhar com a diferença tem fortalecido uma discursividade que defende ambientes
educacionais organizados em torno de grupos relativamente mais homogêneos. Da seriação,
por perfil cognitivo, para os ciclos de formação, por idade, muda-se o critério central, mas a
lógica de organização dos grupos ainda segue o desejo de uma homogeneidade explícita ou,
quando muito, de um pluralismo tolerante. Agrupando por aproximações de saberes, por
histórias escolares ou por faixa etária, currículos e turmas podem ser organizados, mas
critérios organizacionais continuam indispensáveis para se pensar uma instituição tão
complexa como a escola.
260
Garantir uma alfabetização sociocultural e, assim, colocá-la em uma moldura cultural
hegemônica, ou atender às especificidades de sujeitos que se comportam, como analisa
Burbules (2003, p.161), fora das orientações e aspirações a respeito do trabalho e do modo de
vida aceito e valorizado socialmente, marca a sempre tensionada relação com a diversidade.
Tal relação traz para o debate educativo a dificuldade nas formas de se responder a esse
grande desafio, pois, como adverte Baptista (2004, p.191), “discute-se uma utopia e não uma
meta a ser implementada em um tempo preestabelecido” [grifo do autor].
O discurso pedagógico relativo ao respeito e à valorização da diversidade humana
traz, consigo, como analisa Charlot (2004, p. 24), “a contradição entre o princípio político,
justo, e as conseqüências pedagógicas de sua aplicação, que podem, muitas vezes, ser
contrárias a esse princípio”. A democratização da educação, a inovação educacional e a
flexibilização dos tempos e dos espaços para a escolarização são conceitos que se
entrelaçaram ao cenário educativo organizado por ciclos de formação, provocando intensas
rupturas no discurso político-pedagógico, mas, também, desencadeando dificuldades quanto à
implementação de novas práticas educativas.
A reorganização dos tempos e dos espaços da escola, o estabelecimento de uma
estrutura administrativa e pedagógica racional e qualificada, os espaços de convivências
escolares, a alimentação de qualidade e os recursos materiais e humanos disponibilizados pela
escola ciclada revelaram-se pouco produtivos, não-suficientes para operar sobre um estrato da
população escolar, que, face às opções políticas, colocou, no edifício escolar, um conjunto de
sujeitos habitualmente excluídos dos modelos formais de educação. São os sujeitos-
aprendizes que circulam pelos corredores e ocupam lugares nas salas do edifício escolar, as
crianças e os adolescentes, como afirma Moll (2004, p.109), tradicionalmente malrecebidos e
maltratados por sua condição econômica, étnica e racial que passam a desafiar o educador a
produzir a inclusão escolar.
São esses estranhos sujeitos
200
, essa diversidade humana, que, inseridos na escola por
políticas públicas de inclusão, passaram a vagar pelo tempo-espaço educativo e a dar
visibilidade à pouca capacidade da escola, mesmo democrática e participativa, em gerenciá-
los, tanto em termos cognitivos como comportamentais. Essa estranha população, como
ilustra as palavras de Xavier em suas análises, tem sua interface construída
200
Nomeio de estranha essa diversidade humana que circula no cenário educativo para caracterizar um
conjunto de sujeitos que os saberes pedagógicos do discurso educativo atual ainda não conseguem capturar, ou
tem muito pouco a dizer sobre ele. A Educação Especial construiu um conjunto de saberes que possibilita uma
aproximação com alunos com necessidades educativas especiais – físicas e mentais -, mas temos na escola
alunos que não se enquadram nessa categoria, sendo,, por isso, estranhos aprendizes.
261
[...] no rosto dos meninos de rua, dos internos da FASERGS (antiga FEBEM), dos
alunos multirrepetentes, de alunos com déficit de conhecimento em relação à faixa
etária, de alunos oriundos de classes especiais, enfim, todos que eram habitualmente
excluídos do sistema escolar regular. E ainda um número significativo de crianças e
jovens que, embora não estando enquadrados naquelas categoriais, tem
demonstrado, em face à tragicidade de suas vidas, dificuldades em assumir os
comportamentos escolares habitualmente esperados, como ouvir a professora e os
colegas, ficar sentado, fazer silêncio, fazer os trabalhos, não brigar, isto é, portar-se
como aluno (2004, p.177).
A contradição entre o princípio político justo e as conseqüências pedagógicas de sua
aplicação, como nos lembra Charlot (2004), pode, muitas vezes, ser contrária a esse princípio.
Essa contradição revelava-se na escolha do professor referência para a turma de progressão,
quando a designação não recaía no professor mais experiente ou quando era justamente a
turma que ficava à espera da nomeação ou do remanejo de um professor para ser efetivamente
atendida, como revela dado de pesquisa que disponibilizo a seguir:
Era sobre essa estranha diversidade humana, os bocas-brabas, como era nomeada
pela diretora da Informática Educativa da SMED, no período 2001-2004, que os saberes
tecnológicos passaram a investir e a investigar, no desejo de construir novos saberes, para
possibilitar, pelo conhecimento de sua lógica de pensar e agir, a criação de novos dispositivos
para tentar controlar esses estranhos sujeitos que são capazes de perturbar a ordem
estabelecida.
Construir novos saberes para sujeitos em estado de desordem era um dos
movimentos desencadeados no ambientes informatizados da periferia de Porto Alegre, um
aspecto que se tornava visível nos discursos e nas estratégias educativas desencadeadas pela
interface das ferramentas digitais de informação e de comunicação. Era na turma de
progressão, no tempo-espaço especial na escola ciclada que se convertia, como analisa Rocha
e Nery (1999, p.9) a grande preocupação no sentido de discutir e aprofundar o trabalho
[...] Fui remanejada no dia 8 de maio. No dia 9 de maio, assumi a turma, que estava sendo
atendida pela volante e pelos professores especializados. Eles estavam vindo dois dias por
semana. Uma de minhas primeiras ações foi, justamente, começar uma sistematização e
organização: vir todos os dias, ter uma professora referência, ter um horário certinho, das 13h
30min às 18h, com rotina... Eu me assustei, no início, com a turma por ter o estigma de turma de
progressão, alunos complicados, com uma demanda muito difícil, não só pelos problemas de
aprendizagem mas, de conduta, sociais, morais...
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Professora
Escola Leste
Novembro de 2002
)
262
pedagógico junto aos alunos ali enturmados
201
, alunos que representavam, concretamente, a
possibilidade de romper com o caminho da exclusão, de superar os sucessivos anos de
multirrepetência.
A interface tecnológica disponibilizada nos ambientes informatizados passava a
operar como uma das possibilidades de intervenção pedagógica para um grupo de sujeitos
que, como assinala as palavras da pesquisadora Xavier (2004), colocava em xeque o ato
educativo quando, em inúmeras tentativas, muitas vezes desafiadoras e frustrantes, se quer
“dar aula para quem não aprendeu ainda a ser aluno e aluna e não está naturalmente disposto
a fazer esse papel (id., 2004, p.178), (grifo da autora)”. Essa dificuldade era destacada pela
professora referência de uma turma de progressão do I Ciclo:
A ampliação do número e do tempo de permanência dos alunos em turma de
progressão tirava o caráter de provisório para um espaço que deveria desaparecer com o
avançar da proposta por ciclos de formação. A possibilidade de operar sob a lógica de um
tempo diferente da organização do ano-ciclo, permitindo ao aluno com avanços em seu
processo de socialização e escolarização freqüentar um nível de escolaridade mais complexa,
a qualquer momento do ano-letivo, não se efetivou, como ilustra o número de alunos que
estavam matriculados em turmas de progressão no ano-letivo de 2000, após cinco anos de
implantação da escolarização por ciclos de formação:
Os dados que emergiam do Sistema de Informação Escolar (SIE), colocando em
evidência o número expressivo de alunos nas turmas de progressão, sinalizavam para o risco
que a implementação de novas formas de organização de turmas de aprendizes no tempo e no
201
O termo enturmados remete à enturmação, forma de nomear o processo de organização dos alunos nas
diferentes turmas dentro de cada ano-ciclo.
Aos poucos foi se formando um grupo muito difícil para o professor dar conta... Eram
alunos não-alfabetizados, mesmo depois de cinco anos de escolarização. A maioria tinha 13 ou 14
anos, já repetindo a turma da progressão pela segunda vez, com problemas de alfabetização e de
aprendizagem, muitos deles eram meninos de rua [...]. No início foi muito difícil, sempre
discutindo, se ofendendo, não respeitavam professores, nem colegas... Era muito difícil saber o
que fazer com esse grupo...
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Novembro/2002)
Em dezembro do ano passado (2000), nós ainda tínhamos 6.470 alunos que, no final do
ano, tinham recomendação para ir para a turma de progressão, ou seja, crianças do I, II e III
ciclos, basicamente crianças que não lêem, não escrevem, não estão letradas, estão com
problemas nessas três áreas, o que, na verdade, é uma área só, na questão da aprendizagem, da
alfabetização, do letramento.
(Dados de pesquisa – Entrevista - Assessora de Informática Educativa – SMED – Outubro/2001)
263
espaço escolar. Essa perspectiva é analisada por Moll (2004, p.109), ao advertir que as
mudanças projetadas para a escola ao sair dos nichos da criação e passar para a
institucionalidade e para o campo das políticas educacionais, têm o resultado de sua ação
criadora engessada por velhos mecanismos de agrupamento ou de imobilidade, levando ao
retorno de padrões de reprovação ou de encaminhamentos, que mesmo não-nominados,
configuram-se como meras repetências/repetições de experiências anterioremente fracassadas.
O risco de travestir o velho de novo ou de empurrar o novo para o velho
202
marcava
a turma de progressão, um dos tempos e espaços centrais na proposta político-pedagógica
implementada na rede municipal de ensino de Porto Alegre. Criada para adequar momentos
de transição entre dois momentos de organização do tempo e do espaço escolares – da escola
seriada para a escola ciclada – como adverte Baptista (2004), espaços criados para
potencializar aprendizagens e, assim, possibilitar a inserção do aluno, o mais rápido possível
na classe do ano-ciclo, transformaram-se em um espaço de estagnação. As turmas de
progressão passavam a ser, como problematiza Baptista (2004, p.204), o “elo frágil” da
escolarização por ciclos de formação da Escola Cidadã, pois, um tempo e um espaço de
direito para alunos com defasagem em sua trajetória escolar configuravam-se como um tempo
e um espaço de aprendizagem precária.
O ambiente informatizado guardava as novas armas para o ordenamento e controle
de aprendizes com dificuldade de assumir o comportamento de aluno. Era por meio das
ferramentas computacionais que se buscava a construção do comportamento
tradicionalmente referendado como escolar: saber ouvir e falar, ficar sentado, fazer silêncio,
executar tarefas, não brigar. Um fragmento de uma observação realizada no decorrer desta
pesquisa elucida a descoberta, por parte dos professores, da materialidade tecnológica como
um remédio para amenizar as dificuldades em trabalhar com sujeitos pouco ajustados à
dinâmica escolar:
202
Título utilizado para apresentar seção no ensaio de Moll (2004, 109).
Aqui, na informática, eu não sei, mas eles não ficam dispersos, eles fazem as coisas, a professora
consegue dominar eles. Eles trabalham e trabalham bastante!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de informática – Escola Oeste – Novembro/2001)
A turma de progressão, com o computador, não ficava dispersa, não brigava, ela fazia o que a
professora pedia. A professora conseguia lidar com eles, os alunos!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de Informática – Escola Oeste – Novembro/2001)
264
Nas ferramentas disponibilizadas no ambiente informatizado, os professores
buscavam outras possibilidades de disciplinamento e controle, uma procura que conquistava
ares de prioridade para sujeitos localizados nas turmas de progressão, aspecto colocado em
evidência nos registros das planilhas de horário e nas entrevistas com a supervisão
pedagógica, os professores e os estagiários das escolas:
As ações educativas desencadeadas no ambiente informatizado com as turmas de
progressão apontam, como afirma Veiga-Neto (1996), para o disciplinamento em suas duas
dimensões, corporal e cognitivo. Essa positividade era um dos aspectos destacados por
professores que colocavam em evidência alguns resultados da disciplinaridade conquistados
quando a ação pedagógica passava a ser mediada por ferramentas computacionais:
[...] Damos prioridade para os de progressão. A CP, turma de progressão do III Ciclo, e a
BP,turma de progressão do II Ciclo, têm prioridade. Sempre vão acompanhadas com o professor
da turma, com o apoio do estagiário.
(Dados de pesquisa – Entrevista - Supervisora pedagógica - Escola Norte – Novembro/2001)
Era complicado trabalhar com a BP (turma de progressão do II Ciclo), no final essa nova
professora pediu dois horários por semana, era complicado porque é uma turma que precisa de
muita atenção...
(Dados de pesquisa – Entrevista - Supervisora pedagógica - Escola Norte – Novembro/2001)
Os alunos chegam agitados, falam alto e discutem entre si para estabelecer quem seria o
primeiro a entrar. Eram apenas cinco, mas pelo barulho parecia se tratar de um grupo bem maior.
A estagiária interfere e estabelece a primeira regra para acessar o lugar que guardava a
tecnologia que a turma de progressão já havia ouvido falar, mas à qual não tinha sido
apresentada.
Os olhos dos alunos brilhavam, e o desejo de acessar esse lugar que, para eles, parecia mágico,
torna-os dóceis e maleáveis, receptivos para acatar a primeira ação da estagiária – Sejam bem-
vindos! Para entrar, vocês terão que formar fila e dizer a senha! Era inacreditável! Os famosos
alunos da turma de progressão, famosos porque indisciplinados, sem questionar as palavras da
estagiária formavam fila e, um a um, cumpriam o desafio, ler o cartaz que a estagiária segurava
nas mãos. O cartaz explicava as partes do computador e a palavra escolhida como senha era
CPU. A professora que acompanhava a turma parecia não acreditar, pois, ordenadamente, um por
vez, sem a agitação que caracterizava normalmente esse grupo de alunos, dizia a senha de
acesso e fazia sua entrada no ambiente informatizado. Cada um que entrava escolhia uma
estação de trabalho, um privilégio que o grupo possuía por ser uma turma bastante reduzida em
número de alunos. A estagiária, que já havia explicado o que era um computador, informou sobre
suas partes, os cuidados que deveriam ter com o equipamento, como usar o teclado e o mouse.
[...]
(
Dados de
p
es
q
uisa
Observa
ç
ão
Turma de Pro
g
ressão
Escola Leste - Junho/2001
)
265
Os freqüentes relatos sobre a positividade das ações desencadeadas por professores
no ambiente informatizado conquistavam visibilidade, emergindo como uma das temáticas
nos grandes seminários e nos encontros de formação da rede municipal de ensino de Porto
Alegre. Assessores pedagógicos da SMED reconheciam os bons resultados que a utilização de
ferramentas computacionais imprimia no processo de alfabetização lecto-escrita, fazendo com
que professores buscassem nos editores de textos a tecnologia para romper com limitações
motoras associadas ao uso do lápis, do caderno e da borracha para apoiar e estimular o
desenvolvimento da leitura e da escrita. Ao reconhecimento nacional e internacional das
pesquisas desenvolvidas pelo LEC/UFRGS, que uniam recursos tecnológicos e uma
metodologia centrada na aprendizagem em projetos para provocar o desenvolvimento
cognitivo, somava-se a participação em projetos de formação docente em ambientes virtuais
de aprendizagem a distância. O entrelaçamento de todos esses elementos trouxe para o
discurso educativo novos paradigmas para nortear a aplicação de tecnologias digitais e a
possibilidade de ampliar a utilização desses emergentes saberes por meio de formação
continuada em serviço sob uma plataforma de um ambiente virtual de aprendizagem a
distância.
Com o apoio financeiro do BNDES e sob a tutela dos saberes acumulados pelo grupo
de pesquisadores do LEC/UFRGS, a política de informatização da SMED assumia uma nova
configuração e colocava em prática um projeto de formação continuada para professores,
Você tinha uma prática pedagógica com a turma de progressão para a produção textual em sala
de aula e no ambiente informatizado, como você percebeu esse grupo em espaços com lógicas e
tecnologias diferentes?
A ida ao ambiente informatizado coincide com um período em que eles estavam com uma escrita
pré-alfabética [...] O grupo sabia que a escrita representava a fala, mas não sabiam que letras
utilizar para fazer essa representação. A informática ajudava por associar a escrita a uma questão
menos motora, escrever passava a ser teclar as letras... Acredito que isso facilitava..., era um
recurso imediato, digitava letras e elas já estavam na tela. Eles começavam a melhorar a auto-
estima porque podiam produzir e se enxergar escrevendo e lendo.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Novembro/2002)
Você destaca a questão da motricidade que se diferencia da empregada em um registro de escrita
utilizando o lápis e o papel...O texto fluía mais, a possibilidade de apagar de forma diferente do
papel... No papel, se tivesse que apagar, já jogava o lápis longe! Com o computador, ele
trabalhava melhor com a frustração, com o erro... O erro era retomado de forma mais tranqüila,
sem tanta resistência. Ele tinha no teclado todo o alfabeto a sua disposição, era uma colinha que
ajudava na construção de suas hipóteses de escrita. Na alfabetização, ajudou bastante, para
aprender a lidar com a frustração. Acredito que os dois espaços contribuíram entre si – o ambiente
informatizado e a sala de aula. Com o computador, eles aprenderam a compartilhar o que sabiam
e o que não sabiam. Por ser um recurso que era uma novidade para o grupo de alunos, para a
professora, acredito que até para a escola! Todos nós éramos não- alfabetizados em relação ao
computador... Esse aspecto contribuiu muito para a melhora da auto-estima do grupo.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Novembro/2002)
266
enfatizando o desenvolvimento de projetos de aprendizagem. Era pela interface do projeto
Escola, Conectividade e Sociedade de Informação que a assessoria de Informática Educativa
da SMED objetivava a inclusão e a permanência de 9% das matrículas finais do ano de 2000,
a alunos com grandes problemas no processo de alfabetização, localizados nas turmas de
progressão, o que fazia desses aprendizes, sujeitos potencialmente em condição de evasão
escolar e, conseqüentemente, de risco social. A importância desse projeto na política de
informatização da SMED era revelada na fala da assessora pedagógica:
Somando-se aos movimentos colocados em prática pela escolarização por ciclos para
potencializar a permanência do aluno na escola, para responder ao desafio da evasão escolar,
o suporte de tecnologias digitais de informação e de comunicação respondia positivamente à
grande meta que passava a configurar o processo educativo - educar a diferença e pela
diferença. Operando sob a lógica dos conceitos de compressão espaço-temporal, o projeto
Escola, Conectividade e Sociedade de Informação colocava em prática uma formação
continuada em serviço, utilizando uma plataforma computacional de aprendizagem a distância
– AMADIS – Ambiente de Aprendizagem a Distância (Figura 6) com o objetivo de qualificar
a ação educativa de professores que assumiam a responsabilidade de mediar e interferir no
processo pedagógico de alunos em turmas de progressão, uma prática educativa.
Figura 6 – Interface de abertura do AMADIS – Ambiente de aprendizagem a distância. Produto da parceria
BNDES/LEC-UFRGS/SMED para formação a distância de professores da rede municipal de ensino de Porto
Alegre.
A virtualidade de ambiente AMADIS produto da parceria BNDES/LEC-
UFRGS/SMED para apoiar professores na construção de projetos de aprendizagem com
A grande política de informática educativa desse grupo ainda não foi definida. Digamos que esse
projeto [Escola, Conectividade, Sociedade de Informação] é a menina dos olhos dessa gestão da
SMED, isso tem que dar certo!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Assessora de Informática Educativa – SMED – Setembro/2001)
267
alunos das turmas de progressão, apresentava cinco principais áreas de interação: projetos,
área em que os projetos eram listados, caracterizados e divulgados; seminários, área destinada
a uma abordagem mais teórica para subsidiar a construção dos projetos; oficinas, área
destinada à apropriação das ferramentas computacionais; webfólio, espaço de trabalho pessoal
de cada usuário, possibilitando o acesso às ferramentas de comunicação e de edição de
projetos.
Na interface de abertura do ambiente AMADIS, o professor em formação tinha
acesso às principais ferramentas de informação e de comunicação, ferramentas de compressão
de tempo e de espaço que atualizavam a formação continuada em serviço e a distância, para
desenvolver e incorporar tecnologias digitais e para aprofundar a discussão da metodologia de
projetos de aprendizagem. Diário de bordo, chat, fórum e correio eram as ferramentas que
permitiam a cada professor participante da formação docente, conhecer e interagir com os
projetos de aprendizagem em desenvolvimento nas unidades educativas conectadas ao projeto
Escola, Conectividade e Sociedade da Informação.
Ao mesmo tempo em que a assessoria de informática educativa da SMED buscava
fortalecer a ação dos professores sobre o processo pedagógico de alunos com problemas
cognitivos e comportamentais, a participação docente no projeto Escola, Conectividade e
Sociedade da Informação imprimia um novo campo de ação para a alfabetização tecnológica
docente ao colocar o professor em interação com um ambiente de aprendizagem a distância. O
professor capacitava-se para o pensar e o agir no cenário da sociedade de controle, pois,
mesmo distante do olhar do professor presencial, aprendia a se expor, a cumprir prazos, a
seguir agendas e cronogramas, a auto-organizar-se e a auto-avaliar-se. A fala de uma das
professoras participantes do Projeto aborda essa autodisciplina que necessita ser construída
para corresponder ao perfil do aluno online:
A flexibilidade espaço-temporal de uma formação a distância implicava o
monitoramento do professor pela atuação de formadores e monitores do LEC/UFRGS e de
assessores pedagógicos da SMED. A formação continuada em uma ambiente de
aprendizagem a distância projetava a construção de uma metodologia que sustentava a
É um curso on line, todo via computador... Não tem alguém que fique conosco, você tem que
estar sempre se comunicando. Se abre um endereço na Internet, é mais ou menos como uma
estudo dirigido a distância. [...] É um pouco difícil, pois, nós estamos acostumados com alguém
presente para tirar qualquer dúvida e, nessa situação não tem alguém presente, nós não estamos
acostumados com esse sistema. O professor fica meio perdido...., estamos acostumados em ter
um professor, um horário fixo... [...] Eu vejo essa dificuldade...
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Sul – Outubro/2001)
268
formação de comunidades virtuais de aprendizagem por meio de um monitoramento
possibilitado por tecnologias digitais de informação e de comunicação, como ilustro a seguir:
Sob o olhar virtual de formadores, monitores e colegas participantes do projeto, a
ação pedagógica do professor era tornada pública. A escola, potencialmente, conquistava uma
transparência pela ação das ferramentas digitais de informação e de comunicação e, por meio
desse aparato tecnológico, um modelo de assessoria ao docente era experienciado e
comemorado pela diretora do projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação,
como revela dado de pesquisa que disponibilizo a seguir. Era colocada em prática a
possibilidade de que professores e equipe de assessoria pedagógica da SMED fossem
interpelados pelo fenômeno de compressão espaço-temporal, aspecto que discuto ao longo
desta Tese e que fortemente edifica a sociedade de controle:
Autorizada pelos saberes da equipe do LEC-UFRGS, a rede municipal de ensino,
somando-se a outras políticas públicas, disponibilizava, para a escola municipal, novas
Estou na assessoria pedagógica da SMED desde 1995, por isso, eu sei o que estou te dizendo. Já
foram tentados todos os desenhos de assessoria, com equívocos e com acertos: entradas
semanais, entrada por área de conhecimento, por professor referência, entrada nenhuma! É muito
difícil formar um corpo na assessoria pedagógica que seja capaz de dizer alguma coisa para a
escola, que já foi uma pretensão de assessorias, formar um grupo de sábios que fossem à escola
levar a luz! Para o Iluminismo do século XVIII e XIX estava bom..., mas XXI já é uma idéia
passada. Essa idéia de trocas é o que nos interessa e, usando esse ambiente, nós
potencializamos enormemente o tempo... Podemos, em uma manhã, sentada aqui na SMED,
entrar em 4 ou 5 escolas, debater com essas escolas a produção de uma delas! É uma formação
e ao mesmo tempo a abertura da caixa-preta da escola, das salas de aula, do que efetivamente
acontece nas aulas. Hoje isso começa a acontecer preliminarmente, pois os professores
começam a se familiarizar com a linguagem da rede, com os projetos de aprendizagem... [...]
Isso,vai abrindo as caixas-pretas, vamos tendo a capacidade de intervir mais cotidianamente, sem
deslocamento. Isso abre a possibilidade de tempo, [...] essa é a idéia, formar uma ampla
comunidade de aprendizes [...].
(Dados de pesquisa – Entrevista – Diretora de Informática Educativa – SMED – Outubro/2001)
[...] Uso experimentalmente controlado de recursos para a Formação Continuada dos professores
e o apoio às escolas:
Fóruns de discussão para pensar, estudar em grupo, buscar soluções de modo
cooperativo, para orientação de projetos com o professor e com o aluno.
Chats programados para estudos específicos, para orientação de projetos, para
seminários ou em oficinas de tecnologia. [...]
Área de download de ferramentas (diferentes tipos de software).
Webfólios para que cada membro da comunidade registre seu processo de construção
compartilhada, suas buscas, suas dificuldades, suas superações [...]. Nesse espaço
virtual todos podem interagir, editar suas produções e publicá-las enquanto processo [...]
[...] Níveis de interação na rede:
Monitoramento das interações ocorridas [...]
Interlocução escrita com aos usuários (professores e alunos), utilizando recursos da
comunicação online (individual ou em grupo) sob a forma de mensagens;
(Dados de pesquisa – Projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação - SMED -2001)
269
interfaces para forjar um outro cenário para o processo educativo, para estabelecer novas
relações entre e para cada um dos interagentes da rede de aprendizagem distribuída. Era a
escola do hardware que se fragilizava para dar visibilidade à escola do software, era o
modelo de educação institucionalizado que se ajustava às demandas da sociedade de controle
pela máxima exposição de seus interagentes, pela flexibilização dos tempos e espaços para
ensinar e aprender, pelo monitoramento de trajetórias educativas. Tais deslocamentos
marcavam a modelagem do projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação, marcas
que disponibilizo em fragmentos do corpus de análise desta pesquisa:
Multiplicavam-se os tempos e os espaços de qualificação docente, virtualizava-se a
ação do especialista em Informática na Educação, modelos e protótipos de inovação
curricular, desenvolvidos e testados pelo LEC-UFRGS, para ajustar o tempo e o espaço
educativos da periferia de Porto Alegre ao cenário da sociedade de controle, atualizando suas
formas de espacializar e temporalizar o pensar e o fazer pedagógicos. Era preciso ajustar a
escola aos ambivalentes processos de individualização, processos que possibilitam a
autonomia, a autodefinição e o aprender a aprender, metas desejadas pela escola; porém,
processos frágeis, por permitir a superexposição e a manipulação por códigos externos,
impostos e invisíveis.
Os objetivos e os resultados alcançados pela equipe que projetou e colocou em
operação o projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação revelam a atualização
da escola aos emergentes processos de individualização que sustentam o cenário sociocultural
contemporâneo. O processo educativo aproximava-se da forma de pensar com a de aprender
com a mídia, exercitava o informar-se pela Internet e o convívio com a multiplicidade de
tempos e de espaços. O ambiente de aprendizagem a distância - AMADIS – atualizava as
unidades educativas da periferia de Porto Alegre pela atualização tecnológica na dimensão
pedagógica e disciplinar.
A escola tradicional tem dificuldade em acompanhar processos de transformação. Com
suas programações rígidas, não-interativas e centralizadas na transferência de informação, torna-
se inadequada para preparar nova competências, talentos, habilidades [...].A escola tem se
mostrado fortemente resistente a essas transformações. Entretanto, reflete crises sucessivas de
eficiência em relação a seus fins e funções. Quanto aos profissionais da educação, seus
administradores e governantes revelam, em suas tomadas de decisões, um tão grande apego às
significações da experiência pessoal passada que não alcançam a visão das novas perspectivas
para verdadeiras transformações com relação ao ensino, suas práticas, currículos, programas e
avaliações [...], transformar do modelo de Escola da Sociedade Industrial para um novo modelo: o
da Escola que vai formar o cidadão da Sociedade da Informação e do Conhecimento
(Dados de pesquisa – Projeto Escola, Conectividade e Sociedade da Informação – SMED – 2001)
270
Pela face pedagógica, um conjunto de professores, apoiados pela reconhecida
competência do grupo de pesquisadores LEC-UFRGS, era alfabetizado digitalmente para
construir projetos de aprendizagem. Ensinando a construir e publicar sites, a exercer o
empreendedorismo ao buscar parceiros para seus projetos, a supremacia tecnológica assumia
a construção uma nova ordem mental, propondo pensar e aprender em rede e naturalizando
os conceitos da sociedade do espetáculo e da super exposição: a conectividade e a
hipertextualidade. Para o cenário sociocultural e para o ato educativo o importante era entrar
no fluxo das redes de informação e de comunicação, era interagir e saber operar com suas
ferramentas, era estar na rede, vivenciar a lógica da rede mundial de computadores, mesmo
que a atividade não fosse pedagógica, como ilustra dado de pesquisa que disponibilizo a
seguir:
O saber que conquistava importância era o saber da exposição: nada mais lógico e
ajustado à espetacular sociedade de controle. Era o conhecimento técnico que possibilitava
tornar públicas e passíveis de interferência nas histórias de vida de comunidades educativas da
periferia de Porto Alegre, aspecto colocado em destaque pela professora que começava a
interagir com a interface do ambiente AMADIS:
As informações presentes no relatório técnico parcial do convênio BNDES/SMED –
Prefeitura de Porto Alegre, para o período janeiro-dezembro de 2003 (Tabela 1), são bastante
elucidativos da centralidade da apropriação técnica em relação à transmissão dos históricos
saberes construídos pela humanidade.
Tem uma professora que trazia seguido os alunos do segundo ciclo, eles podiam entrar em
qualquer site, ela não tinha um objetivo pedagógico, o importante era trazer... Um dia, as crianças
estavam acessando um site para votar na mais bela bunda!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Estagiário de informática – Escola Leste - Dezembro/2001)
Na verdade, nós vamos aprender a fazer páginas para a Internet, esse era o objetivo no fundo,
fazer links, fazer páginas para a Internet. Cadastra-se um projeto e se trabalha em cima desse
projeto, podia abrir em casa, abrir em casa e trabalhar, aqui na escola e em casa. Estamos na
fase inicial, de conversação, pois os professores têm que aprender primeiro a manipular, a fazer
uma página para a Internet, enfim, se movimentar até fazer a colocação para a Internet.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora de Informática – Escola Sul – Outubro/2001)
[...] Essa é a direção, é universalizar para todos... Nosso projeto é ambicioso... Cada escola, uma
home page até o final do ano. Cada home page, um conjunto de webfólios com trabalhos de seus
alunos naquele ano..., públicos! Certo! Essa é a lógica!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Diretora de Informática Educativa – SMED – Outubro/2001)
271
Tabela 1
Categorias de Indicadores – metas atingidas
Categorias/indicadores Meta
Situação em
Janeiro
Situação
em Dezembro
% atingido
1. Conectividade – Apropriação da Tecnologia
1.1. Webmail – cadastro e uso
- Professores 280 0 609 217%
- Alunos 7.000 0 10.500 150%
1.2. Usos de ferramentas de
comunicação
- Professores 280 0 250 89%
- Alunos 7.000 0 5000 71%
2. Inovação na sala de aula com o uso da tecnologia
2.1. Ausência de inovação – Treino e
prática
- Digitação de textos (cópia) 0% 85% 5% 95%
- Jogos estímulo-resposta 0% 100% 5% 95%
2.2. Presença de inovadores
-Páginas publicadas por alunos na
Web
29.616
-Páginas publicadas por professores na
Web
500
-Trocas de mensagens diárias 300
- Realização de chat (duração média –
1h)
108
- Plantões de atendimento online 1250h
[...]
Fonte: Relatório Técnico Parcial – Convênio BNDES/SMED – Prefeitura de Porto Alegre. Projeto Escola,
Conectividade e Sociedade da Informação. Janeiro/Dezembro 2003.
Escola, Conectividade e Sociedade da Informação projetava, pela interface das
tecnologias digitais de informação e de comunicação, movimentos para a ação educativa que
passavam a priorizar, cada vez mais, o processo em detrimento do conteúdo. O ponto alto do
projeto era a comunicação. Publicar na web, participar de chats e fóruns, trocar mensagens,
sem uma vinculação aos antigos saberes listados nas grades curriculares da Escola do
Hardware.
As ações pedagógicas se afastavam da transmissão de saberes, como analisa Varela
(2002, p.103), era como se a paixão pelo conhecimento e a compreensão dos mundos da
natureza e da cultura fossem relegadas ou quase que excluídas em favor do lúdico-
tecnológico, e a escola, transformada no tempo-espaço de entreterimento. Dados que
disponibilizo a seguir são fragmentos de projetos de professores e de alunos publicados no
ambiente de aprendizagem AMADIS, e ilustram esse deslocamento do conteúdo para o
processo:
272
A Grande Didática pensada por Comenius era atualizada ao encontrar a interface das
ferramentas digitais de informação e de comunicação. Os métodos de instrução pelos quais o
mestre deveria ensinar menos para que os alunos pudessem aprender mais, eram substituídos
por inovadores métodos de comunicação. Trocava-se o conteúdo e o método no processo
educativo, mas as metas de mais lazer e alegria se mantinham não só inalteradas, mas
potencializadas. A instituição escolar não ficava alheia ao enorme processo de transformação
Projeto: Utilizando o Laboratório de Informática.
Descrição do projeto: Os alunos utilizarão sites da Internet a fim de que possam participar de
jogos e brincadeiras, descobrir segredos e tornarem-se mais independentes como autores de
suas aprendizagens, quebrando suas concepções internas de não bem-sucedidos na
aprendizagem formal.
Novidades do projeto: [...] Que bom receber os comentários e investida de trocas de alguém
distante. Meu projeto já começou efetivamente. É espantoso ver a alegria de vitória dos alunos
que não têm domínio do mouse. Mesmo assim, eles vão se arriscando, querendo fazer sozinhos.
Por enquanto, estou na fase da vivência. Deixo eles bem livres. [...] Sou assim mesmo na ânsia de
responder e cumprir a tarefa, vou pelo que minha memória recorda. Acho que é isso aí! Qualquer
controvérsia corrijo depois. Lembranças, Be.
Fórum do projeto:[Comentários recebidos]
C.M.S.M. – Oi, Be, só agora estou me familiarizando com os recursos de troca de mensagens,
pois eu estava dando prioridade para a execução do projeto. Recebi teu comentário e adorei! Li o
teu projeto e acredito que os alunos estejam bastante envolvidos. Pelo que observei um dia
desses lá na informática, eles já se mostram bastante independentes, é bem como, disseste eles
querem fazer as coisas sozinhos. Abraços da colega Ce! Vá em frente!!! (Vou procurar trocar mais
idéias contigo, sempre que possível!)
R.R. – Oi, Be! Eu estranhei a falta de resposta tua! Para me reencontrares, procura-me no Projeto
do CMT Paulo Freire. Também estou trabalhando com os jogos do LEC, com os do drkaos e do
Iguinho. Por enquanto, estou na fase de descoberta destes jogos que eu não conheço (estou me
alfabetizando, lembra?). Os alunos também estão digitando textos ou produzindo textos, conforme
a necessidade e o nível de conhecimentos deles. Alguns também navegam na Internet. Tudo isso,
claro, com ajuda dos monitores. Fico aguardando notícias. Um abraço, Rosa.
F.B.M.O. – Oi! Também achei muito legal o teu projeto com os alunos, pois estou bolando o meu
e por enquanto também entro nos sites da Internet com eles, nos jogos da ecokids, etc... Também
estou me alfabetizando na Internet, como diz a R.R., e isto é legal, pois nos coloca na posição de
alunos e podemos analisar suas dificuldades do desconhecido. Um abraço F.
R.R.V. – Oi, Be! Que bom que me descobriste Já li a descrição de teu projeto e adorei! É
exatamente o que eu quero fazer. O projeto está andando ou ainda em fase de planejamento? Já
trabalhas no laboratório do América? Já estás operacionalizando as primeiras idéias? Manda-me
alguma notícia, ok? Eu ainda estou me “alfabetizando” na Internet, por isso, estou a passo de
tartaruga. Ficarei te aguardando. Um abração, Rosa. capaz de subsidiar efetivamente e
eficazmente os projetos das escolas, que faça o diálogo entre o que a escola estava inventando
(
Dados de
p
es
q
uisa
AMADIS
Fórum
[
htt
p
://ecsic.ufr
g
s.br/amadis/
]
- Novembro /2004
)
Samba e pagode
Autor: F.L.F.J.
Iniciado em: 24/06/2004
Clique e saiba minhas dúvidas [Link]
Olhe curiosidades sobre o samba [Link]
Clique o olhe os campeões dos carnavais pelo Brasil [Link]
Minha dúvidas:
Quem foi o inventor do Samba e Pagode? Que data foi?
Quem foi a primeira banda ou grupo a ser formada?
Qual foi o primeiro instrumento a ser utilizado por um grupo? E que data foi?
Que região nasceu o samba e o pagode?
(Dados de pesquisa - AMADIS – Projeto – [http://ecsic.ufrgs.br/amadis/] Novembro/2004)
273
social e, muito menos, à produção do homem regido pela lógica da presentificação do futuro e
da planetarização do espaço. O processo de compressão de tempo e de espaço passava a ser
experienciado pelo grupo de professores que interagiam no ambiente de aprendizagem a
distância, capturados pela abertura de tempos e de espaços de interação que extrapolam os
limites estabelecidos pelos territórios e ritmos escolares, como colocam em evidência as
mensagens postadas no fórum por professores participantes do projeto Escola, Conectividade
e Sociedade da Informação, com suas descobertas e percepções de viver uma nova métrica do
espaço e um novo ritmo de tempo:
Viver um outro ritmo de tempo e uma nova métrica de espaço no cenário educativo
da periferia de Porto Alegre foi uma experiência de 25 escolas contempladas pelo projeto
Escola, Conectividade e Sociedade da Informação. As unidades educativas tinham seu
processo pedagógico interpelado por uma quantidade crescente de possibilidades que
buscavam, pela interface das tecnologias digitais de informação e de comunicação, quebrar o
marco das regras culturais e sociais impostas pelo modelo educativo que sustentou a Escola
do Hardware. Essa (re)apresentação para o processo educativo encontra-se sinalizada nos
dados de pesquisa que disponibilizo a seguir, nas palavras da diretora de informática
educativa da SMED, responsável pela implementação e implantação do projeto Escola,
Conectividade e Sociedade da Informação:
A idéia do modelo aberto... O modelo da sociedade industrial, da linha de montagem de
um certo tipo de pensamento, de um certo tipo de cabeça, de um formato. Esse formato estava
definido a priori pela linha de montagem, preso às tendências pedagógicas tecnicistas,
behavioristas, o modelo tem um ideal a atingir. Na idéia da sociedade da informação e das redes
isso está virtualmente detonado! Porque as construções, elas vêm de lugares diferentes, as vozes
vêm de locais diferentes. Essa é a idéia de mudança de paradigma!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Diretora de Informática Educativa – SMED – Outubro/2001)
Coisas de Be e Ce (E.S.C.T., 19/6/2004): Gente, eu e a Célia estávamos sábado, 21:40, juntas
no ambiente, cada uma em sua casa. Pelo menos era o que indicava o Webpapo. Só que eu
tentei entrar em contato com a Célia e não tive resposta. Mas é muito legal saber que tem alguém
conhecido junto com a gente.
Usuárias do A. (C.M.S.M., 24/07/2004): Colegas (especialmente a Be, que é a que mais tem me
escrito, por enquanto). Acreditem, só hoje, 24/07, descobri este Fórum Geral. Já bisbilhotei vários
itens, vários projetos, todos os outros fóruns, etc... A cada dia descubro uma novidade, como hoje,
por exemplo. Eu sabia da existência do Fórum Geral, mas só hoje eu acessei e encontrei mais
uma mensagem da Be. Quanto ao Webpapo, Be., eu vi que estavas me enviando uma
mensagem, mas não tinha jeito de encontrar a forma de ter responder. Espero que agora eu já
tenha aprendido. Pelo menos treinei lá na escola e funcionou. Ao retornarmos às nossas
atividades normais, procurar explorar melhor todos esses canais de trocas, pois é bastante
enriquecedor e torna o ambiente informatizado mais caloroso, com cheirinho de gente [...]
(
Dados de
p
es
q
uisa - AMADIS
Pro
j
eto
[
htt
p
://ecsic.ufr
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s.br/amadis/
]
Novembro/2004
)
274
A formação continuada e a distância pela interface de um ambiente de aprendizagem
computacional tirava o foco disciplinar do corpo propriamente dito. Sentar-se adequadamente
e manter-se em silêncio perdem sentido no ambiente digital de aprendizagem, por ser um
tempo e um espaço educativos que não localizam fisicamente corpos, não os agrupam em um
dos muitos lugares que formam os edifícios escolares. Como corpos não se encontram
fisicamente reunidos, a face disciplinar sobre professores passava a operar por meios dos
fluxos de informações e de interações. Participar de chats, discutir nos fóruns, expor suas
produções, interagir com outras produções situava professores sob a lógica de outros
dispositivos de visibilidade e outras possibilidades de reflexão para reconhecer-se e ser
reconhecido.
Para que um ambiente de aprendizagem a distância possa operar, é necessário que
seus participantes conjuguem alguns verbos – conhecer, controlar, regular, comunicar, expor
– verbos que devem ser conjugados de forma reflexiva para possibilitar a seus interagentes
aprender a gramática da auto-interpretação. Quando o olhar do professor se virtualizava nos
inúmeros espaços de exposição e de interação, multiplicavam-se, também, os espaços para
que professores exercitassem a capacidade de auto-reflexão, pessoal e profissional. O dado de
pesquisa que disponibilizo a seguir coloca em destaque uma das ferramentas do ambiente de
aprendizagem AMADIS, a página pessoal, espaço em que o professor se apresentava ao
grupo, um meio digital para mediar uma experiência da fala, para levá-lo ao questionamento
sobre si mesmo, uma reflexão tornada pública, para ser acessada e discutida por parceiros do
projeto de formação continuada. As páginas pessoais, os perfis, as práticas de auto-avaliação
presentes no ambiente virtual de aprendizagem foram espaços projetados para fazer falar, para
provocar e mediar a fala, para que o participante aprendesse a gramática da auto-
interpretação:
Um pouco de Bi.
É curioso falarmos de nós mesmos, elegendo quais as informações do nosso cotidiano que são
mais importantes... Muitas vezes paramos para pensar nisso só em situações como essas. Bem,
eu gosto de correr, gosto de ter um dia-a-dia agitado, de modo que estou sempre brigando com o
relógio.Trabalho pela manhã. No turno da tarde, leio e marco todos os meus compromissos
pessoais que tenho e, à noite, faço faculdade – Bacharelado em História. Amo demais essa
função, pensar em férias é stress!!! Já exercícios físicos... As minhas fotos já revelaram que eu
sou meio mirradinha!!! Passo longe das academias, etc..., mas admiro a persistência de quem
cuida bem de sua saúde.Eu tenho 21 aninhos e julgo estar vivendo uma fase legal na minha vida.
Me formei a pouco tempo e estou naquele momento de definir novos caminhos.
(Dados de pesquisa – Página Pessoal – AMADIS – [http://escic.lec.ufrgs.br/amadis/] -
Novembro/2004
)
275
O ambiente virtual de formação a distância foi projetado para modelar o professor da
escola cidadã, o profissional com capacidade para mediar e intervir na trajetória educativa,
principalmente, de alunos localizados nas turmas de progressão. Nos projetados espaços
virtuais de experiências de fala e por meio da intervenção autorizada pela equipe de
especialistas do LEC/UFRGS, educadores, como analisa por Larossa (1994), refletiam sobre o
seu pensar e fazer profissional, para problematizar, explicitar e, se necessário, modificar os
meios pelos quais se processa a construção de sua identidade pessoal e profissional, como
uma prática permanente.
Nos fóruns, nos chats, nos comentários postados nas inúmeras possibilidades de
interferência ao longo do processo de formação continuada, o professor era desafiado e
convocado a examinar e reexaminar seu fazer pedagógico para regular e modificar sua prática
pedagógica, para provocar, como discute Larossa (1994, p.49), a formação e a transformação
não apenas do que o professor faz ou do que sabe, mas, fundamentalmente, de sua própria
maneira de ser em relação a seu exercício profissional. Comentários postados por formadores
do LEC/UFRGS que realizavam a mediação pedagógica, continuada e a distância, nos fóruns
dos projetos pedagógicos, ilustram essa perspectiva:
Pela interface das ferramentas de compressão espaço-temporal disponibilizadas no
ambiente de aprendizagem a distância AMADIS, era desencadeado um trabalho reflexivo do
professor para explicitar e problematizar seu próprio comportamento nos espaços virtuais para
a observação mútua e a auto-observação. Com as ações de auto-observação e com os
mecanismos de intervenção dos formadores virtuais do LEC/UFRGS, professores aprendiam
os códigos para a tradução das ferramentas digitais de compressão espaço-temporal, como
também aprendiam uma linguagem para falar de si e de seu fazer profissional. Era por meio
dos espaços virtuais para as experiências de falar do ambiente virtual de aprendizagem a
distância que o professor era atravessado, seguindo as palavras de Larossa, pelos novos
parâmetros normativos implícitos na pedagogia lúdico-tecnológica que interpelava o tempo e
o espaço escolares com a inserção das ferramentas digitais de informação e de comunicação.
Fórum - Comentários recebidos:
D.C.L.: Que pessoa de mal com o mundo e na profissão errada!!!
V. L. M. M.: Nossa, G., quando eu crescer quero ser igual a você. Teu projeto ao ser
desenvolvido levará alunos ao questionamento de si e em si. Vai em frente, mas me leva
junto.
(Dados de pesquisa – Página Pessoal – AMADIS – Capturado em
http://escic.lec.ufrgs.br/amadis/ - Novembro/2004)
276
Se o ambiente informatizado, pelo ordenamento físico e tecnológico do lugar, pela
planejada espacialização de seu tempo para projetar a ação pedagógica e a alfabetização
tecnológica, configurava-se como a heterotropia presencial, o ambiente de aprendizagem a
distância, AMADIS, emergia como a heterotropia virtual, um espaço que se abria em um
endereço da rede mundial de computadores, refletindo tempos e espaços anteriores de
formação docente, que permitiam experienciar posicionamentos diferenciados - professores
em formação, monitores, tutores do LEC/UFGRS -, com variadas e potencializadas
possibilidades de intervenção, para a formação do professor idealizado para a escola ciclada.
Pela interface do ambiente computacional AMADIS, o tempo era redimensionado,
deixava-se para trás o limite imposto pela espacilização do tempo para a ocupação do
ambiente informatizado, rompia-se com a exclusividade de acesso pelo horário da turma em
cada ano-ciclo ou nos espaços de reunião pedagógica das unidades educativas, virtualizava-se
o tempo de formação docente ao possibilitar o acesso a qualquer tempo e a qualquer espaço,
para estabelecer, regular e modificar comportamentos docentes, para qualificar a interferência
pedagógica nas trajetórias escolares de alunos das turmas de progressão. Professores que,
inicialmente, sentiam o desconforto de perder suas identidades profissionais, passavam a ser
interpelados por uma formação continuada e a distância, que, sob os olhares e as ações de
uma hierárquica estrutura de formação, forjava novas identidades docentes. Representada na
Figura 7, a dinâmica da interação proposta para o trabalho cooperativo de pesquisadores e
monitores da UFRGS, de equipes diretivas, dos professores das escolas e assessoria da
SMED, alicerçava o projeto de formação continuada, em serviço e a distância.
Figura 7 – Dinâmica de trabalho realizada no projeto Escola, Conectividade e Sociedade da
Informação. (Dados de pesquisa – Relatório Parcial – Convênio BNDES/SMED-Prefeitura Municipal de Porto
Alegre – Janeiro/Dezembro 2003).
Era na ação docente do professor das turmas de progressão, pela qualificação de seu
pensar e fazer pedagógico por meio de sua aproximação e utilização de ferramentas digitais
de comunicação e de escrita pós-alfabética, que a rede municipal de ensino colocava em
evidência um movimento de ruptura com antigos modelos de escolarização para responder às
Professores
,
p
es
q
uisadores e monitores da UFRGS
E
q
ui
p
es diretivas das escolas e assessoria
p
eda
g
ó
g
ica da SMED
Professores das escolas
Alunos das escolas
277
demandas que se estabeleciam ao assumir a educabilidade da diferença, da estranha
diversidade humana que se colocava na exterioridade dos saberes psicológicos e pedagógicos
da Escola Cidadã. Pela conectividade e hipertextualidade de um ambiente digital de
aprendizagem a distância, professores traduziam para o seu fazer pedagógico as ferramentas e
a compressão de espaço e de tempo para aproximá-las de sujeitos sobre os quais os discursos
pedagógicos e psicológicos tinham pouco a dizer. Movidos pela busca de novos saberes para
operar sobre essa estranha diversidade humana que circulava no tempo e no espaço da escola
ciclada, o reconhecido grupo de pesquisadores do LEC/UFRGS projetava sua ação em 25
unidades educativas da periferia de Porto Alegre, desencadeando um conjunto de movimentos
para interferir na trajetória de alunos localizados em turmas marcadas pelo rótulo da
frustração, da repetência e do fracasso, movimentos apontados pela Diretora de Informática
Educativa da SMED na época da implementação e implantação do projeto Escola,
Conectividade e Sociedade de Informação:
A lógica de funcionamento da sociedade de controle, que derruba barreiras e fragiliza
a dicotômica relação interior/exterior dos territórios que edificaram a sociedade de
normalização, passava a ser rompida no tempo e no espaço da escola ciclada, também, pela
interface das ferramentas digitais disponibilizadas no ambiente informatizado e nos espaços
virtuais de aprendizagem. A estranha diversidade humana que normalmente ficava alijada de
ações educativas mais qualificadas no território escolar passava a ser a eleita para que o saber
da informática educativa pudesse operar para produzir novos saberes e, assim, projetar novos
dispositivos de disciplinamento cognitivo e comportamental a fim de garantir a permanência
na escola e a inserção de sujeitos em situação de risco social.
Os professores estão se apropriando mesmo da tecnologia dos projetos. Professores trabalham
por projetos, mas não são projetos de aprendizagem, são projetos de ensino, isso está em debate,
em discussão com os tutores do LEC/UFRGS. Os alunos entram semanalmente nos ambientes
informatizados das escolas, mas ainda não estão entrando no AMADIS. Essas entradas dos
alunos pode ser joguinho na Internet, pode ser um professor que saiba mais ou menos como
trabalhar com isso... O que se nota é que amplia enormente a capacidade de concentração, fala-
se, também, na incidência do aumento da auto-estima, mas isso precisa de mais dados[...]
Estamos debatendo com as supervisoras, justamente, como organizar o horário, um período até o
recreio, outro depois do recreio. Pedimos mais dois micros ao BNDES para colocar no Laboratório
de Aprendizagem para que os pequenos grupos de pesquisa possam acessar a qualquer
momento. São previstos esses movimentos dos alunos para ampliar o acesso, porque eles têm
que estar cotidianamente dando um toque na máquina. Eles têm que ter algum contato cotidiano
com o seu projeto ou sua tarefa que está sendo desenvolvida na máquina, que está sendo
guardada no servidor com vistas à publicação na Web. [...] A pesar de ser a rede com a maior
capacidade instalada, vamos ter sempre um déficit grande, pois nossos alunos não têm
computador em casa.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Diretora de Informática Educativa – SMED – Outubro/2001)
278
A escola edificada para forjar o aluno disciplinado sob os eixos cognitivo e
comportamental que, em seu processo, excluía os sujeitos não-ajustados às normatizações da
Escola do Hardware, assumia uma nova interface social, renovando e transformando seus
dispositivos de disciplinamento para, ao contrário, potencializar a permanência do aluno na
escola. Como uma das facetas do movimento de regeneração e de profilaxia social é que a
inserção do saber e da materialidade da informática educativa na escola pode ser lida. O
aparelho de som, os aparelhos de vídeo e de DVD e a centralidade das ações no ambiente
informatizado nos jogos digitais e na cópia disfarçada de pesquisa na Internet colocavam em
evidência o caráter lúdico-tecnológico da pedagogia escolar, fazendo do professor o
administrador do eterno Jardim da Infância Pedagógico.
A relação escolarização-tecnologias digitais de informação e de comunicação
projetava uma ação educativa para que as ferramentas computacionais assumissem uma
versão utilitarista para garantir a permanência do aluno na escola. Sob essa lógica, participar e
traduzir linguagens passavam a ser mais importantes que garantir a tradição que alicerçou a
escola moderna: o disciplinamento cognitivo e comportamental. Colonizar tempos,
domesticar espaços e aproximar sujeitos dos códigos de tradução do mundo contemporâneo
eram alguns dos movimentos desencadeados no ambiente informatizado para garantir a
presença do aluno na escola e não na rua. A face protetora do processo educativo, como
analisa Giddens (2002), o casulo protetor, que a escola desempenha no funcionamento da
sociedade, disciplinando sujeitos para capacitá-los ao convívio social, adquire sua nova
configuração.
Se a Escola do Hardware foi a pedra angular na construção da sociedade moderna,
forjando o sujeito de personalidade individualista, possuidor dos códigos culturais para
permitir seu deslocamento na cadeia social família-escola-fábrica, a Escola do Software, sob
um contexto político, econômico e sociocultural que retira dessa cadeia social a fábrica para
colocar a empresa, ajusta os tempos e os espaços escolares para a formação do sujeito de
personalidade narcisista, a necessária personalidade para o ritmo acelerado do espaço
mercantil. Esse deslocamento, do individualismo para o narcisismo, discutido com muita
lucidez por Varela (2002), passa a configurar e a regular tempos e espaços escolares que
devem ser flexíveis e adaptados às motivações e aos desejos de cada aluno. A garantia de
permanência do aluno na escola não mais encontra sua resposta na metodologia mais
adequada para a transmissão de saberes, pois a lógica da sociedade contemporânea não está
mais edificada na tradição, mas, sim, na tradução e no esquecimento.
279
A inserção utilitarista das tecnologias digitais no tempo e no espaço escolares,
reduzindo sua potencialidade a ferramentas de lazer
203
, ajusta-se, como discute Bauman
(1998), ao mundo contemporâneo, em que a arte de esquecer torna-se mais importante do que
a arte de memorizar. Traduzir e esquecer, mais do que aprender, são os verbos que norteiam o
processo educativo, uma condição de possibilidade de adaptação ao mundo que vive a
presentificação do futuro e a planetarização do espaço. O desejo de eternidade que moveu a
construção da experiência de temporalidade ao longo da história da humanidade perde um
pouco de seu brilho, pois habitar um mundo de tantas incertezas é constatar que a novela da
escolarização se transformou em uma série de capítulos que tem como única certeza a sua
efêmera memória.
Alunos e professores no ordenado, planejado e controlado ambiente informatizado
vivenciam a cópia digitalizada, o fliperama escolar, o consumo passivo de informação, saem e
entram da nova heterotropia construída na escola para mediar a relação escolarização-
tecnologias digitais de informação e de comunicação sem muita ou qualquer finalidade, uma
ação que pouca ou nenhuma marca deixa na trajetória de vida de seus interagentes.
Professores e alunos circulam no ambiente informatizado, mas parecem viver experiências de
tempo e de espaço sempre prontas a se dissipar por reservar pouca atenção para a memória. O
fazer e o pensar pedagógicos pela interface das ferramentas digitais de informação e de
comunicação aproximam-se da metáfora construída por Bauman (1998, p.37): “uma fita de
vídeo sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens e alargando uma garantia
para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma incessante auto-
obliteração”.
O complexo e ambivalente fenômeno implementado pela permanente revolução das
redes digitais de comunicação e de informação tem, como uma moeda num jogo de cara e
coroa, revelado sua face de veneno ao tornar mais eficiente o controle pessoal ou ao fazer
crescer e circular de forma exponencial uma verdadeira, e às vezes perigosa, bobagem
eletrônica. Contudo, fazendo girar a moeda, o potencial participativo, socializante e
emancipador da rede mundial de computadores aponta, também, para a face do próprio
remédio. É nessa faceta condicionante e não-determinista dessa tecnologia que apresento o
tempo e o espaço para fruir, para deixar espraiar a sensibilidade e a interação humana, para
potencializar o aprendizado e a aquisição dos saberes, para consolidar um tempo e um espaço
que tenham como princípio combater inimigos: o individualismo e o narcisismo. A procura de
203
Constatação feita pela coordenadora de Informática Educativa da SMED, durante o 1
o
Seminário de
Inclusão, SMED discute inclusão digital. Correio do Povo, Porto Alegre, p.9, 26 out. 2005.
280
tempos e espaços que suavizem o processo de individualismo move a construção da seção
final deste capítulo. Percorro o corpus de análise na procura de movimentos que possibilitem
(re)tecer laços sociais e potencializem a transformação de trágicas histórias de aprendizagem
em marcas de sucesso nas memórias de alunos da periferia de Porto Alegre.
PARA O TEMPO DA ESPIRAL E O ESPAÇO DO SABER
Na verdade, não tem sentido o homem querer desviar-se das máquinas, já
que, afinal de contas, elas não são nada mais do que formas hiperdesenvolvidas e
hiperconcentradas de certos aspectos de sua própria subjetividade (GUATARRI,
1996, p.177).
A corrosão da ilusão moderna de um estado de ordem perfeita e do completo
domínio do futuro fez emergir uma sociedade contemporânea que colocou no centro de sua
funcionalidade uma atividade incessante de individualização, uma onda avassaladora que
acelera de forma perigosa o rompimento da rede social. Vivemos um momento histórico da
sociedade ocidental, como analisa Bauman (2001), em que a ação social coloca sua ênfase na
auto-afirmação do indivíduo, deslocando sua meta de sociedade mais justa para um cenário
social alicerçado nos direitos individuais. É por meio desse processo crescente de culto ao
individualismo que perdemos, como adverte Lévy (1999b), nossa dimensão de seres
solidários, colocando-nos na contramão de nossa natureza biológica de seres geneticamente
sociais. Contudo, se não existe uma realidade pré-datada, se as certezas desaparecem, abre-se,
paralelamente, a possibilidade de um tempo e um espaço modelados pela energia
revolucionária das ferramentas digitais presentes no ambiente informatizado.
É do jogo – veneno e remédio – que apresento, inicialmente, uma estratégia
pedagógica desencadeada no ambiente informatizado da periferia de Porto Alegre que, ao
mesmo tempo em que permite a confecção do laço social, emerge como um dos possíveis
remédios para combater um fenômeno intelectual próprio de um mundo imagético – a
dificuldade em ler e interpretar – um dos mais prementes problemas, contemporaneamente,
enfrentado pela escola.
O processo educativo vive sob os efeitos do advento dos meios de comunicação de
massa e, mais recentemente, dos digitais. O indivíduo pode se manter relativamente
informado sem possuir um domínio formal do código lingüístico, tornando dispensável o
hábito de leitura para propósitos apenas informativos. As imagens e os recursos de áudio e
vídeo dos telejornais e dos programas de entrevista geram um conteúdo que interage e
281
alimenta o conhecimento do senso comum de forma ética e estética. O processo não é muito
diferente quando a informação encontra-se disponibilizada em meio impresso; as publicações
optam por uma diagramação atualizada - o mínimo de texto e o máximo de imagens –, um
estilo gráfico adequado para um conjunto significativo de cidadãos que não desenvolveu um
juízo crítico para o que as diferentes mídias lhe apresentam. Os apelos excessivos do mundo
imagético têm potencializado a formação de sujeitos com curta concentração, moldados pela
utopia da aprendizagem lúdica e do pouco esforço, impulsionando seu ingresso na cultura da
impaciência e a volatilidade.
O contemporâneo fenômeno cultural William Moreira
204
aponta para a importância
decisiva dos comentadores e comunicadores como verdadeiros construtores de conteúdo
político e sociocultural. São esses construtores de conteúdo que, se valendo dos recursos
técnicos e das linguagens midiáticas, vão iluminar ou obscurecer, emancipar ou dominar as
questões políticas, culturais e sociais de uma sociedade. Guareschi (2003) ressalta o papel dos
meios de comunicação contemporâneos como elementos instituidores e organizadores da vida
humana. As mídias, que, abstendo-se de ser dialógicas e relacionais, operam como formas
veladas de produção e de estruturação de conteúdo, passam a expressar idéias, valores e
concepções que são ou que se tornarão dominantes.
Na sociedade do espetáculo, são as mídias contemporâneas, muitas delas não-
permeáveis à pluralidade, que têm se transformado em um instrumento permanente de
bombardeio ao público de um conteúdo imposto sem contraponto. Dominando a construção
intelectual dos atores sociais, sujeitos são bem-informados sobre tudo que ouviram, mas
dificilmente sobre o que leram.
Para sujeitos que não leram, que não lêem, e o que lêem não entendem, a estupenda
libertação intelectual representada pela interface das tecnologias digitais de informação e de
comunicação tem seu potencial interativo restrito aos jogos virtuais, à navegação pontual nos
sites de busca, ao surfe nas ondas da informação. Para sujeitos capturados pelo feitiço do
mundo imagético, a supremacia da imagem sobre o texto, o consumo passivo e a preferência
por fatos transmitidos ao vivo parecem ser inteiramente naturais. É com o entrelaçamento
desses elementos que a aquisição de competências de leitura e de escrita tem sido
gradativamente dificultada - uma não-competência que ganha visibilidade na dificuldade de
estudantes em localizar e entender informações em textos mais longos ou em reconhecer a
204
O sintoma William Moreira é comentado pelo psicólogo Carlos Perktold em entrevista à revista Carta
Capital, em 7 de julho de 2004, quando problematiza a formação intelectual de sujeitos capturados pelo mundo
da imagem, fazendo alusão ao nome de dois conhecidos jornalistas-apresentadores da televisão brasileira:
William, de William Bonner, e Moreira, de Cid Moreira.
282
temática em textos informativos simples
205
. O principal critério para a escolha de um filme -
não ser legendado! – pode ser lido como um efeito do sintoma Willian Moreira, que leva, sem
dúvida, a um acesso restritivo ao mundo da cultura.
Projetos de estímulo à leitura e à escrita passaram a ser conduzidos pela SMED; dentre
eles, um movimento de publicações escolares, uma ação fortemente impulsionada com a
inserção das tecnologias digitais de informação e de comunicação no tempo e no espaço
escolares. A assessoria de Informática Educativa da SMED promovia cursos de capacitação
para aproximar professores de tecnologias digitais. O ambiente informatizado e suas
ferramentas de editoração de texto e de imagem eram solicitados a responder ao desafio de
tornar jovens da periferia de Porto Alegre construtores de informações. O jornal escolar foi a
produção textual que conquistou visibilidade nesse movimento de publicação e protagonismo
escolar, como ilustra dado de pesquisa que disponibilizo:
Das muitas possibilidades que podem emergir quando se opera para a construção de
um jornal, uma delas deve ser central: permitir a compreensão do processo de construção da
informação, aspecto fundamental para uma sociedade que se estrutura sob os holofotes do
capital simbólico, criado e legitimado pelos meios de comunicação. Para deslocar sujeitos da
condição de objetos da mídia para operadores da mídia, alguns movimentos foram
implementados: a apropriação de novas linguagens, a vivência de novos tempos-espaços, a
suavização do processo de individualização e a leitura crítica da mídia impressa
contemporânea, perspectiva assumida em sua totalidade por alunos do III Ciclo e por uma
professora da Escola Leste. Para criar um consistente projeto de escrita pela interface de
ferramentas computacionais para a editoração de textos, nascia publicação escolar que tinha
como uma de suas metas (re)tecer laços sociais afrouxados no individualismo pelo qual opera
a espetacular sociedade de controle.
A implantação do ambiente informatizado da Escola Leste foi contemporânea à
construção do projeto de publicação escolar - Jornal com Bah! -, uma estratégia de leitura e
205
O desempenho dos estudantes brasileiros no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - 2003
(SAEB), 55% dos alunos que freqüentam a quarta série do Ensino Fundamental apresentaram níveis de
desempenho escolar críticos ou muito críticos em leitura, indicando que esses educandos não desenvolveram
habilidades de leitura e de interpretação compatíveis com esse patamar de escolaridade.
[...] Encontro de formação para professores responsáveis pelas publicações escolares [...]
Socialização do texto Programa de Publicação Escolar;
Inscrição no [email protected];
Oficina para editoração eletrônica dos projetos de publicação parte 1.
(Dados de Pesquisa – Memorando n
o
3155 - Coordenação Pedagógica – SMED – Julho/2002)
283
de escrita que deu sentido às palavras de Lévy (2000): um projeto técnico não frutifica sem
uma visão cultural organizadora, assim como não se pode ter um projeto cultural sem incluir a
técnica. Os movimentos desencadeados por essa publicação escolar tornavam realizável uma
das epígrafes que escolho para apresentar esta Tese: suscitar pequenos acontecimentos que
escapem ao controle, que engendram novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou de
volume reduzido (DELEUZE, 1992, p.218). Foram esses movimentos na superfície que
começaram a suscitar uma nova forma de pensar o tempo e o espaço escolares, como
evidenciam os dados de pesquisa que disponibilizo a seguir:
A editoração da produção textual no ambiente informatizado começava a
desnaturalizar o tempo e o espaço escolares construídos para potencializar a individualização
e o enquadramento de indivíduos no ranking de desempenhos escolares, seja por atributos
biométricos, seja por sua posição nas escalas dos saberes. O processo de construção do Jornal
com Bah! operava para estabelecer suaves e significativas fissuras no formalismo
educacional. Era um pensar e um fazer do tempo e do espaço escolares que não apagavam
relações de poder, mas as colocavam sob uma outra lógica, de não-assujeitamento, de não-
diminuição e de não-anulação do outro. A relação pedagógica que destrói a liberdade tentando
construí-la era suavizada, para alterar a relação professor-aluno de seu sentido da
verticalidade para a transversalidade
206
. Os movimentos de construção e de desconstrução
foram forjados na negociação permanente do ordenamento que a escolarização, mesmo na
escola ciclada, estabelecia, em um processo de diferenciação e de retomada das
singularidades, que o depoimento dos protagonistas do projeto ajuda a elucidar:
206
Para Guattari, é a transversalidade como superação à verticalidade (a organização formal, as relações
sociais institucionalizadas, hierarquizadas) e à horizontalidade (organização informal, as relações não-mediadas
pela instituição, situação em que as pessoas se ajeitam como podem!) (COIMBRA, 1995)
A proposta [do jornal] foi trazida à tona por alguns alunos (Que tal fazermos um jornal?) e aliou-se
a uma outra (Que tal parar com essa mania de cada turma no seu canto esperar chegar os
preparativos da formatura para negociar, ou melhor, não negociar, as nossas diferenças?). Antes
tarde do que nunca, deve começar a ser pensada pela escola a criação de laços afetivos (e
efetivos) entre as diferentes turmas que convivem no mesmo espaço e tempo escolares, mas que
não necessariamente vivenciam experiências e emoções comuns. Juntar alunos adolescentes
em torno de projetos, experiências e emoções vividas, compartilhadas em todos os seus
momentos, certamente levará à criação de laços que poderão, quem sabe, com o tempo e com a
prática continuada de ações conjuntas, arrefecer a competitividade e a segregação a que vemos
submetidos, ano após ano, os alunos e suas turmas.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Março/2002)
284
Por meio da ação pedagógica projetada pelo Jornal com Bah! eram estabelecidas as
fissuras nas barreiras de contenção e aprisionamento do território disciplinar – a do ano-ciclo,
a da turma, a dos saberes. Redes de aprendizagem passaram a ser tecidas entre os sujeitos, não
mais alunos das turmas de III Ciclo, mas um coletivo inteligente que deu vida ao projeto
pedagógico, um projeto em que todos têm competências, conhecimentos e experiência de vida
para produção da inteligência de um conjunto de alunos e professores. A inteligência
concebida como coletiva e distribuída assumia que ninguém sabe tudo e que todos sabem
alguma coisa que possibilita recontar as histórias de uma comunidade educativa. Um
deslocamento na percepção da inteligência era operada, pois, como adverte Lévy (1999a),
deixar de reconhecer no outro sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade social,
é alimentar o ressentimento e a hostilidade, a humilhação e a frustração, uma ação que produz
violência. Um deslocamento era vivido por uma comunidade educativa da rede municipal de
ensino de Porto Alegre – da inteligência reificada para a inteligência coletiva.
A inteligência coletiva que movia a ação dos alunos-repórteres-jornalistas constituída
na negociação permanente da ordem estabelecida, condicionando uma interpretação
permanente de seus resultados e convocando seus atores a um novo humanismo, a um fazer e
um pensar juntos. O processo de construção do jornal estabelecia uma ruptura com a lógica
experienciada na espetacular sociedade de controle, recuperando um pouco a energia do
debate e da decisão desgastada pelos eventos sensacionalistas. Era rompida a lógica
problematizada por Passetti (2002, p.135) - a das misérias da democracia de antecipação. Por
meio de sondagens, sob a falsa propaganda da interatividade, relega-se aos atores sociais o
triste papel de decidir o que já foi por poucos sondado, planejado, configurado, decidido. O
processo de construção do Jornal com Bah! construiu-se entre iguais diferentes, livres em
direitos e sob a ação, não da transcendência, mas da imanência. As palavras da professora que
Quando eu vi o jornal fiquei pensando como três turmas, uma totalmente diferente da outra,
conseguiram fazer juntas essa coisa maravilhosa, até porque quase ninguém daqui gosta de
escrever, mas a união e a vontade de vencer as barreiras e derrubar os obstáculos fizeram
despertar em cada um deles o espírito escritor e, assim, perseveraram (Márcia Selau).
(Dados de pesquisa – Projeto Jornal com Bah! – Escola Leste – Março/2002)
Quando eu soube que íamos fazer um jornal, não acreditei que iria dar certo, pois eram três
turmas juntas. Mas após termos começados o trabalho juntos, vi que devemos acreditar que se
trabalhando juntos e com força de vontade conseguimos o que quisermos. (Natiele dos Santos)
(Dados de pesquisa – Projeto Jornal com Bah! – Escola Leste – Março/2002)
Passamos semanas nos dedicando a fazer o jornal. No começo foi um pouco ruim porque nunca
tínhamos experimentado trabalhar unidos. Depois de ter nos acostumado, começamos a fazer o
jornal (Sandra Castro).
(Dados de pesquisa – Projeto Jornal com Bah! – Escola Leste – Março/2002)
285
coordenou o processo dão visibilidade a uma prática de liberdade, uma experimentação de
ruptura e de criação:
Um projeto de leitura e de escrita associado aos recursos de editoração de texto e de
imagem disponibilizado no ambiente informatizado passava a funcionar como ferramenta de
engenharia dos laços sociais, laços esses muitas vezes rompidos pelo tempo-espaço
disciplinador da escola que, em nome do formalismo dos tempos externos, abafava e
impossibilitava a fruição dos tempos internos. Ao (re)tecer os laços sociais afrouxados no
tempo-espaço escolar, foi possível extrair o que havia sido expulso, muitas vezes, das práticas
pedagógicas - o sujeito, a interação, o conhecimento, a emoção, a solidariedade – sem dúvida,
a vida que pode ser tecida nas redes de um coletivo inteligente.
Entrevistando, fotografando, escrevendo, (re)escrevendo, editorando... Eram os
sujeitos inteligentes, de diferentes turmas, que superavam, no ambiente informatizado, a
espacialização do tempo e o espaço estabelecidos pelos limites dos territórios de cada turma.
A Geografia, a História, a Matemática..., os diferentes saberes que tinham seu tempo-espaço
demarcado pela grade de horário das três turmas, foram rompidos no desenrolar do projeto.
Deslocando-se entre turmas e em diferentes momentos, era no ambiente informatizado que o
conhecimento produzido pela humanidade era colocado em discussão, para trazer e garantir
seriedade e qualidade a cada reportagem produzida.
Era na heterotropia da Internet, em seu poder de justapor uma multiplicidade de
outros espaços, que lugares e saberes eram projetados e simulados nas telas dos monitores,
para que o tema de cada reportagem fosse discutido e aprofundado pelas ferramentas da
Internet - na pesquisa da web, na dúvida dissipada pelo e-mail. Era no ambiente informatizado
A escolha do título do jornal, a pauta, a circulação e a tiragem [...] Todas as decisões tomadas
durante o processo de realização do jornal tiveram por meio do voto das três turmas, sua
aprovação assegurada. É importante frisar o respeito e o valor dado à instância consultiva que
embasou a construção desse projeto.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Março/2002)
Todos trabalharam em prol de um objetivo, todos desejavam, sonhavam em ver o seu trabalho
valorizado, todos estavam descobrindo o poder de negociar, de opinar, de chegar a um consenso
que conduziria as realizações de um coletivo formado por cerca de 90 pessoas. Todos, uns com
mais apego, outros com uma certa ira, aprenderam a abrir mão de suas vontades ou das idéias da
sua turma, do seu grupo, quando viam suas propostas não aprovadas nas votações. O sucesso
individual, aquele que a escola reproduz muito bem, foi cedendo espaço à promoção coletiva. Não
mais o meu texto, mas o nosso texto, não mais o jornal, o trabalho da nossa turma, mas o
trabalho, o jornal de todos nós, turmas, professoras, estagiária de informática, que trabalhamos
juntos.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Março/2002)
286
que culminava o processo de entrevistar, escrever, reescrever, digitar e, no conjugar desses
verbos, uma prática pedagógica primordial era colocada em ação para marcar uma construção
diferenciada da escrita que normalmente era realizada pela escola . Esse aspecto diferenciava
o projeto do Jornal com Bah! em relação a outras publicações escolares que circulavam na
rede municipal de ensino de Porto Alegre, fato reconhecido e aplaudido pela assessoria
pedagógica e que tornava possível e legítimo que aprendizes da periferia de Porto Alegre
passassem a assinar e a assumir a autoria das matérias publicadas.
Para que a autoria fosse garantida, para que o aluno concluinte de Ensino
Fundamental pudesse produzir seu melhor texto, cada reportagem era escrita e reescrita. Cada
texto era lido e relido para responder com afinco às exigências por ele colocadas. Inicialmente
no papel, depois, pelas facilidades de editoração das ferramentas computacionais, cada
reportagem era construída e reconstruída: no conteúdo, na estrutura, na expressão. As
ferramentas computacionais permitiam imprimir no texto de cada matéria o rótulo de
provisório. Eram as facilidades de escrita pela interface computacional que permitiam que
alunos, mesmo os excluídos do processo de escrita, fossem incluídos pela possibilidade de
publicação no Jornal com Bah! e pelos recursos de editoração. A diversidade de alunos
participantes do Jornal com Bah! autorizava-lhes a assumir o status de sujeitos com direito de
expressão escrita, como coloca em destaque as palavras da professora coordenadora do
projeto e de um de seus protagonistas:
Assumir a totalidade de aprendizes do III Ciclo era a meta desse projeto de
publicação escolar. Nenhum aluno participante do projeto teve seu texto excluído, o que fez
que nenhum aluno quisesse ficar de fora desse projeto, como coloca em evidência a fala de
um dos protagonistas:
Meu texto fica bonito no computador. Minha letra fica linda... Dá até mais vontade de escrever...
(Dados de pesquisa – Observação/Entrevista – Aluno J.– Escola Leste – Maio/2001)
Muitos alunos foram movidos por esse entusiasmo para produzirem suas matérias. Outros, como
o J., viram, nessa possibilidade, um jeito de mostrar para os colegas que estavam aprendendo a
escrever e que seriam capazes de fazer sua matéria sozinhos, sem a caridade alheia. Há tempos,
o J. vinha sendo “escanteado” pela turma por apresentar muita dificuldade na leitura e na escrita.
Esse foi o único aluno a trabalhar sozinho e por solicitação dele. Não queria mais andar na
carona, como eles dizem, queria dirigir também. Foi à luta e aprender a dirigir-se: construiu
entrevistas, entrevistou, escreveu e reescreveu seu texto, digitou (era a primeira experiência das
turmas no ambiente informatizado e por essa razão ele foi, assim como os demais, ajudado no
princípio).
(Dados de pesquisa – Entrevista – Professora – Escola Leste – Março/2002)
287
Eram as ferramentas computacionais alterando as condições da produção textual. A
atividade cognitiva era remodelada pela mediação digital, pois a escrita deixava de depender
da motricidade altamente refinada da mão para a construção laboriosa de cada letra, frase,
parágrafo. Na Escola Leste, da escrita manual passava-se à escrita teclada e clicada.
Dispositivos técnicos – teclado e mouse – construíam uma homogeneidade para valorizar e
harmonizar o ato de escrever. Marcava presença no tempo e no espaço escolares o mesmo
movimento histórico que permitiu afastar o labor, o dispêndio de energia da espécie humana
pela linguagem e pela técnica. As ferramentas de editoração disponibilizadas no ambiente
informatizado permitiram que fosse desencadeada a passagem da escrita manual e alfabética
para a escrita digitalizada e pós-alfabética, para possibilitar, como destaca Lévy (1998, p.16),
a superação da primazia da interação sensório-motora para deixar lugar à sensório-simbólica.
Era no ambiente informatizado, com as possibilidades dos recursos de editoração
computacional, que textos eram retomados sem medo de recomeçar a escrita do zero!
Escrever e reescrever pela interface computacional possibilitaram que seus autores
realizassem, de forma mais tranqüila, até mesmo mais prazerosa, uma fundamental ação em
um processo de escrita. Os jovens repórteres-jornalistas tinham a possibilidade de concentrar-
se e intervir no que realmente julgassem necessário, não mais retomando cada matéria em sua
totalidade.
Pela editoração de textos e de imagens, os alunos eram incentivados para a produção
escrita, conquistavam interlocutores, criando um vínculo que produzia conhecimento.
Enquanto a cópia disfarçada de pesquisa na Internet ocupava a grade de horários do ambiente
informatizado da Escola Leste, o projeto do Jornal com Bah! assumia o compromisso com a
autoria e a originalidade. A política na escola, a economia na escola, a moda na escola, o
esporte na escola - assuntos presentes com maior ou menor intensidade no dia-a-dia de quem
vive no meio escolar. Era a realidade mais próxima que era tematizada para dar espaço para a
autoria, para estabelecer a interlocução verdadeira, para produzir uma elevação da auto-
estima. Era estabelecida a conexão local-global, eram as tecnologias intelectuais que
operavam para romper com a seriação e a uniformização da mídia, ação evidenciada na fala
da professora coordenadora do projeto que disponibilizo a seguir:
Quando a professora J. veio com o jornal, senti uma emoção enorme e logo veio no pensamento:
“Não me saí bem, tiraram minha notícia do jornal”. Quando a professora J. falou que não tiraram
nenhuma notícia, fiquei muito mais feliz. [...] Minha avó falou que iria fazer um quadro da minha
notícia (Éverton da Silva).
(Dados de pesquisa – Projeto Jornal com Bah! – Escola Leste – Março de 2002)
288
A tecnologia presente no ambiente informatizado passou a configurar-se como um
equipamento coletivo de sensibilidade, de inteligência, de cooperação. A relação
escolarização-tecnologia estabelecia uma nova interface para uma ação educativa que ia na
contramão das práticas educativas tradicionais da escola moderna, centradas na competição e
no individualismo, práticas que emergem de políticas muito mais de exclusão do que de
inclusão.
Estar na contramão do tempo-espaço disciplinador da Escola Moderna passava a ser
a busca maior do projeto de autoria coletiva do Jornal com Bah!. A construção de cada uma
das etapas do projeto de autoria escolar emergia da rede de jornalistas-repórteres, uma rede
que suavizava as representações aluno-professor, pensadas coletivamente e inventadas em
cada momento de interação. Do adensamento das interações, uma palavra-chave passava a ser
o fio condutor de todo o projeto - a imersão – e assim, fazer romper a disjunção que marca o
paradigma cartesiano, sujeitos e objetos eram inseparáveis. Os repórteres-jornalistas, mesmo
trabalhando, em muitos momentos, de forma independente, tinham, no ambiente
informatizado, pela interface das ferramentas computacionais e pelo olhar de cada repórter-
jornalista, o tecer da rede de autoria, uma rede que foi emergindo no emaranhado de vivências
e de descobertas, forjando um processo de expansão da consciência para toda uma
comunidade educativa.
Tornar alunos construtores de informação, incluir todos, colocar alunos da periferia
de Porto Alegre na posição de autores, enfim, garantir a produção jornalística de todos, e não
somente dos melhores, era a bandeira levantada projeto Jornal com Bah! Manter de pé a
bandeira de que todos são sujeitos com direito a uma ação pedagógica qualificada não se
revelou uma tarefa fácil. Foi preciso abrir fissuras em territórios, não só naqueles
Quando indagados sobre as matérias que comporiam as seções dos jornais, sugeriam resumo de
notícias dos grandes jornais. Nesse momento foi preciso lembrá-los do quesito originalidade, que
integra o conceito de autoria, conceito que rege o nosso trabalho . Foi preciso combinar, discutir
com as turmas que não fazia cabimento gastar nossas energias (e a verba que não tínhamos...)
para produzir e imprimir algo que já havia sido publicado e que não possuía a genuinidade mínima
que justificasse sua existência. Retomando esse princípio, voltamos à discussão sobre a forma
como a política, economia, etc. se apresentavam no cotidiano escolar. Foi preciso conectar o
próximo ao distante de modo que a realidade dos alunos pudesse, assim, ser tematizada para
levar à descoberta, ao estabelecer relações e não apenas para que ela fosse simplesmente
constatada, inventariada. Para que chegassem à descoberta de matérias referentes à política, por
exemplo, conversamos sobre a estrutura administrativa do país, estado e município, até
chegarmos à escola. Foram percebendo que o mundo e sua estrutura se repetiam dentro da
escola, e foram, assim, aos poucos, descobrindo e sugerindo as matérias para as diferentes
seções do jornal que ia se fazendo.
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Professora
Escola Leste
Mar
ç
o/2002
)
289
tradicionalmente configurados no tempo e no espaço escolares, mas, também, além dos muros
da escola.
Um luta em respeito à produção de cada um e de todos era desencadeada a cada nova
edição do jornal: era a briga permanente para garantir o espaço de publicação para a inclusão
de todos os textos justificada pela não-entendida solicitação de um aumento do número de
páginas pelos assessores pedagógicos e de comunicação da SMED. Não se importando com
os rótulos que conquistava, como o de uma publicação massuda, com muito texto e poucas
imagens, o Jornal do Bah! foi desnaturalizando padrões da verdade única e inquestionável,
que aceita e dá visibilidade sempre e exclusivamente ao melhor! Era a diferença respeitada
como diferença, era a dificuldade da leitura e da escrita enfrentada e superada, não
simplesmente acolhida! Essa desnaturalização da competitividade marcou cada um dos oito
números publicados pelo projeto jornalístico dos alunos concluintes do III Ciclo da Escola
Leste!
Os alunos de Ensino Fundamental, com trajetórias escolares marcadas pelo fracasso,
assumiam o título e a função de repórteres e jornalistas, territórios de saberes proibidos para
os que não estão habilitados e autorizados, para os não-possuidores do tradicional passaporte
do saber - o diploma! O jornalista coordenador de comunicação da SMED, durante a
avaliação da quarta edição do jornal para envio à gráfica, questionou e proibiu que os alunos
utilizassem o título de jornalistas. Os aprendizes da periferia de Porto Alegre abriram mão da
palavra, mas não da função, de jornalista, passando a assinar suas reportagens com a
identificação de alunos responsáveis.
O poder da expressão repórter-jornalista possibilitou que alunos de classe popular
passassem a marcar a construção de sua identidade como sujeitos de capacidade intelectual.
Para a escola que nasceu com, e parece, contemporaneamente, manter, configurações distintas
para cada classe social - um trabalho escolar convertido em assistencialismo para os pobres e
em objeto de mercantilização, um quase produto de grife, para os ricos – a publicação do
Jornal com Bah! permitiu que adolescentes da periferia de Porto Alegre imprimissem, na
construção de sua identidade, uma nova marca, a de sujeitos com competência para pensar e
para produzir intelectualmente.
Tempos internos emergiam e não se anulavam pela rigidez do normatizado tempo
externo escolar. Era na emergência de tempos internos que cada participante do projeto
autorizava-se a fazer o uso de uma das mais estupendas construções da humanidade – a
possibilidade de letramento – ou seja, o uso qualificado e social da leitura e da escrita. No
290
tempo externo da escola ciclada, repórteres-jornalistas garantiam o direito de falar e agir, de
diferenciar-se dos outros mas, também, de permanecer ele mesmo!
Era pela publicação do Jornal com Bah! que se oportunizava a jovens aprendizes de
classe popular, indistintamente a todos os seus participantes, a entrada no mundo letrado pela
porta da frente! Participar de uma ação coletiva, engajar-se em uma atividade cultural,
reconhecer-se e ser reconhecido edificavam marcas na história pessoal e coletiva de seus
protagonistas. A auto-identificação e a heteroidentificação encontravam uma efetiva resposta
em projetos de vida que começavam a ser construídos: a aluna que quer ser jornalista, a
colega que se descobre fotógrafa, o aluno que revela habilidades na diagramação em editores
de textos ou o adolescente que passava a ser reconhecido pelo grupo como o criador da
logomarca digitalizada do jornal.
Com o Jornal com Bah!, inúmeras descobertas começavam a marcar o presente de
jovens aprendizes e a iluminar ou obscurecer porções em que cada protagonista desejava
reconhecer-se e ser reconhecido. Eram possibilidades de projetos de vida que começavam a
germinar, a deixar marcas difíceis de se apagar e a preparar possibilidades de futuro. As
palavras de um dos protagonistas e da professora coordenadora do projeto tornam pública a
possibilidade de romper com a lógica do tempo e do espaço escolar para coisa nenhuma
207
,
de suspender a prostração intelectual a que são submetidas as classes populares, essa forma de
discriminação simbólica que os afasta do patrimônio do conhecimento humano:
Alunos de periferia ousaram e foram, se não por direito mas de fato, repórteres e
jornalistas, percorrendo lugares na escola e na comunidade, trazendo para dentro dos limites
da escola os saberes de uma comunidade e as vivências de seus protagonistas. Era o repórter
207
Título da reportagem que discute os resultados de uma pesquisa realizada em escolas públicas de São
Paulo, revelando que anos de escolarização não conseguiram desencadear possibilidades de inserção social em
sujeitos que vivem em zonas da periferia de uma grande cidade (FELINTO, 2006).
Com esse trabalho, deu para aprender várias coisas, como mexer no computador, a aprender a
elaborar os textos e perguntas e a pensar melhor. Quando eu vi o jornal, fiquei feliz ao ver um
trabalho feito por jovens que não são profissionais e sim pessoas comuns com talentos
escondidos que tiveram que usar deles se esforçando muito (Maurício Santos).
(Dados de pesquisa – Projeto Jornal com Bah! – Escola Leste – Março/2002)
É importante realçarmos a saudável influência que este trabalho está tendo no destino de alunas
como a Elisângela de Oliveira, que nos declarou em alto e bom tom, em meio à frenética
trabalheira de produção de textos para o Porto &Vírgula, que desejava cursar Jornalismo por
causa do trabalho que vem realizando com o Jornal com Bah! Só por esta declaração toda a
correria que é organizar esse jornal já se justificaria.
(Dados de pesquisa – Editoral – Jornal com Bah!– Escola Leste – 2
o
Semestre/2003)
291
transformando o fato e o acontecimento de uma comunidade escolar em um registro textual e
imagético, era o jornalista que abria um tempo e um espaço para que a memória pudesse
retornar ao tempo e ao espaço escolares e assim marcar a trajetória de alunos em processo
educativo.
Se, na espetacular sociedade de controle, vive-se a tendência de atomizar os
indivíduos, e onde a construção da memória é permanentemente fagocitada pelo efêmero e
pela volatilidade, a digitalização de cada edição do Jornal com Bah! permitia instituir um
tempo e um espaço que apostavam na memória de uma comunidade escolar como sua maior
possibilidade. Digitalizadas as edições e disponibilizadas na Internet, conservavam-se sob
forma numérica e armazenavam-se na memória do computador, textos e imagens de uma
comunidade escolar.
Por meio dessa memória digitalizada, garantia-se o acesso ao conjunto de matérias
publicadas em tempos e espaços diversos. Disponibilizados na Internet
208
, as edições se
entrelaçavam virtualmente e passavam a projetar novas possibilidades de produção para os
jovens repórteres-jornalistas. Todas as edições modelavam um grande hipertexto, uma autoria
coletiva em permanente transformação.
Elaborar, sugerir, deliberar, pesquisar, interagir, produzir conhecimento, era no
ambiente informatizado que possibilidades, lucidamente discutidas por Nilton Fischer
209
,
eram colocadas em prática: a superação do estereótipo da comunicação como um ato
isolacionista do sujeito usuário da informática e da Internet e, principalmente, a ruptura com
os tempos juvenis, normalmente postergados, deixados para o depois. Era uma outra forma de
viver o tempo e o espaço escolares, era um inventar do presente para jovens aprendizes da
periferia de Porto Alegre, que começava a ser potencializado pela chegada das ferramentas
computacionais. Dados de pesquisa que disponibilizo a seguir colocam em evidência a
instituição de tempos e de espaços para deixar fruir tempos individuais conectando-os com
tempos sociais:
208
As oito edições do Jornal com Bah! podem ser conhecidas na íntegra na home page da Escola Leste –
http://wedsmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/marcirio.
209
Temática abordada na palestra de abertura do III Encontro Marista de Tecnologias Aplicads à Educação -
EMATEC. PUCRS, janeiro de 2003.
O Jornal com Bah! foi muito bom, eu nunca tinha participado de um evento assim... Eu achei legal
ter feito, foi bem diferente. Tive que correr atrás, entrevistar pessoas.. Tive que aprender a mexer
no computador, acho que sem o computador não ia conseguir montar o jornal, ele me ensinou
bastante também... No computador parece que eu me inspiro mais a escrever... [...] Quando olhei
na Internet, quando vi meu texto no computador, minhas colegas disseram que estava muito bom
mesmo. Eu li meu texto de novo e vi que estava ótimo mesmo! Eu fiquei feliz, foi uma coisa
importante que eu fiz e que vai marcar minha vida para sempre...
(
Dados de
p
es
q
uisa
Entrevista
Aluna C.M.
Escola Leste
Novembro/2002
)
292
Apropriando-se também das possibilidades do espaço virtual, os repórteres-
jornalistas ocupavam outros espaços e ultrapassavam os limites estabelecidos pelo território
escolar. A repercussão das publicações escolares da rede municipal de ensino abriu, para
aprendizes da periferia de Porto Alegre, novos tempos e espaços de autoria: o Jornal com
Bah! distribuído para diferentes parcelas do mundo durante o Fórum Social Mundial, a
cobertura jornalística do Fórum Mundial de Educação e, seguindo a lógica de autoria que
fundamentava o projeto do Jornal com Bah!, no ano de 2003, alunos de seis escolas
municipais tornaram-se os pequenos repórteres a tomar posse e a exercer sua autoria no tempo
e no espaço em que batia o coração cultural de Porto Alegre, na 49
o
Feira do Livro, ao assinar
reportagens no impresso da Secretaria Municipal de Cultura – Porto & Vírgula. Como atores
e autores, alunos da periferia de Porto Alegre ocupavam com competência e qualidade os
espaços da cidade de Porto Alegre, não como a franja de uma sociedade, não como exóticos e
divertidos brinquedos, mas reconhecendo-se e sendo reconhecidos com sujeitos com
capacidade intelectual. Eram possibilidades reais de apropriação de ferramentas para ocupar
espaços culturais da cidade, não só o grafite, a capoeira, o hip-hop mas, também, um lugar no
mundo intelectual destinado às elites.
O movimento do Jornal com Bah! iria contaminar outros projetos pedagógicos que
teriam, na interface das ferramentas computacionais, o elemento impulsionador para substituir
o minimalismo pernicioso da indústria cultural midiática. Projetos em uma das mais áridas
áreas do conhecimento – a matemática – foram implementados, trazendo para o tempo e o
espaço escolares a alegria e o prazer de aprender!
Para tirar a camisa-de-força do computador, para procurar antídotos, como adverte
Guattari (1990), para a uniformização midiática e telemática, para o conformismo da moda e
Eu achei que eu não era capaz de fazer isso... A gente é acostumado com a gente, não parece
que a gente é tanto! Parece que sou outra pessoa, se eu estivesse aqui sozinha não ia
reconhecer a minha voz e nem o que falo nesses textos... Eu olho a tela... isso aqui fui eu que
escrevi, mas olhar em outro lugar, parece que não sou eu... Todo o mundo, os outros vão
conhecer os primeiros autores do Jornal com Bah! [...] Com o jornal comecei a usar o
computador, a escrever e-mail, a conversar com outras pessoas. Eu não tenho telefone, não tinha
como me comunicar com outros alunos que participam do Grêmio Estudantil... Aí eu pensei, no
meu colégio tem computador, vou fazer um e-mail e assim me comunico com eles! Foi aí que
começou... Eles me mandam um monte de textos sobre muitos assuntos... A última vez, eles me
mandaram um texto sobre a ALCA, depois discutimos ser contra ou a favor. Claro que eu sou
contra (risos!!!) Eu até enviei um e-mail para um deputado de Brasília! [...] É muito legal, parece
que a gente vai mais longe, muito mais longe...
(Dados de pesquisa – Entrevista – Aluna S.A. – Escola Leste – Novembro/2002)
Várias pessoas poderão ver o nosso jornal – o Jornal com Bah! É diferente da Internet, porque o
que tu vê é só compra, venda e troca!
(Dados de pesquisa – Entrevista – Aluna C.M. – Escola Leste – Novembro/2002)
293
das manipulações da opinião pela publicidade e pelas sondagens, foi preciso possibilitar a
construção de outras interfaces que não a do fliperama e a do shopping virtual de imagens e
informações. Percorro o corpus de análise desta pesquisa, agora, para dar visibilidade a
interfaces que potencializem romper com a deserção e a teatralização pedagógicas.
Direciono meu olhar para além do computador, para tirar da opacidade as redes de apoio e de
aprendizagem que começaram a ser tecidas na periferia de Porto Alegre. Caminho por
entrevistas, por arquivos de computador, para revelar ações educativas que têm como porta de
entrada uma prática utilitarista, mas que, ao longo de seu processo, superaram esse modelo e
forjaram tempos e espaços que alteraram estruturas cognitivas, que apagaram marcas de
aprendizagem não-realizadas, que assumiram o desafio de construir novas experiências
individuais e coletivas.
Desnaturalizar padrões, contemplar o não-esperado e o inusitado, construir pontes
mais seguras para a tradução dos saberes que parecem ter sido afastados (ou quem sabe
negados) de sujeitos de classe popular passavam a ser o fio condutor de um projeto de
aprendizagem matemática no ambiente informatizado, desenvolvido com as turmas do III
ciclo na Escola Leste. Era sob a lógica de buscar mais perguntas do que respostas, que uma
professora de matemática que não sabia nem como se liga aquilo (computadores) colocava-se
como sujeito de aprendizagem e fazia nascer o projeto de construção de conceitos
matemáticos pela interface das ferramentas computacionais. Era não acatando a forma como a
dificuldade de aprender matemática tem sido naturalizada no tempo e no espaço escolares
que as tecnologias digitais passaram a construir novas interfaces.
Foram analisados recursos disponibilizados no ambiente informatizado e
desencadeadas pesquisas nos ambientes de aprendizagem da Web , mas era preciso que a
ferramenta computacional possibilitasse aos alunos a construção do conceito matemático e
que, também, respeitasse a diversidade dos percursos de aprendizagem dos alunos do III
Ciclo. A plasticidade do recurso computacional da planilha de cálculo do OpenOffice, na
novidade do sistema operacional GNU/Linux, permitiu que o primeiro desafio encontrasse
sua resposta: a relação cor-forma passava a ser construída e a garantir a construção do
conceito matemático de monômios e polinômios. Com interfaces possibilitando manipular
categorias como cor e forma, conceitos matemáticos no âmbito da Álgebra eram
apropriados e aplicados por alunos de classe popular. A simplicidade da interface (Figura 8), a
facilidade de manipulação e a possibilidade de retorno imediato de muitas hipóteses de
aprendizagem garantiam um ajuste do processo pedagógico à peculiar trajetória de
aprendizagem de cada aluno. Era rompendo com a homogeneidade da sala de aula e passando
294
para a heterogeneidade da ação do ambiente informatizado que o direito à aprendizagem era
garantido.
Figura 8 – Uma das interfaces computacionais modeladas para mediar a construção de conceitos
matemáticos de Álgebra. Era a lógica do inusitado contemplada na forma pouco utilizada dos recursos de
programação da planilha eletrônica.
Na ação do professor sobre a ação de alunos do III Ciclo, operando sobre a lógica da
verticalidade - que acrescenta possibilidades para edificar projetos de vida uma relação entre
sujeitos que não passa pela diminuição do outro -, o tempo e o espaço para aprender
matemática eram construídos no ambiente informatizado da Escola Leste. Com a professora
que apoiava a caminhada de cada aprendiz, que alterava a altura de seu olhar e do tom de voz,
o saber matemático começou a habitar o ambiente informatizado em meio a monitores, CPUs,
mouses e teclados. Expressões comuns ao processo de aprendizagem, principalmente entre os
adolescentes, e reforçadas quando o que está em jogo é o conhecimento matemático – não
consigo fazer, vou desistir, isso é chato e cansativo – desapareciam no ambiente
informatizado.
A hora do recreio – uma das parcelas do grande espaço homogeneizado pretendido
pela escola - era com freqüência o espaço-tempo utilizado pelos alunos para aprender -
Professora, quero terminar meu trabalho de matemática! Era o horário de recreio
identificado como o tempo e o espaço escolares mais aguardados e queridos pelos aprendizes
por não estabelecer uma relação mais próxima com os saberes que edificaram o patrimônio
cultural da humanidade - o ambiente informatizado cheio de adolescentes de classe popular
curtindo aprender matemática!
O entrelaçamento do saber matemático com o saber da informática rendeu saborosos
frutos, fazendo o projeto explorar cada vez mais novas possibilidades. Era visível o
movimento que a estratégia pedagógica mediada pela interface dos recursos computacionais
295
desencadeava nos grupos de alunos, o prazer em estudar matemática e, com ele, o prazer de
estar na escola! Eram aprendizes que rompiam com a exclusão simbólica, a qual os
transformava em uma massa vulnerável à manipulação midiática. Estar na escola era
importante para aprender e marcar com a palavra sucesso a trajetória de alunos assombrados
pelo mito da matemática!
Era um efetivo movimento de inclusão escolar que a materialidade computacional
começava a fazer acontecer, uma possibilidade de ter mais um na escola não por meio de
políticas de distribuição de renda ou pela via legal na ação do Conselho Tutelar e do
Ministério Público. Era na conquista de um sentido menos imediato de por que estar na
escola, era na possibilidade de apropriação de instrumentos cognitivos para uma ação mais
qualificada sobre o mundo, que a expressão inclusão escolar, pela capacidade e pelo direito
de aprender, encontrava uma outra redação, impressa na memória de sujeitos da periferia de
Porto Alegre, perspectiva que a observação disponibilizada a seguir permite elucidar:
O sucesso desse projeto levou à modelagem de outras estratégias pedagógicas que
permitiram colocar o saber matemático em situações próximas ao cenário da sociedade regida
pelo poder do mercado. O cálculo da inflação e a aplicação no mercado financeiro virtual
foram ações educativas que levaram à construção de uma rede de aprendizagem para traduzir
as práticas do mundo financeiro para sujeitos que se encontram distantes dos benefícios da
sociedade de consumo. Novamente, utilizando os recursos disponibilizados pela planilha
eletrônica, foi criado, no ambiente computacional, uma interface (Figura 9) para que os alunos
escolhessem entre quatro ativos financeiros – poupança, dólar, ouro e CDB – para aplicar a
quantia de R$ 100, 00 que cada um recebeu virtualmente
210
.
210
Por meio dos recursos disponibilizados pela planilha de cálculo, alunos registraram, de março a
novembro, a variação dos índices de cada ativo financeiro, consultando, para isso, os indicadores
disponibilizados por Alice Richetti, a contadora que forneceu, virtualmente, o suporte técnico ao longo do
projeto de matemática financeira.
Um aluno que estava do lado de fora da escola, ao perceber o movimento em direção ao
ambiente informatizado, correu para entrar na escola, dirigiu-se para a professora, pediu desculpa
e se justificou: Eu não estava vestido para vir à escola, mas eu não poderia deixar de participar
dessa aula! Com a roupa um pouco suja e com seu chinelo de dedo, era mais um na escola, era
a inclusão digital forjando a inclusão [...].
(Dados de pesquisa – Observação – Escola Leste – Setembro/2002)
296
Figura 9 – Interface construída na planilha eletrônica do OpenOffice no sistema operacional
Linux/GNU para simular uma aplicação no mercado financeiro.
Conhecer as variações de cada ativo financeiro possibilitou que a aprendizagem de
conceitos matemáticos, como juros e porcentagem, se tornasse mais significativa, além de
potencializar uma aproximação e compreensão de termos do mercado financeiro: aplicação de
risco, variação do dólar, taxas de poupança e do CDB. O saber matemático e o da informática
traduziram, para sujeitos da periferia de Porto Alegre, o discurso do mercado financeiro e seu
entendimento por uma outra interface que não apenas a autorizada pela cultura da telinha!
Passar dos conceitos e lógicas do mercado financeiro para o cálculo da cesta básica
de famílias dos alunos do III Ciclo foi a estratégia construída no ambiente informatizado da
Escola Leste com o objetivo de traduzir o fenômeno da inflação. Aproximar e traduzir uma
linguagem matemática, colocar nas mãos desses jovens aprendizes o cálculo da cesta básica e
a construção do índice de inflação de forma real, ou seja, acompanhar a variação de preços no
orçamento de cada família era a meta assumida pelo saber da matemática valendo-se das
ferramentas computacionais disponibilizadas no ambiente informatizado. Para ampliar a rede
de apoios, para colocar em prática o conceito da cidade que ensina e que aprende, uma
comunidade educativa foi buscar a assessoria técnica da equipe do DIEESE (Departamento
Intersindical de Estudos Econômicos e Estatísticos) para apoiar a consulta de índices na rede
mundial de computadores, dissipar dúvidas e construir novos saberes por meio de palestras,
acompanhar a construção das tabelas para a coleta de dados e análise dos resultados, que
culminou com o cálculo do índice de inflação de cada família participante da pesquisa (Figura
10).
297
Figura 10 – Interface e a programação construída pelos alunos na planilha eletrônica do OpenOffice no sistema
operacional Linux/GNU para o cálculo da inflação.
Saber onde comprar e como organizar o orçamento familiar passaram a ser
experiências vivenciadas por alunos do III Ciclo, uma aprendizagem que se colocava para
além dos muros da escola, para além do tempo e do espaço escolares, para a vida! As palavras
de uma aluna protagonista do projeto sobre inflação elucida essa dimensão:
Era uma comunidade escolar que projetava espaços individuais e coletivos
incentivando a co-gestão e estabelecendo relações de reciprocidade que valorizavam a
originalidade de cada um de seus membros. A expressão inclusão digital efetivava-se no
tempo e no espaço escolares ao disponibilizar, para a comunidade educativa, interfaces que
respeitavam suas necessidades e preferências e que potencializavam a inclusão escolar para
sujeitos tradicionalmente excluídos por sua condição econômica, social, racial e cultural.
Cada unidade educativa da rede municipal de ensino, pelo direito de publicar sua home
page, conquistava uma nova virtualidade e, sob o ritmo de um outro tempo e pela métrica de
Quando recebi a tabela para acompanhar a variação do preço dos produtos, mostrei primeiro para
minha mãe, pois meu pai estava trabalhando. Eles gostaram e minha mãe já falou que eu tinha
que juntar todas as notinhas para fazer a coisa bem-feita. Todo sábado a gente vai ao
supermercado para comprar, daí comecei a pesquisar o preço, a prestar mais atenção, a ficar
mais ligada em tudo que fale de inflação. Mesmo que a gente não comprasse arroz, olhávamos o
preço para ver se tinha ocorrido alguma variação. Cada sábado que ia ao supermercado o preço
estava diferente, o preço sempre muda. Não deixava acumular nenhuma notinha. Eu deixava a
tabela em cima da mesa dentro de um saco plástico e meu pai e minha mãe deixavam as notinhas
presas no clips. [...] Estou aprendendo a economizar. Para mim é importante economizar pois
ajuda a pagar o aparelho para os meus dentes... Esse projeto é bem importante para mim.
(Dados de pesquisa – Entrevista – Aluna M. – Escola Leste – Novembro/2004)
298
um outro espaço, movimentos de aprendizagem eram instituídos. A Escola Leste assinava seu
espaço na Galáxia da Internet, modelando um novo território escolar com o propósito de não
reduzir sua plasticidade, sua interatividade e seu potencial comunicativo a uma ferramenta de
marketing institucional. Era para a aprendizagem e não para a superexposição que o layout da
home page (Figura 11) da Escola Leste projetava áreas virtuais para construir rotas com
múltiplos sentidos para o processo educativo, para, como adverte Fortuna (1998), estabelecer
uma ruptura com as empobrecedoras fórmulas exclusivas de ensino-aprendizagem, para que
aprendizes da periferia de Porto Alegre aprendessem a desafiar o aprender!
Figura 11 – Página de abertura da home page da Escola Leste e suas principais áreas de interação. O tempo e o
espaço projetados para apoiar trajetórias de aprendizagem de sujeitos em processo educativo estão disponíveis
no endereço eletrônico http://websmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/marcirio.
Da matemática para outras áreas do conhecimento, da planilha eletrônica para as áreas
de aprendizagem na home page, eram movimentos que projetavam outros tempos e espaços
para promover a aprendizagem pela interface das tecnologias digitais. Era o desafio de
construir uma das possíveis respostas à deserção e à teatralização pedagógicas. Cada nova
ação pedagógica construída pela interface das tecnologias digitais abria um conjunto de novas
possibilidades de aprendizagens e, com elas, a suspensão de uma prática de discriminação
cultural que estabelecia, para a classe popular, um processo educativo que cristalizava um
tempo e um espaço escolares vinculados ao controle social: a operação de limpeza social, que
Área
Apoio ao processo de
a
p
rendiza
g
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Jornal com Bah!
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e
.
Área
Projetos de
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299
tira dos olhos da sociedade sujeitos que provocam o medo e a quebra das redes de segurança e
que comprometem a liberdade do sujeito consumidor. Pela positividade das tecnologias
digitais de informação e de comunicação, eram disponibilizadas ferramentas para romper com
a visão do processo educativo como o casulo protetor da escola, que captura consumidores
falhos, retirando-os da rua para, assim, retardar seu ingresso no mundo regido pelo mercado,
em que jovens da periferia das grandes cidades talvez tenham, como único destino, o
desemprego e, quando muito, o subemprego.
As ferramentas computacionais, ao projetar e modelar espaços para deixar fruir
tempos internos, tiraram da opacidade duas ações fundamentais que devem fazer parte do
processo educativo– recordar e projetar o futuro. Por meio da aprendizagem, sujeitos
conquistavam os instrumentos de competência de leitura e de interpretação para tradução do
cenário social que possibilitam ancorar o tempo presente à pulsação frenética do tempo
acelerado e da nova métrica do espaço. Forjar as condições para a construção de projetos de
vida deve ser o software a rodar nos inúmeros hardwares presentes nos ambientes
informatizados da periferia de Porto Alegre, uma vez que, como adverte Melucci (2004,
p.29), a vida humana não é possível sem memória e sem projeto de futuro. É a energia do
potencial interativo das tecnologias digitais de informação e de comunicação que abre a
possibilidade de construir tempos e espaços a fim de fazer emergir, no processo educativo,
como aponta Guattari (1990), novos agenciamentos coletivos para tornar seus atores, a um só
tempo, solidários e cada vez mais diferentes.
Sob a lógica do jogo do duplo – limite e possibilidade –, conduzi a análise do corpus
construído para esta Tese, não para acusar ou lastimar, mas para conjugar o verbo
transgredir. Se a sociedade do espetáculo apaga o encanto e a paixão pela utopia, também
coloca, nas mãos humanas, a possibilidade de projetar novos tempos e espaços. Espaços para
o saber que a inteligência coletiva possibilita; tempos para fazer entrelaçar a linha e o círculo
e, assim, ascender a espiral pela união da presença, da memória e do projeto.
300
DO HARDWARE PARA O SOFTWARE – A ESCOLA NA
ESPETACULAR SOCIEDADE DE CONTROLE
Se quisermos um mundo melhor, teremos que inventá-lo, já sabendo que
conforme vamos nos deslocando para ele, ele vai mudando de lugar (Veiga-Neto,
2003a, p.31).
Ao aproximar-me das palavras que finalizam um texto que aborda os movimentos
desencadeados na instituição escolar com a inserção da materialidade e do saber da
Informática na Educação no conjunto de escolas na rede municipal de Porto Alegre, escrever
uma conclusão - projetar possíveis novas verdades - coloca-se como uma tarefa nada fácil,
uma quase impossibilidade justificada pela contemporaneidade e mutabilidade do tema
problematizado e pela própria perspectiva escolhida para conduzir esta pesquisa: não julgar
ou prescrever, simplesmente desenvolver uma análise que possibilitasse dar visibilidade às
continuidades e rupturas que começaram a ser tecidas na instituição inventada na
modernidade para promover novas relações sociais, para impulsionar um processo de
individualização do controle social. Coerente com essa perspectiva assumida, retomo,
brevemente, a trajetória percorrida no desencadear desta pesquisa, colocando em destaque
seus movimentos mais significativos.
As ferramentas que impulsionam a percepção do fenômeno de compressão espaço-
temporal conquistaram um lugar no edifício escolar no momento em que o contexto político-
pedagógico da rede municipal de ensino de Porto Alegre passou a operar sob novas relações
de poder e sob novas configurações de espaço e de tempo. Na imbricada relação desses dois
elementos, foram lançadas as âncoras para a ação da iniciante pesquisadora, que vivenciou a
escolarização por Ciclos de Formação e a construção de uma política pública que oficializava
a inserção de tecnologias digitais de informação e de comunicação no tempo e no espaço
escolares. Foi no entrelaçamento desses acontecimentos, que, em meio a tantas possibilidades
investigativas, as categorias de tempo e de espaço estabeleceram-se como fios condutores
desta trama investigativa. A especialista em Informática na Educação afastava-se de suas
certezas e verdades e, estranhando o caráter necessário para inserção desse novo saber no
processo educativo, passava a assumi-lo como não mais imune a um cenário social que
301
cristaliza uma forma de olhar tutelada pelos apelos excessivos do mundo imagético e que
transforma o indivíduo de cidadão político em consumidor.
Desconstruir as noções de tempo e de espaço, desnaturalizar e romper com a forma de
percebê-las como propriedades naturais da humanidade, que existem independentemente de
suas ações, colocaram-se como o movimento central desta pesquisa. Tempo e espaço foram
libertados de identidades e restrições cristalizadas, para oportunizar que a imanente
transformação espaço-temporal e suas repercussões fossem abordadas, em nível macro, na
organização sociocultural, política e econômica da sociedade contemporânea e, em nível
micro, nas diferentes formas de escolarização. No desafio dessa ação, construí uma grade de
inteligibilidade – tempo-espaço-tecnologias de poder –, percorri a história, em suas
continuidades e descontinuidades, para problematizar as configurações temporais e espaciais
como construções sociais que, numa relação de imanência, assumem, não somente a forma de
representação do mundo, mas a do próprio grupo humano - diferentes percepções e sentidos
espaço-temporais que interpelaram o homem ao longo de sua história, produzindo um
ordenamento para o corpo individual e social.
Ao historicizar os significados e as percepções de tempo e de espaço, percorri sua
construção histórico-cultural para apontá-los como elementos inventados e reinventados pela
sociedade, como produto e processo de acontecimentos de ordem intelectual, técnica e social
que, em suas diferentes configurações, transformaram sujeitos e formas de organização social.
Apropriei-me de imagens e metáforas: para o tempo – o círculo, a flecha, o ponto – e, para o
espaço – a terra, o território, a mercadoria –, figuras de linguagem criadas pela cultura para
representar simbolicamente temporalidades e espacialidades e, assim, romper com as formas
reificadas que dificultam compreender o processo histórico-cultural de sua construção.
Da temporalidade mágica, circular, fluida e envolvente da época clássica, passava-se,
com a racionalidade técnica e com a herança judaico-cristã, para a perspectiva linear para o
tempo. A narrativa cristã, ao introduzir a gênese e o paraíso, estabelecia limites - a queda e a
redenção – e, no desenrolar desse percurso linear, a história da salvação depositava, no
paraíso, na eternidade, o sentido mais profundo para a experiência da temporalidade. A
modernidade buscara, na herança dessacralizada do tempo cristão, a orientação finalista para
o tempo colocando-o sob a tutela do progresso, fazendo-o operar sob a referência do relógio e
da meta. A idéia de progresso alimentou a industrialização, e o sistema-fábrica passou a ser o
modelo sociocultural e econômico a que, por vontade ou por imposição, todo o planeta se
submeteu. Da salvação religiosa para a salvação laica e secular, a humanidade confiava na
racionalidade técnico-científica e incorporava, ao futuro, o sentido do presente.
302
Transformações técnico-científicas alteravam o ritmo do mundo, um acelerado movimento
que modificava radicalmente a forma de percepção do tempo. A flecha do tempo era
quebrada, e uma nova experiência de temporalidade passava a ser vivida, não mais como um
fluxo, mas como instantes congelados de tempo, uma temporalidade reduzida a leitura de
sinais e a uma elaboração cognitiva abstrata.
Do espaço sensorial e mítico para os limites do espaço geometrizado pela
racionalidade matemática, o homem começava a produzir sua identidade territorial. Uma
percepção para a espacialidade tornava-se hegemônica, erguendo barreiras e fronteiras,
demarcando e restabelecendo, continuamente, o dentro e o fora, o interior e o exterior, para
dominar, fixar, inscrever, medir e produzir indivíduos e populações. O avanço tecnológico e
os agenciamentos sociais produziam um espaço dessacralizado, capaz de ser conquistado,
controlado e dominado. O mapa geometrizado era o instrumento cartográfico que fazia
emergir uma totalidade apreensível para ação e ocupação, para potencializar a apropriação e a
localização física e simbólica do homem. O triunfo renascentista da impressão, a criação da
moeda, a revolução industrial e a construção do primeiro mercado mundial estabeleceram as
condições de possibilidade para a configuração de uma nova espacialidade e de um novo
mundo, tecidos pela circulação cada vez mais intensa e rápida de uma virtualidade, o dinheiro.
A experiência do tempo e do espaço foi subordinada aos fluxos econômicos e às leis do
mercado.
Ao historicizar as diferentes percepções espaço-temporais, promovi uma importante
articulação com o objeto de pesquisa: tempo e espaço não podem ser compreendidos como
sendo independentes de ação social. Assim como condicionaram uma determinada percepção
de mundo, as configurações de tempo e de espaço instituíram dispositivos para a preservação
da ordem social. Sociedade de Soberania, Sociedade de Normalização e Sociedade de
Controle foram três grandes momentos da história da sociedade ocidental em que emergiram
formas de viver e de conviver, instituindo e sendo instituídos por diferentes configurações
espaço-temporais, cenários que deslocaram e transformaram as maneiras de pensar e de
conviver da espécie humana.
As tecnologias disciplinares que emergiram no século XVII, centradas no corpo dos
indivíduos, produziram resultados mais duradouros e profundos que os castigos e as
violências corporais. O disciplinamento imprimia a desejada docilidade aos corpos. Eram o
corpo individual e o corpo coletivo tomados em suas existências espaciais e temporais e
ordenados por meio de práticas de disciplinamento e panoptismo: pela arte de distribuir no
espaço, pelo controle da atividade no uso ritmado e racional do tempo, pelo constante jogo de
303
visibilidade, pelo exame e pela vigilância hierárquica. Tempo e espaço mediatizados pela
razão possibilitaram que as relações violentas fossem, progressivamente, substituídas por
outras relações para o controle do corpo individual e coletivo. Uma nova dinâmica para
coerção deslocava a ênfase da soberania do território para a população, e uma ação
reguladora/ordenadora permitiu conhecer características de cada grupo e de cada sujeito. A
arte de governar corpos individuais e coletivos afastava-se do modelo soberano/senhor/pastor
para voltar-se para princípios centrados no Estado, apoiada por uma multiplicidade de
instituições sociais.
Espaços fechados foram edificados para segregar difusas massas humanas e
diferenciá-las do conjunto da população, promovendo uma maior regulação e ordenamento.
Nesse cenário instituído pelas tecnologias de disciplinamento, emergiram instituições
destinadas, especificamente, para o ensino, como forma de resposta a demandas sociais que
se colocavam com a expansão do capitalismo e os processos de industrialização e de
urbanização: era preciso neutralizar as lutas de classes por meio de uma estratégia que
harmonizasse os interesses do trabalho e do capital com as demandas do movimento operário.
A invenção do estatuto da infância; a configuração de um tempo e um espaço específicos para
a educação, possibilitada pela aliança entre família e escola e pela emergência da ciência
pedagógica com teorias e códigos autorizados a operar sobre a infância; a institucionalização
e a imposição da obrigatoriedade da escola foram os elementos que amalgamaram uma nova
forma de escolarização, a escola do hardware.
Da sociedade de soberania para a sociedade estatal, a escola cumpriu seu papel
decisivo para a construção do mundo moderno: a maquinaria capaz de transformar sujeitos em
objetos do poder disciplinar, atuando ao nível do corpo e dos saberes. O pensar e o agir
disciplinares eram não só naturalizados mas assumidos como uma necessidade. A norma e a
disciplina foram a matriz moderna que permitiu a inteligibilidade, a comunicação e a
convivência para o corpo individual e coletivo. A secularização das práticas pedagógicas
rompia com o processo educativo ritualizado das sociedades de soberania, que possibilitava a
coexistência da magia, da adivinhação e da erudição. Idade e níveis de desenvolvimento
ganharam visibilidade nas instituições educativas, tornando-se critérios de agrupamento dos
alunos. O processo educativo dividido em séries sucessivas e uma seqüência obrigatória de
estudos promoviam a ortopedia física e moral para forjar o moderno homem racional.
O avanço tecnológico e a densificação das redes de comunicação e de transporte
desestruturaram relações espaciais, desencadeando uma crise nas instituições projetadas para
o disciplinamento – a família, a escola, a fábrica - que alicerçaram o mundo moderno. No
304
rastro da crise da educação escolarizada, que se articulava com a crise da própria
modernidade, uma nova forma de escolarização fazia sua entrada nas unidades educativas da
rede municipal de ensino de Porto Alegre. No deslocamento da escola seriada para a escola
ciclada, novos dispositivos de controle para a relação entre coerções externas e internas
interpelaram tempos e espaços escolares e colocaram em evidência que não existe forma de
escolarização isenta de regulação e de controle.
Percorro os movimentos que projetaram e implementaram a Proposta Político-
Pedagógica dos Ciclos de Formação da Escola Cidadã, não para condená-la ou absolvê-la,
mas para situá-la como um conjunto de práticas e de discursos que emerge no rastro das
contemporâneas configurações espaço-temporais. Sob a dinâmica da educação como um
espetáculo, a participação era exigida como forma de inibir resistências e para que fosse
desencadeado um movimento de desprivatização da escola pública municipal. Novos lugares
no edifício escolar - Turmas de Progressão, Laboratório de Aprendizagem, Salas de Recurso e
Integração, Ambientes Informatizados – foram estabelecidos para que os verbos participar,
incluir, democratizar e desprivatizar passassem a ser conjugados e, assim, suscitar novas
práticas avaliativas, eleger novos conteúdos, colocar o rótulo de flexível nos tempos, nos
espaços e nos currículos escolares.
A escola projetava um processo pedagógico customizado para respeitar e satisfazer as
necessidades e a diversidade de estilos de aprendizagem. O saber pedagógico que
tradicionalmente havia dominado o tempo e o espaço escolares era evaporado, e a escola
fragilizava seus antigos territórios para que a ação lúdico-tecnológica inaugurasse o alucinado
parque de entretenimento no edifício escolar. O saber científico perdia seu lugar privilegiado,
pulverizado por uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento. O aluno
tornava-se parâmetro de si mesmo, e reprovação era a palavra apagada da prática educativa
para que, além do direito de acesso, também fosse garantido ao aluno o direito de não mais
interromper seu processo de aprendizagem, de não mais ser afastado de seu grupo etário. Um
processo de desmedida era colocado em prática na recusa a um sistema métrico de avaliação e
na sua relativização levada ao extremo.
O tempo e o espaço escolares eram flexibilizados com a descoberta de que era mais
produtivo manter o aluno na escola do que fora dela, de que era preciso garantir que ele
continuasse inserido no processo de escolarização. Sob um conjunto de políticas públicas de
regeneração e de profilaxia social, uma fantasmagoria passava a assombrar o processo
educativo e a colocar uma estranha diversidade humana no edifício escolar. Sob a ação de
novos parceiros, como os Conselhos Tutelares e o Ministério Público, nenhum a menos na
305
escola era garantido, para que esses estranhos aprendizes seguissem a letra de uma música do
rapper Gabriel, o pensador: Estou aqui para quê? Será que é para aprender? Era na crise da
sociedade disciplinar e de suas instituições, como adverte Cardoso Jr (2002, p.194), que “a
família já não forma moralmente, aprendemos , na escola, o que não se deve, a prisão já não
recupera mais...”, que a materialidade e o saber Informática na Educação fazia sua entrada no
tempo e no espaço das escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre.
Guiada pelas reflexões de intelectuais que tematizam o viver e o conviver no mundo
acelerado, que presentifica o tempo e planetariza o espaço, e apoiada pela grade de
inteligibilidade tempo-espaço-tecnologias de poder modelada para esta Tese, assumo a autoria
do movimento analítico, iniciando um processo de auto-organização de unidades do corpus,
movendo-me da quantidade para a qualidade, da explicação causal para a compreensão
globalizada. Começo a responder aos questionamentos que acompanharam o pensar e o fazer
desta pesquisa, para dar visibilidade às temporalidades e espacialidades experienciadas na
instituição escolar com a inserção das ferramentas de compreensão de tempo e de espaço.
Deixando o corpus de análise falar, limites espaço-temporais foram projetados – do tempo e
espaço para colonizar ao tempo e espaço para fruir – não para inscrever um juízo de valor,
não para eleger o melhor tempo/espaço, uma vez que coexistem sem reduzir, assimilar ou
destruir qualquer um deles.
Ao problematizar a inserção da materialidade e dos saberes da Informática na
Educação no tempo e no espaço escolares da periferia de Porto Alegre, procurei tornar visível
a construção de novas ações e o redimensionamento de tradicionais práticas de
disciplinamento e de controle individual e coletivo no contexto político-pedagógico da escola
por ciclos de formação. Em busca de um novo ordenamento ajustado à moldura sociocultural
da espetacular sociedade de controle, foi projetado, no edifício escolar, um novo lugar, o
ambiente informatizado - a heterotropia projetada por uma equipe multidisciplinar de
especialistas como um dispositivo técnico-arquitetônico, que maximizou a lógica do
panoptismo, o grande instrumento para manter juntos coletivos humanos, ao instituir
refinados instrumentos do controle que possibilitavam, de forma remota, rastrear e controlar
informações disponibilizadas nas redes e nos bancos de dados digitais. Entrelaça-se o
panóptico, que força os indivíduos a uma posição no tempo e no espaço para o
disciplinamento cognitivo e comportamental, ao sinóptico, que, por meio dos bancos de
dados e da interatividade das ferramentas da Internet, torna corpos individuais e coletivos
informaticamente amarrados e controlados.
306
A alfabetização tecnológica potencializava a tradução das ferramentas de compressão
espaço-temporais no tempo e no espaço escolares. Era por meio da participação e da
necessária exposição às tecnologias computacionais que comunidades educativas
apropriavam-se da funcionalidade de interfaces computacionais, traduziam a linguagem e a
gramática da escrita pós-alfabética e desenvolviam, de forma individual e coletiva, a
capacidade de utilizar a informação como um recurso reflexivo. Da mesma forma que a escola
teve papel central para garantir a produção e reprodução da sociedade industrial, traduzindo
uma ordenação racional do tempo e do espaço, popularizando o uso do relógio e difundindo o
conhecimento cartográfico, a espetacular sociedade de controle se produz e reproduz pela
capacidade de aproximar grupos humanos das ferramentas digitais de comunicação e de
informação.
Com a apropriação das ferramentas do mundo digital e o desenvolvimento de
capacidades formais de aprender a aprender, a rede informacional conquistava uma maior
densidade ao incluir indivíduos, fazendo-os praticar os contemporâneos códigos culturais.
Recursos tecnológicos eram socialmente distribuídos, permitindo que indivíduos capturados –
com seus cérebros, motivações, sentimentos, emoções – acelerassem sua capacidade social de
individualização para tornarem-se terminais efetivos de redes informacionais complexas.
A capacidade social para a individualização era posta em operação no tempo e no
espaço escolares. Recursos de individualização potencializados e acelerados pelas ferramentas
digitais de informação e de comunicação foram distribuídos e experienciados para forjar o
sujeito disciplinado-psicológico-participativo, o sujeito com capacidade de conhecimento e
de tomada de decisão.
Nos movimentos que marcaram a ruptura entre a escola seriada e a escola ciclada, era
colocada em ação uma política de informatização para a rede municipal de ensino. Ao
recontar a implantação do projeto de informatização da escola cidadã em suas duas grandes
interfaces, Projeto Raiar e Escola, Conectividade, Sociedade da Informação, procurei dar
destaque a um processo que buscava fortalecer a ação docente sobre a ação do sujeito
aprendiz pela interface de ferramentas computacionais - em um primeiro momento, por meio
da apropriação de uma linguagem de programação modelada para o disciplinamento cognitivo
e comportamental de crianças pela interface do ambiente Logo e, em um segundo movimento,
para ajustar o processo educativo às demandas de um cenário social que vivenciava a
presentificação do tempo e a planetarização do espaço com a entrada na escola ciclada das
contemporâneas ferramentas de compressão de tempo e de espaço.
307
Numa ação utilitarista, a materialidade tecnológica colocada dentro do tempo e do
espaço escolares era reduzida a ferramentas de lazer e à gestão político-administrativa da
escola. Um projeto de alfabetização tecnológica para a apropriação da linguagem pós-
alfabética para professores das turmas de progressão foi implantado por meio de uma ação
interinstitucional. Escola, Conectividade e Sociedade de Informação foi a principal meta
estabelecida pela política de informatização da SMED, autorizada e avalizada,
pedagogicamente, pelo grupo de pesquisa do LEC/UFRGS e, financeiramente, pelo BNDES.
Com um programa de responsabilidade social para compor a política de
informatização de uma rede de ensino, a parceria SMED - LEC/UFRGS – BNDES era
firmada, e um ambiente computacional de aprendizagem a distância - AMADIS – era
modelado para instrumentalizar e apoiar professores regentes de turma de progressão na
construção de estratégias para garantir a permanência na escola de crianças e jovens em
situação de risco social. Sob a lógica de uma instituição financeira que entendia a Educação
como um negócio e sob a tutela de saberes técnico-pedagógicos acumulados por um
reconhecido grupo de pesquisadores, era desencadeado um novo processo de empoderamento
docente para apoiar a intervenção na trajetória educativa de sujeitos com longas histórias de
fracasso e exclusão cultural e social. Pela interface das tecnologias digitais de informação e de
comunicação, um novo conjunto de respostas interpelou sujeitos em situação de risco social
para, assim, responder ao desafio de garantir sua permanência na escola, evitando a evasão
escolar. A profilaxia e a regeneração social conquistavam novos instrumentos no edifício
escolar, dispositivos tecnológicos que não mais operavam em função de uma explícita
transmissão de saberes, de uma paixão de entender o mundo pelo conhecimento construído
historicamente pela humanidade, mas para ocupar tempos e espaços de sujeitos para que eles
continuassem inseridos no processo de socialização e presos nas tramas do lúdico-
tecnológico.
A densidade das redes informáticas e computacionais da espetacular sociedade de
controle tende a criar um hiato entre estamentos sociais. As contemporâneas ferramentas de
compressão espaço-temporais polarizam a condição humana: emancipa certos grupos
humanos, possibilitando uma liberdade sem precedentes frente à capacidade inaudita de se
mover e agir a distância, enquanto outros grupos assistem, impotentes, à volatilização das
poucas chances de liberdade, forçados a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político
de seu novo isolamento. De um lado, sujeitos com meios culturais e uma prática de leitura e
de escrita que cria um sentimento de competência e de legitimidade decisionais; de outro, uma
massa populacional sujeitada, um quase resíduo da civilização, que vive o abandono à ordem
308
das coisas e a maximização da alienação do mundo informático-midiático. Se a espetacular
sociedade de controle afrouxa laços afetivos e forja personalidades narcisistas e apáticas, se
tempos interiores são amortizados pela superexposição e pelo jogo da realidade virtual, a
outra face das ferramentas de compressão espaço-temporal deve apontar para a ação
condicionante e não-determinista do uso das tecnologias digitais de informação e de
comunicação.
Possibilidades de fruição de tempos internos foram colocadas em destaque, como com
o Jornal com Bah!, para dar visibilidade a um pensar e um fazer pedagógicos que combatem a
face amarga das tecnologias digitais de informação e de comunicação. O encanto da autoria e
do protagonismo que não aceita postergar tempos permitiu escrever uma história do presente
na consciência do limite e na promoção de sua superação. Experienciando o jogo do duplo –
limite e possibilidade –, a interface das tecnologias computacionais permitiu colocar, também,
nas mãos do aprendiz da classe popular, instrumentos para capacitá-lo a dinamizar as
máquinas cibernéticas na promoção de agenciamentos coletivos.
Desnaturalizando padrões e rompendo com a discriminação cultural que nega a
capacidade intelectual a aprendizes da periferia das grandes cidades, a materialidade e o saber
da Informática na Educação foram convidados a suscitar processos de ressingularização para
que indivíduos se tornassem solidários e cada vez mais diferentes. A história do presente foi
escrita sob a sombra da memória que, relida e reelaborada, coloriu projetos de vida pela
experiência da novidade, da transformação, da transgressão dos limites e da invenção de
novos tempos e espaços sociais e individuais.
As experiências de tempo e de espaço que alunos da periferia de Porto Alegre
começaram a vivenciar, para colonizar e para fruir, foram apresentadas para desacomodar o
pensar e o fazer da Informática na Educação, que, para encaixar e ajustar a escola à
flexibilidade e à volatilidade do mundo contemporâneo, reduziu o uso das tecnologias
computacionais a instrumentos para auto-regulação e contínuo autodisciplinamento do corpo
individual e coletivo. O deslocamento da escola do hardware para a escola do software revela
a proximidade dos atuais processos de escolarização com práticas desenvolvidas na esfera
produtiva da espetacular sociedade de controle. A ação desta pesquisa foi impulsionada não
pelo desejo de erguer um tributo ao saudosismo da velha e boa escola moderna,
particularmente significativo em momentos de crise, mas para construir um argumento que,
ao problematizar a deserção e a teatralização pedagógicas, possibilite desencadear uma atitude
de permanente reflexão, transgressão e reativação para os tempos e espaços escolares.
309
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