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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA LITERATURA
COMPARADA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E
LITERATURA COMPARADA
Da Literatura fantástica (teorias e contos)
Marcio Cícero de Sá
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Teoria Literária e Literatura Comparada, do Departamento de
Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini
São Paulo
2003
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2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA LITERATURA
COMPARADA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E
LITERATURA COMPARADA
Da Literatura fantástica (teorias e contos)
Marcio Cícero de Sá
São Paulo
2003
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3
DEDICATÓRIA
A minha esposa Eloise;
Aos meus pais, Deyse e Vicente.
4
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, não somente pelo trabalho de orientação, mas tamm
pela amabilidade e segurança com que o conduziu;
A minha esposa, pelo auxílio na busca de livros técnicos, pesquisas na
internet, incentivo e paciência com meus horários;
A todo o departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada;
E aos meus pais que, em primeira instância, proporcionaram e incentivaram
meu aprendizado durante toda minha vida.
5
RESUMO
A presente dissertação pretende realizar um levantamento das principais
teorias relacionadas com a literatura fantástica produzidas durante os séculos XIX e
XX, buscando suas características, diferenças e concordâncias.
Para tanto, inicia com uma leitura das tentativas de definição desta literatura
através do estudo de H. P. Lovecraft e Peter Penzoldt.
Parte, então, para uma leitura de três teorias mais consistentes sobre o
fantástico, quais sejam: o fantástico tradicional, de Todorov, o fantástico
contemporâneo, de Sartre e o estranhamento, de Freud.
A partir da leitura destas teorias, realizamos a ilustração das mesmas através
de três contos tamm produzidos durante os séculos XIX e XX: “Berenice” e “A ilha
da fada”, de E. A. Poe, e “A cidade”, de Murilo Rubião.
Por fim, sintetizamos e realizamos algumas considerações sobre o fantástico.
6
ABSTRACT
The present research intends to carry out a survey of the main theories related
to weird literature that were produced during the 19
th
and 20
th
centuries by searching
its characteristics, differences and concurrences.
Therefore, it initiates with a reading of the attempts of definition of that
literature through the study of H. P. Lovecraft and Peter Penzoldt.
Afterwards, we start with a reading of three more consistent theories on the
weird one, which is, the Todorov´s traditional weird, the Sartre´s contemporary weird
and the Freud´s “Umheinlich” (weird, strange).
From the reading of those theories we illustrated them by using three tales
which were also produced during the 19
th
and 20
th
centuries by E. A. Poe -
“Berenice” and “Island of the fairy” - and by Murilo Rubião - “A cidade”.
Finally, we synthesized and made some comments on the weird literature.
PALAVRAS-CHAVE/KEY WORDS (5)
Fantástico , Contos, Poe, Murilo Rubo, Freud.
Weird, Tales, Poe, Murilo Rubião, Freud.
7
SUMÁRIO
RESUMO...............................................................................................................................5
ABSTRACT...........................................................................................................................6
SUMÁRIO.............................................................................................................................7
ÍNDICE..................................................................................................................................8
1. O tema e os contos..............................................................................................................9
2. Definições e Indefinições..................................................................................................14
Primeiras definições .........................................................................................................15
A definição temática.........................................................................................................18
A análise do autor.............................................................................................................23
3. Contribuições importantes ................................................................................................31
Todorov e o fantástico tradicional.....................................................................................32
Sartre e o fantástico contemporâneo..................................................................................54
O trabalho de Freud - os sonhos e o estranhamento...........................................................62
4. Ilustrações ........................................................................................................................70
O Fantástico tradicionalBerenice”, de Edgar Allan Poe ...............................................73
O Fantástico contemporâneo e o absurdo – “A cidade”, de Murilo Rubião........................83
O mundo onírico e o estranhamento – “A ilha da fada”, de Edgar Allan Poe.....................88
5. Síntese e algumas considerações.......................................................................................96
6. Anexos ...........................................................................................................................102
“Berenice” de Edgar Allan Poe - tradução......................................................................102
“Berenice” de Edgar Allan Poe.......................................................................................111
“A Cidade” de Murilo Rubião.........................................................................................119
“A ilha da Fada” de Edgar Allan Poe - tradução.............................................................124
The Island of the Fay de Edgar Allan Poe....................................................................130
Referências Bibliográficas..................................................................................................135
8
ÍNDICE
1. O tema e os contos..............................................................................................................9
2. Definições e Indefinições..................................................................................................14
Primeiras definições .........................................................................................................15
A definição temática.........................................................................................................18
A análise do autor.............................................................................................................23
3. Contribuições importantes ................................................................................................31
Todorov e o fantástico tradicional.....................................................................................32
Sartre e o fantástico contemporâneo..................................................................................54
O trabalho de Freud - os sonhos e o estranhamento...........................................................62
4. Ilustrações ........................................................................................................................70
O Fantástico tradicionalBerenice”, de Edgar Allan Poe ...............................................73
O Fantástico contemporâneo e o absurdo – “A cidade”, de Murilo Rubião........................83
O mundo onírico e o estranhamento – “A ilha da fada”, de Edgar Allan Poe.....................88
5. Síntese e algumas considerações.......................................................................................96
6. Anexos ...........................................................................................................................102
“Berenice” de Edgar Allan Poe - tradução......................................................................102
“Berenice” de Edgar Allan Poe.......................................................................................111
“A Cidade” de Murilo Rubião.........................................................................................119
“A ilha da Fada” de Edgar Allan Poe - tradução.............................................................124
The Island of the Fay de Edgar Allan Poe....................................................................130
Referências Bibliográficas..................................................................................................135
9
1. O tema e os contos
10
O presente trabalho propõe-se a analisar o percurso da literatura fantástica
desde sua formação, no século XIX, até seu amadurecimento, no século XX.
Devido à extensa quantidade de obras relacionadas a essa literatura no
período acima proposto, tornou-se necessário selecionar alguns autores cujas
reflexões trouxeram contribuições teóricas que abriram caminhos para a
compreensão deste tema e gênero tão complexo, ainda que não nos dêem
respostas definitivas.
Assim, nosso trabalho objetivou verificar como se constituiu estruturalmente o
conjunto de idéias a esse respeito no âmbito de alguns pensadores, escritores e
estudiosos da literatura, como se relacionaram umas com as outras, em maior ou
menor grau, bem como compreender as semelhanças e diferenças entre as
mesmas.
Tivemos sempre presente a noção de que as idéias analisadas possuíam
íntima ligação com a cultura de seu espaço-tempo. Procuramos, desta forma, buscar
a interpretação do conceito de fantástico sem a intenção de gerar a unificação das
idéias dos autores selecionados, respeitando os vieses ou “flavours” que se
configuraram através dos séculos XIX e XX.
Nossa abordagem, conseqüentemente, não irá buscar o que definiria o
fantástico como um gênero autônomo
1
, mas tão somente estudá-lo ou interpretá-lo,
sem a necessidade de um rótulo que o posicione como um gênero literário
2
distinto.
Uma vez apresentado o percurso das idéias sobre o fantástico ao longo dos
séculos XIX e XX, serão feitas três leituras de contos, a título de ilustração, do que
chamaremos de fantástico tradicional, fantástico contemporâneo e estranhamento.
1
Para Bellemin-Noel, o fantástico poderia ser considerado umacnica narrativa ou maneira de contar
(BELLEMIN-NOEL, Jean. “Notes sur le Fantastique in Littérature n. 8, Librarie Larrousse, Paris,
1972, p. 3 e 4).
2
Para uma análise da Teoria do gênero podemos indicar FRYE, Northrop. Anatomy of Criticism –
Four essays, Princiton University, Princiton, 1957, p.243.
11
Em outros termos, os contos selecionados não constituem objeto de uma
leitura crítica, mas são utilizados como uma espécie de material de controle para
mostrar os limites conceituais que nunca dão conta da obra literária concreta.
Apesar disso, nosso objetivo é adentrar o que poderíamos chamar de
“universo fantástico”. Esclarecendo ainda: nossa entrada nesse tema é motivada por
uma indagação de ordem teórica, o que justifica o corpus literário apresentado como
ilustração.
Feitas essas considerações, iniciamos nosso trabalho constatando que o
termo fantástico foi associado, principalmente a partir do final do século XIX, às
obras que possuíam uma temática ligada aos fantasmas e ao seu campo semântico.
Segundo o dicionário Petit Larousse
3
, o fantástico é definido como: “onde estão
seres sobrenaturais: contos fantásticos”.
Utilizando-se do critério de um tema comum, escritores e teóricos da literatura
de então colocavam as “histórias de fantasmas”, as “narrativas maravilhosas”, as
“narrativas misteriosas” e mesmo as “narrativas sobrenaturais” sob uma mesma
denominação como se seus aspectos e estruturas formais fossem constantes. Um
conhecido autor inglês de narrativas fantásticas, M. R. James, assim comentava
sobre este tipo de literatura:
Tem-me sido freqüentemente pedido que formule as minhas opiniões sobre as
histórias de fantasmas e as narrativas maravilhosas, misteriosas ou sobrenaturais. Nunca
cheguei a descobrir se tinha algumas opiniões a formular. Suspeito, na verdade, que o
gênero é demasiado exíguo e especial para aceitar a imposição de princípios de grande
alcance...
4
3
Petit Larousse
4
JAMES, M.R., “Introduction, in V.H. Collins (ed.), Ghosts and Marvels, Oxford University Press,
London, 1924, p. 6.
12
Outro autor e teórico de narrativas sobrenaturais tratado em nossa análise foi
Howard Phillips Lovecraft, cujas idéias a esse respeito são assim formuladas:
Nós podemos dizer, de maneira geral, que uma estória fantástica
5
que pretenda
ensinar ou produzir um efeito social, ou na qual o horror é explicado por meio de regras
naturais, não é um conto genuinamente de grande medo, mas permanece como fato que
tais narrativas freqüentemente possuem, em partes isoladas, toques de atmosfera que
preenchem toda a condição da literatura de horror sobrenatural.
6
A preocupação com a temática na determinação de uma história fantástica se
aliava ao efeito esperado sobre o leitor implícito dessas narrativas. Ainda citando
Lovecraft, o principal fator que permitiria o julgamento de uma obra sobrenatural
seria a emoção que poderia suscitar:
... devemos julgar uma história sobrenatural não pelas intenções do autor ou pela
simples mecânica do enredo, mas pelo nível emocional que ela atinge no seu ponto mais
insólito
7
.
Além do tema específico e da reação provocada no leitor, aspectos da
personalidade do autor poderiam ajudar ou não na elaboração do fantástico:
5
Do termo em inglêsweird story”, segundo o Diciorio Langenscheidt (COELHO, C.M.
Langenscheidt’s Universal Dictionary, Langenscheidt KG, Berlin, 1984) do termo “weird”, esquisito,
estranho, misterioso ou fantástico.
6
LOVECRAFT, H. P. Supernatural Horror in Literature, Dover Publications, New York, 1945, p. 16.
7
Idem, p. 16.
13
... os que acreditam em foas ocultas são provavelmente menos eficazes do que os
cépticos no delineamento do espectral e do fantástico porque para eles o mundo dos
espíritos é uma realidade tão familiar que tendem a referi-lo com menos temor,
distanciamento e emotividade do que quem vê nele uma absoluta e assombrosa violação da
ordem natural
8
.
Desta feita, os problemas resultantes das tentativas de definição de uma
literatura fantástica se multiplicavam nas primeiras décadas do século XX. Como
pudemos observar nas definições transcritas, o termo fantástico, maravilhoso,
sobrenatural, misterioso e mesmo o horror e o terror se mesclavam sem a menor
timidez.
8
Idem, p. 82.
14
2. Definições e Indefinições
15
Primeiras definições
Várias foram as tentativas de definição de um gênero fantástico realizadas por
teóricos da literatura. Dentre elas, quatro obras de diferentes abordagens
conseguiram acrescentar novos parâmetros ao estudo desta literatura.
Uma das primeiras definições do fantástico foi realizada em 1927 quando o
conhecido escritor norte-americano de narrativas sobrenaturais, H. P. Lovecraft, ao
qual nos referimos há pouco, definiria o conceito de literatura fantástica através de
sua obra Supernatural Horror in Literature, publicada somente em 1945.
Constituindo-se numa das primeiras tentativas de equacionamento deste novo tipo
de literatura, seu enfoque voltar-se-ia para o agrupamento dos temas recorrentes em
narrativas de cunho fantástico ou sobrenatural. Entretanto, apesar dos problemas
encontrados em sua teoria, várias de suas afirmações seriam utilizadas em
trabalhos posteriores de outros autores.
Em 1947, Sartre publica a obra Situations I
9
e, no capítulo denominado
Aminadab, prepara sua definição para o gênero fantástico contemporâneo, ou seja,
para os contos de natureza fantástica que haviam sido escritos no século XX.
Estabelece-se, desta forma, uma divisão conceitual entre o gênero fantástico
realizado até o início do século XX, ou fantástico tradicional, e o fantástico realizado
a partir do século XX por autores como Kafka.
A terceira das obras que analisaremos foi publicada por Peter Penzoldt em
1952. Em The Supernatural in Fiction
10
, este autor procura interpretar a literatura
fantástica por meio de um viés psicanalítico. Seu trabalho, entretanto, coloca em
plano principal características psicológicas dos autores em detrimento da análise de
9
SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Tradução de Rui Mário Gonçalvez. Lisboa, Publicações Europa-
América, 1968.
10
PENZOLDT, Peter. The Supernatural in Fiction, Peter Nevill., London, 1952.
16
suas obras. Este mesmo tipo de abordagem foi adotado por muitos psicanalistas,
cuja preocupação era a de analisar o autor através de seus trabalhos literários.
11
Com Tzvetan Todorov em sua obra Introdução a Literatura fantástica
12
,
publicada em 1970, pudemos ter acesso a um estudo mais detalhado e consistente
das características formais que nos permitiriam dar a devida importância à literatura
fantástica. Como veremos posteriormente, Todorov dialogaria com Sartre ao final de
sua obra concordando com a visão segundo a qual o século XX assistiria a uma
redefinição do fantástico. Mas Todorov prefere centrar seus estudos no que
podemos chamar de fantástico tradicional.
A Literatura fantástica, conseqüentemente, fora definida e redefinida durante
quase 70 anos por meio dos estudos literários. Mas em 1900, anteriormente aos
estudos citados até o momento, através da publicação de Die Traumdeutung
13
,
Freud lançava junto a outros trabalhos de sua autoria uma luz sobre a psiquiatria. Ao
colocar em pauta conceitos básicos e inéditos que foram e estão sendo utilizados
até o presente momento, esse autor permitiria que vários mecanismos psíquicos,
dentre eles os mecanismos do inconsciente e do sonho, fossem estudados com
profundidade. Os conceitos psicanalíticos teriam vários prolongamentos em todas as
áreas da vida humana, absorvendo-lhes e ao mesmo tempo acrescentando-lhes
material. A literatura não poderia deixar de beber desta maravilhosa fonte que se lhe
apresentava.
Em 1919, tamm anteriormente aos trabalhos literários sobre o fantástico
aqui expostos, Freud completaria sua contribuição ao estudo literário através de seu
trabalho Umheilich
14
; tratando especificamente do tema do estranhamento.
Pelo apresentado até o momento, duas principais vertentes haviam tratado do
fantástico e do estranhamento: a vertente literária, iniciada de forma precária e
confusa por Lovecraft e James e a vertente psicanalítica, conduzida por Freud. A
11
BONAPARTE, Marie. E.P., Sa Vie, son Oeuvre, Denoel & Steele, P.U.F, Paris, 1933.
12
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1970.
13
FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. Ed. Imago, R.J., 1999.
14
FREUD, Sigmund. "O estranho". In: Uma criança é espancada / Sobre o ensino da psicanálise nas
Universidades e outros trabalhos. Ed. Imago, R.J., 1976.
17
vertente literária do fantástico, alvo de nossos estudos, receberia influências
constantes da psicanálise, como ocorrera em Penzoldt, mas também em Sartre e
Todorov.
Outra vertente, a do surrealismo, utilizar-se-ia dos conceitos de Freud para,
em 1924, estruturar o conceito de mundos paralelos. Este conceito possibilitaria uma
comparação entre o mundo surreal e o mundo fantástico, mas diferiria do mesmo em
relação a um ponto polêmico e crucial, qual seja, a indefinição entre dois mundos.
Vejamos, portanto, como as noções de fantástico se alteraram e foram
definidas durante o século XX e como a literatura, alvo maior de nossos estudos e
fonte constitutiva das noções teóricas ora descritas, permitiria que esses trabalhos
teóricos fossem conduzidos.
Para tanto, iremos estabelecer uma ordem por vezes não cronológica para a
apresentação das diferentes interpretações para o fantástico. Iniciaremos pelo
estudo dos trabalhos literários de Lovecraft e Penzoldt. Verificaremos o conceito de
fantástico tradicional elaborado por Todorov e como Sartre estabeleceu a
diferenciação entre o tipo contemporâneo e o tradicional. Passaremos aos estudos
de Freud que anteriormente a estes literatos e embasado nas ciências biológicas
permitiu a incorporação de seus conceitos à teoria literária.
18
A definição temática
Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) notabilizou-se como um dos maiores
escritores norte-americanos de contos de horror. Lovecraft já disponibilizara parte
dos seus escritos teóricos ao público através do magazine The recluse em 1927.
Entretanto, sua obra Supernatural Horror in Literature
15
só iria ser publicada em
1945, após sua morte.
Na introdução de seu livro o autor define a literatura fantástica como sendo
aquela capaz de suscitar o medo, mais exatamente o medo do desconhecido, no
leitor. O desconhecido e o imprevisível seriam os aliados do sonho na criação de um
mundo não real ou espiritual. Assim, fatos não explicáveis através da ciência, mas
pertinentes ao mundo real, constituiriam o foco da narrativa fantástica. Estes fatos
seriam acrescidos do desconhecido, tratado e formalizado em rituais religiosos, do
mistério não decifrado do cosmos e do folclore popular.
Lovecraft define, desta maneira, não somente o conjunto temático que seria o
causador do medo, mas tamm a condição para que o fantástico fosse gerado, ou
seja, a emoção que atingiria o leitor implícito. Cita alguns medos comuns à
humanidade que se perpetuam ao longo do tempo como o receio que a criança tem
do escuro e que o homem adulto sente sobre o que poderia se esconder nos confins
do espaço sideral. O medo que a sensibilidade humana captaria poderia invadir “o
canto obscuro de todo cérebro resistente” e nenhuma tentativa de racionalização,
reflexão ou análise freudiana poderia dar cabo deste sentimento.
Mesmo em trabalhos mais recentes encontramos a vinculação entre a
sensibilidade do leitor e o gênero fantástico. Para Louis Vax,
a essência do fantástico não seria acessível senão a uma espécie de intuição
intelectual ou mística que escaparia a qualquer controle e poderia variar de um sujeito para
outro.
16
15
LOVECRAFT, H. P, op. cit.
16
VAX, Louis. art et le Littérature fantastiques, P.U.F., Paris, 1960, p. 120.
19
O sentimento produzido no leitor, desta forma, fora invocado por Lovecraft,
mas permearia várias outras obras posteriores sobre o fantástico. Este sentimento,
segundo ele, estaria vinculado a algo coletivo, válido para toda a humanidade.
Outros autores contemporâneos iriam graduar este sentimento ao diferenciá-lo de
um leitor para outro, como fizera Vax. Mas a questão da sensibilização do leitor
continuaria em voga. A estética da recepção, surgida em 1967, viria ao nosso auxílio
ao colocar em questão a figura do leitor como determinante na geração do sentido
do texto. Os enunciados dos textos, não só os ficcionais, exigiriam que o leitor
realizasse a complementação de vazios como uma projeção de sua
individualidade.
17
Este aspecto incluiria a noção de sentimento despertado no leitor
por meio do texto visto que, ao preenchê-lo, suas emoções estariam sendo
utilizadas para a eliminação dos vazios. As reações provocadas no leitor implícito
através desta recepção variariam desde a simples compreensão de seu sentido até
uma extensa gama de atos conseqüentes.
18
Assim, esta característica de
sensibilização do leitor citada por Lovecraft também seria utilizada, como veremos
posteriormente, por autores como Todorov, assumindo neste último caso, entretanto,
a marcante característica do sentimento de dúvida.
Lovecraft dedica todo um capítulo de sua obra a Poe nos indicando como
esse autor soube atingir a sensibilidade do leitor estabelecendo o que chamou de
“guia explícito” para os contos e principalmente para as histórias fantásticas.
Segundo Lovecraft, Poe não seguia as convenções pré-estabelecidas do “final feliz”,
“virtudes recompensadas” ou da “didática moral” como conclues para os “valores
ou padrões populares”, mas expressava e interpretava os eventos e sensações,
fossem elas boas ou más, atrativas ou repulsivas, estimulantes ou depressivas, sem
que tentasse se portar como um professor, simpatizante ou vendedor de opiniões.
19
17
LIMA, Luiz Costa. A Literatura e o leitor – textos de estética da recepção, Paz e Terra, R.J., 1979,
p.50.
18
STIERLE, Karlheinz. “Que significa a recepção dos textos ficcionais” in A Literatura e o Leitor ,
tradução de Luiz Costa Lima, R.J., 1979, p.121.
19
LOVECRAFT, H. P., op. cit., p. 52.
20
Ao tratar da intenção por parte do autor de sensibilizar o leitor implícito, Lovecraft se
direciona para uma interpretação da recepção do texto.
Outra característica apontada por Lovecraft para o fantástico foi assim
descrita:
A verdadeira estória sobrenatural possui algo mais que um assassinato secreto,
ossos sangrando ou formas em lençóis balançando correntes conforme as regras. Uma
certa atmosfera de terror sufocante e inexplicável composta por forças exteriores e não
conhecidas deve estar presente, e deve ser sugerida, expressa com seriedade e força
tornando-se assunto da mais tervel concepção do cérebro humano – a suspeno maligna
e particular ou a derrota das leis fixadas pela natureza na qual reside nossa única salvação
contra os assaltos do caos e dos demônios do espaço desestabilizado.
20
Como conseqüência, para que o medo se instalasse, a atmosfera criada pelo
escritor teria importância absoluta. Este seria um dos fatores que permitiria que
gradualmente o mundo fantástico fosse definido e que se sustentasse, mesmo que
por alguns instantes.
21
A ambientação que pouco a pouco envolveria o narrador e
conseqüentemente o leitor permitiria que o mundo organizado e natural fosse
afetado de uma maneira tão intensa que se aproximasse do caos.
Assim, o mundo real, conduzido pelas leis da natureza e explicado por leis
científicas, sofreria um abalo ao ter alguma de suas leis suspensas ou derrotadas.
No caso da derrota, podemos entrever que o mundo real continuará existindo, com
sua lógica e cientificidade, mas com parte de suas determinações sendo contrariada.
Não se constituiria outro mundo, maravilhoso, com regras próprias, mas tão somente
uma mudança ou adequação a alguma antiga certeza natural. O momento anterior à
mudança ou adequação constituir-se-ia como a etapa do espanto diante de algo
novo, inexplorado. Já a suspensão de uma lei marcaria uma linha mais tênue ainda
20
LOVECRAFT, H. P., op. cit., p. 15.
21
Idem, p. 16.
21
entre o mundo fantástico e o real. A lei não fora quebrada, mas temporariamente
anulada enquanto o medo era gerado no leitor. Após a concepção de sua função, a
lei natural poderia ser restabelecida. Lovecraft justifica o porquê de sua
consideração acerca da possibilidade da explicação natural para o fenômeno
fantástico ao final de uma narrativa através desta suspensão. O mundo fantástico
seria desconstituído, mas por um breve instante conseguiria provocar o efeito ao
qual fora destinado.
A pouca duração do fantástico seria outra das contribuições do autor para
esta teoria. Como veremos em análises posteriores, muitos teóricos refutarão a
designação de literatura fantástica que poderia ser atribuída para obras que não
conseguissem manter este sentimento até o final do texto literário. Para Lovecraft,
entretanto, a duração do sentimento não alteraria sua intensidade.
Nos demais capítulos de sua obra, o autor realiza um apanhado cronológico
da literatura fantástica desde seus primórdios, com os relatos religiosos Egípcios e
Semíticos, até os romances góticos e de tradição americana e britânica. Referindo-
se a estes primórdios, coloca o tema do terror cósmico encontrado em crônicas e
escritos ritualísticos como definidor dos contos de horror. Como exemplo, cita os
fragmentos do Livro de Enoch e da Clavícula de Salomão onde a “força do
fantástico” residiria. Ainda sob o critério do tema, os Celtas e seus sacrifícios são
seguidos dos “Sabbaths”, realizados por bruxas na Europa ou mesmo em Salém,
nos Estados Unidos.
Sua obra crítica, conseqüentemente, é baseada na seleção pelo critério
temático, visto que a produção do medo ocorreria diante dos aspectos
desconhecidos pela ciência como a vida extraterrestre ou por temas tratados pela
religião ou folclore popular.
Este tratamento temático do fantástico seria criticado por vários autores
contemporâneos como Penzoldt, Todorov e Bellemin-Noel. Para Bellemin-Noel, o
fantástico deveria ser buscado por sua forma, não pelo seu conteúdo, tal qual a
22
estrutura de um fantasma.
22
Laplanche et Pontalis , em Vocabulaire de la
psychanalyse, nos auxiliam nesta definição quando esclarecem que o fantasma para
a psicanálise pode ser descrito como:
... cenário imaginário onde o sujeito é representado e que figura, de modo mais ou
menos deformado por processos defensivos, a realização de um desejo e, como recurso
último, de um desejo inconsciente.
Bellemin-Noel utiliza-se tanto do conceito psicanalítico quanto da definição
corrente do fantasma popular ao realizar a especificação da estrutura do fantástico.
Se o fantasma não possui um conteúdo pelo qual pudéssemos identificá-lo, será
através de seus contornos, de sua forma, que poderemos diferenciá-lo.
Citando Lovecraft, Bellemin-Noel alerta ainda que seus heróis/narradores são
eruditos, historiadores, paleólogos, sempre homens de Letras ou de Artes. Assim,
Lovecraft esperaria fascinar o leitor tanto pelo seu trabalho como por seu conteúdo.
Esse último, mais uma vez, seria o definidor de seu fantástico
23
e não a forma.
Conseqüentemente, Lovecraft discorre em sua obra que certos temas
específicos gerariam, aliados a uma atmosfera bem elaborada, o medo no leitor,
propiciando o aparecimento do fantástico.
22
BELLEMIN-NOEL, Jean. “Notes sur le Fantastiquein Littérature n. 8, Librairie Larousse, Paris,
1972, p. 7.
23
Idem, p. 8.
23
A análise do autor
A tendência em analisar o autor através de sua obra literária foi muito utilizada
por discípulos de Freud. Mas alguns literatos tamm enveredaram por este
caminho. Dentre eles, Peter Penzoldt.
Em Supernatural in fiction
24
, tese de seu P.H.D. defendida aos 24 anos junto à
Universidade de Genebra, Penzoldt propõe-se a elaborar um estudo do fantástico
por meio de um viés que permeia a fronteira entre a crítica literária e a psicologia
médica
25
. Inicia sua tese através da análise da estrutura do conto fantástico.
Enumera alguns elementos estruturais como a aparição do espectro, ponto em que
o clímax do conto é atingido, trata da atmosfera que, gradualmente prepara o leitor
implícito para o clímax, e da forma de exposição dos fatos narrados, exposição
realizada com o devido preparo e efetivada através de descrições minuciosas.
Inicia posteriormente um estudo dos motes desse tipo de literatura, buscando
aspectos psicológicos associados aos temas de Fantasmas, Zumbis, Vampiros,
Bruxas, Lobisomem, etc. Realiza a correspondência entre os Fantasmas e Zumbis
com a morte, do Vampiro com o ato de sugar, ou fase oral do desenvolvimento
sexual, do Lobisomem aos instintos animais primitivos e das Bruxas à neurose.
Neste ponto estabelece que os temas devem evocar o medo, principalmente os
medos primitivos, como o medo da morte, e que podem contar com o auxílio da
linguagem do subconsciente ou linguagem dos sonhos.
Na última parte de seu trabalho, alguns escritores têm sua obra criticada,
incorporando-se elementos da personalidade dos mesmos na interpretação dos
contos.
Apesar deste enfoque, cuja abordagem mistura de forma confusa a crítica
temática com uma análise psicológica do autor, muitos elementos de real
importância para nosso estudo são tratados em sua obra. Como veremos,
24
PENZOLDT, Peter, op. cit.
25
Idem, p. XII.
24
posteriormente, a crítica temática não pode ser utilizada como definidora do
fantástico e a análise psicológica do autor baseada em seus escritos é amplamente
contestada.
Dentre os pontos que merecem destaque em seu trabalho, encontramos a
questão da dúvida. Segundo Penzoldt, “… quando a ´coisa´ parece por algum tempo
fazer parte da realidade é que o terror nasce
26
, ou seja, quando confundimos algo
irreal com um elemento de nossa realidade é que nos encontramos em dúvida
acerca do que vislumbramos. Penzoldt reforça sua afirmação ao citar James:
Então Lovecraft está correto; com exceção dos contos de fadas, todas as histórias
sobrenaturais são histórias de medo que lidam com a dúvida…
27
.
Outros elementos defendidos por Todorov tamm haviam sido analisados
por Penzoldt. O caráter efêmero do momento fantástico é explicado devido ao fato
de que o ser humano conseguiria abandonar a realidade e a lógica por pouco
tempo
28
. Aí residiria a dificuldade em conservar o fantástico em obras mais extensas
como romances ou novelas. Para Penzoldt, esta afirmação é válida para o leitor
moderno, mais cético e esclarecido que os leitores do século XIX. Neste ponto,
Penzoldt coloca em questão o tipo de recepção do texto literário que seria realizado
pelo leitor implícito. Tomemos como base para esta interpretação a definição de
Jauss, um dos autores da estética da recepção, sobre os diferentes leitores que se
posicionam diante da recepção do texto:
... para a análise da experiência do leitor ou da ´sociedade de leitores´ de um tempo
histórico determinado, necessita-se diferenciar, colocar e estabelecer a comunicação entre
os dois lados da relação texto e leitor. Ou seja, entre o efeito,
como o momento
condicionado pelo texto, e a recepção, como o momento condicionado pelo destinatário,
26
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 8.
27
Idem, p. 9.
28
Idem, p. 4.
25
para a concretização do sentido como duplo horizonte – o interno ao literário, implicado pela
obra, e o mundivivencial (lebensweltlich), trazido pelo leitor de uma determinada
sociedade.
29
A questão que se coloca evidencia a reação do leitor do texto baseada tanto
no “interno ao literário” quanto na vivência desse leitor dentro de sua sociedade e
circunscrita a determinado tempo histórico. O conhecimento adquirido por esta
sociedade e, em particular, pelo leitor seriam utilizados no momento da recepção do
texto. Para Penzoldt, o leitor moderno demandaria um trabalho maior para sua
situação no momento fantástico do que para leitores anteriores ao século XX.
Devido a este fato, a geração do momento fantástico tornar-se-ia cada vez mais
dificultada em sua manutenção ao longo do texto narrativo.
Gumbrecht
30
, outro autor da estética da recepção, nos esclarece que duas
seriam as etapas envolvidas na constituição do sentido do texto, quais sejam, a
etapa que constituiria o direcionamento do leitor para um objeto entre os demais
percebidos em certo momento e a etapa de escolha de elementos para interpretação
do objeto e reconhecimento de sua constituição, baseado em repertórios de
conhecimento prévio deste indivíduo. Assim, visto que o fantástico deveria suscitar o
mesmo sentimento em diferentes leitores de diferentes sociedades que, por
definição, deveriam possuir conhecimentos prévios diferenciados, Penzoldt utiliza-se
da psicanálise para normalizar estas diferentes recepções do texto. Para ele, a
efemeridade do momento fantástico poderia ser melhor explicada com o auxílio da
psicanálise:
29
JAUSS, Hans Robert. “A estética da recepção: colocações gerais” in A Literatura e o Leitor com
tradução de Luiz Costa Lima, Pas e Terra, R.J., 1979, p.73.
30
GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica e métodos de
uma ciência da literatura fundada na teoria da ação” in A Literatura e o Leitor, tradução de Luiz Costa
Lima, Paz e Terra, R.J., 1979, p.176.
26
… mas o brilhante ensaio de Freud sobre o estranho produz mais informação.
Segundo ele, Freud acredita que o medo do sobrenatural tem duas origens: primeiro,
sobrevive de comportamentos animistas, tais como a fidelidade na onipotência do
pensamento e no instantâneo desejo do cumprimento. Em segundo, ergue-se de complexos
infantis reprimidos
31
.
No entanto a contradição nas afirmões de Penzoldt se pronuncia no
momento em que reafirma a necessidade de um tema definido para o fantástico:
… mas o conto sobrenatural não pode ser o que o autor decida que deva ser. Ele é
limitado pelo seu tema. Por definição ele tem que lidar com o sobrenatural. Não pode ser um
esboço estático
32
.
Se Freud permitia que o estranho fosse gerado a partir do retorno de um fato
vivenciado na infância, por complexos ou comportamentos animistas como veremos
nos capítulos adiante, o tema poderia variar sobremaneira. Para Penzoldt não; a
variação estaria circunscrita à temática que definira.
No decorrer de sua obra Penzoldt buscanas teorias de Jung acerca do
inconsciente coletivo
33
um outro respaldo para suas contradições. Podemos
perceber o quanto sua escolha de método de estudo irá esbarrar em dilemas da
própria psicanálise. Ele mesmo declara-se contrário ao uso da análise do autor
devido ao fato de que a mesma só poderia ser realizada por um analista treinado
que examinasse o escritor pessoalmente
34
. Prossegue, mesmo assim, associando
comportamentos neuróticos ao trabalho dos escritores visto que
31
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 6.
32
Idem, p. 10.
33
Idem, p. 32.
34
Idem, p. 148.
27
… tanto o tratamento realista dado ao tema quanto o sobrenatural são frutos do
medo neurótico da morte que o autor tenta simbolizar e traduzir em seus escritos.
35
Afastando-se desta polêmica, vários outros elementos já definidos por Poe e
utilizados por Todorov seriam afirmados por Penzoldt sobre a estrutura do conto
fantástico. Dentre eles podemos citar a necessidade de uma exposição sobre o tema
e da construção de atmosferas bem elaboradas que conduzam o leitor ao clímax, de
forma gradativa.
Mas são as análises de contos de diversos autores que colocam em destaque
os pontos diferenciadores na obra de Penzoldt. Ao citar James
36
, o autor evoca a
maneira casual, segundo a qual o fantástico se instaura:
Vamos então, introduzir os autores num local plácido, vamos vê-los caminhando
para seu trabalho cotidiano, sem serem perturbados por presságios, agradecidos perante
seus companheiros, e neste ambiente calmo permitirem que um ser agourento tome sua
cabeça, inicialmente de forma inoportuna, e então mais insistentemente, até compreender
toda a cena.
37
Segundo Penzoldt, James
não desejava que seus fantasmas fossem analisados ou explicados. Ele queria algo
mais leve que as histórias psicológicas de fantasmas que tinham de ser lidas com um livro
de mão sobre psiquiatria ao lado, de forma que achasse algum relaxamento e algumas
vezes estando tão perto da realidade que se tornasse entretenimento.
38
35
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 151.
36
JAMES, M. R. Introduction to Ghosts and Marvels, Oxford University Press, October, 1928, p. VI.
37
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 192.
38
Idem, p. 191.
28
Penzoldt parte para a análise de “O diário de Mr. Poynter”, de James, onde
um cavalheiro constrói uma casa em Warnick e, para que obtenha algum
conhecimento sobre as redondezas de seu novo lar, adquire quatro volumes de um
diário que contaria algo sobre os interesses locais. Num dos volumes a descrição de
uma cortina lembra à sua tia, que habitava a mesma casa, o aspecto de um cabelo.
Esta referência natural, entretanto, indicará um primeiro apontamento para o clímax
do conto. O personagem, ao solicitar a um fabricante local uma cópia da trama da
cortina, conforme desenhada no diário, depara-se com a constatação do tapeceiro
de que algo demoníaco envolveria aqueles traços. Assim, James gradualmente
conduz o leitor ao clímax, quando uma aparição surge através da cortina na forma
de cabelos esvoaçantes. Apesar da fantasmagoria retratada neste clímax, conforme
constatara Penzoldt, James “prefere uma cena diária para sua introdução”.
39
Desta
forma, a atmosfera se aproxima muito da realidade cotidiana ao contrário do clima
sombrio tão constante nos contos de horror e terror de então.
Penzoldt inicia um processo contrário ao efetivado até este momento em sua
obra, ao distanciar o fantástico da obrigação do tema e uni-lo ao aspecto cotidiano e
pessoal. Ao analisar A. Blackwood, este fator se explicita mais ainda. Penzoldt
refere-se a um fantástico, cuja aparição é retratada somente pelo olhar do
personagem, ou seja, algo natural adquire um significado perturbador para ele.
Transcreve um trecho de uma carta de Blackwood na qual esta faculdade é
disposta:
Também, tudo que acontece em nosso universo é natural, regido por leis; mais uma
extensão de nossa tão limitada consciência pode revelar novas, extra-ordinárias forças etc.,
e a palavra sobrenatural parece ser a melhor para tratar desta ficção.
40
39
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 197.
40
Idem, p. 229.
29
Um dos exemplos citados por Penzoldt sobre Blackwood assim demonstra
sua definição de consciência estendida:
Eu olhei atentamente através do deserto de águas selvagens; olhei para os
salgueiros assobiantes; ouvi o cessar de batidas do vento cansado; e, um a um, cada qual a
sua maneira, provocou-me esta sensação de estranha tristeza.
41
Blackwood relata então como sua consciência estendida fora afetada pelos
salgueiros: “Eles se moveram por sua própria vontade como se vivos, e tocaram, por
algum método incalculável, meu agudo senso do horror”.
Neste ponto podemos observar que as portas para um fantástico sem
monstros ou aparições, sem temática definida, um fantástico que, como veremos
posteriormente, se aproxima do estranhamento de Freud estará sendo constituído.
Segundo Penzold:
... a cena, com certeza, permanece inalterada, mas para os olhos da personagem
que supostamente conta a hisria, cada detalhe gradualmente adquire uma nova
significação, e isto proporciona qualidades aos simples objetos lhes dando importância, até
um mundo novo, que estende a consciência, é realizado, e substitui inteiramente a
realidade
42
.
Em outro trecho de sua obra, define este olhar como “a história de uma
experiência
43
.
Conseqüentemente, apesar dos numerosos problemas encontrados na difícil
união entre a crítica literária e a tentativa de análise psicológica dos temas e do
41
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 231.
42
Idem, p. 231.
43
Idem, p. 242.
30
autor, sua obra expõe vários pontos retomados por outros literatos e beira às portas
do fantástico contemporâneo de Sartre e do estranhamento definido por Freud.
Dentre estes pontos, a promoção do aspecto pessoal e cotidiano configuraria
um dos rompimentos com a crítica temática e o início de uma proposição de
literatura fantástica mais abrangente e consolidada.
31
3. Contribuições importantes
32
Todorov e o fantástico tradicional
Em 1970, através da obra Introdução a Literatura fantástica, Todorov definiria
o fantástico como um gênero vizinho de dois outros: o estranho e o maravilhoso.
Por um lado, o estranho se aproximaria da realidade no sentido em que cada
fato seria definido e explicado através de parâmetros naturais e científicos,
constituintes da realidade humana de certo tempo e espaço.
Por outro lado, o maravilhoso residiria num mundo imaginário e impossível
para a realidade humana, realidade sempre balizada no tempo e espaço de sua
definição. Esse novo mundo se encarregaria de gerar e confirmar suas regras e sua
lógica de comportamento. Desta forma, quando a incerteza não permite que se
estabeleça o estranho nem o maravilhoso ou sobrenatural devido à ausência de
explicações dentro da lógica destes mundos, instaura-se o fantástico, mundo da
hesitação e do equilíbrio instável. Qualquer explicação que possa ser realizada no
estranho ou no maravilhoso poderia pôr fim ao fantástico.
44
44
Em 1924, anteriormente à obra de Lovecraft, Sartre ou Todorov, surgia o movimento surrealista,
cuja atitude revolucionária pretendia intervir na realidade levando o homem a um estado de liberdade
suprema. Voltava-se contra o utilitarismo, contra o positivismo e a moral burguesa numa tentativa de
derrotar o sistema sócio-cultural vigente. Baseado nos estudos de Freud sobre a vida manifesta e a
latente e pela definição acerca dos mecanismos do sonho, os surrealistas procuravam estabelecer um
estreito laço entre o mundo da vigília e o do sonho, de forma a resolver os problemas fundamentais da
existência. Tentavam reproduzir os estados oníricos através de mecanismos artificiais como a hipnose.
Assim, segundo eles, além do sonho, certas experiências do estado de vigília poderiam nos ajudar na
resolução dos mistérios da mente humana. Entretanto, sua proposta pretendia unir estes dois mundos,
ao contrário da definição de Todorov, segundo a qual a atitude fantástica seria gerada atras do não
posicionamento entre os mundos real e o maravilhoso. Esta seria a primeira dentre várias diferenças
conceituais entre o surrealismo e o fantástico. Como veremos ao longo desta análise, os pontos de
contato entre o surrealismo e o fantástico são extensos e variados, mas a interpretação e o
desenvolvimento desses pontos durante a narrativa criaria paradigmas distintos que se resumiriam
através do equacionamento do fanstico como um “ou” indefinido, em suspensão, temido e gerador
33
Delimitados seus contornos, o autor nos coloca o que deverá ser o ponto
máximo do fantástico, ou seja, a característica de produzir no leitor implícito a
hesitação entre um mundo real e outro sobrenatural, provocando um equilíbrio
instável, cuja manutenção permearia toda a obra. Caso este equilíbrio fosse rompido
de um ou de outro lado, o fantástico feneceria. Todorov foi criticado exatamente em
relação à importância dada ao efeito produzido no leitor implícito. Segundo Jorge
Schwartz:
A crítica a ser feita ao método proposto por Todorov é de caráter eminentemente
axiomático: deve existir a dúvida na leitura da narrativa fantástica? Sem tensão, não há
conto, mas a ausência da dúvida elimina o fantástico?
45
Entretanto, Todorov não fora o primeiro teórico do fantástico que se utilizara
deste critério. Esse gênero já havia sido definido por Lovecraft através do sentimento
produzido no leitor:
O teste básico do verdadeiro sobrenatural é simplesmente este – se é ou não
suscitada no leitor uma profunda sensação de medo e de contato com esferas e poderes
desconhecidos...
46
.
Neste caso, no entanto, o sentimento suscitado era o medo e não a
hesitação. Sigmund Freud, assim como Todorov, referira-se à incerteza do leitor, ao
do espanto, entre o real e o sonhado, ao passo que no surrealismo teríamos um “e”, aglutinador,
desejado e definido.
45
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: A Poética do Uroboro. Ed. Ática, São Paulo, 1981, p. 68.
46
LOVECRAFT, H. P, op. cit., p. 16.
34
distinguir o conto de fadas das narrativas em que a subversão do real nunca é
completamente aceita ou excluída. Segundo Freud:
O mundo dos contos de fadas, por exemplo, abandonou desde o início o terreno da
realidade e aderiu abertamente às convenções animistas. Realização de desejos, forças
ocultas, onipotência dos pensamentos, animação do inanimado, são outros tantos efeitos
usuais nos contos que impedem estes de dar a impressão da estranheza inquietante. Com
efeito, para que este sentimento aflore é necessário que haja debate, a fim de decidir se o
“incrível”, que foi superado, não poderia, apesar de tudo, ser real.
47
Peter Penzoldt, da mesma forma, citara esse fato: “... com exceção do conto
de fadas, todas as histórias sobrenaturais são narrativas de medo que tiram partido
de nossa dúvida sobre o que consideramos ser pura imaginação e não é, afinal,
realidade”.
48
David Arrigucci tamm relata a necessidade de um embate interno no
âmbito do fantástico, quando afirma:
Por aí se vê o embate entre a inteligência lúcida e certos fatos desconcertantes,
capazes de partir o hábito bem comportado de nossa percepção. Mediante o processo de
estranhamento diante desses fatos aparentemente inverossímeis, se revelam zonas
obscuras de nosso ser, aproximando-nos do mundo do louco, da criança, do sonho, do mito
e da poesia.
49
Desta maneira, Todorov soube como poucos explicitar os aspectos da obra
fantástica que permitiriam que a hesitação constante na narrativa fosse possível.
47
FREUD, Sigmund. Essais de psychanalyse appliquée, Gallimard, Paris, 1933, p. 206.
48
PENZOLDT, Peter, op. cit., p. 9.
49
ARRIGUCCI, David Jr. Enigma e comentário: ensaios sobre a literatura e experiência. Cia das
Letras, SP, 1987, p. 144.
35
Em Introdução a Literatura fantástica, expõe três condições, duas necessárias
e uma desejada, para que o fantástico se instaure: a hesitação provocada no leitor
como reflexo da narrativa, uma atitude que rejeite a leitura alegórica ou poética da
obra, o que terminaria com a hesitação requerida, e, como condição não necessária,
a identificação do leitor com um personagem, preferencialmente o narrador.
Seguindo estas condições, propõe-se a elaborar os aspectos formais do gênero que
permitirão que as mesmas sejam atingidas.
Como citado anteriormente, Todorov definira o fantástico através do
posicionamento entre dois mundos, o real e o sobrenatural. Entretanto, colocando-se
em foco a realidade humana que proporcionará contornos tanto ao real quanto ao
sobrenatural, podemos afirmar que seus parâmetros ou normas são balizados pela
sociedade ou cultura na qual este mundo se constituirá. É essa a opinião de
Schwartz expressa nas seguintes palavras:
... somente podemos chegar a definir aquilo que é fantástico na medida em que
conhecemos a norma extra-textual definida pela tradição cultural. Tudo aquilo que transgrida
suas leis é considerado, num primeiro momento, um fato fantástico.
50
Contudo, esta tradição cultural seria definida dentro de um tempo e espaço
específicos, visto que o arcabouço de informações constitutivas do entendimento de
uma cultura passaria por alterações no decorrer do tempo e receberia influências de
outras culturas mediante contatos pessoais. O ponto de vista marxista já explicitara
este princípio, ao afirmar que os homens
julgam o mundo e os seres de acordo com a ideologia ou de acordo com suas
circunstâncias econômicas e sociais. Um ser isolado dentro de uma sociedade de classes
não pode ver nem pensar corretamente.
51
50
SCHWARTZ, Jorge, op. cit., p.68.
36
Assim, estamos tratando de mundos estabelecidos por padrões sociais e
culturais de forma que estes critérios poderiam estabelecer um paradigma
diferenciado da realidade. Além disso, a ciência evolui de maneira assombrosa e os
paradigmas tidos como incontestáveis num tempo remoto são muitas vezes
substituídos por outros tidos como impossíveis em outro determinado momento.
Desta feita, o fantástico seguiria par a par a noção sociocultural do que é verossímil
ou plausível dentro de um tempo/espaço definido.
Este fato nos coloca mais uma vez diante do tipo de leitor e de sua
importância para a delimitação deste gênero. Mesmo as explicações realizadas
dentro da narrativa só podem ser autenticadas no momento da enuncião, junto ao
leitor implícito. Quando Jauss definira a recepção do texto literário, citara o problema
do distanciamento entre o ato de criação e de leitura ao falar do hiato entre o poiesis
(prazer ante a obra que nós mesmos realizamos) e a aisthesis (prazer estético da
percepção reconhecedora e do reconhecimento preceptivo)
52
. Para Todorov,
todavia, a dúvida permaneceria independente do momento de leitura do texto.
Podemos verificar que sua abordagem para a recepção do texto encararia o
sentimento do leitor como algo comum a todos os indivíduos e internalizado nos
leitores de todas as épocas e diferentes culturas.
Essa idéia de que o texto poderia ser compreendido por diferentes tipos de
leitor já havia sido formulada por Stierle. Para esse autor
51
HAUSER, Arnold. História social de la literatura y el Arte. Madrid, Guadarrama, 1969, 3v. , v III,
p. 262.
52
JAUSS, Hans Robert. “O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, aisthesis e
katharsis in A Literatura e o Leitor, tradução de Luiz Costa Lima, Paz e Terra, R.J., 1979, p.102.
37
A diferença temporal entre a produção e a recepção faz com que se perca o encanto
dos esteriótipos da experiência, trazidos pela própria recepção, e isso
permite que se
patenteie, sob a qualidade quase pragmática, a qualidade ficcional do texto.
53
Portanto, se o hiato temporal ocorre, o fantástico poderia ser constituído pela
qualidade pragmática do texto. Assim, nada nos impede de estudar o fantástico,
tendo em mente o contexto do momento de sua elaboração e de sua conseqüente
enunciação.
54
53
STIERLE, Karlheinz. “Que significa a receão dos texto ficcionais?” in A Literatura e o Leitor,
tradução de Luiz Costa Lima, Paz e Terra, R.J., 1979, p.157.
54
A realidade, tanto para o fantástico quanto para o surrealismo, seria multifacetada assumindo
valores diferentes e múltiplos segundo a visão do indiduo. Quanto à forma como o indivíduo define
seu mundo, Álvaro Gomes, em sua obra A estética surrealista (GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética
Surrealista – textos doutrinários comentados. Ed. Atlas, São Paulo, 1995, p. 27), faz referência ao
balizador social da realidade no momento em que trata do movimento surrealista: “Com efeito, a
segunda Revolução Industrial intensificará o processo de divisão ostensiva da sociedade em classes e
castas, enquanto que sua automatização levará os homens a se especializarem. O resultado disso é que
o indivíduo será confinado num pequeno espaço, determinado por sua classe e especialidade e,
conseqüentemente, verá e compreende o mundo que o cerca informado pela perspectiva dessa
mesma classe e dessa mesma especialidade. (...) Ora, assim, jamais se poderá ter uma imagem da
totalidade, porque o real, sob o efeito do olhar contaminado por uma ideologia, possuirá muitas
facetas, cada uma delas sendo, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa, de acordo com o julgamento
determinado pela classe e especialização (ou ainda pela idiossincrasia subconsciente) do sujeito que
tentar apreendê-la”. Mas apesar desta característica comum em relação a realidade, para o fantástico as
facetas assumiriam o papel de indecisão ao passo que para o surrealismo passariam por uma
integração; facetas de um mesmo dado. Assim, se o movimento surrealista focalizava principalmente
um mundo que permitia a convivência entre o interior e o exterior ao ser humano através da
conciliação dos estados de sonho e realidade, “numa mesma espécie de realidade absoluta, de supra-
realidade” ( BRETON, André. Manifestes du surréalisme, Gallimard, Paris, 1983, p.19-24) , muitas
vezes expressava-se a favor do não posicionamento entre esses dois mundos. No entanto, esta falta de
38
Além de a possibilidade da norma alterar-se a qualquer momento, o fato de
que a instabilidade buscada pelo fantástico é difícil de ser mantida permitiu a muitos
teóricos a associação entre essa teoria e a forma narrativa do conto, principalmente
o conto breve. Mas Todorov, assim como fizera Lovecraft, conceitua o fantástico
como um elemento que pode durar somente parte da obra acabando por pender
para o mundo maravilhoso ou estranho. De forma ideal, entretanto, a hesitação
seguiria do começo ao fim.
A grande dificuldade na perpetuação do fantástico durante toda uma obra,
principalmente tratando-se de formas mais extensas como a do romance, é
decorrência direta deste perigoso e instável equilíbrio. O mundo estranho, com suas
regras claras e estabelecidas, sedimentadas, faz parte de um momento passado
visto que é totalmente aceito no momento presente. Já o mundo maravilhoso só
pode ser realizado num futuro onde as regras ainda seriam redefinidas, num tempo
do porvir. Todorov define o fantástico como o tempo do presente, entre um passado
conhecido e um futuro possível. Este é outro motivo que coloca o fantástico como
um tempo breve, instável e equilibrado numa pequena parcela do momento atual.
Tomemos um exemplo simples que nos posicione diante dos mundos citados.
Uma moeda é jogada repetidas vezes ao ar e, após assentar-se, produz resultados
de cara ou coroa. Em nosso mundo real, científico e lógico, o número de ocorrências
de resultado cara ou coroa será bem próximo, senão igual. Mas a probabilidade
matemática acaba por eliminar uma pequena ou quase nula chance de que a moeda
caia equilibrada na posição vertical e assim permaneça. Ainda estamos no mundo
real, científico e lógico visto que esta situação não é impossível. A probabilidade de
que este fato ocorra, no entanto, tende ao nulo. Visto que ocorra, será um acaso.
Se, em cem tentativas, duas vezes nossa moeda se posicione na vertical, sem
resultado de cara ou coroa, um mundo estranho se descortinará diante de nossos
olhos. A explicação ainda será científica - houve um acaso; uma coincidência. Se,
das cem vezes, dez delas produzirem este resultado curioso, nós iremos
posicionamento o era tratada como uma vida angustiante, conforme defendido pela noção de
fantástico aqui descrita, mas como um estado desejado.
39
invariavelmente nos perguntar o que estará acontecendo. Não poderia ser uma
coincidência, um acaso. Estaríamos sonhando? Tomamos alguma droga que estaria
perturbando nossa capacidade de raciocínio ou discernimento da realidade?
Estaríamos loucos? Ou seria um truque, uma fraude produzida pelo dono da
moeda? Todas estas explicações nos levariam ao plano do estranho ou da
realidade. Mas se a moeda fosse mágica ou se tratasse de uma moeda mística,
tocada por um avatar religioso, a explicação tenderia ao mundo maravilhoso com
suas regras próprias. O fantástico prosseguiria, enquanto continuássemos na
incerteza diante das soluções possíveis nos mundos limítrofes. Estas explicações,
quais sejam o sonho, as drogas, a loucura, a fraude ou as determinações de cunho
mágico ou místico serão as responsáveis por finalizar o fantástico. As conclusões
acerca da realidade ou não da experiência passam, entretanto, pelo crivo de quem
as realiza. O conceito probabilístico poderia ou não fazer parte do leque de
conhecimentos do indivíduo e o limite entre a realidade e o maravilhoso poderia
variar segundo esses conhecimentos.
Bellemin-Noel
55
enumera os pontos principais que definem o fantástico ao
compará-lo a outros gêneros limítrofes de forma concordante com Todorov.
Segundo ele, há uma distinção entre o fantástico e o romance geral, realista em
maior ou menor grau, no sentido em que para este último existe uma certa opinião
comum sobre o censo de realidade do mundo exterior e seus modos de
manifestação e representação. Em relação ao maravilhoso, a distinção é a de que o
espaço da realidade do conto é criado enquanto o discurso se desenvolve. Já a
ficção científica se esforçaria para realizar a construção de coerências que
obedecem às normas racionais, mas que são extrapoladas a partir de uma certeza
histórica. Para Bellemin-Noel, Todorov chamaria esta irresolução de hesitação ao
passo que Freud a chamaria de “incerteza intelectual”, como poderemos verificar
posteriormente.
Todorov coloca ainda em questão outros fatores que poderiam pôr um fim à
incerteza do momento fantástico. Ao contrário dos fatores acima, ou seja,
55
BELLEMIN-NOEL, Jean. op. cit., p. 4.
40
explicações reais ou sobrenaturais que poderiam ser interpretadas a respeito dos
fatos narrados, outros fatores ligados ao tipo de leitura realizado, mesmo que a
hesitação permaneça até o fim da obra, poderiam terminar com o gênero
deslocando-o para o plano real. Estes fatores seriam a leitura poética ou alegórica
da narrativa. Iniciemos pela interpretação poética.
Segundo o autor, as imagens poéticas não são descritivas, não devem ser
entendidas em sua literariedade. Já o gênero fantástico exige a representatividade e,
portanto, constituirá uma obra ficcional. Assim, ao passo que na poesia “as frases
citadas requerem uma leitura poética, elas não tendem a descrever um mundo
evocado”
56
, na ficção fantástica este mundo é referenciado diretamente. A
construção de uma imagem poética como a do “suspiro que sai da terra” não pode
ser entendida através de um personagem, o suspiro, que fisicamente sairá da terra.
Mas poeticamente sim. Todorov não se estende muito sobre esta questão. A
estrutura poética tradicional formada por versos, rimas e ritmo, além das figuras
retóricas, realmente pode dificultar a instauração de verdades que posicionem um
personagem diante dos mundos do estranho e do maravilhoso. Para que a hesitação
se instaure existe a necessidade de uma certa lógica na ocorrência dos fatos
narrados. A estrutura poética permite uma seqüência mais livre e desvinculada de
causas e efeitos assim como de personagens e enredo. No entanto, a imagem
poética por si só não descaracteriza o fantástico.
Contrariamente ao que diz Todorov, muitas vezes a imagem poética pode
servir para autenticar um estado de espírito de uma personagem, dando-lhe, por
exemplo, uma tonalidade sonhadora ou mesmo alucinada. Imaginemos um
personagem que assista a uma ocorrência insólita como o ressuscitar de um
cadáver durante uma cerimônia mística. A hesitação se instauraria diante de uma
explicação natural de que o indivíduo sofreria de cataplexia e que, portanto, não
estava morto, mas apenas em estado de suspensão dos sentidos. Outra explicação
natural seria a de uma alucinação individual ou coletiva. Por outro lado, haveria a
explicação maravilhosa do fenômeno místico. Se a personagem começa a descrever
56
TODOROV, Tzvetan. op. cit., p.69 .
41
atmosferas poéticas diante da ressurreição do cadáver nos vemos diante da
impressão de seu delírio. Desta forma, a imagem poética poderia ser prejudicial à
ocorrência do fantástico, se constituísse uma grande totalidade da narrativa
mudando qualquer parâmetro de realidade. Entretanto, poderia se tornar um
fermento para a criação da hesitação, se usada com parcimônia.
A alegoria, outra maneira de leitura que finalizaria a hesitação, é tratada mais
intensamente por Todorov. Ao tratar da poesia, o autor opôs o sentido poético ao
sentido referencial da ficção. Assim, ummbolo que era tomado ao “pé-da-letra” na
poesia, não o poderia ser na ficção. Já a alegoria denotaria um sentido figurado
oposto ao sentido ficcional ou literal do texto. Desta forma, na oposição entre
alegoria e sentido literal, um outro patamar da literariedade é analisado. A
interpretação inicial de um fato narrado pode assumir, desta feita, um outro sentido.
No entanto, este outro sentido, segundo o autor, deve ser indicado de maneira
explícita na obra de forma a não dar margem a outras interpretações. Um cadáver
tratado metaforicamente como um ser humano sem motivação para a vida seria um
exemplo de alegoria. Mas esta metáfora deve ser marcada em todo o texto para que
não tenhamos dúvida de que não se trata verdadeiramente de um cadáver físico.
Assim, a hesitação entre uma ou outra possibilidade desapareceria diante da
imposição alegórica.
Entretanto, se a alegoria não é categórica, explícita, poderia vir a tornar-se
mais uma “ferramenta” para que se estabelecesse a dúvida. Além deste fato, muitos
contos alegóricos por definição somente explicitam seu aspecto totalizador ao final
do texto. Durante o desenrolar da narração, desta forma, podemos vivenciar
momentos fantásticos, que somente seriam considerados como alegoria ao término
da leitura. Logo, tanto a imagem poética quanto a alegoria poderiam tornar-se
aliadas na configuração do fantástico.
Na mesma linha de raciocínio de Todorov, outra característica que poderia
eliminar o momento fantástico é descrita por Felipe Furtado em “A Construção do
Fantástico na Narrativa”. Segundo o autor, os efeitos cômicos poderiam provocar o
fim do fantástico:
42
Esses efeitos anulam o equibrio da ambigüidade fantástica e levam a narrativa a
recuar até o grotesco. Assim, tornando a manifestação meta-empírica objeto do riso de
diversas personagens, suprimem qualquer dúvida quanto à possibilidade de sua existência
objetiva, ao mesmo tempo que viabilizam leituras de caráter <alegórico>.
57
Mas, segundo o próprio autor, o motivo da finalização do fantástico não seria
o uso do recurso cômico, mas a leitura alegórica, conforme descrevera Todorov.
Desta maneira, podemos considerar que o efeito cômico, por si só, seja ele grotesco
ou irônico, não termina com a dúvida estabelecida através dos elementos do
fantástico.
Vejamos agora quais seriam as características teóricas que permitiriam a
instauração e manutenção do fantástico. Segundo Todorov, o primeiro traço
empregado nas obras desse gênero trata-se do discurso figurado. A hirbole como
figura de linguagem faria com que se instaurasse um mundo maravilhoso limítrofe ao
da hesitação. O exagero na descrição de um fato, se considerado em seu sentido
literal, nos transportaria para um ambiente onde as regras naturais estariam
deturpadas. O mesmo procedimento adotado ao se considerar uma hipérbole pode
ser estendido ao interpretarmos toda expressão figurada em seu sentido literal.
Devemos notar que este procedimento é utilizado na leitura poética.
58
57
FURTADO, Felipe. A Construção do Fantástico na Narrativa. Livros Horizonte, Lisboa, 1980, p.
69.
58
A representatividade também fora definida como parte da concepção do surrealismo assim como o
fora no fantástico. A metáfora surrealista, assim como a metáfora fantástica, se daria através de uma
“metáfora transfigurada” resultando na apreensão do sentido literal do texto (NOUGE, Pierre. “Les
images défendues” in Le surréalisme. ªS.D.L.R., Paris, n 6, 1933, p.27-28). Da mesma forma que
ocorrera com a realidade multifacetada no surrealismo, a metáfora transfigurada seria incorporada ao
texto literal. Em A imagem”, de Louis Aragon (ARAGON, Luis. Le paysan de Paris. Gallimard,
Paris, 1926, p. 80-81), os surrealistas propõem-se ao “emprego desregrado e passional da
estupefaciente imagem” e de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses” para a criação do mundo
supra-realístico. No entanto, no surrealismo a metamorfose é um elemento presente ao seu mundo ao
passo que no fantástico essa metamorfose é um instrumento para o estabelecimento da hesitação.
43
Outro traço do fantástico é o uso de comparações e expressões idiomáticas
que remetam indiretamente ao acontecimento sobrenatural e que condicionem o
leitor, pouco a pouco, a preparar-se para o acontecimento maravilhoso. Todorov
elenca o uso da forma modal dos verbos para introduzir as figuras como “dir-se-ia”,
“eles me chamariam”, “ter-se-ia dito” e do comparativo “como”. Desta forma, a
utilização de figuras retóricas constituiria o primeiro grupo de traços. Expõe em outra
obra de sua autoria, “As estruturas narrativas”
59
, esses mesmos elementos como
constantes nas obras fantásticas: o imperfeito e a modalização. O uso do imperfeito
produz o efeito da imprecisão quanto ao fato narrado. Todorov exemplifica este fato
através da expressão “Eu amava Aurélia”. Segundo ele, “a continuidade é possível
mas em regra geral pouco provável”. Desta maneira uma hesitação pode ser
causada pelo emprego de verbos no imperfeito. Citando expressões como “Parecia-
me que”, “Eu tinha a impressão”, “acreditei”, “sentia-me levado”, “tive a sensação”,
etc, Todorov conclui que a modalização ou emprego de locuções introdutórias
modificam a relação entre o sujeito da enunciação e o enunciado sem alterar o
sentido da frase. Segundo o autor:
Se essas locuções estivessem ausentes estaríamos mergulhados no mundo
maravilhoso, sem nenhuma referência à realidade cotidiana, habitual; graças a elas, somos
mantidos ao mesmo tempo nos dois mundos.
60
O segundo grupo tratado por Todorov está associado ao tipo de narrador
utilizado nas obras fantásticas. A narração em primeira pessoa, realizada por um
narrador representado, permite que duas características desejadas para o
estabelecimento da dúvida possam ser alcançadas: com o narrador representado, a
verossimilhança é reforçada e sua existência permite que haja um vínculo mais
estreito entre o personagem-narrador e o leitor implícito. Desta feita, a hesitação
59
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1979, p. 153-154.
60
Idem, p. 154.
44
dependerá da intensidade com que o fato narrado será interpretado como verdadeiro
e da integração entre o leitor e o narrador representado. Esse conseguirá tanto mais
convencer o leitor implícito de sua própria dúvida, quanto mais autoridade possuir
sobre a ação narrada. Conseqüentemente, a utilização de narradores fidedignos,
respeitáveis detentores do saber, é muitas vezes utilizada nas obras fantásticas para
denotar uma autoridade sobre o assunto.
Ao tratar de Lovecraft, Bellemin-Noel também notara o uso de narradores
como um professor, um engenheiro, um detetive, ou seja, um especialista de
reputação incontestável, para aumentar a credibilidade do fato narrado.
61
Provas
documentais e referências factuais científicas assim como fatos históricos são outros
artifícios utilizados para incrementar a autenticação. Para Bellmin-Noel
62
este efeito
seria conhecido como “efeito de citação”. Instaura-se um precedente que tecerá uma
rede cultural dentro da trama, criando-se uma intertextualidade fantástica capaz de
render crédito aos eventos.
A definição de um narrador ideal, segundo Todorov, nos coloca diante de um
personagem que deveria sentir-se perplexo frente à ocorrência fantástica no sentido
de que a hesitação fosse passada ao leitor. No entanto, ao meu ver, um narrador
representado que fosse cético em relação aos fatos sobrenaturais tamm se
adequaria à finalidade da hesitação, visto que seu ceticismo estaria baseado
exatamente na necessidade de não reconhecer, ao preço da implosão de seus
pilares básicos de racionalidade, algo que lhe escape da compreensão, seja cético
ou não. Poderemos verificar este tipo de narrador durante a análise que se fará de
um conto de Poe. Como veremos nesta análise, o narrador de Poe é cético, mas
tem reforçada a sua hesitação exatamente por este fator.
O tipo do narrador colocaria em foco sua figura. A importância que lhe é
atribuída na confecção do fantástico acabaria por diminuir a presença dos outros
personagens e conseqüentemente a sua importância na narrativa. Esta
característica permitiu que muitos críticos atribuíssem pequena complexidade aos
61
BELLEMIN-NOEL, Jean, op. cit., p. 14.
62
Idem, p. 15.
45
personagens da ficção fantástica, aproximando-os dos personagens planos de
Forster
63
. Da mesma maneira, já que a função do narrador representado é a de
instaurar a hesitação segundo uma lógica de análise dos acontecimentos, este
personagem também seria linear, sem complexidades. Veremos que esta
característica tamm não pode ser tomada como uma constante na literatura
fantástica. Através das análises de contos, indicaremos como Poe constitui um
narrador ao mesmo tempo fantástico e que apresenta certo grau de complexidade.
Assim, visto que a caracterização das personagens não é sofisticada,
segundo o ponto de vista de Todorov, os atos narrados, a ambientação espacial e a
atmosfera tornar-se-iam os principais elementos da narrativa. Neste sentido,
Todorov reforça as idéias de Lovecraft:
Como na maioria dos autores do fantástico, em Poe, os incidentes e os efeitos
narrativos em geral são muito superiores à caracterização das personagens.
64
A atmosfera, como veremos em Poe, realmente possui um amplo grau de
utilização na concepção do mundo fantástico, mas seus narradores não deixam de
assumir importância e algumas facetas complexas em certos contos. Para Todorov,
todavia, a atmosfera seria uma característica marcante nas obras fantásticas devido
a pouca importância que seria dada à elaboração das personagens.
Tanto Todorov quanto Penzoldt ilustram outro grupo de traços que
concorreriam para a geração do fantástico. É o uso da “composição” da narrativa de
maneira a estabelecer um ponto culminante na obra, ponto esse que será atingido
gradualmente através de uma linha ascendente. Segundo Penzoldt:
63
FORSTER, E. M. Aspects of the novel, Penguin Books, Harmondsworth, 1976, p. 73-77.
64
LOVECRAFT, H. P, op. cit., p. 59.
46
O clímax é geralmente alcançado quando a manifestação ocorre; tudo o mais é
exposição, preparação psicológica do leitor para os eventos incríveis. Não há lugar para um
enredo. Toda a história está centrada na aparição.
65
Poe propusera o mesmo modelo de “composição” ao definir novelas em geral.
Para ele:
Um artista literário habilidoso constrói um conto. Se amadurecido, ele não modelou
seus pensamentos a fim de acomodar os incidentes; mas tendo concebido com cuidado
deliberado um certo efeito único e singular para ser trazido à tona, é que inventa mais
incidentes, e passa a combiná-los de modo que possam ajudá-lo a estabelecer este efeito
pré-concebido. Na composição, como um todo não deve haver uma palavra em que a
tendência direta ou indireta não se enquadre no desenho pré-estabelecido.
66
Louis Vax tamm citará a mesma característica a respeito do fantástico: “É
preciso que ele se insinue pouco a pouco, que em vez de escandalizar a razão, a
adormeça”.
67
A graduação pode ser claramente descrita como uma preparação
metódica para a aceitação de fatos irreais pelo leitor implícito. Ao prepará-lo para a
aparição, o narrador pouco a pouco vai convencendo-o da veracidade do que
acabará por presenciar.
Assim, além da hesitação diante de um mundo estranho ou de um
maravilhoso, condição essencial para a instauração do fantástico, características
como o uso da figura retórica em seu sentido literal, o uso de um narrador
representado em primeira pessoa, personagens de caráter plano, atmosfera e
ambientação espacial bem trabalhada, a “composição” que se dirija a um ponto
65
PENZOLDT, Peter, op. cit., p.11.
66
POE, E. A. Tales, Poems, essays. Ed. Nova Aguilar, R.J., 1997, p.521.
67
VAX, Louis, op. cit., p. 13.
47
culminante da narrativa e o emprego de modalização e do imperfeito são elementos
que estariam geralmente presentes nas obras fantásticas.
Seguindo ainda a trajetória de Todorov, a temática do fantástico é analisada.
Assim, a presença de certos assuntos ou campos semânticos específicos não é,
segundo ele, necessária ou suficiente para a definição desse gênero. De forma mais
ampla e ao mesmo tempo mais abrangente, Todorov especifica dois grandes grupos
temáticos do fantástico: os temas do ”eu” e os temas do “tu”. No primeiro grupo
estariam os temas ligados à metamorfose, ao acaso, ao pandeterminismo e à
pansignificação, à dicotomia entre iia e percepção, ao limite entre sujeito e objeto
e à modificação do paradigma de tempo e espaço.
A metamorfose incluiria tanto a possibilidade de alteração física de um ser
natural quanto à geração de um ser sobre-humano.
O acaso ou a causalidade seria a possibilidade de uma ocorrência não
prevista ou de pouca probabilidade. O pandeterminismo poderia ser definido como
uma grande seqüência de acasos, cuja motivação fosse alheia ao mundo natural.
Esta determinação superior que provoca ações cuja sorte foge à probabilidade
natural teria por trás de si uma significação aglutinadora ou pansignificação.
Segundo Todorov:
Em outros termos, a um nível mais abstrato, o pandeterminismo significa que o limite
entre o físico e o mental, entre a matéria e o espírito, entre a coisa e a palavra, deixam de
ser estanques.
68
Assim, com a derrubada destes limites, ocorre um fluxo de determinações de
um para outro destes lados; determinações que só poderiam ser explicadas
68
TODOROV, Tzvetan. op. cit., p. 121.
48
naturalmente se individuais, e que geram a hesitação diante de sua ocorrência
sucessiva.
69
A dicotomia entre a idéia e a percepção baseia-se no sintoma do psicótico ou
do esquizofrênico, visto que essas patologias psicológicas confundem o mundo real
ou sensível com o imaginário.
Num outro pólo de fusões entre conceitos díspares, pode-se encontrar a não
delimitação entre o objeto e o ser que o observa. Todorov cita Piaget
70
, cuja teoria
aponta a mescla entre o “eu” e o mundo exterior durante a infância humana. O
mesmo fato ocorre através do uso de drogas alucinógenas. Com a interpenetração
do indivíduo com o meio, a personalidade tende a multiplicar-se ou fraturar-se o que,
segundo Todorov, seria um exemplo máximo da metamorfose.
O último grande tema é o da alteração do paradigma de tempo e espaço. O
tempo físico se alongaria ou se encurtaria. Da mesma forma, o espaço físico se
distenderia ou se comprimiria apesar de sua realidade. Todorov define o tema do
“eu” como uma manifestação ligada à psique infantil, citando mais uma vez Piaget:
69
O acaso seria uma das mais importantes ocorrências do mundo da vigília sendo definido como um
“conjunto de premonições, de reencontros insólitos e de coincidências estupefacientes, que
manifestam de tempos em tempos na vida humana. O surrealismo procurava, desta forma, unir a
realidade exterior e a interior, a vigília e o sonho. Desta união resulta que “o material, os objetos do
mundo sensível, são evocados, para que, com sua presença, às vezes num espaço insólito, ou num
novo arranjo, possam causar o estranhamento, a surpresa no leitor/espectador” (CARROUGES,
Michael. Hasard Objectif. In: Alquié, Ferdinand. Entrétiens sur le surréalisme. Paris: Mouton, 1968.
p. 271). Como podemos verificar pelas definões acima, muitos pontos de contato estabeleceram-se
entre o surrealismo e o fantástico. Dentre os principais, podemos ressaltar a importância do acaso, de
uma re-interpretação da realidade como algo estranho e multifacetado e do espanto ou surpresa do
leitor diante de um fato ocorrido na narrativa. O acaso, como definido anteriormente, seria um
momento a ser buscado pelo surrealismo. Para o fantástico, da mesma maneira, seria uma peça
importante na instauração de seu mundo. Entretanto, se para o surrealismo o acaso era um fim, para o
fantástico constituir-se-ia num meio para se atingir o espanto.
70
PIAGET, J. Naissance de l’intelligence chez l’enfant. Neuchâtel, Delachaux, Paris, Niestlé, 1948.
49
Quatro processos fundamentais caracterizam esta revolução intelectual realizada
durante os dois primeiros anos da existência: são as construções das categorias do objeto e
do espaço, da causalidade e do tempo.
71
Todorov define ainda que os temas do “eu” tamm estão ligados ao sistema
de percepção-consciência de Freud
72
. Portanto, as alterações provocadas na
consciência do sujeito são decorrência de seu olhar característico voltado à
realidade. Como sua percepção se acha alterada devido a vários possíveis fatores
como as drogas, os sonhos, o acaso, a psicose, a esquizofrenia, ou mesmo o
embuste, a realidade para este indivíduo se torna desvirtuada. Para o fantástico a
alteração no estado de consciência, seja ela de que maneira for, provocaria um
desvio na concepção de mundo realista.
73
Em Os gêneros do discurso, Todorov expõe sua definição de discurso
psicótico baseando-se na teoria psicanalítica:
71
Piaget expõe três conceitos associados ao reconhecimento da realidade exterior e sobre como este
ato se realiza. Parte de quatro fuões ou capacidades principais do raciocínio humano nato qual sejam
a adaptação, a assimilação, a acomodação e a organização. Através destas definições, a realidade passa
a ser algo individual e experimental. Individual na medida em que será adquirida por cada pessoa e
experimental pelo fato de ser integralizada através do contato com o meio. Ler op. cit., p. 20.
72
FREUD, Sigmund, op. cit.
73
Em relação à visão da realidade sob o ponto de vista do indivíduo, o conceito de loucura
considerado pelo fantástico como um estado de anormalidade era considerado pelos surrealistas com
um estado quase ideal. Breton, em “Exibição de x... y...” (BRETON, And. Préface du catalogue de
la exhibition surréalist de 1929), propõe que o estado de vilia seria o responsável pela interferência
na consciência humana. Desta forma, a vigília causaria uma “estranha tendência à desorientação” nos
seres humanos. Assim, o autor citado subverte a noção corrente do sonho tido como um estado irreal,
elevando-o ao estado ideal. Se por um lado o estado de vigília é perturbador, o sonho e a loucura são
um estado desejável e produtivo.
50
... diz-se que a psicose implica numa degradação da imagem que o indivíduo faz
para si mesmo do mundo exterior. Se a psicose em geral é uma perturbação da
relação
entre o “eu” e a realidade exterior, o discurso psicótico será um discurso que fracassa em
seu trabalho de evocação dessa realidade, dito de outro modo, em seu trabalho de
referência.
74
Todorov complementa sua teoria a esse respeito, enumerando três patologias
associadas ao discurso psicótico: a catatonia, a paranóia e a esquizofrenia. A
catatonia se resumiria no refúgio do silêncio, na recusa do indivíduo em se
comunicar. Desta forma, não se constituiria numa maneira de expressão literária,
mas na sua ausência. A paranóia permitiria a elaboração de um processo de
referência normal, não ligado a um mundo sem existência real para os não
psicóticos. Como decorrência desse discurso, temos o desaparecimento de índices
lexicais como os subtítulos ou expressões convencionais da obra literária. A
presença desses fatores deixaria transparecer um mundo referenciado não real.
Outro elemento que desapareceria do discurso paranóico é o uso de índices
fonéticos como a entonação ou o uso de expressividade sonora ou ainda índices
não verbais como gestos ou situações que indiquem a qualidade do discurso. Assim,
sem estes elementos, o desmascaramento do mundo paranóico não é possível e
perde-se a referência com o mundo real.
Se no discurso paranóico, o processo de referência é normal, no discurso
esquizofrênico, outro sub-tipo do discurso psicótico, a referência não é criada, não
se consegue evocar facilmente os fatos cujas palavras relatam. O que ocorre é a
perturbação da referência ao mundo real. Encontramos, ainda segundo Todorov,
três procedimentos lingüísticos comuns a esse tipo de discurso. O primeiro trata do
processo metalinguístico que qualifica o estatuto do discurso. As anáforas, as
conjunções sem lógica e a ausência de balizadores de hierarquia são alguns
elementos empregados. No caso das anáforas, principalmente as pronominais,
74
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1980, p. 75.
51
misturam-se os referentes ou antecedentes do discurso causando a perplexidade ou
surpresa no leitor. As conjunções causais, adversativas, de inclusão e de sucessão
temporal, quando utilizadas para a quebra da lógica esperada, irão produzir o
mesmo efeito de perplexidade. Finalmente, os balizadores hierárquicos que
deveriam organizar os segmentos do discurso desaparecem, acabando por provocar
a perda da seqüência narrativa.
O segundo grupo de perturbações de referência encontra-se no nível das
proposições da narrativa. Uma proposição inacabada, “proposições acopladas umas
às outras sem que tenham relação alguma de conteúdo ou conjunções que indiquem
sua hierarquia”, aliada às proposições contraditórias, constituiriam, segundo
Todorov, alguns dos casos desse grupo.
Como terceiro e último conjunto de elementos utilizados nesse tipo de
discurso, encontramos a incoerência resultante da impossibilidade de construção da
referência.
Todorov realizou uma expansão do conceito temático ao direcioná-lo do
simples conteúdo, como fizeram Lovecraft e Penzoldt, para sua forma e ao elaborar
a conexão destes grandes temas à psique do indivíduo. Essa elaboração tamm
influiria no discurso dos personagens, tomando alguns aspectos que, como
veremos, haviam sido definidos por Sartre como interferências do meio no fantástico
contemporâneo. Todorov também utilizou sobremaneira as definições de Freud
acerca do inconsciente para a criação do temas do “eu” e do “tu”. Assim,
percebemos como as concepções de fantástico acabam por tocar em certas
características comuns tanto na definição do contemporâneo de Sartre, como
veremos posteriormente, quanto nas definições do estranhamento de Freud.
De modo resumido, o mundo fantástico de Todorov se daria diante da
hesitação provocada pela incerteza na interpretação de fatos narrados ou vividos
pelos personagens. Essa incerteza geraria um equilíbrio instável perante um mundo
estranho e outro maravilhoso. Dois perigos deveriam ser evitados para a
continuidade do mundo fantástico. Primeiramente, a leitura poética poderia finalizar
o fantástico. O segundo perigo estaria situado na leitura alegórica. No entanto, como
citamos anteriormente, estes perigos poderiam tornar-se aliados do fantástico, se
52
empregados com a parcimônia devida. Deve-se acrescentar mais um perigo
analisado durante nossos comentários acerca do fantástico - a mudança das regras
de formação dos mundos limítrofes – mudança possível em face da dependência
cultural.
Sobre as características formais do gênero fantástico definidas por Todorov,
podemos citar o uso da figura retórica, do narrador representado em primeira
pessoa, da característica plana das personagens, da atmosfera elaborada, a idéia
de tempo presente, da composição voltada ao gran finale, do uso de modalizadores
e do imperfeito. Finalmente, como temática teríamos os temas do “eu”, relacionados
com o olhar alterado do sujeito diante da realidade, e os temas do “tu”, ligados ao
relacionamento desvirtuado do indivíduo com outros indivíduos ou consigo próprio. A
visão deturpada da realidade poderia provocar no narrador um movimento refletido
em seu discurso. Desta feita, o uso de anáforas, conjunções ilógicas, esvaziamento
do uso de balizadores hierárquicos, proposições inacabadas, acoplamentos não
relacionados ou mesmo contraditórios, além da própria incoerência na construção de
predicados redundariam do efeito psicótico.
Na última parte de sua obra, Todorov discorre sobre os acontecimentos e
sobre os parâmetros que haviam permitido a instauração da literatura fantástica no
século XIX. Apresenta, conseqüentemente, um quadro do que poderíamos chamar
de literatura fantástica contemporânea, realizada a partir do século XX. Segundo ele,
a narrativa sobrenatural do século atual diferia fortemente das histórias fantásticas
tradicionais. Citando Sartre, trata das diferenças entre as duas propostas. Desta
forma, no fantástico contemporâneo o acontecimento estranho não apareceria após
uma série de indicações voltadas ao clímax, mas logo no início da narrativa. Se no
fantástico tradicional partia-se do natural para atingir-se a hesitação diante do
maravilhoso, no fantástico contemporâneo partia-se do sobrenatural e aos poucos,
atingia-se o natural.
Ainda, segundo Todorov, não existiria a hesitação, mas uma adaptação, um
movimento inverso. Não nos encontramos, entretanto, num mundo puramente
maravilhoso com suas regras pré-estabelecidas e bem aceitas. As regras desse
mundo fantástico não são aceitas e, apesar de não haver hesitação, em sua
53
acepção, os fatos são inadmissíveis. Afirma ainda que esse novo mundo fantástico
pode ser interpretado como uma alegoria. Esta seria uma das leituras possíveis,
mas não a única. Aproxima esse mundo da ficção científica, visto que ambos partem
de um mesmo princípio, colocam o maravilhoso em cena – no caso da ficção o
maravilhoso é determinado pela extrapolação de invenções e de uma ciência
impossível para a época – e pouco a pouco vão adaptando as regras desse mundo
à nossa realidade.
Desta feita, no fantástico contemporâneo, o acontecimento sobrenatural
ocorreria diante de um mundo por si só não natural, o que terminaria com a
hesitação diante do mesmo. Se a hesitação ocorre, não se dá no interior do texto ou
com seus personagens, mas diante da aceitação ou não, pelo leitor implícito, das
regras e acontecimentos expostos na narrativa. Ao realizar a aproximação entre o
fantástico contemporâneo e a alegoria, Todorov diminui sobremaneira a
familiaridade entre esse fantástico e o tradicional. Mas, como poderemos ver, a
alegoria, perigosa inimiga do fantástico, é refutada por Sartre na definição do
contemporâneo. Ao permitir várias leituras paralelas que não se destinam à
produção de um efeito moral, conclusivo e único, como ocorreria na alegoria, o
fantástico contemporâneo se aproxima mais uma vez do tradicional. Vejamos então
a sua definição.
54
Sartre e o fantástico contemporâneo
Em “Aminadab”
75
, Sartre define o que chamaria de “fantástico
contemporâneo” em oposição ao “fantástico tradicional”. Segundo o autor, o
fantástico contemporâneo, corrente no século XX, seria um desenvolvimento do
tradicional, realizado no século XIX, e teria Kafka como grande representante.
Nesta concepção, o fantástico não aceitaria delimitação de seu mundo de
forma que tudo e todos que nele habitassem deveriam fazer parte do mesmo. Isso
se deve ao fato de que dada a inserção de um elemento fantástico num mundo
natural, este elemento tornar-se-ia natural tamm. Por outro lado, se um elemento
fantástico pudesse convencer o leitor de que suas características não o fazem
pertencer ao natural, todo o mundo ao seu redor passaria a ser fantástico, mesmo
não o sendo a priori. Para Sartre, o fantástico contemporâneo “ou não existe, ou
estende-se a todo o universo”. Deve-se notar que nesta definição do mundo
fantástico contemporâneo a característica do convencimento do leitor implícito
acerca dos fatos não naturais é entendida como necessária. A respeito de um cavalo
que possui o dom da fala Sartre afirma:
Mas se conseguir convencer-me que o cavalo é fantástico, então também as árvores,
a terra e o rio são fantásticos, mesmo se nada me dissestes a respeito.
76
Arrigucci tamm se refere ao convencimento do leitor no fantástico
contemporâneo ao afirmar que: “... quando a técnica não malogra, o leitor, levado
pela cumplicidade, acentua sua participação, mergulhando no ficcional.
77
75
SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Tradução de Rui Mário Gonçalvez. Lisboa, Publicações Europa-
América, 1968.
76
Idem, p. 110.
55
O convencimento do leitor implícito aponta a necessidade comum entre o
fantástico tradicional e o contemporâneo de um narrador que o conduza à
elaboração de um mundo não natural. Se o leitor implícito não é convencido,
interpretará o elemento fantástico como disfarce de algo natural. Em resumo, para
Sartre não existiria a possibilidade de que um elemento fantástico habitasse o
mundo natural e o mundo resultante se transformasse em fantástico.
Mas, se o mundo fantástico é todo não natural, com regras próprias e
diferenciadas, esse mundo aproxima-se muito do maravilhoso. Apesar dessa
proximidade, vários fatores nos permitirão entender que não podemos classificá-lo
como maravilhoso. Como veremos posteriormente, um dos principais fatores é o de
que as regras deste mundo quase não contrariam as leis naturais, contrariando tão
somente a normalidade. Esses fatores equacionam uma tênue linha divisória que
separa a normalidade do não natural que, entretanto, é de difícil visualização. O
critério de normalidade tem sua definição baseada em parâmetros sociais, podendo
alterar-se em diversas situações. Da mesma forma que a realidade é constituída
num determinado contexto espacial/temporal, a normalidade humana percorreria o
caminho que beira a excentricidade e a loucura.
Além desse fato, o fantástico contemporâneo é habitado principalmente por
seres humanos e naturais. Assim, Sartre expõe o que seria a síntese do fantástico
contemporâneo, ou seja, o “retorno ao humano”. Ao apresentar o “homem às
avessas”, esse fantástico não mais exploraria as realidades transcendentais, mas
transcreveria a condição humana. Afasta-se, segundo ele, das “fadas, djins e
Korigans” e dos “embruxamentos de matéria” em referência ao mundo maravilhoso.
Limita-se somente a um objeto, o homem. Muitas vezes o fantástico tradicional
ocupara-se do homem como seu objeto. A grande diferença exposta por Sartre
reside, na verdade, na forma como o homem é tratado pelo contemporâneo. Em sua
definição, o homem (ou a ordem espiritual) passa a ser o fim a ser atingido. Com
esta definição, o fantástico tradicional é visto como aquele que se utiliza do homem
77
ARRIGUCCI, David Jr. Enigma e comentário: ensaios sobre a literatura e experiência. Cia das
Letras, SP, 1987, p. 147.
56
apenas como ferramenta na constituição de seu mundo, de seus componentes ou
da matéria que o definiria. No contemporâneo este paradigma se inverte. A matéria,
agora sob os desígnios do próprio homem, será o meio pelo qual se atingirá o ser
humano.
Desta forma, esse meio se constituiria da matéria escravizada, cuja qualidade
de utensílio alia-se à sua propriedade de desordem e indisciplina. Exatamente
devido a essa função caótica da matéria, que, apesar de escravizada, não se
submeteria a uma pseudo-ordem imposta, é que o fim não pode ser atingido. Ao não
atingir o fim almejado, qual seja o próprio homem, esse não poderá jamais ser
definido. Assim, o meio acaba por destruir o fim.
Esse homem que jamais atinge o fim almejado fora definido por Camus como
o “homem absurdo”
78
. O absurdo de Camus retrataria tanto o impossível de ser
atingido quanto o contraditório, ou seja, o homem inserido no mundo absurdo jamais
atingiria o fim almejado, mas contraditoriamente continuaria tentando:
Acabo de defini-lo como uma confrontação e uma luta sem descanso. E enfrentando
até o fim essa lógica absurda, tenho de reconhecer que essa luta pressupõe a total ausência
de esperaa (que não tem nada a ver com o desespero), a recusa contínua (que não se
deve confundir com a renúncia) e a insatisfação consciente (que não acertaríamos em
associar à inquietude juvenil)
79
.
Ainda citando Camus:
Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar.
Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem se
sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destitdo das lembranças de uma
78
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Editora Guanabara, R. J., 1989.
79
Idem, p. 50.
57
pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua
vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade.
80
Assim, o homem absurdo se encontra preso numa luta incessante e infrutífera
denotando o impossível e o contraditório. Para Sartre, o homem absurdo é o homem
fantástico contemporâneo.
Outra característica da matéria escravizada é a de que faz parte da rotina de
todos os homens, trata-se de uma conduta normal mesmo que manifestada de
forma absurda. Arrigucci, assim nos esclarece ao falar do fantástico contemporâneo:
... como este é ainda o seu mundo (do leitor), pois dissolve o insólito na rotina, pode,
então, ver melhor, à distância, numa perspectiva crítica, sua própria banalidade.
81
Essa repetição de algo comum, cotidiano, quando geradora de uma
ocorrência que contradiz a probabilidade da coincidência, provoca no leitor implícito
o sentimento do fantástico. Podemos exemplificar essa repetição fantástica através
de um fato corriqueiro que se transforma em fantástico. Um trabalhador termina seu
dia de labor invariavelmente às 5 da tarde. Dirige-se à sua casa através de um
coletivo e, dependendo do trânsito, consegue chegar à sua residência entre 6:00 e
6:30 da noite. Toma um banho e liga a televisão sintonizando o jornal local. Mas
percebe que, ao ligá-la, o horário apresentado em sua tela é sempre o mesmo: 6:45.
Diante das variáveis que se alteraram durante o percurso entre o emprego e sua
casa e o momento em que ligara a televisão, como explicar a repetição do horário?
Poderíamos pensar num relógio biológico do personagem que conseguiria adequar
o banho ao tempo necessário para o início do jornal. Podemos pensar numa falha na
medição desses horários. Mas a quantidade dessas repetições e a percepção e o
80
CAMUS, Albert, op. cit., p. 26.
81
ARRIGUCCI, David Jr, op. cit., p. 147.
58
acompanhamento dessas ocorrências dizimaria qualquer dúvida. Essa repetição
exata que permite uma explicação real, mas que foge ao percentual esperado de
sua repetição, ou seja, que não poderia tornar a ocorrer de forma tão freqüente e
similar no mundo real, pode ser justificada por Sartre através de um intermediário
que não permitiria que a continuidade das ações transcorresse. Nesse caso, a
televisão, com sua demonstração de poder sobre o tempo, seria o instrumento
desses momentos fantásticos. Essa rotina não natural, entretanto, continua dia após
dia sem que o personagem consiga resolvê-la dentro de sua particularidade. Nesse
ponto o que seria algo não natural é incorporado à natureza da repetição, da rotina,
e volta a ser uma atividade que se integra à realidade. Para Sartre, dois pontos
principais seriam os responsáveis por essa ocorrência: a rebelião dos meios contra
os fins e a mudança do paradigma mensageiro/destinatário.
Os meios se rebelariam contra os fins ou através de sua ruidosa manifestação
ou por referenciarem outros meios, e assim sucessivamente, ou porque os meios só
nos deixam entrever um fim confuso e contradirio. No primeiro caso, a rebelião do
meio ocorre devido ao estado de organização caótica da matéria, como já fora
exposto, o que impossibilitaria que se atingisse o fim procurado. O segundo caso de
rebelião é gerado não por uma resistência ativa, comprometida na desorganização,
mas pela resistência passiva da matéria à submissão pela qual tenciona-se imputá-
la. Essa resistência passiva é realizada através da indireção da matéria ao apontar
seu paradeiro para outro meio e assim por diante. Esse labirinto de indireções
termina por encobrir o fim a ser atingido. A rotina seria um dos elementos
construídos a partir dessa repetição. Camus definiria a rotina do homem absurdo
como um “retorno inconsciente à mesma trama ou despertar definitivo”.
82
Essa visão
reflete, como veremos posteriormente, a visão de Freud segundo a qual algo já
presenciado voltaria a ocorrer. A diferença entre as duas concepções é de ordem
quantitativa e não qualitativa. Para Freud, a ocorrência se repete uma vez e causa a
estranheza. Para Sartre, estas ocorrências se repetem infindavelmente e são,
apesar de não esperadas em sua naturalidade, incorporadas ao cotidiano.
82
CAMUS, Albert, op. cit., p. 32.
59
A terceira rebelião dos meios decorre diretamente das anteriores no sentido
de que os meios só permitiriam que atingíssemos um fim sem nitidez, dúbio, um fim
virtual que não pode ser totalmente vislumbrado ou permite várias interpretações
que não são concordantes.
Segue-se à anterior um outro tipo de rebelião da matéria proposto por Sartre
que altera o paradigma mensageiro/destinatário e pode ser equacionado por uma
das seguintes razões: mensagens sem conteúdo, sem mensageiro ou sem
remetente; mensagens que nunca chegarão ao destinatário; mensagens que se
modificam ao longo do trajeto; mensagens parcialmente decifráveis; mensagens
com destinatário errado e mensagens cujo remetente é o próprio destinatário. Todas
estas alterações no paradigma mensageiro/destinatário geram um meio que cresce,
se multiplica e destrói o fim que não pode mais ser alcançado.
Outro ponto levantado por Sartre trata da maneira como o meio agiria para
minar o fim. Este meio escravizado domina a relação mensageiro-destinatário
aumentando numericamente a troca de mensagens. No entanto, se por um lado o
fluxo e a densidade desse meio se multiplica, por outro lado não auxilia a definição
do caminho que nos levará ao fim. As mensagens serão incompletas ou
criptografadas em seu conteúdo, com vícios de postagem por ausência de dados ou
mesmo pela repetição do destinatário como remetente.
Ao expor a matéria escravizada, Sartre sugere que, além dos utensílios
materiais, encontram-se os homens-utensílios, cuja função é a de servir como um
meio, como um soldado, um empregado, um autômato que executa infindavelmente
sua função. O universo fantástico contemporâneo assume, desta feita, o aspecto de
mundo burocratizado, povoado por leis sem finalidade e desconhecidas pelos
próprios executores.
Mais um aspecto diferencial em relação ao fantástico tradicional surge em
decorrência desta propagação de meios burocráticos e repletos de utensílios: o
narrador não se espanta diante das ocorrências que se lhe apresentam. Ao contrário
do fantástico tradicional no qual um homem “direito” era transportado para um
mundo às avessas, como coloca Sartre, no fantástico contemporâneo o homem
geralmente é fantástico, faz parte do mundo em que se insere como anteriormente
60
descrevemos. Sartre cita que mesmo em casos em que o narrador fantástico
tradicional é utilizado, como em O Processo de Kafka, não há identificação do leitor
implícito com o narrador, este apenas contempla sem surpresa os fatos da narrativa.
Assim, mesmo quando nos identificamos com o narrador, esta identificação é
realizada através de raciocínios já começados e que nunca terminam. Desta feita, o
espanto não ocorre no leitor implícito ou por falta de identificação com o narrador por
si só fantástico, por colocar-se por fora do mundo visualizado, ou ainda, por realizar
uma identificação infrutífera, pautada por raciocínios incompletos e estéreis.
Sartre aponta a importância da intenção do narrador, de seu caráter definido,
para que a luta infrutífera contra os meios tenha sua razão de ser. Esta
característica é constante no mundo fantástico contemporâneo. Para que exista uma
luta infrutífera, o narrador ou o personagem central deve-se esmerar na tentativa de
atingir um fim que, entretanto, nunca se concretizará. Define-se conscientemente
como um lutador absurdo, aquele que empurrará a pedra em direção ao cume da
montanha mesmo tendo certeza de que, próximo ao topo, a matéria escravizada se
rebelará e rolará montanha abaixo, obrigando-o a repetir novamente a árdua tarefa.
O fantástico contemporâneo deveria ainda se afastar de dois perigos que
impediriam o estabelecimento de seu mundo: a utilização de idéias filosóficas e
idéias morais no desenvolvimento da narrativa. O emprego desse tipo de idéia
utilizar-se-ia do fantástico somente pela necessidade do empréstimo de sua
linguagem característica, ou seja, pelo uso estético do gênero, e não para a
constituição de um mundo com características próprias. Assim, a alegoria constituiria
outro elemento a ser evitado na confecção do fantástico. Estes fatores tamm
foram apontados como perigos para o fantástico tradicional. Assim, se a metáfora do
mundo criado é forte o suficiente para mascarar sua real aparência natural e quando
não nos colocamos em cumplicidade com o drama do homem absurdo, o fantástico,
mesmo contemporâneo, não se instaura.
Pelo que foi exposto até o momento, podemos afirmar que tanto o
maravilhoso quanto o real encontrar-se-iam afastados desse mundo contemporâneo.
Por um lado, apesar do uso de uma não normalidade, o contemporâneo não
constitui um ambiente onde as leis não naturais pautam o comportamento dos seres
61
que nele habitam. Por outro, mesmo que focado na vida humana e em seus
problemas, numa aparente rotina e quase normalidade, o real não se constitui, visto
que esse mundo extrapola o plausível.
62
O trabalho de Freud - os sonhos e o estranhamento
Em 1900, Freud publicaria Die Traumdeutung
83
, obra que praticamente
iniciaria o estudo da psicanálise.
Bellemin-Noël definiu em poucas palavras a importância que Freud adquiriria
para o homem:
Copérnico tinha-o forçado a reconhecer que seu pequeno planeta não era mais o
centro do mundo; Darwin, que ele era apenas um animal mais afortunado que os outros e
não uma criatura de origem maravilhosa; ele próprio demonstrou que 'o eu não é mais o
senhor na sua própria casa'.
84
Assim, dentre a extensa gama de revelações proporcionadas por Freud,
encontram-se os conceitos de consciente e inconsciente, repressão, conteúdo
manifesto do sonho, pensamentos oníricos latentes e os mecanismos da
condensação e do deslocamento; mecanismos esses que extrapolariam o campo
onírico.
O mecanismo da condensação, como poderíamos supor, não produziria uma
versão incompleta ou altamente fragmentada da versão original, mas, segundo
Freud, selecionaria os elementos que constituem "pontos nodais" para onde
converge a maioria dos pensamentos oníricos. Dessa forma, a condensação elabora
um alto grau de representatividade da versão original. Para Freud:
83
FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. Ed. Imago, R.J., 1999.
84
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Psicanálise e literatura. Ed. Cultrix, S.P., 1983, p. 11.
63
... o sonho é, antes, construído por toda a massa de pensamentos oníricos,
submetida a uma espécie de processo manipulativo em que os elementos que têm
apoios
mais numerosos e mais fortes adquirem o direito de acesso ao conteúdo do sonho ...
85
.
Já o mecanismo do deslocamento é o responsável por realizar a censura
exercida por uma instância psíquica (ego) sobre a outra de maneira a distorcer um
elemento do pensamento onírico. É interessante ressaltar que, para Freud, o
deslocamento é o responsável por relacionar os pontos nodais com o pensamento
onírico variando a direção ou o sentido de forma a "causar espanto". Assim, o
deslocamento coloca em realce algo que não deveria estar presente, segundo os
mecanismos de censura. O "espanto" provocado pelo deslocamento, desta feita, nos
será muito útil no delineamento do estranho, como veremos posteriormente.
A esses mecanismos definidos por Freud como trabalhos do sonho se
somaria um outro conceito básico de muita relevância para o presente estudo, qual
seja, o de que "o conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer,
numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos
para a linguagem dos pensamentos do sonho"
86
. Segundo Bellemin-Noël, além da
condensação e do deslocamento, um outro processo primário definido por Freud é o
de que o elemento do sonho é formulado quando pode ser figurado, visualizado.
Para Bellemin-Noël:
... os tempos fundados numa substituição por semelhança, contigüidade e
dependência têm seu lugar nos pontos-chave de cada sistema, e é assim que se procede a
condensação. Quanto ao deslocamento, ele recebe bom número das astúcias a que
recorrem as figuras de expressão (elisão, hipérbole, litotes, paradoxismo, ironia, preterição,
etc).
87
85
FREUD, Sigmund, op. cit., p. 270.
86
Idem, p. 276.
87
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Psicanálise e literatura. Ed. Cultrix, S.P., 1983, p. 27.
64
Ainda citando Bellemin-Noël, a investigação literária poderia "descrever os
princípios e o leque de meios que a psicanálise colocou a nossa disposição para nos
permitir ler melhor a literatura".
88
Portanto, nosso interesse na aplicação da teoria
psicanalítica para a interpretação da obra literária se encarregaria de associar os
mecanismos da linguagem onírica à tradição literária, possibilitando que os
conceitos psicanalíticos fossem utilizados como um poderoso ferramental.
Entretanto, alguns perigos deveriam ser evitados na utilização da teoria
psicanalítica na prática da interpretação literária. Leyla Perrone-Moisés
89
nos
esclarece que a contribuição de Lacan à psicanálise poderia refrear a idéia de
utilizar-se do texto literário para que se chegasse a uma interpretação "última e
definitiva". Caso este cuidado não fosse tomado, poder-se-ia confundir o enunciador
com o indivíduo falante, ou seja, realizar a análise do autor através de seu texto
literário. Em última instância, dever-se-ia lembrar que "o texto literário é, antes de
mais nada, obra de linguagem".
Desta feita, cientes das vantagens e dos perigos deste novo ferramental,
deparamo-nos com uma literatura que muito se utilizaria do aspecto onírico e do
inconsciente: a literatura fantástica. Bellemin-Noël já havia afirmado que:
... a fantasia, tal como a encontramos no devaneio, é a narrativa atual de um núcleo
fantasmático inconsciente; ela apresenta-se como argumento que desenvolve uma frase
mais simples onde o sujeito figura em relação dinâmica com os diversos objetos para os
quais seu desejo pode dirigir-se.
90
88
BELLEMIN-NÖEL, Jean, op. cit. , p. 13.
89
PERRONE-MOISÉS, Leyla. "Nenhures - Considerações psicanalíticas á margem de um conto de
Guimarães Rosa". In: Colóquio / Letras, número 44. Fundação Calouste Gubbenkian, Lisboa, Julho de
1978, p. 32.
90
BELLEMIN-NÖEL, Jean, op. cit., p. 36.
65
Em 1919, Freud publica Umheinlich
91
, expondo o sentimento de "inquietante
estranheza" que permearia várias obras literárias.
Freud atacaria o problema desta definição abordando o significado da palavra
"estranho" em várias línguas. Uma primeira oposição surgiria em seu trabalho: a
oposição entre estranho e amedrontador, oposição esta que separaria o terror do
fantástico. Assim, o estranho não produziria o pânico ou o medo, mas um
sentimento ímpar de difícil definição. Freud conclui que, apesar das divergências
pesquisadas, uma verdade se definia claramente: "o estranho é aquela categoria do
assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar"
92
. Assim, o
sentimento de estranheza seria produzido no momento em que algo familiar,
conhecido pelo indivíduo, tornar-se-ia diferente adquirindo facetas de desconhecido.
Freud cita Jentsch, um estudioso da literatura médico-psicológica, que
descreve a característica da incerteza provocada no leitor diante de um fato,
incerteza denominada de hesitação por Todorov, como característica do sentimento
de estranheza. Constata, entretanto, que a incerteza por si só não poderia justificar o
sentimento de estranheza suscitado no leitor. Após uma análise pormenorizada de
alguns textos literários, conclui que dois fatores seriam os responsáveis pelo
sentimento de "umheinlich".
O primeiro fator está associado à ansiedade gerada por um impulso
emocional reprimido. O elemento reprimido retornaria provocando a estranheza.
O segundo fator seria decorrência direta do primeiro, ou seja, o elemento
reprimido era familiar, tornou-se alienado através de sua negação e surge
inesperadamente perante o indivíduo. Freud reforça esse conceito ao afirmar a
diferença entre um medo de algo estranho, não familiar, do estranhamento
propriamente dito. Cita as coincidências do desejo e realização, as repetições de
experiências similares em datas ou lugares, as visões ilusórias, os ruídos suspeitos
e mesmo o duplo como fatores familiares, já conhecidos, mas que suscitariam o
sentimento de estranheza.
91
FREUD, Sigmund. "O estranho". In: Uma criança é espancada / Sobre o ensino da psicanálise nas
Universidades e outros trabalhos. Ed. Imago, R.J., 1976.
92
Idem, p. 87.
66
No entanto, reconhece a particularidade estética da estranheza ao confrontar
a teoria psicanalítica dos complexos infantis reprimidos e reavivados com a
realização literária. Segundo ele, o autor:
... consegue guiar a corrente das nossas emoções, represá-la numa direção e fazê-la
fluir em outra, e obtém, com freqüência uma grande variedade de efeitos diante do mesmo
material.
93
Exatamente ao diferenciar o sentimento de estranheza vivido pelo indivíduo
do sentimento de estranheza experimentado pelo leitor de uma narrativa de cunho
fantástico é que Freud abre o caminho para Sartre e Todorov.
Primeiramente, Freud diferencia os "contos de fada", onde o mundo da
realidade é deixado de lado desde o princípio, de narrativas clássicas como o
"Inferno de Dante", "Hamlet", "Macbeth" e "Júlio César", narrativas essas onde o
"mundo real" admite "seres espirituais superiores", diferindo-as ainda das narrativas
nas quais o "escritor pretenda mover-se no mundo da realidade comum"
94
. O
sentimento de estranheza nesse último caso é realizado "fazendo emergir eventos
que nunca, ou muito raramente, acontecem de fato"
95
.
Ainda segundo Freud, o autor nos ilude ao prometer a realidade, mas nos
engana no momento em que essa mesma realidade é excedida. Nesse caso,
conservamos um "sentimento de insatisfão, uma espécie de rancor contra o
engodo assim obtido". Soma-se a esse fato a característica do retorno a algo já
conhecido, do déjà-vu. A mesma definição seria adotada por Sartre ao se referir ao
fantástico contemporâneo; muito tempo depois de Freud tê-la proferido. Como
dissemos anteriormente, a diferença proposta por Sartre é de caráter quantitativo, ou
seja, através de repetições constantes ao mesmo ponto.
93
FREUD, Sigmund, op. cit., p. 122.
94
Idem, p. 121.
95
Idem, ibidem.
67
Voltando-se mais uma vez para a literatura, Freud enumera outras
características da estranheza. Para ele, o autor poderia manter o leitor:
... às escuras, por muito tempo, quanto á natureza exata das pressuposições em que
se baseia o mundo sobre o qual escreve; ou pode evitar, astuta e engenhosamente,
qualquer informação definida sobre o problema, ao fim.
96
Assim, Freud coloca em jogo a dúvida suscitada no leitor em relação à
veracidade ou não de um fato narrado. Esse posicionamento ambíguo entre o
mundo real e o mundo maravilhoso é o mesmo adotado por Todorov e por Sartre na
definição do fantástico tradicional, ambos em trabalhos posteriores.
Finalmente, Freud explicita mais um elemento do estranhamento utilizado na
literatura analisada: a sensação de estranheza pode ser vivida por um personagem,
mas somente é passada ao leitor quando nos colocamos no lugar desse mesmo
personagem, ou seja, possivelmente quando o personagem é o narrador. Esse dado
imediatamente nos remete à necessidade, desejada, mas prescindível, segundo
Todorov, da identificação entre o narrador e o leitor para que o sentimento de
estranheza, ou fantástico, fosse determinado.
Entretanto, Freud separa o sentimento de estranheza psicanalítico do estético
ao afirmar que:
É evidente, portanto, que devemos estar preparados para admitir existirem outros
elementos, além daqueles que estabelecemos até aqui, que determinam a criação de
sensações estranhas. Poderíamos dizer que esses resultados preliminares satisfazem o
interesse psicanalítico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta pede
provavelmente uma investigação estética. Isto, porém seria abrir a porta a dúvidas acerca
96
FREUD, Sigmund, op. cit., p. 122.
68
de qual seja exatamente o valor da nossa argumentação geral, de que o estranho provém
de algo familiar que foi reprimido.
97
Dessa forma, Freud ao mesmo tempo havia elaborado uma definição valiosa
do sentimento de estranheza e deixara o caminho aberto para um estudo literário do
estranho que redundaria nos trabalhos de Sartre, Todorov e mesmo Penzoldt.
Do que foi exposto até o presente momento, a definição de Freud para o
sentimento de estranheza compreenderia os seguintes aspectos principais: seria
decorrência de algo familiar que se torna desconhecido, reprimido, gerando angústia
no indivíduo; surgiria inesperadamente causando espanto e estranhamento; no caso
literário, o mundo do estranhamento seria aquele em que fatos raros ocorreriam;
haveria um sentimento de ilusão por parte do leitor gerado pela promessa do autor
em integralizar uma realidade, mas acabar por excedê-la; o retorno a algo já
conhecido poderia ser constante; o narrador geraria a dúvida sobre o leitor a
respeito da identificação do fato narrado e, finalmente, somente com a identificação
do leitor com o narrador esse sentimento de dúvida e estranheza poderia ser
concretizado.
Assim, podemos não somente nos utilizar destes estudos de Freud para a
análise do texto fantástico como tamm concluir que outro aspecto relevante se faz
presente: os mecanismos do sonho e os do fantástico possuiriam muitos pontos
concordantes - a predominância pictórica na apresentação ou sensação dos fatos
estranhos, a valorização do narrador e do leitor como desdobramentos do sujeito
que está sonhando e a condensação e o deslocamento entre a realidade e o mundo
estranho ou fantástico.
A predominância pictórica do fato estranho decorre naturalmente da
necessidade de que o personagem ou o indivíduo vivencie a situação de
estranhamento. Esta situação poderia ser ativada através de um aroma ou som ou
paladar, sentidos não visuais, mas que garantiriam esta experiência. Entretanto,
97
FREUD, Sigmund, op. cit., p. 117.
69
esses seriam meios para o retorno da lembrança visual do elemento familiar. Da
mesma forma, no sonho, a escrita é pictográfica, como já afirmara Freud.
De forma concordante, no fantástico, assim como no sonho, o narrador ou
personagem principal é o indivíduo que experimenta, geralmente em primeira
pessoa no caso literário e claramente no caso psiquiátrico, a sensação de
estranheza.
Já os mecanismos de deslocamento e condensação, tão presentes nos
sonhos, ocorrem exatamente no momento do estranhamento ou concepção do
fantástico na medida em que, no caso do deslocamento, é o responsável pela
indeterminação do fato e, no caso da condensação, da falta de argumentos que
confirmem ou neguem o acontecimento presenciado. Assim, o deslocamento retira o
fato da normalidade ao deformá-lo, ao transformá-lo, sem, no entanto, tirar-lhe a
característica primordial. As forças defensivas do ego, como diria Freud, acabariam
por inibir o fato conhecido ou familiar, guardado no inconsciente, transformando-o
em algo passível de ser filtrado e aceito pelas aspirações morais e estéticas do
indivíduo.
No caso do mecanismo de condensação, esse seria o encarregado de
compactar as informações, reduzindo-as e tornando o aspecto reprimido mais
oculto, com menos possibilidade de decifração por falta de material que o
confirmasse ou esclarecesse.
Estes dois fatores, o deslocamento e a condensação contribuiriam para
provocar a hesitação no fantástico visto que o ato vivenciado não pode ser
imediatamente esclarecido por falta de informação que o confirme ou negue e, ao
mesmo tempo, por parecer real e irreal, processo decorrente do deslocamento da
realidade.
70
4. Ilustrações
Pudemos verificar nos capítulos anteriores como as idéias sobre o fantástico
foram sendo elaboradas ao longo dos séculos XIX e XX. Durante este percurso, três
autores se sobressaíram no momento de elaborar suas idéias constituindo o que
chamamos de fantástico tradicional (Todorov), contemporâneo (Sartre) e
estranhamento (Freud).
No sentido de ilustrarmos as principais idéias acerca do fantástico, três contos
foram selecionados, um para cada conjunto de idéias.
Poe foi o autor escolhido para a ilustrar os conceitos do fantástico tradicional
e do estranhamento de Freud. Esta escolha deve-se, entre outros fatores, à grande
adequação dos contos de Poe ao fantástico tradicional e à contemporaneidade
deste autor com a época em que estas idéias foram elaboradas, fatores apontados
nas obras de Sartre, Todorov e Penzoldt. Outra característica sempre presente na
obra de Poe é a utilização de aspectos oníricos em seus contos, criando
freqüentemente uma atmosfera que beira ao sonho. Somam-se a esses fatos a
originalidade de Poe, considerado por muitos como o criador do conto moderno.
Conforme relata Cortazar em Valise de cronópio:
Estou falando do conto contemporâneo, digamos o que nasce com Edgar Allan Poe,
e que se propõe como umaquina infalível destinada a cumprir sua missão narrativa com
a máxima economia dos meios;...
98
Assim, tanto o autor quanto seus contos tornaram fácil a tarefa de escolhê-los
para nossa ilustração.
98
CORTAZAR, Julio. “Do conto breve e seus arredores” in Valise de cronópio- tradução: Davi
Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974, p. 228.
71
Vários contos de Poe poderiam ser utilizados para esta análise. Dentre os
cerca de 71 contos escritos pelo autor, os contos “O retrato Oval”, “Morella”, “Ligéia”,
“A queda da casa de Usher”, “Uma história das montanhas fragosas”, “O gato
negro”, “Berenice” e “A ilha da fada” poderiam se enquadrar no conceito do
fantástico tradicional ou do estranhamento.
Diante da perfeita adequação de tais contos para ilustrar o fantástico
tradicional e o estranhamento, não hesitei em selecionar, dentre eles, os dois que
mais atendem a meu gosto pessoal. “Berenice” se enquadra perfeitamente,
conforme veremos, aos padrões definidos por Todorov para o fantástico tradicional,
com pequenas ressalvas. “A ilha das fadas” permite-me ilustrar com segurança as
idéias do estranhamento graças à presença do caráter onírico, bem como a sutil
indicação de momentos fantásticos, mais precisamente momentos de
estranhamento do narrador.
Já o autor escolhido para retratar o fantástico contemporâneo foi Murilo
Rubião. Esse autor é considerado o iniciador do “realismo fantástico” no Brasil com
seu livro de contos “Ex-Mágico”
99
, escrito em 1940, mas publicado somente em
1947, devido à falta de interesse existente por parte dos editores. No entanto, iria
tornar-se conhecido pelo público brasileiro por volta de 1974 quando teria vários de
seus livros re-editados.
Mas a qualidade de suas obras sempre permitiu que obtivesse o
reconhecimento da crítica e de estudiosos da Literatura Brasileira. Jorge Schwartz
em seu livro “Murilo Rubião: A Poética do Uroboro”
100
analisa a obra deste autor
comparando-o em alguns momentos a Franz Kafka e encontrando um
“simultaneísmo temático e a intertextualidade de ambos os autores”. Alfredo Bosi, no
prefácio intitulado “Situação e Formas do Conto Brasileiro Contemporâneo” assim se
refere a Murilo Rubião:
99
RUBIÃO, Murilo. Ex-mágico. Universal, Rio de Janeiro, 947.
100
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. Ática, São Paulo, 1981.
72
A prosa fantástica e metafísica segue, com maior ou menor felicidade, as trilhas de
Poe, de Kafka, de Borges, a que se pode acrescentar a sugestão, na época avassaladora,
que o teatro de Pirandello produziu em um escritor como Murilo Rubião, sensível ao tema da
mudança da pessoa por trás da rigidez das máscaras sociais.
101
Cinco contos de Murilo Rubião, “Alfredo”, “Bárbara”, “Marina, a intangível”, “A
cidade” e “O ex-mágico da Taberna Minhota” poderiam ser utilizados para uma
ilustração do fantástico contemporâneo por conterem vários elementos definidos por
Sartre como características pertinentes e definidoras deste tipo de fantástico. Dentre
eles, sobressaiu-se minha preferência pelo conto “A cidade”, para exemplificar o
fantástico contemporâneo.
101
BOSI, Alfredo. O Conto Brasileiro Contemporâneo. Ed. Cultrix, São Paulo, 1980, p. 15.
73
O Fantástico tradicional – “Berenice”, de Edgar Allan Poe
Um primeiro aspecto a ser abordado na obra de Poe diz respeito à criação e
manutenção do mundo fantástico. Em vários de seus contos o autor permite que um
narrador posicione-se entre dois mundos conflitantes, num momento instável e
perturbador. Um mundo estranho, geralmente sombrio e habitado por espectros é
tratado como uma possível visão deturpada da realidade. As causas deste desvio no
olhar possuem explicações, determinadas pelo narrador e concordantes com a
realidade, provenientes de um estado sonolento e fantasioso, da loucura ou mesmo
do uso das drogas.
O conto “Berenice”
102
foi publicado em 1835 e pode ser tomado como um
exemplo magnífico do fantástico tradicional. O tema central trata da tênue linha
divisória entre a vida e a morte e utiliza-se de uma gradual criação de atmosferas e
indícios que nos conduzem ao clímax do conto.
Dessa forma, em “Berenice”, o narrador em primeira pessoa declara-se
pertencente a uma estirpe que “tem sido chamada uma raça de visionários”, afirma
que sua “própria doença aumentava” a cada instante e que “por intermédio” de sua
“visão doentia” acabava por dar uma importância irreal para aspectos frívolos.
Portanto, o estado intermediário entre a vigília e o sono, a sanidade e a loucura e a
consciência e a inconsciência, seriam as justificativas para tornar reais os fatos
aparentemente maravilhosos que se apresentam. Através desses fatos, o leitor
implícito começa a duvidar do que será relatado. Se a visão do narrador pode ser
tomada como doentia, segundo seus próprios relatos, como poderíamos acreditar
em sua narração? O narrador nesse caso é claro e honesto. Ao mesmo tempo em
que duvida de suas próprias visões, atrai a confiança do leitor por não mentir.
Outros recursos de Poe contribuem para este pacto. Se a visão deturpada da
realidade não é a responsável pela justificativa da não aceitação do mundo
102
POE, Edgar Allan.Berenice” in Ficção completa, poesias e ensaios. Ed. Nova Aguilar S.A, R.J.,
1997.
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maravilhoso, muitas vezes uma pretensa ciência poderia ser responsabilizada. Em
“Berenice” a epilepsia ou patologias que confundem a vida e a morte, falseando a
última, são recursos que colocam o mundo maravilhoso em dúvida. Segundo o
narrador, a doença de sua futura esposa constituía-se em “uma espécie de
epilepsia, muito semelhante à morte efetiva...”. Desta vez, a ciência é quem mascara
a realidade. A ciência que não é determinista, que ainda não se solidificou, que não
tem respostas prontas para o que pretende descrever.
O mundo maravilhoso, por outro lado, surge exatamente da negação de
explicações possíveis à realidade. O narrador, negando ou duvidando da
possibilidade de que sua visão não retrate a verdade, depara-se com explicações de
cunho sobrenatural para os fatos vivenciados. Apesar de geralmente opor-se às
referidas explicações nos contos de Poe, o mundo decorrente das mesmas se lhe
apresenta como maravilhoso.
Assim, o retorno à vida após a morte, a reencarnação ou a credulidade na
existência do espírito surge em “Berenice” como mote para o maravilhoso, quando o
narrador pergunta-se se realmente “o dedo da defunta se mexera no sudário que a
envolvia”. A reversão da morte através do retorno espiritual configuraria, nesses
exemplos, um mundo maravilhoso, caso nos baseássemos nos parâmetros
científicos e culturais da sociedade de então e, ao mesmo tempo, um mundo
estranho, mas real, caso pudéssemos supor que o espiritismo, tão presente na
época em que Poe escrevia seus contos, fosse admitido como uma verdade.
Percebemos a importância do ponto de vista do observador, de sua bagagem
cultural concebida através de um espaço e tempo.
Vejamos agora como os aspectos técnicos expostos por Todorov se
encontram em “Berenice”. O narrador de Poe assume vital importância na confecção
do mundo fantástico, aos moldes da definição de Todorov. Geralmente realizado em
primeira pessoa, esse narrador dialoga constantemente consigo mesmo e com o
leitor implícito. Por vezes, o diálogo é implícito, realizado como um fluxo de
consciência do narrador, mas disposto através de perguntas ou dúvidas a respeito
de um fato presenciado. Ao realizar uma pergunta dirigida a si próprio, o narrador,
na verdade, dirige-se principalmente ao leitor implícito. Este é o caso do narrador de
75
“Berenice” quando pergunta “como de um exemplo de beleza, derivei eu uma
imagem de desencanto?“, ou ainda, “Deus do céu, seria possível? Ter-se-ia meu
cérebro transviado? “.
Mas outras vezes, o narrador explicitamente se dirige ao leitor, tocando na
questão da relação produtor-destinatário, como que intensificando o caráter de
testemunho da narração e de cumplicidade entre ambos. É o que ocorre em
“Berenice”, quando o narrador afirma: “Mas é ocioso dizer que não havia vivido
antes, que a alma não tem existência. Vós negais isso. Não discutamos o assunto”.
Dessa forma, esse narrador representado que dialoga com o leitor implícito provoca
uma forte ligação entre ambos, possibilitando que a confiança acerca do teor da
narrativa seja estabelecida.
Outro fator característico do fantástico, segundo Todorov, e que ocorre na
obra de Poe é a autoridade conferida ao narrador. Se a autoridade não é registrada
durante a narrativa por meio de documentos ou certificados que titulem esse
narrador, será por meio da erudição disposta através de citações históricas,
literárias, culturais ou mesmo através da ênfase no ato de leitura e grande acervo
bibliográfico ao qual terá acesso. O narrador de “Berenice” cercara-se de livros,
vivendo desde a infância “nos estranhos domínios do pensamento monástico e da
erudição”, havia “consumido” sua “infância nos livros” e resumido sua vida ao
aprendizado: “Para mim, os estudos do claustro”. Trata-se de um narrador
esclarecido e culto. Suas referências permitem que analisemos com muita
dedicação as suas afirmações ou análises de fatos que vivencia.
Nesse momento, podemos ressaltar que, ao contrário da definição de
Todorov, segundo a qual o narrador ficaria perplexo ao deparar-se com um fato
irreal por acreditar no ato narrado, o narrador de Poe espanta-se, apesar de seu
ceticismo. Dessa forma, negando e duvidando de tudo que de estranho ou
aparentemente maravilhoso esteja acontecendo, esse narrador hesita diante do que
pode presenciar. Procura explicações reais para os fatos, mas, mesmo assim, fica
estupefato diante da possibilidade maravilhosa. Assim, o narrador de “Berenice”
afirma que “é ocioso dizer que não havia vivido antes, que a alma não tem existência
prévia”, negando a via maravilhosa. Ao deparar-se com a possibilidade de
76
reencarnação de sua futura esposa falecida, pensa sonhar e não acredita no que vê:
“Parecia-me que havia pouco despertava de um sonho confuso e agitado”. Este
narrador ganha, através do expediente de duvidar de tudo que presencia, um status
de confiabilidade extrema. É fidedigno exatamente por não acreditar no que vê.
Todorov já afirmara que a característica plana, como definida por Forster, era
um atributo do narrador da literatura fantástica. Analisando o narrador de Poe,
deparamo-nos com um personagem aparentemente qualificável como plano, sem
desdobramentos de personalidade ou facetas complexas. Mas este questionamento
constante, voltado para a autenticação de suas constatações, e o uso de divagações
poéticas e do caráter lúdico, utilizado por esse narrador junto ao leitor implícito, nos
direciona para outras considerações. Suas divagações poéticas ou filosóficas
proporcionam um pano de fundo para as descrições de atmosferas e ambientes
etéreos e supra-reais e ao mesmo tempo elaboram uma personalidade narrativa
complexa que aproxima esse narrador da figura do devaneador, do visionário.
Dizendo-se tomado por sensações psicológicas de teor inconsciente, derivadas de
tormentos mentais ou possíveis patologias, e, ao mesmo tempo, cético em relação
às suas visões, esse personagem pode, no mínimo, ser definido como possuidor de
um grau mediano de complexidade. Ao estabelecer diálogo com o leitor, atinge mais
um degrau da esfericidade de Forster, na medida em que impõe um jogo sutil e
irônico de negativas que afirmam. Dessa forma, apesar da aparente superficialidade
de que se revestem seus narradores, podemos vislumbrar que, ao contrário da
definição de Todorov, o narrador fantástico de Poe possui os elementos necessários
para torná-lo um personagem esférico.
Outro fator constante no fantástico tradicional definido por Todorov é o uso de
expressões idiomáticas, hipérboles e expressões figuradas. As expressões
idiomáticas ou comparações gradualmente preparam o leitor implícito para os
momentos fantásticos que serão narrados. Esses elementos característicos do
discurso da literatura fantástica servem, dessa maneira, para antecipar de forma
velada o que irá efetivamente ocorrer.
Desta feita, em “Berenice”, encontramos o uso do imperfeito e de
modalizadores como os utilizados nas expressões: “Nossa estirpe tem sido chamada
77
de raça de visionários” e quando visualiza sua futura esposa “como a Berenice de
um sonho”. O imperfeito, locuções modalizantes ou questões, conforme afirmou
Todorov
103
, são utilizados pelo narrador no sentido de provocar a imprecisão dos
fatos: “Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se
mexera...?“, ou ainda, “Parecia-me que havia pouco despertara de um sonho
confuso e agitado”.
A hipérbole constitui outro dos elementos formais responsáveis pela produção
da hesitação em relação ao fato narrado. O emprego do exagero, quando tomado
literalmente, realça a característica de fato inusitado ou pertencente a um mundo
irreal. Assim, quando em “Berenice” o narrador nos descreve que “... não há torres
no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar de meus
avós”, ou que sua futura esposa possuía uma “... deslumbrante, porém fantástica
beleza!”, ou, ao descrever sua doença, que poderia “ficar absorto, durante a melhor
parte dum dia de verão, na contemplação de uma sombra extravagante...”, ou ainda,
quando faz referência à doença que “... soprou como ummum sobre seu corpo”,
deparamos com algo pouco usual. Não deixam de ser características pertencentes
ao mundo real, no entanto, nos remetem a uma realidade super-reforçada, cuja
intensidade demasiada retira a nitidez do fato focalizado. Dessa forma, em vários
contos fantásticos de Poe encontramos o artifício da hipérbole ou exagero. Esse
artifício transforma a realidade, dando-lhe ares de maravilhoso aos olhos do leitor
implícito. Devido ao exagero sem limites, muitas vezes interpretamo-lo como figuras
de linguagem ou expressões irreais que, na verdade, se referem a uma realidade um
pouco mais discreta e comedida. Acabamos por tomá-las como uma forma fictícia de
se dizer a verdade, uma maneira de o narrador se expressar. Mas em alguns casos,
diante da incerteza gerada pela interpretação dessas hipérboles, encontramos um
elemento que contribuirá para a criação do fantástico, como definira Todorov.
A expressão figurada tomada em sua literariedade havia sido citada por
Todorov por meio da expansão do uso de figuras retóricas como a hipérbole. O uso
poético da expressão figurada, segundo esse autor, deveria ser evitado na
concepção do fantástico. Mas em Poe, a expressão figurada, mesmo quando não
103
TODOROV, Tzvetan, op. cit., p. 154.
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tomada em seu sentido literal, adquire o estatuto de elemento auxiliar na criação de
atmosferas. Dessa forma, em “Berenice” o narrador nos descreve sua moradia como
“verdadeiras regiões da terra das fadas”, “palácio fantástico” e “estranhos domínios
do pensamento monástico e da erudição”; características que lhe influenciaram a
infância e juventude. Se tomadas em seu sentido literal, o narrador estaria vivendo
num mundo mágico com regras próprias e definidas, fantástico e instável e ao
mesmo tempo estranho. De forma figurada, a atmosfera da mansão em que vivia
seria constituída por esta mistura de graduações de irrealidade. A linguagem
figurada é empregada, nesses casos, como recurso poético do narrador. Seu
sentido literal não é o adotado e a utilização das expressões figuradas denota o
sentimento exacerbado dos personagens diante dos fatos narrados. Este é o caso
da citação do narrador quando descreve a lembrança de Berenice:
... das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações.
Ah, bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos velhos dias de sua
jovialidade e alegria! Oh, deslumbrante, porém fantástica beleza!
As “milhares” de recordações assim como a “fantástica” beleza são tomadas
pelo narrador e pelo leitor implícito como uma forma de grandiosidade sem, no
entanto, serem trazidas para seu sentido literal. Contribuem, entretanto, para
demonstrar a euforia do narrador diante de suas lembranças.
Assim, o fantástico ocorre apesar do uso figurado. Estas expressões, além de
auxiliarem a criação de atmosferas, aumentam a atenção do leitor implícito visto que
exigem que a cada momento a incerteza diante dos fatos seja equacionada. Neste
caso, o leitor coloca-as no plano real até que se encontre diante de uma incerteza da
qual não conseguirá dar cabo imediatamente. Este é o sentimento que nos é
passado durante a afirmação do narrador:
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Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas. Desviei
involuntariamente a vista daquele olhar vítreo para olhar-lhe os lábios delgados e
contraídos.
O leitor implícito acaba por perceber que a ausência de pupilas não ocorre
realmente, mas tão somente como uma forma de ampliar o aspecto mortuário da
personagem Berenice. Entretanto, por alguns instantes, esta aparência acaba por
confundi-lo, levando-o a duvidar se efetivamente Berenice estaria viva. Para o
narrador, a aparência funesta e sem vida da personagem Berenice causa repulsa e
pavor, obrigando-o a desviar seu olhar.
Desta feita, as expressões figuradas manifestam o estado de espírito do
narrador, colaborando para a criação de atmosferas fantásticas.
Mais uma característica comum ao fantástico de Todorov encontrada em
“Berenice” pode ser descrita através da grande utilização da ambientação espacial e
de atmosferas em detrimento da caracterização dos personagens. Esse fator é muito
marcante na contística de Poe. A elaboração das atmosferas e a descrição, por
vezes poética, dos ambientes atingem um grau de maestria em seus contos. Dessa
forma, esses elementos proporcionam tamanha carga emotiva que contagiam os
personagens do mundo em que ocorrem. Em “Berenice”, o narrador afirma que:
... as recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligados àquela sala e
aos seus volumes, dos quais nada mais direi.
Ainda citando o ambiente que o cercava, pergunta-se:
Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou
o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinérias roupagens que lhe caíam em torno do
corpo, que lhe deu aquele contorno indeciso e trêmulo?
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Sobre o quarto em que sua futura esposa jazia morta, exclamava:
Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde me fazia
mal e imaginava que um odor deletério se exalava do cadáver.
Dessa forma, Poe inicia a descrição de ambientes externos ou internos ao
pormenorizar objetos, detalhes arquitetônicos, obras de arte ou elementos da
natureza de tal modo que pouco a pouco esses componentes passam a compor
uma atmosfera complexa que acaba por se refletir no narrador. Esse narrador,
envolto pelas impressões fortíssimas que lhe são emitidas por esse mundo, torna-se
predisposto a aceitar parcialmente os fatos maravilhosos que se lhe apresentam.
Seu raciocínio lógico e sua erudição, entretanto, tentam se sobrepujar à atmosfera
envolvente e catalizadora do mundo maravilhoso. Assim, esse narrador acaba por
hesitar entre uma postura que naturalmente se adequa ao espaço em que se
encontra e uma explicação lógica e racional para aquilo que presencia. As
atmosferas encontram-se nos contos de Poe numa importante posição para a
definição do mundo fantástico.
Conforme Todorov afirmou, Poe era um defensor da construção do conto
direcionada para um momento máximo ou clímax da narração. Assim, em seus
contos, elabora metodicamente cada elemento de forma a conduzir o leitor implícito
para um ponto de grande impacto na narrativa, o salto mortal ou grand-finale. Para
tanto, utiliza-se dos elementos já citados como a forte presença do narrador, grande
orquestrador desses elementos, de figuras de linguagem, da descrição de espaços e
da geração de atmosferas propícias para o estabelecimento do fantástico. Em
“Berenice”, o clímax ocorre no final do conto, característica que se repete em Poe,
quando o narrador percebe que extraíra cruelmente os dentes de sua futura esposa
recém-sepultada, apesar de ainda vida. Mas para que sua surpresa seja dividida
com o leitor implícito, detalhes da doença de cunho epiléptico da futura esposa, de
sua pseudo-doença “monomânica” e da fortíssima impressão que os dentes de
Berenice lhe causavam, vão sendo apresentados pouco a pouco durante a narrativa.
81
Se, por um lado, o clímax situa-se ao final da narrativa; por outro, um fator de
constituição ou preparação para o final inesperado situa-se logo no seu início.
Através de epígrafes, Poe constitui uma espécie de mise-en-abîme ou definição
sucinta e totalizadora de toda a narrativa, embora ainda cifrada:
Meus companheiros me asseguravam que visitando o túmulo de minha amiga
conseguiria, em parte, alívio para as minhas tristezas.
Postados logo abaixo do título do conto, essas epígrafes discorrem sobre o
assunto ou mote principal da narrativa. Para Todorov, a leitura alegórica de um
conto poderia pôr fim ao fantástico. As epígrafes de Poe, numa primeira
aproximação, poderiam nos indicar que a narrativa fantástica nada mais significou
do que uma forma alegórica de colocação do assunto tratado na epígrafe. Mas para
que a alegoria se efetivasse, o significado de cada expressão literal deveria assumir
uma mesma derivação convergente e contrária ao sentido corrente. Da mesma
forma, um sentido moral poderia surgir como aglutinador da alegoria. Não nos
parece que isto ocorra nos contos de Poe. Apesar das epígrafes associarem-se com
a narrativa de forma perfeita, não existe uma moral ou pansignificação diferente da
disposta na narração. A própria narrativa se incumbe da mensagem disposta ao
leitor implícito, e suas facetas não apontam para a dogmatização ou moralização.
Mas essas epígrafes servem, com certeza, para incrementar a atmosfera da
narração e fornecem, de certa forma, uma palavra de erudição para o narrador que
se apresentará logo a seguir, no início da narração.
O mundo fantástico de Poe, desta feita, encaixa-se na definição de Todorov,
com pequenas diferenças, mostrando-nos que o fantástico não pode ser totalmente
descrito por este teórico. Permitindo que explicações reais sejam dadas aos fatos
maravilhosos presenciados, esse mundo percorre, assim, momentos de indecisão e
de hesitação. Conforme citara Todorov, os estados intermediários entre vigília e
sono, a loucura, o uso de drogas, o acaso, o pandeterminismo ou mesmo a ciência,
82
quando questionáveis, poderiam dar margens a explicações realistas para os fatos
aparentemente maravilhosos. Mas mesmo quando regras da realidade podem
explicá-lo, a incerteza é colocada como possibilidade para atingir-se o maravilhoso.
Dessa forma, por momentos ou durante todo o conto, o mundo fantástico
definido por Todorov é constituído na contística de Poe, apesar desse autor utilizar
alguns elementos que, segundo Todorov, deveriam ser evitados durante uma
narrativa fantástica. O uso de metáforas e divagações filosóficas realizadas nos
contos de Poe, ao contrário de possibilitarem a finalização do gênero como afirmara
Todorov, abrem as portas para a hesitação do leitor implícito diante do tipo de leitura
realizada. Mas a concepção de seu mundo é tipicamente a definida por Todorov,
um mundo de hesitação entre o real e o maravilhoso.
83
O Fantástico contemporâneo e o absurdo – “A cidade”, de Murilo Rubião
O conto “A cidade”
104
é um grande exemplo do que podemos chamar de
fantástico contemporâneo, em conformidade com a definição de Sartre. Publicado
em 1947, narra o percurso do personagem Cariba logo após sua chegada a uma
cidade de nome desconhecido; buscando algo indeterminado.
Os elementos do conto, tanto os personagens quanto as cenas, os objetos,
ou seja, o mundo constituído, são naturais, encontrados em qualquer pequeno
município do interior. Entretanto, como veremos, alguns acontecimentos
transformam esta aparente naturalidade num mundo fantástico.
No primeiro parágrafo do conto temos uma descrição resumida dessa cidade:
“Destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente na
antepenúltima estação”. Assim, a cidade que gostaria de ter crescido, que
ambicionava ser grande, cuja linha de trem estender-se-ia cruzando-a de ponta a
ponta acabara por se tornar uma pequena cidade, onde o trem permanecia
estacionado duas estações, antes do seu fim previsto, como se as últimas duas não
houvessem sido terminadas ainda.
A indefinição no tempo em que o trem permanecia naquela estação tamm
nos remete à falta de pressa, à ausência de passageiros, à característica de linha de
pouca importância e de pequeno tráfego de trens. Não havia necessidade de pressa,
o trem permanecia indefinidamente na estação daquela pequena cidade, cuja rota
não conduziria a lugar algum. Cariba estranha, a princípio, a demora na estação e
questiona junto ao funcionário do trem o porquê da delonga e do fato de a
composição estar vazia. Desta forma, um mundo aparentemente natural, constituído
por uma pequena cidade que não havia crescido o quanto almejava, banhada por
uma linha de trens cujos vagões estavam quase sempre vazios, sem pressa de
atingir seu ponto final, sendo este indefinido, torna-se estranha ao personagem da
narração. Nesse momento a estranheza ocorre devido à falta ou contradição das
104
RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. Ed. Ática, S.P., 1998.
84
informações oferecidas. O personagem não entende o porquê da ausência de
respostas a fatos simples e cotidianos. Se existe um atraso existe uma causa.
Este sentimento suscitado no personagem aumenta, quando a resposta do
funcionário do trem resume-se a apontar algumas casinhas brancas posicionadas
num morro ao lado da estação. Cariba insiste mais uma vez, perguntando-lhe sobre
as “belas mulheres”. O funcionário replica enigmaticamente com o sintagma “casas
vazias”. Começa-se a configurar o mundo fantástico contemporâneo onde a matéria
escravizada, representada pelo trem que se nega a levá-lo aonde deseja e pelo
funcionário, tomado como homem-utilitário que não lhe fornece as devidas
informações sobre a cidade, dificultam, impossibilitam ou deturpam o objetivo de
nosso personagem. Percebemos claramente que uma pergunta objetiva derivou em
respostas que conduziriam ou seriam geradas por outras perguntas. Não
encontramos a regra de associação natural entre causa e efeito, pergunta e
resposta. Cariba, entretanto, continuará em sua busca incessante, apesar dos
obstáculos que se lhe apresentam.
Paralelamente aos obstáculos de Cariba, encontram-se os obstáculos
estabelecidos entre a narração e o leitor implícito. Estamos vivenciando uma
trajetória sem termos ciência de seus objetivos ou regras. O narrador tamm
dificulta nosso entendimento que, somado aos desencontros entre ele e os
personagens, acaba por gerar um obstáculo à compreensão da trama. Seguimos,
assim, passo a passo, a incerta trajetória do narrador.
Cariba dirige-se ao morro inconformado com a situação, mas aceitando sua
pena:
A escalada foi lenta e cansativa. O suor escorria pela sua testa, enquanto seus olhos
se sentiam cada vez mais atraídos pela leveza das pequeninas edificações.
Ao contrário do homem absurdo cuja pedra nunca atinge o cume da
montanha, Cariba consegue atingir seu intento. Entretanto as casas estavam de
85
portas cerradas e sua busca mostrava-se infrutífera. Continua a buscar algo
indefinido até mesmo para ele. Dirige-se ao centro da cidade e inicia o que poderia
constituir-se numa série infindável de perguntas: “Que cidade é essa?”. A mesma
pergunta permite que o leitor implícito se identifique com o narrador. Tentando
descobrir o que acontece, o leitor implícito, da mesma forma, sente-se perdido,
buscando respostas sem mesmo ter-se preparado para sua trajetória.
Após esta primeira pergunta, no entanto, o destino de Cariba muda
radicalmente: É levado à delegacia, declarado culpado após alguns interrogatórios
com testemunhas do local e tem sua prisão decretada.
Novamente vemos como os meios, a matéria escravizada ou homens-
utensílio minam o fim a ser atingido pelo personagem. Em primeiro lugar, o fim
confuso e contraditório a que Sartre se referia é o fim buscado por Cariba. Não
sabemos o que busca. Nem ele mesmo tem ciência deste objetivo. A segunda
rebelião dos meios citada por Sartre também se encontra no conto “A cidade”. Os
meios chamam-se uns aos outros através de uma série de interrogatórios liderados
pelo delegado. O mundo de Cariba torna-se caótico, seus direitos são suspensos e a
lógica destes fatos torna-se possível, mas não esclarecida. O leitor implícito mais
uma vez encontra-se na mesma situação. Precisa de respostas e sente-se preso à
carência de recursos para buscá-la.
Porém a maior das características deste mundo absurdo que começa a se
constituir poderia ser encontrada no que Sartre definiu como as alterações do
paradigma mensageiro/destinatário. Algumas mensagens não possuem conteúdo
como a pergunta de Cariba ao funcionário e sua resposta lacônica que somente
apontava o dedo para a montanha. Ou ainda, a resposta “Nada” que Cariba deu ao
delegado ao ser indagado sobre a finalidade de estar naquela cidade. Encontramos
mensagens que não podem ser totalmente decifradas como quando o personagem
afirma: “Não sou turista e quero saber onde estou” e o delegado lhe responde
dizendo que não poderia revelar visto que prejudicaria as investigações. Outras
indagações completam a série de mensagens não cifradas como “É preciso
conspirar” e “Não é necessária a polícia”, frases supostamente emitidas pelo
personagem ao lidar com uma das testemunhas. Estas mensagens, por vezes
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incompletas ou contradirias aumentam ou dilatam os meios e impossibilitam que o
conto chegue a seu termo e que o homem absurdo atinja seu fim. Outra mensagem
não cifrada coloca definitivamente Cariba no caminho de uma busca infrutífera,
agora focada em provar sua inocência: “O homem chegará dia 15, isto é, hoje, e
pode ser reconhecido pela sua exagerada curiosidade”. Este comunicado expedido
por um remetente não informado e direcionado à delegacia de polícia aponta nosso
personagem como o único estrangeiro que poderia ser eleito como culpado. A
pergunta sobre a causa da culpa fica inteiramente obscurecida pelos fatos. Para que
nenhuma dúvida pairasse sobre este julgamento, o delegado informa à Cariba que
sua prisão seria temporária e que “ficasse encarcerado até a captura do verdadeiro
criminoso”.
Completa-se o mundo fantástico do homem absurdo. Sua busca se intensifica
através da necessidade de provar a inocência de um crime não determinado. O
prisioneiro tem ciência de que nunca sairá da cidade, mas prossegue
incessantemente perguntando ao seu carcereiro, dia após dia, se “alguém fez hoje
alguma pergunta?”. Cariba conhece a resposta: “Não, ainda é você a única pessoa
que faz perguntas nesta cidade”. Mesmo assim, não se exime de repeti-la noutro
dia. Sua prisão e a tentativa de provar-se inocente redunda na rotina dos presos que
juram ser inocentes. A burocracia e a matéria escravizada constituída pela ordem de
prisão do estrangeiro, pelos depoimentos das testemunhas e pelo homem-utensílio
representado pelo policial são os meios que se revoltam contra seu fim. Vemos
claramente que a dúvida relacionada com os fatos fantásticos, com uma prisão sem
motivos, deixa de ter o cunho de rigorosa bipolaridade entre o real e o maravilhoso,
como aconteceria no fantástico tradicional para se tornar uma dúvida que se
relaciona com fatos gerados pela própria linguagem. O testemunho, as informações
e os homens-utensílio, comandados por esta série de informações poderosas,
acabam por gerar um mundo que não poderia ser explicado.
Toda a trama, entretanto, decorre sem espanto, vítima da própria naturalidade
dos fatos. O mundo que se descortina perante os olhos do leitor é, por um lado,
pautado por leis naturais e plenamente conhecido. Por outro, é um mundo coeso na
definição de regras absurdas que se desmaterializam na rotina. Neste mundo não
87
existem ilusões e o personagem torna-se um estrangeiro sem pátria e sem
lembranças, pertencente ao meio que o circunda e ao mesmo tempo dele ausente.
Toda a narração é realizada em terceira pessoa e resta ao leitor, tamm sem se
espantar, vislumbrar um drama do mundo fantástico que aprisiona nosso
personagem. A identificação do leitor implícito com o personagem existe na medida
em que seu drama é o drama da sociedade moderna. Não existe o mesmo espanto
que ocorria no fantástico tradicional uma vez que o mundo que observamos é o
mundo natural. Mas a sensação do absurdo, de um mundo caótico que inviabiliza
constantemente a própria vida atinge o leitor de forma incontestável. E resta a
dúvida, pois afinal, este mundo poderia ser nosso mundo. Dessa forma, constitui-se
um mundo não natural, mas tampouco maravilhoso. Um mundo com regras próprias
que coloca o personagem em busca de uma finalidade para a sua existência.
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O mundo onírico e o estranhamento – “A ilha da fada”, de Edgar Allan Poe
Edgar Allan Poe tornou-se notório pelo aprumo na concepção de contos cuja
atmosfera onírica e intensa se fazia presente. Dos cerca de 70 contos por ele
escritos, a "A Ilha da Fada"
105
é um grande representante de uma visão ao mesmo
tempo real e imaginária. Publicado em 1841, este conto permite-nos afirmar que, se
por um lado Freud transformara os parâmetros da concepção de mundo do ser
humano, Poe, algum tempo antes, transformara a realidade através de sua literatura
sem, no entanto, utilizar-se do maravilhoso.
O conto "A ilha da fada" inicia-se com uma citação de Servius, antigo
gramático e estudioso de Virgílio. Nessa epígrafe, o tema central do conto encontra-
se condensado: "Cada lugar possui sua característica própria". A característica
(genius) atribuída a cada lugar (locus) será tratada por Poe como a personalidade
dos espaços naturais, personalidade muitas vezes velada, e, conseqüentemente,
permitirá que se forme uma noção de integração destes elementos na constituição
de um mundo sagrado.O recurso da condensação será utilizado de forma constante
em todo o conto e se unirá ao recurso do deslocamento que surgirá, dentre outras
coisas, na transfiguração de uma natureza inanimada para uma pansignificação de
algo vivo e poderoso.
Aliada à condensação e ao deslocamento poderemos verificar como a
atmosfera onírica se constituirá, partindo de uma necessidade do narrador de poder
contemplar, de forma solitária, mas integrada ao cosmos, a natureza; natureza essa
que só pode ser alcançada através da elaboração de maquetes fantásticas e através
do estado de dormência, permitindo que o trabalho da condensação e do
deslocamento encobrisse uma verdade maior.
O sentimento de estranheza se dará, durante o conto, não só como
decorrência dos mecanismos acima indicados, possibilitando a dúvida sobre o fato
105
POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesias e ensaios. Ed. Nova Aguilar S.A., R.J., 1997.
89
vislumbrado, mas tamm como resultado da lembrança de algo familiar e oculto
que responderia ao valor alegórico que se configurara.
Assim, o conto pode ser dividido em cinco partes principais: o discorrer a
respeito da noção de natureza personificada e pan-significada; a exemplificação do
que poderia ser chamado do lugar elementar; a criação de uma maquete ou
estrutura deslocada do lugar; a vivificação do lugar projetado pela maquete através
da contemplação onírica e a conclusão ou chave para solução da pansignificação ou
natureza primordial do estranhamento.
Desta feita, na primeira parte do conto, o narrador em primeira pessoa
focaliza o prazer obtido por meio dos talentos, em especial da música, contrapondo-
se à afirmação de Marmontel, segundo a qual a música seria o único dos prazeres
que não necessitaria de testemunhas para ser apreciado. Este narrador em primeira
pessoa permitirá que as impressões por ele vivenciadas sejam passadas mais
facilmente ao leitor, conforme definira Freud. A partir deste ponto, o narrador
defende que a solidão é tão necessária para apreciar a música quanto para
contemplar os cenários naturais. Começa-se a delinear uma solidão que se quebrará
por meio da vivificação de uma natureza totalizadora.
Nesse momento, o narrador compara a música recebida pelos ouvidos ao
poder de captar as imagens por meio da visão. Este paralelismo eleva estas duas
experiências humanas ao mesmo patamar, visto que o gozo só seria atingido por
meio destas sensações e perante o isolamento junto à natureza. Além disso, ao
realizar um deslocamento entre a idéia proposta por Marmontel e a sua, o narrador
privilegia a visão dentre as outras sensações humanas. Estas duas premissas - o
isolamento (deve-se lembrar da procedência da palavra isolamento, cuja raiz é a
mesma de ilha), e a visão (que só pode ser executada em isolamento visto tratar-se
de uma imagem formada na retina do indivíduo) - serão os recursos utilizados pelo
narrador para vivenciar a imagem que logo planejaria.
Por meio do estado de dormência, o narrador irá se isolar mais ainda da
presença de outros indivíduos ou estímulos externos, entregando-se aos
mecanismos do sonho e, ao mesmo tempo, gerando as imagens desejadas em seu
inconsciente. Dessa forma, dois tipos de visão irão ser utilizados pelo narrador: a
90
visão que gera imagens em sua retina e conseqüentemente envia estes estímulos
para seu cérebro e a visão que gera imagens diretamente em seu interior. Serão,
conseqüentemente, de mesmo resultado, apesar de conceitualmente diferentes:
uma real e outra imaginária.
O narrador prossegue com sua definição de objeto de contemplação. As
imagens que deseja, entretanto, apresentam-se como uma natureza inerte, estática,
sem a presença de vida humana (novamente o isolamento centrado na imagem),
cobertas por sombras ("vales negros", "rochedos cinzentos"), águas silenciosas,
florestas em sono e montanhas soberbas. Se, por um lado, os elementos desta
natureza pecam pela inércia, por outro, o poder da contemplação realizado pelo
narrador lhes oferece outra possibilidade: a imagem capturada pela visão retorna à
natureza no momento em que a vida lhe é atribuída. O narrador faz com que as
águas "sorriam", as florestas "suspirem" e as montanhas "observem".
Dessa maneira, a característica visual do sonho e do fantástico adquire,
através de Poe, um duplo sentido: além da imagem ser capturada pelo olhar, toca
no objeto visualizado de forma a modificá-lo. Prosseguindo na análise, o
deslocamento se faz presente mais uma vez, tornando viva a inércia e povoado o
isolamento. Os elementos da natureza capturados pelo olhar do narrador são
prontamente condensados como membros de uma esfera e de um cosmos, "cujo
pensamento é o de deus".
Outro deslocamento é realizado quando o narrador compara os elementos
desta natureza ou membros do cósmico aos animacula de nosso cérebro. Assim
como os elementos da natureza fariam parte de um todo cósmico, os animacula
seriam os elementos formadores do cérebro. A noção da parte de um todo, parte
esta que se repete como um círculo dentro de outro círculo, alcança o patamar
divino e místico sacralizando a natureza e seus componentes.
Devemos notar que estas repetições contínuas, que apontam para si
mesmas, são outro elemento levantado por Freud ao analisar o “estranhamento”. O
retorno a algo já conhecido, como nosso próprio cérebro, se confunde com o retorno
a uma natureza primordial, totalizadora e sempre presente.
91
Esta concepção elaborada na primeira parte do conto será associada às
fantasias, meditações e vagueações, realizadas pelo narrador no isolamento junto à
natureza. As opiniões que levantaria, no entanto, são ao mesmo tempo racionais,
pautadas pela lógica, por citações eruditas e frutos de uma mente consciente e
lúcida, e explicitações declaradas como produto de seu pensamento onírico,
fantasioso e inconsciente, como veremos no decorrer do conto. Esta dualidade de
sentidos concorda com a característica do fantástico, da incerteza entre dois
opostos.
Num segundo momento do conto o narrador exemplifica um cenário natural
de contemplação pelo qual poderia exercer seu prazer solitário. O que poderia
tornar-se um testemunho do que havia sido teorizado até então, entretanto, lança
mais uma vez em jogo o ato de transfiguração tão característico do deslocamento. O
narrador, partindo de suas meditações, descreve uma natureza onde a repetição
permeia as montanhas, os rios e lagos. Essa repetição na qual montanhas se
colocam "dentro de outras montanhas", rios e lagos "contorcem-se e sobrepõem-se
uns aos outros", tal qual um círculo dentro de outro círculo, é quebrada pela unidade
da ilha. Somos tomados de imediato estranhamento diante da quebra de uma
seqüência repetitiva e aparentemente infinita ao depararmo-nos com algo que
parece estar isolado, distante e separado totalmente do cosmos único e indivisível. A
recursividade e a repetição, como podemos notar, são usadas constantemente como
forma de reafirmar e ao mesmo tempo mesclar os elementos da narração.
Esta transformação, em realidade, é produzida através de um paralelismo
possível pela condensação ao agrupar-se o conjunto de elementos da natureza em
um único representante, em última instância, como veremos, do próprio cosmos. A
ilha, cercada por todos os lados e ao mesmo tempo isolada de tudo torna-se, assim,
o elemento uno. Mas este passo não ocorre imediatamente. Isto explicaria a
sensação de estranheza suscitada no narrador num primeiro momento. Estabelece-
se, junto à condensação, um deslocamento de situações entre o narrador, isolado
em sua contemplação e a ilha, isolada em sua plenitude e sendo contemplada. Esse
deslocamento, como veremos posteriormente, não somente permitirá a comparação
92
entre o narrador e a ilha, mas também permitirá que o infinito e o uno possam ser
colocados no mesmo nível.
Prosseguindo na execução de sua contemplação, o narrador justifica-se da
necessidade de "dormitar" para que pudesse apreender a característica "fantástica"
das imagens que se lhe apresentavam. Coloca-nos, explicitamente, o aspecto
onírico de suas visões elaboradas por meio de processos repetidos de condensação
e deslocamento. Em contraponto à visão objetiva, seu olhar é "sonolento". As
imagens descritas caminham, assim, na tênue barreira entre a realidade e fantasia.
O riacho "parecia não poder sair de sua prisão" e a cachoeira de águas douradas e
avermelhadas jorrava "das fontes crepusculares do céu". A ilha, da mesma forma,
tinha suas margens confusas, tênues, misturadas com as sombras "como se no ar
estivessem suspensas".
O narrador descreve-nos, então, outra característica da ilha que nos permitiria
compará-la ao elemento uno: sua polaridade. Estabelece duas regiões dicotômicas
da ilha, o oeste e o leste. No oeste, a vida se faz presente através das belas flores,
da relva curta, perfumada, das árvores flexíveis, esbeltas e de borboletas que se
confundem com tulipas aladas. Se a oeste a luz dava a vida, a leste as sombras
lembravam a morte. As árvores eram escuras, lúgubres, de contornos espectrais, a
relva possuía pontas lânguidas e a arruda e o rosmaninho se postavam ao redor dos
ciprestes. As sombras das árvores se enterravam no riacho e, segundo declara o
narrador, por sua "imaginação", eram levadas pelas águas. Esta visão marcante,
saboreada pelo isolamento e contemplação, necessitava, no entanto, da explicitação
de sua significação.
Num terceiro momento do conto, o narrador arquiteta o que poderia vir a ser
uma imagem alterada da que recebia. Deixando-se tomar pela fantasia e pelo
devaneio, imagina ou desloca a visão capturada para o que poderia se constituir
numa ilha encantada, maravilhosa, onde fadas habitavam suas margens e, num
ciclo infindável, dissolviam-se como as sombras das árvores junto ao curso de água.
Estava assim constituída a maquete que representaria a natureza maravilhosa. A
ilha com seu isolamento seria traduzida como o microcosmos da natureza. Seu ciclo
de vida e morte se daria como o tráfego entre a luz e as sombras. A fada tornar-se-ia
93
o elemento humano, feminino e maravilhoso, cujo ciclo de vida e morte se daria ao
longo dessa ilha. Ao representar o ser humano, a vida e a morte, um paralelo se
estabeleceria entre o ciclo de vida do narrador e o ciclo de voltas da fada ao redor
da ilha.
O quarto momento do conto é marcado pela efetivação da imagem
arquitetada na imaginação do narrador. De "olhos semicerrados", num momento em
que as imagens se transfiguravam com facilidade, quando "uma imaginação viva
poderia converter em qualquer coisa que lhe agradasse", pareceu-lhe que o que
havia arquitetado se transformara efetivamente em realidade. Seu desejo se
satisfizera. Uma fada postava-se sobre uma canoa, dando giros intermináveis ao
redor da ilha. A cada giro, ao passar pela região iluminada, uma alegria se lhe
pronunciava e, contrariamente, na região escura, a tristeza a consumia. A cada giro,
a cada instante ou segundo consumido, as sombras se intensificavam até que a fada
desaparecesse junto ao pôr-do-sol.
Nesse momento o narrador é tomado pelo espanto diante da visão de algo
que havia sonhado. No entanto, se à primeira vista o espanto parece explicado pela
realização do maravilhoso, num segundo momento poderemos verificar que o
narrador, na verdade, se espanta por vivenciar algo familiar que fora reprimido.
Assim, a figura da "ilhazinha circular", isolada, detentora do ciclo de vida e
morte, circundada infindavelmente pela fada como um relógio que regula o ciclo
cósmico, se concretizara através da visão imaginativa do narrador. O lugar que
possuía a especificidade do início do conto tornava-se o lugar concentrador de todos
os elementos, de todos os seres, de todos os tempos - o ciclo da vida e da morte.
O espanto do narrador poderia ser interpretado como um reflexo da
concretização de algo imaginado, um fenômeno fantástico segundo a definição
literária tradicional. O narrador estaria duvidando de sua visão que poderia, por um
lado, ser somente um sonho acordado e, por outro, ser a efetivação do mesmo. A
dúvida entre a possibilidade de o fato vivenciado ser somente imaginação ou ter
realmente acontecido provocaria o espanto do narrador.
Por outro lado, tomando-se como certa sua ciência de que estava a dormitar,
a imagem vivificada da fada lhe havia imprimido o sentimento de surpresa e
94
estranhamento. Surpresa pelo inesperado, mas também pelo fato de recordar de
algo familiar, já há muito esquecido que retornava do inconsciente apesar do esforço
que se fizera em ocultá-lo. Infere-se, nesse ponto, que o narrador encontrava-se
diante de uma experiência familiar revisitada, que fora inibida, e que agora se lhe
apresentava diante da visão. O ciclo da vida e da morte, o passar do tempo ou
mesmo a alegria da vida e a tristeza do seu esvair-se se traduziam por meio de uma
alegoria, ou de uma visão.
O narrador termina seu relato sem concluir que fim haveria para a fada, preza
nesta rotação que a desfazia a cada momento. Desta forma, este narrador
continuava em dúvida a respeito do fato narrado. Por um lado, poderia estar
sonhando acordado. Por outro, poderia ter realmente visto o que vira. Assim, ao
deixar de concluir o que havia visto, o autor procura mais uma vez colocar o leitor
em dúvida.
Segundo Todorov, a leitura alegórica do referido conto acabaria com sua
característica fantástica. Presumindo-se que a visão do narrador confundia-se
somente com uma forma de contar o ciclo da vida e da morte, e tendo em vista que
este fato seria constatado pelo leitor implícito, não haveria mais espanto e o
fantástico não ocorreria. Poe nos mostra que isto não é necessariamente uma
condição intransponível para a geração do fantástico. No momento em que a
alegoria se configura de forma sutil e gradual e antes da definição de seu
entendimento pelo leitor implícito, o fantástico encontra seus meios de realização.
No conto em questão, o momento da aparição da mulher sobre a canoa pode nos
mostrar como o fantástico se instaurara por meio da dúvida entre a visualização de
um sonho e a incrível coincidência de sua ocorrência. O narrador se espanta ao
constatar que no mesmo momento em que constituía a imagem de uma fada, uma
mulher sobre a canoa surgia à sua frente. Segundo o fantástico tradicional, seu
espanto seria decorrente do não posicionamento entre o mundo dos sonhos, um
mundo maravilhoso por definição, e a realidade. A aparição, apesar de representar
um elemento que faria parte do mundo natural, encontraria sua característica inédita
diante da elaborada visão que havia sido arquitetada pelo narrador. Este narrador
surpreender-se-ia diante de uma coincidência de tal vulto. Freud nos indicaria uma
95
razão a mais para esta surpresa: o narrador havia desbloqueado de sua mente algo
há muito escondido. Este momento fantástico, de qualquer forma, é constituído.
Cabe ao leitor implícito, após o entendimento ou constatação de que o conto tratava
de uma alegoria para a vida e a morte, terminar com a dúvida que se estabelecera
no momento da aparição fantástica.
Como Freud afirmara sobre o autor:
... ele nos ilude quando promete dar-nos a pura verdade e, no final, excede esta
verdade. Reagimos às suas invenções como teríamos reagido diante de experiências reais;
quando percebemos o truque, é tarde demais, e o autor já alcançou seu objetivo.
106
Assim, o autor iludiria o leitor ao propor algo real, que poderia ser
questionado, mas cujos princípios excedem esta realidade. Tamm iludiria o leitor,
ao deixá-lo em dúvida e, diante da possível leitura que este realizasse sobre um
conto, considerando-o alegórico ou não, retirá-lo do mundo fantástico trazendo-o de
volta à realidade.
106
FREUD, Sigmund, op. cit., p. 121.
96
5. Síntese e algumas considerações
Após este pequeno apanhado do desenvolvimento das idéias sobre o
fantástico, desde os momentos de sua formação, quando ainda se encontrava
vinculada ao horror ou terror, até sua solidificação com o fantástico tradicional e com
o contemporâneo, pudemos verificar como estas idéias foram ilustradas pelas
leituras dos contos selecionados.
Da mesma forma, pudemos verificar que o estranhamento definiu-se como
uma faceta do fantástico. Neste trajeto, alguns pontos conclusivos podem ser
evidenciados.
Tratando-se da maneira como o fluxo de informações se estabelece entre o
leitor implícito e o autor nos diferentes tipos de abordagem do fantástico, podemos
afirmar que no horror, assim como no maravilhoso, os monstros ou elementos
alheios ao mundo real são o que são, ou seja, não existe um jogo velado criado
entre o leitor e o autor. Cria-se simplesmente um acordo por meio do qual ambas as
partes concordarão com uma nova realidade, possuindo regras diferenciadas e
próprias. Neste ponto, Iser
107
nos retrataria que o jogo entre o leitor e o autor
estabelece-se através de seu campo, o texto, e constitui-se por meio de um ato
intencional de interferência do autor sobre o mundo existente – ao esboçar este
mundo através de seu texto, o autor incita o leitor a recriá-lo e imaginá-lo. Segundo
ele:
O jogo do texto, portanto, é uma performance para um suposto auditório e, como tal,
não é idêntico a um jogo cumprido na vida comum, mas, na verdade, um jogo que se
encena para o leitor, a quem é dado um papel que o habilita a realizar o cenário
apresentado.
108
107
ISER, Wolfgang.O jogo do texto” in A Literatura e o Leitor, tradução de Luiz Costa Lima, Paz e
Terra, R.J., 1979, p.107.
108
Idem, p.116.
97
Assim, podemos comparar o fantástico tradicional, por sua vez, como aquele
que propõe ao narrador, e conseqüentemente ao leitor implícito, algo conhecido
como o jogo do “Quiz?” (perguntas e respostas). Os fatos, associados, são
apresentados e múltiplas escolhas de respostas aos questionamentos propostos são
oferecidas. Essas respostas encontram-se agrupadas em dois conjuntos ou campos
semânticos: o da realidade, por um lado, e o do maravilhoso, por outro.
Mas o narrador pode passar a vez em várias ocasiões. Somente responderá
às questões que não puderam ser respondidas ao final da trama. O escritor, por seu
turno, alegra-se em permitir que o narrador/leitor se encontre de tal forma confuso
quanto às múltiplas respostas disponíveis, que tenha necessidade de pedir para
passar a vez a todo momento. As escolhas, entretanto, são polarizadas. Os dois
mundos, real e maravilhoso, assumem a guarda de seu conjunto de opções, como
que lutando por mais uma batalha que poderá trazer ou levar o leitor para seu lado.
Esse maniqueísmo provoca a tensão do enredo. O lado real é lógico, comportado,
claro e determinado como ditado pelo lado esquerdo de nosso cérebro. Todas as
funções que exigem raciocínio lógico ou matemático são executadas por essa região
cerebral.
Já o lado maravilhoso tem sua lógica relaxada, em formação, com regras que
se alteram diante de novas necessidades, sendo imaginativo, por vezes obscuro,
devido ao fato de não conhecermos sua abrangência. É o lado direito de nosso
cérebro que lida com as capacidades imaginativas e artísticas e que, por
conseguinte, lidará com o maravilhoso. Cabe ao escritor instigar ambos os lados de
nosso cérebro para que tentemos solucionar o “Quiz?” (perguntas e respostas).
Esse jogo passa ainda por mais uma barreira. Estabelece-se um filtro na
comunicação constituído pela figura do narrador. Os fatos ou o desenvolvimento da
questão são apresentados de forma indireta ao leitor. O narrador é quem os
vivencia. Assim, o “Quiz?” (perguntas e respostas) depende ainda da interpretação
da questão pelo narrador.
98
Em contraposição, o fantástico contemporâneo nos faz lembrar as cartas
dispostas na mesa e da tentativa de agrupá-las pacientemente em ordem crescente,
seguindo certas regras em sua movimentação. Neste caso as regras é que formam
uma barreira entre o jogador e seu objetivo. Algumas cartas podem ser
movimentadas, outras dependem de outros movimentos prévios. Casas estão
ocupadas, outras presas, outras livres. E o leitor, através do narrador, inicia um lento
processo de “paciência” que, muitas vezes, termina na impossibilidade de separar
uns naipes dos outros. Mas o jogo recomeça logo após a primeira derrota (ou rara
vitória). Não existe, assim, vencedor ou perdedor, mas simplesmente jogadores
desafiando uma ordem superior indeterminada. E o objetivo do jogo, que muitas
vezes parecia ser o de separar os naipes e cartas em ordem crescente, acaba por
se tornar o próprio ato de jogar. As jogadas se repetem como um dia após o outro.
O jogo do fantástico contemporâneo se aproxima muito do jogo da vida.
Assim, o narrador inicia algo que parecia definido e regrado. Suas opções eram
claras e não pareciam restar dúvidas de qual caminho ou método deveria seguir.
Mas o que lhe acontece durante a narração é que o jogo torna-se cíclico e infinito. O
leitor visualiza um narrador que não consegue lidar com as regras de movimentação
das cartas e que rapidamente finaliza e reinicia um novo turno, encontrando-se
preso neste ritual. A aparente naturalidade inicial é vencida pela repetição que
aprisiona os movimentos.
O jogo de memória é o realizado pelo estranhamento de Freud. As cartas
estão ainda dispostas sobre a mesa, mas viradas com sua face voltada para baixo,
esperando para serem descobertas, ao associarem-se pares de igual valor. Virando-
as par a par, retiram-se somente as cartas gêmeas e retornam-se as cartas inválidas
à sua posição escondida. Muitas vezes pensamos ter certeza ou certa lembrança da
posição de uma carta. Já vimos o par da carta que temos em mãos? Talvez sim,
várias tentativas atrás.
O estranhamento surge como esta falsa lembrança (seria verdadeira?) que
aos poucos se torna lembrança efetiva de algo há muito esquecido. Cabe então ao
narrador retornar este fato à sua mente quebrando as amarras que lhe mantinham
obscurecido na memória. O estranhamento é encontrado tanto no fantástico
99
tradicional quanto no contemporâneo visto que reside no não reconhecimento de
algo que deveria fazer parte da realidade; ocorre como um pano de fundo que
suportará o desenvolvimento dos matizes fantásticos.
Desta forma, entre o real e o maravilhoso podemos encontrar uma série de
graduações que constituem o fantástico geral. Quando nos dirigimos às vizinhanças
entre o real e o estranho, o fantástico contemporâneo, o tradicional, o horror e o
maravilhoso, surge em nossa frente uma escala aparentemente natural e bem
delineada. As análises e comparações entre estas facetas literárias que pudemos
percorrer, no entanto, nos retiraram deste caminho retilíneo e pré-definido.
Assim, entre o real e o estranho o espanto decorre com certa parcimônia, com
um cuidado por vezes exagerado, mas não por isso menos intenso. Lembranças por
demais escondidas ou inibidas poderiam causar um espanto de grande intensidade
cujo desvelamento seria de difícil conclusão. Faz-se assim uma ponte entre o real e
o maravilhoso causada por um espanto cuja origem ultrapassa o consciente. Esse
espanto, mais especializado e por isso muito mais intenso que o consciente, imprime
ares de maravilhoso ao estranho.
O fantástico contemporâneo tamm se aproxima mais do real devido à sua
característica de multiplicação de uma realidade existente. Entretanto, sua
personalidade se afirmaria ao retirar de um fato corriqueiro algo de proporções
assustadoras. Ao transformar os meios e utensílios encontrados na realidade em
itens de seu mundo de reiterações, surge uma vizinhança com o maravilhoso. Já o
fantástico tradicional, a priori, se aproximaria mais do maravilhoso ao se declarar
dividido entre as duas possibilidades de mundos. No entanto, dada a clareza com
que se define, sua posição tenta afirmar a realidade mais do que negá-la. A luta
travada por este fantástico nos conduz à necessidade de derrotar o maravilhoso
através da lógica e do raciocínio.
O maravilhoso apresentava-se como o mal que deve ser combatido e
destruído com provas científicas de sua inexistência, rebatido como um alucinógeno
que deturparia a visão positivista do narrador. As escalas aparentemente estariam
invertidas. O fantástico contemporâneo e o estranhamento, nesta ordem, se
afastariam do real na medida em que teriam sua sobrevida maravilhosa pautada na
100
própria realidade. O fato estranho e a repetição nascem na realidade para
transformá-la, acabando por mostrarem-se alheios a ela, construindo um mundo
que, apesar de composto por elementos naturais, nos assusta e se afasta da
realidade na qual surgira.
Já o tradicional, que se aproximara perigosamente do maravilhoso, teria suas
bases muito mais fundamentadas na realidade e cuja moral e princípios decorrentes
da mesma repudiariam o grande inimigo. Esta aberração inconveniente da realidade
acaba sendo mais fácil de ser vencida visto que aparece claramente diante do
narrador. Assim, a escala real – estranho – contemporâneo – tradicional –
maravilhoso – acabaria por se inverter como maravilhoso – estranho –
contemporâneo – tradicional – real.
É o que procuramos comprovar diante das pequenas análises de conto aqui
realizadas. Em “Berenice” – cuja leitura pautou-se pelos parâmetros do fantástico
tradicional – pudemos entrever como o parentesco com o real se estabelece ao
passo que uma tentativa efetiva de negação do maravilhoso é conduzida durante
todo o conto. O mundo fantástico de Poe é formulado como uma visão deturpada da
realidade e o maravilhoso passa a ser confrontado a todo instante. A ciência é
tomada como algo sagrado, intocável e definitivo. Assim, o maravilhoso surge para
afirmar o real.
Em “A cidade”, conto tomado como exemplo do contemporâneo, a realidade
deixa de ser um contraponto do maravilhoso, mas ao mesmo tempo convive com a
misteriosa indeterminação dos fatos cotidianos. As ações corriqueiras, banais,
tornam-se interações de um mundo sem sentido, sem objetivo, escravo de sua
própria sorte. Devido à sua neutralidade ou imparcialidade diante de explicações
para as impossibilidades encontradas na vida real, este fantástico tende a abraçar
tanto a realidade quanto a supra-realidade.
Diante do estranhamento de “A ilha da fada”, observamos como nosso
inconsciente torna uma lembrança em algo surpreendente. O que de mais real
poderíamos obter do que o arquivamento de algo já realizado, verdadeiro por
definição? Mas esta realidade, sacramentada pelo testemunho da memória, incorre
na falha humana da lembrança truncada, incompleta, talvez falha. Neste momento o
101
real se torna maravilhoso, espantoso, não faz parte do ambiente que nos cerca, mas
de algo tenebroso que havia sido censurado e, portanto, oculto da realidade
aceitável. Tamm percebemos como momentos do fantástico se mesclam a
momentos da realidade. O fantástico, assim, não necessitaria de uma atuação
definitiva e incontestável. Poderia aparecer em determinados segmentos ou mesmo
em ocorrências esparsas.
Como separar estes matizes? Como categorizar uma experiência humana
retratada na contística fantástica? Como definir qual o tipo de dúvida ou espanto
seria uma característica incontestável para a geração do fantástico. Quais tipos de
dúvida estariam sendo observados, a dúvida bipolar e rigorosa, a dúvida atenuada, o
estranhamento ou a dúvida no estabelecimento da linguagem entre os
personagens? E quanto à característica espaço/temporal que circunda e muitas
vezes define todo o arcabouço de experiências dos leitores e mesmo do autor do
texto literário, como dissociá-la da interpretação do momento fantástico?
Não podemos nem devemos rotular com pretensões soberbas estes olhares
lançados sobre a realidade. Podemos, apesar das dificuldades que nos apresentam,
verificar suas aparições, seus reflexos, em autores que permitiram que a realidade
fosse observada e retratada em seus contos fantásticos. Resta-nos esperar pelo
desenvolvimento imaginativo dos futuros contistas para posteriormente
descobrirmos qual será o novo caminho da supra-realidade.
102
6. Anexos
“Berenice” de Edgar Allan Poe
109
- tradução
Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem,
Curas meas aliquantulum fore levatas.
Ebn Zaiat
A desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Arqueando-se sobre
o vasto horizonte como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas
e, contudo, intimamente misturadas. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o
arco-íris! Como de um exemplo de beleza, derivei eu uma imagem de desencanto?
Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? É que, assim como na ética o mal é
uma conseqüência do bem, da mesma forma, na realidade, da alegria nasce a
tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as
amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido.
Meu nome de batismo é Egeu. O de minha família não revelarei. Contudo não
há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancólicas do solar
de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada de uma raça de visionários. Em
muitos pormenores notáveis, no caráter da mansão familiar, nas pinturas do sao
principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinzeladuras de algumas colunas da
sala de armas, porém, mais especialmente, na galeria de quadros antigos, no estilo
da biblioteca e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há
mais que suficiente prova a justificar aquela denominação.
As recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligadas àquela
sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mão. Ali nasci.
Mas é ocioso dizer que não havia vivido antes, que a alma não tem existência
prévia. Vós negais isto. Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não
109
POE, Edgar Allan.Berenice” in Ficção completa, poesias e ensaios. Ed. Nova Aguilar S.A., R.J.,
1997.
103
procuro convencer os demais. Sinto, porém, uma lembrança de formas aéreas, de
olhos espirituais e expressivos, de sons musicais, embora tristes; uma lembrança
que não consigo anular; uma reminiscência semelhante a uma sombra, vaga,
variável, indefinida, inconstante; e como uma sombra, tamm, na impossibilidade
de livrar-me dela, enquanto a luz de minha razão existir.
Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que
parecia, mas não era, o nada, para logo cair nas verdadeiras regiões da terra das
fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento monástico e
da erudição, não é de admirar que tenha lançado em torno de mim um olhar ardente
e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha
juventude em devaneios; mas é estranho que, ao perpassar dos anos e quando o
apogeu da maturidade me encontrou ainda na mansão de meus pais, uma
maravilhosa inércia tenha tombado sobre as fontes da minha vida, maravilhosa a
total inversão que se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As
realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto
que as loucas idéias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de
minha existência cotidiana, mas, na realidade, a minha absoluta e única existência.
Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos, no solar paterno. Mas
crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melancolia; ela
ágil, graciosa e exuberante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas da
colina. Para mim, os estudos do claustro. Eu, encerrado dentro de meu próprio
coração e dedicado, de corpo e alma, à mais interna e penosa meditação. Ela,
divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras em seu caminho, ou no
vôo silente das horas de asas lutuosas. Berenice! Quando lhe invoco o nome...
Berenice! Das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas
recordações. Ah, bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos
velhos dias de sua jovialidade e alegria! Oh, deslumbrante porém fantástica beleza!
Oh, sílfide entre os arbustos de Arnheim! Oh, náiade à beira de suas fontes! E
depois... depois tudo é mistério e horror, uma estória que não deveria ser contada.
Uma doença - uma fatal doença - soprou como ummum sobre seu corpo. E
precisamente quando a contemplava, o espírito da metamorfose arrojou-se sobre
104
ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos, e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível,
perturbando-lhe a própria personalidade! Ai! O destruidor veio e se foi, e a vítima...
onde está ela? Não a conhecia... ou não mais a conhecia como Berenice!
Entre a numerosa série de males acarretados por aquela fatal e primeira
doença, que realizou tão horrível revolução no ser moral e físico de minha prima,
pode-se mencionar, como o mais aflitivo e o mais obstinado, uma espécie de
epilepsia, que não poucas vezes terminava em catalepsia, muito semelhante à morte
efetiva e da qual despertava ela, quase sempre, duma maneira assustadoramente
subitânea. Entrementes, minha própria doença aumentava, pois me fora dito que
para ela não havia remédio, e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma
nova e extraordinária, que, de hora em hora, de minuto em minuto, crescia em vigor
e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendência. Esta
monomania, se assim posso chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida
daquelas faculdades do espírito que a ciência metafísica denomina de “faculdades
de atenção”. É mais que provável não me entenderem: Mas temo, deveras, que me
seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma idéia
adequada daquela nervosa intensidade da atenção com que, no meu caso, as
faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica), se aplicava e absorvia na
contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.
Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção cravada em alguma
frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico; ficar absorto,
durante a melhor parte dum dia de verão, na contemplação duma sombra
extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder
uma noite inteira a observar a chama inquieta duma lâmpada, ou as brasas de um
fogão; sonhar dias inteiros com o perfume duma flor; repetir, monotonamente,
alguma palavra comum, até que o som, à força da repetição freqüente, cesse de
representar ao espírito a menor idéia; perder toda a sensação de movimento ou de
existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e
obstinadamente mantida, tais eram as mais comuns e menos perniciosas
aberrações, provocadas pelo estado de minhas faculdades mentais, não de fato,
105
absolutamente sem exemplo, mas certamente desafiando qualquer espécie de
análise ou explicação.
Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção,
assim excitada por objetos de seu natural triviais, não deve ser confundida, a
propósito, com aquela propensão à meditação, comum a toda a humanidade e mais
especialmente do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco,
como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou uma exageração de tal
propensão, mas primária e essencialmente, ou uma exageração dela. Naquele caso,
o sonhador, ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não
trivial, perde, sem o perceber, de vista este objeto, através duma imensidade de
deduções e sugestões dele provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho
acordado, muitas vezes repletos de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum,
ou causa primária de suas meditações, inteiramente esvanecido e esquecido. No
meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por
intermédio de minha visão doentia, uma importância irreal e refratária. Poucas ou
nenhumas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente, ao
objeto primitivo, como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis e, ao fim
do devaneio, a causa primeira, longe de estar fora de vista, era a a característica
principal da doença. Era uma palavra: as faculdades da mente mais particularmente
exercidas em mim eram, como já disse antes, as da atenção, ao passo que no
sonhador-acordado são as especulativas.
Naquela época, os meus livros, se não contribuíam eficazmente para irritar a
moléstia, participavam largamente, como é fácil perceber-se, pela sua natureza
imaginativa e inconseqüente, das qualidades características da própria doença. Bem
me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano, Coelius Secundus Curio de
amplitudine beati regni dei; da grande obra de Santo Agostinho, A Cidade de Deus;
do De Carne Christi, de Tertuliano, no qual a paradoxal senteça: Mortuus est Dei
filius; credible est quia ineptum est; et sepultus ressurexit; certuum est quia
impossible est, absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e
infrutífera investigação.
106
Dessa forma, minha razão, perturbada, no seu equilíbrio, por coisas
simplesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo, de que fala
Ptolomeu Hefesitião, o qual resistia inabalável aos ataques da violência humana e
ao furioso ataque das águas e dos ventos, mas tremia ao simples toque da flor
chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de
dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado moral de
Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal
meditação, cuja natureza tive dificuldade em explicar, tal não se deu absolutamente.
Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me dava
realmente pena, e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida
alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, com amargura, nas
causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificação tão estranha.
Mas essas reflexões não participavam da idiossincrasia de minha doença, tais como
teriam ocorrido, em idênticas circunstâncias, à massa ordinária dos homens. Fiel a
seu próprio caráter, meu desarranjo mental preocupava-se com as menos
importantes porém mais chocantes mudanças operadas na constituição física de
Berenice, na estranha e mais espantosa alteração de sua personalidade.
Posso afirmar que nunca amara minha prima, durante os dias mais brilhantes
de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha existência, os
sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do
espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao
meio-dia, no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus
olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a
Berenice de um sonho; não como um ser da terra, um ser carnal, mas como o tema
da mais abstrusa, embora inconstante, especulação. E agora... agora eu estremecia
na sua presença e empalidecia ao vê-la aproximar-se; contudo, lamentando
amargamente sua deplorável decadência, lembrei-me de que ela me havia amado
muito tempo, e, num momento fatal, falei-lhe em casamento.
Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tarde de
inverno de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos,
107
que são a alma do belo Alcione, me sentei no mais recôndito gabinete da biblioteca.
Julgava estar sozinho, mas erguendo a vista divisei Berenice, em pé, à minha frente.
Foi minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da
atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinérias roupagens que lhe
caíam em torno do corpo, que lhe deu aquele contorno indeciso e trêmulo? Não sei
dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu por forma alguma podia emitir uma só
sílaba. Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável
ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma e,
recostando-me na cadeira, permaneci por algum tempo imóvel e sem respirar, com
os olhos fixos no seu vulto. Ai! Sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da
criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar
ardente pousou-se afinal em seu rosto.
A fronte era alta e muito pálida, e de uma placidez singular. O cabelo, outrora
negro, de azeviche, caía-lhe parcialmente sobre a testa, e sombreava as fontes
encovadas com numerosos anéis, agora dum amarelo vivo, em chocante
discordância, pelo seu caráter fantástico, com a melancolia que lhe dominava o
rosto. Os olhos, sem vida e sem brilho, pareciam estar desprovidos de pupilas.
Desviei involuntariamente a vista daquele olhar vítreo para olhar-lhe os lábios
delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes
da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus que eu
nunca os tivesse visto, ou que, tendo-os visto, tivesse morrido!
O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima
havia saído do aposento. Mas do aposento desordenado do meu cérebro não havia
saído, ai de mim! , e não queria sair o expectro branco de seus dentes lívidos. Nem
uma mancha se via em sua superfície, nem uma pinta no esmalte, nem uma falha
nas suas pontas, que aquele breve tempo de seu sorriso não houvesse gravado na
minha memória. Via-os agora, mesmo mais distintamente do que os vira antes. Os
dentes!... Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda parte, visíveis, palpáveis, diante
de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios
contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível
crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria de minha monomania e em vão
108
lutei contra sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo
exterior, só pensava naqueles dentes. Queria-os com frenético desejo. Todos os
assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva
contemplação. Eles... somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e
eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental.
Via-os sob todos os aspectos. Revolvia-os em todas as direções. Observava-lhes as
características. Detinha-me em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua
conformação. Refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhes, em
imaginação, faculdades de sentimento e de sensação, e, mesmo quando
desprovidos dos lábios, capacidade de expressão moral. Dizia-se, com razão, de
Mademoisselle Sallé que: tours ses pas étaient des sentiments, e de Berenice que:
tous ses dents étaient des idées. Des idées! Ah, esse foi o pensamento absurdo
que me destruiu! Des idées! Ah, essa era a razão pela qual eu os cobiçava tão
loucamente! Sempre, fazendo-me voltar a razão.
E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas, demoraram-se,
foram embora. E o dia raiou mais uma vez. E os nevoeiros de uma segunda noite de
novo se adensaram em torno de mim. E ainda sentado estava, imóvel, naquele
quarto solitário, ainda mergulhado em minha meditação, ainda com o fantasma dos
dentes mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar, com a mais viva e
hedionda nitidez, entre as luzes mutáveis e as sombras de horror e consternação, ao
qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de
surdos lamentos de tristeza e pesar. Levantei-me e, escancarando uma das portas
da biblioteca, vi, de pé, na antecâmera, uma criada, toda em lágrimas, que me disse
que Berenice havia... morrido! Sofrera um ataque epiléptico pela manhã e agora, ao
cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os
preparativos do enterro terminados.
Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi-me, com
repugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era um quarto vasto, muito escuro,
e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os
cortinados do leito, disse-me um criado, estavam fechados sobre o ataúde e naquele
ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.
109
Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo? Não vi moverem-se
os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta fora realmente feita e o eco das últimas
sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação
opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias
dobras das cortinas; mas, deixando-as cair de novo, desceram elas sobre meus
ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encerraram na mais estreita
comunhão com a defunta.
Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do ataúde
me fazia mal e imaginava que um odor deletério se exalava já do cadáver. Teria
dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mortuária, para
respirar, uma vez ainda, o ar puro dos céus eternos. Mas, faleciam-me as forças
para mover-me, meus joelhos tremiam e me sentia como que enraizado no solo,
contemplando fixamente o rígido cadáver, estendido ao comprido no caixão aberto.
Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo
da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inexprimível terror,
ergui lentamente os olhos para ver o rosto do cadáver. Haviam-lhe amarrado o
queixo com um lenço, o qual, não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam
numa espécie de sorriso, e por entre sua moldura melancólica os dentes de
Berenice, brancos, luzentes, terríveis me fixavam ainda, com uma realidade
demasiado vívida. Afastei-me convulsivamente do leito e, sem pronunciar uma
palavra, como um louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de
morte...
Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só. Parecia-me
que havia pouco despertara de um sonho confuso e agitado. Sabia que era então
meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr do sol, Berenice tinha sido
enterrada. Mas, durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção
positiva, ou pelo menos definida. Sua recordação, porém, estava repleta de horror,
horror mais horrível porque vindo do impreciso, terror mais terrível porque saído da
ambigüidade. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda
escrita com sombra e com medonhas e ininteligíveis recordações. Tentava decifrá-
la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido, parecia-
110
me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera
alguma coisa; que era, porém? Fazia a mim mesmo tal pergunta, em voz alta, e os
ecos do aposento me respondiam: Que era?
Sobre a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e perto dela estava uma
caixinha. Não era de forma digna de nota e eu freqüentemente a vira antes, pois
pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre a minha mesa, e por
que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e
meus olhos por fim caíram sobre as páginas abertas de um livro, porém simples, do
poeta Ebn Zaiat: Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas
aliquantulum fore levatas. Por que, então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se
eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?
Uma leve pancada soou na porta da biblioteca. E, pálido como o habitante de
um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava
transtornada de pavor e ele me falou numa voz trêmula, rouca e muito baixa. Que
disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem que perturbara o
silêncio da noite... todos em casa se reuniram... saíram procurando em direção ao
som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao falar-me de ummulo
violado... de um corpo desfigurado, desamortalhado, mas que ainda respirava, ainda
palpitava, ainda vivia!
Apontou para minhas roupas: estavam sujas de coágulos de sangue. Eu nada
falava e ele pegou-me levemente na mão; gravavam-se nela os sinais de unhas
humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à parede: era uma pá.
Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que nela se achava. Mas
não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com
força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintilante, rolaram vários
instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas brancas,
pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoalho.
111
Berenice” de Edgar Allan Poe
110
Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem,
curas meas aliquantulum fore levatas.
Ebn Zaiat
Misery is mainfold. The wretchedness of earth is multiform. Overreaching the
wide horizon as the rainbow, its hues are as various as the hues of that arch, - as
distinct too, yet as intimately blended. Overreaching the wide horizon as the rainbow!
How is it that from beauty I have derived a type of unloveliness? – from the covenant
of peace a simile of sorrow? But as, in ethics, evil is a consequence of good, so, in
fact, out of joy is sorrow born. Either the memory of past bliss is the anguish of to -
day, or the agonies which are have their origin in the ecstasies which might have
been.
My baptismal name is Egaeus; that of my family I will not mention. Yet there
are no towers in the land more time - honored than my gloomy, gray, hereditary halls.
Our line has been called a race of visionaries; and in many striking particulars - in the
character of the family mansion - in the frescos of the chief saloon - in the tapestries
of the dormitories - in the chiseling of some buttresses in the armory - but more
especially in the gallery of antique paintings - in the fashion of the library chamber -
and, lastly, in the very peculiar nature of the library´s contents, there is more than
sufficient evidence to warrant the belief.
The recollections of my earliest years are connected with that chamber, and
with its volumes- of which latter I will say no more. Here died my mother. Herein was
I born. But it is mere idleness to say that I had not lived before- that the soul has no
previous existence. You deny it? – let us not argue the matter. Convinced myself, I
seek not to convince. There is, however, a remembrance of aerial forms - of spiritual
and meaning eyes - of sound, musical yet sad - a remembrance which will not be
110
POE, Edgar Allan.Berenice” in A short fiction of Edgar Allan Poe - an annotated edition/ edited
by Stuart Levine and Susan Levine. University of Illinois press, Urbana and Chicago, 1990.
112
excluded; a memory like a shadow, vague, variable, infinite, unsteady; and like a
shadow, too, in the impossibility of my reason shall exist.
In that chamber was I born. Thus awaking from the long night of what seemed,
but was not, nonentity, at once into the very regions of fairly-land - into a palace of
imagination- into the wild dominions of monastic thought and erudition - it is not
singular that I gazed around me with a startled and ardent eye- that I loitered away
my youth in reverie; but it is singular that as years rolled away, and the noon of
manhood found me still in the mansion of my fathers- it is wonderful what stagnation
there fell upon the springs of my life - wonderful how total an inversion took place in
the character of my commonest thought. The realities of the world affected me as
visions, and as visions only, while the wild ideas of the land of dreams became, in
turn - not the material of my everyday existence - but in very deed that existence
utterly and solely in itself.
Berenice and I were cousins, and we grew up together in my paternal halls.
Yet differently we grew - I will of health, and buried in gloom - she agile, graceful, and
overflowing with energy; hers the ramble on the hill-side - mine the studies of the
cloister - I living within my own heart, and addicted body and soul to the most intense
and painful meditation - she roaming carelessly through life with no thought of the
shadows in her path, or the silent flight of the raven-winged hours. Berenice! - I call
upon her name - Berenice! - and from the gray ruins of memory a thousand
tumultuous recollection are startled at the sound! Ah! vividly is her image before me
now, as in the early days of her light-heartedness and joy! Oh! Gorgeous yet fantastic
beauty! Oh! Sylph amid the shrubberies of Arnheim! – Oh! Naiad among its fountais!
– and then - then all is mystery and terror, and a tale which should not be told.
Disease- a fatal disease- fell like the simoom upon her frame, and, even while I
gazed upon her, the spirit of change swept over her, pervading her mind, her habits,
and her character, and, in a manner the most subtle and terrible, disturbing even the
identity of her person! Alas! The destroyer came and went, and the victim- where was
she? I knew her not- or knew her no longer as Berenice.
Among the numerous train of maladies superinduced by that fatal and primary
one which effected a revolution of so horrible a kind in the moral and physical being
113
of my cousin, may be mentioned as the most distressing and obstinate in its nature, a
species of epilepsy not unfrequently terminating in trance itself - trance very nearly
resembling positive dissolution, and from which her manner of recovery was, in most
instances, startlingly abrupt. In the mean time my own disease - for I have been told
that I should call it by no other appellation - my own disease, then, grew rapidly upon
me, and assumed finally a monomaniac character of a novel and extraordinary form-
hourly and momently gaining vigor - and at length obtaining over me the most
incomprehensible ascendancy. This monomania, if I must so term it, consisted in a
morbid irritability of those properties of the mind in metaphysical science termed the
attentive. It is more than probable that I am not understood; but I fear, indeed, that it
is in no manner possible to convey to the mind of the merely general reader, an
adequate idea of that nervous intensity of interest with which, in my case, the powers
of meditation (not to speak technically) busied and buried themselves, in the
contemplation of even the most ordinary objects of the universe.
To muse for long unwearied hours with my attention riveted to some frivolous
device on the margin, or in the typography of a book; to become absorbed for the
better part of a summer´s day, in a quaint shadow falling aslant upon the tapestry, or
upon the door; to lose myself for an entire night in watching the steady flame of a
lamp, or the embers of a fire; to of a flower; to repeat monotonously some common
word, until the sound, by dint of frequent repetition, ceased to convey any idea
whatever to the mind; to lose all sense of motion or physical existence, by means of
absolute bodily quiescence long and obstinately persevered in; - such were a fez of
the most common and least pernicious vagaries induced by a condition of the mental
faculties, not, indeed, alto-defiance to anything like analysis or explanation.
Yet let me not be misapprehended. – The undue, earnest, and morbid
attention thus excited by objects in their own nature frivolous, must not be
confounded in character with that ruminating propensity common to all mankind, and
more especially indulged in by persons of ardent imagination. It was not even, as
might be at first supposed, an extreme condition, or exaggeration of such propensity,
but primary and essentially distinct and different. In the one instance, the dreamer, or
enthusiast, being interested by an object usually nor frivolous, imperceptibly loses
114
sight of this object in a wilderness of deductions and suggestions issuing therefrom,
until at the conclusion of a day dream often replete with luxury, he finds the
incitamentum of first cause of his musings entirely vanished and forgotten. In my
case the primary object was invariably frivolous, although assuming, through the
medium of my distempered vision, a refracted and unreal importance. Few
deductions, if any, were made; and those few pertinaciously returning in upon the
original object as a centre. The meditations were never pleasurable; and, at the
termination of the reverie, the first cause, so far from being out of sight, had attained
that supernaturally exaggerated interest which was the word, the powers of mind
more particularly exercised were, with me, as I have said before, the attentive, and
are, with the day-dreamer, the speculative.
My books, at this epoch, if they did not actually serve to irritate the disorder,
partook, it will be perceived, largely, in their imaginative and inconsequential nature,
of the characteristic qualities of the disorder itself. I well remember, among other, the
treatise of the noble Italian Coelius Secundus Curio “de Amplitudine Beati Regni
Dei”; St. Austin´s great work, the “City of God;” and Tertulliande Carne Christi,” in
which the paradoxical sentenceMortuus est Dei filius; credibile est quia ineptum est:
et sepultus resurexit; certum est quia impossible est” occupied my undivided time, for
many weeks of laborious and fruitless invertigation.
Thus is will appear that, shaken from its balance only by trivial things, my
reason bore resemblance to that ocean-crag spoken of by Ptolemy Hephestion,
which steadily resisting the attacks of human violence, and the fiercer fury of the
waters and the winds, trembled only to the touch of the flower called Asphodel. And
although, to a careless thinker, it might appear a matter beyond doubt, that the
alteration produced by her unhappy malady, in the moral condition of Berenice,
would afford me many objects for the exercise of that intense and abnormal
meditation whose nature I have been at some trouble in explaining, yet such was not
in any degree the case. In the lucid intervals of my infirmity, her calamity, indeed,
gave me pain, and, taking deeply to heart that total wreck of her fair and gentle life, I
did not fail to ponder frequently and bitterly upon the wonder-working means by
which so strange a revolution had been so suddenly brought to pass. But these
115
reflections partook not of the idiosyncrasy of my disease, and were such as would
have occurred, under similar circumstances, to the ordinary mass of mankind. True to
its own character, my disorder reveled in the less important but more startling
changes wrought in the physical frame of Berenice - in the singular and most
appalling distortion of her personal identity.
During the brightest days of her unparalleled beauty, most surely I had never
loved her. In the strange anomaly of my existence, feelings with me had never been
of the heart, and my passions always were of the mind. Through the gray of the early
morning- among the trellised shadows of the forest at noonday - and in the silence of
my eyes, and I had seen her - not as the living and breathing Berenice, but as the
Berenice of a dream - not as a being of the earth, earthy, but as the abstraction of
such a being- not as a thing to admire, but to analyze - not as an object of love, but
as the theme of the most abstruse although desultory speculation. And now - now I
shuddered in her presence, and grew pale at her approach; yet bitterly lamenting her
fallen and desolate condition, I called to mind that she had loved me long, and, in an
evil moment, I spoke to her of marriage.
And at length the period of our nuptials was approaching, when, upon an
afternoon in the winter of the year, - one of those unseasonably warm, calm, and
misty days which are the nurse of the beautiful Halcyon, - I sat, (and sat, as I thought,
alone,) in the inner apartment of the library. But uplifting my eyes I saw that Berenice
stood before me.
Was it my own excited imagination - or the misty influence of the atmosphere-
or the uncertain twilight of the chamber - or the gray draperies which fell around her
figure- that caused in it so vacillating and indistinct an outline? I could not tell. She
spoke no word, and I - not for worlds could I have uttered a syllable. An icy chill ran
through my frame; a sense of insufferable anxiety oppressed me; a consuming
curiosity pervaded my soul; and sinking back upon the chair, I remained for some
time breathless and motionless, with my eyes riveted upon her person. Alas! Its
emaciation was excessive, and not one vestige of the former being lurked in any
single line of the contour. My burning glances at length fell upon the face.
116
The forehead was high, and very pale, and singularly placid; and the once jetty
hair fell partially over it, and overshadowed the hollow temples with innumerable
ringlets now of a vivid yellow, and jarring discordantly, in their fantastic character,
with the reigning melancholy of the countenance. The eyes were lifeless, and
lusterless, and seemingly pupilless, and I shrank involuntarily from their glassy stare
to the contemplation of the thin and shrunken lips. They parted; and in a smile of
peculiar meaning, the teeth of the changed Berenice disclosed themselves slowly to
my view. Would to God that I had never beheld them, or that, having done so, I had
died!
The shutting of a door disturbed me, and, looking up, I found that my cousin
had departed from the chamber. But from the disordered chamber of my brain, had
not, alas! Departed, and would not be driven away, the write and ghastly spectrum of
the teeth. Not a speck on their surface - not a shade on their enamel - not an
indenture in their edges- but what that period of her smile had sufficed to brand in
upon my memory. I saw then now even more unequivocally than I beheld them then.
The teeth! - the teeth! - they were here, and there, and every where, and visibly and
palpably before me; long, narrow, and excessively white, with the pale lips writhing
about them, as in the very moment of their first terrible development. Then came the
full fury of my monomania, and I struggled in vain against its strange and irresistible
influence. In the multiplied objects of the external world I had no thoughts but for the
teeth. For these I longed with a phrenzied desire. All other matters and all different
interests became absorbed in their single contemplation. They - they alone were
present to the mental eye, and they, in their sole individuality, became the essence of
my mental life. I held them in every light. I turned them in every attitude. I surveyed
their characteristics. I dwelt upon their peculiarities. I pondered upon their
conformation. I mused upon the alteration in their nature. I shuddered as I assigned
to them in imagination a sensitive and sentient power, and even when unassisted by
the lips, a capability of moral expression. Of Mad´selle Sallé it has been well said,
que tous ses pas étaient des sentiments,” and of Berenice I more seriously believe
que toutes ses dents étaient des idées. Des idées! - ah here was the idiotic thought
that destroyed me! Des idées! - ah therefore it was that I covered them so madly! I
117
felt that their possession could alone ever restore me to peace, in giving me back to
reason.
And the evening close in upon me thus - and then the darkness came, and
tarried, and went- and the day again dawned - and the mists of a second night were
now gathering around - and still I sat motionless in that solitary room; and still I sat
buried in meditation, and still the phantasma of the teeth maintained its terrible
ascendancy as, with the most vivid and hideous distinctness, it floated about amid
the changing lights and shadows of the chamber. At length there broke in upon my
dreams a cry as of horror and dismay; and thereunto, after a pause, succeeded the
sound of troubled voices, intermingled with many low moanings of sorrow, or of pain.
I arose from my seat and, throwing open one of the doors of the library, saw standing
out in the antechamber a servant maiden, all in tears, who told me that Berenice
was- no more. She had been seized with epilepsy in the early morning, and now, at
the closing in of the night, and all the preparations for the burial were completed.
I found myself sitting in the library, and again sitting there alone. It seemed
that I had newly awakened from a confused and exciting dream. I knew that it was
now midnight, and I was well aware that since the setting of the sun Berenice had
been interred. But of that dreary period which intervened I had no positive - at least
no definite comprehension. Yet its memory was replete with horror - horror more
horrible from being vague, and terror more terrible from ambiguity. It was a fearful
page in the record or my existence, written all over with dim, and hideous, and
unintelligible recollections. I strived to decypher them, but in vain; while ever and
anon, like the spirit of a departed sound, the shrill and piercing shriek of a female
voice seemed to be ringing in my ears. I had done a deed- what was it? I asked
myself the question aloud, and the whispering echoes of the chamber answered me,
“what was it?”
On the table beside me burned a lamp, and near it lay a little box. It was of no
remarkable character, and I had seen it frequently before, for it was the property of
the family physician; but how came it there, upon my table, and why did I shudder in
regarding it? These things were in no manner to be accounted for, and my eyes at
length dropped to the open pages of a book, and to a sentence underscored therein.
118
The words were the singular but simple ones of the poet Ebn Zaiat, “Dicebant mihi
sodales, si sephulcrum amicae visitarem, curas meas aliquantulum fore levatas.”
Why then, as I perused them, did the hairs of my head erect themselves on end, and
the blood of my body become congealed within my veins?
There came a light tap at the library door, and pale as the teneant of a tomb, a
menial entered upon tiptoe. His looks were wild with terror, and he spoke to me in a
voice tremulous, husky, and very low. What said he? - some broken sentences I
heard. He told of a wild cry disturbing the silence of the night - of the gathering
together of the household - of a search in the direction of the sound; - and then his
tones grew thrillingly distinct as he whispered body enshrouded, yet still breathing,
still palpitating, still alive!
He point to my garments; - they were muddy and clotted with gore. I spoke
not, and he took me gently by the hand; - it was indented with the impress of human
nails. He directed my attention to some object against the wall; - it was spade. With a
shriek I bounded to the table, and grasped the box that lay upon it. But I could not
force it open; and in my tremor it slipped from my hands, and fell heavily, and burst
into pieces; and from it, with a rattling sound, there rolled out some instruments of
dental surgery, intermingled with thirty-two small, white and ivory-looking substances
that were scattered to and fro about the floor.
119
A Cidade” de Murilo Rubião
111
Destinava-se a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente
na antepenúltima estação.
Cariba acreditou que a demora poderia ser atribuída a algum comboio de
carga descarrilado na linha, acidente comum naquele trecho da ferrovia. Como se
fizesse excessivo o atraso e ninguém o procurasse para lhe explicar o que estava
ocorrendo, pensou numa provável desconsideração à sua pessoa, em virtude de ser
o único passageiro do trem.
Chamou o funcionário que examinara as passagens e quis saber se constituía
motivo para tanta negligência o fato de ir vazia a composição.
Não recebeu uma resposta direta do empregado da estrada, que se limitou a
apontar o morro, onde se dispunham, sem simetria, dezenas de casinhas brancas.
- Belas mulheres? – indagou o viajante.
- Casas vazias.
Percebeu logo que tinha pela frente um cretino. Apanhou as malas e se
dispôs a subir as íngremes ladeiras que o conduziriam ao povoado.
A escalada foi lenta e cansativa. O suor escorria pela sua testa, enquanto
seus olhos se sentiam cada vez mais atraídos pela leveza das pequeninas
edificações.
Uma vaga tristeza rodeava o lugarejo. As janelas e portas das casas estavam
fechadas, mas os jardins pareciam ter sido regados na véspera. Experimentou bater
em alguns dos chalés e não o atenderam. Caminhou um pouco mais e, do topo da
montanha, avistou a cidade, tão grande quanto a que buscava. Vinte mil habitantes,
soube depois.
Desceu vagarosamente. Os homens (e por que não as belas mulheres?)
deveriam encontrar-se lá embaixo.
111
RUBIÃO, Murilo. “A cidade” in Contos reunidos. Ed. Ática, S.P., 1998.
120
Várias vezes voltou a cabeça, procurando fixar bem a paisagem que deixava
para trás. Tinha o pressentimento de que não regressaria por aquele caminho.
Durante todo o percurso, desde as vias secundárias à avenida principal, os
moradores do lugar observaram Cariba com desconfiança. Talvez estranhassem as
valises de couro de camelo que carregava ou o seu paletó xadrez, as calças de
veludo azul. Mesmo sendo o seu traje usual nas constantes viagens que fazia,
achou prudente desfazer qualquer mal-entendido provocado pela sua presença
entre eles:
- Que cidade é esta? – perguntou, esforçando-se para dar às palavras o
máximo de cordialidade.
Nem chegou a indagar pelas mulheres, conforme pretendia. Pegaram-no com
violência pelos braços e o foram levando, aos trancos, para a delegacia de polícia:
- É o homem procurado – disseram ao delegado, um sargento espadaúdo e
rude.
- Já temos vadios de sobra nesta localidade. O que veio fazer aqui? –
perguntou o policial.
- Nada.
- Então é você mesmo. Como é possível uma pessoa ir a uma cidade
desconhecida sem nenhum objetivo? A menos que seja um turista.
- Não sou turista e quero saber onde estou.
- Isso não lhe podemos revelar agora. Poderia prejudicar as investigações.
- E por que as casas do morro estavam fechadas? – atalhou o desconhecido,
agastado com a falta de polidez com que o tratavam.
- Se não tomássemos essa precaução você não desceria.
Cariba compreendeu tardiamente que a sedução das casinhas brancas fora
um ardil para atraí-lo ao vale.
- As testemunhas! – gritou o delegado.
Introduziram na sala um homem de rosto chupado, os cabelos grisalhos. Fez
uma reverência diante da autoridade e encarou o preso com visível repugnância:
- Não tenho medo de sua cara.
121
- A sua coragem pouco nos importa – aparteou, áspero, o sargento. – Cinja-se
ao que for interrogado e responda logo se conhece este sujeito.
- Não. Nunca o vi antes, mas tenho a impressão de que foi ele quem me
abordou na rua. Pediu-me informações sobre os nossos costumes e desapareceu.
O militar se impacientou:
- Venham os outros idiotas!
Um de cada vez, vários homens depuseram e não esclareceram muita coisa.
A uns, o estranho fizera indagações de pouca importância: “Esta cidade é nova ou
velha?” – A outros, dirigira perguntas inconvenientes: “Quem são os donos do
município?”.
Muitos viram-no de perto, sem que o sujeito lhes dissesse sequer uma
palavra.num ponto estavam de acordo, tanto os que lhe ouviram a voz ou lhe
divisaram apenas o semblante: não sabiam descrever seu aspecto físico, se era alto
ou baixo, qual a sua cor e em que língua lhes falara.
Já saíra a última testemunha, quando o delegado, exultante, deu um murro na
mesa:
- Tragam a Viegas, ela sabe!
Duas horas se passaram até que chegasse a mulher. Entrou desembaraçada,
os lábios ligeiramente pintados, as sobrancelhas pinçadas e um sorriso que deixou
Cariba enamorado.
Rendido ao encanto da prostituta que, por seu lado, trazia os olhos fixo nos
dele, o forasteiro não ouvia o que ela falava. Aos poucos, reencontrou-se com a
realidade e começou a prestar atenção ao depoimento:
- Quis fugir, porém ele me agarrou pelos pulsos e perguntou: “Como vai seu
pai? Ainda mora com as tias velhas?” – Não obtendo resposta, indagou pelos meus
filhos. O senhor bem sabe que sou solteira e papai, quando morreu, morava
sozinho. Por isso, antes que terminasse de falar, já suspeitava dele e me apressei m
libertar-me dos seus braços. Não consegui. Segurou-me com mais força e,
obrigando-me a encostar o ouvido nos seus lábios, dizia: “É preciso conspirar”.
122
- Na expectativa de convencê-lo a ir embora, mostrei-lhe o perigo a que se
expunha enfrentando uma polícia tão rigorosa quanto a nossa. Sem demonstrar
temor, respondeu-me: “Não é necessária a polícia”.
Cariba sentiu uma grande inveja de quem abraçara a mulher. Que corpo
tivera nas mãos!
O policial, porém, não se contentou com o que ouvira:
- E reconhece este homem com sendo o que a abraçou na rua?
- Não me lembro do seu rosto, mas um e outro são a mesma pessoa.
O delegado ficou satisfeito. Virou-se para o indiciado lhe afirmou que, mesmo
tendo elementos para ultimar o inquérito, ouviria novamente as testemunhas na sua
presença, o que de fato fez com a habitual grosseria:
- Então vocês viram o cara e não sabem descreve-lo, seus idiotas!
À exceção de Viegas, permaneceram todos em silêncio. Ela, fixando os olhos
maliciosos no desconhecido, confirmou:
- Sim, é ele.
Animados, os outros tamm falaram, repetindo o que disseram antes: não
reconheciam o prisioneiro, mas deveria ser o mesmo indivíduo que lhes perguntara
coisas tão estranhas.
O sargento chegara a uma conclusão, entretanto divagava:
- O telegrama da Chefia de Polícia não esclarece nada sobre a nacionalidade
do delinqüente, sua aparência, idade e quais os crimes que cometeu. Diz tratar-se
de elemento altamente perigoso, identificável pelo mau hábito de fazer perguntas e
que estaria hoje neste lugar.
Cariba, já inconformado com a perspectiva de ficar detido até que se
desfizesse o equívoco, ponderou:
- Nada disso faz sentido. Não podem me prender com base no que acabo de
ouvir. Cheguei aqui há poucas horas e as testemunhas afirmam que me viram, pela
primeira vez, na semana passada!
O delegado impediu que prosseguisse:
123
- O comunicado do setor de segurança é claro e diz textualmente: “O homem
chegará dia 15, isto é, hoje, e pode ser reconhecido pela sua exagerada
curiosidade”.
O policial encerrou os interrogatórios, declarando que os depoimentos ali
prestados eram suficientes para incriminar o acusado, porém, não desejava
precipitar-se. Aguardaria o aparecimento de alguém que reunisse contra si indícios
de maior culpabilidade e eximisse Cariba das acusações que lhe pesavam.
- Quer dizer que permanecerei preso esse tempo todo?
A resposta do delegado desanimou-o: ficaria encarcerado até a captura do
verdadeiro criminoso.
E se o culpado não existisse?
Cinco meses após a sua detenção, ele não mais espera sair da cadeia. Das
suas grades, observa os homens que passam na rua. Mal o encaram,
amedrontados, apressam o passo.
Pressente, às vezes, que irão perguntar qualquer coisa aos companheiros e
fica à espreita, ansioso que isto aconteça. Logo se desengana. Abrem a boca,
arrependem-se, e se afastam rapidamente.
As mulheres, alheias ao medo, costumam ir à Delegacia para levar-lhe
cigarros. São as mais belas, exatamente as que esperava encontrar no distante
povoado. Meigas e silenciosas, notam nos olhos dele o desespero por não poder
abraçá-las, sentir-lhes o hálito quente.
Só resta esperar pela Viegas que, sensual e perfumada, vem vê-lo ao fim da
tarde. Sorri, e diz com uma invariabilidade que o enternece:
- É você.
Quando ela se despede – o corpo tenso, o suor porejando na testa – Cariba
sente o imenso poder daquela prisão.
Caminha, dentro da noite, de um lado para o outro. E, ao avistar o guarda,
cumprindo sua ronda noturna, a examinar se as celas estão em ordem, corre para
as grades internas, impelido por uma débil esperança:
- Alguém fez hoje alguma pergunta?
- Não. Ainda é você a única pessoa que faz perguntas nesta cidade.
124
“A ilha da Fada” de Edgar Allan Poe
112
- tradução
Nullus enim locus sine genio est.
Servius
La musique – diz Marmontel naqueles Contes Moraux, que em todas as
nossas traduções temos insistido em chamar de Contos Morais, como a zombar-lhes
do espírito -, La musique est le seul des talents qui jouisse de lui même; tous les
autres veulent des témoins. Ele aqui confunde o prazer derivado dos sons
agradáveis com a capacidade de criá-los. O da música não é mais suscetível de
completa fruição do que qualquer outro talento, onde não haja um audirio para
apreciar-lhe a execução. E é somente em comum com outros talentos que ela
produz efeitos que podem ser plenamente gozados na solidão. A idéia que o
narrador não conseguiu considerar claramente, ou cuja expressão sacrificou ao
amor nacional pela síntese, é sem dúvida a bastante defensável de que a mais
elevada qualidade de música é mais completamente apreciada quando estamos
rigorosamente sozinhos. A proposição, nesta forma, será imediatamente admitida
pelos que amam a lira por si mesma e pelos seus usos espirituais. Mas há ainda um
prazer dentro do alcance dos decaídos mortais, e talvez um só, que mesmo mais do
que a música está ligado ao sentimento acessório do isolamento. Quero referir-me à
felicidade experimentada na contemplação dos cenários naturais. Na verdade, o
homem que bem apreende a glória de Deus sobre a terra deve contemplar essa
glória na solidão. Para mim, pelo menos, a presença, não apenas de vida humana,
mas de vida em qualquer outra forma que não a das coisas verdes que crescem
sobre o solo e não têm voz, é uma mancha na paisagem, está em conflito com o
espírito da cena. Gosto, efetivamente, de contemplar os negros vales, os cinzentos
rochedos, as águas que silenciosamente sorriem, as florestas que suspiram em
agitado sono, e as soberbas e vigilantes montanhas que tudo olham com
superioridade; gosto de contemplá-las, não como coisas isoladas, mas como
112
POE, Edgar Allan.A ilha da fada” in Ficção completa, poesias e ensaios. Ed. Nova Aguilar S.A.,
R.J., 1997.
125
membros colossais de um conjunto vasto, animado e sensível, um conjunto cuja
forma (a da esfera) é a mais perfeita e abrangente de todas; conjunto cujo caminho
se abre entre sistemas planetários; cuja escrava submissa é a lua, cujo régulo é o
sol, cuja vida é a eternidade, cujo pensamento é o de um deus, cujo prazer é o
conhecimento; cujos destinos se perdem na imensidade, cuja percepção de nós
mesmos é afim da nossa própria percepção dos animaculae que infestam o cérebro;
um ser que nós, em conseqüência, olhamos como puramente inanimado e material,
do mesmo modo que aqueles animaculae devem olhar-nos.
Nossos telescópios e nossas investigações matemáticas asseguram-nos
geralmente- não obstante a hipocrisia dos mais ignorantes clérigos - que o espaço e,
conseqüentemente, essa massa têm importante valor aos olhos do Todo-poderoso.
As órbitas em que se movem as estrelas são as mais adaptadas à evolução, sem
colisão, do maior número possível de corpos. As formas desses corpos são
cuidadosamente tais que podem, dentro de dada superfície, incluir a maior
quantidade cabível de matéria, enquanto que as próprias superfícies são dispostas
de maneira a acomodar uma população mais densa do que a que poderia ser
acomodada nas mesmas superfícies, se dispostas de modo diverso. Dizer que o
próprio espaço é infinito não constitui argumento contra o dizer-se que a massa
forme um todo com Deus, porque pode haver uma infinidade de matéria para enchê-
lo. E desde que vemos claramente que a vitalidade de que é dotada a matéria é um
princípio- na realidade, tanto quanto alcançam nossos juízos, o princípio condutor
nas operações de Divindade -, é pouco lógico imaginá-lo confinado às regiões das
coisas limitadas em que diariamente o circunscrevemos e não estendê-lo às das
coisas ilimitadas. Da mesma forma, que encontramos um círculo dentro de um
círculo até o infinito, embora tudo gire em torno de um bem distante centro, que é a
cabeça de Deus, não poderemos, analogicamente, supor, da mesma forma, a vida
dentro da vida, o menor dentro do maior e tudo dentro do Espírito Divino? Em
resumo, erramos loucamente, em conseqüência do amor-próprio, ao crer que o
homem, no seu destino, quer temporal, quer futuro, seja de mais importância no
universo do que aquela vasta “terra do vale” que ele lavra e despreza, e à qual nega
uma alma por uma razão não mais profunda do que a de não a ver em ação.
126
Essas fantasias e outras que tais sempre deram às minhas meditações, entre
as montanhas e as florestas, junto aos rios e ao oceano, um sabor daquilo a que o
mundo cotidiano não deixa de chamar fantástico. Minhas vagueações entre tais
cenas têm sido muitas, bem curiosas e muitas vezes solitárias; e o interesse com
que me tenho desgarrado por entre muito vale profundo e sombrio, ou contemplado
o céu, refletido em muito lago esplendente, tem sido um interesse grandemente
aprofundado pelo pensamento de que me tenho desgarrado e contemplado sozinho.
Que petulante francês foi o que disse, aludindo ao bem conhecido trabalho de
Zimmerman que la solitude est une belle chose; mais il faut quelqu´un pour vous dire
que la solitude est une belle chose? O epigrama não pode ser contraditado, mas a
necessidade é uma coisa que não existe.
Foi durante uma de minhas solitárias jornadas, numa bem longínqua região
de montanhas encerradas dentro de outras montanhas, e de tristes rios e
melancólicas lagoas, retorcendo-me e dormindo dentro de tudo, que, por acaso,
cheguei a certo riacho e a uma ilha. Ali cheguei, repentinamente, no folhoso mês de
junho e me lancei sobre a gleba, por baixo dos ramos de um arbusto desconhecido e
odorífero, para poder dormitar, enquanto contemplava a cena. Senti que somente
dessa forma poderia eu contemplá-la, tal era o caráter fantástico de que ela se
revestia.
Por todos os lados, menos a oeste, onde o sol estava quase a se pôr,
erguiam-se as viridentes paredes da floresta. O riacho, cujo curso se voltava
agudamente e por isso logo se perdia de vista, parecia não poder sair de sua prisão,
mas ser absorvido pela folhagem intensamente verde das árvores a leste, enquanto
na região oposta (assim me pareceu, quando me achava estendido e olhava para
cima) jorrava silenciosa e continuamente, no vale, uma cachoeira de águas
douradas e vermelhas, das fontes crepusculares do céu.
Ao meio do caminho desse pequeno panorama que meu olhar sonolento
abrangia, uma ilhazinha circular, profusamente arborizada, repousava no seio da
corrente.
Tanto se confundia a margem com a sombra
que era como se no ar estivessem suspensas,
127
tão parecida com um espelho era a água cristalina, que eu mal podia dizer em que
ponto da rampa da gleba esmeraldina começava seu domínio de cristal.
Minha posição possibilitava-me abranger num só olhar as extremidades de
leste e de oeste da ilha e notei uma diferença singularmente assinalável entre seus
aspectos. A de oeste era todo um radiante harém de belezas florais. Resplandecia e
se avermelhava, sob o olhar da oblíqua luz do sol, e suas flores eram como risos
claros. A relva era curta, elástica, de perfume suava e semeada de abróteas. As
árvores eram flexíveis, alegres, eretas, brilhantes, esbeltas e graciosas, de tipo e de
folhagem orientais, com a casca macia, lustrosa e semicolorida. Parecia haver em
torno de tudo um profundo toque de vida e alegria, e, embora brisas não soprassem
dos céus, contudo, todas as coisas se moviam através dos suaves revolteios de
inúmeras borboletas que poderiam confundir-se com tulipas aladas.
A extremidade oriental estava submersa na mais pesada treva. Uma negra
porém bela e tranqüila melancolia inundava ali todas as coisas. Eram as árvores de
cor escura, lúgubres de forma e atitude, retorcendo-se em contornos tristes, solenes,
espectrais, que sugeriam idéias de mortal amargura e prematura morte. A relva se
revestia de pesado matiz dos ciprestes e as pontas de sua lâminas pendiam,
lânguidas, mostrando aqui e ali montículos disformes, baixos e estreitos, e não muito
compridos, que tinham o aspecto de túmulos, embora não o fossem; não obstante,
por todos os lados, em torno deles, a arruda e o rosmaninho grimpavam. A sombra
das árvores caía pesadamente sobre a água e parecia enterrar-se dentro dela,
impregnando de treva as profundezas do elemento líquido. Imaginei que cada
sombra, à medida que o sol descesse cada vez mais, se separasse, taciturna, do
tronco que a produzira, para ser absorvida pela corrente, enquanto outras sombras,
saídas momentaneamente das árvores, tomavam o lugar de suas predecessoras,
assim sepultas.
Esta idéia, uma vez senhora de minha fantasia, excitou-me grandemente e eu
me perdi logo em devaneios. “Se alguma lha fosse encantada - disse comigo mesmo
-, seria esta. Ela é a guarida das poucas fadas gentis que ainda restam do naufrágio
da raça. Serão delas esses túmulos verdes? Ou abandonaram elas suas doces
vidas, como a humanidade sua? Ao morrer, não definham elas melancolicamente,
128
entregando a Deus, pouco a pouco, sua vida, como aquelas árvores vão lançando,
de si, sombra, exaurindo sua substância até a dissolução? O que a árvore
definhante é para a água que absorve sua sombra, tornando-se assim mais negra
com o que devora, não pode ser o mesmo a vida da Fada para a morte em que se
abisma?”
Quando eu assim cismava, de olhos semicerrados, enquanto o sol se punha
rapidamente para descansar e correntes remoinhantes moviam-se, apressadas, em
torno da ilha, levando sobre o seio grandes, deslumbrantes e brancas lascas da
casca do sicômoro, fragmentos que, por suas multiformes posições em cima da
água, uma imaginação viva poderia converter em qualquer coisa que lhe agradasse;
enquanto eu assim cismava, pareceu-me que o vulto de uma daquelas verdadeiras
fadas, a respeito das quais estivera refletindo, caminhava vagarosamente para a
sombra vinda da luz do lado ocidental da ilha. Permanecia de pé numa canoa
singularmente frágil e a impelia com o simples fantasma de um remo. Enquanto se
achava dentro da influência dos lentos raios solares, sua atitude parecia indicar
alegria, mas a tristeza a deformou logo que entrou na sombra. Deslizou
vagarosamente e, afinal, contornou a ilhota e tornou a entrar na região luminosa. “O
giro que acaba de ser dado pela Fada - continuei eu, a cismar - é o ciclo do breve
ano de sua vida. Vagou através de seu inverno e de seu verão. Achava-se um ano
mais próxima de sua morte; porque não deixei de observar que, ao penetrar na
região escura, sua sombra se desprendeu dela, e foi tragada pela negra água,
tornando ainda mais negro o seu negror.”
E de novo apareceu o bote com a Fada; mas na atitude desta se viam mais
cautela, mais incerteza e menos elástica alegria. Vogou de novo do meio da luz para
dentro da treva (que se adensou momentaneamente), e mais uma vez sua sombra
se desprendeu de seu corpo e caiu dentro da água cor de ébano, sendo absorvida
pelo seu negror. E outra e outra vez deu ela volta à ilha (enquanto o sol se lançava a
seu repouso), e a cada saída da luz havia mais tristeza, mais indistinto; e a cada
passagem para a treva dela se desprendia uma sombra mais escura, que se
submergia numa caligem mais negra. Mas afinal, quando o sol totalmente
desapareceu, a Fada, agora mero fantasma de sua forma primitiva, seguiu
129
desconsoladamente, com seu bote, para a região da maré de ébano. Se ela
conseguiu sair de lá sair, de alguma forma, não sei dizê-lo, porque a escuridão
afogou todas as coisas e não mais lhe avistei a mágica figura.
130
The Island of the Fay” de Edgar Allan Poe
113
Nullus enim locus sine genio est
Servius
“La musique”, says Marmontel, inthose “Contes Moraux” wich, in all our
translations, we have insisted upon calling “Moral Tales” as if in mockery of their
spirit- “la musique est le seul des talens qui jouissent de lui-même; tous les autres
veulent des têmoins.” He here confounds the pleasure derivable from sweet sounds
with the capacity for creating them. No more than any other talent, is that for music
susceptible of complete enjoyment, where there is no second party to appreciate its
exercise. And it is only in common with other talents that it produces effects which
may be fully enjoyed in solitude. The idea whitch the raconteur has either failed to
entertain clearly, or has sacrificed in its expression to his national love of point, is,
doubtless, the very tenable one that the higher order of music is the most thoroughly
estimated when we are exclusively alone. The proposition, in this form, will be
admitted at once by who love the lyre of his own sake, and for its spiritual uses. But
there is one pleasure still within the reach of fallen mortality - and perhaps only one -
which owes even more than does music to the accessory sentiment of seclusion. In
truth, the man who would behold aright the Glory of God upon earth most be in
solitude behold that glory. To me, at least, the presence - not of human life only - but
of life in any other form than that of the green things which grow upon the soil and
are voiceless - is a stain upon the landscape - is at war with the genius of scene. I
love, indeed, to regard tha dark valleys, and the grey rocks, ant the waters that
silenty smile, and the forests that sigh in uneasy slumbers, and the proud watchful
mountains that look down upon all - I love to regard these as themselves but the
113
POE, Edgar Allan.The island of Fay” in A short fiction of Edgar Allan Poe - an annotated edition/
edited by Stuart Levine and Susan Levine. University of Illinois press, Urbana and Chicago, 1990.
131
colossal members of one vast animate and sentiment whole - a whole whose form
(that of the sphere) is the most perfect and most inclusive of all; whose life is eternity;
whose thought is that of a God; whose enjoyment is knowledge; whose destinies are
lost in immensity; whose cognizance of ourselves is akin with our own cognizance of
the animalculae which infest the brain - a being which we, in consequence, regard as
purely inanimate and material, much in the same manner as these animalculae must
thus regard us.
Our telescopes, and our mathematical investigations assure us on every hand-
notwithstanding the cant of the more ignorant of the priesthood - that space, and
therefore that bulk, is an important consideration in the eyes of the Almighty. The
cycles in which the stars move are those best adapted for the evolution, without
collision of the greatest possible number of bodies. The forms of those bodies are
accurately such as, within a given surface, to include the greatest possible amount of
matter; - while the surfaces themselves are so disposed as to accommodate a
denser population than could be accommodated on the same surfaces otherwise
arranged. Nor is it any argument against bulk being an object with God, that space
itself is infinite: for there may be an infinity of matter to fill it. And since we see clearly
that the endowment of matter with vitality is a principle- indeed as far as our
judgments extend, the leading principle in the operations of Deity - it is scarcely
logical to imagine it confined to the regions of the minute, where we daily trace it, and
not extending to those of the august. As we find cycle within cycle without end - yet
all revolving around one far-distant centre which is the Godhead, may we not
analogically suppose, in the same manner, life within life, the less within the greater,
and all within the Spirit Divine? In short, we are madly erring, through self-esteem, in
believing man, in either his temporal or future destinies, to be of more moment in the
universe than that vast “clod of the valley” which he tills and contemns, and to which
he denies a soul for no more profound reason than that he does not behold it in
operation.
These fancies, and such as these, have always given to my meditations
among the mountains, and the forests, by the rivers and the ocean, a tinge of what
the everyday world would not fail to term the fantastic. My wanderings amid such
132
scenes have been many, and far-searching, and often solitary; and the interest with
which I have strayed trough many a dim deep valley, or gazed into the reflected
Heaven of many a bright lake, has been an interest greatly deepened by the thought
that I have strayed and gazed alone. What flippant Frenchman was it who said, in
allusion to the well-known work of Zimmerman, that, “la solitude est une belle chose;
mais il faut quelqu´un pour vous dire que la solitude est une belle chose.” The
epigram cannot be gainsaid; but the necessity is a thing that does not exist.
It was during one of my lonely journeyings, amid a far-distant region of
mountain locked within mountain, and sad rivers and melancholy tarns writhing or
sleeping within all - that I chanced upon a certain rivulet and island. I came upon then
suddenly in the leafy June, and threw myself upon the turf, beneath the branches of
an unknown odorous shrub, that I might doze as I contemplated the scene. I felt that
thus only should I look upon it- such was the character of phantasm which it wore.
On all sides- save to the west, where the sun was about sinking - arose the
verdant walls of the forest. The little river which turned sharply in its course, and was
thus immediately lost the sight, seemed to have no exit from its prison, but to be
absorbed by deep green foliage of the trees to the east - while in the opposite quarter
(so it appeared to me as I lay at length and glanced upward) there poured down
noiselessly and continuously into the valley, a rich golden and crimson water-fall from
the sunset fountains of the sky.
About midway in the short vista which my dreamy vision took in, one small
circular island, profusely verdured, reposed upon the bosom of the stream.
So blended bank and shadow there,
That each seemed pendulous air -
so mirror-like was the glassy water, that it was scarcely possible to say at what point
upon the slope of the emerald turf its crystal dominion began.
My position enabled me to include, in a single view both the eastern and
western extremities of the islet; and I observed a singularity-marked difference in
their aspects. The latter was all one radiant harem of garden beauties. It glowed and
blushed beneath the eye of the slant sunlight, and fairly laughed with flowers. The
grass was short, springy, sweet-scented, and Asphodel-interspersed. The trees were
133
lithe, mirthful, erect- bright, slender, and graceful - of eastern figure and foliage, with
bark smooth, glossy and parti-coloured. There seemed a deep sense of life and joy
about all; and although no airs blew from out of Heavens, yet everything had motion
trough the gentle sweepings to and fro of innumerable butterflies, that might have
been mistaken for tulips with wings.
The other or eastern end of the isle was whelmed in the blackest shade. A
sombre, yet beautiful and peaceful gloom here pervaded all things. The trees were
dark in colour and mournful in form and attitude - wreathing themselves into sad,
solemn, and spectral shapes, that conveyed ideas of mortal sorrow and untimely
death. The grass wore deep tint of cypress, and the heads of its blades hung
droopingly, and, hither and thither among it, were many small unsightly hillocks, low,
and narrow, and not very long, that had the aspect of graves, but were not; although
over and all about them the rue and rosemary clambered. The shade of the trees fell
heavily upon the water, and seemed to bury itself therein, impregnating the depths of
the element with darkness. I fancied that each shadow, as the sun descended lower
and lower separated itself sullenly from the trunk that gave it birth; while other
shadows issued momently from the trees, taking the place of their predecessors thus
entombed.
This idea, having once seized upon my fancy, greatly excited it, and I lost
myself forthwith in reverie. “If ever island were enchanted,”- said I to myself - “this is
it. This is the haunt of the few gentle Fays who remain from the wreck of the race.
Are these green tombs theirs - or do they yield up their sweet lives as mankind yield
up their own? In dying, do they not rather waste away mournfully; rendering unto God
little by little their existence, as these trees render up shadow after shadow,
exhausting their substance unto dissolution? What the wasting tree is to the water
that inibes its shade, growing thus blacker by what it preys upon, may not the life of
the Fay be to the death witch engulfs it?”
As I thus mused, with half-shut eyes, while the sun sank rapidly to rest, and
eddying currents careered round and round the island, bearing upon their bosom
large, dazzling, white flakes of the bark of the sycamore - flakes which, in their
multiform positions upon the water, a quick imagination might have converted into
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anything it pleased - while O thus mused, it appeared to me that the form of one of
those very Fays about whom I had been pondering, made its way slowly into the
darkness from out the light at the western end of the island. She stood erect, in a
singularly fragile canoe, and urged it with the mere phantom of an oar. While within
the influence of the lingering sunbeams, her attitude seemed indicative of joy - but
sorrow deformed it as she passed within the shade. Slowly she glided along, and at
length rounded the islet and re-entered the region of light. “The revolution which has
just been made by the Fay,” continued I musingly - “is the cycle of the brief year of
her life. She has floated through her winter and through her summer. She is a year
nearer unto Death: for I did not fail to see that as she came into the shade, her
shadow fell from her, and was swallowed up in the dark water, making its blackness
more black.”
And again the boat appeared, and the Fay; but about the attitude of the latter
there was more of care and uncertainty, and less elastic joy. She floated again from
out the light, and into the gloom (which deepened momently) and again her shadow
fell from her into the ebony water, and became absorbed into its blockness. And
again and again she made the circuit of the island, (while the sun rushed down to his
slumbers) and at each issuing into the light, there was more sorrow abort her person,
while it grew feebler, and far fainter, and more indistinct; and at each passage into
the gloom, there fell form her a darker shade, which became whelmed in a shadow
more black. But at length, when the sun had utterly departed, the Fay, now the mere
ghost of her former self, went disconsolately with her boat into the region of the
ebony flood, - and that she issued thence at all I cannot say, - for darkness fell over
all things, all things, and I beheld her magical figure no more.
135
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